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RISE A KNIGHT: A IDEALIZAÇÃO DA INVESTIDURA CAVALHEIRESCA NO

FILME CRUZADA (RIDLEY SCOTT, 2005)

Ives Leocelso Silva Costa1

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar a investidura cavalheiresca representada no filme Cruzada
(2005), do diretor britânico Ridley Scott, à luz da historiografia medievalística. A película
apresenta uma versão ficcionalizada de Balian de Ibelin, retratado como um ferreiro francês, filho
bastardo de um nobre cruzado, que é investido cavaleiro por seu pai na jornada para Jerusalém e
acaba por tornar-se o defensor da cidade durante o cerco feito por Saladino em 1187. Durante
este mesmo cerco, Balian nomeia cavaleiros todos os combatentes da cidade – de soldados de
infantaria a cavalariços. Utilizando como fonte O Livro da Ordem de Cavalaria (c. 1274-1276)
de Ramon Llull, além de revisão bibliográfica, pretende-se demonstrar a forte idealização da
investidura e, por conseguinte, da cavalaria, no filme e no próprio imaginário medieval.

Palavras-chave: Investidura. Cavalaria. Cinema. Imaginário.

RISE A KNIGHT: THE IDEALIZATION OF THE KNIGHTING CEREMONY ON THE


FILM KINGDOM OF HEAVEN (RIDLEY SCOTT, 2005)

ABSTRACT
This paper intends to analyze the knighting ceremony represented on the film Kingdom of
Heaven (2005), from the British director Ridley Scott, at the light of the medievalist
historiography. The film shows a fictionalized version of Balian of Ibelin, portrayed as a French
blacksmith, the bastard son of a noble crusader, who is knighted by his father on the journey to
Jerusalem and ends up becoming the defender of the city during the siege by Saladin in 1187.
During the same siege, Balian knights all the fighters of the city – from foot soldiers to stable
boys. Using as a source The Book of the Order of Chivalry (c. 1274-1276) by Ramon Llull,
besides literature review, it is intended to demonstrated the high idealization of the knighting
ceremony, and, therefore, of knighthood, on the film and at the very medieval imagination.

Keywords: Knighting Ceremony. Knighthood. Cinema. Imagination.

1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Este artigo é fruto das discussões
realizadas no grupo de estudos e leitura “História Medieval: Perspectivas Historiográficas”, atividade integrante do
projeto de extensão “Para Além da Graduação” – PROEXT – UNEAL, coordenado pelo professor Gladyson Stelio
Brito Pereira (Mestre em História pela UFF, Doutorando em História pela UFPE).
Considerações Iniciais

Toda obra de ficção é fruto de seu tempo. Como lembra Barros (2007), a análise uma
película tem muito a revelar sobre o momento em que foi feita; mas pouco ou nada sobre a época
que retrata. Tentar compreender o período medieval através do cinema seria, portanto, um
desperdício. Não é desta forma, contudo, que este trabalho abordará o filme Cruzada.
Nosso intuito é estabelecer um diálogo entre a representação da investidura cavalheiresca
no filme e aquela trazida pelas fontes, em especial O Livro da Ordem da Cavalaria, e pela
historiografia, ressaltando suas divergências e seus pontos em comum.
De acordo com Schneider (2010, p.3), “O cinema tem um papel significativo na
construção da memória sobre um período histórico, personagem ou grupos sociais”. Neste
contexto, Cruzada é um representante de uma memória coletiva de uma cavalaria idealizada, que
possui suas raízes no próprio período medieval.

A Investidura de Balian como Cavaleiro e Barão de Ibelin

Cruzada (Ridley Scott, 2005) apresenta uma versão altamente ficcionalizada de Balian II
de Ibelin, senhor cruzado de origem francesa. O Balian histórico era de família nobre, figura
política atuante no Outremer, casado com a rainha Maria Comnena de Jerusalém e, à altura do
Cerco de Jerusalém, guerreiro de meia idade e pai de vários filhos (RUNCIMAN, 2002).
O filme nos traz um Balian (Orlando Bloom) consideravelmente mais jovem e de origem
humilde: ferreiro viúvo e (sem seu conhecimento) filho único e bastardo do fictício Godfrey de
Ibelin (Liam Neeson). O encontro com seu pai muda o curso de sua vida; após uma altercação em
que mata o padre de sua vila, Balian parte para a Terra Santa em busca de redenção.
No caminho para Jerusalém, Godfrey entra em conflito com o senhor local em defesa de
Balian e é ferido com uma seta. O ferimento se agrava e, próximo à morte, o nobre investe seu
filho cavaleiro e barão de Ibelin.
Em uma câmara de aparência solene, cercado por cavaleiros hospitalários, Godfrey
ordena que seu filho se ajoelhe-se, entrega-lhe o anel com o sinete de Ibelin e o conduz em
juramento - exortando as virtudes de um bom cavaleiro – após o qual o esbofeteia. Em seguida
entrega-lhe sua espada, que repousa como que em um altar, e um hospitalário (David Thewlis),
que faz as vezes de padre, comanda que Balian se erga como cavaleiro e barão. Balian assiste a
tudo bestificado, tendo sido chamado às pressas e sem aviso.
Há nesta cena dois elementos distintos: o investimento de autoridade e poder
nobiliárquico e a sagração de cavaleiro.
A entrega das armas, principalmente a espada, como símbolo de poder é testemunhada
desde o período Franco. Flori (2005) e Keen (1984) relatavam como Luís, aos três anos de idade,
recebeu de seu pai Carlos Magno uma espada adaptada para sua idade como representação de sua
herança a um ducado. Entretanto, tal evento deveria ser público, pois o fator essencial era a
visibilidade da transmissão de autoridade. Uma cerimônia privada não atenderia tais fins.
Por outro lado, Flori (2005, p. 39) afirma que “A cavalaria não é, nos séculos XI e XII,
uma confraria honorífica igualitária na qual se entra por meio de uma investidura promocional
que seria a colação de um título ou de um grau honorífico. É a entrada em uma profissão, a
corporação dos guerreiros de elite”. Nomear Balian cavaleiro, portanto, não seria necessário para
que fosse reconhecido como nobre, apenas para elevá-lo ao nível dos lutadores montados de elite,
coisa que não era naquele momento.

Tabela 1: Juramento de investidura de Cruzada x Benção das armas do Ordo de Cambrai.

JURAMENTO DE INVESTIDURA DE ORDO DE CAMBRAI (SÉC. XI)


CRUZADA

Não tenha medo ao encarar os inimigos. Seja corajoso e Atenda nossas orações, Senhor, e nos conceda a bênção
correto para que Deus te ame. Fale sempre a verdade, com Tua direita majestosa dessa espada com a qual Teu
mesmo que isso te leve à morte. Proteja os indefesos e servidor N. desejou ser cingido, para que ela possa ser
não aja injustamente. Esse é o seu juramento. E isto é defesa e proteção das igrejas, das viúvas, dos órfãos e de
para que se lembre (golpeia). todos os servidores de Deus contra as violências de seus
adversários e que a todos os outros promotores de
tumultos ela inspire medo, terror e pavor.

Fonte: CRUZADA. Direção: Ridley Scott. Produção: Fonte: FLORI, Jean. A Cavalaria. São Paulo: Madras,
Scott Free Productions, Inside Track, Studio Babelsberg 2005.
Motion e Pictures GmbH. [S.l.]: 20th Century Fox, 2005.
1 DVD (145 min). Título original: Kingdom of Heaven.
Uma cerimônia de investidura um pouco distinta e de forte teor religioso é descrita por
Ramon Llull (2000, p. 73):
O escudeiro, diante do altar, deve ajoelhar-se, e que levante seus olhos a Deus, corporais
e espirituais, e suas mãos a Deus. E o cavaleiro deve cingir-lhe a espada, para significar
castidade e justiça; e, como significado de caridade deve beijar seu escudeiro e dar-lhe
uma bofetada para que se lembre disso que prometeu e do grande cargo a que se obriga e
da grande honra que recebe pela ordem de cavalaria.

Há algumas semelhanças com a cena de Cruzada, mas elas param por aí. Em O Livro da
Ordem da Cavalaria, Lull, pensador catalão franciscano do século XIII, determina que o
pretendente à cavalaria (escudeiro de família nobre que há anos praticava e se preparava para
isso), deve se confessar e fazer vigília antes da investidura, que será precedida por uma missa e
concluída com uma festa (LLULL, 2000).
Porém, é necessário frisar que Llull não descreve em sua obra como as investiduras
aconteciam, mas como acreditava que deveriam acontecer. Trata-se de uma tentativa da Igreja de
aproximar-se da cavalaria e de lhe incutir valores cristãos, numa tentativa de diminuir sua
violência e trazê-la para o domínio eclesiástico: “Para tentar inculcar em todos os cavaleiros uma
ética que lhes seja própria e geral, a Igreja elaborou para sua investidura rituais que retomam em
grande parte a ideologia que ela propunha desde sempre aos reis e que ela tenta ampliar agora
para o conjunto da classe guerreira”. (FLORI, 2005, p. 44).
Conforme afirmam Zierer e Messias (2013, p. 151):
O Livro da Ordem de Cavalaria propõe elementos de transformação comportamental
dos cavaleiros, pautados nos valores cristãos, visando um modelo possível de
convivência com todas as ordens, para que os combatentes cumpram com os seus
deveres de utilizar as armas para proteger os construtores da Igreja, o rei e os indefesos
de todo mal que possa desestruturar a paz da sociedade feudal.

A Investidura dos Combatentes no Cerco de Jerusalém (1187)

Tendo obtido destaque por suas virtudes de cavaleiro e o favor do povo, Balian assume o
comando de Jerusalém após a pesada derrota das forças cristãs na Batalha de Hattin.
Antagonizado pelo Patriarca da cidade (John Finch) – com quem na realidade trabalhou em
conjunto (RUNCIMAN, 2002), que afirma que não podem defendê-la sem cavaleiros, Balian
comanda todos os soldados e homens capazes de carregar armas que se ajoelhem e repete o ritual
realizado por seu pai, escolhendo como alvo do tapa o servo do Patriarca, que assim sai de sua
condição de servidão e atinge o novo status de cavaleiro.
Runciman (2002, p. 398) afirma que: “Uma vez que havia apenas dois cavaleiros na
cidade, Balian consagrou cavaleiros todos os rapazes acima de dezesseis anos nascidos de família
nobre, além de trinta membros da burguesia”. De fato uma investidura em massa aconteceu, o
que não era incomum no Outremer no século XIII. De acordo com Keen (1984, p. 80, tradução
nossa):
Na Terra Santa um número de novos cavaleiros foram criados nas vésperas da batalha de
Ramleh, em 1101, e Orderic descreve como Cecília, esposa de Trancredo de Antióquia,
investiu Gervásio Brito, Haimo, visconde de Dol e ‘um número de outros escudeiros’
nas vésperas de uma batalha em 1119.

Porém, essa investidura não elevava o novo cavaleiro à nobreza, como ressalta Flori
(2005, p. 46):
Nos séculos XI e XII, quando “investir” significava “armar um homem para fazer dele
um cavaleiro”, investia-se muitas vezes na véspera de uma batalha para se dispor de
mais homens a cavalo. Nos séculos XIV e XV, fazia-se isso mais frequentemente depois
da batalha que antes dela, recompensando, com a outorga de um título honorífico, os
nobres guerreiros a cavalo que combateram bem.

É preciso destacar, portanto, a diferença entre as investiduras do século XII e dos séculos
XIV e XV, estas sim equivalentes a um verdadeiro título de enobrecimento:
Por vezes, o rei usava do seu direito para recompensar, no campo de batalha, segundo o
antigo hábito, algum acto de bravura: assim fez Filipe, o Belo, em favor de um
carniceiro, na noite de Mons-en-Pevèle. Na maior parte das vezes, porém, era na
intenção de reconhecer antigos serviços ou uma situação social proeminente. O acto não
permitia apenas criar um novo cavaleiro; como a aptidão para a investidura se transmitia,
por sua natureza, de geração em geração, simultaneamente ele fazia surgir uma nova
linhagem de cavaleiros. (BLOCH, 1987, p. 358).

É o que afirma também Aguiar (2015, p. 20): “A cerimónia de investidura tinha, portanto,
o poder de elevar alguns homens ao estamento aristocrático, desde que estes se tivessem
demonstrado valorosos no serviço aos seus senhores: reis, infantes ou grandes aristocratas”.
Transformar servos em nobres não estava, portanto, dentre os poderes de um barão do século XII,
não importa o quão virtuoso fosse.
Considerações Finais

Como depreendido dos comentários à obra de Ramon Llull, a criação de uma cavalaria
idealizada, através da qual se ingressa por uma cerimônia rica de espiritualidade e transformação
pessoal, é paralela à existência da própria cavalaria.
De acordo com Flori (2004, p. 47):
O valor moral e religioso da investidura não se reforçou, todavia e podemos até
considerar a formação de ordens laicas de cavalaria, no decorrer do século XIV, como
uma tentativa de devolver à cavalaria um lustro moral que aos olhos de muitos ela havia
perdido. [...] Uma cavalaria mítica, idealizada, sempre foi, segundo a palvra de S.
Painter, apenas um “doce sonho”.

Este “doce sonho” continua a povoar o imaginário ocidental, contudo, aparecendo não só
em filmes como Cruzada, mas em diversos romances, séries de TV e games. Buscando as origens
deste fenômeno, Bonet e Styles (2007, p. 73, tradução nossa) chegam à conclusão de que:
Parte da atração que contos de cavaleiros de armadura brilhante exercem na imaginação
contemporânea é a maneira pela qual eles encarnam valores tradicionalmente associados
com a masculinidade, como bravura, espírito de luta, força física e moral, valores que
não são tão facilmente expressos em cenários contemporâneas. O cavaleiro também
incorpora uma dimensão espiritual, em suas ações individuais e como membro de uma
classe, em contraste com o materialismo que frequentemente se vê impregnar todas as
ações na sociedade contemporânea.

Neste sentido, o imaginário medieval se faz mais atual do que nunca, como afirma Le
Goff (2011), e permanece tocando os anseios e aspirações de homens e mulheres
contemporâneos.
REFERÊNCIAS

Fontes Fílmicas

CRUZADA. Direção: Ridley Scott. Produção: Scott Free Productions, Inside Track, Studio
Babelsberg Motion e Pictures GmbH. [S.l.]: 20th Century Fox, 2005. 1 DVD (145 min). Título
original: Kingdom of Heaven.

Fontes Escritas

LLULL, Ramon. O Livro da Ordem da Cavalaria (c. 1274-1276). Trad. Ricardo da Costa. São
Paulo: Editora Giordano, 2000.

Obras Citadas

AGUIAR, Miguel. “Fazer Cavaleiros”: As Cerimónias de Investidura Cavaleiresca no Portugal


Medieval (Séculos XII-XV). Cuadernos de Estudios Gallegos, Santiago de Compostela, ano
LXII, n. 125, p. 13-46, dez. 2015.
BARROS, José D’Assunção. Cinema e História: As Funções do Cinema como Agente, Fonte e
Representação da História. Ler História, Lisboa, n. 52, p. 127-159, 2007.
BONET, Maria; STYLE, John. Utopia and the Middle Ages in Popular Culture: A Reading of
Ridley Scott’s Kingdom of Heaven. Spaces of Utopia, Porto, n. 5, p. 55-93, 2007.
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.
FLORI, Jean. A Cavalaria. São Paulo: Madras, 2005.
__________. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval vol I. Bauru: Edusc, 2006. p. 185-199.
KEEN, Maurice. Chivalry. New Haven; London: Yale University Press, 1984.
LE GOFF, Jacques. Heróis e Maravilhas da Idade Média. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas vol. II: O Reino de Jerusalém e o Oriente Franco,
1000-1187. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
SCHNEIDER, Letícia Ferreira. A Mulher e a Espada: Uma Visão Cinematográfica das Mulheres
Medievais. Revista Tempo de Conquista, Rio de Janeiro, n. 7, p. 1-17, jul. 2010.
ZIERER, Adriana; MESSIAS, Bianca. O Mundo da Cavalaria do Século XIII na Concepção de
Ramon Llull. Roda da Fortuna, Barcelona, v. 2, n. 2, p. 128-154, 2013.

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