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Escrito em 30/10/1908
[...] nenhuma alma há tão solitária como a minha – solitária, note-se, não mercê de
circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da
minha grande ternura e bondade, entrou no meu caráter um elemento de natureza,
egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o
desenvolvimento e a plena ação interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, depremindo
a vontade, a sua plena ação externa , a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de
examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu caráter, pois a minha
curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu
caráter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.” p. 6/7
- Sobre os projetos para Portugal – Tem vários projetos, mas sofre muito “até os limites da
loucura” a “deficiência por vontade” p. 8
- Além dos meus projectos patrióticos – escrever República de Portugal, provocar aqui uma
revolução, escrever panfletos portugueses, dirigir a publicação de obras literárias nacionais
mais antigas, fundar um periódico, uma revista cientifica, etc [...] conjugam-se para produzir
um impulso excessivo que me paralisa a vontade. O sofrimento que isto produz não sei se
poderá ser definido como situado aquém da loucura. [...] Outros motivos de sofrimento,
alguns físicos, mentais[...] dificuldades de dinheiro – junte-se isto tudo ao meu temperamento
fundamentalmente desiquilibrado e talvez se possa suspeitar qual a intensidade do meu
sofrimento.” p. 8-9.
- “Eu era um poeta impulsionado pela filosofia [...]. Adorava admirar a beleza das coisas,
descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a alma poética do universo. Há
poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na
cidade – não o neguemos – fato evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há
poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas
ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da
rua, pinta a tabuleta de um talho. O meu sentido interior de tal modo predomina sobre
os meus cinco sentidos – estou convencido – vejo coisas desta vida de modo diferente do dos
outros homens. [...] É que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em
plena consciência da sua queda, atônito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a
alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não
era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se
recordando.” p. 14-15
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“O que quer Orpheu? Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa
época é aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez
intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a
Oceania são a Europa, e existem todos na Europa, [...] região civilizada que dá o tipo e a
direção a todo o mundo.
Por isso a verdadeira arte moderna tem de ser maximamente desnacionalizada –
acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. Que a
nossa arte seja uma onde a dolência e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o
cosmopolitismo das Américas, o exotismo ultra da Oceania e o maquinismo decadente da
Europa se fundam, se cruzem se interseccionem. E, feita esta fusão espontaneamente,
resultará uma arte-todas-as-artes, uma inspiração espontaneamente complexa.” p. 113-114.
António Mora – “Da Grécia Antiga vê-se o mundo inteiro, o passado como o futuro,
a tal altura emerge, dos menores cumes das outras civilizações, o seu alto píncaro de glória
criadora.” p. 117.
- “Não somos portugueses que escrevem para portugueses; isso deixamo-lo nós aos
jornalistas e aos autores de artigos de fundo político. Somos portugueses que escrevem para a
Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fazemos será
um dia universalmente conhecido e reconhecido.” p. 121
“Creio que todo o futuro da arte europeia está no movimento sensacionista. A arte
assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode
ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar
por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia da arte sensacionista esteja tudo
quanto de essencial produziram o Egipto, a Grécia, Roma, a Renascença e a nossa época. A
arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra – ser a síntese de
tudo. Que cada um de nós multiplique a sua personalidade por todas as outras
personalidades.” p. 124.
“Em Portugal hoje debatem-se duas correntes, antes não se debatem por enquanto, mas
em todo o caso a sua existência é antagônica. Uma é a da Renascença Portuguesa, a outra é
dupla, é realmente duas correntes. Divide-se no sensacionismo, de que é chefe o sr. Alberto
Caeiro, e no paulismo, cujo representante principal é o sr. Fernando Pessoa. Ambas são
cosmopolistas, porquanto cada qual parte de uma das duas grandes correntes europeias
actuais. O sensacionismo prende-se à atitude energética, vibrante, cheia de admiração pela
Vida, pela Matéria e pela Força, que tem lá fora representantes como Verhaeren, Marinetti, a
Condessa de Noailles e Kipling; o paulismo pertence à corrente cuja primeira manifestação
nítida foi o simbolismo. Ambas estas correntes tem entre nós este igual característico em
relação ao seu ponto de partida e que é para nos orgulharmos – de que são avanços enormes
nas correntes em que se integram. O sensacionismo é um grande progresso sobre tudo quanto
lá fora na mesma orientação se faz. O paulismo é um enorme progresso sobre todo o
simbolismo e neo-simbolismo de lá fora.” p. 125-126
“O que o mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza; equilíbrio, organismo no delírio e
no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas com
alma.” p. 405