Trecho de A normalista, de Adolfo Caminha, obra naturalista, uma das maiores representantes
do período, publicada originalmente em 1893, em que o autor cita Barbosa de Freitas.
João da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato onde costumava
aquecer os pulmões ao voltar da Repartição. Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia, porque já lá estava o Perneta, um dos correios, que usava a muleta, que também gostava da pinga e escrevia versos para o Judeu Errante. Num momento deram cabo duma garrafa em cujo rótulo lia-se reclame atraente como visgo: Cumbe legítima! E que loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia e política. O Perneta, sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando sempre com certo ar dogmático, ventilou uma questão de literatura cearense — Que não tínhamos poetas, disse; o que havia era uma troça de malandros e de pedantes muito bestas, que escrevinhavam para a Província coisas tão ruins que até faziam vergonha aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia de imitadores que se limitavam a copiar os jornais da Corte. Na sua opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente inspirado — era Barbosa de Freitas. Esse sim, cantava o que sentia em versos magistrais, dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boêmio! Fazia gosto ouvi-lo. Que eloquência, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma se comparava ao Êxtase, “esse poema de amor” que valia por todas as poesias de Juvenal Galeno. O João queria que recitasse? — Recita lá! fez o amanuense emborcando o cálice. E o Perneta, com voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada de amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase: Quando, às horas silentes da noite, Doce flauta descanta no ar, Quando as vagas soluçam baixinho Sobre a praia que alveja o luar. Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspinhando para o lado. — Sim, senhor! fez João da Mata com um murro na mesa. Isto é que é ser poeta! — “Queriam alguma coisa?” veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro, doente, com olheiras. — Não, menino, disse o amanuense; está acesa a lanterna, por ora. Foi entusiasmo. Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás, com as paredes encardidas, úmidas, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam bebidas: “Somente os fregueses de certa ordem”, prevenia o Zé Gato. — Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou como o grande Luís de Camões, na enxerga dum hospital, e nisto, penso eu, está a sua maior glória. — Apoiado! — E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os poetas de hoje usam fraque, gravatas de seda e polainas, escrevem crônicas elegantes, fazem política. Os Álvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são gênios que aparecem de século em século, como certos cometas, no céu da literatura! — Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense. — Não me fales em semelhante gente. Aquilo é pior do que um cano de esgoto, homem. Quem chama o Zuza de poeta não sabe o que é ser poeta, nunca leu nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha o papel — nada mais. Aquilo só presta mesmo para capacho do presidente. [...]