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MARVIM
O
SEGREDO
TEMPLÁRIO
2016
ÍNDICE
Segredos Ocultos
Deus le Volt!
A missão secreta dos cavaleiros templários
No templo de Salomão
Mais mistérios...
A prisão do demônio
O fim dos tempos
Pelos esgotos de Paris
Malleus Maleficarum
A morte de Jacques de Molay
A primeira torre
A segunda torre
A terceira torre
A quarta torre
A quinta torre
A sexta torre
O tesouro dos templários
A sétima torre
Epílogo
Segredos Ocultos
“Saibam todos que me lerem, que esta é a biblioteca secreta da Ordem dos
Cavaleiros Templários.
Frei Felício”
Por um momento, o rapaz sentiu que lhe escasseava oxigênio nos pulmões e
precisou se apoiar na mesa para não cair. Era incrível! Diante de seus olhos
perplexos, encontrava-se um tesouro incalculável, centenas de originais copiados
a mão com mais de setecentos anos de idade. A biblioteca que frei Abelardo lhe
mostrara naquela tarde não valia nada se comparada a esta. Eis o verdadeiro
segredo de frei Felício! Não se tratava de uma biblioteca muito grande, mesmo
porque a maioria dos templários não sabia ler; porém, aquelas obras poderiam
mudar a própria história da civilização!
Além do caderno, outros três livros permaneciam sobre a mesa, talvez as
últimas leituras feitas pelo velho frade, derradeiro guardião daquelas
preciosidades. Após fixar a vela na mesa com alguns pingos de cera derretida,
Michael tomou um dos livros ao acaso e surpreendeu-se com o título
perturbador: Segredos Ocultos da Igreja. Logo nas primeiras páginas, intrigou-se
com o nome do capítulo inicial: “Da prisão do demônio pelos templários”. Isto
encheu o moço de curiosidade. Apanhando o segundo livro, quase caiu de
costas. Era o Evangelho de José de Arimateia, uma obra que durante muito
tempo foi considerada irreal, imaginária, pois apenas constavam referências a ela
em alguns textos apócrifos, e ninguém sabia se tal evangelho existia de fato. O
terceiro livro era ainda mais surpreendente: o diário de Jacques de Molay.
Michael gostava muito da história dos templários e sabia que ele tinha sido o
último grão-mestre da Ordem. Segundo a maioria dos historiadores, Jacques de
Molay era analfabeto, mas o seu diário provava exatamente o contrário. Os três
livros estavam escritos em latim, língua que o rapaz conhecia. Tinha grande
facilidade para aprender idiomas e falava italiano, inglês e francês, além de se
virar em espanhol e português. Ele os deixou sobre a mesa e pôs-se a retirar
algumas obras das estantes. Parecia uma criança que ganhou vários brinquedos
de aniversário e não sabe com qual brincar primeiro. Quando já estava se
aprontando para retornar, ouviu um barulho estranho lá em cima, como se
alguém estivesse descendo as escadas. Assustado, bradou:
- Há alguém aí?
Por alguns instantes, ficou esperando uma resposta. Teriam seguido o moço
até a misteriosa biblioteca dos templários ou seria aquela estátua de cera que
ganhara vida e vinha defender o segredo da Ordem do indesejado intruso? Seja
como for, Michael apanhou os três livros sobre a mesa, pois estava ansioso para
os ler no silêncio de sua cela. Frei Felício não os deixara ali por acaso e,
intimamente, o rapaz acreditava que ainda existia um grande mistério para ser
solucionado...
Deus le Volt![4]
Trinta e nove longos dias haviam transcorrido, desde que o exército cristão
finalmente chegara aos muros da cidade de Jerusalém. Após três anos de
extraordinário padecimento, suportando o sol escaldante das regiões desérticas
da Ásia Menor e da Palestina, sendo atormentados pela fome e sede extremas,
lutando contra os intrépidos muçulmanos, os cruzados já não tinham mais forças
para resistir por muito tempo. Ao avistarem a Cidade Santa, muitos deles
começaram a urrar de felicidade e a chorar de alegria. Matteo Bongallo, o
moleiro, também chorava, mas por causa da dor pesada que trazia no peito.
Deixara sua vila para se unir ao exército de Pedro, o eremita, o qual arrastava
uma multidão de fiéis de toda a Europa, a fim de lutar em nome de Deus contra
os terríveis sarracenos. O próprio papa implorara ajuda a cada cristão, pois os
lugares sagrados onde Jesus pregara e morrera estavam sendo ultrajados pelos
seus adversários. Com muito custo, Matteo conseguira convencer sua mulher e
filhas a lhe seguir naquela louca empreitada. Por um preço ínfimo, venderam
tudo o que não poderiam carregar, a cabana humilde, os poucos móveis, a vaca
que lhe dava o leite e seu velho moinho, que naquele tempo já se encontrava
arruinado e em tão lastimável estado para continuar trabalhando, que o moleiro
não conseguia mais tirar dele o seu sustento e o de sua família. Este foi outro
motivo que levou Matteo a seguir para a Terra Santa com o exército de Pedro, o
eremita. Depois, meteram os pés na estrada, acreditando que Deus se incumbiria
de lhes saciar a fome e a sede, assim como alimentava as aves do céu e os peixes
dos rios.
Agora, toda a família de Matteo Bongallo encontrava-se morta e apenas ele
teve a ventura de deitar os olhos sobre Jerusalém. Teria valido a pena tanto
sofrimento? Sentado sobre uma pedra, cansado e faminto, o infeliz moleiro
contemplava de longe a reunião dos líderes cruzados, os quais decidiam o que
deveria ser feito. Ninguém mais estava disposto a enfrentar outro cerco como o
de Antioquia, que se estendera por oito meses intermináveis e ceifara milhares
de vidas. Por isso, Godofredo de Bouillon, Raimundo de Saint-Gilles,
Boemundo, Balduíno e outros dos principais chefes da campanha haviam
marcado aquela sexta-feira da Paixão, às três horas da tarde, exatamente o dia e a
hora em que Cristo morrera na cruz, para dar início ao ataque. Seria como Deus
quisesse. Ou tomavam Jerusalém de uma vez, ou lutariam até que o último
homem fosse morto pelo inimigo.
Enquanto os cavaleiros se preparavam para o assalto à cidade, Matteo
Bongallo refletia a respeito de toda aquela tragédia que havia atravessado sua
vida, desde o dia em que ouvira, pela primeira vez, Pedro, o eremita, pregando
sobre a necessidade de se fazer uma guerra santa contra os infiéis. Ele passara
por sua aldeia numa manhã de domingo, arrastando atrás de si um grande
número de seguidores, homens, mulheres, velhos e crianças, os quais tinham
abandonado tudo que possuíam para atender ao apelo do papa Urbano II.
Quando este alcançou o papado em 1088, a ideia de se fazer uma guerra santa
contra os infiéis começava a tomar corpo na Europa. Os turcos seljúcidas haviam
conquistado diversas cidades na Ásia Ocidental ao longo do século XI, inclusive
Jerusalém. Ao contrário dos árabes, conhecidos por sua grande tolerância, pois
sempre permitiram peregrinações ao Santo Sepulcro, os turcos, então recém-
convertidos ao islamismo, começaram a colocar inúmeros obstáculos aos
europeus que desejavam seguir para a Terra Santa. O próprio Harun Al-Rachid,
no final do século VIII, assegurara a Carlos Magno proteção aos adeptos do
cristianismo no Oriente. Mas os turcos seljúcidas eram homens intolerantes e
não só proibiram a presença de cristãos em suas terras, como também passaram a
assassinar aqueles que para lá se dirigiam.
Receando um fortalecimento ainda maior dos turcos na região e temendo
que sua própria cidade fosse tomada por estes guerreiros impiedosos, o
imperador de Constantinopla, Alex Comeno, enviou uma carta ao papa Urbano
II, implorando ajuda de soldados mercenários, a fim de proteger os cristãos que
viviam em seu império. No ano de 1095, em Clermont, o papa convocou um
concílio, onde compareceram quatorze arcebispos, duzentos bispos, quatrocentos
abades e uma infinidade de fiéis que se espremia dentro e fora da igreja. Com
um discurso comovente, descrevendo os extraordinários sofrimentos suportados
pelos peregrinos na Terra Santa por causa dessa “maldita raça dos turcos”,
Urbano II afirmou que os cristãos europeus tinham o dever de tomar as armas,
em nome de Deus, para defender seus irmãos, os quais vinham sendo
massacrados impiedosamente. Em troca, o papa perdoaria todos os pecados
daqueles que atendessem ao seu apelo.
As palavras de Urbano II tocaram profundamente seu rebanho. Quase todos
tinham graves pecados a expiar e ali estava uma excelente oportunidade para se
obter o paraíso. Muitos nobres acumulavam em seus currículos enorme lista de
crimes e sentiram-se bem satisfeitos em poder remir seus pecados fazendo algo
de que gostavam, ou seja, entregando-se à guerra. Porém, enquanto estes ainda
cuidavam de seus preparativos a fim de se dedicarem a tão arriscada empresa,
um homem surgiu entre o povo e passou a conclamar toda gente para a luta.
Era Pedro, o eremita. De estatura baixa e corpo franzino, este religioso de
personalidade tão curiosa foi o mais popular dos pregadores que atendeu ao
chamado do papa Urbano II. Calvo, com uma vasta barba emaranhada, vestindo
apenas uma puída túnica de lã, caminhava descalço pelas ruas e igrejas das
pequenas aldeias, incitando o povo à guerra e ao arrependimento. Alimentava-se
apenas de pão e nunca bebia vinho. O povo passou a vê-lo verdadeiramente
como um santo e algumas pessoas mais impetuosas chegavam a ponto de
arrancar os pelos da mula em que ele montava, para guardá-los como relíquias.
Com sua formidável eloquência, ia descrevendo as terríveis atrocidades sofridas
pelos peregrinos na Palestina. Seu poder de persuasão era tão grande, que em
pouco tempo uma enorme leva de pobres começou a segui-lo por toda parte.
Esses miseráveis vendiam ou abandonavam os poucos bens possuídos para
acompanhar Pedro em sua desventurosa cruzada, pois acreditavam que assim
iriam ganhar o céu. Crianças, velhos e velhas, todos partiam contentes, levando
consigo apenas algum boi magro ou um burro doente. Além do grande número
de desprovidos, uma enorme ralé, composta pelos desqualificados das cidades
europeias, uniu-se a esse calamitoso exército de Pedro, o eremita. Eram
bandidos, assassinos, incendiários, prostitutas, adúlteros, uma infinidade de
marginais de toda laia, que acudiu às palavras do célebre pregador para salvar
suas almas das chamas do inferno.
Fora muito difícil para Matteo Bongallo convencer Branca, sua esposa, a
lhe acompanhar à Terra Santa. Ela era uma mulher simples, mas com
inteligência suficiente para compreender que aquilo tudo não passava de uma
imensa loucura. O casal possuía duas filhas: Catarina, de quatorze anos, que
também não desejava partir, e outra menina, conhecida por toda gente como a
Boba, indiferente a isto e ao resto. Tinham também um menino com pouco mais
de um ano, ainda sem nome, pois vivia doente e ninguém sabia se ele iria vingar.
Branca apenas se convenceu a partir no último instante, quando o moleiro
já havia atrelado os animais à carroça e vinha se despedir da esposa. Ela não
disse uma palavra sequer. Ordenou com os olhos vazios que as filhas tomassem
assento na precária condução, onde também se abancou, muito desgostosa e com
a cara amarrada. Apenas voltou a falar com o marido uns três dias depois deles
terem se unido ao exército de Pedro, o eremita, o qual se achava acampado nos
arredores de uma aldeia vizinha, tentando arranjar provisões para a viagem.
Durante mais de três meses, essa tenebrosa multidão de indigentes arrastou-
se da Europa à Ásia, feito um implacável monstro mitológico com milhares de
bocas, devorando tudo o que encontrava pelo caminho, saqueando cidades,
destruindo campos e plantações. A certa altura, fizeram um enorme massacre de
judeus para se vingarem dos assassinos de Cristo. Tal massa de famintos
andrajosos não possuía qualquer organização e nenhum deles tinha a menor ideia
de onde ficava Jerusalém. Em todas aldeias que chegavam, logo inquiriam
ansiosos se ali não era a Cidade Santa. Quando, finalmente, alcançaram os
muros de Constantinopla, a 30 de julho de 1096, inúmeros peregrinos já haviam
perecido pelo caminho, servindo de pasto aos abutres, que agora faziam sombra
sobre a multidão. Alex Comeno, o imperador da cidade, ao ver tamanha horda de
maltrapilhos, que não se assemelhava em nada com o tão desejado exército
pedido ao papa, não os deixou entrar em Constantinopla. De todas as maneiras,
tentou convencê-los a retornarem à Europa, afirmando que os turcos eram
guerreiros hábeis e muito perigosos. Porém, como aquela malta desorganizada
não quis ouvir suas palavras e, além disso, começava a realizar saques nos
arredores da cidade, Alex Comeno resolveu lhes atender o desejo, facilitando o
transporte daqueles homens e mulheres em estado tão lamentável para a Ásia
Menor.
Em menos de uma semana, cerca de cinquenta mil pessoas puseram-se a
caminho de Niceia. Nesta época, era verão no hemisfério norte e, durante este
trajeto, o calor os escaldou de tal forma, que muitos não suportaram tamanho
padecimento, morrendo de insolação. Não havia água em lugar algum e
inúmeros cavalos foram sacrificados, pois eles abriam suas veias, a fim de lhes
beber o sangue. Quem não tinha a sorte de possuir animais, matava a sede
bebendo a própria urina.
Mas tragédia maior ainda estava por vir. Em outubro de 1096, quando o
exército de Pedro, o eremita, encontrava-se nas proximidades de Niceia, os
turcos os cercaram numa emboscada, iniciando horrenda carnificina. Mal
armados, cansados, famintos e sedentos, os cristãos pouco puderam fazer contra
guerreiros tão terríveis como aqueles, acostumados a guerrear nas areias dos
desertos. Eles avançaram sobre os desgraçados europeus, brandindo suas
espadas, cujas lâminas brilhavam ao sol feito fogo, soltando urros e gritos
medonhos. A confusão foi pavorosa. Com suas cimitarras afiadas, os turcos iam
decepando a cabeça dos adversários, que tentavam fugir para onde os pés
apontavam. Matteo Bongallo e sua família procuravam desesperadamente algum
lugar onde pudessem se esconder da fúria selvagem do inimigo, quando uma
flecha acertou em cheio as costas de Branca, cravando os peitos da mulher no
chão. O filho que a pobre trazia nos braços caiu a alguns passos dela e ali ficou,
pois ninguém foi ampará-lo. Ao ver a esposa morta, Matteo Bongallo sentiu uma
dor profunda, como se houvessem lhe arrancado o coração com uma tenaz em
brasa. No mesmo instante, ele e as filhas abraçaram-se ao corpo de Branca,
cobrindo a mulher com lágrimas doloridas. Os cavalos dos turcos passavam
velozes por cima deles e foi mesmo um milagre não terem morrido pisoteados.
Só escaparam da chacina, porque ficaram todo o tempo deitados no chão, junto
aos outros cadáveres. Quando finalmente escureceu, os turcos cansaram-se
daquela carniçaria e resolveram partir, levando muitos cristãos que não tiveram
tempo de matar para serem vendidos como escravos. Dessa forma lamentável,
chegava ao fim o sonho da cruzada dos pobres, os quais esperavam alcançar
Jerusalém e libertar Cristo do jugo imposto pelos infiéis. Aqueles que
conseguiram sobreviver, como Pedro, o eremita, e Matteo mais suas filhas e
filho, voltaram a Constantinopla, onde permaneceram aguardando a chegada dos
verdadeiros cruzados, para se juntar a eles e seguir viagem.
Os nobres cavaleiros não chegaram ao mesmo tempo a Constantinopla.
Cada um arregimentou seu exército nas próprias terras, armaram-se da melhor
maneira que puderam e se dirigiram ao Oriente em diversas datas. O primeiro a
alcançar os muros da cidade de Alex Comeno foi Hugo, conde de Vermandois.
Era o filho caçula de Henrique I, rei dos franceses, e havia recrutado seus
homens ao norte da França. Depois dele, foi a vez de Godofredo de Bouillon,
duque da Baixa Lorraine, trazer suas tropas até os arredores de Constantinopla.
Dentre todos os líderes cruzados, Godofredo era quem possuía convicções
religiosas mais sinceras e resolvera combater na Terra Santa a fim de expiar o
crime de ter assassinado o imperador Rodolfo. Acompanhavam-no seus dois
irmãos: Eustáquio III e Balduíno. Raimundo de Saint-Gilles, o conde de Tolosa,
tinha sessenta anos quando partira, em outubro de 1096, para a Ásia Menor.
Vinha da Provença, ao sul da França, e levava consigo sua esposa e uma grande
quantidade de guerreiros dispostos a morrerem pela cruz. A 9 de abril de 1097,
chega a Constantinopla o exército de Boemundo, filho de Roberto Guiscard, um
dos homens mais importantes da Normandia. Com cerca de quarenta anos,
Boemundo era um soldado muito experiente e estava ávido por conquistar um
reino na Palestina.
A multidão que se dirigiu ao Oriente era de fato extraordinária. Contando
apenas os cavaleiros armados com lanças e espadas, aptos para a luta, estima-se
um número superior a cem mil homens. Além destes, acompanhavam-nos
escudeiros, religiosos, pajens, mulheres, uma infinidade de indivíduos que
facilmente superou a cifra de quinhentas mil pessoas. A própria princesa Ana,
filha de Alex Comeno, ao ver tamanha turbamulta acampada diante dos muros
da cidade, comentou estarrecida: “Era como se a própria Europa, arrancada de
seus fundamentos, tivesse se precipitado sobre a Ásia”.
O imperador de Constantinopla prometera auxílio aos cavaleiros,
fornecendo-lhes víveres e apoio militar, caso eles lhe entregassem as terras
conquistadas. O acordo foi feito e, em meados de 1097, debaixo de um calor
infernal, os cruzados começaram a transpor a Ásia Menor. Nas proximidades de
Niceia, tiveram uma visão terrível e repugnante. Os cadáveres da cruzada de
Pedro, o eremita, permaneciam amontoados por toda parte, apodrecendo aos
rigores do sol. Um cheiro pestilento de carniça evolava-se no ar envenenado,
impedindo a respiração das pessoas. O horror daquelas cenas chocantes encheu
ainda mais de ódio os cristãos, que sitiaram Niceia e, em menos de um mês,
tomaram a cidade.
Após esta primeira conquista, os cruzados continuaram o seu caminho,
travando inúmeras batalhas contra os turcos, como aquela ocorrida na planície de
Dorileu. Porém, o sol inclemente os flagelava sem piedade, constituindo-se em
um adversário ainda pior do que os terríveis guerreiros seljúcidas. Dentro de
suas armaduras pesadas, elmos e malhas de ferro, o calor era tão intenso, que
muitos cruzados não suportaram tamanha tortura, perecendo durante a jornada.
Os próprios cavalos europeus, desacostumados a temperaturas elevadas como
aquelas, começaram também a morrer e não era raro encontrar um cavaleiro
montando um boi e os mantimentos e bagagens sendo transportados com
dificuldade por carneiros, cabras, porcos e até cães.
Na travessia do planalto da Ásia Menor, Catarina, uma das filhas de Matteo
Bongallo, faleceu. Nada mais havia para beber e, a certa altura, não suportando
aquela caminhada infinita, a menina caiu sem sentidos, exaurida de suas forças.
Desesperado, o pai a reteve nos braços e, debaixo de um sol tórrido, carregou-a
ao longo do dia inteiro em busca de água, que talvez ainda pudesse salvar a vida
da menina. Suplicou por um pouco do precioso líquido a toda gente, mas
ninguém tinha, e os que tinham, fingiam não ter, recusando-se a dividir. Ao
anoitecer, a filha não resistiu e Matteo Bongallo a enterrou numa cova rasa,
escavada por suas próprias mãos inconsoláveis.
Poucos dias depois, chegaram a Antioquia, a Rainha do Oriente, como era
conhecida. Suas altas muralhas possuíam quatrocentas torres e encontravam-se
muito bem defendidas por guerreiros experientes. Ao ver o tremendo exército de
europeus sitiando a cidade, o soberano desta ordenou que metessem o velho
patriarca cristão numa gaiola e o pendurassem nos muros, numa tentativa de
causar horror e piedade aos adversários. Nada, porém, comovia aqueles homens
brutos. O cerco foi extremamente longo e difícil, estendendo-se por oito meses,
tendo iniciado em outubro de 1097 e terminado apenas em junho de 1098,
quando ocorreu uma monstruosa chacina de sarracenos.
Durante este período, os padecimentos sofridos pelos cruzados foram
horrendos. Em alguns dias, acabaram-se os víveres e a multidão devorou tudo
que havia nas imediações. Não se achava mais nada para comer, nem folhas,
nem raízes. Passaram tanta fome, que muitos começaram a sacrificar seus
próprios cavalos e cães a fim de se alimentarem. Quem tinha a sorte de encontrar
um rato, matava-o no mesmo instante e o comia inteiramente cru, deixando
apenas os pelos e os ossos. Certa manhã, descobriram um cemitério a pequena
distância de Antioquia. Os cristãos afluíram para lá feito abutres diante de
carniça, desenterraram os cadáveres sepultados e puseram-se a lhes devorar as
carnes pútridas. Outros depararam-se com um pântano, onde os sarracenos
atiravam a carcaça dos inimigos. Existiam ali defuntos boiando na lama há mais
de quinze dias, já em adiantado grau de decomposição, mas os cruzados não
fizeram caso disso e serviram-se de seus restos para lhes aplacar a fome
selvagem. A loucura atingiu tal ponto, que muitos homens chegaram a matar
seus próprios companheiros, caso estivessem a sós, distantes no campo, para
comer seus corpos e, dessa forma, abrandar a dor insuportável. O próprio filho
pequeno de Matteo Bongallo não escapou a este funéreo destino. O moleiro
deixara o menino aos cuidados da Boba e partira pelas cercanias da cidade com a
esperança de descobrir algum animal, uma lebre, uma rã ou até mesmo uma
cobra, para alimentar a sua família. A criança chorava aflita de fome, mas a Boba
nada fazia, apenas a segurava no colo como uma boneca de trapo. Parecia ser a
única pessoa indiferente em todo o acampamento. Dois homens ofereceram
ajuda a ela, afirmando que sabiam cuidar de crianças. A Boba entregou o
pequeno aos canalhas, os quais desapareceram no meio da multidão. Depois,
dirigiram-se a um local ermo, acenderam uma fogueira e assaram o menino num
espeto, transformando-o numa iguaria como eles não saboreavam há muito
tempo.
O sentimento de todos era que a expedição estava condenada ao fracasso,
pois as muralhas de Antioquia se revelaram intransponíveis. Além disso, alguns
mensageiros haviam chegado ao cerco, trazendo notícias nada animadoras. Um
gigantesco exército, conduzido pelo emir da cidade de Mossul, Kerboga, estava
se aproximando rapidamente para acudir os sitiados. Quando tudo parecia
perdido, a cidade foi tomada, graças à traição de um dos homens incumbidos de
defendê-la. Firouz, o guardião armênio de uma das torres, achava-se furioso com
os seus líderes, pois estes o acusavam de estocar alimentos de maneira ilegal
durante o cerco. Boemundo o convenceu de que ele e sua família seriam
poupados do massacre, caso ajudasse os europeus, e o rapaz facilitou a entrada
de alguns cristãos na cidade através de sua torre. Por toda a tarde, os cavaleiros
fingiram que estavam partindo, abandonando o sítio, para alívio dos turcos.
Porém, eles retornaram de madrugada com a cidade adormecida. Uma enorme
escada foi posta junto à torre de Firouz, por onde os homens de Boemundo
entraram. Depois, abriram as portas das muralhas e todos os exércitos invadiram
Antioquia, iniciando uma bárbara carnificina.
As cenas de assassinato que então se seguiram foram macabras. Inflamados
pelo ódio nutrido aos turcos e animados por todo o sofrimento que vinham
suportando ao longo da viagem, os cristãos esqueceram-se dos ensinamentos de
Cristo e entregaram-se a uma matança generalizada. Qualquer pessoa que lhes
caísse diante das espadas era cortada ao meio, indiscriminadamente. A fúria
arrebatada dos cavaleiros não tinha limites e, durante o tumulto, até mesmo os
cristãos da cidade foram massacrados. A própria Boba teve sua cabeça decepada
pela lâmina de algum gentil-homem da Normandia.
A felicidade pela vitória foi grande. Esquecidos de todas as privações
passadas, os cavaleiros consumiram naquele único dia comida e bebida que daria
para os sustentar durante um mês inteiro. Houve um enorme desperdício de tudo,
principalmente de água e vinho, cujos tonéis eram abertos e derramados no solo
apenas pelo prazer de estragar o bem alheio. Porém, toda esta excitação não
durou por muito tempo...
Três dias após a tomada de Antioquia, a cidade foi sitiada de novo, dessa
vez pelo exército de Kerboga. Os papéis haviam se invertido e agora eram os
cristãos que se viam cercados pelo inimigo. Em pouco tempo, a fome e a sede
retornaram tão intensas quanto antes. Para piorar a situação, uma epidemia de
peste começou a se espalhar dentro dos muros da cidade em virtude da completa
falta de higiene que ali reinava. Os cadáveres dos turcos continuavam entulhados
pelas ruas, disseminando ainda mais a doença e os cristãos passaram a morrer
feito moscas. Muitos deles tentaram fugir à noite pelas muralhas, descendo
através de cordas, mas eram flechados pelos hábeis arqueiros adversários. Os
cruzados encontravam-se completamente abatidos e a derrota parecia iminente,
quando um acontecimento extraordinário mudou a sorte do conflito.
Um padre de nome Pedro Bartolomeu afirmou ter sonhado com Santo
André e este lhe afiançara que a Santa Lança achava-se enterrada sob o piso da
catedral de Antioquia. Segundo o santo, se os cristãos a descobrissem, eles
venceriam os turcos e, em breve, chegariam a Jerusalém. Era a Santa Lança uma
das mais sagradas relíquias veneradas pelos homens da Idade Média, pois fora
com ela que um dos soldados ferira o flanco de Jesus durante a crucificação. Ao
saberem de tal sonho, inúmeros guerreiros dirigiram-se à igreja e começaram a
arrancar o seu piso. Não gastaram muito tempo nesta empresa, pois logo um
deles encontrou uma faca enferrujada e suja de sangue, que todos acreditaram
ser o sagrado sangue do próprio Cristo.
A descoberta de uma relíquia tão valiosa quanto aquela encheu de brios os
soldados, revigorando-lhes a fé perdida. O ânimo de todos fortaleceu-se a tal
ponto, que no dia 28 de junho de 1098, eles abriram as portas da cidade,
atravessaram a ponte que os separava dos inimigos e avançaram furiosamente
sobre os turcos, os quais não esperavam por aquele ataque surpresa. Travou-se,
então, uma batalha sangrenta, com enormes perdas para ambas as partes. Os
cruzados bateram-se com todas as forças restantes e muitos disseram depois que,
durante o combate, haviam visto uma legião de anjos lutando junto deles.
Após essa vitória, espalhou-se a notícia de que a Santa Lança era falsa e
tudo não passara de invenção de Pedro Bartolomeu. Acusavam-no de ter
enterrado aquela faca no piso da igreja e tamanha farsa ofendia a memória de
Cristo. O padre reafirmava a sua inocência e um impasse foi criado. Para
resolver o problema, os eclesiásticos apelaram ao Julgamento de Deus,
submetendo o réu à prova do fogo. Acreditavam os homens daquele tempo que a
vontade do Criador se manifestaria nestes tipos de julgamentos. Na noite
seguinte, acenderam uma enorme fogueira e pediram para o padre Pedro
Bartolomeu atravessar descalço um terreno coberto por brasas incandescentes.
Se as suas palavras fossem verdadeiras, não haveria nada a temer, pois Deus o
conduziria em segurança até o outro lado. Convencido de sua história - e
também porque não tinha outra escolha - o infeliz miserável começou a
caminhar por entre as chamas excitadas pela ventania, pisando o carvão
flamejante que crepitava debaixo de seus pés. Porém, o padre Pedro Bartolomeu
não conseguiu concluir a prova, vindo a falecer alguns dias depois, vítima de
terríveis queimaduras.
Do gigantesco exército que partira da Europa três anos atrás, menos de
cinquenta mil homens chegaram a Jerusalém. Matteo Bongallo sentia-se
amargurado e sem rumo, ignorando como seria sua vida dali para frente. Perdera
tudo de mais caro que possuía, a sua família, a sua cabana, o seu moinho. Agora
estava só no mundo, diante da milenar cidade onde Nosso Senhor dissera suas
últimas palavras antes de ascender ao céu. Há trinta e nove dias, aguardavam ali
pelo desfecho daquela nefasta aventura, suportando todos os tipos de privações;
sofriam, principalmente, por causa da sede colossal que não poupava ninguém.
Como todos os poços da região tinham sido envenenados pelos sarracenos, logo
nos primeiros dias de cerco já não se encontrava mais água em parte alguma. A
cada nova manhã, os cristãos mostravam-se ainda mais amargurados, pois lhes
retornava à mente o fantasma do sítio de Antioquia e todas as atrocidades
padecidas durante aqueles calamitosos oito meses. Por isso, quando veio a
notícia de que iriam atacar a cidade na sexta-feira da Paixão, todos se
rejubilaram, enchendo-se de ânimo e esperança.
Exatamente às três horas da tarde, pouco mais de mil anos após Cristo ter
expirado dentro daquelas muralhas sagradas, pregado num pau erguido sobre
uma colina conhecida como Gólgota, o exército cristão iniciou o definitivo
ataque à Cidade Santa. Uma chuva de flechas incendiárias atiradas pelos
guerreiros marcou o início do combate. Eram tantas flechas, que o sol foi
coberto por elas e uma sombra imensa estendeu-se como uma colcha sobre
Jerusalém. Inúmeros muçulmanos incumbidos de guardar as torres foram
alvejados nesta primeira bateria. Aqueles que despencavam muro abaixo tinham
suas cabeças cortadas e impelidas de volta à cidade, a fim de causar horror e
pânico nos adversários. Muitas máquinas de cerco haviam sido construídas pelos
europeus e, dentre elas, uma das mais populares era a catapulta. Os cruzados as
municiavam com enormes pedras, lançadas violentamente contra as muralhas
para as arrebentar. Às vezes, envolviam essas pedras com palha, panos
grosseiros ou lã, deitavam fogo em tudo e as atiravam sobre o inimigo,
provocando incêndios e mais confusão. Outra arma de guerra muito útil era o
aríete. Os soldados tinham descoberto um enorme tronco e resolveram investir
com ele contra os grossos portões de Jerusalém. Muitos homens foram
necessários para carregar tamanho armamento bélico, pois era pesado demais.
Porém, o esforço foi inútil, uma vez que não obtiveram êxito algum. Após
marrar diversas vezes as portas da cidade, os infelizes tiveram de abandonar o
aríete, porque os sarracenos despejaram uma tina de óleo fervente sobre eles,
provocando tremendas queimaduras em todos que foram atingidos.
Os cruzados resolveram escalar as muralhas, apoiando nelas diversas
escadas muito altas, por onde subiam feito formigas, mas o resultado obtido com
esta estratégia foi praticamente nulo. Com suas espadas afiadas, os muçulmanos
iam rechaçando os adversários, degolando-os com golpes violentos e certeiros.
Apenas conseguiram penetrar na cidade, quando encostaram junto aos muros
uma grande torre de madeira construída durante o cerco. Um homem atrás do
outro passou a subir por ela, até que alguns deles finalmente adentraram em
Jerusalém. Isto obrigou os defensores deste trecho da muralha a lhes dar
combate, deixando livre o acesso para que mais e mais cristãos por ali
entrassem. Quando se deram conta do ocorrido, o número de guerreiros europeus
dentro da cidade já era tão grande, que os sarracenos não puderam mais expulsá-
los. Alguns soldados de Boemundo dirigiram-se à entrada da urbe e abriram os
seus imensos portões, dando acesso ao grosso do exército. Foi como se tivessem
rompido as comportas de uma represa. Enlouquecidos por uma fúria colossal, os
guerreiros invadiram a Cidade Santa, soltando urros pavorosos, os quais faziam
tremer as próprias muralhas. As cenas seguintes foram de estupenda selvageria.
Pelo resto da tarde, as espadas bateram-se sem descanso e o sangue jorrou em
toda parte. A carnificina foi monstruosa. Para onde se apontassem os olhos,
encontravam-se montanhas de braços, pés e cabeças caídos no chão. Inomináveis
as cenas de crueldade. Quem não tinha a sorte de morrer por um único golpe de
espada, era forçado a pular do alto das muralhas ou arrastado por cavalos pelas
ruas da cidade. Raimundo de Saint-Gilles, antes de matar seus prisioneiros, fazia
questão de lhes arrancar os olhos. Não pouparam ninguém daquela nefasta
chacina, nem velhos, nem mulheres, nem crianças. Os próprios judeus de
Jerusalém foram presos em sua sinagoga e incinerados numa enorme fogueira.
Somente no templo de Salomão, mais de dez mil sarracenos morreram pela
espada e o sangue ali vertido chegava à altura dos tornozelos dos soldados.
Depois, espalhou-se a notícia de que os muçulmanos haviam engolido suas joias
e moedas de ouro pouco antes da derrota. Por causa disso, os cruzados passaram
a revirar as tripas do inimigo em busca deste tesouro, enfiando as mãos em suas
vísceras ainda quentes e, em muitos casos, palpitantes com um resto de vida.
Após aquela hedionda matança, alguns cristãos foram tomados por um
estranho e súbito sentimento de piedade, dirigiram-se ao Santo Sepulcro e,
esquecidos da barbárie que haviam cometido, derramaram inúmeras lágrimas
comovidas. Mais tarde, o próprio Godofredo de Bouillon, demonstrando uma
insólita e curiosa humildade para quem perpetrara crimes tão sórdidos, recusou o
título de rei quando este lhe foi oferecido, afirmando que não poderia aceitar
uma coroa de ouro, onde o Rei dos Reis recebera uma de espinhos. Contentou-se
apenas com o título de Defensor do Santo Sepulcro.
Antes de conquistar Jerusalém, os cruzados combinaram que todos os
produtos das pilhagens pertenceriam a quem os encontrasse. Ao invadir uma
casa, qualquer um poderia se apoderar do que quisesse, sendo seu legítimo dono.
Como a cidade estava à disposição deles, os europeus realizaram imensa
pilhagem. O próprio Matteo Bongallo, que por milagre escapara da morte no
meio de toda aquela confusão, agora se entregava à rapinagem. Na manhã do dia
seguinte, ele penetrara em uma casa nas proximidades da mesquita de Al-Aqsa e
descobrira uma arca com estranhos rolos manuscritos. Embora fosse analfabeto,
o moleiro sabia reconhecer algumas letras, mas nunca vira nada parecido com
aquilo. Tais escritos talvez pudessem ter certo valor e Matteo saiu para a rua
levando a arca debaixo do braço. Pouco depois, encontrou um velho padre com
quem fizera boa camaradagem durante a cruzada e lhe mostrou a descoberta,
perguntando se ele não gostaria de comprar aquele curioso baú, estranhamente
entalhado com figuras de demônios. O eclesiástico tomou a arca em suas mãos e
a abriu demonstrando pouco entusiasmo; porém, ao ver dentro dela um rolo de
pergaminho antiquíssimo, seus olhos brilharam de excitação. Com todo cuidado,
ele pôs-se a desenrolar o frágil manuscrito. Como o religioso conhecia diversas
línguas, logo percebeu que se tratava de um texto escrito em hebraico. A certa
altura, ele leu arrepiado a seguinte passagem:
Ao ler esta frase, o velho padre quase caiu de costas. Sua respiração tornou-
se ofegante, sua boca salivava e inúmeras gotículas de suor inundaram sua testa.
Matteo Bongallo percebeu o nervosismo do bom homem e imaginou que algo de
muito grave havia ali. No fundo, isto lhe pareceu um bom sinal, pois indicava
que seu manuscrito poderia, de fato, render-lhe algum dinheiro.
- Quanto quer por isto? Quis saber o clérigo.
O moleiro esfregou a boca e a barba com dedos de mercador, pensando
quanto deveria pedir. Talvez a sua descoberta valesse mesmo uma fortuna, mas o
padre teria consigo dinheiro suficiente para o negócio? Depois de meditar alguns
segundos, Matteo Bongallo disse:
- Quero dez moedas de ouro.
O velho religioso assustou-se com o valor pedido, apesar de saber que a
mercadoria valia muito mais. Mesmo tendo feito uma análise bastante
superficial, tinha certeza de que aquele pergaminho era um verdadeiro tesouro,
não somente pelo valor histórico e material, mas porque parecia conter
revelações assombrosas. Se possuísse mil moedas de ouro nos bolsos, não
hesitaria em dá-las ao moleiro.
- Tenho apenas isto...
Matteo Bongallo apanhou o saco oferecido pelo homem, lançando todo seu
conteúdo na palma da mão esquerda: seis moedas de prata e apenas uma de ouro.
Embora fosse bem menos do que ele pedira, o moleiro ficou muito comovido,
pois nunca na vida segurara uma daquelas. A moeda brilhava intensamente feito
o sol do meio-dia e era pesada como jamais vira nenhuma outra. Ele recolocou
tudo de novo dentro do saco e disse:
- Aceito.
Antes dos dois se despedirem, Matteo perguntou ao padre:
- Mas me diga, é um documento importante?
- Meu filho, pelo pouco que consegui ler, o próprio destino da Igreja
depende deste segredo!
E concluiu:
- Preciso entregar isso ao papa urgentemente...
A missão secreta dos cavaleiros templários
“Pouco antes daquele fatídico dia, eu soube que a intenção de Felipe, dito
o belo, era se apoderar de todo o tesouro da Ordem para engordar os reais
cofres que viviam à míngua, apesar dele extorquir ao extremo os seus infelizes
súditos. Ao tomar conhecimento dessa torpe resolução, dei ordens para que o
tesouro fosse conduzido durante a madrugada a um local seguro, localizado...”
Primeira Torre
“Vi então um anjo que descia do céu, tendo na mão a chave do abismo e
uma grande corrente. Prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e
Satanás, e o acorrentou por mil anos. Jogou-o no abismo, que fechou e lacrou
com um selo, para não seduzir mais as nações até que se completem mil anos,
depois do que será solto por pouco tempo.”
“E vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre
os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia. E
a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a
sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e
grande poderio.”
Por sua vez, o anticristo era apenas referido por São João Evangelista nas
seguintes passagens:
Era uma profecia impressionante e, com certeza, aludia ao final dos tempos.
O autor da obra não revelava a identidade do terceiro anticristo, limitando-se a
sugerir o nome dos dois primeiros: Napoleão e Hitler. Afirmava que a besta era
citada em antigos apócrifos, como o Livro de Enoch, o Apocalipse de Baruch, o
Livro da Assunção de Moisés e no próprio Apocalipse Apócrifo de São Tomé, o
qual dizia:
“Haverá grandes sinais e maravilhas naqueles dias, quando o anticristo estiver
próximo.”
Não se lembrava dela, mas a anotou num caderninho que trazia no bolso da
camisa. Depois de trancar a porta, Michael pôs-se a refletir sobre os motivos de
tal invasão. Teriam vindo para matá-lo ou apenas desejavam os seus preciosos
livros? Seriam os mesmos homens que o haviam seguido naquela tarde? Como
tinham descoberto o seu endereço? Estas perguntas atormentavam o rapaz e a
certeza de que o estavam vigiando apavorava-o. Felizmente, não encontraram os
livros, pois Michael os havia levado consigo ao restaurante.
No dia seguinte, acordou logo cedo e foi procurar Celestino. Não se sentia
mais seguro naquele hotel e precisava descobrir outro local onde pudesse
permanecer hospedado. O velho religioso ficou muito feliz em rever o amigo,
que queria como a um filho. Após se abraçarem afetuosamente, Michael
proferiu:
- E como vai sua saúde?
- Graças a Deus, já melhorei da caxumba... a sua visita traz uma grande
alegria a este pobre velho solitário. Mas me diga, o que aconteceu?
Então, Michael contou-lhe tudo. Como achara por acaso a biblioteca dos
templários e os preciosos livros separados por frei Felício. Narrou-lhe a prisão
do demônio pelos essênios e a descoberta de seu cativeiro pelos cavaleiros do
Templo. Disse-lhe também ter certeza absoluta de que Satanás estava para fugir
da prisão onde se achava, o que provocaria o final dos tempos, como haviam
previsto os profetas. Ele próprio encontrara-se com um demônio chamado Belial.
Junto de seus pares, viviam na terra à procura de seu líder. Finalmente, revelou
ao amigo ter procurado o Vaticano para alertar as autoridades eclesiásticas a
respeito do problema, explicando-lhe como fora tratado e perseguido pelas ruas
de Roma, tendo, inclusive, seu quarto invadido durante a noite.
Celestino ouviu boquiaberto toda aquela história espantosa, que mais
parecia um roteiro de filme; porém, como era relatada por um rapaz merecedor
de sua total confiança, não havia motivo para duvidar da palavra dele. O velho
padre mostrou-se tremendamente surpreso com tais revelações e manteve-se em
silêncio por certo tempo, meditando sobre o assunto. Depois, passou uma das
mãos no queixo bem escanhoado e indagou:
- Quem mais sabe que você está com os livros?
- Eu os mostrei apenas ao cardeal Lucatone. Estas obras são de extrema
importância para o Vaticano e também muito perigosas. Podem provocar
estragos terríveis. É natural que eles queiram manter tudo em sigilo absoluto.
Além do mais, não sei até onde vão os escrúpulos dos homens que conduzem a
igreja...
- Isto de fato me preocupa. Há pessoas excelentes no comando da
cristandade, mas existem outras que não merecem a mínima consideração. Antes
de religiosos, são políticos desprezíveis e estão lá para cuidar de seus próprios
interesses. Diga-me, quando você mostrou os livros ao cardeal Lucatone, ele não
lhe disse algo que tivesse chamado a sua atenção em especial?
- Não me recordo, mas ele queria ficar com os livros. Achei estranha a frase
escrita no espelho do banheiro pelos invasores do meu quarto.
- Uma frase?
- Sim, está anotada neste caderninho! Veja...
Celestino tomou-o nas mãos e leu o texto. Imediatamente, sua face
iluminou-se, como se tivesse desvendado um misterioso enigma. Michael
percebeu que o amigo havia descoberto algo e perguntou:
- Conhece a frase?
- Conheço. “A que não obrigas o coração humano, ó execranda fome de
ouro?” Encontra-se na Eneida de Virgílio. Desesperado com o destino de Tróia,
o rei Príamo confiou seu filho Polidoro e imensas riquezas a Poliméstor, rei da
Trácia. Este, porém, traindo a confiança de Príamo, matou o filho de seu amigo
para se apoderar de sua fortuna. Esta frase já era famosa na própria antiguidade e
foi muito empregada pelos autores clássicos, quando se desejava mostrar que
alguém não possuía escrúpulos se houvesse dinheiro em jogo.
- E o que esses bandidos querem dizer com isso?
- Estou com um palpite... Deixe-me ver os livros, sim?
Michael entregou-lhe os três volumes guardados em sua pasta. Após os
analisar por alguns minutos, Celestino disse:
- Para mim, eles não estão atrás do Evangelho de José de Arimateia, o qual
por si só já é um tesouro incalculável. Muito menos desejam este livro Segredos
Ocultos da Igreja. Na verdade, tais pessoas querem o diário de Jacques de
Molay, pois devem imaginar que, nestas páginas, o último grão-mestre do
Templo revela o local para onde o imenso tesouro da Ordem foi levado, quando
de sua extinção. Você está com algo extremamente valioso para eles, a chave que
pode abrir uma fortuna colossal... E como se depreende da citação latina da
Eneida, essa gente não medirá esforços a fim de alcançar seus objetivos...
- Você acredita que este fabuloso tesouro ainda esteja escondido?
- Tenho certeza absoluta! Muitos o procuraram ao longo dos séculos, sem
obter qualquer resultado. Se tiver paciência para ouvir este velho falastrão, eu
lhe conto o que sei sobre o desaparecimento da Ordem e de sua fortuna
formidável.
- Mas será um imenso prazer.
-Ótimo!
E dizendo isso, Celestino iniciou a sua narrativa:
- Felipe IV era um homem rancoroso e mau...
Pelos esgotos de Paris
Era o décimo segundo dia de outubro, ano da graça de 1307, uma noite tão
fria quanto aquela véspera de Natal, em que Pierre Leblanc estivera na cabana da
amada com o coração angustiado, pois nada podia fazer para lhe salvar a vida. A
vela que Gilles de Sens, o gentil, acendera horas atrás já havia derretido, quando
alguns cavaleiros do Templo vieram buscar o postulante e o levaram até outra
sala, iluminada por inúmeras tochas. Muitos templários encontravam-se naquele
recinto para acompanhar a cerimônia de iniciação do novo recruta, que
demonstrava um grande desejo em pertencer à Ordem. Pouco antes dele ter sido
introduzido na sala, foi perguntado a todos se alguém era contra o ingresso do
noviço. Não houve qualquer objeção e a assembleia pronunciou em coro as
palavras de costume:
- Mandai-o vir, por Deus!
Pierre Leblanc foi conduzido ao interior do recinto até o local onde estava
Gilles de Sens, que ocupava as funções do grão-mestre Jacques de Molay na
ausência deste. Após repetir as regras do Templo, ele fez ao postulante diversas
perguntas de praxe:
- Tens esposa ou família? Tens alguma doença? Tens dívidas que estás
impossibilitado de saldar? Deves vassalagem a algum outro senhor? Subornaste
alguém para ingressar na Ordem? Já foste excomungado ou estás sujeito à
excomunhão?
Tendo respondido todas as perguntas de maneira negativa, Pierre Leblanc se
ajoelhou diante da assembléia e disse:
- Senhores, vim perante Deus, perante vós e perante os irmãos, suplicar-vos
em nome do Pai e de Nossa Senhora, que me acolhais na vossa companhia e nas
graças desta Casa, pois é meu desejo para todo o sempre ser escravo de Deus, de
Nossa Senhora e desta Ordem.
Tão logo explicou ao jovem que a vida de um cavaleiro templário era
extremamente árdua e ele não seria mais senhor de sua própria vontade, devendo
renunciar aos prazeres terrenos para se dedicar às causas de Deus, Gilles de
Sens, o gentil, indagou:
- Doce irmão, suportarás tanta dureza?
O rapaz respondeu que estava pronto. Em seguida, ajudaram-no a levantar e
o conduziram até outra sala, pois a assembleia seria consultada a fim de emitir
seu parecer. Todos concordaram que Pierre Leblanc demonstrara as virtudes
necessárias para se tornar um cavaleiro templário e ninguém contestou a sua
admissão. Quando o trouxeram de volta, Gilles de Sens disse-lhe:
- Doce irmão, prometes a Deus e a Nossa Senhora que, durante todos os
dias de tua vida, obedecerás ao grão-mestre do Templo e às suas regras?
- Prometo!
A assistência inteira passou a rezar, enquanto o capelão agradecia ao
Espírito Santo. Pierre Leblanc fez votos de obediência, castidade e pobreza,
conforme determinavam os preceitos templários. Por fim, Gilles de Sens, o
gentil, colocou sobre os ombros do rapaz o manto branco da Ordem e deu-lhe
um beijo na boca, o beijo da paz, pois esse era o costume. Antes da cerimônia
terminar, um dos monges recitou um salmo:
Depois de ouvir a história que Celestino lhe contara sobre como a Ordem
dos templários chegou ao fim em virtude da concupiscência de um rei
ganancioso, Michael levantou-se do sofá e dirigiu-se até o outro canto da sala,
onde havia um grande aquário. O rapaz permaneceu em silêncio por um ou dois
minutos, observando os inúmeros peixinhos coloridos que nadavam ali, alheios
ao resto do mundo. Em seguida, enfiou as mãos nos bolsos de seu sobretudo e
disse:
- Esta história é muito reveladora. Agora, começo também a acreditar que
aqueles bandidos estão de fato atrás do diário de Jacques de Molay. É óbvio!
Imaginam que o grão-mestre indica o local para onde foi levada a imensa fortuna
da Ordem...
- E não indica? Perguntou Celestino.
- Claramente não! A página onde ele iria revelar este segredo foi arrancada
de propósito e há no diário apenas uns versinhos enigmáticos, os quais à
primeira vista não ajudam muito. Veja!
O moço abriu sua maleta e retirou outra vez de lá os três livros. Sentando-se
de novo no sofá, ao lado de Celestino, pôs-se a procurar a página desejada.
- Aqui está! Leia...
O velho padre retirou os óculos do bolso de sua camisa, ajeitou-os sobre o
nariz e leu o trecho em voz alta, traduzindo-o do latim:
“Eleva-se a terceira torre na fortaleza dos corvos, às margens do grande rio que
atravessa a ilha.”
Quarta Torre
“Eleva-se a quinta torre na ilha da morte, conhecida entre os mouros como pedra
alta.”
Sexta Torre
Sétima Torre
Quando o rapaz acabou de ler, Michele disse que não tinha entendido nada.
As indicações ali contidas lhe pareceram por demais confusas e sem sentido.
Michael concordou. Não seria fácil desvendar as pistas do Malleus Maleficarum,
mas redarguiu que algumas delas eram mais evidentes do que outras. Por
exemplo, a cidade das sete colinas citada na sétima torre talvez fosse Roma. E o
templo de todos os deuses certamente haveria de ser o Panteão de Agripa, pois
tal é o seu significado em grego. O terreno onde os romanos ergueram este
monumento extraordinário da antiguidade deve ter servido, em tempos
imemoriais, como sítio para adoração do diabo. A menina achou aquele
raciocínio esplêndido e exclamou:
- Então o que estamos esperando! Vamos para Roma já! Uma das pistas
codificadas pelos templários deve estar escondida em algum local no Panteão de
Agripa!
- Você disse “vamos”? Indagou o rapaz surpreso.
- Sim, meu amor, eu quero ir com você. Não tenho nada que me prenda a
Londres.
- Mas é muito perigoso! Não desejo lhe envolver nisso... Esses fanáticos
religiosos farão de tudo para se apropriar dos livros que estão em meu poder. São
loucos, assassinos... minha vida não vale nada para eles. Se vir comigo, também
a sua estará em risco. Não posso permitir tamanha loucura...
- Já estou envolvida. Além disso, quero ficar ao seu lado, não tenho mais
ninguém. Se for preciso, vou até o fim do mundo com você...
Em seguida, ela acrescentou, um pouco desconfiada:
- Ou você quer simplesmente se livrar de mim...
Os olhos da menina aguaram-se. Michael percebeu que ela o amava deveras
e agradecia a Deus pelo presente recebido. Ficou durante algum tempo
contemplando aquele rostinho angélico, ao qual nada se poderia negar. Em
seguida, beijou-a com ardor e disse:
- Tudo bem, venha comigo. Eu não seria mesmo capaz de a abandonar
depois de tudo ocorrido entre nós...
Michele sorriu agradecida e foi se vestir. Ao retornar à sala, Michael lhe
disse que era melhor não irem ainda a Roma.
- Por quê?
- Algo me diz que devemos seguir a ordem natural das torres, da primeira à
última. Talvez haja algum motivo para esta disposição, mas é só um palpite...
- Pode ser. Você conseguiu descobrir onde se localiza a primeira torre?
- Ainda não, embora eu tenha meditado bastante sobre isso.
Durante o resto da manhã, Michael permaneceu navegando na internet
através de seu notebook, procurando decifrar aquele enigma desafiador. Michele
foi lavar a roupa acumulada e depois começou a fazer o almoço. Não era uma
exímia cozinheira, mas o rapaz lhe elogiou a comida por delicadeza, uma vez
que achou as batatas salgadas e os bifes duros feito couro de búfalo. Após ter
chupado uma laranja como sobremesa, Michael disse que ia comprar algumas
roupas, pois não havia trazido nenhuma. Como estava com um pouco de dor de
cabeça, Michele preferiu não ir com ele. Tomou uma aspirina e deitou-se no
sofá, acomodando uma almofada entre as pernas. Antes do namorado sair, ela
pediu:
- Meu querido, por favor, passe na banca de jornal da esquina e traga para
mim a Revista Nacional Geográfica deste mês. Quero ver se publicaram a
matéria que uma amiga minha escreveu sobre Veneza.
- Está bem, volto logo!
Enquanto seguia pelas ruas de Londres, Michael meditava sobre a primeira
torre do demônio. Afinal, onde ela ficaria? A pista do Malleus Maleficarum não
era clara e poderia indicar uma infinidade de lugares em todo o mundo. Estava
tão distraído, em meio a seus pensamentos, que perdeu a noção do tempo e
caminhou sem destino certo por quase três horas. Quando se deu conta de que o
sol já começava a se pôr, entrou na primeira loja de moda masculina encontrada
e adquiriu algumas roupas. Depois, passou numa banca de jornal para comprar a
revista pedida por Michele.
A menina o esperava na janela e lhe acenou aflita ao vê-lo chegar. Nem
bem o rapaz abriu a porta do apartamento e Michele saltou ao seu pescoço,
cobrindo-o de beijos e abraços. Ficara preocupada com a demora, pois ele
dissera que voltaria logo e passara quase toda a tarde fora. Não o deixaria mais ir
sozinho a lugar algum. Michael lhe deu a sacolinha com a encomenda e quis
saber se a sua dor de cabeça já havia passado. Ela sorriu, fazendo um gesto
afirmativo, e foi se sentar no sofá a fim de ler a revista.
Algum tempo depois, Michele chamou o rapaz, que novamente entrara na
internet para tentar descobrir algo sobre a primeira torre. A moça estava muito
exaltada e parecia ter desvendado um segredo extraordinário:
- Veja o que achei na revista! É uma coincidência impressionante!
- O que foi? Diga-me de uma vez por todas!
- É uma matéria sobre o monte São Michel. Leia este parágrafo...
O jovem apanhou a revista e leu o trecho em voz alta:
“... e, de acordo com uma lenda muito antiga, foi construído nesta ilhota
um santuário, segundo indicação do próprio São Miguel, que apareceu em
sonho ao bispo de Avranches e lhe pediu para edificar um templo em sua
homenagem, justamente sobre o local em que o demônio havia sido
precipitado...”
Os olhos do rapaz incendiaram-se e sua respiração tornara-se ofegante.
- A primeira torre! Claro, só podia ser o monte São Michel, o lugar onde
tradicionalmente se acredita que Lúcifer caiu ao ser precipitado da corte celeste!
Como não pensei nisso antes? Foi aí que os templários esconderam a primeira
pista do enigma, que irá revelar o local onde o demônio se encontra aprisionado.
Vamos! Arrume sua mala, pois precisamos partir imediatamente.
Já estava escuro, quando eles chegaram à estação ferroviária para embarcar
no trem que atravessa o Eurotúnel sob o Canal da Mancha. Encontraram bilhetes
com facilidade e o transcurso foi bastante rápido. Chegando ao solo francês, o
jovem casal dirigiu-se imediatamente a uma estação rodoviária, onde, por sorte,
conseguiram comprar as passagens para o próximo ônibus com destino ao Monte
São Michel, programado para partir às onze horas da noite e tendo previsão de
chegar ao seu destino ao amanhecer. Tiveram de ficar aguardando no saguão até
o horário de embarque. Michele dormiu durante quase toda a viagem, enquanto
Michael preferiu reler um trecho do diário de Jacques de Molay, a parte onde ele
narrava o que havia acontecido com a Ordem do Templo desde a manhã em que
os guardas do rei prenderam o grão-mestre até o seu último dia de vida na terra.
A morte de Jacques de Molay
Sentado no chão frio e úmido da cela escura onde estava sendo mantido
preso, mergulhado no silêncio e na solidão, Jacques de Molay refletia a respeito
da enorme tragédia que se abatera sobre a Ordem e indagava a Deus por qual
motivo Ele permitira tamanha injustiça. Durante mais de duzentos anos, os
templários dedicaram suas vidas em defesa da fé cristã e ninguém derramara
mais sangue contra os infiéis do que eles. Agora, um rei nefasto e ganancioso
decidira se apropriar dos bens do Templo, alegando infames pretextos, e
mantinha preso nos calabouços reais uma infinidade de cavaleiros a espera de
um julgamento injusto. Jacques de Molay sabia muito bem que as acusações
feitas por Felipe IV contra os templários eram gravíssimas e reconhecia ser
impossível ter um controle sobre todos os membros da Ordem nos diversos
países onde ela havia se estabelecido. Porém, se algum caso de inobservância às
regras do Templo fosse descoberto, eles próprios se encarregariam de punir os
infratores e bani-los de seu convívio. Além do mais, os crimes que lhes foram
imputados não se restringiam exclusivamente a eles, mas ocorriam também no
seio das outras ordens religiosas, como a dos cavaleiros teutônicos e dos
hospitalários. Contudo, nenhuma delas possuía o poder e a riqueza do Templo.
Em mais de seis anos de cativeiro, padecendo torturas indescritíveis para
admitir sua culpa, Jacques de Molay envelhecera muito e sabia que nada mais
poderia ser feito a fim de salvar a Ordem que tanto fizera pela cristandade.
Enquanto esteve na prisão, o grão-mestre decidira escrever um diário, relatando
toda a iniquidade sofrida pelo Templo. A tarefa lhe ajudava a suportar as horas
intermináveis passadas na companhia das ratazanas; além disso, o velho mestre
imaginava que aquele documento poderia servir como importante testemunho
em favor da inocência dos templários aos olhos das gerações futuras. Jacques de
Molay fizera certa camaradagem com o carcereiro, o qual, toda manhã, vinha lhe
trazer a péssima refeição, suficiente apenas para ele não morrer de fome. O
sujeito contou-lhe que, anos atrás, fora expulso das terras de seu senhor, pois este
tentara lhe seduzir a filha de quatorze anos. Como a menina se recusou a servir
aos apetites do execrável libertino, sua cabana acabou sendo incendiada e
obrigaram toda a família do pobre homem a abandonar aquele feudo. Terríveis
foram as necessidades sofridas por eles e só sobreviveram, porque os templários
lhe deram alimento e abrigo em uma de suas fortalezas. Nunca esquecera tal
gesto de grandeza dos cavaleiros de Cristo e sentia-se extremamente grato.
Quando soube que aquele homem era Jacques de Molay, o grão-mestre da
Ordem, ofereceu-se para o libertar, mas o prisioneiro afirmou que isto já não
fazia a menor diferença. Sentia-se um velho alquebrado, com os dias contados
neste mundo e sua fuga, certamente, iria complicar a vida do carcereiro. Em vez
disso, pediu a ele alguns pergaminhos, uma pena, tinta e velas para iluminar um
pouco a sinistra masmorra, pois desejava escrever um diário.
Aquela seria a última noite de Jacques de Molay na terra. A sua sentença de
morte tinha sido decretada pela corte de justiça do rei e, no dia seguinte, o corpo
do velho cavaleiro arderia numa fogueira em praça pública. Tão logo ficou
sabendo que estava irremediavelmente condenado, solicitou a presença de um
padre para confessar as suas faltas. Guilherme de Nogaret, um dos ministros
mais influentes de Felipe IV, o belo, possuía uma mente diabólica e, imaginando
que o grão-mestre iria admitir seus crimes, ou ainda melhor, revelar o local para
onde haviam levado o tesouro do Templo, decidiu forjar um artifício astucioso a
fim de extrair tais confissões do decrépito templário. Por causa da violenta
tortura a que ele fora submetido na prisão, Jacques de Molay reconhecera a culpa
de muitos pecados perante Deus e a Igreja. Confessou, entre outros, que na data
de sua recepção como cavaleiro, após terem posto o manto sobre seus ombros,
foi-lhe apresentada uma cruz de madeira com a imagem de Cristo e lhe pediram
para escarrar nela, negando Jesus por três vezes, pois era um falso profeta. O
novato aceitou o conselho e cuspiu sobre o crucifixo, mas o fez de lado, apenas
com a boca e não com o sentimento do coração. Porém, voltara atrás em suas
declarações, afirmando que tanto ele quanto a Ordem eram inocentes.
Para alcançar seus objetivos, Guilherme de Nogaret não impunha limites à
sua maneira de agir. O nefasto ministro arquitetou um plano hediondo para
arrancar o segredo de Jacques de Molay em suas derradeiras horas de vida. Pediu
que um dos homens do rei se disfarçasse de cardeal e o mandou ouvir a
confissão do prisioneiro. O falso religioso foi introduzido na cela úmida e disse
aos guardas reais que os deixassem sozinhos. Quando o grão-mestre viu aquele
sujeito todo paramentado com um hábito cardinalício, imaginou ser um enviado
do papa e deu-lhe um beijo no anel em sinal de respeito. Depois, o impostor orou
com ele como tinha sido treinado e, em seguida, exclamou:
- Confesse as suas culpas e arrependa-se, meu filho, para que Deus tenha
piedade de sua alma!
Antes de iniciar a sua confissão, Jacques de Molay declarou ao suposto
cardeal que a Ordem era inocente de todas as abomináveis acusações imputadas
a ela. Um ou outro cavaleiro poderia ter se desviado das severas regras do
Templo, entregando-se aos vícios mundanos. Isto, porém, era praticamente
impossível de controlar em virtude do grande número de templários. A seu ver,
cometia-se uma enorme injustiça ao se condenar toda a irmandade, que possuía
uma extensa lista de excelentes serviços prestados ao cristianismo e à defesa do
papado, apenas porque alguns canalhas haviam traído os seus votos e jogado na
lama a reputação construída pela Ordem em mais de duzentos anos. Além do
mais, isto acontecia em qualquer confraria e até na igreja existiam maus padres...
- Deixe a igreja de lado e concentre-se em suas faltas. Alguma vez já pecou
contra a natureza? Dizem que era uma prática comum entre os templários...
- Nunca! E jamais tive notícia de um único caso. Se eu soubesse de algo,
mandaria imediatamente expulsar os devassos da Ordem. Tudo isso não passa de
uma mentira vergonhosa para macular a honra ilibada dos cavaleiros.
- Já adorou ídolos satânicos, conforme muitos de vocês confessaram?
- Confessaram sob tortura! Por tudo que me é mais caro, juro nunca ter
adorado ídolo algum e tampouco ouvi qualquer coisa a respeito.
- Chegou a renegar Cristo, cuspir na cruz, urinar sobre a Bíblia sagrada?
- Sei que me pergunta isto, pois você leu a minha confissão. Agora, perante
Deus, digo-lhe que jamais reneguei Cristo, nem cuspi na cruz ou urinei sobre a
Bíblia. Santo padre, só admiti tais pecados, pois fui submetido a tortura atroz...
- Reconheço, meu filho, que alguns interrogadores têm empregado métodos
abusivos para alcançar seus fins. Mas isso não vem ao caso agora. Diga-me...
sinto que você quer me revelar algo importante. Abra seu peito...
- Sim, eminência... tenho mesmo uma revelação extraordinária a fazer.
Preciso de um imenso favor...
Jacques de Molay solicitara a presença de um padre não apenas para se
confessar. O verdadeiro objetivo era pedir a ele que entregasse a Gilles de Sens o
seu diário, redigido na cadeia. Não podia deixar tais escritos caírem nas mãos do
rei, pois havia ali informações preciosíssimas a respeito da Ordem. A sua ideia
inicial era confiar os pergaminhos a algum companheiro do Templo, muitos dos
quais também se achavam presos em outras celas daquele calabouço, mas não
houve oportunidade, pois só se encontrava com eles pelos corredores sombrios,
quando eram levados para as câmaras de tortura. Agora, como a sua morte
estava marcada para o dia seguinte, não tinha outra alternativa. Por isso,
procurava estudar minuciosamente o caráter daquele cardeal que ele nunca vira
na vida, fitando-lhe o fundo de seus olhos, a fim de saber quais eram as suas
reais intenções.
- Conte-me tudo, meu filho. Sei que deseja se abrir comigo. Diga-me, para
onde foi levado o tesouro da Ordem?
Jacques de Molay estranhou aquela pergunta e, como queria ganhar tempo,
inquiriu:
- Que tesouro?
- Não se faça de sonso! Refiro-me à fabulosa fortuna que os templários
amealharam ao longo de duzentos anos, emprestando dinheiro a juros, recebendo
heranças e doações vultosas, espoliando os bens dos inimigos. Como fizeram
para sumir com toda a riqueza e onde ela foi escondida? Não há motivo algum a
temer. Lembre-se de que tudo aquilo revelado em confissão permanece em
segredo absoluto...
- Santo padre, juro-lhe que a Ordem do Templo não era tão rica como se
imaginava. A maior parte de seus bens constituía-se de terras, as quais
continuam onde sempre estiveram. De acordo com nossas regras, somos
obrigados a fazer votos de pobreza e nenhum cavaleiro pode possuir nada de seu,
a não ser as roupas do corpo. Durante anos, os templários financiaram reis que
jamais pagaram suas dívidas. Na verdade, estávamos muito endividados...
- Mente! Como deseja alcançar o céu procedendo dessa maneira? Sabemos
que o tesouro templário foi embarcado no porto de La Rochelle e apenas uma
pequenina parte dele foi encontrada no cais. Todo o resto desapareceu sem
deixar vestígios. Em nome de Deus, eu lhe ordeno: diga-me o local onde ele está
escondido!
Para Jacques de Molay, agora estava claro que aquele homem não tinha
boas intenções. Certamente, fora industriado por Felipe IV e seu diabólico
ministro para extrair o segredo do grão-mestre de qualquer maneira. Talvez o
sujeito nem mesmo fosse cardeal e, se confiasse seu diário a ele, seria como
deixar a raposa tomando conta do galinheiro. Não, não poderia arriscar. Em
último caso, queimaria seus escritos à noite, evitando assim que eles caíssem em
mãos erradas.
- O verdadeiro tesouro dos templários encontra-se em seus corações. Ali
estão a sua honra imaculada, o seu caráter incorrupto, a sua generosidade sem
interesse, o seu senso de justiça, o seu amor a Deus, ao próximo e às causas da
igreja. É aí que seu rei ganancioso, o qual nada sabe destes elevados
sentimentos, deve procurar o verdadeiro tesouro da Ordem.
O rosto redondo do falso religioso tornou-se cor de tomate, como se ele
estivesse tendo uma congestão. Quando se certificou de que apenas perdia
tempo, pois Jacques de Molay não iria lhe revelar coisa alguma, ele bateu com
seu bastonete nas grades de ferro a fim de chamar o carcereiro. Ao deixar a cela,
voltou seus olhos para o grão-mestre e lhe disse:
- Tenho pena de sua alma pecadora, que vai apodrecer no inferno, por
insistir nesta calúnia vergonhosa.
- Que Deus também lhe abençoe! Respondeu Jacques de Molay, ironizando.
Em seguida, o velho templário deitou-se ao fundo da cadeia sobre um
ajuntamento de palha que lhe servia de cama, fechou os olhos cansados e
permaneceu meditando em silêncio. Após tão longos e dolorosos anos de
cárcere, ainda se lembrava com clareza do dia em que se iniciara toda a
calamidade. Aquela data nefasta jamais se apagaria de sua memória, mesmo se
vivesse mais trezentos anos. Fora exatamente numa sexta-feira, treze de outubro
do ano da graça de 1307, um dia após ter carregado uma das essas do caixão de
Catarina de Courtenay, cunhada de Felipe IV, que o Templo de Paris fora
invadido pelos guardas do rei. Esta data trágica ficou marcada de tal forma na
mentalidade do povo que, tendo decorrido mais de setecentos anos desde aqueles
funestos acontecimentos, ainda hoje se costuma associar as sextas-feiras treze a
um dia agourento e de má sorte.
Naquela manhã aziaga, Jacques de Molay foi tirado da cama pelos guardas
do rei, os quais haviam invadido o Templo de Paris. Ele voltara tarde do enterro
de Catarina de Courtenay, pois a todo instante aparecia alguém desejando lhe
contar uma história qualquer, como se tivessem combinado isto de propósito,
para o reter ali o maior tempo possível. Felizmente, ao chegar à fortaleza dos
templários, todo o tesouro e os documentos já tinham sido despachados,
conforme a sua ordem.
Felipe IV arregimentara um imenso exército para levar a cabo aquela
operação. Centenas de soldados a cavalo cercaram o templo, ocupando as ruas
dos arredores. Os transeuntes que passavam por ali, empurrando carroças com
frutas, tocando gado ou apenas se dirigindo a seus afazeres, invariavelmente
paravam diante da propriedade da Ordem a fim de se informar sobre o motivo de
tal ajuntamento. Em pouco tempo, uma multidão de curiosos acotovelava-se por
toda parte e começou a circular o boato de que os templários seriam presos, pois
estariam adorando o demônio. O povo ficou surpreso e horrorizado com aquela
notícia, uma vez que as pessoas conheciam a excelente reputação dos cavaleiros
e os tinham em grande estima.
Quando parte dos guardas invadiu o Templo de Paris, Jacques de Molay
apareceu na sala principal e indagou-lhes:
- Mas o que está acontecendo aqui?
Um dos soldados adiantou-se aos outros e respondeu:
- Temos ordens de prender os templários!
Ao ouvir estas palavras, muitos cavaleiros que ainda guardavam o Templo
desembainharam as suas espadas, mas Jacques de Molay pediu a eles que as
guardassem. Em seguida, perguntou resoluto:
- Sob que acusação?
- Heresia! Foi a resposta de um guarda.
- Quem deu a ordem?
- O rei da França.
O grão-mestre encarou o jovem soldado e lhe disse:
- Pois saiba que o Templo só deve obediência ao papa e a mais ninguém. O
rei não tem autoridade nenhuma sobre esta casa.
- Nesse caso, levaremos todos à força!
Aquela ordem de prisão era de fato uma arbitrariedade de Felipe IV. O
abominável monarca havia passado por cima dos direitos do papa, pois apenas
ele possuía autoridade para punir os templários. Se quisessem, os cavaleiros
podiam ter resistido ao exército real, uma vez que eram considerados a mais
temível força militar da época e ainda permaneciam no Templo um grande
número de homens. Porém, Jacques de Molay reuniu-se com alguns outros
líderes e consideraram que deveriam apenas defender a cristandade, não lutar
contra os irmãos cristãos. Em vista disso, decidiram se entregar, confiando na
justiça. Afinal, sempre pautaram suas vidas pela prática do bem e não tinham
nada a temer.
Embora grande parte dos monges houvesse fugido na véspera, inúmeros
cavaleiros ainda se encontravam no Templo de Paris e acabaram sendo presos.
Os guardas do rei demoraram muito para descobrir que o tesouro e os
documentos da Ordem tinham sido levados ao porto de La Rochelle e de lá
embarcados a um destino desconhecido, proporcionando aos templários
ganharem um tempo precioso. Felipe IV esteve para parir um bezerro, tão
furibundo ficou, ao saber que não haviam descoberto uma única moedinha da
extraordinária fortuna dos Pobres Soldados de Cristo. Imediatamente, mandou
iniciar a prática da tortura para os malditos adoradores de Satanás soltarem a
língua.
O povo assistiu estarrecido àquela procissão singular, em que os guardas de
Felipe IV conduziam tantos homens reconhecidamente honestos para o cárcere,
feito carneirinhos seguindo ao abatedouro. Centenas de cavaleiros foram
abarrotados nos calabouços reais sem direito a qualquer julgamento. Dias depois
da prisão em massa, o papa Clemente V disse que Deus havia lhe aparecido em
sonho a fim de comunicar a ele que os templários eram culpados de heresia,
sodomia, blasfêmia e idolatria. Além disso, o Criador incumbira-lhe de purificar
a terra daquela chaga peçonhenta e escolhera o cristianíssimo rei da França para
conduzir uma nova cruzada do bem contra as forças das trevas. Na verdade,
Clemente V ficara numa posição muito embaraçosa frente à atitude de Felipe IV,
o qual passara por cima dos direitos do papa. Porém, como este era um fantoche
nas mãos do infame monarca, acabou cedendo às pressões dele e baixou uma
bula[7], ordenando a prisão dos cavaleiros do Templo. Em novembro de 1307,
escreveu a todos os reis da cristandade, afirmando que deveriam prender os
templários escondidos em seus reinos, além de colocar os bens e as propriedades
da Ordem à disposição da igreja. Assim, Clemente V tentava manter as
aparências, dando a entender que ainda estava no comando das ações.
Nos primeiros dias de prisão, Jacques de Molay ficou sabendo que alguns
templários tinham se desvirtuado dos preceitos estabelecidos pela Ordem.
Segundo lhe disseram, um antigo grão-mestre do Templo fora preso pelos infiéis
ao defender a Terra Santa e, para escapar do cárcere, prometera ao sultão
introduzir entre os Pobres Soldados de Cristo o costume de se adorar o demônio,
para desmoralizá-los aos olhos da Igreja e enfraquecer aquela ordem que tanta
dor de cabeça causara aos muçulmanos. Certamente, o número desses seguidores
de Satanás seria muito reduzido, pois durante todo o tempo em que presidira a
Ordem, jamais escutara qualquer coisa a tal respeito. Ao tomar conhecimento
dessa traição imperdoável, Jacques de Molay sentiu uma dor lancinante, como se
tivessem lhe arrancado os olhos com uma faca.
Os templários já haviam sofrido terrivelmente nas masmorras de Felipe IV,
quando Clemente V decidiu demonstrar que era um papa magnânimo e resolveu
conceder um julgamento aos miserandos cavaleiros de Cristo. Inúmeros bispos e
três dos mais influentes cardeais fizeram questão de estar presentes ao circo
armado por Sua Santidade. Em um de seus discursos, ele assegurara que nenhum
prisioneiro sofreria qualquer espécie de tortura e todos receberiam um
julgamento justo!
Jacques de Molay foi conduzido a um tribunal, onde se esperava que ele
defendesse a Ordem do Templo. A sala estava tomada por religiosos de todas as
partes da Europa e muitas pessoas acabaram ficando do lado de fora, pois não
existiam acomodações para tanta gente. A audiência teve início com a leitura de
um texto encomiástico em favor do cristianíssimo rei Felipe IV, insuperável
guardião dos bons costumes e verdadeiro baluarte da fé. Por causa de seu infinito
zelo religioso, foi o primeiro a perceber que os templários representavam uma
grande ameaça à cristandade e, não apenas os mandou prender em solo francês,
como também escreveu uma carta aos monarcas vizinhos, pedindo a detenção de
todos os cavaleiros por crimes “horríveis de contemplar, terríveis de ouvir, uma
obra abominável, uma desgraça detestável, uma coisa quase inumana, na
verdade desprezada por toda a humanidade”.
Em seguida, foram lidos esses crimes “horríveis de contemplar, terríveis de
ouvir...”, os quais Felipe IV descrevera de maneira tão veemente. Antes de tudo,
os templários foram acusados de renegar Cristo e cuspir na cruz, conforme o
próprio Jacques de Molay havia confessado. Muitos cavaleiros seguiram o
exemplo do grão-mestre, confirmando esta exigência durante a cerimônia
iniciatória. A segunda acusação sofrida pelos templários referia-se à prática do
homossexualismo. Mesmo sob tortura e admitindo outras faltas, poucos monges
confessaram tais vícios. Alegou-se também que os padres do Templo se
recusavam a pronunciar as palavras de consagração durante as missas, embora
muitas testemunhas disseram que os ofícios realizados nas igrejas da Ordem
eram os mais belos de todos. Por fim, acusaram os templários de render culto ao
demônio.
Para ilustrar ainda mais aqueles crimes hediondos, um dos cardeais tomou a
palavra e passou a ler parte da carta que recebera do rei francês. Dizia o
seguinte:
“Eu, Felipe IV, rei da França por vontade de Deus todo poderoso, ouvi
relatos de pessoas dignas de fé, que os irmãos do Templo, autênticos lobos em
pele de cordeiros, insultaram miseravelmente nossa santa religião e
crucificaram em nossos dias outra vez Nosso Senhor Jesus Cristo, enchendo-o
de injúrias mais graves do que aquelas sofridas na cruz, pois eles o negam três
vezes e lhe escarram na face. Em suas cerimônias de iniciação, despojados das
roupas envergadas na sua vida secular, nus, postos em presença daqueles que os
recebem, são beijados por eles, de acordo com o rito odioso da sua Ordem:
primeiro na base da espinha dorsal, depois no umbigo e, finalmente, na boca,
para vergonha da dignidade humana. E após terem ofendido a lei divina por
meio de feitos tão abomináveis e atos detestáveis, obrigam-se a se entregarem
uns aos outros, sem recusa, desde que lhe seja pedido, por efeito do vício de um
horrível e pavoroso concubinato. E foi por isso que a cólera de Deus se abateu
sobre esses filhos da infidelidade, sobre essa gente imunda!”
O falso cardeal deixara a cadeia já fazia algumas horas, quando uma ideia
iluminou o cérebro do grão-mestre. Por que não entregar o seu diário ao
carcereiro e pedir a ele para levar os manuscritos em sigilo até as mãos de Gilles
de Sens, um dos preceptores do Templo? Provavelmente, o bom homem não
recusaria esta tarefa, embora pudesse até mesmo ser preso e torturado por ajudar
os prisioneiros. Em todos estes anos, Jacques de Molay comprovara que ele era
uma pessoa honrada e disposta a acudir os monges, pois se achava em dívida
com a Ordem. Convencido por este pensamento, o velho templário apanhou sua
caneca e pôs-se a bater com ela nas grades, gritando de maneira desesperada:
- Água! Preciso de água, pois estou sufocando com tanta sede!
O carcereiro apareceu pouco depois e disse-lhe que iria buscar a moringa.
Jacques de Molay segurou-o pelos braços e proferiu:
- Espere, meu amigo, tenho algo a lhe pedir...
Explicou-lhe então tudo muito detalhadamente. Com o pergaminho e a tinta
que o carcereiro lhe trazia escondido, havia escrito um diário, um documento
assaz importante para o destino da Ordem, pois registrara nestas páginas muitos
segredos. Se por infelicidade tais escritos caíssem nas mãos do infame rei da
França, a calamidade seria completa. Era necessário entregar de alguma maneira
aqueles pergaminhos a Gilles de Sens, o qual não fora preso, uma vez que
conseguira fugir de Paris.
- Meu amigo, posso contar com você para esta tarefa?
- Sabe que devo minha vida e de minha família aos templários e estou
disposto a fazer qualquer coisa para os auxiliar. Dê-me os documentos! Esta
noite mesmo estarão fora de Paris e a caminho de Gilles de Sens, onde quer que
ele esteja.
Porém, quando Jacques de Molay ia lhe dar o precioso diário, eles ouviram
passos ruidosos se aproximando e o carcereiro foi ver o que estava acontecendo.
Pouco depois, uma comitiva de notáveis postou-se diante das grades do cárcere,
tendo a frente o próprio rei da França, Felipe IV, o belo. O cheiro nauseabundo
de cloaca que emanava das imundícies espalhadas por toda parte deve ter
desagradado as narinas fidalgas de homens pouco acostumados a ambientes
sórdidos como aquele. O monarca pediu para o carcereiro abrir a porta, pois
precisava falar com o miserável templário. O homem enfiou a grossa chave no
cadeado e correu a tranca. Felipe IV entrou na cadeia, seguido por Guilherme de
Nogaret, alguns nobres e muitos guardas reais. Ao ver que Jacques de Molay não
lhe concedeu a menor reverência, bradou de maneira arrogante:
- Ajoelhe-se diante de seu rei!
- Ajoelho-me apenas diante de meu Deus! Respondeu o grão-mestre.
Felipe IV sentiu seu sangue queimando-lhe as vísceras em virtude de
tamanho desrespeito. Por muito menos, já tinha mandado arrancar a língua de
outros atrevidos com pinças em brasas, mas se conteve, pois isto de nada o
ajudaria e, afinal de contas, aquele servo das trevas já se achava condenado à
fogueira. Viera até ali para obter dele a confissão que estava tirando seu régio
sono, ou seja, para onde fora conduzido o tesouro da Ordem.
- Sabe que tenho poder sobre sua vida e a de qualquer pessoa nos domínios
da França? Basta uma palavra minha para o livrar da fogueira...
- O poder que você possui não provém de seus méritos e sim porque Deus o
concedeu a seus ancestrais. Infeliz o rei que não sabe repartir a justiça entre os
seus súditos...
- Não me venha com sermão, seu velho dissoluto! Não tenho tempo a
perder! Diga-me para onde foi levado o tesouro do Templo e eu lhe garanto o
perdão real...
- Já lhes disse! A Ordem se encontrava muito empobrecida por financiar
reis incompetentes e caloteiros. A maior parte do patrimônio dos templários era
constituída por terras, as quais foram confiscadas pela igreja, segundo ouvi
dizer...
- Insiste nessa mentira absurda? Grande bêbado, ainda procura defender
uma confraria morta? Inúmeros cavaleiros confessaram que a imensa fortuna em
moedas de ouro foi levada em carroças até o porto de La Rochelle e de lá partiu
para um destino ignorado...
- Nada sei sobre isso!
- Sabe muito bem e lhe ordeno que me diga a verdade! Caso contrário,
mandarei executar todos os templários aprisionados nas masmorras da França. A
vida de seus companheiros está em suas mãos! Portanto, se o sangue de
inocentes correr, Deus é testemunha de que não terei culpa alguma...
Ao ouvir tais palavras, a alma de Jacques de Molay foi tomada de horror.
Não podia acreditar que aquele homem era tão torpe e desprezível, a ponto de
incriminá-lo pela morte anunciada de todos os seus confrades. Se tivesse com
sua espada, deceparia a cabeça do ignóbil monarca para livrar a França de sua
vergonhosa opressão. Porém, isso não era possível e o grão-mestre se manteve
em silêncio, pois nada mais tinha a dizer ao rei. Como este percebeu que seu
interlocutor não abriria a boca, resolveu partir, afirmando:
- Tem até amanhã para me dar a resposta.
A madrugada foi longa e o grão-mestre não conseguiu dormir um momento
sequer. Durante toda a noite, meditou se deveria entregar o seu diário ao
carcereiro. Não duvidava dele, muito pelo contrário. Sabia que era um homem
honrado e estava disposto a ajudar a Ordem. Porém, receava que os guardas do
rei desconfiassem de algo e o seguissem a fim de roubar o pobre sujeito. Se por
uma infelicidade aqueles escritos caíssem nas mãos do ganancioso monarca,
fatalmente ele acabaria encontrando o tesouro do Templo.
Jacques de Molay escrevia de maneira lenta e levou anos redigindo o diário,
que apresentava algumas incoerências. A princípio, a sua ideia não era revelar às
claras o local onde os templários haviam escondido o dinheiro da Ordem. Achou
menos perigoso ir colocando algumas indicações um tanto vagas ao longo do
texto, como um verso enigmático que falava a respeito de certa rainha escura.
Chegou mesmo a fazer um desenho dela, segurando uma flor numa das mãos.
Embaixo, pôs a seguinte frase: a rainha negra com a flor amarela. Porém,
enquanto escrevia o diário, Jacques de Molay começou a desconfiar de que as
pistas deixadas por ele naquelas páginas fossem insuficientes para a revelação de
tal mistério. Temendo não ser compreendido, acabou por dizer claramente o
local onde os templários esconderam o tesouro. Talvez tenha se arrependido e,
durante aquela madrugada interminável, inúmeras vezes ameaçou destruir os
pergaminhos, levando-os até a chama de uma vela. Mas no derradeiro instante,
algo em seu interior lhe dizia que aquilo não era a atitude correta a ser tomada e
ele afastava as folhas do fogo, salvando o diário da destruição completa.
A ameaça feita por Felipe IV também não saía de sua cabeça. O caráter
desprezível do rei da França era bem conhecido e, por isso, o grão-mestre tinha
absoluta certeza de que, mesmo se lhe revelasse o lugar onde estava o tesouro,
ele não pouparia a vida dos cavaleiros. Continuaria a deixá-los apodrecer nos
calabouços fétidos onde estavam, pois odiava a todos terrivelmente.
Uma terceira dúvida ainda o atormentava. Segundo haviam lhe dito, dentre
os homens incumbidos de levar o tesouro dos templários ao seu destino, existiam
alguns cavaleiros adoradores do demônio. Tal notícia deixara-o perturbado
demais, chegando a escrever sobre essa possibilidade no diário. Como a
informação recebida por ele era muito vaga, talvez nem fosse verdadeira. De
qualquer forma, receava que esses miseráveis pudessem levar o tesouro para
outra parte qualquer e somente se tranquilizou, quando o carcereiro lhe sussurrou
que alguns cavaleiros fugidos tinham lhe garantido que tudo correra conforme o
planejado.
No dia seguinte, ao cair da tarde, Jacques de Molay escutou passos se
aproximando da cela e viu que se tratava de Felipe IV e Guilherme de Nogaret.
Ao lhes reconhecer a silhueta no final do corredor escuro, cercados pela guarda
real, o grão-mestre desesperou-se, pois ainda não tinha decidido o que fazer com
o seu diário. O tempo esgotara-se. Agora, só lhe restava entregar os manuscritos
ao carcereiro e confiar em Deus. Antes, porém, cheio de aflição, folheou o livro
em busca de uma página em especial, justamente aquela em que revelava o local
exato para onde os cavaleiros do Templo haviam levado o tesouro. Quando a
encontrou, teve apenas tempo de arrancá-la do diário e a comeu com grande
dificuldade. Nesse momento, o carcereiro abriu a porta da prisão e o rei
adentrou, seguido por seu séquito.
Jacques de Molay tinha amarrado as folhas de pergaminho com pedaços de
cordas muito finas, mas bastante resistentes. Discretamente, escondeu o livro
entre suas roupas andrajosas e esperou uma oportunidade para o entregar ao
amigo. O rei foi direto ao assunto e lhe indagou qual havia sido a sua decisão,
lembrando-lhe que a vida dos templários dependia dele. Com o peito dilacerado,
o grão-mestre respondeu que nada podia fazer por seus confrades, pois não
existia tesouro algum. Isto fez Felipe IV se contorcer de ódio e só não lhe
decepou o pescoço com sua espada, porque Guilherme de Nogaret lhe deteve o
braço. O cruel ministro era menos impulsivo que o monarca estouradinho e
estava disposto a aceitar qualquer negócio para conseguir aquela informação.
Fitando os olhos do velho cavaleiro, disse:
- Felipe IV, rei da França por graça e vontade de Deus, para provar a sua
magnanimidade, concorda em lhe conceder liberdade imediata em troca deste
segredo que você se recusa a nos revelar.
O monarca confirmou a proposta de seu ministro:
- Eu lhe prometo que os templários terão um julgamento justo e ainda hoje
você deixará este calabouço. Dou-lhe a minha palavra!
O grão-mestre cuspiu no chão, perto daquele rei perverso e bradou:
- Para mim, a sua palavra vale menos que esterco de gado!
Ao ouvir tamanha afronta, Felipe IV enfureceu-se, seus olhos quase se
despregaram das órbitas, e ele empurrou de forma violenta Jacques de Molay, o
qual caiu sobre o carcereiro. Guilherme de Nogaret precisou segurar o monarca
furibundo, que se achava deveras alucinado, e desejava matar o desafeto ali
mesmo. Durante o tumulto, o templário aproveitou para colocar seu diário nas
mãos do amigo, que compreendeu sua intenção, e o escondeu discretamente no
interior de suas vestes. Enlouquecido pela cólera, o rei ordenou:
- Queimem já esse devasso!
No mesmo instante, ele foi levado para a enorme estaca numa pequena ilha
do rio Sena. As pessoas gostavam muito de assistir a esse tipo de espetáculo e,
em pouco tempo, uma multidão curiosa passou a se aglomerar diante do local
onde arderia a fogueira. O céu estava tomado por nuvens carregadas, indicando
que desabaria forte tempestade a qualquer momento. Inúmeros pássaros voavam
de uma árvore a outra, procurando um melhor lugar para se esconder. Como a
noite desceria em breve sobre a cidade, os homens incumbidos de amontoar a
lenha trabalharam rápido. Quando tudo ficou pronto, trouxeram Jacques de
Molay e o amarraram na estaca. Todos ficaram surpresos ao ver que o
condenado era um ancião com cerca de setenta anos e aparentava ser bastante
inofensivo. Porque ninguém o conhecia ou não mais se lembrava dele,
indagavam-se qual teria sido o hediondo crime cometido pelo malfadado
velhinho, que provocara tamanha cólera em Felipe IV. A população somente
tomou conhecimento que se tratava do último grão-mestre do Templo, ao
declinarem o seu nome, o seu cargo e a lista de seus crimes. Ninguém podia
acreditar em todas aquelas acusações levianas, pois as pessoas estimavam os
cavaleiros templários e sabiam muito bem a espécie de rei que tinham.
Diante da estaca, protegidos por inúmeros soldados a fim de não se
misturarem à plebe grosseira, estavam Felipe IV, Guilherme de Nogaret e o
próprio papa, Clemente V. Ao contrário do que costumava acontecer nesses tipos
de espetáculo, o povo assistia a tudo em respeitoso silêncio, com o espírito
mortificado, pois sabia que estavam cometendo uma tremenda injustiça. Era só
olhar a face do rei para ver com que satisfação ele aguardava o momento do fogo
ser ateado às achas.
Pouco antes da fogueira ser acesa, um frade postou-se em frente à estaca
com um crucifixo nas mãos e pôs-se a orar pela alma de Jacques de Molay. Ao
ouvir aquelas preces, as quais lhe soaram como pura hipocrisia, o grão-mestre
ergueu sua cabeça e bradou:
- Guardai vossas orações para o papa, pois este sim, precisará delas!
Um murmúrio correu de boca em boca, até que outra vez se fez silêncio e
Jacques de Molay proferiu:
- Senhor meu Deus, perdoai aqueles que caluniaram a Ordem da qual Vossa
Providência me fez chefe, apesar de meus escassos méritos. Neste derradeiro
instante de minha existência, declaro a todos vós que estais prontos para ver meu
corpo ser consumido pelas chamas, que sou culpado de um crime abominável.
Mas meu crime foi ter admitido as ignóbeis acusações feitas contra os
templários. Somente agi assim, porque fui torturado de maneira cruel e afirmo a
todos vós que a pureza e santidade da Ordem estão acima de qualquer suspeita.
Minha vida me foi oferecida em troca de uma traição; mas por esse preço, não
vale a pena ser vivida.
O rei ordenou que a fogueira fosse acesa. Então, enquanto Jacques de
Molay estava sendo consumido pelas chamas, em meio a gritos lancinantes de
dor, ainda conseguiu proferir suas últimas palavras, terríveis ameaças ao
ministro, ao rei e ao papa:
- Vós, ministro diabólico e libertino, em vez de tecer intrigas na corte,
difamando a dignidade de uma Ordem que sempre pautou sua existência em
defesa da fé cristã, deveríeis saber melhor aconselhar vosso rei, pois para isto
fostes alçado ao cargo que ocupais; Vós, papa de Satanás, subserviente e
corrupto, deveríeis zelar por vosso rebanho, procurando encaminhar a alma dos
fiéis para a glória celeste e não prostituir o trono de São Pedro, dobrando-vos a
interesses mesquinhos, como fizestes durante todo o vosso pontificado; E vós,
rei ganancioso, traiçoeiro, desleal e hipócrita, que trazeis no peito um ninho de
escorpiões em vez de um coração humano, deveríeis dedicar-vos ao bem-estar
do povo e não apenas ao vosso real umbigo. Lembrai-vos que sois lama e nada
levareis desta terra onde marcastes a planta de vossos pés. Pois quem tiver
ouvidos, ouça: ainda este ano todos vós estareis mortos e vos intimo a
comparecer diante do tribunal de Deus para responder por vossos crimes!
Após Jacques de Molay ter amaldiçoado os três, uma balbúrdia tomou conta
da praça, pois muita gente falava e berrava ao mesmo tempo. Felipe IV,
apoplético, com os olhos cuspindo chamas, mandou que acrescentassem palha
molhada à fogueira, para que a fumaça sufocasse imediatamente as palavras do
odioso templário. Aos poucos, as pessoas tornaram outra vez a fazer um silêncio
respeitoso, bastante consternadas, como se tivessem tomado consciência da
selvageria atroz que atos como aqueles representavam. Era possível ouvir apenas
o murmúrio das labaredas e a gargalhada execranda, demoníaca, depravada, do
depravado ministro, do demoníaco papa e do execrando monarca. Suas risadas
pareciam ecoar pela ilha inteira, como um réquiem funesto e perverso. Porém,
enquanto saboreavam sua vingança, a multidão que presenciava aquele
espetáculo hediondo passou a se pôr de joelhos, ao constatar que o corpo de
Jacques de Molay havia se incendiado, mas as suas vestes não queimavam! O
rei, o ministro e o papa entreolharam-se cheios de horror, pois jamais tinham
visto uma coisa daquelas. Clemente V fez uma prece pela alma do velho
templário e disse consigo:
- Este homem era, na verdade, inocente...
Cerca de um mês após a morte do último grão-mestre do Templo, o papa
morreu subitamente. Antes de terminar aquele fatídico ano de 1314, seguiram-no
para o túmulo Guilherme de Nogaret e o próprio rei da França, Felipe IV, dito o
belo, que faleceu em virtude de um acidente a cavalo, enquanto caçava, após seu
cavalo ter empinado, esquivando-se misteriosamente de algo que ninguém nunca
soube o que era. Estava terminado. A maldição de Jacques de Molay cumprira-se
exatamente como ele previra.
A primeira torre
*
Na manhã seguinte, após tomarem café e terem acertado suas despesas, eles
se despediram das mulheres e partiram. Os céus estavam cobertos por nuvens
carregadas, indicando que poderia voltar a chover de uma hora para outra.
Enquanto caminhavam pelas ruas de Paris, observando o comércio abrindo as
portas, Michael e Michele voltaram a conversar sobre o enigma templário. Ao
contrário das duas primeiras torres, agora eles sabiam o que procurar. Com toda
certeza, as pistas escondidas pelos cavaleiros da Ordem deveriam seguir um
padrão, ou seja, era muito provável que os monges tivessem colocado letras
também nas outras torres. Unidas, elas formariam uma palavra-chave, revelando
o local onde o demônio havia sido aprisionado.
Até agora, eles tinham descoberto duas letras, um S e um E. Assim
isoladas, porém, não faziam qualquer sentido. Michele perguntou ao namorado o
que dizia a terceira trovinha de Jacques de Molay. Hoje pela manhã, antes de
beber seu café, o rapaz a anotara num pedaço de papel, guardando-o dentro de
um dos bolsos de seu sobretudo. Ele apanhou a folha em suas mãos e pôs-se a
recitar os seguintes versos:
Não parecia uma pista difícil de ser decifrada. Bastava descobrir quem era
esse monarca misterioso e onde ficava o seu reino, que o enigma estaria
resolvido. Enquanto Michele divertia-se jogando Paciência, o rapaz ligou o seu
computador e, durante algum tempo, permaneceu pesquisando sobre o assunto
na internet. Ao digitar a palavra “Gerion” no Google, ficou sabendo que,
segundo a mitologia grega, ele fora um rei da antiga cidade de Brigantium,
localizada em terras espanholas. A sua história está ligada à lenda de Hércules e
a um de seus doze trabalhos. Gerion era um tirano terrível, o qual oprimia os
seus súditos. Segundo Hesíodo, tratava-se de um gigante com três cabeças, seis
braços e seis pernas num único corpo, tido como o mais forte dos homens, que
guardava os seus rebanhos com um cão de duas cabeças. Hércules fora
incumbido por Euristeu a combater Gerion e lhe furtar os bois. O duelo travado
entre o filho de Júpiter e o gigante foi colossal, estendendo-se da aurora ao
entardecer, pois nenhum dos dois conseguia subjugar o adversário. Finalmente,
Hércules matou o tirano, enterrando a sua última cabeça junto ao oceano
Atlântico.
Esta descoberta deixou o rapaz outra vez animado, tanto que gritou para
Michele:
- Descobri algo importante...
A menina largou o baralho e veio se colocar de pé, atrás da cadeira onde
Michael estava sentado.
- Diga! Exclamou a jovem.
- Este Gerion foi rei de uma antiga cidade espanhola. A sua história liga-se
à lenda de Hércules, que o matou após uma luta terrível...
- Qual cidade? Fale de uma vez!
- Ainda não sei, mas é fácil desvendar este mistério...
Ao dizer isto, Michael digitou a palavra “Brigantium” na tela de seu
notebook e descobriu que se tratava do antigo nome da cidade de La Coruña, na
Espanha. Entusiasmado, ele bradou eufórico:
- Veja! Com toda certeza, a quarta torre do demônio encontra-se em algum
lugar em La Coruña ou seus arredores...
- Só nos resta saber exatamente onde! Concluiu Michele.
Naquela página da internet, havia inúmeras fotos em miniatura da cidade
espanhola, com diversos pontos turísticos curiosos. Michael foi clicando nos
ícones das imagens a fim de ampliá-las. A certa altura, apareceu o escudo de La
Coruña e Michele pediu para o rapaz esperar um instante. Após analisar a
fotografia com atenção, a menina proferiu:
- Não acha estranho o escudo de uma cidade apresentar ossos cruzados e
uma caveira, como se quisesse simbolizar a própria morte?
- Agora que você disse...
Era verdade. No escudo de La Coruña destacava-se, além de uma coroa,
símbolo da realeza, uma insólita torre por cima da referida caveira. O rapaz
passou o cursor do mouse sobre a foto, fazendo com que aparecesse a seguinte
legenda: “escudo de La Coruña, onde se vê a caveira do gigante Gerion,
enterrado sob a torre por Hércules”. Ao ler esta informação, Michele arregalou
os olhos e proferiu:
- O túmulo de Gerion! É aí que se eleva a quarta torre!
Sem perder tempo, Michael escreveu no Google as palavras “La Coruña”,
“torre” e “Gerion”, surgindo vários sites ligados à Torre de Hércules.
- A Torre de Hércules! Não há dúvida alguma! É lá que devemos procurar a
pista deixada pelos cavaleiros templários. Exclamou a menina.
O rapaz concordou com a jovem e foi apanhar o diário de Jacques de
Molay.
- Olhe! Até a trovinha do velho grão-mestre confirma este local, ao sugerir
que se deve cavar a trinta passos do farol. Ora, a Torre de Hércules foi construída
pelos romanos justamente como um farol náutico...
- E o que dizem os versos? Inquiriu Michele, curiosa.
Vendo o interesse da menina, o rapaz impostou a voz e leu o poema:
Poderia ainda ser o falso profeta, mas não a própria besta apocalíptica.
Outro possível anticristo, na ótica do rapaz, era Macrino. Coincidência ou não,
ele também possuía um sinal de nascença na cabeça, ou seja, uma espécie de
cruz templária marcada na testa. Infelizmente, Michael só sabia o seu primeiro
nome (e nem isto de seu companheiro atarracado). Mesmo assim, decidiu
conferir qual seria o valor numérico dele.
Aparentemente, os números pessoais dos dois não apresentavam qualquer
ligação com o número da besta. O rapaz ficou um tanto desapontado, guardou
aquela folha outra vez em sua carteira e deu alguns passos até a janela para
respirar um pouco de ar fresco. Logo depois, Michele retornou da lavanderia,
trazendo numa das mãos as roupas limpas e na outra um saco de frutas, com
muitas peras, maçãs e uvas. Michael surpreendeu-se com aquela novidade e
inquiriu:
- O que é isto? Foi fazer compras na quitanda?
A menina riu da pergunta, fechou a porta do quarto e respondeu, exibindo
duas lindas covinhas em seu rosto:
- Não... a simpática hospedeira quem me deu estas frutas...
- E por que ela fez tamanha generosidade?
- Porque eu lhe consertei a máquina de lavar roupa...
Michael fitou a namorada com um semblante espantado, indagando:
- E você entende dessas coisas?
- Não entendo nada... Eu apenas queria lavar as roupas e a máquina não
estava funcionando. Então, vi alguns parafusos soltos no motor, pedi a ela uma
chave de fenda e os apertei. Em seguida, liguei a máquina e, para minha
surpresa, ela começou a funcionar... A mulher ficou tão agradecida, que me deu
este saco de frutas e permanecemos conversando por um bom tempo. O inglês
dela é péssimo...
- Ah! Então está explicado o motivo de sua demora...
Michele fez um muxoxo adorável, sentou-se no colo do moço, enlaçou seu
pescoço com braços repletos de ternura e disse:
- Bobo! Não fique zangado por isso. Coma uma fruta!
Ela apanhou algumas uvas e as pôs na boca do rapaz, que lhe lambeu os
dedos. Como ele fez uma careta esquisita, a jovem quis saber a razão:
- Estas uvas estão azedas!
Após provar uma delas, a menina cuspiu o bagaço, exclamando:
- Mas que vaca! Estão horríveis...
Depois, cortaram outras frutas e descobriram que as maçãs estavam podres
e as peras, completamente secas e emboloradas. Michael riu daquele presente
inútil e comentou:
- A boa mulher lhe deu apenas o lixo que ia deitar fora...
Porém, Michele não gostou da piada, tornando-se uma fera. Afinal, havia
lhe consertado a máquina de lavar e era assim que a megera lhe demonstrava a
sua gratidão? Ela levantou-se soltando uma fumarada de ódio pelas narinas,
dirigiu-se à janela e esquadrinhou o quintal com olhos de predador faminto
diante da caça. Lá embaixo, a hospedeira lavava tranquila uma trouxa de roupas
no tanque. Fulminada pela cólera, a menina bradou:
- Ô velha, as frutas que você me deu estavam todas estragadas!
A mulher parou de enxaguar um vestido, virou seu rosto para cima,
indagando:
- O quê?
- As frutas estavam podres! Você me deu lixo!
- Pois foi muito bem feita! O conserta que você fez em meu máquina de
lavar não serviu para nada. Fique sabendo que ela já parar de funcionar... por
isso estou me esfalfando aqui na tanque...
- Se quer um serviço profissional, chame um técnico especializado...
As duas começaram a bater boca. Michele sempre fora pirracenta e, até
certo ponto, vingativa. Por sua vez, a hospedeira também não era flor que se
cheirasse e parecia bastante malcriada. Ela passou a proferir os piores palavrões
em espanhol, que certamente Michele não entendeu, exceto um deles, de quatro
letras, aliás, bastante parecido em italiano. A certa altura, voltando ao inglês,
disse:
- Se não estar satisfeita com os frutas que lhe dei, então devolve pra eu!
Ao ouvir aquela frase, a menina perdeu completamente a paciência,
apanhou o saco sobre a cama e pôs-se a atirar as peras e maçãs em cima da
infeliz, berrando furiosa:
- Então tome, sua bruxa! Tome... tome... tome...
A sujeita procurou esquivar-se como pôde, mas foi atingida diversas vezes
nas nádegas, costas e cabeça. Michael ainda tentou impedir a namorada de
continuar atirando as frutas na pobre mulher, mas não o fez com tanto empenho
quanto deveria, pois, no fundo, também estava gostando daquela cena patética.
Quando a munição chegou ao fim, o rapaz cingiu a cintura da jovem e a trouxe
para trás, de maneira que os dois caíram sobre a cama, rindo à larga daquela
travessura. Ao recuperar o fôlego, Michele disse:
- Pena que ela não havia me dado de presente ovos podres!
- Você é perversa! Sussurrou o moço, deitando inúmeros beijinhos
carinhosos sobre o queixo e o pescoço da amada.
- Ela mereceu...
- Bom, eu não queria mesmo almoçar frutas! Que tal a gente ir até La
Coruña e comer alguma coisa por lá?
- Ótimo, estou faminta!
Ao descer as escadas, eles pegaram o carro em frente à hospedaria e
seguiram para a cidade. Michael ligou o rádio, sintonizando uma estação onde se
tocavam antigas canções italianas românticas. A temperatura estava mais quente
do que na véspera e era a primeira vez, em muitos dias, que os dois puderam sair
à rua vestidos à vontade, de shorts e camiseta. Após estacionar o carro próximo à
praia, eles dirigiram-se a um restaurante especializado em frutos do mar,
sentaram-se numa espécie de varanda, praticamente junto ao passeio, e
almoçaram.
Durante quase toda a tarde, até para evitar um encontro imediato com a
furiosa dona da hospedaria (que poderia ter ido buscar alguma ajuda masculina)
eles permaneceram caminhando pela praia ou descansando à sombra de alguma
árvore, diante do mar infinito. Enquanto tomavam um sorvete, Michele indagou:
- Qual a sua opinião a respeito da pista que encontramos de madrugada?
- Olha, para lhe dizer a verdade, fiquei um tanto surpreso e confuso.
Esperava achar outra pedra com uma letra e acabamos descobrindo uma cruz de
prata e uma corrente velha...
- Também fiquei confusa!
- Deve ser uma pista muito importante para romper com o que nós supomos
ser a sequência lógica e os cavaleiros templários não a colocaram ali à toa.
Acredito que, ao juntarmos todas as letras, estes dois objetos serão a chave desse
misterioso e extraordinário quebra-cabeça.
- Uma cruz, uma corrente... estaria Satanás de fato preso em um cemitério?
- É possível, mas só saberemos se encontrarmos as outras pistas. Por
enquanto, temos a sílaba SEP, além da cruz de prata e da velha corrente. A
hipótese do demônio ter sido aprisionado em um sepulcro é grande e não pode
ser descartada.
O sol começava a se esconder atrás do oceano, quando eles resolveram
partir. Ao chegarem à hospedaria, Michele se lembrou de apanhar o resto das
roupas que ela tinha deixado lá secando, e disse para o rapaz ir subindo na
frente. Contudo, ele preferiu aguardar, pois temia que a hospedeira aparecesse ali
e as duas tornassem a discutir.
Perto das dez horas da noite, o telefone tocou no quarto. Michael estava na
janela, observando a chuva que voltara a cair desde o final da tarde. Dessa vez,
ela viera acompanhada por fortes rajadas de vento e trovoadas. Ao ouvir o toque
do celular, o moço assustou-se, pressentindo notícias desagradáveis. Michele
quis saber se ele atenderia e ofereceu-se para buscar o aparelho no bolso do
sobretudo. Após ter apanhado o telefone das mãos da menina, viu que o número
era o mesmo daquela manhã e exclamou:
- Pronto!
- Olá, Michael! Enfim conseguimos falar com você! Ligamos durante toda
a tarde...
Ao reconhecer a voz rouca de Macrino, disse resoluto:
- O que deseja?
- Você nos enganou e vai pagar caro por isso!
- Eu não enganei ninguém! Fiz tudo como havíamos combinado. Vocês é
que não cumpriram com o prometido e mataram o pobre Celestino!
- Seu moleque! Arrancou de propósito a página do diário em que Jacques
de Molay ia revelar o local para onde os cavaleiros templários levaram o
tesouro!
- Não arranquei nada! O livro está assim, juro-lhes pela alma de meu pai!
Eu não seria louco de estragar uma obra rara como essa. Além disso, já lhes
disse e repito: não estou interessado neste tesouro, se é que ainda existe algum
após todos estes séculos!
- Vou ser breve e claro. Queremos os originais do diário e também os outros
livros descobertos por você, pois temos a certeza de que eles revelam quem é a
rainha escura, onde se localizam os seus domínios e o que significa esse tríplice
phallus, em cuja sombra repousa a fortuna da Ordem.
- Não vou lhes entregar nada, seus bandidos!
- Veremos! Já estamos chegando à cidade de La Coruña e vamos pegar os
livros daqui a poucos minutos; depois, daremos cabo de você e dessa vadia...
Ao dizer isto, Macrino desligou o telefone. Michael comunicou à namorada
que precisavam sair dali imediatamente, pois aqueles assassinos sabiam onde
eles se encontravam e vinham para os matar. Michele achou estranha aquela
história e disse:
- Talvez a intenção desses facínoras seja outra. Quem quer matar alguém,
não liga avisando...
- Também penso que seja um blefe, mas não estou disposto a pagar para
ver...
A tempestade continuava forte e a noite havia esfriado muito. Sem perder
um segundo sequer, eles apanharam todos os seus pertences e saíram do quarto,
deixando a luz acesa. O corredor estava escuro e os dois desceram as escadas
saltando os degraus de três em três. Após abrirem a porta da entrada e terem se
certificado de que os bandidos não se escondiam ali fora, eles correram até o
carro debaixo da chuva intensa, molhando-se bastante. O rapaz teve certa
dificuldade em colocar a chave no contato, pois seus dedos tremiam feito
gelatina. Por um momento, lembrou-se dos inúmeros filmes de suspense a que já
havia assistido e imaginou que o motor não pegaria, como costumava acontecer
nesses casos, para desespero dos mocinhos. Felizmente, o carro ligou com
facilidade e eles partiram apressados, seguindo pela autopista.
Não faziam a menor ideia para onde deveriam seguir. Àquela hora da noite,
a estrada achava-se praticamente deserta e um sentimento de solidão terrível,
angustiante, parecia inundar toda a terra. Através das janelas embaçadas, os
pingos da chuva escorriam ligeiros, dificultando ainda mais a visão externa.
Com a manga de sua camisa, Michele esfregou um pedaço do vidro e
permaneceu admirando aquela paisagem gelada. Lá fora, os campos sinistros
corriam velozes, dando a impressão de que vultos medonhos, habitantes das
trevas, escondiam-se por entre o mato negro. A chuva colidia contra o pára-brisa
às golfadas, fazendo o limpador espalhar água para todo lado. Se lhes dissessem
que o mundo estava acabando com outro dilúvio, acreditariam com toda certeza.
Tinham rodado por cerca de uma hora, quando um automóvel aproximou-se
velozmente, lançando com insistência o farol alto contra o espelhinho do carro
deles. Michael não gostou daquilo e meteu o pé no acelerador, abrindo alguma
distância do incômodo motorista. Para sua surpresa, o sujeito também acelerou e
dois tiros foram ouvidos, enchendo-os de medo. Não existia mais qualquer
dúvida: era Macrino!
A perseguição que se deu em seguida foi espetacular e terrivelmente
dramática. Não era fácil para o rapaz conduzir o veículo naquela velocidade
sobre a pista molhada e, por mais de uma vez, derrapou de forma perigosa,
atravessando a estrada inteira, passando por cima do acostamento no outro lado.
As rodas do automóvel guinchavam no asfalto feito um animal sendo
estrangulado. Com o braço para fora da janela, o comparsa de Macrino
procurava alvejar o carro de seus desafetos, mas errou todos os tiros que estavam
no tambor da arma. Diante deles, relâmpagos extraordinários arrebentavam um
após o outro no horizonte sombrio, tentando em vão estilhaçar os céus. O rapaz
conduzia o veículo de maneira alucinada e, em toda curva, imaginava que
capotariam. A certa altura daquela correria ensandecida, eles passaram por uma
irregularidade na pista e o automóvel voou literalmente sobre o asfalto. Ao
regressar ao chão, o assoalho colidiu com tamanha violência na estrada, que
Michael precisou empregar toda a sua habilidade para não perder o controle do
carro.
Acossados por seus perseguidores feito caça indefesa perante um predador
implacável, Michael e Michele passaram de fato a temer por suas vidas. O
veículo de Macrino e seu comparsa achava-se tão próximo deles, que os pára-
choques chegavam a colidir. Aflito, o rapaz já não sabia o que fazer a fim de
escapar à sanha assassina daqueles criminosos. Subitamente, ele viu ali adiante
uma pequena estrada cruzando com a autopista por onde seguiam e pediu para a
menina se segurar. Quando estavam ultrapassando o entroncamento, Michael fez
uma curva de quase noventa graus à direita, imaginando que os bandidos não
teriam tempo para realizar tal manobra e acabariam seguindo reto, perdendo um
tempo precioso. Ledo engano! De modo incrível, eles conseguiram superar
aquele obstáculo, como se o próprio diabo conduzisse o automóvel sobre trilhos
invisíveis aos olhos humanos.
Como sua estratégia não dera o resultado previsto, o moço arrependeu-se de
ter saído da autopista principal. Sinuosa e estreita, aquela estradinha escura
apresentava um asfalto bastante irregular e cheio de buracos. Além disso, ela
costeava um enorme despenhadeiro e a única proteção existente para garantir a
segurança dos motoristas descuidados e evitar que eles despencassem pelo
precipício era uma espécie de gradil de ferro, o qual ladeava o acostamento.
Macrino imaginou que seria interessante jogar o carro de Michael contra o
gradil, com a finalidade de o deter. Não seria estúpido a ponto de o precipitar
através do abismo, pois, dessa forma, os livros acabariam se perdendo para
sempre. Com este pensamento, ele acelerou velozmente o seu veículo pela
contramão, emparelhando-se ao automóvel do rapaz, e passou a lhe dar pancadas
na lateral, espremendo-o junto às grades. Após o primeiro choque, Michael viu
consternado, através do espelhinho retrovisor, uma de suas calotas rodando
solitária pela estrada; em seguida, o próprio espelho foi vítima de outra colisão.
Durante um bom percurso, os malfeitores prensaram o carro do moço contra o
gradil, produzindo um ruído estridente e uma chuva de faíscas laranjas. Michele
ficou apavorada ao sentir o despenhadeiro assim tão próximo, como se fosse
engoli-los a qualquer momento, e suplicou para o namorado fazer alguma coisa a
fim de evitar o pior. De repente, uma motocicleta surgiu pela direção contrária,
na mesma pista onde Macrino seguia. O facínora só teve tempo de tirar seu carro
um pouco para a esquerda, de maneira que o motoqueiro passou numa
velocidade extraordinária por entre os dois veículos, triscando a lataria de
ambos. Infelizmente, o sujeito perdeu o controle da moto e caiu na pista
molhada, deslizando por uma distância considerável. Pouco adiante,
atravessaram um túnel escuro tão rápido, que as paredes produziam um barulho
semelhante a uma prensa rotativa. Ao saírem de lá, depararam-se com uma longa
descida em linha reta e os dois carros mergulharam através dela numa
perseguição alucinante, acelerando o motor ao máximo. A seguir, subiram
embalados um leve aclive; de novo, os veículos encontravam-se tão próximos,
que o pára-choque de um deles tocava o escapamento do outro. Quando estavam
chegando quase ao cume, Macrino pegou a outra pista para fechar o automóvel
de Michael. Nesse exato instante, surgiu um enorme caminhão transportando
gasolina, na mesma faixa onde os bandidos se achavam. Os olhos deles fulgiram
aterrorizados, como se contemplassem a morte, refletindo a luminosidade
deslumbrante que o farol do caminhão despejava na tempestade. Ao ouvir o
ronco cavo e possante de uma buzina, feito trombetas infernais, Macrino jogou
desesperadamente seu carro no acostamento do outro lado da pista. O veículo
subiu em uma elevação de terra e capotou diversas vezes, como Michael pôde
ver através de seu espelho retrovisor interno.
Já passava da meia-noite, quando eles resolveram estacionar para dormir.
Não havia nada naquela região deserta, nem casas, nem postos de gasolina,
muito menos pousadas. O rapaz encostou o carro no meio de uns descampados e
disse preferir passar a noite ali mesmo, pois não existia qualquer sinal de
civilização nas proximidades, conforme indicava o GPS, e ele estava com tanto
sono, que temia provocar um acidente. Michele concordou, aconchegando-se ao
ombro do namorado.
Na manhã seguinte, Michael acordou decidido a descobrir onde ficava a
quinta torre do demônio, pois não queriam continuar viajando sem destino. Após
se lavarem como puderam em poças deixadas pela chuva, que agora tinha
parado, a menina quis saber o que dizia o Malleus Maleficarum a respeito disso.
Tão logo Michael ligou o seu notebook e abriu um arquivo, ele respondeu:
A menina fez uma careta encantadora e disse que essa câmara circular de
aparência pavorosa já estava lhe provocando uma enorme angústia. Não deveria
ser um local dos mais belos e Michele imaginava que teriam de entrar em
alguma espécie de catacumba sombria, infestada por bichos asquerosos e
peçonhentos. Ao se aproximarem da ilha, o rapaz comentou:
- Fique tranquila, pois não são catacumbas. Muito provavelmente, Jacques
de Molay queria se referir às torres do castelo. Veja!
Defronte a seus olhos, sobre uma ilha rochosa, pairava imponente a
magnífica fortaleza templária. Ao longo de suas impressionantes muralhas,
podiam se divisar inúmeras torres circulares e uma única de formato
quadrangular, a mais alta, conhecida como torre de menagem. Com toda certeza,
não era nesta que os cavaleiros da Ordem haviam escondido a pista procurada
por eles.
Chegando ao Castelo de Almourol, Michael e Michele deram um passeio
pelo lugar a fim de o conhecer melhor. O rapaz contara nove torres circulares,
mas talvez tivesse se equivocado. Para sorte deles, poucos turistas visitavam a
fortaleza naquela tarde, de maneira que podiam empreender suas buscas à
vontade, sem chamar muita atenção. Michael tirou do bolso algumas pastilhas de
hortelã, repartiu com a namorada, e disse:
- Imagino que a pista templária esteja gravada em uma pedra no lado de
dentro destas torres. Por isso trouxe a lanterna, o binóculo e a corda...
Então, eles puseram-se a vasculhar todas as torres do Castelo de Almourol.
Muitas delas apresentavam seu interior um tanto escuro, de maneira que a
lanterna foi de enorme valia. Enquanto Michael atirava o facho de luz sobre um
ponto específico das altas paredes, Michele observava pedra a pedra através do
binóculo. A investigação realizada por eles foi extremamente minuciosa e
estendeu-se por longo tempo. Quando haviam terminado de esquadrinhar todas
as torres por dentro, centímetro a centímetro, sem descobrir coisa alguma, o
rapaz exclamou, decepcionado:
- Não é possível! Vasculhamos tudo e nem sinal da pista templária!
- Talvez algo tenha me escapado... por que não repetimos a busca? Agora
eu seguro a lanterna e você fica com o binóculo! Sugeriu a menina.
- Está certo!
Em seguida, os dois passaram a examinar outra vez todas as torres com
extrema atenção e cuidado. A tarde já ia caindo no momento em que eles
chegaram ao fim. Como temiam, não tiveram melhor sorte. Michael achava-se
inconsolável por ter vindo de tão longe à toa. Definitivamente, os cavaleiros da
Ordem não tinham escondido aquela misteriosa pista no interior das torres. Para
o rapaz, porém, alguma coisa estava bem errada. Jacques de Molay já
demonstrara ser bastante preciso em seus versos e não havia dúvidas de que o
Castelo de Almourol era o local onde se elevava a quinta torre do demônio.
Vendo o namorado tão abatido, Michele disse:
- Talvez, os templários não tenham colocado a pista no interior das torres...
- Por quê? São os únicos espaços circulares da fortaleza. O grão-mestre
deixou claro em sua trovinha que o sinal se encontra “numa câmara rochosa de
formato circular”...
- Sim, mas também diz que esta câmara tem uma “aparência pavorosa” e o
interior das torres não me deu esta impressão...
Era verdade. Michael não atentara para este detalhe e permaneceu alguns
instantes refletindo em silêncio, esfregando a testa com os dedos. Finalmente,
disse:
- Não sei mais onde procurar!
A maioria dos turistas já havia deixado o Castelo de Almourol, pois o
período de visitação estava quase se encerrando naquele dia, quando Michele
exclamou:
- Tenho tanta sede, que beberia até a água do velho poço, se ele não
estivesse seco!
- Poço? Que poço?
- Aquele lá embaixo, no primeiro nível da fortaleza!
- Eu não vi poço algum, mas agora fiquei curioso. Vamos até lá!
Eles desceram as escadas de pedra e chegaram a um local onde existia um
buraco coberto por diversas vigas, para evitar que alguém despencasse em seu
interior.
- Aí está!
- Isto é um poço?
- Ao menos, parece...
Michael olhou ao redor e, vendo que não havia ninguém mais por perto,
arrastou algumas vigas um pouco de lado. Em seguida, disse:
- Com toda certeza, estamos diante dos resquícios de algo que um dia foi
um poço templário...
- Você acha que os cavaleiros da Ordem podem ter escondido a pista aí
dentro?
Após ter se debruçado sobre aquela insólita cavidade no chão, o moço
lançou um facho de luz em sua parte interna a fim de dissipar as trevas e
comentou:
- É exatamente o que estou pensando! Diga-me... isto tem ou não uma
“aparência pavorosa”?
Tão logo a menina deu uma rápida olhadela no sombrio interior do buraco,
ela respondeu:
- Nunca vi nada mais pavoroso! Eu não entraria aí por dinheiro algum!
De fato, era uma visão pouco agradável. Além de escuro e asfixiante, com
as paredes apertadas revestidas por pedras irregulares, as quais lhe emprestavam
uma aparência sinistra, e coberto por teias de aranhas seculares, o poço mais
parecia um túmulo violado. Isto sem falar na infinidade de bichos repugnantes,
despertados pelo facho de luz, como lacraias, caramujos, baratas, lagartixas e
quejandos, que rastejavam de um lado ao outro num frenesi exaltado, como se
ali dentro a natureza estivesse numa orgia eterna.
Após tirar seu sobretudo e apanhar a corda escondida por baixo dele, o
rapaz a amarrou firmemente em uma viga atravessada sobre a boca do poço. Em
seguida, encheu-se de coragem, fez o sinal-da-cruz e bradou pouco antes de
descer:
- Bom, seja o que Deus quiser!
O poço não era fundo e estava seco há, pelo menos, uns quinhentos anos.
Ao cabo da descida, Michael acendeu a lanterna a fim de iniciar as buscas;
porém, levou um susto tão grande, que sua pele gelou instantaneamente,
enquanto bagos de suor álgido lhe escorriam pelas costas. A uma distância
mínima de suas pernas, uma cobra aterrorizante o encarava com olhos pouco
amistosos. A sua primeira reação foi atirar o facho de luz sobre a serpente, pois
ouvira dizer que esses bichos ficam imóveis e deslumbrados diante de claridade
intensa. Talvez o tal ofídio peçonhento não soubesse nada disso, mas
permaneceu teso, hipnotizado, admirando não só a luminosidade, como também
aquele deus ex machina, que havia surgido assim do nada. O jovem temia fazer
qualquer movimento e ser picado de forma fatal.
Ao recuperar a voz, Michael sussurrou à namorada:
- Michele... Michele... me ajude...
Só neste momento, a menina viu a cobra e certificou-se do enorme perigo
que o rapaz estava correndo. Ela inclinou um pouco seu corpo sobre o poço e
disse em voz baixa para não assustar a víbora:
- O que eu faço?
- Sei lá!... Jogue-me um pedaço de pau...
Aflita, ela saiu à cata de algo para socorrer o moço. A sugestão de Michael,
porém, não lhe pareceu muito boa, pois a serpente poderia se assustar e acabaria
mordendo o rapaz antes mesmo dele ter a arma nas mãos. Então, Michele teve
uma ideia... Após ter apanhado a pedra mais pesada que pôde carregar, a jovem
postou-se junto à borda do poço. Em seguida, mirou com cuidado a cobra,
estendendo seus braços sobre ela. Ao ver a menina segurando aquele enorme
calhau, Michael esbugalhou os olhos e proferiu:
- O que você está pensando em fazer? Ficou louca?
Nesse exato momento, Michele deixou cair a pedra, que só não atingiu o
rapaz por milagre. Em compensação, acertou em cheio a cabeça da serpente,
esmagando-a a ponto dela quase ter sido decepada. Durante uns dez minutos,
Michael ainda permaneceu no interior do poço, vasculhando as paredes,
enquanto procurava recuperar o fôlego. Quando veio à superfície, abraçou-se à
namorada e os dois caíram de joelhos, dominados pela forte emoção. Depois,
esta disse entre soluços:
- Não quero que você desça mais lá embaixo...
Michael enxugou-lhe os olhos lindos com seus dedos e respondeu,
exultante:
- Não será preciso... veja!
E mostrou-lhe o visor da máquina fotográfica, onde se via perfeitamente
uma cruz templária por cima da letra V.
A sexta torre
Michael ficou ainda mais intrigado com estas palavras. A sua impressão era
que Jacques de Molay queria aconselhar os futuros cavaleiros da Ordem sobre
algo muito importante, mas por algum motivo não o fez de forma explícita. Nas
páginas do diário que antecediam o seu enigmático desenho, ele discorrera a
respeito do forcado de Satanás, explicando como os templários o haviam
descoberto debaixo do templo de Salomão e o conduzido para um lugar seguro.
Porém, não dizia onde se localizava este sítio altamente secreto.
Ao entrar na catedral, Michael dirigiu-se à cripta, pois estava quase certo de
que os Pobres Soldados de Cristo tinham escondido ali a sexta pista. Tanto as
paredes, quanto o chão, apresentavam-se revestidos de pedras, bem como as
imponentes colunas, unidas em ogivas ao teto. Não havia muitas tumbas e a
principal era a do duque Jean de Berry, edificada sobre o piso de pedra. Por cima
deste sepulcro, existia uma estátua de alabastro, representando o duque com as
mãos cruzadas no peito e tendo a seus pés um urso adormecido. A primeira ideia
que lhe veio à cabeça foi procurar a pista templária em torno deste túmulo, mas o
moço não descobriu nada. Depois, leu uma pequena placa e ficou sabendo que
ele fora construído em meados do século XV, mais de cem anos após Jacques de
Molay ter escrito o seu diário.
Durante boa parte da tarde, Michael permaneceu no interior daquela cripta,
observando em vão pedra e mais pedra e mais pedra. O grão-mestre deixara
bastante claro em sua trovinha que a pista templária se encontrava “entre as
tumbas do lajedo”. Porém, o rapaz esquadrinhara cada centímetro do local, sem
obter sucesso algum. Como se achava preocupado demais com Michele, já
estava quase desistindo e retornando ao hotel a fim de aguardar o próximo
telefonema de Macrino. Porém, uma ideia maluca lhe passou pela cabeça, talvez
soprada por algum espírito gaiato, cujo corpo jazia ali sepultado. E se aquela não
fosse a única cripta da catedral de Saint Etienne?
Pensando nisso, Michael acotovelou-se entre um grupo de turistas e
indagou a um dos funcionários da igreja, que se achava tagarelando com eles:
- Por favor, onde fica a outra cripta?
O sujeito o fitou com certo assombro no rosto; depois, apontando na
direção de um gradil de ferro, disse:
- Se você está se referindo à cripta primitiva, fica para lá, mas ela se
mantém permanentemente fechada à visitação pública.
Após agradecer, o jovem misturou-se aos outros visitantes a fim de não
chamar atenção. Michael fizera a pergunta de uma maneira capciosa, jogando
verde para colher maduro. Se tivesse perguntado se existia outra cripta na
catedral, era possível que o homem respondesse de forma negativa. Indagando
daquele jeito, ele não teve como negar algo que supostamente seu interlocutor já
conhecia.
Quando não havia ninguém por perto, o moço dirigiu-se ao local indicado
pelo funcionário e, discretamente, pulou o gradil. Em seguida, caminhou por um
corredor comprido e estreito até se deparar com uma enorme porta de madeira,
fechada apenas por uma tranca de correr. Ao abri-la, ela rangeu de um modo
irritante, denunciando-lhe a presença. Michael aguardou um minuto em silêncio,
atrás de uma coluna, mas ninguém apareceu. Pé ante pé, ele atravessou a porta;
porém, não pôde ver coisa alguma, pois a escuridão ali dominava tudo. Após
retirar do bolso sua pequenina lanterna, o rapaz cravou o facho de luz nas trevas
e descobriu uma escada sinistra e apavorante. Com o peito batendo acelerado,
encheu-se de coragem e passou a descer aqueles degraus feitos com pedras
toscas e irregulares. As paredes eram de terra e o teto, por ser muito baixo,
sufocava. Tal ambiente funéreo causava-lhe arrepios e se, naquele momento,
alguém encostasse um dedo em suas costas, certamente Michael teria um ataque
cardíaco fulminante. Por fim, depois de ter descido inúmeros lances de escadas,
ele deparou-se com uma porta típica de cadeia, feita com grossas barras de ferro,
que o impedia de seguir adiante, pois estava trancada por um cadeado.
Tão logo teve a certeza de que não conseguiria ir além daquele obstáculo
sem arrebentar a tranca, resolveu sair da igreja com o objetivo de comprar um
machado. Afortunadamente, descobriu uma casa de ferragens a pequena
distância dali. Ele pôs a ferramenta debaixo de seu sobretudo, para que ninguém
desconfiasse de suas intenções, e voltou ao local onde estivera pouco antes. O
cadeado não parecia muito resistente e, como o lugar era bem longe da nave da
catedral, presumiu que o barulho da pancada não chamaria atenção de pessoa
alguma. Ainda assim, tirou um lenço de sua pasta e o enrolou sobre o cadeado,
para reduzir ao mínimo o ruído do impacto. Michael ergueu o machado sobre
sua cabeça e, com toda a força, desferiu um violento golpe, estraçalhando-o.
Ao ultrapassar aquela porta de ferro, entrou em um túnel sombrio e úmido,
de aparência fantasmagórica. Havia tantas teias de aranhas atravessando o
caminho, de um lado ao outro das paredes, que o rapaz achou melhor caminhar
com sua pasta diante do rosto. A certa altura, imaginando que tais subterrâneos
macabros não levassem a lugar algum, pois parecia estar dando volta em
círculos, subitamente, deparou-se com o final do túnel, o qual terminava em uma
porta bastante robusta. Ao contrário da anterior, esta era de madeira maciça e
muito antiga. O moço deitou o facho de luz sobre ela e, para sua surpresa, viu
entalhada uma cruz templária numa das extremidades. Isto o deixou ainda mais
entusiasmado, vindo confirmar que ele estava no caminho certo. Depois,
iluminou a tranca e percebeu ali um cadeado em condições tão sofríveis quanto o
primeiro. O jovem o arrebentou sem grande dificuldade; porém, teve de
empregar toda sua força para abrir a porta emperrada. Utilizando os ombros,
Michael sofreu terrivelmente até conseguir movê-la uns poucos centímetros,
apenas o necessário para passar o seu corpo. Quando achou que já havia espaço
suficiente, espremeu-se através do vão e entrou naquele lugar secreto ao
extremo.
Embora sua lanterna não emitisse um facho de luz muito forte, o rapaz
ficou de queixo caído com o que os seus olhos esbugalhados contemplaram. Ali
estava a cripta primitiva da catedral de Saint Etienne, sombria e fúnebre, como
ele supunha. Um cheiro terrível de mofo e de morte envenenava o pouco ar
existente naquela enorme catacumba, dificultando sobremaneira a respiração.
Assim que recuperou o fôlego, Michael pôs-se a caminhar pelo interior da cripta,
iluminando as sepulturas encravadas ao longo de toda a extensão das paredes de
terra. Era incrível! Havia centenas de túmulos ali, dispostos até o alto teto.
Algumas lousas possuíam inscrições de nomes e datas, mas a grande maioria não
apresentava nenhuma identificação. Enquanto observava as tumbas, o rapaz ia
pronunciando os nomes que ainda permaneciam legíveis nas lápides:
Cristoforus... Hipolitus Lullius... Anacletus... Gelasius... De repente, sentiu o seu
sangue gelar, arrepiado. Ele estacou diante de uma sepultura e passou os dedos
na pedra, a fim de remover a poeira deitada pelos séculos sobre as letras no
mármore. Em seguida, leu em voz alta, como se quisesse convencer a si próprio
a respeito daquela extraordinária descoberta:
- Hugo de Payns!
Não tinha dúvidas de que se tratava do primeiro grão-mestre da Ordem.
Aliás, talvez Michael estivesse em um antigo cemitério templário, o que
explicaria a cruz dos Pobres Cavaleiros de Cristo talhada na porta.
Este pensamento convenceu ainda mais o moço de que ele estava no lugar
certo. Porém, como encontrar a pista templária no meio de toda aquela
escuridão? Em sua trovinha, Jacques de Molay dizia que ela fora deixada “entre
as tumbas do lajedo”, mas existiam inúmeras sepulturas ali, tornando a tarefa
praticamente impossível. Após ter olhado diversas lápides sem descobrir letra
alguma debaixo da cruz templária, Michael começou a esmorecer. Se não
contasse com um golpe de sorte, levaria horas e mais horas para achar a pista,
isto se ela estivesse gravada nas lousas de mármore que lacravam as tumbas.
Caso os cavaleiros templários a tivessem escondido no interior de uma sepultura,
entre as centenas existentes na cripta, talvez ela nunca fosse encontrada.
Já havia transcorrido certo tempo desde que o rapaz estava no interior
daquela catacumba, quando notou algo terrível. Em um dos cantos ainda
inexplorado por ele, Michael pensou ter visto de relance um vulto sinistro.
Imediatamente, a respiração do moço tornou-se ofegante e suas pernas ficaram
bambas. Ele seguiu apavorado naquela direção, empunhando sua lanterna como
se fosse uma faca, até se aproximar do suposto vulto, que ele imaginava ser o
fantasma de algum templário. Para seu alívio, era apenas uma estátua de
mármore ou alabastro.
Qual seria o motivo para aquela misteriosa estátua ter sido posta ali? O
rapaz percebeu que ela possuía asas e uma inscrição em sua base. Ele iluminou o
local e leu a seguinte frase: “São Miguel, que subjugou o demônio”.
Neste instante, Michael lembrou-se das palavras de Jacques de Molay e
sentiu suas entranhas incendiando, como se um vulcão lhe cuspisse lavas dentro
das vísceras. Os versos do velho templário diziam que São Miguel indicava o
local desejado entre as tumbas da cripta! Isso não deixava margens a qualquer
dúvida. Teve, então, uma ideia extraordinária. Utilizando um lenço, o rapaz
amarrou sua lanterna no dedo indicador da estátua, que apontava para a parede
do outro lado, repleta de tumbas. Em seguida, ele apertou um botão, acionando
uma luz de laser, pois seu chaveiro era pequeno, mas possuía mil e uma
utilidades. Um ponto vermelho foi marcar uma das lápides, quase junto ao piso.
Era uma lousa como tantas outras, sem qualquer inscrição. Ao chegar lá,
Michael tomou o machado em suas mãos e desferiu uma forte pancada na pedra
de mármore, estraçalhando-a em milhares de cacos. Ele clareou o interior
daquela sepultura, retirando parte do entulho com os dedos, indiferente aos
restos de ossos. De repente, seus olhos iluminaram-se feito dois holofotes e sua
boca aguara de excitação. Ali dentro, havia uma grande pedra com uma cruz
templária por cima da letra R.
Após ter tirado algumas fotografias da pedra no interior da tumba, o rapaz
decidiu partir, pois já era tarde e imaginava que a igreja fecharia a qualquer
momento. Porém, quando acabara de sair da cripta, espremendo-se no vão da
maciça porta, veio-lhe à mente a segunda trovinha de Jacques de Molay. De
acordo com ela, mais um segredo poderia ser revelado naquele túmulo. Além
disso, a frase escrita pelo grão-mestre em seu diário, sob o enigmático desenho
que ele fizera do tímpano existente na catedral de Saint Etienne, agora parecia
fazer algum sentido ao jovem. De fato, “ninguém presta atenção ao que tem
diante dos pés: estão perscrutando a imensidão dos céus.” E na altura de seus pés
estava a tumba apontada por São Miguel! Depois, qual motivo teria um punhado
de padres medievais para colocar sobre a porta de sua igreja a figura do demônio
e seu arpéu? Era mesmo muito estranho, como se quisessem indicar que algo
extremamente precioso permanecia guardado na segurança daquele templo.
Pensando nisso, Michael entrou outra vez na cripta, dirigindo-se para a
sepultura violada. Seria possível que “o brinquedo” do demônio, como Jacques
de Molay lhe chamou o tridente, estaria repousando há séculos naquele local?
Ele agachou-se diante da lápide, meteu seus braços no interior da cova e, com
grande esforço, retirou a pesada pedra onde os cavaleiros templários haviam
gravado mais uma pista. Conforme imaginara, ela ocultava outro segredo...
Então, tonto pela surpresa, estarrecido, procurando dominar os sentimentos
contraditórios que se digladiavam em sua alma, ele constatou horrorizado que ali
dentro existia uma caixa de madeira!
Ele tentou se acalmar, imaginando que talvez aquele caixão pudesse conter
apenas os ossos de algum cavaleiro templário ali enterrado. Mas, então, percebeu
que era muito pequeno e leve para ser o esquife de alguém. Ofegante como um
bode diante da fêmea no cio, o rapaz o arrastou para fora, deitando-o sobre o
chão de terra. Ao iluminar aquele estranho baú, viu que ele estava lacrado
apenas por uma decrépita tranca e bastou um golpe de machado para o obstáculo
ser prontamente removido. Ao segurar a tampa da caixa, os dedos do moço
tremiam tanto, que mais parecia um velho com mal de Parkinson. Tão logo o
abriu, Michael persignou-se três vezes, pôs as mãos sobre o peito, como se
tivesse sido traspassado por uma flecha em chamas e exclamou, com a alma
esmagada pelo terror:
- Meu santo Jesus Cristo!
Era o arpéu de Satanás.
O tesouro dos templários
Além desta dica, havia também um dístico que poderia ser bastante
revelador, caso ele compreendesse o seu significado:
De resto, quase mais nada que pudesse ajudar, pelo menos assim à primeira
vista. Já começava a amanhecer, quando Michael largou o diário sobre a mesinha
e esfregou os olhos, cansado e com sono. Passara a madrugada inteira lendo o
velho manuscrito e pesquisando na internet inúmeros sites relacionados ao
tesouro do Templo. Porém, não descobriu coisa alguma.
Junto às cartas do baralho que continuavam sobre a mesa, apenas um pouco
mais unidas, pois ele as afastara para colocar ali o seu notebook, Michael viu
outra vez o brinco de Michele e sentiu uma angústia tão grande no peito que teve
vontade de dar cabo de sua existência. Ele apanhou aquela simples bijuteria com
as formas da flor-de-lis e a trouxe aos lábios, beijando-a com saudades. Depois,
abriu uma pasta no computador, onde guardava suas imagens, e passou a olhar as
diversas fotos que tirara da namorada em todos os lugares visitados por eles. Ao
ver Michele tão bela e cheia de vida, sempre sorrindo, sempre jovial, o rapaz não
conseguiu conter as lágrimas e pôs-se a chorar de forma amarga.
Dentre tantas fotografias, uma em particular tinha a preferência do moço,
justamente aquela em que eles saíram abraçados no claustro do monte São
Michel, pois haviam pedido para um dos turistas tirar o retrato. Durante vários
minutos, ele permaneceu contemplando tal foto, como se tivesse sido
hipnotizado pelo sorriso encantador de Michele. Quadro a quadro, foi
aproximando a imagem a fim de ver bem de perto o rosto de sua querida
companheira. De repente, seus olhos vidraram, cravados na tela do computador.
E foi preciso enxugá-los com um lenço para ter certeza de que não estava sendo
traído por suas vistas marejadas de lágrimas.
Atrás de Michele existia algo espantoso e, por mais que o moço tivesse
olhado aquele retrato, até então ele ainda não tinha percebido tal peculiaridade.
Ao longo de toda a parede do corredor do claustro, entre os arcos ogivais das
colunas e quase junto ao teto, encontravam-se entalhadas inúmeras figuras muito
semelhantes àquela forma simbólica do brinco da menina. Era uma coincidência
curiosa e impressionante! Michael aumentou ainda mais a imagem e, tomando o
brinco em sua mão, aproximou-o da tela do computador, de modo que
praticamente foi possível encaixá-lo com perfeição dentro de uma daquelas
formas.
Qual o seu significado? Por que os construtores do claustro haviam posto
ali aquelas figuras tão singulares? Em outros tempos, tudo isto teria levado o
rapaz a meter-se em bibliotecas a fim de tentar descobrir o sentido de tais
símbolos, pois tinha o espírito investigativo por natureza. Porém, agora estava
deveras apreensivo em virtude do sequestro de Michele e nada mais lhe
interessava.
Ele ergueu-se para esticar um pouco as pernas, jogou o brinco em cima do
baralho espalhado sobre a mesinha e bebeu mais uma xícara de café, pois estava
começando a ter sono. Em seguida, abriu a janela do quarto e permaneceu
respirando o ar fresco da manhã, que surgia além da linha do horizonte. Michael
dirigiu-se outra vez ao seu notebook para continuar as suas intermináveis
pesquisas, quando levou um susto tremendo. O brinco de Michele havia caído
por acaso sobre uma carta de paus! Isto não teria importância alguma e com toda
certeza passaria despercebido ao rapaz, se não fosse por um detalhe
extraordinário. A sua respiração alterara-se um pouco e seus olhos brilharam
feito cristais ao sol. Ele apanhou a carta mais o brinco e os contemplou excitado
durante alguns segundos. A semelhança era impressionante! Embora um tanto
estilizada, a forma daquela bijuteria lembrava muito o naipe de paus, e ambos
eram bastante semelhantes às figuras existentes nas paredes do claustro do
monte São Michel.
De súbito, o rapaz sentiu gelar até o último fio de seus cabelos. Deus do
céu, já não era mais coincidência!... As suas feições contraíram-se aterrorizadas,
o seu coração parecia ter se transformado em um pássaro que acabara de perder a
liberdade, esvoaçando aflito dentro de uma gaiola, e sua pele tornara-se álgida
como um iceberg. Casualmente, a carta apanhada por Michael era uma dama de
paus, uma rainha escura! E com os olhos saltando para fora das órbitas, o moço
constatou espantado algo que nunca havia percebido em toda a sua vida: ela
segurava uma flor em suas mãos... uma flor amarela!
O moço levantou-se de forma brusca e deu um urro ininteligível a fim de
extravasar a sua descoberta, da mesma maneira que o primeiro primata
procedera ao conseguir fazer fogo com seus próprios meios. Aquilo tudo era a
um só tempo estarrecedor e fascinante. Seria possível que a dama de paus fosse a
rainha escura citada por Jacques de Molay? No mesmo instante, Michael passou
a procurar na internet mais informações a respeito, constatando arrepiado um
fato assombroso: em todas as cartas vistas por ele, a dama de paus sempre
aparecia segurando uma flor amarela. Em algumas delas, inclusive, havia até
mesmo a cruz templária estampada em suas vestes, o que era bastante revelador.
De repente, outro pensamento acudiu-lhe ao cérebro, uma ideia ainda mais
terrível, espantosa e extravagante. O naipe de paus – talvez até mesmo os outros
naipes - não teria sido colocado de propósito nos baralhos pelos templários para
garantir que o maior segredo da Ordem - o local onde foi escondido seu fabuloso
tesouro - não se perdesse ao longo dos séculos e pudesse ser encontrado pelos
futuros cavaleiros? Certamente, acreditavam que o Templo se reestruturaria após
a morte de Felipe IV e os novos monges conduziriam a Ordem ao seu antigo
esplendor.
Mas não era só isso. Agora, Michael estava inclinado a acreditar que o
naipe de paus simbolizaria o tríplice phallus! A sua forma lembrava levemente
uma cruz estilizada e talvez ela tenha sofrido alterações ao longo dos anos. Seja
como for, até mesmo os outros naipes pareciam ligar-se de algum modo aos
templários. O naipe de ouros indicaria a fortuna da Ordem, o incomparável
poder econômico que ela desfrutou nos séculos XII e XIII; o naipe de espadas
representaria o seu caráter guerreiro, a maior força bélica do tempo, respeitada
até mesmo pelos muçulmanos; o naipe de copas lembraria aos cavaleiros a sua
obediência e humildade, o profundo amor e dedicação que deveriam manter por
toda a vida não só ao Templo, mas também à religião cristã; por fim, o naipe de
paus recordava a cruz e seria a chave para se descobrir o local onde jazia o
formidável tesouro.
Michael recolheu as cartas sobre a mesa e observou que as outras damas
também seguravam flores amarelas. Talvez elas tivessem sido acrescentadas
posteriormente para disfarçar ainda mais o segredo ou mesmo por analogia e
ignorância dos fabricantes de baralhos. Uma ideia, porém, inquietava-lhe o
espírito. Por que os cavaleiros templários teriam colocado o símbolo do tríplice
phallus na parede do claustro do monte São Michel? O rapaz não sabia se aquela
parte do santuário fora construída antes ou depois da extinção da Ordem, mas
isto não invalidava a sua teoria. Mesmo porque, o Templo tinha sido extinto por
decreto, mas não os templários. Muitos cavaleiros conseguiram fugir,
permanecendo fiéis a seus ideais, e ainda hoje há quem se intitule seus herdeiros.
É possível que arquitetos ligados aos templários remanescentes tenham posto de
propósito aquelas figuras no claustro e até mesmo em outras torres do demônio.
Este último pensamento produziu um profundo arrepio em Michael. O
símbolo do tríplice phallus poderia estar indicando não apenas o local onde os
cavaleiros haviam escondido o tesouro da Ordem, como também parecia
apresentar certa relação com o cativeiro de Satanás. Tudo aquilo estava ligado de
maneira intrínseca e a solução de um destes enigmas talvez explicasse o outro.
Quem sabe os templários não teriam posto o emblema do tríplice phallus em
cada uma das sete torres do demônio para advertir que, nestes locais, eles
haviam deixado uma de suas pistas?
Convencido por esta ideia, Michael passou a analisar as fotografias batidas
por eles em todos os lugares visitados. Para sua surpresa, logo na fachada da
catedral de Notre-Dame de Paris, deparou-se com formas bastante semelhantes
ao tríplice phallus. Até então, Michael acreditava que estas formas apenas
representariam um símbolo heráldico da monarquia francesa. No nível
intermediário, acima da Galeria dos Reis, sobre a grande rosácea e as janelas
gêmeas, havia seis misteriosas figuras, as quais certamente não se encontravam
ali por acaso. Na igreja de Saint Etienne de Bourges, arrematando as inúmeras
colunas que ladeavam os cinco imensos portais da fachada ocidental, bem como
acima destes, o rapaz descobriu diversas formas que também representavam o
tríplice phallus. Observando as suas fotos, não achara o símbolo na Torre de
Londres, nem no Castelo de Almourol e tampouco na Torre de Hércules. Porém,
isto não significava, de maneira alguma, que os cavaleiros templários não os
tivessem deixado nestes locais. A Torre de Hércules havia sido restaurada no
século XVII e perdera muito de sua originalidade. O Castelo de Almourol
também fora bastante alterado ao longo do tempo. Com o grande terremoto de
1755, parte da velha construção ruíra e precisou ser reformada nos séculos
seguintes, quando ganhou ameias e merlões sobre as muralhas. Quanto à Torre
de Londres, talvez o símbolo do tríplice phallus estivesse nas paredes externas
da Torre Branca, que recebera tal nome porque, originariamente, apresentava
esta cor; todavia, também esta não apresenta mais as suas características
primitivas.
De qualquer maneira, agora sim o rapaz possuía informações relevantes a
respeito do destino do tesouro templário e, se contasse com sorte, muita sorte,
era provável que ainda pudesse salvar a vida de sua namorada. Não tinha mais
qualquer dúvida de que a rainha escura citada por Jacques de Molay era a dama
de paus. Mas ela representaria a soberana de qual reino? Pensando nisso,
Michael pôs-se a investigar qualquer coisa relacionada a esta carta do baralho.
Durante horas, navegou pelos sites mais variados, copiando e colando numa
pasta toda frase ou texto útil. A certa altura, descobriu alguns documentos,
afirmando que a dama de paus representava uma antiga rainha chamada Argine.
Ao ler isto, o rapaz recobrou o entusiasmo, imaginando estar no caminho certo.
Como bem sabia, os templários adoravam anagramas e o nome Argine era um
anagrama perfeito de Regina, ou seja, “rainha” em latim. Isto o deixou mais
animado para continuar as suas buscas.
Pouco depois, Michael encontrou outras informações a respeito dessa tal
Argine. Profundamente excitado, soube que ela governara a antiga cidade de
Korama, nome pelo qual a Göreme de hoje, na Capadócia, Turquia, era
conhecida nos tempos do império romano. Para comprovar as suas suspeitas,
embaixo de um suposto desenho da misteriosa rainha, havia a seguinte frase:
Argine, a “flor dourada”. Tal descoberta fez o rapaz verter lágrimas comovidas.
Agora, tinha absoluta certeza de que existia uma possibilidade real para salvar
Michele. Ele levantou-se a fim de recuperar o fôlego, bebeu mais uma xícara de
café e sentou-se outra vez diante do computador. Então, digitou as palavras
“Göreme” e “Capadócia” no Google e uma lista com inúmeros sites apareceu na
tela. Numa das páginas abertas ao acaso, o rapaz achou diversas fotografias da
região. Em cada uma que ele clicava, a imagem era ampliada, aparecendo uma
legenda explicativa. Surpreendeu-se bastante ao observar aquelas paisagens
fabulosas, pois jamais tinha visto nada parecido em toda a sua vida. Tais cenários
eram verdadeiramente incríveis e nenhum outro local na terra apresentava um
vale mais desconcertante. Era como se toda esta região fizesse parte de algum
planeta fantástico, saído da imaginação fértil de Herbert George Wells.
Na breve pesquisa realizada, Michael ficou sabendo que há cerca de três
milhões de anos, alguns vulcões entraram em erupção, cobrindo de lava parte da
Capadócia. Com o tempo, a ação do vento e da chuva erodiu o território,
esculpindo-o de tal forma, que hoje ele apresenta uma espetacular paisagem
surrealista. Imensas rochas cônicas, conhecidas como “chaminés de fadas”,
ajudam a compor este fascinante cenário. Durante séculos, os cristãos
refugiaram-se dos invasores no interior destas formações vulcânicas, escavando
as pedras. Chegaram mesmo a construir cidades subterrâneas, com igrejas,
depósito de alimentos e até mesmo estábulos.
Algumas formações rochosas chamaram a atenção do rapaz pelo seu feitio
curioso, pois lembravam muito um falo ereto, assim à primeira vista. De repente,
quando já tinha observado inúmeras fotos, os seus olhos encheram-se de terror,
esbugalhados. Era inacreditável! Ali se encontravam três destas enormes
formações unidas. Assim que as viu, Michael ergueu-se de forma abrupta e
bradou eufórico, dando um murro na mesa:
- Heureca! O tríplice phallus!
Aquilo não era coincidência. Em alguma caverna da Capadócia, à sombra
de tais formações bizarras, os cavaleiros templários tinham escondido a preciosa
fortuna da Ordem. Michael salvou aquela foto numa pasta em seu notebook e
ligou para o aeroporto Charles De Gaulle, próximo a Paris, a fim de reservar
uma passagem até a cidade de Göreme ainda naquela tarde. Infelizmente, não
havia nenhum voo direto para lá, nem mesmo para a Capadócia, mas deu sorte e
conseguiu fazer uma reserva até Ankara, capital da Turquia, com previsão de
partida às sete horas e cinco minutos da noite. De lá, seguiria de ônibus para
Göreme, o que não seria difícil conseguir, pois era um local turístico muito
visitado.
Embora estivesse com bastante sono, o rapaz não podia perder um minuto
sequer. Ele tomou um banho gelado para despertar, bebeu o resto do café frio
que se achava no bule e partiu do hotel. Numa lanchonete ali perto, Michael
comeu um hambúrguer acompanhado de batatas fritas; depois, pegou o carro e
dirigiu-se à capital francesa.
Chegou ao aeroporto Charles De Gaulle por volta das cinco horas da tarde.
Como ainda tinha algum tempo antes do embarque, resolveu entrar numa
copiadora e pediu para imprimir aquela foto da Capadócia onde apareciam as
estranhas formações rochosas do tríplice phallus. Em seguida, comprou a
passagem, um jornal e foi sentar-se num banco do saguão. Com tantos
problemas em sua cabeça, o moço acabou desligando-se de tudo o mais e, por
isso, achava-se bastante mal informado. Ao abrir o jornal, surpreendeu-se ao
constatar que um violentíssimo terremoto ocorrera na Índia. Pessoas do mundo
inteiro estavam se mobilizando para socorrer as vítimas daquela tragédia
inominável. Segundo as últimas informações, mais de trezentos mil corpos
haviam sido encontrados entre os escombros e cerca de dois milhões de indianos
achavam-se sem abrigo. O jornal inteiro só falava desta catástrofe, que jamais
seria apagada da memória dos homens.
Teve alguma dificuldade para embarcar, pois Michael não desejava pôr o
arpéu no compartimento das bagagens. Inutilmente, tentou convencer os
funcionários do aeroporto, alegando que aquela estranha ferramenta era uma
preciosidade arqueológica e fazia parte de sua bagagem de mão, mas não colou e
ele teve de ceder. Por sorte, um dos funcionários era compreensivo e ajudou o
rapaz. Ele colocou o tridente numa caixa de papelão, embrulhando-o com
segurança, e despachou o pacote em seguida para o compartimento das
bagagens. Tão logo entrou no avião, o rapaz adormeceu, acordando apenas no
dia seguinte, quando a aeromoça veio lhe avisar que haviam chegado à capital da
Turquia. De Ankara, seguiu de ônibus até a Capadócia, descendo na rodoviária
da cidade de Göreme pouco antes do meio-dia.
Na simples estalagem onde almoçou, conheceu um jovem chamado Ahmet,
o qual se ofereceu para lhe servir de guia e intérprete. Além de falar inglês com
fluência, conhecer bem a região, ser simpático e educado, o moço possuía um
velho carro, uma enorme vantagem naquele território desértico. Michael lhe
mostrou a foto com as insólitas formações cônicas que ele havia identificado
como o tríplice phallus e ficou eufórico ao saber que Ahmet conhecia o lugar
onde elas se localizavam. Porém, ele lhe disse que não ficavam nas
proximidades do Parque Nacional de Göreme, mas no Vale Devrent, o Vale da
Imaginação, um pouco mais adiante. Imediatamente, pediu para o guia levá-lo
até lá. Os dois subiram no Jipe empoeirado e partiram debaixo do sol escaldante
da Capadócia. Embora ainda estivessem em abril, fazia um calor infernal, de
maneira que o moço tirou seu sobretudo e o pôs no banco traseiro do automóvel,
ao lado da caixa com o tridente, sua pasta e a mochila de Michele, que ele
trouxera junto.
Foi uma longa viagem, até eles alcançarem o local procurado. Michael
desceu do carro com o coração galgando-lhe a garganta e constatou atônito que
aquelas três enormes formações rochosas eram as mesmas de sua foto, em meio
a tantas outras que ali existiam. Para lhe completar a felicidade, a sombra delas
incidia sobre a entrada de uma caverna ali adiante, exatamente como diziam os
versos de Jacques de Molay.
Os dois meteram-se no interior sombrio daquela caverna, pois Ahmet havia
dito que também estava familiarizado com elas, e puseram-se a explorar seus
corredores estreitos e baixos, ambos iluminando os subterrâneos tenebrosos com
lanternas. Em alguns trechos, as paredes achavam-se tão próximas, que eles
precisaram se espremer entre o vão para seguir em frente. Ahmet contou-lhe
como tais túneis tinham sido escavados pelos homens a fim de proteger a
população dos invasores. Isto deixou Michael pasmo, pois acreditava que
aqueles caminhos subterrâneos fossem formações naturais. Após terem andado
durante um bom tempo, o chão foi se tornando cada vez mais úmido e
escorregadio. Com certeza, deveria existir ali dentro alguma nascente de onde
minava água. Quando chegaram a um declive acentuado, Ahmet afirmou que,
dali em diante, não era mais seguro continuar explorando a caverna. Michael,
porém, parecia não temer o perigo e disse se responsabilizar por qualquer
acidente que pudesse lhe suceder. Ele apertou a mão do guia e pediu:
- Por favor, Ahmet, volte ao carro e fique me aguardando. Preciso seguir em
frente, pois estou muito perto de descobrir o que procuro. Se eu não retornar em
três horas, você encontrará no bolso de meu sobretudo uma carteira com
dinheiro suficiente para pagar os seus serviços. Dentro dela, há o endereço do
convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. Despache a minha pasta para
lá, pois eles saberão dar um bom destino aos livros. E mande-lhes também
aquela caixa de papelão.
O guia permaneceu indeciso por alguns segundos, até que concordou,
levantando os braços acima da cabeça, num gesto em que demonstrava
claramente que ele não aprovava a imprudência do patrão. Após se despedirem,
o rapaz continuou embrenhando-se por aqueles túneis escuros e tortuosos. Com
sua lanterna, ele ia iluminando qualquer coisa suspeita, pois não sabia direito o
que procurava. Teriam os cavaleiros templários escondido ali as arcas cheias de
dinheiro? Curiosamente, quanto mais descia, maior era a sensação de frio, ao
contrário do que ele sabia por leituras e até mesmo por experiência anterior, e
lamentava ter deixado seu sobretudo no jipe. Quando Michael já tinha
caminhado por quase meia hora, ele deparou-se com uma enorme rocha
encravada numa das paredes da caverna. O moço achou estranho aquilo e pôs-se
a iluminá-la com mais atenção. De súbito, seus olhos descobriram alguns sinais
entalhados na pedra, o que lhe encheu de entusiasmo. Ele apanhou um lenço em
seu bolso e, de maneira ansiosa, passou a limpar os sulcos da rocha, pois
estavam cobertos de poeira secular. Ao concluir a tarefa, foi tomado por um
assombro formidável. A figura esculpida na pedra era uma flor dourada,
lembrando muito os traços daquela que a dama de paus segurava nas cartas de
baralho!
Deus do céu! No mesmo instante, vieram-lhe à mente as palavras de
Jacques de Molay: “Encontrando a flor de ouro, acharás todo o tesouro”. Ou
estava completamente equivocado, ou a fabulosa fortuna templária jazia
escondida por trás daquela pedra imensa! Michael tentou removê-la do local,
mas foi a mesma coisa que empurrar uma montanha. No mínimo, seria
necessário um trator bem robusto para arrancá-la dali, mas isso era impossível.
Sem perder tempo, pois sabia que o guia ainda estaria esperando por ele,
regressou à superfície, pensando como removeria aquela rocha pesadíssima.
Conforme tinham combinado, Ahmet permanecia aguardando o retorno do
rapaz, debaixo da sombra de um daqueles rochedos cônicos, próximo ao carro.
Ao vê-lo saindo da caverna, abriu um sorriso aliviado no rosto moreno e
exclamou:
- Conseguiu achar o que procurava?
- É possível! Mas há um rochedo impedindo a entrada das pessoas. Vou
pensar em uma solução para o caso durante a noite e, amanhã, voltarei aqui logo
cedo.
- A propósito, onde você está hospedado?
- Em nenhum lugar. Ainda não tive tempo de ver isso...
- Se quiser, pode dormir em nossa casa. Não há luxo, mas é limpa e minha
família ficaria muito honrada em lhe acolher como hóspede.
- A honra é toda minha, meu bom amigo! Aceito com o maior prazer, mas
quero pagar por tudo que está me oferecendo.
Como o guia havia dito, a sua família demonstrou grande satisfação em
receber Michael em casa. Além de Ahmet, moravam ali a mãe, uma irmã mais
jovem e o velho pai, que trabalhava como mercador. Era um homem de um nível
cultural acima da média e, como viajava muito a negócios, aprendera a falar
diversas línguas. Ao ser apresentado ao rapaz, disse-lhe em inglês:
- Estou a seu dispor. Posso lhe vender qualquer coisa, desde um ovo de
Fabergé até um elefante indiano.
Michael apertou sua mão com um sorriso no rosto, agradeceu a gentileza e
respondeu gracejando:
- Obrigado! Quando eu precisar de um elefante, falarei com você.
Durante o jantar, o pai de Ahmet contou inúmeras histórias curiosas que
havia testemunhado em suas andanças pelo mundo. Tinha a palavra fácil e
narrava seus casos com tamanho interesse, que teria dado um excelente escritor,
caso tivesse se dedicado a isto. Após a refeição, ele sentou-se em uma cadeira na
varanda e pôs-se a fumar, observando a noite repleta de estrelas. Michael
aproximou-se do bom homem e disse:
- Talvez eu precise daquele elefante...
- O que você tem em mente? Inquiriu com certa curiosidade.
O rapaz explicou-lhe então que necessitava de um explosivo para arrebentar
uma pedra de uns dois metros de diâmetro.
- Acha impossível conseguir isto?
- Impossível não é, pois tenho muitos contatos e amigos. Depende de
quanto você quer pagar...
O pai de Michael era relativamente abastado e, ao falecer, deixou-lhe uma
boa quantidade de recursos financeiros, que ele podia acessar de seu notebook
através de programas bancários. Por isso, dinheiro não era problema para o
rapaz.
- Diga seu preço.
O velho turco apanhou o celular no bolso e deu três ou quatro telefonemas.
Como falava em sua língua natal, Michael não pôde compreender nada. A certa
altura, ele indagou:
- Para quando você precisa?
- Amanhã cedo... é caso de vida ou morte!
O sujeito voltou a falar ao telefone por alguns minutos, como se discutisse o
preço com o fornecedor. Depois, escreveu uns números num pedaço de papel e o
mostrou ao rapaz:
- O valor é esse! Pagamento apenas em dinheiro ao retirar a mercadoria.
Assim que viu a cifra, Michael fez um sinal de positivo. O pai de Ahmet
disse uma única palavra a seu fornecedor e desligou o celular. Ao se erguer da
cadeira, apertou a mão do jovem, selando o negócio. Em seguida, todos foram
dormir, pois precisavam acordar cedo.
Mal raiara o sol e Michael já se achava de pé. Após uma leve refeição,
pediu para Ahmet levá-lo até o banco internacional mais próximo, onde
apresentou seu cartão de crédito e retirou a importância combinada, pois, na
noite anterior, ele já tinha agendado o saque através do programa bancário
instalado em seu notebook. Ao regressar à casa do guia, o velho comerciante
veio ao encontro do rapaz, pois acabara de receber a sua encomenda. Tão logo
lhe entregou o pacote, disse:
- Veja lá o que vai fazer com isso... É explosivo plástico... Sabe como
manuseá-lo?
- Sei o necessário. Já li algo sobre explosivos...
Mesmo assim, o pai de Ahmet explicou-lhe cuidadosamente o que deveria
ser feito com o explosivo plástico. Em seguida, concluiu:
- Ouça-me, garoto! Não vá fazer nenhuma tolice com isto. Afinal, qual é a
sua ideia?
- Vou salvar a vida de minha namorada...
Sem perder um minuto sequer, Michael e Ahmet subiram no Jipe e
dirigiram-se à caverna, onde supostamente estava escondido o tesouro dos
cavaleiros templários. Quando chegaram ao local, o guia afirmou que
necessitava se ausentar por algum tempo. A sua mãe tinha acordado indisposta,
sentindo dores agudas no ventre e nas costas. Como aquele era o único
automóvel da família, ele precisava levá-la ao hospital.
- Volto o mais rápido que puder!
- Não há problema algum. Vá tranquilo, pois vou demorar algum tempo
aqui...
Antes de se despedirem, Michael apanhou a caixa com o arpéu, pois não a
quis deixar no carro como da outra vez. Se perdesse o forcado, teria poucas
chances de matar o demônio e sabia que, somente assim, evitaria as catástrofes
anunciadas no Apocalipse. Como na tarde anterior sentira frio dentro da caverna,
resolvera penetrar naquelas galerias subterrâneas vestindo o seu sobretudo,
embora a temperatura externa estivesse muito alta. Em uma das mãos, o rapaz
levava o forcado de Satanás e a sacola com os explosivos; na outra, segurava a
lanterna que comprara em Coimbra, com a qual ele ia iluminando os corredores
sinistros. A pasta, onde guardava seu notebook e os preciosos livros, ficara na
casa de Ahmet, pois não precisaria dela e tinha total confiança na família de seu
guia.
Ao chegar junto à enorme rocha, Michael preparou a bomba conforme as
orientações do velho mercador, colocando o explosivo plástico num local que lhe
pareceu bastante apropriado. Depois, introduziu nele o detonador e dirigiu-se a
um lugar seguro o suficiente para acionar a descarga elétrica que produziria a
explosão. Após persignar-se, o rapaz acionou o mecanismo e ouviu um estrondo
colossal, como se toda a caverna estivesse ruindo. A explosão foi tão fantástica e
violenta, que Michael acabou sendo arremessado no chão a uns cinco metros de
distância, pois o túnel funcionou como um gigantesco funil. Uma lasca de pedra
veio na direção dele, golpeando-lhe em cheio a parte traseira do pescoço. Para
sua sorte, antes de atingi-lo, ela ricocheteou nas paredes, perdendo a velocidade;
caso contrário, teria lhe perfurado a nuca como um tiro. Além do mais, a pedra
foi amortecida pela gola de seu sobretudo, que ficou toda manchada de sangue.
Após roçar a mão sobre o local atingido para ver a extensão do ferimento,
Michael tirou o sobretudo a fim de conferir se havia algum estrago e constatou
um rasgo na gola. Aborrecido, ele meteu seus dedos no buraco feito no tecido e
descobriu algo surpreendente. Na gola, achava-se preso uma pequenina pastilha,
menor do que uma bateria de relógio. De súbito, ele compreendeu o significado
daquilo e sentiu como se uma descarga elétrica percorresse todo o seu corpo. Tal
objeto era um rastreador e explicava como Macrino e seu comparsa sempre
sabiam onde ele estaria. Lembrava-se que, enquanto caminhava pela cidade de
Roma, ao sair do Vaticano, quando tentou mostrar ao papa os extraordinários
livros descobertos, um homem dera-lhe um encontrão na rua, seguido de alguns
tapinhas nas costas e pedidos de desculpas. Certamente, era alguém ligado à
igreja e seus fanáticos perseguidores, com a missão de colocar aquele rastreador
no sobretudo do rapaz. A cólera de Michael foi tamanha, que ele apanhou uma
pedra, esmagando o maldito aparelho feito uma barata.
Em seguida, dirigiu-se ansioso ao local da explosão. Havia muita poeira em
toda parte e a fumaça ali era tanta, que o rapaz mal conseguia respirar. Quando,
finalmente, ela assentou um pouco, pôde-se ver a rocha estraçalhada. Uma fenda
de tamanho bastante razoável fora aberta na parede, indicando que Michael tinha
razão, ou seja, existia de fato algo misterioso do outro lado. O seu peito agitava-
se convulso e sua respiração tornara-se difícil, como se ele tivesse acabado de
correr uma maratona. Em seu íntimo, sabia que, atrás daquelas paredes,
encontrava-se a última esperança para salvar a vida de Michele. Ele encheu-se
de coragem, fez o sinal-da-cruz e atravessou a abertura deixada pelos explosivos.
Ao pôr os pés lá dentro, Michael estacou, perplexo, excitado, boquiaberto.
Com sua lanterna, passou a iluminar o enorme recinto, o qual se achava
bastante escuro. Diante de seus olhos maravilhados, descortinou-se uma gruta
imensa, em cujo teto pendurava-se uma infinidade de estalactites. No centro da
caverna, a uns vinte metros de distância abaixo do local onde o rapaz estava,
existia uma espécie de cratera, repleta por uma quantidade gigantesca de moedas
de ouro! Era inacreditável! Ao contemplar a fortuna templária, Michael
permaneceu em êxtase, chorando e rindo ao mesmo tempo. Ele deu alguns
passos para o interior da gruta e iluminou melhor aquela fabulosa riqueza, que
brilhou com intensidade, emitindo cintilações douradas por todo o ambiente.
Quando caiu em si e certificou-se de que desvendara um dos maiores segredos
da humanidade, escondido dos homens há mais de setecentos anos, o rapaz
passou a tremer nervosamente. Embora desejasse revelar às autoridades turcas
que tinha achado o tesouro templário, ele precisava confiar a sua descoberta a
Macrino e seu comparsa, caso contrário, Michele seria morta. Na verdade, isto o
agoniava deveras, pois a sua sensação era de que estava traindo a Ordem.
Então, ele ergueu o facho de luz de sua lanterna e viu algo terrível,
deixando-o ainda mais impressionado. Numa das paredes, havia uma enorme
estátua simbolizando Satanás! Naquele momento, veio-lhe à mente um trecho do
diário onde Jacques de Molay revelava o grande temor de sua vida. Uma parcela
insignificante dos cavaleiros passara a adorar o demônio e o grão-mestre receava
que eles pudessem empregar algum ardil para enganar seus irmãos, apoderando-
se do tesouro. Porém, o próprio Jacques de Molay afirmava ter recebido a notícia
de que a imensa fortuna dos templários fora levada em segurança ao local
combinado. Mas como parecia óbvio ao rapaz, esses cavaleiros traidores e
execráveis encontravam-se infiltrados entre aqueles que tinham a missão de
esconder o tesouro na Capadócia. Talvez planejassem retornar ali para roubar
todo o dinheiro; contudo, por algum motivo obscuro, não o fizeram.
Subitamente, ele levou um susto violento ao ouvir uma voz roufenha atrás
de suas costas:
- Bom trabalho, Michael!
Surpreso, o jovem virou o pescoço e viu que Macrino lhe apontava uma
arma, ao lado de seu hediondo comparsa.
Tão logo os reconheceu, disse:
- Cumpri a minha promessa. Agora, entreguem-me Michele! Onde ela está?
O sujeito atarracado ajeitou a gravata, como se o nó estivesse incomodando
o seu pescoço curto, e respondeu:
- Se quer mesmo saber, digo-lhe que agora ela é vizinha de Julius
Polybius...
- Exato! E deve estar se sentindo como um gato preto! Acrescentou
Macrino.
Os dois riram da piada, contemplando com olhos gulosos aquela infinidade
de moedas de ouro, que cintilava na parte inferior da caverna, sob a luz das
lanternas. Depois, o mais baixo aproximou-se de Michael e concluiu:
- De qualquer forma, isto não tem mais importância alguma, pois você não
a verá novamente. Afinal, não podemos correr o risco de você sair por aí,
espalhando tudo o que viu. Porém, para provar a nossa gratidão, deixarei que
escolha a maneira como quer morrer, se com um tiro no peito ou na cabeça.
Agora, entregue-nos a lanterna, sim? Aqui está bastante escuro e nós só
trouxemos um pequeno farolete...
Naquele breve instante, milhares de pensamentos passaram a se atropelar
no cérebro do rapaz. A possibilidade da morte iminente infundia-lhe tamanho
terror, que sua face queimava como fogo e seus olhos vidraram. Então, tudo
terminaria daquela forma cruel? Jamais veria Michele outra vez e toda a sua
busca fora em vão?
Dominado por tais ideias, Michael estendeu seu braço para entregar a
lanterna ao bandido. Contudo, no momento em que este iria apanhá-la, o rapaz a
soltou de propósito, deixando-a cair pelo despenhadeiro até parar lá embaixo,
junto ao tesouro templário. No exato segundo em que o sujeito virou seu rosto a
fim de observar a lanterna rolando, Michael aplicou-lhe um tremendo chute na
mão, arremessando seu revólver sobre as moedas de ouro. Em seguida,
precipitou-se contra o adversário, segurando com os punhos cerrados a caixa de
papelão que continha o arpéu. A finalidade do rapaz era dar-lhe um golpe
certeiro na cabeça a fim de o derrubar lá embaixo, mas o malfeitor se defendeu
habilmente da manobra e os dois acabaram rolando engalfinhados pelo
precipício. Macrino tirou sua arma do paletó, porém, como estava escuro,
resolveu não atirar, pois temia atingir seu companheiro. Aflito e bastante ferido,
o jovem caiu sobre a fortuna do Templo e, assim que conseguiu se erguer, pôs-se
a fugir do assassino, enfiando seus calcanhares por entre as moedas.
Enquanto isso, Macrino desceu a ribanceira para ajudar seu cúmplice, mas
o fez com tão pouco jeito, que terminou tropeçando e despencou lá para baixo de
maneira nada elegante. Michael não pôde pegar o revólver, o qual caíra longe
dele; todavia, tão logo apanhou a caixa com o tridente mais a lanterna, saiu de
cima do tesouro da Ordem e se escondeu atrás de algumas paredes escuras, que
haviam sido escavadas. Após terem se levantado, os dois bandidos puseram-se a
atirar na direção onde o rapaz se ocultara, produzindo um barulho ensurdecedor,
pois a acústica ali dentro favorecia a propagação do eco. Para não ser
descoberto, Michael apagou a lanterna e mais nada pôde ser visto a não ser as
línguas de fogo na ponta do cano das armas, iluminando a caverna de maneira
lúgubre.
Pouco depois, as balas acabaram e tudo voltou ao silêncio. Só era possível
ouvir o ruído das moedas sendo pisadas pelos bandidos, caminhando sobre a
fortuna do Templo à procura do jovem. Enquanto permaneceu escondido,
Michael aproveitou para desembrulhar o forcado, pois era a única arma que
possuía. De repente, sem que nenhum dos dois esperasse, o rapaz saiu de seu
esconderijo e, tomado por um ódio supremo, como se um demônio enlouquecido
estivesse em seu corpo, pôs-se a correr na direção deles, carregando o arpéu
acima da cabeça, feito uma lança. Tamanha era a cólera do moço, que seus olhos
pareciam ter se convertido em dois maçaricos, cujas chamas irrompiam em
jorros impetuosos. Quando se aproximou o suficiente dos malfeitores, rilhando
dentes e cerrando as sobrancelhas, Michael arremessou o forcado na direção de
Macrino, empregando toda a força de seu braço. A sua vontade era cravar o
tridente no meio da testa daquele canalha sem palavra, que prometera libertar
Michele em troca do tesouro templário e agora desejava matá-lo. Tudo então se
passou muito rápido. O bandido teve apenas tempo de esquivar um pouco o
corpo, de modo que o arpéu passou triscando os seus cabelos untados com
gomalina e foi atingir em cheio o peito da estátua de Satanás numa das paredes
da caverna.
O que aconteceu em seguida foi algo inacreditável e extraordinário. Eles
passaram a ouvir uns ruídos aterrorizantes, como se ossos estivessem sendo
mastigados, traves estraçalhadas e engrenagens de ferro urrando à maneira de
leões feridos. De súbito, o piso começou a ceder e tudo foi puxado para baixo,
feito um turbilhão implacável. Como Michael se encontrava próximo à lateral
que bordejava a fortuna do Templo, ele conseguiu dar um pulo impressionante e
alcançou o chão firme da caverna, fora da cratera onde se amontoavam as
moedas. Macrino e seu comparsa não tiveram a mesma sorte, de modo que
foram engolidos por uma espécie de funil e desapareceram em poucos segundos,
suplicando socorro divino. Do local em que se achava, o rapaz contemplou cheio
de horror todo o tesouro da Ordem escorrer através do abismo aberto debaixo
dele, tragado pelas profundezas da terra. Ao acertar o peito da estátua de Satanás
com o arpéu, casualmente Michael acionou o sistema de segurança posto ali
pelos cavaleiros templários para impedir que sua fabulosa riqueza fosse parar em
mãos erradas.
Ele debruçou-se sobre o abismo e sentiu certa vertigem ao constatar que o
fosso gigantesco parecia não ter fim. De toda aquela fortuna, uma única moeda
fora salva, pois ficara presa às roupas do moço. Durante algum tempo, ele a
iluminou com sua lanterna, contemplando-a em silêncio, respeitosamente, como
se pedisse desculpas aos cavaleiros da Ordem. Então, ele percebeu que o forcado
de Satanás ainda estava oscilando no peito da estátua lá do outro lado daquele
enorme abismo que se abrira no chão da caverna. Teria o perdido para sempre?
Ele lançou a luz de sua lanterna nas paredes e percebeu que ainda restara uma
estreita borda ao redor do fosso. Com o máximo de cuidado, o rapaz espremeu-
se naquele caminho perigoso a fim de contornar a imensa cratera, até que
conseguiu alcançar a estátua, que parecia sorrir com escárnio para ele. Michael
agarrou o arpéu com as mãos trêmulas e o puxou na sua direção, certo de que
não corria o risco de perder o equilíbrio. Para seu alívio, o forcado saiu
facilmente. No mesmo instante, ele tratou de retornar, abraçando as paredes, até
que alcançou um local seguro. Então, lançou um último olhar para o abismo e
partiu.
A sétima torre
Quando acabou de ler e guardar outra vez o pedaço de papel em seu bolso,
o rapaz explicou que, no alto da cúpula do Panteão, existe uma abertura para o
céu, conhecida como óculo. Talvez o grão-mestre estivesse querendo dizer que,
às três horas da tarde, um facho de luz solar atravessa o óculo e incide
exatamente sobre a pista deixada pelos templários.
No dia seguinte, Michael e Michele acordaram tarde e custaram a levantar
da cama. Tão logo tomaram banho, dirigiram-se ao restaurante do hotel e
almoçaram. Depois, seguiram ao Panteão de Agripa.
Como Michele nunca havia estado ali, ficou impressionada com aquele
monumento formidável e quis saber o significado das inscrições no frontão do
edifício[11]. O moço explicou-lhe que tais palavras indicavam justamente que o
Panteão tinha sido construído pelo cônsul Agripa. Eles atravessaram o pórtico
com suas exuberantes colunas e entraram no interior do antigo templo. Nenhuma
outra construção romana chegou aos dias atuais melhor conservada. As enormes
portas de bronze e o piso de mármore ainda são os mesmos da época do
imperador Adriano, que reconstruiu o edifício após pavoroso incêndio. Ali se
encontram enterradas algumas ilustres personalidades italianas, como o pintor
Rafael e os reis Vítor Emanuel II e Humberto I. No século VII, o Panteão foi
convertido em igreja cristã, fato que ajudou a poupá-lo do vandalismo
desenfreado que grassou contra as edificações romanas durante o início da Idade
Média.
Como ainda faltava algum tempo até as três horas, Michael e Michele
aproveitaram para conhecer melhor o Panteão de Agripa. Ficaram deslumbrados
com a suntuosidade de seu interior, repleto de mármores magníficos, belíssimas
colunas e uma cúpula extraordinária, que deixava qualquer um de queixo caído.
Sobre alguns nichos, onde certamente existiram altares dedicados aos deuses
romanos, o rapaz identificou cruzes templárias, mas não achou letra alguma que
pudesse ser a pista deixada pelos cavaleiros da Ordem.
Quando eles entraram no Panteão, o facho de luz solar que atravessava o
óculo estava incidindo sobre uma parte do piso de mármore. Com o passar do
tempo, de acordo com o movimento do sol no céu, o feixe luminoso foi
mudando lentamente de posição, indo em direção às paredes. De cinco em cinco
minutos, Michael olhava para aquele foco de luz, cheio de impaciência,
procurando adivinhar qual local ele iluminaria no horário estipulado. O medo do
rapaz era que o tempo mudasse de uma hora para outra e, a todo instante, saía à
rua a fim de ver se existiam nuvens ameaçadoras no céu. Às três horas da tarde,
o facho de luz incidiu de maneira precisa sobre as gigantescas portas de bronze
do Panteão.
Michael e Michele dirigiram-se até a entrada e passaram a observar o local
com cuidado, procurando descobrir qualquer marca suspeita, que pudesse ter
sido posta ali pelos templários. Duas enormes folhas de portas, com mais de sete
metros de altura, guardavam aquele monumento. Uma delas encontrava-se
fechada, enquanto a outra, que dava acesso ao público, permanecia aberta,
dificultando a visualização da sua parte de trás, pois se mantinha encostada à
parede. Durante uns quinze minutos, eles esquadrinharam atentamente as velhas
portas de bronze, até que Michele disse:
- Repare bem... lá em cima, junto ao canto direito da porta, há algumas
leves saliências...
O rapaz fitou o trecho indicado e respondeu:
- Você tem razão... existem mesmo tênues marcas em relevo, mas daqui não
consigo ver direito o que representam...
- E aquele binóculo que utilizamos no Castelo de Almourol, não está no
porta-luvas do carro?
- Está... mas, espere! Como sou distraído! Você me deu uma ideia tão
simples...
Ao proferir tal frase, Michael apanhou sua máquina fotográfica num dos
bolsos de seu sobretudo. Assim que enquadrou aquelas saliências quase
imperceptíveis, deu todo o zoom permitido pela câmera e bateu uma foto.
Depois, ajeitou o visor da máquina a fim de observar a imagem obtida, dizendo:
- Cruze os dedos!
Para surpresa dos dois, havia ali uma cruz templária por baixo de uma letra
T.
Michael e Michele contemplaram-se em silêncio, certos de que agora
possuíam todas as peças daquele misterioso quebra-cabeça, espalhado pelos
cavaleiros da Ordem em cada uma das sete torres do demônio. Eufórico, o moço
abraçou a namorada e deu-lhe um ardoroso beijo na boca, chegando mesmo a
causar certo constrangimento em alguns turistas que se achavam ali perto. Por
fim, ele bradou:
- Precisamos comemorar! Que tal tomarmos um sorvete?
- Acho uma excelente ideia!
Após deixarem o Panteão, entraram no carro e puseram-se a rodar sem
rumo pelas ruas de Roma. Michael estava deveras excitado e nem encontrava
palavras para exprimir a sua felicidade. Dentro de seu cérebro, começaram a se
desenrolar todos os acontecimentos ocorridos em sua vida desde a descoberta da
fabulosa biblioteca dos templários. Era como se um filme estivesse sendo
passado de trás para diante. Quanto mais pensava em tudo isso, mais se
convencia de que o destino da humanidade dependia dele. Agora que se achava
tão próximo de desvendar um dos maiores segredos de todos os tempos, o local
onde Satanás permanecia preso, recordava-se também de Abelardo e Celestino,
os quais haviam pago com suas vidas para que aquela busca aparentemente
absurda pudesse alcançar o fim desejado. A morte deles não teria sido em vão e
Michael faria todo o possível para impedir a fuga do demônio.
Como estavam com sorte, encontraram uma vaga na área central de Roma.
Estacionaram o carro e entraram em um McDonald’s. Poucas pessoas estavam
dentro da lanchonete naquele horário e apenas um sujeito fazia o pedido na
frente deles. Era um tipo roliço como uma barrica, vestindo uma camisa bastante
florida e usando uns curiosos óculos escuros com armação rosa. Porém, o que
mais chamou a atenção de Michael e Michele foi o insólito pedido do dito-cujo:
- Por gentileza, quero um Big Mac, um sanduíche de peito de peru, um
Quarterão com queijo, um Cheddar McMelt, um Big Tasty, uma porção de
batata-frita das grandes, um Super McShake e um Sundae de chocolate.
- Mais alguma coisa? Perguntou a mocinha diante do caixa.
- Ah, e uma Coca... diet!
O distinto frisou bem a última palavra, como se a escolha daquele
refrigerante fosse suficiente para compensar todas as calorias que ele iria ingerir.
Michele precisou virar-se de costas, a fim de esconder seu rosto, pois não
conseguiu conter o riso. Depois, pediram dois copos de sorvetes e subiram ao
segundo andar, onde havia inúmeras mesas disponíveis.
Eles sentaram-se junto a uma janela e ficaram conversando sobre os mais
variados assuntos, enquanto saboreavam seus deliciosos sorvetes. Ao acabar,
Michael apanhou sua máquina fotográfica e, observando as imagens das pistas
templárias, pôs-se a copiar as letras em um guardanapo. Assim que terminou de
fazer isto, disse:
- Bem, então vejamos... Temos as letras S, E, P, T, V e R. Além delas,
descobrimos também uma cruz de prata e uma velha corrente. Por mais que eu
medite a respeito deste enigma, acabo sempre voltando àquela ideia inicial. Há
uma boa probabilidade de que tais letras se refiram a alguma palavra latina como
“sepulcretum”, “sepulcrum”, ou “sepultura”. A própria letra V, encontrada no
Castelo de Almourol, não deve significar o número cinco, conforme
imaginávamos. Na verdade, ela não é uma letra “V”, mas uma letra “U”, pois era
assim a representação do “U” grafado pelos romanos, muito mais fácil de
entalhar na pedra, sem a curva debaixo. Você sabe, no latim clássico não existia
distinção entre letras maiúsculas e minúsculas. A letra “U” foi acrescida mais
tarde para o latim eclesiástico, bem como a letra “J”, que os romanos grafavam
“I”. Portanto, teríamos a forma “SEPTUR”, que lembra bastante “sepultura”.
Além disso, possuímos também a cruz de prata, para confirmar ainda mais tal
hipótese...
- É uma ideia bastante plausível, mas ela não resolve o nosso problema. Em
qual sepultura você acha que o demônio estaria preso? Já descartamos o túmulo
de Cristo...
- Não faço a menor ideia...
- Apesar de lógica, essa conclusão me parece muito vaga. Por que os
templários teriam tanto trabalho para ser tão imprecisos?
- Para dizer a verdade, também não estou cem por cento convencido de que
o diabo se acha preso numa sepultura. Algo não está certo! Preciso refletir com
mais calma sobre o assunto, analisar os possíveis anagramas formados por tais
letras.
Depois que saíram da lanchonete, eles dirigiram-se a uma papelaria, onde o
rapaz pediu para imprimir cópias coloridas de todas as fotos tiradas em cada uma
das sete torres do demônio. Em seguida, pagaram pelo serviço, apanharam o
envelope com as cópias e retornaram ao hotel.
Após terem comido uma pizza no quarto, Michele ficou vendo televisão,
enquanto que Michael, sentado na cama, observava as fotografias com as letras
escondidas pelos templários, meditando a respeito daquele mistério
aparentemente insolúvel. Utilizando o controle remoto, a menina já havia
sintonizado todos os canais, sem se decidir por nenhum, até que, enfim, optou
por assistir a um noticiário noturno. Boa parte do programa dedicava-se a
analisar o pavoroso terremoto que chocara o mundo inteiro, matando milhares de
pessoas na Índia e deixando desabrigada uma multidão incontável de homens e
mulheres, velhos e crianças, os quais estavam padecendo todo tipo de privações.
Por acaso, um dos entrevistados era Beato Simão. Com seu olhar cada vez mais
desvairado, ele afirmou que tudo isto não passava dos terríveis sinais previstos
no Apocalipse, anunciando o fim dos tempos. Segundo suas próprias previsões,
ainda naquele mês de abril, o demônio seria libertado pela besta apocalíptica do
cativeiro onde se achava.
Ao ouvir aquelas palavras, Michael teve um lampejo, uma ideia repentina,
como se uma centelha fulgurante iluminasse as regiões obscuras de seu cérebro.
Lembrava-se de ter lido, em alguns versos de Nostradamus, qualquer coisa a
respeito de um espantoso terremoto que iria acontecer num mês de abril. Estaria
o velho adivinho se referindo ao final do mundo e, portanto, à libertação do
demônio? Além disso, não seria possível que o notável profeta francês, o qual
tantas previsões acertara, também não tivesse dito algo em suas quadras a
respeito do local onde Satanás se achava aprisionado?
Tão logo chegou a esta conclusão, o moço ligou seu computador e pôs-se a
reler atentamente as Centúrias de Nostradamus. Ele possuía o livro gravado em
formato e-book, de maneira que encontrou com facilidade algumas palavras-
chaves. Durante horas, Michael permaneceu concentrado naquela leitura,
procurando descobrir qualquer pista sutil deixada pelo profeta. Já passava de
meia-noite e meia, quando Michele resolveu ir se deitar, pois estava caindo de
sono e não havia mais nada que prestasse na televisão. O rapaz apagou a luz do
quarto, levou o computador até o outro lado, para a claridade emitida pela tela
não atrapalhar o sono da menina, e continuou empenhado em sua tarefa.
Às quatro horas da manhã, Michele acordou terrivelmente assustada com os
gritos do namorado. A sua primeira ideia foi imaginar que as almas de Macrino e
seu comparsa tinham fugido das catacumbas infernais e ali compareciam para se
vingarem deles. Depois, deitou fora tal hipótese por achá-la absurda e pensou
que estavam sendo assaltados. Apenas percebeu que não corriam risco algum, ao
contemplar o rosto radiante de Michael. Eufórico e deslumbrado, como se
acabasse de retornar do próprio paraíso, ele agarrou os braços da jovem e
bradou:
- Consegui, Michele! Finalmente consegui!!!
- O que você conseguiu? Fale de uma vez por todas!
- Consegui decifrar o enigma templário!
A menina o fitou admirada, pôs uma das mãos sobre os seios arfantes e
indagou:
- Descobriu onde Lúcifer está preso?
- Exato! Já não tenho mais dúvida alguma!
Durante vários segundos, Michele não disse palavra, como se procurasse
entender o que estava acontecendo. Depois, abraçou-se ao rapaz, pedindo para
Michael se acalmar, pois ele se encontrava muito ansioso, e quis saber mais
detalhes sobre a impressionante descoberta do namorado.
Ele apanhou a mão dela e, conduzindo-a até a mesinha onde se achavam
seu notebook e as fotografias das pistas deixadas pelos templários nas sete torres
do demônio, exclamou radiante:
- Venha ver! Estou tão excitado, que minha alma parece que vai mergulhar
do alto de uma cordilheira!
- Como solucionou o enigma?
- Com a ajuda de Nostradamus. Ontem à noite, ao ouvir a notícia sobre o
catastrófico terremoto ocorrido na Índia, lembrei-me que eu já lera tal previsão
em uma das Centúrias do ilustre francês. Imaginei que esta profecia estivesse se
referindo aos sinais apocalípticos que anunciariam o fim do mundo, conforme
afirmou o próprio Beato Simão, baseando-se em inúmeros textos proféticos
escritos antes mesmo do nascimento de Cristo. Portanto, existia uma boa
possibilidade de Nostradamus estar aludindo não apenas aos terríveis flagelos
reservados aos homens nos últimos tempos, mas também à fuga de Satanás, uma
vez que tudo isto estaria ligado de maneira intrínseca, segundo o Apocalipse.
- Faz certo sentido!
- Mais do que você imagina! Até agora estou assombrado com as palavras
de Nostradamus. Veja o que ele diz nestes versos extraordinários:
Centúria VI - Quadra 66
Após escutar os versos, Michele confessou que não tinha entendido nada. A
linguagem lhe parecia por demais enigmática e, à primeira vista, não apresentava
qualquer relação com o final dos tempos. A menina ajeitou seus longos cabelos
negros sobre um dos ombros e disse:
- E o que ele quer dizer?
- Esta quadra está se referindo ao local onde Satanás se encontra
aprisionado!
- Mas como você chegou a esta conclusão? Indagou Michele ainda sem
compreender.
- É exatamente o que lhe digo. E ainda há mais. Não só informa de maneira
precisa o lugar da prisão do demônio, como também dá a data de sua fuga...
- Explique logo, Michael, estou ficando aflita...
- É simples, veja... Na primeira linha, Nostradamus está aludindo a uma
“nova seita”, ou seja, o cristianismo. Aos olhos dos judeus contemporâneos dos
primeiros cristãos, e até mesmo dos romanos, o cristianismo seria uma “nova
seita”. Certamente, o sábio profeta francês tinha isto em mente ao escrever tal
verso. Em seguida, acrescenta que “os ossos do grande Romano” serão
descobertos na “fundação da nova seita”, isto é, da nova igreja. Onde você
imagina que se localiza esta fundação, as bases, os alicerces de toda a
cristandade?
- No Vaticano?
- Exato. Mais precisamente, na Basílica de São Pedro...
- E aí estariam enterrados os “ossos do grande Romano”, num “sepulcro
coberto de mármore”...
- É isto mesmo, Michele! O “grande Romano” em questão só pode ser um
papa enterrado na igreja e vários deles permanecem sepultados ali. O resto da
quadra é bastante claro e indica a época em que Satanás seria posto em
liberdade, ou seja, depois de um terremoto ocorrido no mês de abril...
A menina coçou de leve a cabeça, como se ainda não tivesse compreendido
onde Michael queria chegar com aquela ideia um tanto maluca, e indagou:
- Mas, afinal, o que isso tudo quer dizer?
- Ainda não percebeu? O demônio se acha aprisionado debaixo da Basílica
de São Pedro! E imagino que o acesso a este local se dê através da tumba de
algum papa...
Embora aquela hipótese se mostrasse bastante fantasiosa, não deixava de
ser também muito sedutora. Michele caminhou até o outro lado do quarto,
meditando em silêncio, pois ainda não estava totalmente convencida a respeito
daquela teoria fantástica. Depois, fitando os olhos do namorado, disse:
- Mas isso não confirma nada! São apenas suposições, indícios...
- Até concordaria com você, se não fossem as outras provas que atestam de
maneira irrefutável a veracidade de minhas suposições. Por exemplo, os números
da quadra e da centúria dados por Nostradamus a estes versos...
- Que relação pode ter isso com o final dos tempos?
- Não vê? Trata-se da centúria VI, quadra 66, ou seja, perfaz o número da
besta, 666. O atilado profeta era astuto, gostava de esconder as coisas dentro das
coisas e não deu esta numeração a tais versos por acaso, mas de maneira bastante
consciente. Não tenho a menor dúvida de que ele também quis fazer uma alusão
à besta apocalíptica!
Aquelas palavras do rapaz deixaram Michele estarrecida. A conclusão dele
era, de fato, impressionante e não havia a menor possibilidade de ser
coincidência. Assim que recuperou o fôlego, disse simplesmente:
- Estou pasma!
- E tem mais! Toda esta minha teoria é comprovada pelas pistas escondidas
pelos cavaleiros da Ordem, que encontramos nas sete torres do demônio.
- A tal palavra “SEPTUR” do anagrama templário?
- Correto! Na verdade, a palavra não significa “sepultura” como
pensávamos, ou pelo menos não possui apenas esta interpretação, embora
Satanás permaneça na tumba do “grande Romano”...
- E qual é o significado do anagrama?
As fotos estavam dispostas na mesa, ao lado da cruz de prata, formando a
palavra “SEPTUR”. Michael passou a rearranjá-las em outra ordem, dizendo:
- Repare que todas as pistas deixadas pelos cavaleiros apresentam a cruz
templária sobre a respectiva letra, exceto aquela descoberta no Panteão de
Agripa, onde, curiosamente, vê-se o símbolo da Ordem embaixo da letra T. Por
que eles teriam feito isso?
- Não faço a mínima ideia! Respondeu a jovem.
- Porque, na verdade, não se trata de uma letra T. Virando-a de cabeça para
baixo, de modo que todas as cruzes templárias fiquem alinhadas, temos uma cruz
invertida!
- Estou vendo... e qual o significado disso?
- Preste atenção, Michele! A cruz de prata, que achamos na Torre de
Hércules e pensávamos que pudesse indicar algum cemitério, também apresenta
a forma de uma letra T. Mudando a ordem das pistas e acrescentando a cruz de
prata como se fosse uma letra, temos a seguinte palavra:
A menina contemplou o novo vocábulo horrorizada e com a respiração
ofegante. Ao cabo de alguns segundos, exclamou:
- Pedro!
- Exatamente! São Pedro! Por isto a cruz invertida, pois foi como o
crucificaram, uma vez que o grande apóstolo não se julgava digno de morrer
feito Jesus! Tudo se encaixa, Michele, tudo agora está claro demais! De acordo
com Nostradamus e conforme revelam as pistas dos templários, o demônio se
encontra aprisionado debaixo da Basílica de São Pedro!
Epílogo
(Fim?)
[1] Ceava aquilo que teria sido suficiente para três ursos.
[2] Prefiro errar com Platão a ter razão com estes.
[3] Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com as vestes de ovelhas,
mas no íntimo são lobos vorazes. (Mateus 7:15)
[4] Literalmente, “Deus o quer!”. Em 1095, o papa Urbano II convocou o
Concílio de Clermont, apelando aos cristãos para pegarem em armas a fim de
lutar na Terra Santa contra os infiéis. Ao cabo de seu inflamado discurso, todos
na igreja gritavam em coro estas palavras, pois tal era a vontade de Deus.
[5] A que não obrigas o coração humano, ó execranda fome de ouro?
[6] Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome daí a glória.
[7] Pastoralis Praeeminentiae
[8] Porta do Rei
[9] Grande Rua
[10] Ninguém presta atenção ao que tem diante dos pés: estão perscrutando a imensidão dos céus.
[11] “M. AGRIPPA. L. F. COS. TERTIVM. FECIT”, ou seja, construído por Marco Agripa, filho de
Lúcio, cônsul pela terceira vez.
Table of Contents
Segredos Ocultos
Deus le Volt!
A missão secreta dos cavaleiros templários
No templo de Salomão
Mais mistérios...
A prisão do demônio
O fim dos tempos
Pelos esgotos de Paris
Malleus Maleficarum
A morte de Jacques de Molay
A primeira torre
A segunda torre
A terceira torre
A quarta torre
A quinta torre
A sexta torre
O tesouro dos templários
A sétima torre
Epílogo