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A PROPÓSITO DO DIA DA POESIA …


Em meados da década de 50 do século XX, o Edifício
Capibaribe, na Rua da Aurora destacava-se, sozinho, do colonial
casario ribeirinho pelos seus 18 andares em cimento armado.
Justamente no último desses andares morávamos eu, recém-
chegado de Fortaleza, o carioca Rui Silva, ilustrador dos long-
plays de vinil do selo Mocambo, e Fernando Luís da Câmara
Cascudo, apresentador da Rádio Tamandaré, repórter do Diário de
Pernambuco, compositor de Prece ao vento, sucesso do cantor
Gilvan Chaves, e da canção Aconteceu de repente, na doce voz de
Dóris Monteiro, com quem Fernando viveu intenso romance.
Na condição de dono da casa e bom anfitrião, Fernando sabia – e,
como poucos – receber pessoas no Cantinho do Céu, apelido do
nosso apartamento. Era lugar frequentado por notoriedades locais
e nacionais, artistas em temporada nas emissoras de rádio e TV do
Recife, as misses mais bonitas de Pernambuco e do Brasil: Nelbe
Souza, Terezinha Morango e Adalgisa Colombo fizeram daquela
grande sala de estar uma deslumbrante passarela. Lá eu ouvi
Lúcio Alves em pessoa cantando noite adentro, vi o jovem Carlos
Pena Filho emendando fragmentos manuscritos de seus poemas:

Recife cruel cidade,


águia sangrenta, leão,
ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não,
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.  

Nas mesas do Bar Savoy


o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp
são trinta homens sentados
trezentos desejos presos
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trinta mil sonhos frustrados...

Aqui, acolá o Cantinho do Céu acolhia os pais de Fernando – o


folclorista Luiz da Câmara Cascudo e sua Dahlia, a quem ele
chamava de animadora incomparável, nos livros que a ela
dedicava. Nessas ocasiões o apartamento era cenário de uma noite
da nata da intelectualidade pernambucana que vinha reverenciar
o mestre maior do folclore brasileiro. Graças a ele vi de perto
“monstros sagrados” da cultura local que vinham degustar vinhos
europeus e trocar ideias com aquele renomado L. da C.C.,
monumento em carne e osso da cultura nacional. Em outras
noites, eu me aproveitava das poucas horas de sono de que
precisava o ilustre hóspede para, insaciavelmente, beber naquela
imensurável e perene fonte de saber. Dele guardamos, eu e minha
mulher, bilhetes assim:

Natal, 17.VII.1964. Meu caro Albuquerque. Venho solicitar-lhe a


graça de comprar para mim dois exemplares do Jornal do
Commercio, edição do dia 12 de julho, e recortar a crônica de NP
(Nilo Pereira) referente à minha eleição para a Academia das
Ciências de Lisboa. Um antecipado abraço de agradecimentos do
seu velho tio Câmara Cascudo.

Quando o visitamos em Natal-RN, ele presenteou minha mulher


com um exemplar da sua “Seleta” onde escreveu esta dedicatória:
”Para Glória, a quem Deus deu o destino de amar Albuquerque”.
Desse carinho tamanho dele me veio inspiração para dizer a ela:

A Glória em poesia,
romance, novela
é mulher, quem diria...
e casei-me com ela!

L da CC também era um ouvinte atento. Uma noite tentei


expressar-lhe minha admiração Dono de leonina cabeleira branca
e brilhantes olhos azuis ele sublinhava minhas palavras com um
sorriso enquanto eu exaltava sua riqueza intelectual, a grandeza
da sua obra, internacionalmente consolidada sem que ele
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arredasse o pé da querida Cidade do Natal. Foi quando, mais


encantador do que nunca, diante de uma pausa minha para
respirar, ele me animou:
– Continue, meu filho. É mentira, mas é gostoso. Continue.

...

ALGO MAIS SOBRE O DIA DA POESIA

Rio Grande do Norte


capital Natal
em cada esquina um poeta
em cada beco um jornal.

Há muito tempo esta quadrinha é adágio de potiguares e até de


forasteiros, entre os quais o fotógrafo e produtor cultural Ayres
Marques, de quem transcrevo as linhas seguintes:

Recém-chegado em Natal, notei incidência maior de poetas por


habitantes do que em outras cidades do Brasil e do mundo. Era
conhecer alguém e, quando menos se esperava, poeta. Às vezes
alguém já se apresentava fulano de tal, poeta. Em outros casos a
própria pessoa acabava se redescobrindo também na condição de
poeta. Eu mesmo, às voltas com essa questão, cheguei a
consultar psiquiatra, igualmente poeta. E no hospital havia um
monte de bardos. Porque em Natal ser poeta é a regra e não a
exceção.

Embora a rigor não se soubesse de versejador nem jornalista


morador da Junqueira Ayres, na Cidade Alta, esta rua gloriou-se
por causa de um seu habitante em tudo diferenciado - de tal modo
talentoso e multiface – que lhe mudou o nome para Câmara
Cascudo. E é justamente nesse casarão antigo de rua renomeada
que hoje, sob a liderança da neta Daliana Cascudo, funciona o
Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, preservando a memória e
dignificando a cultura. A denominação Ludovicus foi escolhida
por razão ao mesmo tempo histórica e sentimental, inserida pelo
mestre no livro autobiográfico O Tempo e Eu: Batizou-me o
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padre João Maria Cavalcanti de Brito, em 9 de maio de 1899, na


Capela do Senhor Bom Jesus dos Passos, da Ribeira,
presentemente Matriz. (...) Meu padrinho (o Desembargador
Joaquim Ferreira Chaves, Governador do Estado) sabia latim e
respondeu às perguntas do sacerdote: Quid petis ad Ecclesia
Dei? Fidem! E a Igreja concedeu-me a súplica. O Padre João
Maria disse meu nome certo em latim: - Ludovicus.

É, portanto, o nome Luís que, em latim, inicia hoje a


denominação do Instituto que preserva a memória de uma das
maiores luminâncias mentais do Brasil em todos os tempos.
Entre minhas leituras, a autobiografia dele é uma lacuna
indesculpável, porém preenchível... Cuidarei de adquiri-la o mais
depressa possível, inclusive para conferir se nela estão as
seguintes duas histórias, das muitas que me foram contadas na
calada da noite no Cantinho do céu por L da CC. Delas dou meu
fiel testemunho auditivo, no qual incluo memória da prodigiosa
variedade de entonação e gestos do ilustre narrador:

* Na noite de encerramento de um congresso de folclore, em vez


de permanecer, como de costume, na mesa da diretoria, Cascudo
meteu-se festa adentro para ver de perto e aprender com as
chamadas atrações em exibição. A certa altura um conjunto de
tocadores de pífano chamou-lhe a atenção: apenas um dos
músicos tinha seu instrumento enfeitado de fitas. Então, o mais
discretamente que pôde, o grande folclorista aproveitou intervalo
da tocata para sinalizar perguntando ao tocador mais próximo o
por quê do adorno usado pelo companheiro. A resposta,
claramente audível, não se fez esperar: – Frescura.

* Em conversa na sede carioca da José Olympio, Cascudo tratava


da publicação de mais uma de suas obras, quando alguém lhe
apresentou, como patrimônio da daquela editora, um colaborador
nascido em Natal. Ouvindo-lhe o sobrenome gostou, o mestre, de
lembrar-se de ascendentes do apresentado:
– Conheci seu avô, conheço seu pai, ótima pessoa. Creia que
tenho enorme prazer em sabê-lo natalense.
– Mas já vivo aqui no Rio há trinta anos.
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Aquela resposta de quem parecia se socorrer dela para absolver-se


da naturalidade potiguar desgostou Cascudo a ponto de ele
expressar esta reprimenda:
– Escute aqui. Conversando com meu avô sobre um circo que
visitava Natal, seu avô estudou o céu e perguntou:
– Prometendo chover desse jeito, harará circo esta noite? Seu avó
dizia harará...

Entre os meus primeiros trabalhos de jovem repórter radiofônico


no Recife memorizo, indelevelmente, entrevista de 1951 com L
da CC que, no final, abriu-me um sorriso e teve a gentileza de
assim agradecer minhas intervenções: Até aqui ninguém havia
emoldurado tão bem minhas palavras... Este modo irresistível de
falar me seduz ainda hoje...

...

AINDA SOBRE O DIA DA POESIA

Nasci no Ceará, berço de gente caracterizada principalmente pela especial


afeição ao seu estado, sobretudo à capital, Fortaleza, a loura desposada do
sol do poeta meu xará Francisco de Paula Ney:

Loura de sol e branca de luares


como uma hóstia de luz cristalizada
entre verbenas e jardins pousada
na brancura de místicos altares.

Compreendo essa – digamos bairrista - benquerença. Porque, sem nenhum


desfavor às demais naturalidades nacionais, a cearense é de índole
hospitaleira, generosa, empreendedora, engraçada, nativista, inteligente,
valorosa, criativa... Sendo assim é natural que os chamados alencarinos
gostem quando forasteiros lhes reconhecem essas inerentes qualidades.
A propósito, relembro discurso do historiador baiano Pedro Calmon
(1902/1985) pronunciado no Teatro José de Alencar. Ele começou falando
baixinho e em poucos minutos pôs a plateia em estado de êxtase dizendo
que o Brasil sempre contou com os cearenses: para escrever romance, José
de Alencar; para escrever o primeiro Código Civil Brasileiro, Clóvis
Bevilaqua; para guerrear no Paraguai, o general Antônio Tibúrcio; para
enriquecer a música, Alberto Nepomuceno; para liderar revolução
libertária, Bárbara Pereira de Alencar; para democratizar a medicina,
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Adolfo Bezerra de Menezes; para cunhar sua historiografia, João


Capistrano de Abreu; para libertar escravos, Francisco José do Nascimento,
pescador transmudado pela história em Dragão do Mar; para expandir as
fronteiras, os seringueiros cearenses que, na Bolívia, conquistaram a facão
o Território do Acre.
Embora explosivos, os aplausos da plateia não interromperam o orador.
Porque, em vez de palmeá-lo, o público estalava os dedos – polegar e
médio – forma opcional de aclamação típica dos cearenses. Tão orgulhoso
quanto os demais ali presentes, juntei-me àquele caloroso aprazimento,
expressado de modo tão original. Não sei de outro estado brasileiro onde se
aplauda assim, e só espero que jamais saia de moda esse estalido, para
sempre vivo na minha memória auditiva.

Aquele discurso do forasteiro historiador baiano Pedro Calmon me fez


deixar o José de Alencar querendo também dedilhar estalidos de aplauso a
outro forasteiro, de quem falarei mais adiante, um jornalista e poeta
pernambucano igualmente admirador dos alencarinos.
Foi na redemocratização brasileira de 1945. A política levou à minha
cidadezinha cearense de Aratuba - originalmente Coité, depois Santos
Dumont - caravanas caçadoras de voto e do poder público que ele dá.
Paulo Sarasate Ferreira Lopes, protagonista de uma delas, era candidato da
UDN a deputado federal. Sabedor da rejeição popular ao novo nome
Aratuba, imposto no governo do então destronado Getúlio Vargas, o jovem
candidato aproveitou a oportunidade para anunciar e garantir que traria de
volta o nome glorioso do celebrado inventor do avião.
É dispensável dizer que a denominação anterior jamais foi resgatada. Já
naquele tempo se prometia o que não havia jeito legal de ser cumprido...
Nessa caravana, porém, tive forte razão pessoal para jamais esquecer a
presença de alguém que, depois eu saberia tratar-se do de um jornalista e
poeta pernambucano de Itapetim chamado Rogaciano Bezerra Leite, hoje
nome de importante rua de Fortaleza:

Saudade, pedra de gelo


posta sobre o coração
pra conservar o desvelo
por quem tem nossa afeição.

Sem que eu pudesse imaginar, Rogaciano assistira, na Casa Paroquial de


Aratuba, a homenagem natalícia da cidade ao padre Nepomuceno, da qual
eu participava. No final daquilo que foi chamado de espetáculo, o poeta
veio a mim e disse: Gostei muito de vê-lo no palco. Você é um ator de
futuro.
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No dia seguinte a caravana de Paulo Sarasate já discursava em outra


cidade , enquanto o mais importante udenista de Aratuba me contratava
para abrir letreiro no extenso muro protetor do rico pomar e do casarão
colonial de Maria Barbosa Pereira, a conhecida e muito amada dona Doca.
Pintado em regime de urgência o letreiro informava a quem chegasse a
Aratuba pelo oeste:

S A N T O S D UM O N T
Aratuba é uma mentira da ditadura
(Paulo Sarasate)

Em tempo: não me lembro de ter levado a sério aquela amável profecia de


Rogaciano Leite sobre o meu futuro de ator de teatro de tablado. Mas tive
tempo de sobra para descobrir e amar o seu gênio poético:

Cantar é sempre o que a fazer eu ando


sorrir é sempre o meu prazer infindo
se canto e rio, é porque vivo amando
se amo e canto é porque vivo rindo.

...

NOSTALGIA, SAUDOSISMO - OU OS DOIS ESTADOS JUNTOS?

Após 40 anos de ausência, rever a onírica Aratuba da minha meninice foi


uma lição de vida. Bem mais do que simplesmente matar saudades eu vinha
precisando desse aprendizado. Daí a premência de satisfazer-me a qualquer
custo. Ela chegou a tal ponto que, a certa altura, onde eu pudesse ver um
mapa do Brasil logo meus olhos viajavam nele de baixo para cima até o
Ceará e, bem ao centro Norte, localizava minha cidadezinha. Indo,
finalmente, a Fortaleza manifestei, sem perda de tempo, minha nostalgia
aratubense e, espantado, fui recebido por forte resistência.

– Por lá não há o que se ver nem comer.


- Nem ovo.
– Não me digam que exterminaram as galinhas de lá...

Tamanha foi a minha insistência que acabamos indo a Aratuba, via


Capistrano de Abreu. Vencida a subida da serra do meu destino, logo
entendi a minha parentela. De repente vi aquela Macondo cenário dos Cem
anos de solidão do Gabriel García Márquez. Num misto de ansiedade e
frustração percorri a cidade em alguns minutos. Na entrada de casebre ao
lado da Igreja Matriz de São Francisco de Paula avistei, entre galinhas
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cacarejantes, a outrora exuberante solteirona Mafisa, principal figura do


coral da Missa domingueira e - na língua dos eternos maldizentes -
namorada dos vigários que se sucediam; passei pelo muro do casarão
colonial de dona Doca Pereira, onde abri letreiro político: Santos Dumont –
Aratuba é uma mentira da ditadura – Paulo Sarasate; avaliei a pequena
casa que, ampliada pela minha visão infantil, era a padaria dos Carlos, onde
eu, sempre disponível e curioso, fui aprendiz de padeiro; ocupado por
imóveis encontrei o terreno onde joguei bola de meia com meus amigos de
infância; alguns deles vi finados por ataque de verminose: durante velório
improvisado em casa saíam-lhes pela boca e narinas, multicores ascaris
lumbricoides das quais minha mãe me livrava com purgantes periódicos.
Para meu alívio, o intragável óleo de rícino de então logo foi substituído
por cápsulas gelatinosas de Panvermina; doeu-me ver, dividida em vários
cômodos de aluguel, a casa senhorial dotada de enorme “lá dentro” onde
morei com minhas tias adotivas Mariquinha, Elvira e Atenas Silveira.

Não havendo mais o que eu ver nem dizer ali, despedi-me de Aratuba.
Desencantado, só me lembrava de minhas próprias palavras em defesa do
poeta Manuel Bandeira, acusado de haver esquecido o Recife. Tão criticada
foi a ausência dele que um longo duelo se travou entre Aníbal Fernandes,
do Diário de Pernambuco (a favor) e Mário Melo, do Jornal do Commércio
(contra). Bastou que o então deputado estadual Nilo Pereira desse a ideia
de um busto em homenagem ao poeta para se engalfinharem os dois
jornalistas em debate intermitente. Volta e meia o assunto retornava em
palavreado veemente e radical. Não é, pois, de admirar que um renomado
cronista local tenha sido influenciado por este clima. Tratando-se, porém,
de um querido amigo, esperei o tempo que pude por algum defensor até
que, na falta deste, atrevi-me: Caro Alex, terá, mesmo, o poeta Bandeira
esquecido sua cidade natal apenas porque não a visita? Como se sabe,
vistas com olhos adultos, as pessoas e as coisas de nossa infância deixam
de ser as mesmas. Também isto acontece com os lugares. Sendo, pois, as
pessoas, as coisas e as ruas do Recife de ele menino as fontes perenes de
inspiração e ternura do poeta, terá ele as querido longe do seu coração
adulto.

Louvado seja o cronista Alex que, no JC de 20.06.1965, teve a humildade


de emendar a mão em escrito intitulado Defesa: Outro dia escrevi, sobre o
poeta Manuel Bandeira, que ele deixou-se encantar pelo Rio e esqueceu
sua cidade, o Recife. Quem escreve crônicas diárias se deixa levar pelo
exagero em alguns casos, ou noutros comete injustiças,. No caso do poeta
Manuel Bandeira fui injusto e isto quem me revela não é outro senão o
velho e querido amigo, o homem de televisão que é Albuquerque Pereira,
numa longa carta onde se mostra um grande conhecedor do ora do bardo.
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Mais do que isso, um advogado apaixonado e humano, citando versos onde


o poeta evoca sua cidade, os seres que ficaram, as alegrias e amarguras
que sofreu aqui.

A professora paraibana Myriam Asfora, correspondente de Manuel


Bandeira em Campina Grande, enviou-lhe recorte da publicação. O poeta
respondeu: Agradeça por mim ao Alex a crônica do Jornal do Commercio
de 9 de julho. E ao Albuquerque Pereira a defesa que fez do bardo. A
defesa está boa, é aquilo mesmo. Aliás, pouco se me dá das acusações que
me fazem, uma vez que a minha consciência esteja tranquila, como sempre
está, no que se refere ao Recife.
...
O SILÊNCIO DOS BONS ANTE O GRITO DOS MAUS...

Do saudoso Alex o Jornal do Commércio publicou, em


20.06.1965, a crônica Comandar o destino: Confesso que não
lembro o nome do poeta brasileiro dono deste verso, “a vida
inteira que podia ter sido e que não foi”. Mas quero usar sua
ideia como tema para a crônica de hoje. Seguiu-se a crônica,
motivada na obstinação do jornalista Assis Chateaubriand diante
de severos problemas de saúde aos quais jamais se rendeu em
nenhum momento.
Na edição de 22.06 do mesmo JC, Alex voltou ao assunto: O
poeta do verso “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”,
motivo da minha crônica de domingo passado no tabloide, é
Manuel Bandeira. O crítico José Gonçalves de Oliveira me diz
que logo o verso de um poeta pernambucano eu fui esquecer. Mas
a verdade é que Manuel Bandeira, sendo pernambucano, vive
muito distante do Recife. Deixou-se encantar pelo Rio de Janeiro
e jamais voltou à sua cidade para um matar de saudades. Se ele
esqueceu a sua cidade estou perdoado em ter esquecido seu
nome.
Esperei até o dia 26 por alguma extensão pública do assunto.
Inquieto com o “silêncio dos bons”, preocupação de Martin
Luther King em relação ao grito dos maus, mandei ao cronista
carta aqui reproduzida por inteiro:
Meu caro Alex: Escrevo-lhe por duas razões principais: gratidão
à sua coluna - tão generosa comigo sempre que a mim se refere -
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e temor de que outra pessoa, apoiada em autoridade intelectual e


poética, guarde silêncio sobre o cheiro de mato, o céu azul, os
luares e tudo o mais que, na poesia de Manuel Bandeira, faz parte
do Recife que ele jamais esqueceu. Sua infância, tão presente
como sua doença (a vida inteira que podia ter sido e que não foi) é
um retrato do Recife de ele menino, onde aprendeu a ser místico
e, por isso, é sua poesia cheia de anjos, Nossa Senhora, Jesus
Cristinho, São João, Santa Tereza (Santa Tereza, não, Terezinha -
Terezinha do menino Jesus).

E o rio? Onde terá ido Manuel Bandeira buscar o rio? O


crepúsculo cai, manso como uma bênção - Dir-se-á que o rio
chora a prisão de seu leito.

Esse rio é uma constante em seus versos: Como da copa verde


uma folha caída - treme e deriva à flor do arroio fugidio - deixa-
te assim também derivar pela vida - que é um largo, ondeante e
misterioso rio…

Não será esse misterioso rio o Capibaribe, Capiberibe de sua


infância?
Debalde o rio docemente - canta a monótona canção: - minhalma
é um menino doente - que a ama acalenta, mas, em vão.

O rio deste outro poema é ainda, com certeza, o Capibaribe:


Longe dessa grita - lá onde mais densa - a noite infinita - verte a
sombra imensa - lá, fugindo ao mundo - sem glória, sem fé - no
perau profundo
e solitário, é - que soluças tu - transido de frio - sapo-cururu - na
beira do rio…

E ainda o rio, vivo na sua saudade: - Uma grande saudade cresce


em todo o meu ser magoado pela ausência - tudo é saudade… a
voz dos sinos…- a cadência do rio…

E insiste nos sinos do Recife, que o bardo não esqueceu: Ah


meninos sinos
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de quando eu menino - Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio -


sinos do Poço, do Monteiro e da Igrejinha de Boa Viagem.

E, sem dúvida, estes telhados que se sentem envelhecer,


pertencem a antigos casarões do velho Recife: Volúpia dos
abandonados - dos sós… - ouvir a água escorrendo - lavando o
tédio dos telhados - que se sentem envelhecer.

A uma vela no mar que freme e passa o poeta do Alumbramento


associou um pedaço de praia pernambucana, onde um corpo de
mulher lhe despertou o desejo: Mas o teu corpo tinha a graça -
das aves… - musical adejo - vela no mar que freme e passa - e
assim nasceu meu desejo…

Também quando o poeta conversa com a cotovia, pergunta por


sua terra:
E esqueceste Pernambuco - distraída? - Voei ao Recife, no Cais -
pousei na Rua da Aurora - Aurora da minha vida - que os anos
não trazem mais
Voei ao Recife, e dos longes - das distâncias onde alcança - só a
asa da cotovia - do mais remoto e perempto - dos teus dias de
criança - te trouxe a extinta esperança - trouxe a perdida alegria.

Tem o poeta raros momentos de consolo por não viver no Recife.


Este, por exemplo: O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo - que
me adoça o pesar de estar em terra estranha.

Mas são raros esses momentos. Na maior parte da sua obra chora
o poeta a dor que o desterro lhe causa: Por onde alongue o meu
olhar de moribundo - tudo a meus olhos toma um doloroso
aspecto - e erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

E por não lhe ser possível viver aqui nem estar bem em terra
estranha sonhou o poeta com um lugar onde não fosse
estrangeiro no mundo, Pasargada. É uma tentativa malograda
porque, embora o poeta seja amigo do rei e tenha tudo em
Pasargada, lá está o rio de suas lembranças, vivo e persistente: E
quando estiver cansado - deito na beira do rio - mando chamar a
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mãe d'água - pra me contar as histórias - que no tempo de eu


menino - Rosa vinha me contar.

...

DE COMO UM CEARENSE NOVENTÃO TAMBÉM É UM


PERNABUCANO SESSENTÃO

Considero impagável minha dívida de gratidão pela acolhida que o Recife


me dá desde 2 de novembro de 1955, quando aqui cheguei para ficar,
depois de breve estada em 1951. Prazerosamente reencontrei amigos de
antes e fiz novos, inúmeros, entre os quais o saudoso maestro Nelson
Heráclito Alves Ferreira.
Incomparável em mestria musical e gentileza, ele associou o forasteiro que
eu era àquele iminente 24 de dezembro. Guardo a melhor lembrança da
delicadeza com que Nelson abordou o assunto:
– Imagino como se sentirá neste Natal, possivelmente o primeiro que
passará longe da terrinha e dos seus entes queridos. Não queremos que se
sinta sozinho. Eu e Aurora gostaríamos de tê-lo em casa, com nossa família
e amigos.
Esse “em casa” era no bairro de Santo Amaro, na Rua dos Palmares. E
como valeu aceitar aquele convite. O casal Nelson-Aurora era vinculado
por laços de parentesco e arte à festejada família Oliveira, do Teatro de
Amadores de Pernambuco, grupo meu conhecido desde festival de teatro de
que participei, pelo Ceará, na cidade do Natal. Foi-me, portanto, um
alegrão estar com os anfitriões e todos daquela talentosa família de atores:
Valter, Alfredo, Valdemar de Oliveira e sua Dinah, o filho Reinaldo e a
então sua noiva Janice Coutinho. Aquele longínquo Natal continua uma
peça sobre a qual a cortina ainda não se fechou...
Não me canso de, até hoje, agradecer por ela e muito me alegro incluído
Nélson Ferreira em duas oitavas em decassílabos do meu trabalho “Viva o
nosso gênio mulato”:

Bom Moreno era, assim, Nelson chamado - por amigos e fãs inumeráveis -
que aplaudiam seu jeito variado - de tocar improvisos admiráveis - quando
era o cinema inda filmado - sem os sons só na hora musicáveis: - ao piano,
Ferreira deslumbrava - a plateia que então o consagrava.

Ao talento mulato se curvaram – inclusive governos nacionais - que


honrarias diversas dispensaram - aos seus méritos, tantos, musicais; -
foliões igualmente o justiçaram - pelas evocações monumentais -campeã
(uma destas) nacional - de um senhor brasileiro carnaval.
v

A partir de Nelson Ferreira fui me familiarizando com outras notoriedades


pernambucanas, gente de poderosa influência local e nacional nas nossas
múltiplas manifestações culturais populares e eruditas. Foi assim que pude
exercitar a pernambucanidade em boa hora instituída por outro forasteiro, o
professor potiguar Nilo de Oliveira Pereira, nascido entre a Grande Natal e
o Polo Costa das Dunas, ou seja, no município de Ceará-Mirim. O discurso
literário dele acabou me encorajando à ousadia desta minha “Saudação ao
Recife”:

Recife pedra sem jaça - de Nassau governador - e sua ponte primeira -


inaugural brasileira - por onde ainda perpassa - o falso boi voador.

Recife veneziano - chão brasileiro da gema - bastião pernambucano - da


liberdade por lema: - frei Caneca arcabuzado - nas Cinco Pontas, um tema
inda pra ser versejado - pelos cantores do heroico: - o coração apontado -
pelo próprio condenado - aos carrascos, modo estoico - de mostrar quão
pertinaz - cumpria ser sua gente - só no heroísmo capaz - de tornar-se
independente.

A poucos passos do Porto - na contraluz do arrebol - relembrança da


epopeia - escrita em Sebastopol - na batalha da Crimeia, - brava Torre
Malakof - ferro e fogo desta estrofe.

Recife aportuguesado - nos nomes de antigas ruas - da Glória, Alecrim,


Saudade - da Matriz e Livramento; - de bairro denominado - Rosarinho,
Jiquiá - Boa Vista, Soledade - Apipucos, Caxangá - onde Bandeira viu
nua - a moça do alumbramento.

Recife berço de vozes - de poetar primoroso - Deolindo, Mauro Mota, -


Adelmar, Pena, Cardozo, - Austro, Ascenço e João Cabral - em cujo verso
há compota - de fruta regional - que mestre Gemba, cioso, - preferia a
chocolates - em sorvete congelado - na memória gustativa - de quem o
provou no Cais - da Aurora de nunca mais - onde Otília, criativa, - fez
renome em culinária - de excelência dividida - com rico leite maltado -
sorvido de madrugada - entre mulheres da vida - no bairro da marujada
- Rio Branco mal falado.

Recife da apetecível - Sertã de tanta iguaria - e sarau inesquecível - na


chegada da folia. - Um navegável balão - o Zepelim alemão - que a
charuto semelhava; - Capibaribe aprazível - rio de pesca e desporto - do
soar estrepitoso - das vitórias do Barroso - clube de remo e fascínio; E
ao par da “Casa Navio” - morada do mesmo dono - do “Palácio de
v

Alumínio” - figurava o “Flutuante” - cabaré à flor do rio - boêmios ao


abandono - do devaneio dançante

Recife contraditório - das carroças e carrões - puxadas por catadores -


dirigidos por barões - infensos ao peditório - melhor dizendo aos
clamores - de quem no lixo sacia - sua fome hereditária - mais aguda
cada dia.

Recife do morno banho - de mar piscina imitada, - Recife da nostalgia


dos seus carnavais de antanho - do “Arranha-céu” da Pracinha, - cidade
sempre enfeitada - em junho arraial joanino - em dezembro uma lapinha
- onde reina o Deus-menino.

Por fim, para marcar este Dia de Finados, data meio imprópria de se chegar
onde todos relembram entes queridos que partiram, este meu Recifense
sessentão:

Faz sessenta mais seis anos - que no Recife cheguei; - na mala com que
viajei - poucos livros, alguns panos - porém nenhuns desenganos. –
unicamente esperança - de crescença e de abastança; - fecho sequer nela
havia - porque o mais inexistia - e um cinto era a segurança - que me atava
o pouco havido - na verde vivência minha,- além de, numa entrelinha, -
sonhos de quem, indormido, - de gozo era carecido. - Agora não vale usar
- fechadura pra guardar - malas que tenho, ditoso, - porque guardados de
idoso – ninguém cogita violar...

CORREIO DA SAUDADE (1)

RÁDIO ANTIGO HAJA NOS CÉUS...


Embora tidas como selvas de pedra, as cidades são, verdadeiramente,
grandes aglomerados humanos, multidões de almas que se subdividem em
diferentes grupos humanos em incontáveis tipos de convivência. Por isso
elas parecem mudar de cara sempre que “a indesejada das gentes” desfalca
esses grupos. Porque amigos que se finam são, decerto, partes morrentes
em cada sobrevivente. No que me diz respeito é o caso de Fortaleza e
Recife, minhas duas cidades. Aqui, acolá elas vêm me deixando apenas o
consolo de uma espécie de Correio da Saudade do qual, mesmo sem
sucesso, vez por outra me valho para me sentir menos fracionado. Nesse
sentido fiz esta carta ao admirável redator, radialista e pintor cearense
Heitor Costa Lima, um dos meus mais queridos colegas e amigos:
v

Caríssimo Heitor. O impacto do nosso último encontro, após tantos anos de


distanciamento social, prenunciou esta carta. Embora eu me alegrasse em
revê-lo com o brilho mental de sempre, entristeceu-me perceber seu
cansaço e sua visível debilidade física. Por inútil, esforcei-me para silenciar
sobre os cigarros que você fumava ininterruptamente enquanto me
atualizava com sua pintura. De volta ao Recife sugeri a galeristas daí que
expusessem seus esplêndidos quadros. Disse-lhes que só o reconhecimento
público do Ceará faria justiça a um filho de tão multiface talento.
Pena que a morte se tenha antecipado porque em cada uma de suas telas
seriam entrevistas laudas inteiras de seus escritos, pinceladas e palavras
riquíssimas tanto em matizes quanto em significados causadores de uma
admiração que fez escola. Seja como for reserve, por favor, um tempinho
da sua vida eterna para ler esta carta que espero lhe seja entregue pelo
Criador. Pode existir melhor mensageiro? Aproveite e fale com Ele sobre a
instalação de uma emissora de rádio, tão boa quanto foram as aqui da terra
naquele tempo. E aí, não estando longe o dia de nos reencontrarmos para
sempre, poderemos continuar trabalhando juntos. Forte abraço, e até lá.

O ELOGIO DA RISADA
Deu-me na telha copiar o aclamado Príncipe do Humanismo, Erasmo de
Roterdã (1466-1536), teólogo e escritor holandês celebrizado por seu
genial livro Elogio da Loucura.
Assim procedo a fim de exaltar na singela pessoa de Luís de França
Guilherme de Queiroga o gênio da risada. Ele, feito quem não queria nada
escrevia coisas que endoidavam a gente de rir. Tipos e situações hilariantes
como que saltavam da sua máquina de escrever e, a partir da sala de ensaio,
corriam os céus a caminho de receptores em torno dos quais os ouvintes
gargalhavam. Sem nenhum exagero, Lula fazia rir com a facilidade única
de um gênio do humor.
Difícil, porém, era tirar Luiz Queiroga do profundo sono que, às vezes, o
retinha na cama até minutos antes das Atrações do Meio Dia da Rádio
Tamandaré. Ainda bem que a sua pensão de solteiro era vizinha à emissora
e um mensageiro veloz podia arrancar da sua máquina de escrever e levar
para o Studio a pagina da vez de programa ao vivo com os atores já
improvisando à espera dela. O maravilhoso disso era que, nem de longe, os
ouvintes desconfiavam do que acontecia.
A fortuna biográfica de Lula faz dele uma legenda do folclore radiofônico e
televisivo brasileiro. Mesmo assim, sua modéstia era do tamanho
desmedida capacidade criativa dele. Como se inventasse o trivial, Lula
criou personagens ainda hoje famosos, entre os quais o coronel Ludugero.
Uma coisa, porém, Lula levou a sério: sua lealdade aos colegas. Por isso,
fez tantos amigos: aqueles que, feito eu, ainda não foram ao seu encontro, o
conservam amorosamente vivo na lembrança.
v

CORREIO DA SAUDADE (2)


Em 23 de março de 2015 a Academia Pernambucana de Letras dedicou
uma “Sessão da saudade” a um dos seus mais fecundos integrantes, o
médico cabense Milton Felipe de Albuquerque Lins. De viva voz entreguei
à sua viúva, Maria Lins, a versificação de dois contos desse querido e
saudoso amigo.

Na mãe África preso inda menino


por galegos e lusos traficantes
teve Dumas bem acabado ensino
dos ofícios do mar por navegantes
que influíram no seu feliz destino
por ninguém além dele tido antes;
em audaz incursão aventurosa
ao Brasil deparou branca formosa,

loura de olhos azuis, cujo marido


Pery, índio, sozinho combatia
inimigos ferozes; condoído
negro Dumas saltou com valentia
em defesa do índio perseguido
porém viu que à flechada ele morria
o pescoço sangrando lentamente;
desolada, a loura, dependente,

seguiu Dumas, a medo; o negralhão


que a espantava inclusive pela altura
era causa de toda suspeição;
mas, com pouco ela, menos insegura,
foi sentindo abrandar-se o coração
ante novos sucessos da aventura:
uma onça assustosa e o pronto abraço
protetor do africano foi o passo
v

que deu azo a dois gêmeos bem nascidos


do diverso casal miscigenado;
os consortes, depois, foram servidos
por um nauta francês recém-chegado
que em seu barco os levou (filhos cingidos)
à Europa, onde à loura, perguntado
foi-lhe o nome: Ceci, respondeu ela
encerrando-se então essa novela...

***

Milton Lins também foi o criador


de um modelo de negro persistente:
de Sinhá branca fez-se professor
e lhe deu a ensinança inteligente
e engenhosa de eterno sonhador
com a fortuna de tê-la por nubente;
da amada venceu a hesitação
com estratégia prodígio de invenção.

Espantou o vigário e congregados


aos domingos montado em boi bravio
frente à igreja; fiéis estatelados
ante o bicho a bufar em desvario
demonstravam-se todos alumbrados
com tamanho equilíbrio e sangue-frio;
mas, com pouco, a proeza repetida
já não deu mais em missa interrompida

pois perdera o sabor da novidade;


Chico Danta com isso demonstrava
pra Sinhá a completa bestidade
do dilema que tanto a inquietava
pois amar um ao outro na verdade
era só o que mais lhes importava
sem ouvidos pra língua maldizente,
no começo, em geral impenitente

mas, enfim, com o tempo, apaziguada


pelo amor declarado abertamente
de Sinhá, dama branca requintada
ao seu dono, exemplar resiliente,
erudito e de tez preto-azulada;
v

derrotado o racismo malfazente


festejaram montando com regalo
cada um seu esplêndido cavalo.

CORREIO DA SAUDADE (3)

CARTAS AVOENGAS
Sabemos que ainda se enviam, de favor, bolo de rolo, queijo de coalho,
carne de sol, doces e ... cartas. Os remetentes usam familiares, amigos e
mesmo conhecidos que se destinem a lugares de moradia de destinatários
com quem se relacionam. Eu mesmo transportei, do Recife ao Rio, carta a
pessoa residente na favela carioca da Rocinha. Claro que ao desembarcar
vali-me da agência postal do Aeroporto do Galeão: é que, na face frontal do
envelope não constava, como já foi de bom-tom, a sigla P.E.F. – abreviatura
de Por Especial Favor, seguida do nome de obsequioso portador. Mesmo
assim corri o risco de ( espero que não) estar citado no próprio texto da
carta...
Seja como for, entregues de favor por viajantes ou pelos Correios as cartas
familiares têm sido substituídas por telefonemas ou postagens eletrônicas.
Pagamos o preço da chamada evolução tecnológica. Somos todos
cibernautas. Quando muito, nos limitamos a mensagens abreviadas tipo “mi
vzs obg a vc amg de vdd abçs e bjs fui”.
É no que a comunicação interpessoal virou entre a moçada. Diversos dos de
antigamente, até os atuais avós tentam copiar modismos da juventude
privando seus netos da saudade vivenciada pelo poeta Manoel Bandeira
nestes versos:

Enquanto anoitece vou


lendo sossegado e só
as cartas que meu avô
escrevia à minha avó.

Enternecido sorrio
do fervor desses carinhos
é que os conheci velhinhos
quando o fogo era já frio...

E eu bendigo, envergonhado
esse amor, avô do meu…
v

do meu, fruto sem cuidado


que inda verde apodreceu.

O MEU “AVÔ” SERTANEJO...


Certo dia de verão eu me fartava na copa de uma alta e frutuosa cajazeira
serrana, quando súbita ventania como que me envolveu num lençol de gelo,
enquanto minha mente era tomada da mais profunda lembrança de seu
Lindolfo, meu avô eletivo. Ele morava a pouca distância da nossa casa
sertaneja de beira de estrada para a cidade de Canindé-CE. Era um amoroso
octogenário ainda hoje vivo na minha saudade. Por causa da sua amizade
com meu pai estávamos sempre juntos quando os rigores do nevoado e frio
inverno aratubense faziam famílias inteiras descer ao sertão. A saciação de
cajás e a assustosa hipotermia me fizeram voltar pra casa, onde minha mãe
me deu a notícia:
– Portador do sertão acaba de passar por aqui dizendo que Seu Lindolfo
morreu.
Tempos depois, versos de Shakespeare me levariam a associar aquele
momento a um presságio: Há mais mistérios entre o céu e a terra do que
sonha nossa vã filosofia.

O MEU “TIO” ENCICLOPÉDICO...


Luís da Câmara Cascudo (1898 -1986) foi historiador, sociólogo,
musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor,
advogado e jornalista. Sem jamais deixar a sua muito amada cidade do
Natal conheceu a fama ainda em vida. Além de todas as principais
honrarias brasileiras ele recebeu a Grande Cruz da Ordem dos Cisneros de
Espanha, de São Gregório Magno do Vaticano, oficial da Ordem da Coroa
da Itália; da Ordem das Artes e Letras da França, da Real Academia
Espanhola, da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Não dá pra esquecer. Era desse imenso patrimônio cultural que eu bebia até
altas horas, quando ele visitava o filho Fernando Luís, que dividia comigo
o seu apartamento de solteiro no “Cantinho do Céu” da Rua da Aurora.
Certa noite tentei expressar-lhe o orgulho que sua biografia dava,
principalmente, aos nordestinos. Mas parei de súbito, engasgado de
emoção. Aí ele me sondou com aqueles olhos verdes, cofiou a alva
cabeleira leonina e com um sorriso irresistível me encorajou:
- Continue, meu filho. É mentira, mas é gostoso...

MEU PROFESSOR SEM ARRODEIO...


O cearense Jader de Carvalho foi advogado brilhante, romancista admirado,
professor de renome, socialista convicto e, principalmente, jornalista
temido.
v

No seu Diário do Povo ele acolhia jovens estagiários sonhadores, paladinos


da justiça igualitária, críticos de uma sociedade elitista e opressora. Jader,
por sua vez, não tinha papas na língua. Como de novo não teve ao
desiludir-se do milagre operacional de uma avançada linotipo, retida na
Alfândega por falta de pagamento do imposto de importação. Procurou,
pessoalmente, o diretor Luiz Sucupira, pediu, implorou, virou, mexeu e
nada. Obstinado, requereu isenção mediante amplo arrazoado que virou
processo de tramitação complicada, argumentos pra lá, negativas pra cá.
Enfim, a coisa não atou nem desatou e, de paciência esgotada, ele escreveu
na primeira página do seu jornal:
Conforme podem verificar nossos fieis leitores, continuamos pobres de
aspecto gráfico, a despeito de repetidas tentativas de superação dessa
deficiência. Na verdade, de tudo fizemos para superá-la mas, infelizmente,
nadamos para morrer na praia. Da Alfândega não houve jeito de sair até
agora, nossa linotipo lá retida por causa da insensibilidade do seu diretor,
um tal de Luiz Cususpira…

“SAIO DA VIDA PARA ENTRAR NA NA HISTÓRIA”


Na manhã de 24 de agosto de 1954 eu estava na metade do meu tempo de
duas horas contínuas de locução na Ceará Rádio Clube quando Hermano
Justa, chefe de jornalismo, entregou-me, para leitura imediata, folha
arrancada do telex. Nela estava a carta testamento do presidente Getúlio
Vargas, cujo início ainda há quem repita de memória:
Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se
desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem,
caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz
e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como
sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Embora a minha indiferença política de então, custou-me conter o choro,
enquanto até os mais ferrenhos opositores de Vargas de repente se
debulhavam em lágrimas Brasil afora...

CORREIO DASAUDADE (4)

BOA-NOITE, AMANHÃ TEM MÁI E MIÓ...


Disse, um dia, o renomado cineasta e pintor norte-americano Andy Warhol,
conhecido pelos coloridos retratos da arrebatadora Marilyn Monroe e do
eletrizante Elvis Presley:
- No futuro, todos terão seus quinze minutos de fama.
O singelo e precoce “Seu” Chico, que morreu sem nada saber de Andy
Warhol, antecipou-se ao seu próprio futuro celebrizando-se numa
v

imponderável e única atuação na Rádio Clube de Pernambuco, sua


emissora de origem.
Nesse então, o tempo regular de operação radiofônica era das seis da
manhã à meia-noite, quando o chamado “locutor da hora” anunciava uma
costumeira despedida. Certa noite, porém, por causa do inexplicável
sumiço do locutor, que por mais procurado, ninguém conseguia encontrar,
“Seu” Chico abriu a porta do estúdio, pegou o microfone e detonou:

- Amigos ouvinte da Raido Crube, por hoje é só. Muitcho obrigado, boa-
noite, amanhã tem mái e mió...

Conheci “Seu” Chico duas décadas depois, trabalhando sentado à porta do


meu gabinete na Rádio Tamandaré, recém-saída do antigo Cine Politeama,
na Boa Vista, para o lendário Palácio do Rádio Oscar Moreira Pinto. Sua
função era introduzir quem me procurava.
Um dia, porém, o superintendente local das Emissoras e Diários
Associados, Fernando Chateaubriand, me alcançou sem ser notado por seu
Chico, que dormitava. Fernando registrou-lhe a negligência e cobrou-me
disciplina:
– Onde já se viu dormir no trabalho? Advirta-o. Na segunda dormida
suspenda-o e na terceira, demita-o.
– Mas seu Chico vem dos começos da Rádio Clube, tem uns quarenta anos
de casa, respondi. Foi aí que, de primeira, Fernando me devolveu:
– Sendo assim, pisemos devagar pra não acordar o homem...

MAMHÃS DE “SABALOPES”…
O saudoso escritor Benito Araújo abriu-me as portas da chamada
Academia Sabalopes, na Rua Artur Muniz, em Boa Viagem. Ali se
reuniam, nas manhãs de sábado sem atividade em outra “coirmã”,
escritores e poetas admiradores do gênio de Waldemar Lopes. É dele este
Soneto para a doce Bem-Amada, datado de fevereiro de 2001:

Para louvar-te, falam-me de ti


na graça matinal da infância ainda
a colher rosa, cravo e bogari
e ornar a cabecinha loira e linda.

É ida a infância, mas o que não finda


- pois meiguice e doçura, agora e aqui –
é a beleza interior com que te brinda,
- madrasta embora, a vida – e te sorri.

Sursum corda! A ventura inalcançada


v

há de brilhar no mágico devir


do que já na memória recomponho.

O amor nos basta, ó doce Bem-Amada,


alta estrela longínqua a refulgir
no vazio do ocaso de meu sonho.

Extremamente sensível às contradições humanas Waldemar indagou-nos,


um dia, o que delas pensávamos. De minha parte tentei responder por
meio deste soneto Homo Sapiens? a ele dedicado:

Bardo Mestre especula, consternado,


salvação para humanos tristemente
reduzidos a povo malfadado
posto que mera gênese demente.

Aprendiz, eu rebusco um postulado


que ao Grão Bardo contente, ideia assente
mudadora de cada tresmalhado
em irmão solidário e transparente

sendo a terra um oásis amoroso


onde reine total entendimento
da premência de um todo harmonioso.

– Malogrado será tão nobre intento


diz o Mestre, inda mais dessaboroso,
pois o Mal fez das gentes instrumento.

CORREIO DA SAUDADE (5)

SEGREGADO PELA GULA...


Na noite daquele sábado eu aguardava minha participação na primeira
comunhão coletiva do dia seguinte de manhã. Tudo fora caprichosamente
preparado: vestes brancas, crucifixo e vela decorada. Nisso chega de
viagem meu pai com um saco de bombons em forma de soldadinhos de
várias cores. Vendo mamãe meu olho comprido disse logo:
- Você está de jejum pra não misturar Jesus com nenhum outro alimento.
Portanto, bombom só amanhã, depois da igreja.
v

Foi aí que a paixão por doces me ajudou a armar o plano: logo que eles
dormissem eu usaria uma cadeira para alcançar aqueles soldadinhos por ela
postos no alto de um armário.
Pensado e feito. Porém mal comecei, fui flagrado a comê-los.
Meu pecado capital condenou-me a comungar sozinho no domingo
seguinte...

DEU “BRANCO” NO COROINHA...


Ver-me ajudando missa era um sonho de minha mãe, católica fervorosa.
Tanto ela fez que acabou conseguindo do vigário o gozo desse privilégio. A
habilitação para tanto consistia, principalmente, na memorização das falas
do celebrante e do coroinha, nesse tempo obrigatoriamente enunciadas em
latim:

Padre : Introibo ad altare Dei.


Coroinha: Ad Deum qui lætíficat juventutem meam.
Padre : Adjutorium nostrum in nomine Domini.
Coroinha: Qui fecit cælum et terram.
Padre: Confitebor tibi in cithara Deus, Deus meus: quare tristis es anima
mea, et quare conturbas me?
Coroinha: Spera in Deo, quoniam adhuc confitebor illi: salutare vultus
mei, et Deus meus.

Apenas decorar não me satisfez, porém. Eu quis saber o que significavam


aquelas frases:

- Não precisa. Apenas decore o que deve responder, disse o padre.

Não decorei direito e a congregação é que respondeu no meu lugar.


Malogrei, portanto, logo na estreia. Foi o primeiro “branco” da minha vida
de futuro memorizador profissional...

O MALOGRO SEREPETE...
Igualmente não posso dizer que tenha me saído bem, mesmo em ajudâncias
mais leves. Num fim de tarde, era hora da Bênção do Santíssimo
Sacramento e, para ministrá-la, o padre acabara de tirar do sacrário a hóstia
consagrada posta no centro de um impressionante ostensório dourado. Mas
o padre não gostou do meu jeito de balançar o turíbulo, barulhento por
causa da tampa mal colocada por mim sobre a superfície de brasas e
incenso em combustão:
– Balance isso direito, seu idiota.

A VÍBORA DO RESSENTIMENTO...
v

Ainda despreparado para o exercício da autocrítica deixei que os episódios


acima repercutissem livremente na minha vida de jovem em formação. De
uma hora para outra passei a dizer-me ateu, inclusive na presença de
terceiros. Isso motivou, do meu dileto colega Manuel Lima Soares, esta
observação:
– Você não é ateu. É apenas um ignorante religioso.
Embora momentaneamente ofendido, aprendi com o tempo a dar razão a
Néo, como era tratado na intimidade aquele brilhante líder estudantil
cearense, hoje nome de rua importante de Fortaleza. Mais que ignorância
religiosa, aquilo também era ressentimento, no dizer do escritor inglês
Oscar Wilde “essa víbora que alimentamos no coração com o nosso próprio
sangue”...

LIÇÃO DE REVERÊNCIA HUMANA...


Meus pais moraram numa propriedade à margem de estrada para Canindé,
cidade cearense onde São Francisco das Chagas é fervorosamente cultuado.
Já nos anos 1940 os prodígios do santo compunham enorme exposição de
variada forma de ex-votos: esculpidas em madeira ou cera, figuras
representativas de partes do corpo humano eram levadas à igreja, quadros,
pinturas, inscrições, em testemunho de agradecimento pelo alcance, boca a
boca propagado, de inumeráveis graças divinas.
O renome de São Francisco das Chagas de Canindé igualmente atraía
romeiros devotos do padre cearense Cícero Romão Batista, o polêmico
“taumaturgo do Joaseiro”. Em certo começo de noite eu ainda brincava no
terreiro de casa quando minha mãe, tão singela quanto solidária, me
recomendou:
– Se algum romeiro lhe perguntar se, aqui em casa, cremos nos milagres
do padre Cícero do Joaseiro, diga que sim. Porque se você disser que não o
romeiro, mesmo com sede, fome e cansaço vai continuar caminhando noite
adentro com a família dele...

CORREIO DA SAUDADE (6)

AS ASAS CORTADAS DA IMAGINAÇÃO...


Num domingo de manhã vi Hemetério - molho de chaves à mão - lançar-se,
o mais depressa que lhe permitiam as pernas, na travessia da praça da igreja
matriz de São Francisco de Paula. Privara-se ele da bênção final da Santa
Missa a fim de que, principalmente as paroquianas mais jovens pudessem
encontrar logo ali e já de portas abertas, sua loja de tecidos. É que o
celebrante fizera veemente sermão contra decotes e mangas complacentes
com certos homens que se comprazem em se imaginar manuseando a
firmeza seios e a maciez de excitantes axilas. Segundo o pregador, a bem
v

da pudicícia, as moças deAratuba deviam manter, o mais possível invisíveis


essas partes de seus corpos. Enfim, longe de olhares cobiçosos longe de
desfrutes, ainda que imaginados…
Vendendo o com que fechar decotes e encompridar mangas e até fazer
novos vestidos Hemetério tirou o melhor proveito. Ao contrário do
domingo anterior, quando o assunto do padre foi um baile onde os pares
dançaram demasiadamente agarrados, “quase sexo contra sexo” ...

“ATIRE A PRIMEIRA PEDRA”...


Minha chegada com atraso poupou-me de participar, com minha turma de
Aratuba da expulsão, a pedradas, de um pastor evangélico. Apenas pude
vê-lo em fuga para o vizinho município de Mulungu. Montado num
jumentinho o religioso se voltava de vez em quando para a meninada
dirigindo-lhe palavras de perdão por ela não saber o que fazia. Mas a
meninada pensava que sabia, sim. Tanto assim que me informou na hora:

- Apedreja também, que o padre mandou!

Desde então tenho sempre em mente essas duas lições preciosas: o pedido
de Jesus ao Pai, de perdão aos que O crucificavam, e o mandamento do
amor, por Ele considerado o mais importante dos dez mandamentos: Amai-
vos uns aos outros, como a vós mesmos.
Feliz da pessoa que, mesmo “sem pecado”, não se atreve a atirar a
primeira pedra...

“NÃO FURTRÁS”...
Enquanto eu era submetido a uma delicada angioplastia no bloco cirúrgico
do Hospital Esperança, na capela do oitavo andar Glória, minha mulher,
orava pelo bom êxito do procedimento.
Alguns após deixar a capela na reconfortante expectativa de que Deus
guiasse as mãos dos que me cuidavam, deu pela falta dos nossos celulares,
por ela esquecidos no mesmo banco onde estivera sentada ao lado de duas
companheiras de oração, também igualmente sumidas.
Não se é pecador porque peca, e sim porque é pecador. Portanto,
perdoemos, amemos e oremos inclusive por quem, ainda que numa capela,
tem a mente fechada até mesmo para um só mandamento divino, o oitavo...

UMA DÍVIDA IMPAGÁVEL...


Anualmente o saudoso publicitário Vicente Silva realizava a FECIN – Feira
do Comércio e da Indústria, montada no Parque da Jaqueira. Numa delas
convidou-me para apresentar um momento ecumênico do qual, entre outros
religiosos, participou o jovem pastor paulista Paulo Ruiz Garcia, recém-
chegado ao Recife. De retorno a casa comentei com Glória:
v

– Acabo de conhecer um pastor evangélico muito simpático. A igreja dele


é na Rua Carneiro Vilela, no Espinheiro. Somos convidados dele pra uma
passada por lá.
O assunto foi esquecido até que, para não romper com o meu saudoso
colega Alexandrino Rocha e sua Edileusa acabei comparecendo a um
Encontro de Casais com Cristo, realizado ainda no Seminário Marista de
Apipucos. Eu e Alexandrino éramos jornalistas e amigos desde o nosso
tempo de solteiros.
Era 1983 e desde o começo do ano ele e a mulher, Edileusa, vinham
insistindo comigo e Glória. De repente chegou outubro e já sem mais
desculpas a inventar tivemos que ir. O diretor espiritual era justamente
aquele pastor da FECIN que eu, imediatamente, reconheci. Esse Encontro
foi a junção de dois fenômenos: o de nossa renascença enquanto casal de
seres humanos e o de nascença de um relacionamento que hoje beira os
quarenta anos. A cada dia eu e Glória mais nos sentimos em débito
impagável com nossos saudosos introdutores Vicente Silva e Alexandrino
(Edileuza) Rocha.
Quanto ao atual Arcebispo Primaz Paulo Ruiz Garcia e sua Márcia a
história é outra...

CORREIO DA SAUDADE (7)


O saudoso escritor e jornalista buiquense Cyl Gallindo (1935–2013), foi
membro das academias de Letras de Brasília, Letras e Artes do Nordeste
Brasileiro e Pernambucana Letras, que o premiou - em l958 - por seu livro
Um morto coberto de razão, ficção onde se inclui o conto Milagre no
jardim da Casa-Grande. Parte do texto deste conto impressionou Óscar
Ribas, no dizer de Luiz da Câmara Cascudo "a maior expressão intelectual
de Angola, senão da África". Ribas transcreveu um trecho de Cyl num
trabalho sobre o perdão pedido pelo Papa João Paulo II ao Continente
Africano. "Gostei bastante da descrição dos escravos, uns ainda na vil
servidão, outros já alforriados. Uma beleza!", diz Óscar Ribas.
Minha homenagem ao querido Cyl com esta versificação do seu conto.

A turismo se vai rumo a Olinda


um casal paulistano. No estrangeiro
nada surpreendera os dois ainda
e, por isso, o Nordeste brasileiro
é por eles postado na berlinda
na esperança de impacto verdadeiro
não sentido em Europa e no Oriente,
algo forte, impressivo, diferente.
v

Hospedada no mais colonial


e maior casarão da redondeza,
monumento de ar senhorial,
vê-se ela no meio da riqueza
e verdor de um sem-fim canavial
donde avista, emergindo com destreza
das touceiras, um negro esplendoroso,
corpo esguio, linheiro e musculoso.

Tal visão a faz quase inanimada


incapaz de chamar por seu consorte
a dormir numa rede avarandada;
jamais vira em alguém olhar tão forte
nem mão destra com tão brilhante espada
e avançando, garboso no seu porte,
faz o aço virar buquê do mato
gentilmente ofertado com recato

e promessa de volta a qualquer hora;


ninguém crê nos detalhes da visagem
relatada a seguir pela senhora:
não existe exemplar na criadagem
de passado recente nem de agora
semelhante ao descrito; só miragem
explicita a impressão da visitante
suspeitosa de acesso delirante.

Remanescem, no entanto, exalações


evidentes no quarto de dormir
que sugerem (do negro?) evocações
(do buquê?), um perfume a compelir
a senhora, apesar das mangações
de terceiros, sem meios de o sentir
e de dar testemunho da presença
que “descrendo, afinal, tanta descrença

dá lugar a “certeza induvidosa”


quando o negro, ordenando -Vem comigo,
volta à cena com voz imperiosa
de quem ousa afrontar qualquer perigo;
é aí que a senhora, receosa,
obedece e vê, sob castigo
muitos negros ainda escravizados
v

em fazendas e engenhos maltratados.

Mas os vê também livres, venturosos,


em quilombos na mata construídos
onde ao lado de ofícios fadigosos
são suaves deveres exercidos
por negraços alegres, prazerosos:
rituais aos seus santos mais queridos
associam de idosos a crianças,
de singelos a nobres lideranças.

Nos instantes finais da caminhada,


para trás quer o negro que a senhora
volte os olhos pra ver, apavorada,
a comuna viçosa de ainda agora
por incêndio terrível devorada:
multidão de famintos sangra e chora,
paga o preço – diz ele – da livrança
mentirosa da branca liderança.

De regresso a mulher fica silente


até novo chamado do parceiro
dessa vez pra jornada diferente;
ao invés do programa rotineiro
de explorar o passado unicamente,
o futuro faz parte do roteiro:
sobrevoam cidades sitiadas,
de fatais explosões ameaçadas,

miseráveis em fuga sem destino


da mortífera máquina do mal,
opressora do grande ao pequenino;
possuídos de fúria bestial
poderosos em franco desatino
sentenciam, soberbos, a total
submissão da pessoa por decreto
aos seus pés esmagada feito inseto.

Torna ela no instante em que o marido


dialoga com médico a respeito
do esquisito fenômeno ocorrido
com a esposa, incolor daquele jeito,
feito alguém de repente acometido
v

de neural convulsão, jogada ao leito,


sem vontade pra mais: adormecer
e só isso, dormir até morrer.

Mas no dia seguinte, restaurada,


ela em culto umbandista buscaria
a resposta querida e não achada:
numa noite emprenhada de magia
vê seu negro de novo e, arrebatada,
o acompanha ofegante de alegria
mar adentro; bom tempo os dois submersos
de repente se somem pós emersos...

De manhã o marido, a criadagem,


a polícia civil e uns curiosos
colaboram com ampla reportagem
de jornal, onde ramos perfumosos
de roseiras de culto em homenagem
a Ogum são achados, numerosos,
sobre o corpo encharcado de consorte
que nas águas de Olinda encontrou morte...

CORREIO DA SAUDADE (8)

PRESENÇA DE ESPÍRITO...
O locutor paulistano Luiz Noriega, meu companheiro na Rádio Tamandaré
do antigo Cine Politeama, juntava à sua excelente qualificação profissional
o inegável dom da presença de espírito. Assisti, em 1951, a uma
demonstração disso durante show noturno de cantores e cantoras que, até o
meio dia deram ao redator do programa seus respectivos números
musicais. Tudo bem nos ensaios de logo mais à tardinha com orquestra e
conjunto regional, à exceção da cantora cearense Tânia Maria que, sem o
aviso de praxe, trocou sua música. Foi aí que Noriega, na hora do show, de
roteiro desatualizado na mão e sem saber da mudança anunciou:
– E agora, a nossa querida bonequinha Tânia Maria canta o samba “Faz que
vai”.
Assim que ela sinalizou não, Noriega emendou prontamente:
– Mas não vai...

PRODIGIOSA MEMÓRIA…
Não creio que haja outro perdedor de canetas igual a mim. Inclusive
trabalhando, muitas vezes tive de pedi-las emprestado. De repente, numa de
v

minhas coberturas televisivas do Baile Municipal, cadê caneta pra anotar os


nomes dos integrantes da Comissão Julgadora. Felizmente, entre eles
estava o saudoso compositor Capiba, que me socorreu. Antes, porém, de
completada a cobertura eu já estava de novo sem caneta e, no calor da festa
arranjei outra e esqueci Capiba, até porque achei pequeno o prejuízo dele
por se tratar de um brinde do Diário de Pernambuco. Não contei, porém,
com a extraordinária memória de Capiba. Daí por diante, enquanto ele
viveu, toda vez que nos encontrávamos, independentemente do lugar, ele
me cobrava com aquela sua prosódia característica:

- “Adê” minha “aneta”?

COISAS DAPROSÓDIA PORTUGUESA...


Na década de 1990 a Fundação Joaquim Nabuco irmanou a metrópole
portuguesa do Porto à cidade do Recife, no âmbito de um projeto cultural
denominado CumpliCidades. De dois em dois anos, recifenses e
portuenses se revezavam na amostragem de sua respectiva arte a povos
irmãos. Numa das temporadas portuenses fui ver, no teatro do Mercado
Eufrásio Barbosa, Sangue no pescoço do gato, peça do ator e diretor de
cinema alemão Rainer Verner Fassbinder. Abriu-se a cortina e, após
demorado silêncio entre dois atores em cena, um deles disse a primeira fala
da peça:
– Tua mãe é uma porca.
Foi tudo o que entendi, do começo ao fim do espetáculo. A partir da
resposta do outro ator, minha audição – despreparada para a prosódia
coloquial portuguesa – impediu-me a compreensão das falas seguintes.
Ora, tratando-se de obra onde nove personagens discutem,
acaloradamente, questões referentes ao entendimento e a razão entre seres
humanos, restou-me ir pra casa desconsolado com as minhas tentativas
frustradas de assimilação daquele texto.
Contado assim, isso pode parecer incrível, mas saí com a sensação de ser o
único estrangeiro naquela plateia...

OS DERRAMADOS NO CHÃO…
Nunca imaginei um dia ver tão de perto João Cabral de Melo Neto. Mal
acreditei quando pude entrevistá-lo pela Fundação Joaquim Nabuco, no
ensejo de uma de suas visitas ao Recife. Entre outras coisas, perguntei-lhe a
certa altura da conversa:

– Nossa vida é uma eterna volta às próprias origens?

– Pode ser, respondeu ele. O idoso tem muito mais passado do que futuro,
“pedeu”?
v

Herdamos de João Cabral um portentoso legado poético do qual realçamos


aqui estes versos inseridos na obra Nossa Senhora da Luz:

Nenhum dos mortos daqui


vem vestido de caixão.
Portanto eles não se enterram
são derramados no chão
vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva
trazem suas próprias moscas
o chão lhes vai como luva.

Faz tempo que penso nisso para o meu próprio funeral. Porque assim vi,
menino, o enterro dos pobres da minha cidadezinha natal. Em quê, por
acaso, eu sou menos pobre do que eles? Que razões eu posso ter para, na
última viagem, pretender outro invólucro em vez de uma rede avarandada
de onde me derramem no chão? Espero em Deus o despojamento
necessário para guardar esta fidelidade às origens do meu povo...

CORREIO DA SAUDADE (9)

QUAL O PESO DE UM GATO?

Depende do próprio gato, da balança que o pese ou da consciência do seu


dono. Na condição de possuidor ainda hoje em dificuldade com esta
questão, tentarei explicá-la.
Preparatórias de primeira comunhão, minhas aulas de catecismo
naturalmente perpassaram os Dez Mandamentos. Justamente o de honrar
pai e mãe foi o que mais me sensibilizou, por já me parecer de minha fiel
observância, a partir dos pedidos diários de bênção que eu lhes fazia tanto
ao deitar quanto ao levantar. Nessas ocasiões contentava-me ouvi-los me
atenderem por meio de rogos a Deus por mim e era como se suas
intercessões se misturassem a sonidos vindos de objetos sacramentais,
toques de cálices dourados repletos de hóstias consagradas.
Vivia eu a idade da inocência. Estava, portanto, anos luz de distância da
chamada idade da razão, do discernimento entre o bem e o mal, do mais
rudimentar conhecimento de biologia, da admiração pela trágica
dramaturgia de Sófocles e seu rei grego Édipo, em conúbio carnal com a
própria mãe, Jocasta.
v

Daí o meu desmesurado transtorno ao flagrar meu gato de estimação nas


culminâncias do prazer carnal com a mãe. Educado à luz do cristianismo,
da ética e da moral condenatória das relações sexuais incestuosas, a
imoralidade e o pecado mortal daquele gato me foram sem perdão. Por isso
o condenei sumariamente à mais severa das punições: amarrei-o pelo
pescoço ao tronco de uma jurema branca do quintal de casa e dei início à
execução. Mas, à primeira paulada, ele rompeu a dentada o pedaço da linha
zero tirado do novelo da minha pipa.
Mas os dias dele estavam contados. Esperei, pacientemente, até conseguir
prendê-lo de novo na mesma árvore, dessa vez por um fio de arame. Tirei,
então, a prova dos sete fôlegos atribuídos aos gatos. Embora exaurido pela
resistência dele e pelo meu esforço para matá-lo, achei que valera a pena:
um pecado daquele não podia ficar impune.
Mas o tempo, este implacável senhor dos saberes, trouxe-me um crescente
remorso com o qual foi ficando, a cada dia, mais difícil conviver. Até que
um acaso deu-me o que, naquela hora, me pareceu a sonhada chance de
aliviar minha consciência. Era fim de tarde de um domingo chuvoso e frio
quando avistei, abandonado ao relento, um trêmulo gatinho ainda bebê. A
vulnerabilidade dele me comoveu a ponto de levá-lo para casa e, a partir
daí, cuidá-lo com todos recursos ao meu alcance, inclusive ida a
veterinário já na segunda-feira. Mesmo assim ele jamais teve o crescimento
esperado e, em certo dia, notei-o ferido: eram marcas de sangrentas
batalhas com ratos invasores do quintal de casa. Querendo livrá-lo daquelas
violentas mordidas chamei o serviço público de desratização. A
recomendação dos técnicos foi prender o bichano até a retirada do veneno
1080 na manhã seguinte. Infelizmente, porém, essa recomendação foi
negligenciada por uma serviçal que só se deu conta do que acontecia
quando nada mais era possível fazer, além de vê-lo se arrastar por uns 30
metros para morrer no lugar sombreado e ameno onde tanto gostava de
ficar.

TAPUME TAMBÉM ENSINA…


Ainda hoje guardo a lição aprendida de um longo tapume há tempos
construído à margem da Estrada da Batalha para esconder, principalmente
dos magnatas visitantes do Distrito Industrial do Cabo, o lixão onde gente
pobre disputava resíduos alimentícios com ratos, urubus e outros
rapinantes.
Nossa miséria social sempre foi negada pela cegueira e pela hipocrisia de
pessoas capazes de se dizerem surpresas com a violência de hoje em dia...
Na verdade essa violência foi anunciada há décadas por um presidiário
paulista de nome Marcos Willians Herbas Camacho, natural de Osasco.
Órfão aos nove anos de idade ele se iniciou no crime furtando pedestres e
cheirando cola na Praça da Sé, centro da cidade de São Paulo. A fusão do
v

seu prenome Marcos com o tóxico em que se viciou rendeu-lhe o apelido


de Marcola. É dele este apavorante diagnóstico social:
- “Depois de mantidas na invisibilidade durante tanto tempo, agora é tarde
pra cuidar da miséria e da violência no Brasil”.

CORREIO DA SAUDADE (10)

“AS COISAS FINDAS, MUITO MAIS QUE LINDAS, FICARÃO”.


É da jornalista Graça Gouveia um perfil parlamentar do saudoso José
Antônio Barreto Guimarães (1923-1997). É o “retrato de um homem
dotado de inteligência, espírito público e amor aos humildes”. Aí se lê,
inclusive, sobre a paixão pela cidade de Olinda, de tal modo associada a
Barreto que, ele mesmo, comparou-se a “um coqueiro à beira-mar
plantado” na histórica Marim dos Caetés, homem-coqueiro pelo elevado
porte físico, moral e intelectual de ilustre pernambucano. Segundo o
escritor e poeta Olímpio Bonald – seu aluno de Matemática – “a tarefa de
levar notícias de Olinda aos jornais recifenses sedimentou a vocação
natural de Barreto Guimarães para a vida pública”.
Enquanto prefeito olindense Barreto dedicou-se, principalmente, à
construção de escolinhas para estudantes pobres. Eleito deputado estadual
lutou pela salvação de Olinda dos avanços do mar, levantou a bandeira
pernambucana de combate à discriminação do Nordeste pelos Governos da
União, e promoveu o memorável Encontro de Salgueiro, embrião da
Sudene.
Secretário de Educação do governador Paulo Guerra e vice-governador de
Eraldo Gueiros, Barreto Guimarães ideou dois importantes complexos: o
Viário de Salgadinho e o Industrial Portuário de Suape. Ao seu ímpeto
realizador de homem publico se aliava a sensibilidade poética que o fazia
citar, entre outros, e com muito gosto, o poeta Carlos Drummond de
Andrade:
Amar o perdido- deixa confundido - este coração.
Nada pode o olvido - contra o sem sentido - apelo do Não.
As coisas tangíveis - tornam-se insensíveis - `a palma da mão.
As coisas findas - muito mais que lindas - estas ficarão.
Alegria de viver e absoluto respeito ao patrimônio do povo eram marcas de
Barreto: algumas vezes sem mandato eletivo ou cargo em comissão ele
disse não a governadores que pretenderam lhe assegurar ocupação bem
remunerada, conforme testemunho de Roberto Magalhães, prefaciador do
perfil:
v

- Quando fui Governador, coloquei-o na Companhia Editora de


Pernambuco e depois no Tribunal de Contas, mas sem consultá-lo, para não
ouvir dele o que outros governadores tinham ouvido: a recusa.
O próprio Barreto relembrou, em sessão do Rotary Clube de Olinda, seu
tempo de aluno do antigo Ginásio Pernambucano. Certa manhã ele foi
proibido de entrar por causa da farda que vestia, cerzida na altura dos
joelhos e dos cotovelos, aquela única farda, lavada aos sábados e passada
aos domingos pela própria mãe, dona Maria de Lourdes, a fim de que o
filho amado pudesse, na segunda-feira, voltar às aulas de vestes limpas. A
humilhação ao estudante pobre transmudou-se em exaltação ao educador
que tanto fez pelo ensino, principalmente em Olinda.
Durante muitos anos estive por perto de Barreto Guimarães. Habitei, no
Bairro Novo, o mesmo pequeno condomínio onde também moravam seus
genitores, dona Maria de Lourdes e seu Oswaldo, em amorável convívio
com sua prole. Também tive o privilégio de contracenar na TV com o seu
saudoso tio Barreto Júnior, legendário comediante pernambucano, indelével
na minha admiração e na minha saudade. Até essa indireta proximidade me
motivava a sempre congratulá-lo por suas vitoriosas passagens pela vida
pública: Prefeito de Olinda, Vice Governador,, Deputado Estadual,
Secretário do Governo de Pernambuco, Secretário Estadual de Educação,
Ministro do Tribunal de Contas.
“Homem acima de partidos, um servidor da causa pública” , no dizer da ex-
prefeita Jacilda Urquisa, Barreto Guimarães foi nomeado Vice pelo
governador Eraldo Gueiros, apesar da tentativa de veto do presidente
Emílio Garrastazú Médici.
Encantou-se aos 74 anos. Se mais tempo de vida ele tivesse, mais bem faria
a Pernambuco e ao Brasil.
Dizer mais não é preciso.

CORREIO DA SAUDADE (11)

OS VERMELHOS ALEMÃES…
Na primeira metade da década de 1940, assim como argentinos seguiam
seu presidente Juan Domingo Perón, havia brasileiros que acompanhavam
o ditador gaúcho Getúlio Vargas em mal disfarçada simpatia pelos
alemães. Posso, ainda hoje, ouvir o farmacêutico português José Dias
comentar com o telegrafista Braga o último boletim do “Repórter Esso”
sobre a marcha da Segunda Guerra, já quase no final: Amplia-se a vitória
dos vermelhos, em luta heroica dentro da cidade de Berlim.

– Ouviu, seu Braga?


- Ouvi, seu Zé Dias. Os alemães estão vencendo.
- Não, seu Braga. Esses vermelhos aí são os russos.
v

– Não, seu Zé Dias. Alemães é que são vermelhos, de tão corados...

DESENGANO E DESABAFO...
No escritório regional de Lundgren Tecidos S/A, em Fortaleza, meu birô
defrontava o de Josué, ex servidor da Marinha do Brasil. De vez em
quando ele chegava numa ressaca devastadora e, à espera da hora de
entrada, enaltecia o milagroso efeito restaurador de um copo de leite
gelado. Costumava tomá-lo numa lanchonete da Praça dos Mártires, o
popular Passeio Público, situado entre o nosso local de trabalho e o forte
que deu nome à capital. Certa manhã, depois de mais uma noitada de pinga,
Josué foi comigo às raias da eloquência concluída com esta pergunta:
– Albuquerque, tens 50 centavos aí?
No auge do constrangido sinalizei que não, e ele:
– Eu sabia. De onde não se espera é que não sai mesmo...

UM TRADUTOR LAUREADO
O saudoso médico e acadêmico cabense Milton Felipe de Albuquerque
Lins, foi contista e tradutor de importantes autores franceses e ingleses.
Teve, em vida, o reconhecimento da Academia Brasileira de Letras que o
galardoou com o Prêmio Odorico Mendes 2010 de melhor tradutor
brasileiro. Nessa ocasião pude homenageá-lo com estes versos:

Milton Lins é na alegria


que o tenho por tradutor
da francesa poesia
bem-vindo demolidor
que a barreira põe por terra
de idioma impeditivo
e assim Rimbaud me descerra
e um Chenier distintivo.

No conto ainda mais brilha:


vide A Última Gravação
trabalho em que compartilha
a sobrante inspiração
de quem é deveras craque
da prosa mais envolvente
n'Os Tercetos de Bilac
e Tal como Antigamente...

“NUNCA TANTOS SOFRERAM POR TÃO POUCOS”


v

Este foi o título de capa publicado pelo jornal carioca “ A Noite” para
registrar o sem-fim de choradeira que seria o chamado Maracanaço, ainda
hoje considerado um dos maiores reveses da história do futebol  brasileiro.
Pior do que aqueles sete gols da Alemanha, em 8 de julho de 2014 no
Estádio Mineirão.
Ligado na Rádio Tupy do Rio o adolescente Ernani Rosado, natalense de
14 anos, me ajudava a atualizar os ouvintes da Rádio Iracema de Fortaleza
sobre o andamento da partida. A certa altura o mesmo Ary Barroso da
“Aquarela do Brasil” gritou Gol... do Uruguai!
Sem o som da famosa gaitinha que Ary costumava soprar, houve um
silêncio que, virtualmente, durou a eternidade. Enfim veio a indesejada
confirmação do narrador: Uruguaios, campeões do mundo!
Ernani caiu num pranto convulso que me pareceu sem fim. Naquela hora
imaginei o que seria dele se continuasse chorando daquele jeito pelo resto
da vida.
A reação dele me marcou de tal modo que não tenho time. Sou pé-atrás
até com os da Seleção Nacional...

CORREIO DA SAUDADE (12)

A MAESTRIA EM GENTILEZA DE UM MAESTRO


Daquele dia 24 de dezembro de 1955 guardo a melhor lembrança, graças ao
saudoso maestro Nelson Ferreira. Incomparável em mestria musical e
gentileza, ele veio a mim e falou:
– Posso imaginar como você se sente neste momento natalino longe da sua
terra e dos seus entes queridos. Não esteja sozinho. Eu e Aurora
gostaríamos de tê-lo em casa, com nossa família e amigos.
Era em Santo Amaro, na Rua dos Palmares, a casa de Nelson, músico
vinculado por laços de parentesco e arte à família Oliveira, do Teatro de
Amadores de Pernambuco, grupo meu conhecido desde festival de teatro na
Cidade do Natal. Foi um alegrão estar, além dos anfitriões, com todos
daquela família de atores: Valter, Alfredo, Valdemar de Oliveira e sua
Dinah, o filho Reinaldo e sua então sorridente noiva Janice Coutinho.
Aquela longínqua noite de Natal continua no palco da minha vida, montado
para uma interminável peça sobre a qual a cortina ainda não se fechou...
Quanto a Nelson Ferreira, apraz-me tê-lo inscrito na minha saudade e no
meu livro “Viva o gênio mulato Brasileiro nessas oitavas em decassílabos:

“Bom Moreno” era, assim, Nelson chamado


por amigos e fãs inumeráveis
que aplaudiam seu jeito inusitado
de tocar improvisos formidáveis
v

quando era o cinema inda filmado


sem os sons desde sempre indispensáveis:
ao piano, Ferreira deslumbrava
a plateia que então o consagrava.

Ao seu gênio mulato se curvaram


inclusive governos nacionais
que honrarias diversas dispensaram
aos seus méritos, tantos, musicais;
foliões igualmente o celebraram
pelas evocações monumentais
campeã - uma delas - nacional
de um senhor brasileiro carnaval.

“PORCARIA” DE JOHN STEINBECK


A Neusa, uma jovem bonitinha e bem feita perguntei, como costumavam
fazer em Fortaleza, os rapazes de 1949:
– Posso acompanhá-la?
Ela morava a pouca distância da Praça do Ferreira, lugar da minha
abordagem, e de onde seguimos a pé até a casa dela.
Assim começou namoro que, de repente, estava com uns dois anos quando
a levei ao cinema.
O filme era A Pérola, adaptação feita pelo célebre realizador
mexicano Emilio Fernández da novela homônima de John Steinbeck.
A Pérola tem como personagens principais Kino, um índio mexicano, sua
esposa Juana, seu filho Coyotito e o povo de um vilarejo. É uma
inesquecível parábola poética sobre as grandezas e as misérias do mundo
em que vivemos, a história comovente da perda de uma enorme pérola e do
ganho de uma família solidária
O filme foi, para mim, 77 minutos de deslumbramento com a inventiva de
Steinbeck, a direção de Emilio Fernández e a fotografia de Gabriel
Figueroa, dono de uma assinatura visual prodigiosa. Saí do cinema em
estado de graça, infelizmente quebrada por esta decepção: Neusa,
visivelmente desgostosa, encarou-me de rosto fechado e disparou:
- Você sabe muito bem que eu só gosto de filme de amor. Por favor, venha
sozinho ver suas porcarias...
Sem dizer palavra fui levá-la em casa pensando naquela porcaria de um dos
maiores escritores estadunidenses de todos os tempos, ao lado de Ernest
Hemingway e William Faulkner.
Era l951 e, hvia 11 anos, Steinbeck ganhara, entre outros, o Prêmio
Pulitzer de Ficção.  
v

Já deu pra ver que despedi-me de Neusa na porta dela e, sem explicação,
nunca mais voltei lá...

PERFECCIONISMO, NÃO; CARISMA, SIM!


O versátil cearense Irapuan Lima teve carreira brilhante na Rádio Iracema:
empresava artistas, era publicitário, locutor comercial e animador de
auditório e de programas ao jeito do “velho guerreiro” Abelardo Barbosa.
Levou esse jeito tão a sério que acabou se autodenominando “O Chacrinha
do Norte”, alcunha muito bem aceita pelo seu público fiel e numeroso. Ele
brilhava também na animação de bailes radiofônicos: três horas seguidas
de música dançante desfrutadas por familiares, amigos e convidados dos
donos da casa.
Irapuan também era capaz de improvisar saídas de situações demandantes
de presença de espíritoe. Foi o caso da troca de lado de um velho e pesado
acetato de 78 rotações por minuto, no lado B “Ave Maria” e no lado A
“Ondas do Danúbio”, fundo musical do quadro Momento Social, onde
Irapuan cumprimentava os aniversariantes do dia. Assim que o operador de
som entrou erradamente com a “Ave Maria”, Irapuan nem pestanejou:

- O Armazém Geral, patrocinador deste Momento Social, acaba de receber


grande sortimento das famosas baterias de alumínio Ave Maria.

E foi em frente, dando tempo para a correção do erro. Entretanto, não se


saiu tão bem quando, estando a cidade de Fortaleza em grande comoção,
Irapuan improvisou esta notícia de última hora:
- De parabéns as famílias enlutadas pela queda do avião da FAB: até que
enfim todos os corpos foram localizados.
Era o seu jeito de ser. O perfeccionismo não pode ser pré-requisito de um
comunicador, e sim o carisma, que tinha Irapuan, até de sobra. O Ceará
inteiro o amava. E ele esteve sempre de bem coma vida.
v

CORREIO DA SAUDADE (13)

MEDICINA SOCIAL ARTE, PROSA E POESIA...


Além de brilhar nas olindenses academias de Letras, Artes e Ciências. o
médico e escritor Jamesson Ângelo Ferreira Lima realizou, ao lado do
colega José Nivaldo, aprofundada pesquisa sobre a pelagra, enfermidade
incidente na região agreste de Pernambuco. Esse trabalho enriqueceu
grandemente o conteúdo multidisciplinar do livro de Josué de Castro,
Geografia da Fome, obra de repercussão mundial onde é particularmente
retratado o martírio das populações subalimentadas do Nordeste Brasileiro.
Já na Academia de Medicina de Pernambuco, Jamesson foi parceiro do
sanitarista e acadêmico Gilberto da Costa Carvalho em memoráveis
jornadas da medicina social – ambos engajados na Associação Mundial da
Luta contra a Fome.
Na vida literária propriamente dita os ensaios machadianos de Janesson
foram considerados muito importantes pelo psiquiatra Francis Batista da
Rocha: “Jamesson nos conduz pelos caminhos da loucura dos personagens
do grande romancista, numa jornada que lhe enaltece a capacidade de, por
meio da linguagem fenomenológica, apresentar seus elementos de ficção”.
A poesia de Jamesson também se reveste de inegável expressão:

Hoje não é dia de se estar aqui, deitado.


É dia de correr contra o vento
de olhar moças bonitas, de beber cerveja, de jogar bola.
Dia de sol, de amor, de azul
hoje não é dia de se morrer…

Encontrei Luzia de tantos anos


pálida e feia. Trazia no rosto a marca de todas as moléstias.
Ao vê-la seguir pensei: Luzia vai morrer.
Perguntei: - Aonde vais, Luzia?
E ela: -Vou à vida.

Tome estas pedras.


São gemas, as últimas
que guardei / e lhe dou.
São diamantes
originários de água de chuva
de lágrimas perdidas
ou encontradas em fins de tarde
em noites de insônia.
Guarde-as em local secreto.
v

São as últimas.
E esquecendo de onde foram escondidas
procure-as nos poentes
nas ondas do mar
no firmamento sem fim.

Com Jamesson Ferreira Lima tive ótima convivência a partir de quando


amigos comuns nos aproximaram. Desde então lhe abri as portas de casa -
e ele - também a porta do consultório para ouvir minhas queixas e, com
extrema competência, pedir-me a comprovação radiológica da sua suspeita
de uma deslizante hérnia de hiato que me punha mais sentado que deitado
pra dormir, quando podia ...

CORREIO DA SAUDADE (14)

SE NECESSÁRIO, MAIS QUE VÔE: FAÇA UM AVIÃO...


Minha secretária de Publicidade teve grave problema de saúde. Ao choque
do diagnóstico somaram-se várias aflições que, aos poucos, foram
atenuadas pela esperança num único cirurgião, então famoso entre as
mulheres portadoras de câncer de mama. Só faltava alcançar-lhe os
serviços, disputados por seguradas sem conta do INSS.

- Que custa tentar uma saída? – ela esperançou mais que perguntou.
v

Fiz-lhe companhia na primeira investida. No Hospital Getúlio Vargas o


espaço da recepção às necessitadas daquele tratamento era pequeno para
tantas, que, na ponta dos pés, disputavam a atenção das assoberbadas
recepcionistas. A certa altura, porém, notei que uma delas me olhava
fixamente por trás da tela protetora do balcão. A um sinal dela aproximei-
me curioso e, a seu pedido, expliquei o que fazia ali. Sua reação me
surpreendeu:
-- Pois fique descansado. Sua secretária terá tudo deste hospital, inclusive o
doutor Almir Couto. Sabe por quê? Há quarenta anos voamos no mesmo
avião. Grávida de oito meses eu não podia conter um filho de cinco anos
que, sem parar, incomodava passageiros e tripulantes com sua correria. Até
que, a certa altura, não sei como o senhor o aquietou, até chegarmos a São
Paulo.
De repente lembrei-me daquele menino. Ele era mesmo “virado”, e o jeito
foi dizer-lhe que estávamos todos voando e não apenas o avião, que
poderíamos voar juntos se ele sentasse ao meu lado e mais: que eu mais
que sabia voar, que eu sabia fazer um avião igual àquele em que todos ali
voavam... De tão arregalados que ficaram seus olhos vi que ele acreditava
em mim,pedi papel e lápis à aeromoça e assim pude entretê-lo até o fim do
trajeto...

FUGINDO DE LIMOEIRO...
Luís Guilherme Precht, meu outro companheiro no Cantinho do Céu,
apartamento de Fernando Luiz Cascudo, namorava a linda Lieselotte
Cornils, esta, feito Precht, descendente de alemães. Num certo fim de
semana ele foi atraído a Limoeiro, onde a namorada era recebida por
família amiga. Partiram os dois na sexta-feira e eu, também convidado, só
viajei no sábado ao meio-dia, por causa de participação em programa
matinal do cineasta Jota Soares, na Rádio Tamandaré.
Cheguei, pois, tardiamente em Limoeiro e estava com os namorados numa
lanchonete quando mocinha local começou a me olhar com insistência e
sinalizar para que eu me aproximasse dela. Tanto a gesticulação se repetiu
que me dispus a atendê-la.
- Sei quem é o senhor e imagino que acaba de chegar. Pois precisa saber
que, desde ontem seu amigo do jipe buzina sempre que passa pela casa de
um rapaz daqui, apaixonado por essa moça. Ele é da família importante e
tem gente de revolver engatilhado pra desforrar essa humilhação na bala.
Acho melhor vocês irem embora enquanto é tempo de sair vivo daqui...
Pra encurtar a história, quem buzinava não era ele, era ela. Desde então não
sei de ninguém que tenha escapado de um lugar mais depressa do que nós
três. O jipe quase voava...
v

CORREIO DASAUDADE (15)

”MAS... ESSA PARTE AÍ FOI LINDA!”


No meu recente Correio nº 13, usei a expressão “amigos comuns nos
aproximaram“ em vez da citação nominal do inefável Geraldo Casado -
justamente o introdutor do saudoso Jamesson Ferreira Lima na lista dos
nossos amigos. Eles dois eram amigos muito chegados e, por isso, desde
então Glória, minha mulher, não se conformou com a omissão. Agora
espero transformá-la numa “parte linda” desta espécie de retratação.

De prazerosa comunicação, aguda inteligência e refinado bom-gosto ,


Geraldo costumava aplaudir trechos que mais lhe agradavam das conversas
do nosso grupo com este elogioso aparte:
- Mas... essa parte aí foi linda!
Uma parte linda foi protagonizada por Geraldo Casado e sua Marta quando
nos atualizaram sobre o renomado cantor francês Henri Salvador, de quem
nos deram preciosos CDs. Inigualável a interpretação de “Dans mon ilê”,
cuja letra, longe de uma versão brasileira, vai traduzida livremente, sem
compromisso com a divisão melódica original:

É bom de verdade fruir minha ilha


lá nada fazemos, somente aquecemos
ao sol afagante e espreguiçamos
até esquecidos que existe amanhã.
Lá tudo é gostoso e silencioso
sob os edredons ou sombrosos coqueiros
apenas sonhamos, silentes, conosco.
E é minha ilha cheirosa a amor
ao, furtivamente, correr para mim
de braços macios e vestes sumárias.
Seus olhos rebrilham, cabelos ao vento
nas finas areias me torno um Adão
com Eva num jogo isentado de ensino
pois é minha ilha ideal paraíso.

Partes lindas também eram as noitadas reunindo violonistas, “cantores e


declamadores” , entre estes Geraldo Casado, dizendo um irresistível
resumo do poema da moda, de Vinícios de Moraes:

Para viver um grande amor


é preciso concentração e muito siso,
muita seriedade e pouco riso.  
É preciso olhar sempre a bem-amada
v

como a sua primeira namorada 


É muito necessário ter em vista
um crédito de rosas no florista
muito mais, muito mais que na modista
pois o que o grande amor quer saber mesmo,
é de amor, é de amor, de amor a esmo; 
Conta ponto saber fazer coisinhas
pra depois do amor, uma galinha
com uma rica e gostosa farofinha. 
Mas tudo isso não adianta nada
se nesta selva escura e desvairada
não se souber achar a bem-amada
pra viver, pra viver um grande amor.

Outra parte linda foi levarmos Geraldo e Marta ao Arcada Bistrô para
assistirem ao show do nosso amigo Tito Madi, a partir de um inesquecível
“Chove lá fora”:

A noite está tão fria, chove lá fora


e essa saudade enjoada não vai embora
Quisera compreender por que partiste
quisera que soubesses como estou triste.
E a chuva continua mais forte ainda
só Deus sabe dizer como é infinda
a dor de não saber, saber lá fora
onde estás, como estás, com quem estás agora.

E a derradeira parte linda; na entrada da passarela do Plaza Shopping, eue


Glória encontramos Geraldo e Marta de saída do mesmo filme do Oscar a
que íamos assistir. O resto é saudade.
v

CORREIO DA SAUDADE (16)

QUANDO O EQUÍVOCO COMPENSA...

Disse-me, um dia, um vigário de Aratuba:

–Você anda lendo as revistas X-9 que eu guardo no meu baú. Vem escrito
nas capas. Leitura para acima de 18 anos e você só tem 12. Mas continue.
Pior é não ler nada.

Assim absolvido, continuei. Das narrações policiais da X-9 pulei para as


aventuras de Tarzan e de Rocambole, As Minas de Prata, de José de
Alencar e a obra inteira de Machado de Assis. Já em Fortaleza li Câmara
Cascudo e Patativa do Assaré, Manoel Bandeira e Pinto do Monteiro.
Seguiram-se Dante, Shakespeare, Cervantes, Marcel Proust, Guimarães
Rosa, James Joyce, Tolstói, Dostoiévski, Clarice, Hemingway, Fitzgerald,
Manoel de Barros, Ascenso Ferreira e Camões.
Tanta leitura, inclusive noite adentro, foi decisiva na minha carreira de
comunicador. Mas ela esfriava o meu interesse pelo didático. Daí, fiquei
em segunda época por falta às aulas noturnas do segundo ano ginasial. Na
data marcada para a prova em separado encontrei no colégio apenas alguns
reprovados como eu, nenhum deles meu conhecido.
Percorri corredores desertos até avistar aviso onde pude confirmar a
realização, naquela sala, de exames orais de português. Sondei o interior,
vi alguns alunos e um professor desconhecido. Era ali, então. Entrei na fila
sem perguntas e cerca de meia hora depois eu estava diante de um
apressado examinador que me perguntou:

– Seu ano?
– Segundo ginasial, respondi.
– Tire o ponto, mandou ele, mostrando-me uma sacola branca.

Tirei um papelote do qual ele se apossou e leu sem me dar tempo de falar
nada:

- Literatura Portuguesa. Muito bem, rapazinho. Vamos ao maior nome


dessa literatura, Luiz de Camões. Cite um soneto dele.

Embora embaraçado resolvi enfrentar a situação porque, além de Camões


ser um dos meus prediletos, havia uma semana, eu tinha visto um filme
sobre a vida dele. E aí, achei que seria o caso de não apenas citar, mas até
declamar o que eu havia decorado desde leituras anteriores:
v

Sete anos de pastor Jacó servia


A Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela
- e a ela só por prêmio pretendia...

E emendei com outros sonetos:


Alma minha gentil que te partiste
tão cedo desta vida, descontente
repousa lá no céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste...

E vendo que agradava prossegui, confiante:

Amor é fogo que arde sem se ver;


é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer...

A esta altura o professor, preocupado com a fila de examinandos que ainda


havia depois de mim, resolveu dar minha prova por encerrada:

– Parabéns, rapazinho. Nota sete. Seu nome?

Dei meu nome e, debalde, o professor o procurava. Equivocadamente ele


consultava a lista de alunos do segundo ano científico, sendo eu do
ginasial. Diante disso ele, depois de nova olhadela na fila de examinandos à
sua espera deu o assunto por encerrado:

– Ginasiano que tira sete em matéria do científico merece pelo menos nota
nove!

CORREIO DA SAUDADE (17)

PROPAGANDA, A ALMA DO NEGÓCIO...


Sempre tenho aproveitado todas as sobras, tanto as disponíveis quanto as
inventadas, se necessário. Em Agência de Publicidade trabalhei com meu
amigo e compadre Luiz de Oliveira Belo, cuja mudança para Brasília me
v

ensejou seguir no ramo por conta própria. Resumo aqui alguns dos meus
“cases” de marketing.

BEIRA-MAR SEM SAL NO PREÇO…


Boa Viagem era disparada na preferência do comprador de apartamento em
praia recifense. Embora vizinha, a do Pina amargava, ao contrário, forte
rejeição. Tanto assim que - havia três meses - certa incorporadora não
vendia um único apartamento do seu mais recente lançamento de 4 quartos.
A meu conselho o prédio mudou de nome e sua planta baixa foi reciclada
para quitinetes, assim anunciados: Moradia à beira-mar sem sal no preço.
Em tempo recorde todas as unidades foram vendidas…

SABE QUEM FOI CAZZANOVA?


O empresário Alberto Porpino tinha magazine com seu próprio nome na
Rua de Santa Rita, bairro de São José. Ao mudar sua loja para a Rua Nova
sugeri-lhe rebatizá-la de Cazzanova. Pesquisa mostrou, porém, que este
conquistador italiano era quase desconhecido do recifense, enquanto todo
mundo conhecia a fama do irresistível espanhol Don Juan, que logo virou
loja vip de moda masculina...

DE OLHO NOMERCADO MUNDIAL…


Vidreiro paulista de chegada ao Recife queria nome para o seu produto.
Sugeri-lhe Mais-Vidro, inclusive pela compatibilidade multinacional: Piu-
vetro (italiano), Más-vidrio (espanhol), More -glass (inglês), Plus-verre
(francês) e Mehr-glas (alemão).

O SOL NASCEU PRA TODOS…


Complementado por Você também pode morar em Boa Viagem, este dito
popular disparou estrondoso sucesso de venda de apartamentos populares
na Zona Sul do Recife. Diariamente, filas quilométricas de candidatos a
financiamento do BNH se formavam no cruzamento da Avenida Conde da
Boa Vista com a Rua da Aurora, onde ficava a Incorporadora Maurício
Pessoa de Melo.

TERRENO A PREÇO DE CHARQUE...


O loteamento parou de vender, mesmo sorteando, mensalmente, uma
quitação entre compradores em dia. De repente tudo mudou com este anúncio
radiofônico: “O preço de um quilo de charque é quanto você paga por um
metro quadrado de chão, pra toda a sua vida, no Loteamento Nova
Olinda”. Quarenta e oito horas depois, kombis não paravam de levar pessoas ao
local, nenhuma delas interessadas em sorteio .

SEM O TRABALHÃO DE FAZER…


v

Preparar, pessoalmente, quitutes para festas em família era costume de legiõesde


donas de casa recifenses. Até que este anúncio lhes disse: “ O trabalhão de
fazer já era. Encomende à Karblen e receba os mesmos elogios”. Esta
sugestão de menor esforço sem nenhum sentimento de culpa fez a
Confeitaria reformular todo o seu esquema de produção e entrega.

MERCÊ DOS SANTOS DOUM...


Era setembro. No Bairro de São José uma loja cheirava fortemente a mel.
Na porta estava seu dono, José Maria de Miranda, que se declarou na
iminência de perda total do estoque de bombons. Aprontei-lhe, em
poucas horas, anúncio de rádio: “Na festa dos Santos Cosme e Damião, Z.
Albuquerque apresenta o babalorixá Pai Edu: - (Falando) Ofereça doces às
criancinhas, pensando na graça que deseja alcançar. (Cantando): Cosme e
Damião, Doum”. Em três dias voou o estoque ameaçado e chegou bombom
novo para venda presencial ou pelo “telefone mais doce da cidade”: faltou,
telefonou, chegou. O “case” deu nota na Revista Veja...

COIMBRAL NÃO PEGA MAL...


A competição entre vendedoras imobiliárias recifenses motivou reunião de
emergência entre sócios da vindoura “ Imobiliária Coimbra”. É que a já existente
Assimbra ameaçava impugnar a futura denominação baseada em
"evidente e incontestável similitude sonora”. A questão se resolveu com
esta simples decisão: – Se tem Melhoral, pode haver Coimbral.

UM “GASPAR” INESPERADO...
Era o lançamento publicitário, em Belém do Pará, do “Parque Residencial
Reis Magos”. A certa altura inquietou-me a reação de alguns belenenses ao
ouvirem os nomes dos edifícios Baltazar, Belchior e Gaspar. Descoberta a
causa troquei, imediatamente, as três majestades por seus presentes ao
Deus Menino: Ouro, Incenso e Mirra. Porque , no Pará, o pênis é também
conhecido por Gaspar...

APESAR DAS CARAS FEIAS…


Embora sozinha no avanço tecnológico de então, a Sul América
Teleinformática, no bairro recifense do Curado, perdia feio dos fabricantes
de centrais telefônicas ainda eletroeletrônicas, ou seja, “passo a passo” .
Daí a criação deste título: “Na era da velocidade eletrônica, por que andar
passo a passo? “. As vendas subiram vertiginosamente, enquanto a
concorrência estrebuchava. Por isso, o anúncio seguinte foi ilustrado por
uma carranca do São Francisco, seguida do título: “Apesar das caras feias,
o 1° lugar é nosso…
v

CORREIO DA SAUDADE (18)

ÍNDIOS DE “NAU” A PIOR…


Quando reveses mercadológicas locais me impossibilitaram de continuar
vivendo também de publicidade, resolvi ocupar minha mente com algo de
tal modo absorvente que não me deixasse espaço para pensar em perda de
renda.
Escrever pareceu-me, então, o único meio ao meu alcance. Mas, sobre o
quê, e assim tão forte? Fui ajudado pela matéria DE NAU A PIOR, de
Sandra Brasil e Daniella Camargos para a Revista VEJA sobre festejo, em
2000, dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Transcrevo parte do texto
delas:
“Para comemorar a chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro
programou-se a aparição de uma réplica da nau Capitânia, aquela que
conduziu a frota portuguesa na travessia do Atlântico. Mas essa réplica se
encheu d’água e interrompeu a viagem antes que afundasse com toda a
tripulação. Nas imediações, índios pertencentes a diversas tribos e uns três
mil sem-terra ameaçavam melar a comemoração oficial com um protesto, e
quando decidiram aproximar-se das autoridades, a Polícia Militar baiana
entrou em ação. Foi aí que os índios, surrados pelos brancos desde os
tempos de Cabral, apanharam de novo, desta vez em companhia dos sem-
terra”.
Pronto. Era sobre o índio brasileiro que eu iria escrever. Mas como ousá-
lo, depois de tantas autoridades no assunto? Como intrometer-me numa
lista já em tudo bastante por incluir de celebridades teológicas e
proeminências poéticas?
Lista bastante porquanto encabeçada por frei José de Santa Rita Durão
(1722-1784). A narrativa do seu poema “Caramuru” se inicia quando, no
rumo do Brasil, naufraga o navio de Diogo Álvares Correia. Salvam-se
Diogo e mais sete companheiros, acolhidos na praia por nativos temíveis e
desconfiados. Naturalmente os náufragos temem aqueles seres
avermelhados que, sem pudor, andam nus. E assim que morre um dos
marinheiros europeus eles o retalham e comem, cruas, todas as suas partes.

Bastante também é a lista pela inclusão de Basílio da Gama ( 1741- 1795) e


o seu poema épico “O Uraguai”, onde guerreiam militares portugueses e
espanhóis contra indígenas e jesuítas pela conquista da Colônia de Sete
Povos das Missões. Fracassam as negociações de paz propostas pelos
índios Sepé e Cacambo e começa o combate. Embora a valentia e a perícia
dos nativos, muitos deles perecem, entre os quais Sepé, com quem sonha
v

Cacambo: exige o finado que vingue-lhe a morte com incêndio no


acampamento dos brancos.

Bastante ainda é a lista pela magnífica trilogia indianista de José de Alencar


(1829-1877), “O Guarani”, “Iracema” e “Ubirajara”, romances históricos
mensageiros da identidade cultural brasileira, segundo a inventiva do
celebrado autor cearense. Protagonizam estes livros três figuras símbolos
de brasilidade: Ubirajara, Iracema e Peri. Pelo casamento de Ubirajara com
Araci e Jandira unem-se os Tocantins aos Araguaias. Em Moacir, filho de
Iracema com Martim Soares Moreno, nasce o Estado do Ceará. O beijo
final de Peri e Ceci faz um Rio de Janeiro diferente do ideado por Mem de
Sá e Dom António de Mariz.

Lista ainda uma vez bastante pelo indianismo poético do maranhense


Antônio Gonçalves Dias (1823 – 1864) num admirável “ I-Juca-Pirama”:

Um velho Timbira, coberto de glória,


guardou a memória
do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava
dizia prudente: - “Meninos, eu vi!

“Eu vi o brioso, no largo terreiro,


cantar, prisioneiro49
seu canto de morte, que nunca esqueci:
valente, como era, chorou sem ter pejo;
parece que o vejo,
que o tenho nest’hora diante de mi.

Assim o Timbira, coberto de glória,


guardava a memória
do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

Mesmo assim, minha ideia foi se tornando fixa: realizá-la tornou-se um


imperativo. Só me faltava definir o formato. E foi aí que deparei o maior
desafio da minha vida: custasse o que custasse, imitar Luís de Camões...
v

CORREIO DA SAUDADE (19)

AJUDA QUE SE REPETE...


Conforme anteriormente aqui mencionado, Luís de Camões amparou-me
em longínquo exame onde idioma português foi confundido com literatura
portuguesa: só na hora da nota o professor viu que eu ainda era do ginasial.
Pois, atrevidamente, pensei com sucesso no bardo para definir o formato
literário do que eu pretendia escrever sobre o nosso indígena.
Se Camões pôde contar e cantar as navegações predadoras que "terras
viciosas de África e de Ásia andaram devastando”, por que alguém não
poderia pelo menos arremedá-lo contando e cantando, também em
oitavas decassilábicas, a tragédia desses derrotados pelas “Entradas e
Bandeiras”, expedições de assassinato e rapina travestidas de feitos
memoráveis atribuídos a pioneiros exitosos?
Resolvi encarar o desafio, sem jamais haver antes escrito uma só dessas
estrofes. Na história dos meus desatinos de até hoje foi este foi o mais
tresloucado de todos. Até porque o fechamento (provisório…) da primeira
estrofe me tomou duas semanas, secundadas de alguns anos de emendas.
Que dizer do vindouro total de 581 estrofes, distribuídas em 54 capítulos?
Ao fim de dez anos, na hora do sumário, por mais que eu tentasse não
conseguia escrevê-lo. Só no auge da frustração descobri, felizmente, que
sumário já estava escrito: bastava transcrever a oitava inicial de cada um
dos capítulos. Quem o lesse por inteiro teria uma ideia da obra toda.
Ora, tratando-se de livro ainda inédito, ouso encorajar os amigos do
“facebook” à leitura aqui fracionada em seis postagens, cada uma de nove
capítulos:

I – IMENSIDÃO
Brasileiros, ainda impressentidos
noutros mundos detêm formidável
patrimônio, tesouros desmedidos
encontráveis em terra imensurável;
mas à soma de tantos possuídos
sobrepõem o jus inalienável
de fruir, livremente, a natureza
sem segunda em fartura e boniteza.

II – CULTURA
v

Nas aldeias se veem, comumente


mais que fêmeas ornarem-se varões
pelo corpo trocando, mutuamente
tocamentos, fruindo sensações
de mãos dadas andando alegremente
sem libido aparente ou expressões
de lascívia, tampouco damaismo
mas costume de antanho e não modismo.

III – CRENDICES
Os “brasis” formam povos diferentes
entre si, inclusive nas crendices:
a duendes confessam-se tementes
por trazerem terríveis caiporices;
eis por quê se socorrem, reverentes
do pajé, afamado em curandices
desse inato entendido brasileiro
em mazelas até do corpo inteiro.

IV – RITUAIS
Singular e diverso ritual
é cumprido com pia reverência:
terra, sol, água, fogo, vendaval
e deidades resguardam concernência
com sazões de vivência comunal,
entre as quais a da fértil frutescência
extensiva ao carnal sazonamento
das donzelas de cada aldeamento.

V – INVASÃO
Intenção ou não mais que mero acaso
infeliz calmaria ou largo vento
diligência de nautas ou descaso
dominância ou simples rudimento
de oceano a singrar não vem ao caso;
de Cabral consumado o chegamento
cesse toda questão que se levanta:
impossível prever sangueira tanta..

VI – PRENÚNCIO
O gentio acompanha, impressionado
um batel conduzido à beira-mar;
arco e flecha repousa admirado
v

com o jeito veloz de navegar


o invasor que, inda não desembarcado
quer, primeiro, saber o que enfrentar
nessa terra de porte imprevisível
com vitória completa, se possível.

VII – MANSIDÃO
Curioso e tranquilo é o nativo
predisposto à dispensa de atenção
ao vindiço; é, portanto, receptivo
e dá asas a imaginação
tal costuma fazer o primitivo
emprestando alta magnificação
ao estranho e garboso viajor,
de poder do outro mundo portador.

VIII – INOCÊNCIA
A Adão comparado em singeleza
o nativo (disposto e amistoso)
auxilia, com força e ligeireza,
a erigir um cruzeiro majestoso;
igualmente ele beija, com fineza,
pequeninos cruzeiros, respeitoso,
imitando os vigários mendicantes
e de missa primeira celebrantes.

IX – MATREIRICE
Lá pras tantas, inesperadamente,
português atenua a violência
contra o índio, conduta incoerente
com a própria lusíada premência
de extinção do elemento resistente;
é que assim se acautela a iminência
de um nativo rompante belicoso
em terreno ignoto e tortuoso.

X – FANTASIA
Na Europa se espalha fantasia
a partir da missiva do escrivão:
se misturam temor, afrodisia
e fascínio por solo de um milhão
de riquezas: imensa folharia,
v

raiz, casca, meizinha em profusão


pra saúde do índio, flor baunilha,
copaíba, cacau, salsaparrilha.

XI – VERGONHA
Com frequência incomum se torna audível
fala índia em veleiro lusitano,
evidência da mais indiscutível
traficância no Atlântico oceano
rumo à Europa, o ofício indefensível
de trocar por dinheiro o ser humano
tal qual fora vulgar mercadoria,
sujeitar homem livre à escravaria.

XII – IMAGEM
O francês De Lery tem no gentio
exemplar vigoroso e apessoado:
vê semblante de exótico feitio
braços feitos pra lida com machado
e, no jeito de olhar, bicho arredio
de cabelo retinto e tosquiado
corpulência vistosa e besuntada
de silvestre resina perfumada.

XIII – BABEL
Tal ocorre com presos degredados
alguns nautas à Corte não regressam
com a selva deveras deslumbrados;
em ficar no Brasil se interessam
e, com pouco, novéis desembarcados
o comércio pirata já começam
de tintura, folhagem mais madeira
e outros frutos da terra brasileira.

XIV – DESCOMPAIXÃO
Do pendor fantasista da índia gente
alguns padres ladinos se utilizam
com o fim de torná-la mansa e crente:
sobranceiro a Monã idealizam
deus Tupã (das procelas) tendo em mente
consoá-la, porém mal profetizam
por causar, a deidade imaginada,
divisão na ambiência da indiada.
v

XV - CAÇADA
Bons docentes os padres dão valia
à usança de vários atrativos:
colorida e vistosa rouparia
consonante ao talento dos nativos
que a envergam e dão-se autoria
a despeito de ainda primitivos
artesãos; os ofícios aprendidos
são diversos e muito requeridos.

XVI - REVOLTA
O invasor se presume, de repente,
senhorio das terras e de tudo
o que nelas existe, sua gente
inclusive; apesar de corajudo
o nativo sofreia ante o evidente
exagero do branco façanhudo
e prefere estudar o que fazer
contra abuso tamanho de poder.

XVII – CARNAGEM
Criancinhas de peito separadas
das mamães, assassínios sem motivo,
endemias mortais disseminadas,
aviltantes ofensas ao nativo
são as causas de tribos rebeladas:
cada índio se torna um fugitivo
ou guerreiro de intentos vingadores
contra o jugo cruel dos invasores.

XVIII – TRÉGUA
Silencia Anchieta ao escutar
este amargo queixume de um guerreiro:
“Antes mesmo de um dia se passar
da chegada do branco marinheiro
já o índio dispõe-se a o aceitar
respeitoso e de jeito hospitaleiro;
entretanto a maligna falsidade
os coloca em frontal hostilidade”.

XIX- CORAGEM
v

A empreitada da Confederação
dos Tamoios provém do sentimento
de revolta das gentes, sedição
remidora do imenso detrimento
perpetrado depois da ocupação
do Brasil, indizível sofrimento
imperado no modo português,
diferente, decerto, do francês.

XX – CONFRONTO
Do setor de combate faz sair
Mem de Sá sua frota: os comandados
assim ficam sem meio de fugir;
a matar ou morrer sendo obrigados
só lhes resta a saída de infligir
a derrota aos locais confederados;
flecha e fogo produzem mortandade
desmedida em sangueira e feridade.

XXI – CILADAS
Valiosos produtos naturais
intocados, colheitas impensáveis
são recursos capazes de inda mais
enricar Portugal; indisfarçáveis
ambições digladiam-se entre as quais
possessão de terrenos infindáveis
e o trabalho forçado de nações
incontáveis de índios alazões...

XXII – DISSENSÃO
Alto preço ao nativo é reclamado
por tratado enganoso de amizade
com o luso; também é defraudado
pela inata intestina inimizade
que o colono aprofunda, calculado,
acirrando a malsã rivalidade
entre clãs desde antanho estremecidos
por si mesmos, destarte, consumidos.

XXIII – REPRESSÃO
Ao nativo reprime por igual
senhoril mão de ferro do invasor
extensiva a qualquer grupo tribal
v

inclusive do mais brando pendor;


cuide este, por bem, senão por mal,
de tornar-se do branco servidor
obrigando-se a tudo e sem medida
se quiser preservar a própria vida.

XXIV – DESFORRA
Traições só instigam mais vingança
de gentios que até donatarias
incendeiam; perdida a confiança
nos acordos de paz daqueles dias
se malogra o programa de aliança
entre lusas e índias senhorias,
natural consequência da patranha
de ocupantes reinóis de bruta sanha.

XXV – DIFERENÇA
O rancor contra o luso, na verdade,
transparece na voz de um fugitivo,
que descreve a extremada crueldade
desse branco de humor incompassivo:
Pernambuco, excedente em brutidade,
origina a escapada de um nativo
pra lugar sem pavor nem servidão
como sói o tranquilo Maranhão.

XXVI – PRUDÊNCIA
Holandeses, sensatos, consideram
importante o cultivo da amizade
com gentios; por isso perseveram
na oblação, honraria e lenidade;
para além da justiça eles ponderam
os princípios pilares da bondade,
e dizendo-se apenas estrangeiros
de regalos cumulam brasileiros.

XXVII – FICÇÃO
Parciais escritores instituem
enganosos modelos de heroísmo:
a ladrões e assassinos atribuem
alteados motivos de ufanismo
com os quais inda hoje alguns anuem
vendo pia nobreza e altruísmo
v

nesses tais “do sertão desbravadores


e do pátrio rincão alargadores”.

XXVIII – SISTEMA
Jesuíta, conquanto a vida inteira
missionário da catequização
salvador da indiada brasileira
compartilha, porém, a devoção
com perô e dispõe na dianteira
o país donde vem; a conversão
do gentio é mais para amansá-lo
e, em seguida, ao lusíada entregá-lo.

XXIX – ESCRAVISMO
A memória amazônica reflete
a tragédia nativa dos cercados
Urubus por soldados numa brete:
quatrocentos e tantos apresados
e, tombados, uns mais cem vezes sete
desses índios à espada trespassados
represália de branco revoltado
por haver-se, essa tribo, rebelado.

XXX – ESBULHO
À nação Potiguara todo o mal:
“Da reserva ninguém deve escapar”,
grita a insana opressão colonial
decidida a, sem dó, assediar
esse povo do elísio litoral
da louçã Paraíba preamar;
Pernambuco também dá contributo
ao esbulho brutal e absoluto.

XXXI – EXEMPLO
Revestidas de certa relevância
se sucedem inúmeras chibanças
tendo algumas, em dada circunstância,
renovado perdidas esperanças
libertárias do índio; manigância
dos rivais traz derrotas e ganhanças
aos dois lados em luta espicaçada
por notáveis da Corte conflagrada.
v

XXXII – REBANHOS
O colono, sem carnes pra comer,
solicita da Corte bois de corte
e cavalos, também, com que prover
de tração e de meio de transporte
suas forças terrestres; pra manter
esses bichos se valem do suporte
de água farta e ubérrima pastagem
das herdades tomadas ao selvagem.

XXXIII – ESCARAMUÇAS
Apesar da total destruição
da família tapuia, inda resistem
outras tribos na determinação
de enxotar invasores que persistem
na extinção ou na índia servidão;
assassinos paulistas coexistem
com ataques provindos de repente
da guerrilha veloz e intermitente.

XXXIV – MISSÕES
Homilias se pregam aos nativos
sobre o Cristo Jesus ressuscitado
e assustoso é que, embora primitivos,
se demonstrem de siso equilibrado,
portadores de dons intuitivos
adequáveis a vário aprendizado:
fundição, pecuária, agricultura,
tecelagem ornada de pintura.

XXXV - INSUBMISSÃO
Acredita Lisboa que, afinal,
de uma vez já se acham dirimidas
discussões entre Espanha e Portugal
sobre a posse de glebas requeridas
no Brasil; de importância crucial
é, pois, vê-las agora definidas
legalmente na forma de um tratado
em Madrid por consenso pactuado.

XXXVI – CANONIZAÇÃO
“Esta terra é da gente, doação
de Deus Pai, mais o arcanjo São Miguel”
v

eis a pronta e valente reação


do bravio Sepé, índio revel,
ao reinol general de divisão
Gomes Freire, alteado em seu corcel;
diz Sepé desaforo de mão cheia,
o que a noiva Jussara mais receia.

XXXVII – REFÚGIO
Guaranis são por brancos atacados
apesar de quietos sonhadores
com a terra de um deus onde, assentados
sejam livres de tantos dissabores;
de erva-mate seus sítios cultivados
querem salvos de brancos invasores;
desses bens buscadores incansáveis
só anseiam eventos amoráveis.

XXXVIII - PROTESTO
Corre o mundo notícia da opressão
infligida ao nativo brasileiro:
portugueses de nobre coração
reivindicam governo justiceiro
com o índio igualmente cidadão
e, portanto, senhor do seu terreiro;
tal postura é motivo de acrimônia
muita vez entre a Corte e a Colônia.

XXXIX – VIOLÊNCIA
Se cruento demonstra-se o colono
com demais invasores europeus
é de ver-se em quão grande desabono
ele tem o gentio, sabe-o Deus,
por sentir-se, inclusive, o próprio dono
de país e de povos servos seus;
assim sendo, se danem Renascença
e ideias de aos índios benquerença.

XL – DECADÊNCIA
Carajás, antes uns trinta milheiros,
são ao longo do tempo consumidos
pela sanha letal de forasteiros;
uns restantes trezentos desvalidos
escravizam-se a ricos fazendeiros
v

opressores de índios malsofridos


que em barrancas de rios arranchados
se estiolam de tudo espoliados.

XLI – MORTICÍNIO
As lavouras em broto comburidas
as famílias dos troncos apartadas
as mulheres à força possuídas,
as crendices vetustas afrontadas
cruelmente ceifadas muitas vidas
por moléstias letais disseminadas
enfraquecem o ânimo valente
do indígena dantes resistente.

XLII – CONSUMIÇÃO
Alto preço na selva é reclamado
por indígena avesso a seringueiro;
porém este em cizânia confiado
não desiste do múnus borracheiro
e, afinal, de sucesso é coroado
com apoio de índio alcoviteiro;
sobre o rio Madeira impondo jus
se aventura a mais dois, Negro e Purus.

XLIII – LEMA
Incendido de espírito humanista
abandona a ensinança militar
em favor do ideal indigenista;
quer em ínvios rincões realizar
memorável cruzada pacifista
de grandeza impossível de negar;
para sempre dos sinos venham dobres
por Rondon, cidadão de feitos nobres.

XLIV – PRECONCEITO
Os Xoklengs, em bandos divididos
rivalizam terrenos de pinhais
com cultores forâneos atraídos
por empresas privadas e estatais;
sendo estes com índios prevenidos
se arreceiam dos ditos “animais”
e, rixosos, também nestes atiram
ou, medrosos, da lida se retiram.
v

XLV – ASSOMBRAÇÃO
É lembrança do século dezoito
grande assombro, no Parque do Araguaia,
motivado por índio muito afoito
contra o qual vivem brancos de atalaia;
inda hoje o receiam lá no soito
onde está quase sempre de tocaia,
um temor extensivo ao Tocantins,
Goiás Norte e paragens mais afins.

XLVI – LASTIMEIRA
No Brasil amazônico se ostenta
tronco estrada, caminho da abusão
de agressores de índole briguenta,
predatória e insana; da invasão
de caterva grileira violenta
reunida em temível arrastão
jamais visto ajuntando garimpeiro
a empresário, bandido e caloteiro.

XLVII – ULTRAJE

Nem a letra de “Carta indigenista”


é diploma por todos respeitado
pois existe quem faça grossa vista
ante povo da vida despojado:
em Brasília, quarteto caçoísta
de rapazes extingue, incendiado
ao relento, Galdino pataxó
com o riso perverso dos sem dó..,

XLVIII - “INTEGRAÇÃO”
Tentativas de plena aceitação
de convívio com brancos são debalde;
certas tribos sustentam rejeição
às “frentes” malsãs de branquidade
inventoras de falsa integração
renegada por só malignidade
aos costumes tribais, grave ameaça
à existência, afinal, da própria raça.
v

IL – DESENGANO
Sem remédio se instala o desengano
do gentio com branco predador:
equipado de chumbo, adorno, pano
e aço frio, é este um contendor
invencível, audaz e soberano
sobre aquele iludido e perdedor
da família, da terra e seu domínio
e da vida, à qual dá autoextermínio.

L – FARSA
Nos quinhentos janeiros da invasão
o nativo dispõe-se a protestar
contra a era sem fim de enganação
e domínio do branco; quer gritar
seu desgosto represo e dizer não
ao ridículo prestes a estrear
na Bahia, a reprise do achamento
do Brasil, deslavado forjamento.

LI – PAINEL
É o índio há séculos refém
de uma incrível história mal contada
sobre os primos brasis e que ninguém
até hoje emendou; e, se emendada
sua saga será bastante aquém
da tragédia sem fim vivenciada
a partir do caudal avermelhado
pelo sangue inda hoje derramado.

LII – MEMORIAL
Certamente o Brasil resgatará
algum dia a memória muito cara
dos seus povos primevos,Tuxaná,
Warekena, Tuyúra, Tsuva, Arara,
empolgante epopeia que será
cinzelada em sagrada pedra (ara)
de um altar reservado ao sacrifício
de nações condenadas ao flagício.

LIII – LENDAS
Sem igual é, decerto, a coleção
v

de legendas correntes do Chuí


ao cimeiro Oiapoque: evocação
desde o mico feroz Mapinguari
à Peitica, ave mestra em predição;
de duende travesso até sagui
a memória, pungente ou engraçada,
sobrevive na boca da indiada.

LIV – UTOPIA
Outra vez a pergunta perdurante:
vale ainda nutrir a utopia
sustentada por gente confiante
numa paz que, altaneira, se imporia
sobre tanto interesse conflitante
entre índio e colono em tropelia?
Só porque foi o sonho interrompido
não se pode dizê-lo já perdido

CORREIO DA SAUDADE (25)

O “RÁDIO” ME PEDIU LICENÇA...


O saudoso Manuel Lima Soares, advogado, professor e nome de rua
importante de Fortaleza, era então o jovem Neo - querido líder estudantil -
quando me deu uma vaga de morador na Casa do Estudante do Ceará, por
ele dirigida e também habitada.
Certo dia, de passagem pelo corredor, ele me ouviu estudando em voz alta e
pediu licença para perguntar se eu gostaria de fazer um teste na Rádio
Iracema, onde ele era radioator.
Nesse tempo eu trabalhava para os alemães Petelson e Lilienfeld, judeus
fugitivos do nazismo e apoiados pelos Lundgren. Fui aprovado pelo
brilhante radialista baiano Antônio de São Bernardo Almeida, que
recomendou minha imediata admissão pela emissora, em agosto de 1949.

UM ESTOPIM NO “TRIBUNAL”
Para “julgar” os artistas da Ceará Rádio Clube, onde também escrevi
programas, criei o Tribunal da Fama, cujo texto era rimado em versos
pares. Na noite de estreia, cenário montado diante de auditório
superlotado, eu esperava tudo menos que o “juiz” Aderson Braz,
solenemente vestido de beca e capelo fosse, antes da sua fala de abertura -
que eu julgava importantíssima – “desembaçar” os óculos com um enorme
lenço branco enfiado por dentro da armação sem lentes.
v

A fala de Aderson não saía porque o auditório rolava de rir, enquanto eu,
“promotor” indignado, assistia ao que me pareceu uma total avacalhação do
programa.
Foi preciso que João Ramos, o “advogado defensor”, me convencesse de
que, naquele exato momento, se acendia o estopim de um enorme sucesso
de audiência...

“EM NOME DO MEU FILHO ANJO, LEVANTA-TE E ANDA”...


A peça teatral “Os Deserdados”, do saudoso escritor e dramaturgo cearense
Manuel Eduardo Pinheiro Campos, estava nos ensaios de mesa quando um
dos atores teve que ser substituído. Fui, provisoriamente, convidado para
dizer as falas atribuídas ao personagem dele, a fim de que os demais atores
pudessem ensaiar a contento.
Antes que terminasse aquele ensaio foi decidido que eu viveria o paralítico
Gedeão, papel de tamanha força dramática que, em noite de estreia,
colocaria de pé a plateia do Teatro José de Alencar…

ATOR À PROVA DE FOGO...


Era fase final de treinamento da equipe da futura TV Clube, de inauguração
marcada para junho de 1960. Foram aproveitados quase todos os artistas
das emissoras associadas locais. Eu, por exemplo, teria a função de
selecionador das melhores imagens oferecidas ao telespectador pelo
conjunto de câmeras em operação simultânea.
Aproximava-se o “dia D” e a prova de fogo seria a gravação de um
teleteatro onde, no papel de prisioneiro, um veterano radioator local
monologava contando sua história de crime e castigo.
Cinco equipes, inclusive a minha, ensaiaram de véspera e todas se
achavam prontas para realizar, uma por uma, aquela dramática produção.
Mas, na “hora H”, faltou o ator e, sem intérprete, não haveria prova
nenhuma.
A fim de que quatro equipes não se prejudicassem ao mesmo tempo,
ofereci-me para substituir o ator. É que durante os ensaios eu havia
memorizado quase todo o texto que lhe cabia interpretar.
Meu oferecimento foi aceito e, ao final da prova fui reciclado para a
equipe de teleteatro...
v

CORREIO DA SAUDADE (26)

MINHA PARENTELA
Nasci prematuro em irmãos e irmãs unilaterais já, por sua vez, mães de
meios sobrinhos meus que fui conhecendo a partir de quando vim à luz em
oito de março de 1930. Eram dezoito filhos e filhas da primeira geração
direta de meu pai, João José Pereira, por este sobrenomeada Colares
Pereira. Aos 59 anos de idade viúvo de Maria Júlia Colares meu pai
apaixonou-se por minha mãe, Maria Nazaré Cavalcanti de Albuquerque, de
apenas 19.
Contou-me, meu saudoso e longevo tio materno João (Ginja), de passagem
pelo Recife, num cruzeiro marítimo:
- Seu pai, viúvo com dezoito filhos, ameaçou suicidar-se caso nossa família
não aprovasse o casamento dele com a Nazaré…
Último de dez filhos desse segundo matrimônio, convivi com alguns
desses meios-irmãos entre os quais o agrimensor Moacir, cujo lema era
dormir o menos possível porque somente acordado poderia fruir a beleza
que é estar vivo; a contabilização que ele fazia do sono ainda hoje me
impressiona: digamos, argumentava ele, que alguém durma oito horas por
dia; a multiplicação dessa dormida de um terço de cada dia totalizará 30
anos de sono de quem pensa que viveu 90; isto é sono demais pro meu
gosto; já tenho a eternidade inteira pra dormir.
A primogênita Francisca, professora estadual, foi uma das que me passaram
preciosos saberes primários no Grupo Escolar Santos Dumont, ex Coité e
jamais “uma mentira da Ditadura de Getúlio Vargas” porque Aratuba
desapareceria para que se restaurasse a homenagem ao glorioso Pai da
Aviação, segundo promessa, em 1945, do governador Paulo Sarasate.
Gutemberg (Gugu), mecânico de rotativas dos “jornais associados” de
Fortaleza Correio do Ceará e Unitário, foi contemporâneo do celebrado
executivo e político capixaba João de Medeiros Calmon, meu futuro
empregador por 27 anos nos Diários Associados. Além de xará do inventor
da imprensa, Gugu também me marcou por dois motivos: primeiro, os
dedos mutilados pela efetiva periculosidade do seu ofício; segundo, o flã
que, às vezes, ele me dava - aquele papelão especial próprio para a fervente
reprodução de estereotipia do conteúdo dos chamados “jornais quentes”.
Daquele flã eu recortava resistentes palmilhas para os sapatos que eu podia
continuar usando, mesmo depois de o solado se furar…

SEGUNDA GERAÇÃO DIRETA


Nada menos de sete dos dez filhos da segunda geração direta de meu pai
foram precocemente tragados pela severa mortalidade infantil reinante na
época, agravada por infortúnios vários entre os quais o afogamento que
v

vitimou meu irmão Paulo. Há algum tempo partiram dois dos irmãos
sobrantes, o que por agora me faz sobrevivente único até Deus sabe
quando. Eram eles, José e Maria Ivette; assim se chamavam as meninas:
Maria Lisieux, Michelle, Margot, Maria Liziette, Giselle, dada a então
poderosa influência da cultura francesa. Por igual motivo se nomeavam os
meninos. Quando não se chamavam Juarez, por causa do lendário tenente
Juarez Távora, eram Pètain, Darlaud, Pierre, Nertan. Eu mesmo fui
Francisco Arnaud e continuo Arnaud no meio familiar, antenome omitido
pelo oficial do registro civil. Por pouco isso não me fez perder matrícula no
Colégio Estadual do Ceará, onde fui aprovado com nome irregular em
rigoroso exame de admissão ao ginasial.
O francês era moda inclusive no comércio de Aratuba, onde o principal
estabelecimento se chamava Casa Verdun, por causa de uma das principais
batalhas da Primeira Guerra Mundial, travada de fevereiro a dezembro de
1916 entre alemães e franceses, ao norte da cidade de Verdun-sur-Meuse,
nordeste de França.

CORREIO DA SADADE (27)

TRAÇO-DE-UNIÃO
Fui uma espécie de traço-de-união entre duas famílias que, mesmo não
sendo rivais, estendiam o frio do clima aratubense ao seu relacionamento:
os Pereira e os afins Lima/Silveira. Por estes fui criado, na seguinte
circunstância. Tia Deolinda, irmã de minha mãe, Nazaré, era casada com
Francisco Silveira. Caindo minha mãe doente, Deolinda foi visitá-la no
sítio Anhingas, a uns três quilômetros de Aratuba. Sabendo-me com apenas
seis meses de idade, ao despedir-se, ela se ofereceu para me cuidar até que
a irmã sarasse. Justo no dia em que ela foi me levar de volta, minha mãe
teve uma recaída, da qual nunca se recuperou a contento. Aconteceu, então,
o que todo mundo achou muito natural: de um casamento de vinte anos,
tornei-me o filho que tia Deolinda ainda não tivera. Isso continuou mesmo
depois que a minha verdadeira filiação não pôde mais ser ocultada. Encarei
a nova situação com uma naturalidade que divertiu minhas tias Mariquinha,
Atenas e Elvira, irmãs do meu pai adotivo: um dia, deliciadas, elas leram,
no meu caderno escolar: “Tenho dois pais – Francisco Silveira e João José
Pereira”.

RASPA DE TACHO
Aqui, acolá, eu ia ver meu outro pai no seu sítio Anhingas onde o engenho,
geminado à casa grande era movido a parelhos bois de canga. Em enormes
tachos de bronze refervia o caldo de cana que, depois de engrossado ao
ponto, era posto a esfriar em formas quadradas de madeira. Eu raspava
v

então os tachos em busca de resíduos ainda mornos que me deliciavam.


Meu pai apenas me olhava, sem poder participar daquele banquete porque
era diabético. Tratava-o, o jovem Lourival Pereira, sucessor do
farmacêutico português José Dias. Levei alguns anos para entender direito
a dedicação tamanha dele. Lourival era uma versão camoniana atualizada
do pastor Jacob aquele que sete anos de pastor serviu Labão, pai de Raquel,
serrana bela, mas não servia ao pai e sim a ela, pois só a ela por prêmio
pretendia. Aquele futuro cunhado não servia ao meu pai, servia à Marivette,
que por esposa tencionava...

USUCAPIÃO
Em 1944 a diabete sepultou meu pai biológico. O choro familiar foi
abreviado pelo interesse no espólio: havia muito a ser partilhado
principalmente em terras. A prole de primeira geração arguiu em juízo, e
com sucesso, herança em dobro pelo fato de meu pai haver contraído
segundas núpcias sem prévio inventário de seus bens. Mas nem por isso o
reparte andou com celeridade: faltava consenso na irmandade dos Colares
Pereira.
Deserdada a viúva, a cada um dos três Albuquerque Pereira coube metade
da herança de cada meio-irmão. Sem nenhuma previsão sobre o inventário,
resolvi ir à luta em Fortaleza e depois no Recife. Ainda bem, porque, longe
da cena do inventário, fui usurpado pela usucapião. Sendo, porém, a
existência o maior de todos os bens, sinto-me recompensado: a longevidade
tem me tornado, pelo menos até os 92, sobrevivente único das duas
gerações diretas de meu pai...

CORPO “DE LITRO”


Na delegacia de polícia de Aratuba, suposto deflorador e menor de idade
depõem sobre o que a cidadezinha cochicha: “ela era virgem, não era; ele a
forçou, a sem-vergonha pediu; ele tem que se casar, mas não foi ele o
primeiro”. Disfarçadamente, deleitam-se com o falatório minhas tias
solteironas Mariquinha, Atenas e Elvira, assim como as “filhas de Maria”,
as “mães cristãs” e seus maridos “”congregados marianos”, portadores de
fitas azuis que “salvarão o Brasil”, no dizer do então Cardeal Leme. Com
suas medalhas prateadas da Virgem pendentes do pescoço, nem na missa os
presentes esquecem o assunto, ansiosos por uma indiscrição do notável
Arlindo da Cunha. Além de porta-voz da cidade, leiloeiro de festa de
caridade e orador polivalente, ele é o único aratubense capaz de redigir o
que muitos chamam de “corpo de litro”, referindo-se a corpo de delito,
nesse caso documento probatório, ou não, da materialidade daquele
desvirginamento. Arlindo está, portanto, no olho do furacão.
v

A esta altura eu poderia imaginar tudo, menos a surpresa que me esperava.


Em busca de saborosas goiabas que havia no quintal de Arlindo, deparei-
me com a casa dele fechada. Sendo, porém, de todos, as fruteiras de
Aratuba, um simples pulo me deu acesso ao quintal pela cerca dos fundos.
Foi aí que ouvi a voz agoniada e sussurrante do dono da casa, cuja família
viajara. Entre resmungos de mulher ele implorava que ela o deixasse fazer
o mesmo que outro já fizera. Só sei dizer que minha ingenuidade estragou
tudo, a julgar pelas exclamações de susto, choro feminino, barulho de
retirada pressurosa do casal.
Mais tarde, inconformado com o fracasso da sua aventura extraconjugal,
Arlindo desabafou comigo:
- Se abrir o bico digo que é sua mentira e você perde o emprego...
v

CORREIO DA SAUDADE (28)

QUÍMICO INDUSTRIAL
A faceta de químico industrial também atestava a polivalência do notável
Arlindo Cunha. Ele mantinha em casa produção artesanal de bebidas
alcoólicas, entre as quais um vinho à bacool, xarope de uva e essências que
me ensinou a manipular. Disso decorria o que Arlindo chamava de meu
emprego. Certa feita eu estava pronto para engarrafar o conteúdo de mais
uma grande bacia de bronze quando surgiu um debochado amigo dele,
Loiola, admirador da famosa dupla do cinema norte-americano Oliver
Hardy (o Gordo) e Stan Laurel (o Magro). Fazendo, com perfeição, a cara
do magro Stan Laurel com quem, aliás, era muito parecido, Loiola
desabotoou a braguilha e, às gargalhadas, urinou abundantemente dentro da
bacia sem que eu pudesse fazer qualquer coisa para contê-lo.
- Agora engarrafe tudo. Se abrir a boca, digo que é sua mentira,

O QUE DÁ PRA RIR DÁ PRA CHORAR...


”Eu rá tem trei”, veio me dizer um sorridente menininho, com ares de
confidente vitorioso. Ele me abordou momentos antes do início de uma das
mensurações de aprendizado intercolegial por mim apresentadas a convite
do Cecosne, em convênio com o Sistema Estadual de Ensino.
Semanalmente competiam representantes de dois colégios que, a seu jeito,
costumavam também decorar o ambiente. Nessa noite um dos colégios
levou, já enchidas, multicores bolas de soprar.
- ”Eu rá tem trei”, repetiu o risonho menino. Mas só na terceira vez entendi
o que ele queria dizer: já estava na posse de três bolas.
- Não o vejo com nenhuma, observei.
- Eu seco elas, escondo no bolso e pego ôta, respondeu o menininho, rindo.
Por ora...

SEM COMENTÁRIO DO PAI...


Arrastões tornaram-se moda também durante saídas de estádios do Recife,
onde torcedores eram vítimas de assaltantes. Morador do Espinheiro, vi
grandes grupos de pedestres pela Conselheiro Portela, rua onde morei,
rumo à Avenida João de Barros e ao Largo da Encruzilhada, parada
obrigatória de transporte pra toda aquela gente. Numa dessas ocasiões pude
ouvir a queixa entrecortada de um menino que apertava o passo para
acompanhar a marcha do pai:
- Por causa da sua pressa pai, agorinha perdi de apanhar do chão uma
carteira cheinha de dinheiro...

ATÉ QUANDO?
v

Enquanto eu caminhava entre seis e sete horas da manhã, percebi a


paulatina chegada de meninos e meninas que foram formando uma turma
considerável. Imaginei-a composta de trombadinhas. E era. A turma vinha,
em praça de igreja católica de Aracaju, prestar contas dos seus “ganhos” do
dia anterior, pensei. E achei que devia sair dali depressa, mas a curiosidade
me reteve assim que vi chegar quem me pareceu o intrujão. Sem me dar a
mínima, ele começou a atender, um a um, aos seus “clientes”. Avaliava,
rapidamente, cada objeto furtado, “pagava” por ele o que lhe parecia justo,
e devia sê-lo, porque não presenciei reclamação de ninguém.
Voltei para o hotel, quase na praça da igreja, matutando no seguinte. Se
qualquer forasteiro pode, ao acaso, ficar sabendo da evidentemente
rotineira ação criminosa que eu acabara de testemunhar, o que pensar da
lei?
Nossos menores de 18 anos são intocáveis. Até esta idade eles podem
delinquir à vontade. Podem, inclusive, alugar, a mandantes de maioridade,
sua imunidade temporária para cometer também assassinatos. Aos adultos
de bem apenas resta viver em permanente situação de risco da qual não
podem se defender nem têm quem os resguarde.
Pior: é como se essa aberração não bastasse. Enquanto esses menores
renegam a escola da vida e optam pela do crime, inclusive nas suas
modalidades mais graves, ativistas dos chamados direitos humanos os
dizem vítimas da sociedade.
Até quando?
v

CORREIO DA SAUDADE (29)

LUZ DA MEIA-NOITE...
O gosto pelo trabalho e o desejo de ganhar mais, sempre me moveram para
além das obrigações funcionais de rotina. Já nos meus começos na Rádio
Iracema de Fortaleza dei de preencher meu tempo ocioso escrevendo
radionovela. Aquela iniciativa ficcional me surpreendeu com este episódio
real. Certa manhã ouvi do diretor, José Pessoa de Queiroz, o seguinte:
- Passando por aqui quase meia-noite de ontem vi luz acesa no terceiro
andar. Estacionei onde pude e, de revólver em punho, subi as escadas para
ver o que era. Só desativei a arma depois que vi você na máquina de
escrever da minha secretária...

EM TUDO DAI GRAÇAS (PAULO, APÓSTOLO)


Eu e minha mulher costumamos nos aprazer com a singeleza destes versos
sempre relidos com unção:

Somamos nossa amizade


à gratidão que lhes temos
pelo que de vocês vem,
o muito que lhes devemos
feito para o nosso bem;
Quarenta anos de história
quarenta dias não são
na vida de Albú e Glória
seus, de mente e coração...

Conhecemos, em 1983, o então jovem pastor Paulo Ruiz Garcia e sua


esposa Márcia, ele paulista, ela sul-mato-grossense, aqui recém-chegados
para liderar espiritualmente uma igreja evangélica no Espinheiro. A partir
de doze congregados remanescentes, o casal serve hoje, com a ajuda de
Deus, a uma crescente comunidade de crentes num Pai, Filho e Espírito
Santo explicados de forma verdadeiramente fascinante. Tento,
humildemente, retratá-lo neste “Soneto a Dom Paulo e sua Márcia”:

União mais e mais abençoada


do Arcebispo Primaz Paulo Garcia
e de Márcia, consorte agraciada;
eles passam doçura e harmonia

para a obra que fazem, dedicada


a fiéis cuja vida poderia
destruir-se, não fosse restaurada
v

pelos dois na de Cristo companhia.

Na verdade, esse trio se completa:


Paulo, em Deus nosso pai tão amoroso
Márcia, imensa no afeto, mãe dileta;

ele um rico orador sacro animoso


ela esposa em perene ação discreta
de suporte ao parceiro valoroso.

UM SONHO TETRALÓGICO...
Gilberto Gil estava ministro da Cultura no primeiro governo Lula quando,
animado pelo prefácio encorajador de Marcus Vinícius Vilaça, então
presidente da ABL, busquei apoio para publicar “Oração pelo Índio”. Uma
assessora de Gil em Brasília me aconselhou a privilegiar os negros,
segundo ela “muito mais resistentes que os índios contra a opressão
colonialista dos portugueses”.
Embora o tempo tenha confirmado o insucesso da minha busca de apoio,
este só não foi completo porque aproveitei o conselho da assessora e já vim
escrevendo a “Oração pelo negro” no avião de volta ao Recife. Consolou-
me a conclusão de que, pelo menos para isso, servira minha ida à capital
federal. E mais: o que era apenas um livro poderia agora virar dois, e quem
sabe, quatro se minha ousadia fosse bastante para também cantar romeiro e
retirante da seca, segmentos populacionais igualmente deserdados pelo
país.

(Continua)

1
´´

1
v

CORREIO DA SAUDADAE (30)

UM SONHO TETRALÓGICO... (CONTINUAÇÃO)

“Genocídios brasileiros” seria o título geral da minha imaginada tetralogia.


Entretanto, meu primogênito Ricardo duvidou da viabilidade de patrocínio
para obra de denominação assim contundente. Também sugeriu a
facilitação da sua leitura por meio da dicionarização da sinonímia utilizada
inclusive em função da rima e da métrica. A soma dessa dicionarização às
notas explicativas resultou num "apêndice que, por si próprio, já
constituiria outro livro", no dizer do prefaciador Marcos Vinicios Vilaça.
Agora, Ricardo pedia um título geral mais palatável. Dei-lhe razão e, de
repente, atinei para o significado parlamentar daquelas quatro orações,
reunidas num “Discurso das gentes do Brasil”.
Minha experiência com o “Índio” tornou a “Oração pelo Negro” menos
laboriosa.

SUMÁRIO

I - ORIGEM
Ambição de riqueza dá motivo
à guinada do luso navegante
para o negro, filão mais produtivo
que o do flavo metal, pois inconstante
é o lucro do múnus extrativo
comparado ao proveito resultante
de prender com o fim de escravizar
africano capaz de trabalhar.

II - CAMINHADA,
Concluída mais uma vendição
de africanos, porteira escancarada
de curral facilita a introdução
do magote seguinte de negrada
para mais uma infame transação
a dinheiro em geral realizada
logo após terem sido arrebanhados
os brigantes da morte resguardados.

III - TRAVESSIA
Em Benguela, Benim, Congo, Loanda
são os negros jogados no porão
v

de navios e quase sem vianda


se sujeitam a ingente provação
sublinhada de açoites de parranda
mercadora da negra escravidão;
sem cessar, maldições dos condenados
se propagam nos ares infectados.

IV - CHEGADA
Ao saírem os negros dos veleiros
pós viagem tangida pelos ventos
investigam os ares brasileiros
na esperança de fim dos sofrimentos
indizíveis impostos por negreiros
desde a África mãe; entre lamentos
mal se firmam nos pés, o ventre pando
com visível esforço carregando.

V - BRASIL
Trinta anos passados do achamento
do Brasil, se inicia a importação
de africanos, porquanto arreliento
o nativo se opõe à escravidão
com borduna, arco, flecha e ardimento;
sendo assim só existe sujeição
quando tribo rival vitoriosa
faz com branco permuta injuriosa.

VI - NEGÓCIO
Africanos sem conta amontoados
em imundos currais ou barracões
se sujeitam, ainda agrilhoados,
à humilhante rotina dos leilões;
entre eles, ex sobas arrancados
de seus tronos à força de facões
dos imbôs a quem deram negro irmão
por nonada, vileza sem perdão.

VII - RECRUDESCÊNCIA
Há vestígios de tráfico negreiro
no Brasil desde o pré-povoamento
presumindo-se escravo pioneiro
tenha estado no próprio chegamento
de Cabral, dado o fato costumeiro
v

de se achar servidão em crescimento


no país lusitano, mediatário
desse trato vicissitudinário.

VIII - AVEZAMENTO
Se sucedem as ondas de africanos:
os novatos (boçais) recém-chegados
e os ladinos (escravos veteranos)
assimilam costumes imperados
pelos brancos senhores soberanos
incluindo-se os métodos usados
no plantio da cana e produção
de um dulçor amargoso à escravidão.

IX - INFRINGÊNCIA
Eminências da Igreja arrazoam
a favor da ousadia de negreiros
que diplomas legais amaldiçoam;
esses lobos vestidos de cordeiros
traficantes vorazes apregoam
africanos trazidos por tumbeiros
e os repassam (servis ambicionados)
a senhores, de escravos precisados.

X - MALTRATO
Ao trabalho tangido à chicotada
é o negro sujeito comumente,
avania na história registrada
e em poemas notáveis, igualmente;
negritude da pátria desterrada
é, de insanos castigos, padecente
em “novenas” que brancos impassíveis
acrescentam de horrores indizíveis.

XI - OPRESSÃO
É o negro oprimido e vigiado:
atitudes, costumes, vestuário
que perturbem o branco ensimesmado
dão motivo a ditame autoritário
do governo, de pronto decretado
e arguido de modo temerário:
proibidos são gritos, vozeria,
alaridos, batuques, cantorias.
v

XII - QUILOMBOS
Quilombolas se opõem com braveza
aos pretensos senhores do poder;
desconhecem a força e a riqueza
de opressores dispostos a render
os fugidos da branca malvadeza
pois vigor eles têm pra suster
uma guerra pra além de centenária
apoiada na ardência libertária.

É de se destacar que se a oitava heroica domina as vinte e cinco seções do


poema, a décima terceira seção, justamente dedicada a Zumbi dos
Palmares, é composta em décimas de cunho popular, com seus decassílabos
rimados em abbaaccddc, típicos do martelo agalopado da tradição oral
nordestina. (Marcos Vinícios Vilaça, da ABL)

XIII - ZUMBI
Sendo o índio ferido no seu brio
e feroz oponente à escravidão
o colono recorre à importação
de africano trazido de navio
em regime de horrível passadio
onde a Morte também é passageira
e a caminho da costa brasileira
aniquila, de modo impenitente,
grande parte daquela negra gente
nos porões recobertos de sujeira.

XIV - INSURREIÇÕES
De Zumbi dos Palmares o levante
a despeito de ser o mais famoso
entrevero não é predominante
sobre os outros; o grito corajoso
do servil reproduz-se, estridulante
afrontando senhor imperioso
contra o qual se propaga a insurreição
carregada de ingente vexação.

XV - LEIS
Raça branca, da negra castradora
sobre esta se impõe tão sobranceira
que lhe aplica (deslavada ditadora)
v

punição “adequada e justiceira”


“ necessária doutrina inibidora
de revolta iminente e traiçoeira”;
assim, vivas à branca repressão
“pelo bem” da brasília salvação.

XVI - IDEIAS
Pai Tomás, personagem consagrada
ultrapassa as barreiras da ficção:
sua saga, tão bem romanceada
faz pensar o pior da escravidão
no Brasil e é aqui utilizada
feito arma a favor da Abolição
que, entretanto, precisa inda avançar
e o de então Parlamento conquistar.

XVII - ABOLICIONISMO
O litígio abolicionista
quatro séculos, quase, em discussão
tem um padre, dublê de economista
nos começos do exame da questão:
abomina ele a sanha do escravista
liberdade apregoa, compaixão
e o amor do divino mandamento
no vazio do branco entendimento.

XVIII - ABOLICIONISTAS
A Nabuco, Joaquim, o negro deve
denodado combate libertário
que inda hoje na história se descreve
feito heroico, um sucesso temerário;
de justiça é, portanto, que se eleve
seu amor ao servil, muito ao contrário
de escravistas por quem é desprezado
salvo o braço, por todos disputado.

XIX - ESCRAVAGISTAS
Reivindicam, alguns escravagistas
pareceres de doutas eminências
contra ideias abolicionistas
sumidades notáveis, excelências
cujas falas, sem laivos altruístas
adormecem algumas consciências
v

inquietas com tanta iniquidade


praticada em total impunidade.

XX - RELIGIÕES
Em um ano e, por vez, tempo menor
negros viram também recitadores
do Pai Nosso – oração dita de cor
secundada de harmônicos louvores
entoados diante do altar-mor
por alguns afinados cantadores
cujos dons, exibidos a contento
lhes creditam direito a sacramento.

XXI – ESTÓRIAS
Tem Xangô – orixá da tempestade –
senhorio do raio e do trovão
lança pedras com grande habilidade
e dá nome, afinal, à devoção
iorubana; temida divindade
faz Xangô, sem parar, malinação
possuído de afã destruidor
e do mais poderoso resplendor.

CORREIO DA SAUDADE (33)

SUMÁRIO DE “ORAÇÃO PELO NEGRO” (CONCLUSÃO)

Ao querermos registrar o brilho mental do negro, fomos surpreendidos pela


enorme luminância de africanos, seus descendentes e simpatizantes. Logo
me convenci de que a utilização total do material pesquisado resultaria num
capítulo de extensão desproporcional à dos demais 28 deste poema. O que
fazer, então, com aquela intelectualidade tamanha sem cometer o pecado da
omissão de geniais sujeitos e objetos no meio social do seu tempo?
Acresça-se a isso a impossibilidade de a nossa própria pesquisa ter
alcançado, por inteiro, a bibliografia existente e em processo contínuo de
emergência neste nosso imenso arquipélago cultural. O impasse foi assim
resolvido: uma visão panorâmica, em apenas dez oitavas, dessa luminância;
e do material excedente nasceria um livro à parte intitulado “Viva o Gênio
Mulato Brasileiro”,

XXII - INTELECTUALIDADE
Há na história do negro uma viagem
inda hoje maldita, infelizmente,
v

pela costa escolhida de ancoragem


onde aguarda-o, inexoravelmente,
a pior, dentre todas, vassalagem
que à animália reduz a afro gente
são centúrias de cego preconceito
e repúdio à cessão de algum direito.

XXIII – DISCRIMINAÇÃO
Apesar do desejo de encobrir
seu racismo o alvadio discrimina
o negroide inda que superior
no intelecto e, por isso, mais ferina
é a pecha de gente inferior
que lhe atira – boçal e tamanina
renegando-lhe feitos valorosos
demandantes de esforços melindrosos.

XXIV - DISSENSÃO
Quando o branco, enlutado pela morte
sem remédio da esposa benquerente
(duros tempos) se dá nova consorte
tendo prole, portanto, diferente:
filho branco ou mestiço, vária sorte
de crianças que, ordinariamente
coabitam, compondo uma mistura
causadora de até grave ruptura.

XXV - PRECONCEITO
Cultivado prossegue o preconceito,
malsão joio comum nalgumas hortas,
desafio frontal ao bom Direito
lido, ás vezes, por linhas mais que tortas
sendo o negro ao pior inda sujeito
pois perduram as regras natimortas:
Lei de Arinos (Afonso) batizada,
Carta Magna igualmente ignorada.

XXVI - PARIDADE
Retratista do povo brasileiro
é Gilberto o escritor da paridade
racial, em conceito pioneiro
ideado num texto sem idade;
do Recife viaja o mundo inteiro
v

esse livro de só brasilidade


Casa Grande & Senzala, panorama
dessa eterna e amada Pindorama.

XXVII - MOBILIZAÇÃO
Um a um vão os negros escritores
e confrades de negros descendentes
assumindo o papel de defensores
da etnia em casos evidentes
de injustiça partida de opressores
ou pessoas com estes coniventes;
seus escritos em prosa e poesia
cobram paz e disparam ironia.

XXVIII - CONCLUSÕES
Modifica, decerto, a abolição
dos escravos a cor semifeudal
do Brasil; dá-lhe outra carnação:
a de novo país do capital
onde o negro prossegue em servidão
excluído e explorado (tudo igual
ou pior) pois se do amo libertado
é agora um liberto abandonado.

XXIX - APOTEOSE
Há de vir, algum dia, a gratidão
do Brasil ao seu negro, construtor
de um país que a partir da escravidão
tem se havido insolvente devedor
desse herói devotado à plantação
de riqueza na terra do senhor
laborando no eito, na moagem
na feitura de casas, na açudagem.

CORREIO DA SAUDADE (34)


v

PÉROLAS CULTURAIS
Pérolas da cultura, erudita ou popular, procedem tanto do meio acadêmico
quanto da chamada escola da vida. Preciosa bibliografia guarda tais
riquezas inclusive em despretensiosos almanaques, singelos cordéis e
sapientes provérbios, muitos dos quais “na ponta da língua” do povo:
”Quem é rico sem poder, empobrece sem saber”. “Pra mulherengo radical,
barbado só camarão”.

Repente de um famoso frasista, o escritor inglês Oscar Wilde, sobre


mulheres:
“São elas, principalmente, de dois tipos: as elegantes e as enfeitadas”.
E este outro, sobre o ressentimento:
“Triste de quem conserva uma víbora que se alimenta do seu próprio
sangue”.

De autor desconhecido:
Cedilha é barba do C,
B com I é bê-i-bi,
o 3 é o bucho do B,
o pingo é o boné do I,
o til é um S deitado
(sem valor estando só )
e o resfriado do som
torna fanhos A e O.

Do violeiro Oliveira de Panelas-PB:


A noite tem lamparinas
feitas de meteorito
a lua quarto crescente
de feitio tão bonito
parece uma rede armada
com os punhos no infinito.

SEMPRE ANTES, NUNCA DEPOIS...


A bordo da Jovem Pan viajei à Índia no sábado passado, a convite da moça
do programa Mala Pronta. Vi maravilhas da natureza e das artes indianas.
Ouvi, principalmente, a história do Imperador Shah Jahan e sua amada
Mumtaz Mahal, ambos protagonistas de um idílio que ainda resiste ao
tempo sob a forma de um mausoléu chamado de Taj Mahal (Joia do
Palácio), uma das sete maravilhas do mundo.
A obra, concluída em 1631, traduz a vontade do par amoroso de, para
sempre, ser lembrado. É que, embora Shah Jahan tivesse outras esposas,
v

Mumtaz Mahal era a preferida e “quando morreu fez três pedidos ao


Imperador”, conforme falou a moça do programa Mala Pronta.
Mas fiquei sem saber quais foram esses pedidos ante a fraqueza de uma
perplexidade que me deixou fora de tempo. Em vez de continuar ouvindo a
moça, fiquei pensando no pretérito perfeito por ela empregado (“quando
morreu fez”). Ao voltar a mim, consolei-me com a constatação de que
ainda está para nascer a pessoa que, depois de morta, tenha pedido alguma
coisa...

QUANDO O “MELHOR” DEVE SER “MAIS BEM”...


É impossível querer que todo brasileiro seja purista da sua língua mãe, nem
mesmo os comunicadores profissionais e seus - às vezes - notáveis
entrevistados. O próprio filólogo Manuel Bandeira, refere-se à “língua
errada do povo” dizendo-a correta pois não fazemos nada além de
“macaquear a sintaxe lusíada”. Porém essa simpática atenuante do maior
poeta brasileiro não nos isenta de falar corretamente, dever assumido desde
o tempo dos jesuítas e dos pioneiros do jornal, do rádio e da nossa
televisão. Machado de Assis revisava textos, os idealizadores da Mayrink
Veiga primavam pela radiofonia educativa e Assis Chateaubriand
colaborou, enquanto pôde, com uma atuação televisiva do melhor nível.
Levando em conta mais de cinco séculos de boa ou precária ensinança da
língua portuguesa, é de estranhar-se quem diga “melhor feito - melhor
preparado - melhor educado”, em vez de “mais bem”. Ou quem "prefira
abacaxi do que melão” em vez de “ao melão”. Ou quem volte “há dois anos
atrás” (em vez de, simplesmente, “há dois anos) para contar o que "fazem"
dois anos” que aconteceu, em vez de faz. Enfim, “O Recife alaga devido ao
inverno” em vez de “por causa”: devido é o que não foi pago. E não é "em
virtude" de uma gripe se falta ao trabalho: em vez de virtuoso um resfriado
é só virótico...
Seja como for, longe de apoiar quem maltrata nosso idioma, vamos levar a
questão na brincadeira: quando um amigo perguntou se era possível dar-se
três erros numa única palavra o outro, sem pestanejar, respondeu: depende
da cerconstança...

CORREIO DA SAUDADE (35)

ADVOCACIA EM CAUSA PRÓPRIA...


Eis aí algo equivalente a “dono puxando a brasa pra sua sardinha”. Não me
envergonho desse comportamento. Nem de “chover no molhado”, como
v

faço agora, a pretexto de entrar no assunto epopeia, ou poesia épica, gênero


literário que monumentalizo, com todas as vênias do poeta pernambucano
Manuel Bandeira, autor de memorável obra multiforme.
Epopeia é uma história contada em versos em vez de prosa. O grego
Homero é o criador desse formato em suas obras “Ilíada” e “Odisseia”,
secundado pelo romano Virgílio e sua “Eneida”, outra narrativa marcada
pela aventura e o heroísmo.
Seguem-se o italiano Dante Alighieri com a sua “Divina Comédia” e, já na
Idade Moderna, o português Luiz de Camões com “Os Lusíadas”. A
propósito deste genial poeta envergonha-me saber, aí sim, de atrevimentos
segundo os quais, em vez de poeta, ele foi apenas historiador. Felizmente
me sobram copiosas respostas, de ontem e de hoje, todas elas à altura de
tamanho desplante. Vejamos algumas.
No tricentenário da morte de Luís de Camões, em 1880, Lisboa lança, do
castelo de São Jorge, mil foguetes anunciando às fortalezas e navios de
Portugal o início do cortejo, descrito dois dias depois em matéria de quaro
páginas inteiras do Diário de Notícias. Este jornal anota “aglomeração
superior a cento e cinquenta mil pessoas, muitas lágrimas de
enternecimento e de alegria e a pátria de Camões erguer o vulto majestoso
do poeta numa luz eterna perante as nações da Europa”.
No Imperial Teatro D. Pedro II, diante de enorme público, o pernambucano
Joaquim Nabuco pronuncia discurso que pode ser resumido na frase “O
Brasil e Os Lusíadas são as duas maiores obras de Portugal”. Nabuco
promete que o Brasil saberá dar continuidade ao legado lusitano. Ainda que
aquele país submerja na vaga europeia, restarão cem milhões de brasileiros
em vibração luminosa e sonora, diz o orador, que assim conclui seu
discurso: “Por muitos séculos ainda, cada centenário de Camões terá novas
estátuas espalhadas pelos vastos domínios da língua Portuguesa,
eternamente tributários da glória do Poeta”.
No prefácio ao discurso de Nabuco, reeditado em l980 pela Biblioteca
Nacional, Maximiano de Carvalho e Silva assim se refere ao abolicionista
pernambucano: “Os estudos camonianos de Nabuco estão a reclamar
reexames ainda mais atentos e cuidadosos, sem o que não se dará o devido
relevo a uma das contribuições mais importantes à moderna Camonologia.
Reeditar esses estudos é, pois, contribuir para uma visão mais ampla e
correta do que tem sido a impregnação camoniana no processo de nosso
desenvolvimento intelectual”.
Vale concluir transcrevendo duas opiniões sobre a epopeia. Hoje em dia, a
grande maioria dos livros de poesia são coleções de pequenos poemas,
cristalizações de momentos especiais. Raramente se vê o que levou à
criação da poesia épica, do teatro em verso, dos poemas de arte maior dos
espanhóis. (…) Por também não saberem adaptá-los às condições de vida
moderna, os poetas deixaram que se degradassem os gêneros não poéticos e
v

caíssem em desuso gêneros capazes de ser aproveitados (a poesia narrativa,


por exemplo. (João Cabral de Melo Neto)
Penso que a épica voltará para nós. Creio que, novamente, o poeta contará
e cantará uma história. E não consideraremos essas duas coisas diferentes,
tal como não as consideramos diferentes em Homero ou Virgílio. De certa
maneira as pessoas estão ansiosas pela épica. Penso-a uma dessas coisas de
que os homens necessitam. (Jorge Luís Borges)
Diante do que acima se lê, resta-me lamentar que a informação cultural não
tenha alcançado, ainda hoje, os indiferentes a poesia épica, gênero literário
que, há quase três milênios, chegou para ficar, sem envelhecer...

CORREIO DA SAUDADE (36)

O CUSTO DE ADOÇÃO DA EPOPEIA...


v

Faltou falar, no Correio passado, sobre o preço a pagar por quem gosta da
epopeia. Este preço, às vezes alto, costuma ser imposto por autores
municipais de obras de validade temporária. Isso pouco importaria não
fossem eles costumeiramente incumbidos de julgar, em suas academias,
trabalhos de índole camoniana, inclusive, e menoscabados pela pecha de
palavreado trabalhado, porém, sem poesia.
Declaradamente avessos à antiga ou moderna poesia épica, esses jurados
são de causar estranheza por sua propagada condição de intelectuais. Entre
outras razões porque tal rejeição pode levá-los, de saída, a considerarem o
gênero epopeico vencido pelo tempo, parecer capaz de tornar inidôneas as
suas avaliações.
Ademais, nenhum autor hodierno pode ser desconsiderado por adotar o
épico, a menos que não tenha o que dizer ou até se aproprie de passagens
contidas em alguma obra desse gênero.
Mas a fome dos novidadeiros é insaciável. Eles já tentaram devorar
também o soneto, atribuindo-lhe o demérito de camisa-de-força dos poetas.
Ora, um soneto, dependendo do seu conteúdo, pode ser eterno ou
temporário, a exemplo de qualquer outro modelo de expressão poética. De
Olavo Bilac, o 13º item da Via Láctea ilustra, poderosamente, o que
queremos dizer.

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo


perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
que, para ouvi-las, muita vez desperto
e abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto


a via láctea, como um pálio aberto,
cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!


que conversas com elas? Que sentido
tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”.

Uma obra poética é boa ou não; ela pode surgir para permanecer falante ou,
de repente, sumir calada. Que o diga Machado de Assis, autor deste
imortal soneto À Carolina.
v

Querida, ao pé do leito derradeiro


em que descansas dessa longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro


que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados


da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados,

que eu, se tenho nos olhos malferidos


pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.

Os poemas de agora não “devem ser assim ou assados” como querem


certos recriadores radicais. Independentemente de idade ou de extensão
(tamanho não é documento...) apenas se espera que sejam bons, a exemplo
deste “Mulheres”, de Manuel Bandeira:

Como as mulheres são lindas!


Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
há, também, as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor, porém, não tem bondade alguma.
É fraco! Fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...
És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa
e tinham cara de pau)

De um poema, antigo ou novo, metrificado ou livre inclusive de rima rica


ou “pobre”, apenas se espera beleza. A exemplo da que se contém nesta
obra de Mauro Mota, genial enquanto existirem a bengala e a flora de onde
alguém possa “exilar um galho” e trabalhá-lo em 18 versos, nove dos
quais terminados em “ão” !
v

Nem o passeio nas ruas


do bairro da imigração
quando rosa rosamente
sobre ela fecha-se a mão;
nem sua ponteira de aço
e o ouro de lei do castão,
nem a oposta serventia,
tanger o cão e ser cão.
Nada compensa a bengala
da perdida condição,
do exílio da galharia,
do verde da floração,
do ramo onde o passarinho
cantava a sua canção.
Fino enxerto ambulatório,
tenta replantar-se em vão,
e é arrancado novamente
cada vez que toca o chão.

Entre nossos admiráveis poetas populares avultam Pinto do Monteiro e


Patativa do Assaré. Herdeiros de um espólio cultural originado em Portugal
no Século XVI, eles também rimaram relatos orais em moda no seu tempo,
então declamados, cantados ou publicados em folhetos e livros. Nem
Patativa nem Pinto quiseram revolucionar o legado lusitano e,
simplesmente, o preservaram com seu extraordinário dom poético. Diz
Pinto do Monteiro:

A cascavel se confia
no veneno que conduz.
Quem por ela for picado
pode rezar pra Jesus,
e encomendar quatro coisas:
caixão, cova, vela e cruz

Por sua vez, Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, é


considerado o “Camões do Sertão” num estudo do premiado escritor
mineiro Alexandre Azevedo. Porém o modesto Patativa não se achou à
altura do honroso cognome e do alto do seu estro tece louvores aos notáveis
feitos do Poeta:

Daqui, da distante serra


de Camões o que direi?
v

Seja na paz ou na guerra,


que ele foi grande eu bem sei
exaltou a sua terra
mais do que o seu próprio rei.
Este poeta imortal
é honra de Portugal
Poeta de alma fraterna
que alcançou grande vitória.
Sua musa doce e eterna
cantou a mais bela história
subiu para a Vida Eterna
dando ao berço a inteira glória
e por isso é sempre novo
no coração de seu povo.
E eu que das coisas terrestres
tenho bem poucas noções
porque não tive dos mestres
as preciosas lições,
só tenho flores silvestres
pra coroa de Camões
vendo a minha pequenez
ante o bardo português.

Eis o que, a todos nós, cabe ver. Divina, a poesia é ornamento da casa de
Deus, onde há muitas moradas, tanto para os antigos quanto para os novos
bardos que têm, verdadeiramente, muito a dizer e contar. Destes, sim, as
inovações serão sempre bem-vindas.
v

CORREIO DA SAUDADE (38)

“ORAÇÃO PELO ROMEIRO”


Nada interrompeu a marcha da tetralogia Discurso
das gentes do Brasil. Optamos por descrever a saga
romeira conforme o “martelo agalopado”, tão ao
gosto de cordelistas e cantadores nordestinos,
décimas fortemente marcadas por tônicas nas
posições 3, 6 e 10. Já havíamos ensaiado este
formato num único episódio da “Oração pelo
Negro”, o 13º. posto em destaque pelo prefaciador
Marcos Vinicios Vilaça. O sumário do romeiro
também resume o conteúdo da obra.

I – PRÓLOGO
A República, mal recém-chegada,
canhoneio dispara sobre gente
a Antônio dos Mares reverente,
multidão pela pátria deserdada
desde outrora e ainda descuidada
mais que fora durante o findo Império
todavia menor em revertério
que o regime novel de impopulares
leis contrárias ao jeito de milhares
de inditosos sem voz nem salvatério.

II – PRESSÁGIO
Dito graça dos céus é um “cometa”
ideado por Deus, que, de infinito
bem-querer a Canudos, chão bendito,
v

acha bom realçá-lo no Planeta


ativando, em pessoa, a espoleta
de um projétil mortal contra a estiagem
ressecante de safra, de pastagem,
de pessoas e bichos do lugar
onde a água, impossível de tragar,
é sal puro existente até na aragem.

III – CONSELHEIRO
Desde a infância sofrida o Conselheiro
desconhece o que seja refrigério
e inda sofre a desdita de adultério
da mulher com meganha aventureiro,
– par de amantes em jogo traiçoeiro;
a partir desse amargo desenlace
jamais houve outra fêmea que ele amasse,
nem sequer tal “Joana Imaginária”,
escultora de bela estatuária,
artesã reputada multiface.

IV – PRESTÍGIO
O prestígio de Antônio, a olhos vistos
é crescente perante seguidores
que ele próprio recobre de louvores,
santa gente os dizendo, novos Cristos
explorados por déspotas malquistos;
dons excelsos lhe são testemunhados
por devotos enfim esperançados
com aquele divino Aparecido,
Santo Antônio dos Mares condoído,
v

Bom Jesus, protetor dos maltratados.

V – CANUDOS
Ideada entre morros circundantes
antevê, o Profeta, deslumbrado,
a Canudos que tem imaginado;
são seus sonhos voltados aos migrantes
e sermões como nunca feitos antes
transparecem amor à prima vista
por aquele lugar, cuja conquista
dá sentido maior a sua vida,
cidadela por ele instituída
fortaleza da fé conselheirista.

VI – PROFECIA
É Canudos sinônimo do mal
na visão radical de opositor
do beato, convincente pregador
e pivô de querela nacional
a partir de notícia de jornal
reclamando severas providências
repressoras das “graves insolências”
e uma turba disposta a defendê-lo
pelas armas, tamanho é seu desvelo
por aquele abridor de consciências.

VII – PRÉDICAS
Ao invés de eremita alienado
é Antônio dos Mares orador
talentoso, inspirado pensador,
v

taumaturgo e profeta respeitado


pelo vário saber amealhado
em leitura constante; a destemida
posição de viril republicida
o transmuda em imigo declarado
do Governo e, por isso, destinado
a morrer num conflito fratricida.

VIII – REBELDIA
Manifestos ousados do beato
de repulsa à República nascente
o transformam em réu reincidente
no “delito de aberto desacato
ao Governo”, pivô de desbarato
do regime recém-inaugurado
no país, de repente ameaçado
de retorno iminente à Monarquia,
pois, decerto, esse “louco” pretendia
ver Dom Pedro de novo entronizado.

IX – PERSEGUIÇÃO
Cada vez mais benquisto e acreditado
por crescente caudal de seguidores
o beato provoca opositores
desejosos de vê-lo censurado
pela Igreja e por ela excomungado,
proibido inclusive de homilias
exclusivas dos padres, primazias
que, entretanto, ele quer exercitar,
inclusive o direito de expressar
v

seu desgosto ante leis daqueles dias.

X – NÃO
Uma vez as, de então, prerrogativas
dos prelados tornadas sem efeito
pelo novo regime sobra o jeito
de implorar aos poderes decisivas
providências, medidas repressivas
contra estes romeiros rebelados;
à espera da vinda de soldados
se resolve eleger um delegado
capuchinho, preposto encarregado
de, em Canudos, conter os sublevados.

XI – ESTOPIM
Não se entrega o pré-pago madeirame
de novíssima igreja: tratantada
por juiz desonesto coonestada
em favor de um compadre; o ato infame
atribula o beato e tal vexame
se transforma, depressa, em estopim
de vindouro e medonho torvelim
culminado com fogo e danação
em Canudos, total destruição
da cidade sagrada, amargo fim.

XII – CONFRONTOS
Maceté é cenário do primeiro
entrevero mortal entre soldados
da Bahia e crentes aliados
v

do beato: fiel ao Conselheiro


o rebelde magote guerrilheiro
toca fogo em cobranças da “mal vinda
e maldita República”; e ainda:
põe soldados em fuga disparada.
Para a tropa atacante derrotada
mal começa a peleja e já está finda...

XIII - GUERRA
Um Febrônio de Brito, convencido
da vitória, reúne em Monte Santo
sua tropa fadada, no entretanto,
ao malogro a despeito de ter sido
adestrada a capricho e recebido
o de mais avançado em armamento;
esse grupo, julgado no momento,
o maior – se ao primeiro comparado –
não cogita jamais ser derrotado
e daí o otimista açodamento.

XIV – DEFESA
De manhã é rendido pelotão
noite adentro de olho bem aberto
pra inimigo, de escuro recoberto,
que intente possível incursão
com audácia temível de espião
equipado pra muitos abater;
e, por isso, depois do amanhecer
a vigília prossegue redobrada
até ser, outra vez, hora chegada
v

de o alerta seguir-se ao sol morrer.

XV – DESASTRE
Por romeiros de novo subjugada
a República vê-se compelida
a levar Belo Monte de vencida
na terceira ofensiva preparada
contra Antônio dos Mares; comandada
por bravio soldado de carreira,
vingaria não só Pires Ferreira
e Febrônio de Brito, derrotados,
mas a honra ofendida de alteados
paladinos da pátria brasileira.

XVI – REPERCUSSÃO
Os jornais do Brasil mais engravecem
a derrota da terça expedição
incitando extremada comoção:
violentos protestos estremecem
capitais do país e se emudecem
porta-vozes da imprensa monarquista;
se propaga tal fúria revanchista
que assassínios ocorrem de apontados
partidários dos “loucos rebelados
do maldito arraial conselheirista”.

XVII – VINGANÇA
É urgente vingar aquela “afronta
ao Brasil, desonrado e envilecido
por um louco beato enfurecido,
v

desordeiro insolente além da conta”;


assim sendo depressa fica pronta
nova tropa que, então, Artur Oscar
e colegas aceitam comandar:
generais Savaget e João Barbosa
que, irmanados na alma belicosa,
querem tantas derrotas desforrar.

XVIII – ADEUS
Em Canudos já quase não se avista,
do Beato, a imagem agoureira;
por detrás da cortina de poeira
dos combates Antônio, belicista,
se recolhe e escreve, biblicista,
sua fala final de despedida,
se sentindo saído desta vida
para outra – a eterna – na esperança
de gozar toda a bem-aventurança
por Jesus no Evangelho prometida.

XIX – FIM
Iminente é o fim dos guerrilheiros:
a Antônio Beato um general
determina que volte ao Arraial
pra conter de uma vez seus companheiros
inda em luta; os “fanáticos guerreiros”
suas vidas teriam preservadas
pelas tropas legais vitoriadas;
numa hora se sabe o resultado:
Beatinho retorna acompanhado
v

de trezentas pessoas esfaimadas.

XX - CRÍTICAS
A notáveis figuras do Direito
associam-se vários jornalistas
pra evitar que inda mais conselheiristas
se consumam no ódio e preconceito
de agressores sem mínimo respeito
pelos pobres romeiros de Canudos
derrotados, famintos e desnudos;
agregados às tropas que se vão
canudenses padecem danação
sejam estes adultos ou miúdos.

(Continua)

CORREIO DA SAUDADE (39)

SUMÁRIO DE “ORAÇÃO PELO ROMEIRO”

XXI – CONTESTADO
Quinze anos depois a mortandade
volta em tudo análoga à primeira
Contestado inundando de sangueira:
morrem gentes que, por ingenuidade,
atribuem excelsa santidade
a beatos; ao passo que predicam
Zé Maria e João as certificam
da importância de crer na promissão
v

de um regime, afinal, de redenção


tal qual muitos carentes reivindicam.

XXII – MONGES
Diz a história que estranho viajor
pioneiro penetra a região:
João Maria Agostinho, profissão
eremita, esforçado construtor
de cruzeiro e capela, preletor
dos demais do seu tempo diferente:
nutrientes consome frugalmente,
martiriza-se (um santo!) todo dia
e tem própria ideal teologia
pra exemplar humildade a toda gente.
XXIII – TAUMATURGO
Zé Maria demonstra propensão
para o bem; monge alegre e amigável
de curar tem o dom incontestável
e até causa uma enorme agitação
ao obrar, de um rapaz, ressurreição;
tempos antes de dar ao “falecido”
nova vida, havia resolvido
a questão da gravíssima doença
de uma dama; daí a benquerença
conquistada de esposo agradecido.

XXIV – REVOLTA
Gota d’água do caso Contestado
é o ponto final da construção
de uma estrada de ferro, a demissão
v

coletiva do mal remunerado


operário que fora contratado
para as obras agora terminadas:
mais de dez mil pessoas atiradas
na penúria, iguais a cães sem dono
no aviltante vexame do abandono
enfermiças e ao léu, esfomeadas.

XXV - SANTIFICAÇÃO
Pouco tempo depois é deflagrado
um combate feroz e sanguinoso
entre mílite e monge opinioso,
para ambos de triste resultado:
brava gente se vai de cada lado,
inclusive o raivoso comandante
da milícia, bem como o pervagante
Zé Maria, em cuja sepultura
se coloca, de tábua, cobertura
pra mais fácil livrança do ocupante.
XXVI – EMBOSCADA
Antevê Manuel, moço “vidente”,
que hão de as armas possantes dos soldados
enguiçar e, portanto, derrotados
os “peludos” serão, completamente,
pelo bando “pelado” combatente;
entretanto se abala toda a crença
no profeta caído em malquerença
por levar para o leito dos amores
duas virgens meninas, grave ofensa!
XXVII – FOGUEIRA
v

Militares nos brios ofendidos


deliberam agora retornar
ao teatro da guerra e derrotar
(vingativos, irados e munidos
de efetivo maior) esses “bandidos”
desta vez sujeitados a um poder
combativo impossível de conter;
a caminho, de ódio envenenados,
carbonizam romeiros encontrados
de atalaia, em furor de estarrecer.
XXVIII – REFORÇO
Fortalecem-se as hostes resistentes
quanto mais valorosos se apresentam
seus guerreiros; forâneos se acrescentam
toda hora às fileiras combatentes
sob chefes romeiros diligentes,
entre os quais se destacam as figuras
temerárias de audazes criaturas
feito Elias Morais e o implacável
Chico Paes comandante formidável,
lutador sem recuos nem tremuras.
XXIX – REAÇÃO
Vaqueanos a dedo recrutados
entre os mais atilados do lugar
se encarregam, servis, de encaminhar
umas quinze centenas de soldados
aos redutos rebeldes destinados
à extinção; liquidar a “resistência
monarquista” transforma-se em premência
do governo, empenhado em destruir
v

o “inimigo” de modo a reduzir


duração dessa guerra de inclemência.

XXX – SIMBOLISMO
Os “pelados” opõem resistência
a qualquer candidato a habitante
do Arraial que pratique a degradante
profissão do comércio; é exigência
para ali ter a sua residência
declarar-se a favor da monarquia
posto que sem demora Zé Maria
voltará com reinado, inda que sangue
se derrame do povo quase exangue
porém crente na aurora desse dia.

XXXI – REFORÇO
Não se abate a República afrontada
pelo tosco guerreiro monarquista
e recruta afamado estrategista,
general de perícia comprovada
para, à frente de tropa reforçada,
destruir, finalmente, os rebelados;
contingente de sete mil soldados
pressiona o lugar Santa Maria
onde a gente crendeira se homizia
preparada pra ataques esperados.

XXXII – ANIQUILAMENTO
“Quadro Santo” se faz Santa Maria
sem igual em valente resistência
v

aos ataques de extrema violência


do governo; mas nada há de restar
do reduto rebelde: é de chorar
ver milhares de crédulas moradas
por incêndios contínuos destroçadas,
ver famílias inteiras consumidas
pais crendeiros doando suas vidas
pelas proles em tudo desvalidas.

XXI – CONTESTADO
Quinze anos depois a mortandade
volta em tudo análoga à primeira
Contestado inundando de sangueira:
morrem gentes que, por ingenuidade,
atribuem excelsa santidade
a beatos; ao passo que predicam
Zé Maria e João as certificam
da importância de crer na promissão
de um regime, afinal, de redenção
tal qual muitos carentes reivindicam.

XXII – MONGES
Diz a história que estranho viajor
pioneiro penetra a região:
João Maria Agostinho, profissão
eremita, esforçado construtor
de cruzeiro e capela, preletor
dos demais do seu tempo diferente:
nutrientes consome frugalmente,
martiriza-se (um santo!) todo dia
v

e tem própria ideal teologia


pra exemplar humildade a toda gente.

XXIII – TAUMATURGO
Zé Maria demonstra propensão
para o bem; monge alegre e amigável
de curar tem o dom incontestável
e até causa uma enorme agitação
ao obrar, de um rapaz, ressurreição;
tempos antes de dar ao “falecido”
nova vida, havia resolvido
a questão da gravíssima doença
de uma dama; daí a benquerença
conquistada de esposo agradecido.

XXIV – REVOLTA
Gota d’água do caso Contestado
é o ponto final da construção
de uma estrada de ferro, a demissão
coletiva do mal remunerado
operário que fora contratado
para as obras agora terminadas:
mais de dez mil pessoas atiradas
na penúria, iguais a cães sem dono
no aviltante vexame do abandono
enfermiças e ao léu, esfomeadas.

XXV - SANTIFICAÇÃO
Pouco tempo depois é deflagrado
um combate feroz e sanguinoso
v

entre mílite e monge opinioso,


para ambos de triste resultado:
brava gente se vai de cada lado,
inclusive o raivoso comandante
da milícia, bem como o pervagante
Zé Maria, em cuja sepultura
se coloca, de tábua, cobertura
pra mais fácil livrança do ocupante.

XXVI – EMBOSCADA
Antevê Manuel, moço “vidente”,
que hão de as armas possantes dos soldados
enguiçar e, portanto, derrotados
os “peludos” serão, completamente,
pelo bando “pelado” combatente;
entretanto se abala toda a crença
no profeta caído em malquerença
por levar para o leito dos amores
duas virgens meninas, grave ofensa!

XXVII – FOGUEIRA
Militares nos brios ofendidos
deliberam agora retornar
ao teatro da guerra e derrotar
(vingativos, irados e munidos
de efetivo maior) esses “bandidos”
desta vez sujeitados a um poder
combativo impossível de conter;
a caminho, de ódio envenenados,
carbonizam romeiros encontrados
v

de atalaia, em furor de estarrecer.

XXVIII – REFORÇO
Fortalecem-se as hostes resistentes
quanto mais valorosos se apresentam
seus guerreiros; forâneos se acrescentam
toda hora às fileiras combatentes
sob chefes romeiros diligentes,
entre os quais se destacam as figuras
temerárias de audazes criaturas
feito Elias Morais e o implacável
Chico Paes comandante formidável,
lutador sem recuos nem tremuras.

XXIX – REAÇÃO
Vaqueanos a dedo recrutados
entre os mais atilados do lugar
se encarregam, servis, de encaminhar
umas quinze centenas de soldados
aos redutos rebeldes destinados
à extinção; liquidar a “resistência
monarquista” transforma-se em premência
do governo, empenhado em destruir
o “inimigo” de modo a reduzir
duração dessa guerra de inclemência.

XXX – SIMBOLISMO
Os “pelados” opõem resistência
a qualquer candidato a habitante
do Arraial que pratique a degradante
v

profissão do comércio; é exigência


para ali ter a sua residência
declarar-se a favor da monarquia
posto que sem demora Zé Maria
voltará com reinado, inda que sangue
se derrame do povo quase exangue
porém crente na aurora desse dia.

XXXI – REFORÇO
Não se abate a República afrontada
pelo tosco guerreiro monarquista
e recruta afamado estrategista,
general de perícia comprovada
para, à frente de tropa reforçada,
destruir, finalmente, os rebelados;
contingente de sete mil soldados
pressiona o lugar Santa Maria
onde a gente crendeira se homizia
preparada pra ataques esperados.

XXXII – ANIQUILAMENTO
“Quadro Santo” se faz Santa Maria
sem igual em valente resistência
aos ataques de extrema violência
do governo; mas nada há de restar
do reduto rebelde: é de chorar
ver milhares de crédulas moradas
por incêndios contínuos destroçadas,
ver famílias inteiras consumidas
pais crendeiros doando suas vidas
v

pelas proles em tudo desvalidas.

XXXIII – CALDEIRÃO
Vinte e um anos apenas são passados
e é também destruído o Caldeirão
do beato Lourenço; nesse então
padre Cícero é santo popular
“em viagem” da qual há de voltar
ressurreto causando formidáveis
viravoltas, mudanças memoráveis
para espanto do incréu pois a pobreza
será bênção de Deus mais que a riqueza
de nababos de fato miseráveis.

XXXIV – PRECOCIDADE
Estimada pessoa especial
padre novo se instala em Juazeiro
e, depressa, é bem-vindo pioneiro:
sua simples igreja de arraial
habilita fiéis a um rural
afazer, de maneira a evitar
que dependam, um dia, de esmolar;
exclusivo pendente de oblações
resta Cícero, pois celebrações
que oficia recusa-se a cobrar.

XXXV – MILAGRE?
Juazeiro transborda peregrino
após hóstia sangrar na comunhão
da beata Mocinha; multidão
v

de repente aparece e é destino


da cidade-oratório nordestino
se afamar feito terra abençoada
e, por isso, querida e procurada
pelas gentes que, de alma e coração,
a creditam lugar de Promissão
pela Santa Trindade assinalada.

XXXVI – LOURENÇO
Aos quatorze ele cuida de escapar
de seu pai por quem é ameaçado
de sofrer chicotaço reforçado;
dá, portanto, asa aos pés para voar
de Pilões ao abrigo de um lugar
confiável de nome Serraria
onde, escravo, trabalha noite e dia
amansando cavalo e burro brabo;
quando dá de voltar ao fim e ao cabo
já paterna morada não havia

XXXVII – “MANSINHO”
Padre Cícero é presenteado
com um belo exemplar de guzerá
melhor touro zebu do Ceará,
vigoroso animal bem-comportado
e, por isso, “Mansinho” apelidado
pelo povo do sítio Baixa d’Anta;
portador natural de “calma santa”
é o bicho ofertado ao bom “Padim”
e assim sendo não quer comer “capim
v

pecador”, para o qual tranca a garganta...

XXXVIII – SUCESSOR
Não pretende, Lourenço, do “Padim”
o lugar, mesmo sendo o mais capaz
de assumi-lo, silente quão loquaz
quando é hora de usar o seu latim
haja vento suave ou torvelim;
faz-se, pois, o suplente natural
desse padre de jeito sem igual;
quanto mais abatido lhe aparece
o beato Lourenço fortalece
com o pão, também espiritual.

XXXIX – INVASÃO
Quatrocentos casebres devassados
dão motivo a bravíssimo protesto
de velhinha ante dano tão molesto;
do profundo dos olhos marejados,
mãos trementes e lábios ressecados
admoesta tenente imperioso
para a força de um Deus judicioso
muito acima do injusto ser humano
suscetível, até por ledo engano,
de causar malefício abominoso.

XL - EPÍLOGO
Resumindo a romeira maldição:
no princípio, Canudos destroçado;
quinze anos depois o Contestado;
v

vinte e um, explodido o Caldeirão


no furor da maior descompaixão:
na verdade massacre mascarado
de defesa do Estado ameaçado
por perigos de fato inexistentes
pois apenas desejam, pobres gentes,
derreter os grilhões dos potentados.

CORREIO DA SAUDADE (41)

A PROPÓSITO DE PESQUISAS...
Acostumei-me a uma ressalva feita, religiosamente,
pelo antropólogo Gilberto Freyre antes de declarar a
qualquer de seus entrevistadores quais autores
preferia em determinados gêneros do multiface
âmbito do saber. Ele sempre respondia a partir deste
proverbial começo: “Entre os autores que
conheço...”
Longe de presumir-me um gilbertiano a mais, apenas
me atrevo a arriscar que essa talvez fosse a maneira
de o Mestre de Apipucos ter em mente aquele
suposto dizer socrático “só sei que nada sei”.
Honro-me de ter podido absorver, ao vivo, este
precioso ensinamento, que agora utilizo para
responder pergunta do irmão-eletivo Jorge José B.
de Santana, meu colega na classe ministrada em
v

pessoa pelo autor de Casa Grande &Senzala, “O que


você está achando dessas pesquisas?”
Nada, caro Jorge. Até aqui não participei delas
sequer na condição de pesquisado o que, decerto, me
desautoriza a avaliar qualquer uma. Posso, portanto,
apenas falar das que conheci no passado, três das
quais guardo na lembrança. A primeira delas, data de
1949. Aos 19 anos de idade eu começava na
radiofonia cearense. Os donos da minha singela
emissora ansiavam por índices que os posicionassem
no mercado. Como sobreviver sem o apoio dos
senhores anunciantes tão ávidos de números?
Resolveram, então, contratar pesquisa de opinião na
esperança de uma comprovação que, de alguma
forma, inibisse a prepotência da sua concorrente
única, pretensa dona do equivalente a 90% da
audiência estadual.
O batimento de martelo nesse gênero de negócio
depende , muitas vezes, da colocação em prática de
ideias inerentes a experimentados mercadólogos. Só
eles têm competência para favorecer clientes, pelo
menos durante o período das pesquisas. Isso pode
ser pouco, mas é melhor do que nada. Pensando
assim, minha emissora cumpriu o ardiloso dever de
casa que lhe foi aconselhado pela empresa
pesquisadora. Outubro começava. Entre outras
iniciativas, havia tempo para a formação de uma
espécie de consórcio de anunciantes que, a custo
simbólico, patrocinassem “Semana do Ouvinte
Premiado” a ser realizada no entorno de 4 de
v

dezembro, a pretexto de comemoração do Dia


Mundial da Propaganda. Cada patrocinador
terminava todos os seus anúncios dessa semana com
uma palavra-chave exclusiva para anotação e envio
pelos ouvintes no fim da promoção. Conforme o
grau de acerto das suas anotações os ouvintes
poderiam comprar - do brinquedo ao automóvel de
verdade - com descontos proporcionais até 25%. A
promoção influiu fortemente na audiência, claro.
Minha segunda lembrança de pesquisa vem de l965,
quando a Rádio Tamandaré deu de tornar-se
exclusivamente musical em vez de continuar
concorrente da sua então coirmã “associada” Rádio
Clube, inclusive em cobertura de futebol.
O primeiro passo nessa direção foi testar a ideia.
Durante quatro domingos à tarde preencheu o
horário esportivo com música, preferencialmente
dançante. Era o tempo do rádio baile, quando as
pessoas ainda costumavam arrastar os móveis e
dançar na sala de visitas. Rareavam os prédios de
apartamento e a abordagem residencial porta-a-porta
era comum. Uma equipe de pesquisadores muniu-se
de rigorosa listagem musical onde figuravam títulos,
intérpretes e horários aproximados de cada tocata.
Donos de casa admitiram que, realmente, dançavam
ao som da Tamandaré, mas o Rádio Jornal era a sua
emissora preferida...
Minha terceira lembrança é de quando cuidei da
conta publicitária da Caderneta de Poupança Apepe.
v

Até então nunca anunciei na Globo, porque o


patrocínio de uma quota do Miss Pernambuco na TV
Clube me dava, por ano, comerciais que eu
distribuía mensalmente com bastante folga. A
propósito, surpreendi meu cliente com o curioso
resultado de pesquisa de boca de caixa a qual ele
concordou. Enquanto o poupador(a) sacava ou
depositava na sua caderneta de poupança, tinha
tempo suficiente para marcar quadradinhos
respondendo se via ou não via TV, qual a TV que
mais via, de quais dos nossos comerciais ele(a) se
lembrava de ter visto: 1- O do automóvel acelerado
ensinando a chegar na loja; 2- O das
“recepcionistas” distribuindo cofrinhos com
bandeira do Brasil; 3- O do “economista” explicando
a Apepe, além de um comercial da Caixa Econômica
e outro do Bamerindus.
Do começo ao fim da pesquisa os resultados se
equivaleram: pouquíssimas pessoas confundiram os
comerciais, porém vistos pela grande maioria delas
na TV Globo, nunca veiculada.
É possível que não tenhamos dado resposta objetiva.
Mas, pelo menos sugerimos duvidar-se de pesquisa
isenta, sujeita que ela é a tantas imprecisões
inimagináveis. Enfim, vale parodiar o genial
Shakespeare: há muito mais coisas entre a pesquisa e
o mercado do que supõe o nosso vão
conhecimento...
v

CORREIO DA SAUDADE (42)

ORAÇÃO PELO RETIRANTE


Nascido no Ceará, cresci ouvindo e lendo histórias
de secas. Minha geração de 1930 fez coro com as
gerações seguintes em rezas, novenas e promessas.
procissões por bom inverno, recebido com
homenagens ao padroeiro São José. A céu aberto
tomei banho de chuva que dava cheiro especial à
terra crestada.
Percorri, em 1998, a serviço da Fundação Joaquim
Nabuco, parte do semiárido pernambucano, Vi de
perto mais uma estiagem, cujos estragos me deram
ideia do que ouvi sobre a tragédia de 1888, sempre
contada por minha mãe, de gentes e bichos
morrendo sob nuvens de esfomeados urubus.
Já o padre Serafim Leite contava seca na Bahia, em
1559. Por sua vez, o jesuíta Fernão Cardim registrou
, em 1853, a ocorrência de estiagem naquele estado e
em Pernambuco, lugar de "grande fome,
principalmente no Sertão de onde, socorrendo-se dos
brancos, desceram quatro ou cinco mil índios”.
Desde então o fenômeno se repetiu sem que nenhum
discurso técnico, político ou literário desse fim a este
drama nordestino, malgrado descumprida promessa
de Dom Pedro II e repetidas denúncias caídas no
vazio até tempos recentes. Por isso as vozes não
podem silenciar até que inabalável vontade política
dê fim a este genocídio continuado.
v

Associei o destino litorâneo do retirante da seca


nordestina ao galope à beira-mar, modalidade
poética popular cuja criação é atribuída ao repentista
cearense José Pretinho. Conta-se que, perdedor de
um desafio em martelo agalopado, Pretinho buscou
consolo nas areias da praia fortalezense de Iracema,
onde o marulho das ondas lembrou-lhe o estrépito de
cascos cavalares em movimento. Daí o galope à
beira-mar.
Por razões óbvias dei-me licença de não repetir o
décimo verso -“cantando galope na beira do mar”-
obrigatório em cada final de estrofe desse modelo
poético aqui adotado em 11 sílabas métricas
marcadas por tônicas nas posições 2, 5, 8 e 11.
O sumário abaixo dá ideia da obra inteira.
I - PRÓLOGO
Na Bíblia se lê sobre o mal da estiagem,
amarga mazela datada de antanho:
o povo de Deus no pesar sem tamanho
da perda total de lavoura e pastagem,
humanos e bichos (infausta visagem)
de fome e de sede morrendo; quem há de,
milênios depois, conceber divindade
capaz de ostentar atitude insensível,
mais própria de índole incompassível
ou siso instruído na excentricidade.

II - ESTIGMA
Sequer a Colônia assinala a estiagem,
v

tampouco a conhece, de fato, o Império;


somente a República, enfim, leva a sério
o assunto saindo de obras à margem
do cerne do drama: sabida voragem
de verbas de ajuda só torna aumentada,
de secas em secas, gastança pra nada
porque ninharia se faz, na verdade,
o muito a obrar ante a necessidade
da gente sofrida e, pior, dizimada.

III - SIMPATIAS
Aposta o campônio na própria ciência,
primária noção baseada em sabença
de longe provinda; fiado, dispensa
diploma erudito pois antevidência
também lhe confere invulgar competência
pra ler na caatinga e nalguns animais
de inverno ou de seca distintos sinais
mandados de graça por quem tudo sabe,
um Deus cuja excelsa mestria não cabe
no siso terral de doutores formais.

IV - PROFECIAS
Da mais transparente religiosidade
o homem do campo transporta-se ao Alto
em busca de todos os bens de que é falto:
transmuda os receios à calamidade
do estio mal vindo em chuvada à vontade;
entrega-se a Deus que lhe põe profecias
na boca incapaz de charlatanarias
v

pois vêm dos céus, afinal, predições


de, em vez de sequeiros, só aluviões
enchentes saudadas com Ave-Marias.

V – TRAGÉDIA
De súbito chega a tragédia sabida
por quem já conhece o seu ciclo infalível
de imenso flagelo, tortura indizível;
no entanto demora, retarda a partida
o bravo habitante da terra incendida
por limbo candente que, presto, a invade;
não foge às carreiras pois mais ninguém há de
amar, mesmo seco, seu chão natalício,
torrão merecido de até sacrifício
da amara existência em necessidade.

VI - FOME
Razão de desordem na sociedade
e causa maior de finança falida,
a seca destrói os sustentos da vida:
esgotam-se as águas ainda bebíveis,
pastagens se crestam, calores terríveis
requeimam lavouras; no povo faminto,
sedento e exaurido prorrompe o instinto
de sobrevivência; pedintes ao léu
fiados imploram de olhos no céu
a volta do verde ao terreno destinto.

VII – CURRAIS
v

Costumam histórias de grande estiagem


partir do sertão para até Fortaleza,
enfim terminal do migrante: a fraqueza
de tantos governos de má arbitragem
é causa de caos, perversão, ladroagem
e ardor de um cenário geral de miséria
que torna a secura inda mais deletéria:
abarracamentos – currais humilhantes –
mantêm cercados novéis retirantes
que sempre aparecem sem hora de féria.

VIII - LITERATURA
A arte da escrita influi para dar-se,
embora tardia, a importância devida
a tanta secura malsã repetida
e desse fenômeno a sério tratar-se,
expor-lhe as mazelas terríveis, cunhar-se
moderna palavra – caatinga – inventada
pra identificar a folhagem crestada,
fazerem-se estudos, discursos tocantes,
denúncias penosas, relatos chocantes
falando de angústia jamais aplacada.

IX - MÚSICA
No seu centenário é rememorada
a seca impiedosa de setenta e sete
dos mil e oitocentos; de volta à manchete
é como se ela queimasse o jornal
voltasse a matar o caboclo ancestral
v

porque Fenelon, jornalista disposto


ao pleno resgate daquele desgosto
de lágrima inunda os olhos do povo
em dez reportagens que trazem de novo
calor escaldante até no sol-posto.

X – AMAZÔNIA
Meditam na volta mal partem migrantes:
que ela se dê o mais breve possível
porque para eles não há mais horrível
castigo que irem a plagas distantes
e, à força, virarem pessoas errantes
no inferno verdeal do Amazonas sem fim
onde hão de enfrentar mil doenças e enfim
viver sob o medo a lendário animal
saído das águas, da mata letal
ou seringalista ladino e ruim.

XI – BORRACHA
A seca de Quinze destrói no braseiro
as roças que pode encontrar no Nordeste
e espalha por lá todo tipo de peste
que mais agudiza o pavor do sequeiro
e aquele que escapa dispõe-se ligeiro
a, embora temendo o desconhecido,
partir para um mundo no Norte escondido
em densa floresta onde mora a riqueza:
borracha abundante que cobra destreza
de quem a colhê-la se mostre aguerrido.
v

XII - SOLDADOS
Após o seu auge durante uns trint’anos
ressurge a borracha inda mais importante
pra Guerra Segunda, ação demandante
do dito produto: norte-americanos
na Grande Amazônia concentram humanos
recursos em busca da urgente extração
do que é, nessa hora, de mais precisão
e, assim, seringueiros mal improvisados
engrossam fileiras dos Três Aliados
varando a floresta no seu coração.

XIII - ESTUDO
A seca inda é um fenômeno eleito
por estudiosos notáveis em várias
ciências humanas e auxiliárias
de doutos juízos e autoridades
em vastos saberes e habilidades
inclusas sabenças em engenharia,
pesquisa bem como meteorologia
em busca de como melhor entendê-la
se não pelo menos, talvez, antevê-la
a fim de evitar inda mais latomia.

XIV - EPÍLOGO
Enquanto mendigam a pele enegrece
grudada nos ossos; finada a energia
aos montes falecem de hidropisia,
de fome e de sede outro tanto enlouquece;
porém nem assim quem escapa esmorece
v

tampouco maldiz o sertão ressequido


pois há de voltar logo esteja chovido
seu chão tão amado; depois do martírio
a chama da fé bruxuleia no círio
e tudo renasce a partir do perdido.

CORREIO DA SAUDADE (43)

VIVA O GÊNIO MULATO BRAILEIRO


Trabalhava eu no 2º volume da tetralogia “Discurso
das gentes do Brasil” quando fui surpreendido pela
extraordinária contribuição de africanos, seus
descendentes e simpatizantes com a inteligência
brasileira. Logo me convenci de que a utilização de
todo o material levantado resultaria num capítulo de
extensão desproporcional à dos demais 28 da
“Oração pelo Negro”.
O que fazer, então, com aquela intelectualidade
tamanha sem cometer o pecado da omissão de
geniais sujeitos e objetos no meio social do seu
tempo? Acresça-se a isso a impossibilidade de a
própria pesquisa alcançar, por inteiro, a bibliografia
existente e em processo contínuo de emergência
neste nosso imenso arquipélago cultural.
O impasse foi bem resolvido: para a “Oração”, dez
oitavas panorâmicas sobre a luminância mental afro-
brasileira. O que seria desproporcionalidade na
v

tetralogia foi reservado para livro à parte, chamado


de “Viva o Gênio Mulato Brasileiro” e assim
prefaciado por Marcos Vinicios Vilaça, imortal da
ABL:

“Este é um livro de bom gosto e pertinência.


Não poderia fazê-lo. Não tenho nem uma coisa nem
outra. A paciência na pesquisa e a articulação
estética do seu resultado darão muito gosto a quem o
entende. Não é livro para mera leitura. Antes,
necessário estudá-lo pelo tanto que tem de história
social, literária e econômica.
Albuquerque Pereira revela sua ampla base
cultural, indo daqui até ali com fluência e segurança.
Gostei de ver presente Antônio Pedro de
Figueiredo, patrono da minha Cadeira na Academia
Pernambucana de Letras. Chamado de Cousin Fusco
por quem pensava maltratá-lo, hoje resultou em
elogio à modernidade de suas posições e ao gesto
solidário das propostas no plano socioeconômico.
Gostei das aulas de rítmica poética que estão na
introdução. Gostei do amplo espectro de todos os
mencionados e de como foram explicados.
Por mais que conhecesse o Autor não o
imaginava na atualidade ao mencionar cantores de
anteontem, de ontem e de hoje. Dá um prazer
enorme que os tenha trazido para a convivência com
escritores do tipo de Gilberto Freyre, Sousândrade,
Domício da Gama, Artur Ramos entre tantos outros.
v

Em certa altura o livro é uma aula de


Sociologia: Leônidas, o esplendor de arte da bola. E
Portinari, Calasans Neto e Carybé.
Gostei de ver a justiça que faz a Josué Montello,
já um tanto desgraçadamente esquecido, embora seja
um dos mais notáveis romancistas do século XX em
língua portuguesa. Gostei da necessária referência a
Pierre Verger.
Enfim, gostei do livro todo. De agora em diante
se alguém esquecê-lo vai cometer um pecado mortal,
tal o alto nível de suas reflexões.
Neste momento um mulato, tal como Machado
de Assis na fundação, ocupa a presidência da
Academia Brasileira de Letras: Domício Proença
Filho. Sua mãe, minha saudosa amiga, ficaria feliz
em ouvir os confrades do seu filho proclamarem:
Viva o gênio mulato brasileiro.
Albuquerque Pereira não copia, mas recria. É
um danado de um trabalhador. Dá gosto perceber
tudo isto. Nabuco estaria feliz em tê-lo aos olhos,
como agora estamos nós, seus leitores.
Marcos Vinicios Vilaça
– da Academia Brasileira de Letras.

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

PRÓLOGO
Há na história do negro uma viagem
que ele ainda maldiz, infelizmente,
rumo a costa-destino de ancoragem
onde espera-o, inexoravelmente,
v

a pior - dentre todas - vassalagem


redutora de a bicho a afro gente
a centúrias de cego preconceito
e desdém criminoso ao bom Direito.

Inclusive rareia referência


de escritores de prosa e de poesia
que a colocam, somente, em evidência
quando brava guerreira e sem valia
comparada, porém, à proeminência
dada aos feitos da branca hierarquia;
quando um negro se faz protagonista
de um labor de poeta ou romancista 1

é por algo engraçado ou incorreto


encontrado em canhestra personagem
mais das vezes ligada a pobre aspecto
percebido ao acaso na visagem
brasileira, sem vínculo concreto
com seu drama avistado de passagem
e de longe por frios descritores;
porém pasmem! - despontam defensores

corajosos e bem fundamentados,


paladinos da causa dos cativos
e ao partido servil afiliados:
daí brotam, além de descativos,
muitos seres humanos resgatados
tantos mortos negroides redivivos
porta-vozes da preta erudição
v

luminosos prodígios de expressão:

diferentes formatos de poesia


ou de prosas de amor ou sociais
traduções da biotipologia
de africanos marcantes entre os quais
o valente, sobejo em galhardia;
o carrasco, verdugo dos iguais;
o honrado, exemplar na integridade;
o andrajoso, indutor de piedade 2

e o ingênuo negrinho serviçal;


no papel assumido de sujeito
é, porém, o mulato radical,
um modelo do horror ao preconceito
excludente do meio social;
sabe impor o seu límpido direito
de falar e escrever com ousadia
contra toda expressão de tirania: 3

repudia o labéu de rejeitado,


arrenega uma história falseada
pela qual é o afro injustiçado,
clama, enfim, autoestima resgatada
a partir da alforria de um passado
de opressão na senzala incendiada
pela chama de mil insurreições
cremadoras de relhos e grilhões. 4

Da garganta lhe sai, atroadora,


v

gritaria clamando reverência


à negrada do braço doadora
e também de profusa inteligência
sempre mais efetiva e criadora
no fazer com visível diligência,
no saber impossível de negar
seja este erudito ou popular. 5

Tão imenso é o elenco de valores


que não há como tê-los agrupados
em espaço restrito sem clamores
contra a lista de nomes olvidados;
eis por que serão esses obradores
pelo Autor neste épico alinhados
para estudo detido e por inteiro:
Viva o Gênio Mulato Brasileiro.

CORREIO DA SAUDADE (44)

VIVA O GÊNIO MULATO BRAILEIRO


Padre António Vieira (Lisboa-POR, 1608- 1697
Salvador-BA),

Desse padre se lê, na biografia,


bisavó africana escravizada
e uma avó que, mulata, lhe daria
pai vassalo de pele azevichada,
ascendentes negroides (quem diria!)
desse gênio de fama celebrada,
v

luso nato e eletivo brasileiro,


da palavra erudita um joalheiro.

Estreando no púlpito, Vieira,


no Sermão do Rosário dá conceito
da tez preta dizendo-a sobranceira
à branquela, por falta de até jeito
de esmaecê-la, pois firme e vanguardeira;
noutras falas censura o desrespeito
dos patrões ao domingo do Senhor
pois dá Ele ao escravo lidador

este dia bendito de parada


na labuta pra ida à Santa Igreja;
é, decerto, existência endiabrada,
desumana, infamante e malfazeja,
a de quem alma tem petrificada
a tal ponto que gente mercadeja
e descreve, com magno realismo,
o contraste existente, o imenso abismo

entre os brancos senhores orgulhosos


e os escuros humildes, miseráveis,
cada dia mais estes numerosos
e minguantes os níveos condestáveis;
entretanto, Vieira, desjeitosos
pareceres aprova, inexplicáveis,
a favor da africana importação
de servis, pastoral contradição.
v

Gregório de Matos e Guerra (Salvador-BA, 1636


– 1695, Recife-PE)
Foi Gregório listado no caderno
dos malditos poetas; acusado,
inclusive, de ser “Boca do Inferno”
por puristas do verso comportado;
porém bardo mostrou-se já moderno
pro seu tempo e, por isso, festejado
entre outros autores de poesia
que que inda hoje se lê e se gloria.

De Vieira nas ordens companheiro


foi Gregório um letrado irreverente
e temido, atrevido pioneiro
no formato ferino e contundente
de brilhar no parnaso brasileiro;
engenhoso, trocista e maldizente
desdenhou do exemplar miscigenado
e do negro, frajola e endinheirado;

reprovou, zombeirão, o cheiro ruim


- mesmo sendo ele padre com amantes
mulatinhas de odor também assim -
e pras quais teceu versos delirantes
de louvor ao cabelo pixaim
e aos secretos locais apaixonantes
dos seus corpos ebâneos de escultura
divinal na invulgar cinzeladura...

Os pecados que viu no semelhante


v

não faltou quem dissesse os cometia


esse bardo de pena lancinante
que a ninguém na verdade convencia
de ser santo varão moralizante
tal e qual nos seus versos se fingia;
não passava, portanto, de hedonista
escondido em picante satirista.

Foi ainda apontado plagiário


de poetas aos quais se assemelhava,
nesse tempo arremedo costumário,
ninharia que em nada o deslustrava
apesar da insistência do vigário
Dom Lourenço Ribeiro, língua brava,
redator de sem-fim catilinária
em razão só de inveja literária.

Também viu-se mazela fescenina


numa obra da qual sua autoria
é incerta, porquanto pequenina
comparada à evidente altanaria
de Gregório, escritor de genuína
expressão, portentoso em poesia
a despeito de haver contradição
nessa mais que espantosa posição:

lamentou não poderem mais senhores


massacrar, sem sofrer as consequências,
seus cativos e viu, de bons humores,
punições a três deles, inclemências:
v

mãos cortadas, patíbulo e horrores


simultâneos; incríveis truculências
culminadas com esquartejamento
em seguida a brutal enforcamento.

Versejou prazeroso, todavia,


sobre a história de um preto acanalhado,
roubador de bengala que lhe havia
(mais chapéu finamente trabalhado)
sido, às claras, furtada, certo dia
por um frade colega tonsurado;
às mulatas fez versos igualmente:
Mariana e Custódia, lindamente

retratadas em lúbrica poesia


com Anica, Vicência, mais Teresa
e Catona (da jovem negraria),
preta Córdula, monte de beleza;
exceção fez à fêmea velharia
despojada da prima boniteza
de Isabel, com o tempo combalida
na sustância e na alma entristecida.

CORREIO DA SAUDADE (45)

VIVA O GÊNIO MULATO BRAILEIRO

Giovanni Antônio Andreoni, ou João André


Antonil (1649–1716)
\
v

João Antônio Andreoni colocou


seus saberes em douta descrição
do que viu e num livro explicitou:
minudências da rica exploração
dos garimpos, aos quais acrescentou
o cultivo do fumo, a criação
dos rebanhos e o engenho de fazer
branco açúcar e negro padecer...

Condenou ele a sanha de feitores


que, à toa, cativos maltratavam,
inclusive mulheres que favores
deleitosos na cama lhes negavam;
igualmente anotou que maus senhores
eram mortos por negros que lhes davam
preparado mortal de feiticeiro
ou, masoquistas, matavam-se primeiro.

Nuno Marques Pereira (Cairu-BA, 1652 – 1728,


Lisboa-POR)

Nuno Marques, em nome do Senhor


apiedou-se do escravo; todavia
irritou-lhe, por ensurdecedor,
o singelo ruído da euforia
dessa gente: sonidos de tambor,
de ganzá e cantiga ou latomia
procedente de dança nominada
calundu, abusão “endiabrada”
v

a seu ver, porque “mestres mandingueiros


irmanados ao demo a comandavam;
outros negros, porém, bons rezadeiros,
em Jesus e Maria acreditavam
e, por isso, tornavam-se primeiros
que zelosos vigários agrupavam
entre membros de santas confrarias,
concedendo-lhes altas honrarias.

Registrou, Nuno, a venda de alforria,


alta fonte de lucro do senhor
cuja bolsa também se enriquecia
com os ganhos tirados do labor
do servil que, liberto, pretendia
ser, enfim, do patrão explorador;
sem olhar do dinheiro a procedência
(fosse ele produto de “indecência

de mulher”, de feitiço ou subtração)


o senhor o embolsava de bom grado;
e negrinhas, na prostituição,
iaiás brancas lançavam, aferrado,
seu impúbere sexo à servidão,
ganho fácil provindo do pecado;
esses atos, sabidos desonrosos,
eram praxe entre falsos virtuosos...
v

CORREIO DA SAUDADE (46)

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

Zumbi, Manuel Faustino dos Santos Lira (Recife-


PE, 1655 ? - 1695, Palmares - AL)

Não teria Zumbi se suicidado


(invenção de propósito criada
pra torná-lo figura gloriada)
mas, covarde, fugido ensanguentado
e na mata insondável se ocultado,
sumidouro até onde um delator
conduziu militar perseguidor
sanguinário por quem foi compelido
a entregar seu herói, envilecido
no papel de covarde traidor.

Ou aos vinte que apenas lhe restavam


o valente Zumbi determinou
subjugar a volante e sobejou
heroísmo de quantos defrontavam
os soldados; os negros obrigavam
o inimigo assombrado a os massacrar
pois nenhum aceitava se entregar;
só um deles então sobreviveu,
justamente Zumbi, que pereceu
degolado depois para exemplar
v

sua gente afinal desencantada:


jamais fora, Zumbi, um imortal
nem alguma entidade fantasmal,
tanto assim que a cabeça descarnada
numa ponta de estaca traspassada
comprovou-lhe o morrer definitivo;
não restava, portanto, mais motivo
de peleja, escapada ou rebeldia;
nenhum negro vivente inda nutria
a esperança fugaz de um lenitivo.

Pouco importam as dúvidas da História:


tenha sido Zumbi decapitado
ou no abismo, do alto se lançado,
nada existe a empanar a sua glória
se a derrota lhe trouxe esta vitória:
morto a espada ou lançado ao precipício
sobrevive o altaneiro sacrifício
de um herói cujo sangue foi preciso
pra irrigar o sonhado paraíso
do apresado liberto do flagício.

Certamente por isso o negro exalta


seu Zumbi com profundo sentimento;
para ele o real desprendimento
é exemplo hoje em dia em grande falta,
dar a vida por bem-querer ao povo;
e Zumbi a daria, sim, de novo,
planta negra sombreira e frutuosa
v

fronde amiga, bendita e dadivosa,


protetora do irmão, santo renovo.
(Até 4ª)

(CORREIO DA SAUDADE (47)

Frei Manuel da Madre de Deus Bulhões (1673-


1742)
Nos sermões e na prosa frei Gaspar,
tendo Madre de Deus por sobrenome,
dedicou-se, zoante, a censurar
(vozeirão comparado a um santo ingome)
o costume vigente de mercar
irmãos negros e nisso o seu renome
empregou de homem culto, sapiente,
na esperança de um tráfico morrente.
v

Frei António de Santa Maria Jaboatão (BA,


1695-1779)
Aos de cor respeitou e enalteceu
esse grande orador Jaboatão:
no Recife ele ao povo comoveu
São Gonçalo tornando num sermão
por patrono de fé; e engrandeceu,
no mais alto e bom som, a vocação
de negroides notáveis, doutorados,
e africanos fidalgos, coroados.

Pôs-se contra, porém, a rebeldia


do mulato guerreiro Calabar,
cuja troca de lado maldizia
sem, no entanto, negar-se a proclamar
a forteza que nele transcendia
por deixar-se prender e executar
sem tremores ao ser garroteado
e morrer pelo brio sublimado...

Domingos Loreto Couto (Recife-PE, 1700-1750)


Esmerou-se Loreto em exaltar
gente escura em geral, de toda sorte,
desde Henrique a Domingos Calabar
— um mestiço valente até a morte;
nenhum outro escritor pôde imitar
desse frade a linguagem de água-forte
v

sobre o negro africano ou brasileiro,


e o mulato acoimado traiçoeiro...
Padre Manuel Ribeiro da Rocha (Lisboa, 1700-
1778, Salvador-BA)
Mais um padre escritor a escravidão
combateu, festejado pregador
do conceito de “preto nosso irmão”
de quem Cristo também foi redentor
no Calvário da nossa salvação,
“negro de alma igualzinha à do senhor
seu patrão, portador de generoso
sentimento ou de gênio sanguinoso”...
Para ver de algum modo alforriado
o cativo africano envilecido
engenhou competente arrazoado
onde o negro podia ser remido
com dinheiro por si amealhado
sendo assim do grilhão restituído
ao estado de plena liberdade
usurpada com dolo e crueldade.

Tendo, pois, excedido como obreiro


ao labor firmemente dedicado,
viu o padre seu plano alvissareiro
por ministros e leigos aprovado
e com ele esperou, do cativeiro,
ver o fim entretanto inalcançado
no seu tempo de sonho e devoção
ao combate da negra escravidão.
v

ESCRAVO TEBAS, JOAQUIM PINTO DE


OLIVEIRA (Santos -SP, 1721-1811, São
Paulo-SP)

Arquiteto amador impressionante


foi o escravo de Tebas alcunhado:
esmerado no ofício de talhante
de rochedos, findou alforriado
por haver-se ele alguém determinante
para a tapipa ser meio abandonado
pela antiga São Paulo, finalmente
restaurada por negro inteligente,

Chico Rei (Congolês chegado no Brasil em 1740)


Eis mais um africano eternizado
na memória do povo brasileiro;
ao, enfim, se tornar alforriado
inda mais foi dos negros verdadeiro
defensor tendo até mina comprado:
Chico Rei, diferente garimpeiro,
deu ao ouro sublime aplicação
- liberdade ao negro seu irmão.
v

CORREIO DA SAUDADE (50)

VIVA O GÊNIO AFROBRASILEIRO

MESTRE VALENTM DA FONSECA E SILVA (Serro-MG,1745-


1813, Rio de Janero-RJ)

Valentim destacou-se no caminho


de escultor entre nomes maiorais
do seu tempo, talento carapinho
para honra dos próprios ancestrais,
gênio negro não mais no pelourinho
mas em obras de igrejas magistrais,
chafarizes e belas construções
que do Rio mudaram as feições.

JOSÉ TEÓFILO DE JESUS (Salvador-BA, 1758 — 1847, BA).

Derradeiro dos grandes da pintura


do seu tempo de glória na Bahia
também deu-se, Teófilo, à cultura
popular sem deixar a academia;
sua obra alcançou envergadura
invejável, a par de uma alquimia
entre o santo e o profano em discussão
inda hoje por quem faz criação.

MANUEL DA COSTA ATAIDE (Mariana-MG, 1762-1830, MG)

Também mestre, Ataíde foi parceiro


dos notáveis de então da arquitetura,
um Francisco Lisboa companheiro
dividido entre as obras de escultura
e o flagelo do corpo, mal ceifeiro
enfrentado, entretanto, com bravura;
Ataíde não tinha vinte anos
e já dava quinaus em veteranos,

admiráveis pintores espantados


com tamanha afoiteza inovadora:
v

os modelos por ele utilizados


eram gente do povo, portadora
de negroides sinais inda evitados
numa arte demais conservadora;
se era audácia anjo escuro nesse outrora
quanto mais negrejar Nossa Senhora...

(Continua)

CORREIO DA SAUDADE (51 )

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (Santos-SP, 1765-


1838,Niterói-RJ)

Sendo, enfim, o Brasil independente,


preparou Bonifácio exortação
corajosa, concisa e competente,
robustíssima em argumentação,
pleiteando ao reinado, urgentemente,
finamento da vil escravidão
por motivo inclusive humanitário;
pretendia conter o incendiário

vaticínio de negras convulsões


sanguinosas tais quais anteriormente
ocorridas; mas suas pretensões
se esvaíram porque, infelizmente,
malograram as considerações
desse Andrada honorável, sapiente,
cujo alvitre, se aceito, mudaria
logo a história da pátria economia.
v

PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (Rio de Janeiro-RJ,


1767-1830)

Um Maurício (José), padre e artista


deu concertos na Corte elogiados
por Dom João, grande fã do musicista
e regente dos mais apreciados;
seu talento de exímio instrumentista
igualmente deixava deslumbrados
cortesãos que lotavam auditórios
onde missas, matinas, responsórios

e outras peças do padre eram tocadas,


cada qual mais formosa e comovente,
entretanto em secreto criticadas
na Capela Real por descontente
grupamento de vozes revoltadas
com a honra “imerecidamente”
outorgada a polêmico mulato
brasileiro, gravíssimo destrato

do monarca que a lusos preteria


em favor de quem nunca havia ido
a Lisboa dotar-se de mestria
musical, desrespeito cometido
pela Corte que em erro prosseguia
confiando a Capela a um protegido;
mas Carlota Joaquina fez assim
para dar ao problema justo fim:

convocou Mestre Antônio Portugal,


o maior dentro e fora de Lisboa
em matéria de trato musical
que da sua gentil anfitroa
recebeu a missão especial
de testar até onde estava boa
a postura do padre ameaçado
de perder condição de apadrinhado.

Mesmo após dominar com brilhantismo


partitura extremada na exigência
reprovado ele foi em moralismo
sem direito nenhum a indulgência
v

em razão de severo inconformismo


com a sua notória incontinência
sexual expressada em mancebia
da qual prole sortida já existia...

( Continua)

CORREIO DA SAUDADE (52)

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

JEAN-BAPTISTE DEBRET (Paris-FÇA,


1768-1848, Paris-FÇA)

Do retinto cativo ou do mulato


brasileiro existia nessa altura
texto esparso em linguagem de relato,
simplesmente porque literatura
que pintasse melhor o seu retrato
não se achava, sequer, em conjetura;
cadê vozes timbradas no humanismo
de escritores de algum catolicismo?
v

Custou negro virar protagonista


feito o índio, sujeito principal
de escritores de livro indianista
louvador da existência natural
do silvícola, nato belicista,
morador de floresta virginal;
é que o preto lembrava a mais medonha
servidão a esconder – triste vergonha:

quando um negro retinto ou misturado


(meio afro, europeu outra metade)
figurava em trabalhos de letrado
exprimia somente a indignidade
de um vivente excluído e maltratado
pela então elitista branquidade
que jamais, por direito, o deixaria
figurar na erudita poesia,

exceção feita a heróis negros guerreiros


de inaudita coragem a serviço
do opressor dos seus próprios companheiros
e em poemas louvados só por isso;
motejados, porém, se corriqueiros
servidores medrosos e submissos
aos grilhões do regime escravocrata
imperado por branco aristocrata.
v

As elites, portanto, maldiziam


de Debret os desenhos, copiosos,
de cativos que, é claro, gostariam
de esconder da Europa, dolorosos
pelas cenas perversas que exibiam
de sevícias, maus-tratos ominosos
para povos pensantes e espantados
com os duros castigos aplicados.

(Continua)

CORREIO DA SAUDADE (53)

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

DAMIÃO BARBOSA DE ARAÚJO (Ilha de Itaparica-BA, 1778 -


1856, Salvador-BA)

Damião, violinista caprichoso,

exibiu-se ao regente Dom João

quando ainda era o príncipe operoso

na Real Salvador, não mais então

capital de um país esperançoso

na Coroa, na colonização

portuguesa, agora sob um rei

protetor, guardião de nova lei.


v

Damião transmudou-se em companheiro

do Regente quando este permutou

Salvador pelo Rio de Janeiro

e maestro de Banda o nomeou,

de Capela também o timoneiro;

no Palácio Real apresentou

Santa Missa em feitio musical

em momento de glória nacional.

PIERRE DE CHAPUIS ( França, 1790-?)

Aliaram-se inúmeros jornais


em favor da igualdade social,
periódicos bravos entre os quais
avultou “Verdadeiro Liberal”
irmanado aos supinos ideais
de extinção do repúdio racial
na cidade do Rio de Janeiro,
um reduto escravista brasileiro.

Paladino de negro injustiçado,


Chapuis, corajoso e altruísta,
fez campanha, na lei fundamentado;
mesmo assim, e por isso, o jornalista
acabou pela Corte deportado
mas seu posto vacante de ativista
foi por outro assumido numa prova
de que todo valente se renova.

AGOSTINHO BEZERRA CAVALCANTI (Recife-PE, 1790-1825)

Nem o mais elevado sentimento


de Agostinho e a rara valentia
demonstrada por ele no momento
v

de livrar do perigo que corria


o Recife de saque violento,
evitaram-lhe o travo da avania
de morrer enforcado, vergonheira
para um bravo soldado de carreira.

Eis por quê seus algozes apelaram


ao Conselho de Estado, esperançosos
de o livrarem da pena em que o lançaram
mas Dom Pedro e seu grupo de ominosos
conselheiros a morte confirmaram
desse negro, maior entre os zelosos
defensores da ordem social
do formoso Recife imperial.

MANUEL ODORICO MENDES ( São Luís-MA, 1790-1864, Londes)

Os poemas de Mendes, Odorico


espelharam ternura e simpatia
pelo negro, enaltecimento rico
em imagens de intensa nostalgia
e reproches ao tráfico impudico,
sentimento que o bardo inda trazia
de indeléveis vivências de criança
quando o acaso gravou-lhe na lembrança

o castigo sofrido por cativo


que deixou Odorico transtornado:
ante o povo risonho, insensitivo
aos gemidos do negro chicoteado,
o poeta encontrou o seu motivo
de um soneto primeiro dedicado
aos irmãos humilhados e ofendidos
por nascerem, sem culpa, escurecidos.

( Continua )

CORREIO DA SAUDADE (54)

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

PEDRO DA SILVA PEDROSO (Recife-PE, 1790-?)


v

Episódios reais extravagantes


dão ideia do tom conflituoso
entre negros e brancos habitantes:
na invasão do Recife por Pedroso
e demais exaltados protestantes,
povo negro alegrou-se, e desdenhoso
de alfacinhas e brancos batoteiros
entoou quatro versos zombeteiros.

Na cantiga, portugas (marinheiros),


e os da terra, chamados de caiados
-falsos brancos, nascidos brasileiros-
pela tropa seriam liquidados
e só negros e pardos, aos milheiros,
na cidade estariam preservados
da vingança, afinal, dos oprimidos
contra, enfim, soberanos malqueridos.

FRANCISCO GE ACAIABA NONTEZUMA (Salvador-BA, 1794-


1870, Rio de Janeiro)

Franciscano frustrado, Montezuma,


bacharel diplomou-se em Portugal
e de volta ao Brasil não fez nenhuma
concessão ao Governo Imperial;
foi seu dom oratório uma verruma
contra a forte opressão regencial
sobre negros cativos condenados
a no engenho lidarem açoitados.

Sendo o nobre também Jequitinhonha


batalhou pelo escravo (aforamento),
acoimando de imensa desvergonha
contrabando negreiro, em xingamento
extensivo aos autores da medonha
sujeição e do imenso sofrimento
de africanos aqui desembarcados
em afronta a interditos celebrados.

FFRANCISCO MANUEL DA SILVA (Rio de Janeiro-RJ, 1795-1865)


v

O mulato Francisco Manuel


diplomou-se com mestre renomado
– Carlos Gomes – de quem louvou papel
toda a Corte, ao haver-se consagrado
na Europa exímio menestrel
e voltar ao Brasil assobiado
por humildes pessoas iletradas
mas de pátrio ardor incendiadas

ao saberem seu índio musicado;


Manuel, igualmente, de ufania
foi motivo ao compor, arrebatado,
elogio sobejo em maestria,
de valor patriótico doado
ao Brasil, novo hino que o poria
em lugar de destaque nacional:
diretor da Capela Imperial.

(Continua)

CORREIO DA SAUDADE (55)

VIVA O GÊNIO MULATO BRASILEIRO

JOSÉ DA NATIVIDADE SALDANHA ( Jaboatão-PE, 1796-1830,


Bogotá-COL)

Mestiçado por hereditariedade


omitiu alusão a essa ascendência
o poeta José Natividade;
reagiu, todavia, à impertinência
de juiz cuja parcialidade
colocou-lhe o negror em evidência
em sentença de morte prolatada
e jamais, entretanto, executada

mas pendente por toda a existência


desse ardente e açodado panfletário;
evadiu-se da pátria em consequência
de viver, descontente e temerário,
v

uma quadra de forte efervescência


no governo; tornou-se um visionário
cuja veia de audaz libertador
abraçou a República do Equador.

Patriota, Saldanha enalteceu


os primevos heróis pernambucanos
em poemas maduros que escreveu
sendo ele de ainda verdes anos;
libertárias batalhas descreveu
suplantando os poetas mais ufanos
no louvor às notáveis valentias
inclusive do negro Henrique Dias.

Padecia, porém, de morbidez:


homem triste, de espírito ofuscado,
entregou-se de Baco à embriaguez
e findou por complexos dominado
em razão principal da sua tez
de mestiço infeliz, inconformado;
tanto a cor negregosa o desgostava
quanto a dor do desterro o agrilhoava.

FRANÇOIS-AUGUSTE BIAR (Lyon-FRA, 1799-1882, Samois-sur-Seine-


FRA, 20 de junho de 1882).

Desenhista da corte imperial


brasileira, Biard foi além
estudando o caráter social
do país, criticando com desdém
preconceitos do clã colonial
contra o negro cativo para quem
fez um livro de enorme aceitação
mas apenas em plagas do estrangeiro
pois malvisto no meio brasileiro.

PAUL-HARRO HARRING (Ibensdorf-DIN, 1798-1870, Ilha de Jersey-


ING )

Harro-Harring, mestre em pormenores


redigidos ou postos em paisagem
brasileira, firmou-se um dos melhores
promotores da nossa mestiçagem
v

e, valente, formou entre os maiores


panfletários avessos à vendagem
de africanos natais ou descendentes
em mercados de escravos emergentes.

(Continua )

FRANÇOIS-AUGUSTE BIAR (Lyon-FRA, 1799-1882, Samois-sur-Seine-


FRA, 20 de junho de 1882).

Desenhista da corte imperial


brasileira, Biard foi além
estudando o caráter social
do país, criticando com desdém
preconceitos do clã colonial
contra o negro cativo para quem
fez um livro de enorme aceitação
mas apenas em plagas do estrangeiro
pois malvisto no meio brasileiro.

PAUL-HARRO HAEEING (Ibensdorf-DIN, 1798-1870, Ilha de Jersey-


ING.

Harro-Harring, mestre em pormenores


redigidos ou postos em paisagem
brasileira, firmou-se um dos melhores
promotores da nossa mestiçagem
e, valente, formou entre os maiores
panfletários avessos à vendagem
de africanos natais ou descendentes
em mercados de escravos emergentes.

MANUEL ODORICO MENDES ( São Luís-MA, 1788-1864, Londes)

Os poemas de Mendes, Odorico


espelharam ternura e simpatia
pelo negro, enaltecimento rico
em imagens de intensa nostalgia
e reproches ao tráfico impudico,
sentimento que o bardo inda trazia
de indeléveis vivências de criança
v

quando o acaso gravou-lhe na lembrança

o castigo sofrido por cativo


que deixou Odorico transtornado:
ante o povo risonho, insensitivo
aos gemidos do negro chicoteado,
o poeta encontrou o seu motivo
de um soneto primeiro dedicado
aos irmãos humilhados e ofendidos
por nascerem, sem culpa, escurecidos.

JOHANN-MORITZ RUGENDAS (Augsburg-ALM, 1802-1858, Weilheim


in Oberbayern)

Foi, decerto, acurado retratista


o germano Rugendas, talentoso
descritor do Brasil, um costumbrista
de valor para o meio estudioso
europeu; sua obra realista
divulgou um país novo e formoso
do qual pouco sabia o estrangeiro,
curioso do etos brasileiro.

MANUEL JOSÉ DE ARAÚJO PORTO-ALEGRE (São José do Rio


Pardo-RS, 1806-1879,Lisboa)

Porto-Alegre, dos bardos foi primeiro


a falar – justo em seu “Brasilianas “ –
na existência de um afro-brasileiro
formidável gigante das savanas
e do mato fechado mais grosseiro
a fender com machado as imburanas
por senhores roubadas aos milhares
de florestas nativas seculares.

FRANCISCO DE PAULA BRITO (Rio de Janeiro-RJ, 1809-1861, RJ)

Paula Brito viveu elogiado


por Machado de Assis que o benqueria:
prosador e poeta aconchegado
a escritores, montou tipografia,
onde foi muito livro publicado
v

e jornais instalou em parceria


com autores de textos divertidos
pra chistosa Marmota redigidos.

Periodista de pena independente


comandou o jornal Homem de Cor
paladino do grupo de Lafuente,
um mulato ativista, agitador,
perseguido porque voz veemente
na defesa de jovem redator
de outro livre jornal, Brasil Aflito,
morto à bala provinda de um conflito.

JOÃO SALOMÉ QUEIROGA (Serro-MG, 1810-1878, MG)

Salomé exaltou a mestiçagem


numa obra poética ligeira
trabalhada em novíssima linguagem
a seu ver puramente brasileira:
é “A Negra” uma espécie de miragem
literária, abrasante, uma fogueira
da qual só seu branquinho feiticeiro
ameniza o sofrer no cativeiro...

É poema versado em iguarias


africanas: de tudo tem – até,
pra deleite do branco de carícias
dependente – o gostoso cafuné
e outras tantas brasílicas delícias
feito o mais relaxante escalda-pé
numa clara e evidente atestação
do valor da bem-vinda conjunção

da cultura de povos diferentes


pelo bardo no então acreditada;
outra negra (de olhares reluzentes,
e de corpo belíssimo dotada,
longos cílios, formosos níveos dentes
e uma fronte altaneira e bem talhada)
aparece em “Retrato de Mulata”
semelhança da própria mãe da mata:

tem os olhos da tal jabuticaba,


v

são os lábios iguais ao buriti


(dessa polpa quem prova até se baba
de prazer) fruto feito o jataí
saboroso que nem a ubacaba;
mas a negra não fica por aí:
faz muxoxo pro jovem namorado
e quindins para vê-lo apaixonado...

Salomé igualmente fez “Guião”,


um poema no qual, afoito, pede
a total e completa Abolição
pois é certo que nada mais impede
o final da inditosa escravidão;
nesse intento palavra ele não mede
afirmando que as leis já promulgadas
jamais foram, de fato, respeitadas.

JOHANN-MORITZ RUGENDAS (Augsburg-ALM, 1802-1858, Weilheim


in Oberbayern)

Foi, decerto, acurado retratista


o germano Rugendas, talentoso
descritor do Brasil, um costumbrista
de valor para o meio estudioso
europeu; sua obra realista
divulgou um país novo e formoso
do qual pouco sabia o estrangeiro,
curioso do etos brasileiro.

MANUEL JOSÉ DE ARAÚJO PORTO-ALEGRE (São José do Rio


Pardo-RS, 1806-1879,Lisboa)

Porto-Alegre, dos bardos foi primeiro


a falar – justo em seu “Brasilianas “ –
na existência de um afro-brasileiro
formidável gigante das savanas
e do mato fechado mais grosseiro
a fender com machado as imburanas
por senhores roubadas aos milhares
de florestas nativas seculares.
v

FRANCISCO DE PAULA BRITO (Rio de Janeiro-RJ, 1809-1861, RJ)

Paula Brito viveu elogiado


por Machado de Assis que o benqueria:
prosador e poeta aconchegado
a escritores, montou tipografia,
onde foi muito livro publicado
e jornais instalou em parceria
com autores de textos divertidos
pra chistosa Marmota redigidos.

Periodista de pena independente


comandou o jornal Homem de Cor
paladino do grupo de Lafuente,
um mulato ativista, agitador,
perseguido porque voz veemente
na defesa de jovem redator
de outro livre jornal, Brasil Aflito,
morto à bala provinda de um conflito.

JOÃO SALOMÉ QUEIROGA (Serro-MG, 1810-1878, MG)

Salomé exaltou a mestiçagem


numa obra poética ligeira
trabalhada em novíssima linguagem
a seu ver puramente brasileira:
é “A Negra” uma espécie de miragem
literária, abrasante, uma fogueira
da qual só seu branquinho feiticeiro
ameniza o sofrer no cativeiro...

É poema versado em iguarias


africanas: de tudo tem – até,
pra deleite do branco de carícias
dependente – o gostoso cafuné
e outras tantas brasílicas delícias
feito o mais relaxante escalda-pé
numa clara e evidente atestação
do valor da bem-vinda conjunção

da cultura de povos diferentes


pelo bardo no então acreditada;
outra negra (de olhares reluzentes,
v

e de corpo belíssimo dotada,


longos cílios, formosos níveos dentes
e uma fronte altaneira e bem talhada)
aparece em “Retrato de Mulata”
semelhança da própria mãe da mata:

tem os olhos da tal jabuticaba,


são os lábios iguais ao buriti
(dessa polpa quem prova até se baba
de prazer) fruto feito o jataí
saboroso que nem a ubacaba;
mas a negra não fica por aí:
faz muxoxo pro jovem namorado
e quindins para vê-lo apaixonado...

Salomé igualmente fez “Guião”,


um poema no qual, afoito, pede
a total e completa Abolição
pois é certo que nada mais impede
o final da inditosa escravidão;
nesse intento palavra ele não mede
afirmando que as leis já promulgadas
jamais foram, de fato, respeitadas.

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