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Educação e o

mundo do
trabalho

BOLETIM 17
SETEMBRO 2005
SUMÁRIO

PROPOSTA PEDAGÓGICA
EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO ......................................................................................................... 03
Sonia Maria Portella Kruppa

PGM 1
EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO
Desenvolvimento, trabalho e educação de jovens e adultos ................................................................... 07
Sonia Maria Portella Kruppa

PGM 2
EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DOS SUJEITOS SOCIAIS
Educação e trabalho na perspectiva dos sujeitos sociais: empresários, trabalhadores e Governo .................. 16
Sonia Maria Portella Kruppa

PGM 3
EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
A economia solidária como ato pedagógico ................................................................................................... 23
Paul Singer

PGM 4
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – POSSIBILIDADES E DESAFIOS PRESENTES .............................. 36
Sonia Maria Portella Kruppa

PGM 5
TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
O trabalho como princípio educativo .............................................................................................................. 42
Maria Ciavatta

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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PROPOSTA PEDAGÓGICA

Educação e o mundo do trabalho


Sonia Maria Portella Kruppa 1

As relações entre educação e mundo do trabalho são hoje bastante complexas.

É pelo trabalho que os seres humanos transformam a natureza em meios de vida. Mas não fazem
isso apenas de forma repetitiva. Ao transformar a natureza, homens e mulheres acumulam
conhecimentos que, simultaneamente, mudam sua forma de produzir os meios de sua própria vida e
sua relação com a natureza.

A educação, entendida como troca e diálogo entre e inter gerações, garante que homens e mulheres
retransmitam esses conhecimentos uns aos outros. Com a constituição da escola, espaço destinado à
transmissão de saberes, ficam estabelecidas possibilidades de vinculação entre a educação escolar e
o mundo do trabalho.

Ao longo de sua história, a escola tem assumido diferentes papéis, em relação ao mundo do
trabalho, desde ser uma simples fornecedora de mão-de-obra adestrada a se tornar um espaço
destinado à educação integral, ou, ainda, atendendo à montagem de um sistema dual de formação: o
ensino profissionalizante aos menos favorecidos e o propedêutico às elites.

Considerar a trajetória do trabalho ao longo da história pode ajudar a compreender as diferentes


concepções da relação assim estabelecida, a valorização ou rejeição do trabalho como componente
central do processo educativo. Na antiga Grécia, o trabalho e as profissões eram parte das tarefas
dos escravos: “o trabalho necessário às necessidades vitais era, na Antigüidade, uma ocupação
servil, que excluía da cidadania (isto é, da participação na Cidade) aquelas e aqueles que o
realizavam” (Gorz, 2003, p. 2). Mesmo na Idade Média e, ainda depois, até o século XVIII, “o
termo trabalho (labour, Arbeit, lavoro) designava a labuta dos servos e dos trabalhadores por
jornada, produtores dos bens de consumo ou dos serviços necessários à sobrevivência que, dia após
dia, exigem ser renovados e repostos.

Os artesãos, em troca, fabricantes de objetos duradouros, acumuláveis, que seus compradores

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legavam à posteridade, não ‘trabalhavam’, mas ‘realizavam obras’, nas quais podiam utilizar o
‘trabalho’ de homens de labuta chamados a cumprir as tarefas mais penosas, pouco qualificadas”
(Gorz, ibidem, p. 24). Na mesma linha, o sistema de produção têxtil em domicílio, ao preservar aos
trabalhadores parte do controle da produção e da comercialização, não pode ser comparado à
situação da fábrica. Artesãos ou produtores domiciliares preservavam culturas próprias tradicionais.
O trabalho como elemento criador perde sua existência com o surgimento do trabalhador
assalariado tal como o conhecemos, invenção do capitalismo e da modernidade: “a racionalização
econômica capitalista exige que o trabalhador adentre ao processo produtivo despojado de sua
personalidade e de sua singularidade, de seus fins e de seus desejos próprios, como simples força de
trabalho, intercambiável e comparável a qualquer outro trabalhador, servindo a fins que lhe são
estranhos e indiferentes” (Gorz, 2003, p. 19-29).

Parte constitutiva do processo em que tem início o capitalismo são as chamadas Revoluções
Industriais e as mudanças tecnológicas que alteram radicalmente a forma e a produtividade do
trabalho. Assim a primeira, no final do século XVIII, na Inglaterra, com o tear mecânico e a
máquina a vapor que revolucionam a indústria têxtil, com a introdução da fábrica e do trabalho
assalariado e com as disputas em torno do papel da instrução pública que começa a se afirmar, vista
por alguns como forma de disciplinar o homem comum, convertendo-o ao trabalho assalariado. Já
no início do século XX, a segunda Revolução Industrial nos Estados Unidos, com a eletromecânica
e o motor a explosão que generalizam a produção em série, introduzindo a linha de montagem e a
separação da gerência da execução, mas trazendo consigo, em contrapartida, a possibilidade de
fortalecimento da organização dos trabalhadores pelo movimento sindical e do pleno emprego, com
a conquista dos chamados direitos trabalhistas.

A profissionalização pela escola é vista como caminho ao emprego, em especial, para as populações
trabalhadoras. No Brasil, os anos 40 assistem ao início do SENAI, local público de qualificação
profissional, sob a ótica e gerenciamento empresarial. Por fim e ainda em curso nos países menos
desenvolvidos como o Brasil, a terceira Revolução Industrial, com berço no Japão e no último
quartel do século XX, introduz a informática, os sistemas integrados de produção computadorizada
e as telecomunicações, que trazem a produção flexível, a automação e a desterritorialização da
produção, causando a precarização do trabalho assalariado pelo descompasso entre o aumento da
produtividade do trabalho e o consumo. Se todas as Revoluções Industriais causaram desemprego
tecnológico, o impacto desta, ainda em curso, é incomparavelmente maior.

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Segundo Singer, “melhor do que a palavra ‘desemprego’, precarização do trabalho descreve
adequadamente o que está acontecendo. Os novos postos que estão surgindo em função das
transformações das tecnologias e da divisão internacional do trabalho não oferecem, em sua
maioria, ao seu eventual ocupante as compensações usuais que as leis e os contratos coletivos
vinham garantindo” (Singer, 1998, p. 24). Dentro desse novo contexto, é atribuído aos trabalhadores
o dever de escolaridade, em nome de um suposto atributo de empregabilidade, conseqüência da
conquista de escolaridade e de determinadas qualificações e competências por cada trabalhador
individualmente. Os números demonstram, contudo, que a escola básica no Brasil vem sendo
progressivamente generalizada sem assegurar necessariamente o emprego. Longe disso, a escola
passa a ser credenciadora da vaga.

Atualmente, o debate sobre o desenvolvimento atraiu pesquisadores de outras áreas preocupados


com os impactos ambientais e sociais da industrialização e urbanização e com as perspectivas de
superação das desigualdades sociais e regionais e com a sustentabilidade do processo de
crescimento e desenvolvimento. Este debate tem transcendido os muros da academia, envolvendo
os movimentos sociais que vêm participando ativamente deste processo. É neste contexto que a
proposta da Economia Solidária toma vulto, propondo, além de uma outra forma de organização da
produção, também uma outra forma de relação entre educação e trabalho, como partes integrantes
de um outro modelo de desenvolvimento.

Esta série analisará a relação entre trabalho, educação e desenvolvimento, buscando abordar essa
relação sob diferentes pontos de vista.

Esses são os temas que serão debatidos na série Educação e o mundo do trabalho, que será
apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 12 a 16 de setembro de 2005:

PGM 1 - Educação e trabalho na perspectiva do desenvolvimento

Neste primeiro programa da série, serão problematizados os conceitos de desenvolvimento e de


crescimento econômico, situando a necessidade de novas relações entre a educação e o mundo do
trabalho.

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PGM 2 - Educação e trabalho na perspectiva dos sujeitos sociais

No segundo programa, empresários, trabalhadores e Governo estarão em foco, com o intuito de


aprofundar a temática central e as diferentes formas de encaminhamento dessa relação.

PGM 3 - Educação e trabalho na perspectiva da Economia Solidária

Neste terceiro programa, será aprofundado o conceito de Economia Solidária e serão debatidas as
exigências que essa forma de organização dos trabalhadores na produção traz à educação.

PGM 4 - Educação de Jovens e Adultos: possibilidades e desafios do presente

Neste quarto programa da série, serão debatidas as recentes propostas governamentais para a
qualificação profissional e as experiências de Educação de Jovens e Adultos, no campo e na cidade,
integradas à qualificação profissional.

PGM 5 - Trabalho como princípio educativo na sociedade contemporânea

Neste quinto programa, será debatida a permanência ou não da centralidade do trabalho como
princípio educativo frente à crise do mundo do trabalho, fechando a série com os desafios trazidos
pelo presente, marcado pelas profundas mudanças tecnológicas da terceira Revolução Industrial.

Bibliografia

GORZ, André. Metamorfoses do Trabalho – Crítica da Razão Econômica. Tradução de Ana


Montoia. São Paulo: Annablume, 2003.

SINGER, Paul. Globalização e Desemprego. Editora Perspectiva, São Paulo, 1998.

Nota

1- Professora da Universidade de São Paulo. Consultora dessa série.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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PROGRAMA 1

EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO

Desenvolvimento, trabalho e educação de jovens e adultos

Sonia Maria Portella Kruppa 1

Trabalho e educação são vistos como necessários ao desenvolvimento. Dois brasileiros se


destacaram nas proposições das transformações necessárias ao efetivo desenvolvimento do país.
Para Paulo Freire, se a escola por si só não é capaz de transformar a situação social, não haverá
transformação social sem a escola. Para Celso Furtado, medidas econômicas são centrais ao
processo de desenvolvimento, mas insuficientes para a efetiva transformação social, que
demandaria outras medidas de cunho social e cultural.

O desenvolvimento é um tema recorrente na literatura econômica. Inúmeros autores dedicaram suas


obras ao entendimento de seus determinantes, das suas conseqüências sociais e das diferentes
trajetórias históricas para se atingir o estágio de “país desenvolvido”. Como conseqüência desta
pluralidade, existem várias interpretações do processo histórico de desenvolvimento e crescimento
econômico e, conseqüentemente, várias sugestões de políticas para promovê-los.

Este texto baseia-se nas idéias de Celso Furtado, Paul Singer e Ladislau Dawbor, cujos textos
encontram-se indicados na bibliografia. Procura discutir: (1) a diferença entre crescimento e
desenvolvimento; (2) as definições de desenvolvimento capitalista e de desenvolvimento solidário;
(3) o que fazer para levar o desenvolvimento às comunidades pobres e (4) o papel da Educação de
Jovens e de Adultos (EJA) nesse processo. No enfrentamento ao desafio de construir o
desenvolvimento, as ações sugeridas neste texto propõem a participação integrada dos governos
locais, dos outros níveis de governos, de outras instituições da sociedade civil e das comunidades.

1. A diferença entre crescimento e desenvolvimento

Durante muito tempo e de forma equivocada, foram usados os conceitos de crescimento e


desenvolvimento com o mesmo sentido, ou seja, o de que o crescimento promovia o
desenvolvimento. Mas a análise de países da América Latina, Ásia e África e, especialmente do
Brasil, demonstra empiricamente que este processo não ocorre e que o aumento da atividade

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econômica é, muitas vezes, coincidente com a manutenção de baixos índices de bem-estar social
para grande parte da população.

Celso Furtado, falando ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) da Secretaria


de Relações Institucionais da Presidência da República, indicou, de forma breve e clara, a diferença
entre crescimento e desenvolvimento:

“O desenvolvimento é uma construção da sociedade, mas é preciso que ela tenha


vontade de fazê-lo. Quando se fala desenvolvimento se introduz o social e o
político. Assim, pode-se ter crescimento econômico bastante forte, como o Brasil
teve durante 30 anos seguidos, com crescimento de 7% ao ano, com pouco ou
quase nulo desenvolvimento, porque o sistema, a estrutura do sistema, não
favoreceu a abordagem dos problemas sociais. O ponto certo para dar partida a
uma política de governo é distinguir desenvolvimento do crescimento. Não estar
contra o crescimento, pois ele é essencial também, mas saber que você pode ter
crescimento sem desenvolvimento. No Brasil, isto aconteceu porque prevaleciam
os interesses dos grandes centros capitalistas. Era o caminho para concentrar
renda, criar os mercados para os supérfluos, portanto isto favorecia os interesses
de certos setores da sociedade privilegiada. O Brasil, durante 30 anos, foi o país
que mais cresceu no mundo e ao mesmo tempo foi o que mais concentrou renda
(Furtado, 2004).

Depreende-se da fala de Celso Furtado que o desenvolvimento exige o enfrentamento das questões
sociais, da educação, do trabalho da distribuição de renda, entre outras. Crescimento tem um sentido
econômico de aumento da riqueza geral do país, mesmo que isto seja feito sem uma distribuição
mais justa dessa melhoria ao conjunto dos brasileiros. De fato, é de triste lembrança uma frase dos
anos 70, do então Ministro Delfim Neto, sobre os rumos que a economia apresentava: “primeiro é
preciso crescer o bolo, para depois, reparti-lo”. O que Furtado chama atenção é que esse bolo de
fato cresceu, mas não foi repartido.

2. Desenvolvimento Capitalista e Desenvolvimento Solidário

Para distinguir entre si os conceitos de crescimento econômico e de desenvolvimento é preciso


análise mais acurada do que é desenvolvimento capitalista, expressão usada muitas vezes como
sinônimo de crescimento econômico.

Segundo Singer, o desenvolvimento capitalista se baseia na propriedade privada do capital, da qual

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a grande maioria do povo trabalhador está excluída. Se assim não estivesse, os trabalhadores não se
sujeitariam, provavelmente, a trabalhar como assalariados e, pior ainda, a permanecer
desempregados. O modo de produção capitalista divide a sociedade, em que predominam, em duas
classes (além de outras) antagônicas: os proprietários do capital e os seus empregados. São os
primeiros que mandam em suas empresas e por isso conduzem o desenvolvimento de acordo com
os seus interesses. As decisões sobre o desenvolvimento capitalista sempre visam à maximização do
retorno sobre o capital investido na atividade econômica. A forma como estas decisões afetam os
trabalhadores, as outras empresas e os consumidores das mercadorias não é levada em
consideração.

A mola que impulsiona o desenvolvimento capitalista é a concorrência entre os capitais privados


pelo domínio dos mercados em que atuam. Nesta luta, a superioridade técnica é um dos elementos
determinantes da competitividade. Por isso, as empresas capitalistas investem muito em Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D). Embora, ao fazerem isso, as empresas visem apenas ao lucro, elas
acabam possibilitando persistente avanço do conhecimento científico. Por conseqüência, o
desenvolvimento, entendido como processo de fomento de novas forças produtivas, é cada vez mais
intenso. Estamos, agora, no meio de nova revolução industrial, a terceira desde o século XVIII, e
ela continua a ser impulsionada pelas empresas capitalistas, sobretudo as de grande porte.

O desenvolvimento capitalista, encarado a partir de uma perspectiva histórica, produziu incessante


melhora do nível de vida não só dos capitalistas, mas também de grande parte da classe
trabalhadora. Isso ocorreu por causa da conquista dos direitos políticos pelos trabalhadores,
sobretudo, pelas mulheres e, na verdade, por toda população considerada adulta. A persistente queda
da mortalidade geral e infantil é um indicador seguro desta melhora que, sem dúvida, apresenta
muitos outros aspectos, dos quais o ‘consumismo’ é dos mais controvertidos. O que não nega o
caráter progressista do desenvolvimento capitalista, apesar de seus efeitos perversos sobre os
explorados e ainda piores sobre os que não o são, por falta de emprego. Uma característica essencial
do desenvolvimento capitalista é que ele não é para todos.

Os consumidores, de modo geral, se beneficiam dele, tendo em vista que enseja a produção de
novos bens e serviços que satisfazem suas necessidades (reais ou fictícias), além de baratear a
maioria dos bens e serviços preexistentes, graças ao aumento da produtividade do trabalho. Mas o
desenvolvimento capitalista é seletivo, tanto social como geograficamente. Parte dos trabalhadores

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perde suas qualificações e seus empregos e muitos deles são lançados à miséria. Além disso, o
desenvolvimento se dá em certos países e não em outros, e dentro dos países, em certas áreas e não
em outras. Os moradores das áreas que se desenvolvem são beneficiados, os que moram nas demais
são prejudicados.

Para Singer, a desigualdade gerada pelo capitalismo levou desde sempre a reações contrárias por
parte dos trabalhadores. Assim, a economia solidária surgiu historicamente como reação contra as
injustiças perpetradas pelos que impulsionam o desenvolvimento capitalista. Foi assim, desde a
primeira revolução industrial e continua sendo hoje, quando o mundo passa pela terceira. A
economia solidária tem como propósito tornar o desenvolvimento mais justo, repartindo seus
benefícios e prejuízos de forma mais igual e menos casual.

O desenvolvimento solidário é um processo de fomento de novas forças produtivas e de instauração


de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento
econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se
encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma.

O desenvolvimento solidário é o desenvolvimento realizado por comunidades de pequenas firmas


associadas ou de cooperativas de trabalhadores, federadas em complexos, guiado pelos valores da
cooperação e ajuda mútua entre pessoas ou firmas, mesmo quando competem entre si nos mesmos
mercados. Os empreendimentos solidários ou de pequeno porte tendem a adotar a defesa do meio
ambiente e do bem-estar dos consumidores e a opor-se a tecnologias que podem ameaçar a
biodiversidade, a saúde do consumidor e/ou a autonomia dos produtores associados e individuais.

3. O que fazer para levar o desenvolvimento às comunidades pobres

Para Singer, as comunidades pobres podem ser classificadas pelo seu grau de integração ao mercado
global. Há as excluídas desde há muito tempo e que vivem em economia de subsistência, de forma
quase auto-suficiente, como os remanescentes de quilombos, por exemplo. E há as recém-excluídas,
como o cinturão da “ferrugem” (a região do ABC, São Paulo, p. ex.) cujos moradores foram
empregados de indústrias, que encolheram ou desapareceram em função da abertura do mercado
interno e do progresso tecnológico. Estas últimas comunidades sobrevivem com rendas precárias,
nas formas de auxílio a desempregados e aposentadorias dos mais velhos. Enquanto as primeiras

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são pobres porque não ganham o dinheiro que precisariam para comprar no mercado exterior (à
comunidade) bens e serviços que satisfaçam suas necessidades básicas, as últimas sofrem pela
ociosidade de muitos membros e pela insuficiência das transferências de renda. Muitas
comunidades pobres se encontram entre estes dois extremos. Elas conseguem vender ao exterior
produtos artesanais, extrativistas, de origem vegetal e animal etc. mas que alcançam preços baixos,
porque sua oferta tende sempre a superar a demanda por larga margem. São muitos os pobres que
vivem da venda de produtos, que em geral são adquiridos por uma elite cultural relativamente
pequena. O desequilíbrio gerado pela oferta sempre bem maior que a demanda gera a baixa
remuneração dos que vivem deste tipo de produtos.

Segundo Singer, desenvolver uma comunidade pobre é aumentar-lhe a renda com a qual possa
adquirir bens e serviços vendidos fora dela. Segundo ele, a única maneira não casual nem ilegal
duma comunidade pobre aumentar o dinheiro que seus membros ganham é vender para fora
mercadorias mais caras, em quantidades crescentes, sem que o seu preço caia (ao menos no curto
prazo).

Assim, para que a comunidade se desenvolva:

1. É preciso que a comunidade encontre uma brecha de mercado que permita que seus membros
produzam algo que lhes proporcione ‘boa remuneração’. Esta brecha pode ser criada mediante (a)
acentuada melhora da qualidade de produtos tradicionais, (b) invenção de produtos novos ou
seminovos, (c) detecção de demanda nova ou em forte expansão por algo que a comunidade pode
vir a produzir, ou ainda (d) a aplicação de processos de produtividade mais elevada em atividades
antigas (para poder vender os seus produtos mais barato). Comunidades, principalmente no
Nordeste e Norte, desenvolveram carnavais fora de época, festivais religiosos, folguedos
tradicionais etc. que atraem grande número de visitantes, e com o que os visitantes gastam, as
pessoas dessas comunidades conseguem aumentar a sua renda monetária. Na medida em que esta
opção depende apenas de inventividade e capacidade administrativa, ela está sempre disponível.
Outras comunidades se desenvolvem à base dos chamados “arranjos produtivos locais”, que são
muito variados. A maioria dos produtos já tem a produção ou a distribuição concentrada em
determinadas localidades, o que torna arriscado tentar criar um novo arranjo produtivo local. Mas o
incessante progresso tecnológico cria novos produtos, alguns com demanda em rápida expansão.
São exemplos recentes o celular, o DVD, o patinete, o equipamento para surf, para pesca

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submarina, para outros esportes de alto risco e assim por diante.

2. É preciso que haja articulação produtiva dos recursos existentes. Daí a importância da
participação do poder público local. Esta articulação não se obtém por decreto, e sim através da
organização sistemática de programas de apoio, da criação de uma rede de sustentação das inúmeras
iniciativas locais que contribuem para dinamização do desenvolvimento. Certamente a população
organizada tem importante papel nesse sentido. Em localidade onde existe a prática de orçamentos
participativos é importante que a exigência dessa integração seja levada pela população aos
representantes do poder público local.

3. É preciso que essa articulação seja acompanhada de um amplo processo formador. Para Singer,
cabe aos chamados agentes de desenvolvimento abrir à comunidade o leque de alternativas de
desenvolvimento disponíveis e deixar que a comunidade faça sua escolha, uma vez que o processo
de desenvolvimento requer um relacionamento integrado entre a comunidade e os profissionais que
estamos denominando ‘agentes de desenvolvimento’. Estes representam bancos públicos, serviços
públicos (como o SEBRAE ou o SESCOOP), agências de fomento da Economia Solidária, ligadas à
Igreja, sindicatos ou universidades, movimentos sociais e também educadores de jovens e adultos
comprometidos com esta proposta. A missão inicial dos agentes é levar à parte da comunidade, mais
esclarecida ou mais inconformada com a situação, a consciência de que o desenvolvimento é
possível pelo esforço conjunto da comunidade, amparado por crédito assistido e acompanhamento
sistemático daqueles que apóiam esse esforço, o que é chamado de incubação, e que pode e deve
contar, como um de seus procedimentos, com a ação pedagógica da EJA, desde que seus conteúdos
voltem-se e se aliem a esse desafio.

4. Como a Educação de Jovens e Adultos pode contribuir para esse processo

A comunidade aprende. Essa afirmação traz grandes implicações à Educação de Jovens e Adultos,
que não pode ser confinada a programas estanques de escolaridade. A Educação de Jovens e Adultos
(EJA) é um projeto cultural que pode e deve se comprometer com o processo de busca de
desenvolvimento pois, como advertiu Paulo Freire, se a educação não pode sozinha transformar a
vida, a transformação da vida não se fará sem ela. Além do mais, é fato notório que as razões de
sobrevivência são uma das causas principais da evasão dos alunos de EJA da sala de aula. Propõe-
se, então, que educadores e alunos de EJA mergulhem suas atividades num processo voltado ao

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mundo do trabalho e às modificações das condições de vida necessárias ao desenvolvimento, que
deve ser levado a toda a comunidade na qual se insere a escola. Obviamente isso supõe mudançaS
nos tempos e organização escolares que precisam ser tomadas como desafio pelos educadores2.

Para Singer, a etapa inicial do processo de desenvolvimento de uma comunidade pobre, que envolve
a busca da atividade econômica a ser implentada e/ou desenvolvida, não deve ser abreviada, pois
nela se dá um aprendizado essencial, que deve ser de todos, dos mais e dos menos instruídos, das
mulheres e dos jovens e dos homens e dos velhos, dos desinibidos que falam bem e dos tímidos que
não ousam levantar a voz.

Os conteúdos indicados por Singer voltam-se para aprendizagens de como a economia de mercado
funciona, ou melhor, de como nós interpretamos o seu funcionamento e, também de como se
discutem alternativas e se tomam decisões democraticamente. Estes aprendizados são
imprescindíveis para que o desenvolvimento não degenere, com a perda de seu caráter democrático
e solidário.

Trata-se de um processo prático, pois que realizado no enfrentamento dos problemas reais que essa
busca exige e que irão se colocando na medida em que o processo caminhe. Nessa evolução,
instituições deverão surgir, às quais as salas de EJA devem se integrar e/ou se relacionar, posto que
se espera que a comunidade se organize para promover o seu desenvolvimento em assembléia de
cidadãos, comissões para diferentes tarefas, empresas individuais, familiares, cooperativas e
associações de diferentes naturezas. O poder público local poderá se associar ao processo e se fazer
representar, quando necessário, em comitês mistos públicos-privados.

Mas, como ressalta Singer, trata-se de transformar toda a comunidade num espaço educador. É vital
o levantamento das informações relevantes sobre os mercados – locais, regionais, nacionais ou
mundiais – cogitados pela comunidade para se especializar. A própria comunidade deve se capacitar
no manejo e interpretação das informações, pois, do contrário, ela terá de se conformar com as
propostas e recomendações dos agentes de desenvolvimento. Aí também se destaca o grande papel
dos educadores. O relacionamento entre a comunidade e os agentes deve se tornar crescentemente
igualitário, mediante a contínua troca de saberes. Nesta troca, os membros da comunidade recebem
ensinamentos e os oferecem aos agentes, num processo de educação política mútua.

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Os professores de EJA como agentes de desenvolvimento e igualmente com outros representantes
da comunidade terão de ser preparados para sua tarefa árdua e, ao mesmo tempo, delicada. Para
Singer, o ideal é que a preparação se faça em equipe, composta por profissionais ligados a diversas
entidades.

Os conhecidos estudos do meio, nos quais os educadores da EJA definem os temas geradores com
base nos ensinamentos de Paulo Freire, são a metodologia adequada, ao possibilitarem
conhecimento teórico entremeado por idas à comunidade, onde os problemas reais levantam novos
temas a serem destrinchados depois em novo estudo teórico.

A formação profissional deve acompanhar o processo de implementação da atividade escolhida e


pode, por esse procedimento, evitar o erro clássico freqüente na educação profissional e apontado
por Dawbor em diversas instituições de formação: formam-se contadores, torneiros, marceneiros,
mas não se ensina como gerar uma atividade nova e nem se dinamiza o emprego local
correspondente, fazendo com que essa formação apenas gere um desempregado com certificado.

Para Singer, no interesse da autonomia das comunidades, o desenvolvimento comunitário deveria


ser deixado para a iniciativa das autoridades municipais e estaduais. O apoio dos órgãos da União
deveria ser coordenado, para evitar duplicação de esforços e disputas por competências e para
centralizar a preparação dos agentes de desenvolvimento e a promoção do entrosamento das
comunidades na construção de seu desenvolvimento.

De forma complementar, para Dowbor, o que necessitamos é também que cada município tenha um
tipo de fórum ou agência de apoio ou de fomento de iniciativas de produção e de prestação de
serviços, onde os setores de atividades fins possam se articular com os diversos sistemas de apoio,
gerando um processo sinérgico.

Bibliografia

FURTADO, Celso. Gravação apresentada na abertura dos trabalhos da Mesa Redonda "Diálogo
Social - Alavanca para o Desenvolvimento", no dia 5 de agosto de 2004, no auditório do Palácio do
Planalto, em forma de entrevista ao ministro Jaques Wagner, mimeo.

DAWBOR, Ladislau. Redes de apoio ao empreendedorismo e tecnologias sociais, In:

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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http://www.web-brazil.com/gestaolocal, consulta realizada em 15 de agosto de 2005.

SINGER, Paul. É possível levar o desenvolvimento a comunidades pobres? In:


http://www.mte.gov.br, consulta realizada em 15 de agosto de 2005.

Notas:

1- Professora da Universidade de São Paulo. Consultora dessa série.

2- O MST, com essa finalidade, propôs uma série de mudanças nas organizações
escolares, alterando, inclusive, os calendários escolares. O mesmo deve ser buscado nas
áreas urbanas para atender aos jovens e adultos trabalhadores num projeto voltado para
uma proposta de desenvolvimento.

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PROGRAMA 2

EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DOS SUJEITOS SOCIAIS

Educação e trabalho na perspectiva dos sujeitos sociais: empresários,


trabalhadores e Governo

Sonia Maria Portella Kruppa 1

Este texto trata de propostas para a formação profissional de trabalhadores. No decorrer de seu
desenvolvimento, são destacadas: a modalidade de Formação Profissional por Competência do
SENAI, algumas das dimensões do Plano Nacional de Qualificação (PNQ) do Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE, gestão 2003-2006) e as considerações iniciais da Educação para
Cidadãos Trabalhadores do Conselho de Escolas de Trabalhadores.

Essas propostas trazem para o momento presente posições que se construíram ao longo do século
XX. A equiparação entre a formação profissional e a escola regular, a politecnia, a
capacitação/treinamento ou a formação rápida para o mercado de trabalho traduzem posições de
setores diferenciados, envolvidos na questão e na temática das relações entre educação e trabalho.

No século passado, a Constituição Federal de 1937, artigo 129, demarca o ponto das tensões em
torno dessa discussão ao afirmar que o “ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes
menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado”. Também é ponto
marcante, no século XX, a Constituição de 1988, artigo 239, cuja regulamentação possibilitou a
introdução de mecanismos tripartites, envolvendo trabalhadores, além do governo e empresários, na
gestão das políticas públicas de trabalho e emprego, em especial com a criação do Fundo de
Amparo do Trabalhador (FAT) (2).

O exemplo da história do Ensino Profissional do estado de São Paulo ilustra a questão e demarca,
neste estado, o nascimento das políticas públicas de formação profissional e do SENAI.

Segundo Moraes, “(...) as primeiras escolas oficiais do estado de São Paulo são criadas em 1910, na
gestão Oscar Thompson na Diretoria da Instrução Pública, como parte do projeto de constituição de
um mercado interno de mão-de-obra qualificada (...) Tinham por objetivo atingir uma população
específica: os filhos de trabalhadores que iam “seguir a profissão de seus pais” e constituíam “uma

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fonte de inesgotável atividade e energia, alimentando as forças vivas de nosso Estado” (Relatório
Apresentado ao Sr. Presidente do Estado pelo Secretário dos Negócios do Interior, 1912, p. 65).

Ao final da década de 20, em algumas das escolas profissionais desenvolvem-se, também, em


cooperação com as empresas ferroviárias, os cursos ferroviários, dirigidos pelo Centro Ferroviário
de Ensino e Seleção Profissional/ CFESP, iniciativa comum da Secretaria Estadual de Viação e
Obras Públicas e o Instituto de Organização Racional do Trabalho/ IDORT. Sob a supervisão de
Roberto Mange, organizador da Escola de Mecânica do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo
(1924) e professor da Escola Politécnica, esse empreendimento pedagógico tornou-se o núcleo-
matriz dos métodos e processos de ensino adotados, posteriormente, no Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial/ SENAI, criado em 1942. Em 1930, Lourenço Filho assume a Diretoria da
Instrução Pública e inicia uma série de reformas, principalmente no campo profissional, destinadas
a generalizar, na rede pública, as “contribuições de Roberto Mange”, baseadas nos princípios
tayloristas e nos fundamentos da psicotécnica. Tais reformulações são aprofundadas com o “Código
da Educação”, implantado por Fernando de Azevedo em 1933, o qual determina a equiparação do
ensino profissional ministrado nessas escolas ao curso secundário, à chamada escola “acadêmica”;
ao mesmo tempo, realiza-se a aproximação do ensino das escolas profissionais oficiais às
necessidades do mercado de trabalho de cada localidade.

Destaca-se, no período, a presença de Horácio Augusto da Silveira, então diretor da Escola


Profissional Feminina da Capital, atuando ao lado de Roberto Mange na organização do “Serviço de
Psicotécnica”, previsto pelo “Código de Educação”, e na montagem de “Gabinetes de Psicotécnica”
nas escolas profissionais da Capital e na de Santos. Esses Gabinetes tinham por objetivo selecionar
os alunos, através de “julgamento psicológico, social, econômico e profissional”, para as profissões
consideradas mais adequadas “às suas aptidões”. A esse trabalho, acrescentou-se o
acompanhamento do rendimento individual dos estudantes no decorrer de toda a aprendizagem
escolar, mediante provas e testes psicotécnicos, o que incluía serviços de “readaptação profissional
de operários já em trabalho nas indústrias”. O Código concretizou, ainda, uma antiga reivindicação
dos reformadores: a institucionalização da carreira do magistério profissional.

A partir de 1936, uma “Rede de Rádio Telefonia e Telegrafia”, com estação central na
Superintendência, atinge a todas as escolas divulgando expedientes, cursos, conferências e até
provendo treinamentos e aulas. Nessa mesma época, foi criada a “Corporação Escolar de

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


17
Bandeirantes” para a “prática das virtudes morais e cívicas” e o preparo técnico especializado da
ginástica. A organização visava, no caso dos meninos Bandeirantes, seu “adestramento em
habilidades técnicas para defesa nacional e instrução militar”; para as meninas, as “Bandeirantes da
Saúde”, o aprendizado de conhecimentos que as habilitassem “a trabalhar nos hospitais e postos de
provisionamento.

Nos anos 40, o ensino profissional foi marcado, no plano federal, pela “Lei Orgânica do Ensino
Profissional” e pelas propostas de Roberto Mange. Ao contrário das reivindicações apresentadas no
“Manifesto dos Educadores ao Povo e ao Governo”, em 1932, o ensino técnico de nível médio é
organizado como ramo distinto, sem canais de comunicação com o ensino secundário.
Institucionalizam-se duas estruturas paralelas: de um lado, o ensino secundário, voltado para a
formação geral, propedêutica aos estudos superiores, ao preparo das “individualidades condutoras”;
de outro, o ensino profissional, para formar mão-de-obra qualificada para o mercado. As
modalidades informais de educação destinadas ao treinamento/qualificação profissional de
trabalhadores industriais passam a ser realizadas pelo SENAI, instituição monopolizada pela
iniciativa privada e gerida pela Confederação Nacional das Indústrias”(3).

Assim, disciplina, testes e medidas psicotécnicos, virtudes morais e cívicas e preparo técnico da
ginástica estão na base da formação profissional que se implanta no decorrer da primeira metade do
século passado.

Atualmente, o SENAI atua por meio de diferentes estratégias em sua proposta de Formação
Profissional. Dentre elas, destacamos, como exemplo, a chamada “Formação por Competências”:

“Em uma sociedade marcada pela mudança constante, a formação por


competências tornou-se uma referência para a promoção da sintonia entre a
escola e o mundo do trabalho. Transformações aceleradas pedem práticas
pedagógicas flexíveis e um modelo de formação profissional que favoreça o
desenvolvimento de competências – não apenas os conhecimentos, mas também as
habilidades e atitudes exigidas pelo cenário de trabalho. O SENAI adota a
estrutura metodológica para o desenvolvimento de competências na formação
profissional em nível nacional. O ponto de partida metodológico é a descrição de
Perfis Profissionais de diversas áreas da indústria. Elaborados com a
participação de representantes de empresas e de empregados, sindicatos, do meio
acadêmico e de organismos governamentais, esses perfis refletem demandas atuais
e tendências do mundo do trabalho, e possibilitam a elaboração de desenhos
curriculares atualizados. A participação de agentes protagonistas do mundo do

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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trabalho no desenho dos cursos oferecidos proporciona a efetiva aproximação com
a realidade do mercado e favorece a preparação de profissionais polivalentes,
prontos para corresponder às exigências de um mercado cada vez mais
competitivo” (http://www.senai.br/br/home/index.aspx).

O Ministério do Trabalho e Emprego, criado por Getúlio Vargas em 1930, é outro elemento
importante na configuração da formação profissional. Sua posição, até a Constituição Federal de
1988, esteve predominantemente voltada às propostas empresariais. Os mecanismos de gestão
tripartite, envolvendo trabalhadores, além do governo e dos empresários, na gestão das políticas
públicas deram nova flexão à institucionalidade do MTE.

Na gestão atual (2003-06), o Plano de Qualificação Profissional (PNQ), afirmando a importância


dos diferentes sujeitos sociais na formulação dessa política4, aponta a “qualificação como
construção social”, nos seguintes termos:

“Uma Política Pública de Qualificação, que venha a se afirmar como um fator de


inclusão social, de desenvolvimento econômico, com geração de trabalho e
distribuição de renda, deve nortear-se por uma concepção de qualificação
entendida como uma construção social, de maneira a fazer um contraponto
àquelas que se fundamentam na aquisição de conhecimentos como processos
estritamente individuais e como uma derivação das exigências dos postos de
trabalho. O debate político, reflexões e pesquisas acadêmicas têm chamado a
atenção para o caráter complexo de tal conceito, que envolve uma multiplicidade
de dimensões: a epistemológica, a social e a pedagógica. A dimensão
epistemológica realça o papel do trabalho na construção de conhecimento (não só
técnico, mas também social). A dimensão social e política põe em evidência os
processos e mecanismos, marcados por relações conflituosas, que são
responsáveis pela produção e apropriação de tais conhecimentos. A dimensão
pedagógica se refere mais diretamente ao processo de construção, transmissão e
acesso de conhecimentos, quer estes se efetivem por procedimentos formais ou
informais. Nesses termos, a qualificação profissional, como uma complexa
construção social, inclui, necessariamente, uma dimensão pedagógica, ao mesmo
tempo em que não se restringe a uma ação educativa, nem muito menos a um
processo educativo de caráter exclusivamente técnico. Por outro lado, quanto mais
associada estiver a uma visão educativa que a tome como um direito de cidadania,
mais poderá contribuir para a democratização das relações de trabalho e para
imprimir um caráter social e participativo ao modelo de desenvolvimento”.

O detalhamento de duas das dimensões propostas torna mais compreensível a proposta do atual
Plano de Qualificação Profissional (PNQ):

• no campo conceitual, adquire prevalência de noções como: educação integral; formas solidárias de

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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participação social e gestão pública; empoderamento dos atores sociais (na perspectiva de sua
consolidação como cidadãos plenos); qualificação social e profissional; território (como base de
articulação do desenvolvimento local); efetividade social; qualidade pedagógica; reconhecimento
dos saberes socialmente produzidos pelos trabalhadores;

• na dimensão pedagógica, busca-se garantir: aumento da carga horária média; uniformização da


nomenclatura dos cursos; articulação prioritária com a educação básica (Ensino Fundamental,
Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos); exigência para as instituições que vierem a ser
contratadas para a realização dos Planos Territoriais e Projetos Especiais, de formulação e
implementação de projetos pedagógicos; garantia de investimentos na formação de gestores e
formadores; constituição de laboratórios para discussão de referenciais nos campos metodológico,
das Políticas Públicas de Qualificação e da certificação; investimento na sistematização de
experiências e conhecimentos; desenvolvimento de sistemas de certificação e orientação
profissional; apoio à realização do censo da educação profissional pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP/MEC”( in: http://www.mte.br).

A atual configuração do atual Plano de Qualificação Profissional do Ministério de Trabalho e


Emprego deve-se, certamente, à pressão popular, organizada a partir dos movimentos sociais, que
atuaram durante o processo de formulação da Constituição de 1988 e que, mesmo com as reformas
neoliberais que enfraqueceram a organização dos trabalhadores nos anos 90, chegaram até o
presente.

Dentre esses movimentos de trabalhadores, destaca-se o Conselho das Escolas de Trabalhadores:

“A origem das escolas de trabalhadores data do final dos anos 60, meados de 70.
Esse era um tempo de ditadura militar e forte repressão aos movimentos
populares. Em diversas capitais do país, alguns grupos de trabalhadores se
colocaram a responsabilidade e o desafio de criar alternativas de formação
profissional dos próprios trabalhadores como uma forma de luta e resistência à
ditadura militar. Em Recife, a perseguição política havia desmantelado um
crescente processo de educação popular estabelecido desde princípio dos anos 60,
através de iniciativas de alfabetização de adultos, centros de cultura, organização
de ligas, associações, sindicatos, etc. A iniciativa que deu seguimento a essas
atividades junto aos operários, apesar da repressão, foi o CTC - Centro de
Trabalho e Cultura, fundado em 1966, que foi se moldando como uma escola
operária, dedicado à educação e formação profissional dos trabalhadores. Em
Belo Horizonte, a repressão contra as atividades sindicais desde a vitoriosa greve

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


20
da Belgo Mineira, em 1968, e a derrota dos grupos armados, no início dos anos
70, levou a iniciativas diversas de educação entre os próprios trabalhadores,
focalizando os conteúdos dos trabalhos nas fábricas conjugados à análise das
condições de vida, trabalho e luta dos operários e de suas famílias. Uma dessas
iniciativas, das mais atuantes até hoje, é a AST – Ação Social Técnica. No Rio de
Janeiro, operários de uma fábrica jantavam rapidamente de modo a sobrar tempo
do intervalo da jornada para estudarem juntos, no refeitório. Eram do turno
noturno. Até que a fábrica proibiu o ajuntamento: quem quisesse estudar que se
inscrevesse nos cursos do SENAI, oferecidos oficialmente pela fábrica. Todos
preferiram manter o estudo entre eles mesmos, indo instalar-se no porão de uma
igreja católica, na Baixada Fluminense. Juntando-se a diversas outras iniciativas,
esse trabalho foi desembocar no CADTS – Centro de Aprendizagem e
Desenvolvimento Técnico Social, de São João de Meriti. Em São Paulo, por
iniciativa do Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica, inúmeras associações
e grupos se formaram, na segunda metade dos anos 70, nas diversas regiões da
cidade, juntando a necessidade do estudo com a conscientização política. Entre
esses, diversas iniciativas se juntaram, vindo a formar, mais tarde, o Centro de
Estudos, Educação e Pesquisa - CEEP” (In: http://trabalhadoreseeducaçao.br).

Do Conselho de Escolas de Trabalhadores destacamos os objetivos gerais da proposta “Plataforma


da educação para cidadãos trabalhadores”:

“Cidadãos são os habitantes a uma só vez construtores/governantes/ beneficiários de cada Cidade


Humana. Não cidade como oposta ao mundo rural. Mas Cidade como a matriz concreta de uma
Cultura que está em permanente construção, reposição – recriação. Como matriz e meio ambiente
social de cada modo humano de vida, de cada forma do Bem-Viver de homens e mulheres. A
educação dos cidadãos é o processo pelo qual as novas gerações passam a compartilhar das
técnicas, conhecimentos, relações e valores que lhes permitem participar da vida social de sua
cultura, sociedade, cidade. O Trabalho é a característica fundamental da Cidade. Pois as cidades são
construídas a partir do trabalho constante e ininterrupto das longas cadeias de gerações de mulheres
e homens. A participação no Trabalho, entendido como ação criativa, construtiva, mantenedora e
transformadora de todas as dimensões da Cultura humana, é a condição básica ao exercício da
cidadania: pois o trabalho é que cria os modos e as condições do bem-viver – a cultura – de cada
cidade. O Trabalho constrói conhecimentos. E, cada vez mais, esses conhecimentos são condição
para o exercício do próprio trabalho. Conhecimentos e informações sobre todos os âmbitos das
atividades humanas são fundamentais, pois, para a participação dos cidadãos nos exercícios do
Trabalho e do Governo sobre suas Cidades.

Assim, a garantia de um exercício pleno da cidadania exige que todos os cidadãos tenham acesso a
uma educação que lhes possibilite a participação:

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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• no trabalho social de reposição, recriação e reconstrução permanente das condições do BEM-
VIVER na Cidade;

• nas informações e conhecimentos necessários ao exercício desse trabalho, e

• com conhecimento de causa, nos debates e decisões de Governo sobre a Cidade.

Portanto, não apenas uma educação voltada para a aquisição de conhecimentos e, menos ainda,
conhecimentos cortados, deficientes/ auto-suficientes ou subalternos/prepotentes. Mas uma
educação capaz de constituir o processo de tornar-se cidadão; isto é, um processo voltado à
formação de sujeitos sociais participantes do exercício e usufruto do trabalho, da geração e uso dos
conhecimentos, e do exercício da responsabilidade de Governo sobre a sua cidade. Esta proposta se
põe radicalmente contra qualquer proposta de educação discriminatória e reforçadora dos
mecanismos, os antigos e os mais novos, de exclusão social. Especialmente aquelas que, à luz de
valores invertidos, dividem o pensamento da ação, o comando da execução, a política da técnica.
Conforme esta proposta, a técnica não é neutra e a política não é privilégio”(5).

Notas

1- Professora da Universidade de São Paulo. Consultora dessa série.

2- O FAT foi criado pela regulamentação do Programa do Seguro-Desemprego e do abono


a que se refere o art. 239 da Constituição, Lei Federal nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990.
Essa lei também instituiu Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador –
CODEFAT, órgão colegiado, de caráter tripartite e paritário, composto por representantes
dos trabalhadores, dos empregadores e do governo, que atua como gestor do FAT.

3- MORAES, Carmen Sylvia Vidigal. Notas históricas sobre origens do Ensino Técnico no
Estado de São Paulo. In: Moraes, Carmem S.V. e Alves, Júlia Falivene (orgs.). Inventário de
Fontes Documentais. Contribuição à pesquisa do ensino técnico no estado de São Paulo.
São Paulo: Centro Paula Souza/Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 47-50.

4- Ver, especialmente, LIMA, Antonio Almerico Biondi e LOPES, Fernando Augusto Moreira.
Diálogo social e qualificação profissional: experiências e propostas. Brasília:
MTE,SPPE,DEQ,2005.

5- Conselho de Escolas de Trabalhadores. PLATAFORMA DE EDUCAÇÃO PARA


CIDADÃOS TRABALHADORES. Rio de Janeiro,16/setembro/1995 (mimeo).

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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PROGRAMA 3

EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

A economia solidária como ato pedagógico

Paul Singer 1

I. A economia solidária como antítese do capitalismo

A economia solidária pode ser pensada como um modo de produção ideado para superar o
capitalismo. Sendo assim, para entender a lógica da primeira é preciso examinar a do último. A
pedra de toque do capitalismo é a propriedade privada dos meios de produção, mas não de qualquer
meio de produção. Trata-se especificamente dos meios sociais de produção, ou seja, dos que só
podem ser operados coletivamente.

A propriedade privada de meios individuais de produção caracteriza a pequena produção de


mercadorias, não o capitalismo. Agricultores familiares, garimpeiros, artesãos, catadores de lixo e
tantos outros trabalhadores, que possuem seus próprios meios de produção, não se confundem com
o capitalismo, antes se antepõem a ele e tendem a integrar a economia solidária. É o que acontece
quando se associam, de forma igualitária, em geral para aproveitar as vantagens pecuniárias de
compras e vendas em comum, sem renunciar à autonomia de produtores individuais ou familiares.

O capitalismo se caracteriza pela concentração da propriedade dos meios sociais de produção em


poucas mãos. Esta concentração se dá em conseqüência da lógica dos mercados competitivos, pela
qual os ganhadores se apoderam de parcelas crescentes do mercado e do capital total e os
perdedores são expulsos do mercado e privados do capital que detinham. Em última análise, a livre
competição leva à sua própria superação, ao ser substituída por modalidades monopólicas ou
oligopólicas de competição.

A concentração do capital tem como contrapartida a formação duma classe cada vez mais numerosa
de ‘perdedores’, qual seja, de pessoas que não têm meios próprios de produção e que se sustentam
vendendo sua capacidade de trabalho aos capitalistas (ou ao Estado). Os capitalistas dependem dos
trabalhadores assalariados para que seus capitais produtivos sejam acionados e assim valorizados.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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Assim como os assalariados dependem dos capitalistas (e do Estado) para serem empregados e
poderem ganhar o sustento próprio e de seus dependentes.

Na empresa capitalista, todos os esforços dos trabalhadores se dirigem a um mesmo fim, o de


maximizar o lucro dos donos. Por isso, as relações de produção neste tipo de empresa tendem a ser
autoritárias. E antagônicas. Tanto capitalistas como trabalhadores sabem que o lucro é o que sobra
da receita de vendas depois de deduzidas as despesas, entre as quais avultam os salários. Quanto
maiores os salários, tanto menores os lucros. E vice-versa. Este antagonismo estrutural de interesses
é o motor da luta de classe, que marca o relacionamento entre empregados e empregadores.

A economia solidária foi concebida como um modo de produção que tornasse impossível a divisão
da sociedade em uma classe proprietária dominante e uma classe sem propriedade, subalterna. Sua
pedra de toque é a propriedade coletiva dos meios sociais de produção (além da união em
associações ou cooperativas dos pequenos produtores). Na empresa solidária, todos que nela
trabalham são seus donos por igual, ou seja, têm os mesmos direitos de decisão sobre o seu destino.
E todos os que detêm a propriedade da empresa necessariamente trabalham nela.

Esta última condição nega a possibilidade de haver uma classe que viva apenas de rendimentos de
seu capital, sem tomar parte no trabalho. Daí deriva a norma de que a empresa solidária não
remunera o capital próprio dos sócios e que, quando trabalha com capital emprestado, paga a menor
taxa de juros do mercado. Isto significa que os ganhos dos trabalhadores têm prioridade sobre o
lucro, que na empresa solidária toma a forma de ‘sobras’. Estas são distribuídas por decisão dos
sócios de distintas maneiras, mas nunca de acordo com a participação de cada um no capital da
empresa.

A participação no excedente em proporção à parcela do capital da empresa, que cada sócio detém,
caracteriza o lucro e por isso as sobras de cooperativas (ou outras modalidades de empreendimento
solidário) não são lucros. Isso é corroborado pela legislação, que considera a cooperativa como
empreendimento sem fins de lucro e, por isso, isento de imposto de renda.

As relações sociais de produção, no interior da economia solidária, se pautam pela prática da


democracia na tomada de decisões. Todos, em princípio, participam delas, cada cabeça tendo um
voto. O que requer que todos tenham pleno conhecimento do que se passa com a empresa, não

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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podendo haver obviamente ‘segredo do negócio’ (que marca as relações hierárquicas na empresa
capitalista).

A situação do trabalhador, na empresa solidária, é o inverso da que vive na empresa capitalista.


Nesta, sua responsabilidade se limita ao cumprimento das tarefas que lhe são designadas; como
empregado, ele está excluído dos resultados da firma, sejam estes positivos (lucros) ou negativos
(prejuízos) (2). Mas, se a empresa sofre prejuízos contínuos, trabalhadores podem perder parte de
sua paga ou o emprego. Deste modo, no capitalismo, o empregado assume um mínimo de
responsabilidade pela empresa, sendo excluído do grosso dos lucros, mas nem sempre dos
prejuízos.

Na economia solidária, cada trabalhador é responsável pelo que ocorre com a empresa, participando
plenamente tanto das sobras quanto dos prejuízos. Se as sobras são significativas, parte delas será
investida no empreendimento, valorizando a propriedade do conjunto dos sócios; outra parte poderá
ser repartida entre eles ou colocada num fundo de reserva. É a assembléia dos sócios que decide o
que deve ser feito com as sobras ou como devem ser cobertos os prejuízos, se os houver.

Para o bom funcionamento da empresa solidária, a união entre os trabalhadores é essencial. Como
não há hierarquia, disputas e conflitos podem destruí-la. Também não há a supervisão e vigilância
de mestres, contra-mestres, encarregados e outros, cuja missão, na empresa capitalista, é disciplinar
o trabalhador. No empreendimento solidário, em princípio não deve haver problema de disciplina,
pois todos têm interesse no seu sucesso. Mas, na prática há, pois nem todos mostram a mesma
dedicação e diligência e, se alguns são vistos como relapsos, a maioria se sente explorada e pode
reagir com severidade.

De forma geral, há uma inversão completa de situação, quando alguém deixa de ser assalariado e se
torna cooperador. Enquanto assalariado, suas escolhas eram extremamente limitadas, reduzidas
quase sempre a ficar ou deixar o emprego. A evolução do salário, promoções ou rebaixamentos,
oportunidades de qualificação profissional e muitas outras decisões, que afetam sua vida de
trabalho, são tomadas por superiores, por razões que ele desconhece. Quando se torna cooperador,
ele passa a ser membro dum coletivo, encarregado de tomar tais decisões.

Na empresa solidária, diferenciais de retirada mensal, divisão de responsabilidades, escolha de

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


25
gestores e outras decisões que podem alterar a posição de cada um no coletivo sempre são tomadas
em conjunto. Cada trabalhador é, neste sentido, responsável por si mas também pelos demais. Isso
faz com que aumente muito o conhecimento mútuo dos sócios e a importância de seu inter-
relacionamento afetivo. Em mais de um sentido, o empreendimento solidário compartilha de
características dos grupos familiares. A fronteira que separa a vida pessoal e íntima de cada um de
seu envolvimento profissional é tênue, na medida em que a solução de problemas pessoais depende
de decisões tomadas pelo coletivo de sócios.

II. Desafios pedagógicos

A prática da economia solidária, no seio do capitalismo, nada tem de natural. Ela exige dos
indivíduos que participam dela um comportamento social pautado pela solidariedade e não mais
pela competição. Mas as pessoas que passam do capitalismo à economia solidária foram educadas
pela vida a reservar a solidariedade ao relacionamento com familiares, amigos, companheiros de
lutas, isto é, com pessoas às quais estão ligadas por laços de afetividade e confiança.

No plano econômico, cada um está condicionado a afirmar seus interesses individuais, vistos como
antagônicos aos dos outros. Prevalece a lógica do mercado, em que todos competem com todos,
cada um visando vender caro e comprar barato, para maximizar seu ganho. O individualismo se
impõe, enquanto ideologia, em grande medida porque leva os participantes a comportamentos
‘racionais’ nos mercados. A norma implícita desta ‘racionalidade’ é que, na economia de mercado,
os ganhos de uns correspondem a perdas de outros. Competir significa agir para impor perdas aos
‘outros’ e para evitar que os ‘outros’ façam isso conosco. A inspiração aqui vem da Origem das
Espécies, de Darwin, segundo a qual só sobrevivem os mais aptos.

Como diz o nome – economia solidária – o que esta propõe é a prática da solidariedade no campo
econômico. Como ela visa a uma sociedade de iguais, a economia solidária se opõe à idéia de que o
jogo econômico é inevitavelmente de soma zero. Em vez disso, ela sustenta que a cooperação entre
os participantes torna possível que todos ganhem. Este pressuposto tem comprovação empírica.
Quando várias pessoas dividem uma tarefa entre elas, de modo que cada uma se encarrega duma
parte diferente do trabalho, via de regra produz-se mais com menos esforço do que se cada um
produzisse isoladamente, realizando o trabalho por inteiro(3).

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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Esta teoria integra os fundamentos da economia política desde Adam Smith. Ele sustentava que
quanto maior o número de pessoas envolvidas na divisão social do trabalho, tanto maior seria o
fruto dos esforços de todos. Smith tinha em mente um mercado composto de muitos pequenos
produtores de mercadorias, cada grupo deles especializado numa linha de produção distinta. A
cooperação se daria pelas trocas mútuas, cada agrupamento de produtores especializados vendendo
o que produziu e comprando o que necessita dos demais agrupamentos. A competição entre os
produtores da mesma linha de mercadorias complementaria a cooperação (mediante a troca) entre
todos os produtores das distintas linhas de mercadorias.

A economia solidária vai além de Adam Smith. Ela propõe que todos os que se dedicam à mesma
linha de mercadorias – alimentos, vestuário, veículos, produtos químicos, serviços de educação, de
entretenimento etc. – também cooperem entre si e que os resultados do trabalho de todos sejam
distribuídos de acordo com regras de justiça aceitas por todos ou pela maioria dos cooperadores. O
mercado continua a funcionar, mas apenas para que os consumidores comuniquem aos produtores
suas necessidades e preferências(4).

Num mercado livre, os produtores, que atendem melhor os consumidores, vendem suas mercadorias
a preços maiores que os demais. A economia solidária propõe que o Estado tribute parte do
excedente auferido pelos mais afortunados e a transfira aos que foram preteridos pelos
compradores. Ao mesmo tempo, (como todos cooperam entre si) os preteridos aprenderão dos
afortunados como corresponder melhor aos desejos dos consumidores. Pois, se não for assim, a
sociedade se polarizará entre ganhadores e perdedores, levando à formação de nova sociedade de
classes (ou à volta da velha).

Fica claro que a prática da economia solidária exige que as pessoas que foram formadas no
capitalismo sejam reeducadas. Esta reeducação tem de ser coletiva, pois ela deve ser de todos os
que efetuam em conjunto a transição, do modo competitivo ao cooperativo de produção e
distribuição. Se apenas um indivíduo adotar comportamento cooperativo numa sociedade em que
predomina a competição, ele será esmagado economicamente. E vice-versa: se apenas um se
comportar competitivamente onde predomina a economia solidária, ele será visto como egoísta e
desleal pelos demais, que o excluirão do seu meio.

Esta reeducação coletiva representa um desafio pedagógico, pois se trata de passar a cada membro

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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do grupo outra visão de como a economia de mercado pode funcionar e do relacionamento
cooperativo entre sócios, para que a economia solidária dê os resultados almejados. Esta visão pode
ser formulada e transmitida em termos teóricos, mas apenas em linhas gerais e abstratas. O
verdadeiro aprendizado se dá com a prática, pois o comportamento econômico solidário só existe
quando é recíproco. Trata-se de grande variedade de práticas de ajuda mútua e de tomadas coletivas
de decisão, cuja vivência é indispensável para que os agentes possam aprender o que deles se espera
e o que devem esperar dos outros.

A pedagogia da economia solidária requer a criação de situações em que a reciprocidade surge


espontaneamente, como o fazem os jogos cooperativos. Importa aqui menos o aprendizado do
comportamento adequado do que o sentimento que surge da prática solidária. Tanto dando como
recebendo ajuda, o que o sujeito experimenta é afeição pelo outro e este sentimento para muitos é
muito bom. Tanto em competir como em cooperar, o sujeito se sente feliz. Só que no primeiro caso,
esta felicidade só é completa se ele vence e demonstra sua superioridade sobre os demais. No
último, a felicidade é gozada toda vez que se coopera, independentemente do resultado.

A economia solidária é produzida tanto por convicção intelectual como por afeto pelo próximo, com
o qual se coopera. A hipótese aqui é que todos têm inclinação tanto por competir como por
cooperar. Qual destas inclinações acabará por predominar vai depender muito da prática mais
freqüente, que é induzida pelo arranjo social em que o sujeito nasce, cresce e vive.

Os que se formam no capitalismo, sobretudo em sua forma exasperadamente liberal (da qual os
EUA me parecem o exemplo mais acabado), são postos em situações de competição desde a
infância, na família e na escola. Aprenderão desde cedo que os indivíduos são desiguais: alguns são
fortes, inteligentes, esforçados, enquanto outros são fracos, burros e preguiçosos. Na luta pela vida,
os primeiros serão os vencedores e os últimos os perdedores. Aprenderão também que só pela
competição os vencedores obtêm a recompensa material que lhes permite aplicar seus dotes a favor
do bem comum. A humanidade progrediria porque a competição premiaria o mérito, dando-lhe o
poder de liderar e mandar, e condenaria o demérito à subordinação. Da competição nasceria a
meritocracia e desta o progresso.

Os que se formam num meio em que prevalece a economia solidária vivem desde cedo situações
definidas por comportamentos recíprocos de ajuda mútua. Aprenderão que as pessoas diferem mas

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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que estas diferenças provêm do meio e da educação; que ninguém é tão forte que não precise do
auxílio dos outros e que a união faz a força. São levados a perceber que a desigualdade social e
econômica não é natural e nem decorre da superioridade de quem tem e manda sobre quem nada
tem e obedece. Que a desigualdade é ruim e injusta e que ela só pode ser abolida pela prática da
solidariedade entre os homens.

Mas, o que acontece quando pessoas formadas no capitalismo, digamos, moderadamente liberal
(como o brasileiro) se vêem excluídas do emprego por falta de demanda empresarial pela sua
capacidade de trabalho? Muitas delas optam por se unir a seus iguais para formarem juntas algum
empreendimento solidário. O mais das vezes, elas fazem esta opção quando ainda se encontram
empregadas e conseguem obter em arrendamento a massa falida da ex-empregadora, com a
finalidade de mantê-la em operação. Nestes casos, o recurso à economia solidária se deve
unicamente ao temor de ficar desempregado por longo tempo ou permanentemente.

No momento em que esta opção pela economia solidária é feita, grande parte dos trabalhadores
sequer sabe direito do que se trata. Mas, encontram-se ligados por laços de solidariedade forjados
em longos anos de lutas, durante as quais a ajuda mútua é essencial à vitória. As lutas comuns
produziram confiança mútua e afeto recíproco entre os trabalhadores. Eles aprenderam a cooperar e
gostam da experiência. Muitos abominam o mandonismo e odeiam a desigualdade.

Por tudo isso, a opção pela economia solidária aparece como a mais provável ou mesmo a única
possível. No Brasil, mas não nos EUA. Lá, quando empresas antigas entram em crise,
freqüentemente elas são adquiridas pelos empregados, muitas vezes com pecúlio representado por
parte do fundo de pensão. É o chamado buy-out. Mas, daí não resulta um empreendimento
solidário, mas outra sociedade por ações, da qual os trabalhadores participam em proporção a seus
haveres. Os que ganhavam mais obtêm maior número de ações e um grupo deles pode vir a
controlar a empresa. Mas, mesmo que todos possam participar da administração da nova empresa,
esta não passa dum expediente para enfrentar uma desgraça. Se a empresa se recupera e valoriza (o
que parece comum) os seus donos tendem a vendê-la a quem oferecer mais. A recuperação da
empresa não passa, neste caso, duma aventura de negócios bem sucedida.

No Brasil, a freqüente opção pela economia solidária por trabalhadores com ponderável vivência
sindical se explica por seus valores. A idéia de que no novo empreendimento ninguém vai mandar e

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


29
nem obedecer, de que a assembléia dos sócios tomará todas as decisões (cada cabeça com um voto),
como é habitual no sindicato, deve ter sido aceita como a única maneira de manter os trabalhadores
unidos e empenhados em garantir a recuperação do empreendimento, que daí em diante será deles.

Na realidade, a educação que a luta de classes proporciona aos operários está embebida em valores
solidários e igualitários, que estão na base do socialismo, enquanto projeto e utopia. A posição
objetiva de classe dos trabalhadores inclina-os a valorizar a solidariedade e a democracia como
norma de suas organizações. Os primeiros teóricos do socialismo, do século XIX, pensavam que
suas propostas decorriam de pressupostos gerais a respeito do homem. Mas, Marx mostrou que o
socialismo é, na verdade, o projeto dos subalternos, quando se revoltam contra o seu status social.
Há socialistas em todas as classes, mas é a classe trabalhadora que sustenta o socialismo como
bandeira de luta e como paradigma da sociedade desejável.

Por isso, os trabalhadores, assim como os pequenos produtores de mercadorias e os pobres em


geral, se inclinam espontaneamente à economia solidária, sempre que têm ensejo de realizar
autonomamente alguma atividade econômica, de forma coletiva. A partir desta inclinação
espontânea, a tarefa pedagógica se impõe. Por terem sido subalternos e alienados da gestão do
empreendimento, que agora lhes incumbe não só operar mas dirigir, os trabalhadores não estão
preparados para a tarefa. Eles têm de ser ensinados e eles sabem disso.

O mesmo vale para todos os que se engajam na construção da economia solidária: os sem-terra nos
assentamentos de reforma agrária, os prestadores autônomos de serviços (professores, médicos,
guias turísticos, cabeleireiros, taxistas etc.) quando se associam, os artesãos, cultivadores de
fitoterápicos, apicultores, horticultores domésticos e tantos outros, quando formam clubes de trocas
e/ou cooperativas de crédito e assim por diante. Hoje a economia solidária assume variadas formas
e em cada uma delas há um aprendizado a ser feito. No que segue, vamos nos concentrar no caso
das empresas recuperadas por trabalhadores, em autogestão.

III. A questão do que ensinar

O ensino da autogestão poderia, à primeira vista, incorporar tudo o que for aproveitável da
administração de empresas, tal qual é elaborada e lecionada nas universidades. É óbvio que este
curso prepara os alunos a serem gestores de empresas capitalistas, a atuarem em heterogestão, não

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


30
em autogestão. Mas, do mesmo modo que as empresas capitalistas, também as solidárias têm de
competir em mercados, de modo que tudo que se refere ao relacionamento externo da firma – com
clientes, fornecedores, financiadores, contadores, fiscais etc. – poderia ser ensinado do mesmo
modo (com a mesma pedagogia) tanto a um tipo como ao outro de empresa.

Teríamos, então, o ensino da autogestão dividido em duas partes: uma, a cargo de teóricos,
investigadores ou veteranos da economia solidária, que versaria sobre as regras de funcionamento
interno do empreendimento; outra, a cargo de especialistas, investigadores ou veteranos da
economia capitalista, que versaria sobre as regras de relacionamento com outros agentes do
mercado. Esta divisão acabaria, porém, por levar os empreendimentos solidários a adotar
procedimentos incompatíveis com seus princípios e a se submeter a intermediários capitalistas
quando os mesmos serviços podem ser prestados por congêneres solidários.

A contabilidade, por exemplo, tem por função coletar, processar e inter-relacionar os resultados
monetários e não-monetários de todas as atividades da empresa. Há uma contabilidade que se insere
no sistema capitalista, em que as informações fluem de baixo para cima e as ordens de cima para
baixo. As contas são feitas para que a cúpula dirigente possa tomar decisões. Outra é a contabilidade
que se insere na economia solidária, em que é dever dos dirigentes informar a base – o conjunto de
trabalhadores – sobre a situação da empresa, para que este coletivo possa tomar decisões. É a base
que dá as diretrizes à administração que ela escolheu e pode substituir quando achar que não está
correspondendo.

É claro que o ensino da contabilidade convencional, nestas condições, a trabalhadores que praticam
autogestão é contraproducente. Eles têm de aprender uma contabilidade que didatize a apresentação
de seus resultados para que sejam transparentes e entendíveis por todos trabalhadores. Os
trabalhadores têm que aprender contabilidade de custos, inclusive as diferentes maneiras de
apropriar custos indiretos, para que possam entender os pontos fortes e fracos do desempenho de
sua empresa e adotar medidas eficientes, com conhecimento de causa.

Algo semelhante se passa com administração financeira, vista pela ciência oficial como prestadora
de serviços a poupadores e investidores, por um diferencial de juros (spread) entre os juros
passivos, pagos pelos bancos aos poupadores e os ativos, pagos pelos investidores aos bancos. A
realidade é falseada quando a ciência ortodoxa supõe que o mercado de capitais seja perfeitamente

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


31
competitivo e que por isso os juros que os bancos pagam são os necessários para induzir os
poupadores a adiar o consumo dum valor que corresponde ao que os investidores precisam tomar
emprestado para realizar seus intentos.

De acordo com esta teoria, as taxas de juros passiva e ativa são as únicas que equilibram as
preferências e intenções de poupadores e investidores; e o spread corresponde aos custos dos
serviços bancários, reduzidos ao mínimo por efeito da competição entre os intermediários
financeiros.

A verdade é que o mercado de capitais não é competitivo, mas oligopólico, dominado por grandes
conglomerados financeiros e conglomerados igualmente grandes de produção e distribuição de
mercadorias. Por isso, os juros ativos, pagos pelas empresas que tomam empréstimos, são
inversamente proporcionais ao seu tamanho. É que os bancos incluem nos juros que cobram uma
margem de risco, igual à probabilidade, estimada por eles, de que o empréstimo não seja devolvido.
Os bancos supõem que este risco é tanto maior quanto menor for o tomador do empréstimo. Só que
eles não repassam aos poupadores o valor desta margem de risco, do qual se apossam. Isso faz com
que o spread seja gigantesco nos empréstimos feitos aos pequenos empresários e também aos
empreendimentos solidários.

Os que constroem a economia solidária precisam aprender estas coisas para poder apreciar a
vantagem que advém dum sistema de finanças solidárias, possuído pelos usuários, na forma de
cooperativas de crédito. As finanças solidárias estão a serviço dos investidores e poupadores, que
são dois papéis que, neste sistema, são desempenhados pela mesma gente, os trabalhadores. A
cooperativa recebe depósitos dos sócios e empresta aos sócios que desejam tomar empréstimos. É o
conjunto dos sócios que fixa os juros ativos e passivos, em geral mantendo-os muito abaixo dos
cobrados e pagos pelos bancos comerciais.

Separar o ensino das finanças do da autogestão seria incorrer no erro de supor que a economia
solidária é e será para sempre um componente dum todo maior capitalista. Na realidade, não há
qualquer ramo de atividade que não possa ser organizado de forma solidária. Já existem há muito
tempo, em outros países, cooperativas de consumo, de comercialização, de produção agrícola,
pecuária, industrial e extrativa, de prestação de serviços de variadas naturezas, de seguros (também
conhecidas como ‘mútuas’ ou ‘mutuárias’), de educação, de serviços de saúde e assim vai.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


32
Em outras palavras, o ensino da autogestão não tem porque ser dividido em uma parte própria,
interna aos empreendimentos, e outra externa aos mesmos, porque o meio ambiente em que atuam
empreendimentos solidários pode ser composto inteiramente por outros empreendimentos
solidários. No caso do Brasil de hoje, isso ainda está longe de ser o caso. Portanto, os nossos
empreendimentos solidários recém-nascidos ainda vão ter que lidar com um meio circundante que
lhes é, em princípio, hostil por ser capitalista. Mas, para que a construção da economia solidária se
complete, em nosso país, é fundamental que os praticantes aprendam que podem mudar o meio
externo hostil, tornando-o amigável pela difusão da economia solidária pelos ramos que lhe são
complementares.

A economia solidária, neste momento de sua história no Brasil, está sendo ensinada por educadores
ou incubadores a praticantes, em sua maioria jovens e inexperientes, que estão enfrentando a difícil
tarefa de manter e desenvolver seus empreendimentos tecnologicamente atrasados e
insuficientemente capitalizados. Isso se aplica tanto a empresas em recuperação como a
cooperativas em assentamentos de reforma agrária, cooperativas de recicladores de resíduos sólidos,
cooperativas de agricultores familiares e muitos outros. A efetividade deste ensino decorre
provavelmente da estreita conexão entre seus fundamentos teóricos e sua aplicação prática.

Devemos a Paulo Freire esta formulação lapidar: “Ninguém ensina nada a ninguém; aprendemos
juntos.” Isto se aplica inteiramente à economia solidária enquanto ato pedagógico. Docentes e
discentes são igualmente inexperientes. Os primeiros possuem conhecimentos teóricos, os segundos
o saber que se adquire por tentativa e erro na prática. Nesta interação, produz-se um auto-
aprendizado mútuo. Somos todos autodidatas, pois não há aprendizado verdadeiro em que a
curiosidade do aprendiz não tenha papel crucial.

Esta, me parece, é a melhor explicação para o que vem sucedendo com a economia solidária no
Brasil no passado recente e no presente. Trabalhadores aparentemente simples e incultos recebem
empresas quebradas e as recuperam. Como aprendem a realizar tal proeza? Casando seu saber de
homens práticos com o saber abstrato, politicamente motivado, dos formadores. E usando a
solidariedade como organizador coletivo da atividade econômica, ao somar os saberes de dezenas
ou mesmo centenas de trabalhadores, cada um com sua experiência de vida. E estudantes de
psicologia, administração, contabilidade, direito, economia e de tantas outras especialidades,
adicionando seus saberes específicos e também os genéricos à sabedoria coletiva, solidariamente

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


33
construída pelos protagonistas diretos.

E deve haver outros elementos, que ainda ignoramos.

IV. Conclusões

A economia solidária é um ato pedagógico em si mesmo, na medida em que propõe nova prática
social e um entendimento novo desta prática. A única maneira de aprender a construir a economia
solidária é praticando-a. Mas, seus valores fundamentais precedem sua prática. Não é preciso
pertencer a uma cooperativa ou empreendimento solidário para agir solidariamente. Este tipo de
ação é freqüente no campo político e no campo das lutas de classe, sobretudo do lado dos
subalternos e desprivilegiados.

Estes últimos são os dominados e, quando agem, voltam-se contra os dominadores, que detêm o
poder e a capacidade de reprimir tais tipos de ação e sancionar quem se atreve a tentá-los. A
principal arma dos que desafiam a ordem vigente (como os grevistas, por exemplo) e que lhes
oferece alguma perspectiva de sucesso é a união entre todos, ou seja, a solidariedade. Por isso, a
solidariedade é ensinada aos fracos e subalternos pela vida que levam e pelas empreitadas em que se
engajam. Isso vale também para os pobres, que só conseguem sobreviver graças à prática
consistente da ajuda mútua, modalidade essencial da solidariedade. É a vida que ensina aos mais
fracos, os social e economicamente debilitados, o valor, na verdade, a imprescindibilidade da
solidariedade.

A economia solidária é um passo decisivo para além deste aprendizado pela vivência, pois ela
propõe a solidariedade não só como imposição da necessidade mas como opção consciente por
outro modo de produção. Esta talvez seja a conclusão principal do acima exposto. A experiência de
vida dos inferiorizados lhes ensina a prática da solidariedade como resposta à necessidade, em
situações de perigo ou de extrema carência. A economia solidária lhes propõe a solidariedade como
prática sistemática, cotidiana, embebida num relacionamento social e econômico especialmente
construído para isso.

A economia solidária se prende à experiência de vida pregressa dos trabalhadores, mas ao mesmo
tempo a ultrapassa. Isso fica claro quando se examina a saga das empresas recuperadas. No início

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


34
do processo, no chamado “momento inaugural”, a solidariedade se impõe tanto pela luta para que a
empresa seja entregue aos ex-empregados, como pela necessidade de muita labuta com
remuneração mínima, para que a nova cooperativa (ou associação) se viabilize economicamente.
Mas, ela continua essencial mesmo quando o período heróico é superado, pois um empreendimento
coletivo exige a efetiva cooperação entre todos que o compõem. É neste momento que o ato
pedagógico se faz indispensável.

Trata-se, pois, de uma nova prática solidária, que se alimenta da antiga, mas exige uma formação
específica. Trata-se em essência da construção duma nova sociedade, dentro e em oposição à velha.
Esta formação exige a interação dos que se envolvem na construção concreta dos empreendimentos
solidários, em sua grande variedade, e da articulação deles entre si, para que possam haurir
conhecimentos desta experiência, com os seus intelectuais orgânicos, que pensam, sistematizam e
discutem a economia solidária numa temporalidade histórica e numa espacialidade internacional.
Assim, a economia solidária produz o aprendizado conjunto que a impulsiona em sua trajetória.

Notas

1- Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.

2- Hoje em dia, torna-se comum a participação do conjunto dos empregados nos lucros da
empresa, mas não nos prejuízos. Esta inovação contraria a lógica do contrato de trabalho,
que prevê apenas o pagamento do trabalho realizado. Por isso, a participação nos lucros é
quase sempre marginal, sendo encarada como incentivo. Por outro lado, executivos e
trabalhadores especializados freqüentemente têm grande parte de seu pagamento
condicionado aos resultados alcançados nos setores pelos quais são responsáveis. Como
gestores de parcelas do capital da empresa, assalariados nestas condições se encontram a
meio caminho entre sócios capitalistas e simples empregados.

3- A especialização do trabalhador aumenta-lhe fortemente a produtividade porque o


exercício sempre da mesma tarefa a) aumenta-lhe a destreza; b) poupa o tempo perdido
quando passa de uma tarefa para outra; e c) leva à invenção de novas ferramentas e
máquinas, que permitem incrementar a produtividade do trabalho. Adam Smith, A Riqueza
das Nações (editada pela primeira vez em 1776).

4- Isto significa que na economia solidária há abertura para novos competidores, na


suposição de que eles apresentam avanços, seja na qualidade do produto, seja nos
métodos de produção. Os consumidores, portanto, têm a oportunidade de escolher entre
mais de um fornecedor. Mas, mesmo que a suposição não se realize, é sempre possível
que diferentes cooperativas ou associações compitam pelo mesmo mercado. Isso não seria
recomendável pela lógica da economia solidária, porém acima desta lógica deve estar o
respeito ao direito de cada cidadão ou grupo de cidadãos de empreender livremente, de
acordo com sua vontade.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


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PROGRAMA 4

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – POSSIBILIDADES E DESAFIOS


PRESENTES (1)

Sonia Maria Portella Kruppa 2

Implantar a Educação de Jovens e Adultos (EJA), no Brasil, nos termos defendidos por Paulo
Freire, a partir de seu conceito de dialogicidade, que pressupõe o alfabetizando sujeito de seu saber
e uma proposta político-pedagógica baseada em relações de cooperação e solidariedade, é uma
opção política e de política educacional. Não por acaso, mais de 15 milhões de brasileiros
analfabetos continuam a existir, apesar da exigência constitucional de prioridade deste atendimento
e do avanço científico e tecnológico alcançado em nosso País.

Quando refletimos sobre a importância da EJA na transformação social é que compreendemos as


dificuldades que sua implantação implica, como política permanente num país profundamente
desigual como o Brasil.

A EJA, dotada de qualidade que a torne efetiva, transforma-se numa política social que ameaça o
“status quo” das elites privilegiadas, com possibilidade de produzir “desobediência civil” ao não
aceitar os limites impostos pela sociedade de classes:

“Ao identificar na relação autoritária um dos pilares centrais ao sistema social em


que vivemos e apresentar uma alternativa para a superação desta relação, Paulo
Freire vai ao ‘fígado’ deste sistema. Desafia-o naquilo que ele tem de mais
sagrado. Ameaça a ‘ordem’, torna-se um ‘subversivo’ desta ‘ordem’ (...) Não é de
estranhar que Paulo Freire tivesse passado 16 anos exilado sem direito sequer a
um passaporte. Tivesse vivido na época de Sócrates e teria sido obrigado a tomar
cicuta” (BARRETO, 1986).

Foi assim no passado e é essa sua trajetória histórica. Recordemos sua importância nos anos 60,
através de algumas de suas manifestações sociais e culturais, plenas de ousadia: Movimento de
Cultura Popular - MCP (iniciado no Recife, em maio/60), Campanha “De pé no chão também se
aprende a ler” (Natal, fev./61) Movimento de Educação de Base – MEB (CNBB, março/61), os
Centros Populares de Cultura – CPC, da União Nacional dos Estudantes - UNE (março/61) e a

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


36
proposta de Paulo Freire, em Angicos (Rio Grande do Norte, jan./63) (3).

O alerta para a atualidade da Educação Popular, difundida nessa época, já foi dado por autores
presentes nas reuniões acadêmicas, mas também nas lutas da população:

“No final dos anos 80, era usual ouvir a afirmação de que a valorização da
Educação Popular significava um saudosismo de um período da história brasileira
carregado de heroísmos, mas que já estava superado. A experiência concreta dos
movimentos sociais e de técnicos envolvidos nas políticas sociais foi mostrando,
no entanto, que a Educação Popular continua sendo instrumento importante de
aperfeiçoamento das relações entre as classes populares, os movimentos sociais e
o Estado”(4).

Se EJA é por excelência um ato político, EJA é também uma ação cultural. Os jovens e adultos
estão imersos no mundo social e cultural. Ao trabalhar com adultos mais velhos, essa perspectiva
cultural/social se faz presente com mais força.

Os motivos que os trazem para a situação de ensino-aprendizagem não se resumem a uma razão
utilitarista ou instrumental de “aprender para”, simplesmente. Há outro gosto que permeia as
situações de sala de aula, o gosto humano da convivência, que se revela em diferentes situações, nas
estórias de vida e no desejo de continuar a conviver no grupo, independentemente da conclusão do
curso. Há, em EJA, o apontar para a educação permanente como forma de ser homem e mulher:

“Para mim a educação é simultaneamente um ato de conhecimento, um ato político e um ato de


arte” (5).

Nos grupos formados nas salas de EJA se mesclam diferentes idades e interesses. É preciso
compreender a dinâmica dessas heterogeneidades, fator importante para a efetiva dimensão política
dessa educação.

EJA está no contexto das políticas sociais de melhoria da qualidade de vida, que visam à inserção de
milhares de pessoas numa sociedade de direitos. De um lado, compreender e buscar formas de
superação para as discriminações de classe, de gênero, de raça e também de idade, frutos de um
modelo econômico, social e político individualista e segregador, devem ser colocados no universo
de seus objetivos. De outro lado, está a exigência da EJA de compreender e alargar as formas de
organização presentes nas rotinas de sobrevivência dessa população, elementos de resistência a

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


37
estas discriminações. Exemplificando, as formas de organização dessas populações trazem, por
vezes, laços de solidariedade já não mais comuns no conjunto da vida social tal como ela se
apresenta na ordem imposta pelo capital.

A sobrevivência no meio urbano ou no rural não se faz pela separação por idades, mas pelas ações
interativas de diversas idades na busca dessa sobrevivência, o que é altamente rico como
experiência Os pequenos aprendem/ensinam os maiores e juntos potencializam as precárias formas
de sobrevivência. Por isso mesmo, o “tempo pedagógico” na educação de modo geral e
especialmente na EJA é uma questão que vem sendo discutida, ainda que não com a intensidade
necessária.

Os espaços disponibilizados por esta população para a instalação de salas de aula (6), as formas de
sociabilidade organizadas para viabilizá-las e a compreensão da precariedade da vida que invade a
sala de aula são outros elementos presentes na implementação de programas de EJA que devem
servir de referências para repensá-los, como organização educativa e curricular. As situações de
convivência social são agregadoras dos diferentes (de idade, de raça e de sexo) na plenitude que
caracteriza o humano e a vida. O recorte segregacionista da classe social e do sistema capitalista
isola, pré-conceitua esses grupos com vistas a seu controle.

Como instituição social, a escola está organizada em séries, por idade e por determinações de
conteúdo, muito mais como forma de controle e de aumento de produtividade, do que em razão de
fundamento do processo de ensino - aprendizagem ou da construção de formas solidárias de viver a
vida. É preciso não esquecer que EJA não “combina” com os espaços burocratizados da escola
formal. Muitas vezes, essa é a razão alegada para as escolas fecharem suas porta à EJA.

A pressão de políticas públicas comprometidas com a EJA, a prática do movimento social e,


inclusive, o respaldo da contraditória legislação vigente certamente explicam que o Conselho
Nacional da Educação tenha afirmado o perfil próprio dessa modalidade de ensino, com um modo
de ser específico (Parecer CNE/CEB n. 11/2000).

Publicação recente sobre a EJA, cujo texto integral encontra-se disponível na Web, faz algumas
considerações sobre suas conquistas e desafios, que transcrevemos a seguir por julgá-las de extrema
relevância (7).

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


38
“Do ponto de vista da oferta, um elemento fundante da consolidação da EJA é a necessária
orquestração entre a atuação dos governos federal, estaduais e municipais, articulando, entre outros
órgãos representativos, o MEC, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação
(Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) como parceiros na
construção da política pública de EJA. Isso significa, além da prioridade no acesso aos recursos
federais destinados a essa modalidade, uma busca de construção coletiva das alternativas para a
expansão da EJA, bem como para uma reconfiguração dessa modalidade de ensino, visando atender
às especificidades dos alunos jovens e adultos. Essa articulação não se restringe aos entes
federativos, pelo contrário, busca aliados entre todos aqueles que historicamente já atuam em EJA.
Por outro ângulo, a questão da EJA no Brasil jamais se reduziu ao que foi feito pelos governos. O
campo de atuação da sociedade civil na educação popular, por meio dos movimentos religiosos e
sindicais, do setor empresarial, das associações de bairro, de moradores e de idosos, ou mesmo na
tarefa de suprir o déficit de oferta de escolarização básica para os jovens e adultos, demonstra a
importante contribuição desses sujeitos no campo da EJA. Portanto, os verdadeiros sujeitos da
história da EJA no Brasil, além dos próprios jovens e adultos, são coletivos, representantes de
governos, organizações não-governamentais, organismos internacionais, trabalhadores e patrões,
sindicalistas e movimentos sociais que, de alguma forma, estão fazendo a EJA, na complexa e
diversa realidade brasileira.

Esses coletivos são muito bem representados pelos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos, uma
experiência rica que tem sido vivida nos movimentos internos do Brasil desde 1996, com a
constituição do primeiro Fórum no Rio de Janeiro, demonstrando um vigor incomum e expressivo
potencial mobilizador (...) Não há dúvida de que o movimento dos Fóruns e a tentativa de
constituição da EJA enquanto política pública representam as principais expressões da educação de
jovens e adultos em movimento na atualidade. Expressam as potencialidades, as tensões e os
conflitos inerentes a esse movimento. Ilustram a dificuldade de atores diversos construírem uma
política nacional que represente a rica diversidade de interesses e necessidades em termos étnicos,
raciais, culturais, ideológicos, regionais e de gênero da população brasileira. Ilustram também a
dificuldade de edificar uma política que vise articular a melhoria da qualidade dos sistemas de
ensino com a construção de bases para a eqüidade e a inclusão social.”

“Uma das inquietações presentes na construção da EJA, enquanto política pública, tem sido a
necessidade de responder a um grande vácuo existente nas propostas curriculares, no que tange ao

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


39
distanciamento entre essas e o mundo do trabalho. Os desafios da relação entre a educação e o
mundo do trabalho na EJA são particularmente complexos. Uma questão que preocupa é o
reducionismo dessa relação à perspectiva de emprego.

Atualmente, há iniciativas promissoras, como as desenvolvidas com base no Plano Nacional de


Qualificação (PNQ) e no Programa Economia Solidária em Desenvolvimento. É uma tentativa de
articulação com a EJA, que tem, entre outros objetivos: ‘Articular a Economia Solidária e as demais
políticas públicas, em especial, aquelas relativas à elevação da escolaridade, alfabetização e
educação de jovens e adultos’ (DEQ/Senaes/SPPE/MTE, 2003, p. 4).

Para que haja a efetiva integração entre EJA e o Mundo do Trabalho é preciso que os educadores e
os alunos se indaguem: Como introduzir essa discussão nos currículos de EJA? Como fazer para
que professores compreendam o mundo do trabalho como eixo gerador da produção de outros
conhecimentos? Como contribuir para que o campo da discussão do emprego, do subemprego e do
desemprego faça-se presente de forma efetiva na EJA?

Nesse sentido, a educação de jovens e adultos tem muito a aprender de sua interlocução e
convivência com instâncias das organizações e movimentos populares e com os métodos
desenvolvidos na educação popular, empreendidos pelas diversas entidades que atuam nesse meio:
movimentos de mulheres, movimentos ecológicos, movimentos em prol da moradia popular,
movimentos étnicos, movimentos partidários e sindicais, movimentos que discutem questões de
gênero, movimentos que defendem as liberdades e preferências sexuais, entre outros. A riqueza de
saberes que pode advir desses encontros, por si só, justifica a importância de uma estratégia de
parceria baseada na dialogicidade, que presume a compreensão de uma democracia plural que
abraça as diferenças e respeita a diversidade”.

Notas

1- Baseado em “A educação de jovens e adultos”, publicado em OLIVEIRA,


Romulado P. e ADRIÃO,Theresa (orgs). Organização do ensino no Brasil – níveis e
modalidades na Constituição Federal e na LDB. São Paulo: Xamã, 2002.

2- Professora da Universidade de São Paulo. Consultora dessa série.

3- Sobre os fatos que marcaram a história da Educação de Jovens e Adultos no


Brasil ver BEISIEGEL (1997: 207-245) e FÁVERO (2000: 159-179).

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


40
4- Editorial do Boletim do Grupo de Trabalho de Educação Popular da ANPED:
Boletim do GT de Educação Popular, ANPED, 1998.

5- Paulo Freire, cf. Cit. In: McLAREN, Peter. Paulo Freire e o Pós Modernismo.
Educação e Realidade, Porto Alegre, 12(1):13 - 13, jan./jun. 1987.

6- Na instalação do MOVA/Diadema-SP, um proprietário de pequeno bar, no centro


de uma favela, fechava suas portas em horário de pico do movimento comercial (das
19:00h às 21:00h) para transformar o espaço em sala de aula. Os que vivem a EJA,
certamente têm inúmeros exemplos como esse, que de certa forma rompem com a
lógica capitalista de ganhar sempre e a qualquer custo.

7- IRELAND, Timothy D., MACHADO, Maria Margarida e IRELAND, Vera E.J. da


Costa. Os desafios da educação de jovens e adultos: vencer as barreiras da
exclusão e da inclusão tutelada”. In: KRUPPA, Sonia M. P. (org). Economia Solidária
e Educação Jovens e Adultos, disponível em http://www.inep.gov.br, consulta
realizada em 29/08/05.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


41
PROGRAMA 5

TRABALHO COMO PRINCIPIO EDUCATIVO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA
O trabalho como principio educativo (1)

Maria Ciavatta 2

"A hora da chegada é também a hora da partida.”


(Milton Nascimento)

1. Introdução

Gostaríamos de iniciar esta reflexão pensando sobre nossos trabalhos na vida familiar, na vida
profissional, no trabalho organizativo do Movimento. Pensar sobre as ações que executamos nesses
trabalhos, o que pensamos e o que sentimos em relação a cuidar da casa, dos filhos, da roupa, da
comida; cuidar da terra, dos animais, executar serviços administrativos, de transporte e tantos
outros; preparar reuniões, escrever textos e tudo o mais que nos cabe em diferentes situações.

Cada um de nós assume diferentes papéis e continua sendo o mesmo e não sendo o mesmo, na
medida em que essas diferentes ações nos modificam ao serem executadas. O verso de Milton
Nascimento, certamente sem nenhuma intenção filosófica, expressa a dialética que é um fato
permanente no mundo natural e em nossas vidas. A concepção dialética tem por princípio o
movimento de transformação de todas as coisas, de modo que afirma que “o ser é e não é ao mesmo
tempo”, porque se transforma. O trem da chegada é o mesmo trem da partida...

Uma outra reflexão preliminar importante é ver como o trabalho vem sendo debatido nas últimas
décadas no mundo ocidental. Desde meados dos anos 80, a sociologia pôs em questão a
centralidade da categoria trabalho para as análises sociais (Offe, 1989). Mas esta não era apenas
uma questão das ciências sociais. Já no final da década, acompanhando a evidência da crise de
emprego que se anunciava na Europa ocidental e a desintegração do mundo socialista, um alto
funcionário do Estado americano (Fukuyama, 1992), proclama o “fim da história”. Mais
recentemente, o grupo Krisis lançou um manifesto sobre o “fim do trabalho”.

EDUCAÇÃO E O MUNDO DO TRABALHO.


42
No entanto, toda evidência do mundo, vivida por nós, deixa claro que a sobrevivência do ser
humano depende de meios de vida obtidos mediante o trabalho ou algum tipo de ação sobre os
recursos naturais, sobre o meio em que vivemos. Nesse intercâmbio com a natureza, o ser humano
produz os bens de que necessita para viver, aperfeiçoa a si mesmo, gera conhecimentos, padrões
culturais, relaciona-se com os demais e constitui a vida social.

Sem nos alongarmos sobre a história do trabalho, nas formas de escravidão, de servidão e de
trabalho assalariado na sociedade burguesa, queremos dizer que o trabalho, como atividade
fundamental da vida humana, existirá enquanto existirmos. O que muda é a natureza do trabalho, as
formas de trabalhar, os instrumentos de trabalho, as formas de apropriação do produto do trabalho,
as relações de trabalho e de produção que se constituem de modo diverso ao longo da história da
humanidade.

É inocência pensar que o trabalho é sempre bom. Ele o é em certas condições. Mas quais são estas
condições? Duas vertentes contraditórias sobre o que pensamos, sentimos e vivenciamos (mesmo
inconscientemente) em relação ao trabalho fazem parte do ideário cultural de nossa sociedade.

Uma dessas vertentes tem origem no pensamento religioso, segundo o qual o trabalho dignifica,
valoriza e enobrece o homem, ao mesmo tempo em que disciplina o corpo e eleva o espírito. De
outra parte, no Brasil, como em outros lugares do mundo, temos conhecimento e repudiamos as
condições de trabalho de milhões de trabalhadores, condições que são de privação na vida pessoal,
na vida familiar e nas demais instâncias da vida social. São condições advindas das relações de
exploração do trabalhador, de alienação ou de expropriação de seus meios de vida, de seu salário, da
terra onde vive e de suas possibilidades de conhecimento e de controle do processo do próprio
trabalho.

Estas breves reflexões iniciais são importantes para se pensar em que medida o trabalho é princípio
educativo. O trabalho, enquanto ação que praticamos, muda as nossas vidas. Mas muda como?
Partimos da idéia de que o trabalho pode ser ou não educativo dependendo das condições em que se
processa.

2. O trabalho na sociedade capitalista

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O que é o trabalho? O trabalho humano efetiva-se, concretiza-se em coisas, objetos, formas, gestos,
palavras, cores, sons, em realizações materiais e espirituais. O ser humano cria e recria os elementos
da natureza que estão ao seu redor e lhes confere novas formas, novas cores, novos significados. De
modo que o trabalho é o fundamento da produção material e espiritual do ser humano para sua
sobrevivência e reprodução (Ianni, 1984).

O trabalho ou as atividades a que as pessoas se dedicam são formas de satisfazer as suas


necessidades que, por sua vez, são os fundamentos dos direitos estabelecidos na vida em sociedade.
Que direitos são estes? São os direitos de toda pessoa e alguns especiais das crianças e dos jovens –
direitos pelos quais os trabalhadores vêm lutando duramente nos últimos séculos.

São os direitos civis ou individuais: direito à liberdade pessoal e à integridade física, à liberdade de
palavra e de pensamento, direito à propriedade, ao trabalho e à justiça. São os direitos políticos,
como o direito de participar do exercício do poder político como membro investido da autoridade
política ou como eleitor. São os direitos sociais como o direito ao bem-estar econômico, ao trabalho,
à moradia, à alimentação, ao vestuário, à saúde, à participação social e cultural, à educação e aos
serviços sociais.

Ora, o que presenciamos, em nossa sociedade, não é o compromisso básico e fundamental com
esses direitos, não é o compromisso com o homem ou com a criança. Ou em outros termos, o
sujeito das relações sociais em uma sociedade capitalista não é o homem ou a criança. O sujeito é o
mercado, é o capital. O grande sujeito é a acumulação do capital.

As condições de produção da mercadoria envolvem a divisão e a hierarquização do trabalho dos


indivíduos, que vão fazer parte de um processo de trabalho que é coletivo. A divisão do trabalho não
só potencia, dinamiza a capacidade produtiva mas, também, limita o trabalhador a tarefas cada vez
mais "parciais", mais "simples", tarefas que restringem, no trabalhador, o uso de sua sensibilidade,
de sua criatividade, para executar com rigor aquilo que a máquina pede.

Na cidade, conforme a herança do início do século passado, pelo taylorismo e o fordismo, com a
divisão de tarefas e a administração científica do trabalho, acontecem as linhas de montagem e o
trabalho mecanizado. Mais tarde, com o toyotismo e a automação, a microeletrônica, a cooperação,
o modelo “flexível” de produção e de relações de trabalho. Em um caso ou em outro, os

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trabalhadores perdem a visão do todo, destinam-se a cumprir tarefas coordenadas de trabalho. Na
produção flexível, são estimulados a socializar seu saber sob a ideologia de terem patrões e
empregados (chamados de “colaboradores”) os mesmos interesses na produtividade e na
competitividade da empresa.

A história da sociedade industrial é uma história de lutas dos trabalhadores contra a imposição da
disciplina do trabalho, da disciplina de quartel, da organização e racionalização dos processos de
trabalho, que levam ao esvaziamento completo dos interesses e motivações pessoais no ato de
trabalhar.

Não obstante o universo maravilhoso da ciência e da técnica no mundo, hoje, não obstante toda
riqueza gerada que, supõe-se, deve facilitar a sobrevivência do ser humano, temos de reconhecer
que há uma extrema desigualdade na distribuição desses benefícios e, também, das formas
históricas de trabalhar, de produzir esses bens. A introdução dos avanços tecnológicos (em termos
de máquinas e equipamentos, do desempenho de funções diferenciadas, do uso de sementes
geneticamente modificadas – todos frutos de relações sociais e não apenas questões técnicas), a
distribuição das tarefas, as opções sobre o tempo livre, o estudo e o lazer trazem novas questões
para discussão dos processos humanizadores no trabalho.

No campo, pela secular opressão na apropriação da terra e pela dureza do trabalho braçal, por seu
uso subordinado, ou nas minas embrutecedoras, nos lixões, nas cidades, há trabalhos que são como
que alienação de vida, seja pela divisão social do trabalho (trabalho físico, manual ou intelectual,
concepção e planejamento versus execução), seja pela desqualificação das tarefas, pela
especialização, pela repetição, seja pela perda de controle do trabalhador sobre o próprio trabalho
ou pela subordinação do esforço humano a serviço da acumulação do capital. Estas são formas de
trabalho que se constituem num princípio educativo negativo, deformador e alienador. O que
significa que o capitalismo educa para a consecução de seus fins de disciplina, subordinação,
produtividade.

3. O trabalho como princípio educativo

É falso, e há evidência disso, que todo trabalho dignifica. São de Lukács (1978) algumas idéias
importantes para esta análise. A produção da existência humana e a aquisição da consciência se dão

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pelo trabalho, pela ação sobre a natureza. O trabalho, neste sentido não é emprego, não é apenas
uma forma histórica do trabalho em sociedade, ele é a atividade fundamental pela qual o ser
humano se humaniza, se cria, se expande em conhecimento, se aperfeiçoa. O trabalho é a base
estruturante de um novo tipo de ser, de uma nova concepção de história.

É a consciência moldada por esse agir prático, teórico, poético ou político que vai impulsionar o ser
humano em sua luta para modificar a natureza (ou para dominá-la, como se dizia no passado, antes
que se tomasse consciência da destruição que o homem vem operando sobre o planeta). Diferente
dos animais, a consciência do ser humano é a capacidade de representar os seres de modo ideal, de
colocar finalidades às ações, de transformar perguntas em necessidades e de dar respostas a essas
necessidades. Os seres humanos agem através de mediações, de recursos materiais e espirituais que
eles implementam para alcançar os fins desejados.

O que nos permite fazer a distinção entre duas formas fundamentais de trabalho: o trabalho como
relação criadora, do homem com a natureza, produzindo a existência humana, o trabalho como
atividade de autodesenvolvimento físico, material, cultural, social, político, estético, o trabalho
como manifestação de vida; e o trabalho nas suas formas históricas de sujeição, de servidão ou de
escravidão, ou do trabalho moderno, assalariado, alienado na sociedade capitalista. Há relações de
trabalho concreto que atrofiam o corpo e a mente, trabalhos que embrutecem, que aniquilam,
fragmentam, parcializam o trabalhador.

Ocorre, ainda, um fenômeno insuficientemente estudado que é o processo de circularidade entre


necessidade do trabalho precoce e o desemprego e a oferta de iniciação profissional. É possível
perceber o crescimento do número de instituições assistenciais e programas governamentais que, à
vista da necessidade de um contingente cada vez maior de pessoas desocupadas ou em trabalhos
ambulantes, precários, oferecem-lhes oportunidade de algum aprendizado e os responsabilizam para
criar novas formas de trabalho, de empreendimentos ou de serem “empregáveis”.

É essa complexidade, na particularidade das situações vividas, que nos cabe examinar na sua
expressão fundante, criativa e nas formas históricas, opressoras, do trabalho, inclusive do emprego
assalariado, que está em queda e pode vir a desaparecer para dar lugar a outras formas de relações
sociais na produção da vida. Algumas perguntas devem ser feitas. No caso da infância e da
juventude, é preciso saber se esses meninos e meninas que trabalham na rua, ou "boys de

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empresas", necessitam, para seu desenvolvimento, de trabalho ou de educação? Ou em que medida
a submissão precoce ao trabalho na empresa é educativa, é recurso de desenvolvimento de todas as
suas potencialidades, ou uma acomodação? É possível harmonizar as necessidades imperiosas da
sobrevivência com uma boa formação "em serviço"? O que ocorre no campo com o trabalho
familiar, com o trabalho da mulher? Sua distribuição na vida doméstica e produtiva é compatível
com as necessidades de desenvolvimento lúdico, físico e emocional das crianças e dos
adolescentes? É possível manter nesses trabalhos o nexo psicofísico do trabalho profissional
qualificado, de qualidade, que exige a participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do
trabalhador?

Essas perguntas orientaram muitas discussões sobre a questão da educação politécnica, da escola
unitária e do trabalho como princípio educativo nos anos 1980, para a elaboração da educação na
nova Constituição aprovada em 1988, e para a nova LDB que tramitou no Congresso, proposta pela
sociedade civil organizada.

Ontem como hoje, do ponto de vista educativo, o esforço das forças progressistas deve caminhar no
sentido da escola unitária (Gramsci, 1981), onde se possa pensar o trabalho de modo que o sujeito
não seja o mercado e, sim, o mercado seja uma dimensão da realidade social (Frigotto, 1980). Trata-
se de pensar o trabalho em outro contexto social, no qual o trabalhador produza para si, e no qual o
produto do trabalho coletivo se redistribua igualmente, projeto que se contrapõe à forma capitalista
de produção e aponta para a constituição de novas relações sociais e de um projeto de homem novo.
Trata-se de opor-se a uma visão reducionista, utilitarista, atrofiadora e, essencialmente, restritiva de
formação humana.

Bibliografia

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Tecnologia Educacional, ABT, Rio de Janeiro, 21 (105/106):25-29, mar./jun. 1992.

FRIGOTTO, Gaudêncio. É falsa a concepção de que o trabalho dignifica o homem. Entrevista.


Comunicação, Belém, 7 de agosto de 1980.

FUKUYAMA, F. El fin de la historia y el último hombre. Barcelona: Planeta, 1992.

GRAMSCI, Antonio. A alternativa pedagógica. Barcelona: Ed. Fontamara, 1981.

IANNI, Octávio. As formas sociais do trabalho. PUC-SP, 1984, p. 1. mimeo.

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LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de
Ciências Humanas, São Paulo, (4): 1-18, 1978.

OFFE, Claus. Trabalho: a categoria chave? In: _______. O capitalismo desorganizado. São Paulo:
Brasiliense, 1989.

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação. LDB, trajetória, limites e perspectivas. 8a. ed. São
Paulo: Autores Associados, 2003.

Notas

1- Síntese do texto discutido com os participantes do Seminário Nacional de


Formação – MST, realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes em março de
2005.

2- Licenciada em Filosofia, Doutora em Ciências Humanas (Educação), Professora


Titular Associada da Universidade Federal Fluminense.

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