Você está na página 1de 279

Templários

A Batalha de Hattin


Antônio Augusto Fonseca Júnior

Outros Livros do Autor

A Trilogia das Lanças de Christos:
Entre Anjos e Demônios
Assassino de Almas
Príncipe da Destruição

Busca por Sangue

A Marcha dos Dez Mil: Sangue e Glória

Profecias da Noite:
Benção do Inimigo
Sumário
Personagens
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Epílogo
Nota do Autor

Personagens
Ahmad
turcópolo a serviço dos cavaleiros templários
Balian de Ibelin
senhor de Nablus, importante nobre de Ultramar

Christophe de Sable D´Or


filho do barão de Sable D´Or
Dante
cavaleiro templário siciliano
Dedrick
cavaleiro germânico

Donat de Sable D´Or


barão de Sable D´Or

Édouard de Le Mur
cavaleiro hospitalário francês
Gareth
padre inglês
Gerard de Ridefort
grão-mestre dos cavaleiros templários
Guillaume de La Croix Bleue
cavaleiro templário francês
Guy de Lusignan
rei de Jerusalém
Heiner
cavaleiro nórdico
Henri
sargento a serviço dos cavaleiros templários
Jacques de Mailly
marechal dos cavaleiros templários

Karsten de Tapferklinge
cavaleiro germânico em peregrinação
Laure
filha do barão de Sable D´Or
Melisende
sobrinha do barão de Sable D´Or

Raymond de Trípoli
conde de Ultramar, senhor de Tiberíades

Renaud de Châtillon
cavaleiro senhor da fortaleza de Kerak
Roger des Moulins
grão-mestre dos cavaleiros hospitalários
Sibylle
rainha de Jerusalém
Prólogo
Alguns homens encontram com facilidade causas para morrer,
principalmente quando vem dificuldade em ter pelo que viver. Naquele deserto
onde o calor imperava como a ira de Deus, havia muitos preparados para
enfrentar a vida, mas a presença de um disposto a enfrentar a morte ajudou a
mudar dezenas de fios naquela teia tênue da guerra. Era mais um daqueles dias
em que o ar não parece se mover. Apenas um vento rasteiro passava pela areia
quente, levantando poeira e ainda mais calor, se é que era possível esquentar
mais. As testas molhadas refletiam a luz, gerando ainda mais sensação da
punição solar quando se olhava nos rostos daquela série de guerreiros que se
acumulava sobre as areias. Eram cento de quarenta cavaleiros e ainda mais
trezentos homens de infantaria. Daqueles montados, noventa tinham a honra de
pertencer à Ordem dos Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão. Apenas eles,
os templários, vestiam os mantos brancos com a cruz vermelha estampada sobre
o ombro esquerdo. O estandarte preto e branco com a cruz rubra mal tremulava,
prenunciando a mais pura desgraça para os dias que viriam.
Jacques de Mailly, marechal do Templo, já cavalgava pelas areias do
Oriente há tempo suficiente para saber que nada adiantava reclamar do calor.
Deus criara aquelas terras assim, talvez para aumentar a glória de seus fiéis
lutando para salvar a santa Jerusalém das mãos dos pagãos. Era maio de 1187. O
sultão Saladino unira os povos árabes para a batalha e agora os cristãos
juntavam-se desesperadamente para se defender.
Os templários faziam parte das forças que se uniam contra os muçulmanos
há décadas e Jacques se sentia orgulhoso por ter uma posição tão alta entre os
cavaleiros de Cristo. Debaixo da cota de malha e do manto, ele suava, mas
mantinha o sorriso no meio da barba loira. A felicidade só desaparecia quando
encarava seu líder, Gerard de Ridefort, eleito grão-mestre do Templo há poucos
anos, mas com ações tão ignóbeis que atrasara tudo que os cavaleiros haviam
feito em décadas. E atrasaria ainda mais.
Gerard tinha toda a aparência de um guerreiro de porte, dos mais nobres e
poderosos. Barbado e de cabelos curtos como todo templário deveria ser, tinha
uma compostura de rei na sela do garanhão. Os olhos aguçados observavam o
deserto à espera dos mensageiros. Ele estava feliz por ter encontrado quarenta
cavaleiros seculares, nobres não filiados às ordens religiosas, para ajudar nos
combates. Haviam acabado de passar por Nazaré.
Jacques lamentava por aquela notícia ter chegado aos ouvidos do grão-
mestre. Aquela figura com porte de rei tinha alma tão pobre quanto as fossas dos
castelos. O marechal sabia que surgiriam problemas e baixou a cabeça lamentoso
quando um homem a cavalo chegou para confirmar a notícia. Havia um grupo de
egípcios perto de Cresson. Estavam dando água a seus cavalos nas fontes.
- As notícias foram confirmadas... – anunciou Gerard, aproximando-se do
marechal, que se mostrava obediente como todo templário deveria ser; honrado
como todo cavaleiro deveria ser. Fiel como todo cristão deveria ser, Jacques de
Mailly apenas assentiu com a cabeça. Perto deles, Roger des Moulins, o grão-
mestre dos cavaleiros do Hospital de São João, os hospitalários, aproximou o
cavalo para saber o que estava acontecendo.
- Os infiéis estão próximos, Des Moulins. É hora de mostrarmos a força de
Cristo para eles – falou De Ridefort. As palavras poderiam ser de coragem ou fé
se saídas de outra boca, mas, vindas de Gerard, eram pouco mais do que frases
vãs e orgulhosas geradas pela língua bifurcada de uma víbora.
- Quantos são? – perguntou Roger des Moulins, observado por Jacques. O
marechal templário esperava que o hospitalário pudesse convencer Gerard a ter
bom senso naquele dia. O sol já os castigava demais para serem forçados a
alguma ordem desastrosa vinda do grão-mestre.
- Pouco mais de cinco mil. Talvez cheguem a sete mil – disse Gerard, já
olhando para os cavaleiros e pensando como seria o avanço para derrotar os
muçulmanos. Eles venceriam e ninguém poderia disputar o poder do Templo. Os
templários já haviam vencido batalhas em grande desvantagem. Salvaram o rei
Balduíno IV em uma luta contra Saladino dessa maneira. Porém, naquela época,
Gerard não era o grão-mestre; para a sorte dos templários e infortúnio da
ganância dele.
- Melhor recuarmos – declarou Des Moulins, para o alívio de Jacques. Mas
o marechal suspirara cedo demais.
- Não... Por Deus, homens. Podemos derrotá-los. Temos o Senhor do nosso
lado.
- Senhor, por meu cargo, tomo a liberdade de dizer que concordo com o
senhor Des Moulins. Precisamos poupar os homens para uma batalha maior.
Será inútil travarmos uma batalha que mais parece fadada à derrota.
De Ridefort olhou de volta para o marechal com o rosto vermelho oculto
pela espessa barba negra. Os olhos castanhos saltavam repletos de cólera vinda
de um orgulho ferido. Qualquer um diria que ele estava prestes a sacar a espada
e atacar, mas a espécie das cobras humanas não usa essas armas. Essas criaturas
preferem combater fogo com fogo, aproveitando-se da língua venenosa que é seu
dom natural.
- Ora... De Mailly... Você louva em demasia essa cabeça loura para querer
perdê-la em batalha.
As palavras machucaram como uma adaga, mas o tom de deboche em meio
aos cavaleiros fora como sal e vinagre na ferida que se abriu na honra e no
orgulho de De Mailly. Outros templários ouviram. Cavaleiros seculares
escutaram. Pouco vence mais facilmente o bom senso de um guerreiro que a
vergonha diante de seus pares.
- Não sou covarde.
- Então não pretende obedecer a seu grão-mestre? – continuou Gerard.
Des Moulins olhou embaraçado para o marechal. Outros cavaleiros tinham
uma expressão de expectativa.
- Morrerei em batalha como um homem corajoso, e você... você, meu grão-
mestre... é você quem fugirá como um traidor – disse Jacques, dando as costas
para Gerard. Agora não havia mais volta. Desobedecer a Gerard, por pior que
aquele homem fosse, ia contra tudo o que De Mailly acreditava. Ele fizera votos
quando entrara no Templo. Jurara dar sua vida por Cristo e obedecer ao grão-
mestre. A essência dos templários estava na disciplina e na fé, na honra perfeita
do cavaleiro. Não, ele não poderia desobedecer a seu grão-mestre, mesmo que
aquela alma parecesse mais esculpida pelo Diabo do que abraçada por Deus.
Talvez aquilo fizesse parte dos planos do Senhor. Era o teste derradeiro para sua
alma.
Jacques foi rezar com os outros templários. Ele precisava daquele alento.
Pediu misericórdia ao Senhor e o perdão a Cristo pelas palavras ásperas feitas
contra o superior. Sabia que aquela fala lhe causaria a perda do cargo e talvez a
perda das armas durante algum tempo, quem sabe castigos físicos. Isso se
sobrevivesse aquele dia.
- Cavaleiros, montar!
Jacques olhou para trás e viu a vitória orgulhosa e a ambição pungente
pregadas no rosto de Gerard. Des Moulins o acompanhava com o rosto
resignado. Jacques supôs que ele também fazia suas últimas orações.
Alguns cavaleiros seculares discutiram e reclamaram, mas a maioria teve
medo de ter sua coragem questionada. Também havia o exemplo dos templários,
que eram maioria. Aqueles cavaleiros de branco cavalgavam silenciosamente,
sem questionar as ordens. Se o grão-mestre os enviava para encarar a morte na
batalha, eles verificavam as armas para ter certeza de que enviariam os pagãos
para o fogo do Diabo antes de encontrarem a luz de Cristo.
Cavalgaram deixando a infantaria para trás quando Gerard avistou pela
primeira vez os egípcios. Eles estavam dando de beber aos cavalos, como fora
informado. De Mailly analisou os muçulmanos. Eram pelo menos seis mil, com
certeza. O marechal sabia que aquele grupo era perigoso. Colhera informações
sobre eles ainda em Jerusalém. Os egípcios estavam aliados a Saladino e
ajudariam o sultão a acabar com as forças cristãs. Graças ao entendimento da
cultura e língua locais, Jacques entendera parte do ódio que aqueles
muçulmanos, que também consideravam os cristãos infiéis, tinham para com os
europeus, chamados por eles de francos. O marechal conhecia a religião deles e
sabia que muitos ali estavam lutando pelo mesmo motivo que ele, apenas por fé
e honra. Certo, havia ambição como em qualquer grupo, mas, no fundo, eles
eram todos iguais, cada um matando pelo que acreditava.
“É hora de morrer pelo que eu acredito”, pensou Jacques, fazendo sinal para
que os cavaleiros preparassem suas montarias.
- Vamos atacar com os cavaleiros primeiro. Vamos pegá-los de surpresa. A
infantaria apenas nos atrasará – disse Gerard, ao que Jacques preferiu não ouvir
plenamente. Era melhor apenas cumprir a ordem e não analisá-la. Não queria
morrer irritado ou praguejando a estupidez alheia.
O marechal chamou os templários e falou o lema da ordem:
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – disse e os
outros repetiam as mesmas palavras. “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu
Nome se dê toda a glória”.
A cavalgada começou. Eles avançaram como os cavaleiros francos sempre
faziam, com violência, com coragem, sem hesitação, sem recuo. As patas dos
cavalos espalhavam a areia e os olhos guerreiros miravam o enorme exército
inimigo. Quanto mais próximos, mais Jacques notava que a morte pairava.
Muitos deles ainda deveriam pensar que o Senhor os protegeria e que eles
venceriam a batalha, mas o marechal já lutava havia tempo demais para que sua
fé lhe permitisse essa ilusão. Eram muitas cabeças, muitas armas que os egípcios
agora sacavam desesperados e ainda tentando entender o que acontecia.
A investida tinha a disciplina característica dos templários. Jacques seguia à
frente, cavalgando junto a Roger des Moulins. Não olhava muito para os lados
para evitar ver De Ridefort ou para evitar não vê-lo.
Os egípcios foram pegos de surpresa. Sim, isso era certo. Jacques derrubou
o primeiro com uma espadada no pescoço. Nem bem o sangue da vítima jorrava
pelo ar, outro corpo já caía ensangüentado nas areias do deserto. Dois mortos
enquanto o cavalo continuava avançando, seguido pelo barulho dos outros
guerreiros. Ele olhou de relance para ver Des Moulins decapitar um egípcio. A
distração o fez errar um ataque. O golpe que deveria acertar o rosto de um
inimigo bateu no turbante de raspão. Graças à força do cavaleiro e ao peso da
espada, o egípcio paralisou-se tonto, sem reação, permitindo que um segundo
ataque finalizasse a terceira morte do dia.
Investiram a um ponto em que estavam cercados de corpos e a massa de
inimigos à frente era tão compacta que não era mais possível continuar.
Precisavam matar aqueles que tentavam se organizar e formar uma parede de
defesa. Jacques deu ordem para o grupo pressionar a primeira fila inimiga. Mais
egípcios foram ao chão quando as espadas recomeçaram a baixar. Chegaram a
um ponto em que os cavalos quase escorregavam nos corpos, e foi o último
ponto que alcançaram. Jacques olhou para trás e viu os primeiros cavaleiros
caindo. Era o final se aproximando.
O marechal não parou de lutar. O escudo branco defendia golpes de espada
e lanças e a lâmina templária, sem adornos, simples como todo pobre cavaleiro
de Cristo deveria ser, continuou matando. Em determinado momento, Jacques
viu Roger des Moulins ser jogado do cavalo. O hospitalário levantou-se zonzo,
procurando recompor o equilíbrio. Defendeu um golpe, que o fez perder o pouco
da postura que recuperara. Depois disso, o caminho da morte se abriu para ele.
Os egípcios atacaram como uma matilha. Foram tantas lâminas que não deveria
haver sangue suficiente para escorrer por todas aquelas feridas.
Jacques pensou em tentar ajudar, negando-se no último segundo. Era óbvio
que os egípcios já haviam se recuperado. Por mais que os templários os
surpreendem-se, aquela vantagem numérica estupenda permitia muitos deles
prepararem-se plenamente para vingar os amigos caídos. Já estavam fazendo o
cerco. Jacques evitou o golpe de uma lança. Partiu-a com a espada e fez o cavalo
recuar. O processo engatou um ataque contra um egípcio que se aproximava.
Deixou o homem sangrando enquanto imaginava como conseguira chegar aos
outros templários. Todos que estavam perto dele já haviam caído. Cavalos sem
cavaleiros se perdiam na confusão. Guerreiros de manto branco jaziam em poças
de sangue.
Duas lanças atingiram o cavalo do marechal templário. O animal relinchou
e despencou na areia, quase caindo por cima da perna do guerreiro. Jacques
firmou os pés na terra fofa e olhou em volta. O primeiro ataque foi fácil de
defender. Escudo na frente, desvio da arma, abertura da guarda do oponente,
golpe dilacerante com a espada. Mais um corpo no chão e outra vítima já estava
estendida pouco depois. Ele conhecia o estilo de luta dos inimigos. Sabia como
se defender. Um muçulmano tentou passar por ele para atacar um templário
ferido e acabou com as pernas cortadas. Outro idiota cometeu o mesmo erro e
perdeu a face esquerda. Então chegou o fim.
A lança enfiou-se entre as escápulas como se houvesse um alvo nas costas
do templário. O golpe o atordoou e quase o pôs de joelhos. Sentiu a lâmina
quebrando elo por elo da cota de malha para rasgar a pele e encontrar sangue
fresco. Levantou a espada simples mais uma vez, porém o inimigo que apareceu
desviou-a com facilidade. Agora uma lâmina inimiga estava atravessando a cota
de malha, destruindo a pele e afogando-se no sangue e nos intestinos do
templário. Ele não sentiu os outros golpes. A mente restava ocupada pedindo
perdão a Deus, os olhos enxergavam seus irmãos caindo aos montes e ele
pensava no desperdício. Um dia seriam chamados de imbecis pelo ataque
suicida, seriam acusado de corruptos por causa da ação de homens como De
Ridefort, no entanto, cavaleiros corajosos morriam pela fé e por seus juramentos
naquele dia. Fé e juramentos pelos quais De Mailly achava que valiam a pena
viver e pelos quais agora teria que se contentar em morrer. Que a história e
Cristo fossem testemunhas de que eles tentaram... que alguns homens pudessem
cobrir a glória daqueles outros. Mas... no fim... Non nobis, Domine, non nobis,
sed Nomini tuo da gloriam... Esse era o lema.
A batalha acabou rapidamente. Os templários sobreviventes foram
sacrificados, como os muçulmanos sempre faziam com aqueles cavaleiros, que
pediam a morte pela espada após a derrota. Os guerreiros seculares foram presos.
Apenas três nobres saíram ilesos, um deles, para a desgraça dos cristãos e sorte
dos muçulmanos era Gerard de Ridefort.
Capítulo Um
O templário cavalgava mansamente pelo mercado de Jerusalém. Deixava o
cavalo seguir em passos lentos, enquanto a multidão abria caminho para que o
cavaleiro pudesse seguir sem incômodo. Ele movia-se orgulhoso do manto
branco que portava. A cruz vermelha de bordas largas estava realçada no ombro
esquerdo, símbolo da ordem poderosa que o guerreiro representava. Naquele ano
do Senhor de 1186, antes de Hattin, antes de Cresson, antes das maiores
desgraças, o templário passeava como um rei rumo a mais uma missão.
O povo de Jerusalém olhava para o cavaleiro com sentimentos tão
misturados quanto às raças, línguas e produtos do mercado. Alguns odiavam
aqueles cavaleiros de branco, que, a seus olhos, mais pareciam lobos de coração
negro sob aqueles mantos alvos de cordeiro. Os árabes, principalmente, tinham
pouco amor à ordem que tanto lutara e fizera fama defendendo o cristianismo.
Os cristãos já os temiam e amavam, conforme a disposição do dia. Em geral,
consideravam a ordem cheia de orgulho, porém composta por cavaleiros
corajosos que eram a salvação dos guerreiros de Cristo no Oriente. Havia, por
causa das batalhas e demonstração de valor, um respeito geral pelos templários.
Fossem cristãos ou árabes, as pessoas esperavam que um grande guerreiro
passava por eles quando portava o manto branco e a cruz vermelha.
Guillaume de La Croix Bleue era templário havia quase dez anos. Passara a
lutar em nome de Deus quando ainda estava na França e banhava sua espada de
sangue mais pela própria causa do que pela religião. Sir Guillaume, por sinal,
sempre fizera pouco das atividades religiosas de quem quer que fosse. Houve
pessoas que juravam que aquele homem tinha o coração vendido para o
demônio. Lendas contavam que aos quinze anos Guillaume já começara a erguer
a espada em nome do mal. Mas ele mudara. Aquele La Croix Bleue não era mais
o mesmo. O homem que agora cavalgava em Jerusalém mudara desde certo dia
fatídico.
A história da mudança de sir Guillaume começa em 1176, quando o homem
ainda vivia seus quase vinte anos de idade e recebera o título de cavaleiro mais
tarde do que sua impaciência guerreira poderia suportar. Sua sede de sangue era
maior do que sua experiência de vida e a vontade de erguer a espada em causa
própria desproporcionalmente maior do que a fé. No entanto, a esposa o amava,
os guerreiros que viviam no feudo que acabara de herdar do pai o adoravam.
Obviamente, o milagre do amor parava nesse círculo, pois ninguém com fama
tão ruim em tão pouca idade poderia ser amado por mais do que um punhado de
pessoas. Acontecia que quem tinha coração belicoso, como os guerreiros,
gostavam dele, quem tinha paixão pelo perigo, como a esposa, o amava, quem
era infantilmente ingênuo, o adorava, como o filho, porém, havia o campesinato.
Uma massa explorada que temia a espada de seu senhor não podia ter um
sentimento que não fosse o ódio por aquele cavaleiro.
Os camponeses o odiavam tanto que planejavam uma revolta. Haviam
reunido armas improvisadas e começavam a levantá-las quando Guillaume
decidiu sair de casa para acabar com aquilo. Era uma situação impensável aos
olhos do nobre guerreiro, porém uma boa desculpa para ele preparar as armas.
Era uma manhã fria na França reinada por Luís VII, aquele que partira em
cruzada anos antes. As nuvens escuras em um céu cinzento oprimiam os
corações mais leves, mas acrescentavam paixão a Guillaume. Ele segurou a
espada enquanto descia as escadas do pequeno castelo. Era uma morada simples
para alguém com o coração tão orgulhoso, mas o cavaleiro tinha planos para
modificá-la. Estava farto de ter tão poucos aposentos. Suas defesas não
passavam de uma muralha de pedra de pouco mais de quatro metros e um portão
de madeira. O castelo tinha apenas uma torre de onde ele podia ver suas terras,
inclusive o pequeno povoado onde os camponeses agora se uniam. De lá, de
cima da torre, ele dizia:
- Se Deus fizesse um bom trabalho, esses vermes nem se mexeriam para se
revoltarem. Mas ainda bem que o fizeram, não acha, meu amor?
A esposa acabara de aparecer e observava o marido vestido na cota de
malha. Guillaume tinha pouco mais do que aquela armadura e as manoplas para
proteger as mãos. Sua espada fora herdada do pai, assim como os pedaços de
metal que protegiam os ombros e as pernas. O traje do cavaleiro era isso,
somado a uma lança e ao grande cavalo de estimação. O escudo ele mandara
fazer havia pouco tempo, pois o antigo se quebrara em uma justa.
- Não deixe que eles o façam crer que Nosso Senhor não é justo, meu amor.
- Ah, sim... Não se preocupe, meu amor... Hoje eu verei a justiça...
- Cuidado com o que fará, sabe que meu pai está por essas terras e quer que
você pare com a matança. Nem os padres estão gostando de sua maneira de agir.
Talvez seja melhor dispensar mais dessa energia na cama do que com a espada...
– disse ela, envolvendo-o com os braços.
Ele a abraçou e a manopla embaraçou-se nas roupas dela, beliscando a pele
branca que estava por baixo. A esposa não se importou e o chamou para um
beijo.
- Pecadora – sussurrou ele, aproximando os lábios.
- É bom pecar ao seu lado. Depois eu me confesso com os padres – disse
ela.
Começaram um beijo ardente, pressionando os lábios com força à procura
de mais intensidade. Guillaume só não tirou a armadura porque o dever o
chamava e sempre preferia o sexo depois de ter realizado todas as tarefas do dia.
Afastou-se dela e sorriu. Deu-lhe um tapa na bunda e foi retribuído com um
sorriso perverso de quem lhe daria um presente mais tarde.
- Pode ter certeza que eu volto.
La Croix Bleue desceu as escadas com um sorriso no rosto. Um empregado
abriu as portas do pequeno forte que ele gostava de chamar de castelo, deixando
que a fraca luz da manhã entrasse na penumbra. Guillaume gargalhou para seus
homens. Todos os vinte estavam armados e prontos para lutar. Eram dois
cavaleiros e dezoito sargentos de armas que também lutavam a cavalo, apesar de
não ter o mesmo título dos líderes. Tinham armas ganhas de lutas anteriores,
quando sir Guillaume vendia sua sede de sangue para qualquer um dos senhores
belicosos da França. Foi assim que transformou seus poucos homens de
infantaria em um grupo de combate poderoso.
- Há alguém que não esteja pronto para erguer a espada? – perguntou La
Croix Bleue.
O tilintar de metal foi a resposta para a pergunta. Sir Guillaume gargalhou
mais uma vez e montou no cavalo. O peso da armadura não o incomodava. Era
um cavaleiro forte, cujo dom com a espada favorecia o coração desejoso de
batalha.
- Abram os portões! – gritou ele.
O trotar os cavalos era o mesmo som da chegada da morte. Era a tirania do
sangue azul que avançava para demonstrar que Deus conferira certos lugares aos
homens e que eles não deveriam ser trocados, nem mesmo uma reclamação
sequer era direito. Sir Guillaume concordava plenamente com a frase, desde que
ele fosse a única exceção. Ele queria, ele conseguia. Se não conseguia, então
Deus não era justo, portanto, não haveria problema em pecar um pouco para
saciar suas ambições.
La Croix Bleue fez sinal para os guerreiros se dividirem. Apenas um
cavaleiro e mais nove homens cavalgaram com ele, enquanto os outros seguiam
por uma trilha maior. Correram aos gritos, fazendo uma algazarra que anunciava
a felicidade que tinham em guerrear, mesmo que fosse uma guerra tão injusta. A
Igreja já havia alertado que os bellatores não deveriam atacar os inocentes como
os camponeses e os padres. Até instituíra épocas em que seria pecado guerrear. A
Trégua de Deus, no entanto, pouco valia para Guillaume. Quando finalmente
parou em frente à vila, poderia cuspir na cruz enquanto arrancava a cabeça dos
inimigos e ainda teria a consciência tranqüila.
Os cavalos pararam levantando pouca poeira, mas jogando muitos
pedregulhos para cima. As casas de madeira e turfa eram tão simples que
tornavam a cena ainda mais pecaminosa. Camponeses com facas, porretes e
lanças de madeira se amontoavam perto da Igreja. A coragem passara quando
viram Guillaume chegar. O cavaleiro tinha esse efeito sobre as pessoas. A aura
de ameaça que o cercava intimidava quem estava contra seus objetivos.
- Onde estão os corajosos que queriam se revoltar? – gritou Guillaume para
os homens tímidos que se entreolhavam.
Os camponeses tentavam decidir o que fazer. Seus planos haviam se
evaporado tão logo os cavalos chegaram e as pontas das lanças brilharam.
- Acho que é hora de ensinar para vocês que cada um tem seu lugar e, por
Deus!, o de vocês é suando enquanto aram a terra para mim!
Um padre saiu da igreja um pouco assustado. Abriu caminho entre os
camponeses com cuidado, temendo cortar-se em uma das armas. Parou a seis
metros do cavalo de sir Guillaume.
- Sir Guillaume, esses homens não se importam de trabalhar para o senhor.
O que temem é que o senhor os mate e não louve a Deus como deveria. O senhor
não vai às missas e ainda os oprime com a espada com tanta força que...
O cavaleiro cuspiu no chão, o que fez o padre interromper o discurso.
- Continue, padreco...
- Senhor...
Ele parou novamente quando ouviu o barulho de cavalos. Eram os reforços
chegando. O padre calou-se e olhou esperançoso para os dezesseis homens
montados que agora apareciam na estrada. Em pouco tempo eles já estavam
próximos aos guerreiros de sir Guillaume.
- Albert! Meu sogro! Como está? Veio prestar-me uma visita em um
momento pouco apropriado. Por que não me espera em meu castelo com sua
filha?
O homem que chegara estava próximo dos quarenta anos, mas ainda era
forte e alto. A idade cobrara pouco da vida além dos cabelos esbranquiçados.
- Não, Guillaume.
- Já sei... Meu castelo não é assim tão bom quanto o seu... Mas... Não se
preocupe... – Ele pretendia continuar falando que se casara com a única filha de
Albert e depois da morte dele, ninguém senão o La Croix Bleue teria aquele
feudo enorme que, no momento, estava nas mãos erradas. Claro, havia o
cunhado, filho mais velho de Albert, porém ele tivera a ideia estúpida, aos olhos
de Guillaume, de partir para as cruzadas e desaparecera por lá.
- Guillaume, vim em nome da Igreja para exigir que pare de lutar em
momentos impróprios e que pare de chacinar seus servos. Suas atitudes vão
contra as leis de Deus.
- Ousa pisar em minhas terras, agir em meu feudo e fazer exigências para
mim?
- Sim, Guillaume. Venho em nome da Igreja, ajo em nome de Nosso Senhor
e do Filho...
La Croix Bleue ergueu a mão.
- Não, não e não. Já chega ter ouvido seu discurso durante o casamento.
Agora não. Deus não criou meus ouvidos para perderem tempo com isso. Pensa
que isso aqui é latrina, é? – disse, apontando para as orelhas.
- Acho que a nobreza se perdeu em seu pai. Você não merece o sangue que
tem, Guillaume. Não pretendo continuar discutindo com você. E, se não
pretende se redimir, prepare-se para enfrentar minhas armas. E perceba que está
em clara desvantagem.
- É? – perguntou Guillaume, com um cinismo tão cheio de veneno que
secaria as plantas ao redor, se houvesse alguma que já não morresse durante sua
passagem.
- Sim.
Albert percebeu que havia algo errado tarde demais. Ouviu o trotar de
cavalos em um dos campos da vila. Um grupo de dez guerreiros avançava em
carga rumo a seus homens. O nobre deu ordens para todos se prepararem, mas
Guillaume já mandara seus soldados agirem. Dois deles retiraram arcos e
acertaram flechas no peito de dois dos inimigos. Um deles ficou apoiado sobre o
cavalo enquanto o outro caiu no chão seco. Os animais moveram-se assustados
quando os guerreiros de La Croix Bleue finalmente chegaram. Os homens de
Albert ainda não haviam conseguido manobrar ou prepararem-se para receber o
ataque de carga. Estavam cercados.
O ataque despedaçou qualquer defesa que Albert conseguira armar. Três de
seus soldados caíram, inclusive um de seus quatro cavaleiros. Um deles foi
atingido no pescoço por uma lança, tombando sem resistência. Albert girou o
cavalo e preparou os homens para se retirarem, mas Guillaume já estava sobre
ele com a lança em riste. Albert mal conseguiu erguer o escudo e o impacto o fez
perder completamente o equilíbrio. A queda o machucou bastante. Levantou-se
imaginando que já estava velho demais para lutar, ainda mais com um
sanguinário que tinha metade de sua idade.
- Acalme-se que eu o alcanço, seu desgraçado! – gritou Guillaume no meio
da balbúrdia da luta. Desceu do cavalo depressa. Jogou o escudo para o lado,
fazendo-o rodopiar nos pedregulhos.
Sir Guillaume caminhou apenas com a espada na mão direita. Um soldado
interrompeu seu caminho, mas não foi para atacá-lo. O homem cambaleava com
a mão na garganta, tentando inutilmente conter um jorro de sangue que fazia sua
vida esvair-se. La Croix Bleue o empurrou sem piedade, pois era um sentimento
que conhecia apenas para torturar a si mesmo nos momentos em que se divertia
mais. Limpou o sangue que voou em seu rosto com a manopla e ergueu a espada.
Albert já estava de pé com a lâmina pronta para o combate.
- Não acredito que o admiti como meu genro! – gritou o cavaleiro mais
velho. Ele já sabia da fama de Guillaume, mas cometeu o erro de entregar sua
única filha ao maldito, tudo por causa da amizade com o pai dele. Foi uma
escolha triste. Deveria ter trocado a garota por um feudo maior, mas não. Cedeu
aos sentimentos que tinha por ela e deixou que se casasse com quem amava. Mas
como ela podia amar alguém assim?
As espadas bateram-se e a resposta para a pergunta de Albert foi o som de
metal contra metal. A força de Guillaume o jogou para trás e fez perder o
equilíbrio. Os golpes seguintes o fizeram recuar até que estivesse na porta da
igreja. Já não havia camponeses ou o padre lá. Todos o abandonaram. Esperava
que Cristo não fizesse o mesmo, pois precisava da ajuda divina mais do que
nunca.
Guillaume desceu a lâmina e a subiu de volta na diagonal. O ataque bruto
quase pegou Albert desprevenido. Ele aparou e sentiu a espada vibrar com o
choque. Os músculos retesados doeram. Foi com esforço que desviou a lâmina
para a esquerda e deu um encontrão em Guillaume. La Croix Bleue sentiu o
impacto e quase perdeu o equilíbrio, conseguiu firmar um pé no chão e
empurrou de volta, jogando Albert para dentro da igreja.
Albert se afastou e tentou recuperar o fôlego. O oponente era jovem demais
pra ele e sua experiência não estava valendo tanto. Passara tempo demais apenas
dentro do castelo, preocupado com suas terras e em conseguir outro filho na
idade de quarenta anos, além de remoer-se com o desaparecimento do
primogênito.
- Cansado, meu sogro? – questionou Guillaume. Ele também suava, mas
não sentia o cansaço. Nem estava ofegante. O rosto estava tomado por uma
felicidade feroz, um animal saciando a fome.
- Ainda não estou morto.
Guillaume não deu atenção para a bravata. Avançou com força, agora
atacando de cima para baixo. Albert se desviou com um movimento que causou
uma fisgada na perna. Parecia um anzol puxando seus músculos. Quase perdeu o
segundo movimento. Acertou o ombro em Guillaume, desequilibrando o genro.
Tendo retirado a defesa do oponente, atacou com as forças restantes, agora com
o cansaço exigindo que aquele fosse o golpe final. A espada bateu contra a cota
de malha de Guillaume e o jogou contra a parede de madeira da igreja,
arrancando um rangido da estrutura. La Croix Bleue apoiou-se com a mão
esquerda e sorriu feliz ao notar que o sogro não se movimentara a tempo para
estocá-lo em um último ataque.
- Quase... – disse Guillaume.
- Quase... – disse Albert, em meio à respiração ofegante. Ele já estava
atacando de novo, de cima para baixo.
Guillaume fez um movimento rápido, erguendo a espada para desviar a
lâmina do sogro. Resolveu tudo com um giro, afastando o perigo e voltando-se
para acertar a lâmina na barriga do oponente. Albert sentiu a armadura ceder e o
aço frio cortar a lateral do corpo. Gritou e se afastou com o sangue quente
escorrendo. Guillaume não lhe deu tempo para descansar. Suas espadas estavam
grudadas antes que um segundo se passasse. Os olhos estavam presos uns nos
outros.
- Quase – disse Guillaume, chutando o sogro após soltar a palavra entre os
dentes.
Albert bateu contra o crucifixo pregado no altar e caiu. O objeto grande,
que fora presente dele mesmo para a simples igreja, caiu sobre seu corpo.
- Cristo, proteja-me – pediu o homem. O sangue escorria do nariz, pois a
madeira batera com força no rosto.
Guillaume cuspiu na cruz e riu. Levantou a espada e deu o primeiro golpe,
começando a despedaçar a madeira e pronto para destruir o corpo debaixo dela.
Foi um dia de pecado, mas que acabou em redenção, um dia que o cavaleiro,
agora um templário, queria se esquecer e se lembrar. Cogitava durante a noite se
era certo ainda ter na memória àquelas horas de luta ou talvez todos os anos
negros. Mas, por fim, o que importava era que mudara.
Sir Guillaume se considerava um templário de corpo e alma. Tornara-se um
cristão de fato depois daquele dia, depois daquele momento. Havia, no entanto,
um porém. Como as pessoas nunca mudam completamente, Guillaume ainda
mantivera o mesmo desejo por guerra e, por isso, sua nova vida só poderia ter
um destino: a vida no Oriente. Ultramar com suas batalhas e o apelo de morrer
em prol da causa cristã, espiar todos os pecados, eram a resposta para o coração
daquele cavaleiro. Tomou o manto e a cruz e foi-se para combater os pagãos.
Jerusalém foi a morada de Guillaume por cinco anos, antes de se mudar
para uma fortaleza de La Fêve, próxima ao mar da Galiléia. Estava de volta à
cidade apenas para cumprir uma missão, a de escoltar a filha do barão de Sable
D´Or. Conhecia a garota havia tempo suficiente para não gostar da missão, no
entanto, nada podia fazer. As doações do dízimo eram vultosas e o apoio militar
dividido com os templários era essencial para manter os grupos revoltosos da
região sob controle. Havia alguns meses os muçulmanos e até mesmo os cristãos
ortodoxos locais estavam descontentes com o barão. Por sinal, nem todo cristão
gostava da presença dos europeus, mais chamados de francos, no Oriente.
Guillaume, acostumado a ser impopular, pensava nos males que os francos já
haviam causado para desgastar a relação com os nativos. Um deles era a pouca
liberdade que os cristãos ortodoxos tinham para cultuar. Não que fossem
impedidos, mas raramente tinham oportunidade de usar as igrejas de Jerusalém
para seus cultos, muitas vezes sendo obrigados a participar do ritual dos francos.
O templário passou por algumas barracas do mercado e fez o cavalo se virar
para a esquerda, tomando uma rua íngreme. Seus acompanhantes, antes um
pouco desaparecidos no meio da confusão de comerciantes e fregueses,
precisaram empurrar algumas pessoas para conseguir passagem. Apenas um
deles não o fez. Dante, templário como Guillaume, esperou calmamente que as
pessoas passassem antes de levar o cavalo para frente. Os outros dois homens
montados que estavam junto com ele não tiveram a mesma educação. Dante
lamentou calado os maus modos. Silencioso como costumava ser, começou seu
movimento pelo beco observando as casas pequenas. O povo vivia espremido
naquele calor infernal do Ultramar, do mesmo modo que se espremiam na
Sicília, a terra natal de Dante. Eles sempre sofriam enquanto os nobres
guerreavam. Não que Dante fosse muito contra a guerra, mas pensava no que
acontecia com o povo enquanto as espadas eram erguidas e o destino dos reinos
eram traçados.
- Apresse-se, Dante – gritou Guillaume. Ele não olhou para trás, apenas
levantou a mão e fez o chamado para que o companheiro se aproximasse. Tanto
o siciliano quanto os outros dois bateram nas ancas dos cavalos. Já ao lado de
Guillaume, a conversa começou. – Sinto o cheiro de guerra.
- Você tem um bom faro para isso – comentou Dante.
- Um verso sobre a guerra...
- As palavras da sua boca eram mais macias do que a manteiga, mas havia
guerra no seu coração: as suas palavras eram mais brandas do que o azeite;
contudo, eram espadas desembainhadas. É um salmo – disse Dante, com suas
típicas citações.
- Esse verso é para mim?
- Suponho que sim.
- Um salmo só meu – riu Guillaume. Se havia algo que não mudara nele era
a ironia e a petulância. Por mais que aquele jovem incauto e belicoso houvesse
mudado, ainda havia o guerreiro orgulhoso que aprendera com a vida e com a
religião a encontrar motivos para rir de qualquer situação, até mesmo as mais
sagradas.
Dante conhecia Guillaume havia seis anos e sempre estivera contente de tê-
lo praticamente como seu superior. Haviam se conhecido em Jerusalém assim
que o siciliano chegara em um navio genovês. Ele peregrinara de Beirute até a
Cidade Santa para enterrar a cruz que sua falecida esposa carregava. Decidiu se
tornar um templário quando percebeu que não havia mais o doce amor para
alegrar-lhe o coração e que a vida na Sicília não seria a mesma se sua bela Maria
não existia mais. Agora vivia dias lutando por Cristo e noites rezando por ela.
Tinha a crença fiel de que alcançaria o Céu se morresse em batalha e assim
estaria do lado da esposa.
- Voltaremos apenas nós? – perguntou Dante.
- Suponho que sim. Talvez encontremos uma caravana. Mas não sei. Quem
sabe se não podemos conseguir alguns templários para nos acompanhar? Dizem
que eles foram criados para proteger peregrinos – disse Guillaume, com um
sorriso no canto dos lábios. Era comum ter essa expressão que lhe dava um ar
ainda mais petulante.
- Dizem que sim. Mas nós não somos peregrinos – brincou Dante.
- É mesmo. Já ia me esquecendo que somos templários.
- Quem ouve você falando até pensa que não leva a sério a cruz que tomou.
Guillaume riu e virou mais uma esquina. Agora alcançara a rua que dava
para o palácio do patriarca de Jerusalém. Olhou para a esquerda e para a direita,
como se tentasse se lembrar do caminho. Viu o Hospital de São João, a grande
construção que servia de albergue e ponto de recuperação de peregrinos
cansados. Era a sede de outra ordem militar, a dos hospitalários. O templário
torceu o nariz e parou para olhar para o Santo Sepulcro. Guillaume não sabia,
mas a igreja começara a ser construída no ano de 326 depois do nascimento de
Cristo ainda pelos romanos. Fora destruída uma vez por um líder árabe e antes
saqueada pelos persas. Agora, reconstruída, era um prédio bonito com uma torre
à esquerda e uma construção central com uma abóbada enfeitada por uma cruz.
Guillaume acreditava, como todos os cristãos, que Jesus fora crucificado ali.
Persignou-se em sinal de respeito e beijou a própria mão pedindo que fosse
abençoada pelo Senhor.
- O dia está passando, Dante. Vamos seguir – disse, tomando a rua.
Dante olhou para trás para se certificar que os outros dois homens estavam
os acompanhando. Eles os seguiam calmamente, porém não calados. Um deles,
Henri, falava e falava no ouvido de Ahmad. Não parava de tagarelar por um
segundo que fosse. O templário quase mandou o sargento se calar. Pensou
melhor e sorriu. Eles não estavam em marcha, não estavam em guerra. Não
havia necessidade de tanta rigidez. Melhor deixar Henri conversar. O homem
gostava tanto de falar que conversaria com a própria sombra na falta de alguém
para ouvi-lo.
Chegaram à igreja do Santo Sepulcro antes do meio-dia. Dante não sabia
que era para ali que estavam indo. Só sabia que haviam chegado naquela manhã
depois de longas noites dormindo ao relento e ainda nem haviam comparecido
ao Templo. Guillaume gostava de quebrar protocolos. Felizmente ninguém
importante ainda notara que eles estavam na cidade. Gerard de Ridefort, o grão-
mestre dos templários, não era alguém que gostava de ser desafiado. Não era
sadio ir contra o líder dos templários.
O tumulto em frente à igreja não surpreendeu nenhum deles. Guillaume fez
um bico, pois assim seria mais difícil encontrar Laure, a filha do barão.
Preparou-se para dar ordem para alguém desmontar e procurá-la. Os outros
também conheciam a mulher e poderiam muito bem fazer o trabalho. Ele não
queria. Não, pretendia voltar para o Templo e saber como estava tudo. A
temporada em La Fève não era tão divertida quanto Jerusalém com suas intrigas
palacianas. Ao menos lá ele estava mais próximo dos inimigos e tinha mais
chance de desenferrujar os músculos erguendo a espada.
- Henri, encontre Laure – ordenou Guillaume, olhando para a cruz acima da
abóbada da igreja. Começou a orar um Pai Nosso que não interrompeu nem
quando viu uma mulher parada à sua frente. Ela o olhava pacientemente,
esperando ser cumprimentada. – Pode deixar, Henri – disse, ao terminar a
oração. Fez sinal para o sargento montar de novo. – É um prazer vê-la, dama
Melisende.
Ele não estava mentindo. Também não fora irônico. Ver Melisende era um
prazer para qualquer homem, mesmo para aqueles que diziam não apreciar o
sangue mestiço dela. Usava um véu à moda oriental. Suas roupas seguiam o
mesmo estilo. Tinha um longo manto de baixo e por cima uma túnica bordada
com fios dourados. Carregava um lenço pequeno na mão esquerda com o qual
enxugava o rosto por baixo do véu. Ah, aquele véu escondia uma face tão linda
que dominava corações despreparados. Era uma mistura de sangue oriental e
franco. A pele tinha uma cor bonita, levemente morena, a um ponto que era fácil
definir sua metade judia, porém não tão claro que os finos traços da nobreza
francesa fossem esquecidos ou, melhor, notados como uma das características
principais. Os olhos amendoados tinham um brilho de paixão. Mostravam o
ardor que deveria haver no coração da mulher e ainda não fora dominado por
nenhum homem.
Melisende olhou de volta para Guillaume e não o cumprimentou. Fez um
movimento para cruzar os braços, depois desistiu. Não tinha intenção de
demonstrar que estava irritada.
- Não vai me conceder a honra de retirar o véu? – disse Guillaume.
- Não enquanto não desmontar.
Guillaume soltou o ar fazendo um bico pequeno e saltou do cavalo. Henri
moveu-se para segurar o animal, enquanto o templário fazia uma reverência
cortês para a dama. Dante e Ahmad também desmontaram, ambos por educação.
Só não haviam o feito ainda porque não ousariam fazer algo diferente de
Guillaume.
Melisende ergueu o véu e deixou a face mestiça à mostra. Guillaume sorriu
para aquela beleza, o que a fez pensar que o templário estava zombando porque
seus olhos ainda estavam vermelhos pelas lágrimas.
- Por que chora, minha dama?
- Choro pelo nosso jovem rei que morreu – disse ela, ainda triste por saber
que aquela criança morrera tão jovem e que estavam sem um governante. O
trono vago a atormentava pela ideia de guerras que estariam por vir. Já ouvia
boatos das disputas pelo poder.
- Mas ainda? – disse Guillaume, com um ar de intrigado. – Chorando assim
até parece que ele morreu ontem.
- E por acaso há um tempo máximo para se chorar por quem se ama?
- Deveria haver – disse ele baixinho.
- Eu ouvi isso. Guillaume, eu tive aquela criança dócil nos braços. Eu vivi
com ela enquanto você perdia seu tempo nas areias do deserto procurando por
batalhas.
- Tudo bem. Pode chorar. Que Deus abençoe seu choro.
Melisende se irritou. A vontade era esbofetear aquele templário era um
maldito.
- Onde está sua prima? Onde está Laure? Não está chorando com você?
- Laure não está aqui. Ela viajou para Jafa com uma caravana. Soube de um
mercador de tecidos finos que estava por lá e insistiu em ir.
Guillaume soltou o ar fazendo beiço. “Mais essa”, pensou, “mulherzinha
maluca. Agora tenho que viajar até Jafa”.
- Há quanto tempo ela foi?
- Seis dias.
- Quase uma semana! Ah, Deus, por que comigo? Vamos atrás dela. Seu tio
não gostará de saber disso.
- Suponho que não. Mas é seu dever de templário escoltá-la, não é?
- Não sei. É, Dante? – perguntou Guillaume, montando de novo.
- Suponho que sim, senhor – disse Dante. Às vezes chamava Guillaume por
senhor. Era devido ao respeito que tinha pelo amigo. Não só a amizade, mas a
experiência do templário mais velho o deixavam impressionado.
- Muito bem, Melisende. Arrume-se então. Vou até o Templo e voltarei para
pegá-la. Não posso deixá-la aqui. Henri e Ahmad, descubram se existe uma
caravana partindo ainda hoje e depois podem comer. Encontre-nos no Templo.
- Nervoso com minha prima? – perguntou Melisende, sorrindo ao saber que
Laure realmente conseguira irritar o templário.
- Ah, não, minha bela. Por sinal... Dante, um verso.
- E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo
que a tribulação produz a paciência. Carta aos Romanos.
Guillaume repetiu o versículo bíblico e sorriu para Melisende.
- Está na Bíblia, dama Melisende. Está na Bíblia. E eu lá sou homem de
desrespeitar a Bíblia?
Agora ela cruzou os braços para observá-lo partindo. Tinha raiva daquele
templário, principalmente porque ele sempre terminava uma discussão sorrindo.

*****

O complexo que formava a área do Templo era tão grande que


impressionava todos os peregrinos. Até mesmo o coração experiente de
Guillaume palpitava toda vez que via aquele belo lugar sempre movimentado.
Parte dele era chamada de Palácio de Salomão, de onde vinha o nome da ordem,
Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão. Era uma construção alongada,
sustentada por colunas do lado de dentro, mais parecida com uma igreja. No fim,
era arredondando e coberto por uma grande cúpula. Ainda na área do Templo
estava a Cúpula da Rocha, mesquita que era um dos símbolos de Jerusalém,
principalmente para os muçulmanos. Havia um grande domo sobre o prédio com
uma haste com o símbolo do crescente. Para o Islã, o prédio abrigava o lugar
onde Maomé partira para encontrar Alá nos Céus. Ali os muçulmanos entravam
para orar e não eram incomodados.
Guillaume e Dante entraram pela Porta da Lamentação e encontraram um
movimento incomum. Havia muitos templários montados como que preparados
para a batalha. Sem entender o que acontecia, jogaram seus cavalos para frente
para ter com o primeiro que pudesse lhes dar uma informação. Foi por
coincidência que encontraram o marechal do Templo chegando. Jacques de
Mailly era um homem loiro cuja pele escurecera devido ao sol. Os cabelos da
longa barba estavam queimados devido à exposição ao clima inclemente de
Ultramar.
- O que faz aqui, Guillaume? – perguntou De Mailly, parando o cavalo para
conversar. Estava afobado e precisava de um pouco de descanso depois da
correria da manhã.
- Viemos em missão para pegar a filha de Sable D´Or, mas parece que
precisaremos viajar para Jafa para encontrá-la.
- Duvido que saia hoje daqui. Estamos fechando os portões da cidade –
disse De Mailly, retirando o cantil e bebendo um pouco. Ofereceu água aos dois,
mas eles recusaram.
- Guerra? – perguntou Guillaume. Dante balançou a cabeça, rindo por
dentro. O faro de La Croix Bleue estava realmente aguçado.
- Ainda não. Mas só ainda. Teremos uma coroação aqui.
- Mas de quem? Raymond de Trípoli?
- Não, não – disse Jacques, meneando a cabeça. – Sibylle, a irmã de
Balduíno IV, a justa mãe do jovem Balduíno V.
- Então não tardaremos a ter um novo rei – concluiu Dante.
- Guy de Lusignan.
- E quem mais? – perguntou Jacques. Falava como se não aprovasse a
coroação. No entanto, não permitia que a opinião transparecesse. Aquela frase
fora um deslize.
- E quem menos?
Os três balançaram a cabeça. A possibilidade de guerra civil no Reino de
Jerusalém era grande. O rei Balduíno IV deixara claro em seu testamento que a
regência do reino caberia a Raymond de Trípoli, senhor de Tiberíades. Ele seria
o senhor de Ultramar enquanto o sobrinho do falecido rei, chamado Balduíno V,
filho da princesa Sibylle, não tivesse idade para governar. Porém a criança
morrera. Essa fora a única notícia que Guillaume recebera em La Fêve. Fora
isso, vivia no limbo, tendo como maior preocupação os acontecimentos em
Sable D´Or. Xingou por dentro por estar tão longe de tudo aquilo. Queria viver
mais bem informado para não ter tais surpresas. Odiava surpresas, ao menos
aquelas que ele não provocava.
- Os barões não apoiam Sibylle – disse Jacques.
- Não duvido. Obviamente, devem estar todos reunidos com Raymond de
Trípoli. Não duvido que Sable D´Or também esteja com eles, apesar de que há
anos ele não sai do feudo. Quem apóia nossa pretensa rainha?
- Nós, meu amigo, nós. E também Renaud de Châtillon.
“Que vontade de bater palmas de repente”, pensou Guillaume, gastando sua
ironia consigo mesmo.
- De Ridefort já definiu o que devemos fazer?
- Vamos fechar as portas de Jerusalém e nos prepararmos para o pior
enquanto ocorre a coroação. Não duvidamos que os barões nos ataquem para
evitar que Sibylle se mantenha no poder.
Guillaume cofiou a barba negra. Seus olhos castanho-claros estreitaram-se
abaixo das grossas sobrancelhas. Estava pensando.
- Com licença, mas preciso me retirar. Acho melhor não saírem da cidade,
não só por causa dos portões fechados, mas porque podemos precisar de vocês –
avisou Jacques.
- Sempre à disposição – disse Guillaume.
Dante apenas assentiu em resposta. Esperou que De Mailly se afastasse para
iniciar uma conversa.
- Mais alguma profecia hoje?
- Acho que o cheiro de guerra já é suficiente. Não sei se vai haver batalha
mesmo, porém precisamos estar preparados.
- Quando vamos seguir para Jafa?
- Após a coroação haverá tempo para isso.
- Poderíamos sair ainda hoje, antes que os portões se fechem – sugeriu
Dante. – Basta pedirmos a De Mailly. Ele não nos negará. Nem De Ridefort.
- Não... há cheiro de guerra e eu não pretendo ficar longe disso. E, se nosso
grão-mestre ordenou, temos que cumprir. Vamos encontrar os outros. Laure terá
que esperar. Mesmo Sable D´Or não deve estar com muito tempo para se
preocupar com a filha.

*****

Gerard de Ridefort era um homem de porte. Tinha os modos corteses de um


nobre refinado, lapidado por anos agindo na corte e batalhando para galgar os
degraus que o levariam à riqueza. Lutara por poder durante anos e agora
finalmente o tinha. Assumira o posto de grão-mestre da Ordem dos Templários e
ninguém poderia retirar o título de suas mãos. Tinha o controle da maior ordem
de cavalaria de Ultramar. Sim, maior que os hospitalários, maior do que qualquer
grupo que se organizasse para lutar contra os infiéis.
O grão-mestre ria sozinho sentado na cadeira e olhando pela janela do
palácio de Jerusalém. A cidade estava agitada com os boatos de guerra. Ninguém
conseguia compreender ao certo o motivo de os portões estarem fechados. Havia
mais história do que verdade na boca do povo e Gerard gostava disso. Adorava
ouvir o som desesperado das pessoas caminhando de um lado para o outro em
busca de proteção. Por sinal, ele era um dos poucos que os protegeriam da fúria
dos barões de Ultramar. Aqueles malditos, aliados a Raymond de Trípoli, não
tardariam a tomar providências para evitar que Sibylle se mantivesse no poder.
Mas que lutassem! Que ousassem lutar! Os templários impediriam que
tomassem Jerusalém. Era certo que não tinha muitos aliados, mas o que os
barões fariam se perdessem a ajuda da ordem? Sobraria apenas o Hospital, mas
essa segunda ordem não era nada mais do que a segunda. Sim, apenas a segunda.
Para Gerard, só havia a primeira, o Templo, que ele chefiava como líder supremo
e inquestionável.
Bebeu um pouco do vinho diluído em uma taça coberta por brilhantes. As
joias incrustadas refletiram a luz do sol na barba castanha, deixando-a levemente
colorida. Gerard colocou o copo em uma mesa ao lado e riu mais uma vez. O
povo se movia em frente ao Templo, procurando por mais informações. Que seus
cavaleiros tentassem conter os ânimos e acalmar os desesperados. Ele não se
importava se falhassem ou conseguissem. Tanto fazia que a ralé chorasse ou
gritasse. Eles valiam apenas para serem controlados como um rebanho que lhe
forneceria o poder que desejava.
Uma porta se abriu e Gerard despertou de seus devaneios. Olhou para a sala
enfeitada de tapetes em volta e dispensou os criados com um gesto. Os dois
homens que entraram eram importantes; ninguém deveria ouvir as conversas que
teriam.
Renaud de Châtillon apareceu vestido em armadura. Não a tirava por nada.
Vivia com aqueles pedaços de metal no corpo. A cota de malha estava sempre
protegendo o peito, como se todos no mundo fossem seus inimigos prontos a
apunhalá-lo. Talvez fosse diferente. Era o mundo era estava sempre com medo
de ser atingido pela espada incansável de Renaud. Apareceu com uma
gargalhada ecoando entre a barba ruiva. Os cabelos curtos e encaracolados
estavam descobertos. Ao menos não usava o elmo com tanta freqüência quanto
portava a armadura e a espada.
Guy de Lusignan apareceu logo atrás do amigo. Tinha feições diferentes da
brutalidade de Renaud. Era um homem ainda mais refinado do que Gerard. Tão
bonito que atraíra a vontade frívola de Sibylle, Guy tinha a face branca mesmo
no calor de Ultramar. O rosto limpo não era ocultado por barba ou por marcas de
guerra ou da adolescência. Os cabelos loiros eram longos e estavam amarrados
com uma fita negra, bordada com fios de ouro. Os olhos azuis, um pouco
hesitantes, procuraram por Gerard e encontraram um templário sorridente, de
braços abertos para a dupla.
- E então, meus amigos? Prontos para a coroação? – perguntou o templário.
- Devemos estar! Devemos estar! Hoje teremos um rei – disse Renaud,
batendo nas costas de Guy. O provável rei incomodou-se com o gesto, mas não
disse nada. Abriu a boca apenas para falar sobre o futuro.
- Precisamos saber se Sibylle realmente me concederá a coroa – disse o
loiro.
Gerard cruzou os braços e respirou um ar pesado.
- Não é possível que ela ainda não esteja certa.
- Você também não tem certeza? – perguntou Guy, hesitando ainda mais ao
perceber que o aliado não poderia apoiá-lo com as palavras de certeza naquele
assunto.
- Não se preocupe. Creio que tudo ocorrerá como deve ser. O patriarca já
deve estar com ela. Vou ter com nossa futura rainha também. Hoje você sairá rei
de Jerusalém daquela igreja, meu caro. Não se preocupe, pois você será rei. Deus
sabe que estou certo.
- O Senhor não nos negará nada. Seus templários estão prontos para lutar? –
perguntou Châtillon, que também era conhecido por ser o senhor de Kerak,
castelo das terras chamadas de Ultrajordão.
- Sim, estão. Nossas tropas unidas poderão sobreviver a um cerco, Renaud.
E eles não ousarão manter um cerco por muito tempo.
- Bom... Bom... – disse Renaud, olhando pela janela. Coçava a barba com
uma mão enquanto a outra estava apoiada no cabo da espada. Pensava em guerra
e se divertia com os saques que ainda poderia obter.
- Vou ter com Sibylle e me certificar de que teremos o rei certo esta noite.

*****

De Ridefort imaginava como abordaria Sibylle. Metade da tarde já havia


passado. O sol a pino e o movimento de Jerusalém ainda constante lá fora
perturbavam o grão-mestre. O burburinho que vinha de fora quase se perdia nos
corredores sombrios do palácio e o calor não era um incômodo tão grande lá
dentro, todavia o templário se incomodava, simplesmente porque ainda faltavam
algumas peças naquele jogo.
Andou pelos corredores do palácio para encontrar a pretensa rainha. Passou
por servos atarefados com os preparativos para a cerimônia. No caminho,
pensava na vingança que teria contra Raymond de Trípoli. Mais de uma década
antes, quando Gerard chegara à Terra Santa como um simples cavaleiro
flamengo, o senhor de Trípoli lhe prometera a primeira herdeira de posses que
houvesse em seu condado. Quando a filha do nobre que governava Brotun, um
dos feudos do condado, surgiu como dona das posses de seu falecido pai, Gerard
imaginou que já estaria galgando o primeiro degrau para o poder que tanto
ansiava, porém a história foi diferente. Raymond entregou a jovem a um pisano
que lhe deu o peso dela em ouro. Foram dez mil besantes em troca de uma
herdeira e da inimizade eterna de Gerard. E não era bom ter alguém tão
ambicioso como inimigo. Raymond provaria naquela noite do próprio veneno.
Veria o que significava perder o poder quando ele já estava formigando entre os
dedos.
Encontrou Sibylle se alimentando. Ela comia algumas frutas frescas que
haviam acabado de chegar do mercado. Os dedos frágeis e belos pegavam
delicadamente os pedaços já partidos e os levava aos lábios tenros. Gerard fez
uma reverência para a princesa, futura rainha. Ela, com seus cabelos negros e
olhos verdes encantadores, levantou-se das almofadas em que se sentava
confortavelmente para recebê-lo. Sorriu com graça e estendeu a mão para ser
beijada.
- É um prazer vê-la, minha rainha – cumprimentou ele, cortês.
Ela negou o cumprimento balançando o indicador delicadamente, enquanto
um sorriso maroto denunciara o prazer de ouvir o título saindo da boca do
templário.
- Ainda não sou rainha, senhor templário.
- Mas será. Posso garantir que será. Minha senhora, os templários já estão
prontos para jurar fidelidade a sua causa, a se ajoelhar diante de Vossa
Majestade. Por que não aceitar logo esse título então?
- Porque há muito o que decidir. E os barões?
- Ah, os barões... – Abanou o ar em um gesto de escárnio. – Eles nada
farão, pois o direito é de ninguém menos do que da senhora. A senhora tem o
poder. É a irmã legítima do nosso falecido Balduíno IV. Como eles não a
aceitariam?
Ela andou até se aproximar da mesa enfeitada com jarros de água e tigelas
de fruta. Havia castiçais de ouro brilhando com a luz forte que passava pelas
janelas. Pegou um copo de vinho e bebeu um pouco, oferecendo a Gerard. Ele
negou polidamente.
- Não sei. Eles querem minha irmã Isabel no poder. Ou melhor, querem
Raymond. Talvez seja melhor eu conferir o poder de regência a Raymond – disse
ela. Queria ser rainha, mas tentava imaginar como manteria o poder, como
controlaria todos aqueles barões revoltados. Não poderia se dar ao luxo de
perder o reino que o irmão e o pai lutaram tanto para manter apesar de todas as
adversidades.
- Sim, Raymond com certeza é uma boa escolha, minha rainha. Juro que é.
Ele tem o apoio de todos os barões e ainda é reconhecido por seu contato com os
muçulmanos. Não, pensando bem esse contato com os infiéis não é uma
vantagem, ao menos não ao meu ver. Mas, ainda sim, ele é um bom governante –
falou Gerard, circulando a rainha enquanto jogava com as palavras.
- Sim, ele conseguirá controlar os barões.
- Não, minha rainha. Não, Raymond é mais brilhante do que isso. Ele terá o
apoio total dos barões e ainda suas alianças com os muçulmanos. Será um
governante de crédito. Um governante que terá todo o espaço em Ultramar.
Sibylle pensou bem. Não era a primeira vez que ouvia aquilo. Raymond de
Trípoli era sim conhecido como um governante ideal para Ultramar. Se tivesse a
regência ou a coroa como ansiava, não permitiria que ela exercesse nenhuma
influência. As palavras de Gerard eram mais que corretas. Seria um perigo
manter contato estreito com Raymond sem ter assegurado o poder de rainha.
- É uma pena também que Raymond seja tão próximo dos muçulmanos.
Assim ele não nos trará a guerra que precisamos para retirar de vez essa corja de
infiéis de Ultramar.
Sibylle continuou pensando enquanto Gerard falava. Sem saber, já fora
fisgada pela isca envenenada do templário. E fora com facilidade, pois no fundo
estava encantada com o perigo que aquelas palavras ofereciam. A serpente a
hipnotizara.
- Eu verei o que farei quando for rainha. Mas acho que já me decidi.
- Sim, senhora. Saiba que os templários e a Igreja sempre estarão do lado de
Vossa Majestade... – Sorriu – Temos tanto a senhora quanto seu marido em alta
conta e contamos com vocês para termos os justos governantes da cidade santa
onde morreu nosso Senhor.

*****

Guy sorria farto como as areias do deserto ao lembrar-se das palavras de


Gerard. Segundo o templário, a reunião com Sibylle fora um sucesso. Ele
assegurara que a mulher passaria a coroa para o marido. Agora, estando eles na
igreja em Jerusalém, faltava apenas abrir as portas do cofre que guardavam as
joias da coroa. Guy olhava para a chave nas mãos de Gerard e sorria. Às vezes
desviava o olhar para a esposa; encantava-se com a beleza de Sibylle e com o
poder que ela poderia lhe dar. Os dois governariam juntos para o sucesso de
Ultramar.
Havia, no entanto, um problema. Precisava-se de três chaves para abrir o
cofre. Uma delas estava com o templário que já ansiava por pegar as joias e
colocá-las sobre as cabeças que julgava serem as certas. O patriarca de
Jerusalém tinha a segunda. A terceira estava nas mãos do grão-mestre do
Hospital, Roger des Moulins. O homem ainda não chegara. Estava atrasado para
a festa que deveria ser a coroação.
A igreja fora enfeitada com grandes tapeçarias que se estendiam pela janela.
A nave ampla estava cheia de nobres e pessoas ricas de Jerusalém, inclusive
alguns comerciantes de Gênova e Pisa. Os cavaleiros circulavam o grupo do
centro, composto por Gerard, Heráclio, Guy e Sibylle. O ruivo Renaud de
Châtillon observava de longe, contente com a vitória que teriam no dia. Nem se
preocupava em olhar para os lados para verificar se o grão-mestre hospitalário
estava chegando.
- Ele está demorando – sussurrou Guy para Gerard.
- Ele virá. Ele tem que vir.
E o homem finalmente apareceu. Roger des Moulins caminhava com passos
duros encoberto pelo manto negro da Ordem do Hospital. A cruz branca
estampada no peito do hospitalário era um símbolo da fúria vívida em seu rosto.
Gerard sorriu ao vê-lo e fez sinal para que se aproximasse. Foi um
movimento inútil, visto que o grão-mestre do Hospital já se colocaria entre eles
de qualquer maneira. O templário percebeu os problemas que teria assim que viu
a força com que o homem segurava a chave. Ele passou pelo grupo e seguiu para
o recinto onde estava o cofre com as joias. Os outros os seguiram. Sibylle
caminhou na frente, acompanhada pelo marido e pelo patriarca. Gerard ficou
parado por alguns momentos balançando a cabeça, depois os seguiu.
- Como vocês podem negar a promessa que fizeram a Balduíno? –
perguntava Roger com as faces vermelhas quando Gerard entrou. Apontou um
dedo acusador para o templário. – Perceba o que está fazendo, De Ridefort. Isso
não é certo.
- Acalme-se, Roger.
- Ainda pede que eu me acalme? Vocês estão quebrando uma promessa.
Balduíno nos fez prometer que os reis do Ocidente decidiriam quem governaria.
Agora vocês estão usurpando o poder.
- Roger... – tentou dizer Gerard.
- O que tem a dizer, templário?
- Não existe promessa a cumprir. Balduíno fez um pedido enquanto estava
tomado pela doença. Não sabia mais o que falava. A lepra já havia acabado com
ele.
- Não venha com desculpas. Balduíno sempre soube o que fazer. Eu não
compactuarei com suas atitudes – disse ele, jogando a chave pela janela. Olhou
nervoso para todos e saiu depressa.
Guy e Sibylle tentaram andar para chamá-lo de volta, mas Gerard estendeu
um braço, impedindo-os.
- Não, deixem-no ir. Mandem um serviçal pegar a chave. Não precisamos
do Hospital. Quem precisa de hospitalários quando se tem templários?
Ninguém se moveu, a não ser o patriarca, que tratou de chamar quatro
servos para começarem a procurar pela chave. A coroação deveria acontecer
ainda naquela hora.
*****

Melisende parou ao lado de Guillaume. Andou até o templário assim que


viu Roger entrar nervoso na igreja. Queria saber o que estava acontecendo, pois
o hospitalário passara direto por ela e estava claro no rosto barbudo do homem
que suas intenções não eram boas.
- Ele não entregará a chave – sussurrou ela para o templário. Não que
estivesse torcendo contra Sibylle, mas estava simplesmente concluindo o óbvio.
- Suponho que não. Notou que não há nenhum hospitalário aqui?
A observação do templário estava correta. Melisende olhou para os lados
para conferir e não enxergou nenhum dos cavaleiros monges conhecidos pelo
manto preto e a cruz branca. Ela sentiu que era uma pena, porque simpatizava
mais com os hospitalários do que com os templários. Gostava das doações mais
frequentes que o Hospital fazia e ainda da missão que tinha de cuidar dos
peregrinos doentes e cansados. Os templários eram um grupo voltado mais para
a guerra, com muito menos ações sociais. Aos olhos de Melisende, isso apenas
demonstrava como aquela coroação estava errada. Se os hospitalários
recusavam-se a participar e os templários apoiavam, era porque o Reino Sagrado
de Jerusalém fora gravemente tocado pelo pecado.
- Está pensando demais, minha dama. Quantos julgamentos já fez nessa
cabecinha morena?
Ela olhou indignada e pronta para responder. Abriu a boca para soltar um
desaforo para o templário.
- Shh – chiou Guillaume, colocando um dedo nos lábios. – A coroação vai
começar. Precisamos de silêncio, minha dama.
Vermelha de raiva, Melisende olhou para frente. Lá estava a bela Sibylle
vestida com seus trajes bordados em ouro. Todo o tecido era branco, um símbolo
da pureza que deveria ser seu reino. Melisende duvidava que assim o fosse.
Nada em Ultramar era puro. Nada.
O patriarca aproximou-se dela cuidadosamente. Caminhava com passos
cadenciados segurando a coroa. O metal dourado brilhava como uma estrela no
meio da igreja. A coroa foi acompanhada pelos olhos de todos até que foi
colocada sobre a cabeça de Sibylle. O patriarca ergueu os braços e a nomeou
rainha de Ultramar.
Havia uma segunda coroa. Essa foi logo trazida por um pajem. O garoto
caminhou com cuidado para evitar cometer qualquer erro naquele momento
importante. Parou em frente à rainha e esperou. O patriarca olhou para a segunda
coroa e Melisende temeu pelo que aconteceria. Alguém seria coroado naquele
dia e ela não encontrava ninguém que pudesse ser o governante que Balduíno IV
realmente gostaria.
- Agora, Vossa Majestade deve escolher um homem digno de reinar a seu
lado.
Sibylle sorriu coroada. Respirou levemente e olhou a sua volta. A plateia
esperava para que a decisão fosse logo tomada. O destino de Jerusalém estava
nas mãos da mulher. O fato a deixava lisonjeada, pois todos aqueles homens, que
se julgavam donos da verdade e donos do povo, agora dependiam dela para
serem governados. Quem ela escolhesse seria seu parceiro nesse governo. E
Sibylle já sabia quem era.
- Guy de Lusignan, compareça à minha frente.
Houve alguns murmúrios na igreja logo contidos pelos olhares de Renaud e
Gerard.
- Guy... Mas logo Guy... Balduíno não aprovaria... Nem os barões –
sussurrou Melisende.
- Os barões não aprovam nada disso, minha dama. E nosso falecido rei...
bom... ele já está retornando ao pó – falou Guillaume. Seus olhos acompanharam
Guy tomando posição em frente à rainha. Soltou o ar em sinal de desagrado, mas
tomando cuidado para que ninguém notasse. Não pretendia fazer inimigos ali. Já
teria problemas demais seguindo as ordens do Templo. Haveria barões e
cavaleiros lutando contra ele em breve, se, de algum modo, a situação não fosse
revertida. Era uma pena, pois ele estava no Oriente para combater infiéis e não
cristãos. A própria regra do Templo e os ensinamentos de São Bernardo
orientavam para que um templário nunca erguesse sua espada para um irmão em
Cristo. Suas vítimas seriam apenas os pagãos. Mas, no fundo, guerra era guerra e
Guillaume gostava de qualquer uma. Era como lidar com mulheres, na falta das
belas, nada que um punhado de vinho e uma feia não resolvessem.
- Ele declarará guerra contra meu tio. Meu tio não deixará de apoiar
Raymond – sussurrou Melisende.
- Acalme-se, minha dama. Não tema precipitadamente.
Guy ajoelhou-se diante de Sibylle. Tinha uma posição de humildade que
tornava a cena bonita. Seus modos refinados permitiam que tudo parecesse justo
e tornavam precipitados os temores de pessoas como Melisende. Sibylle pegou a
coroa na almofada que o pajem segurava e a colocou na cabeça de Guy. Agora
Jerusalém tinha um novo rei e ele se levantava para ficar ao lado da rainha.
Um a um os nobres locais se movimentaram para se ajoelhar e prestar
homenagem ao casal de soberanos. Renaud andou sorrindo e cometeu a ousadia
de beijar a mão de Sibylle sem que ela lhe oferecesse. A rainha fingiu que não se
incomodou, mas olhou para o marido em sinal de repreensão. O grão-mestre do
Templo foi o próximo. Encarou com cumplicidade os dois e jurou que os
templários morreriam lutando pelos novos soberanos de Ultramar.
Guillaume não gostava daquelas demonstrações de educação exagerada e
homenagens, ao menos não quando não eram para ele. Ele ficou porque era seu
dever como templário de renome manter-se no local, tanto como vigia em caso
de invasão quanto para demonstrar o apoio que sua ordem estava oferecendo.
Ele caminhou para prestar homenagem juntamente com o marechal, Jacques de
Mailly.
- Novos soberanos... nova história – disse Guillaume.
- Que Deus abençoe a majestade de Sibylle e Guy de Lusignan – retrucou o
marechal.
- Amém – concluiu Guillaume, já preparando-se para se ajoelhar e
pensando se Dante não teria um versículo bíblico para aquele momento. “Temos
uma bela rainha”, pensou pouco depois, enquanto olhava para a soberana. Ela
realmente era bela.

*****

Gerard de Ridefort observava os convidados saírem da igreja. O sol já


quase se punha e Jerusalém preparava-se para o sono. Um templário acabara de
avisar que não havia sinal de nenhum ataque dos barões. Eles ainda deveriam
estar reunidos em Nablus, conspirando para colocar no poder a irmã de Sibylle,
Isabel, e seu marido, Onfroy.
Renaud de Châtillon aproximou-se espremendo a barba ruiva com a mão
inteira. Quase gargalhava de tanta felicidade, pois agora tinha um grande aliado
no trono, alguém tão próximo que não interferiria em seus planos. Parou ao lado
de Gerard e observou os templários que cercavam o grão-mestre.
- Satisfeito? – perguntou o senhor de Kerak.
- Ainda pergunta? Essa coroa compensa o casamento de Botrun. Ah,
compensa em muito, Renaud. Agora, lembre-se de manter seus homens
preparados. Ainda podemos ser forçados a esmagar Raymond.
Renaud coçou o queixo sem se preocupar em esconder uma risada maléfica.
- Agora eu o pergunto: quer a vitória final com sangue ou com o veneno da
palavra? – perguntou o senhor de Kerak. A face de Renaud agora não tinha os
modos belicosos e impulsivos do guerreiro selvagem que o mundo enxergava.
Gerard observou cauteloso aqueles olhos estreitarem debaixo das sobrancelhas
ruivas. Aquele era um homem perigoso, cuja ambição não tinha rédeas para
conquistar pela palavra, veneno ou espada.
- Fala de guerra?
- Onfroy IV de Toron... É um bom garoto.
- Um garoto que está junto dos barões. Está com medo da guerra,
Châtillon?
- Guerra? Guerra contra os barões? Pensa que vou fugir da peleja contra
esse povinho?
- Não, não penso, meu caro. Conto com você para ajudar-me a apoiar
nossos novos soberanos. É hora de nos mantermos no poder. Faça o que deve ser
feito – conspirou De Ridefort, notando como alguns dos nobres já o observavam
com maior reverência.
- Uma vez com o poder na mão, minha espada não permite que ele caia.
- Que assim seja.
Renaud deu as costas para o templário e saiu gargalhando. Deixou Gerard
com seus homens para discutir o futuro militar de Jerusalém.
- Quantos homens podemos convocar para breve, Jacques?
- Imagino que 280 cavaleiros, talvez mais se a mensagem chegar a todos os
postos a tempo.
- Pode chamar os cavaleiros de La Fève, Guillaume?
- Sim, senhor, o quanto antes. Reforçaremos o exército em poucos dias em
caso de necessidade, porém, se os retirarmos das bases próximas ao mar da
Galiléia, teremos perdido todas aquelas terras para os barões e duvido que as
consigamos de volta, senhor.
Gerard virou a cabeça para o lado, pensando um pouco. Estalou as juntas do
polegar fechando os punhos com força.
- Melhor defendermos Jerusalém. Vamos recuar e deixarmos nossos
esforços aqui dentro. Sibylle tem apoio na cidade, apesar de o povo não dar
muito valor a Guy. Com sargentos e cavaleiros, teremos homens suficientes para
resistir ao cerco, ainda mais com os guerreiros de Renaud aqui.
- Senhor, se me permite dizer, não acredito que possamos resistir à força de
todos os barões – comentou Jacques. O marechal não conseguia se calar frente
aquele absurdo. Não era capaz de admitir que a promessa a Balduíno IV fora
quebrada pelo Templo. Aquilo era demais para ele que tinha tanta fé no que os
templários podiam fazer por Ultramar.
Gerard fingiu que não ouviu o comentário. Olhou para os muros da cidade
avaliando qualquer coisa, talvez apenas desviando-se para irritar Jacques.
Conseguiu, pois a vontade do marechal foi dar as costas e fugir dali. Foi o
juramento de obediência que o manteve estacado diante do homem que
enervava.
Guillaume quis intervir. Não queria que a relação entre Gerard e Jacques se
desgastasse. Os dois poderiam se completar em nome do Templo. O grão-mestre
tinha habilidade e ambição que levariam a sabedoria e fé de Jacques até o topo
do poder. Assim os templários seriam uma ordem forte, impossível de ser
vencida. O problema era convencer aqueles dois daquilo.
- Senhores, acho que precisamos traçar uma estratégia para evitar a guerra.
É necessário submeter os barões sem que eles se ressintam dos novos
governantes – sugeriu com a experiência de quem sabia que ser odiado por gente
demais nunca era boa ideia.
- Evitar a guerra talvez seja bom, Guillaume, mas não sei se bom para nós.
Sibylle e Guy devem crer que precisam da força dos templários.
- Mas quem na Terra Santa não precisa? – questionou Jacques, soltando as
palavras com mais rispidez do que pretendia.
- Lembre-se que o Hospital rivaliza conosco – retorquiu Gerard, falando
apenas para irritar o marechal. – Mas que seja. Mantenham seus homens
preparados. Precisamos avisar os outros templários.
- Senhor, permita-me avisar o Templo em Jafa. Depois seguirei para La
Fève para chamar por mais cavaleiros.
Gerard olhou para o subordinado como um líder que sabe do poder supremo
que tem sobre seus homens. Poderia negar, poderia xingar e tudo o que
Guillaume faria era abaixar a cabeça e concordar. No entanto, ele gostava
daquele templário.
- Pode ir. Muito bem... Vocês já têm suas ordens. Com licença, senhores,
mas tenho meus afazeres.
Os templários fizeram uma reverência para a saída do grão-mestre e
ficaram parados. Guillaume procurava por Melisende, enquanto Jacques apenas
esperava sua ira se esvair e um bom modo sempre era conversar com o amigo.
- Não acredito que ele está fazendo isso - xingou o marechal.
- Jacques, não fale assim. Ele acabou de colocar o rei e a rainha nas mãos
do Templo. Eles dependerão mais de nós do que nunca. O poder do Templo
apenas aumentou – justificou Croix Bleue.
- Mas a que preço, Guillaume? – exaltou-se Jacques, fazendo um arco com
o braço para apontar a cidade. – Jerusalém entrará em guerra. Perderemos
homens lutando contra irmãos cristãos.
- Pode ser que não haja luta. Gerard entende muito o que acontece no
palácio. Ele poderá evitar a batalha e ainda nos manter do lado certo. Ainda
ocorreu a deserção do Hospital. Isso apenas nos favorece. Acredite, Jacques.
Não concordo com a quebra do juramento, mas temos que concordar que a
estratégia apenas nos favoreceu e nos favorecerá ainda mais se não houver
guerra.
- Não sei como você pode concordar com tudo isso, Guillaume. Não penso
que Gerard pensou em tudo isso ou muito menos que ele tenha pensando em
beneficiar o Templo.
- Não sei, Jacques. Não sei, mas foi isso que ocorreu e eu me atenho aos
fatos e à amizade e lealdade que tenho por vocês dois. Gostaria que vocês
começassem a concordar em mais coisas.
Jacques abanou o ar como se aquela hipótese fosse um caso perdido. Saiu
sem se despedir, ainda custando a crer que fazia parte de um grupo que quebrara
um juramento feito a um rei.
Ninguém mais saía da igreja. Apenas alguns grupos ainda conversavam na
porta. Um deles era formado por Dante, mais dois templários, Melisende e a
dama que fazia companhia para ela. Guillaume se aproximou e deu ordens para
os outros dois cavaleiros seguirem Jacques. Ele precisaria deles para a vigília da
noite. Dante ficou esperando mais ordens.
- Seguiremos para Jafa amanhã. Não poderemos nos dar ao luxo de seguir
uma caravana ou nada assim. Iremos apenas nós. Dante e eu voltaremos ao
Templo e dormiremos lá. Amanhã seguiremos para pegá-la, Melisende. Ahmad e
Henri irão conosco.
Melisende viu os templários darem as costas e partirem. Guillaume estava
sério e não a provocara. Normalmente falaria as palavras em tom irônico ou até
de ordem, apenas para irritá-la. Agora não, parecia preocupado com alguma
coisa. Ela também estava. Precisava ver a prima logo.
Capítulo Dois
O primeiro elemento que os impressionou quando colocaram os pés na
Terra Santa foi o sol. A luz era diferente das terras nórdicas de onde vinham. Não
havia as nuvens densas ou o céu acinzentado que desrespeitava os sorrisos
felizes de quem queria se apaixonar. O que havia em Ultramar era um sol que
parecia fruto do castigo divino. Eles podiam jurar que haviam feito algo muito
errado para serem punidos com tanta força por Deus. Estavam esgotados de
tanto cavalgar naquela terra seca que era composta apenas de desertos e mais
desertos. Não conseguiam enxergar um ponto fresco que fosse, nem um sinal de
água. Até os cantis estavam quentes. Duvidavam que poderiam saciar a sede
com o que traziam. O sol já havia fervido tudo.
Karsten de Tapferklinge era o primeiro daquela fila de quatro
companheiros. Era o único que não havia pensando mais de dez vezes que havia
errado em partir naquela empreitada. Os outros já estavam na qüinquagésima e
um deles já amaldiçoava o grupo todo por ter sido convencido de que poderia
salvar sua alma indo para aquele inferno. Karsten esforçava-se para espantar os
maus pensamentos. O sol e o desânimo exauriam suas forças, devoravam
rapidamente sua vontade como um cão faminto encontrando carne fresca.
O cavaleiro não podia acreditar que saíra do feudo do pai nas terras do norte
da Europa para fraquejar justamente quando estava próximo de cumprir sua
promessa. Em cima do cavalo, ele olhou para trás para ver o estado dos outros.
Estavam tão suados quanto ele, vivendo um momento desgraçado que
compartilhavam desde que desceram do barco em Beirute. Há dias cavalgavam
pelas estradas, acompanhando mercadores para chegar a Jerusalém e
encontravam apenas o deserto. Ao menos havia outras cidades no caminho.
Karsten tentava se lembrar o nome da próxima. Jafa. Estava quase certo que era
Jafa. Só não jurava que aquele era o nome porque suspeitava que o sol já estava
fritando sua cabeça.
- Já estamos quase chegando. Não desanimem – disse Karsten, tentando
imbuir nos companheiros um sentimento que ele já não conseguia mais manter
em si mesmo.
- Por que ele tem que falar essas besteiras? Nem sabe onde estamos. Mande
seu primo calar a boca, Dedrick – disse um dos companheiros. Era um homem
alto, tão alto que chamava atenção por onde passava. Era a típica imagem do
guerreiro nórdico. Usava uma barba lisa e amarelada. Os cabelos eram curtos,
tão claros quanto os pelos do rosto. A face avermelhada por causa do sol
escondia os olhos azuis. Seu nome era Heiner e era o mais velho dos três.
Homem de guerra. Diziam que nascera com uma espada na mão. Diziam, em
tempos passados, que era abençoado pelos deuses da guerra. Agora o elogiavam
falando que o Senhor dos Exércitos sempre estava com ele.
- Acalme-se, Heiner. Também estou nervoso. Até agora não encontramos os
templários. Poderíamos ter pedido a eles que nos levassem até Jerusalém –
comentou Dedrick, o único ali que ainda tentava manter o bom humor, tudo
porque era aquele com mais vontade de permanecer na Terra Santa. Mesmo com
os pensamentos insistindo tanto para que fosse embora, havia uma parte dele que
dizia que seu destino seria traçado ali. Nascera para lutar envergando a cruz
vermelha no peito.
- Lá vem você de novo com esses malditos templários. Templários...
Templários... onde já se viu... Templários...
- Algum problema aí atrás? – perguntou Karsten, olhando de novo para os
companheiros para conferir se estava tudo bem.
- Não, são só as moças discutindo de novo – disse Gareth, o padre. Ele
ainda tentava descobrir porque saíra da sua terrinha para despencar na Terra
Santa. Com certeza não era por fervor religioso. Contentava-se apenas em rezar
pelos soldados que partiam para lutar.
- Moça? Moça é o pai que te fez o leproso que você é, seu desgraçado! –
gritou Heiner.
- Não ponha meu pai na história, Heiner. Todos sabemos que ele não é
culpado de ter engravidado sua mãe.
- Juro que se eu não estivesse suando feito um porco, já teria o partido ao
meio, Gareth. Juro por Cristo.
- Não use o santo nome em vão. Ah, seu filho pagão, ainda tem muito a
aprender.
- Parem com essa discussão. Já posso ver a cidade! – anunciou Karsten.
Eles já conseguiam enxergar Jafa ao longe. A cidade ficava a beira mar e
Karsten não parou de se condenar por não ter ido de navio direito para lá até
finalmente descerem dos cavalos. Estavam esgotados e ainda falta muito para
chegarem a Jerusalém. Pela nona vez, veio o pensamento de tomar um barco e
voltar para a Europa. Lá ele viveria e se casaria sem se preocupar com
promessas ou com batalhas sob aquele calor escaldante no meio do deserto. Não,
pensando bem, não. Karsten não convivia bem consigo mesmo a menos que
estivesse em uma missão importante, cumprindo um objetivo misterioso
qualquer.
Desceram dos cavalos enquanto os mercadores descarregavam os camelos e
preparavam-se para levar suas mercadorias para o mercado. Gareth tomou a
frente para agradecer pela companhia. Finalmente lembrou-se porque estava ali.
Era o tradutor oficial do grupo e ainda precisava ensinar a Karsten e a Dedrick o
idioma árabe. O primeiro apenas porque queria saber e o segundo porque insistia
que ficaria para sempre em Jerusalém.
Gareth era o mais baixo deles. Não tinha nada do porte de guerreiro, mesmo
porque nunca se interessara por batalhas. Vivera na Inglaterra durante muitos
anos e nunca imaginara que precisaria sair de lá, até resolver viajar até o Sacro-
Império Germânico e conhecer a família Tapferklinge. Maldito fora o dia em que
o colocaram para enviar a mensagem. Ainda se perguntava por que insistia em
aprender tantas línguas se, no entanto, gostava mesmo era de ficar em casa,
movendo as pernas apenas para caminhar até a igreja.
- Eles disseram que devem ficar por aqui. Parece que há boatos de guerra
em Jerusalém – disse Gareth, quando voltou para falar com os outros.
- Guerra? É o tal Saladino de quem falavam em Acre? – perguntou Dedrick,
que tentara usar seu árabe enquanto passavam pelas cidades ou mesmo na
caravana.
- Não sei. Não consegui saber muita coisa. Eles acabaram de receber as
notícias. Parece que não seguirão para lá. Precisaremos encontrar outros guias.
- Será que é tão difícil chegar lá a partir daqui? – perguntou Karsten.
- Não sei, mas não pretendo me arriscar – alertou Gareth, coçando a
tonsura. O padre bocejou de sono e olhou para os lados procurando por uma
estalagem. Precisavam descansar com urgência.
- Vamos procurar por um Templo e saber se eles podem nos ajudar. Eles
devem escoltar os peregrinos até o Santo Sepulcro – falou Dedrick, animado. Era
o mais novo do grupo. Tornara-se cavaleiro há não mais que um ano e já se
sentia empolgado com a possibilidade de vencer guerras em nome de Deus,
apesar de ter sujado a espada de sangue apenas em nome da família. Primo de
Karsten, tinha pouca semelhança com o parente. Enquanto os cabelos do
primeiro eram negros, os de Dedrick eram loiros, quase dourados. Os olhos eram
verdes e a face jovem tinha um ar de quem ainda não saíra da adolescência e
guardava todos os sonhos da juventude intactos.
Karsten era mais frio e compartilhava poucos sonhos com o primo. Ele
podia até dizer que praticamente não sonhava. Só pensava no que vivia e nas
promessas que deveria cumprir.
- Explique agora por que não viemos de barco até aqui – exigiu Heiner,
cruzando os braços na frente de Tapferklinge. O cabelo dele estava empapado de
suor e fedia bastante por causa da longa viagem.
- Só conseguimos um navio para Beirute. Não havia como viajarmos para
cá. Você me fez a mesma pergunta em Acre. Será que não cansa?
- Sim, estou cansado de viajar.
- Então por que veio? – perguntou Dedrick, colocando-se em posição para
defender o primo.
- Porque tenho que salvar minha alma. Só por isso – disse o cavaleiro,
movendo-se para verificar como o cavalo estava. Custara muito caro colocar
aqueles animais no barco e agora ele não poderia se dar ao luxo de perdê-lo. –
Disseram que só assim eu salvaria minha alma. E eu caí na besteira de acreditar.
– De fato, disseram, após ameaçarem apedrejar sua família.
Gareth preocupou-se. Sempre ficava preocupado quando Heiner tinha uma
de suas recaídas na fé. Nessas horas, o padre o tratava quase como uma criança
doente.
- O papa emitiu uma bula afirmando que a alma de todos que morressem
em batalha contra os infiéis seria salva, Heiner. Você não pode duvidar disso.
- Eu não consigo mais contar o número de vezes que você falou isso
comigo desde que saímos de Tapferklinge.
- Vamos parar com as discussões e conseguir uma estalagem. Pode nos
conseguir isso, Gareth? – perguntou Karsten, querendo acabar com a briga que já
estava para começar.
O padre conseguiu um lugar para dormirem em pouco tempo. Tentou
também adquirir algumas informações sobre o que estava acontecendo em
Jerusalém e soube da possível guerra entre os barões e o recentemente coroado
Guy de Lusignan. Os quatro se reuniram mais tarde em uma taverna para discutir
a situação:
- Como pode querer lutar na Terra Santa? Deveriam estar aqui para proteger
o lugar contra os infiéis. Agora estão perdendo tempo lutando entre si? –
impressionou-se Gareth, sentindo-se insultado.
- Os templários também vão lutar? – perguntou Dedrick.
- Não sei. Provavelmente. Eles não estão aqui para isso?
- Só quero saber quando iremos para Jerusalém. Conseguiu saber de algum
grupo que vai viajar para lá? – perguntou Karsten, mais preocupado em
apresentar-se ao governante local, qualquer que fosse, e iniciar as lutas pela
Terra Santa. Decidiu por si só que se havia algum problema entre os barões e o
rei, uma das partes estaria errada e mereceria punição. Ele estaria do lado de
quem desse a punição, erguendo a espada para cumprir sua promessa de
defender o Santo Sepulcro.
- Disseram-me para procurar os hospitalários. Eles são os únicos que
viajarão. Ao menos é o que dizem os boatos – respondeu Gareth.
- Ah, hospitalários. O que são eles? Não são nada. Por que não procuramos
os templários? – questionou Dedrick.
- Maldição. Pare de falar nesses templários, Dedrick. Não aguento mais. –
Heiner odiava repetições de um mesmo tema, mas mesmas discussões, a mesma
reclamação. Talvez por isso se irritasse com tanta freqüência com o grupo. Eles
pareciam um bando de mulas teimosas que insistiam e insistiam no mesmo
objetivo ou conversa até exaurirem todas as palavras que poderiam falar.
- Parece que seu bom humor ainda não voltou, não é? – Gareth coçou sua
tonsura consternado. Heiner estava cada vez mais mal humorado. Estivera
propenso a brigas desde que saíram de Beirute. Era bastante diferente do gigante
risonho que o padre conhecera em Tapferklinge.
- Não vai voltar tão cedo. Sua mãe ainda não voltou do Inferno com ele –
retrucou o nórdico, batendo a caneca de vinho na mesa.
Gareth nem pensou em responder ao insulto. Dava valor demais a seus
dentes para ameaçar perdê-los para um soco irado de Heiner.
Dedrick riu, divertindo-se com o padre intimidado. Recebeu um olhar de
reprovação que quase o jogou da cadeira. O humor de Gareth evaporou-se com
aquela ofensa.
- Acho melhor nos retirarmos e procurarmos os hospitalários amanhã –
decretou Karsten. Já estava cansado de ouvir o grupo brigando durante toda a
viagem. Agora, com a violência prestes a eclodir entre eles, não tinha paciência
para tentar manter o moral de ninguém.
Karsten saiu da taverna sozinho para andar até a estalagem. Estava sem
armadura e portava apenas a pesada espada na cintura. Olhava para as pessoas
caminhando em Jafa e impressionava-se ao notar que muitas vezes os francos se
misturavam aos nativos. Eles também tinham turbantes e até as mulheres
portavam véus como as muçulmanas. Karsten estranhara muito, afinal imaginara
que estava ali para lutar contra o Islã e não para adquirir seus hábitos. Por pura
ingenuidade, pensara que encontraria apenas francos vivendo em Jerusalém e em
Ultramar, dominando tudo e fazendo sua cultura prevalecer. Ledo engano. O
coração se apertou ao imaginar que nada era como esperava. Ultramar refletia a
cultura oriental tanto quanto a ocidental, uma mistura sensata de costumes para
unir os povos.
Jafa não era a principal cidade de Ultramar, mas estava entre as mais
importantes. Era um condado a beira-mar que já estava nas mãos dos francos há
muitos anos. Ficava a noroeste de Jerusalém, depois dos feudos de Ramleh e
Ibelin, pertencentes aos importantes irmãos conhecidos como Balian de Ibelin e
Balduíno de Ramleh. Karsten pouco sabia além disso e tinha que confessar que
as informações vinham de Gareth, que conhecia a história de Ultramar e um
pouco do que acontecia. O padre vinha colhendo informações durante toda a
viagem.
Karsten resolveu testar um pouco do árabe que aprendera para conversar
com alguns muçulmanos e tentar descobrir onde estavam os hospitalários. A
conversa demorada e cheia olhares de interrogação demonstram o quanto ainda
precisava aprender.

******

Édouard de Le Mur portava o manto negro dos hospitalários há cinco anos.


Era com orgulho que mostrava a cruz branca estampada no peito. Fora indicado
para viajar a Jafa cinco dias antes da confusão da coroação de Sibylle. Agora
tinha o dever de voltar depressa a Jerusalém e se preparar para uma possível
guerra. Lamentava ter que batalhar contra cristãos, mas não baixaria a espada em
momento algum, enquanto fosse para fazer a justiça prevalecer.
Estava arrumando sua partida com mais três cavaleiros. Diante dos cavalos,
em uma rua pouco movimentada, ele verificava suas armas e a armadura. Foi
abordado por um homem de cabelos negros com uma longa franja penteada de
lado, quase cobrindo os olhos azuis. O rosto era fino e bonito com algumas
marcas de expressão que lhe conferiam uma aparência de homem bravo.
Édouard esperou que ele se apresentasse primeiro, não por falta de humildade,
mas porque se recusava a falar com alguém antes que lhe fosse dirigida a
palavra. As rígidas regras monásticas haviam talhado a alma do hospitalário,
gerando um homem calado, com opiniões quase sempre guardadas para si
mesmo.
- Karsten de Tapferklinge – apresentou-se o estranho.
- Édouard de Le Mur.
As apresentações foram seguidas de silêncio. Karsten esperava que o
homem perguntasse em que poderia ajudar e, na ausência da questão, imaginou
que provavelmente aquele não fosse o momento certo. Avaliaram-se tentando
entender um ao outro, cada um com um pouco de constrangimento. Karsten
enxergou um homem forte na faixa dos trinta anos. Tinha uma barba negra e
encaracolada muito bem aparada. Os cabelos por baixo do elmo também
deveriam ser encaracolados. Os olhos negros observavam o cavaleiro germânico
com uma calma que fazia jus à fama dos monges e parecia pouca indicada para
um homem de guerra.
O silêncio deles foi quebrado pela chegada de uma mulher. Laure de Sable
D´Or não se importava nem um pouco de interromper as conversas alheias.
Simplesmente levantou o véu e chamou por Édouard.
- Édouard, quando sairemos? A caravana dos mercadores parece já pronta
para ir. Quero saber quando nós iremos. – Ela parou de falar tão logo notou
Karsten. E Karsten não teve mais vontade de falar com Édouard enquanto aquela
mulher não retirou os olhos dele. Ela petrificava os homens como uma medusa,
porém era a visão bela de uma ninfa. Os cabelos loiros estavam amarrados em
uma longa trança, levemente encoberta pelo véu. Os olhos azuis eram mais
claros que o céu e tão brilhantes quanto o sol do Oriente. A face branca era um
pouco avermelhada, pois o véu não a protegia totalmente do sol. – Quem é o
cavaleiro, Édouard?
- Karsten de Tapferklinge, não é mesmo? – falou o hospitalário.
- É... sim... sou eu mesmo.
- Tem negócios a resolver com meu amigo hospitalário? Eu posso esperar –
disse ela, tão cortês que Édouard quase não a reconheceu.
- Na verdade, soube que os hospitalários partiriam para Jerusalém e gostaria
de saber se poderia acompanhá-los. Eu e meus amigos estamos em peregrinação
para lutar contra os infiéis.
- Chegou em má hora, meu caro Karsten. Temos uma trégua com os infiéis
e, se haverá luta, será de cristãos contra cristãos.
- Ouvi falar, mas ainda espero que minha espada seja de alguma serventia.
- Conheço um lugar em que será. Se pensa em lutar contra infiéis, então
podemos resolver seu problema. Vai partir hoje conosco então? – sugeriu Laure.
- Hoje? – Karsten foi pego de surpresa. Ainda não tinha nada preparado e
era bem provável que seus amigos estivessem descansando da viagem.
- Sim, estamos para partir – falou Édouard.
- Poderiam me esperar por algum tempo apenas para que eu possa chamar
por meus amigos? – perguntou o cavaleiro germânico, constrangido com o
pedido.
- Não acho...
- Ah, Édouard. Claro que sim. Não nos importamos de esperar. Será ótimo
ter mais um cavaleiro nos protegendo durante a viagem.
- Obrigado – respondeu o cavaleiro, pedindo licença e saindo para chamar
os amigos.
Édouard de Le Mur ficou quieto, curioso com o súbito interesse de Laure,
mas sem vontade suficiente para fazer perguntas. Quando o servo dela
aproximou-se, ambos saíram de perto e o hospitalário passou a verificar os
arreios do cavalo. Era do tipo de homem que verificava meticulosamente cada
detalhe com a paciência que só Deus poderia entender. Quando Laure voltou,
tinha um dos sorrisos de ninfa tão sedutores que nem Édouard pôde lhe negar
uma deferência.
- Temos companhia para seguir conosco. Espero que não se importe de
escoltar muçulmanos.
- Não me importo. Mas por que eles iriam conosco?
Laure não esperava que o hospitalário perguntasse. Édouard costumava ser
discreto demais para dizer qualquer coisa.
- É um mercador de quem comprei alguns tecidos e pretendo comprar mais
ainda, porém não tenho todo o dinheiro aqui. Até pensei em retirar parte do
dinheiro no Templo e pedir para que meu pai pague depois, mas preferi levá-lo
até Sable D´Or. Lá poderei comprar tudo o que preciso e meu pai ainda poderá
fazer mais negócios.
- Como a senhora quiser, mas aviso que seguirei apenas até Jerusalém.
- Ah, não se preocupe, meu caro Édouard. De lá eu me arranjo.

*****

A pequena caravana saiu de Jafa naquela mesma tarde. Tomou o rumo de


Jerusalém lentamente, mas com passos nervosos devido à quantidade de
desconhecidos que a compunha. Os quatro hospitalários dividiam-se em duplas
que fechavam a retaguarda e a frente, com o intuito de se manterem prontos para
o ataque de salteadores. Pena que fossem apenas quatro. Precisavam ser mais
para garantir melhor segurança, afinal tinham três mercadores, uma dama, o
servo da dama e quatro estranhos com eles, entre eles um padre. Ao menos três
dos forasteiros eram cavaleiros. Édouard os avaliou e pensou que podiam ajudar
em uma luta, apesar do estado lastimável em que se encontravam.
Le Mur cavalgava na frente em uma égua negra de raça árabe. Recebera o
cavalo diretamente da ordem, um animal um pouco menor do que o
costumeiramente utilizado pelos francos. Era uma raça já muito usada pelos
templários, porém os hospitalários ainda estavam se acostumando com os
animais de porte pequeno comparado às criaturas enormes e pesadas geralmente
apreciadas na Europa. Ainda se adaptavam aos estilos de luta dos muçulmanos e
o uso daqueles cavalos era uma técnica que não estava dominada. Incluía uma
cavalaria ligeira que não fazia parte do costume dos pesados guerreiros francos.
O cavalo de Karsten parecia um gigante ao lado da égua de Édouard. O
germânico seguia quieto, acompanhando do balanço do animal. Fechava os
olhos de vez em quando, quase cedendo ao cansaço. Só mais tarde naquela noite,
confessou que precisava do sono. Seus amigos haviam parado de reclamar
devido à presença de outras pessoas, mas Karsten sabia que eles estavam apenas
se guardando.
O germânico sentou-se ao lado da fogueira e observou as chamas moverem-
se hipnoticamente. Ainda não conseguia se acostumar com o fato de a
temperatura no deserto cair tanto após um dia tão quente. Imaginava cada vez
mais como era difícil se adaptar a cada fenômeno cultural ou físico de Ultramar.
Esperava que sua cabeça se encaixasse logo no meio de tantas diferenças, pois a
confusão o deixava desanimado. Pegava-se pensando se conseguiria cumprir
suas promessas.
- Pensando, cavaleiro? – perguntou Laure, sentando-se ao lado dele. O
servo colocara uma almofada para ela se acomodar e Karsten nem notara.
- Há muito o que pensar aqui.
- Notei que não usa uma túnica de linho sobre a armadura.
- O quê? – perguntou Karsten, surpreso.
- Nossos homens abrigam o metal da armadura com uma túnica de linho.
Você notará que protege muito contra a luz do sol – disse ela. O servo apareceu
com um pouco de vinho e uma taça de metal. Serviu Laure com cuidado e
ofereceu a Karsten. O cavaleiro negou balançando a cabeça.
- É uma boa ideia. O calor estava me queimando o dia inteiro. Foi uma
tortura – confessou sem querer. Ruborizou logo depois. Já era a segunda
confissão de fraqueza que fazia naquela noite. Eles logo pensariam mal dele.
Estava parecendo mais Dedrick, sempre falando de suas paixões e anseios. – Há
quanto tempo está em Ultramar, minha senhora?
- Desde que nasci. Nunca conheci o Ocidente. Vivo aqui e estou satisfeita.
Meu pai é o barão de Sable D´Or, um feudo em que há muito o que fazer para
manter os pagãos afastados. Ah, aquele é um lugar em que sofremos com a
influência pagã.
- Mesmo? – interessou-se Karsten.
- Mesmo. Existe um grupo de muçulmanos chamados de Assassinos que
tem terras lá por perto. Eles são uma ameaça constante.
- São ismaelitas! – disse Gareth, aparecendo de repente para importunar. –
Eu li sobre eles e conversei com um mercador sobre eles em Acre. Interessante a
religião deles.
- Você fala como se a religião deles fosse diferente, mas eles são
muçulmanos também. A diferença é que são mais esotéricos – explicou Laure.
Ela moveu-se na almofada, aproximando-se um pouco de Karsten. O cavaleiro
ruborizou-se mais uma vez. A proximidade da mulher o deixava descontrolado.
Não estivera com uma há meses e agora tinha aquela beldade tão próxima. O
perfume dela cativava todos os seus pensamentos e o fazia focalizar cada sentido
naquela figura feminina. – Mas o que o traz aqui, senhor cavaleiro?
- Tenho que cumprir algumas promessas.
- Ah, promessas. Ele tem é uma alma suja pra limpar isso, sim – disse
Dedrick agora, aparecendo subitamente e sentando-se ao lado de Laure.
- É uma alma suja sim – comentou Gareth, balançando a cabeça em
desaprovação. – Tome cuidado, minha senhora, porque esse homem tem uma
alma suja.
- Seus amigos não fazem bom juízo de você, senhor cavaleiro?
- Eles apenas gostam de falar demais.
- A alma de Karsten é mais limpa que a sua, seu padreco imundo. A sua não
vale nem para limpar a bunda de um bêbado – disse Heiner, aparecendo entre
eles. Tomou lugar entre Karsten e Gareth, empurrando o padre. – Eu aceito o
vinho. Cadê o vinho? Viajo o dia todo e ainda não bebo do vinho? Não foi você
mesmo quem disse que Cristo multiplicava vinho, Gareth? Então por que não
tenho vinho aqui na Terra Santa?
O servo olhou para Laure e esperou que ela fizesse um sinal. Recebendo
permissão, serviu Heiner um pouco a contragosto.
- Cristo multiplicava pão e peixe. Ele transformou água em vinho, Heiner. E
imunda é sua mãe que te pariu no chiqueiro para ficar do lado do seu pai.
Estava demorando. Karsten sabia que estava demorando demais para as
discussões recomeçarem. Agora estava vermelho mais uma vez. Desejou que
Laure pensasse que fosse por causa da proximidade do fogo. Levantou-se
pedindo licença e estendeu a mão para ela.
- Preciso esticar um pouco as pernas. A senhora quer caminhar um pouco
comigo?
- Eu também preciso – falou Dedrick.
- Nossa, eu também. Preciso andar no mesmo lugar em que Jesus andou –
comentou Gareth.
- Eu não. Eu vou ficar por aqui mesmo. Preciso é de dormir – disse Heiner.
– Por sinal, vocês também. – Levantou a mão e segurou Gareth pelo manto,
jogando-o de novo no chão. Dedrick olhou para Laure e Karsten e entendeu o
recado. Era melhor ficar.
- Fiquei cansado de repente.
- Mas eu não. Me larga, Heiner, seu pagão imundo.
- Pagão é o porco do seu pai que o fez enquanto chafurdava no chiqueiro.
Karsten não queria mais ouvir insultos. Apressou-se em se afastar. Laure o
acompanhou ainda com a taça de vinho na mão. Bebericava enquanto
caminhavam olhando as estrelas.
- Parece preocupado, senhor cavaleiro.
- Pode me chamar de Karsten, apenas Karsten, minha senhora.
- Então insisto para me chamar apenas de Laure. Nada de minha senhora.
- Agradeço pela cortesia.
Conversaram sobre trivialidades. Laure contou sobre o feudo de Sable D´Or
e da aliança do pai com Raymond de Trípoli. Os dois estavam sempre juntos e
agora, com a possível guerra, era bem provável que o barão estivesse contra o
rei.
- Mas não é pecado lutar contra o rei de Ultramar? – perguntou Karsten,
ainda atormentado sobre qual lado tomar naquela briga. Nem ao menos chegara
a Jerusalém ou se apresentara a algum nobre e já estava preocupado com o
partido que tomava. Se antes pensava em lutar ao lado do rei, agora sentia um
forte impulso de erguer a espada por Sable D´Or.
- Os barões não reconhecem o atual rei. O problema é grave, pois Balduíno
IV deixou claro que o papa, os reis da Inglaterra e da França e o imperador
deveriam escolher o novo rei. Aparentemente, Sibylle não se incomodou com
isso. – Ela não acrescentou que admirava a nova rainha.
- Então agora haverá guerra. Vejo que piso na Terra Santa para lutar contra
meus irmãos de fé ao invés de batalhar contra os infiéis – disse Karsten,
meneando a cabeça. Já se atormentava com a luta sem que nem os mais
interessados soubessem se esta realmente ocorreria. No entanto, a espada dele já
estava quase preparada. Só faltava escolher para qual lado ela seria brandida.
- Não precisa lutar contra cristãos, Karsten. Meu pai sempre precisa de
cavaleiros. Por que não luta junto com ele, só que contra os infiéis que
atormentam Sable D´Or? – sugeriu Laure.
Karsten parou para pensar. Aquela era uma ótima opção. Poderia muito
bem oferecer sua espada ao barão de Sable D´Or. Talvez os outros gostassem da
ideia também.
- Há templários por lá? – perguntou, pensando em Dedrick.
- Ah, se há. Meu pai consegue manter uma aliança estranha tanto com os
templários de La Fève quanto com Raymond de Trípoli.
- Eles são inimigos?
A resposta não poderia ser breve e eles precisaram conversar muito mais
para que Karsten começasse a entender a política da Terra Santa.

*****

Karsten deitava-se mais uma vez sob a luz das estrelas. Encostara a cabeça
em um travesseiro improvisado com a sacola de roupas que levava e colocara a
capa sobre o corpo. Olhou para os animais quietos em um canto do
acampamento. Um dos cavaleiros hospitalários estava ao lado deles, ainda de
vigia. Foi com custo que ele percebeu que era Édouard. O homem rezava com a
espada fincada no chão, como se pedisse uma benção para a arma. Quando ele
acabou, Karsten resolveu se levantar para conversar um pouco. Não conseguia
dormir, apesar do cansaço. A imagem de Laure não saía de sua cabeça. Aquela
beleza altiva da mulher o inspirava e o deixava com dúvidas quanto ao futuro.
Não sabia o motivo, mas sentia que ela mudaria seus planos.
Andou devagar até Édouard, certificando-se de que o homem o veria antes.
O hospitalário não fez nenhuma menção de se importar com a aproximação.
Apenas sentou-se em uma pedra e esperou pela chegada do cavaleiro.
- Deveria dormir. Teremos uma viagem longa sob o sol amanhã – falou o
hospitalário.
- Eu sei. Acontece que estou um tanto inquieto – confessou o cavaleiro,
parando de braços cruzados ao lado do companheiro de viagem. Édouard
levantou-se e fincou a espada de novo no chão. – Como é lutar aqui?
- É como em todos os lugares. Você procura por uma causa no coração e
ergue a espada imaginando que esteja matando pelo motivo certo. Acha que vai
matar pelo motivo certo?
- Nosso padre me perguntaria agora se existe motivo mesmo para matar –
comentou Karsten, olhando para Gareth dormindo. Édouard continuou
esperando uma resposta. – Acho que sim. Acho que tenho os motivos.
- Que bom. Vai ser importante quando fechar os olhos para dormir.
- Eu penso que sim. As lutas têm sido difíceis? – perguntou Karsten,
coçando os olhos. O sono começou a aparecer subitamente.
- Bastante. Elas sempre são. Os muçulmanos são fiéis a sua vontade de
morrer por sua religião.
- Espero ter a oportunidade de derrubar muitos.
- Por enquanto eu espero que não. Estamos em trégua com Saladino, o
sultão que uniu os muçulmanos.
- Ouvi falar desse Saladino. – O cavaleiro tentou espantar um pouco do
sono, pois queria saber mais sobre aquele sultão.
- Vá dormir. Há muito tempo para você aprender sobre isso.
Karsten sorriu. Sim, havia tempo. Agora era hora de dormir. O cansaço o
chamava. Foi para sua desconfortável cama de areia pensando em batalhas e, no
meio delas, Laure. As curvas da mulher atiçavam a mente dele, mesmo tão
enevoada pelo sono.

*****

- O que você conversou com ela? – perguntou Gareth, quando o grupo já


cavalgava de novo.
- Nada demais, mas acho que conseguimos uma orientação nessa viagem.
Gareth parou para pensar. Ergueu uma sobrancelha pensando qual seria a
orientação. Talvez fosse algo ligado a sexo. Sim, talvez fosse.
- Você tem mesmo uma alma imunda, Karsten.
- O quê? Gareth! Ofereci nossos serviços ao pai dela. Lutaremos com os
muçulmanos em um feudo chamado Sable D´Or.
- Ah, sim. E o que mais?
- Mais nada.
- Eu sou seu confessor, Karsten. Pode dizer – disse o padre, mexendo o
cotovelo como se fosse cutucar Karsten.
O cavaleiro olhou de volta, mas não deu atenção. Apressou um pouco o
cavalo para parar ao lado de Heiner. O nórdico cavalgava calado e sem
armadura. Não suportava mais o sol esquentando o metal. Karsten resolvera
colocar a capa sobre as peças de metal para aliviar o problema, porém ainda
sofria com o calor.
- Já sei onde vamos lutar, Heiner.
- E onde seria? Não vai ser em Jerusalém?
- Não, parece que Jerusalém tem outros problemas, os quais não vamos nos
dar ao luxo de resolver. Viemos para lutar contra infiéis e assim o faremos,
Heiner.
Cavalgaram por mais um dia passando por uma estrada montanhosa e
pedregosa. Durante as noites. Karsten aproveitava para conversar tanto com
Laure quanto com Édouard. Queria aprender mais sobre a Terra Santa e sobre os
problemas que ainda enfrentaria. Quando tinha tempo, tomava lições sobre
línguas com Gareth. Até mesmo durante as cavalgadas o padre o ensinava.
Karsten passava horas repetindo frases em árabe ou em francês.
Um dos pontos de parada do grupo foi na igreja de São Jorge, a um terço do
caminho para Jerusalém. A viagem tivera um ritmo lento até ali por causa das
cargas dos mercadores. Eles insistiam em não se apressarem e a levarem tudo o
que carregavam com muito cuidado. Édouard ouviu os pedidos pacientemente,
no entanto foi graças à insistência de Laure que diminuiu o ritmo. O hospitalário
temia um ataque sarraceno a qualquer momento. Os salteadores não demorariam
a aparecer, ainda mais para atingir um grupo tão pequeno.
Eles estavam dando de beber para os cavalos nas nascentes próximas à
igreja. Dedrick passava a mão em seu cavalo branco e tentava limpar um pouco
da sujeira que maculava o pelo bonito do garanhão quando viu pessoas se
aproximando. Foi com felicidade que reconheceu o manto dos templários. A
visão da cruz vermelha estampada no ombro esquerdo fez seu coração se exaltar.
Sentia que aquela seria a primeira vez que conversaria com aqueles guerreiros da
Terra Santa. Até o momento, sua viagem fora uma decepção. Os hospitalários
não conversaram com ele e Édouard pareceu-lhe um cavaleiro insosso.
- Há templários vindo – anunciou, fazendo cabeças se erguerem.
O grupo que chegava logo se tornou melhor visível. Eram dois templários
com mais seis homens de armas, sendo um deles um turcópolo e os outros
apenas sargentos. O turcópolo tomou a dianteira para verificar quem eram as
pessoas paradas na fonte. Era um mestiço como todos os membros da sua classe,
metade franco, metade nativo. O sangue misturado que corria em suas veias lhe
conferiu a posição de guerreiro entre os templários, tomando o posto da
cavalaria ligeira. Ahmad lutava pelo lado cristão há quatro anos e passara quase
todos esses ao lado de Guillaume, o templário que cavalgava com ele. O
turcópolo olhou as pessoas de perto e voltou para anunciar que encontrara Laure.
A aproximação do grupo revelou outras pessoas. Duas mulheres viajavam
com eles, escondidas no meio do grupo. Ninguém as reconhecera antes, mas
Laure abriu os braços e chamou pela prima. Como a outra era a dama de
companhia, a filha de Sable D´Or não se importou. Guillaume a alcançou
primeiro, parando seu cavalo próximo a ela.
- Agradeço pelas boas vindas, Laure, mas sinto muito. As regras da minha
ordem não permitem que eu a abrace. Sabe como é. É para evitar a tentação.
- É senhora, pra você, Guillaume. E é óbvio que quero abraçar minha prima
e não um bruto como você.
Guillaume olhou para trás com uma expressão de quem acabara de se
enganar e se sentia culpado. O cinismo era tão grande naquela face que quase
transbordava para manchar o manto branco do templário.
- Ah, ela. Que decepção.
Melisende desmontou logo com a ajuda de um sargento e correu para
abraçar a prima. As duas riram juntas e trocaram questões de preocupação
quanto à viagem que haviam feito.
- Ele não queria me deixar vir, mas eu insisti – contou Melisende.
- Ainda bem, assim teremos mais tempo para conversarmos. Tenho algumas
pessoas para apresentar-lhe, minha prima.
Então elas caminharam para as apresentações.
Karsten observava a nova beldade que aparecera e tentava compreender por
que aquela Terra Santa tinha tantas mulheres bonitas. Os homens deveriam estar
ali para rezar e lutar, não para se encantar com elas. O pecado era mais amplo
nas terras de Deus do na frieza do Império Germânico.
Dedrick parou de se impressionar com os templários para ater toda sua
atenção à figura de Melisende. A mulher o encantou desde o início. Aquela
beleza mestiça era especial. Tinha um tom de diferença que alertava os sentidos.
- Pare de babar. Vá conversar com os templários – falou Gareth.
Dedrick despertou e olhou para os guerreiros de branco. Para sua decepção,
um deles estava conversando com o hospitalário. Imaginava que, se as ordens
eram rivais, não deveria haver conversa entre seus membros. Os templários
deveriam se preocupar mais em mostrar para o hospitalários quem era realmente
a melhor ordem militar.
- Teve trabalho com ela? – perguntou Guillaume a Édouard.
- Um pouco. Como estão as coisas em Jerusalém?
- Difíceis. Nossas ordens já tomaram seus partidos. Como sempre, estamos
em lados opostos.
Édouard deu de ombros.
- Não me importo nem um pouco de lutar contra você – alfinetou o
hospitalário.
- Amém, irmão – respondeu Guillaume, levantando uma mão. – Vai ser
bom quando eu me encontrar com você no campo de batalha. Não morra antes
de nos vermos.
- Não se preocupe com isso. Minha espada não cai tão facilmente.
Guillaume sorriu a se afastou, subitamente incomodado. Não era com o
hospitalário, mas com outra situação. Aproximou-se dos colegas. Ahmad, Henri
e Dante já haviam desmontado e estavam dando de beber aos cavalos.
- Viram o que eu vi? – perguntou o templário, fingindo cuidar de um dos
cavalos.
- Sim, é ele – respondeu Ahmad. O turcópolo carregava um arco cruzado no
peito. Mexeu na corda da arma como que fazendo sinal de morte.
- No meio dela são como lobos que arrebatam a presa, para derramarem
sangue, para destruírem as almas – falou Dante, citando Ezequiel.
- São essas citações que me animam. Eu definitivamente preciso ler a Bíblia
– disse Guillaume.
- Concordo – falou Dante, sério. Ele a lia todos os dias. Recebera permissão
para sempre ter uma consigo nas viagens. Como os templários não podiam ter
nada que pertencesse a eles mesmos, Guilaume precisou convencer os líderes da
ordem de que não faria mal Dante carregar um livro consigo.
Dedrick interrompeu a conversa dos templários ao chegar espalhafatoso.
Guillaume o recebeu com um sorriso no rosto.
- Com licença. Meu nome é Dedrick.
- Prazer, Dedrick. Sou Guillaume. Esses são Dante, Ahmad e Henri – ele
não apresentou os outros sargentos, pois os homens estavam mais afastados, não
participando das confabulações dos quatro que já eram companheiros há tanto
tempo.
Dedrick parou para observar o manto branco sujo de terra. Era imponente
do mesmo modo, ainda mais com um homem poderoso como Guillaume o
vestindo.
- Quero ser um cavaleiro templário – confessou o jovem Dedrick.
Guillaume e Dante se olharam. O francês deu um sorriso leve, enquanto o
siciliano continuou com o rosto sério de sempre.
- Acha que está disposto a passar por tudo o que passamos, Dedrick? Portar
esse manto e essa cruz não é para meros cavaleiros, mas para quem está disposto
a lutar em nome de Cristo e a sofrer durante essa luta. Não são poucas as
escolhas difíceis que temos que fazer e os costumes mundanos que temos que
renegar – explicou Guillaume, assumindo uma postura séria que deixava longe o
tom irônico que vigorava tipicamente em suas palavras.
Os olhos de Dedrick baixaram por alguns instantes. Respirou o ar do
deserto e teve uma sensação de sufocação que quase o fez tossir. Era mais por
nervosismo do que pelo tempo ou pelo calor.
- Estou disposto a passar por tudo isso, senhor. Vim aqui para tomar essa
cruz. Esse foi o meu objetivo de sair de tão longe.
- Muito bem, garoto. Muito bem. A ordem tem os braços abertos para novos
cavaleiros. Vejo que você já tem sua armadura, sua espada e seu cavalo. Isso é
ainda melhor, mas saiba que eles não serão mais seus. Serão do Templo.
- Sim, senhor.
Dedrick sorriu, contudo tentou conter a expressão de felicidade para não
parecer demasiadamente ansioso em entrar para a ordem. Sabia que estava para
ser aceito. Agora faltava pouco. Encontraria mais templários em breve.
Conheceria o Templo de Jerusalém e talvez até o grão-mestre.

*****

Gareth aproveitara para rezar na igreja de São Jorge. Preocupado, o padre


pediu perdão pelos pensamentos pecaminosos que passaram por sua cabeça
desde a saída de Tapferklinge. Não foram poucos e esses ainda se somavam às
ideias de desistir da viagem. Agora que estava próximo de Jerusalém, pedia
perdão para entrar na cidade com a alma limpa. Faltava apenas se confessar. Era
uma pena que os cavaleiros hospitalários ou templários não pudessem ouvir sua
confissão.
Saiu da igreja para ver que Karsten conversava com Melisende e Laure. As
duas riam enquanto ouviam as histórias da viagem. Perto deles estava Heiner,
cuidando dos cavalos e tentando entender do que falavam os mercadores. Os
hospitalários estavam em outro canto, reunidos e pensativos. O padre andou até
Karsten coçando o rosto.
- Parece que seu amigo já criou uma intimidade com os templários – dizia
Laure.
- É uma pena. Tão novo e já tão próximo de Guillaume – lamentou
Melisende.
- Por quê? O que tem de mal nesse Guillaume? – perguntou Gareth, sem se
importar de se intrometer. Era de seu feitio penetrar nas conversas alheias com a
sutileza de um machado partindo uma tora.
- É o cavaleiro mais estranho que já vi. É um lobo sob pele de cordeiro, isso
sim – acusou Melisende, olhando de soslaio para o templário.
Laure riu e tapou a boca de leve com a mão direita. Fez de um modo tão
gracioso e sedutor que os homens quase perderam o fio da conversa. Ela estava
ciente disso. Sempre estava ciente da deferência que causava nos homens.
- Minha prima se assusta por causa da história negra de sir Guillaume.
Contam várias coisas sobre ele.
- Dizem que ele cuspia na cruz. Dizem que foi excomungado – sussurrou
Melisende, como se temesse ser ouvida pelo templário.
Karsten se empertigou. Abriu a boca para falar algo, porém se calou.
Gareth, percebendo o constrangimento do amigo, tomou a palavra.
- Um cavaleiro excomungado? – perguntou ele, relembrando do que
estavam falando e fazendo uma nota mental para pedir perdão sobre os
pensamentos pecaminosos que acabara de adquirir. Se dependesse de Laure, ele
ficaria dentro daquela igreja a vida toda.
- Não, não sabemos se é verdade. São histórias que o povo conta. E o povo
adora inventar histórias. Acho que o tal Henri, que veio da França com
Guillaume, deve saber da história verdadeira.
- Verdade ou não, ainda acho que ele é um lobo.
- Você nunca viu um lobo, minha prima.
- Esse é o primeiro e único que quero ver.
As conversas acabaram quando Édouard os chamou para partir. O
hospitalário não ficou nada satisfeito quando os templários afirmaram que
viajariam com eles. Suportar Guillaume não estava em seus planos. Preferiria
esperar pelos salteadores sarracenos.
Recomeçaram a viagem durante a tarde. Estavam descansados e pretendiam
parar apenas quando o sol não providenciasse mais a luz que tanto precisavam.
Karsten viajou ao lado de Laure e Melisende, enquanto os outros vinham um
pouco mais atrás. Os hospitalários encarregaram-se de cuidar da retaguarda,
enquanto os templários seguiam à frente. Dedrick tentava acompanhá-los. Agora
havia apenas Henri, Ahmad, Dante e Guillaume. Os outros sargentos foram
mandados para Jafa para passarem o recado do grão-mestre.
Karsten pensava no destino do primo. Não era justo que Dedrick perdesse
sua vida se aliando aos templários e sucumbindo na vida de guerras. Não que ele
mesmo tivesse uma perspectiva diferente sobre o próprio destino, mas a
preocupação que tinha para com o parente era maior. Desde pequeno, Dedrick
fora como um irmão para ele. Karsten o ensinara a lutar e os dois se divertiam
com a única espada que o pai do cavaleiro pudera lhes dar durante um longo
tempo.
Os mercadores atrasaram a viagem mais uma vez. Os templários tentaram
forçar o ritmo, contudo foram forçados a parar pelas reclamações constantes de
Laure. Guillaume saiu da formação para falar com a mulher.
- Escute, Laure. Não é bom que eles estejam conosco. E não é bom que
continuemos nessa estrada por tanto tempo.
Ela deu de ombros e olhou para as montanhas. As pedras tapavam sua visão
e impediam que encontrasse Jerusalém à frente.
- Se está com medo, deixe que os hospitalários nos protejam, Guillaume –
provocou. Foi uma resposta ferina, que abriu um sorriso debaixo do véu de
Melisende.
- Ah, minha dama. Às vezes me pergunto se Deus lhe deu uma boca apenas
para arrotar desaforos ou para algo melhor.
O templário deixou a insinuação no ar e saiu com o cavalo. Retomou a
formação como se nada houvesse acontecido, enquanto Karsten ficava
boquiaberto com a ofensa.
- Ele não pode falar assim com você – disse o cavaleiro germânico,
cutucando o cavalo para tomar velocidade.
Laure ficou quieta, apenas esperando para ver o que acontecia. Melisende
tentou estender a mão para dizer que não valia a pena, mas Karsten já estava ao
lado de Guillaume em instantes.
- Volte para a formação. Não te ensinam disciplina lá no norte? – disse o
templário, nem bem Karsten havia aberto a boca.
- Ensinam muito bem, templário. Se você...
- Que bom. Se veio aqui para me falar isso, então esteja satisfeito. Agora
demonstre a disciplina.
- Como ousa falar assim comigo?
- Não estou falando de modo algum. Templários cavalgam em silêncio.
Nenhuma palavra mais saiu da boca de Guillaume. Karsten tentou falar,
tentou ofender, tentou exigir explicações, entretanto não passavam de tentativas
vãs que se perdiam nos ouvidos agora surdos do templário. Nem seus homens
falavam ou davam atenção. O germânico voltou para sua posição humilhado.
Laure levantou a mão para tocar-lhe o ombro e consolá-lo.
- Esse é Guillaume – disse ela, sorrindo debaixo do véu.

*****

Estavam próximos de Jerusalém. Alcançariam a cidade em poucas horas se


continuassem a cavalgada. Foi o que os templários sugeriram, porém os
hospitalários acharam por bem pararem antes que caíssem em uma armadilha de
salteadores. Guillaume argumentou que se acampassem, aí sim estariam sujeitos
a uma emboscada. A opinião do templário acabou se perdendo quando o grupo
de Karsten se uniu sob a bandeira do germânico para dizer que preferiam ficar.
Dedrick permaneceu calado, sem saber o que fazer. Não queria quebrar a
fidelidade para com os amigos, contudo havia os laços que estava começando a
criar com os templários.
Acabaram por desmontar e formar um círculo próximo à estrada.
Acenderam uma fogueira e conversaram durante algum tempo, até o momento
em que os mercadores disseram que precisavam dormir. Uma segunda discussão
sobre a vigília começou. No fim, concordaram que era melhor deixar quatro
cavaleiros por vez acordados e com as armaduras preparadas. Todos deveriam
estar com as armas prontas para um combate.
Guillaume não dormiu. Ele manteve-se deitado olhando as estrelas sem
retirar a cota de malha. Estava com a espada na mão, já preparado para o que
aconteceria inevitavelmente naquela noite. Colocou um ouvido sob a terra e
ouviu o trotar dos cavalos. Havia gente se aproximando deles. Não eram poucas
pessoas. O templário apertou o punho da espada e olhou para os hospitalários
que estavam de vigília. Em seguida, cutucou Dante. O outro templário também
já estava pronto. Ele passou o sinal para Henri e Ahmad. O turcópolo lamentou
não poder usar o arco. Foi naquele mesmo instante, durante o lamento, que ele
ouviu o grito do primeiro hospitalário.
Édouard culpou-se pela morte do amigo. Uma seta invisível rompeu a
escuridão para aparecer no pescoço de alguém que ele prezava. O homem caiu
gritando de dor, segurando a haste do projétil. Édouard levantou o escudo e
gritou pelos outros cavaleiros. Em instantes, os templários já estavam entre eles.
Ahmad já apagara a fogueira para evitar que continuassem a ser alvos fáceis de
flechas. Pelo menos mais dois projéteis se ficaram na área, um deles não
atingindo Melisende por apenas dez centímetros.
Ela acordou sobressaltada. Os gritos a alertaram para o perigo. Moveu-se
até estar ao lado de Laure e se agarrou à prima. As duas tinham facas para se
protegerem e as deixaram nas mãos, esperando o ataque. Em pouco tempo,
tochas foram arremessadas no acampamento improvisado e os salteadores
apareceram. Melisende enxergava apenas os contornos dos inimigos e viu
Karsten, Heiner e Dedrick formarem um círculo em volta delas.
Um salteador a pé apareceu perto dos cavaleiros. Corria para atingi-los com
uma lança. Karsten desviou o ataque com o escudo e recebeu o impacto da
correria com a espada. A lâmina enfiou fundo na barriga do sarraceno. Outros
três apareceram com lanças de novo. Heiner usou a mesma estratégia de Karsten
para finalizar o primeiro. Ele também cuidou do segundo. Adiantou-se alguns
passos para ganhar terreno e afastou a lança com o escudo. O homem recuou
com um salto para depois estocar. Dessa vez o nórdico defendeu com a espada.
Continuou avançando para tentar alcançar o oponente, mas ele continuava a
recuar. Foi só então que percebeu que caíra em uma armadilha. Agora estava
cercado.
Karsten viu o amigo em apuros. Havia três sarracenos em volta do cavaleiro
nórdico.
- Cuide delas, Dedrick – ordenou, correndo para alcançar Heiner.
Heiner defendeu um ataque de lança com o escudo e evitou um golpe de
espada com a própria lâmina. Outra lança cortou-lhe a lateral da barriga.
Felizmente fora um ferimento leve, contido pela armadura. Estava pensando em
se jogar sobre um dos homens de lança quando Karsten apareceu. O cavaleiro
germânico caiu sobre o inimigo com a espada, atingindo-o no flanco direito. A
lâmina bateu sobre o ombro, partindo ossos e carne.
A morte do salteador deu espaço para Heiner atacar. Ele saltou sobre o
último oponente com lança. O inimigo tentou atingi-lo, mas o nórdico esquivou-
se para a esquerda e atingiu a lança com a espada, partindo a haste ao meio. O
sarraceno tentou sacar uma espada curta, mas foi impedido. A lâmina de Heiner
o atingiu no pescoço, fazendo o sangue escorrer enquanto o salteador caía de
joelhos. O cavaleiro nórdico olhou para Karsten e viu o amigo duelando com
mais um salteador. Supôs que havia mais e tratou de procurar por inimigos que
pudessem cercá-los.
Dedrick estava nervoso. Sobrara um sarraceno para ele. O homem o atacou
com a lança, forçando o cavaleiro a defender com o escudo. O metal bateu
contra a defesa de madeira reforçada, arrancando a tinta com o brasão de
Tapferklinge, uma águia azul com as asas abertas em fundo branco. Dedrick
recebeu mais um ataque antes de sair para a ofensiva. Defendeu mais uma vez
com o escudo e deu dois passos à frente, estendendo o braço para atingir o
oponente. O sarraceno se esquivou, mas se viu próximo demais para usar a lança
com eficiência. Precisou improvisar. Bateu o cabo da arma contra o rosto de
Dedrick. Como o cavaleiro estava sem elmo, sentiu todo o impacto do ataque e
foi jogado para trás, caindo entre as mulheres.
Laure se afastou, rolando para perto dos restos da fogueira e desaparecendo
na escuridão. Melisende ficou embaraçada com Dedrick e gritou pela prima,
depois chamou por qualquer ajuda. Viu o sarraceno avançar. Ele atacou e
Dedrick conseguiu defender mais uma vez com o escudo, apesar de estar caído.
Melisende teve certeza de que o aliado não teria tanta sorte no próximo ataque.
Foi de súbito que o inimigo parou. Melisende só o viu caindo de repente e foi
sob a luz fraca das tochas que ela percebeu uma faca enfiada no peito do homem.
Guillaume apareceu correndo logo depois, vindo do centro do acampamento. Ele
já surgiu correndo para enfrentar outro sarraceno que vinha em carga. Os dois se
chocaram, mas o templário teve melhor sorte. Ele desviou a lança com o escudo
e enfiou a espada no peito do inimigo.
Guillaume recuou de costas para Melisende. Parou ao lado dela e fez sinal
para Dedrick se levantar.
- Tudo bem com a senhora, minha dama? – perguntou o templário, olhando
para ela com preocupação.
Outro sarraceno apareceu nessa hora. Guillaume afastou o ataque com a
espada e empurrou o inimigo de volta.
- Deixe esse comigo – gritou Dedrick. Ele partiu para enfrentar o inimigo.
Sofreu um corte no rosto logo no primeiro ataque e xingou-se por ter se
esquecido do elmo. Foi ferido ainda mais duas vezes antes de finalmente
conseguir atingir mortalmente o inimigo.
Guillaume observou o combate de Dedrick sem retirar a atenção dos
inimigos que pudessem estar ao redor. Olhou para Dante e os outros. Mal podia
vê-los, pois uma das tochas se apagara. Praguejou contra si mesmo, pois
abandonara a formação para ajudar as mulheres e agora se sentia responsável
pelos companheiros. Olhou para Melisende para se certificar que ela estava bem.
- A senhora está bem? – perguntou de novo.
Só se sentiu tranqüilo quando a viu balançar a cabeça afirmando que sim.
Havia apenas um rasgo na roupa e com certeza haveria alguns pontos roxos, mas
nada com o que se preocupar. Guillaume olhou para trás e viu Laure
reaparecendo. Karsten e Heiner já voltavam também. Agora elas estavam mais
do que seguras. Já era hora de voltar para sua formação.

*****
O combate acabou com um total de dez vítimas por parte dos salteadores e
apenas duas por parte dos cavaleiros. Eles contaram os mortos ainda de noite,
sob a luz das tochas. Imaginavam que pelo menos cinco dos sarracenos haviam
fugido.
- Loucos. Meros ladrões querendo assaltar guerreiros experientes – falou
Édouard.
- Arma ciladas no esconderijo, como o leão no seu covil; arma ciladas para
roubar o pobre; rouba-o, prendendo-o na sua rede – citou Dante, agora falando
um salmo. Édouard fingiu não ouvir. Não estava com paciência para os
templários. Tinha um ferimento no braço direito e acabara de perder um amigo.
O hospitalário caminhou até o cavalo e pegou uma capa, depois andou até o
morto e o envolveu, cuidando para que o corpo ficasse bem protegido. Pegou a
espada e guardou, assim como o escudo. Terminado o trabalho, foi ver o que
acontecera com os outros. Quase todos tinham pelo menos um ferimento.
Ninguém saíra ileso da batalha, o que era fácil de ver mesmo sob a luz fraca das
tochas. Apenas dois dos mercadores não tinham sido feridos, no entanto o
terceiro jazia morto.
- O que vocês farão com ele? – perguntou o hospitalário. Guillaume se
aproximou nesse momento.
Os mercadores fizeram sinal afirmando que cuidariam do corpo, mas se
afastaram quando o templário chegou.
- Parece que eles não gostam de você – disse Édouard.
- Eles têm motivo para isso. E não precisa se culpar. O ataque aconteceria
mesmo que não tivéssemos parado. Seria mais uma questão de quando
aconteceria.
- Não estou me culpando. Não seja presunçoso.
- Então não se culpe pela morte do homem. Ele era um espião dos
Assassinos. Foi-se tarde.
O hospitalário não disse nada. Voltou para perto de seus irmãos de ordem e
lá ficou o restante da noite. As memórias agitadas do combate afastavam o sono.
Dedrick, que ajudara a arrastar e reunir os corpos dos sarracenos, lamentava o
papel que fizera durante a luta. Fora um incompetente, enquanto seus amigos
haviam se saído bem. Até mesmo Gareth reagira, empurrando um salteador que
passara perto e dando abertura para que um hospitalário o estocasse. Mas ele
não. Fizera apenas uma vítima e mesmo assim tinha vários fermentos desse
combate.
Os corpos já estavam colocados em fila no chão. O suor escorria nas testas
e nas costas dos cavaleiros cansados do esforço de carregar os mortos.
Guillaume os verificou mais uma vez antes de ir se deitar. Édouard estava certo.
Eram loucos. Não passaram de salteadores e tentaram atacar cavaleiros
treinados, endurecidos por anos de batalha. O templário não lamentou a perda de
vidas por um único instante que fosse. Rezou um Pai Nosso por eles e pediu pela
salvação das almas infiéis, depois rezou algo em árabe em respeito à religião dos
falecidos.
Dedrick parou perto do templário para se desculpar pelo fiasco da batalha.
Por pouco as palavras não travaram na boca.
- Sei que devo ter sido uma decepção.
Guillaume retirou os olhos dos corpos para fitá-lo.
- De fato foi.
Os olhos de Dedrick se arregalaram. Não esperava tanta sinceridade.
- Preocupe-se com isso, pois sua vida e a dos outros dependerão de sua
espada. Esse era apenas um salteador. – Estendeu a mão para o cadáver. – O que
acha que fará quando estiver diante de um verdadeiro cavaleiro? Garanto que
não terá a oportunidade de falhar assim de novo.
Karsten ficou curioso ao ver o primo cabisbaixo conversando com o
templário. Alcançou-os no momento de ouvir a admoestação.
- O que pensa que está falando com ele? – perguntou furioso o cavaleiro.
Guillaume olhou para o germânico e voltou-se de novo para Dedrick.
- Já disse o que tinha para falar, Dedrick. Ouça-me e sobreviverá na Terra
Santa.
O templário começou a andar para junto dos companheiros. Karsten o
interrompeu segurando-o pelo braço. Guillaume não fez nenhum movimento
para pará-lo, apenas olhou de volta com as sobrancelhas unidas e os maxilares
travados.
- Estou falando com você, templário.
- Mas eu não me lembro de ter falado com você, cavaleiro.
- Mal o conheço e já estou ficando farto de sua arrogância – falou Karsten,
ainda segurando o braço de Guillaume.
- Mal o conheço e espero continuar o conhecendo pouco para não odiá-lo
tanto que precise matá-lo em duelo.
Karsten soltou o braço do outro para levar a mão até a espada. Guillaume
nada fez além de olhar de volta e soltar um risinho zombeteiro.
- Melhor começar a pensar duas vezes antes de fazer as coisas por aqui,
cavaleiro.
O templário saiu rindo. Karsten pensou em sacar a espada e desafiá-lo e só
não o fez porque Dedrick o impediu. O jovem cavaleiro levantou o braço e tocou
o ombro do primo. Foi ainda de cabeça baixa que disse:
- Ele está certo, primo. Eu vi esse homem lutando. Preciso ser como ele se
quiser ser um templário e não fui nada além de um grande fiasco.
Karsten colocou a mão sobre a do primo. Olhou-o com paciência de irmão
mais velho e carinho de pai.
- Não deixe que ele fale assim com você, meu primo. Você apenas teve azar.
É um grande guerreiro. Eu o ensinei a lutar. Deixe os templários de lado. A
opinião deles não deve valer tanto quando você pode lutar conosco.
- Não, Karsten. Não deixarei meu sonho de lado. Pretendo continuar
lutando e vou provar que posso ser um templário. Você me treinou. Tenho
capacidade para tanto. Tenho certeza.
Karsten balançou a cabeça lamentoso e andou para conversar com os
outros. Olhou para Laure e Melisende conversando. Encantou-se com as duas e a
preocupação com o que poderia ter acontecido com elas encheu seu coração. De
algum modo, Guillaume estava certo. Dedrick ainda não estava pronto para as
batalhas. Precisava de mais treino, de um aperfeiçoamento maior. Aquele
salteador era o quarto homem que o jovem cavaleiro matara e os outros três não
passavam de mercenários desqualificados, reunidos as pressas por um inimigo
de Tapferklinge. Karsten ainda se lembrava do dia em que Dedrick matara seu
primeiro oponente. O jovem ficara extasiado com a experiência, porém toda a
excitação se fora após a morte do segundo, quando ele finalmente percebeu a
gravidade que era retirar a vida de alguém. As mãos dele tremeram até que
Karsten agachou de cócoras na frente dele e o segurou, falando que aquela era a
vida de um cavaleiro.
O vento da noite bateu nos cabelos empapados de suor do cavaleiro. Foi
uma sensação de frescor que ele estava precisando. Acalmou-se um pouco e foi
ter com Gareth. Queria conversar antes de dormir, se é que conseguiria dormir
depois da agitação.
Capítulo Três
Jerusalém lhes pareceu um esplendor. Os cavaleiros já haviam visto
cidades, obviamente, mas nenhuma com aquela amplitude de nações em um
mesmo lugar. Talvez, se houvesse conhecido Constantinopla, não ficassem tão
surpresos. Mas aquela era a Terra Santa. Aquela era a cidade onde Cristo fora
morto. Ali eles poderiam conhecer o Santo Sepulcro, onde o corpo de Jesus fora
colocado após a crucificação. Depois passariam pelo Gólgota, o lugar onde
Salvador fora crucificado.
Haviam entrado pelo Portão de Jafa, passando pela Torre de Davi. O
mercado de grãos os impressionou pela multidão de pessoas diferentes. Não era
como nas terras germânicas com as pessoas sempre vestidas com os mesmos
trapos, andando em meio ao frio com os poucos recursos que tinham para
comprar dos poucos mercadores que ali circulavam. Em Jerusalém havia
muçulmanos, cristãos armênios, cristãos ortodoxos, cristãos católicos, cristãos
coptas, cada um vestido como agradava a sua religião, falando sua própria língua
e ainda sim caminhando em meio às diferenças.
Karsten assistia a tudo com assombro. Era com dificuldade que assimilava
cada pedaço do quebra-cabeça colorido que era a Terra Santa. Não podia aceitar
que havia aquela diversidade de religiões na Terra Santa. Imaginava que apenas
cristãos deveriam viver ali, afinal não fora para isso que se fizera guerra? Não,
talvez não fosse. Perguntava-se como poderia cumprir suas promessas naquela
miríade de nações que dividiam Jerusalém. Apenas olhando para Laure ele
encontrava alento para continuar cavalgando pela rua do Mercado das Aves. Já
estavam passando pela Casa de Câmbio quando Laure parou o cavalo para
esperá-lo.
- Está gostando do que vê? – perguntou ela, sorrindo.
- Confesso que estou um pouco confuso. Quando verei o Santo Sepulcro? –
perguntou ele, coçando a cabeça.
- Já passamos pela rua que dá acesso a ele. Mas veja, olhe daqui. Ela
apontou com o queixo, mostrando a pequena cruz que enfeitava a igreja do Santo
Sepulcro. – É ali, depois do Hospital! – Apontou de novo, agora mostrando o
caminho para o qual Édouard e seus amigos haviam seguido com o corpo do
hospitalário morto.
O coração de Karsten bateu mais forte. Fez uma oração lenta em
homenagem à visão. Laure ficou calada, esperando que ele terminasse. Quando
percebeu que os lábios do cavaleiro pararam de se mover, continuou falando:
- Há muito que ver em Jerusalém, Karsten. Você vai gostar. Também vai
gostar de Sable D´Or, apesar de lá não ser tão magnífico quanto aqui.
- Garanto que não vou me decepcionar.
- Nem você nem sua espada – disse ela, olhando para a cintura do cavaleiro.
Karsten segurou a empunhadura e sorriu. Estava começando a se acostumar.

*****

Guillaume entrou no Templo acompanhado de Dante. Os dois se


persignaram antes de colocarem os pés dentro do prédio e pediram licença a
Cristo. Andaram pelos corredores rumo a sala onde Jacques de Mailly estaria.
Haviam sido avisados de que o marechal queria falar com eles sobre um assunto
importante que só seria explicado pessoalmente. Encontraram o templário loiro
absorto em pensamentos, olhando pela janela. A sala tinha apenas uma cadeira
como móvel. Fora isso, um tapete com a cruz do Templo estava estendido em
uma das paredes e algumas almofadas estavam jogadas sobre o chão. Era onde o
templário se ajoelhava para rezar.
- Senhor – disse Guillaume, chamando a atenção.
- Já sabe das novas, Guillaume?
- Não, senhor, acabamos de chegar. Ainda nem tivemos tempo de conversar
com ninguém. Deixamos nossos companheiros de viagem comendo enquanto
vínhamos até o Templo para avisar que estávamos de saída para Sable D´Or.
- Não vão mais. Onfroy acabou de se apresentar a Sibylle. Nesse exato
momento deve estar com o rei Guy.
Guillaume procurou não demonstrar a surpresa. Onfroy era o marido da
princesa Isabel, a irmã de Sibylle. Os barões e Raymond de Trípoli apoiavam
esse casal para o trono. Agora que Onfroy abdicava do poder, a coligação contra
Guy e Sibylle estava enfraquecida, sem um objetivo a não ser colocar a coroa na
cabeça de Raymond. Entretanto, não havia legitimidade no ato. Os barões
estavam sem alternativas agora. O fracasso era esperado. Aquele garoto era filho
de Étiennette de Milly, a plácida dama de Ultrajordão, ninguém menos do que a
esposa de Renaud.
O templário admirava aquela mulher não só pela honra reconhecida. Vivia
junto a um marido selvagem sem se deitar com a insensatez e selvageria dele. Se
um dia o senhor de Kerak afundasse em sua fúria para encontrar o Inferno,
chegaria lá sozinho, deixando a esposa livre para viver. Ela já sobrevivera a
outros dois homens. Talvez um animal como De Châtillon não fosse o maior de
seus problemas.
- Agora não parece haver possibilidade de guerra. Por que deveríamos ficar
aqui? – perguntou Guillaume, usando um tom leve para não parecer que estava
questionando ordens.
- Porque o grão-mestre assim decidiu. Foi bom você ter voltado mais cedo,
assim já fica com o recado para levar até La Fève e para os castelos próximos.
Por enquanto, vamos esperar. Instale-se aqui e espere. Eu precisarei partir em
breve para reunir mais templários. Acho que o grão-mestre vai querer falar com
você.
Guillaume não conseguia imaginar o que Gerard de Ridefort quereria com
ele. Talvez fosse pelo fato de ele não ter entregado a mensagem em Jafa
pessoalmente. Despediu-se de Jacques e saiu com Dante.
- Não acho que virá boa coisa por aí – comentou o cavaleiro francês.
O siciliano andou calado e pensativo até finalmente decidir falar.
- Também acho que não. O grão-mestre deve estar esperando problemas em
Sable D´Or. O barão de lá sempre foi um aliado forte de Raymond.
- E também esteve envolvido no caso do casamento de Botrun – completou
Guillaume.
- Sim. Parece que o lobo está cercando a caça.
- A vingança é uma causa pela qual De Ridefort morreria, levando consigo
quantos precisasse. É bom afiarmos nossas espadas e ajustarmos os elos de
nossas malhas.

*****

Gerard de Ridefort cofiou a barba e sorriu levemente. Não demonstrou nem


um décimo da satisfação que sentia ao ver Onfroy de Toron ajoelhado perante os
pés de Guy. Era mais uma vitória. Agora que o pretenso rei dos barões abdicava
completamente, não havia como Raymond de Trípoli continuar com aquela
revolta inútil. Ele estava perdido.
Assistiu ao jovem Onfroy de Toron se levantar e sair da sala, caminhando
pelo longo tapete vermelho estendido com os olhos envergonhados saltando
entre os nobres. Todos os outros membros da corte saíram pouco depois para
comentar o ocorrido como gralhas ansiosas pelo festim de migalhas. Guy emitiu
ordens para ficar sozinho com seus pares. Sibylle anunciou sua saída para o
marido, olhando com enfado para Renaud de Châtillon.
- Por favor, fique, minha rainha. Vossa Majestade deveria partilhar de nossa
conversa – falou Gerard de Ridefort, mais por cortesia do que por sinceridade.
Sibylle parou e pensou. A desconfiança brotou no rosto após os ouvidos
serem perceptivos à falta de sinceridade na voz do grão-mestre. Sentou-se no
trono e chamou por um serviçal. Queria vinho para suportar Renaud falando de
guerra e de dinheiro.
- Nós vencemos – começou Renaud, abrindo os braços e voltando-se para
cada um deles com um sorriso obsceno no meio da barba ruiva.
- Ainda é cedo para cantarmos a vitória, Renaud – disse Gerard, apesar de
ele mesmo estar repleto de uma alegria perversa, daquela que só se sente quando
o sentimento de vingança é finalmente saciado.
- Os barões ainda precisam se decidir – falou Guy, com a dúvida pendente
na voz.
- É verdade, meu amor, mas eles não têm mais alternativas. Precisamos
agora forçá-los a se curvarem – sugeriu Sibylle. O vinho chegou e ela bebericou
sem retirar os olhos dos homens.
- Se não se curvarem, nossas espadas cairão sobre eles – riu Renaud, porém
a risada não foi acompanhada.
Guy olhou para Gerard buscando por confiança. O grão-mestre pensou um
pouco antes de falar. Molhou os lábios, preparando o novo ataque de lobo.
- Convoque uma assembleia de barões – sugeriu De Ridefort. – Convoque
todos os barões para que assim eles prestem a devida homenagem a Vossa
Majestade.
- É uma boa ideia – disse Sibylle. Ela sorria encantadoramente, satisfeita
com mais uma das ideias de Gerard. Agora os barões precisariam atender ao
chamado, pois não haveria mais motivo para permanecerem sob outra bandeira
que não fosse a do rei de Jerusalém.
- Sim, é uma boa ideia – concordou Guy, alisando o queixo. Levantou-se e
andou até a esposa, pensativo. Aquela era uma decisão importante. Pediu licença
e pegou o copo dela, bebendo um pouco do vinho. – Convocarei a assembleia,
mas será em um local neutro, para evitarmos a pressão demasiada.
Gerard tinha uma ideia parecida, mas achou melhor que o próprio Guy a
tivesse. Seria bom que o rei falasse por conta própria algumas vezes.
- Mesmo assim, é bom que Renaud esteja conosco, sempre pronto. Levarei
alguns templários comigo – comentou o grão-mestre.
- O que faremos com os barões que não capitularem? – perguntou Renaud,
segurando a espada e sorrindo.
- Supressão, da pior maneira que eles pensarem – disse Guy, firme. Buscou
apoio segurando a mão da esposa e olhando para Gerard. O grão-mestre sorriu
de volta. Sua vitória final estava chegando.
*****

Guillaume recebeu o recado do barão de Sable D´Or cinco dias depois de


ter chegado a Jerusalém. A carta era um pedido de ajuda. O amigo queria que o
templário levasse Laure para Acre para finalmente encontrar a filha. Guillaume
não poderia negar a ajuda, mesmo porque sabia que deveria seguir para o norte
em companhia do grão-mestre.
O templário andou até a estalagem onde Laure se refugiara para fofocar e
experimentar tudo o que continuava comprando no mercado. Era um lugar
apropriado para a mulher. O prédio tinha dois andares com janelas amplas
enfeitadas com pequenas esculturas de anjos. Guillaume entrou para encontrar
Laure no salão principal, conversando com Heiner e Gareth. Os três ficaram
imediatamente impressionados, porque o templário não estava sozinho. Trazia
consigo Dedrick, que vestia o manto branco do Templo.
- Parabéns, Dedrick. Conseguiu seu intento – elogiou Laure.
Heiner abraçou o jovem cavaleiro, contudo Gareth apenas acenou de volta.
O padre balançou a cabeça preocupado com o destino de Dedrick e ainda com a
reação de Karsten. O cavaleiro saíra com Melisende para visitar o Santo
Sepulcro e voltaria para se deparar com aquela cena.
- Nós vamos viajar para Acre – anunciou Guillaume.
- Nós quem? – perguntou Laure, petulante.
- Eu e meus companheiros. Temos negócios a tratar com o barão de Sable D
´Or lá – respondeu Guillaume, esquivando-se de uma discussão e usando as
palavras para atiçar a curiosidade da mulher.
- Ah, sim. E o que têm a tratar com meu pai? Ou melhor, o que meu pai
estará fazendo em Acre?
- Estará na assembleia dos barões, mas suponho que isso não a interessa,
Laure.
- Ah, interessa sim. Você sabe muito bem disso, sir Guillaume – disse ela,
abrindo um sorriso malicioso de quem entende o jogo. – Vou com você, meu
amigo templário. Eu até permito que seja minha escolta.
- Será um prazer escoltar uma donzela tão pura – provocou Guillaume com
uma reverencia tão irônica que deixou o rosto de Laure vermelho de raiva.
O templário girou sobre os calcanhares e saiu. Dedrick ficou parado para
dar o restante do recado.
- Partiremos amanhã pela manhã. Estejam preparados.
- Espere, Dedrick – chamou Gareth. O padre levantou-se depressa e
segurou o jovem templário pelo braço. – Não acredito que fez mesmo isso.
Como pode? Karsten não vai gostar.
Dedrick baixou a cabeça e evitou os olhos do amigo. Não sabia o que sentir,
se era vergonha pela aparente traição ou raiva por eles não aceitarem que
continuasse seu sonho.
- Eu tenho que ir. Templários não podem andar sozinhos. A regra dita que
sempre devemos estar em dupla. Não posso deixar sir Guillaume.
Gareth não o soltou. Dedrick olhou para o padre e pediu uma licença
envergonhada com os olhos. Foi um momento tenso cujas decisões adensaram-se
nos rostos de ambos. Quando Gareth finalmente soltou o braço do amigo,
percebeu que estava acabado. Haveria um fosso entre eles. Dedrick saiu pela
porta apressado para alcançar Guillaume.
- Não entendo por que vocês lamentam tanto que ele tenha se tornado um
templário – comentou Laure.
Gareth virou-se para ela educadamente.
- Karsten não vai gostar, Laure. Ele não se dá bem com os templários há um
bom tempo.
- Por quê? – O rosto dela iluminou-se. Estava subitamente curiosa para
saber mais do passado de Karsten.
Gareth e Heiner se olharam. O nórdico cruzou os braços.
- Uma briga tola. Nada mais, Laure. Nada mais.
Laure entendeu que eles não queriam falar. Não forçou o assunto. Decidiu
que descobriria por si só. Era mais divertido.

******

Karsten observava Melisende caminhar pela igreja de São Tiago e sorria.


Ele raramente ria daquele modo, sem motivos, sem que um de seus amigos o
fizesse gargalhar. Diante daquela mulher, no entanto, sentia vontade de exprimir
uma felicidade que não deveria vir dele. Ao menos não naturalmente. Melisende
era uma mulher linda, de uma beleza diferente da sensualidade agressiva de
Laure. Havia mais mistério nela, talvez fruto daquele sangue miscigenado que
lhe conferia uma aparência tão bela.
As pessoas se desviavam educadamente de Melisende, enquanto ela andava
com aquele ar alegre, porém recatado. Estava sem o véu e sorria ao mostrar a
igreja para Karsten.
- Venha, temos muito para ver hoje ainda – disse ela, que continuava as
visitas às igrejas mesmo depois de Heiner, Gareth e Laure terem se cansado de
andar.
Karsten apertou o passo para alcançá-la e sorriu para a felicidade da mulher.
- Está gostando de conhecer tudo? – perguntou ela.
- Sim, é bom saber pelo que vou lutar – respondeu o cavaleiro, olhando para
a igreja e para s pessoas que rezavam pelos cantos.
- Mas já não sabia antes? – Ela sorria enquanto fazia a pergunta. Uma das
finas sobrancelhas estava erguida em curiosidade.
- Creio que sim. – Ele até poderia saber, mas precisava ver para ter certeza
das razões pelas quais ergueria a espada. Jerusalém era muito diferente dos seus
sonhos. Agora Karsten precisava erguer novas bases para a força de vontade que
brandiria a espada e emitiria o brado de guerra de Tapferklinge.
- Você parece ser do tipo que dá trabalho aos confessores, Karsten.
Ele riu, porque não se entendia como tão misterioso ou como tão pecador.
Confessava regularmente com Gareth. Melisende percebeu que o cavaleiro não a
entendera muito bem.
- Você tem mistérios, mistérios que são difíceis de serem desvendados.
Karsten não baixou os olhos por pouco. Continuou a fitando para não
demonstrar fraqueza diante daquele golpe certeiro. Sem saber o que falar,
procurou apoio nas próprias convicções e contra-atacou com uma pergunta
indiscreta.
- Quem era nativo? Seu pai ou sua mãe?
Melisende afastou-se um passo. O sorriso maroto passou para um sorriso
malicioso.
- Minha mãe era judia, nascida aqui. Meu pai era um cavaleiro. Servia meu
tio em Sable D´Or. Morreu lutando contra os Assassinos há cinco anos quando
eu ainda tinha dezessete.
Ele finalmente descobrira a idade dela. Aquela beldade tinha vinte e dois
anos e ainda não era casada. Na certa, o tio ainda não conseguira lhe encontrar
um marido que aceitasse se unir a uma mestiça que talvez nem tivesse um dote
tão grande. Qual nobre abriria mão de uma noiva com um dote e pura de sangue
para ter Melisende? Karsten ficou indeciso quanto à resposta.
- Karsten – disse alguém às costas do cavaleiro.
Ele virou-se para encontrar Édouard acompanhado dos mesmos dois
hospitalários.
- Conhecendo as igrejas? – perguntou, enquanto abraçava o companheiro de
viagem.
- Sim. A senhorita Melisende... – Ela fez uma reverência sorridente. – ... fez
o favor de me mostrar toda a cidade. Ela sabe muito sobre Jerusalém. Só não
quis me falar sobre Saladino. Ainda não encontrei ninguém que me contasse
desse guerreiro.
- Salah ed-Din Yusuf. Ele é o sultão dos muçulmanos, Karsten. Não houve
sultão como ele, nem Nur ed-Din foi como Saladino é hoje. Esse governante tem
o dom para unir a nação islâmica, transformá-la em uma só.
- Ele tem todos os muçulmanos sob seu poder? – Karsten encontrara
subitamente o inimigo que procurava. Ele não era um templário, um cavaleiro
cristão ou um barão, mas um sultão.
- Nem todos. Ele já teve problemas com os Assassinos, por exemplo. Mas
Saladino consegue manter seu poder sobre o Egito e boa parte do Oriente
próximo de Jerusalém. Ele tem um exército incomparável.
- Maior que o nosso?
- Sim, maior. Mas não se preocupe. Temos uma trégua com ele. Saladino
não invadirá Ultramar. É um homem de palavra. Acho que há muito mais para
contar, mas a história é longa e eu não tenho tempo. Tenho que reunir outros
cavaleiros para viajar amanhã para Acre. Os barões se reunirão lá.
- Ouvi falar que não haverá mais guerra – falou Melisende tão aliviada
quanto Karsten, pois não queria lutar com cristãos.
- Acho que é cedo para falar isso, minha dama. Espero que esteja certa.
Édouard se despediu e saiu da igreja. Karsten permaneceu pensativo. Agora
sabia que não lutaria contra cristãos, porém parecia que nem contra os
muçulmanos ele ergueria a espada. Viera para lutar e agora se sentia perdido.
Talvez combater não fosse a melhor resposta.
- Édouard fala como se admirasse o tal Saladino – comentou Karsten.
- Acho que faz parte da sabedoria admirar as qualidades do inimigo e
aprender com elas. Assim se combate melhor, não é? – falou Melisende.
Karsten olhou-a impressionado. Gostara da frase.
- Bonitas palavras.
- Aprendi com meu pai.
- Talvez você deva me contar mais sobre ele.
Os dois começaram a caminhar para fora da igreja. Era hora de regressar e
reencontrar os amigos.

*****

Acre era uma cidade grande na região da Galiléia. Fora tomada pelos
cruzados no ano do Senhor de 1104 com a ajuda de uma esquadra genovesa.
Guillaume passou pelos muros da cidade conversando com Laure. O templário e
a filha de Sable D´Or discutiram muito durante a viagem, mas não deixaram de
conversar por um minuto que fosse. Algumas vezes, Guillaume até atraiu
Melisende para a conversa, aproveitando para contar a história das batalhas perto
de Acre. Falou até de uma em que o pai dela participara para subjugar um grupo
de revoltosos influenciados pelos Assassinos. Guillaume lutara ao lado dele e
por pouco não o convencera a se unir aos templários.
- Meu pai, um templário? Não, ele era humilde demais para isso – disse ela,
falando a verdade.
- Chama nossos corações de orgulhosos, Melisende? – perguntou
Guillaume.
Ela fez o cavalo diminuir o passo e ficou para trás para conversar com a
serviçal que a seguia e com Karsten. Laure ficou para continuar ouvindo as
histórias de Guillaume. Estavam passando pelos portões da cidade. Toda Acre
era rodeada por grandes muros que a protegiam como uma barreira que a
mantinha entre o deserto mais à frente e o mar. Começavam a enxergar as casas
apertadas atrás das muralhas. Ao contrário das vilas e muitas partes de Ultramar,
ali as construções eram mais resistentes, com mais pedras e tijolos do que
madeira.
- O Templo foi fundado por Hugo de Payns. Quer saber quando, Laure? No
ano do Senhor de 1119 ele se uniu a nove outros cavaleiros para lutar em nome
de Cristo e proteger os peregrinos que vinham para a Terra Santa. Era uma ação
necessária. Quando Ascalão ainda não estava sob nosso poder, muitos
muçulmanos saíam de lá para atacar a rota de Jafa a Jerusalém. Era ainda pior do
que é hoje. Agora, felizmente, o Templo tem poder e você já viu o que fazemos
com salteadores do deserto.
- Ah, sua humildade me impressiona, Guillaume.
- A mim também. Às vezes eu fico surpreso como uma pessoa pode ser tão
piedosa e humilde e não ser arrebatada para o Céu imediatamente – falou ele,
rindo. Guillaume ria com facilidade. Era um guerreiro feliz apesar dos modos
que sempre pareciam um tanto rudes para os outros. Anos sendo odiado e sem
perspectivas o ensinaram a rir de seus próprios defeitos. Um homem que perde
tudo precisava aprender a rir de si mesmo e do destino.
Laure riu. As discussões constantes com o cavaleiro às vezes a divertiam.
Precisava confessar a si mesmo que costumava sentir saudade das provocações e
dos modos rústicos sempre preparados para o melhor e para o pior. Conhecia
Guillaume desde que ele chegara à Terra Santa e nunca o vira reclamar. Às vezes
irritava-se com as críticas ácidas do templário, porém não podia se lembrar do
dia em que o vira reclamando do tempo, das guerras, da paz ou da comida.
- Onde meu pai nos espera? – perguntou Laure.
- Na casa de um amigo, outro barão. Eu sei onde é.
Seguiram na direção do porto. Atrás deles, juntamente com os servos,
Ahmad, Henri e Dante seguiam em fila, calados durante quase toda a viagem.
Apenas Henri falava de vez em quando, com dificuldade para conter toda a
vontade que tinha para expressar tudo o que pensava. Eles não eram os únicos
templários que viajavam com o grupo. Havia uma fila de outros vinte cavaleiros
que viajavam sob a liderança de Guillaume, que recebera a incumbência de
Jacques de Mailly e do próprio Gerard de Ridefort.
Gareth seguira a viagem toda ainda ensinando línguas para Karsten. Heiner
fingia que não escutava aquela conversa toda e tentava manter vigília sobre
Dedrick. O jovem templário, no entanto, cavalgava silenciosa e orgulhosamente
junto com os templários que vinham mais atrás. Restava ao nórdico tentar
relembrar todas as histórias de santos que haviam lhe contato até o momento.
Elas eram a principal fonte curiosidade sobre a fé do Deus Único. Aquela
religião só falava de pecados e de uma salvação para um grupo seleto. Agora que
visitava a terra onde Jesus fora crucificado, não vira nada de diferente nos
templos antigos de sua terra. Nada o impressionara na tal Terra Santa além do
calor diabólico, da bagunça religiosa e da multidão de peles coloridas. Heiner
precisava de provas para sua fé e estava encontrando poucos motivos para
continuar cristão. Talvez não quisesse tanto a salvação de sua alma.
- São Bernardo pregou a favor das cruzadas. Ele pregava a favor da guerra,
assim como Santo Agostinho falou da guerra justa. E a guerra contra o infiel é
justa. São Bernardo pregou que os cavaleiros laicos que lutavam contra cristãos
e causavam desordem na própria casa estavam errados, mas que estava certo
entregar a alma a Deus e matar os infiéis em nome de Cristo – falou Gareth,
sabendo que atrairia a atenção de Heiner.
O nórdico esticou a cabeça para ouvir melhor a conversa.
- Então segundo a teologia, a guerra que lutamos é justa e está sob as ordens
de Deus – concluiu Karsten, procurando certificação para suas decisões nas
palavras de Gareth. De repente, sentia que combater talvez o retirasse da
salvação que procurava.
- Segundo os santos, sim.
- Quem foi esse São Bernardo? Que milagre ele fez? – perguntou Heiner.
O grupo parou. Estavam em uma esquina e Guillaume decidia-se para onde
ir. Karsten e os outros acabaram alcançando Laure e o templário a um ponto em
que os cavalos se embaralharam na rua pequena. Gareth evitou que sua égua
trombasse nos animais à frente e continuou a falar.
- São Bernardo de Claraval foi um monge cisterciense francês. Ele nasceu
no ano do Senhor de 1090, nove anos antes que Jerusalém fosse tomada para
Cristo mais uma vez – continuou o padre.
Guillaume olhou para Gareth, depois se voltou para Dante, que estava com
o cavalo em formação, mais para trás.
- São Bernardo. Você já me falou dele, Dante.
- Devemos nosso manto e nossa cruz a ele, senhor. Ele pregou em nosso
nome, ajudando a convencer o papa de que os templários mereceriam ser uma
ordem, a milícia de Cristo. Morreu no ano do Senhor de 1153, para a infelicidade
de todos nós – contou o templário siciliano.
Gareth olhou para Dante com o cenho franzido, irritado com a competição
de saber. Não pretendia relevar essa última parte da história de São Bernardo
para que Karsten não se chateasse.
O cavaleiro germânico soltou um olhar nervoso para Guillaume.
Reconheceu que aquela observação fora apenas para provocá-lo. Ainda acertaria
as contas com o templário, principalmente se acontecesse algo com Dedrick.
- Gostei desse santo. Um santo da guerra. Acho que agora estou
encontrando o que quero nessa religião – falou Heiner para Gareth. O padre
balançou a cabeça. Aparentemente, o nórdico ainda não entendera o verdadeiro
princípio de se tornar cristão.
- Você ainda quer se tornar cristão por causa da espada. Isso não está certo –
lamentou o padre.
- Mas foi você quem acabou de falar de guerra justa e me disseram que se
eu viesse para cá meus pecados seriam perdoados enquanto eu lutasse.
- É, mas Jesus disse que não devemos viver pela espada.
- Então Jesus disse-lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que
lançarem mão da espada, à espada morrerão – citou Dante, para a irritação de
Gareth e sorriso de Guillaume.
O padre ficava impressionado. Aquele templário maldito tinha uma citação
bíblica para tudo. Ele lia o livro sobre o cavalo, à luz da fogueira, enquanto
comia, enquanto bebia. Deveria conhecer mais da Bíblia do que ele, que ela
padre. Gareth precisava reconhecer que não tinha tanto domínio sobre os
versículos e aquilo o irritava, principalmente porque não podia se defender com
tanta competência para ajudar Karsten em sua disputa pessoal com Guillaume.
- Então quer dizer que eu devo morrer lutando? – perguntou Heiner, alheio
às pequenas disputas entre os templários e os cavaleiros laicos.
- Aparentemente sim. Não se orgulha disso? – disse Guillaume.
- Acho que sim – sorriu Heiner.
- Vocês estão distorcendo tudo.
- Estou ficando confuso então, padre. Se os santos dizem que devemos lutar
em nome de Cristo e Cristo disse que se usarmos a espada morremos por ela, por
que não nos orgulharmos de morrermos lutando em nome de Deus? – questionou
Guillaume com um sorriso discreto no canto da boca.
Gareth preparou-se para responder, contudo Karsten o impediu balançando
a cabeça e afirmando que não valia a pena.
- Deixe. Eu já entendi o que você quis dizer, Gareth. A guerra é apenas a
guerra. Ela tem seu propósito, mas não devemos viver por ela – disse o
cavaleiro.
As palavras soaram como música aos ouvidos de Melisende. Aproximara-se
muito dele durante e a viagem e tentava entendê-lo, apesar dos mistérios que
agiam como uma barreira inexpugnável em volta dele.
- Acabaram com a filosofia? Acho que podemos seguir agora, não? – disse
Laure.
- É claro, minha dama. Dedrick, saia da fila e venha comigo. Dante, leve o
restante dos homens para Gerard e coloque-os nas instalações do Templo.
Dante assentiu e deu meia-volta com o cavalo, chamando os outros
templários e sargentos de armas. Eles seguiram em fila silenciosamente,
enquanto Dedrick se destacava para acompanhar Guillaume. O jovem germânico
estava feliz com a honra de andar com o líder do grupo. O coração estava
pomposo.
Viraram à esquerda e seguiram entre as construções de pedra. Avistavam os
muros da cidade e imaginavam como seria uma guerra em Acre. Tomar a cidade
fora difícil e um ataque muçulmano a ela exigiria um cerco longo. Acre tinha
condições de se defender por muito tempo, sendo abastecida pelo mar.
A casa onde Sable D´Or estava hospedado ficava próxima ao porto. Tinha
apenas um andar e era feita de pedra, mais parecendo uma pequena fortaleza no
meio da cidade. Guillaume bateu palmas para chamar a atenção de um servo e
pedir que chamasse o barão. O nobre apareceu vestindo um albornoz de seda e
um turbante. Abriu os braços e soltou um sorriso alegre ao ver o amigo e a filha.
Ambos desmontaram e Dedrick correu para segurar as rédeas do cavalo de
Guillaume. O templário mais velho abraçou com força o homem barbudo e calvo
que era o barão de Sable D´Or. Afastou-se para permitir que o homem
cumprimentasse a filha e a beijasse na testa. Ele repetiu o gesto quando
Melisende apareceu.
- Que bom vê-los. Como é bom! Venham, vamos entrar. Tenho água fresca
os esperando.
Entraram pisando em um tapete com inscrições árabes bordadas. As
cadeiras eram pesadas para resistir a um cavaleiro de armadura como sir
Guillaume e também a Dedrick, que apareceu logo após deixar os cavalos com
um servo. Laure apresentou os novos amigos ao pai, que os recebeu com muito
orgulho. Karsten ajoelhou-se diante do barão.
- Venho oferecer-lhe minha espada – disse o cavaleiro germânico. Ele olhou
para as mulheres e depois para seu novo senhor, estendendo-lhe a arma. Já tinha
certeza de onde seu coração deveria estar. Encontrara o verdadeiro motivo de
estar na Terra Santa.
- Pois eu a aceito, meu caro Karsten. Agora se levante para lutar por mim.
O cavaleiro pôs-se de pé e olhou para Heiner. O nórdico estava se
deliciando com um pedaço de pão e mal prestava atenção ao ato cerimonioso.
- Heiner.
- Eu? – perguntou ele, falando de boca cheia.
- Não vai prestar sua homenagem ao barão?
Houve um constrangimento geral, exceto por parte de Guillaume que
colocou a mão em frente à boca, fingindo se coçar para evitar que o riso ficasse à
mostra.
- Ah, sim – disse ele, ajoelhando-se enquanto as migalhas de pão caíam.
Não foi um momento nem de longe tão educado quanto o de Karsten, mas o fato
era que Heiner não se importava em prestar homenagem a ninguém. Ele queria
apenas aprender a exercer essa fé que constantemente lhe escapava entre os
dedos. Se o pudesse fazer lutando, seria um tanto melhor. Se não, provavelmente
apenas abandonaria a religião para algo mais prático. Talvez houvesse um jeito
melhor de salvar essa tal de alma.
Sable D´Or sorriu, sem se incomodar com a falta de refinamento do
cavaleiro. Pediu que ele se levantasse e acabou com o constrangimento levando
a outros assuntos.
- Então, minha filha. Esses homens que você me trás lutam bem? –
perguntou ele, sem medo de estar ofendendo aos outros. Confiava muito na
palavra da filha.
Ela olhou para Karsten, Heiner e Dedrick. O jovem templário, que não se
sentara, mas ficara de pé ao lado de Guillaume, evitou o olhar dela,
envergonhado.
- Sim, meu pai. Esses dois vão ser muito úteis a Sable D´Or. Eles já sabem
muito bem que precisarão lutar contra os infiéis e estão preparados para isso.
Fizeram um bom trabalho quando fomos atacados por salteadores.
- Estava lá para ver isso, Guillaume? – perguntou Sable D´Or. – Se minha
filha diz, eu acredito. Mas e você, meu amigo? O que acha?
O ar pesou tenso quando Karsten e Guillaume se olharam. Laure estreitou
os olhos como uma raposa, percebendo os maxilares travados dos dois.
- Estava escuro demais. Além disso, eu estava ocupando tentando salvar sua
filha e sua sobrinha para poder prestar atenção na luta deles. Mas os forasteiros
deixaram alguns cadáveres – respondeu Guillaume.
- Então vou confiar no que minha filha diz. Karsten e Heiner parecem ser
ótimos cavaleiros. – Virou-se para os dois. Heiner já comia mais uma vez.
Karsten tentava não parecer tão nervoso. – Confiarei em vocês dois. Saibam que
serão meus grandes cavaleiros. Será bom ter mais alguém de ascendência nobre
lutando entre nós. No momento, meu filho está muito ocupado cuidando dos
muçulmanos que queriam se revoltar em nossas terras.
- Ainda não resolveram os problemas? – perguntou Guillaume.
- Não, ainda não. Quando consigo contornar algo, mais alguma coisa
aparece. Ainda desconfio que os Assassinos estejam por trás disso.
- Por falar nisso, posso ter uma conversa em particular com o senhor?
Sable D´Or sabia que o amigo não o chamaria para um assunto privado sem
razão. Preocupou-se de imediato e fez sinal para que os outros saíssem. Nem
mesmo Laure ficou.
- Temos menos um inimigo entre os Assassinos. Um espião deles estava
entre os cadáveres que deixamos em Jerusalém – falou Guillaume.
- Ótimo. Mas como o reconheceu?
- Eu já tinha algumas pistas. Fiquei sabendo dele da última vez que fui a
Jafa. E estava tramando alguma coisa, pois se disfarçara de mercador para seguir
Laure até Sable D´Or.
O barão cruzou os braços e olhou para o chão pensativo. Mais problemas.
Seus dias estavam sendo apenas de problemas.
- Eles agirão de novo. Primeiro mataram meu irmão, agora virão até mim,
se já não estão vindo, Guillaume. Temo que ataquem meus filhos primeiro. O
que é a vida de um homem se ele assiste à morte dos filhos?
O templário levantou-se e andou até o amigo. Colocou as mãos sobre os
ombros dele.
- Preciso alertá-lo, meu amigo. A morte desse espião pode ter piorado ou
melhorado as coisas. Talvez ele fosse melhor vivo do que morto, no fim das
contas, apesar de que é sempre impossível interrogar um Assassino.
- Fica impossível saber agora. O que tenho a fazer é me preparar para o
pior.
- Não direi para não se preocupar, mas direi que pode contar comigo. Sabe
que somos amigos e lutarei para que nada aconteça a você, sua filha ou a sua
sobrinha.
Sable D´Or levantou-se e abraçou o templário.
- Bom saber disso, meu amigo. Temi que estivesse contra mim com a
iminência da guerra.
- Não – Guillaume negou, afastando-o e balançando a cabeça com um
sorriso no rosto. – Felizmente tudo acabou e não teremos guerra. Você está aqui
e isso é sinal de que tudo está bem.
O templário esperava que finalmente as coisas houvessem se resolvido, mas
ao ver o barão baixando a cabeça mais uma vez, notou que estava errado.
- Raymond de Trípoli não veio e se recusa a vir. Eu vim justamente para
avisar que ainda há quem não apoie Guy e Sibylle. Estou do lado de Raymond
ainda, meu amigo. E você?
Guillaume olhou para o teto e pensou. O sorriso desapareceu do rosto.
Levantou um braço e apoiou a mão sobre o ombro direito de Sable D´Or.
- Infelizmente, meu primeiro dever é para com o Templo, assim como o seu
primeiro é para com Raymond. Infelizmente estaremos separados até que isso se
resolva, meu amigo.
- O dever nos chama primeiro.
- Como deve ser com homens de honra.
- Que a batalha seja gloriosa para nós dois – disse Sable D´Or.
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – retrucou
Guillaume com o lema do Templo. Aquele era o pouco de latim que conhecia
além das orações.
Eles se sentaram de novo. Sable D´Or estava para chamar os outros, mas
parou.
- Acha que posso confiar nesses cavaleiros que minha filha me trouxe?
- Não os conheço, mas parecem bons homens, Donat. Acredito que serão
úteis.
- Bom – respondeu ele, cruzando os braços de novo e chamando pela filha.
Guillaume se despediu e saiu com Dedrick, deixando-os com conversas
pouco interessantes. Laure disse que enviara os mercadores para Sable D´Or e
que lá o irmão cuidaria dos tecidos e das joias que poderia comprar.

*****

O salão amplo estava repleto de barões. Vinham de várias partes da


Palestina para finalmente prestarem homenagem ao rei e à rainha. Alguns deles
já haviam comparecido a Jerusalém, indo um a um depois da abdicação de
Onfroy. Foram forçados a reconhecer que estavam sem recursos. Agora uns
poucos faltavam à assembleia que reconheceria por fim o poder de Guy.
Os barões, alguns vestidos com armadura, mas a maioria apenas com
túnicas ricamente bordadas à maneira do Oriente, estavam caminhando pelo
longo tapete estendido diante do trono. Iam um por um andando a passos curtos
e humilhados para se apresentarem. Guy e Sibylle, sentados, observavam os
homens se ajoelharem e aceitavam a homenagem. Em um canto, Gerard de
Ridefort e Renaud de Châtillon apreciavam a vitória. Gerard procurou por
Raymond de Trípoli até o último momento. Finalmente, baixou os olhos em
Donat de Sable D´Or e soube que ali estaria a resposta final para o que
aconteceria com o senhor de Tiberiades.
Gerard e Renaud não se preocuparam apenas com Raymond. Havia outros
barões importantes que mereciam igual atenção, entre eles os irmãos Ibelin,
Balduíno e Balian. Balian já andara até o rei. O cavaleiro, com a barba negra
finamente aparada, caminhou com passos elegantes. Era tido como um dos
melhores do reino e de fato o era. Tinha conhecimento, tinha poder, tinha
habilidade. Balian ajoelhou-se perante o rei e prestou sua homenagem, foi
humilde como só os sábios sabem ser.
O irmão de Balian, no entanto, não compartilhava das mesmas opiniões.
Balduíno tinha ainda mais fama do que Balian, mas era de um temperamento
menos paciente. Já tomara sua decisão e não mudaria de ideia. Não voltava atrás
em suas promessas.
- Balduíno, senhor de Ramleh, não vai prestar homenagem ao nosso rei? –
vociferou Renaud, em um desafio súbito que pegou todos desprevenidos. Rostos
voltaram de Châtillon para Balduíno aturdidos com a ameaça entre dois dos
grandes do Reino de Jerusalém.
O senhor de Ramleh olhou para os lados com um semblante inalterado.
Deveria saber que podia esperar um desafio de alguém como Renaud. Era claro
pelos modos de Balduíno que ponderava com cuidado as próximas atitudes.
Observou cautelosamente os barões que ainda não haviam se ajoelhado e aqueles
que, junto do irmão, agora esperavam ansioso a ação de um de seus principais
líderes.
Balduíno caminhou solenemente até parar a seis passos dos pés de Guy.
Não baixou a cabeça, não dobrou os joelhos. Aquele não era homem de se
dobrar a ninguém que considerasse inferior. Olhou para todos em volta e em
seguida fixou-se nos olhos do rei. Guy os desviou por um instante, procurando
apoio em Gerard. O grão-mestre apenas fez que sim com a cabeça para que o rei
aceitasse o que quer que ocorresse. Renaud voltou a desafiar.
- Não vai se ajoelhar perante nosso rei? – bradou o senhor de Kerak.
- Não – respondeu Balduíno. – Meu senhor, venho aqui em nome do meu
filho. Entreguei a Tomás os domínios de Ramleh. Quanto a mim, estou de
partida de Ultramar. Tomás lhe prestará a devida homenagem quando tiver idade
para isso. Ramleh será sua vassala, mas eu não. Que os porcos chafurdem entre
as pérolas que lhes foram jogadas e os cães comam o que é santo.
Ele continuou olhando fundo nos olhos de Guy. Agora o rei encontrou
forças no fundo da alma para manter o contato. Empertigou-se e depois se
inclinou um pouco, apenas um pouco, apenas o permitido para sua realeza.
- Que assim seja, Balduíno. Sentiremos a falta de sua espada entre nós, mas
não pedirei para que fique. A escolha é sua.
- Pois então está feito – concluiu Balduíno.
Ele virou-se e partiu do salão com o orgulho intacto e com a certeza de que
sua promessa estava cumprida. Foi observado por Gerard até o fim. O grão-
mestre conteve um sorriso de vitória. Aquele era menos um inimigo que poderia
atrapalhar em suas conquistas. Sem Balduíno, muito da influência dos barões
sobre Guy se perdia. Agora restavam apenas Balian e Raymond de Trípoli. A
resposta quanto a Raymond viria agora. Donat de Sable D´Or começou a
caminhar na direção de Guy. Caminhava totalmente ereto, com os ombros
levantados e o olhar fixo à frente.
Foi uma surpresa geral quando o barão de Sable D´Or não se ajoelhou
perante Guy. Não porque as pessoas esperavam sua punição, mas porque aquele
era um desafio claro, provavelmente com forças retiradas do ato de Balduíno.
Temeu-se que outros barões retirassem suas homenagens.
- Vim em nome do condado de Trípoli. Raymond de Trípoli dá os parabéns
ao rei pela posição que tomou.
Não disse mais nada. Apenas virou-se sob a sombra imponente de Balduíno
e saiu. A assembleia de barões permaneceu silenciosa esperando alguma atitude.
Guy remexeu-se no trono, enervando-se ainda mais com os olhares que recebeu.
Segurou a mão da esposa e depois a soltou, temendo apresentar fraqueza. Olhou
para Gerard e Renaud procurando apoio.
O grão-mestre logo tomou uma atitude. Caminhou pelo tapete com o porte
nobre que nunca o abandonava. Ajoelhou-se perante o rei e sacou a espada,
estendendo-a.
- Eu, Gerard de Ridefort, grão-mestre da Ordem do Templo, venho entregar
minha espada para lutar em nome de Vossa Majestade. Conte comigo para
combater vossos inimigos.
O Templo era mais do que uma potência em Ultramar. Era uma organização
respeitada e temida, cujos guerreiros eram uma espada em nome da igreja. Os
barões que pensavam em revoltar-se logo retrocederam, pois sabiam que não
eram mais uma liga tão forte quanto antes. Poderiam se encontrar sozinhos no
campo de batalha contra o rei, outros barões e as ordens militares. Até mesmo o
Hospital já oferecera seus serviços ao rei, apesar de não com a mesma convicção
que o Templo. Roger des Moulins fora mais comedido em sua apresentação,
porém uma vez que a tivesse feito, não lutaria contra o rei.
O ato de Gerard não apagou a impressão forte deixada por Balduíno de
Ramleh, porém apagou o fogo nos de alguns barões e acendeu o orgulho na alma
de outros. Guy respirou aliviado diante do grão-mestre oferecendo a espada. A
segurança de si após saber que Gerard de Ridefort e Renaud de Châtillon
continuavam seus aliados. Agora precisava resolver o problema com Raymond
de Trípoli.

*****

Os templários se reuniram com o rei cinco dias após a assembleia. Guy


alertara aos barões que pretendia manter a trégua com Saladino. Afirmou que
não tinha nenhuma intenção de criar nenhum problema com o sultão e que era
melhor que mantivessem a paz para estabilizarem a política do reino. A notícia
deixou a maioria deles aliviados. Apenas aqueles que haviam chegado mais
recentemente do Ocidente queriam a guerra. Desacostumados com a tolerância
típica daqueles já nascidos e criados em Ultramar, eles queriam mostrar qual o
motivo de estarem na Terra Santa. Havia quem queria terras, quem queria
combater em nome da fé, quem queria os espólios e, por fim, os corações
sedentos de guerra.
Gerard de Ridefort não desejava a batalha contra Saladino. Ainda não era a
hora. Ele não detinha o poder que necessitava. A guerra poderia atrapalhá-lo, a
não ser que fosse uma guerra civil que lhe permitiria que usasse todo o poder do
Templo para demonstrar como era essencial que os barões se submetessem a
quem quer que os templários apoiassem. Ou melhor, quem quer que Gerard de
Ridefort apoiasse. Era um daqueles homens que se acreditavam eternos mesmo
sem saber que suas decisões e as consequências delas ainda alcançariam a
história do mundo.
Usaram uma sala menor para discutirem o assunto de Raymond de Trípoli.
Estavam Guy, Renaud de Châtillon, Gerard de Ridefort, Jacques de Mailly e
Guillaume de La Croix Bleue. Apenas os três primeiros estavam sentados, sendo
que Guy era o único que não usava armadura. O rei esfregava as mãos ansioso
para decidir o que faria com Raymond. Sabia que aquele conde era uma ameaça
para a fundamentação completa de seu poder. Até agora, apenas Balduíno de
Ramleh e alguns poucos barões haviam deixado Ultramar, procurando refúgio
em Antioquia. Com Raymond ainda revoltado, talvez outros nobres também
seguissem aquele exemplo e esquecem a ameaça leviana de se unirem para
planos de guerra.
- Precisamos cobrar de Raymond tudo o que ele gastou enquanto esteve
como regente – falou Gerard. Os outros dois templários estavam de pé ao lado
dele, em posição de guarda.
- Já pensei nisso. Eu me antecipei e preparei uma mensagem. Quero que o
próprio Sable D´Or a leve para o conde – declarou Guy.
- Pode entregar a mensagem a Donat, Guillaume? – perguntou Gerard,
olhando curioso para o subordinado.
- Sim. Entrego hoje mesmo. Ele já está para partir amanhã para Sable D´Or.
Seguirei viagem com ele e pararei em La Fève.
Guillaume não demonstrava desconforto. Quieto, apenas ouvia de cenho
franzido as discussões quanto ao futuro do reino. Guy tentava entender o
cavaleiro. Ouvia histórias sobre o Senhor de Croix Bleue, Le Loup Bleu, o Lobo
Azul, tão feroz que a Igreja não conseguira tomar atitude a não ser tomá-lo em
suas rédeas quando o próprio Inferno não parecia aceitá-lo.
- Sable D´Or pode ser um espinho em nossos planos. Ele teve coragem de
vir até aqui e nos desafiar. Não podemos permitir que isso aconteça – rosnou
Renaud de Châtillon. O remexia uma taça de vinho na mão, levando respingos
para a armadura.
- De fato, é uma pena ele ter se revoltado também. Vossa Majestade entende
que não podemos permitir isso – falou Gerard.
Guy assentiu sem falar nada. O rei ficou quieto e pensativo. O cerco estava
se fechando. Talvez a guerra civil não demorasse a acontecer, pois havia muito
que se resolver em Ultramar. Às vezes apenas a espada era suficiente para acabar
com as desavenças.
- Não podemos deixar que Sable D´Or continue com seu feudo. Ele está
muito próximo de Tiberíades. O lugar poderá nos servir como base no caso de
uma guerra contra Raymond ou estará no nosso caminho quando marcharmos.
- Trouxe Guillaume justamente por isso. Ele tem um relacionamento mais
íntimo com Sable D´Or e pode nos contar mais sobre o feudo – falou Gerard,
apontando de leve para o templário.
Guillaume fixou o olhar no rei e esperou por perguntas. Guy perguntou-se o
que homem faria se fosse obrigado a decidir entre sua fidelidade ao Templo e a
Sable D´Or. Captou um leve olhar de fúria para o grão-mestre, tão discreto que
apenas alguém tão covarde quanto o rei poderia ter sentido. Seri ódio por Gerard
Gerard colocá-lo naquela situação? A expressão não durou muito. Le Loup Bleu
deveria ter percebido que era lógico que o líder do Templo o chamasse para
saber mais daquele inimigo.
- Quantos cavaleiros Donat de Sable D´Or tem? – perguntou Guy.
- Não mais que vinte, senhor. Some a isso cerca de trinta sargentos de armas
e sessenta soldados de infantaria – explicou Guillaume.
A informação era pouco demais para ser uma traição. Guy esperava saber
ainda mais.
- Podemos submetê-lo facilmente, se Raymond não enviar reforços – falou
Gerard. Guy assentiu. Renaud balançou a cabeça e riu.
- Algum problema, Renaud? – perguntou o rei.
- Não, é que eu acho que está fácil demais. Deveriam enviar alguém lá
agora para submeter esse feudozinho fedido. Por que os templários de La Fève
não vão? Eu posso até enviar alguns homens para ajudar.
Os outros quatro surpreenderam-se imediatamente por saber que Renaud
não pretendia atacar diretamente. Não era do feitio do guerreiro evitar batalhas.
Talvez tivesse outros planos. A preocupação transpareceu no rosto de Jacques de
Mailly.
- Não acho que seja preciso guerrearmos ainda – sugeriu Jacques, tentando
apaziguar a conversa. – Acho que precisamos nos concentrar em resolver o
problema diplomaticamente.
O olhar de Guy passou de Jacques para Gerard. Renaud soltou uma risada
zombeteira.
- Não vejo como tratar com Raymond diplomaticamente, Jacques. Ele já
enviou um homem aqui para nos desafiar. Se permitirmos que ele continue com
essa revolta, outros nobres seguirão o exemplo, talvez agindo de forma pior do
que Balduíno de Ramleh – explicou Gerard.
Jacques se calou. Não tinha uma resposta a não ser o bom senso de que a
guerra de nada adiantaria.
- Quantos homens temos em La Fève, Guillaume? – perguntou Gerard.
Aquela seria uma boa oportunidade de demonstrar o poder do Templo,
submetendo o primeiro feudo de Ultramar que se mostrara contra o rei.
- Quinze cavaleiros, cinquenta sargentos, vinte e cinco turcópolos.
- Mais que o suficiente para acabarmos com Sable D´Or – sorriu Gerard.
- A não ser que Donat obtenha reforços. Acho melhor você conseguir mais
homens, Gerard. Não quero que essa seja a primeira derrota que teremos –
alertou Guy.
O grão-mestre se endireitou na cadeira e remexeu no manto branco,
arrumando a cruz sobre o ombro esquerdo.
- Concordo. Jacques, quero você organizando os templários da região de La
Fève para tomarmos Sable D´Or.
- Algo será feito contra Raymond de Trípoli? – perguntou Jacques, tentando
escapar do assunto difícil. Não tinha a mínima vontade de iniciar uma batalha
contra cristãos.
- Ainda não. Por enquanto ele não fez nada. Apenas Sable D´Or fez. Ele
veio aqui nos desafiar, portanto temos uma desculpa para agirmos contra Donat.
Entretanto temos que esperar para tomarmos uma atitude em relação a Raymond.
Ele não tardará a nos dar um motivo. Um a um eles nos darão razão para os
eliminarmos – disse Gerard.
- Precisamos fazer isso com quem siga o exemplo de Balduíno de Ramleh.
Não podemos tocar Balduíno já que ele jurou vassalagem a outro senhor e tem
renome demais de Ultramar, mas podemos mostrar aos nobres menores que não
é sensato seguir aquele mau exemplo – falou Guy.
- Cada batalha em seu devido tempo – comentou Renaud. Gerard e
Guillaume notaram o tom de ironia na voz do senhor de Kerak sem entender o
que havia nas entrelinhas.
O grão-mestre dispensou os dois templários com um aceno de mão. Disse
que em breve os contataria para resolver o assunto de Sable D´Or. Guy levantou-
se da cadeira assim que os dois saíram. Gerard e Renaud continuaram sentados.
- Podemos confiar nesses dois? – perguntou o rei, caminhando de um lado
para o outro.
Gerard soltou o ar lentamente, enfadado com a pergunta. A resposta lhe
aprecia óbvia.
- Eles são templários. Vossa Majestade não precisa duvidar da fidelidade
dos cavaleiros do Templo.
- Não está colocando confiança demais neles, Gerard? – perguntou Renaud,
encostando-se na cadeira. Rodopiava o copo e olhando para o grão-mestre.
Gerard de Ridefort olhou tanto o rei quanto o senhor de Kerak com calma.
Tentava imaginar como seus aliados poderiam contar tão pouco com seus planos.
Aqueles dois seriam, no fundo, apenas degraus em sua escalada para o poder.
Não poderia ser rei, não poderia ser um grande senhor, mas era grão-mestre, o
que lhe permitira ainda ser maior do que ambos.
- Estou, Renaud, estou. Pode ter certeza que sim e eles me recompensarão
cada momento dessa confiança.
- O marechal me pareceu receoso com uma possível batalha contra
Raymond – falou Guy, cruzando os braços.
Gerard franziu o cenho e encostou-se à cadeira. Apoiou os cotovelos e
cruzou as mãos.
- Não é receio. É escrúpulo demais. Mas ele não contradirá minhas ordens.

*****

Laure divertia-se no mercado. Seu único acompanhante era o servo fiel que
sempre estava a seu lado. O homem, vestido com suas costumeiras roupas
árabes, andava ao redor dela como um guarda-costas e mordomo. Tinha uma
faca na cintura para demonstrar que estava ali para proteger a mulher.
Observava-a em frente à barraca de tecidos. Laure avaliava a seda fina vendida
em Acre com ares despreocupados. O tom azulado a encantou e decidiu que a
compraria. Estava para começar a negociação quando o servo a avisou que
alguém se andava em sua direção. Laure fingiu que não ouviu, confiando no
homem e duvidando que qualquer coisa poderia lhe acontecer.
Foi um templário que parou ao lado dela. O homem passou a mão na seda
azul e avaliou a textura.
- Boa escolha – disse Gerard de Ridefort.
- Eu só faço as escolhas certas, senhor grão-mestre – falou ela.
Gerard olhou sobre os ombros e fez sinal para que os cavaleiros que o
seguiam se mantivessem atentos.
- O que quer de mim, afinal? – perguntou a mulher.
- Envie um recado para seu irmão. Diga apenas que a guerra está para
começar. Nada além disso.
- Meu irmão saberá. O senhor gostaria de falar algo a mais comigo?
- Está linda como sempre – elogiou ele, dando-lhe as costas e partindo.
Laure continuou olhando os tecidos como se nada houvesse ocorrido. Ficou
pensando nas conspirações daquele templário e tentando imaginar se Guillaume
estava a par dessa batalha.

*****

O mensageiro parou em frente a Bassam e esperou permissão para falar


com o homem. Observava aquele poderoso senhor muçulmano com medo. Era
um homem moreno de barba negra aparada curta, de modo que apenas o queixo
tinha uma porção mais longa. Os olhos castanhos escondiam malícia além da
conta e um desejo de vingança que estava acima do sadio para qualquer pessoa
que fosse inimiga, talvez fosse insalubre até para os amigos.
- Malik foi assassinado, senhor – contou o mensageiro, falando do espião
dos Assassinos que havia sido enviado a Jafa.
- Quem? – perguntou Bassam.
- Os mercadores dizem que foram os templários.
- Qual templário? – perguntou Bassam, agora se esticando para frente para
receber a notícia que tanto esperava. Finalmente teria a desculpa para reiniciar
seus planos.
- Guillaume de La Croix Bleue – falou o mensageiro, com dificuldade para
pronunciar o nome.
Bassam encostou-se de novo à cadeira. Levou uma das mãos até o rosto e
passou os dedos de leve na cicatriz branca que tinha na bochecha. Memórias de
ódio afloraram como um kraken, mas um sorriso perverso apareceu no rosto.
Finalmente descobrira uma razão maior para atacar os templários sem se
preocupar em estar sendo apenas vingativo e egoísta. Eles haviam matado um
Assassino sem motivo aparente. Agora era hora da vingança. A trégua velada a
qual fora forçado com os templários poderia acabar. Nada de juramentos com os
infiéis.
- Com quem o templário estava? – inquiriu Bassam, esperando a última
parte da resposta para completar sua felicidade.
- Estava com a filha do barão de Sable D´Or.
Bassam fez sinal para o mensageiro ir. Já tinha tudo o que precisava. Sable
D´Or quebrara a trégua que tinha com os Assassinos. As guerras entre o feudo e
os homens chefiados por Bassam haviam acabado há três anos quando
finalmente Donat conseguiu um acordo. Bassam só aceitara porque se
encontrava em dificuldade e o Velho da Montanha o alertara a esperar para saber
o que aconteceria com a paz entre os francos e Saladino. Agora não havia mais
motivos para manter o acordo pecaminoso.

Capítulo Quatro
Renaud de Châtillon ajeitou o elmo prateado sobre os cabelos ruivos.
Cobriu o metal com um kefieh. O tecido enrolado sobre a cabeça era branco, um
sinal de pureza que nada tinha a ver com os pensamentos sórdidos que ocorriam
na cabeça do cavaleiro. Ele olhou para os cavalos batendo as patas sobre as
areias e sorriu para seus homens se preparando sobre as montarias. Os cavaleiros
estavam quase prontos para o ataque.
O sol escaldante não deixava nenhum dos salteadores desanimado. Eles
observavam de cima da duna e esperavam o momento certo para atacar. Faltava
apenas o sinal de Renaud. No momento, o senhor de Kerak observava a caravana
que se movia lentamente pelo deserto de Moab. Vinham de Damasco e rumavam
para o Egito, imaginando que o único risco que corriam era o dos assaltos dos
beduínos. Era um engano infeliz. Contavam demais com a trégua com os
francos, mas se esqueciam de um homem chamado Renaud de Châtillon.
O sinal foi apenas um aceno de mão. Significava que os homens deveriam
se preparar para enriquecerem. Havia muito o que pilhar naquela caravana tão
pouco protegida. Nada além de uns poucos soldados egípcios que em cairiam
pelas espadas dos francos.
Os cavalos desceram a duna a toda velocidade com uma distância calculada
para os cavalos não perderem o ímpeto da carga. Jogavam areia para cima,
criando uma pequena nuvem de terror dourado que refletia a luz do sol. Os
mercadores da caravana perceberam imediatamente que estavam sendo atacados
e que aqueles não eram meros beduínos. Gritaram preces a Alá e chamaram a
proteção dos egípcios. Os soldados prepararam as montarias e começaram a
entrar em formação para se defenderem.
Renaud foi o primeiro a chegar à luta. Manteve a lança em riste enquanto o
cavalo avançava. Os olhos fitavam um soldado egípcio, mas o coração mirava a
fortuna e o sangue decorrentes da batalha. O egípcio colocou o cavalo para
correr e preparou uma lança para enfrentar o ataque de Renaud. O animal não
conseguiu adquirir velocidade a tempo. Percebendo o problema, o guerreiro
preparou o escudo para o impacto e arremessou a lança contra Renaud. O franco
escapou abaixando-se, mas ainda mantendo a haste em mira. O golpe bateu no
escudo e escorregou até furar o ombro do egípcio. A armadura se desfez como
areia, nada mais que um tecido sobre a pele que agora se rasgava. O sangue
escapou farto pouco antes de os ossos serem quebrados e o guerreiro ser jogado
do cavalo.
Renaud largou a lança e redirecionou o animal. Sacou a espada sorridente,
gritando impropérios. A segunda vítima do dia foi um homem perdido no meio
da batalha. Ele corria para se salvar quando a lâmina de Renaud acertou-lhe o
pescoço. O cavalo do franco girou sobre o corpo caído e voltou-se para um
terceiro oponente. O sangue dos dois primeiros não o saciou. Ele queria mais
desafio, mais vidas para satisfazer sua luxúria sanguinolenta.
A luta sob o sol deixava os homens molhados de suor e sangue. Renaud
girava o cavalo sobre a areia criando uma nuvem de grãos finos e pedregulhos.
O animal tentava se desviar os corpos caídos enquanto o cavaleiro continuava
matando. Agora já estava na quinta vítima e não perdoava quem quer que fosse.
Havia uma gritaria na caravana, com pessoas se agrupando para se protegerem.
Aquelas que fugiam eram logo abatidas pelos francos como meros animais de
caça.
A batalha acabou quando o último soldado egípcio se rendeu. O homem
entregou a espada curvada e desceu do cavalo. Foi imediatamente cercado e
seguro pelos francos. Renaud deu sinal para que fosse morto. Não queria
nenhum dos guerreiros inimigos vivos. Apenas teria os mercadores, que
serviriam para um bom resgate.
- Vocês vão comigo para Kerak – gritou em francês. Não foi entendido por
nenhuma das mulheres assustadas ou dos homens indignados.
Chamou por um dos cavaleiros que falava árabe e mandou que ele gritasse
as ordens dali por diante. As famílias dos mercadores foram sendo arrebanhadas
como ovelhas. Renaud caminhava entre elas e avaliava as roupas caras pensando
no preço dos resgates. As pessoas o tomavam apenas como um bárbaro e ele
fazia questão que o vissem assim, só o animal louco por guerra. Nenhum dos
senhores de Jerusalém, em seus castelos escondidos sob as sombras das igrejas,
desconfiava da fortuna que ele conseguia aos poucos no Ultrajordão. As
caravanas seria sua riqueza e a guerra seu presente a um rei que se sentia
camponês e a um cavaleiro que se sentia rei. Bastava de apenas se fingir de
selvagem. Não era o cão de ninguém. Era o Senhor de Kerak. Era o Barão de
Ultrajordão. Era Renaud de Châtillon.

*****

Guy olhava aturdido para os mensageiros de Saladino. Os homens haviam


acabado de chegar de Kerak, onde não haviam sido recebidos por Renaud de
Châtillon. Os muçulmanos tinham rostos furiosos, mas contidos em uma
educação controlada. Falavam pausadamente, sem gesticularem para mostrarem
que estavam em paz e que não tinham nenhuma intenção de ter problemas com
os francos.
- Eu farei Renaud devolver o que roubou e libertar os mercadores. Não
precisam se preocupar mais – proclamou o rei. O rosto decido não ocultava a
sombra do olhar assustado com o ocorrido. Os mensageiros haviam aparecido
com as exigências e só voltariam com a paz se fossem atendidos. Se não,
Saladino consideraria a trégua acabada. Não mais haveria paz entre os francos e
os muçulmanos.
Os mensageiros deixaram a sala do trono observados por Sibylle e Gerard
de Ridefort. O grão-mestre estava de braços cruzados ainda avaliando o
ocorrido. Seus planos seriam subitamente alterados se houvesse uma guerra.
Investira tudo o que tinha nos movimentos seguintes do jogo pelo poder.
Infelizmente uma das peças saíra do seu controle e agora precisava lidar com
isso. Precisava saber como. Renaud era intratável quando lidava com dinheiro e
guerra.
- Agora entendi porque ele estava tão calmo em Acre. Estava se preparando
para isso – comentou Guy, apertando a mão de Sibylle.
- Calma, meu querido. Você só tem que forçá-lo a devolver tudo e a paz
continuará. Mas temos que dar um jeito em Renaud. Não é a primeira vez que
ele comete um crime em tempos de paz – falou a rainha. – É hora de mostrar
para ele que não pode mais cometer atos insanos como esse.
O rei fechou os olhos por dois segundos e respirou. Quando as pálpebras se
abriram de novo, Sibylle já estava mais próxima dele, dando-lhe forças.
- Enviarei uma mensagem até ele exigindo que devolva tudo o que roubou.
Ele não pode continuar com nada do dinheiro ou das mercadorias, muito menos
com os reféns. É um verdadeiro absurdo. Ele precisará indenizar os mercadores
– falou o rei, fechando o punho direito e batendo-o no trono.
O ato chamou a atenção de Gerard. Ele notou que precisava tomar o
controle da situação. Precisava de um meio de ganhar não importando o que
ocorresse dali para frente.
- Deixe-me falar com ele, Majestade. Tentarei convencer Renaud que atos
de barbárie não serão tolerados.
Guy assentiu, feliz por ter mais um problema resolvido por Gerard. Naquele
mesmo dia, o grão-mestre deixou Jerusalém escoltado por quinze cavaleiros.

*****

Gerard desceu do cavalo dentro das muralhas de Kerak seis dias depois de
deixar Jerusalém. Estava cansado da viagem e dos imprevistos. Teve que parar
em duas fortalezas templárias para resolver problemas relativos aos muçulmanos
e para aplacar os boatos de fim da trégua. A mente maquinava as decisões. Por
fim, colocou os templários de prontidão e partiu afirmando que as espadas
deveriam estar preparadas para acabar com qualquer força de revoltados que
ousasse se afirmar do lado de Saladino nos dias que viriam.
Renaud de Châtillon esperava pelo amigo em frente às portas do castelo.
Estava usando a seda cara que roubara dos mercadores. Abriu os braços e
chamou por Gerard com uma expressão feliz estampada no rosto. Era o sorriso
da vitória e da riqueza inflado pelos desejos saciados.
O grão-mestre entregou as rédeas do cavalo a um servo e caminhou até
Renaud. Foi pensando durante o caminho enquanto as botas tocavam
calmamente o chão de terra batida. Viu com o canto dos olhos alguns
prisioneiros sendo arrastados pelos cavaleiros de Renaud. Entendeu ali mesmo
que o amigo não entregaria nada o que roubou. Era uma pena. A guerra estava
fadada a acontecer. No meio da caminhada, Gerard decidiu que não se
importava. Que a batalha final viesse. Ele sobreviveria de qualquer maneira. Ele
e os templários. Por fim, talvez ainda se tornasse mais poderoso após um
confronto com Saladino.
- Entre, meu amigo. Seja bem-vindo a Kerak. Há quanto tempo não o vejo
aqui?
Ao lado dele, Étiennette de Milly observava plácida. Mulher calma, já em
seu terceiro casamento, tinha um temperamento diferente do marido. A face alva
recebia Gerard com um sorriso calmo escondido debaixo de toda a seda que a
cobria. Aquela era uma senhora a se respeitar. Sobrevivera a dois homens fortes
que nunca suportaram a austeridade de um lugar como o Ultrajordão.
Gerard manteve os modos frios. Estava se decidindo quanto ao que falar
com Renaud e odiava ser incomodado enquanto pensava. A voz do senhor de
Kerak ribombava em sua cabeça como um problema petulante que ousava se
intrometer em seu caminho. Cumprimentou com delicadeza a Senhora de
Ultrajordão antes de se dirigir ao homem que quase o tirava do controle.
- Vim em nome do rei, Renaud. Não estou aqui para brincadeiras – falou o
grão-mestre.
O sorriso de Renaud desapareceu para dar lugar a um cenho franzido e a um
bico no meio da barba. Gerard achou a expressão cômica. Não condizia nada
com os modos cínicos no guerreiro.
- O que Guy quer afinal?
- Quer que você liberte os prisioneiros e pague a indenização devida. Não
deve ficar com nada do que roubou.
Renaud gargalhou e abanou os braços, caçoando da ordem. Étiennette
continuou a olhar ambos, ignorando a tensão entre os homens com a paciência
que os anos de viuvez e casamentos seguidos haviam lhe conferido.
- O que? Como ele pensa que pode me ordenar isso? Eu praticamente o
coloco no poder e agora ele me ordena isso?
- Nós, Renaud. Nós... – corrigiu Gerard.
- Nós – completou Étiennette. – Onfroy é meu filho, Gerard, e minha
palavra teve peso nisso. Apoio o meu marido como boa esposa. Seja um bom
templário e apoie essa senhora cristã.
Gerard olhou pensativo.
- Está certa, senhora – concordou, com uma leve reverência.
Começaram a caminhar para dentro do castelo. O interior estava escuro e
úmido apesar do sol brilhante do dia.
- Sim, nós. E agora o reizinho manda você até aqui como um pombo-
correio.
- Nosso rei merece mais respeito por parte do senhor meu marido –
interferiu a senhora de Ultrajordão, caminhando ao lado dos homens se se
intimidar com armaduras ou olhares feios.
Renaud sorriu, esfregou o rosto, passando as unhas profundamente na
barba.
- Sua Majestade o enviou como uma putinha de recados, De Ridefort.
Gerard riu da tentativa de ser manipulado. Não se sentiria ofendido pelas
palavras.
- Não devolverei nada. Não tenho motivo fazer isso. Que o rei nos devolva
a coroa.
- Evitar a guerra seria um bom motivo, talvez – disse Gerard, com pouca
convicção. As ideias borbulhavam na mente do templário.
- Que a guerra venha. Podemos muito bem vencer Saladino. Ele não é
invencível como as pessoas gostam de dizer. Vamos acabar com aquele
muçulmano maldito!
A situação era previsível. A guerra realmente aconteceria agora e Gerard
não moveria um dedo para acabar com ela. Sabia de um assunto que poderia
ajudá-lo ainda mais. Que Renaud continuasse com suas ambições saciadas. Ele
seria o culpado pelo fim da trégua e os templários salvariam o dia quando a
guerra começasse. Não havia nada melhor para unir um povo do que um inimigo
em comum. Châtillon providenciara a desculpa perfeita para que Guy se tornasse
o cerne de uma aliança que devastaria as forças muçulmanas na Terra Santa.
O grão-mestre fingiu algum esforço para convencer Renaud. Foi pouco
além de palavras vazias e carentes de intenção. Nada que pudesse comprometer
a decisão do Senhor de Kerak de continuar com as riquezas roubadas. Quando se
encontrou novamente com Guy, afirmou que o amigo permanecera irredutível. O
rei nada fez além de reclamar e se encostar ao trono como um homem vencido.
Não faria mais nada contra um dos homens que lutara para colocá-lo no poder.

*****

O feudo de Sable D´Or ficava próximo ao mar da Galiléia, mais


precisamente na região em que as águas começavam a dar forma à correnteza do
rio Jordão. Não ficava a mais de dois dias de Tiberíades, a fortaleza de Raymond
de Trípoli, mas era uma distância cansativa a ser percorrida desde Jerusalém ou
Acre.
A caravana que saíra de Acre se dividira em La Fève. Os templários
deixaram Sable D´Or e a família seguirem viagem, enquanto rumavam para sua
base. Donat se despediu com pesar de Guillaume, desejando sorte ao amigo e
que pudesse revê-lo em momentos de paz ou em que estivessem aliados.
Convidou-o a visitar Sable D´Or o quanto antes para beberem um bom vinho e
apreciarem o feudo que tanto lutaram para defender dos Assassinos.
Karsten ficou angustiado quando viu Dedrick deixar o grupo para viajar
com os templários. Não podia crer que perdera o primo com tanta facilidade para
o Templo. Não que pudesse esperar muito além disso. Aquele sempre fora o
sonho de Dedrick, mesmo em tempos funestos quando o nome dos templários
não podia nem ser pronunciado em Tapferklinge. Karsten tentou acabar com o
mau humor conversando com Melisende ou com Laure. As duas cavalgavam
juntas e eram uma ótima opção para distrair-se durante a viagem. Heiner e
Gareth estavam ocupados demais brigando.
- Nazaré é aqui perto. Por acaso sabe o que é Nazaré, seu pagão? –
perguntou Gareth.
- É uma cidade ou uma vila... Ou não sei o quê? Por que eu deveria saber? –
respondeu Heiner, impaciente.
Gareth esfregou o rosto ainda mais impaciente que o nórdico. “Como ele
não pode saber? Nada que eu ensino fica na cabeça dele!”, pensou o padre.
- É onde Jesus nasceu. Jesus de Nazaré.
- Ah, é o feudo dele. Então ele fazia guerra aqui – concluiu o nórdico, para
a irritação de Gareth. Heiner conteve um sorriso enquanto esperava a resposta
irada.
- Que feudo!? O sol derreteu seus pensamentos ou eles ainda estão
congelados? Jesus não fazia guerra e não tinha feudo. Ele mesmo disse que o
reino dele não é desse mundo.
Heiner voltou-se para o padre com um traço de curiosidade nos olhos.
- Então se é assim, por que deveríamos lutar por essa Terra Santa?
Deveríamos lutar pelo reino dele, não?
Gareth parou para pensar. A pergunta fazia sentido. Fazia mais sentido do
que qualquer nobre ou cavaleiro gostaria que fizesse.
- De certo modo, estamos lutando pelo Reino dos Céus porque estamos
defendendo locais sagrados e a nossa fé. Fazendo isso, abrimos caminho para o
reino Dele – afirmou Gareth, sem muita convicção.
- Ah, bom. Já ia pensando que não precisaria lutar.
- Então era com isso que você estava preocupado?
- Sim, por quê? Tem mais alguma coisa? Ah, sim... minha alma... mas esse
problema eu resolvo lutando.
Karsten fingiu que não ouviu aquela conversa. Ele não queria mais saber
dos motivos filosóficos ou teológicos para lutar. Já tinha encontrado o seu depois
de meses em dúvida. Os motivos que encontravam eram como castelos
construídos sobre a areia ou meramente desculpas que se perdiam no vento.
A visão de Sable D´Or saltou aos olhos do cavaleiro germânico quase que
de repente. Estava tão entretido com a conversa com Laure e Melisende que nem
viu quando as primeiras plantações começaram a aparecer. Viram algumas vilas
pequenas no meio dos trigais. Donat cumprimentou alguns cavaleiros que faziam
ronda na região e procurou se interar dos acontecimentos. Eles disseram que era
melhor que o barão conversasse com o filho dele, pois não podiam passar as
informações corretas sobre o ocorrido.
Uma parte do feudo chamou a atenção de Karsten. Ele precisou que Laure o
explicasse o que eram aquelas estranhas frutas sendo colhidas. A mulher contou
que eram bananas, algo que ele nunca encontraria no Ocidente. Karsten achou
curioso e quis experimentar, mas não houve tempo para pararem e pedirem algo
para os aldeões. Donat estava apressando o passo para saber o que ocorria com
seu feudo.
Encontraram finalmente a sede do feudo de Sable D´Or. Era um grande
castelo, não um inexpugnável como era a fama de algumas fortalezas templárias,
mas uma construção poderosa e imponente. Tinha quatro torres circundando a
construção principal. Cada uma delas estava incrustada na muralha de pedra. O
castelo em si tinha mais duas torres de onde era possível ver quase todo o feudo.
Eram altas e ganham ainda mais altitude quando se notava que toda a fortaleza
estava erguida sobre uma pequena elevação.
Começaram a passar em volta das muralhas. Sable D´Or havia permitido
que alguns aldeões montassem suas casas ali perto na época em que eles
precisavam de mais proteção do ataque dos Assassinos. Agora essa pequena
comunidade crescera e já circundava quase toda a fortaleza. Deveria haver pelo
menos quinhentas pessoas morando em volta da fortaleza de Sable D´Or. Dontat
contou que gostava das pessoas por perto e era um orgulho dar a proteção devido
aos servos do feudo.
O dia da chegada do barão não foi bom. Muitos dos muçulmanos o olhavam
de soslaio enquanto o viam passar por suas casas. Tinham um respeito contido,
que parecia quase perdido para um estranho ressentimento. Karsten julgou que
fosse o fato de serem governados por um cristão. Cogitou comentar o fato com
Laure, mas a mulher estava ocupada conversando com Gareth sobre as
comunidades religiosas locais. Voltou-se para Melisende após uma olhada
demorada para a filha do barão.
- Sinto que há alguma animosidade aqui. Eles não gostam de ser
governados por Sable D´Or?
- Nunca os vi assim, Karsten. Acho que aconteceu alguma coisa.
Era óbvio, aos olhos do germânico, que algo errado estava acontecendo. As
pessoas se afastavam quando a caravana passava, permanecendo apenas com os
olhares acusativos. Um homem se exaltou e gritou uma ofensa que escapou aos
ouvidos de Karsten. Procurou em Gareth uma tradução, porém o inglês estava
ocupado conversando com Laure.
Outras pessoas começaram a se aproximar, como que ganhando coragem
com o primeiro insulto. Remexiam os braços e gritavam palavras que foram aos
poucos captadas e compreendidas pelos ouvidos de Karsten. Xingavam Donat de
maldito e diziam que ele não merecia pisar naquela terra. O barão seguiu
caminho com o rosto sério. Fez um sinal imediato para que Karsten e Heiner
ficassem em volta de Melisende e Laure. Um grupo de outros seis cavaleiros que
os acompanhavam também seguiram as ordens.
As portas de Sable D´Or abriram-se para a entrada da caravana. Finalmente
encontraram uma atmosfera serena dentro do chão de pedras da fortaleza.
Quando os portões se fecharam, Donat desmontou e andou depressa para
encontrar o filho.
- Onde está Christophe? – perguntou ao primeiro servo que viu.
- Saiu para resolver alguns problemas, senhor, mas já deve estar voltando.
Donat olhou em volta furioso. Tudo parecia em ordem dentro do castelo,
diferente do lado de fora onde pessoas o tratavam como um inimigo, o que não
acontecia há muito tempo. Laure levou Karsten, Heiner e Gareth para se
ajeitarem em seus aposentos. Dormiriam no castelo, junto com a família, prova
de que os recém-chegados eram levados em alta conta. Indiferente à fúria do pai,
ela pediu às servas para arrumarem comida e água fresca para os convidados.
Aqueles seriam cavaleiros valorosos que agora compartilhariam o castelo com a
família.
- Meu pai, não vai comer? Venha ao menos tomar um pouco d´água – disse
Laure, mostrando a mesa já sendo servida.
Donat cruzou os braços e continuou carrancudo.
- Onde está seu irmão? Onde está ele?
Laure segurou o pai com carinho e o arrastou para mesa vagarosamente
enquanto falava para Sable D´Or se acalmar. O barão não tocou na comida.
Bebia da água com os olhos atentos às portas. Karsten esperou seu novo senhor
se decidir quanto ao que faria e só começou a comer quando Donat deu
permissão. Heiner não teve a mesma delicadeza. Arrancou um pedaço de pão e
enfiou na boca.
Christophe apareceu meia hora depois. Era um homem alto, com feições
parecidas com as do pai. Os cabelos dourados eram quase tão claros quanto os
da irmã. Havia entradas bastante acentuadas, anunciando uma calvície precoce.
Os olhos azuis logo encontraram os estranhos que comiam a sua mesa e se
estreitaram, estranhando a situação. Donat levantou-se imediatamente para
repreendê-lo.
- Afinal, o que você fez com meu feudo enquanto ficou em suas mãos?
Acabou com a paz?
- Acalme-se, meu pai. Eu não tenho culpa dos ocorridos.
- Como não tem? Você tinha a responsabilidade de manter esse feudo e
agora faz isso? Qual é seu problema? Toma todas as decisões contrárias ao que
eu peço quando lhe dou a responsabilidade que pede. Terei que arranjar um
marido logo para sua irmã e retirar sua herança?
Christophe olhou para as visitas e baixou a cabeça. Era um homem de
pouco mais de vinte anos. Para Karsten, o olhar do jovem Sable D’Or para o pai
era o de quem convivia com aquelas desavenças há anos e não aprendera a lidar
com nenhuma delas a não ser com rancor ou ódio. O modo como os olhos de
Christophe percorram a sala mostravam como os sentimentos amargas afloraram
mais agressivos quando os conflitos ocorriam na presença de outros.
Laure caminhou da mesa até o pai e o abraçou. Olhou para o irmão e depois
para Donat.
- Pai, não fale assim. Temos visitas. Não haja dessa maneira. Por favor.
Sable D´Or deu as costas para o filho, sem ver o olhar cúmplice que os
irmãos trocaram. Christophe agradeceu com um leve movimento de lábios e
Laure sorriu.
- Conte-nos o que aconteceu – ordenou Donat, sentando e pegando um
pedaço de pão. Agora já chegava um frango assado e o barão arrancou-lhe uma
coxa, deixando o restante para as visitas.
Christophe acompanhou Laure. Parou ao lado da irmã, mas não se sentou.
Cumprimentou as visitas.
- Correm boatos sobre o senhor. Dizem que, após sua partida, foi
encontrado um Corão nas areias, justamente por onde o senhor havia passado.
Estava rasgado e manchado. Dizem que o senhor o jogou fora e cuspiu nele.
Os olhos de Donat se arregalaram. Ele era cristão e sempre lutara em nome
da fé, contudo nunca ofendera a crença do povo de seu feudo. Cuspir no Corão
era uma ofensa quase impensável para os muçulmanos.
- Tudo isso por causa de um livro? – perguntou Heiner a Gareth. Os dois
estavam no canto da mesa e ouviam a conversa enquanto comiam. Falando
baixo, não atrapalhavam os outros.
- Não é só um livro. Falando grosseiramente, o Corão está para os
muçulmanos como Cristo está para nós. Ele é a própria palavra de Alá
materializada, entendeu? É como se um muçulmano tivesse cuspido na própria
pessoa de Jesus.
- Eu não fiz nada disso! É um absurdo. Como podem me acusar de uma
torpeza como essa? – reclamou Sable D´Or. Pôs-se de pé e jogou os restos da
coxa de frango sobre a mesa.
- Só estou contando o que aconteceu. Não pude falar nada além de negar
que o senhor faria isso. Que mais eu poderia fazer? Ofereci dinheiro a eles, mas
todos negaram – disse Christophe.
Donat começou a andar pela sala coçando a barba. Não tinha ideia de como
resolver aquele problema.
- Aconteceu algo a mais?
- Não, meu pai. Apenas os mercadores de Laure que chegaram. Já os paguei
e eles seguiram viagem. Comprei algumas coisas para mim também.
- Certo. Saia com Karsten – indicou o cavaleiro germânico – e o leve para
conhecer o feudo. Ele será um dos nossos cavaleiros a partir de hoje.
Christophe acenou com a cabeça, recebendo a ordem. Chamou pelos
convidados e começou a sair. Laure também se levantou e só não continuou
porque Sable D´Or fez sinal para que parasse. Ela não deveria sair do castelo
enquanto as coisas não se acalmassem.

*****

Karsten estava em uma das torres de Sable D´Or naquela mesma noite.
Gostara de conhecer o feudo. Passara pelos trigais e pelas plantações de
bananeira, até pelas pequenas vilas que estavam construídas ao lado do Jordão.
Finalmente conhecera o rio em que Cristo fora batizado. Ficou encantado por
tocar aquelas águas e desejou ser batizado de novo. Bebeu da água como se
fosse sagrada e guardou um pouco dela no cantil.
A lua estava alta e cheia, iluminando boa parte do feudo. Não era possível
ver muito, mas as sombras deixavam Karsten encantado da mesma maneira.
Entretanto, subira ali para outros motivos que não eram ver o feudo de Sable D
´Or. Queria conhecer mais de perto uma pessoa, alguém que o encantara desde a
primeira visão. Melisende. Ela estava parada na torre desde que o cavaleiro
chegara da longa visita pelo feudo. A mulher olhava para o horizonte perdida em
pensamentos que eram lembranças alegres misturadas à dor da saudade.
- Está pensativa – disse ele. Estava vestido à maneira dos locais e ainda não
se acostumara com as roupas. Sentia-se estranho, como um intruso dentro das
próprias vestimentas.
- Sempre fico quando volto para cá – disse ela. Os olhos castanhos
pareciam úmidos.
- Posso saber o motivo?
- Lembranças de épocas melhores. Ao menos melhores para mim.
- Quando seu pai ainda vivia? – Ele se aproximou cautelosamente.
Ela somente sorriu educadamente em resposta. Karsten teve vontade de
abraçá-la. Faltou coragem para tocá-la. O amor gerou um medo súbito de ser
rejeitado, o que o fez manter uma distância segura de onde poderia apreciar a
beleza meiga dela.
- Você não imagina o quanto ele lutou por essas terras...
- Espero que a console saber que também lutarei por Sable D´Or.
Mais um sorriso em resposta. Karsten podia jurar que ela não se importava
se ele estava ali ou não. Quase deu meia volta, mas agora o medo da rejeição
fora substituído pelo temor da derrota. Tinha que ficar mais um pouco.
- Sempre fica triste assim? Gostaria de saber dos momentos em que sorri.
Ela respondendo com um leve curvar dos lábios.
- Fico feliz quando tudo acaba bem.
- Resposta tão vaga quanto esses sorrisos que está dando para mim.
- Mesmo? – Ela voltou-se para ele e a lua iluminou o rosto moreno. O
sorriso agora era maior, apesar de ainda discreto, como era da natureza dela. –
Acho que vou descer.
Passou por ele calmamente, mas foi contida. Karsten a segurou pelo braço,
esquecendo-se da educação. Puxou-a para perto dele como se já fosse sua. Suas
bocas se aproximaram. A iminência do beijo fez ambos suarem. Os lábios dele
se moveram enquanto os dela ficavam na expectativa.
- Por acaso um beijo a faria sorrir mais?
Puxou-a para junto de si e tocou-lhe os lábios lentamente para depois
assumir uma pressa sôfrega. Envolveu-a com braços acostumados a erguer
espadas, porém sábios ao terem uma donzela. Sentiu-lhe os seios e a pele macia
para, por fim, separar-se dela. Deixou-a longe e virou-se para sair.
- Já vai? – Ela perguntou com a mão na boca.
- Já, quero ver se vai sorrir até amanhã quando entregarei outro beijo –
ousou o cavaleiro, descendo as escadas da torre e abandonando-a sozinha com a
lua e com uma nova lembrança.

*****

Christophe apareceu no quarto da irmã no momento em que Melisende e


Karsten se beijavam. Da janela, os dois puderam ver o casal se envolvendo. A
irmã estava com os cotovelos apoiados no parapeito e observava a cena
inexpressivamente.
- Pretendia algo com ele? – perguntou o irmão.
- Pretendo. Ainda pretendo. Ele pode ser um bom marido – respondeu ela,
aparentemente pouco abalada com o fato de Melisende estar beijando seu
pretendente.
- Acho que você perdeu.
- Não perdi nada. Melisende tem pouco a oferecer. Eu tenho tudo.
- Sei.
- Não fale assim ou não passo o recado misterioso de Gerard de Ridefort.
- Um recado do grão-mestre? – Ele se interessou. Fez com que ela o
olhasse. Nenhum dos dois viu Karsten dando as costas para Melisende e saindo.
– Qual é o recado?
- Ele apenas disse que a guerra está para começar. Nada mais. Somente isso.
Laure voltou a olhar para a torre, mas agora só enxergou Melisende parada,
ainda com a mão na boca e olhando para as escadas. Algo acontecera e ela
perdera. Bateu com a mão nas pedras nervosa.
- E então? O que pretende fazer quanto a isso? – perguntou ela, percebendo
que seria melhor voltar ao assunto da guerra.
- Tenho meus planos, minha irmã. Você sabe que sei cuidar dos nossos
interesses melhor do que meu pai.
Christophe saiu do quarto sem se despedir. Desceu pelas escadarias à luz de
tochas ocupado com pensamentos que nada trariam de bom à própria família.
Em sua mente, os planos pareciam ótimos. O fracasso deveria ser uma
conseqüência para quem se encontrava entre ele e suas ambições.

*****

O assassino sabia que a tarefa era difícil, mas não se importava. Caminhava
pelo castelo de La Fève a passos miúdos para não ser ouvido. Tinha a mente
concentrada na tarefa, repassando todos os movimentos cada vez que os pés
tocavam o chão. O rosto estava suado, não por calor, mas por nervosismo. Não
era por estar preparado para morrer que ele não estaria ansioso. Desinteressar-se
pelo destino não significava esquecer-se das dificuldades do presente e do futuro
próximo.
O primeiro problema que percebera na missão de assassinato não era o de
se infiltrar entre os templários. Era até fácil estar junto com eles, pois o Templo
tinha muitos servos. Eram necessárias muitas pessoas para manter uma base com
tantos cavaleiros e guerreiros. O assassino penetrou facilmente como um
trabalhador que reparava uma das muralhas e dormiu ali mesmo, perto do
castelo. Acordou no meio da noite com a faca pronta na mão e os pensamentos
direcionados. Passou pelas sentinelas e aí se deparou com o problema. Deveria
matar um templário dormindo. Tarefa fácil a princípio quando não se percebia
que havia vários cavaleiros em um dormitório e a luz era sempre mantida acesa
como ditava a regra.
As mãos tocaram a pedra fria ajudando a tomar rumo na penumbra. Já
estava quase no dormitório dos cavaleiros. Era lá que encontraria a vítima infiel.
Observara-o nos últimos dias e tomara cuidado para avaliar o inimigo. Não seria
páreo para ele em uma luta direta. A única alternativa era atacar protegido pela
noite.
Abriu lentamente a porta do dormitório. Deixou uma pequena fresta para
observar o que se passava. Um olho brilhante mediu o espaço entre as camas e a
porta. Procurou pelo guerreiro que deveria ser morto. Todos eram parecidos,
com a barba longa e os cabelos curtos. Entretanto, lá estava o homem que
morreria naquele dia. Contou quantos passos precisava até chegar à cama.
Poderia fazer uma corrida rápida e silenciosa para atingi-lo depressa e talvez
ainda ter a chance de fugir. Talvez fosse o melhor, pois algum deles ainda
poderia estar acordado. Abriu mais a porta para acabar de observar o dormitório.
Sim, havia um templário acordado. O homem lia um livro sob a luz das velas. Os
lábios moviam-se devagar como se recitasse as palavras.
O assassino decidiu-se. Precisava correr e fazer sua vítima antes que o
alarme fosse soado. Morreria logo depois, entregando a alma para receber todos
os presentes de Alá. Que o Velho da Montanha rezasse por ele. Que Bassam se
orgulhasse da missão cumprida e também orasse por ele, sabendo que
encontraria a vida após a morte depois do feito.
Acabou de abrir a porta com um empurrão forte. Antes que o templário que
lia pudesse dar algum aviso, o assassino já contava os passos para o ataque. Um
passo com os olhos na direção da vítima. Dois passos com a faca curvada sendo
erguida. Três passos e o grito de aviso do templário soou pelo dormitório. Quatro
passos e a faca apontou para a vítima que ainda continuava deitada. O quinto e
último passo foi seguido pela extensão do braço para finalmente alcançar o alvo.
Errou por pouco. No último momento, o templário rolou na cama, escapando do
ataque. A faca furou o colchão de palha. Os olhos do assassino e do templário se
encontraram. O cavaleiro sacou um punhal imediatamente e o enfiou no coração
daquele que seria seu algoz. Sorriu enquanto via o sofrimento e a decepção
escorrer do rosto do assassino como o sangue que saía do peito.
Guillaume retirou o punhal do peito do homem o deixou cair. Gotas
vermelhas respingavam da mão. Dante logo trouxe um pano para que ele
pudesse se limpar.
- Nenhum verso sobre a noite, Dante? – perguntou Guillaume de pé,
olhando o corpo sem vida do assassino.
Dante parou para pensar. Estava em dúvida. Finalmente decidiu-se por um
salmo simples:
- Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a
sua verdade será o teu escudo e broquel. Não terás medo do terror de noite nem
da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade
que assola ao meio-dia.
- Bonito.
Dedrick parou ao lado dos dois, enquanto os outros templários começavam
a pegar o corpo e a puxá-lo. Um dos cavaleiros foi chamar um servo para limpar
o sangue.
- O senhor já sabia? – perguntou o jovem templário.
Guillaume riu e fez que sim com a cabeça.
- Era de se esperar que eles viessem.
- Mas por que ele atacou assim? Parece que ele estava correndo na sua
direção. Por que não veio devagar?
- Deve ter visto Dante acordado – concluiu o templário mais velho.
- Por que não esperou outro dia? É idiotice atacar assim.
Guillaume riu de novo como se caçoasse da inocência de Dedrick. O jovem
não soube o que dizer.
- Você não conhece os Assassinos, Dedrick. Esse homem veio aqui para
morrer. Ele pretendia me matar ou morrer tentando. A decepção que eu vi nos
olhos dele vinha apenas do fato de ter falhado, não de estar morrendo. Muitas
vezes eles atacam em público, matando e esperando a morte. Fazem isso apenas
para aterrorizar os inimigos.
Dedrick olhou para a porta. Os templários já haviam levado o corpo.
Começou a pensar que não dormiria em paz mais.
- Está com medo de ir dormir agora? – perguntou Guillaume.
O rosto de Dedrick ruborizou.
- Não se preocupe. Nós enfrentamos esses Assassinos há um bom tempo.
Apenas três de nós foram assassinados no dormitório. Pode dormir tranqüilo.
Você ainda terá a oportunidade de morrer lutando.
- Como você consegue dormir tranqüilo sabendo que há alguém querendo
matá-lo assim?
- Basta fechar os olhos e confiar que haverá um bom motivo para os abrir
no outro dia – riu Guillaume. Olhou para Dante, agora com o sorriso desfeito. –
A trégua está acabada. Está na hora de nos preocuparmos com Bassam.
- Entendo. Tomaremos alguma atitude?
- Vamos avisar Donat e nos prepararmos. Haverá mais luta em breve.
Os templários foram dormir pouco depois que um servo apareceu com um
balde e limpou o sangue. Guillaume fechou os olhos e não viu mais nada além
dos sonhos que o atormentavam havia anos. Dante continuou a leitura para
depois dormir pensando na falecida esposa. Dedrick continuou acordado,
temendo ter feito a escolha para uma vida tão cheia de perigos que não poderia
suportar. Imaginava quando é que conseguiria endurecer tanto o coração a ponto
de dormir sem se preocupar com a sombra dos Assassinos.

*****

Karsten já vestia armadura logo de manhã empolgado para um dia


possivelmente agitado. Heiner também se preparara, no entanto não tinha
perspectivas tão boas. Sable D´Or ordenara que todos os seus cavaleiros se
mantivessem a postos para lutar, pois poderia ocorrer que os Assassinos os
atacassem em breve e sem aviso. A guarda fora reforçada e os homens de armas
faziam mais rondas pelas vilas locais para o reconhecimento da situação com os
muçulmanos.
O pátio estava movimentado, com homens puxando os cavalos. Servos
passavam por Karsten para atenderem as necessidades do castelo. Alguns
haviam cruzado o grande portão, vindos das vilas e trazendo informações sobre
os últimos acontecimentos. O povo ainda parecia insatisfeito com as histórias
sobre Donat. Davam crédito aos boatos caluniosos.
- Está mais feliz hoje, meu amigo – comentou Gareth naquela mesma
manhã.
O padre aparecera justamente quando o germânico observava Melisende
mais uma vez sobre a torre. Os olhos do cavaleiro estavam perdidos na figura da
mulher.
- Sim, estou – respondeu Karsten, sorrindo.
Gareth divertiu-se com a resposta. Olhou na mesma direção do amigo e viu
a figura encantadora de Melisende observando o feudo de cima de uma das
torres.
- É ela? Pensei que fosse a outra. Laure é mais charmosa.
- Não acho – disse Karsten, quase tomando a comparação como uma
ofensa.
- Boa sorte. Só que com ela você não vai conseguir nenhum feudo ou nada
mais.
- Não me importo.
Karsten saiu para se juntar a Melisende na torre. Gareth foi logo
acompanhado por Heiner, que apareceu incomodado com a armadura.
- Não gosto de vestir isso todo dia o dia inteiro. Armadura é para lutar.
- Deus quis assim, meu amigo.
- Deus quis o quê?
- Nada... Karsten está apaixonado – constatou Gareth olhando para o
cavaleiro caminhando.
- Verdade? – Heiner viu Melisende sobre a torre e entendeu. – Pensei que
fosse a outra. Ela é mais charmosa.
- Muito mais. Acontece que Karsten parece preferir as garotas mais
melancólicas.
Karsten subiu as escadas da torre. Pensava nos planos que estava mudando
desde que chegara à Terra Santa. Talvez não conseguisse cumprir as promessas
caso continuasse com as mudanças. A força que o impelia era grande demais.
Era a mesma que agora o fazia bater os pés com força na escada de pedra e
causava palpitações no coração. Sentia-se quase ridículo ao se entregar a um
sentimento por uma mulher que não poderia lhe dar nada em troca, talvez nem o
amor que ele esperava.
- Sabia que você viria – disse delicadamente Melisende, quando ele
apareceu no alto da torre.
- Vim ver como está.
- Bem... Estou bem. – O rosto dela parecia mais iluminado naquela manhã
ou talvez fosse apenas o sol.
Karsten andou até a murada e apoiou as mãos nas pedras. Olhou para o
feudo para ter certeza do que defenderia com a espada.
- Por que veio até aqui, cavaleiro? – perguntou ela, encostando-se à murada
e cruzando os braços.
- Para vê-la. Nada mais.
Ela quase perguntou se receberia mais um beijo. Conteve a vontade e
insistiu na primeira questão.
- Por que veio à Terra Santa?
Olhou para ela com tristeza e balançou a cabeça.
- Tenho promessas a cumprir. Uma eu fiz a meu pai, outra a Deus.
- Posso saber quais são?
- Eu precisaria cobrar um beijo para cada resposta. Está disposta a pagar?
Ela corou. Deu um passo para se afastar e olhou para os lados. Karsten a
olhava seriamente.
- Está muito atrevido, cavaleiro. Acho que já teve seu prêmio noite passada.
Não está satisfeito?
- Já ganhei alguns prêmios em minha vida, porém nenhum tão precioso
quanto esse, minha dama. É difícil se satisfazer com um só.
Melisende deu dois passos à frente. Ficou tão próxima a ele que podia sentir
seu cheiro. Parou um pouco para averiguar quem estava os observando e não
notou ninguém importante. Colocou-se na ponta dos pés e passou os lábios perto
da bochecha dele, chegando quase a tocá-las. Passou por elas e parou ao pé do
ouvido.
- Se quer um prêmio, faça por merecê-lo. Não vai ter outra vitória fácil,
meu cavaleiro.
Um calor novo cresceu no corpo de Karsten. Era uma excitação que quase o
fez agarrar a mulher. Contido, o cavaleiro fingiu-se indiferente à proximidade.
Ela, no entanto, sabia das sensações que se apossavam dele e manteve-se
próxima por mais uns poucos segundos, soltando um ar quente sobre as orelhas
do germânico. Estalou os lábios fingindo um beijo e se afastou mais uma vez.
- As vitórias difíceis são as melhores – comentou Karsten.
O cavaleiro sabia que fora vencido naquela manhã, mas não tinha raiva.
Fora pego de surpresa, sem tempo para levantar os escudos do coração e do
corpo. A espada de Melisende fora mais afiada e cortara fundo, o suficiente para
revelar os sentimentos que cresciam dia após dia dentro de Karsten.
A conversa do casal foi interrompida por gritos para que o portão fosse
aberto logo. Olharam para o pátio para verem Laure montando após uma
discussão com Christophe. A mulher voltou-se para a torre e encarou os dois
com olhos de fera, depois fez o cavalo se dirigir às pressas para fora do castelo.
- O que ela está fazendo?
- Um dos passeios matinais dela. É quase impossível impedir que ela saia –
contou Melisende, acompanhando a cavalgada com os olhos.
- É perigoso.
- Garanto que meu tio também acha isso.
Donat de Sable D´Or estava saindo do castelo para se encontrar com
Christophe. Disse alguma coisa para o filho que nenhum dos dois pôde ouvir,
depois chamou por Heiner, que estava próximo. O nórdico fez sinal para
Karsten. O cavaleiro suspeitou que precisariam sair em busca de Laure então
sorriu para Melisende e se despediu com uma mesura. Desceu as escadas ainda
pensando no que ocorrera. Tinha vontade de subir lá e exigir um beijo, mas seria
uma segunda derrota naquele dia, uma ainda pior já que agora todos os parentes
dela estavam no pátio.
- Vão atrás da minha filha, já que o estúpido do meu filho não consegue
impedir uma mulher de sair de seus domínios.
Karsten fez que sim e saiu com Heiner para pegar os cavalos.

*****

Karsten e Heiner pressentiram o perigo quando fizeram a terceira curva em


busca de Laure. Passaram por uma pequena passagem cheia de oliveiras até
encontrarem um círculo de rochas onde os camponeses costumavam se sentar
para contarem histórias. Nenhum plebeu estava lá no momento. O lugar era
ocupado por doze cavaleiros vestidos em trajes árabes. As roupas para proteger
do sol forte e os turbantes eram a marca própria de que eram inimigos. E já
haviam cercado Laure.
Os cavalos dos dois cristãos continuaram com a velocidade máxima. Heiner
nem cogitou dar meia volta. Estava sedento demais por uma chance de provar o
motivo de ter dedicado sua espada a Sable D´Or. Aquele não era um homem de
fugir de batalhas. Levantou a lança em meio a gritos de guerra.
Karsten estranhou quando os cavaleiros muçulmanos não se moveram. A
princípio, apenas olharam para os dois. Talvez pensassem que eles não ousariam
atacá-los em tamanha desvantagem. O germânico cogitou chamar por ajuda, mas
decidiu em milésimos de segundo que a única chance de salvar Laure era um
ataque rápido para liberá-la do círculo e depois uma fuga com toda velocidade
que os cavalos tinham.
Os árabes começaram a se organizar quando viram a lança de Heiner
apontando mortalmente para seus corações. Houve uma pequena confusão até
que os cavalos se ajeitassem dentro do círculo de pedras. Apenas aqueles que
ainda estavam do lado de fora tiveram tempo de reagir. O nórdico percebeu que
eles aparariam a lança com facilidade. Reconhecia que não era bom na carga
com aquela arma. Usualmente apenas travava no alvo e deixava o cavalo levar,
sem ter uma técnica mais apurada como Karsten. Decidiu-se por outra estratégia.
Levantou o braço quando já estava próximo e arremessou a arma. A ponta
enfiou-se no peito do cavalo inimigo. Heiner não viu o sangue esguichar nem o
grito de dor do muçulmano que teve a perna esmagada pelo animal em queda.
Heiner lamentou ter perdido um belo animal, mas os pensamentos que o
distraíam da batalha nunca duravam muito. A espada erguida bateu no escudo de
um árabe e o cavalo continuou. Defendeu o ataque de um segundo inimigo e fez
o animal parar em frente ao círculo. Girou o animal e viu Karsten se
aproximando para a primeira vítima. O germânico era quase o melhor que
Heiner conhecia na justa. Sabia que o primeiro ataque dele seria fatal. E foi. O
árabe foi arremessado do cavalo com a arma do cristão enfiada no peito.
- Pelo chamado dos meus pais! – gritou Heiner.
- Por Cristo! – gritou Karsten.
O nórdico atacou o último muçulmano que estava entre eles, distraindo-o
por tempo suficiente para Karsten trespassá-lo com a espada. O germânico não
parou para dar o golpe. Deixou o sangue espirrando no ar empoeirado que o
cavalo deixava e continuou avançando. Fez o animal dar um salto magnífico
sobre uma pedra pequena e parar no meio dos árabes. Eles abriram mais o
círculo, exceto um deles, que ficou parado segurando as rédeas com
tranqüilidade. Karsten fez o cavalo girar dois círculos completos.
- Fuja, Laure!
A mulher olhou para os lados assustada e fez o cavalo dar meia-volta para
disparar rumo ao castelo. Um dos muçulmanos estava na frente dela, mas teve de
se distrair com Heiner. O nórdico encontrou o primeiro oponente de peso. Não
havia mais surpresa ou qualquer outra vantagem. Agora estava frente a frente
com um Assassino. A primeira espadada do inimigo foi quase certeira. A lâmina
passou fria pela face esquerda de Heiner, cortando pela barba e sangrando a
bochecha. O nórdico quase não percebeu a dor do ferimento. Baixou a espada
mais duas vezes para acertar o escudo do inimigo. Estava perdendo tempo e
sangue. Agora o Assassino já havia acertado-o no ombro, quase passando pela
cota de malha. Heiner precisou se concentrar mais na batalha. Precisava dar um
fim logo naquele inimigo sem que a pressa atrapalhasse a luta.
Karsten aparou o primeiro ataque inimigo com a espada. Afastou a lâmina
do oponente e olhou para os lados. Viu que Laure já se fora. Agora era a hora de
ele fugir também.
- Rendam-se – gritou o árabe que ainda não sacara a espada. Uma cicatriz
esbranquiçada cerzia-lhe a face.
A ordem foi tão imponente que quase fez Karsten parar, mesmo no calor da
batalha. O cavaleiro cristão fez o cavalo girar mais uma vez, acertando um golpe
no escudo de um inimigo para depois bater nas ancas do animal e fazê-lo correr
para fora do círculo pelo mesmo local que Laure passara. A espada do germânico
atingiu o escudo do Assassino que lutava com Heiner, desequilibrando o
muçulmano.
- Vamos embora!
Heiner teve a oportunidade de dar um golpe final no inimigo, mas não o
fez. Marcou o rosto dele e fez o cavalo disparar atrás de Karsten. Os Assassinos
os seguiram com animais mais velozes e em pouco tempo já estavam ao lado
deles. Os cavalos dos cristãos já estavam mais cansados e não conseguiram
manter o passo por muito mais tempo. A dupla foi obrigada a parar e se viu
cercada pelos Assassinos. Eles corriam em volta deles preparando o bote.
- Rendam-se, cavaleiros – falou o homem da cicatriz, aparecendo depois
dos outros. Havia chegado com calma até ali.
Ele falava a língua dos francos com um sotaque leve. Tinha ares de culto,
mas um brilho de rapina naqueles olhos escuros.
- Mate-nos agora porque não terá resgate por nós – gritou Karsten,
levantando a espada e puxando as rédeas do cavalo. Pensou no beijo de
Melisende e teve a sensação de que se saísse vivo dali, teria seu prêmio.
- Lutem e orgulhem seus pais! Lutem e sangrem por suas famílias! – gritou
Heiner. Nenhum deles entendeu quando o nórdico falou em sua língua nativa.
O homem da cicatriz olhou-os interessados. Fez sinal para que seus
cavaleiros começassem o ataque. Então, sem que houvesse aviso, uma flecha
perfurou o olho de um dos árabes. O homem balançou sobre o cavalo até cair
desajeitadamente. Outra seta atingiu um segundo inimigo na barriga, um
ferimento que levaria o guerreiro a uma morte lenta e dolorosa. O homem da
cicatriz olhou para a pequena estrada das oliveiras. Quatro cavaleiros vinham de
lá. Dois deles eram templários. Foi então que o homem da cicatriz sacou a
espada curvada, rangendo o maxilar por um desejo de vingança.
Os Assassinos se reorganizaram. Dois deles arremeteram-se sobre Heiner e
Karsten. O duelo anterior do nórdico continuou, enquanto o germânico usava o
escudo para deter os ataques de um cavaleiro que não tinha mais do que vinte
anos. O restante dos Assassinos foi se encontrar com os novos inimigos. Um
deles foi jogado do cavalo quando o turcópolo dos templários atirou mais uma
flecha. Ahmad parou o cavalo para guardar o arco e preparar a espada e o escudo
que usaria no combate. Henri, Guillaume e Dedrick continuaram a corrida.
O jovem templário atingiu o escudo do inimigo com a lança e sentiu o
impacto da espada muçulmana em suas defesas. Jogou a arma no chão e parou o
cavalo. Fez meia-volta sacando a espada. A poeira tomou o ar, quase cegando o
Dedrick. Precisou focar novamente no árabe antes de fazer o cavalo investir
contra o oponente. Talvez tenha sido um golpe de sorte, mas aconteceu que
Dedrick atingiu o inimigo logo no segundo ataque que fazia naquele dia.
Defendeu a espada curvada e conseguiu fazer a lâmina templária acertar a
barriga do inimigo. A armadura cedeu com a força do golpe e logo o Assassino
sangrava mortalmente. Corajoso, o inimigo permaneceu sobre o cavalo. O rosto
empalideceu rápido, mas ele se jogou contra Dedrick, batendo no templário com
suas últimas forças. Quase o derrubou o jovem antes de as forças se esvaírem. O
coração de Dedrick trepidou em respeito ao inimigo que agora caía em frente às
patas do cavalo.
A lança de Guillaume não respeitou a habilidade o Assassino. A ponta da
lança não se importou se à frente havia um oponente de valor. Simplesmente
trespassou o inimigo com uma habilidade incomum. O rosto do templário
continuou sério, mirando o único alvo que importava. Soltou a lança e sacou a
espada. Não viu que todos os outros ainda continuavam em luta, com dificuldade
para vencerem os Assassinos que enfrentavam. Guillaume teria agora seu
desafio. Parou o cavalo em frente ao homem da cicatriz e o cumprimentou com
um aceno.
- Deus me presenteia por trazer seu sangue à minha presença, Bassam –
disse o templário.
- É Alá o Poderoso que me traz a dádiva de enfrentá-lo depois de tanto
tempo – respondeu Bassam, descendo do cavalo.
Guillaume também desmontou. O corpo do oponente de Karsten caiu ao
lado dele. O choque pesado na terra batida e o sangue se espalhando próximo às
botas não importunou o templário. Ele só tinha olhos para o inimigo.
Bassam viu seus últimos três homens se reunirem. Aqueles que
enfrentavam Ahmad e Henri recuaram para formarem um círculo junto ao
oponente de Heiner. O Assassino líder avaliou a situação. Não fugiria. Os três
guerreiros que lhe restaram manteriam-se vivos até que o combate com
Guillaume acabasse. E assim eles começaram a fazer. Um deles derrubou
Karsten do cavalo e outro desarmou Henri.
- Teremos tempo para lutar – disse Bassam, colocando a lâmina em frente
aos olhos e fazendo uma prece.
- É sempre bom rezar antes de me enfrentar.
- Arrogante – disse Bassam, arremetendo a lâmina curvada sobre o escudo
triangular do templário.
A fúria do ataque não abalou Guillaume. O templário pisou em uma poça de
sangue e manteve-se em posição. A barra do manto branco avermelhava-se
enquanto a espada do Templo acertava o escudo de Bassam. Então se ouviu o
trotar de mais cavalos se aproximando da batalha. Nenhum dos dois olhou para
ver quem era, mas um dos Assassinos conseguiu recuar e jogar o cavalo sobre os
combatentes. Guillaume afastou-se e olhou para cima. Defendeu um ataque e
deu mais um passo para trás. Recuou mais um pouco e baixou as armas, olhando
para trás sem medo de ser atacado. Christophe aproximava-se com Donat e
outros cavaleiros.
- Parece que ainda não é a hora – comentou Guillaume, quase não vendo
Bassam por causa do cavalo que se interpunha entre os dois.
- Alá o Paciente é sábio e nos indicará o momento oportuno desse desafio.
Karsten tentou passar pelo templário, mas Guillaume ergueu a espada.
Barrou o caminho do germânico e fez que não com a cabeça. Calmamente,
Bassam montou e começou a cavalgar para longe.
- Por que me impediu? – perguntou Karsten, irado.
Henri, Ahmad e Dedrick imitaram o templário, impedindo que Heiner
seguisse os Assassinos.
- Porque foi o certo a se fazer.
- Esse foi um desafio justo. Não cometemos nenhuma injustiça ao vencê-
los.
Guillaume fingiu que não ouviu. Banlançou o manto, respingando gotas de
sangue antes de andar até o cavalo. Montou para esperar Donat sob o olhar irado
de Karsten.
Alguns cavaleiros de Sable D´Or passaram pelo grupo, saltando os corpos.
Correram mais algumas dezenas de metros para terem certeza de que não era
possível alcançar Bassam. Os outros pararam junto de seu senhor, cercando
Guillaume.
- Laure me contou que Bassam estava aqui. – A voz de Donat era dura e os
olhos procuravam pelo inimigo.
Guillaume encarou o barão sem sinal de submissão ou culpa e assentiu.
- Onde está ele? Por que ele fugiu?
- O templário permitiu que ele escapasse, senhor – interferiu Karsten.
Donat olhou do germânico para Guillaume esperando uma desculpa ou uma
resposta qualquer. O templário não era de desculpas. Fez o que tinha feito e não
imaginava que precisava se desculpar por isso.
- Não tem nenhuma explicação, Guillaume? – perguntou o nobre.
- Não, senhor. Eu realmente o deixei ir – respondeu o templário mantendo
um olhar firme sobre Sable D´Or.
- Não acredito que fez isso. Finalmente tínhamos esse maldito em nossas
mãos e você o deixa ir? Ele quase sequestrou minha filha!
- Laure está bem e não havia motivo para mantê-lo aqui. Ele faria o mesmo
pelo senhor.
- O mesmo por mim? Como pode ter certeza Guillaume? Ele vem aqui e
ameaça minha família e agora acha que ele me manteria vivo?
- Ele fez o mesmo por seu irmão. Faria por você também – falou o
templário.
Donat franziu o cenho e silenciou-se. Virou o cavalo lentamente e fez sinal
para ser seguido.

*****

Karsten retirara a armadura e vestia apenas o manto de lã. Desceu as


escadas do castelo e já sentiu o frescor da noite chegando. Encontrou-se com
Melisende no meio do caminho. Ela sorriu e tentou passar por ele discretamente.
Foi impedida pelas mãos fortes que envolveram seu pulso. Parou e observou o
cavaleiro na penumbra. Ele a puxou para mais perto,
- Quero meu prêmio. – Os lábios estavam tão próximos aos dela que ardiam
com a vontade de tocá-la.
Melisende adiantou-se um pouco e desviou-se dos lábios dele. Parou em
frente ao ouvido para sussurrar uma pergunta.
- E por que o cavaleiro mereceria um prêmio?
- Pela luta de hoje. Salvei sua prima.
- Sai em busca de outra mulher e agora quer um prêmio? - sussurrou
novamente..
Karsten a segurou com mais força. Puxou-a para junto de si e soltou-lhe os
pulsos para misturar os dedos aos cabelos castanhos dela.
- A única mulher que busco é você – disse antes de beijá-la.
Trocaram um beijo ardente que ascendeu a paixão nos corpos. Esquentaram
o fim de tarde intensamente, encostando-se à parede e pressionando-se para
sentirem os corpos um do outro. Por fim, ela soltou-se, assumindo novamente o
comando.
- Já recebeu o prêmio.
Melisende começou a sair como se nada houvesse acontecido. Karsten
sorriu e a puxou de novo. Deu-lhe mais um beijo.
- O que é isso agora? – perguntou ela.
- É um adiantamento da próxima vitória que dedicarei em seu nome.
Ela escapou do cavaleiro e continuou subindo as escadas. Karsten seguiu o
caminho para a reunião com Donat.

*****

Donat estava terminando de se arrumar no quarto quando bateram na porta.


Disse para quem quer que fosse que entrasse. Christophe abriu a porta
lentamente, pediu licença e caminhou para perto do pai.
- O que deseja? Já estou descendo para a reunião.
- Eles estão esperando, meu pai. Vim para avisar que os templários não
parecem ter boas notícias.
- Imagino que não.
- Um mensageiro de Raymond de Trípoli acabou de chegar. Eu o deixei
comendo, mas tomei a liberdade de trazer a mensagem para o senhor.
Donat pegou o pergaminho na mão do filho e quebrou o selo. Lia muito
mal, mas entendeu o suficiente para franzir o cenho consternado com as notícias
do amigo.
- Saladino declarou guerra a Ultramar. Raymond firmou uma trégua com
ele, afirmando que nada tem a ver com o rei de Jerusalém.
Donat andou até a janela e olhou para o feudo. Acertou um soco na parede
ao baixar cabeça pensativo.
- O que vai fazer pai?
- Ainda não sei. Como se já não bastassem os problemas com Bassam,
agora temos que pensar na ameaça de Saladino.
- Basta fazermos como Raymond que não haverá problemas com Saladino,
meu pai. Agora, quanto a Bassam, a culpa é estritamente dos templários. Se eles
não houvessem matado o espião, a trégua com os Assassinos ainda seria
mantida.
Donat olhou para o filho com um semblante cansado, mas ainda contendo
um pouco de fúria. Avaliou as palavras de Christophe com cuidado e concluiu
que ele tinha razão a não ser em um ponto.
- Não sei se os templários são culpados pelo assassinato.
- Como não seriam, meu pai. Eles sempre quiseram lutar contra os
Assassinos. Guillaume jurou matar Bassam com a própria espada. Ele já o fez
pensando em desafiar Bassam.
- Guillaume sabia que também arriscaria a minha vida e a de vocês se
fizesse isso – retrucou Donat, afastando uma mosca com o pergaminho.
- E desde quando Guillaume dá atenção a isso? Sei que me culpa pelo que
vem acontecendo aqui, meu pai. Mas não sou eu o culpado por essa desavença
ter começado. Foram os templários e seu irmão, meu tio, que iniciaram o
problema. Se meu tio não tivesse matado o irmão de Bassam, as batalhas nunca
teriam começado.
- O homem queria a esposa de Jean. Queria que um Sable D´Or recuasse?
- Ela ainda não era esposa dele e não passava de uma mera judia.
Uma mera judia. Sable D´Or não discutiu aquelas palavras porque, para ser
sincero, compartilhava do preconceito do filho. Nunca concordara com o
casamento do irmão. Naquela época, Guillaume apoiara Jean de Sable D´Or na
batalha, pois os dois haviam se tornado muito amigos desde que se uniram para
acabar com alguns revoltosos no feudo.
- Guillaume não me trairia.
- Lembre-se que ele é primeiro fiel ao Templo e depois às amizades, meu
pai. Se o Templo quer luta, então Guillaume lutará.
A lógica de Christophe envenenou rapidamente o raciocínio de Donat. O
barão não podia duvidar que o filho estivesse certo. Guillaume era um homem
belicoso que jurara matar Bassam desde a morte de Jean. O Templo também
tinha uma rivalidade histórica com os Assassinos. Era natural que a trégua entre
os dois não durasse muito tempo.
- Vamos ver o que Guillaume veio nos dizer.
Pai e filho desceram as escadas para a reunião.

*****

- Então quer dizer que essa foi sua primeira batalha como templário – disse
Gareth.
O padre, Karsten, Heiner, Dedrick e Laure estavam no salão principal do
castelo. Sentados à mesa, eles discutiam trivialidades. O germânico mantinha o
rosto sério, preocupado com a situação do primo. Heiner não compartilhava da
aflição. Achava divertido ver Dedrick envergando orgulhosamente o manto
branco e a cruz vermelha.
- Acho que lutei bem. Andei treinando com Guillaume – disse timidamente
Dedrick.
- Com aquele templário? – desdenhou Karsten.
- Ele luta muito bem, meu primo. Viu como ele derrubou aquele Assassino
hoje?
- Eu e Heiner enfrentamos doze deles de uma vez e você fica impressionado
com o homem derrubando um Assassino?
Laure ria, olhando de um lado para o outro da discussão. Manteve um
sorriso ainda mais aberto quando Guillaume chegou.
- Estávamos falando de você, Guillaume – contou.
- Não pude deixar de ouvir. É sempre bom ouvir meu nome saindo da boca
de quem quer que seja. Parabéns pela luta de hoje, Karsten.
O germânico aceitou o elogio com um simples aceno de cabeça. Guillaume
sentou-se ao lado de Dedrick e sorriu para Laure. Gareth notou que os olhos do
templário se demoraram um pouco sobre o colo da mulher.
- Estava contando a eles como o senhor derrubou aquele Assassino hoje –
falou Dedrick.
- Não falamos das nossas glórias, Dedrick. A glória pertence apenas a Deus,
não a nós. Somos somente as armas dele nessa guerra – cortou Guillaume.
Dedrick abaixou a cabeça e pediu desculpas. A atitude atingiu Karsten
como vinagre jogado em ferida aberta.
- Você não precisa se envergonhar de seus sucessos.
- Concordo, Karsten – disse Heiner. – As vitórias são feitas para contarmos.
- Já há festa demais entre os cavaleiros seculares. Nós não precisamos
compartilhar delas – falou Guillaume, sorrindo. – Mas obrigado por nos
convidar a deixar nossa sólida e humilde regra.
Os olhos de Karsten se estreitaram. Transformaram-se em lanças mortais
procurando pela alma de Guillaume. As palavras e o sorriso irônico do templário
eram mais que uma provocação, eram um convite direto para a batalha.
- Estou convidando meu primo a deixar os templários, não você. Você
merece estar cercado por cada pedra que constrói esse Templo.
- Dedrick é livre para ir e vir. A vida de templário não é fácil. Devemos ser
como rochas no deserto, como você mesmo diz, Karsten. Somos pedra que
constrói a fortaleza de Deus para proteger todos os cristãos inocentes – falou
Guillaume, sorrindo mais uma vez como se marcasse mais um ponto rumo a
vitória naquele jogo.
Karsten não conseguia entender o templário. Ele tinha uma resposta para
tudo e nunca se irritava. Vivia com aquele sorriso estampado como um escudo
impenetrável. E tudo o que o germânico falava era automaticamente
transformado em um contra-ataque certeiro. Ficou aliviado por Melisende não
estar ali para vê-lo ser vencido com tanta facilidade naquele jogo de palavras.
Donat e Christophe apareceram para interromper a conversa perigosa de
Guillaume e Karsten. O barão sentou-se na cadeira na ponta de mesa e colocou o
pergaminho de Raymond de Tripulo diante de si.
- Saladino rompeu a trégua – disse Donat.
Gareth mexeu-se na cadeira. Até o momento, mantivera-se quieto, incerto
de como ajudar o amigo na discussão com Guillaume.
- Vai haver guerra? - perguntou o padre.
- Saladino não rompeu a trégua. Fomos nós. Renaud de Châtillon atacou
uma caravana que seguia para o Egito. Agora vai haver guerra. Estou aqui por
isso, Donat. Precisamos que preste homenagem ao rei para unirmos o reino para
essa batalha.
Donat exasperou-se. Já estava na defensiva antes de a conversa começar e o
pedido de Guillaume soou como uma ameaça em seus ouvidos.
- Esses aliados do seu rei fazem uma besteira e agora eu tenho que pagar
por isso? Não, Guillaume. Já tenho problemas com os Assassinos e ainda não
recebi ajuda...
- Os templários nunca negaram ajuda ao feudo de Sable D´Or. Sempre
lutamos ao lado de vocês.
Melisende entrou na sala como que atraída pelo assunto que em breve
trataria de seu pai.
Donat remexeu-se na cadeira. Olhou para a sobrinha e depois para
Guillaume. Parecia ainda se decidir sobre o que fazer. A conversa com
Christophe não saía da cabeça.
- Não poderei ajudá-lo, Guillaume.
- O rei não permitirá que os barões se dividam, Donat – falou Guillaume,
firmando a voz.
Donat encarou o amigo amargamente. Sentiu a ameaça implícita nas
palavras do templário, o que o fez tomar a decisão final.
- Que esse reizinho venha tentar me submeter então. Estarei esperando.
Enquanto isso, pretendo lidar com os Assassinos.
Guillaume balançou a cabeça com a decepção clara na face. Viajara até ali
para dar um último alerta a Donat, mas o barão parecia irredutível. Estava dando
cada vez mais motivos para o uso da força. Sable D´Or não suportaria um ataque
do Templo, não com as forças que em breve Jacques de Mailly deslocaria.
- Raymond manteve a trégua com Saladino e eu também manterei. Não
compartilharei esse problema com Ultramar.
A reunião acabara. Talvez já houvesse acabado antes de começar. Donat
estava colocando tudo a perder. Guillaume sabia que os cavaleiros dele seriam
necessários na guerra. Cada um dos guerreiros cristãos seria necessário para
enfrentar Saladino. Guillaume começou a pensar se Gerard não estaria certo em
continuar com seus planos de aumentar o poder do Templo e unir os guerreiros
da Terra Santa. Com barões tão divididos, seria impossível manter o reino. Mas
com uma força como as dos templários mantendo a massa de guerreiros unida e
sustentando as finanças reais, haveria coesão suficiente para conter a fúria
muçulmana. Bastaria um pouco menos de ganância, algumas pitadas de lógica e
um tempero de violência na medida certa. Pena que na terra de Deus fosse tão
difícil equilibrar elementos tão díspares.
- Acho que vamos partir então – disse Guillaume, levantando-se.
- Eu os levo até seus cavalos – falou Christophe, levantando-se.
- Dedrick, vá chamar Ahmad e Henri. Eu o encontro perto dos cavalos.
Guillaume despediu-se de todos e deu as costas para a mesa. Não se
importava em viajar à noite, mas não tinha vontade de ficar na casa de um ex-
amigo. Pensou em Jean de Sable D’Or e na promessa de proteger o que restara
de sua herança na Terra Santa.
Christophe seguiu calado até saírem do castelo. Andaram quase na
escuridão para encontrarem os estábulos. Olhando para trás, viram as figuras dos
outros chegando.
- Meu pai não sabe o que diz, Guillaume, mas eu sei. Não se preocupe.
Tentarei convencê-lo de que está errado. Ele precisa me ouvir ao menos uma vez
na vida. Conte com o meu apoio. Eu estarei aqui para manter tudo em ordem.
Guillaume voltou-se para Christophe. As sombras contiveram o olhar
desconfiado do templário.
- O que está insinuando?
- Que vocês ainda têm aliados aqui.
- Pretende trair seu pai? – perguntou Guillaume com um tom de voz que
não insinuava nada.
- Não, apenas tentar colocar Sable D´Or nos eixos. Não quero viver como
um traidor do reino. Temos um rei e pretendo segui-lo.
- Por que não abandona o feudo? Precisamos de guerreiros.
- Não adiantaria nada. Preciso controlar o feudo e os cavaleiros daqui para
ser mais útil. Só aqui poderei convencer meu pai a seguir o caminho certo.
Eles se calaram. Dedrick fez sinal de que estava pronto para partir. Ahmad
verificou uma bolsa com tochas.

*****

Donat percorreu a mesa com o semblante pesado do homem de duras


decisões. Ficou com vergonha quando viu as mulheres. Elas não deveriam estar
em uma reunião sobre guerra. Os cavaleiros e o padre o observavam esperando
mais alguma reação, talvez uma ordem sobre como se preparar para a batalha
com os Assassinos.
- Agiu bem, senhor – apoiou Karsten. O germânico sabia que aquele barão
era um homem de princípios e não os trairia apesar das dificuldades.
- Só não sei se foi bom deixá-los irem embora, meu pai. Guillaume é seu
amigo. Diga apenas para ele dormir aqui.
Donat soltou o ar sonoramente.
- Ele é o homem que lutará contra mim, minha filha.
- Ele é o homem que já salvou sua vida e lutou ao lado da família.
- Se você conhecesse o passado negro dele, não estaria o defendendo. Se
Guillaume se volta contra nós, não podemos esperar nada além do pior. Sei que
acabei de conquistar mais um inimigo poderoso.
- Pensei que ele houvesse mudado. Sempre existem tantas histórias sobre
ele – comentou Laure.
- Fala do milagre da conversão da alma dele? Tudo bem. Vá chamá-lo, mas
não quero vê-lo. Que parta amanhã de manhã.
Laure levantou-se para ir chamar o templário. A mesa ficou calada por um
tempo. Melisende rompeu o silêncio com palavras que deixariam Karsten com
ciúme.
- Não se preocupe, meu tio. Guillaume não fará nada contra o senhor. Posso
não confiar nele, mas sei que o templário não o causará mal, ao menos não como
o senhor imagina.
- Para ser franco, não duvido de nada vindo desse templário – comentou
Karsten, contrapondo-se à defesa de Melisende. Fitou-a nervoso, com o cenho
franzido. – Acho que o senhor fez bem em recusar a proposta dele. Havia uma
ameaça ali. Ele queria que o senhor se curvasse frente a um rei que não merece o
trono que ocupa.
O silêncio voltou com tentáculos gelados que atingiram principalmente
Melisende e Karsten. Os dois se olharam avidamente, tentando compreender o
que se passava no coração um do outro. Uma pontada de amargura acertou fundo
os sentimentos que nutriam.
- Guillaume é muitas coisas, mas não um traidor. Ele só lutará contra o
senhor meu tio se for provado que Sable D´Or está contra ele.
- Os templários só enxergam sangue e fortuna. Esse Guillaume virará o
coração a essa amizade tão logo seja conveniente para ele ou para essa maldita
ordem – exasperou-se Karsten, batendo a mão na mesa. Recebeu olhares atetos.
O rosto avermelhado não foi totalmente percebido em meio às sombras. – Pode
contar com minha espada sempre, meu senhor.
Donat meneou a cabeça aceitando mais uma vez a promessa de servidão
guerreira do cavaleiro e o assistiu levantar-se e sair.
- Meu senhor, perdoa meu amigo. Ele está simplesmente preocupado com a
situação do feudo a que serve agora – desculpou-se Gareth.
Melisende saiu pouco depois. Seguiu Karsten até uma das torres do castelo,
de onde era possível ver os estábulos. As tochas iluminavam o pátio.
Karsten viu que no meio dele estavam Laure e Guillaume. Os dois haviam
parado em frente à fonte que enfeitava o centro do lugar. Havia uma bonita
estátua de um querubim segurando uma ânfora que jorrava água. Laure passou a
mão na água e falou algo que não chegou aos ouvidos do cavaleiro germânico.
Nem era possível. Ele mal podia ver aqueles dois e achou que o modo como
estavam envoltos em sombras só demonstrava como era a alma daquele
templário.
Melisende respirou fundo antes de interromper os pensamentos do
cavaleiro. Ele olhou para trás com um rosto ainda chateado e voltou-se para
frente mais uma vez.
- Qual o problema com Guillaume? – perguntou ela.
- Ele é um templário. Pensei que não gostasse deles também.
- Às vezes gosto, às vezes não gosto. Mas Guillaume, apesar do seu jeito,
merece minha consideração. Ele salvou a vida de meu pai e a minha mais de
uma vez. Sempre foi um aliado fiel.
- Continua o defendendo – acusou Karsten.
Ela julgou que era ciúme sem entender toda a história do cavaleiro que
começava a amar. Aproximou-se dele e o tocou para que se virasse para ela.
Demorou alguns segundos, mas ele cedeu e deixou que os olhos se encantassem
mais uma vez com aquele rosto lindo.
- O que faço para que saia dessa raiva?
Ele a segurou pelo braço e a puxou. Beijou-lhe como se fosse a última vez,
como ainda se habituaria a fazer quando a paixão crescesse mais.
- Estou satisfeito – disse quando o beijo terminou.
- Sua dívida de grandes feitos está aumentando. Só tem cobrado prêmios.
Quero ver os feitos. Talvez o primeiro deles seja se acalmar e parar de colaborar
para que meu tio perca o apoio dos templários.
Karsten soltou o ar pelo nariz e balançou a cabeça. Sua alma não teria
capacidade para aquele ato. O máximo que poderia fazer era deixar que Donat
decidisse por si só o que fosse fazer. Olhou para a fonte do pátio e viu que
Guillaume e Laure o olhavam. Pensou notar um sorriso no rosto do templário.
Nem sabia do caos que ainda se armaria naquele feudo.

*****

O céu estava tão aberto e límpido quanto o rosto sorridente de Gerard de


Ridefort. Ele caminhou palácio adentrou até se encontrar com o rei e com
Renaud de Châtillon. Os dois estavam na sala do trono à espera do último
membro daquele conselho de guerra especial formado apenas pelos três. Um rei,
um guerreiro e alguém que se julgava acima de ambos. Assim era aquele trio.
Gerard deixou o dia claro para trás e andou pelas sombras do castelo sem nem
pensar em um discurso. As palavras sairiam facilmente de sua boca, escorrendo
como veneno já destilado havia muito tempo.
Encontrou Renaud limpando as unhas com uma adaga mais por tédio do
que por higiene. Não fez questão de parar quando o grão-mestre atravessou a
sala. Educadamente, Gerard ajoelhou-se diante do rei e se levantou sem sorriso
no rosto. Era hora de se conter.
- Senhor, trago notícias do que ocorre na Galiléia, mas suponho que Vossa
Majestade já saiba.
De fato, o rei já sabia, mas só tinha aquela informação porque Gerard fizera
questão de deixar que o mensageiro chegasse ao palácio e fingisse que contar as
novas a Guy. Era um jogo, nada além de um jogo para que o venerado rei se
sentisse mais seguro no trono.
- Sim, eu sei, Gerard. Raymond de Trípoli confirmou a trégua com
Saladino. Ele não estará do nosso lado na guerra que virá – disse o rei com uma
voz de lamento que mal podia conter. Era nítido o resquício de raiva ali, mas ele
não conseguia encontrar outro sentimento que passasse por cima das dúvidas que
tinha sobre a batalha contra os muçulmanos.
- Infelizmente, perderemos alguns bravos guerreiros. O problema é
perdermos mais ainda – alertou o grão-mestre. Guy o olhou apreensivo,
enquanto Renaud levantou a cabeça curioso.
- O que quer dizer. Gerard? – perguntou o rei.
O grão-mestre cruzou os braços e olhou para cima pensativo, depois
balançou a cabeça em sinal negativo de quem lamenta uma conclusão.
- Temo que o exemplo de Raymond seja seguido por outros nobres.
Renaud e Guy se olharam.
- Não podemos permitir que mais ninguém deixe Jerusalém ou faça trégua.
Saladino tomará os cristãos como fracos e covardes – disse De Châtillon.
- Infelizmente – falou De Ridefort.
- Não deixarei que isso aconteça. Mandarei mensageiros para falar com
Raymond...
Gerard levantou as sobrancelhas e balançou a cabeça de leve, bastante
discreto, como quem pensa consigo mesmo e deixa escapar um sentimento
intenso demais. Parecia perturbado, se não decepcionado. Aquilo fez o rei parar
de falar.
Guy prendeu-se a vários pensamentos em frações de segundo. A maioria era
de dúvidas sobre como conduzir aquele momento difícil. Por fim, decidiu que só
acabaria com aquilo se tivesse pulso firme. Era hora de mover-se e mostrar seu
poder antes que aqueles malditos barões o engolissem. Era hora de mostrar quem
era o rei.
- Mandarei preparar meu exército. É hora de subjugar a Galiléia.
Um sorriso escapou dos lábios de Gerard. Ele baixou a cabeça, servil como
um cão, e começou a falar.
- Estarei junto de Vossa Majestade assim como os templários estarão junto
com vosso exército.
O grão-mestre dava mais um passo na vingança contra Raymond e para o
domínio do reino. O cerco se fechava sobre a coroa. Não precisaria nem tocá-la
para governar.
Capítulo Cinco
Guillaume poderia ter partido de Sable D´Or para La Fève, onde
encontraria Dante e os outros templários observando as aldeias ao redor para
verificar se não haveria nenhum levante muçulmano. La Croix Bleue sabia que
poderia confiar em seu amigo siciliano nessa tarefa, portanto tomou outro rumo
despreocupadamente. Estava na hora de ele mesmo averiguar outros problemas.
Conseguira uma informação preciosa com Laure. Os Assassinos estavam
reunidos próximos ao mar da Galiléia, perto das terras de Tiberíades. Bassam
dera ordens a seus homens para levarem-na para lá. Foi pouco antes de Karsten e
Heiner chegarem para salvar o dia.
Poderia realmente parecer um pouco perigoso viajar com apenas outros três
companheiros, principalmente exibindo a cruz templária no ombro esquerdo. O
símbolo vermelho não atrairia boa atenção naquelas terras com influência
muçulmana. Sabia-se que Raymond de Trípoli tinha uma grande tolerância com
o povo de Maomé. Havia até quem dissesse que ele era um traidor. Se fosse,
seria uma grande perda para o reino, mas existia um motivo ainda maior para
que Gerard o trucidasse e assim aumentasse ainda mais o poder dos templários.
O deserto não era mais uma presença tão forte ou mesmo uma penúria à
medida que se aproximavam do mar da Galiléia. As árvores apareciam mais e
eles já podiam sentir uma brisa saindo das águas para refrescar seus rostos
ardentes e suados. Cavalgando na frente, ao lado de Dedrick, Guillaume tinha
olhos apenas para a trilha marcada na vegetação rasteira. Era pouco usada e por
isso mesmo o templário resolvera seguir por ali. Conseguira a informação com
um pastor e tratara de dar ordens para que tomassem um rumo menos visado,
onde talvez os Assassinos não passassem.
Dedrick cavalgava esperando um combate. Tinha vontade de ver Guillaume
em ação mais uma vez, para aprender melhor com o templário mais velho,
entretanto, acima de tudo, queria provar que não vencera o Assassino por acaso.
Era uma questão de honra demonstrar que tinha condições de lutar como Karsten
ou Heiner. Pensando nos dois, lembrava-se de como haviam o olhado em Sable
D´Or. Tinham decepção e amargura nos rostos. Heiner nem tanto. O nórdico
estava mais triste por causa de Karsten.
Encontraram uma pequena aldeia em certo momento. Não deveriam estar a
mais de três quilômetros do lago e Guillaume desmontou para puxar o animal até
as pequenas casas amontoadas em meio a árvores pequenas que mal
ultrapassavam a altura de um homem. Precisou afastar alguns arbustos que se
amontoavam em volta da trilha.
O primeiro aldeão a recebê-lo foi um menino catarrento que o olhava como
se visse Jesus Cristo pisando de novo na terra. Não deveria ter mais do que dez
anos e os olhos esbugalhados, separados por um nariz que não parava de
escorrer, travaram-se na figura do templário. Guillaume olhou-o bem e fez sinal
para a criança. Ela se assustou e correu para a aldeia, chamando a atenção de um
dos homens mais velhos. O templário ordenou que os outros ficassem enquanto
ele ia procurar as informações.
- Saudações – disse em árabe.
O homem, que acabara de mandar o menino para dentro da casa, não
respondeu nada. Guillaume nem tentou falar o francês ou o pouco que sabia de
latim. Estava sem opções, pois não entendia outra língua. Talvez fosse melhor se
houvesse trazido Dante. O siciliano era fluente em árabe, francês, alemão,
italiano, latim, grego, aramaico e estava estudando para aprender hebraico. Tinha
uma cultura assustadora, principalmente para os templários, formados na maioria
por cavaleiros brutos que mal podiam reconhecer uma letra em um pergaminho.
- Você é um templário – disse finalmente o homem.
- Sim, sou. Meu nome é Guillaume. Venho pedir água para mim e meus
companheiros e perguntar como faço para chegar à vila de Faraj.
O homem gritou em árabe para que alguém trouxesse a jarra d´água.
Guillaume chamou os outros e eles aproveitaram para encher os cantis e beber
um pouco.
- Gostaríamos de comida também.
Agora o aldeão demonstrou uma desconfiança que beirava a raiva. Olhou
para os quatro e chamou pela mulher. Ela apareceu com algumas frutas e
pedaços de pão. Foi tudo o que eles conseguiram antes de se abaixarem debaixo
de uma árvore para comerem e descansarem. O calor era desgastante. O sol
atravessava o céu cm a clemência dos predadores famintos. Comeram calados
como era a regra. Guillaume não gostava de ver ninguém quebrando as leis dos
templários enquanto estivessem sob suas ordens. Se era para comerem calados e
rezarem, assim o faziam.
Guillaume só voltou a falar com o aldeão depois de terem comido. Então o
homem o observou com a mesma desconfiança e raiva. Apontou a direção de
Faraj e não quis ter mais conversa. O templário deixou passar os maus modos e
voltou para perto dos companheiros. Ahmad tinha uma nova informação.
- Muitos cavalos passaram por aqui recentemente, senhor. Há muitas
marcas.
O templário olhou por sobre o ombro e analisou a vila. Obviamente, os
Assassinos não estavam escondidos ali. Já teriam os atacado se fosse assim.
- Os aldeões devem saber de alguma coisa.
- Talvez possamos pressioná-los – sugeriu Dedrick, colocando a mão na
empunhadura da espada.
Guillaume o fitou e fez um sinal para que ele não demonstrasse tocar em
armas. Deu as costas para o grupo e voltou até a aldeia. Agora foi montado.
Parou em frente à casa do homem que acabara de dar-lhe as informações e a
comida. O aldeão logo saiu para saber o que estava acontecendo. Outros homens
e mulheres apareceram.
- Estamos procurando por alguns homens. São Assassinos. Precisamos
conversar com eles. Diga-lhes que vamos esperá-los em Faraj.
Deu as costas e começou a cavalgada até Faraj. Os outros o seguiram até a
metade do caminho, quando finalmente parou. Já era quase tarde e ele
finalmente encontrara o local que procurava. Olhou para um amontoado de
pedras logo acima e deu ordens para que Ahmad o seguisse para verificarem o
lugar.
Dedrick ficou com Henri, parados um pouco longe da trilha. O jovem
templário impacientava-se com a espera. Queria saber o que estava acontecendo.
- O que eles estão fazendo, Henri?
- Procurando um lugar para acamparmos com segurança e formarmos uma
proteção. Acho que os Assassinos já sabem que estamos aqui. Os aldeões
contarão ou já contaram de algum modo para eles.
- Há quanto tempo você conhece Guillaume, Henri?
- Lutei com ele na França. Vim com ele de lá. Acho que estamos lutando
junto há uns doze anos, se não mais. Pelo que sei, aos dezoito ele já tinha fama
de guerreiro. Foi quando o conheci e passei a ser um dos seus.
- É verdade essas histórias que contam sobre ele? Ele foi realmente
excomungado antes de entrar para os templários?
Henri retirou um pouco de sujeira que incomodava entre os dentes e olhou
na direção de Guillaume. Virou-se para Dedrick e soltou o ar enfadado.
- Sempre perguntam isso. Acho que foi só isso que faltou, mas Deus
demonstrou algo a ele antes que pudesse lhe entregar a excomunhão.
- O que foi?
- Melhor você perguntar a ele – disse, quando Ahmad e Guillaume
voltaram.
Dedrick preferiu o sábio silêncio dos homens que preferem manter os
dentes intactos. Havia algo em Guillaume que o intimidava e não lhe dava
direito de saber mais sobre a vida daquele templário estranho. Ficou imaginando
que milagre teria feito uma alma tão torpe se tornar um guerreiro de Deus.
- Achamos um bom lugar para mantermos um posto que possa nos proteger.
Agora vamos deixar nossos mantos e armaduras aqui para seguirmos viagem.
Os sargentos não questionaram. Henri desceu do cavalo e já começou a
retirar o manto escuro que indicava sua posição. Ahmad fazia o mesmo. Apenas
Dedrick permaneceu montado. Estava confuso.
- Mas por quê?
Ninguém respondeu. Todos continuaram com suas tarefas. Dedrick
percebeu que não cabia a ele questionar a ordem de um superior. Deveria apenas
obedecer e nada mais.
Guardaram seus pertences, ou melhor, os pertences da ordem embaixo de
uma enorme pedra. Deixaram até as espadas. Teriam apenas os punhais como
arma. Nem Ahmad levou o arco.
Chegaram a Faraj antes do anoitecer. Era uma vila grande, com talvez
quinhentos habitantes que viviam da pesca no mar da Galiléia. Alguns eram
pastores e já estavam voltando do campo com os animais. Havia cabras e
cordeiros transitando na vila quando os quatro entraram. Não chegaram todos
juntos. Um de cada vez desceu do cavalo e seguiu a pé. Apenas Henri ficou para
cuidar dos animais a uma distância segura.
A primeira coisa que Guillaume fez ao chegar foi se aproximar de um grupo
de homens que conversava animadamente próximo à margem do mar.
Cumprimentou-os enquanto andou para lavar o rosto. Sorriu e parou ao lado
deles para perguntar onde conseguiria arranjar comida. Estava cansado da
viagem.
- De onde você vem, estranho? – perguntou um dos homens.
- De Jerusalém, onde os cristãos estão como formigas agitadas ao saberem
que o grande Saladino está para acabar com eles.
- Bom, mas não precisamos nos preocupar, pois Saladino não passará por
essas terras. O conde selou um pacto com ele. Estamos seguros – falou outro
homem.
- Ótimo. Acho que será bom se eu ficar aqui por uns tempos. Ao menos
aqui parece haver apenas homens de paz. Nada de guerra.
- Talvez – soltou um dos homens, que recebeu um olhar furioso de um dos
outros. Guillaume marcou esses dois rostos.
- Sabem de uma casa que pode me abrigar essa noite?
- Procure pelo velho Arsen. Ele é cristão como garanto que você é. Ele lhe
dará abrigo – disse o homem furioso que intimidara o outro.
Os homens apontaram na direção onde Guillaume encontraria Arsen. O
templário parou no meio da roda e cumprimentou os dois homens cujo rosto
marcara, depois caminhou até o velho Arsen.
*****

Dedrick esfregava as mãos nervoso. Guillaume lhe confiara sua primeira


missão de guerra. Falhar seria o mesmo que a morte, literalmente. Andou pela
aldeia se esgueirando entre as sombras que começavam a se formar para darem
origem à noite. Quando começou a ser observando por um grupo de mulheres,
apenas sentou-se perto de uma casa e fingiu se deitar para dormir como um
mendigo. Um dos olhos ficou aberto, fixado em Guillaume. Viu muito bem
quando o templário marcou um dos homens com um cumprimento. Quem quer
que fosse marcado pela direita seria dele. Fora esse o combinado.
Os homens perto do mar acenderam uma fogueira e continuaram contando
histórias animados por algum tempo. Dedrick continuou deitado os observando
até notar seu alvo sair para tomar o rumo de casa. Então se levantou
discretamente e andou em meio às sombras. Dava para ver a lua refletida nas
águas mais para frente, mas a luz era pouca. Não mais do que a fogueira distante
iluminava o caminho. Dedrick sacou o punhal que carregava preso na perna.
Tinha sempre três, mas um deles ficara guardado junto com a espada e a
armadura. Os únicos dois que lhe restavam estavam bem escondidos.
O jovem germânico não tinha habilidade para caminhar furtivamente.
Precisou se concentrar em dobro para se certificar de que os pés não fariam
barulho e de que alcançaria o homem sem ser percebido. Escondeu-se atrás da
parede de uma casa e esperou que o alvo passasse. Não era um ataque digno,
mas Guillaume falou que aquilo não afetaria em nada sua honra de cavaleiro.
Eram tempos de guerra que exigiam medidas desesperadas. O homem passou
pela casa cantando em árabe. Poderia estar rezando também. Os ouvidos de
Dedrick achavam difícil definir o que saía da boca dele. Não importava!
Precisava se concentrar no ataque, em nada mais. Precisava pegá-lo. Sentiu o
punhal tremer na mão. Por pouco não pulou precipitadamente. Rezou para que a
Virgem Maria o ajudasse a se acalmar. Finalmente, quando o alvo atingiu a
posição correta, Dedrick estendeu os braços. Um segurou a boca do homem e o
outro encostou a adaga fria no pescoço.
- Você vem comigo calado – disse ele em francês, tentando se lembrar das
palavras em árabe que Guillaume lhe ensinara. Quando finalmente conseguiu
dizer, começou a empurrar o homem para fora da vila.

*****

Ahmad não confiava que Dedrick pudesse finalizar a missão. O templário


era inexperiente demais, nervoso demais. Com certeza, se sentiria mais calmo se
Henri fosse enviado. Foi uma pena o sargento ter ficado cuidando dos cavalos.
Aquela não deveria ser a função de um guerreiro tão bom.
O turcópolo retirou uma pequena imagem da Virgem Maria de dentro do
manto a beijou. Confiava sua vida à santa e achava que ela já lhe salvara
inúmeras vezes. Rezou e pediu para que ela guardasse a vida de Dedrick e de
Guillaume. Não pediria pela dele naquele dia, pois estava mais preocupado com
os companheiros.
Foi o último a entrar na vila e o fez pouco antes de Guillaume dar o sinal
para seguir um dos homens da roda. Ficou parado perto das árvores, quase ao
lado do mar, meio escondido, fingindo estar lanchando, durante um bom tempo,
até finalmente ver o alvo sair. Seguiu-o tão envolto em sombras e silêncio que
mais parecia um dos Assassinos. Ahmad caminhou rezando para a Virgem
Maria. Queria estar com o arco e a espada, de modo que se sentiria muito mais
seguro. Fora treinado para lutar como um guerreiro da cavalaria rápida. Assim
eram os turcópolos, cavalarianos baseados nas tropas de ataque rápido do
Império Bizantino. Ahmad sonhara ser um deles desde que nascera, mas,
enquanto não era agraciado com um cavalo e uma espada, aprendeu a se
movimentar furtivamente para roubar e conseguir comida. Passou por tempos
difíceis em Jerusalém, pecando contra alguns dos Dez Mandamentos antes de
finalmente ter a oportunidade de se tornar um guerreiro em nome de Deus.
Acreditava que a graça fora concedida pela Virgem, quando Guillaume o
descobriu com sua família e o chamou para as tropas dos templários.
Havia quem acreditasse que Ahmad era desqualificado para estar entre as
tropas cristãs. Ele mesmo acreditava nisso no início. Foi Guillaume quem o fez
mudar de ideia, afirmando que o homem carrega seu passado consigo, mas são
suas ações no presente é que contam. Deus perdoa e agracia quem sabe viver sob
seu perdão. Pensando na fidelidade que tinha para com o líder templário, Ahmad
preparou o punhal e analisou os passos do alvo. Começou a contá-los para
calcular a velocidade. Arqueou as penas para preparar o salto.
Uma voz e o barulho de mais pessoas chegando fez o turcópolo parar. Viu
homens armados parando. Reconheceu um rosto em especial. Bassam iniciou
uma conversa com o alvo e as palavras chegaram claras aos ouvidos de Ahmad.
- Ele está aqui. Vamos cercá-lo na casa do velho Arsen. Ele não poderá
fugir.
- Os outros já estão esperando na estrada.
Ahmad não podia perder tempo. Estavam cercados. Os Assassinos já
tinham planos para pegá-los desde o início. Olhou para os lados para saber como
escaparia e avisaria Guillaume. Os Assassinos o veriam de qualquer modo. A
casa para onde o templário se dirigia estava na linha de visão deles. Persignou-se
e rezou mais uma vez para a Virgem, então começou uma corrida suicida na
direção da casa. Quase que por milagre, os Assassinos demoraram a vê-lo.
Estavam ocupados pensando nos planos. Ahmad ouviu murmúrios e sentiu o
vento deslocar-se próximo ao ouvido esquerdo. Uma flecha passou por ele e
fincou em uma das casas. Ahmad sabia que haveria uma segunda. Contou o
tempo e rolou no chão no exato momento em que uma segunda seta passou.
Caído, viu os Assassinos se aproximando. Atirou o punhal com precisão,
atingindo a coxa de um dos homens. Os outros não pararam a perseguição, mas o
turcópolo já estava de pé, correndo sem armadura ou armas que pudessem lhe
conferir algum peso ou incômodo.
Guillaume levantou-se assim que ouviu o primeiro barulho. Saiu da casa
para ver Ahmad correndo em sua direção. Os Assassinos vinham logo atrás. O
templário jogou um dos punhais para o turcópolo. Este já estava pronto para o
arremesso. Girou o corpo e conseguiu atingir o ombro de um Assassino. O
homem não parou, mesmo ferido.
Os dois correram na direção de Henri. Ouviam os Assassinos chamando o
povo para parar os dois, mas as pessoas foram lentas em sair das casas. Um
homem tentou parar na frente de Guillaume, mas o templário acertou-o um
encontrão com o ombro, jogando-o no chão. Ahmad saltou o corpo caído e
ultrapassou Guillaume. Era um corredor muito mais rápido.
- Avise-os para partirem logo – disse o templário.
Quando Guillaume chegou até o grupo, havia apenas Ahmad segurando os
cavalos. Os outros já haviam partido com o prisioneiro. Montaram depressa.
Guillaume quase cedeu o último punhal para o turcópolo arremessar. Mudou de
ideia e resolver poupar a arma, mantendo-a escondida.
Cavalgaram depressa para encontrarem o esconderijo que haviam
preparado. Tinham pouco tempo para interrogar o prisioneiro e depois partirem
com quaisquer informações que conseguissem.

*****

Demorou um pouco para fazerem os cavalos subirem as pedras e se


ajeitarem na pequena caverna que serviria de esconderijo. Havia uma pequena
elevação pouco antes da entrada, que conferia proteção e cobertura. Pouco mais
atrás, a caverna acabava e dava outra abertura, agora para uma terra cheia de
pedregulhos que acabava em meio a plantas pequenas cobertas de espinhos. Eles
poderiam partir dali naquele momento, mas viram quando os Assassinos
começaram a passar pela trilha por onde acabaram de chegar. Um deles subiu
nas pedras para procurar pelos fugitivos em meio às plantas e espinhos, mas não
conseguiu notar nenhum movimento durante a noite. Ficou ali parado do mesmo
modo, tentando encontrar alguma pista.
Outros Assassinos haviam chegado da primeira aldeia em que Guillaume
havia parado. Já deviam estar apenas esperando a volta deles, talvez com a
intenção de encontrá-los na estrada. Ahmad, que olhava os inimigos sob a luz
fraca da lua, contou onze deles.
- Tudo já estava preparado. Já esperavam por nós – sussurrou Ahmad. Os
outros assentiram.
Dedrick imaginava que era o fim. Olhou para o rosto decidido dos
companheiros e não conseguiu notar em si a mesma fé no futuro ou a mesma
decisão de morrer lutando. Sentia medo e envergonhava-se de não ser tão
corajoso como eles. Queria ter a mesma fé para tombar lutando, entregando-se às
lutas mais desesperadas e desvantajosas sem parar de crer que, ainda sim, Deus
estava do seu lado.
Poderiam ter passado a noite toda acordados por causa da tensão, mas o
cansaço da viagem os fez dormir, trocando os turnos e mantendo o prisioneiro
sempre parado sob o fio da espada. O homem estava com a boca amarrada por
trapos e com cordas envolvendo os pulsos e as pernas. Dedrick foi o único que
não conseguiu dormir. Algumas vezes os olhos até se fecharam e encontraram
um sono leve, perturbado por sons que julgava ser dos Assassinos se
aproximando. Sonhou com espadas e adagas voando pela noite, um tormento
que julgava ser seu futuro, que julgava ser sua manhã. Rezou para se acalmar,
mas não encontrou consolo na fé. Quase sentiu-se arrependido de não ter ouvido
Karsten. O que o impediu foi rever seu manto dobrado junto às armas. A cruz
vermelha estava quase invisível na escuridão da caverna, mas Dedrick podia
enxergá-la com o coração. Tinha orgulho de ser um templário. O seu medo no
momento era não fazer jus ao manto que lhe deram ou à confiança que
Guillaume colocava nele.
Dedrick estava alegre pelo menos por um motivo: conseguira cumprir bem
sua primeira missão. Não era o trabalho de um cavaleiro, porém era o que
Guillaume lhe ordenara fazer. Cumprira a missão ainda melhor do que Ahmad,
que era mais experiente.

*****

Guillaume sonhou naquela mesma noite. Sempre sonhava com o passado


nos momentos difíceis. As memórias eram pássaros negros que o sobrevoavam
esperando que a alma se desgrudasse do corpo. Talvez esses pássaros fossem
demônios na expectativa de o levarem para o Inferno. Guillaume ria quando
pensava nisso para romper o sorriso quando seus olhos assumiam as imagens do
passado. Começou a ver seu sogro caído no chão da igreja mais uma vez.
O sangue começava a se espalhar pelo chão de terra batida. As lascas de
madeira se voavam enquanto a espada do cavaleiro separava os braços da cruz e
partia o corpo mal feito do Cristo. O corpo de Albert empalidecia. As costelas já
estavam quebradas com a força do impacto da espada. Guillaume riu. Afastou os
restos da cruz com o pé e olhou para o sogro. A morte já lhe estendia a mão
caridosa para poupá-lo do sofrimento ofertado pelo genro.
- Eu deveria deixá-lo sangrar até o fim. Você deveria morrer como um
qualquer, mas não vou fazer isso. Vou me certificar aqui de que você não me
atormentará de novo.
Segurou a espada com a lâmina apontada para baixo. Tinha as duas mãos na
empunhadura. Olhou para o corpo caído e despediu-se pela última vez. Por fim,
enfiou a lâmina no peito do sogro, atravessando a armadura e encontrando o
coração que já batia fraco. O sangue voltou a espirrar. Albert soltou um último
murmúrio de dor.
Pegou a espada e o elmo do sogro. Deixaria o restante da armadura e o que
quer que o cadáver possuísse para seus homens. Agora já tinha o que pretendia.
Acabara com um empecilho em sua vida. Demorara anos para conseguir que
Albert o desafiasse e por fim deixasse a existência lamentável que levava.
Saiu da igreja como um homem vitorioso. Alegrou-se quando viu o céu
coberto por nuvens negras, emulando os sentimentos obscuros que estavam em
seu coração. Chamou pelos guerreiros que o serviam fielmente. Eles haviam
capturado quatro dos cavaleiros de Albert. Os outros haviam falecido durante o
combate ou fugido. Não importava. Aqueles ali já valeriam um bom resgate e
serviriam de testemunha da morte de Albert, vendo que fora uma luta justa entre
sogro e genro.
- Espero que tenham um bom resgate ou mato os quatro – ameaçou,
sabendo que aquelas não eram bem as regras da cavalaria. Não se importava.
Guillaume não vivia sob regras de ninguém a não ser as próprias. Voltou-se para
seus homens. – Vocês podem ficar com metade. As armaduras de dois deles são
minhas, dos outros vocês podem dividir.
Eles agradeceram enquanto sir Guillaume montava. O cavaleiro voltou para
casa orgulhoso do dia em que vencera seu inimigo mais orgulhoso. Agora o
feudo pertenceria à esposa de Guillaume e, portanto, a ele. Mais um feudo de
que seria dono e também mais cavaleiros para preparar para a guerra.
Desmontou em frente às portas do pequeno castelo. A esposa já o esperava.
Tinha o coração tão negro quanto o dele. Via pelo sangue e pelo sorriso do
marido que tudo estava feito. Albert estava morto depois de tanto tempo como
inimigo deles.
- Está feito. O feudo é nosso – anunciou, puxando a esposa para mais perto.
Beijou-a voluptuosamente. – Vamos partir para lá agora, antes que a chuva
comece. Meus homens já estão preparados. Vou mandar prepararem um cavalo
para você.
- Não precisa, eu já mandei. Estava apenas esperando por você.
Os dois sorriram, satisfeitos com seu próprio plano.
- Só há um porém. E se meu irmão voltar do Oriente?
- Ele tem mais pecados que eu. Se seu pai o mandou para lá, pode ter
certeza de que nunca voltará. Deus cuidará para que fique longe de nós.
Eles montaram e tomaram o rumo do feudo de Albert. Era muito perto das
terras deles. Tão perto que chegaram ao fim daquele dia banhado a sangue e
parricídio. O dia estava se esvaindo mais rápido, sugado pela negritude das
nuvens.

*****

Guillaume despertou do sonho quando um raio de sol começou a esquentar


seu rosto. Mexeu-se um pouco e depois se levantou sobressaltado, já levando a
mão para o punhal escondido. Dos outros, apenas Henri dormia. Dedrick o
observava com olhos vermelhos de cansaço.
- Não dormiu?
Ele balançou a cabeça para dizer que não. Já havia vestido a armadura e o
manto. Estava com a espada e o escudo prontos para a luta.
Ahmad observava tudo lá fora com uma flecha preparada no arco.
- Está vendo alguma coisa?
O turcópolo afirmou que não e apontou para Henri dormindo. O sargento
fora o último no turno de vigília. Guillaume o acordou com cuidado e ordenou
que se preparasse. Vestiu a armadura com calma, dono do tempo e da situação.
Massageou um pouco o ombro quando acabou de colocar a cota.
- Agora vamos conversar com o nosso convidado. Vocês já sabiam que nós
viríamos, não é? – perguntou o templário, retirando os trapos da boca do homem.
Colocou um punhal no pescoço dele e esperou pela resposta.
- Vocês não sairão vivos daqui, cristãos.
- Não sei por que, mas eu já esperava uma frase assim tão brava. Escute
aqui. Eu o mato e o enterro enrolado dentro de uma pele de porco se você não
começar a colaborar.
- Não vai ter tempo de fazer isso.
- Não? Muito bem... Posso não ter mesmo, mas quero saber o que está
acontecendo antes de morrer, então é bom você colaborar.
Guillaume realmente mudara muito de sua vida após se tornar um
templário. Havia, no entanto, parte de sua vida que ele nunca deixara para trás.
Uma delas era a habilidade de retirar as informações certas dos prisioneiros. Ele
sempre conseguia o que queria, não importando o momento. Após alguns tratos
pouco carinhosos e por demais impiedosos, o homem foi obrigado a falar.
- Eles vão sequestrar a sobrinha do barão de Sable D´Or. Não adianta, você
não conseguirá salvá-la. Já estão preparando tudo para acabar com o feudo.
Haverá um levante. Ninguém fará nada, principalmente com Saladino se
aproximando. – Parou para cuspir um dente e recuperar o fôlego. – Matem-me,
por favor.
Guillaume colocou os trapos de volta na boca do homem. Foi quando
Ahmad fez sinal para que todos se preparassem. Os Assassinos haviam os
encontrado e começavam a montar o cerco. Guillaume chamou Dedrick.
- Você vai fugir e vai avisar Donat. Nós vamos atrasá-los. Pegue seu cavalo
e comece a cavalgar para longe daqui. Apenas siga para o sul e acabará
chegando. Leve os nossos cantis para ter água suficiente.
- Eu não posso...
- Pode sim e o fará agora. É uma ordem. Eu preciso de Henri e Ahmad para
atrasá-los. Eles lutam melhor do que você.
As palavras doeram em Dedrick, mas era verdade. Os outros eram
guerreiros muito melhores que poderiam ajudar Guillaume a manter os
Assassinos ocupados.
Dedrick levou o cavalo para fora e começou a descida pelas pedras.
Enquanto isso os outros preparavam-se para a luta contra os Assassinos.

*****

Ahmad olhou mais uma vez por sobre as pedras. Havia seis deles subindo a
encosta, outros quatro estavam mais abaixo com arcos nas mãos. Rezou para a
Virgem e começou a controlar a respiração, contando cada vez que inspirava.
Henri ria cinicamente. Começou a contar uma história de quando era
criança e fora cercado por um bando de arruaceiros em Paris. Quase morreu ao
ser espancado, mas ainda conseguiu fugir e correr até suas pernas não
funcionarem mais. Voltou uma semana depois com um bando disposto a uma
briga e fez sangrar cada um dos malditos que haviam batido nele.
Guillaume encostou a espada nas pedras e pegou a lança. Deu ordem para
Henri pegar a mesma arma enquanto Ahmad preparava-se para a primeira
flechada. Sorrindo, começou a falar com os companheiros.
- Isso não é nada. Henri, lembra-se aquela vez perto de Clermont quando
enfrentamos os soldados de Albert pela primeira vez? Cercados e tínhamos a
única missão de impedir que eles chegassem perto das tropas principais.
Henri gargalhou.
- Lembro muito bem. Foi engraçado ver a cara do senhor seu sogro quando
viu La Croix Bleue lutando por Anjou. Foi apenas uma escaramuça, mas
passamos apertado. Acho que só nós que vimos sangue naquela batalha.
- É. Eu queria sangue e nós tivemos. Por pouco não foi o nosso.
- Será que hoje é o nosso?
- Não sei, mas bem que gostaria que Dante estivesse aqui para fazer uma
citação bonita. Tudo o que sei é que quem vive pela espada morre pela espada.
- Vamos morrer pela espada então?
- Espero que sim – disse Guillaume.
A flecha de Ahmad estava pronta na corda retesada do arco. Ele levantou-se
depressa e atirou no primeiro inimigo que viu. Foi um disparo atrapalhado do
qual ele não pode ver o resultado. Apenas ouviu um xingamento e viu uma
flecha inimiga quebrar ao bater no alto da caverna. Levantou-se um pouco e viu
que tinha acertado a perna de um dos Assassinos. O homem tentava subir
mancando, mas o ferimento o paralisaria em breve. Os outros cinco continuaram
subindo, agora com os escudos cobrindo ainda mais o corpo. Eram homens
barbados com rostos que expunham a inclemência que pretendiam demonstrar
contra os templários.
A segunda flecha de Ahmad bateu contra um escudo e ficou presa na
madeira reforçada. Mais duas setas inimigas se chocaram na caverna. O
turcópolo contou que eles já estariam na entrada em apenas dez passos. Colocou
o arco no chão e pegou uma lança. Era o que tinham para batalhar agora.
- Vá para a retaguarda, Ahmad. Eu e Henri cuidamos de quem vier para cá
– ordenou Guillaume.
O templário ficou calado de olhos fechados. Henri supôs que ele estivesse
rezando e divertiu-se em ver aquele homem tão mudado. Mesmo depois de todos
esses tempos, ainda enxergava o Guillaume da juventude que ria de tudo o que
era sagrado. O templário abriu os olhos bem a tempo de ver o primeiro
Assassino saltando através das pedras. O homem foi um alvo fácil.
Provavelmente sabia que seria. Guillaume enterrou a lança na barriga dele e
aproveitou-se do impulso para jogá-lo pela caverna. O corpo se separou da lança
jorrando sangue pelas pedras.
Henri cuidou do segundo. Esse já estava mais preparado. Saltou em
conjunto com um terceiro e os dois surgiram no alto das pedras com espadas e
escudos prontos. Henri atingiu com força o escudo do Assassino e pressionou até
derrubá-lo. O terceiro saltou sobre Henri gritando um dos nomes sagrados de
Alá. O sargento aparou o golpe com o cabo da lança, mas o peso do homem e o
impacto do ataque o jogaram no chão. O Assassino era experiente e se equilibrou
com maestria. Sabendo que teria de enfrentar os outros cristãos, não concentrou
toda sua atenção em Henri. Voltou-se para o fim da caverna e foi recepcionado
por um golpe de lança. Defendeu-a por pouco. Tentou dar alguns passos para
frente para fazer o templário perder espaço para a arma de haste. Infelizmente se
esqueceu de Henri por alguns poucos instantes. Foi tempo suficiente para o
sargento erguer o joelho e acertar a virilha do muçulmano. O golpe fez o
Assassino se curvar dando espaço para Guillaume acertar-lhe a lança no
pescoço.
Henri ergueu-se enquanto o sangue esguichava pela caverna. Os Assassinos
restantes já estavam dentro com uma rapidez que os cristãos nem puderam notar.
Um deles jogou-se sobre Henri, conseguindo acertar a espada no ombro do
sargento. Um golpe com o escudo na cabeça tonteou o guerreiro cristão.
Guillaume arremessou a lança sobre os Assassinos. A arma foi habilmente
defendida e ficou cravada em um escudo. O muçulmano jogou o escudo no chão
e partiu para cima do templário. Sem proteção, foi alvo fácil para o arremesso de
punhal de Ahmad. A arma acertou-lhe o rosto, penetrando na bochecha. Foi por
muito pouco que o golpe não foi mortal. Guillaume não se preocupou com o
homem ferido. Pegou a espada e tentou se defender dos outros. Nesse momento,
Henri caiu sobre os pés do templário, empurrado por um Assassino. O templário
acabou se embaraçando durante o ataque. Interompeu o golpe para se equilibrar,
o que deu tempo para um Assassino desarmá-lo com facilidade.
A queda da espada de Guillaume foi o sinal de que a luta terminara. O
templário ainda tentou reagir, mas nada pôde fazer quando as lâminas inimigas
encostaram-se a seu pescoço. Ahmad se entregou quando viu os dois
companheiros presos e soube que ali estava decretada sua morte. Os três foram
retirados da caverna junto com o prisioneiro. Bassam os esperava sem sorrir ou
demonstrar qualquer expressão que indicasse vitória. Não escarneceu nos
inimigos por um instante que fosse. Para dizer a verdade, nem lhes dirigiu.
Apenas virou o cavalo e esperou que seus homens cumprissem o óbvio,
amarrassem os prisioneiros, pegassem os corpos dos mortos e tomassem o rumo
de Faraj. Lá eles cuidariam de tudo.
*****

Dedrick não podia dizer que era um homem de muita fé. Era mais fácil
concordar que seguia a religião apenas porque devia, porque era praticamente
uma norma, porque fora batizado e nascera para ser cristão. Não tinha amor em
especial por nenhum santo nem se sentia extasiado com os rituais religiosos.
Para ele, tudo não passava de tradições, normas a serem seguidas. Talvez fosse
por isso que não se sentisse nem um pouco amparado quando o cavalo
finalmente morreu no meio do deserto e ele se viu perdido na imensidão de
areia, sozinho e com apenas os cantis para satisfazer a sede debaixo do sol
ofuscante.
Se um dia fosse confessar o que sentiu, teria vergonha de falar que teve
vontade de chorar. Rezou para tentar se acalmar. Sem sucesso, apenas deixou as
lamúrias passarem pela cabeça enquanto o sol cozinhava seus pensamentos.
Olhou para trás para ver o corpo caído do cavalo e lamentou não ter uma
montaria.
Chutou uma pedra e praguejou como raramente fazia. Olhou para os lados
lembrando-se de como Karsten o xingava nesses momentos. O primo estaria
preocupado com ele a essa hora. Será que Karsten se preocupava tanto com ele
porque já o reconhecia como um fracassado? Isso o fez odiar o primo. Que
avisasse logo que achava que ele não servia para nada. Dissesse que não o queria
entre os templários porque não passaria de um fardo para os cavaleiros. Nem
deveria ter recebido o título. Não fosse pelas terras e pelo poder do pai, Dedrick
não seria digno de uma armadura e uma espada. Seria apenas um cortesão
jogado em meio à corte ou cuidando do ócio dentro de um castelo.
Nem sabia para onde estava indo. Só sabia que deveria continuar
caminhando para o sul. Sul. Sul. A palavra só não vinha mais a sua cabeça do
que sol e fracasso. Após horas atacado pelo calor, Dedrick só se lembrava de três
coisas: o sol ainda demoraria a se pôr, era um fracasso e deveria ir para o sul.
Com o sol a pino, olhou para os lados em busca de abrigo, mas não havia uma
sombra que fosse a não ser a sua. E essa quase desaparecia debaixo dele.
Pegou um dos cantis e bebeu fartamente, dando a si mesmo um momento
de prazer naquele inferno de vida. Começou a se perguntar por que os fracassos
apenas aconteciam com ele. Vivera anos sob a sombra de Karsten, aprendendo a
lutar com o primo e vendo-o se deitar com as melhores mulheres, vencer os
oponentes mais poderosos, superar os conflitos mais difíceis. Era um tempo em
que Dedrick não sabia o que queria além de se tornar cavaleiro. Indagava-se o
que seria da sua vida depois disso. Lutar com outros senhores feudais em busca
de resgates ou de terras? Sim, poderia ser. As batalhas da época tinham mais o
intento de capturar outros nobres poderosos e retirar dinheiro deles do que matar.
Havia quem julgasse, entretanto, que Dedrick seria apenas um desses capturados
que se tornaria um fardo para a família.
Foi no final da tarde que teve uma visão. Julgou que fosse culpa do sol. A
mente estaria lhe pregando uma peça. Poderia ser Deus caçoando da pouca fé
dele. Ao longe, um homem estava caminhando junto com outros seres pequenos.
Caminhava sobre a água. Dedrick piscou várias vezes para tentar focalizar a
imagem. Era sim. O homem caminhava sobre a água com outras criaturas
pequenas. Pensou que poderia ser a imagem de Deus, talvez Jesus aparecendo
para levá-lo.
A aproximação fez as formas se revelarem. Não havia água, mas apenas um
pastor caminhando calmamente com suas cabras. Dedrick lhe fez sinal e
continuou andando desesperado. Gritou alguma coisa, mas a língua estava
travada na boca. O cansaço impedia que pudesse raciocinar no que estava
falando. Tentou correr, mas caiu. A areia grudou no rosto suado. Os olhos se
fecharam devagar com as forças se esvaindo. Xingou a si mesmo. Apenas três
dias no deserto, tinha água e um pouco de comida e ainda sim estava fraco
daquele jeito. Desmaiou torturando-se por se considerar incompetente.

*****

Guillaume estava preso por cordas assim como os companheiros. Ao


contrário dos outros, fora deixado sem água ou comida naqueles três dias.
Ninguém conversou com ele. Até colocaram uma venda para que não visse nada.
Algumas vezes ouvia um muçulmano orando. Houve um momento em que Henri
tentou iniciar uma conversa, mas um gemido sufocado significava que fora
convencido fisicamente a ficar calado.
O templário soube que a noite chegara quando sentiu a temperatura caindo.
Pessoas entraram no recinto onde estava. Pode ouvir o metal balançando, fosse
espada ou armadura. Finalmente, retiraram a venda. Mesmo a luz fraca das
tochas feriu os olhos desacostumados. Demorou a focalizar a imagem de Bassam
parado logo à frente. O Assassino acariciava a cicatriz e o observava.
- Alá o Paciente é sábio em suas ações e retribui seus filhos. Primeiro
aquele Jean de Sable D´Or, agora você. Eu sabia que você não me escaparia por
muito tempo, Guillaume. Esperei demais por isso. Minha cicatriz ardia
lembrando-me de minha vingança.
Guillaume foi detido por dois Assassinos quando tentou se levantar. Um
punhal foi encostado na pele quente do pescoço. Bassam fez um movimento para
dizer que aquilo era desnecessário.
- A hora de acertar as contas sempre vem. Deus a concede a todos, Bassam
– disse Guillaume.
- Sim, mas não pense que vai morrer assim. Não pretendo executá-lo como
imagina que vai acontecer. Estou até pensando em entregá-lo a Saladino. Você
sabe muito bem o quanto ele odeia os templários.
- Entregue-me. Ao menos morrerei nas mãos de um guerreiro honrado.
Bassam segurou-se para não esbofetear o templário.
- Não encontrará honra na sua morte, templário. Vou enforcá-lo aqui
mesmo. Já soube de reis cristãos enforcando templários e assim será feito aqui.
- Pois que enforque, Bassam. E eu que achava que quem lutava pela espada,
morria pela espada. Promessas...
Guillaume pretendia soltar outros desaforos, impropérios de um homem que
acabara derrotado. As palavras não saíram porque ficaram emperradas na secura
da língua.
- Sempre pensei que o Corão ditasse regras sobre como tratar os
prisioneiros de guerra – finalmente conseguiu falar, após tentar umedecer a boca
com a própria saliva.
- Agora quer usar minha religião contra mim. Quer mesmo? Tenho certeza
de que Alá me perdoará por esse erro. E, também, você não é um prisioneiro de
guerra, mas sim um espião. Você não conta, Guillaume. – Parou um pouco para
pensar. Não parecia satisfeito com os próprios planos de vingança. – Dêem água
pra ele e um pedaço de pão. Você não morrerá hoje, Guillaume. Vou levá-lo até o
Velho da Montanha. Ele gostará de ter um templário como prisioneiro.

*****

A falta de fé de Dedrick foi provada mais uma vez quando ele finalmente
acordou. Depois do que passara, um homem fiel pensaria que estava morto e
alcançara o céu. Ele não. Apenas foi tomado por uma confusão comum de quem
acorda, mas sem ter ideias ou devaneios. Tudo o que viu foi a escuridão se
abrindo aos poucos para a luz que vinha de fora. A primeira visão que teve foi a
de um homem de túnica negra de pé a seu lado. Fechou os olhos mais uma vez
enquanto a cabeça parava de rodar e tentou imaginar que pessoa era aquela. Não
conseguiu reaver nenhuma memória.
- Eu o conheço. Abra os olhos, templário.
Ele reconhecia a voz. Era pouco familiar e se escondia em uma lembrança
não muito longínqua, mas apagada no mar revolto das memórias recentes.
- Abra os olhos.
Ele os abriu e a luz o machucou um pouco. Apoiou-se nos cotovelos e
começou a se levantar. Notou um copo estendido em sua direção. Aceitou
prontamente o que lhe era oferecido e bebeu tudo sem antes perguntar o que era.
A água desceu gostosa, melhor ainda porque estava sob a sombra. Percebeu que
alguém o levara para dentro de um casebre e estava estendido sobre uma esteira.
Não havia nada de impressionante no lugar, além de um pequeno banco de pedra
onde estava apoiado um jarro e um pouco de queijo.
O homem que falara com ele ficou de cócoras e fitou-o nos olhos.
- Eu o conheço, templário – repetiu.
Dedrick finalmente reconheceu o cavaleiro hospitalário. Era Édouard de Le
Mur.
- O que está fazendo aqui?
- Onde está meu cavalo?
- Morto com certeza. Você foi encontrado a pé.
O templário balançou a cabeça e fez um esforço para se levantar. A
fraqueza ainda dominava o corpo. Um vazio atormentava o estômago.
- Estou com fome.
- Vamos, não seja mal educado e diga por que está aqui – pediu Édouard.
Dava para ver em seu rosto que a impaciência começava a tomar conta do
hospitalário. A última vez que vira aquele fedelho fora junto com o cavaleiro
germânico e agora o encontrava como um templário jogado no deserto.
Chateado, pegou o queijo e estendeu para Dedrick.
O templário comeu vagarosamente, o que fez Édouard retorcer-se de raiva.
O jovem não parecia estar ciente de que tudo no mundo agora era pressa de
adquirir informações para a guerra que estava por vir.
- Preciso ajudar meus companheiros – disse Dedrick.
Édouard quase gritou de raiva. Não era do seu hábito ficar furioso com
facilidade. Pediu autocontrole a si mesmo e persignou-se pedindo perdão por
permitir que a ira do Diabo encontrasse caminho em sua alma.
- O que aconteceu com seus companheiros?
- Foram pegos pelos Assassinos.
- Como? – Édouard já começava a julgar que não suportaria aquele
templário por muito tempo. Tinha raiva porque Guillaume sempre falava demais,
mas agora estava com mais raiva porque esse Dedrick falava de menos.
- Estávamos espionando.
- E?
- Precisamos resgatá-los.
Édouard bateu com as mãos nas coxas e se levantou.
- Escute. Fale como um homem logo ou vou embora, garoto.
Dedrick baixou a cabeça. Mais um que o considerava um fracassado. Será
que era menos que um homem por causa dessas falhas consecutivas? Não, tinha
que ser mais. Fechou os olhos e reuniu forças para se levantar. Não podia deixar
um hospitalário humilhá-lo. O que seria dos templários se isso se tornasse
rotina?
Cambaleou, porém conseguiu se colocar de pé. Olhou para o rosto sóbrio de
Édouard.
- Estávamos espionando e descobrirmos que os Assassinos planejam um
sequestro e um levante dos muçulmanos em Sable D´Or. Guillaume e os outros
foram pegos.
Édouard cruzou os braços e analisou a situação.
- Seus amigos estão mortos.
- Não, não podem estar – desesperou-se Dedrick.
- Mas estão.
- Você precisa ir comigo até eles.
- Não posso. Em qual Templo você está? – A voz calculada do hospitalário
fez o templário se acalmar.
- La Fève.
- Não tenho como levá-lo até lá. Seguirá comigo para Sable D´Or.
Aqueles não eram os planos de Édouard. Viajara para conversar com
Raymond de Trípoli em nome da ordem e tentar convencê-lo de que o reino
precisava ficar unido. Não fora bem sucedido na tarefa. Quando estava voltando
para Jerusalém, fora chamado na estrada por um judeu que avisava que havia um
cavaleiro doente na aldeia. Encontrara aquele templário e imediatamente se
preocupara por vê-lo sozinho no deserto. Agora sabia de informações
importantes. Um levante em Sable D´Or acarretaria na perda de um feudo
importante que era a porta de entrada para as terras de Tiberíades.
- Se você tem cavaleiros aqui, siga comigo até Faraj e me ajude a libertar
Guillaume.
- Ele já deve estar morto, sir Dedrick. Não se iluda. É bom que tenha forças
para partir.
- Ao menos me deixe com um cavalo para eu pedir ajuda em La Fève –
pediu Dedrick.
Édouard diria que não. Mais tarde, não saberia explicar o que o fez
concordar em mandar um de seus homens junto com Dedrick. Enquanto via o
templário se afastar no deserto, supôs que talvez fosse a energia súbita que o
jovem ganhara como se quisesse se compensar por estar vivo e seguro enquanto
os companheiros estavam presos, possivelmente mortos.
- Vocês, templários, já procuraram problemas demais com os Assassinos.
Tenho certeza de que eles ainda se lembram do conflito pelos tributos de
Tortosa.
Dedrick não entendeu a que o hospitalário se referia. Nem deu importância,
pois estava feliz demais com a possibilidade de ainda salvar Guillaume.

*****

Dante observou Dedrick comer esfomeado e não disse nada até que o
recém-chegado terminasse. Acabara de mandar o hospitalário embora. Observara
o cavaleiro do Hospital partir com o pensamento de que perdera um grande
amigo na captura de Guillaume. Duvidava que ele estivesse vivo. Talvez
precisasse comunicar o fato a Gerard de Ridefort para que outro cavaleiro fosse
escolhido como mestre do Templo de La Fève.
- Precisamos salvar Guillaume e os outros – disse Dedrick, limpando a boca
com a mão. Ficara deliciado com o ensopado. Depois dos dias perdido no
deserto, era um alento estar de novo entre os templários.
- Ele já deve estar morto, Dedrick – afirmou Dante, com o mesmo rosto
sério de sempre.
- Não está. Eu tenho certeza que não. E, se estiver, ao menos pegaremos os
Assassinos. Tenho certeza de que vingaremos Guillaume.
Dante viu a esperança brilhante nos olhos do companheiro. Sabia que
estava contra as leis do Templo pagar resgate por um dos seus cavaleiros. Não
havia, entretanto, nenhuma regra que ditasse algo contra a vingança do cavaleiro
tombado ou seu resgate à força.
- Os hospitalários já foram para Sable D´Or?
- Sim.
Dante temeu que o Hospital pudesse ser um impasse quando as tropas
templárias tentassem tomar o feudo de Donat. Gerard de Ridefort não gostaria de
saber disso. Não sendo uma pessoa que se estendia por assuntos que não seja de
sua alçada ou que não pudesse resolver logo, Dante deixou o problema de lado
para pensar na ideia mais imediata de resgatar Guillaume.
- Vamos levar seis cavaleiros, oito sargentos e quatro turcópolos. É o
suficiente para um combate justo. Espero que já esteja pronto para ir e se lembre
do caminho até essa tal Faraj.
Dedrick respondeu que sim sem estar certo de que dizia a verdade. Antes
que Dante desse as costas, fez uma pergunta.
- O que foi o conflito de Tortosa com os Assassinos? O que é isso?
Dante poderia ter se envergonhado, mas aprendera com Guillaume a não
demonstrar nenhuma vergonha pelo que os outros haviam feito ou mesmo pelas
ordens que cumpria. Explicou que o conflito se devia a um problema de
negociação com os Assassinos. Em 1169, o Velho da Montanha, líder entre os
Assassinos, se estabelecera como governador da província de Nosairi. Ele
propusera uma aliança com o rei Amalrico de Jerusalém e só exigiu em troca o
cancelamento do tributo que os templários de Tortosa cobravam de algumas vilas
de Assassinos. Os cavaleiros do Templo não gostaram nada do pacto. Um deles,
Gualtério de Mesnil, ficou tão nervoso que atacou os emissários dos Assassinos
e matou a todos. Foi dito que ele agira sob a conivência do grão-mestre Odo de
Saint-Armand.
O rei Amalrico irritou-se com a atitude mesquinha do Templo e exigiu
retratação. O grão-mestre recusou-se a entregar Gualtério. Afirmava que só o
papa poderia julgar um templário. Amalrico não se importou com isso. Juntou
um grupo de cavaleiros e forçou a entrada em um capítulo da ordem. Prendeu
Gualtério e o jogou em uma cela escura em Tiro. O rei pediu desculpas aos
Assassinos e cogitou pedir ao papa a dissolução do Templo.
Dedrick baixou a cabeça decepcionado. Dante colocou a mão sobre o
ombro dele e falou para o companheiro não se entristecer. Ocorriam erros devido
à ambição de alguns. O que eles precisavam fazer era evitar que os pecados
fossem cometidos de novo.
Partiram com uma tropa de peso para o resgate de Guillaume. Ficaram
perdidos na metade do caminho e precisaram da ajuda de alguns pastores para
encontrarem uma estrada que levasse até Faraj. Dedrick pediu desculpas pelo
erro e Dante não respondeu nada. Na noite em que chegaram à vila de Faraj,
com certeza já eram esperados. Os templários ficaram montados e chamaram
pelos Assassinos. Não pretendiam atacar de repente, pois seriam pegos antes que
pudessem chegar a Guillaume. Simplesmente exigiram a entrega do prisioneiro.
Bassam apareceu em frente a eles empurrando o templário, o sargento e o
turcópolo. Guillaume estava fraco e mal andava. Caminhava sôfrego, custando a
manter a postura nobre que era tão natural de sua alma.
- Onde estão as armas e os cavalos deles? – exigiu Dante.
Bassam não disse nada. Empurrou Guillaume com força, derrubando-o na
areia. O templário não teve forças para se levantar. O máximo que conseguiu foi
mexer-se e se colocar se barriga para cima, respirando com dificuldade.
- Ele morreria se nenhum de vocês viesse para salvá-lo ou vingá-lo – falou
Bassam. – Saiba, Guillaume, que você está em minhas mãos. Não vou matá-lo
como um prisioneiro, mas estripá-lo em sua cama ou no campo de batalha.
Agora vá e durma todas as noites imaginando que eu estarei à espreita.
Dedrick temeu por Guillaume. Aquela era uma ameaça que não permitiria
nenhum homem dormir tranquilo. Seriam noites com gosto salgado e olhos
cansados de vigília. Era um destino mordaz.
Um dos sargentos desceu do cavalo e ajudou Guillaume a se levantar. Deu
água para o templário e depois ofereceu o cantil para Henri e Ahmad. Bassam
virou-se e foi para uma das pequenas casas de Faraj, deixando os templários
cuidarem dos homens. Pouco depois um Assassino apareceu com três cavalos.
- Bassam deseja uma boa viagem de volta. Que os animais ajudem o
cavaleiro a se lembrar a quem ele deve a vida.
Montaram acampamento a cerca de um quilômetro de Faraj. Deram comida
aos ex-prisioneiros para que começassem a recuperar suas forças para a viagem.
Guillaume olhava para as estrelas com o cenho franzido e não falava com
ninguém. De vez em quando baixava os olhos para a fogueira e os outros
imaginavam que ele fosse declarar algo, talvez dar ordem para que voltassem e
eliminassem Bassam. No entanto, não era isso. A disputa entre o templário e o
Assassino era mais do que um simples caso de vencer um combate. Havia honra
e juramentos envolvidos.
Guillaume já vivera uma vida em que a honra era apenas uma palavra a ser
usada contra os inimigos. Imaginava-se em um tempo em que o código de
cavalaria se resumia apenas ao dever de se capturar um inimigo e exigir resgate.
Agora não. Agora ele era um templário que jurara lutar em nome de Deus.
Derramava sangue pela religião e não mais do que isso. Qualquer hora em que
brandia a espada era para demonstrar o poder do Templo e de Jerusalém. Essa
era sua honra e não estaria cumprindo nenhum pouco dela se simplesmente
declarasse uma luta contra Bassam e permitisse que seus homens o matassem. O
sangue do Assassino deveria ser apenas dele, uma responsabilidade que vinha
das ações e do coração, de uma luta empenhada e um juramento solene.
Capítulo Seis
Christophe chamara três de seus cavaleiros mais fiéis e iniciara um ronda
em Sable D´Or. Passou pelos campos arados e pelas pequenas aldeias que se
formavam nas grandes terras do feudo. Parecia que não fazia nada além de
passear, mas estava à procura de uma pessoa. Encontrou o homem o esperando
debaixo de uma oliveira, no mesmo lugar em que ocorrera o combate entre
Karsten e os Assassinos.
- Pensei que seu pai viesse. Eu mandei a mensagem para ele – disse o
homem.
- Eu sei, Fihr, eu sei. Foi o que eu disse a ele. O líder da comunidade de
muçulmanos exige ver o senhor o quanto antes, meu pai. Ele não fez nada além
de resmungar que não devia satisfações a você. No entanto, eu acho que deve
sim, por isso vim. Vim para manter a paz entre os povos que vivem no feudo.
Podem ser cristãos, católicos ou armênios, judeus ou muçulmanos, todos somos
um povo só nessas terras e precisamos conviver. Lógico que meu pai prefere os
cristãos, mas eu não sou assim.
- Pois é bom saber disso. Não suportaremos mais essas ofensas que seu pai
faz ao Corão.
- Estou de acordo com isso, mas duvido que ele pare. Conversarei com ele.
Farei o que puder para controlar isso, mas meu pai ainda é o senhor do feudo. Eu
sou simplesmente seu herdeiro. Temo que não possa fazer muito.
- Então que assim seja.
Fihr cruzou os braços carrancudo. Suas últimas palavras correram o ar
como abelhas atiçadas.
Christophe estava satisfeito. Seus planos progrediam cada vez mais
rapidamente. Voltou para o castelo para conversar com o pai e com os outros e
encontrou os cavaleiros preparando uma disputa de justa. Apesar de ser um
cavaleiro e viver entre muitos guerreiros daquela natureza, Christophe nunca
vira uma disputa de justa, ao menos não como era comum que fosse feito no
Europa. Era um jogo violento, muitas vezes ameaçado pela Igreja. O papa
censurava o esporte e as pessoas diziam que demônios passeavam pelos locais
onde as disputas eram realizadas.
O pátio largo estava cheio de curiosos observando as bandeiras que agora
eram hasteadas para indicar os cavaleiros que se preparavam para o embate. O
prêmio fora decidido mais cedo como um total de quinhentos besantes para o
vencedor. Donat se disporia do dinheiro com felicidade, pois quase todos os
cavaleiros que participariam faziam parte do seu séquito. O dinheiro acabaria
sendo devolvido para ele de alguma forma.
Christophe andou até o palanque improvisado onde estava a cadeira do pai.
Donat já se sentara para esperar os cavaleiros se aproximarem. Estava protegido
do sol por um toldo de pano amarelado. Acabara de pedir aos criados que
trouxessem uma cadeira para o filho e também para a filha e a sobrinha. Queria
todos a seu lado no primeiro torneio de justa que faria.
- Pai, por que não me avisou desse torneio? Acho que não é o melhor
momento para festas.
- Cale-se e sente-se, Christophe. Esse será um torneio e tanto. Também será
bom para eu decidir algumas coisas. Não quer participar dos embates?
- Pai, estamos quase em guerra e ainda tem a ideia de um torneio?
Laure interferiu nesse instante. Ela acabara de chegar. Aparecera sozinha,
mas Christophe notou que Melisende estava mais atrás, parada e olhando para os
cavaleiros juntamente com o padre Gareth.
- A ideia foi de Karsten, meu irmão. Eu mesmo gostei disso para quebrar o
marasmo que nos aprisionava.
Christophe tomou uma antipatia súbita pelo germânico. Não era uma boa
ideia fazer aquele torneio e ter a possibilidade de perder um cavaleiro ou outro.
O pior era que com todos aqueles cavaleiros prontos para a batalha seria mais
difícil que um levante fosse feito pelos muçulmanos. Isso atrasaria ou até
impediria os acontecimentos que planejara com tanto cuidado. Karsten
começava a se mostrar influente sobre Donat. Se ele viesse a se casar com Laure,
como ela pretendia, Sable D´Or poderia ser entregue a ele. Precisava cuidar para
que isso não acontecesse. Nenhum daqueles homens entendia a gravidade de se
dividir o reino naquele momento.
A aparição de Karsten no pátio chamou a atenção de Christophe e de Laure.
Os dois olharam juntos para o cavaleiro, mas com sentimentos diferentes. Ela
estava admirada e ele irritado.
- Gareth falou agora comigo e com Melisende que Karsten era um campeão
de justas nos torneios germânicos – comentou Melisende.
- Não quer mesmo competir com ele, Christophe? Ah, talvez seja melhor
não. Não quero essa derrota para nossa família. Apenas sente-se aqui e observe.
Esse homem já salvou minha filha dos Assassinos, agora vai mostrar como se
usa uma lança – comentou Donat, chamando por um servo para obter um pouco
de vinho. A garganta estava seca por causa da agitação.
- Vou verificar se teremos comida para todos esses cavaleiros, meu pai.
Volto já – disse Christophe. Acabara de contar que havia mais oito cavaleiros
vindos de fora do feudo apenas para participar dos jogos. Vira a bandeira de
Tiberíades em um deles.
Christophe desceu do palanque e passou por Melisende. Ela ainda
conversava com o padre. Os dois cochichavam algo que o cavaleiro não pode
entender, mas com certeza era algo relacionado com Karsten. Ele olhou para o
pai e Laure e os viu distraídos com os criados que ofereciam vinho e frutas.
Nisso, fez sinal para que Karsten se aproximasse.
O germânico conversava com Heiner. Os dois estavam montados e
avaliavam os oponentes imaginando que nenhum deles deveria ter muita
experiência em um torneio de justas. Talvez a disputa final acabasse entre
amigos. Riram juntos da presunção. Karsten parou de rir surpreso quando
Christophe o chamou. Nem podia imaginar o que o filho de Sable D´Or queria
com ele. Mal trocavam palavras naqueles meses que o germânico se colocara a
serviço de Donat.
A cena pareceria conspiratória aos olhos de Laure. Christophe tinha certeza
disso. Por isso ele parou junto de Melisende e Gareth e esperou que Karsten
chegasse. Quando o cavaleiro já estava lá, deu um conselho que fez a
curiosidade acender como uma vela dentro da mente deles.
- Sei que vocês dois estão para casar, portanto é bom que falem logo para o
meu pai ou ele desconfiará que o padre aqui os casará escondidos. Isso não será
nada bom. Acho que meu pai já está pensando nisso. Bom, é apenas um alerta.
Cuidado.
Christophe saiu para continuar sua conspiração. Só precisava enviar um
recado para Fihr. Haveria um momento de comemoração naquela festa e os
cavaleiros estariam bêbados demais para se protegerem de um levante. Talvez
até seus resgates valessem muito.

*****

- Ele sabe de nós – disse Karsten, vendo Christophe se afastar.


- Óbvio, você não pára de me assediar – retrucou Melisende. A voz dela
tinha um tom de raiva, mas o olhar estava coberto de insinuação para Karsten,
brincando com o coração do cavaleiro.
Gareth ficou entre o casal sem saber o que dizer. Tinha dúvidas se aquele
relacionamento daria certo. Se fosse para dar certo, com certeza Karsten já teria
pedido a mão dela em casamento. Temia que o amigo não chegasse a tanto,
apesar de confiar na integridade dele.
- Minha vitória será dedicada a você, minha dama – declarou o cavaleiro.
Parecia tão galante e imponente em cima do cavalo que Melisende não duvidou
por um segundo que ele fosse ganhar.
Gareth não tinha um pensamento tão positivo quanto ela. Nunca gostara das
justas e nunca aprovara o fato de os amigos sempre quererem tanto participar
delas. Sempre censurou Karsten por isso. Temia pela vida deles naquele esporte
perigoso.
Melisende deixou a companhia dos dois quando foi chamada pelo tio.
Donat perdera o sorriso que estivera fixo em seu rosto desde o início da manhã.
Tinha um tom de severidade quando gritou pela sobrinha. Gareth e Karsten se
olharam preocupados.
- Será que ele também sabe de alguma coisa? – perguntou o cavaleiro.
O padre deu de ombros.
- Se ele souber, é bom que você tome uma atitude logo. Não é bom fazer o
que você tem feito, Karsten. Garanto que seu pai não gostaria disso.
- Também duvido que ele gostasse que eu me casasse com uma mestiça. Ele
não gosta nem dos franceses, como gostaria que eu formasse laços com uma
mulher que é metade francesa, metade judia.
- Então não a engane e pare com o que tem feito – falou Gareth. Fitava
seriamente o amigo com um semblante duro como as rochas do deserto.
- O que está pensando de mim, Gareth? Acha que estou a enganando? Sabe
muito bem que nem sempre levo em consideração as palavras de meu pai. E não
será agora que a encontrei que vou seguir o que ele manda.
- Não sei como aconselhá-lo, Karsten. Não é bom ouvir que você não
considera as palavras de seu pai, mas também não é bom que você deixe essa
mulher com vãs esperanças.
Karsten olhou para Melisende. Ela conversava com o tio e com a prima.
Não parecia bem humorada. Alguma coisa estava acontecendo e era relacionada
com ele.
- O momento das decisões está chegando. Acho bom que você ganhe esse
torneio para termos algum dinheiro ou seremos expulsos daqui. Vamos precisar
viajar para casa dependendo de mendicância – falou Gareth, olhando para
Melisende. A mulher olhou de volta para os dois e depois se sentou ao lado do
tio com feições desanimadas, como se tempo houvesse se fechado para acabar
com a festa daquele dia claro.
- Não se preocupe. Sabe muito bem que sou bom com a lança.
- Sim, já vi o estrago que pode fazer com uma delas. Cuidado para não
causar tantos estragos aqui também.
Gareth abençoou o amigo e foi tomar uma posição para ver o torneio.
Agora só bastaria rezar para que nada de pior acontecesse, fosse nas justas ou na
missão deles na Terra Santa.
*****

Laure viu quando o irmão parou para conversar com Karsten e Melisende.
A presença do padre atiçou ainda mais a curiosidade e o ciúme dela. Temia que
eles estivessem planejando um casamento. Foi um temor que gelou seu coração,
transformando-o em uma pedra que sugava o calor do corpo. Os sentimentos se
esfriaram ainda mais quando Donat percebeu o fato e fez um comentário.
- O que as prima está conversando com eles? Marcando um casamento por
acaso? Ela tem ficado muito próxima de Karsten. Bom, seja como for, já está na
idade de se casar.
Laure olhou para o pai com pupilas dilatadas como se precisasse captar
mais luz para entender se havia algum tom de zombaria na expressão do velho.
- Ela está se oferecendo para ele, pai. Será que o senhor não percebe. Está
se oferecendo para se casar. E isso depois de eu ter convidado esse cavaleiro
para vir para cá. Depois de ele ter me falado palavras tão bonitas.
- Está dizendo que ele cortejou você? – perguntou Donat, subitamente
irritado.
- Não, pai. Ele foi bastante educado. Aproximou-se de mim como um
homem deve fazer, mas sei que consultaria o senhor antes. Mas como posso
competir com uma mulher que se oferece tão prontamente quanto Melisende. É
normal que os homens a escolham.
Donat franziu o cenho e coçou a barba. Esfregou as mãos cada vez mais
irritado. Era di tipo de pai cujo ciúme que sentia da filha só era maior do que a
ira quando via o futuro dela ameaçado. Não admitiria nunca que ela não tivesse
um bom casamento. Karsten parecia um ótimo guerreiro, mas talvez não tivesse
tantas terras ou a riqueza que Sable D´Or esperava dos pretendentes. Pensou um
pouco. Não, não gostaria que a filha se casasse e fosse viver em terras
longínquas. Queria ela ali, na Terra Santa, com descendentes que continuassem
as batalhas contra os sarracenos. Duvidava que Christophe pudesse lutar com
eficiência. Karsten, entretanto, poderia ser uma boa opção como herdeiro. Claro,
isso se já não tivesse manchado a honra de Melisende. Então seria obrigado a se
casar com ela.
Um grito irritado chamou pela sobrinha. Ela veio depressa para saber o que
o tio queria. Subiu no pequeno palanque e cumprimentou o tio.
- Karsten está a cortejando? – perguntou o tio, diretamente.
Melisende não soube o que dizer. Havia algo por trás das palavras de
Donat. O olhar de Laure também indicava que a pergunta não acabava apenas
ali. Eram palavras salgadas que ela deveria digerir antes de responder.
- Ele tem sido muito educado comigo, mas não tem me cortejado. Estamos
nos tornando amigos.
- Pois não é bom que homem e mulher se tornem amigos. Afaste-se dele,
Melisende. Não quero sua honra manchada – exigiu Sable D´Or. No íntimo, ele
pensava no quanto já era difícil conseguir um casamento para ela sem o
problema da honra manchada. Ela tinha terras que atrairiam cavaleiros, mas
eram poucas, uma vez que a maioria agora estava nas mãos de Donat. Também
havia um feudo no Ocidente, na França, que ela poderia reclamar, apesar de
ainda desconhecer esse fato. – Sente-se.
Melisende sentou-se sob o olhar frio de Laure. Soube naquele instante que a
competição amorosa tão fria e passional ao mesmo tempo como só poderia ser
com as mulheres começara entre as duas. O pior era que ela estava despreparada
para lutar. Laure tinha armas mais eficientes e tinha o pai plenamente a seu lado.

*****

Heiner não se interessava por disputas de justa. Talvez porque fosse


péssimo ao usar a lança, mas a verdade era que achava pouco prático. Ele queria
mesmo era a guerra quando estaria cercado pelo calor excitante da batalha. Os
torneios eram pouco na visão dele e só participaria daquele porque não havia
mais nada para fazer naquele feudo. Estava até decepcionado. Viajara tanto para
guerrear e tudo o que conseguira era andar de um lado para o outro e algumas
poucas escaramuças. Agora estavam perdendo tempo com um torneio ao invés
de se aliar ao rei e partir para a batalha. Decidiu que conversaria com Karsten
sobre isso assim que acabasse a contenda.
Vários camponeses estavam em volta do pátio do castelo, aflitos para ver a
primeira disputa. A maioria era de cristãos. Curiosamente, uns poucos
muçulmanos decidiram aparecer e estavam formando um pequeno grupo
encolhido no meio da massa festiva dos seguidores de Cristo. Os rostos
empoeirados esperavam pelo primeiro combate e já observando os cavalos
batendo as batas no chão, posicionados para o primeiro desafio. Heiner
disputaria com um cavaleiro recém-chegado do feudo de Raymond de Trípoli. O
nórdico não sabia o nome do homem, mas achou interessante o brasão da espada
com asas desenhado no escudo. Interessante, mas um pouco fresco demais para
um cavaleiro. Preferia símbolos mais fortes que condissessem com seus
pensamentos de guerra. Sua mente ainda não se adaptara aos símbolos muito
cristãos.
Um servo apareceu no meio do campo e fez sinal para que a justa
começasse. Heiner atiçou o cavalo e mirou a lança. Mesmo debaixo do elmo,
poderia ouvir o trotar do cavalo batendo no chão duro do pátio. O calor debaixo
da armadura deixou de incomodá-lo quando toda a atenção voltou-se para o
alvo. Naquela rápida corrida, os olhos dirigiram-se do escudo para a lança do
inimigo, depois para o elmo e finalmente para uma falha na defesa. O ombro
estava aberto para um golpe que acabaria com o jogo em apenas uma corrida.
Heiner o derrubaria do cavalo. Só precisava acertá-lo uma vez. Poderia não ser
bom com a lança, mas quando o golpe atingia, não havia quem continuasse
montado.
Os gritos da plateia continuaram. Donat inclinou-se um pouco e espremeu
os olhos para mirar melhor o momento do encontro dos dois adversários. Então
aconteceu. Eles se chocaram e Heiner foi arremessado do cavalo. A lança
acertou-lhe o ombro, batendo na armadura e se quebrando. O impacto o
desequilibrou e o fez soltar as rédeas e a arma. Caiu rolando para parar de costas
apenas com o escudo preso no braço. Ficou de olhos fechados por alguns
segundos, tentando entender o que acontecera. Ouviu os gritos da multidão e
sentiu o corpo ser levantado. Os servos tinham dificuldade para colocar aquele
homem pesado, ainda por cima de armadura, de pé. Zonzo, Heiner não teve
tempo de amaldiçoar ninguém nem de reclamar. Karsten apareceu um pouco
depois, preocupado com o amigo.
- Tudo bem?
O nórdico olhou para a plateia e viu o povo o observando, curioso para ver
sangue. Divertiu-se com a euforia e começou a gargalhar sem se importava de
perder. Nem entendera o que havia acontecido. Que se danasse aqueles jogos.
Ele precisava de guerra.
- Ele é bom. Ele é bom. Quero ver o que vai fazer com ele, meu amigo.
Karsten olhou para o cavaleiro da espada com asas. Ele realmente era bom
como de fato foi comprovado quando derrubou os próximos dois adversários.
Descobriu que o nome dele era Jean de Trípoli, parente de Raymond de Trípoli.

*****

Fihr era um muçulmano piedoso. Era um sunita, acreditava em Maomé e


nas sunas. Tinha uma verdadeira aversão pelas crenças xiitas das doze imãs.
Brigava quando ouvia alguém falar dos descendentes de Fátima e Ali e afirmava
que não eram eles que deveriam governar a ummah. A comunidade muçulmana
não precisava ter líderes descendentes do casal. Havia homens como Saladino
que não tinham o sangue dos dois e eram ótimos chefes. O sultão merecia sua
posição com todas as honras.
O muçulmano sabia que o torneio estava acontecendo no castelo de Sable D
´Or. Christophe havia o avisado e dissera que seus homens deveriam atacar logo
à noite, quando a festa começasse. A guarda estaria distraída e os cavaleiros
bêbados demais para reagirem. Fihr gostou da ideia. Tinha muitos homens, mas
poucos suficientemente treinados para lutar. Seria uma revolta contra aquele
maldito Donat que ousara cuspir no Corão e tratava os muçulmanos como
porcos.
Os homens começaram a se reunir em uma vila a duas horas de caminhada
do castelo. Já era fim de tarde e eles seguiriam caminho naquela mesma hora
com as armas doadas por Christophe. Foi então que apareceram novos
indivíduos querendo fazer parte da revolta. Estavam a cavalo e tinham o
semblante de guerreiros treinados. Eram homens sérios que conheciam a guerra
desde o nascimento. Fihr logo desconfiou o que eram. Eram Assassinos! Os
malditos eram Assassinos e acreditavam nos ímãs. Eles acreditavam no Sétimo
Imã.
- Não precisamos de vocês – disse Fihr com uma coragem que vinha mais
da fé do que do raciocínio.
Nenhum dos guerreiros lhe deu atenção. Um deles simplesmente aproximou
o cavalo e segurou a espada, mostrando-a para o sunita.
- Não estamos pedindo sua permissão. Que Alá o Piedoso o abençoe e o
ensine a compartilhar esse momento com seus irmãos de guerra.
Fihr levantou a espada. Estava para gritar com o homem e ameaçá-lo. Antes
que pudesse dizer a primeira palavra, já estava desarmado e com a ponta fina do
metal encostada no pescoço.
- Mate-me – disse o fiel sunita.
- Não preciso. Hoje estaremos unidos. Primeiro os cristãos, depois os
hereges.

*****

- Ele de fato é bom – concordou Gareth, olhando para Jean de Trípoli do


outro lado do pátio. A tarde já terminava e restava pouca luz para aquele último
combate. Karsten estava montado a seu lado com a viseira do elmo aberta,
respirando com dificuldade no calor sufocante que fazia debaixo da armadura.
- Não tão bom quanto eu – disse Karsten. Tentou uma risada, mas não
conseguiu. O corpo doeu. Estava machucado do último combate, quando uma
lança o acertou de raspão no abdome e quase o derrubou.
- Cuidado com o orgulho – alertou o padre. Ouvira aquelas mesmas
palavras da última vez, antes que começassem os desastres em Tapferklinge.
Será que Karsten não havia aprendido nada? Gareth perguntava a mesma coisa
todas as noites e rezava pelo amigo, esperando que ele não se perdesse naquela
alma orgulhosa. Pena que as vitórias nas batalhas apenas o levavam a se afundar
cada vez mais naquele pecado.
- Não se preocupe, Gareth. Não será como antes. Dessa vez eu sei o que
estou fazendo.
Gareth esperava que sim. Tinha fé nos amigos. Sempre acreditava que
Karsten deixaria o orgulho e as paixões de lado, que Heiner abandonaria de vez
o paganismo e que Dedrick se tornaria o cavaleiro que sempre quis ser. Deu um
leve tapa no cavalo do amigo e se afastou. Era hora de a disputa começar.
Karsten lambeu os lábios e esperou pelo sinal. Avaliara Jean durante as
últimas lutas e percebera que ele sempre procurava pelo mesmo ponto. Atingia
os inimigos no ombro e os derrubava com o impacto prendendo a lança, mesmo
que quebrada, na armadura e forçando a cavalgada ainda mais. Atiçou o cavalo
tão logo percebeu o sinal. Um pouco de poeira assentou-se em seu rosto
enquanto ainda fechava a viseira. Respirou o ar quente dentro do elmo e
pressionou a montaria para ganhar mais velocidade.
Levantou a lança e começou a mira. Já sabia onde acertaria para vencer de
uma vez o combate. Preparou o escudo para receber o impacto. O corpo dolorido
protestou contra os movimentos e a força que estava preparando para receber o
golpe. Sabia que Jean não erraria, mas ele também não falharia. Mirou no peito
do adversário e continuou a cavalgada. Os pensamentos foram se encurtando
como se diminuíssem de acordo com o campo de visão limitado pelo elmo.
Antes pensava em Tapferklinge, depois com Melisende e agora só via Jean de
Trípoli. Pouco depois, segundos antes do impacto, só tinha pensamentos para o
golpe final e os louros da vitória. Levantou a lança pouco antes de se encontrar
com o adversário.
Donat se inclinou e espremeu os olhos mais uma vez. Segurou firmemente
os braços da poltrona e abriu levemente a boca. Nem respirava, esperando o
impacto final. Quando viu a lança de Karsten, levantou-se, preparou-se para um
golpe como nunca havia visto. Aquele seria certeiro.
Melisende juntou as mãos, cruzando os dedos esquerdos e direitos em sinal
de oração. Mordeu os lábios e fechou os olhos. Repetia as mesmas ações desde
que Karsten começara as corridas. Agora tinha certeza de que aquilo não daria
certo. O coração trepidava em aviso do desastre.
Laure queria ver Karsten vencer e dedicar a vitória a ela. Torcera para isso
desde o início, mas agora decidira que não se importaria que ele perdesse, desde
que fosse ela a cuidar das feridas dele. Pouco antes do impacto, ela olhou para
Melisende e jurou para si mesma que teria o germânico em seus braços até o fim
do mês. Teria aquele homem na cama para possuí-la como deveria ser, sentir o
cheiro do cavaleiro a dominando.
Um segundo antes as lanças atingiram a posição final de ataque. Jean
fechou os olhos quando viu o golpe que o acertaria. A lança do inimigo bateria
diretamente contra sua testa. Desviou um pouco a cabeça, mas não conseguiu
evitar o impacto. A madeira quebrou-se contra o elmo e fez o pescoço girar. A
última coisa que sentiu foi a força do braço para acertar o golpe e então o mundo
se apagou. Karsten alegrou-se quando atingiu o adversário, mas foi uma alegria
que durou pouco tempo. Jean conseguiu passar por suas defesas, fez a lança
escorrer magicamente pelo escudo, indo para a barriga. O local já dolorido
ferveu com o impacto. O germânico mal conseguiu se segurar. Pensou que seria
partido ao meio. Os órgãos estourariam dentro dele se parte da força não tivesse
sido absorvida pelo escudo.
Os cavalos pararam em lados opostos. Jean estava caído sobre a cela. Era
impossível dizer se vivo ou morto, mas o fato era que não havia vestígio de
consciência nele. Karsten estava parado e não teria energia para outra justa se
não fosse dado como vitorioso ali. Aquilo não poderia ser um empate. Exigiria
uma nova luta para que as partes pudessem decidir um vencedor e nenhum dos
dois estava em condições.
Gareth correu para ajudar o amigo. Os escudeiros de Jean de Trípoli faziam
o mesmo do outro lado. O padre os olhou preocupado. Aquele fora um golpe
injusto. Não podia crer que Karsten atacara daquele modo. Com certeza fora
uma vitória, pois Jean não acordaria tão cedo, se acordasse, e o germânico
continuava sobre o seu cavalo. Heiner apareceu para ajudar a retirar Karsten do
cavalo. O germânico gemeu e não conseguiu se manter de pé.
Donat levantou-se para verificar o que estava acontecendo. Melisende já
estava fazendo o mesmo para correr para Karsten, mas foi paralisada por um
olhar frio do tio. Laure não teve a mesma restrição e correu para saber como o
germânico estava. Os dois cavaleiros feridos foram levados para dentro do
castelo. Uma discussão começara entre os competidores derrotados. Argumentos
acalorados eram extravasados para determinar se o golpe fora justo ou não.

*****

Karsten podia ouvir as discussões escadaria abaixo. Estava preso na cama


com Laure e Gareth o observando. A mulher colocara um banquinho ao lado do
cavaleiro, enquanto o padre estava perto da janela olhando o pátio. Os
camponeses já haviam se retirado e agora só restavam as marcas dos castos de
cavalo na poeira. Uma mulher pegava água na fonte com o querubim.
- Está doendo muito? – Laure perguntou pela terceira vez. Karsten sorriu
para ela e segurou sua mão.
- Não, daqui a pouco já poderei me levantar – mentiu, imaginando que os
órgãos quase haviam virado poeira dentro do abdômen.
Ela sorriu de volta e ele olhou para a porta. Esperava que Melisende
entrasse em breve para conversarem. Infelizmente, ela nem se movera para saber
como ele estava. Não sabia se havia aparecido na uma hora anterior, quando
esteve desacordado. Não queria perguntar com Laure perto. Esperava que a filha
do barão saísse, mas ela insistia em saber como ele estava e em cuidar de sua
saúde.
- Vocês não vão descer para a festa? – perguntou Karsten. O barulho lá de
baixo era bastante convidativo, apesar das discussões. Podia ouvir alguns gritos
de um ou outro falando que o golpe fora justo ou não. Ele imaginava que fora.
Precisara de uma habilidade exímia para atingir Jean. Não podia crer que havia
alguém querendo lhe roubar o troféu do dia simplesmente porque fora tão bom
em derrubar um inimigo.
Laure sorriu para ele e olhou para Gareth.
- Talvez o padre queira descer – comentou a mulher, ansiosa para ficar
sozinha com o cavaleiro.
Gareth notou muito bem a intenção dela. Havia sangue de loba correndo
naquelas veias e ela atacava na menor das oportunidades. Ele não deixaria que o
amigo fosse presa fácil, pois Karsten era frágil demais ao ataque lascivo do sexo
feminino.
- Não, tenho que ficar aqui para ter certeza de que meu amigo está bem e
não seria conveniente deixar que uma dama ficasse sozinha com ele. A senhora
não gostaria de descer para saber como Jean de Trípoli está?
Laure olhou para Karsten. Apertou a mão do cavaleiro serenamente e se
levantou. Sabia que os avanços daquele dia haviam acabado quando colocara o
pai contra Melisende. Agora era hora de esperar para continuar. Fez uma mesura
e partiu para o corredor.
Gareth observou a mulher sair e coçou o queixo. Tinha o rosto sério,
daqueles semblantes de padre pronto para dar o sermão.
- Nem ao menos perguntou como está seu adversário – censurou Gareth.
Karsten virou o rosto envergonhado. O amigo sabia como fazê-lo descer as
escadarias do seu orgulho para se afundar no pequeno lago de humildade do
coração.
- Karsten, você me disse que não repetiria nada daquilo, mas se deixou
levar mais uma vez pela sede de vitória e pelo orgulho. Não sei por que peca
assim, meu amigo. Há uma parte em você que o leva às boas ações, mas também
sei que dentro de sua alma existe esse lado obscuro que parece não aprender com
os erros.
- Não preciso dos seus sermões, Gareth.
- Precisa sim – afirmou o padre, dando dois passos na direção da cama. –
Você tem flertado com Melisende sem saber o que realmente pretende. Deixou
que viéssemos até aqui desviando Heiner da promessa dele de lutar contra os
muçulmanos e agora perde seu tempo em torneios enquanto a guerra eclode
entre nós. Que aconteceu com suas promessas?
O corpo dolorido impediu o cavaleiro quando tentou se levantar para
encarar o amigo. Abaixou-se com a mão na barriga. Levantou um pouco a
camisa para ver a mancha rocha que ocupava a pele branca.
- Se quer saber, Jean está bem. Ao menos está vivo, quero dizer. Não
sabemos o que vai acontecer quando ele acordar. Ah, antes que pergunte sobre
Melisende, ela não veio. Apenas Laure esteve aqui. Pelo que notei o tio não
parece ter gostado quando a sobrinha tentou se aproximar de você. Acho que ele
sabe, Karsten. Agora é hora de tomar responsabilidade por suas ações.
Karsten relembrou do passado, aquela nuvem densa que tapava a alegria de
seu dia. Era apenas uma derrota que o levava a se envergonhar. Certos erros que
cometera quando tudo o que deveria ter feito era agir sem procurar por
aventuras. E agora parecia estar se tornando um aventureiro de novo.
- Você censura nos outros o que comete. Vive censurando o sonho de
Dedrick de se aventurar junto aos templários sendo que você mesmo se perde em
suas aventuras. Um torneio... Ah... um torneio, Karsten. Isso não foi nada mais
do que uma aposta para massagear seu ego. Agora ouça-me... Ouça-me... – O
padre se aproximou e o segurou pelo rosto. Os dedos pressionaram as bochechas.
Tinha ares de pai autoritário. Era a face de profeta do Antigo Testamento. – Eu
vim até a Terra Santa por um motivo, assim como você, Heiner e Dedrick. Se
você não resolver sua vida logo, eu voltarei para Tapferklinge sozinho ou com
Heiner, avisando a seu pai que deixamos o mesmo filho dele aqui e não o
homem renovado que havia saído do Ocidente.
A humilhação desceu pela garganta do cavaleiro como ácido corroendo as
entranhas de seu orgulho. O pior era que o padre estava certo. Na maioria das
vezes, Gareth estava certo. Não era à toa que seu pai o mandara junto. Ele sabia
que o filho poderia ter suas recaídas se não houvesse uma voz cuidando de sua
consciência. Até o momento, o padre apenas observara pacientemente esperando
que Karsten deslizasse para as frivolidades que já haviam tomado conta de sua
vida.

*****

Heiner observava os homens bêbados caindo sobre as mesas e apenas


pensava: fracos. Ele já tomara tantos copos que perdera a conta e ainda poderia
beber o restante da noite sem cair. A comida estava boa e a bebida melhor ainda.
Queria se divertir e aproveitar. Se não tinha batalha, ao menos deveria ter festa.
Um dos homens gritava ainda que o golpe de Karsten não fora justo. Desde o
final da tarde, ele não parava de falar a mesma coisa. Era um dos partidários de
Jean que não queria acreditar na derrota.
O nórdico se levantou e olhou para o salão. Havia tochas presas nas paredes
e pelo menos quatro grandes mesas cheias de copos e homens. A algazarra se
espalhava pelo restante do castelo e contagiava até mesmo os servos. Um músico
cantava e tocava no centro do salão, mas ninguém lhe dava ouvidos. Heiner
seguiu até o partidário de Jean e o empurrou.
- Pare de falar nisso e vá beber – ordenou ele.
O homem era muito menor do que Heiner, mas a bebida torna homens
corajosos, fortes e sedutores, a despeito do que são quando sóbrios. Empurrou o
cavaleiro do norte de volta, mas Heiner, sem o efeito da bebida e muito mais
forte, mal se mexeu. Outros homens começaram a se reunir em volta. Era mais
uma discussão sobre o resultado da justa e essa era para dar briga. E qual
daqueles cavaleiros não gostava de briga?
Donat levantou-se cambaleante. Apoiou-se no filho. Christophe o olhou
com desprezo e voltou-se para a porta, esperando que alguém entrasse por ela de
repente. Já anoitecera e os homens de Fihr ainda não haviam chegado.
Christophe acompanhou o pai com os olhos, vendo o velho andar até Heiner e
tentar separar a briga. Então ouviu os gritos do lado de fora. Ninguém mais no
salão percebeu. Estavam ocupados demais com a contenda que tardara tanto para
começar. Christophe se levantou e preparou-se para sair do salão, mas antes que
pudesse se movimentar, vários homens entraram armados. O barulho de lâminas
se chocando começou a ser percebido pelos cavaleiros. Aos poucos eles foram
percebendo que aquilo não fazia parte da festa. Os soldados de Sable D´Or
estavam lutando para tentar conter os homens que entravam à força no castelo. E
eles já haviam passado pelos portões.
Christophe já havia avisado para seus cavaleiros não se misturarem com os
bêbados. Eles deveriam estar preparados para lutar caso as coisas fugissem do
controle. Por isso a maioria deles ficou de fora da festa, assumindo postos de
vigília ou de tocaia, prontos para usarem as armas quando fosse necessário.
- O que está acontecendo aqui? – perguntou Donat, ao ver as portas abertas
com cinco de seus soldados entrando de costas tentando conter os muçulmanos
revoltados.
Os cavaleiros tentaram procurar por suas armas mas ninguém as levara para
o salão. Sable D´Or as proibira com medo de uma briga mais séria que pudesse
ferir alguém. Agora estavam totalmente despreparados e cercados. Heiner correu
até os soldados que lutavam e empurrou um deles. Retirou a espada da mão do
homem e jogou-se sobre os muçulmanos. Era um animal em frenesi que estivera
até o momento preso e atiçado. A primeira espadada abriu o peito de um
muçulmano, a segunda apenas cortou as roupas de outro, mas foi o suficiente
para afastá-los da porta. Os soldados pressionaram e eles conseguiram levar os
inimigos para fora. Então as portas foram fechadas.
- Eles passarão por outros lugares. Pelas janelas! – gritou Donat. Os
cavaleiros não tiveram condições de se prepararem. Alguns despertaram da
bebedeira por alguns instantes, mas os movimentos eram lentos e não podiam
nada desarmados. Havia armas no castelo e Donat pensou em mandar os homens
para elas, mas assim que pensou nisso, viu mais inimigos descendo as escadas.
Heiner e os soldados correram para lá, mas um deles foi atingido por uma
flechada. O nórdico não parou a corrida como os outros, mas se jogou mais uma
vez no combate. Enfiou a lâmina na barriga do primeiro inimigo e retirou seu
escudo. Foi bem a tempo de se proteger de uma flecha.
Donat gritou depressa para que todos pegassem as mesas e as jogassem
contra as escadas para impedir o caminho dos invasores. Assim os cavaleiros
fizeram. Heiner e os soldados pularam para o outro lado depois de terem matado
o arqueiro. Conseguiram pegar o arco e o saco de flechas, levando-os consigo
para começarem a formar uma defesa. Os cavaleiros mais sóbrios que seguiam
Donat correram para fechar as portas que davam para a cozinha e para o segundo
salão. Agora estavam presos no salão principal, acuados perante os revoltosos.
Donat demorou um pouco, mas lembrou-se da filha e da sobrinha.

*****

Melisende ouviu passos no corredor. Havia gente se aproximando armada e


sem medo. Estavam tão seguros da invasão que nem tentavam ser silenciosos.
Ela fechou a porta do quarto depressa e esperou. Alguém bateu.
- Abra, minha senhora. Pretendemos levá-la conosco. A senhora é uma
velha dívida para o nosso senhor – disse um dos invasores. Ela sabia que só
podia ser um dos Assassinos.
A jovem olhou para o quarto procurando por uma alternativa. Correu para a
janela e viu o pátio tomado por várias pessoas com todo tipo de armas, desde
espadas a lanças improvisadas. Eles estavam cercando os poucos soldados que
estavam do lado de fora. Em pouco tempo os homens de Sable D’Or caíram e já
não haveria defesa no castelo.
Bateram mais uma vez na porta, agora com mais força. Melisende tremeu
de medo e foi até o baú. Retirou uma adaga lá debaixo, uma que ficava junto à
espada que pertencera ao pai. Não tinha força para erguer a lâmina maior, mas
sabia muito bem como usar a menor. Sabia que Bassam a queria, mas levaria
pelo menos um de seus homens para o vale da morte.

*****

Laure correu para o quarto de Karsten tão logo ouviu os barulhos. Gareth e
o cavaleiro ainda conversavam quando ela chegou preocupada.
- Dê-me minha espada. Vou descer – disse o germânico.
Gareth balançou a cabeça e soltou um ar decepcionado. Estendeu o braço
pousando a mão sobre o peito do cavaleiro e fez o amigo ficar na cama. Andou
calmamente e trancou a porta.
- É tudo o que podemos fazer.
- E os outros? E Melisende?
Laure passara pelo quarto de Melisende quando saíra do quarto onde Jean
estava em recuperação junto a seus escudeiros, mas não se dera ao trabalho de
chamar a prima. Seguiu caminho para encontrar o cavaleiro, mesmo sabendo que
não estaria protegida lá. Sabia que apenas seu coração encontraria segurança,
diferente do corpo.
- O que está acontecendo? – perguntou Karsten.
Gareth já estava olhando da janela.
- Parece mais uma revolta. Não vejo muita organização. Os portões do
castelo estão abertos e parece haver mais gente chegando.
Alguém forçou a porta, o que fez Laure tremer de medo. Ela olhou para os
lados procurando por uma arma e viu o equipamento de guerra de Karsten
encostado em um canto. Correu até lá para pegar um punhal. Vendo isso, Gareth
percebeu que teria que lutar caso alguém entrasse. Não gostava de derramar
sangue, mas era hora de averiguar se ainda era bom no uso da maça. Andou até
suas coisas em outro canto do quarto e desenrolou a arma. Sentiu o peso do
metal aumentado pelas lembranças de lutas passadas. Pediu perdão por usar a
arma mais uma vez.
- Karsten, permite que eu use seu escudo?
- Eu é que deveria estar lutando – disse o cavaleiro.
Laure se aproximou dele e sentou-se na cama. Colocou a mão sobre seu
peito, atraindo um olhar censurador do padre.
- Não se preocupe, Karsten. Sei que poderia nos salvar, mas preocupe-se
com seu ferimento. Nós nos livraremos desse perigo.
- Quem está aí? – perguntou alguém de fora.
Ninguém respondeu. A pergunta se repetiu, agora com uma ameaça.
Chutaram a porta e começaram a tentar a forçá-la.
- Não há tesouro algum aqui, só uma mulher e um homem ferido. Laure de
Sable D´Or pede a vocês que nos deixem em paz.
Pararam de forçar a porta. Gareth andou até lá e colocou o ouvido sobre a
madeira. Ouviu passos se afastando no corredor. Aparentemente, eles haviam
perdido o interesse.
- Suas palavras fizeram efeito – disse o padre, estranhando.
- Eles devem estar procurando por outra coisa – alertou Karsten,
preocupado com Melisende. Com esforço, conseguiu se sentar na cama. A
barriga doeu mais, entretanto ele conseguiu se manter na posição.

*****

Christophe ficou preocupado quando viu os homens com arcos forçando a


passagem na escadaria. Aqueles não deveriam ser gente do povo de Sable D´Or.
Não, eram guerreiros treinados que com certeza não haviam sido contratados por
Fihr. O muçulmano não faria isso. As coisas estavam muito bem combinadas
com ele. Aqueles homens se uniram à revolta por algum motivo e agora haviam
assumido a liderança e estavam organizando muito bem os invasores.
O salão estava cheio de homens preocupados, apesar de alguns estarem
caídos por causa da bebida. Christophe andou até a grande porta que dava para o
pátio e tentou ouvir o que se passava lá fora. Só pode perceber uma algazarra.
Não havia mais barulho de espada. Os soldados haviam sido dominados. Agora
ele estava perdido. Alguém estava acabando com seus planos.
Heiner correu mais uma vez para perto da escada e elevou a espada sobre as
mesas jogadas na tentativa de afastar os inimigos que tentavam pular a barricada.
Donat via o nórdico se movimentando de um lado para outro, levando os poucos
soldados armados para a defesa. O barão estava impressionado, mas nem por
isso com mais esperança de que conseguissem escapar. Tentava entender o que
estava acontecendo. Finalmente o povo se revoltara devido aos boatos, mas não
imaginava que fizesse uma oposição tão bem organizada e com tantos
guerreiros. Os pensamentos convergiam para os Assassinos, mais precisamente
para a figura de Bassam. Ele sempre pensava neles quando havia problemas em
Sable D´Or. Ou neles ou em Christophe, mas agora duvidava que o filho fosse
culpado.
Eles tinham sorte por não haver muitos inimigos escada acima. Apenas
alguns poucos haviam usado cordas para escalar as paredes e entrar pelas janelas
dos quartos. Esses agora estavam ocupados na escada ou tentando quebrar a
porta de Melisende. E já estavam quase conseguindo.
- Minha filha! – gritou Donat. – Precisamos passar por eles para salvar
minha filha.
O barão se aproximou de Heiner na tentativa de conseguir apoio para passar
pela barreira. O nórdico incumbiu-se da missão de chegar a Laure. O problema
era passar pelos inimigos com arco. Sacrificaria a vida de todos os soldados e
talvez ainda não conseguisse chegar até a mulher.
- Meu senhor, não sei se conseguiremos passar assim. Não temos armas ou
armaduras e poucos homens estão em condições de lutar.
Christophe apareceu do lado deles.
- Eu ainda tenho alguns homens lá fora. Deixei alguns cavaleiros de fora da
festa, pois era contra esse torneio. Agora percebe, meu pai? Deixou-se levar por
esse Karsten e essas frivolidades...
- Pare com isso, Christophe. Sua irmã está lá em cima junto desses
Assassinos e você se preocupando com lições de moral! Seu inútil, faça alguma
coisa.
Christophe teve vontade de cruzar os braços ali mesmo e ficar quieto
observando o sofrimento do pai. Era uma vingança que apreciaria mesmo
naquele momento de tensão, mesmo que seus planos dessem errado. Olhou para
seus homens reunidos no canto do salão. Estavam todos sóbrios e tinham alguns
punhais prontos. Era o momento de começar a agir. O problema era encontrar
Fihr e o fazer começar as negociações.
Uma flecha passou sobre o ombro de Heiner para se quebrar contra o chão
de pedra do castelo. O nórdico abaixou-se atrás das mesas viradas olhando para a
espada. A lâmina estava suja de sangue, contudo não era o suficiente. Mais
inimigos precisavam cair naquele dia. Era hora de chamar a canção dos deuses e
liberar a fúria para o ataque. Estava quase decidido a isso quando se lembrou de
Gareth. Ele deveria crer em Cristo e no Senhor dos Exércitos, o deus que o
conduziria a salvação. Os outros eram falsos deuses. Heiner não sabia como
esses falsos deuses poderiam ter o ajudado a vencer tantas batalhas antes, mas
sabia que esse novo deus que o seguia não o levara a nenhuma vitória expressiva
ainda. E o pior era que ele vivia falando de algumas coisas absurdas como
oferecer a outra face e amar todo mundo. Desde quando dava para amar a todos
em um mundo como esse? E se era para amar, de que valeria a guerra que estava
fazendo agora? Pior ainda, se era para amar, por que toda aquela discussão sobre
certo e errado e um livro inteiro pra falar de algo tão simples assim? Maldição...
A espada pedindo sangue e ele perdendo tempo em considerações religiosas.
Antes isso não acontecia.

*****

Gareth olhou mais uma vez pela janela. Agora algo diferente estava
acontecendo. Alguns cavalos seguiam em carga para dentro do castelo e os
cavaleiros baixavam as espadas sobre os revoltados. Os muçulmanos, ainda
surpresos, demoraram a entender que os recém-chegados eram inimigos. Uma
fuga em massa começou com corpos sendo pisoteados e pessoas sangrando se
jogando umas sobre as outras para escapar da ira dos cavaleiros.
- Chegaram reforços, mas não consigo identificar quem são.
Laure foi até à janela para ver. Precisou espremer os olhos para identificar
melhor quem eram os cavaleiros. Ao notar os mantos negros, não teve dúvidas.
Eram hospitalários.
- Hospitalários. Mas o que eles estão fazendo aqui?
- Não sei, mas serão nossa salvação.
- Mas são apenas doze contra todos esses inimigos.
Os hospitalários começaram a fazer um círculo que expandiam cada vez
mais. Chegou um momento em que estavam afastados demais um do outro e o
líder gritou para se reunirem antes que fossem pegos individualmente. Então um
grupo de cavaleiros muçulmanos começou a coordenar os revoltosos.
- As portas do salão precisam ser abertas – falou Gareth. Ele olhou para a
porta e fez o sinal da cruz. Rezou o Pai Nosso depressa. – Abra a porta para mim
e feche assim que eu sair, Laure.
- Não saia, Gareth – ordenou Karsten.
O padre riu do amigo. Laure olhou de um para o outro.
- Vamos, mulher. Não temos muito tempo.
Ela se levantou e foi fazer o que precisava ser feito, como todos naquela
noite.
*****

Édouard de Le Mur acabara de chegar a Sable D´Or com seus cavaleiros.


Os hospitalários estavam um pouco cansados da viagem, mas ainda prontos para
uma boa luta. Foi um cristão que os avisou da revolta muçulmana e alertou sobre
o que acontecia no castelo. O homem disse que todos lá já deveriam estar
mortos. Guerreiros treinados foram vistos com o povo islâmico do feudo.
Édouard olhou para os seus homens e perguntou como estavam. Viajavam há
dias, depois de terem ficado perdidos após uma informação errada. Édouard
ainda tinha certeza de que o homem que os indicara o caminho errado o fizera de
propósito, mas agora não era tempo de voltar à discussão. Precisava se certificar
de que os hospitalários estavam prontos para uma luta, mesmo depois de
caminharem tanto.
- Só acho que os cavalos estão um pouco cansados, senhor – disse um dos
cavaleiros.
O líder hospitalário avaliou seus homens calmamente para se certificar de
que ninguém estava bancando o herói. Não queria enviá-los direto para uma luta
para serem massacrados. Odiava quaisquer ações inúteis, principalmente quando
estavam ligadas a se intrometer na vida de alguém.
- Os cavalos aguentarão. Vamos seguir.
Assim eles tomaram o rumo do castelo de Sable D´Or na esperança de
encontrar as pessoas vivas e em condições de ajudá-los a acabar com a rebelião.
Recontou os cavaleiros. Havia nove deles. Era uma boa quantidade. Estavam
acompanhados de quatro sargentos e mais nenhum homem. Não supusera que
precisaria de mais algum já que seu intento era apenas conversar com Raymond
de Trípoli. Lamentou mais uma vez ter falhado na missão e fez o cavalo
aumentar mais um pouco a velocidade. Dez minutos depois, viu as tochas acesas
e o portão de Sable D´Or aberto. Muitas pessoas andam de um lado para o outro,
algumas sobre as muralhas, outras apenas gritando e fazendo confusão no pátio.
Precisavam de um ataque rápido, aproveitando-se da surpresa.
Deixou os cavalos seguirem em velocidade moderada até a metade do
caminho. Só então fez sinal para seus cavaleiros se prepararem. Ajeitaram os
elmos e sacaram lanças e espadas. Quatro deles, inclusive Édouard, seguiriam na
frente com as lanças em punho. Os outros teriam as espadas prontas para
eliminar quem não caísse com o primeiro ataque. Os sargentos, também
montados, mas em cavalos menores e mais fracos, participariam do combate.
Apenas um deles não participaria tanto. Seu dever era seguir com as trouxas de
alimentos e rações para dentro do castelo o quanto antes. Três dos sargentos
passaram suas coisas para o colega e sacaram as espadas.
Os cavalos começaram a corrida ocultos pela noite seca do deserto.
Édouard contava as pessoas nas muradas e tentava procurar por algum arco. Não
enxergou nenhum, nem quando se aproximou mais. Os revoltosos não tomaram
nenhuma atitude enquanto viam os cavaleiros se aproximarem. Édouard não se
perguntou o motivo, apenas apontou a lança para o primeiro homem armado que
viu próximo ao portão. O homem virou para o lado e emitiu um grito tão logo
notou a cruz branca no peito dos hospitalários. O som foi abafado pelo impacto
da lança. A arma atravessou o pescoço, arrancando o sangue da jugular e
rompendo a carne mole. Bateu em uma das vértebras e a quebrou imediatamente,
depois escapou pela pele, livrando-se do morto e continuando. O corpo já caía
quando Édouard estava enterrando a lança no peito de outro muçulmano.
- Por Cristo! Em Cristo! Pela Cruz e pela Virgem! – gritou Édouard. Ele já
freava um pouco o cavalo para os homens com espada o alcançarem. Eles o
cercaram e começaram a descer as lâminas nos inimigos enquanto o líder
hospitalário sacava sua arma e preparava-se para continuar a luta. Havia pelo
menos sete pessoas mortas apenas devido aos golpes de lança e mais caíram com
os golpes de espada.
Os muçulmanos tentavam escapar da chacina, mas eram impedidos pelos
guerreiros valentes que queria se aproximar. Os Assassinos não poupariam
aqueles novos inimigos. Eram nada mais do que mais um motivo para acabarem
com todos no castelo. Começaram a mirar suas armas nos peitos enfeitados com
a cruz branca, felizes por finalmente encontrarem um inimigo de valor, mas
também decepcionados por terem outros irmãos de fé tentando fugir do
massacre. Um Assassino conseguiu se aproximar do círculo de hospitalários. Viu
que os inimigos estavam abrindo espaço e se distanciando, criando uma redoma
de proteção ocupada apenas por cavaleiros cristãos e corpos ensanguentados. O
Assassino viu um muçulmano cair com um golpe no ombro, os músculos se
abrindo e jorrando sangue enquanto a espada era retirada e partia para outro
ataque. Armado com uma lança, o Assassino tentou atingir o hospitalário. O
homem foi mais esperto e desviou o ataque com o escudo. Esticou-se sobre o
cavalo e golpeou com a espada. A lâmina passou perto do peito do Assassino,
obrigando-o a pular para trás.
Édouard viu que os cavaleiros estavam ficando distantes demais uns dos
outros. Era hora de refazer o círculo. Os muçulmanos já se organizavam e em
breve fechariam o cerco para eliminá-los. Édouard notou que havia guerreiros
experientes ali no meio. Certamente, eram os Assassinos sobre quais Dedrick
falara. Esperava não criar um conflito diplomático com aqueles inimigos
perigosos. O Hospital nunca tivera os mesmos problemas que o Templo tinha
com eles.
- Hospitalários, reagrupar! – gritou. Puxou as rédeas do cavalo e o fez dar
uma meia volta, abrindo espaço tanto com o animal quanto com a espada. Um
homem despreparado, atacando com uma lança improvisada, tombou pela arma
de Édouard. O hospitalário pediu perdão a Deus por matar uma criatura que nem
fora feita para a guerra.
Os muçulmanos gritavam e pressionavam, levantando cada vez mais armas
e acabando com a fuga desesperada no início. Quem estava com medo já
começava a tomar coragem, vendo que se se unissem, acabariam com aqueles
nove cavaleiros e quatro sargentos. Um deles, por sinal, conseguira chegar às
portas do castelo e chutava a madeira ainda montado, pedindo que fosse aberta.
Édouard cavalgou pelo círculo, ajudando seus companheiros a se reagruparem e
levando-os até perto da porta.
- O que faremos, senhor? Eles não querem abrir – disse o sargento.
- Cristo nos salvará. Enquanto isso, peçam perdão e continuem lutando.
Continuaram, tanto porque não havia outra opção quanto pelo treinamento
de vida. Não havia um ali que não lutasse pela própria sobrevivência desde
criança. Os cavaleiros haviam sido treinados para assumirem aquela posição. O
que faziam de melhor era sacar suas espadas. Elas já estavam sacadas, então
precisavam continuar as usando.

*****

Heiner praguejou quando viu um cavaleiro tombar com uma flecha no


peito. Vira o homem lutando no torneio e gostara das habilidades dele. Acabara
vencido por Karsten, mas perder para o germânico não invalidava a opinião do
nórdico. Agora, infelizmente, ele estava morto, ou quase. O homem mexeu-se no
chão, enquanto o sangue começava a empapar a camisa. Colocou as mãos no
peito e gritou uma praga. Outro cavaleiro, esse do feudo de Sable D´Or, puxou-o
pelos pés e o colocou atrás das mesas. Era só um esforço para que o homem
morresse protegido, nada mais. Ninguém deu atenção para as imprecações cada
vez mais abafadas que ele emitia. Estavam mais atentos aos inimigos que
forçavam sua entrada no salão. Eram treze agora, sendo quatro desses armados
com arcos e outros com lanças que já estavam quase abrindo caminho.
- Não aguentaremos por muito mais tempo – disse Heiner, suado e sujo de
sangue. Estava falando com Donat e Christophe. O barão coçou a barba e xingou
algo em árabe. Christophe olhou preocupado para cima e viu mais uma flecha
saltando, essa quase atingindo os cavaleiros que se escondiam no fundo do salão.
- Meus homens virão! – disse Christophe.
- Eles estão batendo na porta! – gritou um cavaleiro.
- Que observação inútil – disse Donat. – Pra quê precisamos saber disso?
Heiner não respondeu. Havia decidido que pularia as mesas e morreria
lutando. Não queria ser capturado. Nascera para lutar, não para se tornar um
mero refém. Quando se levantou, teve uma surpresa, havia alguém descendo
apressadamente as escadas. Heiner quase riu quando viu Gareth correndo com
aquelas sandálias e hábito marrom armado apenas com uma maça e um escudo.
Usava o brasão de Karsten, o que fez Heiner temer que o amigo estivesse morto.
O pensamento durou pouco tempo, pois viu que precisava de uma ação rápida.
- Levantem-se e ataquem! – gritou o nórdico para os poucos homens
armados do salão. A voz dele foi tão firme e cheia de vontade que todos
atenderam de imediato, começando a saltar as mesas.
Os muçulmanos não tiveram tempo de reagir, pois Gareth começara uma
grande confusão na escada. Seu primeiro ataque atingiu a nuca de um arqueiro.
Ouviu-se o estalo da maça quebrando as vértebras do homem e o derrubando. O
corpo caiu sobre outro arqueiro e o desequilibrou, fazendo-o rolar pelos degraus.
Dois outros homens acabaram caindo no meio da confusão. Gareth não perdeu
tempo. Se começara a pecar, agora acabaria e que Deus o livrasse de seus erros
encerrando sua vida ali se assim Ele escolhesse. Defendeu um ataque
desengonçado de um dos homens que estivera ao lado dos arqueiros. O inimigo
virara-se depressa, apenas para emitir um golpe que lhe permitisse atrasar
Gareth. O padre defendeu bem com o escudo e gritou por Cristo enquanto
contra-atacava. Infelizmente, perdera o elemento surpresa e agora de nada
valeria contra aqueles inimigos que, se não eram mais experientes na arte da
guerra, ao menos eram mais fortes. Seu ataque se tornou uma defesa
desesperada.
Heiner viu que precisava correr até o amigo. Primeiro empurrou os homens
com o escudo, depois abriu caminho com a espada. Cortou com todas as suas
forças, como se estivesse se vingando dos momentos em que precisou se
esconder como um rato. Enterrou a lâmina nas entranhas do primeiro inimigo,
enquanto os outros soldados começaram a fazer pressão para que a subida
continuasse. Heiner não parou a matança aí. Acertou o pescoço de outro inimigo,
deixado um corpo no chão com a cabeça pendendo e o sangue tornando a escada
escorregadia. Não poupou nem o oponente que encontrou no chão. Baixou a
lâmina para enfiá-la nas costas do homem. Finalmente chegou até Gareth. O
padre acabara de ser desarmado pelo muçulmano e estava encantoado. Heiner
gritou, chamando a atenção do inimigo. Assim que o homem se virou, recebeu
uma espadada no rosto que o deformou instantaneamente.
A escada estava cheia de corpos. Fora quase um milagre, mas a surpresa
causada por Gareth os salvara. Heiner riu e abraçou o amigo, sujando-o de
sangue.
- Vejo que você serve para algo a mais além de dar sermões!
- Cristo me perdoe, mas eu acho que sirvo mesmo.
- Há mais deles lá em cima?
- Não sei, mas temos que pegar Laure e Karsten. Antes disso, abra as
portas. Há hospitalários lá fora.
Heiner gritou as ordens depressa. Os cavaleiros correram para abrir as
portas e homens montados entraram no salão. A princípio eram apenas nove
hospitalários e quatro sargentos, depois apareceram outros oito cavaleiros de
Sable D´Or. Todos estavam armados e sujos de sangue. Haviam ajudado os
hospitalários a resistirem até que a porta fosse aberta. Eram os homens fiéis a
Christophe.
As portas foram fechadas depressa e Donat correu até os hospitalários. O
barão assistiu aos cavaleiros desmontando e esperou que o líder deles se
apresentasse.
- Senhor de Sable D´Or, o senhor não me conhece, mas eu já o vi. Também
já escoltei sua filha até Jerusalém. Meu nome é Édouard de Le Mur.
- Seja bem-vindo, Le Mur. Só não sei se você veio aqui para nos salvar ou
para compartilhar esse destino de refém conosco.
Édouard pensou pela primeira vez que não deveria ter se intrometido
naquele assunto quando ouviu aquilo. “Mal agradecido”, pensou. Lutara e
arriscara seus homens para depois ouvir algo como aquilo. Absurdo! Não disse
nada. Apenas manteve o rosto sério e logo um silêncio constrangedor abateu-se
sobre os dois. A situação foi revertida quando Heiner apareceu. Ele reconheceu o
hospitalário e o cumprimentou.
- Obrigado. Nós vamos subir para saber se ainda há alguém lá em cima?
Quer ir?
O hospitalário concordou apenas para não ficar próximo de Donat. Chamou
dois dos seus e disse para os outros se arranjarem ali.
Um grupo de cavaleiros armados logo se ajeitou no canto do salão.
Christophe reuniu seus homens para saber o que havia acontecido. Estava
irritado e claramente nervoso.
- Conversamos com Fihr e ele disse que não conseguiu deter os Assassinos
– explicou um deles.
- Temos que acabar com os Assassinos. Uma vez que fizermos isso, Fihr
cuidará dos outros.
- Duvido, senhor. Ele disse que os Assassinos trouxeram gente de outras
regiões com a promessa de que conseguiriam uma terra boa aqui, principalmente
depois que Saladino acabasse com todos os cristãos.
- Não entendo. Os Assassinos usaram Saladino como promessa? Mas eles
odeiam Saladino – indagou Christophe. Os cavaleiros deram de ombros, sem
entender. – Não duvido que Bassam esteja por trás disso. Ele é um pouco
diferente dos outros Assassinos. Pode muito bem ter usado essa estratégia, já que
os líderes dele não estavam o apoiando nessa guerra pessoal. Talvez possamos
usar Guillaume nesse caso.
O grupo continuou confabulando por pouco tempo. Christophe pediu para
se dispersarem para pararem de chamar a atenção. Resolveu subir as escadas
para saber como estava a irmã. Era hora de começar a corrigir as falhas no plano.

*****

Donat subiu as escadas lentamente, depois de tomar a espada de um dos


soldados e carregá-la em punho, na altura do peito. Heiner, Édouard e mais dois
cavaleiros vinham logo atrás. Christophe apareceu pouco depois. O grupo seguiu
pelos corredores do segundo andar, tentando ouvir algum Assassino. Não
encontraram ninguém, mas Donat só respirou aliviado quando finalmente se
deparou com a filha no quarto de Karsten. Se o germânico não estivesse preso à
cama, ainda debilitado, talvez o barão houvesse se irritado com o fato de Laure
estar sozinha ali, a despeito das circunstâncias.
Laure estava ao lado da cama do cavaleiro, segurando uma das mãos fortes
de Karsten e o observando com um olhar apaixonado. Estivera calada até o
momento e se surpreendeu quando a porta foi aberta repentinamente. Só então
percebeu que não a trancara quando Gareth saíra. Apertou a mão de Karsten com
mais firmeza, temendo quem entraria. Abaixou-se sobre ele e o abraçou. Sentiu
uma onda de calor erótico pelo corpo ao tocar o peito dele, mesmo que
estivessem separados pela roupa. A imaginação cuidou para que sentisse aquele
corpo ainda mais próximo e para que o desejo eclodisse entre suas pernas. O
perigo e a excitação se misturaram no coração já abalado pelo amor.
- Minha filha! – disse Donat. Agora o alívio de ver a filha viva já era
suplantado pelo ciúme. Laure correu para abraçá-lo, o que o fez se acalmar um
pouco.
- Ele a tocou, minha irmã? – perguntou Christophe, baixando a espada e
olhando para Karsten.
Donat não gostou da pergunta que lhe pareceu mais uma insinuação da cena
que presenciaram. A mente ciumenta começou a cogitar se aquilo não afetaria a
honra da filha. Será que precisaria obrigar o cavaleiro a se casar com Laure?
- Onde está Melisende? – perguntou Karsten.
A preocupação correu os rostos de todos que conheciam a sobrinha do
barão. Heiner olhou para o amigo já começando a lamentar que algo houvesse
acontecido com a paixão do germânico. Donat nem se lembrara da sobrinha.
Culpou-se por não ter se preocupado com ela antes e deu ordens para que os
outros fossem até o quarto dela imediatamente.
- Fiquei preocupado com você, minha filha.
- Graças a Deus, tudo está bem, meu pai. Sei que Karsten se levantaria para
me proteger se fosse preciso. Fico grata também por Gareth ter chegado até
vocês.
Donat riu ao lembrar-se do padre ofegante lá embaixo. Gareth ainda não
havia se recuperado do susto de ter enfrentado aqueles guerreiros. Teve muita
sorte de tê-los pego de surpresa.
Christophe seguiu com Heiner e Édouard para encontrar Melisende. Deixou
dois cavaleiros para ajudar o pai caso algum Assassino estivesse escondido. Não
encontraram ninguém para desafiá-los no caminho. Chegando ao quarto,
depararam-se com a porta arrombada. Entraram cautelosamente, receosos de que
ainda houvesse alguém lá, mas não encontraram nada além de uma corda
amarrada em um gancho preso na janela. Heiner se aproximou para olhar lá
embaixo. Havia um homem na corda. Estava subindo lentamente, apoiando-se
nas pedras. O nórdico afastou-se um pouco e levantou a espada. Não teve
piedade ao cortar a corda e ouvir o inimigo se quebrando no chão.
- Eles desceram por aqui e agora havia um querendo subir de novo. Temos
que tomar cuidado para que ninguém suba.
Édouard colocou-se em frente à janela e olhou para o pátio.
- Estamos totalmente cercados e eles a levaram. Não temos mais como sair
daqui. Agora vamos precisar esperar até que esse povo se canse. Acho que se os
Assassinos já conseguiram o que queriam, talvez não nos incomodem mais.
- Não sei, veja aqueles homens montados perto do portão. Tenho certeza de
que são Assassinos. Eles estão esperando para o golpe final.
- Temos comida e água para quanto tempo? – perguntou o hospitalário,
agora olhando para Christophe.
- No máximo três dias.
- Não temos mais do que vinte homens armados aqui. Não têm mais
ninguém da infantaria?
- Reunimos esses homens nas aldeias. Poucos estavam aqui. Meu pai deu
pequenos lotes de terras a alguns deles há pouco tempo. Ainda não entendi o
motivo. Só sei que eles prometeram lutar o lado dele em caso de maior
necessidade.
Édouard logo imaginou que deveria ser algo ligado com o fato de Sable D
´Or não estar aliado a Ultramar. Com certeza, Donat estava se preparando para
sofrer algum ataque do rei. Aquilo cheirava a insurreição. Será que Raymond de
Trípoli também estava ligado a isso? Os hospitalários haviam apoiado o partido
de Raymond, mas acabaram se sujeitando a Guy após a coroação e, mesmo
assim, não tinham pensado em criar uma guerra civil no reino. Se Donat ou
Raymond estivessem com esse intento, seria a ruína de Ultramar, ainda mais
agora com Saladino batendo às portas do reino com um exército pronto para
esmagar os cavaleiros de Cristo. Discreto, Édouard não perguntou mais nada.
Também parou as especulações por ali. Tentaria ouvir mais nesse tempo que
permanecessem sitiados.
Heiner ficou para observar se ninguém jogaria mais algum gancho enquanto
Édouard e Christophe foram contar sobre o sequestro de Melisende. Donat não
gostou nada da notícia. Jurara proteger a sobrinha, fazendo a promessa no leito
de morte do irmão. Por mais trabalho que isso lhe desse e por mais que houvesse
sido contra aquele casamento com uma judia, o barão se sentia na obrigação de
proteger a família.
- Teremos que resgatá-la. Sei que Bassam não pedirá dinheiro por ela. Isso é
uma vingança pessoal – disse o barão.
- Por enquanto é melhor nos preocuparmos em sair daqui – comentou
Christophe, falando da janela do quarto.
O povo parara de se mexer lá embaixo. Apenas algumas pessoas armadas
continuavam no pátio. Aparentemente, algumas delas haviam colocado vários
obstáculos em frente às portas do castelo. Seria impossível sair de lá em carga
com os cavalos.

*****

Guillaume espreguiçou-se enquanto saía para as orações matinais. A vida


de monge servia para acalmar seus ânimos de guerreiros. Rezava para conter a
ânsia que tinha pela batalha. Diziam que aquele furor que ele sentia por ter o
sangue inimigo correndo pela espada era coisa do Diabo. Guillaume ria disso.
Divertia-se quando as pessoas se assustavam com seu passado. As lendas que
corriam sobre ele já se espalhavam pela Terra santa. Alguns diziam que várias
vezes o Demônio tentara levar a alma do templário e quase conseguira. Diziam
que ele só tinha se tornado um verdadeiro cristão quando Deus finalmente o
salvara dos ataques do mal.
A história não tinha nada de tão sobrenatural. Ao menos não como o povo
contava. Deus e o Diabo poderiam estar buscando e batalhando pela alma dele
naquele dia, porém que se danassem os dois. As memórias o levaram ao
momento em que chegara da batalha ainda com o sangue do sogro preso na
espada. Surgiam nos sonhos dele, às vezes alteradas, às vezes com alguns
detalhes que lhe fugiam eram completados e reescritos tanto pelo coração quanto
pela mente.
Desceu do cavalo contente por ter vencido aquele homem que lhe impusera
tantas obrigações e tentara refreá-lo tantas vezes. A esposa já o esperava na porta
do pequeno castelo, a morada pequena demais para conter o ego, a ambição e a
violência de Guillaume. Puxou-a para si e arrancou-lhe um beijo violento. Ela
sentiu o suor do marido e se excitou com aquele corpo quente.
- Está feito, minha querida. Ele se foi.
Ela sabia que deveria se sentir triste por ter perdido o pai, ainda mais por
saber naquele momento do assassinato do homem que a criara, mas não estava.
Para ela, o homem não passava de um tirano que a entregara por causa de terras
e de prestígio. Era uma mulher orgulhosa que só não o odiava mais por isso,
porque encontrara em Guillaume sua alma gêmea. Tinha um homem que
cavalgava com ela pela ambição e luxúria sem se preocupar em frear-se com as
regras da Cristandade.
- Então vamos reivindicar o feudo que agora é meu por direito.
Na verdade, não deveria ser dela. Ainda havia o irmão, mas ele viajara para
a Terra Santa há seis anos e nunca mais enviara notícias. Era a opinião de todos
que estava morto.
- Ainda estou com o corpo quente. Vamos para cama e de lá direto para as
novas terras – disse Guillaume, puxando-a e colocando-a em seus braços. Ergueu
e a apertou, arrancando um suspiro excitado.
- Não, não, meu marido. Você vai me possuir na nossa nova cama. Vamos
seguir logo. Quero entrar naquele lugar de novo como dona de tudo.
Guillaume a colocou no chão de novo e a empurrou. Ela sentiu as pedras
frias do castelo baterem contra as costas e depois abriu a alma para que o marido
pressionasse seus corpos contra a parede e se beijassem mais. Desgrudaram-se
com o cavaleiro gargalhando e virando-se para seus homens. Alguns deles
olhavam constrangidos para a cena, outros já estavam acostumados com o casal.
- Vamos seguir para as nossas novas terras! E será hoje! Agora! Há alguém
aqui com a espada cansada?
Eles riram e gritaram que queriam ver o lobo saltando mais uma vez sobre
sua presa, pois o brasão de sir Guillaume eram a cruz azul e o lobo sobre o
campo branco. Metade deles ficou desanimada, pois Guillaume disse para
ficarem de vigia no castelo, temendo que algum senhor feudal aliado de Albert
aparecesse antes de sua volta.
- Quero um cavalo para minha mulher, agora!
Um escudeiro correu para o estábulo e voltou depressa com uma égua
branca já com cela pronta para a esposa do senhor. Ela montou de lado e mandou
um beijo para o marido. Guillaume gargalhou mais uma vez e atiçou o cavalo
para começarem a corrida até o feudo vizinho. Queria passar a noite lá, entre as
pernas da esposa, divertindo-se e tomando o vinho do falecido sogro. Nem o
Diabo o pararia naquele dia. Deus poderia descer dos céus e ele o convidaria
para a festa, mas se recusaria a parar para prestar homenagem.
Cavalgaram lado a lado com o céu escuro quase pronto para jogar uma
tempestade sobre as cabeças deles. As nuvens, no entanto, pareciam temer a
fúria de Guillaume, pois não passavam de uma ameaça silenciosa que não
ousava atrapalhar a cavalgada vitoriosa de La Croix Bleue. Não ousavam
perturbar a alegria do cavaleiro.
- Agora falta um filho! Quero meu filho para ensinar a ser cavaleiro!
Ela fez a égua aproximar-se do cavalo do marido. Sorriu e retirou as mãos
dele de uma das rédeas.
- Pretendia contar quando você estivesse sobre mim, concretizando nossa
vitória, mas não. Vou contar aqui. Seu filho chegará em breve – falou, colocando
a pesada mão do homem sobre seu ventre.
Guillaume desceu a mão da barriga dela para a coxa e a apertou. Queria
beijá-la. Quase desceu do cavalo para fazê-lo.
- Minha vida está perfeita. Mais um motivo para lutar.
Ela divertiu-se com o sorriso feliz dele. Sabia que também estava completa.
As portas do castelo de Albert já estavam abertas. Havia algumas pessoas lá
dentro, inclusive alguns cavaleiros. Guillaume supôs que fossem homens do
sogro que houvessem fugido da batalha. Fez sinal para seus guerreiros sacarem
as armas e entrarem triunfantemente. Duvidavam que alguém fosse os desafiar
depois da vitória gloriosa daquela manhã.
O castelo tinha grandes muralhas de pedra que cercavam um pátio mais
extenso de terra batida. Passaram pelo fosso e pelos portões com os cavalos
marchando imperiosos. Guillaume seguia na frente com a esposa. Olhou para as
pequenas casas e para a igreja presa à parede do castelo. Havia um estábulo que
deveria ter mais cavalos para enriquecer Guillaume. Oito homens montados
estavam esperando em frente à porta principal do castelo. Guillaume sabia que
só havia aquela e uma nos fundos. Fez seus homens pararem os cavalos e
adiantou-se um pouco.
- O que fazem aqui? Pretendem jurar fidelidade ao novo senhor desse
castelo? – perguntou Guillaume, com um sorriso feroz.
Os cavaleiros se olharam e ajeitaram seus cavalos, como que preparados
para um combate. Um deles sacou uma espada, outro bateu o cabo da lança no
chão.
- Nós que perguntamos. Quem você pensa que é para aparecer aqui e
reivindicar o feudo que pertence ao pai de nosso senhor. Saia logo, antes que o
escorracemos.
O estandarte de La Croix Bleue foi erguido. Guillaume levantou o escudo e
sacou a espada. A esposa se afastou.
- Pois escorrace. Venha mostrar sua coragem para que eu em seguida
demonstre o quanto ela vale sob as minhas botas.
Os cavaleiros inimigos se agitaram, mas aquele que parecia o líder deles os
fez pararem. Usava uma cota de malha sob um pano amarelado. Estava sem
elmo, mas a um sinal com uma mão, um escudeiro até então não percebido por
ninguém, apareceu e o entregou a proteção. Tinha um longo rabo de cavalo preso
no metal. Guillaume não gostou. Entregaria a peça para um de seus guerreiros.
- Venha para eu fazer a terra experimentar seu sangue – disse Guillaume.
O homem atiçou o cavalo e os dois cavaleiros cruzaram o pátio. Guillaume
não retirou o sorriso do rosto até finalmente levantar a espada. Escapou do golpe
do inimigo e o acertou no pescoço. Separou a cabeça do corpo com tanta rapidez
que o cavalo precisou dar alguns passos antes que o jato de sangue jorrasse do
pescoço partido. O corpo caiu no pátio molhando a terra de vermelho. Guillaume
passou pelos inimigos mostrando a espada suja de sangue e urrando a vitória.
Levou o cavalo até a esposa e a beijou.
- Mais alguém? Mais alguém quer que seu sangue banhe minhas novas
terras?
Levantou a espada e seus homens gritaram em desafio. Os outros cavaleiros
entreolharam-se calculando a batalha. O sorriso de lobo de Guillaume brilhou na
tarde que findava. Ele se inclinou levemente sobre o cavalo, farejando o aroma
metálico da batalha. Acabou percebendo que o principal perigo não vinha dali da
frente. Os ouvidos aguçados captaram os cascos dos cavalos se aproximando.
Virou seu animal depressa para notar que mais cavaleiros estavam chegando. O
primeiro deles parou em frente ao portão. Guillaume contou doze deles. Agora
estava claramente em desvantagem.
- Formem um círculo – ordenou, colocando a esposa no meio.
- Então os assassinos do meu pai estão aqui! – gritou o cavaleiro líder. Ele
retirou o elmo para mostrar a face ainda levemente queimada pelo sol do deserto.
Os traços eram pesados, adquiridos de anos de batalha. Havia uma falha na
barba por causa de uma cicatriz causada por uma espada sarracena. – Tenho uma
irmã e um cunhado malditos. Entregue-se, sir Guillaume. Não quero ser
obrigado a dar uma surra no menino de nariz sujo que vi correndo por essas
terras.
Era o cunhado desaparecido de Guillaume. Tanto ele quanto a esposa o
reconheceram apesar de todo aquele tempo e mesmo que a guerra houvesse o
mudado tanto.
- Jogue sua espada no chão.
- Venha tomá-la de mim.
- Se for para fazer isso, enforcarei vocês dois ainda hoje. Meu pai sempre
teve um local especial aqui para enforcar malditos como você.
Começou a chover e a voz deles ficou abafada sob as gotas grossas que
batiam sobre as armaduras. O sangue na espada de Guillaume foi lavado
lentamente; caía em gotas diluídas, agora apenas levemente avermelhadas.
- Venha! – gritou Guillaume.
Os cavaleiros inimigos os cercaram e prepararam-se para tomar a dianteira
na batalha. Guillaume percebeu que estaria derrotado se continuasse ali.
Precisava abrir caminho.
- Formação de ataque. Investida – gritou. Olhou para a esposa. – Prepare-se
para correr como puder. Preciso de mais homens para essa vitória.
Ela fez que sim e passou a mão sobre a barriga, confiante que a sorte estava
do lado deles. Então os cavalos dispararam rumo aos inimigos. O cunhado de
Guillaume, Pierre, viu-se surpreso. Já se imaginava vitorioso vendo a formação
de defesa que o oponente havia criado. Achara até interessante assistir como ele
conseguia comandar bem aquele bando de soldados que não eram mais do que
lobos famintos por espólios. Agora os via correndo em sua direção com as presas
apontando para seus homens. Os inimigos começaram a cair naquele exato
momento. Pelo menos quatro dos cavaleiros de Pierre foram jogados do cavalo,
rolando pelo barro recém-formado inconscientes ou mortalmente feridos. Um
deles tentou se levantar, mas foi atingido na cabeça por um inimigo passando.
Guillaume derrubou o cavaleiro mais próximo de Pierre e continuou a cavalgada,
parando apenas para se certificar de que a esposa estava vindo. Ela correra como
pudera, porém um acidente ocorreu. Dois dos guerreiros de Guillaume foram
jogados dos cavalos. Um deles cambaleava no caminho e embaraçou-se nas
patas da égua da mulher. O animal relinchou alto e arregalou os olhos. O barro
subiu pelo ar enquanto a égua tentava desesperadamente se equilibrar, mas de
nada adiantava. Homem, mulher e animal caíram. O guerreiro jazia de olhos
fechados sendo espancado pelo animal que se esforçava para se por de pé. A
mulher rolou para se afastar e levantou-se com uma mão na cabeça, tentando se
equilibrar.
Guillaume gritou de raiva e voltou, esquecendo de pensar que poderia
resgatá-la mais tarde. Seus homens seguiam caminho pela chuva. Não
conseguiram ouvir as ordens do lobo líder. Ele não se importou. Voltou em
carga. As patas do cavalo batiam as poças de lama e jogavam a água marrom
para os lados. Os pingos ininterruptos rebatiam contra espada, escudo e
armadura, criando uma pequena névoa em volta do cavaleiro. O primeiro
inimigo tentou pará-lo, mas Guillaume desviou-se do ataque defendendo com o
escudo. O barulho dos metais batendo não foi ouvido sob a chuva forte. O grito
de Guillaume também se perdeu. Golpeou mais um cavaleiro, mas foi um ataque
inútil que se perdeu facilmente nas defesas do homem. O cavalo finalmente
parou em frente à esposa. Fez sinal para que ela subisse no cavalo e se distraiu
para ter certeza de que ela entendera. Naquele mero momento, um inimigo se
aproximou em carga. Guillaume defendeu uma lança assistindo a arma se
quebrar contra o escudo. Os estilhaços da madeira voaram junto com a água da
chuva e o cavaleiro passou por ele ainda o olhando.
- Cuidado – gritou a esposa.
Era mais um inimigo que se aproximava. Vinha com espada em punho.
Guillaume julgava-se preparado para o ataque, porém assim que as espadas se
bateram naquela chuva, o braço do cavaleiro fraquejou por um leve segundo, o
suficiente para que os dedos soltassem a arma. Talvez fosse a força do inimigo,
que conseguia golpear com ainda mais violência do que ele. Nem bem
lamentava a perda da arma, um segundo ataque o atingiu. Agora uma lança
acertou em cheio no escudo. O impacto o jogou para trás, arrancando-o da cela e
fazendo-o cair de costas em uma poça. A lama espirrou, sujando ainda mais o
vestido da esposa e deixando Guillaume quase cego. Ele levantou-se com
dificuldade, desvencilhando-se do escudo. A mulher tentou o abraçar, mas ele a
afastou para procurar pela espada. Viu a arma caída na terra molhada e correu
para buscá-la, sem se preocupar em ser atingido. Foi obrigado a parar quando
Pierre parou com o cavalo sobre a arma. Ria vitorioso quando gritou para seus
homens desmontarem e segurarem o prisioneiro.
Guillaume voltou a cabeça de um lado para o outro como fera acuada. Era o
caçador que via a situação mudar completamente, agora acuado pelas criaturas
que considerava vítimas. Viu os homens desmontando e começando a caminhar
em sua direção confiantes já que tinham espadas e ele nada mais do que uma
faca presa na cintura. Guillaume sacou a pequena lâmina. Tinha outra guardada,
mas apenas uma bastaria para fazer sua oposição. Passara a infância e a
adolescência toda lutando assim e não seria agora que se daria por vencido. O
primeiro homem se aproximou com escudo e espada. Apontou-lhe a lâmina,
fazendo sinal para que se rendesse. A fúria de Guillaume ferveu e sua razão se
evaporou com o fogo que lhe ardia no coração. Saltou sobre o homem gritando
impropérios. A espada quase o atingiu. Passou rente ao ombro quando se desviou
bruscamente do ataque para jogar todo o peso do corpo sobre o escudo do
inimigo. O oponente não pode se equilibrar na lama e os dois caíram. Guillaume
não parou de gritar. Passou o braço por baixo do escudo do inimigo e furou-lhe a
lateral da barriga. Foi o suficiente para que o adversário perdesse as forças e
gemesse, afrouxando os músculos enquanto a dor se espalhava. O próximo
ataque rasgou o pescoço, abrindo um corte grande que fez o sangue encontrar
rapidamente a água da chuva.
A água continuava descendo violentamente do céu como que chamada cada
vez mais pelos impropérios gritados por Guillaume. Ele xingava Deus, xingava a
Igreja, xingava quem aparecesse em sua mente. Começou a se levantar para
dirigir a fúria ao próximo oponente, entretanto as forças cederam. Um impacto
forte fez a dor se alastrar pelas costas. Abaixou-se e apoiou-se nos braços,
afundando os dedos na lama. Um segundo golpe o fez beijar a lama. Tentou se
levantar, mas o movimento precário serviu apenas para chamar outros quatro
golpes que finalmente o jogaram de vez no chão.
- Isso é o Diabo! – gritou um dos homens.
Pierre parou ao lado do cunhado enquanto seus homens o viravam.
Guillaume respirava com dificuldade, ainda consciente apesar de sem forças
para agir.
- Peguem minha irmã.
Sir Guillaume viu a esposa ser trazida. Sabia que o rosto molhado dela era
apenas chuva. Ela não choraria. Tinha a mesma força que ele.
- Vocês serão enforcados agora – decretou Pierre. Virou-se para seus
homens. – Pensando bem, quero que o povo veja que eu devo ser temido. Ouvi
falar de alguns absurdos, pecados como camponeses se revoltando contra seus
senhores por aqui. Quero mostrar o que faço contra quem se opõe a mim, mesmo
que sejam da minha família. E vocês dois cometeram um pecado impensável.
Merecem isso mais do que qualquer um, mesmo um desses malditos
camponeses.
Pierre se levantou e fez os dois prisioneiros serem levados para uma banca
improvisada onde seriam mortos. Havia uma grande haste de madeira com uma
trave que serviria perfeitamente para o enforcamento.
Os cavaleiros foram trazendo o povo, cutucando-os com as espadas,
levando-os como gado para verem a morte do casal sob a chuva. Apareceram
depois de algumas horas, tempo em que Guillaume e a esposa ficaram se
olhando calados e apaixonados sem lamentar seu fim. Ao menos morreriam
juntos, era o que cada um pensava. Ela não reclamava das cordas apertadas que
machucavam seus braços. Ele, preso como um animal perigoso, fora colocado de
joelhos, com as mãos atadas nas costas. Começou a fazer planos para se libertar,
mas quatro cavaleiros estavam em volta deles. Talvez não fosse a hora de sacar a
faca presa na boca. Eles o pegariam antes que conseguisse reagir. Estavam
atentos demais.
Os momentos passaram e nenhum deles representou a chance de Guillaume
se soltar. Então decidiu-se que era mesmo hora de morrer. Pensou pela primeira
vez na vida se iria para o Inferno. Julgou que sim. Talvez fosse hora de conhecer
o Diabo que muitos diziam viver no corpo dele desde que nascera. Abriu a boca
e bebeu da água da chuva, depois cuspiu em um soldados. O homem olhou-o
com raiva sem tomar qualquer outra atitude. Guillaume olhou para a esposa
quando finalmente Pierre deu sinal para que a execução começasse. O povo já os
cercara, todos com rostos impressionados; alguns mal humorados por terem sido
obrigados a comparecer sob aquela chuva, outros contentes por ver a morte,
principalmente algo tão incomum quanto o enforcamento de um nobre.
Pierre estava parado em frente à bancada. Observou a irmã e o cunhado
passarem por ele. Nenhum dos dois o olhou. Gostou de saber a família sabia
morrer com dignidade. Não pediram clemência por um momento que fosse.
Tinha que admitir que isso era bom, pois poderia acabar cedendo. Não se julgava
tão forte a ponto de matar gente do seu sangue. Olhou para os corpos de seus
companheiros mortos para dar forças à postura firme. Guillaume merecia a
morte... talvez não merecesse nem ter nascido. Maldito o dia em que seu pai
prometera a irmã aquele demônio. Sem querer, ele juntara dois corações tão
furiosos que ou se matariam ou se uniriam para perpetuar o mal pelo mundo. O
filho deles seria o próprio Anticristo, julgou Pierre.
- Eu a amo – declarou Guillaume, quando as cordas começavam a passar
pela cabeça dele e da esposa.
- Eu também o amo, meu marido.
- Vamos ver se as chamas do Inferno ardem mais do que nossos corpos na
cama – disse ele, com um sorriso que tentou ser irônico, mas revelou tristeza
pela primeira vez. Olhando para a barriga dela, Guillaume percebeu que não
queria morrer. Queria aquele filho e o amor da esposa.
Pierre não ouvia o que eles diziam um para o outro. Irritou-se com a
conversa mesmo assim e ordenou que os executores se apressassem. Eles
desceram da bancada e pararam logo atrás dos prisioneiros. Jean fez sinal para
que tudo acabasse logo. Os homens chutaram a bancada, jogando-a no chão e os
corpos caíram. Dançavam no ar agonizantes. Um relâmpago cruzou o céu e o
trovão ribombou nos ouvidos de todos como um protesto. Alguns poderiam ter
pensado que era a risada de Deus ao ver aquele casal maligno perecer, mas
outros juraram que era o Diabo vindo para levar a alma de Guillaume. Acabaram
vendo que Deus ou o Diabo fizeram mais do que isso. Subitamente, quando o
corpo da mulher já parara de se mexer e o de Guillaume ainda balançava
violentamente, a trave de madeira se quebrou. Talvez fosse pela madeira mal
cuidada e pelos cupins, talvez fosse por milagre, mas os corpos caíram na lama.
As pessoas olharam perplexas para a cena e mais raios e trovões soaram no céu,
fazendo com que todos dessem passos para trás.
Guillaume sentia a dor no pescoço. Um pouco de ar voltou para os
pulmões, mas ainda não era o suficiente. Bastou apenas para lembrá-lo de que
ainda estava vivo. Era a hora de usar a adaga. Retirou-a da bota depressa e
cortou as cordas que atavam a mão. Ainda estavam escondidos atrás da bancada,
e quase ninguém via seus corpos. Somente um dos cavaleiros correu com espada
na mão para tentar impedir que Guillaume se soltasse. Ainda com corda no
pescoço, ele se levantou, afrouxando o nó e respirando tão profundamente que o
som do ar raspou pela garganta. As pessoas se afastaram quando viram o homem
de pé, levantando-se como um vingador para derramar mais sangue. O cavaleiro
que correra até ele parou no meio do caminho quando a faca foi arremessada e
furou-lhe o olho direito. Ele soltou espada e escudo para tatear o ferimento.
Cambaleou por alguns segundos tentando buscar ar, depois caiu. Guillaume
correu para pegar as arma. Pegou apenas a espada e depois correu até a esposa.
Levantou-a sentindo o desespero pela primeira vez no coração. Então o
impensável aconteceu. Ele chorou, pois era evidente que ela havia o deixado.
Gritou para os céus e começou a movimentar a espada. Os cavaleiros não
ousavam se aproximar.
- Peguem arcos, peguem lanças. Acertem-no! – gritava Pierre.
Guillaume começou a andar de costas. Alguns homens tentavam cercá-lo,
mas o cavaleiro continuava caminhando para trás, segurando o corpo inerte da
esposa. Chorava desesperado e gritava coisas ininteligíveis para o céu. Quando
se deu conta, estava encantoado. Batera as costas na madeira da porta da
pequena capela do feudo.
Os pingos fortes das chuvas se confundiam com suas lágrimas. Ele sentia o
peso do corpo da esposa, agora mais pesado do que nos dias que a abraçara em
vida. Quase podia sentir a diferença que fazia o fato de a alma tê-la deixado.
Acertou uma cotovelada na porta e ela se abriu. Estava para entrar depressa
quando ouviu uma comoção em meio às pessoas. Os plebeus corriam
apavorados, gritando por ajuda e tentando conseguir proteção perto dos
cavaleiros de Pierre. Guillaume não notou, mas seus homens haviam voltado e
agora com apoio. Não sabia como os outros haviam advinhado que precisava de
ajuda, mas todos estavam lá.
Ele entrou na capela e fechou a porta. Colocou o corpo da esposa sobre o
altar e olhou para a grande cruz de madeira. Baixou a cabeça envergonhado por
algum motivo que o coração não compreendia. Encontrou consolo na espada e
então se virou. As portas se abriram antes que pudesse jogar qualquer coisa para
travá-las. Ele ouviu as grandes goteiras, ouviu o ranger da madeira no teto. Dois
cavaleiros entraram e ele não pensou em morte, ao menos não na sua. Pensou em
vingança, mas algo o fez olhar para trás. Seus olhos passaram sobre o corpo da
esposa e depois foram para a cruz. Nela, viu a corda do enforcamento. Nem
notara que havia a cortado com a espada para liberá-la da madeira. Na cruz,
percebeu um chamado que nunca o tocara por toda a vida. Talvez porque até
então seu coração estivesse preenchido.
Decidiu que o vazio não ficaria no peito por muito tempo. Encheria aquele
espaço dolorido com o sangue daqueles dois, talvez com o sangue de Pierre.
Gritou pela primeira vez algo que nunca compreendera.
- Deus le volt – bradou, sem saber o motivo. Já ouvira aquele chamado
tantas vezes e agora gritava por um motivo qualquer, talvez porque estivesse
dentro de uma igreja, talvez porque de repente encontrara uma segunda razão
para derramar sangue, alguma que o eximisse dos seus pecados. Seja como for,
no momento, o que importou foi que saltou sobre os cavaleiros. Atingiu o
escudo do primeiro e continuou golpeando com tanta força que o fez recuar.
O segundo cavaleiro tentou circular para aproveitar espaço para o ataque.
Guillaume o viu de relance e girou todo o corpo de uma vez, usando todo o peso
e força que tinha. A espada chocou-se no escudo do inimigo e o fez recuar
alguns passos. Guillaume gritou mais uma vez. Jogou o corpo para a esquerda
para escapar do golpe do cavaleiro e levantou a espada. Fez a arma descer sobre
o braço do oponente. A lâmina bateu quase sobre o pulso. Praticamente sem fio,
mais quebrou e rasgou do que cortou. O homem mordeu os lábios e tentou se
afastar, mas Guillaume acertou-lhe um golpe com o ombro que o jogou no chão.
Virou-se para o outro.
- Vai morrer, seu desgraçado! – gritou.
O cavaleiro o observou sem se mover. As goteiras começaram a aumentar e
de repente uma parte do teto desabou. Madeira e palha se acumularam no canto.
A água entrou rispidamente. O restante da estrutura começou a protestar com
rangidos. Mais uma parte do teto caiu, agora quase acertando a cabeça de
Guillaume. Ele não se moveu por um momento que fosse. O cavaleiro fitou-o
olhos nos olhos e finalmente cedeu. Não ousou dar-lhe as costas. Saiu da igreja
andando para trás com passos cautelosos. Assim que saiu, uma parte da parede
caiu. As pedras quase acertaram Guillaume. Uma chegou a bater de leve em seu
ombro. Ele finalmente voltou-se para o altar. Baixou a espada e caminhou
solenemente sob a chuva que mais uma vez molhava o corpo da esposa. Parou
em frente a ela e retirou os cabelos do rosto. Limpou inutilmente a água que
escorria pela face e baixou a cabeça. Chorou as últimas lágrimas que tinha.
- Por quê? – perguntou. Não havia força ou protesto na pergunta. Era
praticamente retórica. Nem estava endereçada a Deus ou a qualquer figura
religiosa. Entretanto, a resposta para Guillaume foi uma revelação simples. De
repente perdera um filho e uma alma gêmea e encontrou algo que nunca
imaginara ser real, solidão. Ela se adensou sobre seus pensamentos tão
rapidamente quanto a alma da esposa deixou o mundo. Agora via que não tinha
mais tantas respostas. Ouviu os gemidos do inimigo caído. Seus olhos caíram
sobre o homem sangrando. Baixou a espada no rosto do inimigo ferido, batendo
cada vez mais forte. O sangue escorreu. O crânio tornou-se pouco mais que
pedaços de osso e massa encefálica espalhados pela água da chuva.
- Deus le volt – gritou, com os braços tremendo por vingança.
Segurou a mão da esposa e olhou para a cruz. Por que lutar sozinho?
- Deus le volt – repetiu. Lembrou-se que tanto ouvira que os cruzados
gritavam aquelas palavras de guerra.
Dois de seus homens entraram pela porta semiaberta da capela. Estavam
molhados e sujos de sangue. Um deles se aproximou e viu os restos do cavaleiro.
Guillaume não disse nada. Sentindo a mão fria da esposa, imaginou que agora
precisaria de outra coisa para lhe tocar. Soltou a espada e tocou a corda presa ao
pescoço. Estava sozinho no mundo, vivo por algum motivo. Talvez o Diabo
quisesse aquela alma maligna no mundo. Talvez Deus quisesse mostrá-lo um
novo caminho. Olhou para a cruz e suspirou. De repente viu que precisava
escolher. Guillaume era um homem de seu tempo, por mais pragmático que
fosse, não conseguia deixar de enxergar sinais nos fenômenos que o cercavam.
Um de seus homens se aproximou. Era um que o acompanhava há um bom
tempo. Alguns até diziam que era seu irmão bastardo. Era amigo de muitas
batalhas, mas ainda sim não teve liberdade para tocar Guillaume ou dizer
qualquer coisa. Só chutou de lado um pedaço de crânio caído e fez o sinal da
cruz ao ver a esposa de seu senhor morta.
- Vencemos, Henri?
- Sim, senhor. Quer que eu traga seu cunhado aqui?
Algo dentro dele dizia que deveria matar o maldito. A esposa talvez
gostasse disso. Entretanto, preferiu não fazer nada.
- Liberte-o depois de quebrar as mãos e arrancar um talho de seu pênis.
Deixe que os homens peguem tudo o que quiserem. Levem os cavalos e as
armaduras. Mate todos os homens dele um a um. Vamos partir.
Naquele dia ele partiu. Partiu mesmo. Enterrou a esposa no feudo em que
nascera e vivera, em que matara e, uma vez, gerara vida. E em um dia tudo se
acabara. A dor no pescoço o lembrava de que algo havia acontecido. O vazio no
coração o lembrava de que algo precisava ser preenchido. Decidiu que não
queria mais ninguém. Decidiu que a única coisa que lhe restara era lutar. Não
sabia fazer mais nada. Então foi aprender a rezar para encontrar um motivo para
a vida.
Guillaume mal percebeu quando as orações acabaram. O sol despontava e
os templários já haviam saído para cuidar dos cavalos. Os animais eram
considerados tão importantes quanto os cavaleiros. Ainda estava um pouco fraco
dos dias que passou sob a tortura de Bassam, mas já melhorara bastante. Não era
de se abater por muito tempo. Sabia, entretanto, que o Assassino o deixara vivo
para que pudessem se enfrentar em um combate justo para finalmente decidirem
quem era o melhor e acabarem com aqueles anos de disputa. Eram dois meninos
competindo por insanidades que custavam a vida de outros.
Andou pelo castelo de La Fève. Era uma estrutura pequena, sem muitos
cômodos além da capela, o dormitório, os estábulos lá fora, o pequeno muro de
pedras. Não tinha fosso ou qualquer outra proteção. Contava apenas com aquelas
paredes de meia altura que deveriam ser defendidas pelos arqueiros. Guillaume
analisava o local todos os dias, pensando o que aconteceria quando sofressem
um cerco. Já decidira que levaria todos para a batalha e morreriam lutando antes
de capitular. Dante concordava com ele. Por sinal, o siciliano acabava de se
aproximar, acompanhado por Dedrick.
- Temos notícias do grão-mestre, senhor.
- E quais seriam?
- Devemos seguir agora para Sable D´Or e tomar o feudo. Ele julga que
Donat não deve mais controlá-lo. Estamos em uma situação de guerra. Não
podemos permitir que ninguém ouse se colocar contra o rei. Nessa mesma hora,
o grão-mestre já deve estar marchando com o rei para submeter Raymond de
Trípoli. Ele não quer que Donat reúna os senhores mais próximos e apoie
Raymond em Tiberíades.
Guillaume pegou o pergaminho com as ordens. Sempre dera permissão para
que Dante as lesse o quanto antes. Não tinha segredos com o siciliano. Era o
homem de maior confiança que tinha no Templo, para não dizer o mais culto,
diferente de muito dos cavaleiros ignorantes que serviam apenas para levantar as
espadas.
- Os templários cumprem ordens, Dante. Assim o faremos. Reúna todos os
homens. Levaremos todos. – Deu uma olhada no pergaminho. – Hum... Jacques
de Mailly está por aqui. Talvez o marechal possa nos apoiar.
A ideia ainda lhe cheirava a traição. Donat era seu amigo. Todos naquele
feudo eram amigos com quem lutara lado a lado durante anos. Pena que o barão
fosse uma figura tão teimosa. Incrível como não era capaz de entender que era
hora de acabarem as desavenças ou o reino seria destruído. Guillaume não
concordava com o rei, mas aquele era o rei. Talvez a força de Gerard de Ridefort
fosse suficiente para suprimir a fraqueza de Guy de Lusignan e transformar
Ultramar em um reino forte com a disciplina dos templários, a máquina de
guerra perfeita para defender a cristandade no Oriente. Era uma pena que no
meio disso fosse obrigado a passar por cima das amizades.

*****

Guillaume seguiu com toda a tropa para o feudo de Sable D´Or. Deixou
apenas dois cavaleiros em La Fève, mais ninguém, pois não imaginava que
qualquer um pudesse atacar o local. E, se o fizesse, não importaria, pois dividir
seus homens seria o mesmo que indicar a perda no embate em Sable D´Or e a
perda de La Fève. Decidiu que primeiro cumpriria as ordens e depois se
preocuparia se fosse necessário retomar a fortaleza. Seguiram pela trilha no
deserto. Eram quinze cavaleiros, cinquenta sargentos, vinte e cinco turcópolos;
uma força mais do que significativa. Guillaume olhava para trás, vendo as
fileiras cerradas marchando silenciosamente sob o sol e se orgulhava do pequeno
exército que tinha.
Os templários marchavam em duas filas, cada um com sua dupla.
Guillaume seguia na frente com Dante ao lado. Não conversavam, apenas
observavam o deserto. Seus poucos movimentos eram para pegar os cantis e
beberem um pouco da água preciosa. Pararam apenas durante a noite para as
refeições. Os templários, como sempre, dividiram seus pratos e comeram longe
dos turcópolos e sargentos. Rezaram em conjunto e fizeram agradecimentos e
pedidos.
Guillaume observou a noite antes de dormir. Sua mente vagueava pelo
deserto e pensava no quanto estava difícil definir inimigos e amigos naqueles
dias. Seguir ordens era difícil, ainda mais quando partiam de uma personalidade
forte e vingativa como Gerard de Ridefort. O grão-mestre, de certo modo, fazia
Guillaume lembrar-se de si mesmo. Pensava se não teria se tornado daquele
modo, uma fera amadurecida preparando botes para expandir seu poder se os
acontecimentos daquele dia fatídico há dez anos não houvessem o mudado.
Decepcionou-se consigo mesmo quando percebeu que estava questionando
o grão-mestre. Não fizera tantas promessas de seguir regras para depois as
lamentar. Nunca fora um homem de fazer promessas à toa, mesmo em sua época
mais selvagem. Na juventude, simplesmente não as fazia. A única de que se
lembrava era fidelidade que prometera a esposa, uma jura que nunca traiu e
depois se transformou em algo inusitado, difícil compreender, mas que o coração
martelava sobre a razão para forjar em conceito abstrato. Era o amor que sentira
por ela. Não sabia se ainda sentia, talvez não, mas tinha saudades mesmo que as
memórias agora fossem fugidias e o rosto dela às vezes se anuviasse entre tanto
sangue, combate e areia. Depois de dez anos e depois de tanta luta, ainda sentia
saudades.
Os passos de Dante mal fizeram barulho na areia, mas foram o suficiente
para despertar Guillaume de seus devaneios.
- Como faremos se precisarmos sitiar o castelo?
- Chamaremos o marechal. Ele virá com muitos outros cavaleiros. Está
agindo aqui por perto e nos cobrirá. Por enquanto, apenas pediremos permissão
para entrar e tentaremos conversar uma última vez com Donat.
- Ele não cederá, senhor.
- Verdade. Então o sangue de alguém tingirá a areia do deserto. E não será o
meu.
Dante calou-se imaginando a ferocidade de Guillaume nas batalhas. Uma
vez que levantasse as armas, não pouparia os antigos amigos. Aquela era a
última chance que daria a Donat, talvez para liberar a consciência do líder
templário, se é que algo como consciência existia na mente daquele lobo
treinado.
- Acha que o novato lutará contra os amigos? – perguntou Dante, ainda
pensando em laços de amizade que eram perturbados pela guerra.
- Será a hora de sabermos se ele realmente é um templário. Se não for,
temos regras definidas para puni-lo. Já me viu ser brando em alguma punição?
- Não – respondeu tacitamente o siciliano.
- A carne dele vai arder se ousar nos trair. Eu não admito traidores.
Dante sabia que aquela frase era uma das regras do coração de Guillaume.
Nunca vira seu líder ser complacente com a traição. Sempre seguira todas as
suas juras de fidelidade. Talvez por isso estivesse tão pensativo naquela noite.
Estaria avaliando se havia algum juramento implícito na amizade com Donat.
Era provável que não. Era Donat quem lhe devia favores, quem lhe devia a vida.
E o homem já dispensara sua amizade.
- Que Deus e Cristo cubram seu sono, senhor – disse Dante, retirando-se.
O siciliano queria ter um pouco mais de luz para ler a Bíblia. Como não
tinha, rezou e deitou-se para começar a pensar na esposa falecida. Já haviam lhe
perguntado uma vez de que adiantava amar alguém que estava morta. Ele sorrira
de volta e simplesmente respondera que valia a pena simplesmente ser aquilo
que o coração mandava. Preparava-se para dormir quando Dedrick apareceu.
- Dante, acha que haverá guerra?
Dante deitou-se de costas e olhou para o céu, sabendo que Dedrick estava
ajoelhado a seu lado. O templário contou algumas estrelas e imaginou uma cruz
fazendo traços entre elas. Cansado, não queria responder aquela pergunta que lhe
parecia óbvia, mas sabia que as palavras de Dedrick eram a expressão dos
conflitos de fidelidade que se passavam pela mente do jovem templário.
- Já estamos em guerra desde que pisamos na Terra Santa para salvar a
preciosa Jerusalém dos sarracenos, irmão Dedrick.
Dedrick queria especificar a pergunta. Queria se referir a Sable D´Or,
porém não teve coragem. Fechou os olhos e se calou.
Dante teve pena do jovem. Ele não tinha um coração forte como o de
Guillaume, que resistia às dúvidas do conflito do coração e continuava
avançando como o lobo de sempre. O siciliano fez uma oração para agradecer
que só tinha duas fidelidades naquele mundo, à esposa morta e aos templários.
Eram praticamente uma coisa só, pois faziam parte da mesma promessa e regra
que definia sua vida. De ambas as maneiras, lutava para alcançar o céu e revê-la.
Guillaume começou a andar pelo acampamento para verificar se todos
estavam dormindo. Apenas alguns sargentos conversavam em volta da fogueira.
Entre eles estava Henri. Chamou pelo guerreiro e depois ordenou que os outros
fossem dormir. Eles obedeceram como filhotes da besta fera. Henri continuava
se impressionando com a obediência que Guillaume conseguia. Eram anos de
convivência, mais de uma década, e ainda enxergava o templário como um
verdadeiro mestre. Fora tão fiel a La Croix Bleue, que se juntara a ele mesmo
quando resolvera entrar para o Templo e mudar-se para a Terra Santa.
- Como acha que nossos companheiros estão? – perguntou Guillaume.
Henri olhou para o acampamento, mas sabia que o templário não se referia
àquelas pessoas.
- Prontos, como sempre, senhor.
- Diga-os para ficarem onde estão, não importando o que aconteça. Assim
que acabarmos em Sable D´Or, você estará liberado para isso, mas quero você de
volta o quanto antes. Agora vá dormir. Talvez seja preciso afiar as espadas.
- Que o Senhor abençoe nossas lâminas.
- Ele sempre abençoa mãos suficientemente fortes para golpear.
Guillaume foi procurar um lugar para dormir. Passou pelos cavalos e
verificou que todos estavam bem. As sentinelas também estavam acordadas e
atentas. Satisfeito, foi encontrar seus sonhos.

*****
Os templários encontraram Sable D´Or no fim da tarde. Guillaume lhes
dera um bom tempo para descansarem durante o almoço para se recomporem da
viagem. Foram dois dias de marcha e agora o templário suspeitava que deveria
colocá-los para batalhar. Uma pequena parada em uma vila avisara-o da revolta
dos muçulmanos. Guillaume se surpreendera, mas depois se lembrava de alguns
boatos que alguns espiões haviam revelado sobre as terras de Donat e,
obviamente, a ameaça dos Assassinos não deixava sua cabeça. Imaginou se
Bassam estaria o esperando lá. Seria um ótimo local para a luta final entre os
dois.
O almoço acontecera em volta da vila. Alguns cristãos doaram comida para
os templários e solicitaram ajuda. Movidos mais por preconceito religioso do
que por fé, pediram para que os cavaleiros os livrassem dos muçulmanos e da
ameaça de Saladino. Guillaume observou aquele povo e imaginou se eles viviam
mesmo em paz antes da chegada dos cruzados. Teria o desejo de libertação
reacendido neles ou aquela vontade de vencer os muçulmanos era apenas disputa
religiosa?
Os sargentos haviam circulado a vila com a desculpa de que era para
protegerem melhor o local caso alguém se aproximasse. Os camponeses ficaram
gratos, mas Guillaume sabia que aquilo era improvável. A verdade era que
distribuíra ordens para não correr o risco de ninguém sair dali e avisar da
chegada do Templo.
- Senhor, não temos nenhuma ideia da força desses revoltados e se eles
estão mesmo junto com os Assassinos. O que faremos? – perguntou Dante.
- Atacaremos em carga se os portões estiverem abertos e mataremos até que
eles se rendam – respondeu o líder templário. Sorriu e pensou como aquilo
lembrava o velho Guillaume. Não, talvez fosse melhor ser mais tolerante. Se não
houvesse Assassinos entre os revoltosos, com certeza apenas a força do Templo
reunida seria suficiente para fazê-los se renderem. – Vamos atacar em carga,
Dante. Não pouparemos quem levantar armas contra nós, mesmo que esses
sejam cavaleiros de Sable D´Or. Viemos aqui para subjugar o feudo e isso inclui
todos aqueles que vivem nele.
As ordens seriam cumpridas; uma tarefa mais fácil do que haviam
imaginado. De longe, perceberam que a grande porta dos muros do castelo
estava aberta. Homens andavam de um lado para o outro, já tendo estabelecido
uma rotina em volta do castelo. Esperavam pacientemente pela rendição dos
sitiados. Guillaume soubera que muitos guerreiros de regiões próximas haviam
se juntado ao cerco, impulsionados pela proximidade do exército de Saladino.
Não se importavam de estar lutando junto dos Assassinos. Queriam apenas uma
oportunidade de submeter um nobre cristão.
Os templários colocaram os cavalos para correrem tão logo Guillaume
levantou a espada.
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam – gritaram em
conjunto.
O avanço não foi detido por ninguém. Os homens que vigiavam os portões
estavam desorganizados demais até para fechá-los. Haviam relaxado durante os
dias de cerco, ainda mais com a carência de uma liderança forte. A maioria fugiu
quando viu as cruzes vermelhas do Templo se aproximando. Cederam espaço
para que os cavalos passassem pelos portões como conquistadores natos. Os
cascos bateram firmes no pátio, circulando a fonte com o querubim e afastando
os inimigos. Alguns guerreiros tentaram erguer armas, mas eles logo se tornaram
exemplos mortos em pintados de vermelho.
Os sargentos e os turcópolos chegaram pouco depois. Arcos foram
levantados e algumas flechas demonstraram o que aconteceria com quem
tentasse fugir. Henri levou um grupo de seis guerreiros para perseguir alguns
revoltosos que corriam desesperados. Voltou com três homens capturados e uma
espada suja de sangue, demonstrando que ao menos um fugitivo falecera.
Aquilo não fora um combate, mas apenas uma ameaça bem sucedida. Doze
muçulmanos morreram e o restante logo se entregou, principalmente depois que
as portas do castelo de abriram e os hospitalários apareceram para dar apoio à
supressão da rebelião. Édouard encarou Guillaume com uma expressão triste,
talvez decepcionado por reencontrar o templário.
- Como estava lá dentro? Muita festa, Le Mur? – perguntou Guillaume,
quando os dois cavalos pararam lado a lado.
Édouard olhou para os corpos no chão. Contou-os e suspirou. Julgava toda
morte desnecessária, principalmente quando vinha da parte de Guillaume.
- Não... mas parece que você fez sua festa aqui.
- Não, nós templários não festejamos. Como dizemos, é tudo em nome de
Deus.
O hospitalário olhou para o sol ardente, preferindo o brilho ofuscante à face
cínica de Guillaume. Balançou a cabeça e suspirou mais uma vez.
- Cuide de tudo então. Nós já vamos – disse Édouard, começando a virar o
cavalo.
- Espere... sei que deve ter feito um bom trabalho aqui. Ouvi as histórias
antes de chegar. Deus o recompensará, Le Mur.
- Que assim seja – respondeu o hospitalário, sem saber o que dizer ao
receber um elogio de Guillaume.
Os hospitalários, portando seus mantos pretos e as cruzes brancas,
começaram a deixar o feudo, parando apenas para encher os cantis. Guillaume
começou a vê-los partir e deu ordem a seus homens para lhes passarem a comida
que tinham, duvidava que qualquer um deles tivesse algum suprimento depois
dos dias de cerco. Édouard o olhou solenemente e agradeceu apenas acenando
com a cabeça.
Donat saiu do castelo acompanhado de alguns cavaleiros armados. Eram
fiéis a Christophe, mas, no momento, não tinham outra opção além de se
submeter ao barão. Sable D´Or caminhou furioso até Guillaume. O templário o
observou se aproximar, mas percorreu o pátio com os olhos. Chamou por Dante
e disse algo no ouvido do companheiro. Donat ficou curioso para saber o que
era, principalmente depois de ver o sorriso no rosto do templário.
- Por que esse arremedo de exército aqui, templário? – perguntou o barão.
- Vim anunciar que é melhor se submeter, meu senhor. O rei não tolerará
mais nenhuma forma de insurreição. Estamos em guerra e agora quem não está
do nosso lado está contra nós.
- O rei não pode me tirar meu feudo – retorquiu Donat, cruzando os braços.
– Ele é meu por direito de sangue. Não se tira um feudo de um nobre.
Guillaume quase soltou um sorriso irônico. Contendo-se, lambeu os lábios
levemente, apenas com a ponta da língua e pensou o quanto a teimosia de Donat
era lamentável.
- Pois estamos o fazendo agora. A Ordem do Templo representa o rei nesse
caso.
- Quero uma espada! Resolveremos isso em batalha! – gritou Donat.
Parecia um chamado, ao que foi atendido quando seus homens apareceram
empurrados pelos sargentos templários. Vinham dos estábulos e de trás do
castelo. Dante aparecia na frente, cuidando para que os cavaleiros de Sable D´Or
se mantivessem sob as espadas do Templo.
O barão olhou surpreso. O plano dera errado. Suas ordens para que os
cavaleiros vestissem suas armaduras e portassem suas armas para pegar
Guillaume de surpresa foram inúteis. O pior era que os hospitalários já haviam
ido embora. Agora estava sozinho.
- Você me enganou. Aproveitou-se da situação, seu covarde. Queria ver se
me enfrentaria no campo de batalha.
Guillaume desceu do cavalo para encarar o barão diretamente.
- Covardia. Pois bem. Pois bem. Não me acusava dessas palavras quando
estava lutando para salvar seu feudo. Mas as coisas mudam, não é? No entanto,
Donat, você sabe muito bem que eu sou capaz de esmigalhá-lo em qualquer
campo de batalha. Não me desafie. Eu quebrarei seus exérticos, pisarei em você
e mijarei em seu estandarte, meu senhor. – ameaçou calmante o templário. – Não
me venha com ofensas ou experimentará do que minha espada é capaz.
Justamente essa espada que o deixou tão feliz toda vez que era erguida para
acabar com seus inimigos.
Donat sentia-se humilhado. Não tinha resposta para aquelas palavras. Era,
no fim das contas, verdadeiras. Sempre dependera de Guillaume e do irmão nas
inúmeras batalhas contra os Assassinos.
- O rei decidirá o que acontecerá com esse feudo. Vamos avaliar o que está
acontecendo com o povo daqui. – Olhou para os muçulmanos. Estavam todos
reunidos em um canto do pátio, sob o olhar dos turcópolos. – Temo que sua
família perderá o direito a essas terras, visto que você traiu seu rei, portanto, seu
senhor.
- Sou vassalo de Raymond de Trípoli, não de Guy de Lusignan. Não é justo
que retirem meu feudo – protestou Donat. Ao lado dele, Christophe baixara a
cabeça, tentando pensar em um modo de consertar a situação.
- Pois na medida em que agora é inimigo do reino, tomamos sua terra à
força.
- Pois que fique com ela. Levarei hoje meus cavaleiros para me ajuntar sob
a bandeira de Raymond de Trípoli e em breve veremos quem terá as terras de
quem.
Guillaume deu de ombros como quem indica que a escolha era puramente
do barão. Não o impediria de seguir adiante. Ele que acabasse com sua vida
como quisesse. Não era sua responsabilidade mais, agora que cumprira suas
ordens.
- Guillaume, não faça isso. Temos cavaleiros aqui que serão úteis nessa
guerra – interrompeu Christophe. O templário o olhou sem surpresa alguma, ao
lado do pai, que considerava as palavras um pedido de misericórdia humilhante e
também uma insubordinação. – Deixe-me na liderança do feudo. Levarei meus
homens para lutarem ao lado do rei.
O templário sabia que as coisas não funcionavam assim. Não lhe cabia
entregar um feudo a ninguém. A investidura era muito mais complexa. Naquele
caso, apenas o rei poderia decidir quem teria as terras de Sable D´Or. No
entanto, pensou naqueles cavaleiros que seriam, sem dúvida, necessários na
batalha.
- Reúna seus homens, Christophe. Leve-os para servirem ao rei. Talvez ele
lhe entregue o feudo então. Por enquanto, o Templo administrará Sable D´Or, até
que Sua Majestade decida o que fazer.
Guillaume foi ter com os outros templários. Conversou com seus cavaleiros
e os fez se espalharem para avaliarem o feudo. Passou pelos prisioneiros
muçulmanos e fez um longo discurso. Perguntou quem fora o líder da revolta.
Fihr logo foi empurrado e colocado na frente de todos.
- Vai ser enforcado – anunciou Guillaume. Como qualquer líder de sua
época, não poderia permitir que um rebelde continuasse vivo. Não havia piedade
em sua boca quando emitiu as palavras. Em seguida, gritou para os outros. – Ele
será apenas o exemplo. Vocês continuarão vivos, mas sabendo que a justiça
quem faz nessa terra é o rei. Não cabe a nenhum de vocês levantarem armas.
Fihr olhou desesperado para Christophe. O filho do barão logo correu para
acudi-lo.
- Guillaume, esse homem não tem culpa, mas sim os Assassinos. Se o
enforcar, estará apenas culpando o homem errado. Foram os Assassinos que
iniciaram a rebelião.
O templário pensou um pouco. Era justo o que Christophe falava. De fato,
estranhou a defesa do filho de Sable D´Or, ainda mais sabendo que ele era uma
víbora que traíra o próprio pai. Talvez fosse melhor manter aquele homem vivo e
tentar entender a relação que ele tinha com Christophe. Duvidava que aquele
jovem cavaleiro tivesse motivos tão nobres quanto salvar a vida de um
camponês.
- Prendam esse homem agora. Levem-no para dentro do castelo. Decidirei
depois o que farei com a vida dele. Talvez seja preciso julgá-lo com maior
ponderação.
Um sargento passou pelos turcópolos e segurou Fihr pelo braço. Levou-o
para o castelo, de onde alguns templários já saíam depois de ter averiguado tudo
e todos dentro das instalações.

*****

A manhã seguinte começou com Donat preparando-se para viajar até


Tiberíades. Apenas cinco cavaleiros o acompanhariam. Todos os outros ficariam
com Christophe. Decepcionado, o cabisbaixo barão de Sable D’Or pensava que
ao menos tinha a filha consigo, tanto ela quanto Karsten e seus amigos. Fazia
juras de vingança enquanto montava e esperava pela chegada dos outros. Fora o
primeiro a acordar. Para dizer a verdade, nem chegara a dormir. Passara toda a
noite com olhos abertos avermelhando-se com o ódio que ardia na mente. Tinha
uma única esperança de conseguir o apoio de Raymond. Talvez Guy marchasse
contra o conde e então a guerra se iniciaria.
Laure desceu as escadas e se encontrou com Guillaume no salão principal
do castelo. Não tinha rancor do cavaleiro pelo que estava acontecendo com o
pai, por isso se aproximou para uma conversa pacífica.
- Sabe que Melisende foi raptada?
- Sei... Seu irmão me contou.
- O que pretende fazer quanto a isso? – perguntou ela, curiosa com a relação
que o templário mantinha com a prima e com o falecido tio.
- Cumprir minhas promessas, mas cumpro-as uma de cada vez. Por
enquanto, temos uma guerra para vencer.
- Pois bem, boa sorte.
Laure saiu procurando por Karsten. Queria ter certeza de que ele não
saberia que o templário também procuraria por Melisende. Naquele pouco tempo
em que conhecia o cavaleiro, sabia do instinto competitivo e apaixonado que o
movia o faria entrar em uma disputa com Guillaume para saber quem salvaria
Melisende primeiro.
O germânico passara os últimos dias pensando no resgate da mulher.
Recuperado, fora se desculpar com Jean assim que o homem conseguira se
manter de pé e acertar o raciocínio. Depois, reunira os amigos para pensar em
como poderia salvar Melisende. Agora, pouco antes de partir, nem ousara
comentar sobre o assunto com Donat. Sabia que o barão se recusaria a procurar
pela sobrinha enquanto não tinha feudo ou homens para isso. Não poderia fazer
nada contra os Assassinos. Mas Karsten imaginava que sim, talvez em um
ataque sorrateiro, um resgate noturno.
- Não conhecemos a região e você tem promessas de fé e honra a cumprir
que estão acima dessas promessas luxuriosas – disse Gareth. – Não estávamos
vivendo em uma trova ou em uma das história de Artur para você sair correndo
atrás de donzelas durante uma guerra.
Karsten imaginou que se não tivesse se ferido na justa, poderia ter se
mantido de pé para ajudar Melisende. Pior ainda, começou a se culpar por agora
estar misturando mais uma vez seus deveres. Tinha o dever do coração que o
incitava a ajudar o amor sequestrado, porém a honra para com Donat o forçava a
acompanhar o barão para participar de qualquer eventualidade futura.
- Ao menos parece que finalmente vamos lutar – comentou Heiner, ainda
descontente com as poucas contendas pelas quais passara.
O trio saiu do castelo procurando por Dedrick. Queriam saber se ele ainda
estava com os templários. Encontraram-no nos estábulos, junto com outros
cavaleiros. Estavam sempre cuidando dos cavalos.
- Então se tornou nosso inimigo – acusou Karsten.
O jovem templário olhou de volta indagando-se o que poderia responder
para o primo.
- Parece que me acusa de traidor.
- Ele não fez isso e nem fará – interferiu Gareth.
Heiner ficou parado observando a conversa. Era uma briga de família não
tinha a mínima vontade de interferir.
- Escutem, vamos parar com isso. Cada um tomou seu caminho, mas nem
por isso somos inimigos. Somos todos amigos ainda – falou o padre, tentando
consertar a situação difícil.
Karsten estava se deixando levar pelas emoções mais uma vez. Se havia um
problema no cavaleiro era que sua fidelidade excessiva a seu coração. Inebriava-
se em suas paixões e promessas sentimentais e esquecia-se da razão. Gareth
reconhecia isso e se sentia na responsabilidade de ajudar a nobreza de Karsten a
tomar um rumo. Por mais bonito que achasse alguém que conseguia ser tão fiel a
si mesmo em um mundo tão conturbado, era necessário perceber que havia a
necessidade de se submeter à realidade.
- Que seja. Se houver guerra, nós nos encontraremos, meu primo. Espero
que não seja obrigado a enfiar minha lança em seu peito nesse momento – disse
Karsten. – Pode ter certeza que estarei entre os primeiros a penetrar nas fileiras
dos templários e rechaçá-las.
- Preferiria nunca ter que ouvir isso de você, meu primo. Passei a noite toda
me indagando se seria obrigado a levantar a espada a qualquer um de vocês.
Agora vejo onde deve ser depositada a minha fidelidade e esta é para o Templo,
pois meus amigos me esquecem depressa. E eu que perdi uma noite me
preocupando. Isso seria o suficiente para ser chicoteado por traição.
Dedrick falou tudo com os olhos fixos no rosto de Karsten. Uma força
súbita, que julgou vinda da cruz vermelha sobre o ombro esquerdo, havia o
tomado. Não recuaria mais perante ninguém. Agora as dúvidas sobre o que era
estavam sanadas. Era um templário e a vida anterior não deveria mesmo existir.
Karsten deu um passo a frente. Levantou ligeiramente as mãos para segurar
Dedrick pelo manto e sacudi-lo até trazê-lo de volta à realidade. Outros
templários perceberam o movimento e o cercaram. Cruzaram os braços
esperando a reação do germânico. Gareth colocou as mãos no peito do amigo e o
fez recuar. Laure apareceu para ajudar e o grupo saiu do estábulo. Somente
Heiner, com um sorriso meio triste, se despediu de Dedrick com um abraço.
- Não me esqueci de você, meu amigo. Mas fico contente de você ter
decidido pelo que lutar. Nós ainda não decidimos muito bem.
O nórdico pegou os cavalos e levou-os para fora.
- Se procurar uma briga aqui, apenas dará um motivo para Guillaume puni-
lo. Vamos seguir para Tiberíades e lá decidiremos o que fazer, Karsten. Por
favor, não tome atitudes precipitadas – Laure dizia quando Heiner chegou.
- Teremos uma luta lá? – perguntou Heiner, entregando as rédeas dos
cavalos para eles.
- Na situação em que nos encontramos, possivelmente sim.
- Então estou satisfeito. Melhor do que perder tempo com disputas de justa
– disse Heiner, sentindo que precisava dar uma opinião. Por mais fiel que fosse a
Karsten, ele já estava cheio de simplesmente rodar pela Terra Santa. Disseram
que ali ele poderia matar muçulmanos e que sua alma seria salva com isso.
Agora ele não estava nem matando muçulmanos nem salvando sua alma. A ideia
do cristianismo lhe parecia tão simples, mas ao chegar naquele lugar, de repente
as coisas se complicavam. Os muçulmanos que deveriam ser seus inimigos,
viviam em muitas cidades e vilas com os cristãos. E, de repente, havia vários
tipos de cristãos. No meio disso tudo, ainda tinha que aguentar as paixões e a
paciência de Karsten.
Heiner não ficou para ver o rosto de ninguém. Saiu puxando seu cavalo
para encontrar Donat. Sua fidelidade era para com o barão agora. Jurara serviço
a ele e o homem o conduziria à luta que tanto procurava. Talvez assim ficasse
em paz. Que encontrasse a morte naquelas terras malditas para descansar e ter
uma resposta final ou que voltasse como herói purificado para o norte. Caso
conseguisse pisar de novo em suas terras, talvez visse menos fúria, menos
mortes por causa de uma mera cruz.
A mente de Karsten fervilhou de dúvidas que, como sempre, acabavam
suprimidas por suas emoções fortes e decididas. Ajudou Laure a montar no
cavalo e depois subiu no próprio.
- Vamos seguir com Donat e lutar nessa guerra, Gareth. Depois salvaremos
Melisende.
A situação estava bem decidida para todos. Donat, mais à frente, agora com
Heiner ao lado, encarava o filho traidor e Guillaume. Havia alguns outros
templários montados em frente aos portões do castelo, apenas esperando a saída
do barão.
- Traído pelo próprio filho. Traído por um amigo. Se bem que não dá para
esperar nada melhor de um templário. Ele terá sua punição. Raymond não
perdoará isso.
Eles finalmente se reuniram para a viagem. Havia poucos cavaleiros, mas
muitos servos tomaram seus lugares na caravana, a maioria seguindo a pé e
puxando burros com os pertences dos nobres. Ninguém olhou para Guillaume e
Christophe parados, exceto Karsten. Os olhos do germânico se encontraram com
os olhos do lobo templário. Guillaume sorriu e acenou com a cabeça.
- Nós ainda vamos nos encontrar em batalha, templário.
- Espero que seja lutando lado a lado contra os verdadeiros inimigos. Se
não, eu envio uma carta a seus parentes falando de seu nobre falecimento.
- Veremos de quem será a carta.
A esperança de Guillaume era de que as forças cristãs finalmente se
acertassem. Saladino era um inimigo poderoso demais e essa guerra civil não
melhoraria em nada as chances de vencer os muçulmanos. Não tinha medo de
enfrentar Raymond de Trípoli, muito menos um fedelho como Karsten, porém
imaginava o que aconteceria depois, quando as espadas precisassem se voltar
contra Saladino.
Capítulo Sete
Balian de Ibelin desceu do cavalo em frente ao acampamento cristão.
Balançou a cabeça com um ar de decepção ao ver todos aqueles soldados
preparando-se para a guerra. Era quase noite e eles haviam acabado a marcha do
dia em direção de Tiberíades. Havia um ar de cansaço e desânimo. Cavaleiros
retiravam as armaduras e escudeiros escovavam os cavalos. Entregou as rédeas
do cavalo ao garoto que o servia e resolveu caminhar pelo acampamento sem
mais ninguém. Deixou sua escolta de doze homens à espera nas bordas e seguiu
pensativo.
Era bem provável que a maioria dos cavaleiros não entendesse muito bem o
que estava acontecendo. Estavam partindo para uma luta interna enquanto
Saladino os espreitava com dentes afiados indecentemente à mostra. Balian
julgava que Guy deveria estar com o juízo perdido por ter reunido todo o
exército de Jerusalém para uma batalha contra Raymond de Trípoli. Pensando
bem, já podia julgar qual era o problema do juízo do rei, eram justamente as
companhias que sempre levava consigo. Lembrou-se disso quando viu os
templários reunidos em um grupo separado no acampamento. Procurou por
Jacques de Mailly. O marechal era uma figura sensata e Balian gostava dele.
Apreciava a companhia de muitos daqueles guerreiros. Seu único problema era
com Gerard de Ridefort. Não sabia o que fazer com aquele grão-mestre. O
homem era perigoso, tão perigoso que era preciso tomar cuidado ao entrar em
seus jogos, algo que Balian faria naquele momento.
Encontrou a tenda do rei. Havia dois soldados em frente à entrada,
guardando-a com lanças e escudos.
- Diga que Balian de Ibelin está aqui para falar com Sua Majestade – falou,
imponente, olhando em direção à tenda e sem se preocupar em olhar para os
soldados.
Os homens reconheceram o nome. Balian era um nobre importante,
conhecido em todo o reino. Tanto ele quanto Balduíno de Ramleh, que deixara o
reino meses antes, após a conturbada reunião em Acre. Balian ajeitou a armadura
e passou os dedos pela barba, pensando em como seria aquela conversa. Fora
sozinho até ali em uma medida desesperada. Não chamara mais nenhum dos
nobres importantes. Julgara que não haveria tempo.
- Sua Majestade irá recebê-lo – falou um homem que saíra da tenda apenas
para acompanhar Balian.
A tenda era extensa com o interior cheio de cadeiras e baús, tudo para o
conforto do rei. Guy estava sem armadura, vestindo apenas um manto de seda
roxa. Sentava-se no trono e não se preocupou em sequer levantar a cabeça para
cumprimentar Balian. Gerard de Ridefort estava ao lado dele, como um cão
atento e fiel, vigiando seu dono. O cão, entretanto, vigiava tanto o rei que já não
o permitia ir para onde quisesse.
Balian fez os cumprimentos formais que a etiqueta exigia. Negou o vinho e
a comida, aceitando apenas a água após um dia inteiro de viagem corrida para
encontrar o rei. Preferiu ficar em pé a se sentar, pois estava agitado demais.
Precisava gastar a energia que a excitação daqueles meses estava gerando em seu
coração.
- Vossa Majestade tem que parar com isso – disse Balian. – Vossa
Majestade está cometendo um erro. Não pode simplesmente marchar em guerra
contra Raymond de Trípoli.
Olhou de soslaio para Gerard, tomando cuidado para que o templário não
percebesse. Queria saber a reação dele, mas não podia deixar transparecer que se
preocupava com sua força. O grão-mestre franziu o cenho levemente e voltou o
olhar para Guy.
- Raymond nos traiu. Ele se aliou a Saladino e não pode continuar com tal
traição. É hora de ensiná-lo que o rei sou eu e que devo ser obedecido.
- Senhor, todos nós sabemos que o senhor é o rei, mas deve haver alguma
outra maneira de resolver a situação. Rogo a Vossa Majestade para que pondere
sobre essas ações, pense no número de homens que perderá na batalha. Cada
guerreiro que temos é precioso para a guerra que se seguirá contra Saladino.
Guy inclinou o corpo um pouco para o lado e apoiou o queixo na mão
esquerda. Fitou Balian por pelo menos um minuto. Ibelin perdeu a reação diante
do silêncio vazio. Então Gerard de Ridefort abriu a boca.
- Balian, se o rei não mostrar agora sua força, todo o reino se esfacelará,
duvidando da posição de Sua Majestade.
Ele estava certo ao menos em parte. Guy tinha a fama de ser um rei
vacilante desde os tempos em que Balduíno IV o dera a posição de regente. Em
1183, quando todo o exército de Jerusalém se reunira com ele para enfrentar
Saladino, Guy se colocara em uma posição de hesitação, sem saber se cedia à
provocação de ataque do sultão ou se ouvia alguns de seus nobres sobre o perigo
de enfrentar aquela força. Acabou ganhando a fama de fraco entre os soldados e
uma avaliação pobre por parte dos barões. Balian estivera com ele e vira o
homem quase tremendo quando precisava definir sozinho a situação. Na época,
não tinha Gerard para influenciá-lo com tanta força. Agora o rei precisava
afirmar sua posição e força e ainda contava com Gerard para aconselhá-lo
quanto a isso.
- O grão-mestre do Templo está certo, Majestade, mas devo adverti-lo de
que não conta com todos os nobres do reino aqui neste exército. Tem aqui as
forças de Jerusalém, mas tantos outros não vieram. Raymond de Trípoli tem seus
homens.
- Já estamos cuidando para que ele não receba apoio dos barões da Galiléia
– declarou Guy, rindo ao olhar para Gerard. O templário relaxou o rosto e sorriu.
Quase dava para ver as presas da cobra.
Balian mordeu o lábio discretamente. Eles já estavam com todos os planos
armados para o bote. Porém, haviam se esquecido de um argumento importante.
- Vossa Majestade se esqueceu de que Saladino e Raymond estão aliados. O
senhor não terá um exército suficientemente forte para derrotar os dois de uma
vez e eles se unirão contra Jerusalém, com certeza.
Guy se ajeitou no trono e olhou fixamente para Gerard. O templário cruzou
os braços e franziu o cenho novamente. Gerard percebeu logo que cometera um
erro de estratégia. Não contava que a aliança de Raymond e Saladino pudesse
chegar a tanto e só com aquele exército que haviam reunido, não poderiam lutar
contra os dois.
- Vossa Majestade deve ponderar. Está adotando uma estratégia perigosa.
Os pensamentos de Guy flutuaram e depois afundaram em sua fraqueza.
Balian estava certo. Voltou-se para Gerard para confirmar e recebeu de volta um
olhar sério e quase derrotado.
Balian percebeu que era hora de perder a paciência. Guy só cederia se a
influência de Gerard pudesse ser quebrada e isso precisava ser feito
repentinamente e com intimidação.
- É tolice. É pura tolice. Vossa Majestade esfacelará seu reino se o fizer. Os
sarracenos e Raymond varrerão seu exército do mapa. Venho aqui para avisar e
para que o senhor me dê chance de conversar com Raymond e trazê-lo para o
nosso lado. Vossa Majestade não pode perder essa chance – disse, adiantando-se
alguns passos. A voz subira para um tom mais agressivo. Gerard o encarou de
braços cruzados, mas não disse nada. Não tinha argumento para rebater. Guy
nem o olhou para tomar sua decisão.
- Pois bem, Ibelin. Faça-o. Esperarei uma resposta sua, mas duvido que
Raymond tome uma atitude sensata. Tente ao menos lembrá-lo de que ele é
cristão.
A reunião acabara e as esperanças de Balian estavam quase refeitas. Não se
dava feliz por completo, porque sabia que convencer Raymond seria outro
problema. Aquele era um conde orgulhoso de sua posição e que sentia que Guy
sentava-se sobre um trono que era seu.
A noite já estava alta e apenas as tochas iluminavam fracamente o
acampamento. Balian foi até seus homens e deu ordens para que conseguissem
um lugar para dormir. Seguiriam na manhã seguinte para Tiberíades.

*****

Raymond de Trípoli tinha a experiência da vida na Terra Santa marcada no


rosto magro e sério. Era um nobre poderoso e influente. Tinha ciência completa
de seu status e aprendera a conviver com o perigo das batalhas após todos
aqueles anos tendo que dormir com a espada pronta para a guerra. Passara alguns
anos como refém dos muçulmanos e aprendera a conhecer sua cultura.
Descobrira que não existia o mal islâmico como os cristãos pregavam, mas sim
as diferenças religiosas e culturais, que poderiam ser muito bem diminuídas para
uma convivência pacífica. Raymond era um homem que aprendera que ser
oponente em um campo de batalha não significava ser inimigo na mesa ou na
paz. Orgulhava-se de saber disso e gostaria que outros seguissem o mesmo
exemplo, inclusive as visitas que tinha agora em Tiberíades.
O conde olhava a paisagem do feudo de cima da janela de um dos quartos
do castelo. Tinha as mãos cruzadas nas costas e o olhar atento à pequena
comitiva que agora entrava pelos portões. A mente já possuía uma resposta
pronta para Balian de Ibelin, uma que ele sabia que não seria bem recebida.
Atrás dele, sentado em uma das cadeiras dentro do quarto, estava Donat de Sable
D´Or, acompanhado da filha e de um cavaleiro germânico. Se Raymond bem se
lembrava, o nome dele era Karsten, provável genro do barão. O conde avaliou-o
cautelosamente e julgou que seria mais um cavaleiro com mais coração do que
razão, um futuro vassalo beligerante demais, talvez mais teimoso do que Donat.
- Balian se curvou a esse falso rei – comentou Donat. O barão olhava
incomodado para o quarto bem iluminado, cheio de tapeçarias com motivos
árabes. A maioria dos tapetes eram vermelhos e amarelos, alguns dispostos nas
paredes, outros dois no chão, um perto da janela e outro sob a cadeira de Donat.
Nenhum deles tinha imagens humanas, apenas desenhos de flores, paisagens ou
escritos em árabe. Apesar do conforto e da beleza, o barão não conseguia se
sentir bem. O lugar era árabe demais. Mesmo gostando tanto de Raymond,
Donat não aprovava o modo como o conde assimilara a cultura dos infiéis.
- Balian é um nobre fiel. Ele sabe o que faz. Nunca deixei de confiar nos
Ibelin e nunca o farei, Donat. Meu amigo, temos que parar de enxergar tudo
como preto e branco. Se precisássemos enxergar o mundo apenas assim, Deus
não teria nos dado o dom de enxergar as cores – disse o conde. A frase também
era para ele mesmo. Algumas vezes chegou a se indagar se algumas de suas
atitudes eram corretas. Tentava imaginar que não era o tipo de pessoa tão
intransigente a ponto de nunca se ver errado.
- Os mensageiros disseram que aquele rei maldito preparou um exército
para nos atacar... Ele tomou minhas terras... Ele e os malditos templários.
O conde até entendia a fúria do amigo, mas isso não significava que tinha
paciência constante para ela. Às vezes pensava se não seria melhor conceder
alguns soldados para Donat reaver seu feudo. Era também parte de seu dever
como senhor do senhor de Sable D´Or ajudá-lo na guerra. Seria algo como
cumprir parte do acordo de vassalagem e, ao mesmo tempo, se livrar das
reclamações constantes do amigo.
Descruzou as mãos e as apoiou nas pedras da janela. Inclinou o corpo para
ver Balian desmontando lá embaixo. Ele já começava a entrar no castelo.
- Mande Balian subir até aqui – gritou o conde para um serviçal que
esperava do lado de fora do quarto. – É hora de começarmos a resolver essa
situação.
- Você pedirá a coroa?
Não, ele não faria aquilo. Não se deu o trabalho de responder, pois aquela
era uma causa perdida. Jerusalém já tinha um rei e ele não lutaria mais por isso.
Continuou olhando para os homens de Balian. Eram todos bons guerreiros. Já
vira as forças dos Ibelin em ação. Podia confiar neles até em questão de
estratégia, o que costumava ser tão precário nos exércitos cristãos. Havia apenas
três grupos a quem confiaria sua retaguarda: os templários, os hospitalários e as
forças de Ibelin. Infelizmente, não estava na melhor das fases com os templários.
Era lamentável saber que aqueles guerreiros que já o impressionaram tantas
vezes agora estavam sob o comando de Gerard de Ridefort. Restavam como
opções os hospitalários, sempre seus aliados, e Ibelin. Correção... Nem tanto
aliados. Todos haviam jurado fidelidade a Guy de Lusignan.
Balian pediu permissão para entrar no quarto. O conde o recebeu com um
longo abraço e um sorriso verdadeiro. Gostava daquele Ibelin e sabia que era ele
quem evitara que houvesse derramamento de sangue entre os cristãos.
- Seja bem-vindo a Tiberíades, meu amigo.
- Obrigado. É uma honra estar aqui – replicou.
- Você precisa comer e beber. Vou conseguir um quarto para sua estadia.
- Quero só o descanso de um dia. Vim para conversarmos depressa,
Raymond. Sei que não preciso perder tempo com delongas com você. – Parou
um pouco para olhar para Donat, Laure e Karsten.
Raymond os apresentou. Balian já conhecia Donat, mas não a bela filha
dele, nem mesmo aquele cavaleiro germânico. Ficou sem saber se poderia dar
continuidade à conversa na presença deles.
- Guy tomou o feudo de Donat, agora temos que resolver essa situação. Os
templários estão controlando o local e parece que o filho de Donat está
reivindicando a posse do feudo.
- O que é um verdadeiro absurdo. Um filho traidor, um rei usurpador e
cavaleiros templários. O que mais de mal pode acontecer com um homem além
disso? – exasperou-se Donat, gesticulando bruscamente.
- Realmente, isso não está certo, mas Guy... e Gerard... colocaram os
templários e algumas outras forças para neutralizar alguns barões na Galiléia.
Eles tinham um plano preparado e poderia até dar certo, não fosse por Saladino.
Pretende continuar o tratado com Saladino? – perguntou Balian, virando-se de
Donat para o conde.
Raymond não respondeu. Estava pensando. Sempre pensava, por mais que
já tivesse suas decisões já feitas na cabeça. A ponderação sem hesitação era uma
de suas virtudes.
- Raymond, venho em nome de Guy para tentar estabelecer paz entre os
cristãos. Reconheça o rei e junte-se a nós agora que o reino tanto precisa – pediu
Balian, humildemente.
Raymond o olhou de cima para baixo, bem de onde sua posição o permitia
avaliar um amigo ou inimigo. Tinha um ar de orgulho ferido e arrogância
naquele momento, mas Balian sabia que eram sentimentos merecidos daquele
homem.
- Esse rei precisa aprender que minhas terras são minhas terras, Balian.
Quero Beirute de volta e não aceito negociação.
Balian não se conteve. Baixou a cabeça triste, com um sentimento de
fracasso estampado nos olhos. Fez questão de esconder o brilho que se perdera
sob suas pálpebras. Raymond seria irredutível. As negociações acabariam ali.
- Devo dizer que lamento – disse Balian.
Donat se sentiu fortalecido quando ouviu as palavras de Raymond. Durante
a noite, quando todos se reuniram para jantar, não reclamou uma única vez, mas
bebeu bastante em uma comemoração vazia que dizia respeito apenas a si
mesmo. Nem Laure, nem Karsten, nem Raymond ou Balian se juntaram a ele
naquela felicidade. Ibelin enxergou o ressentimento do barão e ali viu uma
semente para tempestades vindouras. Conversando com Karsten, entendeu muito
bem o que Sable D´Or sentia. O filho o apunhalara e ainda perdera a aliança com
Guillaume; justamente o templário que salvara várias vezes suas terras, agora as
tomara. Eram golpes sucessivos que feriram a alma orgulhosa de Donat. Afinal,
qual dos nobres guerreiros cristãos não se orgulhava de seus aliados e guerras
vencidas? E o que eram elas quando um aliado que fora o sustentáculo de todas
levantava-se para desvanecê-las?
Karsten conversou com Balian e aprendeu a admirar aquele cavaleiro. Não
se tornaram amigos, mas gostou de ouvir as histórias que ele contou. Só em um
ponto os dois não concordaram. Ibelin dizia que os templários ainda tinham
salvação e que confiava neles. O germânico não podia acreditar naquelas
palavras. Cansado de ouvir as conversas sobre o Templo, que agora tomavam a
mesa, quando Raymond não conseguia deixar de soltar palavras amarguradas
sobre Gerard, Karsten saiu. Laure o seguiu para lhe servir mais vinho.
- Cansado?
Ele sorriu para o belo rosto da mulher.
- Cansado de esperar, isso sim. Laure, não sei quando a guerra virá. Eu e
meus amigos viemos para cá para cumprirmos promessas e agora tenho que
confessar que nos emaranhamos em mais promessas que nos impedem de
cumprir outras.
- A guerra já veio, Karsten. Mas não acha melhor que não tenha vindo entre
nós cristãos? Pela cruz, não podemos lutar entre nós.
Ele sabia que era verdade, mas sua consciência o pressionava. A fidelidade
a Heiner o forçava a procurar por uma guerra, tão esperada pelo nórdico. A
fidelidade a Gareth o levava a seguir aquela parte da consciência que sempre
ignorava, aquele respingo da razão. Agora, em nome deles, pensava se não era
melhor seguir Balian e renunciar aos votos que fizera a Donat.
Laure tomou liberdade de tocá-lo. Suas mãos pequenas envolveram a mão
que segurava a taça de vinho e olhos brilhantes e suplicantes fitaram o cavaleiro.
Ela sabia no que ele estava pensando e temia por isso. Temia perdê-lo.
- Está pensando em seguir com Balian, não está?
O cavaleiro olhou para as mãos de Laure. Claro que se sentiu deliciado por
ser tocado por ela. Havia aquele calor e aquela delicadeza que quase o
dominavam, o que aumentava seu desejo de rebater aquele sentimento com pura
dominação. Virou a cabeça para o lado, separando-se daquele par de diamantes
que o olhavam intensamente. Havia uma pontada de culpa agora. Lembrou-se de
Melisende e de sua promessa de salvá-la. Mas era uma promessa apaixonada,
feita depois de já ter se comprometido com seus amigos, com seu novo senhor,
com a cruzada. Deveria afogá-la no tumulto do coração.
- Não posso dizer que não pensei nisso, mas não trairei seu pai – disse
Karsten. Pensava que não poderia tomar mais uma decisão apressada. Donat já
sofrera demais com o ataque dos templários, dos muçulmanos e do filho.
Ela o abraçou e agradeceu. Era mais um pretexto para tocá-lo e se
aproximar do que gratidão. Karsten era mais alto, mas a mulher levantou o
queixo levemente e esperou. O cavaleiro inclinou a cabeça para olhá-la,
surpreendido pelo gesto. Quase cedeu àquela tentação. Os lábios estavam
próximos demais, a pele pedia para ser tocada por seus dedos, os seios roçavam
em seu peito. Desejou-a tanto que se assustou. Ficou imóvel antes de abraçá-la
de volta para senti-la mais de perto. Então, culpado, soltou-a. Podia ouvir
Melisende pedindo por socorro e Gareth o acusando de frivolidade.
- Prometa que estará sempre comigo. Tenho fé que poderá me proteger, meu
cavaleiro – pediu ela. Segurava-o levemente, com a ponta dos dedos, mas para
Karsten parecia haver uma força sobrenatural que o instava a ficar ali, parado,
apenas esperando que ela acabasse de falar.
As promessas mais uma vez se emaranhavam e o embaraçavam como a
armadilha bem preparada de uma aranha. Não sabia o que dizer. Por honra,
deveria proteger aquela dama que era filha de seu senhor. Mas já tinha tanto o
que fazer que não podia se dar ao luxo de fazer outra promessa. Pensou e
indagou-se se qualquer outro cavaleiro não juraria a proteger. Quem resistiria
aquele olhar de anjo?
- Estou aqui para servi-la, minha dama. Sirvo a seu pai e não faltarei com
meus votos – disse, desvencilhando-se dela e fugindo de afundar-se ainda mais
naquele poço.
Laure não o seguiu quando ele voltou para junto dos homens. Sabia que
quase conseguira uma vitória. Era paciente e continuaria o jogo. Em breve
venceria. Com Melisende longe, o cavaleiro cederia a seu calor.

*****

Balian voltara para Jerusalém sem as boas notícias que julgava essenciais
para a sobrevivência do reino. Passara por Nablus, seu feudo, e depois fora
resolver alguns negócios na cidade santa. Andava sempre com uma comitiva
pequena, apesar de ser um nobre de tanta importância. Os poucos cavaleiros que
o acompanhavam eram amigos de longa data. Dormia tranqüilo toda vez que
acampava, pois sabia que estava bem protegido com aquelas espadas que já
haviam ficado tanto tempo a seu lado.
Entrou em Jerusalém em abril de 1187 com a simples intenção de rezar e
realizar negócios que trariam lucro para o feudo. Talvez andasse pela corte para
se interar do que estava acontecendo e depois voltaria para a esposa e
continuaria cuidando de Nablus; cuidado que incluía preparação para a guerra.
Passou pela Porta das Flores, entrada norte da cidade, onde seria recebido por
um amigo. Este o esperava montado em um cavalo árabe pequeno, de pelos
castanhos. Estava acompanhado de outros três cavaleiros. Não passava de um
pequeno nobre desconhecido, que não tinha pouco mais do que quinze guerreiros
e três cavaleiros para ceder ao reino. Ainda sim, para Balian, era uma pessoa
importante. Era alguém que lutaria quando fosse necessário.
- Como vai, Dion? – perguntou Ibelin. Nenhum dos dois desceu do cavalo.
Apenas estenderam os braços e deram as mãos.
- Vou bem, mas temo ser portador de más notícias, Balian.
Era de se esperar que Jerusalém o recebesse com problemas. Olhando para
a multidão caminhando pela rua à frente e enxergando as grandes estruturas de
igrejas e templos, Balian não enxergava nada além de motivos para batalhas.
Havia algum tempo que perdera a capacidade de ver todo aquele esplendor como
símbolos de fé. Os anos que já havia lutado e até passado preso haviam
enrijecido o coração e os sonhos, apesar de nunca terem riscado sua nobreza e
sua fé. Estas eram duas características que o moviam, os estandartes que erguia
todas as manhãs assim que abria os olhos. Era um homem temente a Deus e fiel
a seus princípios.
- Pode dizer, caro Dion. O que espera por minha espada agora? – perguntou,
sorrindo um pouco e fazendo um carinho no pescoço do cavalo.
- Saladino está preparando-se para a guerra. Seus homens estão se
movendo. É mais sério do que pensávamos.
Balian continuou alisando o pelo do cavalo. O animal permanecia imóvel,
apreciando o gesto do dono. Ibelin sorria e pensava. Aos poucos o semblante foi
se tornando mais rígido, à medida que as decisões começavam a ser formuladas
na cabeça.
- Pode me fazer um favor, Dion?
- Sim. O senhor sabe que a resposta é sempre sim.
- Vá até seu feudo e prepare seus homens, depois siga até Nablus. Temo que
minha esposa precise de sua ajuda para preparar meus homens.
Dion fez que sim com a cabeça e se despediu de Balian. Ibelin moveu o
cavalo, passando pela rua cheia de cristãos e muçulmanos. Cavalgou lentamente
por algum tempo, até chegar a uma esquina, então virou-se em foi para a igreja
de Sant´Ana, perto da porta de Josafá, a leste da cidade. Era o mesmo caminho
para o Vale de Josafá, onde estavam a Tumba da Virgem, o Monte das
Oliveiras... Getsêmani. Queria pedir ajuda à Virgem e à Sant´Ana antes de
cumprir o que acabara de planejar. Seguiu caminho pensando nos complicados
anos de batalha.
Viu alguns templários e hospitalários caminhando aqui e ali, nunca
sozinhos, e as memórias se reavivaram com mais força. As imagens do ano do
Senhor de 1179 formavam-se com tanta força quanto o sol da Palestina. Parecia
que estava de volta ao rio Litani com o exército cristão, ainda liderado pelo rei
Balduíno IV. Estava pronto para lutar contra Saladino. Na ocasião, o líder
muçulmano assediava um castelo no Vau de Jacó e os cristãos ainda estavam
unidos para combater. O rei chamara Raymond de Trípoli para ajudá-lo e fora
plenamente atendido. Marcharam com intenção de interceptar uma das tropas do
sultão. Não seria uma vitória fácil, mas a estratégia era boa e era de se crer que
Deus estava do lado deles. Venceriam e tomariam o butim que os muçulmanos
haviam pegado após destruir as plantações entre Sídon e Beirute. Foi uma pena
que Saladino tenha os percebido. Ele viu, de um ponto de observação, como os
rebanhos se moviam em pânico nas margens do Jordão, fugindo do exército de
Cristo. Então lançou seu exército contra os inimigos.
Raymond e os templários seguiam na vanguarda. Era normal que o Templo
estivesse naquela posição. Podia-se confiar nos seus cavaleiros para enfrentar o
que viesse. Eles nunca recuariam. O mesmo era dito do conde. Foi uma pena,
entretanto, que os templários tenham confiado demais em suas habilidades e se
excedessem em sua coragem. Atacaram prontamente as forças de Saladino.
Aquele sultão, entretanto, não era alguém que poderia receber um golpe como
esse. Odiando os cavaleiros do Templo, reverteu o ataque e fez os cristãos
debandarem. Em pouco tempo, todo o exército de Balduíno IV fugia. Quem não
atravessou o rio foi massacrado. Houve homens que se afogaram no desespero
da fuga.
Balian gostaria de dizer que havia lutado bem e vencido, porém, poderia
completar a frase apenas com sobrevivido. Tanto ele quanto Odo de Saint-
Armand, grão-mestre do Templo naquela época, foram presos. A importância de
Ibelin foi revelada no resgate exorbitante que Saladino exigiu. Foram 150 mil
dinares, o resgate de um rei. Após meses de negociação, decidiu-se que seria
libertado em troca de mil prisioneiros muçulmanos e com a promessa de que
obteria o dinheiro.
A estadia entre os muçulmanos fizera Balian ter mais fé, por acreditar que
sobrevivera a um massacre e ainda teria nova oportunidade de lutar. Aprendera a
não desvalorizar o inimigo e a perceber a honra que havia naquele sultão. Teve
longas conversas com seu companheiro de prisão, Odo de Saint-Armand. Não
conseguia entender o templário. Às vezes, parecia um cavaleiro teimoso e
orgulhoso, outras vezes um homem de fé que não se curvaria a ninguém a não
ser ao Deus e ao rei que jurara defender. Odo negou qualquer resgate, inclusive a
ser trocado por algum importante prisioneiro muçulmano. Balian queria saber se
era orgulho. Diziam que era... Falavam que o grão-mestre não julgava que
ninguém pudesse ter o mesmo valor que ele, um cavaleiro templário. Outros
comentavam que a ordem nunca pagava resgate por seus prisioneiros. Estava na
regra do Templo e ela deveria ser seguida até mesmo em relação a seus líderes.
A igreja de Sant´Ana estava fria em relação ao calor do lado de fora.
Poucos peregrinos a visitavam e a maioria estava ajoelhada rezando. Ouvia-se
um murmúrio contínuo das orações. Balian ajoelhou-se ao lado de uma mulher
idosa. Não sabia, mas ela estava ali todos os dias, sempre preocupada com a
guerra, orando para que tudo acabasse logo. O nobre fez seus pedidos e
agradecimentos e levantou-se tão rápido quanto chegou. Queria ter mais
concentração para comungar com Deus, porém havia necessidades que estavam
deixando-o nervoso. Pediu perdão por ser tão sucinto nas orações e saiu. Ao
menos rezara um pouco, o que, em sua visão, era essencial para concluir seus
planos.
Saiu da igreja pensando no irmão. Seria bom se ele estivesse ali. Sempre
podia contar com Balduíno de Ramleh em qualquer batalha. Para dizer a
verdade, seria melhor se ele fosse o rei de Jerusalém. Era uma pena que a
oportunidade tivesse passado. Balian se lembrava de quando Sibylle estava
solteira e se apaixonada por Balduíno. O casamento deles, aos olhos de muitos
nobres locais, teria sido uma benção para Ultramar, a despeito das origens
modestas dos Ibelin. Foi uma pena quando Balduíno foi capturado. Sibylle
chegou a escrever-lhe declarando seu amor, mas esse sentimento não parecia tão
forte, pois se esvaiu quando o Ibelin saiu da prisão. Ela se recusou a aceitá-lo
enquanto devesse um resgate tão grande. Balduíno tentou saldar a dívida
pedindo dinheiro ao imperador de Constantinopla. Quando voltou com os
recursos, era tarde. Já havia toda uma trama que os falcões do reino haviam feito
para que Sibylle se casasse com Guy de Lusignan. Por mais que o rei na época,
homônimo do Ibelin, Balduíno IV, fosse contra, o casamento acabou tendo
aceitação e assim foi feito.
Um ressentimento incômodo dardejava o coração de Balian quando se
lembrava disso. Fazia-o pensar o quanto o orgulho do irmão fora ferido nesses
malditos jogos pelo poder de Ultramar. Imaginava se tudo aquilo valia a pena, se
todas aquelas igrejas valiam as vidas e almas que eram desperdiçadas em tantos
jogos. Eram pensamentos que ficavam apenas em indagações e indignações,
entretanto, pois Balian continuava se envolvendo nos jogos e se recusava a dar-
se como derrotado. Não nascera para perder. Deus dera a sua família a honra e a
glória. Estava certo disso, ou não teria sobrevivido a tanto. Os Ibelins saíram do
desconhecimento para se colocarem entre os cavaleiros mais famosos de
Ultramar. Ele não perderia isso. Não era homem de recuar nem mesmo quando o
veneno tocava-lhe o sangue.
Subiu no cavalo e chamou por sua escolta. Continuou pelas ruas, vendo o
povo abrir caminho para sua pessoa. Aquilo massageava seu ego, não podia
negar. Passou pelos banhos e tomou a Rua dos Peleteiros. Dava para enxergar a
área do Templo, onde os cavaleiros templários dominavam. Viu a cúpula da
Rocha erguida, aquele antigo monumento à glória do Islã, agora submetido ao
poder de guerreiros cristãos. Era dali que seguiria para o palácio real, entrando
pela porta Formosa, área vigiada constantemente pelos templários, que
observavam peregrinos cristãos e muçulmanos passando constantemente.
Permitiram que Balian passasse sem perguntar o que ele queria. Reconheciam o
rosto do nobre e tinham noção da posição dele. O Ibelin sorriu, pois ter respeito
entre os orgulhosos templários era um prêmio. Parecia mesquinho, mas ele não
deixava de sentir orgulho. Fazia parte de sua alma.

*****

Gerard de Ridefort sabia que aquele não seria um bom dia. Acabara de
receber o relatório sobre as tropas de Saladino. Os espiões estavam certos de que
em menos de um mês o sultão estaria pronto para um ataque em força total, que
poderia devastar Jerusalém se os cristãos não estivessem unidos. O grão-mestre
olhou para as pessoas de pé a sua volta, pensando como seria tramar sua união
sob seu comando. Estavam na suntuosa sala do trono de Guy. Apenas ele e
algumas figuras mais importantes estavam sentadas.
O arcebispo de Tiro, Josias, o patriarca de Jerusalém, Heráclio, o grão-
mestre do hospital, Roger des Moulins e mais alguns nobres de menor
importância discutiam a situação do reino. Poucos desses importavam a Gerard.
Sabia que poderia submeter todos usando apenas sua posição como líder
templário. Os outros temeriam simplesmente ao reconhecer a influência que
tinha quanto ao rei. Mesmo Heráclio, aquele corrupto sacerdote, de caráter tão
fraco quanto um sapo, não ousaria discordar de Gerard. Apenas Josias e Roger
seriam ameaça. O grão-mestre do Hospital era uma figura ponderada, além de
sempre ser um partidário de homens como Raymond.
- Temos que preparar o exército o quanto antes – disse um dos barões,
apenas repetindo o óbvio.
- Já sei disso, entretanto o reino ainda está dividido. Temos rebeldes entre
nós – disse Guy.
Roger des Moulins retorceu a boca como se fosse dizer alguma coisa para
protestar. Guy o olhou, esperando que falasse. Gerard, atento à situação, interviu
antes que as palavras do hospitalário contaminassem algum dos nobres menores.
Se assim fosse feito, seria meio caminho para a desorganização.
- O rei sabe muito bem dos problemas que existem em Ultramar e os
templários estão o apoiando para conseguirmos a coesão necessária para
rechaçarmos Saladino. Temos poder para isso, além de termos Deus do nosso
lado.
A interrupção calou Roger, como Gerard previra. O hospitalário não se
posicionaria antes de estar certo dos planos dos templários. Imaginaria que o
Templo teria algum segredo escondido, alguma estratégia conspiratória para usar
no momento certo e desarmar o que quer que o Hospital dissesse. Era assim que
Roger aprendera a lidar com Gerard e o grão mestre templário reconhecia isso.
Como uma serpente brincando com sua presa, ia cercando e aproveitando das
defesas do alvo para novos ataques.
Balian entrou na sala do trono discretamente, mas sua figura chamou toda a
atenção dos presentes mesmo assim. Pescoços se retorceram e corpos viraram-se
para observar o Ibelin que caminhava para se juntar aos barões. Guy recebeu os
cumprimentos dos cavaleiros e rapidamente se interou do que se passava na
reunião. Ficou calado no início das discussões. Ouviu os nobres relatarem as
forças de que dispunham e tentarem traçar planos para deter Saladino em uma
região ou outra. Houve quem dissesse que era melhor esperar em Jerusalém,
onde lutariam sob a proteção direta de Cristo. Balian quase riu disso e viu a
mesma expressão de deboche no rosto de Gerard. Ao menos havia algo em que
os dois concordavam. Teriam que lutar e não bastaria esperar. A preparação
exigia mais.
- Precisamos do Conde Raymond de Trípoli – disse Balian, por fim.
A reunião se silenciou e olhares de dúvida e até de indignação foram
trocados. Roger fitou o Ibelin e assentiu com a cabeça, transmitindo seu apoio.
Havia um sorriso nos cantos de seus lábios. O único que disse algo foi Gerard.
- O Conde de Trípoli é um traidor. Como faremos para tê-lo do nosso lado
se ele até já tem uma aliança com o inimigo?
O silêncio desapareceu, quebrado nervosamente por palavras de indignação
que apenas esperavam que o estopim fosse aceso para explodirem da boca dos
barões.
Guy ficou perdido no meio da algazarra. Não fez questão de pedir silêncio,
pois queria aproveitar o momento para pensar. Se tivesse a oportunidade de uma
reunião com Gerard, talvez pudesse esclarecer algumas dúvidas e renovar suas
forças. Desde o primeiro encontro com Balian no acampamento, ele não sabia se
valia a pena continuar a querela com Raymond. Ainda que se negasse a retribuir
Beirute ao conde, começava a pensar que realmente precisava dele. Só não sabia
como negociar isso.
- Raymond ainda é cristão e pode estar conosco. Rogo-lhe que envie outra
comissão conosco. Envie os grão-mestres para comprovarem a importância de
Raymond e me ajudarem a convencê-lo do quanto é necessário para o nosso
exército.
Guy ainda não parecia convencido. Balian sabia que precisava pressionar.
Viu o rei olhando de soslaio para Gerard e, antes que o grão-mestre pudesse
falar, ergueu a voz para mais um argumento.
- Vossa Majestade perdeu seu melhor cavaleiro em Balduíno de Ramleh –
disse, batendo orgulhosamente no peito, para demonstrar que falava de seu
sangue. – Se perder o apoio e a orientação do conde Raymond, estará acabado.
As vozes se apagaram para se transformarem em olhares perturbados.
Muitos nobres poderiam ser contra Raymond, até mesmo contra os Ibelins, que
não eram de uma linhagem famosa, mas nenhum deles ousava destratar o valor
daqueles guerreiros nas guerras por Ultramar. Era verdade que já haviam perdido
muitos aliados na ascensão de Guy. Agora poderiam perder ainda mais. E se
Balian também se movesse do Reino de Jerusalém para seguir para Antioquia,
como o irmão fizera? Os partidários do Ibelin, que tinham feudos próximos a ele
ou que estiveram junto dele nas batalhas anteriores, temiam perder aquele líder
importante e seus preciosos cavaleiros. Desviaram os olhares para Guy e
esperaram uma resposta. Poucos deles se voltaram para Gerard. O templário
começaria a abrir a boca mais uma vez, mas agora foi desarmado por Roger.
- O Hospital está plenamente disposto a participar dessa embaixada. Vossa
Majestade pode contar com os hospitalários – anunciou o grão-mestre, com o
canto dos olhos se movendo para Balian. Havia um sorriso oculto na expressão
dele.
- Se Vossa Majestade permitir, eu pretendo seguir em tal comitiva –
ofereceu Josias, o arcebispo de Tiro.
Por fim, os nobres se viram obrigados a olhar para Gerard e esperar pela
resposta do Templo. O grão-mestre fitou Balian e moveu um olhar lento sobre
Josias e Roger. Nenhum dos dois se intimidou. Acuado, ele tramou planos de
vingança e ofensas, um veneno que destilaria durante toda a viagem. Começou a
planejar como reverter a situação a seu favor imediatamente. Não perderia as
rédeas.
- O Templo seguirá com a embaixada, pois nunca deixamos de apoiar
Jerusalém e nosso rei. Se Vossa Majestade assim decidir, será feito.
- Pois bem... Está decidido. Josias, Gerard, Roger e Balian partirão o quanto
antes para Tiberíades e lá tratarão com o conde Raymond. Espero que tenham
sorte. Que Cristo os acompanhe.
Balian respirou aliviado. Conseguira. Talvez com Gerard ajudando a selar o
acordo de paz, Raymond se convencesse de que não podia continuar a trégua
com Saladino. Roger aproximou-se do Ibelin e deu-lhe a mão. Bateu de leve em
seu braço, sorrindo e o parabenizando discretamente. Josias passou por ele e
também sorriu, mas não parou. Gerard continuou sentado, pensativo. Balian o
temeu por alguns segundos. Havia veneno naqueles olhos.

*****

A comoção que tomou conta de Tiberíades era devida a apenas uma figura
que acabara de chegar vestida em trajes árabes. Tinha um turbante branco, mas
as roupas eram feitas em tom de vermelho. De barba bem feita, cavalgou através
do portão com cautela, mas sem temor. Os nobres o observavam lá de dentro.
Donat olhou aflito para a figura. Teve raiva por ver um muçulmano entrando
assim nas terras de Raymond e começou a suspeitar que talvez o conde também
fosse um traidor. Aquele acordo com Saladino poderia levá-lo a lutar contra
Jerusalém.
O barão de Sable D´Or sentou-se preocupado e cheio de conflitos. Laure
parou ao lado dele e passou a mão por seus cabelos, tentando consolá-lo. Donat a
puxou para si e olhou para Karsten.
- Acho que haverá uma batalha enfim. Só não esperava ter que lutar contra
Guy tendo os malditos muçulmanos como aliados – lamentou Donat. Por mais
que odiasse Guy, não queria trair sua fé tendo Saladino a seu lado. Não esperava
nada disso quando foi pedir ajuda a Raymond, muito menos quando se recusou a
prestar homenagem ao novo rei.
- Ainda não sabemos o que o emissário quer, meu senhor. Vamos esperar –
disse Karsten. – Com sua licença.
Saiu do quarto observado por Laure, enquanto o barão tinha o olhar perdido
na janela. Ela se desvencilhou do pai por um segundo e foi ter com o cavaleiro
no corredor.
- O que vai fazer? Raymond não o deixará participar da reunião.
- Eu imagino, mas ficarei esperando. Talvez ele tenha algo para dizer
depois.
- Vai fazer o que se houver luta? – perguntou ela, segurando na mão dele.
Karsten perdia a concentração quando a via tão próxima. Era bonita demais para
que seu toque fosse ignorado.
- Não sei. Só sei que, no fim das contas, não vim aqui para lutar ao lado dos
muçulmanos. Aí serei obrigado a pedir permissão a seu pai para ir embora.
Ela não esperava menos. Era óbvio que o cavaleiro faria isso.
Karsten foi descer as escadas com os pensamentos em Heiner e Gareth. O
nórdico não aceitaria de maneira alguma lutar ao lado dos muçulmanos. Sua
educação cristã era rebelde e de grilhões fracos que seriam rompidos
rapidamente se fosse jogado naquela contradição. Fora levado a crer que os
muçulmanos eram inimigos e viajara semanas para lutar contra eles e salvar sua
alma, como fora prometido. A influência dos deuses pagãos ainda era forte na
alma de Heiner. Era uma fé dormente que despertaria quando houvesse tumulto
na frágil consciência cristã. Karsten ouvira Gareth comentando sobre a situação
várias vezes.
Passou por alguns cavaleiros de Raymond que agora esperavam o conde
sair de sua reunião com o emissário. Tinha o mesmo olhar ansioso de Karsten. O
germânico procurou Heiner e Gareth entre eles. Não achou, porém, momentos
mais tarde, eles entraram pela porta do castelo. O trio se reuniu para esperar
notícias sobre a reunião.
- Por que tem um muçulmano aqui? Por que vocês não definem logo o que
é aliado e o que é inimigo? Ah, nunca pensei que ser cristão fosse tão
complicado. Desse jeito deve ser muito difícil ficar salvando almas – disse
Heiner. Usava palavras e questões simples, mas Gareth entendeu que havia um
questionamento profundo ali. O nórdico apenas não se expressava totalmente.
Percebia que aquelas indagações aparentemente ingênuas eram na verdade
provocações feitas pela alma revolta do nórdico que ainda não se habituara à
ideia de se voltar para o cristianismo.
Heiner escondia de todos, mas aprendera o quanto os cristãos eram
melindrosos. Viviam receosos de tudo em sua fé, com medo de que qualquer um
falasse alguma coisa diferente do já previsto. Quando isso acontecia, logo havia
bocas abertas e discussões, isso sem falar naquelas muitas contradições. Uma
delas quase impediu Heiner de aceitar a religião, era o tal voto de não matar. O
nórdico não entendia que tipo de homem era esse que pregava para não guerrear
e, no entanto, achava tão importante matar aqueles que discordavam ou tinham
só um deus ou dois a mais para orar. Foi quando percebeu o quanto os cristãos se
ofendiam facilmente e matavam por causa disso, que ele riu e decidiu aceitar os
tais votos. No fim, trucidar alguns aqui e ali seria o equivalente ao Valhalla,
talvez apenas sem as mulheres e as bebidas, mas Heiner precisaria trabalhar com
isso. Era estranho estar em uma religião em que até possível alcançar a salvação
rompendo um de seus tais preciosos Dez Mandamentos. Contraditório, mas
muito interessante para uma alma que aprendera desde o nascimento que a
guerra estava no sangue dos homens.
O emissário muçulmano deixou o castelo uma hora mais tarde. Raymond
chamou todos no salão do castelo para dar as notícias. Apareceu pensativo,
passando a mão pelos cabelos pretos. Coçou o grande nariz que sobressaía no
rosto de pele escurecida pelos anos sob o sol.
- Saladino, através de seu filho, al-Afdal, pediu permissão para que seus
homens passassem por nossas terras para uma missão de reconhecimento. Eu
permiti, desde que prometessem não tocar em nenhuma cidade ou aldeia
enquanto estivessem aqui e que não passassem mais do que um dia. Quero agora
mensageiros para avisar a todos do feudo que se recolham atrás dos muros,
protejam seus rebanhos e que não tenham medo. Nada acontecerá a ninguém.
Que os mensageiros partam agora – ordenou, selecionando alguns cavaleiros
para falar com alguns nobres e pedindo que outros emissários fossem contatados.
O conde estava para ir para o quarto descansar e pensar quando um
emissário, esse cristão, surgiu de repente. Estava sujo depois de dias cavalgando
velozmente pelo deserto. Pediu desculpas ao entrar subitamente no salão e se
ajoelhou perante o conde.
- Meu senhor, venho entregar-lhe uma mensagem. Uma comitiva partiu de
Jerusalém para ter com sua nobre pessoa. Chegarão em breve. São nobres de
importância que gostariam de ter o prazer de serem recebidos em Tiberíades.
Raymond olhou para o alto, pensativo. Mais problemas. Com um semblante
preocupado, tomou as palavras.
- Vá descansar. Quero outro emissário aqui agora. – Um jovem sem barba
apareceu. Era filho de um dos cavaleiros e procurava um modo de finalmente ser
útil. – Converse com esse homem e aprenda a rota seguida pela comitiva. Vá e
os avise rapidamente.
Os homens começaram a conversar discretamente entre si, tentando
adivinhar o que aconteceria quando a comitiva chegasse.
O sol raiou no dia seguinte com a mesma despreocupação e rigor de
sempre. Donat já estava de pé e mais uma vez observando pela janela. Viu os
muçulmanos passarem. Havia mais de cinco mil deles, uma força incrível, como
o barão raramente vira na Terra Santa. Cuspiu no chão com raiva, quase
acertando o pé de Laure, que acabara de chegar.
- Lá vão esses filhos do Diabo, minha filha. E eu aqui sem um feudo e sem
cavaleiros para lutar contra eles.
- Acho que o senhor tem os cavaleiros sim. Karsten e outros lutariam pelo
senhor. Karsten poderia muito bem desafiar Christophe ou mesmo Guillaume e
conseguir o feudo de volta.
Donat pensou nas palavras da filha. Sua mente tomou justamente os rumos
que a mulher esperava. Se assim o fizesse, estaria, de algum modo, devendo um
grande favor ao germânico. Estava cansado de favores.
- Ah, meu pai, não imagina como me dói ver nossas terras na mão de nosso
sangue traidor. Deveria ser nosso sangue em Sable D´Or, mas um sangue digno e
fiel ao senhor – continuou ela, cercando os pensamentos e ressentimentos do pai.
Donat repensava os favores. Não queria se sentir humilhado perante
ninguém mais uma vez como acontecera com Guillaume. Passou por sua mente
que poderia deixar para pagar esse favor apenas depois de morto, quando o
orgulho não mais poderia amargar sua alma. Karsten já provara ser um bom
guerreiro. Fora fiel ao barão nesses tempos difíceis. Por que não entregar sua
filha e o feudo a ele? Seria a herança e a promessa que deixaria. Casar Laure
com Karsten o obrigaria a tomar o feudo de volta em nome da honra. Já era hora
de ter uma conversa franca com o germânico.

*****

Gerard observava a lua sozinho naquela noite de abril. Era o último dia do
mês e ele estava seguindo para fazer o tratado de paz com seu mais ardente
inimigo em Ultramar. Era com pesar que seguia aquela viagem. Cada passo que
dava, era pensando em como poderia reverter a situação a seu favor. Se
Raymond comparecesse à corte de Guy, teria força o suficiente para influenciar o
rei e impedir que os planos do grão-mestre continuassem. Sua dominação
templária, ou melhor, a dominação de Gerard, estaria perdida.
Ele havia chegado ao castelo de La Fève naquela mesma tarde e agora
esperava apenas pelo maldito Balian. Ainda se vingaria dele também, mas tudo
correria a seu tempo. Tudo a seu tempo. Não havia necessidade de pressa.
Primeiro Raymond, a presa maior, depois Balian.
Os templários de La Fève haviam voltado sob as ordens de um tal Dante.
Guillaume continuava em Sable D´Or cumprindo as ordens e talvez se
preparando para já invadir outros feudos, apenas esperando para que a coleira do
lobo fosse liberada. Gerard fizera questão de contar oscavaleiros e refazer os
cálculos de quantos tinha na região. Cada um deles seria precioso para o caso de
um combate repentino contra Raymond.
- Gerard – chamou alguém. Ele virou-se devagar e arrogantemente para ver
o grão-mestre do Hospital se aproximando. O arcebispo Josias caminhava ao
lado. Gerard conhecia muito bem os rostos das pessoas e sabia que eles vinham
com uma notícia ruim. Talvez ruim para eles, mas não para o grão-mestre do
Templo. – Temos más notícias. Há um exército de mamelucos nas terras de
Raymond. Eles pediram permissão para passagem. Teremos que tomar cuidado
ao seguirmos viagem. Talvez seja melhor ficarmos aqui mais um dia pelo menos.
Os olhos do templário se estreitaram e as presas prepararam-se para
inocular o veneno.
- Então o traidor permite que nossos inimigos cruzem impunemente suas
terras... Se ele não é um cristão de valor, eu mostrarei o que é ser cristão.
Começou a caminhar antes que o arcebispo e o hospitalário pudessem dizer
algo.
- Gerard... Gerard... O que vai fazer? – perguntava Josias. Roger
permanecia calado, já sabendo que não havia boa coisa nos pensamentos do
templário.
- Dante! Dante! – gritou o grão-mestre do Templo.
Dante apareceu depressa, após ter corrido pelo castelo. Ajeitou o manto
branco e estufou o peito, parando em frente a seu líder.
- Envie mensageiros a todos os postos com templários na região. Também
envie um mensageiro a Jacques de Mailly. O marechal está na aldeia de Kakun,
provavelmente. Quero que esses mensageiros saiam agora. Partiremos amanhã
de manhã para mostrar a Raymond que não queremos muçulmanos em nossas
terras.
Dante preparou-se para dar as costas quando foi interrompido por Roger
des Moulins.
- Espere. Você não pode fazer isso, Gerard. Estamos em feudo alheio e em
uma embaixada. Temos que ser mais comedidos e respeitar a decisão de
Raymond. São as terras dele.
Gerard ergueu a mão, zombando de Roger. Os dois começaram a discutir e,
em meio à briga, um olhar nervoso do grão-mestre templário fez Dante seguir
para cumprir as ordens. Rezou um Pai Nosso no caminho, pois julgava que o dia
seguinte não seria dos melhores.
Roger chegou a gritar, a rosnar para Gerard, mas nada demovia o templário
de seu intento. Por fim, Josias pousou a mão sobre o ombro do hospitalário e
balançou a cabeça. Era um esforço inútil. Que Deus estivesse do lado deles.

*****

Dante via os aldeões de Nazaré se preparando para seguir os cavaleiros.


Gerard acabara de gritar para eles que deveriam seguir a batalha para poderem
recolher o butim. O arcebispo Josias ficara na cidade enquanto cerca de quarenta
cavaleiros seculares se juntavam aos templários. Jacques de Mailly parou ao lado
de Dante enquanto verificava os guerreiros.
- Guillaume não está aqui?
- Não – respondeu o templário.
- Sorte dele. Menos um guerreiro cristão forçado a seguir essas ordens.
Dante percebia pelo semblante do marechal que não havia muita fé em suas
ações naquele dia. Ele já sabia, por parte de Guillaume, que Jacques de Mailly
não depositava esperanças nas ações de Gerard de Ridefort. As discussões entre
marechal e grão-mestre ainda levariam a uma violenta briga final, possivelmente
com a expulsão de Jacques, que era o lado mais fraco. Fraco em posição militar,
mas não moralmente, pensou Dante.
Começaram a subir as colinas próximas de Nazaré. As tropas estavam
animadas com a batalha. Eram muitos cavaleiros, todos com vontade de sacarem
suas espadas. Não havia covardes entre eles, apenas guerreiros com sede de
vitória, de dinheiro, de fé ou o que mais que fosse naqueles variados corações.
Os templários seguiam silenciosamente. Dante rezava.
As Fontes de Cresson estavam ocupadas por milhares de muçulmanos.
Eram tantos que Dante não conteve um olhar espantado. Saiu da formação para
verificar os templários que cavalgariam com ele. Perto dali, uma discussão
começou entre Gerard, Jacques e Roger. Dante ouviu o grão-mestre chamando o
marechal de covarde. Não só ele, como muitos outros cavaleiros escutaram. Ele
simplesmente não podia acreditar nas palavras que o deserto trazia a seus
ouvidos. Fechou os olhos e orou mais uma vez enquanto retomava sua posição.
Iriam investir. Não restavam dúvidas de que iriam lutar. Que Deus estivesse do
lado deles.

*****

Dante gritava ordens sob o calor do deserto. Levantou a espada apontando


para uma rota de fuga. Seus olhos se focaram nos mamelucos que cercavam a
tropa dos templários. Havia homens por toda parte, cortando, dilacerando,
matando, massacrando os guerreiros cristãos. Os cavalos inimigos corriam em
volta dos poucos sobreviventes da Ordem do Templo. Eram muitos, tantos que
mal era possível ver através deles. Suas armaduras e armas eram constituídas de
brilho mortal que anunciava o fim dos cristãos. Eles se aproximavam com lanças
e espadas e Dante os rechaçava com as últimas forças que tinha. Olhou para trás
para verificar que ainda tinha mais cinco turcópolos, dez sargentos e nove
templários.
- Por ali! Precisamos sair por ali! – gritou.
Jurou a si mesmo que não morreria naquela batalha. Ainda havia muito pelo
que lutar. Não poderia tombar ali, no meio daqueles mamelucos. Precisava voltar
e avisar Guillaume ou mais alguém que aquela força inimiga percorria Ultramar.
Apontou mais uma vez com a espada e olhou para os céus. Pediu ajuda a
Deus. Lembrou-se de um salmo e começou a recitá-lo enquanto corria na direção
apontada.
- O senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? – iniciou.
Passou por um mameluco e evitou o golpe de lança erguendo o escudo. Um
templário cavalgou ao lado dele e matou o inimigo, enfiando a lança na boca do
guerreiro muçulmano e fazendo-a atravessar a cabeça. O sangue espirrou tão
forte que quase cegou o mameluco que estava logo atrás.
– O senhor é a força da minha vida; de quem me recearei? – Baixou a
espada gritando os versos, como se cada palavra fosse mais um pouco de apoio
que Deus lhe daria. Um homem tentou defender-se aparando com a espada, mas
a força de Dante, junto com a do cavalo, o fizeram cair. Logo atrás, outro
templário terminou o trabalho com uma lança enfiada no peito. Dante se viu
obrigado a parar quando as fileiras começaram a se cerrar. O cavalo dançou na
areia enquanto ele descia a espada mais uma vez, agora acertando a lâmina já
ensanguentada no meio do rosto do inimigo. A proteção do nariz se rachou e
afundou no crânio, seguida pela espada. O inimigo nem mesmo gritou.
– Ainda que um exército me cercasse, o meu coração não temeria – gritou e
fez o cavalo avançar. Ao lado dele, um templário caiu com uma flecha enfiada
no peito. Dante não parou. Atingiu a cabeça de outro inimigo, acertando um
elmo mal feito que se partiu com o ataque. A lâmina templária penetrou na
defesa e fez o metal barato do elmo se misturar ao sangue dentro do crânio. O
mameluco entrou em convulsão e caiu tremendo.
– Ainda que a guerra se levantasse contra mim, nisto confiaria – gritou mais
uma vez o templário, levantando a espada.
Os mamelucos pressionavam e reduziam a já parca tropa dos templários.
Dante não olhou para trás. Simplesmente chamou os companheiros com o
escudo e os fez pressionar mais as fileiras inimigas. Desviou o cavalo de dois
oponentes que o esperavam com lanças e investiu contra um cavaleiro. Girou a
espada várias vezes, pegando impulso no ar e quando chegou o momento do
impacto, acertou a coxa do inimigo, partindo músculos e osso, um ferimento
mortal que derrubaria o muçulmano em pouco tempo. No entanto, o inimigo
cobrara seu preço. A espada curvada passou pelo abdome do templário,
conseguindo atravessar a cota de malha e abrir um ferimento. Dante mordeu os
lábios e para depois gritar com todas as forças:
- Deus le volt! É a vontade de Deus! Deus assim o deseja!
Olhou para trás e sentiu que suor e sangue percorriam o rosto aos montes.
Seus últimos homens estavam cercados. Talvez fosse hora de morrer com eles.
Quase virou o cavalo, mas o último templário recebeu um golpe de lança que
atravessou o peito e o jogou do cavalo. Dante lamentou pelas mortes e virou-se
de novo para os inimigos à frente. Uma flecha acertou-lhe o braço do escudo e
ele mordeu os lábios mais uma vez. Fincou as esporas no cavalo e o fez usar
toda a força para ir em frente. Passou pelos inimigos e recebeu alguns golpes de
raspão. Uma lança passou pelo rosto, cortando a bochecha e batendo no elmo.
Precisou usar a espada mais duas vezes e tirar mais uma vida para que o
deserto finalmente se abrisse para seus olhos. Não deixou o cavalo parar e
seguiu. Viu flechas fincarem-se na areia a seu lado. Poderia jurar que algumas
delas passaram rente a seu elmo.
- O senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O senhor é a
força da minha vida; de quem me recearei? Ainda que um exército me cercasse,
o meu coração não temeria; Ainda que a guerra se levantasse contra mim, nisto
confiaria – orou para si mesmo.
Cavalgou o quanto pode. Olhou para os muçulmanos logo atrás. Iniciam
uma perseguição, mas logo pararam. Pensou se não era covardia fugir daquele
modo, enquanto seus companheiros haviam morrido nas areias. Olhou para os
céus e fez a pergunta para a esposa, depois para Deus. O céu estava fechado para
ele. Sem resposta, julgou que se houvesse pecado, se fora um covarde, seria
julgado mais tarde. Por enquanto, tinha um trabalho a fazer, garantir que
nenhuma outra desgraça ocorresse.

******

Balian parou a comitiva e observou o castelo de La Fève. Havia barracas


dos templários em volta dele, porém nenhum movimento podia ser notado.
Nada. Nenhum animal. Via apenas alguns pássaros voando bem acima dos
muros, únicas testemunhas do desolamento do lugar. Olhou para seus cavaleiros
intrigado e avançou mais um pouco. Estivera cavalgando sozinho nos últimos
dois dias, tendo se separado do restante da embaixada para resolver alguns
negócios em seu feudo. Queria deixar tudo preparado para a guerra que viria e
ainda se despedir da esposa. Deveria encontrar Josias, Roger e Gerard ali no
castelo, no entanto, não havia nenhum sinal deles, nem dos templários que
guardavam o lugar.
- Ernoul – disse, chamando pelo escudeiro. O jovem desmontou e andou até
Balian. – Veja se há alguém lá dentro.
Seguiu o cavalariço com o olhar até que ele desaparecesse dentro do
castelo. Tentou lembrar quem era o responsável por La Fève. Ah... Guillaume de
La Croix Bleue. Aquele templário tinha fama. Nobre francês que, pelo que
muitos diziam, fora levado ao verdadeiro caminho de Cristo apenas por um
milagre. Era um ótimo guerreiro. Baliam já tivera o prazer de lutar ao lado dele.
“Pena ser um templário”, pensou, lamentando o estado a que aqueles nobres
cavaleiros tinham sido levados pelas duas patéticas últimas lideranças. Balian
tinha que reconhecer Odo Saint-Amand sempre fora um tanto duvidoso em suas
ações e Gerard de Ridefort era uma praga que o Diabo trouxera para a Terra
Santa. Infelizmente, mal se lembrava de Arnoldo de Toroga, o grão-mestre que
estivera entre eles e falecera na Europa, pedindo reforços para Ultramar.
Definitivamente, o que faltava para os templários era uma verdadeira e justa
liderança na Terra Santa.
Ernoul voltou afobado. Recuperou o fôlego aos poucos.
- Nada. Nada além de dois soldados doentes. Eles nem conseguem dizer
nada.
Balian olhou para o castelo com uma expressão consternada. A testa
enrugada revelava os pensamentos que o preocupavam. Estava em dúvida se
seguia ou esperava. Sentia que estava sem saber de algum fato importante. Será
que os templários não estavam ali porque ainda seguiam em campanha para
submeter os nobres aliados de Raymond? Estaria Guillaume ainda em guerra?
Coçou o queixo e chamou pela comitiva. Seguiriam até Tiberíades, talvez
passando por Nazaré para conseguir mais informações.
Nem bem os cavalos começaram a se movimentar, um dos soldados
chamou a atenção de Balian. O Ibelin olhou para o deserto e viu o cavaleiro se
aproximando. Vinha devagar pela estrada, mas de vez em quando levantava a
mão, como se tentasse dar sinal de urgência. Balian correu até ele. Mais perto,
viu o manto branco do Templo empapado de sangue. O cavaleiro tentava se
manter ereto e digno sobre a sela, mas era claro que seus ferimentos estavam o
forçando a se abaixar, reduzindo suas forças.
- Um desastre. Um grande desastre – disse, quando os olhos cansados
apontaram para Ibelin.
- Venha, meu amigo. Vamos para o castelo, onde você descansará e nos
contará o que aconteceu.
Livre do peso da armadura e das roupas sujas, Dante foi colocado sobre
uma cama. Recusou-se a deixar a espada e a Bíblia.
- Nosso grão-mestre recebeu uma mensagem de Raymond de Trípoli. Havia
muçulmanos nas terras dele. Nosso grão-mestre reuniu todos os cavaleiros que
tinha e seguiu para a batalha, mas eles eram muitos. Nós não resistimos. Agora
tenho que voltar a Sable D´Or e contar a Guillaume e aos outros. Os
muçulmanos estão em nossas terras.
- Você não vai a lugar nenhum. Fique e descanse. Nós vamos seguir e avisar
a quem for necessário. Pode ter certeza de que enviarei um mensageiro a
Guillaume.
Balian deixou um de seus homens para cuidar do templário e dos dois
soldados doentes. Aquelas eram as ações de Gerard. Agora podia ao menos
esperar que o grão-mestre estivesse morto. Seria um favor que os muçulmanos
teriam feito a Ultramar.

*****

Estava quase para anoitecer. O sol já começava a avermelhar o horizonte,


pronto para se por quando, de cima de uma das torres do castelo, Raymond viu
os mamelucos passarem. Os muçulmanos retornavam no fim do dia, como
haviam prometido. Havia apenas um detalhe que fez os olhos do conde se
arregalarem. Os muçulmanos traziam cabeças espetadas nas lanças. Mantos
brancos, sujos de sangue, estavam em outras lanças. Templários... Aqueles eram
templários mortos. Raymond levou a mão à face e baixou a cabeça pensativo.
Donat ficou ao lado do amigo, também pensando sobre o ocorrido. Gostara
de ver as cabeças dos templários e rezara para que a de Guillaume estivesse lá.
Quase rira ao imaginar a cena, a cabeça arrancada do templário pendurada em
uma lança, com aquela língua ferina para fora. Nunca mais insultaria ninguém.
Sable D´Or pôs a mão sobre o ombro de Raymond tentando consolá-lo.
- Ao menos apenas os malditos templários morreram.
- Eram cristãos, Donat. Eram cristãos como você e eu. Guerreiros que
lutavam pela mesma causa que nós. Por mais problemas que eu tivesse com eles,
não posso alegrar-me com essas mortes.
Donat resmungou algo e saiu. As tochas do castelo começavam a ser
acesas. Desviou-se de alguns serviçais e gritou pela filha. Encontrou-a fora do
castelo, conversando com Karsten.
- Bom encontrá-los juntos.
Karsten não entendeu as palavras, mas Laure sorriu.
- Ficaram sabendo do ocorrido?
- Sim – respondeu o germânico. – O que o conde fará?
- Ainda está decidindo. Laure, pode nos deixar um pouco?
Ela fez uma mesura e saiu sorrindo. Era chegada a hora.
- É casado, Karsten? – perguntou Donat.
- Não, senhor. Mas por que a pergunta em um momento como esse?
- Acho que já está chegando a hora de tomarmos algumas decisões. Você é
um dos meus melhores guerreiros e merece um feudo aqui em Ultramar. Ajude-
me a reconquistar Sable D´Or e eu lhe prometo minhas maiores riquezas.
Karsten tentava entender o que Donat queria dizer com aquilo. O barão
deu-lhe uma pista, olhando de leve para Laure. O cavaleiro não soube o que
responder... Casamento. Só poderia ser casamento e com Laure. Mas como
poderia, se fizera tantas promessas a Melisende? Mas, e se recusasse? Como
poderia recusar aquela oferta? Seria uma ofensa indesculpável para com seu
senhor. Seria quase como quebrar outras promessas.
- Lute ao meu lado nessa empreitada, Karsten. Você já jurou fidelidade a
mim. Que tenhamos um vínculo ainda maior.
- É claro que lutarei a seu lado, senhor, mas não posso aceitar todas as suas
ofertas enquanto não cumprir todas as promessas com sua família. Como poderei
entrar para a família se ainda não lutei por Ultramar ou se ainda não resgatei sua
sobrinha das garras dos muçulmanos? Deixe-me provar meu valor e em seguida
aceitarei tudo se assim Deus quiser e se assim o senhor perceber do que sou
realmente capaz. Um verdadeiro homem não pode aceitar novos votos se não
cumpre suas promessas.
O cenho franzido de Donat indicava que ele não estava plenamente
satisfeito com a resposta. Nem pudera confirmar se Karsten realmente lutaria ao
lado dele. Precisava da fidelidade daquele excelente guerreiro. Com ele, poderia
ter um líder que conseguiria outros cavaleiros para lutar contra Christophe. Se
Guillaume ainda estivesse vivo, então Karsten seria ainda mais útil, podendo
desafiar o templário frente a frente.
- Vai lutar a meu lado?
- Minha espada pertence exclusivamente ao senhor.

*****

Balian estava em Nazaré há menos de uma hora, talvez meia hora.


Encontrara Gerard de Ridefort sentado em uma cadeira dentro uma casa de pedra
e chão batido. Tinha o manto sujo de terra e sangue. Havia uma marca roxa na
face direita. O templário olhava para Ibelin com mágoa nos olhos. Estava claro
que tinha o orgulho ferido.
- Venha, Gerard. Temos que falar com Raymond o quanto antes para
resolvermos isso.
O templário não respondeu. Olhou para Balian e depois virou-se para o
arcebispo de Tiro. Josias o julgava com face de pedra. O clérigo o olhava de
cima e às vezes balançava a cabeça, descontente com o fracasso de Cresson. Os
templários estavam mortos. Nenhum deles era poupado pelos muçulmanos em
qualquer batalha que fosse. Cavaleiros seculares e cidadãos de Nazaré foram
levados como prisioneiros. Tudo por um erro como aquele.
Gerard usou aquele julgamento como força para alimentar seu ódio.
Precisava corrigir aquela falha, antes que fosse visto como um fraco. E precisava
de tempo para pensar.
- Vamos, Gerard – repetiu Balian, pacientemente, mas cada vez com mais
ódio do templário.
- Não posso. Meus ferimentos me impedem. Não tenho como continuar.
Vão sem mim.
Ibelin não insistiria. Deu-lhe as costas sem se despedir e saiu. Josias
permitiu-se um leve sorriso de desdém enquanto olhava para o templário, mas o
olhar furioso de Gerard o fez retroceder e virar-se para acompanhar Balian.
“Não vou me humilhar perante Raymond. Ele não rirá da minha derrota
diante de mim”, pensava Gerard.

*****

Karsten esperava pelo resultado da reunião de Raymond, Balian e Josias.


Olhava para Heiner e colocava a mão no ombro do amigo, tentando passar a
impressão de que tudo daria certo. Finalmente cumpririam suas promessas. Eles
se aliariam ao reino cristão e lutariam por ele. Acabariam aqueles estranhos tons
de cinza no meio da batalha. Agora era apenas preto e branco... cristãos e
muçulmanos.
Raymond mostrara-se horrorizado com os acontecimentos. Jurara a si
mesmo que não permitiria que nada mais acontecesse contra os cristãos. Era
hora de começar a batalha e reagir. Soltou a notícia para seus guerreiros e ficou
calado esperando as reações. Alguns finalmente levantaram os braços
comemorando. Estavam tão aflitos quanto Karsten para que os jogos políticos
parassem e seus corações tomassem o rumo que desejavam.
- Finalmente – disse Heiner.
- Sim, meu amigo. Afie sua espada e prepare sua armadura.
Gareth já não tinha a mesma certeza quando parou ao lado dos dois. Seus
pensamentos haviam divagado nos últimos dias e passado de uma opinião para a
outra. Havia conversado com Raymond algumas vezes e o conde havia o
ensinado a observar as terras de Ultramar com outros olhos. Fora em pouco
tempo que ele começara a enxergar que talvez a guerra não fosse o melhor dos
votos a se tomar, principalmente naquela ocasião quando talvez os cristãos não
vencessem. Era bem provável que aquela seria a prova final para saber qual a
verdadeira vontade de Deus.
O padre preocupou-se com os amigos e começou a pensar se não tinha
errado ao insistir tanto para que os votos fossem mantidos para erguerem a
espada contra os muçulmanos. Estivera perto demais daqueles infiéis para não
reconhecê-los como pessoas como ele, apenas homens fiéis a uma religião.
Entretanto, uma barreira vinda de sua criação e fé o impedia de tomar um partido
total pela paz. O que lhe acontecia então era se martirizar por ter aquelas dúvidas
e rezar para que o Senhor lhe enviasse um sinal. O fato de ter chegado ao ponto
de não ter mais a certeza absoluta de repente o horrorizava.
Os homens preparavam-se para a guerra a sua volta e Gareth permanecia
quieto, apenas com orações sussurradas. Karsten lhe disse alguma coisa e Heiner
riu espalhafatosamente, mas o padre não ouviu. Deixou-os se afastarem para
seus preparativos. Seguiriam para Jerusalém naquele mesmo dia para finalmente
selarem a paz das forças cristãs. Gareth montaria em seu cavalo para seguir
viagem, mas levaria consigo as mesmas dúvidas que continuariam o
atormentando.

*****

Melisende respirou profundamente enquanto olhava para o horizonte.


Enxergava o rio Jordão ao longe, com o reflexo tênue da luz do sol nas suas
águas. Nem dava conta das pessoas vestidas com véus e turbantes que
caminhavam pela rua em volta dela. As casas da vila não importavam, mas sim o
pequeno castelo árabe que servia de fortaleza para Bassam e suas tropas. Era
uma construção suntuosa, cheia de detalhes na arquitetura, mas sem nenhuma
imagem. Não tinha muros para protegê-la, mas paredes grandes e grossas com
apenas duas saídas, sendo uma delas secreta. Havia um andar apenas e no alto
uma pequena torre e muretas serviam de proteção para os soldados e arqueiros
que vigiavam de lá de cima.
A solidão estava a corroendo, assim como a saudade. Queria ver Karsten
mais uma vez. Precisava da família e da nova paixão, mas agora tinha que se
limitar a esperar. Ao lado dela, havia dois homens fortes e taciturnos que a
observavam. Ficavam sempre a três passos e nunca pisavam em sua sombra. Os
olhos estavam atentos a qualquer ação de Melisende. As pessoas davam a volta e
se afastavam deles, sabendo muito bem que aquela mulher era prisioneira e
protegida de Bassam. Ninguém deveria tocá-la ou conversar com ela.
O líder Assassino saiu da pequena fortaleza para saber como sua prisioneira
estava passando. Ela ainda não comera e mantinha-se calada, sem ao menos
protestar contra o cativeiro.
- Não está com fome?
Ela não respondeu.
- Escute... Eu não a tratarei mal. Vai ser uma rainha enquanto estiver sob
minha guarda, portanto aproveite, pois raramente será tratada assim entre os
cristãos. Se quiser, depois que tudo estiver terminado, pode até se entregar a mim
e ser minha esposa.
Agora ela o olhou com desdém, o que ofendeu o orgulho do guerreiro. Não
admitiria a negação de uma mulher. Bassam levantou a mão, mas depois parou.
Esfregou as mãos para conter o impulso de esbofeteá-la e respirou
profundamente.
- Eles não virão. Você mesmo falou que agora haverá guerra. Ninguém virá.
- Por enquanto não, mas Guillaume virá depois da guerra. Ele tem que vir,
Melisende.
- Por que confiaria naquele templário? É bem provável que não venha,
mesmo que sobreviva à batalha contra Saladino. E você mesmo disse que
Saladino está reunindo um dos maiores exércitos que a palestina já viu.
- Sim, agora mesmo ele está em Hauran. Tropas já estão chegando de
Alepo, Mosul e Mardin. Você nem imagina o poder desse sultão. Acho que ele
teme apenas a nós, Assassinos, a mais ninguém. Mas não se preocupe, tenho
homens infiltrados no exército de Saladino. Eles procurarão os templários
durante as batalhas e procurarão pela cabeça de Guillaume. Se eu não posso
matá-lo, ao menos um dos meus guerreiros o fará. Eles o conhecem de muitas
outras batalhas, Melisende.
- Então para que me manter prisioneira?
Observou-a com admiração. Estava coberta por um vestido que ele mesmo
lhe dera. O véu azul cobria os cabelos e uma parte do rosto, destacando ainda
mais aquele olhar belo e sedutor. Levá-la a força para a cama era uma tentação
que ele resistia dia após dia. Talvez o tempo a fizesse se dobrar a seus desejos.
Sorriu e aliviou-se desses pensamentos ao lembrar-se de Guillaume. Era a ele
que deveria vencer em batalha. E ele viria. Precisava vir, pois assim estava
definido pelo pacto que o homem fizera.
- Você é ainda uma garantia. Guillaume já escapou com vida de situações
piores. Não arriscarei perder a oportunidade de atraí-lo usando sua pessoa,
Melisende. Ele jurou. Se existe algo que eu sei é que esse meu inimigo não
quebrará esse juramento. E eu o encontrarei.
Parou de falar e tocou na mão dela. Melisende afastou os dedos do toque
dele e cruzou os braços. Educadamente, Bassam a tocou de novo, com
delicadeza, puxando-a pelo cotovelo e falando:
- Por favor, venha comigo. Vamos comer. Faço questão de sua companhia.
- Não.
O aperto dele aumentou. Puxou-a subitamente e fez com que seus olhos o
fitassem.
- Escute, mulher. Será bem tratada aqui, mas lembre-se da educação de não
abusar da hospitalidade. Esse não é apenas um convite, faz parte de uma das
regras da casa. Coma comigo agora e lembre-se de que minha paciência não é
eterna. E saiba também que, se está pensando naquele cavaleiro recém-chegado,
eu providenciarei para que ele padeça logo nas mãos de um Assassino se você
não se comportar como uma verdadeira dama.
Melisende estava pronta para gritar algo de volta e puxar o braço até ouvir o
comentário sobre Karsten. Mas quem havia contado a Bassam sobre isso? Talvez
os espiões do Assassino soubessem mais sobre o que acontecia em Sable D´Or
do que o próprio Donat. A ameaça a fez se curvar aos desejos do muçulmano.
Capítulo Oito
Guillaume sabia do encontro entre Guy e Raymond. O rei aceitara o conde
sem nenhuma ressalva e agora Ultramar se unira para combater Saladino. Os
preparativos para a guerra eram do mais alto nível, como ainda não fora visto em
Jerusalém. Várias comitivas partiam de Jerusalém rumo a Acre onde Guy se
encontraria com todos os nobres de Ultramar, reunindo o maior exército cristão
que a Palestina vira até então.
O templário ainda não partira para a viagem. Estava encarregado de
coordenar a formação das últimas tropas que seguiriam para Acre. De pé na área
do Templo, Guillaume verificava os homens que ali se reuniam. Tinham consigo
um estandarte até então desconhecido em Ultramar. Eram as armas de Henrique
II da Inglaterra. Todos aqueles guerreiros haviam sido equipados e pagos com o
dinheiro que aquele rei depositara para os templários para expiar o assassinato
do Arcebispo de Cantuária. Deveria ser um dinheiro a ser investido em uma
cruzada de Henrique II, mas aquele momento era mais importante. Havia uma
urgência maior em Ultramar.
A organização daqueles cavaleiros e soldados não era das melhores. Eram
apenas guerreiros. Tinham experiência, mas careciam da disciplina que
Guillaume estava acostumado a ver nos templários. Ao menos ele esperava que
fosse fácil fazê-los marchar até Acre. Os mantimentos já estavam prontos e os
cantis estavam cheios, poderiam seguir em breve.
Poucos cavaleiros do Templo estavam em Jerusalém. Não seria mantido
nada além de um pequeno grupo de novatos e cavaleiros mais velhos para uma
guarnição quase simbólica da cidade. Os dez últimos guerreiros de porte
seguiriam com ele, inclusive Dedrick. Todos os outros já viajavam ou estavam
em Acre. Tanto o Templo quanto o Hospital providenciariam para que seus
guerreiros seguissem em massa para se juntar ao exército do rei.
Dedrick andou para o lado de Guillaume e esperou que o templário mais
velho acabasse de verificar os guerreiros. Terminado o trabalho, ele deu o
recado:
- Laure de Sable D´Or o espera na Porta Formosa. Ela quer falar-lhe com
urgência.
- Leve os homens para fora da cidade. Eu os encontro na Porta das Flores.
Basta você seguir pela rua dos hispânicos e chegará lá. Os outros templários
seguirão com você.
O jovem templário fez que sim e sorriu nervoso. Era bom ter a experiência
de comandar tantos guerreiros, mesmo que em uma tarefa tão simples.
O andar do líder templário era lento, diferente de seus pensamentos que
corriam de uma possibilidade para outra. Pensava em Melisende e na urgência de
chegar a ela e enfrentar Bassam, mas também na guerra à frente. A guerra o
excitava. Podia já sentir o cheiro de sangue, apesar de que até o momento ainda
não se dera conta daquilo. Só percebeu o quanto estava excitado quando viu a
beleza formosa de Laure. Ela estava acompanhada do padre que chegara com o
cavaleiro germânico, um serviçal que nunca a deixava e ainda com uma dama de
companhia. Afastou-se ligeiramente dos três e andou com aquele olhar sensual
que fez Guillaume ter vontade de jogá-la contra a parede e possuí-la. Ele riu de
si mesmo, riu tanto que gargalhou antes de chegar até ela.
Laure percebeu o olhar excitado dele. Sabia como reconhecer isso nos
homens. Exibiu seu corpo e sorriu para o templário.
- Contente, templário? – perguntou ela. Havia um sorriso sem graça em seu
rosto, como quem tenta firmar uma emoção que escorrega de sua face.
- Sim. Por que não? Deus fez mais um belo dia para nós – disse Guillaume,
fingindo que não via a expressão dela.
- Não se sente culpado por essa felicidade em seus olhos?
- Deus me faz feliz.
- Pois não tenho boas notícias. Recebemos uma mensagem de Bassam
assim que chegamos a Jerusalém. – Ela parou de falar e olhou para a área do
Templo, vendo a movimentação dos soldados, mas com a mente perdida em
divagações e o rosto fixado em tristeza. – Minha prima morreu.
Ela esperou. Não explicou nem disse mais nada. Apenas se calou e esperou
para ver a reação dele.
Guillaume cumprimentou dois cavaleiros que passavam, depois deu ordens
a um sargento que também caminhou por ali. Alertou a algumas pessoas para
tomarem cuidado com uma carroça e depois olhou de novo para Laure, sem o
mínimo interesse.
Um fragmento de irritação cruzou o olhar dela, mas foi contido e
dissimulado. Tomando cuidado com o tom de voz, ela continuou:
- Não sabemos como foi a morte, se ela foi assassinada ou faleceu por
doença ou algum outro motivo... mas parece que você não se importa. Traiu
totalmente nossa...
Ele ergueu a mão para que ela se calasse e balançou a cabeça
negativamente, mas com um jeito zombeteiro e irônico realçado pelo sorriso
discreto.
- Ela não está morta. Isso deve ser uma provocação. Avise isso a seu tio.
Como é que vocês ainda não aprenderam a lidar com os Assassinos? O próprio
Corão dita que eles devem cuidar bem de seus prisioneiros. Ao menos eu acho
que é isso mesmo. Dante entende melhor de livros sagrados. – Ele também se
interessava, mas mais pela parte em que esses livros o levariam a uma batalha
para defender sua fé. – Bom, seja como for. Não se preocupe.
- E quando você vai libertá-la? – perguntou Laure, adiantando-se com sua
beleza provocante. O cheiro do perfume dela alcançou as narinas do templário e
elevou em mais um degrau a excitação dele. Guillaume gostou e sorriu,
divertindo-se consigo mesmo. A proibição de tocá-la o deixava ainda mais
excitado. Zombava de si mesmo ao perceber a vontade de possuí-la e rebater o
desejo com as regras que tomavam conta de sua vida. Se fosse em outros
tempos... Não, se fosse outros tempos ele ainda teria a esposa, o Templo não
estaria em sua vida e ele ainda seria o velho Guillaume. Nem sentiria desejo por
Laure, pois teria a mulher que amava na cama.
- Pretendo seguir com esses planos quando as coisas se acalmarem um
pouco. Cumprirei meus votos.
- E se você morrer em batalha?
- Será uma morte feliz. Minha alma deixará meu corpo feliz quando os
anjos a tirarem de meu cadáver avermelhado pelo meu sangue e de meus
inimigos. – Riu e se voltou para o céu. Laure tentou não olhar para cima, ainda
mais quando o viu movimentar os lábios e apontar. Voltou a olhar para ela. – Se
eu morrer, já há quem vá atrás dela. Dante não participará da batalha. Procure-o
depois e ele seguirá com a missão. Pode contar com ele.
Laure esperava que sim, apesar de não saber como lidar com Dante. Se
Guillaume era uma figura contraditória, Dante era impenetrável em sua muralha
feita de fé e regra templária, de onde escapavam flechas na forma de versos
bíblicos. Ainda sim, ele deveria ser mais previsível do que o templário francês.
Ela estava para se despedir quando um grande cavalo negro parou junto a
eles. Acabara de passar por Gareth, pelo serviçal e pela dama de companhia. Era
Édouard de Le Mur, que cuidou de cumprimentar o padre inglês antes de
aproximar-se de Laure e Guillaume.
- O que faz aqui, Édouard? Não marchará para Acre?
- Não – respondeu ele, sem necessidade de se explicar para Guillaume. –
Gostaria de saber como está seu pai e o que aconteceu com Sable D´Or.
Esperava uma resposta de Laure, mas ela virou-se para Guillaume. O
templário fez uma expressão de seriedade claramente fingida.
- Está sob o comando de Christophe de Sable D´Or. Foram as ordens que
recebi do meu grão-mestre, depois de ele ter consultado o rei.
- Lamento muito esses incidentes políticos. Espero que com o reino unido
seu pai possa se restabelecer no feudo. – Apesar do tom de certeza nas palavras,
ele não a olhou diretamente durante a última frase. Curiosamente, Laure notou
que o sorriso de Guillaume também desaparecera. O templário e o hospitalário
se encararam.
- Que Deus esteja com você nessa batalha, templário – disse Édouard,
estendendo a mão para Guillaume.
Toda a ironia, zombaria ou qualquer outro sentimento que não fosse retidão
e respeito desapareceram da face de Guillaume. Ele estendeu o braço e apertou
com firmeza a mão de Édouard.
- Que Deus esteja com você também. Tenha fé.
Édouard assentiu com a cabeça e virou o cavalo, partindo enquanto acenava
para Gareth.
Laure queria saber o que acabara de acontecer. Todas as vezes que
encontrara Édouard e Guillaume juntos, presenciara uma discussão e troca de
farpas. Preferiu não perguntar nada, principalmente porque Gareth se aproximou.
- Senhora, acho melhor irmos. Quero me despedir dos meus amigos antes
que partam.
- Não vai lutar, padre? Soube que manejou as armas muito bem em Sable D
´Or – provocou Guillaume.
- Não... Deus não me fez para lutar. Aquele foi apenas um momento em que
Ele colocou em minha vida para servi-lo de outra maneira.
- Bravo... Bom... Toda arma erguida seria boa nessa batalha, inclusive a sua,
padre.
O templário curvou-se para Laure e deu as costas para os dois. Gareth ficou
confuso.
- Nunca sabemos o que esperar desse templário.
- Verdade – comentou Gareth, tentando ainda entender se Guillaume estava
zombando dele ou sendo sincero.

*****

Karsten socou a parede do castelo. Mordia os lábios e respirava


profundamente. Arfava e fazia xingamentos silenciosos. Socou a pedra outras
três vezes, até sentir a mão de Gareth sobre seu ombro. Fitou o padre com raiva e
o empurrou para longe. Voltou a socar a parede, agora de cabeça baixa. Gareth
tentou se aproximar mais uma vez, mas Heiner o segurou. O nórdico estivera
com Karsten a tarde toda, desde que receberam a notícia da morte de Melisende.
Hospedados no palácio real, seguindo com a comitiva de Raymond de Trípoli, os
três haviam ficado surpresos quando souberam da morte da mulher. Pouco
depois, o padre saíra com Laure para caminhar pela cidade para deixar Karsten
sozinho com a culpa e o sofrimento.
- Ele esteve assim a tarde toda. É lastimável – falou o nórdico, com sua
típica praticidade. – Agora já acabou. Outras abrirão as pernas para ele.
- Você não entende, Heiner. Ele a amava.
- Eu sei o que é o tal do amor, Gareth, mas estamos no meio de uma guerra
e ele desperdiça as energias com isso. Ela está com Deus agora, não é? Em um
lugar melhor, como você mesmo me ensinou. Então por que chorar? Por que
chorar se a alma dela está salva e ainda junto do Deus Cristo? Não seria melhor
chorar se ela ainda estivesse viva e sofrendo ou algo assim? Agora chorar porque
a pessoa encontrou Deus? – A necessidade de chorar e se lamentar era constante
demais no cristianismo na opinião de Heiner.
- Mesmo assim as pessoas têm o direito de sofrer. É uma perda terrena,
Heiner. Karsten fizera promessas e juras de protegê-la. É normal que ele se sinta
assim... mas com o tempo e após orar e comungar com o Senhor, ele entenderá
que...
- Parem de conversar como se eu não estivesse aqui – vociferou o
germânico. – Não se preocupe, Heiner. Agora sim eu mostrarei a esses malditos
muçulmanos porque eu vim para a Terra Santa. Minha espada vai pesar sobre a
carne deles.
- Karsten, você não veio aqui para lutar por ódio ou por vingança, mas para
lutar por Deus e expiar seus pecados – alertou Gareth.
O padre recebeu de volta um olhar que lançava adagas de ódio. Karsten o
segurou pela batina e o puxou para perto de si.
- Pois bem. Espero que Deus veja os corpos caindo em breve e fique
contente com meus pecados expiados.
Heiner não fez nada para separar os dois. Deixou-os se olhando. Até mesmo
impressionou-se com a coragem de Gareth ao encarar de volta o amigo, sem
desviar os olhos. Ficam pelo menos cinco minutos se observando, até alguém
bater na porta. Karsten finalmente soltou o padre, enquanto a porta era
lentamente aberta.
- Eu já sei meu caminho e não quero mais ouvi-lo. Protelei demais minhas
decisões. Eu sei que me perdi durante esse tempo, mas esse golpe me fez ver
minhas fraquezas.
Laure apareceu na porta e o cavaleiro parou de falar. Olhou-a desconfiado,
depois andou até uma cadeira e se sentou.
- Peça vinho, Gareth – disse Karsten.
- Sou seu padre, não seu serviçal – falou o inglês, saindo.
Heiner balançou a cabeça, chateado com a briga e depois saiu. Não diria
nada. Simplesmente não era de seu feitio ficar apartando brigas. Passou por
Laure e sorriu, achando bom que a mulher estivesse ali. Era ainda mais bonita do
que Melisende. A filha de Sable D´Or tinha uma aparência mais similar à beleza
nórdica com que Heiner estava acostumado. Talvez ela pudesse tirar Karsten
daquele mau humor.
A porta se fechou atrás dela. Estava sem dama de companhia ou qualquer
pessoa que pudesse acompanhar a visita. Apenas o serviçal que sempre estava a
sua disposição ficara do lado de fora. Laure andou até Karsten e curvou-se um
pouco, segurando as mãos dele.
- Não fique assim. Não foi culpa de ninguém. Nós ainda nos vingaremos
dos Assassinos, depois de termos recuperado o feudo do meu pai e reunido
tropas para atacar Bassam. Esse é o único modo de termos força para vingarmos
minha prima – ela disse.
Karsten virou o rosto, aborrecido e raivoso. As feições endurecidas
resistiram à aproximação de Laure.
- Ora! Você tem uma espada para erguer e uma batalha para vencer.
Prometa-me que voltará para lutar ao lado de meu pai. Prometa-me.
Ele sabia que já estava amarrado em tantas promessas que se tornaria um
santo se cada uma delas realmente expiasse um pecado. Deus até ficaria lhe
devendo algumas bênçãos quando terminasse de cumprir todos aqueles
juramentos. Mas tinha que confessar que esse era um modo de se sentir liberto.
Em outras épocas, aquele seria um paradoxo. Mas como um homem fiel a seu
tempo, Karsten se sentia mais liberto, se é que essa palavra aparecia em sua
mente, quanto mais inserido estivesse na vida da comunidade. E fazer aquela
promessa não seria de todo um mal. Ele pretendia mesmo voltar. Tinha assuntos
a terminar.
- Eu voltarei, minha dama.
Ela beijou-lhe a testa em agradecimento. Os lábios umedeceram a pele do
cavaleiro e aqueceram alguns pensamentos. As feições rígidas cederam
ligeiramente. Ela soube que estava vencendo. Ele soube que estava perdendo e,
para sua culpa, percebeu que não se importava.
- Você a desejava? – perguntou Laure, golpeando fundo no coração do
cavaleiro.
Ele não respondeu, mas olhou para ela preocupado. Deixou a questão ecoar
por seus pensamentos enquanto se decidia quanto à resposta. Ela morrera. Não
havia mais o que pudesse fazer. Precisava tomar uma decisão e continuar sua
vida. Precisava passar a responder não para aquela pergunta.
- Por que a pergunta, minha dama?
A mulher sorriu e fez que ia beijá-lo mais uma vez, mas parou. Sorriu
novamente e afastou-se, ficando ereta e ainda mantendo as mãos dele entre as
suas. Uma parte de Karsten quase se levantou junto a ela para receber o beijo
interrompido. Que vergonha, pensou ele. Acabara de saber da morte de
Melisende e lá estava seu corpo desejando Laure sem que por um segundo
lamentasse a perda daquela a quem seu coração se entregara. Gareth estava
certo. Ele tinha muitos pecados para expiar.
- Acho que a resposta é sim. Ela teve a sorte de ter seu amor então. –
Colocou a mão no rosto dele, passando os dedos delicados sobre a pele que
começava a ficar áspera pela barba que já crescia.
O tom de voz dela fez Karsten se sentir culpado por não amá-la e ainda
mais ansioso para tê-la. Amaldiçoou-se pelo desejo carnal e segurou a mão dela.
Ergueu-se bruscamente, mas com um movimento leve, ela já estava diante dele,
os braços envolvendo seu pescoço. Foi com destreza que ela o beijou e ele se viu
aprisionado pela sedução de laços finos, porém inquebráveis que ela teceu sobre
todo o corpo e toda a vontade dele. Separou-se quando as reações do cavaleiro já
começavam a dominá-lo, de um jeito que fez a vontade de resistir ser destruída e
a ansiedade fazer com que a segurasse. Ainda sim, ela se soltou delicadamente
com um olhar de ingenuidade e culpa.
- É para dar sorte. Saiba que eu esperarei você chegar. Estarei rezando por
você. Não chore mais por minha prima. Sei que a amava, mas agora apenas reze
pela alma dela. Não pare de lutar ou de viver porque ela foi se encontrar com
Deus.
Laure abriu a porta e saiu acompanhada pelo servo. Karsten deu dois passos
para segurá-la antes de perceber o que estava fazendo. Parou e ficou assustado
consigo mesmo. Pensou em Melisende mais uma vez, mas descobriu que havia
um calor em seu corpo que secava as lágrimas que tinha por ela. Enquanto
aquele calor não passasse, não conseguiria se sentir culpado ou deprimido como
imaginava que deveria estar.

*****

Karsten viu que agora eram apenas ele e Heiner. Gareth ficara em
Jerusalém com Laure e os dois seguiram para Acre juntamente com Raymond e
Donat. Agora atravessavam o acampamento diante da cidade. Nunca haviam
visto um exército tão. Suas guerras estavam mais para enfrentamentos entre
nobres locais do que para a batalha que estava para ser travada. Havia ali 1200
cavaleiros, sem contar um número muito maior de sargentos, turcópolos e a
infantaria. Os homens sentavam-se em rodas e conversavam em meio a tantas
tendas e animais. Alguns circulavam aqui e ali. Havia guerreiros entediados com
a espera, mas também aqueles ansiosos que não sabiam se conter.
O pensamento de que aquela batalha decidiria seu futuro passou pela
primeira vez pela mente de Karsten. Talvez houvesse rondado sua consciência
algumas vezes, no entanto nunca atacara sua alma com tal voracidade. Via-se
segurando a espada inconscientemente já imaginando as batalhas e prevendo o
ataque dos muçulmanos. A cacofonia das vozes se espalhando pelo
acampamento o deixava tranqüilo. Chegava a calar as vozes interiores que o
lembravam de Melisende, algo que voltava apenas quando a noite chegava e ele
se pegava perdido entre o passado morto e inalcançável que era a mulher que seu
coração amava e o futuro fértil e quente que era a mulher que seu corpo
desejava.
O início da viagem, quando passou pelos portões de Jerusalém e deixou o
Santo Sepulcro para trás e não podia mais ver a Cúpula da Rocha, foi marcado
pelas dúvidas cruéis que o faziam se lembrar das inúmeras admoestações de
Gareth. Quando chegou a Acre, já sentia que havia uma parte do coração que
estava cansada de lamentar por Melisende e começava a se perguntar se não
deveria levar a vida. Essa parte estava iniciando uma aliança viril com o corpo.
Era uma união perigosa que ameaçava suas memórias.
Um murmúrio começou a tomar conta do acampamento, quando as vozes se
alteraram de conversas barulhentas para comentários e observações. Via os
homens se aproximando uns dos outros e falando sobre algum assunto sério.
Chamou por Heiner e eles andaram até onde as tropas de Trípoli estavam
reunidas. Era um contingente significativo, todo formado por homens
experientes na vida no Oriente. Não havia quase nenhum representante de Donat
em meio a eles. Foram poucos os homens que se mantiveram fiéis ao barão. E
agora, aqueles que estiveram sob seu comando um dia, estavam acomodados
próximos aos templários, servindo sob as ordens de Christophe. Karsten os vira
mais cedo e até procurava pelo filho do barão, mas ele provavelmente estava
dentro da cidade, participando das reuniões.
- O que aconteceu? – Karsten perguntou a um dos cavaleiros.
- Um mensageiro entrou na cidade. Parece ser uma mensagem urgente
sobre Saladino – respondeu o homem, observado por todos os outros.
Karsten olhou para Heiner. O nórdico também estava curioso, porém sem
nenhum conflito interno. Nada parecia atormentar o guerreiro. As coisas não
passavam de meros incômodos ou perturbações que ele afastava como moscas e
voltava a se concentrar nos objetivos básicos da sua vida: guerra, mulheres,
bebida e tentar entender o que significava salvar a sua alma através daquela
religião melindrosa que era o tal cristianismo. E se um objetivo causava
problemas demais, ele o suplantava afundando-se em outro até que o problema
se resolvesse sozinho. O que mais incomodava Karsten era que aquela estratégia
funcionava incrivelmente bem para Heiner. Para o germânico, no entanto, nunca
dava certo.
- Vamos procurar Donat – disse Karsten. Virou-se para os homens de
Trípoli. – Voltaremos em breve com notícias.
Os dois saíram para entrar em Acre, atravessando o acampamento agitado
pela perspectiva de se movimentar em breve.

*****

Balian andava pelo porto de Acre, encantando-se com o mar. As ondas


quebrando contra o porto eram revelações para ele. Não que se animasse com
viagens de barco. Sentia-se muito bem e seguro com os pés no chão. Era a visão
da criação que o deixava aturdido e feliz, mesmo quando estava em meio a uma
guerra. Olhou para as velas brancas dos barcos, vendo alguns símbolos que
indicavam terras que ele nunca conhecera. Traziam peregrinos e mais guerreiros;
pena que nunca fossem o suficiente. Balian sabia que precisavam de mais.
Seus olhos caíram sobre uma enorme vela branca com a cruz vermelha dos
templários desenhada. O Templo conseguira uma boa frota e a usava para levar
peregrinos e mais de seus homens para a Terra Santa. Mais uma vez, não era o
suficiente. E também era uma pena que trouxessem pessoas como Gerard de
Ridefort. Precisaria enfrentar o grão-mestre mais uma vez quando o rei chamasse
os barões para o conselho de guerra. E que força teria? Poderia contar com a
sabedoria de Raymond, mas agora não tinha mais Roger des Moulins. Quais
outros barões estariam do seu lado quando precisasse tomar as devidas
precauções quanto à guerra? Quais seriam àqueles que não confundiriam cautela
com covardia?
- Senhor, o rei chama para o conselho – disse uma voz que ele reconheceu.
Guillaume e um templário mais jovem estavam parados ao lado dele. Balian
até os percebera, mas a mente não se ligara nos mantos brancos e nas cruzes
sobre o ombro esquerdo. O fato de um templário estar o procurando era até uma
revelação do que estava por vir. Aqueles homens haviam se tornado
representantes diretos do poder.
Balian virou-se e começou a caminhar. Dispensou o escudeiro e o cavalo.
Seguiria andando em companhia dos templários.
- Más notícias? – perguntou Balian.
- Eu diria que notícias esperadas, senhor – respondeu Guillaume. – Soube
que Heráclio confiou a Cruz Verdadeira ao Bispo de Acre?
Balian sorriu ao saber. Nunca exigira muito da figura de Heráclio. Esperar
demais do patriarca de Jerusalém era o mesmo que tentar abrir o Mar Vermelho
mais uma vez.
- Deve ter ficado para proteger a senhorita Pásquia com suas orações –
comentou Guillaume, atraindo outra risada de Balian.
- É, ele realmente precisava ficar para garantir que a dama siga seu bom
caminho, não é?
Ambos riram ao pensar no patriarca e em sua amante, ainda mais na
covardia dele ao não ir para a guerra, sendo um dos mais importantes clérigos de
Ultramar. Guillaume voltou ao assunto principal logo depois.
- Espero que a reunião seja boa para todos em Ultramar. Que os barões
recebam com sabedoria essa mensagem.
Balian emitiu um leve sorriso amarelo. O templário já estava a par da
mensagem. Poderia ser algo óbvio como a marcha de Saladino ou informações
que o Templo já estava adquirindo com antecedência, mesmo antes de barões de
renome como Ibelin.

*****

- O que eles irão discutir, senhor? – perguntou Dedrick, quando estavam de


fora do castelo. Balian acabara de entrar e os dois ficaram diante das portas
como vigias. Estavam observando as pessoas que entravam e saíam, procurando
por espiões e conter qualquer tumulto. Os templários e homens do rei haviam
cercado o lugar e poucos cavaleiros de outros barões puderam fazer mais do que
ficar observando as paredes do castelo onde estavam seus senhores.
Dois desses eram Heiner e Karsten. O germânico tentou fingir que não vira
a dupla de templários e passar direto, mas Heiner fizera questão de parar para
falar com Dedrick.
- Como está o grande templário? – brincou o nórdico, abraçando o amigo.
- Muito bem, Heiner. E você? A espada já está afiada?
- Houve algum dia em que não esteve? Deus vai sorrir para nós agora,
Dedrick. Ele vai sorrir quando nos vir lutando.
- Vamos embora, Heiner – chamou Karsten.
- Ah, deixe disso, Karsten. Venha cá desejar boa sorte para seu primo.
- Não tenho nada para falar com lobos em peles de cordeiro.
Dedrick quase se encolheu. Para seu mérito, fitou o primo com coragem.
Não disse nada, deixando a réplica para Guillaume.
- É... Se não fosse pelos lobos, o que seriam das ovelhinhas no campo de
batalha, não é?
- Esses lobos não fizeram muita diferença em Cresson, não é, templário? –
respondeu Karsten, feliz por poder jogar aquilo na cara do templário.
Para a infelicidade do germânico, o rosto de Guillaume nem se alterou,
apesar de o de Dedrick ter passado de coragem para raiva. Karsten poderia jurar
que o primo estava pronto para sacar a espada e fazê-lo se desculpar em nome da
causa templária.
- Realmente, eles acabaram morrendo enquanto as ovelhinhas se escondiam
e se aconchegavam sob um pastor enciumado e um pastor humilhado – disse
Guillaume, contendo Dedrick apenas com um olhar.
A irritação de Karsten cresceu. Aquele homem simplesmente não se ofendia
com nada. Afinal, o que poderia afetar o orgulho dele? Ele simplesmente
aceitava derrotas, xingamentos e tudo mais como se fosse verdades
incontestáveis que deviam ser aceitas naturalmente.
- Dedrick, largue esse manto e venha conosco. Por acaso pretende morrer
vestindo a vergonha de um bando de cavaleiros cegos de ambição e orgulho? –
O questionamento de Karsten saiu venenoso e ríspido.
- Se pretendo morrer pelo Templo, pretendo. Se existe vergonha ou
ambição, é por sua visão. Se existe orgulho, é porque está em meu coração por
ter esse manto – respondeu Dedrick, para o sorriso de Guillaume e irritação
completa de Karsten.
- Então morra pela causa que quiser. Darei notícias a seus pais, mas não os
envergonharei falando do que vestia quando morreu.
Saiu deixando Dedrick com olhos cheios de ódio e Guillaume com um
sorriso. O templário colocou a mão sobre o ombro do companheiro.
- Acalme-se. Use o ódio na batalha, não aqui.
- Ele é meu amigo. Como pode falar da minha morte como desonrosa?
- Não será. Certifique-se de que manterá sempre a cabeça erguida e então
não precisará se preocupar com morte ou vida. Tudo será apenas uma
consequência do que estiver fazendo no momento.
Heiner não pretendia dar conselhos a Karsten. O que o levou a dar sua
opinião foi o fato de o germânico ter falado da morte de Dedrick.
- Não desonre a morte dele se isso vier a acontecer.
As palavras do nórdico fizeram o germânico parar de se mover e lançar um
olhar questionador e irritado para o amigo.
- As palavras que você usou nunca devem ser ditas antes de uma batalha,
Karsten.
Nenhuma outra palavra foi trocada entre os dois. Decidiram que se
moveriam para hospedaria onde encontrariam Donat mais tarde. Karsten
percebeu que Heiner estava certo e viu o quanto estava cansado de estar errado.
Seu coração, fosse por causa do amor por Melisende ou o ódio pelos templários,
sempre o levava a ações impulsivas. Deveria começar a extirpá-lo. Precisava
usar essa batalha para se redimir.

*****

Os barões olhavam para Guy sentado no trono em meio à grande sala onde
se reuniam. Havia apenas duas grandes janelas no lugar, mas uma estava coberta
com um enorme vitral. A luz do sol passa pelo vidro e tomava uma tonalidade
azul, formando um desenho de uma cruz no chão. Da outra janela vinha um
vento fresco com o cheiro do mar e os gritos do porto.
Toda a nobreza de Ultramar estava reunida apenas para esperar a
confirmação das notícias de que Saladino estava preparado para atacar. Gerard
de Ridefort sussurrou algo nos ouvidos do rei. Perto deles, Renaud de Châtillon
riu, enquanto conversava com alguns barões mais próximos. Balian observava,
tendo a seu lado William Borrell que representava os hospitalários. Desde a
morte de Roger des Moulins, o grande comandante dividia o posto de líder com
Ermengard D´Asp. Ainda não houvera tempo de escolher um novo grão-mestre.
Ao menos, Balian acreditava que aqueles dois poderiam dar um rumo à ordem
naquele momento tão importante. E também havia o fato de eles estarem do seu
lado.
Raymond estava cercado por nobres mais ponderados, de famílias que já
haviam conseguido tradição no Oriente. A maioria já havia aprendido a lucrar
com alianças com os muçulmanos. Já estava preparado para falar, esperando
apenas o rei abrir o conselho de guerra.
- Senhores, obrigado por comparecerem. Estamos reunidos aqui para
decidirmos como será nossa vitória, pois eu não espero menos do que isso do
nosso exército. Saladino já cruzou o Jordão e vem em nossa direção para a
batalha. Imagino que todos já esperavam isso. Agora é hora de nos prepararmos
para a batalha.
Raymond pediu a palavra educadamente, vendo que não havia nenhuma
surpresa nos rostos dos barões.
- Senhores, nós temos a vantagem. Enquanto permanecermos na defesa,
teremos chance de vencer Saladino. Lembrem-se de que estamos no meio do
verão e Saladino não conseguirá manter um exército grande no meio das terras
calorentas que nos cercam. Nós resistiremos e ele será obrigado a recuar.
Os murmúrios dos barões se inclinavam para as palavras de Raymond.
William Borrell comentou com Balian que a cautela realmente era a melhor das
virtudes naquele momento. Não poderiam se precipitar a outro erro como
acontecera em Cresson. Balian apenas assentiu, sem fazer nenhuma observação.
- Saladino marchará enquanto puder, mas nunca poderá manter um exército
tão grande reunido por tanto tempo. Em breve, os muçulmanos se cansarão e nós
ainda estaremos intactos, inclusive com comida e água, enquanto eles terão
gastos e esforço para conseguirem mantimentos.
- Covardia! Ah, era isso que eu tinha que ouvir ao vir para esse conselho.
Se soubesse, nem teria passado em Acre. Iria direto ter com Saladino –
comentou Renaud de Châtillon, como se houvesse se descuidado e falado alto
demais, quando deveria ter dito as palavras apenas para quem estava perto. Deu
um sorriso cínico e calou-se.
- Não é covardia... – começou Balian, na tentativa de defender Raymond. O
conde o olhou na esperança de que o apoio pudesse salvar sua argumentação. A
boca de Balian continuou se abrindo, mas as palavras foram interrompidas
quando Gerard de Ridefort gritou para todo o salão.
- Depois de ter feito alianças com Saladino, vem aqui nos aconselhar,
Raymond? Quer evitar a guerra após ter andado tanto tempo com os sarracenos?
Teme matar amigos durante os combates ou não quer nem mesmo levantar a
espada? Talvez não tenha tanta fé que Cristo possa vencer a batalha, já que seu
coração deve estar depositado no Corão.
As acusações do templário eram fortes e tinham um fundo de razão, ao
menos no que se devia a opinião da maioria dos barões. Raymond demorara
demais para se resolver. Fora preciso um massacre como em Cresson para que
ele finalmente se levantasse e afiasse a espada. A aliança com Saladino ainda
pesava contra suas palavras. Aquelas ações reunidas faziam seus valiosos
argumentos, tão caros quanto ouro, se transformarem em chumbo que afundava
nas águas profundas das conspirações do reino.
Mais murmúrios, agora cada vez mais altos, se acumularam na sala. Os
barões discutiam abertamente, agora com as palavras se inclinando para Renaud.
- Nossa chance está no ataque. Não podemos deixar que os sarracenos
creiam que sejamos um bando de covardes – gritou Renaud, levantando a mão
agressivamente.
- Como cada um de vocês pretende encarar Cristo e dizer que mantiveram o
rabo entre as pernas ao invés de defenderem o reino Dele? – completou Gerard.
- De que adianta a defesa sem termos o orgulho de vencermos diretamente o
mal de Saladino e mostrarmos aos sarracenos de quem são essas terras?
Balian quis falar, mas Gerard e Renaud se completavam perfeitamente, cada
vez com mais questionamentos e farpas contra a coragem e honra de Raymond.
A situação se deteriorou rapidamente. Balian quase se exasperou, mas quando
tentou dizer algo, William Borrell o segurou e o alertou para não entrar na
discussão. Já era um momento perdido. Por fim, o rei falou o que os poucos com
um mínimo de sensatez temiam.
- Partiremos para encontrar Saladino em Tiberíades. Preparem seus homens.
Guy estava com a decisão pronta e seus aliados manifestaram grande
alegria. Houve gritos que festejaram a partida para a guerra. Balian saiu do
conselho pensando que mesmo entre seus homens haveria quem estivesse
ansioso para marchar e encontrar os sarracenos.
Capítulo Nove
Guillaume coçou o queixo intrigado enquanto olhava os cavalos pastando
nos campos de Sefória. Haviam marchado desde Acre até ali e fora uma marcha
calma, desprovida de qualquer problema além da ansiedade de combater
Saladino. Os templários vinham na retaguarda, prontos para cobrir a passagem
do exército. Guillaume cavalgava entre os primeiros da fila, quase na posição
onde Jacques de Mailly deveria estar. Lamentava a perda do marechal, mas
agora era tarde demais para pensar na morte dele, portanto o templário deixava
espaço na cabeça para pensar na batalha e no futuro. Mandara Henri e Ahmad
preparar seus homens, reunindo-os para a missão de resgatar Melisende. Sabia
que eles não gostariam de ser deixados de fora da grande batalha de Ultramar,
mas não podia se arriscar a perder nenhum deles.
O fim da tarde estava chegando e o calor do dia começava a se dispersar no
meio do exército. Cavaleiros caminhavam juntos pelo acampamento tentando
encontrar amigos para conversarem e se distraírem. Todos tinham músculos
tensos, preparados para a batalha e para uma possível marcha. Corriam boatos de
que o rei não os manteria em Sefória. Guillaume achava melhor que ficassem ali.
Poderiam manter o exército bem suprido enquanto tivessem aqueles pastos, a
água e linhas de ligação com as outras cidades.
Andou pelos pastos vendo os sargentos cuidando dos cavalos templários.
Estava verificando cada um deles. Havia mandado Dedrick chamar a atenção de
um homem que puxava um dos animais com força e quase o machucando. O
bicho já estava ficando nervoso e assustado. Não precisavam de nenhum cavalo
assim durante a batalha.
Chamou Dedrick e começou a caminhar de volta às tendas dos templários.
O jovem o alcançou correndo e diminuiu o ritmo para caminhar ao lado dele.
- Vamos esperar aqui? – perguntou, olhando para os cavaleiros que os
encaravam. Dedrick ainda ficava espantado ao olhar para o acampamento e ver a
quantidade de cavaleiros, peões e turcópolos espalhados. Eram tantas bandeiras
que o jovem templário ainda não conseguira decorar todas.
- Vamos ver, Dedrick. Vai depender do rei e dos barões. Agora é nosso
caminho final.
Viram-se cercados de cavaleiros de mantos brancos e com cruzes vermelhas
em pouco tempo. Dedrick foi se sentar com alguns dos templários de La Fève e
Guillaume caminhou até a tenda do grão-mestre. O resto de tarde se foi e ele
encontrou Gerard iluminado pela luz das tochas. Haviam conversado pouco nos
últimos dias e não trocaram mais do que ordens.
- Continuaremos na retaguarda, senhor? – perguntou Guillaume.
- Sim, nossa disciplina é importante nessa defesa.
Aquilo era um ponto comum. Era difícil manter cavaleiros, sempre sedentos
de glória e loucos por aumentar seu valor pessoal, em formação. A cavalaria
ditava mais o valor pessoal em batalha do que o do grupo, diferente do que
ditava a Regra do Templo.
- Estamos caminhando bem, Guillaume. O rei não pode mais se mover sem
o Templo. Em breve mostraremos que Ultramar não pode existir sem os
templários. Nossas forças dominaram o Oriente. Espere apenas por essa vitória.
Nem mesmo a volta de Raymond poderá estragar nossos planos.
Guillaume quase corrigiu o grão-mestre. Aqueles eram mais planos dele do
que do Templo. O capítulo nunca se reunira para discutir aquela estratégia para
aumentar o poder da ordem. Gerard assumira aquela empreitada com mãos de
ferro, usando todo o poder que o título de grão-mestre lhe dava. Não que
Guillaume imaginasse que os planos fossem negados se colocados em votação.
Havia evidências de que um reino teocrático seria sonhado pelos templários.
- O senhor imagina que o Templo conseguirá controlar todos os barões?
- Por que não? Temos grandes aliados e podemos reunir força suficiente
para suprimir os revoltados. E depois de vencermos Saladino, não haverá
motivos para pouparmos nossas forças nesse aspecto. Pense, Guillaume.
Lideraremos exércitos e não haverá força muçulmana ou cristã que nos suplante.
Em breve podemos espalhar ainda mais nossa influência.
- Nem o Hospital? – perguntou o templário, pensando na honra de ter um
reino para a ordem, onde a força dos cavaleiros pudesse fazer valer a lei de
Deus.
- O que será do Hospital, Guillaume? Eles estão perdidos agora que Des
Moulins se foi. Ainda não conseguiram um líder. E nós golpearemos antes que
eles se reorganizem depois dessa batalha.
Um desânimo súbito tomou conta de Guillaume. Ele não tinha sentimentos
pelos hospitalários, mas ainda sim os respeitava e Roger des Moulins caíra na
mesma batalha que seu amigo Jacques de Mailly. As palavras de Gerard
mostravam pouco respeito para com a morte em uma batalha em que ele mesmo
liderara. O falecimento de De Mailly começara a despertar algumas decepções
em Guillaume. Talvez o grão-mestre não fosse como ele esperava. O templário
imaginava que seu líder pudesse ser como ele, uma alma selvagem e ambiciosa,
mas que entrara para a ordem e conseguira rédeas e um objetivo para o tumulto
sanguinolento do espírito. A Regra não deveria ser rédea suficiente para
controlar Gerard. As palavras dele não eram suportadas pelas ambições do
Templo, mas pelas dele mesmo.
Guillaume começava a se imaginar um idiota. Vira-se na figura de Gerard e
imaginara-se na posição de líder. Pensava como seria se ele pudesse assumir a
liderança. Sempre relutara quanto a isso, temendo que sua violência não pudesse
ser mais contida quando o poder estivesse em suas mãos. Quando conhecera
Gerard, com seus modos nobres e sempre refinados, viu uma figura que era
como ele e imaginou que fosse um Guillaume melhorado, sem os vícios e a falta
de refinamento da baixa nobreza que corria no sangue de La Croix Bleue.
- Antes de tudo, eu tenho que assegurar minha influência sobre o rei. Guy
não pode se deixar levar por Raymond. Se permitirmos que isso aconteça,
estaremos perdidos e em breve Trípoli estará tomando conta de tudo em
Ultramar.
- Entendo. – Reteve-se quando estava para dizer que ao menos naquela
guerra deveriam seguir os conselhos de Raymond. – Devemos mover terreno
nessa disputa mesmo agora durante a guerra?
- Esse é o melhor terreno para acabarmos com tudo isso de uma vez.
Eliminaremos o poder de Raymond e até de nobres como Balian quando
mostrarmos que os templários podem arrasar Saladino. Temos poder para isso,
Guillaume. Quantas vezes os templários já não provaram isso? Até Balduíno IV
nos agradeceu quando o ajudamos em uma vitória contra o sultão.
Mas haviam perdido as outras e isso fez Guillaume voltar naqueles tempos,
nas batalhas duras das quais havia participado e visto amigos morrerem. Não
estava se tornando sentimental naquele momento. Nunca fora, a não ser em
relação à falecida esposa. Não seria agora que choraria por outros mortos. Mas
as derrotas pesaram subitamente sobre sua fé, inclusive a derrota de reconhecer
que Jacques estivera certo e ele errado. O marechal pagara com a vida por estar
tão certo. “Será que eu pagarei assim também por estar tão errado?”, pensou
Guillaume.
Um mensageiro surgiu na entrada da tenda. Levantou sutilmente o tecido e
colocou a cabeça para dentro.
- Senhor grão-mestre, Sua Majestade o convoca com urgência à sua tenda –
disse, e saiu depressa, sem o mínimo de cortesia.
- Mensageiros incompetentes – disse Gerard. – Deixe os homens prontos,
Guillaume, e faça-os se preparem para a conquista do Templo sobre Ultramar.
Sei que você sabe muito bem como jogar assim.
Ele tinha razão. Guillaume conhecia aquele jogo. Sabia como devorar as
outras peças. Entretanto, ele se tornara templário na esperança de conter a
voracidade com que destruía outros de seu sangue e sua fé, com que lutava
contra seu povo. E pagaria por isso. Começou a rir de si mesmo. Não esperava a
morte, mas ela bem que poderia ser a melhor resposta para aquele conflito. Que
ela viesse! A espada dele estaria preparada. Se sobrevivesse, então decidiria o
que fazer. Seria a primeira vez que entraria em uma batalha pensando que
poderia morrer. Não só por causa dos pensamentos, mas por causa do cheiro de
guerra diferente que estava farejando. Podia sentir o odor dos muçulmanos e das
espadas deles e eles estavam cobertos de sangue que não era deles mesmos.

*****

Era outra reunião dos barões que se iniciava devido a uma mensagem
importante. Agora era uma que muitos esperavam que não houvesse chegado,
entre eles Balian de Ibelin. Não era por covardia que o nobre temia aquela
mensagem, mas sim os efeitos dela nos corações dos cavaleiros.
A condessa Eschiva, esposa de Raymond de Trípoli, enviara uma
mensagem a seu marido com palavras que chegaram aos ouvidos do rei e
causaram grande consternação. Ela afirmava que estava cercada. Tiberíades caíra
e agora tudo o que restava era o castelo, de onde ela enviava a carta contando
que continuava resistindo.
Os barões logo começaram a se manifestar. Era uma dama em perigo e eles
deveriam agir. Alguns usavam isso como desculpa para encobrir a sede de
guerra, mas outros, como os filhos dela, estavam legitimamente preocupados
com a condessa. Quando viram os filhos com lágrimas nos olhos, pedindo ajuda
para a mãe, muitos nobres se levantaram e pressionaram para que o exército
marchasse para Tiberíades.
- Não! – gritou Raymond, acima de todos. – Calem-se, vocês – disse,
virando-se para os filhos de Eschiva. Eram seus enteados e marchavam com ele
há muito tempo. Haviam aprendido a respeitá-lo e assim fecharam as bocas e
secaram as lágrimas. – Precisarei repetir tudo? Nem deveríamos ter saído de
Acre e agora vamos caminhar em pleno deserto até Tiberíades?
- É sua esposa que pede por ajuda, seu covarde! – gritou Renaud, apontando
o dedo para Raymond. Os barões mais próximos acompanharam a mão dele e
fitaram o conde com brilho de acusação e morte.
- É minha esposa! É minha cidade! Eschiva pode muito bem defendê-la e o
está fazendo agora. Saladino não fará mal a ela!
- E por que não, Raymond? – A pergunta de Gerard tinha tom de acusação.
Raymond esfregou o rosto. Acabara de errar tremendamente. Balian viu o
mesmo erro e sentiu o veneno da pergunta de De Ridefort correr por seu sangue.
- Porque assim como nós, ele não sai por aí matando mulheres. E eu confio
que Eschiva conseguirá se defender muito bem.
- Está deixando sua esposa e suas terras de lado, Raymond? Muito estranho
isso... Quem entregaria tudo assim? – continuou o grão-mestre. A assembleia se
calou para esperar a resposta de Raymond.
- Gerard, saiba que prefiro ver Tiberíades perdida para Saladino a
presenciar a queda de Jerusalém. Acham que não me preocupo com minhas
terras depois de tanto tempo que passei lutando por Ultramar? Estão enganados
demais então. Estou deixando de lado minhas ambições pessoais para lutar em
nome do reino e agora questionam isso?
Alguns barões baixaram a cabeça, outros coçaram os rostos, sempre
pensativos.
- Concordo com Raymond, devemos esperar – disse Balian.
Era o que precisava ser dito para que finalmente todos concordassem.
Raymond suspirou aliviado quando Guy disse que se manteriam em Sefória. Já
era tarde da noite e, depois de tanta discussão, todos precisavam descansar.
Gerard foi o primeiro a sair da tenda. Ficou do lado de fora, junto com
outros três cavaleiros templários. Manteve-se nas sombras, calado e na
expectativa. Quase mandou alguém atrás de Raymond, apenas para ter o prazer
de vê-lo morto antes que a guerra acabasse. Enfurecido, mas ainda dominado
pela frieza que caracterizava sua ambição, Gerard esperou que todo o
movimento em torno da tenda real acabasse para voltar a entrar.
Os guardas deixaram o grão-mestre passar, apenas dando tempo para o rei
se aprontasse. Guy ainda não dormira e permanecia andando de um lado para o
outro, pensando naquele exército que estava em suas mãos. Olhou para Gerard
contendo o medo de mais uma discussão. Não queria mais encarar outra decisão
difícil naquele dia.
- Vossa Majestade não tem consciência do que está fazendo? É uma
humilhação para o Templo saber que estamos recuando e perdendo uma cidade
importante como Tiberíades, logo uma cidade tão próxima! Pretende confiar em
um traidor que até pouco tempo atrás disputava com Vossa majestade o domínio
do reino?
Andou até Guy e ficou mais perto. Espremeu os lábios e balançou a cabeça.
- Os templários preferem deixar a ordem e o manto a continuarem parados.
Não fugiremos diante dos infiéis.
O rei cedeu. Capitulou porque não tinha chances de vencer sozinho um
argumento contra de Ridefort. E assim o exército marchou mais uma vez.

*****
- Não rompam as linhas! – gritou Guillaume. – Não rompam as linhas!
Marchavam sob o sol escaldante, vendo as patas dos cavalos quebrarem
estilhaços de pedras secas e arrastarem uma terra morta. Precisavam evitar a
tentação de disparar em corrida contra os cavaleiros muçulmanos toda vez que
eles se aproximavam. Guillaume já estava rouco de tanto gritar para se
manterem quietos. Simplesmente não havia como arranjarem uma defesa.
- Lá vêm eles de novo! Vamos correr contra eles, Guillaume! – gritou
Dedrick, puxando as rédeas.
Guillaume olhou para o exército à frente, depois para os templários em
volta. Estavam na retaguarda mais uma vez, junto com Renaud de Châtillon,
Balian de Ibelin e os hospitalários. O rei cavalgava no centro e Raymond de
Trípoli seguia na vanguarda. Guillaume estendeu a mão para que Dedrick não se
movesse, o que fez todos os templários manterem as fileiras e levantarem os
escudos. Era possível ver os rostos aflitos apenas esperando o impacto das
flechas. Suavam sob o calor furioso da Terra Santa com os corações
extravasando frustração por não poderem revidar ao ataque. Alguns homens
gritaram quando viram parte da coluna finalmente se mover. Guillaume olhou
para frente, pensando que pudesse ser o Hospital, mas eram os cavaleiros de
Renaud de Châtillon que se deslocavam.
Renaud cavalgava na frente com a barba ruiva bem a vista. A espada
apontava para frente impelida pelos gritos de guerra. Guillaume achou tudo
aquilo inútil. Viu quando os cavaleiros muçulmanos começaram a dar a volta,
mas ainda com os arcos prontos. Eles fizeram uma curva já próximos dos
homens do Guillaume e dispararam. As flechas cortaram facilmente o ar quente
e seco. Uma quase atingiu Renaud, porém o senhor de Kerak abaixou-se e
deixou o projétil passar. Um de seus homens caiu com uma seta perfurando-lhe o
peito e outros evitaram o ataque com escudos.
Os muçulmanos continuaram a recuar com suas montarias rápidas, às vezes
se virando sobre os cavalos para gritar insultos que se espalhavam pelo ar para
bater nos ouvidos já fartos dos cristãos. Renaud seguiu com a perseguição até
desaparecer da visão de Guillaume. O templário balançou a cabeça e fez sinal
para seus homens descansarem. Quando os cavaleiros de Kerak voltaram, eram
homens ainda mais abatidos pelo calor e pela marcha. Não havia sangue em suas
espadas.
Guillaume assistiu Renaud praguejar enquanto se colocava mais uma vez na
coluna. Parou de falar devido à boca seca. Alguém lhe estendeu um cantil do
qual o senhor de Kerak bebeu pouco, sabendo que deveria tomar cuidado com a
água. Nem ele era tão imprudente a ponto de desperdiçar o líquido precioso, que
valia mais do que ouro naquela marcha.
O exército estava mais lento e cansado, sendo bombardeado pela luz do sol.
Deus estava os colocando em provação, era o que muitos pensavam. Um deles,
entretanto, se cansou dessa provação. Olhando para seus homens, Gerard de
Ridefort sentiu que precisava parar. Ele mesmo não aguentava mais a marcha.
Haviam chegado a um platô de onde era possível ver os Cornos de Hattin.
Eram dois picos altos com mais de trinta metros de altura que anunciavam a
chegada a uma aldeia e ao lago. Logo após eles, o terreno era uma descida que
daria velocidade para uma chegada até a água que tantos ansiavam. Mas Gerard
já estava farto e cansado. Nem sabia de onde vinha o suor mais, pois
praticamente não tinha água no corpo. A boca seca não podia mais ser suprida
com água e não quis pedir os cantis dos templários. Quando pensou em fazê-lo,
encontrou os olhos de Guillaume e ouviu o homem dar ordens para que todos
marchassem e que ninguém tocasse nos cantis até que fosse ordenado.
Gerard chamou por um sargento e deu ordem para que ele procurasse pelo
rei. O homem encontrou Guy enxugando o suor que escorria da testa. Haviam
acabado de lhe oferecer água, mas ele negou quando viu o quanto seu exército
estava sofrendo. Queria compartilhar com eles o sofrimento e se mostrar digno
de estar naquela marcha. Um ímpeto de fazer jus à coroa começava a se formar
dentro dele. Precisava de força e mostraria que a tinha. Então ouviu as palavras
do mensageiro.
- Os templários não se moverão, senhor. O grão-mestre manda avisar que
não darão mais um passo hoje ainda.
Os barões que marchavam ao lado do rei olharam atônitos para o
mensageiro e o homem se encolheu, sem saber o que dizer. Os nobres
começaram a gritar com as bocas secas que precisavam continuar. Já podiam ver
o lago e tinham que chegar até ele naquele mesmo dia. Os homens clamaram
pela sabedoria do rei. Disseram que suas últimas forças deveriam ser usadas para
lutar e alcançar a água, usando todos os argumentos desesperados que poderiam.
Guy os olhou pacientemente, depois viu os rostos abatidos dos cavaleiros e
soldados que vinham pouco atrás dele. Eles o olhavam esperando uma decisão.
- Não posso exigir isso dos meus guerreiros. Já pedi demais deles por hoje.
Pararemos para descansar por essa noite. Eles não terão energia para lutar –
disse, pensando principalmente que desastre seria combater os muçulmanos sem
a força dos templários. Contava com a ajuda de Gerard na estratégia para lutar
contra Saladino e não ser engolfado por um líder muito mais experiente. Sua
vontade de fazer a própria força valer diminuiu e se calou com a necessidade que
ainda tinha dos conselhos do grão-mestre e também da força guerreira de
Renaud. O senhor de Kerak estava atrás junto com os templários e Guy julgou
que ele também pararia ao ver as forças do Templo desmontarem.
Raymond, estupefato, parou sua montaria quando soube da notícia. Baixou
a cabeça e esfregou o rosto com uma das mãos. Amaldiçoou o idiota que
decidira aquilo e xingou o dia em que não invadiu Jerusalém e enforcou aquele
rei maldito para tomar seu lugar. Então o desespero tomou conta de sua alma.
Girou o cavalo na esperança de ainda ter tempo de convencer Guy a alguma
coisa.
- Ah, Senhor Deus, a guerra acabou! Somos homens mortos! O reino está
condenado! – gritava enquanto movia-se pelos cavaleiros cansados que já
começavam a parar, não precisando ouvir uma segunda ordem quando suas
pernas pesadas e suadas já haviam se satisfeito com a primeira.
Era tarde demais para argumentar. O exército perdera o restante de sua
força assim que parou de se mover. Raymond balançou a cabeça e aconselhou o
rei a parar na direção da encosta onde julgava haver um poço. Foi um erro que o
fez baixar a cabeça o restante da noite. O poço estava seco.
Lá embaixo, perto do lago, Saladino e seus homens festejavam. Os cristãos
haviam cavado sua sepultura, criado sua própria armadilha. Eles entregavam
seus pescoços para as lâminas dos muçulmanos.

*****

Os primeiros combates foram pela mais simples sobrevivência. Era noite e


as estrelas observavam os exércitos sem julgar ou interferir. A lua não era mais
do que uma mera observadora quando o três de julho já se tornava quatro de
julho, data marcante da grande batalha de Ultramar. Karsten, com a boca seca,
sentindo a língua grossa raspar nos dentes, saiu da tenda para olhar o campo dos
muçulmanos lá embaixo. Havia festa lá. Pelo menos foi o que ele pensou. Eles
cantavam e oravam. Raymond parou ao lado do germânico, seguido por Balian
de Ibelin e Donat de Sable D´Or.
- Acho que eles não estão pedindo nada. Devem estar apenas agradecendo a
Alá – julgou o conde com um sorriso sardônico.
- Não podemos perder a fé – falou Ibelin, segurando no cabo da espada e
fazendo o sinal da cruz. – Creia em sua espada e em nosso Deus, Raymond. O
senhor não pode se entregar assim.
- Ah... Raymond está certo, meu jovem. Saladino é Saladino. Saladino não
é homem de perder chances e ele nunca mais terá uma chance como essa. Nosso
maldito rei nunca sabe o que faz.
Balian não participaria daquelas lamúrias, muito menos dos insultos ao rei.
Poderia não gostar de Guy, mas jurara fidelidade a ele, portanto era melhor
manter alguma honra. Deu as costas para o grupo e saiu. Caminhou até ver
Gerard de Ridefort conversando com outros cavaleiros. Reconheceu Christophe,
o filho de Donat, entre eles. Quase quis ter com o garoto e perguntar o que ele
estava fazendo ali e não ao lado do pai em um momento como aquele.
Continuou caminhando pelo acampamento, subitamente sentindo-se
derrotado quando os cânticos dos muçulmanos aumentaram. Ele reconhecia as
orações em nome de Alá, inclusive alguns fragmentos citados do Corão. Puxou o
ar com força e fechou os olhos, com a cabeça voltada para o céu. Rezou e pediu
perdão por seus pecados, tentando desviar a mente da raiva súbita que começou
a sentir dos templários. Quando abriu os olhos, Guillaume e Dedrick estavam na
frente dele. Balian sentiu que deveria ser deus dando algum sinal que ele não
compreendia, pois se entendesse não estaria sentindo tanta raiva.
- Acalme-se, Balian – disse Guillaume, sorrindo com o canto dos lábios.
Levantou uma das mãos em sinal de paz.
Balian o encarou perplexo com a calma que a dupla demonstrava.
Começaram a andar até as bordas do acampamento, conversando sobre batalhas.
- Temos chance de vencer se conseguirmos levar os homens até o lago e
resistirmos lá – disse Guillaume.
- Como pretende levar esses homens a esse feito? – disse Balian, apontando
para os soldados sentados, às vezes encostados uns nos outros. Todos estavam
sedentos e alguns apertavam os cantis em busca de água. Balian não queria
perder a fé, mas era difícil mantê-la com os homens naquela situação lamentável.
- Não temos muita chance além disso, Balian. Só temos essa oportunidade e
devemos usá-la. É o que vou fazer amanhã.
- Espero que os outros tenham uma mente tão concentrada quanto a sua,
Guillaume.
Guillaume deu ordem para que Dedrick andasse até os templários e
verificasse se precisavam de alguma coisa. Vendo o colega se afastar, virou-se de
novo para Ibelin.
- Amanhã, quando tudo acontecer, pense no futuro. Ultramar ainda tem
chances. Eu creio nisso. Volte para Jerusalém, Balian.
- Não está contando que vai voltar?
- Se eu não morrer em batalha, morrerei no cativeiro. Saladino não poupa
nenhum guerreiro das ordens. Por favor, mande rezar uma missa por mim, por
Dedrick e por minha falecida esposa. Diga nela que eu a amava. E envie uma
carta para os pais de Dedrick. Diga que ele era um cavaleiro com um dos
maiores potenciais que já vi. Estava sendo aperfeiçoado para se tornar um
grande guerreiro.
Balian demorou a entender. Guillaume estava se entregando à morte.
- Agora há pouco parecia que você imaginava que poderíamos vencer.
- Imagino ainda. Tenho fé nisso. No entanto, não conto que a vitória venha
juntamente com minha sobrevivência, nesse caso. E talvez a vitória não esteja
aqui. Quem sabe se aqui não expiaremos os pecados de Ultramar?
Continuou falando, agora dando informações sobre os pais de Dedrick e
sobre a carta que deveria ser enviada.

*****

Dedrick acabara de se aproximar dos templários quando ouviu uma


comoção logo à frente. Enxergou formas escuras na noite, algumas tombando em
meio a gritos abafados. De repente, viu alguns homens correndo na direção do
acampamento. A princípio, pensou que fossem muçulmanos, mas depois ouviu
um soldado dizer:
- Eles não conseguiram... – falou o homem, baixando a cabeça. – Não
teremos água.
O jovem germânico olhou assustado, depois procurou Guillaume. Ele ainda
estava longe, conversando com Balian. Resolveu que não poderia deixar aqueles
homens morrerem. Correu até o cavalo e montou depressa.
- Templários, venham a mim! – gritou, sacando a espada e batendo os pés
no animal.
Os templários se levantaram e correram até os cavalos. Cinco deles, que
estavam mais próximos, atenderam ao chamado. Os outros ou não ouviram ou
não deram atenção ao comando de alguém tão novo, que mal fazia parte da
ordem. Correram na direção dos homens que voltavam correndo e viram suas
formas com mais nitidez. Eram oito soldados que corriam de volta. Um deles
caiu atingido por uma flecha. Logo foi possível ver os muçulmanos
aproximando-se em perseguição.
Dedrick passou pelos homens e viu que havia mais cavaleiros se juntando a
ele, alguns que não eram templários. Eles passaram pelos soldados desesperados.
Um deles, exausto e com a garganta seca, ajoelhou-se na areia, entregando-se à
sorte ou à salvação por parte daqueles que chegavam. Dedrick passou pelos
homens e chocou-se contra um cavaleiro muçulmano. Derrubou o homem no
mesmo instante e enterrou a espada no crânio dele assim que o viu tentar se
levantar. Viu que estava sob a mira de flechas no instante seguinte. Uma delas
passou perto dos cabelos. Ele praguejou por não ter um escudo e jogou-se no
chão. Bateu no cavalo, fazendo-o voltar em disparada para o acampamento.
Esperava que aquilo não criasse confusão.
Começou a se esgueirar pela areia, passou as mãos nuas pelos pedregulhos.
Os arqueiros haviam acabado de derrubar um templário e os outros cavaleiros
precisaram recuar quando viram que uma pequena vala acabara de derrubar um
dos seus. Não seria possível seguir em carga até os muçulmanos.
Dedrick rolou pela vala e depois subiu lentamente. Os muçulmanos ainda
não o haviam visto. Quando se equilibrou mais uma vez, levantou a espada e
correu até o primeiro arqueiro. Contou que eram quatro e que talvez não tivesse
tempo de acabar com todos antes que pegassem em espadas, mas daria tempo
para os templários e os soldados recuarem para o acampamento. A espada do
jovem germânico acertou as costas do muçulmano, fazendo-o arquejar-se e
gritar. Antes que o corpo caísse, o templário já estava correndo para o próximo.
O homem defendeu-se com o arco desajeitadamente e uma flecha, vinda de
outro arqueiro mais atrás, resvalou na armadura de Dedrick. Ele não hesitou. O
arco do muçulmano se partiu sob sua espada e o homem caiu de bunda no chão.
Dedrick golpeou mais uma vez, agora lhe atingindo o peito. Tirou os olhos do
sangue da vítima e fitou os inimigos à frente. Já estavam com as espadas na mão
e começavam a avançar. Para piorar, dois cavaleiros surgiram do nada para
cercá-lo. Se pulasse de novo na vala, seria atingido por flechas, então lhe restou
apenas ficar e lutar. Correu até os outros inimigos e, para sua surpresa, foi
ultrapassado por um amigo.
Karsten defendeu o ataque do primeiro muçulmano com o escudo e atacou
o segundo. Virou-se e investiu mais uma vez contra o primeiro. Então Dedrick
entrou na luta e o fim veio em segundos.
Heiner esperou um dos cavalos se aproximarem e defendeu o ataque com o
escudo. Escapou do outro aparando com a espada. Virou-se para esperar mais
ataques, mas então ouviu o chamado de Karsten.
- Depressa, Heiner. Temos que voltar ou eles vão nos cercar!
O nórdico olhou irritado para os muçulmanos e berrou o único xingamento
que aprendera em árabe. Voltou-se para os amigos e pulou na vala junto com
eles. Quando escalaram do outro lado, Dedrick olhou para os companheiros com
o manto branco coberto por terra. Enxugou o suor do rosto enquanto via outros
muçulmanos aparecendo na escuridão. Não disse nada, pois Karsten puxou-o
pelo braço para iniciarem uma corrida desesperada de volta para o
acampamento. Pararam apenas para pegar um dos soldados que continuava de
joelhos, olhando para o céu e rezando. Puxaram o homem pelos braços e o
carregaram até os outros cristãos.
Karsten não conseguia falar quando se viram cercados pelos cristãos.
Alguns homens perguntaram se eles haviam conseguido água e viraram-se
desanimados assim que o germânico balançou a cabeça. Heiner teve ódio do
olhar de decepção deles, como se julgassem aqueles que tinham falhado naquela
aventura desesperada.
Souberam que outros grupos fizeram tentativas semelhantes, apenas para
voltarem humilhados para o acampamento, trazendo ainda mais desespero, ou
para encontrarem a morte. Os templários apertaram a mão de Dedrick e o
parabenizaram. Em pouco tempo Guillaume apareceu. Sorria quando abraçou o
jovem cavaleiro.
- Você aumentou a glória do Senhor hoje. Seu feito é em nome Dele e Ele
está feliz com você, meu irmão.
Dedrick sorriu com uma satisfação que Karsten nunca vira antes. O
germânico sentiu inveja e até uma pontada de ciúmes, afinal, estava acostumado
a ser o herói do primo. Agora, simplesmente por causa daquelas palavras,
Dedrick quase se ajoelhava em agradecimento diante do templário. Teve vontade
de falar que foi sorte, pois aqueles eram apenas arqueiros e haviam sido pegos de
surpresa. Não eram mais do que isso. Pela graça de Deus, sua boca estava tão
seca que não conseguiu dizer nada. Agradeceu por conter aqueles comentários
amargos.
Dedrick se aproximou do primo e deu-lhe a mão. Os dois se olharam, ainda
com ressentimentos no canto dos olhos e palavras ásperas espreitando a língua,
todavia fizeram pouco além de balançar a cabeça e agradecer um ao outro. Foi
nessa mesma hora que a fumaça começou a chegar no acampamento. Misturava-
se à escuridão e arranhava os narizes e as bocas secas. O calor aumentou e
sufocou soldados e cavaleiros. Era um ataque do qual não conseguiam se
defender. Alguns colocaram panos em frente aos narizes e boca, mas pouco
adiantava. Precisavam estar úmidos para serem mais efetivos e não funcionavam
contra a sensação de calor que só crescia. Um padre que andava pelo
acampamento parou junto deles tossindo, incapaz de continuar com a reza alta.
Guillaume puxou Dedrick e fez sinal para Heiner e Karsten os
acompanharem. O germânico e o nórdico olharam-se curiosos e só foram porque
aquele era o caminho que precisavam seguir para voltarem a Raymond e Donat.
Foram parar perto da tenda do rei, onde ainda havia pouca fumaça. Podiam ver
que havia homens discutindo lá dentro. Guillaume os fez andar mais um pouco,
agora para verem a tenda do bispo de Acre. Então pararam diante da Cruz
Verdadeira. Estava cercada por soldados, alguns rezando, mas outros apenas de
vigia para que nada acontecesse à relíquia. As traves de madeira eram enfeitadas
com outro e faixas douradas. Estava danificada em alguns pontos, com alguns
sulcos na trave vertical. O braço esquerdo tinha um buraco maior no canto, o que
atraiu a atenção de Dedrick.
Os soldados se afastaram quando Guillaume foi se aproximando. Seu ar de
autoridade fez o grupo se espalhar e esperar alguma ordem ou alguma notícia
que pudesse melhorar seus ânimos. Ele notou isso, porém não disse nada.
Simplesmente não tinha nada para dizer. Fez sinal para Dedrick.
- Toque nela e reze – disse o templário.
Dedrick sorriu respeitosamente e se aproximou. Tocou aquele buraco onde
imaginava ainda ter resquícios do sangue de Cristo. Rezou baixinho enquanto os
dedos sentiam a madeira áspera. Teve vontade de arrancar uma lasca que fosse
para ter sorte na batalha e então entendeu porque havia soldados guardando a
relíquia. Baixou o braço e se virou para Guillaume agradecido. O templário não
estava mais lá. O bispo de Acre estava conversando com ele. Os dois falavam
baixinho.
- Deixe que os homens toquem na cruz. Deixe-os fazerem fila para isso.
O bispo olhou para a cruz e parou para pensar. Viu os rostos desesperados
dos guerreiros de Cristo e o semblante de respeito e felicidade no rosto do jovem
templário. Fez que sim com a cabeça e deu um passo na direção dos soldados.
Parou e olhou para Guillaume.
- Não quer ser o primeiro da fila?
O templário riu e bateu duas vezes nas costas do bispo, depois lhe deu as
costas e saiu, acompanhado por Dedrick. Os homens começaram a fazer fila em
seguida, sob a supervisão do bispo.
- Foi aí que Ele morreu? – perguntou Heiner, olhando curioso para a cruz.
- Dizem que sim – falou Karsten, com os olhos mais voltados para
Guillaume e Dedrick do que para a relíquia.
O bispo de Acre se aproximou dos dois, percebendo que eram cavaleiros,
não meros soldados como os outros.
- Podem passar e tocá-la. Rezem pelo Senhor.
Heiner coçou o pescoço e fungou. Fitou a cruz durante um tempo e depois
andou, furando a fila e tocando a madeira. Não sentiu nada de especial, mas
supunha que deveria rezar. Aquilo era tão importante quanto o martelo de Thor,
com a diferença que não servia para bater em ninguém. Talvez fosse útil para
crucificar Saladino e servir de demonstração para os muçulmanos. Não,
pensando bem não era. Madeira frágil; logo se quebraria. Depois veio na cabeça
que talvez aquele pensamento fosse uma das tais blasfêmias das quais Gareth
tanto falava. Olhou para o Céu e pediu desculpas ao Senhor. Olhou para os
soldados com rostos aflitos, sentiu a fumaça irritar-lhe o nariz, ouviu os cânticos
dos muçulmanos e, então, meio que de repente, sentiu um profundo respeito pela
morte e julgou entender o que era morrer pelos pecados dos outros sem sentir
raiva quanto a isso. Rezou uma das orações que Gareth o ensinara. Só conhecia
aquela, que implicava apenas na própria morte, perdão e aceitação. Nada que
envolvesse vencer uma guerra. Meio de repente, de novo, julgou entender o
motivo pelo qual os cristãos perderiam.
Karsten rezou durante quase cinco minutos, o que gerou certa comoção
entre os soldados, que estavam aflitos para terem sua oportunidade. Aconteceu
que o germânico percebeu o quanto queria se livrar do ódio e da amargura que
estavam tomando conta da sua alma. Queria ao menos que a pureza do amor de
Melisende continuasse. Terminou com um suspiro, andando de volta para
encontrar Donat e Raymond. Também tentaria dormir um pouco antes do dia de
amanhã, se é que isso era possível.

*****

A fumaça quase tapava o sol para aqueles nas bordas do acampamento. A


vegetação rasteira ainda queimava e o vento levava o produto irritante da queima
até os francos. Os olhos dos homens enchiam-se de lágrimas enquanto tentavam
olhar para frente e discernir os inimigos. Houve ordens para a infantaria se
movimentar e preparar-se para o combate. Lanças e espadas foram postas de pé
por braços exaustos tanta física quanto moralmente. E então, lá surgiu o exército
de Saladino. Eram tantos que cercavam os cristãos, tendo se movido durante a
noite para fechar toda e qualquer saída do acampamento do rei de Jerusalém. Os
cavaleiros de Saladino estavam na linha de frente do sultão, encarando os
cristãos para o combate. A infantaria muçulmana gritava desafios e versos do
Corão, festejando por antecipação.
Guy saiu da tenda e sentiu o coração palpitar quando viu a imensidão do
exército de saladino. Um escudeiro apareceu com o cavalo e a lança que o rei
deveria usar. Ele montou olhando para os lados, procurando por Gerard de
Ridefort. Não o viu, mas alguém comentou que os templários ainda estavam na
retaguarda. Raymond de Trípoli estava mais adiante. As duas figuras ocupavam
lugares tão opostos quanto seus corações. O rei tossiu quando a fumaça roçou
pela garganta e fez sinal para os barões o seguirem. Ao seu sinal, o ataque
iniciou, pois não tinha o que fazer além de dar ordens para a batalha começar. Os
muçulmanos já haviam começado a marchar sob o sol daquela manhã fatídica e
os cristãos deveriam enfrentá-los ou encarar Deus como covardes.
- Deus le volt – disse Guy.
- Deus le volt – disseram os barões, um a um. Foram colocando seus elmos
e fazendo suas últimas orações.
Então a infantaria começou a descer a colina para encarar de vez seus
inimigos mortais. Era uma marcha decidida que tinha mais olhos para o lago
atrás das tropas de Saladino do que nas lanças e espadas dos inimigos. Seus
passos tinham a única ambição de sobrevivência, com o sentimento de vitória
bastante escondido nessa vontade de não morrer em batalha.
Rostos cheios de olheiras e com lábios ressecados miraram os muçulmanos
decididos a não ceder enquanto não atravessassem as linhas inimigas. Um
homem começou a rezar alto nas primeiras fileiras. A voz saía rouca e algumas
vezes falhava. Entretanto os companheiros mais próximos o acompanharam e a
oração foi enchendo as fileiras até que os soldados estavam cheios de coragem e
força para o primeiro embate. Apoiaram as lanças quando viram a cavalaria
muçulmana se destacar e avançar para romper suas linhas. Os soldados tentaram
evitar o desastre, mas os cavalos islâmicos aproximaram-se em carga violenta e
impiedosa que trouxe morte para os primeiros homens que ergueram lanças
inúteis.
O homem que iniciara as orações gritou por São Miguel e por Cristo
levantando a cabeça para tentar golpear o cavaleiro inimigo. O sol bateu em seus
olhos e ele fechou um deles enquanto virava a cabeça. O outro, aberto, viu o
amigo do lado ter o pescoço rompido por uma espada. O moribundo tombou sob
seus pés, segurando-o em um pedido de socorro. Desesperado, o soldado
abaixou-se e levantou o escudo, sentindo a pressão de uma espada contra a
defesa improvisada. Cansado, caiu de joelhos e não conseguiu se levantar, até
um cavalo passar por ele e quase o atropelar. Caiu na areia sentindo gosto de
sangue. Soltou a lança e tentou se levantar. Sentiu a mão afundar em uma poça
de sangue e areia. Gritou horrorizado quando mais um corpo caiu ao seu lado.
- Por Cristo! – clamou, finalmente ficando de pé com as pernas bambas.
Viu que, em meio ao desespero, esquecera-se de pegar a lança de novo.
Curvou-se para pegá-la enquanto via os companheiros recuando e as primeiras
filas ficando cada vez mais ralas. Agora havia corpos e homens ajoelhados se
rendendo. Jurou a si mesmo que não seria um escravo de um maldito pagão e
começou a correr para trás para se juntar aos outros. Viu um muçulmano
tentando se levantar ao lado de uma montaria ferida. Desviou-se da rota junto
com outros três soldados, todos apontando lanças para o inimigo. O islâmico
gritou por Alá e defendeu-se da primeira lança, aproveitando para enfiar a
espada fundo na barriga do primeiro cristão. Depois recebeu dois golpes que
fizeram as pontas das armas cristãs desaparecerem em seu peito.
Não havia identidade entre os soldados. Era apenas uma massa que lutava
para sobreviver. O homem que iniciou as orações rezou mais uma vez e chamou
o colega para continuar a corrida para se juntarem aos outros. Passaram por um
corpo dilacerado, com o rosto destruído pela pata de um cavalo. Um homem se
arrastava sem um braço, criando um rastro de sangue. Levantou a mão para os
companheiros, mas nenhum dos dois parou.
Uma flecha vou e atingiu um dos dois cristãos. O homem rezou mais uma
vez. Hesitou entre ajudar o companheiro e continuar. Olhou para frente, quase
ofuscado pelo sol. Viu o brilho da água e depois o brilho das espadas da
infantaria muçulmana, cada vez mais próxima, eliminando muitos dos cristãos
ainda vivos no campo e já prendendo outros.
- Deus me perdoe! – gritou e continuou a corrida para trás. Aquele era um
dia de desespero.
Começou a subir o morro com dificuldade e então encontrou os outros.
Estavam parados, tentando se defender de alguns cavaleiros muçulmanos que se
aproximavam e atiravam flechas. Ficaram ali até serem alcançados pela
infantaria islâmica. Mais sangue jorrou, escorrendo colina abaixo. Um soldado
escorregou na poça vermelha formada por um amigo que acabara de perder a
cabeça. Caiu, foi trespassado por uma lança e, enquanto gritava assustado, uma
espada penetrou fundo em seu pescoço.
O soldado das orações continuava rezando e pedindo perdão. Conseguiu
enfiar a lança no rosto de um inimigo, acertando fundo na bochecha e
pressionando até que o metal estalasse nos ossos. Esperou o corpo do homem
começar a amolecer para retirar a arma e recuar junto com os outros.
Um homem saiu desesperado do meio dos cristãos gritando com espada e
escudo erguidos que Deus lhe daria a vida eterna. Acertou um muçulmano no
braço, dando tempo para que outros cristãos o eliminassem depois da distração.
O homem desesperado continuava gritando e entrando nas fileiras islâmicas.
Enfiou a espada em mais dois islâmicos antes de seus gritos desaparecerem no
meio do exército inimigo. Alguns cristãos caídos puderam vê-lo de joelhos no
meio dos muçulmanos, levantando a espada enquanto o sangue escorria por
várias feridas e ainda por mais enquanto continuava sendo furado até que os
pulmões não tivessem ar para gritar e o coração não pudesse mais manter o
corpo de pé.
O soldado das orações interrompeu as rezas quando tropeçou em um colega
e caiu. A infantaria não conseguia mais recuar, estando presa entre os
muçulmanos e as chamas. Houve uma última pressão, quando os cristãos viram
que não havia alternativa além de lutar. Então a infantaria muçulmana recuou um
pouco, dando tempo para que eles lamentassem os mortos e pensassem na
derrota. Muitos viram quando, de repente, cinco cavaleiros atravessaram o
campo rumo à tenda de Saladino.

*****
Karsten viu que a infantaria cristã estava praticamente perdida. De cima do
morro, os cavaleiros se agitaram, pensando como poderiam reagir. Donat
persignou-se enquanto Raymond olhava para o campo cheio de mortos e
moribundos. Via corpos mexendo-se em últimos pedidos de ajuda ou últimas
orações. Alguns, ainda vivos e com perspectiva de assim continuarem,
entregavam armas e eram recolhidos pelos muçulmanos. Raymond olhou rumo à
tenda do rei e esperou pelas ordens. Antes de elas chegarem, entretanto, viu
cinco de seus cavaleiros se destacarem e descerem a colina. Pensou em gritar
que não era hora de atacar. Ouviu Karsten fazendo essa reclamação. Então,
quando os viu diminuindo a velocidade diante dos muçulmanos, percebeu que
aquilo não era nada além de traição.
- Eles fizeram a escolha deles: viver em covardia. Hora de fazermos a nossa
escolha – falou Raymond.
Karsten assentiu. Alguma decisão havia sido tomada por Saladino. A
cavalaria muçulmana começava a subir o morro para finalmente se encontrar
com os cavaleiros cristãos. Karsten olhou para Raymond. Nem era preciso
esperar ordens. Precisavam rechaçar aquele ataque. O conde emitiu o comando
para iniciarem a carga. Heiner deu um grito de guerra em sua língua nativa.
Ninguém entendeu, mas a força levou outros a bradarem por Cristo, pela Virgem
e por Trípoli.
A lança de Karsten desceu apontada para os inimigos. Ele a apoiava no
braço e a mantinha reta, pronta para um de seus ataques perfeitos. Os cavalos
apressavam-se morro abaixo. Pelo menos dois deles não obedeceram a seus
cavaleiros e continuavam no alto do morro, parados apesar das esporas
machucando-os. Karsten viu isso e continuou. Encontrou o primeiro muçulmano,
um guerreiro jovem que julgava já ter a vitória garantida por Alá. Ele mal teve
tempo de gritar ou orar quando a lança bateu em sua testa, rasgando a pele e
quebrando o crânio, que só não se dispersou por causa da pressão do elmo. O
islâmico foi jogado para trás e sua montaria continuou o caminho mais leve.
Karsten derramara o primeiro sangue e continuou com a lança derrubando ainda
mais um inimigo.
Heiner perdeu a lança no primeiro ataque, quando a quebrou contra o
escudo de um muçulmano. Por sua vez, quase caiu com o impacto do golpe
inimigo. Sacou a espada e gritou com a garganta seca. A voz não saiu. Um resto
de saliva grossa ficou preso na boca, enquanto rugia para acertar os inimigos.
Estava na retaguarda de Karsten, guardando o amigo. Viu alguns cavaleiros ao
lado começarem a cair. Uma mão voou perto do cavalo do nórdico e em seguida
o dono apareceu no chão, caído de costas. O cavaleiro rolou antes de ser
pisoteado pelos cascos duros dos animais. Em pouco tempo, não estava mais se
mexendo e Heiner não teve tempo de se perguntar se deveria rezar por ele, como
Gareth sempre dissera. Estava ocupado demais tentando garantir sua vida e a de
Karsten.
O ombro do nórdico foi atingido por uma lança. O golpe o fez recuar na
cela e foi absorvido pela armadura. Ele contra-atacou baixando a espada na coxa
do muçulmano, batendo sobre a malha protetora. O golpe não cortou, mas teve
tanta força que quebrou a perna do oponente. No calor da batalha, a dor não
chegou a tempo à mente do muçulmano. Ele atacou mais uma vez, puxando a
lança para trás e depois a jogando com toda a força do braço. Heiner defendeu-se
e colocou a arma para o lado, golpeando uma segunda vez com a espada. Agora
acertou o escudo, o que fez o muçulmano usar as pernas para se equilibrar e
finalmente sentir a coxa destruída. Ele gritou de dor e perdeu o equilíbrio. Para
sua glória, mesmo naquele estado, defendeu um terceiro ataque de Heiner e
pereceu no quarto, quando se dobrou para manter-se em cima do cavalo,
inconsciente de sua ação por causa do sofrimento, e recebeu uma espadada no
rosto.
Heiner procurou por Karsten e viu o amigo mais à frente. O germânico
acabara de se colocar entre um cavaleiro ferido e um muçulmano. Defendia-se
com o escudo e tentava arranjar-se com a lança, mas a curta distância o impedia.
Soltou a arma no chão e procurou pela espada. Antes que pudesse alcançá-la,
outros cavaleiros os cercaram. O homem ferido foi derrubado do cavalo e
começou a se mover de um lado para o outro, segurando a barriga com o braço
de esquerdo e mantendo a espada levantada. Baixou a arma quando viu lanças
apontadas em sua direção e se rendeu. Karsten continuou lutando, fazendo o
possível para fugir dos cavaleiros que o cercavam.
A habilidade do germânico o permitiu escapar dos golpes dos oponentes e
ainda contra-atacar. Afastou dois deles e ajeitou-se sobre o cavalo, estendendo o
braço para acertar o escudo do terceiro. Bateu nele pelo menos três vezes, antes
de ver os outros voltarem ao ataque. Aí teve o plano de se virar subitamente e
bater fundo as esporas no cavalo. O animal disparou como uma flecha na direção
daqueles dois e Karsten passou entre eles, com o escudo defendendo o ataque de
um e a espada batendo contra a lâmina curvada do outro.
Raymond deu ordens para finalmente a cavalaria recuar e eles voltaram
para o alto do morro. Havia cavalos mortos e cavaleiros caídos na encosta. Os
muçulmanos levaram alguns como prisioneiros e mataram aqueles que
resistiram. Mais à esquerda, os cristãos ainda recuavam. Karsten limpou o suor e
o sangue do rosto. Sentiu Heiner ofegante a seu lado. A espada do nórdico
pingava sangue.
- Estamos indo bem. – Heiner estava com um sorriso brilhante. – Por acaso
você não conhece uma oração para a guerra? Gareth não me ensinou nenhuma.
- Acho que não temos nenhuma para isso – respondeu Karsten, com o peito
subindo e descendo com força. Estava com dificuldade para controlar a
respiração. Quantos havia matado? Cinco, seis? Não, talvez mais. Esperava que
fosse, pois ainda havia muitos para matar. Era imprescindível fazer sua
contagem aumentar rapidamente.
Heiner não contava quantos havia matado. Sabia que foram poucos. Perdera
tempo demais em algumas poucas lutas. Ainda sim, estava contente, pois
enfrentara oponentes de valor. Cada um deles valia por muitos dos que já havia
vencido nas lutas quando levantava a espada em nome da família de Karsten.

*****

Guillaume enfiou a lança o máximo que pode no oitavo oponente daquele


combate. Sabia que a arma já estava gasta e não era nada mais do que um pedaço
de pau com um metal na ponta quando finalmente atingiu aquele muçulmano.
Na retaguarda cristã, ele viu os templários, Renaud de Sídon, Renaud de
Châtillon e Balian de Ibelin se esforçarem para tentar impedir o avanço dos
muçulmanos naquele cerco terrível.
Assistiu à queda do inimigo sacando a espada. Fez o cavalo se movimentar
para levar a morte ao nono inimigo. Não pensava em Deus, na morte, na vida, na
falecida esposa, nas regras ou em qualquer outra coisa. Aquele era Guillaume,
cuja alma respirava o cheiro dos cadáveres, alimentava-se do sangue derramado
na areia e tinha como música os últimos suspiros. Nem sabia o que gritava, mas
julgava que era em nome de Deus. Ele julgava que fosse, um julgamento que era
cada enterrado na onda de violência que alimentava seu corpo.
Havia gritos de batalha ao redor dele. Orações e chamados desapareciam
em seus ouvidos, substituídos ela própria voz que gritava ordens para os
templários continuarem unidos e avançando nas fileiras muçulmanas. Eles
seguiam juntos. Perdiam as lanças nos corpos que passavam sob as patas dos
cavalos e sacavam espadas. Guillaume mostrou o escudo com a cruz para um
muçulmano e o esperou aproximar-se em carga. Recebeu todo o impacto do
golpe, fazendo-o escorregar pelo escudo e usando sua força e a do inimigo para
que o choque da espada templária contra o corpo muçulmano quebrasse ossos e
fizesse o sangue voar por mantos brancos que estavam ao redor.
- Avante! – O grito seco do templário pedia sangue.
Dedrick vinha ao lado dele. Estava com o rosto coberto de vermelho.
Perdera a lança logo nos primeiros ataques e agora tinha um escudo
semidestruído e uma espada cheia de dentes e sangue. Ele tentava acompanhar
Guillaume e tratava de chacinar quem quer que passasse pelos golpes do
templário líder. Havia uma crosta de sangue sobre o olho esquerdo que o
incomodava, mas Guillaume não lhe dava tempo para limpar. Ele simplesmente
continuava avançando e matando. O braço de Dedrick já estava cansando, porém
o de Guillaume parecia ganhar mais força à medida que os corpos caíam a seu
redor. O homem parecia se sustentar pelas almas que enviava para o Céu ou para
o Inferno naquele dia.
Um muçulmano apareceu desmontado em frente a Dedrick. O templário
não notou se era um cavaleiro ou um soldado. Vendo que o oponente passara por
Guillaume apenas com o ombro ferido, decidiu dar um fim nele. Golpeou de
cima para baixo e a arma passou pelo elmo. O golpe teria escorrido e se perdido,
mas o nasal estava quebrado. Dedrick viu o nariz do homem voar. Ele largou a
espada e colocou as mãos no rosto. Os templários avançaram e alguém acabou
com o sofrimento do muçulmano.
Guillaume fez o avanço parar. Acabara de enfiar a ponta da espada no rosto
de um muçulmano. Vira um dos olhos saltar da órbita e ficar preso apenas pelo
nervo. Depois de derrubar o homem do cavalo, olhou em volta, sabendo que
Dedrick estava o protegendo. Era difícil enxergar no meio da confusão. Um grito
de guerra cresceu as fileiras muçulmanas e um grupo diferente de cavaleiros se
jogou sobre os templários. Eles derrubaram pelo menos cinco homens do
Templo antes de alcançarem Guillaume. O templário preparou-se para receber os
ataques, mas viu que era hora de recuar. Fez os templários iniciarem a corrida de
volta. No flanco esquerdo, já percebera que Balian estava chamando seus
homens e Renaud de Châtillon fazia o mesmo do lado direito.
Os cavaleiros passaram por ele e tentaram forçar um confronto. Os
templários uniram escudos e espadas, formando uma barreira que impediu o
avanço deles. Guillaume fitou-os olhos nos olhos e soube que aqueles seriam seu
próximo desafio.
Os cavaleiros se reuniram de novo perto do morro. Lá em cima, a tenda do
rei continuava de pé. A Cruz verdadeira aparecia para dar-lhes força. Guillaume
apeou e retirou o elmo diante de Balian, Renaud de Châtillon, Renaud de Sídon e
Gerard de Ridefort. O grão-mestre enxugou o rosto molhado com um pano e
olhou-os. Tinha marcas de sangue nas roupas e acabavam de trocar sua espada.
- Perdemos muitos homens? – perguntou o poderoso templário.
Guillaume olhou para trás, para as fileiras reduzidas que haviam o
acompanhado fielmente.
- Alguns. Ainda poderemos manter a defesa.
Balian lambeu os lábios e conteve uma ordem de pedir por água.
- Meus homens acabarão cedendo. Estão esgotados e a pressão foi forte do
nosso lado. Guillaume aprofundou-se demais nas fileiras deles. Deveríamos
apenas nos defender, não adentrarmos no combate.
- Concordo com Balian. Foi difícil acompanhar os templários. Acho melhor
também chamarmos os hospitalários para cá – falou Renaud de Sídon.
De Châtillon ficou calado olhando para os muçulmanos reajustando suas
linhas.
- Não chamaremos os hospitalários. Não precisamos deles aqui. Podemos
resistir – falou Gerard.
- Senhor, nosso primeiro contra-ataque falhou. Não podemos jogar os
muçulmanos para trás. O máximo que fizemos foi mantê-los onde estão.
Precisamos de reforços – disse Guillaume.
Gerard olhou para o templário e apontou-lhe um dedo, batendo-o três vezes
no manto cheio de sangue.
- Escute, Guillaume. Estamos em condições de mantermos a retaguarda. Se
o Hospital sair da linha que está, perderemos os flancos. Devemos manter a
retaguarda sozinhos ou simplesmente não seremos mais nada – disse. Precisou
limpar o dedo avermelhado. – Maldito sangue muçulmano! – xingou. – Voltem
para suas posições. Eles atacarão de novo e precisamos rechaçá-los.
Guillaume recolocou o elmo e começou a conduzir o cavalo diante. Balian
e Renaud de Sídon caminharam ao lado dele, só abrindo a boca quando De
Châtillon se afastou carrancudo.
- Precisamos romper as linhas deles, Guillaume. É nossa única chance –
disse Balian.
- Se forçamos um ataque naquela direção... – disse Renaud de Sídon,
apontando onde havia menos cavaleiros e a infantaria precisava se equilibrar
para se manter no morro – ...poderemos romper as linhas e passar por eles.
Guillaume apenas sorriu. Sabia o que queriam fazer. Suspirou e bateu nas
costas de Balian.
- Viu, eu avisei, Balian. Ele é um templário. Não podíamos confiar nele.
- Deixe estar, Renaud. Vamos fazer o que deve ser feito.
O templário puxou seu cavalo até seus companheiros. Eles desviaram os
olhos dos muçulmanos para receberem novas ordens.
- Nenhuma ordem nova, meus irmãos. Vamos apenas manter-nos aqui na
defesa. Quando eu der a ordem, faremos um ataque decisivo.
Dedrick balançou a cabeça, concordando.

*****
Saladino era um homem forte. Estava claro em seu rosto e na aura de poder
que fazia muitos dos emires mais revoltados ou orgulhosos se curvarem diante
de suas ordens. A face austera escondia generosidade e honra. A barba bem
aparada e os olhos negros brilhantes eram sinais de elegância. O sultão, na frente
de sua tenda, observava o avanço de suas tropas. Assistira ao massacre da
infantaria cristã sem dizer nada além de agradecimentos a Alá. Ao lado dele, o
filho se impressionava com a face dirigida exclusivamente à batalha. Al-Afdal
era o caçula do sultão e ainda aprendia com o pai. Não havia um dia que não se
impressionasse com as ações dele. A paciência no ataque, por exemplo, era uma
virtude que al-Afdal não sabia se um dia teria.
Era como se Saladino esperasse por um sinal. E ele veio. O sultão ajeitou o
turbante e alisou a barba quando viu os cinco cavaleiros cristãos sendo trazidos a
ele. Não havia sinal de orgulho naquelas faces que haviam o desafiado. Eles se
ajoelharam como escravos ou servos.
- Senhor, ataque logo e acabe com todos os cristãos. Eles são praticamente
homens mortos. Ao menos acabe com todo aquele sofrimento – eles pediram.
Foi então que Saladino ergueu as mãos em agradecimento a Alá o Piedoso e
fez sua cavalaria subir o morro em busca do rei cristão. Precisava vencer. Não
deixaria o cristianismo macular suas terras mais. Malditos fossem os francos.

*****

Guy recebeu o comunicado de que os templários e os outros barões estavam


resistindo na retaguarda, mas não sabiam mais por quanto tempo poderiam
manter aqueles ataques. O rei então viu que não haveria alternativa além de
romper as linhas inimigas e encontrar uma passagem para a salvação. Precisaria
sair da defesa e iniciar os ataques finais. Mandou uma mensagem imediata para
Raymond de Trípoli. Como estavam em suas terras, ele deveria fazer a primeira
tentativa. Era sua missão, em nome de Deus e por sua honra, romper as linhas
muçulmanas.
Raymond recebeu a notícia sem estardalhaço. Mal olhou para o mensageiro,
preferindo visualizar o campo de guerra. Os muçulmanos continuavam de costas
para o sol, com o lago ainda brilhante como um chamativo mortífero para os
cristãos. O brilho das espadas e armaduras começava a diminuir por causa do
sangue.
- Quais são suas ordens, senhor? – perguntou Karsten. Donat e Heiner
estavam calados ao lado dele. O barão tinha apenas a espada na mão. O braço
esquerdo machucado não podia mais suportar o escudo.
- Vamos cavalgar – disse.
Começaram a descida pelo morro. Alguns cavaleiros ficaram para trás, sem
forças até para montar. Não fizeram nada além de deitarem-se exaustos
esfregando a boca e os olhos para ao menos se manterem acordados. Karsten
agradeceu por não ser um deles, apesar de sentir que suas forças estavam o
deixando rapidamente. Tentou se concentrar no combate e reunir os últimos
estímulos que tinha para lutar. Passou a mão pelo pelo molhado do cavalo antes
de sacar a espada mais uma vez.
- Pronto, Heiner? – gritou, mas o amigo não ouviu, pois a voz se perdeu no
vento e nos gritos de batalha que vinham das linhas muçulmanas. – É a vontade
de Deus! – gritou, agora para si mesmo.
Heiner ouviu a última frase e repetiu as palavras em um brado de guerra.
Quando já estavam próximos dos muçulmanos, fez o cavalo se aproximar ainda
mais de Karsten e Donat. Eles seguiam logo à frente com Raymond. Tencionava
proteger os três, guardando-os enquanto abrissem caminho. Então seus olhos se
arregalaram quando o caminho realmente se abriu para eles. As tropas
muçulmanas cederam espaço. Heiner não entendeu o que estava para acontecer.
Julgou que eles se fechariam sobre eles. Os cavaleiros preparam as armas para o
cerco mortal.
Karsten levantou o escudo e a espada, querendo virar o cavalo para a luta.
Todavia Raymond continuava cavalgando apenas com os olhos para frente.
Alguns muçulmanos tentaram detê-los, mas logo foram atropelados pelos
homens de Tiberíades. Outros que se esforçaram para parar o avanço cristão
tiveram o destino terrível de serem trespassados por espadas erguidas por uma
força desespera pela ânsia de sobrevivência. Os muçulmanos começaram a
fechar as linhas de novo e os cavaleiros de Raymond se apertaram. Alguns foram
pegos por flechas que os derrubaram dos cavalos, outros pegos por lanças.
Entretanto, a passagem foi forçada. Eles finalmente alcançaram a liberdade.
Então pararam e olharam para trás. Karsten olhou com pesar a tenda do rei
erguida lá em cima. Muitos cavaleiros ainda estavam em cima do morro e
deveria estar observando a cena com bocas abertas. Mexeu com o cavalo para
voltar, mas Raymond estendeu a mão.
- Eles já fecharam as fileiras. Não podemos ficar aqui. Já foi difícil termos
essa chance e os pegarmos despreparados.
Karsten olhou para Heiner. O nórdico tinha ódio nos olhos. Dava quase para
sentir que ele pretendia precipitar-se sozinho sobre os muçulmanos. Fez sinal
para que ele se mantivesse quieto. Donat tinha um semblante confuso. Parecia
que estava feliz, mas também tinha um pesar que o fazia baixar os ombros e
respirar com dificuldade. Aquilo não era só cansaço.
- Dedrick ainda está lá – ouviu Heiner dizer.
- Quem é Dedrick? – perguntou Raymond, começando a virar o cavalo.
- Um templário – respondeu Karsten, começando a orar pelo primo.
- Então ele está morto – disse o conde.
O coração do germânico doeu. Ele suspirou e continuou suas orações,
enquanto usavam suas últimas forças para cavalgar para Trípoli. Não poderiam ir
para Tiberíades. Saladino os caçaria lá.

*****

A notícia da fuga do Conde de Trípoli se espalhou pelos cristãos mais


rapidamente do que o fogo que cercava o acampamento. E secou mais as
esperanças dos soldados do que a fumaça secara as gargantas. Guillaume não
disse nada para seus homens. Apenas pediu para montarem, usando as últimas
forças que tinha. Assim os templários fizeram, alguns mal conseguindo carregar
as armas. Viu outros cavaleiros incapazes de seguir o exemplo do Templo. Não
tinham forças nem para morrerem lutando.
- Ao ataque, templários! É a vontade de Deus! – gritou. Então baixou a
cabeça e fechou o punho sobre o peito. Foi acompanhado pelos outros. Eles
rezaram e terminaram com seu lema. - Non nobis, Domine, non nobis, sed
Nomini tuo da gloriam.
Guillaume iniciou outra carga. Agora era um ataque de verdade. Ele viu
Balian e Renaud de Sídon preparando-se para avançar e jogou a força dos
templários sobre os flancos que aqueles dois barões deveriam proteger. Deu
apenas espaço para que eles pudessem levar seus homens na mesma direção.
Forçou o combate na área com os templários banhando as espadas com mais
sangue.
Dedrick não gritava enquanto batia. Ele queria concentrar a força nos
golpes e as cordas vocais secas já machucavam toda vez que falava. Os
templários forçaram caminho adentro nas linhas muçulmanas, despedaçando a
formação cuidadosa do inimigo. Eles precisaram se mover e reforçar as fileiras
para impedir que os templários continuassem matando. Dedrick assistiu os
muçulmanos recuarem e baixarem as defesas, começando a debandar deixando
corpos moribundos ou falecidos na areia.
- Parem! Recuar! – gritou Guillaume.
Os templários recuaram surpresos, alguns satisfeitos, porque não tinham
mais força para lutar. Então, algo lhes diminuiu ainda mais o moral. Viram
Balian de Ibelin e Renaud de Sídon romperem as fileiras muçulmanas e
atravessarem o cerco. Em pouco tempo os cavaleiros deles desapareceram atrás
dos muçulmanos que não iniciaram perseguição, mas se fecharam de novo para
continuarem a luta.
“Templários não fogem. Nós ficamos até o fim!”, pensou Dedrick, olhando
confiante para Guillaume. Os cavaleiros muçulmanos voltaram a atacar, os
mesmos que haviam aparecido no momento final da última carga. Eles
impuseram-se sobre os templários mais uma vez. Era óbvio que o alvo deles era
Guillaume. Dedrick fez os outros avançarem na direção de seu líder. Impediram
a carga dos islâmicos bem a tempo, mas perderam dois homens, que caíram com
cortes profundos das espadas curvadas.
Guillaume defendeu-se dos golpes, mas mesmo com a ajuda de seus
homens, estava cercado. Virou-se na cela para acertar um cavaleiro inimigo,
batendo a espada no peito do homem e sentindo a lâmina afundar mesmo com a
armadura protegendo. Virou-se mais uma vez, agora para atingir outro inimigo.
Um peso impediu que atacasse. Improvisou uma defesa com o escudo quando
sentiu mãos puxarem seu manto. Caiu sobre o cavaleiro que acabara de abater. O
homem ainda tentava segurá-lo e Guillaume sentiu-o cuspir sangue em seu
pescoço. Girou a espada e golpeou várias vezes para trás. Só parou quando
sentiu que já podia levantar-se. Para sua surpresa, não conseguiu. De algum
modo seu manto havia ficado preso no muçulmano. Tentou livrar-se
furiosamente, enquanto via os cavaleiros apearem e começarem a andar em sua
direção. Usou a espada para cortar os panos e agradeceu quando a forma de
Dedrick surgiu diante dele.
O jovem germânico acabara de apear e jogou-se como um leão sobre os
inimigos. Pegou um deles pelo ombro, fazendo o homem parar a corrida que
iniciara até Guillaume. O templário caído livrou-se do que restava do manto.
Não havia mais a cruz vermelha para simbolizar a posição de que tanto se
orgulhava. Mais nervoso ainda por causa disso, correu para enfrentar os
oponentes. Acabou com o primeiro deles após quatro golpes. O último deles foi
um giro sobre o próprio corpo que terminou com a espada enterrando-se sob o
braço do muçulmano.
Saltou o corpo de um templário e jurou que pegaria o manto de quem não
se levantasse para lutar na próxima carga. Não morreria sem vestir a cruz
vermelha. Acabou com mais um inimigo cortando-lhe o braço. O golpe atingiu o
cotovelo, partindo o membro. O homem gritou e jogou todo o corpo contra
Guillaume. Desequilibrado, o templário soltou a espada. Precisou pegar a faca
no cinto e enfiá-la repetidas vezes na lateral da barriga do inimigo, para
finalmente soltar-se. Agora tinha apenas o escudo e uma faca quando algo
atingiu suas costas. A armadura absorveu o golpe, para sua sorte, mas ele
arquejou o corpo por causa do impacto. Foi atingido de novo, agora sem definir
de onde vinha a dor. Um terceiro quase o derrubou, mas ele pulou sobre o
inimigo e enfiou a faca no pescoço. Os dois caíram sangrando.
Dedrick viu Guillaume tombar. Havia acabado de derrubar seu inimigo, não
sem antes ser atingido e ferido no ombro. Tentou correr até o líder, mas os
muçulmanos estavam avançando. Os templários sobreviventes o chamaram para
trás. Ele recuou sem pensar, apenas lamentando ter perdido alguém como
Guillaume. Ao menos ele havia morrido em batalha.
Reuniram-se sob o estandarte do Templo. Gerard de Ridefort e Renaud de
Châtillon apareceram para dar as ordens.
- Vamos para a tenda do rei. Precisamos defender aquele único ponto agora.
– As ordens de Gerard, secas de vontade e de água, foram ouvidas por corações
apáticos.
Renaud não disse nada mais uma vez. Dedrick ficou impressionado com o
tanto de sangue que havia no corpo do senhor de Kerak. Ele realmente parecia
um guerreiro temível, como Guillaume. Rezou pelo amigo. Era uma lástima tê-lo
perdido quando ainda não haviam acabado de lutar.
Dedrick pegou o cavalo de um homem que não conseguia mais montar.
Começou a se mover para se juntar aos últimos templários. Em pouco tempo, os
homens de Châtillon estavam junto deles. Não eram mais do que cem cavaleiros,
se fossem tantos. Estava difícil contar, pois sua cabeça rodava por causa do
cansaço. Pensou em Karsten, Gareth e Heiner. Pensou até em Laure com aquele
corpo esplêndido e a face que o faria se curvar. Tossiu e tomou posição para
resistir a uma carga muçulmana que estava se aproximando.

*****

Saladino estava montado em uma égua branca. O animal não tinha


nenhuma mácula no pelo. Estava parado rígido, mantendo seu mestre a uma
altura em que podia enxergar perfeitamente a batalha morro acima. O filho
caçula ainda estava ao lado quando viram a cavalaria muçulmana iniciar mais
um ataque. Os cristãos foram pressionados e lutaram por suas vidas. Cavalos
mexiam-se e tombavam, alguns escapando da confusão sem cavaleiros.
A tenda vermelha do rei continuava de pé e era o alvo primordial dos
guerreiros islâmicos. Eles tentavam passar pelos guerreiros cristãos, empurrando
com cada vez mais força. O exército de Jerusalém não permitia que
continuassem. Pareciam derrotados, todavia continuavam montados e exerciam
pressão de volta. Fizeram força até que obrigaram os muçulmanos a recuarem.
Saladino irritou-se puxou a barba e fez seu cavalo se adiantar.
- Não deixem o demônio vencer! – gritou.
Os olhos de Saladino observaram seus guerreiros atacarem mais uma vez.
Os cristãos recuaram, tendo um espaço cada vez mais reduzido colina acima.
Um guerreiro saiu correndo da batalha, mas acabou atingido por uma flecha que
lhe varou o peito. Outro rolou morro abaixo. Um cavalo saiu em disparada com
um homem inconsciente, provavelmente morto, pendurado. Correu até que seu
cavaleiro foi jogado no chão e arrastado por uma dezena de metros, antes de ser
pouco mais além de um corpo misturado à areia.
- Vencemos – gritou al-Afdal, quando viu o tanto que os cristãos haviam
recuado.
O exército de Jerusalém, entretanto, parecia disposto a contrariar as
expectativas naquele dia. Precipitaram-se sobre os muçulmanos mais uma vez e
jogaram a onda de espadas e lanças islâmicas para trás. Saladino adiantou-se
mais uma vez para gritar a seus soldados. Eles precisavam vencer logo.
Os cristãos não tiveram forças para manter o ataque e foram obrigados a
retroceder.
- Vencemos – gritou mais uma vez al-Afdal.
- Cale-se. Eles não estarão derrotados enquanto aquela tenda estiver de pé.
Os olhos de al-Afdal voltaram-se para a colina, mais especificamente para a
tenda vermelha. Parecia a ponto de derrubá-la apenas com a vontade. Então
finalmente ela tombou.

*****

Dedrick precisou desmontar mais uma vez. As patas do cavalo arquejaram e


cederam sob ele. O templário quase seguiu o exemplo do animal, porém se
manteve de pé para continuar molhando a espada de sangue. Havia tantos mortos
ao lado dele que tropeçava em corpos e poças de sangue. Notou que alguns dos
homens estavam apenas caídos de cansaço, esperando pela morte. Passou por
eles para tentar se reunir com os outros. No alto do morro, viu a Cruz Verdadeira
e ganhou forças ao lembrar-se das orações que fizera ao tocar na relíquia. Viu o
bispo de Acre perto dela e então, de repente, o homem sumiu quando uma massa
de muçulmanos passou por ele. A cruz tombou.
Dedrick correu para tentar acudir. Foi parado por outra visão. Agora era a
tenda do rei que despencava no deserto. Não havia mais vitória nem pelo que
lutar. Virou-se para o campo de batalha atrás dele e viu homens ajoelhados.
Alguns não tinham forças nem para entregar as armas aos muçulmanos. Chorou
e caiu de joelhos, pois agora estava acabado. Haviam perdido. Queria não ter
presenciado aquele momento. Queria que seu corpo estivesse jogado no campo
de batalha e que contassem como ele havia matado tantos inimigos antes de
perecer. Agora, no entanto, era um prisioneiro. Que honra havia nisso? Seria um
escravo?
Os muçulmanos o fizeram se erguer e começaram a empurrá-lo juntamente
com outros cavaleiros. Reuniram-nos no campo de batalha, perto do lago, onde
podiam ver a água próxima, até sentir o ar mais úmido. Era uma tortura ficar tão
próximo e não molhar a boca. Um cavaleiro ao lado dele viu que estava
chorando ainda. Era Christophe de Sable D´Or.
- Um templário chorando? Que estranho. Ao menos estamos vivos.
- Templários não se rendem. Eles morrem em batalha. Eu não deveria estar
vivo no meio dessa derrota. Nossa morte ainda sim seria uma vitória da fé em
Cristo.
O homem se calou e tentou conversar com outro cavaleiro, perguntando se
os muçulmanos lhes dariam água. Dedrick procurou por mais templários e viu
que estavam todos reunidos próximos aos hospitalários. Levantou-se em meio
aos homens. Um soldado muçulmano tentou detê-lo, mas ele fez sinal que iria
para junto dos outros. Chamou qualquer templário que encontrou pelo caminho e
os levou para junto daqueles mantos brancos suados, surrados e sujos de sangue.
Pediu para começarem uma oração.

*****

Saladino esperava pelos nobres capturados em sua tenda. Pôs-se de pé tão


logo os primeiros deles, sujos e de ombros caídos, vencidos pelo cansaço e pela
espada muçulmana, entraram. Todos ficaram de pé, exceto o rei Guy, a quem foi
oferecida uma cadeira. Ele desmoronou-se nela e cobriu o rosto com as mãos.
Saladino olhou para ele, pensando que realmente nunca poderia ter sido
derrotado por aquele rei. Viu os outros nobres de pé, todos sedentos. Seus olhos
pararam principalmente sobre Renaud de Châtillon e sobre Gerard de Ridefort.
Ali estavam dois alvos de sua ira. Um pelos crimes que cometera tantas vezes,
outro simplesmente por pertencer aos templários.
O sultão deu ordens para servirem água ao rei. Era água de rosas com algo
ainda mais peculiar. No calor daquele deserto, Saladino se dava ao luxo de ter
gelo. Sim, era gelo trazido diretamente do monte Hermon. O rei se surpreendeu
quando viu o copo de metal, com jóias vermelhas nas bordas, estendido em sua
direção. Percebendo que tinha uma dignidade a ser mantida, apesar da derrota,
colocou-se de pé e aceitou a bebida.
- Senhor, tenha piedade de mim e de meus homens – pediu Guy, falando
como um rei, apesar de um rei subitamente cônscio do que significava a palavra
humildade.
Saladino o observou e fez sinal para que bebesse. Guy despejou lentamente
a água pela boca, sentindo um leve mal estar por causa da água fria na garganta
seca. Terminou e passou o restante para Renaud de Châtillon. Saladino franziu o
cenho imediatamente. Virou-se para o intérprete e disse:
- Diga ao rei que foi ele, e não eu, quem deu de beber a esse homem.
Guy teria sua vida assegurada, já que, por costume, os muçulmanos assim
faziam a quem ofereciam água ou comida. Saladino recusava-se era a dar a
mesma garantia a Renaud. Virou-se imediatamente para o senhor de Kerak.
- Quantas vezes jurou e depois violou seus juramentos. Quantas vezes
assinou acordos que não respeitou! Está ciente da sua cobiça? Está ciente da
alma podre que tem? – controlou-se e lembrou-se das leis de Maomé. – Aceite o
Islã e redima-se. Submeta-se a Alá.
Renaud riu e bebeu da água, depois jogou o copo no chão. Olhou para
Gerard de Ridefort. O templário mantinha os olhos fixos em Saladino, na
expectativa do pior.
- Todos os reis se comportam assim. Nada fiz além disso – respondeu De
Châtillon, ainda rindo.
- Sua perfídia termina aqui.
Saladino sacou uma espada imediatamente, passando a lâmina brilhante e
pura pelo pescoço de Renaud. O sangue jorrou pela tenda, caindo sobre a
armadura de Saladino. Alguns servos se adiantaram para limpá-lo, enquanto al-
Afdal dava ordens para que os homens levassem Renaud para fora. Ele ainda
tremia no chão e segurava o pescoço. Guy assistiu horrorizado quase sentindo na
pele as armas perfurando o corpo de Renaud lá fora.
A expressão do rei consternou Saladino. Ele olhou para Guy e falou
calmamente:
- Um rei não mata outro rei, mas a perfídia e a insolência desse homem
foram longe demais.
Virou-se para Gerard de Ridefort. O templário quase se encolheu perante o
olhar do sultão. Manteve sua dignidade e o encarou de volta, esperando por seu
fim.
- Por favor, poupe aqueles que lutaram comigo – pediu Guy, mais uma vez.
Saladino olhou para todos na tenda e sorriu.
- Quase todos – disse. Virou-se para De Ridefort. – Você vem comigo.
Andou com o grão-mestre até o campo de batalha. Parou diante dos
prisioneiros e emitiu uma ordem que o templário não entendeu. Só percebeu o
que estava para acontecer quando viu todos os hospitalários e templários sendo
reunidos. Os muçulmanos os empurravam com lanças para o alto da colina. Lá
havia homens vestidos com mantos azuis e espadas na mão.
- Esses são seus homens, não são? Você será poupado, mas esse será o
destino deles – disse, levantando e baixando a mão.
A primeira cabeça rolou morro abaixo.

*****

Dedrick levantou-se com dificuldade. Passara a última meia hora rezando


pela sua alma, pela de Guillaume e por todos os mortos naquele dia. Quando os
muçulmanos começaram a espetar os templários e hospitalários, reunindo todos
para a subida na colina, soube que o fim havia chegado. Não emitiu nenhuma
lágrima, mas sim seu primeiro sorriso naquele dia. Caminhou ainda rezando, de
cabeça erguida. Era hora de encontrar o que procurava, a glória de Deus.
Viu os mantos negros dos hospitalários, com as cruzes brancas, do lado
esquerdo. Os templários estavam do lado direito. Os sufis começaram a
caminhar entre eles, arranjando-os em uma fila. Mais à frente, Dedrick viu um
homem de armadura brilhante, que aparentemente não fora tocado pela batalha.
Ao lado dele, Gerard de Ridefort estava quieto, apenas observando. Estava longe
demais para notar as feições do grão-mestre. Esperava que ele depois se
entregasse à morte como seus homens.
As cabeças começaram a rolar. Os homens eram colocados de joelhos e
depois as espadas faziam o trabalho. Às vezes um golpe não saía direito e era
preciso acertar mais duas ou três vezes antes de decepar o cavaleiro ajoelhado.
Dedrick sorriu pela segunda vez quando ouviu homens gritando lá embaixo:
- Eu sou um templário!
Eram outros que preferiam a morte à escravidão. Era melhor perecer do que
conviver com aquela derrota amarga.
Dedrick viu o templário ao lado dele ficar de joelhos e orar. Os sufis
pararam e retiraram o elmo do homem. Um deles jogou água para limpar o
pescoço e passou a mão pela pele molhada, como se fizesse uma marca. Então a
espada, já ensanguentada, desceu. Foi um golpe perfeito que deixou o corpo
caído para trás e a cabeça bem em frente, com os olhos fechados e a língua para
fora.
Era chegada a vez dele. Dedrick ficou de joelhos, rezou pelo homem que
morrera ao lado. Viu o sufi limpando a espada com um pano tão sujo que não
podia mais deixar a lâmina brilhante. Ele falou algo em árabe, mas o templário
não entendeu. Sorriu pela última vez e disse:
- Non nobis, Domine, non nobis, sed Nomini tuo da gloriam.
Então o metal quente por causa de tantas mortes e tanto calor, acertou sua
pele, passou pelos ossos e rompeu a carne. Dedrick morreu de cabeça erguida
com o último olhar sobre os mantos templários ensanguentados sob a luz
impiedosa do deserto da terra de Deus.
Epílogo
Karsten bebeu tanta água fartamente. Perto dele, Heiner e Donat faziam o
mesmo. Os trinta e sete cavaleiros que faziam parte dos 60 que Raymond levara
para a batalha tentavam fazer o mesmo, cercando o poço da pequena vila. Não
havia mais do que trinta casas ali. Karsten contou uma a uma e as observou,
receoso de ser atacado por muçulmanos e pego desprevenido. Não sabia o nome
do lugar, assim como não sabia tantas coisas sobre Ultramar. Provavelmente
agora não haveria nada o que saber. Era hora de voltar para casa.
- Nós perdemos – disse Karsten, socando a borda do poço.
- Ainda não. Jerusalém ainda é nossa, assim como outras cidades –
comentou Donat. Karsten não julgou que ele estivesse falando para animá-lo.
- Então ainda há pelo que lutar. Podemos reunir guerreiros para as defesas –
disse Heiner.
- É. Mas minhas terras se foram. Agora não há mais jeito. Nunca mais
teremos Tiberíades. O que está perdido está perdido.
- Laure está em Jerusalém. Precisamos chegar lá antes de Saladino –
lembrou Karsten, com o pedido dela para que ele voltasse nítido na memória.
- Vá por minha filha então. Traga-a para mim, Karsten. Eu não tenho forças
para seguir. Confio em você.
O germânico jurou que iria. Heiner não pensou duas vezes para seguir o
amigo. Conseguiriam mantimentos e partiriam para lutarem em nome de
Jerusalém ou apenas para trazer Laure de volta. Passariam por toda a hoste
muçulmana, mas a levariam para seu pai.

*****

Os abutres festejavam no campo de batalha. Era noite e eles comiam


fartamente dos corpos jogados pelos Cornos de Hattin. Um deles bicou uma mão
que aparecia entre alguns cadáveres e se surpreendeu quando os dedos dela se
mexeram de repente. A ave ficou curiosa e bicou novamente, agora arrancando
um rugido de raiva que a fez se afastar. Então os cadáveres começaram a se
mexer, jogados de lado. Um homem barbudo, coberto de sangue e fedendo
morte, surgiu em meio a eles. Mal conseguia se mover devido às dores que
estavam espalhadas pelo corpo. Sabia que ainda havia sangue escorrendo dele.
Os movimentos para se levantar haviam partido as crostas do sangue coagulado
sobre as feridas.
Guillaume sabia que era mais um milagre. Olhou para a lua refletida no
lago mais abaixo, o que chamou sua atenção para o céu. Estava vivo e todos os
companheiros mortos. Não precisava identificar os corpos para saber. Não
agradeceu pelo milagre. Apenas procurou pela espada perdida. Estava perto de
um corpo dobrado e com uma lança enfiada no peito. Era um templário morto.
Preocupado, foi ver se era Dedrick. Não era. Rezou pela alma do homem e
começou a caminhar até o lago. Estava cheio de sede.
Andava com dificuldade, mancando e contendo urros de raiva e gritos de
dor. Ajoelhou-se em frente às águas e jogou-as no rosto, limpando o sangue aos
poucos. Bebeu sofregamente, aí parou ainda de joelhos e pensou naquele
milagre. Outra parte da providência divina o mantinha vivo para continuar
banhando a terra de sangue. Riu amargo.
Limpou a armadura e horrorizou-se ao ver os buracos na malha. Começou a
gargalhar desatinadamente e ficou de pé. Gemeu por causa dos ferimentos e
decidiu que precisava procurar por um manto. Não podia andar sem um manto.
Assim que encontrou os corpos dos templários decepados, viu que não teria
coragem de retirar nada deles. Eles mereciam estar vestidos com aquelas roupas.
O que não podia acontecer era ficarem sem sepultura. Queria cavar uma por
uma, todavia faltavam-lhe forças. O milagre não garantira nada disso.
Aparentemente, estava vivo para matar, não para honrar. As feridas doíam a cada
passo. Deus lhe garantira a vida, mas mantivera o sofrimento.
- Onde você está, Saladino? – perguntou.
Percebeu que a pergunta seria: Onde você estará, Saladino? E só havia uma
resposta: Jerusalém. Começou a procurar um cantil vazio para conseguir
suprimentos para viajar, pelo menos até alcançar a próxima vila. Seu destino
final, no entanto, era outro e estava certo em seu coração. Era lá que Guillaume o
encontraria. Era para lá que iria para ver se finalmente cumpria seu destino. A
Eterna Jerusalém.
Nota do Autor
A Batalha de Hattin foi, sem dúvida, o que decidiu a história das cruzadas.
Foi um grande marco nas inúmeras guerras que ocorreram na Palestina. Tentei
ser bastante fiel aos acontecimentos, inclusive a algumas reações dos
personagens. Algumas vezes, até mesmo usei frases que, segundo as fontes da
época, teriam saído da boca deles, como é o caso de algumas falas de Saladino
ou de Raymond de Trípoli durante as reuniões dos barões e até mesmo o
comentário de Gerard de Ridefort sobre Botrun após a coroação de Sibylle e
Guy.
Os templários foram sempre figuras contraditórias na Terra Santa. Algumas
vezes, foram os responsáveis por grandes vitórias, mas em outras colaboraram
muito para derrotas do exército cristão. Alguns motivos para isso foram sua
exagerada confiança e belicosidade. No entanto, todas as fontes concordam em
sua coragem e valor guerreiro. Eles foram essenciais na manutenção do reino
cristão, como fonte de apoio militar e até financeiro, como consta com a
contratação de vários soldados com o dinheiro de do rei Henrique da Inglaterra.
Gerard de Ridefort foi um personagem importante para a derrota cristã na
Batalha de Hattin. Desde que subiu ao poder no Templo, começou uma jornada
de conspiração para se vingar de Raymond e saciar suas ambições. Talvez a
culpa de tudo o que ocorreu não seja tão centrada nele, afinal a insolência de
Renaud de Châtillon ajudou muito, assim como a fraqueza de Guy e a má
escolha de Sibylle para se casar. Entretanto, esses foram fatos que, reunidos,
apenas colaboraram para que Gerard continuasse com sua má influência. Esse
foi um dos motivos pela qual eu resolvi o colocar como um dos grandes vilões
do livro.
Alguns pontos da história, principalmente das batalhas, são contraditórios,
como as falas de Raymond e sua fuga do campo de Hattin. Há fontes que dizem
que ele teria batalhado e sofrido grandes perdas para romper as linhas
muçulmanas. Outras que o exército islâmico apenas se abriu para que ele
passasse. Algumas fontes também se contradizem afirmando que Renaud de
Sídon e Balian de Inbelin fugiram junto com eles, mas é detalhado em algumas
partes que ambos estavam na retaguarda, portanto preferi narrar os fatos
separadamente.
Optei pelos nomes da maioria dos personagens em francês. O motivo foi
simplesmente escolher uma fonte ao invés de traduzir todos os nomes para o
português e deixar outros sem tradução. O leitor encontrará a identidade desses
indivíduos facilmente em livros de história traduzidos no Brasil, principalmente
na primorosa série de Steve Runciman sobre as cruzadas.
Os personagens fictícios são tanto peculiares quanto baseados em figuras
históricas. Guillaume é a figura de um nobre belicoso que raramente conseguia
se controlar e encontrou sua penitência da melhor maneira que um guerreiro
poderia, batalhando pelo Templo. É um exemplo dos guerreiros quase caóticos
que a Igreja tentava controlar nos séculos em que a cavalaria tinha seu maior
prestígio. A situação de seu passado, ao lidar com a revolta dos camponeses
pode parecer estranha aos olhos de muitos. É comum se pensar que os servos
sempre foram massa que vivia calada e satisfeita com a opressão que viviam,
entretanto, há registros de revoltas camponesas mesmo nos séculos X e XI,
apesar de nunca em um grau tão elevado quanto no fim da Baixa Idade Média.
Karsten é parte do mito da cavalaria, com seu porte nobre e cortês, tentando
se afirmar e garantir sua glória, assim como renome. Talvez Heiner seja o
personagem que menos se encaixa. Apesar de os países nórdicos já terem se
cristianizado por volta do século X, ainda havia indícios de paganismo em
algumas regiões nos séculos seguintes. Foram desses bolsões que surgiram o
renascimento da religião asatru. Resolvi colocar esse personagem mais para
mostrar algumas contradições que uma pessoa simples, cujas aspirações estavam
apenas em viver para a guerra, poderia encontrar quando encarasse muitas das
contradições entre teoria e prática do cristianismo medieval.
A Batalha de Hattin pode ter sido um marco para a derrota cristã, porém
não é por isso que a história das cruzadas acabou. Ainda existe uma rica fonte
para vários livros e romances sobre esses séculos difíceis e belicosos. Ainda há
muito o que contar, como a chegada de Ricardo Coração de Leão e suas disputas
com Saladino.
Table of Contents
Templários
Sumário
Personagens
Karsten de Tapferklinge
cavaleiro senhor da fortaleza de Kerak
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Epílogo
Nota do Autor

Você também pode gostar