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TIM

MARVIM


O
SEGREDO
TEMPLÁRIO


2016
ÍNDICE

Segredos Ocultos
Deus le Volt!
A missão secreta dos cavaleiros templários
No templo de Salomão
Mais mistérios...
A prisão do demônio
O fim dos tempos
Pelos esgotos de Paris
Malleus Maleficarum
A morte de Jacques de Molay
A primeira torre
A segunda torre
A terceira torre
A quarta torre
A quinta torre
A sexta torre
O tesouro dos templários
A sétima torre
Epílogo
Segredos Ocultos

Desde antes do amanhecer, a elegante pracinha em frente à igreja de Santa


Maria delle Grazie, em Milão, já se encontrava tomada por um admirável
ajuntamento de curiosos. As estrelas ainda cintilavam na madrugada, quando as
pessoas começaram a chegar por ali feito formigas atrás de açúcar. Todos
queriam ver de perto aquele santo homem, que alguns diziam ser a reencarnação
do próprio messias.
Naquela manhã fria de março, os frades dominicanos do convento de Santa
Maria delle Grazie acordaram agitados. Não se sentiam assim, desde que haviam
sido mencionados de passagem pelo escritor norte-americano Dan Brown em seu
romance O Código Da Vinci, que se tornara um best-seller internacional.
Caminhavam de um lado ao outro pelos corredores do claustro, tentando
disfarçar a ansiedade, vinham espiar a multidão aglomerada diante da igreja e
inúmeras vezes chegaram mesmo a sair para a rua, a fim de procurar descobrir
alguma notícia fresca a respeito da chegada de Beato Simão, que peregrinava
pela Itália e vinha se hospedar por alguns dias naquele retiro espiritual. A
presença de um líder religioso daquela envergadura enchia os frades de
curiosidade e excitação.
Embora uma missa estivesse marcada para as nove horas da manhã, ela
precisou ser adiada e só teve início após o meio-dia, quando Beato Simão
finalmente chegou a Santa Maria delle Grazie. O homem vinha cercado por
alguns discípulos e caminhava com muita dificuldade, pois todos queriam tocar a
sua mão ou as suas vestes para serem abençoados. Depois que ele trouxera de
novo à vida a pequena Paola, filha de um casal de operários da cidade de Bari,
dada como morta pelos médicos, a sua fama crescera monstruosamente. Já
ninguém mais desconfiava de que Beato Simão era capaz de fazer milagres e
muitos acreditavam que talvez ele pudesse ser o próprio Cordeiro anunciado por
São João no livro do Apocalipse, o filho vivo de Deus, enviado pela segunda vez
ao mundo para salvar os homens do flagelo prometido no final dos tempos.
Beato Simão tinha cerca de quarenta anos, era alto, magro e possuía o rosto
todo descarnado. Trazia os cabelos compridos, negros e lisos, muito gordurosos
e sujos. A sua barba mal-escanhoada contava sete dias e lhe emprestava um
aspecto geral de desleixo, de completo desprezo pela própria aparência. Vestia
uma puída túnica marrom, feita de pano grosseiro, costurada em uma só peça e
atada à cintura com uma corda. Numa das mãos, segurava um pedaço comprido
de pau, que lhe fazia às vezes de cajado e, na outra, empunhava uma Bíblia
muito mal conservada. Um tosco crucifixo de madeira, pendurado ao pescoço
por um velho cadarço de botina, ornava-lhe o peito franzino, enquanto que seus
pés caminhavam sobre um par de sandálias em tão lamentável estado, que outra
pessoa qualquer, com um mínimo de bom senso e algumas gotas de vaidade nas
veias, já as teria lançado ao lixo há muito tempo. Porém, o que mais chamava a
atenção naquela figura invulgar era o fato de Beato Simão não possuir
sobrancelhas, ou porque as arrancasse ou ainda por ser algum defeito de
nascença. Seja como for, isto lhe dava uma aparência bastante pavorosa,
ressaltando demais o seu olhar desvairado e ligeiramente estrábico, o qual
parecia não se fixar em local algum.
Com muito custo, Beato Simão conseguiu entrar na igreja, abrindo caminho
por entre a multidão excitada, que gritava seu nome e o aplaudia. Não havia
lugar para mais ninguém ali dentro e os próprios corredores laterais
encontravam-se apinhados de fiéis, ansiosos para serem abençoados pelo
taumaturgo. Todos os bancos da frente estavam ocupados pelos frades do
convento, que vestiam seu tradicional hábito branco, coberto por uma capa
escura. Frei Abelardo era talvez o menos entusiasmado dentre eles e comentava
em voz baixa com seu colega de banco:
- Este não me engana... não passa de outro charlatão!
Fazia mais de trinta anos que o velho frei Abelardo entrara para a Ordem
dos Pregadores, ou Ordo Praedicatorum, como costumava se referir aos
dominicanos. Insigne latinista, ele não perdia a oportunidade de florear suas
conversações com trechos dos mestres queridos e nada lhe dava mais prazer do
que citar seus autores favoritos no original, como Cícero, Ovídio, Horácio,
Tibulo, Sêneca, Santo Agostinho e Tito Lívio. Muitos o achavam pedante e até
mesmo turrão, pois quando defendia uma ideia não havia maneira de convencê-
lo do contrário. Ainda assim, era adorado por todos no convento e ninguém
conseguia se zangar com ele por mais de dez minutos.
Quando chegou o momento da prédica, o padre que celebrava a missa
passou a palavra a Beato Simão. Ele ergueu-se, caminhou com vagar até o
púlpito e permaneceu durante alguns segundos admirando a plateia atenta. O
silêncio era tamanho, que se escutavam os pombos arrulhando no telhado, uma
vez que ninguém queria perder frase alguma do pregador. Em seguida, ele abriu
os braços em forma de cruz, como se tentasse abraçar todos os presentes, e disse:
- Meus irmãos e irmãs...
Depois, uniu novamente as mãos diante dos lábios, como quem faz uma
prece respeitosa, e manteve-se assim por alguns instantes, de olhos fechados, até
que começou a pregar. O assunto predileto de Beato Simão dizia respeito ao final
dos tempos, o qual estava próximo, e iria arrastar para os abismos infernais uma
legião gigantesca de pecadores que não se arrependessem de suas faltas. Tinha
um grande poder persuasivo e descrevia as cenas apocalípticas com tanta
imaginação e colorido, que provocava horror ao mais incréu dos homens. Dizia
ter sido enviado por Deus para mostrar a seus filhos as coisas terríveis que
estavam para acontecer muito em breve:
- Temei o Senhor e dai-lhe glória, porque é chegada a hora do seu juízo, e
adorai aquele que fez o céu, a terra, o mar e as fontes das águas.
Quando Beato Simão se encontrava no auge de sua prédica, descrevendo os
funéreos acontecimentos do fim do mundo, uma mulher ainda jovem, conduzida
pelo braço por uma menina de uns dez anos de idade, entrou na igreja batendo
com uma das mãos nos seios e gritando aflita:
- Luz! Luz! Dê-me luz, se és mesmo o Filho de Deus.
Todos os presentes voltaram-se para a mulher, que seguia descalça pelo
corredor central em direção ao altar. Alguns homens levantaram-se para detê-la,
mas Beato Simão fez um gesto, pedindo que ela se aproximasse.
- Mulher, qual o motivo de tua aflição?
- Mestre, perdi minhas vistas há três anos e, desde que meu marido partiu,
no último inverno, tenho passado todo tipo de necessidade. Antes, eu era criada
na casa de uma boa senhora, mas agora não consigo mais emprego. Só Deus
sabe o que tenho feito para alimentar a minha filha. Por piedade, se tens mesmo
o poder de curar como dizem, estende tua mão sobre os meus olhos e faça-os
enxergar novamente.
Muitas pessoas que ainda se encontravam na praça passaram a se aglomerar
na porta da igreja, disputando um cantinho qualquer de onde pudessem ver o que
estava acontecendo lá dentro. Beato Simão colocou a mão direita espalmada
sobre a cabeça da cega e indagou:
- Acreditas em Deus, nosso Pai, fonte infinita de bondade e salvação dos
homens?
- Sim, acredito, com toda a fé de meu coração.
- Acreditas no seu Filho bem-amado, que veio ao mundo para expiar os
pecados da humanidade e voltará muito em breve a fim de livrar os virtuosos das
penas do inferno?
- Sim, sim!
- Acreditas na santa igreja católica, na ressurreição da carne, na vida eterna?
- Sim, acredito, em tudo isso eu piamente acredito!
Ao ouvir estas palavras, Beato Simão dirigiu-se até uma pia de mármore
que continha água benta e se localizava junto ao corredor lateral da igreja. Os
seus discípulos foram abrindo caminho entre a multidão para dar passagem ao
mestre. Algumas pessoas conversavam em voz baixa, tentando entender o que o
taumaturgo pretendia. Todos os fiéis, porém, permaneciam com os olhos
cravados em Beato Simão, que molhou dois dedos na pia e fez lentamente o
sinal-da-cruz. Depois, olhando para a cega e sua filha, que permaneciam junto ao
altar, proferiu:
- Aproxima-te, mulher!
Quando ela chegou ali, Beato Simão cobriu-lhe os olhos com a mão
esquerda, enquanto segurava com a destra o crucifixo de madeira que trazia no
peito. Cerrou as próprias pálpebras e pôs-se a pronunciar palavras em tom muito
baixo, como se cochichasse com Deus. Por fim, mergulhou o rosto da cega na
água benta e disse:
- Mulher, tua fé te curou!
Ela então descerrou os olhos e a luz invadiu suas pupilas e íris, as quais se
dilataram e contraíram, feito uma ostra em que se pingou algumas gotas de
limão. Seus olhos arregalaram-se perplexos, sua boca começou a tremer e seus
peitos arfavam deveras, lutando para pularem fora do vestido. Finalmente, sem
mais conseguir conter a emoção, ela passou a chorar de alegria e caiu de joelhos
sobre o piso, para beijar os pés daquele homem extraordinário. Beato Simão fez
com que ela se levantasse e lhe disse:
- Vá, mulher, e diga a todos que Deus te curou!
A comoção entre a plateia foi grande, estupenda. As pessoas não sabiam
direito o que fazer, se aplaudiam, se davam vivas, se carregavam o bom homem
nos ombros pelas ruas da cidade. Nisso, um dos discípulos de Beato Simão
tomou a palavra e, aproveitando o clima de euforia, bradou:
- Caríssimos, talvez vocês não saibam, mas nós também fazemos um
trabalho de assistência a nossos irmãos necessitados, recolhendo dinheiro e
distribuindo alimentos às famílias carentes. Para levarmos adiante esta obra de
amor, contamos com a generosa colaboração de todos. Vou deixar aqui na frente
um cesto e, quem puder, traga até ele a sua doação, por menor que seja. Que
Deus abençoe a todos.
A princípio, as pessoas foram se levantando timidamente de seus lugares
para fazerem os donativos, mas, depois de alguns minutos, toda gente abriu as
carteiras e as filas tornaram-se imensas. As cédulas iam sendo lançadas dentro
do cesto, amontoando-se umas sobre as outras; era tanto dinheiro, que parte dele
começou a cair no chão de mármore. Um dos discípulos de Beato Simão
apareceu com uma mala enorme e a abriu ao lado do cesto, para que as pessoas
pudessem fazer as suas doações com mais conforto. Quando toda aquela
generosidade chegou ao cabo, dois homens apanharam rapidamente a mala mais
o cesto e os levaram à sacristia. A partir daí, a cerimônia não se estendeu por
muito tempo. Por fim, Beato Simão atirou sua bênção sobre a plateia satisfeita,
que passou a esvaziar a igreja aos poucos e cada qual foi cuidar de sua vida na
santa paz do Senhor.
Após a missa, os frades dominicanos conduziram seu célebre hóspede para
o convento. Beato Simão encantou-se com a beleza do lugar, louvando-lhes a
tranquilidade do retiro, imprescindível a uma vida dedicada ao estudo e à oração.
Levaram-no em seguida aos seus aposentos, uma cela simples, onde havia
apenas uma cama, um baú e uma cruz pendurada na parede vazia. Pouco depois,
um sino anunciou o almoço e todos desceram ao refeitório.
A refeição não foi tão modesta, como convinha àqueles homens devotados a
uma vida monástica. Sobre a mesa, uma terrina de minestrone, típica sopa
italiana com feijão branco, alho, repolho, presunto picado, cenoura, abobrinha,
tomate, entre outros legumes, lançava no ar um aroma saboroso de comida
caseira, que excitava os apetites. Numa travessa ao lado, havia canelones
gratinados ao forno. Como prato principal, o cozinheiro preparara um risoto, que
era uma iguaria muito apreciada pelos frades do convento. Além disso, havia
também alcachofras assadas, frango grelhado, pão e muito queijo.
Frei Abelardo sentou-se ao lado do jovem Michael, ainda um postulante,
que viera para Santa Maria delle Grazie há pouco mais de um ano. Apesar da
grande diferença de idade entre eles, os dois tornaram-se grandes amigos, tanto
que viviam juntos por toda parte. Abelardo tinha cerca de sessenta anos, mas
aparentava ser bem mais velho. Trazia os cabelos muito brancos e o rosto
redondo quase sempre rosado, coloração que se acentuava quando ele bebia
vinho, um de seus pecadilhos, conforme costumava dizer. A sua altura ficava um
pouco abaixo da média ordinária dos homens, algo em torno de um metro e
sessenta e cinco ou pouco menos, e era bem rechonchudo, para não dizer
gorducho, embora ele nunca tenha feito caso disso.
Ao contrário do que se poderia imaginar, Beato Simão comeu muito e, por
assim dizer, feito um porco. O piso ao redor de sua cadeira ficou cheio de
migalhas de pão derrubadas por ele, como se estivesse dando comida para as
galinhas. Também a toalha não escapou à sua voracidade; não que ele a tivesse
comido, mas a deixou completamente empapada de sopa, pois a cada colherada
metida na boca, algumas gotas do caldo acabavam respingando sobre a mesa.
Seus modos pouco refinados causaram certo constrangimento entre os frades, os
quais se entreolhavam de soslaio, tentando esconder um sorriso de escárnio dos
lábios. Beato Simão parecia não ser íntimo de alguns talheres, como a faca, por
exemplo, uma vez que destrinchou o frango com as mãos, quando este lhe foi
servido. Como a gordura escorresse pelos seus dedos longos e ossudos, por mais
de uma vez ele os enxugou nas próprias vestes, que, aliás, não primavam pelo
asseio. Frei Abelardo não deixou de notar isto e comentou baixinho com
Michael:
- Este homem come feito um bárbaro!
Depois, como era espirituoso e um tanto gozador, levantou o copo de vinho
e propôs um brinde ao hóspede:
- À saúde de nosso ilustre conviva, que, como escreveu Horácio, “cenabat
tribus ursis quod satis esset”.[1]
Todos riram satisfeitos, inclusive Beato Simão, certamente porque não
entendia nada de latim.
Após o almoço, os frades voltaram à sua rotina: uns foram orar na igreja,
outros se dirigiram à biblioteca ou recolheram-se às suas celas, enquanto que os
demais passaram ao claustro, a fim de conversar ou descansar um pouco,
enquanto faziam a digestão. Era este um local muito agradável, onde os
religiosos podiam passear por corredores abertos para um pátio interno, com
belas árvores e uma singela fonte. Frei Abelardo e Michael caminhavam lado a
lado no claustro, respirando o perfume revigorante do jardim, quando o mais
velho disse:
- Espere-me aqui um minuto, pois volto já. Preciso lhe falar sobre aquele
assunto de ontem...
Dizendo isso, sumiu dentro do convento. O assunto de ontem era um
segredo que frei Abelardo desejava revelar a Michael, mas que ele ainda nada
adiantara, pois os dois não tinham ficado a sós desde então. O rapaz abriu
aleatoriamente as Centúrias de Nostradamus, volume que trazia nas mãos, e leu
a seguinte quadra:

“Na fundação da nova seita,


Os ossos do grande Romano serão encontrados;
Um sepulcro coberto de mármore aparecerá,
A terra irá tremer em abril, mal enterrada.”

Michael tinha verdadeira paixão pelos livros e gostava, sobretudo, deste
tipo de literatura, onde pairava certa névoa misteriosa de ocultismo. Não chegara
a compreender o significado daquela quadra, como tantas outras escritas pelo
célebre francês. Mesmo assim, era um dos seus autores de cabeceira, apesar da
opinião desfavorável de frei Abelardo, o qual desprezava tudo que não tivesse o
perfume ático dos clássicos gregos e romanos.
- Não perca tempo com isso! Como dizia o grande Cícero, “errare malo
cum Platone quam cum istis vera sentire”.[2]
Enquanto Michael esperava no claustro pelo retorno de frei Abelardo,
Beato Simão e Manfredino finalmente haviam conseguido se livrar de alguns
frades grudentos e entraram no banheiro sem serem vistos por ninguém.
Manfredino tinha cerca de quarenta anos e era o discípulo favorito do
taumaturgo. Os dois conheceram-se num manicômio, onde aquele se encontrava
internado. O médico que o assistia já não acreditava mais em possibilidade de
cura, pois o quadro clínico do seu paciente não apresentava qualquer sinal de
melhora. Nem altas doses de medicação, nem tratamento de eletrochoques
produziam resultado algum para acalmar Manfredino, que precisava ficar
amarrado numa camisa-de-força para não agredir os demais internos. Beato
Simão estava de passagem pela vila e, como uma das enfermeiras do hospício já
havia sido testemunha de seu poder extraordinário, pois ele curara a mãe dela de
um mal no estômago, a moça solicitou ao diretor do manicômio autorização a
fim de que o homem viesse ver o doente. A autorização foi dada e chamaram
Beato Simão para ajudar o pobre infeliz. Tão logo ele pôs os olhos em
Manfredino, teve certeza de que se tratava de um caso de possessão demoníaca.
Pediu uma marreta e ordenou a todos que deixassem a sala. Os dois
permaneceram a sós por mais de uma hora e ninguém nunca soube direito o que
se passou lá dentro, embora pudessem imaginar pelos gritos pavorosos ouvidos.
De qualquer forma, quando a porta foi aberta, Manfredino estava manso feito um
carneirinho. Dias depois, recebeu alta e a primeira coisa que fez foi procurar
Beato Simão para se juntar aos seus seguidores.
Beato Simão e Manfredino entraram no banheiro rindo muito e falando
mais alto do que convinha ao ambiente sisudo do convento. Os dois tinham
bebido bastante vinho durante o almoço e estavam com a consciência um tanto
alterada pelo álcool. Parecia que debochavam de algo ocorrido durante a refeição
ou a missa. Manfredino dirigiu-se até o mictório e, enquanto urinava, disse:
- Agora falando sério, preciso do dinheiro para pagar a mulher.
- Quanto foi o combinado? Indagou Beato Simão.
- Duzentos! Mas esta é mesmo muito convincente, não acha?
- Acho que você deveria levantar a calça, pois está lhe aparecendo o rego!
Meio desajeitado, Manfredino puxou-a para cima pelo cinto, porém acabou
urinando na própria perna. Depois, veio lavar as mãos na pia. Tinha-as grossas e
cascudas, como um peixe escamoso. Por alguns instantes, permaneceu
admirando no espelho o seu rosto precocemente envelhecido, os dentes amarelos
e com excesso de tártaro. Trazia os cabelos cada vez mais grisalhos e em
constante desalinho. Tentou assentá-los com um pouco d’água, mas não obteve
grande resultado. Em seguida, meteu o rosto debaixo da torneira e o enxugou
com uma toalha felpuda que encontrou pendurada num gancho. Beato Simão
tirou do bolso um grosso maço de notas e deu algumas a Manfredino:
- Entregue isso à vadia e mande-a desaparecer! Pagando esse preço, o que
vai sobrar para os pobres?
Os dois riram debochadamente. Porém, quando iam sair do banheiro,
ouviram um espirro vindo de um dos sanitários, dentre os vários ali existentes,
todos fechados por portas que não desciam até o piso. Beato Simão alarmou-se,
arregalando seus grandes olhos um tanto quanto estrábicos. Colocando o dedo
indicador diante do nariz, pediu para Manfredino fazer silêncio e abriu a porta do
banheiro, que rangeu baixinho. Depois, caminhou alguns passos e a bateu outra
vez, como se tivessem ido embora.
Logo após, frei Abelardo saiu do sanitário e deu de cara com os dois
homens, que o fitavam com feições nada amistosas. Ao vê-los ainda ali, o frade
levou um susto enorme e seu rosto tornou-se branco feito sorvete de baunilha.
Fez um leve cumprimento com a cabeça, procurando dominar o seu nervosismo,
e dirigiu-se ao lavatório. Beato Simão abriu-lhe passagem, exclamando com voz
enérgica:
- Deus te abençoe!
- Como disse? Respondeu frei Abelardo.
- Deus te abençoe! E fez o sinal-da-cruz em sua direção.
- Perdoe-me, pois estou velho e não ouço quase mais nada. Fiquei surdo
com a idade. Agora, se me derem licença, preciso voltar às minhas orações!
Dizendo isso, frei Abelardo saiu do banheiro rapidamente, deixando os dois
a sós. Beato Simão esfregava a testa, preocupado e pensativo, sem acreditar
naquela desculpa, enquanto que Manfredino mordiscava os lábios, aguardando
alguma ordem de seu chefe.
- Isto pode não ser bom aos nossos negócios, ponderou o taumaturgo.
- O que devemos fazer para ele não abrir o bico?
- Não sei. Vamos deixar nas mãos de Deus...
E fitando-o com uns olhos macabros, repetiu:
- Vamos deixar nas mãos de Deus...
- Entendo o que você quer dizer, mestre, entendo perfeitamente...
Enquanto isso, frei Abelardo voltou para o jardim do claustro, onde
Michael continuava esperando por ele. Havia prometido revelar um segredo ao
amigo, mas agora eram dois. Se antes apenas desconfiava de Beato Simão,
depois de tudo o que ouvira já não tinha mais qualquer dúvida de que ele era na
verdade um grande embusteiro. Ao encontrar-se com Michael, este o achou
bastante alterado:
- O que aconteceu? Parece ter visto um fantasma!
- Dois fantasmas, meu caro, e pelo jeito, escapei de boa!
- Não entendo...
- Acabei de encontrar no sanitário o tal sujeito que dizem ser milagreiro,
acompanhado de um daqueles discípulos imbecis e, sem querer, ouvi a conversa
dos dois. Como bem disse São Mateus, “adtendite a falsis prophetis, qui veniunt
ad vos in vestimentis ovium, intrinsecus autem sunt lupi rapaces”[3]. Sabia, meu
caro, que eles pagaram àquela mulher para se fazer passar por cega?
- Não diga? Nesse caso, o melhor é alertar as autoridades sobre a verdade, ir
aos jornais e à televisão a fim de desmascarar este pilantra, que está se
aproveitando da fé ingênua do povo.
- Não, meu amigo, embora a minha vontade inicial também tenha sido esta.
De nada vai adiantar abrirmos a boca sem provas, pois será a nossa palavra
contra a deles. Qual lado você acha que a opinião pública ficaria, do célebre
taumaturgo capaz de realizar prodígios assombrosos e que alguns acreditam,
inclusive, ser a reencarnação do próprio messias, ou do frade caduco e
despeitado?
- É, você tem razão...
- Por ora, deixemos para lá! Venha, pois quero lhe mostrar algo que vai
fazer seu queixo cair...
Os dois entraram no convento e dirigiram-se à biblioteca. Àquela hora da
tarde, não havia muitos frades ali, principalmente por causa da presença do
insigne hóspede, que monopolizava todas as atenções. Os religiosos seguiam-no
aonde ele fosse, ansiosos para serem abençoados por seu hálito venerando. Os
poucos que se encontravam na biblioteca, mantinham-se praticamente alheios a
tudo mais, concentrados em suas leituras. Frei Abelardo e Michael penetraram
em silêncio no interior da ampla sala, como convinha ao recinto, e caminharam
até uma pequena saleta, ao fundo da biblioteca, que servia como depósito de
jornais velhos, livros estragados e outros papéis malcheirosos. Após se certificar
de que ninguém os observava, Frei Abelardo abriu a porta com uma chave que
trazia no bolso e os dois ingressaram lá dentro. Apertou o interruptor para
acender a luz, trancou a porta e disse:
- Há quase trinta anos, quando eu ainda era jovem como você e não tinha
estes olhos céticos de hoje, um velho frade contou-me isto que pretendo lhe
revelar. Chamava-se Felício o bom homem e estava morrendo. Como não queria
levar para a tumba seu segredo, trouxe-me aqui e me confiou o que pretendo lhe
confiar.
- Nossa, quanto mistério! Não vai me dizer que você está morrendo
também? Indagou Michael gracejando.
- Ninguém sabe o dia de amanhã, meu caro amigo. De qualquer forma,
prometa-me que não comentará nada com pessoa alguma a respeito do que estou
para lhe mostrar.
- Mas por que isso? Você me conhece e sabe do meu caráter.
- Prometa, Michael!
- Está certo, eu prometo! Tem a minha palavra. Agora, fale de uma vez,
você está me matando de curiosidade!
Frei Abelardo dirigiu-se até uma estante, que se encontrava encostada a
uma das paredes, e a arrastou um pouco para o lado, com grande esforço.
- Já não tenho mais as forças de antigamente...
No local onde estava a estante, bem escondido pelas placas de madeira atrás
dela, Michael viu que existia na parede um buraco com pouco mais de cinquenta
centímetros de altura. O velho frade pôs-se de gatinhas e pediu que o amigo o
acompanhasse. Ao chegarem do outro lado, ele acendeu a luz e seu segredo
finalmente foi revelado.
Havia uma sala repleta de estantes com livros entulhados até o teto. A
princípio, Michael ficou pasmo, boquiaberto. Era incrível como mais ninguém
ali no convento soubesse da existência daquela biblioteca. Durante alguns
momentos, ele permaneceu mudo, admirando a enorme quantidade de volumes
empilhados caoticamente pelas prateleiras. Foi frei Abelardo quem quebrou o
silêncio:
- E então, o que acha... gostou?
- É... incrível... nem tenho palavras...
- Fica sendo o nosso segredo. Esta biblioteca possui obras muito
interessantes e raras. Inclusive, há aqui uns três ou quatro incunábulos...
Michael seguiu até o fundo da sala e retirou de uma estante um livro ao
acaso. Era uma antiga edição bilíngue das obras completas de Horácio, escrita
em português e latim, que havia sido publicada em Lisboa no ano de 1639. O
moço recolocou o livro em seu lugar após o ter folheado com curiosidade e
indagou:
- Mas por que motivo você me pediu para não revelar este segredo a
ninguém? Afinal de contas, trata-se apenas de uma biblioteca, que seria mais útil
se pudesse ser utilizada por todos aqui do convento.
- Assim fiz, pois esta era a vontade de frei Felício, que deveria ter os seus
motivos, embora nunca me tivesse dito nada a respeito. Ele me recomendou o
mais estrito segredo, como eu pedi a você. Só Deus sabe quantas vezes estive
para dar com a língua nos dentes. Apenas o fiz agora, porque alguém do
convento precisa conhecer a existência desta biblioteca, alguém que seja o seu
guardião, como eu fui durante tanto tempo e como frei Felício o fora antes de
mim. Não sabemos o dia de amanhã e, na minha idade, posso faltar de uma hora
para outra...
- Ora, não fale assim! Você é forte e saudável como um touro!
- Quem me dera, meu amigo, quem me dera... Sabe, por muito tempo eu
imaginei que esta biblioteca escondesse algum segredo espantoso, algum
mistério que precisava ser mantido longe dos olhos curiosos do mundo. Aqui
passei trancado inúmeras noites, lendo livros e mais livros, na esperança de
solucionar este enigma. Como é de seu conhecimento, durante anos coube à
Ordem dos Pregadores a incumbência de supervisionar o Tribunal da Santa
Inquisição...
- Sim, eu sei disso...
- Pois a minha ideia fixa era descobrir no meio de todos estes volumes
algum documento que revelasse segredos mantidos em sigilo pelos inquisidores.
Contudo, confesso o meu vergonhoso fracasso...
- Ora, talvez não haja nada para ser encontrado aqui. Diga-me, mais algum
frade sabe da existência desta biblioteca?
- Creio que não. Nunca toquei no assunto com nenhum deles e tampouco
ouvi alguém se referir a ela.
Os dois permaneceram ali por mais alguns minutos até que frei Abelardo
despediu-se do amigo, pois precisava terminar de escrever um texto sobre a
morte de Sêneca para uma revista literária publicada na internet. Antes de sair,
porém, entregou uma cópia das chaves a Michael, recomendando-lhe que ele
fosse o mais discreto possível e frequentasse a biblioteca apenas à noite, quando
todos os frades já estivessem recolhidos em suas celas.
- Posso voltar esta noite? Indagou o rapaz ansioso.
- Volte quando quiser, agora ela é toda sua! Talvez você tenha mais sorte do
que eu tive e descubra o segredo que procurei a vida inteira...
Quando todos já se encontravam em seus aposentos, Michael abriu
silenciosamente a porta do seu quarto, certificou-se de que não havia mais
ninguém pelos corredores e dirigiu-se para a biblioteca em bicos de pés. O
convento estava bastante escuro e o único ruído ouvido era o vento gelado
chocalhando as janelas. O rapaz acendeu a pequenina lanterna de seu chaveiro,
mas a luz dela era tênue demais e mal conseguia iluminar alguns passos adiante.
Além disso, deitava sobre as paredes umas sombras sinistras e fantasmagóricas,
que se contorciam de forma terrível, feito espíritos agonizantes a padecer na
podridão do inferno. Talvez ele estivesse um pouco impressionado, tanto que
deteve seus passos várias vezes, pois tinha a nítida sensação de que o estavam
seguindo. Ao abrir a porta da saleta, ao fundo da biblioteca, podia jurar que
alguém o espiava por trás das estantes. Chegou mesmo a mirar o facho de luz de
sua lanterna naquela direção, mas não descobriu nada. Depois, entrou na saleta e,
arrastando a estante até ter espaço suficiente para passar seu corpo, penetrou
ajoelhado naquela enigmática biblioteca.
Após acender a luz, Michael começou a retirar ao acaso alguns livros das
prateleiras. Era um jovem alto, bonito, com belos olhos azuis lembrando uma
manhã ensolarada de domingo. Trazia os cabelos escuros, compridos e lisos, que
ele penteava tanto para a direita, quanto para a esquerda, pois lhe ficava bem de
qualquer maneira. Tinha o corpo rijo, braços e pernas fortes, tronco atlético.
Ainda não chegara aos trinta anos e talvez passasse por vinte e cinco, pois era
daqueles que demoram a envelhecer. Uma de suas características físicas mais
peculiares é que ele não possuía lóbulo nas orelhas. Certa feita, lera em algum
lugar que os cátaros, uma seita herética cristã muito importante durante a Idade
Média, também não possuíam lóbulos. Segundo se dizia, todos os seus
descendentes ainda hoje apresentavam esta distinção. Talvez por isso mesmo,
Michael nutria tanto interesse pela trágica história deles. No ano de 1208, o
misericordioso papa Inocêncio III ordenou que os cristãos pegassem em armas e
marchassem numa cruzada para lutar contra os cátaros hereges. Mais de trinta
mil soldados atenderam a ordem de Sua Santidade, invadiram as aldeias ao sul
da França e massacraram sem piedade milhares de pessoas inocentes. Conta-se
que um dos guerreiros teria perguntado:
- Mas como podemos diferenciar os heréticos dos verdadeiros seguidores da
fé?
Ao que respondeu o representante do papa:
- Matem a todos, Deus reconhecerá os seus!
Fazia quase três horas que Michael se encontrava dentro da biblioteca,
procurando por obras raras e interessantes, quando seus olhos se fixaram por
acaso num livro no alto da estante. Não havia quaisquer dizeres em sua lombada,
apenas um desenho de dois cavaleiros montados sobre um único cavalo.
Imediatamente, ele teve a certeza de que tal volume se referia aos templários,
pois este era um antigo símbolo da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo.
Michael nutria verdadeira paixão pelo tema e, inclusive, já visitara as ruínas de
alguns de seus castelos, como Tomar, em Portugal, e Ponferrada, na Espanha.
Como o livro se achava quase junto ao teto, o rapaz teve de subir em uma
cadeira para apanhá-lo. Porém, quando o tomou entre seus dedos, teve uma
grande decepção. Não se tratava de um volume sobre os cavaleiros templários,
como imaginava, mas de um livro falso, feito de madeira em uma forma vazada,
exatamente como esses vistos em fitas de cinema, apenas para figurar no
cenário. Acreditando ser algum tipo de estojo usado para guardar antigas
relíquias, Michael pôs-se na ponta dos pés sobre a cadeira, a fim de ver se algo
não ficara esquecido na estante, atrás do livro falso. Para sua surpresa, observou
ali uma espécie de pequena alavanca, que saía da parede e se encaixava dentro
do estojo, o qual a mantinha camuflada. Com o coração batendo acelerado, ele
forçou a alavanca para baixo, mas teve certa dificuldade, pois parecia estar
emperrada. Finalmente, ela cedeu e o rapaz ouviu um “troc” estalando do outro
lado da parede. Com isso, a estante moveu-se alguns centímetros do seu lugar e
Michael pulou da cadeira com os olhos arregalados. Tinha a respiração alterada e
suas pernas tremiam de excitação. Empurrou a estante com firmeza, que girou
sobre o próprio eixo, abrindo uma passagem para uma sala secreta.
No mesmo instante, o rapaz teve a certeza de que o segredo de frei Felício
se encontrava lá dentro. Ele entrou com cautela naquele misterioso recinto
envolto em penumbra, buscando em seu bolso a pequenina lanterna. Ao acendê-
la, Michael levou um susto violento, chegando a soltar um grito medonho. Havia
ali um homem de pé, armado com uma enorme espada, pronto para lhe decepar a
cabeça! Quis correr, mas suas pernas permaneceram cravadas ao chão,
completamente paralisadas pelo pânico avassalador. A sua mão tremia tanto, que
ele mal conseguia iluminar o desconhecido, o qual continuava a ameaçá-lo com
sua arma. Após alguns segundos, como o homem não fazia um único
movimento, Michael controlou-se um pouco e percebeu que não se tratava de
um ser humano, mas de um boneco de cera em tamanho real, vestindo roupa
branca e tendo ao peito uma cruz pintada de vermelho. Riu aliviado e exclamou:
- Por Deus, um templário!
Depois, aproximou-se para observá-lo de perto. A sua fisionomia era
impressionante. Tinha o olhar do tigre diante da presa, a barba espessa e os
cabelos compridos e grisalhos nas laterais da cabeça, embora fosse calvo da testa
à nuca. Sobre o seu traje, usava uma capa branca, que descia quase ao assoalho.
Segurava a espada com as duas mãos, numa atitude ameaçadora, como se
defendesse a própria vida e a de seus entes queridos. Alto e forte, a figura
daquele templário representava um grande mistério. Por qual motivo o haviam
colocado no silêncio de uma sala secreta? O que ele estaria guardando?
Eram estas perguntas que o jovem Michael tentava responder. Certamente,
frei Felício tinha todas as respostas, mas por algum motivo não quis - ou não as
pôde transmitir - a frei Abelardo, quando este ainda era moço. O rapaz
vasculhou com sua lanterna a sala inteira e encontrou, penduradas em castiçais
nas paredes, algumas velas que ele acendeu para iluminar melhor o ambiente.
Quase mais nada havia ali além do templário sobre um tapete de pele de
carneiro. Michael estranhou a presença daquele tapete, como se estivesse
escondendo alguma coisa de olhares indiscretos. Ele o iluminou, ergueu uma das
pontas com cuidado e sua face resplandeceu de júbilo.
Surpreendentemente, os seus olhos depararam-se com um alçapão!
Deslumbrado pela extraordinária descoberta, Michael abraçou-se ao templário e,
levantando-o do assoalho com delicadeza, arrastou-o alguns passos para o lado.
Ao tirar o tapete do local em que se encontrava, surgiu uma insólita porta
horizontal no piso. O peito do rapaz parecia conter uma tempestade oceânica,
tamanha era a sua excitação. Ele agarrou a argola de ferro e a puxou para cima
com força, mas não obteve qualquer resultado. Após anos sem uso, as
dobradiças estavam emperradas. Não se abateu com o primeiro fracasso.
Tomando fôlego, puxou outra vez a argola com todas as forças de seus braços.
Dessa vez, as dobradiças cederam. Quando ele abriu o alçapão, duas baratas
saíram lá de dentro, correram pelo piso e foram se refugiar na biblioteca.
Michael contemplou aquela entrada que provavelmente daria nos subsolos do
convento, mas só conseguiu ver os primeiros degraus de uma escada de pedra,
engolida pela mais completa escuridão. Talvez estivesse com medo, como seria
natural, mas tal era a sua curiosidade, que ele não hesitou um instante sequer.
Apanhou uma vela de um dos castiçais, encheu-se de coragem e pôs-se a descer
devagar a escadaria.
Com uma das mãos, ia afastando as teias de aranha diante de seu rosto. Não
se ouvia barulho algum, além de seus sapatos pisando as pedras de cada degrau.
Ao se aproximar do fim da escada, os seus passos iam se tornando ainda mais
lentos, como se ele temesse penetrar naquele recinto proibido. O que o
aguardaria lá embaixo? Uma cripta cheia de esqueletos assustadores, um
cemitério onde se enterravam crianças mortas, filhas de relações ilícitas? Tudo
isso ia passando pela cabeça de Michael, que começava a sentir algum enjoo, em
virtude do cheiro insuportável de mofo. Sua única certeza era que, no final
daquela escada lúgubre, estaria a revelação do segredo de frei Felício. Quando
finalmente os degraus acabaram, ele seguiu por um corredor comprido e muito
estreito, até atravessar uma porta baixa, alcançando o seu almejado objetivo.
A luz da vela cintilou rubra nos olhos perplexos do rapaz. Ele deu dois
passos para dentro daquele ambiente e estacou maravilhado, sem poder sequer
engolir a saliva que lhe aguava a boca. Deus do céu! Havia ali outra biblioteca,
aparentemente com obras muito mais valiosas do que a primeira. Todos os
livros, manuscritos e rolos de pergaminho estavam cobertos por anos de poeira,
talvez séculos. Michael dirigiu-se a uma mesa tosca e apanhou um caderno
aberto sobre ela. Com os dedos, limpou um pouco do pó acumulado por cima de
suas páginas, aproximando a chama da vela para tentar ler o que ali estava
escrito. A letra era graúda e trêmula, garrancho de velho:

“Saibam todos que me lerem, que esta é a biblioteca secreta da Ordem dos
Cavaleiros Templários.
Frei Felício”

Por um momento, o rapaz sentiu que lhe escasseava oxigênio nos pulmões e
precisou se apoiar na mesa para não cair. Era incrível! Diante de seus olhos
perplexos, encontrava-se um tesouro incalculável, centenas de originais copiados
a mão com mais de setecentos anos de idade. A biblioteca que frei Abelardo lhe
mostrara naquela tarde não valia nada se comparada a esta. Eis o verdadeiro
segredo de frei Felício! Não se tratava de uma biblioteca muito grande, mesmo
porque a maioria dos templários não sabia ler; porém, aquelas obras poderiam
mudar a própria história da civilização!
Além do caderno, outros três livros permaneciam sobre a mesa, talvez as
últimas leituras feitas pelo velho frade, derradeiro guardião daquelas
preciosidades. Após fixar a vela na mesa com alguns pingos de cera derretida,
Michael tomou um dos livros ao acaso e surpreendeu-se com o título
perturbador: Segredos Ocultos da Igreja. Logo nas primeiras páginas, intrigou-se
com o nome do capítulo inicial: “Da prisão do demônio pelos templários”. Isto
encheu o moço de curiosidade. Apanhando o segundo livro, quase caiu de
costas. Era o Evangelho de José de Arimateia, uma obra que durante muito
tempo foi considerada irreal, imaginária, pois apenas constavam referências a ela
em alguns textos apócrifos, e ninguém sabia se tal evangelho existia de fato. O
terceiro livro era ainda mais surpreendente: o diário de Jacques de Molay.
Michael gostava muito da história dos templários e sabia que ele tinha sido o
último grão-mestre da Ordem. Segundo a maioria dos historiadores, Jacques de
Molay era analfabeto, mas o seu diário provava exatamente o contrário. Os três
livros estavam escritos em latim, língua que o rapaz conhecia. Tinha grande
facilidade para aprender idiomas e falava italiano, inglês e francês, além de se
virar em espanhol e português. Ele os deixou sobre a mesa e pôs-se a retirar
algumas obras das estantes. Parecia uma criança que ganhou vários brinquedos
de aniversário e não sabe com qual brincar primeiro. Quando já estava se
aprontando para retornar, ouviu um barulho estranho lá em cima, como se
alguém estivesse descendo as escadas. Assustado, bradou:
- Há alguém aí?
Por alguns instantes, ficou esperando uma resposta. Teriam seguido o moço
até a misteriosa biblioteca dos templários ou seria aquela estátua de cera que
ganhara vida e vinha defender o segredo da Ordem do indesejado intruso? Seja
como for, Michael apanhou os três livros sobre a mesa, pois estava ansioso para
os ler no silêncio de sua cela. Frei Felício não os deixara ali por acaso e,
intimamente, o rapaz acreditava que ainda existia um grande mistério para ser
solucionado...
Deus le Volt![4]

Jerusalém, 15 de julho de 1099


Sexta-feira da Paixão

Trinta e nove longos dias haviam transcorrido, desde que o exército cristão
finalmente chegara aos muros da cidade de Jerusalém. Após três anos de
extraordinário padecimento, suportando o sol escaldante das regiões desérticas
da Ásia Menor e da Palestina, sendo atormentados pela fome e sede extremas,
lutando contra os intrépidos muçulmanos, os cruzados já não tinham mais forças
para resistir por muito tempo. Ao avistarem a Cidade Santa, muitos deles
começaram a urrar de felicidade e a chorar de alegria. Matteo Bongallo, o
moleiro, também chorava, mas por causa da dor pesada que trazia no peito.
Deixara sua vila para se unir ao exército de Pedro, o eremita, o qual arrastava
uma multidão de fiéis de toda a Europa, a fim de lutar em nome de Deus contra
os terríveis sarracenos. O próprio papa implorara ajuda a cada cristão, pois os
lugares sagrados onde Jesus pregara e morrera estavam sendo ultrajados pelos
seus adversários. Com muito custo, Matteo conseguira convencer sua mulher e
filhas a lhe seguir naquela louca empreitada. Por um preço ínfimo, venderam
tudo o que não poderiam carregar, a cabana humilde, os poucos móveis, a vaca
que lhe dava o leite e seu velho moinho, que naquele tempo já se encontrava
arruinado e em tão lastimável estado para continuar trabalhando, que o moleiro
não conseguia mais tirar dele o seu sustento e o de sua família. Este foi outro
motivo que levou Matteo a seguir para a Terra Santa com o exército de Pedro, o
eremita. Depois, meteram os pés na estrada, acreditando que Deus se incumbiria
de lhes saciar a fome e a sede, assim como alimentava as aves do céu e os peixes
dos rios.
Agora, toda a família de Matteo Bongallo encontrava-se morta e apenas ele
teve a ventura de deitar os olhos sobre Jerusalém. Teria valido a pena tanto
sofrimento? Sentado sobre uma pedra, cansado e faminto, o infeliz moleiro
contemplava de longe a reunião dos líderes cruzados, os quais decidiam o que
deveria ser feito. Ninguém mais estava disposto a enfrentar outro cerco como o
de Antioquia, que se estendera por oito meses intermináveis e ceifara milhares
de vidas. Por isso, Godofredo de Bouillon, Raimundo de Saint-Gilles,
Boemundo, Balduíno e outros dos principais chefes da campanha haviam
marcado aquela sexta-feira da Paixão, às três horas da tarde, exatamente o dia e a
hora em que Cristo morrera na cruz, para dar início ao ataque. Seria como Deus
quisesse. Ou tomavam Jerusalém de uma vez, ou lutariam até que o último
homem fosse morto pelo inimigo.
Enquanto os cavaleiros se preparavam para o assalto à cidade, Matteo
Bongallo refletia a respeito de toda aquela tragédia que havia atravessado sua
vida, desde o dia em que ouvira, pela primeira vez, Pedro, o eremita, pregando
sobre a necessidade de se fazer uma guerra santa contra os infiéis. Ele passara
por sua aldeia numa manhã de domingo, arrastando atrás de si um grande
número de seguidores, homens, mulheres, velhos e crianças, os quais tinham
abandonado tudo que possuíam para atender ao apelo do papa Urbano II.
Quando este alcançou o papado em 1088, a ideia de se fazer uma guerra santa
contra os infiéis começava a tomar corpo na Europa. Os turcos seljúcidas haviam
conquistado diversas cidades na Ásia Ocidental ao longo do século XI, inclusive
Jerusalém. Ao contrário dos árabes, conhecidos por sua grande tolerância, pois
sempre permitiram peregrinações ao Santo Sepulcro, os turcos, então recém-
convertidos ao islamismo, começaram a colocar inúmeros obstáculos aos
europeus que desejavam seguir para a Terra Santa. O próprio Harun Al-Rachid,
no final do século VIII, assegurara a Carlos Magno proteção aos adeptos do
cristianismo no Oriente. Mas os turcos seljúcidas eram homens intolerantes e
não só proibiram a presença de cristãos em suas terras, como também passaram a
assassinar aqueles que para lá se dirigiam.
Receando um fortalecimento ainda maior dos turcos na região e temendo
que sua própria cidade fosse tomada por estes guerreiros impiedosos, o
imperador de Constantinopla, Alex Comeno, enviou uma carta ao papa Urbano
II, implorando ajuda de soldados mercenários, a fim de proteger os cristãos que
viviam em seu império. No ano de 1095, em Clermont, o papa convocou um
concílio, onde compareceram quatorze arcebispos, duzentos bispos, quatrocentos
abades e uma infinidade de fiéis que se espremia dentro e fora da igreja. Com
um discurso comovente, descrevendo os extraordinários sofrimentos suportados
pelos peregrinos na Terra Santa por causa dessa “maldita raça dos turcos”,
Urbano II afirmou que os cristãos europeus tinham o dever de tomar as armas,
em nome de Deus, para defender seus irmãos, os quais vinham sendo
massacrados impiedosamente. Em troca, o papa perdoaria todos os pecados
daqueles que atendessem ao seu apelo.
As palavras de Urbano II tocaram profundamente seu rebanho. Quase todos
tinham graves pecados a expiar e ali estava uma excelente oportunidade para se
obter o paraíso. Muitos nobres acumulavam em seus currículos enorme lista de
crimes e sentiram-se bem satisfeitos em poder remir seus pecados fazendo algo
de que gostavam, ou seja, entregando-se à guerra. Porém, enquanto estes ainda
cuidavam de seus preparativos a fim de se dedicarem a tão arriscada empresa,
um homem surgiu entre o povo e passou a conclamar toda gente para a luta.
Era Pedro, o eremita. De estatura baixa e corpo franzino, este religioso de
personalidade tão curiosa foi o mais popular dos pregadores que atendeu ao
chamado do papa Urbano II. Calvo, com uma vasta barba emaranhada, vestindo
apenas uma puída túnica de lã, caminhava descalço pelas ruas e igrejas das
pequenas aldeias, incitando o povo à guerra e ao arrependimento. Alimentava-se
apenas de pão e nunca bebia vinho. O povo passou a vê-lo verdadeiramente
como um santo e algumas pessoas mais impetuosas chegavam a ponto de
arrancar os pelos da mula em que ele montava, para guardá-los como relíquias.
Com sua formidável eloquência, ia descrevendo as terríveis atrocidades sofridas
pelos peregrinos na Palestina. Seu poder de persuasão era tão grande, que em
pouco tempo uma enorme leva de pobres começou a segui-lo por toda parte.
Esses miseráveis vendiam ou abandonavam os poucos bens possuídos para
acompanhar Pedro em sua desventurosa cruzada, pois acreditavam que assim
iriam ganhar o céu. Crianças, velhos e velhas, todos partiam contentes, levando
consigo apenas algum boi magro ou um burro doente. Além do grande número
de desprovidos, uma enorme ralé, composta pelos desqualificados das cidades
europeias, uniu-se a esse calamitoso exército de Pedro, o eremita. Eram
bandidos, assassinos, incendiários, prostitutas, adúlteros, uma infinidade de
marginais de toda laia, que acudiu às palavras do célebre pregador para salvar
suas almas das chamas do inferno.
Fora muito difícil para Matteo Bongallo convencer Branca, sua esposa, a
lhe acompanhar à Terra Santa. Ela era uma mulher simples, mas com
inteligência suficiente para compreender que aquilo tudo não passava de uma
imensa loucura. O casal possuía duas filhas: Catarina, de quatorze anos, que
também não desejava partir, e outra menina, conhecida por toda gente como a
Boba, indiferente a isto e ao resto. Tinham também um menino com pouco mais
de um ano, ainda sem nome, pois vivia doente e ninguém sabia se ele iria vingar.
Branca apenas se convenceu a partir no último instante, quando o moleiro
já havia atrelado os animais à carroça e vinha se despedir da esposa. Ela não
disse uma palavra sequer. Ordenou com os olhos vazios que as filhas tomassem
assento na precária condução, onde também se abancou, muito desgostosa e com
a cara amarrada. Apenas voltou a falar com o marido uns três dias depois deles
terem se unido ao exército de Pedro, o eremita, o qual se achava acampado nos
arredores de uma aldeia vizinha, tentando arranjar provisões para a viagem.
Durante mais de três meses, essa tenebrosa multidão de indigentes arrastou-
se da Europa à Ásia, feito um implacável monstro mitológico com milhares de
bocas, devorando tudo o que encontrava pelo caminho, saqueando cidades,
destruindo campos e plantações. A certa altura, fizeram um enorme massacre de
judeus para se vingarem dos assassinos de Cristo. Tal massa de famintos
andrajosos não possuía qualquer organização e nenhum deles tinha a menor ideia
de onde ficava Jerusalém. Em todas aldeias que chegavam, logo inquiriam
ansiosos se ali não era a Cidade Santa. Quando, finalmente, alcançaram os
muros de Constantinopla, a 30 de julho de 1096, inúmeros peregrinos já haviam
perecido pelo caminho, servindo de pasto aos abutres, que agora faziam sombra
sobre a multidão. Alex Comeno, o imperador da cidade, ao ver tamanha horda de
maltrapilhos, que não se assemelhava em nada com o tão desejado exército
pedido ao papa, não os deixou entrar em Constantinopla. De todas as maneiras,
tentou convencê-los a retornarem à Europa, afirmando que os turcos eram
guerreiros hábeis e muito perigosos. Porém, como aquela malta desorganizada
não quis ouvir suas palavras e, além disso, começava a realizar saques nos
arredores da cidade, Alex Comeno resolveu lhes atender o desejo, facilitando o
transporte daqueles homens e mulheres em estado tão lamentável para a Ásia
Menor.
Em menos de uma semana, cerca de cinquenta mil pessoas puseram-se a
caminho de Niceia. Nesta época, era verão no hemisfério norte e, durante este
trajeto, o calor os escaldou de tal forma, que muitos não suportaram tamanho
padecimento, morrendo de insolação. Não havia água em lugar algum e
inúmeros cavalos foram sacrificados, pois eles abriam suas veias, a fim de lhes
beber o sangue. Quem não tinha a sorte de possuir animais, matava a sede
bebendo a própria urina.
Mas tragédia maior ainda estava por vir. Em outubro de 1096, quando o
exército de Pedro, o eremita, encontrava-se nas proximidades de Niceia, os
turcos os cercaram numa emboscada, iniciando horrenda carnificina. Mal
armados, cansados, famintos e sedentos, os cristãos pouco puderam fazer contra
guerreiros tão terríveis como aqueles, acostumados a guerrear nas areias dos
desertos. Eles avançaram sobre os desgraçados europeus, brandindo suas
espadas, cujas lâminas brilhavam ao sol feito fogo, soltando urros e gritos
medonhos. A confusão foi pavorosa. Com suas cimitarras afiadas, os turcos iam
decepando a cabeça dos adversários, que tentavam fugir para onde os pés
apontavam. Matteo Bongallo e sua família procuravam desesperadamente algum
lugar onde pudessem se esconder da fúria selvagem do inimigo, quando uma
flecha acertou em cheio as costas de Branca, cravando os peitos da mulher no
chão. O filho que a pobre trazia nos braços caiu a alguns passos dela e ali ficou,
pois ninguém foi ampará-lo. Ao ver a esposa morta, Matteo Bongallo sentiu uma
dor profunda, como se houvessem lhe arrancado o coração com uma tenaz em
brasa. No mesmo instante, ele e as filhas abraçaram-se ao corpo de Branca,
cobrindo a mulher com lágrimas doloridas. Os cavalos dos turcos passavam
velozes por cima deles e foi mesmo um milagre não terem morrido pisoteados.
Só escaparam da chacina, porque ficaram todo o tempo deitados no chão, junto
aos outros cadáveres. Quando finalmente escureceu, os turcos cansaram-se
daquela carniçaria e resolveram partir, levando muitos cristãos que não tiveram
tempo de matar para serem vendidos como escravos. Dessa forma lamentável,
chegava ao fim o sonho da cruzada dos pobres, os quais esperavam alcançar
Jerusalém e libertar Cristo do jugo imposto pelos infiéis. Aqueles que
conseguiram sobreviver, como Pedro, o eremita, e Matteo mais suas filhas e
filho, voltaram a Constantinopla, onde permaneceram aguardando a chegada dos
verdadeiros cruzados, para se juntar a eles e seguir viagem.
Os nobres cavaleiros não chegaram ao mesmo tempo a Constantinopla.
Cada um arregimentou seu exército nas próprias terras, armaram-se da melhor
maneira que puderam e se dirigiram ao Oriente em diversas datas. O primeiro a
alcançar os muros da cidade de Alex Comeno foi Hugo, conde de Vermandois.
Era o filho caçula de Henrique I, rei dos franceses, e havia recrutado seus
homens ao norte da França. Depois dele, foi a vez de Godofredo de Bouillon,
duque da Baixa Lorraine, trazer suas tropas até os arredores de Constantinopla.
Dentre todos os líderes cruzados, Godofredo era quem possuía convicções
religiosas mais sinceras e resolvera combater na Terra Santa a fim de expiar o
crime de ter assassinado o imperador Rodolfo. Acompanhavam-no seus dois
irmãos: Eustáquio III e Balduíno. Raimundo de Saint-Gilles, o conde de Tolosa,
tinha sessenta anos quando partira, em outubro de 1096, para a Ásia Menor.
Vinha da Provença, ao sul da França, e levava consigo sua esposa e uma grande
quantidade de guerreiros dispostos a morrerem pela cruz. A 9 de abril de 1097,
chega a Constantinopla o exército de Boemundo, filho de Roberto Guiscard, um
dos homens mais importantes da Normandia. Com cerca de quarenta anos,
Boemundo era um soldado muito experiente e estava ávido por conquistar um
reino na Palestina.
A multidão que se dirigiu ao Oriente era de fato extraordinária. Contando
apenas os cavaleiros armados com lanças e espadas, aptos para a luta, estima-se
um número superior a cem mil homens. Além destes, acompanhavam-nos
escudeiros, religiosos, pajens, mulheres, uma infinidade de indivíduos que
facilmente superou a cifra de quinhentas mil pessoas. A própria princesa Ana,
filha de Alex Comeno, ao ver tamanha turbamulta acampada diante dos muros
da cidade, comentou estarrecida: “Era como se a própria Europa, arrancada de
seus fundamentos, tivesse se precipitado sobre a Ásia”.
O imperador de Constantinopla prometera auxílio aos cavaleiros,
fornecendo-lhes víveres e apoio militar, caso eles lhe entregassem as terras
conquistadas. O acordo foi feito e, em meados de 1097, debaixo de um calor
infernal, os cruzados começaram a transpor a Ásia Menor. Nas proximidades de
Niceia, tiveram uma visão terrível e repugnante. Os cadáveres da cruzada de
Pedro, o eremita, permaneciam amontoados por toda parte, apodrecendo aos
rigores do sol. Um cheiro pestilento de carniça evolava-se no ar envenenado,
impedindo a respiração das pessoas. O horror daquelas cenas chocantes encheu
ainda mais de ódio os cristãos, que sitiaram Niceia e, em menos de um mês,
tomaram a cidade.
Após esta primeira conquista, os cruzados continuaram o seu caminho,
travando inúmeras batalhas contra os turcos, como aquela ocorrida na planície de
Dorileu. Porém, o sol inclemente os flagelava sem piedade, constituindo-se em
um adversário ainda pior do que os terríveis guerreiros seljúcidas. Dentro de
suas armaduras pesadas, elmos e malhas de ferro, o calor era tão intenso, que
muitos cruzados não suportaram tamanha tortura, perecendo durante a jornada.
Os próprios cavalos europeus, desacostumados a temperaturas elevadas como
aquelas, começaram também a morrer e não era raro encontrar um cavaleiro
montando um boi e os mantimentos e bagagens sendo transportados com
dificuldade por carneiros, cabras, porcos e até cães.
Na travessia do planalto da Ásia Menor, Catarina, uma das filhas de Matteo
Bongallo, faleceu. Nada mais havia para beber e, a certa altura, não suportando
aquela caminhada infinita, a menina caiu sem sentidos, exaurida de suas forças.
Desesperado, o pai a reteve nos braços e, debaixo de um sol tórrido, carregou-a
ao longo do dia inteiro em busca de água, que talvez ainda pudesse salvar a vida
da menina. Suplicou por um pouco do precioso líquido a toda gente, mas
ninguém tinha, e os que tinham, fingiam não ter, recusando-se a dividir. Ao
anoitecer, a filha não resistiu e Matteo Bongallo a enterrou numa cova rasa,
escavada por suas próprias mãos inconsoláveis.
Poucos dias depois, chegaram a Antioquia, a Rainha do Oriente, como era
conhecida. Suas altas muralhas possuíam quatrocentas torres e encontravam-se
muito bem defendidas por guerreiros experientes. Ao ver o tremendo exército de
europeus sitiando a cidade, o soberano desta ordenou que metessem o velho
patriarca cristão numa gaiola e o pendurassem nos muros, numa tentativa de
causar horror e piedade aos adversários. Nada, porém, comovia aqueles homens
brutos. O cerco foi extremamente longo e difícil, estendendo-se por oito meses,
tendo iniciado em outubro de 1097 e terminado apenas em junho de 1098,
quando ocorreu uma monstruosa chacina de sarracenos.
Durante este período, os padecimentos sofridos pelos cruzados foram
horrendos. Em alguns dias, acabaram-se os víveres e a multidão devorou tudo
que havia nas imediações. Não se achava mais nada para comer, nem folhas,
nem raízes. Passaram tanta fome, que muitos começaram a sacrificar seus
próprios cavalos e cães a fim de se alimentarem. Quem tinha a sorte de encontrar
um rato, matava-o no mesmo instante e o comia inteiramente cru, deixando
apenas os pelos e os ossos. Certa manhã, descobriram um cemitério a pequena
distância de Antioquia. Os cristãos afluíram para lá feito abutres diante de
carniça, desenterraram os cadáveres sepultados e puseram-se a lhes devorar as
carnes pútridas. Outros depararam-se com um pântano, onde os sarracenos
atiravam a carcaça dos inimigos. Existiam ali defuntos boiando na lama há mais
de quinze dias, já em adiantado grau de decomposição, mas os cruzados não
fizeram caso disso e serviram-se de seus restos para lhes aplacar a fome
selvagem. A loucura atingiu tal ponto, que muitos homens chegaram a matar
seus próprios companheiros, caso estivessem a sós, distantes no campo, para
comer seus corpos e, dessa forma, abrandar a dor insuportável. O próprio filho
pequeno de Matteo Bongallo não escapou a este funéreo destino. O moleiro
deixara o menino aos cuidados da Boba e partira pelas cercanias da cidade com a
esperança de descobrir algum animal, uma lebre, uma rã ou até mesmo uma
cobra, para alimentar a sua família. A criança chorava aflita de fome, mas a Boba
nada fazia, apenas a segurava no colo como uma boneca de trapo. Parecia ser a
única pessoa indiferente em todo o acampamento. Dois homens ofereceram
ajuda a ela, afirmando que sabiam cuidar de crianças. A Boba entregou o
pequeno aos canalhas, os quais desapareceram no meio da multidão. Depois,
dirigiram-se a um local ermo, acenderam uma fogueira e assaram o menino num
espeto, transformando-o numa iguaria como eles não saboreavam há muito
tempo.
O sentimento de todos era que a expedição estava condenada ao fracasso,
pois as muralhas de Antioquia se revelaram intransponíveis. Além disso, alguns
mensageiros haviam chegado ao cerco, trazendo notícias nada animadoras. Um
gigantesco exército, conduzido pelo emir da cidade de Mossul, Kerboga, estava
se aproximando rapidamente para acudir os sitiados. Quando tudo parecia
perdido, a cidade foi tomada, graças à traição de um dos homens incumbidos de
defendê-la. Firouz, o guardião armênio de uma das torres, achava-se furioso com
os seus líderes, pois estes o acusavam de estocar alimentos de maneira ilegal
durante o cerco. Boemundo o convenceu de que ele e sua família seriam
poupados do massacre, caso ajudasse os europeus, e o rapaz facilitou a entrada
de alguns cristãos na cidade através de sua torre. Por toda a tarde, os cavaleiros
fingiram que estavam partindo, abandonando o sítio, para alívio dos turcos.
Porém, eles retornaram de madrugada com a cidade adormecida. Uma enorme
escada foi posta junto à torre de Firouz, por onde os homens de Boemundo
entraram. Depois, abriram as portas das muralhas e todos os exércitos invadiram
Antioquia, iniciando uma bárbara carnificina.
As cenas de assassinato que então se seguiram foram macabras. Inflamados
pelo ódio nutrido aos turcos e animados por todo o sofrimento que vinham
suportando ao longo da viagem, os cristãos esqueceram-se dos ensinamentos de
Cristo e entregaram-se a uma matança generalizada. Qualquer pessoa que lhes
caísse diante das espadas era cortada ao meio, indiscriminadamente. A fúria
arrebatada dos cavaleiros não tinha limites e, durante o tumulto, até mesmo os
cristãos da cidade foram massacrados. A própria Boba teve sua cabeça decepada
pela lâmina de algum gentil-homem da Normandia.
A felicidade pela vitória foi grande. Esquecidos de todas as privações
passadas, os cavaleiros consumiram naquele único dia comida e bebida que daria
para os sustentar durante um mês inteiro. Houve um enorme desperdício de tudo,
principalmente de água e vinho, cujos tonéis eram abertos e derramados no solo
apenas pelo prazer de estragar o bem alheio. Porém, toda esta excitação não
durou por muito tempo...
Três dias após a tomada de Antioquia, a cidade foi sitiada de novo, dessa
vez pelo exército de Kerboga. Os papéis haviam se invertido e agora eram os
cristãos que se viam cercados pelo inimigo. Em pouco tempo, a fome e a sede
retornaram tão intensas quanto antes. Para piorar a situação, uma epidemia de
peste começou a se espalhar dentro dos muros da cidade em virtude da completa
falta de higiene que ali reinava. Os cadáveres dos turcos continuavam entulhados
pelas ruas, disseminando ainda mais a doença e os cristãos passaram a morrer
feito moscas. Muitos deles tentaram fugir à noite pelas muralhas, descendo
através de cordas, mas eram flechados pelos hábeis arqueiros adversários. Os
cruzados encontravam-se completamente abatidos e a derrota parecia iminente,
quando um acontecimento extraordinário mudou a sorte do conflito.
Um padre de nome Pedro Bartolomeu afirmou ter sonhado com Santo
André e este lhe afiançara que a Santa Lança achava-se enterrada sob o piso da
catedral de Antioquia. Segundo o santo, se os cristãos a descobrissem, eles
venceriam os turcos e, em breve, chegariam a Jerusalém. Era a Santa Lança uma
das mais sagradas relíquias veneradas pelos homens da Idade Média, pois fora
com ela que um dos soldados ferira o flanco de Jesus durante a crucificação. Ao
saberem de tal sonho, inúmeros guerreiros dirigiram-se à igreja e começaram a
arrancar o seu piso. Não gastaram muito tempo nesta empresa, pois logo um
deles encontrou uma faca enferrujada e suja de sangue, que todos acreditaram
ser o sagrado sangue do próprio Cristo.
A descoberta de uma relíquia tão valiosa quanto aquela encheu de brios os
soldados, revigorando-lhes a fé perdida. O ânimo de todos fortaleceu-se a tal
ponto, que no dia 28 de junho de 1098, eles abriram as portas da cidade,
atravessaram a ponte que os separava dos inimigos e avançaram furiosamente
sobre os turcos, os quais não esperavam por aquele ataque surpresa. Travou-se,
então, uma batalha sangrenta, com enormes perdas para ambas as partes. Os
cruzados bateram-se com todas as forças restantes e muitos disseram depois que,
durante o combate, haviam visto uma legião de anjos lutando junto deles.
Após essa vitória, espalhou-se a notícia de que a Santa Lança era falsa e
tudo não passara de invenção de Pedro Bartolomeu. Acusavam-no de ter
enterrado aquela faca no piso da igreja e tamanha farsa ofendia a memória de
Cristo. O padre reafirmava a sua inocência e um impasse foi criado. Para
resolver o problema, os eclesiásticos apelaram ao Julgamento de Deus,
submetendo o réu à prova do fogo. Acreditavam os homens daquele tempo que a
vontade do Criador se manifestaria nestes tipos de julgamentos. Na noite
seguinte, acenderam uma enorme fogueira e pediram para o padre Pedro
Bartolomeu atravessar descalço um terreno coberto por brasas incandescentes.
Se as suas palavras fossem verdadeiras, não haveria nada a temer, pois Deus o
conduziria em segurança até o outro lado. Convencido de sua história - e
também porque não tinha outra escolha - o infeliz miserável começou a
caminhar por entre as chamas excitadas pela ventania, pisando o carvão
flamejante que crepitava debaixo de seus pés. Porém, o padre Pedro Bartolomeu
não conseguiu concluir a prova, vindo a falecer alguns dias depois, vítima de
terríveis queimaduras.
Do gigantesco exército que partira da Europa três anos atrás, menos de
cinquenta mil homens chegaram a Jerusalém. Matteo Bongallo sentia-se
amargurado e sem rumo, ignorando como seria sua vida dali para frente. Perdera
tudo de mais caro que possuía, a sua família, a sua cabana, o seu moinho. Agora
estava só no mundo, diante da milenar cidade onde Nosso Senhor dissera suas
últimas palavras antes de ascender ao céu. Há trinta e nove dias, aguardavam ali
pelo desfecho daquela nefasta aventura, suportando todos os tipos de privações;
sofriam, principalmente, por causa da sede colossal que não poupava ninguém.
Como todos os poços da região tinham sido envenenados pelos sarracenos, logo
nos primeiros dias de cerco já não se encontrava mais água em parte alguma. A
cada nova manhã, os cristãos mostravam-se ainda mais amargurados, pois lhes
retornava à mente o fantasma do sítio de Antioquia e todas as atrocidades
padecidas durante aqueles calamitosos oito meses. Por isso, quando veio a
notícia de que iriam atacar a cidade na sexta-feira da Paixão, todos se
rejubilaram, enchendo-se de ânimo e esperança.
Exatamente às três horas da tarde, pouco mais de mil anos após Cristo ter
expirado dentro daquelas muralhas sagradas, pregado num pau erguido sobre
uma colina conhecida como Gólgota, o exército cristão iniciou o definitivo
ataque à Cidade Santa. Uma chuva de flechas incendiárias atiradas pelos
guerreiros marcou o início do combate. Eram tantas flechas, que o sol foi
coberto por elas e uma sombra imensa estendeu-se como uma colcha sobre
Jerusalém. Inúmeros muçulmanos incumbidos de guardar as torres foram
alvejados nesta primeira bateria. Aqueles que despencavam muro abaixo tinham
suas cabeças cortadas e impelidas de volta à cidade, a fim de causar horror e
pânico nos adversários. Muitas máquinas de cerco haviam sido construídas pelos
europeus e, dentre elas, uma das mais populares era a catapulta. Os cruzados as
municiavam com enormes pedras, lançadas violentamente contra as muralhas
para as arrebentar. Às vezes, envolviam essas pedras com palha, panos
grosseiros ou lã, deitavam fogo em tudo e as atiravam sobre o inimigo,
provocando incêndios e mais confusão. Outra arma de guerra muito útil era o
aríete. Os soldados tinham descoberto um enorme tronco e resolveram investir
com ele contra os grossos portões de Jerusalém. Muitos homens foram
necessários para carregar tamanho armamento bélico, pois era pesado demais.
Porém, o esforço foi inútil, uma vez que não obtiveram êxito algum. Após
marrar diversas vezes as portas da cidade, os infelizes tiveram de abandonar o
aríete, porque os sarracenos despejaram uma tina de óleo fervente sobre eles,
provocando tremendas queimaduras em todos que foram atingidos.
Os cruzados resolveram escalar as muralhas, apoiando nelas diversas
escadas muito altas, por onde subiam feito formigas, mas o resultado obtido com
esta estratégia foi praticamente nulo. Com suas espadas afiadas, os muçulmanos
iam rechaçando os adversários, degolando-os com golpes violentos e certeiros.
Apenas conseguiram penetrar na cidade, quando encostaram junto aos muros
uma grande torre de madeira construída durante o cerco. Um homem atrás do
outro passou a subir por ela, até que alguns deles finalmente adentraram em
Jerusalém. Isto obrigou os defensores deste trecho da muralha a lhes dar
combate, deixando livre o acesso para que mais e mais cristãos por ali
entrassem. Quando se deram conta do ocorrido, o número de guerreiros europeus
dentro da cidade já era tão grande, que os sarracenos não puderam mais expulsá-
los. Alguns soldados de Boemundo dirigiram-se à entrada da urbe e abriram os
seus imensos portões, dando acesso ao grosso do exército. Foi como se tivessem
rompido as comportas de uma represa. Enlouquecidos por uma fúria colossal, os
guerreiros invadiram a Cidade Santa, soltando urros pavorosos, os quais faziam
tremer as próprias muralhas. As cenas seguintes foram de estupenda selvageria.
Pelo resto da tarde, as espadas bateram-se sem descanso e o sangue jorrou em
toda parte. A carnificina foi monstruosa. Para onde se apontassem os olhos,
encontravam-se montanhas de braços, pés e cabeças caídos no chão. Inomináveis
as cenas de crueldade. Quem não tinha a sorte de morrer por um único golpe de
espada, era forçado a pular do alto das muralhas ou arrastado por cavalos pelas
ruas da cidade. Raimundo de Saint-Gilles, antes de matar seus prisioneiros, fazia
questão de lhes arrancar os olhos. Não pouparam ninguém daquela nefasta
chacina, nem velhos, nem mulheres, nem crianças. Os próprios judeus de
Jerusalém foram presos em sua sinagoga e incinerados numa enorme fogueira.
Somente no templo de Salomão, mais de dez mil sarracenos morreram pela
espada e o sangue ali vertido chegava à altura dos tornozelos dos soldados.
Depois, espalhou-se a notícia de que os muçulmanos haviam engolido suas joias
e moedas de ouro pouco antes da derrota. Por causa disso, os cruzados passaram
a revirar as tripas do inimigo em busca deste tesouro, enfiando as mãos em suas
vísceras ainda quentes e, em muitos casos, palpitantes com um resto de vida.
Após aquela hedionda matança, alguns cristãos foram tomados por um
estranho e súbito sentimento de piedade, dirigiram-se ao Santo Sepulcro e,
esquecidos da barbárie que haviam cometido, derramaram inúmeras lágrimas
comovidas. Mais tarde, o próprio Godofredo de Bouillon, demonstrando uma
insólita e curiosa humildade para quem perpetrara crimes tão sórdidos, recusou o
título de rei quando este lhe foi oferecido, afirmando que não poderia aceitar
uma coroa de ouro, onde o Rei dos Reis recebera uma de espinhos. Contentou-se
apenas com o título de Defensor do Santo Sepulcro.
Antes de conquistar Jerusalém, os cruzados combinaram que todos os
produtos das pilhagens pertenceriam a quem os encontrasse. Ao invadir uma
casa, qualquer um poderia se apoderar do que quisesse, sendo seu legítimo dono.
Como a cidade estava à disposição deles, os europeus realizaram imensa
pilhagem. O próprio Matteo Bongallo, que por milagre escapara da morte no
meio de toda aquela confusão, agora se entregava à rapinagem. Na manhã do dia
seguinte, ele penetrara em uma casa nas proximidades da mesquita de Al-Aqsa e
descobrira uma arca com estranhos rolos manuscritos. Embora fosse analfabeto,
o moleiro sabia reconhecer algumas letras, mas nunca vira nada parecido com
aquilo. Tais escritos talvez pudessem ter certo valor e Matteo saiu para a rua
levando a arca debaixo do braço. Pouco depois, encontrou um velho padre com
quem fizera boa camaradagem durante a cruzada e lhe mostrou a descoberta,
perguntando se ele não gostaria de comprar aquele curioso baú, estranhamente
entalhado com figuras de demônios. O eclesiástico tomou a arca em suas mãos e
a abriu demonstrando pouco entusiasmo; porém, ao ver dentro dela um rolo de
pergaminho antiquíssimo, seus olhos brilharam de excitação. Com todo cuidado,
ele pôs-se a desenrolar o frágil manuscrito. Como o religioso conhecia diversas
línguas, logo percebeu que se tratava de um texto escrito em hebraico. A certa
altura, ele leu arrepiado a seguinte passagem:

“Como o demônio foi aprisionado pelos essênios.”

Ao ler esta frase, o velho padre quase caiu de costas. Sua respiração tornou-
se ofegante, sua boca salivava e inúmeras gotículas de suor inundaram sua testa.
Matteo Bongallo percebeu o nervosismo do bom homem e imaginou que algo de
muito grave havia ali. No fundo, isto lhe pareceu um bom sinal, pois indicava
que seu manuscrito poderia, de fato, render-lhe algum dinheiro.
- Quanto quer por isto? Quis saber o clérigo.
O moleiro esfregou a boca e a barba com dedos de mercador, pensando
quanto deveria pedir. Talvez a sua descoberta valesse mesmo uma fortuna, mas o
padre teria consigo dinheiro suficiente para o negócio? Depois de meditar alguns
segundos, Matteo Bongallo disse:
- Quero dez moedas de ouro.
O velho religioso assustou-se com o valor pedido, apesar de saber que a
mercadoria valia muito mais. Mesmo tendo feito uma análise bastante
superficial, tinha certeza de que aquele pergaminho era um verdadeiro tesouro,
não somente pelo valor histórico e material, mas porque parecia conter
revelações assombrosas. Se possuísse mil moedas de ouro nos bolsos, não
hesitaria em dá-las ao moleiro.
- Tenho apenas isto...
Matteo Bongallo apanhou o saco oferecido pelo homem, lançando todo seu
conteúdo na palma da mão esquerda: seis moedas de prata e apenas uma de ouro.
Embora fosse bem menos do que ele pedira, o moleiro ficou muito comovido,
pois nunca na vida segurara uma daquelas. A moeda brilhava intensamente feito
o sol do meio-dia e era pesada como jamais vira nenhuma outra. Ele recolocou
tudo de novo dentro do saco e disse:
- Aceito.
Antes dos dois se despedirem, Matteo perguntou ao padre:
- Mas me diga, é um documento importante?
- Meu filho, pelo pouco que consegui ler, o próprio destino da Igreja
depende deste segredo!
E concluiu:
- Preciso entregar isso ao papa urgentemente...
A missão secreta dos cavaleiros templários

Ainda não havia amanhecido e Michael já se achava acordado, lendo


avidamente o livro Segredos Ocultos da Igreja, um dos três que ele trouxera
consigo da misteriosa biblioteca dos templários. Na verdade, quase não dormira
aquela noite, pois ficara até tarde absorvido pela fascinante leitura. As
revelações ali contidas eram espantosas, de tirar o fôlego de qualquer um.
Descobrira que o demônio tinha sido aprisionado pelos essênios, uma seita
judaica muito importante nos tempos de Cristo. A igreja católica apenas tomara
conhecimento desse fato mais de mil anos após o encarceramento do diabo,
quando um homem que acompanhava os cruzados encontrara, por acaso, um
velho manuscrito hebraico em Jerusalém.
Por vinte anos, estes preciosos documentos permaneceram guardados em
Roma pela igreja no mais absoluto sigilo, pois a cúpula da cristandade temia a
divulgação de tamanho segredo. Mas em 1119, o novo papa, Calisto II, resolveu
investigar o que havia de verdade naquele perigoso manuscrito. Mandou o
pergaminho ser copiado e entregue na abadia de Cister, para que Estevão
Harding, um dos homens mais capazes de seu tempo, examinasse-o com cuidado
e desse o seu parecer sobre o assunto. O notável monge pediu ajuda a vários
sábios judeus para traduzir os textos hebraicos e ficou estarrecido com o
resultado. Segundo eles, o documento fora escrito pelos essênios, possuía mais
de mil anos e continha uma revelação extraordinária: a prisão do demônio. O
manuscrito ainda ia além, assegurando a existência de um mapa, escondido sob o
templo de Salomão, que indicava o lugar exato, onde o príncipe das trevas estava
encarcerado. A revelação de um segredo dessa envergadura poderia abalar as
estruturas da igreja. Consciente da complexidade deste problema e temeroso
pelas possíveis consequências, o papa Calisto II convocou uma reunião secreta
com os principais líderes religiosos do tempo, entre eles Estevão Harding e São
Bernardo, para decidirem quais medidas deveriam ser tomadas.
Esse encontro aconteceu na recém-fundada abadia cisterciense de Claraval.
Após muita polêmica, São Bernardo propôs a criação de uma ordem religiosa a
ser instalada no templo de Salomão. O seu objetivo principal seria não apenas
encontrar o referido mapa, mas o próprio demônio, que talvez ainda estivesse
aprisionado em alguma caverna nos desertos da Síria. Por isso, a nova ordem
religiosa necessariamente haveria de ter um caráter militar.
O papa concordou com a ideia e o plano foi confiado a um nobre francês de
nome Hugo de Payns, reconhecido por sua profunda religiosidade e sólidos
princípios morais. Ele reuniu-se com mais oito cavaleiros e dirigiram-se a
Jerusalém, onde foram alojados na mesquita de Al-Aqsa, situada sobre o antigo
templo de Salomão. Por causa disso, ficaram conhecidos como os cavaleiros do
Templo ou, simplesmente, templários. A mesquita de Al-Aqsa vinha sendo
ocupada há mais de vinte anos pelos cônegos do Santo Sepulcro, que tiveram de
ser transferidos a outro local. Ora, este edifício era grande o suficiente para
abrigar as duas ordens, mas os templários exigiram privacidade absoluta, pois só
assim poderiam realizar as suas buscas com a tranquilidade necessária.
O verdadeiro objetivo dos cavaleiros, caçar o demônio, jamais poderia ser
revelado a pessoa alguma e, por isso, durante os primeiros anos de existência da
Ordem, não permitiram o ingresso de mais ninguém. Dessa forma, mantinham o
segredo bem guardado, longe da curiosidade alheia. Oficialmente, a missão
destes monges guerreiros era proteger os cristãos que se aventurassem a
peregrinar até Jerusalém, pois os caminhos na Terra Santa viviam infestados de
arruaceiros, ladrões e assassinos. Porém, como apenas nove monges poderiam
defender milhares de quilômetros de estradas? Isto seria impraticável, ficando
evidente que o objetivo era outro.
A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, como chamavam a si próprios,
apenas começou a prosperar após terem descoberto o que procuravam. Em 1128,
no concílio de Troyes, a igreja os recompensou pelo excelente serviço prestado,
dando-lhes não só a bênção papal, mas também uma regra baseada nos
ensinamentos de São Bento de Núrsia. E de acordo com a bula Omne datum
optimum, os templários não precisariam mais prestar contas a ninguém, exceto
ao grão-mestre da Ordem e ao papa.
A partir de então, Hugo de Payns passou a viajar por diversos países,
recrutando homens e doações. Em pouco tempo, os “Pobres Cavaleiros de
Cristo” tornaram-se riquíssimos e começaram a funcionar como um banco,
emprestando dinheiro a juros, até mesmo a reis endividados. A igreja não
permitia que os cristãos praticassem agiotagem; em função disso, tais atividades
encontravam-se exclusivamente nas mãos dos judeus, os quais cobravam juros
exorbitantes. Mas os templários haviam recebido permissão para fazer
empréstimos, cobrando em média a metade dos juros praticados pelos judeus. O
Templo de Paris transformou-se em um dos principais centros financeiros da
Europa. Como durante a Idade Média era muito perigoso carregar dinheiro, as
pessoas depositavam certa quantia numa fortaleza templária e podiam resgatá-la
em qualquer outra, pagando uma taxa por este serviço.
Para se tornar um cavaleiro templário, era necessário fazer voto de pobreza,
obediência e celibato. Não se levava muito em conta a posição social do
indivíduo e até mesmo assassinos ingressaram na Ordem a fim de expiar os seus
pecados. Levantavam-se às quatro horas da manhã para as matinas e depois iam
cuidar de seus cavalos. Comiam em silêncio, ouvindo a leitura da Bíblia. Todos
os bens pertenciam exclusivamente à Ordem e nenhum monge podia possuir
coisa alguma, além das próprias roupas do corpo.
Michael fechou o livro por um instante e apanhou seu relógio na gaveta de
um criado-mudo ao lado de sua cama. Aquela história toda era realmente
incrível e explicava muitas passagens obscuras a respeito dos templários.
Sempre se perguntara por que motivo haviam designado apenas nove homens no
início, um número tão insignificante, para proteger os peregrinos cristãos com
destino à Terra Santa. Agora, ele compreendia toda a verdade, pois o objetivo
não era este. Os cavaleiros da Ordem tinham sido alojados no templo de
Salomão com a finalidade de procurar em seus subsolos o mapa essênio, que
indicava o local onde o demônio fora preso.
Porém, outras perguntas fervilhavam em seu cérebro. Teriam descoberto o
tal mapa e, consequentemente, o demônio? Levando-se em consideração a
maneira como eles foram recompensados pelo papa, sobretudo a partir do
concílio de Troyes, esta hipótese era bastante plausível. Mas se o encontraram, o
que de fato foi feito? Trouxeram o diabo para o prender na Europa? E, em caso
afirmativo, como o mantiveram preso e qual cidade fora escolhida? Uma
pergunta, todavia, martirizava Michael mais do que todas. A igreja ainda
conservaria o demônio cativo em nossos dias?
Frei Felício parecia estar muito interessado no assunto e era bem possível
que ele soubesse algo surpreendente. Caso contrário, por qual motivo deixaria
separado sobre a mesa da biblioteca dos templários aquelas três obras singulares,
que de certo ponto de vista pareciam se completar de alguma forma: o diário de
Jacques de Molay, o Evangelho de José de Arimateia e o livro Segredos Ocultos
da Igreja? Era como se ele quisesse indicar um caminho a ser trilhado, como se
desejasse abrir uma janela para arejar aquele mistério envolto pelas trevas dos
séculos.
Pouco antes do almoço, Michael saiu do seu quarto e foi procurar Abelardo,
pois desejava contar ao amigo tudo o que havia descoberto. Não o encontrou em
lugar algum, nem no claustro, nem na biblioteca e tampouco na igreja ou em sua
cela. Ninguém sabia de seu paradeiro ou o vira durante toda a manhã. Isto
deixou o rapaz um tanto apreensivo, pois Abelardo não costumava se ausentar de
Santa Maria delle Grazie. Michael almoçou em silêncio, respondendo apenas
com palavras lacônicas o que lhe era perguntado. Ao cabo da refeição, dirigiu-se
à igreja e ali permaneceu por longo tempo, meditando sobre aqueles
extraordinários segredos, guardados a sete chaves pela cúpula da cristandade.
À noite, quando todos já se achavam em seus aposentos, Michael foi bater
na cela de frei Abelardo. O velho monge estava deitado e estranhou bastante ao
ouvir três pancadinhas muito leves em sua porta. Não era comum que os frades
fossem acordados após terem se recolhido. Ele acendeu o abajur sobre o criado-
mudo, sentou-se na cama com alguma dificuldade e pôs as sandálias. Em
seguida, ergueu-se e foi ver quem era.
- Posso entrar? Indagou Michael, sorrindo feliz ao vê-lo outra vez.
- Oh, meu amigo... claro, entre... entre... a que devo a honra de uma visita
tão fora de hora? Disse gracejando.
- Desculpe-me por vir assim. Mas descobri coisas surpreendentes,
estarrecedoras... Coisas que podem abalar os alicerces da igreja!
- Calma, meu caro! Sente-se na cama ao meu lado e conte-me tudo. Você
está um pouco nervoso...
- Estou mesmo. Parece que arrebentarei de excitação! As peças deste
misterioso quebra-cabeça começam a se encaixar, revelando segredos
espantosos...
- Está falando do que descobrimos sobre Beato Simão?
- Nada disso. Refiro-me ao segredo de frei Felício, que você procurou por
tanto tempo. Acabei o descobrindo por acaso... Ele possuía informações
sigilosas, guardadas pela igreja por quase dois mil anos como um segredo
supremo e absoluto...
- Meu Deus, Michael, diga-me de uma vez por todas...
- Antes, quero saber onde você esteve durante o dia inteiro.
- Fui até a cidade de Parma procurar um velho amigo, um grande professor
de Teologia, dos tempos em que estive no seminário. Apesar da idade, ele ainda
é um homem muito lúcido e eu queria saber a sua opinião a respeito de um
determinado assunto...
- Sobre Beato Simão?
- Exatamente! Contei-lhe o que havíamos descoberto e perguntei a ele se
deveríamos alertar as autoridades eclesiásticas...
- E qual foi o seu conselho?
- Pediu-me para manter silêncio até conseguir uma prova mais concreta.
Sobretudo, recomendou-me ficar de olhos bem abertos e tomar bastante
cuidado... Mas você não veio até minha cela a esta hora para falar disso! Conte-
me logo o motivo de sua visita, pois estou muito curioso...
Michael abriu uma pasta que trouxera com ele e retirou dela os três livros
que havia encontrado na biblioteca dos templários. Depois, entregando-os a frei
Abelardo, disse:
- Dê só uma olhada!
O velho frade apanhou os óculos sobre o criado-mudo, tomou os volumes
em suas mãos e pôs-se a folheá-los com o peito batendo célere feito uma onça
correndo na ventania. Durante uns cinco minutos, não disse nada, embevecido
que estava por contemplar aquelas raridades. Seus olhos brilhavam
emocionados, seus dedos tremiam e sua alma rejubilava em êxtase. Por fim,
acariciando o Evangelho de José de Arimateia feito um filho querido, afirmou:
- Então ele existe realmente...
- E há muito mais...
- Onde os descobriu? Na biblioteca que lhe mostrei ontem? Como pode ser,
se eu passei lá dentro boa parte de minha vida sem dar com eles...
- Pois venha comigo, vou lhe mostrar.
- Agora? Mas estou de pijamas...
- Qual a importância disso? Vamos já, garanto que você ficará de queixo
caído. Ainda nem lhe contei sobre o principal segredo de frei Felício...
Michael apanhou os livros de volta e os guardou dentro da pasta. Em
seguida, caminharam silenciosamente através do escuro corredor, iluminado
apenas pela pequenina lanterna do rapaz. Pouco depois, chegaram à biblioteca
do convento e dirigiram-se à saleta nos fundos, que servia para guardar papéis
velhos. Frei Abelardo puxou um pouco a estante e os dois cruzaram de gatinhas
a abertura da parede.
- Bom, até agora não vi nada de novo...
- Então, prepare-se para a surpresa...
O rapaz subiu sobre um banquinho e, retirando o falso livro dos templários
da última prateleira, acionou a alavanca atrás dele. Um ruído seco foi ouvido do
outro lado da estante, que se deslocou um pouco do local onde se achava,
abrindo um espaço entre ela e a parede. Michael pediu para o amigo acompanhá-
lo e eles entraram numa pequena saleta escura. Com sua lanterna, iluminou
aquela tenebrosa estátua de cera, guardiã do alçapão que dava acesso à biblioteca
da Ordem. Frei Abelardo arregalou os olhos assustados, exclamando:
- Mas o que é isso, meu Deus!
- Um Pobre Cavaleiro do Templo... provavelmente está aí há séculos!
Com cuidado, Michael retirou das mãos da estátua a espada que ela
segurava e fez alguns movimentos desajeitados de espadachim. O velho frade
não gostou da brincadeira, pedindo para o rapaz devolver a arma ao seu legítimo
dono, pois trazia a lâmina ainda afiada e alguém poderia se machucar. Ele
obedeceu, mas antes deu uma boa olhada nela, admirando o seu feitio. Só então
descobriu algumas palavras gravadas junto ao cabo.
- Veja! Há o nome do proprietário da espada: Jacques de Molay!
- O último grão-mestre do Templo! Exclamou frei Abelardo.
- Sim... o homem que escreveu este diário, o qual traz revelações
estupendas...
- Mas o que tal sujeito faz aqui?
- A sua missão agora é afugentar os curiosos, pois ele guarda um grande
segredo...
Dizendo isso, o rapaz devolveu a espada ao templário e o arrastou para o
lado, levantando o tapete debaixo dos seus pés. Surgiu diante dos olhos deles o
alçapão, com uma grossa argola de ferro por cima. Michael a agarrou com as
duas mãos e a puxou com todas as forças. Dessa vez, foi mais fácil abrir. Uma
escadaria fúnebre apareceu, envolta em trevas, e os dois começaram a descer por
ela, seguindo o moço adiante e o velho atrás. Um cheiro terrível de bolor
desprendia-se das paredes úmidas, provocando em ambos uma sensação de mal-
estar. Quando finalmente chegaram ao cobiçado destino, Michael bradou
orgulhoso:
- Eis a biblioteca dos templários!
Frei Abelardo parecia mal caber dentro de si em virtude daquela
extraordinária revelação, admirando boquiaberto os numerosos rolos de
pergaminhos entulhados por todo canto. Caminhava de uma parte a outra,
retirava alguns manuscritos das velhas prateleiras, assoprando o pó dos séculos,
e os contemplava com olhos de amante voluptuoso. Enquanto isso, para iluminar
um pouco o ambiente, Michael acendeu algumas velas que trouxera consigo,
pois aquelas da noite anterior já se encontravam completamente consumidas.
- Agora, quero lhe contar a parte mais terrível e impressionante de tudo
isso. Quando aqui cheguei pela primeira vez, estes três livros achavam-se sobre
aquela mesa, dando a entender que haviam sido separados de propósito por frei
Felício.
- É bem possível, pois ele era muito organizado.
- Então, prepare-se para a bomba! Descobri que os cruzados encontraram
em Jerusalém um precioso manuscrito, onde se afirma algo estarrecedor: a prisão
do demônio pelos essênios...
- Meu Deus! O que está me dizendo?
- É exatamente isto! Esse documento chegou às mãos do papa Calisto II, o
qual decidiu averiguar o quanto de verdade existia naquele pergaminho.
Convocou uma reunião secreta com as principais inteligências da cristandade do
tempo, entre eles, Estevão Harding e São Bernardo de Claraval...
- Grandes homens, grandes homens...
- Pois chegaram à conclusão de que o manuscrito dizia a mais pura verdade.
Resolveram criar uma ordem religiosa de caráter militar para descobrir onde o
demônio estava sendo mantido encarcerado...
- Os cavaleiros templários?...
- Exato! E, pelo jeito, eles cumpriram perfeitamente esta missão! Talvez o
demônio ainda se encontre aprisionado na terra nos dias de hoje!
Frei Abelardo puxou uma cadeira encostada à mesa e sentou-se nela,
levando a mão sobre a testa úmida de suor. Seu rosto empalidecera e o rapaz
pensou que ele fosse desmaiar:
- Não está se sentindo bem?
- Não é nada. Só preciso de um minuto para recobrar o fôlego...
- Vou lhe buscar um copo d’água!
Ao dizer isso, Michael subiu ligeiro as escadas, dirigindo-se à cozinha do
convento. Durante o caminho, teve novamente aquela sensação de que o estavam
seguindo. Por mais de uma vez, voltou sua cabeça para trás, iluminando os
corredores escuros com sua pequenina lanterna, mas não viu nada de estranho.
Apanhou um copo grande dentro de um armário e, enchendo-o até a borda com
água do filtro, retornou logo à biblioteca dos templários. Frei Abelardo já se
encontrava de pé, dando a impressão de que havia recuperado as cores.
- Aqui está!
O velho frade tomou o copo nas mãos e bebeu metade do seu conteúdo.
Depois, colocou-o sobre a mesa e disse:
- Obrigado, meu amigo, já me sinto melhor. Acho que foi apenas uma
queda de pressão...
- Tem certeza? Não quer ir a um médico?
- Imagina! Esta notícia é que quase me pôs a nocaute, respondeu frei
Abelardo rindo.
- É... eu também fiquei perturbado quando descobri isso. Mas me diga, já
ouviu falar algo sobre a prisão do diabo? Acredita que pode ser verdade?
- Para ser sincero, nunca ouvi nada a respeito. Se a igreja de fato mantém
preso o demônio, ela jamais irá revelar tamanho segredo.
- Concordo plenamente...
- Lembro-me de ter lido na juventude alguns textos apócrifos, profecias
sobre o final dos tempos. Muitas delas afirmavam que o demônio seria mantido
em cativeiro e libertado apenas quando o mundo estivesse prestes a acabar...
- Sim! Até o Apocalipse de São João diz qualquer coisa parecida...
- Exato! Após o demônio fugir da prisão, ele vai erguer seu império na
terra. Segundo os profetas, tudo isso será anunciado com sinais, a fim de alertar
os homens para que eles possam se arrepender de seus pecados...
- Sinais?
- Fome, epidemias, novas doenças, grandes cataclismos...
- Pois não é o que vem ocorrendo em nosso tempo?
- Concordo e não é só isso. Curiosamente, em quase todos esses textos, há
sempre a menção de um falso profeta, realizando verdadeiros prodígios e
anunciando o retorno do messias pouco antes do terrível flagelo reservado à
humanidade...
- Falso profeta? Você não quer dizer que Beato Simão...
- Meu amigo, eu não quero dizer nada. São apenas conjecturas de velho
ranzinza...
- Como você fala, parece que o mundo vai acabar amanhã!
- Não afirmo, nem nego. Quem poderá dizê-lo? Agora, se o demônio se
encontra preso, seus exércitos infernais devem estar fazendo de tudo para o
libertar.
- E por que não o libertam? Por qual motivo ele não foge, não tem poderes
sobrenaturais?
- Com toda certeza. Mas é possível que seus poderes tenham sido limitados
de alguma maneira. Talvez os próprios diabretes não saibam onde seu líder está e
por isso nada podem fazer. Uma vez, li que apenas Deus e o demônio possuem o
poder de onisciência, não seus vassalos infernais. Ao longo dos séculos, esses
súditos de Satã provavelmente vieram à terra, adotando as mais diversas
aparências, com a finalidade única de libertar o príncipe das trevas.
- Frei Abelardo, desculpe-me a franqueza, mas acho que o sono já está lhe
embaralhando as ideias. Falando nisso, vou subir à minha cela, pois é tarde e
ainda pretendo ler algumas páginas do diário de Jacques de Molay.
- Vá, meu caro. Ficarei mais um pouco para apreciar melhor estas raridades.
Até amanhã!
- Até amanhã!
Michael deitou-se em sua cama e pôs-se a ler o diário de Jacques de Molay,
o último grão-mestre do Templo. Como estava bastante eufórico, o sono custou a
lhe dominar e apenas fechou o livro, quando já eram quase quatro horas da
manhã. Acreditava ser o mais feliz dos homens, imaginando quantas pessoas
teriam tido o privilégio de ler aqueles velhos manuscritos em quase setecentos
anos. Só em contemplar a letra miúda do líder dos templários, saber que sua mão
poderosa tocara aquelas páginas amareladas, o rapaz sentia seus pelos
arrepiarem-se. Logo no início do texto, Jacques de Molay afirmou ter escrito
aquele diário durante o tempo em que permanecera na prisão, aguardando a sua
pena. A primeira parte da obra é dedicada a inocentar os templários das
acusações que eles vinham sofrendo. A Ordem fora acusada de renegar Cristo,
cuspir na cruz, adorar um demônio chamado Baphomet e praticar sodomia, entre
outros crimes. Jacques de Molay alegou que inúmeros cavaleiros templários
somente confessaram tais pecados, pois padeceram todo tipo de tortura. Esta
tentativa de defesa da Ordem ocupa quase metade de seu diário e parece ser,
neste período de encarceramento, a principal preocupação de Jacques de Molay.
Dois outros assuntos, porém, são tratados por ele com muito interesse.
O primeiro dizia respeito ao tesouro dos templários. Em quase duzentos
anos de existência, a Ordem havia se tornado uma instituição extremamente rica
e, por isso, despertara a cobiça de homens inescrupulosos, como o próprio rei da
França, Felipe IV. Mergulhado em dívidas e necessitando de dinheiro a fim de
custear as guerras contra seus vizinhos, o soberano francês tentou de tudo para se
apoderar daquele estupendo tesouro, chegando, inclusive, a pleitear o seu
próprio ingresso à Ordem, mas foi recusado de maneira cabal. Isto fez com que
ele ficasse furioso com os Pobres Cavaleiros de Cristo, jurando vingança.
Quando Jacques de Molay soube que Felipe IV pretendia pôr as mãos sobre o
formidável tesouro dos templários, mandou reunir todo o dinheiro disponível e o
transferiu para um local seguro, longe das garras cobiçosas do rei.
De repente, um pensamento iluminou os olhos de Michael, como se ele
tivesse descoberto algo extraordinário. Teria Jacques de Molay revelado em seu
diário o local onde o dinheiro do Templo fora escondido? O rapaz sempre ouvira
dizer que esse lendário tesouro sumira de forma misteriosa da noite para o dia e
ninguém jamais teve notícia certa dele. Provavelmente, tamanha fortuna ainda
hoje se encontra no local onde os templários a ocultaram há setecentos anos.
Inúmeros aventureiros tentaram desvendar este segredo, mas todas as buscas
foram frustradas. Nenhum deles, porém, teve acesso ao diário de Jacques de
Molay. Animado por este pensamento, Michael passou a ler o texto com mais
atenção, procurando descobrir alguma pista perdida nas entrelinhas. A certa
altura, sentiu um calafrio lhe roendo a medula, pois seus olhos colidiram com os
seguintes versos:
“Nos domínios da rainha escura,
À sombra do tríplice phallus,
Repousa o tesouro templário.”

Por um instante, teve a impressão de que as cornetas dos anjos tocavam


uma sinfonia no céu. Então era verdade! O tesouro do Templo havia sido levado
para um esconderijo seguro e repousava à sombra desse tríplice phallus, no reino
de certa rainha escura. O peito do rapaz arquejava excitado e ele mal cabia em si
de contentamento, pois sabia a importância daqueles versos. Afinal, era o
próprio Jacques de Molay quem indicava o lugar onde os templários tinham
escondido o seu precioso tesouro.
Mas quem seria esta rainha escura? Certamente, o grão-mestre estava
aludindo a uma soberana negra e a solução deste mistério talvez ajudasse a
desvendar o que viria a ser o tríplice phallus. Michael refletiu durante algum
tempo, mas nenhum nome lhe acorreu ao cérebro. Por fim, lembrou-se da
lendária rainha de Sabá e imaginou que os versos poderiam estar se referindo a
ela.
Quanto mais lia o diário de Jacques de Molay, mais o rapaz parecia
absorvido por aquelas páginas enigmáticas, repletas de informações codificadas,
pois os cavaleiros do Templo eram mestres nesta arte. Ainda assim, Michael
tinha a esperança de que o grão-mestre revelasse, a qualquer momento e de
forma clara, o local para onde haviam levado o tesouro. Alguns parágrafos
abaixo, o seu desejo quase se tornou realidade, quando ele leu o seguinte trecho:

“Pouco antes daquele fatídico dia, eu soube que a intenção de Felipe, dito
o belo, era se apoderar de todo o tesouro da Ordem para engordar os reais
cofres que viviam à míngua, apesar dele extorquir ao extremo os seus infelizes
súditos. Ao tomar conhecimento dessa torpe resolução, dei ordens para que o
tesouro fosse conduzido durante a madrugada a um local seguro, localizado...”

Desgraçadamente, o texto da página seguinte não fazia o menor sentido


lógico com o anterior. Michael interrompeu a leitura, tentando entender o motivo
pelo qual Jacques de Molay mudara de assunto assim tão de repente e
suspendera a pena no exato momento em que ia fazer aquela revelação crucial. O
rapaz achava-se bastante decepcionado, quando seus olhos notaram algo
impressionante. Embora as folhas do diário não estivessem numeradas, Michael
observou que entre aquelas duas páginas, cujo texto se encontrava truncado,
existiam junto à lombada fragmentos de pergaminho rasgado. Ora, isto só
poderia significar uma coisa: alguém arrancara dali a folha que explicava onde
fora escondido o tesouro do Templo! E fizera isso de propósito, para manter o
local escolhido no mais absoluto segredo.
O último assunto do diário dizia respeito à prisão do demônio. Tudo o que
Michael lera no livro Segredos Ocultos da Igreja ali estava confirmado pelo
chefe dos templários. Após terem descoberto o príncipe das trevas preso numa
caverna da Síria, ele foi conduzido à presença do papa, o qual o mandou
encarcerar numa masmorra extremamente sigilosa. Apenas as mais elevadas
autoridades da igreja e os nove Pobres Cavaleiros de Cristo tinham
conhecimento desse segredo. Segundo Jacques de Molay, por volta do final do
século XIII, os templários escolheram sete locais, conhecidos por eles como as
Sete Torres do Demônio, e colocaram em cada uma delas uma pista que, unidas,
indicariam o local da prisão. O diário, porém, não explicava nada sobre estas
sete torres. Curiosamente, para cada uma delas, o grão-mestre havia escrito uma
misteriosa trovinha:

Primeira Torre

“Numa pedra das escuras,


Quase junto já do mar,
O sinal que tu procuras
Haverás de encontrar.”

Segunda Torre

“Neste templo abençoado,
Que a fé fez levantar,
O sinal tão desejado
Entre reis hás de encontrar.”

Terceira Torre

“Sob a pedra da caveira,
Lá na torre principal,
Junto à última fileira,
Acharás mais um sinal.”

Quarta Torre

“Trinta passos do farol
Bem medidos contarás
Às três horas sob o sol,
Mas na sombra cavarás.”

Quinta Torre

“Numa câmara rochosa
De formato circular
E aparência pavorosa,
Tu terás que lá entrar.”

Sexta Torre

“Entre as tumbas do lajedo,
São Miguel sempre atilado
Nos aponta com seu dedo
O local tão desejado.

Mas ainda um segredo,
Neste túmulo gelado,
Do demônio o brinquedo
Pode então ser revelado!”

Sétima Torre

“Às três horas, brilhará
Farta luz sobre o telhado,
Cujo facho indicará
O local tão desejado.”

Michael ficara perplexo com todas aquelas revelações feitas por Jacques de
Molay em seu diário. Agora, ele sabia que o tesouro do Templo fora escondido
de propósito para não cair nas garras de Felipe IV, rei da França, e talvez ainda
hoje se encontrasse à sombra do tríplice phallus, nos domínios da rainha escura.
Não tinha a menor ideia de qual seria o sentido dessas palavras, mas já era um
começo, uma pequenina centelha a lucilar nas trevas. Além disso, havia também
a confirmação do encarceramento do demônio pelos templários, assunto que
interessava ainda mais ao rapaz, pois tal fato poderia influir diretamente no
destino da humanidade. Afinal, quando o diabo escapasse do cárcere onde estava
aprisionado não iria acontecer o final do mundo? Pelo menos, assim rezavam as
profecias apocalípticas.
Nas últimas páginas do diário, Jacques de Molay narrava a maneira como
os Pobres Cavaleiros de Cristo encontraram o demônio encarcerado em uma
caverna no deserto da Síria. Eram quase quatro horas da manhã, quando
finalmente Michael fechara o volume, apagara o abajur ao lado da cama e puxara
o lençol sobre a cabeça, como costumava dormir. Durante o resto da noite,
sonhou com os templários procurando o mapa essênio nas ruínas do templo de
Salomão.
No templo de Salomão

Jerusalém, 1127

O sol já começava a se pôr naquela tarde de sexta-feira, quando o jovem


Gondomar surgiu ofegante e aos berros numa das salas laterais da grande
mesquita de Al-Aqsa, que agora servia de sede aos templários. Alguns cavaleiros
que ali jogavam cartas para passar o tempo, pois já haviam alimentado seus
cavalos e feito as orações do dia, sobressaltaram-se com tamanho escarcéu,
pouco comum aos hábitos morigerados de todos. Gondomar era o mais jovem
daqueles nove homens, os quais tinham abandonado tudo, mulheres, família,
campos e vinhas, a fim de acudir ao apelo do papa Calisto II. Aconselhado por
São Bernardo e Estevão Harding, ele confiara à nova ordem a missão
extremamente secreta de encontrar, nos subsolos do templo de Salomão, o mapa
essênio, que indicava o local onde o demônio estava preso.
A mesquita de Al-Aqsa localizava-se sobre as ruínas do antigo templo de
Salomão, edificado pelo sábio monarca por volta do ano 950 a.C., nas
proximidades do lugar onde Abraão sacrificaria seu filho, Isaac. Gigantesco e
suntuoso, este templo fora construído não só para servir à glória de Deus, mas
também para guardar a Arca da Aliança, preciosa relíquia em forma de urna, que
continha os dez mandamentos escritos em tábuas de pedras. No ano de 586 a.C.,
os exércitos de Nabucodonosor invadiram Jerusalém, incendiaram a cidade,
destruíram o templo e levaram os judeus para viver em cativeiro na Babilônia. O
profeta Ezequiel previra a sua reconstrução, o que aconteceu de fato, mas ele foi
de novo arrasado pelo soberano selêucida Antíoco Epifânio. Nos tempos de
Cristo, Herodes o edificou mais uma vez, sendo definitivamente destruído em 70
d.C. pelo general Tito, futuro imperador romano. Quando os cavaleiros do
Templo foram alojados na mesquita de Al-Aqsa, apenas um trecho do velho
edifício permanecia de pé, conhecido nos dias de hoje como o muro das
lamentações.
André de Montbard, tio de São Bernardo de Claraval, um dos grandes
incentivadores da Ordem na Europa, pôs as cartas na mesa e levantou-se de
imediato para acudir ao rapaz, imaginando que ele havia sido picado por cobra
ou escorpião, em virtude de toda aquela gritaria ensandecida. Logo depois,
entraram afobados na sala Archambaud e Godofredo Bisol, falando ambos ao
mesmo tempo:
- Achamos! Achamos!
Hugo de Payns ordenhara uma vaca e levava para a cozinha, num balde de
madeira, o saboroso leite espumante e perfumado. Na correria em que vinham os
dois, acabaram atropelando o grão-mestre do Templo, o qual derrubou sobre as
próprias vestes brancas boa parte do conteúdo do tacho. Archambaud,
Godofredo Bisol e Gondomar demonstravam enorme felicidade e nem se
lembraram de pedir desculpas ao venerando confrade. Os três mal conseguiam
articular as palavras, tamanho era o estado de êxtase deles. Os moços se
abraçavam e se beijavam, riam, dançavam e até mesmo choravam de alegria.
Nenhum dos cavaleiros parecia compreender coisa alguma. Chegaram mesmo a
pensar que haviam enlouquecido, quando Gondomar apanhou o balde e despejou
o restante do leite sobre a própria face coberta de suor e os cabelos repletos de
terra.
- Achamos! Achamos! Diziam a um só tempo.
- Acharam a “encomenda”? Bradou Hugo de Payns, duvidando de que tal
notícia pudesse ser verdadeira.
A “encomenda” era a maneira como os cavaleiros do Templo se referiam ao
mapa essênio, o qual lhes havia sido “encomendado” pelo papa Calisto II, pois
ele desejava encontrar o demônio e trazê-lo para o Ocidente.
- Ainda não, respondeu Godofredo Bisol. Mas achamos uma entrada, que
deve dar acesso ao local onde ela se mantém escondida.
Os templários entreolharam-se de maneira cética e sem grande entusiasmo.
Certamente, aquele era mais um alarme falso, como tantos outros. Há mais de
sete anos, a vida deles resumia-se em cuidar dos cavalos, orar e cavar. Os nove
monges tinham sido divididos em três grupos com três homens cada e
alternavam-se em turnos de trabalho, escavando um dia e descansando dois. Já
haviam removido tanta terra sob o antigo templo de Salomão, e cavado tantos
túneis subterrâneos, que era incrível como a mesquita de Al-Aqsa ainda não
desmoronara. Jacques Rossal balançou de forma negativa a cabeça, apanhou as
cartas deitadas sobre a mesa e disse:
- Irmãos, voltemos ao jogo!
- Sim, não vamos perder mais tempo com isso!
- Mas esta é a maior descoberta feita até agora, disse Gondomar com a voz
um tanto magoada, pois ninguém parecia crer em suas palavras. Tenho absoluta
certeza de que há ali uma sala secreta, escondendo algum mistério
extraordinário.
- Como o “fabuloso tesouro” que você achou da outra vez...
Todos riram à larga, lembrando-se do ocorrido. Pouco mais de um ano
atrás, o rapaz convencera os templários de que ele tinha descoberto a mais
sagrada relíquia do povo judeu, a própria Arca da Aliança! Os cavaleiros
desceram apressados até a galeria onde ele escavava e encontraram uma velha
urna de madeira, ainda meio soterrada. Quando, finalmente, conseguiram retirá-
la do local e a abriram, tiveram uma enorme decepção. Dentro dela, havia apenas
uma grande quantidade de ossos, indicando que aquele lugar servira também
como cemitério.
Hugo de Payns fora escolhido o primeiro grão-mestre da Ordem em virtude
de suas nobres qualidades, entre elas a serenidade e a ponderação. Ele pediu para
os três se sentarem a fim de explicar melhor o que haviam encontrado.
Archambaud tomou a palavra e disse:
- Trata-se de uma pequena porta maciça, encravada na pedra, feita de ferro
ou bronze. Através dela, é possível passar apenas um homem de cada vez,
arrastando-se pelo solo. Acreditamos que esta passagem dê acesso a uma sala
secreta, onde estão a “encomenda” e talvez outros tesouros ainda mais
preciosos...
Todos se entreolharam por alguns segundos e, durante este tempo, o
silêncio foi grande. Finalmente, Hugo de Payns aproximou-se da mesa e
proferiu:
- É dever da Ordem averiguar tudo o que possa conduzir ao cumprimento
da missão incumbida pelo papa. Irmãos, levem-me até lá!
Ao ouvirem estas palavras, Gondomar, Archambaud e Godofredo Bisol
levantaram-se no mesmo instante, felizes com aquela decisão. Um deles tomou
um archote, outro apanhou uma espécie de picareta, enquanto o terceiro foi
buscar o marrão de arrebentar pedras. Em seguida, os demais também se
ergueram, dizendo:
- Vou com vocês!
- Contem comigo!
- Esperem por mim!
Por fim, todos apanharam as ferramentas necessárias e passaram a seguir
Godofredo Bisol, que acendera uma tocha e pusera-se a caminhar na frente do
grupo, iluminando os subterrâneos escavados. Hugo de Champagne também
levava um archote, enchendo as paredes e o teto da galeria com sombras
funéreas. Quanto mais eles desciam para as profundezas daquele túnel sombrio,
maior era a sensação de calor e de falta de ar. O suor pingava-lhes em grossas
bagas pela testa e pescoço e, em pouco tempo, suas vestes brancas ficaram
completamente empapadas. Quando já se encontravam muitos metros abaixo do
solo, Gondomar disse:
- É ali!
Hugo de Payns tomou a tocha das mãos de Godofredo Bisol e trouxe a
chama até a parede de pedra. Junto ao piso, havia uma pequenina porta de
formato retangular, muito baixa e pouca coisa mais larga do que o ombro de um
homem. O grão-mestre concordou que ela deveria esconder algum segredo
importante e, recuando três passos, pediu para Jacques Rossal, o mais forte
dentre todos os cavaleiros, arrombar aquele obstáculo. Ele pegou o pesado
marrão com seus punhos enormes e pôs-se a golpear a porta violentamente,
pancada atrás de pancada. Porém, todo o esforço revelou-se inútil, pois os
gonzos não cederam. Tamanha foi a força empregada por seus músculos que,
num dos golpes, o marrão arrebentou e quase atingiu a cabeça de Archambaud.
- Esta porta não vai ceder desse jeito! Foi construída para suportar a
marrada de um aríete!
- Então vamos arrancar as pedras da parede! Proferiu Hugo de Payns.
De imediato, os cavaleiros obedeceram e passaram a trabalhar com suas
ferramentas nesta árdua tarefa. Por mais de uma hora, eles arrancaram lascas e
mais lascas das rochas, sem, contudo, obter o fim desejado, ou seja, abrir um
orifício por onde pudessem alcançar a tal sala secreta do outro lado. Quando já
haviam decidido encerrar os trabalhos daquele dia, Jacques Rossal apanhou uma
picareta e pôs-se a desfechar golpes furiosos sobre a parede, até que conseguiu
abrir uma pequenina fenda entre as pedras. Isto redobrou o ânimo dos
templários, os quais voltaram à labuta. As pancadas multiplicaram-se uma sobre
as outras e as ferramentas até soltavam faíscas em virtude da violência dos
golpes desferidos. Pouco depois, a abertura já estava do tamanho de um punho
fechado e não demorou muito para que o jovem Gondomar pudesse inserir nela a
sua cabeça. Porém, nada enxergou, pois o recinto permanecia envolto em trevas.
Hugo de Payns pegou um archote e o introduziu dentro da cavidade. Os
cavaleiros espremeram-se uns sobre os outros para ver o que havia lá dentro. A
chama iluminou frouxamente a sala secreta, revelando um grande número de
urnas de barro encostadas numa das paredes.
- Seriam urnas funerárias?
- Só há um jeito de saber, respondeu Jacques Rossal.
E dizendo isso, recomeçou a desfechar pancadas fortíssimas sobre as
pedras. Após algum tempo, o grão-mestre pediu que cessassem os golpes, pois a
abertura já era suficiente para dar passagem a um homem.
- Quem quer ter a honra de ser o primeiro? Indagou Hugo de Payns.
- Deixe-me ir, redarguiu Gondomar, eufórico.
- Pois vá!
O rapaz espremeu-se todo até conseguir entrar. Entregaram-lhe um archote
através da abertura na parede e, com bastante cautela, começou a mover-se pela
sala, que era muito baixa, sendo necessário caminhar curvado. Em mais de mil
anos, pessoa alguma jamais colocara os pés naquele recinto e isso fazia
Gondomar sentir-se um homem especial. Seu coração disparara dentro do peito
feito um cavalo selvagem galopando pelos campos ensolarados. No fundo, era
como se adivinhasse que ele e seus companheiros estavam para descobrir o
maior segredo de todos os tempos, o qual a igreja passaria a ocultar a qualquer
preço.
Com suas mãos, ele foi desviando do rosto as seculares teias de aranhas
existentes por toda parte. Junto a uma das paredes, jaziam cerca de vinte urnas
de barro, cada uma delas com mais de um metro de altura por quase isso de
diâmetro. Gondomar aproximou-se de um desses vasos, iluminando o seu
conteúdo com a chama do archote. Um clarão fulgente resplandeceu dentro de
seus olhos, feito mil sóis flamejantes. Por alguns segundos, o rapaz permaneceu
em êxtase, boquiaberto, sem conseguir articular qualquer palavra. Do outro lado
da parede, os templários retorciam-se de curiosidade:
- O que tem aí, Gondomar? Conte-nos de uma vez!
Ele meteu as duas mãos no interior do vaso e passou a rir idiotamente,
revolvendo parte do conteúdo, que escorria por entre seus dedos como grãos de
trigo. Por fim, agarrou a boca de uma das urnas, lançando-a ao chão. Uma
infinidade de moedas douradas espalhou-se por todo lado, refletindo o brilho
fulgurante das chamas do archote. Ao verem tamanho tesouro diante de seus
olhos, os Pobres Cavaleiros de Cristo esqueceram-se de que haviam feito votos
de pobreza e puseram-se a bradar excitados, cheios de cobiça:
- Ouro! Ouro! Ouro!
Nem mesmo o grão-mestre do Templo conteve-se diante daquela descoberta
colossal, sendo um dos primeiros a penetrar na sala do tesouro. Imediatamente,
todos os templários o seguiram, metendo-se aflitos pela cavidade da parede.
Gondomar parecia ter sido tomado por um delírio insano e continuava
destruindo as urnas, atirando-as ao chão, a fim de conferir o conteúdo de todas.
O número de moedas era tão grande, que elas chegavam a se amontoar na altura
dos tornozelos dos monges. Todos estavam bastante eufóricos, alucinados,
gritando, rindo, dizendo nomes não condizentes ao espírito da Ordem. Após o
deslumbramento inicial, Hugo de Payns recobrou a serenidade e reprimiu os
cavaleiros por aquele comportamento absurdo. Não tinham vindo de tão longe
para subtrair tesouros alheios, feito salteadores vulgares. O papa os incumbira de
encontrar o demônio e levá-lo preso ao Ocidente. Para isto os templários haviam
sido criados e este era o único objetivo que eles deveriam ter diante de seus
olhos.
- Amanhã, recolheremos esse dinheiro e recomeçaremos nossas buscas. Já é
tarde, vamos dormir. Ordenou Hugo de Payns.
- Você vai comunicar ao papa que achamos o tesouro de Salomão? Inquiriu
Godofredo Bisol?
- Vou consultar Bernardo de Claraval primeiro e farei o que ele achar
melhor, pois é o maior homem de nosso tempo, o mais ponderado e o mais
capaz. Se eu informar a igreja a respeito de nossa descoberta, talvez ela
confisque tudo. Caso Bernardo julgue ser direito nosso permanecer com o
dinheiro, ficaremos com ele para o engrandecimento da Ordem.
Enquanto o grão-mestre dizia isso, Godofredo Bisol acabara de tombar a
última urna que permanecia de pé. Para surpresa geral, um curioso objeto surgiu
camuflado no meio de todas aquelas moedas douradas.
- Vejam! Havia algo mais dentro do vaso! Exclamou André de Montbard.
Jacques Rossal apanhou aquela peça singular e a entregou a Hugo de Payns.
Era uma belíssima caixa de ouro, trabalhada com filigranas de prata em relevo e
cravejada com pedras preciosas. O grão-mestre observou com atenção o precioso
estojo, admirando o trabalho artístico feito por algum mestre ourives. Em seu
íntimo, imaginava que uma caixa tão ricamente ajaezada deveria guardar um
tesouro formidável, talvez até mesmo o Santo Graal. Hugo de Champagne era o
mais aflito de todos e, sem conseguir dominar a sua ansiedade, exclamou:
- Abra-a de uma vez! É possível que dentro dela se encontre “a
encomenda”!
Esta ideia infundiu no espírito daqueles homens um profundo sentimento de
dever cumprido. Se fosse de fato o mapa essênio, parte da missão deles estaria
concluída. Hugo de Payns depositou a caixa sobre a base de um dos poucos
vasos não destruídos, transformando-o numa mesa improvisada. Suas mãos
roçaram de leve as jóias incrustadas na tampa do magnífico estojo, o qual refletia
a chama brilhante dos archotes. Por alguns segundos, o grão-mestre hesitou em
abrir a misteriosa caixa, receando o que pudesse encontrar em seu interior. Sentia
uma sensação estranha jamais experimentada em sua vida, como se seu próprio
coração tivesse se transformado numa colméia de marimbondos. Por fim,
levantou vagarosamente a tampa do estojo e seus olhos estarrecidos
contemplaram aquela relíquia estupenda...
Nenhum dos cavaleiros podia acreditar. Ali estava ela, a mais sagrada, a
mais sublime, a mais veneranda coroa que monarca algum jamais usaria, por
maior que fosse o seu poder sobre os homens. A coroa de espinhos! A coroa de
espinhos do Rei dos Reis! Ao tê-la entre seus dedos, Hugo de Payns caiu com os
joelhos em terra, chorando convulsivamente. Jamais imaginara que um dia
pudesse receber tamanha graça. Todos os templários seguiram o exemplo do
grão-mestre: ajoelharam-se diante daquela santa relíquia e passaram a derramar
lágrimas comovidas. Assim permaneceram por um bom quarto de hora,
adorando a coroa de espinhos, que ainda trazia alguns fios de cabelo do próprio
Cristo. Em seguida, Hugo de Payns pediu para todos os cavaleiros se
recolherem, pois desejava recomeçar as escavações logo cedo.
No dia seguinte, ao raiar do sol, os templários retornaram àquela sala
secreta e apanharam todas as moedas espalhadas pelo chão. Encheram tantos
sacos com o dinheiro, que Godofredo Bisol precisou ir até o mercado de
Jerusalém a fim de comprar couro, pois não tinham mais onde pôr o tesouro de
Salomão. Depois de guardá-lo num local seguro, os cavaleiros receberam ordem
para escavar o piso da sala das urnas, pois acreditavam que o mapa essênio
estivesse enterrado ali. Durante todo o resto da manhã e boa parte da tarde, eles
não descansaram um único minuto, revirando terra e mais terra, sem encontrar
coisa alguma. Mas quando já começava a escurecer, Jacques Rossal ouviu sua pá
bater de encontro a um objeto maciço, produzindo um som oco e encorpado.
Imediatamente, todos pararam de cavar, largaram suas ferramentas no chão e,
cheios de curiosidade, foram ver a descoberta do companheiro. Jacques Rossal
retirou a terra de cima do estranho objeto retangular e pediu que alguém o
ajudasse a içá-lo dali. No mesmo instante, dois homens acudiram ao seu apelo,
pulando dentro do buraco onde ele cavava e, em poucos segundos, trouxeram o
achado para fora.
Era uma grande caixa de madeira com cerca de dois palmos de largura por
seis de comprimento. A sua tampa estava lacrada por sete cadeados, cada um dos
quais apresentando a figura de um anjo em relevo. Jacques Rossal apanhou um
enorme machado e pôs-se a desferir golpes violentos sobre eles, que
arrebentaram sem oferecer qualquer resistência. Então, Hugo de Payns
destampou a misteriosa caixa e todos puderam ver, com os olhos intumescidos
de terror, o conteúdo ali guardado por mais de mil anos.
Três coisas encontraram em seu interior. Pouca importância deram para a
primeira delas, uma velha chave enferrujada, pois desconheciam a sua serventia.
O grão-mestre do Templo não imaginava o que ela poderia abrir, ou fechar, mas
tinha absoluta certeza de que seria necessária num momento oportuno. Caso
contrário, não teria sido guardada com tamanha cautela. Ele a colocou num
molho de chaves preso à cintura e pediu para Godofredo Bisol lhe entregar o
segundo objeto.
O segundo objeto descoberto dentro da caixa era exatamente aquele que
motivara a criação da Ordem dos Cavaleiros Templários, ou seja, o mapa
essênio. Enfim, a primeira parte da missão confiada aos nove monges pelo papa
Calisto II tinha sido cumprida. Hugo de Payns tomou o antigo pergaminho em
suas mãos e o contemplou extasiado, após o desenrolar com a ajuda de
Archambaud. No centro do mapa, escrito com tinta vermelha, existia uma cruz
assinalando o local exato onde o demônio fora aprisionado pelos essênios pouco
depois da morte de Cristo. Tratava-se de uma caverna no deserto da Síria, a
sudeste da cidade de Damasco, região que os templários possuíam certo
conhecimento. Amanhã mesmo, antes da aurora, o grão-mestre enviaria um
mensageiro à Europa para comunicar a Bernardo de Claraval aquela descoberta
incrível. O papa Calisto II é quem não mais se importaria com isso, pois ele
tinha falecido três anos antes, sendo substituído por Honório II.
O terceiro objeto... bem, o terceiro objeto encontrado na caixa infundia
tanto horror aos Pobres Cavaleiros de Cristo, que muitos temiam até mesmo o
tocar. Eles entreolharam-se assombrados, sem dizer palavra alguma, pois todos
perderam a voz, emudecidos de pavor. Vários traziam as pernas trêmulas e os
joelhos bambos, sendo inacreditável como ainda conseguiam se manter em pé.
Godofredo Bisol enxugava a testa com as mãos, pois suava tanto quanto uma
leoa parida. André de Montbard agarrou-se a seu crucifixo, implorando proteção
com os lábios gélidos, enquanto Jacques Rossal se beliscava amiúde, para ter
certeza de que não estava sonhando. Nenhum deles acreditava nos próprios
olhos. Porque o terceiro objeto da caixa, responsável por aquela visão sinistra e
medonha, era na verdade o tridente do demônio!
Quando a vertigem inicial passou e os templários foram recuperando a
serenidade e o fôlego, Hugo de Payns ordenou que a caixa fosse lacrada com
cravos cobertos com cera e escondida num lugar seguro, para ser entregue às
autoridades da igreja. Depois, todos se recolheram em seus aposentos, pois, no
dia seguinte, partiriam logo cedo atrás do local onde o diabo se achava
encarcerado.
Embora já vivessem há mais de oito anos na Terra Santa, os cavaleiros do
Templo não estavam acostumados à travessia de desertos, de maneira que
sofreram barbaramente com aquela jornada, a qual levou longos dias. O sol
abrasador os castigava sem piedade e mais de um templário amaldiçoou a
nefasta ocasião em que aceitara entrar para a Ordem. Outros cogitaram até em
abandoná-la, mas foram demovidos dessa ideia por Hugo de Payns, conhecido
entre toda gente por sua enorme perseverança. Por fim, resolveram atravessar o
deserto da Síria à noite, permanecendo durante o dia em tendas nos oásis ou nas
grutas que houvesse pelo caminho.
Ao chegarem à região indicada pelo mapa, os templários perceberam que
teriam muita dificuldade para encontrar o demônio, pois aquele trecho do deserto
se achava repleto de cavernas. Havia tantas e tão profundas, cada uma das quais
possuindo inúmeros caminhos tortuosos, formando um verdadeiro labirinto, que
os cavaleiros levariam anos para descobrir o esconderijo, se não contassem com
um lance de sorte. Sem saber por onde começar e, como não tinham outra
alternativa, eles entraram em algumas cavernas à procura do diabo, mas logo
concluíram que, daquela maneira, dificilmente alcançariam seu objetivo.
Durante os primeiros quinze dias, perseveraram nesta tarefa ingrata, vasculhando
grutas sombrias feito formigas a andejar pelas profundezas da terra. Ao cabo
desse período, porém, muitos deles desanimaram. Hugo de Payns procurava
incentivar os companheiros, afirmando que Deus estava do lado deles e logo
mais lhes enviaria um sinal, indicando o lugar preciso onde deveriam
empreender as suas buscas. Coincidência ou não, um acontecimento inesperado
veio acudir aos Pobres Cavaleiros de Cristo.
O mapa essênio descoberto nos subsolos do templo de Salomão estava
escrito em hebraico, língua que André de Montbard conhecia perfeitamente. Os
templários já o haviam estudado inúmeras vezes sem, contudo, conseguir
precisar o local exato onde o demônio permanecia preso. Sabiam apenas que ele
se achava numa caverna no deserto da Síria, a sudeste da cidade de Damasco.
No entanto, o mapa continha uma informação curiosa que eles não
conseguiam decifrar. Sobre a gruta onde o diabo estava sendo mantido em
cativeiro, existia o desenho semelhante a um leão com a boca aberta,
provavelmente rugindo. Qual o significado disso? Com toda certeza, os essênios
queriam indicar uma caverna específica, entre tantas outras, talvez a maneira
como ela fosse conhecida em sua época. Seria um covil de leões? Haveria ali
estes animais naquele tempo? Eram perguntas difíceis de responder.
Uma noite, porém, enquanto todos dormiam, pois já não tinham mais
necessidade de caminhar durante a madrugada, Godofredo Bisol acordou
assustado, imaginando ter ouvido um leão rugir. Por um instante, ele permaneceu
em silêncio, atento, procurando perceber qualquer barulho estranho ao redor de
onde estavam. Uma lua enorme no céu negro despejava sua luminosidade pálida
pelas areias do deserto, deitando sombras sinistras e rasteiras sobre tudo. Seria
mesmo um leão ou algum outro animal? Teria sido um sonho ou o vento? Não,
sonho não era, pois o rapaz continuava escutando aquele rugido medonho,
ameaçador. Levantou-se apavorado, sem, contudo, descobrir de onde ele
provinha. Temendo pela segurança de todos, Godofredo Bisol pôs-se a acordar
os companheiros:
- Acorde, Archambaud, acorde!
- Que foi?
- Ouça, há um leão rugindo nas proximidades!
- Leão?
Imediatamente, todos os cavaleiros puseram-se de pé, empunhando suas
espadas. Nenhum deles, porém, conseguia ouvir o suposto animal rugindo.
Godofredo insistia:
- Ouçam, parece vir daquele lado!
- Não escuto nada. Disse Gondomar.
- Eu também, concordou Jacques Rossal. Ouço apenas o silêncio...
- O deserto provoca alucinações. Proferiu Hugo de Champagne.
- Não estou louco! Estamos correndo perigo!
Dizendo isso, Godofredo Bisol apanhou sua espada e partiu atrás do
suposto leão, com objetivo de matá-lo. Ele trilhou no deserto durante algum
tempo e, quanto mais caminhava, o rugido parecia se tornar ainda mais nítido e
assustador. Os templários começaram a temer pela vida do amigo e decidiram
sair em seu encalço, seguindo as pegadas que ele havia deixado na areia.
Godofredo subiu em uma alta colina, de onde possuía ampla visão do deserto e
dos inúmeros montes nos arredores. Por alguns minutos, ficou admirando aquela
paisagem belíssima, iluminada pela lua cheia, até que seus olhos vidraram,
perplexos. Subitamente, sentiu um esguicho gelado lhe subindo pela coluna
cervical, enquanto seu coração se debatia dentro do peito num desespero
fremente, feito um peixe preso num anzol. Nesse instante, seus companheiros
chegaram ao local em que ele estava e tentaram convencê-lo a regressar:
- Vamos embora! Você não vai descobrir leão algum nesse deserto,
exclamou Hugo de Payns.
Ele fitou os olhos do grão-mestre, como se possuísse as chaves de um
surpreendente mistério. Em seguida, disse com voz tranquila, a contemplar o
horizonte longínquo:
- Pois já encontrei!
Todos os cavaleiros do Templo ficaram intrigados com aquela resposta, até
que Godofredo Bisol lhes acudiu a curiosidade, apontando com seu dedo:
- Vejam!
Era espantoso! Diante dos olhares atônitos dos templários, erguia-se uma
colina fabulosa, cuja forma lembrava terrivelmente a silhueta de um leão rugindo
para a lua. Localizava-se no outro extremo de onde eles permaneciam
acampados e, até então, ninguém percebera aquela semelhança. Todos ficaram
boquiabertos com a descoberta e logo concluíram que o demônio deveria estar
preso ali, conforme indicava o mapa essênio. Agora, tinham certeza de que
trilhavam o caminho certo.
Já estava amanhecendo, quando os cavaleiros chegaram à caverna, ao pé
daquele curioso monte em forma de leão. Não havia uma única planta viva em
todo o morro, de maneira que a própria morte parecia fazer ali morada. Sem
perder tempo, eles entraram na funérea gruta carregando seus archotes
incandescentes, os quais deitavam sombras alaranjadas sobre as paredes. Lá
dentro, tudo cheirava a sepulcro e a trevas. Ao penetrar na caverna, Godofredo
Bisol teve um calafrio singularíssimo, como se algum fantasma tivesse lhe
roçado a nuca com seus dedos gélidos; Gondomar afirmou ter visto um enorme
morcego negro com chifres de bode voando sobre a cabeça de Archambaud,
enquanto Hugo de Champagne pensou ter ouvido a lamúria e o pranto de
crianças mortas. Se houvesse na terra um sítio que se ligasse diretamente aos
abismos infernais, com toda certeza este portal demoníaco estaria escondido nas
profundezas daquela caverna tenebrosa.
Ao contrário das outras grutas vasculhadas por eles, verdadeiros labirintos
sem fim, esta parecia apresentar um único caminho, através do qual os
templários foram descendo cautelosamente. A certa altura, porém, depararam-se
com uma bifurcação. Deveriam seguir à direita ou à esquerda? Hugo de Payns
consultou os cavaleiros e decidiram continuar pela direita, sem qualquer motivo
aparente para a escolha. Depois disso, andaram cerca de quinze minutos, até
encontrarem uma enorme galeria, que reservava aos visitantes uma visão
terrível...
Havia ali centenas, talvez milhares de esqueletos pendurados em estacas,
como se tivessem sido empalados vivos. Aquela cena de horror macabro
produziu em todos um sentimento de asco e piedade ao mesmo tempo, pois
parecia que os gritos lancinantes das caveiras ainda ecoavam pela caverna.
- Tenho até a impressão de estar ouvindo os brados funestos! Disse
Godofredo Bisol.
- Você vive escutando coisas!
- Esperem! Também ouço algo! Concordou Archambaud.
Todos fizeram silêncio durante alguns instantes. De repente, a face do
próprio grão-mestre tornou-se lívida, pois um grito muito abafado ecoara na
galeria, como se alguém clamasse por socorro.
- Há mais alguém aqui!
- Será possível uma coisa dessas?
Varados pela dúvida, os templários atravessaram pelo meio daquele exército
de cadáveres, que parecia defender as portas do próprio inferno, e entraram outra
vez em um túnel escabroso, de onde provinha a misteriosa voz. Quanto mais
desciam, mais nítidos e aflitivos tornavam-se os gritos. A partir de certo trecho,
eles puderam ouvir claramente que se tratava de alguém pedindo socorro.
Quando chegaram à extremidade do túnel, os Pobres Cavaleiros de Cristo
depararam-se com um enorme espaço aberto no ventre da caverna, muito amplo
e muito fundo. Para surpresa de todos, lá embaixo havia um homem acorrentado
nas pedras, a gritar enlouquecido. Esgueirando-se pelas beiradas, apoiando-se
nas frinchas e rochas salientes, os templários conseguiram descer até o local para
ajudar o velho, que se achava bastante cansado e abatido. O homem vestia-se
com farrapos imundos, trazendo a barba completamente desgrenhada, e estava
tão magro, que dava aflição ver os ossos salientes de sua clavícula. Tinha não só
os tornozelos, mas os pulsos e o pescoço amarrados por grossas correntes. Hugo
de Payns aproximou-se dele e inquiriu:
- Qual é o seu nome e por que deixaram você acorrentado aqui dessa
maneira?
O velho encarou o grão-mestre com um olhar piedoso e, alisando a barba
revolta com uma de suas mãos magras, respondeu:
- Meu nome é Pierre Rossal. Sou da cidade de Avignon e vim à Terra Santa
com o exército de Pedro, o eremita, para lutar contra os infiéis, que haviam se
apoderado de Jerusalém. Desgraçadamente, sofremos uma terrível derrota nas
proximidades de Niceia, onde quase todos nossos homens foram massacrados
pelas espadas dos turcos. Quem não teve a ventura de morrer naquele dia, como
eu, foi escravizado, suportando os padecimentos mais cruéis que a mente
humana pode engendrar. Por fim, após tantos anos de servidão, quando minhas
forças haviam se exaurido para o trabalho, trancaram-me neste calabouço, onde
vou morrendo aos poucos...
A história do velho era comovente, mas não o bastante para tocar o coração
daqueles homens impassíveis, acostumados às agruras da vida. Contudo, um
deles, o mais forte, o mais audaz, o mais destemido, trazia os olhos repletos
d’água. Hugo de Payns percebeu que Jacques Rossal ficara muito impressionado
com as palavras do infeliz e indagou:
- O que você tem?
Ele nada respondeu. Lentamente, como se arrastasse um peso enorme sobre
os próprios ombros, aproximou-se do velho, que o fitava em silêncio. Depois,
ficou a contemplá-lo bem de perto, à luz dos archotes. Então, as lágrimas
começaram a escorrer pela sua face, pois já não tinha mais qualquer dúvida.
Com a voz gaguejante e o peito trêmulo, disse:
- Pai?...
O homem arregalou os olhos e permaneceu alguns instantes calado,
procurando descobrir no rosto de seu interlocutor os traços de seu único filho,
aquele menino de dez anos de idade, que ele deixara há tanto tempo, para vir
lutar na Terra Santa.
- Jacques? É você? É você, meu filho?
- Sim, pai, sou eu!
Como não podia deixar de ser, a comoção dos dois foi grande. Jacques
Rossal abraçou seu pai ainda acorrentado e assim permaneceram por algum
tempo, lavados em lágrimas ternas. Depois, contemplando o rosto do filho, o
velho disse:
- Oh, meu pequeno Jacques, esta é a maior alegria que eu poderia ter nesse
meu fim de vida!
- Você ainda vai viver muito, meu pai!
- Quem me dera! E sua mãe ainda vive?
- Sim e reza todo dia para alcançar a graça de vê-lo de novo. Como ela
ficará feliz com o seu retorno à nossa casa!
- É o meu maior desejo, mas temo que ficarei aqui para sempre. Estas
correntes são muito fortes e foram feitas para durar toda a eternidade. Por sua
vez, os cadeados são praticamente indestrutíveis, só abrirão mesmo com a chave,
que está enterrada em Jerusalém, sob o antigo templo de Salomão...
Os olhos de Jacques Rossal cravaram-se nas pupilas do velho como dois
punhais afiados. Era possível uma coincidência dessas? Com a respiração um
tanto alterada, ele indagou:
- O que você disse? Ela está sob o templo de Salomão? Deus do céu! Já
escavamos muito ali e, de fato, encontramos uma chave. Talvez seja a que abra
estes cadeados...
Hugo de Payns apanhou a chave amarrada a outras na cintura e a entregou a
Jacques Rossal. Porém, no momento em que ele ia abrir o primeiro cadeado,
André de Montbard inquiriu:
- Espere um minuto! Como o senhor sabia o local exato onde ela fora
escondida? Estou achando isto muito estranho...
- Ouvi por acaso, quando me prenderam. Respondeu Pierre Rossal.
- E quem o alimentou durante todo esse tempo? Quis saber Archambaud.
O velho manteve-se calado. Depois, dirigindo-se para o filho, suplicou:
- Vamos, Jacques, liberte-me desse sofrimento. Seja um bom menino...
- Não faça isso! Gritou Godofredo Bisol. Não é mesmo muita coincidência
nós chegarmos aqui trazendo a chave que abre esses cadeados? Não, Jacques,
esse homem não é seu pai! É o próprio demônio!
- Não dê ouvidos a eles, meu filho! Por favor, tire-me desta prisão!
- Se não é o demônio, então beije a cruz de Cristo!
Ao dizer tais palavras, Godofredo Bisol apanhou um crucifixo que sempre
trazia consigo e o aproximou do rosto do velho, dizendo:
- Beije!
Em vez disso, ele cuspiu sobre a cruz, transformando-se num monstro
horrendo. Seus olhos pareciam verter fogo, sua língua era como a da serpente e
sobre sua cabeça havia dois chifres de bode. Com voz cavernosa e um tanto
metálica, repetiu:
- Não dê ouvidos a eles, meu filho! Liberte-me desta cadeia!
Jacques Rossal afastou-se assustado, dando um pulo para trás. Todos os
templários estavam assombrados com aquela revelação e nenhum deles podia
compreender como o demônio não conseguia escapar dali, usando seus próprios
poderes diabólicos. Hugo de Payns adiantou-se aos companheiros e perguntou:
- Você é o senhor das trevas? Responda! Como se chama?
- Tenho vários nomes, mas me chamam Legião, porque somos muitos.
- De onde vem?
- Venho do reino dos mortos, onde as almas perdidas jazem em danação
eterna.
- Se é mesmo o demônio, por que continua preso?
- Porque meus exércitos não sabem onde estou encarcerado. Se soubessem,
já teriam vindo para me libertar há muito tempo. O meu poder emana do arpéu,
que vocês encontraram escondido nos subsolos do templo de Salomão.
Devolvam-me e lhes darei o que quiserem, dinheiro, mulheres, saúde, a vida
eterna. Sem meu tridente, sou apenas um pobre diabo sem força alguma. Dêem-
me o arpéu e os transformo em reis!
- Nunca! Temos ordens para levá-lo conosco ao Ocidente e é o que vamos
fazer.
Então, Hugo de Payns pediu para Jacques Rossal abrir os cadeados que
mantinham o demônio cativo. Em seguida, ordenou que os templários o
amarrassem firmemente com cordas e o metessem dentro de um saco de couro
para ser transportado à Europa. A missão confiada a eles por São Bernardo e
Calisto II estava cumprida. Na noite de Natal de 1127, entregavam ao papa
Honório II aquele fabuloso presente, o qual a igreja procuraria manter em
segredo para além dos tempos.
Mais mistérios...

Como ficara lendo até altas horas, Michael acabou levantando-se tarde no
dia seguinte. Uma chuva miúda começara a cair pelo final da madrugada,
aumentando de intensidade ao amanhecer. O rapaz abriu a janela de seu quarto e
permaneceu admirando o céu encoberto por nuvens cinzentas, que emprestavam
àquela manhã uma feição triste e melancólica. Sem saber bem por qual motivo,
sentia-se um pouco deprimido e a sua vontade era encontrar frei Abelardo para
lhe contar todos os segredos revelados por Jacques de Molay em seu diário. A
confirmação de que o demônio fora preso pelos templários no deserto da Síria e
provavelmente conduzido em sigilo absoluto à Europa o abalara deveras.
Após tomar banho, Michael dirigiu-se ao refeitório, onde lhe foi servido o
seu café da manhã. Como não estava com muita fome, comeu apenas alguns
biscoitos e uma fatia de melão, que se achava sobre uma travessa de alumínio.
Depois, seguiu para a igreja, a fim de fazer as suas orações da manhã, e aí
permaneceu por mais de uma hora. Na saída, encontrou-se com Lino, o mais
jovem dentre todos os postulantes que moravam em Santa Maria delle Grazie,
sendo quase um menino. Dizem que ele entrara para a vida monástica após ter
sofrido uma grande desilusão amorosa, mas ninguém no convento sabia o quanto
de verdade existia nesta história.
- Lino, você viu frei Abelardo? Sabe se ele saiu?
- Hoje ainda não o vi, mas não deve ter saído. Com esta chuva? Talvez ele
esteja na biblioteca...
Não era má ideia. Michael despediu-se do moço e foi atrás do velho frade.
Chegando à biblioteca, estranhou o fato dela estar repleta de gente. Com toda
certeza, a chuva teria colaborado para isso, aumentando-lhe a frequência, mas
havia outro motivo. Beato Simão, desrespeitando as normas de silêncio e reserva
que se devem guardar em tais ambientes, resolvera fazer ali um discurso
improvisado e, como se estivesse em praça pública, pôs-se a discorrer sobre o
fim dos tempos, que estava próximo. Ele fazia gestos largos, ora erguendo os
braços aos céus, ora fuzilando os pecadores na terra com seu dedo ossudo e
santo. Debalde, Michael procurou pelo amigo naquele recinto, sem o achar em
parte alguma. Por um momento, pensou em ir até a biblioteca dos templários,
mas não se atreveu, pois alguém poderia perceber e descobrir o seu segredo.
Quando se retirava, notou Manfredino o encarando de maneira estranha com
aqueles olhos de camundongo, como se temesse alguma coisa. A vontade do
rapaz era gritar para todos que esse Beato Simão não passava de um impostor,
mas se calou, uma vez que não possuía qualquer prova.
Ao sair da biblioteca, Michael decidiu procurar frei Abelardo em seu
quarto, pois talvez ele estivesse doente. Afinal, tinha sofrido uma queda de
pressão na noite anterior ao tomar conhecimento de que o demônio havia sido
aprisionado na terra. O rapaz deu três pancadas leves na porta e permaneceu
aguardando alguma resposta. Como não obteve nenhuma, bateu outra vez um
pouco mais forte, chamando pelo nome do amigo. Nada! Teria frei Abelardo
resolvido sair do convento debaixo de toda aquela chuva? Quando já estava para
ir embora, Michael notou a existência de marcas roxas no chão, junto à porta,
como se alguém tivesse pisado numa poça de sangue. Isto o deixou bastante
aflito, imaginando que tais sinais fossem anúncio de desgraça. Trazendo o
coração torturado pela dúvida, o rapaz apanhou a maçaneta e a girou com certo
receio; para sua surpresa, a porta não estava trancada e ele a abriu
vagarosamente, antevendo a tragédia.
A cena que seus olhos viram a seguir lhe estraçalhou a alma mortificada.
Oh, visão atroz e lancinante! O quarto estava lavado em sangue, como se
tivessem feito ali uma matança de porcos. Sobre sua cama, frei Abelardo jazia
sem vida, tendo uma espada cravada no peito. Na verdade, era a própria espada
de Jacques de Molay, com a qual o grão-mestre protegia a biblioteca secreta dos
templários. Michael entrou no quarto e caiu de joelhos ao chão, sentindo suas
forças se esvaírem. Seus olhos esbugalhados inundaram-se de lágrimas e suas
mãos tremiam tanto, que ele mal conseguia segurar o crucifixo. Sem saber como
agir, o rapaz passou a rezar uma Ave-Maria pela alma do amigo, mas a repetiu
sem qualquer atenção, pois estava completamente transtornado. Não chegou
sequer a terminá-la, uma vez que suas vistas descobriram algo estarrecedor.
Sobre as vestes de frei Abelardo, havia uma cruz templária pintada com
sangue! Seria possível que a estátua de Jacques de Molay tivesse ganhado vida
para vir se vingar daqueles que violaram o segredo defendido por ela? Não, era
uma hipótese absurda! O crime fora cometido por quem já estava sabendo de
tudo e deixara tal marca a fim de os confundir.
Enquanto Michael permanecia ajoelhado diante do cadáver do
companheiro, alguns frades passaram pela porta do quarto e viram aquela cena
macabra. Cheios de horror, entraram na cela e exclamaram:
- Meu Jesus Cristo!
Eles ajudaram o rapaz a se levantar, que apenas conseguiu dizer:
- Mataram frei Abelardo!
Michael foi conduzido até a cozinha, onde lhe deram água com açúcar para
se acalmar. Nesse meio tempo, os frades avisaram Dom Abade, o superior do
convento, e as autoridades policiais, que chegaram à Santa Maria delle Grazie
em menos de dez minutos. O som da sirene das viaturas pôs em sobressalto os
religiosos, uma vez que a maioria deles ainda não se encontrava a par da
tragédia. Uma grande confusão tomou conta do convento, normalmente de
hábitos tão pacatos, pois todos agora queriam saber o motivo daquela visita
policial. Quando a notícia da morte de frei Abelardo se espalhou, um profundo
pesar desceu sobre o espírito dos dominicanos. O corpo do velho frade foi posto
dentro de um saco preto e removido para a autópsia. Após terem interrogado
muitos religiosos, os policiais ordenaram que ninguém se ausentasse do
convento, pois poderiam ser convocados a depor na delegacia. Por fim, entraram
em suas viaturas e partiram debaixo da chuva, que continuava caindo sobre a
cidade de Milão.
Durante o resto da manhã e por toda a tarde, o assunto principal em Santa
Maria delle Grazie não poderia deixar de ser outro. Os frades estavam pesarosos
pela perda do amigo e também apavorados com a brutalidade do crime.
Ninguém podia compreender como um homem tão bondoso quanto frei
Abelardo pudesse ser vítima de uma crueldade abominável como aquela. Pelos
corredores, no refeitório, na igreja, em toda parte, os dominicanos não se
cansavam de enaltecer as virtudes do companheiro morto, sua devoção
inabalável, seu amor ao estudo, seu caráter ilibado. Chegaram até a sugerir que
dessem o seu nome à biblioteca, mas o desejo ficou apenas na cogitação, pois
este tipo de homenagem não se adequava ao espírito humilde de frei Abelardo.
Pouco depois de anoitecer, os policiais retornaram à Santa Maria delle
Grazie. Muitos frades tinham se recolhido mais cedo a seus aposentos, pois
desejavam ficar a sós no silêncio do próprio catre para orar e refletir a respeito
de toda aquela tragédia. Apenas um ou outro religioso permanecia à mesa,
terminando o jantar, que fora breve e triste. Michael achava-se no claustro,
caminhando solitário no escuro, em busca de alguma resposta para compreender
tamanha calamidade. A chuva daquele dia lavara a atmosfera e a noite irrompeu
magnífica, repleta de estrelas. Ao ouvir a sirene das viaturas, o rapaz sentiu seu
coração disparando, pois teve a impressão de que o vinham apanhar. Afinal,
tinha sido ele quem encontrara o cadáver de frei Abelardo e era natural que
desejassem lhe fazer algumas perguntas. Porém, redobrou a cautela e não se
dirigiu até a sala onde os frades receberam os policiais. Antes, manteve-se
escondido pelos cantos, tentando descobrir o motivo da insólita visita.
Pouco depois, viu os guardas entrando por um corredor e imaginou que
estavam indo até a sua própria cela para buscá-lo. Muitos frades acompanharam
os policiais, mas alguns permaneceram ali na sala, entre eles o jovem Lino.
Michael o chamou por detrás de uma porta:
- O que eles querem, Lino?
- Vieram para prendê-lo! Encontraram as suas digitais na espada que matou
frei Abelardo.
- Eu sabia!
- Você tocou a arma do crime?
- Sim, toquei, mas não tenho tempo para lhe explicar nada agora. Preciso
me esconder, pois sou inocente... adeus!
O rapaz subiu aflito pelas escadas, dirigindo-se até a cúpula do convento.
Precisava descobrir uma maneira de sair dali, pois os policiais certamente iriam
vasculhar cada canto de Santa Maria delle Grazie. Se fosse preso, como
explicaria a presença de suas impressões digitais na espada de Jacques de
Molay? Lembrava-se que, na noite anterior, segurara a arma na presença de frei
Abelardo, antes de lhe revelar a existência da biblioteca dos templários. Para se
defender, seria necessário contar à polícia tudo o que ele sabia sobre a prisão do
demônio. Valeria a pena? Não o tomariam como um fanático religioso, um
louco?
Michael ouviu passos subindo as escadas e foi tomado por um desespero
extremo. Onde poderia se esconder ali na cúpula? Quase por acaso, encontrou
uma corda abandonada dentro de um armário e resolveu fugir descendo por ela
até o telhado da igreja. Mal acabara de amarrá-la a uma coluna e já se preparava
para descer, quando percebeu que estava fazendo uma grande burrada. Ao saltar
sobre o telhado alguns metros abaixo da cúpula, como soltaria a corda? Não
tinha jeito e ela o delataria. Então, Michael a mediu até descobrir seu ponto
médio e atirou cada uma das extremidades por um lado da coluna. Depois,
segurando as duas pontas ao mesmo tempo, conseguiu descer em cima do
telhado, o qual estava bastante escorregadio. No mesmo instante, puxou a corda,
que correu por trás da coluna, caindo em sua direção.
Nem bem recuperara o fôlego, quando um guarda surgiu na cúpula do
convento, quase no mesmo local onde o rapaz estivera um minuto atrás.
Imediatamente, Michael colou-se à parede, debaixo de uma pequena projeção,
logo abaixo do seu perseguidor, e permaneceu no mais absoluto silêncio a fim de
não ser visto. O policial estendeu seus olhos do telhado à praça que ficava diante
da igreja, mas não viu nada suspeito. Ao cabo de alguns segundos, retornou para
junto dos colegas, dizendo:
- Aqui também ele não está!
Pouco mais de meia hora após Michael ter se escondido no telhado, os
policiais deram as buscas por encerradas e resolveram partir. Antes, porém,
enquanto ainda vasculhavam a praça, um deles apanhou um megafone e disse
com a voz amplificada:
- Michael, sabemos que está em algum lugar por aqui. Não adianta se
esconder, pois isto somente vai complicar a sua situação. Vamos, entregue-se!
Durante um breve instante, todos os presentes nos arredores, policiais,
diversos frades e muitos curiosos, permaneceram com os olhos ora na igreja, ora
no convento, acreditando que o rapaz pudesse aparecer para se entregar.
Michael, porém, mantinha-se encolhido no telhado a fim de não ser visto. Às
vezes, esticava um pouco o pescoço sobre a fachada da igreja, observando o que
se passava lá embaixo. Por muito pouco não foi descoberto, pois os guardas
lançaram sobre o telhado um facho de luz proveniente de um enorme holofote no
exato instante em que ele pôs a cabeça para fora. O rapaz encolheu-se o quanto
pôde e foi mesmo muita sorte não o terem visto ali. Ao escutar as viaturas
partindo e o ruído das sirenes tornando-se cada vez mais fraco, até sumir
completamente dentro da noite, Michael sentiu-se bastante aliviado. Mesmo
assim, conservou-se onde estava por muito tempo, pois receava que eles
pudessem voltar de uma hora para outra.
Já era madrugada e um grande silêncio pairava sobre a vizinhança de Santa
Maria delle Grazie, quando ele resolveu ir embora. A praça diante da igreja
achava-se deserta e apenas um casal de namorados esfregava-se atrás de um
muro, escondido por uma sombra amiga. Michael desceu pela corda e seguiu em
frente, sem saber direito aonde deveria ir. Voltar ao convento não podia, pois
com certeza os policiais regressariam ali outra vez para o prender. Após ter
andado por quase uma hora, o rapaz decidiu passar o resto da noite na casa de
sua mãe, que ficava num bairro elegante da cidade.
A rua era tranquila e arborizada, repleta de gatos, os quais vagavam insones
à procura de diversão. Michael estacou diante da residência em que passara a sua
infância e sentiu saudades daquele tempo isento de preocupações. Quantas vezes
não havia ralado o seu joelho na calçada, brincando com uma bola de futebol!
Quantas vezes não caíra da pequenina bicicleta, sendo amparado pela mão
imensa de seu pai. E também tomara chuva sem camisa, empinara pipas, trepara
naquelas árvores queridas, que pareciam não mais dele se lembrar... Aquele tinha
sido o melhor tempo de sua vida.
Tão logo tocou a campainha, a cachorrada de toda a vizinhança pôs-se a
latir desesperadamente. O rapaz aguardou certo tempo, mas a casa inteira dormia
e ninguém veio atender. Tocou outra vez e também não obteve resposta. Quando
já estava se preparando para ir embora, viu que uma luz na sala se acendera. Em
seguida, a varanda iluminou-se e a janelinha da porta foi aberta:
- Mãe, sou eu, Michael...
- Oh, meu filho...
A mulher abriu a porta e o rapaz entrou aflito. Após se abraçarem, ela
perguntou:
- Mas o que aconteceu para você vir aqui a esta hora? Está um tanto pálido,
meu anjo...
Michael bateu a porta, sentando-se sobre o sofá macio. Sentia-se cansado e
só pensava em ir dormir para terminar de uma vez aquele dia nefasto. Porém,
precisava explicar à sua mãe o motivo daquela visita inesperada. Isto fez com
que ele se lembrasse do companheiro querido que não mais veria e seus olhos se
encheram de água.
- Frei Abelardo morreu...
A mulher pôs a palma estendida sobre o peito e indagou:
- Meu Deus! Como foi isso?
- Mataram o pobre! E estão me acusando pelo assassinato!
Os olhos da boa senhora arregalaram-se, transformados em duas brasas
incandescentes. Ela caiu sobre o sofá ao lado do filho e, segurando as suas mãos,
perguntou:
- Por quê?
- É uma história complicada, mãe. Mas sou inocente, pode ficar tranquila.
Preciso passar essa noite aqui. Amanhã cedo, terei de partir...
- Eu sei que você é inocente, meu filho! Mas o melhor é ir à polícia... Com
fé em Deus, tudo se explicará...
- Não posso, mãe! Se eu for à polícia, serei preso. Confie em mim, por
favor. Boa-noite! Acorde-me cedo, sim?
- Boa-noite, querido!
Michael acendeu a luz do seu quarto, o qual continuava arrumado da
mesma maneira que o deixara ao se mudar para o convento de Santa Maria delle
Grazie. Os seus livros conservavam-se na estante, ao lado da bola de basquete, o
surrado tênis All-Star ainda permanecia debaixo da cama e até sua coleção de
selos jazia esquecida dentro de uma gaveta na cômoda de mogno. Ao tirar os
sapatos, deitou-se sobre a colcha da cama com as próprias roupas que estava
vestindo e fechou os olhos, mas não chegou a adormecer, porque passou a ouvir
a voz de sua mãe conversando com estranhos lá na varanda e isso encheu o seu
espírito de terror. Quem poderia ser àquela hora? Pouco depois, a porta do quarto
abriu-se com certa violência e dois policiais invadiram o seu dormitório.
Ingenuamente, Michael não poderia ter escolhido um local mais óbvio para se
esconder, facilitando o trabalho polícia. Tão logo haviam deixado o convento de
Santa Maria delle Grazie, dois oficiais foram destacados para vigiar a casa da
mãe dele, onde permaneceram escondidos atrás das árvores da rua, camuflados
pelas sombras da noite.
A mãe do rapaz apareceu logo em seguida, encharcada de lágrimas, pois
não podia fazer coisa alguma para defender o filho. Um dos guardas bradou:
- Levante-se, você está preso!
O rapaz obedeceu. Depois, tentou argumentar que era inocente, mas não lhe
deram a menor atenção. Estavam apenas cumprindo ordens. Michael foi
algemado e conduzido até uma delegacia de polícia, onde ficou detido
provisoriamente.
Apesar das impressões digitais de Michael terem sido encontradas na arma
do crime, em seu íntimo, o delegado Scalzone não acreditava que o rapaz fosse o
assassino de frei Abelardo. Ele não tinha nenhuma passagem pela polícia, era
culto, temente a Deus e, conforme ficou constatado nas investigações
preliminares, nutria grande amizade pelo falecido. A sua defesa, porém,
mostrou-se muito inconsistente. Michael revelara ao delegado ter descoberto a
biblioteca secreta dos templários e que a arma do crime pertencia ao grão-mestre
da Ordem, Jacques de Molay, ou melhor, à sua estátua. Afirmou também que, na
noite anterior ao assassinato, esteve com frei Abelardo na biblioteca e segurou
por um instante a espada em suas mãos. Daí ela apresentar as suas digitais.
Contudo, omitiu as informações a respeito da prisão do demônio. Tal história
pareceu insólita e tremendamente folhetinesca ao delegado Scalzone. Durante
setecentos anos, ninguém nunca soube da existência desta misteriosa biblioteca
e, um dia depois dela ter sido descoberta, um crime hediondo foi cometido,
envolvendo as duas únicas pessoas que tiveram acesso a ela.
O delegado interrogou o superior Dom Abade e vários frades do convento
de Santa Maria delle Grazie, mas nenhum deles conhecia ou ouvira dizer algo
sobre a biblioteca dos templários. Após dois dias preso na delegacia, Michael foi
conduzido até a sala de Scalzone, que disse:
- Leve-me à biblioteca, quero vê-la com meus próprios olhos.
À tarde, os dois dirigiram-se ao convento e foram recebidos por Dom
Abade. Curiosamente, ele estava muito nervoso e afirmou que Santa Maria delle
Grazie nunca abrigara nenhuma biblioteca do Templo e tudo não passara de
alucinações do moço. Isto deixou Michael bastante indignado. Ele conhecia bem
Dom Abade e sabia que o velho não era capaz de mentir, pois ficava vermelho e
suava em bicas.
- Pois vou mostrar onde fica!
Os três entraram na biblioteca e seguiram para a saleta aos fundos, que
servia como depósito de papéis velhos. Michael puxou a estante e mostrou a eles
um buraco na parede, junto ao chão. O rapaz percebeu que os outros não se
mostraram muito surpresos com isto. Chegando ao outro lado, a biblioteca
secreta de frei Abelardo, o rapaz disse:
- Senhores, esta não é a biblioteca dos cavaleiros templários. Ainda há mais
segredos!
O moço subiu num banquinho, apanhando o falso livro em cuja lombada
havia o emblema da Ordem. Ao puxar a alavanca atrás dele, a estante estalou,
girando um pouco em seu eixo. Michael empurrou-a e pediu que eles passassem
à sala contígua.
- Eis o último grão-mestre do Templo, Jacques de Molay!
Porém, quando acendeu algumas velas para iluminar o recinto, a sua
surpresa foi grande, pois a estátua de cera não se encontrava mais ali! Sem
compreender o que tinha acontecido, o rapaz afirmou aflito:
- Mas ela estava aqui, protegendo este alçapão!
Os dois homens entreolharam-se sem nada dizer. Michael ergueu a pesada
porta horizontal pela argola e pediu que o seguissem.
- Vocês vão ver como estou dizendo a verdade!
Mas ao chegar lá embaixo, o rapaz quase sofreu uma síncope. Nada mais
havia naquele local além dos porões vazios. Não só os rolos de pergaminhos e
manuscritos tinham desaparecido misteriosamente, como também as velhas
estantes, inclusive, a mesa e a cadeira. Michael ficou tão desesperado, que
chegou a agarrar com as duas mãos as vestes de Dom Abade, gritando furioso:
- Para onde tudo foi levado? Por Cristo, diga a verdade!
O velho o afastou com energia e respondeu:
- Não sei de nada! Vou subir, pois não tenho tempo a perder com disparates!
E Dom Abade suava, vermelho feito um rabanete.
Antes de deixar o convento, Michael pediu para usar o sanitário, onde se
encontrou por acaso com Lino, o qual ficou bastante feliz em rever o amigo.
- Oh, Michael, como tem passado?
- Não muito bem, meu caro. Acabei sendo preso...
- Não me diga uma coisa dessas! Todos nós temos absoluta certeza de que
você é inocente e, com fé em Deus, tudo se esclarecerá.
- Assim espero... assim espero...
- E o que faz aqui em Santa Maria delle Grazie?
- Vim mostrar ao delegado algo que eu havia descoberto, mas desapareceu
de forma estranha...
- É, coisas insólitas têm ocorrido aqui nos últimos dias...
- Como assim?
- Não sei se posso lhe dizer... Dom Abade pediu-nos segredo absoluto e nos
fez jurar sobre a Bíblia que não diríamos nada a ninguém...
- Pelo amor de Deus, Lino! E se este segredo estiver ligado à morte de frei
Abelardo? Diga-me, eu lhe imploro, em nome de nossa amizade...
O jovem terminou de lavar as mãos, enxugando-a numa toalha felpuda
pendurada num gancho junto ao espelho. Depois, fitou os olhos azuis do amigo e
disse:
- Está certo. Mais do que ninguém, você merece saber de tudo...
- Pois diga!
- Encontraram uma antiga biblioteca nos subsolos do convento...
- Sim, eu sei, a biblioteca dos templários...
- Então já lhe contaram sobre isso?
- Para dizer a verdade, fui eu quem a achou e revelei a sua existência apenas
a frei Abelardo. Como a descobriram, Lino, se mais ninguém sabia dela?
- Beato Simão sonhou com o anjo Miguel, que lhe pediu para alertar os
homens sobre a proximidade do fim dos tempos e, como prova, indicou-lhe o
local exato onde permanecia escondida a antiga biblioteca dos templários. Esse
Beato Simão é mesmo um enviado de Deus...
- É uma ova! Não passa de um grande pilantra!
- Não fale assim, Michael...
- Desculpe-me, mas ele não presta mesmo. Frei Abelardo também tinha
essa opinião e pagou com sua vida...
- Beato Simão seria o assassino?
- Não sei. Pode ter sido esse tal de Manfredino, sempre pelos cantos, de
olho em tudo...
Nisso, o delegado Scalzone deu três pancadinhas na porta, pedindo que
Michael se apressasse, pois desejava voltar à delegacia.
- Já estou indo! Respondeu o rapaz.
- Bem, se precisar de qualquer coisa, estarei aqui.
- Diga-me apenas o que aconteceu com a biblioteca, Lino.
- Beato Simão contou a Dom Abade o sonho com o anjo Miguel. Ele queria
que todos nós testemunhássemos a veracidade daquela revelação e, por isso,
levou-nos aos subsolos do convento, onde descobrimos maravilhados a
extraordinária biblioteca. Depois, Dom Abade resolveu alertar o Vaticano sobre
tamanho segredo. Imediatamente, a igreja mandou para cá alguns de seus líderes,
os quais decidiram confiscar tudo, exigindo dos frades sigilo absoluto, sob pena
de excomunhão. Por isso, Dom Abade nos fez jurar sobre a Bíblia.
- Fique tranquilo, Lino. Sou uma tumba. Você me ajudou muito. Agora
preciso ir, adeus!
- Até mais, Michael...
Na delegacia, o rapaz foi trancado outra vez atrás das grades. Era uma cela
individual, bastante pequena, com uma pia, uma cama cheia de percevejos e um
vaso sanitário imundo. Por que o mantinham preso? Achava tudo aquilo uma
arbitrariedade, pois não possuíam prova alguma contra ele. As impressões
digitais na espada de Jacques de Molay indicavam apenas que havia segurado a
arma em suas mãos. Enquanto esteve na cadeia, Michael procurou reconstruir
em sua memória cada passo dado, desde que frei Abelardo lhe revelara a
existência da biblioteca guardada por frei Felício. Para livrar-se das acusações,
precisava descobrir o verdadeiro criminoso e uma forma de deixar a prisão.
Após juntar as peças daquele enigmático quebra-cabeça, acabou concluindo que
o autor do assassinato poderia ser o próprio Manfredino, um dos seguidores de
Beato Simão. Afinal, frei Abelardo não ouvira por acaso a conversa dos dois no
sanitário, onde diziam ser preciso pagar a mulher que, naquela manhã, fizera
papel de cega diante de centenas de pessoas? A revelação deste segredo poderia
destruir a fama de milagreiro de Beato Simão, o qual parecia ter poucos
escrúpulos e talvez não medisse esforços para eliminar aquele problema. Além
do mais, durante algumas vezes em que se dirigiu à biblioteca dos templários,
Michael lembrava-se de ter tido a sensação de estar sendo seguido. Não seria
Manfredino? A própria maneira como ele o olhara na biblioteca do convento, na
manhã do crime, não era indício de culpabilidade?
Outra preocupação atormentava o rapaz. O livro Segredos Ocultos da
Igreja, o diário de Jacques de Molay, e o Evangelho de José de Arimateia
acabaram ficando em seu quarto, pois não os conseguiu apanhar durante a sua
fuga precipitada do convento. Eles também teriam sido levados pelos homens do
Vaticano?
Fazia dois dias que retornara à cadeia desde a sua visita ao convento de
Santa Maria delle Grazie, acompanhado pelo delegado Scalzone, quando algo
realmente espantoso aconteceu. Já era madrugada e o rapaz se encontrava
recolhido na cama, mas sem dormir, pois não tinha sono. Meditava a respeito de
tudo o que acontecera em sua vida nos últimos dias, a descoberta da biblioteca
dos templários, o assassinato de frei Abelardo, a sua fuga do convento, a prisão
do demônio... De repente, ouviu alguns passos no corredor e percebeu alguém
parando diante de sua cela. O rapaz abriu os olhos, assombrado, e viu um vulto
junto às grades, encarando-o de maneira assustadora. Com o coração a saltar
para fora do peito, indagou:
- Que foi?
Não obteve resposta. Subitamente, algumas velas que se encontravam
dispostas em forma de circunferência por trás do misterioso personagem
acenderam-se sem qualquer explicação lógica e a chama delas iluminou o
ambiente, revelando ali um homem de aparência medonha. Trazia um capuz
descido sobre a testa, a lhe encobrir quase todo o rosto, deixando à mostra
apenas os olhos miúdos feito brasas, o nariz caprino e uma barbicha cor de
sangue. Sentiu suas pernas fraquejarem e um choque dentro da medula, ao notar
que a sombra do desconhecido, à luz das velas, apresentava dois chifres na
cabeça, mesmo com o capuz. Agarrou seu crucifixo e inquiriu:
- Quem é você? O que quer de mim?
- Sou Belial. Desejo apenas conversar...
- Como entrou aqui?
- Os guardas estão dormindo. Entrei pela porta.
- Não tenho nada a conversar com você!
- Temos muito. Sabemos que descobriu coisas interessantes e perigosas...
- Que coisas?
- Algo procurado por nós há muito tempo...
- Não faço a menor ideia...
- Diga-nos onde ele está preso, Michael...
- Ele quem?
- Não seja cínico. Temos informação de que você encontrou livros
raríssimos, os quais revelam o local exato.
- Como sabem disso?
- Os nossos estão infiltrados por toda parte, inclusive no Vaticano. Somos
milhares, milhões...
Michael passou a mão sobre a testa úmida de suor. Por um momento,
imaginou que estivesse tendo um pesadelo, mas a bizarra criatura diante de seus
olhos era real demais. Quis gritar por ajuda, porém, algo dentro de si lhe dizia
para ouvir mais um pouco aquele ser macabro. O rapaz o fitou com firmeza e
respondeu:
- Os livros que achei na biblioteca dos templários não indicam o local onde
aprisionaram o demônio, se você quer saber isto. Apenas confirmam que ele foi
preso pelos essênios e provavelmente levado ao Ocidente pelos cavaleiros do
Templo, onde permaneceu mantido em cativeiro num lugar ignorado. Pelo visto,
ainda não conseguiu fugir...
- Sim, continua no cárcere...
- E vocês não sabem onde ele está?
- Se soubéssemos, a humanidade já teria sucumbido ao poder das trevas. A
sua vingança será terrível e os homens sofrerão o merecido castigo. Pois assim
dizem as profecias: “quando se completarem os mil anos, Satanás será solto da
sua prisão, sairá e seduzirá as nações que estão nos quatro ângulos da terra...”.
Ajude-nos a encontrá-lo, Michael, que ele lhe recompensará quando você chegar
ao inferno.
- Nunca!
- Tudo está escrito e, em breve, a sinagoga de Satanás será edificada sobre a
face da terra. O falso profeta já caminha pelos campos, ceifando a sua messe. Ele
traz uma marca de nascença na cabeça e enorme multidão o seguirá. Conforme
dizem as profecias, este falso profeta anunciará o fim dos tempos...
Por um instante, Michael estremeceu. Ao citar o falso profeta, aquela
criatura diabólica estaria se referindo a Beato Simão? De fato, ele possuía uma
marca de nascença na face, a completa ausência de sobrancelhas, peculiaridade
que o tornava um tanto esquisito. Então, o demônio estava prestes a escapar,
confirmando todas as previsões apocalípticas? O fim do mundo seria uma
catástrofe iminente?
- Leve-nos até ele, Michael, ninguém pode fugir ao seu destino...
- Já lhe disse que não sei o local onde o diabo se encontra encarcerado e,
mesmo que soubesse, jamais os levaria até lá nem por todo o ouro do mundo.
Aliás, como pode ver, eu também estou preso...
- Preso? Olhe bem, Michael...
O rapaz observou as grades, notando que ali não existia mais cadeado
algum. Ele correu a tranca e a porta se abriu como num passe de mágica.
Quando levantou o rosto para perguntar a Belial o que acontecera com o
cadeado, a criatura tinha desaparecido. Receoso, Michael deu alguns passos até o
corredor, o qual lhe pareceu extremamente comprido e sinistro. Pé ante pé,
atravessou o círculo de velas e seguiu em silêncio na direção de uma luz filtrada
adiante por um gradil. De forma inexplicável, a porta de ferro ali existente
também se achava destrancada. Ele a empurrou de mansinho e contemplou três
policiais roncando em suas cadeiras. O rapaz estava tão nervoso, que chegou a
esbarrar na mesa de um deles, derrubando uma xícara de café no chão, mas nem
assim os guardas acordaram. Talvez tivessem sido enfeitiçados. Tomando mais
cuidado, Michael abriu a porta da frente e ganhou as ruas escuras.
Após sair da delegacia, o moço dirigiu-se a Santa Maria delle Grazie, para
apanhar os livros, caso eles ainda estivessem no seu quarto. O convento não
ficava longe e o grande problema seria descobrir um meio de entrar ali àquela
hora da madrugada, pois certamente todos estariam dormindo. Chegando à
pracinha diante da igreja, Michael teve a ideia de ligar para Lino e pedir a ele
que fosse até a sua cela buscar o que precisava. Entrou em uma cabine de
telefone público nas proximidades do convento e ficou aguardando ansioso o
amigo atender o celular:
- Vamos, atenda... atenda...
Enfim, uma voz dominada pelo sono respondeu do outro lado do aparelho:
- Alô?
- Lino, acorde... sou eu, Michael...
- Michael? Que horas são?
- Isso não importa! Por favor, vá até o meu quarto e pegue os três livros
sobre o criado-mudo. Ah... apanhe também o meu notebook dentro de uma pasta
no armário. Quero que traga tudo isso para mim aqui na praça, diante do
convento...
- Agora?
- Já! Acabei de fugir da delegacia e preciso desaparecer. Rápido, Lino,
posso ser preso a qualquer momento!
Dez minutos depois, o jovem surgiu de pijamas na pracinha, trazendo uma
pasta preta na mão direita e uma sacola de supermercado na outra. Michael
acenou para ele por detrás de uma árvore e permaneceu aguardando o amigo vir
ao seu encontro. Nem se lembrou de o cumprimentar, tamanho era o seu
nervosismo. Apanhando ansiosamente a sacola, retirou dela os três preciosos
livros. Ao constatar que eram eles, seus olhos brilharam excitados e o rapaz os
guardou de novo dentro do saco. Era inacreditável como nem os policiais, nem
as autoridades do Vaticano, haviam se interessado por aquelas obras ali na sua
cela. Depois, deu um abraço no companheiro e pediu:
- Não diga a ninguém que estive aqui. Fique com Deus, Lino. Até mais!
- Até!
Durante algum tempo, Michael caminhou pela cidade sem qualquer destino,
meditando sobre o que deveria fazer. Quando amanheceu e as lojas começaram a
abrir, dirigiu-se a um shopping e comprou algumas roupas - uma camisa, uma
calça jeans e um sobretudo de couro preto - pois ainda estava usando o traje
dado a ele na delegacia. Por sorte, além de seu cartão de crédito, havia muito
dinheiro guardado num dos bolsos da pasta, onde acondicionava seu notebook,
pois era ali que ele guardava as suas economias. Por volta da hora do almoço, o
jovem entrou em uma lanchonete e pediu um hambúrguer, acompanhado de
batatas fritas. Tinha a impressão de que todas as pessoas da cidade sabiam que
ele era um fugitivo e, a qualquer momento, a polícia surgiria do nada a fim de o
levar de volta à cadeia. Precisava descobrir um lugar seguro para se esconder,
mas onde? Finalmente, lembrou-se de Celestino, um velho padre aposentado.
Ele morava em Roma e se afeiçoara muito ao rapaz desde o primeiro instante em
que este lhe fora apresentado por frei Abelardo. Os dois religiosos eram grandes
amigos e visitavam-se amiúde. Um dia, o dominicano convidou Michael para lhe
acompanhar numa viagem até a cidade das sete colinas, onde lhe apresentou
Celestino, o qual se encantara com as maneiras cordiais e a inteligência atilada
do jovem. A partir daí, surgiu uma sincera amizade entre eles, alimentada,
sobretudo, por troca de e-mails e telefonemas.
Após o almoço, Michael foi a uma cabine telefônica e ligou para Celestino.
Com toda certeza, ele ainda nada estaria sabendo sobre frei Abelardo e, por isso,
o rapaz procurava descobrir as palavras mais adequadas a fim de lhe contar a
tragédia, pois o bom homem já era de idade e possuía o coração fraco. Logo
depois dele ter atendido ao telefone e da troca de cumprimentos, Michael
resolveu ir direto ao assunto:
- Infelizmente, tenho uma notícia desagradável...
- Diga, meu amigo! A vida me ensinou a suportar tudo com resignação.
- É sobre frei Abelardo. Ele... seguiu para junto de Deus.
A voz do moço estava embargada pelas lágrimas. Por breves segundos,
nenhum dos dois pronunciou qualquer palavra, até que Celestino rompeu o
silêncio, dizendo com os lábios trêmulos:
- Como foi isso?
- Uma calamidade! Uma covardia infame. Frei Abelardo foi assassinado em
sua própria cela!
- Que me diz?
- Mataram o nosso bom amigo... e eu estou sendo procurado como o autor
do crime. Mas juro pela alma de meu pai que sou inocente...
- Não precisa jurar, Michael, conheço bem o seu caráter.
- Ajude-me, Celestino, estou desesperado e não tenho mais ninguém a
quem pedir socorro...
- Não se aflija! Conte comigo para o que for necessário...
- Obrigado, meu caro amigo! Eu sabia que você não me abandonaria numa
hora dessas... Precisamos nos encontrar, pois tenho revelações espantosas a lhe
fazer, mas nada posso adiantar por telefone...
- Sim, seria uma enorme satisfação recebê-lo em minha casa. Infelizmente,
não poderá ser por esses dias, pois estou adoentado...
- Não me diga...
- Estou com caxumba, uma enfermidade bastante contagiosa. Veja só a
ironia... fui pegar doença de criança no final da vida...
- Não diga isso... Você logo estará recuperado. Eu é que não sei mais como
resolver meu problema, pois contava ficar escondido em sua casa até
descobrirem o verdadeiro assassino.
- Mas ainda posso ajudá-lo, Michael. Na cidade de Gênova, tenho uma
casinha de praia vazia. Se você quiser, pode ficar hospedado nela o tempo que
for preciso. As chaves estão na varanda, dentro de um vaso de crisântemos.
Depois de escrever o endereço num guardanapo de papel e guardá-lo dentro
do bolso de seu sobretudo, o rapaz despediu-se de Celestino, pois este disse que
desejava rezar pela alma de frei Abelardo. Na rua, entrou num táxi, sentou-se no
banco de trás e pediu para o motorista levá-lo até a cidade de Gênova.
- Sim, Michael...
O rapaz gelou ao ouvir o seu nome pronunciado pela boca de um
desconhecido. Seria algum policial disfarçado de taxista? Por algumas vezes,
tentou observar o rosto do sujeito a fim de ver se o conhecia, mas ele estava
usando chapéu e trazia a gola puxada para cima. Somente conseguiu contemplar
a fisionomia do misterioso motorista, quando já se achavam na auto-estrada e,
assim mesmo, através do espelho retrovisor. Não havia dúvidas: era Belial!
Tão logo o reconheceu, Michael pediu para descer. O diabólico taxista
acariciou sua barbicha vermelha e disse:
- Não se aflija, meu caro! Queremos apenas levá-lo a Gênova.
- Por quê?
- Para que nos conduza até ele...
- Nunca, já disse! Da mesma forma que me encontrou, encontre também o
seu mestre ou o diabo que seja!
- Apenas Deus e Satanás têm o poder da onisciência. Nós não possuímos
essa capacidade. Se assim fosse...
- Já o teriam libertado... você já me disse isto. Então, como me acharam?
- Porque o seguimos. Os nossos estão em toda parte.
O rapaz calou-se. De que adiantaria descer ali na estrada, se aqueles
diabretes infernais continuariam a lhe seguir os passos?
Caía a tarde, quando Michael descobriu o endereço indicado por Celestino.
Era uma casa agradável, quase nas areias da praia, com um belo jardim na frente
e uma simpática varanda de madeira, de onde se podia ver o mar. O local era
bem tranquilo, nos arrabaldes da cidade, o que deixou o rapaz bastante satisfeito.
Na varanda, ele meteu a mão dentro de um vaso de crisântemos e encontrou as
chaves, conforme dissera o amigo. Ao abrir a porta, sentiu um forte cheiro de
mofo, pois a casa estava trancada há um bom tempo. Imaginou que a energia
elétrica tivesse sido cortada, mas se surpreendeu ao apertar o interruptor e a
lâmpada da sala acendeu-se. Como o telefone também funcionava, consultou
uma lista telefônica sobre a mesinha de centro para pedir uma pizza. Trinta
minutos depois, um motoqueiro buzinou diante da casa, trazendo o seu pedido.
Após o jantar, Michael passou a ler o Evangelho de José de Arimateia. Ao
contrário dos outros evangelistas, ele não se limitava a narrar apenas a vida
terrena de Jesus. Como esta já lhe era por demais conhecida, o rapaz pulou
diversas páginas, indo direto para aquelas que relatavam a prisão do demônio
pelos essênios. Ali se encontravam revelações assombrosas, vindo confirmar
tudo o que Michael havia descoberto. Ele ajeitou-se melhor no sofá e pôs-se a
saborear aquelas páginas extraordinárias, as quais raríssimas pessoas teriam tido
o privilégio de ler em dois mil anos de existência.
Lá fora, o mar agitava-se furioso, feito um demônio enjaulado.
A prisão do demônio

Jerusalém, 33 d.C.

Naquela sexta-feira que antecedia a Páscoa, muitos homens encontravam-se


na casa de Gamaliel, onde se podia beber vinho e jogar dados. O calor sufocava,
fazendo todos consumirem ainda mais bebida. Sefarim estava sentado em volta
de uma mesa com três companheiros legionários, os quais falavam alto e riam
debochadamente de qualquer coisa, pois o álcool começava a lhes subir à
cabeça. Ele já tinha perdido no jogo metade do dinheiro que arranjara naquela
semana e, se a sorte não mudasse, estaria enrascado. A sua irmã havia sido
repudiada pelo marido, após a acusar injustamente de cometer adultério.
Segundo a tradição judaica, o castigo dela seria a morte por apedrejamento, mas
como não existia qualquer prova que a incriminasse e a denúncia fora feita
apenas “por alguém que ouvira dizer”, o tal marido preferiu abandoná-la a sua
própria sorte, imaginando que seu pecado seria menor aos olhos de Deus, caso a
mulher fosse inocente. Não desejando mais ter qualquer ligação com ela,
permitiu que a suposta adúltera levasse consigo os três filhos, embora isto
contrariasse os costumes do tempo. O rapaz soube da tragédia e acolheu todos
em sua modesta residência, embora não possuísse condições de sustentar mais
quatro bocas. Ele morava com seu velho pai, preso à cama há mais de um ano,
pois padecia de dores atrozes nas costas. Nenhum médico conhecia remédio para
aquele mal e o pobre definhava dia a dia. Além do mais, o pai de Sefarim
emprestara algumas moedas de um rico comerciante, o qual estava ameaçando
levar embora a sua única vaca. Por tudo isso, o rapaz achava-se desesperado e
entregava-se ao jogo numa insensata tentativa para conseguir dinheiro fácil,
sabendo que complicava ainda mais a sua situação.
De repente, uma balbúrdia tomou conta da rua e todos se dirigiram até a
porta a fim de ver o motivo daquele escarcéu. Uma multidão exaltada
acotovelava-se por toda parte, acompanhando um confuso agrupamento de
pessoas. Na frente, os guardas abriam caminho entre os curiosos, que bradavam
impropérios, fazendo amplos gestos com as mãos. No meio de todo o tumulto,
um homem seminu carregava enorme tronco nas costas. Como estava deveras
fatigado, a certa altura caiu com a face sobre as pedras do solo, pois não
suportou o peso que lhe obrigavam a levar. Um dos guardas irritou-se por causa
da lentidão, fustigando-o diversas vezes com o seu chicote até lhe arrancar
sangue. Gamaliel meteu-se entre as pessoas aglomeradas diante da porta de sua
casa e indagou:
- Quem é este? Algum ladrão?
- É o filho do carpinteiro, responderam.
- E qual foi o seu crime?
- Blasfêmia! Diz ser o filho de Deus!
- Já ouvi falar dele. Não foi este homem quem afirmou poder destruir o
templo e reedificá-lo em três dias?
- Sim e agora não pode salvar a si mesmo!
- Vamos apedrejá-lo? Bradou um dos bêbados que há pouco jogava dados.
- Deixe para lá! Voltemos ao nosso jogo...
Parado junto à porta, Sefarim também observava tudo com o coração aflito.
Certa vez, lembrava-se de ter ouvido aquele homem discursando para uma
plateia de pastores e gente simples do povo, ao pé de uma montanha. As suas
palavras tinham uma força extraordinária e tocavam fundo a alma das pessoas,
sobretudo dos mais humildes e necessitados. Segundo ele, o reino dos céus
pertenceria aos pobres de espírito, os mansos herdariam a terra e os que choram
seriam consolados. Chegara mesmo a fazer afirmações inconcebíveis. Se lhe
tomarem a túnica, ceda também a capa; se exigirem que dê mil passos, vai com
ele dois mil; se ferirem a sua face direita, ofereça também a esquerda. Antes de
tudo, pregava o amor entre os homens, sem se importar com as suas diferenças,
pois todos eram igualmente filhos de Deus. Os seus seguidores acreditavam que
ele fosse o messias anunciado pelos profetas, mas muitos não comungavam
dessa opinião, pois ansiavam por um líder beligerante, para libertar o povo de
Israel do domínio romano.
Naquele dia, Sefarim não encontrara por acaso o Nazareno ao pé da
montanha. Fora procurá-lo, pois ouvira dizer que era capaz de realizar milagres e
queria pedir pela cura de seu pai. Mas havia tanta gente ali, tantos enfermos,
cegos e até leprosos, que ele não teria como curar todos os necessitados. Preferiu
ficar de longe, observando aquele homem extraordinário, o qual diziam ser
grande como João Batista. Quando ele terminou a sua prédica, começou a
caminhar por entre os doentes, pondo a mão sobre suas cabeças, olhos e outras
partes enfermas. Bastava um toque seu, para o milagre acontecer diante do
testemunho perplexo da multidão. Muitos caíam de joelhos sobre a terra
abrasada, chorando, beijando-lhe os pés, dando graças a Deus. Depois, aquele
que chamavam de Messias aproximou-se de Sefarim e o fitou fixamente dentro
dos olhos. O rapaz foi tomado por uma sensação de paz imensa e pôs-se a
chorar, comovido. Quis falar com ele a respeito do mal de seu pai, mas as
lágrimas sufocaram suas palavras, permanecendo represadas dentro da garganta.
Agora o levavam para ser crucificado como um rebelde qualquer. Ao ver o
arrogante guarda chicoteando de maneira cruel o pobre homem, como se
flagelasse uma mula empacada, Sefarim desesperou-se diante de tanta
perversidade e, abrindo caminho entre a turba, arrancou o chicote das mãos do
covarde. Imediatamente, os outros guardas partiram para cima do rapaz e o
vergastaram com violência, deixando-o estirado no chão, coberto de sangue.
Com extrema dificuldade, o Nazareno pôs-se de pé e contemplou o desgraçado
que tentara lhe acudir. Sefarim reconheceu aquele olhar que resumia toda a
bondade e balbuciou:
- Meu pai doente...
- Eu sei...
Depois, o cortejo seguiu adiante. Como Cristo não tinha mais forças em seu
corpo exaurido, os guardas obrigaram um homem de Cirene, chamado Simão, a
carregar o tronco onde o filho de Deus seria crucificado. Os amigos de Sefarim
levaram-no para dentro da casa de Gamaliel e, em pouco tempo, todos estavam
se divertindo outra vez, rindo feito prostitutas velhas, como se nada tivesse
acontecido.
Porém, por volta da hora nona, a tarde escureceu de repente, tornando-se
noite, e o céu cobriu-se com nuvens negras, amedrontadoras. Como uma
tempestade de flechas flamejantes, os relâmpagos despencavam sobre a terra,
enchendo os homens de pavor. Ninguém nunca vira nada feito aquilo e muitos
imaginaram ter chegado o fim dos tempos, pois os céus pareciam descarregar
toda sua dor, fúria e luto. Subitamente, as pessoas que estavam na casa de
Gamaliel quedaram num silêncio respeitoso, como se tomassem consciência de
que haviam testemunhado um acontecimento ímpar na história da humanidade.
Sefarim caminhou até a porta, deixando a chuva lavar o seu rosto. Durante
alguns minutos, permaneceu com os olhos perdidos para os lados da colina
chamada Gólgota, sentindo um vazio imenso e angustiante. Depois, apenas
murmurou:
- Ele era de fato o filho de Deus...
Naquela noite, Sefarim dirigiu-se à sua casa arrastando enorme tristeza.
Havia perdido seu dinheiro no jogo, fora espancado de forma cruel por guardas
covardes e nada pudera fazer para acudir o pobre homem que acabara sendo
crucificado. Chegou a pensar em abrir os próprios pulsos, deixando o sangue
verter até sua vida extinguir-se completamente, tamanha era a sua angústia. Mas
se lembrou do pai inválido que precisava sustentar, da irmã aviltada em sua
honra por um marido desprezível e dos sobrinhos pequeninos, os quais não
contavam com o amparo de mais ninguém. Decidiu viver. Ao entrar em casa, sua
irmã correu até ele e o abraçou, transbordando felicidade. Sem conseguir conter
as lágrimas, a moça exclamou:
- Veja! É um milagre!
Seu velho pai estava de pé, caminhando de um lado para outro como não
fazia há muito tempo, brincando com os netos queridos. Naquele instante,
Sefarim compreendeu que o bom homem havia sido curado pelo Messias,
possivelmente seu último milagre.
- Ele atendeu o meu pedido...
- Ele quem?
- O filho de Deus.
No dia seguinte, Sefarim acordou com os guardas batendo na porta de sua
casa. Há três anos, ele servia como soldado no regimento de cavalaria do
centurião Julius Severo. Tinha estado em diversas partes do mundo romano,
defendendo um imperador que não admirava e lutando por um império que
oprimia a sua gente. Na última guerra, permanecera quase seis meses
combatendo sem descanso algum no Egito. Tendo se destacado por sua bravura e
outros méritos militares, obteve como prêmio de seu comandante, ao cabo da
derradeira batalha, permissão para tirar uma semana de folga. Por isso, o rapaz
assustou-se deveras ao ver os guardas em sua casa, pois imaginou que eles
tinham vindo para buscá-lo a fim de lutar em outra província. Como não queria
retornar aos campos de batalha, resolveu esconder-se e pediu para sua irmã
mentir. A jovem explicou-lhes que o rapaz havia saído cedo, mas deixassem o
recado, pois lhe transmitiria tão logo o irmão chegasse. Os guardas concordaram.
Segundo disseram a ela, Sefarim deveria se apresentar imediatamente ao
centurião Julius Severo, caso contrário, seria preso. Em seguida, partiram.
O rapaz só resolveu obedecer à ordem após o almoço. Naquela tarde de
sábado, a cidade encontrava-se mergulhada num sono letárgico. Não se viam
crianças brincando pelas ruas, tampouco se escutava o tradicional pregão dos
mercadores e a sensação era de que todos arrastavam imenso remorso pela
tragédia da véspera. Por mais que procurasse, não conseguiu observar um único
pássaro no céu ou uma borboleta pelos caminhos. Em toda sua vida, jamais tinha
visto a cidade tão triste como naquele dia. Até o vento parecia assobiar uma
canção fúnebre e melancólica.
Quando Sefarim chegou ao palácio, foi imediatamente conduzido à
presença do centurião Julius Severo.
- Apresente-se, soldado!
- Sefarim Ben Judá, sétimo regimento de cavalaria. Estive em combate no
Egito...
- Não me interessa onde você esteve! Limite-se apenas a responder o que
lhe for perguntado.
- Sim, senhor.
- Foi você quem agrediu um dos meus guardas ontem?
- Não agredi ninguém, muito pelo contrário. Como pode ver pelas marcas
em meu rosto, fui eu o agredido.
- Porque você estava causando tumulto...
- De forma alguma! Apenas tentei impedir uma crueldade, uma
arbitrariedade de um de seus guardas, que passou a chicotear covardemente um
pobre homem exausto, sem motivo algum.
- Um homem julgado e condenado segundo sua própria lei!
- Esta não é a lei romana, protestou Sefarim. Quem decretou essa lei, que
condena à morte o próprio filho de Deus?
- Cale-se! Não lhe cabe julgar decisões de seus superiores. A sua obrigação
é obedecer cegamente, pois jurou fidelidade ao imperador. Está aqui, porque
cometeu um crime ao ajudar um condenado e deveria ser preso. Todavia, como
tem bons serviços prestados em meu regimento, estou disposto a esquecer o
incidente, desde que se apresente esta noite e nas seguintes para um trabalho...
- Impossível, senhor! Você sabe que hoje é sábado, dia sagrado para o
descanso e, além disso, ainda estou gozando minha merecida folga, autorizada
por você mesmo.
- Pois a estou revogando agora! Creio que não me entendeu bem. Não estou
pedindo, estou ordenando! O governador mandou-me vigiar o túmulo onde o tal
sujeito foi sepultado. Embora eu ache uma idiotice desperdiçar o tempo de meus
homens numa tarefa dessas, pois os vivos não querem lá entrar e os mortos não
podem de lá sair, sou obrigado a atender as ordens de Pôncio Pilatos. Portanto,
você mais um guarda passarão as próximas noites vigiando a sepultura,
entendido?
- Sim, senhor!
Em seguida, Sefarim saudou seu comandante, deu-lhe as costas e retornou
para casa.
Pouco depois de anoitecer, o rapaz dirigiu-se ao túmulo onde depositaram o
corpo de Cristo. Era um local ermo, do lado de fora das muralhas da cidade, e
causava arrepios de tão assustador. Parecia que os espíritos dos mortos
enterrados nas cavernas vigiavam tudo ao redor. Às vezes, a sombra negra de um
morcego cruzava os céus engalanados de trevas, lembrando almas penadas a
procurar os portões do inferno.
Quando Sefarim chegou àquele inóspito lugar, já encontrou ali o outro
guarda incumbido por Julius Severo para vigiar a sepultura. Tratava-se de um
velho conhecido seu, chamado Gabirol, o qual lutara ao lado do rapaz nas
campanhas do Egito.
- Então você também foi encarregado de guardar os mortos?
- Sim, meu caro...
- Ouvi dizer que perdeu sua folga por causa “dele”. E Gabirol apontou com
seu dedo para a tumba.
- Não é bem assim...
- Como não? Sei que você andou fazendo baderna...
- De maneira alguma. Apenas tentei defender esse pobre homem,
condenado de forma vergonhosa contra a lei romana, em uma injusta decisão de
Pôncio Pilatos.
- Foi condenado, porque ultrajou a religião de nossos ancestrais, dizendo-se
filho de Deus.
- Eu acredito em suas palavras. Cada vez mais, estou convencido de que ele
era o messias ansiado pelos descendentes de Israel.
- Não diga bobagens! Se fosse de fato o Messias, ajudaria a libertar nosso
povo do jugo romano. Além do mais, não se deixaria morrer da maneira como
tudo ocorreu.
- Já ouvi essa linha de raciocínio e não concordo com ela. Você, Gabirol,
pensa como grande parte dos velhos sacerdotes, anciãos, escribas do sinédrio e
todos aqueles que insistiram com o Procônsul para condenar o filho do
carpinteiro a morrer na cruz. Nenhum de vocês foi capaz de compreender a sutil
mensagem que a vida deste homem significou para a humanidade. Vão continuar
esperando a vinda do messias até o fim dos tempos, pois desejam alívio de suas
penas terrestres e não a redenção das almas.
- Não me venha com sermão! Já me basta o aborrecimento de ficar aqui a
noite inteira, vigiando uma pedra. Seja como for, agora ele está morto e não vai
mais influenciar pessoa alguma. Logo, todos esquecerão o que aconteceu nesta
parte do mundo e, daqui a um ano, ninguém lembrará seu nome. Tudo passa,
meu caro, até esta noite tediosa...
Sefarim preferiu não responder. Sabia que aquele homem era grande e isto
bastava para si. Como tudo estava tranquilo, combinaram dividir o plantão em
dois turnos. Um deles deveria continuar vigiando a sepultura, enquanto o outro
poderia dormir por um tempo. Depois, durante a madrugada, trocariam os
papéis. Gabirol venceu o sorteio e acomodou-se como pôde ali mesmo no chão.
Sefarim sentou-se sobre uma pedra e permaneceu vigiando, com os olhos atentos
a tudo ao seu redor. Somente iria dormir, após a lua ter desaparecido no
horizonte.
Tendo passado cerca de uma hora, o rapaz viu uns vultos suspeitos se
aproximando da caverna. Imediatamente, Sefarim acordou Gabirol, que
empunhou a espada e inquiriu:
- Quem vem lá?
Não receberam nenhuma resposta. Os dois tremiam de medo, imaginando
se tratar de bandidos perigosos ou até mesmo assassinos. Tão logo os
desconhecidos chegaram perto do local em que eles estavam, Sefarim e Gabirol
conseguiram vê-los melhor à luz da lua e acalmaram-se. Quase ao mesmo
tempo, disseram:
- Olhe só!
- Devemos estar tendo alucinações!
Os misteriosos vultos eram duas lindas moças, as quais arriscavam suas
vidas andando sozinhas num lugar ermo e afastado como aquele, sobretudo de
madrugada. Não passou despercebido aos olhos de Gabirol o fato delas estarem
vestidas com roupas pouco decentes, exibindo partes dos braços, tornozelos e
pescoço. Talvez fossem dançarinas, mas ele não tinha a menor ideia do que
estariam fazendo àquela hora em tais arrabaldes desertos, fora dos muros da
cidade. Quando as duas se aproximaram o suficiente dos rapazes, uma delas
exclamou:
- Oh, dois guardas, finalmente!
- Como podemos ajudá-las?
As moças tinham os cabelos ruivos e não os traziam escondidos por panos
grosseiros, como era costume entre as mulheres honestas. Uma delas possuía
olhos grandes como ameixas e, adiantando-se à amiga, explicou:
- Por favor, ajude-nos. Nós acabamos nos separando de nossa caravana e
nos perdemos! Somos da cidade de Damasco e viemos até Jerusalém para o
casamento da filha de Nicodemos...
Gabirol queria impressionar as jovens e disse:
- Eu o conheço, é muito meu amigo...
- Ótimo! Proferiu a outra moça, que até então permanecera calada.
Como Sefarim também desejava parecer interessante, replicou:
- Nicodemos é meu tio, somos unha e carne...
- Pois precisamos ir até a casa dele. Nosso pai nos incumbiu de entregar
este presente de casamento. Vejam!
A jovem apanhou uma caixa de madeira lindamente decorada que trazia em
um saco e a abriu. Dentro dela, havia um par de braceletes de ouro, cravejados
com pedras preciosas, os quais deveriam valer uma fortuna. Ao ver aquele
tesouro, Gabirol espantou-se:
- Não sabem que Jerusalém vive infestada de ladrões? Vocês correm um
sério perigo andando sozinhas de madrugada, ainda mais, carregando um
presente rico como esse.
- Por isso necessitamos de ajuda. Levem-nos à casa de Nicodemos, eu lhes
imploro...
- Infelizmente, não podemos ajudar. As portas da cidade estão fechadas;
além disso, estamos de sentinela e precisamos guardar esta tumba até de
manhã...
- Os dois? E se um de vocês for conosco até lá, enquanto o outro permanece
vigiando? Talvez a gente possa entrar na cidade através da portinhola que existe
ao lado do portão principal, aquela que permite a passagem apenas de um
homem a pé ou puxando seu cavalo...
- Gostaríamos muito, mas temos ordens de não nos separar em hipótese
alguma. Podemos ser presos por isto, meu anjo!
- Não somos anjos! Sabe o que eu acho? Estão é com medo de ficarem
sozinhos nesta escuridão...
- Medo por quê? Estamos armados...
- Então, passaremos a noite aqui. Amanhã cedo, quando os portões se
abrirem e vocês estiverem livres de suas obrigações, iremos juntos, está bem?
- Passar a noite aqui? Indagou Gabirol bastante surpreso.
- Isto! Algum problema?
- Nenhum. É que vocês ficarão entediadas. Nada há para se fazer neste
lugar deserto...
Uma das moças roçou de leve seus dedos na barba de Gabirol e disse com
voz quente:
- Tenho algumas ideias...
No mesmo instante, ele apanhou a mão da jovem, deixando de lado a sua
espada. Os olhos do rapaz faiscaram, enquanto mil canários pareciam gorjear
dentro de seu peito. Gabirol trouxe a moça para junto de suas carnes abrasadas e
deu-lhe um beijo em sua boca saborosa como tâmaras. Os dois riram
maliciosamente e foram se deitar num recanto escuro que havia adiante. Sefarim
não ficou atrás e, tomando a outra pela cintura, levou-a até um local seguro,
longe da curiosidade alheia, onde passou a trocar carícias com ela. Como as
jovens tinham os colos macios, Sefarim e Gabirol acabaram adormecendo em
seus braços, despertando apenas no dia seguinte.
Porém, enquanto os rapazes dormiam, três vultos aproximaram-se do
túmulo onde Cristo estava sepultado e retiraram a pesada pedra posta diante da
entrada a fim de impedir o acesso dos curiosos. Todos eles traziam capuzes sobre
as cabeças e vestiam-se com grossas túnicas, para ocultar as suas identidades.
Via-se apenas que os três apresentavam uma barbicha rala sobre o queixo e seus
pés marcavam a terra seca como se fossem cascos fendidos. Quando eles
entraram na tumba escura, uma infinidade de morcegos passou a esvoaçar de um
lado ao outro, excitados, como se estivessem extremamente satisfeitos. Um dos
homens cravou no chão uma espécie de arpéu que trazia nas mãos e os morcegos
sossegaram, pendurando-se de cabeça para baixo ao longo do teto da caverna.
Depois, estendeu seu braço e um deles veio se aninhar na manga de suas vestes,
como se fosse um pássaro ensinado.
Aqueles misteriosos profanadores de tumbas, porém, não tinham se dirigido
até ali para brincar com morcegos. Eles vinham de muito longe, da região das
trevas eternas e desejavam levar o corpo terreno do filho de Deus a seus
domínios infernais. Sem perder tempo, os três puseram-se a vasculhar a caverna
em busca dos restos mortais do filho do carpinteiro. Não demorou muito e logo
se depararam com o cadáver de Cristo envolto em panos de linho, deitado numa
cova rasa de pedra, junto à coroa de espinhos. Não se interessaram por ela. Após
terem se certificado de que era realmente quem procuravam, pois haviam
desenrolado as faixas, os três apanharam o corpo e o meteram dentro de uma
carroça, a qual estava estacionada ao lado da porta da sepultura. Em seguida,
cobriram-no com palha e partiram rapidamente, pois temiam que alguém os
descobrisse ali. Nem se deram ao trabalho de arrastar outra vez a pedra para
selar a entrada do túmulo.
Escalados para vigiar a tumba de Cristo, mas seduzidos pelos súcubos,
Sefarim e Gabirol não viram coisa alguma e continuavam dormindo a sono
largo. Um homem, porém, testemunhara tudo o que ali ocorrera naquela
madrugada.
Existia na cidade de Jerusalém um velho de nome Nahim, tido por todos
como beberrão inveterado. Diziam que ele não dormia nunca, pois esmolava de
dia na porta do templo e, à noite, era visto perambulando pelas ruas até altas
horas, inclusive aos sábados, desrespeitando os preceitos da lei judaica. Tinha
ido àquele local ermo atrás de duas moças, imaginando serem prostitutas, e
sonhava deitar-se com alguma delas a troco das minguadas moedas recebidas
naquela tarde. Ficou surpreso ao encontrar dois guardas vigiando o sepulcro
pertencente a José de Arimateia, o qual sempre o tratara com respeito e
consideração, mesmo sendo senador. Nahim sabia que um homem muito
importante fora sepultado ali, um homem capaz de fazer milagres
extraordinários, como curar os leprosos e ressuscitar os mortos. Quando
compreendeu que as duas mulheres desejavam dormir com os guardas, ocultou-
se melhor nas sombras e permaneceu observando. As cenas de amor
testemunhadas foram frustrantes, pois os rapazes adormeceram logo. Mas o que
seus olhos contemplaram em seguida, Nahim jamais esqueceria pelo resto de sua
vida.
Viu três vultos estranhíssimos aproximando-se com uma carroça da
sepultura e encolheu-se ainda mais em seu esconderijo, pois temia ser
descoberto. Depois, observou que eles arrastaram a enorme pedra do sepulcro e
meteram-se dentro da caverna escura. Ali permaneceram por algum tempo, até
que saíram carregando um corpo envolto pela escuridão... um corpo que podia
ser o cadáver do homem que as pessoas diziam ser o Messias!
Imediatamente, Nahim, o velho, deixou o local onde estava escondido e
tentou acordar os guardas, mas não conseguiu, pois eles pareciam ter sido
enfeitiçados. Imaginou que a melhor coisa a fazer seria seguir de longe os três
profanadores de túmulos e descobrir para onde pretendiam levar o cadáver.
Assim, camuflando-se pelas sombras da noite, esgueirando-se atrás dos muros e
das árvores, Nahim acompanhou-os a certa distância. Tendo transcorrido cerca
de uma hora, eles chegaram a uma cabana afastada da cidade. Após levarem o
corpo de Cristo para dentro da choupana, os três ladrões trancaram-se em seu
interior e Nahim ficou sem saber direito como agir. Na verdade, a melhor coisa a
fazer seria avisar as autoridades a respeito do roubo, mas temia que não dessem
crédito a um bêbado impenitente feito ele. Por isso, decidiu primeiro ir à casa de
José de Arimateia, o qual era um homem correto e amigo do suposto Messias.
Antes, porém, dominado por uma curiosidade mórbida, o velho aproximou-se da
cabana e tentou ver, através das frinchas da janela, o que estava acontecendo lá
dentro.
Subitamente, um dos misteriosos encapuzados surgiu pelas costas de Nahim
e lhe tocou os ombros com garras de abutre, provocando-lhe um susto terrível. A
criatura o fitou com olhos de tarântula e disse:
- O que anda procurando por aqui, velho?
- Uma esmolinha, pelo amor de Deus!
- Não pronuncie diante de mim esse nome, verme mortal! Suma daqui!
Dizendo isto, o demônio tocou com suas unhas infectas a testa do infeliz,
causando uma queimadura medonha. A dor sentida por Nahim foi violenta,
como se inúmeros carrapatos lhe devorassem o cérebro. Ao perceber que aquela
criatura não era humana, pois de seus olhos brotavam labaredas vivas, tratou de
fugir dali o mais rápido possível.
Ainda era madrugada e, como Nahim não poderia procurar José de
Arimateia numa hora daquelas, resolveu voltar ao local onde Cristo fora
sepultado para ver se os guardas já estavam de pé. Doce ilusão! Os dois
continuavam dormindo feito pedras, talvez sonhando que permaneciam nos
braços das belas jovens. De repente, o velho foi invadido por uma estranha
sensação, uma curiosidade incontrolável em ver o interior daquele sepulcro, o
qual servira como derradeira morada ao corpo terreno do filho de Deus. Nahim
entrou na caverna e esperou seus olhos se acostumarem à escuridão, que era
grande, pois a luz minguada e pálida da lua mal se arriscava a penetrar ali.
Quando finalmente pôde discernir alguma coisa, assustou-se com a grande
quantidade de morcegos existente no teto, mas não recuou. Antes, deu mais
alguns passos em direção ao interior da caverna e, para sua surpresa, acabou
encontrando no solo a coroa de espinhos. Lembrava-se de tê-la visto na cabeça
do homem que fora crucificado na sexta-feira, pois acompanhara todo o cortejo e
estivera presente ao Gólgota. Colocou-a dentro de um saco e saiu do sepulcro.
Pouco depois, o sol começou a raiar no horizonte. Nahim dirigiu-se à
cidade para procurar José de Arimateia em sua casa, localizada perto do templo.
Ao bater na porta, foi informado por uma mulher que estava acontecendo ali
uma reunião dos essênios e convidado a entrar, pois a boa senhora imaginou que
também ele pertencia à seita. Conduzido através de um corredor estreito até uma
sala, ao fundo da residência, o velho deparou-se com cerca de uns quinze
homens sentados no chão, formando um círculo e discutindo acaloradamente.
José de Arimateia estranhou a presença daquele sujeito pouco estimado pela
população da cidade e, indo ao seu encontrou, indagou:
- O que o traz aqui, meu bom amigo?
- Desculpe-me a intromissão, meu caro senhor, mas trago informações
perturbadoras...
Então, revelou a eles tudo o que havia visto naquela noite. Os essênios
ficaram estarrecidos com a história contada pelo visitante. Muitos chegaram a
duvidar de Nahim, afirmando que ele não passava de um bêbado contumaz e já
pretendiam expulsá-lo dali. Mas quando o velho retirou do interior de um saco a
coroa de espinhos e a pôs sobre a mesa, prova irrefutável da veracidade de suas
palavras, ninguém mais teve qualquer dúvida. Com os olhos molhados de
emoção, José de Arimateia apanhou a coroa e disse:
- Fui eu próprio quem a pôs junto ao corpo do Messias no sepulcro...
Os essênios haviam se reunido naquela manhã de Páscoa justamente para
definir qual seria o papel daquele homem crucificado perante a seita. José de
Arimateia, um de seus líderes, defendia a opinião de que Yeshua era de fato o
messias aguardado pelo povo de Israel. Porém, muitos essênios pensavam o
contrário. Segundo estes, ele não passava de mais um profeta e preferiam
continuar aguardando a vinda do filho de Deus, um bravo guerreiro dotado de
virtudes bélicas, para livrar os filhos de Abraão do jugo romano. A notícia da
profanação do túmulo encheu-os de terror, sobretudo entre os defensores da tese
de que o filho do carpinteiro não era o messias. Ao verem o sepulcro aberto, as
pessoas poderiam imaginar que ele, de fato, ressuscitara, aumentando ainda mais
a crença em sua figura divina. Por isso, decidiram ir à cabana onde o corpo de
Yeshua se achava escondido a fim de recuperá-lo e o devolver à sepultura, antes
do boato da ressurreição se espalhar.
Chegando diante da decrépita cabana, todos os essênios esconderam-se
pelos arredores e decidiram que José de Arimateia deveria bater sozinho à porta.
O silêncio era grande e apenas o vento farfalhava na copa dos arvoredos. Ele
encheu-se de coragem e, observado de longe pelos companheiros, passou a
chamar por algum morador. Pouco depois, a porta se abriu, dando passagem a
uma velha vestida de preto. Surpreso, ele simplesmente pediu:
- Por favor, poderia arranjar-me uma caneca de água?
A velha o encarou de cima abaixo, como quem duvida da própria sombra, e
disse com visível má vontade:
- Há um poço ali adiante. Beba, se quiser.
A intenção de José de Arimateia era afastar a anciã da casa, para que seus
companheiros pudessem invadi-la. Alcançando o poço, bradou:
- Senhora, há algo estranho lá no fundo, venha ver...
A mulher deixou a porta de sua residência e seguiu até o local onde José de
Arimateia estava. Parecia bastante contrariada em virtude daquela importunação
logo pela manhã.
- O que foi?
- Olhe lá embaixo!
Tão logo ela se debruçou na beirada do poço, quatro homens entraram em
sua casa e descobriram perplexos o corpo do Messias sobre uma cama. Não
havia mais ninguém ali dentro e imaginaram que os outros dois demônios
tivessem saído por algum motivo qualquer, pois Nahim afirmara ter visto três
deles. Porém, o que mais chocara os essênios foi terem achado uma estranha
ferramenta em forma de tridente posta nas mãos do cadáver. Segundo lendas
antigas, o diabo possuía um arpéu, fonte de seu poder. Eles apanharam o insólito
objeto e saíram da casa berrando:
- Encontramos! Encontramos!
Imediatamente, a velha virou-se para a direção dos invasores e, vendo que
traziam nas mãos o seu precioso forcado, gritou enlouquecida:
- Devolvam-me isto, criaturas imundas e desprezíveis!
E, transformando-se num monstro horrendo, com chifres de bode e língua
de áspide, repetiu a frase de maneira ainda mais ameaçadora, voz cavernosa que
parecia brotar de um tambor:
- Devolvam-me isto, criaturas imundas e desprezíveis!
- Nunca! Respondeu um dos homens, cravando o arpéu no chão.
Neste exato momento, um pavoroso relâmpago explodiu no céu, seguido
por um trovão assustador, embora não houvesse nuvem alguma. José de
Arimateia adiantou-se aos companheiros e inquiriu:
- Diga-nos, monstro das trevas, por que você roubou o corpo do Messias de
minha sepultura?
- Para levar o Filho ao inferno... para humilhar o Pai...
De repente, dois homens dos mais fortes apareceram de surpresa por trás da
criatura e, trazendo nas mãos um enorme saco de couro erguido sobre suas
cabeças, enfiaram o demônio lá dentro, amarrando-o firmemente. Ele esperneou
bastante, tentando ainda lutar pela liberdade, mas o seu poder era quase nenhum
longe do arpéu. Depois, os essênios o colocaram na carroça, junto ao corpo de
Yeshua, cobriram-nos com palha e seguiram até a sepultura que pertencia a José
de Arimateia, nos arredores da cidade.
Durante o trajeto, notaram que diversas pessoas comentavam a respeito da
ressurreição do Messias, conforme estava previsto nas profecias. A notícia tinha
se espalhado rápido e, em pouco tempo, era o assunto principal entre todos os
moradores de Jerusalém. Algumas mulheres haviam se dirigido nas primeiras
horas do amanhecer até o sepulcro, para ungir com perfumes o corpo de Yeshua
e descobriram a sepultura aberta. Tendo encontrado em seu interior apenas os
panos de linho, foram comunicar aos onze discípulos que o mestre ressuscitara
dentre os mortos, como Ele disse que faria.
Em vista disso, os essênios não podiam simplesmente devolver o corpo ao
túmulo e dizer a todos que haviam apreendido Satanás, o verdadeiro autor do
roubo. Antes, preferiram deixar o povo acreditando na história da ressurreição.
Além do mais, agora tinham certeza de que aquele homem era de fato o filho de
Deus, pois o próprio demônio se abalara das profundezas infernais para levá-lo
aos seus domínios. À noite, os essênios reuniram-se na casa de um deles e
decidiram encarcerar o diabo numa caverna do deserto. Quanto ao corpo de
Cristo, foi conduzido em sigilo absoluto a um local ignorado, onde repousará em
paz até o fim dos tempos.
O fim dos tempos

Naquela manhã, o mar continuava furioso, feito um demônio enjaulado.


Michael passara a noite em claro, seduzido pela leitura do Evangelho de José de
Arimateia. As revelações ali apresentadas eram estarrecedoras e o rapaz só
conseguiu largar o livro quando acabou de ler a última linha da parte omitida
pelos outros evangelistas. Estava de fato perplexo com o texto de Arimateia, que
se encaixava com perfeição às suas descobertas. Agora, tudo ficara mais claro ao
rapaz. Já não alimentava qualquer dúvida de que o demônio fora preso pelos
essênios em Jerusalém e encontrado pelos templários no deserto da Síria um
milênio mais tarde. Depois, Satanás foi trancado em uma prisão rigorosamente
sigilosa, onde permanece em cativeiro até hoje, conforme lhe revelara Belial.
Além disso, Michael sabia que uma legião de diabretes infernais infestava a
terra à procura de seu líder. Essas criaturas diabólicas, disfarçadas de seres
humanos, vinham das profundezas eternas com a missão de libertar o demônio.
Sempre estiveram por toda parte, em todos os países, em todas as épocas, e
muitos desses espíritos das trevas são nossos vizinhos, nossos amigos e até
nossas esposas e maridos. Às vezes, vivem a vida inteira como uma pessoa
idônea, dão esmolas aos necessitados, frequentam casas de ópera, apostam em
cavalos de corrida, sem ninguém desconfiar de coisa alguma.
Cada vez mais, Michael acreditava que o demônio seria libertado em breve
e isso o torturava terrivelmente. O próprio Apocalipse de São João parecia
confirmar esta sua crença na seguinte passagem:

“Vi então um anjo que descia do céu, tendo na mão a chave do abismo e
uma grande corrente. Prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e
Satanás, e o acorrentou por mil anos. Jogou-o no abismo, que fechou e lacrou
com um selo, para não seduzir mais as nações até que se completem mil anos,
depois do que será solto por pouco tempo.”

Ora, o prazo de mil anos da prisão do demônio já havia sido ultrapassado e,


com certeza, a profecia de São João estava para se realizar muito em breve,
embora Michael soubesse que a lógica temporal bíblica era bastante
contraditória e sempre fora muito discutida por historiadores e religiosos. De
qualquer forma, as evidências eram abundantes. O próprio Beato Simão não
vivia anunciando o final dos tempos? Quase todos os profetas apocalípticos
concordavam que o fim seria precedido por grandes calamidades, guerras, fome,
epidemias, mudanças climáticas, etc. Bastava abrir qualquer jornal
aleatoriamente para se confirmar tudo isto. Segundo São João, o derradeiro
flagelo da humanidade seria anunciado por um falso profeta. Estaria se referindo
a Beato Simão? Depois, ele mais o demônio seriam lançados num tanque de
fogo:

“Mas descerá do céu de Deus um fogo que os devorará; e o demônio, que


os seduzirá, será posto no tanque de fogo e de enxofre, onde também a besta e o
falso profeta serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos.”

São João, no Livro do Apocalipse, falava também sobre a besta, na verdade,


duas bestas, que viriam pouco antes do fim:

“E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre
os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia. E
a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a
sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e
grande poderio.”

E um pouco mais adiante:

“E vi subir da terra outra besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um


cordeiro; e falava como o dragão. E exerce todo o poder da primeira besta na
sua presença, e faz que a terra e os que nela habitam adorem a primeira besta,
cuja chaga mortal fora curada.”

Por sua vez, o anticristo era apenas referido por São João Evangelista nas
seguintes passagens:

“Filhinhos, é já a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo,


também agora muitos se têm feito anticristos, por onde conhecemos que é já a
última hora.”

“Porque já muitos enganadores entraram no mundo, os quais não


confessam que Jesus Cristo veio em carne. Este tal é o enganador e o
anticristo.”

Outros autores, particularmente o profeta Daniel, ainda faziam referência ao


anticristo, mas Michael acreditava que fosse apenas mais um nome para a
mesma criatura. Tal noção nunca fora muito clara ao rapaz. Na verdade, sempre
imaginara que a besta seria uma espécie de líder político sem escrúpulos, dotado
de extraordinário poder persuasivo, capaz de cegar multidões com suas palavras
estrondosas e arrastá-las à completa loucura. A seu modo de ver, o anticristo
haveria de iniciar a Terceira Guerra Mundial, aniquilando a humanidade inteira.
Mas depois de todas suas descobertas, Michael começava a questionar esta
hipótese. Talvez, a missão principal da besta fosse libertar o demônio de seu
cárcere. Todo o resto viria como inevitável consequência.
Eram oito horas da manhã, quando o rapaz resolveu dormir um pouco.
Mesmo tendo passado a noite em claro, custou a pegar no sono, que não foi
longo. Acordou pouco antes do meio-dia, com o som irritante de uma sirene de
polícia ecoando por toda a casa. Michael abriu os olhos assustado, imaginando
que tinham descoberto o seu paradeiro e vindo para o prender. Em bico de pés,
caminhou até a janela da sala e pôs-se a olhar a rua pelas frestas da veneziana.
Para sua surpresa, havia uma viatura estacionada do outro lado, diante de um
velho casarão. Aos poucos, as pessoas começaram a se aglomerar na frente da
residência, ansiosas por conseguirem informações frescas sobre a desgraça
alheia. O moço sentia-se bastante aliviado pelo fato da polícia não ter vindo atrás
dele e, após se vestir, dirigiu-se até lá. Na rua, disseram-lhe que ali morava um
jovem casal, filhos de sicilianos. O marido descobrira que a esposa o traía e a
esfaqueou dentro da banheira, tirando a própria vida em seguida. Dois homens
trouxeram os corpos dentro de sacos pretos e os enfiaram na parte traseira de um
carro funerário, o qual dobrou a esquina e desapareceu. Em menos de dez
minutos, não havia praticamente mais ninguém ali na rua.
Michael tirou os sapatos e resolveu caminhar pela areia, naquela faixa da
praia aonde as ondas vêm roçar de leve os calcanhares. Andava sem destino
certo, ao capricho de suas pernas, pensando em tudo o que estava acontecendo
em sua vida. Tinha a sensação de que as pessoas o encaravam como se
soubessem de algo, como se pedissem para levá-los até o cárcere onde Satanás
permanecia agrilhoado. Afinal, esses diabretes não se achavam por toda parte,
disfarçados de seres humanos?
Tão logo lavou os pés num chuveirinho para retirar deles a areia, Michael
calçou os sapatos e decidiu comer alguma coisa, pois estava faminto. Antes de
entrar numa lanchonete, passou por acaso diante de uma banca de jornal, onde
leu a seguinte notícia estampada num diário sensacionalista:

LUNÁTICO PREVÊ FINAL DOS TEMPOS

Abaixo da manchete, havia um retrato de Beato Simão com os olhos


arregalados, um tanto vesgo, exibindo uma fisionomia completamente
desvairada, como se estivesse na iminência de ser devorado por um tigre. O
rapaz comprou o jornal e o enfiou debaixo do braço para ler mais tarde. Pouco
depois, seguiu até uma lanchonete e foi almoçar.
Após sentar-se num banco junto ao balcão, uma moça com um boné cor de
laranja e cabelos amarrados feito rabo de cavalo veio lhe atender. Michael teve a
impressão de que ela o chamaria pelo nome, mas apenas perguntou:
- O que deseja?
- Um hambúrguer e batatas fritas. Traga-me também uma Coca-cola, sim?
A menina sorriu e foi buscar o pedido. Enquanto aguardava, o jovem
percebeu que algumas pessoas da lanchonete o olhavam de maneira estranha,
com bastante insistência. Seriam os tais diabretes disfarçados de seres humanos?
Assim como Belial, certamente imaginavam que Michael os pudesse levar ao
cativeiro de seu líder. Pouco depois, a garçonete trouxe o almoço, devorado em
menos de dez minutos pelo rapaz.
Resolveu ir até a biblioteca, pois queria obter mais informações sobre
profecias apocalípticas, o anticristo e o final dos tempos. Chegando lá, pôs-se a
procurar o tema pelas numerosas estantes, mas eram tantos livros, que ele ficou
perdido. Decidiu então pedir ajuda a uma bibliotecária. A moça anotou num
caderninho o assunto desejado e disse para Michael aguardar na sala de leitura,
que logo mais ela lhe levaria algumas obras. Trinta minutos depois, a jovem
apareceu, carregando uma pilha de volumes e os colocou sobre a mesa do rapaz.
Abrindo um deles ao acaso, proferiu:
- Esperamos que isso ajude... Michael...
Ao ouvir o seu nome sendo pronunciado por ela, levou um susto tremendo.
Quis lhe perguntar se era um súcubo, mas a moça lhe deu as costas e foi atender
um senhor em outra mesa. Michael fitou a página do livro aberta ao acaso e
percebeu que havia ali a ilustração de um ser meio diabólico, encimado pela
seguinte centúria de Nostradamus:

“O terceiro anticristo será logo aniquilado,


Mas vinte e sete anos durará a sua guerra.
Os hereges serão mortos, cativos, exilados,
Sangue, corpos humanos, água vermelha cobrirão a terra.”

Era uma profecia impressionante e, com certeza, aludia ao final dos tempos.
O autor da obra não revelava a identidade do terceiro anticristo, limitando-se a
sugerir o nome dos dois primeiros: Napoleão e Hitler. Afirmava que a besta era
citada em antigos apócrifos, como o Livro de Enoch, o Apocalipse de Baruch, o
Livro da Assunção de Moisés e no próprio Apocalipse Apócrifo de São Tomé, o
qual dizia:
“Haverá grandes sinais e maravilhas naqueles dias, quando o anticristo estiver
próximo.”

Michael tomou um dos outros livros da pilha e viu que se tratava de um


antigo estudo sobre o anticristo. Fora escrito por um monge de nome Adso, entre
os anos de 949 e 954, a pedido de uma rainha convertida ao Cristianismo. Passou
a folheá-lo com interesse e descobriu informações surpreendentes. Segundo o
velho monge, o anticristo será guiado pelos demônios para atingir o seu objetivo,
embora não diga claramente qual seria este. Após ter conseguido o seu intuito, o
fogo descerá dos céus, as árvores secarão e o mar se tornará furioso. Tudo isto
anunciará o fim, como a descoberta de um tesouro oculto nas profundezas da
terra, mas que não será aproveitado pelos homens. Então, o demônio atormentará
o mundo até o dia do juízo de Deus, quando o Senhor aniquilará todo o mal com
o sopro de sua boca.
Durante o resto da tarde, Michael permaneceu na biblioteca, lendo e
refletindo sobre o assunto. Ficou pasmo com a revelação de que um tesouro
oculto seria encontrado pouco antes do fim e imaginou que talvez fosse a imensa
fortuna dos cavaleiros templários. Além disso, leu num dos livros uma
informação estarrecedora: o último papa seria assassinado, dando início ao
apocalipse.
Já começava a escurecer, quando o rapaz saiu da biblioteca, convencido da
iminência do final dos tempos. Em casa, decidiu ir até o Vaticano a fim de alertar
as autoridades da igreja a respeito de todas as suas descobertas. Agora,
acreditava piamente que o demônio fugiria de seu cárcere e imaginava que Beato
Simão seria o falso profeta aludido por São João no Apocalipse, ou até mesmo o
próprio anticristo!
Como talvez a polícia ainda o estivesse procurando, sobretudo em Milão,
Michael decidiu permanecer por mais alguns dias em Gênova. Para passar o
tempo, frequentava a praia e a biblioteca. Não voltou a encontrar a misteriosa
bibliotecária em nenhuma das vezes que lá estivera e funcionário algum soube
dizer qualquer coisa a respeito dela. Em menos de duas semanas, porém, o rapaz
não suportava mais guardar consigo aquelas informações e resolveu se dirigir ao
Vaticano para alertar o papa que sua vida corria perigo, que o demônio estava
preso na terra, prestes a ser libertado, e que o final dos tempos, anunciado pelos
profetas, era um flagelo destinado a esta geração.
O ônibus partiu bem cedo de Gênova e, ao longo do percurso, Michael foi
pensando como poderia conseguir uma audiência com o papa. Certamente, isto
não deveria ser algo muito fácil de se arranjar, pois a agenda de Sua Santidade
era rigorosíssima. Talvez, o melhor a fazer seria pedir uma entrevista com
alguma autoridade da igreja, para que ela levasse ao conhecimento do papa a
gravidade do problema.
Passava do meio-dia, quando Michael chegou à Praça de São Pedro. Por
alguns minutos, diante da majestosa basílica, o rapaz permaneceu admirando
aquela gigantesca construção, que o próprio Michelangelo tinha ajudado a
projetar junto de Bramante, seu arquiteto. Ele introduziu-se no meio das longas
filas de turistas e entrou no interior da igreja, encontrando por acaso um velho
padre. Disse-lhe:
- Preciso que me leve até o papa. É caso de urgência!
O bom homem sorriu por causa daquele pedido ingênuo e respondeu de
maneira carinhosa:
- Meu filho, essas coisas não são assim...
- Mas é muito importante!
- Nesse caso, aconselho você a procurar os secretários que cuidam dos
compromissos do papa. Explique o caso a eles, talvez consiga uma audiência.
Mas já o previno que isto é dificílimo.
- Onde os posso achar? Indagou o rapaz.
- Acompanhe-me, pois o levo a um deles.
Os dois seguiram através de uma ala da igreja, saíram para um pátio e
entraram num prédio contíguo à basílica. No trajeto, Michael foi pensando o que
deveria dizer ao secretário do papa. Se contasse a verdade, talvez ele o julgasse
louco e, provavelmente, não conseguiria a entrevista. No fundo, o rapaz sabia
que uma audiência com Sua Santidade era algo quase impossível de se obter. Por
isso, já se dava por satisfeito em prevenir a cúpula da igreja, para esta tomar as
medidas necessárias. Porém, até mesmo falar com um cardeal não era fácil.
Então, achou melhor dizer uma pequena mentirinha, pois acreditava que, dessa
forma, talvez obtivesse êxito.
O padre levou-o a uma sala e pediu para Michael sentar-se um instante num
sofá, pois iria ver se algum secretário do papa o poderia atender. Pouco depois,
apareceu um homem muito alto e muito magro:
- Em que posso lhe ser útil?
- Preciso falar com o papa. Trata-se de um assunto muito importante!
- Meu caro, Sua Santidade é o chefe de Estado e não concede audiências,
exceto pelos canais diplomáticos. Conte-me o que deseja e lhe direi se posso
ajudar de alguma forma.
Michael pensou um pouco e respondeu:
- Represento um rico empresário, que alcançou uma grande graça através de
Nossa Senhora de Fátima. Esta pessoa deseja permanecer no anonimato e, para
saldar a promessa feita à santa, incumbiu-me de entregar enorme fortuna aos
cofres do Vaticano. Porém, recomendou-me com veemência que eu apenas desse
o dinheiro contido nesta pasta diretamente ao papa.
- Mas como eu ia dizendo, você não pode se encontrar com o papa porque...
há nesta valise uma fortuna, é isso?
- Exato! Mais de um milhão de Euros...
- Nesse caso, deixe a maleta comigo, que eu mesmo entrego para Sua
Santidade.
- Não posso, meu amigo. Não que eu não confie em você, mas estou aqui
apenas cumprindo ordens. Caso não encontre o papa hoje, terei de levar o
dinheiro de volta...
- Eu compreendo a sua posição. Mas você também deve entender que o
papa é um homem muito ocupado, tem seus compromissos agendados com
meses de antecedência, não pode atender toda gente que lhe bate à porta, feito
um quitandeiro...
Michael levantou-se do sofá, apanhou a pasta e disse:
- Bem, neste caso, só me resta dizer adeus...
- Não, espere! Vou ver se consigo algo...
Ele deixou o recinto e o rapaz permaneceu sozinho durante algum tempo,
pois o padre que o trouxera até ali também já havia se retirado. Quase meia hora
depois, entrou na sala um velho vestindo um hábito vermelho e bateu a porta.
Michael levou um susto, reconhecendo-o imediatamente. Era o cardeal
Lucatone, uma das autoridades mais respeitadas da igreja. Ao vê-lo, ergueu-se e,
fazendo uma reverência, beijou-lhe o anel que trazia em uma das mãos. O
homem estendeu no rosto um sorriso simpático e disse:
- Deus o abençoe, meu filho! Qual o motivo de sua visita?
Michael abriu a sua pasta e retirou dela os três livros que encontrara na
biblioteca do Templo. Em seguida, entregou-os ao cardeal Lucatone, proferindo:
- Veja isto!
O sujeito apanhou os volumes e pôs-se a folheá-los com grande
curiosidade. Michael percebeu que ele ficara perturbado com as obras, pois a sua
respiração se tornou um pouco mais ofegante e seus olhos mostravam-se
bastante arregalados. Ao cabo de alguns minutos, tendo a certeza de que possuía
um verdadeiro tesouro nas mãos, o cardeal Lucatone devolveu os livros ao rapaz
e indagou:
- Foi você quem descobriu a biblioteca secreta dos cavaleiros templários no
convento de Santa Maria delle Grazie?
Ao ouvir esta pergunta, Michael sentiu-se muito envaidecido. Após guardar
os volumes dentro da pasta, respondeu:
- Exato! E trago uma notícia ainda mais estarrecedora do que a descoberta
da biblioteca...
- Por Cristo! Conte-me de uma vez...
Então, Michael explicou-lhe tudo. Disse-lhe que o demônio se encontrava
encarcerado na terra e, possivelmente, estaria prestes a fugir de sua prisão para
se vingar da humanidade. Afirmou que o mundo inteiro se achava infestado por
diabretes disfarçados de seres humanos à procura de seu líder. Ele próprio
estivera frente a frente com um destes, chamado Belial. Contou-lhe também
sobre o enorme tesouro a ser descoberto pouco antes do fim, talvez a própria
fortuna dos cavaleiros templários e lembrou-lhe o Apocalipse de São João, onde
se afirmava que o final dos tempos se iniciaria após o demônio ter fugido de seu
cárcere. Por fim, citou-lhe algumas profecias prevendo o assassinato do papa.
O cardeal Lucatone ouviu em silêncio tudo o que Michael disse. Quando o
rapaz se calou, ele inquiriu:
- Terminou?
- Sim... a igreja precisa tomar providências, fazer algo para que o demônio
não fuja! O papa está correndo sério risco... também a humanidade...
- Meu filho, você anda assistindo a muitos filmes no cinema. Essas coisas
não são assim. Você acha mesmo que, se Satanás estivesse preso na terra, não
teria poderes para destruir as correntes feitas pelos homens?
- De acordo com o que li, o demônio só tem poder quando está na posse de
seu forcado. Sem ele, nada pode fazer...
- Você acredita mesmo em arpéu? Ora, isto não existe, é apenas uma
simbologia criada pela igreja a fim de facilitar a compreensão do mal entre as
pessoas mais simples. Nesse ponto, nem fomos originais, pois nos apropriamos
até mesmo do tridente de Netuno. A própria figura do diabo em nosso
imaginário, com pés e orelhas de bode, não passa de um pastiche do deus grego
Pã.
Michael ficara estarrecido. Jamais imaginara que o cardeal Lucatone tivesse
aquela reação, como se o quisesse dissuadir de suas convicções.
- Mas você precisa acreditar. Existem muitas provas aqui nestes livros...
Além disso, há também os sinais que os profetas vaticinaram...
- Sinais? Não seja ingênuo! Desde que o mundo é mundo, ocorrem
epidemias, fome, pestes e outras calamidades, previstas por essa gente. Deixe os
livros conosco, para serem analisados por especialistas da igreja.
- E o falso profeta anunciado por São João? Certamente, você já ouviu falar
em Beato Simão...
- Loucos! Todos loucos! Esses lunáticos sempre existiram e pregam o final
da humanidade desde antes dos tempos de Cristo. Dê-me os livros, sim?
O rapaz abriu sua pasta, retirando dela os volumes. Quando os ia entregar
ao cardeal Lucatone, arrependeu-se de seu ato, pois tinha certeza de que ele não
iria tomar providência alguma. Arrebatou-os das mãos do religioso e saiu ligeiro,
batendo a porta atrás de si.
O rapaz conseguiu sair sem ser detido por nenhum homem da Guarda
Suíça. Na rua, Michael caminhava prostrado, sem saber direito para onde seguir.
Tinha a impressão de carregar nos ombros uma enorme cruz invisível e era como
se o destino da própria humanidade dependesse de sua decisão. O que fazer? A
igreja não estava muito interessada no demônio e, se soubesse de alguma coisa,
guardaria o segredo trancado a sete chaves. As trovinhas que Jacques de Molay
transcrevera em seu diário, indicando o lugar para onde os templários haviam
levado o demônio, eram por demais enigmáticas e aparentemente não faziam
qualquer sentido. Várias perguntas misturavam-se ao mesmo tempo no cérebro
de Michael. Sem a ajuda da igreja, ele seria capaz de descobrir o local onde o
diabo se achava aprisionado, apenas tentando desvendar aquelas pistas
misteriosas? E, supondo que encontrasse esse cárcere diabólico, o rapaz poderia
fazer algo a fim de evitar a fuga do demônio e os terríveis flagelos do
Apocalipse? Existiria alguma maneira para se matar Satanás?
Tudo isso Michael se perguntava ao seguir pelas avenidas de Roma,
acompanhando suas pernas, as quais o conduziam através da cidade sem destino
algum, feito um barco à deriva. Ia tão distraído mergulhado em seus
pensamentos que, a certa altura, deu um encontrão com um homem corpulento e
quase caiu na calçada. O sujeito ajudou a segurar o rapaz, que se desequilibrara,
pediu-lhe mil desculpas, deu-lhe três pancadinhas nas costas como se fossem
velhos amigos e partiu. Michael ajeitou seu sobretudo preto - agora o usava em
toda parte - apanhou sua pasta no chão e seguiu caminhando.
Porém, quatro ou cinco quarteirões à frente, Michael começou a suspeitar
que estava sendo seguido. Ao sair da Praça de São Pedro, notara por acaso que
dois homens vestindo ternos pretos, com chapéu e óculos escuros, achavam-se
distribuindo migalhas aos pombos. Isto teria passado despercebido ao jovem, se
não fosse o fato de um deles ser alto e forte, enquanto o outro era baixo e
atarracado. Como se vestiam de maneira semelhante, um parecia a miniatura do
outro e acabavam chamando muita atenção. Depois, ao esbarrar naquele sujeito
corpulento, percebeu que os mesmos dois homens de preto se encontravam
diante de uma banca de jornal, fingindo ler as manchetes. Ainda assim, Michael
não tinha desconfiado de nada e imaginara que tudo não passara de uma
coincidência. Mas quando o rapaz abaixou para amarrar um de seus sapatos e viu
aqueles dois homens ainda atrás dele e, além disso, também pararam um pouco
adiante a fim de acender um cigarro, teve a certeza de que estava sendo seguido.
Para confirmar a sua suspeita, deu uma volta no quarteirão e retornou ao mesmo
local. Os dois homens fizeram trajeto idêntico, mantendo sempre uma distância
de uns quarenta passos. Isto lhe desfez todas as dúvidas. Eles não apenas o
estavam seguindo, como não faziam nenhuma questão de se esconder.
Subitamente, Michael passou a temer por sua vida.
A primeira coisa em que pensou foi ir à polícia, mas descartou a ideia, pois
ainda estava sendo procurado e poderia ser preso outra vez. Então, decidiu fugir.
Atravessou correndo, por entre os carros, uma avenida movimentadíssima e
misturou-se à multidão do outro lado da calçada com o objetivo de despistar os
seus perseguidores. Depois, meteu-se em um restaurante chinês, sentando-se
numa mesa ao fundo do estabelecimento. O rapaz imaginou que ali fosse um
bom esconderijo, mas, surpreendentemente, os dois homens de terno preto
surgiram junto à vitrine e começaram a vasculhar o interior do recinto. Michael
tentou esconder o seu rosto atrás do cardápio e encolheu-se o quanto pôde na
mesa. Em seguida, eles passaram a olhar outras casas comerciais da vizinhança e
o rapaz aproveitou para sair dali. Viu um chinês lavando copos em uma grande
pia na cozinha e lhe perguntou onde ficava o banheiro. O sujeito sorriu amarelo e
disse qualquer coisa em sua língua milenar, mas Michael evidentemente não
compreendeu. Como última alternativa, fez um gesto típico de quem precisava ir
ao banheiro e deve tê-lo feito bem, pois seu interlocutor se mostrou muito
espantado e apontou para uma porta pouco adiante. Michael agradeceu,
curvando-se deveras, e entrou no sanitário, onde permaneceu por quase vinte
minutos.
Ao sair para a rua, após ter olhado pela vitrine e se certificado de que seus
perseguidores não se encontravam ainda por ali, notou que a tarde se tornara
escura em virtude das nuvens negras amontoadas nos céus. Logo, pingos grossos
puseram-se a alvejar a cidade e o rapaz correu até a marquise de um prédio, onde
se abrigou da chuva. Pensava em procurar Celestino e dizer a ele tudo o que
descobrira. Com certeza, o velho padre teria bons conselhos para lhe dar e talvez
ainda possuísse ligações com pessoas influentes da igreja. De repente, porém,
Michael empalideceu de pavor. Aqueles dois homens de preto passaram dentro
de um táxi, fitando-o debaixo da marquise. Imediatamente, mandaram o
motorista parar e desceram apressados do carro, encharcando os sapatos nas
poças d’água. O moço saiu correndo pela avenida, desesperado, pois imaginava
que os seus perseguidores o queriam matar. Em sua fuga alucinada, esbarrou em
várias pessoas e mais de uma delas foi ao chão com guarda-chuva e tudo. Os
dois homens seguiram em seu encalço por cerca de cinco quarteirões, até
Michael tropeçar e ser alcançado.
- Dê-nos a pasta! Bradou o mais forte.
- Não lhe queremos fazer mal, disse o atarracado.
Após tomarem a maleta do rapaz, eles pararam um táxi, meteram-se dentro
do automóvel e sumiram pelas ruas da cidade. Michael levantou-se bastante
esbaforido e percebeu que seu braço direito sangrava um pouco. Não se
importou com isso. O seu problema, agora, era outro. Quem seriam aqueles
homens? Não havia dúvidas de que estavam atrás dos valiosos livros
encontrados pelo jovem. Mas como poderiam saber de sua existência, se ele
somente os mostrara ao cardeal Lucatone? Os segredos descobertos começavam
a incomodar gente graúda e era preciso manter o máximo de cuidado.
Enquanto caminhava debaixo da chuva, Michael começou a rir. Como
gostaria de ver o rosto de seus perseguidores - ou de quem os contratara -
quando eles abrissem a pasta e encontrassem ali dentro apenas rolos de papéis
higiênicos! Ah, provavelmente levariam uma dura reprimenda de seu chefe por
terem falhado em sua missão. O rapaz voltou ao restaurante chinês e dirigiu-se
ao banheiro. Por sorte, o seu notebook e os livros ainda permaneciam no local
em que ele os deixara, escondidos atrás da caixa de descarga. Ao sair dali, topou
de novo com o chinês, o qual vinha carregando um balde cheio de água. O
sujeito arregalou os olhos, muito surpreso, pois deve ter imaginado que o rapaz
estivera usando o sanitário durante todo aquele tempo. Michael curvou-se
agradecido e saiu do restaurante, deixando o chinês de boca aberta, sem
compreender nada.
A primeira coisa que fez após ter recuperado os livros e seu notebook foi
entrar numa papelaria para adquirir outra pasta. Depois, como já estava
anoitecendo, resolveu procurar uma pousada, onde pudesse dormir em
segurança. Em pouco tempo, achou um hotel horrível, um prédio de cinco
andares, bastante velho e sem elevador, localizado no centro da cidade. Tudo ali
lembrava decadência e cheirava a naftalina. Na portaria, Michael preencheu uma
ficha com nome falso e apanhou as chaves do quarto com o zelador, o qual lhe
pareceu bastante antipático. Como não existia outra alternativa, teve de subir a
pé as escadas sombrias. Logo no primeiro lance, as lâmpadas estavam
queimadas, causando-lhe uma sensação angustiante. Nos outros andares, elas
funcionavam, porém, emitiam uma luz amarela e franzina, de maneira que os
corredores mais lembravam salas de velórios.
Tão logo entrou no quarto, situado no último piso daquele pardieiro,
Michael bateu a porta e pôs a sua pasta sobre a cama. Só não ficou chocado com
o que viu, porque, ao subir as escadas, já vinha preparando o seu espírito para o
pior. Uma grande mancha de umidade decorava a parede dos fundos, enquanto
uma bacia de alumínio tentava aparar inutilmente os pingos de uma goteira no
teto. A cama cheirava a palha úmida e devia ser um parque de diversões para as
pulgas e percevejos. Num dos cantos do assoalho, encontrava-se um preservativo
fora da embalagem, indicando que aquele quarto também era utilizado com
outros fins. A vantagem é que possuía banheiro, conforme gabara o zelador. O
moço tirou o seu sobretudo e o estendeu em uma cadeira, onde ficou secando.
Achava-se por demais cansado e resolveu tomar um banho quente a fim de
aliviar as tensões daquele dia, que não tinha sido fácil.
Mal pôs os pés debaixo do chuveiro, constatou que só havia água gelada.
De qualquer maneira, melhor do que nada. Ao se ensaboar, ele percebeu que sua
ferida já havia parado de sangrar e aproveitou também para lavar a mancha de
sangue na manga da camisa. Michael ia pensando em todos os acontecimentos
daquela tarde. Talvez os seus perseguidores estivessem a serviço do Vaticano.
Certamente, o cardeal Lucatone comunicara a seus pares que o rapaz possuía
livros perigosíssimos para o destino da igreja, a qual não mediria esforços a fim
de se apoderar deles. A revelação de segredos tão extraordinários poderia abalar
os alicerces da cristandade e as autoridades eclesiásticas fariam de tudo para
mantê-los em sigilo. Estaria correndo risco de vida? Tais homens voltariam a
atacá-lo? Michael fechou a torneira e enxugou-se numa toalha branca, pendurada
num gancho atrás da porta. Em seguida, vestiu as mesmas roupas sujas e ainda
um pouco úmidas, pois não tinha outras para trocar, exceto seu sobretudo, que
continuava muito molhado, e saiu para jantar.
A chuva já havia passado, quando ele entrou num restaurante e pediu uma
macarronada com frango. Tinha a sensação de que toda gente o olhava de
soslaio, como se soubessem de alguma coisa. O próprio garçom, ao lhe trazer a
conta, permaneceu sorrindo de maneira estranha, mas talvez apenas quisesse
receber uma gorjeta. Ao sair dali, o rapaz foi a um cinema para ver se relaxava
um pouco e se distraía; porém, estava preocupado demais e não conseguiu se
concentrar no filme, ficando sem entender nada da história.
Já passava das onze horas da noite, quando Michael decidiu voltar ao hotel
onde se hospedara. Na portaria, estranhou o fato de não ver ali o zelador e
apenas a sua pequenina televisão em preto e branco dava algum sinal de vida,
sintonizada pessimamente num canal de notícias. Teve um mau pressentimento e
subiu os degraus com cautela, sentindo seu coração pulsando nas artérias do
pescoço. Levou um tremendo susto ao cruzar com um casal de namorados que se
esfregava num canto escuro das escadas, ambos em trajes sumários. Chegando
ao último pavimento, os seus olhos encheram-se de terror e o rapaz teve de se
apoiar numa das paredes para não cair no chão sujo, pois suas pernas congelaram
sem energia. A porta do seu quarto estava aberta, como um túmulo violado...
Com os dedos trêmulos, ele abriu vagarosamente a porta e sua alma
encheu-se de terror. Tudo ali havia sido remexido! Os lençóis estavam
esparramados pelo assoalho, o colchão encontrava-se em pé, junto a uma das
paredes, e todas as gavetas da cômoda tinham sido esvaziadas e empilhadas no
chão. Michael apanhou uma maciça estatueta da Vênus de Milo, feita de madeira
pesada, único enfeite em todo o quarto, e a ergueu sobre a cabeça, pronto para
golpear o intruso. Empurrando a porta do banheiro, verificou aliviado que não
havia mais ninguém ali. Curiosamente, os invasores deixaram no espelho a
seguinte frase em latim, escrita com batom vermelho:

“Quid non mortalia pectora cogis,


auri sacra fames?”[5]

Não se lembrava dela, mas a anotou num caderninho que trazia no bolso da
camisa. Depois de trancar a porta, Michael pôs-se a refletir sobre os motivos de
tal invasão. Teriam vindo para matá-lo ou apenas desejavam os seus preciosos
livros? Seriam os mesmos homens que o haviam seguido naquela tarde? Como
tinham descoberto o seu endereço? Estas perguntas atormentavam o rapaz e a
certeza de que o estavam vigiando apavorava-o. Felizmente, não encontraram os
livros, pois Michael os havia levado consigo ao restaurante.
No dia seguinte, acordou logo cedo e foi procurar Celestino. Não se sentia
mais seguro naquele hotel e precisava descobrir outro local onde pudesse
permanecer hospedado. O velho religioso ficou muito feliz em rever o amigo,
que queria como a um filho. Após se abraçarem afetuosamente, Michael
proferiu:
- E como vai sua saúde?
- Graças a Deus, já melhorei da caxumba... a sua visita traz uma grande
alegria a este pobre velho solitário. Mas me diga, o que aconteceu?
Então, Michael contou-lhe tudo. Como achara por acaso a biblioteca dos
templários e os preciosos livros separados por frei Felício. Narrou-lhe a prisão
do demônio pelos essênios e a descoberta de seu cativeiro pelos cavaleiros do
Templo. Disse-lhe também ter certeza absoluta de que Satanás estava para fugir
da prisão onde se achava, o que provocaria o final dos tempos, como haviam
previsto os profetas. Ele próprio encontrara-se com um demônio chamado Belial.
Junto de seus pares, viviam na terra à procura de seu líder. Finalmente, revelou
ao amigo ter procurado o Vaticano para alertar as autoridades eclesiásticas a
respeito do problema, explicando-lhe como fora tratado e perseguido pelas ruas
de Roma, tendo, inclusive, seu quarto invadido durante a noite.
Celestino ouviu boquiaberto toda aquela história espantosa, que mais
parecia um roteiro de filme; porém, como era relatada por um rapaz merecedor
de sua total confiança, não havia motivo para duvidar da palavra dele. O velho
padre mostrou-se tremendamente surpreso com tais revelações e manteve-se em
silêncio por certo tempo, meditando sobre o assunto. Depois, passou uma das
mãos no queixo bem escanhoado e indagou:
- Quem mais sabe que você está com os livros?
- Eu os mostrei apenas ao cardeal Lucatone. Estas obras são de extrema
importância para o Vaticano e também muito perigosas. Podem provocar
estragos terríveis. É natural que eles queiram manter tudo em sigilo absoluto.
Além do mais, não sei até onde vão os escrúpulos dos homens que conduzem a
igreja...
- Isto de fato me preocupa. Há pessoas excelentes no comando da
cristandade, mas existem outras que não merecem a mínima consideração. Antes
de religiosos, são políticos desprezíveis e estão lá para cuidar de seus próprios
interesses. Diga-me, quando você mostrou os livros ao cardeal Lucatone, ele não
lhe disse algo que tivesse chamado a sua atenção em especial?
- Não me recordo, mas ele queria ficar com os livros. Achei estranha a frase
escrita no espelho do banheiro pelos invasores do meu quarto.
- Uma frase?
- Sim, está anotada neste caderninho! Veja...
Celestino tomou-o nas mãos e leu o texto. Imediatamente, sua face
iluminou-se, como se tivesse desvendado um misterioso enigma. Michael
percebeu que o amigo havia descoberto algo e perguntou:
- Conhece a frase?
- Conheço. “A que não obrigas o coração humano, ó execranda fome de
ouro?” Encontra-se na Eneida de Virgílio. Desesperado com o destino de Tróia,
o rei Príamo confiou seu filho Polidoro e imensas riquezas a Poliméstor, rei da
Trácia. Este, porém, traindo a confiança de Príamo, matou o filho de seu amigo
para se apoderar de sua fortuna. Esta frase já era famosa na própria antiguidade e
foi muito empregada pelos autores clássicos, quando se desejava mostrar que
alguém não possuía escrúpulos se houvesse dinheiro em jogo.
- E o que esses bandidos querem dizer com isso?
- Estou com um palpite... Deixe-me ver os livros, sim?
Michael entregou-lhe os três volumes guardados em sua pasta. Após os
analisar por alguns minutos, Celestino disse:
- Para mim, eles não estão atrás do Evangelho de José de Arimateia, o qual
por si só já é um tesouro incalculável. Muito menos desejam este livro Segredos
Ocultos da Igreja. Na verdade, tais pessoas querem o diário de Jacques de
Molay, pois devem imaginar que, nestas páginas, o último grão-mestre do
Templo revela o local para onde o imenso tesouro da Ordem foi levado, quando
de sua extinção. Você está com algo extremamente valioso para eles, a chave que
pode abrir uma fortuna colossal... E como se depreende da citação latina da
Eneida, essa gente não medirá esforços a fim de alcançar seus objetivos...
- Você acredita que este fabuloso tesouro ainda esteja escondido?
- Tenho certeza absoluta! Muitos o procuraram ao longo dos séculos, sem
obter qualquer resultado. Se tiver paciência para ouvir este velho falastrão, eu
lhe conto o que sei sobre o desaparecimento da Ordem e de sua fortuna
formidável.
- Mas será um imenso prazer.
-Ótimo!
E dizendo isso, Celestino iniciou a sua narrativa:
- Felipe IV era um homem rancoroso e mau...
Pelos esgotos de Paris

Paris, outubro de 1307

Um grande silêncio pairava no interior da igreja dos templários em Paris.


Sentado sozinho num dos bancos de madeira, o jovem Pierre Leblanc observava
as sombras lúgubres que uma vela de cera, posta num candelabro, ia rabiscando
pelas paredes de pedra. Fora colocada ali por Gilles de Sens, o gentil, um velho
cavaleiro que estivera no cerco de Acre, para o novato não ficar completamente
na escuridão. “Quando a vela tiver derretido”, disse ele, “viremos buscá-lo”.
O rapaz acabara de se confessar e o haviam deixado na solidão da igreja
para refletir sobre o irreversível passo que daria. Tornar-se um templário
implicava não apenas em compromisso, mas renúncia. Desde o momento em que
se ingressava na Ordem, a vida do cavaleiro não mais lhe pertencia e tampouco
importava a sua vontade. Estava ali para servir e não pelas honrarias, conforme
indicava a divisa do Templo: “Non nobis, Domine, non nobis sed nomini Tuo da
gloriam”[6].
Mas enquanto aguardava a cerimônia de sua iniciação na Ordem, Pierre
Leblanc só conseguia pensar em toda tragédia ocorrida em sua vida nos últimos
tempos. Há pouco mais de um ano, estava de casamento marcado com a bela
Joana de la Rose, uma pobre camponesa que vivia nos arredores de Paris. A
jovem tinha dezesseis anos e apaixonara-se pelo rapaz desde a primeira vez que
o vira, na feira de Lendit, a qual acontecia todo ano na estrada ligando Paris à
abadia de Saint-Denis. As festividades duravam mais de dez dias e ocorriam
sempre no mês de junho. A feira de Lendit teve início com a exposição pública
de relíquias sagradas, incluindo pregos e pedaços de madeira da Santa Cruz. O
papa havia prometido indulgências especiais aos fiéis que visitassem a abadia e
uma infinidade de peregrinos afluiu de todas as partes a fim de abater seus
pecados. Isto fez inúmeros comerciantes aproveitarem para vender diversos
produtos no local, atendendo às necessidades dos romeiros. Com o passar dos
anos, a feira de Lendit foi se tornando cada vez maior e era possível adquirir não
apenas comida e bebida, como frutas, peixes, carnes, cerveja e vinho, mas
também tapetes, couro cru, lã, cordas, selas, cavalos, bois, ovelhas, porcos, etc.
Tradicionalmente, a abertura oficial da feira era realizada pelo bispo de Paris,
abençoando os comerciantes e peregrinos. Também era comum a presença de
artesãos vendendo seus produtos e artistas populares, músicos, saltimbancos,
malabaristas, exibindo suas habilidades e talentos.
O jovem Pierre Leblanc havia acordado cedo naquela segunda quarta-feira
de junho, ano da graça de 1305, dia em que se iniciavam as festividades de
Lendit. Mal raiara a manhã e ele já estava a caminho da feira, pois desejava
comprar alguns pergaminhos. Os estudantes e professores da Universidade de
Paris vinham logo nas primeiras horas e acabavam ficando com as melhores
peças. Por isso, tinha pressa e nem tomou sua costumeira caneca de leite de
cabra antes de sair de sua cabana. Chegando à feira, amarrou seu cavalo a uma
árvore e pôs-se a procurar as barracas dos vendedores de pergaminhos.
Surpreendeu-se com a quantidade de pessoas que já se encontrava ali, comendo,
bebendo, falando alto, divertindo-se. Os sons misturavam-se de maneira confusa,
enchendo o ar de alegria e jovialidade. Por toda parte, músicos tocavam seus
instrumentos, jograis recitavam poemas de amor e comerciantes gabavam os
seus produtos.
Subitamente, dois moleques atravessaram correndo afoitos na frente de
Pierre Leblanc, roubaram algumas laranjas que uma jovem carregava num cesto
e a derrubaram no chão. A menina caiu de maneira nada graciosa, esparramando
as frutas para todo lado. No mesmo instante, diversas pessoas passaram a se
apoderar das laranjas, como se elas não tivessem mais dono, apenas porque se
achavam espalhadas no solo. Pierre Leblanc indignou-se com aqueles atos
vergonhosos e puxou um punhal preso à cintura.
- Devolvam as laranjas ao cesto, senão este solo será maculado pelo sangue
de vossas tripas!
Todos obedeceram de má vontade. O rapaz ajudou a jovem a se levantar,
perguntando-lhe se ela estava bem. A menina sorriu lindamente, exibindo
encantadoras covinhas em seu rosto, e disse que não havia sido nada, só rasgara
a barra de seu vestido. Em seguida, Pierre Leblanc apanhou as últimas frutas do
chão.
- Qual é o seu nome?
- Joana. Vim à feira para vender estas laranjas...
- Eu me chamo Pierre. Deixe-me carregar o cesto...
- Não tem necessidade, já me ajudou bastante. Agora preciso ir, adeus...
- Espere... seu braço está sangrando!
Era verdade. Havia uma considerável mancha de sangue empapando a
manga de sua blusa. Joana a arregaçou até acima do cotovelo e viu que ali se
encontrava um belo arranhão. Ao contemplar a pele fresca da menina, Pierre
sentiu um fogo lhe incendiando as entranhas e seu coração acelerou-se deveras.
Era um braço admirável, muito branco, muito macio, com a quantidade exata de
carnes, como se tivesse sido modelado por um escultor habilidoso.
- Precisamos estancar o sangue!
Ele rasgou um pedaço de suas próprias vestes em faixas estreitas e cobriu o
ferimento. Joana gostou de sentir as mãos viris do rapaz roçando-lhe o braço
delicado. Nunca homem algum lhe tocava a pele com dedos quentes como
aqueles, de maneira que ela ficou um tanto perturbada, enrubescendo. Pierre
Leblanc percebeu que a menina corara de repente e disse sorrindo:
- Isso vai ajudar!
- Nem sei como lhe agradecer todo este cuidado...
- Deixe-me acompanhá-la mais um pouco...
Joana também sorriu, consentindo, pois desejava exatamente isto. Os seus
olhos verdes eram claros como as folhas mais frescas dos campos e, naquele
momento, cintilavam de felicidade. Tinha a pele muito alva, o rosto bem
desenhado e meigo, o queixo pequenino. Trazia os cabelos compridos presos em
uma única trança, amarela como trigo tostado. Porém, o que mais agradou ao
rapaz foi a sua maneira delicada de ser, algo entre timidez e candura.
Pierre Leblanc apanhou o cesto de laranjas e os dois caminharam até a
barraca de um vendedor de frutas. O homem não se mostrou muito interessado
no negócio; porém, quando Joana disse quanto desejava por elas, o comerciante
pagou sem regatear, pois tinha certeza de que venderia tudo naquele mesmo dia
com um bom lucro. Durante a manhã e parte da tarde, os dois jovens estiveram
juntos, passeando pela feira. Divertiram-se com os espetáculos dos artistas
populares, riram muito das brincadeiras de um macaquinho amestrado e
emocionaram-se com poemas de amor que um jogral declamou para eles. Após
almoçarem algumas frutas, os dois sentaram-se sobre uma pedra e
permaneceram conversando a respeito de tudo e de nada ao mesmo tempo,
completamente embevecidos. O rapaz colheu uma rosa, tirou-lhe os espinhos e a
pôs nos cabelos da menina, que adorou o mimo. Ficara ainda mais bonita com
aquele enfeite lhe ornando a cabeça, o qual realçou bastante as suas graças
naturais de camponesa. Quando a tarde já começava a cair, Joana deu-se conta
de que precisava voltar para casa. Sem nenhuma explicação, levantou-se um
tanto aflita e disse:
- Tenho que ir embora! Adeus...
- Espere! Deixe-me acompanhá-la...
- Não!
- Vamos nos ver de novo?
- Não sei... adeus...
- Mas onde você mora, Joana?
A menina afastou-se com pressa. A alguma distância do rapaz, deteve seus
passos e gritou:
- Perto do rio...
Pierre Leblanc permaneceu sem entender nada. Pouco depois, retornou para
sua cabana atordoado, esquecendo-se até mesmo de comprar os pergaminhos.
Durante os dias seguintes, não conseguiu tirar Joana de sua cabeça. Ela lhe
aparecia de noite em sonhos no interior das igrejas, em celeiros, nos campos
desertos, em sua própria choupana, e trocavam tantos carinhos, que o rapaz
sempre acordava suado e febril. Em todo lugar, imaginava ver a menina nos
traços de outra mulher. Perdeu a conta de quantas vezes subiu e desceu o rio,
vasculhando as casas, na esperança de encontrar a amada. Chegou a pensar que
tudo não passara de um sonho, de uma ilusão, de um feitiço, pois ninguém sabia
dizer coisa alguma a respeito dela. Mas uma tarde, enquanto cavalgava junto às
margens do rio, entrou numa trilha deserta por onde nunca passara, como se
tivesse ouvido o demônio cochichando em seus ouvidos para ele tomar aquele
caminho. Em menos de cinco minutos, avistou uma mulher cortando lenha
diante de uma velha cabana. Dominado pela curiosidade, Pierre Leblanc foi se
aproximando até que seus olhos compreenderam, cheios de surpresa e alegria:
era Joana!
O rapaz seguiu até onde a moça se achava e notou que ela trazia uma rosa
presa aos cabelos. Sentiu um arrepio ao imaginar que poderia ser a mesma
daquela tarde inesquecível, quando os dois haviam se conhecido, mas deitou fora
o pensamento, pois lhe pareceu por demais macabro. Ao ver Pierre Leblanc em
seu cavalo negro, Joana deixou cair o machado em virtude do susto repentino.
Seu rosto iluminou-se feito uma bateria de fogos explodindo em noite de festa. O
rapaz apeou de sua montaria e dirigiu-se afoito para abraçar a amada, certo de
que este também era o desejo dela, mas a jovem recuou. Com lágrimas a lhe
marejar os olhos, a garota disse:
- Oh, Pierre, não podemos...
- Por quê?
Então, Joana lhe revelou um segredo extraordinário: jamais poderia amar
homem algum nesta vida, a não ser Jesus. Ela havia nascido com uma grave
enfermidade e ninguém acreditava que fosse sobreviver. Desesperado, seu pai
fez uma promessa a Nossa Senhora, comprometendo-se a entregar a filha para
viver em um convento, quando estivesse em idade apropriada, caso a menina se
salvasse. Milagrosamente, a pequena recuperou a saúde e cresceu sadia, sem
nunca mais ter adoecido. Ao ouvir aquela história, Pierre tentou convencê-la de
todo jeito que existiam muitas maneiras de servir a Deus. Era preferível ser uma
boa mãe de família a uma freira relapsa. Mas Joana não pensava assim. Ela ainda
não tinha se unido às freiras porque, primeiro sua mãe, em seguida seu pai,
haviam adoecido e acabaram por falecer, de maneira que a garota precisou
cuidar deles. Não cumprir a promessa de seu pai, equivaleria a trair o bom velho
que agora, ao lado de sua esposa, descansava numa sepultura que a garota tinha
escavado embaixo do velho carvalho, pois ela não tinha dinheiro para pagar o
padre por um punhado de terra sagrada no adro da igreja. Seu destino era o
convento e nada mais podia ser feito.
Foi com o peito apertado, que a menina pediu a Pierre Leblanc ir embora e
nunca mais voltar. Ela abaixou-se distraída para recolher a lenha empilhada num
canto do jardim, não só porque imaginava que o trabalho poderia aplacar aquela
dor intolerável em sua alma, como também, dessa forma, podia melhor esconder
suas lágrimas. De repente, o rapaz arregalou os olhos aterrorizados, tomou o
machado entre seus dedos e desferiu um golpe violento na direção dela. Joana
tentou se proteger como pôde, imaginando que seria partida ao meio, mas a
machadada não se destinava à jovem. Uma cobra surgira dentre a lenha no exato
momento em que ela abaixara para apanhar as achas e por uma fração de
segundo não foi mortalmente picada. Pierre Leblanc lhe salvara a vida,
arrebentando a cabeça da serpente com uma pancada certeira. Joana ficara tão
nervosa, que se abraçou ao rapaz, encharcando-lhe os ombros com suas lágrimas
agradecidas, enquanto a cobra ainda se contorcia na poeira da terra.
Para acalmar a garota, Pierre Leblanc a conduziu ao interior da cabana e
resolveu lhe fazer uma laranjada. Joana sentou-se em sua cama de palha e
permaneceu observando o rapaz espremer algumas frutas dentro de uma jarra.
Ao terminar a tarefa, ele tomou assento junto da amada e lhe deu o refresco, que
estava delicioso. Enquanto a moça bebia, Pierre colocou as suas mãos quentes
sobre as dela, como se quisesse ajudá-la a segurar o copo de barro. A jovem
estremeceu ao sentir aquele toque másculo e riu, deixando um fiozinho de
laranjada escorrer pelo canto de sua boca. Os dois se entreolharam por algum
tempo, até que o rapaz enxugou com sua palma a bebida melada no rosto e
pescoço da menina. Ela apanhou a mão de Pierre Leblanc e pôs-se a lhe lamber
os dedos lambuzados com suco de laranja. Depois, trocaram beijos e carícias até
o sol raiar no dia seguinte.
Por mais de um ano, não houve um único dia em que Pierre Leblanc
deixara de vir à choupana de Joana de la Rose, pois ela desistira de ir ao
convento. Tinham decidido se casar na manhã de Natal de 1306 e só não
passaram a viver juntos desde a primeira noite de amor, porque o rapaz temia
que Joana ficasse malfalada na vizinhança. Sonhavam ter muitos filhos e filhas,
uma das quais seguiria para a vida monástica em seu lugar, a fim de não infringir
por completo a promessa do pai. Porém, o destino é um ceifeiro implacável que
sega com venda nos olhos...
Havia em Paris uma mulher de nome Blanche Aspilazète, que se apaixonara
furiosamente por Pierre Leblanc. Morava do outro lado do rio, numa cabana
sinistra no meio da floresta, onde ninguém se arriscava a pisar após ter
escurecido. Segundo diziam, ela tinha parte com o demônio e, não só praticava
feitiçaria e magia negra, como também se transformava de madrugada em
serpente para beber o leite dos seios das moças. Quando soube que seu amado se
casaria com uma camponesa na manhã de Natal, Blanche Aspilazète desesperou-
se, invocando as forças malignas para impedir aquela união. Durante sete dias e
sete noites, ela não pôs os pés fora de sua cabana, misturando poções e
unguentos mágicos, recitando fórmulas diabólicas, preparando um feitiço
infalível. Tão logo o terminou, dirigiu-se a um brejo localizado nos arredores de
seu casebre e apanhou o maior sapo que conseguiu achar. Em seguida, meteu-o
ainda vivo dentro de um caldeirão de ferro e o ferveu junto daquela poção
mefítica.
No outro dia, Blanche Aspilazète vestiu-se com uns trapos andrajosos e
pintou os cabelos de branco com farinha úmida, pois queria parecer uma velha
carente. Para seu feitiço dar certo, precisava conseguir um objeto pessoal de
Joana ou alguma peça de sua indumentária. Disfarçada de mendicante, a bruxa
bateu na cabana da jovem, implorando por um prato de comida. A boa Joana de
la Rose apiedou-se da desgraçada, convidou-a para entrar e lhe deu um pouco de
sopa. Enquanto a feiticeira comia, a menina ouviu seu namorado chegando a
cavalo e foi ao encontro dele no jardim. Ao ficar sozinha na choupana por um
instante, Blanche Aspilazète aproveitou para roubar o lenço que Joana estava
usando sobre os cabelos e que ela jogara na cama antes de sair. Escondeu-o junto
aos seios e partiu imediatamente, sem agradecer ou dar qualquer explicação.
Uma semana depois, Blanche Aspilazète voltou à cabana de Joana de la
Rose, agora com sua aparência normal. Quando a menina abriu a porta, a bruxa
foi logo perguntando:
- Não me reconhece?
Joana assustou-se ao ver aquela mulher ali, pois conhecia a sua fama de
feiticeira. Procurando não demonstrar qualquer sinal de nervosismo, indagou:
- O que deseja?
- Vim apenas para lhe dizer que você não vai se casar com Pierre Leblanc.
A menina encheu-se de cólera, arregalando os olhos sem compreender o
motivo daquela sentença implacável.
- Por que não?
- Porque você vai morrer no dia de Natal...
E riu de maneira macabra.
A respiração de Joana tornou-se ofegante, suas mãos tremiam deveras e a
vontade da menina era escorraçar a megera dali a vassouradas. Porém, teve
prudência suficiente para conter o seu ódio e apenas disse:
- Está louca?
- Vejo que ainda não me reconheceu. Sou Blanche Aspilazète, a feiticeira,
como costumam se referir a mim, e não gosto de você, pois está com algo que
me pertence...
- Louca, louca! Completamente louca!
- Está com o homem que eu amo, mas não vai ficar com ele, pode ter
certeza disso. Não deu falta de nada... por exemplo, um lenço...
- Foi você quem me roubou? Sua ladra! Deviam queimá-la, como estão
fazendo com tantas da sua laia!
- Meça as palavras, queridinha... senão lhe transformo numa taturana e os
pássaros a comerão antes mesmo do Natal! Não roubei nada, apenas peguei
emprestado. Tanto é verdade, que já lhe devolvi. Enterrei o lenço no seu quintal,
envolto num sapo. Este trabalho não falha nunca, pode ir preparando a sua
cova... você morrerá no dia de Natal, no dia de seu casamento...
E deu outra gargalhada, ainda mais macabra. Depois, virou as costas e
partiu, tendo a certeza de que havia envenenado o pensamento da menina. Em
seu íntimo, Joana acreditara em cada palavra da bruxa, ficando bastante
transtornada. À tarde, Pierre Leblanc veio visitá-la como costumava fazer e
encontrou a namorada chorando em sua cama, abatidíssima. Ela lhe contou tudo
o que tinha acontecido e o rapaz tentou animá-la de todas as maneiras, mas foi
em vão. No fundo, ele também acreditava no poder da magia negra e inutilmente
procurava se convencer do contrário.
No dia seguinte, logo pela manhã, Pierre Leblanc pôs-se a cavar em torno
da choupana da amada para descobrir o maldito sapo. Imaginava que, ao
desenterrá-lo, poderia quebrar o seu encanto. Ao cabo do terceiro dia de
escavação, achou um lenço todo sujo de terra, embrulhando algo parecido com
um pedaço de carne. Pierre gritou o nome de Joana, que saiu de seu casebre para
atender o namorado. Ao desenrolarem o lenço, depararam-se com um sapo
enorme já meio seco e com a boca costurada. O rapaz apanhou seu punhal,
cortou a fina corda ligando os beiços do bicho e retirou lá de dentro um pedaço
de pergaminho, onde se lia o nome de Joana. Embaixo dele, havia também uma
cruz e a data do Natal daquele ano, provavelmente indicando o óbito da menina.
A descoberta do sapo enterrado no jardim foi a pior coisa que poderia ter
acontecido, pois a jovem passou a acreditar ainda mais no feitiço. Ela ficara
muito abalada, teve um mal-estar súbito e desmaiou no quintal. Pierre a recolheu
nos braços, estranhando a temperatura de seu corpo, frio como a lâmina de uma
espada. Após colocar a moça na cama, o rapaz aproximou uma botija de vinagre
de suas narinas e ela recobrou os sentidos. Porém, ao regressar à cabana na
manhã seguinte, Pierre Leblanc encontrou Joana triste e, no outro dia, ainda mais
triste. Por fim, a menina caiu doente e não mais se ergueu da cama. Aflito, o
rapaz fez de tudo para lhe salvar a vida; todavia, ela não reagiu. Preparou-lhe
infusões com ervas e trouxe-lhe os melhores médicos, mas nenhum deles foi
capaz de lhe descobrir o mal, pois o problema estava em sua mente e não em seu
corpo.
Na véspera de Natal, Joana de la Rose achava-se em estado crítico e o moço
resolveu passar a noite na cabana da jovem. Não se lembrava de uma madrugada
tão fria quanto aquela em que ficou acordado junto à amada, segurando-lhe a
mão. De manhã, um padre veio rezar pela alma da infeliz e Pierre pediu a ele que
os casasse, como era vontade de ambos. O desejo foi atendido, embora não
houvesse mais qualquer sentido para isso, pois Joana estava inconsciente e nunca
mais tornaria a abrir seus olhos. Pouco depois do almoço, o rapaz apanhou-lhe as
mãos hirtas, percebendo não mais existir sinais de vida em seu corpo. Crivado
por uma dor macerante, Pierre Leblanc ajoelhou-se em frente ao cadáver da
única mulher que amara em toda sua existência e se pôs a chorar
estrepitosamente. Estava acabado.

Era o décimo segundo dia de outubro, ano da graça de 1307, uma noite tão
fria quanto aquela véspera de Natal, em que Pierre Leblanc estivera na cabana da
amada com o coração angustiado, pois nada podia fazer para lhe salvar a vida. A
vela que Gilles de Sens, o gentil, acendera horas atrás já havia derretido, quando
alguns cavaleiros do Templo vieram buscar o postulante e o levaram até outra
sala, iluminada por inúmeras tochas. Muitos templários encontravam-se naquele
recinto para acompanhar a cerimônia de iniciação do novo recruta, que
demonstrava um grande desejo em pertencer à Ordem. Pouco antes dele ter sido
introduzido na sala, foi perguntado a todos se alguém era contra o ingresso do
noviço. Não houve qualquer objeção e a assembleia pronunciou em coro as
palavras de costume:
- Mandai-o vir, por Deus!
Pierre Leblanc foi conduzido ao interior do recinto até o local onde estava
Gilles de Sens, que ocupava as funções do grão-mestre Jacques de Molay na
ausência deste. Após repetir as regras do Templo, ele fez ao postulante diversas
perguntas de praxe:
- Tens esposa ou família? Tens alguma doença? Tens dívidas que estás
impossibilitado de saldar? Deves vassalagem a algum outro senhor? Subornaste
alguém para ingressar na Ordem? Já foste excomungado ou estás sujeito à
excomunhão?
Tendo respondido todas as perguntas de maneira negativa, Pierre Leblanc se
ajoelhou diante da assembléia e disse:
- Senhores, vim perante Deus, perante vós e perante os irmãos, suplicar-vos
em nome do Pai e de Nossa Senhora, que me acolhais na vossa companhia e nas
graças desta Casa, pois é meu desejo para todo o sempre ser escravo de Deus, de
Nossa Senhora e desta Ordem.
Tão logo explicou ao jovem que a vida de um cavaleiro templário era
extremamente árdua e ele não seria mais senhor de sua própria vontade, devendo
renunciar aos prazeres terrenos para se dedicar às causas de Deus, Gilles de
Sens, o gentil, indagou:
- Doce irmão, suportarás tanta dureza?
O rapaz respondeu que estava pronto. Em seguida, ajudaram-no a levantar e
o conduziram até outra sala, pois a assembleia seria consultada a fim de emitir
seu parecer. Todos concordaram que Pierre Leblanc demonstrara as virtudes
necessárias para se tornar um cavaleiro templário e ninguém contestou a sua
admissão. Quando o trouxeram de volta, Gilles de Sens disse-lhe:
- Doce irmão, prometes a Deus e a Nossa Senhora que, durante todos os
dias de tua vida, obedecerás ao grão-mestre do Templo e às suas regras?
- Prometo!
A assistência inteira passou a rezar, enquanto o capelão agradecia ao
Espírito Santo. Pierre Leblanc fez votos de obediência, castidade e pobreza,
conforme determinavam os preceitos templários. Por fim, Gilles de Sens, o
gentil, colocou sobre os ombros do rapaz o manto branco da Ordem e deu-lhe
um beijo na boca, o beijo da paz, pois esse era o costume. Antes da cerimônia
terminar, um dos monges recitou um salmo:

“Como é bom, como é agradável vivermos todos juntos feito irmãos.”

Jacques de Molay encontrava-se ausente na cerimônia de iniciação de


Pierre Leblanc, pois tinha ido ao enterro de Catarina de Courtenay, esposa de
Carlos de Valois, irmão do rei da França, Felipe IV, dito o belo. Apesar de ser
considerado extremamente católico, este monarca era rancoroso e vingativo. Ele
havia ascendido ao trono francês em 1285, após a morte de seu pai, Felipe III, o
audaz, que lutara contra Aragão e Castela pela posse de Navarra. Alto e bonito,
de pele muito clara e cabelos aloirados, Felipe IV casou-se com uma amiga de
infância, Joana de Navarra, herdeira desse reino. Quando ela faleceu, o soberano
da França ficou bastante abalado e nunca mais voltou a se casar. Segundo o
bispo de Pamiers, Bernardo Saisset, Felipe era “mais bonito do que qualquer
outro homem no mundo”, mas tinha a cabeça oca: “ele nada sabia, exceto
encarar os homens como uma coruja, a qual, embora seja bonita de se
contemplar, sob outros aspectos é um pássaro inútil”.
Felipe IV achava-se muito endividado por causa das guerras contra a
Inglaterra e Flandres. Só para a Ordem do Templo, o rei devia cerca de
quinhentas mil libras e duzentos mil florins, uma quantia fabulosa. Como
desejava arranjar dinheiro de qualquer forma, aumentou o quanto pôde os
impostos e as obrigações feudais, gerando imenso descontentamento entre seus
súditos. Porém, isso não se mostrou suficiente e Felipe IV resolveu extorquir as
minorias impopulares. As primeiras vítimas foram os mercadores lombardos que
moravam em Paris. Os seus bens passaram a ser expropriados através de multas,
impostos e confiscos, culminando com a expulsão deles do território francês.
Pouco tempo depois, não tiveram melhor sorte os judeus, os quais também foram
banidos da França, após terem todas as suas posses confiscadas. Ainda assim, os
cofres reais careciam de recursos e Felipe IV precisou tomar uma medida
drástica, desvalorizando a moeda em dois terços. Isto fez com que os parisienses
se vissem empobrecidos de tal modo, que se rebelaram contra o rei, provocando
inúmeros distúrbios e quebra-quebra por toda a cidade. Felipe IV foi obrigado a
fugir, escondendo-se numa fortaleza dos templários. Nesta ocasião, ele de fato
tomou conhecimento das imensas riquezas dos Pobres Cavaleiros de Cristo e
pôs-se a refletir como poderia se apropriar daquela fortuna...
Aconselhado por seus ministros, Felipe IV decidiu entrar para o Templo,
pois desejava meter suas mãos naquele imenso tesouro. Porém, os cavaleiros
sabiam que o rei era muito ganancioso, perceberam-lhe a intenção e rejeitaram a
sua a candidatura. Ora, eles simplesmente haviam proibido o ingresso do
soberano francês, um dos homens mais poderosos de toda a Europa! Esta recusa
humilhou Felipe IV, o qual ficou furioso com a Ordem e, a partir daí, resolveu
destruí-la por completo.
Como os templários deviam obediência apenas ao papa e a mais ninguém, o
monarca francês precisaria do apoio da igreja para conseguir seu intento. Ele
pressionou o papa Bonifácio VIII de todas as maneiras, exigindo que este
punisse os Pobres Cavaleiros de Cristo. Mas Bonifácio não atendeu a seus
apelos, chegando mesmo a recriminá-lo em público por ele comportar-se de
modo tão pouco digno a um rei. Felipe IV enfureceu-se com a reprimenda,
mandou queimar a bula papal e prender Bonifácio VIII, pois em sua opinião não
passava de um herege, um sodomita que fizera pacto com o demônio para
ascender ao trono de São Pedro! Imediatamente, o papa excomungou o rei dos
franceses, que enviou seus guardas ao palácio da pequena cidade de Anagni a
fim de o trazer preso a Paris. Bonifácio VIII foi defendido pelos cavaleiros
templários, os quais estavam dispostos a morrer para salvar a vida do papa. Em
pouco tempo, a notícia espalhou-se pela cidade e toda a população saiu às ruas
em defesa de seu líder religioso.
Após muita confusão, os guardas de Felipe IV foram expulsos e Bonifácio
VIII conseguiu manter-se em seu trono, mas não por muito tempo. Cerca de um
mês depois, ele morreria de desgosto. Seu sucessor, Bento XI, fora envenenado
em alguns meses, de modo que o posto ficara vago outra vez. Então, Felipe IV
decidiu usar toda a sua influência para eleger o novo papa. Ele propôs um acordo
ao arcebispo de Bordéus, Beltrão de Got. O rei francês apoiaria a sua
candidatura e, em troca, o futuro pontífice se comprometeria a destruir a Ordem
dos Templários. Assim, Beltrão de Got foi eleito como sucessor de São Pedro,
tomando o nome de Clemente V.
Ao entardecer do dia doze de outubro de 1307, Jacques de Molay
encontrava-se no funeral da cunhada de Felipe IV e foi um dos que ajudou a
carregar o caixão de Catarina de Courtenay até a igreja. A tragédia havia
comovido a corte e todos estavam bastante consternados pelo desfecho repentino
daquela infelicidade palaciana. O próprio papa, Clemente V, fizera questão de vir
pessoalmente para encomendar a Deus a alma de tão boa católica e improvisara
um sermão patético na catedral de Paris, afirmando que sentia perfumes de
santidade exalar do cadáver de Catarina...
Durante toda a noite, a morta seria velada por seus amigos e familiares na
igreja, pois o sepultamento fora marcado para a tarde do dia seguinte. Já havia
escurecido, quando Jacques de Molay abraçou Carlos de Valois, o marido
inconsolável, o qual estava prostrado com a tragédia. Tão logo disse algumas
palavras de conforto, o grão-mestre do Templo resolveu levar seus pêsames, em
nome de toda a Ordem, ao rei da França. Como não o achou na nave principal,
pôs-se a procurá-lo pelas diversas saletas e oratórios existentes em Notre-Dame.
Por algum tempo, vasculhou a igreja inteira em busca do rei francês, que parecia
ter evaporado misteriosamente. Enfim, Jacques de Molay ouviu a voz de Felipe
IV vindo de uma das salas laterais da catedral. Ele conversava com Guilherme
de Nogaret, um de seus execráveis ministros, dando a impressão de que os dois
haviam se refugiado naquele recinto solitário para poderem conspirar mais à
vontade. Ao ouvir o seu nome sendo pronunciado, o grão-mestre escondeu-se
atrás de uma coluna para escutar o que tramavam. O rei permanecia sentado em
um banco de madeira, enquanto seu ministro mantinha-se de pé, esfregando os
dedos.
- Está decidido, disse Nogaret. Não podemos perder mais tempo!
- Não vejo a hora de botar minhas mãos no tesouro dos templários -
replicou o rei com um brilho lascivo nos olhos.
- Amanhã, logo cedo, mandarei a guarda real invadir o Templo de Paris e
confiscar os bens da Ordem! Pode ter certeza, meu amigo, eles pagarão caro por
seus crimes!
- Além disso, exijo a prisão de todos! Quero o fim dessa confraria maldita,
que tanto mal tem causado à França.
Ao ouvir aquelas palavras, Jacques de Molay sentiu uma dor profunda e um
desespero extremo. No mesmo instante, procurou alguns templários que se
encontravam montados em seus cavalos na entrada da igreja.
- Voltem já ao Templo e digam para Gilles de Sens levar o tesouro da
Ordem, os livros e todos os documentos ao porto de La Rochelle, onde se acham
atracadas diversas embarcações. Esse rei iníquo decidiu apoderar-se de tudo,
prender os templários e destruir a nossa irmandade. Chegando lá, mandem avisar
os cavaleiros da Europa inteira para que procedam da mesma forma. Os navios
precisam partir de La Rochelle com urgência! Matem de fadiga quantos cavalos
forem necessários, mas esta notícia tem de chegar a todas as fortalezas o mais
rápido possível. Assim que puder, estarei de volta para dizer onde as
embarcações devem atracar. Agora vão! Que Deus tenha piedade de nós!
Pierre Leblanc acabara de receber o manto branco de cavaleiro, no
momento em que aquela trágica notícia chegou ao Templo de Paris, provocando
terrível confusão e desespero em todos. Ao certificar-se da calamidade, Gilles de
Sens mandou alguns homens partirem imediatamente a fim de avisarem as
fortalezas das cidades vizinhas, pedindo que a informação fosse repassada aos
demais núcleos templários o mais rápido possível. Em seguida, começaram a
levar os livros, documentos e todo tesouro do Templo de Paris a um pátio
interno, onde foram empilhados de forma caótica. Qualquer coisa que pudesse
servir para facilitar o transporte naquela fuga ensandecida foi usada, como
cordas velhas e panos grosseiros. Havia ali inúmeros cestos, dentro dos quais se
entulhou parte dos livros e outros pergaminhos. Quase toda a fortuna da Ordem
era constituída por moedas de ouro, guardadas em arcas de madeira, construídas
especialmente para serem carregadas por dois homens. Quando tudo já estava no
pátio, Gilles de Sens decidiu seguir um plano traçado com anos de antecedência,
ou seja, levar todos os bens do Templo através de uma passagem secreta
existente no fundo do pátio, que se conectava aos esgotos de Paris. Décadas
atrás, nos arredores da cidade, eles tinham construído uma cocheira discreta que
dava acesso aos esgotos da cidade, por onde poderiam conduzir os tesouros da
ordem sem despertar a curiosidade de ninguém. De lá, seguiriam em carroças ao
porto de La Rochelle, onde permanecia atracada a frota templária.
Junto de um jovem cavaleiro, Pierre Leblanc foi incumbido pelo transporte
de uma das arcas do tesouro. Ela pareceu tão pesada aos moços, pois se achava
repleta de moedas, que os dois se julgaram incapazes de empreender aquela
tarefa. Porém, estavam determinados a salvar a Ordem a qualquer preço e
dispostos a morrer por ela, se preciso fosse. Eles atravessaram o pátio e
introduziram-se na passagem secreta, que os levaria pelos esgotos. A noite
apresentava-se gelada demais e bastante escura, o que ajudou os templários, pois
não se via pessoa alguma pelas ruas. Ao entrar na galeria, Pierre Leblanc sentiu
os seus sapatos encharcarem-se na água imunda e teve ânsias de vômito em
virtude daquele cheiro nauseabundo de cloaca. Estavam no intestino da cidade,
um mundo subterrâneo habitado por ratos enormes, por uma infinidade de
baratas e outras pragas repugnantes. Alguns cavaleiros mais idosos levavam
archotes para iluminar os caminhos dentro do esgoto, mas iam tão distantes e
separados, que a escuridão era tremenda e muitos deles seguiam praticamente às
cegas, apenas acompanhando a fila. Além disso, era como se não existisse ar
suficiente para todos dentro da galeria e mais de um homem acabou desmaiando
durante a jornada. A certa altura, o próprio Pierre Leblanc deixou cair a arca
naquela água mefítica, pois não pôde suportar o peso transportado. O baú abriu-
se com a queda e uma infinidade de moedas de ouro espalhou-se pelo esgoto.
Desesperado, o rapaz tentou recuperar o dinheiro, enfiando as mãos naquela
imundície, onde boiava todo tipo de detrito fecal. Porém, isto interrompeu o
andamento da fila e logo ordenaram que ele seguisse em frente, deixando para
trás parte das moedas, pois o mais importante era chegar o quanto antes a La
Rochelle.
Só saíram do esgoto, quando já se encontravam fora dos limites da cidade,
perto das margens do Sena. Era um local ermo, rodeado de mato, onde se via
apenas uma ou outra cabana perdida à beira da estrada. Mesmo assim, os
templários procuravam transportar os seus bens da maneira mais silenciosa
possível, tanto que se podia ouvir o cricri ardido dos grilos e o chirriar insone
das corujas.
Alguns cavaleiros tinham vindo pelas ruas escuras e conseguiram atravessar
as muralhas da cidade através do postigo, um pequenino portão lateral, sem
chamar a atenção dos guardas, pois a ordem de prisão aos templários ainda não
havia sido dada. Sabiam que àquela hora da madrugada, a portcullis, a grande
porta de ferro com lanças nas pontas estaria fechada, bem como se encontraria
suspensa a ponte levadiça de madeira.
Naquele local discreto e isolado em que os templários possuíam sua
cocheira, eles aguardaram pacientemente a chegada de seus companheiros que
vinham pelos esgotos. Ali, os cavaleiros do templo criavam grande número de
cavalos e bois, além de possuírem inúmeras carroças, que serviram para
transportar todo o tesouro, os livros e os documentos da Ordem. À medida que
os bens eram retirados do esgoto, eles os iam acondicionando dentro delas e
cobrindo tudo com feno. Não gastaram muito tempo nisso. Depois, combinaram
seguir juntos de madrugada, pois era mais seguro; ao amanhecer, porém,
deveriam se separar a fim de não atrair tanta atenção. Certamente, levariam
alguns dias para chegar a La Rochelle, que ficava a uma boa distância de Paris.
Durante toda a noite, os templários não cessaram de caminhar um único
minuto. Ao amanhecer, eles separaram-se em pequenos grupos, distanciando-se
uns dos outros. Pierre Leblanc e mais cinco homens foram incumbidos de
conduzir uma das carroças repletas de dinheiro. Com o sol a pino, eles pararam
um instante para descansar e comer algumas frutas apanhadas na estrada. Pouco
depois, apareceu uma mulher segurando uma criança no colo e pediu se podiam
levá-la até Chartres, pois desejava ir à catedral daquela cidade a fim de pagar
uma promessa a Nossa Senhora, que lhe concedera enorme graça. Nenhum
cavaleiro viu qualquer inconveniente nisso e todos concordaram. Chartres ficava
no caminho de La Rochelle e, além disso, ninguém desconfiaria de uma
caravana com a presença de uma mulher mais seu filho. Pierre Leblanc achou
que ela lembrava um pouco os traços de Joana de la Rose, sua desditosa amada,
e teve vontade de lhe indagar se eram parentes, mas acabou calando a pergunta,
a qual lhe pareceu tola. Dirigiu-lhe a palavra uma única vez, apenas para saber se
ouvira algo sobre a prisão dos templários; porém, a moça não soube dizer nada a
respeito.
Deixaram-na nos arredores de Chartres, pois não quiseram entrar na cidade.
Ao longo da viagem, que levou alguns dias, os cavaleiros não tiveram quase
nenhum problema e todos cumpriram brilhantemente a tarefa incumbida a eles,
ou seja, conduzir em segurança os bens do Templo a La Rochelle. Depois disso,
os monges receberam ordem para desaparecer, passar algum tempo escondidos,
se possível longe da França, pois sabiam que Felipe IV iria varrer o reino de
ponta a ponta em busca de seus desafetos.
Ao chegar ao porto de La Rochelle, contemplando aquele oceano infinito
diante de seus olhos, Pierre Leblanc experimentou uma estranha sensação de
liberdade que jamais saberia explicar. Ali estavam os navios templários, imensos
como monstros mitológicos, aguardando o momento da partida. Visto de longe,
o porto parecia um autêntico formigueiro humano, tão grande era o número de
cavaleiros embarcando os bens do Templo. Tinham vindo de várias as partes da
Europa e, embora falassem as mais diversas línguas, estavam se entendendo
razoavelmente bem, pois havia certa ordem naquela confusão aparente. A
fortuna que aqueles homens foram amontoando no interior dos navios era
incalculável e rei algum no mundo jamais tivera em seus cofres um tesouro
semelhante. Felipe IV, o belo, sabia muito bem o que estava fazendo quando
resolveu se apoderar das riquezas dos Pobres Cavaleiros de Cristo.
Após ter embarcado os baús que trouxera, Pierre Leblanc caminhou pelo
convés até se encostar à amurada do navio. Por certo tempo, ficou observando a
cidade de La Rochelle e teve a impressão de que nunca mais tornaria a pisar as
terras daquele continente, onde passara toda sua vida. Qual seria o destino de
tamanho tesouro? Em que porto atracariam? Ninguém sabia responder tais
perguntas e talvez o próprio Jacques de Molay ainda não tivesse decidido.
Enquanto meditava sobre isso, o rapaz viu alguns templários a cavalo
aproximando-se velozmente pela estrada. Vinham num galope tão célere, que foi
mesmo um milagre não terem atropelado ninguém pelo caminho. Apearam
diante dos navios e comunicaram de imediato as péssimas notícias: o exército do
rei estava a poucos minutos de distância de La Rochelle e tinham ordens de
prender todos os templários!
A confusão que então se verificou foi de proporções babélicas. De qualquer
maneira, os cavaleiros procuravam introduzir nos navios o que ainda restava do
tesouro e, durante o tumulto, mais de uma arca e alguns homens despencaram no
oceano. Como não havia tempo para nada, muitos documentos e livros foram
queimados a fim de não cair nas mãos dos adversários. Pouco depois, centenas
de soldados de Felipe IV chegaram ao porto, mas os navios já tinham zarpado e
eles nada puderam fazer, a não ser assistir à frota templária deslizando
mansamente sobre as ondas. O local onde atracariam seria um dos segredos mais
bem guardados na história da humanidade.

Malleus Maleficarum

Depois de ouvir a história que Celestino lhe contara sobre como a Ordem
dos templários chegou ao fim em virtude da concupiscência de um rei
ganancioso, Michael levantou-se do sofá e dirigiu-se até o outro canto da sala,
onde havia um grande aquário. O rapaz permaneceu em silêncio por um ou dois
minutos, observando os inúmeros peixinhos coloridos que nadavam ali, alheios
ao resto do mundo. Em seguida, enfiou as mãos nos bolsos de seu sobretudo e
disse:
- Esta história é muito reveladora. Agora, começo também a acreditar que
aqueles bandidos estão de fato atrás do diário de Jacques de Molay. É óbvio!
Imaginam que o grão-mestre indica o local para onde foi levada a imensa fortuna
da Ordem...
- E não indica? Perguntou Celestino.
- Claramente não! A página onde ele iria revelar este segredo foi arrancada
de propósito e há no diário apenas uns versinhos enigmáticos, os quais à
primeira vista não ajudam muito. Veja!
O moço abriu sua maleta e retirou outra vez de lá os três livros. Sentando-se
de novo no sofá, ao lado de Celestino, pôs-se a procurar a página desejada.
- Aqui está! Leia...
O velho padre retirou os óculos do bolso de sua camisa, ajeitou-os sobre o
nariz e leu o trecho em voz alta, traduzindo-o do latim:

“Nos domínios da rainha escura,


À sombra do tríplice phallus,
Repousa o tesouro templário.”

Ele meteu os óculos no bolso, esfregou os olhos com as mãos, como se
demonstrasse certo cansaço e disse:
- Não faço a menor ideia do que isto significa...
- O primeiro passo é descobrir quem é essa rainha escura. Parece claro que
o tesouro foi escondido em seu reino.
- Sim, não há dúvida. E esse tríplice phallus seria o quê? Indagou Celestino.
- Talvez uma montanha, mas é só um palpite.
- É, meu caro, não vai ser fácil desvendar este enigma.
- Preciso reler o diário com mais calma, ver se encontro alguma pista...
- Em minha opinião, você não deveria se preocupar com isso. Esse tesouro
acha-se desaparecido há mais de setecentos anos e creio que deve permanecer
onde está. O problema agora é outro: não só a sua vida corre perigo, mas a
própria humanidade...
- Então, você também pensa que podem me matar por causa dos livros?
- Infelizmente! Para ser sincero, só vejo uma solução ao seu caso. Se deseja
salvar sua vida, provar à igreja e ao mundo que você está certo e impedir o final
dos tempos, não vejo outra alternativa: encontre o demônio!
Ao ouvir aquelas palavras, Michael sentiu um arrepio lacerante
atravessando todo seu corpo, como se estivessem lhe retalhando a alma com
cacos de vidro. No fundo, tinha certeza de que deveria fazer isso mesmo. Viera
até ali para escutar este conselho de alguém mais velho, com muita experiência
de vida, pois a ideia até então lhe parecera extremamente insensata.
- E o que farei se descobrir o local onde o demônio está aprisionado?
- Deve matá-lo! Redarguiu o velho padre de maneira enérgica, encarando o
rapaz com olhos feito duas lâminas afiadas.
- E isto é possível?
- Sim, há um modo, segundo os especialistas em demonologia. Conta-se
que uma bruxa, certa feita, após ter se deitado com Satanás, perguntou-lhe se ele
era imortal como Deus. O príncipe das trevas respondeu à feiticeira que só havia
um jeito para o matar: um tiro de pistola à queima-roupa, dado no coração. A
bala precisa ser fabricada em aço, feita a partir de um crucifixo abençoado pelo
papa e lavada em água benta. Particularmente, não acredito nisso. Esta história
me parece por demais fantasiosa e o demônio jamais seria tão ingênuo de
confessar um segredo desses...
- É verdade... não se mata o diabo do mesmo jeito que lobisomens...
- Talvez a crença de como se deve proceder para eliminar lobisomens,
usando uma bala de prata, venha daí, por analogia. De qualquer forma, o
verdadeiro modo para se matar o demônio foi demonstrado por dois frades
dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger. Você já ouviu falar no Malleus
Maleficarum?
- O Martelo das Feiticeiras? Claro, inclusive já o li. Tenho um exemplar
ilustrado...
- A edição lida por você não serve em nada neste caso. Nenhuma edição
moderna serve, pois todas sofreram a censura da Inquisição. A parte mais
importante nunca foi publicada. O que hoje se conhece desse livro é apenas um
manual com técnicas para se identificar uma bruxa e fazê-las confessar seus
crimes. Veja a ironia! O Malleus Maleficarum foi escrito com a finalidade de
orientar os inquisidores em suas incansáveis perseguições às feiticeiras, mas
acabou sendo censurado pela própria Inquisição. Havia uma parte tratando
especificamente do demônio e as afirmações aí contidas eram tão terríveis, que o
livro foi proibido de ser impresso na íntegra.
- Mas como você sabe estas coisas?
- Tudo isso me foi revelado por um velho mestre que teve os originais
manuscritos do Malleus Maleficarum em suas mãos. De acordo com ele, os
frades dominicanos usaram como tinta das gravuras o sangue das próprias
bruxas torturadas de forma cruenta antes de queimarem na fogueira...
- Que história macabra!
- Talvez ele tenha exagerado um pouco, mas isso não interessa. O
importante é que nesses manuscritos se encontra a explicação de como proceder
para matar o demônio!
- Você não se lembra?
- Lembro vagamente, já faz muito tempo. Se não me engano, só se pode
matar o diabo cravando seu próprio arpéu em seu coração. Na época, quando
meu mestre me revelou estes segredos, não me interessei por eles, pois jamais
imaginei que fossem me servir algum dia. O que mais me chamou a atenção,
naquela oportunidade, foi tomar conhecimento das sete torres do demônio...
- Espere um momento! Você disse sete torres do demônio?
- Sim, por quê? Já ouviu falar a respeito?
- Li algo sobre elas no diário de Jacques de Molay... deixe-me ver...
O rapaz passou a folhear avidamente as páginas escritas pelo grão-mestre,
pois tinha certeza de que havia lido tais palavras em algum lugar. Pouco depois,
ele achou o trecho desejado e o traduziu para o amigo:

“Guilherme de Beaujeu, grão-mestre de nossa santa Ordem, que Deus o


tenha em seu divino reino, anotou em velhos pergaminhos o local exato onde os
nove cavaleiros aprisionaram o demônio sob a orientação do Papa. Porém,
sendo homem inteligente e temendo que tamanho segredo caísse em mãos
indevidas, decidiu fazer isso de modo codificado. Em cada uma das sete torres
do demônio, ele mandou pôr uma pista que, unidas, indicam o lugar onde o
príncipe das trevas se encontra preso hoje e para toda a eternidade.”

Os olhos de Michael coruscaram de excitação. Se descobrisse o que viria a


ser estas sete torres do demônio e achasse as pistas deixadas nelas pelos
templários, havia uma possibilidade real de resolver esse mistério
incomensurável e encontrar a prisão de Satanás.
- Você sabe o que são estas sete torres do demônio? Perguntou o moço já
um tanto aflito.
- São lugares místicos, vórtices de energia, supostamente em direta ligação
com o inferno; alguns dizem serem os portais das trevas, unindo o mundo dos
vivos ao mundo dos mortos... Na verdade, eram antigos locais de adoração a
Satanás, onde ele realizava as suas orgias insaciáveis...
- Mas onde fica cada uma dessas torres diabólicas?
- Infelizmente, isto não tenho como lhe dizer, Michael. O meu mestre não
me revelou os detalhes, talvez porque eu não tivesse demonstrado muito
interesse no assunto. Naquela época, achava-me ainda no seminário e o meu
maior desejo era me ordenar padre o mais rápido possível para servir à glória de
Deus. Tudo que dizia respeito ao diabo não me interessava em absoluto...
Jacques de Molay não diz onde ficam as sete torres do demônio?
- Não diz nada. Apenas escreveu uma trovinha para cada uma das torres,
como se quisesse indicar o local exato onde Guilherme de Beaujeu mandou
esconder suas pistas...
- Deixe-me dar uma olhada nestes versos, por favor.
Michael entregou o diário ao amigo, o qual leu a página indicada com certo
vagar. Após a leitura, devolveu o volume ao rapaz, que o guardou dentro de sua
pasta. Depois, fitando o velho padre com olhos desanimados, disse:
- Bem, então voltamos à estaca zero, pois a informação de que precisamos
se encontra apenas nos originais do Malleus Maleficarum. E, obviamente, jamais
teremos acesso a eles...
- Aí você se engana, meu amigo! Respondeu Celestino com um ar superior
de quem tem pleno domínio de uma situação.
- Como disse?
- Eu sei onde achar esses originais...
- O que está falando? Eles estão em alguma biblioteca, em algum museu?
Diga-me, homem, pelo amor de Deus!
- Não exatamente. Os originais do Malleus Maleficarum encontram-se à
venda em um antiquário de Londres.
- O quê? Como sabe disso?
- Descobri por acaso. Venha comigo ao meu escritório que lhe mostro.
Os dois levantaram-se e seguiram para uma pequenina sala contígua,
repleta de livros amontoados pelas estantes. Celestino ligou o computador,
sentou-se diante da tela e permaneceu aguardando até que o sistema fosse
iniciado. Em seguida, abriu a página do Ebay, digitou as palavras “Malleus
Maleficarum” e clicou em “buscar”. Uma lista com mais de cem ocorrências
apareceu. O velho padre ordenou os livros exibidos do mais barato ao mais caro
e, descendo a barra de rolamento até o fim, dirigiu-se ao último item. Era o que
procurava.
- Veja!
O rapaz aproximou o rosto do monitor para enxergar melhor e viu que de
fato os originais do Malleus Maleficarum estavam anunciados ali pela bagatela
de um milhão de libras.
- Um pouco salgado para mim! Disse Michael, gracejando.
- Mas o frete é grátis! Observou Celestino com um riso nos lábios.
- Não consta telefone ou e-mail do vendedor para entrarmos em contato?
Quem sabe ele não me deixa tirar uma cópia...
- Consta apenas a cidade, mas posso conseguir isso facilmente.
Celestino clicou em “ver outros produtos deste vendedor”. Quando a lista
foi exibida, ele a ordenou outra vez do item mais barato ao mais caro. O artigo
mais em conta era um livro de um escritor brasileiro, intitulado “Histórias do
Fim do Mundo”, o qual estava sendo vendido por uma libra. Michael achou o
título apropriado e disse que aquilo podia até ser um bom presságio. O velho
padre resolveu comprar o produto para obter o e-mail do vendedor e lhe enviou
uma mensagem solicitando o endereço da loja, pois desejava retirar a mercadoria
no local. Depois, desligou o computador e sugeriu:
- Durma esta noite aqui, meu caro amigo. Amanhã cedo, certamente o
vendedor retornará meu e-mail e você poderá ir conversar com ele.
- Obrigado! Eu ia lhe pedir isso mesmo. Nem sei como agradecer tudo o
que tem feito por mim.
- Não há nada a agradecer! Estou à disposição para o que for preciso.
Agora, se me der licença, vou fazer minhas orações e me recolherei...
- Está certo! Ficarei aqui lendo mais um pouco o diário de Jacques de
Molay e me ajeito no sofá. Boa-noite!
- Boa-noite!
Na manhã seguinte, Michael acordou sentindo um cheiro forte de café
inundando toda a sala. Celestino havia feito um pão de torresmo que era uma
delícia com manteiga derretida, embora ele não pudesse comer muito, por causa
de seu colesterol. Após a refeição matinal, enquanto o rapaz foi tomar um banho,
o velho padre dirigiu-se ao escritório para verificar se o vendedor do Malleus
Maleficarum respondera ao seu e-mail. Por sorte, a resposta já se encontrava em
sua caixa postal e ele anotou num caderninho o endereço indicado. Pouco
depois, o telefone tocou na sala:
- Pois não?
- Quero falar com Michael...
O religioso estranhou o pedido, ficando mesmo bastante perplexo, mas foi
chamar o amigo, que acabara de sair do banho. Como se já estivessem
adivinhando notícias desagradáveis, os dois se encararam em silêncio até
Celestino dizer:
- É para você...
O rapaz apanhou o fone e proferiu com resolução:
- Quem está falando?
- Meu nome é Macrino, serei breve e direto. Queremos os livros. Você já
nos enganou uma vez; porém, isso não mais tornará a acontecer...
- Como me encontraram aqui?
- Não interessa. Saiba que estaremos atrás de você em toda parte, não há
como fugir...
- Demônios?
O sujeito deu uma risada infernal e bradou:
- Já nos chamaram de tudo quanto foi nome, menos disso. Seja como for, é
melhor nos entregar os livros de maneira amigável. Não lhe queremos mal;
todavia, pouco nos importa o modo empregado para atingir os nossos objetivos...
acho que fui bem claro... Estamos passando aí para apanhar as obras...
Ao dizer isso, o tal Macrino desligou o telefone. Michael desesperou-se,
pois teve a certeza de que estava lidando com assassinos profissionais. Como o
tinham encontrado? Não fazia a menor ideia. De qualquer forma, precisaria sair
dali o mais rápido possível. Explicou tudo a Celestino, que lhe deu o endereço
do antiquário, dizendo:
- Estarei rezando por você. Agora vá... Não se preocupe comigo, eu ficarei
bem. Adeus!
Na rua, a todo momento, Michael olhava para trás a fim de ver se não
estava sendo seguido. Ele entrou num táxi e pediu para o motorista levá-lo até o
aeroporto, pois desejava chegar a Londres o mais rápido possível. O táxi o
conduziu até Fiumicino sem qualquer problema e o rapaz teve sorte também,
porque conseguiu comprar a passagem de um turista para o próximo avião com
destino a Heathrow, agendado para partir em poucos minutos, de maneira que ele
não perdeu tempo algum para o embarque.
Após uma tranquila viagem, Michael comprou um bilhete no terminal de
Heathrow para o trem expresso até a estação de Paddington, que o levou ao
centro de Londres. Chegando à capital inglesa, o rapaz parou o primeiro táxi que
lhe cruzou o caminho e pediu para o motorista levá-lo até o endereço rabiscado
por Celestino naquele pedaço de papel. Sentiu certo arrepio ao imaginar que o
taxista poderia ser de novo Belial, mas para seu alívio era apenas um português
simpático, o qual lhe contou divertidas histórias a respeito de sua terra e sua
gente.
Quando se encontrava diante da loja de antiguidades, Michael reparou em
um detalhe espantoso, que não percebera antes, porque se achava preocupado
demais. O número do estabelecimento, afixado em letras imensas por cima da
porta, era exatamente 666. Com toda certeza, não passava de uma curiosa
coincidência, de maneira que o rapaz até achou aquilo um bom presságio.
Afinal, era esse o número da besta apocalíptica anunciada por São João.
Ao entrar na loja, uma moça veio lhe atender. Michael disse a ela que tinha
comprado um livro pela internet e preferira retirá-lo em pessoa, pois estava de
passagem pela cidade. Tão logo citou o autor e o título, a menina abriu um
sorriso encantador, indagando:
- Ah! É você que veio de Roma por causa de um livro de uma libra?
O rapaz riu daquela pergunta e respondeu de forma afirmativa. Em seguida,
alegou que já havia percorrido o mundo inteiro atrás de tal obra, sem nunca a ter
visto à venda em parte alguma. Uma autêntica raridade! A jovem pediu para
Michael aguardar um instante e desapareceu por uma porta ao fundo da loja.
Pouco depois, retornou trazendo o livro desejado, entregou-o ao rapaz e disse
gracejando:
- Eis as Histórias do Fim do Mundo. Esta raridade custa apenas uma libra,
uma pechincha. Se quiser, podemos dividir até em três vezes no cartão...
- Prefiro pagar à vista mesmo, obrigado.
- Tem mais alguma coisa?
Michael então lhe contou o seu verdadeiro interesse. Disse à vendedora ter
vindo a Londres por causa dos originais do Malleus Maleficarum, os quais
continham informações extraordinariamente importantes ao destino da
humanidade. Não possuía dinheiro para adquirir manuscritos tão raros, mas
estava disposto a pagar por uma cópia. A jovem ficou muito espantada com
aquela história e quis saber mais detalhes. O rapaz explicou-lhe meio por cima,
dizendo que os autores do Malleus Maleficarum citavam as sete torres do
demônio e, segundo acreditava, isto poderia lhe ajudar a descobrir o local onde
Satanás estava preso. A menina o observava com olhos assombrados, certamente
imaginando que ele fosse um lunático. Ao cabo de alguns segundos de silêncio,
Michael perguntou:
- Posso ver os originais?
- Agora não será possível. Os manuscritos estão trancados no cofre e eu
preciso autorização do senhor Goldenberg, o proprietário da loja, para o abrir.
Além disso, ele é o único que possui as chaves...
- Ele não se encontra?
- Não, mas voltará dentro de umas duas horas.
- Se você não se incomoda, vou esperá-lo.
- Fique à vontade.
Durante boa parte da tarde, Michael permaneceu admirando os artigos à
venda na loja, que era bastante eclética. Havia desde os tradicionais rádios
antigos, relógios carrilhões, gramofones, telas de gosto duvidoso, talheres de
prata da Era Vitoriana até objetos curiosíssimos, como uma autêntica armadura
medieval, um bizarro aparelho de tortura utilizado pela Inquisição e um
sarcófago egípcio! E livros, muitos livros dispostos pelas estantes. A certa altura,
Michael chamou a moça outra vez e pediu para ela lhe mostrar um volume, que
se achava no alto de uma prateleira, fora de seu alcance. Ao subir na escada a
fim de o apanhar, a jovem exibiu parte das coxas, deixando Michael com a
respiração alterada. Ela entregou o livro ao rapaz que, de propósito, tocou-lhe a
mão por um breve instante. Era uma mão delicada, pequenina, perfeita,
ligeiramente umedecida, como se tivesse sido borrifada por gotículas de vapor.
Feito um autêntico cavalheiro, Michael a ajudou a descer da escada, segurando
aquela mãozinha encantadora. Ao saltar o último degrau, porém, a moça sofreu
um leve desequilíbrio e foi amparada pelo rapaz, que a cingiu pela cintura,
colando seus corpos. Os dois trocaram sorrisos e olhares eloquentes, cheios de
reticências, até que Michael soltou a jovem.
- Qual é o seu nome?
- Michele de Monique. Minha família é francesa. Respondeu a garota um
tanto corada.
- Pois o meu é Michael.
Por alguns segundos, eles permaneceram em silêncio, sem encontrar
qualquer assunto para os socorrer daquela situação embaraçosa. O rapaz estava
impressionado com a beleza de Michele, que era uma morena alta, cheia de
curvas provocantes e irresistíveis. Trazia os cabelos negros, compridos, soltos
sobre uma jaqueta de couro escuro, com estampa do Hard Rock Café. O seu
rosto parecia ter sido esculpido nas formas da beleza clássica, pois apresentava
grande equilíbrio e simetria. Tinha o queixo pequenino, o nariz arrebitado e uns
olhos tão negros como a noite mais negra já vista pelos homens. Andava por
volta dos vinte e cinco anos, mas passaria facilmente por dezenove se assim
desejasse, tamanha era a jovialidade que espargia de sua alma adolescente. Um
dos seus principais encantos eram os seios túrgidos, imponentes, hipnóticos, os
quais atraíam os olhares masculinos como um poderoso ímã. Michael notou que
ela usava um delicioso perfume de maçãs verdes e teve vontade de cobrir o
pescoço da jovem com beijos, mas se conteve. Quando ia pedir que Michele lhe
mostrasse qualquer coisa, apenas para quebrar aquele silêncio angustiante, um
velho de chapéu e bengala entrou na loja.
- Oh, boa-tarde, senhor Goldenberg! Proferiu a moça um pouco aliviada.
Era o proprietário. Ao vê-lo, Michael cumprimentou-o com um ligeiro
meneio de cabeça, imaginando que ele talvez fosse o último homem da face da
terra a usar pince-nez. Vestindo uma fatiota escura, trazendo uma corrente de
prata pendurada num dos bolsos, onde provavelmente guardava um antigo
relógio, aquele velhinho magro e um tanto curvo parecia ter acabado de chegar
do século XIX, transportado através de alguma engenhoca ou máquina do tempo
escondida no porão. Um autêntico inglês, contemporâneo de Charles Dickens.
Talvez não houvesse, em toda a loja, uma peça mais curiosa do que ele próprio.
Após a apresentação de praxe, Michele disse ao senhor Goldenberg que
aquele cavalheiro o estivera esperando durante quase toda a tarde, pois desejava
pagar por uma cópia do Malleus Maleficarum. O homem estranhou o pedido e
negou-se a princípio, afirmando que isto poderia danificar as páginas dos
originais, já tão velhas e frágeis. Além do mais, a exposição à luz e ao calor da
copiadora poderia descorar a tinta do texto e das ilustrações pintadas à mão.
Michael procurou convencer o sujeito, alegando existir ali informações muito
importantes, indispensáveis ao destino da humanidade, mas preferiu não entrar
em detalhes. De maneira bastante polida, o senhor Goldenberg recusou-se a lhe
vender uma cópia, insistindo que as páginas poderiam se rasgar por qualquer
descuido, diminuindo o valor do produto. Além do mais, os manuscritos do
Malleus Maleficarum já estavam praticamente vendidos para um milionário
colecionador japonês, o qual fizera uma oferta e só aguardava a resposta do
antiquário. Como seus argumentos pareciam não surtir qualquer efeito, o rapaz
resolveu apelar para o desejo de lucro fácil, natural em todo comerciante. Tirou o
seu cartão de crédito da carteira e pediu:
- Quinhentos Euros, apenas para você me mostrar os manuscritos e eu
copiar a parte que me interessa!
Os olhos do mercador faiscaram, exibindo dois cifrões no local das retinas.
Ele esfregou as mãos de maneira aflita, mastigando sua dúvida, e respondeu:
- Não que eu não queira, meu amigo, mas se por alguma infelicidade
ocorrer qualquer acidente com os originais, meu prejuízo será incalculável...
Michael percebeu que havia tocado no ponto fraco do homem e aumentou
sua oferta:
- Nem encostarei nos manuscritos, você virará as páginas para mim. Quero
apenas copiar um pequeno trecho. Não vou expor os preciosos originais à luz ou
ao calor de uma copiadora. Oitocentos Euros!
O homem engasgou com a própria saliva e seus olhos injetaram-se para fora
das órbitas feito dois limões. Se o rapaz fosse um assaltante, certamente já o teria
mandado abrir o cofre e roubado o Malleus Maleficarum, além de outros valores
que ele ali guardava. O velho enxugou a testa suada com um lenço branco,
depois o pescoço cheio de rugas.
- Veja se entende o ponto de vista que defendo. Eu gostaria de lhe fazer este
pequeno favor, mas acontece...
Michael percebeu que o desejo do comerciante era subir o quanto pudesse o
valor da transação e decidiu blefar, alegando que não podia pagar mais.
- Mil Euros! É o limite do meu cartão de crédito!
- Venha até o meu escritório. Disse o comerciante.
Michele retirou da parede um quadro a óleo, que ficava atrás de uma
escrivaninha, e servia para esconder o cofre. Como uma espécie de ritual, o
senhor Goldenberg apanhou uma chave no chaveiro que se encontrava em um
dos bolsos internos de seu paletó, abriu uma gaveta na escrivaninha e tirou lá de
dentro outro chaveiro. Em seguida, meteu uma das chaves na fechadura e,
cautelosamente, cobriu com o seu corpo o cofre, enquanto girava o mostrador no
sentido horário e anti-horário, até concluir a combinação para abri-lo.
Tão logo o cofre se abriu, o senhor Goldenberg apanhou um calhamaço
embrulhado em couro muito antigo, amarrado por um cordão. Pôs o pacote sobre
a mesa, desfez o laço com delicadeza e disse:
- Vá com calma...
Munido de papel e caneta, Michael contemplou aquela maravilha, que
excitaria a cobiça de qualquer bibliófilo. Conforme tinham combinado, o rapaz
pediu para o antiquário ir virando as páginas escritas em latim, enquanto tentava
descobrir algo sobre as sete torres do demônio ou a maneira de matar Satanás. Já
havia transcorrido cerca de uns dez minutos desde que assim procediam, quando
a voz alterada de um dos funcionários da loja, em renhida discussão, alcançou o
escritório. Pouco depois, todos passaram a ouvir o ruído estridente de inúmeras
coisas quebrando, como vidros sendo estilhaçados e objetos impelidos ao chão.
Aflito e muito nervoso, o senhor Goldenberg deixou o escritório para verificar o
que estava acontecendo.
Chegando à frente da loja, viu ali dois homens vestindo ternos pretos e
usando óculos escuros. Um deles era alto e grosso de tronco, enquanto o outro
era baixo e atarracado. Para infortúnio do antiquário, grande parte de sua loja já
se encontrava em ruínas, pois o menor segurava nas mãos um taco de beisebol e
ia golpeando as velharias sem piedade. Um espelho emoldurado em estilo
rococó, que possuía mais de duzentos anos e supostamente pertencera a Maria
Antonieta, estava agora reduzido a caquinhos. A antiga armadura, com a qual
algum nobre cavaleiro talvez tivesse combatido os infiéis em uma cruzada,
achava-se caída no assoalho e tão destruída, que mais parecia ter sido atropelada
por um trator. Ao contemplar toda aquela calamidade, o velho comerciante quase
sofreu um infarto fulminante.
- Mas que diabos está acontecendo aqui!
Um dos homens, o maior, agarrava pela camisa e de maneira nada gentil o
funcionário da loja, o qual exibia um filete de sangue escorrendo por seu olho
direito. Quando o facínora viu o velho surgir em uma das portas, jogou o
balconista no chão e urrou:
- Onde ele está? Sabemos que veio aqui para vender o livro!
- Ele quem?
O sujeito deu um tremendo tapa no rosto do antiquário, corrigindo-lhe até o
desvio do septo nasal. Em seguida, proferiu:
- Não se faça de besta! Michael veio aqui para vender o diário de Jacques
de Molay. Ande, entregue-nos o livro e nada de mal lhe acontecerá...
- Por Deus! Juro que nunca ouvi falar sobre isso...
O velho recebeu outro tapa, mas dessa vez com menor intensidade. Michele
e Michael correram até a porta da sala parcialmente fechada e passaram a espiar
pela fresta. O ângulo de visão do local onde se achavam não era dos melhores,
mas nenhum dos dois quis atravessar o pequeno corredor que ligava o escritório
à frente do estabelecimento a fim de verificar o motivo de tamanha balbúrdia.
Para ver alguma coisa, o rapaz postou-se atrás de Michele e teve de se debruçar
sobre a menina. Gostou de sentir o seu corpo tocando de leve as tenras carnes da
jovem, cuja pele macia exalava um agradável aroma de sabonete. A sua vontade
era abraçá-la, beijá-la, cobri-la de carícias por toda a noite. Porém, ao reconhecer
Macrino e seu comparsa, imediatamente deixou de sonhar e a razão lhe voltou ao
cérebro. Puxando Michele de lado, sussurrou-lhe:
- Eu os conheço, vieram para me assassinar!
Os olhos da moça inundaram-se de terror. Com a voz trêmula, ela indagou:
- Mas por quê?
- Não lhes fiz nada, apenas estou com algo que desejam. Preciso fugir
daqui, senão serei morto!
Não havia janelas no escritório por onde Michael pudesse escapar.
Desesperado, o rapaz procurava descobrir alguma maneira de salvar sua vida,
quando Michele pediu para que ele a acompanhasse. Os dois saíram da sala com
toda cautela e entraram por uma porta lateral ali no corredor. Subiram um lance
de escada e alcançaram uma espécie de sótão, onde o senhor Goldenberg
guardava uma infinidade de tralhas, móveis velhos e antiguidades necessitando
restauração. Michael acendeu sua pequenina lanterna, iluminando aquele
ambiente escuro. Num dos cantos, deparou-se com uma velha arca e imaginou
que ela talvez fosse um bom esconderijo. Abrindo a tampa, notou que ela estava
vazia e meteu-se lá dentro, seguido por Michele. Como a arca era pequena, ela
precisou se ajeitar no colo do moço. Com cuidado, fecharam a tampa e
permaneceram no mais absoluto silêncio, sentindo o calor aconchegante dos seus
corpos abraçados.
Pouco depois, Macrino e seu comparsa chegaram ao sótão. A escuridão era
quase total e eles não enxergavam praticamente nada. Michael e Michele
ouviram os passos dos dois perto de onde estavam e se abraçaram de maneira
ainda mais forte, pois imaginavam que seriam descobertos em seu esconderijo.
Os bandidos foram tateando no escuro, derrubando objetos no chão, abrindo
armários encontrados ao acaso. Quando se achavam a menos de três metros da
arca, uma sirene de polícia foi ouvida na porta da loja e eles desceram as escadas
correndo. Michael e Michele ainda permaneceram ali por um bom tempo. Não
só temiam que os malfeitores pudessem retornar a qualquer instante, como
também desejavam prolongar aquela sensação agradável de estarem abraçados.
O rapaz então lhe contou aos sussurros todos os acontecimentos ocorridos em
sua vida nos últimos dias: como descobrira a biblioteca dos templários e achara
aqueles preciosos livros; como ficara sabendo da prisão do demônio e o motivo
pelo qual acreditava que ele estaria para ser libertado muito em breve; e como
passara a ser perseguido por fanáticos religiosos, após ter revelado seu segredo
às autoridades do Vaticano. Por fim, explicou-lhe que precisava de uma cópia do
Malleus Maleficarum, para descobrir quais eram as sete torres do demônio.
Michele ficara realmente muito impressionada com toda aquela história e
prometeu ajudar o rapaz. Ela disse-lhe que tiraria uma cópia dos manuscritos e
os dois combinaram se encontrar na noite seguinte, num restaurante ali perto.
Michael segurou as mãos da menina e, antes de se despedir, deu-lhe um beijo
agradecido no rosto. Desejava comer alguma coisa e tinha de procurar uma
pensão onde pudesse dormir. Michele abriu a porta da loja, assegurando-lhe que
os malfeitores já haviam partido. Saindo da loja, viu o senhor Goldenberg
sentado num banquinho, com os olhos baços cravados num ponto qualquer,
tentando compreender toda aquela desgraça que arruinara seu negócio. O moço
quis lhe desejar boa noite, mas achou as palavras sem propósito e partiu sem
dizer nada. Apenas quando ele já estava na calçada do quarteirão seguinte,
Michael percebeu que o proprietário da loja não tinha passado seu cartão de
crédito. Sentiu um impulso de retornar, mas pensou melhor e resolveu seguir
adiante.
Como estava muito ansioso não apenas para conseguir a cópia do Malleus
Maleficarum, mas também para se encontrar novamente com Michele, o rapaz
acabou chegando cedo ao restaurante. Pediu uma mesa discreta, ao fundo do
estabelecimento, e um vinho branco a fim de o ir degustando enquanto a moça
não aparecia. Trinta minutos depois, ela entrou no restaurante, trazendo nas mãos
um pacote.
A menina se achava ainda mais bela do que na véspera, vestindo uma calça
jeans azul clara, bastante justa em suas coxas, e a mesma jaqueta com estampa
do Hard Rock Café nas costas. A primeira coisa que fez foi entregar a cópia
encadernada em espiral do Malleus Maleficarum a Michael, o qual guardou o
pacote dentro de sua pasta. Em seguida, Michele contou-lhe ter sido despedida.
No meio de toda aquela confusão, a garota acabou levando escondido para sua
casa o precioso manuscrito e aproveitara para tirar as cópias dele pela manhã. Ao
devolver ao proprietário os originais do Malleus Maleficarum, que ela apanhara
sem autorização, o senhor Goldenberg ficou furioso. Exigiu que lhe entregasse
também a cópia e, como a moça se recusara a atender seu pedido, foi posta no
olho da rua. Não ligou a mínima, pois odiava aquele empreguinho entediante.
Depois, mudaram de assunto e conversaram a respeito de várias coisas,
sobretudo, música, séries de tv e cinema. O gosto dos dois, porém, era muito
diferente e eles não concordavam em quase nada. Michele adorava música
romântica, citando conjuntos de sua preferência, principalmente dos anos
setenta, como Abba e Carpenters. Por sua vez, Michael preferia música clássica.
A série de tv predileta da moça era Dallas, que o rapaz achava detestável.
Gostava de comédias de costumes, tipo Seinfeld e Everybody Loves Raymond.
Com relação a cinema, a discrepância entre os dois parecia ainda maior. Michele
citava entre seus filmes preferidos alguns clássicos do terror, como O Iluminado,
Drácula e O Bebê de Rosemary. Michael ficou surpreso com o gosto da menina,
pois imaginava que ela mencionaria fitas românticas, feito Titanic ou Ghost.
Quando o rapaz contou a ela que seu filme predileto era O Nome da Rosa,
Michele apenas fez um muxoxo com os lábios e exclamou:
- Não suportei ver até o fim...
Embora o gosto deles não coincidisse em música, televisão e cinema, o
jantar foi bastante agradável. Em pouco tempo, o vinho lhes subiu à cabeça e os
dois passaram a rir de qualquer bobagem. Michele falava alto, fazendo amplos
gestos com as mãos, não dando a mínima importância ao que pensariam os
outros clientes. Encantado com a jovialidade da moça, Michael desfrutava
grande prazer pela sua companhia e mal se lembrava de que poderia ter sido
assassinado na véspera.
Após o jantar, eles deixaram o restaurante e seguiram pelas margens do rio
Tâmisa, cujas águas estavam crespas em virtude da ventania. Uma grande lua no
céu enchia de esperança o coração dos namorados. Michael ficou pasmo com a
altura do Olho de Londres, uma roda-gigante colossal que reinava soberana
sobre a paisagem londrina. Como seria bom estar sentado com Michele naquele
enorme brinquedo, contemplando lá do alto a cidade extraordinária. Mas era
tarde e eles não estavam vendendo mais bilhetes. Já haviam andado cerca de
trinta minutos, quando acharam um banco vazio numa praça e resolveram
descansar um pouco. Michele sentou-se tão perto do rapaz, que o vento atirava
seus cabelos negros no rosto do companheiro. Ele sentia seu coração batendo
impetuosamente dentro do peito e teve vontade de gritar aos céus que ela era a
mulher mais linda já vista em toda sua vida. A certa altura, como a conversa
minguasse por um instante, Michael apanhou as mãos da jovem e disse:
- Não sei como lhe agradecer por tudo o que você fez por mim...
A moça devorou-lhe durante vários segundos com uns olhos enamorados e
respondeu:
- Eu sei...
Em seguida, Michele aproximou seu rosto da boca do rapaz e deu-lhe um
beijo nos lábios. Por algum tempo, os dois permaneceram trocando carícias, até
que Michael ouviu o Big Ben batendo onze horas e disse que precisava partir,
pois a pensão onde ele se hospedara ficava na periferia, num local longe dali e
talvez perigoso. Ao ouvir isso, a menina mordeu a pontinha de seu lábio inferior
e pediu:
- Por que não passa a noite no meu apartamento?
O rapaz sorriu, surpreso pelo convite, e beijou-lhe a boca com paixão, pois
foi a maneira encontrada para dizer que estava de acordo. Pouco depois,
levantaram-se do banco e seguiram abraçados até o local onde Michele morava,
um velho prédio sem elevador, infestado de ratos.
No dia seguinte, Michael despertou antes do sol raiar. Dormira muito pouco
aquela madrugada, pois se achava extremamente excitado com tudo o que estava
acontecendo em sua vida. Como não queria acordar Michele, levantou-se da
cama com todo o cuidado, após ter posto um beijo carinhoso nos cabelos
revoltos da menina. O rapaz gostou de ver as curvas dela debaixo dos lençóis e
imaginou que, naquele momento, ele era a pessoa mais feliz da face da terra.
Ainda conservava em sua pele o calor do corpo de Michele, as suas carícias, os
seus beijos... Estaria apaixonado? Não soube responder a esta pergunta e
resolveu tomar um banho frio, pois sentia um fogo ardendo nas entranhas.
Depois, abriu a geladeira, apanhou uma maçã e foi ler o Malleus Maleficarum.
Já eram nove horas da manhã, quando Michele acordou. Ela apareceu na
sala descalça, vestindo apenas a camisa de mangas compridas do rapaz, a qual
ficara no quarto sobre uma cadeira. A blusa descia até quase a metade de suas
coxas, dando-lhe uma aparência sensual e encantadora. A moça sentou-se no
colo de Michael e, após lhe dar um beijo, quis saber se ele tinha descoberto algo
interessante.
- Descobri coisas incríveis! Por exemplo, a maneira como se mata o
demônio, você acredita nisso? É exatamente conforme havia me dito um velho
padre, muito meu amigo, alguns dias atrás. Mata-se o diabo cravando-lhe o
próprio arpéu em seu coração.
- E o livro diz onde ele está preso?
- Diz nada, como eu já imaginava. Se os autores do Malleus Maleficarum
possuíam essa informação, acharam mais prudente não a revelar. Porém,
afirmam que para descobrir o cárcere de Satanás é necessário desvendar o
segredo das sete torres do demônio...
- E eles dizem em que local ficam estas torres?
- Claramente não. Mas há algumas pistas valiosas em forma de enigma.
Veja, traduzi o trecho e anotei nesta folha de caderno.
Primeira Torre

“Eleva-se a primeira torre no local onde o demônio caiu ao ser precipitado do


céu pelo chefe dos anjos. Aí, um santuário foi construído e a este consagrado.”
Segunda Torre

“Eleva-se a segunda torre no coração de Lutécia, na casa da virgem adorada


pelos homens.”
Terceira Torre

“Eleva-se a terceira torre na fortaleza dos corvos, às margens do grande rio que
atravessa a ilha.”
Quarta Torre

“Eleva-se a quarta torre sobre o túmulo de Gerion, rei de Brigantium.”


Quinta Torre

“Eleva-se a quinta torre na ilha da morte, conhecida entre os mouros como pedra
alta.”
Sexta Torre

“Eleva-se a sexta torre no centro do país dos Capetos, no grande templo da


pequena cidade.”

Sétima Torre

“Eleva-se a sétima torre no templo de todos os deuses, na cidade das sete


colinas.”

Quando o rapaz acabou de ler, Michele disse que não tinha entendido nada.
As indicações ali contidas lhe pareceram por demais confusas e sem sentido.
Michael concordou. Não seria fácil desvendar as pistas do Malleus Maleficarum,
mas redarguiu que algumas delas eram mais evidentes do que outras. Por
exemplo, a cidade das sete colinas citada na sétima torre talvez fosse Roma. E o
templo de todos os deuses certamente haveria de ser o Panteão de Agripa, pois
tal é o seu significado em grego. O terreno onde os romanos ergueram este
monumento extraordinário da antiguidade deve ter servido, em tempos
imemoriais, como sítio para adoração do diabo. A menina achou aquele
raciocínio esplêndido e exclamou:
- Então o que estamos esperando! Vamos para Roma já! Uma das pistas
codificadas pelos templários deve estar escondida em algum local no Panteão de
Agripa!
- Você disse “vamos”? Indagou o rapaz surpreso.
- Sim, meu amor, eu quero ir com você. Não tenho nada que me prenda a
Londres.
- Mas é muito perigoso! Não desejo lhe envolver nisso... Esses fanáticos
religiosos farão de tudo para se apropriar dos livros que estão em meu poder. São
loucos, assassinos... minha vida não vale nada para eles. Se vir comigo, também
a sua estará em risco. Não posso permitir tamanha loucura...
- Já estou envolvida. Além disso, quero ficar ao seu lado, não tenho mais
ninguém. Se for preciso, vou até o fim do mundo com você...
Em seguida, ela acrescentou, um pouco desconfiada:
- Ou você quer simplesmente se livrar de mim...
Os olhos da menina aguaram-se. Michael percebeu que ela o amava deveras
e agradecia a Deus pelo presente recebido. Ficou durante algum tempo
contemplando aquele rostinho angélico, ao qual nada se poderia negar. Em
seguida, beijou-a com ardor e disse:
- Tudo bem, venha comigo. Eu não seria mesmo capaz de a abandonar
depois de tudo ocorrido entre nós...
Michele sorriu agradecida e foi se vestir. Ao retornar à sala, Michael lhe
disse que era melhor não irem ainda a Roma.
- Por quê?
- Algo me diz que devemos seguir a ordem natural das torres, da primeira à
última. Talvez haja algum motivo para esta disposição, mas é só um palpite...
- Pode ser. Você conseguiu descobrir onde se localiza a primeira torre?
- Ainda não, embora eu tenha meditado bastante sobre isso.
Durante o resto da manhã, Michael permaneceu navegando na internet
através de seu notebook, procurando decifrar aquele enigma desafiador. Michele
foi lavar a roupa acumulada e depois começou a fazer o almoço. Não era uma
exímia cozinheira, mas o rapaz lhe elogiou a comida por delicadeza, uma vez
que achou as batatas salgadas e os bifes duros feito couro de búfalo. Após ter
chupado uma laranja como sobremesa, Michael disse que ia comprar algumas
roupas, pois não havia trazido nenhuma. Como estava com um pouco de dor de
cabeça, Michele preferiu não ir com ele. Tomou uma aspirina e deitou-se no
sofá, acomodando uma almofada entre as pernas. Antes do namorado sair, ela
pediu:
- Meu querido, por favor, passe na banca de jornal da esquina e traga para
mim a Revista Nacional Geográfica deste mês. Quero ver se publicaram a
matéria que uma amiga minha escreveu sobre Veneza.
- Está bem, volto logo!
Enquanto seguia pelas ruas de Londres, Michael meditava sobre a primeira
torre do demônio. Afinal, onde ela ficaria? A pista do Malleus Maleficarum não
era clara e poderia indicar uma infinidade de lugares em todo o mundo. Estava
tão distraído, em meio a seus pensamentos, que perdeu a noção do tempo e
caminhou sem destino certo por quase três horas. Quando se deu conta de que o
sol já começava a se pôr, entrou na primeira loja de moda masculina encontrada
e adquiriu algumas roupas. Depois, passou numa banca de jornal para comprar a
revista pedida por Michele.
A menina o esperava na janela e lhe acenou aflita ao vê-lo chegar. Nem
bem o rapaz abriu a porta do apartamento e Michele saltou ao seu pescoço,
cobrindo-o de beijos e abraços. Ficara preocupada com a demora, pois ele
dissera que voltaria logo e passara quase toda a tarde fora. Não o deixaria mais ir
sozinho a lugar algum. Michael lhe deu a sacolinha com a encomenda e quis
saber se a sua dor de cabeça já havia passado. Ela sorriu, fazendo um gesto
afirmativo, e foi se sentar no sofá a fim de ler a revista.
Algum tempo depois, Michele chamou o rapaz, que novamente entrara na
internet para tentar descobrir algo sobre a primeira torre. A moça estava muito
exaltada e parecia ter desvendado um segredo extraordinário:
- Veja o que achei na revista! É uma coincidência impressionante!
- O que foi? Diga-me de uma vez por todas!
- É uma matéria sobre o monte São Michel. Leia este parágrafo...
O jovem apanhou a revista e leu o trecho em voz alta:

“... e, de acordo com uma lenda muito antiga, foi construído nesta ilhota
um santuário, segundo indicação do próprio São Miguel, que apareceu em
sonho ao bispo de Avranches e lhe pediu para edificar um templo em sua
homenagem, justamente sobre o local em que o demônio havia sido
precipitado...”

Os olhos do rapaz incendiaram-se e sua respiração tornara-se ofegante.
- A primeira torre! Claro, só podia ser o monte São Michel, o lugar onde
tradicionalmente se acredita que Lúcifer caiu ao ser precipitado da corte celeste!
Como não pensei nisso antes? Foi aí que os templários esconderam a primeira
pista do enigma, que irá revelar o local onde o demônio se encontra aprisionado.
Vamos! Arrume sua mala, pois precisamos partir imediatamente.
Já estava escuro, quando eles chegaram à estação ferroviária para embarcar
no trem que atravessa o Eurotúnel sob o Canal da Mancha. Encontraram bilhetes
com facilidade e o transcurso foi bastante rápido. Chegando ao solo francês, o
jovem casal dirigiu-se imediatamente a uma estação rodoviária, onde, por sorte,
conseguiram comprar as passagens para o próximo ônibus com destino ao Monte
São Michel, programado para partir às onze horas da noite e tendo previsão de
chegar ao seu destino ao amanhecer. Tiveram de ficar aguardando no saguão até
o horário de embarque. Michele dormiu durante quase toda a viagem, enquanto
Michael preferiu reler um trecho do diário de Jacques de Molay, a parte onde ele
narrava o que havia acontecido com a Ordem do Templo desde a manhã em que
os guardas do rei prenderam o grão-mestre até o seu último dia de vida na terra.
A morte de Jacques de Molay

Sentado no chão frio e úmido da cela escura onde estava sendo mantido
preso, mergulhado no silêncio e na solidão, Jacques de Molay refletia a respeito
da enorme tragédia que se abatera sobre a Ordem e indagava a Deus por qual
motivo Ele permitira tamanha injustiça. Durante mais de duzentos anos, os
templários dedicaram suas vidas em defesa da fé cristã e ninguém derramara
mais sangue contra os infiéis do que eles. Agora, um rei nefasto e ganancioso
decidira se apropriar dos bens do Templo, alegando infames pretextos, e
mantinha preso nos calabouços reais uma infinidade de cavaleiros a espera de
um julgamento injusto. Jacques de Molay sabia muito bem que as acusações
feitas por Felipe IV contra os templários eram gravíssimas e reconhecia ser
impossível ter um controle sobre todos os membros da Ordem nos diversos
países onde ela havia se estabelecido. Porém, se algum caso de inobservância às
regras do Templo fosse descoberto, eles próprios se encarregariam de punir os
infratores e bani-los de seu convívio. Além do mais, os crimes que lhes foram
imputados não se restringiam exclusivamente a eles, mas ocorriam também no
seio das outras ordens religiosas, como a dos cavaleiros teutônicos e dos
hospitalários. Contudo, nenhuma delas possuía o poder e a riqueza do Templo.
Em mais de seis anos de cativeiro, padecendo torturas indescritíveis para
admitir sua culpa, Jacques de Molay envelhecera muito e sabia que nada mais
poderia ser feito a fim de salvar a Ordem que tanto fizera pela cristandade.
Enquanto esteve na prisão, o grão-mestre decidira escrever um diário, relatando
toda a iniquidade sofrida pelo Templo. A tarefa lhe ajudava a suportar as horas
intermináveis passadas na companhia das ratazanas; além disso, o velho mestre
imaginava que aquele documento poderia servir como importante testemunho
em favor da inocência dos templários aos olhos das gerações futuras. Jacques de
Molay fizera certa camaradagem com o carcereiro, o qual, toda manhã, vinha lhe
trazer a péssima refeição, suficiente apenas para ele não morrer de fome. O
sujeito contou-lhe que, anos atrás, fora expulso das terras de seu senhor, pois este
tentara lhe seduzir a filha de quatorze anos. Como a menina se recusou a servir
aos apetites do execrável libertino, sua cabana acabou sendo incendiada e
obrigaram toda a família do pobre homem a abandonar aquele feudo. Terríveis
foram as necessidades sofridas por eles e só sobreviveram, porque os templários
lhe deram alimento e abrigo em uma de suas fortalezas. Nunca esquecera tal
gesto de grandeza dos cavaleiros de Cristo e sentia-se extremamente grato.
Quando soube que aquele homem era Jacques de Molay, o grão-mestre da
Ordem, ofereceu-se para o libertar, mas o prisioneiro afirmou que isto já não
fazia a menor diferença. Sentia-se um velho alquebrado, com os dias contados
neste mundo e sua fuga, certamente, iria complicar a vida do carcereiro. Em vez
disso, pediu a ele alguns pergaminhos, uma pena, tinta e velas para iluminar um
pouco a sinistra masmorra, pois desejava escrever um diário.
Aquela seria a última noite de Jacques de Molay na terra. A sua sentença de
morte tinha sido decretada pela corte de justiça do rei e, no dia seguinte, o corpo
do velho cavaleiro arderia numa fogueira em praça pública. Tão logo ficou
sabendo que estava irremediavelmente condenado, solicitou a presença de um
padre para confessar as suas faltas. Guilherme de Nogaret, um dos ministros
mais influentes de Felipe IV, o belo, possuía uma mente diabólica e, imaginando
que o grão-mestre iria admitir seus crimes, ou ainda melhor, revelar o local para
onde haviam levado o tesouro do Templo, decidiu forjar um artifício astucioso a
fim de extrair tais confissões do decrépito templário. Por causa da violenta
tortura a que ele fora submetido na prisão, Jacques de Molay reconhecera a culpa
de muitos pecados perante Deus e a Igreja. Confessou, entre outros, que na data
de sua recepção como cavaleiro, após terem posto o manto sobre seus ombros,
foi-lhe apresentada uma cruz de madeira com a imagem de Cristo e lhe pediram
para escarrar nela, negando Jesus por três vezes, pois era um falso profeta. O
novato aceitou o conselho e cuspiu sobre o crucifixo, mas o fez de lado, apenas
com a boca e não com o sentimento do coração. Porém, voltara atrás em suas
declarações, afirmando que tanto ele quanto a Ordem eram inocentes.
Para alcançar seus objetivos, Guilherme de Nogaret não impunha limites à
sua maneira de agir. O nefasto ministro arquitetou um plano hediondo para
arrancar o segredo de Jacques de Molay em suas derradeiras horas de vida. Pediu
que um dos homens do rei se disfarçasse de cardeal e o mandou ouvir a
confissão do prisioneiro. O falso religioso foi introduzido na cela úmida e disse
aos guardas reais que os deixassem sozinhos. Quando o grão-mestre viu aquele
sujeito todo paramentado com um hábito cardinalício, imaginou ser um enviado
do papa e deu-lhe um beijo no anel em sinal de respeito. Depois, o impostor orou
com ele como tinha sido treinado e, em seguida, exclamou:
- Confesse as suas culpas e arrependa-se, meu filho, para que Deus tenha
piedade de sua alma!
Antes de iniciar a sua confissão, Jacques de Molay declarou ao suposto
cardeal que a Ordem era inocente de todas as abomináveis acusações imputadas
a ela. Um ou outro cavaleiro poderia ter se desviado das severas regras do
Templo, entregando-se aos vícios mundanos. Isto, porém, era praticamente
impossível de controlar em virtude do grande número de templários. A seu ver,
cometia-se uma enorme injustiça ao se condenar toda a irmandade, que possuía
uma extensa lista de excelentes serviços prestados ao cristianismo e à defesa do
papado, apenas porque alguns canalhas haviam traído os seus votos e jogado na
lama a reputação construída pela Ordem em mais de duzentos anos. Além do
mais, isto acontecia em qualquer confraria e até na igreja existiam maus padres...
- Deixe a igreja de lado e concentre-se em suas faltas. Alguma vez já pecou
contra a natureza? Dizem que era uma prática comum entre os templários...
- Nunca! E jamais tive notícia de um único caso. Se eu soubesse de algo,
mandaria imediatamente expulsar os devassos da Ordem. Tudo isso não passa de
uma mentira vergonhosa para macular a honra ilibada dos cavaleiros.
- Já adorou ídolos satânicos, conforme muitos de vocês confessaram?
- Confessaram sob tortura! Por tudo que me é mais caro, juro nunca ter
adorado ídolo algum e tampouco ouvi qualquer coisa a respeito.
- Chegou a renegar Cristo, cuspir na cruz, urinar sobre a Bíblia sagrada?
- Sei que me pergunta isto, pois você leu a minha confissão. Agora, perante
Deus, digo-lhe que jamais reneguei Cristo, nem cuspi na cruz ou urinei sobre a
Bíblia. Santo padre, só admiti tais pecados, pois fui submetido a tortura atroz...
- Reconheço, meu filho, que alguns interrogadores têm empregado métodos
abusivos para alcançar seus fins. Mas isso não vem ao caso agora. Diga-me...
sinto que você quer me revelar algo importante. Abra seu peito...
- Sim, eminência... tenho mesmo uma revelação extraordinária a fazer.
Preciso de um imenso favor...
Jacques de Molay solicitara a presença de um padre não apenas para se
confessar. O verdadeiro objetivo era pedir a ele que entregasse a Gilles de Sens o
seu diário, redigido na cadeia. Não podia deixar tais escritos caírem nas mãos do
rei, pois havia ali informações preciosíssimas a respeito da Ordem. A sua ideia
inicial era confiar os pergaminhos a algum companheiro do Templo, muitos dos
quais também se achavam presos em outras celas daquele calabouço, mas não
houve oportunidade, pois só se encontrava com eles pelos corredores sombrios,
quando eram levados para as câmaras de tortura. Agora, como a sua morte
estava marcada para o dia seguinte, não tinha outra alternativa. Por isso,
procurava estudar minuciosamente o caráter daquele cardeal que ele nunca vira
na vida, fitando-lhe o fundo de seus olhos, a fim de saber quais eram as suas
reais intenções.
- Conte-me tudo, meu filho. Sei que deseja se abrir comigo. Diga-me, para
onde foi levado o tesouro da Ordem?
Jacques de Molay estranhou aquela pergunta e, como queria ganhar tempo,
inquiriu:
- Que tesouro?
- Não se faça de sonso! Refiro-me à fabulosa fortuna que os templários
amealharam ao longo de duzentos anos, emprestando dinheiro a juros, recebendo
heranças e doações vultosas, espoliando os bens dos inimigos. Como fizeram
para sumir com toda a riqueza e onde ela foi escondida? Não há motivo algum a
temer. Lembre-se de que tudo aquilo revelado em confissão permanece em
segredo absoluto...
- Santo padre, juro-lhe que a Ordem do Templo não era tão rica como se
imaginava. A maior parte de seus bens constituía-se de terras, as quais
continuam onde sempre estiveram. De acordo com nossas regras, somos
obrigados a fazer votos de pobreza e nenhum cavaleiro pode possuir nada de seu,
a não ser as roupas do corpo. Durante anos, os templários financiaram reis que
jamais pagaram suas dívidas. Na verdade, estávamos muito endividados...
- Mente! Como deseja alcançar o céu procedendo dessa maneira? Sabemos
que o tesouro templário foi embarcado no porto de La Rochelle e apenas uma
pequenina parte dele foi encontrada no cais. Todo o resto desapareceu sem
deixar vestígios. Em nome de Deus, eu lhe ordeno: diga-me o local onde ele está
escondido!
Para Jacques de Molay, agora estava claro que aquele homem não tinha
boas intenções. Certamente, fora industriado por Felipe IV e seu diabólico
ministro para extrair o segredo do grão-mestre de qualquer maneira. Talvez o
sujeito nem mesmo fosse cardeal e, se confiasse seu diário a ele, seria como
deixar a raposa tomando conta do galinheiro. Não, não poderia arriscar. Em
último caso, queimaria seus escritos à noite, evitando assim que eles caíssem em
mãos erradas.
- O verdadeiro tesouro dos templários encontra-se em seus corações. Ali
estão a sua honra imaculada, o seu caráter incorrupto, a sua generosidade sem
interesse, o seu senso de justiça, o seu amor a Deus, ao próximo e às causas da
igreja. É aí que seu rei ganancioso, o qual nada sabe destes elevados
sentimentos, deve procurar o verdadeiro tesouro da Ordem.
O rosto redondo do falso religioso tornou-se cor de tomate, como se ele
estivesse tendo uma congestão. Quando se certificou de que apenas perdia
tempo, pois Jacques de Molay não iria lhe revelar coisa alguma, ele bateu com
seu bastonete nas grades de ferro a fim de chamar o carcereiro. Ao deixar a cela,
voltou seus olhos para o grão-mestre e lhe disse:
- Tenho pena de sua alma pecadora, que vai apodrecer no inferno, por
insistir nesta calúnia vergonhosa.
- Que Deus também lhe abençoe! Respondeu Jacques de Molay, ironizando.
Em seguida, o velho templário deitou-se ao fundo da cadeia sobre um
ajuntamento de palha que lhe servia de cama, fechou os olhos cansados e
permaneceu meditando em silêncio. Após tão longos e dolorosos anos de
cárcere, ainda se lembrava com clareza do dia em que se iniciara toda a
calamidade. Aquela data nefasta jamais se apagaria de sua memória, mesmo se
vivesse mais trezentos anos. Fora exatamente numa sexta-feira, treze de outubro
do ano da graça de 1307, um dia após ter carregado uma das essas do caixão de
Catarina de Courtenay, cunhada de Felipe IV, que o Templo de Paris fora
invadido pelos guardas do rei. Esta data trágica ficou marcada de tal forma na
mentalidade do povo que, tendo decorrido mais de setecentos anos desde aqueles
funestos acontecimentos, ainda hoje se costuma associar as sextas-feiras treze a
um dia agourento e de má sorte.
Naquela manhã aziaga, Jacques de Molay foi tirado da cama pelos guardas
do rei, os quais haviam invadido o Templo de Paris. Ele voltara tarde do enterro
de Catarina de Courtenay, pois a todo instante aparecia alguém desejando lhe
contar uma história qualquer, como se tivessem combinado isto de propósito,
para o reter ali o maior tempo possível. Felizmente, ao chegar à fortaleza dos
templários, todo o tesouro e os documentos já tinham sido despachados,
conforme a sua ordem.
Felipe IV arregimentara um imenso exército para levar a cabo aquela
operação. Centenas de soldados a cavalo cercaram o templo, ocupando as ruas
dos arredores. Os transeuntes que passavam por ali, empurrando carroças com
frutas, tocando gado ou apenas se dirigindo a seus afazeres, invariavelmente
paravam diante da propriedade da Ordem a fim de se informar sobre o motivo de
tal ajuntamento. Em pouco tempo, uma multidão de curiosos acotovelava-se por
toda parte e começou a circular o boato de que os templários seriam presos, pois
estariam adorando o demônio. O povo ficou surpreso e horrorizado com aquela
notícia, uma vez que as pessoas conheciam a excelente reputação dos cavaleiros
e os tinham em grande estima.
Quando parte dos guardas invadiu o Templo de Paris, Jacques de Molay
apareceu na sala principal e indagou-lhes:
- Mas o que está acontecendo aqui?
Um dos soldados adiantou-se aos outros e respondeu:
- Temos ordens de prender os templários!
Ao ouvir estas palavras, muitos cavaleiros que ainda guardavam o Templo
desembainharam as suas espadas, mas Jacques de Molay pediu a eles que as
guardassem. Em seguida, perguntou resoluto:
- Sob que acusação?
- Heresia! Foi a resposta de um guarda.
- Quem deu a ordem?
- O rei da França.
O grão-mestre encarou o jovem soldado e lhe disse:
- Pois saiba que o Templo só deve obediência ao papa e a mais ninguém. O
rei não tem autoridade nenhuma sobre esta casa.
- Nesse caso, levaremos todos à força!
Aquela ordem de prisão era de fato uma arbitrariedade de Felipe IV. O
abominável monarca havia passado por cima dos direitos do papa, pois apenas
ele possuía autoridade para punir os templários. Se quisessem, os cavaleiros
podiam ter resistido ao exército real, uma vez que eram considerados a mais
temível força militar da época e ainda permaneciam no Templo um grande
número de homens. Porém, Jacques de Molay reuniu-se com alguns outros
líderes e consideraram que deveriam apenas defender a cristandade, não lutar
contra os irmãos cristãos. Em vista disso, decidiram se entregar, confiando na
justiça. Afinal, sempre pautaram suas vidas pela prática do bem e não tinham
nada a temer.
Embora grande parte dos monges houvesse fugido na véspera, inúmeros
cavaleiros ainda se encontravam no Templo de Paris e acabaram sendo presos.
Os guardas do rei demoraram muito para descobrir que o tesouro e os
documentos da Ordem tinham sido levados ao porto de La Rochelle e de lá
embarcados a um destino desconhecido, proporcionando aos templários
ganharem um tempo precioso. Felipe IV esteve para parir um bezerro, tão
furibundo ficou, ao saber que não haviam descoberto uma única moedinha da
extraordinária fortuna dos Pobres Soldados de Cristo. Imediatamente, mandou
iniciar a prática da tortura para os malditos adoradores de Satanás soltarem a
língua.
O povo assistiu estarrecido àquela procissão singular, em que os guardas de
Felipe IV conduziam tantos homens reconhecidamente honestos para o cárcere,
feito carneirinhos seguindo ao abatedouro. Centenas de cavaleiros foram
abarrotados nos calabouços reais sem direito a qualquer julgamento. Dias depois
da prisão em massa, o papa Clemente V disse que Deus havia lhe aparecido em
sonho a fim de comunicar a ele que os templários eram culpados de heresia,
sodomia, blasfêmia e idolatria. Além disso, o Criador incumbira-lhe de purificar
a terra daquela chaga peçonhenta e escolhera o cristianíssimo rei da França para
conduzir uma nova cruzada do bem contra as forças das trevas. Na verdade,
Clemente V ficara numa posição muito embaraçosa frente à atitude de Felipe IV,
o qual passara por cima dos direitos do papa. Porém, como este era um fantoche
nas mãos do infame monarca, acabou cedendo às pressões dele e baixou uma
bula[7], ordenando a prisão dos cavaleiros do Templo. Em novembro de 1307,
escreveu a todos os reis da cristandade, afirmando que deveriam prender os
templários escondidos em seus reinos, além de colocar os bens e as propriedades
da Ordem à disposição da igreja. Assim, Clemente V tentava manter as
aparências, dando a entender que ainda estava no comando das ações.
Nos primeiros dias de prisão, Jacques de Molay ficou sabendo que alguns
templários tinham se desvirtuado dos preceitos estabelecidos pela Ordem.
Segundo lhe disseram, um antigo grão-mestre do Templo fora preso pelos infiéis
ao defender a Terra Santa e, para escapar do cárcere, prometera ao sultão
introduzir entre os Pobres Soldados de Cristo o costume de se adorar o demônio,
para desmoralizá-los aos olhos da Igreja e enfraquecer aquela ordem que tanta
dor de cabeça causara aos muçulmanos. Certamente, o número desses seguidores
de Satanás seria muito reduzido, pois durante todo o tempo em que presidira a
Ordem, jamais escutara qualquer coisa a tal respeito. Ao tomar conhecimento
dessa traição imperdoável, Jacques de Molay sentiu uma dor lancinante, como se
tivessem lhe arrancado os olhos com uma faca.
Os templários já haviam sofrido terrivelmente nas masmorras de Felipe IV,
quando Clemente V decidiu demonstrar que era um papa magnânimo e resolveu
conceder um julgamento aos miserandos cavaleiros de Cristo. Inúmeros bispos e
três dos mais influentes cardeais fizeram questão de estar presentes ao circo
armado por Sua Santidade. Em um de seus discursos, ele assegurara que nenhum
prisioneiro sofreria qualquer espécie de tortura e todos receberiam um
julgamento justo!
Jacques de Molay foi conduzido a um tribunal, onde se esperava que ele
defendesse a Ordem do Templo. A sala estava tomada por religiosos de todas as
partes da Europa e muitas pessoas acabaram ficando do lado de fora, pois não
existiam acomodações para tanta gente. A audiência teve início com a leitura de
um texto encomiástico em favor do cristianíssimo rei Felipe IV, insuperável
guardião dos bons costumes e verdadeiro baluarte da fé. Por causa de seu infinito
zelo religioso, foi o primeiro a perceber que os templários representavam uma
grande ameaça à cristandade e, não apenas os mandou prender em solo francês,
como também escreveu uma carta aos monarcas vizinhos, pedindo a detenção de
todos os cavaleiros por crimes “horríveis de contemplar, terríveis de ouvir, uma
obra abominável, uma desgraça detestável, uma coisa quase inumana, na
verdade desprezada por toda a humanidade”.
Em seguida, foram lidos esses crimes “horríveis de contemplar, terríveis de
ouvir...”, os quais Felipe IV descrevera de maneira tão veemente. Antes de tudo,
os templários foram acusados de renegar Cristo e cuspir na cruz, conforme o
próprio Jacques de Molay havia confessado. Muitos cavaleiros seguiram o
exemplo do grão-mestre, confirmando esta exigência durante a cerimônia
iniciatória. A segunda acusação sofrida pelos templários referia-se à prática do
homossexualismo. Mesmo sob tortura e admitindo outras faltas, poucos monges
confessaram tais vícios. Alegou-se também que os padres do Templo se
recusavam a pronunciar as palavras de consagração durante as missas, embora
muitas testemunhas disseram que os ofícios realizados nas igrejas da Ordem
eram os mais belos de todos. Por fim, acusaram os templários de render culto ao
demônio.
Para ilustrar ainda mais aqueles crimes hediondos, um dos cardeais tomou a
palavra e passou a ler parte da carta que recebera do rei francês. Dizia o
seguinte:

“Eu, Felipe IV, rei da França por vontade de Deus todo poderoso, ouvi
relatos de pessoas dignas de fé, que os irmãos do Templo, autênticos lobos em
pele de cordeiros, insultaram miseravelmente nossa santa religião e
crucificaram em nossos dias outra vez Nosso Senhor Jesus Cristo, enchendo-o
de injúrias mais graves do que aquelas sofridas na cruz, pois eles o negam três
vezes e lhe escarram na face. Em suas cerimônias de iniciação, despojados das
roupas envergadas na sua vida secular, nus, postos em presença daqueles que os
recebem, são beijados por eles, de acordo com o rito odioso da sua Ordem:
primeiro na base da espinha dorsal, depois no umbigo e, finalmente, na boca,
para vergonha da dignidade humana. E após terem ofendido a lei divina por
meio de feitos tão abomináveis e atos detestáveis, obrigam-se a se entregarem
uns aos outros, sem recusa, desde que lhe seja pedido, por efeito do vício de um
horrível e pavoroso concubinato. E foi por isso que a cólera de Deus se abateu
sobre esses filhos da infidelidade, sobre essa gente imunda!”

Depois da leitura da carta escrita por Felipe IV, perguntaram se Jacques de


Molay desejava defender a Ordem. Ele respondeu ser uma pessoa simples e sem
instrução, de maneira que não apresentava a competência necessária para isso.
Porém, reafirmou a inocência dos templários, isentando-os de todos os crimes, e
disse que estavam cometendo uma terrível injustiça. Um dos cardeais ergueu-se
do local onde se encontrava sentado e indagou:
- Mas como você alega que os cavaleiros do Templo são inocentes, se
grande parte deles admitiu a prática de tais crimes que você agora está negando
diante de nossa sagrada corte?
Jacques de Molay virou-se para ficar de frente ao cardeal.
- Admitiram porque foram torturados terrivelmente!
- Não diga tolices! O próprio papa nos deu sua palavra sagrada, garantindo
que ninguém sofreria tortura. Você está delirando...
Então, Jacques de Molay rasgou suas roupas, ficando nu diante da
assembléia estarrecida. O seu corpo achava-se coberto de feridas e cicatrizes
medonhas, indicando ter sido torturado de maneira bárbara. Quando os cardeais
e os bispos certificaram-se de que a palavra do papa fora desrespeitada,
passaram a chorar amargamente, pois se convenceram de que havia muita coisa
podre nos bastidores da igreja. No mesmo instante, pediram para suspender o
julgamento e os templários foram outra vez confinados nos calabouços reais.
Segundo Clemente V, nenhum deles sofreria mais qualquer espécie de tortura;
porém, foi como falar com as paredes. Permaneceriam presos em masmorras
úmidas por muitos anos, alguns por toda a vida. O próprio Jacques de Molay
jamais veria a luz do sol e apenas sairia da prisão para ser queimado numa estaca
em praça pública.

O falso cardeal deixara a cadeia já fazia algumas horas, quando uma ideia
iluminou o cérebro do grão-mestre. Por que não entregar o seu diário ao
carcereiro e pedir a ele para levar os manuscritos em sigilo até as mãos de Gilles
de Sens, um dos preceptores do Templo? Provavelmente, o bom homem não
recusaria esta tarefa, embora pudesse até mesmo ser preso e torturado por ajudar
os prisioneiros. Em todos estes anos, Jacques de Molay comprovara que ele era
uma pessoa honrada e disposta a acudir os monges, pois se achava em dívida
com a Ordem. Convencido por este pensamento, o velho templário apanhou sua
caneca e pôs-se a bater com ela nas grades, gritando de maneira desesperada:
- Água! Preciso de água, pois estou sufocando com tanta sede!
O carcereiro apareceu pouco depois e disse-lhe que iria buscar a moringa.
Jacques de Molay segurou-o pelos braços e proferiu:
- Espere, meu amigo, tenho algo a lhe pedir...
Explicou-lhe então tudo muito detalhadamente. Com o pergaminho e a tinta
que o carcereiro lhe trazia escondido, havia escrito um diário, um documento
assaz importante para o destino da Ordem, pois registrara nestas páginas muitos
segredos. Se por infelicidade tais escritos caíssem nas mãos do infame rei da
França, a calamidade seria completa. Era necessário entregar de alguma maneira
aqueles pergaminhos a Gilles de Sens, o qual não fora preso, uma vez que
conseguira fugir de Paris.
- Meu amigo, posso contar com você para esta tarefa?
- Sabe que devo minha vida e de minha família aos templários e estou
disposto a fazer qualquer coisa para os auxiliar. Dê-me os documentos! Esta
noite mesmo estarão fora de Paris e a caminho de Gilles de Sens, onde quer que
ele esteja.
Porém, quando Jacques de Molay ia lhe dar o precioso diário, eles ouviram
passos ruidosos se aproximando e o carcereiro foi ver o que estava acontecendo.
Pouco depois, uma comitiva de notáveis postou-se diante das grades do cárcere,
tendo a frente o próprio rei da França, Felipe IV, o belo. O cheiro nauseabundo
de cloaca que emanava das imundícies espalhadas por toda parte deve ter
desagradado as narinas fidalgas de homens pouco acostumados a ambientes
sórdidos como aquele. O monarca pediu para o carcereiro abrir a porta, pois
precisava falar com o miserável templário. O homem enfiou a grossa chave no
cadeado e correu a tranca. Felipe IV entrou na cadeia, seguido por Guilherme de
Nogaret, alguns nobres e muitos guardas reais. Ao ver que Jacques de Molay não
lhe concedeu a menor reverência, bradou de maneira arrogante:
- Ajoelhe-se diante de seu rei!
- Ajoelho-me apenas diante de meu Deus! Respondeu o grão-mestre.
Felipe IV sentiu seu sangue queimando-lhe as vísceras em virtude de
tamanho desrespeito. Por muito menos, já tinha mandado arrancar a língua de
outros atrevidos com pinças em brasas, mas se conteve, pois isto de nada o
ajudaria e, afinal de contas, aquele servo das trevas já se achava condenado à
fogueira. Viera até ali para obter dele a confissão que estava tirando seu régio
sono, ou seja, para onde fora conduzido o tesouro da Ordem.
- Sabe que tenho poder sobre sua vida e a de qualquer pessoa nos domínios
da França? Basta uma palavra minha para o livrar da fogueira...
- O poder que você possui não provém de seus méritos e sim porque Deus o
concedeu a seus ancestrais. Infeliz o rei que não sabe repartir a justiça entre os
seus súditos...
- Não me venha com sermão, seu velho dissoluto! Não tenho tempo a
perder! Diga-me para onde foi levado o tesouro do Templo e eu lhe garanto o
perdão real...
- Já lhes disse! A Ordem se encontrava muito empobrecida por financiar
reis incompetentes e caloteiros. A maior parte do patrimônio dos templários era
constituída por terras, as quais foram confiscadas pela igreja, segundo ouvi
dizer...
- Insiste nessa mentira absurda? Grande bêbado, ainda procura defender
uma confraria morta? Inúmeros cavaleiros confessaram que a imensa fortuna em
moedas de ouro foi levada em carroças até o porto de La Rochelle e de lá partiu
para um destino ignorado...
- Nada sei sobre isso!
- Sabe muito bem e lhe ordeno que me diga a verdade! Caso contrário,
mandarei executar todos os templários aprisionados nas masmorras da França. A
vida de seus companheiros está em suas mãos! Portanto, se o sangue de
inocentes correr, Deus é testemunha de que não terei culpa alguma...
Ao ouvir tais palavras, a alma de Jacques de Molay foi tomada de horror.
Não podia acreditar que aquele homem era tão torpe e desprezível, a ponto de
incriminá-lo pela morte anunciada de todos os seus confrades. Se tivesse com
sua espada, deceparia a cabeça do ignóbil monarca para livrar a França de sua
vergonhosa opressão. Porém, isso não era possível e o grão-mestre se manteve
em silêncio, pois nada mais tinha a dizer ao rei. Como este percebeu que seu
interlocutor não abriria a boca, resolveu partir, afirmando:
- Tem até amanhã para me dar a resposta.
A madrugada foi longa e o grão-mestre não conseguiu dormir um momento
sequer. Durante toda a noite, meditou se deveria entregar o seu diário ao
carcereiro. Não duvidava dele, muito pelo contrário. Sabia que era um homem
honrado e estava disposto a ajudar a Ordem. Porém, receava que os guardas do
rei desconfiassem de algo e o seguissem a fim de roubar o pobre sujeito. Se por
uma infelicidade aqueles escritos caíssem nas mãos do ganancioso monarca,
fatalmente ele acabaria encontrando o tesouro do Templo.
Jacques de Molay escrevia de maneira lenta e levou anos redigindo o diário,
que apresentava algumas incoerências. A princípio, a sua ideia não era revelar às
claras o local onde os templários haviam escondido o dinheiro da Ordem. Achou
menos perigoso ir colocando algumas indicações um tanto vagas ao longo do
texto, como um verso enigmático que falava a respeito de certa rainha escura.
Chegou mesmo a fazer um desenho dela, segurando uma flor numa das mãos.
Embaixo, pôs a seguinte frase: a rainha negra com a flor amarela. Porém,
enquanto escrevia o diário, Jacques de Molay começou a desconfiar de que as
pistas deixadas por ele naquelas páginas fossem insuficientes para a revelação de
tal mistério. Temendo não ser compreendido, acabou por dizer claramente o
local onde os templários esconderam o tesouro. Talvez tenha se arrependido e,
durante aquela madrugada interminável, inúmeras vezes ameaçou destruir os
pergaminhos, levando-os até a chama de uma vela. Mas no derradeiro instante,
algo em seu interior lhe dizia que aquilo não era a atitude correta a ser tomada e
ele afastava as folhas do fogo, salvando o diário da destruição completa.
A ameaça feita por Felipe IV também não saía de sua cabeça. O caráter
desprezível do rei da França era bem conhecido e, por isso, o grão-mestre tinha
absoluta certeza de que, mesmo se lhe revelasse o lugar onde estava o tesouro,
ele não pouparia a vida dos cavaleiros. Continuaria a deixá-los apodrecer nos
calabouços fétidos onde estavam, pois odiava a todos terrivelmente.
Uma terceira dúvida ainda o atormentava. Segundo haviam lhe dito, dentre
os homens incumbidos de levar o tesouro dos templários ao seu destino, existiam
alguns cavaleiros adoradores do demônio. Tal notícia deixara-o perturbado
demais, chegando a escrever sobre essa possibilidade no diário. Como a
informação recebida por ele era muito vaga, talvez nem fosse verdadeira. De
qualquer forma, receava que esses miseráveis pudessem levar o tesouro para
outra parte qualquer e somente se tranquilizou, quando o carcereiro lhe sussurrou
que alguns cavaleiros fugidos tinham lhe garantido que tudo correra conforme o
planejado.
No dia seguinte, ao cair da tarde, Jacques de Molay escutou passos se
aproximando da cela e viu que se tratava de Felipe IV e Guilherme de Nogaret.
Ao lhes reconhecer a silhueta no final do corredor escuro, cercados pela guarda
real, o grão-mestre desesperou-se, pois ainda não tinha decidido o que fazer com
o seu diário. O tempo esgotara-se. Agora, só lhe restava entregar os manuscritos
ao carcereiro e confiar em Deus. Antes, porém, cheio de aflição, folheou o livro
em busca de uma página em especial, justamente aquela em que revelava o local
exato para onde os cavaleiros do Templo haviam levado o tesouro. Quando a
encontrou, teve apenas tempo de arrancá-la do diário e a comeu com grande
dificuldade. Nesse momento, o carcereiro abriu a porta da prisão e o rei
adentrou, seguido por seu séquito.
Jacques de Molay tinha amarrado as folhas de pergaminho com pedaços de
cordas muito finas, mas bastante resistentes. Discretamente, escondeu o livro
entre suas roupas andrajosas e esperou uma oportunidade para o entregar ao
amigo. O rei foi direto ao assunto e lhe indagou qual havia sido a sua decisão,
lembrando-lhe que a vida dos templários dependia dele. Com o peito dilacerado,
o grão-mestre respondeu que nada podia fazer por seus confrades, pois não
existia tesouro algum. Isto fez Felipe IV se contorcer de ódio e só não lhe
decepou o pescoço com sua espada, porque Guilherme de Nogaret lhe deteve o
braço. O cruel ministro era menos impulsivo que o monarca estouradinho e
estava disposto a aceitar qualquer negócio para conseguir aquela informação.
Fitando os olhos do velho cavaleiro, disse:
- Felipe IV, rei da França por graça e vontade de Deus, para provar a sua
magnanimidade, concorda em lhe conceder liberdade imediata em troca deste
segredo que você se recusa a nos revelar.
O monarca confirmou a proposta de seu ministro:
- Eu lhe prometo que os templários terão um julgamento justo e ainda hoje
você deixará este calabouço. Dou-lhe a minha palavra!
O grão-mestre cuspiu no chão, perto daquele rei perverso e bradou:
- Para mim, a sua palavra vale menos que esterco de gado!
Ao ouvir tamanha afronta, Felipe IV enfureceu-se, seus olhos quase se
despregaram das órbitas, e ele empurrou de forma violenta Jacques de Molay, o
qual caiu sobre o carcereiro. Guilherme de Nogaret precisou segurar o monarca
furibundo, que se achava deveras alucinado, e desejava matar o desafeto ali
mesmo. Durante o tumulto, o templário aproveitou para colocar seu diário nas
mãos do amigo, que compreendeu sua intenção, e o escondeu discretamente no
interior de suas vestes. Enlouquecido pela cólera, o rei ordenou:
- Queimem já esse devasso!
No mesmo instante, ele foi levado para a enorme estaca numa pequena ilha
do rio Sena. As pessoas gostavam muito de assistir a esse tipo de espetáculo e,
em pouco tempo, uma multidão curiosa passou a se aglomerar diante do local
onde arderia a fogueira. O céu estava tomado por nuvens carregadas, indicando
que desabaria forte tempestade a qualquer momento. Inúmeros pássaros voavam
de uma árvore a outra, procurando um melhor lugar para se esconder. Como a
noite desceria em breve sobre a cidade, os homens incumbidos de amontoar a
lenha trabalharam rápido. Quando tudo ficou pronto, trouxeram Jacques de
Molay e o amarraram na estaca. Todos ficaram surpresos ao ver que o
condenado era um ancião com cerca de setenta anos e aparentava ser bastante
inofensivo. Porque ninguém o conhecia ou não mais se lembrava dele,
indagavam-se qual teria sido o hediondo crime cometido pelo malfadado
velhinho, que provocara tamanha cólera em Felipe IV. A população somente
tomou conhecimento que se tratava do último grão-mestre do Templo, ao
declinarem o seu nome, o seu cargo e a lista de seus crimes. Ninguém podia
acreditar em todas aquelas acusações levianas, pois as pessoas estimavam os
cavaleiros templários e sabiam muito bem a espécie de rei que tinham.
Diante da estaca, protegidos por inúmeros soldados a fim de não se
misturarem à plebe grosseira, estavam Felipe IV, Guilherme de Nogaret e o
próprio papa, Clemente V. Ao contrário do que costumava acontecer nesses tipos
de espetáculo, o povo assistia a tudo em respeitoso silêncio, com o espírito
mortificado, pois sabia que estavam cometendo uma tremenda injustiça. Era só
olhar a face do rei para ver com que satisfação ele aguardava o momento do fogo
ser ateado às achas.
Pouco antes da fogueira ser acesa, um frade postou-se em frente à estaca
com um crucifixo nas mãos e pôs-se a orar pela alma de Jacques de Molay. Ao
ouvir aquelas preces, as quais lhe soaram como pura hipocrisia, o grão-mestre
ergueu sua cabeça e bradou:
- Guardai vossas orações para o papa, pois este sim, precisará delas!
Um murmúrio correu de boca em boca, até que outra vez se fez silêncio e
Jacques de Molay proferiu:
- Senhor meu Deus, perdoai aqueles que caluniaram a Ordem da qual Vossa
Providência me fez chefe, apesar de meus escassos méritos. Neste derradeiro
instante de minha existência, declaro a todos vós que estais prontos para ver meu
corpo ser consumido pelas chamas, que sou culpado de um crime abominável.
Mas meu crime foi ter admitido as ignóbeis acusações feitas contra os
templários. Somente agi assim, porque fui torturado de maneira cruel e afirmo a
todos vós que a pureza e santidade da Ordem estão acima de qualquer suspeita.
Minha vida me foi oferecida em troca de uma traição; mas por esse preço, não
vale a pena ser vivida.
O rei ordenou que a fogueira fosse acesa. Então, enquanto Jacques de
Molay estava sendo consumido pelas chamas, em meio a gritos lancinantes de
dor, ainda conseguiu proferir suas últimas palavras, terríveis ameaças ao
ministro, ao rei e ao papa:
- Vós, ministro diabólico e libertino, em vez de tecer intrigas na corte,
difamando a dignidade de uma Ordem que sempre pautou sua existência em
defesa da fé cristã, deveríeis saber melhor aconselhar vosso rei, pois para isto
fostes alçado ao cargo que ocupais; Vós, papa de Satanás, subserviente e
corrupto, deveríeis zelar por vosso rebanho, procurando encaminhar a alma dos
fiéis para a glória celeste e não prostituir o trono de São Pedro, dobrando-vos a
interesses mesquinhos, como fizestes durante todo o vosso pontificado; E vós,
rei ganancioso, traiçoeiro, desleal e hipócrita, que trazeis no peito um ninho de
escorpiões em vez de um coração humano, deveríeis dedicar-vos ao bem-estar
do povo e não apenas ao vosso real umbigo. Lembrai-vos que sois lama e nada
levareis desta terra onde marcastes a planta de vossos pés. Pois quem tiver
ouvidos, ouça: ainda este ano todos vós estareis mortos e vos intimo a
comparecer diante do tribunal de Deus para responder por vossos crimes!
Após Jacques de Molay ter amaldiçoado os três, uma balbúrdia tomou conta
da praça, pois muita gente falava e berrava ao mesmo tempo. Felipe IV,
apoplético, com os olhos cuspindo chamas, mandou que acrescentassem palha
molhada à fogueira, para que a fumaça sufocasse imediatamente as palavras do
odioso templário. Aos poucos, as pessoas tornaram outra vez a fazer um silêncio
respeitoso, bastante consternadas, como se tivessem tomado consciência da
selvageria atroz que atos como aqueles representavam. Era possível ouvir apenas
o murmúrio das labaredas e a gargalhada execranda, demoníaca, depravada, do
depravado ministro, do demoníaco papa e do execrando monarca. Suas risadas
pareciam ecoar pela ilha inteira, como um réquiem funesto e perverso. Porém,
enquanto saboreavam sua vingança, a multidão que presenciava aquele
espetáculo hediondo passou a se pôr de joelhos, ao constatar que o corpo de
Jacques de Molay havia se incendiado, mas as suas vestes não queimavam! O
rei, o ministro e o papa entreolharam-se cheios de horror, pois jamais tinham
visto uma coisa daquelas. Clemente V fez uma prece pela alma do velho
templário e disse consigo:
- Este homem era, na verdade, inocente...
Cerca de um mês após a morte do último grão-mestre do Templo, o papa
morreu subitamente. Antes de terminar aquele fatídico ano de 1314, seguiram-no
para o túmulo Guilherme de Nogaret e o próprio rei da França, Felipe IV, dito o
belo, que faleceu em virtude de um acidente a cavalo, enquanto caçava, após seu
cavalo ter empinado, esquivando-se misteriosamente de algo que ninguém nunca
soube o que era. Estava terminado. A maldição de Jacques de Molay cumprira-se
exatamente como ele previra.
A primeira torre

A manhã estava começando a clarear, quando o ônibus que Michael e


Michele haviam apanhado no terminal Coquelles, perto de Calais, finalmente
chegou ao seu destino. O amplo estacionamento, junto à pista rodoviária, ainda
se achava quase vazio; porém, em breve seria tomado pelos automóveis dos
turistas, os quais afluíam aos milhares logo cedo. Uma bruma pálida envolvia
por completo o monte São Michel, dando a impressão de que ele se transformara
num imenso navio fantasmagórico e navegava à deriva num mar mítico. O rapaz
lamentou não ter trazido consigo a sua máquina fotográfica, pois a vista era
deslumbrante; porém, decidiu comprar uma no interior da cidadela.
Enquanto Michele dormira durante toda a viagem, Michael apenas cochilou
por alguns minutos. Aproveitara o tempo para reler o diário de Jacques de
Molay, com esperança de encontrar algo importante que lhe passara
despercebido. Além disso, outra preocupação lhe mortificava o espírito. Como
fariam para descobrir a pista deixada ali pelos templários? O rapaz nunca
estivera antes no monte São Michel e, visto assim de longe, parecia um local
imenso, um labirinto infinito. Isto se aquela ilhota extraordinária fosse realmente
a primeira torre do demônio, conforme acreditavam.
Antes de sair do ônibus, enquanto alguns passageiros desciam sem pressa e
outros apanhavam seus pertences num bagageiro junto ao teto, o rapaz segurou
uma das mãos de Michele e lhe disse:
- Não vai ser fácil descobrir a pista escondida pelos cavaleiros do Templo.
Primeiro, porque não sabemos direito o que procurar, pois pode ser qualquer
coisa, um símbolo rabiscado numa pedra, uma frase em latim, uma sequência de
números, etc. Segundo, porque não temos a menor ideia de onde começar nossas
buscas. Veja, o monte São Michel é imenso!
- É lindo! Respondeu a garota, contemplando extasiada a ilha através da
janela.
- Mas creio que, em cada uma das pistas deixadas pelos templários, eles
colocaram algo capaz de identificar a sua autoria, para mostrar a toda gente que
aquilo lhes pertence...
- Como assim?
- Uma espécie de assinatura. Caso contrário, não haveria sentido para os
Pobres Soldados de Cristo terem espalhado as pistas pelas sete torres do
demônio, pois, decorrido algumas gerações, ninguém no mundo seria capaz de
as decifrar. Nem eles próprios...
- Você tem razão. E como seria este símbolo?
- É difícil dizer... talvez seja um desenho de dois cavaleiros montados sobre
um mesmo cavalo, pois era a maneira como eles costumavam ser representados
nos primeiros tempos da Ordem. Tal assinatura também pode ser uma cruz
templária, que se parece com um sinal matemático de mais. Ou ainda qualquer
outra coisa diferente, sei lá, precisamos prestar bastante atenção em tudo...
- Se ao menos a gente soubesse por onde começar nossas buscas neste
imenso labirinto...
- Temos apenas a dica escrita por Jacques de Molay numa trovinha. Não se
lembra o que dizem seus versos?
- Você já me falou sobre ela, mas me esqueci. Leia-me novamente para
refrescar a minha memória...
Como o rapaz a sabia de cor, recitou-a sem a ajuda do diário:

“Numa pedra das escuras


Quase junto já do mar,
O sinal que tu procuras
Haverás de encontrar.”

A menina fitou os olhos do namorado e disse sorrindo:
- Bom, já é um começo...
- Sabemos que a pista escondida pelos templários está gravada numa pedra.
O único problema é que todo o monte São Michel é feito de pedras. Há milhares,
milhões delas...
- Sim, mas não se trata de uma pedra qualquer. Temos de procurar somente
entre as escuras! Disse a moça gracejando.
- E próximo ao oceano! Mas isto significa toda a ilha, o que não ajuda
muito. Quando a maré sobe, ela fica rodeada pela água...
- Bom, vamos descer e iniciar nossas buscas, pois não há mais ninguém
dentro do ônibus e o motorista já está ficando impaciente.
O sol acabara de aparecer no horizonte e a névoa matutina começava a se
dissipar, quando os dois entraram na cidadela através de um monumental portão,
conhecido como “Porte du Roi”[8]. Michele ficou impressionada com a beleza
daquela construção arquitetônica, que apresentava uma magnífica parede de
pedra e grossas correntes a pender de duas sólidas vigas de madeira. Do outro
lado, uma rua estreita e comprida, tomada por casas comerciais, conhecida como
“Grande Rue”[9], revelava-se aos olhos dos turistas. Ali se vendia de tudo,
lembrancinhas, comida, roupas e todo tipo de bugigangas, uma vez que os
comerciantes locais procuravam manter a tradição dos mercadores da Idade
Média. Ao adentrar na pequena vila, Michael teve a impressão de ter retornado
no tempo. As velhas casas de pedras, dispostas em corredores espremidos,
galerias irregulares, becos sem saídas, quase sempre produziam no espírito dos
visitantes a sensação de caminhar por um autêntico burgo medieval. O rapaz
imaginava que, a qualquer momento, toparia algum cavaleiro vestindo uma
pesada armadura, empunhando lança e escudo, com destino às cruzadas.
A primeira coisa que Michael fez foi entrar numa loja e comprar uma
máquina fotográfica. Havia vários modelos à venda, cada qual incluindo
diversos recursos sofisticados. O rapaz apanhou uma delas, que possuía um
zoom incrível e era à prova d´água.
- Gosta desta, Michele?
- É linda! Mas é tão cara...
- Dinheiro não é problema. Se você gostou, vou levar.
Na verdade, Michael precisava de uma câmera não apenas para registrar os
bons momentos vividos no monte São Michel, conforme explicou ao vendedor,
mas para outra finalidade muito diferente. Viera até ali atrás da pista deixada
pelos cavaleiros do Templo na tal pedra escura e acreditava piamente que a
encontraria. Por isso precisava de uma câmera, para bater fotografias de suas
possíveis descobertas, não só naquela pequenina ilha, mas em todas as outras
torres do demônio. Depois, a sua ideia era comparar as imagens, estudá-las,
analisá-las com calma a fim de descobrir o local onde Satanás se achava
aprisionado.
Ao saírem da loja, Michele comentou:
- Eu tinha um celular que tirava fotos ótimas, mas o perdi sábado passado
em uma balada... o seu não tira?
- Eu não tenho, não gosto. Quando preciso, uso os telefones públicos...
Para estrear a nova máquina fotográfica, o rapaz bateu vários retratos de
Michele, que estava linda. Dali a pouco, enquanto caminhavam pela “Grande
Rue”, uma menina ruiva, com cerca de uns doze anos de idade, segurou Michael
pela manga direita de seu sobretudo e lhe disse:
- Moço, não quer ver uns brincos para sua esposa?
Ao ouvir as palavras da pequena, tomando Michele por sua mulher, sentiu
um prazer indescritível, achando que tal designação lhe calhava perfeitamente
bem. Na verdade, não queria comprar brincos e, como se tratava de uma pessoa
educada, já estava pronto para agradecer o obséquio a fim de a despachar com
delicadeza. Porém, a jovem comerciante era astuta e abriu um mostruário
bastante chamativo diante dos olhos de Michele, que ficou encantada com as
peças. A menina disse que todos os brincos eram feitos de maneira artesanal pela
sua avó. Além de muito bonitos, davam sorte a quem os usava. Michael achou
graça naquela técnica comercial e pediu para a namorada escolher um deles.
- Quero este!
Era um brinco dourado, lembrando muito a forma simbólica da flor-de-lis.
Quando ela os prendeu nas orelhas, Michael apanhou sua máquina fotográfica e
bateu um retrato da moça. Em seguida, mostrou-lhe no visor da câmera como
ficara a fotografia. Michele abriu um sorriso encantador, de pura aprovação, e
perguntou:
- O que você acha?
- Ficaram lindos, como tudo em você!
A jovem mercadora cobrou oito Euros pelos brincos. Michael tirou da
carteira uma nota de dez e disse para a pequena guardar o troco. Ela pôs o
dinheiro dentro de uma bolsa cor-de-rosa, agradeceu deveras, e seguiu seu
itinerário pela “Grande Rue”, em busca de outros possíveis clientes. De mãos
dadas, Michael e Michele continuaram caminhando na direção oposta. A certa
altura, o rapaz afirmou que seria bom eles reservarem um quarto em algum
hotel, pois não sabia quanto tempo ficariam na ilha. Receava não encontrar
vagas à disposição, embora houvesse muitas pousadas dentro da cidadela.
Michele quis se hospedar num simpático hotel que ela vira há dez minutos atrás.
Chamara-lhe a atenção a placa da fachada do estabelecimento, exibindo uma
mulher de avental branco sobre um vestido escuro, segurando uma espécie de
frigideira no fogo. Michael concordou prontamente e eles retornaram pelo
mesmo caminho. Na recepção do hotel, pediram um quarto de casal, mas o
atencioso recepcionista lhes comunicou que havia apenas um dormitório
disponível e com camas separadas. Embora contrariados, os dois jovens
aceitaram.
Ao saírem do hotel, a aldeia já se achava tomada pelos turistas. Os
peregrinos afluíam de todas as partes da Europa e até mesmo de outros
continentes para conhecer o velho santuário dedicado a São Miguel. Após
deixarem as ruas comerciais, que se localizavam no sopé da ilha, eles passaram a
subir inumeráveis escadas e escadinhas com a finalidade de alcançar o cume do
monte. Qualquer pedra mais escura descoberta nas muralhas era motivo para
interromperem a escalada a fim de estudá-la com certa atenção. Durante horas,
vasculharam boa parte da cidadela, sem encontrar o menor vestígio da pista
deixada pelos templários. Michael e Michele já estavam bastante cansados,
quando chegaram à Sala dos Cavaleiros, um amplo espaço do monastério, que
em outros tempos fora utilizado pelos monges como scriptorium, ou seja, o local
onde eles copiavam os velhos pergaminhos. Todas as paredes deste ambiente
eram de pedras, mas nenhuma delas apresentava qualquer sinal suspeito.
Deixando a Sala dos Cavaleiros, subiram mais algumas escadas internas e
chegaram ao claustro, um dos lugares mais belos de toda a abadia. O rapaz ficou
deslumbrado com aqueles corredores compridos, que rodeavam um jardim
encantador, cercado por inúmeras colunas, as quais se uniam ao teto em arcos
ogivais, arquitetura característica da arte gótica. Naquele recanto tranquilo,
próximo do céu, os monges passavam horas a deambular, meditando sobre os
mistérios da vida e da morte. Havia ali uma energia misteriosa, uma força
incompreensível, que fazia as pessoas de fé como Michael sentir imensamente a
presença de Deus. Experimentava uma sensação de enlevo tão grande, que
desejou registrar aquele momento e pediu para um turista bater uma fotografia
sua, abraçado com Michele no claustro.
Já passava das duas horas, quando eles resolveram comer alguma coisa,
pois se achavam famintos. Desceram todas as escadas e foram almoçar no
restaurante do hotel onde tinham se hospedado, cuja especialidade era uma
tradicional omelete muito saborosa. O moço parecia um pouco decepcionado e
disse que, se não contassem com um golpe de sorte, passariam a vida toda
naquela ilhota sem encontrar a tal pedra escura.
À tarde, decidiram contratar um guia. Indicaram-lhes um rapazinho com
cerca de dezesseis anos, que nascera no monte São Michel e por toda a vida
morara ali com seus pais. Segundo ele lhes dissera, apenas cerca de cem famílias
habitavam agora a pequenina aldeia, pois quase todas as casas haviam se
transformado em estabelecimentos comerciais ou pousadas. Chamava-se
Remígio e, embora fosse muito jovem, conhecia a ilha como ninguém.
Michael não quis entrar em detalhes com o guia e explicou-lhe só o
necessário. Disse ao rapaz que estavam procurando por uma pedra escura, a qual
deveria exibir alguma inscrição, algum símbolo, mas não sabiam dizer
exatamente o quê. O jovem achou estranho aquele pedido e afirmou não se
lembrar de nenhuma pedra com estas características, mas era possível que
existisse. Remígio sugeriu iniciar as buscas pelas muralhas mais próximas ao
mar. Enquanto procuravam, o guia foi lhes contando um pouco da história do
monte São Michel, talvez por força do hábito. De acordo com ele, a pequena ilha
já era considerada um território sagrado pelos antigos povos celtas, que ali
ergueram dolmens e menires. No ano de 708 de nossa era, São Miguel apareceu
em sonho ao bispo de Avranches, mais tarde canonizado como Santo Aubert, e
pediu-lhe para erguer um santuário em sua homenagem no monte Tombe, como
era conhecido aquele local. O bispo, porém, sendo um homem cético, não tomou
qualquer iniciativa. Apenas depois do terceiro sonho, quando São Miguel pôs
seu dedo angélico sobre a cabeça do religioso, abrindo-lhe um buraco na testa, é
que Santo Aubert acreditou. Imediatamente, mandou construir uma igreja
dedicada ao poderoso arcanjo e logo se iniciaram as peregrinações de romeiros à
ilha, em busca de graças. Ainda hoje, pode-se ver o crânio do bispo com o
orifício na testa.
Segundo uma velha lenda, no topo do monte existia uma pedra enorme, que
os trabalhadores não conseguiam retirar de maneira alguma. Um camponês da
região fora informado em sonho que aquele rochedo só seria removido dali por
seu filho, um menino com menos de dez anos. O bom homem acreditou
piamente na mensagem recebida e conduziu o pequeno para executar a tarefa.
Quando os operários ouviram o sujeito dizer tal disparate, caíram em franca
gargalhada, zombando do ingênuo camponês, pois durante semanas tentaram
remover sem sucesso aquela imensa pedra. Porém, bastou que a criança
encostasse um de seus dedos nela, para se precipitar encosta abaixo. Ao dizer
isto, Remígio concluiu:
- Vejam! O rochedo ainda se encontra ali. Sobre ele, foi construída uma
pequena capela em homenagem a Santo Aubert.
Eles debruçaram-se um pouco na muralha e viram lá embaixo uma velha
ermida, edificada sobre rochas. Michele achou aquela narrativa muito bonita,
embora não acreditasse em uma única palavra de tudo aquilo. Por sua vez,
Michael ouviu a história da ilha com vivo interesse, mas notou que o jovem guia
nada dissera a respeito de Satanás ter sido precipitado do reino celeste naquele
local. Com toda certeza, não sabia coisa alguma sobre as torres do demônio, nem
que o monte São Michel teria sido, em tempos imemoriais, um lugar de adoração
do diabo.
Após examinarem em vão boa parte das muralhas, Remígio sugeriu que
eles fossem dar uma olhada na cripta, onde ainda se podiam ver algumas paredes
de pedras da igreja primitiva. Michele já não aguentava mais subir degrau algum
e preferiu ficar aguardando ali, sentada num murinho. Cerca de uma hora depois,
os dois rapazes retornaram, sem obter qualquer êxito.
Como já estava escurecendo, Michael resolveu dispensar o guia, após ter
pago pelos seus serviços, pois não precisavam mais dele naquela noite. Se
houvesse necessidade, chamariam-no outra vez na manhã seguinte. O casal
retornou ao hotel e subiu para o quarto, que não era grande, mas muito elegante
e confortável. A menina sentia dores nas pernas, pois estava desacostumada a
subir tantas escadas, e desejava muito tomar uma ducha quente. Michael ligou o
chuveiro e sentiu a temperatura da água com a ponta dos pés, aprovando. Em
pouco tempo, o vapor inundou todo o banheiro, embaçando os espelhos. Após
terem tomado banho, Michael abriu seu notebook e entrou na internet, para ver
se descobria alguma informação ligando o monte São Michel aos templários.
Enquanto isso, Michele sentou-se na outra cama e pôs-se a jogar Paciência com
um baralho que ela sempre trazia dentro da bolsa. Os seus cabelos ainda estavam
molhados e pingavam sobre aqueles ombros incomparáveis. Durante certo
tempo, Michael navegou por inúmeros sites sem descobrir nada. Por fim,
desligou o computador e veio ver o que ela estava fazendo.
- Estou jogando Paciência. Quer aprender?
- Não tenho paciência para isso. Disse gracejando.
- Eu gosto! Ajuda a distrair, passar o tempo...
- Não está com fome? Já são quase dez horas e não comemos nada desde o
almoço.
- Agora que você tocou no assunto...
- Ótimo! Então vamos, pois estou faminto!
A menina recolheu o baralho e os dois desceram ao restaurante do hotel.
Como não havia muita gente no salão, eles escolheram a mesa que quiseram e
acabaram sentando-se ao lado de uma janela, através da qual se podia
contemplar a rua. Para manter a forma, Michele estava acostumada a fazer
refeições leves e por isso pediu apenas uma salada de alface com tomates. Por
sua vez, Michael comia de tudo, pois não tinha tendência a engordar.
Examinando o cardápio atentamente, escolheu macarronada com frango, bife e
ovos mexidos, pratos que sua mãe preparava. Enquanto jantavam, nenhum dos
dois falou sobre demônios, segredos templários ou qualquer outra coisa ligada à
vinda deles ao monte São Michel.
Depois, como estavam sem sono, resolveram caminhar pelas ruas da aldeia,
agora tão tranquilas e desertas, não lembrando em nada aquela manhã e tarde,
quando as vias se achavam tomadas pelos turistas. Praticamente já não se
encontrava mais pessoa alguma fora das pousadas e o monte São Michel parecia
um gigante mitológico adormecido. Ao longe, era possível ouvir o som mágico
de um violão, executando uma magnífica serenata para as estrelas. Os dois
jovens sentiam-se arrebatados por toda aquela atmosfera romântica e
caminhavam embevecidos de felicidade, com as mãos unidas, pelas ruas escuras
da ilha, encharcadas de lendas e mistérios. Lá do céu, uma lua enorme despejava
sobre os telhados do casario, as muralhas da abadia e as copas das árvores sua
luz pálida e melancólica.
Pouco além da zona comercial, Michael e Michele sentaram-se nos degraus
de uma das inúmeras escadarias que levava ao topo do monte. O lugar era
escuro, deserto e convidava a troca de carícias. Ali permaneceram por algum
tempo, até que decidiram caminhar mais um pouco pelos labirintos ermos e
escuros da ilha. A noite estava bastante agradável e não havia uma única nuvem
a toldar o céu silencioso. Michael sentia um supremo contentamento lhe
invadindo o peito, pois a cada minuto amava mais aquela menina adorável. A
única coisa que o atormentava era a possibilidade de se deparar, a qualquer
instante, com os tais homens de preto. Sabia que não só a sua vida, mas também
a de Michele, corria perigo.
- Você parece um pouco preocupado... – disse a garota.
- É que me lembrei daqueles bandidos e não me sinto seguro em parte
alguma.
- Mas afinal, quem são eles e querem os livros para quê?
- Com toda certeza, estão a mando de fanáticos religiosos ligados à cúpula
da Igreja. Não há outra explicação, pois não mostrei os livros a mais ninguém.
Devem crer que Jacques de Molay revela em seu diário o local onde foi
escondido o tesouro do Templo, que desejam se apoderar. Segundo imaginam, eu
também estaria procurando por isso...
- Você já leu o diário várias vezes. Não há nenhuma informação sobre esse
lugar misterioso? Acha impossível que alguém encontre a fortuna templária?
- A leitura não é fácil, pois o manuscrito deixado pelo último grão-mestre
da Ordem é um tanto confuso. Mas há pistas, sim! A certa altura, ele afirma num
verso que o tesouro dos Pobres Soldados de Cristo repousa à sombra de certo
tríplice phallus, nos domínios da rainha escura. Pode não ser muito clara, mas é
uma indicação precisa.
- E isto faz algum sentido para você?
- Não faço a menor ideia. Mas se descobríssemos o significado desse
tríplice phallus e quem é essa rainha escura, talvez pudéssemos desvendar
também este enigma...
- Ouvi dizer que muita gente ao longo do tempo procurou em vão por esse
tesouro... talvez nem mais exista...
- Certamente existe e ainda está no local onde o esconderam! Os templários
eram muito ricos e acabaram sendo vítimas da cobiça alheia. Porém, foram
avisados que o rei desejava se apoderar de todo o dinheiro da Ordem e
conseguiram levá-lo para um lugar seguro. Ainda ninguém o encontrou, pois não
sabem onde procurar, não tiveram acesso às informações que eu tenho...
Enquanto conversavam, caminhando pelas ruas da velha cidadela, Michael
começou a ter a sensação de que estavam lhes seguindo. Deteve os passos, fez
um gesto com um dedo, pedindo silêncio, e aguçou os ouvidos. Apenas o vento
parecia cochichar segredos de alcova entre os galhos dos arvoredos. A menina
quis saber o que estava acontecendo e ele lhe revelou a sua desconfiança. Há
poucos minutos, teve um pressentimento de ver alguns vultos se escondendo por
detrás das muralhas, mas não deu muita atenção ao fato, pois poderiam ser
turistas como eles, passeando pelas vielas sinistras da aldeia. Agora, pensou tê-
los visto outra vez, como se os espionassem. Michael apertou ainda mais a mão
de Michele e os dois aceleraram os passos, procurando esquivarem-se pelos
inúmeros becos e ruelas da ilha. Logo depois, eles olharam para trás e viram os
vultos de dois homens fumando em uma das esquinas, a uma boa distância deles.
A menina foi tomada por um súbito sentimento de terror e perguntou:
- São os homens de preto que o desejam matar?
- Não creio. Você os viu na loja de antiguidades em Londres, lembra-se?
Um deles é um sujeito alto, bastante forte, e o outro é baixo e atarracado. Estes
parecem mais ou menos da mesma altura e são magros... Talvez nem estejam
atrás da gente... quem sabe não estamos simplesmente imaginando coisas...
Porém, enquanto o rapaz tentava convencer a namorada e a si próprio de
que tudo aquilo talvez fosse paranóia deles, os dois homens sombrios
começaram a subir a rua, caminhando na direção onde Michael e Michele se
encontravam. Ao vê-los se aproximando, o jovem casal foi dominado por um
medo extremo e eles aceleraram ainda mais os passos. Como seus perseguidores
fizeram o mesmo, não tiveram mais qualquer dúvida e passaram a correr aflitos
pelas vielas escuras, subindo escadarias tortuosas, entrando em travessas
sinistras, até se esconderem atrás de um murinho de pedra, num patamar acima
do local onde os sujeitos estavam. De seu esconderijo, podiam ver os dois
homens lá embaixo, que pareciam desorientados, sem saber para qual lugar
deveriam seguir. Michael abraçou Michele, como se quisesse protegê-la, e disse:
- Agora tenho certeza. Estes homens não são os assassinos que desejam se
apoderar do diário de Jacques de Molay. Aliás, nem são homens, são demônios!
Arregalando muito os olhos, Michele indagou:
- Como assim?
- É isso mesmo! Não são humanos, são criaturas do inferno. Observe as
suas sombras...
A lua estava alta e incidia sua luminosidade pálida diretamente sobre os
dois. Ao contemplá-los, a menina constatou aterrorizada que as sombras deles
apresentavam chifres demoníacos. Abraçando-se ainda mais ao rapaz, proferiu:
- Também estão atrás de você?
- Estão atrás de Satanás. Como eu já lhe disse, o demônio foi aprisionado
pelos essênios e trazido para algum lugar do Ocidente pelos templários, onde
permanece em seu cativeiro. Estes diabretes acham-se por toda parte e
descobriram que encontrei livros preciosos, os quais podem revelar o local da
prisão de seu líder. Por isso estão me seguindo, para eu os conduzir ao cárcere
diabólico...
- Dizendo isso, você me deixa ainda mais com medo!
- Não tema, eles não nos farão mal. Imaginam que precisam de mim para
alcançar os seus objetivos...
Alguns minutos depois, os dois diabretes desistiram de procurar Michael e
passaram a descer as escadas, desaparecendo por completo nas ruas do vilarejo.
Por precaução, eles ainda permaneceram durante algum tempo naquele
esconderijo, até que Michele pediu:
- Vamos voltar ao hotel? Estou apavorada!
Chegaram ao quarto, trancaram bem a porta e foram dormir.
Na manhã seguinte, enquanto faziam o desjejum no restaurante, Michele
lhe disse:
- Michael, estamos procurando a pista escondida pelos templários no local
errado!
- Você acredita que o monte São Michel pode não ser a primeira torre do
demônio?
- Não é isso. Apenas devemos seguir de maneira mais estrita a indicação
que Jacques de Molay nos deu em sua trovinha. Ele foi bem claro. O sinal
encontra-se numa pedra escura, quase junto do mar. Até agora, procuramos só no
interior do monte São Michel, na parte de dentro das muralhas. Talvez a pista
tenha sido colocada em alguma pedra do lado de fora, literalmente junto ao
mar...
O rapaz deu um gole em sua xícara de chocolate e, com os olhos brilhantes,
indagou:
- Sabe que você pode estar com razão? Como não pensamos nisso antes? É
claro! Há uma grande possibilidade da pista ter sido deixada pelos templários do
lado externo, inscrita numa pedra da muralha ou num rochedo junto ao mar...
Ainda era muito cedo, quando eles começaram as suas buscas. O rapaz
sentia-se tão radiante, que Michele quis bater um retrato dele para guardar de
recordação, tendo a ilha como paisagem de fundo. Após ter tirado algumas fotos,
a menina inquiriu por onde deveriam começar. Michael contemplou a magnífica
abadia e disse:
- Tenho uma ideia. Eu contornarei a ilha pela direita e você pela esquerda,
prestando bastante atenção em todas as pedras escuras. Depois, vamos nos
encontrar do outro lado, pois assim ganharemos tempo. De acordo?
- Para mim, está ótimo!
Os dois despediram-se com um beijo na boca e cada qual seguiu por um
lado da ilha. O rapaz estranhou o fato de não haver pessoa alguma nas
imediações do monte São Michel, mas nem se ateve a isto, imaginando que
ainda era muito cedo para a invasão dos turistas. Tendo passado cerca de trinta
minutos, um guarda veio atrás dele, aparentando bastante nervosismo:
- Amigo! Amigo! Não leu os avisos? Você precisa voltar agora! A maré está
subindo rapidamente!
Michael o encarou um tanto assustado.
- Por quê? É perigoso?
- Perigosíssimo! Tudo aqui estará debaixo d’água em poucos minutos.
Como dizem os moradores da região, a maré sobe na velocidade do trote de um
cavalo. Inúmeras pessoas já foram tragadas pelo mar. Vamos, não temos tempo a
perder!
- Meu Deus do céu! A minha namorada está do outro lado da ilha!
- Que me diz? Bradou o guarda aterrorizado.
- Tenho de encontrá-la!
Ao proferir tais palavras, Michael pôs-se a correr na direção do oceano. O
guarda saiu em seu encalço, gritando aflito para ele parar. Como era muito mais
rápido, alcançou o rapaz logo adiante, derrubando-o no chão.
- Está louco? Não vou permitir que se mate!
- Mas a minha garota está lá! Disse chorando.
- Se deseja salvá-la, faça a coisa correta! Não temos um segundo a perder.
Vamos avisar o pessoal encarregado pela segurança dos turistas.
Michael ainda relutava; porém, ao ver as águas do oceano tão próximas,
convenceu-se de que isto era a coisa mais certa a ser feita. Além do mais, o
policial era mais forte do que ele e agora o estava puxando firmemente por um
braço. O guarda alertou uma equipe de segurança, que imediatamente passou a
procurar por Michele. Inúmeras pessoas foram mobilizadas a fim de realizar a
busca. Munidos de rádios e binóculos, eles subiram em diversas partes da
muralha para ter uma visão melhor dos arredores. A maré já havia se elevado,
transformando o monte São Michel numa ilha. Quanto mais o tempo passava,
menores eram as chances de achar a menina com vida. Um dos seguranças
ordenou que se preparasse um par de barcos para procurar a garota um pouco
além da costa, pois havia uma corrente de retorno, quando a maré alta
precipitava-se contra as rochas costeiras e ela poderia ter sido arrastada para as
águas abertas. Isto deixou Michael enlouquecido, uma vez que a possibilidade
dela ter se afogado era real. Quis ir junto num dos barcos, mas não obteve
permissão do chefe da segurança. Enquanto o rapaz tentava convencer o sujeito
de todas as maneiras a deixá-lo embarcar, chegou pelo rádio a notícia: Michele
tinha sido encontrada!
Os olhos do jovem encharcaram-se de lágrimas, pois ele experimentava
uma angústia terrível, uma sensação insuportável, como se mil elefantes
tivessem disparado ensandecidos dentro de seu peito. Somente sentiu certo
alívio, ao ouvir a voz metálica no rádio afirmar que Michele estava viva. O chefe
da segurança perguntou se ela já havia sido resgatada e responderam de maneira
negativa. Em seguida, quis saber onde a menina estava e disseram que
permanecia junto à capela de Santo Aubert, agarrada aos rochedos. No mesmo
instante, Michael e o homem saíram correndo na direção indicada, alcançando o
local em poucos minutos.
Muitos agentes encarregados pela segurança dos turistas já se encontravam
ali, espremendo-se diante da pequena área em frente à velha ermida. Por incrível
que pareça, nada havia sido feito, pois ainda estavam procurando por uma corda.
Ao ver a jovem lá embaixo, agarrada à saliência de algumas pedras, lutando
desesperadamente pela vida, Michael tentou pular a muralha para descer o
rochedo, mas foi detido pelos seguranças, pois isto era uma autêntica loucura.
Quando a corda enfim chegou, a água do mar já cobria Michele até quase a
altura dos seios. A maneira mais simples de resgatá-la seria içando-a. Um
policial ofereceu-se para descer amarrado até lá; contudo, julgaram mais rápido e
seguro a primeira ideia. Através de um megafone, o chefe da segurança explicou
à menina que ela deveria apanhar a corda, no momento em que esta fosse
lançada na sua direção. Michele concordou e permaneceu aguardando, já quase
sem forças. Um dos homens fez um laço numa das pontas da corda e, girando-a
por cima da própria cabeça, feito um hábil cowboy dos filmes de faroeste, atirou-
a sobre a jovem. Porém, não foi feliz em sua pontaria por causa do vento e o laço
caiu a uma boa distância do alvo. Desesperada, a moça ainda tentou apanhar a
corda salvadora, largando o rochedo e espichando-se o quanto pôde, mas não
atingiu o seu objetivo e acabou caindo de costas, desaparecendo nas águas do
oceano.
Durante os longos segundos que Michele permaneceu submersa, todas as
pessoas ali perderam a respiração, agoniadas, pois ninguém era capaz de dizer se
ela escaparia com vida. Foram necessários três homens para conter Michael, que
ficara alucinado e queria, de qualquer forma, atirar-se lá embaixo para resgatar a
amada. Finalmente, após uma angústia atroz, Michele emergiu. Por sorte, ela não
se achava longe da corda flutuante e, nadando em sua direção com alguma
dificuldade, conseguiu apanhá-la. Isto fez com que todos sentissem um alívio
muito grande e o próprio Michael parecia agora um pouco menos desesperado.
Pelo megafone, o chefe da segurança pediu para a menina passar o laço existente
na ponta da corda por cima de sua cabeça e apertá-lo debaixo de seus braços. Ela
obedeceu de imediato e, em seguida, apanhou a máquina fotográfica que tinha
colocado num vão entre as pedras a fim de poder se agarrar melhor ao rochedo.
Quando viram que Michele estava bem segura, os homens começaram a
içá-la, dizendo a ela para se apoiar com os pés contra o rochedo. Apesar do
imenso cuidado, a menina ralou-se bastante nas saliências das rochas, sobretudo
nos braços, ombros e costas. Subitamente, próximo ao meio do caminho, ela
gritou aflita para os seguranças pararem um instante de suspendê-la. Todos
ficaram preocupados, pois imaginaram que a corda estaria escapando e ela
pudesse despencar daquela altura. Porém, não era esse o motivo. Michele
apoiou-se com as pernas no rochedo a fim de se estabilizar um pouco, ajeitou
como pôde a câmera diante dos olhos e bateu uma fotografia de certa pedra
escura... Depois, pediu para ser outra vez erguida, até que um dos homens
conseguiu lhe alcançar o braço e a puxou por cima do muro, colocando-a na
segurança do pequeno pátio em frente à ermida de Santo Aubert.
Sem poder controlar a emoção, Michael abraçou-se à namorada, cobrindo-a
de lágrimas enternecidas. Os dois beijaram-se longamente e apenas se
separaram, quando a plateia pôs-se a aplaudi-los, não se sabe bem por quê. Em
seguida, ela fitou os olhos do rapaz e disse satisfeita:
- Conseguimos, meu amor!
Então, Michele ligou a máquina fotográfica para lhe mostrar no visor uma
pedra escura, onde se via a cruz templária por cima da letra S.
A segunda torre

No outro dia, logo ao amanhecer, Michael e Michele tomaram um ônibus e
dirigiram-se à simpática cidadezinha de Avranches, situada a pequena distância
do monte São Michel. Como ainda não sabiam para onde deveriam seguir, pois
não faziam a menor ideia do local em que se localizava a segunda torre do
demônio, resolveram passar a manhã naquele vilarejo, que possuía pouco menos
de dez mil habitantes, conforme lhes informara um velho jornaleiro. A menina
comprou uma revista de palavras cruzadas, para fazer durante a próxima viagem,
e perguntou ao sujeito o que merecia ser visto naquele lugar. O bom homem
ajeitou os grossos óculos sobre o nariz, refletiu por alguns segundos e respondeu
que eles não deveriam ir embora sem dar um passeio pelo parque da cidade.
Avranches era famosa por suas flores belíssimas e árvores notáveis. Turistas de
toda a Europa vinham até aquela região da Baixa Normandia para conhecer as
suas maravilhas naturais.
Após caminharem pelas ruas tranquilas de Avranches, onde puderam
admirar inúmeras casinhas típicas das pequenas cidades francesas, chegaram ao
“Jardin des Plantes”, um parque belíssimo, de tirar o fôlego. Michael confessou
que jamais estivera em um jardim tão bonito em toda sua vida e só o conjunto da
entrada, composto pelo magnífico portal, ladeado por sólidas colunas, encimadas
por vasos ornamentais, além de um deslumbrante arranjo de plantas em frente ao
portão de acesso, já valia a visita. Uma infinidade de roseiras da China,
hortênsias, magnólias, camélias, azaléias, parecia desfilar todo seu esplendor
paradisíaco aos turistas maravilhados. Para tornar aquele passeio ainda mais
inesquecível, o dia estava admirável e não havia uma única nuvem no céu
extraordinariamente azul.
Enquanto caminhavam pelo parque, Michael recordou-se que um de seus
escritores prediletos, Guy de Maupassant, citara o “Jardin des Plantes” no conto
Horla; tal lembrança fez aumentar ainda mais a sua admiração por aquele local.
As alamedas repletas de flores coloridas eram deslumbrantes e o rapaz
aproveitou para tirar diversas fotos de Michele. Em uma delas, a menina
aparecia com um crisântemo cor-de-rosa preso aos cabelos, que ela apanhara
num dos canteiros; Michael achou-a tão linda, que prometeu ampliar aquele
retrato e fazer um quadro.
Já passava do meio-dia, quando eles se sentaram num banco, diante de um
lago adorável, à sombra de uma árvore generosa. Por toda a manhã, haviam
conversado a respeito de diversos assuntos, mas nenhum dos dois pronunciara
qualquer palavra sobre as torres do demônio ou as intrigantes pistas deixadas ali
pelos cavaleiros templários. Era como se, por algumas horas, tivessem
combinado tacitamente desligarem-se por completo de tudo aquilo que estava
acontecendo em suas vidas, para poderem desfrutar melhor aqueles momentos
agradáveis. Porém, enquanto descansavam em tal recanto bucólico, tomando
sorvetes de baunilha, Michele disse:
- Oh, Michael, tenho tanto medo que aconteça algo de ruim com você...
- Minha querida, como eu queria lhe dizer para não se afligir com isso, mas
não posso. Sei que minha vida corre perigo, pois a qualquer momento podemos
nos deparar outra vez com aqueles bandidos...
- Por que você não tira uma cópia dos livros para entregá-la de uma vez aos
homens que estão lhe perseguindo?
- Não é bem assim. Agora, já não sei se o desejo deles é apenas este.
Tornei-me uma pessoa muito perigosa para a igreja, pois descobri segredos
terrivelmente valiosos. Se for divulgado que Cristo não ressuscitou ao terceiro
dia, conforme se pregou por dois mil anos, mas que seu corpo desapareceu do
túmulo onde se encontrava, pois fora roubado pelo demônio, isto rachará a igreja
ao meio...
- E por que o diabo roubou o corpo de Cristo?
- Para humilhar a Deus, mantendo seu filho na podridão do inferno...
- Toda esta história deixa-me cada vez mais confusa e amedrontada.
- Esses assassinos só pouparão a minha vida em um único caso. Se eu os
convencer de que estou prestes a descobrir o tesouro templário. Aí, a ganância
falará mais alto e, certamente, vão preferir me deixar vivo, para que eu os leve
até o local onde Jacques de Molay mandou esconder toda a riqueza da Ordem.
- Oh, Michael, me abrace...
Os dois permaneceram em silêncio durante alguns minutos, sentindo a brisa
fresca lhes roçar os cabelos. Depois, fitando os olhos azuis do rapaz, Michele
inquiriu:
- E o que você pensa a respeito da pista que descobrimos?
Michael ligou a câmera para ver no visor a foto em questão.
- Não há dúvidas de que ela é autêntica e foi deixada ali pelos cavaleiros da
Ordem, conforme indica a cruz templária sobre a letra S. Agora, se você me
perguntar o que ela significa, confesso não fazer a menor ideia, embora tenho
meditado bastante sobre isso.
- Também eu, mas nenhuma resposta me vem à mente.
- Talvez as pistas colocadas pelos templários em cada uma das sete torres
do demônio sejam sempre letras. Depois de unidas, formarão uma palavra-
chave, que nos indicará o cárcere onde Satanás se acha aprisionado.
Michele reuniu os seus cabelos negros em uma única trança e pôs-se a
enrolá-los de maneira graciosa sobre um dos ombros. Porém, logo se cansou do
entretenimento, atirando-os outra vez atrás das costas.
- O Malleus Maleficarum não diz nada a respeito da segunda torre do
demônio?
- Diz, mas me pareceu um dos enigmas mais difíceis de desvendar. Ouça...
Após abrir sua pasta, o rapaz retirou de dentro dela a cópia do Malleus, que
trazia sempre consigo. Depois, folheando as páginas rapidamente até encontrar o
trecho desejado, traduziu-o para Michele.

“Eleva-se a segunda torre no coração de Lutécia, na casa da virgem adorada


pelos homens.”

A menina sorriu com aqueles olhos hipnóticos e arrebatadores, que só os
anjos possuem. O seu rosto, porém, demonstrava não ter compreendido coisa
alguma. Ajeitando os cabelos agora sobre o outro ombro, perguntou:
- Quem seria Lutécia, essa virgem adorada pelos homens?
- É exatamente o que precisamos descobrir! Esse nome não me é estranho...
Se não me engano, creio ter lido algo a respeito de certa Lutécia na biblioteca do
convento de Santa Maria delle Grazie...
- Eu não entendi direito... esta torre eleva-se no coração de Lutécia ou em
sua casa?
- O texto é um tanto obscuro. Aparentemente, não há qualquer sentido, mas
talvez seja uma linguagem simbólica. Quando deixarmos o parque, quero ir até a
biblioteca da cidade, para pesquisar o assunto em alguns livros...
- E o que diz a trovinha escrita por Jacques de Molay, a respeito do local
onde se encontra a pista deixada pelos cavaleiros do Templo?
Como o rapaz trazia estes versos de cor, recitou-os:

“Neste templo abençoado,


Que a fé fez levantar,
O sinal tão desejado
Entre reis hás de encontrar.”

Pensativa, a menina uniu as mãos diante do rosto, indagando:


- Isto faz algum sentido para você?
- O “templo abençoado” deve ser uma igreja ou um santuário, que se liga de
alguma maneira a Lutécia. Agora, não me pergunte quem são estes reis
misteriosos, entre os quais se acha o sinal posto pelos monges da Ordem, pois
não faço a menor ideia...
Pouco depois, os dois deixaram o “Jardin des Plantes” e dirigiram-se à
biblioteca da cidade. No caminho, avistaram um vendedor de cachorros-quentes
e resolveram almoçar. O sujeito perguntou se eles desejavam lanche simples ou
caprichado. A menina quis saber qual era a diferença e o bom homem disse que
o último vinha com duas salsichas, um pão maior e muita batata. Escolheram o
caprichado. O vendedor apanhou dois pães enormes e os encheu de batata e
vinagrete. Em seguida, abriu a tampa de uma panela, onde borbulhava água
fervente, e pescou quatro salsichões com um garfo. Meteu-os no interior dos
pães, cobriu tudo com muita mostarda e ketchup, envolveu-os em guardanapos e
os entregou aos fregueses. Tão logo pagaram o homem, Michael e Michele
foram se sentar num banco de uma praça, o qual ficava embaixo de uma árvore
imensa. A menina atrapalhou-se um pouco com o tamanho de seu cachorro-
quente e, além de ter se lambuzado toda, pois boa parte do vinagrete lhe escorreu
pelo braço, perdeu metade de uma salsicha, que escorregou do pão e foi cair na
calçada, após ela ter dado uma mordida pouco feliz. No mesmo instante, um
cachorro abocanhou a inesperada merenda e saiu correndo, como se tivesse
batido uma carteira.
Próximo daquela praça, uma velha senhora regava as plantas de seu jardim
com uma mangueira e Michele pediu para lavar os braços. Depois disso,
seguiram até a biblioteca municipal, que ficava a pouca distância de onde
estavam. Apesar de ser uma cidade pequena, Michael surpreendeu-se com a
quantidade de livros ali existente. Não havia mais ninguém no interior da ampla
sala, além de um velho monge lendo um grosso volume numa das mesas de
canto. O rapaz dirigiu-se à única funcionária e perguntou onde se localizavam os
livros de religião. Como era simpática e solícita, a mulher levou Michael até
uma estante, dizendo que ele ficasse à vontade para retirar das prateleiras
quantos livros quisesse, apenas os devolvesse no mesmo local. Ele agradeceu
muito a gentileza e passou a buscar alguma informação sobre a tal “virgem
adorada pelos homens”.
A ideia do rapaz era encontrar a igreja ligada à Lutécia. Por mais de três
horas, eles desceram livros e mais livros das estantes, sem descobrir nada. Para
não perder tempo, Michael ia lendo tudo muito por cima, procurando pelo nome
daquela mulher misteriosa. Com olhos atentos, corria as linhas rapidamente atrás
de qualquer informação que pudesse ajudá-lo a desvendar tal enigma. A certa
altura, a bibliotecária passou pela mesa deles e perguntou ao rapaz se desejava
algum assunto em particular. Michael restituiu mais um volume à prateleira e
respondeu:
- Na verdade, estou procurando um livro que li não faz muito tempo e trata
de uma virgem chamada Lutécia. Porém, esqueci por completo o nome da obra e
do autor...
A bibliotecária abriu um leve sorriso e disse:
- Eu gostaria muito de ajudá-lo, mas assim fica meio difícil...
O velho monge, que se achava sentado a alguma distância de Michael e
Michele, levantou-se de sua mesa e veio até o local onde os três conversavam.
Com muita delicadeza, proferiu:
- Desculpem-me a intromissão, mas não pude deixar de ouvir a conversa de
vocês. Parece que o amigo está interessado na história de Lutécia...
- Você sabe algo a respeito? Indagou o rapaz surpreso.
O homem sorriu com benevolência e respondeu:
- Tenho estudado alguma coisa sobre ordens religiosas em meus quase
oitenta anos de idade. A história da virgem Lutécia está ligada à abadia de
Cluny...
- Não me diga! Exclamou Michael com os olhos fixos no monge.
- Aqui mesmo nesta biblioteca, há pelo menos um livro que relata de
maneira sucinta a vida desta mulher extraordinária...
- E que livro é este?
- Está em algum lugar nesta prateleira...
Com certa dificuldade, o ancião abaixou-se e pôs-se a ler a lombada dos
grossos tomos, correndo sobre elas o seu dedo indicador. Ao cabo de três ou
quatro minutos, que pareceram uma eternidade ao rapaz, o monge escolheu um
volume, ergueu-se apoiando na estante, seus joelhos estalaram, e colocou o livro
sobre a mesa.
- Aqui está!
Tratava-se de uma obra bastante antiga, que descrevia a história da ordem
cluniacense. Michael abriu o livro e foi direto ao índice. Para sua surpresa, havia
um capítulo inteiro dedicado à virgem Lutécia. Ao ver aquele nome impresso no
papel, diante de seus olhos, sentiu como se dezenas de sinos repicassem em
júbilo dentro de si. O velho monge disse que precisava se retirar, pois estava
ficando tarde e despediu-se do rapaz. Depois, a bibliotecária foi outra vez cuidar
de seus afazeres, de forma que Michael permaneceu a sós com Michele. Ele
ajeitou-se melhor na cadeira e passou a ler o capítulo em questão, com redobrado
interesse. De súbito, sentiu um calafrio lhe arranhando a coluna cervical. Seria
aquele pacato monge também um diabrete, disfarçado de ser humano para ajudar
o rapaz a descobrir o cárcere do demônio? Não era muita coincidência ele saber
exatamente em qual livro se encontrava a história de Lutécia? Quis perguntar à
funcionária se o sujeito costumava vir à biblioteca com frequência, mas acabou
achando a ideia sem sentido. Além do mais, essas criaturas do inferno nunca
usariam um crucifixo sobre o peito, como o velho monge estava usando.
Tudo o que Michael leu a respeito da virgem Lutécia foi bastante revelador.
Segundo aquele livro, ela teria vivido por volta do final do século XI, na região
da Borgonha, agora pertencente à França, mas naquela época um ducado
independente. Era uma mulher profundamente religiosa e, quando chegou aos
quinze anos, fez voto de castidade, oferecendo a sua pureza a Nossa Senhora.
Certa noite, a mãe de Deus apareceu em sonho para Lutécia e lhe disse que ela
jamais conceberia em seu próprio útero, mas lhe concedeu o dom de gerar vida
no ventre alheio. De manhã, a menina acordou molhada de suor e seus lençóis
estavam manchados se sangue. Ela passou o dia na igreja, rezando ajoelhada
diante de uma estátua de Santa Maria, para esta lhe iluminar a mente e explicar
melhor qual seria o destino que os céus tinham lhe reservado. Naquela mesma
noite, Nossa Senhora apareceu outra vez nos sonhos da menina e lhe revelou a
maneira como se dariam tais milagres. Todo ventre de mulher, tocado pelas mãos
de Lutécia, conceberia. Durante os três anos seguintes, a jovem continuou
vivendo como estava acostumada, jejuando, orando, dedicando-se a ajudar os
doentes e necessitados, esquecida de que tinha sido distinguida com tal graça.
No quarto ano, porém, prodígios espantosos começaram a se manifestar.
Havia na cidade de Troyes uma mulher de nome Esperança, que desejava
ardentemente ter filhos, mas era incapaz de conceber. Por um ano, acendeu velas
no altar de Nossa Senhora e fez inúmeras promessas à santa. Um dia, teve uma
visão extraordinária. Foi-lhe revelado que ela apenas engravidaria, após ter seu
ventre tocado pelas mãos de uma jovem moradora na cidade de Cluny, localizada
ao sul da Borgonha. Como não tinham recursos, Esperança e seu marido foram
ao encontro de Lutécia a pé, dormindo ao relento, passando fome, sofrendo sede,
caminhando centenas de quilômetros, ora debaixo de chuva, em estradas
lamacentas, ora por sob o sol, que lhes cozinhava as carnes tostadas. Quando
finalmente acharam a jovem, não foi necessário sequer lhe explicar o motivo
daquela visita, pois ela parecia já ter sido avisada. Lutécia apoiou suas duas
mãos sobre o ventre de Esperança, rezou uma Ave-Maria e disse que podiam
retornar para casa. Nove meses depois, a mulher pariu dois filhos machos,
enchendo de alegria a vida dos pais.
Em pouco tempo, a notícia do milagre se espalhou e muitos outros se
seguiram. Mulheres de úteros secos afluíam de toda parte para terem seus
ventres tocados por Lutécia. Incontáveis foram as crianças geradas com a ajuda
da jovem, sempre disposta a auxiliar as pessoas, pois este era o seu destino. Uma
infâmia, porém, veio pôr fim às bênçãos que suas mãos originavam.
Nesta mesma cidade de Cluny, morava um homem chamado Benedetto
Simeão, o qual temia profundamente a Deus. Dois anos após o seu casamento, a
sua jovem esposa começou a emagrecer, perdeu toda a vitalidade da face e caiu
doente, sendo desenganada pelos médicos. Desesperado, Benedetto Simeão
apelou a todos os santos de sua crença e prometeu ir em romaria à Terra Santa,
caso sua mulher recobrasse a saúde. Como por milagre, Servília recuperou as
cores e, em menos de uma semana, ela já estava outra vez de pé, curada por
completo. Benedetto Simeão não se esqueceu de saldar a sua dívida. No mês
seguinte, tão logo conseguiu reunir o mínimo possível de provisões para
empreender tamanha viagem, pois acreditava que Deus supriria as suas
necessidades pelo caminho, o marido beijou a esposa e partiu sozinho em
direção a Jerusalém. Por mais de dois anos, ele esteve ausente, enfrentando todo
tipo de privação e padecendo deveras com o calor escaldante dos desertos.
Durante esse tempo, Benedetto Simeão pensava apenas no minuto em que
tornaria a abraçar a mulher amada. Se não fosse pela esperança de reencontrá-la,
com toda certeza teria sucumbido em face a tantas adversidades. Quando,
finalmente, retornou à sua cidade natal, cheio de saudades de Servília, foi direto
para sua casa e encontrou a mulher cantarolando entre as árvores do pomar,
grávida, ostentando uma enorme barriga de quase nove meses.
Benedetto Simeão sentiu uma flecha incandescente atravessando-lhe o peito
e alucinara de ódio. Então, a sua mulher o havia traído, deitando-se com outro
homem em sua ausência? Louco de raiva, rasgou as próprias roupas e partiu para
cima da esposa, com objetivo de estrangulá-la. Porém, ela apanhou um machado
e pôs-se aos gritos, ameaçando rachar a cabeça do marido:
- Não julgue pela aparência! Juro por Deus que sou inocente e me mantive
pura desde a sua partida!
- Como diz ser inocente, se carrega a prova do crime em seu ventre?
- Isto aconteceu porque fui tocada pelas mãos de Lutécia!
O marido arregalou uns olhos estrábicos, sem compreender. Quem diabos
era essa Lutécia? Servília explicou-lhe tudo. Tratava-se de uma bruxa e bastava
o toque de suas mãos na barriga de qualquer mulher para esta engravidar. Se não
acreditasse, que fosse ter com o padre Santoro, pois este conhecia toda a história.
- E vou mesmo! Bradou o homem ainda furioso.
Ele vestiu outra camisa e dirigiu-se à igreja, onde encontrou o tal padre
espanhol, que confirmou toda a história já previamente combinada. Este fizera
muitas visitas à provocante Servília durante a ausência do ingênuo Benedetto, a
fim de diminuir a solidão da moça. As pessoas da cidade acostumaram a ver o
padre Santoro entrar e sair da casa da jovem nos horários mais inusitados e não
foram poucos os comentários maldosos circulando pela vizinhança. Benedetto
Simeão acreditara na palavra do pároco, o qual sempre lhe parecera um homem
honesto, e convenceu-se de que a mulher era inocente. Porém, existiam muitas
línguas perversas na cidade imaginando bobagens. Quando retornou para casa,
ele percebeu que toda gente o olhava de maneira estranha, como se soubesse da
infidelidade de Servília. Por onde passava, ouvia cochichos, risinhos debochados
e, mais de uma vez, jurou escutar:
- Lá vai o cuco... lá vai o cuco!
Isto feriu o seu amor-próprio mais do que a possibilidade da traição. Aos
olhos da aldeia, era agora o marido da adúltera e tal fato o aniquilava.
Independente do comportamento de sua esposa, a sua honra havia sido atirada à
cloaca. Após três dias, não mais suportando os comentários maldosos das
pessoas, decidiu que alguém precisava pagar por sua humilhação pública. Na
opinião de Servília, a culpada de toda aquela tragédia era Lutécia, a maldita
bruxa que lhe tocara o ventre com suas mãos demoníacas. Convencido pela
esposa e dominado por um ódio supremo, Benedetto Simeão dirigiu-se até a
choupana da infeliz, localizada ao lado de um brejo, numa noite de Natal, escura
e fria. A Missa do Galo já havia terminado e todas as pessoas já se encontravam
em suas próprias casas. Naquele momento, quem contemplasse o semblante
diabólico do marido ultrajado, jamais poderia dizer se tratar do mesmo pacato
camponês, temente a Deus, que dois anos antes partira em peregrinação à Terra
Santa, a fim de agradecer enorme graça recebida. Munido de uma acha em
chamas, Benedetto Simeão ateou fogo à cabana, a qual ardeu rapidamente,
iluminando aquela madrugada aziaga, envolvida pela sinfonia dos grilos e sapos.
Em pouco tempo, o telhado de palha ruiu, desmoronando sobre a desgraçada
mulher, que dormia seu sono tranquilo. Oculto atrás de uma árvore, o cruel
Simeão ainda pôde ver Lutécia sair através da porta, debatendo-se em chamas,
até se precipitar num charco pútrido. Estava vingado.
Apesar de tudo, ela não morreu. A sua aparência, porém, tornou-se
medonha em virtude da pele ter ficado toda repuxada e as crianças atiravam-lhe
pedras. Como perdera a casa, Lutécia passou a dormir pelas ruas, onde pedia
esmolas a fim de sobreviver. Nunca mais as suas mãos tocaram o ventre de
mulher alguma. Os monges da abadia de Cluny apiedaram-se da pobre infeliz e a
recolheram para que vivesse na companhia deles. Ali permaneceu por muitos
anos, até o cabo de seus dias, levando uma vida tão piedosa e consagrada às
coisas de Deus, que todos a tinham como uma verdadeira santa.
Ao terminar de ler aquele capítulo, Michael fitou Michele com os olhos
fulgurantes e disse:
- A abadia de Cluny! É lá que se ergue a segunda torre do demônio. Agora
isto me parece tão evidente!... O tal “templo abençoado”, onde se encontra o
sinal templário, só pode ser a igreja desses monges. De acordo com o Malleus
Maleficarum, a segunda torre se eleva na casa de Lutécia, ou seja, a abadia de
Cluny, onde a virgem adorada pelos homens viveu a maior parte de sua vida. A
antiga abadia foi incendiada pelos huguenotes no século XVI, reconstruída e
novamente queimada, dessa vez pelos revolucionários ateus, durante a
Revolução Francesa. Totalmente reformada, ela permanece hoje ocupando
apenas dez por cento da área ocupada pela abadia original. Mas não é impossível
que a pista ainda se encontre por lá.
Já começava a escurecer, quando Michael e Michele despediram-se da
bibliotecária e foram atrás de um hotel para passar a noite. No outro dia,
acordaram logo cedo e se dirigiram à rodoviária de Avranches, pois não queriam
perder um minuto sequer, tão ansiosos estavam a fim de chegar à segunda torre.
Como não havia ônibus direto para Cluny, resolveram ir a Paris, de onde fariam
uma baldeação até aquela cidadezinha localizada ao sul da Borgonha. Durante o
trajeto, o rapaz pouco conversou com a namorada, tentando desvendar quem
seriam aqueles reis misteriosos, entre os quais a pista templária fora escondida.
Ele ligou o seu notebook e pôs-se a procurar por informações sobre a abadia de
Cluny. Para sua surpresa, descobriu que alguns monges cluniacenses, em tempos
idos, demonstraram certa veneração aos reis magos, chegando mesmo a lhes
erguer estátuas na abadia, pois quase os adoravam como santos. Ao ler isto,
Michael imaginou que eram os reis aludidos no diário de Jacques de Molay e
sentiu-se ainda mais excitado com a descoberta.
Enquanto viajavam, Michele pôs-se a fazer palavras cruzadas. A todo
instante, ela interrompia os pensamentos do rapaz para lhe perguntar algo que
não conseguia responder. A certa altura, indagou:
- Qual o antigo nome de Paris, com sete letras? Começa com “L”.
- Não faço a menor ideia.
Em outra situação, isto não teria importância alguma e, com toda certeza,
passaria despercebido aos dois. Mas à medida que Michele foi completando
aquele jogo de palavras cruzadas, algo extraordinário aconteceu. Subitamente, a
menina agarrou a mão do namorado e ele percebeu que seus dedos estavam frios
como uma barra de ferro exposta ao sereno em uma noite de inverno. Ao
contemplá-la, sua face se achava lívida e seus olhos brilhavam cheios de terror.
Michael ia lhe perguntar qual era o problema, quando ela apontou para a revista.
- Leia!
- Lutécia?...
- Sim, o antigo nome de Paris! Respondeu a menina.
O rapaz sentiu suas pernas formigando e abriu uma pasta no computador,
onde ele havia digitado todas as trovinhas de Jacques de Molay ao lado das
informações que constavam no Malleus Maleficarum. Estarrecido com a
descoberta, Michael exclamou:
- Deus do céu! Então, Lutécia pode ser a cidade de Paris e não uma mulher,
como imaginávamos! E o tal “templo abençoado, que a fé fez levantar”
certamente se refere à catedral de Notre-Dame, pois se localiza no coração da
capital francesa! Mas é claro e tão óbvio... A virgem adorada pelos homens é
Nossa Senhora e a “casa” dela seria esta igreja, edificada em sua homenagem!
Após concluir isto, o rapaz procurou na internet mais informações a
respeito da catedral e descobriu a chave que faltava para desvendar aquele
enigmático quebra-cabeça. Eufórico, deu um longo beijo em Michele e disse,
mostrando-lhe uma fotografia da igreja:
- Veja isto sobre os três imensos portais da fachada ocidental. Há vinte e
oito estátuas com cerca de três metros e meio de altura cada uma, representando
figuras do Antigo Testamento. Este conjunto é conhecido como a Galeria dos
Reis! É aqui que se encontra a pista deixada pelos templários. Estávamos indo ao
lugar errado!
Pouco depois, o ônibus estacionou em um posto de gasolina e os
passageiros foram informados que a viagem seguiria em trinta minutos. Em vista
disso, todos desceram para ir ao banheiro ou comer alguma coisa. Michael e
Michele sentaram-se em uma mesa da lanchonete e pediram dois hambúrgueres.
Enquanto aguardavam, o jovem disse à menina que telefonaria a Celestino, pois
desejava lhe avisar sobre as descobertas realizadas até aquele momento. Como
se achava deveras entusiasmado, o moço nem notou que na mesa de trás, de
costas para eles, estavam sentados Macrino e seu comparsa. Ao ouvirem aquelas
palavras, os dois sujeitos levantaram-se e se dirigiram à única cabine telefônica
do posto. Alguns minutos depois, Michael caminhou até lá; porém, quando ia
entrar nela, um motoqueiro todo tatuado, com grossas correntes penduradas em
sua roupa de couro, avançou perigosamente sua motocicleta sobre o rapaz, quase
o atropelando. De maneira pouco educada, o bruto deu um empurrão em
Michael, que caiu no solo de pedrisco, ralando o seu braço. Em seguida, disse de
forma arrogante:
- Cheguei primeiro, mocinha!
Foram as suas últimas palavras. Michael levantou-se para lavar o sangue da
ferida em uma torneira a alguma distância dali. No momento em que o
motoqueiro começou a discar o número pretendido, rindo por ter suplantado o
adversário, a cabine explodiu violentamente. Um formidável estrondo foi ouvido
e toda gente correu até ali para ver o que acontecera. Michael reconheceu
Macrino e seu parceiro, os quais entraram num carro e desapareceram na estrada.
Agora, tinha absoluta certeza de que não só estavam atrás de seus preciosos
livros, como também o desejavam matar. Michele abraçou-se ao namorado e
sentiu um grande alívio ao vê-lo com vida. Dez minutos depois, a polícia chegou
e reteve o ônibus por um bom tempo. Os guardas fizeram inúmeras perguntas a
todos e escanearam a digital de seus dedos a fim de registrar quem se encontrava
presente, pois poderiam ser chamados em breve para darem mais explicações.
Em virtude disso tudo, Michael nem teve como telefonar ao amigo. Após muita
espera, o ônibus finalmente obteve permissão de partir e seguiu viagem.
Só chegaram à catedral de Notre-Dame, quando a tarde começava a
escurecer. O rapaz ficou tão impressionado com a grandiosidade da construção
em estilo gótico que, durante alguns segundos, permaneceu estático, admirando
em silêncio tamanha maravilha arquitetônica. Defronte à fachada ocidental, a
mais famosa, Michael recordou-se do infeliz Quasímodo, o notável personagem
criado por Victor Hugo. Do alto daquelas torres, o pobre corcunda contemplava
a cidade de Paris, então muito menor do que a atual metrópole, trazendo no peito
o seu grande amor pela jovem cigana Esmeralda, cujo verdadeiro nome era
Agnes.
Depois do incidente no posto de gasolina, o rapaz aproveitou para ler no
ônibus algo sobre Notre-Dame e descobriu informações preciosas. Antes do
edifício atual ser construído, exatamente no mesmo lugar, já existia ali uma
antiga igreja, a primeira erguida em Paris pelos cristãos, em meados do século
VI. Porém, em época anterior, tal sítio já apresentava uma forte ligação com
cultos religiosos, pois tanto os romanos, quanto os celtas, utilizaram-no para suas
cerimônias. Ao ler isto na internet, Michael encheu-se de esperança,
convencendo-se ainda mais de que estava no local procurado. Ali, em tempos
muito remotos, houve celebrações destinadas a venerar Satanás.
Ao entrarem na catedral, dirigiram-se à sacristia, onde encontraram um
padre se preparando para rezar uma missa. O rapaz apresentou-se ao sacerdote, o
qual se chamava Estevam, e lhe disse que estavam fazendo pesquisas
arqueológicas e precisavam subir até a Galeria dos Reis, pois ali existia um sinal
deixado pelos cavaleiros templários.
- Que sinal? Indagou o velho padre.
- Não sabemos direito. Mas é muito importante e isto interessa diretamente
à igreja.
Estevam foi muito simpático e respondeu que os levaria até lá após a missa,
a última daquele dia. Michael agradeceu muito a gentileza e despediu-se do bom
homem. Em seguida, aproveitou para conhecer melhor o interior do velho
templo, pois nunca tinha estado ali antes. Achou a nave central gigantesca e,
excetuando a Basílica de São Pedro, não se lembrava de outra igreja tão
comprida e alta quanto aquela. As grossas colunas emprestavam a Notre-Dame
uma atitude austera, transmitindo aos fiéis ideia de solidez e eternidade. Não
havia muita gente para aquela missa e grande parte das luzes ainda estava
apagada. Junto aos corredores laterais, ficavam diversas salinhas com pequenos
altares. Em quase todas, a única iluminação provinha de algumas velas postas
em castiçais circulares, que produziam uma luz mortiça e enfadonha. Michele
achou aquele recinto muito triste e, puxando o namorado pelo braço, dirigiram-
se a outra parte.
Pouco depois, já se encontravam outra vez do lado de fora e Michael
aproveitou para tirar diversas fotografias da menina diante da igreja. O rapaz
permaneceu fitando as vinte e oito estátuas que compunham a Galeria dos Reis.
Certamente, o sinal deixado pelos cavaleiros da Ordem achava-se escondido
atrás de alguma delas. Com sua máquina fotográfica, Michael aproximou a
imagem das esculturas ao máximo, observando detalhes interessantes, mas não
descobriu pista alguma. Logo depois, ele ouviu um guia dizendo a um grupo de
turistas que aquelas estátuas não eram mais as mesmas do tempo dos templários.
Durante a Revolução Francesa, todas foram destruídas pelos revoltosos, pois
imaginavam representar os antigos reis da França. As atuais tinham sido
recolocadas no mesmo local em meados do século XIX, de frente à praça Parvis,
onde permanecem até hoje. Seja como for, o sinal talvez ainda estivesse ali, uma
vez que não deve ter sido gravado nas estátuas, mas atrás delas, nas pedras das
paredes escondidas discretamente pelos reis.
Já havia escurecido, quando Michael e Michele entraram de novo na igreja.
A missa estava começando e boa parte dos bancos achava-se agora ocupada
pelos fiéis. Os dois sentaram-se junto a uma enorme coluna e permaneceram
aguardando o padre concluir a celebração, pois ele prometera os levar até a
Galeria dos Reis. Michele não tinha muita paciência com missas e, a todo
instante, cochichava qualquer coisa sem importância ao namorado. Apenas para
se divertir, a garota falava ora em francês, sua língua natal, ora em inglês ou
italiano, língua que ela também conhecia um pouco. Tamanha tagarelice
aborreceu algumas pessoas, tanto que a velhinha do banco da frente olhou feio
para a menina. Ela fez pouco caso e seguiu sem prestar atenção à cerimônia,
sussurrando futilidades ao ouvido do rapaz. A certa altura, não podendo mais
tolerar tamanha falta de respeito, a velhota mandou que Michele calasse a boca,
fazendo um gesto com seu dedo indicador sobre o nariz. A jovem ficou
indignada com a ousadia da macróbia e, colocando sua mão atrás da cabeça,
como se improvisasse chifres de bode em si própria, fez uma careta diabólica,
mostrando-lhe a língua excitada. A pobre anciã abriu uns olhos apavorados,
como se tivesse visto a própria encarnação do mal, persignou-se diversas vezes e
foi sentar-se em outro banco. O próprio Michael, que se achava embaraçado no
início, não se conteve e passou a rir da brincadeira.
Um órgão começou a tocar uma música suave, anunciando o momento da
comunhão. No corredor central da igreja, formaram-se duas filas de fiéis e
Michael entrou em uma delas a fim de receber a eucaristia. Como não estava
preparada, Michele permaneceu no banco, preferindo não comungar. Ao ouvir o
ministro eucarístico dizer as palavras “o corpo de Cristo”, já com a boca aberta
para receber a hóstia sagrada, Michael levou um susto terrível, chegando mesmo
a perder o fôlego. Inacreditavelmente, o sujeito era o próprio Macrino! Bastante
nervoso, o rapaz furou a fila ao lado, passando na frente de todos que ali se
encontravam, apanhou a hóstia que o padre Estevam oferecia e seguiu de volta
ao seu lugar. Por uma dessas truanices do destino, quem se encontrava atrás de
Michael, na fila onde o bandido distribuía a eucaristia, era aquela velhinha
simpática, com quem Michele se atritara. Ela esticou a língua roxa na direção do
malfeitor, que não teve outro jeito e meteu dentro de sua boca a hóstia preparada
para o rapaz. A miseranda anciã não chegou a dar vinte passos, fez uma careta
pavorosa e caiu seca no chão, babando e estrebuchando feito porco esfaqueado
por açougueiro inábil e por isso custa a morrer. Imediatamente, algumas pessoas
rodearam a infeliz, puseram-na deitada em um dos bancos e começaram a
massagear o seu peito, tentando reanimá-la. A missa foi interrompida, uma vez
que um grande tumulto formou-se dentro da catedral. O padre chamou por um
médico, mas, infelizmente, não havia nenhum presente e ninguém sabia direito
como agir numa situação dessas. Aflito, Michael gritou:
- Prendam esse homem! Ele não é sacerdote, mas um assassino e quis me
matar com uma hóstia envenenada!
Apesar da ordem, nenhum dos presentes obedeceu, pois todos pareciam
temer Macrino, que era grande e valia por três. Um único senhor se interpôs em
seu caminho, mas foi lançado ao chão apenas com um movimento de braço dele.
O malfeitor abandonou suas vestes consagradas, acelerou seus passos e saiu da
igreja sem qualquer dificuldade. Enquanto isso, dois homens apanharam a
velhota, que ainda respirava, meteram-na dentro de um carro e a levaram para
um hospital. Pouco depois, o padre distribuiu sua bênção e encerrou a missa.
Michael foi procurar Estevam na sacristia, descobrindo o verdadeiro ministro
eucarístico preso a uma cadeira, com a boca amordaçada e vestindo-se apenas
com suas roupas de baixo. Após desamarrarem o sujeito, o padre contou-lhes
que não sabia como aquele homem tomara o lugar de seu ajudante. Encontrava-
se concentrado na missa e nem percebeu a diferença. O rapaz disse que Macrino
o estava seguindo e a hóstia envenenada dirigia-se a ele. O sacerdote quis saber
o motivo, mas Michael preferiu não entrar em detalhes, pois era uma história
muito complicada. Eles decidiram que era do interesse da igreja evitar
escândalos e, se a polícia não fosse alertada por nenhum dos presentes, também
eles nada diriam. Em seguida, padre Estevam perguntou:
- Esta história está ligada ao sinal existente na Galeria dos Reis?
- Exato! É um mistério que preciso desvendar e minha própria vida depende
disso...
- Pois então vamos já resolver este problema.
O bom padre pediu para o sacristão fechar a igreja, apanhou seu farolete
dentro de um armário e indicou o caminho. Eles subiram uma escada comprida,
atravessaram um corredor escuro e cruzaram uma passagem que levava à Galeria
dos Reis. O local era estreito e sombrio, limitado pelos vinte e oito reis, os quais
se equilibravam na beirada do pavimento, espiando as ruas lá embaixo. Michael
chegou perto das enormes estátuas e permaneceu em silêncio, contemplando a
praça Parvis quase vazia.
O vento lhe agitou os cabelos e ele sentiu certa vertigem, precisando se
agarrar a um dos reis para manter o equilíbrio. Depois, com sua pequenina
lanterna, pôs-se a vasculhar todo o recinto com paciência. Michele pediu
emprestado o farolete do padre e esquadrinhou centímetro a centímetro das
paredes e do teto, sem descobrir nada. Examinou até mesmo as próprias estátuas,
mas Michael lhe disse que ela estava perdendo tempo, pois a pista jamais
poderia se achar em esculturas postas ali no século XIX.
O rapaz temia que a luz das lanternas, subindo e descendo por trás das
enormes estátuas de pedra, pudesse chamar a atenção de algum curioso ou
mesmo da polícia, mas ninguém veio interromper as buscas, mesmo porque as
portas da igreja já se encontravam fechadas.
Após um longo período de buscas infecundas, o rapaz decepcionou-se com
o insucesso, temendo estar no local errado. Quando já ia desistir, indagou à
namorada:
- Viu algo suspeito?
- Nas pedras da parede e do teto não há sinal algum, pois olhei cada uma
delas...
- Se houvesse qualquer sinal aqui, eu saberia. Disse o padre.
Michele concluiu:
- A única coisa que me chamou a atenção foram as pedras do piso...
- O que têm elas? Inquiriu o rapaz.
A garota apontou sua lanterna na direção delas.
- Veja! Não são exatamente quadradas. Todas formam um pequeno
retângulo, sendo um dos lados maior do que o outro. Embora não apresentem o
mesmo tamanho, nem se mostrem bem proporcionadas e simétricas, há uma
curiosidade na disposição delas...
- Como assim?
- Repare bem... a grande maioria está assentada em uma única direção, ou
seja, o lado mais comprido corre paralelo à linha dos reis. Porém, algumas se
encontram dispostas em posição perpendicular e isto, com toda certeza, não foi
distração dos pedreiros...
Sentindo seu coração bater eufórico, Michael apanhou o farolete das mãos
da menina e seu facho de luz iluminou melhor o piso do que sua pequenina
lanterna. Por mais que todos fitassem as pedras, nenhum deles conseguia
desvendar aquele mistério e dizer qual era o seu significado. Depois de meditar
por alguns segundos, o rapaz proferiu:
- Que há uma intenção oculta por trás da maneira como essas pedras foram
assentadas, já não tenho dúvidas!
- Eu nunca havia percebido isso! Exclamou Estevam.
- Padre, por acaso você tem pincel e tinta? Como aqui está muito escuro e
as pedras são bastante parecidas, não dá para visualizar direito o desenho
formado por elas. Se marcássemos todas as iguais...
- Meu amigo, pincel eu até consigo arranjar, mas não posso permitir que
você pinte estas pedras seculares...
- Eu compreendo! Então me faça um grande favor. Traga-me um pincel e
todo pó de café que conseguir. A pista deixada pelos cavaleiros templários está
diante de nossos olhos...
O sacerdote sacudiu a cabeça, concordando com Michael, e deixou
imediatamente aquele recinto. Dez minutos depois, o homem já estava de volta,
trazendo nos braços uma enorme lata, um pincel e uma concha, que entregou ao
rapaz, gracejando:
- O meu é sem açúcar...
Tão logo Michael abriu a tampa, um cheiro gostoso de café moído alastrou-
se por todo o recinto. Ele meteu a concha no interior do recipiente e retirou um
punhado de pó de café, que pôs sobre algumas pedras. Em seguida, espalhou-o
com o pincel de maneira cuidadosa, repetindo a operação diversas vezes.
Quando concluiu este trabalho, todas as pedras assentadas de maneira
perpendicular estavam escuras, destacando-se das demais. Ao contemplar sua
obra, experimentou um sentimento arrebatador, um prazer fantástico e
indescritível, que jamais poderia explicar. Michele veio até o rapaz e lhe deu a
mão, sentindo o coração do namorado pulsar na ponta de seus dedos. Não
precisaram dizer nenhuma palavra, pois os dois já haviam compreendido tudo.
Com sua máquina fotográfica ajustada para ambiente escuro, Michael bateu
algumas fotos das pedras. Ao observarem-nas no visor, surpreenderam-se ainda
mais com a nitidez da imagem. Sem dúvida, ali estava a cruz templária por cima
de uma letra E.


A terceira torre

Após terem descoberto o sinal deixado pelos cavaleiros templários na


catedral de Notre-Dame, Michael e Michele saíram para caminhar pelas ruas de
Paris. Um vento gelado eriçava-lhes os cabelos, enquanto seguiam de mãos
dadas, sem destino certo, pois apenas obedeciam ao capricho das próprias
pernas. A noite achava-se bastante escura, com nuvens pesadas e ameaçadoras
turvando os céus. Pouco depois, uma saraivada de relâmpagos enfurecidos
passou a vergastar os horizontes e grossos pingos de chuva começaram a
carimbar as calçadas feito enormes moedas. Em menos de dois minutos, a
tempestade desabou violenta sobre a cidade, lavando os telhados e encharcando
os campos. Michael e Michele saíram correndo para se esconder em algum local
onde pudessem se abrigar de tamanho aguaceiro; porém, quando encontraram
uma marquise, já estavam completamente ensopados.
Os dois jovens riram bastante daquela aventura inesperada e, até certo
ponto, divertida. Ao colocar a sua pasta no chão, Michael apanhou um lenço que
trazia em um dos bolsos internos de seu sobretudo e pôs-se a enxugar o rosto
com ele. Não era grande, mas quebrava um galho. Como Michele também estava
deveras molhada, o rapaz tentou secá-la um pouco, sem muito sucesso. Neste
exato momento, surgiu um homem dentre a escuridão, agarrou a pasta de
Michael e saiu correndo debaixo da tempestade.
Ao se dar conta do roubo, o rapaz entrou em desespero. Ali se achavam não
apenas o seu notebook, mas os três preciosos livros descobertos na biblioteca
dos cavaleiros templários, além da cópia do Malleus Maleficarum e boa parte de
seu dinheiro. Michael meteu-se em desabalada corrida atrás do gatuno,
imaginando que talvez ele pudesse ser algum cúmplice de Macrino. Como estava
transtornado demais, atravessou a avenida sem olhar, na frente de um carro, o
qual freou bruscamente, derrapou alguns metros e só não colidiu com uma
árvore porque Deus não quis. O motorista irritou-se deveras, calcando a mão na
buzina, mas o moço não lhe deu atenção e continuou seguindo para outro lado,
entrando por ruas estreitas em sua alucinada perseguição ao assaltante. A chuva
batia de encontro ao seu rosto, toldando-lhe os olhos; mesmo assim, ainda podia
avistar o sujeito fugindo lá adiante, em meio a toda aquela água.
Enquanto corria, quase sem fôlego e morto de cansaço, Michael notou
alguém passando por ele. Para sua surpresa, tratava-se de Michele, que também
saíra no encalço do bandido e parecia tão veloz quanto um tigre. Duas quadras
adiante, o moço observou que a menina já estava prestes a alcançar o fugitivo.
No quarteirão seguinte, Michael ficou ainda mais estarrecido. Embora estivesse
a certa distância deles, viu sua namorada dar um bote extraordinário sobre o
pilantra, feito uma cobra venenosa, agarrar suas pernas e derrubá-lo com
violência no solo. Os dois rolaram nas poças, ralando-se bastante. Quando o
rapaz chegou ao local, Michele e o ladrão ainda se encontravam agarrados,
lutando pela pasta na calçada.
Michael enlaçou a cintura da namorada e a arrancou dos braços daquele
marginal. O sujeito ergueu-se todo esbaforido e partiu para cima do rapaz, que se
pôs a distribuir socos a esmo, demonstrando ser um péssimo pugilista. Além de
forte, o meliante devia estar acostumado a brigas de rua, pois não gastava
energia à toa, preferindo esquivar-se dos golpes inábeis do adversário. A certa
altura, já enfarado daquela brincadeira, acertou um murro fortíssimo no rosto do
adversário, fazendo com que um jorro de sangue espirrasse de seu nariz. O golpe
foi tão violento, que Michael acabou caindo a uns três metros de distância, quase
no meio da rua. O bandido deu alguns passos até o moço indefeso e chutou-lhe
as costas sem piedade. Depois, subiu sobre o seu peito, agarrou-lhe os cabelos
com brutalidade e pôs-se a lhe empurrar a cabeça contra os blocos de pedras da
via, deixando seu pescoço bem à mostra. Em seguida, retirou da cintura uma
navalha, que refletiu de maneira fúnebre a luz mortiça da iluminação pública.
Pelo canto dos olhos, Michael contemplou a morte com seu rastelo insaciável,
brilhando na ponta daquela lâmina faminta e lembrou-se de pedir por sua alma a
Nossa Senhora. Quando o sujeito ergueu a navalha para cravá-la na jugular do
jovem, Michele veio por trás e lhe desferiu uma tremenda paulada na cabeça, de
maneira que o miserável caiu sem sentidos. A menina ajudou o namorado a se
levantar e abraçou-se a ele, profundamente abalada e chorando deveras por
tamanha infelicidade.
Pouco depois, começou a juntar gente no local e chamaram a polícia. A
chuva já havia diminuído bastante e ninguém mais se incomodava com ela. Em
menos de cinco minutos, uma viatura encostou e dois guardas desceram, pedindo
explicações. Michael disselhes que aquele homem havia roubado a sua pasta e
por isso o perseguira e lutara contra ele. A seu modo de ver, o tal sujeito teria
alguma ligação com certo Macrino, o qual vinha lhe perseguindo desde a cidade
de Roma. Um dos guardas reconheceu o pilantra e proferiu:
- Pode ficar tranquilo. Este infeliz não tem ligação alguma com qualquer
Macrino, isto eu lhe garanto. É um pobre diabo, um vagabundo bêbado, que vive
batendo carteiras e possui diversas passagens pela polícia.
- Nesse caso, nem vou dar queixa. Respondeu o rapaz.
Os guardas enfiaram o delinquente na viatura e seguiram até a delegacia.
Aos poucos, as pessoas dispersaram-se, pois não havia mais nada para ser visto.
Michael deu a mão a Michele, segurando firmemente sua pasta com a outra, e os
dois puseram-se a andar pela calçada na direção contrária de onde tinham vindo.
Embora seu nariz já não sangrasse, possuía as costas doloridas e sentia fraqueza
pelo corpo. Para sua sorte, não quebrara nenhuma costela, nem perdera nenhum
dente. Enquanto caminhavam, o rapaz disse à namorada:
- Você salvou a minha vida!
A menina sorriu graciosamente. Depois, Michael perguntou como ela podia
correr tanto e descobriu que, nos tempos do colégio, Michele era imbatível em
corrida.
- Recebi até medalhas em campeonatos...
- Fiquei impressionado! Ainda mais levando esta mochila nas costas, onde
guardamos algumas roupas...
- Falando em roupas, precisamos trocar as nossas, que estão ensopadas, e
encontrar um local para passarmos a noite...
Nem mesmo haviam caminhado três quarteirões, quando se depararam com
uma velha casa, em cujo portão estava pendurada uma tabuleta com os seguintes
dizeres: “alugam-se quartos”. Tratava-se de uma residência simples, aparentando
ser um ambiente de família. Como já era tarde e se achavam cansados para sair à
procura de um hotel melhor, Michael e Michele resolveram tocar a campainha
daquela pequenina pensão. No momento em que a janela existente na porta se
abriu, exibindo um rosto jovem de mulher, o rapaz exclamou:
- Precisamos de um quarto para esta noite e vimos a sua placa no portão...
Em seguida, ouviram o ruído de chave girando na fechadura e a porta se
destrancou. Uma moça com menos de vinte anos convidou-os a entrar, fechou a
porta atrás deles e foi em busca de sua mãe, que era quem cuidava dos negócios.
Durante alguns minutos, os dois ficaram a sós e Michele comentou ter visto
restos de comida sobre o sofá, além de um velho gato dormindo em cima da
televisão. Pelo jeito, aquela gente não primava pelo asseio. Michael sussurrou-
lhe que seria apenas por uma noite, pois, na manhã seguinte, desejava partir em
busca da terceira torre do demônio. Pouco depois, entraram na sala três moças,
acompanhadas de uma senhora gorducha, muito sorridente e atenciosa. Ela
estendeu a mão aos hóspedes e lhes explicou que sua casa não era bem uma
hospedaria:
- Apenas alugo o quartinho dos fundos, para completar a nossa renda. Vocês
sabem, desde que meu marido se foi...
E pôs-se a contar a história de sua vida. A boa mulher falava pelos
cotovelos, de maneira que Michael já estava olhando torto para a namorada,
como se procurasse um modo de fugir daquele aborrecimento. Quando a distinta
matrona parou um instante a fim de recobrar o fôlego, Michele disse-lhe que eles
estavam ensopando a sua sala e precisavam tomar um banho, pois ainda
conservavam as roupas molhadas. Ela mostrou-lhes onde ficava o banheiro e
pediu a uma de suas filhas para os levar até o quarto.
Após ter se banhado e barbeado, Michael voltou à sala e permaneceu
conversando com as três moças, as quais lhe fizeram inúmeras perguntas.
Queriam saber se ele era solteiro, se estava gostando de Paris, como havia ferido
o seu rosto. O rapaz respondeu gentilmente a tudo que lhe foi indagado, mas não
disse uma única palavra sobre o verdadeiro motivo de sua vinda à capital
francesa. Michele acabara de sair do banho e perguntou à mãe delas onde se
localizava o tanque, pois queria lavar a roupa. Tão logo concluiu o serviço, veio
sentar-se junto ao namorado; porém, a conversa, que parecia animada, mirrou
com a sua presença. A dona da casa desconfiou que eles estavam famintos e
resolveu fazer um chá, com torradas, pães e biscoitos.
Uma das meninas chamava-se Simone e tinha dezessete anos incompletos.
Durante o chá, a jovem encarou o rapaz com uns olhos compridos e carentes, de
forma que Michele percebeu e não gostou nem um pouco daquela insistência.
Com uma caneta, Simone pôs-se a rabiscar um guardanapo de papel. Depois,
ergueu a cabeça na direção de Michael e lhe perguntou:
- Você conhece numerologia?
- Não conheço...
- É um dos meus passatempos prediletos e acredito muito nas qualidades
místicas dos números. Acabei de descobrir o número pessoal de seu primeiro
nome. Quer saber?
- Claro!
- Seis. Significa que você é carinhoso, compreensivo, meigo e responsável.
Pessoas de personalidade seis sentem uma grande necessidade de ajudar o
próximo e chegam mesmo a se sacrificar por quem amam.
O rapaz surpreendeu-se deveras, pois achou aquela descrição muito
adequada à sua personalidade. Como a curiosidade dele sobre o assunto tinha
sido despertada, pediu para Simone calcular o número pessoal de Michele. A
jovem sorriu e respondeu com certo orgulho:
- Eu já calculei. O número dela é um. Isto quer dizer que sua namorada é
uma pessoa ambiciosa, independente, egocêntrica e inflexível. Do ponto de vista
da numerologia, as personalidades de vocês não combinam, estão em
desarmonia. Os números não erram jamais, pois possuem uma vibração, uma
essência individual que influi na vida de todas as pessoas...
- Isto tudo é besteira! Exclamou Michele.
Simone deitou sobre ela um olhar de desprezo e prosseguiu:
- Já o seu número, Michael, combina perfeitamente com o meu, que é três.
Neste caso, as pessoas são românticas, alegres, sociáveis, extrovertidas e
sedutoras...
A jovem mordeu a pontinha de seu lábio inferior e sorriu de maneira
atrevida para o rapaz. Michele parecia não estar gostando nem um pouco
daquela conversa. Dominada pelos ciúmes, ela deu um último gole em sua xícara
de chá e disse:
- Desculpem-me, mas vou para o quarto, pois estou com dor de cabeça.
Ao proferir isto, ergueu-se da mesa sem encarar ninguém e saiu da cozinha.
Michael ficou meio sem graça, hesitando se deveria acompanhá-la ou não.
Decidiu permanecer. Depois daquela refeição, Simone levou o amigo até a sala e
lhe ensinou um pouco de numerologia. De acordo com a menina, cada letra do
nome de uma pessoa corresponde a um número específico, segundo uma tabela,
que ela escreveu num pedaço de papel. Após ter beijado carinhosamente a folha,
entregou-a ao rapaz, com a marca de seus lábios impressa em batom cor-de-rosa.

A garota explicou que era necessário somar os valores numéricos de todas


as letras do nome completo de alguém para se descobrir a sua personalidade. Se
o resultado obtido fosse superior a dez, uma nova soma deveria ser feita, até ser
encontrada uma cifra entre um e nove. Em seguida, concluiu:
- O cálculo que fiz há pouco com relação ao primeiro nome de vocês foi
apenas uma brincadeira...
Os dois permaneceram conversando por mais de trinta minutos, pois o
assunto apaixonava a ambos. Quando o relógio cuco bateu onze horas, Michael
levantou-se e se despediu da menina, afirmando que precisava acordar cedo pela
manhã. Em seguida, caminhou até o quarto, localizado no final do corredor, e
abriu a porta lentamente, para não incomodar Michele, que poderia já se
encontrar dormindo. Não estava. Sentada sobre a cama, ela jogava Paciência ou
fingia jogar. Michael aproximou-se por trás da namorada, pôs um beijo casto em
seus cabelos e indagou:
- E a dor de cabeça?
- Pergunte isso para a sua amiguinha entendida em numerologia... quem
sabe ela não descobre a resposta nos números...
- Ora... não precisa ter ciúmes, meu anjo!
- Não me chame assim, pois tenho nome, se você não se lembra... ainda que
não se harmonize com o seu...
- Mas o que eu lhe fiz para você estar tão brava?
- Você não me fez nada! Apenas ficou se engraçando com aquela vadia...
- Não fale desse jeito, Michele. Você sabe que eu a amo.
- Se me amasse de verdade, não teria me humilhado como fez, ainda mais
na frente de estranhos...
- Mas, meu Deus do céu, eu não fiz nada disso. Procurei apenas ser gentil
com a menina!
- Tão gentil que não lhe tirava os olhos de cima!
Ao dizer tais palavras, Michele apanhou o seu baralho e o atirou sobre o
rapaz, espalhando as cartas por todo o quarto. Estava bastante nervosa, tanto que
se pôs a chorar, talvez um pouco arrependida da cena protagonizada. Michael
sentou-se ao seu lado na cama e a cingiu carinhosamente, beijando-lhe a face e a
boca com paixão. Tão logo percebeu que ela já se achava um pouco mais calma,
proferiu:
- Meu amor, estamos discutindo sem motivo... quando tudo isto tiver
acabado, eu quero me casar com você!
A menina o fitou com longos olhos umedecidos e disse:
- Promete que jamais brigará comigo outra vez?
- Prometo!
- Jura que nunca irá me abandonar? Eu não tenho mais ninguém no
mundo...
- Juro!
Então, Michael apagou a luz e a reconciliação foi longa e deliciosa...

*
Na manhã seguinte, após tomarem café e terem acertado suas despesas, eles
se despediram das mulheres e partiram. Os céus estavam cobertos por nuvens
carregadas, indicando que poderia voltar a chover de uma hora para outra.
Enquanto caminhavam pelas ruas de Paris, observando o comércio abrindo as
portas, Michael e Michele voltaram a conversar sobre o enigma templário. Ao
contrário das duas primeiras torres, agora eles sabiam o que procurar. Com toda
certeza, as pistas escondidas pelos cavaleiros da Ordem deveriam seguir um
padrão, ou seja, era muito provável que os monges tivessem colocado letras
também nas outras torres. Unidas, elas formariam uma palavra-chave, revelando
o local onde o demônio havia sido aprisionado.
Até agora, eles tinham descoberto duas letras, um S e um E. Assim
isoladas, porém, não faziam qualquer sentido. Michele perguntou ao namorado o
que dizia a terceira trovinha de Jacques de Molay. Hoje pela manhã, antes de
beber seu café, o rapaz a anotara num pedaço de papel, guardando-o dentro de
um dos bolsos de seu sobretudo. Ele apanhou a folha em suas mãos e pôs-se a
recitar os seguintes versos:

“Sob a pedra da caveira,


Lá na torre principal,
Junto à última fileira,
Acharás mais um sinal.”

A menina sorriu com seus misteriosos olhos negros e, sem compreender


coisa alguma, indagou:
- Não me parece muito clara... você entendeu algo?
- Tenho meditado bastante a respeito destes versos. Todavia, quanto mais os
leio, menos os compreendo. Pelo que entendi, os templários esconderam o sinal
dentro de uma torre, debaixo de certa pedra, que pertence a alguma caveira.
Talvez Jacques de Molay quisesse indicar com isso um cemitério, sei lá... Porém,
ainda mais enigmática é a pista do Malleus Maleficarum...
- Refresque a minha memória, pois não me lembro...
O rapaz ajeitou os seus cabelos desalinhados pelo vento e leu o texto
traduzido do latim:

“Eleva-se a terceira torre na fortaleza dos corvos, às margens do grande


rio que atravessa a ilha.”

Michele perguntou ao namorado se o “grande rio”, a que os autores do


Malleus Maleficarum se referiam, não poderia ser o Sena, uma vez que estavam
ali tão perto dele. O rapaz refletiu um pouco, mas acabou descartando tal ideia.
Conforme estava dito, o rio atravessava uma ilha e, obviamente, não era o caso
da França. Em sua opinião, existia uma boa possibilidade da terceira torre do
demônio localizar-se na ilha de Chipre, pois os cavaleiros templários possuíam
ali muitas terras, sobretudo nos arredores da cidade de Limassol, onde os
sobreviventes se refugiaram após a queda de Acre, a última fortaleza dos
cruzados na Palestina. O principal problema desta hipótese é que não havia
grandes rios na ilha de Chipre.
Segundo Michael acreditava, a chave para se descobrir o local da terceira
torre escondia-se nas palavras “fortaleza dos corvos”. Se conseguissem decifrar
o seu significado, certamente encontrariam o que estavam procurando. Mas
quem seriam esses corvos aludidos no texto? Na verdade, não tinha a menor
ideia...
Enquanto caminhavam pelos bulevares parisienses, começou a chover de
novo. Dessa vez, porém, eles não se molharam, pois estavam passando diante de
uma das famosas galerias de Paris, que ligam uma avenida a outra, bem como às
ruas laterais, e se refugiaram lá dentro. As lojas eram muito bonitas e atraentes,
com vitrines repletas de novidades, dispostas de maneira estratégica para chamar
a atenção dos clientes. Em uma delas, Michele viu uma blusinha vermelha
encantadora, daquelas que deixam a barriga à mostra, mas achou o preço
bastante salgado. Eles se dirigiram a uma delicatessen e compraram morangos
cobertos com chocolate e outros doces deliciosos. Depois, o rapaz disse à sua
namorada que desejava lhe dar de presente aquela blusa da vitrine:
- Mas é muito caro! Exclamou Michele.
- Aceite, eu lhe peço! Faço isso também por mim. Sei que você ficará ainda
mais maravilhosa com ela...
A face da jovem iluminou-se de felicidade, como se lírios desabrochassem
em seu coração. Tomada por um grande arrebatamento, Michele curvou-se sobre
a mesa e deu-lhe um beijo cálido, com sabor de chocolate, diante de toda gente.
Tinha estas atitudes impulsivas e pouco se importava com o que os outros
pensariam.
Eles retornaram pelo mesmo corredor e entraram na loja. A menina pediu à
vendedora para provar aquela blusa exposta na vitrine. A atenciosa balconista
apanhou uma peça igual na estante e lhe mostrou onde ficava o provador. Após
ter deixado sua mochila com o rapaz, Michele dirigiu-se ao fundo do
estabelecimento para experimentar a roupa. Michael permaneceu dentro da loja,
observando através da vitrine as pessoas que passavam lá fora, carregando
sacolas de todos os tamanhos. Subitamente, os seus olhos crisparam-se de terror
e ele sentiu os joelhos fraquejarem. Há pequena distância dali, estavam Macrino
e seu cúmplice, feito cães de caça, farejando as pegadas do moço. Como diabos
podiam tê-lo encontrado naquela galeria? Para não ser visto, Michael agachou-se
atrás de um móvel que expunha algumas camisetas e resolveu pôr os seus
preciosos livros na mochila de Michele. No momento em que se levantou para
verificar se os bandidos já haviam ido embora, ele deu de cara com Macrino,
vasculhando o interior da loja através da vitrine e foi reconhecido pelo sujeito.
Sem perder um minuto sequer, confiou a mochila de Michele à balconista e lhe
disse:
- Por favor, entregue isto à minha namorada e lhe peça para retornar à
pensão onde passamos a noite, pois estarei esperando lá. Diga-lhe que precisei
partir, pois surgiu um imprevisto. Ela entenderá. Adeus!
Após pronunciar tais palavras, Michael deixou o dinheiro da blusa sobre o
balcão e saiu apressado por uma porta lateral, enquanto outra vendedora veio
atender Macrino, que acabara de entrar na loja. A cena seguinte foi uma
autêntica perseguição cinematográfica. O rapaz passou a correr pelos corredores
da galeria, desviando das pessoas como podia, subindo aflito pelas escadas
rolantes. Em sua fuga alucinada, acabou derrubando mais de um pacato cidadão
que contemplava as vitrines. Macrino e seu comparsa seguiam afobados no
encalço dele, resfolegantes, procurando não perder o rapaz de vista. A certa
altura, sem se importar em pagar o ingresso, Michael pulou a catraca e entrou
numa sala de cinema, escondendo-se no meio da plateia. Pouco depois, viu
Macrino passar lá adiante e encolheu-se ainda mais em sua poltrona a fim de não
ser reconhecido. O público começou a vaiar o sujeito, pois estava atrapalhando a
fita, uma refilmagem de um antigo clássico dos anos trinta. Ele convenceu-se de
que seria impossível descobrir o rapaz ali dentro e deixou o recinto. Durante
quase uma hora, Michael permaneceu onde se achava, imaginando que aqueles
bandidos tivessem desistido da perseguição. Perto do final do filme, ele saiu da
sala escura cautelosamente, com o objetivo de retornar à pensão para rever
Michele. Porém, na porta do cinema, sentiu um cano em suas costas, escutando
uma voz rouca:
- Acompanhe-me, por favor!
Era o comparsa atarracado de Macrino, segurando uma arma escondida
dentro do bolso de seu terno preto. Ele disse para o rapaz não tentar nenhuma
gracinha e o mandou sentar num banco ali perto. Em seguida, ligou ao parceiro,
avisando-o que tinha apanhado o fugitivo. Cinco minutos depois, Macrino
chegou ao local, sentando-se ao lado do jovem.
- Bom dia, Michael, como é bom vê-lo novamente! Por gentileza, entregue-
me a pasta, que nada de mal lhe acontecerá.
O moço passou a maleta às mãos de Macrino, o qual a abriu com certa
ansiedade. Para sua surpresa, havia em seu interior apenas um notebook. O
sujeito encheu-se de cólera e tirou os óculos escuros que sempre trazia no rosto.
Só então, Michael percebeu que ele tinha uma pequenina cruz templária marcada
na testa, um pouco acima dos olhos. No mesmo instante, lembrou-se de uma
profecia de São João no Apocalipse: “Se alguém adorar a besta e a sua imagem,
receberá o sinal dela em sua testa ou na sua mão”. Seria apenas uma
coincidência? Macrino fechou a pasta, dizendo:
- Onde estão os livros?
- Num lugar seguro...
- Não os adianta esconder. Saiba que acharemos o tesouro dos templários
antes de você!
- Não estou procurando por isso! Respondeu de maneira incisiva.
- Seja como for, quero que nos leve até os livros... agora!
- Impossível! Já não se encontram mais comigo...
- Bem, neste caso, teremos de matá-lo...
Aquela ameaça soou para Michael como um blefe. Macrino acabara de
confessar que eles estavam atrás do tesouro da Ordem e imaginavam que o rapaz
fazia o mesmo. Se o eliminassem, estariam suprimindo uma possibilidade
concreta de descobrir a fortuna dos templários. Para eles, o melhor a fazer seria
continuar seguindo Michael, até que o jovem os levasse ao local onde os
cavaleiros do Templo haviam escondido a sua imensa riqueza. Pelo menos, isto
parecia o mais lógico.
Enquanto meditava sobre o assunto, ele viu um guarda passar por ali e o
chamou. Os dois bandidos permaneceram em silêncio, sem saber direito o que
fazer. Michael inquiriu onde ficava a saída, pois se perdera no labirinto das
galerias, e o policial prontificou-se a levá-lo até lá. Apanhando sua pasta das
mãos de Macrino, disse com um sorriso nos lábios:
- Adeus, amigos!
Ao ganhar as ruas, ele tomou um táxi e regressou de imediato para aquela
pensão onde passara a noite. As meninas ficaram muito surpresas e felizes com o
retorno do moço, sobretudo Simone, que não o largou durante toda a tarde.
Porém, Michael mostrava-se por demais aflito em virtude de Michele ainda não
ter regressado e isto o atormentava terrivelmente.
Após o jantar, Michael recolheu-se ao quarto de hóspedes, pois não queria
conversar com ninguém. Estava bastante nervoso e em seu cérebro atropelavam-
se centenas de perguntas sem respostas a respeito do que acontecera com sua
namorada. Teria se perdido pelas ruas de Paris ou resolvera fugir com aqueles
preciosos livros, para os vender a colecionadores milionários? Como funcionária
da loja de antiguidades, ela certamente conhecera alguns deles e sabia muito
bem que pagariam qualquer preço pedido por tais raridades. Não, Michele o
amava sinceramente e seria incapaz de trair a sua confiança. O mais provável é
que Macrino e seu nefando comparsa tivessem sequestrado a menina...
Esta possibilidade mortificava o espírito de Michael, enchendo-o de terror.
Ele ligou seu notebook e, durante algum tempo, permaneceu navegando na
internet em busca de informações a respeito da terceira torre. Porém, estava tão
distraído, que lia tudo muito por cima e não conseguiu se concentrar em nada.
De repente, a campainha soou histérica na sala, fazendo com que o coração do
rapaz quase pulasse pela boca. Ele largou seu computador ligado sobre a cama e
correu até a porta da entrada. Para seu alívio, era Michele!
Com lágrimas lhe pingando dos olhos, Michael abraçou e beijou sua
namorada no jardim como se não a visse há muito tempo. As três meninas
assistiram àquela cena romântica comovidas e até Simone sentiu-se emocionada,
embora com uma pontinha de inveja. Enfim, as cortinas de nuvens haviam sido
corridas do céu e uma esplêndida lua testemunhou as juras de amor eterno
trocadas pelo casal, bem como a promessa de jamais se separarem outra vez. A
dona da pensão quis esquentar um prato de comida para Michele, mas ela disse
já ter jantado na rua. O rapaz percebeu que a menina se achava muito eufórica e
lhe perguntou onde estivera durante todo o dia.
- Na biblioteca pública.
Como os olhos de Michael brilharam surpresos, transformados em dois
pontos de interrogação, Michele disse:
- Vamos ao quarto. Lá lhe explico tudo...
Eles trancaram a porta e se sentarem sobre a cama. O rapaz empurrou um
pouco seu notebook para o lado e indagou:
- Então?
- Acho que descobri onde fica a terceira torre...
As pupilas de Michael dilataram-se e sua boca aguara. Varado de
curiosidade, ele proferiu:
- Pois explique logo... não faça tanto suspense!
- Hoje de manhã, quando você me deixou na galeria, eu compreendi que
algo muito grave ocorrera e logo imaginei o motivo: aquele maldito Macrino
havia aparecido de novo! A vendedora me disse que um homem mal-encarado
tinha perseguido você pelos corredores. Ao guardar a blusa na mochila, vi dentro
dela os livros e isso apenas confirmou as minhas suspeitas. Eu recebi a sua
mensagem, mas não quis retornar logo para cá, pois os bandidos poderiam me
seguir e, durante mais de uma hora, permaneci caminhando à toa, sem destino
certo, até ter me deparado por acaso com uma biblioteca pública, onde entrei a
fim de passar o tempo. Veja o que é estar no lugar certo e na hora certa! Na mesa
em que me sentei, encontrava-se um Atlas aberto, exibindo um mapa da bacia
fluvial européia. Após fitar o mapa sem muita atenção, meus olhos depararam-se
com o rio Tâmisa e, no mesmo instante, lembrei-me das palavras do Malleus
Maleficarum: “Eleva-se a terceira torre na fortaleza dos corvos, às margens do
grande rio que atravessa a ilha”. Sim, aquele era um grande rio atravessando
uma ilha! Existia uma possibilidade real dos autores do Malleus estarem se
referindo à Inglaterra e, dominada por essa ideia, passei a pesquisar outros
livros, atrás de informações a respeito de fortalezas britânicas. Para minha
surpresa, descobri uma coisa extraordinária. Desde os tempos mais remotos, a
Torre de Londres sempre serviu de abrigo aos corvos. Alguns historiadores
chegaram até a afirmar que eles já se achavam por lá antes mesmo de
Guilherme, o conquistador, ter iniciado a construção da fortaleza no ano de
1078...
- A “fortaleza dos corvos”! Exclamou o rapaz com a respiração um tanto
alterada.
- Exato! Eles são protegidos inclusive por um decreto real, para evitar que
se cumpra uma profecia terrível. De acordo com essa lenda, quando o último
corvo abandonar a Torre de Londres, a monarquia ruirá...
Michael não cabia em si de contentamento e, para agradecer à namorada,
deu-lhe o mais apaixonado dos beijos. Em seguida, afirmou:
- Não sei o que seria de mim sem você. Agora, a frase do Malleus
Maleficarum a respeito da terceira torre me parece tão cristalina! Como não
percebi antes?
Ao dizer isso, o rapaz apanhou o seu notebook, meteu-o sobre as pernas, e
digitou as palavras “Torre de Londres” no Google. Uma lista enorme de
ocorrências surgiu e ele deu um clique na primeira delas. Michele o fitava com
certa curiosidade.
- O que você está procurando?
- As últimas peças desse quebra-cabeça! Em sua trovinha, Jacques de
Molay afirma que o sinal templário se encontra na torre principal. Veja esta
fotografia da famosa fortaleza britânica. Há diversas torres, mas uma se destaca
das demais. É conhecida como Torre Branca. Com toda certeza, devemos
procurar no interior dela a pista escondida pelos cavaleiros da Ordem!
Na manhã seguinte, Michael e Michele tomaram um avião de volta para
Londres e chegaram ao aeroporto Heathrow por volta das onze horas. Eles
pegaram o trem expresso para a estação ferroviária Paddington e foram almoçar
num restaurante ali nas proximidades. Depois, chamaram um táxi e dirigiram-se
imediatamente àquela fortaleza histórica. Como eles já imaginavam, a Torre de
Londres estava repleta de turistas, os quais afluíam para lá aos milhares todos os
dias. A primeira coisa que chamou a atenção de Michael foi a maneira
extravagante como os guardas reais da torre, conhecidos como beefeaters,
costumam se vestir. Além de um chapéu curioso, eles usam uma espécie de
saiote, amarrado por um cinturão. O uniforme é azul escuro, com detalhes em
laranja. No peito, embaixo do desenho de uma coroa, exibem as letras E e R,
aludindo às iniciais latinas de “Elizabetha Regina”, numa referência à rainha
Elizabeth II.
Esses beefeaters não apenas zelam pela segurança dos visitantes, como
também exercem as funções de guias turísticos. Logo ao entrar, o rapaz indagou
a um deles se sabia onde ficava a pedra da caveira. O bom homem sorriu
complacente, imaginando que seu interlocutor queria dizer a Pedra da
Coroação. Sobre a tal pedra da caveira, ele desculpou-se, dizendo nunca ter
ouvido nada a respeito disso. Em contrapartida, explicou-lhes que a Torre de
Londres fora, durante muito tempo, um local de execução e suplício dos nobres
acusados de traição à coroa. Inúmeras pessoas permaneceram aí em cativeiro,
sendo torturadas e decapitadas, de nobres aristocratas a líderes camponeses,
passando por protestantes religiosos escoceses, irlandeses, galeses, incluindo
chefes de clãs, e todos os quais podiam ameaçar o poder do rei. Por causa desse
passado, a Torre de Londres adquiriu a fama de ser uma fortaleza mal-
assombrada e não são poucas as histórias que se contam sobre fantasmas dos
prisioneiros mortos, a vagar pelos corredores arrastando pesadas correntes...
Além disso, o simpático beefeater explicou-lhes também que a Torre de
Londres abriga as jóias da Coroa britânica em uma câmara subterrânea. Para
completar aquela aula de história, ficaram sabendo que, até hoje, os futuros
monarcas ingleses passam uma noite no interior da fortaleza antes de sua
coroação. Michael perguntou-lhe se podiam conhecer a Torre Branca por dentro
e o guarda respondeu-lhe de maneira afirmativa. As visitas guiadas aconteciam
três vezes ao dia e a próxima se iniciaria em breve, às doze horas e quarenta e
cinco minutos. Eles agradeceram a atenção do prestativo beefeater e dirigiram-se
até lá, a fim de procurar a tal “pedra da caveira”.
Um guia conduziu o grupo pelo interior da Torre Branca. O contraste entre
a luminosidade exterior e a atmosfera sombria reinante dentro do edifício era tão
intenso, que Michael e Michele custaram um pouco a acostumar os olhos. No
primeiro piso, ficava a Capela de São João Evangelista, cujos serviços religiosos
continuam a ser realizados periodicamente. O rapaz segredou à namorada para
ela prestar bastante atenção nas pedras, pois a pista escondida pelos cavaleiros
templários deveria estar debaixo de alguma delas. Isto pareceu a Michele uma
empreitada bastante árdua, de maneira que ela até gracejou, dizendo não possuir
visão de raios X. Além do mais, as grossas colunas da capela, as paredes e todo
o chão eram revestidos por uma infinidade de pedras.
- Segundo a trovinha de Jacques de Molay, o sinal procurado encontra-se
junto à última fileira...
Quando chegaram à outra extremidade do edifício, Michael separou-se um
pouco dos visitantes, seguindo até o local situado atrás do altar da Capela de São
João. Sem dúvida, aquela deveria ser a última fileira da torre principal. Com sua
pequenina lanterna, pôs-se a iluminar discretamente o piso, em busca da pista
templária. De repente, seus olhos cravaram-se num ponto do chão, arregalados,
como se tivessem visto a face do demônio. Ele agachou-se e, por alguns
segundos, sentiu o seu peito batendo fora do compasso. Em seguida, ergueu-se
eufórico e se dirigiu outra vez para junto do grupo, a fim de não chamar atenção.
Ao se aproximar de Michele, o semblante do rapaz resplandecia de tal
forma, que a menina lhe perguntou:
- O que foi... viu passarinho verde?
Michael uniu seus lábios à orelha direita da namorada, afastou-lhe os
cabelos negros e sussurrou:
- Encontrei a pedra...
Os dois enlaçaram as mãos e, sem esperar pelo fim daquela visita guiada,
saíram do magnífico edifício. O sol estava alto e flutuava preguiçoso num céu
azul, despido de nuvens. Eles sentaram-se num banco ao lado da Torre Branca,
debaixo de uma árvore admirável, e permaneceram dois minutos em silêncio,
aguardando alguns turistas passarem. Tão logo se viram a sós, Michele indagou:
- Como você sabe que é a tal pedra da caveira?
- Porque a sua forma parece muito com o rosto magro de um esqueleto. Ela
está localizada num canto do chão, é pequena e quase não se destaca das demais.
Porém, há reentrâncias lembrando olhos vazados e saliências nos lugares da boca
e do nariz. Só pode ser o que procuramos! De acordo com a trovinha de Jacques
de Molay, a pista escondida pelos cavaleiros templários deve ter sido enterrada
debaixo dela...
- Está certo. Vamos supor que esta seja a “pedra da caveira”. Mas como
faremos para a remover? Não podemos, simplesmente, entrar na Capela de São
João, pedir licença ao guia ou a algum beefeater e dizer: “não se preocupem,
pois só iremos arrancar uma pedra!”.
- Não diremos nada a ninguém. A minha ideia é a seguinte. Daqui a cerca
de uma hora, às duas e quinze da tarde, vai se iniciar a terceira e última visita
guiada de hoje à Torre Branca. Irei até uma loja de ferramentas e comprarei uma
pequena picareta. Depois, voltaremos à Capela de São João e daremos um jeito
de nos esconder lá dentro. Durante a madrugada, arranco com cuidado a pedra
para ver o que há debaixo dela e a recoloco no lugar em seguida, limpando tudo,
como se nada houvesse acontecido. De manhã, quando outro grupo vier visitar a
Torre Branca, nós nos misturaremos a eles e deixaremos a velha fortaleza, sem
que ninguém perceba coisa alguma. Um plano simples e eficiente, como se vê...
- Está louco ou anda assistindo a muitos filmes no cinema? Isto jamais dará
certo!
- Não vejo outra solução. Agora, quero que você fique sentadinha nesse
banco, pois preciso comprar a ferramenta e voltarei o mais rápido possível.
A menina balançou negativamente a cabeça e sorriu amarelo, como quem
concorda, discordando. Por fim, como não tinha nenhuma ideia melhor, ela
acabou aceitando aquele plano; porém, disse que iria com o moço, pois não
desejava mais se separar dele.
Ao retornarem à Torre Branca, ainda faltavam uns quinze minutos para
começar a última visita guiada do dia. Michael tinha encontrado uma loja de
material de construção perto do rio Tâmisa e comprara uma pequena picareta,
que escondera debaixo de seu sobretudo. Como era muito perfeccionista,
adquirira também um pouco de cimento para fixar a pedra no mesmo local de
onde ela seria retirada. Acompanhando os turistas do novo grupo, Michael e
Michele entraram na fortaleza e, dessa vez, não saíram antes da visita terminar.
Aquele ambiente sombrio facilitava-lhes o plano e, discretamente, foram ficando
para trás, camuflados pelas grossas colunas de pedra. A certa altura, tendo se
certificado de que ninguém os observava, o jovem casal subiu por uma escada
estreita e foi se esconder no andar de cima. De seu esconderijo, era possível
ouvir as pessoas conversando lá embaixo. Algum tempo depois, as vozes dos
visitantes foram se tornando cada vez mais escassas, até que um silêncio imenso
tomou conta da fortaleza, sendo interrompido apenas pelo som cavo das portas
se fechando. O rapaz fitou Michele com certo orgulho e disse sorrindo:
- A parte mais difícil já foi. Agora, é aguardar escurecer para iniciarmos a
escavação...
- Por que não começamos já?
- Não precisamos ter pressa. Só poderemos sair daqui amanhã cedo e, além
disso, é mais prudente arrancarmos a pedra após a Cerimônia das Chaves, com a
fortaleza adormecida...
- Que cerimônia é essa?
- É um ritual muito antigo, que acontece todas as noites na Torre de
Londres. Entre 21:53h e 22:00h, o carcereiro principal, carregando as chaves da
rainha e uma lanterna gigante, ao lado de outros guardas reais, fecha as portas da
torre.
Michele já estava com as pernas formigando por ter permanecido sentada
tanto tempo no mesmo lugar, quando ouviu alguns ruídos vindo lá de fora. O
rapaz olhou seu relógio, constatando que marcava exatamente 21:53h.
- Eles são mesmo pontuais!
Por volta da meia-noite, Michael ergueu-se e disse que chegara a hora. Os
dois desceram aquelas escadas lúgubres, cujos degraus o moço ia iluminando
com sua pequenina lanterna, e seguiram até o altar da Capela de São João. A
pedra procurada localizava-se atrás dele, ao lado de duas grossas colunas
rústicas. Michael apontou o facho de luz para o chão e dirigiu-se até onde ela
estava.
- Veja! Não lembra uma caveira?
- De fato...
- Quero retirar a pedra com cuidado, sem destruir nada.
Quando o rapaz estava pronto para dar o primeiro golpe de picareta, eles
começaram a ouvir alguns sons estranhos no interior da Torre Branca, como se
passos estivessem descendo as escadas. Michael segurou a mão de Michele e
sussurrou:
- Está ouvindo isso?
- Estou...
O primeiro pensamento ocorrido a eles foi que tinham sido descobertos. Se
os guardas reais os encontrassem ali, certamente levariam os dois presos e esta
possibilidade deixou-os aterrorizados. Michael apagou a sua lanterna e meteu-se
atrás de uma coluna, fazendo um gesto com a mão, para Michele proceder da
mesma forma. Durante mais de dez minutos, permaneceram escondidos em
silêncio, ouvindo o rumor dos passos misteriosos, como se estivessem subindo e
descendo as escadas, vagando pelo interior da Torre Branca. Michael correu para
trás da coluna onde Michele estava e acendeu outra vez a sua lanterna,
procurando iluminar as paredes sinistras da Capela de São João a fim de ver se
descobria alguma coisa.
- Não compreendo... se de fato são os guardas, por que ainda não
apareceram?
A jovem cravou os olhos no teto da fortaleza e disse:
- É porque não são os guardas. São os meninos...
- Que meninos? Indagou o rapaz, curioso.
- Talvez eles não nos queiram aqui!
- Mas que meninos? Repetiu aflito.
- Os que foram assassinados na Torre de Londres!
- Explique, Michele...
- Li sobre este caso ontem na biblioteca pública. No ano de 1483, o rei da
Inglaterra, Eduardo IV, morreu de repente, deixando o trono para seu filho mais
velho, um menino de doze anos. Pouco antes de sua coroação, ele foi mandado à
Torre de Londres, para sua própria proteção, onde era visto com frequência
brincando nos jardins com seu irmão menor. Embora fosse o legítimo herdeiro
ao trono inglês, intrigas palacianas afastaram-no do poder, e o cetro foi parar nas
mãos do Duque de Gloucester, tio dos garotos, o qual acabou sendo coroado com
o nome de Ricardo III. Nos meses seguintes, as duas crianças ainda foram vistas
algumas vezes por trás das janelas gradeadas até que desapareceram
completamente e nunca mais ninguém teve notícias dos meninos. Dizem que
Ricardo III os mandou assassinar enquanto dormiam na Torre de Londres,
asfixiando-os com travesseiros. O próprio Shakespeare tomou o assunto como
tema de uma de suas primeiras peças de teatro. Segundo a lenda, os fantasmas
dos pequenos continuam vagando pela Torre de Londres...
Michael ficou boquiaberto com toda aquela história. Tanta coisa estranha
havia acontecido em sua vida nos últimos tempos, que já não tinha mais motivos
para duvidar sequer da existência de fantasmas. Dominado por um profundo
sentimento de piedade com relação ao trágico destino dos meninos, ele
caminhou até o centro da Capela de São João e bradou:
- Se vós puderdes me ouvir, jovens príncipes, que tão cedo fostes
arrancados do convívio dos vivos, sabei que a nossa intenção não é vilipendiar a
vossa memória. Aqui viemos em paz a fim cumprir o nosso destino e
humildemente pedimos permissão para passar esta noite em vossa morada, pois
precisamos encontrar um segredo precioso, o qual jaz enterrado no chão desta
casa...
Coincidência ou não, o fato é que o ruído dos passos cessou após Michael
ter dito aquelas palavras.
- Eles concordaram. Disse o rapaz triunfante.
Em seguida, apanhou de novo a sua picareta e pôs-se a golpear o piso com
bastante cuidado. Como ele não queria destruir pedra alguma, levou um bom
tempo para realizar o seu intento. Michele chegou mesmo a censurá-lo por tal
lentidão, lembrando-lhe que estava fazendo um trabalho de pedreiro e não de
joalheiro. Enfim, quando conseguiu remover a pedra, o rapaz iluminou aquele
trecho do solo com sua lanterna, trazendo a alma repleta de ansiedade. Para sua
decepção, havia ali apenas terra seca e mais pedras.
Sem se abater pelo aparente fracasso, Michael tirou seu sobretudo e passou
a escavar o local, abrindo um enorme buraco no piso. A princípio, iniciou a
tarefa de maneira serena, golpeando a terra com sua picareta para a amolecer e
retirando-a com as próprias mãos. Porém, com o tempo, meteu-se a realizar
aquele trabalho com fúria, como se estivesse possesso. Ao cabo de alguns
minutos, caiu esgotado no chão, arfando terrivelmente.
Pouco depois, ele ajoelhou-se diante do buraco e, lançando um facho de luz
em seu interior, disse:
- Algo não está certo. A trova de Jacques de Molay diz que o sinal
templário encontra-se sob a pedra da caveira...
Michele fitou o jovem com certa comiseração e proferiu:
- Isto não quer dizer que os templários enterraram a pista. Talvez a tenham
gravado na própria pedra, embaixo dela...
Por um instante, Michael permaneceu em silêncio, olhos esbugalhados,
perplexo. Como não pensara nessa possibilidade? A menina apanhou a pedra e
pôs-se a retirar a terra incrustada do lado de baixo com os próprios dedos. Aos
poucos, para surpresa de ambos, foi aparecendo a cruz templária. O rapaz tomou
a pedra das mãos de Michele e, de maneira aflita, terminou o trabalho. Ao cabo
de alguns minutos, diante de seus olhos estupefatos, surgiu uma letra P.
Enquanto iluminava a pedra com sua lanterna, Michael pediu à namorada
para tirar uma foto daquela pista templária. Depois, ele colocou toda a terra outra
vez dentro do buraco, retirou do bolso um pacote de cimento que havia
comprado e, apanhando uma garrafa de água mineral dentro da mochila de
Michele, fez a massa. Tão logo terminou de assentar a pedra, lavou as mãos e o
local com o resto da água que havia na garrafa, mas a limpeza não ficou como
ele desejava.
Já ia alta a madrugada, quando Michael e Michele deitaram-se para dormir
um pouco. O rapaz estendeu seu sobretudo no piso, como se fosse um colchão
improvisado, mas o chão de pedra achava-se tão frio, que eles tiveram de passar
a noite abraçados, tentando se aquecer um no corpo do outro. Não adormeceram
logo, pois tinham uma estranha sensação, como se estivessem sendo observados
pelos meninos mortos.
A quarta torre

No dia seguinte, acordaram com o corpo bastante dolorido. A manhã mal


começara a clarear e eles já se achavam de pé, contando os segundos para saírem
dali. Michael havia dormido mal e Michele ainda pior. Além de cansados,
estavam também famintos e sedentos, pois nenhum dos dois se lembrou de trazer
comida e a água que tinham fora toda desperdiçada. De minuto em minuto, o
rapaz olhava seu relógio, cujos ponteiros pareciam se arrastar lerdamente,
aumentando-lhe ainda mais o tormento, pois suas bexigas estavam explodindo.
As portas da Torre Branca apenas foram abertas às 10:45h, quando um novo
grupo invadiu a fortaleza. Michael e Michele misturaram-se de maneira discreta
aos turistas e ninguém percebeu que eles tinham passado a noite lá dentro.
Depois, saíram de fininho e foram atrás de um banheiro, onde fizeram suas
necessidades mais urgentes, lavaram-se como puderam numa pequenina pia e
trocaram algumas roupas sujas por outras mais limpas, que a garota trazia em
sua mochila.
A manhã estava bastante fresca e isto lhes ajudou a revigorar a energia
perdida em virtude da noite passada quase em claro, sobre um chão de pedra
duro e frio. Michael resolveu tirar aquele dia para se divertir com Michele, sem
se preocupar com mais nada. Afinal, estavam em uma cidade extraordinária e
havia tanta coisa a ser vista! Ao atravessarem o rio Tâmisa, o rapaz disse à
namorada:
- Hoje, o dia todo será nosso. Não quero saber de tesouros templários, torres
do demônio, bandidos perigosos, nada disso. Você mora aqui em Londres e
conhece bem a cidade. Qual é o seu local preferido?
- Gosto de muitos lugares, mas um em especial me encanta: Piccadilly
Circus.
- Pois vamos para lá!
É possível que a escolha de Michele não tenha agradado completamente o
rapaz, mas a expressão de seu rosto não demonstrou qualquer descontentamento.
Na verdade, o seu desejo era visitar algum dos muitos museus existentes em
Londres, como o Museu Britânico, famoso no mundo inteiro por sua
incomparável coleção de antiguidades do Egito e da Mesopotâmia, ou o Victoria
and Albert Museum. Piccadilly Circus, com seus enormes painéis de néon e
inúmeras lojas elegantes, vitrines repletas de novidades úteis e inúteis,
correspondia ao paraíso dos consumidores compulsivos, um dos principais
centros comerciais londrino. Não era a espécie de diversão que Michael
imaginava para aquele dia, mas concordou de bom grado acompanhar Michele.
No fundo, queria apenas permanecer na companhia dela, sentir o seu perfume
delicioso, passar a tarde tranquilo, longe de todas as preocupações que o
aborreciam.
Embora houvesse uma estação de metrô na praça de Piccadilly Circus,
Michele preferiu ir de ônibus, pois assim poderia mostrar um pouco da cidade ao
rapaz. Michael nunca andara naqueles ônibus vermelhos de dois andares e achou
a sensação um tanto esquisita. O trajeto não foi longo e, pouco antes do meio-
dia, eles desembarcaram diante da famosa esquina de Piccadilly, onde se
encontram os painéis luminosos da Sanyo, TDK e Coca-cola.
Enquanto caminhavam pela praça, depararam-se com um músico tocando
saxofone. O sujeito colocara um chapéu no chão a fim de arrecadar algumas
moedas em troca de seu show. Michele reteve o namorado um instante, pois
adorava música. O som do saxofone enchia os corações com um delicioso
sentimento de plenitude e era como se transportasse a alma das pessoas para os
recantos paradisíacos dos primeiros dias da criação, onde tudo exalava o frescor
selvagem da natureza ainda não maculada pelas patas do homem. Quando o
saxofonista terminou aquela música arrebatadora, ele viu Michael e Michele
abraçados, admirando a sua arte, e concluiu que poderia conseguir algum
dinheiro. Ajeitou os cabelos compridos por sobre os ombros e disse:
- A próxima canção é dedicada aos casais apaixonados.
Em seguida, pôs-se a executar uma melodia tão maravilhosa, que as
próprias pombas pareciam hipnotizadas, inclinando suas cabeças meio de lado
para descobrir de onde provinha tamanha perfeição, sons que só poderiam ser
emitidos pela garganta de algum deus. Ao ouvir as primeiras notas, Michael
reconheceu imediatamente aquela balada romântica e, abraçando Michele ainda
mais, como se temesse perdê-la, murmurou para si mesmo:
- Ah, essa canção...
Era um antigo sucesso dos anos setenta, intitulado You Needed Me, o qual
embalara os corações dos jovens sonhadores de toda uma época, através da voz
inigualável da cantora canadense Anne Murray. Michele percebeu que o rapaz
ficara muito sensibilizado ao ouvir aquela música e permanecia em êxtase,
contemplando o saxofonista, alheio a tudo o mais ao seu redor. Ela apanhou a
mão dele e, procurando descobrir algum segredo dentro de seus olhos, disse:
- Vem comigo!
Então, a menina o conduziu por alguns degraus, subindo até um patamar,
onde se localizava uma magnífica fonte de bronze, em cujo ápice havia uma
estátua de Cupido. Michele envolveu-lhe a cintura, colando seus seios ao corpo
do rapaz, e os dois começaram a dançar lentamente, acompanhando o ritmo
mágico do saxofone. Como se estivessem num salão de bailes, alheios às pessoas
que por ali circulavam, eles permaneceram dançando até o final da música, que
agora lhes pertencia, era parte daquela história de amor. Ao término da melodia,
Michele deu um beijo na boca do companheiro e, achando-o um tanto tímido,
exclamou:
- Não se preocupe... estamos em Londres!
Durante certo tempo, Michael observou a estátua de Cupido, imaginando
que ele havia cravado uma de suas flechas em seu coração. Que amava aquela
moça tão deliciosamente impetuosa, tão incrivelmente maravilhosa, não tinha
mais qualquer dúvida. Já não podia voltar à sua antiga, contemplativa vida, que
levava no convento de Santa Maria delle Grazie. Agora, o seu desejo era que
toda aquela loucura acabasse o quanto antes. Estava cansado de fugir de
bandidos perigosos e, quando tudo isso terminasse, iria reconstruir sua vida
numa pequenina cidade da Itália ou da França, ao lado de Michele, com quem
pretendia se casar, ter muitos filhos e envelhecer com dignidade.
Ao descer os degraus da velha fonte, Michael colocou uma nota dentro do
chapéu do saxofonista e seguiu com a namorada até o outro lado da rua. Ela
gostava muito de olhar as vitrines daquelas lojas elegantes, embora não
comprasse quase nada ali, pois nunca tinha dinheiro sobrando. As calçadas
achavam-se repletas de pessoas que iam e vinham de toda parte, muitas das quais
em busca de uma refeição ligeira. Como estavam famintos, eles entraram no
primeiro restaurante encontrado e foram se sentar ao fundo do estabelecimento,
próximo à cozinha. O rapaz pediu bife com fritas e Michele, salada de batatas.
Ao longo da refeição, conversaram sobre uma infinidade de assuntos, como seus
astros de cinema preferidos e futebol, mas não disseram uma única palavra a
respeito do motivo que os havia trazido outra vez a Londres. Porém, enquanto
saboreavam a sobremesa, um excelente pavê de chocolate, Michele indagou:
- O que você acha das pistas descobertas até agora?
- Estamos no caminho certo! Já encontramos um S, um E e um P. Juntas,
formam a sílaba SEP, que pode ser as iniciais latinas de “sepultura” ou
“sepulcro”...
- E isto significa que o demônio está aprisionado numa sepultura, num
cemitério?
- Por enquanto, não temos como saber. Porém, a possibilidade é boa.
Talvez, ele esteja preso em algum sepulcro famoso, como o próprio local onde
Cristo foi sepultado...
A menina deitou um olhar grave sobre o rapaz, imaginando que ele
estivesse a zombar de coisas sérias. Após ter comido o último pedaço de sua
sobremesa, ela limpou a boca com um guardanapo e disse:
- Isto é impossível! O demônio certamente foi trazido para a Europa pelos
templários...
- Você tem toda razão. Além do mais, os cavaleiros da Ordem jamais
cometeriam tamanho sacrilégio. Falei por falar. Mas a possibilidade de Satanás
ter sido encarcerado numa sepultura não é infundada.
Enquanto conversavam, um garçom apareceu por entre as mesas e, batendo
com um garfo num copo, bradou:
- Michael Leonard! Michael Leonard Serafino!
O rapaz ficou surpreso ao ouvir o seu nome sendo chamado por um
estranho. Voltando-se para o local onde o garçom estava, ergueu um dos braços e
proferiu:
- Aqui!
O sujeito veio até a mesa deles e exclamou:
- Bom dia, senhor! Nós acabamos de receber um telefonema e o cavalheiro
que ligou quer falar com você. Caso queira atender, deve me acompanhar até a
sala ao lado, por gentileza, pois não temos telefones móveis no
estabelecimento...
- Da parte de quem? Quis saber o rapaz.
- Um amigo seu, chamado Celestino...
Michael contemplou Michele com uma expressão desconfiada em seu rosto.
Como o bom padre os encontrara naquele restaurante, se nem sabia que o amigo
se achava em Londres? Uma sensação terrível passou a mortificar o espírito do
rapaz. Ele pôs-se de pé e seguiu o garçom a uma sala, onde havia um telefone
sobre uma escrivaninha. Com dedos um pouco trêmulos, prevendo más notícias,
apanhou o fone e disse:
- Michael falando...
- Michael... Michael... não faça o que eles querem! Não lhes entregue o
diário... aconteça o que acontecer, não lhes dê o diá...
A frase foi cortada ao meio, dando a entender que o telefone tinha sido
arrancado com violência das mãos de seu interlocutor. Imediatamente, o rapaz
experimentou um arrepio dilacerante, como se uma enguia se arrastasse por
dentro de sua coluna vertebral, devorando-lhe a medula, pois reconhecera a voz
do velho amigo. Cego pelo desespero, bradou:
- Celestino, o que está acontecendo? Celestino?...
Do outro lado do aparelho, uma voz rouca respondeu:
- Fique calmo, Michael! Nada de mal acontecerá a seu amigo... isto é, se
você colaborar...
- Quem está falando?
- Você sabe muito bem...
- Seu bandido nojento! Não ouse tocar em um único fio de cabelo de
Celestino!
- Isto dependerá de você. Entregue-nos o diário de Jacques de Molay e o
velho caturra será libertado em seguida. Caso contrário...
Os olhos de Michael fumegaram de ódio. Durante alguns segundos, ele
ficou em silêncio, meditando qual seria a melhor atitude a se tomar e o que dizer
àquele canalha. Estava lidando com assassinos profissionais, para quem a vida
alheia não valia coisa alguma.
- O diário de Jacques de Molay é uma raridade absoluta e deve ir para
algum museu a fim de ser preservado, pois é um patrimônio de toda a
humanidade.
- Isto pouco me importa. Nós estamos agora tomando um avião para
Londres. Se o livro não nos for entregue esta tarde, ainda hoje seu amigo será
julgado pelas cortes celestes e irá conhecer o paraíso ou as trevas infernais...
- Escute bem, seu verme asqueroso, pois serei categórico e vou dizer uma
única vez. Eu não darei o diário de Jacques de Molay a vocês por nada deste
mundo. Ele vale infinitas vezes mais do que qualquer vida e o próprio Celestino
sabe disso, tanto que me implorou para não cumprir esta sua ordem. Se eu lhes
entregar o livro, ele pode se perder e isto seria uma calamidade, um desastre
irreparável para a humanidade.
- Então você não verá mais seu amigo... pelo menos nesta vida...
- Entenda o que eu estou querendo dizer. Não me interessa se vocês estão
atrás do suposto tesouro templário, o qual imaginam existir, e desejam se
apoderar a qualquer custo. Eu quero apenas preservar o diário de Jacques de
Molay e, para isso, sacrificarei a minha própria vida, caso seja necessário.
Porém, estou disposto a fazer um trato, se me der a sua palavra que vai libertar
Celestino.
- Diga! Exclamou o bandido.
- Se quiser, eu tiro uma cópia do livro e lhe entrego. Para você, não fará
diferença alguma, uma vez que está interessado apenas no conteúdo do diário,
pois imagina que Jacques de Molay indica o local onde os cavaleiros templários
esconderam o tesouro da Ordem...
Por um momento, Macrino conservou-se em silêncio, como se estudasse
aquela proposta. Certamente, o sujeito percebeu que Michael estava falando
sério, pois havia sido bastante incisivo em sua recusa. Ao cabo de alguns
segundos, proferiu:
- Quero cópias coloridas, de qualidade, para nenhum detalhe do diário se
perder. Leve o material encadernado em espiral à abadia de Westminster, às
15:00h. O meu avião parte em uma hora e, seguramente, estarei esperando por
você no transepto, próximo ao Memorial de Geoffrey Chaucer. Não se atrase,
nem tente nenhuma gracinha; caso contrário, Celestino será morto! Você
compreendeu?
- Estarei lá!
Após desligar o telefone, o rapaz retornou para a sua mesa. Como estava
pálido, Michele percebeu que ele havia recebido péssimas notícias.
- Qual o problema agora?
- Pegaram Celestino!
Depois, explicou-lhe tudo, pediram a conta e partiram. Três quarteirões
adiante, entraram numa papelaria e Michael disse a um dos funcionários que
desejava tirar uma cópia colorida daquele livro. O sujeito folheou algumas
páginas com visível má vontade e o devolveu ao rapaz, afirmando:
- Tudo bem. Passe amanhã para pegar as cópias.
- Mas amanhã será muito tarde! Preciso delas agora!
O sujeito não deu a menor importância às palavras do rapaz e já estava lhe
virando as costas, quando Michele interveio:
- Por favor, nós temos um voo agendado para partir às 15:00h...
O balconista vacilou um instante. Então, Michael retirou de sua carteira
uma nota de cem euros e lhe entregou. Ele a apanhou ainda sem compreender e
disse:
- O que isto significa?
- Talvez você não acredite, mas este é um caso de vida ou morte. Se me
fizer a gentileza de tirar as cópias agora, este dinheiro é seu, além do preço
padrão do serviço. Só lhe peço que tome todo o cuidado possível, pois se trata de
um livro muito valioso.
O funcionário meteu a nota no bolso de sua camisa e abriu um sorriso,
dizendo:
- Você não teria libras esterlinas? Você sabe, o proprietário...
- Estamos partindo para o continente agora, mas ainda tenho o suficiente
em moeda britânica para pagar as cópias...
Em seguida, ele iniciou o serviço. Como desejava agradar aquele cliente, o
qual lhe dera uma gorjeta tão polpuda, fez o trabalho com todo carinho a fim de
não amassar ou rasgar nenhuma folha. Porém, isto levou muito tempo e Michael
passou a se afligir, imaginando que não chegaria à abadia de Westminster no
horário combinado.
Tão logo as cópias ficaram prontas, o rapaz pagou pelo serviço e saiu da
loja com a encadernação dentro de uma sacola. Eles tomaram um daqueles
tradicionais táxis negros londrinos e seguiram direto para a imponente igreja
medieval de Westminster, onde os monarcas ingleses são coroados. Como o
trajeto não era longo, em poucos minutos alcançaram o seu destino.
Ao entrar no velho templo, o moço ficou maravilhado diante de tamanha
beleza e lamentou não ter conhecido aquela igreja em outras circunstâncias.
Quanta história as suas paredes seculares não abrigavam! Ali permaneciam
enterrados alguns dos filhos mais notáveis da Inglaterra, como Sir Isaac Newton,
o poeta Geoffrey Chaucer e Charles Darwin, além de inúmeros monarcas
britânicos.
Embora desejasse conhecer melhor a abadia, Michael dirigiu-se de imediato
ao transepto, onde achou Macrino e seu comparsa aguardando no local
combinado. Ao avistarem o rapaz, levantaram-se do banco em que fingiam orar
ou meditar e vieram ao encontro dele.
- Dê-nos a cópia! Pediu o atarracado com certa arrogância.
Michael entregou a sacola ao sujeito, que retirou de seu interior a
encadernação e pôs-se a folheá-la avidamente. Depois, disse ao outro:
- Está tudo certo. Podemos ir embora...
Apesar de ainda se encontrarem no meio da igreja, os dois bandidos
colocaram seus chapéus nas respectivas cabeças e despediram-se. Quando
passaram ao lado do rapaz, ele agarrou a manga direita do paletó de Macrino e
inquiriu:
- Espere um minuto! Onde está Celestino?
O malfeitor tirou do bolso um aparelho celular, cedendo-o ao rapaz.
- Está aqui!
- Que brincadeira é essa?
- Não é brincadeira alguma. Seu adorado velho caturra encontra-se do outro
lado desse telefone e a liberdade dele depende apenas de você. Como sou
generoso, dou-lhe um conselho de graça. Se ainda quiser ver seu amigo com
vida, é bom se apressar...
Dizendo isso, Macrino saiu da abadia de Westminster, acompanhado de seu
comparsa. O rapaz percebeu que o aparelho estava ligado em um número em
particular e indagou:
- Alô? Tem alguém aí?
Ouvindo aquela voz familiar, Celestino respondeu em italiano:
- Michael, é você? Não entregue o diário a estes bandidos, eu lhe suplico
por tudo que lhe é mais sagrado!
Ao reconhecer a voz do amigo, o rapaz sentiu certo alívio. A fala dele,
porém, achava-se bastante fraca, demonstrando enorme esgotamento físico.
- Fique tranquilo, pois o livro continua comigo. Onde você está?
- Numa praia...
- Repousando no litoral?
- Eu não diria bem isso. Estou numa praia deserta... enterrado... deixaram-
me apenas a cabeça para fora da areia... e um celular diante de minha boca... por
sorte, os bandidos devem ter se dado ao trabalho de carregar a bateria... Mas o
pior de tudo, é que a maré está subindo!
Quando Michael ouviu aquilo, teve a sensação de que um crocodilo lhe
cravara os dentes nas vísceras. A sua respiração alterou-se deveras, a ponto dele
quase não mais poder articular as palavras, e seus olhos incharam avermelhados,
feito dois rabanetes graúdos. Assim que conseguiu dominar um pouco o seu
nervosismo, indagou:
- Pelo amor de Deus, Celestino, você reconhece este local?
- Creio que sim... deve ser uma praia na cidade de Dover... virando um
pouco o pescoço, vejo os famosos “Penhascos Brancos”. Já estive aqui antes... é
um lugar belíssimo...
- Estou indo para aí agora!
Após deixarem a abadia de Westminster, Michael e Michele dirigiram-se a
uma agência e alugaram um carro, mas perderam um tempo precioso até o
veículo ser liberado. A distância entre as cidades de Dover e Londres não era
grande, conforme eles puderam ver no GPS, que lhes indicou a melhor rota a ser
seguida através de mapas rodoviários. Michele ligou o notebook do rapaz e
descobriu que as marés subiam duas vezes ao dia nas praias de Dover,
geralmente durante a alvorada e ao entardecer. Portanto, como o próprio
Celestino lhes dissera, àquela hora da tarde a maré já estava subindo e por isso
eles não podiam perder um único minuto sequer. Michael guiava pela estrada de
forma alucinada, realizando ultrapassagens perigosas e, por mais de uma vez,
quase colidiu com outros automóveis. O telefone celular fora colocado no modo
viva-voz e a todo instante, perguntavam a Celestino se o mar estava longe. A
certa altura, o velho padre respondeu:
- Para vocês terem uma ideia, as águas acham-se agora tão perto do meu
rosto que, se eu pudesse esticar os braços, tocaria a areia molhada.
Estas palavras encheram ainda mais de aflição o peito do moço:
- Aguente firme, meu amigo, pois estamos chegando! Em poucos minutos,
tudo estará resolvido...
- Fique tranquilo, não irei a lugar algum. Gracejou Celestino.
- A praia é grande... diga-me, consegue ver qualquer ponto de referência
que indique mais precisamente o local onde você está enterrado?
- Vejo apenas o céu azul e o mar... na minha frente, há uma nuvem curiosa
em forma de pomba...
Michele estendeu sua mão para fora da janela e bradou:
- Ali está a nuvem! Celestino não deve se encontrar muito longe...
Naquele momento, o rapaz teve a certeza de que salvariam a vida do amigo
e exclamou um pouco menos angustiado:
- Estamos vendo a nuvem! Por favor, Celestino, faça um esforço e veja se
não há mais nada que nos sirva de referência...
O bom padre virou seu pescoço para trás o máximo que conseguiu e disse:
- Espere... próximo deste local, há uma cruz colocada sobre os penhascos...
- Ótimo! É o quanto precisamos...
Pouco depois, Michael e Michele ouviram um barulho estranho vindo do
telefone celular e o rapaz indagou:
- O que foi isso?
- Nada, apenas uma onda amiga que veio lavar a areia do meu rosto...
Chegando às imediações da cidade de Dover, Michael freou o carro
bruscamente, pois o trânsito quase já não fluía. A sua primeira ideia foi que
ocorrera algum acidente e a estrada precisara ser interditada pela equipe de
resgate. Não era. Após intermináveis minutos preso ao tráfego, ficou sabendo
que os trabalhadores do porto de Dover tinham bloqueado a pista, reivindicando
melhores salários. O rapaz entrou em desespero e pôs-se a buzinar, forçando
passagem por entre os manifestantes, os quais não saíam da frente. Aqueles
momentos poderiam ser decisivos para salvar a vida de Celestino e Michael fez
de tudo para furar o bloqueio, sem obter qualquer resultado. Quando teve a
certeza de que não conseguiria passar, estacionou o carro no acostamento e disse
à namorada:
- Vou a pé mesmo, não há outro jeito!
E saiu correndo aflito pelo meio da multidão. A tarde começava a cair,
misturando o céu e o mar num único matiz cinzento. Ao cabo de alguns minutos,
o moço parou esbaforido sobre um dos penhascos, de onde podia contemplar o
oceano gigantesco. Lá embaixo, a praia estava deserta e o silêncio era quebrado
apenas pelas ondas que vinham lamber as pedras e a areia. Através do telefone,
Michael tentou falar com Celestino, mas ele não respondeu. Após muita procura,
Michele bradou, apontando adiante:
- Veja! A cruz sobre o penhasco!
O rapaz espremeu os olhos para ver melhor. Ao localizá-la, sentiu o seu
espírito revigorado por uma brisa de esperança, pois ainda tinha fé que poderia
salvar o amigo. A cruz estava longe e era incrível como Michele conseguira
encontrá-la com a escassa luz da tarde. Imediatamente, eles saíram correndo
naquela direção, mas demoraram a chegar ao local, em virtude do terreno ser
muito acidentado e repleto de pedras e buracos. Já era quase noite, quando
alcançaram a cruz. A praia abria-se além do penhasco e algumas gaivotas
recolhiam-se junto aos rochedos. O jovem dirigiu-se à beira do despenhadeiro e
contemplou as ondas impiedosas lá embaixo, chicoteando as pedras indolentes.
Por alguns segundos, permaneceu estático, ruminando sua dor, fulminado por
uma sensação esmagadora de impotência. Michele cingiu a cintura dele e
mostrou-lhe algo flutuando sobre as ondas para lá e para cá, quase como um
reflexo, até que o rapaz percebeu que se tratava de um aparelho celular, prova
irrefutável de que não havia mais nada a ser feito. Michael abraçou-se à menina
e, não conseguindo mais conter as lágrimas, pôs-se a chorar de maneira
inconsolável. Era tarde. Na linha do horizonte, a lua começava a despertar por
trás do oceano.
Ao apanharem o carro no acostamento, a estrada já tinha sido desobstruída.
Como Michael achava-se bastante abalado, Michele sugeriu que eles passassem
a noite numa hospedaria em Dover e retornassem a Londres apenas no dia
seguinte, pela manhã. Não perderam muito tempo procurando local para dormir,
pois logo na entrada da cidade encontraram um hotel. Após terem se instalado
em um dos quartos, eles banharam-se e pediram uma pizza. Enquanto
aguardavam a refeição, o rapaz ligou a tevê e descobriu algo extraordinário.
Num dos telejornais, exibiam uma matéria exatamente sobre Beato Simão. A
manchete que corria ao pé do aparelho televisor era vulgar e apelativa:

“Discípulo de santo que prevê o fim do mundo mata frade.”

O discípulo em questão era ninguém menos do que Manfredino, o qual


confessara ter assassinado frei Abelardo, e apresentava-se diante das câmeras
preso por algemas. Beato Simão também apareceu em cadeia nacional diversas
vezes, com seus cabelos gordurosos e olhar de louco perigoso. Ele parecia
bastante revoltado com a prisão de Manfredino e bradava furibundo que o final
dos tempos chegara, que Satanás estava para deixar a prisão onde era mantido
em correntes, e que o mal dominaria toda a terra. Michael surpreendeu-se com
aquela notícia e comentou:
- Nisso, ele pode ter razão, embora ninguém acredite...
Pouco depois, um funcionário do hotel bateu à porta do quarto, trazendo o
jantar. Michele não gostou da pizza, alegando que a massa se achava dura
demais e salgada. Como se encontrava muito triste pela perda do amigo, Michael
não deu a menor importância a isto, embora comera apenas uma fatia, pois não
tinha fome. Durante toda a refeição, permanecera calado e só voltara a dizer algo
quando terminou seu jantar.
- Juro pela minha alma, que agora irei até o fim disso. A morte de Celestino
não terá sido em vão... Somente descansarei após descobrir o local onde Satanás
está preso e tê-lo matado, evitando, assim, os terríveis flagelos previstos no final
dos tempos...
- Para isso, precisamos saber onde fica a quarta torre. O que diz o Malleus
Maleficarum a este respeito?
O rapaz levantou-se da mesa, apanhou sua pasta que permanecia sobre uma
cadeira e, retirando dela a cópia do Malleus, pôs-se a ler o trecho desejado,
traduzindo-o do latim:

“Eleva-se a quarta torre sobre o túmulo de Gerion, rei de Brigantium.”

Não parecia uma pista difícil de ser decifrada. Bastava descobrir quem era
esse monarca misterioso e onde ficava o seu reino, que o enigma estaria
resolvido. Enquanto Michele divertia-se jogando Paciência, o rapaz ligou o seu
computador e, durante algum tempo, permaneceu pesquisando sobre o assunto
na internet. Ao digitar a palavra “Gerion” no Google, ficou sabendo que,
segundo a mitologia grega, ele fora um rei da antiga cidade de Brigantium,
localizada em terras espanholas. A sua história está ligada à lenda de Hércules e
a um de seus doze trabalhos. Gerion era um tirano terrível, o qual oprimia os
seus súditos. Segundo Hesíodo, tratava-se de um gigante com três cabeças, seis
braços e seis pernas num único corpo, tido como o mais forte dos homens, que
guardava os seus rebanhos com um cão de duas cabeças. Hércules fora
incumbido por Euristeu a combater Gerion e lhe furtar os bois. O duelo travado
entre o filho de Júpiter e o gigante foi colossal, estendendo-se da aurora ao
entardecer, pois nenhum dos dois conseguia subjugar o adversário. Finalmente,
Hércules matou o tirano, enterrando a sua última cabeça junto ao oceano
Atlântico.
Esta descoberta deixou o rapaz outra vez animado, tanto que gritou para
Michele:
- Descobri algo importante...
A menina largou o baralho e veio se colocar de pé, atrás da cadeira onde
Michael estava sentado.
- Diga! Exclamou a jovem.
- Este Gerion foi rei de uma antiga cidade espanhola. A sua história liga-se
à lenda de Hércules, que o matou após uma luta terrível...
- Qual cidade? Fale de uma vez!
- Ainda não sei, mas é fácil desvendar este mistério...
Ao dizer isto, Michael digitou a palavra “Brigantium” na tela de seu
notebook e descobriu que se tratava do antigo nome da cidade de La Coruña, na
Espanha. Entusiasmado, ele bradou eufórico:
- Veja! Com toda certeza, a quarta torre do demônio encontra-se em algum
lugar em La Coruña ou seus arredores...
- Só nos resta saber exatamente onde! Concluiu Michele.
Naquela página da internet, havia inúmeras fotos em miniatura da cidade
espanhola, com diversos pontos turísticos curiosos. Michael foi clicando nos
ícones das imagens a fim de ampliá-las. A certa altura, apareceu o escudo de La
Coruña e Michele pediu para o rapaz esperar um instante. Após analisar a
fotografia com atenção, a menina proferiu:
- Não acha estranho o escudo de uma cidade apresentar ossos cruzados e
uma caveira, como se quisesse simbolizar a própria morte?
- Agora que você disse...
Era verdade. No escudo de La Coruña destacava-se, além de uma coroa,
símbolo da realeza, uma insólita torre por cima da referida caveira. O rapaz
passou o cursor do mouse sobre a foto, fazendo com que aparecesse a seguinte
legenda: “escudo de La Coruña, onde se vê a caveira do gigante Gerion,
enterrado sob a torre por Hércules”. Ao ler esta informação, Michele arregalou
os olhos e proferiu:
- O túmulo de Gerion! É aí que se eleva a quarta torre!
Sem perder tempo, Michael escreveu no Google as palavras “La Coruña”,
“torre” e “Gerion”, surgindo vários sites ligados à Torre de Hércules.
- A Torre de Hércules! Não há dúvida alguma! É lá que devemos procurar a
pista deixada pelos cavaleiros templários. Exclamou a menina.
O rapaz concordou com a jovem e foi apanhar o diário de Jacques de
Molay.
- Olhe! Até a trovinha do velho grão-mestre confirma este local, ao sugerir
que se deve cavar a trinta passos do farol. Ora, a Torre de Hércules foi construída
pelos romanos justamente como um farol náutico...
- E o que dizem os versos? Inquiriu Michele, curiosa.
Vendo o interesse da menina, o rapaz impostou a voz e leu o poema:

“Trinta passos do farol


Bem medidos contarás
Às três horas sob o sol,
Mas na sombra cavarás.”

Tendo descoberto a quarta torre do demônio, ou seja, a Torre de Hércules,


ficou fácil compreender o significado da trovinha de Jacques de Molay. Michael
e Michele concordaram que os cavaleiros templários tinham enterrado a pista a
trinta passos do farol, exatamente no lugar assinalado pela sua sombra às três
horas da tarde.
Na manhã seguinte, os dois acordaram bem cedo com intenção de ir para a
cidade de La Coruña. A viagem era longa. Eles devolveram o carro alugado na
agência e compraram bilhetes para o trem que atravessa o Eurotúnel sob o Canal
da Mancha. Assim que chegaram à França, alugaram outro carro e puseram-se a
caminho, atravessando boa parte do território francês e quase todo o norte da
Espanha. Como Michael tinha certeza de que precisaria cavar, ele resolveu
adquirir uma pá, mas não encontrou nenhum estabelecimento comercial aberto
em Dover por causa do horário. Ao chegar a Paris, comprou não só a pá, como
também uma corda e pilhas, pois a de sua pequenina lanterna estava começando
a ficar fraca.
Durante a viagem, Michele tirou belas fotografias das cidades por onde eles
iam passando, como Amiens, Paris, Orléans, Tours, Bordeaux, Bilbao, Santander
e Oviedo, entre outras. Como desejavam chegar logo a La Coruña, eles fizeram
poucas paradas ao longo do dia, apenas para esticar as pernas, ir ao banheiro ou
comprar água e comida. Próximo às dez horas da noite, estacionaram em um
posto de gasolina na estrada, abasteceram o tanque e resolveram dormir ali
mesmo no carro, pois acharam o local seguro. Muitos caminhoneiros adotavam
esta prática e isto os convenceu de que não corriam qualquer perigo.
Ainda não tinha amanhecido, quando Michael e Michele acordaram,
comeram um lanche meio seco que sobrara da véspera e decidiram seguir
viagem. Aos poucos, o dia foi clareando e a manhã passou a despejar toda sua
abundante luminosidade sobre os campos da Península Ibérica. Embora o sol
brilhasse majestoso num céu extraordinariamente azul, a temperatura estava
bastante agradável e, durante todo o dia, não ultrapassou os vinte graus Celsius.
Ao chegarem à cidade de La Coruña, já havia passado de uma hora da
tarde. Michael ficou pasmo com o tamanho da Torre de Hércules, que dominava
toda a paisagem defronte ao oceano Atlântico. Após deixarem o carro em um
estacionamento, eles dirigiram-se à magnífica torre, levando a pá e a corda. Só
então, o rapaz se deu conta de um pequeno inconveniente. Como poderia cavar
ali, na frente de tantos turistas e guias? Se assim procedesse, teria de dar
explicações aos curiosos e era capaz até de aparecer a polícia. Impossibilitado de
realizar tal tarefa durante o dia, Michele sugeriu que ele cavasse de madrugada.
- É muito simples, basta marcar o local...
Michael olhou para sua namorada, surpreso com a sagacidade da jovem, e
dirigiu-se com ela até uma sombra, a fim de aguardarem o horário. Às três horas
da tarde, Michael encostou-se à torre e, caminhando na direção da sombra
projetada no chão, contou os trinta passos bem medidos. Com um pedaço de pau,
Michele fez várias marcas no lugar, raspando o solo, para que pudesse ser
identificado durante a madrugada. Como naquele momento não poderiam
começar as escavações, decidiram procurar um hotel e acabaram se instalando
em uma hospedaria simples, à beira da estrada, próximo à Torre de Hércules.
Ainda não eram oito horas da noite, quando eles resolveram se recolher,
pois haviam combinado levantar às duas horas da manhã, para iniciar as
escavações. Michael custou um pouco a dormir, ao contrário de Michele, que
adormeceu logo. Como estavam cansados, acabaram acordando apenas às três
horas da madrugada e tiveram de correr, uma vez que o rapaz temia não ter
tempo suficiente de abrir o buraco antes da manhã raiar.
Só perceberam como a noite estava fria e escura ao descer do carro. O
marulhar manso das ondas quebrava na costa, cortado apenas pelo canto
estrídulo dos grilos e pelo chirriar de uma coruja insone que, do alto da torre,
assistia a tudo com uma curiosidade quase humana. Um casal de morcegos
passou num voo rasante sobre a cabeça dos jovens, assustando-os deveras. Com
sua pequenina lanterna, o rapaz iluminou o chão até descobrir o local marcado.
Tão logo o achou, pediu a pá à menina e meteu-se a cavar com vontade. Pôde
realizar o trabalho tranquilamente, pois não havia alma alguma pelos arredores.
Por quase duas horas, labutou naquela empresa extenuante, jogando terra para
fora de um buraco que crescia minuto a minuto. Bagos de suor escorriam por seu
rosto afogueado, empapando-lhe a camisa branca. Em certo momento, quando o
corpo de Michael já tinha desaparecido dentro da cova, ele ouviu a pá bater de
encontro a um objeto maciço e seus olhos fulgiram extasiados, como se
houvesse duas tochas incandescentes ardendo dentro de suas íris. Michele correu
até a borda do buraco para ver o que acontecera e indagou:
- O que foi?
- Achei algo estranho...
Durante alguns instantes, o rapaz cavou cuidadosamente em torno do objeto
a fim de o livrar do local onde estava preso. Ele imaginava descobrir uma pedra,
sobre a qual os templários teriam gravado outra letra. Porém, para sua surpresa,
havia ali uma arca belíssima, feita de madeira e prata, embora bastante
envelhecida.
Após entregá-la à namorada, Michael saiu da cova com algum esforço e
tomou outra vez o baú em suas mãos. Achava-se bastante excitado, sentindo seu
coração bater feito uma britadeira. A arca não era grande e media,
aproximadamente, o tamanho de suas palmas abertas. Michele iluminou-a
melhor. Ao reconhecer a cruz templária nos fechos de prata do velho baú,
Michael teve a certeza de que ele fora enterrado ali pelos cavaleiros da Ordem. O
rapaz pôs a arca no chão e, sem se importar com seu valor histórico, deu uma
forte pancada com a pá sobre o cadeado, arrebentando-o. Ao abri-la, Michael
deparou-se com dois objetos ali dentro. Cheia de curiosidade, Michele inquiriu:
- Diga logo! O que há no interior do baú?
O rapaz fitou os olhos da jovem e disse:
- Apenas uma velha corrente enferrujada e esta cruz... uma antiga cruz de
prata!

A quinta torre

Pouco antes de amanhecer, Michael e Michele retornaram à hospedaria


onde haviam passado parte da noite anterior. Ele deixou o carro num pátio de
terra diante da velha estalagem, debaixo de uma árvore, e dirigiu-se ao mesmo
quarto da véspera, acompanhado pela namorada. No saguão, encontraram a
hospedeira, uma senhora bojuda e atenciosa, com voz de barítono e rosto que
lembrava as feições de um dos Três Patetas. A boa mulher trazia um lenço
colorido na cabeça e, com um balde de água, esfregão e detergente, aproveitava
aquelas horas vazias que antecediam a alvorada para lavar os corredores do seu
estabelecimento. Ao ver o rapaz naquele estado, coberto por terra e com a roupa
toda encardida, indagou num inglês sofrível:
- Mas o que acontecer... cair num brejo?
- Estava no cemitério, desenterrando os mortos. Gracejou Michael.
A velha senhora persignou-se diversas vezes, mastigando algumas palavras
de esconjuro, as quais ninguém compreendeu. Eles subiram as escadas escuras
rindo da brincadeira e entraram no quarto, que cheirava a cobertor guardado por
longo tempo. Embora não fosse grande, possuía a vantagem de ter banheiro
próprio e era limpo. O moço atirou sua mala sobre a cama e foi abrir a janela
para arejar o ambiente. Aos poucos, a manhã ia despertando, preguiçosa,
tingindo as casas e os campos com os matizes da aurora. Depois, Michael lavou
o rosto na pia e abriu o chuveiro, deixando a água escorrendo até encher uma
enorme banheira de louça branca. Ele despiu-se, jogou a roupa suja num canto e
mergulhou naquelas águas quentes e reconfortantes. Enquanto relaxava de olhos
fechados, ouviu o celular tocando insistentemente no bolso de seu sobretudo, o
qual ele pendurara num gancho atrás da porta. O banho estava tão agradável, que
o rapaz recusou-se a sair dali naquele momento e resolveu não atender. Michele
abriu a porta, aproximou-se do namorado e perguntou:
- Quem era?
- Não sei... Certamente não era para nós, pois este celular nem é nosso.
- Talvez fossem aqueles bandidos...
Ao ouvir tais palavras, Michael arrepiou-se. Teriam conseguido ler o texto
em latim do diário de Jacques de Molay? E se tivessem lido, de que lhes
serviria? O livro não revelava o local para onde os cavaleiros haviam levado o
fabuloso tesouro do Templo. Uma coisa era certa. Quando Macrino e seu
comparsa descobrissem isso, viriam outra vez atormentar o rapaz. Ele apanhou o
sabonete e, esfregando-o suavemente sobre seu corpo, disse:
- Não me fale nesses assassinos...
Michele agachou-se próximo à cabeça do jovem e lhe perguntou com voz
quente, acariciando de leve os ralos cabelos que ele trazia no peito:
- Está cansado?
- Agora não. Estou pronto para enfrentar outro buraco...
A menina estendeu um sorriso atrevido no rosto ao compreender aquela
frase de duplo sentido. Ela ergueu seu corpo voluptuoso, despiu a camiseta e,
com o calcanhar delicado, encostou a porta.
Depois do banho, Michele dirigiu-se à lavanderia e aproveitou para lavar a
roupa. Michael permaneceu no quarto e a primeira coisa que fez foi conferir o
número exibido no telefone, mas não o reconheceu. Teve vontade de retornar a
ligação, porém acabou achando a ideia idiota.
Sobre uma cômoda de madeira, havia uma televisão de quatorze polegadas
bastante antiga. O rapaz ligou o aparelho, imaginando que ele não funcionaria,
mas funcionou. Com algum esforço, conseguiu sintonizar um canal, embora a
imagem estivesse péssima, cheia de chuviscos e sombras. Como não tinha nada a
fazer, ficou assistindo a um telejornal, enquanto aguardava Michele retornar da
lavanderia. Para sua surpresa, a emissora começou a exibir um longo programa a
respeito de Beato Simão. O desvairado taumaturgo pregava que o anticristo já se
encontrava entre nós e viera ao mundo com a missão de libertar o demônio dos
grilhões de seu cárcere. Segundo as profecias, a besta apocalíptica, identificada
pelo número 666, seria reconhecida por trazer na cabeça uma marca de nascença.
Fosse verdade ou não, o fato é que inúmeras pessoas passaram a acreditar nas
palavras de Beato Simão, o qual tinha realizado alguns supostos milagres e era
visto por muita gente, sobretudo pelos mais humildes, como um verdadeiro
santo. Tal fenômeno popular, com estranhas características messiânicas,
alastrava-se rapidamente e já não se limitava mais às fronteiras de um único país.
Milhares de seguidores haviam abandonado as suas casas, o seu trabalho e até a
própria família a fim de acompanhar aquele homem extravagante, pois
acreditavam ser os justos, os escolhidos para sobreviver ao final dos tempos e
desfrutar os mil anos de paz e prosperidade prometidos pelas Escrituras. Essas
pessoas doavam a Beato Simão todo seu dinheiro, com a promessa dele ser
dividido entre os sobreviventes após o hediondo cataclismo.
A sua fama crescera a tal ponto, que autoridades do mundo inteiro passaram
a lhe dar atenção. Chegaram, inclusive, a organizar um congresso internacional
em Nova York, na sede da ONU, para discutirem o que poderia ser feito num
caso desses, pois as previsões alardeadas por Beato Simão estavam causando
uma histeria coletiva sem precedentes em toda parte e isto acabava refletindo de
maneira negativa na economia mundial. Como já era esperado, houve muito
falatório e nada foi resolvido.
Durante o programa, Beato Simão foi entrevistado e, por quase vinte
minutos, expôs uma teoria fascinante, que deixou Michael de boca aberta, não
apenas pela sua lógica aparentemente irrefutável, mas porque se adaptava de
forma incrivelmente assustadora a algumas previsões constantes no Apocalipse
de São João. Segundo o taumaturgo, o final dos tempos já estava sendo
preparado por entidades malignas, infiltradas em diversos postos chaves da
civilização mundial. Isto vinha ao encontro do que Michael já sabia, pois Belial
tinha lhe revelado tal segredo. Disfarçados de seres humanos, existiam na terra
inúmeros diabretes exercendo uma infinidade de cargos e funções sem ninguém
desconfiar de nada, com o único objetivo de descobrir onde Satanás se achava
preso para o pôr em liberdade.
A fim de alcançar os seus objetivos, conforme as previsões das escrituras,
estas entidades malignas começaram a convencer as pessoas a usarem cartões de
créditos, pois são mais seguro, mais prático e mais funcional do que o emprego
de dinheiro. Isto já aconteceu no mundo todo e, hoje, as pessoas se veem
obrigadas a carregar diversos cartões em seus bolsos. O próximo passo é atenuar
este problema. Aos poucos, irá se desenvolver a ideia de que seria mais fácil e
mais cômodo se tivéssemos apenas um cartão de crédito universal, podendo ser
empregado em qualquer situação, em vez de vários. Finalmente, estas entidades
diabólicas começarão a difundir que o melhor mesmo seria tatuar a laser um
código de barras sobre a pele. Este sinal, invisível ao olho humano, deverá ser
colocado sobre a mão ou a testa das pessoas, e dará diversas informações a
respeito do indivíduo, quando lido por um scanner.
Para comprovar a veracidade de suas palavras, Beato Simão abriu uma
velha Bíblia que trazia consigo e passou a ler um trecho do Apocalipse, mais
precisamente o capítulo treze, versículos de dezesseis a dezoito:

“Conseguiu que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e


escravos, fossem marcados com um sinal na sua mão direita ou na sua testa, e
que ninguém pudesse comprar ou vender, exceto aquele que tiver o sinal, ou o
nome da besta, ou o número da besta. E aqui está a sabedoria. Quem tiver
inteligência, calcule o número da besta, porque é o número do homem: e este
número é 666”.

Era uma previsão impressionante! Em breve, ninguém mais poderá comprar


ou vender coisa alguma, se não tiver tatuado na pele o código de barras com o
número da besta, que substituirá os antigos cartões de créditos e o obsoleto
dinheiro em espécie. A certa altura, o entrevistador perguntou ao entrevistado
por que nenhum outro profeta previu isto e apenas São João anunciou tal
profecia no Apocalipse. Beato Simão disse não ser verdade e outros povos, cada
qual à sua maneira, também haviam previsto que o código de barras estaria
ligado ao fim dos tempos. Para ilustrar, citou uma antiga profecia dos índios
Hopis, um povo ameríndio estabelecido ao norte do estado do Arizona:

“Ninguém poderá comprar ou vender, se não tiver a marca do urso.


Quando todos já estiverem marcados, ocorrerá o final do mundo.”

Como o entrevistador demonstrasse não ter compreendido a relação


existente entre esta profecia e os atuais códigos de barras, Beato Simão explicou:
- Quando uma pessoa se depara com algo nunca visto e precisa descrever a
novidade a seus semelhantes, ela só pode fazer tal descrição a partir de sua
realidade concreta, ou seja, comparando com aquilo que já conhece. Ora, há
muitos anos atrás, algum xamã da tribo Hopis sonhou com um código de barras
e lhe foi dito que o mundo acabaria, quando todas as pessoas tivessem este sinal
gravado sobre a pele. Como explicar a seus companheiros a imagem do código
de barras? Faça um esforço e imagine as marcas deixadas pelas garras de um
urso ao arranhar com suas unhas afiadas a terra ou a casca de uma árvore.
Diversos traços paralelos na vertical, exatamente como um código de barras.
Para este indígena, a figura em seu sonho nada mais era do que a “marca do
urso”.
O entrevistador balançou a cabeça e sorriu, concordando com aquela
explicação engenhosa. Em seguida, Beato Simão disse:
- E o mais estarrecedor, o mais apavorante, é que muitos dos códigos de
barras atuais do mundo inteiro, eu diria mesmo a maioria deles, já trazem o
número da besta!
- Como assim? Quis saber o sujeito dominado pela curiosidade.
- Já prestou atenção em algum código de barras?
- Conheço-os superficialmente. Nunca li nada específico a respeito...
- Pois estão veja este, um código de barras padrão EAN-13, um dos mais
utilizados em toda parte, que trago colado na última página de minha Bíblia...
Beato Simão abriu o velho livro e o mostrou para a câmera:
Após alguns instantes de observação, o entrevistador comentou:
- Por que você diz que o número da besta se encontra em muitos códigos de
barras? Neste seu exemplo, como em outros, há diversos números embaixo das
barras, mas não especificamente o 666. Esta afirmativa é um disparate!
O taumaturgo o encarou com certo ar de desprezo e proferiu:
- Repare bem. Todo código de barras é composto por diversos traços
verticais. Cada par destes traços, de acordo com sua espessura e distância,
corresponde a um número específico. Olhando para o nosso exemplo, qual par
de traços você acha que equivale ao número seis?
- Estas duas barras mais finas?
- Exato. Sempre que elas forem escaneadas, o computador lerá o número
seis.
- Ora, mas isto não quer dizer, em hipótese alguma, que a maioria dos
códigos de barras apresente o número da besta! Pode por acaso conter o número
seis, como conterá outros também...
- Aí você se engana! Redarguiu Beato Simão.
- Então explique isso, para os telespectadores compreenderem melhor...
- Voltando ao nosso exemplo, observe-o com mais cuidado. Todo código de
barras é dividido em duas partes. Metade dos pares de barras fica à direita e a
outra metade, à esquerda...
- Estou vendo!
- Repare que eles são separados por três pares de barras mais compridos, os
quais se destacam dos outros e não possuem numeração embaixo. Um localiza-
se exatamente no centro e os outros dois, nas pontas...
- Sim, concordo... e daí?
- Ainda não percebeu? Comparando estes com os outros traços, qual
número você imagina que eles teriam?
O entrevistador pensou um pouco e respondeu:
- São duas barras finas, logo correspondem ao número seis!
- Correto, estes traços são idênticos aos de número seis e estão presentes na
maioria dos códigos de barras. Portanto, os computadores do mundo inteiro lêem
sempre 666! Veja:

Não havia como contestar aquela lógica. Michael ficou bastante


impressionado ao ouvir as palavras de Beato Simão, embora não acreditasse em
boa parte do que ele dissera. Por trás de tudo aquilo, percebiam-se claramente
algumas ideias típicas da Teoria da Conspiração, muito coerentes e sedutoras,
ainda que fantasiosas. Se o demônio se achava de fato para escapar, como ele
acreditava e Beato Simão dizia, por que as tais entidades malignas ainda não
tinham conseguido convencer as pessoas a tatuarem o código de barras sobre
suas peles ou introduzir um chip no corpo humano, como queriam algumas
teorias de vanguarda? Sabia que iniciativas de tatuagens a laser já estavam sendo
colocadas em prática em casas noturnas e parques de diversões, mas isto era
muito pouco.
Seja como for, o fato é que existia certa ligação entre o número da besta, os
códigos de barras e o sistema de cartões de créditos, ou seja, uma relação de
dependência evidente com a economia mundial.
Após desligar o televisor, durante algum tempo Michael permaneceu
meditando sobre aquele assunto. Se a besta apocalíptica já se encontrava entre as
pessoas, quem seria ela? O primeiro nome que lhe acudiu à mente foi o do
próprio Beato Simão. Ele estava causando uma verdadeira celeuma em todo o
mundo e, de certa forma, a sua figura se encaixava à descrição do anticristo.
Segundo as profecias, a besta apresentaria uma marca de nascença na cabeça e
Beato Simão não tinha sobrancelhas, o que lhe dava uma aparência assustadora.
O rapaz abriu sua carteira e retirou de dentro dela uma folha de papel, onde sua
amiga Simone havia anotado uma tabela numerológica. Quando Michael soube
que o Beato Simão visitaria o convento de Santa Maria delle Grazie, logo teve a
sua curiosidade despertada e resolveu fazer uma pequena pesquisa sobre o
passado do taumaturgo. Entre outras coisas, descobriu que ele não era italiano,
mas um imigrante português, cujo nome verdadeiro ele se lembrava bem, pois
era singular o suficiente para ser esquecido. Portanto, enquanto aguardava
Michele retornar, decidiu interpretá-lo através da numerologia. O resultado,
apenas por curiosidade, Michael anotou atrás daquela mesma folha.

Poderia ainda ser o falso profeta, mas não a própria besta apocalíptica.
Outro possível anticristo, na ótica do rapaz, era Macrino. Coincidência ou não,
ele também possuía um sinal de nascença na cabeça, ou seja, uma espécie de
cruz templária marcada na testa. Infelizmente, Michael só sabia o seu primeiro
nome (e nem isto de seu companheiro atarracado). Mesmo assim, decidiu
conferir qual seria o valor numérico dele.

Aparentemente, os números pessoais dos dois não apresentavam qualquer
ligação com o número da besta. O rapaz ficou um tanto desapontado, guardou
aquela folha outra vez em sua carteira e deu alguns passos até a janela para
respirar um pouco de ar fresco. Logo depois, Michele retornou da lavanderia,
trazendo numa das mãos as roupas limpas e na outra um saco de frutas, com
muitas peras, maçãs e uvas. Michael surpreendeu-se com aquela novidade e
inquiriu:
- O que é isto? Foi fazer compras na quitanda?
A menina riu da pergunta, fechou a porta do quarto e respondeu, exibindo
duas lindas covinhas em seu rosto:
- Não... a simpática hospedeira quem me deu estas frutas...
- E por que ela fez tamanha generosidade?
- Porque eu lhe consertei a máquina de lavar roupa...
Michael fitou a namorada com um semblante espantado, indagando:
- E você entende dessas coisas?
- Não entendo nada... Eu apenas queria lavar as roupas e a máquina não
estava funcionando. Então, vi alguns parafusos soltos no motor, pedi a ela uma
chave de fenda e os apertei. Em seguida, liguei a máquina e, para minha
surpresa, ela começou a funcionar... A mulher ficou tão agradecida, que me deu
este saco de frutas e permanecemos conversando por um bom tempo. O inglês
dela é péssimo...
- Ah! Então está explicado o motivo de sua demora...
Michele fez um muxoxo adorável, sentou-se no colo do moço, enlaçou seu
pescoço com braços repletos de ternura e disse:
- Bobo! Não fique zangado por isso. Coma uma fruta!
Ela apanhou algumas uvas e as pôs na boca do rapaz, que lhe lambeu os
dedos. Como ele fez uma careta esquisita, a jovem quis saber a razão:
- Estas uvas estão azedas!
Após provar uma delas, a menina cuspiu o bagaço, exclamando:
- Mas que vaca! Estão horríveis...
Depois, cortaram outras frutas e descobriram que as maçãs estavam podres
e as peras, completamente secas e emboloradas. Michael riu daquele presente
inútil e comentou:
- A boa mulher lhe deu apenas o lixo que ia deitar fora...
Porém, Michele não gostou da piada, tornando-se uma fera. Afinal, havia
lhe consertado a máquina de lavar e era assim que a megera lhe demonstrava a
sua gratidão? Ela levantou-se soltando uma fumarada de ódio pelas narinas,
dirigiu-se à janela e esquadrinhou o quintal com olhos de predador faminto
diante da caça. Lá embaixo, a hospedeira lavava tranquila uma trouxa de roupas
no tanque. Fulminada pela cólera, a menina bradou:
- Ô velha, as frutas que você me deu estavam todas estragadas!
A mulher parou de enxaguar um vestido, virou seu rosto para cima,
indagando:
- O quê?
- As frutas estavam podres! Você me deu lixo!
- Pois foi muito bem feita! O conserta que você fez em meu máquina de
lavar não serviu para nada. Fique sabendo que ela já parar de funcionar... por
isso estou me esfalfando aqui na tanque...
- Se quer um serviço profissional, chame um técnico especializado...
As duas começaram a bater boca. Michele sempre fora pirracenta e, até
certo ponto, vingativa. Por sua vez, a hospedeira também não era flor que se
cheirasse e parecia bastante malcriada. Ela passou a proferir os piores palavrões
em espanhol, que certamente Michele não entendeu, exceto um deles, de quatro
letras, aliás, bastante parecido em italiano. A certa altura, voltando ao inglês,
disse:
- Se não estar satisfeita com os frutas que lhe dei, então devolve pra eu!
Ao ouvir aquela frase, a menina perdeu completamente a paciência,
apanhou o saco sobre a cama e pôs-se a atirar as peras e maçãs em cima da
infeliz, berrando furiosa:
- Então tome, sua bruxa! Tome... tome... tome...
A sujeita procurou esquivar-se como pôde, mas foi atingida diversas vezes
nas nádegas, costas e cabeça. Michael ainda tentou impedir a namorada de
continuar atirando as frutas na pobre mulher, mas não o fez com tanto empenho
quanto deveria, pois, no fundo, também estava gostando daquela cena patética.
Quando a munição chegou ao fim, o rapaz cingiu a cintura da jovem e a trouxe
para trás, de maneira que os dois caíram sobre a cama, rindo à larga daquela
travessura. Ao recuperar o fôlego, Michele disse:
- Pena que ela não havia me dado de presente ovos podres!
- Você é perversa! Sussurrou o moço, deitando inúmeros beijinhos
carinhosos sobre o queixo e o pescoço da amada.
- Ela mereceu...
- Bom, eu não queria mesmo almoçar frutas! Que tal a gente ir até La
Coruña e comer alguma coisa por lá?
- Ótimo, estou faminta!
Ao descer as escadas, eles pegaram o carro em frente à hospedaria e
seguiram para a cidade. Michael ligou o rádio, sintonizando uma estação onde se
tocavam antigas canções italianas românticas. A temperatura estava mais quente
do que na véspera e era a primeira vez, em muitos dias, que os dois puderam sair
à rua vestidos à vontade, de shorts e camiseta. Após estacionar o carro próximo à
praia, eles dirigiram-se a um restaurante especializado em frutos do mar,
sentaram-se numa espécie de varanda, praticamente junto ao passeio, e
almoçaram.
Durante quase toda a tarde, até para evitar um encontro imediato com a
furiosa dona da hospedaria (que poderia ter ido buscar alguma ajuda masculina)
eles permaneceram caminhando pela praia ou descansando à sombra de alguma
árvore, diante do mar infinito. Enquanto tomavam um sorvete, Michele indagou:
- Qual a sua opinião a respeito da pista que encontramos de madrugada?
- Olha, para lhe dizer a verdade, fiquei um tanto surpreso e confuso.
Esperava achar outra pedra com uma letra e acabamos descobrindo uma cruz de
prata e uma corrente velha...
- Também fiquei confusa!
- Deve ser uma pista muito importante para romper com o que nós supomos
ser a sequência lógica e os cavaleiros templários não a colocaram ali à toa.
Acredito que, ao juntarmos todas as letras, estes dois objetos serão a chave desse
misterioso e extraordinário quebra-cabeça.
- Uma cruz, uma corrente... estaria Satanás de fato preso em um cemitério?
- É possível, mas só saberemos se encontrarmos as outras pistas. Por
enquanto, temos a sílaba SEP, além da cruz de prata e da velha corrente. A
hipótese do demônio ter sido aprisionado em um sepulcro é grande e não pode
ser descartada.
O sol começava a se esconder atrás do oceano, quando eles resolveram
partir. Ao chegarem à hospedaria, Michele se lembrou de apanhar o resto das
roupas que ela tinha deixado lá secando, e disse para o rapaz ir subindo na
frente. Contudo, ele preferiu aguardar, pois temia que a hospedeira aparecesse ali
e as duas tornassem a discutir.
Perto das dez horas da noite, o telefone tocou no quarto. Michael estava na
janela, observando a chuva que voltara a cair desde o final da tarde. Dessa vez,
ela viera acompanhada por fortes rajadas de vento e trovoadas. Ao ouvir o toque
do celular, o moço assustou-se, pressentindo notícias desagradáveis. Michele
quis saber se ele atenderia e ofereceu-se para buscar o aparelho no bolso do
sobretudo. Após ter apanhado o telefone das mãos da menina, viu que o número
era o mesmo daquela manhã e exclamou:
- Pronto!
- Olá, Michael! Enfim conseguimos falar com você! Ligamos durante toda
a tarde...
Ao reconhecer a voz rouca de Macrino, disse resoluto:
- O que deseja?
- Você nos enganou e vai pagar caro por isso!
- Eu não enganei ninguém! Fiz tudo como havíamos combinado. Vocês é
que não cumpriram com o prometido e mataram o pobre Celestino!
- Seu moleque! Arrancou de propósito a página do diário em que Jacques
de Molay ia revelar o local para onde os cavaleiros templários levaram o
tesouro!
- Não arranquei nada! O livro está assim, juro-lhes pela alma de meu pai!
Eu não seria louco de estragar uma obra rara como essa. Além disso, já lhes
disse e repito: não estou interessado neste tesouro, se é que ainda existe algum
após todos estes séculos!
- Vou ser breve e claro. Queremos os originais do diário e também os outros
livros descobertos por você, pois temos a certeza de que eles revelam quem é a
rainha escura, onde se localizam os seus domínios e o que significa esse tríplice
phallus, em cuja sombra repousa a fortuna da Ordem.
- Não vou lhes entregar nada, seus bandidos!
- Veremos! Já estamos chegando à cidade de La Coruña e vamos pegar os
livros daqui a poucos minutos; depois, daremos cabo de você e dessa vadia...
Ao dizer isto, Macrino desligou o telefone. Michael comunicou à namorada
que precisavam sair dali imediatamente, pois aqueles assassinos sabiam onde
eles se encontravam e vinham para os matar. Michele achou estranha aquela
história e disse:
- Talvez a intenção desses facínoras seja outra. Quem quer matar alguém,
não liga avisando...
- Também penso que seja um blefe, mas não estou disposto a pagar para
ver...
A tempestade continuava forte e a noite havia esfriado muito. Sem perder
um segundo sequer, eles apanharam todos os seus pertences e saíram do quarto,
deixando a luz acesa. O corredor estava escuro e os dois desceram as escadas
saltando os degraus de três em três. Após abrirem a porta da entrada e terem se
certificado de que os bandidos não se escondiam ali fora, eles correram até o
carro debaixo da chuva intensa, molhando-se bastante. O rapaz teve certa
dificuldade em colocar a chave no contato, pois seus dedos tremiam feito
gelatina. Por um momento, lembrou-se dos inúmeros filmes de suspense a que já
havia assistido e imaginou que o motor não pegaria, como costumava acontecer
nesses casos, para desespero dos mocinhos. Felizmente, o carro ligou com
facilidade e eles partiram apressados, seguindo pela autopista.
Não faziam a menor ideia para onde deveriam seguir. Àquela hora da noite,
a estrada achava-se praticamente deserta e um sentimento de solidão terrível,
angustiante, parecia inundar toda a terra. Através das janelas embaçadas, os
pingos da chuva escorriam ligeiros, dificultando ainda mais a visão externa.
Com a manga de sua camisa, Michele esfregou um pedaço do vidro e
permaneceu admirando aquela paisagem gelada. Lá fora, os campos sinistros
corriam velozes, dando a impressão de que vultos medonhos, habitantes das
trevas, escondiam-se por entre o mato negro. A chuva colidia contra o pára-brisa
às golfadas, fazendo o limpador espalhar água para todo lado. Se lhes dissessem
que o mundo estava acabando com outro dilúvio, acreditariam com toda certeza.
Tinham rodado por cerca de uma hora, quando um automóvel aproximou-se
velozmente, lançando com insistência o farol alto contra o espelhinho do carro
deles. Michael não gostou daquilo e meteu o pé no acelerador, abrindo alguma
distância do incômodo motorista. Para sua surpresa, o sujeito também acelerou e
dois tiros foram ouvidos, enchendo-os de medo. Não existia mais qualquer
dúvida: era Macrino!
A perseguição que se deu em seguida foi espetacular e terrivelmente
dramática. Não era fácil para o rapaz conduzir o veículo naquela velocidade
sobre a pista molhada e, por mais de uma vez, derrapou de forma perigosa,
atravessando a estrada inteira, passando por cima do acostamento no outro lado.
As rodas do automóvel guinchavam no asfalto feito um animal sendo
estrangulado. Com o braço para fora da janela, o comparsa de Macrino
procurava alvejar o carro de seus desafetos, mas errou todos os tiros que estavam
no tambor da arma. Diante deles, relâmpagos extraordinários arrebentavam um
após o outro no horizonte sombrio, tentando em vão estilhaçar os céus. O rapaz
conduzia o veículo de maneira alucinada e, em toda curva, imaginava que
capotariam. A certa altura daquela correria ensandecida, eles passaram por uma
irregularidade na pista e o automóvel voou literalmente sobre o asfalto. Ao
regressar ao chão, o assoalho colidiu com tamanha violência na estrada, que
Michael precisou empregar toda a sua habilidade para não perder o controle do
carro.
Acossados por seus perseguidores feito caça indefesa perante um predador
implacável, Michael e Michele passaram de fato a temer por suas vidas. O
veículo de Macrino e seu comparsa achava-se tão próximo deles, que os pára-
choques chegavam a colidir. Aflito, o rapaz já não sabia o que fazer a fim de
escapar à sanha assassina daqueles criminosos. Subitamente, ele viu ali adiante
uma pequena estrada cruzando com a autopista por onde seguiam e pediu para a
menina se segurar. Quando estavam ultrapassando o entroncamento, Michael fez
uma curva de quase noventa graus à direita, imaginando que os bandidos não
teriam tempo para realizar tal manobra e acabariam seguindo reto, perdendo um
tempo precioso. Ledo engano! De modo incrível, eles conseguiram superar
aquele obstáculo, como se o próprio diabo conduzisse o automóvel sobre trilhos
invisíveis aos olhos humanos.
Como sua estratégia não dera o resultado previsto, o moço arrependeu-se de
ter saído da autopista principal. Sinuosa e estreita, aquela estradinha escura
apresentava um asfalto bastante irregular e cheio de buracos. Além disso, ela
costeava um enorme despenhadeiro e a única proteção existente para garantir a
segurança dos motoristas descuidados e evitar que eles despencassem pelo
precipício era uma espécie de gradil de ferro, o qual ladeava o acostamento.
Macrino imaginou que seria interessante jogar o carro de Michael contra o
gradil, com a finalidade de o deter. Não seria estúpido a ponto de o precipitar
através do abismo, pois, dessa forma, os livros acabariam se perdendo para
sempre. Com este pensamento, ele acelerou velozmente o seu veículo pela
contramão, emparelhando-se ao automóvel do rapaz, e passou a lhe dar pancadas
na lateral, espremendo-o junto às grades. Após o primeiro choque, Michael viu
consternado, através do espelhinho retrovisor, uma de suas calotas rodando
solitária pela estrada; em seguida, o próprio espelho foi vítima de outra colisão.
Durante um bom percurso, os malfeitores prensaram o carro do moço contra o
gradil, produzindo um ruído estridente e uma chuva de faíscas laranjas. Michele
ficou apavorada ao sentir o despenhadeiro assim tão próximo, como se fosse
engoli-los a qualquer momento, e suplicou para o namorado fazer alguma coisa a
fim de evitar o pior. De repente, uma motocicleta surgiu pela direção contrária,
na mesma pista onde Macrino seguia. O facínora só teve tempo de tirar seu carro
um pouco para a esquerda, de maneira que o motoqueiro passou numa
velocidade extraordinária por entre os dois veículos, triscando a lataria de
ambos. Infelizmente, o sujeito perdeu o controle da moto e caiu na pista
molhada, deslizando por uma distância considerável. Pouco adiante,
atravessaram um túnel escuro tão rápido, que as paredes produziam um barulho
semelhante a uma prensa rotativa. Ao saírem de lá, depararam-se com uma longa
descida em linha reta e os dois carros mergulharam através dela numa
perseguição alucinante, acelerando o motor ao máximo. A seguir, subiram
embalados um leve aclive; de novo, os veículos encontravam-se tão próximos,
que o pára-choque de um deles tocava o escapamento do outro. Quando estavam
chegando quase ao cume, Macrino pegou a outra pista para fechar o automóvel
de Michael. Nesse exato instante, surgiu um enorme caminhão transportando
gasolina, na mesma faixa onde os bandidos se achavam. Os olhos deles fulgiram
aterrorizados, como se contemplassem a morte, refletindo a luminosidade
deslumbrante que o farol do caminhão despejava na tempestade. Ao ouvir o
ronco cavo e possante de uma buzina, feito trombetas infernais, Macrino jogou
desesperadamente seu carro no acostamento do outro lado da pista. O veículo
subiu em uma elevação de terra e capotou diversas vezes, como Michael pôde
ver através de seu espelho retrovisor interno.
Já passava da meia-noite, quando eles resolveram estacionar para dormir.
Não havia nada naquela região deserta, nem casas, nem postos de gasolina,
muito menos pousadas. O rapaz encostou o carro no meio de uns descampados e
disse preferir passar a noite ali mesmo, pois não existia qualquer sinal de
civilização nas proximidades, conforme indicava o GPS, e ele estava com tanto
sono, que temia provocar um acidente. Michele concordou, aconchegando-se ao
ombro do namorado.
Na manhã seguinte, Michael acordou decidido a descobrir onde ficava a
quinta torre do demônio, pois não queriam continuar viajando sem destino. Após
se lavarem como puderam em poças deixadas pela chuva, que agora tinha
parado, a menina quis saber o que dizia o Malleus Maleficarum a respeito disso.
Tão logo Michael ligou o seu notebook e abriu um arquivo, ele respondeu:

“Eleva-se a quinta torre na ilha da morte, conhecida entre os mouros como


pedra alta.”

Ao ouvir aquela frase, Michele afirmou:
- Isto quer dizer que não estamos longe...
- Por que você diz isto?
- Ora, espanta-me que ainda não tenha percebido. O texto cita a palavra
“mouros”, os quais estiveram presentes na Península Ibérica por cerca de
oitocentos anos. Se a “ilha da morte” era conhecida por eles, há uma boa
possibilidade desta torre localizar-se na Espanha ou em Portugal...
Michael fitou a jovem com um brilho satisfeito nos olhos e disse:
- Faz sentido! Eu não tinha pensado nisso...
- Sabemos também que se trata de uma ilha. Com licença...
Michele postou-se diante do notebook sobre o capô do automóvel e digitou
as palavras “ilha”, “pedra alta” e “Espanha”. Para sua decepção, não descobriu
nada que pudesse ajudar. Sem se abater, ela trocou a palavra “Espanha” por
“Portugal”. Dessa vez, o resultado foi diferente.
Numa das páginas encontradas, havia um texto afirmando que “pedra alta”
ou “Al-morolan” era a maneira como os muçulmanos denominavam uma das
fortalezas templárias em Portugal. Ao ler tal frase, Michael bradou
entusiasmado:
- Uma fortaleza templária! Achamos o fio de Ariadne, que nos levará à
solução deste mistério!
Imediatamente, a menina abriu uma lista com os diversos castelos
templários construídos em Portugal e passou a enunciá-los:
- Tomar... Monsanto... Idanha... Zêzere... Cardiga... Pombal... Almourol...
- Espere! Você disse Almourol? Indagou o rapaz com a respiração ofegante.
- Isto! Por que a surpresa?
- Deve ser uma corruptela de “Al-morolan”! Mas é claro! É lá que se eleva
a quinta torre do demônio!
Ao ouvir tais palavras, Michele procurou outras informações a respeito do
Castelo de Almourol, descobrindo que ele se localizava no distrito de Santarém,
numa ilha do rio Tejo. Para comprovar ainda mais aquela descoberta, ficaram
sabendo que o local, em tempos remotos, era conhecido como “ilha da morte”,
pois servira de palco a rituais macabros. Ali, os seus primitivos habitantes
imolavam crianças em rituais satânicos.
Diante de tantas evidências, puseram-se a caminho de Portugal, mesmo
temendo que algum policial os obrigasse a parar, pois o carro deles estava agora
sem o espelho retrovisor lateral e a calota. A viagem era razoavelmente longa e,
como eles ansiavam por chegar logo, pararam apenas duas vezes durante todo o
trajeto. Numa delas, aproveitaram para colocar gasolina, comer alguma coisa e
fazer as necessidades mais prementes. A segunda parada foi na cidade de
Coimbra, onde o rapaz comprou uma lanterna mais possante e um binóculo a fim
de observar melhor as pedras da fortaleza, pois acreditava que a pista templária
estaria gravada em alguma delas, provavelmente no interior de uma das torres.
Passava do meio-dia, quando alcançaram o concelho de Vila Nova da
Barquinha, em Santarém. Para visitar o Castelo de Almourol, ficaram sabendo
que a melhor maneira de transpor o rio era através de uma embarcação que partia
do Cais D’El Rei, em Tancos. Após ter deixado o carro em um estacionamento,
Michael apanhou a corda no porta-malas e a escondeu por baixo de seu
sobretudo, pois precisaria dela. Enquanto atravessavam o rio Tejo em um barco
com capacidade para umas cinquenta pessoas, Michele indagou:
- O Castelo de Almourol deve ser bem grande. Você tem alguma ideia por
onde devemos começar as nossas investigações?
- Como sempre, confio nos versos de Jacques de Molay...
- E o que diz este onisciente grão-mestre?
Tirando um pedaço de papel do bolso, o rapaz recitou a seguinte trovinha:

“Numa câmara rochosa


De formato circular
E aparência pavorosa,
Tu terás que lá entrar.”

A menina fez uma careta encantadora e disse que essa câmara circular de
aparência pavorosa já estava lhe provocando uma enorme angústia. Não deveria
ser um local dos mais belos e Michele imaginava que teriam de entrar em
alguma espécie de catacumba sombria, infestada por bichos asquerosos e
peçonhentos. Ao se aproximarem da ilha, o rapaz comentou:
- Fique tranquila, pois não são catacumbas. Muito provavelmente, Jacques
de Molay queria se referir às torres do castelo. Veja!
Defronte a seus olhos, sobre uma ilha rochosa, pairava imponente a
magnífica fortaleza templária. Ao longo de suas impressionantes muralhas,
podiam se divisar inúmeras torres circulares e uma única de formato
quadrangular, a mais alta, conhecida como torre de menagem. Com toda certeza,
não era nesta que os cavaleiros da Ordem haviam escondido a pista procurada
por eles.
Chegando ao Castelo de Almourol, Michael e Michele deram um passeio
pelo lugar a fim de o conhecer melhor. O rapaz contara nove torres circulares,
mas talvez tivesse se equivocado. Para sorte deles, poucos turistas visitavam a
fortaleza naquela tarde, de maneira que podiam empreender suas buscas à
vontade, sem chamar muita atenção. Michael tirou do bolso algumas pastilhas de
hortelã, repartiu com a namorada, e disse:
- Imagino que a pista templária esteja gravada em uma pedra no lado de
dentro destas torres. Por isso trouxe a lanterna, o binóculo e a corda...
Então, eles puseram-se a vasculhar todas as torres do Castelo de Almourol.
Muitas delas apresentavam seu interior um tanto escuro, de maneira que a
lanterna foi de enorme valia. Enquanto Michael atirava o facho de luz sobre um
ponto específico das altas paredes, Michele observava pedra a pedra através do
binóculo. A investigação realizada por eles foi extremamente minuciosa e
estendeu-se por longo tempo. Quando haviam terminado de esquadrinhar todas
as torres por dentro, centímetro a centímetro, sem descobrir coisa alguma, o
rapaz exclamou, decepcionado:
- Não é possível! Vasculhamos tudo e nem sinal da pista templária!
- Talvez algo tenha me escapado... por que não repetimos a busca? Agora
eu seguro a lanterna e você fica com o binóculo! Sugeriu a menina.
- Está certo!
Em seguida, os dois passaram a examinar outra vez todas as torres com
extrema atenção e cuidado. A tarde já ia caindo no momento em que eles
chegaram ao fim. Como temiam, não tiveram melhor sorte. Michael achava-se
inconsolável por ter vindo de tão longe à toa. Definitivamente, os cavaleiros da
Ordem não tinham escondido aquela misteriosa pista no interior das torres. Para
o rapaz, porém, alguma coisa estava bem errada. Jacques de Molay já
demonstrara ser bastante preciso em seus versos e não havia dúvidas de que o
Castelo de Almourol era o local onde se elevava a quinta torre do demônio.
Vendo o namorado tão abatido, Michele disse:
- Talvez, os templários não tenham colocado a pista no interior das torres...
- Por quê? São os únicos espaços circulares da fortaleza. O grão-mestre
deixou claro em sua trovinha que o sinal se encontra “numa câmara rochosa de
formato circular”...
- Sim, mas também diz que esta câmara tem uma “aparência pavorosa” e o
interior das torres não me deu esta impressão...
Era verdade. Michael não atentara para este detalhe e permaneceu alguns
instantes refletindo em silêncio, esfregando a testa com os dedos. Finalmente,
disse:
- Não sei mais onde procurar!
A maioria dos turistas já havia deixado o Castelo de Almourol, pois o
período de visitação estava quase se encerrando naquele dia, quando Michele
exclamou:
- Tenho tanta sede, que beberia até a água do velho poço, se ele não
estivesse seco!
- Poço? Que poço?
- Aquele lá embaixo, no primeiro nível da fortaleza!
- Eu não vi poço algum, mas agora fiquei curioso. Vamos até lá!
Eles desceram as escadas de pedra e chegaram a um local onde existia um
buraco coberto por diversas vigas, para evitar que alguém despencasse em seu
interior.
- Aí está!
- Isto é um poço?
- Ao menos, parece...
Michael olhou ao redor e, vendo que não havia ninguém mais por perto,
arrastou algumas vigas um pouco de lado. Em seguida, disse:
- Com toda certeza, estamos diante dos resquícios de algo que um dia foi
um poço templário...
- Você acha que os cavaleiros da Ordem podem ter escondido a pista aí
dentro?
Após ter se debruçado sobre aquela insólita cavidade no chão, o moço
lançou um facho de luz em sua parte interna a fim de dissipar as trevas e
comentou:
- É exatamente o que estou pensando! Diga-me... isto tem ou não uma
“aparência pavorosa”?
Tão logo a menina deu uma rápida olhadela no sombrio interior do buraco,
ela respondeu:
- Nunca vi nada mais pavoroso! Eu não entraria aí por dinheiro algum!
De fato, era uma visão pouco agradável. Além de escuro e asfixiante, com
as paredes apertadas revestidas por pedras irregulares, as quais lhe emprestavam
uma aparência sinistra, e coberto por teias de aranhas seculares, o poço mais
parecia um túmulo violado. Isto sem falar na infinidade de bichos repugnantes,
despertados pelo facho de luz, como lacraias, caramujos, baratas, lagartixas e
quejandos, que rastejavam de um lado ao outro num frenesi exaltado, como se
ali dentro a natureza estivesse numa orgia eterna.
Após tirar seu sobretudo e apanhar a corda escondida por baixo dele, o
rapaz a amarrou firmemente em uma viga atravessada sobre a boca do poço. Em
seguida, encheu-se de coragem, fez o sinal-da-cruz e bradou pouco antes de
descer:
- Bom, seja o que Deus quiser!
O poço não era fundo e estava seco há, pelo menos, uns quinhentos anos.
Ao cabo da descida, Michael acendeu a lanterna a fim de iniciar as buscas;
porém, levou um susto tão grande, que sua pele gelou instantaneamente,
enquanto bagos de suor álgido lhe escorriam pelas costas. A uma distância
mínima de suas pernas, uma cobra aterrorizante o encarava com olhos pouco
amistosos. A sua primeira reação foi atirar o facho de luz sobre a serpente, pois
ouvira dizer que esses bichos ficam imóveis e deslumbrados diante de claridade
intensa. Talvez o tal ofídio peçonhento não soubesse nada disso, mas
permaneceu teso, hipnotizado, admirando não só a luminosidade, como também
aquele deus ex machina, que havia surgido assim do nada. O jovem temia fazer
qualquer movimento e ser picado de forma fatal.
Ao recuperar a voz, Michael sussurrou à namorada:
- Michele... Michele... me ajude...
Só neste momento, a menina viu a cobra e certificou-se do enorme perigo
que o rapaz estava correndo. Ela inclinou um pouco seu corpo sobre o poço e
disse em voz baixa para não assustar a víbora:
- O que eu faço?
- Sei lá!... Jogue-me um pedaço de pau...
Aflita, ela saiu à cata de algo para socorrer o moço. A sugestão de Michael,
porém, não lhe pareceu muito boa, pois a serpente poderia se assustar e acabaria
mordendo o rapaz antes mesmo dele ter a arma nas mãos. Então, Michele teve
uma ideia... Após ter apanhado a pedra mais pesada que pôde carregar, a jovem
postou-se junto à borda do poço. Em seguida, mirou com cuidado a cobra,
estendendo seus braços sobre ela. Ao ver a menina segurando aquele enorme
calhau, Michael esbugalhou os olhos e proferiu:
- O que você está pensando em fazer? Ficou louca?
Nesse exato momento, Michele deixou cair a pedra, que só não atingiu o
rapaz por milagre. Em compensação, acertou em cheio a cabeça da serpente,
esmagando-a a ponto dela quase ter sido decepada. Durante uns dez minutos,
Michael ainda permaneceu no interior do poço, vasculhando as paredes,
enquanto procurava recuperar o fôlego. Quando veio à superfície, abraçou-se à
namorada e os dois caíram de joelhos, dominados pela forte emoção. Depois,
esta disse entre soluços:
- Não quero que você desça mais lá embaixo...
Michael enxugou-lhe os olhos lindos com seus dedos e respondeu,
exultante:
- Não será preciso... veja!
E mostrou-lhe o visor da máquina fotográfica, onde se via perfeitamente
uma cruz templária por cima da letra V.
A sexta torre

Já havia escurecido, quando Michael e Michele chegaram à cidadezinha de


Tancos. Ao contrário da véspera, em que eles tinham testemunhado uma
autêntica tempestade diluviana, a noite despontara de maneira
extraordinariamente bela e agradável. Uma brisa suave acariciava a copa das
árvores, espargindo o doce aroma de flores silvestres sobre praças e quintais.
Encravada no céu, uma lua sonolenta parecia cochilar, alheia àquele mundinho
azul tão entediante. Com as janelas do carro abertas, os jovens seguiam pelas
pacatas ruas de Tancos, à procura de um local onde pudessem pernoitar. Tanto
Michael, quanto Michele, achavam-se bastante cansados e nem a descoberta de
mais uma pista templária - agora restavam apenas duas para que o enigma fosse
solucionado - animava-os. As últimas vinte e quatro horas dos dois tinham sido
terríveis e o rapaz sentiu os dedos da morte roçando o seu pescoço por mais de
uma vez. Em vista disso, pensavam apenas em encontrar uma hospedaria para
passar a noite.
Curiosamente, as ruas estavam desertas, como se toda população tivesse
combinado se recolher mais cedo. Michael não queria dormir outra vez no carro,
pois, além de ser incômodo, acordava com dores nas costas. Quando já tinham
decidido seguir para uma cidade um pouco maior, depararam-se com um homem
puxando um burro. O rapaz encostou o veículo ao lado do animal, que os olhou
meio de soslaio, desconfiado. Michele estendeu o braço na direção do sujeito a
fim de lhe chamar a atenção e perguntou em inglês:
- Cavalheiro, por favor, há algum local nesta aldeia onde a gente possa
dormir?
Como ele parecia não ter entendido a pergunta, Michael a reformulou em
português, língua em que se expressava com alguma fluência. O bom homem
apanhou seu chapéu da cabeça, aproximou-se do automóvel e respondeu:
- Podem passar a noite na casa da Nena...
- E onde fica esta pousada?
- Não é bem uma pousada... A Nena aluga os quartos de sua casa para os
casais apaixonados, se é que me entendem...
Ao dizer isto, o simpático cavalheiro descerrou um sorriso malicioso,
exibindo enormes dentes de coelho. Michele não pôde deixar de perceber aquela
peculiaridade quase burlesca e procurou esquivar o seu rosto de lado,
disfarçando o riso jovial. Michael compreendeu que a menina estava rindo da má
formação dentária daquele pobre diabo e perguntou a ele:
- Como faço para encontrar a casa dessa Nena?
- Se for de vosso agrado, posso vos levar até lá...
- E o burro?
- Ele vem conosco... vou segurando a corda através da janela... é um animal
muito obediente e mansinho!
Embora tenha achado aquela solução um tanto inusitada, e até mesmo
estapafúrdia, o rapaz concordou com a ideia. O que mais desejava no momento
era estender o seu corpo numa cama confortável e, como não havia dormido bem
na véspera, estava disposto a fazer qualquer coisa para recuperar as horas
perdidas de sono, mesmo que fosse necessário pernoitar numa casa suspeita
como a dessa tal de Nena. Michele passou ao banco de trás, pois assim o sujeito
poderia segurar o burro com mais facilidade, e seguiram lentamente pelas ruas
de Tancos.
A casa da mulher era um pouco afastada da cidade, num local bastante
discreto, como convinha a esse tipo de negócio. Toda a propriedade achava-se
cercada por plantas com muitos arbustos e folhagens, de maneira que o terreno
ficava praticamente vedado à curiosidade alheia. O sujeito desceu do carro,
ainda segurando o seu burro e enfiou o braço através de uma abertura na cerca
viva, junto ao portão, para destravar uma tranca oculta, indicando que era
assíduo na casa. Enquanto ele entrava no quintal, seguido por Michael guiando
seu carro, pôs-se a berrar:
- Ó Nena... ó Nena... temos fregueses!
Pouco depois, a porta da casa se abriu e uma fiada de galinhas neuróticas
saiu correndo de seu interior, indo ciscar na terra ali adiante. Michael fitou
Michele com uns olhos desanimados, sem dizer palavra, mas foi como se tivesse
dito: onde é que fomos nos meter? Em seguida, apareceu à porta uma senhora
idosa, bastante obesa e com farta peitaria escorada sobre o ventre imenso. Ao
reconhecer o amigo, bradou satisfeita:
- Ó Coelho, se não é você para me trazer a clientela...
- Nena, quero que arranje um bom quarto para os nossos amigos do
estrangeiro. São ótimas pessoas e merecem do melhor!
Aquela última frase soou ao rapaz como um código combinado entre os
dois, para que a mulher cobrasse mais caro o aluguel do quarto, pois eles
pareciam ter dinheiro sobrando. Apesar desta suspeita, Michael não disse nada,
limitando-se a sorrir sem graça à anciã, que lhe piscou um dos olhos, deu-lhe
uma leve cotovelada na barriga e proferiu orgulhosa:
- Pode deixar, temos um quarto especial, com colchão d’água e tudo...
O moço fitou-a com um ar grave e disse:
- Minha senhora, queremos apenas dormir...
Surpresa, a tal de Nena arregalou um pouco seus olhos de hiena velha,
demonstrando que pedidos daquela natureza não eram corriqueiros em sua casa.
Imaginando que o rapaz estivesse mentindo, replicou:
- Ai, Jesus! Não precisam se encabular! O que acontece entre estas paredes
morre aqui. Não é mesmo, ó Coelho?
O dito Coelho esfregava as patas como se estivesse prestes a abocanhar
uma cenoura tronchuda. Ao ouvir aquela pergunta, parou imediatamente o que
fazia e respondeu com um grunhido:
- Ô!
Em seguida, segurando o braço de Michael de maneira impertinente, a
veneranda anciã exclamou:
- Pois fique tranquilo! Toda gente sabe que sou uma tumba e não me
interessa se esta jovem é sua mulher ou não.
- Ela é mesmo minha mulher! E como já lhe disse, pretendemos apenas
dormir, se for possível. Caso contrário, procuraremos outro local para passarmos
a noite...
- Ora, meu bom rapaz, não vale a pena se zangar com uma velha tola e
matusquela como eu, que vive dizendo bobagens por ser uma roceira ignorante...
Mas vão entrando... vão entrando... a casa é de vocês!
- Obrigado! Respondeu Michael, já um tanto arrependido de ter sido rude
com a velhota.
Depois, ela dirigiu-se ao amigo, que continuava plantado ali, como se
esperasse alguma recompensa, e lhe disse:
- Ó Coelho, leve consigo uma galinha!
Ao ouvir aquelas palavras, o sujeito pôs-se a correr desengonçado atrás da
frangada, que desembestou para todo canto. Os olhos das pobres avezinhas
injetaram-se fora das órbitas como se fossem ervilhas. Desesperadas, sacudindo
as asas de maneira frenética e cacarejando enlouquecidas de terror, passaram a
produzir um escarcéu tremendo, certas de que uma delas viraria canja. Após
muito custo, o tal Coelho finalmente conseguiu apanhar sua janta, segurando-a
de cabeça para baixo pelas pernas magras, feito um guarda-chuva.
Enquanto a velha despedia-se do Coelho, Michael e Michele atravessaram a
porta da frente e entraram numa sala rústica muito espaçosa. Um cheiro forte de
excremento de aves evolava-se por todo o ambiente, comprovando que as
galinhas tinham mesmo trânsito livre dentro da casa. A menina pôs uma das
mãos às narinas e exclamou enojada:
- Isto aqui é um chiqueiro! Vou dormir no carro!
- Não se aflija, meu amor! Certamente, o quarto deve feder menos e, se
você quiser, abriremos as janelas para arejar. Por que motivo passaríamos a noite
encolhidos no banco do automóvel, se podemos dormir tranquilos numa cama
com um relaxante colchão d’água?
Persuadida por aquelas palavras, Michele fitou o namorado e disse:
- Está bem! Mas amanhã, quero ir embora logo cedo...
A sala não possuía muitos móveis e a decoração era bastante simples. Além
de um sofá e duas poltronas em torno de uma mesinha de centro, havia uma
estante de madeira, onde a mulher guardava uma infinidade de tralhas inúteis.
Alguns porta-retratos exibindo fotografias amareladas, um vasinho com flores de
plástico, nenhum livro, uma estatueta de gesso com a pintura rachada em alguns
lugares, equilibrando-se sobre uma toalhinha rendada, mas ainda sendo possível
reconhecer que se tratava de uma imagem de Santo Antônio, muitos copos
coloridos e taças virados ao contrário para não juntar poeira, uma moringa de
barro, garrafas vazias e cheias, alguns enfeites de mau gosto, revistas velhas,
uma escova de cabelos, um porta-jóias e outras inutilidades. Porém, o que mais
chamou a atenção de Michele foi um imenso quadro a óleo pendurado na parede.
Na verdade, era o que existia de mais notável naquela sala, um autêntico
trabalho de mestre. A pintura mostrava uma cena bucólica, onde se viam quatro
ninfas desnudas, brincando satisfeitas em torno de um sátiro. As jovens traziam
os cabelos da cor do trigo maduro esparramados indisciplinadamente pelas
costas e exibiam carnes muito brancas e nádegas generosas. Algumas delas
seguravam o semideus pelos braços, procurando arrastá-lo a um lago de águas
verde-claras, a fim de se banharem com ele.
Ao entrar na sala, a tal de Nena deparou-se com seus dois hóspedes
contemplando aquele quadro, que era motivo de grande orgulho para ela. Tão
logo encostou a porta, disse:
- Então, os pombinhos apreciam obras de arte?
- De fato, é um belo trabalho! Afirmou Michael.
- Recebi este presente do meu noivo, quando eu fiz vinte anos. Já faz tanto
tempo...
- Percebe-se que se trata de um pintor de grande talento. Ele ainda pinta?
- Não faço a menor ideia. Se querem saber, nem mesmo casamos, porque
ele foi preso por falsificar trabalhos dos grandes mestres e vendê-los a
colecionadores incautos como obras originais... Era um artista verdadeiro, mas
escolheu o caminho errado e desperdiçou o dom que Deus havia lhe concedido.
- Lamento saber! Exclamou o rapaz.
A mulher reteve com o dedo uma lágrima em seus olhos e disse, apontando
a pintura:
- Veja, esta sou eu, acredita? Ele convenceu-me a posar nua para me retratar
como uma ninfa...
Embora dona Nena fosse uma senhora já entrada em anos, era possível
perceber através dos traços de seu rosto que ela havia sido uma jovem de rara
beleza em seu tempo. Este raciocínio provocou um insólito calafrio em Michael,
pois, um dia, também Michele perderia os seus encantos. A menina percebeu o
olhar amargo do namorado e indagou em inglês:
- O que foi?
Ele lhe cingiu a cintura e respondeu com outra pergunta:
- Prometa-me que você continuará assim para sempre?
- Assim como?
- Assim... linda e jovem...
- Só posso prometer uma coisa: nunca o esquecerei...
Pouco depois, a velha afirmou:
- Bom, vou lhes mostrar o quarto, pois estou vendo que os pombinhos
desejam permanecer a sós... E ainda vou preparar o jantar para vocês...
O quarto era tão ruim quanto o resto da casa, conforme Michele pôde
comprovar ao meter os pés lá dentro. Para início de conversa, não havia colchão
d’água como dona Nena apregoava, mas um colchonete chinfrim, de palha
úmida e malcheirosa, infestado por pulgas e percevejos. O telhado ficava
aparente, exibindo os caibros tomados pelas teias de aranhas. Banheiro privativo
não havia, mas acharam um penico de louça debaixo da cama, talvez para aliviar
as necessidades mais urgentes.
Após terem tomado banho e jantado, Michael e Michele resolveram
regressar ao quarto. Enquanto o sono não vinha, conversaram sobre diversas
coisas, mas o assunto principal foi a letra encontrada no Castelo de Almourol.
Durante um bom tempo, levantaram inúmeras hipóteses sobre o que os
cavaleiros templários estavam querendo dizer com todas aquelas pistas
misteriosas. Já haviam descoberto a sílaba SEP e uma cruz de prata junto de uma
velha corrente. Agora, somava-se a elas a letra V; porém, não parecia fazer
qualquer sentido com as outras, por mais que eles quebrassem a cabeça. Ao se
deitarem, já com a luz apagada, o rapaz comentou:
- Sabe o que eu acho? Talvez não se trate de uma letra, mas de um número,
pois esta é a forma como os romanos grafavam o cinco em algarismos.
- É verdade, faz certo sentido... Além do mais, foi encontrado na quinta
torre...
- Você está certa. Porém, não vejo nenhuma ligação com as outras pistas.
Quanto mais eu penso neste enigma, maior é o nó em meu cérebro.
Michele virou-se de frente para o namorado e disse:
- Talvez indique uma ordem numérica. Por exemplo, a quinta sepultura em
um cemitério... acredita que estou delirando?
- De forma alguma! Por enquanto, tudo é possível. Mas somente
resolveremos este mistério, ao encontrarmos as pistas que estão faltando. Bem,
boa noite, meu amor...
- Boa noite...
No dia seguinte, mal a manhã raiara, Michael e Michele já se achavam de
pé, por dois motivos bastante simples. Não só as pulgas e percevejos estavam
famintos e banquetearam-se à farta com convidados tão saborosos, como
também muitas galinhas, que dormiam dentro da casa, não eram propriamente
galinhas, mas galos, uns bichos lazarentos dos infernos, os quais resolveram
anunciar a aurora às cinco horas da madrugada! A vontade do rapaz era esganar
aquelas aves satânicas e apenas não realizou o seu intento porque, ao sair do
quarto para torcer o pescoço do primeiro frango que lhe cruzasse o caminho,
deparou-se com dona Nena segurando um bule fumegante na mão. Ao ver os
hóspedes de pé, disselhes satisfeita:
- Acordaram cedo... venham... acabei de coar o café! Dormiram bem?
Michael fitou Michele em silêncio e, por educação, respondeu com um
sorriso amarelo. Eles dirigiram-se até a cozinha, onde a mesa já estava posta, e
sentaram-se um diante do outro. Se a noite fora péssima, o café da manhã valera
a pena. A velhota caprichara e havia tanta comida, que os dois se
empanturraram. O rapaz começou pelas frutas, cortando um pedaço de mamão e
outro de melão. Por sua vez, Michele preferiu iniciar seu desjejum com algumas
torradas, sobre as quais barrou geléia de morango. Depois, atacaram as empadas,
o bolo de chocolate, pãezinhos de torresmo, uma torta de maçã, biscoitos
amanteigados e bolinhos de bacalhau. Desde que se conheceram, jamais tinham
comido uma refeição tão farta e deliciosa. Quando já estavam satisfeitos,
Michele indagou:
- Precisamos descobrir onde fica a sexta torre do demônio! O que diz o
Malleus Maleficarum a respeito disso?
O rapaz tirou do bolso um pedaço de papel e o leu para a menina:

“Eleva-se a sexta torre no centro do país dos Capetos, no grande templo da


pequena cidade.”

Michele permaneceu calada durante um tempo, meditando a respeito


daquelas palavras. Por fim, indagou:
- O que você acha?
- Com toda certeza, o país dos Capetos é a França. A referência à dinastia
capetíngea é bastante clara, ainda mais se levarmos em conta que eram estes reis
os governantes franceses na época dos templários. O próprio Felipe IV pertencia
a esta linhagem. Resta saber a qual pequena cidade o texto se refere, pois não
são poucas...
- Sim, pequenas cidades existem várias. Porém, são escassas as que
possuem um grande templo, sobretudo construído nesse período.
- Você tem razão. Talvez os autores do Malleus Maleficarum estivessem se
referindo à cidade de Amiens, onde se localiza uma das maiores catedrais
góticas da cristandade. Tais construções eram totalmente desproporcionais ao
tamanho das cidades, embora fosse uma prática mais ou menos comum naquela
época, não se sabe bem por que...
- Espere um instante!
Ao dizer isto, Michele ergueu-se e foi apanhar o notebook do namorado no
quarto. Assim que retornou, pediu para o moço vir até a sala e sentaram-se no
sofá. Após ligar o computador sobre a mesinha de centro, a menina abriu um
mapa da França e traçou linhas horizontais, verticais e diagonais sobre ele, a fim
de lhe descobrir o centro. Em seguida, exclamou:
- Veja! A sexta torre não pode se localizar na cidade de Amiens, pois ela se
encontra ao norte da França. Segundo o Malleus, esta torre do demônio se eleva
no centro do país dos Capetos...
- Exato! Concordou Michael, sem tirar as vistas da tela.
- E a cidade mais central, que apresenta um grande templo, é esta...
Ao clicar no centro do mapa, surgiu a cidade de Bourges. Imediatamente, os
olhos do moço brilharam e ele gritou excitado:
- A catedral de Saint Etienne de Bourges! É isto! É lá que devemos procurar
a pista templária!
Sem perder tempo, eles arrumaram as suas coisas, pagaram a dona da casa e
partiram. Ainda não eram sete horas da manhã, quando deixaram a cidade de
Tancos com destino à França. De acordo com o GPS, a distância até Bourges
ultrapassava os mil e quinhentos quilômetros, com previsão de quatorze horas de
viagem. Como queriam chegar naquele dia, fizeram apenas duas rápidas paradas
nas cidades de Salamanca e Bordeaux. Durante o percurso, Michele perguntou
ao rapaz sobre a trovinha de Jacques de Molay, pois desejava saber se o grão-
mestre descrevia com precisão o lugar onde os cavaleiros templários teriam
escondido a pista no interior da catedral. Michael pediu para a jovem apanhar
uma folha de papel no bolso de sua camisa e ler em voz alta os versos que ele
traduzira:

“Entre as tumbas do lajedo,


São Miguel sempre atilado
Nos aponta com seu dedo
O local tão desejado.

Mas ainda um segredo
Neste túmulo gelado
Do demônio o brinquedo
Pode então ser revelado!”

Ao terminar a leitura, o semblante de Michele mostrava-se deveras


intrigado. Jacques de Molay havia escrito duas estrofes para a mesma pista
templária? Era isso? Por que motivo o grão-mestre mudara o padrão escolhido?
Afinal, em cada uma das outras torres do demônio, ele tinha composto uma
única trovinha. Este fato incomodou a menina a tal ponto, que ela disse:
- Deve existir alguma razão muito importante para Jacques de Molay ter
procedido desta maneira. Com toda certeza, ele não fez isso gratuitamente, não
acha?
- Você é mesmo bastante perspicaz! Eu também percebi este detalhe e tenho
até uma suposição meio maluca a respeito disso...
- Diga-me, não faça suspense!
- Para mim, a primeira estrofe indica o lugar onde os cavaleiros templários
esconderam a pista no interior da catedral de Saint Etienne. Como Jacques de
Molay cita a palavra tumba, é muito provável que o sinal procurado esteja na
cripta da velha igreja...
- E a segunda estrofe?
- Bem, é apenas uma hipótese... não ria, nem vá dizer que estou ficando
louco...
- Conte-me logo, você me deixa aflita...
- Tenha paciência. Esta minha ideia é tão extraordinária, bizarra e
inverossímil, que me sinto até um pouco idiota em revelá-la...
- Ora...
- Então ouça, Michele, e diga-me se possuo alguma razão. Afinal, depois de
tudo que tenho visto nos últimos tempos, nada mais me assombra. Em sua
trovinha, Jacques de Molay afirma existir mais um segredo a ser descoberto
“neste túmulo gelado”, ou seja, na sexta torre...
- Sim, um brinquedo do demônio!
- Correto! Não percebe o significado disto? Michele, este brinquedo deve
ser o arpéu de Satanás, o tridente que os cavaleiros templários roubaram do
diabo e que lhe dá todo o seu extraordinário poder!
Durante alguns segundos, a menina permaneceu aturdida, zonza, fitando o
rapaz sem piscar, com seus grandes olhos perscrutadores. Aquela ideia absurda
era perfeitamente plausível diante de tudo o que eles já sabiam. Após um hiato
de silêncio, Michele sussurrou:
- Ah, Michael, isto me dá calafrios...
Eram nove horas da noite, quando entraram num hotel na cidade de
Bourges. Enquanto o rapaz terminava de preencher uma ficha no saguão, a
jovem disse que iria subir ao quarto, a fim de tomar um banho quente. A
recepcionista mostrou-se bastante simpática e respondeu todas as perguntas
feitas por Michael sobre a catedral de Saint Etienne. Ao entrar no dormitório,
Michele já havia saído do banho e se encontrava jogando Paciência em uma
mesinha baixa, enfeitada com um vaso de flores. O rapaz tirou o seu sobretudo,
estendeu-o por cima de uma cadeira e foi se despir no banheiro. Após uma ducha
revigorante, ligou para a recepção e pediu o jantar no quarto, pois eles não
quiseram ir até o restaurante. Desligando o telefone, notou que sua namorada
estava triste. Ela que se mostrara muito alegre e expansiva durante a viagem,
agora se achava abatida e taciturna, como se uma ave negra e agourenta tivesse
pousado sobre a sua alma. Ele aproximou-se da menina e inquiriu:
- O que foi?
Michele nada respondeu e continuou com seu jogo, fingindo estar muito
interessada nas cartas. Ao cabo de alguns segundos angustiantes, não mais
suportou o sofrimento que lhe afligia o peito. Ela ergueu-se e pediu com os olhos
mergulhados em lágrimas:
- Oh, Michael, me abrace!
O moço cingiu-lhe a cintura e indagou, surpreso:
- Mas o que aconteceu? Por que isso agora?
- Tenho um mau pressentimento... algo muito ruim vai acontecer...
- Por que você está dizendo isto?
- Não sei... simplesmente estou sentindo. Não me deixe sozinha...
- Eu já lhe disse e repito quantas vezes forem necessárias que nunca a irei
abandonar...
- Obrigada... me desculpe... justo hoje era para eu estar feliz, pois é o meu
aniversário...
Michael sentou-se com ela sobre a cama, pôs um beijo em uma de suas
mãos, e indagou:
- Por que não me disse antes? Talvez você tenha ficado triste por isso
mesmo. Por ser muito sensível, em seu íntimo, acredita que está envelhecendo.
Não seja boba! Eu a amarei enquanto você viver. Perdoe-me por dizer aquela
frase tola ontem na casa de dona Nena. Vamos... tire esta tristeza do rosto e
enxugue seus olhos. Vou pedir uma garrafa do melhor champanhe para a gente
comemorar. Uma não, duas... ou melhor, três!
Logo depois, um rapazinho trouxe a refeição e as bebidas. Michael deu-lhe
algumas moedas, agradeceu e o despediu. Em pouco tempo, o champanhe
começou a lhes subir ao cérebro, dissipando qualquer resquício de tristeza, mas
os dois não conseguiram beber mais do que uma garrafa. Michele recuperara a
sua jovialidade natural e, durante boa parte da ceia, escarneceu a velha
portuguesa, que criava galinhas dentro da própria casa! Tudo era motivo para
risos, gracejos e caçoadas, como se estivessem em lua-de-mel. Já ia alta a
madrugada, quando eles resolveram se deitar, a fim de prosseguir a diversão
entre os lençóis.
De manhã, acordaram muito tarde e custaram a se levantar. A noite havia
sido deliciosa e eles pareciam querer prolongar ao máximo aquela sensação
agradável que o contato de seus corpos quentes provocava. Próximo do meio-
dia, decidiram sair da cama, tomaram um banho rápido e comeram as sobras da
véspera. Assim que terminaram o desjejum, foram conhecer a catedral de Saint
Etienne, onde esperavam descobrir a sexta pista escondida pelos cavaleiros
templários.
No caminho, Michael resolveu fazer uma surpresa para Michele, pois não
queria que o aniversário dela passasse em branco. Ao avistar uma floricultura,
estacionou o carro um pouco adiante e disse:
- Espere um minuto! Voltarei num instante...
A menina não entendeu qual era a intenção do namorado, mas acatou seu
pedido sem responder. Michael virou à esquina, entrou na loja e pediu um lindo
buquê de rosas vermelhas, exposto em uma das vitrines. Porém, ao regressar ao
carro, não achou Michele em parte alguma.
O seu coração comprimiu-se dentro do peito, a transbordar de angústia,
como se adivinhasse que uma desgraça tinha acontecido, exatamente como a
premonição de Michele. Em vão, Michael procurou a menina pelos arredores
com esperança de encontrá-la, mas não havia o menor sinal dela. Subitamente,
um horror extremo estampou-se em seu rosto ao descobrir um brinco caído no
chão, ao lado do carro. Aflito, ele atirou as flores na calçada e o apanhou com
dedos trêmulos. Tão logo lhe deitou os olhos de perto, sentiu uma dor
dilacerante, muito pior do que se tivesse levado uma machadada nas costas. Era
o brinco de Michele, com o formato de uma flor-de-lis, aquele mesmo comprado
pelo rapaz, quando estiveram no monte São Michel.
O seu desespero foi tamanho, que o jovem teria arrancado o próprio
coração com as unhas, se isto fosse possível. Os olhos dele encheram-se de
sangue, sua testa cobriu-se de suor e uma veia passou a latejar em seu pescoço.
Nesse exato momento, o celular tocou no bolso do sobretudo, provocando-lhe
um sobressalto repentino. Ele atendeu imediatamente, com raiva:
- Diga!
- Olá, Michael! Como tem passado?
Era Macrino. Ao reconhecer a voz rouca daquele canalha, bradou:
- Onde está Michele?
- Em segurança com meu parceiro. Não se preocupe...
- Se vocês tocarem um só dedo nela, eu os mato!
- Fique tranquilo. Ela nada sofrerá, desde que você colabore conosco...
- Deixe-me falar com Michele!
- Agora não é possível, pois eles não se encontram aqui comigo. Estou me
dirigindo para Bourges e logo mais entrarei em contato com você, explicando
como deverá proceder. Até mais tarde!
- Espere... espere!
Macrino desligou o telefone. O rapaz ficara deveras transtornado, deu um
murro violento na parede de um estabelecimento comercial e só não quebrou a
mão por milagre. A sua vontade era empalar aqueles bandidos pelo rabo e deixá-
los apodrecer lentamente em praça pública. Durante mais de uma hora, Michael
permaneceu dentro do carro, sem saber direito como agir, aguardando o maldito
criminoso entrar em contato para lhe dar alguma instrução. Depois, concluiu que
a melhor coisa a fazer seria ir até a catedral de Bourges, pois de nada adiantaria
continuar esperando ali. Ele ligou o automóvel, amarrou o cinto de segurança e
partiu.
Não demorou muito para descobrir onde se localizava o velho templo, cuja
grandiosidade e beleza impressionavam até mesmo os corações mais
empedernidos. Parecia impossível ao rapaz que alguém pudesse ficar indiferente
diante de tamanha maravilha arquitetônica. Junto à catedral, existia um
magnífico jardim cultivado com todo esmero, repleto de flores coloridas,
realçando ainda mais os encantos do lugar. Assim que desceu do carro, Michael
tirou diversas fotografias de Saint Etienne, sobretudo de sua fachada ocidental,
com seus cinco portais ricamente esculpidos. Ficou surpreso pelo fato deste
imenso templo gótico não apresentar transepto, como costuma acontecer em
igrejas dessa época para formar os braços da cruz. Porém, o que mais chamou a
atenção do moço foi o extraordinário tímpano colocado sobre a entrada
principal.
De súbito, enquanto observava aquelas estranhas figuras demoníacas ali
retratadas, numa clara alegoria à pesagem das almas no Juízo Final, Michael
lembrou-se que Jacques de Molay desenhara algo parecido em seu diário. Ele
apanhou o livro dentro da pasta e pôs-se a folheá-lo com certa ansiedade. Ao
encontrar o que procurava, o jovem arregalou os olhos e exclamou:
- Jesus Cristo!
A semelhança impressionava! Se os traços do desenho do grão-mestre não
eram perfeitos, percebia-se que ele procurara reproduzir de memória aquele
intrigante e curiosíssimo painel figurativo, posto na fachada da catedral de Saint
Etienne por alguma razão misteriosa. No centro da imagem, havia um anjo
segurando uma balança, sendo observado atentamente por um demônio, na
verdade o próprio Satanás, o qual portava em uma das mãos o arpéu. Do lado
direito do anjo, estavam as almas que alcançaram o paraíso, enquanto que, na
outra extremidade, via-se um caldeirão fervendo no fogo, onde inúmeros
diabretes cozinhavam os pecadores. Tudo isto era reproduzido de maneira
bastante clara no desenho de Jacques de Molay. Embaixo, ele escrevera a
seguinte frase:

“Quod est ante pedes nemo spectat, caeli scrutantur plagas.”[10]

Michael ficou ainda mais intrigado com estas palavras. A sua impressão era
que Jacques de Molay queria aconselhar os futuros cavaleiros da Ordem sobre
algo muito importante, mas por algum motivo não o fez de forma explícita. Nas
páginas do diário que antecediam o seu enigmático desenho, ele discorrera a
respeito do forcado de Satanás, explicando como os templários o haviam
descoberto debaixo do templo de Salomão e o conduzido para um lugar seguro.
Porém, não dizia onde se localizava este sítio altamente secreto.
Ao entrar na catedral, Michael dirigiu-se à cripta, pois estava quase certo de
que os Pobres Soldados de Cristo tinham escondido ali a sexta pista. Tanto as
paredes, quanto o chão, apresentavam-se revestidos de pedras, bem como as
imponentes colunas, unidas em ogivas ao teto. Não havia muitas tumbas e a
principal era a do duque Jean de Berry, edificada sobre o piso de pedra. Por cima
deste sepulcro, existia uma estátua de alabastro, representando o duque com as
mãos cruzadas no peito e tendo a seus pés um urso adormecido. A primeira ideia
que lhe veio à cabeça foi procurar a pista templária em torno deste túmulo, mas o
moço não descobriu nada. Depois, leu uma pequena placa e ficou sabendo que
ele fora construído em meados do século XV, mais de cem anos após Jacques de
Molay ter escrito o seu diário.
Durante boa parte da tarde, Michael permaneceu no interior daquela cripta,
observando em vão pedra e mais pedra e mais pedra. O grão-mestre deixara
bastante claro em sua trovinha que a pista templária se encontrava “entre as
tumbas do lajedo”. Porém, o rapaz esquadrinhara cada centímetro do local, sem
obter sucesso algum. Como se achava preocupado demais com Michele, já
estava quase desistindo e retornando ao hotel a fim de aguardar o próximo
telefonema de Macrino. Porém, uma ideia maluca lhe passou pela cabeça, talvez
soprada por algum espírito gaiato, cujo corpo jazia ali sepultado. E se aquela não
fosse a única cripta da catedral de Saint Etienne?
Pensando nisso, Michael acotovelou-se entre um grupo de turistas e
indagou a um dos funcionários da igreja, que se achava tagarelando com eles:
- Por favor, onde fica a outra cripta?
O sujeito o fitou com certo assombro no rosto; depois, apontando na
direção de um gradil de ferro, disse:
- Se você está se referindo à cripta primitiva, fica para lá, mas ela se
mantém permanentemente fechada à visitação pública.
Após agradecer, o jovem misturou-se aos outros visitantes a fim de não
chamar atenção. Michael fizera a pergunta de uma maneira capciosa, jogando
verde para colher maduro. Se tivesse perguntado se existia outra cripta na
catedral, era possível que o homem respondesse de forma negativa. Indagando
daquele jeito, ele não teve como negar algo que supostamente seu interlocutor já
conhecia.
Quando não havia ninguém por perto, o moço dirigiu-se ao local indicado
pelo funcionário e, discretamente, pulou o gradil. Em seguida, caminhou por um
corredor comprido e estreito até se deparar com uma enorme porta de madeira,
fechada apenas por uma tranca de correr. Ao abri-la, ela rangeu de um modo
irritante, denunciando-lhe a presença. Michael aguardou um minuto em silêncio,
atrás de uma coluna, mas ninguém apareceu. Pé ante pé, ele atravessou a porta;
porém, não pôde ver coisa alguma, pois a escuridão ali dominava tudo. Após
retirar do bolso sua pequenina lanterna, o rapaz cravou o facho de luz nas trevas
e descobriu uma escada sinistra e apavorante. Com o peito batendo acelerado,
encheu-se de coragem e passou a descer aqueles degraus feitos com pedras
toscas e irregulares. As paredes eram de terra e o teto, por ser muito baixo,
sufocava. Tal ambiente funéreo causava-lhe arrepios e se, naquele momento,
alguém encostasse um dedo em suas costas, certamente Michael teria um ataque
cardíaco fulminante. Por fim, depois de ter descido inúmeros lances de escadas,
ele deparou-se com uma porta típica de cadeia, feita com grossas barras de ferro,
que o impedia de seguir adiante, pois estava trancada por um cadeado.
Tão logo teve a certeza de que não conseguiria ir além daquele obstáculo
sem arrebentar a tranca, resolveu sair da igreja com o objetivo de comprar um
machado. Afortunadamente, descobriu uma casa de ferragens a pequena
distância dali. Ele pôs a ferramenta debaixo de seu sobretudo, para que ninguém
desconfiasse de suas intenções, e voltou ao local onde estivera pouco antes. O
cadeado não parecia muito resistente e, como o lugar era bem longe da nave da
catedral, presumiu que o barulho da pancada não chamaria atenção de pessoa
alguma. Ainda assim, tirou um lenço de sua pasta e o enrolou sobre o cadeado,
para reduzir ao mínimo o ruído do impacto. Michael ergueu o machado sobre
sua cabeça e, com toda a força, desferiu um violento golpe, estraçalhando-o.
Ao ultrapassar aquela porta de ferro, entrou em um túnel sombrio e úmido,
de aparência fantasmagórica. Havia tantas teias de aranhas atravessando o
caminho, de um lado ao outro das paredes, que o rapaz achou melhor caminhar
com sua pasta diante do rosto. A certa altura, imaginando que tais subterrâneos
macabros não levassem a lugar algum, pois parecia estar dando volta em
círculos, subitamente, deparou-se com o final do túnel, o qual terminava em uma
porta bastante robusta. Ao contrário da anterior, esta era de madeira maciça e
muito antiga. O moço deitou o facho de luz sobre ela e, para sua surpresa, viu
entalhada uma cruz templária numa das extremidades. Isto o deixou ainda mais
entusiasmado, vindo confirmar que ele estava no caminho certo. Depois,
iluminou a tranca e percebeu ali um cadeado em condições tão sofríveis quanto o
primeiro. O jovem o arrebentou sem grande dificuldade; porém, teve de
empregar toda sua força para abrir a porta emperrada. Utilizando os ombros,
Michael sofreu terrivelmente até conseguir movê-la uns poucos centímetros,
apenas o necessário para passar o seu corpo. Quando achou que já havia espaço
suficiente, espremeu-se através do vão e entrou naquele lugar secreto ao
extremo.
Embora sua lanterna não emitisse um facho de luz muito forte, o rapaz
ficou de queixo caído com o que os seus olhos esbugalhados contemplaram. Ali
estava a cripta primitiva da catedral de Saint Etienne, sombria e fúnebre, como
ele supunha. Um cheiro terrível de mofo e de morte envenenava o pouco ar
existente naquela enorme catacumba, dificultando sobremaneira a respiração.
Assim que recuperou o fôlego, Michael pôs-se a caminhar pelo interior da cripta,
iluminando as sepulturas encravadas ao longo de toda a extensão das paredes de
terra. Era incrível! Havia centenas de túmulos ali, dispostos até o alto teto.
Algumas lousas possuíam inscrições de nomes e datas, mas a grande maioria não
apresentava nenhuma identificação. Enquanto observava as tumbas, o rapaz ia
pronunciando os nomes que ainda permaneciam legíveis nas lápides:
Cristoforus... Hipolitus Lullius... Anacletus... Gelasius... De repente, sentiu o seu
sangue gelar, arrepiado. Ele estacou diante de uma sepultura e passou os dedos
na pedra, a fim de remover a poeira deitada pelos séculos sobre as letras no
mármore. Em seguida, leu em voz alta, como se quisesse convencer a si próprio
a respeito daquela extraordinária descoberta:
- Hugo de Payns!
Não tinha dúvidas de que se tratava do primeiro grão-mestre da Ordem.
Aliás, talvez Michael estivesse em um antigo cemitério templário, o que
explicaria a cruz dos Pobres Cavaleiros de Cristo talhada na porta.
Este pensamento convenceu ainda mais o moço de que ele estava no lugar
certo. Porém, como encontrar a pista templária no meio de toda aquela
escuridão? Em sua trovinha, Jacques de Molay dizia que ela fora deixada “entre
as tumbas do lajedo”, mas existiam inúmeras sepulturas ali, tornando a tarefa
praticamente impossível. Após ter olhado diversas lápides sem descobrir letra
alguma debaixo da cruz templária, Michael começou a esmorecer. Se não
contasse com um golpe de sorte, levaria horas e mais horas para achar a pista,
isto se ela estivesse gravada nas lousas de mármore que lacravam as tumbas.
Caso os cavaleiros templários a tivessem escondido no interior de uma sepultura,
entre as centenas existentes na cripta, talvez ela nunca fosse encontrada.
Já havia transcorrido certo tempo desde que o rapaz estava no interior
daquela catacumba, quando notou algo terrível. Em um dos cantos ainda
inexplorado por ele, Michael pensou ter visto de relance um vulto sinistro.
Imediatamente, a respiração do moço tornou-se ofegante e suas pernas ficaram
bambas. Ele seguiu apavorado naquela direção, empunhando sua lanterna como
se fosse uma faca, até se aproximar do suposto vulto, que ele imaginava ser o
fantasma de algum templário. Para seu alívio, era apenas uma estátua de
mármore ou alabastro.
Qual seria o motivo para aquela misteriosa estátua ter sido posta ali? O
rapaz percebeu que ela possuía asas e uma inscrição em sua base. Ele iluminou o
local e leu a seguinte frase: “São Miguel, que subjugou o demônio”.
Neste instante, Michael lembrou-se das palavras de Jacques de Molay e
sentiu suas entranhas incendiando, como se um vulcão lhe cuspisse lavas dentro
das vísceras. Os versos do velho templário diziam que São Miguel indicava o
local desejado entre as tumbas da cripta! Isso não deixava margens a qualquer
dúvida. Teve, então, uma ideia extraordinária. Utilizando um lenço, o rapaz
amarrou sua lanterna no dedo indicador da estátua, que apontava para a parede
do outro lado, repleta de tumbas. Em seguida, ele apertou um botão, acionando
uma luz de laser, pois seu chaveiro era pequeno, mas possuía mil e uma
utilidades. Um ponto vermelho foi marcar uma das lápides, quase junto ao piso.
Era uma lousa como tantas outras, sem qualquer inscrição. Ao chegar lá,
Michael tomou o machado em suas mãos e desferiu uma forte pancada na pedra
de mármore, estraçalhando-a em milhares de cacos. Ele clareou o interior
daquela sepultura, retirando parte do entulho com os dedos, indiferente aos
restos de ossos. De repente, seus olhos iluminaram-se feito dois holofotes e sua
boca aguara de excitação. Ali dentro, havia uma grande pedra com uma cruz
templária por cima da letra R.
Após ter tirado algumas fotografias da pedra no interior da tumba, o rapaz
decidiu partir, pois já era tarde e imaginava que a igreja fecharia a qualquer
momento. Porém, quando acabara de sair da cripta, espremendo-se no vão da
maciça porta, veio-lhe à mente a segunda trovinha de Jacques de Molay. De
acordo com ela, mais um segredo poderia ser revelado naquele túmulo. Além
disso, a frase escrita pelo grão-mestre em seu diário, sob o enigmático desenho
que ele fizera do tímpano existente na catedral de Saint Etienne, agora parecia
fazer algum sentido ao jovem. De fato, “ninguém presta atenção ao que tem
diante dos pés: estão perscrutando a imensidão dos céus.” E na altura de seus pés
estava a tumba apontada por São Miguel! Depois, qual motivo teria um punhado
de padres medievais para colocar sobre a porta de sua igreja a figura do demônio
e seu arpéu? Era mesmo muito estranho, como se quisessem indicar que algo
extremamente precioso permanecia guardado na segurança daquele templo.
Pensando nisso, Michael entrou outra vez na cripta, dirigindo-se para a
sepultura violada. Seria possível que “o brinquedo” do demônio, como Jacques
de Molay lhe chamou o tridente, estaria repousando há séculos naquele local?
Ele agachou-se diante da lápide, meteu seus braços no interior da cova e, com
grande esforço, retirou a pesada pedra onde os cavaleiros templários haviam
gravado mais uma pista. Conforme imaginara, ela ocultava outro segredo...
Então, tonto pela surpresa, estarrecido, procurando dominar os sentimentos
contraditórios que se digladiavam em sua alma, ele constatou horrorizado que ali
dentro existia uma caixa de madeira!
Ele tentou se acalmar, imaginando que talvez aquele caixão pudesse conter
apenas os ossos de algum cavaleiro templário ali enterrado. Mas, então, percebeu
que era muito pequeno e leve para ser o esquife de alguém. Ofegante como um
bode diante da fêmea no cio, o rapaz o arrastou para fora, deitando-o sobre o
chão de terra. Ao iluminar aquele estranho baú, viu que ele estava lacrado
apenas por uma decrépita tranca e bastou um golpe de machado para o obstáculo
ser prontamente removido. Ao segurar a tampa da caixa, os dedos do moço
tremiam tanto, que mais parecia um velho com mal de Parkinson. Tão logo o
abriu, Michael persignou-se três vezes, pôs as mãos sobre o peito, como se
tivesse sido traspassado por uma flecha em chamas e exclamou, com a alma
esmagada pelo terror:
- Meu santo Jesus Cristo!
Era o arpéu de Satanás.
O tesouro dos templários

Ao recuperar-se do susto provocado por aquela descoberta extraordinária,


Michael apanhou o arpéu do demônio e saiu da funérea cripta, retornando pelos
tenebrosos corredores. Quando alcançou a parte da igreja aberta à visitação
pública, escondeu-se atrás de uma coluna até que não houvesse mais pessoa
alguma por perto. Ele pulou uma grade e meteu debaixo de seu sobretudo o
forcado, pois este não era muito grande. O rapaz sentiu certo alívio ao descobrir
que a missa da noite ainda não havia terminado, de maneira que as portas da
igreja estariam abertas. Discretamente, partiu da catedral de Saint Etienne,
procurando não chamar muita atenção. Já era noite e um vento frio varria as ruas
quase desertas da cidade de Bourges, soprando no ar uma folha de jornal que
alguém abandonara num banco da praça.
Chegando à rua onde estacionara o carro, Michael abriu o porta-malas e,
com discrição, colocou lá dentro o arpéu e sua pasta, contendo o notebook mais
os livros. Apesar de todas suas descobertas, estava extremamente deprimido pelo
sequestro de Michele e sentia-se culpado, temendo pela vida da menina. Se não a
tivesse deixado sozinha para ir à maldita floricultura, talvez nada daquilo teria
acontecido! Agora ela se achava nas mãos daqueles facínoras sanguinários, para
quem a vida alheia valia tanto quanto uma meia furada.
Pouco depois, Michael entrou no automóvel e deu a partida no motor. Nesse
exato instante, sentiu um cano gelado roçar seu pescoço. Ele levantou os olhos
perplexos e viu pelo espelho retrovisor que Macrino estava no banco traseiro,
apontando um revólver para a sua nuca. Acompanhava-o o seu abominável
comparsa, com aqueles irritantes óculos escuros. O rapaz ouviu a arma sendo
engatilhada atrás de sua orelha e indagou com voz segura, procurando
demonstrar firmeza:
- Onde está Michele?
Macrino o encarou pelo espelhinho e respondeu:
- Num local seguro, você já nos fez esta pergunta.
- Se alguma coisa acontecer a ela...
Ao ouvir aquela ameaça, o outro bandido agarrou com brutalidade o
pescoço do rapaz, bradando furioso:
- Você vai fazer o quê, seu merda! Cale a boca e obedeça! Caso contrário,
ainda hoje se encontrará com a sua amiguinha na vivenda do capeta...
- O que querem de mim?
- Por ora, siga apenas o caminho que lhe indicaremos. Vamos dar uma
voltinha...
Durante mais de quinze minutos, eles percorreram uma estrada escura em
silêncio. A certa altura, o atarracado perguntou:
- Queremos saber onde está escondido o tesouro dos templários!
- De novo esta história? Eu já lhes falei que não estou atrás disso e não faço
a menor ideia para onde ele foi conduzido!
Com a palma de sua mão que não estava segurando a arma, Macrino deu
três leves tapinhas no rosto de Michael como se fossem velhos camaradas e
disse:
- Sabemos que descobriu coisas importantes...
- Estão mal informados! Tudo que descobri consta na cópia do diário de
Jacques de Molay, que lhes entreguei.
- E os outros livros?
- Não dizem nada a respeito. Mas se duvidam da minha palavra, vamos
fazer um trato. Vocês me entregam Michele e eu lhes dou uma cópia deles.
Ao ouvir aquela proposta, Macrino respondeu:
- Acha mesmo que libertaremos sua namoradinha por tão pouco? Pode
guardar seus preciosos livros, pois não nos interessam agora.
Tal resposta deixou o rapaz ainda mais perplexo e angustiado.
Demonstrando enorme nervosismo, ele inquiriu:
- Mas, afinal de contas, para onde estão me levando?
Após tirar um lenço do bolso de seu paletó, Macrino assoou o nariz e disse:
- Fique calmo! Se você colaborar conosco, tudo acabará bem. No próximo
entroncamento, dobre à direita e depois siga em frente...
- O que querem de mim? Falem de uma vez por todas!
- Antes de qualquer coisa, queremos saber quem é essa rainha escura em
cujos domínios foi escondido o tesouro templário...
- Não faço a menor ideia. Sei tanto quanto vocês...
O bandido reclinou seu corpo para frente e, encostando os lábios ao ouvido
direito de Michael, proferiu:
- Meu caro, você já deve ter percebido que sou um sujeito bastante calmo e
sensato; porém, o mesmo não ocorre com o nosso amigo aqui ao lado. Não minta
para nós, pois não somos imbecis. Se ele se irritar, a sua amiguinha vai sofrer as
consequências...
Quase chorando de raiva, desesperado, o rapaz replicou:
- Juro que é verdade. Eu não seria tão idiota a ponto de mentir para vocês,
sabendo que estão com Michele... não após o que fizeram com o pobre
Celestino...
- Está certo. Diga-nos então o que sabe sobre esse tríplice phallus, em cuja
sombra repousa o tesouro da Ordem.
- Desculpem-me, mas infelizmente também nada sei a respeito disso.
- E o que nos diz sobre o seguinte dístico de Jacques de Molay:
“Encontrando a flor de ouro, acharás todo o tesouro.”
O rapaz exibiu um riso atormentado em seu rosto e bradou:
- Parece que não estou querendo colaborar com vocês, mas isto não é
verdade. Embora eu tenha refletido bastante sobre o diário, desconheço
completamente o significado dessa “flor de ouro”, bem como do “tríplice
phallus” e da “rainha escura”. E pelo que me recordo, ele fala em “flor amarela”
e não “flor de ouro”. Há mais de setecentos anos, a fabulosa riqueza dos
cavaleiros templários encontra-se escondida num local inacessível à curiosidade
humana. Durante todo esse tempo, milhares de caçadores de tesouros
aventuraram-se em busca desta fortuna incalculável, mas nenhum deles
conseguiu descobrir uma única moeda. Não serei eu exceção à regra...
- Sim, Michael, tudo o que você disse é fato. Só se esqueceu de acrescentar
uma coisa: ninguém até hoje teve acesso ao diário de Jacques de Molay ou aos
outros livros que você roubou na biblioteca dos templários...
Tão logo terminou de proferir estas palavras, Macrino pediu para o rapaz
encostar o carro. Era um local deserto, longe da estrada principal, e tudo ali
parecia decadente e abandonado. Não se via uma única pessoa nas imediações e
apenas um automóvel preto, em frente a um velho celeiro, denunciava a presença
de civilização. Assim que desligou o motor, Michael inquiriu:
- Por que me trouxeram até aqui?
Após acender um charuto e soltar uma fumarada sobre o rosto do rapaz,
Macrino respondeu:
- Meu caro, não lhe devemos nenhuma explicação; porém, como estou de
bom humor, eu lhe digo. Queríamos somente uma carona, pois deixamos o nosso
carro estacionado neste fim de mundo. Infelizmente, automóveis dão defeitos e
tivemos que chamar um mecânico para resolver um probleminha. Após dar uma
olhada no motor, o rapaz nos disse que precisaria trocar uma peça e voltaria mais
tarde, pois teria de comprá-la na cidade. Como estávamos com pressa para
chegarmos a Bourges, ele foi camarada e nos deu uma carona. Por sorte, o
sujeito já nos ligou, afirmando ter resolvido o defeito. Agora, para encurtar a
história, vou ser direto. Se você quiser sua namorada de volta, terá de nos fazer
um favorzinho...
Ao ouvir aquela frase, Michael sentiu uma fraqueza estranha dominando
todo o seu corpo, como se uma ninhada de ratos lhe devorasse os músculos. Ele
encarou Macrino com desprezo e, temendo que o bandido pedisse algo
impossível de se conseguir, exclamou:
- Pois diga!
- Você tem três dias para encontrar o tesouro da Ordem e nos conduzir até
ele. Caso contrário, garanto-lhe que não mais verá sua bela amiga outra vez...
O sangue afluiu à cabeça do rapaz e uma veia dilatada passou a latejar em
sua testa coberta de suor. Pudesse, teria metido a mão goela abaixo do miserável
e lhe arrancado o fígado pela boca. Após alguns segundos em silêncio, Michael
replicou:
- Mas você sabe que é impossível!
- Não é problema nosso. Vire-se! Três dias a partir de agora e nem um
minuto a mais.
Dizendo isso, Macrino abriu a porta do automóvel e desceu, seguido por
seu cúmplice. O rapaz reteve-lhe um dos braços e bradou:
- Espere! Talvez eu saiba mais alguma coisa; porém, só farei o que me
pedem, ao ver Michele!
Os malfeitores entreolharam-se brevemente até que o atarracado respondeu:
- Tudo bem, venha conosco...
Enquanto Macrino abria a enorme porta do celeiro, o outro dirigiu-se ao
carro preto e retirou do porta-malas um pedaço de pau, que apresentava em uma
das extremidades um trapo embebido com gasolina. Como não havia luz no
velho galpão, os bandidos tinham previamente preparado aquele archote a fim de
iluminar o recinto. Bastou que Macrino encostasse a ponta de seu charuto nele,
para a tocha arder no mesmo instante.
Tão logo entraram no celeiro, as chamas amarelas do archote projetaram
sombras sinistras nas paredes e no teto daquele velho depósito, dando a
impressão de que almas de crianças mortas brincavam de pegar ali dentro.
Existia muito feno amontoado por toda parte, inúmeros caibros de madeira
empilhados num dos cantos e diversos tocos de pau, que deveriam servir para
lenha. Um cheiro forte de bicho morto empestava o lugar, provocando uma
sensação terrível de náuseas. Macrino entregou a tocha a seu comparsa e disse:
- Fique aqui de olho nele. Vou buscar a garota.
Mal acabara a frase, o bandido desapareceu no meio das pilhas de feno.
Michael ficou aguardando junto àquele sujeitinho abominável, ansioso por rever
Michele. Com uma das mãos, o atarracado segurava uma arma automática,
apontada para o peito do rapaz, enquanto a outra empunhava o archote. Pouco
depois, Macrino apareceu no fundo do celeiro, arrastando a menina por uma
corda, como se puxasse teimosa cavalgadura. Embora estivesse amarrada e
amordaçada, Michele contorcia-se de aflição, tentando inutilmente se
desvencilhar daquele cativeiro insuportável. Quando Michael reconheceu a
jovem e viu a maneira ignóbil como os seus sequestradores a estavam tratando,
ele entrou em desespero. Sem refletir no que fazia, empurrou o malfeitor
encarregado de cuidar dele e partiu ensandecido na direção de Macrino. Por azar,
o criminoso perdeu o equilíbrio e foi cair justamente sobre um dos montes de
feno, o qual se transformou numa imensa língua de fogo. As roupas do sujeito
começaram a arder, mas ele se jogou no chão de terra e pôs-se a rolar de um lado
ao outro até extinguir o fogo, que lhe consumia o paletó elegante.
Em pouco tempo, todo o celeiro estava tomado pelas chamas. A
temperatura ali dentro tornara-se intolerável e a fumaça era tanta, que ninguém
mais podia respirar. Michael correu aflito ao local onde Michele se encontrava.
Porém, no momento em que ia apanhar a menina, Macrino tirou de seu bolso um
revólver e deu-lhe uma violenta coronhada na cabeça. Ele caiu no chão, mas não
chegou a perder os sentidos. Ao se pôr de pé, o atarracado segurou-o pelas
costas, deixando-o imóvel e sem qualquer ação. Macrino aproximou-se deles e
desferiu vários socos no rosto e no baço do rapaz, bradando furioso:
- Isto é para você aprender a não trair a nossa confiança!
Uma angústia indescritível estampara-se nos olhos de Michele ao ver o
moço apanhando daquela forma cruel. Quando Michael já havia sido espancado
o suficiente, deixaram-no cair e saíram, arrastando a garota com eles. Antes,
porém, Macrino chutou-lhe as nádegas e urrou, já quase sufocado pela fumaça:
- Três dias! Você tem três dias para cumprir a sua parte em nosso acordo.
Enquanto permaneceu estendido no chão, o rapaz escutou um carro sendo
ligado e partir. Afortunadamente, ele ainda podia respirar, pois a fumaça havia se
elevado com o ar quente, restando um pouco de oxigênio na camada mais baixa
do celeiro. Com extremo esforço, conseguiu se arrastar para fora do velho
depósito sem ter sido atingido pelas chamas. Mal deixara o galpão e o telhado
veio abaixo, produzindo um estrondoso ruído e espalhando fagulhas para toda
parte. Michael entrou no automóvel e viu através do espelhinho o seu rosto
deveras inchado. Com um lenço, ele procurou estancar o sangue que escorria de
seu nariz e, durante alguns minutos, permaneceu reclinando sua cabeça para trás,
bastante zonzo.
Quando ele entrou no hotel, caminhou rapidamente para o elevador,
procurando esconder seu rosto de lado, pois não queria chamar a atenção de
ninguém, embora algumas pessoas na saguão notaram as suas roupas sujas, mas
nenhum funcionário o deteve para dar qualquer explicação. Já no quarto, ele
lavou o rosto, limpou seu sobretudo como pôde e tirou a camisa ensanguentada,
lançando-a sobre a pia do banheiro.
Caminhando sem camisa pelo quarto, o moço sentia uma sensação enorme
de vazio e impotência. O que poderia fazer para salvar a vida da namorada? Em
sua mente, embaralhavam-se milhares de pensamentos confusos, porém, nenhum
deles prestava à resolução daquele problema. Três dias! Tinha apenas três dias
para descobrir o que pessoa alguma encontrara em setecentos anos!
Ele pôs o brinco de Michele sobre uma mesinha e permaneceu caminhando
lentamente ao longo do quarto. Tudo ali lembrava sua amada. O cheiro da jovem
ainda parecia se evolar entre aquelas paredes silenciosas, as formas do seu corpo
permaneciam marcando o lençol da cama desarrumada e a poltrona onde ela se
sentara na noite anterior para jogar Paciência continuava exibindo a
conformação de suas nádegas perfeitas. Até as cartas do baralho conservavam-se
como Michele as deixara, espalhadas de maneira aleatória sobre a mesa.
Michael estava bastante cansado e resolveu tomar um banho para
restabelecer suas energias. Porém, não conseguia pensar em outra coisa e tudo
lhe recordava a namorada. Ali achou o mesmo sabonete que ensaboara o corpo
de Michele na véspera, a mesma toalha que lhe envolvera a pele macia, a mesma
escova que penteara seus cabelos sedosos. Durante um instante, teve vontade de
ir à janela gritar infâmias contra os céus, que haviam engendrado tamanha
crueldade. Porém, conteve-se, pois isto de nada adiantaria. Depois, meteu a
cabeça debaixo do chuveiro e, por vários minutos, deixou a água fria escorrendo
pelo seu corpo a fim de se acalmar. Quando saiu do banho, decidiu descobrir o
local onde os cavaleiros templários tinham escondido o tesouro da Ordem ou
uma forma para libertar Michele, nem que fosse preciso matar aqueles
assassinos.
Em seguida, ele ligou para a recepção do hotel e pediu dois lanches com
queijo e um bule de café, pois pretendia passar a noite acordado, relendo o diário
de Jacques de Molay. No fundo, acreditava que poderia encontrar algum detalhe,
alguma sugestão nas entrelinhas, algo que lhe passara despercebido em outras
leituras. Os templários eram exímios em armar enigmas e talvez a resposta de tal
mistério estivesse naquelas próprias páginas.
Pouco depois, um funcionário do hotel bateu na porta, trazendo seu pedido.
O gerente havia lhe encarregado de se desculpar com o hóspede, pois não fora
possível arrumar aquele quarto durante a tarde. Segundo o rapaz dissera, uma
arrumadeira havia sido despedida no início da semana e duas outras calharam de
faltar hoje, de maneira que todos os quartos do hotel ficaram aos cuidados de
uma única funcionária, impossibilitada de realizar todo o serviço. Para Michael,
isto não fazia a menor diferença e ele mal prestou atenção nas palavras do rapaz.
Apenas apanhou seus lanches e o bule de café, deu-lhe uma moeda de gorjeta e
fechou a porta mecanicamente.
Após ter comido os lanches, Michael sentou-se na poltrona diante da
mesinha de centro, onde Michele estivera jogando Paciência, e pôs-se a ler
atentamente as páginas escritas pelo último grão-mestre da Ordem.
Durante horas, o rapaz permaneceu empenhado naquela tarefa, anotando
qualquer palavra suspeita. Ele ligara seu notebook sobre a mesa e perdera a
conta de quantas buscas fizera no Google, procurando obter mais informações a
respeito de tudo que lhe chamava a atenção no diário. A seu modo de ver, a
principal pista deixada por Jacques de Molay era o seguinte versinho:

“Nos domínios da rainha escura,


À sombra do tríplice phallus,
Repousa o tesouro templário.”

Além desta dica, havia também um dístico que poderia ser bastante
revelador, caso ele compreendesse o seu significado:

“Encontrando a flor de ouro,


Acharás todo o tesouro.”

Finalmente, constava no diário um curioso desenho de uma mulher com os


seguintes dizeres por baixo:

“A rainha negra com a flor amarela”

De resto, quase mais nada que pudesse ajudar, pelo menos assim à primeira
vista. Já começava a amanhecer, quando Michael largou o diário sobre a mesinha
e esfregou os olhos, cansado e com sono. Passara a madrugada inteira lendo o
velho manuscrito e pesquisando na internet inúmeros sites relacionados ao
tesouro do Templo. Porém, não descobriu coisa alguma.
Junto às cartas do baralho que continuavam sobre a mesa, apenas um pouco
mais unidas, pois ele as afastara para colocar ali o seu notebook, Michael viu
outra vez o brinco de Michele e sentiu uma angústia tão grande no peito que teve
vontade de dar cabo de sua existência. Ele apanhou aquela simples bijuteria com
as formas da flor-de-lis e a trouxe aos lábios, beijando-a com saudades. Depois,
abriu uma pasta no computador, onde guardava suas imagens, e passou a olhar as
diversas fotos que tirara da namorada em todos os lugares visitados por eles. Ao
ver Michele tão bela e cheia de vida, sempre sorrindo, sempre jovial, o rapaz não
conseguiu conter as lágrimas e pôs-se a chorar de forma amarga.
Dentre tantas fotografias, uma em particular tinha a preferência do moço,
justamente aquela em que eles saíram abraçados no claustro do monte São
Michel, pois haviam pedido para um dos turistas tirar o retrato. Durante vários
minutos, ele permaneceu contemplando tal foto, como se tivesse sido
hipnotizado pelo sorriso encantador de Michele. Quadro a quadro, foi
aproximando a imagem a fim de ver bem de perto o rosto de sua querida
companheira. De repente, seus olhos vidraram, cravados na tela do computador.
E foi preciso enxugá-los com um lenço para ter certeza de que não estava sendo
traído por suas vistas marejadas de lágrimas.
Atrás de Michele existia algo espantoso e, por mais que o moço tivesse
olhado aquele retrato, até então ele ainda não tinha percebido tal peculiaridade.
Ao longo de toda a parede do corredor do claustro, entre os arcos ogivais das
colunas e quase junto ao teto, encontravam-se entalhadas inúmeras figuras muito
semelhantes àquela forma simbólica do brinco da menina. Era uma coincidência
curiosa e impressionante! Michael aumentou ainda mais a imagem e, tomando o
brinco em sua mão, aproximou-o da tela do computador, de modo que
praticamente foi possível encaixá-lo com perfeição dentro de uma daquelas
formas.
Qual o seu significado? Por que os construtores do claustro haviam posto
ali aquelas figuras tão singulares? Em outros tempos, tudo isto teria levado o
rapaz a meter-se em bibliotecas a fim de tentar descobrir o sentido de tais
símbolos, pois tinha o espírito investigativo por natureza. Porém, agora estava
deveras apreensivo em virtude do sequestro de Michele e nada mais lhe
interessava.
Ele ergueu-se para esticar um pouco as pernas, jogou o brinco em cima do
baralho espalhado sobre a mesinha e bebeu mais uma xícara de café, pois estava
começando a ter sono. Em seguida, abriu a janela do quarto e permaneceu
respirando o ar fresco da manhã, que surgia além da linha do horizonte. Michael
dirigiu-se outra vez ao seu notebook para continuar as suas intermináveis
pesquisas, quando levou um susto tremendo. O brinco de Michele havia caído
por acaso sobre uma carta de paus! Isto não teria importância alguma e com toda
certeza passaria despercebido ao rapaz, se não fosse por um detalhe
extraordinário. A sua respiração alterara-se um pouco e seus olhos brilharam
feito cristais ao sol. Ele apanhou a carta mais o brinco e os contemplou excitado
durante alguns segundos. A semelhança era impressionante! Embora um tanto
estilizada, a forma daquela bijuteria lembrava muito o naipe de paus, e ambos
eram bastante semelhantes às figuras existentes nas paredes do claustro do
monte São Michel.
De súbito, o rapaz sentiu gelar até o último fio de seus cabelos. Deus do
céu, já não era mais coincidência!... As suas feições contraíram-se aterrorizadas,
o seu coração parecia ter se transformado em um pássaro que acabara de perder a
liberdade, esvoaçando aflito dentro de uma gaiola, e sua pele tornara-se álgida
como um iceberg. Casualmente, a carta apanhada por Michael era uma dama de
paus, uma rainha escura! E com os olhos saltando para fora das órbitas, o moço
constatou espantado algo que nunca havia percebido em toda a sua vida: ela
segurava uma flor em suas mãos... uma flor amarela!
O moço levantou-se de forma brusca e deu um urro ininteligível a fim de
extravasar a sua descoberta, da mesma maneira que o primeiro primata
procedera ao conseguir fazer fogo com seus próprios meios. Aquilo tudo era a
um só tempo estarrecedor e fascinante. Seria possível que a dama de paus fosse a
rainha escura citada por Jacques de Molay? No mesmo instante, Michael passou
a procurar na internet mais informações a respeito, constatando arrepiado um
fato assombroso: em todas as cartas vistas por ele, a dama de paus sempre
aparecia segurando uma flor amarela. Em algumas delas, inclusive, havia até
mesmo a cruz templária estampada em suas vestes, o que era bastante revelador.
De repente, outro pensamento acudiu-lhe ao cérebro, uma ideia ainda mais
terrível, espantosa e extravagante. O naipe de paus – talvez até mesmo os outros
naipes - não teria sido colocado de propósito nos baralhos pelos templários para
garantir que o maior segredo da Ordem - o local onde foi escondido seu fabuloso
tesouro - não se perdesse ao longo dos séculos e pudesse ser encontrado pelos
futuros cavaleiros? Certamente, acreditavam que o Templo se reestruturaria após
a morte de Felipe IV e os novos monges conduziriam a Ordem ao seu antigo
esplendor.
Mas não era só isso. Agora, Michael estava inclinado a acreditar que o
naipe de paus simbolizaria o tríplice phallus! A sua forma lembrava levemente
uma cruz estilizada e talvez ela tenha sofrido alterações ao longo dos anos. Seja
como for, até mesmo os outros naipes pareciam ligar-se de algum modo aos
templários. O naipe de ouros indicaria a fortuna da Ordem, o incomparável
poder econômico que ela desfrutou nos séculos XII e XIII; o naipe de espadas
representaria o seu caráter guerreiro, a maior força bélica do tempo, respeitada
até mesmo pelos muçulmanos; o naipe de copas lembraria aos cavaleiros a sua
obediência e humildade, o profundo amor e dedicação que deveriam manter por
toda a vida não só ao Templo, mas também à religião cristã; por fim, o naipe de
paus recordava a cruz e seria a chave para se descobrir o local onde jazia o
formidável tesouro.
Michael recolheu as cartas sobre a mesa e observou que as outras damas
também seguravam flores amarelas. Talvez elas tivessem sido acrescentadas
posteriormente para disfarçar ainda mais o segredo ou mesmo por analogia e
ignorância dos fabricantes de baralhos. Uma ideia, porém, inquietava-lhe o
espírito. Por que os cavaleiros templários teriam colocado o símbolo do tríplice
phallus na parede do claustro do monte São Michel? O rapaz não sabia se aquela
parte do santuário fora construída antes ou depois da extinção da Ordem, mas
isto não invalidava a sua teoria. Mesmo porque, o Templo tinha sido extinto por
decreto, mas não os templários. Muitos cavaleiros conseguiram fugir,
permanecendo fiéis a seus ideais, e ainda hoje há quem se intitule seus herdeiros.
É possível que arquitetos ligados aos templários remanescentes tenham posto de
propósito aquelas figuras no claustro e até mesmo em outras torres do demônio.
Este último pensamento produziu um profundo arrepio em Michael. O
símbolo do tríplice phallus poderia estar indicando não apenas o local onde os
cavaleiros haviam escondido o tesouro da Ordem, como também parecia
apresentar certa relação com o cativeiro de Satanás. Tudo aquilo estava ligado de
maneira intrínseca e a solução de um destes enigmas talvez explicasse o outro.
Quem sabe os templários não teriam posto o emblema do tríplice phallus em
cada uma das sete torres do demônio para advertir que, nestes locais, eles
haviam deixado uma de suas pistas?
Convencido por esta ideia, Michael passou a analisar as fotografias batidas
por eles em todos os lugares visitados. Para sua surpresa, logo na fachada da
catedral de Notre-Dame de Paris, deparou-se com formas bastante semelhantes
ao tríplice phallus. Até então, Michael acreditava que estas formas apenas
representariam um símbolo heráldico da monarquia francesa. No nível
intermediário, acima da Galeria dos Reis, sobre a grande rosácea e as janelas
gêmeas, havia seis misteriosas figuras, as quais certamente não se encontravam
ali por acaso. Na igreja de Saint Etienne de Bourges, arrematando as inúmeras
colunas que ladeavam os cinco imensos portais da fachada ocidental, bem como
acima destes, o rapaz descobriu diversas formas que também representavam o
tríplice phallus. Observando as suas fotos, não achara o símbolo na Torre de
Londres, nem no Castelo de Almourol e tampouco na Torre de Hércules. Porém,
isto não significava, de maneira alguma, que os cavaleiros templários não os
tivessem deixado nestes locais. A Torre de Hércules havia sido restaurada no
século XVII e perdera muito de sua originalidade. O Castelo de Almourol
também fora bastante alterado ao longo do tempo. Com o grande terremoto de
1755, parte da velha construção ruíra e precisou ser reformada nos séculos
seguintes, quando ganhou ameias e merlões sobre as muralhas. Quanto à Torre
de Londres, talvez o símbolo do tríplice phallus estivesse nas paredes externas
da Torre Branca, que recebera tal nome porque, originariamente, apresentava
esta cor; todavia, também esta não apresenta mais as suas características
primitivas.
De qualquer maneira, agora sim o rapaz possuía informações relevantes a
respeito do destino do tesouro templário e, se contasse com sorte, muita sorte,
era provável que ainda pudesse salvar a vida de sua namorada. Não tinha mais
qualquer dúvida de que a rainha escura citada por Jacques de Molay era a dama
de paus. Mas ela representaria a soberana de qual reino? Pensando nisso,
Michael pôs-se a investigar qualquer coisa relacionada a esta carta do baralho.
Durante horas, navegou pelos sites mais variados, copiando e colando numa
pasta toda frase ou texto útil. A certa altura, descobriu alguns documentos,
afirmando que a dama de paus representava uma antiga rainha chamada Argine.
Ao ler isto, o rapaz recobrou o entusiasmo, imaginando estar no caminho certo.
Como bem sabia, os templários adoravam anagramas e o nome Argine era um
anagrama perfeito de Regina, ou seja, “rainha” em latim. Isto o deixou mais
animado para continuar as suas buscas.
Pouco depois, Michael encontrou outras informações a respeito dessa tal
Argine. Profundamente excitado, soube que ela governara a antiga cidade de
Korama, nome pelo qual a Göreme de hoje, na Capadócia, Turquia, era
conhecida nos tempos do império romano. Para comprovar as suas suspeitas,
embaixo de um suposto desenho da misteriosa rainha, havia a seguinte frase:
Argine, a “flor dourada”. Tal descoberta fez o rapaz verter lágrimas comovidas.
Agora, tinha absoluta certeza de que existia uma possibilidade real para salvar
Michele. Ele levantou-se a fim de recuperar o fôlego, bebeu mais uma xícara de
café e sentou-se outra vez diante do computador. Então, digitou as palavras
“Göreme” e “Capadócia” no Google e uma lista com inúmeros sites apareceu na
tela. Numa das páginas abertas ao acaso, o rapaz achou diversas fotografias da
região. Em cada uma que ele clicava, a imagem era ampliada, aparecendo uma
legenda explicativa. Surpreendeu-se bastante ao observar aquelas paisagens
fabulosas, pois jamais tinha visto nada parecido em toda a sua vida. Tais cenários
eram verdadeiramente incríveis e nenhum outro local na terra apresentava um
vale mais desconcertante. Era como se toda esta região fizesse parte de algum
planeta fantástico, saído da imaginação fértil de Herbert George Wells.
Na breve pesquisa realizada, Michael ficou sabendo que há cerca de três
milhões de anos, alguns vulcões entraram em erupção, cobrindo de lava parte da
Capadócia. Com o tempo, a ação do vento e da chuva erodiu o território,
esculpindo-o de tal forma, que hoje ele apresenta uma espetacular paisagem
surrealista. Imensas rochas cônicas, conhecidas como “chaminés de fadas”,
ajudam a compor este fascinante cenário. Durante séculos, os cristãos
refugiaram-se dos invasores no interior destas formações vulcânicas, escavando
as pedras. Chegaram mesmo a construir cidades subterrâneas, com igrejas,
depósito de alimentos e até mesmo estábulos.
Algumas formações rochosas chamaram a atenção do rapaz pelo seu feitio
curioso, pois lembravam muito um falo ereto, assim à primeira vista. De repente,
quando já tinha observado inúmeras fotos, os seus olhos encheram-se de terror,
esbugalhados. Era inacreditável! Ali se encontravam três destas enormes
formações unidas. Assim que as viu, Michael ergueu-se de forma abrupta e
bradou eufórico, dando um murro na mesa:
- Heureca! O tríplice phallus!
Aquilo não era coincidência. Em alguma caverna da Capadócia, à sombra
de tais formações bizarras, os cavaleiros templários tinham escondido a preciosa
fortuna da Ordem. Michael salvou aquela foto numa pasta em seu notebook e
ligou para o aeroporto Charles De Gaulle, próximo a Paris, a fim de reservar
uma passagem até a cidade de Göreme ainda naquela tarde. Infelizmente, não
havia nenhum voo direto para lá, nem mesmo para a Capadócia, mas deu sorte e
conseguiu fazer uma reserva até Ankara, capital da Turquia, com previsão de
partida às sete horas e cinco minutos da noite. De lá, seguiria de ônibus para
Göreme, o que não seria difícil conseguir, pois era um local turístico muito
visitado.
Embora estivesse com bastante sono, o rapaz não podia perder um minuto
sequer. Ele tomou um banho gelado para despertar, bebeu o resto do café frio
que se achava no bule e partiu do hotel. Numa lanchonete ali perto, Michael
comeu um hambúrguer acompanhado de batatas fritas; depois, pegou o carro e
dirigiu-se à capital francesa.
Chegou ao aeroporto Charles De Gaulle por volta das cinco horas da tarde.
Como ainda tinha algum tempo antes do embarque, resolveu entrar numa
copiadora e pediu para imprimir aquela foto da Capadócia onde apareciam as
estranhas formações rochosas do tríplice phallus. Em seguida, comprou a
passagem, um jornal e foi sentar-se num banco do saguão. Com tantos
problemas em sua cabeça, o moço acabou desligando-se de tudo o mais e, por
isso, achava-se bastante mal informado. Ao abrir o jornal, surpreendeu-se ao
constatar que um violentíssimo terremoto ocorrera na Índia. Pessoas do mundo
inteiro estavam se mobilizando para socorrer as vítimas daquela tragédia
inominável. Segundo as últimas informações, mais de trezentos mil corpos
haviam sido encontrados entre os escombros e cerca de dois milhões de indianos
achavam-se sem abrigo. O jornal inteiro só falava desta catástrofe, que jamais
seria apagada da memória dos homens.
Teve alguma dificuldade para embarcar, pois Michael não desejava pôr o
arpéu no compartimento das bagagens. Inutilmente, tentou convencer os
funcionários do aeroporto, alegando que aquela estranha ferramenta era uma
preciosidade arqueológica e fazia parte de sua bagagem de mão, mas não colou e
ele teve de ceder. Por sorte, um dos funcionários era compreensivo e ajudou o
rapaz. Ele colocou o tridente numa caixa de papelão, embrulhando-o com
segurança, e despachou o pacote em seguida para o compartimento das
bagagens. Tão logo entrou no avião, o rapaz adormeceu, acordando apenas no
dia seguinte, quando a aeromoça veio lhe avisar que haviam chegado à capital da
Turquia. De Ankara, seguiu de ônibus até a Capadócia, descendo na rodoviária
da cidade de Göreme pouco antes do meio-dia.
Na simples estalagem onde almoçou, conheceu um jovem chamado Ahmet,
o qual se ofereceu para lhe servir de guia e intérprete. Além de falar inglês com
fluência, conhecer bem a região, ser simpático e educado, o moço possuía um
velho carro, uma enorme vantagem naquele território desértico. Michael lhe
mostrou a foto com as insólitas formações cônicas que ele havia identificado
como o tríplice phallus e ficou eufórico ao saber que Ahmet conhecia o lugar
onde elas se localizavam. Porém, ele lhe disse que não ficavam nas
proximidades do Parque Nacional de Göreme, mas no Vale Devrent, o Vale da
Imaginação, um pouco mais adiante. Imediatamente, pediu para o guia levá-lo
até lá. Os dois subiram no Jipe empoeirado e partiram debaixo do sol escaldante
da Capadócia. Embora ainda estivessem em abril, fazia um calor infernal, de
maneira que o moço tirou seu sobretudo e o pôs no banco traseiro do automóvel,
ao lado da caixa com o tridente, sua pasta e a mochila de Michele, que ele
trouxera junto.
Foi uma longa viagem, até eles alcançarem o local procurado. Michael
desceu do carro com o coração galgando-lhe a garganta e constatou atônito que
aquelas três enormes formações rochosas eram as mesmas de sua foto, em meio
a tantas outras que ali existiam. Para lhe completar a felicidade, a sombra delas
incidia sobre a entrada de uma caverna ali adiante, exatamente como diziam os
versos de Jacques de Molay.
Os dois meteram-se no interior sombrio daquela caverna, pois Ahmet havia
dito que também estava familiarizado com elas, e puseram-se a explorar seus
corredores estreitos e baixos, ambos iluminando os subterrâneos tenebrosos com
lanternas. Em alguns trechos, as paredes achavam-se tão próximas, que eles
precisaram se espremer entre o vão para seguir em frente. Ahmet contou-lhe
como tais túneis tinham sido escavados pelos homens a fim de proteger a
população dos invasores. Isto deixou Michael pasmo, pois acreditava que
aqueles caminhos subterrâneos fossem formações naturais. Após terem andado
durante um bom tempo, o chão foi se tornando cada vez mais úmido e
escorregadio. Com certeza, deveria existir ali dentro alguma nascente de onde
minava água. Quando chegaram a um declive acentuado, Ahmet afirmou que,
dali em diante, não era mais seguro continuar explorando a caverna. Michael,
porém, parecia não temer o perigo e disse se responsabilizar por qualquer
acidente que pudesse lhe suceder. Ele apertou a mão do guia e pediu:
- Por favor, Ahmet, volte ao carro e fique me aguardando. Preciso seguir em
frente, pois estou muito perto de descobrir o que procuro. Se eu não retornar em
três horas, você encontrará no bolso de meu sobretudo uma carteira com
dinheiro suficiente para pagar os seus serviços. Dentro dela, há o endereço do
convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. Despache a minha pasta para
lá, pois eles saberão dar um bom destino aos livros. E mande-lhes também
aquela caixa de papelão.
O guia permaneceu indeciso por alguns segundos, até que concordou,
levantando os braços acima da cabeça, num gesto em que demonstrava
claramente que ele não aprovava a imprudência do patrão. Após se despedirem,
o rapaz continuou embrenhando-se por aqueles túneis escuros e tortuosos. Com
sua lanterna, ele ia iluminando qualquer coisa suspeita, pois não sabia direito o
que procurava. Teriam os cavaleiros templários escondido ali as arcas cheias de
dinheiro? Curiosamente, quanto mais descia, maior era a sensação de frio, ao
contrário do que ele sabia por leituras e até mesmo por experiência anterior, e
lamentava ter deixado seu sobretudo no jipe. Quando Michael já tinha
caminhado por quase meia hora, ele deparou-se com uma enorme rocha
encravada numa das paredes da caverna. O moço achou estranho aquilo e pôs-se
a iluminá-la com mais atenção. De súbito, seus olhos descobriram alguns sinais
entalhados na pedra, o que lhe encheu de entusiasmo. Ele apanhou um lenço em
seu bolso e, de maneira ansiosa, passou a limpar os sulcos da rocha, pois
estavam cobertos de poeira secular. Ao concluir a tarefa, foi tomado por um
assombro formidável. A figura esculpida na pedra era uma flor dourada,
lembrando muito os traços daquela que a dama de paus segurava nas cartas de
baralho!
Deus do céu! No mesmo instante, vieram-lhe à mente as palavras de
Jacques de Molay: “Encontrando a flor de ouro, acharás todo o tesouro”. Ou
estava completamente equivocado, ou a fabulosa fortuna templária jazia
escondida por trás daquela pedra imensa! Michael tentou removê-la do local,
mas foi a mesma coisa que empurrar uma montanha. No mínimo, seria
necessário um trator bem robusto para arrancá-la dali, mas isso era impossível.
Sem perder tempo, pois sabia que o guia ainda estaria esperando por ele,
regressou à superfície, pensando como removeria aquela rocha pesadíssima.
Conforme tinham combinado, Ahmet permanecia aguardando o retorno do
rapaz, debaixo da sombra de um daqueles rochedos cônicos, próximo ao carro.
Ao vê-lo saindo da caverna, abriu um sorriso aliviado no rosto moreno e
exclamou:
- Conseguiu achar o que procurava?
- É possível! Mas há um rochedo impedindo a entrada das pessoas. Vou
pensar em uma solução para o caso durante a noite e, amanhã, voltarei aqui logo
cedo.
- A propósito, onde você está hospedado?
- Em nenhum lugar. Ainda não tive tempo de ver isso...
- Se quiser, pode dormir em nossa casa. Não há luxo, mas é limpa e minha
família ficaria muito honrada em lhe acolher como hóspede.
- A honra é toda minha, meu bom amigo! Aceito com o maior prazer, mas
quero pagar por tudo que está me oferecendo.
Como o guia havia dito, a sua família demonstrou grande satisfação em
receber Michael em casa. Além de Ahmet, moravam ali a mãe, uma irmã mais
jovem e o velho pai, que trabalhava como mercador. Era um homem de um nível
cultural acima da média e, como viajava muito a negócios, aprendera a falar
diversas línguas. Ao ser apresentado ao rapaz, disse-lhe em inglês:
- Estou a seu dispor. Posso lhe vender qualquer coisa, desde um ovo de
Fabergé até um elefante indiano.
Michael apertou sua mão com um sorriso no rosto, agradeceu a gentileza e
respondeu gracejando:
- Obrigado! Quando eu precisar de um elefante, falarei com você.
Durante o jantar, o pai de Ahmet contou inúmeras histórias curiosas que
havia testemunhado em suas andanças pelo mundo. Tinha a palavra fácil e
narrava seus casos com tamanho interesse, que teria dado um excelente escritor,
caso tivesse se dedicado a isto. Após a refeição, ele sentou-se em uma cadeira na
varanda e pôs-se a fumar, observando a noite repleta de estrelas. Michael
aproximou-se do bom homem e disse:
- Talvez eu precise daquele elefante...
- O que você tem em mente? Inquiriu com certa curiosidade.
O rapaz explicou-lhe então que necessitava de um explosivo para arrebentar
uma pedra de uns dois metros de diâmetro.
- Acha impossível conseguir isto?
- Impossível não é, pois tenho muitos contatos e amigos. Depende de
quanto você quer pagar...
O pai de Michael era relativamente abastado e, ao falecer, deixou-lhe uma
boa quantidade de recursos financeiros, que ele podia acessar de seu notebook
através de programas bancários. Por isso, dinheiro não era problema para o
rapaz.
- Diga seu preço.
O velho turco apanhou o celular no bolso e deu três ou quatro telefonemas.
Como falava em sua língua natal, Michael não pôde compreender nada. A certa
altura, ele indagou:
- Para quando você precisa?
- Amanhã cedo... é caso de vida ou morte!
O sujeito voltou a falar ao telefone por alguns minutos, como se discutisse o
preço com o fornecedor. Depois, escreveu uns números num pedaço de papel e o
mostrou ao rapaz:
- O valor é esse! Pagamento apenas em dinheiro ao retirar a mercadoria.
Assim que viu a cifra, Michael fez um sinal de positivo. O pai de Ahmet
disse uma única palavra a seu fornecedor e desligou o celular. Ao se erguer da
cadeira, apertou a mão do jovem, selando o negócio. Em seguida, todos foram
dormir, pois precisavam acordar cedo.
Mal raiara o sol e Michael já se achava de pé. Após uma leve refeição,
pediu para Ahmet levá-lo até o banco internacional mais próximo, onde
apresentou seu cartão de crédito e retirou a importância combinada, pois, na
noite anterior, ele já tinha agendado o saque através do programa bancário
instalado em seu notebook. Ao regressar à casa do guia, o velho comerciante
veio ao encontro do rapaz, pois acabara de receber a sua encomenda. Tão logo
lhe entregou o pacote, disse:
- Veja lá o que vai fazer com isso... É explosivo plástico... Sabe como
manuseá-lo?
- Sei o necessário. Já li algo sobre explosivos...
Mesmo assim, o pai de Ahmet explicou-lhe cuidadosamente o que deveria
ser feito com o explosivo plástico. Em seguida, concluiu:
- Ouça-me, garoto! Não vá fazer nenhuma tolice com isto. Afinal, qual é a
sua ideia?
- Vou salvar a vida de minha namorada...
Sem perder um minuto sequer, Michael e Ahmet subiram no Jipe e
dirigiram-se à caverna, onde supostamente estava escondido o tesouro dos
cavaleiros templários. Quando chegaram ao local, o guia afirmou que
necessitava se ausentar por algum tempo. A sua mãe tinha acordado indisposta,
sentindo dores agudas no ventre e nas costas. Como aquele era o único
automóvel da família, ele precisava levá-la ao hospital.
- Volto o mais rápido que puder!
- Não há problema algum. Vá tranquilo, pois vou demorar algum tempo
aqui...
Antes de se despedirem, Michael apanhou a caixa com o arpéu, pois não a
quis deixar no carro como da outra vez. Se perdesse o forcado, teria poucas
chances de matar o demônio e sabia que, somente assim, evitaria as catástrofes
anunciadas no Apocalipse. Como na tarde anterior sentira frio dentro da caverna,
resolvera penetrar naquelas galerias subterrâneas vestindo o seu sobretudo,
embora a temperatura externa estivesse muito alta. Em uma das mãos, o rapaz
levava o forcado de Satanás e a sacola com os explosivos; na outra, segurava a
lanterna que comprara em Coimbra, com a qual ele ia iluminando os corredores
sinistros. A pasta, onde guardava seu notebook e os preciosos livros, ficara na
casa de Ahmet, pois não precisaria dela e tinha total confiança na família de seu
guia.
Ao chegar junto à enorme rocha, Michael preparou a bomba conforme as
orientações do velho mercador, colocando o explosivo plástico num local que lhe
pareceu bastante apropriado. Depois, introduziu nele o detonador e dirigiu-se a
um lugar seguro o suficiente para acionar a descarga elétrica que produziria a
explosão. Após persignar-se, o rapaz acionou o mecanismo e ouviu um estrondo
colossal, como se toda a caverna estivesse ruindo. A explosão foi tão fantástica e
violenta, que Michael acabou sendo arremessado no chão a uns cinco metros de
distância, pois o túnel funcionou como um gigantesco funil. Uma lasca de pedra
veio na direção dele, golpeando-lhe em cheio a parte traseira do pescoço. Para
sua sorte, antes de atingi-lo, ela ricocheteou nas paredes, perdendo a velocidade;
caso contrário, teria lhe perfurado a nuca como um tiro. Além do mais, a pedra
foi amortecida pela gola de seu sobretudo, que ficou toda manchada de sangue.
Após roçar a mão sobre o local atingido para ver a extensão do ferimento,
Michael tirou o sobretudo a fim de conferir se havia algum estrago e constatou
um rasgo na gola. Aborrecido, ele meteu seus dedos no buraco feito no tecido e
descobriu algo surpreendente. Na gola, achava-se preso uma pequenina pastilha,
menor do que uma bateria de relógio. De súbito, ele compreendeu o significado
daquilo e sentiu como se uma descarga elétrica percorresse todo o seu corpo. Tal
objeto era um rastreador e explicava como Macrino e seu comparsa sempre
sabiam onde ele estaria. Lembrava-se que, enquanto caminhava pela cidade de
Roma, ao sair do Vaticano, quando tentou mostrar ao papa os extraordinários
livros descobertos, um homem dera-lhe um encontrão na rua, seguido de alguns
tapinhas nas costas e pedidos de desculpas. Certamente, era alguém ligado à
igreja e seus fanáticos perseguidores, com a missão de colocar aquele rastreador
no sobretudo do rapaz. A cólera de Michael foi tamanha, que ele apanhou uma
pedra, esmagando o maldito aparelho feito uma barata.
Em seguida, dirigiu-se ansioso ao local da explosão. Havia muita poeira em
toda parte e a fumaça ali era tanta, que o rapaz mal conseguia respirar. Quando,
finalmente, ela assentou um pouco, pôde-se ver a rocha estraçalhada. Uma fenda
de tamanho bastante razoável fora aberta na parede, indicando que Michael tinha
razão, ou seja, existia de fato algo misterioso do outro lado. O seu peito agitava-
se convulso e sua respiração tornara-se difícil, como se ele tivesse acabado de
correr uma maratona. Em seu íntimo, sabia que, atrás daquelas paredes,
encontrava-se a última esperança para salvar a vida de Michele. Ele encheu-se
de coragem, fez o sinal-da-cruz e atravessou a abertura deixada pelos explosivos.
Ao pôr os pés lá dentro, Michael estacou, perplexo, excitado, boquiaberto.
Com sua lanterna, passou a iluminar o enorme recinto, o qual se achava
bastante escuro. Diante de seus olhos maravilhados, descortinou-se uma gruta
imensa, em cujo teto pendurava-se uma infinidade de estalactites. No centro da
caverna, a uns vinte metros de distância abaixo do local onde o rapaz estava,
existia uma espécie de cratera, repleta por uma quantidade gigantesca de moedas
de ouro! Era inacreditável! Ao contemplar a fortuna templária, Michael
permaneceu em êxtase, chorando e rindo ao mesmo tempo. Ele deu alguns
passos para o interior da gruta e iluminou melhor aquela fabulosa riqueza, que
brilhou com intensidade, emitindo cintilações douradas por todo o ambiente.
Quando caiu em si e certificou-se de que desvendara um dos maiores segredos
da humanidade, escondido dos homens há mais de setecentos anos, o rapaz
passou a tremer nervosamente. Embora desejasse revelar às autoridades turcas
que tinha achado o tesouro templário, ele precisava confiar a sua descoberta a
Macrino e seu comparsa, caso contrário, Michele seria morta. Na verdade, isto o
agoniava deveras, pois a sua sensação era de que estava traindo a Ordem.
Então, ele ergueu o facho de luz de sua lanterna e viu algo terrível,
deixando-o ainda mais impressionado. Numa das paredes, havia uma enorme
estátua simbolizando Satanás! Naquele momento, veio-lhe à mente um trecho do
diário onde Jacques de Molay revelava o grande temor de sua vida. Uma parcela
insignificante dos cavaleiros passara a adorar o demônio e o grão-mestre receava
que eles pudessem empregar algum ardil para enganar seus irmãos, apoderando-
se do tesouro. Porém, o próprio Jacques de Molay afirmava ter recebido a notícia
de que a imensa fortuna dos templários fora levada em segurança ao local
combinado. Mas como parecia óbvio ao rapaz, esses cavaleiros traidores e
execráveis encontravam-se infiltrados entre aqueles que tinham a missão de
esconder o tesouro na Capadócia. Talvez planejassem retornar ali para roubar
todo o dinheiro; contudo, por algum motivo obscuro, não o fizeram.
Subitamente, ele levou um susto violento ao ouvir uma voz roufenha atrás
de suas costas:
- Bom trabalho, Michael!
Surpreso, o jovem virou o pescoço e viu que Macrino lhe apontava uma
arma, ao lado de seu hediondo comparsa.
Tão logo os reconheceu, disse:
- Cumpri a minha promessa. Agora, entreguem-me Michele! Onde ela está?
O sujeito atarracado ajeitou a gravata, como se o nó estivesse incomodando
o seu pescoço curto, e respondeu:
- Se quer mesmo saber, digo-lhe que agora ela é vizinha de Julius
Polybius...
- Exato! E deve estar se sentindo como um gato preto! Acrescentou
Macrino.
Os dois riram da piada, contemplando com olhos gulosos aquela infinidade
de moedas de ouro, que cintilava na parte inferior da caverna, sob a luz das
lanternas. Depois, o mais baixo aproximou-se de Michael e concluiu:
- De qualquer forma, isto não tem mais importância alguma, pois você não
a verá novamente. Afinal, não podemos correr o risco de você sair por aí,
espalhando tudo o que viu. Porém, para provar a nossa gratidão, deixarei que
escolha a maneira como quer morrer, se com um tiro no peito ou na cabeça.
Agora, entregue-nos a lanterna, sim? Aqui está bastante escuro e nós só
trouxemos um pequeno farolete...
Naquele breve instante, milhares de pensamentos passaram a se atropelar
no cérebro do rapaz. A possibilidade da morte iminente infundia-lhe tamanho
terror, que sua face queimava como fogo e seus olhos vidraram. Então, tudo
terminaria daquela forma cruel? Jamais veria Michele outra vez e toda a sua
busca fora em vão?
Dominado por tais ideias, Michael estendeu seu braço para entregar a
lanterna ao bandido. Contudo, no momento em que este iria apanhá-la, o rapaz a
soltou de propósito, deixando-a cair pelo despenhadeiro até parar lá embaixo,
junto ao tesouro templário. No exato segundo em que o sujeito virou seu rosto a
fim de observar a lanterna rolando, Michael aplicou-lhe um tremendo chute na
mão, arremessando seu revólver sobre as moedas de ouro. Em seguida,
precipitou-se contra o adversário, segurando com os punhos cerrados a caixa de
papelão que continha o arpéu. A finalidade do rapaz era dar-lhe um golpe
certeiro na cabeça a fim de o derrubar lá embaixo, mas o malfeitor se defendeu
habilmente da manobra e os dois acabaram rolando engalfinhados pelo
precipício. Macrino tirou sua arma do paletó, porém, como estava escuro,
resolveu não atirar, pois temia atingir seu companheiro. Aflito e bastante ferido,
o jovem caiu sobre a fortuna do Templo e, assim que conseguiu se erguer, pôs-se
a fugir do assassino, enfiando seus calcanhares por entre as moedas.
Enquanto isso, Macrino desceu a ribanceira para ajudar seu cúmplice, mas
o fez com tão pouco jeito, que terminou tropeçando e despencou lá para baixo de
maneira nada elegante. Michael não pôde pegar o revólver, o qual caíra longe
dele; todavia, tão logo apanhou a caixa com o tridente mais a lanterna, saiu de
cima do tesouro da Ordem e se escondeu atrás de algumas paredes escuras, que
haviam sido escavadas. Após terem se levantado, os dois bandidos puseram-se a
atirar na direção onde o rapaz se ocultara, produzindo um barulho ensurdecedor,
pois a acústica ali dentro favorecia a propagação do eco. Para não ser
descoberto, Michael apagou a lanterna e mais nada pôde ser visto a não ser as
línguas de fogo na ponta do cano das armas, iluminando a caverna de maneira
lúgubre.
Pouco depois, as balas acabaram e tudo voltou ao silêncio. Só era possível
ouvir o ruído das moedas sendo pisadas pelos bandidos, caminhando sobre a
fortuna do Templo à procura do jovem. Enquanto permaneceu escondido,
Michael aproveitou para desembrulhar o forcado, pois era a única arma que
possuía. De repente, sem que nenhum dos dois esperasse, o rapaz saiu de seu
esconderijo e, tomado por um ódio supremo, como se um demônio enlouquecido
estivesse em seu corpo, pôs-se a correr na direção deles, carregando o arpéu
acima da cabeça, feito uma lança. Tamanha era a cólera do moço, que seus olhos
pareciam ter se convertido em dois maçaricos, cujas chamas irrompiam em
jorros impetuosos. Quando se aproximou o suficiente dos malfeitores, rilhando
dentes e cerrando as sobrancelhas, Michael arremessou o forcado na direção de
Macrino, empregando toda a força de seu braço. A sua vontade era cravar o
tridente no meio da testa daquele canalha sem palavra, que prometera libertar
Michele em troca do tesouro templário e agora desejava matá-lo. Tudo então se
passou muito rápido. O bandido teve apenas tempo de esquivar um pouco o
corpo, de modo que o arpéu passou triscando os seus cabelos untados com
gomalina e foi atingir em cheio o peito da estátua de Satanás numa das paredes
da caverna.
O que aconteceu em seguida foi algo inacreditável e extraordinário. Eles
passaram a ouvir uns ruídos aterrorizantes, como se ossos estivessem sendo
mastigados, traves estraçalhadas e engrenagens de ferro urrando à maneira de
leões feridos. De súbito, o piso começou a ceder e tudo foi puxado para baixo,
feito um turbilhão implacável. Como Michael se encontrava próximo à lateral
que bordejava a fortuna do Templo, ele conseguiu dar um pulo impressionante e
alcançou o chão firme da caverna, fora da cratera onde se amontoavam as
moedas. Macrino e seu comparsa não tiveram a mesma sorte, de modo que
foram engolidos por uma espécie de funil e desapareceram em poucos segundos,
suplicando socorro divino. Do local em que se achava, o rapaz contemplou cheio
de horror todo o tesouro da Ordem escorrer através do abismo aberto debaixo
dele, tragado pelas profundezas da terra. Ao acertar o peito da estátua de Satanás
com o arpéu, casualmente Michael acionou o sistema de segurança posto ali
pelos cavaleiros templários para impedir que sua fabulosa riqueza fosse parar em
mãos erradas.
Ele debruçou-se sobre o abismo e sentiu certa vertigem ao constatar que o
fosso gigantesco parecia não ter fim. De toda aquela fortuna, uma única moeda
fora salva, pois ficara presa às roupas do moço. Durante algum tempo, ele a
iluminou com sua lanterna, contemplando-a em silêncio, respeitosamente, como
se pedisse desculpas aos cavaleiros da Ordem. Então, ele percebeu que o forcado
de Satanás ainda estava oscilando no peito da estátua lá do outro lado daquele
enorme abismo que se abrira no chão da caverna. Teria o perdido para sempre?
Ele lançou a luz de sua lanterna nas paredes e percebeu que ainda restara uma
estreita borda ao redor do fosso. Com o máximo de cuidado, o rapaz espremeu-
se naquele caminho perigoso a fim de contornar a imensa cratera, até que
conseguiu alcançar a estátua, que parecia sorrir com escárnio para ele. Michael
agarrou o arpéu com as mãos trêmulas e o puxou na sua direção, certo de que
não corria o risco de perder o equilíbrio. Para seu alívio, o forcado saiu
facilmente. No mesmo instante, ele tratou de retornar, abraçando as paredes, até
que alcançou um local seguro. Então, lançou um último olhar para o abismo e
partiu.

A sétima torre

Ao sair da caverna, Michael viu que o guia já tinha retornado do hospital e


o estava aguardando no Jipe, à sombra de uma daquelas curiosas formações
fálicas. Embora ainda não fosse verão, o sol da manhã causticava o solo
abrasador e poucos turistas arriscavam-se a sair do conforto de seus automóveis
com ar-condicionado para bater fotografias e explorar a região. Assim que
Ahmet reconheceu o amigo, saltou do carro e dirigiu-se ao encontro dele,
dizendo:
- Achou o que procurava?
O rapaz pôs a mão no bolso de sua camisa, apanhando a moeda de ouro,
que fulgiu ao sol. Em seguida, respondeu:
- Eis o tesouro templário! Ou pelo menos parte do que sobrou dele...
Ahmet a tomou entre seus dedos e inquiriu, surpreso:
- Veio até aqui por causa de uma moeda?
- Vim para salvar a vida de minha garota! É uma história comprida e
complicada. Outra hora, conto-lhe com mais detalhes. Agora, preciso que me
leve de volta à sua casa, pois tenho de fazer uma pesquisa urgente em meu
notebook. Estou com um palpite terrível...
- Sobre o quê? Indagou Ahmet, devolvendo-lhe a moeda.
- Sobre o local onde minha namorada, Michele, está sendo mantida em
cativeiro. A propósito, sua mãe melhorou:
- Melhorou... o médico disse que foi apenas uma indigestão...
Não demoraram muito para chegar à casa de Ahmet. Michael ligou o
computador e digitou no Google o nome de “Julius Polybius”, pois os
sequestradores de Michele tinham lhe dito que agora ela era vizinha dele. Qual
serial o significado de tais palavras? Uma lista enorme com diversos sites
relacionados à sua pesquisa apareceu na tela. Ele clicou em um deles e ficou
sabendo que uma das residências mais famosas da cidade de Pompeia pertencera
a este Julius Polybius. Observando as diversas fotos, pôde notar que a velha
moradia ainda estava bastante conservada, justamente por ter sido coberta pelas
cinzas do Vesúvio. De súbito, sentiu como se uma bomba tivesse explodido
dentro de seu cérebro. Enfim, ele compreendera tudo! Não havia outra
explicação possível, aqueles bandidos tinham aprisionado Michele em algum
lugar de Pompeia! De alguma forma, eles a mantinham presa perto da casa de
Julius Polybius!
Tão logo concluiu isto, Michael ligou para o Aeroporto Internacional
Esenbodja, nas proximidades de Ankara, a fim de reservar uma passagem aérea
ainda naquele dia para Nápoles, a cidade grande mais próxima de Pompeia.
Infelizmente, não havia nenhum voo para Nápoles, muito menos para Pompeia,
embora ele poderia embarcar para Fiumicino, em Roma, na manhã seguinte.
Michael indagou se havia algum voo saindo para Paris e ficou sabendo que
alguns estavam programados para partir naquela tarde. Ele concluiu que sua
melhor escolha seria voar até o Aeroporto Internacional Charles De Gaulle, onde
seu carro permanecia estacionado e, de lá, seguir para a Itália tão rápido quanto
pudesse. Após juntar seus pertences, o rapaz despediu-se dos familiares de seu
guia, os quais haviam lhe acolhido tão bem. Em seguida, pediu para o amigo
levá-lo ao Aeroporto Internacional Esenbodja. Durante a viagem, contou-lhe
como Michele tinha sido sequestrada e o motivo pelo qual precisava achar o
tesouro dos templários, a fim de lhe salvar a vida, sem omitir o que havia
ocorrido com este mesmo tesouro e seus perseguidores implacáveis. Ao
chegarem ao aeroporto, Ahmet disse-lhe que pediria a Alá em suas preces para
que tudo desse certo e ele pudesse encontrar a namorada o mais rápido possível.
Embora os dois tivessem se conhecido há pouco tempo, fizeram uma amizade
fraterna e era como se fossem amigos desde crianças. No aeroporto, despediram-
se emocionados. Michael pagou-lhe os serviços, prometendo ao jovem um
retorno em breve para lhe apresentar Michele.
Desta vez, o rapaz não teve problemas com o forcado para embarcar no
avião. Antes de sair da caverna, ele havia apanhado a caixa de papelão e refizera
o embrulho na casa de Ahmet. No aeroporto, seu guia o ajudou a despachar o
pacote como bagagem, sem mencionar que se tratava de um artefato
arqueológico, pois as zelosas autoridades turcas jamais permitiriam a saída de
tais preciosidades. Ahmet lembrou-se, inclusive, de incluir a moeda de ouro no
embrulho, pois nunca ela passaria pela inspeção do aeroporto como um souvenir
barato.
O voo tinha previsão de chegada ao Aeroporto Internacional Charles De
Gaulle por volta das três horas da manhã, mas acabou aterrissando pouco antes
do horário. Como se achava bastante esgotado, o moço dormiu durante quase
toda a viagem, embora tivesse despertado para comer a refeição de costume
oferecida pelas empresas aéreas. De novo, ele precisou esperar ansiosamente
para apanhar a sua bagagem. O rapaz encontrou seu carro no estacionamento
sem qualquer problema, pagou pelo serviço e partiu aflito para Pompeia, pois
não queria perder um minuto sequer. Enquanto esteve pelas imediações da
capital francesa, permaneceu no limite da velocidade permitida, para não ser
detido pelos guardas rodoviários. Porém, ao alcançar a auto-estrada, ele pisou o
quanto pôde no acelerador, tanto que cumpriu o percurso até seu destino em
menos de doze horas, quando normalmente levaria quinze.
Após estacionar o carro e entrar na cidade, ficou maravilhado com todas
aquelas ruínas imponentes, testemunhas de uma época grandiosa que agora
existia apenas nos livros de história. Embora vivesse na Itália, Michael nunca
tivera a oportunidade de visitar Pompeia. Era algo que valia a pena ser visto e,
com toda certeza, ele passaria horas e mais horas ali, em agradável
entretenimento, se as circunstâncias fossem outras. Os escombros da cidade
produziam no espírito das pessoas uma curiosa impressão de deslumbramento e
angústia ao mesmo tempo. Contemplando os restos das construções destroçadas
pelo Vesúvio e as ruelas calçadas com pedras irregulares, onde outrora
caminharam felizes ou tristes seus pacatos moradores, tinha-se a nítida sensação
de que a vida era de fato bastante breve e, um dia, tudo haveria de acabar.
Não demorou muito para o rapaz se deparar com a casa de Julius Polybius.
Surpreendentemente, ela apresentava-se bem preservada, talvez por ter sofrido
reformas ao longo dos anos. Demonstrando um grande nervosismo, Michael
revistou a residência inteira, buscando algum porão ou sala escondida, sem
encontrar qualquer sinal da menina. Vasculhou com cuidado todos os quartos,
salas, jardins, corredores, átrio, sala de banhos, mas não descobriu Michele em
parte alguma. Depois, lembrou-se das palavras de seus sequestradores e concluiu
que ela não poderia mesmo estar naquela casa. Segundo lhe haviam dito, a
jovem era vizinha de Julius Polybius; portanto, deveria se achar presa em algum
local qualquer da vizinhança.
Por toda a tarde, ele entrou em uma infinidade de velhas moradias
existentes nas imediações daquela residência, chamando sempre pelo nome da
amada. A cidade já estava quase deserta, pois a noite começava a cair e a maioria
dos turistas tinha partido, no momento em que Michael penetrou numa pequena
casa no final da rua. Como o seu interior se encontrava um tanto escuro, ele
acendeu sua lanterna e pôs-se a procurar pela menina, bradando:
- Michele... Michele...
Infelizmente, também ali não a achou. Cansado e faminto, o moço
permaneceu imóvel por alguns segundos à porta daquele antigo lar romano. Do
outro lado da via, sobre as ruínas de um muro, uma coruja chirriava tristes
acordes de solidão, anunciando a noite plena de estrelas. Michael já ia embora,
disposto a pernoitar em um hotel das cercanias para prosseguir suas buscas na
manhã seguinte, quando pensou ter ouvido um ruído oco. Na verdade, lembrava
algo como uma leve pancada, mas tão fraca, que o rapaz ficou na dúvida se tinha
ouvido mesmo aquele barulho ou se ele não seria produto de sua imaginação.
Durante certo tempo, manteve os ouvidos atentos, escutando o silêncio
assustador da cidade morta. Até a coruja colaborou, calando sua voz tristonha.
De repente, ele ouviu outra vez um som abafado, cavo, como se algum cadáver
golpeasse sua tumba, tentando sair do túmulo. Alucinado pela aflição extrema,
gritou:
- Michele?...
E uma nova pancada pôde ser ouvida. Deus do céu! Aquilo já não era a sua
imaginação! Angustiado demais, Michael pôs-se a procurar outra vez pela
menina no interior da casa, tentando descobrir de onde provinham tais ruídos
misteriosos. Inquietava o rapaz o fato de que aquela residência não era grande e
ele já a revistara por dentro sem encontrar nada. Chegara mesmo a olhar por
cima dos muros remanescentes na esperança de talvez descobrir Michele
amarrada e amordaçada do lado de fora, mas tudo foi em vão. Porém, ao
observar de novo uma das salas, iluminando as paredes com mais cuidado, viu
algo extraordinário, que até então não havia percebido. Curiosamente, aquela
casa ainda apresentava as paredes internas rebocadas com cimento. Agora, o
mais espantoso, é que uma delas exibia marcas de cimento fresco!
De repente, Michael lembrou-se das palavras ditas por Macrino a respeito
de Michele: ela “deve estar se sentindo como um gato preto!” Então, com os
olhos embebidos em sangue, finalmente compreendera toda a tragédia. Naquele
momento, a sua dor foi tão intensa, que ele teve a sensação de que haviam
lançado as suas vísceras dentro de um liquidificador. O gato preto... o maldito
estava se referindo ao conto O gato preto de Edgar Allan Poe! Por Cristo! Era
inacreditável, mas aquela ideia execranda poderia ser verdadeira: como o
desditoso felino, Michele teria sido emparedada por aqueles bandidos
miseráveis...
Transtornado, o rapaz dirigiu-se ao local e bateu três vezes sobre o cimento
fresco com seu punho, ouvindo uma resposta débil, mas que foi o suficiente para
lhe confirmar o juízo. Ele passou a golpear a parede com os pés, tentando
demoli-la, mas não obteve sucesso algum. Logo se convenceu de que não
conseguiria atingir o seu intento daquela maneira. Seria necessário arranjar uma
boa marreta para pôr abaixo a parede, mas onde obter uma ali em Pompeia? Sem
perder tempo, Michael seguiu até a rua a fim de procurar algo que lhe pudesse
servir de aríete. Por sorte, encontrou um galho bastante robusto e resistente,
porém não muito pesado, partido de alguma árvore por uma tempestade ou posto
ali de propósito pela providência. Tão logo o teve nas mãos, regressou para
libertar Michele daquele cárcere infame. Como a menina já deveria se achar ali
há algum tempo, com toda certeza ela estaria caída no chão. Por isso, decidiu
bater na parte mais alta do cimento fresco, pois assim a chance de acertá-la seria
menor.
Com a primeira pancada, toda a parede estremeceu, dando a impressão de
que a velha casa iria ruir. Sem se importar com o barulho produzido pelo forte
golpe, que poderia atrair alguns guardas da segurança até ali, e decidido a deitar
a residência inteira abaixo se preciso fosse, Michael apanhou o robusto galho
com as duas mãos, levou-o atrás das costas a fim de dar maior embalo e desferiu
um golpe violentíssimo, sentindo uma lasca da madeira entrar em um de seus
dedos. O sangue verteu por entre eles, mas o moço não fez caso disso, pois
conseguira atingir o seu objetivo. O galho abrira um rombo na parede,
atravessando-a como uma seta lançada por uma besta em uma maçã. Temendo
ferir Michele com os escombros e demonstrando uma força que ele mesmo não
acreditava possuir, Michael passou a empregar o galho como uma alavanca,
empurrando-o para cima e de lado, pois desejava que a parede desmoronasse
para a frente e não sobre sua namorada. Em pouco tempo, a parede ruiu e uma
chuva de tijolos recém-assentados e fragmentos de cimento desabaram sobre ele,
que foi rápido o suficiente e saltou para trás, evitando ser esmagado.
Ao ver Michele caída no meio dos escombros, mas viva, Michael
experimentou uma sensação inexplicável e bastante curiosa, que misturava uma
alegria sublime a uma dor esmagadora. Ficara feliz demais por ter encontrado a
menina, mas padecia enormemente só de imaginar o quanto ela sofrera naquele
cativeiro. Com extrema delicadeza, o rapaz a retirou dentre os destroços da
parede, segurando-a nos braços. Michele estava tão fraca, que não conseguiu
dizer uma única palavra, limitando-se apenas a esboçar no rosto um sorriso
dolorido. Ele pôs um beijo carinhoso na testa da jovem e exclamou:
- Prometo-lhe que você vai se recuperar, meu amor!
Ao dizer isso, Michael a carregou no colo até o carro e saiu à procura de
ajuda. Em menos de trinta minutos, chegaram à cidade de Nápoles, onde lhes foi
indicado um hospital. Assim que lá entrou, puseram Michele imediatamente
numa maca e a conduziram através de uns corredores para a sala de emergência,
enquanto o rapaz permaneceu preenchendo uma ficha na recepção. Algum
tempo depois, vieram lhe dizer que a garota estava bem, mas passaria a noite ali
para observação, e que ele retornasse no dia seguinte. Como estava bastante
ansioso e não queria mais ficar longe da namorada, Michael preferiu aguardar lá
mesmo. Sentando-se em uma poltrona, apanhou uma revista de variedades e a
leu sem o menor interesse, apenas para matar o tempo. Então, lembrou-se de ir
ao banheiro para se lavar um pouco e sacudir o pó das roupas, pois ainda se
encontrava coberto de poeira. Razoavelmente mais limpo, retornou para sua
poltrona e ali permaneceu, apenas conseguindo adormecer por volta das duas
horas da madrugada, ao desligarem algumas luzes da sala de recepção.
No dia seguinte, acordou assim que começaram a chegar os primeiros
pacientes. Sentia-se cansado e com um pouco de dores nas costas, pois não
conseguira se ajeitar em uma boa posição na poltrona. Após ter ido ao banheiro,
pediu informações sobre Michele a uma das moças na recepção e ficou sabendo
que ela estava bem. A garota permanecia recebendo soro fisiológico e os
resultados de seus exames eram bons, pois ela achava-se apenas desidratada.
Tudo não passara de um susto e, possivelmente, receberia alta naquela mesma
tarde. Esta notícia deixou Michael aliviado. Como visitas não eram permitidas
durante a parte da manhã na enfermaria em que ela descansava, o rapaz decidiu
comer alguma coisa e passear pela cidade de Nápoles, enquanto aguardava a alta
médica.
Ele tomou um café da manhã reforçado numa trattoria ali nas proximidades
e permaneceu caminhando pelas ruas da cidade de Nápoles apenas para passar o
tempo. Quando se apresentou outra vez na recepção do hospital, disseram-lhe
que Michele já poderia partir e foram buscá-la. Ao ver o namorado, os olhos da
menina encheram-se de lágrimas, bem como os dele, e ela pôs-se a chorar de
felicidade. Os dois se abraçaram e se beijaram por longo tempo, até que Michael
proferiu:
- Graças a Deus, este pesadelo acabou!
- Pensei que nunca mais tornaria a ver você...
- Não diga isso! Agora, ficaremos juntos para sempre!
Saindo do hospital, eles caminharam até o carro. Michael abriu a porta do
passageiro e ajudou sua namorada a entrar e sentar. A garota protestou com um
sorriso nos olhos, dizendo que nada daquilo era necessário, pois já se sentia bem,
embora tenha aceitado a gentileza de qualquer maneira. Em seguida, dirigiram-
se para a cidade de Roma. Durante a viagem, o moço contou-lhe tudo o que
havia acontecido desde o sequestro dela. Disse-lhe como tinha encontrado mais
uma pista dos templários na catedral de Saint Etienne de Bourges e também que
viajara até a Turquia, onde descobrira a fortuna da Ordem. Infelizmente, o
tesouro perdera-se, engolido por um precipício imenso. Já Macrino e seu
comparsa estavam agora mortos...
- Você os matou?
- Não tive culpa. O chão cedeu e eles foram tragados junto das moedas.
Assim que chegaram a Roma, instalaram-se em um hotel da cidade. Eles
descansaram um pouco no quarto e, depois, desceram de elevador, retornando
para o carro. Diante do automóvel, o moço pronunciou com certo orgulho:
- Contei-lhe tudo que me aconteceu nestes últimos dias. Só não lhe disse
que achei mais uma coisa na cripta de Saint Etienne...
- Pois diga! Interrogou a menina tomada pela curiosidade.
- Veja você mesma!
Ele dirigiu-se até a parte de trás do automóvel e levantou a tampa do porta-
malas. Em seguida, apanhando o pacote com arpéu de Satanás, abriu-o e bradou:
- Reconhece isso?
Ao ver o tridente demoníaco brilhar ao sol, os olhos de Michele
arregalaram-se assombrados. Era possível que aquilo fosse verdade? Estupefata,
sem conseguir pronunciar uma única palavra, a jovem encostou de leve a sua
mão no forcado, como se tocasse as vestes de um santo. Depois, ela retirou os
dedos de súbito, feito alguém que tivesse tomado um choque elétrico, esperou
um instante para recuperar o fôlego, e disse simplesmente:
- Isto me dá arrepios, Michael...
- Não tema. Precisaremos dele para matar o demônio!
À noite, jantaram no quarto, pois Michele ainda estava um pouco cansada e
preferiu não sair. Apesar de tudo, achava-se bastante feliz, rindo de qualquer
frase mais espirituosa que o moço dissesse. A certa altura, perguntou:
- Então, quer dizer que agora nos resta descobrir apenas uma pista para
encontrarmos o local onde o demônio está encarcerado?
- Exatamente! E esta última pista foi deixada pelos cavaleiros templários
aqui mesmo em Roma, no Panteão de Agripa...
- Como você sabe disso?
- Porque, desta vez, os autores do Malleus Maleficarum foram bastante
claros a respeito desta torre.
Ao dizer tais palavras, Michael apanhou um pedaço de papel no bolso da
camisa e leu em voz alta a tradução que fizera:

“Eleva-se a sétima torre no templo de todos os deuses, na cidade das sete


colinas.”

Após a leitura, explicou para a menina que a “cidade das sete colinas” só
poderia ser Roma, como também é conhecida, e que o “templo de todos os
deuses” certamente seria o Panteão de Agripa, dedicado às divindades romanas.
- E o que diz a trovinha de Jacques de Molay?
- Não parece das mais difíceis de ser interpretada. Ouça:

“Às três horas, brilhará


Farta luz sobre o telhado,
Cujo facho indicará
O local tão desejado.”

Quando acabou de ler e guardar outra vez o pedaço de papel em seu bolso,
o rapaz explicou que, no alto da cúpula do Panteão, existe uma abertura para o
céu, conhecida como óculo. Talvez o grão-mestre estivesse querendo dizer que,
às três horas da tarde, um facho de luz solar atravessa o óculo e incide
exatamente sobre a pista deixada pelos templários.
No dia seguinte, Michael e Michele acordaram tarde e custaram a levantar
da cama. Tão logo tomaram banho, dirigiram-se ao restaurante do hotel e
almoçaram. Depois, seguiram ao Panteão de Agripa.
Como Michele nunca havia estado ali, ficou impressionada com aquele
monumento formidável e quis saber o significado das inscrições no frontão do
edifício[11]. O moço explicou-lhe que tais palavras indicavam justamente que o
Panteão tinha sido construído pelo cônsul Agripa. Eles atravessaram o pórtico
com suas exuberantes colunas e entraram no interior do antigo templo. Nenhuma
outra construção romana chegou aos dias atuais melhor conservada. As enormes
portas de bronze e o piso de mármore ainda são os mesmos da época do
imperador Adriano, que reconstruiu o edifício após pavoroso incêndio. Ali se
encontram enterradas algumas ilustres personalidades italianas, como o pintor
Rafael e os reis Vítor Emanuel II e Humberto I. No século VII, o Panteão foi
convertido em igreja cristã, fato que ajudou a poupá-lo do vandalismo
desenfreado que grassou contra as edificações romanas durante o início da Idade
Média.
Como ainda faltava algum tempo até as três horas, Michael e Michele
aproveitaram para conhecer melhor o Panteão de Agripa. Ficaram deslumbrados
com a suntuosidade de seu interior, repleto de mármores magníficos, belíssimas
colunas e uma cúpula extraordinária, que deixava qualquer um de queixo caído.
Sobre alguns nichos, onde certamente existiram altares dedicados aos deuses
romanos, o rapaz identificou cruzes templárias, mas não achou letra alguma que
pudesse ser a pista deixada pelos cavaleiros da Ordem.
Quando eles entraram no Panteão, o facho de luz solar que atravessava o
óculo estava incidindo sobre uma parte do piso de mármore. Com o passar do
tempo, de acordo com o movimento do sol no céu, o feixe luminoso foi
mudando lentamente de posição, indo em direção às paredes. De cinco em cinco
minutos, Michael olhava para aquele foco de luz, cheio de impaciência,
procurando adivinhar qual local ele iluminaria no horário estipulado. O medo do
rapaz era que o tempo mudasse de uma hora para outra e, a todo instante, saía à
rua a fim de ver se existiam nuvens ameaçadoras no céu. Às três horas da tarde,
o facho de luz incidiu de maneira precisa sobre as gigantescas portas de bronze
do Panteão.
Michael e Michele dirigiram-se até a entrada e passaram a observar o local
com cuidado, procurando descobrir qualquer marca suspeita, que pudesse ter
sido posta ali pelos templários. Duas enormes folhas de portas, com mais de sete
metros de altura, guardavam aquele monumento. Uma delas encontrava-se
fechada, enquanto a outra, que dava acesso ao público, permanecia aberta,
dificultando a visualização da sua parte de trás, pois se mantinha encostada à
parede. Durante uns quinze minutos, eles esquadrinharam atentamente as velhas
portas de bronze, até que Michele disse:
- Repare bem... lá em cima, junto ao canto direito da porta, há algumas
leves saliências...
O rapaz fitou o trecho indicado e respondeu:
- Você tem razão... existem mesmo tênues marcas em relevo, mas daqui não
consigo ver direito o que representam...
- E aquele binóculo que utilizamos no Castelo de Almourol, não está no
porta-luvas do carro?
- Está... mas, espere! Como sou distraído! Você me deu uma ideia tão
simples...
Ao proferir tal frase, Michael apanhou sua máquina fotográfica num dos
bolsos de seu sobretudo. Assim que enquadrou aquelas saliências quase
imperceptíveis, deu todo o zoom permitido pela câmera e bateu uma foto.
Depois, ajeitou o visor da máquina a fim de observar a imagem obtida, dizendo:
- Cruze os dedos!
Para surpresa dos dois, havia ali uma cruz templária por baixo de uma letra
T.
Michael e Michele contemplaram-se em silêncio, certos de que agora
possuíam todas as peças daquele misterioso quebra-cabeça, espalhado pelos
cavaleiros da Ordem em cada uma das sete torres do demônio. Eufórico, o moço
abraçou a namorada e deu-lhe um ardoroso beijo na boca, chegando mesmo a
causar certo constrangimento em alguns turistas que se achavam ali perto. Por
fim, ele bradou:
- Precisamos comemorar! Que tal tomarmos um sorvete?
- Acho uma excelente ideia!
Após deixarem o Panteão, entraram no carro e puseram-se a rodar sem
rumo pelas ruas de Roma. Michael estava deveras excitado e nem encontrava
palavras para exprimir a sua felicidade. Dentro de seu cérebro, começaram a se
desenrolar todos os acontecimentos ocorridos em sua vida desde a descoberta da
fabulosa biblioteca dos templários. Era como se um filme estivesse sendo
passado de trás para diante. Quanto mais pensava em tudo isso, mais se
convencia de que o destino da humanidade dependia dele. Agora que se achava
tão próximo de desvendar um dos maiores segredos de todos os tempos, o local
onde Satanás permanecia preso, recordava-se também de Abelardo e Celestino,
os quais haviam pago com suas vidas para que aquela busca aparentemente
absurda pudesse alcançar o fim desejado. A morte deles não teria sido em vão e
Michael faria todo o possível para impedir a fuga do demônio.
Como estavam com sorte, encontraram uma vaga na área central de Roma.
Estacionaram o carro e entraram em um McDonald’s. Poucas pessoas estavam
dentro da lanchonete naquele horário e apenas um sujeito fazia o pedido na
frente deles. Era um tipo roliço como uma barrica, vestindo uma camisa bastante
florida e usando uns curiosos óculos escuros com armação rosa. Porém, o que
mais chamou a atenção de Michael e Michele foi o insólito pedido do dito-cujo:
- Por gentileza, quero um Big Mac, um sanduíche de peito de peru, um
Quarterão com queijo, um Cheddar McMelt, um Big Tasty, uma porção de
batata-frita das grandes, um Super McShake e um Sundae de chocolate.
- Mais alguma coisa? Perguntou a mocinha diante do caixa.
- Ah, e uma Coca... diet!
O distinto frisou bem a última palavra, como se a escolha daquele
refrigerante fosse suficiente para compensar todas as calorias que ele iria ingerir.
Michele precisou virar-se de costas, a fim de esconder seu rosto, pois não
conseguiu conter o riso. Depois, pediram dois copos de sorvetes e subiram ao
segundo andar, onde havia inúmeras mesas disponíveis.
Eles sentaram-se junto a uma janela e ficaram conversando sobre os mais
variados assuntos, enquanto saboreavam seus deliciosos sorvetes. Ao acabar,
Michael apanhou sua máquina fotográfica e, observando as imagens das pistas
templárias, pôs-se a copiar as letras em um guardanapo. Assim que terminou de
fazer isto, disse:
- Bem, então vejamos... Temos as letras S, E, P, T, V e R. Além delas,
descobrimos também uma cruz de prata e uma velha corrente. Por mais que eu
medite a respeito deste enigma, acabo sempre voltando àquela ideia inicial. Há
uma boa probabilidade de que tais letras se refiram a alguma palavra latina como
“sepulcretum”, “sepulcrum”, ou “sepultura”. A própria letra V, encontrada no
Castelo de Almourol, não deve significar o número cinco, conforme
imaginávamos. Na verdade, ela não é uma letra “V”, mas uma letra “U”, pois era
assim a representação do “U” grafado pelos romanos, muito mais fácil de
entalhar na pedra, sem a curva debaixo. Você sabe, no latim clássico não existia
distinção entre letras maiúsculas e minúsculas. A letra “U” foi acrescida mais
tarde para o latim eclesiástico, bem como a letra “J”, que os romanos grafavam
“I”. Portanto, teríamos a forma “SEPTUR”, que lembra bastante “sepultura”.
Além disso, possuímos também a cruz de prata, para confirmar ainda mais tal
hipótese...
- É uma ideia bastante plausível, mas ela não resolve o nosso problema. Em
qual sepultura você acha que o demônio estaria preso? Já descartamos o túmulo
de Cristo...
- Não faço a menor ideia...
- Apesar de lógica, essa conclusão me parece muito vaga. Por que os
templários teriam tanto trabalho para ser tão imprecisos?
- Para dizer a verdade, também não estou cem por cento convencido de que
o diabo se acha preso numa sepultura. Algo não está certo! Preciso refletir com
mais calma sobre o assunto, analisar os possíveis anagramas formados por tais
letras.
Depois que saíram da lanchonete, eles dirigiram-se a uma papelaria, onde o
rapaz pediu para imprimir cópias coloridas de todas as fotos tiradas em cada uma
das sete torres do demônio. Em seguida, pagaram pelo serviço, apanharam o
envelope com as cópias e retornaram ao hotel.
Após terem comido uma pizza no quarto, Michele ficou vendo televisão,
enquanto que Michael, sentado na cama, observava as fotografias com as letras
escondidas pelos templários, meditando a respeito daquele mistério
aparentemente insolúvel. Utilizando o controle remoto, a menina já havia
sintonizado todos os canais, sem se decidir por nenhum, até que, enfim, optou
por assistir a um noticiário noturno. Boa parte do programa dedicava-se a
analisar o pavoroso terremoto que chocara o mundo inteiro, matando milhares de
pessoas na Índia e deixando desabrigada uma multidão incontável de homens e
mulheres, velhos e crianças, os quais estavam padecendo todo tipo de privações.
Por acaso, um dos entrevistados era Beato Simão. Com seu olhar cada vez mais
desvairado, ele afirmou que tudo isto não passava dos terríveis sinais previstos
no Apocalipse, anunciando o fim dos tempos. Segundo suas próprias previsões,
ainda naquele mês de abril, o demônio seria libertado pela besta apocalíptica do
cativeiro onde se achava.
Ao ouvir aquelas palavras, Michael teve um lampejo, uma ideia repentina,
como se uma centelha fulgurante iluminasse as regiões obscuras de seu cérebro.
Lembrava-se de ter lido, em alguns versos de Nostradamus, qualquer coisa a
respeito de um espantoso terremoto que iria acontecer num mês de abril. Estaria
o velho adivinho se referindo ao final do mundo e, portanto, à libertação do
demônio? Além disso, não seria possível que o notável profeta francês, o qual
tantas previsões acertara, também não tivesse dito algo em suas quadras a
respeito do local onde Satanás se achava aprisionado?
Tão logo chegou a esta conclusão, o moço ligou seu computador e pôs-se a
reler atentamente as Centúrias de Nostradamus. Ele possuía o livro gravado em
formato e-book, de maneira que encontrou com facilidade algumas palavras-
chaves. Durante horas, Michael permaneceu concentrado naquela leitura,
procurando descobrir qualquer pista sutil deixada pelo profeta. Já passava de
meia-noite e meia, quando Michele resolveu ir se deitar, pois estava caindo de
sono e não havia mais nada que prestasse na televisão. O rapaz apagou a luz do
quarto, levou o computador até o outro lado, para a claridade emitida pela tela
não atrapalhar o sono da menina, e continuou empenhado em sua tarefa.
Às quatro horas da manhã, Michele acordou terrivelmente assustada com os
gritos do namorado. A sua primeira ideia foi imaginar que as almas de Macrino e
seu comparsa tinham fugido das catacumbas infernais e ali compareciam para se
vingarem deles. Depois, deitou fora tal hipótese por achá-la absurda e pensou
que estavam sendo assaltados. Apenas percebeu que não corriam risco algum, ao
contemplar o rosto radiante de Michael. Eufórico e deslumbrado, como se
acabasse de retornar do próprio paraíso, ele agarrou os braços da jovem e
bradou:
- Consegui, Michele! Finalmente consegui!!!
- O que você conseguiu? Fale de uma vez por todas!
- Consegui decifrar o enigma templário!
A menina o fitou admirada, pôs uma das mãos sobre os seios arfantes e
indagou:
- Descobriu onde Lúcifer está preso?
- Exato! Já não tenho mais dúvida alguma!
Durante vários segundos, Michele não disse palavra, como se procurasse
entender o que estava acontecendo. Depois, abraçou-se ao rapaz, pedindo para
Michael se acalmar, pois ele se encontrava muito ansioso, e quis saber mais
detalhes sobre a impressionante descoberta do namorado.
Ele apanhou a mão dela e, conduzindo-a até a mesinha onde se achavam
seu notebook e as fotografias das pistas deixadas pelos templários nas sete torres
do demônio, exclamou radiante:
- Venha ver! Estou tão excitado, que minha alma parece que vai mergulhar
do alto de uma cordilheira!
- Como solucionou o enigma?
- Com a ajuda de Nostradamus. Ontem à noite, ao ouvir a notícia sobre o
catastrófico terremoto ocorrido na Índia, lembrei-me que eu já lera tal previsão
em uma das Centúrias do ilustre francês. Imaginei que esta profecia estivesse se
referindo aos sinais apocalípticos que anunciariam o fim do mundo, conforme
afirmou o próprio Beato Simão, baseando-se em inúmeros textos proféticos
escritos antes mesmo do nascimento de Cristo. Portanto, existia uma boa
possibilidade de Nostradamus estar aludindo não apenas aos terríveis flagelos
reservados aos homens nos últimos tempos, mas também à fuga de Satanás, uma
vez que tudo isto estaria ligado de maneira intrínseca, segundo o Apocalipse.
- Faz certo sentido!
- Mais do que você imagina! Até agora estou assombrado com as palavras
de Nostradamus. Veja o que ele diz nestes versos extraordinários:

Centúria VI - Quadra 66

“Na fundação da nova seita,


Os ossos do grande Romano serão encontrados;
Um sepulcro coberto de mármore aparecerá,
A terra irá tremer em abril, mal enterrada.”

Após escutar os versos, Michele confessou que não tinha entendido nada. A
linguagem lhe parecia por demais enigmática e, à primeira vista, não apresentava
qualquer relação com o final dos tempos. A menina ajeitou seus longos cabelos
negros sobre um dos ombros e disse:
- E o que ele quer dizer?
- Esta quadra está se referindo ao local onde Satanás se encontra
aprisionado!
- Mas como você chegou a esta conclusão? Indagou Michele ainda sem
compreender.
- É exatamente o que lhe digo. E ainda há mais. Não só informa de maneira
precisa o lugar da prisão do demônio, como também dá a data de sua fuga...
- Explique logo, Michael, estou ficando aflita...
- É simples, veja... Na primeira linha, Nostradamus está aludindo a uma
“nova seita”, ou seja, o cristianismo. Aos olhos dos judeus contemporâneos dos
primeiros cristãos, e até mesmo dos romanos, o cristianismo seria uma “nova
seita”. Certamente, o sábio profeta francês tinha isto em mente ao escrever tal
verso. Em seguida, acrescenta que “os ossos do grande Romano” serão
descobertos na “fundação da nova seita”, isto é, da nova igreja. Onde você
imagina que se localiza esta fundação, as bases, os alicerces de toda a
cristandade?
- No Vaticano?
- Exato. Mais precisamente, na Basílica de São Pedro...
- E aí estariam enterrados os “ossos do grande Romano”, num “sepulcro
coberto de mármore”...
- É isto mesmo, Michele! O “grande Romano” em questão só pode ser um
papa enterrado na igreja e vários deles permanecem sepultados ali. O resto da
quadra é bastante claro e indica a época em que Satanás seria posto em
liberdade, ou seja, depois de um terremoto ocorrido no mês de abril...
A menina coçou de leve a cabeça, como se ainda não tivesse compreendido
onde Michael queria chegar com aquela ideia um tanto maluca, e indagou:
- Mas, afinal, o que isso tudo quer dizer?
- Ainda não percebeu? O demônio se acha aprisionado debaixo da Basílica
de São Pedro! E imagino que o acesso a este local se dê através da tumba de
algum papa...
Embora aquela hipótese se mostrasse bastante fantasiosa, não deixava de
ser também muito sedutora. Michele caminhou até o outro lado do quarto,
meditando em silêncio, pois ainda não estava totalmente convencida a respeito
daquela teoria fantástica. Depois, fitando os olhos do namorado, disse:
- Mas isso não confirma nada! São apenas suposições, indícios...
- Até concordaria com você, se não fossem as outras provas que atestam de
maneira irrefutável a veracidade de minhas suposições. Por exemplo, os números
da quadra e da centúria dados por Nostradamus a estes versos...
- Que relação pode ter isso com o final dos tempos?
- Não vê? Trata-se da centúria VI, quadra 66, ou seja, perfaz o número da
besta, 666. O atilado profeta era astuto, gostava de esconder as coisas dentro das
coisas e não deu esta numeração a tais versos por acaso, mas de maneira bastante
consciente. Não tenho a menor dúvida de que ele também quis fazer uma alusão
à besta apocalíptica!
Aquelas palavras do rapaz deixaram Michele estarrecida. A conclusão dele
era, de fato, impressionante e não havia a menor possibilidade de ser
coincidência. Assim que recuperou o fôlego, disse simplesmente:
- Estou pasma!
- E tem mais! Toda esta minha teoria é comprovada pelas pistas escondidas
pelos cavaleiros da Ordem, que encontramos nas sete torres do demônio.
- A tal palavra “SEPTUR” do anagrama templário?
- Correto! Na verdade, a palavra não significa “sepultura” como
pensávamos, ou pelo menos não possui apenas esta interpretação, embora
Satanás permaneça na tumba do “grande Romano”...
- E qual é o significado do anagrama?
As fotos estavam dispostas na mesa, ao lado da cruz de prata, formando a
palavra “SEPTUR”. Michael passou a rearranjá-las em outra ordem, dizendo:
- Repare que todas as pistas deixadas pelos cavaleiros apresentam a cruz
templária sobre a respectiva letra, exceto aquela descoberta no Panteão de
Agripa, onde, curiosamente, vê-se o símbolo da Ordem embaixo da letra T. Por
que eles teriam feito isso?
- Não faço a mínima ideia! Respondeu a jovem.
- Porque, na verdade, não se trata de uma letra T. Virando-a de cabeça para
baixo, de modo que todas as cruzes templárias fiquem alinhadas, temos uma cruz
invertida!
- Estou vendo... e qual o significado disso?
- Preste atenção, Michele! A cruz de prata, que achamos na Torre de
Hércules e pensávamos que pudesse indicar algum cemitério, também apresenta
a forma de uma letra T. Mudando a ordem das pistas e acrescentando a cruz de
prata como se fosse uma letra, temos a seguinte palavra:
A menina contemplou o novo vocábulo horrorizada e com a respiração
ofegante. Ao cabo de alguns segundos, exclamou:
- Pedro!
- Exatamente! São Pedro! Por isto a cruz invertida, pois foi como o
crucificaram, uma vez que o grande apóstolo não se julgava digno de morrer
feito Jesus! Tudo se encaixa, Michele, tudo agora está claro demais! De acordo
com Nostradamus e conforme revelam as pistas dos templários, o demônio se
encontra aprisionado debaixo da Basílica de São Pedro!

Epílogo

Nenhum dos dois conseguiu dormir bem o restante da noite. Estavam


ansiosos demais em virtude de todas aquelas descobertas formidáveis e
contavam os minutos para a manhã raiar. Mal haviam despontado as primeiras
cintilações pálidas do sol e Michele já se encontrava de pé, banhada e
perfumada. A sua vontade era ir imediatamente à Basílica, mas o rapaz lhe disse
que ela não se achava aberta de manhã cedo; além disso, teria de comprar um
revólver primeiro. Embora soubesse que a melhor maneira para se matar o
demônio era cravando-lhe o arpéu em seu peito, conforme informava o Malleus
Maleficarum, Michael não queria facilitar. Lembrava-se da conversa que tivera,
certa vez, com Celestino. Segundo o velho amigo, o diabo confessara a uma
bruxa que poderia ser morto, caso fosse ferido no coração por uma bala de aço,
mergulhada em água benta e feita a partir de um crucifixo abençoado pelo papa.
Michael aproveitou para também tomar uma ducha logo cedo. Enquanto se
ensaboava, ia pensando no único detalhe que não havia se encaixado na sua
engenhosa solução do enigma templário. Na Torre de Hércules, além da cruz de
prata, eles tinham descoberto dentro do estojo uma velha corrente enferrujada.
Com toda certeza, existia alguma intenção para os Pobres Cavaleiros de Cristo
terem procedido assim. Qual o significado desta corrente é o que o rapaz não
conseguia descobrir.
Após ter saído do banho, o moço ligou para a recepção do hotel, solicitando
uma lista telefônica atualizada, pois sabia que elas ainda se achavam disponíveis
na Itália. Pouco depois, um jovem bateu na porta do quarto e lhe entregou o
pedido, dizendo que retornaria para buscá-la mais tarde, pois era o único
exemplar do hotel. Michael deu-lhe uma gorjeta e agradeceu. Depois, sem perder
tempo, ele sentou-se na cama e pôs-se a procurar o telefone de lojas que
vendiam armas de fogo. Em uma de suas ligações, deram-lhe o endereço de um
armeiro, o qual morava nos subúrbios de Roma e possuía o equipamento
necessário para fabricar as balas que o rapaz desejava. Ele anotou os dados num
caderninho e partiu para lá, acompanhado de Michele.
Todavia, não foi fácil descobrir a casa do armeiro. A rua estava correta, mas
não o número da casa e eles tiveram de pedir informações para diversas pessoas
na vizinhança. Michele já parecia bastante aborrecida, quando, finalmente,
encontraram alguém que conhecia o armeiro e sabia seu endereço correto. O
homem morava num pardieiro imundo, num bairro pobre da periferia. Muita
gente desocupada permanecia na frente de suas residências, observando o
movimento da rua, enquanto crianças maltrapilhas corriam de um lado ao outro,
brincando felizes. Tão logo bateram à porta indicada, surgiu um velho baixo e
magro, usando uma boina escura e vestindo roupas bastante sujas de graxa. Ao
vê-lo, Michael apresentou-se e disse:
- Preciso que me faça balas de revólver com isto!
Ele apanhou um crucifixo pendurado em seu pescoço, deu-lhe um beijo
cheio de respeito e o entregou ao sujeito. Era uma antiga cruz feita de aço. Sua
mãe lhe dera aquele presente, quando ele decidira entrar para o convento de
Santa Maria delle Grazie. O próprio papa João Paulo II havia benzido o
crucifixo, numa cerimônia realizada na Basílica de São Pedro. O armeiro tomou
em suas mãos o objeto, abriu um sorriso calamitoso, onde se viam uns restos de
dentes em cacos, e proferiu:
- Santa Maria! É até um pecado estragar um artefato tão bonito...
- Pode fazer o serviço? Necessito das balas com a máxima urgência...
O armeiro respondeu com certo orgulho:
- Amigo, você veio ao lugar certo. Aço precisa de altas temperaturas para
ser fundido e nem todo mundo pode fazer isto por você. Eu, sim, pois tenho um
forno excelente. Só que ele leva horas para aquecer e consome muita
eletricidade. Tem certeza que pode pagar por isto?
- Dinheiro não é problema, mas tempo é. Quando posso apanhar as balas?
- Passe depois do almoço, que sua encomenda estará pronta. Mas eu preciso
que você me traga o revólver, para eu fazer os ajustes necessários.
Michael confessou que ainda não havia comprado a arma. O sujeito
balançou a cabeça e aproveitou para lhe dar o preço de seu serviço. Embora o
número fosse exorbitante, o rapaz concordou sem pestanejar, pois não tinha
outra alternativa. O armeiro disse que iria começar o trabalho imediatamente e
indagou:
- Qual calibre deseja?
- Trinta e oito.
Os dois despediram-se do velho e partiram. Como ainda havia certo tempo
até o horário combinado, Michael resolveu voltar ao centro da cidade para
adquirir uma arma. Preferiu dirigir-se a uma casa de penhores, onde nenhuma
burocracia atrapalharia a transação. Ele verificou se a arma estava lubrificada e
em perfeitas condições de uso, pagou o preço sem regatear e voltou para seu
carro, onde Michele permaneceu aguardando. Depois, ficaram fazendo hora,
passeando pelas praças de Roma, observando algumas fontes belíssimas, como a
magnífica Fontana di Trevi, onde Michele jogou uma moeda na água e fez um
pedido que não quis revelar. Em seguida, entraram numa trattoria para comer
alguma coisa. Ao terminarem a refeição, enfrentaram outra vez o tráfego
engarrafado de Roma para retornar à casa do armeiro. O velho pediu a arma,
examinou-a com certo desdém e se trancou dentro de sua oficina. Cerca de
quinze minutos ou um pouco mais, o sujeito retornou com um pequeno pacote e
o entregou em uma das mãos de Michael, dizendo enquanto se coçava:
- Aqui estão elas. O metal do crucifixo foi suficiente para fazer apenas
quatro balas. Mas ficaram bem ajustadas, melhor do que eu esperava...
- Não precisarei mais do que isso. Aqui tem o dinheiro. Adeus.
Assim que o moço guardou o pacote num bolso interno de seu sobretudo,
eles entraram no automóvel e partiram para a basílica. Em menos de quarenta
minutos, chegaram ao Vaticano. Michael deixou o carro em um estacionamento
ali perto e os dois atravessaram a pé a Via della Conciliazione, que levava à
monumental Praça de São Pedro. Enquanto caminhavam por esta via construída
a pedido de Mussolini, podiam observar ao longe, sobre a fachada do principal
templo da cristandade, a majestosa cúpula edificada pelo gênio de Bernini. Tal
visão produzia arrepios até mesmo nas pessoas que não professavam a fé cristã.
Eles enfrentaram longas filas para entrar na basílica, seguiram pelo lado direito e
logo se depararam com uma das mais belas esculturas já produzidas pelo
engenho humano: a Pietà de Michelangelo.
Durante alguns minutos, Michael permaneceu deslumbrado, contemplando
através da espessa proteção de vidro à prova de balas aquela obra-prima
incomparável, onde a mãe de Cristo segura no colo seu filho morto. Em uma tira
delgada que cruza os seios da Virgem, o notável artista havia entalhado a sua
assinatura, a única conhecida em todos os seus trabalhos. Como o moço parecia
em êxtase diante da escultura, Michele acabou por puxá-lo de lado pela manga
de seu sobretudo.
- Vamos! Não estamos aqui para isso...
Pouco depois, em parte protegido de olhares curiosos pelo corpo de
Michele, Michael rasgou o pacote de papel e molhou discretamente a ponta das
balas em uma pia com água benta, colocando-as de forma prudente no tambor do
revólver. Estava pronto! Agora, era descobrir o local onde o demônio se achava
aprisionado...
Enquanto ele procurava o possível acesso aos subsolos da basílica ou
mesmo às famosas Grutas do Vaticano, localizadas debaixo do templo, que
também lhe parecia um dos prováveis locais para descobrir o cativeiro de
Satanás, caminhando com o forcado demoníaco oculto debaixo de seu sobretudo,
Michael ia meditando a respeito do real motivo que levou os templários a
prender o diabo sob aquela igreja. Na verdade, a atual Basílica de São Pedro fora
edificada no mesmo lugar onde o imperador Constantino mandara construir, por
volta do ano 300 d.C., um templo cristão. Portanto, quando os cavaleiros da
Ordem encarceraram o príncipe das trevas, já existia ali um santuário dedicado à
memória de São Pedro. Durante séculos, a igreja alegou que o sítio escolhido
para a construção da basílica era solo abençoado, pois havia recebido o corpo do
grande apóstolo. Agora, porém, Michael começava a duvidar dessa verdade.
Talvez ela tenha sido construída naquele local específico não apenas pelo
fato de que ali São Pedro fora sepultado, mas porque a alta cúpula da igreja sabia
da prisão de Satanás sob o primitivo santuário. Certamente, apenas o papa e
raríssimos cardeais conheciam tal segredo. Temendo que outros diabretes
descobrissem o cativeiro de seu líder e resolvessem libertá-lo, decidiram erguer
sobre o cárcere demoníaco um templo suntuoso, acima de qualquer suspeita, a
fim de intimidar os súditos de Lúcifer a vir procurá-lo justamente na mais
famosa casa de Deus.
De súbito, uma ideia passou pela mente do rapaz. E se o acesso aos
subterrâneos secretos da basílica, que supostamente levaria ao cárcere do
demônio - e não às bem conhecidas grutas onde se encontram os túmulos papais
- estivesse sob o baldaquino, com suas retorcidas colunas salomônicas? Sem
dúvida alguma, aquele era um dos locais mais sagrados da igreja. Michael e
Michele dirigiram-se até lá e permaneceram por certo tempo contemplando a
obra. Construído nas primeiras décadas do século XVII pelo grande artista Gian
Lorenzo Bernini, o baldaquino é uma espécie de imenso dossel, sustentado por
quatro colunas retorcidas, que recobre o trono papal. Encontra-se exatamente sob
a cúpula e dizem que foi feito com o bronze retirado do Panteão por ordem de
Urbano VIII.
Pouco depois, o moço caminhou até a estátua de São Pedro, localizada
perto do baldaquino, no lado direito da nave. Nesta representação, o apóstolo
está sentado em seu trono, trazendo na mão esquerda as chaves do céu. Com a
destra erguida na altura do peito, ele abençoa os peregrinos, tendo dois dedos
estendidos, simbolizando a natureza divina e humana de Cristo, enquanto que os
outros três permanecem unidos, representando a Santíssima Trindade. Michael
aproximou-se dele e lhe beijou o pé, um gesto repetido por fiéis de todas as
épocas. Em seguida, fez uma prece silenciosa e pediu a sua intercessão junto a
Deus, para que tudo terminasse da melhor forma possível.
Michael e Michele já se encontravam dentro da Basílica de São Pedro há
algumas horas e, como ainda não tinham visto o túmulo de nenhum papa,
resolveram se informar com alguém. Um turista simpático, acompanhado de sua
esposa, disselhes que os túmulos dos papas ficavam nas Grutas, mas o acesso só
era permitido em situações especiais, com autorização do Camerlengo e, ainda
assim, na companhia de um padre.
- Agora, se quiser ver um belo túmulo de papa, vá visitar a Basílica de San
Pietro in Vincoli, onde se encontra sepultado o papa Júlio II.
- Que igreja você disse? Indagou o rapaz, um tanto atônito.
- A Basílica de São Pedro Acorrentado. Fica em Roma e não no Vaticano,
próximo à Universidade de La Sapienza.
Ao ouvir tais palavras, Michael teve um choque e tornou-se pálido. Deus do
céu, havia se esquecido da Basílica de São Pedro Acorrentado! Bastou que o
bom homem lhe dissesse o nome dela, para que a última peça daquele quebra-
cabeça se encaixasse. O rapaz olhou para Michele, que parecia não estar
entendendo nada. Depois, disse:
- Meu amigo, muito obrigado pela ajuda. Só agora me dei conta de algo
realmente extraordinário. Desculpe a pressa, mas precisamos ir. Adeus.
E puxando Michele pelo braço:
- Venha comigo!
A menina estranhou aquela pressa repentina e inquiriu:
- O que aconteceu?
- Estamos no lugar errado, Michele! O demônio não se encontra aqui no
Vaticano, debaixo da Basílica de São Pedro, como nós imaginávamos, mas na
Basílica de San Pietro in Vincoli em Roma! O nome significa São Pedro
Acorrentado e foi por isso que os templários colocaram uma velha corrente no
baú que descobrimos na quarta torre.
A garota parecia totalmente desconcertada, mas não se opôs à conclusão do
namorado. Assim que deixaram a igreja, Michael pôde falar mais abertamente:
- É o elo que faltava neste intricado mistério e agora tudo se encaixa com
perfeição. As pistas escondidas pelos templários nas sete torres não deixam
qualquer margem a dúvidas. Eu é que me precipitei, concluindo que o demônio
permanecia preso sob a Basílica de São Pedro, o templo mais famoso, quando
eles, na verdade, agrilhoaram-no nos subsolos da Basílica de San Pietro in
Vincoli. Já estive lá algumas vezes e sei que se trata de um templo muito antigo.
O nome de São Pedro Acorrentado originou-se do fato de se encontrar nesta
igreja as correntes que haviam mantido São Pedro preso na prisão. E veja como
os templários foram sutis: simbolicamente, as cadeias que mantiveram
encarcerado o apóstolo se prestariam também para prender Satanás...
Após terem apanhado o automóvel no estacionamento, Michael e Michele
dirigiram-se para a Basílica de San Pietro in Vincoli. Afortunadamente, não
encontraram nenhum engarrafamento pelo caminho. Já era quase o final da tarde
e, após subirem as escadas, encontraram ali poucos turistas. Dentro da basílica, o
altar estava sendo preparado para a missa das dezoito horas. Eles ficaram
impressionados com o tamanho das estátuas dos apóstolos metidos em nichos ao
redor da nave. A construção do templo fora iniciada no ano de 431 e, certamente,
o que mais chamava a atenção em seu interior era o túmulo do papa Júlio II, com
o magnífico Moisés esculpido por Michelangelo, entre outras estátuas menores e
arabescos que os discípulos do mestre tinham realizado sob a sua supervisão.
O rapaz disse à namorada que precisavam encontrar um local onde
pudessem se esconder, pois não poderiam realizar as investigações que
pretendiam na frente de outras pessoas. Discretamente, entraram por uma porta
ao fundo da igreja, que deveria dar na sacristia ou na capela e, num dos
corredores, acabaram encontrando um sacristão que lhes perguntou:
- O que desejam?
Michael pensou rápido:
- Minha esposa precisa ir ao banheiro com urgência.
O homem encarou-lhes por alguns instantes com certa insatisfação, ajeitou
os óculos sobre o nariz e disse:
- Fica lá ao fundo. Mas não demorem, pois esta área não é aberta ao
público.
O sacristão caminhou para a nave, desaparecendo através da porta por onde
eles haviam entrado. Michael e Michele encontraram diversas salinhas e
resolveram entrar em uma delas, após confirmarem que se achava vazia. Ali
deveria ser uma espécie de almoxarifado, pois parecia um depósito de papéis
velhos, além de outros objetos, tais como velas, livros e santos de barro. O
ambiente estava razoavelmente escuro, pois eles não tinham acendido as luzes.
Temendo que o sacristão pudesse retornar ou alguém mais entrasse naquela sala
de uma hora para outra, Michael sugeriu que se escondessem no único local que
lhe pareceu mais seguro, ou seja, debaixo de uma escrivaninha de madeira.
Ajeitaram-se como foi possível e permaneceram aguardando por longo tempo
até a missa terminar. A certa altura, ouviram as portas batendo e sendo trancadas.
Depois, escutaram algumas vozes muito baixas e mais nada. Era como se uma
enorme manta de silêncio tivesse sido estendida sobre a basílica, fazendo
adormecer até mesmo as gigantescas estátuas dos apóstolos. Para evitar qualquer
risco de serem surpreendidos, Michael e Michele continuaram em seu
esconderijo por mais quatro ou cinco horas. Já era madrugada, quando saíram
dali, camuflados pela escuridão que inundava todo o templo. Lentamente,
ocultando-se atrás das colunas e caminhando em bicos de pés, temendo que
aparecesse algum segurança noturno, os dois seguiram até o túmulo do papa
Júlio II, com a intenção de analisá-lo com cuidado, pois Michael sabia que ali,
de alguma forma, encontrava-se a passagem que daria acesso ao cativeiro de
Satanás nos subsolos da basílica.
O rapaz acendeu sua pequenina lanterna e eles puseram-se a contemplar
aquela sepultura. Todo o conjunto era bastante harmonioso, com suas estátuas
imponentes e belos ornamentos talhados no mármore. Todavia, sem a menor
sombra de dúvida, o que mais chamava a atenção das pessoas era a majestosa
estátua de Moisés, esculpida por Michelangelo. Sentado, tendo o olhar distante,
o condutor do povo hebreu acaricia a vasta barba com dedos distraídos, trazendo
debaixo dos braços as duas tábuas com os Dez Mandamentos. Ao admirar aquela
obra magnífica, subitamente, o rapaz observou algo de que não se lembrava.
Sobre a cabeça de Moisés, Michelangelo colocara dois chifres como os do
demônio!
Por alguns instantes, Michael manteve-se estático, aterrorizado. Estaria
vendo direito? Aquilo não seria uma espécie de ilusão de ótica? Em vez de
chifres, tais protuberâncias não poderiam ser cachos de cabelo do velho
patriarca? Com toda atenção, ele contemplou a estátua por diversos ângulos.
Definitivamente, eram chifres mesmo! Para confirmar o seu juízo, o moço
apanhou Michele pelo braço e lhe disse, apontando o facho de sua lanterna para
aqueles detalhes:
- Veja! O que é isto na cabeça de Moisés?
A menina contraiu seu semblante de maneira curiosa e respondeu:
- Chifres! Dois chifres, como os de Lúcifer!
Somente então, Michael se lembrou que havia lido há muito tempo algo
sobre a facies cornuta de Moisés. Alguns estudiosos entendiam que São
Jerônimo se equivocara na tradução de certa passagem da Bíblia, vertida por ele
ao latim e que ficou conhecida como Vulgata. Em vez de “raios de luz”, ele
traduziu determinado termo ligado ao velho patriarca por “cornos”. Ciente deste
fato, Michelangelo sentiu-se à vontade para esculpir os tais chifres sobre a
cabeça de Moisés, tendo a certeza de que nenhum de seus empregadores o
repreenderia por isso; afinal, tinha o respaldo de um dos doutores da igreja.
Para Michael, agora tudo fazia sentido, tudo estava claro demais em sua
mente. Michelangelo sabia que Satanás se achava preso nos subsolos da igreja
de São Pedro Acorrentado e, empregando tal artifício, quis indicar à posteridade
que, exatamente naquele túmulo, encontrava-se o acesso ao cárcere demoníaco.
De alguma maneira, ele descobriu que Satanás se achava preso sob San
Pietro in Vincoli. Encarregado pela construção, ou pelo menos a supervisão do
túmulo de Júlio II, Michelangelo estava bastante familiarizado com as galerias
subterrâneas, catacumbas sombrias e passagens secretas da igreja. Certamente,
em seu projeto, haviam lhe pedido para incluir um acesso às instalações do
subsolo e sua mente curiosa quis saber o motivo. Em um dia qualquer, enquanto
examinava os subterrâneos da edificação, para lhe conferir a estabilidade ou algo
assim, deparou-se com o demônio preso em seu cárcere. Por alguns instantes, o
maior homem de seu tempo esteve frente a frente com Satanás, que o tentou
seduzir, prometendo realizar qualquer um de seus desejos, caso abrisse as portas
daquela cadeia. Suplantando a tentação, o notável artista percebeu a gravidade
de sua descoberta e levou imediatamente o caso ao conhecimento das
autoridades eclesiásticas. Para sua surpresa, obrigaram-no a jurar que jamais
tocaria naquele assunto com pessoa alguma, sob pena de ser denunciado como
herético e queimado em praça pública. Cheio de indignação e sem alternativa,
Michelangelo obedeceu; porém, genial como era, deixou sugerido que ali, sob
uma de suas obras mais extraordinárias, achava-se a entrada que dava acesso ao
cárcere do diabo.
Ao chegar a esta conclusão, Michael explicou tudo para a namorada,
dizendo:
- Agora, mais do que nunca, tenho absoluta certeza de que existe uma
passagem secreta por baixo do túmulo de Júlio II. Precisamos descobri-la...
Michael passou a iluminar todas as suas frestas e cantos escuros, onde
poderia existir alguma alavanca escondida, que acionasse um sistema mecânico
qualquer ou mesmo hidráulico, dando acesso à passagem secreta. Ele pulou o
baixo gradil, o qual servia para manter o público afastado daquela obra de arte, e
pôs-se a procurar atrás das estátuas, que ornavam a tumba de Júlio II. Chegou
mesmo a erguer Michele sobre seus ombros, para ela examinar a parte mais alta
do sepulcro, onde havia outras quatro estátuas; contudo, também ali parecia não
existir nada suspeito.
Como costumava acontecer nos filmes de Hollywood, eles empurraram,
forçaram e apertaram tudo que pudesse ser um botão secreto; todavia, ao
contrário dos mocinhos do cinema, não obtiveram qualquer resultado. Nenhuma
porta se abriu misteriosamente, nenhum alçapão surgiu do nada, exibindo um
buraco escancarado e sombrio. O rapaz já estava temendo pelo pior, ou seja, que
precisaria destruir o túmulo de Júlio II para encontrar a passagem secreta,
quando Michele lhe disse:
- Talvez o segredo esteja nestas alavancas...
- Que alavancas?
- Estas junto às estátuas...
Era verdade. No primeiro nível da tumba, sobre bases quadrangulares
ricamente trabalhadas, ao lado das três estátuas ali existentes, incluindo a
escultura de Moisés, viam-se quatro volutas, curiosos ornamentos que
lembravam bastante o formato de alavancas. Michael as contemplou surpreso,
perplexo por não ter pensado nisso antes. Talvez Michelangelo as tenha posto de
propósito naquela sepultura, para acionar algum mecanismo oculto e dar
passagem às secretas galerias subterrâneas da igreja.
Dominado por esta ideia, o moço passou a examinar atenciosamente as
volutas, pois não acreditava que seriam apenas elementos decorativos. Com seu
punho fechado, deu diversas pancadinhas em todas, procurando ouvir se alguma
emitia som diferente. Não notou nada estranho. Uma única coisa chamou a
atenção do rapaz. Enquanto três destes ornamentos se achavam encostados à
parede revestida de mármore que existia ali atrás, o quarto parecia estar
ligeiramente afastado dela. Embora fosse um detalhe bastante insignificante à
primeira vista, Michael disse:
- Em minha opinião, este é o mais suspeito de todos.
- Por quê?
- Me arranje um fio de seus cabelos...
A menina obedeceu, entregando-o ao jovem, após ter arrancado um deles.
Michael tentou passá-lo por trás dos três ornamentos como um fio dental, mas
não conseguiu realizar o seu objetivo, pois se encontravam unidos ao mármore.
Porém, quando repetiu a operação no último, aquele suspeito, o fio passou com
enorme facilidade. Segurando a lanterna para iluminar o local, Michele indagou
ao ver aquilo:
- E o que isto significa?
- Veja! Esta voluta foi posta intencionalmente um pouco distante da parede,
o que não ocorre com as outras. Pode ser uma simples coincidência, mas
também pode existir alguma explicação para tal fato.
Michael apanhou a lanterna e iluminou melhor aquela parte do túmulo de
Júlio II, observando com cuidado o referido ornamento. Era exatamente o que
ficava à direita da estátua de Moisés, ao alcance de sua mão. Contemplando a
base quadrangular que sustentava a suposta alavanca, o rapaz notou um detalhe
surpreendente. Havia ali alguns relevos curiosos, trabalhados no mármore,
representando figuras simbólicas. Uma delas tinha a aparência de uma entidade
demoníaca, com chifres recurvados e expressão bastante angustiada. Como
possuía a boca aberta e vazada no mármore, dava a impressão de que tal ser
monstruoso emitia um grito lancinante de horror. Michael achou estranho aquele
orifício, lembrando uma espécie de fechadura. Ao iluminar o interior da
misteriosa boca, disse assombrado:
- Michele, me dê dois clipes!
A jovem apanhou a lanterna das mãos do rapaz e, durante alguns segundos,
vasculhou a sua bolsa com dedos ágeis. Depois, respondeu:
- Não tenho! Só encontrei estes grampos de cabelo, não sei se servem...
- Terão que servir...
O moço os tomou entre seus dedos, abriu um pouco as hastes de metal e
pediu para a namorada iluminar o orifício. Em seguida, meteu-os ali dentro e
ficou girando os grampos de um lado ao outro feito um chaveiro habilidoso ou
um arrombador experiente. Em dado momento, ouviram um estalo seco, como se
algo tivesse se destravado, e Michael foi ver o que havia acontecido. Para sua
surpresa, aquela voluta suspeita deslocara-se um pouco do local onde se apoiava.
Ele subiu no patamar, junto à estátua de Moisés, e bradou:
- Torça para que eu esteja certo!
Dizendo isto, Michael agarrou a alavanca com as duas mãos e a puxou
fortemente para baixo. Ela inclinou-se sem arrebentar e uns ruídos cavos e
medonhos puderam ser ouvidos embaixo da escultura entalhada por
Michelangelo. Então, como se fosse um milagre, a estátua de Moisés moveu-se
alguns centímetros para trás, revelando debaixo dela a tão desejada passagem
secreta!
Com os olhos estupefatos, Michael e Michele contemplaram aquela
sombria abertura aos pés do velho patriarca. Ele tinha recuado tão pouco, que a
menina afirmou ser impossível alguém descer por ali. Michael atirou o facho de
luz de sua lanterna dentro do poço escuro e os dois puderam ver que uma escada
tenebrosa conduzia os destemidos provavelmente a alguma espécie de masmorra
funérea. Apesar de todo esforço, não conseguiram ver os últimos degraus, os
quais se perdiam na vasta escuridão. O rapaz sorriu para Michele e disse:
- Vamos?
Ele entregou a lanterna mais o forcado para a namorada e concluiu que
seria possível passar seu corpo pela abertura. Então, encheu-se de coragem e
começou a se espremer por aquela cavidade estreita. Após algum esforço,
segurando-se apenas com os braços na borda da sombria passagem, o rapaz
observou que seus pés estavam próximos ao patamar mais alto da escadaria e
deixou seu corpo cair sobre a laje de pedra. Em seguida, ele virou-se para
apanhar a lanterna mais o forcado e ajudar Michele a descer. A garota sentou-se
à beira do buraco, meteu as pernas dentro dele e escorregou seu corpo, sendo
amparada pelos braços do rapaz. Tão logo se abraçaram pelo sucesso obtido,
começaram a descer aquela escada de pedra, escura e íngreme. Michael seguia
na frente, carregando a lanterna e o arpéu. Como os degraus estavam bastante
escorregadios em virtude da umidade, os dois avançavam devagar, com o
máximo cuidado. Mesmo assim, a certa altura, um dos pés de Michele resvalou,
de maneira que ela perdeu o equilíbrio e teve de se apoiar nas costas do moço
para não cair. Por muito pouco, os dois não despencaram lá de cima,
protagonizando uma tragédia fatal.
Como as escadas pareciam não ter fim, Michael começou a acreditar que
eles se defrontariam com o demônio no próprio inferno. Para aumentar seus
problemas, a luz de sua lanterna apagou de repente, como se soprada pelo vento,
talvez porque não houvesse mais carga nas pilhas. Ele deu algumas pancadinhas
nela com o tridente, mas não conseguiu fazer com que acendesse outra vez.
Guardou-a no bolso da calça e seguiu adiante, caminhando com o braço
esquerdo estendido na frente do rosto, segurando o arpéu, e a mão direita
apoiando-se na parede úmida e escorregadia, rezando para não tropeçar em nada,
pois a escuridão era absoluta.
Enfim, após uma longa descida, os degraus terminaram e eles puseram-se a
caminhar por uma espécie de cripta. Além de muito gelada e úmida, aquela
masmorra exalava um odor fétido de mofo. O rapaz havia acabado de dizer a
Michele que seria difícil encontrar o demônio em tal escuridão, quando ouviu
uma voz chamando seu nome:
- Michael...
De repente, inúmeras tochas penduradas nas paredes se acenderam,
deitando uma infinidade de sombras fantasmagóricas pelo interior daquele
aterrorizante calabouço. Assustadas, algumas ratazanas peludas cruzaram
ligeiras na frente dos invasores, procurando se esconder em suas tocas. Michael
não se lembrava de já ter estado mais apavorado em toda sua vida e se achava
tão ofegante, que só conseguia respirar com a boca aberta. Empunhando o arpéu
na mão esquerda e seu revólver na destra, que ele apanhara num dos bolsos por
prudência, o moço pôs-se a caminhar na direção daquela voz mansa, que lhe
parecia tão familiar. Quando parou um instante a fim de melhor ouvir de onde
ela provinha, reparou que, pouco à frente, existia um cárcere com inúmeras
barras de ferro encravadas na rocha. Neste exato momento, viu um braço saindo
de lá, estendido em sua direção...
Michael dirigiu-se para aquele local e constatou terrificado que ali se
encontrava o seu amigo morto, o próprio frei Abelardo! Durante alguns
segundos, o rapaz sentiu uma vertigem atroz, como se tivessem lhe cravado um
prego no meio do cérebro. Só não foi ao chão, porque largou o arpéu e o
revólver, os quais caíram atrás dele, e agarrou-se a uma barra de ferro da cela.
Em seguida, o preso segurou-lhe uma das mãos e disse:
- Michael, como é bom revê-lo! Por favor, ajude-me a sair daqui...
Horrorizado, ele tirou imediatamente sua mão de onde estava e permaneceu
contemplando seu interlocutor com os olhos intumescidos por um ódio
gigantesco. Tão logo se recuperou da tontura e conseguiu se acalmar um pouco,
bradou cheio de desprezo:
- Quem você pensa que engana? Seu verme imundo!
- Mais respeito, bastardinho de padre! Se eu quiser, arranco seu coração
pelo rabo e o espremo ainda pulsando entre minhas unhas, como se fosse uma
pulga...
- Você não fará nada disso! Sei muito bem que seu poder emana do arpéu e,
longe dele, pouco pode realizar! Por isso, não consegue sequer sair deste cárcere
execrável...
Ao dizer tais palavras, Michael agachou-se para apanhar o revólver. No
mesmo instante, o demônio esticou diversas vezes sua perna entre as grades de
ferro, procurando alcançar o forcado, mas não atingiu seu intento. Ele enfureceu-
se com o insucesso e ordenou de maneira incisiva:
- Entregue-me o arpéu, Michael!
O moço deu um chute no tridente, que foi cair ainda mais longe, e
respondeu:
- Jamais! Não percebe como a sua situação é lamentável? Parece um
cachorro faminto que lhe tiraram o osso... Onde está a sua decantada realeza?
Onde estão os seus súditos infernais, que não vêm acudi-lo?
- Michael, “o meu Reino não é deste mundo; se o meu Reino fosse deste
mundo, os meus guardas...”
Assim que ouviu aquela frase, o rapaz berrou apoplético:
- Blasfêmia! Não ouse pôr na boca as santas palavras do Filho de Deus, seu
porco degenerado!
- Abra as portas desta cadeia, Michael! Não adianta lutar contra o que está
escrito. Você veio aqui para restituir a minha liberdade. Arrebente este cadeado e
farei de você o rei da terra. Todas as forças do mal lhe servirão...
- Fique sabendo que eu vim aqui para matá-lo e acabar com o mal de uma
vez...
A boca de frei Abelardo abriu-se de uma maneira macabra e o demônio deu
uma gargalhada infernal, que ecoou por toda a cripta. Depois, respondeu de
modo resoluto, encarando fixamente o moço:
- Não diga tolices! O mal não acaba com a minha morte, assim como uma
fruta continua apodrecendo, se lhe arrancam a parte apodrecida. Tudo faz parte
do plano divino, inclusive o mal...
- Já disse para não blasfemar! Se tudo está escrito, como você diz, por que
se deixou prender pelos templários e, antes disso, pelos essênios? Não previu
nada disso?
Demonstrando certa impaciência, o demônio replicou:
- Leia as escrituras! Lá se encontra redigido com todas as letras. O meu
reinado na terra somente começará após eu ter permanecido um longo período na
prisão. Por isso precisei passar por este cativeiro...
- As suas palavras não me convencem. Além do mais, você não sairá daqui
em hipótese alguma...
Michael fitou Michele, que continuava calada, aguardando o desfecho
daquela conversa. Então, ele tomou coragem e decidiu por um fim naquilo tudo,
curvando-se para apanhar o arpéu, que havia caído a alguma distância. Assim
que retornou para cravá-lo no peito do demônio, percebeu que este havia
desaparecido. O rapaz aproximou-se das barras de ferro, sem compreender, e
pôs-se a vasculhar a cela vazia. Subitamente, surgiu uma mulher lindíssima por
trás das grades e envolveu o jovem com seus braços embriagadores. Trazia os
cabelos radiantes espalhados de maneira selvagem sobre os ombros meio
desnudos e seu corpo apresentava curvas tão entorpecentes que homem algum
podia deixar de desejá-la. As suas vestes eram leves e translúcidas como a mais
fina seda já tecida e o aroma exalado por sua pele causava inveja às flores mais
perfumadas. Ela encostou-lhe os seios túrgidos por entre as barras de ferro e o
rapaz sentiu o seu corpo inteiro incendiar ao toque daquelas carnes tenras e
macias. Depois, aproximando os lábios apetitosos da orelha direita do moço,
sussurrou com voz sedutora:
- Abra a porta, Michael...
Durante alguns segundos, ele permaneceu em silêncio, como se tivesse sido
enfeitiçado por tamanha beleza. Em seguida, contemplando os primorosos olhos
negros da jovem, que pareciam espelhar os mistérios dos abismos profundos,
respondeu com voz um tanto insegura:
- Não posso...
Ela pôs um de seus dedos sobre a face do rapaz, roçando de leve a sua pele
e, fazendo um trejeito lindo, disse:
- Abra a porta, meu amor, e descubra prazeres que jamais sonhou desfrutar
em toda a sua vida...
Michael apanhou em suas mãos trementes o velho cadeado comido por
ferrugem e sentiu uma gota de suor lhe escorrer do alto das costas à base das
nádegas. Parecia que tinha um vulcão explodindo dentro do peito e lava
esguichando por todas as artérias. O calor delicioso emanado pelo corpo daquela
mulher estupenda turvava-lhe o pensamento e seduzia até mesmo as pedras
insensíveis. O rapaz lutou com todas as forças que possuía para se dominar.
Então, respirou fundo e, tornando a si, cuspiu no rosto da garota, bradando:
- Morra, Satanás!
O cuspe pareceu corroer o belo rosto da jovem e, no mesmo instante, ela se
transformou num monstro horrendo. Empurrando Michael violentamente com
suas patas, urrou com voz cavernosa:
- Vai pagar por isto, inseto insignificante!
A pancada foi tão forte, que o moço caiu a uns três metros de distância. Ao
levantar-se, pegou o arpéu e, espumando um ódio infinito pela boca, disse
furibundo:
- Chegou a sua hora, criatura execranda!
Ele partiu com o forcado em riste, decidido a matar o demônio de uma vez
por todas. Porém, quando se aproximou das grades da cela, viu que o maldito
havia se transformado nele próprio!
Ao observar a si mesmo no interior da cadeia, Michael experimentou um
sentimento curioso e bastante desagradável. Assim que se reconheceu, estacou
perplexo, sem saber direito como agir. O diabo começou a gritar e sua voz foi
ficando mais aguda e irritante, até atingir a completa estridência:
- Dê-me o arpéu, Michael... dê-me o arpéu...
Depois, pôs-se a falar grave, como um disco de setenta e oito rotações
girando lentamente numa vitrola:
- Dá o arpéu aí... dá o arpéu aí...
Era uma voz medonha, que ecoava por toda a cripta e parecia verter das
próprias paredes. Como o rapaz permanecia sem ação, Michele resolveu tomar a
iniciativa e bradou:
- Vamos acabar logo com isso!
Então, ela apanhou o revólver que havia caído no solo durante a queda do
rapaz e dirigiu-se resoluta até as barras de ferro. Porém, em vez de mirar o peito
do demônio, a menina apontou para o velho cadeado, disparando alguns tiros até
conseguir arrebentá-lo. Surpreso com o que vira e ainda sem entender direito
qual era a intenção da namorada, Michael proferiu:
- Cuidado, Michele, ele vai escapar!...
- Dê-me o arpéu, rápido! Ordenou a garota.
O moço obedeceu prontamente, imaginando que ela fosse cravar o forcado
no coração do maldito. Todavia, a cena seguinte foi tão chocante e inesperada,
que estraçalhou a alma do jovem em um milhão de pedaços. Bastante tranquilo,
o demônio empurrou a porta da cadeia, que rangeu alto nos gonzos enferrujados
ao ser aberta. Quando saiu do cárcere, ele se transformou num moço lindo,
vestindo um fraque negro bem alinhado, inclusive, com direito a lenço vermelho
exposto em um dos bolsos. Michele deu alguns passos até o diabo e os dois se
abraçaram e se beijaram na boca por longo tempo. Depois, ela lhe entregou o
arpéu e trovões estrondosos passaram a retumbar assim que Satanás o teve em
suas mãos. Porém, não provinham dos céus, mas das profundezas da terra.
O príncipe das trevas fitou a menina e disse:
- Seu beijo ainda tem o mesmo sabor doce de dois mil anos atrás, minha
querida Michele de Monique!
- Michele de Monique... demonique... demoníaca! Exclamou Michael
assombrado e vesgo de perplexidade diante de tudo o que estava presenciando.
Sem refletir no seu ato, ele partiu com os punhos cerrados para cima do
demônio, mas bastou este levantar um dedo, para que o rapaz fosse erguido no ar
e arremessado violentamente dentro do cárcere. Ao cair no chão de pedra, a
pesada porta se trancou, embora não existisse mais cadeado algum.
Enlouquecido em virtude do extremo desespero, Michael ainda tentou abri-la,
empregando todas as forças, sem obter o menor sucesso. Satanás aproximou-se
dele e proferiu:
- Este esforço é inútil! Você teve a oportunidade de me servir e nada fez.
Agora, apodrecerá nesta masmorra hedionda...
Sem mais ter a quem apelar, ele dirigiu-se à menina e suplicou:
- Ajude-me, Michele...
Com olhos distantes, ela disse cheia de ironia:
- Coitado... ainda não compreendeu...
- Então você também é um destes diabretes, um súcubo?
- Dê o nome que quiser, agora pouco importa.
Contemplando a jovem, Michael percebeu que havia serpentes de fogo no
interior dos olhos dela. As feições dele contorceram-se de horror, como se
naquele instante, estivesse suportando todo o sofrimento acumulado ao longo
dos séculos pela humanidade. Em seguida, indagou:
- Por que eu, Michele? Meu Jesus Cristo!... Então, desde o início, você
sabia de tudo! Como descobriu que eu procurava o demônio?
- Estava escrito, Michael, não se culpe. O nosso primeiro encontro foi pura
coincidência. Depois, foi você mesmo quem me confessou tudo...
- Vamos, minha querida! Pediu Satanás, tomando-a pelo braço.
A impressão do moço é que tinham lhe cravado uma estaca nas costas,
tamanho era o seu pesar. Ele agarrou-se às grades para não cair e, com o rosto
congestionado de horror, soluçou profundamente aflito:
- Espere! Preciso saber... Se você pode se transformar no que bem entende,
por qual motivo não se libertou do cárcere por seus próprios meios? Bastava ter
virado um rato, transposto às barras de ferro e fugido...
O demônio torceu seu pescoço para trás num movimento impossível de ser
realizado pelos humanos e disse:
- Como você bem colocou, sem o arpéu não tenho poder algum e tampouco
posso me transformar no que desejo...
- Mas eu vi com meus próprios olhos!
- Engana-se, tudo não passou de ilusão. Eu não me transformei em nada e a
minha essência permaneceu sempre a mesma. Apenas a minha aparência pode se
transfigurar na mente das pessoas, que veem aquilo que desejam, os seus anseios
inconfessos, os seus medos reprimidos...
Atormentado por tal resposta, ele proferiu:
- Diga-me, senhor dos abismos eternos, eu sou o anticristo?
- Isto tudo não faz o menor sentido agora. Adeus! Vejo você em breve no
inferno, Michael Leonard Serafino!
Ao ouvir seu nome completo ser pronunciado pela boca de Satanás, o
jovem sentiu uma dor angustiante e intolerável lhe roendo os ossos. Afinal, seria
ele o anticristo, a besta apocalíptica anunciada por São João? Com dedos
trêmulos, apanhou uma tabela numerológica, um pedaço de lápis e um
caderninho que sempre trazia nos bolsos de seu sobretudo; em seguida, escreveu:

Um horror supremo estampou-se no rosto do rapaz ao constatar aquele


resultado hediondo. Ele caiu de joelhos sobre o chão de pedra e lançou um urro
funesto, lancinante, pavoroso, como se tal rugido estivesse preso em sua
garganta desde a primeira manhã em que o homem caminhou sobre a face da
terra. Então, o demônio pôs-se a assobiar uma música deliciosa e passou a subir
as escadas de mãos dadas com Michele. Quando eles desapareceram, todas as
luzes se apagaram e o moço permaneceu na mais profunda escuridão.

(Fim?)

[1] Ceava aquilo que teria sido suficiente para três ursos.
[2] Prefiro errar com Platão a ter razão com estes.
[3] Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com as vestes de ovelhas,
mas no íntimo são lobos vorazes. (Mateus 7:15)
[4] Literalmente, “Deus o quer!”. Em 1095, o papa Urbano II convocou o
Concílio de Clermont, apelando aos cristãos para pegarem em armas a fim de
lutar na Terra Santa contra os infiéis. Ao cabo de seu inflamado discurso, todos
na igreja gritavam em coro estas palavras, pois tal era a vontade de Deus.
[5] A que não obrigas o coração humano, ó execranda fome de ouro?
[6] Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome daí a glória.
[7] Pastoralis Praeeminentiae
[8] Porta do Rei
[9] Grande Rua
[10] Ninguém presta atenção ao que tem diante dos pés: estão perscrutando a imensidão dos céus.
[11] “M. AGRIPPA. L. F. COS. TERTIVM. FECIT”, ou seja, construído por Marco Agripa, filho de
Lúcio, cônsul pela terceira vez.
Table of Contents
Segredos Ocultos
Deus le Volt!
A missão secreta dos cavaleiros templários
No templo de Salomão
Mais mistérios...
A prisão do demônio
O fim dos tempos
Pelos esgotos de Paris
Malleus Maleficarum
A morte de Jacques de Molay
A primeira torre
A segunda torre
A terceira torre
A quarta torre
A quinta torre
A sexta torre
O tesouro dos templários
A sétima torre
Epílogo

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