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, M.

CAZENAVE,
IE, K. PRIBRAM,
clássl
ETTER, M.-L. VON FRANZ
hipó
do i
com
Visõ
singul e se rev erminantes: fenómeno
aparentemer:lte inexplicáveis em termos racionais ou
que surjem nas margens da investigação científica sã(1)
integrados conjuntamente com os avanços mais
recentes da ciência moderna numa teoria que tanto vai
R A
beber às fontes da filosofia de Leibniz como a
Paracelso ou ao Vi King, constituindo uma síntese
original e fascinante. E (I- (
É sobre esta temática que reflectem psicólogos como
M.L. von Franz e P. Solié, um astrofísico como
. I
H. Reeves, um biólogo como H. Etter, um
neurofisiologista como K. Pribram e um filósofo como
M. Cazenave. A abordagem multidisciplinar garante
uma abertura de horizontes e dela resulta uma
reflexão plena de actualidade sobre questões como a
organização do universo, o lugar que o homem ocupa
nele e o sentido de falar em realidade da alma .

•••••••••••••• ~S:IN~~C~R~O:N~IC~ID~A~D:E~,~A--~A~A~LM~----,.
•••••••••••• I~:3~ ••••••
A E A CIENCiA

1111 1111111111111/1111111
9789729295539
~
CRENÇA E RAZÃO
J

,
1.
00
CRENÇA E RAZÃO
H. REEVES, M. CAZENAVE,
P. SOL/E, K. PR/BRAM,
H.-F. ETTER,M.-L. VON FRANZ

l. CRENÇA E RAZÃO .
Guy Lazortes
2. AS SEREIAS DO IRRACIONAL
Dominique Terré-Fornacciari
3. A SINCRONICIDADE A AU-IA E A CIÊNCIA
R 5In(DOnl(IDRDE
H. Reeoes, lH. Cazenaie, P. Solte,
K. Pribram, H.-F. Euer, M.-L. oon Franz
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E R (IEn(IR
Título original: La Syncbronicite, L Ame et Ia Science
© Editions Poiesis
Direitos reservados para Portugal=- Instituto Píaget
Av. João Paulo lI, lote 544 _2.0
, 1900, Lisboa
Colecção: -Crença e Razão.
sob a dírecção de António Oliveira Cruz

Tradução: Serafim Ferreira


Capa: Do/indo de Carualbo
Fotocomposíção e Impressão: Soco Astoria, Ida.
ISBN: 972-9295-53-0
Depósito Legal n." 66521/93

INSTITUTO
PIAGET
PREFÁCIO

Entre todas as concepções de [ung, aquelas que dizem respeito


à sincronicidade foram certamente as que chegaram mais tarde
a França: a tal ponto se verifica esse atraso que o texto central
não está ainda traduzido (contudo, parece que felizmente as
Ediiions Albin Michel farão isso em breve) e, para quem não sabe
alemão ou inglês, o material disponível é ainda muito escasso.
Citemos sobre este assunto o livro fundamental de Marie-Louise
von Franz, Nombre et temps 1, o estudo que apresentou na obra
colectiva intitulada C. G. Jung et Ia voie des profondeurs 2, Le
Tao de Ia psychologie de [ean S. Bollen 3, o último capítulo de
Apparitions, fantômes, rêves et mythes, de Aniela faffé 4, os
dois números consagrados a este assunto pelos Cadernos de
Psicologia Junguiana 5, e,finalmente, a parte intitulada l'Univers
psychophysique no recente «Cahier de l'Heme», dedicado a
C. G. fungo

1. Éditions de ia Fontaine de Pierre.


2. lbidem.
3. Éditions du Mai!.
4. Ibidem.
5. N.os 28 e 29, 1981.

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Será necessário, por isso mesmo, suspender as pesquisas e independente do tempo e do espaço»? 1 Mas essa intuição (que
esperar que o próprio Jung esteja disponível para nos aventurarmos outros designariam talvez como um a priorifilosófico), confirmar-
ainda mais longe? Não nos pareceu possível ter essa atitude na -se-ia no decurso dos anos, quer pelo conjunto dos materiais
medida em que, por um lado, a própria noção de sincronicidade fornecidos a [ung pelo grande sinólogo Richard Wilhelm 2 quer
obteve grande difusão - por vezes com alguma imprecisão e então através do longo estudo da alquimia que preencheria os últimos
tornava-se imperioso devolver-lhe o rigor - e, por outro lado, na 25 anos da sua vida, ou ainda finalmente, e principalmente, como
medida em que, particularmente nos domínios das ciências e a prova experimental, pela sua própria prática da análise das
partir do começo dos anos 50, se verificaram grandes avanços que proftmdezas.
não podiam ser ignorados. Ora, a partir do momento em que admitia a existência dessa
Partindo da sua experiência clínica, [ung definiu na altura sincronicidade «prática» e procurava reflecti-la num esforço teórico
a sincronicidade a dois níveis distintos: releva, em primeiro lugar, que a libertaria de um irracionalismo beato e perigoso para lhe
dos fenómenos de sincronicidade com os quais foi muitas vezes conferir precisamente racionalidade, Jung estabeleceria então uma
confrontado através da própria prática, fenómenos que consistem segunda hipótese, a de um arranjo sem causa universal (sendo
no encontro significante, isto é, portador de um sentido privi- a expressão aqtii entendida sempre, no sentido que os físicos lhe
legiado para quem os vive, de um estado físico com um aconte- dão), remetendo assim para uma potencialidade do mundo que os
cimento físico exterior e objectivo, ou antes de um estado psíquico filósofos e místicos medievais tinham já vislumbrado e fora
interior com um acontecimento situado fora do campo de percepção enaltecida pelos principais criadores da física quântica 3.
normal da pessoa (podemos pensar, por exemplo, na famosa visão Na modéstia epistemológica que sempre foi a sua, [ung pôs
do incêndio de Estocolmo de Swendenborg, que Emmanuel Kant sempre em evidência, no entanto, que se tratava em seu entender
descreve em Os Sonhos de um Visionário), ou, enfim, na de uma hipótese, mesmo sendo altamente verosímil, e que era
«coincidência de um estado psíquico com uma situação futura que necessário, pois, prosseguir investigações. Mais ainda, «é necessário
não existe ainda, que está distante no tempo e apenas pode ser admitir, escrevia ele, que não existe nenhuma possibilidade de obter
verificada depois de acontecer» 1. Em nenhum destes casos, pode uma certeza sobre coisas que ultrapassam o nosso entendimento» 4.
ser encontrada uma explicação, ou mesmo uma simples ligação Esta hipótese, por outras palavras, tem a natureza de todas as
causal no sentido físico da palavra - e daí a necessidade de recorrer hipóteses científicas: não encerra uma garantia de verdade absoluta,
a um quadro conceptual novo que ultrapasse a noção de causalidade mas revela-se cada vez mais em função do seu valor operatório,
e suponha um estatuto da psique para além, ou aquém, do espaço
e do tempo.
É verdade que [ung alimentara desde muito cedo a intuição
1. Relatado por Henri Ellenberger, À Ia découuerte de l'inconscient, SIMEP.
de um tal conceito. Em 1897, com 22 anos, e antes mesmo de 2. Ler em particular À Ia mémoire de Richard WiIltelm e l/introduction à
conhecer fosse o que fosse da psicanálise (e com razão!), não l' édition anglaise du Yi King, na sequência de Commentaire eur le mystere
afirmava já que a «alma pode ser concebida como uma inteligência de Ia fleur d' or, Albin Michel.
3. Ver entre outros W. Heisenberg, Physiqlle et philosophie e La Pariie et
le Tout, Albin Michel; N. Bohr, La théorie atomique et Ia description des
phénomênes, Gauthier-Villars; W. Pauli, Aufsatze -lmd Vortriige iiber
1. C. G. [ung, Synchronizitiit ais ein Prinzip akausaler Zusamenhãnge, GW, Physik unâ Erkentnistheorie, Vieweg.
VIII. 4. C. G. [ung, op. cito

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da sua fecundidade e da coerência com outros campos do conhe- INCURSÃO NO MUNDO ACAUSAL
cimento que evidencia.
É dentro de tal estado de espírito que se apresenta este livro:
HUBERT REEVES,
o principal objectivo é pôr em questão a noção de sincronicidade
em relação com os novos avanços da ciência objectiva, com a dupla
preocupação de verificar, em primeiro lugar, se existe ainda
congruência com o que nos dizem hoje ciências como a cosmologia,
a física ou a biologia, e perguntar-se aliás, num efeito de retorno,
se esse conceito de certo modo metapsicológico (para não dizer
mesmo francamente metafísico sob muitos aspectos), não poderá
revelar certos aspectos heurísticos na própria formulação das
aciuais teorias.
Compreender-se-à sem dificuldade que se trata também aqui
de uma pesquisa, que será necessário de futuro ampliar de novo
e empreender sem descanso. É quase inútil mas necessário acres-
centar dentro de tal ponto de vista que, no espírito que animou Falar de acausalidade é, evidentemente, assumir um
a concepçãodeeteiioro, cada um dos autores deu a sua contribuição risco. Um acontecimento é considerado «acausal» até se ter
com total independência e, portanto, só por ela é responsável, tendo descoberto a sua causa. Ou seja, a sua pertença ao mundo
sido de minha própria iniciativa a ideia de reunir todos os textos. das causas e dos efeitos., A história das ciências é, em
definitivo, a lista das relações causais descobertas suces-
sivamente entre objectos aparentemente sem relação. Todos
MICHEL CAZENA VE os anos essa lista cresce: talvez estejamos na altura de
compreender a unidade das forças da Natureza, ou o sistema
de orientação das aves migratórias. Nesse contexto, quem
ousaria aventurar-se nas precárias veredas da acausalidade?
A minha intenção aqui é descrever algumas experiên-
cias da física que conduzirão precisamente por esses atalhos
e nos deixarão entrever o que esconde esse termo privativo
(acausalidade apenas se define negativamente). Aproveita-
remos a ocasião para verificar o terreno em que nos situamos.

ÁTOMOS QUE EXPLODEM

. Em primeiro lugar, abordaremos um fenómeno des-


coberto no começo do nosso século: a radioactividade.

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Existem átomos que são instáveis, como por exemplo o A MECÂNICA QUÂNTICA
plutónio utilizado em certos reactores. Este átomo desinte- E O PARADOXO E. P. R.
gra-se ao atingir uma meia-vida de vinte e cinco mil anos.
O sentido preciso desta frase é o seguinte: mil átomos de Por volta dos anos de 1920-1930, os físicos elaboraram
plutónio estão depositados num determinado lugar. Metade uma teoria do comportamento dos átomos a que chamaram
deles vão desintegrar-se nos próximos vinte e cinco mil anos mecânica quântica. Essa teoria descreve correctamente os
e dentro de cinquenta mil anos não restarão senão duzentos fenómenos observados, as suas previsões foram sempre
e cinquenta, etc. Em cada meia-vida o número de sobrevi- verificadas com grande precisão e há 50 anos que não se lhe
ventes diminui em metade. detecta qualquer falha. E é evidente que a mesma acompanha
Podemos observar individualmente cada um desses de perto a realidade.
acontecimentos. O núcleo do átomo divide-se em dois (por Ora, essa teoria afirma que esses hipotéticos movimen-
vezes em três) e sabemos que se parte por estar demasiado tos de relojoaria não existem e que o comportamento indi-
carregado. No volume minúsculo do núcleo, estão concen- vidual dos átomos (instáveis) é estritamente deixado ao acaso
trados noventa e três protões, possuindo cada um deles uma (no sentido descrito anteriormente da existência de uma
carga eléctrica positiva. A repulsão entre essas cargas pro- probabilidade de desintegração). Essa teoria engloba um
voca a fragmentação do núcleo e do átomo. aspecto parcialmente acausal de todas as manifestações atómi-
cas, que se estende muito para lá do exemplo dos núcleos
Até aqui situamo-nos em plena causalidade: uma causa, instáveis.
a carga excessiva; um efeito, a ruptura. Mas se perguntarmos Decerto, a teoria não atingiu o seu estádio definitivo e
porque· é que tal átomo se desagrega primeiro e um outro os físicos trabalham sem cessar para a melhorar e apro-
se desagrega em seguida, parece que mergulhamos na acau- fundar, mas poderemos imaginar que se liberte um dia
salidade. A grande maioria dos físicos é hoje unânime em afir- dessas afirmações litigiosas, conservando sempre o seu
mar que não existe nenhuma razão seja de que natureza for. poder de previsão e as suas qualidades de realismo.
Por outras palavras, eis um acontecimento que deriva No entanto, é necessário acrescentar que esse inde-
parcial, mas não inteiramente, do mundo das causas. Sabe- terminismo não é um atributo superficial da teoria e cons-
mos porque é que os átomos se fragmentam, mas não porque titui mesmo um dos seus fundamentos. Não se discerne
se fragmentam num determinado momento. De facto, o como se poderia desembaraçar dessa velha roupagem já fora
instante em que se dá essa fragmentação permanece inde- de moda e todos os esforços feitos nesse sentido se mos-
terminado. Existe uma certa probabilidade, mas nenhuma traram inúteis.
certeza, de que a desintegração se produzirá no segundo
imediato. A carga eléctrica impõe o comportamento geral, Na verdade, recentemente, foi-se um pouco mais longe.
mas não o comportamento individual... Os resultados de uma experiência em física lançaram por
Poderíamos imaginar que, como as bombas de relógio, terra dois grupos de teorias. Por um lado, a mecânica
esses átomos possuem um movimento de relojoaria interno quântica que os explicou com o seu brio habitual e, por outro,
que um dia havemos de descobrir, mas desejaria agora um conjunto de teorias ditas mais «razoáveis» que têm em
explicar porque é que essa eventualidade parece utópica. comum restabelecer o reino da causalidade. Fracassaram,

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mas podemos demonstrar como esse fracasso está directa- parece estar de facto de acordo com a realidade, esbate-se
mente ligado às suas pretensões causais. à escala atómica, onde partículas e propriedades estão
situadas num volume de espaço. Nesse volume, partículas
Vemos assim como as bases da acausalidade parecem e propriedades não se encontram localizadas num determi-
estar bem estabelecidas. Naturalmente, não se deve dizer nado ponto, mas antes «diluídas» no espaço. Essa diluição
«que desta água não beberei», porque o futuro reserva por é representada por uma «função de onda associada».
vezes algumas surpresas ... Essa divisão-das propriedades faz com que as partículas
Importa acrescentar que essa indeterminação desapa- permaneçam em «contacto» qualquer que seja a distância que
rece geralmente quando lidamos com conjuntos de muitos as separe. Assim, o que acontece a uma influencia imedia-
átomos. As fantasias das partículas individuais têm tendên- tamente o que acontece à outra, mesmo se estiverem sepa-
cia para se compensarem mutuamente. Uma vai para a radas por alguns anos-luz. Não se trata de uma mensagem
esquerda, outra para a direita e a do meio anula-se. Os frutos telemetrada com uma velocidade infinita, mas de uma
que saboreamos na nossa vida quotidiana, como maçãs, presença contínua de todas as partículas em todo o sistema
peras, pêssegos, integram miríades de átomos, cujo compor- que, uma vez estabeleci da, não é interrompida.
tamento global depende do mundo causal. Esta questão ainda controversa é conhecida, na .litera-
Mas existem excepções. Em certos casos a compensação tura, pela designação de «paradoxo de Eínstein - Podolsky
não se produz. Pelo contrário, existe um reforço, por adição - Rosen ou E.P.R.», que encontra a sua solução quando se
coerente, dos «comportamentos» individuais. Em termos reconhece que a noção de localização das propriedades não
técnicos diz-se que as amplitudes se adicionam, por exemplo, é aplicável à escala atómica.
num superfluido ou num supercondutor. Trata-se deobjectos
que manifestam, à nossa escala, certos atributos quânticos
profundamente indeterministas. E o cérebro humano? Esta- o CLARÃO FÓSSIL
mos ainda longe de ter esclarecido os mecanismos extraor-
dinariamente complexos do seu funcionamento. É possível Do mundo dos átomos passamos agora à escala as-
que as moléculas associadas actuern, pelo menos parcial- tronómica. A observação das galáxias ensina-nos que o
mente, de uma forma coerente e, por consequência, formem Universo está em expansão e temos todas as razões para
alguns sistemas quânticos em grande escala. Esses meca- acreditar que essa expansão começou, há quinze biliões de
nismos interviriam, por exemplo, ao nível da memória, mas anos, com uma fulgurante explosão que envolveu toda a
por agora não passam de meras especulações. matéria observável.
O clarão dessa explosão persiste ainda no espaço extra-
Mas prossigamos nesta exploração do mundo atómico. galáctico, sendo possível observar ao radiotelescópio um .
À nossa escala, estamos habituados, à ideia de que as clarão, dito «fóssil», constituído por essa luz inicial, refri-
propriedades dos objectos estão localizadas nos próprios gerada e enfraquecida pela expansão.
objectos. Numa grande, loja, determinado vestido custa 159 Esse clarão que nos chega «da noite dos tempos»
francos e um outro 259 francos, sendo o preço fixado por informa-nos sobre o estado do Universo nos seus primeiros
intermédio de uma etiqueta. Essa noção intuitiva, que nos tempos e, mesmo que eu o observe a leste, a oeste, ao norte,

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ao sul, a luz que daí recebo é exactamente ,a m.esma.. ~~sa
observação ensina-nos que os átomos que, ha qUInze biliões Haverá uma ligação entre esse problema e aquele que
discutimos anteriormente? A dificuldade resultaria do facto
de anos, emitiram essa radiação se encontravam todos a uma
de insistirmos novamente em localizar as propriedades nas
mesma temperatura. , . partículas?
Tal observação preocupa muito a comunidade astronómi-
ca. E porquê? Porque temos excelentes razões para .pensar
que esses átomos não mantinham e nunca I?anhveram
o sistema que agora nos interessa compreende todo o
Universo. A descrição quântica faz intervir funções de
«relações causais», assumindo estas palavras aquI uma cono-
probabilidades que asseguram o contacto acausal antes
tação particular que deve ser explicitada.
descrito. Será que essa visão quântica poderá ajudar-nos a
compreender a homogeneidade da temperatura inicial bem
Admite-se tradicionalmente que a causa precede o efeito.
como a omnipresença das leis? É algo que não se pode excluir
A física acrescenta que, além do mais, se verifica sempre um
a priori, embora seja difícil progredir nesta via.
certo atraso. As causas transmitem-se através de fenómenos
físicos que não se propagam mais dep.ressa do_que a,1~. As
relações causais exigem um prazo cUJa duraçao es.ta hga~~
o terreno aqui não se revela muito sólido, mas é possível
que se encontre uma explicação causal para essa temperatura
à distância. Quando vejo o sol desaparecer no horizonte, Ja
homogénea dos átomos responsáveis pelo clarão fóssil. A
passaram oito minutos sobre ~ ~eu .ocaso, porque a luz leva
física dos primeiros instantes, ainda mal conhecida, reserva-
oito minutos a percorrer a distância entre o Sol e a Terra.
-nos talvez algumas surpresas. Hoje, no quadro das inter-
Um telegrama enviado para Sírius apenas será recebi~o
pretações geralmente aceites, essa explicação não existe e os
oito anos depois, pelo que me é imposs~vel despe~t~r hoje
astrofísicos interrogam-se sobre esse misterioso «saber» da
a atenção de um sirusiano. Quando os atom~s e~rutiram o matéria.
clarão actualmente fóssil, o Universo era muito Jovem e o
tempo decorrido desde o começ? era de~asiado curto para
que esses átomos pudessem influenciar-se mutuamente
através de relações causais. Então, como é que chegaram a
o PÊNDULO DE FOUCAULT
ter exactamente a mesma temperatura? Como foi transmitida
Passamos agora aos acontecimentos ocorridos à nossa
essa palavra de ordem?
escala. A experiência faz-se com um pêndulo muito pesado
Podemos levantar a mesma questão relativamente ao
que pode oscilar durante várias horas. Observa-se que o
conjunto de leis da física. A observação das galáxias mais
plano definido pelo vaivém do pêndulo - o plano de
distantes mostra-nos que todos os átomos obedecem de
oscilação - gira durante horas em redor do seu eixo vertical.
forma muito exacta às mesmas leis em todo o Universo,
Esse plano é animado por um movimento de rotação em
mesmo que esses átomos nunca tenham mantido relações
relação ao nosso planeta. Em contrapartida, não há rotação
causais entre si. Aqui põe-se o problema fundamental da
em relação ao conjunto das galáxias mais distantes. Por
própria existência dessas leis. ..;-.tr?vésde que ?ecretos f?ram
outras palavras, se eu impelir o pêndulo na direcção de uma
elas instauradas e tornadas pubhcas? Sobre ISSOmantem-se
galáxia distante bem determinada, ele manterá de seguida
ainda o mistério.
essa orientação. Ou mais precisamente, se uma galáxia

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distante se encontra à partida no plano da oscilação, é aí que
matéria independentemente de qualquer localização e de
permanecerá.
toda a velocídado, ou seja, do espaço e do tempo.
Tudo se passa como se o pêndulo em movimento
escolhesse ignorar a presença, perto de si, do ~~sso I?laneta,
para orientar o seu rumo na direcção das galãxias distantes Procuremos ir mais longe. Esse plano acausal subjacente
à existência das leis da Natureza poderia subentender igual-
de que a soma das massas rerresenta a ~uase-tota~idade da
mente essa misteriosa tendência da matéria para se organizar
matéria do universo observavel. Porque? Qual e a força
e se estruturar a fim de adquirir certas propriedades novas,
misteriosa que veicula essa influência? O físico Mach s~geriu
ditas «propriedades emergentes». A história do Universo
a presença de uma espécie de acção «global» do U~lve:.so
mostra-nos a lenta progressão que faz a matéria evoluir da
sobre o «local» do pêndulo. Não se trata de uma explicação,
simplicidade para uma complexidade sempre crescente.
mas antes de uma intuição difícil de entender e modelar no
domínio da física tradicional. Essa acção, manifestamente, Do estado de quarks acedemos ao estado de nucleões,
depois ao de átomos, depois ao de moléculas cada vez mais
não passa por nenhuma das formas de troca clássicas. ~ada
omplexas, depois ao de células, depois aos organismos
nos autoriza a pensar que existe uma qualquer telemetna de
variados até ao ser humano. A consciência é, em nossa
natureza causal entre esse global e esse local. A palavra
opinião, a última propriedade emergente da matéria que se
omnipresença e a noção de «não-separabilidade» parecem organiza.
muito mais adequadas.
Nesta óptica o plano acausal, descoberto nas mani-
('stações antes descritas, seria aquele sobre o qual se ins-
Estaremos autorizados a ver aqui, de novo, uma mani-
creveria a questão do «sentido» ou da «intenção» na Na-
festação dum nível acausal da realidade? Si~, n,.? sentido
íureza. Nesse plano intemporal, a consciência do homem
em que até hoje não foi dada nenhuma ~xphcaçao causal.
p .rtencería ao Universo como se estivesse inscrita na sua
No entanto, é preciso ser prudente: a teoria sobre a qual se .volução,
apoia, a da relatividade generalizada, ~stá .long~ de ser
Tenho consciência de me aventurar num terreno cada
definitiva, apoiando-se em bases observacionais muito redu-
vez mais frágil. Convido o leitor que rejeita a noção de uma
zidas e podendo um dia dar conta do comporta.~~nto ~o
, intenção na Natureza» a suspender aqui a sua leitura. Não
pêndulo de Foucault em termos causais. Mas para Ja ISSO nao
Ih provarei nada, ou quando muito poderia transmitir-lhe
acontece.
\'\)1110 sinto eu as coisas. Se as sente de outro modo, é livre

Ill' o fazer. Respeito a sua opinião, mas não a partilho.


Ora, a nossa incursão mostrou-nos três manifestações de
um comportamento material que escapa à causa~idade. Essa
Reencontramos aqui certos temas do agrado de C. G.
conclusão parece de facto solidamente estabeleclda. no caso
1\1 n z. Ele conta como, depois de uma discussão com o físico
da primeira manifestação: a radi?~ctivid~de. Os dois outros
" I-l'U amigo Pauli, foi levado a acrescentar às três grandes
casos são mais frágeis. Uma análise mais profunda levou-
vntidades da física clássica -leis de conservação, continuum
-nos a distinguir uma influência da matéria sobre si mes~a,
,'npoço-tempo e causalidade - uma quarta entidade desig-
a qual não implica nen!'uma troca de inform~ç~o_no sentido
1III(Ia por «sincronicidade». Através desse termo pretendeu
da física tradicional. E uma espécie de ornrupresença. da
dl'H rever a existência de factos que, por um lado, não se

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podem explicar pelo jogo das causas e dos efeitos, mas que ~'IN RONICIDADE, FÍSICA E BIOLOGIA
por outro lado têm um «sentido» reconhecido pelo observa-
dor. MICHEL CAZENAVE
No seu livro Synchronicity, Jung fundamenta a sua
argumentação nas experiências de ESP 1 de Rhine, que con-
sidera altamente significativas. Quanto a mim, denota aí uma
confiança um tanto ingénua nas estatísticas. O físico está, por
dever de ofício, habituado a muito mais resistências ... Jung
apoia-se também num estudo estatístico dos signos astrológi-
cos dos casais unidos pelo matrimónio. Mas ainda aí é-me
difícil segui-lo. Prefiro os argumentos que extrai da sua
prática e que cada qual pode corroborar pela sua experiência
pessoal. O encontro com uma pessoa que muda a sua vida,
terá algum sentido em qualquer parte?, etc.
Esses acontecimentos, segundo Jung, não aparecem
isolados, mas fazem realmente parte de «um factor universal É sempre difícil pretender falar da sincronicidade na
existente em toda a eternidade». Reconhecemos aí a lingua- i 11,· Iida em que, em relação à obra propriamente científica
gem da nossa anterior incursão. O factor psíquico que Jung I'" !ung, ~ esse sem dúvida o domínio em que, acima de tudo,
associa aos acontecimentos ditos «sincronísticos» não se 11l.IISfacilmente se revela suspeito de mística para não se
acrescenta a uma natureza impessoal, mas é significativo da I.I/llr abertamente de magia.
grande unidade, em todos os planos, do nosso Universo. Aliás, basta ver como a própria noção de sincronicidade
" l'Ol:rentemente conotada com a aura do milagre, para assim
Estas especulações serão fúteis e vazias? Não o creio. 1I\.\nJfestara sua desconfiança e apenas a admitir em última
Trata-se antes de intuições expressas através de balbúcios 1I\,"Itância.O que equivale a dizer que o melhor método,
desajeitados. Faltam-nos as palavras exactas para o dizer. quando somos confrontados com um fenómeno aparente-
m .nte sincronístico, é em primeiro lugar, e a todo o custo,
prccurar todas as explicações causais possíveis - e não
IIpelar à sincronicidade senão a partir do momento em que
''.'sas explicações estiverem esgotadas e se revelem inope-
rllntes. '
Se essa prudência científica fosse utilizada de forma
'~)rrecta,quantos casos de sincronicidade não se desvanece-
r.ramde imediato! Mas é verdade que a tendência para esse
trpo de recurso é particularmente tentadora, na medida em
'I~e a s,i~cronicida~e, na sua essência, se baseia em activações
1. Extra Senso~1 Perceptions: percepções extra-sensoriais. .uquetípícas e por ISSO se encontra sujeita não apenas a uma

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possibilidade, mas quase a uma tendência inata para a unidade psicofísica virtual do Universo 1, a fazer realmente
inflação sem controlo. avançar o problema, permitindo encará-Io hoje em novos
termos.
Existe sem dúvida um pressuposto que deve ser colo-
cado com todo o rigor: apenas se apelará à sincronicidade _ O leitor compreenderá sem dificuldade que, num estudo
como princípio de explicação - deveria talvez dizer-se de tao breve, procedamos como se ele conhecesse já os trabalhos
explicitação - de um fenómeno «aberrante», quando for~os de Von Franz a esse respeito - convidando-o expressamente
expressamente forçados a tal por uma prova a contrario. a. reportar-se a eles e reflectir sobre eles como se por acaso
Feita à partida esta reserva, não deixa mesmo assim de amda não os tivesse analisado. Da mesma forma, aliás,
se evidenciar, e a clínica está aí para prová-Io, que a consideraremos como adquiridas as reflexões de Pierre Solié,
sincronicidade se manifesta efectivamente, pelo que é ur- expostas ~os se.u~diferentes livros 2 e retomadas aqui no seu
gente procurar pensá-Ia - e pensá-Ia melhor do que Jung o estudo Smcronzczdade e Unidade do Mundo.
pôde fazer no seu, tempo, à luz dos progressos das ciênc~as Numa abordagem complementar, gostaríamos simples-
contemporâneas. E espantoso observar-se como essa noçao, mente de acentuar mais os aspectos propriamente científicos
que sem dúvida representou um dos seus avanços teóricos e as ~onsequências filosóficas - ou metapsicológicas _ do
mais audaciosos, quer do ponto de vista da psique, porque conceito, sem perder de vista, aliás, que a ciência, como
dizia respeito à natureza do inconsciente, quer na sua busca sugeriu Pauli, pode estar ela mesma infiltrada por certas
de ligações com as ciências exactas (sobretudo a física e a projecções do inconsciente 3, e que toda a filosofia, como Jung
neurobiologia), praticamente não deu origem a nenhum
novo trabalho de reflexão e de prática epistemológica - como
se a sincronicidade, no fundo, tivesse funcionado ela mesma
dessa forma mística (ou mágica) para aqueles que dela se 1. Reportar-se, é evidente, a Nombre et temps, nas Ed. de Ia Fontaine de
serviam. ~ierr~; ao artigo de M.-L. von Franz, Symboles de l'Unus Mllndlls, que
A este respeito, Marie-Louise von Franz foi realmente smt.etJza_os seus. trabalhos, em C. G. t=« et Ia voie des prcfondeurs, sob
a dlre~çao de Ehenne Perrot, na mesma editora, tal como, em inglês,
a única a assumir essa tarefa por sua conta e, explorando
aos dOISest~dos seguintes: On Divination and Synchronicity; lhe Psycho-
o arquétipo do Unus Mundus,l ao mesmo tempo que tentava logy of meamngful Chance, Inner City Books, e Time; Rythm and Repose,
levar a bom termo as reflexões do último Jung sobre a Thames and Hudson. Ver também o estudo de M.-L. von Franz no final
concepção dos números enquanto arquétipos da ordem e da deste volume.
2. Ve~Mé~ecine et homme total, nas Ed. La Colombe e em Retz; Psychanalyse
et lma~mal, nas Ed. Imago, e sobretudo a primeira parte de La Femme
essentiel, nas Ed; Sel?~ers, Col. «l'Esprít jungien», Ver também os artigos
O!IVertllre. eur l Unzte du m~nde, «~ahiers de psychologie jungienne»,
n. 28, e Biologie et psvchologie analutique, em «Cahier de I'Herne» consa-
grado a C. G. Jung.
3. Ver a~ sugestõ:~ de Wolfgang Pauli sobre os estudos paralelos em psi-
~ologla e em física e sobre a necessidade de pesquisas sobre a origem
1. Ver, especialmente a este propósito; Alchemical Active lmagination, nas Interna dos conceitos científicos: Natllarerklii.nmg und Psyche Zurique
Ed. Spring, e a abordagem do UmlS Mundus feita por Gherard Dom. 1952. ' r

22 23
bem demonstrou 1, é o horizonte da psicologia pela injunção vntretanto, O aparecimento do besouro» 1. Assim, a sincroni-
que dela se faz, ao mesmo tempo que supõe um salto do cidade refere-se afinal à clarividência ou ao sonho pre-
domínio da psique para o do ser, da psicologia à ontologia, monitório numa transgressividade pelo arquétipo das leis
que não está em si mesma isenta de notações arquetípicas "parentes da Natureza - o que equivale a dizer que o caso
e que embora a psicologia não possa por si própria justificar, sincronístico se rebate sobre outra forma de manifestação da
pode. esclarecer preservando-se a autonomia de cada um síncronícidade, num fenómeno circular que bloqueia em
desses domínios, parte o estudo.
É, portanto, um caminho estreito e particularmente
perigoso, que pretendemos explorar e tentaremos percorrer, Muito mais significativo se apresenta, pelo contrário, o
lembrando sempre como pode ser criticado - ou antes como segundo caso de Jung, que evocaremos aqui resumidamente:
deve ser criticado. «A mulher de um dos meus doentes, quinquagenário, con-
tou-me um dia qu~ na altura da morte de sua mãe e da sua
avó um grande número de pássaros se haviam concentrado
os PÁSSAROS E A MORTE perto das janelas do quarto mortuário, ou seja, uma história
que tinha já ouvido contar a um certo número de outras
A fim de nos munirmos de alguns materiais, é talvez pessoas. Quando o tratamento do marido chegava ao fim,
mais sensato começar por analisar um caso concreto de uma vez que a sua nevrose tinha desaparecido, apareceram
sincronicidade que Jung propõe na sua obra e tentar encon- pela primeira vez alguns sintomas ligeiros que eu relacionei
trar as suas componentes essenciais. Seria tentador, a esse com uma doença de coração. Mandei-o consultar um espe-
respeito, falar do famoso escaravelho que todos conhecemos cialista que, num primeiro exame, não constatou nada de
muito bem, o Cetonia Aurata, que muito se reproduz. Con- inquietante como depois me escreveu. Ao regressar a casa
tudo, é na medida em que preenche exactamente esse papel depois dessa consulta, com o relatório médico no bolso, o
que não o tomaremos como exemplo, sendo, aliás, suscep- meu paciente desmaiou subitamente em plena rua. Enquanto
tível de uma interpretação que não faz mais do que deslocar o conduziam para sua casa moribundo, já a mulher ali se
o problema. encontrava mergulhada numa inquietude angustiante. De
Com efeito, quando expõe esse caso, Jung apresenta facto, logo que o marido se dirigiu à consulta médica, um
expressamente a hipótese de uma possível criptomnésia e bando de pássaros abateu-se sobre a casa. E de imediato se
não receia escrever depois, noutro registo, que «o sonho do lembrou do que de semelhante tinha acontecido na altura
escaravelho é uma representação inconsciente que emana da da morte dos seus familiares, receando o pior» 2.
imagem, já existente inconscientemente, de uma situação que Na verdade, estamos aqui perante duas séries de acon-
se produziria no dia seguinte, ou seja, o relato do sonho e, tecimentos que não se podem ligar entre si de forma racional,
mas que todavia produzem um sentido ao mesmo tempo que

1. Ver as últimas páginas de Mysterium coniunctionis, t. Il, Ed. Albin Mi-


chel. Uma referência também ao capítulo: Psychothérapie et conception 1. C. G. Jung, Synchronicity, CoI. Works, Bollingen Series, voI. VIII.
du monde em La Guérison psycllOlogique, Ed. Georg et Cie. 2. Ibid.

24 25
se instrevertl numa realidade física objectiva, e que denotam, t I"em.Jung nos fala não é uma simples observadora que olha
aliás, a activação de uma constelação arquetípica deter- 11/ coisas do exterior. Para uma tal pessoa, os pássaros que
minaq , _ dado que não podemos conhecer a situação de I' I recipitam sobre o telhado de uma casa não lhe diriam

todas as antigas tradições do augúrio por meio dos pássaros c'ntritamente nada. Na verdade, trata-se de uma cadeia que
(embCira,é evidente, não se considere de forma nenhuma c' forma entre o sujeito que observa e o sentido que se lhe
esse. ê\ugúrio como uma ciência e antes como ,:ma técnica IcI1I (e e que transforma esse sujeito num participante do
partiCular de manifestação do inconsciente mais profundo .uontecimento que, num duplo movimento, ganha e dá
nos s~us métodos de interpretação), cujos vestígios ainda 1\'l)tido à cena que observa.
hoje se revelam na expressão comummente aceite de «pás-
saro C1.emau agoiro». A terceira característica do acontecimento sincronístico
t '( >1)iste no facto de não serem apenas as relações racionais,
1\0 deslindar-se este exemplo, depressa nos apercebe- 11I.'S mais profundamente, as relações causais de carácter
mos, pois, como todas as implicações da sincronicidade ,'.'pacio-temporal que parecem aí desvanecer-se. O escara-
aparetem umas atrás das outras. c-lho, de certa maneira, podia ser concebido segundo o
!\raverdade, se admitirmos (e parece difícil, como acabá- modelo de uma causalidade retrogradativa dado que adoptar
mos <:tedemonstrar, não se admitir isso no exemplo exposto) 111\ sua audácia a hipótese da premonição implica ainda um
que "alguns casos de coincidências significantes - que de- 1 lcsenvolvimento temporal, tornando-se, então, a sincroni-

vem ~er diferentes dos simples grupos de acaso - parecem ridade a manifestação explícita da transgressividade do
assen~ar sobre fundamentos arquetípicos» 1, admitiremos do .irquétipo. Ora, no caso da simultaneidade de dois aconte-
mesIl'\.omodo que a uma correspondência no tempo, e num \'i rnentos físicos independentes que constituem todavia um
temp<::.>simultâneo, de um estado material com a esfera do III'ntido para um determinado sujeito, de tal modo que de
psíquico, corresponde uma determinação precisa do arquéti- 11111 se pode praticamente inferir o outro no caso da «mulher

~o eI\quanto energia psicofísica, ou enqua~to ene~g~aante- dos pássaros», ou da justaposição de um acontecimento físico
nor ê\ uma eventual separação desses dOIS domínios que ,I lima atitude psíquica é a causalidade que desaparece. Toda

percebemos como separados na nossa realidade quotidiana " física nos ensina que se A engendra B, então B é posterior
- e l\egressaremos a estas formulações ocasionais. ,I A, tendo sido necessária uma sequência temporal, por mais

l\or outro lado, é preciso observar que o fenómeno da p quena que fosse, para que o efeito tivesse derivado da
sincr<\nicidade não existe apenas porque faz sentido. A coin- causa. Deve também entender-se que a sincronicidade
cidêntia da morte e de um grupo de pássaros que se forma su prime, anula ou provém de «fora do tempo», pelo que
é sOIl\ente um encontro para a pessoa a quem diz respeito, será ainda necessário explicar também o sentido destas
que Vive isso como particularmente significante e, nessa I (lavras.
vivêI\cia, se estabelece assim como um sujeito. Mas é
neceslsário entendermos bem este termo: pois a mulher de O quarto factor da sincronicidade consiste em colocar
abertamente em jogo o que Jung chamou a zona psicóide no
homem. Com efeito, partindo do acontecimento sincronístico
-ornoacausal e, portanto, atemporal, e verificando, por outro

26 27
lado, o efeito de sentido que o mesmo produz no sujeito que
o vive, Jung teve necessariamente que chegar à conclusão de 111\1 () MUNDO UM SENTIDO?
que não apenas somos confrontados com uma activação
arquetípica que tem a ver simultaneamente com a psique e I lei l'Il~'.1I1to,
a partir do momento em que se adopta este
a matéria, mas também que essa activação se produz ou é 1'"11111 01,' Vista, as consequências lógicas revelam-se de novo
trazida por .uma pessoa singular que reúne em si e através '"lIltlllllll','doras e obrigam a avançar a hipótese de uma
do arquétipo esse duplo aspecto psíquico e físico. Quando , 11111 1'III,'iI() g ral da acausalidade e da atemporalidade, que
escreve, por exemplo, que «uma explicação causal da sin- 11"'1111 pod fundar os acontecimentos sincronísticos no seu
cronicidade aparece como excluída ... Esta consiste essencial- 111111 I' ob]c tividade específica se for precisamente universal.

mente em correspondências «fortuitas». O seu tertium com- I 11111t idência significante ou a correspondência de um

parationis assenta em alguns dados psicóides que eu designo . 1110111 psíquico e de um estado físico que não têm nenhuma
como arquétipos. Estes últimos são indistintos, ou seja, são II 1111: () causal mútua, significa, em geral, uma modalidade
1II,IIIr ItI, um arranjo sem causa. A questão que então se coloca
apenas aproximativamente perceptíveis e definíveis. Sem
I 11di' saber se a nossa definição da sincronicidade, que se
dúvida que se revelam concomitantes com os processos
!I,lil! '1(ll1t com a correspondência dos processos psíquicos
causais, isto é, «carregados» por estes, mas ultrapassam de
I 11III \IS processos físicos, não seria susceptível de um alar-
certo modo o quadro, de uma forma que qualificarei de
transgressividade, dado que não são nítida e exclusivamente "II/II'/lI(~ ou se porventura não o exigiria. Essa exigência
detectados apenas no domínio psíquico, mas podem igualmente l'ill"Vl' Iffit:'0r-se~~ando consideramos a nossa compreensão
aparecer em certas circunstâncias não psíquicas» 1; ao escrever /',"1111 da sincronicidade tal como foi mencionada atrás, isto
, • '1('(11110 um arra~jo sem causa». Nesse conceito participam,
estas palavras, fecha naturalmente o círculo ao mesmo tempo
que o alarga, dado que o iertium comparationis é nada menos ,li' ",'to, pura e sImI:'le~mente todos os «actos de criação»,

que o sujeito que está prestes a viver o acontecimento, de 11\ I HVJ~, os da?os .apnort, como por exemplo as propriedades
III/. numeros inteiros, as descontinuidades da física moderna
modo que, através dessa noção de psicóide, procede a uma
nova operação: a homologia da constituição humana com a ,'Ir,» :- E a isso Jung.acrescenta, precisando o seu pensament~
l' \'I,)("(quecendo-o am~a ma~s: «Na verdade, inclino-me para
constituição do arquétipo, fazendo com que, num duplo
movimento que é contudo interiormente idêntico, a nossa I1 hipótese de que a sincronicidade no sentido mais restrito não

I ncnão um caso particular do arranjo sem causa universal e, com


organização psicossomática seja portadora do arquétipo, tal
como se poderia dizer que o arquétipo funda a nossa maneira 1'\'I.teza,o da correspondência dos processos psíquicos e
de considerar o psicossomático. I[:-lIos que coloca o observador na situação vantajosa de
poder reconhecer o tertium comparationis. No entanto, a
percepção do fundamento arquetípico faz nascer nele a
It'ntação de reduzir a assimilação dos processos psíquicos e
!10. processos físicos reciprocamente independentes a um
t-f ito (causal) do arquétipo e omitir assim a simples con-

1. Ibid.
I. Ibid.

28
29
tingência. Esse perigo é evitado se se considerar a sincroni- /11.', devemos observar o que Jung diz do arquétipo,
cidade como um caso particular do arranjo geral. Desse 11 'I' 1.11tenderíamos facilmente a transformar em «causa
modo evita-se também uma multiplicação inadmissível dos I II '·1 dt' não-temporal» do acontecimento sincronístico e
princípios de explicação: o arquétipo é a forma reconhecível pela , I li, 11 ,11'como interveniente directo no plano da experiência,
inirospecção do arranjo psíquico a priori. Se se acrescentar a isso d, v 1I1l, sua transgressividade. Veremos um pouco mais
um processo sincronístico exterior, este responderá, então, ao Ilil II1II (' orno essa transgressividade não pode evitar uma
mesmo esquema de base, isto é, será ordenado da mesma I "11I I'I'S .rva num plano virtual para poder ser definida, mas

maneira. Esta forma de arranjo distingue-se do arranjo das I IIII'VI. () salientar desde logo como imediatamente se reve-

propriedades dos números inteiros ou das descontinuidades 1111111, ,'l' quiséssemos impor essa ideia da eficiência sensível
da física, na medida em gue (...) a primeira representa certos ,I, I ,II'qU tipo, numa contradição incontornável, ou muito
actos de criação no tempo. E essa, diga-se de passagem, a razão 111111 . implesmente, num mero jogo de palavras, dado que,
profunda pela qual insisti no momento temporal como 1111111\ j< referimos, toda a causa de ordem física pressupõe
característico desses fenómenos e os considerei como sin- 11,1I':I~'nrolarde um tempo. Ou ainda por outras palavras - e
cronísticos- 1. I, Ii I I I 'vemos ter medo das palavras! -, no quadro metafísi-
Na realidade, é este o problema: apenas pode haver I I1 '1" ' construiu sobre a realidade do Universo, Jung vê-se
sincronicidade se é contingente, mas a palavra só faz sen- 1111r/gadoa introduzir um estatuto do arquétipo-e como
tido se existirem alguns fenómenos de sincronicidade, isto é, I 1111:-> .quência do psicóide, e depois da própria natureza do
se formos capazes de pensar um quadro conceptual que 11\\111 'm-, que remete para uma .realidade ainda mais
permita reflectir a contingência como regularmente irregu- I '1'01 linda, vendo-se assim obrigado, paradoxalmente, a des-
lar e construir noutros termos uma teoria que seria a de I' lIl'ologizar a psicologia para melhor a validar.
uma «ciência do singular». Estas palavras colocam-nos de Por isso, no caso da «mulher dos pássaros», não se
imediato perante uma dupla exigência: exigência de rigor 11( li I rá afirmar de forma nenhuma que foi a constelação do
de pensamento, exigência de um método e de uma teori- Ill'ljuétipo augural que fez aparecer o fenómeno sincroriístico
zação que dêem. conta da empiria levantando a hipótese ír.uar-se-ia apenas certamente de puro pensamento mágico
de outra realidade para além do mundo puramente do q 11 \ a psicologia das profundezas deverá em princípio
sensível. r-nsinar-nos a ultrapassar, assumindo-o num outro registo e
, A noção de contingência leva-nos, por outro lado, a Inzcndo ressaltar a sua significação), mas sim que a cons-
colocar a ideia, contida na dos actos de criação no tempo, de u-lação do arquétipo foi uma das formas de aparecimento
que a sincronicidade seria a manifestação de um não-tempo I I ' uma ordem diferente no nosso tempo quotidiano.
que criaria um não-tempo no tempo. Concepção difícil, mas
que é necessário formular de início, sob pena de vermos Deste modo, a noção de sincronicidade compreende três
desmoronar-se todo o edifício. níveis diferentes:

um nível factual, em que é o próprio aconte-


cimento, na sua acausalidade particular, que
1. lbid. cria sentido para uma determinada pessoa;

30 31
um nível ordenativo, que remete para uma 11111111 1'lll.lVras, não reencontramos aqui, a um outro nível,
ordem de que o acontecimento é o sinal; I 11·IIII;n("do arquétipo e do psicossomátíco, dado que a
um nível meta físico que conduz a esta questão: 111 "1'111mvInffsica implica o Unus Mundus da mesma forma
qual é a realidade do Universo em q\le vive- 11"" II 1/11115 Mundus impõe a questão metafísica?
mos e essa realidade tem sentido? . 1'(111, -m S exprimir tudo isto dizendo que, ao despsicolo-
I "11 I1pHi elogia, Jung o fez a partir de um arquétipo que
E, uma questão subsidiária, se a sincronícidade remete 1"111 11I1 W'Z repsicologiza em simultâneo a necessária despsi-
I ,'/,1,',,/.11<,'50.
para um Unus Mundus, ou seja, para a concepção de um
plano de realidade potencial em relação à empiria, mas I' t -ssalve-se, no entanto, e devemos ser claros nas pa-

existindo sem dúvida em si um outro quadro de realidade 1,,\1111, que a noção de psicologia mudou em parte de sentido
que se legitima como transcendental à experiência e como 111111' I1li duas fases do processo. Obviamente, será necessário
consubstancial (de uma substancialidade subtil) à existência , I d I '011'isso mais adiante, embora desde já se possa referir
I P li' t 'HH ' movimento de recuo e depois de reinvestimento
da alma \ ou se a sincronícidade remete para essa outra
realidade que conteria em potência a matéria e o espírito '" JlVt',' da psicologia indica, em primeiro lugar, a transfor-
- uma «matéria espiritual», um «espírito material» nesse 111111;'\0 Ic uma subjectividade em interioridade e devolve afinal
intermundo específico em que se subsumiria a causalidade I' I vologia o seu sentido original e verdadeiro enquanto
física e se assumiria uma acausalidade primeira 2 -, não 11'1'111','0da alma e sobre a alma-ou talvez ainda mais
devemos ter presente que esse Unus Mundus se traduz em , .ut.unente, enquanto discurso da alma sobre si mesma.
si mesmo num arquétipo e num arquétipo determinado? Por  ontradição aparente revela-se, então, como signo de
111111,' dialéctic~ .e confronta-nos em simultâneo com a polis-
,'///1(/ do arqu~tlpo, s~gundo o ponto de vista a partir do qual
1. Para certas noções mais precisas acerca do Llnus Mundus, ver C. G. [ung, If' !.da: matriz de Imagens no domínio do inconsciente,
Mysterium coniunctionis, tomo 11, Edition Albin Michel, como prolonga- I 11111 Iição de possibilidade em relação à experiência, estrutura
mento das primeiras considerações que já se encontram em PsychoIogie
1111" Iff ica no reino real da alma. O que nos leva a colocar
et Alchimie e em Les Racines de Ia conscience, Ed. Buchet-Chastel. Pode
,I "til esta questão: à margem de toda a causalidade de
referir-se ainda com interesse M.-L. von Franz, AlchemicaI Active lmagi-
nation e Nombre et Temps, op. cito Observar desde logo a origem medieval Itlllem física, e se procurarmos reflectir no plano próprio
desta noção, particularmente em Scot Erigêne, De Divisione naturae, em dl'IIHe Unus Mundus, não haverá desde logo o que realmente
PatroIogie Iatine, vol. CXXII, Ed. Migne, ou nas tentativas de Raymond " deveria chamar uma causalidade formal do arquétipo?
Lull (ver a propósito F. Yates, Ramon Lull and [ohn Scotus Erigena, em
«[ournal of the Warburg and the Courtauld Institute», XXIII,1960)- em
que já se encontra esta ideia particular de que o Unus bâundus é o plano
da Sapientia Dei; onde se vislumbra um nmls poietikos, uma inteligência ( ),' ESTRATAGEMAS DO INCONSCIENTE
activa assimilada a essa mesma Sapientia. (Ver Scot Erígene, op. cii., mas
também M.-L. von Franz, Aurora Consurgens, Mysterillm Coniunciionis, Chegados a este ponto, será bom, sem dúvida, lembrar
t. I1I, Ed. de Ia Fontaine de Pierre, sobre a visão alquímica do (pseudo?) I história que Marie-Louise von Franz conta acerca dos
Tomás de Aquino).
trnbalhos de Jung e particularmente acerca dos períodos em
2. Permito-me remeter a este propósito para o meu livro La Science et i'ãme
du monde, Ed. Imago. '1" \ aperfeiçoava o conceito de sincronicidade: «A dificul-

32 33
da de existente para compreender cientificamente esses fenó- Mais tarde, confiou ao cinzel e ao martelo esse rosto de pedra
menos de sincronicidade deriva do seu aparecimento irregu- e fixou-o como a imagem do Mercúrio trickster. Uma dúvida
lar e, por conseguinte, imprevisível. Eles escapam ao nosso perpassou o seu espírito: seria que .Mercúrio, o espírito da
método habitual de estatística, aos nossos cálculos de frequên- Natureza, lhe teria finalmente feito uma das suas? Dominado
cia e de probabilidade. O próprio Jung teve de fazer a o seu entusiasmo e recuperado o cepticismo, repetiu a
experiência quando decidiu, finalmente, elaborar um quadro experiência com um segundo conjunto de horóscopos e dessa
desses fenómenos que observara durante muito tempo. Para vez o resultado foi muito menos convincente. Assim, o
tornar a demonstração mais clara, procurou a forma como primeiro balanço tinha sido muito provavelmente um acaso
se poderia compreender estatisticamente um fenómeno bem significativo, ou seja, um fenómeno de sincronicidade!
conhecido de constelação arquetípica em relação com os O arquétipo da conjunção ou do casamento (neste caso, o'
acontecimentos com o mesmo sentido, que poderiam ser da psique e da matéria) encontrava-se na alma de Jung num
verificados concretamente. A sua escolha incidiu sobre a excited state. A experiência suscitara nele um extraordinário
velha tradição astrológica das constelações de casamento, interesse emocional e o trickster tinha-lhe fornecido, portanto,
feitas a partir das conjunções Sol-Lua e Marte-Vénus. Essa um resultado estatístico que se revelara positivo a um nível
tradição reflecte, com efeito, de uma forma projectada, a sobrenatural. A realidade do fenómeno sincronístico tinha-
crença de que o casamento, está ligado a uma constelação -se tornado mais uma vez manifesta, mas era evidente que
arquetípíca presente no pano de fundo psíquico (projectado, a sua «demonstração» estatística fora totalmente posta em
neste caso, no céu) ". O casamento realizado entre dois causa» 1.
indivíduos é um facto irrefutável. O resultado do primeiro Sob a forma humorística própria de Mercúrio, reencon-
levantamento estatístico revelou-se de facto extraordinaria- tramos aí de novo essa dialéctica do arquétipo como eixo
mente significativo. nodal de toda a investigação" como encruzilhada! actuante,
. No entanto, as conclusões deixaram em Jung um certo se quisermos, de todas as disciplinas e de todas as descrições
sentimento de mal-estar e uma tarde, quando estava sentado do mundo - o que nos faz ser prudentes a partir do
diante da sua torre em Bollingen, reparou que um certo jogo momento em que se desejam abordar os domínios da ciência
de sombra e de luz fazia aparecer com insistência no muro ou da filosofia em geral, mas nos assegura igualmente que,
um rosto que exibia um sorriso' trocista e que o observava. se não encontramos aí o arquétipo de uma ou de outra forma,
então podemos estar certos de ter enveredado por um falso
caminho.

* Deve observar-se que neste contexto a astrologia não é encarada como


uma ciência, mas como produção do inconsciente, e que a coincidência
psíquica com o nosso tema astrológico, muitas vezes verificada, não 1. M.-L. von Franz, C. G. fungo Son mythe en notre temps, Ed. Buchet-
representa mais do que a adequação da personalidade ao inconsciente -Chastel, Neste aspecto, estou profundamente de acordo com Hubert
que lhe está subjacente, em relação com a ideia de uma estrutura qua- Reeves: a estatística não tem talvez muito a ver com a sincronicidade,
litativa do tempo, sendo essa mesma estrutura a manifestação, através na medida em que esta deveria fundamentalmente ligar-se com a
da mandala que o zodíaco representa, de um tempo subtil e ciclico que omnipresença do próprio Universo a si mesmo. Ver também a este
é o do Si-mesmo. respeito as observações de M.-L. von Franz, irfra.

34 35
Por isso, logo nesse primeiro estádio, podemos dizer que silhuetas, porque são vestígios que não foram ainda vividos
não somos verdadeiramente perturbados pelas contradições in~iv~dualmente pelo sujeito. Quando a regressão da energia
levantadas - contradições, devo lembrar, numa relação dia- pSIqUlcaultrapassa mesmo os tempos infantis mais precoces,
léctica - e é preciso lidar com tais contradições desconfian- Irromp: nos traç~s ou vestígios da vida ancestral, despertan-
do constantemente delas, porque se não asseguram de modo do .ent~o cer,tas ~m:gens mitológicas, os arquétipos» 1 - e
nenhum a veracidade dessa tentativa, é pelo menos evidente mais ainda, a evidência, quando se refere nestes termos à
que face à sua ausência deveríamos suspender o nosso origem da a.n~rrz.a:(~Essai~agem é, no fundo, um conglome-
estudo. ~ado hereditário mconscienrs de origem muito distante,
Cabe-nos transformar os estratagemas do inconsciente, Incr~stado no sistema vital, «tipo» de todas as experiências
e mostrando-nos astutos com eles, forçá-Ios a dizer-nos o que da linhagem ancestral ao sujeito do ser feminino, resíduo de
podemos vislumbrar de uma qualquer verdade. todas as impressões fornecidas pela mulher, sistema de
adap~ação psíquica recebido como herança» 2.
, E" ~elo c.o~trário, a uma concepção estrutural que ele
o ARQUÉTIPO: MEMÓRIA OU FORMA? esta muito nitidamente ligado quando, retomando a dis-
tinção entre inconsciente pessoal e inconsciente colectivo
Seja qual for a nossa abordagem, tudo gira, afinal, ~mas p~efiro ante~ dizer: inconsciente como linguagem e
quando se fala de sincronicidade, em redor da questão do lI~consC1~nte c~mo Im~gens, entre inconsciente como lugar do
arquétipo e do seu aspecto psicóide. não-sentido, e mconscíente como lugar de sentido oculto en-
quanto alma e alma oculta) sugere que, a par dos conteúdos
Em primeiro lugar, consideremos o arquétipo. Sabemos pessoais que se inscrevem no inconsciente, «existem outros,
como Jung hesitou a esse propósito, e durante muito tempo, q~~ não são p~s~oalmente a~quiridos e provêm das possi-
entre duas concepções: uma, se assim se pode dizer, era uma bilidades congemtas do funcionamento psíquico em geral,
concepção lamarckiana, e a outra uma concepção que hoje nomeadamente da estrutura herdada do cérebro. São as
se diria de carácter estrutural. conexões mitológicas, motivos e imagens que se renovam por
A primeira concepção, de um modo geral, retoma a tese todo ~ lad_oe ~e~ .cessar, ~em que exista qualquer tradição
da formação histórica das imagens míticas iniciais e da sua o~ ~graça~ histonca. Designo estes conteúdos dizendo que
transmissão hereditária de geração em geração. É realmente sao mconscientes colectivos» 3. O arquétipo, em suma, seria
a uma tal concepção que Jung se submete quando, por um ~ado ir:zediato do inconsciente, forma e ao mesmo tempo
exemplo, escreve: «Já vimos antes que o inconsciente se matnz, cUJodesvendar poderia, com efeito, fazer-se histori-
divide de alguma forma em duas camadas, a camada pessoal camente, mas cujo fundamento seria trans-histórico, ou antes
e a camada colectiva. A camada pessoal detém-se nas atemporal, e cujo enraizamento se faria através do aparelho
reminiscências infantis mais precoces; a camada colectiva neurofisiológico humano.
engloba a época pré-infantil, ou seja, os resíduos da existência
ancestral. Enquanto as imagens-recordações contidas no in- 1. C. G. [ung, Psychologie de l'inconscieni, Ed. George et Cie.
consciente pessoal são por assim dizer plenas, porque vividas, 2. C. G. Iung. Ma uie, souoenirs, rêues et pensées, Ed. Gallimard.
os arquétipos contidos no inconsciente colectivo são simples 3. C. G. Jung, Types psychologiques, Ed. Georg et Cie.

36 37
Apercebemos imediatamente como essa concepção é Considerável, de facto, dado que o arquétipo se apre-
muito mais consonante com tudo o que Jung afirma, aliás, senta desde logo como uma forma per se através da qual
sobre a sincronicidade, dado que vemos ao mesmo tempo de- percebemos a realidade (em vez de tal forma ter sido
finir-se o despertar do psicóide e o reenvio a uma ordem que onstruída pela acumulação da realidade através dos tem-
se manifesta no tempo, mas que não saberia distinguir-se. pos) e porq~e o mecanismo hereditário já não se apresenta
corno a transmissão de um dado adquirido, mas como a
No entanto, é evidente que não podemos demonstrar a reprodução de uma condição de possibilidade.
sincronicidade pelo arquétipo e o arquétipo pela sincroni-
cidade. O próprio Jung, por outro lado, sentiu profunda- É sem dúvida fundamental acentuar, a esse respeito, que
mente esse problema de definição primeira, dado que na muitas das pesquisas contemporâneas são conduzidas com
mesma obra, em que remetia para a existência ancestral, não efeito nesse sentido. Do ponto de vista da psicanálise de
receia afirmar, e a formulação é particularmente interessante, origem freudiana, foi Mélanie Klein quem primeiro pôde
corrigindo antecipadamente o que está em vias de escrever salientar, nos seus estudos acerca dos primeiros tempos de
e que entretanto reescreverá: «Em cada ser individual exis- vida, que a criança de mama revela «um conhecimento inato
tem, além das reminiscências pessoais, grandes imagens e inconsciente da existência da mãe» 1, propondo a hipótese
«originais», para utilizarmos o termo pertinente pelo qual de um instinto no sentido etológico, anterior a qualquer
Jacob Burckhardt designou um dia essas figurações ances- noção de aprendizagem e que consolidaria ao mesmo tempo
trais que são constituídas pelas potencialidades do património uma relação objectal com a mãe sem que seja, no entanto,
representativo, tal como sempre aconteceu, ou seja, pelas forçosamente subjectiva à partida 2~ Nessa condição inata do
possibilidades da representação humana, transmitidas he- conhecimento (tese que, como se sabe, contribuiu aliás para
reditariamente. Essa transmissão hereditária explica o facto, excomungar na época Mélanie Klein sob pretexto de um
realmente incrível, de certos temas de lendas e motivos «neojunguismo», tendo a ideologia do psicanalismo genético
folclóricos se repetirem na Terra sob formas idênticas. Essa desse tempo levado a melhor sobre a força dos factos),
transmissão hereditária também explica como, por exemplo, encontramos aí claramente, como a própria autora supunha,
pode acontecer que mesmo os alienados reproduzam exac- essa concepção da Urbild, da imagem primordial dos etólo-
tamente as mesmas imagens e correlações q'fe se podem já gos contemporâneos 3.
encontrar em textos antigos. Pude dar alguns exemplos disso
no meu livro Métamorphoses de l'âne et ses symbols*. Neste
1. Mélanie Klein, Envie et gratiiude, Ed. Gallimard. Ver também as suas
sentido, eu não afirmo de modo nenhum a transmissão hereditária observações sobre a reacção das crianças de mama perante a voz da
de representações, mas unicamente a transmissão hereditária da mãe, em Développements de Ia psychanalise, PUF.
capacidade de evocar este ou aquele elemento do património 2. O conjunto das propostas de Mélanie Klein, bem como o estudo pos-
representativo. Entre ambas há uma diferença considerável» 1. terior dos principais trabalhos sobre a obra que vieram consolidar o
seu ponto de vista, são muito claramente apresentados e explicados por
Jean Michel Petot, Mélanie Klein: 1. Premiêres découuertes et premier sys-
teme 1919-1932; 2. Le Moi et le bon objet, 1932-1960, Ed. Dunod.
1. C. G. Jung, Psychologie de /'inconscient, op. cito 3. Ver em particular K. Lorenz, Die angeborenen Formen mõglicher Erfahr-
* Título da tradução francesa do original alemão (N. do E.). ung, em Zeistch fur Tier psichologie, T. V., e Man neets dog, Ed. Methuen.

38 39
A este respeito é sobejamente conhecida a experiência conteúdo se ela for consciente e, portanto, repleta de mate-
de Lorenz feita com gansos e o que ela induz com evidência / riais provenientes da experiência consciente» 1.
não é decerto que ao jovem ganso é fornecida à nascença Como observa Gilbert Durand, poderíamos desde logo
uma imagem da mãe (o que seria um conteúdo), mas que afirmar que «o psicólogo vê a face interna e representativa
através do logro que desencadeia a resposta de relação, se do fenómeno de que o etólogo descreve a face externa» 2. No
mostra dotado de uma estrutura a priori que a experiência entanto, é necessário ir ainda mais longe e recordar uma das
acaba por preencher: uma forma vazia, de facto, que informa últimas definições do arquétipo dadas por Jung, enquanto
precisamente o seu modo de estar no mundo 1. Encontramo- equivalente das ideias platónicas no campo da psique: «No
-nos perante o que os etólogos chamam uma componente inata lugar desses modelos que dão forma às coisas criadas, o
específica, isto é, a associação de automatismo~ endógenos a inconsciente colectivo, através dos seus arquétipos, constitui
partir da Urbild e de detonadores externos. E verdade que l!ma condição a priori para a atribuição do sentido» 3.
Lorenz entendeu dever criticar a teoria junguiana dos ar- E justamente aí que reside a diferença, ou antes a superação
quétipos 2, mas reportando-nos ao seu texto, vislumbramos da Urbild dos etólogos pelo arquétipo junguiano, no sentido
de imediato que o que ele põe em causa é a ideia de uma em que este, nessa reivindicação do sentido, supõe o espelho
formação histórica do arquétipo como representação, em da consciência - precisamente essa consciência que, para
nome de uma concepção da Urbild como esquema estrutu- além da categorização do arquétipo como condição de
rante. Ora, acerca deste ponto, o Jung posterior a 1935, isto possibilidade, para além do seu estatuto de matriz original
é, o Jung da Alquimia e do Unus Mundus estabelecido, tinha de imagens, o reflecte, em contrapartida, como estrutura da
deixado bem clara a sua posição: «O arquétipo, escreveu ele, própria alma quando é feita a conversão da subjectividade
é em si próprio um elemento vazio, formal, que não é mais (imaginário) à interioridade (recondução da imagem ao seu
do que uma facultas praeformandi» 3. Daí a reformulação sem lugar de emergência). .
ambiguidade do que deixava já adivinhar na Psychologie de Podemos assim afirmar, como [olande Jacobi, que «a
l'inconscient:* «O que é transmitido por hereditariedade não teoria dos arquétipos de Jung permite-nos uma visão global
são as representações, mas as formas» 4. E encontrando assim ao mesmo tempo da psicologia do homem e do animal.
a própria raiz da teoria etológica: «Apenas se pode provar Inúmeros biólogos e zoólogos, entre os quais é preciso referir
que uma imagem primordial é determinada quanto ao seu Schneider, Hediger, Lorenz, Uexkü1l,Alverdes, sem esquecer
o grande sábio suíço Portmann, confirmaram no domínio
biológico e animal as descobertas feitas por Jung no domínio
psíquico e espiritual. Lorenz, por exemplo, fala dos esquemas
1. Ver mais exactamente, sobre este aspecto, as descrições e definições de
pré-formados, inatos, que determinam a atitude e as reacções
N. Tinbergen, An objective Study of the innate behavior of AnimaIs, em
Bib. Bioth., 1, 1942, e K. Lorenz, Le Comportement animal et humain, Le
Seuil.
2. K. Lorenz, op. cito
3. C. G. Jung, Les Racines de Ia conscience, Buchet-Chastel. 1. Ibíd.
4. Ibid. 2. G. Durand, Science de l'homme et tradítíon, Ed. Berg lnternational.
,. Tradução francesa do original alemão (N. do EJ. 3. C. G. Jung, Mysteríum coniunciionis, Ed. Albin Michel.

40 41
instintivas dos animais e dos homens. Insiste, tal como Jung, da consciência quando esta sabe avaliá-Io, no mistério da
no facto de que, para o homem, não se trata de imagens alma conquistada ou reconquistada 1.
inatas, mas de virtualidades, de potencialidades inatas ca- Movemo-nos assim no horizonte de uma filosofia da
pazes de criar certas imagens que ganham, então, formas Natureza muito profunda e Jung surge, desse ponto de vista,
infinitamente variadas conforme a natureza e a experiência orno herdeiro de Paracelso ou de alquimistas como Cherard
dos indivíduos» 1; podemos ainda afirmar, como faz também Dom ou Agrippa von Nettensheim que muito estudou e de
Portmann, que «a totalidade do comportamento e do ritual quem retoma a ideia da lumen naturae, a luz da Natureza 2.
dos animais superiores revela um elevado grau de carácter abemos como Jung em pessoa considerou longamente as
arquetípico» 2, o que faz com que a sua vida interior (tierische relações do arquétipo e do instinto 3, e como certas descober-
Innerlichkeit) seja governada por um princípio supra-indivi- tas recentes fizeram ressaltar a já longa existência no reino
dual; não podemos, todavia, esquecer, para além dessas animal de estruturas de comportamento que induzem o
asserções, o que o próprio Jung dizia dessa dimensão aparecimento de Urbilder imediatas - ou seja, não reflecti-
biológica, que «muda completamente de aspecto se a obser- das 4. Parece, pois, correcto dizer-se que se podem relacionar
vamos de dentro, isto é, a partir da vida subjectiva da alma. certas imagens primordiais - ou antes .certas matrizes, com
Aí (o arquétipo), manifesta-se como uma potência numinosa algu~ desenvolvimento do aparelho neuropsíquico vital.
de importância capital» 3. Por outras palavras, enquanto o Considerada sob esta perspectiva, a instância arquetípica
animal apresenta uma estrutura binária composta pelo es- apresenta-se como o estádio intermédio entre o instinto e a
quema e pelo agente desencadeador, no homem existe uma consciência; a genética simbólica que implica necessaria-
tríade formada pelo esquema apreendido como forma, pela mente a ideia de evolução, mostra como de facto se passa,
experiência sensível e pela consciência em acto que justa- por exemplo, de um universo significativo de dimensões
mente o funda na sua humanidade específica e o leva a unívocas entre os insectos 5 à simbolização por reflexibilidade
perceber a transcendentalidade que assim se manifesta, neencefálica humana, passando por um inconsciente pré-
resultante desse mysterium que Otto tinha já assinalado 4.
Mysterium, por seu turno, que se dá sobretudo no sentido
de um tremendum, numa ambivalência de fundo, na medida
em que é compreendido como tendo a sua origem no campo 1. Ver W. F. Otto, lbid., e C. G. Jung, Les Racines de Ia conscience, mais parti-
do inconsciente e se transforma, pelo contrário, no .espelho cularmente as visões de Zózimo e o capoIV sobre «L'inconscient comme
conscience multiple», Ed. Buchet-Chastel.
2. Ver C. G. [ung, Les Racines, cp. IV, ibid.
3. Em particular, C. G. Jung, L'Energétique psychique: Instint et inéonscient,
Ed. Georg et Cie.
4. Ver entre outros o artigo de J. R. Horner e R. Makela, «Nest of [uveniles
provides evidence of Family Structures among Dinosaurs», Nature, 15.
1. J. [acobi, Complexe, archétype et symbole, Ed. Delachaux et Nistelé. Nov. 1979, a propósito da descoberta e do estudo de quinze «bebés-
2. A. Portmann, Les rites des aninaux, em Eranos [arhbuch, 1950. hadrossáurios nos sedimentos do Cretáceo Superior de Two Medecine
3. C. G. [ung, Prefáce aux «Mysteres de Ia [emme», de Esther Harding, Ed. Formation, em Montana.
Payot. 5. Ver J. von Uexküll, Mondes animaux et monde humain e Théorie de Ia
4. Ver W. F. Otto, Le Sacré, Ed. Payot. signification, Ed. Gonthier.

42 43
-reflexivo e instintual que surge com os cérebros arcaicos dotado de alma - seria preciso reformular a hipótese de
do vertebrado em geral (o palencéfalo do homem) e do Aristóteles sobre as almas animais, que afinal dependem do
mamífero em particular (o rinencéfalo ou, por outras pala- inconsciente estrutural no seu aspecto particular da in-
vras, o nosso sistema límbico) 1. Assim apreendido, o arquéti- onsciência da alma 1.
po representa a abertura do instinto, a sua ruptura neoténica,
que o transforma, respeitando-o, numa da lógica do tertium:
que o transforma pela dialéctica na consciência e o respeita PSICÓIDE E BIOLOGIA
enquanto esquema fundamental- o tertium, precisamente,
consiste nessa consciência que instala o sujeito como núcleo É nesta perspectiva que melhor se pode compreender
de reflexão nos dois sentidos da palavra -, enquanto pen- o que Jung pretende uma vez mais afirmar quando fala em
samento e espelho. dados psicóides para designar o arquétipo - esses dados
Importa esclarecer, porém, que se trata da aplicação à psicóides que remetem em simultâneo para a concepção do
história de um princípio que lhe escapa e da simbolização da Unus Mundus na noção de transgressividade (que implica
Natureza com um plano subtil que lhe é, não anterior, mas que os arquétipos particulares participam de uma unidade
precedente segundo uma hierarquia de aparição. Quando potencial da totalidade do Universo, ou seja, que se referem
retoma a philosophia sagax de Paracelso 2, Jung redescobre de ao mesmo tempo a um arquétipo geral de representação do
imediato, no vocabulário do século xx, a noção de Astralleib Mundo) e aplicando isso na constituição do homem que seria
do seu predecessor suíço, isto é, dos princípios da realidade por sua vez estruturado dessa forma, com as suas mani-
objectiva (no sentido de não-imaginário, não-fantasmático) festações psíquicas e somáticas, a indexação de umas nas
da alma e das suas figuras imaginadas. Se preferirmos outras,e a existência de uma zona potencial profunda de que
podemos dizer antes que a etologia não anuncia a psicologia, o corpo, o espírito e a alma seriam os actuais e autónomos
é antes a psicologia (no seu sentido real como ciência da alma desdobramentos, mas potencialmente confundidos numa matriz
viva) que explica a etologia, que representa a sua implicação única.
profunda no sentido em que é entendida por alguém como É espantoso verificar que as descobertas médicas pare-
David Bohm 3. O homem não seria tanto, de novo, um animal cem confirmar esse ponto de vista e confirmar pouco a pouco
as posições de Jung que se revelaram as mais paradoxais.

1. Colocada deste modo, a alternativa do arquétipo como memória ou


1. Ver Henri Laborit, Neurophusiologie, Aspects métabolique e pharmacologique, como forma muda subitamente de sentido e afirma-se por si mesma:
Ed. Masson se o arquétipo é, sem dúvida, forma e não resultado de uma sedimen-
2. C. G. Jung, Parace/sica, Gesammelte Werke, vol. XJII e xv, e o capo citado tação histórica (a memória comum de Proclus alargada à espécie),
em Racines. suscita no entanto um outro tipo de memória - a memória metapsí-
3. Ver D. Bohm, Who/eness and the imp/icate Order, Routledge and Kegan quica da alma num processo de anamnese em que o homem já não
Paul Ed., particularmente o último capítulo: fora das leis da causalidade depende da História, mas pelo contrário é ele que a cria. (Ver a minha
física, são as fases posteriores do desenvolvimento (unfolding states) que obra La Science et l'âme du monde, op. cit.) Reside aí o princípio do
revelam a ordem profunda dos estádios anteriores. processo de individualização.

44 45
Sabe-se, por exemplo, que, enquanto foi pelo estudo dos quais essa ligação real se realizava. 1. Ora, a descoberta da
esquizofrénicos que a evidência do inconsciente colectivo se .loroprornazina, a aplicação do largactile dos seus derivados
impôs ao psicólogo.e que, foi dos dados constantes dos seus posteriores, o conjunto dos trabalhos de Laborit e dos seus
delírios, em consonância com os mais antigos aspectos colegas, demonstraram realmente a acção dos psicotrópicos
mitológicos e religiosos da humanidade, que inferiu a noção sob.re os delírios graves ocorridos enquanto a utilização dos
de arquétipos, nem por isso deixou de admitir a hipótese de antidepressores (ímípramína, IMAO, sais de lítio) permiti-
uma «toxina» ou de um agente neuroquímico no aparecimen- ram lutar de forma vitoriosa pela primeira vez, eem larga
to da doença mental 1. .scala, contra as psicoses depressivas profundas 2.
Mas nada é mais significativo a esse respeito do que a
sua participação no II Congresso Mundial de Psiquiatria, Mais, alguns estudos recentes confirmaram p~uco a
realizado em Zurique, em 1957, e no qual, abandonando pouco que, para além dos próprios domínios constitucionais,
deliberadamente as sessões de estudos psicológicos em. que as tendências.psicóticas podiam também derivar de mecanis-
esperavam vê-lo, assistiu de preferência ao colóquio consa- mos hereditários e, portanto, de ordem genétíca: os estudos
grado aos novos medicamentos psicotrópicos que estavam levados a cabo na Inglaterra sobre o autismo 'infantil a partir
em vias de ser conhecidos. E que há de mais .revelador do de gémeos monozigóticos fizeram na verdade sobressair esse
que estadeclaração, relatada por uma testemunha quase 25 fenómeno 3, enquanto a comparação da taxa' de concordância
anos mais tarde: «Estou presente neste colóquio porque sei gemelar para a psicose maruaco-depressíva entre monozigóti-
que nele a minha curiosidade tem possibilidades de ser cos e dizigóticos revelou algumas diferenças significativas,
satisfeita. Aprenderei algumas coisas novas e mesmo se se dado que s~ p~ssou de uma proporção de 50 para 100 por
revelarem falsas poderei depois sonhar ou adormecer com cento no pnmeiro caso, para uma proporção de 25 por cento
elas. De resto, como sabem, creio na origem possível/das no segundo caso 4. Do mesmo modo, o risco de maníaco-
psicoses desencadeadas por certas .substâncias, .tóxicas. -depressão. pôde .ser estimado num valor médio de 20 por
É como a história da mosca sem asas que observamos a cento no ambiente biológico de depressivos bípolares.ien-
andar. Como poderíamos adivinhar que alguém lhas tinha quanto a proporção «normal» de riscona população geral
arrancado? Como poderíamos .acreditar que antes disso ela. é no máximo -da .ordem de quase 1 por cento 5. Se estamos
voava?»?
Uma intuição muito genial da parte de um psicólogo
1. Ver as intervenções particularmente claras a esse respeito de Pierre
que assim se opunha a uma certa tradição psicanalítica, que Fé~ida ,em.P. Fédida, M. Montrelay, P. Solié, M. Cazenaoe: La Psychanalyse
sempre afirmara a absoluta independência da actividade aujourâ hui, Ed. Imago, sobre a questão das relações entre biologia, neu-
psíquica e não receia desembocar no aspecto psicossomático roquímica e psicanálise.. .
sem nunca explicar os processos misteriosos por meio dos 2. S. Peroutka e F. Snyder, Long-term antidepressant Treatment decreases
Spiroperidol-Iabeled Serotonin Receptor binding, «Science», voI. 210.
3. S. Folstein e M. Rutter, Nature, 1977. Resumo de A. Vloebergh, Les bases
1. Ver em particular. Considérations actuelles sur Ia schizophrénie (G. W. V.), généiiquesde l'autisme infantile, «La Recherche», 1977.
tradução francesa em Cahier de l'Herne C. G. Jung.Poderá ler-se aqui, 4. F. J. Kallman, Genetic principies in manic. depressive Psychoses, em Hoch
com interesse, o artigo de Denyse Lyard, «Jung et Ia psychose». e Zubin, Depression, Grunne and Statton.
2. Em J. Thuillier, Les dix ans qui ont changé Ia folie, Ed. R. Laffont. 5. Ibid.

46 47
ainda longe de conhecer os processos dessa transmissão, ",Il'c particularmente excitada - enquanto, por outro lado, a
pode todavia avançar-se, no quadro geral da teoria mende- 4'Ii cia dos neurolépticos se explica, pelo menos em parte,
liana, que estava ligada a uma repartição sexual de pre- 1'\'10 facto de ao se ligarem aos receptores da dopamina,
dominância feminina, e observações diferentes sublinharam hloquearem a sua actividade 1. Esta explicação, claro, não é
realmente o papel na ocorrência do cromossoma sexual X, Il~)rsi só suficiente e foi depois largamente reforçada pelos
bem como a ligação entre a síndroma bipolar e o grupo 11'<l balhos realizados sobre a acção das endorfinas. E desse
sanguíneo Xg 1. modo se fez ressaltar a existência no homem do que
A esquizofrenia e a depressão de tipo puramente melan- poderíamos chamar um neuroléptico natural- isto é, endóge-
cólico parecem derivar muito menos desse tipo de pesquisas, 110: a DTE, des-tir-Iendorfina ou neuroleptina 2. Inversa-
mas os actuais progressos da psicofarmacologia e da neu- mente, revelou-se a capacidade de provocar alguns estados
robioquímica põem cada vez mais em evidência até que catatónicos através de aplicações intracerebrais de B-endor-
ponto essas afecções se caracterizam biologicamente. Mas fina em ratos, ao mesmo tempo que certas pesquisas que se
não é aqui o lugar para referir o quadro das mais-recentes apoiam no papel neuromodulador de três péptidos princi-
conquistas - embora se afigurem indispensáveis algumas pais do sistema nervoso central (a neurotensina NT, a
referências. Em relação com o sistema mesocórtico-límbico somatostatina 55 e a hormona que produz a tirotropina TRH)
que já assinalámos na nossa estrutura cerebral, pod.emos . na sua interacção com os sistemas monoaminas do cére-
colocar também em evidência o papel da dopamina na bro 3, pareceram revelar uma significativa modificação na
esquizofrenia 2, revelando-se a neurotransmissão dopaminér-

1. Ver os artigos de L. L. Iversen e I. Cruse, D. R. Burt e S. M. Snyder


1. G. Winokur, P. J. Clayton e T. Ruch, Manic-depressive Illness, Mosby, em Science, vol. 188, 1084 (1975) e vol. 192, 481 (1976). Para um reforço
e J. Mendlewicz e J. L. Fliess, Linkage Studies with X-chromosomes Warkers da teoria por comparação dos efeitos neurolépticos clássicos e dos ADP
in bipolar (manic-depressioe) and unipolar (depressive) Illnesses, Biol. «Psy- (Anti Psychotic Drugs) atípicos sobre a substantia nigra (A 9) e os neu-
chiatry», 1974, 9. Há que notar que, no campo psicossomático, a manía- rónios à dopamina da zona rnesocórtico-lírnbica (A 10), deve referir-
co-depressão pode também dissimular-se sob «depressões disfarça das» -se F. J-White e R. Y. Wang, Differential Effects of Classical and Atypical
com carácter cíclico: úlcera duodenal associada com o antigénio san- Antipsychotic Drugs on A 9 and A 10 Dopamine Neurons, em Science,
guíneo 0, hipotiroideia, alcoolismo periódico ou dipsomania. vol. 221 (1983).
Ver sobre este assunto J. Mendlewicz, The Naiure of affective Equiualenis Deve observar-se que o aumento da dopamina parecia caminhar a par
in relation to affective Disorders, em «Excerpta Med. lnt. Congress ser., com uma redução da actividade decarboxilática -do ácido glutâmico e
Amesterdão» - Série 274, 1972. Como o resume Mendlewicz: «Certos acetiltransferático da colina.
equivalentes depressivos de natureza somática podem dissimular a Acerca de idênticas pesquisas realizadas sobre o efeito do lítio na neu-
depressão de indivíduos com predisposição. ° papel homostático da rotransmissão da serotonina nas psicoses maníaco-depressiva, ver S. L.
depressão é então desviado para vias fisiológicas cuja localização é Treiser, C. S. Cascio, T-L. O'Donohue, N. B. Thoa, D. M. Jacobowitz
provavelmente determinada de modo genético» a. Mendlewicz: Donnés e K. J. Kellar, Litium increases Serotonin Release and decreases Serotonin
gênétiques récentes sur Ia maniaco-dépreseion: éoaluation et méthodologie). Receptors im the Hippocampus, Science, vol. 213 (1981).
2. Ver S. W. Matthysse em Proceedings Fed. American Society, Exp. Biol. 2. Ver os estudos de De Wied e Van Praag, em The Lancet, 1, 1978.
vol. 32, 200 (1973) e mais recentemente S. M. Snyder em American [our- 3. Ver os artigos de S. M. Snyder em Science, vol. 209, 976 (1980) e A.
nal of Psychiatry, vol. 133, 197 (1976). J. Prange Jr. e C. B. Nemeroff em Ann. Rep. Med. Chem., vol. 17,31 (1982).

48 49
distribuição desses neuropéptidos em certas regiões das experiências de Grof demonstraram a mesma coisa 1, e
zonas corticais frontais dos esquizofrénicos 1. r-n tendemos bem que alguém como Changeux tenha passado
Sem querermos ir mais longe, verifica-se deste modo até 110 lado do problema, situando no mesmo plano, sob pretexto

que ponto o delírio ou o luto s.ã~ ~e~edores. e~ ~elação a (Ias mesmas supostas modificações neurobiológicas, o delírio
um duplo enraizamento neurofisiolôgico e biológico. do esquizofrénico e as visões de Joana d' Are 2: a esquizofre-
nia declarada revela-se totalmente inoapacitante e se a
Entendamo-nos, de uma vez, acerca dos termos. Não se natureza das imagens é com efeito similar, a estruturação
trata de afirmar neste momento que os desregulamentos do d ssa natureza e o seu entendimento com o consciente
fisiológico em geral provocam e, portanto, causam a pe:tur- mostram-se especificamente diferentes no delírio e na visão 3.
bação do psíquico e que este, por sua vez, apenas podera ser
tratado por meio de medicamentos. Se foram realizadas Afigura-se, pois, mais adequado afirmar que existe uma
algumas contraprovas experimentais do desencadear dos .Iialéctica recíproca entre o domínio do soma (e por vezes do
mecanismos do inconsciente através de alucinogénios, como ,'\'ermen) e o da psique, dialéctica apoiada sobre uma unidade
peiotil, mescalina ou LSD 2, se desde muito cedo se.afirm~u subjacente que implica a ideia de uma totalidade da pessoa
de modo bem claro residir aí um modelo de esquizofrenia viva, ao mesmo tempo virtual e actualizada na constituição
primária-' e que podíamos originar o que se designou como dos seus pólos manifestos. Nesse sentido, é bom evocar os
«íármaco-psícoses» por meio da administração dessas sub- lrabalhos de um psiquiatra como Hubertus Tellenbach que,
stâncias 4, não deixa de ser menos verdade que essas contra- através de diferentes abordagens, inscrevendo-se na tradição
provas permitiram também compreender que, para além ,da fenomenológica e na esteira de Heidegger e de Binswanger,
acção neuroquímica, existia ainda o problema do conteudo hegou finalmente a concepções semelhantes. Estudando por
alucinatório. Como Hoffman afirmava desde 1970, «nos seu lado a melancolia como forma monopolar, chegou de
casos mais favoráveis, o LSD apenas pode libertar e activar facto à seguinte conclusão: «Foi a visão do todo da alteração
o que já está de facto presente na personalidade» 5. As melancólica existencial que nos permitiu partir de uma nov:a
oncepção de endogeneidade para tentar compreender a
1. C. B. Nemeroff, W. W. Youngblood, P. J. Manberg, A. J. Prange Jr. e melancolia. Mas essa visão global remetia a questão da
J. S. Kíger, Régional Brain Concentrations of Neuropeptides in Huntington's origem da melancolia para os confins de uma região que
Chorea and Schizophrenia, Science, voi. 221, 4614 (1983).Poderá ter-se uma precede a distinção entre soma e psique. Designamos essa
descrição clara destes diferentes pr~blemas em E. Slater e W. Co,:"ie,
The Genetics of mental Disorders, Oxford University Press e no «dossier»
de Recherche sur Ia schizophrenia, em particular o artigo de Y. Le Moal
'1. S. Grof, Les Royaumes de l'inconscient humain, Ed. du Rocher.
(1977).
2. Ver os casos relatados por Jean Thuillier, op. cito 2. Em J. P. Changeux, L'Homme neuronal, Ed. Fayard.
3. G. Rosembaum, B. Cohen, E. Luby, J. Gottlieb, D. Yelen, Simulaiion of 3. Dentro de tal ponto de vista, deve comparar-se a identidade de certos
Schizophrenic Performance with Sernyl, LSD 25 and Sodium Amytal em temas e a diferença da sua abordagem no caso do desenvolvimento
«Arch, Gen. Psychiatry», 1, 1959. esquizofrénico de Miss Miller em C. G. Jung, Métamorphoses de l'ãme
4. Referir por exemplo L. E. Hollister, Chemical Psychoses, C. C. Thomas et ses symboles; Georg et Cie., e nos processos de individualização des-
pub. Springfield. critos pelo mesmo autor, LesRaclnes, op. cit., ou Mysteríum coniunctionis,
5. A. Hoffmann, Les Hallucinogênes, La Recherche, 3, 1970. Ed. Albin Michei.

50 51
região de unidade antecipada como endon e, por endon, '1",1 li nrqu tipo, com efeito, deve ser também uma forma
entendemos a soma do possível que pode ser confiado à vida II/ill111fll/il'll na sua raiz e neuropsíquica na sua manifestação.
pela criatura orgânica enquanto natureza com algumas I d,' IIOVO a ressonância profunda dessa observação de Jung,
características, por muito pouco que essa vida seja suscitada , )1.111li I() a qual se deve reencontrar o «fenómeno psicóide
pelo cosmos envolvente. Em correspondência com essas "'1 dois extremos da escala psíquica» 1, desde que precisa-
referências situacionais específicas, a região do «endon» 1111'1111' s saiba reflecti-Io em dois registos diferentes, mas
revelou-se um campo etiológico próprio. Foi nela que per- 1 ,', '/'1'1) amente ligados um ao outro. Por outras palavras,
cebemos a origem das mutações que designamos como ,I,'v,'r nmos encontrar normalmente certas modificações neu-
etapas da maturação - cujo sucesso é constitutivo da boa 11,1, (,/ )gicas semelhantes nos delírios psicóticos como nos
saúde - como as que acompanham a perda de saúde e a que 1"110111 'nos de individualização (e de mística), sem falarmos
chamamos «psicoses endógenas ». (...) Essa visão das coisas ,I" IlIl'S estados intermédios como os acessos delirantes es-
em que aparece, para um determinado campo de doença, 111\1.1 Ias por Perry, que são o retomo patológico de um
uma afinidade ôntica dos sintomas biológicos e psíco-espí- "'\'111 camento espiritual, e a manifestação regressiva de uma
rituais corresponde ao ponto de vista que Von Gebsatell " Ig';ncia de iniciação 2. Por outro lado, num horizonte ao
designou como a «forma de ver construtivo-genética» (1954, IIlt'smo tempo metapsicológico e meta físico em sentido
p. 4») 1. I-róprio, e no próprio quadro dessa filosofia da Natureza que
1"I .vocámos, aí se manifesta em simultâneo essa ideia
,'/IS .ncial de que o Si-mesmo como arquétipo da totalidade,
PSICÓIDE E UNUS MUNDUS ,It'scnvolvendo-se segundo a sua estrutura, permanece coe-
unte consigo, conotando-se com o Unus Mundus a um duplo
o que é que está em jogo nestas opiniões senão a ideia nfvel: o da sua própria definição em que ordena num sentido
central de uma unidade primordial do homem - ou seja, se " numa unidade potencial a globalidade do Universo nas
desenvolvermos esse pensamento até ao fim, a unidade fun- nuas diferentes componentes e o da sua realização em que,
damental, mas potencial do espírito, da alma e da orga- na assumpção do vir unus, se processa a reconciliação final
nização somática, portanto, também material, de qualquer d.o homem com o Universo que o rodeia 3. Mas é preciso
pessoa humana? Com uma dupla vertente sincrónica e .iinda esclarecer, e Marie-Louise von Franz salientou isso
diacrónica - sincrónica nesse Unus Mundus microcosmos e
diacrónica no aspecto genético em ambos os sentidos da
palavra: enquanto processo de construção e enquanto pro-
cesso biológico e fisiológico 2. Daí a ideia que se impõe de I. C. G. Jung, Les Racines, op. cito
2. J. W. Perry, The Self in psychotic Process, University of Califomia Press.
Ler o prefácio de Jung, publicado emCahiers de l'Herne C. G. fungo
1. H. Tellenbach, La Mélancolie, Presse Universitaires de France. Ver V. 3. Se se quiser ser exacto, é necessário dizer que existe de facto um quá-
E. von Gebsattel, Prolegomena Zu einer medizinischen Anthropolgie, Springer. druplo nível a par da potencialidade/actualidade que acabámos de evo-
2. Rever a propósito a primeira parte de P. Solié, La Femme essentielle, op. car, mas também um outro par designado por psicopatologia / indi-
cito e as ligações a estabelecer, numa dupla ligação emfeed-foreward, com vidualização em que o Ilnus Mundus pode manifestar-se e refere com
os aspectos sincrónico e diacrónico dos arquétipos do Eu e do Si-mesmo. evidência tudo o que vimos acerca da etiologia das «doenças mentais».

52 53
muito bem a partir das obras alquímicas de Dom, que. «a Assim, alcançar 'esse ponto em que as realidades interior e
ideia de um Unus Mundus é uma variação do conceito de (, terior (a terra e o céu) se unificam é o objectivo próprio
inconsciente colectivo. Todos os arquétipos estão à partida tia individualização e através dela o homem atinge algo do
°
num estado de contaminação e daí U1Jus Mundus ser uma que Jung designa como o «saber absoluto» no inconsciente 1.
multiplicidade unificada, uma divisão em partes e ao mesmo
tempo uma unicidade. Nesse mundo imaginal ', tudo era As consequênciassão enormes, dado que se vê desde
concebido em estado, de harmonia. Não havia nenhuma logo como o ajustamento arquetípico encontra justificação na
desar~onia no Unus Mundus, as coisas estavam divididas e /lua própria dinâmica; como o 'psicóíde se relaciona defini-
unidas ao mesmo tempo. Dom afirma que o Llnus Mundus, livamente com o aparecimento da sincronicidade através do
só se manifesta depois da morte, ou seja, é um acontecimento l/nus Mundus e vai ao encontro, por uma dupla tentativa
psicológico pelo qual o homem se une a, tudo o que existe; psicológica e neurobiológica, de outras hipóteses científicas
Concretamente! o Unus Mundus ap~rece, corno Jung obser- li que, aliás, Hubert Reeves já aludiu no seu artigo quando
vou, nos fenómenos sincronísticos. Enquanto vivemos nor- lula da ideia especulativa, mas a ser investigada de que certos
malmente num mundo dual .de .acontecimentos «interiores» mecanismos cerebrais corresponderiam a «sistemas quânti-
ou, «exteriores», essa dualidade desaparece num aconteci- ros a grande escala» 2.
mento sincronístico: os acontecimentos comportam-seentão Na verdade, quando Niels Bohr sugere que o pensa-
como se fizessem parte da nossa psique, de modo que todas: mento implica tão poucas energias no cérebro que deve ser
as coisas estão contidas na mesma totalidade. (...) Essa regido por efeitos quânticos 3; quando David Bohm afirma
experiência é também o estádio último do processo de. que os processos intelectuais e os lapsos de atenção parecem
individualização em que nos unimos com o inconsciente «comportar-se subjectivamente segundo o mesmo princípio
colectivo, mas não de uma forma patológica como em certas de incerteza que oda mecânica' quântica» 4; quando London
psicoses em,que o processo de individualização decorreu mal .hega ao ponto de propor que alguns mecanismos mac-,
e em que todas as coisas aparecem deformadas. Pelo con- roscópicos de natureza quântica poderiam revelar-se impor-
trário, quando o, processo, se desenrola de uma forma tantes nos organismos vivos, avançando que «em certos
positiva, implica uma união com o inconsciente colectivo em processos biológicos, o conceito do estado fluido de entropia
vez de uma ruptura e de uma separação, o que significa um , nula poderia representar um papel decisivo, porque combina
alargamento da consciência concomitante a um enfraque- a estabilidade característica dos estados quânticos com a
cimento de intensidade do complexo do ego. Quando isso
acontece, o ego apaga-se em favor do inconsciente colectivo.

I. M.-L. von Franz, Alchemical Active Imagination, op. cito


2. Ver K. Pribram, M. Nuwer, R. Baron, The Holographic Hypothesis of
L Tr~duzimos .aqui fantasy por imagina I, na medida em que .nenhuma Memory Struciures in Brain Function and Perception, em «Contemporary
equivalência que,satisfaça foi até agora encontrada em francês para esse Developments in Mathematical Psychology», Freeman and CO.
t-ermo anglo-saxónico, e porque se refere ao contexto de uma. imagi-, 3. N. Bohr, Atomic Theory and theDescription ofNature, Cambridge Univer-
nação que traduz a realidade psíquica objectiva"de uma imagina tio vera, sity Press.
non fan tas tica, para retomar a citação de Jung em Rosaire des philosophes. 4. D. Bohm, Quantum Theory, , Prentice Hall.

54 55
possibilidade de movimento» 1, que é o duplo sentido da " uio, alargando essa noção, passando do adjectivo para o
vida, forma-se aí a cadeia (de forma ainda hipotética, IIllhstantivo, do elemento psicóide para a determinação do
verdade) para esse «estado» da realidade em que a própria I",/r'líide no homem, verifica-se que somos imperiosamente
noção de matéria desaparece e em que a potencialidade no '1111 luzidos para a necessidade lógica da existência da
sentido aristotélico se impõe num mundo que é em primeiro ,li ncronicidade e para o problema do seu enraizamento na
lugar o do aleatório e do indeterminado. jlrúpria ordem do Universo.
De qualquer modo, compreende-se assim, nos vários É evidente que só posso apresentar aqui alguns com-
exemplos que referimos, como se estabelece uma equação pk-rnentos à Incursão no domínioacausal onde nos levou
«diferencial» entre as noções de arquétipo, de psicóide, de l lubert Reeves. No entanto, parece importante precisar
Unus Mundus, de inconsciente colectivo e de «saber abso- "I · rtos aspectos para se examinarem as possíveis implicações
luto», ou seja, como emerge pouco a pouco a ideia de que 110 ponto de vista do Unus Mundus e ao mesmo tempo fazer
o inconsciente colectivo é talvez também um inconsciente cósmico t.imbém considerações que talvez não o deixem totalmente
que não poderia desligar-se da totalidade do Universo no seu rnd iferente.
conjunto. Com a prudência que se impõe, o físico e o astrofísico
propõem-nos quatro pontos que poderiam fazer supor a
«xistência de uma ordem acausal, em que é evidente que não
A OMNIPRESENÇA DO INCONSCIENTE li' nega a causalidade (e devemos insistir nisso, porque o

E DO UNIVERSO contra-senso é vulgar), que seria complementar ou, con-


lorme as soluções, seria o seu fundamento. Esses quatro
Por instantes, poderá supor-se que, interessando-nos pontos são, respectivamente, a experiência do pêndulo de
pelo aspecto psicóide do arquétipo, imposto entretanto pela l'oucault, o enigma do clarão fóssil, a constância das leis
constituição da noção de sincronicidade, acabámos por nos da física e o famoso paradoxo de Einstein, Podolsky e
afastar dela em direcção a horizontes estranhos. Pelo con- Rosen 1.

De facto, quando Hubert Reeves trata do pêndulo de


1. F. London, Superfluids, vol. I. Dover Pub. Ver, aliás, e a propósito do Foucault e observa que «tudo se passa como se o pêndulo
que foi durante muito tempo considerado como de natureza instintual, em movimento optasse por ignorar a presença, junto dele,
sobre a sensibilidade aos campos magnéticos de certos pássaros migra-
tórios que utilizam o campo magnético terrestre para se orientarem
do nosso planeta, para orientar o seu rumo para as galáxias
(D. E. Beischer, The null magnetic Field as Reference for the Study of geo- distantes de que a soma das massas representa a quase
magetic directional Effects in Animais and Men, «Annals of the N. Y. Aca- totalidade da matéria do universo observável» 2, afirma,
demy of Science», 188, 1971), as explicações avançadas por Cope sobre apoiado em provas experimentais, que existe uma misteriosa
a possível existência de magnetómetros biológicos que apresentam o
efeito Iosephson, em Evidence for activating Energies for superconducting
tunneling in biological Systems at Physiological iemperature, «Physiologi-
cal Chemistry and Physícs», 3, 1971, e Enhancemeni by high electríc Fields 1. Einstein, Podolsky e Rosen, Can Quantum-mechanícal descríption of realíty
of Superconduciion in organíc and bíologícal Solids at room iemperature and be considered complete?, «Physical Review», 1935.
a Role in nerve conduction? «Phys, Chem. and Phys.», 6, 1974. 2. Hubert Reeves, Incursion dans le monde a-causal, ver supra.

56 57
coincidêrcía entre o sistema de inércia e o sistema fixo (isto que a tensão ou a intensidade praticamente infinita da psique
é, sem movimento de rotação), ou em termos mais simples, s transformaria em frequências e mesmo em «prolongamen-
que o plano de oscilação do pêndulo permanece imóvel em tos» espacio-temporaís perceptíveis» 1. Essa concepção, além
relação aoconjunto do Universo. Daí o «princípio» de Mach le, numa abordagem aproximativa (mas era realmente a
que enuncia,através da sua concepção da influência da primeira vez que a psicologia ousava avançar nesses domí-
globalidade do Universo em todas as, suas localidades, que nios!), anunciar as pesquisas, ou o centro das pesquisas de
a totalidade do Universo está presente de uma ou de outra forma que já falárnos sobre o modo de funcionamento do cérebro 2,
em cada uma das regiões e em cada um dos seus momentos, sendo , prever algumas dificuldades inerentes aos limites coloca-
por isso o Universo indivisível do ponto de vista da tota- íos pelas explicações de natureza estritamente espacío-
lidade do coniinuum espacio-temporal e a nossa maneira -temporal 3, também elaborava a ideia de um inconsciente
espacio-temporal de o apreender (mesmo que fosse tão global gerador do. tempo e do espaço, que está assim
refinada como na teoria da relatividade, e unicamente o-presente, como estaria o Universo, em cada região e em
matemática) não seria afinal mais do que um trabalho de cada instante das suas manifestações. Embora seja difícil
representação que se realizaria no seio dessa totalidade cria- reflectir sobre estas noções, compreende-se desde logo como
dora. nos encontramos muito próximos não só do enunciado do,
princípio de Mach quanto ao universo fisicamente obser-
, Estasbreves palavras, lembram-nos, claro, a forma como vável, mas também das ideias de [ames Jeans quando
Jung procurava explicar a natureza do inconsciente colectivo apresenta o «substratum» desse mesmo Universo como um
a físicos ComoPauli ou [ordan, Numa carta a Pauli, escrevia tempo e um espaço vazios, ficando bem entendido que esse
que se pode considerar o inconsciente colectivo como um vazio, ou esse nada, é um nada formador do qual emerge
«continuum omnipresente ou como um presente sem du- precisamente o nosso espaço-tempo físico 4.
ração» 1 e algum tempo depois, afirmava que essa omniprs- Mas aqui impõe-se, uma observação. Nessa forma de
sença significa uma relativização nas camadas mais profun- onsiderar a totalidade do cosmos como um todo indivisível
das da psique do coniinuum espacio-temporal da física de certo modo «superior» e ao mesmo tempo «interior» ao
relativista: «O mundo arquetípico é eterno, ou seja, está fora seu próprio deslocamento, não devemos deixar de considerar
do tempo e em toda a parte (...) porque quando se trata de que o homem faz naturalmente parte dele, incluindo mesmo
arquétipos, o espaço não existe» 2 e «talvez devamos renun- o seu psiquismo, e por isso o inconsciente é uma das
ciar completamente às categorias de espaço e de tempo componentes desse universo que se deve estruturar da
quando se trata da realidade psíquica. Seria preciso conceber mesma forma que ele.
a psique como uma intensidade sem duração e não como um
corpo que se move no tempo. (...) E poderíamos então
considerar a psique como um transformador de energia, em 1. Ibid., vol. I!.

2. Ver a nota 2 da página 55 e igualmente K. Pribram, Esprit, ceroeau et


conscient em Science et Conscience, les deux leciures de l'Univers, Stock.
3. Ver K. Pribram, Holonomyan Struciure in the Organization 01 Perception,
1. Carta a Wolfgang Pauli, Briefe, vol. 1. University of West Ontario, K. Pribram, Nuwer e Baron, op. cito
2. Ibid., vol. li. 4. J. Jeans, The mysterious Unioerse, Cambridge University Press.

58 59
Por outro lado, é necessário salientar que as ideias de Ora, é essa inteligibilidade que procuramos, contudo,
James [eans não se afirmam em contradição, como poderia ",'rscrutar, e somos levados a pensar que apenas se pode
parecer à primeira vista, com o princípio de Mach, na medida tI".-:vendar através do psíquico, e do psíquico objectivo,
em que a afirmação de uma totalidade presente em cada uma Ill'ndo esse psíquico o intermediário' do inteligível e do
das suas regiões e dos seus momentos pressupõe na verdade «nsível, porque se o inconsciente universal, num dos seus
que essas regiões e momentos sejam especific~ções dessa urvcis, é parte integrante da totalidade do real (e vemos com
totalidade. Tudo depende apenas do ponto de vista em que dificuldade que se possa dizer o contrário), participa ao
nos colocarmos: o do homem observando a totalidade, ou III .smo tempo da sua inteligibilidade ontológica e da sua
o da própria totalidade, porque esses pontos de vista são materialidade prática. Essa inteligibilidade, porém, para nós
complementares para descrever a realidade; do mesmo modo (I LlC vivemos nas dimensões desenvolvidas do sensível, isto
quando se trata do inconsciente considerado por Jung, pode- \', da matéria, do espaço e do tempo (admitindo, aliás, que
mos também afirmar, se estamos na posição do observador vsses termos de alguma maneira se equivalem), é para nós
humano, que se trata «de um espaço inconsciente absoluto Iranscendente em si e apenas nos pode ser meta fisicamente
em que um número infinito de observadores contemplam o .• essível através dos sistemas epifânicos, vividos no domínio
mesmo objecto», ou se procuramos reflecti-lo a partir do Si- da realidade da psique, fazendo a ligação necessária com a
-mesmo como arquétipo da totalidade, «não haveria senão nossa própria existência como ser 1.
um observador (situado no inconsciente e que seria a Por outras palavras, podemos também afirmar sobre o
totalidade desse inconsciente) que contemplaria uma infini- inconsciente perante o Universo o que Jung observava acerca
dade de objectos» 1. do homem: «Por um lado, o homem tal como é e, por outro,
Mas é necessário ir além destas primeiras considerações, .1 totalidade indescritível e supra-empírica desse mesmo
porque é evidente que os dois pontos de vista da física e da homem (...), sendo o próprio homem em parte empírico e
psicologia das profundezas supõem, repetimos, na co-pre- irn parte transcendental: é em si mesmo liihos ou lithos, uma
sença do Universo ou do inconsciente no conjunto do pedra não pedra» 2. Nesta nova comparação com o trabalho
«continuum» espacio-temporal, que esse coniinuum é um alquímico, o inconsciente revela-se ao mesmo tempo como
«sustentáculo» do global que aí se desenvolve sem cessar. supracósmíco e como condição possível do inconsciente
Como explica Hubert Reeves, na qualidade de astro físico, cósmico - o que se pode ainda exprimir pela ideia de uma
«não se pode decerto dizer do Universo que ele 'ocupa' o hierarquia interna dos planos do inconsciente, da alma que
espaço e 'se insere' no tempo. Como acontece com a matéria, reflecte o imago Dei e revela o Si-mesmo até ao inconsciente
essas dimensões estão em si mesmas integradas no Universo como campo das estruturas da própria matéria 3. Ou quando
e talvez fosse mais ajustado dizer que o Universo engendra
por si o espaço e o tempo em que se estende e perdura. Mas, 1. Ver para uma explicação muito mais completa destas noções, ao nível
confessemos, estamos aqui no limite da inteligibilidade do filosófico, H. Corbin, Le paradoxe du monothéisme, I'Heme.
real» 2. 2. C. G. Iung, último capítulo do Mysterium coniunctionie, Ed. Albin Mi-
cheI.
3. Deve referir-se o estudo que tentei desenvolver em La Science et l'ãme
1. C. G. [ung, op. cito
du m?nde, Ed. Imago, e ainda, claro, M.-L. von Franz, Nombre et Temps,
2. H. Reeves, Patience dans l'azur, l'éuolution cosmique, Le SeuiI. op. cit.

60 61
se trata mais precisamente do Unus Mundus, pela asserção ~'~)J'izonte
- está e~ _toda a parte, dado que se pode repre-
de que «os arquétipos, enquanto estruturas formais psicofísi- 11 ntar a nossa posiçao no cosmos da seguinte forma:
cas, poderiam ser em definitivo um princípio formador do
Universo, ou seja, um factor de ordem universal e transcen-
dendo o ser» 1.
horizonte cosmológico

nós
ACAUSALIDADE E NÃO-SEPARABILIDADE
EM COSMOLOGIA E EM FÍSICA •
onde estamos

Neste aspecto, é espantoso verificar como todos os


grandes conceitos da cosmologia moderna correspondem
estranhamente a certas imagens arquetípicas. Sem nos de-
morarmos nas duas interpretações da expansão indefinida
do Universo ou do sistema contracção/expansão, de que se mas deve admitir-se que esta representação seria idêntica e
poderia mostrar sem dificuldade, como correspondem à la~b~m muito adequada para qualquer habitante de qualquer
figuração do tempo conforme os arquétipos maiores do Pai galãxía. Podemos, portanto, declarar, já que tais enunciados
e do seu tempo linear, ou da Mãe e do tempo eternamente se .revela~ física e metafisicamente equivalentes, que o
cíclico 2, observemos, em contrapartida, que a descrição do Universo e um todo, cujo centro está em toda a parte e a
Universo dada pela astrofísica implica que aquele não tem ircunferência em parte nenhuma, ou que o centro não' está
um centro e a sua «circunferência» - ou antes, o seu e~ parte nenhuma e a circunferência em toda a parte, ou
ainda que o centro e a circunferência estão emtoda a parte,
ou que o centro e a circunferência não estão em parte
nenhuma, o que corresponderia a outros tantos enunciados
arquetí.picose tradicionais sobre a Divindade, dado que esta
1. M.-L. von Franz, Nombre et Temps, op. cito Sem esquecer que o Unus é em SI mesma a representação arquetípica da totalidade
Mundus, na ordem da psique objectiva, é o plano de aparição da Sofia, transcendente.
da Sapientia Dei, em que a deidade cria o Universo (Cf..Escoto Eriúgena,
nota 1 da página 32) - e que representa a unidade primordial que se
multiplica numa infinidade de formas essenciais, permanecendo sem- Ora, as consequências de tudo o que temos afirmado são
pre unitária (princípio da multiplicação simbólica como processo das que, se o Universo é efectivamente indivisível e funda o
manifestações teofânicas). espaço-tempo em si mesmo, então como o seu centro está
2. Sabemos, de facto, que a solução para o problema da massa do neutrino em t~da parte e em parte nenhuma, o seu começo não está
permitiria decidir, pelo menos provisoriamente, entre essas duas con-
tambem, de uma forma lógica e rigorosamente necessária,
cepções cosmológicas. Não deixa de ser menos evidente que, qualquer
que seja o que o domine, distingue-se bem como o espírito humano em parte ~enhuma em particular e em toda a parte em geral.
'activa as noções arquetípicas até aos fundamentos das suas construções Se ao horizonte cosmológico acrescentarmos de facto um
mais abstractas. Ver, a este propósito, o meu livro La Science, op. cito segundo horizonte, que se poderia chamar horizonte tempo-

62 63
ral das origens, o de um tempo zero, na verdade assim- Notemos a este respeito que o horizonte cosmológico e
ptótico, mas para além do qual não s.e fode avançar, () horizonte temporal (cientificamente dissociados, dado que
implicando sem possibilidade de reserva a ideia de um~ tota- \ 1 m é devido à recessão das galáxias e o outro se deve à

lidade que cria um tempo em que se e~tende, e~se honzonte 111 trínseca opacidade dos primeiros instantes do Universo,

deve ser também infinitamente estendIdo. Por ISSO, podere- mas meta física e arquetipicamente ligados se se desenvolvem
mos transformar o esquema anterior neste novo desenho: IIS consequências do princípio de Mach), coincidem na
realidade dos factos a cerca de quinze biliões de anos-luz,
.----~-- tempos «zero» \iu seja, à «distância percorrida, ao longo da vida do
Universo, por uma galáxia que se desloca à velocidade da
IIIZ em relação a nós» 1.
De facto, se se tiver isso em conta, alteramos assim a
I .ntativa do físico, que ia do clarão fóssil ao pêndulo de
l'oucault, mas que quanto a nós descreve o itinerário inverso.
1\0 fazermos isso, será para demonstrar que, apenas no mero
plano da reflexão, a hipótese da omnipresença do Universo
_ impondo-se essa mesma observação, a saber, que tal " si mesmo no infinito do espaço e através da sua história,
representação por sua vez seria idêntica pa~~ um obse~ador .onduz, sem nenhuma escapatória, a certas hipóteses
que se situasse não importa ,em qu~ ~egl~o d~ Uruverso. secundárias que implicam uma homogeneidade das mani-
Mas limitemo-nos agora a astro física: e muito natural- festações ou das leis da Natureza, e isto sem recorrer no
mente que reencontramos o proble~a ~o clar~o fóssillevan- plano metafísico a certas noções como a da causalidade, dado
tado por Hubert Reeves, um clarão f.ossIlprevisto desde sem- que a causalidade física, dependente de uma sucessão tem-
pre pela teoria da expansão e,e~ectivamente descoberto p~r poral, exigiria pelo contrário uma noção parcial para explicar
Panzias e Wilson no Observatono de Greenbank. Esse clarao o todo que lhe dá origem.
fóssil poderia representar a sua aparição da seguinte forma
e completar assim «historicamente» e esquema precedente: Numa palavra, onde o cientista não pode com certeza
aventurar-se porque a ciência nesse domínio específico se
revela silenciosa, o metafísico e o psicólogo (e já vimos antes
""'c---- tempos «zero»
como estes dois termos se conjugam e interactuam do nosso
ponto de vista), mostram-se muito mais à vontade para
matéria opaca avançar, colocando em destaque a coerência interna do
domínio de representações que é assim constituído, dado que
o princípio de Mach, finalmente, nos propõe considerar a
~-+-_ emissão de um clarão fóssil totalidade do universo, na totalidade da sua extensão, por
a 1 milhão de anos

1. H. Reeves, op. cito

64 65
meio da totalidade da sua história corno um sistema único I 1(\ essas propriedades estar além disso correla Cionadas . entre si,
que corno tal deve :ser reflectido. Apercebemo-nos, pois, ,'/11IJoranão houvesse nenhuma possibilidade causal para explicar
deste ponto de vista, meta físico e arquetípico, e não estrita- (",:1{/ relação. Exprimindo-se em termos antropomórficos,
mente científico, até que ponto o problema das leis da física l'oderíamos dizer grosseiramente que no momento em que
não se apresenta já corno um processo de legitimação, pois 111·j que a partícula A acaba de tomar, por exemplo, a direcção
as leis não se apresentam nessa perspectiva corno «proprie- 111 11 te numa escolha imposta pela minha intervenção, a
dades internas» da matéria (e, de facto, corno explicar, se reti- jlol rtícula B da mesma fonte sabe instantaneamente que deve
vermos essa ideia, que comparando a radiação emitida pelos tornar a direcção sul. Einstein recusava pessoalmente essa
«quasars» situados a biliões de anos-luz uns dos outros, e por- Idcia, e encarava-a como telepatia. Acontece, no entanto, que
tanto não causalmente ligados no momento de emissão, verifi- "li) menos de 20 anos o paradoxo assim enunciado pôde ser
camos que a força electromagnética que provoca essa radia- '1lIantificado e submetido à experiência - e a experiência
ção ao exercer-se sobre as partículas constitutivas dos átomos mostrou que a física quântica tinha razão: se se recusa a ideia
é rigorosamente a mesma em todas essas fontes independen- Ik que a escolha apenas é feita no instante da detecção, então,
tes?) -, mas que essas leis são a expressão da forma corno IIS resultados previstos são contrários aos resultados regis-
o TODO engendra a sua manifestação, isto é, como o sistema t.idos. E daí a consequência que se impõe da correlação
funciona na sua globalidade. Noutros termos, o Universo di mporal das duas partículas entre si.
seria concebido num plano acausal que está em toda a parte
e sempre presente a si mesmo, neste caso embora se pudesse Todavia será esta situação assim tão paradoxal, ou o
conceber corno causal enquanto se manifesta e cria o conii- paradoxo não assenta no facto de querermos localizar as
nu um espacio-temporal em que se desenvolve. Por um lado, propriedades das partículas? Se pensamos deste modo,
um, sistema quântico infinito e, por outro, um universo lemos de admitir que existe uma «informação» que viaja de
einsteiniano; não existe assim, no plano das ideias, nenhuma LI ma partícula para outra e; se essa informação circula, então
contradição, e sim uma complementaridade de duas aborda- como é que existe causalidade quando a acção é estritamente
gens diferentes, consoante a posição escolhida à partida. instantânea? Se se considera, pelo contrário, que essas duas
É essa mesma ideia que encontramos no famoso para- partículas não existem só por si, mas formam um sistema,
doxo de Einstein-Podolsky e Rosen, embora mergulhando . que a informação está presente no sistema na sua totali-
desta vez no universo microfísico. Não é este o lugar para lade, o paradoxo desvanece-se na noção de indivisibilidade,
apresentar a história da famosa querela entre Einstein e Niels ou de não-separabilidade, do próprio sistema I, estando
Bohr relativamente à descrição do real efectuada pela mecânica sempre esse sistema apresente a si próprio.
quântica. Limitar-nos-emos a evocar que, com esses dois Eis-nos assim conduzidos à omnipresença do Universo
colegas, .Einstein tinha idealizado urna experiência «ideal» a esse duplo nível de concepção de trocas conforme nos
cujos resultados afirmavam, se a física quântica estivesse interessamos pelo todo ou pelo resultado desse todo.
certa, que sendo as «propriedades» das partículas conhecidas
apenas no momento da sua observação, duas partículas
I. Ver em particular B. d'Espagnat, Ala recherche du réel, Ed. Gauthier-
provenientes da mesma fonte não podiam adquirir as suas Villars, para certas considerações mais ousadas sobre esta noção de não-
propriedades senão no instante da própria detecção, deven- -separabilidade.

66 67
I'I pécie de saber imanente - mas forçosamente inconsciente
SINCRONICIDADE E ORDEM CRIATIVA , com esse conhecimento «cego» da matéria que na verdade
1 11 põe a ideia de omnipresença), a que Jung chamava o saber
Isto significa, é evidente, que tudo o que acabamos de /I/ISO/Uto I, e será, pois, uma tarefa do homem, num duplo

afirmar não pretende de forma nenhuma ser uma verdade tr.rbalho da consciência e da razão, isto é, da reflexividade,
absoluta, mas não representa senão um conjunto de reflexões .Icsvendá-lo pouco a pouco na corrente da história sem
acerca dos resultados ou das descobertas científicas no seu 1IIII1Ca o esgotar.
estado provisório.
Não será necessário amanhã ir mais longe ou rever Talvez se possa então compreender o que Jung queria
mesmo alguns destes aspectos? «lirmar quando, falando acerca da sincronicidade, avançava
Na posição em que a questão se situa, compreendemos I1ideia de uma criação contínua, especificando-a ao mesmo
melhor pelo menos por agora de que forma podemos it'mpo como sucessivos actos de criação, mas também como
estabelecer melhor a ideia de sincronicidade, descobrindo o "presença eterna do único acto de criação» 2. De facto,
horizonte de um arranjo universal que seria, por definição, I -ncontramos aí a dialéctica do Universo e do tempo no qual
«isento de causalidade». Mas é preciso insistir, além disso, r ' desenvolve, tendo sido simultaneamente o seu gerador.
no aspecto que já referimos, ou seja, de que esse arranjo Mas encontramos aí também, mas não é senão uma pista que
também pode surgir como manifestação do arquétipo do l' abre, a dialéctica do acaso e da Lei - do acaso acausal
Unus Munâus em que todas as coisas são distintas sendo I' da Lei que dele emerge, mas que entra em jogo logo que

contudo uma única. Mas deverá isso causar-nos admiração? i-xiste. Não seria, pois, interessante, encarar a biologia e a
Como já afirmava James Jeans, «a origem dos acontecimentos r-volução em geral sob este ponto de vista 3?
(para lá do espaço e do tempo) engloba do mesmo modo a
actividade própria do nosso espírito, de tal modo que o
futuro desenrolar dos acontecimentos dependerá por um
lado dessa actividade espiritual» 1. I. Ver C. G. Jung, Gesammelte Werke, vol. VITI, par. 921, Walter Verlag.
Aprofundando tal ideia, não devemos deixar de salien- .. C. G. Iung, Synchroiúcity, op. cito
tar que o inconsciente genérico também participava da :l. Ver as ideias de Pauli sobre as relações possíveis entre o inconsciente
colectivo e os processos biológicos em Aufsiitze und Vortriige iiber Physik
totalidade do Universo, mas superando-a, e não poderia ser und Erkeninisthearie, Verlag Vieweg. Trata-se de ideias que será necessário
concebido - ainda com mais razão pela nossa consciência desenvolver, integrando-se, de resto, nos trabalhos de Prigogine. Ver
atenta - na posição de um observador neutro e desinteres- I. Prigogine e I. Stengers, La Nouvelle alliance, Gallimard. Poderemos .
sado. Deste ponto de vista, e em conformidade com a lógica encontrar assim alguns aspectos finalmente muito próximos dos de
interna do domínio arquetípico, gostaria mesmo de avançar D.Bohm sobre a ordem implícita do Universo em Wholeness and the
implica te Order, Routledge andKegan Paul. Esta noção de ordem implí-
a hipótese de que o inconsciente representa o saber do
cita, estando em si mesma em forte consonância com o arquétipo do
Universo sobre si mesmo (talvez identificável com essa UI1lIS Mundus, concretiza talvez uma das racionalizações possíveis que
esse arquétipo pode ter para nos estimular quanto ao discurso da física
moderna. Mas devemos também referir, claro, os estudos de Solié e
de Etter neste mesmo livro.
1. J. [eans, Physics and philosophy, Cambridge University Press.

69
68
Depois de ter avançado, e de algum modo consolidado pontual que faz sentido para o sujeito e sendo o outro um
o campo em que nos situamos, tenho agora realmente arranjo sem causa universal, ao mesmo tempo final e termi-
consciência de nadar no meio de muitos «se» - mas «se» em nal.
forma de questões, num condicional interrogativo que poderá
suscitar novas pesquisas e novas reflexões. Uma vez mais, com estas palavras, nos sentimos con-
No entanto, desejo concluir com uma última observação. duzidos à noção do psicóide que se situa nos dois extremos
Se é verdade que o Universo é um todo indivisível e se esse da escala:psicológica, ou ao arquétipo do Unus Mundus sobre
todo gera, contudo, uma história que lhe é própria; se é o qual se constrói a individualização, mas de que é também
verdade que o Universo é ao mesmo tempo quântico e o limite. De alguma forma é esse ajustamento dos diferentes
relativista, indeterminado por uma indeterminação criadora níveis arquetípicos e físicos que encontra a sua legitimidade
de determinismo e em que «Deus joga aos dados» - segundo num processo de fundação/reflexão em que a racionalidade
a expressão que Einstein recusava -, mas de que apenas se constitui o sujeito enquanto tal e assinala o estádio, não
retém os lances ganhadores; se é verdade, por outro lado, apenas especulativo, como poderíamos esperar, mas também
que quando nos aproximamos dessa indeterminação, a sua reflexivo e progressivo da revelação da totalidade a si
natureza intrínseca coloca algumas limitações à ciência, dado mesma. Daí a questão que se impõe: o aparecimento do
que a ciência se tornou a representação que podemos ter do sentido no mundo não remete, aliás, para um sentido do
Universo, e se essa representação pode sem cessar melhorar- mundo que se daria a ler no jogo da lei e do acaso, nos limites
-se, ela não poderá nunca deixar de ter em conta a natureza de um desconhecido de que apenas podemos dizer que é
fundamental do Universo na sua totalidade (e aqui voltamos radicalmente diferente, ao mesmo tempo vazio e pleno,
a cair no problema da inteligibilidade transcendente) 1: se sentido e não-sentido, Theos agnotos que reflectimos ao
nesta perspectiva é verdade que existe complementaridade reflecti-lo?
entre a abordagem científica e a abordagem psicometafísica
desse problema, cada uma das tentativas potenciando a outra Finalmente, desenvolvamos a ideia de criação contínua
na sua própria actualização, mas ambas apontando para a no singular sentido que Jung lhe deu e construamos a
mesma realidade que denominaremos primordial do ponto hipótese de uma ordem criativa, que se afirma nesse espaço
de vista do Unus Mundus e da indeterminação, ou antes de jogo e de liberdade queapontámos no cruzamento (ou
ainda como último ponto de vista do pleroma e da extensão na adequação a elas mesmas) da causalidade e da acau-
total do Universo, isto é, da manifestação totalmente mani- salidade. Uma ordem criativa que seria a mediação da
festada (que aparentemente é para nós também transcen- omnipresença do Universo e permitiria pensar dentro dos
dente), devemos, então, aceitar esses dois níveis de sincroni- limites exigidos na sua dupla vertente científica e psíquica,
cidade. definidos por Jung, sendo um deles a aparição a múltipla unicidade que o homem procura decifrar desde
as suas origens, soletrando-a ao mesmo tempo no rigor da
ciência e na assumpção da própria alma.
Mas, nesta fase da nossa reflexão, é necessário entender
1. Ver a .este propósito W. Heisenberg, Physique et Philosophie, Ed. Albin
Michel, ou mais recentemente a concepção do real velado' de que se trata também de uma verdadeira hipótese metafísica
B. de'Espagnat, op. cito que assim se coloca. Na verdade, a coincidência da criação

70 71
única e da criação contínua, instituindo essa ordem criativa qu 1I1',lilares. Para compreender este paradoxo de inteiridade da
procurámos determinar - mas uma ordem criativa que p 1111111 n .sse sentido (traduzida em geral e erradamente como
sua vez se subsume a essa ordem potencial do Mundo qu 1,,1 "Idade, embora Jung se sirva da palavra alemã die
é a do Unus Mundus -, remete-nos afinal para um estatuto '.i/II licit), deve admitir-se raciocinar nesse plano virtual em

muito particular da alma que se desenvolve nesse Ilnu '1'111\'<10 à empiria - mas que tem a sua existência
Mundus e é, com toda a evidência, o de uma monadologi , Ihl,,'dfica - em que o inconsciente funda o espaço e tempo
Mas que pretendemos afirmar com estas palavras? I IIII!lc se desenvolve: esse mundo do Unus Mundus em que
Quando Jung avança a ideia do saber absoluto, refere-s II ru.itéria é espiritual, a alma é corporal e o inconsciente na
explicitamente à filosofia de Leibniz 1. Quando estuda o 1111 expressão mais elevada é a realidade da alma de que
antecessores da noção da sincronicidade, é novamente Leib- I I liomem sensível não tomou ainda consciência, mas que

niz que coloca em primeiro lugar 2, - tal como as conside- IlIlll'ura desvendar. Reside aí o mistério da Unio spiritualis
rações sobre os números, o seu interesse pelo Yi-King com 11,> que Gherard Dom nos fala 1, é esse o lugar puramente
modelo operatório de certos fenómenos sincronísticos e 'I"."itativo de um espaço e de um tempo que são os de
concepção que se pode fazer deste último como manifesta- l h-rrnes e de Sofia 2, em que o atman e o Brahman, o tao
ção numeral do Unus Mundus 3, remetendo de novo para 1"'/ soal e o tao universal, o Si-mesmo que surge na nossa
as considerações de Leibniz acerca desse texto chinês 4, 111111<1 tendo-a fundado no início, e o Si-mesmo como tal, se
É evidente que se verificam aí mais do que coincidências, I,'vl'lam indissoluvelmente idênticos e espelhos uns dos
há um parentesco estabelecido e, para retomarmos a lingua- outros 3.

gem familiar da psicanálise, uma clara filiação, porque a Por isso, cada alma simboliza de facto no mundo da
reapropriação do Unus Mundus no processo de individua- ulma. Toda a criação continuada emblematiza afinal a criação
lização, a realização do vir unus, do anthropos teleios, supõe uui a. Como escrevia Cassirer numa anotação semelhante,
a singularidade da alma realizada, e de uma alma que -r-nquanto a forma de pensamento da causalidade empírica
contudo simboliza o que se deve designar por alma do 111'() ura essencialmente estabelecer uma relação unívoca
Mundo. Ou melhor ainda, a alma singular é a alma do .-ntre certas «causas» e certos «efeitos», o pensamento mítico
Mundo enquanto a alma do Mundo é um retorno que está I,'m à sua disposição (...) uma escolha perfeitamente liberta
sempre presente na multiplicidade da cada uma das almas IIIlS «causas». Tudo pode ainda aqui originar-se a partir de

11110, porque tudo pode entrar espacial ou temporalmente

1. C. G. [ung, GW, vol. I1I, op. cit.: «Não é a cogníção, mas segundo o
sentido que lhe dá Leibniz, uma «percepção» que consiste ... em imagens I, Ver C. G. [ung, op, cii., e M,-L. von Franz, Alchemical, op. cii. Gherard
sem conteúdo» (Cf. a definição do arquétipo dado supra). Dom, Theairum chymicum, Estrasburgo, 1976.
2. C. G. [ung, Syncronicity, op. cit. , Ver C. G. [ung, Mysterium, op. cii. bem como Der Geist Mercurius (Sym-
3. Ver C. G. Jung, Préface à l'édition anglaise do Yi-King, em Commentaire bolik des Gesistes), G. W., t. XIII.
sur le mystere de Ia Fleur d'or, Ed. Albin Michel; ver também M.-L. von ,\, C. G. Jung, em Mysterirum: «A relação, e mais precisamente a iden-
Franz, Nombre et temps, op. cii..e Symboles de l'Llnus Mundus, op. cito tidade, do Atman pessoal com o Atman suprapessoal, e do Tao indi-
4. Ver Leibniz, De progressione dyadica, e a sua correspondência com o vidual com o Tao universal.;», é que fundamenta a pessoa, à primeira
Padre Bouvet. vista paradoxalmente, no movimento apofático da inditndualização.

72 73
em contacto com tudo» 1. Deste ponto de vista determinado, dutninio da Sofia, representa por isso o lugar de eleição desse corpo
seria possível reintroduzir, sem dúvida, a noção de causali- isto é, será um mundo subtil que apenas pode ser, parece-me,
dade por meio do arquétipo, sob a condição de acentuar, li nico mundo possível para a alma individualizada. Assim, uma

todavia, que essa causalidade apenas pode ser entendida (I('Z mais sinto-me satisfeito por verificar até que ponto me encontro
como uma causalidade formal engendrada pelas formas da 1'/11 profunda concordância com Marie-Louise von Franz, dado que
alma e, como tal, não se pode desenvolver senão num tempo 1'11/ me parece ser a mais legítima continuadora de [ung nos seus
subtil que dá origem a certos actos puros de presença e essa últimos trabalhos,
causalidade, no seu retorno aos fundamentos da alma,
apenas ganha de facto legitimidade com o aparecimento do
Si-mesmo, i. e., ousemos dizê-lo, do [mago Dei.

No entanto, não é contudo possível que, ao longo deste


trabalho, eu tenha sido o próprio joguete da minha intuição
de um Unus Mundus interior? Não refuto tal ideia, mas devo
ainda interrogar-me: então, qual é esse apelo cuja existência
não posso pôr em dúvida e que exige que me explique face
ao mistério do Mundo? '

Post Scriptum: Antes de este texto ser impresso, tomei ainda


conhecimento do estudo de M.-L. von Franz e, entre as referências
elogiosas que quis fazer ao meu trabalho, de uma crítica dela acerca
do que seria a minha concepção das relações da alma e do corpo
assente na sincronicidade. Mas talvez eu me tenha nesse sentido
feito entender mal, porque não era decerto isso o que queria dizer.
Por outro lado, como não desejo agora usar da facilidade de corrigir
a posteriori este texto, julgo necessário observar nesta nota que
tais relações me parecem evidentemente derivar da existência de
um Unus Mundus e não representar uma manifestação e sim
uma das condições de possibilidade essenciais da sincroni-
cidade. Como afirma claramente Von Franz, soma e psique
revelam-se em interacção na experiência ~ mas remetem nas suas
origens para essa noção de corpo subtil, cuja hipótese Jung acabara
por admitir. Aliás, pessoalmente penso que o Unus Mundus, como

1. E. Cassirer, La Philosophie des formes symbolíques, vol, 11, Ed. de Minuit.

74 75
SINCRONICIDADE E UNIDADE
DO MUNDO
PIERRE SOLIÉ

«A sincronicidade significa em primeiro lugar a simul-


taneidade de um certo estado psíquico com um ou
diversos acontecimentos exteriores que aparecem como
elementos paralelos significantes em relação ao estado
subjectivo do momento e, eventualmente, vice-versa».
(C G. [ung, La syncronicité, un principe de connexions acau-
sales).
«Por Unus Mundus entende G. Dom o mundo potencial
do primeiro dia da criação em que ainda nada existia
in aciu, isto é, como Dois e em pluralídade, mas apenas
como Um. A unidade do homem (...) significa igual-
mente para Dom a possibilidade de produzir também
a unidade com o mundo, não já com a realidade múltipla
que vemos, mas com um mundo potencial que correspon-
de ao eterno fundamento de toda a existência empírica,
tal como o Si-mesmo é o fundamento e a fonte original
da personalidade e compreende esta última no passado,
no presente e no futuro». (C G. Jung, Myst. conj., Il, VI,
9).
«É antes de mais o arranjo acausal, ou melhor da ordem
significante, que poderá lançar alguma luz sobre o parale-
lismo psicofísico. O facto do saber absoluto que caracteriza
o fenómeno sincronístico, ou seja, o facto de o conhe-
cimento ser transmitido fora de qualquer órgão dos
sentidos, apoia a hipótese e exprime mesmo a existência
de um sentido em si». (C G. [ung, La syncronicité, D,
Recapitulações) 1•

. G. Jung, Synchronicity, an acausal conneciing principie, Collected Works,


llollíngen Series, N. Y. e Routledge and Keagan Paul, Londres, voI. 8;
M!lsterium Conjunctionis, 2 vol., Albin Michel, Paris, 1980-1982. Deve
observar-se que Jung não esperou por Lacan para fazer da «ordem
sígnificante. a do Inconsciente.

77
L A SINCRONICIDADE É ,UMA EXPERIÊNCIA .Ivilização e, portanto, era necessano alcançar o mais
d,'pressa possível a próxima aldeia onde talvez houvesse
DO IRRACIONAL NA TRAMA DO RACIONAL 11111 telefone ou mesmo um possível helicóptero... Anne
E DA ACAUSALIDADE NA CAUSALIDADE uurnifesta depois vontade de urinar e assim precisamos
1I1t,,'mo de parar ...Ao longe - será uma miragem? - perfila-
1) A CLARIVIDÊNCIA «PNEUMÁTICA» DE ANNE 111' 1I ma árvore enorme. Aproximamo-nos, a árvore está

I,·, ti mente ali, na sua realidade objectíva, É um taramindeiro,


o asfalto sob o tórrido calor de Agosto sariano mostra I r-m dúvida, alimentado pela água profunda de um «oued»
alguns arabescos que estremecem e dançam, mas depressa 11\1(' está seco, Provavelmente o único em mais de quatro-

se dissipam pelo simum que levanta aqui e ali algumas I ,'ntos quilômetros. Fazemos uma pausa junto da sua som-

espirais rodopiantes de grãos de areia espalhados pelo ar e 111'11. A água que Anne bebe está talvez a uns cinquenta graus,

pelo céu. "lIgole os seus comprimidos, vomita-os, volta a beber,


Rolamos a céu aberto desde manhã pela faixa lisa e I "('ompõe-se, já não se sente desidratada e, passados breves

extensa que nos leva de Argel para Ghardaia. São três horas II dantes, emerge do seu penoso estado. Enfim, podemos
da tarde, Desde há muito que tínhamos observado várias I j·tomar a nossa marcha.

carcaças negras cdespedaçadas de pneus abandonados de De forma maquinal, resolvo fazer uma vistoria ao carro
quando em quando pelas areias baixas do deserto transa- ", surpresa das surpresas, descubro que o pneu esquerdo da
riano. Os argelinos esperam que os pneus morram ali tu-nte está quase careca, a lona toda à mostra, esfrangalhada
mesmo, mas chegaram a prevenir-nos antes de que não j'm vários pontos. Foi um milagre, pois, que não nos
prestássemos grande atenção a isso e nos deixássemos levar 1I v .ssernos despistado a cento e oitenta quilômetros por hora

pelo ,simum quente e sufocante que entraria pelas guatro .-m pleno deserto ...
janelas abertas, «Anne, salvaste-nos a vida», exclamei.
Foi nesse momento que, no banco de trás, Anne, a Compreendemos então o significado dos esqueletos de
companheira do meu amigo que ia ao volante, pediu que 1'11CUS espalhados nas margens baixas do asfalto em espa-
I;' lS que rondavam entre quinze ou vinte quilómetros, por-
parássemos um pouco: queria ir à mala buscar água e um
qllc o seu revestimento abrasivo, numa atmosfera tórrida e
comprimido para combater uma enxaqueca que a afligia.
«Vamos procurar uma sombra, disse o meu amigo, senão II nto e oitenta quilómetros por hora, é de facto mais do
qllC suficiente para que a borracha dos pneus se derreta.
ainda esturricamos aqui.» Passam uns cinco minutos, não
encontramos uma sombra, a Anne continua a queixar-se. ('ompreendemos que devíamos rolar apenas a uns oitenta
A minha mulher, que vai ao seu lado, reconforta-a o ou noventa quilómetros por hora, parando e vigiando a
melhor que pode, mas ela insiste porque sente vontade de r.ida passo os pneus do carro, porque, afinal, não dis-
vomitar. O meu amigo, imperturbável, continua a rolar púnhamos sequer de nenhum pneu sobresselente para os
debaixo do sol escaldante e, por entre um vento quente que cinco mil quilómetros que devíamos percorrer a partir de
( .hardaia,
nos bate na cara, Anne começa a vomitar, Passa ainda algum
Portanto, ficámos assim a saber algumas coisas impor-
tempo e mantém-se o incómodo da enxaqueca. Penso numa
t.intes,mas não a relação entre a deterioração «material»
possível insolação. De todas as formas, nada nos liga à

78 79
do pneu esquerdo da frente e o desarranjo psicossomático Nessa altura, eu próprio «mergulhava» no arquétipo da
de Anne. O meu amigo, um convicto racionalista e materi- t: r inde Mãe e dos seus Filhos - e Filhas - amantes, tendo
alista, riu-se da aproximação que eu fiz, mas com um riso di 10 essa, sem dúvida, a verdadeira razão que me levou a
amarelo! Anne portou-se depois muito bem, o seu mal-estar lI{'l'itá-la - isto é, a aceitar «onirizar» com... Viver com ela
desapareceu e não voltou a sentir-se incomodada ao longo " luto patológico de sua mãe e igualmente da «minha» mãe
desse percurso sariano. Passou então a ser para nós uma (qu morreu quando eu tinha onze anos).
espécie de barómetro do perigo ou de uma certa Provi- Na terceira sessão, o discurso oniróide de Laure atraiu
dência ... IlIllisparticularmente a minha atenção. Onde teria ouvido
ou lido - essa temática do além da morte? À. custa de
I '1ll1centraçãosobre o tema e das lembranças com ele rela-

!'lImadas, depressa me ocorreu ao espírito um título: O Livro


2) OS TRÊS NÍVEIS DE SINCRONICIDADE dll.' Mortos. Mas qual Livro dos Mortos, o Bardo- Thõdol dos
PRÉ-COGNITIVA DE LAURE Ij I) itanos ou o dos egípcios, que é mais antigo,"?
Não tinha dúvidas, eram os dois, porque a diferença
Laure foi-me enviada pelo seu tio, meu amigo e colega lundamental entre eles reside particularmente no facto de
psiquiatra. Ela tem 24 anos, é estudante de Psicologia, mas 11111, o «Bardo», nos impor o dever de abandonar essas
já trabalha num centro de jovens drogados. Ou pelo menos IIl:agens-arquétipos por serem ilusões (maya) do desejo
(knma), sob pena de não-libertação e, portanto, de reincar-
procura trabalhar, porque se mostra cada vez mais depres-
siva, «vazia», confuso-onírica e, portanto, despersonalizada 1l.1ção,~<kármica»,enquanto o dos antigos egípcios, pelo
(border line). Laure já consultou vários colegas freudianos: t 'ontrárío, nos assegura a total realidade objectiva dessas
transfert massivo que, entregue a si mesmo - ou a ela Imagens. Grosso modo, as Imagens-arquétipos são idênticas
I1GS duas temáticas além-morte - ou seja, do luto, da ini-
mesma - agrava o seu estado. Decidiu depois abandoná-
-105 ou delicadamente correram com ela. A sua temá-
ciação e da transcendência da morte «aí-agora» -, mas numa
tica onírica - diurna e nocturna, mas é o mesmo estado li .las deve ser combatida para se desembaraçar dela para
H 'mpre, enquanto na outra deve igualmente ser combatida,
de consciência - gira em redor dos fenómenos da morte.
O núcleo é a morte (real) de sua mãe, ocorrida nove anos mas para superar essas imagens numa transcendência que
antes, acompanhada de uma nítida ausência da estrutura I odemos dizer, com H. Corbin, «imaginal» em relação à sua
paternal positiva (paradigmática). Com efeito, depois de uma imanênc~a,.9ue diremos, com Lacan, «imaginária», ou seja,
lIIaya (mistificante pela confusão do eu e do seu duplo como
prolongada doença, o pai tinha como principal ocupação
durante o dia pintar rostos de Cristo e de palhaços. no outro e do complementar: animus ou anima) 1.
No fim da primeira entrevista, tal como os meus con-
frades freudianos, senti vontade de a deixar «entregue» a si
mesma ou, pior ainda, proceder à sua hospitalização, se não I. Notar que, de uma ou de outra forma, toda a civilização tem a sua
pesassem as minhas boas relações com o tio psiquiatra, a ~itolog~a da morte. Cf. sobre o «Bardo», o artigo de L. Aurigemma
quem pelo telefone dei conta das minhas impressões e m .«Ca~1ers de ~~ychologie jungienne», n." 23, Psychologie analsjiique et
VOles orientalee d éuoluiion.
receios.

80 81
Compreendi, então, que o caminho seguido pelos meus ibandonado depois da morte da mãe, e muito semelhante
colegas freudianos era a «via seca» do «Bardo», se~ que .1() que eu próprio vivera na mesma época ... Quarto a quarto,
disso, .como julgo, tivessem dúvidas. Ora, Laure pedI.a-~os recanto a recanto, voltá mos a habitá-lo - e a reabilitá-Io-
a todo o instante a «via húmida» das imagens que VIVIam «nquanto Laure reabitava o seu corpo e nele se reconhecia,
os antigos egípcios, porque era para si vitalmente necessário li íante de um espelho que lhe apresentava (porque me dizia
acreditar na realidade objectiva dessas imagens do «Bardo», que nele se não reconhecia).
do «mundo intermediário», dos «doze pilares (portas) de Um pouco mais tarde, causou-me grande espanto ouvi-
Osíris». E tudo isso apenas para reencontrar a mãe morta .e Ia dizer-me: «A sua aldeia natal é a dos meus avós. O meu'
a própria identidade ainda nela fundida (alienada, absorví- nome é o mesmo que tivera até ao século XVII (da nossa eral)
I' o meu primeiro nome é o da propriedade onde nasceram
da, dissolvida nela, «imaginária»).
Como é evidente, Laure desconhecia até então a existên- meus antepassados, perto dessa aldeia.» Eu quase não
cia desses Livros dos Mortos. .\ reditava, mas ela forneceu-me documentos que o prova-
Mergulhámos ambos então no livro dos antigos egíp- vam. E tudo era verdade.
cios. As sessões, muito frequentes, decorriam «sob» as Eis-nos, pois, com Laure, em presença de três níveis, três
almofadas do meu divã - o seu sarcófago - e o onirismo ('stádios, três núcleos da Memória (Memoria, Mnémosuné),
dessa jovem parisiense da segunda meta~~ do sé,cu~o xx Irês nós que interferiam ou coincidiam mesma com os meus:
cristão aproximava-se tema por tema do orunsm? egIp~Io da
V dinastia (2600 anos antes da nossa era), ou seja, na epoca a) um «nó memorial» comum a toda a humanidade: o
em que se gravaram na pedra os Textos das pir~mid~s. imaginal egípcio da morte, em que o luto patológico
Pouco a pouco, formou-se assim nela um imaginal da .a tinha mergulhado e, através do tema do deus
vida depois da morte que lhe tinha sido radicalmente morto, flagelado e ressuscitado (Osíris e Íris), ocupa-
interdito nos estudos «áridos» de psicologia e nos seus va o primeiro lugar, na época, no meu próprio «pro-
encontros com os anteriores terapeutas negando toda a cesso de individualização», procurando operar a indí-
realidade objectiva ao mundo das Imagens-arquétipos (negan- vidualização do próprio Eu em relação ao meu «du-
do, em suma, a objectividade da realidade psíquica arquetí- plo» osiriano e do outro em relação ao meu «comple
pica) e abandonando essas imagens originárias (Urbilder) ao meniar» isiano, acrescentando aí as sombras correla-
registo único do imaginário mistificante. . . tivas: Seth para o «duplo» e Hathot vampírico para
Depois disso - e sem nunca deixar, como am.da ho~e, A
o «complementar».
de o trabalhar - reconstituímos o ambiente da sua infância, b) um «nó memorial» que se pode designar de «linha-
gem», a dos seus antepassados, enraizados na mesma
terra de origem da minha (existia em Paris apenas
um analista nessa condição e ela, claro, desconhecia
1. Para estes conceitos, cf., do autor, La femme essentieIle, Seghers, Paris, isso).
1980; Psychanalyse et imaginal, Imago, Paris, 1980; My:~nalyse [un-
c) um «nó memorial» individual, o do seu próprio lugar
gienne, ESF, Paris, 1981; de M. Cazenave, La suboersion de 1a",!e, Seghers,
Paris, 1981; Les empereurs [ous (col. R. Auguet), Imago, Paris, 1980; La de nascimento.ipróximo da minha casa na época mais
science et l'ãme du monde, Imago, Paris, 1983. profundamente dramática da sua vida e, para melhor

82 83
a reconstituir na sua memória, Laure desejava que a \III é, face ~o espaço-tempo dos físicos contemporâneos e
,I sua causah-dade (determinismo de causa a efeito), uma
visitássemos juntos, apesar de saber que tinha outros
"causalidade, ou seja, um lugar-«sem lugar», um tempo-
ocupantes ... Felizmente, a conversa. com um ir~ão
mais velho, foi suficiente para confirmar, na minha «sem tempo» 1 e uma causalidade-«sem causalidade». Por
outras palavras, e enunciado de outra forma, é um mundo
presença, a verdade de toda a reconstituição.
\10 não-mundo, enfim, um «vazio» sem o qual o «pleno» do
\'spaço-t:~po e da sua causalidade não teria qualquer sentido,
Estranhas coincidências através do espaço e do tempo.
I)().rquee mcap~z de ser concebido quer na sua concepção
Estranhas «conexões acausaís» que fazem sentido - e como
f rsica de geraçao como intelectiva de compreensão e de
o fazem! - para Laure e para mim ... E, de resto, também
ignificação.
para outros. .«A sin~ro~icida?e, assegura-nos Jung, pressupõe um
Antes de nos debruçarmos sobre estes dois casos de
,':I'/ltldo a p;IO.Yl relativamente à consciência humana, que
sincronicidade, convém que tentemos elaborar alguns con-
pa-rece existír .fora .do homem. Uma tal hipótese surge,
ceitos que, em certos pontos, hão-de divergir daqueles que
sobretudo, na filosofia de Piatão que admite a existência de
o próprio Jung tentou elabor~r há, u~s 30 anos, so?~et~do
em colaboração com W. Pauli, Prémío Nobel de Física . Ima~e~ trans~c~ndentais, mo?elos (arquétipos) das coisas
O meu «colaborador» físico será agora H. Reeves 2. ('~pmcas~ as eidé (formas, speciess de que as imagens (eidôla)
sao as COIsas».
E .prossegue: ~<As'causas finais'? revelam - qualquer
que ~:Ja.a perspectiva em que se encare o problema - uma
1i/~eSClencla de uma certa natureza. Portanto, é evidente que
11 A SINCRONICIDADE COMO PRINCÍPIO I!aOse trata de um conhecimento ligado ao eu, ou seja,
DE INFORMAÇÃO ABSOLUTA (<<SABER IIm conhecimento consciente, tal como o conhecemos, mas
ABSOLUTO» DE JUNG) DO «MUNDO UNO» .intes um saber «inconsciente» que existe em si, que desi-
(UNUS MUNDUS DE DORN E JUNG)3 gno como saber absoluto. Não é forçoso entender isso como
11 m conhecimento, e sim, como Leibniz formulou de forma
A grande hipótese de Jung em matéria de eXI?lica- ndmirável, como uma representação que consiste - ou
ção desses fenómenos que violam as .sacr~ss~ntas leis da
Natureza elaboradas desde Newton Via Anstoteles e Des-
cartes (para citarmos apenas os mais «notórios») é, lembro

I. Não se brinque com as palavras ...


2. «Princípio de finalidade», complementarizante, para alguns, sobretudo
1. Naturerkliirung unâ Psyche, Zurique, 1952 (vol. 4, Estudos do C. G. Jung
para os biólogos, do «princípio de causalidade» (determinista), mas
Institut», Zurique). . geralmente recusado pela maioria da comunidade científica. No entan-
2. Patience dans /'azur cosmique, Seuil, Paris, 1981e o artigo no mesmo livro,
to, um biólogo materialista como J. Monod (Le hasard et Ia nécessiié Seuil
Incursion dans le monde acausal, supra. ~aris, 1970 não pode evitá-lo totalmente e designa essa forma d~ fina~
3. Mysterium conjurlctionnis, trad. de E. Perrot, Editions Albin Michel, 2
lidade, «teleonornia» (lei final).
vol., Paris, 1980-1981; aqui, sobretudo o vol. 2.

85
84
melhor, parece consistir - em «simulacra» sem sujeito, em É isso exactamente, em minha opinião, o que H. Corbin
imagens. Essas imagens postuladas são provavelmente idên- ~lcfi~ir~ ?,ais tarde como imaginal I, que distinguimos já do
ticas ao que denominei como arquétipos, que se revelam unaginano.
como factores formais nas criações espontâneas da imagi- Esse sistema de Eidé e de eidola (ldeias essenciais e
nação». ' imagens) está, como Jung nos assegura, na base da imagi-
Se acrescentarmos a essa citação de Jung aquela que ele 11 ação. Mas do imagina tio vera (imaginal) dos alquimistas-
mesmo extrai de Agripa sobre a «alma do mundo» (anima t' não do seu imaginatio fantastica (imaginário). Ou seja, isso
rrtundi): «vida única que preenche todas as coisas a fim de mesmo que H. Corbin designará depois como «imaginação
tornar una a máquina de todo o mundo», teremos dado a .igente» ou «activa» ou «criadora» ou mesmo como «função
volta quase toda - ultra-rápida - em redor das pedras angu- i magínadora- 2. .

lares da hipótese de Jung sobre a sincronicidade; mas, apesar Esse sentido a priori, segundo Leibniz e depois retomado
de tudo, não devemos perder de vista sem a «transgressi- por Hegel, será pelo próprio Jung designado como saber
vidade» do arquétipo ao nível do «psicóide», induzindo a ,,~soluto do ~niverso, inconsciente d~ si mesmo (eu preferia
sua manifestação na psique e na matéria simultaneamente, dizer potencial em relação ao actual). E a consciência humana
nem a creatio continua que se insere, no entanto, num aeto que vai particularmente actualizá-lo em imagens e em
de criação única. Por outras palavras, tudo o que acontece discursos. Por exemplo, a descoberta fundamental de Ein-
no tempo (criação continuada) insere-se permanentemente stein E = m.c? é um saber consciente e relativo - deve dizer-
num não-tempo (criação única). -se -, mas antes da «intuição» do cientista não deixava de
Retomemos sucintamente essas pedras angulares para .star já contido no Universo, constituindo aí uma parcela do
melhor as podermos entender. saber absoluto e inconsciente (potencial). Portanto, Einstein
, A síncronicidade (acausal) forma com a causalidade não faz mais do que actualizá-Io no Noos e esse mesmo
uma dupla de contrários, como o espaço com o tempo, mas ra~iocínio ,de,:e ser feito igualmente para uma imagem
ligados entre si numa quaternidade unitária. . (eldolon) psiquica de um profeta místico que imporá, às vezes
, A sincronicidade está em conexão com a causalidade, por vários milénios, uma estrutura mítica a uma civilização:
com a «energia indestrutível» (a sua conservação) e com o
coniinuum espaço-tempo. Mas essa conexão, ao contrário da
da causalidade, revela-se inconstante por causa da sua
contingência e é portadora de analogia (<<correspondênci~s» I. H. Corbin, entre outros: Corps spirituel et Terre cé/este, Buchet-Chastel,
e «sinais» do pensamento pré-reflexivo, mágico) e de sentido. Paris, 1979; L'Imagínaiian créatrice dans le soufisme d'lbn Arabi, Flamma-
rion, Paris, 1958.
Poderá rnesmo dizer-se que é de facto portadora do sentido
2. Por seu lado, Jung designara como «imaginação activa» uma técnica
(significação, «significância») dos outros três parâmetros das de psicoterapia que tinha por objectivo fazer surgir esses eidola (imagens
duas quaternidades junguianas. arquetípicas) que exprimem esse sentido apriori (potencial) a fim de
Esse sentido é a priori. Existe fora da consciência humana, s~ actualizar de imediato na consciência humana de um grupo (reli-
isto é, revela-se sem sujeito, como as Ideias (Eidé, Ideias gIOSO,por exemplo) ou de um indivíduo. Esses eidola exprimem o que
essenciais) de Platão, manifestando-se sob a forma de ima- Jung também designa como «psique objectiva» ou «realidade psíquica
objectiva- em correlação com a realidade física objectiva, objecto das
gens (eidola) sem objecto. ciências da Natureza.

86 87
por exemplo, no que respeita ao Ocidente, [ahvé através d Ao lado dessa Hylé, Aristóteles coloca, em nós (eidolon),
Moisés e Cristo através de Jesus 1. Ii .mergência de uma Morphé, isto é, de uma forma que
Chamarei à intuição científica de Einstein, traduzida em ,', ilocará a Hylé nas mãos do artesão ou do artista (confundin-
linguagem matemática, um Noos, dando a esta palavra grega t11)-seambos na Grécia). Mais adiante, designaremos «ima-
o sentido de um pensamento de tipo intelectual e, portanto, ",I'ns-objectos O» a Morphé de Aristóteles e «Imagens-objectos
diferente do Nous, espírito, que reencontraremos no qu ( h) a sua Hylé. Mas devemos «actualizar-nos»! Mas quem não
designarei, sempre com referência helénica, o Pneu ma (lugar «ntcndeu já que a forma (Morphé) que o artista dá à sua
das «essências» do Eidos platónico anteriormente citado por ('Hl tua é algo totalmente diferente da Matéria (Hylé) de que
Jung). (' feita? Em parte, a Forma de Aristóteles liga-se com a Eidos
Deixarei à intuição apofântica de Moisés e de Jesus o (/t/pia) de Pia tão.
nome de Eidos, isto é, de Forma, Beleza, Ideia, que distin- Posto isto, acabamos por chegar aos físicos contempo-
guirei de Eidolon, que é apenas a imagem-representação (i.e. I,meos e, sobretudo, como já referimos, e para começar, a
a imagem fantasma ou ídolo) que oscila do registo do 1 I. Reeves, o qual nos apresenta quatro dados da física actual
imaginário mistificante (idolatria) ao de imaginal individuali- que poderiam muito bem, em sua opinião e mesmo ainda
zante (adoração eventual do que nos transcende distinguin- hoje, resultar do princípio de acausalidade enunciado por
do-nos - enquanto o eidolon do imaginário nos transcende, IlIng em colaboração com Pauli.
decerto, mas também nos confunde - confundindo também 1) A radioactividade emitida por certos corpos químicos
a imagem e o objecto que a comporta) 2. (por exemplo, rádio, plutónio) deriva da desintegração dos
Temos assim o ponto de vista platónico retomado por núcleos de átomos desses corpos, por um excesso de carga
Jung. Mas vai ser necessário acrescentar - ou mesmo con- (,I ~ctrica devida a uma sobrecarga de protões. «Até aqui, diz-
jugar com ele - o ponto de vista aristotélico, que por sua IlOS Reeves, estamos em plena causalidade. Uma causa: a
vez assenta, em oposição, no que os gregos designavam i "ll'ga excessiva; um efeito: a ruptura. Mas se perguntarmos
como a Physis, ou seja, a Natureza, que se tornará a nossa porque é que este átomo se desintegra primeiro e aquele em
ciência da Natureza. Para Aristóteles, esta define-se pela 1 eguída, parece que mergulhamos assim na acausaliâade 1. Ou
emergência (eidolon) de uma Hylé, ou seja, de uma substância /I 'ja, numa das principais características da sincronicidade de
material (a madeira, o bronze, a pedra) que servirá, por lung.
exemplo, como material para fabrico de um utensílio ou 2) O clarão da explosão inicial do Universo, um «Big-
criação de uma obra de arte. bang» que data de há quinze biliões de anos, deixou um
rnsto no espaço extragaláctico: um clarão «fóssil», refrigerado
(.t -270°) e enfraquecido pela expansão do Universo ao longo
II isse demorado período.
1. Simplificamos demasiado. É claro que [ahvé não é fruto do único ima- Os átomos que na sua origem emitiram essa radiação
ginal de Moisés, como Cristo não é também fruto do de Jesus, os dois
encontravam-se todos à mesma temperatura. Ora, não man-
homens tiveram alguns predecessores ... Tal como Newton e Einstein
do lado do Noos.
2. O eidolon imaginário confunde-se com o objecto que o porta; o eidolon
imaginal separa-se dele. I. Sublinhado por mim.

88 89
tendo, como eles nunca mantiveram, quaisquer «relações quase totalidade da matéria do Universo observável». Por-
causais», o tempo decorrido entre o «Big-bang» e a emissão quê? «Mach propôs ver aí uma espécie deacção.do "global"
da radiação foi bastante curto. E Reeves interroga-se: «Então, 'obre o "local" do pêndulo» e mesmo assim sem localização
como é que todos eles alcançaram exactamente a mesma n m propagação da informação, no sentido da física tradi-
temperatura?» Ou seja, como é que a informação foi transmi- cional. «O plano acausal (...) seria aquele sobre o qual se
tida universalmente de um para outro átomo? inscreveria a questão do «sentido» ou da «intenção» na
E esta questão continua a ser válida para o conjunto das Natureza. Nesse plano intemporal, a consciência do homem
leis da física: «A observação das galáxias mais longínquas pertenceria ao Universo como se estivesse inscrita na sua
demonstra que todos os átomos obedecem exactamente às evolução».
mesmas leis em todo o Universo, mesmo se esses átomos nunca Encontramos hoje neste discurso de reflexão científica
tiveram entre si "relações causais".» 1 todas as propriedades descritas por Jung no seu conceito de
Existe um único meio de sair deste dilema: não localizar r-; incronicidade.

mais as propriedades (informação) físicas nas partículas Mas voltemos ainda ao que já referimos acerca de
elementares, mas pensá-Ias fora delas, como um «saber» da J\ristóteles. Nada nos impedirá de designar a Hylé, a repre-
li .ntação, em nós, da «realidade física objectiva», situada no
matéria, isto é, um «saber absoluto», uma «informação abso-
luta» a priori, interdependertte da matéria (corpuscular, I 'mpo, no espaço e na causalidade; a Morphé, a represen-
atô-mica e molecular), mas não exclusivamente nela loca- ração, em nós, da «realidade psíquica objectiva» (o «sentido»
t' a «informação», não-localizáveis e não-temporizáveis:
lizada.
3) Esta «não-localização» da informação nas partículas .rcspacio-temporais e, portanto, acausais).
materiais explica de igual modo, e sem infringir as leis da No momento do «Big-bang»cósmico, assistimos à actua-
física relativista ou da física quântica, o famoso paradoxo de lização da «realidade física objectiva», enquanto a «realidade
Einstein-Podolsky e Rosen (EPR), que era, como se sabe, um psíquica objectiva» permanece potencial, mas não inactiva.
dos maiores argumentos - mas inútil- usado por Einstein J\ «realidade física objectiva» em expansão e complexificação
contra a mecânica quântica. De facto, a informação não tem ( orpúsculos - átomos - moléculas minerais - moléculas
de se propagar de uma partícula para outra; ela habita, em orgânicas - moléculas vivas - evolução das espécies vivas
suma, um domínio que relaciona s~mpre e por toda a parte .ité ao homem no nosso planeta) sofre uma evolução geral-

todos os elementos do Universo. E omnipresente e omnis- mente entrópica (para a sua degradação termodinâmica, a
ciente. «O Universo permanece sempre é por toda a parte «norte»): por sua vez, a «realidade psíquica objectiva» (isto
"presentel" a si mesmo.» t\ as propriedades emergentes das várias complexificações, até
I consciência humana) beneficia de uma evolução geral-
4) É isso mesmo que revela a experiência do pêndulo
de Foucault, cujo plano de oscilação, desprezando a terra e mente neguentrópica [inverso da degradação entrópica que
os planetas do nosso sistema solar, se inclina na direcção das conota uma informação (<<sentido»)cada vez mais impor-
galáxias longínquas, «cuja soma das massas representa a tante].
Estas duas «realidades» avançam concorrentemente,
lima (a física) na sua actualização progressiva; a outra (a
psíquica) na sua potencialização aparentemente sempre igual
1. Idem.

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a si mesma, mas actualizando-se também (manifestando-se) :er~ ~ base do ~ue se chamará um Objecto. Um objecto
de forma significativa em cada novo nível de emergência de individual e relativo, em primeiro lugar; mas também um
estruturas mais complexas, conotando um nível de infor- Objecto radical e absoluto que nada nos impedirá de desig-
mação (sentido) mais elevado (do hidrogénio ao hélio, etc., nar como Outro (o ser-Outro), a habitual alteridade da
mas também do E = 1/2 m.v? de Newton à E = m.c' de metafísica) 1.
Einstein; e de Júpiter ao [ahvé arcaico e a Cristo). . O Eidos exprimirá principalmente as imagens O (Sujeito
A emergência mais significativa será a da Vida (Bios) 1 c S~-mesmo), enquanto o Noos exprimirá as imagens O'
na qual as duas realidades - e a sua entropia e neguentropia (Objecto e Outro) em primeiro lugar. .
- parecem quase equilibrar-se por completo na confu- Em suma, a ipseidade (Sujeito e Si-mesmo) pode conden-
são - ou antes na combinação - que se opera entre uma e sar-se na teofania mosaica: Eu sou aquele que sou - ou na sua
outra. variante individual, Eu sou aquele que eu sou (e não existem
Espero ter tomado sensível a forma como a Hylé, dois como «eu»), o que é rigorosamente verdadeiro.
Morphé, Noos e Eidos se revelam epifanias (emergências) das Quanto à alteridade (Objecto e Outro), poderia conden-
duas realidades - física para Hylé e Noos; psíquica para sar-se no mosaico correlativo: Tu és aquele que é - ou na sua
Morphé e Eidos - na consciência humana. Hylé e Noos tornar- variante individual, Tu és aquele que tu és (e não existem dois
-se-ão as estruturas de representação e de discurso da omo «tu»), o que é rigorosamente verdadeiro.
realidade física (ciências físicas em lato sentido); Morphé e Reportemo-nos ao que já acentuá mos do jogo da Physis,
Eidos, as da realidade psíquica (ciências humanas em sentido do Pneu ma, do Eidos e do Noos. Se construíssemos um
amplo, mas sobretudo imaginário e imagina I dos conhecimen- esquema, colocaríamos no seu eixo vertical (ordenadas), em
tos artísticos, mitológicos, religiosos e ideológicos). baixo, a cosmogonia da Physis (matéria) e em cima a
Em estudos anteriores 2, designei por «O» a emergência csc~togonia do Pneu ma (Espírito). Colocamos depois no eixo
na nossa psique (alma) da imagem originária da «realidade horizontal (abcissas), o Si-mesmo (ipseidade) do lado do Eidos,
psíquica objectiva», formando aí a base do que se chamará e o Outro (alteridade) do lado do Noos. Estes quatro pontos
um Sujeito. Um Sujeito individual e relativo em primeiro cardeais do nosso microcosmo, integrado no macrocosmo,
lugar 3, e, afinal, um Sujeito radical e absoluto que nada nos podem ser colocados entre «menos infinito»(-oo) e «mais
impedirá de designar como Si-mesmo (o ser-em-Si), a ipseidade infinito» (+00) para apenas determinar que não existe um
de Duns Escoto. Designo por "O'" a emergência na nossa verdadeiro Começo (cosmogonia) nem um verdadeiro Fim
psique da imagem saída da «realidade física objectiva», que (escatogonia) no absoluto, isto é, na acausalidade - ou num
tempo logarítmico físico. Da mesma forma que não há
nenhum. ver~adeiro Começo para o Si-mesmo nem qualquer
1. Sob a forma da molécula viva elementar: o ácido desoxiribonucleico verdadeiro FIm para o Outro (ou reciprocamente). Por outras
(ADN) que adquiriu a possibilidade de se reproduzir (prefiguração da
sexualidade) e de se alimentar (prefiguração da função digestiva).
2. Ver particularmente La Femme essentielle, Mytlumalyse de Ia Grande Mere
e de ses Pite-Amante, Seghers, 1980. 1.. Distinguiremos assim entre um «pequeno» outro que remete para o de
3. Distinguiremos, pois, entre um «pequeno» sujeito e um «grande» Su- J: Lacan sem se confundir exactamente com ele e um «grande» Outro
jeito, cujos arquétipos são o «duplo» e o Si-mesmo (ipseidade). (id. Lacan), cujos arquétipos são o «complementar» e o Outro.

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palavras, o absoluto do Ser - tanto na sua subjectividade I' absoluto (alteridade) 1. O e O' representam as imagens
como objectividade - permanecerá absoluta e radicalmente I'l"imordiais cósmicas e colectivas que nos alienam no que
inacessível, irreconhecível, impenetrável. Apenas se conhece- .k-Iinimos como imaginário (mistificante), lado a lado Morphé
riam as suas sucessivas manifestações no Eidos (Sujeito, Si- " flylé, enquanto P e P' se revelam corno as mesmas ima-
-mesmo) e no Noos (Objecto, Outro), que é necessário )',,'ns,mas assumidas e diferenciadas num indivíduo que as
conseguir constantemente depois de muita luta. A pesquisa (' prime sem se mostrar mais alienado (<<individualização»)
mística - e amorosa - e a pesquisa científica - e filosó- 110 registo que definimos como imaginal (vindividuante»),
fica - não se revelam senão como esse «apelo do Ser», como l.ulo a lado Eidos e Noos. Eis aí agora o nosso mandala
o designa B. d'Espagnat 1, que em nós se procura reconhecer "l;ora - mas momentaneamente - completo, sem dúvida
e provoca o seu reconhecimento. 11 .nhuma.

Mas nada nos impede de o conceber e até de o sentir Porém, devemos ainda fazer algumas observações: o
como uma «falha» ou como um «vazio» ontológicos. Como «Big-bang» cosmogónico, dizíamos nós, actualiza a «reali-
uma permanente nostalgia de um paraíso perdido, ou seja, I Iade física objectiva» e potencializa (recalca) a «realidade
de uma «unidade» perdida e para a qual, com toda a alma, psíquica objectiva», Mas, embora potencial (inconsciente),
de novo nos inclinamos, mas para cima (o «pneumático»). não está ausente do «Bíg-bang». Não só não está ausente,
a partir da base (o «hílico» dos gnósticos). como temos a certeza de que, sem ela, a realidade física não
.Portanto, o nosso mandala está assim quase completo. HC poderia actualizar. Além disso; um corpúsculo, um núcleo

Haverá apenas - por agora! - duas novas imagens que de hidrogénio ou de hélio contêm ainda muito pouca
terão de se conjugar com as anteriores imagens O e O': Além informação (neguentropia). A «realidade psíquica objectiva»
disso, observemos desde já que é da conjunção O-O' que (informacional) habita então num «outro mundo», mesmo se
nasce um misto das duas realidades originárias (física e (. nesse ~undo - físico - que ela se vai criando pouco a
psíquica) que designamos realidade simbólica (sum-bolon: re- pouco. A medida que se actualiza através de estruturas
ligar, fazer a ponte, para que a mensagem-informação divi- materiais cada vez mais complexas (leis gerais da física: a
dida em duas partes separadas se possa reconstituir e ter informação dela própria), nem assim mesmo aí se esgota.
«sentidos-significação) . ontinuará a ocupar o que chamamos o «outro mundo»:
A partir do Homo sapiens-sapiens, sobretudo, a realidade causal, aespacio-atemporal; o mundo da significação, da
simbólica O-O' conjugar-se-a com uma nova realidade sim- analogia, do sentido, do valor ... «Estamos mais ligados ao
bólica, que chamaremos P-P' (arbitrariamente), exprimindo a invisível do que àquilo que vemos», afirmava Novalis, um
autonomia dos sujeitos individuais e relativos, relativamente
ao Sujeito radical e absoluto (ipseidade) 2 e também a dos
«outros» individuais e relativos em relação ao Outro radical I. De que os arquétipos são, devo lembrar, o «complementar» (animus
e anima) e o Outro (primário ou grandioso, depois terminal ou esca-
tológico). O Si-mesmo e o Outro «primários» são aqueles que nos alie-
nam e mistificam (imaginário). O Si-mesmo e o Outro «terminais»
1. Un atome de sagesse, Le Seuil, Paris, 1982. derivam da diferenciação da primeira parte da vida e, sobretudo, da
2. De que os arquétipos são, devo lembrar, o «duplo» eo Si-mesmo '(pri- individualização da segunda parte da vida (imaginal propriamente
mário ou grandioso, depois terminal ou escatológico). dita).

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dos poetas da Noite I, - que sabia o que dizia: ~ é v~rd~d.e I róprio sujeito 1 (imagem-objecto O subsistindo em nós como

que, mesmo actualizada nas nossas estr~tu~as físIcas,blOlo?I- 11m engrama) oriundo da realidade psíquica (Morphé, O)
cas, permanece quase sempre para nos impenetrável, m- l' evoluirá para um conhecimento irracional desse sujeito
visível, indizível, a não ser poeticamente. nté à elaboração de uma doutrina (discurso) mitológico,
religioso e ideológico (Eidos, Jesus) e um reconhecimento do
Contudo, o salto qualitativo da sua actualização na s/ljeito (<<pequeno»)até um «maior» Sujeito (P), que se designa
realidade física opera-se com o aparecimento da vida (Bios), .•qui como Si-mesmo (<<Eusou o Caminho, a Verdade e a
pelo menos no nosso planeta. . _ . Vida...»)
Cerca de três biliões e quinhentos milhões de anos mais Observemos que os dois princípios essenciais são res-
tarde, produzir-se-á um segundo salto qualitativo, o. do pectivamente sustentados de cada lado (Noos ou Eidos)
aparecimento do Homo (habilis, erectus, néanderthalensls e, pelo princípio contraditório - e complementar - «menor».
finalmente, sapiens-sapiens). A consciência com que estavam O conhecimento racional do objecto e do outro assenta
já dotadas as estrutur~s vivas vai re~e~tir-~e em si n;esma no - e complernentariza-se pelo - conhecimento irracional
aquando dessa mutaçao (proterogenetica) e, de. pre-refle- do sujeito e do Si-mesmo, e reciprocamente. Noos = P' / P
xiva, tornar-se-a reflexiva 3, ou seja, consc~ente de SI m~sma. l' Eidos = P / P'. Em linguagem tipológica junguiana, poderia

É durante essa mutação que se passa das Imagens O-O para dizer-se que o «pensamento extrovertido (voltado para o
as imagens P-P'. Mas atenção! Ter consciência de si própria objecto) se sustenta na «sensação introvertida» (voltada para
significa ao mesmo tempo ter cons~i~ncia,~a sua realidade o sujeito) do lado do Noos e que a «intuição introvertida»
(psíquica) e da sua realidade matrícial (física). Nessa mu- (via sujeito) se sustenta do «sentimento extrovertido» (via
tação (Homo sapiens-sapiens), os dois princípios actualizados objecto = caridade) do lado de Eidos. Todos os outros tipos
vão formar uma dupla de contrários - e, portanto, de psicológicos descritos por Jung derivam, por meio de varia-
possíveis ~omp~ementares:- em ,que ~~ se expri~rá no ções, desse esquema básico.
próprio objecio (Imagem-obJe~to O s~~slstmd? e~ nos co~~ Por outras palavras, a consciência do nosso princípio de
um engrama) oriundo da realidade física (Hyle, O ) e evoluirá r ialidade psíquica é preferencialmente irracional (arte, amor,
para um conhecimento desse objecto at~ à elaboração d~ uma mística, mítico e religioso), enquanto a do nosso princípio
ciência (discurso) racional (Noos, Einstem) e o reconhecimen- (le realidade física é preferencialmente racional (pensamento,
to do outro (<<pequeno») até um vmaíor» Outro (P'). O I 'i; ciência e técnica). À primeira vista, isto pode parecer
segundo princípio (psíquico objectivo) exprimir-se-á no estranho, mas que é que existe de mais racional, lógico,
ti terminado, causalista ou mecânico do que a Physis (e
sobretudo o seu aspecto «hílico»)? Que há de mais irracional,
j mprovável, indeterminado, contingente ou acausal do que
1. Novalis, Les Hymnes à Ia nuit, em Les Romantiques allemands, trad. Armei () Pneuma, o Espírito, que sopra onde quer?
Guerne, Desclée de Brouwer.
2. Cf. o meu artigo, Biologie et Psychologie anabftioue in Cahiers de l'Herne
sobre C. G. [ung, Paris, 1983.
3. M. Merleau-Ponty, La Phénoménologie de Ia perception, Gallimard, Paris, I. Que devemos designar por oposição, à imagem-objecto O', a imagem-
ujeito O.
1945.

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Dito ainda de outra forma, a Física racionaliza-se na é, a actualização da Psyché na Physis, conferiu-lhes quase a
Psique (Noos) e irracionaliza-se na Psique (Eidos). A Física igualdade na matéria viva (Bios) que sofre inexoravelmente
torna-se Psique racional (Moos a partir de Hylé) e Psique a sua neguentropia (a sua evolução e a sua «vida eterna»,
irracional (Eidos a partir de Morphé). E ambas se combinam ou seja, a sua consciência). Sabemos que cada ganho de
no Pneuma escatológíco. consciência nos custa entropicamente muito caro 1. O sacrifí-
Eis aí o «quiasma» (tipo «óptico») 1 primordial da emer- cio está aí. A informação é-nos dada, mas não a sua
gência da Vida (Bios) na Física, centro do nosso mandala. consciência, porque esta é uma conquista eternamente sacri-
E é a estrutura do ácido desoxiribonucleico (ADN) que ficial porque constitui a sua neguentropia (Vida, Consciên-
preside de facto a essa mutação, constituindo, uma prefi~- ia) sobre uma entropia (Morte, Inconsciência) exactamente
uração do crossing-over dos cromossomas das celulas sexuais proporcional. Pago com a morte da minha Physis O preço da
distribuindo os genes hereditários de um casal no óvulo vida da minha Psyché. A actualização progressiva da Psyché
resultante dessa fecundação e assim induzindo todas as leis exprime-se na neguentropia crescente e proporcional à en-
futuras da ciência genética. Toda a biogénese (jilogenética das tropia crescente da Physis (isto é sobretudo verdadeiro no
espécies e ontogenética de uma única espécie considerada) plano estatístico, menos verdadeiro no plano individual).
assenta nesse crossing-over fundamental. O cross-couetn mar- Physis e Psyché estão, pois, em permanente conjunção...
iage tribal, que muito agradava a Lévi-Strauss, segundo Jun:~, Sim, mas acausal! Em conexão de sentido e não de causa' e
igualmente fundar-se-á nesse quiasma, como acontece, mais efeito. Só por si a Physis potencializa a Psyché e funciona
tardiamente, no caso das hierogamias Deusas Mães-Filhos segundo modo determinista causal, mas não ao nível mi-
rofísico quântico 2. Quando a Psyché é actualizada, a Physis
Amantes.
Observemos ainda que consideramos o princípio de assume, na Bios, uma outra forma (Noos e Eidos). Talvez não
realidade física objectiva como o portador mais significativo seja forçoso limitar à Bios do nosso Planeta essa nova forma,
da entropia crescente (em direcção à «morte» termodinâmica) mas antes generalizá-Ia à Informação absoluta do Universo
e o princípio de realidade psíquica objectiva, o da ne~uen- enquanto Unus Mundus. Com efeito, a Informação
tropia crescente, ou seja, do acréscimo permanente da infor- absoluta - mas inconsciente - desse universo é forçosa-
mação (estruturante e conhecedora) 2 do Universo fornecen- mente modificada pela introdução dessa informação relativa,
do-se uma consciência de si mesmo até à «consciência mas consciente. A realidade física conscientemente informa-
absoluta» da escatogonia «pneumática». Ia já a designámos como racionalidade (Noos, isto é, a Lei
No começo do Universo (<<Big-bang»),a entropia e a . a Ciência). A sua realidade psíquica conscientemente
neguentropia tinham um valor mínimo, mas aumentaram informada constitui a irracionalidade (Eidos, ou seja, o Amor,
depois em permanente conjunção. O quiasma biogénico, isto a Mística).
Porém, quando se chega ao pneuma, a realidade física
objectiva potencializa-se na sua própria entropia (na morte
1. Cf. P. Solié, La Femme essentielle, Seghers, Paris, 1980.
2. Aristóteles fazia a distinção entre «representação-imagem» do que se
percebe e «representação-esquema» do que se quer fazer; ou seja, entre I. Cf. E. Humbert, Le prix du symbole in Cahiers de Psychologie [ungienne,
«informação-conhecimento» e «ínformação-estruturante- portadora de n." 25, 1980.
ordem (cosmos) a partir da desordem (caos). , . E mesmo da macrofísica das «concentrações» estelares.

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aparente), embora se actualize na «Ratio» (Lagos, Noos) d ,i1). .oluta), aliás, é perfeitamente inconcebível. Por isso mes-
Psyché que a partir da Vida a acompanha na sua actualiz - '11() o ?esignamo~ o «Deus desconhecido» ou o «Deus que

ção, enquanto a realidade psíquica objectiva se actualiza n I),~()existe»: o radicalmente Outro, mesmo se é, num dos seus
sua própria neguentropia (a sua Vida e a sua Consciência), I ,(lI.s, em concorrêr,:cia, um Outro si mesmo (ipseidade
mas sob a forma de participação erótico-mística, ou se] , l'llltcal e absoluta). E o Além, o Algures. No nosso «cone»
irracional, acausal. Nesse aspecto, Lagos (Noos) e Eras (Eidos) IIII na nossa «esfera de luz», isto é, no nosso universo
combinam no Pleuroma reencontrado, aescatogonia «pneu- I Ii 'rceptível, todos nos encontramos em conexão causal e
mática». Mas, por enquanto, para nós, o princípio de reali- lI!»usal ',
dade física objectiva ainda domina e impõe a sua Lei: causal, A conexão causal é a da Physis; a conexão acausal é a
determinista, racional. Impôs-se mesmo no Ocidente com ti" Psyché objectiva, complementar dialéctica necessária da
única Lei. E é por isso que a 'acausaHdade irracional d I'hysis,
princípio da realidade psíquica objectiva se afigura um . Já ,antes (A mulher essencial), como aqui a retomamos,
raridade, uma contingência, que não obedece a nenhuma L i. (It'slgna~.os por? a subsistência sob a forma de um engrama
De facto, no absoluto do Universo (Unus Mundus), existem IIIIIUs~Jelto da lI~agem-objecto da realidade psíquica e O'
pelo menos tantos fenómenos acausais (irracionais, não II da Imagem-obJecto da realidade física objectiva nesse
determinados causalmente) como fenómenos causais (racio- IIIl'SmOsujeito 2. Da sua conjunção, fizemos assim nascer esse
nais, determinados), dado que, a cada fenómeno causal 'IImbolo (Sumbolon) que «consciencializa» na matéria viva
corresponde obrigatoriamente um fenómeno acausal, ou seja, I': xas duas realidades fundamentais do Unus Mundus sob
um fenómeno de revelação irracional do próprio sentido, íorma .epifânica, 00useja, como emergência consciente (pré-
pela participação animista que essa revelação exige. A menor reflexiva e reflexiva) do sentido, do valor e do conheci-
percepção comporta a sua parte de despersonalização (pro- 11.1 mto, Um lugar epifânico - e teofânico - em .que o irra-
jecção), isto é, a sua componente animista (Cf. Mo Merleau- \'ional acausal se conjuga com o racional causal.
-Ponty in Phénoménologie de Ia perception, opo cito) 1. O pneu, determinado de forma causal, era de facto
Então, porque devemos hesitar em colocar como cert /l'J'aci~nalmente (acausalmente) entendido por Anne=ou, se
a conexão acausal (sincronística) entre a deterioração mat - I)refe:Irmos, Anne fora dominada irracionalmente pelo pneu
rial de um pneu e o mal-estar psicossomático de Anne? que tinha alguma coisa de racional para nos dizer. Mas que
A percepção mais simples mostra-nos essa conexão entr 11, nest~ ~undo qu: não tenha qualquer informação para nos
Psyché, matéria viva e matéria não viva. Se não fôssemo transmitir? Tudo e realmente informação, desde o mais
feitos dos mesmos materiais que tudo o que nos rodeia, nã 111 fimo corpúsculo quântico - ou subquântico - à mais gí-
poderíamos aí vislumbrar rigorosamente nada, e um ser
dessa natureza absolutamente diferente (alteridade radical
I. f. M. Cazenave, no mesmo livro, supra: La Science et l'Áme du monde
Imago, Paris, 1983,em que o autor distingue quatro planos de realidad~
1. O animismo pode definir-se, na nossa linguagem, como o estado d do Ser Uno desconhecido, que esclarecem singularmente o nosso pro-
fusão-confusão das imagens-objectos O e O' (imaginário): «Objectos ina- pósito.
nimados, têm vocês realmente uma alma que se liga à nossa alma " Ver in La Femme essentielle, os esquemas r, V e Vl sobretudo e ver
a obriga a amar?», pergunta o poeta no regresso à sua terra natal. também o meu artigo dos Cahiers de Psychologie [ungienne, n." 21, 1979.

100 101
gantesca galáxia. Apenas, neste caso,. O e O' mostr.am-s' mitologias), sujeito/objecto (Eu/Outro), e depois da sua
ainda confundidos e exprimem-se na lmguagem arcaica d conjunção (O-O').
corpo: histeria e sintomatologia psicossomática (imaginária). Mas, atenção! A Psyché reflexiva, tanto racional (Noos),
como irracional (Eidos), não se reduz ao Sujeito, ela des-
venda-o como desvenda o Objecto numa mesma linha. Nesse
mesmo movimento de emergência psíquica na Physis, Sujeito
m. DA SlNCRONlClDADE PRÉ-REFLEXlVA . Objecto desvendam-se, em primeiro lugar de modo con-
À SlNCRONlClDADE PÓS-REFLEXIVA traditório (separação, clivagem, schize, queda, exclusão ...) e
lepois de modo complementar (conjunção), a partir da
Quanto a Laure, desde os nove anos (altura da morte
f usão-confusão original. Essa fusão-confusão não sendo mais
da mãe) que procurava desesperadamente o «Barqueiro:>
no início do que a actualização da Physis em relação à
(neste caso, a «psicobomba»: Anúbis e Isis) que lhe permi-
potencialização da Psyché. Por sua vez, é a partir do quiasma
tisse atravessar esse abismo imaginário (maya, «Bardo», da Vida que se actualiza a Psyché em relação à potencia-
inferno) em que a morte da. mãe a mergulhara «entropica- lização progressiva da Physis na matéria viva. E ainda desse
mente». Procurava o «neguentropísador», aquele que conhe- quiasma podemos «triangular» a situação a partir do es-
cesse o caminho da emergência neguentrópica, distribuidora \.luema aristotélico, quer através do potencial (<<empotência»,
de sentido (segundo nascimento, «metanóico»). Mas seria realidade psíquica) e do actual (<<emacto», realidade física);
necessário vencer o inferno da condenação de Seth (a Duat) c da Physis que compreende uma substância (matéria, Hylé)
para alcançar o da ressurreição de ~síris (o Amenti):. . uma forma (Morphé).l Além desse quiasma, podemos
. Precisava, pois, de operar a dlf~rença ,~a rea~ld~d «triangular» a situação a partir do esquema platónico da
psíquica objectiva (O) em relação à re,al~dade física o~Jecti~a «Ideia» (Pneuma) que compreende o Eidos (imagem e
(O'), que se confundiam no luto patológico por sua mae, ,CtlJo ssência irracionais) e o Noos, racionalização simbólica do
corpo vivia em Laure num est~do ~e «~ar,d?» perpetuo. Eidos,·mas entendendo-se uma vez mais por um lado que
Essa indiferenciação é própna do imagmano (maya), ou o Noos está subjacente ao Eidos e por outro que o Eidos está
seja, da atracção da Psyché neguentrópica na Physis entróric~, subjacente ao Noos.
mas essa mesma diferenciação-conjunção opera a emergencia Porém, chegados a este ponto, parece que podemos
na consciência (epifania), ao mesmo tempo do imaginal agora distinguir, numa perspectiva antropológica, ou mesmo
irracional (<<campo»de irracionalização erótico-mística antropocêntrica 2, três etapas essenciais sobre o cérebro
Eidos) e do simbólico racional (<<estruturade racionali~açã? e humano 3:
Noos»). O desvendar (consciência, portanto, separaça?""d~f~-
renciação) da realidade física objecti:ra opera:se ~a obJ.ec~vl-
I. «Por Hylé, entendo por exemplo o bronze, por Morphé a forma que
dade do Noos (racional) e o da reahdade pSlqUlca objectiva
assume e pelo composto das duas, a estátua, o todo concreto», Aristó-
na subjectividade do Eidos (irracional): De~de logo, .poi~, o teles, Métaph. Z3, Les 6elles Lettres, Paris, 1966.
sujeito é introduzido relativamente ~a~ obiecio; ~ Sl~mesmo 2. Construído ainda como um mandala. Foi no meu livro Médécine et Homme
relativamente ao Outro. A emergencia (actuahzaçao) da total, La Colombe, Paris, 1961 e Retz, 1964, que formulei esse mandala.
Psyché na Physis (potencializando-se ~ntropicamente) afirma- 3. Que nada nos impede de aproximar dos «três estados» de Auguste
-se como constitutiva da ruptura tschize, spaltung, queda das Comte.

102 103
1.0 A etapa diencefálica (hipotalâmica) que provoca um uma tal separação (schize) do Objecto (que não
«campo de irracionalização» animista, mágico, par- esgota a Physis) e do Sujeito (que não esgota a
ticularmente zoomorfo \ sobre o qual se constrói Psyché), em benefício do Objecto (Physis, ratio, ciên-
uma «estrutura símbolo-mágica». Os fenómeno cia, causalidade) de que o Sujeito, nestes últimos
acausais encontram-se aí em primeiro plano, mas decénios, foi excluído o mais radicalmente possível
«pré-reflexivos» (imaginários 2. Trata-se do campo e com ele a acausalidade que caracteriza a sua
da estrutura do «xamanismo» e da magia dos pOVOR emergência na Vida e no Anthropos. É esse o campo
«etnológicos», incluindo os do XVI bairro de Paris .., e a estrutura da modernidade, que sobretudo flo-
2.° A etapa arquiencefálica (ou arquicortical: «encéfalo resce no V bairro de Paris ...
arcaico») que provoca um «campo de irracionaliza-
ção» mitológica, zoo-antropomorfa (Anthropos faz a Mas perante o fracasso positivista do saber científico
sua verdadeira emergência), sobre o qual se cons- nbsoluto, perante a consciência da acção - subjectiva-,
trói uma «estrutura mito-simbólica» e já filosófica. perante a «impossibilidade de descobrir um ponto de vista
Os fenómenos acausais predominam ainda aí (so- de sobrevoe, um ponto de vista a partir do qual a «totalidade
bretudo oráculos) como «pré-reflexivos» e já «refle- Ite real» seria «simultaneamente visível» \ tal como pensava
xivamente» (mito-filosofia imaginal). Mas os fenó- ,\ ciência newtoniana e mesmo einsteiniana poder realizá-lo,
.menos de causalidade inerentes à racionalização sim- li m novo «campo de irracionalização» surge dessa mesma

bólica da Physis (Ciência) fazem assim a: sua clara estrutura símbolo-matemática racionalizante ... Trata-se de
aparição. O Sujeito emerge claramente do Objecto, uma nova Weltanschauung (visão universal), a única que
o Eu do Outro, a ciência da magia, o erótico-místico nutoriza hoje a nova linguagem irracionalizante da psicolo-
(imaginal) da fusão-confusão animista (imaginário), gia das profundezas junguiana e da físicaquântica.
É esse o campo e a estrutura dos povos da Antigui-
dade, incluindo os do VII bairro de Paris ... Um novo Eros, uma nova mística, um novo campo de
3.° A etapa neencefálica (ou neocortical), com o seu participação entre Anthropos e Coemos, esboçam-se «Algures»
«campo de irracionalização» místico imaginal e a \ no «Além» da estrutura símbolo-matemática. A Psyché
sua «estrutura» símbolo-científica de racionalização, irracionalizante prossegue de forma incansável na sua cami-
tendo esta operado, sobretudo desde há três séculos, nhada, contraditória e complementarmente em relação à
l'syché racionalizante. Os fenómenos da acausalidade que a
caracterizam manifestam-se de novo na consciência «neo-
-reflexivamente». A consciência «reflexiva» não se reduz
1. É apesar de tudo bastante lógico que o cérebro arcaico (animal) produza, ílpenas à consciência racionalizante da Physis newtoniana e
por meio do neocórtex, imagens da nossa própria animalidade. Os insteiniana, mas inclui a consciência irracionalizante da
sonhos arcaicos mostram-nos hoje, maravilhosamente - se assim posso
. ousar exprimir-me -, esse mecanismo, e os templos e túmulos egípcios
revelam-se como autênticos transformadores de animais em homens
através dos deuses. I. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, La nouoelle alliance, métamorphose de
2. Cf. M. Merleau-Ponty, op. cito Ia science, Gallimard, Paris, 1979.

104 105
Psyché e mesmo da nova Physis - quântica e biológi , IV. A EVOLUÇÃO LINEAR (CAUSAL) DO
sobretudo prigoginiana 1.
É essa consciência que designamos como imagina 1 par
UNIVERSO ESTÁ EM CONEXÃO ACAUSAL
a distinguir bem da consciência «pré-reflexiva» animist PERMANENTE COM A SUA INFORMAÇÃO
(fusional, imaginária). De um modo mais claro, deveríamo ABSOLUTA (OMNIPRESENÇA)
mesmo designá-Ia como-consciência reflexiva, ímaginal, pós-
Impõe-se, pois, um esquema real para se poder visuali-
-reflexiva, por ser a permanência, a perenidade do campo 1011' bem o que procuro exprimir.
de irracionalização «pré-reflexivo- (imaginário) através
para lá da estrutura de racionalização «reflexiva» (simbólica).
Ela é uma conjunção «escatogónica» P' -P em relação f USMOGÉNESE EM CURSO
1 CSCATOGÉNESE ~----~~~ESE
conjunção «cosmogónica» O-O', através e para lá do quiasm :11 EXTERIORI r--~---,-, ONTOGÉNESE
antropogónico de «Eros». Esse quiasma é para o Homo 1numOI

sapiens-sapiens 6 equivalente dos quiasmas anteriores (oral,


anal, genital) para o Homo habilis, o Homo erectus e o Homo
sapiens neanderthalensis. É também o equivalente dos ante-
riores quiasmas biológicos: a disposição em X das pirâmides,
por exemplo, para o centro nervoso e o crossing-over d
fecundação ao nível celular. Finalmente, é o equivalente do
quiasma fundamental da emergência do biológico (Bios) na
Physis, isto é, do aparecimento da Vida há cerca de três
biliões e oitocentos milhões de anos: epifania actualizante da
realidade psíquica objectiva, até então sobretudo potencial,
na realidade física objectiva até então exclusivamente actua-
lizada (no nosso «cone de luz» actual).

1. M. Cazenave (op. cii., sobretudo La science et l'ãme du monde) distingue


quatro planos do Ser-Uno desconhecido: 1) a «nostalgia» desse Ser
«perdido»; 2) o plano do ser que compreende a Psique objectiva, os
pares complementares, o Ilnus Mundus, o real criador da física quântica,
as Ideias de Piatão; 3) A Totalidade do que existe: psique objectiva num
indivíduo, física relativista e física quântica fenomenais; 4) Os entes: Este esquema não pretende ser exclusivo
psicologia do consciente, imaginário pré-reflexivo, física clássica (new- do desenvolvimento da filogénese e da
ontogénese: uma nova espiral- e muitos
toniana). outras - podem ser de facto concebidas.

106 107
Comentemos em poucas palavras este esquema: do Caos de Hesíodo, na sua Teogonia 1. O que não existe no
l'spaço, no tempo e na causalidade, mas que faz existir (como
No centro, o círculo do «Big-bang», ou seja, a cos- o Amor).
mogénese física. Nesse mesmo círculo, representa-
mos a cosmogénese mitica (psíquica) que designa- - O 2.o círculo contém as representações (que coloco aí)
mos por Si-Outro «interior». Chamamos O' às «ima- do universo físico em expansão, ou seja, a evolução cósmica 2,
gens-objectos» da cosmogénese física e O às «ima- até à criação do nosso planeta: partículas, átomos, moléculas,
gens-sujeitos» da cosmogénese psíquica. Repetimos nebulosas, galáxias, estrelas, terra.
que O e O' são, em nós, as representações que evolui-
rão até ao discurso dessas duas realidades (mistica - O 3.o círculo contém as representações do universo
e artística para O, científica e técnica para O'). biológico em expansão, isto é, a evolução biológico 3, a partir
No exterior, o círculo da cosmogénese física hoje do ADN primordial dos primitivos oceanos com quase três
constituído (quinze biliões de anos depois do «Big- biliões e .oitocentos milhões de anos: ADN primordial,
-bang»), que é o Universo em expansão da nossa Bactérias, Protozoários, Espongiários, Celentérios, Vermes,
astrofísica. Nesse mesmo círculo, e paralelamente ao Peixes, Batráquios, Répteis, Mamíferos, Antropóides, Homo
centro definido em baixo, colocamos a cosmogénese (habilis, erecius, neanderthalensis, eapiens-sapiens). Um longo
psíquica (mítica) correlativa, mas que os mitos dos espaço foi deixado ao sapiens «ao quadrado» (reflexivo) para
Fins últimos (escatológicos) prosseguem «além», no eventualmente produzir certas mutações - sempre possíveis
que designamos por um Si-Outro «exterior». - do seu ADN fundador.
Este 3.° círculo é o da jilogénese (evolução das espécies
«Interior» e «exterior» não têm, pois, sentido senão neste vivas durante três biliões e oitocentos milhões de anos).
nosso esquema. Tratar-se-ia de preferência de um «antes» e
de um «depois». «Antes» dos quinze biliões de anos passa- _ O 4.o círculo contém a embriogénese que, em cada ser
dos e «depois» dos quinze biliões de anos futuros, dado que vivo, retomará lenta e mais simplesmente a fiiogénese ante-
o nosso Universo, face aos cálculos dos actuais astrofísicos, rior. Nomeamo-lo ontogénese. Portanto, em poucos meses
cumpriu apenas quase metade da sua vida. Portanto, o Si- (vida intra-uterina para os mamiferos) e alguns anos (infân-
-Outro «interior» e o Si-Outro «exterior» exprimem-se por cia, adolescência) recapitula a filogénese. Por exemplo, as
estas míticas palavras: «No Começo...» e «No Fim...». Eles células sexuais (gâmetas) são dois Protozoários, o estádio
são paradoxalmente a expressão do que nunca começou e «morula» do embrião recapitula a espécie Espongiária; o
do que jamais terá fim 1. Isto é, do Universo acausal e do
não-manifestado, do Vazio, se se quiser - no mesmo sentido
1. Les Belles Lettres, Paris, 1977: «Antes de tudo foi o Caos - o Vazio;
esquece-se muitas vezes essa significação do Caos: o Abismo, o Vazio.
2. H. Reeves, op. cito
1. Entendendo-se mesmo assim que situam o nosso Universo manifestado 3. L. Cuénot, por exemplo, Masson, Paris, 1951; P. P. Grassé, L'éoolution
entre esses dois extremos limites, como o infravermelho e o ultravioleta du vivant, Albin Michel, Paris, 1973; do autor, em Cahier de l'Herne sobre
delimitam a luz visível. C. G. Jung, op. cito

108 109
estádio «blastula» o dos Celentérios; o estádio «gastruls ~ " As aldeias agrícolas agrupar-se-ão em nações e impérios.
dos Vermes, etc. até ao fim do neocórtex pré-frontal du ( ) pequeno deus-semente vai tomar-se um poderoso impera-
sapiens-sapiens, «nec plus ultra» da nossa evolução biológlo .Ior, mas permanecendo na sua origem como Filho de sua
e que sobrevém apenas na amamentação com algum M5e r, mas depressa ele se emancipará e fundará o império
semanas, prosseguindo até à idade adulta. dos Pais, depois da descoberta do papel dos machos na
Um longo espaço é deixado a essa ontogénese para assim I., undação. Os Filhos-amantes tornar-se-ão, pois, «Filhos-
sofrer as eventuais mutações ADN da jilogénese em curso, c'dipianos», mas sem erradicar os primeiros, por muito que
mas também para nela produzir as mutações do, «sorna Isso seja necessário.
(vsomatações») no próprio seio dos ADN do corpo, que v o A mística religiosa que represento nas duas últimas
do cancro à evolução intelectual ou mística mais profunda 10 casas sob a denominação de Sofia-Khristoe 2 é a do anima e
.10 animus imaginais, mas por enquanto faz parte sobretudo
. - O 5. o círculo é menos clássico, porque é aquele qU( dessas «somatações» sacrificiais raras e «piedosas», que são
designo por filo-psicogenético, afirmando através deste bãr- os «votos».
baro neologismo que se trata de uma evolução da espécie
- O 6.o círculo, também menos clássico, é aquele que
-humana na ocorrência .,- no decurso dos quase tr !f
.u designo como onto-psicogenético, afirmando com tal neo-
milhões de anos da sua evolução (se a datamos a partir d
logismo o paralelismo entre essa 'evolução psíquica indivi-
Homo habílis: o Australopitecus).
dual e a evolução psíquica colectiva, e a recapitulação
Conhecem-se os primeiros utensílios e as primeiras biológica que a ontogénese efectua em relação à jilogénese.
armas que servem sobretudo para satisfazer os impulsos Poderá dizer-se, pois, que a onto-psicogénese recapitula de
digestivos (orais, anais). Mas são também já evidentes os forma abreviada (em poucos meses e anos) e de forma mais
impulsos «genitais», ainda escondidos, psicologicamente, simples a fiio-peicogénese de três milhões de anos de evolução
nos primeiros. Conhece-se também o fogo e os primeiros da realidade psíquica objectiva no Hemo.
cultos dos mortos. Aparece a arte rupestre com as grandes Em paralelismo com a jilo-psicogénese, poderá' assim
caçadas e a arte cerâmica nos períodos glaciares (de quie- distinguir-se o estádio oral e as suas subdivisões, o estádio
tude). E, brevemente, a Terra será investida substancialmente do espelho, o estádio anal e as suas subdivisões, o estádio
pela realidade psíquica (arquétipo) da Mãe e convergirá para genital e as suas subdivisões, a puberdade, o adulto jovem,
criar as primeiras religiões das Grandes Deusas e dos seus e enfim, na segunda fase da vida, a individualização, aqui
Filhos-amantes, que se conjugarão com a realidade física da assinalada, sempre tendo como referência as minhas obras
descoberta da agricultura e dos deuses-sementes sujeitos à anteriores, pelos três estádios de evolução imaginal: Eros,
morte e à ressurreição. Caritas, Agapé 3, em conjunção com os três estádios pulsionais

1. M. Cazenave e R. Auguet, Les empereurs fous, op. cito


1. Cf. do autor Biologie et sacrifice, in Cahiers de Psychologie [ungienne, 2. Em referência aos meus livros La Femme essentielle, Psychanalyse est
n." 25, Paris, 1980, e Le sacrifice, a aparecer nas Ed. Poiesis, Paris. Mas imaginal, Mythanalyse jungienne, op. cito
deve distinguir-se bem as mutações do «soma», não hereditárias, das 3. O eidolon imaginário confunde-se com o objecto que o porta: o eidolon
mutações do germen (células sexuais), hereditárias. imaginal separa-se dele.

110 111
(imaginários), respectivamente: genital, anal e oral, da prím j 111' ,\I10S e três biliões e oitocentos milhões de anos desde
ra fase da vida. ,I ocorrência fundamental até ao Homo sapiens-sapiens.
Esses três estádios imaginais, em paralelismo com I IHII' tempo é linear, causal, irreversível e representa-se nas
individualização colectiva da filo-psicogénese, Sopia-Khrietu , 1111' 1.15 coordenadas pelos limiares de evolução principais
(l'I I lI'rgências), através de círculos concêntricos que, de facto,
são evidentemente tão raros individualmente como col t
vamente. Exigem as «somatações» sacrificiais já assinalad 1l'111'l'sentamespirais que partem do centro cosmogónico
e não passam ainda de «votos piedosos», realizados al IIldl 'I) (Big-bang) e psíquico (Si-Outro «interior») e evoluem
(I' p<lOsãodo universo físico e da consciência) até à circun-
disso por indivíduos que denominamos santos ou «vivo
libertos», testemunhando perante todos os outros essa p "'11'11ia psíquica erncurso, projectando-se numa escatogénese
tencialidade humana - sobre-humana! 11' 11'designamos por Si-Outro «exterior»), Centro e circun-
Para lá desse 6.° círculo, encontramos a escatogénese ( I 'l'l\'ncia estão, pois, em correspondência causal linear ao
-Outro «exterior») e a cosmogénese física em curso à qu I 11!llgodas espirais; mas também, como nos demonstra a
IlId ioactividade, a radiação fóssil, o paradoxo EPR e o
já nos referimos. Mas alguns perguntarão onde se encontr I
neste esquema, o discurso dessa cosmogénese física em II 'I idulo de Foucault, em correspondência acausal ubiqui-
curso, ou seja, as ciências físicas. É verdade que não O IlIda: o Universo está a todo o momento absolutamente
representei e apenas esquematizei as estruturas «eidéticas» (nuiversalmente) informado em cada um dos seus pontos.
(Eidos), neste final do 6.° círculo, que reencontra a morte 1'111' exemplo, existe sempre uma conexão transversal acausal
,lI' informação entre partículas 4 Terra 4 ADN primor-
o seu «além». Mas podemos imaginã-los dentro do próprio
círculo exterior, conjugado com as estruturas afectivas e a dLII 4 ADN germina I(células sexuais) 4 ADN das espécies
suas «imagens-sujeitos» P. Serão então as «imagens-objectos» li, I phylum que conduzem ao Homo sapiens-sapiens 4 Agapé
P', que exprimem essa cosmogénese em curso através d tlll escatogénese (cosmogénese psíquica projectada sobre os
estruturas matemáticas «noológicas» (Noos) 1. Nestes último llus últimos).
estádios da evolução humana actual, como nos nosso Portanto, as conexões causais lineares (aqui espiraladas)
I' conexões acausais (transversais) formam uma rede de
esquemas anteriores, Newton-Einstein (Noos) conjugar-se-ão
com Moisés-Jesus (Eidos) para além dos milénios e dos IH'ontecimentos que obedecem à causalidade do espaço-
séculos 2. ti-rnpo da Physis (realidade física objectiva e as suas ima-
Mas façamos agora um resumo. Do «Bíg-bang» cos- f',' -ns-objectos O' e P') e formam também concorrentemente
mogónico físico ao aparecimento da Vida (Bios) no nosso lima rede de acontecimentos correlativos que obedecem à
planeta decorreram quase onze biliões e duzentos milhões Ilcausalidade de uma simultaneidade permanente (espacio-
utemporal) do mundo-Uno «eidético» (Eidos) e «pneumático»
(l'neuma), ou seja, obedecem em definitivo à realidade
1. M. Cazenave, La science et l'ãme du monde, Imago, Paris, 1983. II iIquica objectiva e às suas imagens-sujeitos O e P. Um
2. É evidente que se substituirmos o antigo discurso religioso pelo dis- Inundo experimentado (irracional), mas nunca comprovado 1.
curso ideológico de hoje, Marx substituirá o messianismo de Jesus, na
mesma utopia (sem lugar); e os seus «gulags», a sua sombra, não serão
menores, porque «quem age como um anjo», sem os sacrifícios exigidos,
«age como o diabo». I, M. Cazenave, La science et l'ãme du monde, op. cito

112 113
Esta descrição parece supor um futuro sempre já \ l'omungar - desde a mais pequena unidade de informação
tente. E foi isso mesmo que Einstein desesperadamente \\11\
llo corpúsculo até à Consciência mística mais absoluta,
vão procurou durante os seus últimos 35 anos de vida. 1'.11 p. ssando pela mais estrita consciência racional e pela maior
essas teorias, a liberdade não seria então possível senã 1\11 linidade de informação macrofísica.
«Algures» do cone - ou da esfera - de luz de Minkow k ,
à direita e à esquerda do presente.
Naverdade, quanto a nós, situamos esse Algures n \I V. DO ARQUÉTIPO COMO REALIDADE
apenas nos dois lados dos cones passado-futuro, mas n \ PSICÓIDE, LIGANDO PHYSIS, SOMA
suas duas «extremidades», isto é, para cá do passado du
E PSYCHÉ
Universo e para lá do seu futuro (de resto, é o que deslg
namos como pré-cosmogonia pleromática e escatogonl \ Portanto, será agora mais fácil compreender a forma
pleromática, e aqui designamos por Si-Outro interior I como Laure, perdida num mundo para si não significante,
exterior). Mas esse Algures, englobando todas as zonas du veio até mim no momento oportuno (Kairos) 1.
espaço-tempo minkowskiano, é a realidade, psíquica objec.tivlI O seu tio enviou-ma em desespero de causa; conhecia
e não somente a realidade.física objectiva. E o desconhecido, muito pouco a meu respeito, mas sabia da minha formação
o improvável, o incerto, o infinito, o indefinido, o Vazio, O junguiana. Não sabia conscientemente - qual a terra da
Pleroma, o Deus desconhecido, etc., ou seja, o não-espacia minha origem, que afinal era comum à sua família, à sua
lizado, o não-temporalizado, o não-criado, a eternidade, ~l sobrinha. Ignorava mesmo as minhas preocupações de
liberdade da realidade psíquica objectiva irracionalizante.
momento sobre o arquétipo da Grande-Deusa-Mãe. Não
Ora, já vimos que esse Algures (eterno, livre, acausal)
sabia o que eu pensava da problemática do luto maternal,
intervinha em permanência no passado, no presente e no
da «Mãe morta». Mas sabê-lo-ia mesmo em relação à so-
futuro dos cones de Minkowski, justamente através das
brinha? Desconhecia tudo isso e, no entanto, foi exactamente
conexões acausais transversais.
nessa altura, face à necessidade de novo tratamento de Laure,
Por conseguinte, o mundo-Uno do «saber absoluto», da
acausalidade, da «criação contínua» e do «psicóide», estando que ma enviou.
sempre potencialmente representado, como já vimos, na O que é que isso queria dizer?
Physis (a sua informação) e depois actualizando-se progres- Laure, o tio e Solié estão em Paris, a 10 de Outubro de
sivamente no Bios, existe também sempre de modo hipotético 1982. Sofrem os três a sua própria «entropia» como a da
em redor dessas duas realidades manifestadas (criadas) Physis que os engloba, é o espaço-tempo causal, factor de
como Enquadrante absoluto. Em suma, «o Englobante» de diminuição de ordem e, portanto, de perda de informação,
K. Jaspers. O conceito de informação (ou saber) absoluto não- mas dela beneficiam também em conjugação com essa
localizado (isto é, não espacio-temporalizado), desenvolvido entropia da Physis e do Bios da neguentropia da sua Psyché
por H. Reeves, encontra-se, em minha opinião, definido própria, individual, como a da Psyché objectiva que igual-
nesse Algures espacio-temporal, manifestando-se (epifani-
zando-se) na sua criação e na própria criatura com as quais
nunca deixa de comunicar - e mesmo, eventualmente, 1. Cf. E. Humbert, Cahiers de Psychologie jungienne, n." 18, 1978.

114 115
mente os engloba. Neguentropia, ou seja, aumento de ord • qlléldrimilenária infernal do Juízo Final, as conexões acausais
e portanto de informação. Residem aí conexões arquetípi 'dO representar-se na própria linhagem da psicogénese e é
«transversais»' acausais que ligam os três ao próprio caml l'lltão que descobrimos a conexão geográfica comum que
da irracionalização do Algures espacio-temporal (Enquadra. t umonta a quase trezentos anos.
ou Englobante absoluto), aqui representado ao nível do EM/I Finalmente, as conexões acausais individuais ajudar-
arquetípico da Grande-Deusa-Mãe - de morte e de ren uos-ão a consolidar a psicogénese «pessoal» de Laure na
cimento. li' onstrução da sua dependência da infância junto da
Laure, o tio e Solié estão, pois, ligados arquetipicament "querida» mãe - uma dependência, é bom lembrar, próxima
nesse Algures portador de um sentido comum até aí igno d,1 minha na época,
rado pelos três protagonistas. Esse ponto comum arquetípi ( Consciência reflexiva (conhecendo-se e reconhecendo-
é um núcleo de significação, um nó de informação do Bio I HC), para Laure, da sua identidade mitocósmica, da sua
integrando Physis e Psyché nos seus ADN diencéfalo-cortical , nlentidade genealógica, da sua identidade familiar e pessoal
Por intermédio de seu tio, Laure reencontra Solié e est I - eis onde, se situam, a meu ver, as técnicas que têm a
que não compreende em princípio nada do que ela lhe cont I pretensão de fazer reviver aos próprios pacientes a vida
procura então enviá-Ia ao seu tio - ou para o hospital. M I tntra-uterina (ontogénese embriológica) e as «vidas anterio-
de súbito, dá-se o insight (a «iluminação»). Solié sente-se po r '5» (filogénese e filo-psicogénese). Mas essas técnicas con-
si mesmo directamente na sua conexão comum acausal, Iundem simplesmente a realidade física, objectiva e a reali-
nível da própria Mãe morta, de quem acaba por descobrir .lade psíquica objectiva. O Ilnus Mundus, lembremos, é da
justamente um sinal de vida, um renascimento 2. O Sentid ordem da realidade psíquica objectiva, duplicando a reali-
brota da constelação arquetípica (do fluxo informacional) dade física objectiva, mas não se confundindo com ela',
com ele a possibilidade de servir de «psicobomba» a Laur Todas as crenças nas reencarnações se situam ao nível da
para a sua descida aos infernos. Escolherá então o barqueir onfusão dessas duas realidades. Exceptuando esse por-
ióguico do Bardo-Thodol, o Caronte grego do Hades ou menor elas são, contudo, verdadeiras e constituem uma
Anubis egípcio da Duat e do Amenti - ou mesmo o Cão do intuição notável das correspondências acausais (realidade
Astecas? O discurso oniróide de Laure depressa acaba por psíquica objectiva) e da teoria da hereditariedade (realidade
o esclarecer: adopta o caminho «húmido» de Anubis com psíquica objectiva). Essas duas visões, irracional e racional,
cabeça de chacal. O campo de irracionalização dos antigo devem hoje conjugar-se, mas a separação radical raciona li-
egipícios servirá, pois, como via iniciática ao percurso tene- zante que a teoria da hereditariedade impôs é de facto a
broso (pré-reflexivo) de Laure até à luz da consciência condição necessária dessa conjugação, A teoria científica da
reflexiva e pós-reflexiva. Uma vez passada a «psicostase» hereditariedade não chega para explicar exaustivamente o
mito da reencarnação, mas é mesmo assim necessária para
a separação das duas realidades (Physis e Psyché) confun-
1. De facto, será necessário ir mais longe e analisar ainda mais finamente
para se entender que as conexões acausais são ao mesmo tempo trans-
versais e longitudinais, aliás, tal como as conexões causais, dado que 1. Se existe confusão, estamos no imaginário mistificante do Bardo (rnaya),
(se) correspondem desse mundo ao «outro». no universo zoo-antropomorfo mágico e, no limite, no delírio. É esse
2. Mesmo se essa mãe renascida se chama anima. o caso de Laure.

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didas no mito. O terceiro tempo está na conjunção da Phy i I nu-nte a reemergência (a reactualização) neguentrópica da
tal como a explica a teoria racional (causal) dos genes do ,,',didade psíquica na realidade física que, por sua vez, está
ADN, e da Psyché tal como a explicita a velha intuiç ( ,'111 vias de potencialização entrópica. O próprio mito
irracional das correspondências acausais. Na verdade, se l ulquímicc dessa redenção do Espírito (Pneuma) da Physis
ADN é realmente o suporte material (Physis) da «Memória» I,'vela-nos também, de modo exemplar, o que a Física
cosmo-biopsíquica, não é de modo nenhum o seu criador ruoderna começa a explicitar-nos de forma racional, mas sem
nem sequer um verdadeiro continuador nas mutações bío- II1Incaesgotar exaustivamente as revelações dos velhos mitos
lógicas criadoras (novum), ditas hoje proterogenéticas 1. (I.idoe e os seus eidola)
A esse nível da Creatio continua, é hipoteticament Por isso, a cada estrutura simbólica racional (sócio-
necessário fazer intervir a realidade psíquica objectiva e a sua "lIltural e científica) corresponde uma nova emergência
teleonomia 2, ou seja, a aventura cósmica da consciência do campo da irracionalização, isto é, uma nova mitologia 1,
procura de si mesma 3. Uma consciência em primeiro lugar II!TI novo imaginário-imaginal que faz avançar - ou elevar
totalmente potencial na Physis, em seguida actualizando-se - os seus pseudópodos teleonómicos para nos mostrar a
progressivamente (evolutivamente) no Bios e, por fim via possível - apenas possível ~ a seguir em direcção a
plenamente na Psyché (neguentrópica por excelência), em 1Ima nova estruturação simbólica sóciocultural e científica.
detrimento da Physis (que por sua vez se potencializa), São () campo irracionalizante permanece como a fonte viva da
essas as três formas de consciência que já atrás explicitãmos: «Criação contínua», as suas raízes pulsativas(cosmogonia
consciência «pré-reflexiva» do animal e do Homo até ao psíquica) como os seus fins atractivos (escatogonia).
sapiens, consciência «reflexiva» sapiens-sapiens, consciência Sem.esse campo pulso-atractivo acausal (a espacio-
«pós-reflexiva» de alguns exemplares do sapiens-sapiens e, temporal), a estrutura fundamental ADN do Bios não seria
sem dúvida, a nossos olhos, do sapiens ao «cubo» que nos mais do que uma simples macromolécula físico-química
sucederá neste planeta - ou noutro (a menos que nos tenha submetida à pura lei do acaso-necessidade (causal). As
precedido em qualquer outro lugar do nosso Universo), onexões acausais apenas podem fornecer uma explicação
O mito da humanidade perdida, o da Ideia platônica, da - hipotética - quanto à sua evolução criadora (<<teleonó-
Alma (Psiché) caídas e perdidas na Matéria. (Physis) e que mica») em direcção a certas estruturas de consciência cada
a nossa missão consiste em redimir (vredencionar»), exprime vez mais neguentrópicas, conscientes de si mesmas (reali-
muito claramente essas noções, agora racionais e já quase dade psíquica objectiva) e da matriz física que as engendrou
científicas, de potencialização da realidade psíquica objectiva (manifestadas por actualização).
a partir' do «Big-bang». O Bios exprime de facto exemplar- Num ser humano estudado isoladamente, a actualização
da realidade psíquica objectiva mostrará a emergência, por

1. Cf. o meu artigo "Biologie et Psychologie analytique" in Cahiers de


l'Herne sobre C. G. Jung, op. cito 1. Mesmo se é hoje ideológica: o marxismo é também um mito messiânico
2. O próprio Jacques Monod não se priva desse conceito in O Acaso e a da Idade de Oiro, tão utópico como todos os outros, mas a sua contri-
Necessidade, op. cito buição racional (Noos) para a economia política contemporânea não
3. Não escondo a influência da obra de P. Teilhard de Chardin no meu deve pura e simplesmente ser rejeitada. O liberalismo capitalista aliás
próprio pensamento. Oeuvres completes, Seuil, Paris. não desconhece isso. E é preferível para ele.

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I
Ii
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um lado, do Sujeito, do seu Imaginário, do seu Imagínal, do originais. Porém, a discussão desses desvios e deslizes não
seu radicalmente Si-mesmo, enfim; e por outro lado, do tem aqui lugar e assim apenas me limito a apontar de
Objecto, do seu estatuto real simbólico e sobretudo científico, passagem essas aproximações e assimilações conceptuais.
enfim, do seu radicalmente Outro. Do lado do Sujeito, o Para nós, o mais importante é insistir aqui na dialéctica
objectos O e P e a sua irracionalidade; do lado do Objecto, necessária, permanente, desses dois princípios fundamentais
os objectos O' e P' e a sua racionalidade. Essa actualizaçã para evitar a unipolaridade de um em relação ao outro, uma
neguentrópica (Vida) da realidade psíquica objectiva faz-s unipolaridade criadora de «psicostase»e de «somatostase»,
à custa da potencialização entrópica (Morte) da realidad de alienação no Sujeito e no Si-mesmo ou no Objecto e no
física objectiva. Outro. No Espírito desencarnado ou na Matéria des-signifi-
Se um ser humano se identifica demasiado radicalment cada (des-espiritualizada); no narcisismo primário de um Eu
com a realidade física objectiva matricial, não pode deixar que se cumpra para o Si ou para o Outro.
de viver o seu destino, a saber: o materialismo racionalista, A individualização é, de facto, algo totalmente diferente.
a alteridade mais ou menos radical (alienação no Outro e no É a recusa do imperialismo de um dos princípios sobre o
Objecto), enfim, a «massificação» e a morte «entrópica». outro, porque é a diferenciação de um sistema Sujeito-Eu em
Se um ser humano se identifica muito radicalmente com relação à sua inclusão na Physis e o Outro, de um lado
a realidade psíquica objectiva, não pode também deixar d (imagens-objectos O') e na Psyché objectiva e o Si primário
sofrer a sua sorte, a saber: o espiritualismo irracionalista, a ou grandioso, incluindo o Eu -, do outro lado (imagens-
subjectividade mais ou menos radical (alienação intra-sub- -sujeitos O). Mas a individualização é também, num segundo
jectiva, solipsismo, autismo) e o ganho «neguentrópico» qu' tempo e apoiando-se no sistema Sujeito-Eu diferenciado, a
julgar adquirir será apenas ilusório e tão alienante como elaboração de um sistema de revelação, tanto da realidade
identificação com o princípio matricial anterior. A esquizo- psíquica objectiva e do Outro, como da realidade psíquica
frenia equivale largamente à paranóia, com excepção feita d objectiva e do Si-mesmo. O desvendar da realidade psíquica
alguns grandes místicos que confirmam a regra. objectiva e do Outro, tal como ele é em si mesmo, é um
Mas, como fez G. Verne 1, poderemos identificar procedimento discursivo, lógico, racionalizante, um «epis-
princípio racional da Physis com o que ele designa por teme» matematizante (um lagos spermaticos). O desvendar da
«hemo-polaridade», um híbrido entre o «homogêneo» macro- realidade psíquica objectiva e do Si-mesmo é um procedi-
físico de Lupasco 2 e a extraversão de Jung? Poderemo mento intuitivo e além disso lógico, mas segundo a sua lógica
identificar o princípio irracional da Psyché com a «hetero- I rópria, ,que pode parecer perfeitamente ilógica ao primeiro
polaridade» de Verne, um híbrido da «heterogênea» mí- I rocedimento, mas além disso «razoável» - segundo uma
crofísica (quântica) de Lupasco e da introversão de Jung? razão que pode parecer desrazoável à primeira vista -, uma
Tudo isso é possível, especialmente essa assimilação - «episteme poetizante» (um lagos hystericos). É essa «epis-
sou disso uma prova neste texto! -, mas em minha opiniã Leme»que se designa por gnosis, conhecimento por insight
desde que se. acentuem os desvios feitos nos conceito , iluminação (Satori também no Oriente). É o procedimento
místico em geral e psicanalítico em particular - que, em
1. Le projet de Ia vie, Sodi, Bruxelas, 1968. nossa opinião, é apenas um desvendar da realidade psíquica
2. S. Lupasco, Les trois maiiêres, Grasset, Paris. objectiva, com uma certa nuance, que é o facto de o Outro,

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ligado à realidade física objectiva em geral, ser também um A SINCRONICIDADE


Alter ego; um Outro decerto, mas um Outro eu-mesmo.
Desvendando-o, eu desvendo-me. Desvendando-se, ele des- E O FUNCIONAMENTO DO CÉREBRO
venda-me. Desvendando-me, ele desvenda-se. Desvendando-
-me, eu desvendo-o. É aliás o que sempre acontece com KARL PRIBRAM
qualquer objecto do mundo se nele me invisto, ou seja, se
estou ainda «inconscientemente» nele alienado 1. Mas ao
contrário do objecto «utensílio» habitual da realidade física,
o Outro eu-mesmo sente-se como eu habitado pela mesma
realidade psíquica objectiva (do mesmo nível neguentrópico,
o que não é exacto quanto ao animal e menos ainda quanto
ao objecto «utensílio»). As suas correspondências (conexões)
causais e acausais com o Universo serão idênticas às minhas
e o que é para mim «alteridade» será para ele «ipseidade»
(ser Si-mesmo, ele mesmo em pessoa) em relação a mim. Por
outras palavras, a minha «ipseidade» (ser Si-mesmo) aliar- Em certo dia de 1961, visitei o Museu de Ciência e de
-se-á à sua «alteridade» (Outro) tal como a sua «ipseidade» Indústria de Chicago. No centro do Museu encontra-se uma
se aliará a minha «alteridade», espécie de dispositivo para ilustrar a natureza dos modelos
Desse modo, se conjugarão o si e o outro .individuais estatísticos. De um tecto abobadado caem grandes bolas de
- microcósmicos -, voltados para a Ipseidade radical e aço, à altura de uns três andares, que acabam por alcançar um
absoluta (Si-Outro interior) e a Alteridade radical absoluta centro de tipo gaussiano, provocando um ruído seco e
(Si-Outro exterior) - macrocósmicos. ensurdecedor. A descrição desse dispositivo dada pelo Museu
Reside, em minha opinião, a característica maior que a acentua a impossibilidade de prever o caminho seguido por
erótico-mística psicanalítica (gnose, revelação) atribui à ha- uma bola em particular, mas sublinha de imediato que o
bitual grande mística apofática. É o que ela designa o resultado global da sua queda é sempre previsível, segundo
transfert, que vimos, ao longo deste texto, a partir dos dois a lei de distribuição de Gauss. Reside aí, como se diz, o mistério
exemplos de correspondências acausais, que não se limitava, das probabilidades' e através desses. modelos estatísticos
como se impunha, apenas às ligações habitualmente re- podemos chegar a algumas conclusões.
conhecidas pela psicanálise clássica (freudiana ou mesmo Dez anos mais tarde, nessa obra fascinante que é O Acaso
lacaniana), mas englobava simultaneamente o Universo físico e a Necessidade, Jacques Monod manifestava o seu embaraço
e psíquico, o mundo Uno, causal e acausal. face ao mesmo mistério tal como aparece na biologia. Como
«Não se toca numa flor sem perturbar uma estrela», é possível, perguntava Monod, que tantos acontecimentos
assegura-nos, na sua desesperança do «aqui na terra», o devidos ao acaso acabem por permitir as formas manifestamente
poeta escocês James Thomson. estáveis que constituem os organismos?
Para mim, o enigma de Chicago era diferente do do livro
1. Por fusão-confusão imaginária O e O'. de Monod. Tendo escrito algum tempo antes da minha visita

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