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Você tem nas mãos um livro de poemas muito raro que, em nossa
singela metáfora, é uma flor milagrosa, aberta — vermelha e fresca
— em terra dura, livro testemunho da vida palpitante e em curso nas
mazelas dos tempos de guerra.
— Versos brotados em cenário de penúrias?
Sim, vida úmida na faixa seca dos oprimidos.
— E o que dizem esses versos?
Algo como o que disse Chico nos nossos tempos de falseada
paz, que... “apesar de você amanhã há de ser outro dia”.
— Este livro, então, trata de esperança?
Mais que isso, é a própria esperança, ciclâmen do Líbano feito
flor de cacto cercada de espinhos por todos os lados... mas, se olhar
de certa perspectiva tal flor, verá aceso, atrás dela, o azul do céu in-
tenso que cobre o Mediterrâneo.
— Metáfora mais direta impossível...
Pois... é a vida que não para de acontecer... mais de dois milhões
de pessoas espremidas numa estreita faixa de terra disposta entre
um mar bloqueado e duas fronteiras hostis: uma com o país opres-
sor, outra com um país coni–vente. Lembra o cerco de Troia que du-
rou dez anos?
— Sim... Homero cantou aquela guerra!
Mas não da perspectiva dos emparedados. Este livro foi escrito
por pessoas que nasceram na realidade do exílio na própria terra e
vivem, ademais, a realidade de um cerco que dura lá se vão 15
anos.... Quem fala é a blogueira de 18, a professora que acaba de
se formar aos 22, o romancista estreante que dá as caras como po-
eta, o rapaz de 26 já no terceiro livro, a mulher de 40, imorredoura
como estes versos que ela escreveu na altura de seus 18 anos.
— E por que escrevem poemas ao invés de só atirarem pedras?
Porque Gaza é a terra da poesia, meu amigo! Em seu chão ba-
nhado por rio caudaloso, que ninguém vê, é que a poesia encontra o
húmus que fermenta o seu verso.
Michel e Safa
São Paulo, maio de 2022
AMAL ABUQAMAR
Traduções de
Alexandre Facuri Chareti
Mulheres mentirosas tomam café
Porta escancarada,
chaves enferrujadas,
mulheres mentirosas tomam café celebrando o rubor nos rostos e as
mudanças do corpo.
Cicatrizes em cada beco assomam aos passantes,
cicatrizes que tomam a cor da ferrugem,
a cor do sono,
a cor do símile.
Homens cruzam o outono com passos que irritam, a música desses
passos faz deles homens bêbados.
Mulheres ignoram os acordos de consentimento e os documentos
de conciliação
e com uma só escova tornam o mundo um vidro sem pó.
E você volta.
Criança que esqueceu na boca o mamilo da mãe e fugiu.
Ainda se delicia com o gosto do leite seco.
–
Você entende o que significa crescer em seu corpo o legado da der-
rota, do medo
e da fraqueza e a amargura do leite materno?
Para a morte.
Quando a morte virou símbolo nesta cidade?
Traduções de
Alexandre Facuri Chareti
Joguinho
Posso esconder meu coração numa nuvem para que ele não sofra?
Posso engolir a língua antes de dizer eu te amo como uma boba?
Posso abandonar meu retiro anárquico e subir na ruína do idealis-
mo?
Ó tolerância que essa confissão desencava, será que viver a todos
basta
ou deveríamos, para sobreviver, sacrificar nossos amados pela ter-
ra?
Péssimo negócio esse
que marca nossas risadas e nossas rugas precoces,
pesadelo em que nos exterminamos sem qualquer reverência de
respeito,
dilúvio que nos engole e nos dissolve em petróleo cru.
ADHAM ALAQQAD
Traduções de
Alexandre Facuri Chareti
Prometa-me, meu eu, ou diga-me quantas
Traduções de
Alexandre Facuri Chareti
Pequeno tumor
Uma vez, coloquei uma carta escrita com minha letra no bolso do
terno dele,
voltei e a peguei de volta depois de um dia
e antes que ele a lesse:
meio cubo!
Cinquenta camadas, mais ou menos,
tive que destruir todo ano.
A cada ano se acumulavam cinquenta sobre cinquenta.
Meu pai de um lado, minha mãe de outro.
Minha mãe, ela me dispensava da tarefa de destruir o gelo:
ela me fazia um desenho sobre o gelo.
Eu tocava a camada de gelo com os dedos, e então caía delicada-
mente.
Agora... meus irmãos
neve normal, podíamos brincar,
fazer juntos um boneco de neve
ou construir um ringue de patinação,
mas, gradualmente, subiam e se acumulavam camadas sobre ca-
madas.
Aqui entram os parentes, os amigos e os conhecidos.
Noite metafórica
na qual uma diaba dá à luz na sombra,
as cortinas do quarto sem rebater a luz.
Vejo minha gagueira como um homem imberbe
quando não quero falar
e sinto a humilhação da caça
como um perdido já cansado de seguir rastros
que engendra das miragens sua descendência
da qual destaca um desejo de exílio...
Vissem-no, os fiéis se perderiam
e por ele trocariam o silêncio do coração
sem mais lembrar a história de Deus.
Bem-vinda a perdição, ó moedores do açúcar,
ó olhar contornado do Oriente secreto!
A lascívia estraga a poesia
faz dela um peito que goteja suor árabe
enquanto nas cavernas do Oriente
a diaba descasca a seu senhor
uma maçã branca...
mas ele se queixa de certa secura
que se deixa entreter com a estrutura inexorável
e escuta — depois que se desembainharam os dedos
e os minutos do tempo penhorado
com a resistência da pele dura sobre os cascalhos —
o silvo de um vento, animado por um amor obscuro.
Uma aflição vem e vai entre as gentes de Creta:
uma carruagem pegou em cheio um touro...
A chuva não molhou as sardas frias.
Será porque a aflição abandonou os corações,
ou as pessoas oraram por isso
e a felicidade da súplica os distraiu enfim
com as moedas de oferenda?
FATIMA AHMAD
Traduções de
Maria Carolina Gonçalves
O calor da lua
Saiu da boca da dor para entrar numa vida que não conhece.
Busca seu caminho confiante que seus braços removerão os espi-
nhos
e plantarão mudas de rosa que sonham com a vida alheia.
Em toda a sua vida só provou o gosto do amor nos olhos dos tristes
e nos olhos de uma criança que rebate o sol com as mãos.
Não tenha medo, minha pequena, meu coração está vazio, dê-me
um pouco de seu sol!
Traduções de
Maria Carolina Gonçalves
Várias vidas na minha cabeça
Na vida anterior,
fui uma estátua magnífica
de um deus que desapareceu de súbito
sem avisar ninguém.
Disseram: tem de estar aqui em algum lugar.
Procuraram muito por ele,
mas ninguém o encontrou
e até hoje o procuram.
Na próxima vida,
serei uma boa madrinha
para um poeta que não sabe como esconder as noites frias no bol-
so,
que desde as cinco da manhã trabalha moldando cimento
e forrando as rachaduras das mãos —
é pão quentinho
para as bocas que deixou para trás.
Muitas vezes
ele encontra a poesia enquanto chora
e se embriaga até o fim
e muitas vezes ele pensa:
O que faz um algoz agora?!
Entre minha vida anterior e a próxima,
eu me sento aqui,
mulher em plena consciência,
apoiada em seus vinte anos,
que conhece o significado de ser deixada sozinha no meio da noite
sem saber como escrever textos longos —
ela conta ao psicólogo sempre.
Socorro,
socorro, meu Hallaj, socorro!
Dê-me mais de você, em você,
dê-me muito mais.
Quero me arrepender
e não ser levada,
não erguer o vestido e descobrir as pernas
dizendo à vida:
vem cá...
Traduções de
Maria Carolina Gonçalves
Não pareço uma rosa
Me insinuo:
Nada me curva,
ou define os aspectos do tempo arrebatado em minha cintura,
ou domina a verdade sedimentada em minhas margens,
como o fluido do horror, o mercúrio, destilo
é só o observador ter a coragem de olhar através de mim.
Temerosas,
as palavras saem de minha boca,
ocultando um significado retraído,
e suspendem o ser atrás do entendimento presumido;
violam o espírito de meus pensamentos,
turvam a transparência do cenário
e aproveitam a derrota do significado.
Mas as palavras enferrujadas permanecerão soltas,
livres, covardes,
trêmulas, mentirosas.
E se eu tivesse uma língua,
mastigaria a verdade
e a diria diante da timidez confusa.
Traduções de
Felipe Benjamin Francisco
Assinatura
Eu o vi na revelação,
e a revelação não morre,
partiu com sua verdade...
Levou-o o cansaço até o nada
num só copo,
num só funeral,
numa morte que não morre!
AHMAD ASSUQ
Traduções de
Felipe Benjamin Francisco
Esperando por você
Vou cantar
diante do mar
para você esquecer o que aconteceu esta noite.
Uma semana
e tudo vai acabar
vamos ficar bem...
O mundo vai abrir o jornal
e vir correndo nos socorrer.
A guerra é dura,
mas me leva a amar ainda mais.
Vamos brindar a estes tempos
e o mundo será testemunha de que estávamos juntos
sob o bombardeio.
Não me ouviram,
gritando seu nome.
Pombas voam,
saúdam a paz,
nós a afundar nas dobras das palavras
e o tempo a fechar sobre a pradaria.
Traduções de
Felipe Benjamin Francisco
Interrogações acerca de
uma memória embalsamada
No café
à beira-mar
perguntas com
o quê, como, onde
e muito do que a memória guarda
embalsamado são interrogações.
Feche os olhos!
Não, juro pela nuca do carteiro!
Nossas almas vão subir
neste “encontro”
e todos vão olhar e bater palmas.
e eu
eu sou
um sonho ressurgido que faz tremer a maldição da distância
como aquela bailarina que segura o passo
ao final da dança
Traduções de
Felipe Benjamin Francisco
Vamos dançar no vão das escarpas
Me dê sua mão
Quanto à lua,
Deus a tem como espiã.
Ela Lhe sussurra e Ele ri
porque duas de suas experiências singulares
se despem às claras
e se comportam com o corpo que Ele criou.
Na verdade
a salvação não é real,
ninguém está a salvo das presas de seus erros e dos dentes de sua
limitação
muito menos de suas perdas estocadas na medida certa.
Você é
tampouco
estará a salvo de todas as experiências fracassadas
Tateio o telefone
como um cego que procura o próprio rosto
para verificar com as mãos se seus olhos continuam ali
e se neles vê através de você
como uma parte que falta do enigma de minha vida em frangalhos.
que não tinha uma costela quebrada, que o vento não cuspia em
seu rosto,
mas não acreditava que eram gotas de chuva
ainda que fosse um burro.
ela que não sabia que isso na verdade seria... uma regra
não encontrou uma explicação para o choro da mãe quando disse
naquele momento... é ainda pequena, meu Deus.
Mas ela escondeu a pequena debaixo das roupas de mulher e nela
enfiou as regras
então se tornou cria das regras com suas regras
e seu sangue.
Assim tola ela cresceu e seu coração cresceu para ser mais um nú-
mero
secando incansável as feridas dos outros
abrindo caminho para os números que se seguirão até que não haja
mais danos
na corrente do coração
e chegou no limite da paciência
se casou rapidamente, e ainda mais rápido engravidou
e eu coloquei o sinal de aprovação diante do primeiro dever de mi-
nha vida social diplomática
em torno dos sentimentos duvidosos
eu odiava o número um...
Traduções de
Beatriz Negreiros Gemignani
Fotos com a guerra
De volta após uma morte curta, reanimo a tevê para que ela nos di-
ga os nomes sequestrados pela arma na mão de um estúpido e nos
transmita — temendo que esqueçamos — o instante de aniquilação
da memória e os lamentos de cidades e capitais.
Dou nome aos nomes desvalidos, aos sentidos restritos, cato o que
ficou pensado e retido, cato o rio que refluiu em mim as palavras,
me fizeram mergulhar na mente dos antigos, me mandaram voar
com asas partidas, pronei, pesada, recusei, e a fotografia em grupo
me recusou.
Arrastei meu passo teimoso, calcei o caminho, e o rio bateu raivoso
em meu peito, não me importo com os passos, para mim sentido é a
porta batendo, minha experiência é meu passo e meu erro, o que
aprovo e desaprovo. Atravessei sem coração ou rio comigo, nas
costas as vozes assustadas, e elas cresceram em meu ombro. Per-
guntei, com jeito, à árvore de onde caí no começar dos tempos, usei
uma cor, um nome, uma voz: “Quem eu sou?”.
Fez que não ouviu, calou, e eu disse: “E a guerra é o quê?”, e ela:
“É o que tenta ser a eternidade e seu êxtase”.
Carreguei a resposta e o esforço, revirei e aceitei os fatos, como um
pássaro que sabe de seu ninho e seu espaço saí, o coração cheio,
os olhos ávidos por salvação, o espanto me cercou o corpo cavado
nas malhas do açoite de nossos senhores, e eles comeram tudo o
que restou de meu anseio e minha voz.
O sossego me exauriu, vi que acenava para mim além da cerca do
espanto, eu o conheço, sei como é, mas ele não me alcança.
Sessenta e cinco
Traduções de
Beatriz Negreiros Gemignani
Filhos desobedientes
O tempo a derrota
e ela ri de novo,
chora, ri e volta a ser criança parada diante do mar.
Ouve Fairuz em seu coração despretensiosamente
enquanto saboreia o café devagar,
sorri no espelho, de frente para ele,
e o tempo ergue o estandarte da ira.
MUHAMMAD AWAD
Traduções de
Beatriz Negreiros Gemignani
Entre mim e o mundo há uma barreira
que as palavras não atravessam
— Tudo bem, ainda fumo, apesar dos conselhos do médico, não es-
cuto bem faz uns dias não sei por quê, é como se o ouvido estives-
se cansado do “tudo bem?”, essa pergunta me provoca, é como se
eu estivesse sendo conduzido para a forca e a mão de Achmawi
me desse um tapinha no ombro enquanto ele me diz “não se preo-
cupe, você não vai sentir a dor da morte”.
Ó caminhos,
digam aos passantes para irem descalços,
e os ensinem a andar com leveza
sobre o sal pegajoso
— que deslizem as passadas sobre ele.
Ó caminhos,
suas sombras já não são mais lisas,
arranharam-nas as unhas do sol,
os ventos perfuraram suas vestes.
Digam a eles:
Aqui dorme o amor.
WISSAM ATTAWIL
Traduções de
Beatriz Negreiros Gemignani
Cortando uma laranja na insônia
Editores
Michel Sleiman e Safa Jubran
Preparação
Michel Sleiman
Coordenação editorial
Laura Di Pietro
Revisão
Olívia Janot
ISBN: 978-65-86824-38-4
[2022]