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DEMOCRACIA E MUNDO DO TRABALHO EM DEBATE

Economia global e o trabalho imaterial


18/10/2021

Nos dias de hoje, sob o impacto da economia digital, o trabalho se encontra


reconfigurado profundamente, distanciando-se da perspectiva anterior estabelecida
pela antiga sociedade urbana e industrial.

Marcio Pochmann*

A reestruturação da economia global foi impulsionada pelo horizonte alargado da


proletarização de crescentes parcelas populacionais compreendidas desde os antigos
camponeses às donas de casa. Na maior parte, convertidas em novas ocupações de
trabalho não contratual, permitindo se contrapor a tendência de queda na taxa media de
lucro explicitada já no último quarto do século passado.

Contrapondo-se à realidade precarizadora das condições e relações do trabalho de


produção de mercadorias, a economia digital, por ser geradora do labor imaterial,
passou a ser apresentada com o potencial de autonomia, criatividade e liberdade.
Rapidamente, contudo, a materialidade das experiências de emprego do trabalho
imaterial desfez a ilusão da perspectiva de cooperação e emancipação social.

Nos dias de hoje, sob o impacto da economia digital, o trabalho se encontra


reconfigurado profundamente, distanciando-se da perspectiva anterior estabelecida pela
antiga sociedade urbana e industrial. Sinteticamente, a reestruturação da economia
mundial tem sido acompanhada muito mais pela revolução tecnológica informacional do
que a industrial, cujo resultado do esforço físico e mental resulta em mercadorias físicas,
porém constituídas a partir dos códigos, dados, símbolos, imagens, ideias próprias de
conhecimentos e subjetividades no interior das relações sociais.

O processo de informatização do trabalho a torná-lo cada vez mais imaterial, permite e


constituição de novo projeto político em bases teóricas distintas do até a pouca
dominante presença do já esvaziado proletariado industrial. Diferentemente disso, o
trabalho imaterial compartilha possibilidades no âmbito da esfera da produção do
comum, obscurecendo a separação tradicional entre o labor de produção de
mercadorias e da reprodução social.

A financeirização, nesse sentido, sitiou, em grande medida, grande parcela do capital no


circuito da acumulação fictícia. A classe trabalhadora, por sua vez, alastrou-se
convergindo a produção e a reprodução social no âmbito no âmbito do trabalho em casa,
não mais exclusivamente em locais externos a habitação.

Nesse sentido, o contraste direto com a polarização do trabalho intrínseca da sociedade


industrial entre produção e reprodução, negócio e ócio, assalariado e não assalariado,
formal e não formal, urbano e rural, manual e intelectual, entre outros. Como se sabe, o
desenvolvimento capitalista direcionado pela industrialização concedeu lugar central à
urbanização das populações, superando o primitivo agrarismo, cujo trabalho humano era
dividido em duas esferas distintas.

De um lado, o trabalho na produção das mercadorias vinculado ao exercício das


atividades laborais externas à residência, cujos locais próprios (fábrica, escritório, banco
e outros) demandavam transporte que viabilizasse o deslocamento. De outro, o trabalho
na reprodução social, produtor da força de trabalho, convergiu fundamentalmente com
afazeres domésticos e cuidados humanos.

Ao contrário do trabalho de produção de mercadorias, o trabalho de reprodução social


não era remunerado e portador de identidade profissional e representação sindical, bem
como distante de qualquer pertencimento à cidadania dos direitos sociais e trabalhistas.
Por conta disso, a divisão sexual do trabalho explicitou possibilidades e oportunidades
muito maiores aos homens do que as mulheres.

Consagrou, assim, as desigualdades antigas, herdadas do passado agrarista, e as novas,


protagonizadas por escassa presença feminina no mercado de trabalho. E, quando
incorporada, as mulheres estiveram submetidas aos postos de trabalho de produção
com baixa remuneração e proteção social, tendo que combinar, ainda, o próprio
trabalho de reprodução social, com dupla jornada laboral (trabalho e casa).

Na antiga e longeva sociedade agrária, quando a maior parte da população residia


justamente onde trabalhava no campo (fazenda, sítio e outros), a separação entre
trabalho de produção e reprodução não se estabelecia separadamente. Todo o esforço
humano em torno do exercício do trabalho de produção coincidia com a busca pela
sobrevivência e garantia da própria amplitude da reprodução social.
Com a expansão mais recente dos serviços associados à informatização e ao trabalho
imaterial, a maioria dos empregos abertos demandam maior capacidade de tratar com
pessoas do que coisas, correspondentes as habilidades interpessoais, superiores às
habilidades mecânicas. Ao mesmo tempo, a mercantilização da esfera do trabalho de
reprodução guiado pela ausência de remuneração.

Isso porque, a informatização laboral movida pelos modelos de negócios assentados na


mercantilização da esfera da reprodução social terminou por colapsar as antigas
distinções entre o trabalho da produção de mercadorias e o trabalho nos afazeres
domésticos e cuidados. A agenda que se abre, questiona o sentido da acumulação de
capital apropriadora do trabalho reprodutivo não remunerado, constitutivo do processo
de desvalorização das condições de relações do trabalho de produção de mercadorias.

OUTRASPALAVRAS

O trabalho em novas dimensões


Precarização invade casas, rouba tempo livre e impõe vida débito-crédito. O labor
na Era Digital precisa ser regulado, mas também é essencial apostar em ações
formativas, na reindustrialização e no cuidado, em busca de ocupação plena

Marcio Pochmann

07/11/2022

O horizonte da centralidade da relação salarial perdeu força com a ruína da sociedade


industrial. Há mais de três décadas, o ingresso passivo e subordinado na globalização foi
acompanhado do reposicionamento do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho,
interrompendo a industrialização nacional.

Com isso, a trajetória do assalariamento sofreu significativa inflexão, sobretudo no


segmento dos empregados protegidos por direitos sociais e trabalhistas. A partir de
então, o projeto de construção da sociedade centrada na valorização do trabalho que
fora implementado pela Revolução de 1930 passou a ser fortemente atacado.

Exemplo disso foi o desaparecimento da dualidade que comandava a composição do


governo federal demarcado pela polarização entre os ministérios da Fazenda, que
articulava os interesses do patronato industrial, e o do Trabalho, que integrava a
conveniência do mundo do labor. De um lado, o ministério da Fazenda passou a ser
ocupado por representantes dos interesses especulativos e financeiros e, de outro, o
ministério do Trabalho ficou cada vez mais enfraquecido e atarefado pelas emergências
da falsa polarização neoliberal entre emprego ou direitos.

Neste primeiro quarto do Século 21, por exemplo, o conjunto dos países se encontra
repartido no mundo entre produtores e consumidores de bens e serviços digitais. No
caso brasileiro, a decadência registrada no seu desempenho, que declinou para a 13°
economia do mundo, se mostra incompatível com o posto de quarto maior mercado
consumidor de bens e serviços digitais.

O desequilíbrio entre a estrutura produtiva envelhecida e a modernização do padrão de


consumo tem sido mantido pela via das importações de produtos com maior valor
agregado e conteúdo tecnológico, financiados pela dependência do modelo primário-
exportador. Em função disso, o tema do trabalho crescentemente secundarizado pela
nova relação débito-crédito, fundada na captura dos rendimentos variáveis (programas
públicos de transferências de renda, endividamento privado, ocupações gerais legais e
ilegais, monetização das redes sociais e outras) se impôs sob novas dimensões.

A primeira se relaciona à reconceituação do trabalho diante do avanço da Era Digital.


Diferentemente do que ocorria na sociedade industrial, o trabalho deixou de ser apenas
uma expressão do que se realiza fundamentalmente fora de casa, em locais
determinados (fábrica, escritório, banco, supermercado, canteiro de obra, lavoura e
outros) e por tempo previamente definido.

A digitalização crescente da sociedade amplia cada vez mais o horizonte do trabalho que
se encontra conectado em distintos locais e temporalidades. A escassa limitação
regulatória ocorre paralelamente à intensificação e extensão do trabalho precário, cujo
grau de exploração acompanha a sua desvalorização comparável à década de 1920.

Como dimensão promotora e protetiva, a regulação do labor seria um novo diálogo


temático com as reformas trabalhista de 2017 e previdenciária de 2019 – a definição do
padrão mínimo aceitável de regras, representação coletiva e solução de conflitos para o
conjunto do mundo do trabalho, para além do assalariamento formal.

Na dimensão educacional e formativa, é necessária a reorganização das bases


qualificadoras do trabalho atualmente existentes para atender ao longo da vida. A
responsabilidade compartilhada tripartite constitui o elemento convergente com a
redefinição formativa da identidade e pertencimento no mundo do trabalho.
Tudo isso converge com as novas fontes possíveis geradoras de ocupação. O dinamismo
que ocorre com a reindustrialização e a reestruturação geral dos serviços de cuidado
pode abrir a nova oportunidade da plena ocupação no Brasil.

Tudo isso está no horizonte de possibilidades teóricas. A sua conversão em realidade


implica em compreender o trabalho de forma holística, com maioria política organizada.
Do contrário, a relação salarial prosseguirá perdendo a centralidade no interior do
mundo do trabalho.

OUTRASPALAVRAS

Trabalho e novas formas de luta na era digital


Natureza do trabalho foi impactada por revoluções tecnológicas das últimas décadas.
Dados tornam-se fonte de lucros. Empresas minam vínculos empregatícios e esvaziam
pertencimento sindical e identidades. Isso requer novas estratégias de luta

Marcio Pochmann

08/08/2022

Após trezentos anos de predomínio do sistema colonial europeu entre 1500 e 1800, a
passagem do agrarismo para o capitalismo industrial terminou por confirmar o Ocidente
como centro dinâmico mundial. Por mais de dois séculos, as revoluções tecnológicas
assentadas no paradigma mecânico-químico tenderam a substituir o labor humano sem
garantir, naturalmente, a elevação das condições de vida e trabalho.

Neste contexto, as instituições de organização e representação dos interesses das classes


trabalhadoras atuaram em três posições distintas. A primeira, associada à negação de
futuro promissor nos marcos do capitalismo, orientada pelas lutas de caráter
revolucionário no âmbito do anarquismo, comunismo e comunitarismo alcançou parte
importante dos países.

A segunda posição está vinculada à compreensão de que a exploração do trabalho


poderia ser contida por regulações que permitissem melhorar as condições materiais do
exercício do labor humano. Seja por legislações social e trabalhistas conduzidas pelo
Estado, seja pela contratação laboral exercida pelo poder sindical, a trajetória histórica
de proteção e elevação do padrão de vida laboral avançou por arranjos acomodativos no
interior do desenvolvimento capitalista em várias nações.
Por fim, a terceira posição está relacionada ao conjunto das lutas pela contenção do
tempo trabalho heterônomo, em busca da libertação da vida para outras atividades
(política, social, lazer, religiosa e outras). Com isso, a expectativa de que a remoção do
fardo do trabalho alienado seria possível na compatibilidade da menor jornada laboral
com o embalo da automação também fez parte da experiência adotada em várias
economias capitalistas.

Durante o primeiro quarto do século 21, os sinais de confirmação da nova Era Digital
apontam para o deslocamento do centro dinâmico do mundo para o Oriente.
Concomitantemente, revoluções tecnológicas pautadas pelo paradigma informacional,
os impactos sobre o labor humano proliferam, muitas vezes, de forma distintas do
passado.

Ao contrário do que converge grande parte da produção teórica aliada às consultorias


patronais, o trabalho parece ser impactado para além dos limites da substituição
imposta pelo progresso tecnológico. Na realidade, a Era Digital altera profundamente a
natureza do trabalho, cada vez menos submetido ao paradigma mecânico-químico, cujo
efeito era, até então, substituir o labor humano.

No trabalho analógico predominante no capitalismo industrial, a empresa reconhecia os


seus empregados, dispondo de contratos formais de exercício do labor humano
acompanhado do acesso a direitos sociais e trabalhistas. No trabalho digital, a empresa
tende crescentemente a extrair o valor do trabalho humano sem admitir e assumir o
emprego do trabalhador, o que tem esvaziado as possibilidades de identidade e
pertencimento sindical e acesso aos direitos sociais e trabalhistas.

Sob o capitalismo informacional, a empresa se afasta do trabalhador, não assume deter


empregados, desconhecendo as suas condições e necessidades de vida. Sem ruptura, o
capitalismo segue mobilizando quaisquer recursos disponíveis de mobilização, sobretudo
a posse na forma de dados para serem transformados em lucro e, por sua vez,
concentração de riqueza e poder.
OUTRASPALAVRAS

O futuro do trabalho na Era Digital


Nova realidade laboral já desconecta-se da própria lógica capitalista. A economia
de subsistência avança sob a ruína da Era Industrial – e políticas de reparação são
insuficientes. Novos sujeitos sociais emergem – e reconhecê-los será crucial

Marcio Pochmann
17/04/2023

A longa fase de insistência quase contínua na adoção de políticas de liberdade ao capital


se mostrou compatível com a flexibilização na contratação e uso da mão de obra pelo
patronato. A imposição do rebaixamento no custo do trabalho, embora não tenha
elevado o nível de emprego de qualidade, foi responsável por ampla precarização das
ocupações existentes.

Mais do que isso, contribuiu para alterar profundamente a composição dos postos de
trabalho no país. Se considerar o conjunto das atividades tipicamente capitalistas, por
exemplo, constata-se o quanto elas deixaram de ser dominantes no emprego da mão de
obra.

A comprovação disso pode ser bem observada na comparação entre as centralidades da


relação capital-trabalho e da relação débito-crédito. Atualmente, o número total de
beneficiários do programa Bolsa Família federal supera o conjunto de ocupados como
empregados assalariados formais do setor privado em treze das 27 unidades da
federação.

No mesmo sentido, percebe-se o avanço da economia popular e de subsistência que


opera, em geral, desconectada da lógica capitalista. Nos dias de hoje, por exemplo, cerca
de 40% do total dos trabalhadores ocupados têm seus rendimentos vinculados às
atividades distantes das tipicamente capitalistas e do setor público.

Diante disso, entende-se como natural a defesa de políticas públicas de natureza


reparatória, que busquem repor direitos sociais e trabalhistas destituídos. Ainda que
justificáveis e necessárias, as propostas reparatórias parecem insuficientes,
especialmente se forem consideradas as condições estruturais e objetivas do passado, já
não mais existentes.
A reparação no trabalho trata do presente do passado, o que é importante, sobretudo
quando o período de tempo não está submetido às alterações estruturais. Do contrário,
como parece ocorrer atualmente pelo curso de uma mudança de época, o estratégico se
torna considerar muito mais a situação do presente do futuro.

A transição da Era Industrial para a Digital exige repensar o trabalho ao inverso da


perspectiva presente no projeto de modernidade ocidental. As políticas de reparação
tendem a vislumbrar o horizonte de expectativas associadas à ideia da prevalência de
uma mesma época histórica (Era Industrial), enquanto a realidade atual aponta para a
mudança de época (Era Digital).

Nesse contexto, o cotidiano laboral se alastra cada vez mais conectado a demandas
próprias da inédita concepção do trabalho que emerge da Era Digital. Deixa de fazer
sentido, por exemplo, a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo, trabalho
dentro e fora da casa, entre outros, uma vez que a digitalização invadiu e contaminou as
fronteiras que até então se justificavam durante a Era Industrial.

Em vez da regulação do trabalho exclusiva para quem o realiza fora de casa, em lugares
determinados como escritório, canteiro de obra, fábrica, comércio e muito mais, cabe o
olhar ampliado no labor efetuado dentro da casa. Para além dos cuidados e de atividades
domésticas, as tecnologias de informação e comunicação têm permitido monetizar o
trabalho conectado à internet, compreendido por ser virtual, imaterial.

Ainda que não se saiba efetivamente a totalidade desta nova realidade, até porque as
pesquisas atualmente existentes não conseguem plenamente captá-las, entende-se
como a realidade aceleradamente avança. Por isso, as respostas plenas de reposição do
passado se apresentam pouco eficientes.

Assim, as tentativas de promover a volta das políticas de regulação do trabalho próprio


da Era Industrial podem reproduzir desigualdades originárias entre os que têm acesso e
os que não têm acesso aos direitos sociais e trabalhistas. Uma temática que identificada
à concepção do trabalho proveniente do projeto de modernidade Ocidental centrado na
relação capital-trabalho.

Da mesma forma, a visão do trabalho humano apresentada por pesquisas associadas às


metodologias tradicionais da Era Industrial tende à insuficiência e disfuncionalidade. A
desconexão entre dados e informações oficiais disponíveis parece aumentar, uma vez
que o resultado dos esforços científicos investigativos e analíticos da realidade indica
parcialidade e vieses comprometedores à correta orientação de políticas públicas.
O avanço da relação débito-crédito que se impõe perante às debilidades da tradicional
relação capital-trabalho implica reconhecer a emergência de novos sujeitos sociais. Por
estarem submetidos aos desafios de sobreviverem diante da insegurança e insuficiência
dos rendimentos, resta a constante busca por créditos (endividamento, rendas de
ocupações gerais e temporárias, programas sociais, monetização de redes sociais,
atividades ilegais, entre outros).

O inverso do trabalho da Era Digital se constitui cada vez mais robusto pela via da
digitalização da economia e, principalmente, da sociedade. Esse sim é o centro pelo qual
o trabalho precisa ser realmente repensado.

*Marcio Pochmann. Economista. Doutor em Economia. Professor da Faculdade de Economia


e Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp.

Fontes:
Carta Maior. Data original da publicação: 06/10/2021
https://www.dmtemdebate.com.br/economia-global-e-o-trabalho-imaterial/

https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pochmann-o-trabalho-em-novas-
dimensoes/

https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/trabalho-e-novas-formas-de-luta-na-era-
digital/

https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pochmann-o-futuro-do-trabalho-na-era-
digital/
IHU -Unisinos
26 Abril 2023

A revolução tecnológica informacional com a


subsequente superindustrialização dos serviços
altera profundamente a natureza do trabalho.
Entrevista especial com Márcio Pochmann

A esperança da superação das


desigualdades engendradas pela Era
Digital “reside na construção de uma outra
ordem interna, necessária para o
desenvolvimento de um futuro comum”,
afirma o economista

O arcabouço fiscal do novo governo Lula, enviado ao Congresso Nacional na semana


passada, tem como finalidade “fortalecer o poder executivo no tema fiscal com a
flexibilização e bandas das regras de gasto” e, se aprovado, estabelecerá a gestão
macroeconômica “em novas bases, sem que a questão da retomada do desenvolvimento
nacional e, especialmente a reindustrialização, esteja resolvida”, afirma Márcio
Pochmann ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na avaliação dele, a restauração do “tripé do desenvolvimento” é fundamental para


assegurar a reindustrialização do país. “A reversão desta situação nacional requer pôr em
curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de
reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo, reposicionando o país na divisão
internacional do trabalho da Era Digital, posto que o país, enquanto o quarto maior
mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, segue fundamentalmente
importador”, adverte.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o economista reflete sobre os desafios


econômicos e sociais do país, em particular, no tocante à superação do desemprego e
da informalidade. “O Brasil precisa se preparar para ingressar de fato no século XXI. Para
isso, deve contar com a implantação de um novo padrão de acumulação para o
desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. É a partir disso
que se pode reconstituir o mundo do trabalho em bases decentes do pleno emprego, o que
dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida
pela financeirização e superexploração do trabalho, resultante da atual presença na divisão
internacional do trabalho enquanto país primário-exportador”, afirma.
Confira a entrevista.
IHU – O senhor tem afirmado em suas redes sociais que o “Brasil passa por uma
estagnação secular”. Como chegamos a esse ponto? O que caracteriza essa
estagnação e como romper com ela?

Márcio Pochmann – A presente afirmação resulta da análise histórica de época sob


dominância de longo prazo do modo de produção capitalista no Brasil. As últimas 13
décadas, por exemplo, podem ser divididas em, pelo menos, três períodos distintos, sendo o
primeiro referente à República Velha (1889-1930), quando o capitalismo ainda nascente na
sociedade agrária era acompanhado por renda nacional per capita variando ao ritmo médio
de 0,7% ao ano. O segundo período se refere à modernização capitalista ocorrida entre
1930 e 1980, cuja passagem para a sociedade urbana e industrial permitiu que o PIB por
habitante crescesse 4,2% como média anual. Por fim, o terceiro período, que entendo ser o
da desmodernização capitalista, decorre da ruína da sociedade industrial com a renda
nacional por brasileiro variando apenas 0,6% com média anual nas últimas quatro décadas
(M. Pochmann, Desenvolvimento e perspectivas novas para o Brasil, 2010). A reversão desse
terceiro período é possível.

O estabelecimento de um outro amanhã para o povo brasileiro requer a formação de uma


convergência interna em torno de uma nova maioria política com capacidade de disputar,
com projeto de nação, o futuro que se abre diante do deslocamento do centro dinâmico do
mundo do Ocidente para o Oriente. A reversão da atual situação nacional requer pôr em
curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de
reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo, o que implica reposicionar o país
na divisão internacional do trabalho da Era Digital, posto que o Brasil, enquanto o quarto
maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, segue importador.

Para tanto, é necessária uma recomposição do investimento assentada no estabelecimento


do antigo tripé dos capitais (estatal e privado interno e externo), porém em novas bases,
considerando que o Estado dispõe de recursos financeiros em reservas externas e depósitos
internos que, se reorientados para a atividade produtiva, poderia alterar o sentido do
entesouramento do capital privado nacional em fundos de aplicações financeiros
especulativos e de curto prazo. Ao mesmo tempo, é preciso haver a agregação do capital
privado do exterior, conforme o presidente Lula vem se esforçando em sua agenda
internacional, responsável por atrair mais de US$ 100 bilhões neste primeiro quarto do ano.
Neste sentido, o caminho equivalente, já realizado a seu tempo com êxito anterior inegável
por Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, pode significar uma preparação para o ingresso
no século XXI.
IHU – Olhando para a economia global, também se constata essa estagnação?
Ou ela ocorre em níveis distintos entre Oriente e Ocidente?
Márcio Pochmann – Os últimos 500 anos de constituição dos Estados nacionais estiveram
atrelados ao cumprimento do projeto de modernidade Ocidental. Ocorre que, diante dos
contínuos sinais de colapso da modernidade neste primeiro quarto do século XXI, constata-
se o quanto o binômio da arte da guerra e do uso ilimitado da natureza passou a ser incapaz
de sustentar o ciclo sistêmico de acumulação capitalista liderado pelos Estados
Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Percebe-se o quanto diversos
países do Ocidente avançaram na via da guerra, mesmo após a Guerra Fria (1947-1991),
quando se imaginava que, diante do desmoronamento da União Soviética, não haveria mais
“inimigo externo”. Até mesmo a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, criada
no âmbito da Guerra Fria, que se esperava ser dissolvida, serviu de sustentação para a
ampliação do complexo industrial militar em vários países, inclusive com atuação contínua
aos anos do segundo pós-guerra. Isso porque a globalização neoliberal, conduzida por
grandes corporações transnacionais, transcorreu em meio ao enfraquecimento das Nações
Unidas e de suas instituições multilaterais. O quadro que se abriu nas últimas quatro
décadas foi o do aprofundamento da competição entre nações e do individualismo entre os
povos e, ainda, o fortalecimento da guerra (S. Amin, La desconexion: hacia un sistema
mundial policéntrico, 1988).

Na pandemia de covid-19, por exemplo, a atuação pífia da Organização das Nações Unidas –
ONU ocorreu concomitante com o acirramento das disputas entre nações por vacinas e
insumos de saúde, com pouca colaboração, salvo exceções como Cuba, Índia e China, por
exemplo. No Oriente, por outro lado, não houve espaço para a guerra, mas a canalização de
investimentos para o desenvolvimento e fortalecimento da Era Digital. Fruto disso tem sido
o soerguimento chinês, associado ao expansionismo indiano, malásio, indonésio, vietnamita
e outros que a partir da Ásia apontam para a retomada do protagonismo registrado até a
consolidação do capitalismo no mundo no século XIX. Se isso ocorrerá, somente o tempo
dirá. Mas o fato é que neste primeiro quarto do século XXI se assiste ao deslocamento do
centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente (A. Gunder Frank, Reorient: Global
Economy in the Asian Age, 1998).

IHU – O senhor também tem dito que cerca de 40% da população ocupada está em
atividades da economia de subsistência e popular. O que isso revela? Quais as
consequências desses números para a economia de modo geral?

Márcio Pochmann – A decadência nacional tem múltiplas dimensões. Uma delas tende a
estar associada à contração das atividades tipicamente capitalistas no total da ocupação no
Brasil, algo que não ocorreu entre as décadas de 1890 e 1980. Mas desde o ingresso passivo
e subordinado na globalização neoliberal, em 1990, o assalariamento estagnou, tendo a
desestruturação do mercado de trabalho sido marcada pela contenção dos empregos
protegidos por direitos sociais e trabalhistas em relação à população ativa.

A inédita desestruturação da sociedade salarial com cidadania regulada havia sido posta em
prática pelo projeto tenentista do “Clube 3 de Outubro”, liderado por Oswaldo Aranha e
Lindolfo Collor de Melo desde a Revolução de 1930. Com as políticas de crescente liberdade
ao capital na década de 1990, o padrão de uso e remuneração da força de trabalho foi a tal
ponto flexibilizado que terminou consolidando a combinação da generalizada precarização
ocupacional com o crescente excedente de mão de obra aos requisitos de contratação nas
atividades tipicamente capitalistas.

Verdadeiras multidões de excluídos emergiram da estagnação produtiva do regime do


capital, cada vez mais perambulantes e sem destino nas regiões litorâneas do país.
Especialmente as grandes regiões metropolitanas passaram a expressar sinais do novo
sistema jagunço urbano que se integra à economia popular e de subsistência dos pequenos
negócios dominados, em parte, pelo fanatismo religioso e pelo crime organizado (M.
Pochmann, O neocolonialismo à espreita: mudanças estruturais na sociedade brasileira,
2022).

Basta enfatizar que entre 1985 e 2020, por exemplo, a outrora locomotiva do Brasil, o
estado de São Paulo, registrou um decréscimo médio de 0,2% ao ano no comportamento do
PIB por habitante, enquanto os estados primário-exportadores do Centro-Oeste, como Mato
Grosso, apresentaram um aumento de 3,5% como média anual no mesmo período de tempo
no PIB per capita. Em função disso, a realidade da sociedade brasileira atual tende a inverter
a original visão de Euclides da Cunha que há 121 anos distinguiu o atraso da modernidade
entre as regiões interioranas e litorâneas. Pela já longa trajetória da decadência nacional, o
atraso do presente se concentra cada vez mais nas regiões litorâneas.

IHU – Crítico das políticas públicas adotadas recentemente no Brasil, o senhor


aponta que elas são apenas da esfera capitalista. Gostaria que detalhasse esse seu
apontamento e indicasse o que seriam, para o caso do Brasil de hoje, políticas
públicas que rompam com as lógicas capitalistas.

Márcio Pochmann – Entre 2001 e 2004, quando servi como secretário da pasta
do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade no município de São Paulo, havia o
diagnóstico de que a industrialização havia ficado para trás e, por consequência, a marcha
do deslocamento da tradicional relação capital/trabalho para a nova relação débito/crédito.
Por conta disso, a estratégia paulistana de inclusão social adotada na época partia da ênfase
no desenvolvimento local, com ações de infraestrutura física e de internet exemplificadas
pela criação dos CEUs com uma importante politização emancipadora em torno da
construção de uma nova cidadania (L. Dowbor e M. Pochmann, Políticas de desenvolvimento
local, 2010).
Da mesma forma ocorria com o desencadeamento de um amplo programa municipal de
formação em economia social e do trabalho, potencializada pela construção da rede de
crédito comunitária e solidária, compatível com a moeda social integrada à abertura de
mercados desaguadores da produção constituída à margem da lógica capitalista (M.
Pochmann, Políticas de inclusão social, 2004).

A derrota eleitoral em 2004 enterrou a contracultura estratégica que nascia no modo petista
de governar, liderada por Marta Suplicy no município de São Paulo. O que a administração
petista no plano federal aproveitou parcialmente foi a tecnologia social na montagem
do Bolsa Família diante dos obstáculos encontrados para implementar o programa Fome
Zero. Guardada a devida proporção, a experiência paulista de inclusão social no início do
século XXI assemelhou-se à estratégia chinesa atual de combate à pobreza e desigualdade,
com ênfase na estrutura produtiva e laboral, não na transferência de renda que
isoladamente permite – no máximo do plano conjuntural – a modernização do padrão de
consumo, descolada da centralidade do trabalho e da soberania cidadã.

IHU – Enquanto patinamos numa estagnação econômica, ouvimos cada vez mais
alto discursos, e até políticas públicas, que insuflam o empreendedorismo e a
criação de startups. O que isso revela sobre o neoliberalismo de nosso tempo?
Como o senhor vê esse tipo de trabalho tendo em vista as transformações sociais,
tecnológicas e no próprio mundo do trabalho? E sobre o atual pensamento acerca
do desenvolvimento econômico no Brasil?

Márcio Pochmann – Do meu ponto de vista, destaco que não vejo o curso de uma revolução
industrial, mas de uma profunda revolução tecnológica informacional: a
superindustrialização dos serviços. Os analistas que tratam da 3.ª ou 4.ª revolução industrial
(indústria 4.0) se encontram, em geral, prisioneiros da perspectiva teórica norte-centrista da
sociedade pós-industrial aberta desde o fim da década de 1960 pelo francês Alain
Touraine (A sociedade post-industrial, 1969) e o estadunidense Daniel Bell (O advento da
sociedade pós-industrial, 1973). A visão evolutiva originalmente constituída pela premissa de
formação de uma fase superior no seio da sociedade capitalista industrial, assim como havia
sido, em geral, a passagem da antiga sociedade agrária para a urbana e industrial, terminou
por conceder bases políticas pelas quais o neoliberalismo interpenetrou e dominou o
horizonte de expectativas das classes dirigentes, especialmente no Ocidente.

Decorrido mais de meio século do predomínio das experiências neoliberais, os países


do Ocidente constatam o desparecimento das classes dirigentes, absorvidas que foram pelas
classes dominantes ao sequestrar o futuro, deixando aos governos de plantão a
responsabilidade pela gestão das catástrofes de uma sociedade “pós-industrial” inferior, na
maior parte das vezes, à industrial ou como prefere o alemão Wolfgang Streeck (Tempo
comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, 2018), que destacou o declínio da
sociedade produtora de mercadorias com o avanço da desordem política e econômica que
se estende das periferias ao antigo centro dinâmico do sistema capitalista ocidental.
Distantes de qualquer perspectiva de longo prazo que os governos possam oferecer, pois
atuam sem planejamento, operando como se fossem prontos socorros a tratar quase
exclusivamente das emergências, prevalecem os fundos abutres do improdutivismo
financista-rentista a valorizar o estoque de riqueza velha (L. Dowbor, A era do capital
improdutivo, 2017) e os produtores da acumulação por espoliação (D. Harvey, O novo
imperialismo, 2003), a acelerar o colapso ambiental.

IHU – Quais são as ciladas presentes no discurso do desenvolvimento econômico e


social estritamente atrelado ao investimento em desenvolvimento de tecnologia?
Ou não há ciladas e o caminho é esse mesmo?

Márcio Pochmann – Importa compreender o impasse político em torno de duas visões


principais a ocupar lugar privilegiado nas cabeças dos que realmente decidem no
mundo Ocidental. De um lado, está a concepção do grande “reset” a ser realizado perante a
desmontagem do que foi a experiência do capitalismo organizado durante os trinta anos
gloriosos no segundo pós-Guerra Mundial, o que se constitui, na base da extrema-direita e
do neoliberalismo conservador, a defender governos que desmontem consensos
institucionais instalados como nos casos de Donald Trump e Viktor Orbán. De outro, está a
concepção da grande “conciliação” em torno da ordem capitalista existente, necessária para
reorganizar a maioria política voltada à recuperação pelo neoliberalismo progressista nas
experiências exitosas do passado, conforme reivindicam os governos de John Biden e
Emmanuel Macron.

Neste contexto, avançou desde o fim da Guerra Fria (1947-1991) o neoliberalismo à


esquerda e à direita, conforme definiu Nancy Fraser (The End of Progressive Neoliberalism,
2017), o que significou o desaparecimento do desenvolvimento, trocado pela gestão das
emergências que se mostram incapazes de reverter a escalada da estagnação secular no
Ocidente, comprometendo profundamente as estruturas de poder global. Mesmo com todo
o ciclo de taxas de juros negativas, especialmente desde a crise financeira 2008, as
economias do norte-centrista não mais voltaram ao “normal” do crescimento econômico,
bem como o salto tecnológico não tem resultado em ganhos de produtividade que
permitissem apontar para o desenvolvimento como concebido nos anos dourados do
capitalismo. A defesa do desenvolvimento sustentável se mostrou uma enorme pasmaceira
retórica à espera de milagre, pois, nos últimos trinta anos, o que se viu foi a elevação da
temperatura média anual, confirmada pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas - IPCC. Para os capitalistas, em geral, a explicação racional de que o
planeta não mais permitiria a universalização do “American way of life” soou como um
alerta de que a exploração deveria ser acentuada ainda mais para garantir que os ganhos
fossem capturados mais rapidamente em meio à caminhada pela insensatez humana.
IHU – Como o protagonismo chinês tem impactado o neoliberalismo ocidental? Que
relações podemos estabelecer com a queda de grandes bancos estadunidenses e o
Credit Suisse?

Márcio Pochmann – Com o término da Guerra Fria em 1991, houve a expectativa de que o
capitalismo Ocidental viesse a apresentar uma trajetória equivalente aos “trinta anos
gloriosos” do segundo pós-guerra, quando as forças do nazifascismo foram finalmente
derrotadas pelas armas de fogo. A desmontagem soviética encerrava a divisão geográfica
própria da Guerra Fria entre os primeiro, segundo e terceiro mundos, indicando que a
globalização capitalista seria vista como o fim da história (F. Fukuyama, O fim da história e o
último homem, 1992). Mas, ao contrário disso, ganhou evidência a expressão do declínio da
modernidade ocidental (R. Kurz, O colapso da modernidade, 1993). Ao mesmo tempo, a
imprensa Ocidental, fundamentada em organismos multilaterais como o Fundo Monetário
Internacional – FMI e Banco Mundial, manteve posição agressiva à emergência asiática,
difundindo diagnósticos sucessivos de crise financeiras e bancárias iminentes na China. Em
vez disso, o que ocorreu foram sucessivas crises financeiras e bancárias nos países norte-
centristas, como em 2001 (empresas ponto com), em 2008 (subprime) e atualmente (bancos
estadunidenses e suíços).

O que se percebe é que desde 2019, dos 10 maiores bancos do mundo, os quatro primeiros
são chineses, inclusive bancos criados em alternativa ao FMI e ao Banco Mundial, como
o Banco dos BRICS, o Banco da Rota da Seda. O novo padrão de financiamento do
desenvolvimento se encontra em curso na reorganização da Ordem Internacional, cujo
programa chinês da Nova Rota da Seda tem sentido comparável ao Plano Marshall adotado
pelos Estados Unidos ao fim da Segunda Guerra Mundial para eleger os seus parceiros
(Europa Ocidental e Japão). Atualmente, a China também define os seus parceiros,
especialmente no âmbito das relações Sul/Sul, onde o Brasil detém um protagonismo,
conforme afirmado pela recente viagem de Lula à China.

IHU – Em artigo publicado recentemente, o senhor diz que desde a década de 1980
o arcabouço fiscal, no Brasil, serve ao neoliberalismo. Por que isso acontece e em
medida o senhor acredita que o novo marco fiscal do atual governo romperá com
essa lógica?

Márcio Pochmann – Os governos do presidente Lula têm sido de entrega, especialmente ao


povo que mais precisa. O que se percebe neste início do terceiro mandato é que isso segue
ocorrendo diante da intensidade de ações postas em práticas, conforme registrado pelo
documento dos cem dias de governo.

Se considerar o conjunto dos documentos apresentados no período eleitoral de 2022


(Programa de reconstrução e transformação do Brasil, Diretrizes da coligação Brasil da
esperança e Relatório final da transição governamental), estava presente a revogação da
Emenda Constitucional n. 95, que definia o teto de gastos desde dezembro de 2016. Em
parte, a emenda da transição (PEC n. 32/2022), que permitiu recolocar os pobres no
orçamento em 2023, continha a desconstitucionalização do teto de gastos, fortalecendo o
poder executivo diante do superpoder do legislativo no tema fiscal.

A proposta do novo regramento fiscal enviado ao Congresso segue o mesmo sentido.


Fortalecer o poder executivo no tema fiscal com a flexibilização e bandas das regras de
gastos. Uma vez aprovada, a gestão macroeconômica se estabelece em novas bases, sem
que a questão da retomada do desenvolvimento nacional e, especialmente a
reindustrialização, esteja resolvida.

Mas isso deve estar situado no orçamento próprio das articulações governamentais no plano
externo, restaurando o tripé do desenvolvimento desmontado há mais de três décadas,
entre os capitais privados externos e internos e o Estado. A rearticulação governamental
do tripé do capital (estatal e privado interno e externo) constitui peça-chave do novo padrão
de financiamento voltado ao salto desenvolvimentista, sendo as regras fiscais mais
importantes na gestão macroeconômica conjuntural que estrutural, assim como maior
validade na esfera da economia política do que no processo de acumulação de capital.

IHU – Que desafios a digitalização da economia impõe ao mundo do trabalho hoje?

Márcio Pochmann – O Brasil precisa se preparar para ingressar de fato no século XXI. Para
isso, deve contar com a implantação de um novo padrão de acumulação para o
desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. É a partir disso
que se pode reconstituir o mundo do trabalho em bases decentes do pleno emprego, o que
dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida
pela financeirização e superexploração do trabalho, resultante da atual presença na divisão
internacional do trabalho enquanto país primário-exportador.

É importante destacar que o Brasil demorou três décadas para ingressar efetivamente no
século XX, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país
se libertou do domínio liberal e passou a transitar do agrarismo prisioneiro do século XIX
para a moderna sociedade industrial. Em menos de meio século, o Brasil integrou as dez
principais economias industriais do mundo. Quando o país se preparava para ingressar na
Era Digital, já em constituição ao final do século XX, com a montagem interna da
microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso, com a lei de informática e
parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional
(M. Pochmann, A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022) que
levou ao declínio de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6%
em 2021.

As últimas quatro décadas apontaram o retrocesso da especialização produtiva e da


reprimarização exportadora, fruto da receita neoliberal que se mostrou mortífera
à industrialização, consolidando o reino da financeirização sustentado por elevadíssimas
taxas de juros e valorização cambial. Diante do modelo econômico extrovertido
implementado, a dependência com o exterior passou a determinar o dinamismo nacional
alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e do consumo de bens
industriais, cada vez mais provenientes do exterior.

A internalização da produção de bens e serviços digitais constitui a via pela qual a


reindustrialização nacional deveria avançar, recompondo investimentos pelo tripé de
capitais a partir da reorganização interna do Estado, que dispõe de recursos financeiros em
reservas externas e depósitos internalizados. Da mesma forma, o capital privado nacional se
encontra entesourado em fundos de aplicações financeiro-especulativos e de curto prazo,
enquanto o esvaziamento do capital externo derivado dos países ocidentais, inclusive pela
saída de grandes corporações transnacionais, pelo capital próprio dos países orientais,
especialmente da China, tem sido crescente (M. Pochmann, Novos horizontes do Brasil na
quarta transformação estrutural, 2022). Mas isso somente tenderá a ocorrer em definitivo
com a superação do neoliberalismo.

IHU – Atualmente, o governo discute com os trabalhadores de plataformas a


regularização desta atividade. Como a discussão está sendo feita? Que tipo de
novas leis trabalhistas o país precisa para lidar com a uberização? Como avançar e
não retroceder na conquista de direitos trabalhistas?

Márcio Pochmann – Sob a Era Digital, a divisão internacional do trabalho agrega dois tipos
de países: os produtores e exportadores de bens e serviços digitais e os consumidores-
importadores. O Brasil faz parte do segundo agrupamento de países, dependente do modelo
primário-exportador para gerar divisas externas necessárias ao financiamento das
importações dos bens e serviços digitais. Nesta condição, em que prevalecem internamente
cada vez mais as atividades econômicas de baixa produtividade, cuja competitividade se
assenta no uso ilimitado dos recursos naturais e no menor custo do trabalho possível, as
possibilidades de geração de ocupações decentes e de pleno emprego são decrescentes.
Mesmo as positivas propostas de defesa da proteção social e trabalhista, ainda que
necessárias na reposição de direitos perdidos, elas tendem a consolidar um segmento
apartado e privilegiado das multidões sem destino e sobrantes das atividades tipicamente
capitalistas (M. Pochmann, O sindicato tem futuro?, 2020).

Até mesmo as importantes ações governamentais em defesa do salário-mínimo, por


exemplo, encontram limites na margem de lucro dos setores econômicos de contida
produtividade, conforme demonstrou a reação patronal no fim do primeiro mandato da
presidenta Dilma. Como o emprego não se constituiu variável independente, pois
condicionada pelo desempenho econômico, a solução geral para a classe trabalhadora passa
pelo reposicionamento do Brasil na divisão internacional do trabalho da Era Digital, um
requisito fundamental na preparação para o ingresso pleno no século XXI.
IHU – Como avalia as reações e estratégias de enfrentamento à fome e ao
desemprego no Brasil, presentes em nossa realidade desde antes da pandemia?

Márcio Pochmann – A profunda revolução tecnológica informacional em curso, cuja


superindustrialização dos serviços tem sido uma de suas principais características, altera
significativamente a natureza do trabalho, colocando em questão as formas presentes,
experimentadas pelo Brasil, de gestão da pobreza e da população sobrante no país. No
contexto da proliferação de ocupações gerais desconectadas do sentido de identidade
profissional e pertencimento coletivo, a relação salarial decorrente da tradicional
polarização capital e trabalho, próprio da sociedade industrial, se metamorfoseia em nova
relação débito/crédito associada à Era Digital.

Diante do custo (débito) de vida, a participação salarial tem declinado relativamente ao


avanço das oportunidades de crédito associadas do endividamento, doações filantrópicas,
programas governamentais de transferência de renda, monetização das redes sociais,
aplicativos, entre outros. Ao mesmo tempo, conforma-se outra cultura de convivência,
constituída pelas possibilidades de participação política que a Era Digital possibilita. Mesmo
que não reconhecida plenamente, a digitalização das sociedades contempla uma nova
dimensão de cidadania que ultrapassa a velha concepção de participação política exercida
exclusivamente pela presença física e pelo protagonismo humano. Novos sujeitos, para além
da ação humana, tornaram-se decisivos, como a biosfera, a mudança climática, a natureza,
os vírus. Da mesma forma, as crescentes possibilidades tecnológicas convertidas em partes
da indumentária humana (luvas, óculos e outros) fazem, da conectividade com o mundo
virtual, o campo estendido e complexo da nova vida política democrática.

A esperança reside na construção de uma outra ordem interna, necessária para o


desenvolvimento de um futuro comum. Pelo modelo de negócios da datificação, com
espaços digitais subordinando multidões de indivíduos e instituições dependentes da
produção e circulação de informações, o risco dos controladores de big data e comandantes
de multidões a operar o trabalho imaterial fica desregulado das plataformas digitais. Ao
longo das sociedades industriais, o domínio de uma classe social sobre outras não se
apresentou inédito. Por isso, o necessário reconhecimento de que na Era Digital ocorre a
reprodução de novas esferas de desigualdades, comprometedoras de movimentos e ações
em defesa da igualdade.
Márcio Pochmann é graduado em Economia pela UFRGS e doutor em Ciência Econômica
pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Leciona no Instituto de Economia da
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e na Universidade Federal do ABC – UFABC.
Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e da Fundação Perseu
Abramo – FPA, além de secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade
de São Paulo.

Por: João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin |

Fonte:

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/628154-a-revolucao-tecnologica-
informacional-com-a-subsequente-superindustrializacao-dos-servicos-altera-
profundamente-a-natureza-do-trabalho-entrevista-especial-com-marcio-pochmann

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