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Pontos de Fuga:

Registros do Processo
de Alargamento do
Formato das Tiras1
Prof. Dr. Paulo Ramos
Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP)

Resumo: Este artigo procura demonstrar a relevância


do formato na constituição das tiras e de como tais
dimensões têm sido revisadas nos últimos anos no Brasil.
Entendemos que ocorra nas últimas décadas um
comportamento semelhante ao presenciado há um século
pelos pioneiros das histórias os quadrinhos nos Estados
Unidos. Como consequência, traz a necessidade de uma
reavaliação da definição de tira.

Palavras-chave: Tiras; história em quadrinhos;


formato; suporte; gênero.

Abstract: This article shows the relevance of the


comic strips´constitution and ways that these
dimensions were revisited in the last years in Brazil.
We defend that occurs the same process seen a century
ago in United States with the first comics experiences.
As result, there´s the necessity to redefine what is
a comic strip.

Key Words: Comic strips; comics; support; shape;


1
Uma primeira reflexão sobre
genre. este foi feita no NP de
Produção Editorial do IX
Há uma definição mais “segmento ou fragmento de Encontro dos Grupos/Núcleos
de Pesquisa em Comunicação,
ou menos corriqueira do que história em quadrinhos,
evento componente do XXXII
seja uma tira. Ela é geralmente com três ou qua- Congresso Brasileiro de
sintetizada desta forma tro quadros, e apresentado Ciências da Comunicação,
realizado em 2009. Este
pelo Dicionário Houaiss da em jornais ou revistas numa artigo retoma, amplia e
Língua Portuguesa (2002): só faixa horizontal”. atualiza a discussão.

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Outras fontes, teóricas ou por “tira”: “arte gráfica
não, tendem a caminhar na em sequência, com enredo
mesma linha. Costa nos dá que se fecha em um formato
um registro disso em seu padrão, usualmente publi-
Dicionário de gêneros cado em colunas de jornal”
textuais: (REGULAMENTO, 2014). Os
Circula em jornais ou jornais, ao menos os brasi-
revistas, numa só faixa leiros e parâmetro para a
horizontal de mais ou regra do concurso de humor,
menos 14 cm x 4 cm, em publicam a grande maioria de
geral na seção suas tiras num tamanho
“Quadrinhos” do cader- relativamente fixo. As
no de diversões, ameni- dimensões são 15 cm por 4 cm
dades ou também conhe- na Folha de S.Paulo e em O
cido como recreativo, Globo, 14 cm por 4 cm no
onde se podem encontrar Estado de S.Paulo , para
Cruzadas, Horóscopo, ficar entre os periódicos de
HQs, etc. (COSTA, 2009, maior repercussão do país.
p. 191-192). Não estava escrito
no regulamento, mas pode-
Há uma tendência, se inferir que o tom das
pelo que se percebe, de histórias seja humorísti-
que o formato em uma faixa co, dado que o salão se
horizontal seja um fator ancora nessa temática. A
relevante para que a tira expectativa é que fossem
seja entendida como tal. inscritas, então, produ-
O formato interfere também ções do gênero tira cômica.
na maneira como ela é Esta tende a ser um texto
produzida e recebida por tendencialmente curto, com
quem a lê. Os salões de personagens fixos ou não,
humor brasileiros, que que apresenta um desfecho
costumam manter uma cate- inesperado, tal qual uma
goria só para tiras, são piada, como pudemos de-
um reflexo disso. A defini- monstrar em outros momen-
ção de “tiras” orienta não tos (RAMOS, 2011, 2012).
só o desenhista que preten- Seguindo à risca a
de inscrever um trabalho definição lida nas regras
no processo seletivo, mas do salão de humor, como
também o júri que irá fazer se justificaria, então, o
a triagem do material e a caso do primeiro colocado
consequente escolha da(s) na categoria tiras,
história(s) vencedora(s). reproduzido a seguir.
Tomemos como exemplo A tira de Walmir
o regulamento do 35º Salão Américo Orlandeli
Internacional de Humor de apresenta um formato maior
Piracicaba, um dos mais que o tradicionalmente
conhecidos do país. Nas lido diariamente nos
regras, constava o que os jornais brasileiros. A
organizadores entendiam narrativa é composta por

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uma altura equivalente à de de quadrinhos. Duas observa-
duas tiras. Os demais 24 tra- ções podem feitas a partir
balhos selecionados na cate- dessa exposição: ou o júri
goria – um deles com menção de premiação não seguiu à
honrosa dada pelo júri – risca o regulamento ou os
enquadravam-se na expectati- selecionadores já trabalham
va criada pelo regulamento com outra concepção do que
do salão de humor, ou seja, seja o molde de uma tira
moldadas no formato horizon- cômica. Entendemos ser o
tal, composto por uma faixa segundo caso.

Figura 1 – Um dos trabalhos


de Orlandeli vencedores da
categoria tiras do Salão
Internacional de Humor de
Piraciacaba de 2008.

Já existem exemplos pelas pessoas em situações


suficientes nos suportes de interação comunicativa
impresso e virtual que (2000[1953], p. 279). A defi-
justificam uma releitura nição é um dos pontos conver-
do formato da tira, gentes entre as diferentes
principalmente a cômica, teorias dos gêne-ros discu-
a mais popular e difundida tidas na área da Linguística
no Brasil. Que ela tenha voltado aos estudos do texto
um tamanho horizontal fixo e do discurso.
e que traga um desfecho De início, a preocu-
de humor ainda é a acepção pação de quem se apropriou
mais corrente do gênero, do tema parecia estar no
inclusive no meio acadêmi- lado estável dos gêneros.
co. A questão das dimensões Mas, como alertam autores
físicas, no entanto, pre- como Marcuschi, trata-se
cisa ser revista. Ou am- de uma estabilidade rela-
pliada, como defendemos tiva, posto que os gêneros
neste artigo. “variam, adaptam-se,
renovam-se e multiplicam-
Constituição do formato se” (2005, p. 18). O con-
O pensador russo texto de produção, os in-
Mikhail Bakhtin define terlocutores do processo
gênero como um “tipo comunicativo ou o suporte
relativamente estável de são elementos que podem in-
enunciados”, construído terferir no modo como o

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gênero é concebido por rentes formatos foram expe-
quem o produz e recebido rimentados, sempre nos jor-
pela pessoa que o lê/ouve. nais, suporte que inicialmen-
Um exemplo concreto te abrigava tais narrativas.
da instabilidade na cons- O espaço físico da tira foi
trução dos gêneros ocorreu uma dessas experimentações.
no século 19 e, principal- Algumas das histórias
mente, no início do 20. pioneiras possuíam tamanhos
Buscava-se, na época, um diferenciados. Um de-les era
norte para o que seriam as o equivalente ao espaço de
histórias em quadrinhos, duas tiras. Um caso assim é
forma de linguagem que ainda o do personagem Little Sammy
engatinhava. Nos Estados Sneeze, feito por Winsor
Unidos, país que protagoni- McCay. O garoto sempre espir-
zou esse processo de conso- rava nas piores horas. A his-
Figura 2 – Tira cômica de
lidação comercial das his- tória a seguir foi publicada
Winsor McCay, publicada nos
Estados Unidos em 1904. tórias em quadrinhos, dife- em 1904:

A consolidação de reproduzir o mesmo produto


uma cara própria para a a diferentes periódicos
tira ocorreu com A. Piker norte-americanos.
Clerk, de Clare Briggs, Para que o processo
publicada entre dezembro pudesse ser feito dentro da
de 1903 e maio do ano se- agilidade da dinâmica do fe-
guinte (HOLTZ, 2007), e, chamento diário das edições,
principalmente, com A. havia a necessidade de uma
Mutt, de 1907, depois re- padronização do tamanho das
batizada de Mutt & Jeff, histórias. Assim, a página
de Bud Fisher. Mutt & Jeff onde a narrativa de humor
figura entre as pioneiras iria aparecer poderia ser
no uso do sistema de dis- diagramada previamente, bas-
tribuição de material a tando apenas encaixar a
outros jornais, chamado de história no tamanho
syndication. A ideia era estipulado.

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Figuras 3 e 4 – Tiras de A.
Piker Clerk, publicada em
1904 (ao lado), e, abaixo, A.
Mutt, de 1907

O formato que se Rogers e Fantasma servem


consolidou foi o de uma de exemplos.
tira, ou comic strip, como Houve também outro
foi batizada nos Estados for-mato que se consolidou
Unidos. O mecanismo nos jor-nais, o da chamada
permitia que a mesma piada página domi-nical.
diária fosse lida por Tratava-se de uma história
diferentes pessoas em todo em quadrinhos construída
o país. E garantia um bom em um tamanho maior, o
negócio aos agentes e aos equivalente a uma página.
autores. Pela mesma Aos olhos do público,
história, ganhava-se mais diferenciava-se da tira na
de uma vez (GUIRAL, 2007). questão do espaço físico
O sistema ganhou utilizado e no tempo maior
força comercial e de leitura. Outro formato
ultrapassou as frontei-ras que se popularizaria na
norte-americanas. As tiras década de 1930 era o da
se popularizaram também em revista, ou comic book. Em-
países sul-americanos, bora fossem inicialmente
entre os quais o Brasil. feitas de coletâneas de ti-
Na década de 1920, surgia ras, eram o embrião de um
outra possibilidade de suporte maior, fora dos
produção das histórias, jornais, com mais páginas
agora de forma seriada, e com maiores possibilida-
narrando um capítulo por des de criação.
dia. Em geral, tais Tal qual a definição
produções se pautavam mais bakhtiniana, houve uma es-
na aventura do que na tabilidade relativa no
construção de uma piada início da consolidação da
diária. Tarzan, Buck linguagem dos quadrinhos

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tal qual a conhecemos hoje. é e como funciona.
Relativa porque se experi- (RAMOS, 2011, p. 106)
mentavam moldes e modos de
produção tanto no processo
de criação quanto no de Embora se referisse à
recepção. Estável porque constituição do gênero tira
alguns deles convergiram cômica, o método vale também
para um ponto único nos para o formato das tiras.
anos e nas décadas seguin- Observa-se como são produzi-
tes, como a tira. das e, partir dessa consta-
Mesmo assim, postu- tação, parte-se para a aná-
lávamos, em outro trabalho lise científica dos dados.
teórico, que se tratava de
Pontos de fuga do formato:
tendência de regularidade
revistas
do molde da tira: “a ten-
dência é que o formato seja O formato horizon-
horizontal, equivalente ao tal, curto e fixo da tira
de uma ou duas tiras” foi o que consolidou seus
(RAMOS, 2011, p. 106). A diferentes gêneros e as
cautela se dava por, já tornou conhecidas em dife-
naquela ocasião, identifi- rentes países. Produzia-
carmos a existência de for- se a mesma história, num
matos maiores, equivalen- mesmo espaço físico, para
tes ao espaço de duas ti- mais de um jornal. Apesar
ras, como a premiada no das características comuns
Salão Internacional de Humor dominarem, houve no Brasil
de Piracicaba, e no fato de diferentes casos de fuga
algumas revistas publicarem da estabilidade, a depen-
as tiras em faixas verti- der do suporte utilizado.
cais, e não horizontais. No impresso, parece-nos
Vale reprisar aqui as que dois casos são mais
mesmas premissas que evidentes: o visto nas
pautaram aquele estudo, revistas e o registrado em
mais direcionado à alguns jornais.
composição das tiras As revistas em
cômicas: quadrinhos brasileiras, em
o gênero não é dado particular as infantis,
automaticamente, mas costumam há décadas encer-
construído no processo rar a edição com uma tira
de interação sociocog- cômica. A diferença é que
nitiva. Partimos, a história é apresentada
então, dos textos como no formato vertical, e não
são produzidos e da no costumeiro molde hori-
forma como são vistos zontal. A narrativa tende
na prática e na teoria a ocupar metade da página
para formular um final e divide o espaço
possível quadro de com os créditos da editora
análise do assunto, de que produziu a publicação.
modo a entender o que O recurso foi e ainda é

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utilizado nas revistas da
Turma da Mônica, de
Mauricio de Sousa.
Em alguns casos, a
editora opta por acrescentar
um título com o nome do per-
sonagem central e, no fim
do último quadrinho, uma le-
genda com a palavra “fim”,
para aproximar a tira da es-
trutura das demais histórias
em quadrinhos contidas na re-
vista. É como visto no
exemplo da Figura 5, de
Cebolinha. Apesar de o for-
mato fugir do convencional, Figura 5 – Exemplo de
as características da tira tira publicada na forma
vertical.
cômica se mantêm: texto ten-
dencialmente curto, com um situação, é comum inserir-
desfecho inesperado, tal se título. É o que se viu
qual a piada. na página 12 da revista
Há também situações Recruta Zero, lançada em
de revistas em quadrinhos setembro de 2013. Tiras das
que rearranjam o formato séries norte-americanas
da tira para que ela possa Recruta Zero e Hagar, o
ou compor melhor a página Horrível foram modificadas
ou então assemelhar a para supostamente comporem
história a uma narrativa melhor a diagramação, como
mais longa. Nesta última mostra a figura a seguir:

Figura 6 – Tiras adaptadas


para comporem página da
revista Recruta Zero

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As duas tiras passa- Pontos de fuga do formato:
ram a ter dois blocos de jornais
quadrinhos cada uma, ocu-
pando, assim, o dobro do Outras situaçôes de
espaço. Para aproximar o fuga do formato convencio-
conteúdo a uma história nal vêm sendo utilizadas
tradicional do suporte re- por alguns jornais
vista, a primeira ganhou brasileiros pelo menos
um título, “Questão de po- desde a década de 1990.
sicionamento”, e teve a São histórias que ocupam
personagem central dessa o tamanho de duas tiras,
narrativa, a secretária Dona como a vista no primeiro
Tetê, alçada a protagonista exemplo deste capítulo
da série criada por Mort (Figura 1). É um molde
Walker – o corrente é a série fixo, que fica no meio
receber o nome do real termo entre a tira e a
protagonista, Recruta Zero. página. Tende a funcionar,
No desfecho, insere-se a no entanto, como uma tira.
palavra “fim”, outra marca O recurso foi usado
de histórias publi-cadas em mais de uma vez pelo jornal
revistas em quadrinhos. Folha de S.Paulo no
A palavra “fim” en- suplemento infantil
cerra também a segunda ti- Folhinha. O caderno trouxe
ra, do personagem Hagar. histórias de Ozzy,
Assim como a anterior, esta Geraldinho e Suriá,
também passou por um ajuste personagens voltados ao
para compor a página, ga- leitor mais jovem. As
nhando “dois andares” de narrativas eram criadas na
quadrinhos, por assim di- época por três dois autores
zer. Nos dois casos, no de tiras do jornal: Angeli,
entanto, permaneceram as Glauco e Laerte,
marcas centrais do gênero respectivamente. O
tira cômica, ou seja, o tamanho, como se pode ver
desfecho inesperado, fonte no exemplo a seguir,
do humor. Alteraram-se parece-se muito com o
apenas os formatos. Em trabalho premiado em 2008
outros termos: apesar do no Salão Internacional de
rearranjo, manteve-se a Humor de Piracicaba
estrutura básica do gênero. mencionada anteriormente:

Figura 7 – Tira de Ozzy,


personagem infantil criado
por Angeli.

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O formato maior ain- raras vezes, os autores,
da tem sido usado pela em particular Laerte,
Folha de S.Paulo. Em 2014, criavam histórias com três
as três séries da Folhinha blocos de quadrinhos, con-
– criadas por Laerte, Adão densados no mesmo espaço
Iturrusgarai e Pedro fixo semanal. A série de
Cobiaco – apropriavam-se Laerte, Lola, a Andorinha,
desse molde narrativo. Não é farta de exemplos assim:

Figuras 8 e 9 – Tiras de
Lola, a Andorinha, produzida
com três blocos de
quadrinhos.

O periódico paulista tradicionais. Com a diferen-


passou a veicular – inicial- ça de que, desta vez, as
mente aos domingos, no meio histórias foram impres-sas
de 2009 mudou para os sába- na Ilustrada, nome do cader-
dos – uma série feita pelos no de cultura do diário.
irmãos Gabriel Bá e Fábio A série da dupla se
Moon, vencedores de diferen- chamou Quase Nada e não se
tes premiações de quadri- pautava na criação de uma
nhos nos Estados Unidos, piada ao final. Bá explicou
mercado onde também atuam. a escolha do nome em um
O formato, uma vez mais, era texto postado no blog que
o equivalente a duas tiras ambos mantêm no portal UOL:

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Nossas tiras não contam mato se deu pela neces-
piadas, não contam his- sidade de ajustar a
tórias, são só relan- história à narrativa que
ces, detalhes e recor- ele e o irmão normalmente
tes. Sempre quisemos estavam habituados a
mostrar que é possível fazer. Segundo Bá, o espaço
tratar de quase tudo de três ou quatro quadros
em Quadrinhos, mas pode era insuficiente para o que
parecer que nas nossas os dois tinham em mente.
tiras falam de Quase Embora não seja uma
Nada. Foi mais ou menos tira cômica, a produção
assim que surgiu o deles não deixa de ser uma
título. (BÁ, 2009) tira, levada a um público
amplo por conta da ampla
No mesmo texto, ele difusão da Folha de
disse que a escolha do for- S.Paulo.

Figura 10 – Tira da série


Quase Nada, de Gabriel Bá e
Fábio Moon.

Processo semelhante trabalhos mais autorais, sem


ocorreu com o jornal O um compromisso com o tom hu-
Estado de S.Paulo, durante morístico da maioria das sé-
uma curta experiência em pu- ries publicadas pelo diário
blicar tiras semanais de paulista. Diferenciavam-se
Lourenço Mutarelli e também no tamanho, equiva-
Marcello Quintanilha. Eram lente ao de duas tiras.

Figuras 11 e 12 – Tiras em formato maior, de Lourenço Mutarelli e Marcello Quintanilha

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No Rio de Janeiro, o também produzida no tamanho
jornal O Globo abriu espaço equivalente ao de duas ti-
para uma série semanal, ras. As histórias são veicu-
Valente, de Vitor Cafaggi, ladas uma vez por semana.

Figura 13 – Valente, de Vitor

Cafaggi, publicada em O Globo

Houve casos, mais O solteirão Gatão de


raros, é verdade, de séries Meia Idade foi
que tiveram o formato “enquadrado”, como diz
alterado ao longo de sua Paiva. O rótulo se
publicação. Foi o que justifica porque a série
ocorreu com Gatão de Meia ganhou o formato físico de
Idade, criada por Miguel um quadrado. Nas palavras
Paiva. A tira cômica do autor, isso exigiu rever
cresceu de tamanho após o processo de produção:
migrar para um outro espaço
do jornal carioca O Globo, O formato quadrado me
uma vez mais citado aqui. enquadrou, confesso.
Passou a ser publicada no Tive que adaptar a
primeiro caderno – e não linguagem e convencer
mais no de cultura -, logo o personagem de que o
abaixo da coluna do espaço era mais
jornalista Ancelmo Góes, elegante e moderno.
conhecido por trazer notas Acabou que nos
sobre o mundo social e habituamos ao quadrado
político brasileiro. A e hoje aprendemos que
mudança interna permitiu quem faz o espaço é a
a ele ter mais espaço para nossa imaginação.
produzir a história. (PAIVA, 2008, p. 5).

Figura 14 – Tira de Gatão


de Meia-Idade formato

tradicional...

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Figura 15 – ... e na fase
enquadrada, como diz o criador
da série, Miguel Paiva.

Há outros casos de Nik, teve duas coletâneas


formatos maiores que podem lançadas no Brasil em 2008
ser citados, como o de pela editora V&R.
Cabeça Oca, de Christie Nos Estados Unidos,
Queiroz, publicadas em houve também ensaios de um
jornais de diferentes es- experimentalismo no tocan-
tados do país no tamanho te ao espaço limitado da
equivalente ao de duas ti- tira, como se fosse uma
ras, ou as séries Amely, espécie de fuga de uma ca-
de Pryscilla Vieira, e O misa de força. Uma delas,
Pintinho, de Alexandra Maakies, do norte-
Moraes, publicadas sema- americano Tony Millionaire
nalmente na Folha de (2007), tem como marca a
S.Paulo no formato verti- condução de duas narrati-
cal, algo raríssimo de se vas simultâneas no mesmo
ver nos impressos jorna- espaço da tira. Na parte
lísticos. Merece registro de cima, com maior desta-
ainda que, na Argentina, que, estaria a principal,
o jornal La Nacion já mes- com os personagens corri-
cla os dois formatos na queiros. Na parte de baixo,
página final, dedicada a em tamanho menor, cria uma
humor gráfico. Das quatro outra piadinha, ora com
tiras cômicas da publica- personagens novos, ora com
ção portenha, duas têm o os protagonistas politica-
tamanho equivalente a duas mente da série – o macaco
tiras. Uma delas, do gato Tio Gabby e o pássaro
bagunceiro Gaturro , de beberrão Drinky Crow.
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Como se observa, a um locus físico ou
questão do formato fixo, virtual com formato
retangular e composto por específico que serve
uma sequência linear de de base ou ambiente de
quadrinhos, precisa ser fixação do gênero
reavaliada, dado o contexto materializado como
atual de produção. Há casos texto. Pode-se dizer
concretos, como os vistos, que suporte de um
que registram um alargamen- gênero é uma
to no tamanho da tira nos superfície física em
suportes impressos. Mas o formato específico que
conteúdo, a maior parte suporta, fixa e mostra
composto por tiras cômi- um texto. (MARCUSCHI,
cas, continua obedecendo 2008, p. 174)
às características essen-
ciais do gênero, que são Para o linguista,
produzir uma narrativa ten- tal definição se resume
dencialmente curta, com em três aspectos: 1)
desfecho inesperado, que suporte é um lugar; 2) tem
leva ao efeito de humor. formato específico; 3)
O fato de ser veicu- serve para fixar e mostrar
lada com dimensões maiores o texto. Reavaliando essa
nos jornais ajuda a fami- leitura feita por
liarizar o molde em quem a Marcuschi, Bonini vai rede-
lê, criando uma expectati- finir suporte como sendo o
va de que o gênero abarca
também tais dimensões elemento material (de
ampliadas. Nos sites e registro, armazenamen-
blogs, que circulam em to e transmissão de
outros tipos de suporte, informação que inter-
também é possível perceber vém na concretização
ecos desse comportamento. dos três aspectos ca-
talizadores de uma mí-
Pontos de fuga do formato: dia (suas formas de
mídias virtuais organização, produção
e recepção). (BONINI,
Na leitura de Luiz 2011, p. 688)
Antônio Marcuschi, o
suporte é essencial para Intuitivamente,
a circulação dos gêneros tais aspectos já foram
na sociedade. Se-guindo o identificados na discussão
raciocínio do autor, torna-
sobre a veiculação impres-
se elemento importante para
sa das tiras, ora nos
a compreensão do gênero num
jornais, ora nas revistas.
contexto sociocognitivo Mas resta ainda idenficar
interacional. Nas palavrascomo se processam essas
dele, questões referentes ao
Entendemos aqui como formato das tiras nos su-
suporte de um gênero portes virtuais, que tra-
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zem diferentes e contínuas tiras de As Cobras, de
inovações tecnológicas. Luis Fernando Verissimo.
O fato de ser imagi- O ma-terial ganhou
nada para ser impressa na recursos de animação
página de um jornal não quando veiculado em 2009
impede que a mesma histó- no Terra Magazine, revista
ria seja (re)utilizada na mantida pelo portal Terra.
tela de um computador, ou- A página virtual, depois,
tro suporte, portanto. O manteve a estrutura
recurso, aliás, tem se tradicional, como a feita
tornado comum, principal- para o papel.
mente em blogs e sites de A mudança de supor-
autores. É uma outra jane- te, inicialmente, pareceu
la de exposição dos traba- manter o formato tradicio-
lhos a um público poten- nal impresso. Mas, com a
cialmente maior. popularização dos blogs,
A ida para o meio sites e redes sociais, os
virtual não faz com que autores pareceram perceber
necessariamente deixe de que as mídias virtuais
ser e de funcionar como permitiam fugir da camisa
tira cômica, gênero que de força do espaço rígido
parece ser o predominante do impresso. Embora exista
nos suportes virtuais. A uma tendência de encontrar
leitura e o desfecho ines- tiras compostas por uma
perado ao final mantêm a faixa horizontal, há re-
estabilidade genérica, tal gistros dos mais variáveis
qual ocorre no meio no tocante ao formato,
impresso. A não ser que a como comprovam os exemplos
história seja recriada, a seguir, extraídos de
como ocorreu com algumas diferentes páginas:

Figura 16 – Tira no formato


tradicional, da série Overdose
Homeopática, de Marco
Oliveira.

Figura 17 – Tira em dois


andares de Um Sábado Qualquer,
série criada por Carlos Ruas.

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Figura 18 – Tira de Grump, de
Orlandeli, adaptada para duas

faixas de quadrinhos.

Com o formato
tradi-conal (Figura
16), com o de tiras
duplas (Figura 17) ou
com o formato
adaptado (Figura 18),
vê-se que são casos
de tiras cômicas, com
a corriqueira piada
no final. Mudou-se
apenas o molde físico
de veiculação. A
liberdade que o autor
tem na internet
permite a ele,
inclusive, mesclar
formatos para uma
mesma série. Vejamos
nos exemplos a
seguir, extraídos da
série Suporte: Figura 19 – Tira de Suporte no formato quadrado.

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Figura 20 – Exemplo da série
Suporte produzido em formato
maior.

Embora produzidas em tira. A mesma ideia é ex-


tamanho diferentes, as posta ao leitor, receptor
duas histórias foram rotu- daquele conteúdo. Cons-
ladas aos leitores do site trói-se, assim, uma rela-
como sendo “tirinhas”. Na ção interacional, mediada
parte debaixo das duas por um texto que, para os
histórias, apresentavam- dois extremos do processo
se aos internautas possi- comunicacional, é visto
bilidades de compra daque- como tira.
le conteúdo em outros su- Há e vai haver
portes: “compre essa tiri- outros exemplos de
nha em uma CANECA!”; inovação no processo de
“compre essa tirinha em criação de tiras no meio
um MOUSEPAD!”. Em outros virtual. Foi algo inicial-
termos, autor trabalha com mente tateado pelos dese-
a ideia de que, indepen- nhistas, então ancorados
dentemente do formato, nos moldes mais conheci-
trata-se de um caso de dos, mas que cria rumo
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próprio e se descola das A entrada dos qua-
amarras do formato impres- drinhos nos suportes
so. Parece ser um processo virtuais também ajudou a
semelhante ao que ocorreu acentuar a percepção de um
com a consolidação do formato maior para as tiras
gênero nas décadas ini- cômicas. Com o diferencial
ciais do século 20 nos de que a tela do computador,
Estados Unidos. do tablet ou do celular
permite uma liberdade
Revendo o formato da tira
criativa maior, podendo o
Há, como defende desenhista extrapolar as
Bakhtin, um equilíbrio de amarras físicas impostas no
forças no processo de meio impresso.
construção do gênero. Há Parece haver neste
características convergen- século 21 sinais do mesmo
tes ladeadas por outras, experimentalismo
divergentes. Por isso, presenciado um século
entende que sejam tipos antes. A internet, sem
relativamente estáveis de dúvida, tem contribuído
enunciado. Há estabilida- muito nesse sentido,
de, mas relativa, princí- embora haja ainda
pio que pode ser aplicado registros dos formatos
também para o formato. convencionais da tira nos
Essa conjunção de fatores sites e blogs brasileiros.
foi vista nos primeiros Mesmo assim, já existem
trabalhos em quadrinhos, casos suficientes, tanto
quando ainda havia ensaios nos meios impressos como
do que seria a nova lingua- virtuais, para autorizar
gem. Alguns formatos ga- uma definição que encampe
nharam corpo e se um alargamento na dimensão
consolidaram, entre os física da tira.
quais se destaca o da tira. Ela – a tira –
O processo de permanece sendo um texto
fixação das dimensões tendencialmente curto. No
físicas da tira, como caso das cômicas, gênero
pudemos ver, também não ainda majoritário no país,
foi homogêneo. Tiras du- continua aparecendo com
plas, em tamanho maior, desfecho inesperado, tal
eram vistas já nos anos qual uma piada, com
iniciais do século 20 nos personagens fixos ou não.
Estados Unidos. As décadas Por isso, a alteração de
seguintes também foram formato não está necessa-
pautadas por pontos de riamente ligada a um novo
fuga da estabilidade, como gênero. Mas não é, fato,
as tiras em formato necessariamente produzida
vertical e adaptadas das no formato horizontal de
revistas infantis ou com apenas uma tira. Pode
espaço dobrado nos também apresentar um
jornais. tamanho maior, equivalente

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ao de duas tiras, sendo COSTA, Sérgio Roberto.
quadrado ou retangular. Ou Dicionário de gêneros
ser produzida na forma textuais. 2 ed. rev. ampl.
vertical, como tem ocorri- Belo Horizonte: Autêntica,
do no suporte revista. 2009.
É o que se pode in-
ferir a partir da leitura FISHER, Bud. The early
de tiras cômicas nacionais years of Mutt & Jeff. New
produzidas na década final York: NMB, 2007.
do século 20 e no começo
deste século. Os novos GUIRAL, Antoni. Del tebeo
formatos já configuram uma al manga: una historia de
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