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Marcio Pochmann*
OUTRASPALAVRAS
Marcio Pochmann
07/11/2022
Neste primeiro quarto do Século 21, por exemplo, o conjunto dos países se encontra
repartido no mundo entre produtores e consumidores de bens e serviços digitais. No
caso brasileiro, a decadência registrada no seu desempenho, que declinou para a 13°
economia do mundo, se mostra incompatível com o posto de quarto maior mercado
consumidor de bens e serviços digitais.
A digitalização crescente da sociedade amplia cada vez mais o horizonte do trabalho que
se encontra conectado em distintos locais e temporalidades. A escassa limitação
regulatória ocorre paralelamente à intensificação e extensão do trabalho precário, cujo
grau de exploração acompanha a sua desvalorização comparável à década de 1920.
OUTRASPALAVRAS
Marcio Pochmann
08/08/2022
Após trezentos anos de predomínio do sistema colonial europeu entre 1500 e 1800, a
passagem do agrarismo para o capitalismo industrial terminou por confirmar o Ocidente
como centro dinâmico mundial. Por mais de dois séculos, as revoluções tecnológicas
assentadas no paradigma mecânico-químico tenderam a substituir o labor humano sem
garantir, naturalmente, a elevação das condições de vida e trabalho.
Durante o primeiro quarto do século 21, os sinais de confirmação da nova Era Digital
apontam para o deslocamento do centro dinâmico do mundo para o Oriente.
Concomitantemente, revoluções tecnológicas pautadas pelo paradigma informacional,
os impactos sobre o labor humano proliferam, muitas vezes, de forma distintas do
passado.
Marcio Pochmann
17/04/2023
Mais do que isso, contribuiu para alterar profundamente a composição dos postos de
trabalho no país. Se considerar o conjunto das atividades tipicamente capitalistas, por
exemplo, constata-se o quanto elas deixaram de ser dominantes no emprego da mão de
obra.
Nesse contexto, o cotidiano laboral se alastra cada vez mais conectado a demandas
próprias da inédita concepção do trabalho que emerge da Era Digital. Deixa de fazer
sentido, por exemplo, a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo, trabalho
dentro e fora da casa, entre outros, uma vez que a digitalização invadiu e contaminou as
fronteiras que até então se justificavam durante a Era Industrial.
Em vez da regulação do trabalho exclusiva para quem o realiza fora de casa, em lugares
determinados como escritório, canteiro de obra, fábrica, comércio e muito mais, cabe o
olhar ampliado no labor efetuado dentro da casa. Para além dos cuidados e de atividades
domésticas, as tecnologias de informação e comunicação têm permitido monetizar o
trabalho conectado à internet, compreendido por ser virtual, imaterial.
Ainda que não se saiba efetivamente a totalidade desta nova realidade, até porque as
pesquisas atualmente existentes não conseguem plenamente captá-las, entende-se
como a realidade aceleradamente avança. Por isso, as respostas plenas de reposição do
passado se apresentam pouco eficientes.
O inverso do trabalho da Era Digital se constitui cada vez mais robusto pela via da
digitalização da economia e, principalmente, da sociedade. Esse sim é o centro pelo qual
o trabalho precisa ser realmente repensado.
Fontes:
Carta Maior. Data original da publicação: 06/10/2021
https://www.dmtemdebate.com.br/economia-global-e-o-trabalho-imaterial/
https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pochmann-o-trabalho-em-novas-
dimensoes/
https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/trabalho-e-novas-formas-de-luta-na-era-
digital/
https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pochmann-o-futuro-do-trabalho-na-era-
digital/
IHU -Unisinos
26 Abril 2023
Na pandemia de covid-19, por exemplo, a atuação pífia da Organização das Nações Unidas –
ONU ocorreu concomitante com o acirramento das disputas entre nações por vacinas e
insumos de saúde, com pouca colaboração, salvo exceções como Cuba, Índia e China, por
exemplo. No Oriente, por outro lado, não houve espaço para a guerra, mas a canalização de
investimentos para o desenvolvimento e fortalecimento da Era Digital. Fruto disso tem sido
o soerguimento chinês, associado ao expansionismo indiano, malásio, indonésio, vietnamita
e outros que a partir da Ásia apontam para a retomada do protagonismo registrado até a
consolidação do capitalismo no mundo no século XIX. Se isso ocorrerá, somente o tempo
dirá. Mas o fato é que neste primeiro quarto do século XXI se assiste ao deslocamento do
centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente (A. Gunder Frank, Reorient: Global
Economy in the Asian Age, 1998).
IHU – O senhor também tem dito que cerca de 40% da população ocupada está em
atividades da economia de subsistência e popular. O que isso revela? Quais as
consequências desses números para a economia de modo geral?
Márcio Pochmann – A decadência nacional tem múltiplas dimensões. Uma delas tende a
estar associada à contração das atividades tipicamente capitalistas no total da ocupação no
Brasil, algo que não ocorreu entre as décadas de 1890 e 1980. Mas desde o ingresso passivo
e subordinado na globalização neoliberal, em 1990, o assalariamento estagnou, tendo a
desestruturação do mercado de trabalho sido marcada pela contenção dos empregos
protegidos por direitos sociais e trabalhistas em relação à população ativa.
A inédita desestruturação da sociedade salarial com cidadania regulada havia sido posta em
prática pelo projeto tenentista do “Clube 3 de Outubro”, liderado por Oswaldo Aranha e
Lindolfo Collor de Melo desde a Revolução de 1930. Com as políticas de crescente liberdade
ao capital na década de 1990, o padrão de uso e remuneração da força de trabalho foi a tal
ponto flexibilizado que terminou consolidando a combinação da generalizada precarização
ocupacional com o crescente excedente de mão de obra aos requisitos de contratação nas
atividades tipicamente capitalistas.
Basta enfatizar que entre 1985 e 2020, por exemplo, a outrora locomotiva do Brasil, o
estado de São Paulo, registrou um decréscimo médio de 0,2% ao ano no comportamento do
PIB por habitante, enquanto os estados primário-exportadores do Centro-Oeste, como Mato
Grosso, apresentaram um aumento de 3,5% como média anual no mesmo período de tempo
no PIB per capita. Em função disso, a realidade da sociedade brasileira atual tende a inverter
a original visão de Euclides da Cunha que há 121 anos distinguiu o atraso da modernidade
entre as regiões interioranas e litorâneas. Pela já longa trajetória da decadência nacional, o
atraso do presente se concentra cada vez mais nas regiões litorâneas.
Márcio Pochmann – Entre 2001 e 2004, quando servi como secretário da pasta
do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade no município de São Paulo, havia o
diagnóstico de que a industrialização havia ficado para trás e, por consequência, a marcha
do deslocamento da tradicional relação capital/trabalho para a nova relação débito/crédito.
Por conta disso, a estratégia paulistana de inclusão social adotada na época partia da ênfase
no desenvolvimento local, com ações de infraestrutura física e de internet exemplificadas
pela criação dos CEUs com uma importante politização emancipadora em torno da
construção de uma nova cidadania (L. Dowbor e M. Pochmann, Políticas de desenvolvimento
local, 2010).
Da mesma forma ocorria com o desencadeamento de um amplo programa municipal de
formação em economia social e do trabalho, potencializada pela construção da rede de
crédito comunitária e solidária, compatível com a moeda social integrada à abertura de
mercados desaguadores da produção constituída à margem da lógica capitalista (M.
Pochmann, Políticas de inclusão social, 2004).
A derrota eleitoral em 2004 enterrou a contracultura estratégica que nascia no modo petista
de governar, liderada por Marta Suplicy no município de São Paulo. O que a administração
petista no plano federal aproveitou parcialmente foi a tecnologia social na montagem
do Bolsa Família diante dos obstáculos encontrados para implementar o programa Fome
Zero. Guardada a devida proporção, a experiência paulista de inclusão social no início do
século XXI assemelhou-se à estratégia chinesa atual de combate à pobreza e desigualdade,
com ênfase na estrutura produtiva e laboral, não na transferência de renda que
isoladamente permite – no máximo do plano conjuntural – a modernização do padrão de
consumo, descolada da centralidade do trabalho e da soberania cidadã.
IHU – Enquanto patinamos numa estagnação econômica, ouvimos cada vez mais
alto discursos, e até políticas públicas, que insuflam o empreendedorismo e a
criação de startups. O que isso revela sobre o neoliberalismo de nosso tempo?
Como o senhor vê esse tipo de trabalho tendo em vista as transformações sociais,
tecnológicas e no próprio mundo do trabalho? E sobre o atual pensamento acerca
do desenvolvimento econômico no Brasil?
Márcio Pochmann – Do meu ponto de vista, destaco que não vejo o curso de uma revolução
industrial, mas de uma profunda revolução tecnológica informacional: a
superindustrialização dos serviços. Os analistas que tratam da 3.ª ou 4.ª revolução industrial
(indústria 4.0) se encontram, em geral, prisioneiros da perspectiva teórica norte-centrista da
sociedade pós-industrial aberta desde o fim da década de 1960 pelo francês Alain
Touraine (A sociedade post-industrial, 1969) e o estadunidense Daniel Bell (O advento da
sociedade pós-industrial, 1973). A visão evolutiva originalmente constituída pela premissa de
formação de uma fase superior no seio da sociedade capitalista industrial, assim como havia
sido, em geral, a passagem da antiga sociedade agrária para a urbana e industrial, terminou
por conceder bases políticas pelas quais o neoliberalismo interpenetrou e dominou o
horizonte de expectativas das classes dirigentes, especialmente no Ocidente.
Márcio Pochmann – Com o término da Guerra Fria em 1991, houve a expectativa de que o
capitalismo Ocidental viesse a apresentar uma trajetória equivalente aos “trinta anos
gloriosos” do segundo pós-guerra, quando as forças do nazifascismo foram finalmente
derrotadas pelas armas de fogo. A desmontagem soviética encerrava a divisão geográfica
própria da Guerra Fria entre os primeiro, segundo e terceiro mundos, indicando que a
globalização capitalista seria vista como o fim da história (F. Fukuyama, O fim da história e o
último homem, 1992). Mas, ao contrário disso, ganhou evidência a expressão do declínio da
modernidade ocidental (R. Kurz, O colapso da modernidade, 1993). Ao mesmo tempo, a
imprensa Ocidental, fundamentada em organismos multilaterais como o Fundo Monetário
Internacional – FMI e Banco Mundial, manteve posição agressiva à emergência asiática,
difundindo diagnósticos sucessivos de crise financeiras e bancárias iminentes na China. Em
vez disso, o que ocorreu foram sucessivas crises financeiras e bancárias nos países norte-
centristas, como em 2001 (empresas ponto com), em 2008 (subprime) e atualmente (bancos
estadunidenses e suíços).
O que se percebe é que desde 2019, dos 10 maiores bancos do mundo, os quatro primeiros
são chineses, inclusive bancos criados em alternativa ao FMI e ao Banco Mundial, como
o Banco dos BRICS, o Banco da Rota da Seda. O novo padrão de financiamento do
desenvolvimento se encontra em curso na reorganização da Ordem Internacional, cujo
programa chinês da Nova Rota da Seda tem sentido comparável ao Plano Marshall adotado
pelos Estados Unidos ao fim da Segunda Guerra Mundial para eleger os seus parceiros
(Europa Ocidental e Japão). Atualmente, a China também define os seus parceiros,
especialmente no âmbito das relações Sul/Sul, onde o Brasil detém um protagonismo,
conforme afirmado pela recente viagem de Lula à China.
IHU – Em artigo publicado recentemente, o senhor diz que desde a década de 1980
o arcabouço fiscal, no Brasil, serve ao neoliberalismo. Por que isso acontece e em
medida o senhor acredita que o novo marco fiscal do atual governo romperá com
essa lógica?
Mas isso deve estar situado no orçamento próprio das articulações governamentais no plano
externo, restaurando o tripé do desenvolvimento desmontado há mais de três décadas,
entre os capitais privados externos e internos e o Estado. A rearticulação governamental
do tripé do capital (estatal e privado interno e externo) constitui peça-chave do novo padrão
de financiamento voltado ao salto desenvolvimentista, sendo as regras fiscais mais
importantes na gestão macroeconômica conjuntural que estrutural, assim como maior
validade na esfera da economia política do que no processo de acumulação de capital.
Márcio Pochmann – O Brasil precisa se preparar para ingressar de fato no século XXI. Para
isso, deve contar com a implantação de um novo padrão de acumulação para o
desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. É a partir disso
que se pode reconstituir o mundo do trabalho em bases decentes do pleno emprego, o que
dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida
pela financeirização e superexploração do trabalho, resultante da atual presença na divisão
internacional do trabalho enquanto país primário-exportador.
É importante destacar que o Brasil demorou três décadas para ingressar efetivamente no
século XX, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país
se libertou do domínio liberal e passou a transitar do agrarismo prisioneiro do século XIX
para a moderna sociedade industrial. Em menos de meio século, o Brasil integrou as dez
principais economias industriais do mundo. Quando o país se preparava para ingressar na
Era Digital, já em constituição ao final do século XX, com a montagem interna da
microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso, com a lei de informática e
parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional
(M. Pochmann, A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022) que
levou ao declínio de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6%
em 2021.
Márcio Pochmann – Sob a Era Digital, a divisão internacional do trabalho agrega dois tipos
de países: os produtores e exportadores de bens e serviços digitais e os consumidores-
importadores. O Brasil faz parte do segundo agrupamento de países, dependente do modelo
primário-exportador para gerar divisas externas necessárias ao financiamento das
importações dos bens e serviços digitais. Nesta condição, em que prevalecem internamente
cada vez mais as atividades econômicas de baixa produtividade, cuja competitividade se
assenta no uso ilimitado dos recursos naturais e no menor custo do trabalho possível, as
possibilidades de geração de ocupações decentes e de pleno emprego são decrescentes.
Mesmo as positivas propostas de defesa da proteção social e trabalhista, ainda que
necessárias na reposição de direitos perdidos, elas tendem a consolidar um segmento
apartado e privilegiado das multidões sem destino e sobrantes das atividades tipicamente
capitalistas (M. Pochmann, O sindicato tem futuro?, 2020).
Fonte:
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/628154-a-revolucao-tecnologica-
informacional-com-a-subsequente-superindustrializacao-dos-servicos-altera-
profundamente-a-natureza-do-trabalho-entrevista-especial-com-marcio-pochmann