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A Batalha de Hattin
Antônio Augusto Fonseca Júnior
Outros Livros do Autor
A Trilogia das Lanças de Christos:
Entre Anjos e Demônios
Assassino de Almas
Príncipe da Destruição
Busca por Sangue
A Marcha dos Dez Mil: Sangue e Glória
Profecias da Noite:
Benção do Inimigo
Sumário
Personagens
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Epílogo
Nota do Autor
Personagens
Ahmad
turcópolo a serviço dos cavaleiros templários
Balian de Ibelin
senhor de Nablus, importante nobre de Ultramar
Karsten de Tapferklinge
cavaleiro germânico em peregrinação
Laure
filha do barão de Sable D´Or
Melisende
sobrinha do barão de Sable D´Or
Raymond de Trípoli
conde de Ultramar, senhor de Tiberíades
Renaud de Châtillon
cavaleiro senhor da fortaleza de Kerak
Roger des Moulins
grão-mestre dos cavaleiros hospitalários
Sibylle
rainha de Jerusalém
Prólogo
Alguns homens encontram com facilidade causas para morrer,
principalmente quando vem dificuldade em ter pelo que viver. Naquele deserto
onde o calor imperava como a ira de Deus, havia muitos preparados para
enfrentar a vida, mas a presença de um disposto a enfrentar a morte ajudou a
mudar dezenas de fios naquela teia tênue da guerra. Era mais um daqueles dias
em que o ar não parece se mover. Apenas um vento rasteiro passava pela areia
quente, levantando poeira e ainda mais calor, se é que era possível esquentar
mais. As testas molhadas refletiam a luz, gerando ainda mais sensação da
punição solar quando se olhava nos rostos daquela série de guerreiros que se
acumulava sobre as areias. Eram cento de quarenta cavaleiros e ainda mais
trezentos homens de infantaria. Daqueles montados, noventa tinham a honra de
pertencer à Ordem dos Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão. Apenas eles,
os templários, vestiam os mantos brancos com a cruz vermelha estampada sobre
o ombro esquerdo. O estandarte preto e branco com a cruz rubra mal tremulava,
prenunciando a mais pura desgraça para os dias que viriam.
Jacques de Mailly, marechal do Templo, já cavalgava pelas areias do
Oriente há tempo suficiente para saber que nada adiantava reclamar do calor.
Deus criara aquelas terras assim, talvez para aumentar a glória de seus fiéis
lutando para salvar a santa Jerusalém das mãos dos pagãos. Era maio de 1187. O
sultão Saladino unira os povos árabes para a batalha e agora os cristãos
juntavam-se desesperadamente para se defender.
Os templários faziam parte das forças que se uniam contra os muçulmanos
há décadas e Jacques se sentia orgulhoso por ter uma posição tão alta entre os
cavaleiros de Cristo. Debaixo da cota de malha e do manto, ele suava, mas
mantinha o sorriso no meio da barba loira. A felicidade só desaparecia quando
encarava seu líder, Gerard de Ridefort, eleito grão-mestre do Templo há poucos
anos, mas com ações tão ignóbeis que atrasara tudo que os cavaleiros haviam
feito em décadas. E atrasaria ainda mais.
Gerard tinha toda a aparência de um guerreiro de porte, dos mais nobres e
poderosos. Barbado e de cabelos curtos como todo templário deveria ser, tinha
uma compostura de rei na sela do garanhão. Os olhos aguçados observavam o
deserto à espera dos mensageiros. Ele estava feliz por ter encontrado quarenta
cavaleiros seculares, nobres não filiados às ordens religiosas, para ajudar nos
combates. Haviam acabado de passar por Nazaré.
Jacques lamentava por aquela notícia ter chegado aos ouvidos do grão-
mestre. Aquela figura com porte de rei tinha alma tão pobre quanto as fossas dos
castelos. O marechal sabia que surgiriam problemas e baixou a cabeça lamentoso
quando um homem a cavalo chegou para confirmar a notícia. Havia um grupo de
egípcios perto de Cresson. Estavam dando água a seus cavalos nas fontes.
- As notícias foram confirmadas... – anunciou Gerard, aproximando-se do
marechal, que se mostrava obediente como todo templário deveria ser; honrado
como todo cavaleiro deveria ser. Fiel como todo cristão deveria ser, Jacques de
Mailly apenas assentiu com a cabeça. Perto deles, Roger des Moulins, o grão-
mestre dos cavaleiros do Hospital de São João, os hospitalários, aproximou o
cavalo para saber o que estava acontecendo.
- Os infiéis estão próximos, Des Moulins. É hora de mostrarmos a força de
Cristo para eles – falou De Ridefort. As palavras poderiam ser de coragem ou fé
se saídas de outra boca, mas, vindas de Gerard, eram pouco mais do que frases
vãs e orgulhosas geradas pela língua bifurcada de uma víbora.
- Quantos são? – perguntou Roger des Moulins, observado por Jacques. O
marechal templário esperava que o hospitalário pudesse convencer Gerard a ter
bom senso naquele dia. O sol já os castigava demais para serem forçados a
alguma ordem desastrosa vinda do grão-mestre.
- Pouco mais de cinco mil. Talvez cheguem a sete mil – disse Gerard, já
olhando para os cavaleiros e pensando como seria o avanço para derrotar os
muçulmanos. Eles venceriam e ninguém poderia disputar o poder do Templo. Os
templários já haviam vencido batalhas em grande desvantagem. Salvaram o rei
Balduíno IV em uma luta contra Saladino dessa maneira. Porém, naquela época,
Gerard não era o grão-mestre; para a sorte dos templários e infortúnio da
ganância dele.
- Melhor recuarmos – declarou Des Moulins, para o alívio de Jacques. Mas
o marechal suspirara cedo demais.
- Não... Por Deus, homens. Podemos derrotá-los. Temos o Senhor do nosso
lado.
- Senhor, por meu cargo, tomo a liberdade de dizer que concordo com o
senhor Des Moulins. Precisamos poupar os homens para uma batalha maior.
Será inútil travarmos uma batalha que mais parece fadada à derrota.
De Ridefort olhou de volta para o marechal com o rosto vermelho oculto
pela espessa barba negra. Os olhos castanhos saltavam repletos de cólera vinda
de um orgulho ferido. Qualquer um diria que ele estava prestes a sacar a espada
e atacar, mas a espécie das cobras humanas não usa essas armas. Essas criaturas
preferem combater fogo com fogo, aproveitando-se da língua venenosa que é seu
dom natural.
- Ora... De Mailly... Você louva em demasia essa cabeça loura para querer
perdê-la em batalha.
As palavras machucaram como uma adaga, mas o tom de deboche em meio
aos cavaleiros fora como sal e vinagre na ferida que se abriu na honra e no
orgulho de De Mailly. Outros templários ouviram. Cavaleiros seculares
escutaram. Pouco vence mais facilmente o bom senso de um guerreiro que a
vergonha diante de seus pares.
- Não sou covarde.
- Então não pretende obedecer a seu grão-mestre? – continuou Gerard.
Des Moulins olhou embaraçado para o marechal. Outros cavaleiros tinham
uma expressão de expectativa.
- Morrerei em batalha como um homem corajoso, e você... você, meu grão-
mestre... é você quem fugirá como um traidor – disse Jacques, dando as costas
para Gerard. Agora não havia mais volta. Desobedecer a Gerard, por pior que
aquele homem fosse, ia contra tudo o que De Mailly acreditava. Ele fizera votos
quando entrara no Templo. Jurara dar sua vida por Cristo e obedecer ao grão-
mestre. A essência dos templários estava na disciplina e na fé, na honra perfeita
do cavaleiro. Não, ele não poderia desobedecer a seu grão-mestre, mesmo que
aquela alma parecesse mais esculpida pelo Diabo do que abraçada por Deus.
Talvez aquilo fizesse parte dos planos do Senhor. Era o teste derradeiro para sua
alma.
Jacques foi rezar com os outros templários. Ele precisava daquele alento.
Pediu misericórdia ao Senhor e o perdão a Cristo pelas palavras ásperas feitas
contra o superior. Sabia que aquela fala lhe causaria a perda do cargo e talvez a
perda das armas durante algum tempo, quem sabe castigos físicos. Isso se
sobrevivesse aquele dia.
- Cavaleiros, montar!
Jacques olhou para trás e viu a vitória orgulhosa e a ambição pungente
pregadas no rosto de Gerard. Des Moulins o acompanhava com o rosto
resignado. Jacques supôs que ele também fazia suas últimas orações.
Alguns cavaleiros seculares discutiram e reclamaram, mas a maioria teve
medo de ter sua coragem questionada. Também havia o exemplo dos templários,
que eram maioria. Aqueles cavaleiros de branco cavalgavam silenciosamente,
sem questionar as ordens. Se o grão-mestre os enviava para encarar a morte na
batalha, eles verificavam as armas para ter certeza de que enviariam os pagãos
para o fogo do Diabo antes de encontrarem a luz de Cristo.
Cavalgaram deixando a infantaria para trás quando Gerard avistou pela
primeira vez os egípcios. Eles estavam dando de beber aos cavalos, como fora
informado. De Mailly analisou os muçulmanos. Eram pelo menos seis mil, com
certeza. O marechal sabia que aquele grupo era perigoso. Colhera informações
sobre eles ainda em Jerusalém. Os egípcios estavam aliados a Saladino e
ajudariam o sultão a acabar com as forças cristãs. Graças ao entendimento da
cultura e língua locais, Jacques entendera parte do ódio que aqueles
muçulmanos, que também consideravam os cristãos infiéis, tinham para com os
europeus, chamados por eles de francos. O marechal conhecia a religião deles e
sabia que muitos ali estavam lutando pelo mesmo motivo que ele, apenas por fé
e honra. Certo, havia ambição como em qualquer grupo, mas, no fundo, eles
eram todos iguais, cada um matando pelo que acreditava.
“É hora de morrer pelo que eu acredito”, pensou Jacques, fazendo sinal para
que os cavaleiros preparassem suas montarias.
- Vamos atacar com os cavaleiros primeiro. Vamos pegá-los de surpresa. A
infantaria apenas nos atrasará – disse Gerard, ao que Jacques preferiu não ouvir
plenamente. Era melhor apenas cumprir a ordem e não analisá-la. Não queria
morrer irritado ou praguejando a estupidez alheia.
O marechal chamou os templários e falou o lema da ordem:
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – disse e os
outros repetiam as mesmas palavras. “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu
Nome se dê toda a glória”.
A cavalgada começou. Eles avançaram como os cavaleiros francos sempre
faziam, com violência, com coragem, sem hesitação, sem recuo. As patas dos
cavalos espalhavam a areia e os olhos guerreiros miravam o enorme exército
inimigo. Quanto mais próximos, mais Jacques notava que a morte pairava.
Muitos deles ainda deveriam pensar que o Senhor os protegeria e que eles
venceriam a batalha, mas o marechal já lutava havia tempo demais para que sua
fé lhe permitisse essa ilusão. Eram muitas cabeças, muitas armas que os egípcios
agora sacavam desesperados e ainda tentando entender o que acontecia.
A investida tinha a disciplina característica dos templários. Jacques seguia à
frente, cavalgando junto a Roger des Moulins. Não olhava muito para os lados
para evitar ver De Ridefort ou para evitar não vê-lo.
Os egípcios foram pegos de surpresa. Sim, isso era certo. Jacques derrubou
o primeiro com uma espadada no pescoço. Nem bem o sangue da vítima jorrava
pelo ar, outro corpo já caía ensangüentado nas areias do deserto. Dois mortos
enquanto o cavalo continuava avançando, seguido pelo barulho dos outros
guerreiros. Ele olhou de relance para ver Des Moulins decapitar um egípcio. A
distração o fez errar um ataque. O golpe que deveria acertar o rosto de um
inimigo bateu no turbante de raspão. Graças à força do cavaleiro e ao peso da
espada, o egípcio paralisou-se tonto, sem reação, permitindo que um segundo
ataque finalizasse a terceira morte do dia.
Investiram a um ponto em que estavam cercados de corpos e a massa de
inimigos à frente era tão compacta que não era mais possível continuar.
Precisavam matar aqueles que tentavam se organizar e formar uma parede de
defesa. Jacques deu ordem para o grupo pressionar a primeira fila inimiga. Mais
egípcios foram ao chão quando as espadas recomeçaram a baixar. Chegaram a
um ponto em que os cavalos quase escorregavam nos corpos, e foi o último
ponto que alcançaram. Jacques olhou para trás e viu os primeiros cavaleiros
caindo. Era o final se aproximando.
O marechal não parou de lutar. O escudo branco defendia golpes de espada
e lanças e a lâmina templária, sem adornos, simples como todo pobre cavaleiro
de Cristo deveria ser, continuou matando. Em determinado momento, Jacques
viu Roger des Moulins ser jogado do cavalo. O hospitalário levantou-se zonzo,
procurando recompor o equilíbrio. Defendeu um golpe, que o fez perder o pouco
da postura que recuperara. Depois disso, o caminho da morte se abriu para ele.
Os egípcios atacaram como uma matilha. Foram tantas lâminas que não deveria
haver sangue suficiente para escorrer por todas aquelas feridas.
Jacques pensou em tentar ajudar, negando-se no último segundo. Era óbvio
que os egípcios já haviam se recuperado. Por mais que os templários os
surpreendem-se, aquela vantagem numérica estupenda permitia muitos deles
prepararem-se plenamente para vingar os amigos caídos. Já estavam fazendo o
cerco. Jacques evitou o golpe de uma lança. Partiu-a com a espada e fez o cavalo
recuar. O processo engatou um ataque contra um egípcio que se aproximava.
Deixou o homem sangrando enquanto imaginava como conseguira chegar aos
outros templários. Todos que estavam perto dele já haviam caído. Cavalos sem
cavaleiros se perdiam na confusão. Guerreiros de manto branco jaziam em poças
de sangue.
Duas lanças atingiram o cavalo do marechal templário. O animal relinchou
e despencou na areia, quase caindo por cima da perna do guerreiro. Jacques
firmou os pés na terra fofa e olhou em volta. O primeiro ataque foi fácil de
defender. Escudo na frente, desvio da arma, abertura da guarda do oponente,
golpe dilacerante com a espada. Mais um corpo no chão e outra vítima já estava
estendida pouco depois. Ele conhecia o estilo de luta dos inimigos. Sabia como
se defender. Um muçulmano tentou passar por ele para atacar um templário
ferido e acabou com as pernas cortadas. Outro idiota cometeu o mesmo erro e
perdeu a face esquerda. Então chegou o fim.
A lança enfiou-se entre as escápulas como se houvesse um alvo nas costas
do templário. O golpe o atordoou e quase o pôs de joelhos. Sentiu a lâmina
quebrando elo por elo da cota de malha para rasgar a pele e encontrar sangue
fresco. Levantou a espada simples mais uma vez, porém o inimigo que apareceu
desviou-a com facilidade. Agora uma lâmina inimiga estava atravessando a cota
de malha, destruindo a pele e afogando-se no sangue e nos intestinos do
templário. Ele não sentiu os outros golpes. A mente restava ocupada pedindo
perdão a Deus, os olhos enxergavam seus irmãos caindo aos montes e ele
pensava no desperdício. Um dia seriam chamados de imbecis pelo ataque
suicida, seriam acusado de corruptos por causa da ação de homens como De
Ridefort, no entanto, cavaleiros corajosos morriam pela fé e por seus juramentos
naquele dia. Fé e juramentos pelos quais De Mailly achava que valiam a pena
viver e pelos quais agora teria que se contentar em morrer. Que a história e
Cristo fossem testemunhas de que eles tentaram... que alguns homens pudessem
cobrir a glória daqueles outros. Mas... no fim... Non nobis, Domine, non nobis,
sed Nomini tuo da gloriam... Esse era o lema.
A batalha acabou rapidamente. Os templários sobreviventes foram
sacrificados, como os muçulmanos sempre faziam com aqueles cavaleiros, que
pediam a morte pela espada após a derrota. Os guerreiros seculares foram presos.
Apenas três nobres saíram ilesos, um deles, para a desgraça dos cristãos e sorte
dos muçulmanos era Gerard de Ridefort.
Capítulo Um
O templário cavalgava mansamente pelo mercado de Jerusalém. Deixava o
cavalo seguir em passos lentos, enquanto a multidão abria caminho para que o
cavaleiro pudesse seguir sem incômodo. Ele movia-se orgulhoso do manto
branco que portava. A cruz vermelha de bordas largas estava realçada no ombro
esquerdo, símbolo da ordem poderosa que o guerreiro representava. Naquele ano
do Senhor de 1186, antes de Hattin, antes de Cresson, antes das maiores
desgraças, o templário passeava como um rei rumo a mais uma missão.
O povo de Jerusalém olhava para o cavaleiro com sentimentos tão
misturados quanto às raças, línguas e produtos do mercado. Alguns odiavam
aqueles cavaleiros de branco, que, a seus olhos, mais pareciam lobos de coração
negro sob aqueles mantos alvos de cordeiro. Os árabes, principalmente, tinham
pouco amor à ordem que tanto lutara e fizera fama defendendo o cristianismo.
Os cristãos já os temiam e amavam, conforme a disposição do dia. Em geral,
consideravam a ordem cheia de orgulho, porém composta por cavaleiros
corajosos que eram a salvação dos guerreiros de Cristo no Oriente. Havia, por
causa das batalhas e demonstração de valor, um respeito geral pelos templários.
Fossem cristãos ou árabes, as pessoas esperavam que um grande guerreiro
passava por eles quando portava o manto branco e a cruz vermelha.
Guillaume de La Croix Bleue era templário havia quase dez anos. Passara a
lutar em nome de Deus quando ainda estava na França e banhava sua espada de
sangue mais pela própria causa do que pela religião. Sir Guillaume, por sinal,
sempre fizera pouco das atividades religiosas de quem quer que fosse. Houve
pessoas que juravam que aquele homem tinha o coração vendido para o
demônio. Lendas contavam que aos quinze anos Guillaume já começara a erguer
a espada em nome do mal. Mas ele mudara. Aquele La Croix Bleue não era mais
o mesmo. O homem que agora cavalgava em Jerusalém mudara desde certo dia
fatídico.
A história da mudança de sir Guillaume começa em 1176, quando o homem
ainda vivia seus quase vinte anos de idade e recebera o título de cavaleiro mais
tarde do que sua impaciência guerreira poderia suportar. Sua sede de sangue era
maior do que sua experiência de vida e a vontade de erguer a espada em causa
própria desproporcionalmente maior do que a fé. No entanto, a esposa o amava,
os guerreiros que viviam no feudo que acabara de herdar do pai o adoravam.
Obviamente, o milagre do amor parava nesse círculo, pois ninguém com fama
tão ruim em tão pouca idade poderia ser amado por mais do que um punhado de
pessoas. Acontecia que quem tinha coração belicoso, como os guerreiros,
gostavam dele, quem tinha paixão pelo perigo, como a esposa, o amava, quem
era infantilmente ingênuo, o adorava, como o filho, porém, havia o campesinato.
Uma massa explorada que temia a espada de seu senhor não podia ter um
sentimento que não fosse o ódio por aquele cavaleiro.
Os camponeses o odiavam tanto que planejavam uma revolta. Haviam
reunido armas improvisadas e começavam a levantá-las quando Guillaume
decidiu sair de casa para acabar com aquilo. Era uma situação impensável aos
olhos do nobre guerreiro, porém uma boa desculpa para ele preparar as armas.
Era uma manhã fria na França reinada por Luís VII, aquele que partira em
cruzada anos antes. As nuvens escuras em um céu cinzento oprimiam os
corações mais leves, mas acrescentavam paixão a Guillaume. Ele segurou a
espada enquanto descia as escadas do pequeno castelo. Era uma morada simples
para alguém com o coração tão orgulhoso, mas o cavaleiro tinha planos para
modificá-la. Estava farto de ter tão poucos aposentos. Suas defesas não
passavam de uma muralha de pedra de pouco mais de quatro metros e um portão
de madeira. O castelo tinha apenas uma torre de onde ele podia ver suas terras,
inclusive o pequeno povoado onde os camponeses agora se uniam. De lá, de
cima da torre, ele dizia:
- Se Deus fizesse um bom trabalho, esses vermes nem se mexeriam para se
revoltarem. Mas ainda bem que o fizeram, não acha, meu amor?
A esposa acabara de aparecer e observava o marido vestido na cota de
malha. Guillaume tinha pouco mais do que aquela armadura e as manoplas para
proteger as mãos. Sua espada fora herdada do pai, assim como os pedaços de
metal que protegiam os ombros e as pernas. O traje do cavaleiro era isso,
somado a uma lança e ao grande cavalo de estimação. O escudo ele mandara
fazer havia pouco tempo, pois o antigo se quebrara em uma justa.
- Não deixe que eles o façam crer que Nosso Senhor não é justo, meu amor.
- Ah, sim... Não se preocupe, meu amor... Hoje eu verei a justiça...
- Cuidado com o que fará, sabe que meu pai está por essas terras e quer que
você pare com a matança. Nem os padres estão gostando de sua maneira de agir.
Talvez seja melhor dispensar mais dessa energia na cama do que com a espada...
– disse ela, envolvendo-o com os braços.
Ele a abraçou e a manopla embaraçou-se nas roupas dela, beliscando a pele
branca que estava por baixo. A esposa não se importou e o chamou para um
beijo.
- Pecadora – sussurrou ele, aproximando os lábios.
- É bom pecar ao seu lado. Depois eu me confesso com os padres – disse
ela.
Começaram um beijo ardente, pressionando os lábios com força à procura
de mais intensidade. Guillaume só não tirou a armadura porque o dever o
chamava e sempre preferia o sexo depois de ter realizado todas as tarefas do dia.
Afastou-se dela e sorriu. Deu-lhe um tapa na bunda e foi retribuído com um
sorriso perverso de quem lhe daria um presente mais tarde.
- Pode ter certeza que eu volto.
La Croix Bleue desceu as escadas com um sorriso no rosto. Um empregado
abriu as portas do pequeno forte que ele gostava de chamar de castelo, deixando
que a fraca luz da manhã entrasse na penumbra. Guillaume gargalhou para seus
homens. Todos os vinte estavam armados e prontos para lutar. Eram dois
cavaleiros e dezoito sargentos de armas que também lutavam a cavalo, apesar de
não ter o mesmo título dos líderes. Tinham armas ganhas de lutas anteriores,
quando sir Guillaume vendia sua sede de sangue para qualquer um dos senhores
belicosos da França. Foi assim que transformou seus poucos homens de
infantaria em um grupo de combate poderoso.
- Há alguém que não esteja pronto para erguer a espada? – perguntou La
Croix Bleue.
O tilintar de metal foi a resposta para a pergunta. Sir Guillaume gargalhou
mais uma vez e montou no cavalo. O peso da armadura não o incomodava. Era
um cavaleiro forte, cujo dom com a espada favorecia o coração desejoso de
batalha.
- Abram os portões! – gritou ele.
O trotar os cavalos era o mesmo som da chegada da morte. Era a tirania do
sangue azul que avançava para demonstrar que Deus conferira certos lugares aos
homens e que eles não deveriam ser trocados, nem mesmo uma reclamação
sequer era direito. Sir Guillaume concordava plenamente com a frase, desde que
ele fosse a única exceção. Ele queria, ele conseguia. Se não conseguia, então
Deus não era justo, portanto, não haveria problema em pecar um pouco para
saciar suas ambições.
La Croix Bleue fez sinal para os guerreiros se dividirem. Apenas um
cavaleiro e mais nove homens cavalgaram com ele, enquanto os outros seguiam
por uma trilha maior. Correram aos gritos, fazendo uma algazarra que anunciava
a felicidade que tinham em guerrear, mesmo que fosse uma guerra tão injusta. A
Igreja já havia alertado que os bellatores não deveriam atacar os inocentes como
os camponeses e os padres. Até instituíra épocas em que seria pecado guerrear. A
Trégua de Deus, no entanto, pouco valia para Guillaume. Quando finalmente
parou em frente à vila, poderia cuspir na cruz enquanto arrancava a cabeça dos
inimigos e ainda teria a consciência tranqüila.
Os cavalos pararam levantando pouca poeira, mas jogando muitos
pedregulhos para cima. As casas de madeira e turfa eram tão simples que
tornavam a cena ainda mais pecaminosa. Camponeses com facas, porretes e
lanças de madeira se amontoavam perto da Igreja. A coragem passara quando
viram Guillaume chegar. O cavaleiro tinha esse efeito sobre as pessoas. A aura
de ameaça que o cercava intimidava quem estava contra seus objetivos.
- Onde estão os corajosos que queriam se revoltar? – gritou Guillaume para
os homens tímidos que se entreolhavam.
Os camponeses tentavam decidir o que fazer. Seus planos haviam se
evaporado tão logo os cavalos chegaram e as pontas das lanças brilharam.
- Acho que é hora de ensinar para vocês que cada um tem seu lugar e, por
Deus!, o de vocês é suando enquanto aram a terra para mim!
Um padre saiu da igreja um pouco assustado. Abriu caminho entre os
camponeses com cuidado, temendo cortar-se em uma das armas. Parou a seis
metros do cavalo de sir Guillaume.
- Sir Guillaume, esses homens não se importam de trabalhar para o senhor.
O que temem é que o senhor os mate e não louve a Deus como deveria. O senhor
não vai às missas e ainda os oprime com a espada com tanta força que...
O cavaleiro cuspiu no chão, o que fez o padre interromper o discurso.
- Continue, padreco...
- Senhor...
Ele parou novamente quando ouviu o barulho de cavalos. Eram os reforços
chegando. O padre calou-se e olhou esperançoso para os dezesseis homens
montados que agora apareciam na estrada. Em pouco tempo eles já estavam
próximos aos guerreiros de sir Guillaume.
- Albert! Meu sogro! Como está? Veio prestar-me uma visita em um
momento pouco apropriado. Por que não me espera em meu castelo com sua
filha?
O homem que chegara estava próximo dos quarenta anos, mas ainda era
forte e alto. A idade cobrara pouco da vida além dos cabelos esbranquiçados.
- Não, Guillaume.
- Já sei... Meu castelo não é assim tão bom quanto o seu... Mas... Não se
preocupe... – Ele pretendia continuar falando que se casara com a única filha de
Albert e depois da morte dele, ninguém senão o La Croix Bleue teria aquele
feudo enorme que, no momento, estava nas mãos erradas. Claro, havia o
cunhado, filho mais velho de Albert, porém ele tivera a ideia estúpida, aos olhos
de Guillaume, de partir para as cruzadas e desaparecera por lá.
- Guillaume, vim em nome da Igreja para exigir que pare de lutar em
momentos impróprios e que pare de chacinar seus servos. Suas atitudes vão
contra as leis de Deus.
- Ousa pisar em minhas terras, agir em meu feudo e fazer exigências para
mim?
- Sim, Guillaume. Venho em nome da Igreja, ajo em nome de Nosso Senhor
e do Filho...
La Croix Bleue ergueu a mão.
- Não, não e não. Já chega ter ouvido seu discurso durante o casamento.
Agora não. Deus não criou meus ouvidos para perderem tempo com isso. Pensa
que isso aqui é latrina, é? – disse, apontando para as orelhas.
- Acho que a nobreza se perdeu em seu pai. Você não merece o sangue que
tem, Guillaume. Não pretendo continuar discutindo com você. E, se não
pretende se redimir, prepare-se para enfrentar minhas armas. E perceba que está
em clara desvantagem.
- É? – perguntou Guillaume, com um cinismo tão cheio de veneno que
secaria as plantas ao redor, se houvesse alguma que já não morresse durante sua
passagem.
- Sim.
Albert percebeu que havia algo errado tarde demais. Ouviu o trotar de
cavalos em um dos campos da vila. Um grupo de dez guerreiros avançava em
carga rumo a seus homens. O nobre deu ordens para todos se prepararem, mas
Guillaume já mandara seus soldados agirem. Dois deles retiraram arcos e
acertaram flechas no peito de dois dos inimigos. Um deles ficou apoiado sobre o
cavalo enquanto o outro caiu no chão seco. Os animais moveram-se assustados
quando os guerreiros de La Croix Bleue finalmente chegaram. Os homens de
Albert ainda não haviam conseguido manobrar ou prepararem-se para receber o
ataque de carga. Estavam cercados.
O ataque despedaçou qualquer defesa que Albert conseguira armar. Três de
seus soldados caíram, inclusive um de seus quatro cavaleiros. Um deles foi
atingido no pescoço por uma lança, tombando sem resistência. Albert girou o
cavalo e preparou os homens para se retirarem, mas Guillaume já estava sobre
ele com a lança em riste. Albert mal conseguiu erguer o escudo e o impacto o fez
perder completamente o equilíbrio. A queda o machucou bastante. Levantou-se
imaginando que já estava velho demais para lutar, ainda mais com um
sanguinário que tinha metade de sua idade.
- Acalme-se que eu o alcanço, seu desgraçado! – gritou Guillaume no meio
da balbúrdia da luta. Desceu do cavalo depressa. Jogou o escudo para o lado,
fazendo-o rodopiar nos pedregulhos.
Sir Guillaume caminhou apenas com a espada na mão direita. Um soldado
interrompeu seu caminho, mas não foi para atacá-lo. O homem cambaleava com
a mão na garganta, tentando inutilmente conter um jorro de sangue que fazia sua
vida esvair-se. La Croix Bleue o empurrou sem piedade, pois era um sentimento
que conhecia apenas para torturar a si mesmo nos momentos em que se divertia
mais. Limpou o sangue que voou em seu rosto com a manopla e ergueu a espada.
Albert já estava de pé com a lâmina pronta para o combate.
- Não acredito que o admiti como meu genro! – gritou o cavaleiro mais
velho. Ele já sabia da fama de Guillaume, mas cometeu o erro de entregar sua
única filha ao maldito, tudo por causa da amizade com o pai dele. Foi uma
escolha triste. Deveria ter trocado a garota por um feudo maior, mas não. Cedeu
aos sentimentos que tinha por ela e deixou que se casasse com quem amava. Mas
como ela podia amar alguém assim?
As espadas bateram-se e a resposta para a pergunta de Albert foi o som de
metal contra metal. A força de Guillaume o jogou para trás e fez perder o
equilíbrio. Os golpes seguintes o fizeram recuar até que estivesse na porta da
igreja. Já não havia camponeses ou o padre lá. Todos o abandonaram. Esperava
que Cristo não fizesse o mesmo, pois precisava da ajuda divina mais do que
nunca.
Guillaume desceu a lâmina e a subiu de volta na diagonal. O ataque bruto
quase pegou Albert desprevenido. Ele aparou e sentiu a espada vibrar com o
choque. Os músculos retesados doeram. Foi com esforço que desviou a lâmina
para a esquerda e deu um encontrão em Guillaume. La Croix Bleue sentiu o
impacto e quase perdeu o equilíbrio, conseguiu firmar um pé no chão e
empurrou de volta, jogando Albert para dentro da igreja.
Albert se afastou e tentou recuperar o fôlego. O oponente era jovem demais
pra ele e sua experiência não estava valendo tanto. Passara tempo demais apenas
dentro do castelo, preocupado com suas terras e em conseguir outro filho na
idade de quarenta anos, além de remoer-se com o desaparecimento do
primogênito.
- Cansado, meu sogro? – questionou Guillaume. Ele também suava, mas
não sentia o cansaço. Nem estava ofegante. O rosto estava tomado por uma
felicidade feroz, um animal saciando a fome.
- Ainda não estou morto.
Guillaume não deu atenção para a bravata. Avançou com força, agora
atacando de cima para baixo. Albert se desviou com um movimento que causou
uma fisgada na perna. Parecia um anzol puxando seus músculos. Quase perdeu o
segundo movimento. Acertou o ombro em Guillaume, desequilibrando o genro.
Tendo retirado a defesa do oponente, atacou com as forças restantes, agora com
o cansaço exigindo que aquele fosse o golpe final. A espada bateu contra a cota
de malha de Guillaume e o jogou contra a parede de madeira da igreja,
arrancando um rangido da estrutura. La Croix Bleue apoiou-se com a mão
esquerda e sorriu feliz ao notar que o sogro não se movimentara a tempo para
estocá-lo em um último ataque.
- Quase... – disse Guillaume.
- Quase... – disse Albert, em meio à respiração ofegante. Ele já estava
atacando de novo, de cima para baixo.
Guillaume fez um movimento rápido, erguendo a espada para desviar a
lâmina do sogro. Resolveu tudo com um giro, afastando o perigo e voltando-se
para acertar a lâmina na barriga do oponente. Albert sentiu a armadura ceder e o
aço frio cortar a lateral do corpo. Gritou e se afastou com o sangue quente
escorrendo. Guillaume não lhe deu tempo para descansar. Suas espadas estavam
grudadas antes que um segundo se passasse. Os olhos estavam presos uns nos
outros.
- Quase – disse Guillaume, chutando o sogro após soltar a palavra entre os
dentes.
Albert bateu contra o crucifixo pregado no altar e caiu. O objeto grande,
que fora presente dele mesmo para a simples igreja, caiu sobre seu corpo.
- Cristo, proteja-me – pediu o homem. O sangue escorria do nariz, pois a
madeira batera com força no rosto.
Guillaume cuspiu na cruz e riu. Levantou a espada e deu o primeiro golpe,
começando a despedaçar a madeira e pronto para destruir o corpo debaixo dela.
Foi um dia de pecado, mas que acabou em redenção, um dia que o cavaleiro,
agora um templário, queria se esquecer e se lembrar. Cogitava durante a noite se
era certo ainda ter na memória àquelas horas de luta ou talvez todos os anos
negros. Mas, por fim, o que importava era que mudara.
Sir Guillaume se considerava um templário de corpo e alma. Tornara-se um
cristão de fato depois daquele dia, depois daquele momento. Havia, no entanto,
um porém. Como as pessoas nunca mudam completamente, Guillaume ainda
mantivera o mesmo desejo por guerra e, por isso, sua nova vida só poderia ter
um destino: a vida no Oriente. Ultramar com suas batalhas e o apelo de morrer
em prol da causa cristã, espiar todos os pecados, eram a resposta para o coração
daquele cavaleiro. Tomou o manto e a cruz e foi-se para combater os pagãos.
Jerusalém foi a morada de Guillaume por cinco anos, antes de se mudar
para uma fortaleza de La Fêve, próxima ao mar da Galiléia. Estava de volta à
cidade apenas para cumprir uma missão, a de escoltar a filha do barão de Sable
D´Or. Conhecia a garota havia tempo suficiente para não gostar da missão, no
entanto, nada podia fazer. As doações do dízimo eram vultosas e o apoio militar
dividido com os templários era essencial para manter os grupos revoltosos da
região sob controle. Havia alguns meses os muçulmanos e até mesmo os cristãos
ortodoxos locais estavam descontentes com o barão. Por sinal, nem todo cristão
gostava da presença dos europeus, mais chamados de francos, no Oriente.
Guillaume, acostumado a ser impopular, pensava nos males que os francos já
haviam causado para desgastar a relação com os nativos. Um deles era a pouca
liberdade que os cristãos ortodoxos tinham para cultuar. Não que fossem
impedidos, mas raramente tinham oportunidade de usar as igrejas de Jerusalém
para seus cultos, muitas vezes sendo obrigados a participar do ritual dos francos.
O templário passou por algumas barracas do mercado e fez o cavalo se virar
para a esquerda, tomando uma rua íngreme. Seus acompanhantes, antes um
pouco desaparecidos no meio da confusão de comerciantes e fregueses,
precisaram empurrar algumas pessoas para conseguir passagem. Apenas um
deles não o fez. Dante, templário como Guillaume, esperou calmamente que as
pessoas passassem antes de levar o cavalo para frente. Os outros dois homens
montados que estavam junto com ele não tiveram a mesma educação. Dante
lamentou calado os maus modos. Silencioso como costumava ser, começou seu
movimento pelo beco observando as casas pequenas. O povo vivia espremido
naquele calor infernal do Ultramar, do mesmo modo que se espremiam na
Sicília, a terra natal de Dante. Eles sempre sofriam enquanto os nobres
guerreavam. Não que Dante fosse muito contra a guerra, mas pensava no que
acontecia com o povo enquanto as espadas eram erguidas e o destino dos reinos
eram traçados.
- Apresse-se, Dante – gritou Guillaume. Ele não olhou para trás, apenas
levantou a mão e fez o chamado para que o companheiro se aproximasse. Tanto
o siciliano quanto os outros dois bateram nas ancas dos cavalos. Já ao lado de
Guillaume, a conversa começou. – Sinto o cheiro de guerra.
- Você tem um bom faro para isso – comentou Dante.
- Um verso sobre a guerra...
- As palavras da sua boca eram mais macias do que a manteiga, mas havia
guerra no seu coração: as suas palavras eram mais brandas do que o azeite;
contudo, eram espadas desembainhadas. É um salmo – disse Dante, com suas
típicas citações.
- Esse verso é para mim?
- Suponho que sim.
- Um salmo só meu – riu Guillaume. Se havia algo que não mudara nele era
a ironia e a petulância. Por mais que aquele jovem incauto e belicoso houvesse
mudado, ainda havia o guerreiro orgulhoso que aprendera com a vida e com a
religião a encontrar motivos para rir de qualquer situação, até mesmo as mais
sagradas.
Dante conhecia Guillaume havia seis anos e sempre estivera contente de tê-
lo praticamente como seu superior. Haviam se conhecido em Jerusalém assim
que o siciliano chegara em um navio genovês. Ele peregrinara de Beirute até a
Cidade Santa para enterrar a cruz que sua falecida esposa carregava. Decidiu se
tornar um templário quando percebeu que não havia mais o doce amor para
alegrar-lhe o coração e que a vida na Sicília não seria a mesma se sua bela Maria
não existia mais. Agora vivia dias lutando por Cristo e noites rezando por ela.
Tinha a crença fiel de que alcançaria o Céu se morresse em batalha e assim
estaria do lado da esposa.
- Voltaremos apenas nós? – perguntou Dante.
- Suponho que sim. Talvez encontremos uma caravana. Mas não sei. Quem
sabe se não podemos conseguir alguns templários para nos acompanhar? Dizem
que eles foram criados para proteger peregrinos – disse Guillaume, com um
sorriso no canto dos lábios. Era comum ter essa expressão que lhe dava um ar
ainda mais petulante.
- Dizem que sim. Mas nós não somos peregrinos – brincou Dante.
- É mesmo. Já ia me esquecendo que somos templários.
- Quem ouve você falando até pensa que não leva a sério a cruz que tomou.
Guillaume riu e virou mais uma esquina. Agora alcançara a rua que dava
para o palácio do patriarca de Jerusalém. Olhou para a esquerda e para a direita,
como se tentasse se lembrar do caminho. Viu o Hospital de São João, a grande
construção que servia de albergue e ponto de recuperação de peregrinos
cansados. Era a sede de outra ordem militar, a dos hospitalários. O templário
torceu o nariz e parou para olhar para o Santo Sepulcro. Guillaume não sabia,
mas a igreja começara a ser construída no ano de 326 depois do nascimento de
Cristo ainda pelos romanos. Fora destruída uma vez por um líder árabe e antes
saqueada pelos persas. Agora, reconstruída, era um prédio bonito com uma torre
à esquerda e uma construção central com uma abóbada enfeitada por uma cruz.
Guillaume acreditava, como todos os cristãos, que Jesus fora crucificado ali.
Persignou-se em sinal de respeito e beijou a própria mão pedindo que fosse
abençoada pelo Senhor.
- O dia está passando, Dante. Vamos seguir – disse, tomando a rua.
Dante olhou para trás para se certificar que os outros dois homens estavam
os acompanhando. Eles os seguiam calmamente, porém não calados. Um deles,
Henri, falava e falava no ouvido de Ahmad. Não parava de tagarelar por um
segundo que fosse. O templário quase mandou o sargento se calar. Pensou
melhor e sorriu. Eles não estavam em marcha, não estavam em guerra. Não
havia necessidade de tanta rigidez. Melhor deixar Henri conversar. O homem
gostava tanto de falar que conversaria com a própria sombra na falta de alguém
para ouvi-lo.
Chegaram à igreja do Santo Sepulcro antes do meio-dia. Dante não sabia
que era para ali que estavam indo. Só sabia que haviam chegado naquela manhã
depois de longas noites dormindo ao relento e ainda nem haviam comparecido
ao Templo. Guillaume gostava de quebrar protocolos. Felizmente ninguém
importante ainda notara que eles estavam na cidade. Gerard de Ridefort, o grão-
mestre dos templários, não era alguém que gostava de ser desafiado. Não era
sadio ir contra o líder dos templários.
O tumulto em frente à igreja não surpreendeu nenhum deles. Guillaume fez
um bico, pois assim seria mais difícil encontrar Laure, a filha do barão.
Preparou-se para dar ordem para alguém desmontar e procurá-la. Os outros
também conheciam a mulher e poderiam muito bem fazer o trabalho. Ele não
queria. Não, pretendia voltar para o Templo e saber como estava tudo. A
temporada em La Fève não era tão divertida quanto Jerusalém com suas intrigas
palacianas. Ao menos lá ele estava mais próximo dos inimigos e tinha mais
chance de desenferrujar os músculos erguendo a espada.
- Henri, encontre Laure – ordenou Guillaume, olhando para a cruz acima da
abóbada da igreja. Começou a orar um Pai Nosso que não interrompeu nem
quando viu uma mulher parada à sua frente. Ela o olhava pacientemente,
esperando ser cumprimentada. – Pode deixar, Henri – disse, ao terminar a
oração. Fez sinal para o sargento montar de novo. – É um prazer vê-la, dama
Melisende.
Ele não estava mentindo. Também não fora irônico. Ver Melisende era um
prazer para qualquer homem, mesmo para aqueles que diziam não apreciar o
sangue mestiço dela. Usava um véu à moda oriental. Suas roupas seguiam o
mesmo estilo. Tinha um longo manto de baixo e por cima uma túnica bordada
com fios dourados. Carregava um lenço pequeno na mão esquerda com o qual
enxugava o rosto por baixo do véu. Ah, aquele véu escondia uma face tão linda
que dominava corações despreparados. Era uma mistura de sangue oriental e
franco. A pele tinha uma cor bonita, levemente morena, a um ponto que era fácil
definir sua metade judia, porém não tão claro que os finos traços da nobreza
francesa fossem esquecidos ou, melhor, notados como uma das características
principais. Os olhos amendoados tinham um brilho de paixão. Mostravam o
ardor que deveria haver no coração da mulher e ainda não fora dominado por
nenhum homem.
Melisende olhou de volta para Guillaume e não o cumprimentou. Fez um
movimento para cruzar os braços, depois desistiu. Não tinha intenção de
demonstrar que estava irritada.
- Não vai me conceder a honra de retirar o véu? – disse Guillaume.
- Não enquanto não desmontar.
Guillaume soltou o ar fazendo um bico pequeno e saltou do cavalo. Henri
moveu-se para segurar o animal, enquanto o templário fazia uma reverência
cortês para a dama. Dante e Ahmad também desmontaram, ambos por educação.
Só não haviam o feito ainda porque não ousariam fazer algo diferente de
Guillaume.
Melisende ergueu o véu e deixou a face mestiça à mostra. Guillaume sorriu
para aquela beleza, o que a fez pensar que o templário estava zombando porque
seus olhos ainda estavam vermelhos pelas lágrimas.
- Por que chora, minha dama?
- Choro pelo nosso jovem rei que morreu – disse ela, ainda triste por saber
que aquela criança morrera tão jovem e que estavam sem um governante. O
trono vago a atormentava pela ideia de guerras que estariam por vir. Já ouvia
boatos das disputas pelo poder.
- Mas ainda? – disse Guillaume, com um ar de intrigado. – Chorando assim
até parece que ele morreu ontem.
- E por acaso há um tempo máximo para se chorar por quem se ama?
- Deveria haver – disse ele baixinho.
- Eu ouvi isso. Guillaume, eu tive aquela criança dócil nos braços. Eu vivi
com ela enquanto você perdia seu tempo nas areias do deserto procurando por
batalhas.
- Tudo bem. Pode chorar. Que Deus abençoe seu choro.
Melisende se irritou. A vontade era esbofetear aquele templário era um
maldito.
- Onde está sua prima? Onde está Laure? Não está chorando com você?
- Laure não está aqui. Ela viajou para Jafa com uma caravana. Soube de um
mercador de tecidos finos que estava por lá e insistiu em ir.
Guillaume soltou o ar fazendo beiço. “Mais essa”, pensou, “mulherzinha
maluca. Agora tenho que viajar até Jafa”.
- Há quanto tempo ela foi?
- Seis dias.
- Quase uma semana! Ah, Deus, por que comigo? Vamos atrás dela. Seu tio
não gostará de saber disso.
- Suponho que não. Mas é seu dever de templário escoltá-la, não é?
- Não sei. É, Dante? – perguntou Guillaume, montando de novo.
- Suponho que sim, senhor – disse Dante. Às vezes chamava Guillaume por
senhor. Era devido ao respeito que tinha pelo amigo. Não só a amizade, mas a
experiência do templário mais velho o deixavam impressionado.
- Muito bem, Melisende. Arrume-se então. Vou até o Templo e voltarei para
pegá-la. Não posso deixá-la aqui. Henri e Ahmad, descubram se existe uma
caravana partindo ainda hoje e depois podem comer. Encontre-nos no Templo.
- Nervoso com minha prima? – perguntou Melisende, sorrindo ao saber que
Laure realmente conseguira irritar o templário.
- Ah, não, minha bela. Por sinal... Dante, um verso.
- E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo
que a tribulação produz a paciência. Carta aos Romanos.
Guillaume repetiu o versículo bíblico e sorriu para Melisende.
- Está na Bíblia, dama Melisende. Está na Bíblia. E eu lá sou homem de
desrespeitar a Bíblia?
Agora ela cruzou os braços para observá-lo partindo. Tinha raiva daquele
templário, principalmente porque ele sempre terminava uma discussão sorrindo.
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Karsten deitava-se mais uma vez sob a luz das estrelas. Encostara a cabeça
em um travesseiro improvisado com a sacola de roupas que levava e colocara a
capa sobre o corpo. Olhou para os animais quietos em um canto do
acampamento. Um dos cavaleiros hospitalários estava ao lado deles, ainda de
vigia. Foi com custo que ele percebeu que era Édouard. O homem rezava com a
espada fincada no chão, como se pedisse uma benção para a arma. Quando ele
acabou, Karsten resolveu se levantar para conversar um pouco. Não conseguia
dormir, apesar do cansaço. A imagem de Laure não saía de sua cabeça. Aquela
beleza altiva da mulher o inspirava e o deixava com dúvidas quanto ao futuro.
Não sabia o motivo, mas sentia que ela mudaria seus planos.
Andou devagar até Édouard, certificando-se de que o homem o veria antes.
O hospitalário não fez nenhuma menção de se importar com a aproximação.
Apenas sentou-se em uma pedra e esperou pela chegada do cavaleiro.
- Deveria dormir. Teremos uma viagem longa sob o sol amanhã – falou o
hospitalário.
- Eu sei. Acontece que estou um tanto inquieto – confessou o cavaleiro,
parando de braços cruzados ao lado do companheiro de viagem. Édouard
levantou-se e fincou a espada de novo no chão. – Como é lutar aqui?
- É como em todos os lugares. Você procura por uma causa no coração e
ergue a espada imaginando que esteja matando pelo motivo certo. Acha que vai
matar pelo motivo certo?
- Nosso padre me perguntaria agora se existe motivo mesmo para matar –
comentou Karsten, olhando para Gareth dormindo. Édouard continuou
esperando uma resposta. – Acho que sim. Acho que tenho os motivos.
- Que bom. Vai ser importante quando fechar os olhos para dormir.
- Eu penso que sim. As lutas têm sido difíceis? – perguntou Karsten,
coçando os olhos. O sono começou a aparecer subitamente.
- Bastante. Elas sempre são. Os muçulmanos são fiéis a sua vontade de
morrer por sua religião.
- Espero ter a oportunidade de derrubar muitos.
- Por enquanto eu espero que não. Estamos em trégua com Saladino, o
sultão que uniu os muçulmanos.
- Ouvi falar desse Saladino. – O cavaleiro tentou espantar um pouco do
sono, pois queria saber mais sobre aquele sultão.
- Vá dormir. Há muito tempo para você aprender sobre isso.
Karsten sorriu. Sim, havia tempo. Agora era hora de dormir. O cansaço o
chamava. Foi para sua desconfortável cama de areia pensando em batalhas e, no
meio delas, Laure. As curvas da mulher atiçavam a mente dele, mesmo tão
enevoada pelo sono.
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O combate acabou com um total de dez vítimas por parte dos salteadores e
apenas duas por parte dos cavaleiros. Eles contaram os mortos ainda de noite,
sob a luz das tochas. Imaginavam que pelo menos cinco dos sarracenos haviam
fugido.
- Loucos. Meros ladrões querendo assaltar guerreiros experientes – falou
Édouard.
- Arma ciladas no esconderijo, como o leão no seu covil; arma ciladas para
roubar o pobre; rouba-o, prendendo-o na sua rede – citou Dante, agora falando
um salmo. Édouard fingiu não ouvir. Não estava com paciência para os
templários. Tinha um ferimento no braço direito e acabara de perder um amigo.
O hospitalário caminhou até o cavalo e pegou uma capa, depois andou até o
morto e o envolveu, cuidando para que o corpo ficasse bem protegido. Pegou a
espada e guardou, assim como o escudo. Terminado o trabalho, foi ver o que
acontecera com os outros. Quase todos tinham pelo menos um ferimento.
Ninguém saíra ileso da batalha, o que era fácil de ver mesmo sob a luz fraca das
tochas. Apenas dois dos mercadores não tinham sido feridos, no entanto o
terceiro jazia morto.
- O que vocês farão com ele? – perguntou o hospitalário. Guillaume se
aproximou nesse momento.
Os mercadores fizeram sinal afirmando que cuidariam do corpo, mas se
afastaram quando o templário chegou.
- Parece que eles não gostam de você – disse Édouard.
- Eles têm motivo para isso. E não precisa se culpar. O ataque aconteceria
mesmo que não tivéssemos parado. Seria mais uma questão de quando
aconteceria.
- Não estou me culpando. Não seja presunçoso.
- Então não se culpe pela morte do homem. Ele era um espião dos
Assassinos. Foi-se tarde.
O hospitalário não disse nada. Voltou para perto de seus irmãos de ordem e
lá ficou o restante da noite. As memórias agitadas do combate afastavam o sono.
Dedrick, que ajudara a arrastar e reunir os corpos dos sarracenos, lamentava o
papel que fizera durante a luta. Fora um incompetente, enquanto seus amigos
haviam se saído bem. Até mesmo Gareth reagira, empurrando um salteador que
passara perto e dando abertura para que um hospitalário o estocasse. Mas ele
não. Fizera apenas uma vítima e mesmo assim tinha vários fermentos desse
combate.
Os corpos já estavam colocados em fila no chão. O suor escorria nas testas
e nas costas dos cavaleiros cansados do esforço de carregar os mortos.
Guillaume os verificou mais uma vez antes de ir se deitar. Édouard estava certo.
Eram loucos. Não passaram de salteadores e tentaram atacar cavaleiros
treinados, endurecidos por anos de batalha. O templário não lamentou a perda de
vidas por um único instante que fosse. Rezou um Pai Nosso por eles e pediu pela
salvação das almas infiéis, depois rezou algo em árabe em respeito à religião dos
falecidos.
Dedrick parou perto do templário para se desculpar pelo fiasco da batalha.
Por pouco as palavras não travaram na boca.
- Sei que devo ter sido uma decepção.
Guillaume retirou os olhos dos corpos para fitá-lo.
- De fato foi.
Os olhos de Dedrick se arregalaram. Não esperava tanta sinceridade.
- Preocupe-se com isso, pois sua vida e a dos outros dependerão de sua
espada. Esse era apenas um salteador. – Estendeu a mão para o cadáver. – O que
acha que fará quando estiver diante de um verdadeiro cavaleiro? Garanto que
não terá a oportunidade de falhar assim de novo.
Karsten ficou curioso ao ver o primo cabisbaixo conversando com o
templário. Alcançou-os no momento de ouvir a admoestação.
- O que pensa que está falando com ele? – perguntou furioso o cavaleiro.
Guillaume olhou para o germânico e voltou-se de novo para Dedrick.
- Já disse o que tinha para falar, Dedrick. Ouça-me e sobreviverá na Terra
Santa.
O templário começou a andar para junto dos companheiros. Karsten o
interrompeu segurando-o pelo braço. Guillaume não fez nenhum movimento
para pará-lo, apenas olhou de volta com as sobrancelhas unidas e os maxilares
travados.
- Estou falando com você, templário.
- Mas eu não me lembro de ter falado com você, cavaleiro.
- Mal o conheço e já estou ficando farto de sua arrogância – falou Karsten,
ainda segurando o braço de Guillaume.
- Mal o conheço e espero continuar o conhecendo pouco para não odiá-lo
tanto que precise matá-lo em duelo.
Karsten soltou o braço do outro para levar a mão até a espada. Guillaume
nada fez além de olhar de volta e soltar um risinho zombeteiro.
- Melhor começar a pensar duas vezes antes de fazer as coisas por aqui,
cavaleiro.
O templário saiu rindo. Karsten pensou em sacar a espada e desafiá-lo e só
não o fez porque Dedrick o impediu. O jovem cavaleiro levantou o braço e tocou
o ombro do primo. Foi ainda de cabeça baixa que disse:
- Ele está certo, primo. Eu vi esse homem lutando. Preciso ser como ele se
quiser ser um templário e não fui nada além de um grande fiasco.
Karsten colocou a mão sobre a do primo. Olhou-o com paciência de irmão
mais velho e carinho de pai.
- Não deixe que ele fale assim com você, meu primo. Você apenas teve azar.
É um grande guerreiro. Eu o ensinei a lutar. Deixe os templários de lado. A
opinião deles não deve valer tanto quando você pode lutar conosco.
- Não, Karsten. Não deixarei meu sonho de lado. Pretendo continuar
lutando e vou provar que posso ser um templário. Você me treinou. Tenho
capacidade para tanto. Tenho certeza.
Karsten balançou a cabeça lamentoso e andou para conversar com os
outros. Olhou para Laure e Melisende conversando. Encantou-se com as duas e a
preocupação com o que poderia ter acontecido com elas encheu seu coração. De
algum modo, Guillaume estava certo. Dedrick ainda não estava pronto para as
batalhas. Precisava de mais treino, de um aperfeiçoamento maior. Aquele
salteador era o quarto homem que o jovem cavaleiro matara e os outros três não
passavam de mercenários desqualificados, reunidos as pressas por um inimigo
de Tapferklinge. Karsten ainda se lembrava do dia em que Dedrick matara seu
primeiro oponente. O jovem ficara extasiado com a experiência, porém toda a
excitação se fora após a morte do segundo, quando ele finalmente percebeu a
gravidade que era retirar a vida de alguém. As mãos dele tremeram até que
Karsten agachou de cócoras na frente dele e o segurou, falando que aquela era a
vida de um cavaleiro.
O vento da noite bateu nos cabelos empapados de suor do cavaleiro. Foi
uma sensação de frescor que ele estava precisando. Acalmou-se um pouco e foi
ter com Gareth. Queria conversar antes de dormir, se é que conseguiria dormir
depois da agitação.
Capítulo Três
Jerusalém lhes pareceu um esplendor. Os cavaleiros já haviam visto
cidades, obviamente, mas nenhuma com aquela amplitude de nações em um
mesmo lugar. Talvez, se houvesse conhecido Constantinopla, não ficassem tão
surpresos. Mas aquela era a Terra Santa. Aquela era a cidade onde Cristo fora
morto. Ali eles poderiam conhecer o Santo Sepulcro, onde o corpo de Jesus fora
colocado após a crucificação. Depois passariam pelo Gólgota, o lugar onde
Salvador fora crucificado.
Haviam entrado pelo Portão de Jafa, passando pela Torre de Davi. O
mercado de grãos os impressionou pela multidão de pessoas diferentes. Não era
como nas terras germânicas com as pessoas sempre vestidas com os mesmos
trapos, andando em meio ao frio com os poucos recursos que tinham para
comprar dos poucos mercadores que ali circulavam. Em Jerusalém havia
muçulmanos, cristãos armênios, cristãos ortodoxos, cristãos católicos, cristãos
coptas, cada um vestido como agradava a sua religião, falando sua própria língua
e ainda sim caminhando em meio às diferenças.
Karsten assistia a tudo com assombro. Era com dificuldade que assimilava
cada pedaço do quebra-cabeça colorido que era a Terra Santa. Não podia aceitar
que havia aquela diversidade de religiões na Terra Santa. Imaginava que apenas
cristãos deveriam viver ali, afinal não fora para isso que se fizera guerra? Não,
talvez não fosse. Perguntava-se como poderia cumprir suas promessas naquela
miríade de nações que dividiam Jerusalém. Apenas olhando para Laure ele
encontrava alento para continuar cavalgando pela rua do Mercado das Aves. Já
estavam passando pela Casa de Câmbio quando Laure parou o cavalo para
esperá-lo.
- Está gostando do que vê? – perguntou ela, sorrindo.
- Confesso que estou um pouco confuso. Quando verei o Santo Sepulcro? –
perguntou ele, coçando a cabeça.
- Já passamos pela rua que dá acesso a ele. Mas veja, olhe daqui. Ela
apontou com o queixo, mostrando a pequena cruz que enfeitava a igreja do Santo
Sepulcro. – É ali, depois do Hospital! – Apontou de novo, agora mostrando o
caminho para o qual Édouard e seus amigos haviam seguido com o corpo do
hospitalário morto.
O coração de Karsten bateu mais forte. Fez uma oração lenta em
homenagem à visão. Laure ficou calada, esperando que ele terminasse. Quando
percebeu que os lábios do cavaleiro pararam de se mover, continuou falando:
- Há muito que ver em Jerusalém, Karsten. Você vai gostar. Também vai
gostar de Sable D´Or, apesar de lá não ser tão magnífico quanto aqui.
- Garanto que não vou me decepcionar.
- Nem você nem sua espada – disse ela, olhando para a cintura do cavaleiro.
Karsten segurou a empunhadura e sorriu. Estava começando a se acostumar.
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Acre era uma cidade grande na região da Galiléia. Fora tomada pelos
cruzados no ano do Senhor de 1104 com a ajuda de uma esquadra genovesa.
Guillaume passou pelos muros da cidade conversando com Laure. O templário e
a filha de Sable D´Or discutiram muito durante a viagem, mas não deixaram de
conversar por um minuto que fosse. Algumas vezes, Guillaume até atraiu
Melisende para a conversa, aproveitando para contar a história das batalhas perto
de Acre. Falou até de uma em que o pai dela participara para subjugar um grupo
de revoltosos influenciados pelos Assassinos. Guillaume lutara ao lado dele e
por pouco não o convencera a se unir aos templários.
- Meu pai, um templário? Não, ele era humilde demais para isso – disse ela,
falando a verdade.
- Chama nossos corações de orgulhosos, Melisende? – perguntou
Guillaume.
Ela fez o cavalo diminuir o passo e ficou para trás para conversar com a
serviçal que a seguia e com Karsten. Laure ficou para continuar ouvindo as
histórias de Guillaume. Estavam passando pelos portões da cidade. Toda Acre
era rodeada por grandes muros que a protegiam como uma barreira que a
mantinha entre o deserto mais à frente e o mar. Começavam a enxergar as casas
apertadas atrás das muralhas. Ao contrário das vilas e muitas partes de Ultramar,
ali as construções eram mais resistentes, com mais pedras e tijolos do que
madeira.
- O Templo foi fundado por Hugo de Payns. Quer saber quando, Laure? No
ano do Senhor de 1119 ele se uniu a nove outros cavaleiros para lutar em nome
de Cristo e proteger os peregrinos que vinham para a Terra Santa. Era uma ação
necessária. Quando Ascalão ainda não estava sob nosso poder, muitos
muçulmanos saíam de lá para atacar a rota de Jafa a Jerusalém. Era ainda pior do
que é hoje. Agora, felizmente, o Templo tem poder e você já viu o que fazemos
com salteadores do deserto.
- Ah, sua humildade me impressiona, Guillaume.
- A mim também. Às vezes eu fico surpreso como uma pessoa pode ser tão
piedosa e humilde e não ser arrebatada para o Céu imediatamente – falou ele,
rindo. Guillaume ria com facilidade. Era um guerreiro feliz apesar dos modos
que sempre pareciam um tanto rudes para os outros. Anos sendo odiado e sem
perspectivas o ensinaram a rir de seus próprios defeitos. Um homem que perde
tudo precisava aprender a rir de si mesmo e do destino.
Laure riu. As discussões constantes com o cavaleiro às vezes a divertiam.
Precisava confessar a si mesmo que costumava sentir saudade das provocações e
dos modos rústicos sempre preparados para o melhor e para o pior. Conhecia
Guillaume desde que ele chegara à Terra Santa e nunca o vira reclamar. Às vezes
irritava-se com as críticas ácidas do templário, porém não podia se lembrar do
dia em que o vira reclamando do tempo, das guerras, da paz ou da comida.
- Onde meu pai nos espera? – perguntou Laure.
- Na casa de um amigo, outro barão. Eu sei onde é.
Seguiram na direção do porto. Atrás deles, juntamente com os servos,
Ahmad, Henri e Dante seguiam em fila, calados durante quase toda a viagem.
Apenas Henri falava de vez em quando, com dificuldade para conter toda a
vontade que tinha para expressar tudo o que pensava. Eles não eram os únicos
templários que viajavam com o grupo. Havia uma fila de outros vinte cavaleiros
que viajavam sob a liderança de Guillaume, que recebera a incumbência de
Jacques de Mailly e do próprio Gerard de Ridefort.
Gareth seguira a viagem toda ainda ensinando línguas para Karsten. Heiner
fingia que não escutava aquela conversa toda e tentava manter vigília sobre
Dedrick. O jovem templário, no entanto, cavalgava silenciosa e orgulhosamente
junto com os templários que vinham mais atrás. Restava ao nórdico tentar
relembrar todas as histórias de santos que haviam lhe contato até o momento.
Elas eram a principal fonte curiosidade sobre a fé do Deus Único. Aquela
religião só falava de pecados e de uma salvação para um grupo seleto. Agora que
visitava a terra onde Jesus fora crucificado, não vira nada de diferente nos
templos antigos de sua terra. Nada o impressionara na tal Terra Santa além do
calor diabólico, da bagunça religiosa e da multidão de peles coloridas. Heiner
precisava de provas para sua fé e estava encontrando poucos motivos para
continuar cristão. Talvez não quisesse tanto a salvação de sua alma.
- São Bernardo pregou a favor das cruzadas. Ele pregava a favor da guerra,
assim como Santo Agostinho falou da guerra justa. E a guerra contra o infiel é
justa. São Bernardo pregou que os cavaleiros laicos que lutavam contra cristãos
e causavam desordem na própria casa estavam errados, mas que estava certo
entregar a alma a Deus e matar os infiéis em nome de Cristo – falou Gareth,
sabendo que atrairia a atenção de Heiner.
O nórdico esticou a cabeça para ouvir melhor a conversa.
- Então segundo a teologia, a guerra que lutamos é justa e está sob as ordens
de Deus – concluiu Karsten, procurando certificação para suas decisões nas
palavras de Gareth. De repente, sentia que combater talvez o retirasse da
salvação que procurava.
- Segundo os santos, sim.
- Quem foi esse São Bernardo? Que milagre ele fez? – perguntou Heiner.
O grupo parou. Estavam em uma esquina e Guillaume decidia-se para onde
ir. Karsten e os outros acabaram alcançando Laure e o templário a um ponto em
que os cavalos se embaralharam na rua pequena. Gareth evitou que sua égua
trombasse nos animais à frente e continuou a falar.
- São Bernardo de Claraval foi um monge cisterciense francês. Ele nasceu
no ano do Senhor de 1090, nove anos antes que Jerusalém fosse tomada para
Cristo mais uma vez – continuou o padre.
Guillaume olhou para Gareth, depois se voltou para Dante, que estava com
o cavalo em formação, mais para trás.
- São Bernardo. Você já me falou dele, Dante.
- Devemos nosso manto e nossa cruz a ele, senhor. Ele pregou em nosso
nome, ajudando a convencer o papa de que os templários mereceriam ser uma
ordem, a milícia de Cristo. Morreu no ano do Senhor de 1153, para a infelicidade
de todos nós – contou o templário siciliano.
Gareth olhou para Dante com o cenho franzido, irritado com a competição
de saber. Não pretendia relevar essa última parte da história de São Bernardo
para que Karsten não se chateasse.
O cavaleiro germânico soltou um olhar nervoso para Guillaume.
Reconheceu que aquela observação fora apenas para provocá-lo. Ainda acertaria
as contas com o templário, principalmente se acontecesse algo com Dedrick.
- Gostei desse santo. Um santo da guerra. Acho que agora estou
encontrando o que quero nessa religião – falou Heiner para Gareth. O padre
balançou a cabeça. Aparentemente, o nórdico ainda não entendera o verdadeiro
princípio de se tornar cristão.
- Você ainda quer se tornar cristão por causa da espada. Isso não está certo –
lamentou o padre.
- Mas foi você quem acabou de falar de guerra justa e me disseram que se
eu viesse para cá meus pecados seriam perdoados enquanto eu lutasse.
- É, mas Jesus disse que não devemos viver pela espada.
- Então Jesus disse-lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que
lançarem mão da espada, à espada morrerão – citou Dante, para a irritação de
Gareth e sorriso de Guillaume.
O padre ficava impressionado. Aquele templário maldito tinha uma citação
bíblica para tudo. Ele lia o livro sobre o cavalo, à luz da fogueira, enquanto
comia, enquanto bebia. Deveria conhecer mais da Bíblia do que ele, que ela
padre. Gareth precisava reconhecer que não tinha tanto domínio sobre os
versículos e aquilo o irritava, principalmente porque não podia se defender com
tanta competência para ajudar Karsten em sua disputa pessoal com Guillaume.
- Então quer dizer que eu devo morrer lutando? – perguntou Heiner, alheio
às pequenas disputas entre os templários e os cavaleiros laicos.
- Aparentemente sim. Não se orgulha disso? – disse Guillaume.
- Acho que sim – sorriu Heiner.
- Vocês estão distorcendo tudo.
- Estou ficando confuso então, padre. Se os santos dizem que devemos lutar
em nome de Cristo e Cristo disse que se usarmos a espada morremos por ela, por
que não nos orgulharmos de morrermos lutando em nome de Deus? – questionou
Guillaume com um sorriso discreto no canto da boca.
Gareth preparou-se para responder, contudo Karsten o impediu balançando
a cabeça e afirmando que não valia a pena.
- Deixe. Eu já entendi o que você quis dizer, Gareth. A guerra é apenas a
guerra. Ela tem seu propósito, mas não devemos viver por ela – disse o
cavaleiro.
As palavras soaram como música aos ouvidos de Melisende. Aproximara-se
muito dele durante e a viagem e tentava entendê-lo, apesar dos mistérios que
agiam como uma barreira inexpugnável em volta dele.
- Acabaram com a filosofia? Acho que podemos seguir agora, não? – disse
Laure.
- É claro, minha dama. Dedrick, saia da fila e venha comigo. Dante, leve o
restante dos homens para Gerard e coloque-os nas instalações do Templo.
Dante assentiu e deu meia-volta com o cavalo, chamando os outros
templários e sargentos de armas. Eles seguiram em fila silenciosamente,
enquanto Dedrick se destacava para acompanhar Guillaume. O jovem germânico
estava feliz com a honra de andar com o líder do grupo. O coração estava
pomposo.
Viraram à esquerda e seguiram entre as construções de pedra. Avistavam os
muros da cidade e imaginavam como seria uma guerra em Acre. Tomar a cidade
fora difícil e um ataque muçulmano a ela exigiria um cerco longo. Acre tinha
condições de se defender por muito tempo, sendo abastecida pelo mar.
A casa onde Sable D´Or estava hospedado ficava próxima ao porto. Tinha
apenas um andar e era feita de pedra, mais parecendo uma pequena fortaleza no
meio da cidade. Guillaume bateu palmas para chamar a atenção de um servo e
pedir que chamasse o barão. O nobre apareceu vestindo um albornoz de seda e
um turbante. Abriu os braços e soltou um sorriso alegre ao ver o amigo e a filha.
Ambos desmontaram e Dedrick correu para segurar as rédeas do cavalo de
Guillaume. O templário mais velho abraçou com força o homem barbudo e calvo
que era o barão de Sable D´Or. Afastou-se para permitir que o homem
cumprimentasse a filha e a beijasse na testa. Ele repetiu o gesto quando
Melisende apareceu.
- Que bom vê-los. Como é bom! Venham, vamos entrar. Tenho água fresca
os esperando.
Entraram pisando em um tapete com inscrições árabes bordadas. As
cadeiras eram pesadas para resistir a um cavaleiro de armadura como sir
Guillaume e também a Dedrick, que apareceu logo após deixar os cavalos com
um servo. Laure apresentou os novos amigos ao pai, que os recebeu com muito
orgulho. Karsten ajoelhou-se diante do barão.
- Venho oferecer-lhe minha espada – disse o cavaleiro germânico. Ele olhou
para as mulheres e depois para seu novo senhor, estendendo-lhe a arma. Já tinha
certeza de onde seu coração deveria estar. Encontrara o verdadeiro motivo de
estar na Terra Santa.
- Pois eu a aceito, meu caro Karsten. Agora se levante para lutar por mim.
O cavaleiro pôs-se de pé e olhou para Heiner. O nórdico estava se
deliciando com um pedaço de pão e mal prestava atenção ao ato cerimonioso.
- Heiner.
- Eu? – perguntou ele, falando de boca cheia.
- Não vai prestar sua homenagem ao barão?
Houve um constrangimento geral, exceto por parte de Guillaume que
colocou a mão em frente à boca, fingindo se coçar para evitar que o riso ficasse à
mostra.
- Ah, sim – disse ele, ajoelhando-se enquanto as migalhas de pão caíam.
Não foi um momento nem de longe tão educado quanto o de Karsten, mas o fato
era que Heiner não se importava em prestar homenagem a ninguém. Ele queria
apenas aprender a exercer essa fé que constantemente lhe escapava entre os
dedos. Se o pudesse fazer lutando, seria um tanto melhor. Se não, provavelmente
apenas abandonaria a religião para algo mais prático. Talvez houvesse um jeito
melhor de salvar essa tal de alma.
Sable D´Or sorriu, sem se incomodar com a falta de refinamento do
cavaleiro. Pediu que ele se levantasse e acabou com o constrangimento levando
a outros assuntos.
- Então, minha filha. Esses homens que você me trás lutam bem? –
perguntou ele, sem medo de estar ofendendo aos outros. Confiava muito na
palavra da filha.
Ela olhou para Karsten, Heiner e Dedrick. O jovem templário, que não se
sentara, mas ficara de pé ao lado de Guillaume, evitou o olhar dela,
envergonhado.
- Sim, meu pai. Esses dois vão ser muito úteis a Sable D´Or. Eles já sabem
muito bem que precisarão lutar contra os infiéis e estão preparados para isso.
Fizeram um bom trabalho quando fomos atacados por salteadores.
- Estava lá para ver isso, Guillaume? – perguntou Sable D´Or. – Se minha
filha diz, eu acredito. Mas e você, meu amigo? O que acha?
O ar pesou tenso quando Karsten e Guillaume se olharam. Laure estreitou
os olhos como uma raposa, percebendo os maxilares travados dos dois.
- Estava escuro demais. Além disso, eu estava ocupando tentando salvar sua
filha e sua sobrinha para poder prestar atenção na luta deles. Mas os forasteiros
deixaram alguns cadáveres – respondeu Guillaume.
- Então vou confiar no que minha filha diz. Karsten e Heiner parecem ser
ótimos cavaleiros. – Virou-se para os dois. Heiner já comia mais uma vez.
Karsten tentava não parecer tão nervoso. – Confiarei em vocês dois. Saibam que
serão meus grandes cavaleiros. Será bom ter mais alguém de ascendência nobre
lutando entre nós. No momento, meu filho está muito ocupado cuidando dos
muçulmanos que queriam se revoltar em nossas terras.
- Ainda não resolveram os problemas? – perguntou Guillaume.
- Não, ainda não. Quando consigo contornar algo, mais alguma coisa
aparece. Ainda desconfio que os Assassinos estejam por trás disso.
- Por falar nisso, posso ter uma conversa em particular com o senhor?
Sable D´Or sabia que o amigo não o chamaria para um assunto privado sem
razão. Preocupou-se de imediato e fez sinal para que os outros saíssem. Nem
mesmo Laure ficou.
- Temos menos um inimigo entre os Assassinos. Um espião deles estava
entre os cadáveres que deixamos em Jerusalém – falou Guillaume.
- Ótimo. Mas como o reconheceu?
- Eu já tinha algumas pistas. Fiquei sabendo dele da última vez que fui a
Jafa. E estava tramando alguma coisa, pois se disfarçara de mercador para seguir
Laure até Sable D´Or.
O barão cruzou os braços e olhou para o chão pensativo. Mais problemas.
Seus dias estavam sendo apenas de problemas.
- Eles agirão de novo. Primeiro mataram meu irmão, agora virão até mim,
se já não estão vindo, Guillaume. Temo que ataquem meus filhos primeiro. O
que é a vida de um homem se ele assiste à morte dos filhos?
O templário levantou-se e andou até o amigo. Colocou as mãos sobre os
ombros dele.
- Preciso alertá-lo, meu amigo. A morte desse espião pode ter piorado ou
melhorado as coisas. Talvez ele fosse melhor vivo do que morto, no fim das
contas, apesar de que é sempre impossível interrogar um Assassino.
- Fica impossível saber agora. O que tenho a fazer é me preparar para o
pior.
- Não direi para não se preocupar, mas direi que pode contar comigo. Sabe
que somos amigos e lutarei para que nada aconteça a você, sua filha ou a sua
sobrinha.
Sable D´Or levantou-se e abraçou o templário.
- Bom saber disso, meu amigo. Temi que estivesse contra mim com a
iminência da guerra.
- Não – Guillaume negou, afastando-o e balançando a cabeça com um
sorriso no rosto. – Felizmente tudo acabou e não teremos guerra. Você está aqui
e isso é sinal de que tudo está bem.
O templário esperava que finalmente as coisas houvessem se resolvido, mas
ao ver o barão baixando a cabeça mais uma vez, notou que estava errado.
- Raymond de Trípoli não veio e se recusa a vir. Eu vim justamente para
avisar que ainda há quem não apoie Guy e Sibylle. Estou do lado de Raymond
ainda, meu amigo. E você?
Guillaume olhou para o teto e pensou. O sorriso desapareceu do rosto.
Levantou um braço e apoiou a mão sobre o ombro direito de Sable D´Or.
- Infelizmente, meu primeiro dever é para com o Templo, assim como o seu
primeiro é para com Raymond. Infelizmente estaremos separados até que isso se
resolva, meu amigo.
- O dever nos chama primeiro.
- Como deve ser com homens de honra.
- Que a batalha seja gloriosa para nós dois – disse Sable D´Or.
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – retrucou
Guillaume com o lema do Templo. Aquele era o pouco de latim que conhecia
além das orações.
Eles se sentaram de novo. Sable D´Or estava para chamar os outros, mas
parou.
- Acha que posso confiar nesses cavaleiros que minha filha me trouxe?
- Não os conheço, mas parecem bons homens, Donat. Acredito que serão
úteis.
- Bom – respondeu ele, cruzando os braços de novo e chamando pela filha.
Guillaume se despediu e saiu com Dedrick, deixando-os com conversas
pouco interessantes. Laure disse que enviara os mercadores para Sable D´Or e
que lá o irmão cuidaria dos tecidos e das joias que poderia comprar.
*****
*****
*****
Laure divertia-se no mercado. Seu único acompanhante era o servo fiel que
sempre estava a seu lado. O homem, vestido com suas costumeiras roupas
árabes, andava ao redor dela como um guarda-costas e mordomo. Tinha uma
faca na cintura para demonstrar que estava ali para proteger a mulher.
Observava-a em frente à barraca de tecidos. Laure avaliava a seda fina vendida
em Acre com ares despreocupados. O tom azulado a encantou e decidiu que a
compraria. Estava para começar a negociação quando o servo a avisou que
alguém se andava em sua direção. Laure fingiu que não ouviu, confiando no
homem e duvidando que qualquer coisa poderia lhe acontecer.
Foi um templário que parou ao lado dela. O homem passou a mão na seda
azul e avaliou a textura.
- Boa escolha – disse Gerard de Ridefort.
- Eu só faço as escolhas certas, senhor grão-mestre – falou ela.
Gerard olhou sobre os ombros e fez sinal para que os cavaleiros que o
seguiam se mantivessem atentos.
- O que quer de mim, afinal? – perguntou a mulher.
- Envie um recado para seu irmão. Diga apenas que a guerra está para
começar. Nada além disso.
- Meu irmão saberá. O senhor gostaria de falar algo a mais comigo?
- Está linda como sempre – elogiou ele, dando-lhe as costas e partindo.
Laure continuou olhando os tecidos como se nada houvesse ocorrido. Ficou
pensando nas conspirações daquele templário e tentando imaginar se Guillaume
estava a par dessa batalha.
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Gerard desceu do cavalo dentro das muralhas de Kerak seis dias depois de
deixar Jerusalém. Estava cansado da viagem e dos imprevistos. Teve que parar
em duas fortalezas templárias para resolver problemas relativos aos muçulmanos
e para aplacar os boatos de fim da trégua. A mente maquinava as decisões. Por
fim, colocou os templários de prontidão e partiu afirmando que as espadas
deveriam estar preparadas para acabar com qualquer força de revoltados que
ousasse se afirmar do lado de Saladino nos dias que viriam.
Renaud de Châtillon esperava pelo amigo em frente às portas do castelo.
Estava usando a seda cara que roubara dos mercadores. Abriu os braços e
chamou por Gerard com uma expressão feliz estampada no rosto. Era o sorriso
da vitória e da riqueza inflado pelos desejos saciados.
O grão-mestre entregou as rédeas do cavalo a um servo e caminhou até
Renaud. Foi pensando durante o caminho enquanto as botas tocavam
calmamente o chão de terra batida. Viu com o canto dos olhos alguns
prisioneiros sendo arrastados pelos cavaleiros de Renaud. Entendeu ali mesmo
que o amigo não entregaria nada o que roubou. Era uma pena. A guerra estava
fadada a acontecer. No meio da caminhada, Gerard decidiu que não se
importava. Que a batalha final viesse. Ele sobreviveria de qualquer maneira. Ele
e os templários. Por fim, talvez ainda se tornasse mais poderoso após um
confronto com Saladino.
- Entre, meu amigo. Seja bem-vindo a Kerak. Há quanto tempo não o vejo
aqui?
Ao lado dele, Étiennette de Milly observava plácida. Mulher calma, já em
seu terceiro casamento, tinha um temperamento diferente do marido. A face alva
recebia Gerard com um sorriso calmo escondido debaixo de toda a seda que a
cobria. Aquela era uma senhora a se respeitar. Sobrevivera a dois homens fortes
que nunca suportaram a austeridade de um lugar como o Ultrajordão.
Gerard manteve os modos frios. Estava se decidindo quanto ao que falar
com Renaud e odiava ser incomodado enquanto pensava. A voz do senhor de
Kerak ribombava em sua cabeça como um problema petulante que ousava se
intrometer em seu caminho. Cumprimentou com delicadeza a Senhora de
Ultrajordão antes de se dirigir ao homem que quase o tirava do controle.
- Vim em nome do rei, Renaud. Não estou aqui para brincadeiras – falou o
grão-mestre.
O sorriso de Renaud desapareceu para dar lugar a um cenho franzido e a um
bico no meio da barba. Gerard achou a expressão cômica. Não condizia nada
com os modos cínicos no guerreiro.
- O que Guy quer afinal?
- Quer que você liberte os prisioneiros e pague a indenização devida. Não
deve ficar com nada do que roubou.
Renaud gargalhou e abanou os braços, caçoando da ordem. Étiennette
continuou a olhar ambos, ignorando a tensão entre os homens com a paciência
que os anos de viuvez e casamentos seguidos haviam lhe conferido.
- O que? Como ele pensa que pode me ordenar isso? Eu praticamente o
coloco no poder e agora ele me ordena isso?
- Nós, Renaud. Nós... – corrigiu Gerard.
- Nós – completou Étiennette. – Onfroy é meu filho, Gerard, e minha
palavra teve peso nisso. Apoio o meu marido como boa esposa. Seja um bom
templário e apoie essa senhora cristã.
Gerard olhou pensativo.
- Está certa, senhora – concordou, com uma leve reverência.
Começaram a caminhar para dentro do castelo. O interior estava escuro e
úmido apesar do sol brilhante do dia.
- Sim, nós. E agora o reizinho manda você até aqui como um pombo-
correio.
- Nosso rei merece mais respeito por parte do senhor meu marido –
interferiu a senhora de Ultrajordão, caminhando ao lado dos homens se se
intimidar com armaduras ou olhares feios.
Renaud sorriu, esfregou o rosto, passando as unhas profundamente na
barba.
- Sua Majestade o enviou como uma putinha de recados, De Ridefort.
Gerard riu da tentativa de ser manipulado. Não se sentiria ofendido pelas
palavras.
- Não devolverei nada. Não tenho motivo fazer isso. Que o rei nos devolva
a coroa.
- Evitar a guerra seria um bom motivo, talvez – disse Gerard, com pouca
convicção. As ideias borbulhavam na mente do templário.
- Que a guerra venha. Podemos muito bem vencer Saladino. Ele não é
invencível como as pessoas gostam de dizer. Vamos acabar com aquele
muçulmano maldito!
A situação era previsível. A guerra realmente aconteceria agora e Gerard
não moveria um dedo para acabar com ela. Sabia de um assunto que poderia
ajudá-lo ainda mais. Que Renaud continuasse com suas ambições saciadas. Ele
seria o culpado pelo fim da trégua e os templários salvariam o dia quando a
guerra começasse. Não havia nada melhor para unir um povo do que um inimigo
em comum. Châtillon providenciara a desculpa perfeita para que Guy se tornasse
o cerne de uma aliança que devastaria as forças muçulmanas na Terra Santa.
O grão-mestre fingiu algum esforço para convencer Renaud. Foi pouco
além de palavras vazias e carentes de intenção. Nada que pudesse comprometer
a decisão do Senhor de Kerak de continuar com as riquezas roubadas. Quando se
encontrou novamente com Guy, afirmou que o amigo permanecera irredutível. O
rei nada fez além de reclamar e se encostar ao trono como um homem vencido.
Não faria mais nada contra um dos homens que lutara para colocá-lo no poder.
*****
*****
Karsten estava em uma das torres de Sable D´Or naquela mesma noite.
Gostara de conhecer o feudo. Passara pelos trigais e pelas plantações de
bananeira, até pelas pequenas vilas que estavam construídas ao lado do Jordão.
Finalmente conhecera o rio em que Cristo fora batizado. Ficou encantado por
tocar aquelas águas e desejou ser batizado de novo. Bebeu da água como se
fosse sagrada e guardou um pouco dela no cantil.
A lua estava alta e cheia, iluminando boa parte do feudo. Não era possível
ver muito, mas as sombras deixavam Karsten encantado da mesma maneira.
Entretanto, subira ali para outros motivos que não eram ver o feudo de Sable D
´Or. Queria conhecer mais de perto uma pessoa, alguém que o encantara desde a
primeira visão. Melisende. Ela estava parada na torre desde que o cavaleiro
chegara da longa visita pelo feudo. A mulher olhava para o horizonte perdida em
pensamentos que eram lembranças alegres misturadas à dor da saudade.
- Está pensativa – disse ele. Estava vestido à maneira dos locais e ainda não
se acostumara com as roupas. Sentia-se estranho, como um intruso dentro das
próprias vestimentas.
- Sempre fico quando volto para cá – disse ela. Os olhos castanhos
pareciam úmidos.
- Posso saber o motivo?
- Lembranças de épocas melhores. Ao menos melhores para mim.
- Quando seu pai ainda vivia? – Ele se aproximou cautelosamente.
Ela somente sorriu educadamente em resposta. Karsten teve vontade de
abraçá-la. Faltou coragem para tocá-la. O amor gerou um medo súbito de ser
rejeitado, o que o fez manter uma distância segura de onde poderia apreciar a
beleza meiga dela.
- Você não imagina o quanto ele lutou por essas terras...
- Espero que a console saber que também lutarei por Sable D´Or.
Mais um sorriso em resposta. Karsten podia jurar que ela não se importava
se ele estava ali ou não. Quase deu meia volta, mas agora o medo da rejeição
fora substituído pelo temor da derrota. Tinha que ficar mais um pouco.
- Sempre fica triste assim? Gostaria de saber dos momentos em que sorri.
Ela respondendo com um leve curvar dos lábios.
- Fico feliz quando tudo acaba bem.
- Resposta tão vaga quanto esses sorrisos que está dando para mim.
- Mesmo? – Ela voltou-se para ele e a lua iluminou o rosto moreno. O
sorriso agora era maior, apesar de ainda discreto, como era da natureza dela. –
Acho que vou descer.
Passou por ele calmamente, mas foi contida. Karsten a segurou pelo braço,
esquecendo-se da educação. Puxou-a para perto dele como se já fosse sua. Suas
bocas se aproximaram. A iminência do beijo fez ambos suarem. Os lábios dele
se moveram enquanto os dela ficavam na expectativa.
- Por acaso um beijo a faria sorrir mais?
Puxou-a para junto de si e tocou-lhe os lábios lentamente para depois
assumir uma pressa sôfrega. Envolveu-a com braços acostumados a erguer
espadas, porém sábios ao terem uma donzela. Sentiu-lhe os seios e a pele macia
para, por fim, separar-se dela. Deixou-a longe e virou-se para sair.
- Já vai? – Ela perguntou com a mão na boca.
- Já, quero ver se vai sorrir até amanhã quando entregarei outro beijo –
ousou o cavaleiro, descendo as escadas da torre e abandonando-a sozinha com a
lua e com uma nova lembrança.
*****
*****
O assassino sabia que a tarefa era difícil, mas não se importava. Caminhava
pelo castelo de La Fève a passos miúdos para não ser ouvido. Tinha a mente
concentrada na tarefa, repassando todos os movimentos cada vez que os pés
tocavam o chão. O rosto estava suado, não por calor, mas por nervosismo. Não
era por estar preparado para morrer que ele não estaria ansioso. Desinteressar-se
pelo destino não significava esquecer-se das dificuldades do presente e do futuro
próximo.
O primeiro problema que percebera na missão de assassinato não era o de
se infiltrar entre os templários. Era até fácil estar junto com eles, pois o Templo
tinha muitos servos. Eram necessárias muitas pessoas para manter uma base com
tantos cavaleiros e guerreiros. O assassino penetrou facilmente como um
trabalhador que reparava uma das muralhas e dormiu ali mesmo, perto do
castelo. Acordou no meio da noite com a faca pronta na mão e os pensamentos
direcionados. Passou pelas sentinelas e aí se deparou com o problema. Deveria
matar um templário dormindo. Tarefa fácil a princípio quando não se percebia
que havia vários cavaleiros em um dormitório e a luz era sempre mantida acesa
como ditava a regra.
As mãos tocaram a pedra fria ajudando a tomar rumo na penumbra. Já
estava quase no dormitório dos cavaleiros. Era lá que encontraria a vítima infiel.
Observara-o nos últimos dias e tomara cuidado para avaliar o inimigo. Não seria
páreo para ele em uma luta direta. A única alternativa era atacar protegido pela
noite.
Abriu lentamente a porta do dormitório. Deixou uma pequena fresta para
observar o que se passava. Um olho brilhante mediu o espaço entre as camas e a
porta. Procurou pelo guerreiro que deveria ser morto. Todos eram parecidos,
com a barba longa e os cabelos curtos. Entretanto, lá estava o homem que
morreria naquele dia. Contou quantos passos precisava até chegar à cama.
Poderia fazer uma corrida rápida e silenciosa para atingi-lo depressa e talvez
ainda ter a chance de fugir. Talvez fosse o melhor, pois algum deles ainda
poderia estar acordado. Abriu mais a porta para acabar de observar o dormitório.
Sim, havia um templário acordado. O homem lia um livro sob a luz das velas. Os
lábios moviam-se devagar como se recitasse as palavras.
O assassino decidiu-se. Precisava correr e fazer sua vítima antes que o
alarme fosse soado. Morreria logo depois, entregando a alma para receber todos
os presentes de Alá. Que o Velho da Montanha rezasse por ele. Que Bassam se
orgulhasse da missão cumprida e também orasse por ele, sabendo que
encontraria a vida após a morte depois do feito.
Acabou de abrir a porta com um empurrão forte. Antes que o templário que
lia pudesse dar algum aviso, o assassino já contava os passos para o ataque. Um
passo com os olhos na direção da vítima. Dois passos com a faca curvada sendo
erguida. Três passos e o grito de aviso do templário soou pelo dormitório. Quatro
passos e a faca apontou para a vítima que ainda continuava deitada. O quinto e
último passo foi seguido pela extensão do braço para finalmente alcançar o alvo.
Errou por pouco. No último momento, o templário rolou na cama, escapando do
ataque. A faca furou o colchão de palha. Os olhos do assassino e do templário se
encontraram. O cavaleiro sacou um punhal imediatamente e o enfiou no coração
daquele que seria seu algoz. Sorriu enquanto via o sofrimento e a decepção
escorrer do rosto do assassino como o sangue que saía do peito.
Guillaume retirou o punhal do peito do homem o deixou cair. Gotas
vermelhas respingavam da mão. Dante logo trouxe um pano para que ele
pudesse se limpar.
- Nenhum verso sobre a noite, Dante? – perguntou Guillaume de pé,
olhando o corpo sem vida do assassino.
Dante parou para pensar. Estava em dúvida. Finalmente decidiu-se por um
salmo simples:
- Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a
sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo do terror de noite nem
da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade
que assola ao meio-dia.
- Bonito.
Dedrick parou ao lado dos dois, enquanto os outros templários começavam
a pegar o corpo e a puxá-lo. Um dos cavaleiros foi chamar um servo para limpar
o sangue.
- O senhor já sabia? – perguntou o jovem templário.
Guillaume riu e fez que sim com a cabeça.
- Era de se esperar que eles viessem.
- Mas por que ele atacou assim? Parece que ele estava correndo na sua
direção. Por que não veio devagar?
- Deve ter visto Dante acordado – concluiu o templário mais velho.
- Por que não esperou outro dia? É idiotice atacar assim.
Guillaume riu de novo como se caçoasse da inocência de Dedrick. O jovem
não soube o que dizer.
- Você não conhece os Assassinos, Dedrick. Esse homem veio aqui para
morrer. Ele pretendia me matar ou morrer tentando. A decepção que eu vi nos
olhos dele vinha apenas do fato de ter falhado, não de estar morrendo. Muitas
vezes eles atacam em público, matando e esperando a morte. Fazem isso apenas
para aterrorizar os inimigos.
Dedrick olhou para a porta. Os templários já haviam levado o corpo.
Começou a pensar que não dormiria em paz mais.
- Está com medo de ir dormir agora? – perguntou Guillaume.
O rosto de Dedrick ruborizou.
- Não se preocupe. Nós enfrentamos esses Assassinos há um bom tempo.
Apenas três de nós foram assassinados no dormitório. Pode dormir tranqüilo.
Você ainda terá a oportunidade de morrer lutando.
- Como você consegue dormir tranqüilo sabendo que há alguém querendo
matá-lo assim?
- Basta fechar os olhos e confiar que haverá um bom motivo para os abrir
no outro dia – riu Guillaume. Olhou para Dante, agora com o sorriso desfeito. –
A trégua está acabada. Está na hora de nos preocuparmos com Bassam.
- Entendo. Tomaremos alguma atitude?
- Vamos avisar Donat e nos prepararmos. Haverá mais luta em breve.
Os templários foram dormir pouco depois que um servo apareceu com um
balde e limpou o sangue. Guillaume fechou os olhos e não viu mais nada além
dos sonhos que o atormentavam havia anos. Dante continuou a leitura para
depois dormir pensando na falecida esposa. Dedrick continuou acordado,
temendo ter feito a escolha para uma vida tão cheia de perigos que não poderia
suportar. Imaginava quando é que conseguiria endurecer tanto o coração a ponto
de dormir sem se preocupar com a sombra dos Assassinos.
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- Então quer dizer que essa foi sua primeira batalha como templário – disse
Gareth.
O padre, Karsten, Heiner, Dedrick e Laure estavam no salão principal do
castelo. Sentados à mesa, eles discutiam trivialidades. O germânico mantinha o
rosto sério, preocupado com a situação do primo. Heiner não compartilhava da
aflição. Achava divertido ver Dedrick envergando orgulhosamente o manto
branco e a cruz vermelha.
- Acho que lutei bem. Andei treinando com Guillaume – disse timidamente
Dedrick.
- Com aquele templário? – desdenhou Karsten.
- Ele luta muito bem, meu primo. Viu como ele derrubou aquele Assassino
hoje?
- Eu e Heiner enfrentamos doze deles de uma vez e você fica impressionado
com o homem derrubando um Assassino?
Laure ria, olhando de um lado para o outro da discussão. Manteve um
sorriso ainda mais aberto quando Guillaume chegou.
- Estávamos falando de você, Guillaume – contou.
- Não pude deixar de ouvir. É sempre bom ouvir meu nome saindo da boca
de quem quer que seja. Parabéns pela luta de hoje, Karsten.
O germânico aceitou o elogio com um simples aceno de cabeça. Guillaume
sentou-se ao lado de Dedrick e sorriu para Laure. Gareth notou que os olhos do
templário se demoraram um pouco sobre o colo da mulher.
- Estava contando a eles como o senhor derrubou aquele Assassino hoje –
falou Dedrick.
- Não falamos das nossas glórias, Dedrick. A glória pertence apenas a Deus,
não a nós. Somos somente as armas dele nessa guerra – cortou Guillaume.
Dedrick abaixou a cabeça e pediu desculpas. A atitude atingiu Karsten
como vinagre jogado em ferida aberta.
- Você não precisa se envergonhar de seus sucessos.
- Concordo, Karsten – disse Heiner. – As vitórias são feitas para contarmos.
- Já há festa demais entre os cavaleiros seculares. Nós não precisamos
compartilhar delas – falou Guillaume, sorrindo. – Mas obrigado por nos
convidar a deixar nossa sólida e humilde regra.
Os olhos de Karsten se estreitaram. Transformaram-se em lanças mortais
procurando pela alma de Guillaume. As palavras e o sorriso irônico do templário
eram mais que uma provocação, eram um convite direto para a batalha.
- Estou convidando meu primo a deixar os templários, não você. Você
merece estar cercado por cada pedra que constrói esse Templo.
- Dedrick é livre para ir e vir. A vida de templário não é fácil. Devemos ser
como rochas no deserto, como você mesmo diz, Karsten. Somos pedra que
constrói a fortaleza de Deus para proteger todos os cristãos inocentes – falou
Guillaume, sorrindo mais uma vez como se marcasse mais um ponto rumo a
vitória naquele jogo.
Karsten não conseguia entender o templário. Ele tinha uma resposta para
tudo e nunca se irritava. Vivia com aquele sorriso estampado como um escudo
impenetrável. E tudo o que o germânico falava era automaticamente
transformado em um contra-ataque certeiro. Ficou aliviado por Melisende não
estar ali para vê-lo ser vencido com tanta facilidade naquele jogo de palavras.
Donat e Christophe apareceram para interromper a conversa perigosa de
Guillaume e Karsten. O barão sentou-se na cadeira na ponta de mesa e colocou o
pergaminho de Raymond de Tripulo diante de si.
- Saladino rompeu a trégua – disse Donat.
Gareth mexeu-se na cadeira. Até o momento, mantivera-se quieto, incerto
de como ajudar o amigo na discussão com Guillaume.
- Vai haver guerra? - perguntou o padre.
- Saladino não rompeu a trégua. Fomos nós. Renaud de Châtillon atacou
uma caravana que seguia para o Egito. Agora vai haver guerra. Estou aqui por
isso, Donat. Precisamos que preste homenagem ao rei para unirmos o reino para
essa batalha.
Donat exasperou-se. Já estava na defensiva antes de a conversa começar e o
pedido de Guillaume soou como uma ameaça em seus ouvidos.
- Esses aliados do seu rei fazem uma besteira e agora eu tenho que pagar
por isso? Não, Guillaume. Já tenho problemas com os Assassinos e ainda não
recebi ajuda...
- Os templários nunca negaram ajuda ao feudo de Sable D´Or. Sempre
lutamos ao lado de vocês.
Melisende entrou na sala como que atraída pelo assunto que em breve
trataria de seu pai.
Donat remexeu-se na cadeira. Olhou para a sobrinha e depois para
Guillaume. Parecia ainda se decidir sobre o que fazer. A conversa com
Christophe não saía da cabeça.
- Não poderei ajudá-lo, Guillaume.
- O rei não permitirá que os barões se dividam, Donat – falou Guillaume,
firmando a voz.
Donat encarou o amigo amargamente. Sentiu a ameaça implícita nas
palavras do templário, o que o fez tomar a decisão final.
- Que esse reizinho venha tentar me submeter então. Estarei esperando.
Enquanto isso, pretendo lidar com os Assassinos.
Guillaume balançou a cabeça com a decepção clara na face. Viajara até ali
para dar um último alerta a Donat, mas o barão parecia irredutível. Estava dando
cada vez mais motivos para o uso da força. Sable D´Or não suportaria um ataque
do Templo, não com as forças que em breve Jacques de Mailly deslocaria.
- Raymond manteve a trégua com Saladino e eu também manterei. Não
compartilharei esse problema com Ultramar.
A reunião acabara. Talvez já houvesse acabado antes de começar. Donat
estava colocando tudo a perder. Guillaume sabia que os cavaleiros dele seriam
necessários na guerra. Cada um dos guerreiros cristãos seria necessário para
enfrentar Saladino. Guillaume começou a pensar se Gerard não estaria certo em
continuar com seus planos de aumentar o poder do Templo e unir os guerreiros
da Terra Santa. Com barões tão divididos, seria impossível manter o reino. Mas
com uma força como as dos templários mantendo a massa de guerreiros unida e
sustentando as finanças reais, haveria coesão suficiente para conter a fúria
muçulmana. Bastaria um pouco menos de ganância, algumas pitadas de lógica e
um tempero de violência na medida certa. Pena que na terra de Deus fosse tão
difícil equilibrar elementos tão díspares.
- Acho que vamos partir então – disse Guillaume, levantando-se.
- Eu os levo até seus cavalos – falou Christophe, levantando-se.
- Dedrick, vá chamar Ahmad e Henri. Eu o encontro perto dos cavalos.
Guillaume despediu-se de todos e deu as costas para a mesa. Não se
importava em viajar à noite, mas não tinha vontade de ficar na casa de um ex-
amigo. Pensou em Jean de Sable D’Or e na promessa de proteger o que restara
de sua herança na Terra Santa.
Christophe seguiu calado até saírem do castelo. Andaram quase na
escuridão para encontrarem os estábulos. Olhando para trás, viram as figuras dos
outros chegando.
- Meu pai não sabe o que diz, Guillaume, mas eu sei. Não se preocupe.
Tentarei convencê-lo de que está errado. Ele precisa me ouvir ao menos uma vez
na vida. Conte com o meu apoio. Eu estarei aqui para manter tudo em ordem.
Guillaume voltou-se para Christophe. As sombras contiveram o olhar
desconfiado do templário.
- O que está insinuando?
- Que vocês ainda têm aliados aqui.
- Pretende trair seu pai? – perguntou Guillaume com um tom de voz que
não insinuava nada.
- Não, apenas tentar colocar Sable D´Or nos eixos. Não quero viver como
um traidor do reino. Temos um rei e pretendo segui-lo.
- Por que não abandona o feudo? Precisamos de guerreiros.
- Não adiantaria nada. Preciso controlar o feudo e os cavaleiros daqui para
ser mais útil. Só aqui poderei convencer meu pai a seguir o caminho certo.
Eles se calaram. Dedrick fez sinal de que estava pronto para partir. Ahmad
verificou uma bolsa com tochas.
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Ahmad olhou mais uma vez por sobre as pedras. Havia seis deles subindo a
encosta, outros quatro estavam mais abaixo com arcos nas mãos. Rezou para a
Virgem e começou a controlar a respiração, contando cada vez que inspirava.
Henri ria cinicamente. Começou a contar uma história de quando era
criança e fora cercado por um bando de arruaceiros em Paris. Quase morreu ao
ser espancado, mas ainda conseguiu fugir e correr até suas pernas não
funcionarem mais. Voltou uma semana depois com um bando disposto a uma
briga e fez sangrar cada um dos malditos que haviam batido nele.
Guillaume encostou a espada nas pedras e pegou a lança. Deu ordem para
Henri pegar a mesma arma enquanto Ahmad preparava-se para a primeira
flechada. Sorrindo, começou a falar com os companheiros.
- Isso não é nada. Henri, lembra-se aquela vez perto de Clermont quando
enfrentamos os soldados de Albert pela primeira vez? Cercados e tínhamos a
única missão de impedir que eles chegassem perto das tropas principais.
Henri gargalhou.
- Lembro muito bem. Foi engraçado ver a cara do senhor seu sogro quando
viu La Croix Bleue lutando por Anjou. Foi apenas uma escaramuça, mas
passamos apertado. Acho que só nós que vimos sangue naquela batalha.
- É. Eu queria sangue e nós tivemos. Por pouco não foi o nosso.
- Será que hoje é o nosso?
- Não sei, mas bem que gostaria que Dante estivesse aqui para fazer uma
citação bonita. Tudo o que sei é que quem vive pela espada morre pela espada.
- Vamos morrer pela espada então?
- Espero que sim – disse Guillaume.
A flecha de Ahmad estava pronta na corda retesada do arco. Ele levantou-se
depressa e atirou no primeiro inimigo que viu. Foi um disparo atrapalhado do
qual ele não pode ver o resultado. Apenas ouviu um xingamento e viu uma
flecha inimiga quebrar ao bater no alto da caverna. Levantou-se um pouco e viu
que tinha acertado a perna de um dos Assassinos. O homem tentava subir
mancando, mas o ferimento o paralisaria em breve. Os outros cinco continuaram
subindo, agora com os escudos cobrindo ainda mais o corpo. Eram homens
barbados com rostos que expunham a inclemência que pretendiam demonstrar
contra os templários.
A segunda flecha de Ahmad bateu contra um escudo e ficou presa na
madeira reforçada. Mais duas setas inimigas se chocaram na caverna. O
turcópolo contou que eles já estariam na entrada em apenas dez passos. Colocou
o arco no chão e pegou uma lança. Era o que tinham para batalhar agora.
- Vá para a retaguarda, Ahmad. Eu e Henri cuidamos de quem vier para cá
– ordenou Guillaume.
O templário ficou calado de olhos fechados. Henri supôs que ele estivesse
rezando e divertiu-se em ver aquele homem tão mudado. Mesmo depois de todos
esses tempos, ainda enxergava o Guillaume da juventude que ria de tudo o que
era sagrado. O templário abriu os olhos bem a tempo de ver o primeiro
Assassino saltando através das pedras. O homem foi um alvo fácil.
Provavelmente sabia que seria. Guillaume enterrou a lança na barriga dele e
aproveitou-se do impulso para jogá-lo pela caverna. O corpo se separou da lança
jorrando sangue pelas pedras.
Henri cuidou do segundo. Esse já estava mais preparado. Saltou em
conjunto com um terceiro e os dois surgiram no alto das pedras com espadas e
escudos prontos. Henri atingiu com força o escudo do Assassino e pressionou até
derrubá-lo. O terceiro saltou sobre Henri gritando um dos nomes sagrados de
Alá. O sargento aparou o golpe com o cabo da lança, mas o peso do homem e o
impacto do ataque o jogaram no chão. O Assassino era experiente e se equilibrou
com maestria. Sabendo que teria de enfrentar os outros cristãos, não concentrou
toda sua atenção em Henri. Voltou-se para o fim da caverna e foi recepcionado
por um golpe de lança. Defendeu-a por pouco. Tentou dar alguns passos para
frente para fazer o templário perder espaço para a arma de haste. Infelizmente se
esqueceu de Henri por alguns poucos instantes. Foi tempo suficiente para o
sargento erguer o joelho e acertar a virilha do muçulmano. O golpe fez o
Assassino se curvar dando espaço para Guillaume acertar-lhe a lança no
pescoço.
Henri ergueu-se enquanto o sangue esguichava pela caverna. Os Assassinos
restantes já estavam dentro com uma rapidez que os cristãos nem puderam notar.
Um deles jogou-se sobre Henri, conseguindo acertar a espada no ombro do
sargento. Um golpe com o escudo na cabeça tonteou o guerreiro cristão.
Guillaume arremessou a lança sobre os Assassinos. A arma foi habilmente
defendida e ficou cravada em um escudo. O muçulmano jogou o escudo no chão
e partiu para cima do templário. Sem proteção, foi alvo fácil para o arremesso de
punhal de Ahmad. A arma acertou-lhe o rosto, penetrando na bochecha. Foi por
muito pouco que o golpe não foi mortal. Guillaume não se preocupou com o
homem ferido. Pegou a espada e tentou se defender dos outros. Nesse momento,
Henri caiu sobre os pés do templário, empurrado por um Assassino. O templário
acabou se embaraçando durante o ataque. Interompeu o golpe para se equilibrar,
o que deu tempo para um Assassino desarmá-lo com facilidade.
A queda da espada de Guillaume foi o sinal de que a luta terminara. O
templário ainda tentou reagir, mas nada pôde fazer quando as lâminas inimigas
encostaram-se a seu pescoço. Ahmad se entregou quando viu os dois
companheiros presos e soube que ali estava decretada sua morte. Os três foram
retirados da caverna junto com o prisioneiro. Bassam os esperava sem sorrir ou
demonstrar qualquer expressão que indicasse vitória. Não escarneceu nos
inimigos por um instante que fosse. Para dizer a verdade, nem lhes dirigiu.
Apenas virou o cavalo e esperou que seus homens cumprissem o óbvio,
amarrassem os prisioneiros, pegassem os corpos dos mortos e tomassem o rumo
de Faraj. Lá eles cuidariam de tudo.
*****
Dedrick não podia dizer que era um homem de muita fé. Era mais fácil
concordar que seguia a religião apenas porque devia, porque era praticamente
uma norma, porque fora batizado e nascera para ser cristão. Não tinha amor em
especial por nenhum santo nem se sentia extasiado com os rituais religiosos.
Para ele, tudo não passava de tradições, normas a serem seguidas. Talvez fosse
por isso que não se sentisse nem um pouco amparado quando o cavalo
finalmente morreu no meio do deserto e ele se viu perdido na imensidão de
areia, sozinho e com apenas os cantis para satisfazer a sede debaixo do sol
ofuscante.
Se um dia fosse confessar o que sentiu, teria vergonha de falar que teve
vontade de chorar. Rezou para tentar se acalmar. Sem sucesso, apenas deixou as
lamúrias passarem pela cabeça enquanto o sol cozinhava seus pensamentos.
Olhou para trás para ver o corpo caído do cavalo e lamentou não ter uma
montaria.
Chutou uma pedra e praguejou como raramente fazia. Olhou para os lados
lembrando-se de como Karsten o xingava nesses momentos. O primo estaria
preocupado com ele a essa hora. Será que Karsten se preocupava tanto com ele
porque já o reconhecia como um fracassado? Isso o fez odiar o primo. Que
avisasse logo que achava que ele não servia para nada. Dissesse que não o queria
entre os templários porque não passaria de um fardo para os cavaleiros. Nem
deveria ter recebido o título. Não fosse pelas terras e pelo poder do pai, Dedrick
não seria digno de uma armadura e uma espada. Seria apenas um cortesão
jogado em meio à corte ou cuidando do ócio dentro de um castelo.
Nem sabia para onde estava indo. Só sabia que deveria continuar
caminhando para o sul. Sul. Sul. A palavra só não vinha mais a sua cabeça do
que sol e fracasso. Após horas atacado pelo calor, Dedrick só se lembrava de três
coisas: o sol ainda demoraria a se pôr, era um fracasso e deveria ir para o sul.
Com o sol a pino, olhou para os lados em busca de abrigo, mas não havia uma
sombra que fosse a não ser a sua. E essa quase desaparecia debaixo dele.
Pegou um dos cantis e bebeu fartamente, dando a si mesmo um momento
de prazer naquele inferno de vida. Começou a se perguntar por que os fracassos
apenas aconteciam com ele. Vivera anos sob a sombra de Karsten, aprendendo a
lutar com o primo e vendo-o se deitar com as melhores mulheres, vencer os
oponentes mais poderosos, superar os conflitos mais difíceis. Era um tempo em
que Dedrick não sabia o que queria além de se tornar cavaleiro. Indagava-se o
que seria da sua vida depois disso. Lutar com outros senhores feudais em busca
de resgates ou de terras? Sim, poderia ser. As batalhas da época tinham mais o
intento de capturar outros nobres poderosos e retirar dinheiro deles do que matar.
Havia quem julgasse, entretanto, que Dedrick seria apenas um desses capturados
que se tornaria um fardo para a família.
Foi no final da tarde que teve uma visão. Julgou que fosse culpa do sol. A
mente estaria lhe pregando uma peça. Poderia ser Deus caçoando da pouca fé
dele. Ao longe, um homem estava caminhando junto com outros seres pequenos.
Caminhava sobre a água. Dedrick piscou várias vezes para tentar focalizar a
imagem. Era sim. O homem caminhava sobre a água com outras criaturas
pequenas. Pensou que poderia ser a imagem de Deus, talvez Jesus aparecendo
para levá-lo.
A aproximação fez as formas se revelarem. Não havia água, mas apenas um
pastor caminhando calmamente com suas cabras. Dedrick lhe fez sinal e
continuou andando desesperado. Gritou alguma coisa, mas a língua estava
travada na boca. O cansaço impedia que pudesse raciocinar no que estava
falando. Tentou correr, mas caiu. A areia grudou no rosto suado. Os olhos se
fecharam devagar com as forças se esvaindo. Xingou a si mesmo. Apenas três
dias no deserto, tinha água e um pouco de comida e ainda sim estava fraco
daquele jeito. Desmaiou torturando-se por se considerar incompetente.
*****
*****
A falta de fé de Dedrick foi provada mais uma vez quando ele finalmente
acordou. Depois do que passara, um homem fiel pensaria que estava morto e
alcançara o céu. Ele não. Apenas foi tomado por uma confusão comum de quem
acorda, mas sem ter ideias ou devaneios. Tudo o que viu foi a escuridão se
abrindo aos poucos para a luz que vinha de fora. A primeira visão que teve foi a
de um homem de túnica negra de pé a seu lado. Fechou os olhos mais uma vez
enquanto a cabeça parava de rodar e tentou imaginar que pessoa era aquela. Não
conseguiu reaver nenhuma memória.
- Eu o conheço. Abra os olhos, templário.
Ele reconhecia a voz. Era pouco familiar e se escondia em uma lembrança
não muito longínqua, mas apagada no mar revolto das memórias recentes.
- Abra os olhos.
Ele os abriu e a luz o machucou um pouco. Apoiou-se nos cotovelos e
começou a se levantar. Notou um copo estendido em sua direção. Aceitou
prontamente o que lhe era oferecido e bebeu tudo sem antes perguntar o que era.
A água desceu gostosa, melhor ainda porque estava sob a sombra. Percebeu que
alguém o levara para dentro de um casebre e estava estendido sobre uma esteira.
Não havia nada de impressionante no lugar, além de um pequeno banco de pedra
onde estava apoiado um jarro e um pouco de queijo.
O homem que falara com ele ficou de cócoras e fitou-o nos olhos.
- Eu o conheço, templário – repetiu.
Dedrick finalmente reconheceu o cavaleiro hospitalário. Era Édouard de Le
Mur.
- O que está fazendo aqui?
- Onde está meu cavalo?
- Morto com certeza. Você foi encontrado a pé.
O templário balançou a cabeça e fez um esforço para se levantar. A
fraqueza ainda dominava o corpo. Um vazio atormentava o estômago.
- Estou com fome.
- Vamos, não seja mal educado e diga por que está aqui – pediu Édouard.
Dava para ver em seu rosto que a impaciência começava a tomar conta do
hospitalário. A última vez que vira aquele fedelho fora junto com o cavaleiro
germânico e agora o encontrava como um templário jogado no deserto.
Chateado, pegou o queijo e estendeu para Dedrick.
O templário comeu vagarosamente, o que fez Édouard retorcer-se de raiva.
O jovem não parecia estar ciente de que tudo no mundo agora era pressa de
adquirir informações para a guerra que estava por vir.
- Preciso ajudar meus companheiros – disse Dedrick.
Édouard quase gritou de raiva. Não era do seu hábito ficar furioso com
facilidade. Pediu autocontrole a si mesmo e persignou-se pedindo perdão por
permitir que a ira do Diabo encontrasse caminho em sua alma.
- O que aconteceu com seus companheiros?
- Foram pegos pelos Assassinos.
- Como? – Édouard já começava a julgar que não suportaria aquele
templário por muito tempo. Tinha raiva porque Guillaume sempre falava demais,
mas agora estava com mais raiva porque esse Dedrick falava de menos.
- Estávamos espionando.
- E?
- Precisamos resgatá-los.
Édouard bateu com as mãos nas coxas e se levantou.
- Escute. Fale como um homem logo ou vou embora, garoto.
Dedrick baixou a cabeça. Mais um que o considerava um fracassado. Será
que era menos que um homem por causa dessas falhas consecutivas? Não, tinha
que ser mais. Fechou os olhos e reuniu forças para se levantar. Não podia deixar
um hospitalário humilhá-lo. O que seria dos templários se isso se tornasse
rotina?
Cambaleou, porém conseguiu se colocar de pé. Olhou para o rosto sóbrio de
Édouard.
- Estávamos espionando e descobrirmos que os Assassinos planejam um
sequestro e um levante dos muçulmanos em Sable D´Or. Guillaume e os outros
foram pegos.
Édouard cruzou os braços e analisou a situação.
- Seus amigos estão mortos.
- Não, não podem estar – desesperou-se Dedrick.
- Mas estão.
- Você precisa ir comigo até eles.
- Não posso. Em qual Templo você está? – A voz calculada do hospitalário
fez o templário se acalmar.
- La Fève.
- Não tenho como levá-lo até lá. Seguirá comigo para Sable D´Or.
Aqueles não eram os planos de Édouard. Viajara para conversar com
Raymond de Trípoli em nome da ordem e tentar convencê-lo de que o reino
precisava ficar unido. Não fora bem sucedido na tarefa. Quando estava voltando
para Jerusalém, fora chamado na estrada por um judeu que avisava que havia um
cavaleiro doente na aldeia. Encontrara aquele templário e imediatamente se
preocupara por vê-lo sozinho no deserto. Agora sabia de informações
importantes. Um levante em Sable D´Or acarretaria na perda de um feudo
importante que era a porta de entrada para as terras de Tiberíades.
- Se você tem cavaleiros aqui, siga comigo até Faraj e me ajude a libertar
Guillaume.
- Ele já deve estar morto, sir Dedrick. Não se iluda. É bom que tenha forças
para partir.
- Ao menos me deixe com um cavalo para eu pedir ajuda em La Fève –
pediu Dedrick.
Édouard diria que não. Mais tarde, não saberia explicar o que o fez
concordar em mandar um de seus homens junto com Dedrick. Enquanto via o
templário se afastar no deserto, supôs que talvez fosse a energia súbita que o
jovem ganhara como se quisesse se compensar por estar vivo e seguro enquanto
os companheiros estavam presos, possivelmente mortos.
- Vocês, templários, já procuraram problemas demais com os Assassinos.
Tenho certeza de que eles ainda se lembram do conflito pelos tributos de
Tortosa.
Dedrick não entendeu a que o hospitalário se referia. Nem deu importância,
pois estava feliz demais com a possibilidade de ainda salvar Guillaume.
*****
Dante observou Dedrick comer esfomeado e não disse nada até que o
recém-chegado terminasse. Acabara de mandar o hospitalário embora. Observara
o cavaleiro do Hospital partir com o pensamento de que perdera um grande
amigo na captura de Guillaume. Duvidava que ele estivesse vivo. Talvez
precisasse comunicar o fato a Gerard de Ridefort para que outro cavaleiro fosse
escolhido como mestre do Templo de La Fève.
- Precisamos salvar Guillaume e os outros – disse Dedrick, limpando a boca
com a mão. Ficara deliciado com o ensopado. Depois dos dias perdido no
deserto, era um alento estar de novo entre os templários.
- Ele já deve estar morto, Dedrick – afirmou Dante, com o mesmo rosto
sério de sempre.
- Não está. Eu tenho certeza que não. E, se estiver, ao menos pegaremos os
Assassinos. Tenho certeza de que vingaremos Guillaume.
Dante viu a esperança brilhante nos olhos do companheiro. Sabia que
estava contra as leis do Templo pagar resgate por um dos seus cavaleiros. Não
havia, entretanto, nenhuma regra que ditasse algo contra a vingança do cavaleiro
tombado ou seu resgate à força.
- Os hospitalários já foram para Sable D´Or?
- Sim.
Dante temeu que o Hospital pudesse ser um impasse quando as tropas
templárias tentassem tomar o feudo de Donat. Gerard de Ridefort não gostaria de
saber disso. Não sendo uma pessoa que se estendia por assuntos que não seja de
sua alçada ou que não pudesse resolver logo, Dante deixou o problema de lado
para pensar na ideia mais imediata de resgatar Guillaume.
- Vamos levar seis cavaleiros, oito sargentos e quatro turcópolos. É o
suficiente para um combate justo. Espero que já esteja pronto para ir e se lembre
do caminho até essa tal Faraj.
Dedrick respondeu que sim sem estar certo de que dizia a verdade. Antes
que Dante desse as costas, fez uma pergunta.
- O que foi o conflito de Tortosa com os Assassinos? O que é isso?
Dante poderia ter se envergonhado, mas aprendera com Guillaume a não
demonstrar nenhuma vergonha pelo que os outros haviam feito ou mesmo pelas
ordens que cumpria. Explicou que o conflito se devia a um problema de
negociação com os Assassinos. Em 1169, o Velho da Montanha, líder entre os
Assassinos, se estabelecera como governador da província de Nosairi. Ele
propusera uma aliança com o rei Amalrico de Jerusalém e só exigiu em troca o
cancelamento do tributo que os templários de Tortosa cobravam de algumas vilas
de Assassinos. Os cavaleiros do Templo não gostaram nada do pacto. Um deles,
Gualtério de Mesnil, ficou tão nervoso que atacou os emissários dos Assassinos
e matou a todos. Foi dito que ele agira sob a conivência do grão-mestre Odo de
Saint-Armand.
O rei Amalrico irritou-se com a atitude mesquinha do Templo e exigiu
retratação. O grão-mestre recusou-se a entregar Gualtério. Afirmava que só o
papa poderia julgar um templário. Amalrico não se importou com isso. Juntou
um grupo de cavaleiros e forçou a entrada em um capítulo da ordem. Prendeu
Gualtério e o jogou em uma cela escura em Tiro. O rei pediu desculpas aos
Assassinos e cogitou pedir ao papa a dissolução do Templo.
Dedrick baixou a cabeça decepcionado. Dante colocou a mão sobre o
ombro dele e falou para o companheiro não se entristecer. Ocorriam erros devido
à ambição de alguns. O que eles precisavam fazer era evitar que os pecados
fossem cometidos de novo.
Partiram com uma tropa de peso para o resgate de Guillaume. Ficaram
perdidos na metade do caminho e precisaram da ajuda de alguns pastores para
encontrarem uma estrada que levasse até Faraj. Dedrick pediu desculpas pelo
erro e Dante não respondeu nada. Na noite em que chegaram à vila de Faraj,
com certeza já eram esperados. Os templários ficaram montados e chamaram
pelos Assassinos. Não pretendiam atacar de repente, pois seriam pegos antes que
pudessem chegar a Guillaume. Simplesmente exigiram a entrega do prisioneiro.
Bassam apareceu em frente a eles empurrando o templário, o sargento e o
turcópolo. Guillaume estava fraco e mal andava. Caminhava sôfrego, custando a
manter a postura nobre que era tão natural de sua alma.
- Onde estão as armas e os cavalos deles? – exigiu Dante.
Bassam não disse nada. Empurrou Guillaume com força, derrubando-o na
areia. O templário não teve forças para se levantar. O máximo que conseguiu foi
mexer-se e se colocar se barriga para cima, respirando com dificuldade.
- Ele morreria se nenhum de vocês viesse para salvá-lo ou vingá-lo – falou
Bassam. – Saiba, Guillaume, que você está em minhas mãos. Não vou matá-lo
como um prisioneiro, mas estripá-lo em sua cama ou no campo de batalha.
Agora vá e durma todas as noites imaginando que eu estarei à espreita.
Dedrick temeu por Guillaume. Aquela era uma ameaça que não permitiria
nenhum homem dormir tranquilo. Seriam noites com gosto salgado e olhos
cansados de vigília. Era um destino mordaz.
Um dos sargentos desceu do cavalo e ajudou Guillaume a se levantar. Deu
água para o templário e depois ofereceu o cantil para Henri e Ahmad. Bassam
virou-se e foi para uma das pequenas casas de Faraj, deixando os templários
cuidarem dos homens. Pouco depois um Assassino apareceu com três cavalos.
- Bassam deseja uma boa viagem de volta. Que os animais ajudem o
cavaleiro a se lembrar a quem ele deve a vida.
Montaram acampamento a cerca de um quilômetro de Faraj. Deram comida
aos ex-prisioneiros para que começassem a recuperar suas forças para a viagem.
Guillaume olhava para as estrelas com o cenho franzido e não falava com
ninguém. De vez em quando baixava os olhos para a fogueira e os outros
imaginavam que ele fosse declarar algo, talvez dar ordem para que voltassem e
eliminassem Bassam. No entanto, não era isso. A disputa entre o templário e o
Assassino era mais do que um simples caso de vencer um combate. Havia honra
e juramentos envolvidos.
Guillaume já vivera uma vida em que a honra era apenas uma palavra a ser
usada contra os inimigos. Imaginava-se em um tempo em que o código de
cavalaria se resumia apenas ao dever de se capturar um inimigo e exigir resgate.
Agora não. Agora ele era um templário que jurara lutar em nome de Deus.
Derramava sangue pela religião e não mais do que isso. Qualquer hora em que
brandia a espada era para demonstrar o poder do Templo e de Jerusalém. Essa
era sua honra e não estaria cumprindo nenhum pouco dela se simplesmente
declarasse uma luta contra Bassam e permitisse que seus homens o matassem. O
sangue do Assassino deveria ser apenas dele, uma responsabilidade que vinha
das ações e do coração, de uma luta empenhada e um juramento solene.
Capítulo Seis
Christophe chamara três de seus cavaleiros mais fiéis e iniciara um ronda
em Sable D´Or. Passou pelos campos arados e pelas pequenas aldeias que se
formavam nas grandes terras do feudo. Parecia que não fazia nada além de
passear, mas estava à procura de uma pessoa. Encontrou o homem o esperando
debaixo de uma oliveira, no mesmo lugar em que ocorrera o combate entre
Karsten e os Assassinos.
- Pensei que seu pai viesse. Eu mandei a mensagem para ele – disse o
homem.
- Eu sei, Fihr, eu sei. Foi o que eu disse a ele. O líder da comunidade de
muçulmanos exige ver o senhor o quanto antes, meu pai. Ele não fez nada além
de resmungar que não devia satisfações a você. No entanto, eu acho que deve
sim, por isso vim. Vim para manter a paz entre os povos que vivem no feudo.
Podem ser cristãos, católicos ou armênios, judeus ou muçulmanos, todos somos
um povo só nessas terras e precisamos conviver. Lógico que meu pai prefere os
cristãos, mas eu não sou assim.
- Pois é bom saber disso. Não suportaremos mais essas ofensas que seu pai
faz ao Corão.
- Estou de acordo com isso, mas duvido que ele pare. Conversarei com ele.
Farei o que puder para controlar isso, mas meu pai ainda é o senhor do feudo. Eu
sou simplesmente seu herdeiro. Temo que não possa fazer muito.
- Então que assim seja.
Fihr cruzou os braços carrancudo. Suas últimas palavras correram o ar
como abelhas atiçadas.
Christophe estava satisfeito. Seus planos progrediam cada vez mais
rapidamente. Voltou para o castelo para conversar com o pai e com os outros e
encontrou os cavaleiros preparando uma disputa de justa. Apesar de ser um
cavaleiro e viver entre muitos guerreiros daquela natureza, Christophe nunca
vira uma disputa de justa, ao menos não como era comum que fosse feito no
Europa. Era um jogo violento, muitas vezes ameaçado pela Igreja. O papa
censurava o esporte e as pessoas diziam que demônios passeavam pelos locais
onde as disputas eram realizadas.
O pátio largo estava cheio de curiosos observando as bandeiras que agora
eram hasteadas para indicar os cavaleiros que se preparavam para o embate. O
prêmio fora decidido mais cedo como um total de quinhentos besantes para o
vencedor. Donat se disporia do dinheiro com felicidade, pois quase todos os
cavaleiros que participariam faziam parte do seu séquito. O dinheiro acabaria
sendo devolvido para ele de alguma forma.
Christophe andou até o palanque improvisado onde estava a cadeira do pai.
Donat já se sentara para esperar os cavaleiros se aproximarem. Estava protegido
do sol por um toldo de pano amarelado. Acabara de pedir aos criados que
trouxessem uma cadeira para o filho e também para a filha e a sobrinha. Queria
todos a seu lado no primeiro torneio de justa que faria.
- Pai, por que não me avisou desse torneio? Acho que não é o melhor
momento para festas.
- Cale-se e sente-se, Christophe. Esse será um torneio e tanto. Também será
bom para eu decidir algumas coisas. Não quer participar dos embates?
- Pai, estamos quase em guerra e ainda tem a ideia de um torneio?
Laure interferiu nesse instante. Ela acabara de chegar. Aparecera sozinha,
mas Christophe notou que Melisende estava mais atrás, parada e olhando para os
cavaleiros juntamente com o padre Gareth.
- A ideia foi de Karsten, meu irmão. Eu mesmo gostei disso para quebrar o
marasmo que nos aprisionava.
Christophe tomou uma antipatia súbita pelo germânico. Não era uma boa
ideia fazer aquele torneio e ter a possibilidade de perder um cavaleiro ou outro.
O pior era que com todos aqueles cavaleiros prontos para a batalha seria mais
difícil que um levante fosse feito pelos muçulmanos. Isso atrasaria ou até
impediria os acontecimentos que planejara com tanto cuidado. Karsten
começava a se mostrar influente sobre Donat. Se ele viesse a se casar com Laure,
como ela pretendia, Sable D´Or poderia ser entregue a ele. Precisava cuidar para
que isso não acontecesse. Nenhum daqueles homens entendia a gravidade de se
dividir o reino naquele momento.
A aparição de Karsten no pátio chamou a atenção de Christophe e de Laure.
Os dois olharam juntos para o cavaleiro, mas com sentimentos diferentes. Ela
estava admirada e ele irritado.
- Gareth falou agora comigo e com Melisende que Karsten era um campeão
de justas nos torneios germânicos – comentou Melisende.
- Não quer mesmo competir com ele, Christophe? Ah, talvez seja melhor
não. Não quero essa derrota para nossa família. Apenas sente-se aqui e observe.
Esse homem já salvou minha filha dos Assassinos, agora vai mostrar como se
usa uma lança – comentou Donat, chamando por um servo para obter um pouco
de vinho. A garganta estava seca por causa da agitação.
- Vou verificar se teremos comida para todos esses cavaleiros, meu pai.
Volto já – disse Christophe. Acabara de contar que havia mais oito cavaleiros
vindos de fora do feudo apenas para participar dos jogos. Vira a bandeira de
Tiberíades em um deles.
Christophe desceu do palanque e passou por Melisende. Ela ainda
conversava com o padre. Os dois cochichavam algo que o cavaleiro não pode
entender, mas com certeza era algo relacionado com Karsten. Ele olhou para o
pai e Laure e os viu distraídos com os criados que ofereciam vinho e frutas.
Nisso, fez sinal para que Karsten se aproximasse.
O germânico conversava com Heiner. Os dois estavam montados e
avaliavam os oponentes imaginando que nenhum deles deveria ter muita
experiência em um torneio de justas. Talvez a disputa final acabasse entre
amigos. Riram juntos da presunção. Karsten parou de rir surpreso quando
Christophe o chamou. Nem podia imaginar o que o filho de Sable D´Or queria
com ele. Mal trocavam palavras naqueles meses que o germânico se colocara a
serviço de Donat.
A cena pareceria conspiratória aos olhos de Laure. Christophe tinha certeza
disso. Por isso ele parou junto de Melisende e Gareth e esperou que Karsten
chegasse. Quando o cavaleiro já estava lá, deu um conselho que fez a
curiosidade acender como uma vela dentro da mente deles.
- Sei que vocês dois estão para casar, portanto é bom que falem logo para o
meu pai ou ele desconfiará que o padre aqui os casará escondidos. Isso não será
nada bom. Acho que meu pai já está pensando nisso. Bom, é apenas um alerta.
Cuidado.
Christophe saiu para continuar sua conspiração. Só precisava enviar um
recado para Fihr. Haveria um momento de comemoração naquela festa e os
cavaleiros estariam bêbados demais para se protegerem de um levante. Talvez
até seus resgates valessem muito.
*****
Laure viu quando o irmão parou para conversar com Karsten e Melisende.
A presença do padre atiçou ainda mais a curiosidade e o ciúme dela. Temia que
eles estivessem planejando um casamento. Foi um temor que gelou seu coração,
transformando-o em uma pedra que sugava o calor do corpo. Os sentimentos se
esfriaram ainda mais quando Donat percebeu o fato e fez um comentário.
- O que as prima está conversando com eles? Marcando um casamento por
acaso? Ela tem ficado muito próxima de Karsten. Bom, seja como for, já está na
idade de se casar.
Laure olhou para o pai com pupilas dilatadas como se precisasse captar
mais luz para entender se havia algum tom de zombaria na expressão do velho.
- Ela está se oferecendo para ele, pai. Será que o senhor não percebe. Está
se oferecendo para se casar. E isso depois de eu ter convidado esse cavaleiro
para vir para cá. Depois de ele ter me falado palavras tão bonitas.
- Está dizendo que ele cortejou você? – perguntou Donat, subitamente
irritado.
- Não, pai. Ele foi bastante educado. Aproximou-se de mim como um
homem deve fazer, mas sei que consultaria o senhor antes. Mas como posso
competir com uma mulher que se oferece tão prontamente quanto Melisende. É
normal que os homens a escolham.
Donat franziu o cenho e coçou a barba. Esfregou as mãos cada vez mais
irritado. Era di tipo de pai cujo ciúme que sentia da filha só era maior do que a
ira quando via o futuro dela ameaçado. Não admitiria nunca que ela não tivesse
um bom casamento. Karsten parecia um ótimo guerreiro, mas talvez não tivesse
tantas terras ou a riqueza que Sable D´Or esperava dos pretendentes. Pensou um
pouco. Não, não gostaria que a filha se casasse e fosse viver em terras
longínquas. Queria ela ali, na Terra Santa, com descendentes que continuassem
as batalhas contra os sarracenos. Duvidava que Christophe pudesse lutar com
eficiência. Karsten, entretanto, poderia ser uma boa opção como herdeiro. Claro,
isso se já não tivesse manchado a honra de Melisende. Então seria obrigado a se
casar com ela.
Um grito irritado chamou pela sobrinha. Ela veio depressa para saber o que
o tio queria. Subiu no pequeno palanque e cumprimentou o tio.
- Karsten está a cortejando? – perguntou o tio, diretamente.
Melisende não soube o que dizer. Havia algo por trás das palavras de
Donat. O olhar de Laure também indicava que a pergunta não acabava apenas
ali. Eram palavras salgadas que ela deveria digerir antes de responder.
- Ele tem sido muito educado comigo, mas não tem me cortejado. Estamos
nos tornando amigos.
- Pois não é bom que homem e mulher se tornem amigos. Afaste-se dele,
Melisende. Não quero sua honra manchada – exigiu Sable D´Or. No íntimo, ele
pensava no quanto já era difícil conseguir um casamento para ela sem o
problema da honra manchada. Ela tinha terras que atrairiam cavaleiros, mas
eram poucas, uma vez que a maioria agora estava nas mãos de Donat. Também
havia um feudo no Ocidente, na França, que ela poderia reclamar, apesar de
ainda desconhecer esse fato. – Sente-se.
Melisende sentou-se sob o olhar frio de Laure. Soube naquele instante que a
competição amorosa tão fria e passional ao mesmo tempo como só poderia ser
com as mulheres começara entre as duas. O pior era que ela estava despreparada
para lutar. Laure tinha armas mais eficientes e tinha o pai plenamente a seu lado.
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Laure correu para o quarto de Karsten tão logo ouviu os barulhos. Gareth e
o cavaleiro ainda conversavam quando ela chegou preocupada.
- Dê-me minha espada. Vou descer – disse o germânico.
Gareth balançou a cabeça e soltou um ar decepcionado. Estendeu o braço
pousando a mão sobre o peito do cavaleiro e fez o amigo ficar na cama. Andou
calmamente e trancou a porta.
- É tudo o que podemos fazer.
- E os outros? E Melisende?
Laure passara pelo quarto de Melisende quando saíra do quarto onde Jean
estava em recuperação junto a seus escudeiros, mas não se dera ao trabalho de
chamar a prima. Seguiu caminho para encontrar o cavaleiro, mesmo sabendo que
não estaria protegida lá. Sabia que apenas seu coração encontraria segurança,
diferente do corpo.
- O que está acontecendo? – perguntou Karsten.
Gareth já estava olhando da janela.
- Parece mais uma revolta. Não vejo muita organização. Os portões do
castelo estão abertos e parece haver mais gente chegando.
Alguém forçou a porta, o que fez Laure tremer de medo. Ela olhou para os
lados procurando por uma arma e viu o equipamento de guerra de Karsten
encostado em um canto. Correu até lá para pegar um punhal. Vendo isso, Gareth
percebeu que teria que lutar caso alguém entrasse. Não gostava de derramar
sangue, mas era hora de averiguar se ainda era bom no uso da maça. Andou até
suas coisas em outro canto do quarto e desenrolou a arma. Sentiu o peso do
metal aumentado pelas lembranças de lutas passadas. Pediu perdão por usar a
arma mais uma vez.
- Karsten, permite que eu use seu escudo?
- Eu é que deveria estar lutando – disse o cavaleiro.
Laure se aproximou dele e sentou-se na cama. Colocou a mão sobre seu
peito, atraindo um olhar censurador do padre.
- Não se preocupe, Karsten. Sei que poderia nos salvar, mas preocupe-se
com seu ferimento. Nós nos livraremos desse perigo.
- Quem está aí? – perguntou alguém de fora.
Ninguém respondeu. A pergunta se repetiu, agora com uma ameaça.
Chutaram a porta e começaram a tentar a forçá-la.
- Não há tesouro algum aqui, só uma mulher e um homem ferido. Laure de
Sable D´Or pede a vocês que nos deixem em paz.
Pararam de forçar a porta. Gareth andou até lá e colocou o ouvido sobre a
madeira. Ouviu passos se afastando no corredor. Aparentemente, eles haviam
perdido o interesse.
- Suas palavras fizeram efeito – disse o padre, estranhando.
- Eles devem estar procurando por outra coisa – alertou Karsten,
preocupado com Melisende. Com esforço, conseguiu se sentar na cama. A
barriga doeu mais, entretanto ele conseguiu se manter na posição.
*****
*****
Gareth olhou mais uma vez pela janela. Agora algo diferente estava
acontecendo. Alguns cavalos seguiam em carga para dentro do castelo e os
cavaleiros baixavam as espadas sobre os revoltados. Os muçulmanos, ainda
surpresos, demoraram a entender que os recém-chegados eram inimigos. Uma
fuga em massa começou com corpos sendo pisoteados e pessoas sangrando se
jogando umas sobre as outras para escapar da ira dos cavaleiros.
- Chegaram reforços, mas não consigo identificar quem são.
Laure foi até à janela para ver. Precisou espremer os olhos para identificar
melhor quem eram os cavaleiros. Ao notar os mantos negros, não teve dúvidas.
Eram hospitalários.
- Hospitalários. Mas o que eles estão fazendo aqui?
- Não sei, mas serão nossa salvação.
- Mas são apenas doze contra todos esses inimigos.
Os hospitalários começaram a fazer um círculo que expandiam cada vez
mais. Chegou um momento em que estavam afastados demais um do outro e o
líder gritou para se reunirem antes que fossem pegos individualmente. Então um
grupo de cavaleiros muçulmanos começou a coordenar os revoltosos.
- As portas do salão precisam ser abertas – falou Gareth. Ele olhou para a
porta e fez o sinal da cruz. Rezou o Pai Nosso depressa. – Abra a porta para mim
e feche assim que eu sair, Laure.
- Não saia, Gareth – ordenou Karsten.
O padre riu do amigo. Laure olhou de um para o outro.
- Vamos, mulher. Não temos muito tempo.
Ela se levantou e foi fazer o que precisava ser feito, como todos naquela
noite.
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*****
*****
Guillaume seguiu com toda a tropa para o feudo de Sable D´Or. Deixou
apenas dois cavaleiros em La Fève, mais ninguém, pois não imaginava que
qualquer um pudesse atacar o local. E, se o fizesse, não importaria, pois dividir
seus homens seria o mesmo que indicar a perda no embate em Sable D´Or e a
perda de La Fève. Decidiu que primeiro cumpriria as ordens e depois se
preocuparia se fosse necessário retomar a fortaleza. Seguiram pela trilha no
deserto. Eram quinze cavaleiros, cinquenta sargentos, vinte e cinco turcópolos;
uma força mais do que significativa. Guillaume olhava para trás, vendo as
fileiras cerradas marchando silenciosamente sob o sol e se orgulhava do pequeno
exército que tinha.
Os templários marchavam em duas filas, cada um com sua dupla.
Guillaume seguia na frente com Dante ao lado. Não conversavam, apenas
observavam o deserto. Seus poucos movimentos eram para pegar os cantis e
beberem um pouco da água preciosa. Pararam apenas durante a noite para as
refeições. Os templários, como sempre, dividiram seus pratos e comeram longe
dos turcópolos e sargentos. Rezaram em conjunto e fizeram agradecimentos e
pedidos.
Guillaume observou a noite antes de dormir. Sua mente vagueava pelo
deserto e pensava no quanto estava difícil definir inimigos e amigos naqueles
dias. Seguir ordens era difícil, ainda mais quando partiam de uma personalidade
forte e vingativa como Gerard de Ridefort. O grão-mestre, de certo modo, fazia
Guillaume lembrar-se de si mesmo. Pensava se não teria se tornado daquele
modo, uma fera amadurecida preparando botes para expandir seu poder se os
acontecimentos daquele dia fatídico há dez anos não houvessem o mudado.
Decepcionou-se consigo mesmo quando percebeu que estava questionando
o grão-mestre. Não fizera tantas promessas de seguir regras para depois as
lamentar. Nunca fora um homem de fazer promessas à toa, mesmo em sua época
mais selvagem. Na juventude, simplesmente não as fazia. A única de que se
lembrava era fidelidade que prometera a esposa, uma jura que nunca traiu e
depois se transformou em algo inusitado, difícil compreender, mas que o coração
martelava sobre a razão para forjar em conceito abstrato. Era o amor que sentira
por ela. Não sabia se ainda sentia, talvez não, mas tinha saudades mesmo que as
memórias agora fossem fugidias e o rosto dela às vezes se anuviasse entre tanto
sangue, combate e areia. Depois de dez anos e depois de tanta luta, ainda sentia
saudades.
Os passos de Dante mal fizeram barulho na areia, mas foram o suficiente
para despertar Guillaume de seus devaneios.
- Como faremos se precisarmos sitiar o castelo?
- Chamaremos o marechal. Ele virá com muitos outros cavaleiros. Está
agindo aqui por perto e nos cobrirá. Por enquanto, apenas pediremos permissão
para entrar e tentaremos conversar uma última vez com Donat.
- Ele não cederá, senhor.
- Verdade. Então o sangue de alguém tingirá a areia do deserto. E não será o
meu.
Dante calou-se imaginando a ferocidade de Guillaume nas batalhas. Uma
vez que levantasse as armas, não pouparia os antigos amigos. Aquela era a
última chance que daria a Donat, talvez para liberar a consciência do líder
templário, se é que algo como consciência existia na mente daquele lobo
treinado.
- Acha que o novato lutará contra os amigos? – perguntou Dante, ainda
pensando em laços de amizade que eram perturbados pela guerra.
- Será a hora de sabermos se ele realmente é um templário. Se não for,
temos regras definidas para puni-lo. Já me viu ser brando em alguma punição?
- Não – respondeu tacitamente o siciliano.
- A carne dele vai arder se ousar nos trair. Eu não admito traidores.
Dante sabia que aquela frase era uma das regras do coração de Guillaume.
Nunca vira seu líder ser complacente com a traição. Sempre seguira todas as
suas juras de fidelidade. Talvez por isso estivesse tão pensativo naquela noite.
Estaria avaliando se havia algum juramento implícito na amizade com Donat.
Era provável que não. Era Donat quem lhe devia favores, quem lhe devia a vida.
E o homem já dispensara sua amizade.
- Que Deus e Cristo cubram seu sono, senhor – disse Dante, retirando-se.
O siciliano queria ter um pouco mais de luz para ler a Bíblia. Como não
tinha, rezou e deitou-se para começar a pensar na esposa falecida. Já haviam lhe
perguntado uma vez de que adiantava amar alguém que estava morta. Ele sorrira
de volta e simplesmente respondera que valia a pena simplesmente ser aquilo
que o coração mandava. Preparava-se para dormir quando Dedrick apareceu.
- Dante, acha que haverá guerra?
Dante deitou-se de costas e olhou para o céu, sabendo que Dedrick estava
ajoelhado a seu lado. O templário contou algumas estrelas e imaginou uma cruz
fazendo traços entre elas. Cansado, não queria responder aquela pergunta que lhe
parecia óbvia, mas sabia que as palavras de Dedrick eram a expressão dos
conflitos de fidelidade que se passavam pela mente do jovem templário.
- Já estamos em guerra desde que pisamos na Terra Santa para salvar a
preciosa Jerusalém dos sarracenos, irmão Dedrick.
Dedrick queria especificar a pergunta. Queria se referir a Sable D´Or,
porém não teve coragem. Fechou os olhos e se calou.
Dante teve pena do jovem. Ele não tinha um coração forte como o de
Guillaume, que resistia às dúvidas do conflito do coração e continuava
avançando como o lobo de sempre. O siciliano fez uma oração para agradecer
que só tinha duas fidelidades naquele mundo, à esposa morta e aos templários.
Eram praticamente uma coisa só, pois faziam parte da mesma promessa e regra
que definia sua vida. De ambas as maneiras, lutava para alcançar o céu e revê-la.
Guillaume começou a andar pelo acampamento para verificar se todos
estavam dormindo. Apenas alguns sargentos conversavam em volta da fogueira.
Entre eles estava Henri. Chamou pelo guerreiro e depois ordenou que os outros
fossem dormir. Eles obedeceram como filhotes da besta fera. Henri continuava
se impressionando com a obediência que Guillaume conseguia. Eram anos de
convivência, mais de uma década, e ainda enxergava o templário como um
verdadeiro mestre. Fora tão fiel a La Croix Bleue, que se juntara a ele mesmo
quando resolvera entrar para o Templo e mudar-se para a Terra Santa.
- Como acha que nossos companheiros estão? – perguntou Guillaume.
Henri olhou para o acampamento, mas sabia que o templário não se referia
àquelas pessoas.
- Prontos, como sempre, senhor.
- Diga-os para ficarem onde estão, não importando o que aconteça. Assim
que acabarmos em Sable D´Or, você estará liberado para isso, mas quero você de
volta o quanto antes. Agora vá dormir. Talvez seja preciso afiar as espadas.
- Que o Senhor abençoe nossas lâminas.
- Ele sempre abençoa mãos suficientemente fortes para golpear.
Guillaume foi procurar um lugar para dormir. Passou pelos cavalos e
verificou que todos estavam bem. As sentinelas também estavam acordadas e
atentas. Satisfeito, foi encontrar seus sonhos.
*****
Os templários encontraram Sable D´Or no fim da tarde. Guillaume lhes
dera um bom tempo para descansarem durante o almoço para se recomporem da
viagem. Foram dois dias de marcha e agora o templário suspeitava que deveria
colocá-los para batalhar. Uma pequena parada em uma vila avisara-o da revolta
dos muçulmanos. Guillaume se surpreendera, mas depois se lembrava de alguns
boatos que alguns espiões haviam revelado sobre as terras de Donat e,
obviamente, a ameaça dos Assassinos não deixava sua cabeça. Imaginou se
Bassam estaria o esperando lá. Seria um ótimo local para a luta final entre os
dois.
O almoço acontecera em volta da vila. Alguns cristãos doaram comida para
os templários e solicitaram ajuda. Movidos mais por preconceito religioso do
que por fé, pediram para que os cavaleiros os livrassem dos muçulmanos e da
ameaça de Saladino. Guillaume observou aquele povo e imaginou se eles viviam
mesmo em paz antes da chegada dos cruzados. Teria o desejo de libertação
reacendido neles ou aquela vontade de vencer os muçulmanos era apenas disputa
religiosa?
Os sargentos haviam circulado a vila com a desculpa de que era para
protegerem melhor o local caso alguém se aproximasse. Os camponeses ficaram
gratos, mas Guillaume sabia que aquilo era improvável. A verdade era que
distribuíra ordens para não correr o risco de ninguém sair dali e avisar da
chegada do Templo.
- Senhor, não temos nenhuma ideia da força desses revoltados e se eles
estão mesmo junto com os Assassinos. O que faremos? – perguntou Dante.
- Atacaremos em carga se os portões estiverem abertos e mataremos até que
eles se rendam – respondeu o líder templário. Sorriu e pensou como aquilo
lembrava o velho Guillaume. Não, talvez fosse melhor ser mais tolerante. Se não
houvesse Assassinos entre os revoltosos, com certeza apenas a força do Templo
reunida seria suficiente para fazê-los se renderem. – Vamos atacar em carga,
Dante. Não pouparemos quem levantar armas contra nós, mesmo que esses
sejam cavaleiros de Sable D´Or. Viemos aqui para subjugar o feudo e isso inclui
todos aqueles que vivem nele.
As ordens seriam cumpridas; uma tarefa mais fácil do que haviam
imaginado. De longe, perceberam que a grande porta dos muros do castelo
estava aberta. Homens andavam de um lado para o outro, já tendo estabelecido
uma rotina em volta do castelo. Esperavam pacientemente pela rendição dos
sitiados. Guillaume soubera que muitos guerreiros de regiões próximas haviam
se juntado ao cerco, impulsionados pela proximidade do exército de Saladino.
Não se importavam de estar lutando junto dos Assassinos. Queriam apenas uma
oportunidade de submeter um nobre cristão.
Os templários colocaram os cavalos para correrem tão logo Guillaume
levantou a espada.
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – gritaram em
conjunto.
O avanço não foi detido por ninguém. Os homens que vigiavam os portões
estavam desorganizados demais até para fechá-los. Haviam relaxado durante os
dias de cerco, ainda mais com a carência de uma liderança forte. A maioria fugiu
quando viu as cruzes vermelhas do Templo se aproximando. Cederam espaço
para que os cavalos passassem pelos portões como conquistadores natos. Os
cascos bateram firmes no pátio, circulando a fonte com o querubim e afastando
os inimigos. Alguns guerreiros tentaram erguer armas, mas eles logo se tornaram
exemplos mortos em pintados de vermelho.
Os sargentos e os turcópolos chegaram pouco depois. Arcos foram
levantados e algumas flechas demonstraram o que aconteceria com quem
tentasse fugir. Henri levou um grupo de seis guerreiros para perseguir alguns
revoltosos que corriam desesperados. Voltou com três homens capturados e uma
espada suja de sangue, demonstrando que ao menos um fugitivo falecera.
Aquilo não fora um combate, mas apenas uma ameaça bem sucedida. Doze
muçulmanos morreram e o restante logo se entregou, principalmente depois que
as portas do castelo de abriram e os hospitalários apareceram para dar apoio à
supressão da rebelião. Édouard encarou Guillaume com uma expressão triste,
talvez decepcionado por reencontrar o templário.
- Como estava lá dentro? Muita festa, Le Mur? – perguntou Guillaume,
quando os dois cavalos pararam lado a lado.
Édouard olhou para os corpos no chão. Contou-os e suspirou. Julgava toda
morte desnecessária, principalmente quando vinha da parte de Guillaume.
- Não... mas parece que você fez sua festa aqui.
- Não, nós templários não festejamos. Como dizemos, é tudo em nome de
Deus.
O hospitalário olhou para o sol ardente, preferindo o brilho ofuscante à face
cínica de Guillaume. Balançou a cabeça e suspirou mais uma vez.
- Cuide de tudo então. Nós já vamos – disse Édouard, começando a virar o
cavalo.
- Espere... sei que deve ter feito um bom trabalho aqui. Ouvi as histórias
antes de chegar. Deus o recompensará, Le Mur.
- Que assim seja – respondeu o hospitalário, sem saber o que dizer ao
receber um elogio de Guillaume.
Os hospitalários, portando seus mantos pretos e as cruzes brancas,
começaram a deixar o feudo, parando apenas para encher os cantis. Guillaume
começou a vê-los partir e deu ordem a seus homens para lhes passarem a comida
que tinham, duvidava que qualquer um deles tivesse algum suprimento depois
dos dias de cerco. Édouard o olhou solenemente e agradeceu apenas acenando
com a cabeça.
Donat saiu do castelo acompanhado de alguns cavaleiros armados. Eram
fiéis a Christophe, mas, no momento, não tinham outra opção além de se
submeter ao barão. Sable D´Or caminhou furioso até Guillaume. O templário o
observou se aproximar, mas percorreu o pátio com os olhos. Chamou por Dante
e disse algo no ouvido do companheiro. Donat ficou curioso para saber o que
era, principalmente depois de ver o sorriso no rosto do templário.
- Por que esse arremedo de exército aqui, templário? – perguntou o barão.
- Vim anunciar que é melhor se submeter, meu senhor. O rei não tolerará
mais nenhuma forma de insurreição. Estamos em guerra e agora quem não está
do nosso lado está contra nós.
- O rei não pode me tirar meu feudo – retorquiu Donat, cruzando os braços.
– Ele é meu por direito de sangue. Não se tira um feudo de um nobre.
Guillaume quase soltou um sorriso irônico. Contendo-se, lambeu os lábios
levemente, apenas com a ponta da língua e pensou o quanto a teimosia de Donat
era lamentável.
- Pois estamos o fazendo agora. A Ordem do Templo representa o rei nesse
caso.
- Quero uma espada! Resolveremos isso em batalha! – gritou Donat.
Parecia um chamado, ao que foi atendido quando seus homens apareceram
empurrados pelos sargentos templários. Vinham dos estábulos e de trás do
castelo. Dante aparecia na frente, cuidando para que os cavaleiros de Sable D´Or
se mantivessem sob as espadas do Templo.
O barão olhou surpreso. O plano dera errado. Suas ordens para que os
cavaleiros vestissem suas armaduras e portassem suas armas para pegar
Guillaume de surpresa foram inúteis. O pior era que os hospitalários já haviam
ido embora. Agora estava sozinho.
- Você me enganou. Aproveitou-se da situação, seu covarde. Queria ver se
me enfrentaria no campo de batalha.
Guillaume desceu do cavalo para encarar o barão diretamente.
- Covardia. Pois bem. Pois bem. Não me acusava dessas palavras quando
estava lutando para salvar seu feudo. Mas as coisas mudam, não é? No entanto,
Donat, você sabe muito bem que eu sou capaz de esmigalhá-lo em qualquer
campo de batalha. Não me desafie. Eu quebrarei seus exérticos, pisarei em você
e mijarei em seu estandarte, meu senhor. – ameaçou calmante o templário. – Não
me venha com ofensas ou experimentará do que minha espada é capaz.
Justamente essa espada que o deixou tão feliz toda vez que era erguida para
acabar com seus inimigos.
Donat sentia-se humilhado. Não tinha resposta para aquelas palavras. Era,
no fim das contas, verdadeiras. Sempre dependera de Guillaume e do irmão nas
inúmeras batalhas contra os Assassinos.
- O rei decidirá o que acontecerá com esse feudo. Vamos avaliar o que está
acontecendo com o povo daqui. – Olhou para os muçulmanos. Estavam todos
reunidos em um canto do pátio, sob o olhar dos turcópolos. – Temo que sua
família perderá o direito a essas terras, visto que você traiu seu rei, portanto, seu
senhor.
- Sou vassalo de Raymond de Trípoli, não de Guy de Lusignan. Não é justo
que retirem meu feudo – protestou Donat. Ao lado dele, Christophe baixara a
cabeça, tentando pensar em um modo de consertar a situação.
- Pois na medida em que agora é inimigo do reino, tomamos sua terra à
força.
- Pois que fique com ela. Levarei hoje meus cavaleiros para me ajuntar sob
a bandeira de Raymond de Trípoli e em breve veremos quem terá as terras de
quem.
Guillaume deu de ombros como quem indica que a escolha era puramente
do barão. Não o impediria de seguir adiante. Ele que acabasse com sua vida
como quisesse. Não era sua responsabilidade mais, agora que cumprira suas
ordens.
- Guillaume, não faça isso. Temos cavaleiros aqui que serão úteis nessa
guerra – interrompeu Christophe. O templário o olhou sem surpresa alguma, ao
lado do pai, que considerava as palavras um pedido de misericórdia humilhante e
também uma insubordinação. – Deixe-me na liderança do feudo. Levarei meus
homens para lutarem ao lado do rei.
O templário sabia que as coisas não funcionavam assim. Não lhe cabia
entregar um feudo a ninguém. A investidura era muito mais complexa. Naquele
caso, apenas o rei poderia decidir quem teria as terras de Sable D´Or. No
entanto, pensou naqueles cavaleiros que seriam, sem dúvida, necessários na
batalha.
- Reúna seus homens, Christophe. Leve-os para servirem ao rei. Talvez ele
lhe entregue o feudo então. Por enquanto, o Templo administrará Sable D´Or, até
que Sua Majestade decida o que fazer.
Guillaume foi ter com os outros templários. Conversou com seus cavaleiros
e os fez se espalharem para avaliarem o feudo. Passou pelos prisioneiros
muçulmanos e fez um longo discurso. Perguntou quem fora o líder da revolta.
Fihr logo foi empurrado e colocado na frente de todos.
- Vai ser enforcado – anunciou Guillaume. Como qualquer líder de sua
época, não poderia permitir que um rebelde continuasse vivo. Não havia piedade
em sua boca quando emitiu as palavras. Em seguida, gritou para os outros. – Ele
será apenas o exemplo. Vocês continuarão vivos, mas sabendo que a justiça
quem faz nessa terra é o rei. Não cabe a nenhum de vocês levantarem armas.
Fihr olhou desesperado para Christophe. O filho do barão logo correu para
acudi-lo.
- Guillaume, esse homem não tem culpa, mas sim os Assassinos. Se o
enforcar, estará apenas culpando o homem errado. Foram os Assassinos que
iniciaram a rebelião.
O templário pensou um pouco. Era justo o que Christophe falava. De fato,
estranhou a defesa do filho de Sable D´Or, ainda mais sabendo que ele era uma
víbora que traíra o próprio pai. Talvez fosse melhor manter aquele homem vivo e
tentar entender a relação que ele tinha com Christophe. Duvidava que aquele
jovem cavaleiro tivesse motivos tão nobres quanto salvar a vida de um
camponês.
- Prendam esse homem agora. Levem-no para dentro do castelo. Decidirei
depois o que farei com a vida dele. Talvez seja preciso julgá-lo com maior
ponderação.
Um sargento passou pelos turcópolos e segurou Fihr pelo braço. Levou-o
para o castelo, de onde alguns templários já saíam depois de ter averiguado tudo
e todos dentro das instalações.
*****
*****
*****
Balian voltara para Jerusalém sem as boas notícias que julgava essenciais
para a sobrevivência do reino. Passara por Nablus, seu feudo, e depois fora
resolver alguns negócios na cidade santa. Andava sempre com uma comitiva
pequena, apesar de ser um nobre de tanta importância. Os poucos cavaleiros que
o acompanhavam eram amigos de longa data. Dormia tranqüilo toda vez que
acampava, pois sabia que estava bem protegido com aquelas espadas que já
haviam ficado tanto tempo a seu lado.
Entrou em Jerusalém em abril de 1187 com a simples intenção de rezar e
realizar negócios que trariam lucro para o feudo. Talvez andasse pela corte para
se interar do que estava acontecendo e depois voltaria para a esposa e
continuaria cuidando de Nablus; cuidado que incluía preparação para a guerra.
Passou pela Porta das Flores, entrada norte da cidade, onde seria recebido por
um amigo. Este o esperava montado em um cavalo árabe pequeno, de pelos
castanhos. Estava acompanhado de outros três cavaleiros. Não passava de um
pequeno nobre desconhecido, que não tinha pouco mais do que quinze guerreiros
e três cavaleiros para ceder ao reino. Ainda sim, para Balian, era uma pessoa
importante. Era alguém que lutaria quando fosse necessário.
- Como vai, Dion? – perguntou Ibelin. Nenhum dos dois desceu do cavalo.
Apenas estenderam os braços e deram as mãos.
- Vou bem, mas temo ser portador de más notícias, Balian.
Era de se esperar que Jerusalém o recebesse com problemas. Olhando para
a multidão caminhando pela rua à frente e enxergando as grandes estruturas de
igrejas e templos, Balian não enxergava nada além de motivos para batalhas.
Havia algum tempo que perdera a capacidade de ver todo aquele esplendor como
símbolos de fé. Os anos que já havia lutado e até passado preso haviam
enrijecido o coração e os sonhos, apesar de nunca terem riscado sua nobreza e
sua fé. Estas eram duas características que o moviam, os estandartes que erguia
todas as manhãs assim que abria os olhos. Era um homem temente a Deus e fiel
a seus princípios.
- Pode dizer, caro Dion. O que espera por minha espada agora? – perguntou,
sorrindo um pouco e fazendo um carinho no pescoço do cavalo.
- Saladino está preparando-se para a guerra. Seus homens estão se
movendo. É mais sério do que pensávamos.
Balian continuou alisando o pelo do cavalo. O animal permanecia imóvel,
apreciando o gesto do dono. Ibelin sorria e pensava. Aos poucos o semblante foi
se tornando mais rígido, à medida que as decisões começavam a ser formuladas
na cabeça.
- Pode me fazer um favor, Dion?
- Sim. O senhor sabe que a resposta é sempre sim.
- Vá até seu feudo e prepare seus homens, depois siga até Nablus. Temo que
minha esposa precise de sua ajuda para preparar meus homens.
Dion fez que sim com a cabeça e se despediu de Balian. Ibelin moveu o
cavalo, passando pela rua cheia de cristãos e muçulmanos. Cavalgou lentamente
por algum tempo, até chegar a uma esquina, então virou-se em foi para a igreja
de Sant´Ana, perto da porta de Josafá, a leste da cidade. Era o mesmo caminho
para o Vale de Josafá, onde estavam a Tumba da Virgem, o Monte das
Oliveiras... Getsêmani. Queria pedir ajuda à Virgem e à Sant´Ana antes de
cumprir o que acabara de planejar. Seguiu caminho pensando nos complicados
anos de batalha.
Viu alguns templários e hospitalários caminhando aqui e ali, nunca
sozinhos, e as memórias se reavivaram com mais força. As imagens do ano do
Senhor de 1179 formavam-se com tanta força quanto o sol da Palestina. Parecia
que estava de volta ao rio Litani com o exército cristão, ainda liderado pelo rei
Balduíno IV. Estava pronto para lutar contra Saladino. Na ocasião, o líder
muçulmano assediava um castelo no Vau de Jacó e os cristãos ainda estavam
unidos para combater. O rei chamara Raymond de Trípoli para ajudá-lo e fora
plenamente atendido. Marcharam com intenção de interceptar uma das tropas do
sultão. Não seria uma vitória fácil, mas a estratégia era boa e era de se crer que
Deus estava do lado deles. Venceriam e tomariam o butim que os muçulmanos
haviam pegado após destruir as plantações entre Sídon e Beirute. Foi uma pena
que Saladino tenha os percebido. Ele viu, de um ponto de observação, como os
rebanhos se moviam em pânico nas margens do Jordão, fugindo do exército de
Cristo. Então lançou seu exército contra os inimigos.
Raymond e os templários seguiam na vanguarda. Era normal que o Templo
estivesse naquela posição. Podia-se confiar nos seus cavaleiros para enfrentar o
que viesse. Eles nunca recuariam. O mesmo era dito do conde. Foi uma pena,
entretanto, que os templários tenham confiado demais em suas habilidades e se
excedessem em sua coragem. Atacaram prontamente as forças de Saladino.
Aquele sultão, entretanto, não era alguém que poderia receber um golpe como
esse. Odiando os cavaleiros do Templo, reverteu o ataque e fez os cristãos
debandarem. Em pouco tempo, todo o exército de Balduíno IV fugia. Quem não
atravessou o rio foi massacrado. Houve homens que se afogaram no desespero
da fuga.
Balian gostaria de dizer que havia lutado bem e vencido, porém, poderia
completar a frase apenas com sobrevivido. Tanto ele quanto Odo de Saint-
Armand, grão-mestre do Templo naquela época, foram presos. A importância de
Ibelin foi revelada no resgate exorbitante que Saladino exigiu. Foram 150 mil
dinares, o resgate de um rei. Após meses de negociação, decidiu-se que seria
libertado em troca de mil prisioneiros muçulmanos e com a promessa de que
obteria o dinheiro.
A estadia entre os muçulmanos fizera Balian ter mais fé, por acreditar que
sobrevivera a um massacre e ainda teria nova oportunidade de lutar. Aprendera a
não desvalorizar o inimigo e a perceber a honra que havia naquele sultão. Teve
longas conversas com seu companheiro de prisão, Odo de Saint-Armand. Não
conseguia entender o templário. Às vezes, parecia um cavaleiro teimoso e
orgulhoso, outras vezes um homem de fé que não se curvaria a ninguém a não
ser ao Deus e ao rei que jurara defender. Odo negou qualquer resgate, inclusive a
ser trocado por algum importante prisioneiro muçulmano. Balian queria saber se
era orgulho. Diziam que era... Falavam que o grão-mestre não julgava que
ninguém pudesse ter o mesmo valor que ele, um cavaleiro templário. Outros
comentavam que a ordem nunca pagava resgate por seus prisioneiros. Estava na
regra do Templo e ela deveria ser seguida até mesmo em relação a seus líderes.
A igreja de Sant´Ana estava fria em relação ao calor do lado de fora.
Poucos peregrinos a visitavam e a maioria estava ajoelhada rezando. Ouvia-se
um murmúrio contínuo das orações. Balian ajoelhou-se ao lado de uma mulher
idosa. Não sabia, mas ela estava ali todos os dias, sempre preocupada com a
guerra, orando para que tudo acabasse logo. O nobre fez seus pedidos e
agradecimentos e levantou-se tão rápido quanto chegou. Queria ter mais
concentração para comungar com Deus, porém havia necessidades que estavam
deixando-o nervoso. Pediu perdão por ser tão sucinto nas orações e saiu. Ao
menos rezara um pouco, o que, em sua visão, era essencial para concluir seus
planos.
Saiu da igreja pensando no irmão. Seria bom se ele estivesse ali. Sempre
podia contar com Balduíno de Ramleh em qualquer batalha. Para dizer a
verdade, seria melhor se ele fosse o rei de Jerusalém. Era uma pena que a
oportunidade tivesse passado. Balian se lembrava de quando Sibylle estava
solteira e se apaixonada por Balduíno. O casamento deles, aos olhos de muitos
nobres locais, teria sido uma benção para Ultramar, a despeito das origens
modestas dos Ibelin. Foi uma pena quando Balduíno foi capturado. Sibylle
chegou a escrever-lhe declarando seu amor, mas esse sentimento não parecia tão
forte, pois se esvaiu quando o Ibelin saiu da prisão. Ela se recusou a aceitá-lo
enquanto devesse um resgate tão grande. Balduíno tentou saldar a dívida
pedindo dinheiro ao imperador de Constantinopla. Quando voltou com os
recursos, era tarde. Já havia toda uma trama que os falcões do reino haviam feito
para que Sibylle se casasse com Guy de Lusignan. Por mais que o rei na época,
homônimo do Ibelin, Balduíno IV, fosse contra, o casamento acabou tendo
aceitação e assim foi feito.
Um ressentimento incômodo dardejava o coração de Balian quando se
lembrava disso. Fazia-o pensar o quanto o orgulho do irmão fora ferido nesses
malditos jogos pelo poder de Ultramar. Imaginava se tudo aquilo valia a pena, se
todas aquelas igrejas valiam as vidas e almas que eram desperdiçadas em tantos
jogos. Eram pensamentos que ficavam apenas em indagações e indignações,
entretanto, pois Balian continuava se envolvendo nos jogos e se recusava a dar-
se como derrotado. Não nascera para perder. Deus dera a sua família a honra e a
glória. Estava certo disso, ou não teria sobrevivido a tanto. Os Ibelins saíram do
desconhecimento para se colocarem entre os cavaleiros mais famosos de
Ultramar. Ele não perderia isso. Não era homem de recuar nem mesmo quando o
veneno tocava-lhe o sangue.
Subiu no cavalo e chamou por sua escolta. Continuou pelas ruas, vendo o
povo abrir caminho para sua pessoa. Aquilo massageava seu ego, não podia
negar. Passou pelos banhos e tomou a Rua dos Peleteiros. Dava para enxergar a
área do Templo, onde os cavaleiros templários dominavam. Viu a cúpula da
Rocha erguida, aquele antigo monumento à glória do Islã, agora submetido ao
poder de guerreiros cristãos. Era dali que seguiria para o palácio real, entrando
pela porta Formosa, área vigiada constantemente pelos templários, que
observavam peregrinos cristãos e muçulmanos passando constantemente.
Permitiram que Balian passasse sem perguntar o que ele queria. Reconheciam o
rosto do nobre e tinham noção da posição dele. O Ibelin sorriu, pois ter respeito
entre os orgulhosos templários era um prêmio. Parecia mesquinho, mas ele não
deixava de sentir orgulho. Fazia parte de sua alma.
*****
Gerard de Ridefort sabia que aquele não seria um bom dia. Acabara de
receber o relatório sobre as tropas de Saladino. Os espiões estavam certos de que
em menos de um mês o sultão estaria pronto para um ataque em força total, que
poderia devastar Jerusalém se os cristãos não estivessem unidos. O grão-mestre
olhou para as pessoas de pé a sua volta, pensando como seria tramar sua união
sob seu comando. Estavam na suntuosa sala do trono de Guy. Apenas ele e
algumas figuras mais importantes estavam sentadas.
O arcebispo de Tiro, Josias, o patriarca de Jerusalém, Heráclio, o grão-
mestre do hospital, Roger des Moulins e mais alguns nobres de menor
importância discutiam a situação do reino. Poucos desses importavam a Gerard.
Sabia que poderia submeter todos usando apenas sua posição como líder
templário. Os outros temeriam simplesmente ao reconhecer a influência que
tinha quanto ao rei. Mesmo Heráclio, aquele corrupto sacerdote, de caráter tão
fraco quanto um sapo, não ousaria discordar de Gerard. Apenas Josias e Roger
seriam ameaça. O grão-mestre do Hospital era uma figura ponderada, além de
sempre ser um partidário de homens como Raymond.
- Temos que preparar o exército o quanto antes – disse um dos barões,
apenas repetindo o óbvio.
- Já sei disso, entretanto o reino ainda está dividido. Temos rebeldes entre
nós – disse Guy.
Roger des Moulins retorceu a boca como se fosse dizer alguma coisa para
protestar. Guy o olhou, esperando que falasse. Gerard, atento à situação, interviu
antes que as palavras do hospitalário contaminassem algum dos nobres menores.
Se assim fosse feito, seria meio caminho para a desorganização.
- O rei sabe muito bem dos problemas que existem em Ultramar e os
templários estão o apoiando para conseguirmos a coesão necessária para
rechaçarmos Saladino. Temos poder para isso, além de termos Deus do nosso
lado.
A interrupção calou Roger, como Gerard previra. O hospitalário não se
posicionaria antes de estar certo dos planos dos templários. Imaginaria que o
Templo teria algum segredo escondido, alguma estratégia conspiratória para usar
no momento certo e desarmar o que quer que o Hospital dissesse. Era assim que
Roger aprendera a lidar com Gerard e o grão mestre templário reconhecia isso.
Como uma serpente brincando com sua presa, ia cercando e aproveitando das
defesas do alvo para novos ataques.
Balian entrou na sala do trono discretamente, mas sua figura chamou toda a
atenção dos presentes mesmo assim. Pescoços se retorceram e corpos viraram-se
para observar o Ibelin que caminhava para se juntar aos barões. Guy recebeu os
cumprimentos dos cavaleiros e rapidamente se interou do que se passava na
reunião. Ficou calado no início das discussões. Ouviu os nobres relatarem as
forças de que dispunham e tentarem traçar planos para deter Saladino em uma
região ou outra. Houve quem dissesse que era melhor esperar em Jerusalém,
onde lutariam sob a proteção direta de Cristo. Balian quase riu disso e viu a
mesma expressão de deboche no rosto de Gerard. Ao menos havia algo em que
os dois concordavam. Teriam que lutar e não bastaria esperar. A preparação
exigia mais.
- Precisamos do Conde Raymond de Trípoli – disse Balian, por fim.
A reunião se silenciou e olhares de dúvida e até de indignação foram
trocados. Roger fitou o Ibelin e assentiu com a cabeça, transmitindo seu apoio.
Havia um sorriso nos cantos de seus lábios. O único que disse algo foi Gerard.
- O Conde de Trípoli é um traidor. Como faremos para tê-lo do nosso lado
se ele até já tem uma aliança com o inimigo?
O silêncio desapareceu, quebrado nervosamente por palavras de indignação
que apenas esperavam que o estopim fosse aceso para explodirem da boca dos
barões.
Guy ficou perdido no meio da algazarra. Não fez questão de pedir silêncio,
pois queria aproveitar o momento para pensar. Se tivesse a oportunidade de uma
reunião com Gerard, talvez pudesse esclarecer algumas dúvidas e renovar suas
forças. Desde o primeiro encontro com Balian no acampamento, ele não sabia se
valia a pena continuar a querela com Raymond. Ainda que se negasse a retribuir
Beirute ao conde, começava a pensar que realmente precisava dele. Só não sabia
como negociar isso.
- Raymond ainda é cristão e pode estar conosco. Rogo-lhe que envie outra
comissão conosco. Envie os grão-mestres para comprovarem a importância de
Raymond e me ajudarem a convencê-lo do quanto é necessário para o nosso
exército.
Guy ainda não parecia convencido. Balian sabia que precisava pressionar.
Viu o rei olhando de soslaio para Gerard e, antes que o grão-mestre pudesse
falar, ergueu a voz para mais um argumento.
- Vossa Majestade perdeu seu melhor cavaleiro em Balduíno de Ramleh –
disse, batendo orgulhosamente no peito, para demonstrar que falava de seu
sangue. – Se perder o apoio e a orientação do conde Raymond, estará acabado.
As vozes se apagaram para se transformarem em olhares perturbados.
Muitos nobres poderiam ser contra Raymond, até mesmo contra os Ibelins, que
não eram de uma linhagem famosa, mas nenhum deles ousava destratar o valor
daqueles guerreiros nas guerras por Ultramar. Era verdade que já haviam perdido
muitos aliados na ascensão de Guy. Agora poderiam perder ainda mais. E se
Balian também se movesse do Reino de Jerusalém para seguir para Antioquia,
como o irmão fizera? Os partidários do Ibelin, que tinham feudos próximos a ele
ou que estiveram junto dele nas batalhas anteriores, temiam perder aquele líder
importante e seus preciosos cavaleiros. Desviaram os olhares para Guy e
esperaram uma resposta. Poucos deles se voltaram para Gerard. O templário
começaria a abrir a boca mais uma vez, mas agora foi desarmado por Roger.
- O Hospital está plenamente disposto a participar dessa embaixada. Vossa
Majestade pode contar com os hospitalários – anunciou o grão-mestre, com o
canto dos olhos se movendo para Balian. Havia um sorriso oculto na expressão
dele.
- Se Vossa Majestade permitir, eu pretendo seguir em tal comitiva –
ofereceu Josias, o arcebispo de Tiro.
Por fim, os nobres se viram obrigados a olhar para Gerard e esperar pela
resposta do Templo. O grão-mestre fitou Balian e moveu um olhar lento sobre
Josias e Roger. Nenhum dos dois se intimidou. Acuado, ele tramou planos de
vingança e ofensas, um veneno que destilaria durante toda a viagem. Começou a
planejar como reverter a situação a seu favor imediatamente. Não perderia as
rédeas.
- O Templo seguirá com a embaixada, pois nunca deixamos de apoiar
Jerusalém e nosso rei. Se Vossa Majestade assim decidir, será feito.
- Pois bem... Está decidido. Josias, Gerard, Roger e Balian partirão o quanto
antes para Tiberíades e lá tratarão com o conde Raymond. Espero que tenham
sorte. Que Cristo os acompanhe.
Balian respirou aliviado. Conseguira. Talvez com Gerard ajudando a selar o
acordo de paz, Raymond se convencesse de que não podia continuar a trégua
com Saladino. Roger aproximou-se do Ibelin e deu-lhe a mão. Bateu de leve em
seu braço, sorrindo e o parabenizando discretamente. Josias passou por ele e
também sorriu, mas não parou. Gerard continuou sentado, pensativo. Balian o
temeu por alguns segundos. Havia veneno naqueles olhos.
*****
A comoção que tomou conta de Tiberíades era devida a apenas uma figura
que acabara de chegar vestida em trajes árabes. Tinha um turbante branco, mas
as roupas eram feitas em tom de vermelho. De barba bem feita, cavalgou através
do portão com cautela, mas sem temor. Os nobres o observavam lá de dentro.
Donat olhou aflito para a figura. Teve raiva por ver um muçulmano entrando
assim nas terras de Raymond e começou a suspeitar que talvez o conde também
fosse um traidor. Aquele acordo com Saladino poderia levá-lo a lutar contra
Jerusalém.
O barão de Sable D´Or sentou-se preocupado e cheio de conflitos. Laure
parou ao lado dele e passou a mão por seus cabelos, tentando consolá-lo. Donat a
puxou para si e olhou para Karsten.
- Acho que haverá uma batalha enfim. Só não esperava ter que lutar contra
Guy tendo os malditos muçulmanos como aliados – lamentou Donat. Por mais
que odiasse Guy, não queria trair sua fé tendo Saladino a seu lado. Não esperava
nada disso quando foi pedir ajuda a Raymond, muito menos quando se recusou a
prestar homenagem ao novo rei.
- Ainda não sabemos o que o emissário quer, meu senhor. Vamos esperar –
disse Karsten. – Com sua licença.
Saiu do quarto observado por Laure, enquanto o barão tinha o olhar perdido
na janela. Ela se desvencilhou do pai por um segundo e foi ter com o cavaleiro
no corredor.
- O que vai fazer? Raymond não o deixará participar da reunião.
- Eu imagino, mas ficarei esperando. Talvez ele tenha algo para dizer
depois.
- Vai fazer o que se houver luta? – perguntou ela, segurando na mão dele.
Karsten perdia a concentração quando a via tão próxima. Era bonita demais para
que seu toque fosse ignorado.
- Não sei. Só sei que, no fim das contas, não vim aqui para lutar ao lado dos
muçulmanos. Aí serei obrigado a pedir permissão a seu pai para ir embora.
Ela não esperava menos. Era óbvio que o cavaleiro faria isso.
Karsten foi descer as escadas com os pensamentos em Heiner e Gareth. O
nórdico não aceitaria de maneira alguma lutar ao lado dos muçulmanos. Sua
educação cristã era rebelde e de grilhões fracos que seriam rompidos
rapidamente se fosse jogado naquela contradição. Fora levado a crer que os
muçulmanos eram inimigos e viajara semanas para lutar contra eles e salvar sua
alma, como fora prometido. A influência dos deuses pagãos ainda era forte na
alma de Heiner. Era uma fé dormente que despertaria quando houvesse tumulto
na frágil consciência cristã. Karsten ouvira Gareth comentando sobre a situação
várias vezes.
Passou por alguns cavaleiros de Raymond que agora esperavam o conde
sair de sua reunião com o emissário. Tinha o mesmo olhar ansioso de Karsten. O
germânico procurou Heiner e Gareth entre eles. Não achou, porém, momentos
mais tarde, eles entraram pela porta do castelo. O trio se reuniu para esperar
notícias sobre a reunião.
- Por que tem um muçulmano aqui? Por que vocês não definem logo o que
é aliado e o que é inimigo? Ah, nunca pensei que ser cristão fosse tão
complicado. Desse jeito deve ser muito difícil ficar salvando almas – disse
Heiner. Usava palavras e questões simples, mas Gareth entendeu que havia um
questionamento profundo ali. O nórdico apenas não se expressava totalmente.
Percebia que aquelas indagações aparentemente ingênuas eram na verdade
provocações feitas pela alma revolta do nórdico que ainda não se habituara à
ideia de se voltar para o cristianismo.
Heiner escondia de todos, mas aprendera o quanto os cristãos eram
melindrosos. Viviam receosos de tudo em sua fé, com medo de que qualquer um
falasse alguma coisa diferente do já previsto. Quando isso acontecia, logo havia
bocas abertas e discussões, isso sem falar naquelas muitas contradições. Uma
delas quase impediu Heiner de aceitar a religião, era o tal voto de não matar. O
nórdico não entendia que tipo de homem era esse que pregava para não guerrear
e, no entanto, achava tão importante matar aqueles que discordavam ou tinham
só um deus ou dois a mais para orar. Foi quando percebeu o quanto os cristãos se
ofendiam facilmente e matavam por causa disso, que ele riu e decidiu aceitar os
tais votos. No fim, trucidar alguns aqui e ali seria o equivalente ao Valhalla,
talvez apenas sem as mulheres e as bebidas, mas Heiner precisaria trabalhar com
isso. Era estranho estar em uma religião em que até possível alcançar a salvação
rompendo um de seus tais preciosos Dez Mandamentos. Contraditório, mas
muito interessante para uma alma que aprendera desde o nascimento que a
guerra estava no sangue dos homens.
O emissário muçulmano deixou o castelo uma hora mais tarde. Raymond
chamou todos no salão do castelo para dar as notícias. Apareceu pensativo,
passando a mão pelos cabelos pretos. Coçou o grande nariz que sobressaía no
rosto de pele escurecida pelos anos sob o sol.
- Saladino, através de seu filho, al-Afdal, pediu permissão para que seus
homens passassem por nossas terras para uma missão de reconhecimento. Eu
permiti, desde que prometessem não tocar em nenhuma cidade ou aldeia
enquanto estivessem aqui e que não passassem mais do que um dia. Quero agora
mensageiros para avisar a todos do feudo que se recolham atrás dos muros,
protejam seus rebanhos e que não tenham medo. Nada acontecerá a ninguém.
Que os mensageiros partam agora – ordenou, selecionando alguns cavaleiros
para falar com alguns nobres e pedindo que outros emissários fossem contatados.
O conde estava para ir para o quarto descansar e pensar quando um
emissário, esse cristão, surgiu de repente. Estava sujo depois de dias cavalgando
velozmente pelo deserto. Pediu desculpas ao entrar subitamente no salão e se
ajoelhou perante o conde.
- Meu senhor, venho entregar-lhe uma mensagem. Uma comitiva partiu de
Jerusalém para ter com sua nobre pessoa. Chegarão em breve. São nobres de
importância que gostariam de ter o prazer de serem recebidos em Tiberíades.
Raymond olhou para o alto, pensativo. Mais problemas. Com um semblante
preocupado, tomou as palavras.
- Vá descansar. Quero outro emissário aqui agora. – Um jovem sem barba
apareceu. Era filho de um dos cavaleiros e procurava um modo de finalmente ser
útil. – Converse com esse homem e aprenda a rota seguida pela comitiva. Vá e
os avise rapidamente.
Os homens começaram a conversar discretamente entre si, tentando
adivinhar o que aconteceria quando a comitiva chegasse.
O sol raiou no dia seguinte com a mesma despreocupação e rigor de
sempre. Donat já estava de pé e mais uma vez observando pela janela. Viu os
muçulmanos passarem. Havia mais de cinco mil deles, uma força incrível, como
o barão raramente vira na Terra Santa. Cuspiu no chão com raiva, quase
acertando o pé de Laure, que acabara de chegar.
- Lá vão esses filhos do Diabo, minha filha. E eu aqui sem um feudo e sem
cavaleiros para lutar contra eles.
- Acho que o senhor tem os cavaleiros sim. Karsten e outros lutariam pelo
senhor. Karsten poderia muito bem desafiar Christophe ou mesmo Guillaume e
conseguir o feudo de volta.
Donat pensou nas palavras da filha. Sua mente tomou justamente os rumos
que a mulher esperava. Se assim o fizesse, estaria, de algum modo, devendo um
grande favor ao germânico. Estava cansado de favores.
- Ah, meu pai, não imagina como me dói ver nossas terras na mão de nosso
sangue traidor. Deveria ser nosso sangue em Sable D´Or, mas um sangue digno e
fiel ao senhor – continuou ela, cercando os pensamentos e ressentimentos do pai.
Donat repensava os favores. Não queria se sentir humilhado perante
ninguém mais uma vez como acontecera com Guillaume. Passou por sua mente
que poderia deixar para pagar esse favor apenas depois de morto, quando o
orgulho não mais poderia amargar sua alma. Karsten já provara ser um bom
guerreiro. Fora fiel ao barão nesses tempos difíceis. Por que não entregar sua
filha e o feudo a ele? Seria a herança e a promessa que deixaria. Casar Laure
com Karsten o obrigaria a tomar o feudo de volta em nome da honra. Já era hora
de ter uma conversa franca com o germânico.
*****
Gerard observava a lua sozinho naquela noite de abril. Era o último dia do
mês e ele estava seguindo para fazer o tratado de paz com seu mais ardente
inimigo em Ultramar. Era com pesar que seguia aquela viagem. Cada passo que
dava, era pensando em como poderia reverter a situação a seu favor. Se
Raymond comparecesse à corte de Guy, teria força o suficiente para influenciar o
rei e impedir que os planos do grão-mestre continuassem. Sua dominação
templária, ou melhor, a dominação de Gerard, estaria perdida.
Ele havia chegado ao castelo de La Fève naquela mesma tarde e agora
esperava apenas pelo maldito Balian. Ainda se vingaria dele também, mas tudo
correria a seu tempo. Tudo a seu tempo. Não havia necessidade de pressa.
Primeiro Raymond, a presa maior, depois Balian.
Os templários de La Fève haviam voltado sob as ordens de um tal Dante.
Guillaume continuava em Sable D´Or cumprindo as ordens e talvez se
preparando para já invadir outros feudos, apenas esperando para que a coleira do
lobo fosse liberada. Gerard fizera questão de contar oscavaleiros e refazer os
cálculos de quantos tinha na região. Cada um deles seria precioso para o caso de
um combate repentino contra Raymond.
- Gerard – chamou alguém. Ele virou-se devagar e arrogantemente para ver
o grão-mestre do Hospital se aproximando. O arcebispo Josias caminhava ao
lado. Gerard conhecia muito bem os rostos das pessoas e sabia que eles vinham
com uma notícia ruim. Talvez ruim para eles, mas não para o grão-mestre do
Templo. – Temos más notícias. Há um exército de mamelucos nas terras de
Raymond. Eles pediram permissão para passagem. Teremos que tomar cuidado
ao seguirmos viagem. Talvez seja melhor ficarmos aqui mais um dia pelo menos.
Os olhos do templário se estreitaram e as presas prepararam-se para
inocular o veneno.
- Então o traidor permite que nossos inimigos cruzem impunemente suas
terras... Se ele não é um cristão de valor, eu mostrarei o que é ser cristão.
Começou a caminhar antes que o arcebispo e o hospitalário pudessem dizer
algo.
- Gerard... Gerard... O que vai fazer? – perguntava Josias. Roger
permanecia calado, já sabendo que não havia boa coisa nos pensamentos do
templário.
- Dante! Dante! – gritou o grão-mestre do Templo.
Dante apareceu depressa, após ter corrido pelo castelo. Ajeitou o manto
branco e estufou o peito, parando em frente a seu líder.
- Envie mensageiros a todos os postos com templários na região. Também
envie um mensageiro a Jacques de Mailly. O marechal está na aldeia de Kakun,
provavelmente. Quero que esses mensageiros saiam agora. Partiremos amanhã
de manhã para mostrar a Raymond que não queremos muçulmanos em nossas
terras.
Dante preparou-se para dar as costas quando foi interrompido por Roger
des Moulins.
- Espere. Você não pode fazer isso, Gerard. Estamos em feudo alheio e em
uma embaixada. Temos que ser mais comedidos e respeitar a decisão de
Raymond. São as terras dele.
Gerard ergueu a mão, zombando de Roger. Os dois começaram a discutir e,
em meio à briga, um olhar nervoso do grão-mestre templário fez Dante seguir
para cumprir as ordens. Rezou um Pai Nosso no caminho, pois julgava que o dia
seguinte não seria dos melhores.
Roger chegou a gritar, a rosnar para Gerard, mas nada demovia o templário
de seu intento. Por fim, Josias pousou a mão sobre o ombro do hospitalário e
balançou a cabeça. Era um esforço inútil. Que Deus estivesse do lado deles.
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Karsten viu que agora eram apenas ele e Heiner. Gareth ficara em
Jerusalém com Laure e os dois seguiram para Acre juntamente com Raymond e
Donat. Agora atravessavam o acampamento diante da cidade. Nunca haviam
visto um exército tão. Suas guerras estavam mais para enfrentamentos entre
nobres locais do que para a batalha que estava para ser travada. Havia ali 1200
cavaleiros, sem contar um número muito maior de sargentos, turcópolos e a
infantaria. Os homens sentavam-se em rodas e conversavam em meio a tantas
tendas e animais. Alguns circulavam aqui e ali. Havia guerreiros entediados com
a espera, mas também aqueles ansiosos que não sabiam se conter.
O pensamento de que aquela batalha decidiria seu futuro passou pela
primeira vez pela mente de Karsten. Talvez houvesse rondado sua consciência
algumas vezes, no entanto nunca atacara sua alma com tal voracidade. Via-se
segurando a espada inconscientemente já imaginando as batalhas e prevendo o
ataque dos muçulmanos. A cacofonia das vozes se espalhando pelo
acampamento o deixava tranqüilo. Chegava a calar as vozes interiores que o
lembravam de Melisende, algo que voltava apenas quando a noite chegava e ele
se pegava perdido entre o passado morto e inalcançável que era a mulher que seu
coração amava e o futuro fértil e quente que era a mulher que seu corpo
desejava.
O início da viagem, quando passou pelos portões de Jerusalém e deixou o
Santo Sepulcro para trás e não podia mais ver a Cúpula da Rocha, foi marcado
pelas dúvidas cruéis que o faziam se lembrar das inúmeras admoestações de
Gareth. Quando chegou a Acre, já sentia que havia uma parte do coração que
estava cansada de lamentar por Melisende e começava a se perguntar se não
deveria levar a vida. Essa parte estava iniciando uma aliança viril com o corpo.
Era uma união perigosa que ameaçava suas memórias.
Um murmúrio começou a tomar conta do acampamento, quando as vozes se
alteraram de conversas barulhentas para comentários e observações. Via os
homens se aproximando uns dos outros e falando sobre algum assunto sério.
Chamou por Heiner e eles andaram até onde as tropas de Trípoli estavam
reunidas. Era um contingente significativo, todo formado por homens
experientes na vida no Oriente. Não havia quase nenhum representante de Donat
em meio a eles. Foram poucos os homens que se mantiveram fiéis ao barão. E
agora, aqueles que estiveram sob seu comando um dia, estavam acomodados
próximos aos templários, servindo sob as ordens de Christophe. Karsten os vira
mais cedo e até procurava pelo filho do barão, mas ele provavelmente estava
dentro da cidade, participando das reuniões.
- O que aconteceu? – Karsten perguntou a um dos cavaleiros.
- Um mensageiro entrou na cidade. Parece ser uma mensagem urgente
sobre Saladino – respondeu o homem, observado por todos os outros.
Karsten olhou para Heiner. O nórdico também estava curioso, porém sem
nenhum conflito interno. Nada parecia atormentar o guerreiro. As coisas não
passavam de meros incômodos ou perturbações que ele afastava como moscas e
voltava a se concentrar nos objetivos básicos da sua vida: guerra, mulheres,
bebida e tentar entender o que significava salvar a sua alma através daquela
religião melindrosa que era o tal cristianismo. E se um objetivo causava
problemas demais, ele o suplantava afundando-se em outro até que o problema
se resolvesse sozinho. O que mais incomodava Karsten era que aquela estratégia
funcionava incrivelmente bem para Heiner. Para o germânico, no entanto, nunca
dava certo.
- Vamos procurar Donat – disse Karsten. Virou-se para os homens de
Trípoli. – Voltaremos em breve com notícias.
Os dois saíram para entrar em Acre, atravessando o acampamento agitado
pela perspectiva de se movimentar em breve.
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Os barões olhavam para Guy sentado no trono em meio à grande sala onde
se reuniam. Havia apenas duas grandes janelas no lugar, mas uma estava coberta
com um enorme vitral. A luz do sol passa pelo vidro e tomava uma tonalidade
azul, formando um desenho de uma cruz no chão. Da outra janela vinha um
vento fresco com o cheiro do mar e os gritos do porto.
Toda a nobreza de Ultramar estava reunida apenas para esperar a
confirmação das notícias de que Saladino estava preparado para atacar. Gerard
de Ridefort sussurrou algo nos ouvidos do rei. Perto deles, Renaud de Châtillon
riu, enquanto conversava com alguns barões mais próximos. Balian observava,
tendo a seu lado William Borrell que representava os hospitalários. Desde a
morte de Roger des Moulins, o grande comandante dividia o posto de líder com
Ermengard D´Asp. Ainda não houvera tempo de escolher um novo grão-mestre.
Ao menos, Balian acreditava que aqueles dois poderiam dar um rumo à ordem
naquele momento tão importante. E também havia o fato de eles estarem do seu
lado.
Raymond estava cercado por nobres mais ponderados, de famílias que já
haviam conseguido tradição no Oriente. A maioria já havia aprendido a lucrar
com alianças com os muçulmanos. Já estava preparado para falar, esperando
apenas o rei abrir o conselho de guerra.
- Senhores, obrigado por comparecerem. Estamos reunidos aqui para
decidirmos como será nossa vitória, pois eu não espero menos do que isso do
nosso exército. Saladino já cruzou o Jordão e vem em nossa direção para a
batalha. Imagino que todos já esperavam isso. Agora é hora de nos prepararmos
para a batalha.
Raymond pediu a palavra educadamente, vendo que não havia nenhuma
surpresa nos rostos dos barões.
- Senhores, nós temos a vantagem. Enquanto permanecermos na defesa,
teremos chance de vencer Saladino. Lembrem-se de que estamos no meio do
verão e Saladino não conseguirá manter um exército grande no meio das terras
calorentas que nos cercam. Nós resistiremos e ele será obrigado a recuar.
Os murmúrios dos barões se inclinavam para as palavras de Raymond.
William Borrell comentou com Balian que a cautela realmente era a melhor das
virtudes naquele momento. Não poderiam se precipitar a outro erro como
acontecera em Cresson. Balian apenas assentiu, sem fazer nenhuma observação.
- Saladino marchará enquanto puder, mas nunca poderá manter um exército
tão grande reunido por tanto tempo. Em breve, os muçulmanos se cansarão e nós
ainda estaremos intactos, inclusive com comida e água, enquanto eles terão
gastos e esforço para conseguirem mantimentos.
- Covardia! Ah, era isso que eu tinha que ouvir ao vir para esse conselho.
Se soubesse, nem teria passado em Acre. Iria direto ter com Saladino –
comentou Renaud de Châtillon, como se houvesse se descuidado e falado alto
demais, quando deveria ter dito as palavras apenas para quem estava perto. Deu
um sorriso cínico e calou-se.
- Não é covardia... – começou Balian, na tentativa de defender Raymond. O
conde o olhou na esperança de que o apoio pudesse salvar sua argumentação. A
boca de Balian continuou se abrindo, mas as palavras foram interrompidas
quando Gerard de Ridefort gritou para todo o salão.
- Depois de ter feito alianças com Saladino, vem aqui nos aconselhar,
Raymond? Quer evitar a guerra após ter andado tanto tempo com os sarracenos?
Teme matar amigos durante os combates ou não quer nem mesmo levantar a
espada? Talvez não tenha tanta fé que Cristo possa vencer a batalha, já que seu
coração deve estar depositado no Corão.
As acusações do templário eram fortes e tinham um fundo de razão, ao
menos no que se devia a opinião da maioria dos barões. Raymond demorara
demais para se resolver. Fora preciso um massacre como em Cresson para que
ele finalmente se levantasse e afiasse a espada. A aliança com Saladino ainda
pesava contra suas palavras. Aquelas ações reunidas faziam seus valiosos
argumentos, tão caros quanto ouro, se transformarem em chumbo que afundava
nas águas profundas das conspirações do reino.
Mais murmúrios, agora cada vez mais altos, se acumularam na sala. Os
barões discutiam abertamente, agora com as palavras se inclinando para Renaud.
- Nossa chance está no ataque. Não podemos deixar que os sarracenos
creiam que sejamos um bando de covardes – gritou Renaud, levantando a mão
agressivamente.
- Como cada um de vocês pretende encarar Cristo e dizer que mantiveram o
rabo entre as pernas ao invés de defenderem o reino Dele? – completou Gerard.
- De que adianta a defesa sem termos o orgulho de vencermos diretamente o
mal de Saladino e mostrarmos aos sarracenos de quem são essas terras?
Balian quis falar, mas Gerard e Renaud se completavam perfeitamente, cada
vez com mais questionamentos e farpas contra a coragem e honra de Raymond.
A situação se deteriorou rapidamente. Balian quase se exasperou, mas quando
tentou dizer algo, William Borrell o segurou e o alertou para não entrar na
discussão. Já era um momento perdido. Por fim, o rei falou o que os poucos com
um mínimo de sensatez temiam.
- Partiremos para encontrar Saladino em Tiberíades. Preparem seus homens.
Guy estava com a decisão pronta e seus aliados manifestaram grande
alegria. Houve gritos que festejaram a partida para a guerra. Balian saiu do
conselho pensando que mesmo entre seus homens haveria quem estivesse
ansioso para marchar e encontrar os sarracenos.
Capítulo Nove
Guillaume coçou o queixo intrigado enquanto olhava os cavalos pastando
nos campos de Sefória. Haviam marchado desde Acre até ali e fora uma marcha
calma, desprovida de qualquer problema além da ansiedade de combater
Saladino. Os templários vinham na retaguarda, prontos para cobrir a passagem
do exército. Guillaume cavalgava entre os primeiros da fila, quase na posição
onde Jacques de Mailly deveria estar. Lamentava a perda do marechal, mas
agora era tarde demais para pensar na morte dele, portanto o templário deixava
espaço na cabeça para pensar na batalha e no futuro. Mandara Henri e Ahmad
preparar seus homens, reunindo-os para a missão de resgatar Melisende. Sabia
que eles não gostariam de ser deixados de fora da grande batalha de Ultramar,
mas não podia se arriscar a perder nenhum deles.
O fim da tarde estava chegando e o calor do dia começava a se dispersar no
meio do exército. Cavaleiros caminhavam juntos pelo acampamento tentando
encontrar amigos para conversarem e se distraírem. Todos tinham músculos
tensos, preparados para a batalha e para uma possível marcha. Corriam boatos de
que o rei não os manteria em Sefória. Guillaume achava melhor que ficassem ali.
Poderiam manter o exército bem suprido enquanto tivessem aqueles pastos, a
água e linhas de ligação com as outras cidades.
Andou pelos pastos vendo os sargentos cuidando dos cavalos templários.
Estava verificando cada um deles. Havia mandado Dedrick chamar a atenção de
um homem que puxava um dos animais com força e quase o machucando. O
bicho já estava ficando nervoso e assustado. Não precisavam de nenhum cavalo
assim durante a batalha.
Chamou Dedrick e começou a caminhar de volta às tendas dos templários.
O jovem o alcançou correndo e diminuiu o ritmo para caminhar ao lado dele.
- Vamos esperar aqui? – perguntou, olhando para os cavaleiros que os
encaravam. Dedrick ainda ficava espantado ao olhar para o acampamento e ver a
quantidade de cavaleiros, peões e turcópolos espalhados. Eram tantas bandeiras
que o jovem templário ainda não conseguira decorar todas.
- Vamos ver, Dedrick. Vai depender do rei e dos barões. Agora é nosso
caminho final.
Viram-se cercados de cavaleiros de mantos brancos e com cruzes vermelhas
em pouco tempo. Dedrick foi se sentar com alguns dos templários de La Fève e
Guillaume caminhou até a tenda do grão-mestre. O resto de tarde se foi e ele
encontrou Gerard iluminado pela luz das tochas. Haviam conversado pouco nos
últimos dias e não trocaram mais do que ordens.
- Continuaremos na retaguarda, senhor? – perguntou Guillaume.
- Sim, nossa disciplina é importante nessa defesa.
Aquilo era um ponto comum. Era difícil manter cavaleiros, sempre sedentos
de glória e loucos por aumentar seu valor pessoal, em formação. A cavalaria
ditava mais o valor pessoal em batalha do que o do grupo, diferente do que
ditava a Regra do Templo.
- Estamos caminhando bem, Guillaume. O rei não pode mais se mover sem
o Templo. Em breve mostraremos que Ultramar não pode existir sem os
templários. Nossas forças dominaram o Oriente. Espere apenas por essa vitória.
Nem mesmo a volta de Raymond poderá estragar nossos planos.
Guillaume quase corrigiu o grão-mestre. Aqueles eram mais planos dele do
que do Templo. O capítulo nunca se reunira para discutir aquela estratégia para
aumentar o poder da ordem. Gerard assumira aquela empreitada com mãos de
ferro, usando todo o poder que o título de grão-mestre lhe dava. Não que
Guillaume imaginasse que os planos fossem negados se colocados em votação.
Havia evidências de que um reino teocrático seria sonhado pelos templários.
- O senhor imagina que o Templo conseguirá controlar todos os barões?
- Por que não? Temos grandes aliados e podemos reunir força suficiente
para suprimir os revoltados. E depois de vencermos Saladino, não haverá
motivos para pouparmos nossas forças nesse aspecto. Pense, Guillaume.
Lideraremos exércitos e não haverá força muçulmana ou cristã que nos suplante.
Em breve podemos espalhar ainda mais nossa influência.
- Nem o Hospital? – perguntou o templário, pensando na honra de ter um
reino para a ordem, onde a força dos cavaleiros pudesse fazer valer a lei de
Deus.
- O que será do Hospital, Guillaume? Eles estão perdidos agora que Des
Moulins se foi. Ainda não conseguiram um líder. E nós golpearemos antes que
eles se reorganizem depois dessa batalha.
Um desânimo súbito tomou conta de Guillaume. Ele não tinha sentimentos
pelos hospitalários, mas ainda sim os respeitava e Roger des Moulins caíra na
mesma batalha que seu amigo Jacques de Mailly. As palavras de Gerard
mostravam pouco respeito para com a morte em uma batalha em que ele mesmo
liderara. O falecimento de De Mailly começara a despertar algumas decepções
em Guillaume. Talvez o grão-mestre não fosse como ele esperava. O templário
imaginava que seu líder pudesse ser como ele, uma alma selvagem e ambiciosa,
mas que entrara para a ordem e conseguira rédeas e um objetivo para o tumulto
sanguinolento do espírito. A Regra não deveria ser rédea suficiente para
controlar Gerard. As palavras dele não eram suportadas pelas ambições do
Templo, mas pelas dele mesmo.
Guillaume começava a se imaginar um idiota. Vira-se na figura de Gerard e
imaginara-se na posição de líder. Pensava como seria se ele pudesse assumir a
liderança. Sempre relutara quanto a isso, temendo que sua violência não pudesse
ser mais contida quando o poder estivesse em suas mãos. Quando conhecera
Gerard, com seus modos nobres e sempre refinados, viu uma figura que era
como ele e imaginou que fosse um Guillaume melhorado, sem os vícios e a falta
de refinamento da baixa nobreza que corria no sangue de La Croix Bleue.
- Antes de tudo, eu tenho que assegurar minha influência sobre o rei. Guy
não pode se deixar levar por Raymond. Se permitirmos que isso aconteça,
estaremos perdidos e em breve Trípoli estará tomando conta de tudo em
Ultramar.
- Entendo. – Reteve-se quando estava para dizer que ao menos naquela
guerra deveriam seguir os conselhos de Raymond. – Devemos mover terreno
nessa disputa mesmo agora durante a guerra?
- Esse é o melhor terreno para acabarmos com tudo isso de uma vez.
Eliminaremos o poder de Raymond e até de nobres como Balian quando
mostrarmos que os templários podem arrasar Saladino. Temos poder para isso,
Guillaume. Quantas vezes os templários já não provaram isso? Até Balduíno IV
nos agradeceu quando o ajudamos em uma vitória contra o sultão.
Mas haviam perdido as outras e isso fez Guillaume voltar naqueles tempos,
nas batalhas duras das quais havia participado e visto amigos morrerem. Não
estava se tornando sentimental naquele momento. Nunca fora, a não ser em
relação à falecida esposa. Não seria agora que choraria por outros mortos. Mas
as derrotas pesaram subitamente sobre sua fé, inclusive a derrota de reconhecer
que Jacques estivera certo e ele errado. O marechal pagara com a vida por estar
tão certo. “Será que eu pagarei assim também por estar tão errado?”, pensou
Guillaume.
Um mensageiro surgiu na entrada da tenda. Levantou sutilmente o tecido e
colocou a cabeça para dentro.
- Senhor grão-mestre, Sua Majestade o convoca com urgência à sua tenda –
disse, e saiu depressa, sem o mínimo de cortesia.
- Mensageiros incompetentes – disse Gerard. – Deixe os homens prontos,
Guillaume, e faça-os se preparem para a conquista do Templo sobre Ultramar.
Sei que você sabe muito bem como jogar assim.
Ele tinha razão. Guillaume conhecia aquele jogo. Sabia como devorar as
outras peças. Entretanto, ele se tornara templário na esperança de conter a
voracidade com que destruía outros de seu sangue e sua fé, com que lutava
contra seu povo. E pagaria por isso. Começou a rir de si mesmo. Não esperava a
morte, mas ela bem que poderia ser a melhor resposta para aquele conflito. Que
ela viesse! A espada dele estaria preparada. Se sobrevivesse, então decidiria o
que fazer. Seria a primeira vez que entraria em uma batalha pensando que
poderia morrer. Não só por causa dos pensamentos, mas por causa do cheiro de
guerra diferente que estava farejando. Podia sentir o odor dos muçulmanos e das
espadas deles e eles estavam cobertos de sangue que não era deles mesmos.
*****
Era outra reunião dos barões que se iniciava devido a uma mensagem
importante. Agora era uma que muitos esperavam que não houvesse chegado,
entre eles Balian de Ibelin. Não era por covardia que o nobre temia aquela
mensagem, mas sim os efeitos dela nos corações dos cavaleiros.
A condessa Eschiva, esposa de Raymond de Trípoli, enviara uma
mensagem a seu marido com palavras que chegaram aos ouvidos do rei e
causaram grande consternação. Ela afirmava que estava cercada. Tiberíades caíra
e agora tudo o que restava era o castelo, de onde ela enviava a carta contando
que continuava resistindo.
Os barões logo começaram a se manifestar. Era uma dama em perigo e eles
deveriam agir. Alguns usavam isso como desculpa para encobrir a sede de
guerra, mas outros, como os filhos dela, estavam legitimamente preocupados
com a condessa. Quando viram os filhos com lágrimas nos olhos, pedindo ajuda
para a mãe, muitos nobres se levantaram e pressionaram para que o exército
marchasse para Tiberíades.
- Não! – gritou Raymond, acima de todos. – Calem-se, vocês – disse,
virando-se para os filhos de Eschiva. Eram seus enteados e marchavam com ele
há muito tempo. Haviam aprendido a respeitá-lo e assim fecharam as bocas e
secaram as lágrimas. – Precisarei repetir tudo? Nem deveríamos ter saído de
Acre e agora vamos caminhar em pleno deserto até Tiberíades?
- É sua esposa que pede por ajuda, seu covarde! – gritou Renaud, apontando
o dedo para Raymond. Os barões mais próximos acompanharam a mão dele e
fitaram o conde com brilho de acusação e morte.
- É minha esposa! É minha cidade! Eschiva pode muito bem defendê-la e o
está fazendo agora. Saladino não fará mal a ela!
- E por que não, Raymond? – A pergunta de Gerard tinha tom de acusação.
Raymond esfregou o rosto. Acabara de errar tremendamente. Balian viu o
mesmo erro e sentiu o veneno da pergunta de De Ridefort correr por seu sangue.
- Porque assim como nós, ele não sai por aí matando mulheres. E eu confio
que Eschiva conseguirá se defender muito bem.
- Está deixando sua esposa e suas terras de lado, Raymond? Muito estranho
isso... Quem entregaria tudo assim? – continuou o grão-mestre. A assembleia se
calou para esperar a resposta de Raymond.
- Gerard, saiba que prefiro ver Tiberíades perdida para Saladino a
presenciar a queda de Jerusalém. Acham que não me preocupo com minhas
terras depois de tanto tempo que passei lutando por Ultramar? Estão enganados
demais então. Estou deixando de lado minhas ambições pessoais para lutar em
nome do reino e agora questionam isso?
Alguns barões baixaram a cabeça, outros coçaram os rostos, sempre
pensativos.
- Concordo com Raymond, devemos esperar – disse Balian.
Era o que precisava ser dito para que finalmente todos concordassem.
Raymond suspirou aliviado quando Guy disse que se manteriam em Sefória. Já
era tarde da noite e, depois de tanta discussão, todos precisavam descansar.
Gerard foi o primeiro a sair da tenda. Ficou do lado de fora, junto com
outros três cavaleiros templários. Manteve-se nas sombras, calado e na
expectativa. Quase mandou alguém atrás de Raymond, apenas para ter o prazer
de vê-lo morto antes que a guerra acabasse. Enfurecido, mas ainda dominado
pela frieza que caracterizava sua ambição, Gerard esperou que todo o
movimento em torno da tenda real acabasse para voltar a entrar.
Os guardas deixaram o grão-mestre passar, apenas dando tempo para o rei
se aprontasse. Guy ainda não dormira e permanecia andando de um lado para o
outro, pensando naquele exército que estava em suas mãos. Olhou para Gerard
contendo o medo de mais uma discussão. Não queria mais encarar outra decisão
difícil naquele dia.
- Vossa Majestade não tem consciência do que está fazendo? É uma
humilhação para o Templo saber que estamos recuando e perdendo uma cidade
importante como Tiberíades, logo uma cidade tão próxima! Pretende confiar em
um traidor que até pouco tempo atrás disputava com Vossa majestade o domínio
do reino?
Andou até Guy e ficou mais perto. Espremeu os lábios e balançou a cabeça.
- Os templários preferem deixar a ordem e o manto a continuarem parados.
Não fugiremos diante dos infiéis.
O rei cedeu. Capitulou porque não tinha chances de vencer sozinho um
argumento contra de Ridefort. E assim o exército marchou mais uma vez.
*****
- Não rompam as linhas! – gritou Guillaume. – Não rompam as linhas!
Marchavam sob o sol escaldante, vendo as patas dos cavalos quebrarem
estilhaços de pedras secas e arrastarem uma terra morta. Precisavam evitar a
tentação de disparar em corrida contra os cavaleiros muçulmanos toda vez que
eles se aproximavam. Guillaume já estava rouco de tanto gritar para se
manterem quietos. Simplesmente não havia como arranjarem uma defesa.
- Lá vêm eles de novo! Vamos correr contra eles, Guillaume! – gritou
Dedrick, puxando as rédeas.
Guillaume olhou para o exército à frente, depois para os templários em
volta. Estavam na retaguarda mais uma vez, junto com Renaud de Châtillon,
Balian de Ibelin e os hospitalários. O rei cavalgava no centro e Raymond de
Trípoli seguia na vanguarda. Guillaume estendeu a mão para que Dedrick não se
movesse, o que fez todos os templários manterem as fileiras e levantarem os
escudos. Era possível ver os rostos aflitos apenas esperando o impacto das
flechas. Suavam sob o calor furioso da Terra Santa com os corações
extravasando frustração por não poderem revidar ao ataque. Alguns homens
gritaram quando viram parte da coluna finalmente se mover. Guillaume olhou
para frente, pensando que pudesse ser o Hospital, mas eram os cavaleiros de
Renaud de Châtillon que se deslocavam.
Renaud cavalgava na frente com a barba ruiva bem a vista. A espada
apontava para frente impelida pelos gritos de guerra. Guillaume achou tudo
aquilo inútil. Viu quando os cavaleiros muçulmanos começaram a dar a volta,
mas ainda com os arcos prontos. Eles fizeram uma curva já próximos dos
homens do Guillaume e dispararam. As flechas cortaram facilmente o ar quente
e seco. Uma quase atingiu Renaud, porém o senhor de Kerak abaixou-se e
deixou o projétil passar. Um de seus homens caiu com uma seta perfurando-lhe o
peito e outros evitaram o ataque com escudos.
Os muçulmanos continuaram a recuar com suas montarias rápidas, às vezes
se virando sobre os cavalos para gritar insultos que se espalhavam pelo ar para
bater nos ouvidos já fartos dos cristãos. Renaud seguiu com a perseguição até
desaparecer da visão de Guillaume. O templário balançou a cabeça e fez sinal
para seus homens descansarem. Quando os cavaleiros de Kerak voltaram, eram
homens ainda mais abatidos pelo calor e pela marcha. Não havia sangue em suas
espadas.
Guillaume assistiu Renaud praguejar enquanto se colocava mais uma vez na
coluna. Parou de falar devido à boca seca. Alguém lhe estendeu um cantil do
qual o senhor de Kerak bebeu pouco, sabendo que deveria tomar cuidado com a
água. Nem ele era tão imprudente a ponto de desperdiçar o líquido precioso, que
valia mais do que ouro naquela marcha.
O exército estava mais lento e cansado, sendo bombardeado pela luz do sol.
Deus estava os colocando em provação, era o que muitos pensavam. Um deles,
entretanto, se cansou dessa provação. Olhando para seus homens, Gerard de
Ridefort sentiu que precisava parar. Ele mesmo não aguentava mais a marcha.
Haviam chegado a um platô de onde era possível ver os Cornos de Hattin.
Eram dois picos altos com mais de trinta metros de altura que anunciavam a
chegada a uma aldeia e ao lago. Logo após eles, o terreno era uma descida que
daria velocidade para uma chegada até a água que tantos ansiavam. Mas Gerard
já estava farto e cansado. Nem sabia de onde vinha o suor mais, pois
praticamente não tinha água no corpo. A boca seca não podia mais ser suprida
com água e não quis pedir os cantis dos templários. Quando pensou em fazê-lo,
encontrou os olhos de Guillaume e ouviu o homem dar ordens para que todos
marchassem e que ninguém tocasse nos cantis até que fosse ordenado.
Gerard chamou por um sargento e deu ordem para que ele procurasse pelo
rei. O homem encontrou Guy enxugando o suor que escorria da testa. Haviam
acabado de lhe oferecer água, mas ele negou quando viu o quanto seu exército
estava sofrendo. Queria compartilhar com eles o sofrimento e se mostrar digno
de estar naquela marcha. Um ímpeto de fazer jus à coroa começava a se formar
dentro dele. Precisava de força e mostraria que a tinha. Então ouviu as palavras
do mensageiro.
- Os templários não se moverão, senhor. O grão-mestre manda avisar que
não darão mais um passo hoje ainda.
Os barões que marchavam ao lado do rei olharam atônitos para o
mensageiro e o homem se encolheu, sem saber o que dizer. Os nobres
começaram a gritar com as bocas secas que precisavam continuar. Já podiam ver
o lago e tinham que chegar até ele naquele mesmo dia. Os homens clamaram
pela sabedoria do rei. Disseram que suas últimas forças deveriam ser usadas para
lutar e alcançar a água, usando todos os argumentos desesperados que poderiam.
Guy os olhou pacientemente, depois viu os rostos abatidos dos cavaleiros e
soldados que vinham pouco atrás dele. Eles o olhavam esperando uma decisão.
- Não posso exigir isso dos meus guerreiros. Já pedi demais deles por hoje.
Pararemos para descansar por essa noite. Eles não terão energia para lutar –
disse, pensando principalmente que desastre seria combater os muçulmanos sem
a força dos templários. Contava com a ajuda de Gerard na estratégia para lutar
contra Saladino e não ser engolfado por um líder muito mais experiente. Sua
vontade de fazer a própria força valer diminuiu e se calou com a necessidade que
ainda tinha dos conselhos do grão-mestre e também da força guerreira de
Renaud. O senhor de Kerak estava atrás junto com os templários e Guy julgou
que ele também pararia ao ver as forças do Templo desmontarem.
Raymond, estupefato, parou sua montaria quando soube da notícia. Baixou
a cabeça e esfregou o rosto com uma das mãos. Amaldiçoou o idiota que
decidira aquilo e xingou o dia em que não invadiu Jerusalém e enforcou aquele
rei maldito para tomar seu lugar. Então o desespero tomou conta de sua alma.
Girou o cavalo na esperança de ainda ter tempo de convencer Guy a alguma
coisa.
- Ah, Senhor Deus, a guerra acabou! Somos homens mortos! O reino está
condenado! – gritava enquanto movia-se pelos cavaleiros cansados que já
começavam a parar, não precisando ouvir uma segunda ordem quando suas
pernas pesadas e suadas já haviam se satisfeito com a primeira.
Era tarde demais para argumentar. O exército perdera o restante de sua
força assim que parou de se mover. Raymond balançou a cabeça e aconselhou o
rei a parar na direção da encosta onde julgava haver um poço. Foi um erro que o
fez baixar a cabeça o restante da noite. O poço estava seco.
Lá embaixo, perto do lago, Saladino e seus homens festejavam. Os cristãos
haviam cavado sua sepultura, criado sua própria armadilha. Eles entregavam
seus pescoços para as lâminas dos muçulmanos.
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Karsten viu que a infantaria cristã estava praticamente perdida. De cima do
morro, os cavaleiros se agitaram, pensando como poderiam reagir. Donat
persignou-se enquanto Raymond olhava para o campo cheio de mortos e
moribundos. Via corpos mexendo-se em últimos pedidos de ajuda ou últimas
orações. Alguns, ainda vivos e com perspectiva de assim continuarem,
entregavam armas e eram recolhidos pelos muçulmanos. Raymond olhou rumo à
tenda do rei e esperou pelas ordens. Antes de elas chegarem, entretanto, viu
cinco de seus cavaleiros se destacarem e descerem a colina. Pensou em gritar
que não era hora de atacar. Ouviu Karsten fazendo essa reclamação. Então,
quando os viu diminuindo a velocidade diante dos muçulmanos, percebeu que
aquilo não era nada além de traição.
- Eles fizeram a escolha deles: viver em covardia. Hora de fazermos a nossa
escolha – falou Raymond.
Karsten assentiu. Alguma decisão havia sido tomada por Saladino. A
cavalaria muçulmana começava a subir o morro para finalmente se encontrar
com os cavaleiros cristãos. Karsten olhou para Raymond. Nem era preciso
esperar ordens. Precisavam rechaçar aquele ataque. O conde emitiu o comando
para iniciarem a carga. Heiner deu um grito de guerra em sua língua nativa.
Ninguém entendeu, mas a força levou outros a bradarem por Cristo, pela Virgem
e por Trípoli.
A lança de Karsten desceu apontada para os inimigos. Ele a apoiava no
braço e a mantinha reta, pronta para um de seus ataques perfeitos. Os cavalos
apressavam-se morro abaixo. Pelo menos dois deles não obedeceram a seus
cavaleiros e continuavam no alto do morro, parados apesar das esporas
machucando-os. Karsten viu isso e continuou. Encontrou o primeiro muçulmano,
um guerreiro jovem que julgava já ter a vitória garantida por Alá. Ele mal teve
tempo de gritar ou orar quando a lança bateu em sua testa, rasgando a pele e
quebrando o crânio, que só não se dispersou por causa da pressão do elmo. O
islâmico foi jogado para trás e sua montaria continuou o caminho mais leve.
Karsten derramara o primeiro sangue e continuou com a lança derrubando ainda
mais um inimigo.
Heiner perdeu a lança no primeiro ataque, quando a quebrou contra o
escudo de um muçulmano. Por sua vez, quase caiu com o impacto do golpe
inimigo. Sacou a espada e gritou com a garganta seca. A voz não saiu. Um resto
de saliva grossa ficou preso na boca, enquanto rugia para acertar os inimigos.
Estava na retaguarda de Karsten, guardando o amigo. Viu alguns cavaleiros ao
lado começarem a cair. Uma mão voou perto do cavalo do nórdico e em seguida
o dono apareceu no chão, caído de costas. O cavaleiro rolou antes de ser
pisoteado pelos cascos duros dos animais. Em pouco tempo, não estava mais se
mexendo e Heiner não teve tempo de se perguntar se deveria rezar por ele, como
Gareth sempre dissera. Estava ocupado demais tentando garantir sua vida e a de
Karsten.
O ombro do nórdico foi atingido por uma lança. O golpe o fez recuar na
cela e foi absorvido pela armadura. Ele contra-atacou baixando a espada na coxa
do muçulmano, batendo sobre a malha protetora. O golpe não cortou, mas teve
tanta força que quebrou a perna do oponente. No calor da batalha, a dor não
chegou a tempo à mente do muçulmano. Ele atacou mais uma vez, puxando a
lança para trás e depois a jogando com toda a força do braço. Heiner defendeu-se
e colocou a arma para o lado, golpeando uma segunda vez com a espada. Agora
acertou o escudo, o que fez o muçulmano usar as pernas para se equilibrar e
finalmente sentir a coxa destruída. Ele gritou de dor e perdeu o equilíbrio. Para
sua glória, mesmo naquele estado, defendeu um terceiro ataque de Heiner e
pereceu no quarto, quando se dobrou para manter-se em cima do cavalo,
inconsciente de sua ação por causa do sofrimento, e recebeu uma espadada no
rosto.
Heiner procurou por Karsten e viu o amigo mais à frente. O germânico
acabara de se colocar entre um cavaleiro ferido e um muçulmano. Defendia-se
com o escudo e tentava arranjar-se com a lança, mas a curta distância o impedia.
Soltou a arma no chão e procurou pela espada. Antes que pudesse alcançá-la,
outros cavaleiros os cercaram. O homem ferido foi derrubado do cavalo e
começou a se mover de um lado para o outro, segurando a barriga com o braço
de esquerdo e mantendo a espada levantada. Baixou a arma quando viu lanças
apontadas em sua direção e se rendeu. Karsten continuou lutando, fazendo o
possível para fugir dos cavaleiros que o cercavam.
A habilidade do germânico o permitiu escapar dos golpes dos oponentes e
ainda contra-atacar. Afastou dois deles e ajeitou-se sobre o cavalo, estendendo o
braço para acertar o escudo do terceiro. Bateu nele pelo menos três vezes, antes
de ver os outros voltarem ao ataque. Aí teve o plano de se virar subitamente e
bater fundo as esporas no cavalo. O animal disparou como uma flecha na direção
daqueles dois e Karsten passou entre eles, com o escudo defendendo o ataque de
um e a espada batendo contra a lâmina curvada do outro.
Raymond deu ordens para finalmente a cavalaria recuar e eles voltaram
para o alto do morro. Havia cavalos mortos e cavaleiros caídos na encosta. Os
muçulmanos levaram alguns como prisioneiros e mataram aqueles que
resistiram. Mais à esquerda, os cristãos ainda recuavam. Karsten limpou o suor e
o sangue do rosto. Sentiu Heiner ofegante a seu lado. A espada do nórdico
pingava sangue.
- Estamos indo bem. – Heiner estava com um sorriso brilhante. – Por acaso
você não conhece uma oração para a guerra? Gareth não me ensinou nenhuma.
- Acho que não temos nenhuma para isso – respondeu Karsten, com o peito
subindo e descendo com força. Estava com dificuldade para controlar a
respiração. Quantos havia matado? Cinco, seis? Não, talvez mais. Esperava que
fosse, pois ainda havia muitos para matar. Era imprescindível fazer sua
contagem aumentar rapidamente.
Heiner não contava quantos havia matado. Sabia que foram poucos. Perdera
tempo demais em algumas poucas lutas. Ainda sim, estava contente, pois
enfrentara oponentes de valor. Cada um deles valia por muitos dos que já havia
vencido nas lutas quando levantava a espada em nome da família de Karsten.
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Saladino era um homem forte. Estava claro em seu rosto e na aura de poder
que fazia muitos dos emires mais revoltados ou orgulhosos se curvarem diante
de suas ordens. A face austera escondia generosidade e honra. A barba bem
aparada e os olhos negros brilhantes eram sinais de elegância. O sultão, na frente
de sua tenda, observava o avanço de suas tropas. Assistira ao massacre da
infantaria cristã sem dizer nada além de agradecimentos a Alá. Ao lado dele, o
filho se impressionava com a face dirigida exclusivamente à batalha. Al-Afdal
era o caçula do sultão e ainda aprendia com o pai. Não havia um dia que não se
impressionasse com as ações dele. A paciência no ataque, por exemplo, era uma
virtude que al-Afdal não sabia se um dia teria.
Era como se Saladino esperasse por um sinal. E ele veio. O sultão ajeitou o
turbante e alisou a barba quando viu os cinco cavaleiros cristãos sendo trazidos a
ele. Não havia sinal de orgulho naquelas faces que haviam o desafiado. Eles se
ajoelharam como escravos ou servos.
- Senhor, ataque logo e acabe com todos os cristãos. Eles são praticamente
homens mortos. Ao menos acabe com todo aquele sofrimento – eles pediram.
Foi então que Saladino ergueu as mãos em agradecimento a Alá o Piedoso e
fez sua cavalaria subir o morro em busca do rei cristão. Precisava vencer. Não
deixaria o cristianismo macular suas terras mais. Malditos fossem os francos.
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