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JUNG,

O MÍSTICO

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GARY LACHMAN

JUNG,
O MÍSTICO
As Dimensões Esotéricas da Vida e
dos Ensinamentos de C. G. Jung
Uma Nova Biografia

Tradução
MÁRIO MOLINA

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Título original: Jung the Mystic.
Copyright © 2010 Gary Lachman.
Copyright da edição brasileira © 2012 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.
Publicado mediante acordo com Jeremy P. Tarcher, uma divisão da Penguin Group
(USA) Inc.
Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.
1a edição 2012.
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Diagramação: Fama Editoração Eletrônica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lachman, Gary
Jung, o místico : as dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de
C. G. Jung : uma nova biografia / Gary Lachman ; tradução Mário Molina. —
São Paulo : Cultrix, 2012.
Título original: Jung the mystic.
ISBN 978-85-316-1195-7
1. Astrologia esotérica 2. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 3. Psicólogos —
Suíça — Biografia.
12-08400 CDD-150.1954092

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicólogos : Biografia 150.1954092

Direitos de tradução para o Brasil


adquiridos com exclusividade pela
EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.
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que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Foi feito o depósito legal.

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“Se vocês expuserem o que está dentro de vocês, o
que têm os salvará. Se não têm isto dentro de vocês,
o que não têm dentro de vocês [irá] matá-los.”
o evangelho de tomé

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Para

Marie-Louise von Franz (1915-1998)


Anthony Storr (1920-2001)
Stephan Hoeller

Guias úteis na viagem à noite pelo mar

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SUMÁRI O

Introdução: O Jung Desconhecido.......................................... 11


1. Memórias, Sonhos, Refrações.............................................. 23
2. Médium Infeliz.................................................................... 47
3. Intrusos na Mente............................................................... 67
4. Metamorfoses da Libido...................................................... 93
5. Funções Transcendentes..................................................... 117
6. O Culto a Jung.................................................................... 139
7. A Sombra Sabe..................................................................... 165
8. Arquétipos do Espaço Exterior........................................... 195
Epílogo: Depois de Jung.......................................................... 221
Pós-Escrito: O Livro Vermelho.................................................. 229
Agradecimentos....................................................................... 243
Notas ...................................................................................... 245
Índice ..................................................................................... 271

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INTRODUÇÃO:
O JUNG DESCONHECIDO

J ung era um místico? Jung achava que não e não via com bons
olhos os que eram. Numa entrevista filmada em 1957 com
Richard I. Evans, professor de psicologia da Universidade of
Houston, Jung, então na faixa dos 80 anos, observou que “os que
dizem que sou místico não passam de idiotas”.1 Naquela época,
isso teria incluído um bom número de pessoas, entre as quais se
achava nada menos que Sigmund Freud, outrora mentor e ami-
go de Jung. Foi o caráter “místico” da primeira grande obra de
Jung, Símbolos de Transformação,2 que precipitou o rompimento de
Jung com o fundador da psicanálise em 1912 e carimbou-o com
um rótulo do qual ele passou a vida inteira tentando se livrar. Na
época da entrevista de Evans, Jung já estava empenhado há quase
cinquenta anos nisso e, como sugere o título deste livro, não fora
muito bem-sucedido. Até o fim de sua vida e durante uma carrei-
ra longa e frequentemente turbulenta, Jung afirmou, exasperado,
que era antes de mais nada um cientista, um empirista e não um
teórico, metafísico, filósofo ou, mais enfaticamente, um místico.
Suas queixas, contudo, alcançaram geralmente ouvidos moucos e
o ônus do misticismo pende ainda hoje sobre Jung, como descobri
durante uma visita ao Freud Museum, aqui em Londres, enquanto
fazia pesquisas para este livro. Conversando com o curador sobre
a adoção por Freud do materialismo científico do século XIX e sua
tendência a reduzir os fenômenos “espirituais” a causas materiais,

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mencionei casualmente que a abordagem mais “construtiva” de
Jung do inconsciente parecia rejeitar isso. “Sim”, disse o curador,
“é verdade, mas aqui se trata de misticismo, não de ciência.” Jung,
eu acho, deve ter se revirado no túmulo.
O próprio Jung, contudo, nem sempre foi seu melhor advogado
de defesa. Numa série de palestras proferidas na Clínica Tavistock
de Londres, em 1935 — que constituem uma das melhores in-
troduções a suas ideias —, Jung assinalou que “não há nada de
místico no inconsciente coletivo”,3 esse reino interior de imagens
e símbolos herdados que ele descobrira e se esforçava para defi-
nir por meio de seus muitos escritos. O inconsciente coletivo —
ou, como Jung o chamava com menos frequência, mas de forma
talvez mais produtiva, a “psique objetiva” — é uma espécie de
reservatório de símbolos e imagens com que somos equipados ao
nascer e ao qual adicionamos mais tarde nosso próprio estoque de
material “reprimido” ou esquecido, o “inconsciente pessoal” em
que Freud se concentrava. Como “introvertido”, “extrovertido”,
“anima” e “sombra”, o “inconsciente coletivo” é um junguianismo
que ganhou uso popular, mesmo que frequentemente impreciso, e
se as pessoas conhecem só um pouco de Jung, o que conhecem é
isso. Contudo, na mesma série de palestras, Jung disse ao público,
constituído principalmente de médicos e psicólogos como ele, que
“os místicos são pessoas que têm uma experiência particularmen-
te nítida dos processos do inconsciente coletivo”. “A experiên-
cia mística”, disse aos seus cultos ouvintes, “é a experiência dos
arquétipos”4 — sendo os arquétipos as fotocópias psíquicas, por
assim dizer, das distintas imagens que, em seu conjunto, compre-
endem o inconsciente coletivo. Assim, embora não haja “nada de
místico no inconsciente coletivo”, parece certamente haver algu-
ma coisa arquetípica na experiência mística, pelo menos segundo
Jung. E como o próprio Jung teve “uma experiência particular-

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mente nítida dos processos do inconsciente coletivo”, ele seria,
por sua própria definição, um místico.

E ssa ambiguidade é comum em Jung e é uma razão pela qual a


maioria dos membros da comunidade científica não está pro-
pensa a lhe dar aceitação. Segundo o psiquiatra Edward Glover,
“do ponto de vista da exposição científica, Jung é, na maioria das
vezes, um escritor confuso que parece incapaz de chamar as coisas
pelo seu nome e de continuar chamando-as pelo seu nome”, o
que tem como efeito criar um “imenso rastro de verbosidade”.5
Mesmo autores simpáticos a Jung não podem deixar de fazer co-
mentários sobre sua obscuridade. Para o falecido Anthony Storr,
um dos melhores intérpretes de Jung e membro respeitado da co-
munidade psicoterapêutica, “um dos maiores obstáculos para a
leitura de Jung é sua multiplicidade de definições mal-formuladas
para a mesma coisa”.6 O próprio “inconsciente coletivo” é um des-
ses casos. Em diferentes ocasiões, Jung falou dele em linguagem
biológica e genética; em termos de estrutura cerebral; metafisi-
camente, como similar às Ideias de Platão; e — posso mesmo di-
zer? — misticamente, como algo que se ajusta ao que os iniciados
nos antigos mistérios eleusinos experienciavam. Os seguidores de
Jung argumentam que seu estilo condiz com a precariedade do
material (sonhos, visões e aquelas estranhas “coincidências signi-
ficativas” que ele chamava de “sincronicidades”), mais ou menos
como os devotos do filósofo Martin Heidegger argumentam que
seus escritos lapidares e frequentemente impenetráveis corres-
pondem aos territórios insólitos do Ser que ele explora. Outros,
contudo, menos convencidos da importância de Jung, dizem que
seus textos são simplesmente vagos e que Jung era um pensador
confuso. Jung foi, sem a menor dúvida, uma das mentes mais

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influentes do século passado, mas foi também, infelizmente, uma
das que causou maior frustração.
Mas só a prolixidade pode não ser tudo o que afasta Jung dos
muros santificados da ciência ou que o costura nos mantos inde-
sejados do misticismo. Durante toda a sua carreira, Jung não fez
segredo de estar fascinado por áreas de experiência ante as quais
qualquer cientista que se preze torceria o nariz. Desde o início,
Jung foi atraído pelo sobrenatural e pelo que passamos a chamar
de paranormal. Embora tenha começado sua carreira numa época
em que alguns dos mais importantes pensadores do mundo julga-
vam essas coisas dignas de pesquisa séria, a ciência de seu tempo
(como do nosso) tinha, em sua maior parte, relegado a ideia de
qualquer realidade imaterial ou espiritual à lata de lixo do intelec-
to. Mesmo aqui, no entanto, a ambiguidade de Jung causa inquie-
tação. Jung parecia ter dois pontos de vista acerca do sobrenatural:
um público, que queria compreendê-lo “cientificamente”, e um
privado, que admitia fantasmas, visões e premonições como parte
do mistério essencial da vida.
Exatamente por que Jung “acobertava as origens de suas des-
cobertas com um manto de cautela que tocava as raias do ocul-
tamento hermético”,7 como sugeriu o escritor gnóstico Stephan
Hoeller, é discutível. Para alguns, um senso de prudência na car-
reira explicava tudo; para outros tratava-se de proteger os mis-
térios de mãos profanas. Contudo, mesmo o estilo frustrante de
Jung pode ser visto como um produto da “duplicidade” de seu
pensamento. Embora pudesse escrever com clareza e de forma efi-
caz na maior parte do tempo (suas muitas introduções e comen-
tários, assim como as conferências publicadas, confirmam isso),
as obras principais de Jung avançam com aridez e tendem a mer-
gulhar o leitor num dilúvio de referências eruditas. Como Storr
observa: “Jung tem a tendência a empilhar analogia sobre analogia
a partir de um conhecimento muito extenso do mito e de religião

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comparada, a tal ponto que o leitor pode facilmente esquecer o
que estava sendo originalmente discutido”.8 É possível que Jung
supercompensasse as críticas de uma falta de “rigor científico”
produzindo tomos eruditos e pesados. Mas é igualmente possível
que Jung tivesse como objetivo intimar os leitores a aceitá-los pelo
simples volume do trabalho, o que cheguei a chamar de efeito do
Herr Doctor Professor. Quando se lê uma grande quantidade de
Jung, como fiz na preparação deste livro, é difícil evitar a sensação
de que ele é compelido a lembrar repetidamente a seus leitores
que é de fato — e que não deixa dúvidas a esse respeito — um
cientista. Não se pode às vezes deixar de suspeitar que não estava
tão certo disso quanto dizia estar e que uma das pessoas a quem
estava tentando convencer era ele próprio.
Contudo, pretensões científicas infundadas e um estilo verbo-
so, torrencial, ainda não parecem de todo suficientes para justifi-
car a acusação de místico, se é que se trata de uma acusação. O
que parece cravar Jung na mosca mística é sua reivindicação de
um conhecimento especial, secreto, conhecimento não obtido por
meio dos métodos normais de cognição, aquilo que certas seitas
cristãs dos primeiros séculos depois de Cristo chamavam de gnose,
a experiência espiritual direta. Jung frequentemente se lamentava
de que “sabe de coisas e deve aludir a coisas que outras pessoas
não sabem e em geral nem mesmo querem saber”.9 E num dos en-
saios mais importantes, ao lidar com o tema central de sua obra, o
processo de “individuação”, por meio do qual “uma pessoa se tor-
na quem ela é”, Jung declara abertamente que não pode oferecer
qualquer evidência ou prova da realidade de tal processo, pois se
trata de uma coisa que tem de ser experimentada. Em “As Relações
entre o Ego e o Inconsciente”, Jung escreve que “é... extremamen-
te difícil dar exemplos [de individuação] porque cada exemplo
tem a infeliz característica de só ser impressionante e significativo
para o indivíduo em questão”.10 Isso põe a individuação na mesma

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esfera do estar apaixonado, da experiência estética e, também, dos
estados místicos, coisas que compartilham a característica de “só
serem impressionantes e significativas para o indivíduo em ques-
tão” — todos nós conhecemos pessoas inteiramente “caídas” por
gente que não nos diz nada ou vidradas num quadro que nos deixa
indiferentes. E como acontece com o amor e experiência estética
e mística — como acontece aliás, com toda experiência —, isso
tira claramente a individuação do domínio da ciência, visto que
os critérios fundamentais da ciência são a mensuração e as possi-
bilidades de repetição. A ideia de encontrar um modo de “testar”
cientificamente se as pessoas que passaram pela análise junguiana
se individuaram ou não — isto é, “se elas se tornaram quem são”
— parece tão absurda quanto a ideia de fazer “testes” para o amor
ou para a experiência estética ou mística. As únicas medidas da
realidade de coisas como estas são as próprias pessoas, suas vidas
e seu próprio senso de “autorrealização”, para tomar empresta-
da uma expressão do psicólogo Abraham Maslow. Jung nunca se
cansava de repetir que “o real é o que funciona”11 e para alguém
acusado de misticismo trata-se de um credo terrivelmente prag-
mático. Num sentido muito significativo, então, toda a ideia de
saber se a obra de Jung era ou não “científica” é irrelevante para o
que nela é importante.
Mas é essa necessidade de experimentar a realidade da indivi-
duação que levou Anthony Storr a incluir Jung in seu livro Feet
of Clay: A Study of Gurus. “Jung foi um guru”, Storr argumentou,
porque “abandonou a tradição científica” e “sabia que estava cer-
to”. Jung chegou a seu conhecimento mediante uma experiência
própria de individuação, esse difícil e às vezes perigoso processo
de unificar as mentes consciente e inconsciente. “Ninguém que
passou pelo processo de assimilar o inconsciente”, Jung escreveu,
“negará que isso envolveu seus próprios órgãos vitais e o transfor-
mou.”12 Jung tomou conhecimento disso por experiência própria

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e seu “confronto com o inconsciente” mostra que prova terrível
isso pode ser. Contudo, é na experiência mesma de individuação
de Jung que muitos veem a razão para rejeitá-la, alegando que o
“confronto” foi pouco mais que um episódio psicótico. E como
Jung afirma que todo o seu trabalho subsequente resultou de tal
“confronto”, tais críticos acham justificado repudiá-lo como sim-
plesmente um produto de loucura. Na realidade, um crítico de
Jung sustentou que o objetivo de sua “psicologia analítica” era
instituir ele próprio como líder de um culto neopagão, adorador
do Sol, organizado com vistas a um renascimento espiritual da
Europa tendo Jung como uma espécie de figura de Cristo, prova,
ele afirma, que Jung sofria de um “complexo de Messias”.13
Embora boa parte desse raciocínio tenha sido desacreditado,14
mesmo partidários de Jung se sentem, como veremos, pouco à von-
tade com suas associações místicas. Alguns estudiosos junguianos
recentes argumentam que o verdadeiro legado de Jung tem sido
obscurecido por seu vínculo com o movimento Nova Era. Mesmo
reconhecendo que “um traço distintivo da obra de Jung foi a ten-
tativa de fornecer uma compreensão psicológica dos processos
de transformação da personalidade que ele afirmava serem sub-
jacentes a práticas religiosas, herméticas, gnósticas e alquímicas”,
Sonu Shamdasani também admite que “a não irrisória atenção de
Jung a esses assuntos foi suficiente para rotulá-lo como ocultista”,
uma acusação que, Shamdasani enfatiza, Jung “persistentemente
negou”, embora “muitos expositores da Filosofia Perene... não he-
sitassem em reivindicar Jung como um dos seus”.15 Outros, contu-
do, como o pensador gnóstico Stephan Hoeller, afirmam que rejei-
tar a conexão de Jung com a grande “antitradição” clandestina do
Ocidente — a cadeia hermética de alquimistas, místicos, magos e
esotéricos com a qual Jung sentia uma profunda afinidade — seria
produzir um Jung despojado, uma espécie de “Jung numa versão
mais leve”, aceitável, talvez, pela corrente intelectual dominante

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e pela comunidade psicoterapêutica profissional, mas carente de
qualquer substância espiritual significativa.
Já agora, no entanto, se criou certamente uma situação sem
volta. Que em seus últimos anos, Jung tenha passado a ser vis-
to como uma espécie de profeta — o “sábio de Küsnacht” ou o
“Hexenmeister [feiticeiro] de Zurique”16 — mostra que tentar cer-
cear sua influência hoje é inútil. Como Hoeller sustenta, Jung foi
uma flor tardia “num dos ramos mais importantes do que tem sido
às vezes chamado de Tradição Pansófica, a herança de sabedoria
que provém de fontes gnósticas, herméticas e neoplatônicas”. E
sua obra “não pode e não deve permanecer restrita ao campo da
prática e da teoria psicoterapêuticas”.17 Uma razão para isso é que
só alguns podem tirar proveito da terapia junguiana que, como o
próprio Jung admitiu, é onerosa e exige muito tempo. A adoção
por parte de Jung do papel de “guru universal”18 em seus últimos
anos pode ser vista como o reconhecimento de que suas ideias
precisavam ser acessíveis a mais pessoas do que a análise poderia
proporcionar. Como assinala Hoeller: “O Weltanschauung de Jung,
seu modelo de realidade ou concepção do mundo” e as “impli-
cações culturais e espirituais mais amplas de [seu] pensamento
precisam ser exploradas”.19

N a época em que me deparei pela primeira vez com Jung,


quando adolescente, no início da década de 1970, isso estava
certamente acontecendo. Jung pode não ter sido aceito por inte-
lectuais da corrente dominante — Freud era o psicólogo da prefe-
rência deles —, mas certamente fora adotado pela contracultura.
Quando li pela primeira vez Memórias, Sonhos, Reflexões (sua “su-
posta autobiografia”), Jung fazia parte de um cânon de pensado-
res “alternativos” que incluía Hermann Hesse, Alan Watts, Carlos
Castañeda, D. T. Suzuki, R. D. Laing, Aldous Huxley, Jorge Luis

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Borges, Aleister Crowley, Timothy Leary, Madame Blavatsky e J. R.
R. Tolkien, para citar alguns. Que seu rosto aparecesse na capa do
famoso álbum dos Beatles Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band,
entre uma multidão de outros personagens não ortodoxos, bastava
como endosso. Foi por meio de Jung que boa parte da magia que
informou a década mística dos anos 1960 chegou a pessoas como
eu. Graças a ele, obras obscuras como o I Ching e O Livro Tibetano
dos Mortos* tornaram-se o pilar da geração do amor e, mais que
qualquer outra pessoa, ele foi responsável pela difusão da ideia de
que a Era de Aquário estava logo na esquina.
Não é de surpreender que o sucesso de Jung na cultura de mas-
sa tornasse mais duras as críticas contra ele, mas tivesse Jung tido
consciência disso — ele morreu bem no ápice do grande “resgate
do ocultismo” dos anos 1960 —, tenho certeza de que não teria
se importado. Embora sempre exigindo respeito como cientista,
Jung não torcia o nariz ante o público de base popular que crescia
em torno de sua obra mais tardia, mais esotérica. Que tivesse sido
escolhido pela gente “comum” e rejeitado pela intelligentsia não
o incomodava. Numa entrevista dada em seus últimos anos, uma
década antes de os Beatles porem nele seu imprimatur, o octogená-
rio Jung comentou: “Vocês sabem quem lê os meus livros? São as
pessoas comuns, com frequência gente muito pobre.”20 Também
contou a história de um velho camelô judeu que um dia bateu
na porta dele pedindo para ver o homem “responsável por todos
aqueles livros”.21 Tentamos menosprezar o que não temos, talvez,
mas embora Jung continuasse de fato buscando a aceitação da co-
munidade científica, seus verdadeiros leitores eram pessoas como
eu, interessadas em ideias sobre a psique e o lugar dela no cosmos,
menos preocupadas com “fatos” demonstráveis do que com o tipo
de orientação que essas ideias pudessem fornecer. Sem dúvida,

*  Publicados respectivamente pela Editora Pensamento em 1984 e 1985.

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mais do que qualquer outro, Jung é responsável pelo ressurgimen-
to generalizado no mundo moderno de uma espiritualidade mais
orientada para o interior e sua contribuição é tão fundamental que
pode ser facilmente apreciada. Em essência, Jung ensinou mais de
uma geração a olhar para dentro e a embarcar na grande aventura
do descobrir-se a si mesmo. Hoje muitos ainda dão os primeiros
passos nessa jornada tendo Jung por perto.
No meu próprio caso, as percepções de Jung tiveram com fre-
quência um impacto profundo em minha vida e a evidência mais
imediata e “factual” de “realidade espiritual” — ou não importa
como se queira chamá-la — que experienciei foi posta em ter-
mos junguianos. Discordo de algumas das explicações que Jung
deu para esses fenômenos, mas não tenho dúvida da realidade e
importância deles. Sincronicidades me acontecem com tanta fre-
quência que as encaro como parte da natureza. Sonhos me mostra-
ram que, como Jung sustentou, uma parte da psique existe fora do
espaço e do tempo. Eles têm também manifestado uma sabedoria e
uma percepção que, com muita frequência, estão ausentes de meu
eu consciente. E a noção de Jung de individuação, de “tornar-se
quem você é” — um tema que remonta ao poeta grego Píndaro e
que era central para o filósofo Friedrich Nietzsche — é um projeto
no qual, com algum êxito, ainda estou trabalhando.
A vida de Jung, seu próprio processo de tornar-se quem ele
era, pode, eu acho, ser apreciada com muito proveito. Não, como
alguns sugeriram, porque seja uma vida que outros deveriam ver
como exemplo. O próprio Jung sustentou que imitar a vida de
outro, mesmo que seja a vida de Cristo, de Buda ou a de C. G.
Jung, é um pecado contra nosso eu e um modo certo de escapar
ao trabalho árduo da individuação. Devemos, no entanto, exami-
nar a vida de Jung porque, como acontece com a vida de outros
indivíduos criativos, as dificuldades e desafios que todos nós en-
frentamos estão frequentemente expostos com grande nitidez na

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experiência deles. Devíamos também não nos esquivar do fato de
que Jung foi um indivíduo excepcional. Algumas “vidas de Jung”
pretendem reduzi-lo a proporções menores, reação compreensí-
vel a outras que querem projetar a imagem do mestre infalível.
Nenhuma delas, contudo, presta um bom serviço a Jung ou a um
leitor interessado e, em qualquer tentativa de tirar Jung de um
pedestal, devíamos nos abster de nos concentrarmos unicamente
em seus pés de barro.
Em sua vida longa e frequentemente turbulenta, Jung foi mui-
tas coisas; a dicotomia entre “Jung, o cientista”, e “Jung, o místi-
co”, só focaliza duas. Jung foi um médico, um marido, um amante,
um amigo, um pai, um professor, um discípulo, um gênio. Foi
também, visto de outra perspectiva e entre outras coisas, um opor-
tunista, um adúltero, um excêntrico, um egoísta, um pai ausente
e um provocador. Neste breve relato, tentei olhar para Jung de
um determinado ângulo, encarar seriamente seu lado “místico”
e examiná-lo com um olhar simpático, mas crítico, ficando lon-
ge, assim espero, da rejeição ignorante ou da devoção crédula.
Aplaudir ou repreender Jung por seus interesses místicos não é
particularmente útil, mas tentar compreendê-los acho que é.
Como Jung lembrava repetidamente aos pacientes, alunos e
leitores, o processo de individuação é uma jornada contínua para
as partes não familiares, desconhecidas e inexploradas do nosso
ego. O que espero que os leitores encontrem neste perfil de Jung,
o místico, é alguma indicação de como podem encontrar e explo-
rar esses territórios não mapeados. Também espero que, ao longo
do caminho, possam, com alguma sorte, esbarrar com um Jung
desconhecido.

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