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História Medieval Economia e Sociedade

Professora Doutora Manuela Santos Silva


História 2014/2015
A Ordem de Cavalaria

A análise que se segue tem por base um excerto do Livro sobre a Ordem de Cavalaria de
Raimundo Lulo. Neste excerto vemos ponto por ponto os vários passos da cerimónia que era a
entrada na Ordem de Cavalaria, ordem essa que nunca existiu enquanto instituição própria, mas
sim enquanto ideal e estatuto social, numa sociedade organizada em três ordens.

Será então essa tese a ser apresentada e defendida, irá ser analisada a entrada na Ordem, bem
como as várias “correntes”, assim como uma possível explicação sobre o seu aparecimento,
mostrar as suas raízes e de que sofre influência de muitas tradições.
“ […] a cavalaria é-nos quase desconhecida. Para seguir o seu obscuro nascimento, a
brilhante prosperidade e, por fim, o lento declínio, possuímos pouquíssimos textos, e mesmo os
mais seguros devem ser utilizados com prudência. Efectivamente, existem apenas duas fontes de
informação sobre a cavalaria durante a Idade Média: a cerimónia de adoubement e as canções de
gesta e os romances corteses. […]”1, o código também nunca existiu sob forma escrita 2.
Não havendo código temos no entanto a noção das ideias e princípios que em muito são
pautados pelos ensinamentos da Igreja, que acaba por ser a autoridade que irá sacralizar o acto de
fazer ou armar um nobre cavaleiro. Os ideais são então o de prolongar a mensagem da Igreja,
protegê-la, fazer guerra a aqueles que são contrários às palavras da religião de Cristo, mas a vida
também existe na Idade Média para além da Igreja, o cavaleiro deve ser bondoso para com todos
e em especial ele deve ser o campeão dos fracos, proteger as mulheres e as crianças, sendo ele
também um garante da justiça.
É interessante perceber em que contexto aparece a cavalaria e quem nela ingressam. Como
acima foi dito a investidura tinha um carácter religioso, pois muitas deste ordenações eram feitas
no seio de uma ordem militar religiosa, Jacques le Goff diz-nos que: “ […] al lado de los más
ricos (maiores milites) se encontraban los más pobres (minores milites) como nos muestra, por
ejemplo la crónica del monasterio alsaciano de Ebersheim en el siglo XII. […] esta classe se veia
acrescentada: una parte de los hijos menores encontraba una salida en la Iglesia y poblaba los
monasterios, la otra aumentaba el grupo de los caballeros errantes, jóvenes nobles vagabundos,
que, individualmente o en grupo, iban a buscar fortuna […]”3, vemos portanto que a cavalaria
ainda tem umas certas reminiscências dos cavaleiros romanos (equites).

1
Vide, DE CLINCHAMPS, Philippe du Puy, História breve da cavalaria, Lisboa, Editorial Verbo,1965, p.11.
2
Vide, GRIMBERGL, Carl, Das grandes invasões bárbaras às cruzadas – História Universal, Publicações Europa
América, 1940, p. 251.
3
Vide, LE GOFF, Jacques, La baja edad media, vol. 11 Madrid, Siglo XI editora, 1972, p57.
A cavalaria surge aproximadamente no século IX e irá até ao século XV. Sendo que é na
segunda metade do século XI que nos surgem mais documentos referentes a esta ordem 4, é fácil
perceber esta cronologia, são estes os séculos em que se afirma o feudalismo (sobretudo na
actual França), surgem as cruzadas contra o infiel onde é sempre preciso homens na linha de
ataque, pois esse era o lema dos cavaleiros: “Sempre prontos para o combate”.
Mas não são todos os que podem ser cavaleiros, podem de ser de origem nobre, filhos
segundos por exemplo mas temos casos de pessoas de origens mais humilde que conseguiu
ascender a cavaleiro, de salientar o caso de Garnier de Saint-Etienne que Jacques le Goff faz
referência.
Para ser cavaleiro era preciso ter dinheiro suficiente para comprar um cavalo de guerra que é
o mais caro, pois é um cavalo treinado para se manter no campo de batalha, mas também é
preciso mandar fazer armadura completa e deve aprender a arte da guerra, bem como montar e
costumes.
É igualmente fácil de perceber a predominância dos segundos filhos enquanto cavaleiros, os
filhos varão eram geralmente encarregues de manter e cuidar do património da família,
administrando o seu senhorio e estar disponível ao seu suserano, por isso mesmo é que o filho é
enviado “ […] a servir como pajem em casa de um senhor […]”5 muitas das vezes seus
suseranos, ou para a casa da possível noiva para se estreitarem os laços de aliança com a outra
família e aumentar o património, outros filhos iriam para mosteiros criados pela própria família.
Estes cavaleiros são então homens que se prestam a combater e a pôr-se ao serviço de uma
causa maior, pois o verdadeiro “ […] cavalheiresco devia exprimir-se em atitudes nobres e
corteses. […] No campo de batalha, o cavaleiro não combatia só pelo suserano a quem jurara
fidelidade, mas também pela dama cujas cores usava. […]” 6
“ […] É na juventude que se formam os ideais. O ideal de cavalaria abria novos horizontes ao
entusiasmo da juventude pela acção e fazia de toda a existência uma maravilhosa aventura.
[…]”7, a cavalaria era um sonho mas começava também a ser um percurso quase que obrigatório
para se fazer parte da aristocracia guerreira, lembra ainda um pouco o cursus honorum que
qualquer romano sonhava concluir, e com a cavalaria os costumes e hábitos obviamente que
alteram a sociedade toda pois novos padrões são criados o “ […] herói ideal não era já o lutador
agigantado e de barba hirsuta que, no furor do combate, rangia os dentes e uivava como a
tempestade; era, sim, um adolescente elegante e ágil, de cabelos ondeantes, com um porte cheio
de nobreza e dignidade. […]”8 através deste excerto podemos reflectir que alguns padrões da
sociedade medieval se alteraram.
Feita esta contextualização da cavalaria e alguns dos seus ideais passemos agora à analise do
texto sobre o ingresso na ordem de cavalaria que tem como base o livro de Raimundo Lulo que
viveu no apogeu da cavalaria, o seu livro não deve ser confundido como o código de cavalaria,
pois esse nunca existiu sob forma escrita, era transmitido oralmente como era muito comum nas
várias ordens religiosas e ordens militares.
Antes de chegar a cavaleiro o jovem deve ter sido pajem e escudeiro, nestes estádios
anteriores o jovem aprendeu de perto a arte da guerra e aprendeu a servir para depois ser servido,
então assim o escudeiro pretende chegar ao último escalão da cavalaria.
“ […] Primeiramente o escudeiro, antes de entrar na Ordem da Cavalaria, deve confessar-se
das faltas que cometeu contra Deus […]”9 vemos aqui então a influência da Igreja e de que o

4
Cif. , op. Cit. DE CLINCHAMPS, Philippe du Puy, p.17.
5
Vide, GRIMBER, Carl, p.252.
6
Vide, idem, ibidem, p.253.
7
Vide, idem, ibidem, p.253.
8
Vide, idem, ibidem, p.253.
9
Vide, RAMON Llull, Lbro de la Orden de Caballeria, parte iv, in Ramon Lull, Obras Literárias, ed. Miguel
Batllori y Miguel Valdentey, Madrid, 1948, pp. 126 a 128.
cavaleiro será primeiro que cavaleiro térreo será um cavaleiro de Deus, no segundo ponto do
procedimento voltamos a ter mais influência eclesiástica, a investidura deve ser realizada numa
festa realizada durante o ano, sendo estas festas religiosas e nesse dia deveria ser encomendada
uma missa.10
É preciso ter em conta que existem muitas formas do ritual de ingresso e que esta forma que
Ramon não é a única forma de ritual a ser praticada. A entrada na cavalaria é uma tradição
essencialmente germânica, Tácito descreve-nos na sua obra Germânia, no capítulo XIII a
iniciação de um guerreiro germânico e que esta acontece numa floresta, o jovem está rodeado por
homens mais velhos, é lhe dado a lança e o escudo, os homem gritam em sinal de
confirmação/aclamação.11
É preciso ter a noção que a cavalaria é compósita, temos três tradições ou influências
incorporadas: germânica, romana e árabe. A tradição germânica está então como origem, pois os
reinos são bárbaros, e a sua sociedade mantiveram alguns costumes, a influência romana é clara,
em Roma um jovem também tinha um momento em que transitava para o estádio de adulto, o
ritual da toga viril, na tradição germânica era usual o cavaleiro receber uma toga escarlate, a
outra marca está no simbólico do branco, os romanos quando eram candidatos usavam branco a
fim de se revelarem cândidos, puros, no ritual de entrada na cavalaria deveria o jovem vestir uma
camisa branca (tradição romana) e calças castanhas (tradição germânica, calças usam-se para o
combate)12.
A tradição árabe estava então relacionada com os brasões que serão usados pelas famílias e
pintados nos escudos, na realidade da Península Ibérica o uso de brasão é suficiente para se
reconhecer um nobre, ao passo que no norte da Europa é necessário ter uma carta de cavaleiro.
Na noite anterior devia o escudeiro velar na igreja ouvir as palavras de Deus13 nesse dia ao
pôr-do-sol deveria o escudeiro tomar banho modo a purificar-se, novamente temos um gesto
simbólico, o escudeiro deveria limpar-se mentalmente e fisicamente para poder entrar
dignamente na ordem, enquanto o escudeiro velava a espada que lhe seria entregue estaria no
altar modo a ela própria ser sacralizada.
Nesta cerimónia deveria estar “ […] o príncipe ou o alto barão que quer fazer cavaleiro o
escudeiro que pede cavalaria tenha em si mesmo a virtude e ordem da Cavalaria […]” 14, ou seja
aqui vemos que para conferir um grau ao escudeiro aquele que seria o seu padrinho deveria
também ser portador do título de cavalaria.
“ […] Deve o escudeiro ajoelhar-se ante o altar e levantar a Deus os seus olhos corporais e
espirituais e as suas mãos. E então o cavaleiro lhe cingirá a espada, no que se significa a
castidade e a justiça. Deve-lhe dar-lhe um beijo em significação de caridade e dar-lhe uma
bofetada para que se lembre do que promete […]”15. Entrar para uma ordem é uma grande
responsabilidade, no caso prático dos Templários esta última parte era muito dura, pois de todos
os cavaleiros eles queriam afirmar-se como a elite da castidade e da cristandade, ela bofetada
podia ser trocada pela “pescoçada”, era um golpe dado na nuca. A espada era-lhe entregue e
tinha “ […] dois gumes: um destinado ao rico que oprime o pobre, outro para castigar o forte que
persegue o fraco. […]” claro que isto tudo era tudo simbólico mas tinha fundamento.
Armado cavaleiro deveria o jovem cavaleiro montar o cavalo e investir sobre um boneco de
vime (quintana) mostrando assim a sua bravura, este tipo de actividade incluindo as justas e
torneios não devem ser visto enquanto eventos de diversão mas sim como eventos levados muito
a sério, pois em jogo não estava apenas as armas do adversário ou o prémio a oferecer, estava

10
Vide, idem, ibidem.
11
Cif. , op. Cit. DE CLINCHAMPS, Philippe du Puy, p.19.
12
Vide, op. Cit. GRIMBER, Carl, p.252.
13
Vide, op. Cit. RAMON, Llull.
14
Vide, idem ibidem.
15
Vide, idem ibidem
igualmente a honra do cavaleiro e da sua dama, quando se estuda a cavalaria e a nobreza devesse
olhar sobretudo ao seu significado ritualista, pois a nobreza não se pode definir apenas como
uma ordem social, a nobreza é no fundo algo um tanto metafísico, dizendo-se muitas vezes que a
nobreza é um estado de espírito.
Para terminar o ingresso devesse realizar um grande festim “ […] com convites, torneios e as
demais coisas correspondentes ao festim da Cavalaria […]”16.
Todavia não era apenas neste contexto de cerimónia que se podia ser armado cavaleiro, o
acto mais honroso residia em «ganhar as suas esporas» e ser armado cavaleiro no campo de
batalha. […]”17.
O cavaleiro era então uma imagem de justiça e respeito que deveria ser pio, respeitador dos
costumes e garante da ordem, embora que “ […] alguns senhores consideravam os assaltos à mão
armada e as aventuras galantes o essencial da vida de um homem. Desprezo, e só desprezo, era o
que eles sentiam por esses seres prosaicos que só viviam para o trabalho e não para lutar. […]” 18
estes nobres eram satirizados por muitos trovadores por tomarem esta atitude que não se
coadunava com os ideais defendidos, todavia excepções existiam sempre.
O que se retira essencialmente desta questão da cavalaria e da nobreza é que acaba por ser
um veículo de se firmarem as relações de vassalagem entre os nobres, pois muitas são as casas
(famílias) que se juntam modo a serem mais fortes. Percebemos ainda que na sociedade é
possível alguém de condições um pouco mais humildes ser cavaleiro ser ingressar numa ordem
monástica ou militar, pois estes cavaleiros são mais que tudo cavaleiros de Deus, as ordens
militares surgem no contexto das cruzadas e da necessidade da criação de braços armados para
defender a Cristandade.
Fica agora um excerto muito sintetizador de tudo o que foi falado: “ […] A concepção da
cavalaria como forma sublime da vida secular podia ser definida como um ideal estético
revestindo o aspecto de ideal ético. Tem por base a fantasia heróica e o sentimento romântico.
Mas o pensamento medieval não permitia formas ideais de nobreza independentes da religião.
Por essa razão a piedade e a virtude têm de ser a essência da vida do cavaleiro. A cavalaria,
porém, nunca virá a realizar perfeitamente esta função ética. A sua origem terrena impede-lho.
Porque na origem da ideia cavalheiresca está no orgulho que aspira à beleza, e o orgulho
formalizado dá lugar à concepção da honra, que é o cerne da vida nobre. «O sentimento da
honra», diz Burckhardt, «essa mistura estranha de consciência e de egoísmo» é compatível com
muitos vícios e susceptível de ilusões extravagantes; não obstante, tudo o que permaneceu puro e
nobre no homem pode encontrar apoio nele e dele extrair novas forças. […]”19.
A cavalaria era acima de tudo um ideário, algo que os jovens sonhavam seguir e ingressar,
todavia, podia-se correr o risco de os ideais serem corrompidos, mas existiam penalizações, e a
Igreja estava sempre presente na mentalidade e nas estruturas.

Cláudio Fonseca
Nº 50350

16
Vide, idem ibidem
17
Vide, op. Cit. GRIMBERG, Carl, p.253.
18
Vide, idem, ibidem, p.255.
19
Vide, HUIZINGA, Johan, O Declínio da Idade Média, Viseu, Editora Ulisseia, 1924, p.71.
Bibliografia

DE CLINCHAMPS, Philippe du Puy, História breve da cavalaria, Lisboa, Editorial


Verbo,1965

GRIMBERGL, Carl, Das grandes invasões bárbaras às cruzadas – História Universal,


Publicações Europa América, 1940

HUIZINGA, Johan, O Declínio da Idade Média, Viseu, Editora Ulisseia, 1924

LE GOFF, Jacques, La baja edad media, vol. 11 Madrid, Siglo XI editora, 1972

RAMON Llull, Lbro de la Orden de Caballeria, parte iv, in Ramon Lull, Obras Literárias,
ed. Miguel Batllori y Miguel Valdentey, Madrid, 1948, pp. 126 a 128.

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