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Stephan A.

Hoeller

JUNG E OS
EVANGELHOS
PERDIDOS
Uma Apreciação Junguiana sobre
os Manuscritos do Mar Morto e
a Biblioteca de Nag Hammadi

Introdução
JUNE SINGER

Tradução
JEANNE BORGERTH DUARTE RANGEL

Revisão Técnica
SONIA MARIA CAIUBY LABATE

CULTRIX/PENSAMENTO
SÃO PAULO

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Título do original: Jung and The Lost Gospels
Insights Into The Dead Sea Scrolls and The Nag Hammadi Library

Novamente para Kristofer, caro amigo e auxiliar,


e para Sidney e Jean Lanier, com reconhecida gratidão.

Sumário
Introdução: June Singer 04
Prefácio 08
Agradecimentos 09
Prólogo: Como o Ocidente se perdeu:
Perda e Recuperação da Espiritualidade Psicológica. 10

PARTE I - A OUTRA TRADIÇÃO


A História de Duas Heresias: Nag Hammadi e Qumram 17
Santamente Rebeldes: O Povo dos Pergaminhos 26
O Messias Essênio e o Cristo Gnóstico: Do Protótipo ao Arquétipo 34
A Sabedoria Feminina e a Vinda dos Conhecedores 46
A Odisseia da Gnose 56

PARTE II - A OUTRA REALIDADE


A Sabedoria Errante: O Mito de Sophia 67
O Salvador Dançarino: O Mito do Cristo Gnóstico 78
Príncipes do Mundo: O Mito dos Anjos Tirânicos 90
Viajante do Paraíso: O Mito da "Canção da Pérola" 101
E o Mito Continua: Alguns Mitos Gnósticos Modernos. 109

PARTE III - OS OUTROS EVANGELHOS


As Palavras Secretas de Jesus: O Evangelho de Tomás 119
Meios de Transformação: O Evangelho de Felipe. 131
Redenção e Êxtase: O Evangelho da Verdade e o Evangelho dos Egípcios 140

Epílogo: De Hiroshima aos Evangelhos Secretos:


O Futuro Alternativo da História Humana 149
Notas 158
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Introdução
June Singer

Quando o cânone bíblico foi definido, as pessoas que determinaram o que deveria
constituir as Sagradas Escrituras e permanecer como baluarte contra o paganismo e a
heresia, tiveram suas razões para excluir alguns escritos e incluir outros. Certamente, havia
questões de autenticidade e qualidade, mas havia, também, uma urgência de se
estabelecer um padrão pelo qual todas as outras expressões religiosas pudessem ser
avaliadas no futuro. Judaísmo e Cristianismo sofreram, ambos, a necessidade de esclarecer
e fortalecer suas doutrinas, para que seus adeptos tivessem uma base sólida para sustentar
a oposição que sofreram de Roma e do mundo pagão. Essas formulações deixaram,
necessariamente, pouco espaço para a interpretação individual ou para variações das
normas recentemente estabelecidas.
Entre os judeus e também entre os primeiros cristãos houve dissidentes, cujos pontos
de vista diferiram dos que foram proclamados na Bíblia, relacionados com o que constitui a
vida espiritual e, no Cristianismo, com o que foi a verdadeira natureza e ensinamento do
Ungido, enviado por Deus para proclamar Sua mensagem à humanidade. Seus escritos,
contemporâneos dos livros bíblicos, foram considerados perigosos ou espúrios pelas
autoridades religiosas reinantes, e os escritores desses trabalhos extracanônicos foram
estigmatizados como heréticos - o que de fato eram, se heresia significa tomar uma posição
oposta à ortodoxia do momento. Os escritos tornaram-se, no entanto, pedras de toque
para comunidades cujos membros buscavam liberdade de pensamento e de crença, alívio
da imposição da autoridade e uma oportunidade de experimentar Deus diretamente, sem a
mediação da hierarquia da Igreja. Muito do conteúdo desses trabalhos tinha relação com a
escatologia, os presságios dos Últimos Dias, quando Deus faria chover destruição sobre Seu
povo, por ele ter se entregado ao poder do mal no mundo. Também havia nesses trabalhos
a esperança expressa de uma redenção final, representada entre os judeus com a vinda da
Era Messiânica e, no Cristianismo, como a Segunda Vinda de Jesus Cristo. Através dos anos,
muitos desses trabalhos se perderam e alguns foram preservados. Esses últimos
continuaram a ser lidos como uma literatura mais ou menos esotérica. Alguns foram
escondidos em cavernas e locais semelhantes, esperando outro tempo, quando o mundo
estivesse mais preparado para receber suas mensagens.
Até 1945, apenas uns poucos fragmentos dos evangelhos perdidos estiveram à
disposição da leitura pública. Aqui e acolá, alguns estudiosos e pesquisadores souberam da
existência de certos escritos e os estudaram. Dentre eles, o grande psiquiatra suíço C. G.
Jung. Isso foi em 1945, lembrar-se-á o leitor, quando os Estados Unidos, em nome da paz,
jogou bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Curiosamente, depois de um ano ou
dois, foram descobertos os dois mais importantes achados da história moderna dessa
literatura sagrada perdida. Um deles eram os Pergaminhos do Mar Morto, o trabalho dos
essênios, judeus ascetas de Qumram, perto de Jerusalém. O outro era a Biblioteca de Nag
Hammadi, uma coleção de papiros escritos pelos membros de uma seita gnóstica, entre
duzentos e trezentos anos depois de Cristo, e achados em um pote de barro, numa caverna

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do Alto Egito. Desde essa descoberta até agora, os tesouros recém-descobertos ocuparam
equipes de estudiosos no esforço de juntar as partes, decifrá-las e procurar entendê-las.
Embora o trabalho desses homens e mulheres de cultura tenha sido indispensável, seu
estudo foi apenas o primeiro ato vital de um drama de proporções cósmicas. As
contribuições desses estudiosos consistiram, primeiramente, em entender as palavras e
depois o contexto no qual elas foram escritas, antes de empreender qualquer
interpretação. O segundo ato seria a apreensão do significado psicológico pessoal desse
tema para as pessoas de hoje. O terceiro abrangeria a compreensão desse material mítico
em termos de sua significância mais profunda e até global. Estudiosos e tradutores,
trabalhando nos Pergaminhos do Mar Morto e nos livros de Nag Hammadi, têm perseguido
seus objetivos com a necessária devoção à objetividade. Consequentemente, raramente se
detecta no seu trabalho qualquer indicação de simpatias pessoais com as perspectivas
específicas que caracterizam esses textos.
Se quiséssemos descrever esses documentos numa única palavra, esta deveria ser
heterodoxos, no sentido de diferir de, ou de contrariar um ponto de vista religioso
estabelecido. Esses trabalhos afastam-se radicalmente do Judaísmo normativo ou do
Cristianismo ortodoxo do seu tempo. Os primeiros Padres da Igreja não tiveram dificuldade
em declarar os Evangelhos Gnósticos como heréticos. Os estudiosos de hoje, que se
dedicam ao estudo dos textos religiosos nas antigas línguas semítica ou capta provêm, via
de regra, de áreas como a teologia bíblica e a crítica. O rigor acadêmico dos tradutores e
editores que trabalharam nesses escritos permitiram pouca abertura para a expressão e
opiniões pessoais e menos ainda para respostas apaixonadas. Como analista junguiana, não
consigo evitar de imaginar o que esses exegetas realmente pensam quando estão a sós,
sobre esses trabalhos, que tão dramaticamente desafiam as doutrinas aceitas, tanto nos
seus dias quanto agora.
Foi C. G. Jung quem descobriu por si só e se sentiu cativado pela literatura dos
gnósticos judeus e cristãos, cujos escritos incluem os Evangelhos Perdidos. A palavra
"cativado" deve ser usada com cautela, porque Jung não chegou a esses materiais como um
estudioso que se baseia em pesquisas e apoio de predecessores e colegas. Ele encontrou a
personificação dos mitos diretamente, por meio do inconsciente - como uma erupção de
ideias misteriosas e imagens de origem desconhecida, carregadas de mensagens sobre a
natureza e os feitos da psique humana. A história de como o material gnóstico se revelou a
Jung é encontrada na sua obra autobiográfica: Memórias, Sonhos e Reflexões. Só depois de
se encontrar com as ideias gnósticas, sob forma de sonhos, fantasias ou imaginação ativa,
sentiu-se Jung inspirado a olhar para os mitos e a literatura, para amplificar o que ele havia
experimentado. Jung detectou, então, paralelos espantosos entre seus próprios achados e
o material que estava apenas começando a emergir das traduções da Biblioteca de Nag
Hammadi, bem como de outros textos gnósticos judeus e cristãos.
Como psiquiatra, Jung estava interessado em saber por que as pessoas pensam o que
pensam e acreditam no que acreditam. Ele procurava sinais na mitologia, especialmente os
que dão origem às tradições religiosas e espirituais. Ele entendeu o impulso espiritual dos
homens e mulheres como expressão da psique humana e seus anseios pela Fonte do Ser.
Quando passou a se interessar pelo estudo dos antigos textos gnósticos o fez para apoiar e
amplificar sua própria experiência e a experiência de alguns de seus pacientes, orientados
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para a vida do espírito. Jung não fingiu neutralidade sobre esse material. Usou-o
livremente, quando o material iluminava a necessidade de recuperar a visão interior de nós
mesmos e do mundo em que vivemos. Ele compreendeu e recompôs boa parte da
mitologia gnóstica em termos psicológicos, reconhecendo nos diversos caracteres da
mitologia gnóstica as mesmas imagens arquetípicas que estão presentes na psique humana
em qualquer lugar, levando as pessoas a amar, a odiar, a temer, a cobiçar, e a tudo mais
que elas não fariam por sua própria vontade consciente. Não obstante toda a sua
conscientização do sentido do gnosticismo e seu fascínio por manifestações simbólicas
dele, Jung não chegou a se identificar abertamente como um gnóstico. Em primeiro e
último lugar, ele se imaginava como um psiquiatra e um curador de almas. Ele explorou em
grande profundidade as ideias sobre Deus e sobre os deuses, conforme aparecem na psique
humana. Jung insistia em dizer que não se sentia à vontade para dizer quem ou o que é
Deus - embora em uma memorável e sempre citada entrevista, tenha revelado: "Eu não
preciso acreditar em Deus; eu sei." Mas isso é dito piscando um olho, como se dissesse aos
entrevistadores que, se eles não entendiam o que isso significava, não adiantaria ele lhes
contar.
Chegou a hora para quem for francamente gnóstico falar sobre sua convicção e
comprometimento. A exposição do dr. Stephan A. Hoeller sobre o gnosticismo histórico e
suas implicações contemporâneas traz esse assunto do passado para uma confrontação
imediata com os fatos cruciais que enfrentamos hoje. Ele descobre na psicologia de Jung
uma apreciação sobre o espírito do gnosticismo, bem como respostas à questão mais vital:
o que o gnosticismo tem a ver com os dilemas em que se encontra o nosso mundo hoje?
Hoeller fala sobre as preocupações fundamentais do gnóstico na sua busca de
autoconhecimento: De onde viemos? Como chegamos a este lugar? Qual nosso objetivo
aqui? Para onde vamos? Os seres humanos têm feito essas perguntas desde a aurora do
conhecimento consciente. Baseado em sua própria experiência da Gnose, de seus estudos
de religiões comparadas e filosofia, Hoeller funciona como um mestre espiritual,
iluminando o sentido e o significado dessas questões.
A primeira parte do livro retrata graficamente aquele outro tempo mais antigo,
quando as tradições da Igreja e do Estado tinham perdido sua luminosidade. Na Judéia, os
ensinamentos, anteriormente inspirados, dos Reis e Profetas tinham se tornado rígidos e
limitantes: o legalismo obscurecia as nobres intenções dos mandamentos; minudências
escondiam o senso de grandeza do divino e considerações políticas ocupavam
excessivamente os líderes religiosos. Um pequeno grupo de essênios afastou-se daquilo
que encarava como uma sociedade corrupta e fundou sua própria comunidade de ascetas
no deserto da Judéia. Alguns sugerem que, quando o Templo de Jerusalém foi destruído em
70 d.C., os essênios levaram para o deserto tesouros do Templo, incluindo aí alguns
pergaminhos preciosos, a fim de preservá-los até que os tempos chegassem em que o
mundo estivesse pronto para recebê-los. De modo semelhante, no início do Cristianismo, a
presença e os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos inspiraram seus seguidores. Esses
homens e mulheres estavam dispostos a sofrer qualquer privação ou martírio para salvar
suas almas eternas. Quando, porém, a Cristandade teve de fortalecer suas defesas contra a
ameaça de Roma, a fé se tornou uma instituição com todos os credos, regras e restrições
que o institucionalismo implica. Houve aqueles que deixaram a Igreja em busca de
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liberdade espiritual e de uma experiência pessoal direta do sagrado. Esses gnósticos
mantiveram ou criaram num exílio auto-imposto o conhecimento secreto que veio a eles a
partir do seu íntimo, sobre aquilo que eles entendiam como sendo um Deus imanente. Para
nos permitir comparar esses tempos com os nossos, Hoeller nos conta como isso ocorreu e
relata a fragmentação desses tempos, comparando-os com o nosso próprio sentido de
fragmentação espiritual. A busca dessas pessoas antigas que procuravam a totalidade não
se mostra diferente do nosso próprio desejo de compreender como pode haver tanto mal
no mundo fenomenal e como podemos tomar uma posição a respeito.
A parte principal do livro do dr. Hoeller relata e interpreta a maravilhosa e estranha
mitologia dos gnósticos. Ele apresenta os mitos no seu terror demoníaco e glória angélica,
para que sejamos levados por eles aos recantos mais longínquos da nossa própria
imaginação. Então, inspirado por Jung, Hoeller traz ideias da psicologia profunda
contemporânea para interpretar cada uma dessas lendas. Por esse processo, ele torna claro
que a mitologia é verdadeiramente a linguagem da alma - e não apenas da alma antiga, mas
da nossa própria.
O epílogo é surpreendente e assombroso. Hoeller lembra-nos que a bomba de
Hiroshima foi jogada no mesmo ano em que os Evangelhos Perdidos foram descobertos.
Essa sincronicidade é duplamente impressionante, porque em 1945, assim como no tempo
da redação original dos Evangelhos Perdidos, predições e premonições de uma catástrofe
mundial encheram os ares. Durante os últimos quarenta anos ou mais desde Hiroshima,
outros presságios cada vez mais graves sobre o futuro têm sido anunciados. No tempo
antigo, as pessoas acreditavam que Deus destruiria o mundo por causa das más ações dos
seres humanos. Hoje, não precisamos de Deus para isso: nós, humanos, tornamo-nos
capazes de trazer a destruição total sobre nós mesmos.
À medida que caminhamos cada vez mais rapidamente para o Fim dos Tempos,
Hoeller procura e acha nos escritos gnósticos algumas sugestões sobre o que podemos
fazer para evitar a catástrofe final. Contudo, ele também faz uma coisa que poucos tiveram
a coragem de fazer, isto é, considerar a hipótese: se não evitarmos o desastre nuclear ou a
sistemática destruição da atmosfera da Terra, o que acontecerá? E então? Este mundo
material é tudo o que existe? Ou existe algo mais? Essas são questões que não podemos
evitar, a menos que nos agarremos desesperadamente à nossa ignorância e inconsciência.
Stephan Hoeller encara a questão de frente. Suas reflexões dão muito o que pensar.

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Prefácio

O plano de escrever este livro foi concebido pela primeira vez em 1985, quando eu
estava acompanhando o serviço religioso da Sexta-Feira Santa na comunidade gnóstica de
Los Angeles, e um visitante ilustre, o dr. James Robinson, o espírito motor que incentivou a
tradução das escrituras gnósticas de Nag Hammadi, me declarou: "Nós, estudiosos,
completamos o nosso trabalho; agora é a vez de um gnóstico escrever sobre as escrituras
gnósticas."
Desde garoto, me senti fortemente atraído pelo gnosticismo e, quando cheguei à idade
adulta, tornei-me um praticante comprometido com essa antiga fé. Minhas devoções
gnósticas me conduziram também a modernas variações sobre o antigo tema da Gnose
contidas na Teosofia, no Cristianismo místico e na Psicologia de C. G. Jung. A resposta
favorável ao meu livro The Gnostic Jung and the Seven Sermons to the Dead* (1982), serviu
ainda mais para me convencer de que nossa cultura ocidental estava finalmente pronta
para receber uma segunda e mais solidária visão sobre a tradição que trouxe tanto sentido
e luz à minha vida. E, assim, este trabalho foi escrito.
* A Gnose de Jung e os Sete Sermões aos Mortos, Editora Cultrix, São Paulo, 1990. Trad. de Sandra Galeotti
e Sonia Midori Yamamoto.
Conversas e correspondência com muitos especialistas em Gnose e estudos a respeito
levaram-me a expandir o escopo do meu trabalho, incluindo uma avaliação de certos
aspectos dos Pergaminhos do Mar Morto de Qumram. Os professores Gilles Quispel,
Gershom G. Scholem e Kurt Rudolph também me ajudaram com a conexão vital entre as
transmissões dos essênios e dos gnósticos, e meus próprios estudos levaram-me a ampliar
suas sugestões. Fluindo naturalmente de tais considerações, surgiu a minha visão de que os
essênios judeus e os cristãos gnósticos foram, ambos, expoentes da mesma corrente de
espiritualidade e de que a descoberta de suas escrituras perdidas há tanto tempo é um
bom augúrio para desenvolver uma espiritualidade semelhante hoje.
O contato com tradutores e o estudo sobre seus trabalhos me trouxeram outra ideia
importante: o conhecimento do copta e de outras línguas arcanas não coincide sempre
com uma compreensão empática do espírito dos documentos traduzidos. Um psicólogo
junguiano, Ean Begg, mostrou em seu livro Myth and Today's Consciousness [Mito e
Consciência de Hoje], que frequentemente existe um abismo psicológico separando os
tradutores dos textos que eles elucidam. Assim, a palavra Metropator, um nome gnóstico
para a divindade, que tem um bom sentido psicológico e gnóstico quando entendido como
Mãe/Pai, foi traduzido, no entanto, por "avô materno" por um estudioso. Outro tradutor
tinha o hábito de replicar a seu assistente - que protestava sobre a falta de sentido de um
determinado trecho - "este é um texto gnóstico; não precisa fazer sentido". Esses
incidentes fizeram-me apreciar a afirmativa do dr. Robinson, de que é tempo de um
gnóstico interpretar as escrituras gnósticas.
Acima de tudo, meu trabalho recebeu orientação e direção do pensamento do maior
dos gnósticos modernos: C. G. Jung. Sua intuição empática a respeito dos mitos, metáforas
e símbolos dos gnósticos, que ele descrevia como seus amigos perdidos no tempo -
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continua como o mais brilhante farol dos nossos dias, a iluminar os Evangelhos Gnósticos e
seus precursores, os Pergaminhos do Mar Morto. Seguindo o caminho de Jung, empenhei-
me em elucidar o sentido psicológico dos Evangelhos Perdidos, embora usando o termo
"psicológico" de forma mais abrangente do que muitos poderiam compreender.
Este é um livro sobre a Gnose, isto é, sobre a verdadeira individuação da psique
humana. Espero que seja uma pequena contribuição para o objetivo no qual Jung e os
antigos gnósticos se empenharam, qual seja, a redenção do espírito da escuridão da
limitação e da ignorância.

Agradecimentos

O autor deseja expressar seu apreço à Academia de Educação Criativa e à Fundação


Lawrence Rockefeller, cuja generosa assistência financeira tornou possível este trabalho; ao
sr. Roger Weir, pelo encorajamento e aconselhamento; à sra. Roseanna Gartenmann, por
seu devotado trabalho de datilografia e correção do manuscrito; ao sr. Jan Saether, pela
generosa execução e doação das ilustrações deste livro; ao dr. James M. Robinson, pelo
gentil presente das traduções alemãs de H. M. Schenke sobre muitas das escrituras de Nag
Hammadi, que enormemente facilitaram minha tradução de passagens dos quatro
evangelhos da mesma coleção (incluídas nos capítulos 11, 12 e 13); à dra. June Singer, por
sua esclarecedora introdução e comentários encorajadores; à sra. Shirley J. Nicholson, por
inicialmente inspirar-me a empreender este trabalho e também pelo seu excelente
trabalho editorial.
Reconhecidos agradecimentos à revista Gnosis e ao autor Dennis Stillings, por permitir
citar seu artigo "Invasão dos Arquétipos" da edição do Inverno de 1989.

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Prólogo
Como o Ocidente se Perdeu:
Perda e Recuperação da Espiritualidade Psicológica

O pensamento de C. G. Jung está merecendo atualmente um crescente interesse da


cultura ocidental. Uma síntese do conhecimento humano, raramente alcançada
anteriormente por alguém, se revela àqueles que investigam seriamente o trabalho que nos
foi legado por este homem notável. Começando como médico preocupado com o bem-
estar da mente, ele descobriu nos seus pacientes e na sua própria alma a grande verdade
da realidade da psique e explorou sua fenomenologia numa profundidade em que outros
não ousaram se aventurar. Sua sistemática observação do funcionamento das camadas
mais profundas da mente humana, por sua vez, permitiu-lhe lançar seu enfoque, com
singular intuição, sobre as grandes forças da cultura humana: mito, religião, arte, filosofia e
literatura.
Ao longo dessas observações, Jung descobriu que todos os símbolos e mitologemas
verdadeiramente poderosos, vividos e expressos pela humanidade, surgem de um
substrato comum profundo da mente, que ele chamou de inconsciente coletivo, ao qual
cada pessoa continua ligada ao longo de toda a sua vida espiritual. A descoberta junguiana
do inconsciente coletivo (cada vez mais chamado hoje em dia de "psique objetiva") tem
tornado possível abordar experiências e ideias - antes concebidas como religiosas ou
metafísicas - de uma nova maneira. Suas descobertas supriram uma hipótese intermediária
entre a crença tradicional na realidade metafísica e a moderna psicologia.
Num certo sentido, as descobertas de Jung não são, na verdade, novas, mas
provenientes da sabedoria antiga. No entanto, sua abordagem é nova e difere da posição
tradicional, que sustenta que as verdades espirituais são manifestações reveladas de um
tipo diferente de realidade, para além da psique humana. Em contraste com as posições
defendidas por muitos advogados das tradições religiosas tradicionais, a orientação de Jung
pode ser caracterizada de modo justo como intrapsiquica; isto é, baseada no que é interior à
psique humana. Assim, Jung raramente fala em Deus como uma pessoa. Ele afirma, em vez
disso, não estar de modo algum preocupado com um Deus metafísico, mas sim com a
imagem de Deus, conforme é percebida dentro da alma humana.
Essa atitude ainda incomoda pessoas que estão amarradas às gastas formulações
metafísicas das tradições convencionais, mas suas atribulações nem sempre são
justificáveis como elas pensam. Quando objetam contra a possibilidade de Deus, de anjos,
de demônios ou de a Virgem Maria estarem "meramente na nossa psique", não percebem
a amplitude, o escopo e a majestade que Jung atribui à alma humana. Jung comentou essas
críticas com as seguintes palavras:

"Assim fala e pensa o homem ocidental, cuja alma é evidentemente 'de pouco valor'.
Se houvesse mais conteúdo em sua alma, ele falaria dela com reverência. Mas como não o
faz, podemos concluir que não há nada de valor nela. Não que deva ser necessariamente
sempre assim e em qualquer lugar, mas apenas quanto àquelas pessoas que não põem
10
nada dentro de suas almas e têm 'todo Deus fora”.¹

Somente aqueles que permitiram a desvalorização da psique pela extroversão da


mente - atitude que invadiu a corrente religiosa tradicional do Ocidente a partir de um
certo momento da história - podem considerar a alma como um veículo sem valor para os
arquétipos e símbolos transcendentais. Jung também disse, respondendo a acusações da
divinização da alma, que não foi ele quem fez tal coisa, e sim o próprio Criador!
Estudantes de história lembram que certamente houve um tempo em que a dignidade
e a majestade da alma eram reconhecidas pelos maiores líderes da espiritualidade na
cultura ocidental. Durante os três primeiros séculos da era cristã, floresceram no
Mediterrâneo muitas escolas de espiritualidade que sustentaram o potencial criativo e
revelador da alma, tida, de fato, em alto conceito. É interessante notar que, nesse sentido,
Jung jamais reivindicou o mérito pela descoberta do conceito dos arquétipos, mas
prontamente admitiu que tinha encontrado essa ideia nos ensinamentos filosófico-
religiosos do mundo helênico:

"... estão presentes em toda psique formas inconscientes mas mesmo assim ativas -
disposições vivas, ideias no sentido platônico, que atuam e continuamente influenciam
nossos pensamentos, sentimentos e ações. O termo 'arquétipo' ocorre desde o tempo do
judeu Filo, com referência à Imago Dei (imagem de Deus) no homem. Esse termo pode ser
encontrado também em lrineu, que diz [citando uma fonte gnóstica - S. A. H): '0 Criador do
Mundo não modelou essas coisas diretamente de Si mesmo, mas as copiou de arquétipos
fora de Si: No Corpus Hermeticum, Deus é chamado... 'luz arquetípica'... Para o nosso
propósito, este termo... nos diz que... estamos lidando com tipos arcaicos ou - eu diria -
primordiais, isto é, com imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos.”²

Infelizmente, a posição internalista da antiga sabedoria alexandrina foi substituída por


um externalismo institucionalizado, onde Deus e outras imagens arquetípicas, com
tonalidades transcendentais, foram novamente concebidos como existindo "fora". O que
pode ser chamado de espiritualidade psicológica dos primeiros séculos do Cristianismo
passou para o inconsciente e os movimentos internalistas compensatórios, ainda
subsistindo na estrutura da Cristandade, foram declarados heréticos. Assim, ocorreu a
transmissão de uma realidade alternativa, que manteve sua ênfase psicológica ou
internalista, em oposição à corrente externalista principal. Como demonstraremos nos
próximos capítulos, essa transmissão não apareceu já pronta, vinda do ambiente helênico,
mas teve suas raízes num movimento alternativo preexistente no Judaísmo, cujo último
ramo sobrevivente, imediatamente anterior ao Cristianismo, foi a escola dos essênios. Os
essênios judeus foram substituídos pelos gnósticos, cuja progênie espiritual foram os
místicos cristãos monásticos, dentro da Igreja, e os alquimistas, os mágicos cerimoniais, os
cátaros, os rosa-cruzes, os cabalistas e, nos tempos modernos, os teosofistas e os
movimentos relacionados com a espiritualidade alternativa.
A corrente alternativa nunca cessou, mas suas manifestações externas foram
espasmódicas e nunca conseguiram força suficiente para desafiar seriamente as
(autodeclaradas) ortodoxias reinantes. A ênfase na interioridade espiritual permaneceu,
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assim, como uma tradição muda, frequentemente reprimida e, às vezes, ignorada pelas
religiões dominantes e pela cultura como um todo. Uma parte crescente da cultura (alguns
a chamariam de marginal), consistindo de artistas, visionários e pensadores não-
convencionais e alienados, nunca deixou de se sentir atraída pela corrente alternativa e, em
algumas ocasiões, incursões significativas foram feitas por algumas manifestações dela. Um
dos principais exemplos de tal erupção de espiritualidade alternativa no corpo principal da
cultura foi, certamente, o fenômeno da Renascença, como a historiadora Frances Yates
parece ter provado, para satisfação de muitos, nos seus vários e importantes trabalhos
sobre este assunto.*
* Frances A. Yates: Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (Chicago: University of Chicago Press, 1964)
[Giordano Bruno e a Tradição Hermética, Editora Cultrix, São Paulo, 1987]; The Rosicrucian Enlightenment
(Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1972) [O lluminismo Rosa-Cruz. Editora Pensamento. São Paulo,
1983]; The art of Memory [A arte da Memória] (Chicago: University of Chicago Press, 1966); Theatre of the
World [Teatro do Mundo] (Chicago: University of Chicago Press, 1969); The Occult Philosophy [A Filosofia
Oculta] (Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1969).
Jung acreditava que o endosso da posição filosófica aristotélica por Tomás de Aquino
e, subsequentemente, pela cristandade ocidental, contribuiu, fortemente, para a
erradicação da interioridade espiritual. Ele afirmou repetidamente que o senso de realidade
da psique desapareceu na proporção em que o seguinte slogan aristotélico foi sendo
adotado pela cultura ocidental: "Nada existe no intelecto, a não ser através dos sentidos."
Neste ponto, Jung concorda com Paul Tillich, que disse que a orientação aristotélica da
Teologia, depois de Tomás de Aquino, foi o maior fator individual que tornou possível o
ateísmo.
Quando as pessoas param de vivenciar Deus, são forçadas a crer Nele, diz Tillich - e a
crença é um artigo sujeito a perda. O sentido mais íntimo de Deus é uma qualidade da
psique mais profunda, e não da razão. Com a preponderância da razão sobre a consciência
psicológica da verdade arquetípica, o caminho para o racionalismo - e em última análise,
para o materialismo e o ateísmo - se abriu. Assim, o Ocidente se perdeu, diz Jung e
concorda Tillich.
Quando o Ocidente se perdeu para a interiorização espiritual, tudo o que restou foi a
crença, ou o eufemismo religioso para isso: a fé. Jung, como um moderno gnóstico, criticou
sem piedade a ênfase religiosa prevalecente da fé sobre a experiência interior. "É
geralmente consensual", escreve ele, "que a fé inclui um sacrificium intellectus, se é que
existe um intelecto a sacrificar", acrescenta ele entre aspas. "Ao mesmo tempo, continua
ele, é comum ignorar que a fé também requer 'um sacrifício do sentimento'. Esta - diz ele -
é a razão por que 'os que têm fé permanecem crianças, em lugar de se tornarem como
crianças, e não ganham a vida, porque não a perderam'. O que Jung entende por "sacrifício
do sentimento" é o seguinte: "A fé tenta reter uma condição mental primitiva em bases
puramente sentimentais. Não quer desistir das relações primitivas e imaturas com as
figuras hipostasiadas; a fé quer continuar a usufruir da segurança e confiança num mundo
ainda presidido por pais poderosos, responsáveis e gentis.”³
A espiritualidade madura parece requerer mais do que fé, especialmente quando a fé
consiste em uma crença baseada no medo. Para a criança, a fé nas estruturas da existência
é suficiente, porque a criança está contida nelas. Para o adulto, a percepção de ordem e
significado tem de ser adquirida novamente, em face dos grandes desafios. A consciência
12
crescente e a experiência real das vicissitudes da vida são conflitantes com a fé, que é
apropriada à condição da criança. Se houver uma nova certeza de significado, mesmo de
segurança, ela deverá vir como uma conquista, como o surgimento de um novo tipo de
certeza, advinda de uma aguda insegurança e alienação. Tal estado de maturidade
espiritual requer um tipo de conhecimento íntimo, enraizado na experiência. Isso é o que
era entendido nos tempos antigos pelo termo grego Gnosis.
Infelizmente, embora a cultura ocidental contemporânea tenha superado a fase do
desenvolvimento semelhante à da criança, não aposentou seus pensamentos infantis. Nós,
no Ocidente, ainda tratamos as apercepções internas meramente como subprodutos de
fatos objetivos e nada mais do que isso. Mesmo certas "modas" contemporâneas,
endossadas pela "New Age", tais como a crença no cérebro direito e esquerdo, refletem sua
unilateralidade extrovertida. Desse modo, disse Jung, "o divino degenera em um objeto
externo de adoração e perde sua misteriosa relação com o homem interior".4
A questão surge, e tem sido formulada pelos críticos das correntes espirituais
alternativas, a saber: se a atitude de interioridade não abre as portas para um subjetivismo
ilimitado, do tipo frequentemente encontrado entre os devotos menos discriminativos da
espiritualidade marginal. Também se teme que a preocupação com os habitantes e as
forças da nossa paisagem interior possa perturbar os padrões ordenados da sociedade.
Jung respondeu a essas questões e dúvidas com as seguintes palavras:

"A preponderância do fator subjetivo não implica um subjetivismo pessoal, apesar da


presteza da atitude extrovertida de desprezar o fator subjetivo como 'meramente
subjetivo'."5

De fato, diz Jung, o subjetivo não é tão subjetivo como pensamos, pois quanto mais
fundo formos na corrente psíquica da vida interior, mais deixaremos de lado o meramente
pessoal e mais atingiremos os elementos atemporais da experiência, não afetados por
fatores personalísticos e assim, em certo sentido, verdadeiramente objetivos. A imaginação
não é arbitrária, como muitos a veem; ao contrário, ela está baseada nas leis da apercepção
inconsciente, que não mudam.
Na essência, a Gnose dos antigos postula - e Jung também afirma - que as ideias que
formam o conteúdo de todas as religiões não são primariamente o produto de uma
revelação originada externamente, mas de uma revelação subjetiva de dentro da psique
humana. Em Answer to Job (Resposta a Jó], ele diz, simplesmente: Declarações religiosas
são confissões psíquicas baseadas em processos inconscientes, isto é, transcendentais."
Correspondem essas "confissões psíquicas" aos postulados metafísicos? Jung não o diz e
provavelmente nunca o soube ou se preocupou com isso. Aos olhos do crente, os objetos
da fé são realidades metafísicas. Para o gnóstico, e, portanto, para Jung, os fenômenos da
experiência merecem prioridade sobre a especulação metafísica. Na visão de Jung, é mais
importante reconhecer a raiz subjetiva, na mente, das nossas ideias sobre o divino do que
aceitar as declarações metafísicas ou teológicas. Tem-se afirmado que os teólogos
conhecem muito sobre Deus, mas muito pouco de Deus. Esta é uma condição que pode ser
restaurada apenas com o tipo de experiência direta, advogada pelos místicos e gnósticos de
todas as épocas.
13
O que confere sentido à vida não é o tipo de condição descrita por William James
como "a fé na fé de alguém". Em vez disso, o que é necessário a esse respeito é um ato
particular de percepção que prende e compromete todo o nosso ser por causa do seu
impacto direto e de sua qualidade numinosa. Quando esse tipo de percepção está ausente,
a visão inadequada do ser humano se volta contra ele. Em cada alma, há um desejo por
esse tipo de visão direta, que confere totalidade e sentido verdadeiro. A menos que
saibamos como lidar criativamente com esse desejo, ele se projetará sobre algo fora,
independentemente da nossa vontade, até mesmo contra ela, normalmente sobre um
objeto inadequado.
Aldous Huxley descrevia as ideologias políticas como "misticismo substituto", e uma
definição parecida poderia ser dada às numerosas projeções da humanidade que evocam
atitudes e lealdades fanáticas, desequilibradas e monomaníacas. Quando o real não está
presente, o irreal se intromete como substituto e o resultado é, inevitavelmente,
desastroso. Jung escreve sobre isso: "Nem mesmo a epidemia medieval de peste bubônica
e a de varíola matou tanta gente quanto certas diferenças de opinião em 1914 ou certos
'ideais' políticos na Rússia."6 Somente a consciência resultante da Gnose pode impedir a
sobrevivência de falsas projeções e a violência e crueldade consequentes.
A idade da fé passou, ou melhor, está passando. A enorme questão que enfrentamos
hoje é: o que tomará o seu lugar? A menos que clamemos pelo dom da profecia, não
podemos responder a essa questão com nenhuma certeza. O que podemos dizer é:
sabemos o que deveria tomar o seu lugar, quer dizer, uma era em que a espiritualidade
interior, psicológica, imprudentemente descartada há muito tempo, possa reaparecer, mais
uma vez. Fr. John Dourley escreve sobre essa tarefa de um ponto de vista junguiano e
cristão:

"Uma opção interessante e ativa... seria a reapropriação e assimilação daqueles


movimentos de espírito, os quais a Cristandade, no interesse de sua própria sobrevivência,
tem sido historicamente forçada a declarar como heréticos. Com isto em mente, o
pensamento de Jung desafia as verdades ortodoxas que a Cristandade até agora se sentiu
obrigada a rejeitar. Isto é o que deveria ser feito, na visão de Jung, para que a Cristandade
venha a ter uma concepção de humanidade e de espiritualidade humana mais apropriadas
ao processo psicológico de se tornar inteiro."7

Jung sabia que a única tradição associada ao Cristianismo que considerava a psique
humana como receptáculo do encontro divino-humano era a dos gnósticos, nos três
primeiros séculos da nossa era. Por esta razão, ele chamava por uma apreciação renovada
dessa antiga tradição e, particularmente, para um retorno ao sentido gnóstico de Deus,
como uma presença interior diretiva e transformadora. O literalismo e o historicismo, na
opinião de Jung, trivializaram a espiritualidade ocidental durante muito tempo, e é chegado
o momento de reverter o processo iniciado pelos Padres da Igreja, que levaram a Gnose a
ocultar-se depois do terceiro século. Em face da persistente oposição ao gnosticismo e sua
depreciação como "dualístico", "odiento" e "imoral", Jung afirmou:

"A depreciação e o aviltamento do gnosticismo são anacrônicos. Seu simbolismo


14
psicológico óbvio poderia servir a muita gente hoje, como ponte para uma apreciação mais
viva da tradição cristã."8

A tarefa, então, é clara: o que deve ocorrer, se aceitarmos o julgamento de Jung, é a


restauração de certas abordagens da espiritualidade, que contém a compensação
necessária para a orientação da religião ocidental extrovertida, literalista e unilateral. Numa
época de dessacralização, de reformas litúrgicas trivializantes e de teologias da libertação,
Jung aponta o caminho para uma teologia e uma psicologia da restauração, destinadas a
reapropriar a sabedoria descartada da espiritualidade psicológica, conhecida pelos
gnósticos, místicos e alquimistas, através dos séculos. A pedra que os construtores
rejeitaram pode e de fato deve retomar à estrutura da nossa cultura, para que uma
condição de totalidade possa nela surgir.
Um impulso para a totalidade, operando como um processo unificador, ao juntar os
muitos componentes dispersos da alma do indivíduo e da cultura, é uma das grandes e
cruciais realidades, subjacente ao movimento individual e coletivo da história. O processo
de individuação, ou de se tornar inteiro, traz com ele a experiência do divino e a percepção
da transcendência na dimensão simbólica da vida. Nossa cultura deve, portanto, tomar
cuidado: a fragmentação psicológica pode, em última análise, levar apenas à dissolução, ao
passo que a integração potencial promete a renovação da vida, do significado, do amor e da
criatividade.
Os assim chamados Evangelhos Perdidos - os quais, com alguma liberdade de
imaginação, são, para nós, os Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi e seus precursores, os
Pergaminhos das cavernas de Qumram, - representam nossas principais coleções de
documentos, relacionadas com a sombra descartada e reprimida da espiritualidade do
Ocidente e, de fato, da cultura ocidental. Esse trabalho pretende iluminar o contexto e o
conteúdo dessas escrituras, em relação à tarefa de restauração e reapropriação, iniciada
pelos esforços pioneiros de Carl Gustav Jung. Não é exagero dizer que nossa cultura hoje
clama por totalidade, equilíbrio e consequentes sinais de sanidade. Compreensivelmente,
embora de modo lamentável, a necessidade de totalidade, sentida por tantos, é ainda
entendida predominantemente em termos da extroversão entranhada que Jung tanto
deplorou. Muitos falam e escrevem sobre a paz mundial e o vislumbrado "mundo único"
sem reconhecer que esses ideais nunca poderão ser realizados no plano externo, até que
um número suficiente de pessoas tenha atingido a totalidade dentro de si mesmos. O
falecido J. Krishnamurti apropriadamente afirmava: "O problema mundial é o problema
individual." E nós podemos acrescentar que o problema individual deve ser encarado
dentro do indivíduo.
Agora como outrora, nenhum deus ex machina, nenhuma divindade salvadora,
externamente projetada, vai nos libertar da nossa condição. Nosso enfraquecimento
espiritual não é devido à perda da graça original de Adão e Eva no paraíso, como alguns nos
fazem crer, assim como a nossa regeneração não virá pela aceitação de um salvador
pessoal na história; nem a queda de nossa cultura veio pelo eclipse de um matriarcado
benigno e sua substituição por um patriarcado maligno, cuja condição, conforme nos
dissera deve ser remediada por um matriarcado restaurado, presidido por uma deusa
ctônica reabilitada. Não seremos mais salvos pela ascensão de um Redentor ou por uma
15
Mãe terra ressuscitada, mas apenas pela reconciliação dos deuses e deusas dentro de nós.
O Ocidente foi perdido por causa de uma injustificada mudança da consciência em direção
ao exterior. Ele pode ser reconquistado por um restabelecimento de um equilíbrio que
atenda aos reclamos das realidades internas.
Esta é a atual convicção do escritor, de que os Evangelhos Perdidos podem
desempenhar um papel vital na retomada da totalidade perdida do Ocidente. Iluminados
pelas descobertas de Jung, esses documentos, e a tradição que representam, podem servir
para suprir o elemento perdido na obra alquímica da nossa individuação pessoal e coletiva.
Nas páginas seguintes, o autor pretendeu colocar diante de seus leitores um conjunto de
mitos e de símbolos, postos em relevo pelo fato histórico e pela intuição psicológica, com a
esperança de que, dessa forma, um pouco da Gnose perdida há tanto tempo pela nossa
cultura possa ser de novo descoberta. Nenhum de nós pôde evitar o fato de ter sido
privado dessa Gnose, mas poderemos maldizer a nós mesmos se falharmos em recuperá-la
agora.

16
PARTE I
A Outra Tradição

Serpente Alquímica Gnóstica

1
A História de Duas Heresias:
Nag Hammadi e Qumram
Há uma crença quase universal que afirma que quando a humanidade vive sua pior
necessidade, a ajuda espiritual vem de regiões transcendentais. Um dos testemunhos mais
populares dessa crença é atribuí o a Sri Krishna no trecho do grande épico hindu, o
Mahabharata, conhecido e apreciado como o Bhagavad Gita:

Quando o Bem cresce fraco,


Quando o Mal aumenta seu poder,
Eu faço para mim um veículo.
Em todas as eras eu volto
Para distribuir o sagrado,
Para destruir o pecado dos maus,
Para estabelecer a verdadeira bondade.1

Fato semelhante foi relatado pelo falecido dr. W. Y. Evans-Wentz, em seu livro The
Tibetan Book of the Great Liberation, na tradição sagrada do Tibete, é atribuído a Padma-
Sambhava, o misterioso mágico-guru que introduziu o Budismo no Tibete, ter escondido
numerosos documentos de sabedoria em vários locais secretos nas montanhas do Himalaia,
a fim de serem descobertos em épocas históricas posteriores, quando a necessidade desses
documentos se tornasse aguda.
Tem sido dito com acerto que a hora mais escura da noite é aquela antes do
amanhecer. O macrocosmo da história humana e o microcosmo da psicologia individual
17
testemunham ambos essa verdade. Quando nossa mente está mais alienada das suas
fontes de vida, quando o desespero da noite escura da alma desce sobre nós com toda a
força apavorante do seu peso, então a aurora da iluminação redentora e curadora surge no
horizonte oriental da alma. Uma intuição da psicologia profunda afirma que a maior e mais
duradoura iluminação da alma vem somente depois de uma completa experiência de
escuridão e desespero. C. G. Jung costumava atribuir esse fenômeno ao princípio enunciado
pelo filósofo pré-socrático Heráclito, conhecido como enantiodromia, segundo o qual, o
ponto mais profundo de saturação da escuridão faz nascer um ponto de luz que
rapidamente se expande. A história e a psico-história trazem à nossa atenção um princípio
de resposta sincronística, por meio do qual as forças do ser que clama por união, totalidade
e significado máximo eclodem em efetiva manifestação no momento da maior necessidade.
O grande poeta místico alemão Johann Ch. F. Hölderlin deu uma expressão adequada a esse
princípio quando escreveu: "Deus está perto e o difícil é apreendê-Lo; mas quando o perigo
é grande o poder da salvação sempre fica mais acessível."
Essas considerações são eminentemente relevantes em relação ao estranho relato das
descobertas de dois dos mais importantes achados na história da arqueologia bíblica e
religiosa, a saber, a Biblioteca das escrituras gnósticas de Nag Hammadi e os Pergaminhos
do Mar Morto de Qumram. Em 1945, quando as ruínas físicas e psicológicas da Segunda
Guerra Mundial ainda eram dolorosamente evidentes na Europa, na África e na Ásia, ao
mesmo tempo em que as hecatombes de Auschwitz, de Dachau e de Bergen-Belsen
estavam quase sendo superadas pelos campos de extermínio do Arquipélago Gulag de
Stalin; quando parecia a muitos que o mundo jamais se recomporia da maior calamidade da
história humana - nesse momento da mais profunda escuridão e desespero da alma do
mundo, um camponês egípcio, guiando seu camelo enquanto procurava fertilizantes,
descobriu documentos antigos que possuem o potencial de ajudar o Ocidente na
recuperação de boa parte da sua alma perdida. No exato momento em que o sábio C. G.
Jung escrevia e falava sobre o homem moderno em busca de sua alma, um componente da
alma da religiosidade judeu-cristã e da cultura ocidental, há muito esquecido, ou melhor,
reprimido, emergiu do solo ao longo do sopé da montanha Jabal al-Tarif, perto do rio Nilo,
no Alto Egito. Num vaso de cerâmica, o camponês egípcio e seu companheiro acharam uma
coleção de antigos manuscritos, consistindo em 1.153 páginas, distribuídas em doze livros
(conhecidos como códices), encadernados em capas de couro, contendo cinquenta e dois
escritos separados (chamados tratados). Os escritos, como as pesquisas posteriores
revelaram, eram cópias feitas pelos escribas egípcios do terceiro e quarto século d.C., de
trabalhos originários, na sua maioria, da Era Apostólica, quando a memória do enigmático
Rabi Jehoshva, conhecido como Jesus, ainda vivia fortemente na mente das muitas pessoas
contemporâneas de seu breve mas prodigioso tempo de vida.
Passados pouco mais de dois anos, no verão de 1947, na Palestina, um pastor árabe
procurava uma das cabras do seu rebanho. Ele era jovem e ágil e com sua intrepidez
atlética galgou o penhasco de pedra calcária que sobrepairava o Mar Morto. Enquanto
estava empenhado nesse exercício, viu um pequeno buraco numa caverna da montanha.
Com medo dos maus espíritos, o jovem primeiro fugiu dali e voltou no dia seguinte com um
companheiro. Os dois jovens entraram na caverna onde descobriram um conjunto de vasos
de barro cobertos com tampas redondas. A maior parte deles estava vazia, mas um deles
18
continha um grande pacote composto de um pedaço de couro envolvido em farrapos. Eles
levaram para casa o misterioso pacote e, depois de desembrulhá-lo, viram que havia nele
um rolo de pergaminho, que, desenrolado, se estendeu de uma extremidade a outra da
tenda. Outros dois pacotes foram encontrados no mesmo vaso. Os dois jovens tinham em
suas mãos três pergaminhos com escritos cuja natureza não compreendiam. Dias mais
tarde, eles venderam os três pergaminhos a um negociante que o comercializou
ilegalmente na cidade de Belém. A peregrinação do que ficou conhecido como os
Pergaminhos do Mar Morto havia começado.

Pergaminho de Qummran

Os três primeiros pergaminhos assim descobertos no litoral do Mar Morto logo foram
decifrados e chamados de Pergaminho de Isaías, Pergaminho de Habakukk: e o Manual de
Disciplina. Eles foram seguidos por muitos outros pergaminhos descobertos por sucessivas
ondas de expedições patrocinadas por uma série de governos e instituições acadêmicas. A
publicidade mundial que se seguiu revelou que os pergaminhos eram os escritos de uma
comunidade heterodoxa de judeus chamados essênios, que viveram no local da descoberta,
de 130 a.C a 70 d.C (com uma interrupção de mais ou menos trinta anos, antes do ano 4
a.C.) e cujas estranhas doutrinas e práticas (assim como sua proximidade cronológica do
início da revelação cristã) estavam fadadas a causar um interesse generalizado.
No início, os dois achados impressionaram os observadores por suas diferenças. A
descoberta mais antiga continha escritos no dialeto sahídico do idioma copta, uma
linguagem popular do Egito romano e helenístico; a mais recente consistia de trabalhos
escritos na maioria em hebraico e aramaico, línguas semíticas usadas na Palestina
contemporânea. Os autores e escribas da Biblioteca de Hammadi eram cristãos da seita
gnóstica; as pessoas envolvidas na autoria e copia dos Pergaminhos do Mar Morto eram
judeus da seita dos essênios. Mesmo o formato externo dos escritos mostrava uma
19
diferença radical em sua aparência: os escritos coptas egípcios são o exemplo mais antigo
de encadernação em livro conhecida como códice, enquanto os documentos palestinos
apresentam-se sob forma de grandes rolos. Para tornar completa a divergência, os
escritores da seita judaica usaram pergaminho, ao passo que os cristãos gnósticos
escreveram em papiro, um derivado da cana de papiro, de onde se origina a palavra
moderna "papel".
As diferenças entre as duas descobertas foram dramatizadas pelos rumos
radicalmente diferentes que tomaram seus destinos a partir do reaparecimento inicial. A
biblioteca gnóstica copta demorou décadas para despertar a atenção pública. A primeira
tradução completa para o inglês só apareceu trinta e dois anos depois da descoberta.
Disputas entre estudiosos, políticos e comerciantes de antiguidades, assim como a
obtusidade e a indiferença de muitas das pessoas envolvidas fez a maioria dos que
esperavam a publicação de Nag Hammadi ficarem quase desesperados com a expectativa.
Os mais imaginativos de seus possíveis leitores talvez se tivessem lembrado de que os
antigos gnósticos, como verdadeiros mágicos à moda egípcia, eram dados à prática de
lançar maldições pavorosas e de manter espíritos guardiães em seus livros sagrados
ocultos. De fato, num dos evangelhos da coleção de Nag Hammadi, The Gospel of the
Egyptians [O Evangelho dos Egípcios], foi descoberta uma admoestação mágica de natureza
assim agourenta:

"Escrevereis aqui o que vos conto e eu vos lembrarei, pela salvação daqueles que
vierem depois de vós e forem dignos (disto). E vós mantereis este livro em repouso sobre a
montanha e invocareis o guardião (desta forma): Ó, vinde vós, o Terrível!"

A essa afirmativa, deve ser acrescida outra que aparece no The Apocryphon of John
[Apócrifo de João], perto do fim do texto, onde Jesus se dirige a João, pronunciando o que
ficou conhecido como "a maldição de Jesus":

"Em verdade, Eu dei a ti essas coisas para que delas te lembres e elas serão
depositadas num lugar seguro." Então, Ele assim falou a mim [João]: "Malditos sejam todos
os que derem algumas dessas coisas como retribuição por um presente, ou em pagamento
de alimento, bebida ou roupa, ou de qualquer coisa semelhante."

Qualquer que seja o efeito dessas maldições, parece que, depois de um quarto de
século, várias pessoas, assim como pelo menos uma instituição pública internacional (a
Unesco) começaram a superar as forças que se opunham à publicação das escrituras de Nag
Hammadi. Deve-se notar também que a única parte dos Evangelhos Gnósticos que
conseguiu sair do clima turbulento e hostil do Egito de Nasser, nos anos 50, tornando-se,
assim, acessível sem restrições aos estudiosos, foi comprada pelo Instituto Jung de Zurique
e presenteado a C. G. Jung no seu octogésimo aniversário, como o "Códice de Jung". Em 15
de novembro de 1953, numa assembleia de líderes do governo suíço, assim como de
numerosas autoridades acadêmicas e profissionais que se reuniram para homenageá-lo, o
octogenário Jung segurou em suas mãos esse documento que anunciava, depois de cerca
de 1.200 anos, o possível renascimento da Gnose, à qual o sábio suíço dedicou tanto tempo
20
do seu trabalho e devoção. De fato, é muito tentador imaginar que, finalmente, os achados
de Nag Hammadi estabeleceram contato com um herdeiro verdadeiramente digno da
tradição da qual eles se originaram. O princípio que Jung chamou de sincronicidade operou
mais uma vez sua misteriosa magia: as barreiras começaram a cair, os obstáculos
lentamente começaram a desaparecer e a herança há muito perdida dos "velhos amigos"
de Jung, os gnósticos, tornou-se acessível a todos os que a apreciariam. As oportunidades
adiadas não tinham sido perdidas. De fato, novos desenvolvimentos psicológicos e sociais
ocorreram nos anos 60 e 70, criando um clima de receptividade para a espiritualidade não-
convencional, incluindo a dos gnósticos. A mensagem de Nag Hammadi estava finalmente
em marcha.
O destino dos Pergaminhos das areias do Mar Morto foi de natureza diferente. Como
no caso dos livros de papiro gnósticos coptas do Egito, aqui também os descobridores nada
sabiam sobre a verdadeira natureza de seus achados. Como resultado da intervenção dos
sírios ortodoxos metropolitanos de Jerusalém, bem como do aumento de interesse dos
estudiosos, incluindo o eminente professor E. L. Sukenik da Universidade Hebraica, a
novidade alcançou o mundo dezoito meses depois da descoberta inicial. Primeiramente, ela
foi recebida com incredulidade. Certamente, pensaram muitos, deve haver alguma fraude
ou erro. O solo da Palestina, diferentemente daquele do Egito, era visto como repositório
não adequado para pergaminhos ou papiros; o clima das montanhas da Judéia era tido
como muito úmido para a preservação de materiais tão perecíveis. O século XIX e o começo
do século XX viram uma espantosa negligência da pesquisa arqueológica bíblica nessa área
e parece existir evidências indicando que algumas descobertas valiosas foram ignoradas
como fraudulentas, meramente com base no dogma que declara que as cavernas da região
são muito úmidas para permitir a sobrevivência de documentos antigos tão delicados.
No entanto, por volta de 1949, o clima entre os estudiosos mudou e muitas
autoridades estavam preparadas para admitir que os três rolos de pergaminhos
descobertos pelo pastor árabe eram genuínos. As condições políticas também eram
diferentes das existentes antes das duas grandes guerras. No lugar do apático regime dos
otomanos e da subsequente administração colonial, dois "povos do livro", os judeus da
república recém-nascida de Israel e os árabes do reino hashemita da Jordânia estavam
exercitando sua soberania sobre as terras bíblicas. O governo da Jordânia estava ligado
mais diretamente a elas porque a região de Qumram estava dentro do seu território. Algum
tempo depois que a poeira da descoberta baixou, o governo da Jordânia propiciou a criação
de um grupo internacional de estudiosos para editarem os Pergaminhos disponíveis - em
número crescente, resultante de novas descobertas de várias expedições.
Significativamente - e talvez lamentavelmente - o grupo liderado por Roland De Vaux, um
padre católico-romano, era composto quase que exclusivamente por religiosos. A única
pessoa do grupo que se descrevia como "pessoa não-religiosa" era o estudioso britânico
John Marco Allegro, cuja contribuição deve ser considerada como crucial em nossas
considerações.
A maioria dos estudiosos do grupo era não apenas homens do clero, mas do clero
cristão. Não havia um único judeu entre eles (uma condição que foi mais do que
compensada nos últimos anos quando o governo israelense obteve o monopólio dos
pergaminhos). A noção de que os pesquisadores estavam longe de ser objetivos, em sua
21
atitude sobre os conteúdos da descoberta, logo começou a receber certa publicidade. Em
1955, o falecido e notável literato americano Edmund Wilson escreveu uma série de artigos
sobre os Pergaminhos para a revista New Yorker. Wilson afirmou nesses artigos que os
materiais contidos nos Pergaminhos preocuparam os líderes da Igreja, que temiam que os
documentos pudessem revelar informações que depreciariam os ditames únicos da
Cristandade. A semelhança de boa parte da doutrina e história dos essênios com o
posterior Novo Testamento Cristão poderia, com razão, ter alarmado os guardiões da
ortodoxia da Igreja. De diversos modos, os essênios da comunidade de Qummram parecem
ser um grupo de proto-cristãos. Não batizavam eles como João e, posteriormente, como os
apóstolos? Não se opunham eles ao sacerdócio do Templo de Jerusalém, cuja legitimidade
queriam abolir? E, mais importante, não falavam eles de um de seus próprios líderes, "um
mestre da retidão" cuja vida e morte mostram incômodas semelhanças com as de Jesus de
Nazaré?
O papel que as mentes cristãs ortodoxas apreensivas pode ter tido no obscurecimento
da mensagem dos Pergaminhos é questão sob conjectura. Contudo, há fatos a serem
considerados. Os antigos Pergaminhos do Mar Morto foram divididos, para fins de
pesquisa, entre os oito membros do grupo internacional. É sabido que o material
teologicamente mais delicado, contendo a história e práticas dos essênios, foi dado a um
padre católico-romano polonês na França, Josef Milik. Hoje, trinta anos depois, a maioria
deste material permanece sem publicação nas mãos de Milik. Sabe-se também que o padre
Milik desde então deixou o sacerdócio. Terá o conteúdo dos documentos destruído a sua
fé, mas seu compromisso é ainda forte o suficiente para não desejar tornar públicas suas
conclusões? Analisando todo o conjunto dos Pergaminhos do Mar Morto, só vinte por
cento dos documentos foi publicado e os restantes oitenta por cento ainda estão nas mãos
dos estudiosos. Alguém pode certamente simpatizar com o solitário dissidente John M.
Allegro, que, numa palestra em 1985 em Ann Arbor, Michigan, declarou: "Por que meus
caros colegas estão sentados sobre o material?’ Isso me deixa louco... É um escândalo. O
público tem de ser conscientizado; então talvez as pessoas comecem a fazer perguntas aos
estudiosos."2
As cavernas nas encostas das montanhas de Qumram continuaram a produzir
materiais novos. O Departamento de Antiguidades do governo jordaniano (que nomeou
John M. Allegro como o chefe desse projeto) continuou a promover e a patrocinar
expedições, uma das quais revelou o famoso rolo de cobre que foi enviado à Inglaterra e,
em 1955 e 1956, sob a supervisão de Allegro, foi aberto e decifrado. O rolo de cobre e
outros documentos descobertos mais recentemente começaram a revelar um quadro da
comunidade dos essênios de Qumram que indica que os judeus santamente heréticos
estavam envolvidos com muito mais do que os objetivos espirituais conhecidos até agora. O
rolo de cobre parece indicar que eles também tinham sob custódia o tesouro enterrado do
Templo de Jerusalém, destruído e saqueado pelas legiões romanas em 70 d.e.
À medida que o enredo se tornou mais complicado, quanto ao conteúdo dos
Pergaminhos, o desenrolar sempre turbulento da política do Oriente Médio acrescentou
um novo tema à história de Qumram. Depois de 1961, no rastro da assim chamada Guerra
dos Três Dias, os locais dos achados foram anexados pelo Estado de Israel. As influências
britânicas e americanas no projeto foram, então, deslocadas pelo zelo político-religioso dos
22
israelenses. O falecido homem de Estado arqueólogo Yigael Yadin tornou-se o explorador
líder e tutor dos escritos recém-descobertos. Muitas cavernas novas foram exploradas, a
maioria das quais contendo vários materiais escondidos por judeus sectários nos últimos
dois séculos a.c. e no primeiro século d.C. Não apenas as cavernas, mas também o local de
algumas ruínas antigas da região revelaram outros documentos. A influência israelense não
fez grandes acréscimos em relação à publicação do vasto material disponível. Uma divisão
ocorreu entre os tutores israelenses, de um lado, e o Fundo Jordaniano para os
Pergaminhos do Mar Morto (liderado por Allegro como curador), do outro. A biblioteca
essênica, cujo volume original foi estimado em mais de seiscentos rolos, aos poucos sumiu
dos olhos do público. Nos anos 60, a atenção pública e dos estudiosos começou a se desviar
do assunto dos Pergaminhos. A névoa que paira durante a maior parte do ano sobre as
águas salgadas do Mar Morto reenvolveu o tesouro essênico que o Mar tinha escondido
durante dois milênios. Embora removidos de seu esconderijo na vastidão deserta e
ressequida, os Pergaminhos do Mar Morto ainda não revelaram os segredos guardados
durante tanto tempo. O mistério continua.*
* Em relação à falta de publicação de certos materiais dos achados de Qumram, o autor baseou-se,
principalmente, nas afirmativas publicadas, assim como nas informações verbalmente feitas pelo falecido
John M. AlIegro. (Livro escrito em 1989 Nota do digitador)
O observador desses eventos, orientado para a psicologia profunda, pode perceber
certos padrões míticos tecidos na história e no destino das duas descobertas, que podem
lançar uma luz adicional aos seus significados. Num período especialmente negro da
história da psique ocidental, duas descobertas significativas foram feitas. Ambas, resultado
mais da sorte do que de uma intenção proposital, deliberada. A necessidade psíquica
agonizante da cultura se encontrou com uma resposta sincrônica do centro mais secreto da
realidade. O desamparo e a bancarrota espiritual do Ocidente, no rastro da Segunda Guerra
Mundial e com o surgimento da era atômica, trouxeram duas fontes notáveis de um
ingrediente vital, mas até agora ausente de sua alma coletiva. Há muito tempo, os
guardiões da espiritualidade ocidental desavisadamente baniram uma importante
expressão de suas tradições, da luz do dia da vida religiosa. As tradições, alternativas
essênicas e gnósticas tornaram-se o equivalente da sombra psicológica para a religiosidade
principal judeu-cristã. Contudo, a psique humana não pode abandonar a efetiva presença
de sua sombra por muito tempo. Sempre chega o momento em que a porção rejeitada e,
consequentemente, ausente da nossa individualidade, poderosamente exige atenção. A
pedra que os construtores rejeitaram aparece na superfície mais uma vez, para ser
incorporada à estrutura, ou melhor, frequentemente para se tornar o seu alicerce.
Segundo os junguianos e o pensamento da psicologia profunda, os interesses
espirituais e religiosos são, em última análise, baseados em um impulso humano universal
para a totalidade. Os diferentes componentes da nossa natureza sofrem, no final das
contas, um processo de progressiva unificação (chamado por Jung de "individuação") que
tem como meta a totalidade. Parece que, com o advento do pós-guerra, chegou o
momento de uma certa fase desenvolvida da individuação da cultura ocidental. Face à
pavorosa evidência da maldade humana, manifestada na guerra e nas tiranias totalitárias, e
pasma com a perspectiva de morte e destruição globais resultantes da guerra nuclear, a
cultura ocidental chegou a um impasse, no qual sua sombra reprimida poderia ter um papel
23
curador e redentor. O mundo estaria finalmente pronto para a admissão da espiritualidade
rejeitada dos gnósticos e dos essênios.
O surgimento de tal oportunidade para a cura da espiritualidade ocidental (e com ela,
da cultura ocidental) não deve ser considerado destituído de dificuldades e resistências a
esse processo de cura. Todas as pessoas familiarizadas com a prática da psicologia profunda
"sabem que o conteúdo da psique produzirá seu verdadeiro significado apenas após
prolongada exposição à luz da consciência e com um esforço bem informado para iluminar
seu conteúdo com a luz amplificadora de símbolos adequados. Pode-se arrancar uma
revelação do fundo do mistério psíquico, mas nunca se terá a certeza de que a revelação
não sofrerá um processo de obscurecimento e distorção. O conteúdo religioso da psique é
particularmente sujeito a essas ciladas. Quando estava escrevendo sobre a necessidade de
iluminar psicologicamente as afirmativas simbólicas da religião, Jung expressou sua
preocupação com a tendência sempre presente para a inconsciência e o obscurantismo,
nessa área de atuação especialmente carregada:

"Tenho de me perguntar também, com toda a seriedade, se não seria muito mais
perigoso se os símbolos cristãos se tornassem inacessíveis à compreensão consciente,
sendo banidos para uma esfera de sacrossanta ininteligibilidade [itálico nosso – S. A. H.].
Eles podem facilmente se tornar tão remotos de nós que sua irracionalidade se torna um
absurdo sem sentido."³

No parágrafo anterior, notamos a existência de certa evidência indicando que esforços


conscientes e inconscientes foram feitos para banir a herança de Nag Hammadi e Qumram
para a tal esfera de "sacrossanta ininteligibilidade". Estudiosos doutrinados pela monolítica
visão de mundo do Antigo e ao Novo Testamento encontraram a resistência psicológica em
suas próprias mentes quando confrontados com os desafios das descobertas que, trazidas à
luz de uma cuidadosa compreensão, podem revelar-se como um Outro Testamento,
diferindo radicalmente de, e frequentemente contradizendo os dois testamentos aceitos,
O desafio da consciência é sempre abandonar o menor para estar apto para incluir o
maior. De forma semelhante, o desafio dos documentos gnósticos e essênios é a
desistência de uma consciência religiosa incompleta e unilateral, no interesse de uma
consciência mais ampla e abrangente. Parece que essa opção se nos impõe forçosamente,
pelo imperativo do crescimento e cura da psique humana, nos níveis de sua expressão
individual e coletiva. A alternativa seria uma repetição dos erros fatais, cometidos pelas
autoridades religiosas e por seus seguidores no passado, exatamente os erros que, de fato,
levaram à lamentável falta de totalidade, na espiritualidade corrente do Ocidente. Em vista
da evidente necessidade da cultura, no meio da atual crise, essa alternativa parece ser
inaceitável.
Um outro testamento veio a nós neste último quartel do século XX. Como todos os
testamentos, ele é um testemunho (que é o termo do qual deriva a palavra testamento). O
Outro Testamento (ou Testamento Alternativo) prova a existência de uma visão de mundo
que é, ao mesmo tempo, diferente de, e complementar à adotada pelo Ocidente no
Judaísmo e Cristianismo vigentes. É um testamento herético, uma herança que se distancia
radicalmente da maioria das normas aceitas pela religião e pela cultura durante cerca de
24
1.600 anos. Embora sua extensão e conteúdo não tenham emergido completamente os
documentos disponíveis são suficientes para nos permitir uma perspectiva adequada
quanto ao seu caráter e impacto potencial. Tais são, em resumo, as percepções que nos
motivam na nossa busca do conteúdo manifesto e do significado implícito do Outro
Testamento começando pela expressão que cronologicamente pode primeiro chamar a
atenção, a saber: a herança dos essênios.

25
2
Santamente Rebeldes:
O Povo dos Pergaminhos
Os Pergaminhos do Mar Morto foram descobertos num lugar hoje conhecido como
Qumram, um nome árabe sem nenhum significado preciso. É um local antigo,
provavelmente uma das "cidades da vastidão", mencionadas no livro de Josué. Allegro
acredita que o misterioso povo dos Pergaminhos veio propositalmente situar sua
comunidade sobre antigas fundações israelitas de importância bíblica, conhecidas como a
cidade de Secacah. A algumas milhas ao norte da atual Qumram está a antiga cidade de
Jericó, nas vaus onde Josué, filho de Nun, conduziu o povo de Israel através do rio Jordão,
repetindo o modelo da miraculosa travessia do Mar Vermelho iniciada por Moisés. Assim
como o Mar Vermelho se dividiu para Moisés, também o rio Jordão interrompeu seu fluxo
para Josué, para permitir a travessia dos judeus - afirmam os crentes.¹ A região e os
arredores de Qumram foram abençoados por um passado sagrado. Foi um lugar onde
aconteceram milagres, onde o Deus de Israel interveio no curso da natureza para mostrar
Seu favor aos filhos da Sua Aliança.
Curiosamente, os providenciais milagres divinos não são os únicos eventos pelos quais
a região é lembrada. A planície claramente visível de Qumram é exatamente aquela em
que, sob uma terrível chuva de fogo e enxofre, a infeliz população de Sodoma e Gomorra
achou seu triste último repouso. Ainda mais significativamente, acredita-se que o Vale da
Fenda, na vizinhança próxima de Qumram, contenha o Abismo do Julgamento, para onde
os anjos rebeldes, com seu chefe Azazel, foram lançados por Deus para definharem até o dia
do Juízo Final. Livros apócrifos como os de Enoch e Jubileus (ambos leitura favorita entre os
essênios de Qumram) descrevem um mito completo das trevas de Azazel e sua haste
angélica, que se casaram com humanos e se tornaram os precursores de uma raça
poderosa em conhecimentos e habilidades mágicas. Esses seres, às vezes chamados de
Sentinelas e Refaim (do verbo hebraico rapha, curar), eram considerados por alguns
membros do Povo dos Pergaminhos, como ancestrais espirituais de suas próprias tradições,
popularmente chamados de essênios; dedicados as atividades de cura e medicina.² Algum
tempo depois dos essênios, os gnósticos de Nag Hammadi também se consideraram
parentes espirituais dos habitantes rebeldes de Sodoma e Gomorra, e, por decorrência,
também dos Refaim. Não é muito audacioso inferir que o próprio local da descoberta dos
Pergaminhos do Mar Morto e, com eles, da sede da mais famosa comunidade dos essênios
conhecida, indica claramente uma tradição rebelde, oposta aos estatutos doutrinários
ortodoxos e dedicada a práticas e conhecimentos secretos.
Mudando a atenção do local para o próprio povo, devemos notar que os Pergaminhos
do Mar Morto não foram, de modo algum, a primeira prova da existência dos essênios. O
escritor romano Plínio, o Velho, o historiador Josefo, bem como o filósofo judeu Filo de
Alexandria nos deixaram seu testemunho sobre aqueles que chamaram de essênios. A
palavra grega Essenoi é de derivação.incerta, mas foi relacionada pelos estudiosos com a
palavra hebraica Asah (ele agiu), Hazan (ele teve visões) e com o aramaico Hasaya (pio;
26
devoto) e Asa (ele curou). A palavra talmúdica hebraica moderna Hasid (Pio) também pode
ser incluída entre as palavras cognatas. Podemos, assim, especular que eles eram um povo
de ação, visionários, pessoas notáveis por sua extraordinária piedade, e, sobretudo,
pessoas preocupadas com a cura, por cuja razão (especialmente no Egito) eram também
frequentemente chamados de Therapeutae, significando médicos ou curadores. Enquanto
as descrições antigas reforçavam o ascetismo e a piedade, os achados dos Pergaminhos dão
uma visão ampliada de sua rebeldia e heterodoxia.

As Grutas de Qumram

Durante séculos, o mundo dos estudiosos considerou que os essênios eram pouco
numerosos (Plínio citou um número em torno de 4.000), produzindo um movimento
silencioso e pacifista, desesperadamente preocupados com a pureza em todas as suas
formas: celibato e ascetismo, dados a excentricidades dietéticas e extremamente fora do
mundo e transcendentes na aparência e nas práticas. Com essas noções, veio também a
aceitação da hiperortodoxia e legalismo estrito dos essênios, que, desse modo, foram
descritos como um grupo de judeus extremamente ortodoxo e ascético, cujas doutrinas e

27
ações seguiam o Judaísmo corrente, como esse é conhecido através da história. O quadro
que emerge dos Pergaminhos é, no mínimo, muito diferente dessa antiga visão do caráter
dos essênios.
Depois da descoberta dos Pergaminhos, muitas discussões bem embasadas ocorreram
entre os estudiosos, sobre se os autores dos documentos eram essênios, ou se poderiam
ter sido o grupo que era chamado de zelotas. Como se sabe, nos anos 66-70 d.C., uma
grande revolta eclodiu em Israel e se espalhou pelo país, levando à destruição final do
Templo de Jerusalém em 70 d.C. e à subsequente abolição da pátria dos judeus, que só foi
restabelecida na metade do século XX. Os instigadores desse desastre foram os zelotas, que
viam as forças de ocupação de Roma como a personificação do mal cósmico, e a si mesmos
como o exército de luz, que libertaria Israel e o mundo da hoste demoníaca, personificada
no poder de Roma imperial. Os Pergaminhos - pelo menos em parte -, propõem um mito de
guerra muito parecido com o desposado pelos zelotas. Num deles, os Filhos da Luz,
conduzidos por um Messias tornado príncipe e facilmente identificável com os próprios
essênios, assumem um papel de liderança na luta contra os Filhos das Trevas, que por sua
vez são liderados pelo príncipe das trevas, Belial, ou o demônio. Esse documento,
nitidamente dualista, muda completamente a imagem pacifista do Povo dos Pergaminhos,
antes atribuída a ele. Também lembra muitos mitos posteriores dos gnósticos e
maniqueístas, da luta dos sábios contra a hoste do mal - liderada pelo archon (regente) das
trevas. Essas foram as primeiras indicações de uma tradição gnóstica ou, no mínimo,
protognóstica dentro do Judaísmo helenista. O estudioso R. Bultmann - cuja autoridade é
universalmente aceita - foi levado pela evidência dos Pergaminhos a escrever: "Um
Judaísmo pré-cristão de caráter gnóstico, que até agora só poderia ser inferido pelas fontes
posteriores, foi agora confirmado pelos recém-descobertos Pergaminhos do Mar Morto."³
(Itálicos nossos - S.A.H.)
Um dos mais perspicazes tradutores dos Pergaminhos, Theodor H. Gaster (no seu
trabalho The Dead Sea Scriptures in English Translation [As Escrituras do Mar Morto na
Tradução Inglesa], afirmou que eles são documentos essencialmente místicos e que as
experiências descritas no documento chamado O Pergaminho dos Hino são genuinamente
místicas. Os "extraordinários mistérios" de Deus, revelados aos autores dos Pergaminhos,
segundo o testemunho deles, nos lembra mistérios e experiências místicas semelhantes,
referidas e documentadas em várias escrituras gnósticas, notadamente O Tratado do
Oitavo e do Nono, bem como outros da coleção de Nag Hammadi. É mais do que provável
que os autores essênios dos Pergaminhos, assim como os autores gnósticos dos códices de
Nag Hammadi tenham tido visões e revelações de natureza esotérica semelhantes e que o
conteúdo dos Pergaminhos traga um código ou significado secreto interior. (Os essênios
costumavam, de fato, usar códigos, como o prova a descoberta do assim chamado disfarce
Taxo-Asaph, por meio da escrita cifrada Atbash.) *
* Para detalhes sobre este código e o ciframento, ver o capítulo 3 deste trabalho, assim como Hugh
Schonfield - The Essene Odyssey [A Odisséia dos Essênios] (Shaftsbury, Inglaterra: Element Books, 1984).
Como C. G. Jung reiteradamente sublinhou, os documentos gnósticos, incluindo esses
de Nag Hammadi, não seriam baseados em considerações dogmáticas ou filosóficas, mas
conteriam revelações primárias sobre o extrato profundo da psique humana. Igualmente,
as últimas pesquisas parecem revelar que pelo menos uma grande parte dos Pergaminhos
28
do Mar Morto também se originam de maneira direta das experiências místicas
compartilhadas pelos essênios místicos da comunidade de Qumram. Os gnósticos do último
período não acharam necessário disfarçar em códigos ou escritas cifradas a natureza
visionária da sua inspiração. Um exemplo excelente de uma descrição gnóstica, dessa
natureza, de uma visão mística foi encontrada numa escritura já mencionada, O Tratado do
Oitavo e do Nono.

"Como posso descrever o Todo? Vejo outro Naus [alma espiritual- S.A.H.] que move a
alma. Vejo alguém que fala para mim através de um santo sono. Vós me dais força. Vejo a
mim mesmo! Quero falar! Começo a tremer! Descobri a origem do Poder acima de todos os
poderes, que não tem origem! Vejo uma fonte borbulhante de vida!... Vejo aquilo que a
fala não pode revelar para todo o Oitavo, oh meu filho, com as almas que aí estão, e os
anjos estão cantando em silêncio. Mas eu, o Nous, compreendo."4

Embora admitam que "extraordinários mistérios" lhes tenham sido revelados, os


escritores dos Pergaminhos do Mar Morto usam metáforas e imagens da natureza para
indicar suas próprias experiências místicas e secretas. Assim, lemos nos Hinos de Ação de
Graças dos Pergaminhos:

"Mas Vós, ó meu Deus, colocastes em minha boca jatos de chuva matinal para todos
os que têm sede e uma fonte de água viva... E repentinamente eles jorrarão dos lugares
secretos..."5

Na mesma coleção de hinos (possivelmente escritos pelo próprio misterioso Mestre da


Retidão), a imagem de várias árvores é usada para denotar os próprios essênios. Essas
"árvores" são alimentadas pelas águas vivas que jorram de lugares secretos, da secreta
sabedoria de Deus e entre elas muitas vezes é mencionado o mirto, cujo nome em
aramaico, assaya, é virtualmente idêntico à palavra usada para cura, da qual deriva um dos
nomes populares dos essênios. Ciframentos linguísticos e outras metáforas são assim
usados pelo Povo dos Pergaminhos tanto para revelar como para esconder seu caráter
esotérico.
Vamos então voltar à questão: "Quem e o que eram, na realidade, esses essênios, esse
Povo dos Pergaminhos?" Sua história formal é contada muito superficialmente. Cerca de
um século e meio antes do nascimento de Jesus, um rei não judeu chamado Antiocus
Epifanus decidiu impor uma forma pagã de religião na terra dos judeus. Sob a liderança de
Judas Macabeu, estourou uma revolução que, por volta de 142 a. C., estabeleceu a
liberdade religiosa e política do povo judeu. Entre os seguidores dos líderes revolucionários
estavam muitos "piedosos", isto é, hassidim ou essênios, que aderiram a uma forma
alternativa de espiritualidade mística e cujas tradições espirituais remontavam a uma época
bem antiga na história judaica. O período pós-revolução dos macabeus, no entanto, criou
um abismo permanente entre esses piedosos místicos e a ordem institucional político-
religiosa em Jerusalém. A família real hashmoneana, estabelecida pela revolução, realizou
um ato considerado imperdoável: os reis retiraram de seu assento sagrado de sumo-
sacerdócio do Templo os membros da tribo Zadok, que eram os detentores desse posto há
29
oito séculos, desde o reinado do rei Salomão. Os próprios reis da nova dinastia tornaram-se
os novos sumo-sacerdotes. Esse era um estado d coisas que os essênios não podiam
aceitar. Eles empacotaram seus pertences e se retiraram da jurisdição dos sumo-sacerdotes
políticos recém-instalados, mudando-se para a misteriosa área de Qumram, para lá praticar
sua forma especial de pureza religiosa, oficiar ritos secretos, conversar com anjos e
demônios e tramar a derrubada daqueles que passaram a chamar desde então de "maus
sacerdotes".
Desde esse tempo, os essênios de Qumram passaram a ser chamados abertamente de
hereges. Seu mestre, uma figura messiânica, cujo nome pessoal eles jamais mencionaram e
sobre quem a literatura sempre se refere como o "Mestre da Retidão", foi assassinado pela
tirania real e sacerdotal por volta do ano 100 a.c. Esse ato cruel que, como veremos, mostra
fortes semelhanças com a execução de Jesus cento e poucos anos depois, amargurou ainda
mais o Povo dos Pergaminhos. Desde então, eles se engajaram em grandes tarefas
apocalípticas de produção de mitos e profetizaram o início de uma nova era, na qual os
filhos da luz iriam lutar numa grande guerra contra os filhos das trevas, o que levaria ao
estabelecimento de um novo reino de luz e retidão, sob a inspiração dos próprios pios
essênios. Década após década, os santos heréticos meditaram em suas habitações na rocha
e em cavernas labirínticas e se prepararam para a vinda da nova era de luz. Foi nesse
período de triste e irada introspecção que escreveram e copiaram suas numerosas
escrituras heterodoxas, muitas das quais se tornaram conhecidas, quase dois milênios mais
tarde, como os Pergaminhos do Mar Morto.
Os reis hashmoneanos finalmente foram depostos pelo poder de Roma, em aliança
com a dinastia não-judaica de Herodes. Os "sacerdotes malvados" não mais reinavam em
Jerusalém, pois seu lugar fora tomado por um rei estrangeiro, supervisionado por um
governador romano. Embora os principais antagonistas dos essênios tivessem sido
eliminados, as condições nas terras da Judéia ainda não eram satisfatórias para eles. Muitos
provavelmente voltaram às terras e aldeias da sua terra ancestral; alguns até acharam
refúgio em Jerusalém, o odiado lugar das instituições usurpadoras do trono e do altar.
Outros ainda viajaram para regiões distantes, notadamente a terra de mistério e magia
chamada Egito, onde o igualmente herético judeu Filo de Alexandria os chamou de
Therapeutae, ou curadores. A maioria, contudo, muito provavelmente continuou nas
montanhas e cavernas de Qumram, esperando a nova era de um Messias que estabeleceria
o tão desejado reino de luz, que tinha frustrado as expectativas dos piedosos. No ano 1
d.C., quando supostamente nasceu em Belém uma obscura criança, cuja breve carreira
parecia ter tido o mesmo padrão do Mestre da Retidão, o Povo dos Pergaminhos estava
internamente pronto para pelo menos alguns dos elementos da nova aliança que foi
proclamada alguns anos depois pelos seguidores do misterioso Rabbi Yeoshva, mais
conhecido pelo seu nome latino, Jesus.
É aqui que o conteúdo dos Pergaminhos lança uma nova luz, bastante valiosa, sobre o
impacto essênico na formação do Cristianismo e além disso, na formação de uma certa
variedade criativa e heterodoxa do Cristianismo, conhecida como Gnosticismo. Os
Pergaminhos do Mar Morto confirmaram muitas das informações já disponíveis sobre os
essênios, mas acrescentaram muito material de incalculável valor sob a forma de
ensinamentos sobre o príncipe guerreiro messiânico esperado pelo Povo dos Pergaminhos.
30
Assim, John Allegro caracteriza o esperado Messias essênio:

"Esse líder carismático do futuro, nascido da linhagem do famoso Rei Davi,


estabeleceria uma nova ordem mundial, onde a vontade de Deus reinaria soberana. Esse
novo estado de coisas só poderia vir depois de guerras e de uma revolução sangrenta na
qual o 'Ungido'... pessoalmente lideraria as forças da Luz, em sua luta apocalíptica contra os
poderes das Trevas,liderados pelo arquidemônio Belial, o Diabo... No geral, os primeiros
ansiosos estudos do novo material sustentaram a ideia de que, no Essenísmo, podemos
encontrar indícios da concepção das ideias cristãs.”6

Os Pergaminhos do Mar Morto revelaram, assim, que o Messias esperado pelos


essênios se parecia muito mais com a imagem de Jesus do que as vagas insinuações e
expectativas proféticas do Judaísmo ortodoxo do século l. Não existe apenas uma grande
semelhança entre o Messias essênio e a figura de Cristo da heresia judaica chamada
Cristianismo, mas também há muita razão para se suspeitar que a variedade essênica de
Judaísmo deve ter servido como matriz para uma heresia ainda mais heterodoxa cristã,
chamada "gnosticismo".
Não há nenhuma outra variedade de Judaísmo além da dos essênios que se relacione
tão de perto com o conjunto da religiosidade do Novo Testamento, incluindo suas porções
gnósticas. Essênios e cristãos estavam ambos praticando, senão uma forma de comunismo,
ao menos um comunitarismo. Ambos foram perseguidos e, por isso, tinham ressentimento
das instituições religiosas de Jerusalém. Ambos batizavam seus iniciados; ambos praticavam
uma refeição ritual sacramental. Além dessas importantes semelhanças, ambos estavam
fortemente ligados aos escritos dos profetas e esperavam um cataclismo e o glorioso
estabelecimento de uma nova era messiânica.
As relações do Povo dos Pergaminhos com o Novo Testamento e, além dele, com os
evangelhos gnósticos, é inegável. Além disso, há outras questões bastante prodigiosas para
ficarem sem resposta. Se aceitarmos a cronologia tradicional da vida de Jesus e a
subsequente expansão das comunidades cristãs, então parece quase imperativo que algum
tipo de estrutura organizacional já existente deva ter sido utilizada pelos cristãos primitivos
para construir sua Igreja. O tempo entre a data comumente suposta da crucificação de
Jesus e a redação das primeiras Cartas Paulinas é muito pequeno para permitir o
desenvolvimento de uma rede extremamente complexa de comunidades organizadas, com
métodos de comunicação bem desenvolvidos, formação de capital e uma estrutura de
autoridade, evidentes para os leitores das Epístolas de Paulo. Havia apenas uma
organização já existente, que poderia ter servido de base para essa estrutura rapidamente
desenvolvida, e ela foi a ordem dos essênios. Centrada nas suas sedes monásticas do Mar
Morto, estendendo-se por toda a Judéia e com toda probabilidade pelo Egito, Roma e Ásia
Menor, a organização essênica serviu como uma matriz pronta, sobre a qual a nova
associação cristã de comunidades pôde ser construída. Se, como estamos sugerindo, os
essênios foram aqueles que incrementaram o número de convertidos à nova aliança cristã,
nos primeiros anos de formação da Igreja, então torna-se muito mais plausível o
miraculosamente rápido crescimento e organização da rede cristã. Nesse caso, devemos
admitir, como Allegro o fez, em relação aos essênios:
31
"...suas doutrinas e, particularmente, suas expectativas messiânicas estavam muito
mais próximas dos seus mentores cristãos do que qualquer coisa que apareça na superfície
dos Pergaminhos.”7

Um Messias que falhasse na transformação, não apenas do mundo, mas também do


destino de seus próprios compatriotas, no seu ministério público de três anos
ignominiosamente terminado, não teria inspirado espetaculares conversões em massa para
o seu evangelho. Se o mesmo Messias tivesse sido antecipado pelas proféticas tradições do
Povo dos Pergaminhos, ou se um número suficiente dessas pessoas tivesse acreditado que
foi isso o que aconteceu, então a conexão essênios-cristãos receberia completa justificação.
Como Hugh Schonfield apontou:

"Devemos, agora, admitir o que antes era evidente a uns poucos estudiosos somente,
a saber, que os conceitos messiânicos, aos quais Jesus e outros do seu tempo foram
suscetíveis, não estavam ligados às fontes bíblicas. Eles estavam sendo moldados por
escritos e ensinamentos que emanaram principalmente dos essênios e foram amplamente
vistos como inspirados. Até ser possível, em tempos mais recentes, ter completa
consciência disso e ter acesso à maior parte da literatura deles, a verdadeira história dos
primórdios dos cristãos não podia ser definida com exatidão.”8

Concluindo, permitam-nos resumir as características do Povo dos Pergaminhos que


têm uma relação direta com as ligações, não apenas históricas, mas também psicológicas,
que unem a mensagem essênica com a nova aliança do Cristianismo, e mais
particularmente dentro dessa aliança, com a antiga variação gnóstica do Cristianismo. É de
se esperar que este sumário dê ao leitor uma compreensão mais profunda do caráter do
Povo dos Pergaminhos e do ápice desse caráter, numa abordagem à mensagem cristã que
achou sua mais completa expressão literária na coleção de escrituras gnósticas de Nag
Hammadi, descoberta poucos meses antes dos Pergaminhos do Mar Morto.
1. A comunidade de Qumram estava localizada numa região que funcionava
eminentemente como pano de fundo para o crescimento e desenvolvimento de uma heresia
de caráter gnóstico geral. A escolha do local da comunidade juntou os essênios de
Qumram, de um lado, com a figura messiânica de Josué, filho de Nun, e do outro com os
demônios e os "sentinelas" sobrenaturais ligados ao Abismo do Julgamento, localizado no
Vale da Fenda. Tudo isso poderia ser tomado como uma documentação dos mitos
essênicos, que são ao mesmo tempo messiânicos e angélico-demoníacos.
2. A influência do Mestre da Retidão essênico criou uma predisposição entre os
essênios ao dualismo, uma rejeição da ordem existente no mundo e a identificação do
mundo como mau. Essas posições foram mais tarde associadas aos gnósticos. Admite-se
que essa predisposição originou-se das condições políticas do reino judeu. No entanto, na
mente dos essênios de Qumram, os fatos originalmente mundanos logo se transformaram
em calamidades e dilemas cósmicos e metafísicos. O papel dos reis sacerdotes "do mal"
hashmoneanos tornou-se o precursor do domínio dos arcanos e do Demiurgo dos
gnósticos. Os filhos da luz foram as primeiras personificações dos gnósticos "pneumáticos"
32
e os filhos das trevas foram os protótipos dos agentes dos governantes tenebrosos do
mundo inferior reconhecido pelos gnósticos.
3. A inspiração recebida pelos autores dos Pergaminhos não se originou primariamente
no dogma e lei judaicos, mas em experiências pessoais vivas e carregadas de emoção, de
natureza mística. Algumas dessas experiências são livremente admitidas nos pergaminhos.
Outras são disfarçadas por meio de metáforas e códigos baseados em ciframentos
populares como a transposição de letras e afins. A pesquisa mais recente também concorda
- principalmente como resultado das descobertas de Jung - que a origem dos escritos dos
gnósticos deve ser buscada na experiência direta, pessoal, dos mistérios do ser, mais do
que no puro sincretismo, na especulação filosófica e em outros.
4. A variedade específica do messianismo desenvolvida pelos essênios e sua ligação
com a figura trágica do Mestre da Retidão prepararam o caminho, não apenas para a
carreira messiânica de Jesus, mas também para a messianidade mística e cósmica
personificada pela figura do Cristo gnóstico que nos fala e é exaltada pelos evangelhos
gnósticos de Nag Hammadi. Essa circunstância pode ter sido reforçada pela possibilidade
mais que provável de que um grande número dos primeiros convertidos ao Cristianismo
tenham sido essênios.
Este último ponto do nosso sumário nos leva direta e logicamente à consideração da
figura de Jesus e ao modo pelo qual essa figura pode estar relacionada com a mais
intrigante, embora ambígua personagem do drama essênio: o Mestre da Retidão.
Certamente, é no relacionamento entre essas duas figuras imensamente importantes que
podemos descobrir as indicações mais fundamentais sobre como o "Judaísmo pré-cristão
de caráter gnóstico" (gnostisierendes Judentum), reconhecido por Bultmann, veio a servir
com a principal fonte e origem do Gnosticismo.9 É na relação entre o Messias essênio com
o Jesus cristão e além dele com o Cristo gnóstico, que a ligação entre os Pergaminhos do
Mar Morto, de origem essênica, com a coleção dos Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi
pode ser descoberta.

33
3
O Messias Essênio e o Cristo Gnóstico:
do Protótipo ao Arquétipo
No Evangelho de Mateus (16:13), achamos uma descrição de Jesus questionando seus
discípulos sobre como eles O viam. Os discípulos respondem primeiro citando as opiniões
expressas por várias pessoas sobre a identidade de Jesus: "Alguns dizem que sois João
Batista, alguns, Elias e outros, Jeremias ou um dos profetas." Segundo essa versão da
história (há uma muito diferente, vista no Evangelho de Tomás, de Nag Hammadi), o
apóstolo Pedro dá a resposta correta e é elogiado por Jesus, que diz que a carne e o sangue
não lhe revelaram essa resposta, mas que ela veio do Pai que está nos céus.
Como na época descrita por Mateus, as caracterizações de Jesus diferem muito uma
da outra através da história. É muito difícil determinar qual era o conceito dos primeiros
cristãos sobre o seu fundador executado. É quase certo que suas opiniões variavam e que
não havia nenhuma crença uniforme sobre Jesus nas primeiras comunidades cristãs.
Voltando aos cristãos gnósticos, vemos que seu Jesus era um enigma, um mistério quase
insolúvel. Algumas vezes, eles O representaram como um homem, outras vezes como o
divino Ântropos, o homem-sabedoria que veio para resgatar os raios de luz que tinham
caído nas trevas. Às vezes, Ele tem corpo e voz humana, com a qual proferiu ditos sábios e,
outras vezes, tem um corpo-fantasma que apenas se parece com o de outras pessoas.
Como o deus trapaceiro dos índios americanos ou o Louco do jogo do Tarô, Ele estava em
toda parte e era tudo. Estava num corpo e existia sem ele. Estava no mundo e fora dele.
Nas Odes de Salomão, obra gnóstica, Ele diz palavras que ainda hoje parecem verdadeiras:
"Eu pareço estranho a eles porque sou de outra raça."!
Essa era a imagem de Jesus nos primeiros três séculos: todo-abrangente, misterioso,
ubíquo - como seu êmulo Paulo. Ele era todas as coisas para todos os homens. Nas
catacumbas, ainda encontramos um Jesus muito universal, muito gnóstico. Ele é retratado
sob forma de um Baco, segurando um cajado com uvas e rodeado por videiras. É o pastor
que carrega uma ovelha nos ombros. É o misterioso Icto, o peixe, para cuja analogia não se
pode achar nenhuma justificativa bíblica, como podemos conjecturar, no caso do Bom
Pastor e no da Vinha, ambas metáforas que Ele aplicou a Si mesmo.
A partir do III, do IV e do V séculos, esse mito de uma criatividade incessante, sempre
abundante, se confinou a formulações dogmáticas. No Concílio de Calcedônia, em 451 d.C.,
os Padres da Igreja declaram como dogma ou artigo de fé que Jesus foi a união das duas
substâncias de divindade e humanidade, que Ele era "perfeito Deus, da substância do Pai" e
"perfeito homem, da substância da Virgem Maria, Sua mãe". Os líderes da Igreja tentaram
definir racionalmente o que antes era entendido como realização não racional, e seu
esforço, por uma questão de inevitável necessidade, terminou em fracasso.
Desde esse tempo, a figura de Cristo sofreu, primeiro, uma gradual e, depois, uma
cada vez mais rápida involução ou deterioração. Nos deslumbrantes mosaicos do império
bizantino, que hoje podem ser vistos em Ravena e Constantinopla, Jesus ainda está
presente como um ser sobre-humano, de dimensões cósmicas. Ele é ainda o regente global
34
pantocrator, com orbe e cetro, o representante de um domínio transcendental sobre a vida
terrena. Ao mesmo tempo, não podemos evitar a conclusão, contemplando essas
representações, de que, de alguma forma, a unidade criativa passou, de que o cálice da
eucaristia não pode continuar a ser visto transbordando de energia criativa, como ocorria
nos primeiros séculos. Algo ainda subsiste, mas algo também se perdeu. Então veio a longa
e tenebrosa Idade Média, com a figura de Jesus ainda não-humana, austera, régia, algumas
vezes agonizante na cruz, mas capaz de repetir - embora com menos convicção - a
afirmativa gnóstica: "Eu sou de outra raça."
Depois chegamos à Renascença onde, de acordo com a atmosfera de Humanismo,
Jesus torna-se completamente humano na aparência. Ele se torna o homem perfeito, o
modelo de perfeição anatômica do corpo humano: um deus-herói clássico com vagos
toques messiânicos. O Deus perfeito cedeu lugar ao homem perfeito; o rei divino tornou-se,
agora, o corpo humano perfeitamente proporcionado. As conclusões do Concilio de
Calcedônia se cumpriram: Aquele que foi declarado Deus perfeito e homem perfeito é
agora vivenciado sob ambos os aspectos, mas a unidade entre os dois foi quebrada
irrevogavelmente.
Depois da Renascença, vem o que pode ser adequadamente chamado de período do
Grande Declínio, ao menos no que tange à imagem de Jesus. Esse período começa com a
Reforma e termina no materialismo sem alma dos séculos XIX e XX. Lutero abomina a
beleza pagã do Cristo da Renascença. Em seu esforço desesperado para se opor ao assim
chamado paganismo da Roma renascentista, ele consegue degradar e diminuir ainda mais a
figura de Cristo. Ele se jacta de que Jesus sujava suas fraldas como outros bebês humanos
(dando, assim, aos psicólogos freudianos de uma época posterior uma ótima desculpa para
invadir o campo da religião com uma de suas obsessões favoritas, ou seja, o tema do
treinamento da higiene). Lutero quer tornar Jesus real e relevante, mas, em vez disso, ele
somente inicia o grande desenvolvimento histórico que irá torná-lo banal e irrelevante.
Os outros grandes reformadores, particularmente o severo John Calvino, o "obcecado
pelo pecado", e seu fanático discípulo John Knox, deixam Jesus cada vez mais fora de seus
planos e veneram, ao invés disso, uma forma cristianizada da divindade do Antigo
Testamento. Esse arquétipo vingador e cruel se transforma no Deus dos Puritanos e, no
final das contas, o Senhor da revolução industrial, dos mercadores de lã de Manchester e
dos comerciantes ianques da Nova Inglaterra. Sob a influência da imagem industrializada de
Jeová, o conceito de Israel, do Antigo Testamento, é substituído pelo povo escolhido entre
os bem-sucedidos, os industriosos e os ricos. A predestinação calvinista declara que o Deus
puritano ama o rico mais - do que o pobre e que riqueza e sucesso são sinais do favor
divino.
E onde está Jesus em tudo isso? Ele ainda está presente, mas foi destronado. Os
séculos XVII e XVIII usam-no como um objeto sentimental de devoção piegas e nada mais.
Ele torna-se um consolador sentimental, um amigo em cujo ombro os fracos podem chorar
e de quem os oprimidos esperam, sem jamais conseguir, um completo consolo. Que grande
distância tem essa imagem pálida e sentimentalizada do feroz defensor dos proscritos da
sociedade, que aparece no Novo Testamento! E também, quão distante da imagem de Rei
do Universo, majestoso e transcendente, dos mosaicos bizantinos, sem falar da fonte de
água viva, misteriosa e onipresente, que antes fluía da figura gnóstica de Cristo; nos
35
primeiros séculos d.C.
O fundo do abismo, o círculo inferior mais baixo do inferno da história prossegue. O
racionalismo torna-se a divindade dos séculos XVIII e XIX. O culto da razão, iniciado por
Voltaire e pelos enciclopedistas, faz rolar cabeças sob a guilhotina de modo nada racional,
enquanto os racionalistas revolucionários entronizam uma prostituta parisiense no altar da
República, proclamando-a a Deusa da Razão. Deus está morto, viva a razão! A razão
triunfante dirige sua carruagem para o século XIX, mas seus apóstolos não são mais os
philosophes gentis e aristocráticos do século XVIII. Darwin, Haeckel e seus companheiros
introduzem a espada da razão no processo da vida e lá não encontram nenhum Deus ou
salvador, mas apenas uma força cega e a sobrevivência do mais adaptado. O racionalismo
também se volta para Jesus e usa suas artimanhas para afirmar que, como figura histórica,
não se pode garantir a sua existência. Renan, Legge e muitos outros, inclusive Albert
Schweitzer, declaram que a busca do Jesus histórico não leva a lugar algum. "Jesus é um
mito", assim gritam os positivistas, querendo, com isto, dizer que, por não ter uma
historicidade claramente reconhecível, Ele é mera irrealidade, uma invenção sem
substância ou mérito. O coro dos materialistas da ciência, da filosofia, das artes e dos
políticos marxistas, se une com feroz alegria.
Deus está morto, a religião é o ópio do povo e Jesus não existe. Ou será que existe? Os
estudiosos da mitologia comparada, não muito seguros disso, aparecem em cena. Por
detrás dos dados históricos vagos e incertos que circundam a figura do fundador do
Cristianismo, começam a descobrir uma realidade mítica poderosa, não menos
impressionante pelo fato de ser distante da história física. O Jesus histórico abre caminho
para o Jesus mítico. Os estudiosos descobrem que a imagem do Nazareno crucificado está
intimamente relacionada com um grande número de deuses-salvadores da antiguidade:
Osíris, Hórus, Tamuz, Mitra, Orfeu e muitos outros. Seguindo de perto os mitologistas,
aparecem os representantes da moderna psicologia profunda, entre eles C.G.Jung.
Diferentemente dos racionalistas, positivistas e seguidores de Freud, Jung sustenta o
conteúdo mítico e simbólico da religião com grande reverência. Ele não aceita o escárnio e
o desprestígio de Jesus, ou de qualquer outra figura do espírito. Nos seus ensinamentos
sobre o inconsciente coletivo ou a psique objetiva, ele trouxe a noção de que os símbolos
religiosos emergiram de uma fonte humana comum, na profundeza da mente. A realidade
física de um Jesus histórico é muito menos importante para Jung do que a realidade
psíquica da figura de Cristo, identificada no funcionamento da alma humana. Os símbolos e
mitos, nos quais se baseiam várias crenças religiosas, revelam o poder de transformação
interna e de redenção que cura e integra a mente e o coração fragmentado e atormentado
das pessoas. Trabalhando com essas premissas, Jung encara o mito cristão, com a figura
central redentora de Cristo, como um grande e quase único presente para a humanidade. O
valor psicológico e espiritual do símbolo de Cristo, como expressão unificadora e curadora
do princípio intrapsíquico que ele chama de Self, aparece como um reconhecimento
imutável nos pronunciamentos e escritos de Jung. Ele admite que Osíris, o Filho do Homem
no Livro de Enoch Buda Confúcio, Lao- Tsé e Pitágoras, todos desempenharam um papel
psicológico semelhante ao de Jesus, mas afirma que Jesus mobilizou projeções
transformadoras mais poderosas do que essas outras figuras.2
Reconhecendo Jesus como o maior e último representante simbólico do arquétipo do
36
Self, Jung nos deu uma inestimável ferramenta a ser utilizada nos estudos das origens
cristãs e, de fato, em todos os assuntos e disciplinas voltados para os problemas religiosos
da cultura ocidental. Os reconhecimentos de Jung também podem ser tomados como sinais
de esperança, indicando que a era das atitudes negativas e confusas, quanto ao mais
significativo arquétipo da nossa cultura, pode estar chegando ao fim.
Naturalmente, vozes e opiniões confusas ainda são abundantes. O mundo do
entretenimento nos apresentou, ao longo dos anos 70, produtos como Godspell, onde
Jesus aparece como um palhaço irreal e extravagante e Jesus Christ Superstar [Jesus Cristo
Superstar], onde ele é encarado como um crítico social extremamente desagradável. No
mundo do conhecimento popular, temos também alguns novos Jesus. Um deles é a figura
psicodélico-fálica, que emerge do trabalho controverso de John M. Allegro, dos famosos
Pergaminhos do Mar Morto, intitulado The Sacred Mushroom and the Cross [Os Cogumelos
Sagrados e a Cruz].3 Outro é o mágico-erótico conjurado pelo notável estudioso Morton
Smith no seu livro Jesus the Magician [Jesus, o Mágico].4 O autor alemão Johannes
Lehmann, no seu livro Jesus-Report: Protokoll einer Verfälschung [Relatório-Jesus] (que
causou uma grande sensação na Europa nos anos 70), representa Jesus como um rabi
essênio um tanto confuso, injustamente morto e enterrado numa plantação de repolhos.5
Talvez o livro de maior influência popular sobre a história de Jesus tenha sido o de
Hugh J. Schonfield, The Passover Plot [A Trama da Páscoa], no qual Jesus se envolve numa
trama para estabelecer seu messianismo, realizando deliberadamente as profecias feitas
sobre o Messias na Sagrada Escritura Judaica. A trama ou golpe falha no final e Jesus morre,
sob a triste estupefação de seus seguidores.6 Meramente como diversão, podemos
mencionar um livro curioso do jornalista australiano Donovan Joyce intitulado The Jesus
Scroll [O Pergaminho de Jesus]. Aqui, Jesus torna-se um guerreiro zelota que sobrevive até
uma idade extremamente avançada e finalmente morre uma morte heroica no último
levante dos judeus patriotas em Massada (incidentalmente, o documento escrito pelo
próprio Jesus pouco antes de sua morte, supostamente visto pelo autor durante algum
tempo, é roubado pela KGB e repousa nos mausoléus do Kremlin, onde serve como
instrumento de chantagem contra o Vaticano). Tudo isso somente prova que o público
nesta era pós-cristã (ou semicristã) está bastante faminto por versões alternativas da
história do fundador da fé cristã, sem julgar as credenciais dos autores e o tipo de
sensacionalismo manifestado em seus livros.*
* A lista acima de teorias e livros não-convencionais sobre Jesus não está, de modo algum, completa.
Continua a haver especulações sobre o túmulo do personagem chamado Joasaph em Shrinagar, Caxemira,
identificado por alguns como o túmulo de Jesus, O bombástico sensacionalismo de Holy Blood; Holy Grail
[Santo Sangue, Santo Graal] de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, que fantasiam sobre um
Jesus sobrevivente, casado com Maria Madalena e tendo procriado uma descendência numerosa, dispersa
pela França, pode servir para nos convencer ainda mais da fome de informações sobre Jesus.
A confusão e a ambivalência em torno da figura de Jesus têm uma boa chance de
serem substancialmente reduzidas, como resultado de evoluções de natureza inteiramente
diferente, qual seja, o aumento da consciência dos estudiosos e leigos sobre o conteúdo
dos Pergaminhos do Mar Morto. Conforme dissemos anteriormente, os essênios de
Qumram eram os principais responsáveis pelo impulso messiânico no Judaísmo helenista.
Seu próprio Mestre da Retidão, descrito nos Pergaminhos, mostra tantas semelhanças com
o Messias cristão que foi sugerido, repetidamente, que ambos devem ser, de fato, o
37
mesmo. Embora essas afirmativas não passem de um exagero, as semelhanças que unem
as duas figuras são impressionantes. Além do Mestre da Retidão, o Povo dos Pergaminhos
também esperava a vinda de um duo de messias, um príncipe e um sacerdote, que, juntos,
restabeleceriam a nova dispensação da verdadeira santidade e justiça. De fato, pode-se
dizer que, no que se refere a expectativas e especulações, os essênios eram pródigos em
talento e realização.
Existem múltiplas ligações entre o messianismo essênio e a fase cristã da evolução dos
arquétipos messiânicos. A primeira delas diz respeito ao herói judeu, cujo nome é usado
pelo salvador cristão. Josué ou Yeoshva, filho de Nun, o sucessor de Moisés como líder do
povo judeu, foi um homem notável. Josefo, chamando-o pelo nome Greco-latino de Jesus,
filho de Naue, descreve-o nos termos mais laudatórios.7 Josué, nomeado como líder e
sucessor por Moisés, é, de fato, confirmado na sua posição pelo Deus de Israel: "Hoje
começarei a exaltar-te diante de todo Israel, para que saibam que, assim como estive com
Moisés, assim estarei contigo."8 Mais tarde, depois dos numerosos milagres de suas
campanhas, que incluíram o esvaziamento do rio Jordão, a queda das muralhas de Jericó e
a interrupção do curso do Sol e da Lua, sua vitória foi descrita como o maior de todos os
eventos na história da Aliança: "Não houve dia como aquele, antes ou desde então, quando
Deus ouviu a voz o homem.”9 A função mais significativa de Josué, particularmente aos
olhos dos essênios, não foi propriamente o seu miraculoso generalato, mas o seu papel
como disseminador e guardião da Lei. Os essênios sustentavam que Josue selou a Torah
dentro da Arca da Aliança, que lá permaneceu por muito tempo, até que o piedoso Rei
Josias (presumivelmente no século VIl a.C.),10 no decorrer de certas reformas no Santo dos
Santos, acidentalmente a descobriu, fato contado de modo pitoresco no segundo Livro dos
Reis. A obra essênica conhecida como Documento de Damasco diz que o Rei Davi não tinha
conhecimento do "livro selado da Lei" pela simples razão de que ele não tinha sido aberto
desde a morte de Josué.¹¹
Josué é, assim, aquele que escondeu os livros sagrados da Torah para que apenas os
fiéis pudessem achá-los no tempo apropriado. O já mencionado princípio sincronístico,
evidente na descoberta de literatura sagrada tão importante, é claramente expresso nas
tradições sobre Josué. Tudo isso é também muito importante para as nossas considerações,
em vista do fato de que os Pergaminhos do Mar Morto claramente mostram que os
essênios encaravam seu Mestre da Retidão como o novo Josué, e seus ensinamentos como
a "segunda Torah".12 Surpreendentemente, até o próprio modo como o Mestre da Retidão
preservou e escondeu os Pergaminhos parece ser igual ao exemplo dado por Josué, filho de
Nun. Num livro apócrifo, datado do primeiro século d.C., chamado A Assunção de Moisés,
este instrui Josué para ungir os cinco livros da Lei com óleo de cedro e coloca-los em vasos
de barro procedimento idêntico ao adotado para a preservação dos Pergaminhos de
Qumram.¹³ Também foram descobertas, num pergaminho da Caverna da Perdiz, publicado
por Allegro em 1956, uma série de bênçãos e maldições proféticas. Estes ditos, todos
atribuídos a Josué, relatam a vinda do Messias, que está aí ritualmente abençoado pelo seu
predecessor, enquanto que um mau construtor da cidade é, ao mesmo tempo, ritualmente
amaldiçoado. Não é preciso muita imaginação para adivinhar que os essênios coletaram
essas importantes fórmulas bíblicas para aplicá-las ao Mestre da Retidão, a quem
encaravam como a prefiguração do Messias, ao passo que as maldições seriam aplicadas ao
38
"mau sacerdote", o precursor da oposição diabólica à era messiânica dos últimos dias.
O que pode ser chamado de "Conexão Josué" está claro: Josué, filho de Nun, é a
primeira prefiguração arquetípica do princípio messiânico, ou seja, um conquistador, um
legislador, alguém que esconde e preserva a verdadeira Gnose ou doutrina secreta. Segue-
se o Mestre da Retidão essênio, o novo Josué, autor da nova Torah, que é assassinado pelos
"maus sacerdotes" e enforcado ou crucificado numa árvore próxima de Qumram,
conhecida, conforme referência bíblica, como "O Carvalho da Adivinhação" e, para os
essênios, conhecida como “O Carvalho do Mestre". O Mestre da Retidão deixa para trás
várias profecias a respeito do Messias verdadeiro e final (algumas vezes dividido em duas
figuras: o messias príncipe e o messias sacerdote). O tempo está maduro, então, para a
chegada do terceiro Josué, chamado Jesus de Nazaré, assassinado de maneira semelhante à
do Mestre da Retidão. De novo, Jesus traz uma nova Lei ou Aliança e prediz a sua própria
segunda vinda numa época futura, quando a batalha final entre o bem e o mal ocorrerá.
Assim como os dois Josués esconderam suas doutrinas secretas e as selaram
hermeticamente, para que somente o povo certo pudesse descobri-las no tempo certo,
também o Jesus dos gnósticos, depois de sua Ressurreição, revelou seus próprios
ensinamentos secretos, que então foram escondidos pelos seus seguidores (embora talvez
dois ou três séculos mais tarde), para só serem descobertos no século XX, sob a forma dos
evangelhos de Nag Hammadi. Na verdade, esse é um padrão mítico de proporções
impressionantes, que mostra o desdobramento e a repetida personificação de um
arquétipo: os três Josués têm uma conexão orgânica: são conquistadores, reveladores,
foram sacrificados, mortos e ressurgiram como imagens de uma Gnose que sempre procura
a sua expressão, independentemente das adversidades e vicissitudes da história humana.
Antes de deixar a conexão Josué, é útil contemplar a passagem do gnóstico Evangelho
de Felipe, descoberto nos achados de Nag Hammadi:

"Jesus é um nome oculto, Cristo é um nome revelado. Por isso, (esse nome de) Jesus
realmente não existe em nenhuma outra língua, mas seu nome é (no entanto) Jesus, como
eles então podem chamá-lo. Mas Cristo é chamado de Messias na Síria, enquanto que na
Grécia Seu nome é Cristo..."14

O autor desse evangelho qualifica o nome de Jesus como o mais limitado aplicado ao
Salvador. Limitado, porque só faz sentido na língua hebraica. O significado secreto
conjectural do nome "Yeoshva" (Josué, Jesus) pode ser o seguinte: as quatro letras
hebraicas Yod, Heh, Vav, Heh compõem o Tetragrammaton, ou nome de quatro letras de
Deus. Com a inserção da assim chamada "letra sagrada" Shin, no centro do nome divino,
temos o nome de Josué: Yod, Heh, Shin, Vav, Heh. O pensamento gnóstico vê essa
operação como um complemento ou retificação do nome do Deus judeu, porque esta
divindade geralmente aparece como uma entidade demiúrgica imperfeita nas escrituras
gnósticas. Josué pode, então, aparecer como uma manifestação aperfeiçoada ou mais
evoluída do Deus do Antigo Testamento, capaz de elevar a Lei divina a graus mais altos de
perfeição e utilidade. Santificado pelo poder da letra sagrada Shin, a tetramorfia divina
original recebe, agora, uma diferenciação que previamente não possuía. Em termos
psicológicos, pode-se dizer que Yahveh tornou-se consciente em Jesus e que esse processo
39
do Criador, de evolução da consciência, ocorreu de Josué, filho de Nun, até o Mestre
essênio e culminou, finalmente, em Jesus, conforme é compreendido pelos gnósticos. O
Evangelho de Felipe afirma claramente que o nome "Jesus" contém um certo segredo, mas
que esse segredo só existe na língua hebraica. Assim, a teoria acima sobre o segredo deste
nome não é, de modo algum, improvável.*
*O autor deste trabalho não recorre a nenhuma outra autoridade que não a sua própria para essa
explicação do significado do nome de Jesus.
Os próprios essênios sempre foram conscientes das ligações arquetípicas do seu
Mestre com as antigas figuras espirituais renomadas da antiga tradição. Dois deles (além de
Josué) foram o patriarca José e o levita Asaph, no tempo do rei Salomão. José parece
personificar as qualidades arquetípicas, manifestando-se como o sagrado sofredor,
enquanto que Asaph aparece como o vidente inspirado e servidor milagroso. Os essênios
viram em José uma prefiguração do seu Mestre da Retidão. Pode-se encontrar referências
significativas a essa circunstância em várias escrituras essênicas, notadamente no Livro do
Jubileu e no Pergaminho de Habakkuk - o comentário sobre o profeta Habakkuk - que foi
um dos três primeiros pergaminhos descobertos em 1947. Numa escritura não diretamente
relacionada com os essênios, Os Testamentos dos XII Patriarcas, na parte chamada O
Testamento de Benjamim, encontramos uma profecia que vários estudiosos, inclusive Hugh
J. Schonfield, relacionaram com o Mestre da Retidão, embora eles se refiram
ostensivamente a José. Aqui estão algumas da conclusões oferecidas por Schonfield a
respeito desse último documento:

"Sob a figura de José, nós certamente identificamos alguém mais, provavelmente o


Mestre Verdadeiro, que sofreu nas mãos dos homens sem lei e sem Deus e cuja morte
trouxe a redenção, como se supõe. A profecia relacionada com José foi identificada por um
cristão, que ao copiar os Testamentos, depois das palavras "profecia do Paraíso", inseriu as
palavras "relativa ao Cordeiro de Deus e Salvador do mundo", relacionando, assim, a
profecia a Jesus."15

O cristão que intercalou esse dado, a despeito de possíveis intenções sectárias, pode
ter identificado a conexão arquetípica entre José e o Mestre da Retidão e Jesus, com uma
clareza que nós fazemos bem em imitar.
A ligação com Asaph é ainda mais intrigante. No trabalho essênico, A Assunção de
Moisés, já referido, há um nome sem sentido: Taxo aplicado a um santo levita que, com
seus sete filhos, se retirou da corrompida cidade de Jerusalém e estabeleceu residência
numa caverna. Crédito seja devido a Schonfield por ter aplicado um antigo ciframento da
escritura hebraica e, assim, ter descoberto que Taxo é um disfarce codificado para Asaph.
(Nesse ciframento, as primeiras onze letras do alfabeto hebraico de vinte e duas letras são
trocadas pelas últimas onze letras, em ordem inversa. A chave desse ciframento é: Aleph
igual a Tav e Beth igual a Shin, que é pronunciada Atbash). Surge, agora, a questão: quem é
Asaph?
Asaph ben Berechiah é descrito em vários livros da Bíblia como um levita do tempo do
rei Salomão.16 Nas tradições judaica e islâmica ele é visto como um mestre das artes ocultas
e milagrosas, uma figura mágica que orienta o rei Salomão nas práticas teúrgicas, um
40
homem que possui o conhecimento do verdadeiro e inefável Nome de Deus. Essas
qualidades, combinadas com a noção de que - segundo versão posterior - ele escapou para
viver numa caverna, foram suficientes para colocá-lo, aos olhos dos essênios, como um
precursor do Mestre.
Josué é o herói hierofante da Lei oculta; José, o gentil patriarca, traído e atormentado
por seus irmãos; Asaph, o taumaturgo sacerdote que faz milagres e conhece os segredos do
Nome Divino. Os três levam-nos ao Mestre Verdadeiro ou Mestre da Retidão. Talvez seja
bom que ele não tenha nenhum nome, pois, num sentido místico, ele é Josué, como José e
Asaph, aquele que trouxe a nova Torah, uma imagem sofrida de brandura, alguém que foi
assassinado, um curador mágico, alguém que realiza feitos portentosos do espírito. E
depois, na estrada da história, há Jesus, personificando todas essas qualidades arquetípicas,
e sincronicamente relacionado com os nomes dos Seus três precursores espirituais. Seu
nome é o de Josué, seu pai é José e - incrivelmente - uma de suas últimas manifestações
lendárias, conforme fontes islâmicas e asiáticas, não é outra senão uma figura misteriosa
chamada Jo-Asaph. Esse último ponto precisa de uma breve explicação.
Antigos registros islâmicos falam de um santo mestre religioso chamado Jo-Asaph ou
Yaz-Asaf. Uma seita influente muçulmana, conhecida como o movimento ahmadiyya,
estabelece, com todas as letras, que esse Jo-Asaph é idêntico a Jesus, que sobreviveu à sua
crucificação e terminou seus dias na Índia. Relacionado com esse desenvolvimento mítico,
pode estar o trabalho medieval, outrora muito popular, Barlaam e Josafat (conhecido na
sua forma variante como Barlaam e Jo-Asaph), que se suspeita ser uma história disfarçada
de Jesus e Buda.
Todas as considerações acima tomam muito claro que a figura do Salvador cristão é a
última e a maior de uma série de imagens arquetípicas - manifestas na tradição judaica -
que, finalmente, convergiram para o messianismo universal da nova dispensação. Josué, o
conquistador, legislador, personificado por seu homônimo, tornou-se tanto o sofredor José
quanto o servidor milagroso Asaph, mesmo tendo vindo para ser visto como imitação dos
messias sacerdote e real dos essênios, como o sacerdote sacrificado e o davídico Regente
do Mundo.
Há apenas um passo entre essas convergências e o misticismo intrapsíquico sem
disfarces, expresso no messianismo cósmico dos gnósticos. A sequencia de Josué e José, a
Asaph e a Jesus leva, logicamente, ao Cristo gnóstico, o ântropos celestial ou o homem do
paraíso. Schonfield torna isso límpido, quando fala da ligação de Jesus com a prefiguração
messiânica do patriarca José:

"Usando o relato da Bíblia sobre o filho favorito de Jacó - cuja morte tinha sido
planejada por seus irmãos e que tinha sido exilado de sua terra como um antetipo
messiânico, os essênios viram nele uma antecipação do seu Mestre Verdadeiro. Dessa
equação e da doutrina dos dois Messias, emerge a figura do Messias, 'Filho de José'... Ele
seria o Homem que realiza a perfeita vontade de Deus e sofre segundo ela. Altos voos do
esoterismo, então, ligaram o Homem humano ao Homem celestial, o primevo Filho do
Homem, em cuja semelhança universal, Adão, o primeiro homem da Terra, foi criado."17

Seguindo os antigos protótipos (primeiras imagens) ou "antetipos", como Schonfield os


41
chama, veio a epifania do arquétipo (imagem primeva) como percebida e proclamada pelos
gnósticos. Os essênios o visualizaram com notável intuição; mas, devido a seu secreto
esoterismo, não puderam ou quiseram proclamar sua visão abertamente. Velado em
alegorias e escondido por códigos e ciframentos, eles guardaram o arquétipo messiânico
em sua Torah secreta. Em seu antigo trabalho de grande autoridade, Os Pergaminhos do
Mar Morto, Allegro continua, afirmando:

“Um intrigante problema que se apresentou durante o trabalho foi decifrar uma série
de diferentes códigos secretos, nos quais muitas obras foram escritas... para manter certas
informações especialmente ocultas.”¹8

Em contraste, o Cristo gnóstico e outras figuras salvadoras míticas ou semimíticas


deixavam de ser mantidas em segredo. O pluralismo religioso dos grandes centros
metropolitanos do Império Romano, onde os gnósticos floresceram, aboliram o ansioso
sigilo praticado pelo Povo dos Pergaminhos. Somente séculos mais tarde, quando cessou o
pluralismo e a repressão de uma ortodoxia novamente emergente apareceu, os gnósticos
voltaram ao sigilo. Até então, a imagem messiânica gnóstica estava aberta à visão de todos.
A obsessão semítica de esconder desapareceu junto com a preocupação com a pureza, com
a dieta e com outros remanescentes da velha Lei. Uma nova era, uma nova Lei, uma nova
dispensação da gnose haviam chegado. Mesmo assim, o novo não era mais do que uma
forma, mais altamente diferenciada, de espargir o velho, e existiu uma explícita tanto
quanto implícita continuidade entre eles. Allegro afirmou, com justiça, o seguinte:

“Os essênios gnósticos (os que sabem) reaparecem no cenário literário como ‘cristãos
gnósticos', mas... não há realmente justificativa para a pesada e negra linha divisória que é
costumeiramente traçada, na página da história, entre eles. Há um desenvolvimento
continuo do pensamento religioso, influenciado pela mudança dos eventos políticos, que
são perfeitamente compreensíveis cronológica e doutrinariamente, sem a separação
artificial de 'cristãos' e 'pré-cristãos'.”19

Contemplando o movimento dos protótipos judaicos esotéricos e sua culminação no


novo arquétipo messiânico do Cristo gnóstico, é necessário lembrar que esse
desenvolvimento foi amplamente facilitado por um poderoso desenvolvimento intelectual
e espiritual que não se estabeleceu na Palestina, mas em Alexandria. A grande cidade de
Alexandre, localizada na encruzilhada de muitas culturas e tradições, abrigou um
movimento notável, dirigido à síntese dos elementos mais profundos e iluminados das
tradições religiosas judaicas e dos assim chamados povos pagãos da antiguidade. Duzentos
e cinquenta ano antes do nascimento de Jesus, os homens sábios de Alexandria já estavam
empenhados avidamente em discernir a união subjacente às estruturas da espiritualidade
semítica e greco-egípcia. Desde que o erudito regente Ptolomeu Filadelfo (325-246 a.C.)
contratou uma equipe de estudiosos para traduzir a Bíblia hebraica para o grego, pode-se
dizer que essa conjunção espiritual heleno-judaica obteve um impulso em seu
desenvolvimento. Filo de Alexandria, o grande representante desse movimento (que, como
se sabe, conhecia bem os essênios), tornou-se o primeiro pensador a usar o termo
42
"arquétipo", num sentido que lembra de perto seu uso na moderna psicologia profunda.
Filo reconheceu claramente - como os gnósticos o fizeram depois - que o fosso que separa
o Deus monoteísta da alma humana pode ter como ponte seres espirituais intermediários,
assim como personagens enaltecidas e de fato divinizadas de grandes figuras da Bíblia.
Intimamente ligado aos ensinamentos de Filo sobre esses seres, é o seu conceito dos
arquétipos, que se manifesta, entre outros, em seus ensinamentos sobre o Logos de Deus.
Esse princípio, dizia Filo, é, com efeito, a manifestação arquetípica de Deus em relação à
humanidade. O Logos é a efulgência de Deus que interpreta, é profética, é sacerdotal, é a
única capaz de levar os seres humanos ao conhecimento de Deus. Esse conceito foi,
obviamente, não só usado posteriormente pela teologia cristã, como também nos lembra
poderosamente o princípio subjacente ao pensamento dos essênios, particularmente
quanto às figuras espirituais arquetípicas de Josué, de José, de Asaph e do Mestre da
Retidão. O próprio C. G. Jung admite que se sentiu inspirado pelos ensinamentos de Filo,
quando deu o nome de "arquétipo" a um certo fenômeno da psique.²0
Jung definiu um arquétipo (Urbild, imagem primordial) como "uma figura - seja um
daimon, um ser humano ou um processo - que constantemente volta no curso da história e
aparece onde quer que uma fantasia criativa se expresse livremente".21 Quando o ser
humano encontra uma dessas imagens, sente um impacto de intensidade e de novidade.
Como diz Jung, "é como se fossem tocadas em nós cordas que nunca haviam ressoado
antes ou como se forças, de cuja existência jamais tínhamos suspeitado, fossem
liberadas".²² Os seres humanos sabem, inerentemente, que os arquétipos são autônomos,
que obedecem às suas próprias leis soberanas e que, embora sejam de natureza interior, se
refletem na tela da experiência humana exterior. Os arquétipos, assim, estão presentes,
simultaneamente, nas estruturas internas da psique humana e, também, na arena da
história. No decorrer de sua vida, Jung diferenciou entre o arquétipo como tal e a imagem
arquetípica. O arquétipo como tal, disse ele, não alcança a consciência, pois está situado
numa região inacessível da realidade psíquica, "a parte final invisível, ultravioleta do
espectro psíquico”²³ As imagens arquetípicas, por outro lado, se manifestam regularmente
à mente consciente nos sonhos, visões, experiências imaginativas e estados alterados da
consciência. Os arquétipos enquanto tal, disse Jung, são psicóides; isto é, transcendem a
psique humana, enquanto que as imagens arquetípicas são psíquicas, isto é, pertencem ao
domínio conhecível da consciência. Em todas essas assertivas, Jung foi inspirado pelas
modificações feitas no conceito platônico das ideias primordiais, introduzidas por Filo.
Depois de Filo, essa realização ocorreu nos gnósticos cristãos, que expressaram sua
compreensão dos arquétipos e das imagens arquetípicas em passagens como esta do
Evangelho de Felipe.

"A verdade não vem nua para o mundo, mas vem nos tipos e imagens. Ele (o mundo)
não a receberá de nenhuma outra forma.”24

(Nesse evangelho, numa outra linha da mesma passagem, o autor usa a frase "a
imagem através da imagem", indicando o que pode ser o seu modo de distinguir entre
arquétipo e imagem arquetípica.)
É difícil para nós, hoje em dia, avaliar a significação do elemento arquetípico em
43
relação a figuras da doutrina religiosa, tais como Josué, José, Asaph, o Mestre da Retidão e
Jesus. Um penetrante escritor junguiano, Lucindi F. Mooney, escreveu a respeito:

"Os símbolos arquetípicos, as imagens primordiais, na realidade ainda têm o mesmo


significado de sempre. O que mudou no mundo cristão foi a atitude religiosa ocidental a
respeito deles. Por exemplo, a forma ou representação física do símbolo, criada pelos
nossos antigos antepassados, num esforço de expressar externamente um drama interno, é
quase universalmente rejeitada como mera peça de madeira ou de gesso. Nada mais. Uma
vez que esses símbolos são seriamente questionados, como indicadores de algo além da
realidade, eles morrem. Assim, normalmente diz-se que nossa cultura está privada de seus
símbolos, debatendo-se entre dois mitos, rejeitando o seu próprio lar hereditário."25

Como no Evangelho de Mateus, citado no início deste capítulo também hoje podemos
ser adequadamente lembrados de que a carne e o sangue não podem revelar a verdadeira
natureza do arquétipo para nos. "A carne e o sangue" são representados, no nosso mundo
contemporâneo, pelos nossos egos alienados, presos numa cultura alienada; mas ainda há
esperança. Boa parte dessa esperança parece estar personificada nos documentos dos
essênios e gnósticos a nós devolvida depois de um período de muitos séculos. Quando
unidas a uma compreensão psicológica intuitiva do seu significado essas escrituras podem
ainda reverter a triste tendência ao empobrecimento espiritual aludida pela citação acima.
O arquétipo messiânico nos declara, como o fez outrora, que Ele nos parece um
estrangeiro, pois que é de outra raça, mas a psicologia profunda do século XX, fortalecida
pela herança autêntica da essência perdida da espiritualidade ocidental pertencente a
essênios e gnósticos, aumenta a nossa familiaridade com o estrangeiro brilhante e
misterioso. As antigas palavras-chave religiosas: salvação, pecado, temor a Deus e
obediência cega ao dogma e aos mandamentos, estão perdendo sua influência sobre uma
margem crescente da cultura. Novos símbolos de espiritualidade surgiram, a maioria
derivada da teoria psicológica: autoconhecimento, integração, autenticidade, crescimento
espiritual, totalidade. A respeito da confusão, da reação e de uma ingenuidade
frequentemente infantil, uma certa gnose apareceu no nosso meio. Uma imagem, uma
persona, que caracteriza as pessoas susceptíveis a essa gnose, começou a ser constelada. É
uma imagem por si mesma arquetípica por natureza e que por isso pode-se dizer que
ressoa com tudo que possui a radiância daquela outra realidade, arquetípica. Essa nova
imagem pode, de fato, ser a precursora de uma nova aurora e um mito mais adequado para
o Ocidente, um mito que forneceria os elementos cooperadores ausentes, que Jung sentiu
que são desesperadamente reivindicados pela nossa cultura, pelo imperativo esmagador de
sua totalidade.
A busca dos arquétipos e protótipos das tradições essênicas e gnósticas tem sentido
contemporâneo vital. Os antigos, sabiamente, sustentaram que os deuses são imortais,
referindo-se, assim, à sua visão politeísta dos poderes arquetípicos da alma. Começando
nas brumas da tradição semítica antiga, a imagem transformadora e redentora do
messianismo move-se nos passos da história. De Josué e José a Jesus e, além dele, ao
místico e cósmico Deus-herói dos gnósticos, vemos o desdobramento de um princípio
poderoso da redenção e da totalidade, que não perdeu sua urgência para nós, ainda hoje. O
44
reduzido reconhecimento dessa imagem messiânica em tempos recentes não é uma
circunstância a ser aceita ou perdoada. Referindo-se exatamente a essa condição, Jung nos
adverte: "Parece para mim que o mundo, se perdesse de vista essas assertivas arquetípicas,
seria ameaçado com um inominável empobrecimento da mente e da alma.”26
Felizmente, agora temos meios para a prevenção desse empobrecimento, na forma de
evidência sobre a importância espiritual da notável história arquetípica da imagem do
Cristo-Messias. A proximidade do poder redentor do Deus Vivo, como ressaltada pelos
protótipos da imagem de Cristo entre os essênios, é apenas um dos componentes
importantes nessa evidência. A proximidade inevitável da Divindade alcança novo e maior
nível da aceitação no florescimento da própria tradição gnóstica, a cuja investigação nos
devotaremos.

45
4
A Sabedoria Feminina
e a Vinda dos Conhecedores
J. Krishnamurti, um mestre indiano da espiritualidade alternativa contemporânea,
escreveu em seu pequeno livro antigo Aos pés do Mestre: "Em todo o mundo, há apenas
dois tipos de pessoas: as que sabem e as que não sabem; e esse conhecimento é o que
interessa."1 Esse aforismo poderia muito bem ter sido escrito há 1.700 ou 1.800 anos, pelo
curioso e amaldiçoado povo chamado gnósticos ou conhecedores.
A que tipo de conhecimento Krishnamurti e seus predecessores se referiam? A língua
inglesa é relativamente pobre em palavras que expressem diferenças sutis no sentido
filosófico ou psicológico. O mesmo não ocorre na língua grega, que distingue o tipo de
conhecimento reflexivo e científico de outro tipo baseado na experiência e na observação.
Esse último é chamado de gnose. Numa visão mais profunda e detalhada, esse termo
poderia ser mais precisamente entendido como "intuição"* e, no sentido da psicologia
profunda, pode ser definido como "consciência". Em qualquer caso, ele não descreve uma
qualidade ou condição estáticas, mas sim um processo de natureza intuitiva, contemplativa,
que está intimamente relacionado com o autoconhecimento. O termo é de origem indo-
européia, parente próximo da palavra sânscrita jnana.
*"Insight", no original. (N.T.)
Embora a Gnose agora seja associada primariamente aos cristãos gnósticos dos
primeiros séculos d.C., ela foi uma espécie de prêmio espiritual, valorizada e procurada por
muitas pessoas no período que precedeu e sucedeu de perto a Era Cristã. As obras
Poimandres e Asklepius, ambas da escola hermética do pensamento místico, usam
frequentemente o termo gnose para descrever a intuição interior, iluminada. Numa outra
coleção armênia de frases herméticas, de título desconhecido, achamos uma que é
reminiscente de passagens de escrituras cristãs gnósticas: "Aquele que conhece a si
mesmo, conhece o Todo.”²
No século I, apareceu na Judéia e no Egito e, posteriormente, na maioria das regiões
do Império Romano, um povo estranho. Os que os conheceram chamavam-nos de
gnostikoi, os que sabem. Acreditava-se, no geral, que possuíam o que muitos buscavam: um
conhecimento interno da realidade e uma familiaridade com um campo de experiência
maior do que a vida da maioria.
O mais antigo dos sábios e profetas gnósticos foi Simão, de alcunha o Mágico, ou
Simão Mago. Ele foi um judeu da Samaria, um "samaritano" como eram chamados os seus
compatriotas. Os samaritanos eram um povo que residia ao norte da Judéia e que, como os
essênios, eram tidos como heterodoxos por seus compatriotas de mente mais
convencional. Assim como os essênios, eles se afastaram do Templo de Jerusalém e
adoravam a Deus em sua própria montanha sagrada. Da Bíblia hebraica, eles aceitavam
apenas os Livros de Moisés. Deste povo rebelde e apartado veio Simão Mago.
Parece não haver dúvida que Simão foi um personagem histórico. Referências à sua
carreira são frequentes nos primeiros escritos cristãos. O Livro dos Atos (8:10) o representa
46
como um membro réprobo da comunidade cristã, censurado pelo apóstolo Pedro e depois
reconciliado, ao que se presume, com a Igreja apostólica. Outros escritores cristãos, como
Justino Mártir e os antignósticos polemistas, como Irineu, Hipólito e Tertuliano, descrevem-
no como um rival problemático dos apóstolos. Em outros escritos mais antigos, conhecidos
como os trabalhos pseudoclementinos, contam-se alguns pontos sugestivos da carreira de
Simão. Parece que Simão e seu companheiro árabe Doshtai eram discípulos de João Batista.
Depois do aprendizado com João, Simão e Doshtai se declararam figuras messiânicas
salvadoras e viajaram pelas estradas do mundo romano, pregando e conferindo mistérios.
Faz sentido dizer que esses dois homens que, como Jesus, foram iniciados por João Batista,
estavam impregnados pelo poder do arquétipo messiânico e agiam como figuras salvadoras
alternativas, lado a lado com Jesus. Certamente, os romanos encaravam Simão como uma
divindade personificada e lhe outorgaram o título de"o grande poder".

O Vale de Nag Hammadi

Jesus Simão e Doshtai não só foram iniciados igualmente nos mistérios transmitidos
por João Batista, mas cada um parece ter tido uma ligação misteriosa e controversa com o
lado feminino da espiritualidade hebraica, até então reprimido e secreto. Essa ligação é
manifestada, abertamente, no fato de que tanto Simão como Doshtai tinham a seu lado
uma discípula do sexo feminino, chamada Helena, assim como Jesus estava intimamente
associado à sua discípula Maria Madalena. Como veremos, essas mulheres foram muito
mais do que discípulas e vieram a representar o divino feminino, em associação com o
Messias masculino.
Os hebreus, acredita-se, opunham-se ferozmente à adoração de deusas em todas as
suas formas. Isso pode ser verdade, no que se refere às asserções de muitos dos profetas,

47
mas é duvidoso que a religiosidade popular hebraica partilhasse da misoginia desses
"porta-vozes do Senhor". Ambas as matrizes da espiritualidade egípcia e babilônica,
associadas tão de perto à história judaica primitiva, estavam fortemente ligadas a
divindades femininas, e o povo judeu comum se sentia frequentemente privado, porque
seus líderes lhes davam um deus masculino solitário, sem uma consorte. É muito possível
que, através dos séculos, o povo comum, que não tinha preconceitos teológicos, mostrasse
uma tendência a venerar uma Senhora junto com o Senhor Deus. Relata-se que, em tempos
comparativamente mais recentes, na vizinhança de Hebron e na área de Neguev, foram
achadas inscrições datadas de século VIII a.C., nas quais são feitas referências não apenas
ao "Senhor que nos protege", mas também à esposa do Senhor Deus, aqui chamada pelo
nome de Ashera, forma feminina de um dos nomes do Deus hebraico. De modo
semelhante, no século V a.C., os soldados judeus estacionados no Egito, em Elefantina
(perto da Assuã atual), adoravam Anat Jahu, uma deusa que viam como a esposa do seu
Senhor, o Deus de Israel.³ Assim, existem evidências indicando que o feminino não esteve
totalmente ausente da estrutura arquetípica judaica pré-cristã.
No século I a.C., o arquétipo do feminino divino começou a se manifestar na literatura
sagrada. Essa nova manifestação foi de uma sofisticação e sutileza tais que a distinguem
agudamente das expressões populares aludidas acima. A primitiva figura da deusa judaica
parece ter sido, como a contrapartida babilônica, provida de sexualidade relativamente
primitiva e primária e, às vezes, de caráter andrógino. O novo princípio feminino divino, que
emergiu e tomou forma principalmente nos esforços literários dos autores judeus
alexandrinos, não era meramente uma grande mãe primitiva, mas uma emanação espiritual
da mais alta divindade, descrita pelo nome hebraico Chokmah, Sabedoria. Pelo fato de a
língua grega ser o idioma normativo dos eruditos naquele tempo, Chokmah logo se tornou
conhecida pelo seu nome grego análogo, Sophia. A principal obra literária, através da qual
Chokmah-Sophia fez sua grande estreia no palco da espiritualidade alexandrina e judaica,
foi o Livro da Sabedoria de Salomão que, na realidade, representou o primeiro
recenseamento, feito no século I a.C., de certos elementos de uma tradição judaica até
então secreta, a respeito do feminino divino.
É assim que Sophia, a sabedoria feminina de Deus, depois associada tão de perto aos
gnósticos, veio à tona pela primeira vez. Ela é representada, desde o começo, como um
espírito divino penetrando todos os seres. No Livro da Sabedoria de Salomão, ela é, de fato,
identificada como partilhando o poder do criador ("Artífice de todas as coisas"), como
onipotente (capaz de "fazer todas as coisas") e como a mãe dos dons da sabedoria e da
profecia ("entrando nas almas santas em todas as gerações, produzindo profetas e amigos
de Deus"). Certamente, há ecos presentes nessa obra da antiga ideia de que Chokmah-
Sophia pode ter sido de fato, a consorte do Senhor Deus: "Ela glorifica sua nobreza
partilhando da intimidade de Deus. Sim, e o Senhor de todas as coisas a amou."4 Talvez
mais importante que isso, essa sabedoria feminina torna-se a amante e a inspiratrix dos
justos e dos sábios. É assim que Salomão, o velho sábio arquetípico, declara seu amor por
ela: "Ela, em quem pensei e amei desde minha juventude e a quem desejei para ter como
minha esposa e me tornei amante de sua beleza."5 Além disso, sua orientação e sua gnose
são consideradas essenciais pelo autor do Livro da Sabedoria de Salomão para levar
corretamente uma vida sábia e santa:
48
"Mande-a para fora de seu paraíso sagrado e do trono da sua majestade, para que eu
a tenha comigo e possa trabalhar comigo, para que eu saiba o que é aceitável para Ti. Pois
ela conhece e compreende todas as coisas e me guiará sensatamente em meus trabalhos e
me preservará pelo seu poder.”6

Embora o Livro da Sabedoria de Salomão possa ter representado a sabedoria feminina


pelas imagens mais enaltecedoras, essa sabedoria já tinha sido mostrada de maneira
semelhante num livro anterior da Bíblia o Livro dos Provérbios. A sabedoria aí se mostra
pregando no país e nas ruas, exortando as pessoas a abandonarem suas maneiras infantis e
a abolirem sua aversão à gnose.7 No mesmo livro, a sabedoria é a primazia em toda a
criação e é chamada de primogênita de Deus, companheira do trabalho de Deus e a que se
alegra com Ele na Sua criação e com a humanidade.8
Assim, vemos que mais ou menos desde o período posterior ao Exílio a Sabedoria é
representada como uma pessoa e, começando pelo Livro da Sabedoria de Salomão, essa
pessoa reveste-se de nítidas características femininas. O arquétipo da Sabedoria feminina
constelou-se como uma mulher gloriosa, como uma deusa levemente disfarçada, que tem
um relacionamento especialmente íntimo com todos aqueles que buscam a sabedoria.
Enquanto que para os piedosos leitores dos Provérbios e do Livro da Sabedoria de
Salomão a Mulher-Sabedoria aparecia como um espírito etéreo dos mundos superiores,
para pessoas de tempos mais recentes aparece como uma mulher de carne e osso. O
primeiro a perceber uma estrutura mitológica da manifestação da Sabedoria, numa forma
feminina encarnada, foi o já mencionado Simão Mago. Relata-se que Simão encontrou uma
mulher chamada Helena e reconheceu nela o Primeiro Pensamento (um sinônimo de
sabedoria) que há muito tempo tinha descido ao mundo criado e sofrido um processo de
deterioração e degradação. É dito que o próprio Simão expressou esse processo no
seguinte relato poético:

"No começo, o Pai tencionou dar à luz os anjos e os arcanjos.


Seu pensamento saltou Dele, esse pensamento
Que conhecia a intenção do Seu (dela) pai.
Assim ela desceu para as esferas inferiores,
Ela deu à luz anjos e poderes, que então criaram o mundo.
Mas após tê-los assim parido, ela foi mantida cativa por eles.
Ela sofreu todas as indignidades por eles.
E não pôde retornar ao Pai.
Num corpo humano ficou confinada
E assim, era após era, ela passou de um corpo a outro,
De um corpo feminino a outro...
Assim ela se tomou a ovelha perdida.²³

Um dos corpos femininos ocupados pelo Primeiro Pensamento, diz Simão, foi o de
Helena de Tróia, a mulher mais bela e fatal, conhecida dos antigos gregos.
No sistema de Simão, o Pai, assim como o Primeiro Pensamento, têm sua origem no
49
Silêncio, um poder eterno e sem limites. Assim, a unidade primordial acaba por gerar uma
dualidade primal, consistindo num princípio masculino (pai, também Nous, isto é, mente) e
um princípio feminino (Epinoia, primeiro pensamento). Quando a sabedoria feminina se
torna presa no cosmos, o princípio masculino sente-se compelido a descer ao mundo
inferior para resgatar a donzela em aflição. Simão, parece, via a si mesmo como a
encarnação do masculino redentor, enquanto encarava Helena como a última
personificação do pensamento saído de Deus. (Os primeiros escritores cristãos alegaram
que, na verdade, Helena era uma prostituta, mas essa afirmação foi tida por G. Quispel
como um possível mal-entendido.)10
Em termos menos técnicos, podemos resumir a história de Simão da seguinte forma:
era uma vez um homem enviado pelo Deus Altíssimo, cujo nome era Simão. Ele era a luz
enviada pelo Alto e brilhava como o Sol. (Cabalisticamente, o nome Shimon é composto,
basicamente, pelas letras hebraicas Shin e Mem que, com a repetição da letra Shin, torna-
se Shemesh, o Sol, o símbolo da luz e da mente, o nous, ou compreensão redentora, o
princípio responsável pela gnose.) Havia também uma mulher chamada Helena, que era a
personificação da Alma do Mundo, assim como Simão o era da Mente do Mundo. Ela
também era uma luz, mas a luz suave e de brilho noturno da Lua, já que seu nome é
derivado de Selene, a Lua. Depois de muitas vidas em corpos terrestres, Helena sentiu que
sua libertação estava próxima a ela soube que seu aeon* celestial gêmeo viria à terra e a
encontraria. O gêmeo viria no corpo de um homem, assim como ela nascera no corpo de
uma mulher. Assim, ela correu para a cidade litorânea de Tiro, onde muitos viajantes
costumavam parar e teve a esperança de que um deles pudesse ser seu companheiro e
libertador celestial. Como muitas vezes antes, ela foi obrigada a se vender como escrava em
seu novo domicílio, para prover suas necessidades.
* Aeon, além dos significados de "era" e "eternidade", significa também "entes imaginados pelos
gnósticos". (N. T.).
Um dia, um homem de meia-idade e rosto majestoso entrou no lugar onde Helena
vivia como escrava e imediatamente a reconheceu como a Alma do Mundo. Ele pagou
todas as suas dívidas e partiu com ela numa grande jornada. Juntos, percorreram as
estradas poeirentas da Síria e da Palestina, as estradas pavimentadas do Império Romano,
em busca dos raios de luz, das almas dos conhecedores em potencial, para que esses
pudessem juntar-se a eles e desfrutar a companhia dos liberados. Com o passar dos anos,
Simão ficou velho e sua visão falhou e, assim, Helena o conduziu pela mão de cidade em
cidade buscando a liberação das almas. As pessoas - assim declaram os antigos contos das
tradições ocultas dos gnósticos - ainda podem ver uma jovem mulher percorrendo os
caminhos do mundo, guiando um homem velho, majestoso e mágico, e os que têm olhos
para ver podem perceber que o velho tem uma radiância em torno de si como a do Sol,
enquanto que a jovem está acompanhada de uma luminosidade como a da Lua. Muitas
lendas e contos através das épocas expressam essa história eterna: Fausto e Helena de
Tróia, A Bela Adormecida e o Príncipe, Kundry e Parsifal, Dulcinéia e Dom Quixote de La
Mancha. Os nomes e o tempo mudam, mas os atores são os mesmos. Helena e Simão, a
Alma do Mundo e a Mente do Mundo, ainda estão entre os mortais e cuidam dos assuntos
de seu Pai Universal, o grande Silêncio da gestação, que habita na Plenitude.
A libertação de Helena pela influência de Simão estabeleceu um exemplo para a
50
redenção de todos os outros seres humanos do jugo do falso cosmos onde se encontram. A
conjunção da Alma do Mundo com a Mente do Mundo, do coração com a cabeça, do dom
de relacionamento de Eros com a inteligência de Logos, estabeleceu o padrão que daí em
diante seria tão crucial para todas as formas de gnose: o padrão da conjunção criativa dos
opostos, que resulta na libertação da limitação e na bem-aventurança de uma consciência
nova e superior. O ensinamento de Simão não está personificado num messianismo
solitário, tal como o que existia entre os essênios, mas no poder criativo e redentor do casal
humano-divino. As figuras redentoras essênicas eram sábios solitários, o que implicava uma
androginia espiritual, de uma espécie somente vista na castidade monástica. O Mestre da
Retidão assim se expressa num dos Hinos de Ação de Graças encontrados nas cavernas de
Qumram: “Vós me fizestes um pai para os filhos da graça e um pai-nutricional para os
homens da profecia: eles abriram seus lábios para mim como lactentes."¹¹ E na mesma
coleção, o Mestre atribui a Deus características ascético-andróginas parecidas: "Pois Vós
sois o Pai de todos (os filhos) de Vossa Verdade e como uma mulher que ama ternamente
seu bebê, assim Vós rejubilais com eles; e como um pai-nutricional segurando uma criança
no colo, assim Vós cuidais de todas as criaturas."12 O essênio contemplativo e ascético
ainda estava obrigado a entrever a si e seu Deus como preenchendo um papel dual de
macho e fêmea, enquanto a Gnose liberada de Simão não mais precisava desses
estratagemas psíquicos.
No sistema gnóstico de Simão - o primeiro sistema dessa ordem que a história
conhece - a ênfase desesperada, compulsiva, na pureza do Povo dos Pergaminhos cede
lugar a uma liberdade e libertarianismo de proporções impressionantes. Como um
contemporâneo de Jesus, e que sobreviveu a ele, Simão estava, naturalmente, familiarizado
com a ab-rogação da lei de Moisés, conforme fora enunciada pelo Rabi Nazareno. Assim
como Jesus clamava pelo estabelecimento de uma nova lei, caracterizada pelo amor, no
lugar de uma justiça impiedosa, assim Simão pregava a libertação das restrições tanto da
ortodoxia judaica como da heterodoxia essênica. Restrição é a ordem imposta ao mundo
pelos tirânicos anjos criadores, disse Simão, ao passo que a libertação da restrição é a
consequência natural da Gnose. Os poucos fragmentos disponíveis dos escritos de Simão
indicam que ele não dava importância à libertação dos judeus da opressão política, mas à
libertação das almas dos homens e mulheres, daquilo que hoje podemos chamar de
restrições psicológicas, tais como unilateralidade e estreiteza de consciência. Na assim
chamada A Grande Anunciação, ele mostrou seu majestoso mito gnóstico, envolvendo o
Primeiro Pensamento (ou Alma do Mundo) e a Mente do Mundo, enquanto que em Os
Quatro Quadrantes do Mundo, ele provavelmente propôs uma imagem mágica do universo.
Nos Sermões do Contestador, ele parece ter criticado o Deus da Bíblia hebraica e ter se
engajado numa reinterpretação do Livro do Gênesis, à luz da tolice do criador que tranca
suas criaturas humanas num paraíso tolo, a fim de que uma serpente sábia precise ajudá-
las a se libertar.
Parece, desses relatos fragmentários a respeito dos ensinamentos de Simão, que
quase todas as principais características dos sistemas gnósticos posteriores já estão
presentes no seu legado. Essas podem ser assim resumidas: (1). O mito sofiânico da alma
do mundo feminino, capturada no mundo inferior e libertada pelo seu gêmeo celestial, que,
então, se torna seu companheiro; (2). A visão mágica do cosmos e a consequente
51
necessidade de amparos sacramentais cerimoniais para a libertação e a totalidade; (3). O
caráter imperfeito das revelações do Antigo Testamento e de seu Deus, com a consequente
necessidade de um novo ato da Providência ou "Aliança", nos quais a lei antiga será
declarada morta e uma nova lei, de liberdade e amor, será proclamada.
É interessante notar, a respeito da terceira característica acima, que Simão, como
samaritano e gnóstico, se opôs à facção judaica dos primeiros cristãos representados por
Pedro, às vezes conhecido como “o apóstolo da circuncisão", em reconhecimento à sua
adesão aos costumes judaicos. As lendas desenvolvidas pelos caluniadores cristãos de
Simão o envolveram numa prolongada rivalidade e disputas de poder com Pedro, repletas
de duelos envolvendo poderes miraculosos e disputas sobre o que hoje se chama de
competição espiritual. Curiosamente, ambos se chamavam Simão, e, portanto, Simão
Pedro, o apóstolo cristão judaico, e Simão Mago parecem dois aspectos da mesma imagem
arquetípica ou, pelo menos, de uma imagem semelhante. Foi até sugerido (pelo antigo
estudioso do gnosticismo, W. Baur, e sua escola de Tübingen) que Simão Mago não é mais
do que um disfarce do apóstolo Paulo. O Cristianismo restritivo de Pedro contrasta, assim,
com o Cristianismo universal de Paulo. Essa sugestão não pode ser considerada
literalmente verdadeira, mas pode conter uma certa verdade simbólica. Poderia dizer-se
que na justaposição de Pedro e Simão existe um confronto simbólico entre o tipo de
Cristianismo, que depois se tornou normativo e ortodoxo, e o cristianismo liberador e
gnóstico, que o próprio Jesus pregava, e que a Igreja de Pedro, sob a influência da estrutura
arquetípica do Antigo Testamento, veio a negar? É certamente verdade que o Cristianismo
paulino, com sua abertura aos povos não-judeus e sua visão pluralista da composição da
Igreja, estava mais perto do espírito da Gnose de Simão do que sua contrapartida mais
rígida.
Deve ser lembrado, também, que Simão foi, de fato, apropriadamente chamado Simão
Mago ou mágico. Como tal, ele era o herdeiro do arquétipo messiânico encontrado
anteriormente no levita Asaph, autor de muitos salmos e muito reverenciado pelos
essênios. Enquanto Jesus parece personificar os arquétipos do Santo Sofredor e do Herói
Conquistador (e apenas num sentido menor, o de Sacerdote e Mágico), Simão surgiu como
o sábio produtor de milagres, dominando os elementos, extraindo a virtude do fogo
alquímico - que ele representa em sua obra A Grande Anunciação como o símbolo da Raiz
Universal do Ser - realizando muitos milagres impressionantes. Um de seus feitos
prodigiosos é sua reputada proeza e habilidade de voar. Numa obra síria do terceiro século
chamada Didascalia, conta-se que Simão alçou voo e então Pedro, milagrosamente, o fez
cair e quebrar o tornozelo. Eusébio, em seu trabalho sobre a história da Igreja (324 d.C.),
escreve que Simão, quando confrontado com a oposição de Pedro na Judéia, simplesmente
decolou e voou na direção do Ocidente. Nos Atos de Pedro e Paulo, Simão recebe uma
convocação celeste para correr a Roma e voa pelos ares de Arícia a Roma, pousando nos
portões da cidade numa nuvem de fumaça. Numa fonte do século IV, talvez ainda mais
significativamente, encontramos uma descrição de Simão guiando uma carruagem puxada
por quatro cavalos em chamas.
O que se pode pensar dos relatos sobre esse Ícaro gnóstico? O tema do voo não é
desconhecido do Antigo e do Novo Testamentos. Ezequiel, o profeta, é visto, num certo
sentido, como o patrono de todos os voos místicos, pois na sua famosa visão ele viu uma
52
carruagem divina com um trono, onde Deus estava sentado e rodeado por quatro criaturas
aladas, chamadas de Querubins.¹³ Essa carruagem-trono, chamada em hebraico de
Merkabah, tornou-se o arquétipo místico de uma certa forma de misticismo judaico,
consistindo em voos espirituais, onde a alma do devoto deixava seu corpo e alcançava,
através de várias regiões intermediárias, o trono de Deus. Alguns estudiosos (notadamente
Gershom G. Scholem, na sua obra notável Major Trends in Jewish Mysticism [Principais
Tendências do Misticismo Judaico] sustentaram que essa prática de voos místicos fez surgir
o sistema posterior da Cabala, a tradição herdada da secreta Gnose judaica. O que é
particularmente significativo para nossos propósitos é que os Pergaminhos do Mar Morto
contêm fragmentos que falam das glórias da carruagem de Deus e a visão de Sua "Gloriosa
Face" entre os "Anjos do Conhecimento".14 O misticismo Merkabah, e com ele o Cabalismo
primitivo, podem assim estar, de fato, enraizados nas práticas místicas essênicas do "voo da
Carruagem".
Simão, ao que parece, herdou dos essênios uma propensão mística para os voos e
aperfeiçoou essa arte, magicamente, constituindo-a como uma metáfora espiritual. Desde
Simão, os gnósticos sempre souberam que, para alcançar a libertação, o iniciado tem de
achar um meio para libertar seu espírito aprisionado pelas limitações do grosseiro corpo
material, permitindo que esse voe para seu próprio lar verdadeiro, na plenitude, como um
pássaro livre de sua gaiola. Mais uma vez, a tradição essênica parece ter sido a precursora
da tradição gnóstica. Vemos, assim, numa descrição de Josefo sobre os antigos essênios:

"Pois é. uma crença estabelecida que o corpo é corruptível e sua matéria constituinte,
impermanente, mas a alma é imortal e imperecível. Emanando do espaço etéreo, essas
almas se emaranharam, por assim dizer, na casa-prisão do corpo, para o qual foram
puxadas por um tipo de atração mágica; mas quando são libertadas da servidão da carne,
então, como se livres de longa escravidão, elas se rejubilam e nascem nas alturas.”15

Aqui, estamos certos mais uma vez não apenas da ligação direta entre as práticas
essênicas e gnósticas, mas também podemos observar uma relação entre a tradição
alternativa hebraica e a prática atemporal das transmissões xamanísticas e afins. Uma
experiência comum dos técnicos arcaicos do êxtase é a saída do corpo e o voo da alma a
longas distâncias. Os voos místicos são uma característica proeminente das histórias de
profetas como Elias, Ezequiel e Maomé, assim como de bruxas e mágicos perseguidos pelos
inquisidores. Simão, o gnóstico voador, está de fato em vasta companhia.
Simão descobriu a Alma do Mundo em Helena como Doshtai seu companheiro, o fez
em outra Helena. Por muitos séculos se acreditou que esses dois homens diferiram
radicalmente de Jesus, que meramente redimiu Maria Madalena, a mulher decaída. Foi
preciso que ocorresse a descoberta recente dos Evangelhos de Nag Hammadi para chamar
a atenção da Cristandade para a crença rotineira, pelo menos dos primeiros cristãos, de que
Jesus achou em Maria Madalena o mesmo tipo de consorte sofiânica que Simão encontrara
em Helena. Não apenas Maria Madalena era a discípula favorita e mais gnóstica de Jesus
mas, como está indicado no Evangelho de Felipe, ela era também a consorte mágica de
Jesus:

53
"Havia três que andavam com o Senhor todo o tempo. Maria sua mãe, sua irmã e
Madalena, a quem chamavam sua consorte. Pois Maria era (o nome de) sua mãe, de sua
irmã e de sua consorte.16 A consorte do Salvador é Maria Madalena. O Senhor a amou mais
do que a seus discípulos e tinha o hábito frequente de beijá-la nos (lábios).”17

Seria errado, contudo, acreditar que a associação de figuras messiânicas tais como
Simão, Doshtai e Jesus com uma mulher particular denote, primariamente, um
relacionamento humano e pessoal. A díade do Messias e da Consorte Messiânica carrega
todas as marcas de um mito, no verdadeiro sentido da palavra. Os dois protagonistas
aparecem de diferentes formas e são chamados por diversos nomes. Isso é particularmente
manifesto em Helena, a consorte mística de Simão, cujo nome (relacionado com a Deusa
Selene) significa tocha, e era vista por Simão e seus seguidores como a reencarnação de
Helena de Tróia. Essa mulher, cuja beleza provocou a Guerra de Tróia, tinha um brilho
sobrenatural: enquanto ela dormia em Tróia, seus conterrâneos gregos podiam localizar a
sua residência, percebendo a luz que irradiava do seu quarto. Epifânio, Padre da Igreja,
citando Simão, relembra esse episódio como uma metáfora do papel gnóstico de Helena na
iluminação da humanidade:

"Seu brilho, como eu disse, significava a disseminação da luz do Alto... Como os frígios,
arrastados no cavalo de madeira, sem o saber causaram sua própria destruição, assim os
gentios, homens afastados da Gnoses provocam a perdição para si mesmos...”18

Helena simboliza, assim, a luz do conhecimento celestial; seu papel na terra é conduzir
os seres humanos, através da escuridão da matéria, de volta para Deus. A própria Alma do
Mundo, redimida do exílio, ocasiona a vitória das forças da luz, mostrando sua própria
radiância, Sofia-Sabedoria se tornou manifesta sob o disfarce de uma mulher e se tornou
parceira, uma parceira igual, na tarefa da redenção. A noção de um salvador masculino
solitário, concebido pela corrente posterior do Cristianismo, é contrária à visão dos
conhecedores, como Simão e seus pósteros. Os gnósticos apareceram como apóstolos, não
somente dos homens de luz (Simão, Jesus), mas também das mulheres de luz (Sofia, Helena,
Maria Madalena), como co-redentoras ou parceiras no trabalho da salvação. Os
conhecedores vieram e com eles, a Sabedoria, a Palavra feminina, começou sua marcha na
história. Malquista e perseguida, combatida e reprimida era após era, ela desfrutou um
período de manifestação através dos atos dos gnósticos devotos que deixaram sua marca
na turbulenta história do Cristianismo e da cultura ocidental. Repetidamente, a voz do
eterno feminino permaneceu não ouvida e clamando no deserto, mas ela com certeza foi
cortejada, solicitada e reverenciada pelos seus amigos, os gnósticos. Com Simão, o Mago, a
tradição dos conhecedores emergiu da sombra do patriarcado hebraico e declarou sua
unicidade, seu poder de encantar e de transformar os corações e as almas daqueles que,
por muito tempo, desejaram conhecer a face da Senhora Sabedoria. Jacques Lacarrière, o
poeta francês e admirador dos gnósticos, resumiu bem as intenções deles, quando
escreveu:

“O ponto essencial sobre tudo que diz respeito a Simão Mago (e ao Gnosticismo) é a
54
imagem do Casal primordial, a imagem do Desejo... exaltado como o fogo primário do
mundo e a fonte da libertação, que é a imagem da Sabedoria, encarnada no corpo de
Helena, que veio das alturas do céu cair nas profundezas história, para ensinar aos homens
que o caminho da salvação e através da união com o esplendor divino, refletido na forma
da mulher.”19

55
5
A Odisseia da Gnose
A jornada do Gnosticismo começou nas estradas da Samaria, mas não terminou lá.
Dois discípulos de Simão levaram sua mensagem para a Antioquia e a Síria. Seus nomes
eram Satúrnio e Menander. Ambos pregavam a existência de um Deus Desconhecido e de
grandes hierarquias intermediárias, compostas de seres angélicos, nem todos com um
benevolente relacionamento com a humanidade. O rígido monoteísmo judaico, herdado
pela parte ortodoxa do Cristianismo, foi entendido por esses mestres como uma grosseira
simplificação. O Deus pessoal, visto como criador, legislador, rei tirânico e juiz do universo -
assim disseram Satúrnio e Menander - não é o único e verdadeiro Deus. A autêntica
Divindade é uma plenitude impessoal, completamente transcendente e além do alcance da
mente humana nas suas atuais condições. Essa Divindade citada às vezes como o Pai
Desconhecido, doou uma porção de sua essência sublime, que se tornou o cosmos criado.
Também produziu um grupo de anjos e espíritos criadores, alguns dos quais se alienaram
de sua fonte última e passaram a se ver como regentes autônomos. A cosmologia
tradicional dos antigos hebreus já reconhecia que os planetas não eram astros inertes, mas
que eram animados por forças angelicais, cuja ordem inevitável servia para celebrar o
poder de Jeová. Os anjos-estrela e outros espíritos regentes aparecem como agentes
tirânicos restritivos, sob o ponto de vista gnóstico. São usurpadores, que dominam a
humanidade e a criação para aumentar sua importância e glória. Cabe ao conhecedor
perceber isso e libertar-se das garras desses poderes, sempre que possível. A condição
existencial da vida humana reside na incômoda dominação à qual essas divindades
inferiores sujeitam os espíritos dos seres humanos, e da qual só a realização vivencial da
Gnose pode libertá-los. 1
Esses mitos não são, claramente, as "Escrituras" como entendido esotericamente por
judeus ou cristãos, nem são um trabalho de filosofia no sentido de considerações
discursivas sobre o conhecimento das origens e natureza do ser humano. Eles parecem,
antes, estar baseados no que se pode chamar de conhecimento vivencial psicoespiritual.
São o que Gilles Quispel, de maneira perspicaz, chamou de "a mitologização da experiência
do Self".
Significativamente, foi no Egito e não na Palestina, em Antioquia ou na Síria que o
Gnosticismo alcançou seu maior e mais completo florescimento. Essa circunstância é, de
fato, mais compreensível do que à primeira vista se imagina. O Egito helenista não era
apenas um ponto de encontro de tradições e disciplinas religiosas e transformadoras
variadas, mas foi, também, o local onde se estabeleceram algumas colônias de essênios. O
Povo dos Pergaminhos era tão ou mais numeroso no Egito do que na Palestina. Foi aí que
Ptolomeu Filadelfo (309-246 a.C.), o erudito regente greco-egípcio, contratou a conhecida
tradução da Bíblia hebraica para o grego, na versão conhecida como os Setenta. Aí, o
Judaísmo encontrou o Platonismo, bem como os sistemas de mistério de Serápis, de Ísis e
outros, e aí a piedade essênica foi exposta às influências aprimoradoras e ampliadoras da
herança de sabedoria do mundo conhecido. Não é de admirar que os mestres gnósticos
tenham sido bem-vindos em Alexandria e outras regiões egípcias e que tenham feito
56
seguidores em profusão.
Simão, e em menor grau Satúmio e Menander, eram profetas itinerantes. A última
geração de mestres da Gnose se estabeleceu em cidades ou, mais frequentemente, na
cidade, isto é, em Alexandria, a capital espiritual do Império Romano e, de fato, da maior
parte do mundo além dela. Embora o Gnosticismo em si difira da maioria das religiões
ocidentais por não ter um fundador pessoal, logo se associou com o ainda jovem
movimento do Cristianismo e seu fundador, Jesus. Assim é, sem dúvida, que um dos mais
antigos divulgadores da mensagem de Cristo, Lúcio Carino, um discípulo de João, o
Evangelista, era um gnóstico convicto. Seus Atos dos Apóstolos, a saber, de Pedro, André,
João, Tomás e Felipe, conquistaram ampla popularidade e representaram o principal fator
de disseminação do Cristianismo. Essa literatura não foi considerada herética por ninguém
durante algum tempo e seu autor foi reverenciado por ter se associado ao autor do Quarto
Evangelho. Outro grande mestre da Gnose, Basilides, foi discípulo de Gláucias que, quando
muito jovem, sentou-se aos pés de Pedro, chefe dos apóstolos. Basilides ensinou em
Alexandria de 117 a 138 d.C. e sua escola se expandiu até a Espanha por um de seus
sucessores, Marcos de Mênfis. Os ensinamentos de Basilides, disponíveis para nós, indicam
que ele enfatizava a importância do conceito do Deus Desconhecido, totalmente
transcendente, incompreensível e além de todas as categorias da existência. Aqui estão
alguns dos conceitos sobre Ele, registrados por Hipólito, um Padre da Igreja:

"Ele existia, quando nada existia; nem mesmo aquele 'nada' era qualquer coisa das
coisas que existem. Mas cruamente, conjectura e sofisma mental à parte, não havia nem
mesmo o um. E quando eu uso o termo 'havia', eu não quero dizer que havia, mas,
meramente para dar alguma sugestão do que eu quero indicar, uso a expressão 'não havia
absolutamente nada'.
O Nada não era nem matéria, nem substância, nem vacuidade de substância, nem
simplicidade, nem impossibilidade de composição, nem inconceptibilidade, nem
imperceptibilidade, nem homem, nem anjo, nem Deus; enfim, nem nada a que o homem
possa ter achado um nome, nem qualquer operação que caia na esfera quer da sua
percepção quer da sua concepção... 2

Basilides estava, com certeza, em contato com numerosos ensinamentos orientais,


tanto sob a forma dos escritos de Zaratustra como nas transmissões recebidas da Índia. É
em parte devido a essas fontes de intuição que podemos notar o admirável fato de que sua
visão se elevou até além do mundo arquetípico de Platão e conseguiu contemplar o
Absoluto, o indizível Um, que pode ser adorado apenas no silêncio.
Bardesanes, ou Bardesan, nascido em 155 d.C., nas margens do rio Daisan na Síria,
teve nascimento rico e era conselheiro íntimo do regente local, a quem converteu a uma
forma gnóstica de Cristianismo. Assim, entre 202 e 217 d.C., existiu na verdade um estado
gnóstico-cristão na Síria, que foi posteriormente destruído pelo Imperador romano
Caracala. Bardesanes, no entanto, continuou a ensinar na Armênia, na Mesopotâmia e na
Síria e morreu em 233 d.C. Ele escreveu odes e hinos de grande beleza e se admite que o
lindo poema mítico, conhecido como A Canção da Pérola foi escrito por ele.*
* Ver Capítulo 9 desta obra.

57
Seu livro de 150 hinos foi usado pela Igreja cristã de Edessa, na Síria, até que foi
substituído, 170 anos depois, por hinos mais ortodoxos compostos por Santo Efraim.
Depois da morte de Bardesanes, ele foi sucedido por seu filho Harmônio, que também ficou
conhecido como poeta e músico. Embora se diga com frequência que a abordagem de
Bardesanes à Gnose cristã se caracteriza por tendências ascéticas de certo modo atípicas, é
certo que seus ensinamentos também continham uma ênfase considerável no divino
feminino, conforme é exemplificado pelo seguinte fragmento tríplice de seus hinos,
preservado por Santo Efraim:

"Ó fonte de alegria


Cujo portão, por comando,
Se abre para a Mãe,
Que Seres divinos
Mediram e fundaram,
Que Pai e Mãe
Em sua união semearam,
Com seus passos frutificaram.
Permita que aquela que te segue,
Seja para mim uma filha,
E uma irmã para vós.
Quando, afinal, nos será permitido
Contemplar Vosso banquete
Ver a jovem donzela,
A filha que Vós sentastes
Sobre Vossos joelhos e acariciastes?”³

As escrituras sagradas desempenharam um importante papel nos ensinamentos e


práticas de muitas religiões. Entre elas, a família judeu-cristã-islâmica de crenças parece
possuir uma ligação particularmente forte com suas escrituras, chegando às vezes a uma
verdadeira adoração da palavra escrita. O Cristianismo primitivo enfrentou um considerável
dilema sobre as escrituras, visto que seu fundador, repetidamente, mostrou pouca
reverência pela ortodoxia das escrituras judaicas e, além disso, declarou ter trazido uma
nova lei, aparentemente substituindo a antiga. O homem que abordou com grande
perspicácia e sucesso esse dilema foi um clérigo e armador nascido nas praias do sul do Mar
Negro, chamado Márcion que, embora muito viajado e bom conhecedor dos mestres
gnósticos alexandrinos, desenvolvia considerável atividade em Roma entre os anos 150 e
160. Márcion era bispo e filho de bispo, e um homem de muita influência nas diversas
comunidades cristãs.
Márcion mostrou que o Deus a quem Jesus se refere e o Deus do Antigo Testamento,
que fala e de quem falam, não são o mesmo ser. O Deus de Jesus é um Bom Deus, disse
Márcion, ao passo que o Deus da Bíblia hebraica é meramente um Deus Justo. Muitos
séculos depois, a escola moderna de alto criticismo bíblico adotou pontos de vista
extremamente semelhantes aos de Márcion. G. R. S. Mead, comentando a posição de
Márcion, escreveu com propriedade:
58
"Cristo pregou uma doutrina universal, uma nova revelação do Bom Deus, o Pai
Supremo. Aqueles que tentaram transplantar isso para o Judaísmo, o... credo de uma
pequena nação, erraram gravemente na compreensão do ensinamento de Cristo. O Cristo
não era o Messias (esperado pelo Judaísmo corrente-SAH). O Messias tinha de ser um rei
terreno, apenas para os judeus, a ainda não tinha vindo. Por isso, a escola pseudo-histórica
do "para que se cumpra" adulterou e deturpou os Ditos originais do Senhor, as alegres
Novas universais, pelas interpretações ignorantes e errôneas que introduziram em suas
coletâneas de ensinamentos.”4

Alguma coisa precisava ser feita. Márcion, então, decidiu remediar as condições
existentes. Com grande habilidade, organizou o material relacionado com Jeová, no Antigo
Testamento, e o organizou em colunas paralelas com tópicos relacionados às palavras e
feitos de Cristo. O resultado foi devastador. As contradições e inconsistências chocaram e
afligiram todos os que se confrontaram com elas. A melhor parte de Jeová apenas lhe
mostrou um rígido Deus de Justiça, enquanto que na parte pior, Ele se revelou como um Ser
caprichoso, cruel e voluntarioso. Em ambos os aspectos, Ele parecia muito afastado do ideal
de Bom Deus pregado por Jesus. Márcion estava particularmente ligado à figura e tradição
do apóstolo Paulo, que, segundo ele, foi o primeiro a realmente compreender a missão de
Cristo e quem resgatou o Cristianismo do provincianismo e sectarismo banal daqueles que
tentaram seguir Jesus sem compreendê-lo. (Esse raciocínio não era de nenhum modo
incomum entre os mestres gnósticos e está baseado no fato de que Paulo comungou com a
espiritualidade de Cristo em sua experiência na estrada de Damasco tendo tido, assim, uma
experiência de Gnose superior à experiência daqueles que meramente viram Jesus
fisicamente). O evangelho adotado como autêntico por Márcion foi uma versão que ele
possuía do Evangelho de Lucas, que, segundo ele, era em essência o trabalho do próprio
apóstolo Paulo.
Um dos mestres gnósticos mais controvertidos e mais atraentes foi Carpócrates que,
com sua esposa Alexandra e seu filho Epifânio (cuja existência histórica é posta em dúvida
por alguns), dirigiu uma influente escola gnóstica. Irineu, que escreveu sobre Carpócrates e
sua escola com pormenores maliciosos e escandalosos, bem como sobre alguém um pouco
mais confiável, Clemente de Alexandria (150-205 d.C.), informa-nos que Carpócrates foi um
grego nascido na ilha de Cefalônia, mas estabelecido em Alexandria, tendo lá ensinado
durante o reinado do Imperador Adriano (117-138 d.C.). Embora os Padres da Igreja
tenham acusado Carpócrates e sua escola de práticas ofensivas - basicamente de natureza
sexual - não há evidências de que esse grupo particular de gnósticos tenha sido mais do que
um grupo alexandrino culto, educado e próspero, composto de intelectuais urbanos, de
visão e hábitos liberais. Algumas das ideias desse grupo foram apresentadas num tratado
sobre justiça, que pode ter sido escrito por Epifânio, filho de Carpócrates. Essa escritura
expõe certas ideias comuns nas comunidades cristãs contemporâneas, ou melhor, nas
comunas, onde a acentuada divisibilidade e o egoísmo da propriedade privada e as
exclusividades das ligações familiares foram abolidos. Infelizmente, Clemente, que também
parece ter se mantido em posição de rivalidade com Carpócrates, representa uma de
nossas principais fontes de informação sobre esse tópico. Tudo o que podemos dizer com
59
certeza é que Carpócrates, junto com a maioria dos gnósticos, ensinou a necessidade de se
emancipar das regras e repressões obsessivas da estrutura da lei de Moisés e que ele não
via com bons olhos as tendências de alguns líderes cristãos (possivelmente incluindo
Clemente) de fazer um compromisso entre a liberdade existencial cristã e a antiga lei.
De maior interesse é o ensinamento dessa escola relativo ao que foi chamado de
Gnose Monádica e suas implicações, em termos da repersonificação ou reencarnação das
almas. A Mônada, ou Ser Unitário primevo, é a fonte e o destino último de toda a
existência; mas o plano manifesto da existência contém numerosas entidades finitas
espirituais que, a fim de manterem suas próprias esferas de influência particulares, tendem,
sempre, a contrariar o esforço universal pela unidade, presente em toda a criação. Esses
espíritos mundanos impõem várias restrições às porções do universo que dominam. É
necessário que os espíritos humanos acordem, antes de mais nada, para a memória da sua
condição anterior e da sua origem para que, fortalecidos por essas reminiscências, possam
se elevar acima das limitações da diversidade e voltar à unidade da Mônada. O mistério da
lembrança (anamnese) faz assim sua primeira poderosa aparição na literatura gnóstica
disponível. A difícil situação existencial e psicológica da alma humana, desse ponto de vista,
é que ela não se lembra do que é e onde está situado o seu verdadeiro lar. Aqui vem à
lembrança a afirmativa perfeitamente gnóstica do moderno escritor britânico Colin Wilson
de que o ser humano é realmente um Deus que sofre de amnésia, indolência e pesadelos.
Mas como, pergunta-se, poder-se-ia remover essa amnésia? A resposta de Carpócrates e de
sua escola é que, pela experiência intencional, ou como podemos chamá-la hoje,
experiência consciente do mundo e da carne, pode-se recobrar a memória verdadeira. No
seu ciclo de existência, a alma tem de passar por uma grande variedade de experiências, as
quais, se cuidadosamente observadas e assimiladas, pode conduzir à superação do
autoesquecimento. Por meio de cuidadosa auto-observação no núcleo da experiência, as
almas humanas conseguirão arrancar as algemas da limitação, impostas a elas pelos
espíritos mundanos. Elas estarão livres do ciclo das repetidas vidas e experiências e
poderão chegar a um estado de perfeição e repouso soberano. Parece que essa escola
aceitou completamente uma versão da doutrina da reencarnação, ao afirmar que somente
o indivíduo que escolhe levar uma vida de auto-observação, com a consciência alerta, é
capaz de superar a roda sem fim do retorno cíclico, à qual os agentes da limitação
condenaram a raça humana.
Isso nos traz ao mais importante de todos os mestres gnósticos, de quem a tradição
gnóstica recebe sua maior e mais atraente expansão e amplificação: o poeta, profeta,
visionário e amante do Divino, de nome Valentino. Mead chamou Valentino de "o grande
desconhecido do gnosticismo", pois é verdade que temos pouquíssima informação sobre
sua vida e pessoa. Valentino nasceu na África, na costa do antigo Estado de Cartago, em
torno ou antes de 120 d.C. Foi educado em Alexandria e passou boa parte de sua vida lá,
além de importante período passado em Roma. Conhecia, pessoalmente, muitos líderes das
igrejas cristãs de Alexandria e Roma. O famoso Padre da Igreja, Origenes, nascido em 185
dC., foi um dos seus primeiros associados, e não é inusitado dizer que alguns dos
ensinamentos de Orígenes, bem como uma atitude "gnosticizante" geral, podem ter sido
influenciados por Valentino. Entre 135 e 160 d.C., Valentino viveu em Roma e, de acordo
com Tertuliano, foi candidato ao posto de bispo de Roma. Também segundo Tertuliano (ele
60
mesmo um candidato à heresia) Valentino foi excluído da "grande igreja" em torno de 175
d.C. Há evidências que indicam, no entanto, que ele nunca foi universalmente considerado
um herege enquanto estava vivo e que foi respeitado na maioria das comunidades cristãs
até sua morte. Ele era quase certamente um sacerdote para a Igreja corrente e pode
mesmo ter sido um bispo. Como outros mestres gnósticos proeminentes, também recebeu
uma transmissão de ensinamentos e poder sacramental de um "homem apostólico", no seu
caso, de Teudas, um amigo e discípulo do apóstolo Paulo.
É certamente uma questão do maior interesse saber que rumo a doutrina e prática
cristãs poderiam ter tomado se Valentino tivesse sido eleito para o cargo de bispo de Roma.
Sua visão clara, hermenêutica, combinada ao seu senso do mítico, provavelmente teriam
resultado no florescimento geral da Gnose dentro da própria estrutura da Igreja de Roma e
poderiam ter criado um paradigma gnóstico de tal autoridade dentro do Cristianismo, que
não seria fácil acabar com ele por muitos séculos, se é que o seria. O fato de as
circunstâncias e o crescimento da maré de pseudo-ortodoxia terem feito abortar seus
esforços deve ser reconhecido como uma das grandes tragédias da história do Cristianismo.
Mesmo assim, muito traços importantes da sua contribuição ímpar sobreviveram e mais
alguns afloraram recentemente nas areias do deserto do Egito. É necessário enumerar aqui
alguns desses.
Valentino e muitos outros mestres gnósticos apresentaram a seus discípulos e leitores
cosmologias intrigantes: sistematizações da realidade psico-espiritual, de proporções
impressionantes e rico conteúdo. Foi alegado pelos Padres da Igreja antagonistas, e
longamente sustentado pelos seus seguidores, que esses constructos cosmológicos eram
pouco mais do que imagens artificialmente compiladas, calculadas para confundir e
impressionar a mente dos devotos. Foi graças à intuição importante e imparcial da moderna
psicologia profunda que muitos estudiosos contemporâneos começaram a reconhecer que
essas imagens cósmicas, que reaparecem em formas semelhantes nos sistemas
neognósticos, tais como a Teosofia e a Antroposofia, podem, de fato, ser padrões primais,
percebidos pela experiência visionária direta e intuitiva. C. G. Jung, que encontrou notáveis
semelhanças entre o imaginário arquetípico gnóstico e suas próprias imagens, declarou,
repetidamente, que estava convencido de que as sistematizações gnósticas da realidade
eram o resultado de uma experiência espiritual direta e altamente instrutiva, por parte dos
visionários gnósticos, entre os quais Valentino, com seu lugar de destaque. O psicólogo e
mitologista junguiano Ean Begg assim comenta o caráter e a importância dos arquétipos
gnósticos para a psicologia profunda:

"Para os gnósticos, os arquétipos não eram apenas conceitos ou ideias abstratas, nem
eram exatamente iguais aos deuses dos antigos, personificações dos instintos humanos e
receptáculos das projeções humanas, que já estavam entrando em decadência no tempo
em que o Gnosticismo apareceu no cenário. Parece que pelo menos alguns gnósticos
chegaram perto de entender os arquétipos como psicóides, isto é, energia quanta
subliminar, coletiva e autônoma, manifestando-se, tipicamente, em experiências
sincronisticas ou transcendentais, possuindo os indivíduos e operando através deles. A
proximidade dessas visões dos gnósticos com a sua própria impressionou Jung fortemente,
embora, quando ele morreu, apenas uma fração da Biblioteca de Nag Hammadi, o Códice
61
Jung, já tivesse sido traduzida.5

As cosmogonias e teogonias, evangelhos e mitos, reunidos sob o título "Valentiniano",


podem ser mais proveitosamente entendidos como sendo baseados num único
reconhecimento existencial, assim resumidos: "Algo está errado." Em algum lugar, de
alguma forma, a estrutura do ser, no nível existencial do funcionamento humano, perdeu
sua integridade. Vivemos num sistema carente de integridade essencial e, portanto,
defeituoso. Os seres humanos vivem num mundo absurdo, que só pode se tornar
significativo pela Gnose ou autoconhecimento. Esse absurdo é a qualidade inerente ao tipo
de realidade em que vivemos. Não se deduz daí que os constituintes físicos ou suprafísicos
dessa realidade sejam absurdos em si mesmos, mas sim nosso modo sistemático de
percebê-los. A palavra "cosmos", como é usada pelos gnósticos, não significa mundo (como
é frequente mas imprecisamente traduzida), mas sim sistema, e pode ser, assim,
perfeitamente bem aplicada ao sistema criado pela mente humana a respeito da realidade.
Basilides chamou esse cosmos de ilusão, reiterando, assim, os pontos de vista hindu e
budista. Valentino no Evangelho da Verdade do qual parece ser o autor, introduziu o nome
"plano", significando erro, para denotar o mesmo conceito. Todos podemos concordar que
a realidade para nós é o que parecer ser real, e assim nossa mente, embora falha em
Gnose, nos apresenta uma realidade defeituosa, repleta de absurdo.
De forma semelhante, é necessário considerar que os esforços de Valentino em
transferir a responsabilidade do defeito cósmico da humanidade para a Divindade não
representam o tipo da blasfêmia que os crentes judeu-cristãos poderiam perceber como
tal. O rígido monoteísmo não tem a sutileza psicológica e metafísica que pode ser percebida
no pensamento gnóstico. O Deus inferior ou criador, imaginado pelos gnósticos, é, de certa
forma, semelhante a um mitologema imperfeito, criado pela mente. O Evangelho de Felipe,
uma escritura que leva a marca da influência de Valentino, nos conta: "Deus criou o homem
e o homem criou Deus. Assim é o mundo. Os homens produzem deuses e adoram suas
criações. Seria adequado que os deuses adorassem os homens."6 A proposição de que a
mente humana vive num enorme mundo autocriado de ilusão e erro, de onde só a
iluminação de um certo tipo de Gnose pode resgatá-lo, encontra praticamente analogias
exatas no Hinduísmo e no Budismo. Os Upanishades afirmam que este mundo é o maia da
divindade, através do qual o homem se engana. Buda afirmou que o mundo consiste em
ignorância, impermanência e falta de autêntica individualidade. Valentino está, de fato, em
muito boa companhia, quando propõe que vivemos num sistema defeituoso, de falsa
realidade, que pode ser consertado pela intuição do espírito humano.
O que propõe Valentino que os homens façam para reparar o defeito do cosmos?
Irineu cita Valentino a esse respeito:

“A perfeita redenção é o próprio conhecimento da inefável grandeza. Pois uma vez


que a ignorância gerou o defeito... todo o sistema proveniente da ignorância é dissolvido na
Gnose. Por isso, a Gnose é a redenção do homem interior; e não é redenção do corpo, pois
o corpo é corruptível, nem psíquica. pois mesmo a alma é um produto do defeito e pousada
do espírito. A redenção, portanto, deve ser por si mesma de natureza pneumática. Através
da Gnose, então, o homem espiritual interior é redimido: para nós é suficiente a Gnose do
62
ser universal; e esta é a verdadeira redenção."7

A ignorância dos agentes que criam o falso sistema é, assim, desfeita pela Gnose
espiritual do ser humano. O defeito pode ser removido pela Gnose. O autoconhecimento
espiritual torna-se, desse modo, o inverso da ignorância do ego humano não redimido. A
proposição assim delineada, que alguns chamaram de "equação pneumática", representa o
cerne da realidade das elaboradas estruturas místicas, de conteúdo cosmogônico e
redentor, que estão associadas aos ensinamentos de Valentino.
Os métodos advogados por Valentino para facilitar a verdadeira Gnose espiritual não
se restringem a doutrinas filosóficas e a mitologemas poéticos. O sistema valentiniano foi,
acima de tudo, um sistema de sacramento. Além dos sete sacramentos cristãos ainda
preservados em certos ramos do Cristianismo, a Gnose de Valentino praticava dois ritos de
mistério maiores, chamados "redenção" e "câmara nupcial", respectivamente.*
* Para uma exposição dos supremos ritos de mistério de Valentino, ver Capítulo 12 deste livro.
Valentino teve numerosos discípulos, entre os quais devem ser mencionados
especialmente Marco, um antigo discípulo, e dois letrados comentaristas, que tendiam a
modificar os ensinamentos de Valentino, Ptolomeu e Heráclio. Esses últimos modificaram
mais ainda os ensinamentos, para acomodar os pontos de vista cristãos correntes. Assim,
enquanto Valentino enfatizava que Jesus ocupava um veículo que era puro espírito,
Ptolomeu admitia que Ele também tinha uma natureza psíquica e um corpo.
Os nomes aqui mencionados não esgotam, de modo algum, o número de mestres
gnósticos do período clássico, do século II e III. Nomes como Cerinto, Monoimo, Cerdo e
Apeles aparecem nos escritos polêmicos dos Padres da Igreja, todos descrevendo mestres e
praticantes da mesma Gnose, da qual Valentino e outros proeminentes líderes gnósticos
podem ser considerados os grandes representantes.
Que fim levou o Gnosticismo? A partir do século IV, toda a espiritualidade alexandrina
começou a declinar rapidamente. No rastro do fatídico Concilio de Nicéia (325 d.C.),
convocado pelo imperador pagão Constantino, que, no entanto, estabeleceu o Cristianismo
como a religião oficial do Estado Romano, o partido corrente, atrelado à ortodoxia
literalista, tornou-se o elemento legislador, não apenas na Igreja, mas também na
sociedade em geral. Elaine Pagels, na sua influente obra, The Gnostic Gospels nos diz:

"No tempo do Imperador Constantino... quando o Cristianismo se tornou uma religião


oficialmente aprovada no século IV, os bispos cristãos, antes vitimados pela polícia, agora a
comandavam. Coleções de livros condenados como heréticos passaram a ser delito penal.
Cópias desses livros foram queimadas e destruídas."8

Tornou-se questão de conveniência que a forma de Cristianismo agora propagada às


massas deveria ser tão simples e sem sutileza quanto possível. Esses critérios não se
aplicaram ao gnosticismo. O ensinamento e a prática da Igreja Cristã, a partir de então, se
reduziu ao mínimo denominador comum. A cultura geral também sofreu: a grande
Biblioteca de Alexandria foi queimada, a Escola de Filosofia foi fechada, tanto por falta de
alunos como de professores qualificados. Os gnósticos devotos, ou aprenderam a adaptar
suas mentes, ao menos ostensivamente, às estreitas ortodoxias da Igreja, e passaram suas
63
vidas nos primitivos mosteiros do Egito e da Europa, ou esconderam sua teoria e prática
gnóstica sob frases e símbolos misteriosos da alquimia. Exceto em algumas províncias
remotas, a transmissão gnóstica parou de funcionar no mundo externo, e seus mistérios
foram escondidos sob um véu.
A leste do Império Romano, na antiga Pérsia, um ramo especial do movimento
gnóstico foi fundado pelo poeta, pintor e profeta Mani. Nascido na Mesopotâmia (215
d.C.), de pais persas, e executado cruelmente em 277, esse gentil e refinado amante da
Gnose foi instruído, em sua juventude, provavelmente em alguma variante do gnosticismo
sírio, que ele adaptou ao ambiente espiritual persa, no decurso do seu ministério. Mani e
seus associados não eram apenas visionários e escritores, mas organizadores eficientes. A
despeito da relativa brevidade da vida de Mani, o movimento maniqueísta cresceu e se
espraiou, não apenas na região do Mediterrâneo, mas também na Índia e na China, assim
como nos Bálcãs e na Europa. Mortos a espada e queimados em fogueiras repetidas vezes,
em muitos lugares os seguidores da Gnose maniqueísta sobreviveram heroica e teimosa-
mente. Nos Bálcãs, um santo mestre chamado Bogo-mil (amigo de Deus), por volta de 960,
estabeleceu uma forma de fé, de tipo de Mani, que gozou de ampla popularidade durante
vários séculos, e da qual se diz que ainda possui devotos secretos na Bulgária. O maior e
mais influente movimento maniqueísta foi, por certo, o dos cátaros (os puros), em
Languedoc, cuja sabedoria, pureza moral e gentileza granjeou-lhes o amor e o respeito da
população local, mas também provocou a ansiedade e a ira do papado e dos reis de França,
cujos esforços conjuntos levaram ao terrível extermínio dos devotos cátaros e à devastação
das primorosas províncias onde residiam.
Em 16 de março de 1344, o último bastião da fé cátara, a fortaleza na montanha de
Montségur, caiu, sob os devastadores exércitos franceses do Norte e a liderança
remanescente da fé pereceu em um holocausto ordenado de forma inquisitorial, descrito
pelo novelista Lawrence Durell como as Termópilas da alma gnóstica. Assim como nos
Bálcãs, as centelhas da Gnose não foram totalmente abafadas e o fogo secreto continuou a
queimar sob o chão palmilhado pelos inquisidores e tropas inimigas. Até os dias de hoje,
pode-se encontrar no Languedoc modestos camponeses que confidenciarão a um discreto
visitante o fato de que nunca deixaram de ser cátaros e que continuarão na sua antiga fé,
pura, até o fim de sua raça. O mundo exterior também se tornou cada vez mais consciente
do mistério e romance dos cátaros martirizados e o castelo em ruínas de Montségur serve
hoje como um local de frequentes peregrinações de visitantes reverentes, de muitas partes
do mundo. Antecipados pelo historiador e novelista Zoe Oldenbourg, um corpo crescente
de literatura contemporânea, em várias línguas, continua a explorar os caminhos e
descaminhos da história e ensinamentos da Gnose cátara.*
*Uma das mais incomuns contribuições para essa literatura vem do psiquiatra britânico Arthur Guirdham
que na sua prática, encontrou numerosas pessoas que parecem possuir memórias espantosamente
precisas sobre suas vidas pregressas como cátaros (veja especialmente seu livro The Cathars and
Reincarnation (Wheaton, III.: Quest Books, 1978) (Os Cátaros e a Reencarnação, Editora Pensamento, São
Paulo, 1992).
Existirão gnósticos hoje? A resposta é: sim. Os representantes contemporâneos da
tradição gnóstica podem ser divididos em dois grupos: os inegáveis descendentes diretos
das antigas escolas gnósticas, de um lado, e movimentos de restauração total ou parcial, de
outro. Uma herança direta do antigo gnosticismo é a fé dos mandeanos, que em remotas
64
contracorrentes do Oriente Médio mantiveram suas tradições especiais, desde os primeiros
séculos da Era Cristã. Virtualmente, nada se sabia sobre esses gnósticos reclusos, até que
uma decidida mulher inglesa, Lady E. S. Drower, nas primeiras décadas do século XX,
descobriu sua existência e traduziu muitos dos seus livros sagrados para o inglês.9 Manda
significa Gnose na antiga língua desse povo e o gnosticismo da sua fé parece ser de uma
variedade bastante primitiva, uma vez que não aceitam Jesus e concentram sua atenção na
figura de João Batista. Hoje, os mandeanos constituem uma minoria religiosa respeitada no
Iraque, morando principalmente em cidades como Bagdá e Basra, e são cada vez mais
objeto de interesse dos estudiosos visitantes. Não é nada improvável que os mandeanos
completamente gnósticos, más não cristãos, constituam um elo vital, antes perdido, ligando
a tardia florescência gnosticizante dos essênios com a Gnose clássica.
Com o gradual aparecimento nos séculos XVIII e XIX, de documentos originais
gnósticos, tais como os Códices Akhmin, Askew Berlim e Bruce aumentou o empático
interesse do lado criativo da cultura no gnosticismo. William Blake foi chamado de gnóstico
por seu amigo Crabb Robinson, enquanto Madame H. P. Blavatsky empreendeu uma
completa reabilitação e revigoramento do gnosticismo. O estudioso de religião, Robert S.
Ellwood Jr., comentou: "Blavatsky abraçou novamente a causa da Gnose. Disseminada pela
sua obra Ísis sem véu, estão afirmações da maioria dos princípios gnósticos, embora o
pessimismo existencial deles esteja muito mitigado, pois ela os torna equivalentes às
doutrinas orientais, herméticas e cabalistas, expressas de modo mais otimista.”10 A opinião
dos estudiosos sobre o caráter desse movimento pioneiro de restauração do oculto dos
mais influentes nos séculos XIX e XX, é agora quase unânime na sua afirmação de que a
Teosofia é, de fato, um novo movimento gnóstico. Em sua obra sobre o movimento
teosófico, o professor Bruce Campbell afirma que a Teosofia é "uma antiga tradição
ocidental, a tradição gnóstica, que se tornou clandestina, quando o Cristianismo triunfou.”¹¹
Como era de se esperar, a descoberta e a subsequente tradução da coleção de textos
gnósticos de Nag Hammadi, mais do que os poucos códices originais gnósticos descobertos
nos séculos XVIII e XIX, levou a um renascimento gnóstico. Já no início do século XX havia
uma conhecida igreja gnóstica na França que funcionava em público. Essa instituição, a
"Igreja Gnóstica Universal", atraiu notáveis esoteristas franceses, tais como Papus (dr.
Gérard Encausse), Sédir (Yvon Le Loup), assim como artistas, escritores (tais como Fabré des
Essarts, o poeta simbolista e, no geral, a criatividade à margem da cultura corrente.
Emergindo de fontes de transmissão misteriosas, mas notáveis, como os cátaros, os
Cavaleiros Templários e mesmo sociedades gnósticas secretas mais antigas, a Igreja
Gnóstica francesa vivenciou um renascimento e iniciou extensões em outras partes do
mundo. Embora ainda poucos, os gnósticos estão presentes e são conhecidos no mundo de
hoje.
O coração, a alma da tradição gnóstica é mitológica. Começando com suas origens
veneráveis nos desertos da Judéia e do Egito, entre os piedosos judeus heréticos chamados
essênios, e continuando com os grandes luminares da Gnose, tais como Valentino, Basilides
e Mani, a outra tradição segue seu caminho, como um grande rio subterrâneo em direção à
paisagem do mundo contemporâneo com seus aviões, computadores e com cada vez
menos raízes espirituais, devido à perda dos mitos que antes o alimentava. É tempo de
examinar os principais mitos dessa outra tradição, de modo que, quiçá lá encontremos o
65
que falta aos nossos mitos oficiais. Tennyson escreveu: "Deus realiza-se a si próprio de
várias maneiras, para evitar que um bom hábito corrompa o mundo." Certamente, o mito
alternativo gerado pela outra tradição representa uma das maneiras pelas quais tal
cumprimento divino pode nos salvar das depredações impostas a nós pela unilateralidade
das tradições e dos mitos correntes. É com essas expectativas que nos dirigimos às imagens
míticas, que juntas se apresentam a nós com a consciência da outra realidade.

66
PARTE ll
A Outra Realidade

Serpente Alquímica Gnóstica

6
A Sabedoria Errante:
O Mito de Sophia
Introdução: Gnose, Metáfora e Mito

A tradição está sempre enraizada na experiência, Por detrás de cada estrutura tecida
de teologia, filosofia e ética revelada existe um alicerce fundamental de experiência
transcendental. Moisés sobe ao Monte Sinai e, experimentando a realidade de Jeová,
recebe as tábuas da Lei, Buda recebe a iluminação sob a árvore sagrada Bodhi e sai a
proclamar o Dharma, Maomé conversa com o anjo Gabriel numa caverna, antes de
começar sua missão profética. Contudo, é inegável que as tradições religiosas correntes
diferem substancialmente da tradição alternativa, visto que as primeiras tendem a
entesourar os resultados da experiência da revelação dentro da crença e dos
mandamentos, ao passo que aquela resiste ativamente à metamorfose da experiência na
teologia e na pregação moral. A tradição gnóstica nascida entre os essênios e continuada na
revelação cristã tem resistido, assim, à transformação da experiência num constructo
teológico-ético e optou, ao invés disso, por uma direção diferente,
Conforme foi visto anteriormente (Capítulo 5), os gnósticos se engajaram
regularmente naquilo que G, Quispel chamou de "a mitologização da autoexperiência". O
mesmo autor explicou melhor esse procedimento, da seguinte maneira:

“Em minha obra Gnosis ais Weltreligion [A Gnose como Religião Universal] (1951), eu
sugeri que o Gnosticismo expressou uma experiência religiosa específica, que foi
frequentemente transformada em mito. Um exemplo é a história de Mani, o fundador do
maniqueísmo que, quando tinha doze anos, foi inspirado por um anjo enviado por Deus.
Quando ele tinha 24 anos, o mesmo anjo voltou e lhe disse: 'Chegou o momento de fazeres
67
a tua aparição pública e proclamar a tua doutrina: O nome do anjo significa 'gêmeo' e ele é
o irmão gêmeo ou o 'Eu-divino' de Mani.
Esse mito maniqueísta expressa o encontro entre o Ego, o Self e o Self-divino. No
sistema de Valentino, temos um conceito parecido: o do anjo da guarda que acompanha o
homem ao longo de sua vida, que lhe revela a Gnose e que não tem permissão para entrar
na bem-aventurança eterna sem ele."¹

No coração da tradição alternativa do gnosticismo está a experiência do Eu interior


que, sendo da mesma substância de Deus, naturalmente une a consciência humana à
divindade. A experiência pessoal dos gnósticos foi citada pela professora Elaine Pagels no
título do Capítulo VI de seu livro Os Evangelhos Gnósticos: "Gnose: Autoconhecimento e
Conhecimento de Deus."
Essa experiência de autoconhecimento, que é ao mesmo tempo conhecimento de
Deus, foi transformada pelos gnósticos na mais criativa de todas as expressões simbólicas
da realidade, ou seja, o mito.
Um dos maiores mitologistas modernos, o estudioso húngaro C. Kerényi, ligou a
mitologia à música. A música e a mitologia têm o seguinte em comum: em ambas, achamos
arte e material fundidos no mesmo fenômeno. A arte do compositor e o seu material, que é
o mundo dos sons, são uma coisa só. A elaboração do mito e o material do mito, nesse caso
o mundo das imagens, também estão intimamente relacionados. Na verdade o mito não é
tanto criado como vivenciado, e essa vivência dá origem então a uma torrente de imagens
mitológicas, que expressam aspectos do significado da experiência. Mais ainda: uma
expressão verdadeiramente mítica ou um mitologema não é algo que poderia ser expresso
igualmente e de maneira igualmente autêntica de modo não mitológico. Não se pode
substituir a mitologia por um modo de expressão de natureza diversa. Certas experiências
podem ser expressas adequadamente sob a forma de mito e de nenhuma outra forma.
Visto assim, o mito adquire um novo significado. Ele se torna a expressão, no mundo
da relatividade, de princípios espirituais que têm crucial importância para todos os seres
humanos, já que expressam, dentro desse mesmo mundo, a experiência do Absoluto. A
experiência do Absoluto, conforme encontrado no conhecimento do Self interior pelos
gnósticos, é então expresso no domínio da mente pelo mito, que age ao mesmo tempo
como o véu sobre a Verdade e como a maneira pela qual a Verdade pode ser desvendada.
"O aparente leva ao Real", é um dito sufi, indicando que por trás do simbolismo há uma
realidade ligada ao próprio símbolo, e que por trás da mitologia também há uma essência
vivencial, que tem uma conexão direta com a experiência original (chamada por Jung de
Urerfahrung - experiência arcaica), que deu origem ao mito em primeiro lugar.
É mais do que provável que os gnósticos tenham sido os primeiros mitologistas
conscientes a usarem o mito tanto para expressar suas experiências místicas básicas como
para sutilmente levar outros a experiências semelhantes. Já nos tempos clássicos a palavra
grega mythos denotava uma lenda de um tempo antes da história, um conto envolvendo os
habitantes da dimensão a-histórica, a saber: os deuses, as deusas e os heróis. Em tempos
mais modernos, na era romântica, o mesmo termo foi reintroduzido, descrevendo uma
história na qual aparecem pessoas ou eventos sobrenaturais, de um período anterior não
especificado. Muitos dicionários contemporâneos definem mito como algo "inteiramente
68
fictício"; mas devemos lembrar que a palavra "fictício" vem do Latim fingere, formar ou
modelar, sugerindo que o mito é um relato que não é historicamente verdadeiro, embora
represente a modelagem de verdades, de caráter atemporal. Os eventos míticos ocorrem,
como expressa a Missa Latina ao anunciar o Evangelho: In illo tempore, num tempo não
especificado, talvez de forma semelhante ao que os aborígines australianos tendam a
chamar de "tempo de sonho". Os mitos gnósticos devem ser entendidos como existindo
nessas categorias atemporais, ocorrendo, como em latim tem sido chamado, sub specie
aeternitatis (sob o aspecto da eternidade). É nessas fontes profundas e misteriosas que os
mitólogos gnósticos foram buscar seu princípio e inspiração.
Os estudiosos modernos mais criativos de há muito suspeitam que os gnósticos foram
de fato mitólogos experientes, psicologicamente instruídos. Em torno de 1932, muito antes
de Jung, Quispel e Joseph Campbell, F. C. Burk:itt escreveu: "É bastante evidente, a todo
momento, que ele [Valentino] está descrevendo a primeira origem das coisas, sob a figura
do mito: e mais, que sua ideia acerca da origem das coisas é psicológica. semelhante aos
processos mentais de nossa própria mente, que são, de fato, os únicos processos mentais
que conhecemos.”² (itálicos nossos - S. A. H.) O que Burkitt, Jung e outros chamaram de
mitologização psicologicamente instruída, foi reconhecida por Hans Jonas e Rudolf
Bultmann como "objetivação existencial", o que significa simplesmente que os mitos
gnósticos representam a objetivação da compreensão que o ser humano tem da sua
existência.³ Quer se origine no esforço psíquico para a individuação, quer na necessidade
humana de compreender a alienação do destino e as escolhas mágicas da sua existência, o
imenso valor dos mitos gnósticos é atestado por ambas as correntes.
A experiência transformada em mito e o mito voltado para dentro como
autoconhecimento psicológico: eis o grande movimento da Gnose no plano da realidade
psíquica. Contudo há, ainda, um terceiro componente, que permite que o mito desça do
nível puramente psicológico para o nível da manifestação material, onde ele pode imprimir
sua marca, não apenas nas funções de intuição, pensamento e sentimento, mas também na
função de sensação. Esse terceiro elemento é o ritual válido, que possui verdadeiro
significado e que se transforma em dramatização ou "atuação" do mito para os sentidos. O
interesse considerável dos gnósticos pelo ritual sacramental atesta o importante papel da
ritualização do mito no supra citado movimento da Gnose. Também é aqui, na natureza
desse movimento da Gnose, que podemos apreender, graficamente, a grande diferença
que separa essas tradições correntes, como o Judaísmo, o Cristianismo não gnóstico e o
Islamismo, de um lado, da tradição alternativa do Gnosticismo, de outro.

69
A tendência das tradições correntes é transformar a experiência inicial em dogma e
mandamento, através da ação intermediária das sagradas escrituras historicamente
interpretadas, escrituras que habitualmente surgem como histórias que terminam com
uma moral. A tendência da tradição alternativa é sair da experiência inicial para uma
expressão da experiência sob forma de mito e, daí, para atuação ritual do mito numa
expressão física completamente perceptível, de onde ocorre o recolhimento das imagens
para dentro do Self, abrindo, assim, mais uma vez caminho para a experiência original e
primal.
Uma validação interessante do enraizamento transcendental dos mitos gnósticos nos
vem do já citado C. Kerényi, notável mitologista. No seu trabalho Essays on a Science of
Mythology [Ensaios sobre uma Ciência da Mitologia] (escrito em colaboração com C. G.
Jung), ele indica que os gnósticos eram místicos que se especializaram na mitologização da
experiência mística. Do mesmo modo que o falecido estudioso Leo Frobenius (1873-1938),
Kerényi assume a existência de certas importantes coordenadas místicas estruturais, que
ele chama de "mônadas". Essas mônadas míticas são as principais formas diferenciadas nas
quais a experiência primal da realidade mítica se divide. O notável filósofo alemão Oswald
Spengler reconhecia oito dessas mônadas culturais, com outra em formação (algumas das
quais são a egípcia, a greco-romana, a védico-ariana e a maia-asteca- inca). Todas essas
mônadas míticas estão baseadas em mitologemas primários que são pré-monádicos, cuja
categoria inclui os mitologemas dos gnósticos. Diz Kerényi:

"Nós entendemos os mitologemas primários como os mitologemas que chegam mais


perto destes encontros diretos com a Divindade... Estes, no seu estado puro, por exemplo,
a ideia pura da mandala, seu 'arquétipo', por assim dizer, são premonádicos. O que existe
historicamente tem o caráter não apenas de uma mônada - isto é, de algo que pertence
local e temporanamente a uma cultura definida - mas também de uma obra, isto é, falando
da maneira típica de um certo povo. Por outro lado, cada povo exibe sua verdadeira,forma
da maneira mais pura quando está frente a frente com o Absoluto... É por isso que Plotino
pode nos falar sobre experiência mística pura e é por isso que seus contemporâneos, os
gnósticos, podem nos contar o que mais se aproxima da mitologia no misticismo.”4 (Itálicos
nossos - S. A. H.)

Essa mitologia mística que ocorre entre os gnósticos é, pois, um fenômeno único.
Enraizada como se encontra na experiência pessoal altamente carregada de estados
profundos de consciência, tem qualidade raramente encontradas no folclore tradicional e
nos mitologemas culturalmente condicionados. Diferente desses últimos, ela é capaz de
transmitir uma quantidade considerável de sua qualidade original, à qual Jung e outros
aplicaram o termo "numinoso" - tendo o poder de um numen ou divindade. Os mitos
gnósticos pertencem a uma categoria especial e, por isso, têm uma força capaz de produzir
um impacto de inusitada qualidade na psique das pessoas. Joseph Campbell, grande
divulgador da mitologia, mostrou (utilizando uma análise já existente de Emmanuel Kant)
que o domínio a priori da transcendência pode relacionar-se com o campo temporal das
aparências fenomenais apenas por analogia, e que o instrumento pelo qual esse tipo e
analogia se expressa é a metáfora.5 Esse agente, que Campbell definiu como "uma imagem
70
psicologicamente carregada de afeto, transparente à transcendência", deve também ser
visto como verdadeiro alicerce do mito gnóstico. Gnose, mito e metáfora se constituem,
assim, na trindade dos instrumentos conscientes onde as realidades vislumbradas pelos
videntes gnósticos se tornaram disponíveis aos mortais, que ainda aspiram a tal visão.
Deixemos que alguns dos mitos e metáforas dos gnósticos nos falem de sua própria
maneira ainda que modificados e ampliados pela percepção e linguagem contemporâneas.
Examinemos, assim, o primeiro desses importantes mitologemas, sob a forma da história
de Sophia, a mulher-sábia divina.

O Mito de Sophia

No alto do inefável e transcendental mundo da luz, existia um par primal chamado


Profundidade e Silêncio. Juntos, criaram um reino perfeito de equilíbrio e poder criativo,
consistindo em trinta formas arquetípicas de consciência chamadas aeons. A mais jovem e
aventureira delas, chamada Sophia (Sabedoria), apaixonou-se pelo próprio progenitor real,
o grande rei invisível do Todo, chamado Profundidade, e desejou sondar sua natureza
perenemente inescrutável. Confusa por seu amor, lançou o olhar em várias direções de seu
posto eterno na plenitude, até que, a distância, vislumbrou uma luz magnífica,
tremeluzindo com sublime graça. No espanto originado pelo seu amor, não podia mais
distinguir entre o acima e o abaixo e, assim, supôs que a luz sedutora, que na verdade
estava abaixo dela, não era senão a real efulgência do grande rei, seu pai, que residia no
mais alto ponto dos céus. Desse modo, desceu ao vazio abissal, de onde, num mar de
espelhos sem limite e inescrutável, o reflexo da luz celestial acenava para ela. Seu consorte
celestial, Cristo, foi incapaz de refreá-la e assim, depois de um amplexo final e doloroso, ela
mergulhou na profundeza das trevas, apenas para descobrir como a luz refletida a iludira.
Triste e com medo, viu-se rodeada pelo vazio, destituída da qualidade e do poder da Gnose,
à qual estava habituada na plenitude. Desejosa de ter uma figura conhecida perto dela,
criou numa forma virginal um ser, cujo nome era Jesus. Embora concebido misteriosamente
pelo seu desejo da Gnose original, Jesus se uniu, contudo, a uma sombra de escuridão, que
se agarrou a ele pelas influências maléficas do vácuo sombrio onde nascera. Logo, Jesus se
libertou de seus liames perturbadores e sombrios e subiu à plenitude, deixando Sophia em
desalento.
Fora do universo celeste espiritual, sozinha e sem apoio, Sophia vivenciou toda sorte
de tormentos psíquicos imagináveis. Paixão, pesar, medo, desespero e ignorância
exsudaram do seu ser como poderosas nuvens e se condensaram nos quatro elementos:
terra, água, fogo e ar, assim como em seres que, mais tarde, ficaram conhecidos com o
nome de Demiurgos e regentes (arcontes) - todos eles espíritos ferozes e turbulentos. O
mais poderoso deles, um ser com face de leão, cheio de orgulho e desejo de poder,
comandou sua hoste de espíritos criadores do mundo e, a partir da matéria-prima de terra,
água, fogo e ar, eles construíram um mundo de aparência externa impressionante, embora
repleto de grandes falhas, criado à imagem de seus criadores. Pesar, medo, ignorância e
outras paixões dolorosas e destrutivas foram tecidos nas malhas desse mundo imperfeito,
visto que a matéria-prima de seus fabricantes se originou nos sentimentos experimentados
por Sophia. Olhando para baixo, para o mundo imperfeito e conturbado, orgulhosamente
71
modelado pela sua própria prole ignorante, Sophia se encheu de piedade pela criação e
resolveu assisti-la como pudesse. Ela tornou-se, então, o espírito do mundo, ansiosamente
observando-o, como faz uma mãe quando vela por um filho fraco e malformado.
Enquanto isso, nas alturas, Jesus observava com ansiedade o triste destino de sua mãe
Sophia. Ele juntou-se ao aeon-gêmeo de Sophia, Cristo, e assim se tornou Jesus Cristo, o
Messias, e mensageiro de Deus. Em volta Dele estavam reunidos todos os sublimes e
compassivos poderes da plenitude, cada um ofertando-lhe presentes e glórias de seus
respectivos tesouros. Assim, em Jesus Cristo, a plenitude e seus poderes se reuniram,
preparando-o para o grande ato da redenção, a libertação de Sophia de sua lamentável
condição no vácuo. Incessantemente, as súplicas de Sophia subiram como nuvens de
incenso agridoces penetrando o recesso da plenitude, despertando a compaixão de todos
os esplêndidos seres aeônicos que perpetuamente contemplam sua glória em seus reinos
de perfeição. Através dos séculos e milênios da história da terra, Sophia orou e se lamentou
sobre seu destino e sobre o destino do mundo imperfeito, e raios de luz se emaranharam
nas redes dos regentes, que como monstruosas aranhas continuavam a tecer teias de
matéria, emoção e pensamento, como armadilhas para os seres humanos, - em essência,
não criação deles, mas raios da própria natureza superior de Sophia, infundidos em corpos
de argila.

Finalmente, os poderes da plenitude foram reunidos e, tendo entrado em Jesus Cristo,


desceram à terra para libertar Sophia e por esse modo trazer redenção a seus filhos
espirituais, os membros da raça humana. Depois de enfrentar as dificuldades impostas a Ele
pelos regentes e por seus lacaios humanos iludidos, Jesus Cristo ascendeu triunfantemente
da terra, levando Sophia pela mão. Alegremente, subiram às várias mansões do paraíso,
batendo nos portais dos guardiões espirituais e conseguindo passagem para regiões mais
altas e sutis da existência. Em cada portal, Sophia entoava canções de louvor e gratidão à
luz que a salvara do caos das regiões inferiores.
Quando Sophia, o Espírito do Mundo, chegou às margens que separavam os mundos
inferiores da plenitude, olhou, mais uma vez, para baixo, para o mundo imperfeito e
atormentado, suspenso no vácuo e no caos; seu coração partido mas agora refeito, se
encheu de compaixão. Não, ela não poderia deixar completamente para trás aquela
estranha criação, aos seus recursos mais que inadequados, nem poderia ela abandonar
seus filhos verdadeiros, as mulheres e homens que estavam mais intimamente ligados a ela
72
do que quaisquer outros seres fora da plenitude. Assim, usou seus poderes mágicos e
dividiu sua natureza em duas metades: uma, que subiu aos aeons na plenitude para lá
residir com Cristo e Jesus, e a outra, que permaneceu próxima à criação, para continuar a
assisti-la em compassiva sabedoria. Seu segundo Self, criado pela compaixão, se tornou
assim conhecido como Achamoth, a errante ou a inferior, que ainda está em contato com a
humanidade e as regiões deste mundo.
Foi assim que ocorreu com o universo, que se constelou em três regiões. A primeira é
a sublunar ou mundo material, governada por um regente que os antigos chamavam de
Pan e que outros chamam indevidamente de demônio. Esse regente reina sobre a terra, as
plantas e as criaturas vivas. E, como um paciente pastor de ovelhas, vela para que todas
essas manifestações da vida de Sophia possam, um dia, alcançar os mundos superiores, não
importa quão longe vagueiem. Desconhecendo as realidades e desígnios dos poderosos
aeons de luz, o regente deste mundo meramente gira a roda de nascimento, morte
nascimento, com a esperança de que, se ele e seu rebanho forem capazes de se manter
dentro dos movimentos da vida biológica, não serão condenados na hora da libertação.
Mais alto, no espaço imaterial, está o mundo da alma ou da mente, regido pelo
arconte principal, também chamado Demiurgo, tendo numerosos nomes, inclusive
Yaldabaoth (Deus infantil) e Saclas (o cego). É do reino dessa divindade arrogante e sedenta
de poder que se originam muitos conceitos e preceitos que escravizam a mente e a vontade
humana. O deus cego tem grande interesse no que ele prazerosamente chama de lei.
Regras, mandamentos e regulamentos de todo tipo são criados por ele a fim de diminuir a
liberdade, direito de nascença do espírito. Filosofias e ideologias de diversos tipos também
são colocadas na mente humana pelo Demiurgo, junto com a ganância, o poder e outras
obsessões que obscurecem e viciam a pureza espiritual de homens e mulheres.
A terceira, no mundo acima dos planetas, imediatamente abaixo dos portais da
própria plenitude onipotente, é "uma região onde Sophia-Achamoth, a mãe celestial e sábia
auxiliar da humanidade, está entronizada. Com ela, vivem incontáveis hostes de anjos de
luz e almas santas e retas, que antes ocuparam corpos humanos. Este é o mundo do
espírito, onde os anjos gêmeos das personalidades humanas também residem e onde a
câmara nupcial está construída; onde as almas inferiores dos humanos podem encontrar e
se casar com suas contrapartidas espirituais, os anjos gêmeos. Quando os humanos
comungam com a Deusa em seus múltiplos aspectos, é com Sophia-Achamoth, a sábia
guardiã, que eles o fazem. Sem a consciência desses sutis mistérios, muitos seguidores
bem-intencionados da revelação cristã encararam essa forma de Sophia como Maria,
Rainha do Paraíso. É assim, então, que Nossa Senhora da Sabedoria, embora redimida e
assistindo Jesus Cristo no trabalho da redenção, está até hoje perto de seus filhos.
As três regiões cósmicas acima descritas têm suas partes correspondentes dentro da
natureza dos filhos dos homens. Dentro de cada ser humano, há a parte material (hyle)
derivada do reino de Pan, que carrega os instintos e necessidades da vida material, com sua
vocação para a sobrevivência e a continuidade física através da descendência. Há também
uma parte que personifica a mente e a emoção, referida frequentemente como alma
(psyche). Essa parte é derivada dos domínios do Demiurgo e, portanto, contém mais de
uma característica perigosa. Embora seja a sede da consciência ética e da razão calculada, é
também suscetível às influências e lisonjas dos regentes, com seus obsessivos
73
mandamentos, ideologias fanáticas, orgulho e arrogância de alma. A terceira é o espírito
humano (pneuma), que pertence à plenitude, embora seja um dom de Sophia. Na maioria
dos seres humanos, essa centelha espiritual arde lentamente e sonha inconscientemente
aguardando o sopro dos emissários da plenitude para serem avivadas para uma ação
efetiva. Esse espírito é o de Sophia e através - e além dela - é de essência idêntica à dos
próprios supremos Rei e Rainha, Profundidade e Silêncio.
Nessa existência personificada, vemos alguns humanos que podem ser chamados de
hiléticos, que são regulados por instintos, pelas necessidades e sensações, e vivem,
principalmente, no domínio de Pan. Outros foram chamados de psíquicos e geralmente
veneram o Demiurgo como Deus, sem consciência do mundo espiritual acima dele. Seu
orgulho e alegria são a lei e a doutrina e se imaginam superiores aos outros homens, em
virtude de suas leis. Dessa forma, a história espiritual da humanidade é, basicamente, uma
progressão da instintividade primitiva e do panteísmo de adoração da natureza (onde Pan é
teos, isto é, Deus) à religião dogmática e ética, e desta, à verdadeira liberdade espiritual da
Gnose. Para alcançar o reino da luz e se tornar um ser pneumático, o ser humano deve,
primeiro, renunciar ao seu servilismo aos aspectos físicos e, então, frequentemente com
grande dificuldade, renunciar também à escravidão do Demiurgo e de seus servos, sob a
forma de servidão ideológica. As ideias escravizam tanto quanto as paixões e, ambas, são
obstáculos para o reino do espírito. Surge então a grande renúncia (apolytrosis), quando os
humanos quebram as algemas fixadas em seus corpos e mentes pelos regentes. De acordo
com o exposto, há apenas um grande passo a ser dado: a câmara nupcial, ou a união
transformadora do humano inferior com a presença protetora do anjo gêmeo.
Dos cumes do mundo material e das experiências de êxtase da mente, homens e
mulheres levantam os olhos e fitam os montes perpétuos do reino de luz espiritual de
Sophia-Achamoth. O anjo gêmeo estende sua asa cintilante para a terra e transporta a alma
humana para as alturas, até a câmara nupcial, onde a união espiritual é selada em um
casamento celestial. Um por um, Sophia atrai seus filhos espirituais para si, juntando-os ao
exército dos eleitos. Esse é o dom de Sophia, extraído do tesouro sem fim de luz e posto à
disposição dos humanos pela sua compaixão e sabedoria. Ela, que permaneceu fiel à
verdadeira luz, insta seus filhos a fazerem o mesmo. Fidelidade ao espírito que habita os
mais profundos e altos recessos de sua natureza os levará, assim, à renúncia da ilusão e a
abraçarem o real.

Interpretação do Mito

A revisão acima do mito de Sophia está fundamentada, basicamente, na versão de


Valentino, personificado na Pistis Sophia, a principal escritura referente a Ela, mas foi
atualizada e ampliada para servir às necessidades dos contemporâneos. Como tal, o
resultado poderia ser chamado de uma abordagem "latitudinária" ao Gnosticismo por
alguns que se consideram puristas, mas devemos ter em mente que é precisamente essa
abordagem que foi tentada aqui. Um estudo descritivo e exegeta pode lucrar com uma
abordagem purista, mas tal forma não seria, de modo algum, adequada aos propósitos
deste autor.
Abordemos então, de forma resumida, algumas interpretações indicativas do mito de
74
Sophia. Sophia é o Espírito do Mundo, ou o arquétipo coletivo de toda a vida, crescimento e
desenvolvimento cósmico e individual. Nessa qualidade, está ligada da maneira mais íntima
à natureza e ao destino da humanidade, qual seja, a diferenciação inicial e a subsequente
individuação da alma e sua união com o espírito. Inicialmente, ela habita uma pletora de
energia psíquica indiferenciada, um mundo celestial, onde todas as coisas existem em plena
potencialidade. A plenitude (Pleroma) é como o bloco não esculpido do pensamento
metafórico taoísta chinês: uma plenitude de ser, da qual emergem a individualidade e a
existência manifesta, por subtração e não por uma creatio ex nihilo (criação a partir do
nada). Emanação, mais do que criação, é a lei da manifestação, certamente no domínio da
psique e, com toda probabilidade, também na esfera da manifestação cósmica.* A natureza
primal unitária da psique diferencia -se e desce a condições mais profundas de alienação da
sua fonte original de luz e poder. No nível psicológico, essa diferenciação alienante está no
âmago do profundo mistério da queda de Sophia.
O amor de Sophia por seu pai, o rei da plenitude celestial, e seu esforço para chegar
perto de sua luz, têm sido frequentemente interpretados como metáfora da hubris, pela
qual a mente humana, ou qualquer tipo de personificação limitada da consciência, tenta
compreender a eternamente incompreensível e inefável transcendência do ser. No nosso
desejo de compreensão, não sabemos mais se olhamos para cima, para a transcendência,
ou para baixo, para os domínios inferiores da mente, onde a transcendência está refletida.
Repetidamente, em nossas vidas, confundimos a luz refletida com a luz verdadeira.
Verdadeira expressão disso talvez sejam os esforços essencialmente arrogantes de muitas
psicologias de desenvolvimento e dos assim chamados movimentos New-Age que, com
volubilidade extrema e com métodos fáceis, tratam os grandes mistérios do ser como se
estivessem imediatamente disponíveis às manipulações da consciência pessoal. Um bom
exemplo disso, embora relativamente mundano, está no campo do uso dos sonhos. De um
lado, Jung e outros da psicologia profunda, mais responsáveis, veem o sonho como uma
expressão revelatória primária do inconsciente, que deve ser tratado com muito cuidado e
reverência. Por outro lado, vemos esforços de pessoas menos reverentes para explorar e
manipular os sonhos das pessoas, com objetivos estritamente personalísticos. Sempre que
um fenômeno psicoespiritual, de valor potencialmente transcendental, é subordinado a
objetivos pessoais, podemos dizer, como Sophia, que confundimos a luz refletida com a
radiância celestial e, assim, nos expomos ao perigo.
No decurso da diferenciação da psique, todos nós acabamos por nos encontrar num
espaço vazio, sem Gnose. Aqui, nosso terror, angústia e outros sentimentos criam insípidas
emanações, que provêm da nossa própria psique e estas, por sua vez, se tornam demiurgos
tirânicos e atormentadores do nosso ser autêntico. Quando o ego humano cai em um
espaço muito distante da plenitude psíquica, alguns aspectos do ego (ou, na visão de
alguns, o próprio ego) se tornam demiurgos. Ean Begg, em sua meditação sobre os mitos
gnósticos, escreve:

“Os regentes, os deuses planetários... que assistem o demiurgo em sua criação do


homem horizontal, o mantém ignorante de sua verdadeira origem. Eles são o cerne
arquetípico dos complexos ou subpersonalidades que vivem a nossa vida por nós, enquanto
permanecemos inconscientes deles... A consciência egóica que emerge é a do demiurgo, e
75
as limitadas percepções dele são consideradas a única realidade. O homem é um
prisioneiro do espaço e do tempo. Seus regentes são reais não apenas como as divisões da
semana, mas como os complexos. O Sol, o complexo de ego, o regente chefe, rege o dia e,
com sua luz e calor, bloqueia a secreta influência dos outros arcontes. A Lua é o grande
pêndulo que mantém tudo como é, oscilando regularmente, inexoravelmente fixa em seu
próprio ciclo.”6

Não apenas o Sol e a Lua, mas também os outros planetas foram vistos pela Gnose
como símbolos para as múltiplas limitações impostas à liberdade do espírito humano pelos
regentes. O frequentemente estreito, embora lúcido, intelectualismo de Mercúrio, o
opressivo e imaginativo desejo de Venus, a feroz combatividade de Marte, a soberana
negligência de Júpiter e, certamente, a restritividade e pusilanimidade de Saturno (muitas
vezes igualado ao demiurgo) servem muito bem para simbolizar as tendências e
propensões do Self pessoal do ser humano, sempre se colocando entre a vida terrestre e a
verdadeira luz do significado. Vivendo na Terra sob a Lua, parece que estamos sujeitos às
limitações arcônicas dos planetas, do mesmo modo que Sophia caiu numa armadilha e foi
limitada pelos regentes.
O mistério da salvação, que significa libertação da condição existencial da
inconsciência e da limitação, está intimamente ligado às nossas origens celestiais. De um
lado, nosso redentor é Cristo, um arquétipo celestial, tendo seu próprio lar na plenitude. De
outro lado, Jesus, o componente mais humano do princípio salvífico, é feito por nós
mesmos no vale de lágrimas - que também foi chamado pelo poeta John Donne de "vale de
fazer a alma". Não podemos depender inteiramente de um Salvador externo e
transcendental - como o Cristianismo o fez por tanto tempo - pois assim fazendo, nossos
próprios poderes inerentes de liberdade espiritual se atrofiam. Mesmo assim, a salvação
auto gerada, derivada do nosso próprio esforço também nos é de pouca valia, a menos que
recebamos uma assistência arquetípica. Assim, Sophia gera Jesus em seu exílio, mas é
redimida por Ele, em conjunto com Cristo, seu aeon celestial.
*"Soul making", no original. (N.T.)
Gloriosamente ascendendo dos limites do seu estado, Sophia ainda se lembra da
humanidade, de suas relações mais jovens e menos capazes, e decide permanecer na
posição de assistente para ela. (Uma analogia eminentemente válida pode ser vista no ideal
Bodhisatlva do Budismo Mahaiana, onde o redimido se torna o redentor. De fato, o
celestial Bodhisattva Avalokitesvara - cujo nome significa, literalmente, "aquele que olha
para baixo de sua altura" e cuja forma mais popular é a feminina Bodhisattva Kwan Yin,
acessível a todos os terrestres que necessitam de compassiva redenção - mostra tal
semelhança com Sophia, que se suspeita prontamente de uma conexão mais do que casual.
Outrossim, deve ser lembrado que Gautama, o Buda, segundo o ensinamento Mahaiana,
também deixou para trás uma parte de si mesmo, que continuaria a assistir os seres vivos
em busca de libertação. É esse aspecto que, segundo certas lendas, se manifesta uma vez
por ano no feriado budista de Wesak (aos capazes de observá-lo).
Assim, Sophia, a redentora redimida, continua como entidade protetora e
iluminadora, em ligação com a Terra. Num sentido psicológico pessoal, pode-se dizer que
um passo importante para a individuação sempre demanda um esforço para libertar os
76
ainda não integrados selfs parciais, tanto quanto um modo de vida compassivo e caritativo
em relação aos outros seres humanos. O mito de Sophia também tem implicações humanas
de um caráter mais direto e íntimo.
Assim como Simão viu sua consorte Helena como a manifestação da Alma do Mundo,
também existe alguma evidência que Maria Madalena, identificada pelas escrituras
gnósticas como a verdadeira "discípula amada", pode ser encarada como uma
manifestação terrestre de Sophia, e que seu relacionamento com Jesus pode, de fato, ter
sido a realização terrestre da união libertadora entre o Messias celestial e Sophia.
Assim, chegamos ao final de nossas considerações sobre o mito de Sophia. É
desnecessário dizer que a exegese mínima aqui oferecida de modo algum faz justiça a esse
mito complexo e inspirador. A ênfase psicológica desses comentários, inadequados em si
mesmos, toca apenas numa das facetas da magnífica pedra preciosa, lapidada, que são a
história e o mistério de Sophia. (Afirmativas semelhantes podem ser feitas, com razão,
sobre os outros mitos gnósticos que serão mostrados nos próximos capítulos.) Mais um
pensamento deve ser introduzido na conclusão: Por que, pode-se perguntar, seria útil ou
mesmo necessário para Sophia, a Alma do Mundo, a psique e o ego, correr atrás da
enganosa luz e sofrer tais provações e tristezas, assim como alegrias e triunfos?
Novamente, é C. G. Jung quem nos oferece uma das melhores respostas, ao escrever: "Se
não fosse pelos saltos e cintilações da alma, o homem iria se degenerar em sua maior
paixão, a ociosidade.”7 (Itálicos nossos - S.A.H.) Ação e risco são essenciais ao esforço
gnóstico. Aqueles que querem saber correm grandes riscos, inclusive o de mergulhar no
abismo da solidão e da alienação. O risco gnóstico abre a psique individual a muitas
aventuras e pode levar a oportunidades de exercitar o tipo de compaixão que só a
sabedoria é capaz de manifestar. A despeito da constante noção ingênua de muitos, de
corrigir todos os erros da existência, através, apenas, de soluções coletivas extrovertidas
(um esforço digno da arrogância demiúrgica!), o cadinho onde a compaixão se une à
sabedoria é construído nos indivíduos passo a passo. As soluções coletivas não são soluções
na realidade, pois o verdadeiro veículo de vida, o descendente de Nossa Senhora da
Sabedoria, é o indivíduo. Os que foram favorecidos pela graça de Sophia, devem devotar
suas vidas a oferecer serviço ativo na arena pública ou, mais uma vez, devem simplesmente
manter a luz compassiva de Sophia brilhando sobre as tarefas humanas pessoais de suas
vidas diárias. De toda a forma, no entanto, eles devem considerar as palavras [mais escritas
por Miguel de Unamuno, em sua obra Tragic Sense of Life [O Sentido Trágico da Vida]: "E
possa Deus te negar a paz, mas te dar a glória."

77
7
O Salvador Dançarino:
O Mito do Cristo Gnóstico
Introdução: A Imagem Alternativa do Salvador

Os raios de luz, que são os espíritos dos homens e mulheres presos na armadilha dos
poderes regentes deste mundo inferior (assim disseram os gnósticos), não são, entretanto,
abandonados pela divina Fonte da qual se originaram. A suprema Luz nunca perdeu o
interesse pelos fragmentos dispersos de sua própria essência. Ela enviou um redentor ou
intermediário para assisti-los em sua libertação. A grande maioria dos gnósticos estava
associada com o então novo movimento cristão e encaravam Jesus como o portador dessa
luz redentora. A secreta tradição de Israel, manifesta no movimento essênico, estava bem a
caminho de transformar o Messias político do Judaísmo oficial num salvador cósmico e
pessoal, que iria redimir os espíritos dos filhos da luz da opressão do mundo das trevas e de
seus sombrios regentes. Essa evolução culminou na imagem de Jesus. Como vimos antes
(Capítulo 3), hoje há um número quase desnorteante de caracterizações de Jesus, a maioria
das quais contradizendo radicalmente a outra. Esses são apenas os retratos mais recentes.
Os mais antigos, especialmente aqueles que aparecem na arte sacra, são ainda mais
confusos e contraditórios.
Todas as figuras de Jesus que nos chamam a atenção estão baseadas no que até
recentemente se constituiu na única evidência sobre essa misteriosa figura, a saber, o Novo
Testamento. E a própria evidência do Novo Testamento é confusa e contraditória. Alguns
dos evangelhos canônicos retratam Jesus como bastante humano e até sensual: "Veio o
filho do homem, que come e bebe e, dizem: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de
publicanos e pecadores." (Matheus: 11: 19). Sua ligação com mulheres é representada
como causa de escândalos: "E admiraram que estivesse falando com uma mulher" (João:
4:27). "Havia também mulheres olhando de longe... e também muitas outras que vieram
com Ele para Jerusalém" (Marcos: 15:40). Ao mesmo tempo, Paulo o descreve mais como
um ser espiritual transcendente, até gnóstico, quando afirma que Jesus "está além de
qualquer regra ou autoridade e poder de domínio, e acima de qualquer nome que se pode
nomear, não apenas neste aeon, mas no que ainda estaria por vir" (Efésios: 1 :21). Se
alguém prefere ver Jesus como um indivíduo gentil e pacífico, pode-se referir ao modo com
que ele se autodescreve, em Mateus: 11 :29 - "Pois Eu sou manso e humilde de coração, e
achareis descanso para vossas almas." Se, ao contrário, se quer elaborar Seu retrato
mostrando ira e maneiras bruscas, podemos indicar o tratamento dado por Ele aos
mercadores do Templo e Sua condenação incondicional dos fariseus como hipócritas,
sepulcros caiados e guias cegos, povo enganador. Não é necessário enfatizar que essas
diversas imagens de Jesus tomam a tão exaltada "imitação de Cristo" mais do que
problemática. Por exemplo, devemos imitá-Lo quando Ele nos adverte para "oferecermos a
outra face" quando apanhamos? Ou devemos emulá-lo quando diz: "Eu não vim para trazer
a paz mas a espada"?
78
Além das figuras de Jesus, baseadas nas evidências do Novo Testamento, sempre
existiu um outro Jesus, embora a evidência sobre Este tenha surgido só recentemente. Para
apresentar e compreender esse outro Jesus, temos de reconstruir o mito que foi contado
pelas escrituras dos gnósticos, muitas das quais contemporâneas (ou muito próximas disso)
do Novo Testamento. O que disseram os gnósticos sobre Jesus? Eles discordavam dos
cristãos esotéricos acerca da precisa natureza dessa personificação física, bem como sobre
Sua morte e ressurreição. Não aceitavam a noção simplista de que a redenção da
humanidade foi realizada pela morte física de Jesus na cruz e que um bom cristão tem
somente de acreditar nesse evento para ser redimido. A razão para a maioria das
discordâncias era porque os gnósticos nunca afirmaram que os humanos tinham uma
necessidade básica de redenção do pecado. A tarefa do mensageiro messiânico era ajudar
os seres humanos a descobrir o que verdadeiramente são e assisti-los na vitória sobre as
forças cósmicas hostis, bem como voltar à plenitude da verdadeira luz. "Salvação", assim,
seria sinônimo de "libertação", e o caminho para esse estado não consistia na fé, mas na
experiencia da libertação interior, facilitada pelos ensinamentos do Libertador e pelos
mistérios sacramentais que ele confiou aos seus seguidores.
O Jesus dos gnósticos é uma pessoa substancialmente e não superficialmente
diferente do Jesus da maioria dos evangelhos canônicos. Sua humanidade é muito menos
significativa do que sua natureza transcendental ou arquetípica. Assim, é lícito dizer que os
gnósticos estavam menos interessados sobre o que Jesus fez e mais sobre quem ou o que
Ele era. A maioria de suas escrituras, tais como O Evangelho de Tomás, contém frases de
Jesus sem nenhuma narrativa que as una. Não existe um evangelho gnóstico onde, como
nos quatro evangelhos canônicos, se possa coletar detalhes dos eventos da vida de Jesus de
forma narrativa, sequencial. Mesmo assim, é bem certo que os gnósticos tinham sua
própria versão sobre o que aconteceu com Jesus. Indicações dessa versão podem ser
achadas em muitas fontes. Os Atos de João, uma escritura disponível e amplamente lida há
séculos, escrita, com toda a probabilidade, por Lúcio Carino, da qual alguns gnósticos
derivam sua transmissão esotérica. Partes do Evangelho dos Egípcios, uma das escrituras da
coleção de Nag Hammadi, são também, muito úteis a esse respeito. Outro trabalho de
notável valor histórico é a coleção chamada de As Odes de Salomão, partes da qual
aparecem na antiga Pistis Sophia, da qual foi publicada uma coleção completa no século
XIX, provavelmente datada do fim do século I ou do início do segundo. Além dessas, muitas
das escrituras de Nag Hammadi contêm valioso material, que nos permite reconstruir uma
narrativa mítica com certa consistência.
Um elemento de crucial importância para o mito de Cristo é, com certeza, a resposta à
questão: por que, afinal de contas, os humanos necessitam de um salvador? Não poderia a
Gnose chegar aos indivíduos sem um agente intermediário, um mensageiro, um redentor
do mundo superior da plenitude e da luz? As boas obras, os desejos sinceros de maior
consciência e práticas de meditação não seriam suficientes para a libertação, a salvação, a
iluminação ou quaisquer outros nomes que possam ser dados para o evento salvífico?
Historicamente, não há nenhuma dúvida sobre o conceito de soter (curador, produtor de
totalidade, livremente traduzido por "salvador"), desenvolvido a partir da veneranda ideia
judaica do Messias. Espiritualmente, ele foi desenvolvido a partir das raízes universais
arquetípicas, de escopo mais amplo e mais profundo. Um conjunto de importantes
79
questões respondidas pelo Gnosticismo (explicitamente expressas nas palavras de
Valentino) é o seguinte: "0 que éramos e o que nos tornamos? Onde estávamos e para
onde fomos lançados? Para onde nos apressamos, de onde somos libertados? O que é
nascimento e o que é renascimento? As respostas podem ser resumidas assim: os seres
humanos são, originalmente, puros espíritos, mas foram algemados a um sistema cósmico.
Antes, eles habitavam, junto com o Divino, nas regiões de plenitude, mas foram obrigados a
descer para um domínio de imperfeição. A natureza espiritual dos homens deseja reaver
sua unidade com a Divindade e, assim, ser libertada das limitações existenciais da vida no
sistema cósmico. Nascer significa nascer aqui neste cosmos que está, pelo menos em parte,
preso a forças hostis. Renascer é nascer de novo como um ser livre, dentro de um mundo
divino de consciência e luz. Este renascimento não ocorre sem ajuda. A Divindade está
ativamente empenhada em facilitar o renascimento da humanidade no seu próprio e
verdadeiro estado. A salvação requer um salvador, não apenas no Judaísmo e no
Cristianismo, mas na maioria das grandes tradições espirituais. Nos Upanishades,
encontramos a afirmação de que a salvação é efetuada pelo "Senhor" (Isvara).¹ Uma
elaboração desse conceito é o ensinamento sobre os avatares ou descendentes de Deus,
particularmente da segunda pessoa da trindade hindu, Vishnu. Sabe-se que Vishnu tem no
mínimo dez descendentes, entre os quais os mais importantes são Rama e Krishna. Tanto
no Budismo Theravada como no Mahaiana, imagina-se uma pluralidade de Budas
(usualmente sete, para toda a história da evolução da terra), todos descendentes de seres
espirituais transcendentais (Dhyani Budas e Dhyani Bodhisattvas) além de suas
personalidades terrestres. Todos esses Budas, no entanto, são também reconhecidos como
aspectos da Única Luz de Buda, no seu aspecto redentor. Mesmo os deuses que
administram a existência nos domínios manifestos precisam e se rejubilam com a vinda de
um Buda. Num dos sutras, há um desses deuses, que se dirige a Buda desta maneira: "É
maravilhoso, ó senhor, que após tanto tempo vós vos manifestastes hoje no mundo.
Durante oito mil eras, este mundo dos seres vivos estivera sem um Buda.”²
A atitude da tradição gnóstica é claramente afirmada pelo profeta persa Mani, citado
pelo estudioso árabe Al-Biruni:

"A sabedoria e as boas obras têm sido trazidas era após era para a humanidade pelos
mensageiros de Deus. Assim, em uma era, elas foram trazidas pelo mensageiro chamado
Buda, para a Índia; em outra, por Zaratustra, para o Irã; e ainda em outra, por Jesus, para o
Ocidente. Depois disso, esta revelação desceu nesta última era por meu intermédio, Mani,
o apóstolo do Deus da Verdade, na Babilônia."³

O exposto acima deveria ser suficiente para nos convencer de que, com a ideia da
salvação e do Salvador, estamos diante de uma ideia verdadeiramente arquetípica universal
e não condicionada a tempo ou cultura. Podemos, então, com segurança, nos voltar agora
para recontar o mito do Salvador, no nosso caso, Jesus, de quem Mani falou na passagem
acima que "trouxe sabedoria e boas obras, como um mensageiro de Deus para o Ocidente".

O Mito do Salvador

80
Quando o momento chegou para a vinda à terra daquele que haveria de curar o
coração partido do mundo inferior, todos os grandes Poderes do reino da plenitude se
uniram. O Pai de todos e os Santos Espíritos mesclaram suas substâncias espirituais e
geraram uma semente ígnea de vida. Os Poderes se reuniram num círculo enorme e
impondo suas mãos, infundiram a semente do Pai e do Espírito Santo com suas forças.
Então a semente ígnea desceu, através do círculo de estrelas e da região dos planetas, para
o seio de uma virgem humana escolhida, cujo nome era Maria, e que estava destinada a se
tornar a mãe do Salvador pela carne. Embora virgem, ela se tornou mãe sem nenhuma dor,
com os ajudantes da plenitude que ficaram ao seu lado e lhe deram assistência.
O menino cresceu numa casa onde a simplicidade e a pureza reinavam; Ele era
protegido por sua mãe Maria e aprendeu um ofício com o esposo dela, José. Contudo
foram muitos os momentos em que ficou evidente que ele era urna pessoa de caráter e
poderes inusitados, e sua mãe e seu pai terrestres o olhavam com reverência. Um dia, Jesus
estava trabalhando num vinhedo com José. Nesse momento, uma pessoa parecida com
Jesus pediu para entrar na casa e perguntou:
"Onde está Jesus, meu irmão?" Maria, reconhecendo que estava diante de um espírito
e não de um ser humano, introduziu-o na casa, enquanto chamava José e Jesus. Quando
Jesus entrou em casa, libertou seu espírito da prisão e eles se abraçaram e se tornaram um.
Soube-se, então, que esse espírito era o anjo gêmeo de Jesus, que desceu do mundo
celestial e se reuniu à sua contrapartida terrestre num gesto de permanente união. Essa
união veio mais tarde a ser chamada de câmara nupcial e foi vivenciada apenas pelos mais
sábios e superiores seres humanos, que se tinham tornado perfeitos na destreza de seus
espíritos. Mas Jesus já era um ser unido e total enquanto ainda menino, estando, assim,
preparado para trazer a plenitude a todos os filhos dos homens.
Quando chegou à juventude, sua mãe e irmãos trouxeram notícias de um homem
chamado João, que estava batizando as pessoas no deserto, para a remissão dos pecados.
Embora Jesus afirmasse que não tinha pecado do qual se libertar, ele foi, para ser batizado
por João, e enquanto estava mergulhado nas águas, uma luz aí brilhou e todos tiveram
medo. Uma pomba pairou sobre a cabeça de Jesus e cantou, ficando claro para muitos que
um poder que não era deste mundo descera sobre ele. O poder era Cristo, uma alta
presença da plenitude, destinado a guiá-lo ao cumprimento de sua missão terrestre.
Quando as pessoas se juntaram para olhar para ele, mal puderam reconhecê-lo como
aquele que conheciam, e ele lhes disse: "Eu lhes pareço um estranho, porque sou de outra
raça."
Ele se tornou um guia para os que o seguiam; era tranquilo e não tinha pressa.
Envergonhou os que estavam cheios de·importância sobre seus próprios conhecimentos e
sobre a Lei; chamou-os de pessoas vazias e elas O odiaram. E Ele disse a seus discípulos
palavras como estas: "Eu vim ao seio do mundo e apareci e eles na carne, mas encontrei-os
bêbados e não achei nenhum deles sedento de minhas águas de vida. E me entristeço com
os filhos dos homens, porque são cegos e não podem ver com seus corações." E também
lhes contou que veio para tornar as coisas de baixo como as de cima, as externas como as
internas, e o macho e a fêmea Ele veio para torná-los uma só pessoa. Todas essas coisas
eles O ouviram dizer, mas entenderam pouco. Muitos de seus discípulos foram convocados
por Ele de maneira estranha. Assim, quando estava no Mar da Galileia, Ele escolheu
81
primeiro Pedro e André, e então foi até João e Tiago que estavam pescando num barco ao
largo, e os chamou: "Eu preciso de vós. Sigam-Me." Tiago, no entanto, viu uma criança na
margem e perguntou a seu irmão o que a criança poderia querer com ele. João, por seu
lado, viu um homem adulto na margem, enquanto outros viram apenas uma luz e ainda
outros não viram nada. Foram para a margem em grande perplexidade, imaginando quem
ou o que tinham visto de modos tão diferentes.
Jesus também mostrou pouco respeito pelos sacerdotes do Templo e pela Lei. Uma
vez, Ele levou seus discípulos até a parte mais interna do Templo, onde foram saudados por
um sacerdote proeminente, chamado Levi, que arrogantemente declarou que Jesus e seus
discípulos eram impuros e indignos de observar os vasos e locais sagrados. Jesus o chamou
de homem cego, que confundia símbolos exteriores de limpeza com a verdadeira pureza e
sabedoria. Também exortou seus discípulos a não seguirem homens cegos, como Levi e os
outros membros da organização. E quando seus discípulos lhe perguntaram se a circuncisão
era necessária ou não, Ele respondeu:
"Se fosse necessária, então cada pai geraria um menino já circuncidado de sua mãe."
Quando perguntado sobre a necessidade de observar uma dieta especial, Ele simplesmente
respondeu que era mais importante não mentir e não fazer o que detestamos, pois as
coisas que permanecem escondidas em nossa alma acabam se tornando aparentes.
Tornou-se cada vez mais claro para todos que Jesus teria vindo para revogar a antiga Lei e
proclamar uma nova Lei, cujo centro era o amor. E Ele disse: "Ame seu irmão como à sua
alma e o proteja como se ele fosse a menina dos seus olhos." Explicando a relação do
espírito com o corpo, Ele disse: "Eu me admiro como tal tesouro achou sua habitação em
tal pobreza."
Em Betânia, Jesus foi levado por uma mulher a uma tumba onde seu irmão estava
enterrado. O irmão, então, chamou Jesus a partir da tumba e Jesus o levantou, tomando-o
pela mão. Jesus reuniu os jovens ao anoitecer e lhes ensinou grandes verdades e lhes
revelou mistérios. E Ele se tornou conhecido como fazedor de milagres e como iniciador,
que poderia conduzir os seres humanos da morte terrena para a vida do espírito.
Enquanto isso, os sacerdotes e fariseus foram inspirados pelos regentes deste mundo
a prender e assassinar Jesus porque, se eles deixassem que ele fizesse o que queria, o povo
o seguiria e a escuridão deste aeon seria vencida. Jesus sabia que, se eles prosseguissem
com o plano de matá-lo, os líderes da organização seriam desacreditados a tal ponto que o
governo deles sobre o povo seria muito encurtado. Assim, Jesus se encontrou com seu
discípulo Judas Iscariotes, que lhe disse secretamente: "Não é verdade, Senhor, que este
mundo está dominado pelo Mal e que vós deveis dissolver as coisas abaixo e acima?" E
Jesus lhe respondeu: "É assim, Judas, mas como se pode entrar na casa de um homem forte
e destituí-lo de seus tesouros, sem primeiro, amarrar o homem forte? Só então se pode
entrar em sua casa e tomar seu tesouro. Lembre-se de que quando Eu deixar este mundo, o
Príncipe deste Mundo será colocado em grilhões exatamente na mesma hora." E foi assim
que Judas veio a compreender que era necessário que Jesus fosse entregue a seus inimigos
e ele procedeu como instrumento para a traição de Jesus, enquanto tinha uma
compreensão secreta sobre a necessidade deste curso de ação. E os líderes do povo, cujas
leis eram falsas e inspiradas por espíritos sem lei, acreditaram em Judas e prepararam a
prisão do Salvador, selando assim sua própria destruição e a destruição de seu Templo e da
82
sua Lei.
Antes de ser preso por seus inimigos, Jesus reuniu os discípulos e lhes ofereceu uma
refeição sagrada, durante a qual abençoou o pão e a taça de vinho e lhes lembrou que
deveriam fazer aquilo em memória Dele e para invocar sua presença, quando Ele não
estivesse mais presente com eles na carne. Então, Ele disse a seus discípulos:
"Antes que eu seja entregue, cantemos um hino ao Pai e então sairemos para o que
nos espera." Então, ele ficou no meio da sala e pediu aos seus discípulos que fizessem um
círculo à sua volta, dando-se as mãos e, depois de cada verso, eles deveriam dizer a palavra
"Amém". E assim começou a cantar uma canção, enquanto, discípulos dançavam em círculo
em volta d’Ele, respondendo sempre "Amém".
E foi este o hino que Jesus cantou:

"Glória a Vós, Pai!


(E eles, movendo-se em círculos, Lhe respondiam:)
Amém! Glória a Vós.
Charis (Graça)! Glória a Vós, Espírito! Glória a Vós, ó Sagrado!
Glória à Vossa Glória! Amém!
Nós Vos louvamos, Ó Pai!
Nós Vos agradecemos, oh Luz!
Em Quem não habita a Escuridão! Amém!
Pelo que damos graças, Eu digo:
Eu seria salvo e eu salvaria. Amém!
Eu estaria liberto e Eu libertaria. Amém!
Eu seria quebrado e Eu quebraria. Amém!
Eu nasceria, e Eu quero dar à luz. Amém!
Eu comeria e Eu seria comido, Amém!
Eu ouviria e Eu seria ouvido. Amém!
Eu compreenderia e Eu seria compreendido. Amém!
Eu seria lavado e Eu lavaria. Amém!
Agora Charis está dançando.
Eu tocaria flauta; dançai todos vós. Amém!
Eu tocaria uma canção de lamento; lamentai todos vós. Amém!
Os oito cantam louvores conosco. Amém!
Aqueles que não dançam não sabem o que vai ocorrer. Amém!
Eu voaria e Eu permaneceria. Amém!
Eu seria enjeitado e Eu enjeitaria. Amém!
Eu seria expiado e Eu expiaria. Amém!
Eu não tenho casa e tenho casas. Amém!
Eu não tenho lugar e tenho lugares. Amém!
Eu não tenho templo e tenho templos. Amém!
Eu sou uma lâmpada para vós que me vedes. Amém!
Eu sou um espelho para vós que me compreendeis. Amém!
Eu sou uma porta para vós que bateis. Amém!
Eu sou um caminho para vós viandantes. Amém!
83
Agora respondei à minha dança!
Vede vós mesmos em mim que falo:
E vendo o que Faço, mantende silêncio sobre meus mistérios.
Compreendei pela dança o que Faço.
Pois vossa é a paixão do homem
Que Estou prestes a sofrer.
Vós não poderíeis, de modo algum, estar conscientes
Do que sofreis,
Se Eu não fosse enviado como o Logos pelo Pai.
Vendo o que Sofro, vós Me vistes sofrendo,
E vendo, vós não ficastes parados.
Mas se moveram bastante.
Vós vos movestes para serdes sábios.
Vós me tendes como uma cama.
Descansai vós sobre Mim.
O que Sou, vós o sabereis quando Eu partir.
O que agora Pareço ser, é o que não Sou,
Mas o que Sou, vós vereis quando vierdes,
Se soubésseis como sofrer,
Teríeis poder para não sofrer.
Saibamos então, como sofrer, então vós tereis poder para não sofrer.
Pois se vós não sabeis, Eu mesmo vos instruirei.
Eu sou o vosso Deus, não o dos traidores.
Eu permanecerei junto às almas santas.
Em Mim, conhecei vós o Logos de Sophia.
Dizei para Mim novamente:
Glória a Vós, Pai! Glória a Vós, Logos!
Glória a Vós, Santo Espírito!
Mas quanto a Mim, se soubésseis quem Eu sou!
Em uma palavra, Eu sou o Logos que dançou todas as coisas e que não se envergonhou
de modo algum.
Fui Eu quem dançou.
Mas possais vós compreender tudo, e, compreendendo dizer:
Glória a Vós, Pai! Amém!”4
Tendo dito essas coisas, Jesus partiu e os discípulos fugiram em todas as direções,
como pessoas que haviam acordado de um transe, pois a consciência deles estava
completamente transformada pelo hino e pela dança de Jesus. Nem mesmo João, seu
discípulo amado, foi capaz de ficar a Seu lado, mas fugiu com pressa para uma caverna no
Monte das Oliveiras e lá chorou e se lastimou. E quando Jesus foi crucificado, a escuridão
cobriu a terra, mas a figura do Salvador apareceu a João na caverna, numa chama de luz
forte, e se dirigiu a ele, dizendo: "João, aos olhos daqueles lá embaixo na cidade de
Jerusalém, Eu fui crucificado e atravessado por lanças e fui atormentado e Me deram fel e
vinagre para beber, mas tu sabes que nada destas coisas que eles dirão de Mim Eu
84
realmente sofri. Pois o mistério verdadeiro não era este, mas o sofrimento que Eu revelei a
ti e aos outros na dança. Aquele foi o verdadeiro mistério que ocorreu. Eu lhes mostro o
que vocês são, mas o que Eu sou de verdade, só Eu sei e nenhum outro homem o sabe."
Enquanto João foi assim favorecido com uma visita do Salvador, Pedro, o líder dos
apóstolos, também foi visitado. Numa visão que ocorreu antes do julgamento e da
crucificação, Pedro viu uma multidão se aproximando e agarrando Jesus. "O que é isto que
eu vejo, ó Senhor?", perguntou Pedro. "Quem é este que eu vejo no alto da cruz, que está
feliz e ri? É Ele ou outro, cujos pés e mãos estão sendo trespassados?" O Salvador retrucou
a Pedro: "Aquele que vês no alto da cruz, alegre e rindo, é o Jesus vivo. Aquele cujas mãos e
pés estão sendo trespassados por pregos é meramente sua parte corpórea, que é somente
um substituto, feito à sua semelhança." Foi assim que, despercebido pelos perseguidores,
Jesus ficou ao lado, enquanto a crucificação prosseguia, rindo da cegueira dos seus
inimigos.
Desde esse tempo, Jesus ficou conhecido como aquele que é Vivo, pois Ele obtivera
controle sobre os poderes de morte deste mundo. Embora seu corpo de carne tenha sido
atormentado e assassinado pelos servos do Demiurgo, ainda permaneceu vivo. Muitos
foram os mistérios que Ele revelou a seus discípulos depois que voltou da morte. Ele lhes
ensinou muita sabedoria e os conduziu a místicas jornadas nos mundos secretos dos aeons,
onde eles conheceram os tesouros e maravilhas da luz. Quando chegou o momento de sua
partida deste reino terrestre, Ele advertiu seus discípulos a saire disseminar a Gnose a todas
as pessoas. E Ele também deixou claro que viera para lhes trazer liberdade, pois a Lei de
Moisés havia terminado: "Não lhes deixei nenhum mandamento, mas somente o que lhes
ordenei (quer dizer, amarem-se uns aos outros) e não lhes dei nenhuma lei como fez o
legislador, pois não quero limitá-los por meio de lei alguma. Ele disse isso e Se foi, subindo
para Seu próprio lugar nos altos aeons.
Depois da partida de Jesus, os discípulos ficaram confusos e temerosos, pois tinham
uma compreensão inadequada dos mistérios que Ele lhes comunicara. Aproximaram-se de
Maria Madalena, a quem Ele amou mais do que a qualquer dos outros discípulos, e que era
vista como sua companheira, e pediram-lhe conselhos. Maria lhes disse: "O que está
escondido de vocês, eu vou revelar." E Maria lhes ensinou as doutrinas secretas que Jesus
partilhara com ela e que diziam respeito à libertação definitiva de todas as coisas, na terra e
nos céus, e à maneira pela qual a alma sobe através das regiões dos sete planetas, onde a
ela será perguntado: "De onde vens, valente herói, e para onde estás indo, ó conquistador
do espaço?" E a alma vitoriosa, libertada pela Gnose, responderá: “O que quer que me
agarre será morto e o que me dobra é derrotado, pois meu desejo chegou ao fim e agora a
ignorância está morta. Eu sou um mundo inteiro e fui salvo de um cosmos e das correntes
do conhecimento inútil, da existência limitada ao tempo. A partir deste momento,
descansarei em silêncio durante a eternidade."
E foi dessa forma que Maria Madalena revelou aos outros discípulos o verdadeiro
segredo da salvação e, embora diversos entre eles se ressentissem dela por causa de seu
sexo, foram obrigados a aceitar sua Gnose e partiram para o mundo completamente
informados sobre o propósito da vinda do Salvador e do cumprimento do seu trabalho de
libertação.5

85
Interpretação do Mito

O mito do Salvador declara que a revelação decisiva da Gnose foi trazida por Cristo, o
Poder Celestial, que desceu sobre Jesus e com ele fundiu sua natureza no momento do
batismo no rio Jordão. Este é o mesmo Cristo que, segundo o mito valentiniano, espera
pelas almas espiritualizadas na entrada do Pleroma, na companhia de Sophia, sendo, com
Ela, o guardião da câmara nupcial, onde a união pneumática cumpre a espiritualização
derradeira das almas humanas. Cristo é, assim, tanto o mensageiro que inicia o processo da
redenção na terra quanto o hierofante transcendental que coloca o último selo da
redenção na alma libertada.
Como no caso do mito de Sophia, aqui também a nossa compreensão pode ser muito
ajudada, enumerando as amplificações iluminativas proporcionadas pelos motivos
arquetípicos, identificados por G. Jung: "O drama da vida arquetípica de Cristo descreve em
imagens simbólicas, os eventos da vida consciente, bem como da vida que transcende a
consciência de um homem que foi transformado pelo seu mais alto destino."6
Isso significa que a vida de Cristo, analisada de um ponto de vista psicológico
representa o processo de individuação. Jung aludiu repetidamente ao fato de que as
pessoas que estão contidas num mito coletivo são levadas inconscientemente ou
semiconscientemente por esse processo, ao passo que aquelas que por vários motivos
deixaram esta limitação, tornam-se candidatas à experiência pessoal da Gnose que, acaba
por torná-los seres psíquicos indivisíveis. (A palavra “individual” é derivada do latim:
individuum; significando uma unidade indivisível.) Assim, a história de Cristo, quando aceita
como matéria de fé, frequentemente age como um substituto ou símbolo vicariante da
individuação. Quando o mito, por outro lado, é reconhecido como uma metáfora aberta à
transcendência, torna-se uma descrição simbólica e um guia à experiência pessoal da
individuação. Isso pode ser mais bem apreendido quando as várias partes do mito acima
referido são individualmente explicadas em termos de seu significado como estágio desse
processo.
A pré-história da consciência é simbolizada pela semente transcendental de luz,
preparada para sua jornada encarnacionista. O processo do desenvolvimento psico-
espiritual começa e termina na plenitude, a pletora do ser. A completa potência da vida
psíquica é reunida com o propósito de atender à futura jornada da alma o mais eficazmente
possível. Todo o movimento autêntico de crescimento e transformação psicológica é
iniciado por um estado de capacitação, que necessariamente se origina num estado de
plenitude. Numa oração da Igreja Ortodoxa Grega, este background transcendental da
natividade é expresso em termos quase gnósticos:

"A Virgem gerou, hoje, o Superessencial e a terra oferece uma caverna ao Inabordável.
Contemplo um Mistério estranho e maravilhoso: a caverna é o Paraíso e a Virgem é o trono
dos querubins; nos confins da manjedoura, faz o Infinito."7

Na natividade de Jesus, o fogo sagrado da energia transpessoal encarna-se na


manifestação. Ele o faz através da instrumentalidade da Virgem Maria, cuja virgindade
permanece como símbolo do tipo de personalidade humana ou do ego capaz de expressar
86
a energia psíquica transpessoal, sem, no entanto, se tornar inflada. Contudo, Maria é
apenas a mãe de Jesus "pela carne", o que significa que cada alma individuada "nasce duas
vezes": uma vez no domínio da transcendência espiritual e outra na manifestação externa.
A pureza espiritual do lar e dos pais terrestres de Jesus significa a necessária
permeabilidade do ego humano, sem a qual a individuação bem-sucedida é impossível. Essa
permeabilidade pode facilitar encontros antecipados e mesmo a união com o Self, união
esta simbolizada, nas escrituras gnósticas, pelo anjo gêmeo que visita e se une ao jovem
Jesus, ainda em sua infância.
No mistério do batismo, o futuro Salvador recebe sua autêntica vocação, pelo
ofuscamento ou vinda de um princípio celestial. A psique autônoma, a mais profunda
essência do inconsciente coletivo, torna-se assim, conhecida e chama a pessoa em processo
de individuação para sua verdadeira vocação. Na vida de toda pessoa em transformação
entra o drama da morte e do renascimento, no qual nosso destino transpessoal é percebido
e aceito. Esse destino nunca é encontrado ao nível das considerações mundanas e
personalísticas, mas é sempre o resultado de um aparecimento (Epifania, o antigo nome da
festa que comemora o batismo de Jesus) de um poder maior do que o nosso Self humano.
Irineu escreve sobre o batismo, de um ponto de vista gnóstico:

"Pois o batismo instituído pelo Jesus visível foi para a remissão dos pecados, mas a
redenção gerada por aquele Cristo que desceu sobre Ele foi a perfeição; e... o primeiro é
animal, mas o último é espiritual. E o batismo de João foi proclamado do ponto de vista do
arrependimento, mas a redenção por Jesus veio para trazer a perfeição. E a isso Ele se
refere quando diz: "Eu tenho outro batismo para ser batizado e apresso-me, ansiosamente,
para fazê-lo (Lucas: 12:30).”8

O primeiro batismo, ligado a João e seu background purificador essênico, está ligado à
preparação e à purificação, e o segundo ao fato de sermos redimidos dos constrangimentos
e terrores impostos aos humanos pelos regentes do cosmos.
O ego individuado está em disputa com as circunstâncias de sua vida e
particularmente com as regras e regulamentos impostos à alma por aqueles que estão
ligados à ordem mundana das coisas. Por isso, Jesus se queixa da cegueira de seus
companheiros humanos e os exorta a não seguirem os líderes e as leis que exibam cegueira
espiritual. A lei da individuação é muito diferente dos procedimentos que a psique pode
seguir antes da descoberta do seu verdadeiro destino superior. Por isso, a antiga lei deve
ser revogada e a nova ordem, espiritualmente formulada, deve prevalecer.
A Última Ceia, celebrada por Jesus e seus discípulos, assume um duplo aspecto no
relato gnóstico. O primeiro é o mistério da Eucaristia, ainda amplamente praticado no
Cristianismo. A palavra "Eucaristia" significa ação de graças, e o ato de consagrar a partilha
dos elementos santificados do pão e do vinho foi considerado pelos cristãos primitivos
como a maneira mais adequada de agradecer a Deus por lhes ter enviado o Salvador e por
lhes tornar tal graça disponível. A segunda parte da história da Última Ceia, presente no
mito gnóstico, é de natureza diferente. Depois de comungar com a vida superior, deve-se
experimentar o transporte do êxtase, e esse elemento é personificado na dança que Jesus
propôs a seus discípulos, depois de partilhar a refeição sacramental. Mais do que isso, é
87
significativa a Sua afirmação de que o verdadeiro caráter do Seu sofrimento está
manifestado na dança, mais do que na sombria tragédia da crucificação. Eis aqui um
importante evento do drama do Salvador, que tem sido suprimido e ignorado nos relatos
oficiais, endossados como canônicos pela Igreja. Por quê? A chorea mystica (o culto da
dança extática) não era desconhecida na Antiguidade. Num papiro mágico grego, lemos:
"Vinde a mim, ó Vós que sois sublime no Paraíso, para quem o Paraíso foi ofertado como
um local de dança.”9 Assim, as altas divindades são, frequentemente, vistas como
dançarinas, que dançam o mundo para fazê-lo existir. De forma semelhante, a dança
religiosa tem tal capacidade de envolver os devotos, que eles dançam alegremente através
dos portões da iniciação, nos aeons celestiais. A dança, como instrumento para estabelecer
contato com a Divindade, ainda era conhecida na Idade Média, quando a mística germânica
Mechtild de Magdeburg (1212-1277), em seu poema Der Minne Wäg [O caminho do Amor],
nos conta o diálogo entre o Senhor divino e uma donzela. O Senhor comanda: "Donzela,
dance tão primorosamente quanto meu eleito dançou antes". E a donzela retruca:

"Eu não dançaria, Senhor, a menos que Vós me conduzísseis.


Se gostaríeis que eu saltasse vigorosamente,
Então Vós deveis cantar para mim.
Assim eu saltarei para dentro do amor.
Do amor ao conhecimento,
Do conhecimento à alegria,
Da alegria para além de todos os sentidos humanos.”10

Estamos, assim, diante da segunda parte do mito da Última Ceia; a dança extática é
revelada como a outra ou segunda Eucaristia, na qual a ênfase não está no derramamento
de sangue e no corpo partido do crucificado, mas no evento da dança, que não está
confinado aos dançarinos da terra, mas que é partilhado por Charis (Graça), um dos altos
aeons femininos da plenitude, assim como pelos oito (os sete planetas e mais sua esfera de
transcendência) e os doze poderes zodiacais. A dança é, assim, revelada como um
movimento cósmico e transcósmico, do qual toda a criação participa e que também é
abençoado pela presença dos representantes da plenitude celestial. E, como Jesus revela a
João, o verdadeiro segredo do seu sofrimento não deve ser buscado na crucificação, mas na
dança. Pode ser útil lembrar, neste ponto, que "sofrer" vem do latim "sub-ferre", submeter-
se (experimentar, aguentar). A que, então, o Salvador se submeteu de verdade? À
crucificação do Seu ser corpóreo? Não, pois diferentemente da parte hilética da
humanidade, Ele possuía a capacidade de sair do corpo de carne. Ele se submeteu à
limitação, no entanto, para penetrar na região onde habitam os raios de luz perdidos e da
qual devem ser libertados.
O significado psicológico da crucificação e mais ainda da crucificação cósmica aqui
descrita, do que a física, na cruz de madeira, é explicado por C. G. Jung:

“A realidade do mal e sua incompatibilidade com o bem dividem os opostos e levam


inexoravelmente à crucificação e à suspensão de todas as coisas que vivem. Uma vez que a
alma é, por natureza, cristã, este resultado está fadado a ser tão infalível como o foi na vida
88
de Cristo, isto é, suspensa num sofrimento moral equivalente à crucificação verdadeira."¹¹

A cruz e a dança são dois símbolos inter-relacionados e intercambiáveis. A dança


revela a verdadeira cruz, que não é uma mera cruz de madeira, mas a cruz de luz, sobre a
qual a verdadeira vida e salvação do cosmos estão suspensas. É na dança extática que esse
segredo é revelado: o Logos declara que Ele é, de fato, aquele que dançou todas as coisas e
nos ensina qual a natureza do sofrimento e da redenção. Jung afirmou que, de um ponto de
vista psicológico, o drama de Cristo representa as vicissitudes do Self, como ele se submete
à personificação num ego individual, e as do ego humano, à medida que participa do drama
salvífico da individuação. O mito do Cristo gnóstico é eminentemente compatível com esse
entendimento, embora deva ser reconhecido que a interpretação do mito transcende as
categorias psicológicas e tem numerosos aspectos que não poderíamos explicar aqui. O
Salvador Dançarino é, entretanto, uma imagem gnóstica única, na qual êxtase e sofrimento,
processo cósmico e sua transcendência, personificação e libertação estão unidos numa
conjunção de opostos peculiarmente gnóstica. Nela também podemos encontrar indicações
de um fenômeno frequentemente despercebido: o papel dos estados alterados de
consciência extática no processo da Gnose. A intensidade do transporte da mente e das
emoções é habilmente retratada na imagem aqui observada, e o Salvador Dançarino
declara-nos sua surpreendente forma de êxtase, quando nos adverte:

"Todos aqueles cuja natureza é dançar, dancem. Amém!


Os que não dançam. não sabem o que ocorrerá. Amém!"

89
8
Príncipes do Mundo:
O Mito dos Anjos Tirânicos
Introdução: Deuses Criadores ou Rebeldes Divinos?

Quem criou e quem rege este mundo? As respostas a essas perguntas variam. A
tradição corrente das ortodoxias judeu-cristã-islâmica sustenta que a criação, e a
subsequente gerência do cosmos devem ser atribuídas ao Deus Único, fonte última e
destino de todos. A tradição alternativa aparentemente sempre teve dúvidas sobre essa
proposição, que é considerada, no mínimo, uma simplificação e, numa avaliação mais
pessimista, uma falsidade ilusória. Os povos antigos eram muito mais sofisticados em seu
pensamento sobre as questões metafísicas últimas do que geralmente reconhecemos hoje
em dia, e, assim, muitas vezes geraram ideias que despertam dúvidas sobre a visão
simplista das religiões monoteístas. Uma dessas diz respeito à natureza da própria
divindade. Se a fonte última de todo ser é absoluta, como a maioria das religiões afirma,
como poderia esta existência completamente transcendental, absoluta, ser diretamente
responsável pelas minúcias da formação e desenvolvimento dos inúmeros detalhes do
sistema de mundo criado? Ecoando os sentimentos expressos em muitas fontes antigas, a
escritora neognóstica H.P. Blavatsky escreve:

"O Um é infinito e incondicional. Ele não pode criar, porquanto não tem relação com o
finito e o condicionado. Se tudo que vemos, dos sóis gloriosos e planetas, até as placas de
grama e as partículas de pó, tivessem sido criado pela perfeição Absoluta, e fosse o
trabalho direto até mesmo da Primeira Energia que Dele procede, então cada urna dessas
coisas seria perfeita, não condicionada, como seu autor..."1

Como indica a citação acima, outra questão que surge das críticas às religiões
monoteístas diz respeito à existência da imperfeição e do mal do mundo. Como pode uma
divindade onipotente e boa criar e/ou dar apoio à existência de um mal tão grotesco,
injurioso e sem sentido? (Uma resposta quase frívola, usada frequentemente, que o mal é
devido ao pecado humano, não deve sequer ter sido seriamente considerada pelos mais
hábeis pensadores do mundo antigo). Se, por outro lado, o mal e a imperfeição existem no
mundo, eles devem ser devidos, ao menos em parte, à atividade de agentes que se
interpõem entre a existência manifesta e o Absoluto, e que não partilham da perfeição e da
bondade do primeiro. "Por suas obras, vós os conhecereis." Um mundo imperfeito, repleto
de um mal muito real, deve ser o trabalho de deuses ou de um Deus que partilhe das
qualidades da imperfeição. Esse foi o julgamento dado pelos gnósticos e, antes deles, por
outros sofisticados pensadores do mundo antigo.
A religiosidade semítica estava cheia de curiosas imagens e noções contraditórias
quando elaborou um conceito da divindade e da natureza e origem do mal. A matriz
religiosa sumérico-babilônica, que exerceu forte influência no Judaísmo antigo, admitia,
90
claramente, que os deuses eram responsáveis pelo mal tanto quanto pelo bem. Enki e
outros deuses babilônicos divertiam-se, livremente, em criar monstros e excentricidades e
em dotar a humanidade de condições más, exclusivamente para sua própria perversa
diversão divina. O Senhor Deus de Israel era, de muitas maneiras, semelhante a essa
contrapartida babilônica: ele tinha um lado bom e um lado mal e livremente exercitava
uma dessas tendências, dependendo de seu capricho. O povo que servia ao Deus hebreu
simplesmente tinha de inclinar a cabeça à Sua vontade, quer Ele lhes enviasse o bem, quer
o mal. Durante os últimos séculos antes da Era Cristã, um número cada vez maior de judeus
já não estava mais disposto a sofrer a tensão dos opostos que percebiam no seu Deus.
Assim, os essênios tornaram disponíveis para si mesmos um mythos de dualismo que serviu
cada vez mais como base lógica para a existência do mal radical no cosmos. O Povo dos
Pergaminhos pesquisou, diligentemente, os trabalhos mais obscuros da literatura e
mitologia judaicas, tais como as lendas associadas ao profeta Enoch, e encontraram ideias
que iluminaram sua preocupação com o mal e a batalha dos filhos da luz contra os filhos
das trevas. Algumas dessas escrituras falavam de seres imperfeitos, que fazem uma ponte
entre Deus e o cosmos criado.
A noção da existência e das atividades de seres angélicos, "filhos de Deus", que eram,
no entanto, imperfeitos, sensuais e rebeldes, tem amplo fundamento na Bíblia hebraica. Os
quatro primeiros versos do sexto capítulo do Gênesis contam o curioso episódio dos assim
chamados filhos de Deus, que, logo que viram nascer as filhas de alguns humanos,
tomaram-nas como esposas ("as que, entre todas, mais lhes agradaram") e assim se
tornaram os progenitores de uma raça igualmente estranha de seres, cujos nomes são, às
vezes, traduzidos como heróis e, às vezes, como gigantes. A literatura judaica apócrifa
posterior, tal como o Livro de Noé e os renomados Livros de Enoch, apresentam longas
elaborações sobre esse tema. As ações, citadas de modo muito breve no Gênesis, assumem
agora um tom diferente de rebelião, gerada pela concupiscência e pela ganância. O chefe
dos filhos do paraíso, chamado Semihazah, conduz sua terrível hoste de duzentos anjos
rebeldes para baixo, do cume do Monte Hermon, pronunciando terríveis pragas e
maldições mágicas, cheios de feroz luxúria pelas mulheres humanas. Os anjos em questão
são chamados pelo agourento nome de "espiões", e a descendência resultante desse
defloramento de mulheres humanas são gigantes raivosos e cruéis, que matam homens e
animais e destroem a terra. O Senhor, então, explica a Enoch que os gigantes serão
chamados de demônios ou espíritos maus e a terra será o seu local de habitação. Esses
espíritos gigantes estão destinados a continuar a oprimir a humanidade e a produzir toda
sorte de destruição sobre a terra, e tudo isso é justificado pelo fato de que eles têm "santos
espiões" como seus ancestrais e progenitores. Um dos dez líderes dos anjos rebeldes, na
literatura de Enoch, é chamado Asael, que, como Azazel, aparece nos escritos da
comunidade de Qumram (ver Capítulo II da presente obra). Uma passagem na literatura de
Enoch é particularmente instrutiva. Aqui, Enoch viaja nos domínios cósmicos, vendo todos
os trabalhos do universo, e lhe são mostradas sete estrelas celestes que estão presas
juntas, como prisioneiras. A explicação dada a Enoch é que essas são algumas das estrelas
que transgrediram a ordem do Senhor e foram presas por dez mil anos por causa de seus
pecados. A ligação dos anjos rebeldes com os sete planetas nos leva, portanto, à ideia
gnóstica de que os planetas são regidos por sinistros senhores da limitação, que tencionam
91
manter os espíritos da humanidade cativos em seu confinamento terrestre.²
A partir dos Livros de Enoch, do Livro dos Jubileus (ambos muito populares entre os
essênios) e do fascínio do Povo dos Pergaminhos pelo assunto dos anjos rebeldes,
desenvolveu-se, naturalmente, a conclusão gnóstica que divide o Deus bíblico monoteísta
de um lado num Ser transcendente e, de outro, num criador inferior ou Demiurgo. A
transcendência e a incognoscibilidade de Deus foram reforçadas durante algum tempo pela
teologia judaica, quando as tendências cada vez mais gnosticizantes dos grupos essênicos
finalmente eclodiram, como uma rebelião aberta contra a imagem de Jeová, conforme os
ensinamentos oficiais do sacerdócio judaico.
Em paralelo com esse desenvolvimento, expandiu-se uma filosofia que pode ser
chamada de a "doutrina do Filho do Homem". A expressão hebraica "Filho do Homem"
denota, simplesmente, um membro da raça humana, mas os ensinamentos que cresceram
em torno desse conceito têm implicações que vão além da humanidade, como entendida
ordinariamente. O Filho do Homem, conhecido em grego como anthropos, do qual o
Mestre da Retidão foi entendido como uma manifestação, passou a ser visto como um
reflexo de Deus na criação, uma manifestação miniaturizada da Divindade transcendente,
que está destinado a se desenvolver na plenitude de seu potencial, no nosso planeta. Esse
arquétipo da verdadeira humanidade é descrito por Hugh Schonfield, no seu último
trabalho A Odisseia dos Essênios, da seguinte maneira:

“Ele é o ideal da nossa espécie sob disfarce. Ele pode ser encontrado no Ocidente e no
Oriente, no passado, no presente e no futuro, por qualquer um de nós, de qualquer fé ou
clima. Ele é o viajante imortal, que sofreu todas as adversidades que o nosso planeta pode
infligir. Onde quer que seja achado, chama de volta os nossos Selves melhores, ao caminho
da preocupação com os outros, ao amor e à bondade de coração. Ele restaura a nossa
coragem e esperança. Ele é eternamente adaptável, de modo que em toda nossa
diversidade, sentimo-nos à vontade com ele e ele é o nosso lar. Ele é, também, o objetivo
pelo qual lutamos, o Homem do Mundo, de um mundo mais sábio e mais nobre, que
visualizamos na nossa melhor imaginação. Através dele, no espírito, alcançamos prodígios
infinitos e glórias incomparáveis.”4

A mais antiga personificação desse arquétipo da humanidade, assim acreditava a


tradição alternativa em desenvolvimento, foi o primeiro par humano, Adão e Eva. Um
conjunto de tratados coletivamente chamados de "Livros de Adão", compreendendo obras
como a Vita Adae et Evae, A Vida de Adão e Eva, o Apocalipse de Moisés e o texto de Nag
Hammadi, o Apocalipse de Adão (todos compostos provavelmente no século I a.C),
apresentam-nos uma imagem dos primeiros pais da humanidade substancialmente
diferente da representação corrente. Adão e Eva aparecem aqui como seres majestosos,
quase divinos, cheios de glória e poder, cujo status é invejado pelos anjos adversários. No
Apocalipse de Adão, abertamente gnóstico, Adão fala a seu filho Seth sobre seu status
original e o de Eva: “E nós nos parecíamos com grandes anjos eternos, pois éramos maiores
que o Deus que nos criou e que os poderes junto Dele, que não conhecíamos."
Anjos rebeldes interpondo-se entre o Deus transcendente e a criação; seres humanos
gloriosos, criados à imagem de um arquétipo celestial e infundidos com um espírito
92
superior a este mundo; inveja e hostilidade dos anjos rebeldes contra a humanidade: tais
são os elementos dramáticos que compõem a grande tragédia da vida humana na terra
como é entendido miticamente pela tradição alternativa. Podemos, talvez, agora, estar
prontos para apreciar o mito dos Príncipes deste Mundo e sua luta aeônica contra os filhos
dos homens.

O Mito dos Anjos Tirânicos

De Sophia, a mãe celestial de todas as coisas vivas, nasceu aquele que se tornaria o
formador e regente do sistema da criação. Sua mãe sentia grande tristeza e angústia
quando o gerou, pois estava sozinha num abismo de trevas e sua luz tinha diminuído. Seu
descendente apareceu diante dela e ela viu que ele era capaz de mudar de forma. Ele
apareceu sob forma de serpente, com face de leão, e de seus olhos saíam raios de luz. E
Sophia se arrependeu de seu desejo de gerar um ser na sua solidão, e chorou e se lamentou
sobre a sua descendência, a quem chamou de Yaldabaoth, o Senhor-Criança.
Yaldabaoth foi, então, para o caos e elaborou um sistema de criação que era de seu
agrado, e dentro dele colocou doze autoridades, sete regentes do firmamento e cinco
regentes do abismo. Todos esses, com seus filhos, foram chamados regentes, pois o desejo
que tinham de poder e autoridade era grande. O criador e sua hoste mesclaram, então, luz
e trevas, para que as trevas parecessem radiantes e, assim, iludissem os olhos. Essa mescla
de luz e trevas resultou num mundo imperfeito e fraco, pois as trevas impediram-no de
desenvolver um exército de luz, que poderia protegê-lo. E a fraqueza deste mundo se
tornou grande, de fato, pois as trevas que estavam em todos os lugares, mesclados com a
luz, trouxeram terríveis poderes e seres do mal, vindos de fora do sistema do mundo.
Assim, Yaldabaoth permaneceu no centro do sistema do mundo que ele formara, e se
tornou arrogante em seu orgulho, exclamando: "Eu sou Deus e não há outro Deus além de
mim!" Dessa forma, ele demonstrou sua ignorância agora do verdadeiro caráter do ser,
bem como seu orgulho, pois negou até sua própria mãe. Sophia, no entanto, olhou para ele
das alturas e exclamou, em alta voz: "Proferistes uma falsidade, Ó Samuel!" Foi assim que
ele recebeu o nome que o torna o senhor cego da morte, e então Sophia o chamou
também de Saclas, com o que afirmava a tolice dele.
Sophia, porém, sabendo que sua descendência gerara uma criação a partir de sua
própria imagem defeituosa, decidiu ajudar secretamente a luz que estava presente no
mundo. Desceu de sua habitação e veio para perto da terra, movendo-se de lá para cá
sobre ela, assim outorgando sua sabedoria e amor ao sistema que o tolo criador
desenvolvera. Foi seu poderoso espírito que se moveu sobre as águas, conforme se afirma
na história da criação contada por Moisés. Os regentes pensaram que eles, sozinhos,
tinham criado e ordenado o mundo, mas o espírito de Sophia contribuiu secretamente para
colocar esplêndidos padrões arquetípicos na trama do trabalho deles.
Então uma grande maravilha apareceu nos céus: a forma de um homem, de visão
majestosa e gloriosa. E uma voz acompanhou a imagem, exclamando: "Existe o homem e o
Filho do Homem." O criador e sua hoste tremeram e as bases do abismo sacudiram-se e as
águas agitaram-se em terror sobre a terra. Tão grande era o brilho do arquétipo humano
93
celestial que apareceu no céu que os regentes foram por ele cegados e não puderam
aguentar seu poder. Desviaram os olhos e fixaram o reflexo da forma do homem, conforme
essa aparecia nas águas abaixo.
Todos os regentes e seus servos correram para perto e, juntando seus poderes,
fizeram uma réplica da imagem do homem celestial; mas seu trabalho era defeituoso e
fraco, porque a força de Sophia não estava na sua criação. O homem falsificado era
estúpido e insensato e se arrastava pela terra como um verme. Sophia, então, enviou vários
mensageiros da luz e eles, secretamente, penetraram na mente de Yaldabaoth, fazendo-o
respirar sobre a lamentável criatura, desse modo infundindo-lhe vida. Aquele que criara
pensou que era ele quem tinha dotado os homens de vida, mas, na realidade, foi sua mãe
Sophia quem deu à humanidade a verdadeira vida. E o homem ficou de pé, caminhou e foi
circundado por uma luz não terrestre.
Yaldabaoth e sua hoste reconheceram que o homem era, de fato, um ser cujo poder
espiritual e inteligência excediam o seu próprio. Cheios de inveja e raiva, eles atacaram o
homem cujo nome era Adão e o lançaram na escura região da matéria, para lá definhar em
tristeza e privação. Sophia, entretanto, em cooperação com os mais altos poderes da
plenitude, enviou a Adão um auxiliar, para instruí-lo e assisti-lo com sabedoria e força
espiritual. Esse auxiliar era uma mulher, conhecida como Eva, mas cujo verdadeiro nome é
Zoé, que significa vida. O sábio espírito feminino penetrou em Adão e ficou escondido aí,
para que os regentes não percebessem a sua presença.
Os regentes, então, conspiraram e elaboraram um plano, no qual esperavam que o
homem poderia cair, e permanecer cativo de seus desígnios. Eles criaram um jardim, cheio
das belezas e delícias da terra, e colocaram Adão no meio dele, fornecendo-lhe todo tipo de
objeto agradável que pudesse desejar; mas as belezas e os prazeres oferecidos eram
enganosos, corruptos e planejados para mantê-lo cativo dos regentes, sem vontade ou vida
própria. Também colocaram uma árvore no jardim, contendo a vida deles, e proibiram
Adão de tocar ou de comer do seu fruto.
Mais uma vez, Sophia e os outros poderes celestiais foram em socorro de Adão e o
instruíram a comer o fruto daquela árvore e desafiar o regente e seus anjos tirânicos. Ao
mesmo tempo, a mulher nasceu de Adão, mas o chefe dos regentes a reconheceu como
tendo a luz de Sophia e enfureceu-se. Ele a perseguiu por todo o jardim e, tendo-a
subjugado, violentou-a e ela concebeu dois filhos dele, cujos verdadeiros nomes eram
Eloim e Yave, embora sejam conhecidos como Caim e Abel. Porém, o espírito brilhante de
sabedoria que habitava em Eva fugiu, enquanto ocorria esse estupro, e, assim, apenas a Eva
humana passou por essa vergonha e não Zoé, o espírito vivo. Eloim-Caim tornou-se mestre
da terra e da água e dele descendem homens e mulheres com inclinação para a matéria, ao
passo que Yave-Abel comandou o ar e o fogo e se tornou o pai dos seres humanos que
valorizam a alma e a mente. Adão, no entanto, percebeu o que o regente tirânico tinha
feito e subsequentemente gerou um filho com o nome de Seth, com inclinação para o
espírito, e que se tornou pai daqueles que aspiram pela Gnose e por uma união com o
espírito.
Os anjos tirânicos, então, observaram, enfurecidos, que a humanidade seguia seu
curso e não iria mais permanecer no paraíso dos tolos, onde aquele que criara queria
mantê-los cativos. O chefe dos regentes amaldiçoou especialmente a mulher, que veio a ser
94
a mãe da humanidade e seu destino, bem como o de suas filhas, tem sido difícil desde
então. Entretanto, Eva deu à luz uma filha chamada Norea, plena da verdadeira Gnose, e
que permaneceu na terra por muito tempo como uma ajudante da humanidade, porque
era sábia e conhecia os esquemas e as más obras dos anjos tirânicos.
Enquanto isso, os homens se multiplicaram e, instruídos por Seth e Norea, muitos
voltaram à Gnose e, assim, os regentes ficaram com poucos homens e mulheres que os
aceitavam como divinos e seguiam suas leis.
Os tiranos se reuniram e declararam que desejavam destruir todos os seres humanos
que não lhes fossem subservientes. Provocaram um dilúvio, do qual tencionavam salvar
apenas aqueles que ainda permanecessem adorando-os, entre os quais estava um homem
chamado Noé. O chefe dos regentes se aproximou de Noé e o mandou construir uma arca,
para salvar a si mesmo e a seus companheiros do dilúvio. Norea, no entanto, soube disso e,
para frustrar os desígnios dos regentes, primeiro tentou dissuadir Noé de construir a arca,
mas como não conseguiu seu intento, pôs fogo na arca que ele construíra e esta se
queimou. Noé, obstinado, construiu a segunda arca.
Os anjos maus, então, assaltaram Norea, desejando violá-la como tinham feito com
Eva, sua mãe, mas um grande anjo de luz chamado Eleleth a resgatou e lhe deu forças para
continuar sua missão. Os conhecedores da verdade se esconderam numa nuvem luminosa
no alto, acima das montanhas, e foram salvos da inundação. Assim, com a ajuda de Norea,
o esquema dos anjos tirânicos foi frustrado.
Desde então, a humanidade tem vivido em conflito e divisão, pois o chefe dos
regentes nela semeou a cólera. A verdadeira Gnose tornou-se rara e os filhos dos homens
aprenderam coisas inúteis e mortas e seu conhecimento tornou-se mundano e corrupto.
Mesmo assim, a raça humana nunca foi deixada em abandono, pois tem ajudantes nos
altos aeons. Não apenas Sophia e seus anjos, mas alguns anjos tirânicos também
abandonaram o mal do seu chefe e voltaram ao serviço da luz. O maior desses foi o irmão
de Yaldabaoth chamado Sabaoth e também Abraxas. Esse espírito renunciou às obras de
seu cego e mau irmão e se submeteu à sua mãe Sophia, que o nomeou regente do sétimo
céu, de onde pia como um galo celestial chamando todos os seres, a fim de que possam
despertar e renegar as obras das trevas.

Abraxas
95
Mais tarde, surgiu um conflito entre os filhos dos homens que ainda serviam aos anjos
tirânicos e aqueles que foram libertados pela Gnose. Os servos de Yaldabaoth traíram os
conhecedores e os regentes fizeram chover fogo e enxofre sobre eles, esperando destruí-
los. Abraxas-Sabaoth, assistido por outros poderosos anjos da luz, os resgatou, fazendo com
que o plano dos regentes novamente fracassasse (Isso ficou conhecido como a destruição
de Sodoma e Gomorra).
Repetidamente, os regentes se reuniram e planejaram destruir aqueles seres humanos
que não queriam servi-los. Queriam corromper toda a raça humana, mesclando sua
essência com a humanidade e raptaram muitas mulheres humanas e procriaram gigantes
cheios de maldade: Esses gigantes tornaram-se os ancestrais daqueles homens cujo
egoísmo despoja a terra e priva bons homens e mulheres de suas posses e sustentos.
Devido à multiplicação dos planos perversos e às depredações dos regentes, uma parte da
humanidade está contaminada por sua semente, embora todos os homens e mulheres
possuam, também, a luz de Sophia.
Os regentes são; no entanto, verdadeiros tiranos. Seu mais profundo desejo é
subjugar e reinar sobre os filhos dos homens em quem não confiam e a quem desprezam,
pois são superiores: em essência, aos próprios regentes. Por isso, os regentes estão sempre
trabalhando, elaborando leis e mandamentos, com os quais possam constranger os filhos
dos homens. Mascaram-se como mensageiros a luz, ou mesmo como o próprio Deus
verdadeiro, exigindo obediência e adoração. Iludiram, assim, muitos profetas e videntes
bem-intencionados e conseguiram dominar muitos seres humanos. A Lei de Moisés foi, ao
menos em parte, igualmente inspirada pelos regentes, pois Moisés não pôde fazer uma
distinção entre o Deus verdadeiro transcendente, e o chefe dos anjos tirânicos.
Jesus, que desceu dos altos aeons, veio para derrotar os anjos tirânicos, ensinando os
homens que eles podem se tornar livres e outorgando-lhes mistérios que poderiam ser
usados como armas contra os ardis desses adversários. O regente chefe, em sua cegueira,
não percebeu que Jesus tinha tal luz e origem divina; achou que Ele era, meramente, um
ser humano, criador de problemas, e que poderia ser assassinado. Incitou, então, os
sacerdotes e fariseus a condenarem Jesus à morte. Jesus, não sendo humano, não morreu,
embora tenha permitido a ilusão da sua morte física. Ele voltou em sua glória e completou
seu trabalho de redenção, a despeito dos planos de seus inimigos. O assalto à Sua pessoa
trouxe tais consequências sobre seus perseguidores, contudo, que logo o Templo de
Jerusalém foi destruído e as circunstâncias mudaram de tal modo, que muitos puderam
renunciar à antiga lei, fabricada pelos regentes. A liberdade espiritual trazida por Jesus
prevaleceu apenas por um breve período da história e os anjos tirânicos começaram a
corromper a mensagem da Boa Nova, mais uma vez. A batalha das forças da luz contra os
anjos tirânicos continua, mas não se discute o resultado. As forças da redenção estão
destinadas a prevalecer, trazendo Gnose e libertação aos raios de luz, escondidos na
humanidade. A derrota virá para os cegos e tolos anjos tirânicos, que por tanto tempo
dominaram o reino onde, como usurpadores, estabeleceram seu domínio ilegítimo.

Interpretação do Mito

As origens do principal anjo tirânico leva-nos de volta a Sophia. A alma feminina, tendo
96
descido ao abismo das trevas, gerou uma descendência de maneira não convencional. O
Apócrifo de João conta-nos que essa descendência foi gerada sem o consentimento do
espírito e "apesar de sua parte masculina" não ter aprovado. A mãe do Demiurgo agiu,
assim, de forma desequilibrada. Em termos contemporâneos, podemos dizer que ela gerou
sem a cooperação do seu animus ou Self psíquico masculino. Quando agimos com um único
lado da nossa polaridade contra-sexual, enveredamos pelo caminho errado.
Para gerar um ato criativo psicologicamente saudável e produtivo, temos de solicitar a
aprovação dos opostos. A cabeça precisa do consentimento do coração, o ego do Self, o
espiritual do físico, a anima do animus (e vice-versa). Atos desequilibrados trazem desastre
em seu rastro.
O filho bastardo de Sophia tem a forma de uma serpente com rosto de leão. Tem,
também, a capacidade de assumir outras formas. O leão e a serpente são criaturas
associadas com as polaridades primárias do fogo e da água, respectivamente. Do mesmo
modo, o Demiurgo é, também, descrito como andrógino por muitas escrituras gnósticas.
Essas características poderiam levar-nos a acreditar que ele representa uma força pré-
consciente, indiferenciada, que permanece numa relação contrária à consciência
diferenciada. Nos Sete Sermões aos Mortos, Jung refere-se a uma figura simbólica
semelhante como “o hermafrodita dos tempos imemoriais". Podemos, assim, inicialmente,
definir esse ser como um símbolo da energia psíquica primitiva, indiferenciada, que se
constela num ego humano. Tão logo essa energia assuma uma identidade egóica, começa a
criar o seu próprio mundo. O ego vem do seu background psíquico anterior mais amplo,
mas logo se volta contra a mãe e, arrogantemente, declara sua independência em relação
ao mistério inconsciente do qual surgiu. O nome Yaldabaoth, embora tenha muitos
significados, é derivado de YHVH Yahveh, Jehovah, cujo significado é "Eu sou o que Eu sou".
As palavras "Eu sou" não caracterizam, também, a própria natureza do ego psicológico? O
criador imperfeito serve assim como uma metáfora válida, para O que os psicólogos da
psicologia profunda chamam de "ego alienado". Definido pelo seu próprio sentido de
identidade, essa entidade psíquica afasta-se da sabedoria (Sophia) contida no inconsciente
e se declara criador e regente por nascimento. Ele, que poderia se ter tornado um anjo de
luz, torna-se um tirano das trevas.
A prova definitiva da arrogância do ego tirano está implícita na afirmação do
Demiurgo: "Eu sou Deus e não há outro Deus além de mim!" O psicólogo junguiano Edward
Edinger descreve assim esse fenômeno:

"Todo tipo de motivação de poder é sintoma de inflação. Sempre que alguém age
movido pelo poder, a onipotência está implícita; mas a onipotência é um atributo apenas
de Deus. A rigidez intelectual, que tenta equacionar sua própria verdade ou opinião com a
verdade universal, também é inflação. É a presunção de onisciência... Todo desejo que dê à
sua própria satisfação, um valor central transcende os limites da realidade do ego e, em
consequência, assume os atributos dos poderes transpessoais.”5

Sophia, assim, significa a matriz (de mater, mãe) celestial transpessoal, ao passo que
Yaldabaoth representa o ego tirânico, que não está disposto a reconhecer a existência da
transcendência e, portanto, de quaisquer limites impostos ao seu poder. Também deve ser
97
notado que o Demiurgo, frequentemente, exibe ataques de fúria, o que e marca
característica de um estado de inflação. O ego inflado sempre tenta coagir e dominar seu
meio e quando tais tentativas não são bem-sucedidas o resultado é uma raiva feroz. Foi
por isso que o Criador amaldiçoou Eva no momento da queda, e foi essa raiva que o
motivou e aos seus agentes a violá-la e tentar o mesmo tipo de ultraje contra Norea. (De
forma tipicamente gnóstica, vários psicólogos junguianos identificaram esse tipo de raiva
arrogante como um “complexo de Yahveh".) A alienação leva à inflação: o filho de Sophia se
aliena de sua mãe e então, arrogantemente, a repudia e aos outros poderes fora dele.
O ego cria o seu próprio mundo, mas, inevitavelmente, este mundo é imperfeito. A
sabedoria da psique arquetípica transpessoal, no entanto, nunca está totalmente ausente.
É por isso que o espírito de Sophia pairou sobre a criação e a penetrou secretamente. Os
alquimistas foram responsáveis por cunhar o termo Lumen Naturae, luz da natureza, para
explicar que além da luz superior da divindade, no domínio da transcendência, existe
também outra luz, inferior em seu caráter mas ainda potente. Essa luz está presente na
natureza e no corpo do ser humano. Suas origens últimas, naturalmente, são divinas. A
presença dessa luz é indicada por vários mitologemas, na história do Demiurgo e seus anjos
tirânicos. Primeiro, Sophia entra numa íntima ligação com a criação. Ela exibe, então, aos
olhares aterrorizados dos regentes, a imagem da forma humana perfeita ou celestial. Com
base nesse arquétipo celestial, os regentes formam o primeiro homem, mas falta a este um
ingrediente vital: a consciência ou autoconhecimento. Esse poder só vem para ele sob o
comando de Sophia. Somos feitos à imagem de grandes padrões arquetípicos, mas só nos
tomamos realmente humanos quando a dádiva da consciência chega a nós.
Com os primeiros movimentos do Self consciente, começa o processo de crescimento
psico-espiritual. Os primeiros passos no caminho da individuação evocam fortes
resistências do ego tirânico. O desenvolvimento espiritual nunca ocorre sem uma luta
gerada pela arrogância e o desejo de poder do ego. A longa história do difícil
relacionamento da raça humana com o Demiurgo e os regentes fala-nos dessa luta.
Um mitologema particularmente sutil que expressa essa luta é a história de Adão e Eva
no Jardim do Éden, vista pelos gnósticos. O mundo do ego é constituído de tal forma que
pode facilmente afastar a alma de suas tarefas de individuação. De muitas formas, esse é
um mundo paradisíaco: ele está cheio de objetos e experiências que prometem prazer,
riqueza e poder. Contudo, quando visto da perspectiva do crescimento transformador, é
um paraíso dos tolos. A serpente, não mencionada pelo nome no nosso relato, é na
realidade o princípio da Gnosis, a consciência emergente e o impulso para a individuação.
Também é útil notar que é Eva, e não Adão, que responde à inspiração da sabedoria e
provoca a feliz catástrofe da expulsão do paraíso. Os intérpretes gnósticos do Gênesis
geralmente afirmam que Eva representa o espírito humano, com sua intuição celestial,
enquanto Adão significa a alma, com suas emoções e pensamentos, até certo ponto
limitados pela matéria.
Esse mitologema repete-se com relação à história de Noé, quando Norea age de
acordo com os desígnios do espírito e Noé permanece subserviente aos regentes. Não há
dúvida de que toda a abordagem gnóstica tem grande afinidade com o feminino, com sua
ênfase intuitiva não racional. Uma pessoa que reconheceu esse fato e fez dele bom uso foi
C.G. Jung. Já em agosto de 1912, Jung confidenciou numa carta a Freud que ele teve uma
98
intuição de que o tom essencialmente feminino da sabedoria dos gnósticos, que ele
simbolicamente chamava de Sophia, estava destinado a entrar de novo na moderna cultura
ocidental, através da psicologia profunda. Desvendando os profundos recessos da alma
humana através da intuição e do insight, reabilitando a dignidade dos sentimentos
humanos, a psicologia de Jung tem justificado em larga medida sua antiga previsão. Os
mitos gnósticos sugerem que foi a sabedoria feminina, personificada em figuras tais como
Sophia, Eva, Norea, Maria Madalena e outras mulheres, que agiu como campeã da Gnose
através da história humana, enquanto a psique masculina, com sua orientação mais
prosaica e materialista, esteve mais ligada às forças da consciência do ego e à inclinação
para o mundano. Pode-se notar também que, embora o relacionamento entre Adão e Eva
seja visto pelos intérpretes gnósticos como uma metáfora para o relacionamento
intrapsíquico da alma e do espírito, a importância iluminadora do feminino, personificado
na mulher viva, não é ignorada. Assim, quando o sábio espírito enviado por Sophia, depois
de ter primeiro sido escondido em Adão, finalmente separa-se dele e se torna exterior ao
seu companheiro, ela permanece como seu instrutor e inspiração e continua como seu
superior espiritual. Uma analogia psicológica aparece na importância do valor da anima,
não apenas enquanto reconhecida dentro da psique masculina, mas também quando
projetada e aparecendo superimposta numa mulher de carne e osso.
Outro instrutivo e significativo tema do mito é o que ocorre em muitos outros mitos
da Gnose. Isso tem que ver com a questão da lei versus a liberdade. Sempre que o homem
se torna livre, os anjos tirânicos tentam destruí-lo. Os "pecados", por cuja causa a
humanidade é visitada com o dilúvio e com fogo e enxofre, são a desobediência às leis dos
anjos tirânicos. A psicologia profunda reconhece que a individuação implica ir contra os
critérios estabelecidos pela sociedade. Enquanto a psique humana se contenta em estar
contida dentro do sistema da família, do estado e da sociedade, o tipo de crescimento
interno, gerado pela individuação, não ocorre. Isso não significa que a pessoa individuada
permaneça para sempre num estado de espírito caracterizado por rebelião e anarquia. Ao
contrário, devemos perceber que quando a psique para de se identificar com regras e leis
externas, cegamente aceitas, ela se torna capaz de viver como um indivíduo livre, dentro de
uma organização social. Pessoas individuadas (ou que estão conseguindo se individuar)
raramente alardeiam seu não conformismo; nem são escravas nem vítimas inconscientes
de regras e convenções coletivas. Para fazer escolhas, é necessário emancipar-se da
adesão, sem escolha, às regras estabelecidas. E é a escolha que caracteriza o processo e os
melhores resultados do processo de individuação. É óbvio, então, por que os mitos
gnósticos descrevem as batalhas dos que fazem as escolhas, contra os escravos da lei. O
gnóstico pneumático é sempre uma pessoa que deseja suportar o peso e usufruir as glórias
da escolha e responsabilidade existenciais, ao passo que os valores psíquicos não gnósticos
impuseram externamente a lei sobre os valores internos de sua própria alma.
Os mitologemas gnósticos tendem a contrastar a antiga prescrição de Moisés, que
apresenta uma rígida preocupação com a lei, com a nova lei proclamada por Jesus. Aquela
decreta obediência, de onde emana uma coletiva vitória redentora do povo de Israel. Esta
implica uma dignidade existencial, gerada pela escolha consciente e pela responsabilidade
pessoal. (O fato de muitos desdobramentos subsequentes levarem a negligenciar esse
elemento existencial na ética cristã, não diminui sua existência história, nem sua utilidade,
99
quando reconhecido e implementado.) A antiga lei é a lei da psicologia coletiva,
influenciada pela tirania obscura do inconsciente culpado da humanidade. A nova lei,
reconhecida pelos gnósticos, mas com frequência obscurecida pela ortodoxia posterior, é a
lei da individuação, com suas liberdades e responsabilidades, seus terrores existenciais e
alegrias transcendentais. Bem afirmou o grande mitologista americano Joseph Campbell em
sua obra The Hero With a Thousand Faces (O Herói de Mil Faces):

"Não é a sociedade que deve guiar e salvar o herói criativo, mas exatamente o inverso.
E, assim, todos nós partilhamos a suprema provocação - carregar a cruz do redentor - não
nos brilhantes momentos das grandes vitórias da sua tribo, mas no silêncio do seu
desespero pessoal.”6

Cedo ou tarde, todos nós chegamos ao tipo de Gnose que nos inspira a nos afastarmos
das lisonjas e ameaças, da cenoura e da vara dos anjos tirânicos. Mascarados como lei
religiosa, costumes da sociedade, ideologia política e econômica e muitas outras
manifestações, os desígnios dos anjos tirânicos nos mantém amarrados a uma condição de
escravidão coletiva, sem escolhas e individuação. O ego tirânico age de muitas formas e em
muitos níveis algumas dessas ações astuciosas são coletivas, ao passo que outras são
intensamente pessoais. O dogma externamente imposto, desse modo se encontra e
conspira com a culpa, a raiva e a ganância, provenientes do lado sombrio da personalidade.
Como Seth e Norea no mito gnóstico, devemos desviar nosso olhar do espetáculo
intimidante apresentado a nós pela tirania e maldade que residem nas alturas. No
Evangelho de Tomás, Jesus emprega a palavra monachoi, usualmente traduzida por "os
solitários", mas também significando "aqueles que se tornaram unificados". Esse é o nome
com o qual podemos descrever a psique individuada, a alma do conhecedor que, tendo
agora se tornado uma unidade, pode estar só, sem a limitante coletividade da sociedade,
livre da tirania do ego alienado. Esses são os homens e mulheres que conseguiram livrar-se
do domínio dos anjos tirânicos e, deles, afirma o Cristo gnóstico: "Benditos sejam os
solitários e os eleitos porque eles descobrirão o reino!... Muitos aguardam no portal, mas
somente os solitários entrarão na câmara nupcial."7

100
9
O Viajante do Paraíso:
O Mito da "Canção da Pérola"

Introdução: Uma Canção sobre a Jornada da Alma

Dentre os numerosos documentos que servem como veículo para expressar a


experiência gnóstica, sob forma mítica, nenhum iguala a encantadora e significativa história
da "Canção da Pérola". Contida nos Acts' of Thomas [Atos de Tomás], uma escritura
apócrifa, de há muito conhecida do Cristianismo, esse poema é poeticamente atribuído a
Tomás, o apóstolo de Jesus, muito reverenciado pelos gnósticos. A coleção de Nag
Hammadi, sozinha, contém duas escrituras importantes, atribuídas a esse apóstolo (The
Gospel According to Thomas [O Evangelho Segundo Tomás] e o The Book of Thomas the
Contender [Livro de Tomás, o Competidor]) e numerosos outros livros e provérbios
tradicionais são atribuídos, originariamente, a ele.
No nono Acts' of Thomas [Atos de Tomás], há um relato do apóstolo que, viajando pela
Índia, se meteu em confusão com um importante oficial chamado Carísio, cuja esposa
Migdônia se tornara sua seguidora, contra os desejos do esposo. O marido enfurecido
denunciou Tomás ao regente local e o apóstolo foi lançado na prisão. Aí, os companheiros
prisioneiros de Tomás lhe pediram para que lhes desse consolo espiritual e este,
respondendo à solicitação, cantou para eles um poema ou canção, que representa uma
versão sutilmente velada do mito gnóstico da libertação da alma do confinamento na
escuridão da matéria e da inconsciência, e sua entrada no reino da luz e da plenitude. A
história é, então, ao mesmo tempo uma parábola e um monomito simbólico, cuja
mensagem pode ser descoberta em praticamente todos os mitos gnósticos.
Como na maioria dos casos, o relato poético das origens do poema não é muito
preciso. Parece que o verdadeiro autor da canção foi Bardaisan (Bardesanes), a grande luz
do Gnosticismo sírio.*
* Para conhecer a vida e os ensinamentos de Bardaisan, veja o Capítulo V.
Os Atos de Tomás foram descritos como uma composição gnóstica, preservada com
retoques ortodoxos; no entanto, esses retoques parecem estar totalmente ausentes da
"Canção da Pérola" propriamente dita. Além disso, pode-se notar, também, a ausência de
quaisquer referências explicitamente cristãs, que fazem desse conto poético o mais
universal e também o mais prontamente compreensível de todas as afirmações míticas
gnósticas. A total ausência de qualquer terminologia técnica, bem como a impressionante
simplicidade da história, coloca essa escritura numa categoria única. (Esse escritor,
relatando o conto a diferentes plateias e vendo-o ser representado sob a forma de drama,
pode atestar o fato de que sua mensagem é prontamente apreendida por pessoas com
pouca ou nenhuma bagagem anterior em Gnosticismo ou em qualquer tipo de mitologia.)
O texto do nosso poema existe em língua síria e na versão grega. Deve-se escolher a
primeira, pois parece que é mais fiel ao original, ao passo que a última representa uma
revisão. A história foi escrita na primeira pessoa, reforçando, assim, a impressão de que é
101
baseada numa experiência pessoal. No relato seguinte, mantive a narrativa em prosa, sem
me preocupar com as divisões métricas originais e mantendo a primeira pessoa.

O Mito da "Canção da Pérola"

Quando eu era criança e vivia no reino de meus pais e usufruía a riqueza e o esplendor
daqueles que me criaram, meus pais decidiram me mandar para uma viagem, longe do
nosso lar no Oriente. Eles, porém, não me enviaram sem provisões, pois prepararam-me
um pacote da abundância de nossos tesouros; a bagagem continha ouro, prata, calcedônia
e opalina. Além disso, cingiram-me com adamas*, um metal tão duro que tritura o ferro.
Grande era a carga dessas provisões, no entanto também era leve, de modo que eu
pudesse carregá-la sozinho.
* Antigo termo para diamante (N.T.).
Minha esplêndida veste de glória, que com amor haviam feito para mim, eles agora a
tiraram dos meus ombros, e também o manto púrpura que me servia com perfeição. E
fizeram comigo um acordo que escreveram no meu coração, para que eu nunca o
esquecesse. Dizia o seguinte: "Se fores ao Egito e nos trouxeres a Pérola Única, que repousa
no fundo do mar, guardada pela serpente tonitruante, então, quando voltares, vestirás
novamente tua veste de glória e teu manto real e, junto com teu irmão, nosso vice-rei,
serás o herdeiro do nosso reino."
Deixei o Oriente, acompanhado por dois enviados reais que tinham ordem de me
atender, porque eu era jovem e precisava de ajuda em jornada tão perigosa. Passei por
várias terras que estavam entre o Oriente e a terra do Egito. Quando cheguei à fronteira do
Egito meus guardiões me deixaram.
Tendo chegado ao Egito, viajei a um lugar perto do mar onde sabia que a serpente
vivia. Estabeleci-me numa estalagem: para esperar o momento em que a serpente estivesse
dormindo, a fim de tomar-lhe a pérola. Eu era um estranho para os outros que moravam na
estalagem. Lá, encontrei alguém que era como eu, agradável, familiar e descendente da
realeza. Recebi dele um conselho para me resguardar contra os egípcios, pois eles eram
impuros. Assim, disfarcei-me usando as vestes dos egípcios, para que eles não pudessem
descobrir que eu era um estrangeiro, tentando tomar a pérola, e para que não pudessem,
depois, atiçar a serpente contra mim. No entanto, logo eles reconheceram que eu não era
seu compatriota. Simularam amizade por mim e me persuadiram a tomar uma bebida e
comer o que eles prepararam para mim.
Ter sucumbido às lisonjas dos egípcios foi para mim uma grande calamidade. Desfaleci
em um esquecimento e não sabia mais que era filho de um rei e passei a servir ao seu rei.
Esqueci completamente da pérola, para a qual meus pais me haviam enviado.
Meus pais, no seu reino, souberam o que me acontecera e se afligiram por mim. Eles
emitiram uma proclamação e convocaram os grandes do reino para uma reunião, na qual
elaboraram um plano para não permitir que eu definhasse no Egito. Escreveram-me uma
carta e cada um dos grandes a assinou:

"De teu pai, o Rei dos Reis, e de tua mãe, a regente do Oriente, e de teu irmão nosso
vice-rei, para ti, nosso filho no Egito, saudações. Acorda e sai de teu profundo sono e fica
102
alerta à mensagem da nossa carta. Lembra-te de quem és: o descendente de um rei. E vê a
quem estás servindo em sombria escravidão. Lembra-te, também, da pérola, pela qual
viajastes para o Egito. Lembra-te da tua veste de glória e do teu esplêndido manto, a fim de
que chegue o momento em que eles possam, novamente, repousar sobre os teus ombros e,
por eles envolvido, teu nome possa ser lido no livro dos heróis e te possas tomar, com teu
irmão, nosso vice-rei, herdeiro do nosso reino."

Essa carta foi uma mensagem mágica para mim. Meu pai a lacrou de tal modo que ela
ficasse protegida contra os terríveis habitantes das regiões por onde deveria atravessar
antes de chegar à minha casa. A carta voou sob forma de uma águia, rei de todas as aves,
até chegar ao meu lado, onde ouvi a sua fala. Ao ouvir a mensagem, acordei do meu sono,
levantei-me, peguei a carta, beijei-a, abri seu lacre e li o seu conteúdo. As palavras eram as
mesmas que antes haviam sido inscritas no meu coração. Lembrei-me de tudo: que eu era
filho de reis e que minha alma, nascida para a liberdade, ansiava por encontrar seus pares.
Também lembrei-me da pérola, em busca da qual viera para o Egito. Então, enfeiticei a
serpente tonitruante, cantando para ela o nome de meu pai, de meu irmão e de minha
mãe, a regente do Oriente. Agarrei, então, a pérola e voltei, para ir ter com meus pais.
Retirei os trajes impuros dos habitantes daquela terra e dirigi meus passos na direção da luz
da nossa terra, o Oriente.
Enquanto prosseguia em meu caminho, eu era guiado pela carta que me acordara e,
como outrora ela me estimulara com sua voz, agora me guiava com a sua luz, brilhando à
minha frente. Sua voz me encorajava contra o medo, enquanto seu amor me fazia
prosseguir. Assim, continuei e passei pelas regiões e cidades que ficam entre a terra do
Egito e a minha terra, o reino do Oriente.
Então, os tesoureiros enviados por meus pais,·que por sua fidelidade foram
incumbidos dessa missão, trouxeram-me minha esplêndida veste, que eu havia tirado, e
também o meu manto real. De fato, eu não me lembrava mais de sua magnificência, pois
fazia muito tempo que eu os havia abandonado, na casa paterna. Mas, de repente, quando
os vi sobre mim, a esplêndida veste de glória pareceu mais e mais com o meu próprio
reflexo: eu a vi como se fosse o meu próprio ser e a diferença entre ela e mim se
desvaneceu de modo que éramos dois em diferenciação, mas um só em singular união.
Mesmo os dois tesoureiros que trouxeram minha veste me pareciam uma única pessoa,
marcados com o selo de majestade de meu pai.
Observei, melhor, então, a veste, em seu esplendor. Estava enfeitada com cores
gloriosas; sobre ela, havia ouro e diversas joias e em suas bordas havia aclamas. A imagem
do Rei dos Reis estava pintada em toda a veste e eu vi se moverem sobre ela os
movimentos ondulantes da santa Gnose. Percebi, também, que a veste estava prestes a
falar comigo e o som de grandes hinos ressoou em meus ouvidos, enquanto ela pousava
sobre mim: "Eu sou aquele que produziu as ações daquele para quem eu fui gerado na casa
de meu pai e percebi no meu interior como minha estatura aumentou de acordo com suas
obras." E a veste se acomodou inteiramente sobre mim com movimentos de realeza e
pulou das mãos daqueles que a seguravam, para que pudesse descansar sobre os meus
ombros. E eu a amei tanto que corri até ela para recebê-la. Estendi meus braços e me cobri
com suas gloriosas cores, ficando inteiramente envolvido por essa real veste de glória.
103
Nela envolvido, subi, então, para os portões de saudação e adoração. Inclinei a cabeça
e adorei o esplendor de meu pai, que me enviou a veste, cujas ordens eu cumprira e que
cumprira comigo o prometido. E no portal de sua nobreza encontrei os grandes do seu
remo. E meus pais estavam jubilosos de me receber, pois agora, finalmente.juntara-me a
eles no seu reino. E com poderosa e melódica voz, todos os seus servos os louvaram e eles
exclamaram que haviam prometido que eu deveria voltar à corte do Rei dos Reis para que,
tendo trazido a perola, aparecesse junto com ele.

Interpretação do Mito

Hans Jonas, em seu conhecido trabalho The Gnostic Religion [A Religião Gnóstica],
escreve sobre “A Canção da Pérola":

"O, encanto imediato desse conto é tal que afeta o leitor antes de qualquer analise de
significado. O mistério de sua mensagem fala com força própria, quase dispensando a
necessidade de uma interpretação detalhada. Talvez nenhuma outra experiência gnóstica
básica tenha sido expressa em termos mais tocantes e simples. Contudo, o conto é
simbólico como um todo e emprega símbolos em suas partes, e tanto o simbolismo total
quanto seus elementos componentes precisam ser explicados."¹

Concordamos com a sugestão de Jonas e oferecemos nossa interpretação da história.


A casa do Pai no Oriente é o Pleroma ou plenitude do poder espiritual, de onde a alma
se origina e ao qual deseja retomar. A existência e a memória desse lar transcendental são
traços característicos de todos os mitos gnósticos que lidam com a existência humana. O rei
e a rainha dos céus representam a suprema díade, vista como a divindade verdadeira e
suprema. O vice-rei e os grandes do reino são os poderes aeônicos que, juntos com o rei e a
rainha, representam a totalidade da plenitude.
Contrastando com essa pletora de bem-aventurança celestial, vemos a terra do Egito,
com a pérola guardada por uma serpente do mar. O antigo nome do Egito é Khem, que
significa "terra escura". O Egito é, pois, o símbolo da vida na terra, com suas trevas de
consciência e de alienação.
A serpente tonitruante no mar é um símbolo muito diferente da sábia serpente do
Gênesis. É um dragão em forma de serpente, vista circundando a terra, o animal do caos
original, inimiga da luz e da Gnose. No livro Pistis Sophia, lemos: "A escuridão exterior é um
enorme dragão, cuja cauda está na sua boca." O mar no qual vive a serpente-dragão é o
corpo líquido da corrupção e do esquecimento, no qual mergulhou o divino. No meio desse
mar, entretanto, guardada por esse terrível monstro, está a pérola tão desejada pelos
regentes do reino celestial.
Muitos desses elementos do mito têm uma relação com as teorias de Jung a respeito
dos primórdios e da jornada do ego humano. O ego começa como uma criança na família
real celestial, vivendo num estado de identidade com a psique arquetípica e o seu
verdadeiro Self. Para obter consciência pessoal, o ego deve, necessariamente, deixar essa
matriz poderosa da primordialidade psíquica. Ele, então, é mandado embora do seu lar
celestial, em uma missão. Embora deixemos o mundo paradisíaco do Self arquetípico,
104
somos "abastecidos"com uma quantidade de seu poder e com a memória distante do seu
caráter sublime. O poeta Wordsworth, em sua ode "Intimations of Immortality" ("Indícios
de Imortalidade"), fala das implicações psicológicas da jornada do filho do paraíso rumo à
terra:

"Nosso nascimento não é mais do que um sono e um esquecimento:


A alma que se levanta conosco, a nossa Estrela de vida,
Tinha sua morada alhures,
E veio de longe,
Não num completo esquecimento,
E não numa total nudez,
Mas trazendo nuvens de glória, nós viemos
De Deus, que, é o nosso lar..."

E, com referência à "descida no Egito" com suas vicissitudes concomitantes, o poeta


continua:

"Assombras da casa-prisão começam a se fechar


Sobre o menino que cresce.
Mas ele mira a luz e, enquanto ela flui,
Ele a vê na sua alegria.
O jovem, que dia a dia mais longe do Oriente
Deve viajar, é ainda Sacerdote da Natureza,
E pela visão esplêndida
Está em seu caminho assistido.
A distância, o Homem a percebe, que definha
E desaparece na luz do dia comum.”

É esse "desaparecimento da visão esplêndida na luz do dia comum", que é


pungentemente colocado na "Canção da Pérola", por meio da metáfora do partilhar bebida
e comida na terra estranha pelo viajante do Paraíso. A alma é uma estranha para os
companheiros habitantes da estalagem deste mundo. A aceitação da condição de alienação
existencial traz, no entanto, com ela, uma consequência útil. É o aparecimento de um
companheiro prestativo, cuja presença e conselho auxiliam o protagonista a perseguir seu
objetivo. O gnóstico é, assim, sempre ajudado em seus transes, por aqueles "de seu tipo",
quer dizer, as pessoas que compartilham a busca da consciência e estão cientes da sua
missão espiritual. Contudo, o mundo do lugar comum, a "trivialidade do cotidiano" (como
Heidegger o chamou), acaba por dominar o indivíduo. O mundo sufocante das
preocupações pessoais faz-nos esquecer o mundo do sentido e significado mais amplos,
que reside no recesso íntimo da nossa psique. O ego torna-se estranho ao Self e a toda a
psique arquetípica, e sua estranheza o empurra à subserviência à realidade de consenso do
mundo exterior, e, em seguida, à depressão, a quase universal doença contemporânea da
humanidade.
Os seres humanos têm dois caminhos pelos quais podem expandir o círculo mágico do
105
seu ser: um exterior e outro interior. A extroversão da energia psíquica dirige a atenção da
personalidade para o mundo exterior das sensações, com seus sentimentos e pensamentos
reativos, concomitantes; mas, em estados de profunda atenção interior e permeabilidade
psíquica, outro tipo de expansão ocorre. De repente, deixamos de ser pessoas fracas,
presas na armadilha da bruma opaca dos conceitos e imagens personalísticos. Ao contrário,
estamos no centro de uma teia de consciência, tornamo-nos conscientes de muitos tipos de
significados, vibrando ao longo dessa teia, e desenvolvemos a capacidade, similar à aranha
em situação semelhante, de apreender as causas dessas vibrações. Para usar outra imagem,
tornamo-nos como uma árvore que, de repente, se conscientiza de que suas raízes
alcançam profundamente o mundo subterrâneo do poder, do significado e de um feliz
excitamento, e também tomamos conhecimento de que é esse mundo subterrâneo que
confere vida aos nossos ramos, que se estendem acima dele, no mundo de vigília da
consciência do ego. Esse é o fenômeno da percepção do restabelecimento do elo de ligação
entre o nosso ego e o nosso ser original, suprapessoal.
Na Canção da Pérola, essa religação do ego com o Self, do pessoal com o transpessoal
é provocada por uma carta. A carta tem um caráter altamente mágico. Ela profere palavras,
voa nas asas de uma águia e é "como um mensageiro". Sem dúvida, essa parte do poema
possui tons soteriológicos: o mensageiro, que é também a mensagem, é um símbolo
primevo do agente da salvação – Jesus, Buda ou outro mensageiro salvífico de luz. É da
habilidade que tem o indivíduo de abrir o lacre dessa carta, o que significa receber o
chamado redentor em completa consciência, que depende a redenção da alma.
Nas Odes de Salomão, uma escritura com fortes tons gnósticos lemos o relato do tema
da carta, onde o destinatário não é capaz de usufruir a mensagem da salvação:

“E seu pensamento era como uma carta.


E Sua vontade desceu do alto.
E ele foi lançado de um arco como uma flecha
Energicamente atirada
E muitas mãos correram para a carta,
A fim de pegá-la, tomá-la e lê-Ia
Mas ela escapou de seus dedos.
E eles temeram-na bem como o lacre que estava sobre ela.
Porque não lhes era permitido quebrar o lacre;
Porque o poder que estava sobre o lacre era maior que o deles.”²

Quando, como na "Canção da Pérola", a alma está pronta para receber o total
significado da comunicação simbólica, ocorrem um grande despertar e uma comunicação
da personalidade. Psicologicamente, a carta simboliza, nos seus vários aspectos, o eixo que
conecta o ego ao Self. Sem esse eixo, a vida está sem a energia psíquica necessária para o
cumprimento das tarefas, para viver com sucesso o mito pessoal da psique. Não é possível
capturar a "pérola de grande valor" no mar turbulento deste mundo sem ser despertado
pelo poder da redenção psico-espiritual.
Mas quem ou o que é a pérola, em busca da qual a alma, mesmo o ego, desce para a
arena do conflito e do labor? E como devemos encarar a serpente, e aplicarmos sua
106
imagem simbólica à vida interior da pessoa? A resposta a essas questões, num certo
sentido, determina o significado de toda a história.
Como Hans Jonas observou, no simbolismo gnóstico a "pérola" e uma das principais
metáforas para o conceito de alma, num sentido transcendental.³ Nesse caso, o significado
do mitologema é definido pelo destino existencial que a pérola teve. A pérola da nossa
história não é uma pérola qualquer. Ela é a pérola perdida, que precisa ser achada e
resgatada. Através dessa criação manifesta, as sementes do Divino, os raios da chama
eternamente brilhante, estão espalhados e escondidos. O grande mar do esquecimento
material e psíquico ocultou as preciosas pérolas celestiais. Guardiões temidos e ferozes
vigiam-nas e mantêm-nas cativas. A pérola existe escondida na concha de um animal. Assim
são os raios de luz, espalhados e escondidos na natureza e no universo material. O dragão-
serpente, conforme vimos antes, é uma forma de ouroboros, o monstro que engole a
própria cauda, cuja forma circular representa (entre outras coisas) o ciclo da
autoperpetuação da vida natural dentro do tempo. O símbolo da serpente serve ao mesmo
propósito da Roda da Vida no Budismo; ela representa os padrões da existência
personificada, em eterno movimento, que mantêm cativas as unidades da vida e da luz
transcendentais.
O viajante celestial é, pois, a alma humana que desce à terra para resgatar o espírito
divino preso nas estruturas e feitos da natureza. O espírito humano age como um salvador
do espírito perdido no mar cósmico. Ao mesmo tempo, as forças do cosmos manifesto não
são inócuas para o viajante celestial; elas o dominam e impõem sobre ele o sono da
inconsciência. O resgatador precisa, então, ser resgatado ele próprio; o salvador tem uma
terrível necessidade de salvação, cuja dádiva lhe é conferida pela carta vinda do alto. (De
muitas maneiras, esta é também a versão gnóstica do mito do curador ferido, do rei
pescador mutilado e de figuras semelhantes.) Os seres humanos agem como ajudantes da
redenção para o espírito, preso na matéria e na natureza, ao passo que os divinos
mensageiros da luz, por sua vez, vêm ajudar a alma humana nas calamidades nas quais ela
caiu, ao longo da sua missão redentora.
Esses motivos da metafísica gnóstica são amplificados pela relevância psicológica dos
mitologemas e símbolos usados. É uma veneranda percepção dos gnósticos e do
pensamento afim que o mundo maior (o macrocosmo) da transcendência é duplicado
dentro do mundo menor (o microcosmo) da imanência. E esse último pode ser encarado,
de maneira precisa, como a própria psique humana. Assim, o ego fica como o
representante intrapsíquico da alma humana, enquanto o Self é um paradigma simbólico
dos agentes redentores da transcendência.
Como Jung nunca deixou de afirmar, na nossa cultura Cristo é o símbolo supremo do
Self e a redenção é a formulação religiosa da individuação. A veste de glória do Self
individuado está intimamente relacionada com o aspecto dessa veste no seu sentido
metafísico último. Como sempre, o espiritual e o psicológico não se excluem mutuamente.
Longe disso, eles são apenas dois lados da mesma grande moeda da totalidade.
Uma observação importante precisa, ainda, ser reiterada na conclusão dessa
interpretação. É evidente para quem lê a "Canção da Perola”, na sua forma integral, que o
escritor não estava muito motivado por razões didáticas, como ocorre entre os escritores
de alegorias, mas sim que estava inspirado por sentimentos pessoais vividos, enraizados na
107
experiência. Particularmente, a descrição da veste quando devolvida ao seu dono original
carrega todos os traços de um estado de consciência alterado e/ou místico com seus
transportes visionários concomitantes. O significado simbólico que irradia desse esplêndido
poema e, talvez, a maior prova da eficácia da função gnóstica do mito. É quase impossível
não vivenciar um pouco da ideia original e mesmo do êxtase vivido pelo escritor, uma vez
que se tenha lido e assimilado esse notável poema mítico. Hoje como outrora podemos
ainda perceber nesta obra, como na veste de glória nele descrita, "os ondulantes
movimentos da sagrada Gnose".4

108
10
E O Mito Continua:
Alguns Mitos Gnósticos Modernos

O Mito Gnóstico de Jung: Resposta a Jó

Em 1952, foi publicado o controverso livro de Jung, Resposta a Jó, que causou muito
transtorno entre os padres e leigos de vários credos cristãos, associados com sua escola
psicológica. A maioria sentiu que esse livro representava uma surpreendente e drástica
crítica ao Cristianismo, ao passo que alguns (se é que houve alguém) reconheceram que se
tratava de um moderno mito gnóstico. Embora os interesses gnósticos de Jung fossem
conhecidos de muitos e seu antigo tratado gnóstico poético Os Sete Sermões aos Mortos
fosse um testemunho da sua identificação próxima com o Gnosticismo, poucos estudiosos
de Jung estavam preparados para o conteúdo dessa revisão do mito bíblico de Jó.
O Livro de Jó, uma obra datada vagamente entre os anos 600 e 300 a.C., trata
ostensivamente do tema do homem reto que é injustamente afligido por Deus. Na visão
gnóstica de Jung, essa venerável história não se liga ao tema de um homem sofredor que
arrogantemente questiona os desígnios inescrutáveis de Deus, mas sim versa sobre um
Deus que não é sábio, não é caridoso e é injusto, por ser imperfeito. Eis aqui, sob forma de
breve resumo, o mito junguiano de Jó e seu perseguidor.
Levado a sofrimentos extremos, injustamente impostos a ele, Jó pede um confronto
com Deus, que, com grande estrondo, lhe replica de dentro de um redemoinho. A resposta
dada tão dramaticamente por Deus, entretanto, não é, na realidade, uma resposta. Que
sentido há, pergunta Jung, para Deus vociferar sobre estrelas matutinas, mares que fluem,
crocodilos etc.? E para que Ele perguntou a Jó onde ele estava quando Deus criou o
mundo? Afinal de contas, o pobre Jó estava bem consciente do intrigante mistério das
coisas, pois ele o experimentara de forma muito dolorosa. Deus, no entanto, se esquiva do
assunto, dizendo a Jó o que ele já conhecia muito bem, isto é, que Deus é o Todo-poderoso
e depois continua alardeando o que o Seu grande poder pode fazer. Não obstante todo o
barulho impressionante, a majestade inflada e a exposição do panorama da natureza, Deus
estava apenas se vangloriando. Jó Lhe fizera uma pergunta perfeitamente legítima, questão
de uma urgência angustiante para o questionador, e, mesmo assim, Ele não lhe ofereceu
uma explicação real, nem se desculpou Deus de sua conduta, o que qualquer mente
sensível poderia considerar não apenas como indecoroso, mas também como imoral. Se um
homem destruísse a família de outro pelo fogo e praticasse guerra bacteriológica,
certamente seria chamado a responder, mas Deus meramente replica que Ele é Todo-
poderoso e esse é o fim da discussão. Mais ainda: Deus parece zangado com Jó por ter sido
questionado e reprova o pobre homem com sua trovejante eloquência divina.
Na visão de Jung, Jó não é verdadeiramente inferior a Deus e está consciente desse
fato. Jó não está errado; Deus está. Deus é um tirano grande e poderoso, mas bastante
inconsciente, que vagueou na Sua própria onipotência até ver-Se numa posição na qual

109
uma de suas criaturas pôde enfrentá-lo e Lhe fazer uma crítica legítima. Ele é um Deus
ciumento, que exige de Jó e de todos os seres humanos completa obediência à Sua vontade
e lei. Jung mostra que Deus é também um impostor, pois, contrariando Sua promessa de
cumprir sua Aliança, engana Davi que, no Salmo oitenta e nove, se lamenta amargamente
desse fato.
A superioridade moral de Jó, o homem criado, sobre Deus, o Criador introduz um
verdadeiro paradoxo gnóstico no mito. Obviamente, há algo radicalmente errado com
Deus, ao passo que há muita coisa certa em Jó. Jó é o verdadeiro herói da história e, como
representante da humanidade, contra a assim chamada divindade, representa o elemento
pequeno, mas potencialmente vital da consciência do espírito humano, em confronto com
a onipotência enorme, materialmente forte, mas espiritualmente inconsciente do Criador.
Jung, aqui, reafirma a antiga proposição gnóstica que vimos nos capítulos anteriores, a
saber, que o Deus deste mundo é um Demiurgo e que o ser humano, materialmente fraco,
tem uma superioridade moral sobre o Criador, em virtude da centelha celestial depositada
na sua natureza por Sophia. As palavras preferidas por Jó: "Sei que o meu Redentor vive",
mostram que Jó está consciente dos seres e forças superiores ao Deus deste mundo,
capazes de promover a redenção das centelhas de luz, cativas nesta região inferior da
existência.
E, o mais importante - e é aqui que o mito de Jung acrescenta uma nova dimensão ao
tema gnóstico -, Deus ainda está em processo de crescimento e desenvolvimento da
consciência. O Deus de Jung é um ser indiferenciado, dotado de uma dupla natureza. Os
sofrimentos de Jó, tanto quanto seus questionamentos, produziram uma significativa
realização. A dupla natureza de Deus, seus aspectos de luz e sombra, são agora revelados e,
com o auxílio do espírito humano, Deus deve renovar a si próprio. Jung afirma
distintamente que, quando Deus descobriu que sua criatura o alcançara, decidiu, então,
que era tempo de Ele se tornar diferente. O crescimento e desenvolvimento de Deus
poderiam ocorrer com Deus tomando consciência na humanidade - em outras palavras,
usando a terminologia cristã, se encarnando. Deus deve se tornar homem para descobrir
como é a consciência humana e para iluminar a sua própria sombra com a luz que ele pode
descobrir no espírito humano. A encarnação de Deus é um passo dado por Ele porque Ele
percebe que assimilar as qualidades superiores, presentes na alma e no espírito humano,
pode beneficiá-lo.
Assim como os antigos gnósticos, Jung, o gnóstico moderno, revoluciona
completamente a argumentação tradicional do sistema de pensamento judeu-cristão. Não
apenas o Deus Todo-poderoso, embora inconsciente, quer a consciência humana, mas
também Cristo não se torna homem porque os homens pecaram, mas porque Deus precisa
ser redimido dos pecados. Jung afirma, inequivocamente, que Deus tinha de se tornar
homem, porque fizera uma injustiça ao homem.
Jung traça, agora, os primeiros passos do crescimento psicológico de Deus, uma vez
que eles ocorrem depois do seu confronto com Jó. Deus começa a lembrar-se e sua
vivificada memória Lhe revela a existência e o papel de alguém que Ele antes conhecera
mas de quem se esquecera: Sophia, a Senhora Sabedoria. O relacionamento de Sophia com
o Deus deste mundo não é esclarecido detalhadamente por Jung; ela aparece como uma
combinação de mãe, irmã e esposa de Deus que, em Sua própria carreira, Ele perdera e
110
esquecera. Agora Ele começa a desejá-la e quer ir para perto dela.
Junto com Sophia, Deus também começa a se lembrar de outra figura: o Filho do
Homem, o misterioso arquétipo celestial da humanidade, mencionado por Enoch e Ezequiel
e, repetidamente, enfatizado pelos gnósticos. Jung afirma que a preparação para a vinda do
Filho do Homem, sob forma de encarnação, era longa e extensa. As numerosas profecias de
Enoch e de outros videntes e profetas criaram uma prontidão psicológica para a vinda da
Providência messiânica. Ele ressalta, quanto a isso, que se algum evento jamais foi
preparado por um desenvolvimento histórico no pensamento do ambiente humano no qual
ele veio, esse foi a emergência do Cristianismo. (Vemos aqui, o reconhecimento da parte de
Jung do elemento psicológico, amplamente representado na tradição essênica, e sua ênfase
no arquétipo do Filho do Homem. É necessário lembrar que no tempo que Jung escreveu
Resposta a Jó, os Pergaminhos do Mar Morto não estavam disponíveis para a sua
investigação.) O arquétipo do Filho do Homem, como é celebrado pelos Livros de Enoch (a
mais querida literatura do Povo dos Pergaminhos), representa, assim, a primeira resposta
de Deus à questão de Jó, a saber, a promessa de que a encarnação de certas forças divinas
ocorrerão e será feita justiça para a humanidade.
Quando os tempos estiverem maduros, a promessa será cumprida e a figura do Filho
do Homem aparecerá na terra, como a figura messiânica de Jesus Cristo. Jung observa que
grandes precauções haviam sido tomadas pela divina providência para tornar um sucesso a
aventura da encarnação. As circunstâncias do nascimento de Cristo gerado por uma virgem,
a paternidade não atribuída a um homem: mas ao Espírito Santo, e muitos outros
elementos indicam que ele representa o arquétipo do Herói, assim sendo nitidamente
diferente de outros homens. De maneira tipicamente gnóstica, Jung afirma que Jesus era
mais deus que homem, que nele, a natureza humana e divina não estavam realmente
niveladas. Especialmente o estar livre do pecado, diz Jung, distingue Jesus do resto da
humanidade, já que todos os seres humanos são pecadores. Só num ponto de sua carreira
Jesus experimenta totalmente o destino da humanidade; foi quando Ele foi levado a
exclamar na cruz: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?" Aqui, segundo Jung,
Cristo deu a verdadeira resposta a Jó, não meramente na Visão ou promessa profética, mas
num fato real. Esse foi o momento em que Deus se achou na posição de um ser humano e,
assim, experimentou o desamparo e a agonia da condição humana. Em todos os outros
aspectos, a encarnação é somente a encarnação do lado luminoso do Divino.
Um fascinante aspecto do mito de Jung é a afirmativa de que Jesus parece ter tido
consciência de vários deuses, segundo o registro de suas asserções. De um lado, ele fala de
Seu Pai celestial, como o Deus da bondade e do amor, e insiste em que os homens podem
contar com essas características d'Ele. Por outro lado, ele dirige sua petição: "Não nos
deixeis cair em tentação" a alguém, no Pai-nosso. Como pode um Deus de amor levar os
seres humanos à tentação? Obviamente, além do Pai de amor, estamos lidando aqui,
também, com um aspecto obscuro da natureza divina, mais semelhante a um embusteiro e,
portanto, perigoso. Claramente, Jesus sabia que, embora Ele, como uma reencarnação da
luz divina, estivesse em contato com o Deus da luz, o Deus sombrio, ou o aspecto sombrio
de Deus também existia e precisava ser contatado. Essa constatação é o ponto de partida
para o desenvolvimento posterior do mito de Jung.
A encarnação de Cristo aumentou a luz, mas a escuridão não desapareceu. Ela
111
continua em certos níveis do ser e está fadada eventualmente a emergir. O Cristianismo foi
planejado como uma fé iluminada, introduzindo uma era de luz, na medida em que o
aspecto luminoso de Deus está colocado à frente da consciência humana. Logo depois da
partida de Jesus para os reinos superiores, o lado sombrio da realidade começa a sair do
esconderijo. Isso fica particularmente claro no Apocalipse, onde o lado sombrio de Deus
reemerge e, com ele, o lado escuro da vida e do Cristianismo. Jung sugere que, num certo
sentido esse Livro mostra o aparecimento do Deus obscuro no universo e, em
consequência, no pensamento cristão, mais uma vez. O autor do Apocalipse não está mais
lidando com as obras da luz messiânica, mas com a fúria e a crueldade do lado mau de
Deus, tão frequentemente encontrado no Velho Testamento.
Mesmo com todas essas imagens sombrias e terríveis, o Apocalipse apresenta uma
imagem que Jung considera fascinante e cheia de esperança. Ela pode ser vista no começo
do Capítulo XII. Uma mulher aparece, vestida de Sol, com a Lua sob seus pés, e portando
uma coroa de doze estrelas. Ela está prestes a dar à luz e um terrível dragão vermelho está
esperando para devorar seu filho, quando este nascer. Estranhos eventos adicionais
ocorrem: a criança nasce e é levada ao trono de Deus e seu destino é reinar sobre as
nações. A mulher foge para a vastidão, onde um lugar lhe foi preparado por Deus.
Jung nota grande semelhança entre essa imagem e outra que sempre aparece em
conexão com a emergência do Self, o paradigma do ego individuado. Claramente, a mulher
não é mais a Virgem Maria, mas a mulher universal cósmica, a contrapartida do Filho do
Homem. Assim, na visão mítica de Jung, a encarnação ocorre numa fase nova, universal.
Jung também indica que a encarnação não cessou com a ascensão, conforme às vezes se
afirma, mas continua de outra maneira, por obra do Espírito Santo. Isso significa que no
progresso contínuo da encarnação, o Divino pode nascer em cada ser humano. Em certo
sentido, todos os seres humanos podem tornar-se uma encarnação do Divino.
Embora Cristo represente o principal padrão dessa encarnação, em certo sentido ele
pode ser repetido por todos. Assim, Jung revela a terceira resposta a Jó. A primeira foi a
promessa da encarnação, revelada nas visões de Enoch, a segunda, a experiência humana
de Jesus em seu abandono na cruz; e a terceira está no fato de que a divindade está hoje
tentando vir à consciência, em cada alma humana. Deus não se encarna mais na virgem
pura, mas no arquétipo da mulher terrestre. Deus está se encarnando no estado existencial
da humanidade e não espera mais condições de excepcional pureza e santidade como pré-
requisito para sua descida ao corpo humano. (Um conceito paralelo pode ser visto nas
nossas pesquisas, que indicam a mudança da ênfase da pureza essênica para a vida
existencial gnóstica nos primórdios da era cristã, descritas nos Capítulos III e IV.)
Jung indica que essa terceira resposta a Jó, a nova possibilidade de encarnação, não
está nada consciente hoje em dia. A criança é levada a Deus e a mulher retira-se para o
deserto por um longo tempo. Mesmo assim, existem indicações de que os princípios divino
e terreno podem, mais uma vez, se unir, numa nova síntese de consciência e que Deus
pode se encarnar no ser humano comum, que não foi preparado e purificado à moda
antiga.
A encarnação de Deus na humanidade, em geral, diz Jung, envolve a elevação do
princípio feminino e seu retomo ao status divino ou semidivino. Como o Criador se
esqueceu da mulher divina Sophia e, assim, tornou-se um ser unilateral e muito
112
inconsciente, será pela restauração do feminino valorizado à consciência que seu
esquecimento demiúrgico poderá, finalmente, ser desfeito. Foi com esses pensamentos em
mente que Jung abordou em Resposta a Jó o então recente discurso papal sobre a
Assunção da Virgem Maria, que ele considerava como o mais importante evento teológico
e religioso desde a Reforma, pois implica que o princípio terreno do feminino (o corpo físico
da Virgem) tem associação e, portanto, por implicação, status igual à divindade.
Jung recebeu bem a declaração do dogma da Assunção da Virgem como uma
revelação espontânea do inconsciente e percebeu que, com a vinda da Era de Aquarius, a
humanidade está prestes a encarar uma nova tarefa. No começo da Era Cristã, o que mais a
humanidade precisava era dos valores personificados na revelação cristã. Esses valores
ligavam-se de forma ampla ao conceito do lado luminoso de Deus e da própria natureza
humana. Somente quando isso estivesse feito, outras constatações igualmente
importantes, mas mais ambíguas, poderiam ser admitidas na superfície da consciência. O
autor do Apocalipse se conscientizou do ainda presente lado sombrio de Deus e da vida,
mas Jung o achava até certo ponto ingênuo, especialmente quando comparado com a
humanidade contemporânea. O homem de hoje é mais consciente do perigo sobre o tipo
de conhecimento que foi posto em suas mãos e também dos impulsos dentro da psique.
Não temos mais a pureza dos santos antigos. Estamos, na verdade, muito mais perto das
trevas. Isso pode nos possibilitar resistir a um ataque violento das forças sombrias da alma
e a nos tornar conscientes do que elas realmente são.
A pureza pode manter a escuridão afastada e distante do ego, mas a vida existencial,
que parece ter sido defendida por Jesus e endossada aqui por Jung, leva em seu devido
tempo, ao encontro com a escuridão. Isso não quer dizer que devamos renunciar às
tradições cristãs; a gentileza, a bondade e a luz, presentes nelas, podem ser agentes
altamente úteis, equilibrando a psique moderna em suas tentativas de lidar com as
obscuras possibilidades desta era. A Resposta a Jó foi escrita logo depois da Segunda
Guerra Mundial, durante a qual Jung viu a erupção da maior quantidade de mal que já
ocorreu na história da humanidade. Observando a terrível carnificina da guerra, e os
horrores possivelmente ainda mais terríveis dos campos de morte nazistas e do Gulag, Jung
convenceu-se que o poder moral não seria mais suficiente para manter afastado o mal. A
humanidade moral faliu. O de que precisava agora era de sabedoria, a sabedoria que Jó
procurava no seu caso pessoal.
O novo salvador é diferente do Messias masculino e virtuoso de antigamente. O novo
redentor é mulher e chama-se Sophia ou Sabedoria. Tornando-se Filhos da Senhora
Sabedoria, retomamos uma condição onde os opostos estão juntos. Devemos tornar-nos
conscientes do que está dentro de nós, em seus aspectos luminosos e sombrios. Devemos
desenvolver recursos conscientes, que nos permitam lidar com as possibilidades do mal.
Agir conscientemente é a nossa maior necessidade de salvação. Jung lembra-nos a frase
gnóstica de Jesus: "Se sabes o que estás fazendo, serás abençoado, mas se não sabes o que
fazes serás maldito e um infringidor da lei."3
Nos dias de Jung, bem como nos nossos, muitos deploram o declínio moral da cultura
e a ausência de valores na conduta humana. É quase universalmente alardeado que a
humanidade precisa atingir um nível moral mais elevado. Para Jung, isso significa que
temos de atingir um nível mais alto de consciência, pois moralidade sem consciência
113
inevitavelmente se perde. Jung deu numerosas indicações, através de seus ensinamentos
sobre o processo de individuação, que foi a humanidade contemporânea, mais do que seus
felizes predecessores, a escolhida como o local de nascimento da encarnação progressiva
do Divino. Perdemos a inocência e, por isso, merecemos a descida do Espírito Santo no
nosso ser culpado e triste. No atual momento da história, aquele que se considera
inocente, na verdade não pagou seu débito à existência e se defendeu do fogo alquímico da
transformação.
O mito gnóstico de Jung lembra-nos das tarefas imperativas de nossas vidas como
pessoas contemporâneas: esforçarmo-nos, com todas as nossas forças, para uma maior
conscientização e, ao mesmo tempo, não abandonarmos nossas raízes nas tradições
espirituais da cultura ocidental e, mais importante, não sucumbirmos aos perigos que
rondam a transformação, entre os quais, o orgulho demoníaco do ego inflado. A pessoa
individuada de Jung não "cria sua própria realidade", não atribui a si o mérito das
operações da transcendência dentro desse domínio de imanência. Como ele afirma na
conclusão de Resposta a Jó, "...a pessoa iluminada permanece o que é e não é mais do que
seu próprio ego limitado diante do Um que habita nele, cuja forma não tem limites
conhecíveis, que o cerca de todos os lados, insondável como o abismo da terra e vasto
como o céu."4 O mito de Jung, com sua Gnose iconoclasta, intuitiva e destemida, deve ser
reconhecido como uma contribuição vital para a vida intuitiva neste tempo e neste mundo
perturbado.

Um Mito Pessoal: O Conto do Príncipe Malcriado

Todos os seres humanos são criaturas míticas. Joseph Campbell, que ensinou o valor
do mito para muitos na nossa cultura, expressou isso convincentemente quando escreveu:
"A última encarnação de Édipo, o romance contínuo entre a Bela e a Fera, está hoje na
esquina da Rua 42 com a Quinta Avenida, esperando que as luzes do tráfego mudem.”5 A
consciência dos seres humanos, orientada para fora, frequentemente (e, de fato,
regularmente) perde contato com as realidades internas da mente e os mitos, em sua
própria linguagem pictórica, contam ao ego humano como essas realidades podem ser
percebidas e integradas em suas vidas. O diálogo com essas realidades internas é uma
função daquilo que nos velhos dias era chamado de Gnose, e é compreensível que esse
diálogo ocorra hoje, da mesma forma com que o fez outrora e em lugar tão distante.
Conforme já vimos, os mitos gnósticos são uma moralidade particular de
autocompreensão não confinada a qualquer período histórico. Nem são eles domínio
exclusivo de figuras proféticas da estatura e treinamento de Jung. Tem sido observado por
psicólogos perspicazes que os sonhos e as experiências imaginativas das pessoas no nosso
mundo moderno muitas vezes geram mitos pessoais que possuem motivos gnósticos
identificáveis. O seguinte mito, embora não sendo produto de análise psicológica, tem
características tão impressionantes e instrutivas que merece ser incluído aqui,
particularmente como exemplo de uma elaboração de mito gnóstico no nosso tempo.
L. V., um homem entre trinta e quarenta anos, familiarizado com os mitos e
ensinamentos gnósticos, desenvolveu o seguinte mito pessoal, como resultado de repetidas
experiências de imaginação ativa que ocorreram durante um período de um ano e meio.
114
Primeiramente, L. V. percebeu o que parecia ser ele mesmo num período antigo e num
mundo muito diferente deste. Ele era um menino pequeno, vivendo numa cidade celestial
de grande beleza e glória, uma criança com pais divinos e reais, que ele identificou como
Cristo e Sophia. Embora vivendo num estado beatífico de totalidade e paz, ele estava um
pouco inquieto e tinha um espírito aventureiro. Na ocasião da festa em homenagem ao seu
aniversário, ele foi chamado à presença do avô, o Grande Deus, que o presenteou com uma
chave mágica que abriria qualquer porta da cidade. Percebe que os mais velhos esperavam
que ele usasse a chave para explorar várias partes secretas de sua cidade natal, mas não
era esse o caso.
O menino foi para o portal aberto num muro que separava a cidade do exterior.
Muitas vezes, no passado, ele tinha dirigido seu olhar para a região além do portal,
percebendo lá formas sombrias. Agora, ele queria descobrir o que havia além do muro.
Abriu a porta com a chave e ouviu um grito lancinante, de proporções perturbadoras.
Através da porta aberta, havia uma verdadeira nuvem de criaturas horríveis, entre elas um
grande senhor sombrio, que ele reconheceu como seu próprio tio mau (presumivelmente,
um irmão satânico de Cristo), que vivia no exílio, tendo sido expulso há muito tempo da
cidade do paraíso. O tio mau lançou-lhe um olhar de desprezo e rapidamente passou para
dentro da cidade.
Um ser parecido com uma górgona, com enormes mãos e garras, o agarrou e quase
furando o próprio peito com uma grande garra, arremessou-o numa região de negra
escuridão. Gradualmente, as trevas cederam lugar a um panorama com milhões de
estrelas, algumas a grande distância, outras mais próximas. Ele flutuava num espaço
estrelado. Depois de certo tempo, uma luz veio na sua direção e o propeliu para baixo, até
que ele se achou em terra firme. Uma floresta primeva o circundava e, diante dele, uma
estranha criatura sauriana encarava o recém-chegado com benevolente perplexidade.
Parecia que a criatura viera para tomar conta dele. O garoto, temeroso e solitário, abraçou
a criatura e chorou incontrolavelmente. Separado de seus pais todo-poderosos e longe de
seu lar na esplêndida cidade nos céus, viu-se num mundo estranho, com uma criatura
exótica como seu único amigo e companheiro.
Um longo período se seguiu durante o qual o menino e o lagarto permaneceram em
íntima associação. Depois de certo tempo, ocorreu uma personificação simbiótica na qual
ambos habitaram um corpo de dragão e perambularam pela terra, conquistando o
território com sucesso e afastando inimigos potenciais. Depois de longo tempo, contado em
séculos e milênios, as condições mudaram e a forma que eles habitavam tornou-se
humana. No entanto, o lagarto permaneceu junto com o menino, tornando-se uma espécie
de espírito guardião ligado a ele e coabitando em seu corpo. Muitas personificações
ocorreram, mas o lagarto guardião estava sempre presente, suprindo com a esperteza
necessária e com inteligência mundana o que faltava no seu companheiro.
Nesse meio tempo, em várias visões, o exilado soube do drama que ocorrera na cidade
celestial, depois de sua partida forçada. Ele viu uma cena, na qual seu tio mau
triunfantemente entrou no quarto de Sophia, com a intenção de violentá-la, mesclando sua
sombria semente com a luminosa substância do paraíso. Primeiro, pareceu que seu terrível
e sacrílego propósito seria cumprido, mas logo ficou evidente que Sophia se libertara do
seu agressor por meios mágicos, rindo num canto distante do quarto. A causa da sua alegria
115
não era apenas por ter escapado. Com satisfação, ela apontou Pará o peito do senhor
sombrio, onde fez aparecer uma ardente e indelével marca: era a cruz no círculo, seu
próprio símbolo e emblema, que seu atacante agora era obrigado a carregar para sempre.
Com um terrível grito de dor e humilhação, o senhor sombrio fugiu do quarto e da cidade.
A intrusão do senhor sombrio na cidade e no quarto de Sophia não foi inócua. De
forma misteriosa e ao menos em parte como resultado da expulsão do ser mau com a cruz
de Sophia, uma quantidade da luz celestial penetrou na escuridão. Uma raça de seres foi
gerada com a marca de Sophia mas que ainda tem relação com o senhor sombrio. Esses
seres, um pouco parecidos com raposas, têm, no entanto, um caráter bom e respeitam
Sophia mais do que qualquer outra divindade.
Algumas experiências subsequentes serviram para elucidar a carreira posterior do
exilado na terra. Numa visão, o menino viu a si mesmo na companhia de um velho sábio
que lhe mostrou um certo astro nos céus e lhe explicou que veio de uma região além das
estrelas para este mundo. O sábio era aparentemente um mensageiro, que finalmente
viera para lembrá-lo de suas origens e instruí-lo na sabedoria própria de sua posição. O
contato entre ele e o seu lar foi então restabelecido e reforçado.
Outro acontecimento diz respeito ao velho ser saureano, incorporado ao organismo do
menino exilado do paraíso. Com a aquisição de maior autoconhecimento por parte do seu
hóspede, o lagarto cresceu e ficou apto a cooperar mais inteligentemente no processo de
totalidade em que ambos estão engajados. Num dado momento o lagarto disse ao príncipe
exilado: "Eu sou o seu corpo." A distância que separa a espiritualidade de L. V. de sua parte
física diminuiu bastante e os dois lados coexistem em mútua confiança.
A tomada de consciência desse mito foi acompanhada de muita emoção. L.V.,
literalmente, cambaleou sob o impacto da história e, particularmente nos primeiros
estágios da revelação do mito, sentia-se, às vezes, acabrunhado e oprimido pela culpa e
pelo remorso, por ter deixado entrar o inimigo no reino celestial e ter causado o seu
próprio exílio. À medida que a história se desenrolava esses sentimentos foram diminuindo,
e ficou claro que, mesmo as façanhas aparentemente imprudentes do jovem príncipe
aventureiro ocorreram dentro de uma ordem de intenção celestial significativa. Ao mesmo
tempo, a personalidade de L. V. venceu sucessivamente tentações de inflação positiva e
negativa, embora não sem dificuldade. Ele se deu conta de que o pessoal não pode nem
atribuir a si nem assumir a responsabilidade pelo transpessoal. O fato de ter origem e
parentesco sublimes não levou a fenômenos de inflação do ego. Nem a história da
associação com o lagarto tem características de personalidade múltipla. Depois de um ano
e meio da manifestação do mito, L. V. está muito mais consciente, equilibrado e funciona
com mais facilidade na vida do que antes. O efeito integrador do mito é, assim, claro e
evidente.
Confrontamo-nos, aqui, com um mito pessoal que tem claros tons gnósticos e ao
mesmo tempo serve a propósitos definidos de caráter individuativo e integrativo. A história
começa com uma condição infantil de totalidade primitiva, onde o ego e- a psique
arquetípica estão identificados. O dentro e o fora, o acima e o abaixo não têm
diferenciação. Com seu espírito aventureiro, “O príncipe embusteiro" torna-se um
facilitador mercurial da diferenciação. Sua inclinação para travessuras e brincadeiras, que
culminam com a abertura do portal, gera a catástrofe da violação da integridade do
116
paraíso. Contudo, essa catástrofe não tem consequências totalmente funestas, porque a
sabedoria maternal (Sophia), na plenitude, não é vitimada. O obscuro intruso, embora sem
o saber, torna-se o dispensador da luz no domínio da sua própria escuridão. Satã torna-se
Lúcifer; o adversário torna-se agora, um relutante carregador da luz da sabedoria.
Quando contemplamos as origens da psique, achamos uma dupla condição. De um
lado, há uma condição percebida de totalidade paradisíaca, um estado no qual a nossa
natureza está unida à essência da Divindade (como filhos de Cristo e de Sophia). Do outro
lado, há um estado de onde a criatividade e o crescimento estão excluídos. As crianças em
crescimento acabam por enfrentar o problema de como conseguir unir-se à plenitude e aos
deuses, sem sucumbir à inflação, que vem junto com a identificação. Para atingir essa meta,
devemos quebrar a integridade do céu e cometer um pecado contra a totalidade. Sem a
perda da inocência psíquica, não pode haver individualidade e, sem individualidade, a
individuação, no sentido da psicologia profunda, é impossível. O príncipe embusteiro deve
ser expulso do paraíso para que, no devido tempo, mais rico em sabedoria e experiência,
possa reaver as glórias da cidade celestial.
O espaço não nos permite explorai completamente o escopo total da riqueza gnóstica
e psicológica desse mito. É fácil discernir que a reconciliação final da luz com as trevas é um
dos importantes motivos presentes. É interessante notar, por exemplo, que o feito que
pode levar à tal eventualidade é produzido por Sophia. Do mesmo modo que na tradição
católico-romana Maria é a vencedora definitiva da serpente demoníaca, aqui, também, a
redenção final é prenunciada por Sophia, que imprime sua marca de luz no peito de Satã. A
função redentora do feminino divino revela-se, claramente, nesse mito, assim como está
presente na erudição gnóstica muito antiga.
O corpo, o "espírito guardião" físico da psique, é outra característica fascinante desse
conto. A criatura saureana que declara no final "eu sou o seu corpo" pode ensinar muito
sobre o entendimento correto da dicotomia mente-corpo. A psique (o príncipe) e o soma (o
lagarto) não são um, mas dois; contudo, sua interação produz um relacionamento cada vez
mais harmonioso, no qual ambas as partes se beneficiam e sofrem uma transformação
criativa. A astúcia e a engenhosidade do lagarto (não são os seres humanos ainda
portadores de um “cérebro de lagarto"?) oferecem à psique proteção e oportunidade de
experiência. A conjunção da alma do príncipe com a natureza do lagarto assegura muitos
desenvolvimentos úteis para ambos os seres. Pode-se notar, também, que muito da
tradição neognóstica, presente em fontes como os trabalhos de H.P. Blavatsky, contém
referências às mônadas espirituais vindas de longínquos domínios da luz, que se
estabelecem em corpos de animais primitivos da terra e, assim, iniciam sua longa jornada
evolutiva.
Como sempre, surge a questão: qual o meio mais proveitoso para tratar mitos dessa
natureza? Mais frequentemente no passado, pessoas visionárias eram levadas a apresentar
suas próprias experiências íntimas, atribuindo-lhes pretensões metafísicas, dizendo que
representavam uma verdade revelada. O mundo de hoje também está cheio de profetas,
de médiuns e de "canais", que reivindicam absoluta validade para seus insights místicos. É
bom levar a sério as sábias palavras de Jung: "Em vista dessa situação extremamente
incerta", escreveu ele, "me parece muito mais cauteloso e razoável tomar conhecimento do
fato de que não há apenas um inconsciente psíquico, mas também um inconsciente
117
psicóide, antes de fazer julgamentos metafísicos... Não se deve temer que a experiência
interior seja por isso privada de sua realidade ou vitalidade."6
Fatores incognoscíveis, transpsíquicos, estão sempre presentes por detrás da psique
inconsciente e de suas imagens míticas. Podemos chamá-los de seres aeônicos, seguindo o
modelo gnóstico, ou de arquétipos psicóides, segundo as sugestões de Jung. A base e a
substância dos mitos que surgem na superfície da consciência de homens e mulheres não
podem ser explicados pelo uso de conceitos e palavras pertencentes a qualquer disciplina.
O mito continua e, com ele, o crescimento e a transformação da alma humana, e nele
podem ser descobertos os tesouros de uma Gnose que continua contribuindo para a
iluminação dos obscuros recessos de nossas vidas e revelando os tesouros da mente e do
discernimento redentor.

118
PARTE III
Os Outros Evangelhos

Serpente Gnóstica Alquímica

11
As Palavras Secretas de Jesus:
O Evangelho de Tomás
As escrituras gnósticas descobertas em Nag Hammadi formam uma biblioteca de
material religioso diverso. Quando se tenta classificá-las por assunto, encontramos seis
categorias distintas. Algumas obras lidam primariamente com mitologia criativa e
redentora, fornecendo vários relatos sobre a criação do mundo, da existência antes da
queda de Adão e Eva, da descida de um Poder Salvador como Jesus e, às vezes, sob outros
nomes. A ênfase dessas escrituras está nas diferenças que separam esses relatos do Livro
do Gênesis, (Assim, no Apócrifo de João, a frase "não como Moisés disse" aparece diversas
vezes.¹) Outros livros consistem em observações e comentários sobre diversos temas
espirituais, tais como a natureza da realidade, a natureza da alma, a salvação espiritual e a
relação da alma com o mundo.2 A terceira categoria de escritos contém textos litúrgicos e
iniciáticos.3 A quarta categoria é basicamente ligada ao princípio feminino, particularmente
Sophia.4 O quinto grupo inclui escritos relacionados com a vida e as experiências de alguns
dos apóstolos.5 Finalmente, a sexta categoria de escrituras contém frases de Jesus, assim
como alguns fatos da sua vida.6 Além disso, há um certo número de escrituras que não são
classificáveis e que incluem escritos de outras tradições, tais como os escritos de Zaratustra,
uma parte da República de Platão e outros.
Apenas quatro das escrituras de Nag Hammadi recebem o título de "Evangelhos".
Sobre isso é preciso lembrar que nos primeiros séculos da era cristã, o termo tinha um
significado diferente do que tem hoje. O termo grego Evangelion (evangelho) era atribuído
originalmente, a pronunciamentos enviados por personagens nobres, tais como regentes e
altos oficiais, anunciando importantes eventos de natureza feliz. Depois do primeiro século,
a Igreja passou a usar esse termo para caracterizar documentos escritos por autores
cristãos, que de alguma maneira abrangiam a mensagem da nova dispensação inaugurada
119
por Jesus. O primeiro período cristão teve evangelhos em abundância e, aparentemente,
não era incomum para o mesmo autor escrever vários evangelhos alternativos, como indica
a recente descoberta do evangelho secreto de Marcos.7
A Igreja primitiva alimentava uma tradição que afirmava a existência de três
evangelhos perdidos, a saber, o de Felipe, o de Matias e o de Tomás. Quando observamos
autores gnósticos, vemos que seus pontos de vista confirmam a tradição, pois eles
afirmavam que houve quatro pessoas que receberam os segredos de Jesus depois da
ressurreição, isto é, Maria Madalena, Tomás, Felipe e Matias. É certamente digno de nota o
fato de a coleção Nag Hammadi contar evangelhos com o nome de dois desses quatro,
quais sejam, o Evangelho de Tomás e o Evangelho de Felipe. Neste capítulo, vamos nos
interessar pelo primeiro deles.
O Evangelho de Tomás não é uma história, mas uma coleção de frases. Salvo por uma
frase introdutória no começo e pelo título do tratado, colocado como apêndice, ele contém
um sólido conjunto de frases, cada uma das quais introduzidas pelas palavras "Jesus disse".
Muitas das frases são idênticas ou têm semelhança muito próxima com as frases de Jesus
contidas nas escrituras canônicas. Isso fez alguns estudiosos supor que o Evangelho de
Tomás fosse, de fato, o lendário Documento Q (assim chamado pela palavra alemã Quelle,
que significa fonte, pois parece ter sido a fonte a partir da qual os três evangelhos sinóticos
de Marcos, Mateus e Lucas foram escritos).
O leitor familiarizado com o formato dos evangelhos canônicos pode se perguntar por
que Tomás ou os outros evangelistas gnósticos se concentraram nos dizeres de Jesus, de
preferência à história da sua vida. A razão disso pode ser encontrada no conceito gnóstico
de Jesus. Conforme já dissemos (Capítulos 3 e 7), os gnósticos achavam que Jesus e a
natureza da sua carreira na terra eram um mistério não sujeito à análise racional. Eles
também sustentavam que qualquer que seja o significado desse mistério, seu foco não
pode ser achado na vida física de Jesus, isto é, no seu nascimento, viagens, curas ou mesmo
na sua morte e ressurreição.
De acordo com as escrituras gnósticas, Jesus exerceu seu ministério de duas maneiras:
primeiro, ele era um mestre que oferecia um certo tipo de instrução verbal. Quando
ensinava, transmitia mais do que conceitos e preceitos. Parece, melhor dizendo, que seus
ensinamentos tinham o poder de estimular a ocorrência de um processo criativo e
transformador em seus discípulos. Segundo, ele era um hierofante que instituiu mistérios
nos quais iniciava os que estavam aptos a recebê-los. O Evangelho de Tomás representa um
registro parcial de suas atividades como mestre, embora também estejam presentes
indicações de seus mistérios hierofânticos. Analisando uma seleção de frases contidas no
Evangelho de Tomas, o leitor pode obter uma impressão do tom dessas frases secretas e
pode vir a discernir a diferença entre o Jesus gnóstico e o Jesus do Cristianismo
convencional.

Frases sobre a Condição Humana

"Se a carne veio a existir por causa do espírito é uma maravilha, mas se o espírito veio
a existir por causa do corpo, esta é a maravilha das maravilhas. Mas me pergunto como tal
riqueza pode ter vindo habitar esta pobreza."(29)*
120
* O número entre parênteses indica o número da frase no Evangelho. A numeração das frases usada aqui é
a mesma do sistema de numeração da maioria das traduções publicadas.

A dualidade espírito-corpo é vista, aqui, à luz do idealismo objetivo gnóstico, com


alguns toques existenciais. Espírito e corpo são reais em si mesmos e juntos constituem o
processo da existência encarnada. O puro materialismo e o puro espiritualismo são, ambos,
rejeitados. A tarefa existencial de legítima indagação não é perguntar se o corpo é um
produto do espírito, mas sim reconhecer como se tornou limitado o escopo da consciência
na nossa atual condição. As implicações da frase são que certamente é nossa obrigação
sofrer um processo gnóstico de transformação, por meio do qual o valor original da
consciência pura possa ser redescoberto.

Seus discípulos disseram: Quando aparecereis para nós e quando Vos


contemplaremos? Jesus disse: Quando vos livrardes de vossas vestes sem sentir vergonha e
puserdes vossas roupas sob vossos pés e pisardes nelas como fazem as crianças pequenas e
pulardes sobre elas, então contemplareis o filho da vida e não O temereis.(37)

O tema da nudez espiritual, que ocorre mais de uma vez nesse evangelho, pode ser
interpretado, num sentido mais estreito, como o descarte da nossa persona e, num sentido
mais amplo, como a necessidade de abandonar os muitos conceitos e crenças ilusórios que
mascaram o falso cosmos da nossa personalidade. A Gnose não é tanto o adicionar algum
elemento miraculoso externo à nossa consciência como a subtração, de nossas mentes e
vidas, de muito material que serve para obstruir. Para confrontar a inefável grandeza,
devemos primeiro abandonar nosso falso Self, sem medo das consequências.

Jesus disse: tornem-se passantes.(42)

A frase mais curta desse evangelho é verdadeiramente eloquente na sua simplicidade


e brevidade. Um ditado islâmico diz: “O mundo e uma ponte. Passe por ela. Não construa
nela." O gnóstico não encara este cosmos como o lar do espírito humano. Somos viajantes
neste mundo e não devemos nos considerar residentes permanentes,

Se vos perguntarem: "Qual a vossa origem?", dizei-lhes: "Viemos da Luz de onde a Luz
começou por si mesma “...Se vos perguntarem: "Quem sois vós?" dizei-lhes: Somos seus
filhos e fomos escolhidos pelo Pai Vivo." Se vos perguntarem: "Qual o sinal do vosso Pai em
vós?" dizei-lhes: "É um movimento e uma quietude.”(50)

Essa é uma frase muito importante, visto que diz respeito à definição da identidade
do discípulo gnóstico. O gnóstico sabe que ele tem origem na plenitude, onde habita a
suprema luz da divindade primordial. Os eleitos são aqueles que reconhecem a si mesmos
como emanações da suprema luz. "Movimento" é o princípio da mudança dinâmica,
evidenciada no tornar-se, na realização, no viver; ao passo que "quietude" pode significar o
estado plerômico de equilíbrio. Tornar e ser, expirar e inspirar, quando equilibrados e
conscientemente realizados, constituem a marca da verdadeira Gnose dentro da pessoa.
121
"Havia um homem rico que tinha muito dinheiro. Ele disse: Usarei meus bens para
semear, plantar e colher e encher meus celeiros com frutos, para que eu não sofra
privação. Isso é o que pensava no seu coração. E na mesma noite ele morreu. Quem tiver
ouvidos para ouvir ouça. "(63)

Os frutos dos trabalhos e cuidados na terra são precários e evanescentes. O gnóstico


não deveria gastar uma quantidade grande de sua força psíquica com buscas
personalísticas da vida, pois seus esforços devem ser empregados em outras coisas.

"Uma mulher da assistência disse a Ele: Bendito seja o ventre que Te gerou e os seios
que Te alimentaram. Ele lhe disse: Abençoados aqueles que ouviram a palavra do Pai e a
mantiveram na verdade. Pois chegará o tempo em que todos vós. direis: Bendito o ventre
que não concebeu e os seios que não amamentaram. "(79)

O mero papel físico de dar à luz e alimentar tem valor limitado. Os ciclos biológicos da
natureza são uma das grandes armadilhas onde a consciência é presa. Ser um ser humano
significa mais do que ser pai: é mais importante ser mulher do que ser mãe.

"O Reino do Pai é semelhante a uma mulher que estava carregando um pote cheio de
alimentos. Enquanto caminhava pela longa estrada, a alça do pote se quebrou. O alimento
vazou na estrada... Quando chegou a sua casa, ela colocou o pote no chão e o achou
vazio."(97)

Essa parábola, que não é vista em nenhuma outra fonte, chama a nossa atenção para
um importante princípio. Quando começamos nossa jornada na terra, carregamos uma
quantidade da plenitude presente em nossas almas, mas ao longo de nossas vidas ficamos
em grave perigo de perder essa pletora de glória e criatividade. A vida no mundo pode,
imperceptivelmente, nos privar de nosso tesouro espiritual inato. Apenas a auto-
observação e a vigilância consciente podem impedir esse infeliz estado de prevalecer.

"Simão Pedro disse a eles: Deixai Maria se afastar de nós, porque as mulheres não
podem ser dignas da Vida. Jesus disse: Eu a dirigirei, Eu a farei homem, para que ela possa
se tornar um espírito vivo, como vocês, homens. Pois toda mulher que se torna homem
entrará no reino dos céus."( 114)

É fácil interpretar mal o significativo conteúdo dessa frase. Em muitas escrituras


gnósticas, o apóstolo Pedro é representado como um macho chauvinista, ressentido do alto
apreço em que Jesus tinha as mulheres. Jesus tenta, aqui, convencer Pedro, usando a
linguagem que Pedro compreende, de que as mulheres podem superar o status inferior
socialmente imposto ao seu gênero, empreendendo um processo de androginia espiritual.
É interessante notar que nos escritos de Clemente de Alexandria, achamos afirmações
gnósticas, indicando que o mesmo processo pode aplicar-se também aos homens, que
122
entrarão no reino quando se tiverem tornado mulheres. Na psicologia de Jung, as mulheres
devem integrar seu animus e os homens devem fazer o mesmo com a sua anima. A vinda à
consciência da imagem contra-sexual de cada pessoa permite entrar no reino da
individuação e na consequente totalidade.

Frases sobre a Conduta

"Os discípulos Lhe perguntaram: Quereis que jejuemos? E de que maneira devemos
rezar?... E que dieta devemos observar? Jesus disse: Não mintam e não façam o que não
gostam, porque todas as coisas estão abertas diante do Paraíso. Pois tudo o que está
escondido será revelado e nada do que esteja coberto permanecerá oculto."(6)

Um relacionamento honesto com o nosso ser interior é mais importante do que a


obediência a regras exteriores. Como em muitas outras frases, aqui vemos a ênfase que o
Jesus gnóstico coloca na atitude existencial com relação à vida, em contraste com a
preocupação ansiosa e compulsiva com a Lei, que vemos entre seus opositores, os fariseus.
O ressentimento inconsciente, engendrado por rígidas regras de comportamento, provoca
um desastre psicológico, pois os sentimentos e desejos reprimidos não permanecerão no
mundo psíquico inconsciente, para o qual foram banidos, mas voltarão para assombrar o
indivíduo. Isso é ainda mais evidente na frase:

"Se jejuais, cometereis pecado contra vós mesmos, e se rezais, estareis condenados, e
se dais esmolas fareis um mal a vossos espíritos. Se ides a outros países e viajais por regiões
onde fordes bem-vindos, comei o que puserem diante de vós e curai quem estiver doente
entre eles. Pois o que entra na vossa boca não vos torna impuros, mas o que sai dela é o
que vos torna impuros. "(14)

A nova dispensação proclamada por Jesus revoga a observância da Antiga Lei. Além
desse importante ensinamento gnóstico, podemos também considerar a ênfase na
psicologia de Jung sobre a necessidade de a pessoa descobrir o seu próprio código moral,
internamente autenticado. A individuação não é possível até que as inferências e crenças
do coletivo tenham sido conscientemente examinadas e substituídas por uma escolha
esclarecida.

"Ama teu irmão como à tua própria alma e protege-o como se ele fosse a menina dos
teus olhos."(25)

A Gnose e o Gnosticismo não se baseiam em princípios frios e impessoais do que é


conhecido ordinariamente como "conhecimento". O cristão ortodoxo não tem o monopólio
do amor. Longe disso.

"Por que limpais a parte de fora do cálice? Não compreendeis que quem fez o interior
fez também o exterior?"(89)

123
Essa frase é dirigida à ênfase na purificação, que foi considerada revogada, pelo novo
foco existencial trazido por Jesus. O interior e o exterior, o Self e o Ego formam uma
unidade orgânica, embora uma unidade que existe de início, no nível inconsciente. O
objetivo último visado pelo gnóstico não é a mera purificação da personalidade, mas a
integração da dicotomia do pessoal versus o transpessoal, numa condição de totalidade
duradoura.*
* Veja também a Frase 22 desse evangelho, mais adiante neste capítulo.

"Quem quer que tenha descoberto o mundo e se tornado rico deve abjurar o
mundo."(110)

Antes de podermos negar alguma coisa devemos tê-la adquirido. Os que não possuem
o mundo (num sentido psicológico) não podem renunciar a ele. Descobrir o mundo significa
confrontar-se com ele e tornar-se rico significa que nos devemos tornar ricos de
experiências. O mestre gnóstico Carpócrates mostrou que sem uma longa experiência do
mundo, este não pode ser conquistado. (Ver Capítulo 5.)

“Ai da carne que depende da alma. Ai da alma que depende da carne."(112)

A visão de mundo gnóstica não é caracterizada por uma visão unilateral. Não é nem
um extremo idealismo, que vê a carne como uma ilusão, nem o materialismo que vê a alma
como um epifenômeno resultante de funções corporais. Anteriormente, caracterizamos o
Gnosticismo como uma forma de idealismo objetivo, no sentido de que reconhece a
realidade da objetividade material, bem como a realidade da ideação.

Sobre o Redentor

"Jesus disse a seus discípulos: Falai de comparações sobre Mim e digam-me com quem
Me pareço. Simão Pedro Lhe disse: Vós sois como um mensageiro da retidão. Mateus Lhe
disse: Vós sois como um sábio com sabedoria. Tomás Lhe disse: Mestre, meus lábios não
podem expressar com quem Vos pareceis. Jesus disse: Não sou o teu mestre, porque estás
bêbado, ficaste inebriado pela efervescência que Eu conferi. E Ele o levou, se retirou e
pronunciou três palavras. Quando Tomás voltou para o grupo, eles lhe perguntaram: O que
te disse Jesus? Tomás lhes disse: Se eu vos contar o que Ele me disse, vós me jogareis
pedras e sairá fogo dessas pedras e vos queimará."(13)

Todas as definições do mistério do Self, mesmo quando personificado em Jesus,


paradigma do Self individuado, são inadequadas. Pedro tenta definir Jesus em termos
puramente espirituais, enquanto Mateus O vê em termos meramente humanos. Tomás, o
apóstolo gnóstico, sabe que está diante de um mistério inescrutável. Jesus não mais
domina Tomás, pois Tomás se valeu da experiência direta da Gnose que Jesus tornou
acessível a ele. As três palavras significam iniciação, nos segredos hierofânticos de Jesus.
Divulgá-las excitaria, naturalmente, o antagonismo daqueles que não tinham recebido a
iniciação. Mesmo nossos companheiros na busca da Gnose se voltarão contra nós, quando
124
uma graça especial que recebemos lhes for negada.

"Eu lhes darei o que os olhos de ninguém viram e o que nenhum ouvido ouviu e o que
nenhuma mão tocou e o que não surgiu no coração dos seres humanos."(17)

A Gnose trazida pelo Redentor é, de fato, o conhecimento do totalmente outro. Não é


o produto da natureza ou da evolução ou do esforço do homem inferior, que é da terra e
mundano. A diferença entre a Gnose e o conhecimento mundano não é quantitativa, mas
qualitativa. A sagacidade do ego é de um tipo diferente da sabedoria do Self.

“As pessoas provavelmente pensam que Eu vim para trazer a paz sobre a terra e, não
sabem que eu vim para trazer discórdia sobre a terra: fogo, espada, guerra..."(16)
"Eu atirei fogo no cosmos, e vede, Eu vigiei até que o cosmos se incendiasse."(10)

O caminho da Gnose é o caminho do conflito criativo. Muitos procuram a paz e a paz


da mente e o que acabam achando é meramente a bovina tranquilidade da inconsciência. O
fogo mencionado é o mesmo fogo que os alquimistas usavam como agente de transforma-
ção, através da interação conflituosa dos opostos. Lembremo-nos, aqui, da sábia afirmação
do professor Gilles Quispel: "A alquimia era a yoga dos gnósticos."

"Seus discípulos disseram: Mostrai o lugar onde estais porque devemos procurá-lo. Ele
lhes disse: Quem puder ouvir ouça. Dentro de um homem de luz há luz e ele ilumina o
mundo todo. Quando ele não brilha, só há trevas. "(24)

O lugar de Cristo é em cada pessoa que atingiu a Gnose. Assim, o lugar onde Ele está é,
na verdade, dentro de nós. A consciência, que é Gnose, ilumina o mundo. Precisamos,
portanto, cultivar a luz dentro de nós e, assim, contribuir para a iluminação de todo o
mundo.

"Tomei Minha posição no meio do cosmos e apareci na carne para eles. Eu os


encontrei todos bêbados, e não vi ninguém dentre eles com sede. E Minha alma se afligiu
pelos filhos dos homens, porque são cegos em seus corações e não percebem que vieram
vazios para o mundo e, vazios, procuram sair novamente do mundo. Mas agora estão todos
bêbados. Quando tiverem abandonado o vinho, então darão meia-volta." (28)

O Redentor encontra aqueles que Ele quer redimir intoxicados com as influências do
mundo exterior. Jesus parece dizer: "Embora Eu me tenha tomado como eles, não consigo
Me comunicar com eles, porque eles ainda estão olhando para fora deles mesmos, em
busca dos valores da vida. A metanoia (meia-volta, frequentemente chamada
'arrependimento') virá quando eles se livrarem dos fascínios e envolvimentos extrovertidos,
que parecem uma embriaguez."

"Quem quer que beba dos meus lábios se parecerá comigo e Eu serei ele e as coisas
secretas lhes serão reveladas."(108)
125
A boca é a porta da alma. Consequentemente, o beijo-alma é o sinal da iniciação
gnóstica. O iniciado torna-se internamente unido com o iniciador e partilha daquelas
verdades que, até então, permaneceram ocultas.

"Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o todo e o todo vem de Mim e o todo
se tornou Eu. Rachai a madeira e Eu lá estarei. Levantai a pedra e vós Me encontrareis."
(77)

A palavra grega para "todo" é pan, que é também o nome do deus da natureza com
pés de cabra. Jesus afirma aqui que apesar de, por sua natureza celestial, Ele estar acima do
cosmos e da natureza Ele é também uno com a natureza. Quando perfeita, a natureza e a
totalidade da criação alcançarão a grandeza do homem celestial (antropos), do qual Jesus,
como Filho do Homem, é a manifestação. Como paradigma da inefável grandeza, Jesus
também está presente na natureza, e Sua luz pode ser descoberta na pedra e na madeira.
Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que apenas Aquele que está acima do todo
pode ter um relacionamento adequado com o todo. Aqueles que estão meramente
contidos dentro da natureza, sem se terem emancipado da escravidão da natureza, estão
inconscientes e precisam se diferenciar da natureza, de modo a que eles, também, possam
estar acima dela. Como sempre, o Gnosticismo desafia todas as categorias. Não é nem
teísmo nem panteísmo, mas uma visão mística, que transcende e une a ambos.

Sobre o Autoconhecimcnto

“Aquele que conhece o todo, mas não consegue ter autoconhecimento, não tem
nada."(67)
"Se gerais o que tendes dentro de vós, o que tendes vos redimirá. Se não o tendes
dentro de vós, o que não tendes vos matará."(70)
“....Quem quer que descubra o seu próprio eu interior, o mundo não é digno
dele."(111)

Essas são algumas das frases mais íntimas e diretamente relacionadas com as novas
descobertas da psicologia. A psique contém dentro de si o potencial para a redenção ou
para a destruição. O autoconhecimento é a solução para as inúmeras aflições da vida.
Nenhum tipo de conforto da vida pode preencher essa lacuna. O conteúdo inconsciente de
potencial destrutivo deve ser trazido à consciência para não se tornar mais maligno e
destruir a sanidade individual, se não a própria vida. Para conquistar o mundo, primeiro é
preciso que a pessoa se encontre e conheça a si mesma. Poucas pessoas versadas em
psicologia discordariam dessa constatação.

"Que aquele que procura não pare de procurar até que encontre, e, quando encontrar,
ele se perturbará e quando tiver sido perturbado, ele se surpreenderá e terá domínio sobre
o todo."(2)

126
Aqui temos uma descrição concisa dos estágios da Gnose ou autoconhecimento.
"Procura" significa o despertar para a necessidade de significado interior. Persistindo, o
sucesso da busca estará assegurado. E "encontrar" significa tomar conhecimento do
crescimento da consciência. Para surpresa de muitos, no entanto, o desenvolvimento
psicológico não traz serenidade, ou o que é chamado de tranquilidade. Longe disso. A
descoberta da individuação traz um conflito de mudança e grande tumulto psíquico.
Quando se aborda a psique arquetípica com todos os seus habitantes numinosos, a única
reação. apropriada é uma reverente perplexidade; ao passo que o resultado final é o
domínio sobre o mundo natural da psique, que é um sinal concomitante de totalidade,

"Se os que vos lideram vos disserem: 'Olhai, o Reino está nos céus', os pássaros do céu
lá estarão antes de vós, Se eles vos disserem: 'Ele está no mar', então os peixes entrarão na
frente de vós. No entanto, o Reino está dentro de vós e também está fora de vós. Se
conheceis a vós mesmos, então sereis conhecidos e sabereis que sois os filhos do pai vivo;
mas se não tiverdes conhecimento sobre vós mesmos, então estareis na pobreza e sereis a
pobreza."(3)

O reina celestial do significado e da individuação não é conquistado por meios


extrovertidos. O pássaro e o peixe são capazes de entrar no domínio do ser maior em
virtude de sua natural autenticidade e, assim, podem provar que são superiores aos seres
humanos, que não conhecem sua verdadeira natureza. A inconsciência da mente humana é
a mais terrível forma de pobreza, pois não ter significado é não ter o cerne do processo da
vida. O autoconhecimento estabelece o eixo que conecta o ego e o Self, levando a uma vida
autêntica.

"Os discípulos disseram a Jesus: 'Contai-nos como será o nosso fim', Jesus disse: 'Já
sabeis o começo para que possais perguntar sobre o vosso fim? Pois onde está o começo, lá
estará também o fim. Bendito aquele que ficar no começo; ele compreenderá o fim e não
morrerá. "'(18)

O significado da morte apresenta uma das mais assustadoras questões da vida


humana, Jesus nos canta aqui que a morte, o fim, não deve ser vista como um fenômeno
isolado, mas como parte de um processo. O mesmo deve ser dito de todos os eventos
finais, tais como o fim da civilização ou o fim do cosmos. A escatologia gnóstica poderia ser
chamada de uma escatologia de processo, pois se recusa a separar o fim das coisas de seus
começos e, portanto, revela o significado oculto, não dos eventos isolados, mas de suas
relações com um processo. A História está condicionada pelo não-histórico. O tempo
cronológico sem sentida flutua num tempo sem limites, de significância transcendental. No
começo, vemos a plenitude da qual viemos e o processo da vida significativa oferece-nos a
promessa de que é para essa mesma plenitude que retornaremos.

"Se dois se reconciliam nessa única morada, então eles dirão à montanha: 'Move-te' e
ela se moverá,"(48)

127
A reconciliação dos apostos é a chave que abre o depósito de ilimitada energia
psíquica. Milagres são realizados por aqueles nos quais "os dois se tornaram um" (como na
frase 22). É interessante notar que a frase acima, com sua ênfase intrapsíquica, passou a
ter, no Evangelho canônico de Mateus uma ênfase extrovertida: Bem-aventurados os
pacificadores, pois serão. chamadas filhos de Deus. (18:19)
O verdadeira pacificador, segunda Tomás, e aquele que fez as pazes consigo mesmo.
Um tema parecido é expresso na seguinte frase:

"Bem-aventurados sois vós que vos tornastes unificados e vos tornastes os eleitos,
porque descobrireis o reino. Porque dele viestes e a ele retornareis."(49)

Essa nossa tradução dessa frase não é nem um pouco literal, mas reflete a intenção.
óbvia da frase. A tradução habitual da palavra-chave como "solitária" é altamente
enganadora. A pessoa na qual as dualidades se tornaram unidas não é um monge, mas um
vir unus, o ser humano que se tornou um, o ser cuja consciência compreendeu as
verdadeiras origens da alma e que, então, está apto a retornar ao ponto de origem mais
uma vez. Referências à pessoa unificada, neste evangelho, são inúmeras. Assim, na frase 75
afirma-se que a pessoa unificada entrará na câmara nupcial de preferência a outros.
Qualquer estudioso de Jung concordaria com a seguinte caracterização do que em
psicologia profunda é conhecido como imagens arquetípicas:

"Quando vedes a vossa imagem, ficais felizes, Mas quando vedes vossas imagens que
existiram antes de vós, que nem morreram nem foram criadas, quão duráveis sereis
vós!"(84)

O estado da consciência transformada e unificada, na qual todos os opostos foram


reconciliados e ultrapassados, é representado pelo Jesus gnóstico como o verdadeiro
objetivo da vida do espírito, motivo de sua vinda a este mundo:

"Jesus viu umas crianças que estavam mamando. E disse a seus discípulos: 'Essas
crianças que estão mamando são como aqueles que entram no reino. ' Eles Lhe disseram:
'devemos, então, nos tornar crianças para entrar no reino?' Jesus lhes disse: 'Quando
fizerdes de dois um, e quando fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o
interior e o acima como o abaixo, e quando transformardes o masculino e o feminino em
uma única unidade, para que o macho não seja só macho e a fêmea não seja só fêmea,
quando criardes olhos no lugar de um olho, e uma mão no lugar de uma mão e um pé no
lugar de um pé, e também uma imagem no lugar de uma imagem, então certamente
entrareis no reino.'''(22)

Novamente, vemos a imagem de crianças pequenas, dessa vez mamando no seio da


mãe. O bebê mamando pode ser tomado como uma metáfora para o ser humano que,
tendo nascido da matriz não manifesta, está ainda perto do poder nutriente da psique
arquetípica. A individuação (a entrada no reino) coloca o ego humano em um estado onde
essa proximidade íntima com as fontes mais profundas de alimento espiritual é
128
restabelecida. Os discípulos não entenderam Jesus, e interpretaram sua afirmação
literalmente, motivo pelo qual foi indicada uma explicação mais clara.
A parte seguinte da frase demonstra a intenção da metáfora, da forma mais
impressionante. A união dos opostos dentro da psique traz uma completa renovação, de
modo que nenhuma parte do ser humano permanece sem mudança. Introversão e
extroversão, matéria e espírito, bem e mal, animus e anima consolidaram-se numa unidade
nova, indivisível. A pessoa tornou-se um ser totalmente novo e, nessa condição, entra num
reino de significado final, numinoso.
Pode ser útil, neste ponto, resumir as principais ideias que estão indicadas pelas frases
que citamos e que, significativamente, se organizam segundo um padrão quaternário, da
seguinte maneira:

A compreensão adequada da condição humana resulta num tipo de conduta que leva
à Gnose, enquanto Jesus, como imagem do Self individuado do ser humano, mostra o
caminho para o conhecimento unitivo do Self.
A premissa do Gnosticismo sobre a condição humana é que a alma e o espírito
humano não precisam de uma instituição externa para a sua redenção, mas contém dentro
de si a capacidade para a direção espiritual. O Redentor é um facilitador, um guia, mas o
caminho deve ser trilhado pelo próprio indivíduo. (A salvação vicariante e a necessidade de
uma igreja como uma "arca de salvação" são, consequentemente, negadas).
Regras e mandamentos infalíveis tornam-se obstáculos para aqueles que, tendo-os
ultrapassado espiritualmente, estão prontos para a Gnose. A transformação, no modelo
gnóstico, provoca um distúrbio criativo das defesas psicológicas, e, assim, facilita a condição
"solitária" (unitária), que é o estado de ser da pessoa autônoma. Sociedade, família, leis,
mandamentos e crenças são relativizadas, à medida que o indivíduo sacrifique qualquer
forma de identificação inconsciente com eles. (Nas escrituras canônicas, Jesus admoesta as
pessoas para não chamar nenhum homem da terra de pai (Mateus, 23:9) e afirma que
aqueles que amam seu pai e sua mãe mais do que a Ele não são dignos Dele (Mateus,
10:37-38).
A ignorância, não o pecado, é a causa do sofrimento próprio da condição humana. O
conhecimento do Self, que é essencialmente idêntico ao supremo Self ou ser
transcendental, é o objetivo da vida gnóstica. Esse objetivo traz com ele a unificação de
todos os opostos e, assim, a união com toda a vida.
No Evangelho de Mateus, no Novo Testamento (16:24-25), há uma sentença que
provocou nos tradutores frequente angústia: "Quem quer que cuide da própria segurança
está perdido. Mas se um homem deixa o seu Self interior (original: psique) se perde por
minha causa, encontrará o seu verdadeiro Self (psique)." Para conseguir expressar melhor o
significado, os tradutores algumas vezes traduziram a mesma palavra psique por dois
129
termos diferentes. É bem provável que, se fôssemos avaliar essa afirmativa à luz das frases
de Jesus no Evangelho de Tomás e, ainda por cima, acrescentar alguns termos psicológicos
modernos, poderíamos traduzi-la por:
"...Se um homem perder o seu ego por minha causa, ele achará o Self." Esse é o
esclarecimento que poderia nos ser dado pelo evangelho perdido, atribuído a Tomás,
achado num velho pote de barro por um camponês que vagava distraído pelas areias de
Nag Hammadi!

130
12
Meios de Transformação:
O Evangelho de Felipe
Ritos secretos de poder, ministrados para facilitar a transformação da alma humana,
têm estado presentes nas religiões de todos os tempos e culturas. O Cristianismo não foi
uma exceção. O Evangelho Secreto de Marcos citado pelo Padre da Igreja Clemente de
Alexandria, que lhe anexou uma carta, foi descoberto em 1958 pelo prof. Morton Smith. O
evangelho e a carta dos estudantes contemporâneos para a ideia de que o próprio Jesus
atuou como um hierofante, conferindo iniciações secretas, e que pelo menos algumas
comunidades dentro da Igreja cristã mantinham uma ordem iniciática com práticas e
instruções graduadas de maneira estrita. Clemente informa assim seu correspondente na
carta citada acima que um conjunto de evangelhos públicos era oferecido a cristãos de um
estrato inferior, enquanto outro conjunto de evangelhos secretos só era oferecido aos
membros mais adiantados da comunidade, e que os segredos hierofânticos de Jesus só
eram transmitidos verbalmente, de maneira secreta.1
Os cristãos gnósticos parecem ter cultivado mistérios iniciáticos, além daqueles
conhecidos pelas comunidades mais convencionais. Ninguém menos do que Plotino
protestou contra os gnósticos, que tinham atraído alguns de seus estudantes, dizendo:
"Eles dizem apenas ‘Olhe para Deus', mas não dizem para onde ou como olhar"'? Não há
nenhuma dúvida de que os gnósticos faziam uso de métodos efetivos para o cultivo de
estados transcendentais de consciência. Várias fontes da coleção de Nag Hammadi
descrevem técnicas de disciplina espiritual. Os livros dessa coleção, tais como Zostrianos
[Zostreanos], O Tratado do Oitavo e do Nono e Allogenes estão repletos de descrições ele
práticas espirituais e de condições extáticas da mente induzidas por essas práticas. Quanto
a isso, nenhum deles se equivale ao Evangelho de Felipe que, como o Evangelho de Tomás,
contém um grande número de frases atribuídas a Jesus, intercaladas com comentários
explicativos. O Evangelho de Felipe não alcançou a mesma popularidade usufruída pelo de
Tomás, e a razão disso é a ênfase que o primeiro dá aos mistérios cristãos ou sacramentos
como meios gnósticos de transformação.
Desde a Reforma Protestante, o Cristianismo tem se afastado cada vez mais, da
mística dos sacramentos. Hoje, até a Igreja Católica Romana, o último bastião da fé
sacramental, parece ter empreendido tardiamente a sua própria reforma neoprotestante,
enquanto o poder arquetípico dos sete sacramentos históricos está, progressivamente
minguando. Pode-se duvidar se C.G. Jung teria afirmado hoje, como o fez em 1939, que
encontrara menos neuróticos entre os católicos do que entre protestantes ou ateus.

"Deve haver alguma coisa no culto, na prática religiosa em si, que explica o fato
peculiar de que há menos complexos ou de que esses complexos se manifestam muito
menos em católicos do que em outras pessoas. Esse algo mais, além da confissão, é
realmente, o próprio culto. A Missa, por exemplo: o cerne da Missa contém um mistério
vivo, e é isso o que funciona... E a Missa não é, de modo algum, o único mistério da Igreja
131
Católica. Há outros mistérios também... Agora, esses mistérios sempre foram a expressão
de uma condição psicológica fundamental. O homem expressa suas condições psicológicas
mais fundamentais e importantes nesse ritual, nessa magia, ou seja lá o nome que se queira
dar. E o ritual é a representação sob forma de culto, desses fatos psicológicos básicos.”3

Com a diminuição do mistério em nossos dias, o elemento até então válido do culto
sacramental, e seus efeitos psicológicos, estão fadados a serem reduzidos. Como Jung nos
alertou, continuando a afirmação acima: "Isso explica por que não devemos mudar nada
num ritual. Um ritual deve ser realizado de acordo com a tradição, e se se muda nele um
ponto por menor que seja, comete-se um erro. Não se deve permitir que a razão o
manipule."4 É exatamente essa "manipulação" racional dos rituais sacramentais antigos, no
passado e no presente, a responsável pela menor atenção recebida até agora pelo
Evangelho de Felipe.
Não será, talvez, exagerado dizer que O Evangelho de Felipe é, basicamente, um
manual de teologia gnóstica sacramental, em outras palavras, um relato sobre os mistérios
gnósticos. A fonte desses mistérios, segundo esse evangelho, é o próprio Jesus:

"O Senhor operou todas as coisas como um mistério: um Batismo e uma Unção e uma
Eucaristia e uma Redenção e uma Câmara Nupcial."(68)*
* O sistema de numeração das frases, empregado aqui, é o mesmo usado no trabalho normativo O
Evangelho de Felipe, trad. R. MeL. Wilson (Nova York: Harper Row, 1962).

Aqui temos uma lista, em terminologia gnóstica, de cinco dos sete sacramentos
tradicionais cristãos. (De acordo com o primeiro tradutor de Felipe, dr. H. M. Schenke, uma
passagem restaurada da Frase 60 diz: "Pois os mistérios são sete.") É bem provável que os
dois mistérios-sacramentos finais, a Redenção e a Câmara Nupcial mencionados acima,
tenham sido posteriormente mudados pela Igreja corrente para os sacramentos mais
mundanos da Penitência e do Matrimônio. Para colocar essas questões em perspectiva,
seria bom analisar os sacramentos gnósticos em sua própria ordem.
O Batismo era praticado pelos autores desse evangelho de duas formas. O Batismo
comum, ministrado pelos ortodoxos, era conhecido pelos gnósticos como o "Batismo
psíquico", porque se destinava a pessoas cuja consciência estava situada no complexo
mente-emoção e que não estavam prontas para entrar no domínio do espírito. Uma forma
superior de Batismo era conhecida como o "Batismo pneumático", indicando que, quando
ministrado dessa maneira, o rito do Batismo não apenas servia ao propósito de purificar a
alma, mas também servia para colocar a personalidade em contato com o Self superior ou
espiritual. O Batismo, assim como todos os outros mistérios, possuíam um caráter
indelével; seu efeito nunca podia ser apagado:

"Deus é um tintureiro. Assim como as boas tinturas, que são chamadas 'verdadeiras',
se dissolvem com as coisas tingidas nelas, assim são aqueles que Deus tingiu. Da mesma
forma que seu tingimento é imortal, elas são imortais por meio de suas cores. Mas Deus
imerge o que Ele imerge na água."(43)

132
A Unção (em tempos modernos. chamada Crisma ou Confirmação) é o segundo
sacramento iniciático. A água é usada para lavar, o óleo é usado para confirmar. O óleo
queima quando aceso e, por isso, e associado ao elemento fogo, enquanto que o Batismo é
associado à água. Esses dois elementos foram tradicionalmente encarados pelos antigos
como a polaridade primária, e, quando unidos, produzem a totalidade. Dessa forma a frase
a seguir ganha sentido:

"A alma e o espírito passaram a existir através da água e do fogo. A criança da Câmara
Nupcial veio à existência por eles e pela Luz. O fogo é o Crisma, a luz é o fogo, a luz também
é sem forma, dela não falamos, mas sim daquele, cuja forma é branca, que pertence à luz e
é belo e confere beleza."(66)

Entrando na corrente das águas da vida por meio do Batismo e tendo sido temperado
no fogo da Unção, o cristão gnóstico está pronto a participar da Eucaristia:

"A Eucaristia é Jesus. Pois Ele é chamado em linguagem síria de Pharisatha, que
significa 'aquele que é esticado', pois Jesus veio para crucificar o mundo. (53)
A taça de oração contém vinho e água e é pedida como o tipo de sangue que se
agradece. E ela é cheia do Espírito Santo e pertence ao homem completo, total. Quando
bebermos dessa taça, receberemos a (condição) do homem completo."(100)

O mistério do pão e do vinho é então, sem sombra de dúvida, aquele através do qual a
presença viva do Redentor se tornou acessível aos seus seguidores. Partilhando desse
mistério, o gnóstico é preparado para aceitar os dois mistérios supremos, chamados de
Redenção e Câmara Nupcial. Num ato heroico de renúncia e comprometimento, chamado
"redenção", o gnóstico iniciado torna-se livre das poderosas ligações com este mundo e
seus regentes, O Evangelho de Felipe dá-nos, apenas, detalhes insignificantes sobre esse
mistério, mas Irineu, Padre da Igreja, um antignóstico, repete certas afirmações que eram
ritualmente proferidas por aqueles que recebiam esse sacramento: "Fui estabelecido, fui
redimido e redimo minha alma deste aeon e de todos que vêm dele, em nome de IAO, que
redimiu sua alma na redenção de Cristo, o vivo." E os presentes respondem: “A Paz esteja
com todos sobre quem este nome repousa."5 O autor, então, afirma que o iniciado é, em
seguida, ungido com o óleo da árvore de bálsamo, que é o símbolo do doce sabor que
transcende todas as coisas terrestres. Esses são alguns dos pálidos ecos deixados como
rastros sobre o mistério da redenção, conhecido em grego como apotytrosis.
O supremo mistério da Câmara Nupcial (algumas vezes chamado de casamento
espiritual ou mistério das sizígias) é o evento decisivo para a união das partes do ser
humano. Conforme foi observado de várias formas nos nossos mitos gnósticos, um dos
mitologemas fundamentais dos gnósticos diz respeito à divisão entre a personalidade
humana e o Self superior ou "anjo gêmeo". Diz-se que, enquanto na terra, o ser humano
tem um corpo, uma alma e um espírito. Esses três coexistem num estado de imperfeita
associação, que se torna perfeita pela experiência da Câmara Nupcial. Irineu, interpretando
os ensinamentos dos seguidores de Valentino, descreve esse mistério como o casamento
do espírito humano com um anjo do Redentor, que reside no mundo celeste acima desta
133
terra. Em termos modernos, pode-se definir esse mistério como um rito sagrado de
individuação, no qual a pessoa se torna um verdadeiro individuum, ou unidade indivisível.
Não menos de trinta diferentes frases no Evangelho de Felipe referem-se diretamente
à Câmara Nupcial. Aqui estão algumas das mais importantes:

"Quem quer que se torne um filho da Câmara Nupcial receberá a luz... Se alguém não
partilha dela enquanto está neste mundo, não partilhará dela em nenhum outro lugar.
Aquele que partilhou dessa luz não será visto, nem poderá ser detido. E ninguém poderá
afligi-lo, mesmo se ele continuar no mundo. E novamente quando ele partir do mundo, já
terá recebido a verdade sob a forma de imagens. O mundo já se tornou o aeon. Pois o aeon
será para ele um Pleroma e o será assim: revelar-se-á somente para ele, não escondido pela
escuridão da noite, mas oculto num dia perfeito e numa luz sagrada."(127)

Os efeitos maravilhosos do mistério são mais bem descritos a seguir:

"Mas a Câmara Nupcial é oculta. É o santo dos santos... Há uma glória que é superior à
glória, há um poder que está acima do poder. Assim nos são reveladas as coisas perfeitas,
bem como as coisas ocultas da verdade. E as coisas santas do santo são reveladas e a
Câmara Nupcial nos chama para entrar.”(125)

É evidente, então, que o mistério da Câmara Nupcial, embora vivenciado pela pessoa
enquanto ainda na existência encarnada, une o homem ou a mulher a um domínio de bem-
aventurança e transcendência celestiais. Quer vivendo na terra quer num estado posterior
à morte, a pessoa que passou pela experiência da Câmara Nupcial é completamente livre
do perigo de ser capturada e afligida pelos poderes deste mundo. A plenitude do Pleroma
não é mais uma condição desejada, pertencente a um mundo além deste, pois terra e céu,
abaixo e acima, são, agora, um. "Aqueles que vestem a perfeita luz, não são vistos pelos
poderes," declara a Frase 77.
Várias frases afirmam que a Câmara Nupcial existe para restabelecer a unidade
primordial que existia no ser humano antes da separação dos sexos, simbolizada pela
divisão de Adão e Eva, na história do Gênesis:

"Enquanto Eva estava em Adão, não havia morte, mas quando ela foi separada dele, a
morte passou a existir. Se o completamento tornar a ocorrer, e a antiga identidade for
restaurada, então não haverá mais morte."(71)
"Se o feminino não se tivesse separado do masculino, não morreria com o masculino.
Essa separação tornou-se a origem da morte. Foi por isso que Cristo veio, para eliminar a
divisão que havia desde o começo e, novamente, reunir os dois; e para dar vida àqueles que
morreram, enquanto separados, e torná-los um.”(78)
“Também o feminino é reunido ao seu consorte na Câmara Nupcial. E aqueles que
foram reunidos na Câmara Nupcial jamais serão separados novamente."(79)

O leitor versado em psicologia não pode deixar de lembrar, nessas frases, as imagens
contra-sexuais da anima e do animus mencionadas por Jung. A androginia psíquica, meta da
134
psicologia, como resultado do processo de individuação, aparentemente foi antecipada (e
algumas vezes alcançada) pelos protopsicólogos chamados gnósticos. A morte, da qual essa
união nos redime, pode ser vista como a morte da consciência induzida pela falta de
integração da psique. (Estudantes de alquimia chinesa e ocidental interpretam de forma
semelhante o tema da imortalidade versus mortalidade, no simbolismo alquímico.)
Embora se represente o mistério da Câmara Nupcial como tendo sido dado à
humanidade por Jesus, parece que o mistério em si mesmo tem uma origem divina
superior, tendo sido encenado nas regiões celestiais pelas próprias divindades superiores:

"Pode-se sequer proferir esse mistério? Aquele que é completamente Pai se uniu à
virgem que desceu e um fogo O iluminou naquele dia. Ele apareceu na grande Câmara
Nupcial como Aquele que foi gerado a partir do noivo e da noiva. Assim, Jesus estabeleceu
todas as coisas através desses mistérios. E é correto para cada um de seus discípulos assim
penetrar em seu repouso."(82)

A Câmara Nupcial transcendente é, assim, entendida como tendo unido Deus-Pai com
Deus-Mãe (o Espírito Santo) e Jesus repetiu esse exemplo divino para o benefício da
humanidade dividida. A Câmara Nupcial não está ausente da história antiga da raça
humana. A Frase 102 nos conta que, da mesma forma que a verdadeira humanidade é
refeita hoje em dia na Câmara Nupcial, o mesmo ocorreu há muito tempo, produzindo uma
raça cujos membros foram chamados de "o verdadeiro homem", o "Filho do Homem" e
nomes semelhantes. Obviamente, o mistério não é um fenômeno novo, mas um fenômeno
que esteve acessível para o florescimento da raça humana em todas as eras.
Embora um grande número de frases neste Evangelho se refira aos sacramentos
cristãos gnósticos, particularmente o supremo mistério da Câmara Nupcial outros se
referem a outros temas da vida espiritual, embora a maioria deles esteja relacionada, de
alguma forma, ao tema dos sacramentos. Uma vez que a Câmara Nupcial é vitalmente
ligada à união do masculino e do feminino, é compreensível que frases importantes versem
sobre o princípio feminino. Além das Frases 32 e 55 (citadas no Capítulo 4), podemos citar
esta outra:

“Alguns dizem: 'Maria concebeu do Espírito Santo.' Eles não sabem o que estão
dizendo. Quando foi que uma mulher concebeu de outra mulher? Maria é a virgem que os
poderes nunca conseguiram conspurcar. Ela é um poderoso anátema para os hebreus, o
que denota os apóstolos e homens apostólicos. Essa virgem que nenhum dos poderes
conspurcou [revelou-se de modo a que] os poderes se derrotassem a si mesmos. E o Senhor
jamais teria dito 'Meu Pai que está nos céus', a menos que tivesse outro pai, mas ele teria
simplesmente dito: ['Meu Pai']."(17)

Embora Maria, a mãe de Jesus, seja mencionada com menos frequência pelos
gnósticos do que Sophia ou mesmo Maria Madalena, eles a têm em alta conta. O Espírito
Santo, na visão dos gnósticos, não é outro senão o Deus-Mãe e, assim, não pode ser o
agente paterno da concepção de Jesus. Maria é um ser intocado pelos poderes obscuros
que regem este mundo e a manifestação de um poder feminino imaculado (eternamente
135
Virgem) do Divino. Muitos dos seguidores de Jesus, tais como Pedro, estavam ainda
profundamente comprometidos com o patriarcado hebreu e, assim, sentiram-se
incomodados pelo complexo mistério do feminino divino, que fez seu aparecimento junto
com Jesus. O verdadeiro pai de Jesus é o poder masculino superior da plenitude e não um
dos poderes intermediários, cuja força, até certo ponto, está misturada com a de todos os
outros seres.
Como se torna claro, contemplando-se as várias escrituras da Gnose, a natureza
humana nunca é vista como corrupta ou o corpo como incapaz de experimentar a
santificação (ao contrário dos ensinamentos de Santo Agostinho e de outros padres da
Igreja):

"Quando a pérola é jogada no lodo, não se desvaloriza por isso, nem se torna mais
valiosa se for ungida com óleo de bálsamo. Ao contrário, tem o mesmo valor junto a seu
possuidor. O mesmo ocorre com os filhos de Deus, onde quer que se encontrem, pois o Pai
reconhece-lhes o valor."(48)
"A pessoa santa é completamente santa, também em relação ao seu próprio corpo.
Pois ela santifica o pão quando o oferece, e também a taça, e qualquer coisa que receba,
ela o santifica. Então, como poderia ela não santificar também o corpo?"(108)

A dignidade essencial do espírito humano e da alma são princípios cardeais na visão


gnóstica de mundo. A essência do ser humano não é meramente criada por Deus mas é
Deus, não no sentido exclusivo, mas no inclusivo, na medida em que ela é parte integrante
da Divindade. Psicologicamente, isso pode significar que a psique pode estar sujeita à
inconsciência (o lodo no qual a pérola cai) mas a sua própria natureza a habilita ao mais alto
respeito. De forma semelhante, a inconsciência temporária e o comportamento
imprudente (o pecado) não indicam que, com o necessário crescimento e desenvolvimento
da consciência, a verdadeira grandeza espiritual esteja excluída. As críticas aos gnósticos
frequentemente os acusam de denegrir o corpo humano. As frases acima colocam essas
acusações em descrédito. O corpo pode ser santificado pela consciência que o habita, como
podem ser santificados a matéria, a natureza e toda a criação. Para o santo, todas as coisas
são santas, enquanto que para o inconsciente, toda a vida é a escuridão da escuridão.
Outra crítica endereçada aos gnósticos (notadamente por neoplatônicos) era a de que
eles não davam atenção à virtude. A frase seguinte, no entanto, exalta as três virtudes
principais do Cristianismo e acrescenta uma quarta, a Gnose:

"As obras deste mundo tornaram-se possíveis de quatro formas. [Os bens do mundo]
são guardados no depósito por meio da água da terra, do ar e da luz. E as obras de Deus
também se tornaram possíveis de quatro maneiras: fé, esperança, amor e Gnose. A terra é
a fé, na qual estamos enraizados. A água é a esperança, pela qual somos alimentados. O ar
é amor, por meio do qual crescemos. E a luz é a Gnose, através da qual
amadurecemos."(115)

Eram os gnósticos dualistas radicais, como alguns apontaram? Será verdade que eles
dividiam todos os seres em duas categorias - a luz benevolente e a escuridão má - e
136
encaravam o propósito da verdadeira vida como sendo simplesmente a liberação da luz em
relação às trevas? Não, diz o Evangelho de Felipe:

"A luz e as trevas, a vida e a morte, o direito e o esquerdo são gêmeos um do outro. É
impossível separá-los. Assim, o bem não é verdadeiramente bem, nem o mal é mal, nem a
vida é vida, nem a morte é morte. Assim, cada um desses será decomposto em sua origem,
como o foi no começo. Mas aqueles que se elevaram acima do mundo, estes são
indissolúveis e eternos."(10)

O homem não transformado existe num mundo onde os opostos estão firme e
indelevelmente emaranhados uns nos outros, num abraço conflituoso. É um exercício fútil
tentar separá-los um do outro pela análise intelectual ou julgamento moral absoluto. É
apenas elevando-se acima dos opostos que surge a perspectiva espiritual da verdadeira
Gnose. A implementação intrapsíquica dessas afirmações está mais evidente na Frase 40,
onde o autor usa a metáfora dos animais domesticados e selvagens vivendo na mesma
terra. De modo semelhante, diz o evangelho, quem tem a Gnose usa os poderes que estão
sujeitos ao controle da consciência, mas não se livra nem do lado obscuro da mente, nem
do seu lado luminoso. Em vez disso, essa pessoa reconhece que ambos são necessários
para a aquisição da totalidade. A frase termina com a afirmação de que isso, de fato,
representa o desígnio da Divindade: "O Espírito Santo pastoreia a todos e regula todos
esses poderes, os 'mansos' como os 'selvagens', e também aqueles que estão unidos. Pois
de fato Ela os mantêm juntos para não escaparem, mesmo que o queiram."
Felipe também revela que, ao contrário da visão popular sobre o Gnosticismo, a visão
gnóstica do cosmos não implica a ausência de um desígnio divino celestial na criação. De
acordo com a seguinte frase, os regentes criadores, na sua ignorância, não estão cientes
dos desígnios ocultos que operam dentro da criação, assumindo-os erroneamente como
sendo do seu exclusivo domínio:

"Os regentes sustentavam que era com sua exclusiva força e vontade que realizavam
suas obras, mas o Espírito Santo, em segredo, tinha organizado tudo através deles, como
ele queria.
A verdade é semeada em todos os lugares, aquela verdade que existia desde o
começo. E muitos a percebem quando é semeada; mas apenas poucos a colhem. "(16)

Os mistérios libertadores da Gnose são planejados para provocar uma divinização


(apoteose) do ser humano, induzindo um conhecimento experimental das coisas
transcendentais; o conhecedor passa a ter, então, cada vez mais afinidade com a
transcendência e passa a perceber a divindade, até então oculta, dentro de si próprio:

"A ninguém é possível ver as coisas que são verdadeiramente reais, a não ser que se
torne como elas. Isso não ocorre com aqueles do mundo: eles veem o Sol sem ser o Sol; e
veem o céu e a terra e todas as outras coisas, mas não são essas coisas. Essa é a verdade.
Vós, no entanto, vistes o Espírito e vós vos tornastes espírito. Vós contemplastes o Cristo e
então vós vos tornastes o Cristo. Vós contemplastes o Pai e vós vos tornareis o Pai.
137
Portanto, neste mundo vós vedes tudo, mas não vedes a vós mesmos. Mas naquele outro
lugar vós vedes a vós mesmos. Portanto, aquilo que vedes, certamente naquilo vos
tornareis."(44)

A experiência da Gnose, facilitada pelos mistérios sacramentais, transporta o


conhecedor para o domínio da consciência exaltada, onde é possível o conhecimento
unificador. A Fé, no sentido gnóstico, consiste principalmente em sermos fiéis a esse tipo de
experiência. Sendo fiéis à nossa experiência de transcendência, desenvolvemos, também, a
capacidade de uma ação amorosa, que está ligada à partilha da Gnose com os outros:

"A fé recebe, o amor dá. Ninguém será capaz de receber sem fé. Ninguém será capaz
de dar sem amor. Portanto, para realmente receber, temos de ter fé, mas isso ocorre para
que possamos amar e doar, já que se alguém não dá com amor, isso não se lhe
aproveita."(45)

O amor não está, de modo algum, ausente dos ensinamentos do Evangelho de Felipe.
A grande divisão do organismo psico-espiritual da humanidade nas dualidades de acima e
abaixo, interno e externo, macho e fêmea, e assim por diante, só pode ser curado pelo
amor. O mistério da Câmara Nupcial é chamado justamente de Câmara de Amor. Assim, os
mistérios sacramentais dos gnósticos parecem dirigidos pelo amor e para o amor. A ânsia
de desejo da humanidade por completamento, por meio da totalidade, encontra o afeto
incondicional da Divindade, que procede da plenitude. Contudo, esse afeto divino precisa
de veículos por onde possa se manifestar e se efetivar. É aqui que a doutrina das imagens,
ensinada nessa escritura, se torna compreensível. A noção ingênua, frequentemente
cultivada pelos cristãos da ortodoxia corrente, que declara que a graça santificadora da
Divindade pode alcançar a alma sem um veículo especial, não é compartilhada pelos
gnósticos. Várias frases de Felipe expõem um ensinamento sobre as imagens nas quais os
princípios celestiais, que procedem da plenitude, se manifestam na terra:

"A verdade não penetrou despida neste mundo, mas veio em tipos e imagens. Esse
aeon não receberá a verdade de nenhum outro modo. Há o renascimento, e há uma
imagem do renascimento. Verdadeiramente, é necessário que [os seres humanos] nasçam
novamente através da imagem. Que imagem é a ressurreição? A imagem deve ressurgir
através da imagem... Se alguém não adquire [as imagens] por si próprio, seu nome também
lhe será tomado. Mas se alguém as recebe na Unção do Pleroma, pelo poder da cruz, que
os apóstolos chamaram ‘o direito e o esquerdo', então essa pessoa não é mais um cristão
mas um Cristo. "(67)

Os que estão familiarizados com a moderna psicologia necessariamente lembrar-se-ão


aqui dos ensinamentos de Jung sobre os arquétipos e imagens arquetípicas. Essas imagens
podem, de fato, ser vistas como transportadoras ou receptáculos de energias psíquicas,
manifestas como significado, consciência e transformação. A afirmativa de Jung, citada
antes neste capítulo, de que "as condições psicológicas mais fundamentais e importantes"
da humanidade estão contidas em rituais arquetípicos, tais como os sacramentos - recebe
138
aqui uma validação a partir de fontes gnósticas. A "cristianização" da pessoa humana não
ocorre de maneira puramente pessoal e interna, mas pode (e, talvez, até deva) ser
facilitada pelos mistérios iniciáticos, aos quais esse evangelho é dedicado.
Confrontamo-nos, então, com um aparente paradoxo. De um lado, pode parecer que a
atitude gnóstica, já que é orientada para a experiência espiritual pessoal, seria incompatível
com práticas formais de mistérios e sacramentos. Por outro lado, temos uma evidência
incontroversa que declara a existência de uma prática sacramental iniciatória, formal e feita
em graus, explicitamente gnóstica no caráter, e associada com o mais alto florescimento da
Gnose na escola de Valentino. O que quer que os gnósticos tenham sido, eles não eram
protoprotestantes anti-ritualistas, pois sua adesão não apenas aos sacramentos, mas
também a uma doutrina de sucessão apostólica, o atesta. Assim, a Frase 95 afirma que “o
Pai ungiu o Filho, o Filho ungiu os apóstolos e os apóstolos nos ungiram. Aquele que foi
ungido, possui o todo. Ele possui a ressurreição, a luz, a cruz e o Espírito Santo. Assim como
o Pai lhe deu isso na Câmara Nupcial, assim ele o recebe."
Segundo o Evangelho de Felipe (bem como outros documentos gnósticos), a
disponibilidade do poder espiritual é suplementada pela habilidade do plenamente iniciado
de transmitir esse poder espiritual. O carisma pessoal está indubitavelmente presente, mas
também existe o carisma iniciatório e, portanto, institucional, isto é, transmitido numa
tradição e sucessão ordenada e definida. O individualismo gnóstico não implica uma
renúncia da graça sacramental e da autoridade apostólica para ministrar essa graça. Assim
como C.G. Jung, muitos séculos mais tarde, Valentino, Marco e outros hierofantes gnósticos
ministraram ritos que agiram como meios da graça, como meios de transformação. A Igreja
não-gnóstica, depois de Constantino, continuou com essa prática, mas esta perdeu a ênfase
original. Os mistérios superiores da Redenção e da Câmara Nupcial foram perdidos, embora
tenham voltado à superfície séculos depois, no rito cátaro do consolamentum. O Batismo
foi reduzido ao Batismo psíquico e a Unção se tornou um rito folclórico de passagem para
os cristãos novatos pré-adolescentes. Mesmo assim, como apontou corretamente Jung, há
mais de 50 anos, os sacramentos do Cristianismo mantiveram uma certa medida de seu
poder original e permaneceram aptos a transmitir uma certa Gnose, embora mitigada.
Esperamos que a descoberta dos evangelhos perdidos, como o de Felipe, possa estimular
um interesse esclarecido sobre o tema dos meios iniciatórios de transformação. Se isso
ocorrer de fato, os esforços dos conhecedores da antiguidade poderão frutificar, numa era
tremendamente necessitada da graça da Gnose.

139
13
Redenção e Êxtase:
O Evangelho da Verdade e o Evangelho dos Egípcios
Mais duas escrituras das descobertas de Nag Hammadi têm o título de "evangelho".
Uma destas, O Evangelho da Verdade está contido no conhecido Códice de Jung, o primeiro
da coleção a ser retirado do transtornado Egito dos anos 50 e colocado à disposição dos
estudiosos (Ver Capítulo 1). O outro é O Evangelho dos Egípcios, também chamado de "O
Livro Sagrado do Grande Espírito Invisível". Ambos parecem ter chamado atenção nos
tempos antigos. Escrevendo por volta de 180 d.C., Irineu mencionou uma escritura de
autoria de Valentino, chamada o Evangelho da Verdade. Depois que o Códice de Jung se
tornou disponível aos estudiosos, muitos passaram a achar que a nova descoberta não era
outra senão o lendário evangelho, escrito pelo maior dos gnósticos, Valentino. O estudioso
responsável pela compra do códice, Gilles Quispel, escreveu:

"Parece que o Evangelho da Verdade, sem dúvida, veio da escola de Valentino e é


idêntico aos escritos citados por Irineu. Um novo evangelho herético, o único de seu tipo
até o momento disponível aos estudiosos, foi descoberto. Nossa suposição provou estar
correta."¹

De forma semelhante, a informação sobre um "Evangelho Segundo os Egípcios" existiu


por muito tempo. Essa escritura apócrifa foi mencionada, ocasionalmente, pelos Pais da
Igreja e, embora seja impossível determinar se os dois textos que levam esse nome,
achados na coleção de Nag Hammadi, são idênticos ao evangelho citado na literatura
antiga, é possível que de fato tenhamos em mãos esse evangelho há tanto tempo perdido.
O Evangelho da Verdade é uma obra poética do misticismo cristão, com fortes matizes
gnósticos. Se ocorresse a alguém questionar a compatibilidade do Cristianismo místico com
o Gnosticismo, essa escritura poderia convencê-lo do contrário. Nem mesmo o trecho de
derivação evangélica mais cuidadosamente escrito sobre Cristo poderia demonstrar maior
devoção à figura de Jesus Cristo, do que a que se encontra nessa escritura, atribuída ao
"arqui-herético" Valentino, ou a um de seus discípulos mais próximos. A sublime beleza de
seus pensamentos e o alcance poético de sua linguagem qualificam-no como um dos
maiores tratados do antigo misticismo cristão, comparável a clássicos como A Nuvem da
Ignorância e os escritos de Dionísio, o Areopagita. O tom é evidente, já no trecho inicial:

"O Evangelho da Verdade é uma alegria para aqueles que receberam a dádiva de
conhecer o Pai da verdade, conhecendo-o através do poder do Logos que veio da plenitude,
o Logos que está sempre presente no pensamento e na ideia do Pai, Ele que é chamado de
Salvador, tendo recebido tal nome pela obra que realiza para a redenção daqueles que não
conhecem o Pai. O nome 'evangelho' é a proclamação da esperança e a descoberta para
aqueles que O procuram."

140
Com efeito, o autor desse evangelho nos diz que, embora o cristão não-gnóstico
acredite que Jesus é o Filho de Deus que veio para redimir a humanidade do pecado, essa
história é ainda muito incompleta. Faz-se, aqui, um relato muito mais completo, que pode
ser assim resumido: Há uma Fonte de tudo, chamada o Pai (chamado de Profundidade por
Ptolêmio e de Espaço por H.P.Blavatsky, nos nossos tempos). Desse progenitor supremo
emerge a Verdade, a sabedoria quintessencial do Pai, por meio da qual o Pai pode ser
conhecido. Conhecer a verdade é o objetivo supremo da vida humana. Dela dependem
questões como o amor, a autenticidade e, acima de tudo, a liberdade. "Vós conhecereis a
verdade e a verdade vos libertará", diz o Evangelho de João, no Novo Testamento.
Embora ela seja a primeira emanação do Pai, a Verdade (Aletheia) pode também ser
vista como Deus-Mãe, o aspecto celestial e transcendental da Sabedoria (Sophia). Do Pai
Supremo e da Verdade Mãe provém a Palavra (Logos), que é a revelação da consciência e o
agente que leva a mente humana à verdade, consciência e totalidade. Usando termos
familiares à psicologia profunda, podemos dizer que a Palavra é a imagem arquetípica, a
Verdade, o arquétipo e Pai, o arquétipo psicóide em si, e que os três são expressões do
mesmo princípio da totalidade redentora suprema.
Nas primeiras passagens do evangelho, vemos literalmente a trama se solidificar. O
todo ou a criação procurou por sua própria fonte e, na sua angústia, emanou uma espessa
substância como uma neblina, que o impediu de ver claramente. Dentro dessa neblina de
inconsciência, outro princípio personificado, chamado Erro (Plano), surge e cresce
poderosamente. Não conhecendo a verdade, este ser de erro agora modela o seu próprio
cosmos, mas é um mundo inautêntico, uma realidade substituta, da qual a verdade está
ausente. Assim, nós somos apresentados, no começo do texto deste evangelho, a uma
descrição psicologicamente significativa da nossa condição existencial. A inconsciência
causa uma existência sem sentido, dentro da qual a psique humana perambula sem a
autenticidade de que necessita.
Em seu ensaio "Psicologia Analítica e Weltanschauung", Jung descreve essa condição:
"Os seres humanos sentem que são criaturas fortuitas, sem significado, e é este sentimento
que os impede de viver a vida com a intensidade que ela exige, se se quiser usufruí-la por
completo. A vida se torna deteriorada e não é mais a expressão do ser humano completo."
O evangelho nos conta que a natureza dessa condição existencial é o erro, a falta de
verdade. O termo cognato na filosofia hindu pode ser maya, usualmente traduzido por
ilusão.
Como pode essa ilusão, esse erro, ser dissipado e a autenticidade retomada? Através
da ação salvadora da Palavra, manifesta no mito cristão como Jesus:

"Esta é a feliz notícia sobre Aquele a quem se busca, o evangelho manifestado àqueles
que são perfeitos pela misericórdia do Pai. É o mistério oculto, chamado Jesus, o Cristo.
Através desse evangelho, Ele iluminou aqueles que estavam nas trevas. Ele os resgatou do
olvido pela iluminação. Ele lhes mostrou o caminho... Por essa razão, o Erro (Plano) ficou
furioso com Ele, O atormentou, se angustiou com Ele e então o Erro se tornou o nada. Ele
foi pregado a uma árvore. Tornou-se o fruto da Gnose do Pai... E Ele os descobriu em si
mesmo. E, acima de tudo, eles o descobriram em si mesmos; descobriram Aquele que é
incompreensível e inconcebível. Eles descobriram o Pai, O perfeito, O que criou o todo,
141
enquanto o todo permaneceu contido n 'Ele e o todo precisava d'Ele."

O evangelho prossegue, exaltando as virtudes do Salvador, o qual, numa passagem


anterior, é descrito como um guia, pacífico e calmo, odiado pelos falsos sábios deste
mundo, mas amado por aqueles chamados de "crianças" pela sua inocência, Esse Evangelho
pode ser comparado a um livro que se torna, imediatamente, uma realidade viva,
personificando sua missão redentora:

"Por esta razão, Jesus veio. Identificou-se com aquele livro. Foi pregado a uma árvore.
Tornou pública a mensagem do Pai, na cruz. Oh, que grande ensinamento! Ele desce à
morte, mesmo sendo envolvido pela vida eterna. Tendo sido despido dos trapos perecíveis,
assume a imperescibilidade, que ninguém lhe pode tirar. Ele entrou nos espaços vazios,
cheios de terror, passou por aqueles que estavam completamente nus pelo esquecimento.
Ele foi conhecimento e perfeição e proclamou as coisas que estão no coração do Pai e,
assim, Ele ensinou àqueles que estavam dispostos a receber."

Conforme é indicado na passagem acima, nem todos responderam à mensagem do


Redentor em igual medida. Ele foi obrigado a ignorar "Aqueles que estavam nus pelo
esquecimento", mas encontrou eco entre aqueles que foram escolhidos por causa da
própria Gnose. Estes são assim descritos:

"Aquele que tem a Gnose é um ser das alturas. Se ele é chamado, ouve e responde e
se volta para aquele que o chamou e sobe até ele. E tal pessoa sabe de que maneira o
chamado ocorre. Possuindo a Gnose, obedece à vontade de quem o chamou. Deseja
agradar a quem o chamou e, assim, recebe o repouso... Quem tem, assim. a Gnose sabe de
onde vem e para onde vai. Ela compreende, como alguém que se liberta e acorda do
estupor em que vivia e, assim, retoma a si."

As mudanças produzidas na vida e no mundo pela ação redentora do Logos estão


indicadas numa parábola, na qual algumas pessoas se mudam para uma casa e acham
algumas jarras inúteis e quebradas, que o novo dono decide remover dos cômodos. Ao
mesmo tempo, há outras jarras que, tendo mantido sua utilidade, são reabilitadas e
novamente cheias pelo dono. O significado da metáfora é revelado na seguinte passagem:

"Quando o Logos veio ao meio... uma grande perturbação ocorreu entre as jarras,
porque algumas tinham sido esvaziadas e outras tinham sido preenchidas... e outras jarras
foram quebradas. Todos os lugares foram mexidos e perturbados, porque estavam sem
verdadeira ordem e estabilidade. O Erro (Plano) foi perturbado e não sabia o que fazer. O
Erro estava angustiado, estava triste e aflito por não saber nada. Quando a Gnose se
aproximou dele - pois tal é a queda do Erro e de suas emanações - viu-se que ele estava
vazio, não tendo nada dentro de si."

A imagem das jarras e dos fragmentos, não é desconhecida na tradição esotérica. A


Cabala fala dos fragmentos (klipoth) quando descreve os elementos contraproducentes e
142
descontínuos do mal que aflige as centelhas de luz neste mundo manifesto. De forma
parecida, os complexos autônomos do inconsciente podem ser comparados a fragmentos
que o arquétipo da totalidade deve descartar da morada interna, recém-consteladas, que
aparece no decorrer da individuação. Contudo, não se espera que essas forças psíquicas
cedam lugar ao Self sem oposição. O falso self, o Erro, também se insurge, porque seu
longo e obscuro reinado está no fim e seu caráter oco e improdutivo é finalmente revelado.
Podemos ver aqui a diferença entre o Cristianismo, personificado no Evangelho da
Verdade, de um lado, e o Cristianismo não-gnósticoo, pretensamente ortodoxo, de outro.
Não é do pecado pessoal e original que o Logos redentor liberta a humanidade, mas sim da
confusão e da ilusão gerada pela inconsciência. Essa condição é descrita graficamente pelo
evangelho:

"Fugimos para não se sabe onde ou permanecemos parados no lugar, quando


desejamos progredir, ao perseguir não se sabe quem. Sentimo-nos em uma batalha,
atacando e sendo atacados. Ou sentimos como se estivéssemos caindo de uma grande
altura. ou como se estivéssemos voando pelos ares, sem ter asas. Às vezes, parece que
fomos mortos por um assassino invisível, sem ter percebido nenhum perseguidor
anteriormente... Essas coisas acontecem até o momento em que aqueles que
experimentaram tudo isso acordam. Então, eles não veem nada... pois todos aqueles
sonhos eram... o nada. É assim que eles se libertam da sua ignorância, como se ela fosse
um sonho que eles avaliam como um nada."

Os eleitos redimidos, isto é, "os seres vivos que permanecem inscritos no Livro da
Vida", recebem através do Evangelho da Verdade, que Cristo lhes traz, o acordar que os
liberta da ilusão e os restaura ao seu verdadeiro Self. A revelação de Deus acontece através
do conhecimento de Cristo, que não é um mero agente externo da alma, mas está presente
dentro do espírito do ser humano (“eles o descobriram em si mesmos, eles descobriram o
incompreensível, o inconcebível").
Pode-se concluir este resumo do Evangelho da Verdade com a bela exortação dirigida
aos redimidos:

"O dia celeste não tem noite e sua luz nunca decresce, porque é perfeita. Proclamai,
então, que vós sois esse dia perfeito e que esta luz infalível habita em vós, que possuis a
Gnose de Coração. Proferi a verdade para aqueles que a buscam e falai da Gnose para
aqueles que, em seu engano, cometeram erros. Firmai os pés daqueles que tropeçaram e
estendei as mãos àqueles que sofrem de doenças. Alimentai aqueles que têm fome e dai
repouso àqueles que estão cansados e levantai aqueles que desejam levantar e acordai
aqueles que dormem. Pois vós sois a Gnose do coração, que é manifesta."

O conhecedor torna-se o poder de conhecimento, o gnóstico é a personificação da


Gnose e a redenção transforma o redimido em redentor. Alguns têm observado que traços
distintamente heréticos de outras escrituras gnósticas, tais como a distinção entre o Deus
Desconhecido e o Demiurgo, não ocorrem no Evangelho da Verdade.2 Contudo, qual seria o
papel do Erro (Plano) se não o de Demiurgo? Chamado de Erro, de Yaldabaoth ou de
143
qualquer outro nome, o criador da falsidade e da ilusão é sempre reconhecido nos
evangelhos gnósticos. Os nomes e as personificações não importam. O que permanece é a
realidade existencial da imperfeição e da inconsciência, à qual todos os seres humanos
estão sujeitos, e que se contrapõem ao conhecimento libertador do coração, facilitado pelo
grande mensageiro e encarnação da Gnose, Jesus, o Cristo. A transgressividade misteriosa,
que une Cristo ao potencial transcendental em cada um e em todo espírito humano, o
mistério do "Cristo em nós, a esperança de Glória", de quem fala Paulo, torna-se, também,
o ponto onde o misticismo cristão do tipo mais ortodoxo une-se aos gnósticos
supostamente heréticos.

Essa relativização da heresia e da ortodoxia, através da revelação da unidade secreta


dentro da sabedoria do coração é, talvez, uma das maiores virtudes da mensagem
sensivelmente articulada e profundamente sentida, que merece com justiça ser chamada
de Evangelho da Verdade.
O último evangelho, a que voltamos agora a nossa atenção, tem um caráter diferente
embora um valor comparável; é ele o "Livro do Grande Espírito Invisível" ou O Evangelho
dos Egípcios. Essa escritura distingue-se de muitos outros tratados do seu tipo, pelo fato de
que não é só uma narrativa mitológica ou cosmológica, mas também um texto litúrgico ou
liturgia iniciatória, que, sem dúvida, destinava-se a ser parte de um ritual de admissão a um
profundo mistério da Gnose. Está dividido em três partes: 1) uma descrição do domínio
incorruptível da alta Plenitude. 2) um relato da história mística da humanidade gnóstica,
personificada por Seth e seus descendentes; e 3) um texto de iniciação que merece ser
chamado de documento de êxtase, pois parece estar baseado na experiência de iniciação
extática sofrida por um visionário gnóstico.
A estrutura tríplice dessa escritura suscita certas questões. Se o texto extático que
constitui a terceira parte desse evangelho é, de fato, uma tentativa de um iniciado gnóstico
de documentar sua própria experiência extática, então podemos perguntar se há alguma
razão para o autor levar o leitor a seu pronunciamento de êxtase através de longas
descrições do domínio da Plenitude e da história da sábia raça de Seth. Não seria mais
apropriado tratar a experiência de iniciação extática apenas "experimentalmente", como
seria feito hoje, quando a experiência e a técnica são com frequência consideradas
suficientes em si mesmas? A resposta pode ser que, para o gnóstico, o contexto da
transcendência tem a mesma importância que a experiência da transcendência. É
certamente verdade que os gnósticos dos primeiros séculos cultivavam experiências
extáticas vívidas e impressionantes. (Um outro importante documento sobre essa
experiência é o Oitavo Revela o Nono, um tratado descoberto em Nag Hammadi,
mencionado no Capítulo 2). Contudo, tais experiências ocorreram sempre dentro de uma
mitologia específica, onde a cosmologia, a teogonia e a história espiritual tinham uma
participação vital. Os gnósticos estavam cientes de que experiências extraordinárias são em
si mesmas incompletas e sempre precisam ser amplificadas, para levar à assimilação. Em
termos psicológicos, apenas a experiência assimilada da psique arquetípica é
transformativa e tal assimilação é inevitavelmente aumentada por um contexto mitológico
adequado, dentro do qual a experiência possa encontrar seu lugar próprio.
A primeira parte desse evangelho, apresenta-nos o contexto supremo e superior, sob a
144
forma de imagem do Domínio Incorruptível. Para o místico praticante ou para o gnóstico,
questões sobre a suprema região do ser são de grande importância. Há algo além de quem
somos, além do que somos e além de onde estamos? Há algo além de nossas pequenas
vidas e, sobretudo, além do cosmos, isto é, que transcenda o sistema de sóis, luas, planetas
e estrelas? O gnóstico responde que há um além. (Essa afirmação encontra analogia em
outras abordagens esotéricas da espiritualidade. No Hinduísmo, encontramos o conceito de
Parabrahman, aquilo que está além da divindade cognoscível. Algumas escolas de Budismo
chamam a mesma realidade pelo nome de Adi Buddha, a suprema essência do Buda, e a
Cabala a chama de Ain Soph Aur, luz ilimitada). Esse é o contexto supremo da
transcendência, aquilo que foi, que é e que sempre será: atemporal, ilimitada embora cheia
do potencial de todos os tempos, de todos os espaços, de toda a vida e de toda a
consciência. O Evangelho dos Egípcios dá uma descrição gráfica desse domínio incorruptível
e, de maneira tipicamente gnóstica, enumera um grupo de seres eternos que habitam essa
suprema região da Plenitude. Presidindo a região plerômica, há a presença do Grande
Espírito Invisível que paira, também chamado de Progenitor. Esse Ser supremo manifesta-
se numa trindade: o Pai, a Mãe e o Filho. Desses centros transcendentes de criatividade
emanam um grande número de aeons, Glórias, Tronos e outros seres. De particular
importância são quatro pares de poderes chamados de Luminares, um dos quais é Abrasax
(Abraxas), a figura mítica gnóstica que aparece com tanto destaque em Os Sete Sermões
aos Mortos, de C.G. Jung.
A questão de um contexto de transcendência leva-nos, diretamente, a considerações
sobre um contexto de transmissão. A necessidade desse contexto pode ser vista da
seguinte maneira: há um domínio imperecível, que nos deu vida e luz, mas nós nos
achamos num domínio perecível, onde a vida está mesclada com a morte, e a luz está
combinada com as trevas. Como podemos voltar ao nosso estado original? Pela
transmissão da assistência de cima, quer dizer, pelas sementes de luz, provenientes da
Plenitude e plantadas em nosso interior. Como notamos em outros mitos e escrituras da
Gnose, a suprema luz, repetidamente, enviou seus emissários aos mundos inferiores de
manifestação, com o propósito de facilitar a iluminação e a libertação das criaturas ali
presentes. O protótipo de todos os mensageiros gnósticos da luz, segundo esse evangelho,
é Seth, o terceiro filho de Adão e Eva, que diferentemente dos irmãos imperfeitos e
briguentos Caim e Abel, tinha um claro conhecimento da sua própria natureza e da sua
ligação com o imperecível domínio e seus cidadãos celestiais.
Seth é representado como o pai de uma raça de seres humanos iluminados e
conhecedores que sustentam os princípios da Gnose em todas as gerações. O evangelho
assim os descreve: "Esta é a vasta e imperecível raça que apareceu de três (antigos)
mundos." (Lembramo-nos, aqui, dos ensinamentos da Teosofia, que indicam que certas
mônadas humanas/essências espirituais vieram para a terra depois de ter existido em
outros sistemas cósmicos). A raça de Seth pode, também, ser entendida como um conjunto
de iluminados adeptos da Gnose, presentes no mundo em cada geração, que possuem, por
mérito próprio, uma iluminada e distinta pré-história.
A ilustre companhia desses descendentes espirituais de Seth está sujeita à implacável
inimizade do Demiurgo e de seus servos importunos:

145
"E a inundação virá como uma prefiguração para o fim da era contra o mundo. Por
causa desta raça, as conflagrações também virão sobre a terra... E a graça virá através da
ação dos profetas e de sentinelas que vêm da raça viva. As pragas e a fome também
visitarão a todos, por causa [da inimizade do Demiurgo]. Todas essas coisas ocorrerão por
causa dessa grande e imperecível raça,"

Depois, o evangelho nos conta que, por causa das perseguições sofridas pela ilustre
companhia dos filhos de Seth, uma hoste de espíritos guardiães e de ajudantes poderosos
foi enviada dos grandes aeons. Liderados pelo próprio espírito do grande Seth, esses seres
estão prontos a estender sua graça e assistência aos membros da raça ilustre, dispostos em
ordem de batalha. Grandes sacramentos foram preparados "para fazer o povo santo
renascer pelo Espírito Santo e pelos invisíveis e santos símbolos místicos". A segunda parte
do evangelho termina, assim, com um convite feito aos eleitos para partilharem da
iniciação preparada para eles por seu pai Seth e pelos espíritos guardiães que vieram
resgatá-los.
A parte seguinte e final do Evangelho dos Egípcios deve ser entendida como um relato
extático, apresentado por um iniciado do mistério experimentado dentro do contexto
sacramental de Seth. Significativamente, embora o sacramento seja atribuído à obra de
Seth, as inovações e orações de ação de graças que formam parte dessa seção do
evangelho são dirigidas a Jesus por seu nome místico particular: Iesseus-Mazareus-
Iessedekeus. Não há dúvida de que essas orações são, de fato, o resultado de uma vívida
experiência extática e que as séries de letras místicas reproduzidas no texto são uma
glossolalia, isto é, elocuções extáticas expressas em sons que não refletem nenhuma
linguagem terrestre. (Essas combinações de letras, conhecidas tecnicamente como
"palavras bárbaras", são frequentemente apresentadas nos textos gnósticos quando
ocorrem narrativas de experiências transcendentais.) Um curto exemplo dessas elocuções
será suficiente para nossas considerações:

"Ó Iesseus! Ieoeuooa!


Em verdade!...
Ó água viva!
Ó filho do filho!
Ó nome de todas as glórias!
Ó ser eterno! ...
Ó ser que contemplas os aeons
Em verdade!
AEEEEEIIIIYYYYYYOOOOOOOO,
Ó existente para todo o sempre!...
Ó existente para sempre na eternidade!
Sois o que sois! Sois o que sois!...
Tendo eu tomado conhecimento do
Vosso ser agora, mesclo-me com o
Vosso ser imutável,
Envolvi-me e vesti uma armadura de amor e luz e me tomei um ser brilhante."
146
Depois de concluir essas elocuções extáticas, um pós-escrito descritivo declara que
este livro foi composto pelo grande Seth e que ele o havia colocado em altas montanhas
tão ocultas, que o Sol nunca se levanta sobre elas. No tempo apropriado, quando as eras
tiverem sido completadas, Seth virá, acompanhado pela eterna luz e pelos seres divinos
femininos Sophia e Barbelo e, segundo a promessa desse livro à raça ilustre, viajará com
seus filhos aos mundos incorruptíveis. A associação deste texto com o mythos cristão é
finalmente confirmada pela nota pessoal do escriba, cujo nome espiritual é Eugnostos e
que conclui com estas palavras:

" Ó Jesus Cristo, Ó Filho de Deus, Ó Salvador!


Ó peixe! Santas, de fato, são as origens deste santo livro do Grande Espírito Invisível!
Amém."

Embora diferentes na aparência externa, esses dois evangelhos, o Evangelho da


Verdade, Valentiniano e o Evangelho dos Egípcios, sethiano, contam uma história comum.
Quer meditando sobre a missão gnóstica salvadora de Jesus que era assistir a humanidade
na descoberta do Self divino interior,³ quer apresentando um contexto de transcendência e
transmissão para uma experiência iniciatória de êxtase, a intenção é a mesma: lembrar a
humanidade de suas origens superiores e sagradas, bem como da sua situação atual de
incompreensão, e assegurar aos homens e mulheres a disponibilidade de redenção e uma
volta à consciência, à glória e à bem-aventurança.
Devemos lembrar, também, que embora bastante informativos, esses evangelhos
constituem apenas uma minúscula porção do vasto conjunto de ensinamentos gnósticos e
experiências iniciatórias. A maior parte dessa sabedoria e disciplina espiritual permaneceu
não escrita, devido a um princípio gnóstico, mais do que a qualquer outra causa. A
experiência transcendental, é, por definição, incomunicável e as instruções dos adeptos
gnósticos contidas em frases, mitos, parábolas e exortações não conseguiam transmitir a
Gnose. (Quando muito, eram meramente semelhantes ao proverbial dedo zen-budista
apontado para a lua). "O conhecimento das coisas que são" (como G.R.S. Mead o chamou)
deve ser atingido pelo indivíduo, embora práticas e ensinamentos especiais individualizados
possam assisti-lo na abordagem desse conhecimento, dentro de um contexto de
receptividade psicológica significativo e útil. Esse conhecimento foi sempre destinado a
alguns poucos. Aqueles que se satisfaziam com a fé nos relatos recebidos de outros,
aqueles que não se furtavam a ter fé na fé de outrem, sempre se desqualificariam quando
se tratasse da Gnose. Muitos séculos depois do tempo dos gnósticos, C.G. Jung expressou
de maneira penetrante a atitude deles, ao descrever sua própria posição sobre as
necessidades espirituais do mundo moderno:

"Não... me dirijo aos felizes possuidores da fé, mas àquelas numerosas pessoas para
quem a luz se foi, o mistério gradualmente desapareceu e para quem Deus está morto. Para
a maioria delas, não há retorno possível e não sabem sequer se voltar seria o melhor
caminho. Para conseguir entender assuntos de religião, provavelmente tudo o que nos
resta hoje é a abordagem psicológica. É por isso que eu tomo essas formas de pensamento
147
que se tornaram historicamente fixas e tento derretê-las novamente e derramá-las em
moldes de experiência imediata.”4

Os "outros evangelhos", há muito perdidos e agora redescobertos, parecem aptos a


dar grande assistência àqueles que estão engajados na tarefa de derreter as teologias
rígidas e as filosofias áridas desta era e derramar sua essência em moldes de imediata
experiência gnóstica, ainda que de caráter atemporal.

Cruz da conjunção da Luz com a Vida

Figuras de Mandalas dos Livros de leu

148
Epílogo
De Hiroshima aos Evangelhos Secretos:
O Futuro Alternativo da História Humana
Pouco antes de sua morte em 1961, C.G. Jung teve uma série de visões a respeito de
uma futura grande catástrofe. Segundo Marie-Louise von Franz, que é a guardiã das notas e
tabelas sobre esses pronunciamentos, Jung viu uma catástrofe mundial, possivelmente sob
a forma de um holocausto de fogo, que ocorreria dentro de 50 anos (isto é, por volta de
2010) o que, de acordo com alguns estudiosos, coincide com a controvertida data do
término do calendário Maia.1 Exatos dez anos antes, em seu livro Aion, Jung previu a vinda
da era do Anticristo, colocando seu clímax no fim ou possivelmente logo depois do término
do século XX. As sincronicidades cósmicas delineadas por Jung em Aion dizem respeito à
progressão dos assim chamados meses platônicos, também conhecidos como eras
zodiacais. Portanto, pode ser uma coincidência significativa que a era de Peixes, que
começou mais ou menos no tempo do nascimento de Cristo, tenha ocorrido junto com o
desenvolvimento do Cristianismo, que se tornou a influência espiritual normativa de grande
parte do mundo. O peixe também é o antigo e conhecido símbolo de Cristo. Depois da
passagem do primeiro milênio da era de Peixes, o lado sombrio do Cristianismo não mais
pôde ser contido e movimentos alternativos reprimidos (muitos deles de origem gnóstica),
tais como os cátaros, os waldensianos, o movimento do Espírito Santo e os seguidores de
Joaquim De Fiore surgiram com grande força, para desgosto da Igreja Romana. Assim, o
"reinado do segundo peixe ou peixe escuro" foi iniciado e caminha para o seu clímax, à
medida que se aproxima o fim do segundo milênio. (O signo astrológico de Peixes é
representado por dois peixes - um claro, outro escuro - nadando em direções opostas). Jung
era da opinião de que, se o lado escuro ou sombrio do arquétipo cristão não conseguir
penetrar e se integrar à consciência, uma manifestação poderosa e maléfica dessa sombra
poderá predominar, e esse evento sinistro com toda probabilidade ocorreria numa data
próxima do ano 2000. Este seria o advento do Anticristo, sobre quem Jung escreveu:

“Se encararmos a tradicional figura de Cristo como um paralelo da manifestação


psíquica do Self, então o Anticristo corresponderia à sombra do Self, a saber, a metade
escura da totalidade humana. que não deve ser vista com muito otimismo. A julgar pela
experiência, a luz e a sombra são distribuídas de maneira tão equilibrada na natureza
humana que sua totalidade psíquica aparece, para dizer o mínimo, numa luz um tanto
sombria. O conceito psicológico de Self (em parte derivado do nosso conhecimento do
homem total, mas quanto ao mais apresentando-se espontaneamente nos produtos do
inconsciente como uma quaternidade arquetípica mantida unida por antinomias internas)
não pode omitir a sombra que pertence à figura luminosa, pois, sem ela, essa figura
perderia substância e humanidade. No Self empírico, a luz e a sombra formam uma unidade
paradoxal. No conceito cristão, por outro lado, o arquétipo está irremediavelmente dividido
em duas metades, levando, no fim de contas, a um dualismo metafísico: a separação final
do reino do céu do mundo terrível dos condenados.”²
149
Resumindo, os desequilíbrios espirituais dentro da estrutura psicológica do
Cristianismo não-gnóstico são tão grandes que se não forem reconciliados em uma união
durável de plenitude psíquica, a tensão interna gerada pelos opostos irreconciliados
fatalmente levará a um fim desastroso a difícil coexistência desses opostos. É bastante
provável que a visão de Jung sobre a catástrofe de fogo refira-se à explosão da estrutura
psíquica da cultura ocidental, com um concomitante holocausto físico de origem natural ou
termonuclear.
Jung (e outras pessoas de orientação gnóstica) também tinha conhecimento de um
outro conjunto de ideias relacionadas com a era do Anticristo e com a visão da catástrofe
comunicada por ele a Marie-Louise von Franz. Essas ideias foram popularizadas por
Origines, um Padre da Igreja, no século II d.C., e estão agrupadas sobre o termo grego
Apokatastasis Panton [O retorno do Todo]. No fim dos tempos, todas as coisas devem voltar
a Deus, a fonte de tudo, disse Origenes, que usou várias citações do Novo Testamento para
autenticar sua teoria (Mat. 10:26; I Cor. 4:5; Lucas 12:2; Mat. 17: 11; Atos 3:20-21). Deve
também ser lembrado que esse mesmo Orígenes esteve em certa época associado ao
grande mestre gnóstico Valentino e, assim, deve ter absorvido alguns dos ensinamentos
gnósticos sobre isso.
Valentino, e muitos outros escritores gnósticos e neognósticos, sustentava que a
criação é composta de vários tipos de onda (geralmente três). O primeiro é a matéria bruta,
que serve como palco para o drama da vida cósmica; o segundo é a vida ou as centelhas
esparsas de luz divina que caem na escuridão relativa da materialidade preexistente; o
terceiro é a descida revelatória de figuras condutoras salvíficas, isto é, Dhyani Budas,
Avatares e Filhos da Nuvem-de-Fogo, como são chamados em várias tradições. A volta do
todo para a sua fonte pode, então, ocorrer de duas formas; primeiro: a tensão dos opostos
tendo sido reduzida pelo desenvolvimento da consciência, o antagonismo das dualidades
desaparece e, semelhante ao que dizia a alquimia, a coniunctio produz uma maravilha e
mistério que é capaz de livre e conscientemente se unir à sua fonte na divina plenitude.
Conforme foi visto no Evangelho de Tomás, facilitar essa união era, de fato, o supremo
objetivo de Jesus, que como verdadeiro soter (curador) veio para "fazer do dois um".* A
segunda possibilidade é bem mais dramática. Aqui, os opostos não acham um meio de se
reconciliar e, consequentemente, o cosmos permanece num contínuo estado de nigredo
alquímico, manifestado em um sofrimento, conflito e caos irremediáveis. O coração partido
do universo não é curado e os esforços dos salvadores não produzem o resultado
planejado.
*Para a citação completa, veja o parágrafo de conclusão deste epílogo.
Assim, resta apenas uma opção: como Shiva no seu aspecto destrutivo, o Anticristo, "o
peixe escuro" predomina e explode o quadro de referência material, de modo a que a luz e
a vida, capturadas dentro dele, possam ser libertadas de suas algemas e possam subir,
desembaraçadas, para a plenitude. Mitos e pronunciamentos neognósticos declaram que
manifestações menores desse processo apokatastatico têm ocorrido repetidamente na
história antiga do nosso mundo, provocando a destruição de vastos continentes habitados
por culturas superiores. Alguns dos nomes lendários associados a tais eventos são a
Atlântida e a Lemúria.
150
Segundo Jung, vivemos, agora, em um período de "Fim dos Tempos": este não é
apenas um fin de siêcle mas um fin de l'âge. Nessa condição, ele está cheio de grandes
possibilidades tanto destrutivas como construtivas. O homem intuiu o caráter crítico e, num
certo sentido, terminal do nosso tempo, o que gerou reações variadas. Os Convergentes
Milenários e Harmônicos, os devotos dos OVNI' s e os que pregam o retorno de
Quetzalcoatl competem com os Fundamentalistas Bíblicos, desejosos do Armageddon. Os
cenários do Fim dos Tempos vão do farsesco ao terrifico, ao passo que a cultura da maioria,
essencialmente não espiritual e prosaica, permanece embrutecida.
Em meio a todo esse excitamento e confusão, destaca-se um elemento com certa dose
de realismo: a perspectiva da destruição termonuclear. De muitas formas, as pessoas estão
exaustas com o vai-e-vem dos movimentos antiguerra e antinuclear, repletos de
pensamentos mágicos, sentimentalismo e modos irrealistas de encarar a natureza humana.
Nesta última parte do século XX, as pessoas têm feito demonstrações pela paz, marchado
pela paz, dançado pela paz, têm formado partidos verdes e, mais interessante,
recentemente têm convocado a todos, estrondosamente, com slogans do tipo “Visualize a
paz mundial". O escritor Dennis Stillings analisou, em 1988, este último slogan, tão atraente
em sua aura quase-espiritual, formado por imagens meditativas e positivas:

"Meu interesse pelo movimento antinuclear despertou há pouco tempo... quando fui a
uma palestra local sobre esse assunto. O orador era um representante bastante conhecido
de uma organização New-Age... à medida que a palestra prosseguia, senti muito interesse
pelo que estava sendo dito, o orador começou a falar do poder das imagens para fazer o
fogo andar, para entortar metais por meios paranormais e da visão à distância... Ele
enfatizou que a clareza e a definição da imagem eram primordiais, pois com uma imagem
clara e definida se pode mudar a realidade. Novamente, concordei com ele. A seguir passou
a discorrer sobre o uso das imagens com o objetivo de impedir a guerra nuclear, afirmando
que se formarmos uma imagem de paz, poderemos fazê-la concretizar-se. Fiquei fascinado.
Quando a palestra terminou, percebi que ele não tinha sugerido nenhuma imagem clara e
definida para trabalhar com ele. Fiquei pasmo. O cerne de toda a palestra tinha sido
esquecido. Seriamente desapontado por não me terem fornecido uma imagem senti me no
dever de buscar a minha própria imagem de paz. Mas não consegui. Tudo o que consegui
foram cenas bucólicas de montes ondulados sob o sol, com pássaros pairando nas alturas e,
talvez, um fazendeiro num arado puxado por um boi. Ora, essa pode ser uma imagem
pacífica, mas não é uma imagem de paz que possa "mudar a realidade". Por mais que
tentasse, não consegui inventar nada que achasse satisfatório. O mais perto que consegui
chegar de uma imagem de paz foi a paz que vem depois de uma guerra nuclear. Isso
realmente me angustiou, porque se esse negócio de imaginação for confiável, todas
aquelas pessoas lá, despreocupadamente "imaginando a paz", podem estar, ao contrário,
criando um desastre - a clara e definida paz que segue a tempestade, a luta, o holocausto
nuclear.
[Aqui, o autor discorre sobre as cenas reais que ocorreram em Hiroshima e Nagasaki
algum tempo depois da bomba e acha que elas são frequentemente, bastante idílicas -
S.A.H.] Na minha opinião, não há uma imagem clara e definida de paz que também não
traga à consciência imagens de seu oposto: violência e guerra.”3
151
O autor dessa passagem não apenas descobriu, numa situação prática, a coincidência
dos opostos nas profundezas da sua psique, mas, o que é mais importante, percebeu que as
noções ingênuas desposadas pelos bem-intencionados podem não só ter pouca eficácia,
mas também podem produzir resultados bem contrários à intenção.
Alguns anos atrás, nos anos 60, os menestréis cantaram as palavras "Os tempos estão
mudando" e esses, de fato, mudaram. Nossa confortável poltrona, feita no século XIX, com
sua linda almofada de progresso evolutivo e os contornos da moda supridos pela
tecnologia, começaram a se desvanecer, e a força nuclear destila seu odor acre em nossas
refinadas narinas. O notável psicólogo junguiano Gerhard Adler disse, numa palestra em
abril de 1946:

"Não nos lembramos todos nós, ainda, daquela manhã no ano passado quando
acordamos e achamos o mundo mudado por uma palavra - 'Hiroshima" Não nos lembramos
todos do choque, do sentimento vertiginoso como se o chão tivesse sido tirado de baixo de
nossos pés e cada um de nós fosse um daqueles desafortunados homens, mulheres e
crianças espatifados lá longe, numa ilha do hemisfério oriental? Por mais trágico e estranho
que seja, não é verdade que podemos dizer, pela primeira vez, desde tempos imemoriais,
que a humanidade sentiu e redescobriu seu destino comum? Sentiu e redescobriu o fato da
comunhão, o fato do hindu "Tat twam asi" - do 'Este é você'? Ai de nós! Nossa poltrona
tornou-se tão quente que nos fez saltar."4

Na mesma palestra, Gerhard Adler continuou a mostrar que a bomba atômica não é
um fenômeno isolado no tempo, mas é o resultado natural de um movimento mental que
rejeita as valorações da vida unificadoras, religiosas e espirituais, e leva a uma posição
adotada por cada vez maior número de pessoas, indicando-lhes que o mundo não é mais
uma entidade orgânica e significativa. O ego e a mente consciente passaram a ser
encarados como a personalidade total. O significado do Self suprapessoal foi perdido. As
leis que governam a natureza tornaram-se cada vez mais visíveis, mas as leis que governam
o papel do ser humano neste mundo tornaram-se cada vez mais indistintas. A unidade da
vida e do significado foi rompida. Os seres humanos não possuem mais sua dignidade como
expressão e função de um mundo significativo. O marxismo veio acrescentar a forma final e
mais patética dessa atitude de falta de significado e alienação, quando reduziu o significado
do ser humano a uma "unidade econômica". Jung escreveu sobre essa condição:

"O século XX mostra, assim, um devastador senso de frustração e futilidade na


imagem que o homem mediano faz do mundo. Ela pode ser definida como algo assim: o
mundo não tem direção divina, não tem um senso iminente de coerência interna (exceto a
coerência puramente mecânica); não tem responsabilidade intrínseca, E isso significa que o
homem não tem realidade ou função nesse mundo, além da que o seu ego definiu para
ele.”5

A humanidade que não reconhece a existência de forças suprapessoais e não racionais


como um fator de vida foi finalmente convencida da realidade do irracional e do
152
inesperado. Quando a comunidade do espírito falha, prevalece a comunidade do medo. O
teatrólogo britânico dos anos 40, Ronald Duncan, escreveu habilmente em sua peça, The
way to the tomb [O Caminho para o Túmulo]:

"Estou trilhando um velho caminho com novos pés.


Estou de pé sobre pegadas já presentes na minha mente.
Não seria testar a razão colocá-la face ao medo?
E foi aqui que o aguilhão do medo atingiu meus ossos.
E a corrente de ar do alarme apagou a chama da razão.”6

A verdadeira questão decisiva é: não seria testar a razão colocá-la face ao medo? A
virtude do medo foi, portanto, restituída à humanidade. Duas guerras mundiais
devastadoras e a ameaça das armas nucleares trouxeram de volta o medo ao arrogante ego
humano.
Gerhard Adler disse-o bem em 1946:

"Não posso deixar de sentir que há um significado simbólico profundo na história da


bomba atômica. Ela é a força estilhaçante que brotou de nosso despotismo; ela é a
enantiodromia para o homem como criador, é o símbolo divino do destino oculto no
pecado humano de fé no racional e no razoável. Ela é um tremendo e terrível ponto de
interrogação para o homem.”7

Hoje, mais de quarenta anos depois, o terrível ponto de interrogação ainda está
conosco. A cada ano, fica um pouco maior e mais enigmático. Em tempos mais recentes,
enigmas sombrios de caráter sinistro foram adicionados a esse ponto de interrogação. Não
apenas as partes marginais alarmistas, mas também o equilibrado centro da cultura estão
progressivamente mais conscientes das crises ecológicas que estão apenas parcialmente
ligadas ao problema da força nuclear e são bastante independentes da guerra nuclear.
Além disso, a especulação astrofísica, baseada em pesquisas consideráveis, tem cada
vez mais trazido à baila a probabilidade da presença no espaço de algo chamado "matéria
escura", representado como uma presença compacta abaixo do universo visível, uma
quantidade até agora desconhecida, deduzida só pela gravidade mas não visível. O repórter
científico Dennis Overbye escreve, citando fontes altamente qualificadas: "O universo tem
uma sombra e, por isso, também pode ter um fim". "Os astrônomos", escreve ele, "têm
reconhecido lenta e relutantemente uma presença mais sombria, mais passiva, abaixo do
pálido filme do universo visível".
Este mundo sombrio de matéria escura pode ser "matéria comum que não conseguiu
adquirir a graça da luz... E se houver dela uma quantidade suficiente, a matéria escura
poderia, algum dia, fazer o universo desmoronar num esplendor ígneo e terminal.”8 Essas
passagens, com expressões tais como "sombra", conjuram visões de projeções arquetípicas
junguianas no universo material, e também parecem correr em paralelo com as afirmações
de Jung em Aion no sentido de que a sombra da nossa cultura pode prenunciar o seu fim. A
religiosidade corrente nos convenceu há muito tempo de que todas as coisas boas vêm de
Deus, ao passo que todas as condições calamitosas e más vêm de nós mesmos. (Há até uma
153
citação teológica latina: omne bonum a Deo, omne malum ab homine [todo bem vem de
Deus, todo mal, do homem]. Assim, nós, naturalmente, supomos que a devastação e a
destruição em larga escala no planeta deve ter sido causada pela humanidade, mas é útil
ter em mente que a ciência nos garante que sombras negras, para além do alcance de
nossos esforços, podem causar a morte da terra num esplendor ígneo, superando todas as
explosões nucleares fabricadas pelo homem. Por mais angustiante que isso possa ser para
aqueles que sempre desejam colocar a culpa sobre a raça humana, o fim pode chegar e
pode ser que ocorra sem nenhuma culpa nossa!
Parece que, assim como a humanidade tem sua sombra psicológica, o cosmos pode
possuir sua própria grande sombra, e ambas são potencialmente perigosas. A sabedoria
gnóstica sempre sustentou que a luz emergirá da escuridão, de um jeito ou de outro. Um
ensinamento gnóstico interessante e relativamente recente dentro da Cabala Judaica deu o
nome de tikkun ao princípio da libertação, ou união; esse conceito se parece muito com os
conceitos cristãos e gnósticos da apokatastasis. Tikkun é o processo pelo qual as centelhas
de luz perdidas são retiradas de sua prisão nos fragmentos escuros que abundam no
domínio do cosmos não-regenerado. Tikkun é, basicamente, uma tarefa do Messias, mas
todo homem sábio e reto desempenha um papel vital nessa tarefa. Essa tarefa de
restituição é, de fato, a alternativa gnóstica à extração violenta e enérgica com que se retira
a luz das trevas, tal como pode ocorrer, quer nas catástrofes cósmicas, quer nas fabricadas
pelo homem. A inconsciência, a falta de vontade de redimir a sombra dentro de nós
mesmos e no mundo, leva à destruição. Egos, culturas e mundos são igualmente
despedaçados pela força enclausurada das trevas não confrontadas, que espreitam nas
profundezas psíquicas e cósmicas. Holocaustos e cataclismas, quer imaginados, como a
inundação que submergiu a Atlântida, quer sob forma de uma conflagração nuclear que
devasta a terra: todos esses são extratores de luz, medidas extremas para a libertação do
poder anímico sobrevivente, quando nenhum outro meio está disponível. As imagens
astrológicas, personificadas nas eras zodiacais, ligam-se, assim, ao mito gnóstico da luz
aprisionada no mundo e são trazidas ao campo da visão construtiva pela Gnose psicológica
de Jung. Como nos foi contado no Evangelho de Felipe, se conhecemos o que está dentro
de nós, isso nos salvará e, se não o conhecemos, isso nos matará, ou, no mínimo, destruirá
a forma dentro da qual nossa vida escolheu personificar-se.
Prima matéria, matéria original, caos primal do ser, tais foram às expressões aplicadas
pelos alquimistas à condição criativa da qual, após muitas uniões de ação transformativa, a
pedra unitária filosofal destina-se a emergir. Há muitas evidências indicando que a nossa
situação atual é de tal ordem que o paradigma alquímico redentor deveria ser aplicado.
Como uma alternativa à destruição trágica (embora destruição que talvez liberasse a vida e
a luz), estamos agora em face da necessidade de realizar a conjunção dos opostos, levando,
pela sua união, ao unus mundus, o mundo reunido alquimicamente. Conforme vimos no
último capítulo, o alquimista não pode sujeitar o mundo acabado dos quatro elementos
(símbolo do mundo do ego ou da cultura em impasse) a uma mudança realmente criativa.
O mundo moderno está de várias formas num beco sem saída espiritual, numa rua sem
saída, vindo de um glorioso passado, mas indo a lugar nenhum. Em larga escala, essa
lamentável condição ocorreu por causa da teimosia e da aridez espiritual das estruturas
religiosas da sociedade ocidental. A raiz e causa dessas condições indesejáveis nada mais
154
são do que a falta de compreensão sobre a natureza da Gnose e sua subsequente repressão
no Cristianismo primitivo. Essa Gnose, devemos lembrar, não é apenas um termo vago,
denotando alguma ideia espiritual indefinida, mas um fenômeno espiritual definido, com
características distintas e inegáveis. A Gnose e o Gnosticismo formam um todo e separá-los
é, apenas, mais uma estratégia sinistra, proveniente do obscurantismo e da estupidez.
O Gnosticismo, redescoberto pela descoberta de seus mais importantes documentos;
o Gnosticismo, ligado ao seu imediato predecessor, o Judaísmo alternativo dos essênios; e
por último, mas não menos importante, o Gnosticismo amplificado e posto em relevo
psicológico por Jung - esse é o ingrediente alquímico ausente da espiritualidade ocidental e
da cultura. Num sentido bem real, ele é a prima matéria, a matriz criativa e existencial, da
qual os elementos transformativos salvíficos podem emergir para salvar o Ocidente do seu
declínio e queda. O terrível ponto de interrogação da destruição nuclear e suas
modalidades tragicamente destrutivas concomitantes pode ser respondido, apenas
voltando-nos para o tipo de experiência espiritual primal que é o cerne de toda a Gnose, ao
mesmo tempo que devemos abandonar a confiança em superestruturas e
supercompensações mascaradas em dogmas, mandamentos e ideologias de quaisquer
matizes.
Não é preciso dizer que, na tarefa proposta de restauração da Gnose e de
Gnosticismo, os ensinamentos de C.G. Jung devem desempenhar um papel de singular
distinção. O padre católico e escritor junguiano Pe. John P. Dourley disse, corretamente:

"Seria um passo significativo para a sobrevivência se todas as disciplinas relacionadas


com a vida na Terra seriamente examinassem em conjunto, a concepção de Jung sobre um
Self pessoal e histórico, intrínseco à vida da psique, um centro interno capaz de colocar os
Deuses e Deusas que ele desencadeia sobre a humanidade em configurações de maior
harmonia, abundância de ser e consciência. Se constatarmos que essa realidade psíquica
não existe de modo algum, ou se a humanidade não conseguir trazer o seu poder à
consciência, ela estará destinada a continuar esperando pela redenção, através da
intervenção de uma divindade extrínseca.
Dada a inimizade alimentada inter e intratradições, historicamente produzidas por
essas intervenções "divinas", e dada a capacidade tecnológica atual da humanidade para a
autodestruição, essa espera pode, agora, ser curta.”9

Conforme vimos através de nossas viagens pelos mitos e metáforas, escrituras e


mistérios dos gnósticos, a divindade natural do espírito humano individual é um dos
principais temas presentes nas imagens da realidade alternativa, apresentada a nós pela
Gnose. Como Jung convincentemente afirmou em Resposta a Jó,* o espírito humano (Jó) é
espiritualmente superior ao Deus deste mundo, que tem uma necessidade da Gnose que
apenas a humanidade pode suprir. O espírito humano, diziam os gnósticos e afirma Jung,
descende da suprema Divindade e, enquanto tal, é de supremo valor neste mundo.
Autoconhecimento é conhecimento de Deus, e a descoberta e a experiência do divino e do
centro individual do Self essencial são, em última análise, idênticas. Doutrinados pelos
dogmas ditados, século após século, pelos devotos do Deus monoteísta, muitos
contemporâneos resistem a essas ideias dos gnósticos e da psicologia profunda, como o
155
próprio Jung percebeu:
* Ver Capítulo 10 deste livro.

"Quem quer que fale sobre a realidade da alma ou da psique é acusado de


'psicologismo'. Fala-se de psicologia como se ela fosse apenas "psicologia" e nada mais. A
noção de que podem haver fatores psíquicos que correspondam às figuras divinas é
encarada como uma desvalorização dessas últimas. Beira à blasfêmia pensar que uma
experiência religiosa é um processo psíquico... Em face disso, devemos realmente
perguntar: o quanto conhecemos nós da psique para afirmar: 'apenas' psíquico?”10

O desmoronamento das superestruturas da cultura levou a humanidade


contemporânea de volta para suas profundezas, e é nessas regiões profundas e misteriosas
que devemos procurar uma resposta nova-antiga. A recuperação da sabedoria dos
gnósticos, especialmente iluminada pela moderna psicologia profunda, cumpre duas
funções: de um lado, aponta para a necessidade de retomarmos as experiências primais e,
de outro, aponta para a fonte potencial da resposta criativa. A Gnose leva-nos, assim, de
volta às nossas raízes e fundamentos, às verdades e fatos básicos da nossa natureza, que é
mais do que meramente racional e mais profunda do que a nossa meramente pessoal
natureza. Em última análise é apenas a experiência que realmente conta. Teologias,
pressupostos metafísicos e categorias filosóficas nunca se comparam à experiência. Na
experiência individual e consciente das imagens supra-individuais e primordiais de nosso
mundo interno, a união dos opostos, a síntese de todos os pares, incluindo os da luz e
sombra, tornou-se possível.
Nosso tempo é perigoso e destruidor. Não sabemos se os instrumentos de destruição
que têm aparecido em nossos dias vão nos deixar tempo suficiente para a Gnose e para a
individuação. Mesmo assim, Goethe conta-nos que todas as coisas transitórias foram feitas
para se tornar símbolos para nós, e a atual situação incerta e insegura pode, de alguma
forma, ser apenas outra tentativa do espírito humano para encarar o estado caótico criativo
da prima materia. Não é impossível que, assim como a dissolução da matéria, na divisão do
átomo, tenha liberado fogo transcendental aprisionado, também a dissolução da realidade
consensual da cultura e do condicionamento possa libertar a realidade alternativa
transformadora, levando-nos, assim, à pedra filosofal, no símbolo unificador do Self, que dá
sentido e unidade às partes dispersas. Será que nossa condição pouco feliz poderia vir a ser
uma tentativa heroica de curar a brecha que existe entre a luz e as trevas, em vez de ser um
prelúdio da ruína da cultura e do cosmos? Poderiam perigos como a divisão do átomo, a
crise ecológica, os perigos cósmicos da "matéria escura", serem entendidos como símbolos
de uma potência aterrorizadora, forçando o espírito humano ou a aceitar a destruição do
mundo ou a arrancar a plenitude para fora do perigo e do caos?
Três eventos aparentemente não relacionados ocorreram dentro de um curto período
de tempo, no final da maior sublevação realizada pelo homem - a Segunda Guerra Mundial
- sincronisticamente, convergindo com suas misteriosas ligações de significado: a explosão
da primeira arma nuclear em Hiroshima, a descoberta da coleção gnóstica de escrituras em
Nag Hammadi e a exumação dos Pergaminhos essênicos na caverna de Qumram.
Destruição e sua alternativa; libertação da forma e redenção dentro da forma. Aqueles que
156
conhecem a teoria da sincronicidade de Jung podem, prontamente, reconhecer dentro
dessa coincidência significativa um sinal dos céus. Despertado do sono dos séculos e
emergindo no foco da consciência, a outra realidade, a realidade alternativa, orienta-nos
com sua visão de redenção transformadora. Não temos nada a temer a não ser a
inconsciência. Os anticristos, os Behemots e os Leviatãs que nos ameaçam são a penas
criaturas de nossas projeções inconscientes, que podem desaparecer como um pesadelo
quando o processo da individuação se tornar operativo. O reino, o mundo reconstituído da
Plenitude abre-nos suas portas no momento em que as palavras do arquétipo do Self
individuado da humanidade recebem sua defesa final:

"Quando fizerdes de dois um, e quando fizerdes o exterior como o interior e o externo
como o interno e o acima como o abaixo e quando transformardes o macho e a fêmea
numa única unidade, de modo a que o macho não seja apenas macho e a fêmea não seja
apenas fêmea, quando criardes olhos no lugar de um olho e criardes uma mão no lugar de
uma mão e um pé no lugar de um pé e também uma imagem no lugar de uma imagem,
então, certamente, entrareis no Reino."¹¹

157
Notas
Prólogo

1.C.G. Jung, Psychology and Alchemy, Collected Works, vol. 12, par. 10.
2.C.G. Jung, The Archetypes and the Collective Unconscious, Collected Works, vol. 9.
parte 1. par. 45.
3. C.G. Jung "Comentário Psicológico para W.Y Evans-Wentz, The Tibetan Book of the
Great Liberation" (Oxford: Oxford Univ, Press, 1954 - p. XXXI.)
O Livro Tibetano da Grande Liberação. Editora Pensamento, São Paulo.
4.C.G. Jung, Psychology and Alchemy, Collected Works, vol. 12, par. 8.
5.C.G. Jung in Tire Tibetan Book of the Great Liberation, p. XLI.
6.C.G. Jung, Psychology and Religion: West and East, Collected Works, vol. 11, par. 17.
7.John P. Dourley, The Illness That We Are, (Toronto: Inner City Books, 1984), p. 94.
8.C.G. Jung, “O Simbolismo de Transformação na Missa", Psychology of Religion: West
and East, par. 444.

Capítulo 1
1.
2.Bhagavad Gita - capítulo 4.
3.Simpósio Internacional sobre Jesus e os Evangelhos, ocorrido em Michigan Union,
Ann Arbor, Mich. abril de 1985.
3. C.G. Jung, "Uma Abordagem Psicológica ao Dogma da Trindade", Psychology of
Religion: West and East, par. 170.

Capítulo 2

1.Josué, V. 14.
2.John M. Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, (Nova York;
Prometheus Books, 1984), pp. 63-64.
3.R. Bultmann, Theologie des Neuen Testaments (1951), p. 361.
4.The Eigth Reveals the Ninth: A New Hermetic lnitiation Discourse/ Tratado 6, Códice
VI de Nag Hammadi/Lewis S. Keizer, trad., (Seaside, CA, Academia de Artes e Humanidades,
1974), pp. 98-99.
5.Thanksgiving Hymns, Col. VIII.
6.Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, pp. 12-13.
7.Ibid. p. 16.
8.Hugh Schonfield, A Odisseia dos Essênios, (Shaftsbury, Inglaterra: Element Books,
1984), p. 2.
9. Bultmann, Teologia das Novos Testamentos, p. 361.

Capítulo 3
158
1.Odes de Salomão, Ode 41.
2.Veja C.G. Jung, Letters, G. Adler e Aniela Jaffe,orgs. (Princeton, NJ, Bollingen Series
XCV, Princeton Univ. Press, 1973-1975), voI. 2, especialmente pp. 6, 21, 89,157,275. 3. John
M. Allegro, Os Cogumelos Sagrados e a Cruz: Um Estudo sobre a Natureza e as Origens da
Cristianismo nos Cultos de Fertilidade do Antigo Oriente Próximo (Garden City, NY:
Doubleday, 1970).
3.Morton Smith, Jesus the Magician (San Francisco: Harper and Row, 1978).
4.(Nova York; Stein and Day, 1971) Publicado em Inglês como Rabbi J.
5.Hugh Schonfield, A Colocação das Passos: Nova Luz sobre a História de Jesus (Nova
York: Bernard Geis Assoe, 1965).
6.Josephus, Antiquities III, II.3, par. 49.
7.Josué 3:7. 9.lbid.,10:14.
8.J.M. Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, p. 77.
9.Documento de Damasco, V.2-4.
10.J.M. Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, p. 79.
11.A Assunção de Moisés, I. 16ss.
12.O Evangelho de Felipe, Logion 19.
13.A Odisseia dos Essênios, p. 37.
14.Crônicas, Ezra, Nehemias e Salmos.
15.A Odisseia dos Essênios, pp. 10-11.
16.John Allegro, Os Pergaminhos da Mar Morto: Uma Reavaliação. (Londres e Nova
York: Penguim Books, 1956) p. 47.
17.Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, p.107.
18.Veja Mysterium Coniunctionis; também Two Essays in Analytical Psychology.
19.C.G. Jung, The Spirit in Man. Art and Literature, Collected Works, vol. 15 par. 127.
20.Ibid. par. 128.
21.C.G. Jung, The Structure and Dynamics of the Psyche, Collected Works, vol, 8 par.
417.
22.O Evangelho de Felipe, Logion 67.
23.Lucindi Frances Mooney, Storming Eastern Temples: A Psychological Exploration of
Yoga (Wheaton, il: Theosophical Publishing House, 1976), p. 158.
26. C.G. Jung, "Uma Abordagem Psicológica ao Dogma da Trindade," Psychology and
Religion: West and East, Collected Works, voI. 11, par. 295.

Capítulo 4

1.(Wheaton, II: Theosophical Publishing House, 1944), p. 6.


2.Veja G. Quispel, "Gnose", em Die Orientalishen Religionen im Römerreich (Leiden,
Holland: E.J. Brill, 1981), p. 414.
3.lbid., p. 419.
4. O Livro da Sabedoria, 8:3 (Versão Duay).
5.lbid., 8:2.
6.lbid., 9:10 e 9:11.
7.Proverbios 1 :20-22,
159
8.Ibid., Capítulos 3 e 8,
9. Revisão de “A Grande Anunciação", Hipólito, Refutações, VI, 18.
10. Gnose e Religião Ocidental: die Bedeutung der Gnosis in der Antike (Zurique: Origo
Verlag, 1972) p. 69.
11. Hinos de Ação de Graças, col. VII.
12.Ibid., col. IX.
13.Ezequiel I.
14.Allegro, Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, p. 99.
15.Josephus - Guerra, II viii II. par. 154-155.
16.O Evangelho de Felipe, Logion 32.
17. Ibid., Logion 55.
18.Panarion, também Os Pergaminhos do Mar Morto e o Mito Cristão, p. 170.
19.Os Gnósticos (Paris: Editions Gallimard, 1973) trad. por Stephan A. Hoeller,

Capítulo 5

1. G.R.S. Mead, Fragments of a Faith Forgotten (New Hyde Park, NY: University Books,
1960), p. 180.
2.Hipólito, Refutations, resumido por Mead, Fragments, pp. 256-257.
3.Trad. por Hort. Veja também Mead, Fragments, p. 396.
4.Ibid., p. 243.
5.Myth and Today's Consciousness, (Londres: Coventure Ltd, 1984), p. 67.
6.Logion 85:1-4.
7.Adv. Haer. I.21-4.
8.Elaine Pagels, The Gnostic Gospels (Nova York: Random House, 1979) pp. xviii-ix. [Os
Evangelhos Gnósticos. Editora Cultrix, São Paulo, 1991].
9. E.S. Drower, Os Mandeanos do lraque e do Irã (Leiden: E.J. Brill, 1962 Também E.S.
Drower, trad., O Livro de Rezas Canônicas dos Mandeanos, (Leiden: E.J. Brill, 1959). 10.
Robert S. Ellwood, Jr. "Síntese da Teosofia Americana" em The Occult in America: New
Historical Perspectives, Howard Kerr e Charles L. Crow, orgs., (Urbana e Chicago: Univ.
ofIllinois Press, 1983), p. 124.
11. Ancient Wisdow Revived: A History of the Theosophical Movement (Berkeley:
University of California Press, 1980), p. vii.

Capítulo 6

1. G. Quispel- "Gnosticismo" em Man, Myth and Magic: An Illustrated Encyclopedia of


the Supernatural, Richard Cavendish, org., (Nova York: Marshall Cavendish Corp., 1970),
p.1115.
2. F.C. Burkitt, Igreja e Gnose (Cambridge, Inglaterra: Cambridge Univ. Press, 1932),
p.45.
3. Hans Jonas, Gnosis und spätantiker Geist, Erster Teil., p. 490. Também Rudolf
Bultmann, "Novo Testamento e Mitologia", Kerygma and Myth, Hans Werner Bastsch, org.,
(Nova York: Harper and Bros, 1961), pp. 1-16.
160
4. C.G. Jung e C. Kerényi, Essays on a Science of Mythology, (Princeton: Bollingen
Foundation and Princeton Univ. Press, 1949), pp. 22-23.
5. Joseph Campbell, The lnner Reaches of Outer Space: Metaphoras Myth and Religion
(Nova York: Alfred Van Der Marck Editions, 1986), pp. 56-57.
6.Ean Begg, Myth and Today's Consciousness, p. 71.
7.The Archetypes of the Collective Unconscious, Collected Works, vol. 9, parte 1, par.
56.

Capítulo 7

1.Svetasvatara Upanishad, 6:16.


2.Saddharmapundarikasutra 7:32.
3.Al Biruni (em tomo de 1000 d.C.), Athar ui Bakiya; trad. inglesa por C.E. Sachau.
4.Revisão do autor de diversos textos. C.F, O Hino de Jesus, trad. comentada por G.R.S.
Mead (Londres: John M. Watkins, 1963) pp. 21-55.
5. O mito do Salvador aqui relatado foi reconstruído das seguintes escrituras: As Odes
de Salomão; Pistis Sophia; O Evangelho dos Hebreyus; O Evangelho Segundo Tomás; O
Evangelho de Felipe. O Evangelho da Verdade; Os Atos de João; O Apocalipse de Pedro; O
Papiro Oxirinuco; O Evangelho Secreto de Morcos; O Evangelho dos Egípcios; O Evangelho
de Maria; O Códice Venceliense; O Códice Sangermanence; assim como citações dos
escritos de Irineu, Tertuliano, e Epifânio. O autor imprimiu seu próprio estilo nestes
materiais traduzidos.
6. C.G. Jung, "Uma Abordagem Psicológica ao Dogma da Trindade", The Psychology of
Religion: West and East, Collected Writings, vol. 11, par. 233.
7.Hino dos Menaions Gregos Ortodoxos da Liturgia de 25 de dezembro.
8.Adv. Haer I. XXI, 2.
9.Mimaut Papyrus, col. V. 130.
10. Fr. Schulze-Maizier, org., Mystische Dichtung aus sieben Jahrhunderten (Leipzig:
n.d.), p. 78.
11. Psychology and Alchemy; Collected Works, vol. 12, par. 24.

Capítulo 8

1. H.P. Blavatsky, The Secret Doctrine (Adyar, Índia: Theosophical Publishing House,
1938) vol. V. pp. 213-214. [A Doutrina Secreta. Editora Pensamento. São Paulo, 1987].
2. Para uma excelente exposição detalhada do conteúdo relevante do Livro de Noé e
do Livro de Enoch, veja Neil Forsyth, O Velho Inimigo: Satã e o Mito do Combate.
(Princeton, NJ: Princeton University Press, 1987).
3.Josefo, Contra Apionem, 2, 167.
4.Schonfield, A Odisseia dos Essénios, p. 137.
5.Edward Edinger, Ego and Archetype, Individuation and the Religious Function of the
Psyche (Nova York: Penguim Books, 1972), p. 15. [Ego e Arquétipo, Editora Cultrix, São
Paulo, 1989].
6. Joseph Campbell, The Hero with a Thousand Faces (Cleveland e Nova York: The
161
World Publishing Co. 1970), p. 391. [O Herói de Mil Faces, Editoras Cultrix/Pensamentos,
São Paulo, 1988).
7.O Evangelho Segundo Tomás, Logia 54 e 79.

Capítulo 9

1. Hans Jonas, A Religião Gnóstica: A Mensagem do Deus Alienideus ao Primórdios do


Cristianismo (Boston: Beacon Press, 1963), p. 116.
2. As Odes de Salomão, James H. Charlesworth, org., (Missoula Montana: Scholar's
Press, 1977), p. 94/Ode 23: Estanza 5-9.
3.Hans Jonas, A Religião Gnóstica, p. 125.
4.Várias traduções da "Canção da Pérola" podem ser recomendadas. Para uma
adequada versão abreviada veja H. Jonas, A Religião Gnóstica, pp. 112-129. Para uma
versão muito poética e completa, veja Edgar Hennecke e Wilhelm Schneemelcher, orgs.,
Novo Testamento Apócrifo (Filadélfia: The Westmninster Press, 1963), vol, 2, pp. 498-504.

Capítulo 10

1. Publicado primeiramente em alemão sob o título Antwort auf Hiob (Zurique, 1952) e
depois incluído em Psychology of Religion: West and East, Collected Works, vol. 11.
2.Constituição Apostólica "Munificentissimus Deus", promulgada pelo Pio XII em1950.
3.Logion de Jesus do Oxyrynchus Papyrus.
4."Resposta a Jó" em Psychology of Religion: West and East, vol, 11, par. 758.
5.Joseph Campbell, Myths to Live By (Nova York: Bantam Books, 1975), p. i.
6.C.G. Jung, Mysterium Coniunctionis, Collected Works, vol, 14, par. 788.

Capítulo 11

1. O Apócrifo de João (duas versões); The Hypostasis of the Archons; O Evangelho dos
Egípcios; On the Origin of the World; O Apocalipse de Adão; The Paraphrase of Shem.
2. O Evangelho da Verdade; The Treatise on the Resurrection; The Tripartite Tractate;
The Tractate of Eugnostos, the Blessed (duas versões); O Segundo Tratado do Grande Seth;
O Ensinamento de Silvano; The Testimony of Truth,
3. O Tratado do Oitavo e do Nono; A Oração de Ação de Graças; The Valentinian
Exposition; The Three Steles of Seth; A Oração do Apóstolo Paulo.
4. Thunder the Perfect Mind; The Thought of Norea; The Sophia of Jesus Christ; The
Exegesis of the Soul,
5. O Apocalipse de Pedro; A Carta de Pedro a Filipe; Os Atos de Pedro e os doze
Apóstolos; O Primeiro e o Segundo Apocalipse de Tiago; O apocalipse de Paulo.
6. O diálogo do Salvador. O Livro de Tomás, o Competidor; O Apócrifo de Tiago; O
Evangelho de Felipe; O Evangelho de Tomás.
7. C. f. Morton Smith, The Secret Gospel; The Discovery and Interpretation of the
Secret Gospel According to Mark (Nova York; Harper and Row, 1973).

162
Capítulo 12

1.Morton Smith, O Evangelho Secreto.


2.Plotino, "Contra os Gnósticos" Enneads, 2.9
3.C.G. Jung, The Symbolic Life, uma palestra dada em 05 de abril de 1939. (Londres:
Associação de Psicologia Pastoral, palestra nº 80, 1954), pp. 8-9
4.lbid.
5.Irineu,Adv. Haer, 121.5 s.s.

Capítulo 13

1. F.L. Cross, org. e trad. The Jung Codex: A Newly Discovered Gnostic Papyrus. Três
estudos por H.C. Puech, G. Quispel, W.C. van Unnik (Londres: A.R. Mowbray Co, 1955), p.
43.
2.Ibid., p. 53.
3.Conf. Elaine Pagels, Os Evangelhos Gnósticos (Nova York Random House, 1979), p.
95.
4.C.G. Jung, Psychology and Religion: West and East, Col1ected Works, vol, 11 par.
148.

Epílogo

1. Transcrição de Matter of Heart, filme biográfico sobre Jung (Los Angeles: C.G. Jung
Institute, 1983), pp. 25-26.
2.C.G. Jung, Aion, Collected Works, vol, 9, part. 2, par. 76.
3.Dennis Stillings, "Invasão dos Arquétipos" em Gnosis: A Journal of the Western Inner
Traditions, nº 10 (Inverno 1989), p. 33.
4. Gerhard Adler, Psychology and the Atom Bomb (Londres: A Associação de Psicologia
Pastoral, Conferência da Associação nº43, 1946), p. 3.
5. C.G. Jung, Uber die Psychologie des Unbewussten (Zurique, 1943) traduzido por
Gerhard Adler em Psychology and the Atom Bomb, p. 15.
6.(Londres: Paber & Faber, 1945), p. 95. .
7.Gerhard Adler, Psychology and the Atom Bomb, p. 17.
8.Dennis Overbye, "O Universo Sombrio", Discover, maio de 1985, p. 13ss.
9.John P. Dourley, The Illness that We Are (Toronto: Inner City Books, 1984), p. 82.
10.C.G. Jung, Psychology and Alchemy, Collected Works, vol. 12, pars. 9-10.
11.O Evangelho Segundo Tomás, Logion 2.
Nota: The Collected Works of C.G. Jung (Obras Completas de C.G. Jung) trad. por R.F.C.
Hull na íntegra constitui o nº XX na Bollingen Series, publicados por Princeton University
Press entre 1960 e 1979.

163
Contracapa

JUNG E OS EVANGELHOS PERDIDOS


Stephan A. Hoeller

Raramente um autor é capaz de combinar erudição em história, religião e psicologia


com profundidade e percepção espiritual. Stephan A. Hoeller consegue isto
admiravelmente em Jung e os Evangelhos Perdidos, firmando ainda mais a sua reputação
como estudioso de Jung.
Só depois do contato com as ideias gnósticas, na forma de sonhos e fantasias ou de
imaginação ativa, é que Jung teve a inspiração de buscar no mito e na literatura ampliações
da sua experiência.
Em Jung e os Evangelhos Perdidos, Hoeller demonstra que havia um tema comum de
desenvolvimento dos essênios, na era pré-cristã, aos gnósticos, no segundo e terceiro
séculos, incluindo o desenvolvimento do arquétipo divino feminino, estudado por Jung. O
autor mostra também como a experiência se transforma em mito e o mito se volta para
dentro como autoconhecimento psicológico, o verdadeiro significado da gnose.
Hoeller explica, com muita clareza e precisão, os diferentes níveis de leitura dos
manuscritos do Mar Morto (essênios) e da Biblioteca de Nag Hammadi (gnóstica),
facilitando o estudo, pelo leitor, desses documentos antigos, e nos apresenta um quadro
inspirador dos tesouros contidos nesses documentos, assim como sua interpretação à luz
do pensamento junguiano. Especialmente valiosos são os princípios espirituais e
psicológicos, essenciais para nós todos.

Stephan A. Hoeller é professor de Religião Comparada no Colégio de


Estudos Orientais em Los Angeles e diretor da Sociedade Gnóstica de Los
Angeles, uma organização interessada em Psicologia Junguiana, Cabala,
Tarô, Gnosticismo clássico, mito e literatura. Dr. Hoeller já gravou, pela
BC Recordings de Los Angeles, mais de 200 fitas de áudio sobre esses
assuntos.

164

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