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M A R C | A A P A R E C I D A G O E B |

MA R I A L E TÍCIA B A R R O S P E D R O S O NA SC I M E N T O
O R G A N I Z A D O R A S

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


desafios para os estudos da infância e da formação docente

C A P E S E D IT O R E S
....................................................................................................................................................................
Coordenação: Prof. Dr. Dinael Marin
Produção: ZEROCRIATIVA - Capa a partir do painel "Diversidade Cultural" de Lucas Junqueira Marin
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Impressão: Gráfica Viena

Conselho Editorial da Junqueira&Marin Editores:


Profa. Dra. Alda Junqueira Marin
Prof. Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira
Profa. Dra. Dirce Charara Monteiro
Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno
Profa. Dra. Luciana Maria Giovanni
Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio
Profa. Dra. Maria Isabel da Cunha
Prof. Dr. Odair Sass
Profa. Dra. Paula Perin Vicentini
Profa. Dra. Suely Amaral Mello
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

E25
Educação e diversidade cultural: desafios para os estudos da infância e da formação docente /
Marcia Aparecida Gobbi, Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento, organizadoras. -
Araraquara,SP: Junqueira&Marin, 2012.
264p. : 21 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8203-000-4
1. Educação - Brasil. 2. Igualdade na educação - Brasil. 3. Professores - Formação. 4. Prática de ensino.
5. Educação de crianças 6. Educação - Aspectos sociais. 7. Educação inclusiva - Brasil. 8. Integração
social. 9. Pluralismo cultural. I. Gobbi, Marcia Aparecida. II. Nascimento, Maria Letícia B.P. (Maria Letícia
Barros Pedroso).
12-3582. CDD: 370.981
CDU:37(81)

30.05.12 08.06.12 035922


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Esta meio
edição do Programa
recebeu apoio da
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por NacionalCoordenação
de Cooperação de Acadêmica
Aperfeiçoamento – PROCAD de Pessoal. de Nível Superior – CAPES

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ou qualquer outro idioma, sem a prévia e expressa autorização da editora.
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CEP 14802-205 Araraquara - SP
Fone/Fax: 16-33363671 www.junqueiraemarin.com.br
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1ª reimpressão - 2014.
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Sumário

Prefácio....................................................................................................................................7
Anete Abramovicz

Apresentação......................................................................................................................10
Marcia Aparecida Gobbi
Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento

I – Infância

Meninas e meninos das Cirandas Infantis:


alteridade e diferença em jogos de fotografar..................................................20
Marcia Aparecida Gobbi

“Minha história conto eu”:


multiculturalismo crítico e práticas corporais
no currículoda educação infantil.................................................................................44
Marília Menezes Nascimento Souza
Marcos Garcia Neira

Crianças pequenas e a produção de culturas...................................................68


Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento
II - Diversidade cultural

Realidade e Utopia: diversidade, diferença e educação................................90


Neusa Maria Mendes de Gusmão

Considerações sobre a tolerância moderna:


a defesa liberal, o discurso da UNESCO
e a crítica marcuseana...............................................................................................112
Lenildes Ribeiro da Silva

A formação cultural da Amazônia e a ocupação


econômica de Rondônia a partir de 1970:
o último round da resistência cabocla...............................................................122
Antônio Carlos Maciel

A constituição da diversidade cultural


como problema curricular........................................................................................153
Daniele P.Kowalewski

Corpos e culturas invisibilizados na escola.....................................................168


A. Cesar Lins Rodrigues
Marcos Garcia Neira
III - Formação docente

Formação docente e diversidade cultural:


proposições para a inserção qualificada
da temática nos cursos de pedagogia da
Universidade Federal de Rondônia/UNIR............................................................193
Anselmo Alencar Colares

“Pra não ser lavadeira”:


professoras negras de Educação Infantil
em São Paulo, identidades e trajetórias............................................................215
Míghian Danae Ferreira Nunes

Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos:


preservação e educação para a multiculturalidade...................................242
André Muller de Mello
Rodrigo Christofoletti

Sobre os Autores............................................................................................................261
PREFÁCIO

Educação e Diversidade Cultural: desafios para os estudos


da infância e da formação docente é uma obra que reúne textos
sobre a criança e a infância a partir da clave teórica: diversidade. As
temáticas abordadas neste livro são frutos de estudos e pesquisas
de pesquisadoras e pesquisadores que vêm modificando de maneira
contundente e rigorosa a atmosfera teórica do amplo campo dos
estudos da infância e da criança e de sua educação a partir das
perspectivas da sociologia, da geografia, da antropologia, da história e
que vem sendo chamado de Estudos Sociais da Infância.

Os assuntos tratados neste livro fazem parte do amplo espectro


de temas da educação da infância como formação docente, currículo,
cultura, brincar, entre outros, mas ganham uma originalidade e uma
nova potência teórica na medida em que são tratados sob a perspectiva
da diferença e da diversidade.

Na obra apresentada, as relações de gênero e sexualidade,


as relações raciais, a cultura infantil ao serem configuradas com as

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relações etárias: as crianças em suas infâncias iluminam, ao mesmo
tempo, a singularidade, o particular do estudo feito, e o geral, o social
mais amplo que o singular e o particular infletem. Isto significa dizer
se os estudos sociais tomam a criança como uma construção social,
é a singularidade que deve ser diagramada e não um pressuposto
universal presente em uma ideia abstrata de criança seja biológica,
seja natural ou com um desenvolvimento e/ou comportamentos
universais.

Podemos dizer que a obra é contemporânea, e, portanto


traz toda a complexidade da atualidade; as luzes e as sombras de
uma época. Temos assistido as dificuldades pelas quais as escolas
trabalham com as diferenças e, por vezes, as colocam no lugar do
desvio, portanto unificar as temáticas da criança e da infância com e
na perspectiva da diferença é certamente uma afirmação política que
inverte hierarquias de poder e de saber. É uma inversão na ordem do
saber, pois há um esforço epistemológico e metodológico que vem
sendo construído para compreender o que diz, pensa, sente e deseja
a criança a partir de sua própria perspectiva e é inversão de poder, na
medida em que a sociedade contemporânea se constrói no interior
da lógica adultocêntrica.

É neste campo de batalha que tal livro procura se inscrever. Não


basta dizer aos professores que sejam tolerantes e que respeitem a
dimensão da diversidade de nosso país, frase tão em voga em tempos
neoliberais. É preciso ir além, não há nada a tolerar na medida em
que não há hierarquias nas diferenças, não há a norma, ou normal,
ou seja, fazer educação no mote da diferença, não é acolher, tolerar,
é produzir todo tempo a diferença.

O tema da diferença não é novo na realidade brasileira,


Oswald de Andrade em 1928 já colocava a questão do outro: “Só
me interessa o que não é meu”. Não há nenhuma possibilidade de
absorver o outro sem se alterar, a antropofagia, era este movimento
na temática sobre o outro, comer o outro para poder criar algo que
era “outro” e somente assim, novo. Pois novo nesta perspectiva é a
capacidade de outrar-se.

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desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
É neste rastro que o livro Educação e Diversidade Cultural:
desafios para os estudos da infância e da formação docente caminha.
É uma proposta político-social que recusa a qualquer hegemonização
despóticademodelosúnicos,sejaparaapesquisa, sejaparaaeducação.
É um livro original que nos convida a transitar e nos desafia a pensar
temas relativos às crianças e as infâncias a partir das diversidades e
diferenças que é em suma uma maneira eficaz de manifestar e ampliar
as possibilidades de pesquisa, de educação e, portanto de vida, pois é
preciso construir novos possíveis já que cada criança traz consigo, um
novo, que é preciso identificar. ●

Anete Abramowicz

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APRESENTAÇÃO

“Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de


experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de
estilos, onde tudo pode ser completamente remexido e reordenado de todas
as maneiras possíveis.”

Ítalo Calvino

Educação, diferença e diversidade cultural: temas que, ao


serem conjugados, apresentam-se de modo a colocar diante de
nós, e concomitantemente, confrontos, contradição e a noção
de complementaridade. Trata-se de temáticas constantemente
debatidas nesses nossos dias. Afinal, quem somos nós, pergunta
Calvino, e por séculos nos perguntamos. Como diria Ferreira
Gullar no poema Traduzir-se: Uma parte de mim é todo mundo,
outra parte fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão, outra
parte, estranheza e solidão. Será possível ou necessário, traduzir
uma parte noutra parte, como sugere o poeta? Essa tradução
traz implicações para a perda da identidade, o que resulta num
aprofundamento da pergunta sobre quem somos nós. Essa questão
relaciona-se a outras voltadas para a diferença, diversidade e
alteridade. Saber quem sou eu significa saber quem não sou,
bem como, para conhecer o que somos, deve-se à proximidade/
distanciamento com o outro diferente de mim. No Brasil, mas
não somente aqui, as formas de conhecer o outro ainda estão
envolvidas com desigualdade, preconceito, paternalismo, racismo

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que de maneiras explicitas ou veladas implicam e constroem a
forma como vemos e nos relacionamos com o diferente.

Afirmar, contudo, que há grande diversidade cultural


no Brasil parece lugar-comum. De fato, diferentes estudos,
provenientes de quaisquer das regiões ou estados, elaborados
nas variadas áreas, nos apresentam um Brasil diverso, composto
por muitos elementos culturais distintos. Qual é a repercussão
desses diferentes elementos quando retirados de sua origem
e apresentados em outro contexto? Surpresa? Admiração?
Estranhamento? Desejo pela essencialidade, em que se espera a
identidade única? Segundo Ortiz (2004), não deveríamos ter uma
carteira de identidade e sim uma carteira de diferenças, segundo
a qual de forma rica, complexa, indefinida revelasse a diversidade
de nossos itinerários na vida, o que se relacionaria à questão
acima: Somos o resultado de uma combinação de experiências,
leituras, informações construídas e obtidas cotidianamente nos
grupos sociais.

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Sabe-se que estamos, cada vez mais, diante de novos temas,
dilemas sociais que se impõem a todos/as nós implicando debates
e questionamentos sobre as relações com o outro. Durante muito
tempo convivemos com a crença de que o homem, adulto, branco
prevalecia como a medida para todas as coisas. O etnocentrismo,
tão debatido e combatido mais recentemente, constitui e explica
essa forma de ver e estar no mundo relacionando-se com o outro
em que esses são vistos e tratados como os selvagens, incultos,
bárbaros numa concepção evolucionista das sociedades e do
homem.

O contraste com o outro, uma forma de responder às


questões da cultura, é o objetivo e a forma de ver dos estudos
antropológicos, colocando-se em voga a preocupação com
processos homogeneizadores. Contudo, os estudos passam a
compreender essas temáticas por vias diversas. A sociologia
problematiza há décadas questões sobre desigualdade,
diversidade e diferença, desde a primeira metade do século XX,
sobretudo com Florestan Fernandes e Octávio Ianni, ao discutirem
a desigualdade crescente e a exclusão presentes no modo de
produção capitalista brasileiro.

Recentemente, temos um cenário em que discussões


e pesquisas demonstram a ruptura com esses paradigmas e a
concepção etnocêntrica de mundo, ao mesmo tempo em que
exigem tomadas de posição sobre o que é diferente, assim como que
se perceba a presença do hibridismo, em que não temos uma fusão,
sem contradição entre culturas, mas processos complexos, nos quais
sinais e códigos que permitem a identificação com determinados
grupos encontram-se presentes, construindo e mostrando outras
formas culturais. Sabe-se, porém, que essas definições ocorrem
na relação com o outro, em que disputas, debates, contradições
e confrontos encontram-se permanentemente presentes. Como
afirma Canclini (2004, 2008), é preciso ir além do pensamento
compartimentado que pretende responder aos questionamentos
sobre o que somos. Diz ele ainda que seria importante não mais
pensar a partir de catalogações da diferença, segundo as quais

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teríamos simplesmente sua aceitação, mas, sim, pensarmos nas
relações de negociação e conflitos, em que os diferentes estão
implicados, como forma não apenas de se deixar ao confinamento
ou ao fim, mas como maneira de sobrevivência das diversas
sociedades. Ao propor a interculturalidade e não apenas a
multiculturalidade como forma de compreensão do outro, remete
nos à confrontação e ao entrelaçamento, ao que sucede quando os
grupos entram em relações e intercâmbios (2004, p.15-16). Para
este autor, as práticas cotidianas de vida dos grupos chamados
minoritários devem ser consideradas, não apenas em suas formas
de luta em si, mas preocupados com as relações de troca, de
composição de novas hierarquias que se tornam merecedoras de
tratamento investigativo.

No que tange aos campos teóricos da Educação, esses


estudos, há tempos, trazem contribuições, não apenas para a
compreensão das complexas relações estabelecidas entre os
atores que a envolvem, mas permitem conhecê-los de modo mais
abrangente: como e em que medida esses sujeitos estão ocupando
seus lugares, como têm construído suas culturas, representações,
suas identidades que, graças a isso, tomam parte até então
desprivilegiada entre os estudos educacionais. Práticas diárias em
escolas e na perspectiva educacional fora dos muros escolares têm
sido problematizadas do ponto de vista cultural. Nesse aspecto,
diversidade, diferença e alteridade conquistam espaços necessários
para a formação docente nos diferentes níveis de ensino tratando
e conhecendo questões de gênero, sociedades indígenas, questões
étnicas e raciais, feminismo, infância, juventude. Temas que têm
ocupado espaço entre as preocupações e as temáticas pesquisadas
e, de modo constante, nos processos de formação de professores/
as. Esses particulares, mas não exclusivos ou excludentes modos
de ver o mundo, encontram-se presentes, são conhecidos e tomam
parte nas práticas docentes e nos jeitos de conceber a educação:
imagens, sons, gestos, redes sociais digitais têm composto a
formação de realidades e de nossas crianças e jovens implicando
a justa medida de os conhecermos mais rigorosamente sob outros
aspectos.

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junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
***

Baseadas nas repercussões e convencidas de que tratar


da diversidade no Brasil, afinal, não se constitui em lugar-comum,
embora reconheçamos que haja diferentes estudos e abordagens
sobre o tema, nos propusemos a desenvolver, em conjunto com
a Universidade Federal de Rondônia, um projeto de pesquisa e
cooperação (PROCAD) que, dentre outros objetivos, discutisse
e incorporasse a pluralidade cultural. Como uma das atividades
do projeto, promovemos um seminário de pesquisa, cujo título,
educação e diversidade cultural, proporcionou a apresentação de
diferentes ensaios e pesquisas, que compõem esse volume1. Optamos
por organizar os artigos em três segmentos, embora algumas das
tensões relativas à diversidade – ou à diferença – ultrapassem nossa
organização.

A primeira parte do livro, Infância, apresenta três textos


nos quais as crianças são reconhecidas como sujeitos sociais,
culturais, em contextos diversos. Inicia-se pelo artigo Meninas e
meninos das Cirandas Infanfis: alteridade e diferença em jogos de
fotografar, de Marcia Aparecida Gobbi, que apresenta a infância
sem-terrinha, objeto de projeto de pesquisa desenvolvido junto
à população de assentados rurais. A autora discute as imagens
capturadas pelos meninos e meninas, trazendo a fotografia como
mais uma possibilidade de expressão de aspectos da infância
presentes no cotidiano das Cirandas Infantis. A infância é concebida
como construção social, os meninos e meninas como sujeitos
sociais, culturais e de direitos, protagonistas em diferentes espaços
e ambientes, e as fotografias como textos visuais resultantes da
materialização dos olhares daqueles que fotografam.

Segue-se a ele “Minha história conto eu”: mulficulturalismo


crífico e práficas corporais no currículo da educação infanfil, de

1 À exceção dos textos das organizadoras, os demais foram apresentados no seminário de


pesquisa, realizado em 26 e 27 de maio de 2011, na FEUSP.

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Marília Menezes Nascimento Souza e Marcos Garcia Neira, que traz
um trabalho de pesquisa em interação com profissionais de educação
infantil e crianças, no qual foram elaboradas e desenvolvidas
atividades de ensino que tematizaram a cultura corporal infantil,
fundamentadas numa perspectiva multicultural crítica do currículo
da Educação Física. O artigo discute o currículo escolar da educação
infantil e as práticas pedagógicas, apresentando possibilidade de
uma pedagogia que melhor atenda às necessidades e diversidades
culturais.

Fecha esse segmento o artigo Crianças pequenas e a produção


de culturas infanfis, de Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento, que
apresenta e discute os conceitos de culturas infanfis e de agência,
que constituem parte da produção teórico-metodológica do campo
da sociologia da infância, para compreendê-los como elementos
fundamentais do novo paradigma da infância. Destaca também
pesquisas realizadas com crianças, para fundamentar o protagonismo
infantil na construção de culturas.

Diversidade Cultural, segunda parte, reúne quatro


pesquisadores: Neusa Maria Mendes de Gusmão, autora deRealidade e
Utopia: diversidade, diferença e educação, busca demonstrar e discutir
a realidade e a utopia de sociedades como a brasileira, contexto em que
o saber pertence a poucos, em direção à construção de sociedades de
aprendizagem, aquelas que reconhecem a diversidade e a democracia.
Nesse sentido, a escola, caracterizada pela suposta igualdade, atuando
na linha da homogeneização, reconheceria a diversidade do outro -
crianças, velhos, imigrantes, negros, indígenas, camponeses, caiçaras
– na direção da constituição processos integrativos da diversidade de
saberes.

O segundo artigo, Considerações sobre a tolerância moderna:


a defesa liberal, o discurso da UNESCO e a crítica marcuseana, de
Lenildes Ribeiro da Silva, parte da tese de doutoramento da autora e
discute o conceito de tolerância e sua relação com o de diversidade
nas políticas educacionais nacionais. Recuperando Marcuse, levanta
o contexto histórico do conceito em busca de seus diferentes

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sentidos filosóficos, políticos e sociais, pretendendo compreendê-lo
na atualidade.

Em A formação cultural da Amazônia e a ocupação econômica


de Rondônia a parfir de 1970: o úlfimo round da resistência cabocla,
Antônio Carlos Maciel apresenta os ciclos de ocupação socioeconômica
de Rondônia, a partir de 1970, buscando caracterizar a formação da
cultura e sociedade caboclas. Recorre a dados de pesquisa coletados
em 1991 e 2002, e a pesquisadores regionais, nacionais e brasilianistas,
para destacar a especificidade do processo de colonização rondoniense
e os impactos na paisagem física e social e no sistema cultural das
populações regionais.

Daniele P. Kowalewski é a autora de A consfituição da


diversidade cultural como problema curricular, texto que pretende
compreender a introdução do tema da diversidade cultural como
um assunto curricular, por meio da análise de dados sobre sua
emergência em documentos produzidos pelo Ministério da Educação
e da pesquisa acadêmica, a partir de cuidadoso levantamento das
dissertações e teses presentes no Banco de Teses da CAPES. A
variedade de temas vinculados ao multiculturalismo – diversidade
cultural, pluralidade, inclusão de deficientes, migrantes e imigrantes,
homossexualidade, envelhecimento, gênero – revela-se um desafio
para o estabelecimento das relações entre multiculturalismo e
educação.

O artigo Corpos e culturas invisibilizados na escola, de A. Cesar


Lins Rodrigues e Marcos Garcia Neira, discute a exclusão dos diferentes,
na escola, trazendo o racismo como mecanismo de invisibilização de
corpos e culturas, e critica severamente o discurso neoliberal da oferta
de oportunidades iguais para todos, que coloca as diferenças sociais
como passíveis de superação individual. O disciplinamento do corpo
e o papel da Educação Física nesse processo são também objeto de
reflexão dos autores.

A terceira parte, Formação docente, apresenta ensaios e


pesquisas mais diretamente relacionados a essa dimensão. È o caso do

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desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
primeiro texto, Formação docente e diversidade cultural: proposições
para a inserção qualificada da temáfica nos cursos de pedagogia da
Universidade Federal de Rondônia/UNIR, de Anselmo Alencar Colares,
que descreve aspectos da temática e do contexto da pesquisa que
realizou para compreender como professores e estudantes dos cursos
de pedagogia da Universidade Federal de Rondônia entendem a
pluralidade/diversidade cultural, considerando a ampla diversidade
cultural presente na Amazônia, e a singularidade da composição
populacional de Rondônia.

Mighian Danae Ferreira Nunes, em seu artigo, “Pra não ser


lavadeira”: professoras negras de Educação Infanfil em São Paulo,
idenfidades e trajetórias apresenta parte da pesquisa, realizada na
rede pública paulistana, na qual busca compreender a trajetória
profissional de professoras negras por meio da história oral. Reafirma
a escola como lugar social e politicamente construído, acenando para
a possibilidade de sua ressignificação por meio da pluralidade cultural
e do respeito à diferença.

Conclui a terceira parte – e o conjunto de artigos – Ruínas


Engenho São Jorge dos Erasmos: preservação e educação para
a multiculturalidade, texto de André Muller de Mello e Rodrigo
Christofoletti, que discute uma educação multiculturalista e plural
a partir da proposição de um currículo escolar que estabeleça uma
ponte entre a sociedade e a escola, fundamentado nos conteúdos
da cultura que se deseja transmitir, com o claro objetivo de
educar para a diversidade. Nessa perspectiva, apresentam o
Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos,
no litoral paulista, como espaço extraclasse para o aprendizado
com diversidade. O sítio, remanescente de um antigo engenho
de açúcar, foi tombado e constitui lugar de desenvolvimento de
diversos projetos educacionais que recuperam as matrizes étnicas
brasileiras.

O seminário educação e diversidade cultural produziu, como


se pode verificar, um fecundo debate que, esperamos, não se esgote
nesta publicação. ●

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junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Referências

CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de


Janeiro: UFRJ, 2004.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Hibridas. São Paulo: EDUSP, 2008
ORTIZ, Renato. Estudos Culturais. Tempo Social. V.16, junho 2004, p.119-127

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I - Infância

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Meninas e meninos nas Cirandas Infantis:
alteridade e diferença em jogos de fotografar

Marcia Aparecida Gobbi

Há algum tempo muito tem sido comentado sobre alteridade


e diferença, e mais recentemente, coadunam-se essas temáticas à
infância. Um desafio, ou, talvez, alguma vaidade, querer contribuir
para esse debate, tão importante, quando têm sido tão fecundas as
pesquisas empreendidas em torno desse assunto. Considerando isso, a
escrita deste texto, que compõe um livro voltado para questões sobre
diversidade, cultura e educação, foi guiada por uma pergunta: como
contribuir com essa temática e relacioná-la à infância de meninas e
meninos de pouca idade? Como contribuir conjugando-a a linguagens
não verbais, tais como o estudo de imagens criadas pelas crianças, em
especial, à fotografia? Os debates, que tanto têm ensejado concepções
diversas sobre meninas e meninos da pequena infância, sobre políticas
públicas e educação, sobre seus tantos direitos, infelizmente convivem
com intolerância, discriminação, opressão e tantas formas de ver e
lidar com as crianças, que efetivamente ainda as desconsideram na
plenitude de seus direitos, como protagonistas e autoras, sujeitos
históricos, sociais e culturais. A diferença etária, social, cultural
encontra-se ainda, traduzida em desigualdade.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 20


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Recorro às imagens. Em 11 de setembro, filme-documentário de
produção francesa lembrando os ataques às torres gêmeas do World
Trade Center de Nova Iorque, a cineasta iraniana Samira Makhmalbaf2,
em exatos onze minutos, mostra-nos uma professora, no Irã, com um
grupo de meninos e meninas a falar sobre o atentado. O filme inicia-se
com imagens de crianças amassando barro numa olaria, fazendo tijolos
e conversando sobre seu cotidiano. A menina que puxa a conversa diz:
ontem caiu um homem no poço e morreu. Após uma pausa, declara que
na verdade não morreu, quebrou a perna. É interpelada por seu colega
que, contrariado, afirma que morreram dois homens. Não, quebrou a
perna! Diz o colega. Param a conversa, deixam de fazer tijolos, pois a
professora do bairro chegou, e insistentemente, a todos chamava para
comparecerem à escola. A aula começa. Todas as crianças, em meio
a escombros, começam a sentar-se em lugares improvisados numa
forma escolar similar a tantas já vistas por todos nós: nuca atrás de

2 Agradeço a amiga Adriana Silva que, há tempos, indicou-me este filme.

21 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
nuca, que observam o adulto ou adulta falar, logo à frente. O silêncio
se faz diante da pergunta da professora:

- Algo muito importante aconteceu hoje. Alguém sabe o que foi?

- Eu sei! Diz um menino. Cavaram um poço e dois trabalhadores caíram


dentro e morreram.

A professora o corrige, afirmando que algo mais importante


havia acontecido. Sua fala provoca outra garota a participar dando
outra informação: sua tia foi morta no Afeganistão. A professora,
novamente, demonstra não ser essa a resposta desejada, e assevera
que isso não é tão importante. Algo muito, muito grande havia
acontecido e concernia a todo o mundo. Diante disso, um garoto
diz sorrindo: chovia muito e várias pessoas morreram. A professora
discorda de sua consideração, continua e afirma tratar-se mesmo
de algo ainda mais importante. Conta, muito rapidamente, sobre o
ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos. Diante do silêncio das
crianças, percebe que as crianças não sabiam o que era uma torre e
propõe: olhem para fora, diz. Uma torre é como a chaminé da fábrica
de fijolos. Logo após segundos de observação, a professora chama a
atenção das crianças dizendo que, uma vez já conhecendo o que é uma
torre, podem dizer afinal quem destruiu as torres. Um dos meninos,
atento e perspicaz, logo responde: Deus! A colega que estava ao seu
lado, em tom confrontativo, diz que Deus não destrói torres, ele só
criou os homens. A professora, desanimada com as respostas, toma
às mãos uma lousa improvisada, desenha um círculo com giz branco
simulando um relógio. Exige das meninas e meninos que façam um
minuto de silêncio, que findará quando seu dedo tiver circulado toda
a linha branca. As crianças, dispersas, tornam a conversar sobre o
assunto. Dando as costas à professora, discutem sobre o papel de
Deus quanto à destruição das torres. Indignada, uma das meninas,
afirma que Deus não é louco para destruir pessoas e logo refazê
las. A professora, percebendo a dispersão das crianças, chama-as de
desrespeitosas diante da dor dos outros. Impassível, continua a passar
o dedo sobre a linha desenhada, e, ao término, descontente com a
atitude das crianças e ainda tentando levá-las ao enternecimento com

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 22


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
as vítimas do atentado às torres, comenta que as pessoas soterradas
após o atentado pediram auxílio usando seus celulares e se depara
com mais um desconhecimento das crianças: elas não sabiam o que
era um celular. Como as crianças não permaneciam em silêncio, diz a
professora, elasteriam que ir ao espaço externo da escola, improvisada
para novamente fazer o minuto silencioso. Desta vez não falem, exige a
professora. E olhem a torre. Sol escaldante, olhos fixados na chaminé,
o minuto começa, quando um dos garotos pergunta: E o que devemos
fazer? Mordam a língua e olhem a chaminé, responde a professora.

Já que questões como essas são boas para pensar, como diria
Levi-Strauss, mas talvez bastante difíceis de serem solucionadas, a
câmera se distancia e nos mostra uma turma de meninos e meninas
diante de uma chaminé, sol forte sobre as cabeças erguidas e olhos
prostrados.

As imagens e o bom argumento deste filme, brevemente


narrado, aplicam-se, e muito bem, às relações que temos
estabelecido com as crianças há tempos. O outro, que aparece neste
filme, mostra-se diante de nós e permite o acesso à experiência de
encontro/confronto com o que é diverso. Embora – vale sublinhar
– a experiência de alteridade exposta em várias das cenas não seja
nossa desconhecida. Os olhares diferenciados de meninos e meninas
com tão pouca idade em pouco ou nada afetaram a adulta, que,
insistente, trazia informações distantes do cotidiano, dos valores
e dos interesses das crianças, que, afoitas, procuravam mostrar-se
à professora e, com isso, trazer a tona seu dia-a-dia. A diferença,
base da vida social, transformada em desigualdade, explicitava-se
na forma como tratava a todos. Essa contradição, entre a forma
de tratamento da professora e de adultos/as de modo geral e o
que vem sendo pesquisado sobre a temática tem nos perseguido.
É impossível compreender alteridade, infância, diferença sem
observarmos que as crianças vêm sendo destituídas da capacidade
de elaborar, investigar, criar, ainda que possamos dizer em alta voz
todas as nossas indignações quanto a isso. Muito temos avançado,
mas falta-nos, ainda, a escuta do outro, olhar para ele e com ele, este
outro de pouca idade que nos interpela, nos convoca, reclama em

23 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
diversas linguagens a nossa presença atenta e respeitosa. As várias
manifestações expressivas de meninos e meninas, emudecidas,
talvez se encontrem evidenciando diferenças e certa indiferença,
embora seus desenhos e fotografias, seus corpos e gestos, seus
choros sejam fundamentais e nos mostram a presença da infância
plural e singular entre nós.

Como a professora do filme iraniano, que insiste em falar


sobre o celular ou sobre as torres enquanto a vida pulsa lá fora, com
tantas e tantas marcas deste outro desconsiderado, marcas que são
vagarosa e impiedosamente extirpadas, também para nós é ainda
difícil compreender as crianças sem levar em conta as características
que identificam a história e a constituição das infâncias brasileiras.
A diversidade, as culturas que as compõem e as afirmam estão
reveladas em linguagens presentes nos diversos grupos sociais.
Contudo, especialmente quando o assunto é criança, entre elas as
bem pequenas, usamos valores e olhares já universalizados como
forma de vê-las ou, ainda pior, sem nem sequer enxergá-las. Lembra
me a célebre frase de Michel de Montaigne, que, na segunda
metade do século XVI, admirava-se diante de Tupinambás usando
penas e tangas como vestimentas e chamavam sua atenção pelo
inusitado; em uma de suas alusões à cena, comentava: “mas, que
diabos, essa gente nem usa calças”, referindo-se, em seus Ensaios,
no texto “Os Canibais”. Num exercício de relatividade, procurava
as formas de vida e de compreensão de mundo daquela pessoas,
que, diante de seus olhos, incitavam a pensar sobre certezas já
cristalizadas. Quanto às crianças, poderíamos nos admirar: mas
que diabo, essas crianças nem conhecem torres, celulares e tantas
outras coisas pertencentes a um universo que elegemos como
referência! Esquecemos que há outros mundos tão complexos
a serem conhecidos e respeitados, num necessário exercício de
relativização.

Contudo, essa preocupação indiciada aqui não faz deste


texto a apresentação de um estudo somente sobre a alteridade
e a diferença propriamente ditas. Procura-se aqui conjugá-las à
compreensão do ser humano completo, sujeito, que com seus cinco

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 24


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
sentidos, envolve-se na constituição e construção de sociedades
e culturas. Trata-se do desenvolvimento humano, e de algo que
lhe vem sendo tirado. Sem entrar em questões econômicas, da
exploração do homem pelo homem, afirma-se o caráter múltiplo
do ser humano que cada vez mais É necessário investigar. Isso se
deve ao desejo de discutir alteridade com reflexões voltadas para
a compreensão do outro, e nesse caso de pouca idade, sujeitos
que não se furtam pensar a própria vida. Portantas vezes, foram
sujeitos compreendidos como inábeis e tornados incapazes numa
relação segundo a qual não os percebíamos em sua inteireza,
sobretudo em suas diferentes formas expressivas. É por meio da
busca desses sentidos, de modo mais atento, que nos deparamos
com as múltiplas linguagens do social, essas que não podem nem
ser vistas e nem ouvidas, e que são dadas, postas, como que
“naturalmente” diante de nós.

Desta forma, apresentam-se aqui aspectos da infância


experimentada e criada entre meninos e meninas moradores de um
assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra,
localizado na Regional Grande São Paulo3. Crianças assentadas, outros
diante de nós, e ainda pouco conhecidas naquilo que constroem, lutam
e sonham entre seus pares de idades iguais e diferentes. As crianças,
cujas fotografias compõem este texto, são frequentadoras das
chamadas Cirandas Infantis, ainda pouco conhecidas ou negligenciadas
como proposta alternativa de educação. Rossetto (2011) destaca a
participação feminina relacionada à proposta de trabalho e vivência
no coletivo entre as crianças, sem diferenciação etária. Ainda, segundo
a pesquisadora e militante do MST,

É nesse espaço que as crianças Sem-Terra constroem as relações


entre si, com as pessoas adultas e com a comunidade. Aprendem a
viver coletivamente, aprendem a respeitar o seu companheiro e fazer
amizade com as outras crianças (p.91).

3 Trata-se de resultados parciais de pesquisa financiada pelo CNPq, em edital de pesquisa


sobre Relações de Gênero e Movimentos Sociais, coordenada pela Profª Drª Daniela Finco
(UNIFESP) e sediada na FEUSP, no grupo Sociologia da Imagem, artes e infâncias.

25 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Percebe-se a crença e o investimento no potencial emancipatório
das Cirandas, que podem ser itinerantes ou permanentes, como a que
está situada no assentamento pesquisado. Construção social, a infância
apresenta formas de ver, estar e construir mundos. Crianças como
sujeitos sociais, culturais e de direitos, dispõem, em sua existência, de
vários procedimentos aliando dominação, capacidade de compartilhar
com os outros, processos de criação e invenção de mundos presentes
em suas formas de ver e criar mundos. A prática de uma educação
emancipadora é concebida nessa perspectiva, em que se busca a
oportunidade de atentar para elementos das culturas infantis, desde a
mais tenra idade. Neste texto, resultado de pesquisa de campo, procura
se conhecer a infância de crianças assentadas a partir da conjugação
de fotografias tiradas pelas meninas e meninos com idade entre 4 a 12
anos, relacionadas com suas falas e ampla pesquisa de campo em que
permaneceram com câmeras fotográficas analógicas, digitais e pinhole4.
Foram tiradas 3000 fotografias em saídas fotográficas e em
outros momentos em que estiveram com as câmeras.

As crianças, autoras e protagonistas em diferentes


espaços e ambientes, utilizam e criam a partir de diversas
linguagens, construindo-se a si mesmas enquanto se relacionam
com os outros. Ao percorrer as imagens fotográficas, obtemos
narrativas, sendo possível restituí-las e conhecê-las a partir
da observação dos ângulos, formas, gestos de cotidiano já
vivido, experimentado e criado. São exercícios de abstração, de
considerações sobre o cotidiano. Temos, nas fotografias tiradas
por elas, o resultado de acurada observação das ocorrências
visuais, ao mesmo tempo em que a câmera torna-se extensão
do olho concretizada no tocar de seu botão, num clique, que
materializa o objeto fotografado. Traduzido em outra forma, as
fotografias das crianças educam aos adultos/as no que tange
as imagens, sobre formas de ver das crianças pequenas. Essas
imagens subvertem nossa compreensão por vezes naturalizada,

4 Entre outras praticas relacionadas à metodologia empreendida na pesquisa encontrava


se oficinas de pinhole, processo fotográfico artesanal, mais conhecido como câmeras de
latinhas.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 26


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
apresentando-nos oportunidades de entrar em contato com
questionamentos, estranhando o que tido como natural,
provocando a atenção dos olhares, colocando-os na obrigação
de revolver-se saindo do lugar em que se encontram, buscando
novas formas de ver. Observa-se a construção de sentidos através
e com as imagens fotográficas em outras formas de narrar o
olhar sobre o outro e sobre si. Encontra-se o que Achutti (1997)
chamou de experiência fotoetnográfica, quando a fotografia não
é apenas um instrumento de coleta de dados obtidos em campo,
mas um inventário da pesquisa sobre a cultura investigada, e
constituído de textos visuais que resultam da materialização dos
olhares daqueles que fotografaram.

Trata-se, em suma, de importante linguagem e instrumento


de pesquisa capaz de fazer ver meninos e meninas considerando
classe social, etnia, religião, sexo, diversidade regional segundo
o ponto de vista deles, e ainda mais, sugere a necessidade de se
conhecer as imagens criadas pelas crianças como observações,
composições estéticas e documentais que representam
realidades. A proposta, neste texto, é estabelecer um diálogo
entre a fotografia como instrumento de pesquisa e, ainda mais,
como linguagem/imagem criada pelas crianças propiciadora
de descobertas, fonte indiciária a promover olhares e
conhecimentos sobre diferentes infâncias. Alteridade, diferença,
diversidade encontram-se presentes em imagens criadas pelas
meninas e meninos em diferentes contextos, assim como, é
possível se deparar com elas em suas fantasias, imaginação e
invenções. Em exercícios de estranhamento, que exigem o sair
de si e, ao mesmo, tempo procurar aproximar o objeto de quem
o olha, nos encontramos com o artefato material fotografia que,
entre outras coisas, também fala sobre as formas de pensar o
mundo. De acordo com o que apresentam, de modo mais ou
menos objetivo, esses exercícios incorporam a sociedade, a
natureza, os grupos infantis de convivência imediata, as belezas
e as coisas nem tão belas, as brincadeiras, os desejos, a fantasia
e a imaginação. Sua utilização em pesquisas é, ao mesmo tempo,
forma de experiência e de informação e, portanto, documento

27 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
da vida social, cultural e histórica, independentemente da
faixa etária do fotógrafo ou do fotografado. Considerada como
representação, temos na composição fotográfica expressões
de vivências e experiências de determinadas condições sociais,
econômicas e culturais.

Porém, como apreender tamanha complexidade contida


em imagens, ao mesmo tempo, em que as mesmas são
compreendidas como constituidoras e reveladoras do cotidiano,
e nele a diversidade encontrada, considerando fotografias
de crianças tão pequenas. Como observar? O que é possível
investigar e conhecer? Procuramos considerar as fotos também
como sujeitos capazes de mudar aquele que as olham. Capazes
de persuadir, alterar sentidos e formas de compreender o mundo,
num entrelaçamento entre quem olha e o que é olhado, nesse
caso, em particular, modificar o olhar e os conhecimentos sobre
as crianças que fotografam e o que está contido nas fotografias
é deslocar e promover conhecimentos sobre meninas e meninos
constituintes de diferentes culturas.

As pesquisas acadêmicas5 têm avançado significativamente


apresentando fotografias6 como fontes indiciárias que permitem
considerar olhares e representações de meninas e meninos sobre
diferentes aspectos de suas vidas. Isso tem impulsionado a criação de
novas perspectivas quanto ao referencial teórico-metodológico de
pesquisas com crianças e sobre elas, que procuram compreendê-las
e às culturas por elasconstruídas no cotidiano vivido eexperienciado.
Essa perspectiva as compreende como protagonistas, vindo a
legitimar diferentes modos de compreender o mundo, numa forma

5 Destaco pesquisa já empreendida por Fernanda Muller que, em seu doutoramento


Retratos da Infância da cidade de Porto Alegre, (UFRGS, 2007), utiliza fotografias tiradas
por crianças como forma de conhecer, entre outras coisas, aspectos da cidade de Porto
Alegre, a partir das concepções infantis.

6 Ressalto aqui que venho apresentando, em pesquisas já realizadas, os desenhos como


representações criadas pelas crianças, que contém valor documental, artefatos culturais
que são representantes da cultura material infantil produzida pelas meninas e meninos.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 28


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
de abranger as crianças como sujeitos coparticipantes na coleta de
dados e não meros acessórios. Contudo, se de fato as crianças estão
fotografando, e essa prática tem composto suas vidas de modo mais
constante, como têm sido entendidas as fotografias criadas por
elas? Como estamos compreendendo a qualidade estética presente
nas fotografias, sabendo que a mesma resulta das relações entre
os indivíduos de todas as idades e grupos comunicando-se entre
si? Este texto procura contribuir com os estudos e pesquisas nas
áreas de ciências sociais, infâncias e fotografias, numa tentativa
de explorar visualmente os modos de ver de meninos e meninas,
e assim também, suas formas de participar, inventar e construir
culturas, num esforço por também compreender o mundo a partir
e com as crianças.

Fotografias: artefatos culturais entre meninas e meninos

No decorrer da minha existência, coloquei as descrições de fijolos e de


jarras, de bolas de sinuca e de galáxias numa caixinha e, ali, deixei
as repousar em paz. Numa outra caixa, coloquei coisas vivas: os
caranguejos do mar, os homens, os problemas de beleza e as questões
de diferenças. É o conteúdo da segunda caixa que, a mim, interessa.

(Gregory Bateson, apud Samain, 2004)

As crianças e as fotografias por elas tiradas encontram-se nesta


segunda caixa, a qual, quando aberta, provoca pensar sobre as coisas
vivas, os homens e seus problemas, com suas imagens, em particular
aqui, as fotográficas, que tanto têm a responder e provocar perguntas,
que veiculam informações, dialogam, fazem ver e escondem. Quando
se privilegia o que é captado pelas crianças enquanto um documento
social, passa-se a carecer de olhares mais rigorosos e sensíveis que
possam compreender as imagens como resultado de um rico processo

29 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
de criação, escolha e investigação no qual meninas e meninos são
autores (as). Pessoas que, com pouca idade, são reconhecidos
como agentes que produzem ou compõem uma obra, nesse caso
em especial, subvertendo a relação com os adultos que, por vezes,
determinam o que e onde deve ser focado para posteriormente
fotografar. Afinal, quem dá os cliques são as crianças, após longo,
mas às vezes, rápido processo. Nesta discussão esse elemento é
fundamental, pois implica compreender os processos de seleção
na composição das imagens fotografadas. Vale ressaltar que várias
crianças dos assentamentos afirmavam, em conversas que tínhamos
sobre os processos fotográficos empreendidos, que haviam apagado
determinadas fotografias por julgarem-nas feias. Escolhi essa por ser
a melhor era fala corrente quando procurávamos conhecer, com as
crianças, a motivação de suas escolhas. Efêmeras, algumas imagens
foram apagadas pela discordância com o resultado presente na
câmera. Mantidas por tempo indeterminado, outras foram escolhidas
e constam deste trabalho. Como escreveu Gregory Bateson, elas
nos permitem ver e nos remetem ao conteúdo da segunda caixa: os
homens, os problemas de beleza, as questões da diferença.

As composições fotográficas foram realizadas num jogo em


que máquina, imagem, desejo, frustrações, imaginação e fantasia
estiveram presentes em fecundas experiências, em trocas de
olhares e gestos, numa negociação em que risos, choros, afagos
envolviam diferentes sujeitos. Quando se afirma que meninos e
meninas são autores das fotografias tiradas, acredita-se que elas
estão ocupando outra condição em que as temáticas resultam de um
processo de seleção de espaços ou cenas a serem fotografadas. A
cada imagem captada antecedem diferentes experiências que estão
implicadas na composição das imagens e que resultam do cotidiano
vivido e construído pelas crianças. Reflete-se, investiga-se sobre
e a partir da cena ou objeto a ser fotografado autonomamente. A
câmera foi explorada a exaustão, objetivando encontrar diferentes
possibilidades de organização do objeto, de cortes das imagens
e nova composição em seu visor. As crianças, quando fotografam
contrariam a afirmação de Flusser (2008) segundo a qual com o
advento da máquina fotográfica digital teríamos certa futurabilidade

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 30


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
das imagens, deixando todos reféns da tecnologia. Elas parecem não
ficar em poder da câmera, ao contrário. Muitas vezes, percebe-se
que escolhem, investigam as propriedades da máquina, apagam,
compõem, fazem montagens, criam outras imagens brincando com
os muitos recursos dos programas de tratamento que se encontram
nas câmeras digitais, mesmo as mais simples, e deixam essas fotos
recriadas como as escolhidas para apresentarem aos demais colegas
e familiares.

As máquinas digitais utilizadas não possuíam muitos recursos,


ainda assim, permitiam, com sua tecnologia, o controle, pelas
crianças, do campo visto e captado quase que simultaneamente,
provocando ainda mais a oportunidade de escolha e alterações
do registro final. Esse artefato cultural torna-se jogo nas mãos de
meninas e meninos que passam a valorar objetos, cenas, lugares no
espaço em que vivem.

Para compreendermos as imagens fotográficas, é interessante


considerarmos o contexto em que são produzidas, a comunicação
com o grupo social nos quais os envolvidos estão inseridos, levando
em conta que os mesmos não estão separados do cotidiano. Trata
se também de registros, marcas históricas deixadas por todos, as
quais, diante de nós, podem ser compreendidas como pistas a serem
seguidas. As imagens fotográficas encontram-se nas mais diferentes
vertentes, estabelecem e fazem estabelecer relações sociais nos
lugares que ocupam. Mobilizam pessoas e mostram aspectos
por vezes velados. Em suas narrativas constituem o cotidiano e
se estabelecem nele. São representações que nos conduzem a
concepções diferentes de nosso cotidiano, o que sem dúvida, muito
colaboram para que saibamos mais profundamente, a partir de
outros pontos de vista, aquilo que as crianças nos mostram: ver, em
parte, o invisível posto nas imagens e, quem sabe, rumar contra a
automatização dos sentidos. As fotos contidas neste texto também
conduzem olhares,e embora em número bastante pequeno, têm
como objetivo puxar fios de conversas sobre a temática dentro de
uma perspectiva que busca as crianças, suas linguagens e olhares
constituidores de mundos.

31 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Modos de ver e conhecer:
estética do cotidiano nas fotografias das crianças

Os lugares - espaço físico e ambiente - em que as fotografias


foram tiradas são os mais diferentes e possíveis encontrados
pelas crianças. Deve-se ressaltar que as crianças frequentadoras
desta Ciranda Infantil não têm cotidianamente experiências
com câmeras fotográficas, excetuando o uso dos celulares, pelo
que observamos em várias das conversas com elas. As câmeras
encontram-se entre algumas famílias, mas, objeto ainda caro
para seus recursos financeiros, não são totalmente liberadas
às crianças. Deve-se ressaltar que, com a pesquisa, houve certa
popularização das câmeras e seu uso entre as crianças.

Pode-se creditar às crianças do assentamento uma


capacidade criadora na realização das fotografias, numa
surpreendente criação poética. Mostram-nos a experiência
criadora em fabricar, construir e exibir mundos em seus diferentes
modos de ver. A representação fotográfica reflete estéticas da vida
destas crianças, como afirma Kossoy (2003), estética e ideologia
são componentes fluidos e indivisíveis, estando implícitos à
representação fotográfica. Trata-se de um modo de conhecer e
de saber através das imagens. Ao ter na fotoetnografia uma das
fontes inspiradoras para este trabalho, procura-se deixar que as
fotografias sejam vistas, olhadas, perscrutadas. As fotografias
não serão aqui colocadas em sequência formando uma narrativa,
porque se acredita que as mesmas, independentemente de
estarem organizadas sequencialmente, guardam em si narrativas
próprias, como textos visuais que são.

Não pode ser esquecido aqui que este autor-criança


contracena com o leitor das imagens, aquele que olha o que
é criado pelos/as pequenos/as, portanto, esta autoria está
relacionada ao outro. A fotografia, nesse caso, existe também
pela presença de quem a olha e sobre ela se manifesta a partir

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 32


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
de diferentes pontos de vista. Ainda assim, vale ressaltar que,
por sua característica polissêmica, não podemos ver, numa
primeira olhadela suas diversas realidades, somente intuir seus
sentidos que não estão explícitos. Embora tenha afirmado tratar
se de uma fonte documental, as fotos estão prenhes de sentidos.
Como assevera Kossoy (2005) elas são representações elaboradas
cultural, estética e tecnicamente. Há um processo de construção
da representação que deve ser considerado quando olhamos as
fotografias e pretendemos compreendê-las.

Entre os procedimentos metodológicos foram empreendidos


exercícios de ir e vir para olhá-las, num tempo que reclamava
maior lentidão e rigor nas observações das imagens, em tentativas
de conhecê-las melhor, perscrutando cada ângulo e conjugando
infinitas possibilidades de interpretação/conhecimento, com
muitas curiosidades, dúvidas e pouquíssimas certezas sobre o
que está contido. Aliás, há que se questionar as certezas quando
o assunto são imagens. Acredita-se ser esse um dos caminhos,
considerando a polissemia da fotografia e, ao mesmo tempo, a
relação dentro da qual nós, adultas, nos vemos imersas e pouco
capazes de inferências profundas sobre meninos e meninas de
diferentes idades que passaram a utilizar-se de mecanismos
e procedimentos de uma linguagem ainda insuficientemente
conhecida por nós, sobretudo, quando empregada entre os grupos
infantis. Procura-se conjugar aos modos de ver a foto não somente
as significações que proclama, mas a procura por compreendê-las
naquilo que mostram como significados relacionados à época em
que foram tiradas, ao grupo social ao qual pertencem, a cada vez
maior consideração que recebem nos distintos grupos sociais.

Não se trata de nos rendermos às tecnologias, nem


tão novas, como a fotografia, contudo, pode-se inferir que a
câmera fotográfica seria parte de um lápis, giz, carvão, pincel
com os quais as crianças também têm podido expressar-se, sem
estabelecer competições ou hierarquias entre elas. Requerem,
com isso, outros modos de ver dos adultos/as, bem como,
mostram-nos diversas formas de estar e apreender o mundo.

33 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Imaginação e fantasia, pertencentes e criadas num mundo em
que prevalecem as linguagens da televisão, de filmes e vídeos
implicariam, provavelmente, em constituição de certa imaginação
nova, por parte dos adultos em contato com as crianças que
têm oportunidade de viver suas fantasias em outros tempos e
espaços. As fotografias resultam de uma relação intensa e próxima
entre objeto fotografado, fotógrafo de pouca idade e máquina
digital. Nesse sentido, embora empreguemos a representação do
clique da máquina como presente no ato de fotografar, deve-se
considerar que o mesmo encontra-se como mais um elemento em
meio a distintas formas de se provocar o conhecimento visual. A
decisão sobre o que será fotografado é resultado de um processo
em que diferentes contextos econômicos, sociais, culturais estão
envolvidos. Imersas em contextos diversos, as imagens permitem
conhecer suas expressões estéticas provenientes dos lugares que
as crianças ocupam e constroem nos grupos sociais aos quais
pertencem.

Pode-se afirmar, tal como sugere Martins (2008), que


há uma imaginação fotográfica que envolve a composição, a
perspectiva, os recursos técnicos presentes na máquina e um
modo de construir a fotografia. Contudo, pode-se inferir que
há uma imaginação fotográfica própria às crianças ao fazer uso
dessa linguagem em seu cotidiano, que se relaciona também à sua
inserção no campo a ser fotografado. Cabe lembrar, no entanto,
que, sujeito de cultura que são, as crianças mostram em suas
fotografias elementos culturais de seus lugares de origem, sem,
evidentemente reproduzi-los fidedignamente. Não pode passar
ao largo o fato de que essas crianças tiveram as câmeras postas
em suas rotinas. As câmeras ficavam com elas durante o final de
semana e em outros dias, quando então, em passeios fotográficos,
de posse das câmeras, fotografavam o assentamento em regiões
mais próximas à sede da Ciranda Infantil. Cada uma delas implica
a construção de uma estética na relação estabelecida com o
mundo e, com isso, a criação de outras imagens, que merecem
ser conhecidas. São imagens que permitem conhecer sobre o que
mostram as meninas e os meninos. Olhemos:

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 34


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Autor: Antonio

Como ressalta Kossoy (op.cit),

a representação fotográfica, em meio a uma serie de outros objetos


simbólicos, que para os outros podem não ter nenhum significado,
constitui-se, pois, no ponto de partida. Nossas mentes se incumbem
do restante dessas viagens para dentro de nós mesmos. (p.43).

Poder-se-ia afirmar que as crianças encontraram uma forma curiosa


eexpressivademostrarevasculhararealidadecomacâmera, criandooutras
realidades, mostrando elementos do cotidiano vivido por elas, ou mesmo,
empreendendo viagens, tal como aponta Kossoy. Há muitas imagens numa
única imagem. Não é possível afirmar que se trata de uma busca pelo real
daquilo que é visto, dando caráter documental à foto, contudo percebe
se certa criação nos resultados observados, resultando tessituras próprias
que são nelas reveladas. Sabe-se que as fotos mudam a cada vez que são
observadas, dependendo também do olho de quem as vê. Trata-se de
um objeto cultural importantíssimo que, ao mesmo tempo em que se
transforma, pode alterar quem está diante dela, e, porque não, modificar
elementos do grupo cultural em que se encontra. Aqui, podemos pensar
no favorecimento da percepção sobre o espaço vivido cotidianamente

35 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
pelas crianças, não sendo encontrada uma variedade de fotos posadas com
pessoas, o que é bastante curioso, mas sendo visível em muitas delas a
organização de objetos posicionados para a foto.

Oqueas criançasressaltamvaiaoencontrodaquiloqueos adultos/


as têm visto e compreendido nesses espaços? Segundo Novaes (2008) a
fotografia possibilita, nos estudos antropológicos, conhecer aspectos
subjetivos e sensíveis que a pura etnografia não consegue. Nesse caso,
na fotografia tirada por Antônio, em que ressalta parte de sua casa, e em
especial a cama, cria-se outra realidade no assentamento, ao apresentar
seus brinquedos sobre a colcha. Percebe-se em sua foto um arranjo em
que os polvos azuis encontram-se harmonicamente colocados como que
a abarcar os demais brinquedos. Ele organiza os brinquedos e os enquadra
ao seu modo. Aspectos de uma estética do cotidiano mostram-se aqui,
talvez naquilo que é mais corrente entre aqueles que tiram fotografias:
celebrar e conservar as imagens, nesse caso, dos brinquedos, ou mesmo,
promover a conservação do brinquedo através da foto. Existirá uma
estética infantil do cotidiano? As fotos aqui apresentadas não trazem
elementos que permitam tal afirmação, tal como Ivone Richter (2003)
proporá em relação às mulheres. Temos aqui imagens que fogem da
trivialidade. Inspiradoras, renovam a linguagem provocando a experiência
de maravilhar-se e imaginar a partir da imagem fotografada, ao mesmo
tempo, em que se pode perceber ideias sobre brinquedos, exibição de
suposta brincadeira que acontecerá em outro momento.

Ednei, ao apresentar Loro, o papagaio de sua casa, permite-nos


observar uma brincadeira entre o que está dentro e o que está fora da
casa. A paisagem externa invade a interna. Tem-se uma experiência
estética provocada e exibida pela escolha do exato momento em que o
papagaio, talvez em busca por alimento, apoia-se na janela da cozinha
que está entreaberta. Não se pode negar o enquadramento em que o
azul do céu alinha-se perfeitamente com o reflexo do pássaro no vidro
da janela que convida a entrar, a pensar. Nessas fotografias, tiradas
sem tantos preparativos, criadas por crianças do assentamento, nem
mesmo reconhecidas em sua potencialidade como fotógrafas, podem-se
conhecer aspectos do cotidiano em que vivem, temos pistas no vão da
janela entreaberta.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 36


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Na fotografia tirada por Michel, abaixo reproduzida, percebe
se a busca de um lugar do assentamento bastante frequentado: o
campo de futebol, em dia ensolarado. O campo, que compõe o final
de semana de crianças e adultos indistintamente e é povoado por
campeonatos, encontra-se emblematicamente vazio.

Autor: Michel

37 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Como construção cultural, a fotografia apresenta um elemento
da cultura vivida e construída. Em seu cotidiano costumeiramente o
campo de futebol é um lugar disputado e bastante apreciado. APor
isso a composição, em que o campo aparece vazio merece atenção.
Supõe-se que estejamos diante de algo constantemente presente em
sua vida sendo recriadosob uma nova dimensão, nessa forma visual
de conhecer o mundo. Os extratos do dia-a-dia vividos pelos meninos
e meninas reclamam olhares mais atentos, que num vagar, podem
procurar outras dimensões imaginadas, fantasiadas pelas crianças.
Não cumprem apenas uma tarefa estética. Trazem consigo a história
de cada um compondo um coletivo infantil em espaços construídos
também na infância, que se tornam ambientes de brincadeiras, em
que suas culturas são construídas. Quando deixamo-nos tomar pela
sensibilidade, e igualmente pela curiosidade, passamos a enxergar
conjuntamente aquilo que nos é mostrado pelas meninas e meninos
nas imagens exibidas nas fotografias. Não temos apenas uma imagem
captada, mas uma forma de deixar o registro de um conhecimento
ou mesmo opinião sobre as coisas vistas.

As crianças parecem ver com olhos curiosos, olho de


estrangeiro a perscrutar cada pedaço de terra visitado: como
observadores que visitam e revisitam espaços, a principio, já
tão conhecidos, investigando-os. As fotografias podem tornar-se
estudos, histórias contadas por imagens, sem as quais poderíamos
deixar passar ao largo tantas outras imagens que estão presentes e
não vemos.

Considerando como Barthes (1984) que a fotografia é um


campo de estudo, diria, assim como o desenho, a pintura e outras
imagens, elafaz persistiraideia eacuriosidadeporprocuraraquilo que
se recusa revelar, ainda que associada a outras imagens, implicando
investigações, que por sua vez, fazem crer que as fotografias nos
trazem várias perguntas e que algumas delas caminharão conosco.
A experiência com a fotografia reafirma ainda a concepção que se
tem das crianças com sua incrivel capacidade de procurar o insólito,
talvez com olhares minuciosos que buscam o que ainda não foi visto,
ou o que vimos e nos esquecemos de rever quando adultecemos.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 38


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Autora: Daniela

Por fim, Belinha, a cabrita, pertencente a uma das familias dos


assentados, que aparece em várias fotos. O espaço de fora das casas
é mostrado em várias das fotografias, em muitas delas é possível ver
patos, cachorros, gatos em meio a plantações de banana e demais
produtos. Há sempre muitas minúcias que não podem ser vistas
numa foto. Junto à Belinha, um misto de animal de estimação e futura
produtora de leite, encontram-se outros animais, que soltos ou presos,
presenciam e participam do dia-a-dia das famílias. É interessante
observar que a fotografia não foi tirada por nenhum dos donos de
Belinha, o que permite inferir as relações de vizinhança existentes
entre os moradores do assentamento. Todas as crianças referiam-se
à Belinha, conhecem-na, brincam e discutem sobre ela. As crianças
conhecem os familiares das colegas, bem como, aspectos de suas
formas de vida. Remetem às concepções de jeitos de se viver na roça
em que muitos são solicitados para mutirões nas construções de casas
e, no assentamento, em especial, no plantio que é feito pela família
e amigos vizinhos. A presença da fotografia ensejava o desejo de
comentar sobre as moradias, apontava características dos moradores,
bem como de suas casas e modos de vida.

39 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Embora não haja, em qualquer hipótese, uma crença exagerada
nas virtudes da fotografia, ainda pode-se afirmar que as imagens
apresentam memórias dos lugares fotografados e de suas relações
com esses espaços-ambientes. Por não ser exatamente o que está no
lugar, mas o que as pessoas estão vendo, diferentes pessoas de todas
as idades verão muitas coisas, muitos lugares e outras cenas a serem
fotografadas. As imagens fotográficas não congelam o real, elas o
reapresentam de inúmeras outras maneiras, inclusive em diferentes
modos de ver. Temos aqui aqueles modos apresentados por meninos
e meninas de pouca idade com os quais nem sempre nos deparamos.

Fotografias e infância: bom para se pensar

Com a modernidade, as fotografias passaram a fazer parte de


nossas vidas. Elas nos identificam em nossas carteiras de identidade
ou estudantis, passaportes, crachás de profissionais em empresas.
Espetacularizamos nossas vidas em diferentes redes sociais digitais
numa sucessão de poses, de formas de comportamento diante do
outro, sem estranharmos nada disso. Nesse contexto, faz-se necessário
desnaturalizar-se a fotografia. As imagens fotográficas foram
apresentadas aqui como provocações ao debate, boas para pensar
sobre as diferenças, e não somente sobre elas, acrescentaria. Artefatos
culturais, atualmente também criados pelas crianças, autoras de
imagens que fornecem informações sobre a cultura de quem criou. Elas
podem contribuir para se pensar sobre os lugares em que as imagens
foram criadas, bem como, sobre seus usos, memória, documento,
representação, que como tais, não nos trazem informações fiéis da
“realidade”, mas sim, indícios a partir dos quais podemos perscrutar,
investigar, observar. Uma imagem, como já sabido, possui vasta
gama de informações, carregadas de sentidos diferentes segundo
aqueles que as olham e as produzem. Expressam modos de ver, sentir,
relacionar-se, tornando as coisas do universo – nesse caso em especial,
de meninos e meninas – inteligíveis, “curiosáveis”. Aventurar-se em

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 40


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
imagens fotográficas criadas por meninos e meninas, num vaguear de
olhares é a sugestão deixada aqui. O sensível, tantas vezes roubado
da infância e cada vez mais precocemente, é motriz em tudo que o
homem faz e descobre. As crianças, os cientistas mais fecundos, assim
como os artistas têm que provar de muita sensibilidade intelectual
e imaginação. As crianças, nas fotografias, partem também de suas
experiências, formulando hipóteses, desvendando horizontes,
organizando e desorganizando mundos que passam a ser exibidos
para nós, e aqui temos uma pequeníssima mostra. Parafraseando o
conhecido pensamento de Paul Klee, meninas e meninos com suas
fotografias, não restituíram o visível, mas permitiram a visibilidade, ao
captarem elementos contraditórios presentes no cotidiano.

Não contamos com a palavra escrita das crianças sobre as


fotografias e a palavra falada está resumida a algumas conversas
estabelecidas durante e após o ato fotográfico.Quando procurávamos
dialogar sobre algumas das fotos tiradas, ou mesmo, ficávamos atentas
às conversas das crianças. Essa condição sem dúvida provoca desafios
quanto à possibilidade de compreensão e construção de olhares sobre
esse artefato material, dificuldades e encantamentos pertinentes
àqueles que trabalham com grupos sociais de pessoas que pouco ou
nadafalam.Sabe-se que háumadimensãodas informações sociológicas
e antropológicas que não aparecem tão facilmente em relatos e
muito menos em imagens fotográficas. Contudo, a foto contribui
para a busca por conhecer ou apreender gestos, olhares e, nessas
fotografias em especial, os lugares experimentados cotidianamente
pelas crianças. Portando máquinas fotográficas, as crianças exploram
espaços, conhecem e fazem conhecer em sua incessante capacidade
de investigar, escolher, criar e compor mundos, curiosar. Meninas
e meninos em jogos de fotografar contam, em suas imagens, sobre
experiências de infâncias e também sobre sua sensibilidade estética,
estão lá para serem vistas, dizendo coisas que os textos não dizem.
Com valor documental, oferecem-se como registro de um dos muitos
– mas proporcionalmente ainda poucos – assentamentos em que
Cirandas Infantis acreditam e procuram construir formas de vida mais
justas e igualitárias, em que meninas e meninos constroem partes de
suas vidas. Inventam espaços e ambientes, reorganizam suas culturas

41 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
e deixam suas marcas. Basta estar atentos com olhos cuidadosos e
curiosos por conhecê-las. ●

Referências

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 42


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43 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
“Minha história conto eu”:
multiculturalismo crítico e
práticas corporais no currículo da educação infantil

Marília Menezes Nascimento Souza


Marcos Garcia Neira

Os Estudos Culturais7 consideram a constituição identitária


um produto do processo discursivo que ocorre ao longo da vida.
Quando consideram o currículo como prática cultural, afirmam que
as experiências proporcionadas pela escola posicionarão os sujeitos
da educação de determinada maneira diante das coisas do mundo.
Consequentemente, discutir as práticas educativas desenvolvidas na
Educação Infantil é tarefa de fundamental importância tendo em vista
o potencial educativo dos conteúdos que colocam em circulação.

Neste momento histórico marcado pela lógica da subjugação da


diversidade a valores e culturas hegemônicas, que provocam injustiça
social e condições de vida adversas para grande parte da população,

7 Nelson, Treichler e Grossberg (2008) definem os Estudos Culturais como um termo de


conveniência para uma gama bastante dispersa de posições teóricas e políticas. Sendo
profundamente antidisciplinares, pode-se dizer que tais estudos partilham o compromisso
de examinar práticas culturais do ponto de vista de seu envolvimento com e no interior de
relações de poder.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 44


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
é imprescindível que a elaboração e o desenvolvimento de currículos
tomem por base questões mais amplas que envolvam as políticas
de identidade. Compreender a escola como importante espaço de
influência obriga a adoção de um posicionamento político das práticas
nela empreendidas, sobretudo quando se almeja a formação de
cidadãos capazes de atuar na configuração de uma sociedade mais
solidária e justa, com melhores condições de vida para todos.

Nesse sentido, tomamos por base as noções de educação


que concebem a escola como espaço de intercâmbio cultural.
Segundo Moreira e Candau (2003), há uma relação íntima entre
escola e cultura. Não há educação que não esteja imersa na cultura
da humanidade e, particularmente, do momento histórico em que
se situa. No cumprimento de sua função social fundamental, qual
seja, a viabilização do acesso ao patrimônio cultural produzido pela
humanidade às novas gerações, a escola encontra-se na condição
privilegiada de fomentar, através de suas práticas, a constituição de
identidades afins a um projeto de sociedade em conformidade com

45 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
determinados aspectos sociais e culturais. Não raro, sob pressão
de diversos condicionantes, geralmente o faz a favor daquele que
se apresenta hegemônico.

A cultura não pode ser estudada como uma variável sem


importância, secundária ou dependente das forças que movem a
educação ou as relações sociais de um modo geral. Conforme Hall
(1997), ela precisa ser vista como algo fundamental, constitutivo,
que determina a forma, o caráter e a vida interior desses
movimentos. Para o autor, a cultura está no centro dos processos
de organização da sociedade, o que só faz realçar sua importância
no processo de formação de identidades. A centralidade da
cultura indica a forma como a cultura penetra em cada recanto
da vida social contemporânea, mediando tudo, assumindo um
papel determinante “na constituição da subjetividade, da própria
identidade, e da pessoa como ator social” (HALL, 1997, p. 20).

As práticas educativas, enquanto práticas sociais, têm


uma dimensão cultural dependente de significados aos quais
se encontram estreitamente associadas. Por isso, possuem um
caráter constitutivo nas identidades dos sujeitos envolvidos.
A identidade emerge não de um eu verdadeiro e único, mas do
diálogo entre os conceitos e definições que são representados
para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo
(consciente ou inconsciente) de responder aos apelos feitos por
esses significados, de sermos interpelados por eles, de assumirmos
as posições de sujeito construídas para nós por alguns discursos
(HALL, 1997).

Na ótica de Hall, nos tempos atuais assistimos a uma


revolução cultural no sentido substantivo, empírico e material
da expressão. Os meios de produção, circulação e troca cultural,
em particular, vêm se expandindo através das tecnologias da
informação e da comunicação. Vivemos uma globalização em
todos os campos da vida social. Essas mudanças culturais globais
estão criando uma rápida mudança social e, na mesma medida,
sérios deslocamentos culturais.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 46


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
As consequências dessa revolução cultural global não são
uniformes nem facilmente previsíveis. Uma das características
desses processos é que eles são mundialmente distribuídos de forma
muito irregular, favorecendo a valorização e expansão de culturas
dominantes e enfraquecendo as sociedades mais antigas ou aquelas
em desenvolvimento, interferindo na definição de seus próprios modos
de vida e no ritmo e direção do desenvolvimento, o que caracteriza
uma condição de dominador e dominado.

Os Estudos Culturais reconhecem a diversidade cultural e as


relações de poder existentes entre as diferentes culturas da atual
sociedade globalizada. Entretanto, Johnson (2010) sugere que o
termo cultura possui valor como lembrete, mas não como categoria
precisa à qual os Estudos Culturais dizem respeito. Em seu lugar,
apresenta como termos-chave consciência e subjefividade, vistos
como elementos constituídos culturalmente no seio das relações
sociais, sem perder o viés da individualidade que permite aos sujeitos
recriarem suas representações e assim, suas formas de (inter)agirem
com a cultura.

Essa é razão que leva os teóricos do multiculturalismo


crítico8 a defenderem que pessoas comuns, representantes
do povo, possam ter seus conhecimentos validados e seus
interesses contemplados. Isso significa influenciar na formação de
identidades mais críticas e conscientes das sobredeterminações
culturais que as condicionam (social e subjetivamente) e viabilizar
a inserção e o engajamento desses sujeitos na dinâmica de
sociedades efetivamente democráticas. O que se está a defender é
o desenvolvimento de um currículo multiculturalmente orientado,
no qual a justiça e a constituição de práticas pedagógicas menos
excludentes sejam levadas a cabo.

8 Na vertente crítica do multiculturalismo, a cultura é concebida como espaço de


conflito, de permanente construção e negociação de sentidos. A diferença não fica isolada
em sua matriz, tampouco se afirma uma identidade homogênea baseada no princípio
da universalidade. O multiculturalismo crítico trata de um locus teórico e prático que
busca compreender as razões da opressão, construção das desigualdades, diferenças e
estereótipos (CANDAU, 2008).

47 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Os Estudos Culturais e o multiculturalismo crítico, segundo
Silva (2002), não limitam a análise do poder ao campo das relações
econômicas do capitalismo, característica principal das teorias pós
críticas da educação. Com as teorias pós-críticas, o mapa de poder
é ampliado para incluir processos de dominação centrados na etnia,
gênero, sexualidade, local de moradia, origem e demais marcadores
sociais.

Sob influências dos Estudos Culturais e do multiculturalismo


crítico, a Educação Física problematiza o patrimônio cultural corporal
disponível com a intenção de desenvolver atividades de ensino
sensíveis à diversidade cultural e comprometidas com a formação de
identidades democráticas (NEIRA, 2011). Obviamente, isso
exige uma reconfiguração das ações didáticas de acordo com as
especificidades do componente e em consonância com as perspectivas
da escola expostas em seu Projeto Pedagógico.

A problematização da cultura corporal no currículo escolar


compreende uma dinâmica de relações complexas que ganham
sentido nas práticas sociais e nas representações dos sujeitos.
Considerada a inevitabilidade do caráter discursivo a elas imanente, a
dimensão cultural da qual todas as práticas sociais são constituintes e/
ou constituídas carrega relações de poder, que frequentemente estão
orientadas para a manutenção da cultura hegemônica (HALL, 1997).

Porque dinâmicas, complexas e atreladas ao aspecto cultural,


essas relações não podem ser compreendidas como unidirecionais,
nem tampouco como dadas. São construídas socialmente através
de processos de expressão e ressignificação e guardam em si forças
contraditórias e/ou de resistência que, de algum modo, regulam e
redirecionam os rumos das relações possibilitando novos sentidos,
novas necessidades à dinâmica cultural e, assim, o surgimento de novas
culturas que precisam ser reconhecidas sob pena de se configurar uma
sociedade marcada pelo preconceito e pela exclusão.

A defesa de Gimeno Sacristán e Pérez Gómez (2000) acerca da


função social da escola suscita a necessidade de compreensão dos

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 48


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
mecanismos de socialização do conteúdo cultural utilizados pela
escola e condicionados à dinâmica social hegemônica do meio no
qual ela está inserida. Num cenário social marcado pela globalização
numa perspectiva neoliberal, onde as fronteiras culturais diminuem,
aumentando as inter-influências e os mecanismos de poder não só
entre grupos econômicos, mas também entre grupos étnicos, culturais
e entre as nações, vemos a escola sendo tensionada a reproduzir essa
lógica na formação dos seus alunos.

Isso é visível em diversos aspectos que compõem a rotina


escolar, desde a elaboração dos currículos à materialização das práticas
pedagógicas, passando pelas relações estabelecidas nesse contexto
(entre professores, entre professor e aluno, entre os professores e
os saberes, entre os alunos e os saberes tematizados, entre escola e
comunidade, etc).

Tendenciosamente, as relações de poder existentes na dinâmica


social pós-revolução industrial se reproduzem nas práticas escolares,
contribuindo para a manutenção do status quo com a valorização ou
foco na socialização dos saberes alusivos à preparação técnica para o
mercado de trabalho.

Para que a escola possa cumprir sua função educacional, o


currículo deverápromoverareconstrução críticadaculturaexperiencial
dos alunos. Os professores, por sua vez, necessitarão de um processo
contínuo pautado numa perspectiva crítica e reflexiva, onde possam,
inclusive, se perceberem como seres culturais, sujeito às diversas
determinações que caracterizam as relações na contemporaneidade.

Para Silva (2002, p. 105), o currículo “é uma decisão moral,


ética e política de cada um de nós”. Ele carrega valores que se
materializam nas abordagens pedagógicas e em toda a dinâmica de
relações estabelecidas no espaço e no tempo escolares e condicionam
a formação dos indivíduos.

Para tanto, consideramos a necessidade de levar os/as


estudantes à percepção da complexidade que compreende o ser

49 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
humano no mundo para proporcionar-lhes os subsídios que lhes
possibilitem a participação ativa na complexa dinâmica social
que os envolve. Desse modo, é necessário orientar o processo
de formação na Educação Básica desde a Educação Infantil,
considerando os aspectos sócio-históricos que condicionam a vida
dos sujeitos na contemporaneidade. Diante da diversidade cultural
e da política neoliberal que compõem as várias sociedades e
complexificam as relações de poder e dominação de alguns grupos
sobre os demais, influenciar a formação crítica dos sujeitos para
que atuem solidariamente numa sociedade multicultural e cada vez
mais global é um grande desafio para a educação escolarizada.

Em relação ao trabalho pedagógico com a cultura corporal,


segundo Neira e Nunes (2006), o simples consumo dos produtos
da cultura motora durante as aulas não permitirá aos estudantes
criticar, criar, agir e transformar, apenas a perpetuação de sua
condição. É necessário dialogar com os alunos não como objetos
inertes, alheios à dinâmica cultural que os envolve. No processo
de ensino para a cidadania e a vivência democrática, é preciso
entender e materializar através das ações didáticas, a noção de
que, ao mesmo tempo, constituímos a cultura e somos constituídos
por ela.

Neira e Nunes (2006) encontram respaldo nas reflexões de


Garcia (1995) ao afirmarem a necessidade de criticar/desconstruir
o modelo neoliberal em curso que exclui grandes contingentes da
população e de se criar uma sociedade pautada pela inclusão de
todos, independentemente de sua classe social, gênero, religião
e etnia, fundamentos para sugerir a construção de um currículo
multicultural na Educação Física no qual seja problematizado o
patrimônio cultural corporal no contexto escolar. Tal currículo tem
como prioridade a construção de uma sociedade onde “a diferença
não será mais um estigma, assumindo a sua enriquecedora
potencialidade” (p. 198), o que permitirá a todos os envolvidos
nesse processo de formação se perceberem como sujeitos capazes
e dignos, oferecendo bases para a sua participação mais ativa na
sociedade.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 50


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Isso, conforme os autores supracitados, só poderá ocorrer
mediante o diálogo entre as manifestações da cultura corporal e os
aspectos sociais, históricos e culturais que caracterizam o contexto
que lhes dá guarida. Ao considerar a amplitude das diferentes
lutas, brincadeiras, ginásticas, danças e modalidades esportivas,
a comunidade escolar deverá selecionar quais serão estudadas,
levando em consideração as características da comunidade
expressas no Projeto Político-Pedagógico e as necessidades que
implicam as condições de vida daqueles sujeitos.

Configurando a trama:
aspectos metodológicos e contextuais da pesquisa

Ao reconhecer a constituição identitária como um processo


contínuo e discursivo que se dá ao longo de toda a vida dos sujeitos,
através das várias interações que estabelecem nos diferentes
contextos em que se inserem em diálogo com as perspectivas
e representações mais subjetivas, é imprescindível construir,
através das ações didáticas materializadas no currículo escolar,
condições para o desenvolvimento de modos de ser/pensar, agir e
interagir mais democráticos desde a Educação Infantil.

Mediante o reconhecimento de que uma sociedade


democrática se constitui pela prática cotidiana de sujeitos
concretos orientados por representações condizentes com a
convivência solidária e com as relações dialógicas de respeito,
configuramos o objetivo da pesquisa da qual tratamos aqui
em identificar, evidenciar e analisar os aspectos didáticos que
demarcam o processo de inclusão das práticas corporais na
elaboração e implementação de um currículo multiculturalmente
orientado em uma turma da Educação Infantil em escola da rede
pública municipal de Aracaju, no Estado de Sergipe, ao longo de
um semestre letivo.

51 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Ao propor a investigação associada a uma intervenção com
características e propósitos de uma pedagogia multicultural crítica,
adotamos procedimentos relacionados à pesquisa-ação. Para Tripp
(2005), a pesquisa-ação é uma estratégia para o desenvolvimento
de professores e pesquisadores de modo que possam utilizar suas
pesquisas para aprimorar o ensino e a aprendizagem dos alunos,
além de contribuir com as teorizações acerca da temática investigada.
Conforme o autor, a pesquisa-ação está envolta na atmosfera da
reflexão e...

[...] segue um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação


sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito
dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se uma
mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no
correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria
investigação (p. 446).

Thiollent (2007) acrescenta que a pesquisa-ação implica


no desejo de transformação das práticas culturais e requer o
envolvimento de sujeitos que sinalizem a vontade de ousar e
consolidar novas práticas. Os sujeitos da pesquisa aqui narrada
foram contatados devido à realização do “Projeto Identidade: minha
história conto eu”.

O referido projeto, gestado por duas professoras com formação


em Pedagogia doravante denominadas professoras-colaboradoras,
surgiu da necessidade de valorizar a identidade pessoal e cultural
dos estudantes, devido à percepção de que muitos chegavam à
escola sem saber dizer o próprio nome, os nomes de seus pais, com
vergonha de dizer o local onde moravam, medo de se expressarem,
etc. Com o objetivo de contribuir para a formação de cidadãos de
direitos e deveres, foram elaboradas e experimentadas práticas
pedagógicas relacionadas ao contexto cultural das crianças. Até
nossa chegada, isso envolveu conhecimentos das diferentes áreas,
exceção feita àqueles relativos ao trato com a cultura corporal, uma
vez que as próprias professoras diziam não se sentirem preparadas
para lidar pedagogicamente com práticas corporais.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 52


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
As estratégias da pesquisa-ação permitem compreender a
participação dos sujeitos envolvidos na constituição e efetivação da
proposta, bem como os reflexos da experiência na (trans)formação das
pessoas e de suas práticas. Franco (2005) menciona a pesquisa-ação
crítico-colaborativa na qual o pesquisador compõe e cientificiza um
processo de mudança desencadeado pelos sujeitos do grupo.

No estudo em tela, inexistiram quaisquer pretensões de


neutralidade ao planejar, empreender, discorrer e analisar os
aspectos didáticos que demarcam a pedagogia multicultural por
ocasião da problematização das práticas corporais no currículo da
Educação Infantil. Ao contrário, assumimos o engajamento político
que caracteriza os trabalhos fundamentados nos Estudos Culturais
e no multiculturalismo crítico quando se debruçam sobre contextos
marcados pela lógica do preconceito, silenciamento e exclusão
de identidades minoritárias que tanto têm massacrado sujeitos e
comunidades.

A consciência da situação nos impeliu a ousar ao longo


da prática investigativa, criando e redimensionando as formas de
lidar com o fenômeno investigado e observando o ensino, enquanto
prática social, do ponto de vista cultural (JHONSON, 2010). Nesse
sentido, examinamos os aspectos didáticos empreendidos, buscando
compreender de onde emergiam. Isso demandou uma postura mais
fluida do investigador ao empreender o processo da pesquisa-ação.
Como não cabia seguir passos preestabelecidos e orientados em
ciclos com vistas a implementar modificações nas práticas sociais
dos sujeitos envolvidos, assumimos a imprevisibilidade dos fatos e a
inapreensão do fenômeno, uma vez que este se manifestava a partir
do movimento de sujeitos concretos, nas complexas relações entre as
diferentes subjetividades.

Essa compreensão materializou-se na prática investigativa


através de uma abertura metodológica ao longo da pesquisa na
qual a ação e a investigação no campo da prática deram-se de modo
não sistemático, mas comprometido com o contingente, com o
movimento que emergia a partir de cada ação e seus efeitos sobre

53 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
os sujeitos envolvidos. A conjunção das orientações metodológicas
da pesquisa-ação com os referenciais oriundos dos Estudos Culturais
e do multiculturalismo crítico viabilizou a assunção de uma postura
pós-crítica de investigar. Assim, metodologicamente, avançamos na
compreensão de como os processos inerentes à realização desse
estudo podem se organizar e permitimo-nos construir e empreender
cada passo a partir do que ele incitava.

Nessa lógica, planejar, implementar, descrever e avaliar são


ações que acontecem numa dinâmica que dificilmente obedece
â ordenação, mas se sobrepõe dialogicamente para atender às
necessidades do processo em curso, caracterizado pelo entretecimento
da teoria e prática, investigação e ação, intervenção e análise, reflexão
e ação, pesquisadora, fenômeno e participantes da pesquisa. Enfim,
ao considerar a complexidade da prática educativa, das relações
sociais e do processo de investigação, sinalizamos que a metodologia
empreendida reconheceu as diferentes inter-influências e movimentos
que condicionaram a investigação.

Portanto, no que se refere à metodologia, empreendemos uma


pesquisa em (inter)ação, como sendo aquela que, orientada pelas
teorias pós-críticas, considera a diversidade de sujeitos, compreensões
e orientações culturais envolvidas num processo de pesquisa-ação e, a
partir de seu movimento, cria, define e materializa cada passo ou ação.
Nessa ótica, o campo investigativo torna-se mais amplo e reconhece
as forças externas (do âmbito político, social e cultural) que atuam
na constituição dos processos empreendidos (a ação no campo e a
investigação sobre ele), não sendo possível almejar a transformação
imediata da prática, mas sim, a ampliação da compreensão e das
possibilidades de atuação ante o reconhecimento da complexidade da
educação e do ensino enquanto prática social.

O campo de investigação do estudo realizado foi o contexto


da turma “Oficina II-D”. O grupo compreendia, ao início da pesquisa,
23 crianças com idade entre 5-6 anos e uma professora. Diante
da complexidade que configura a elaboração e implementação de
um currículo, especialmente quando estruturado na perspectiva

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 54


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
multicultural crítica, consideramos participantes desse estudo os
sujeitos envolvidos direta e indiretamente com a prática pedagógica
ali desenvolvida. São participantes diretos aqueles substancialmente
presentes nas decisões e na realização das ações didáticas que
orientaram e demarcaram o desenvolvimento do projeto de ensino.

Iniciamos as observações em agosto de 2010 tencionando


uma aproximação com os sujeitos diretamente envolvidos, bem como
melhor compreender as práticas já desenvolvidas pela professora
durante o Projeto Identidade. Ainda no início, ocorreram as primeiras
discussões acerca das possibilidades de inserção e contribuição
do trabalho pedagógico multiculturalmente orientado com as
práticas corporais e a eleição dos temas de estudo conjunto com as
professoras, bem como a seleção de materiais bibliográficos. Buscamos
compreender o contexto, interferindo e também sendo pessoalmente
modificados por ele. As informações advindas das observações foram
registradas em diário de campo e tanto serviram para avaliação do que
já era realizado e planejamento das ações subsequentes no decorrer
da pesquisa, como também para posterior aprofundamento da análise.
O trabalho foi finalizado em janeiro de 2011.

Seguindo as orientações metodológicas da pesquisa-ação


(THIOLLENT, 2007), a análise aconteceu de forma concomitante ao
processo investigativo, apoiando as decisões e ações futuras. Os
registros do percurso foram submetidos ao confronto com os campos
teóricos dos Estudos Culturais, do multiculturalismo crítico e da
teorização curricular da Educação Física. O produto final assumiu o
aspecto de uma descrição crítica.

... E a história não termina aqui: considerações transitórias

Pelo caráter discursivo e difuso como os múltiplos sujeitos que


compõem o contexto escolar e os artefatos do mundo contemporâneo

55 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
manifestam suas concepções e se legitimam nas práticas sociais,
reconhecemos a impossibilidade de apreendê-los como variáveis
de pesquisa, mas não descartamos a pertinência de evidenciá-los
como envolvidos na complexidade do fenômeno educativo para
ampliar a compreensão e as possibilidades de uma educação que
faça frente aos desafios que se nos impõem.

Com essas concepções, lançamo-nos a campo e buscamos


inicialmente compreender a prática pedagógica da professora
colaboradora. A docente já desenvolvia práticas educativas
atentas aos aspectos culturais da comunidade envolvida, de
forma atenta à diversidade que a compunha sob a justificativa de
contribuir com a constituição identitária do cidadão de direitos
e deveres. Através do “Projeto Identidade: minha história conto
eu”, a professora desenvolvia ações didáticas com diferentes
conhecimentos. Porém, era visível a polarização em torno de
saberes historicamente valorizados pela cultura escolar, ou seja,
aqueles relativos à leitura, escrita e operações matemáticas.

A professora da turma explicitou sua dificuldade de


incluir nesse projeto o trato pedagógico dos conhecimentos
da cultura corporal, apesar de reconhecer e ressaltar a sua
contribuição para a constituição identitária almejada e para
responder às necessidades educacionais por ela identificadas e
expressas: dialogar com e sobre a diversidade cultural, estimular
um autoconceito positivo por parte das crianças, promover o
desenvolvimento das habilidades psicomotoras, o conhecimento
das crianças acerca de sua identidade pessoal, o conhecimento das
letras, dos números e a escrita, especialmente do próprio nome,
dentre outras. Entretanto, foi possível notar certo distanciamento
entre as perspectivas do Projeto Identidade e das necessidades
educacionais destacadas pela professora e suas concepções
acerca das possibilidades do trabalho da Educação Física, uma
vez que atribuiu um caráter psicomotor ao papel do componente.
Some-se a isso o fato dessa compreensão não dialogar com as
perspectivas educacionais da escola previstas no seu Regimento
Escolar.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 56


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Tal documento regulamentava e direcionava as perspectivas
da formação e as ações pedagógicas desenvolvidas. Alguns
aspectos permeavam todas as disposições e deixavam claras as
perspectivas pedagógicas da instituição. Notamos uma ênfase no
trabalho coletivo, além de um ensino critico e relações pedagógicas
e interpessoais que respeitem e valorizem a diversidade, assim
como a aproximação da escola com a comunidade.

Mesmo movido por intenções democráticas, é interessante


observar contradições entre as perspectivas educacionais
expressas no próprio documento. Apesar da preocupação com a
diversidade, há uma orientação expressa em relação à elaboração
e à organização do ensino a partir de parâmetros mínimos para
cada série e disciplina. Esses parâmetros não estão descritos,
apenas menciona-se que sua elaboração deve ser coletiva e que
é dever do professor esforçar-se para atingir os objetivos para a
sua série.

Segundo o documento são finalidades da escola, a


partir dos princípios da solidariedade, liberdade e felicidade,
“contribuir juntamente com a família e a sociedade na formação e
desenvolvimento de um indivíduo crítico e atuante, considerando
suas peculiaridades sócio-históricas, econômicas e culturais” (p.
1). O que requer práticas educativas contextualizadas com os
aspectos sócio-culturais que afetam os/as estudantes, inclusive
na Educação Física. A partir das finalidades e objetivos é que são
traçadas as demais diretrizes em relação às etapas da escolarização
ofertadas pela escola, à organização didático-pedagógica, ao
processo de avaliação, à organização administrativa, às regras de
convivência e às disposições gerais e transitórias. O documento
apresenta, ainda, a compreensão de currículo na escola. Este é
entendido não somente como um instrumento de transmissão/
reprodução cultural, ideológica e de conhecimentos acumulados,
produção de significados e sentidos e manutenção do status quo,
“ele deve possuir um caráter ‘inovador’ no sentido de propiciar a
emancipação dos alunos deixando, dessa forma, de servir como
instrumento de controle social” (p. 7).

57 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
O contexto de avanços e contradições, bem como a disposição
da professora-colaboradora evidenciou a possibilidade, e até a
necessidade, da realização da pesquisa. Apostando no fato de que
é nas relações que se dá a construção do conhecimento, de novas
significações, novas culturas e novas ou outras práticas sociais e
educativas, que destacamos a pertinência da realização de pesquisas
educacionais em quepesquisadoreprofessorunam-senacoelaboração
e experimentação de práticas educativas e ações didáticas sensíveis à
diversidade cultural e comprometidas com a formação de identidades
democráticas, tendentes a uma existência social mais solidária.

Considerando as peculiaridades, possibilidades e limitações


específicas do contexto, é pertinente destacar a ousadia da presente
experiência no campo da formação básica, em especial na Educação
Infantil – que culturalmente vem sido concebida no estado de Sergipe
como o locus da alfabetização, do desenvolvimento de habilidades
psicomotoras e da vivência livre da brincadeira. Ao mesmo tempo,
é uma experiência significativa na formação contínua da professora
colaboradora, a partir do fomento à prática reflexiva na experiência
do novo. Desse modo, o estudo desenvolvido contribuiu para a
construção de novos conhecimentos no campo da Didática e do
Currículo, particularmente no campo da Educação Física na Educação
Infantil.

Os procedimentos da pesquisa envolveram o estudo


para a fundamentação teórica, a discussão junto às professoras
colaboradoras acerca do que foi observado nas suas aulas, a elaboração
e a implementação do projeto para a inclusão das práticas corporais
no Projeto Identidade e a ampliação ou reorientação das práticas
educativas segundo as perspectivas do multiculturalismo crítico para
o currículo escolar.

Essas ações requereram tempo e disposição por parte das


educadoras não só quanto aos procedimentos didáticos empreendidos,
mas também com relação à postura e atuação considerando-se como
docente e simultaneamente um sujeito em interação com as diferentes
tensões que caracterizam o ambiente cultural contemporâneo e o seu

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 58


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
em específico. As professoras se colocaram totalmente disponíveis e
assim, demos início ao processo mais denso da pesquisa em interação.

A intenção inicial foi fomentar a prática reflexiva e a leitura


crítica acerca das atividades pedagógicas desenvolvidas e os objetivos
que do Projeto Identidade, associados às perspectivas educacionais da
escola. A partir dessas discussões, geraram-se condições cognitivas e
embasamento teórico específico para uma pedagogia orientada pelo
multiculturalismo crítico. Além disso, foi necessário desestabilizar a
representação do trabalho pedagógico da Educação Física vinculado
às perspectivas da psicomotricidade, uma vez que se tinha a intenção
de contribuir com a constituição de identidades democráticas e
socialmente inseridas no contexto de uma sociedade culturalmente
diversa. Diante disso, as professoras colaboradoras expressaram a
necessidade de tomar contato com os fundamentos do trabalho
pedagógico com as práticas corporais multiculturalmente orientado.

Nessesentido,trabalhamosparalelamentecomtextoscientíficos
e fragmentos dos relatos das práticas observadas na instituição.
As discussões giraram em torno de temas importantes relativos ao
multiculturalismo crítico e aos Estudos Culturais: concepções de
cultura; escola e cultura; identidade; cultura e identidade; currículo;
Educação Física na Educação Básica; currículo multicultural; e
tematização das práticas corporais. Com base na literatura discutida, as
professoras-colaboradoras passaram a questionar algumas práticas da
escola como, por exemplo, o estabelecimento de padrões mínimos por
série. Em muitos momentos as professoras-colaboradoras entraram
em conflito ao observar com maior criticidade suas práticas educativas
e as representações que estavam colocando em circulação.

Após a aproximação com as teorizações do multiculturalismo


crítico para a educação escolar e especialmente no trabalho
pedagógico com as práticas corporais, trabalhamos com a discussão de
dois relatos de práticas educativas orientadas pelo multiculturalismo
crítico e desenvolvidas na Educação Infantil em escolas paulistas. Ao
discutir esses relatos, problematizamos o lugar ou as possibilidades
do trabalho pedagógico com as brincadeiras na Educação Infantil,

59 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
ainda que não fosse esse o único conhecimento da cultura corporal
a ser trabalhado naquele contexto. Os conceitos produzidos ou
ressignificados durante esses estudos produziram as condições para a
definição do tema do projeto a ser desenvolvido. O tema “Direito ao
lazer” foi sugerido pela professora da turma de maneira articulada ao
trabalho que estava desenvolvendo com as crianças. Como é possível
perceber, o eixo das ações didáticas sugere uma relação do brincar com
os aspectos sociais e culturais que demarcam o contexto das crianças
com as quais dialogávamos através da prática educativa, o que se afina
aos pressupostos do currículo multicultural crítico.

Definido o tema de trabalho, a professora tomou a iniciativa de


produzir recursos, como cartazes, que sinalizavam para as crianças a
ênfase na discussão do “Direito ao lazer”. No exercício de acompanhar
as ações didáticas da professora e, ao mesmo tempo, estimular,
apoiar e contribuir com sua formação para uma pedagogia/atuação
multicultural crítica, a pesquisadora teve o cuidado de observar as
iniciativas e os caminhos didáticos adotados para, a partir daí, mais
uma vez e constantemente, mobilizar a reflexão, o confronto da ação
empreendida com os pressupostos teóricos e o planejamento coletivo.

Nessa perspectiva é que foi possível observar os primeiros


passos da professora ao desestabilizar, nos momentos de lazer
das crianças na escola, relações assimétricas e estereotipadas, por
exemplo, nas questões de gênero – meninos brincam de carrinho,
bola e ocupam a maior parte do espaço com suas movimentações
expansivas, enquanto as meninas brincam de bonecas num canto
da sala – e à mobilidade de uma criança com deficiência motora nos
membros inferiores – com a qual se deveria ter tanto cuidado, que a
própria não se permitia subir em brinquedos e participar de atividades
que requeriam maior movimentação e agilidade. Em meio ao processo
de estudo e elaboração do projeto, a professora tomou a iniciativa
de problematizar o trânsito e construir carrinhos com as crianças,
sugerindo que as meninas fossem as motoristas e os meninos, os
caronas, isso após uma discussão com a turma e a percepção de
uma visão socialmente construída da profissão ou ação de dirigir um
automóvel como um atributo masculino. Outro indício desses avanços

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 60


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
foi a vibração da professora ao ver a criança com deficiência subir na
escorregadeira do parque com apoio da pesquisadora e sua iniciativa
em, a partir de então, apoiar a criança em atividades e brincadeiras de
subida e deslocamento ágil, o que viabilizou a autoconfiança e maior
participação da criança e uma nova concepção de seus colegas acerca
das brincadeiras das quais ela poderia participar.

Ao dar início às ações do Projeto, a professora buscou extrair


das crianças suas compreensões acerca do lazer, estas se mostravam
associadas a brincar. A professora, então, buscou ampliar as
concepções infantis associando lazer àquilo que se faz nos momentos
livres e que promove alegria, diversão. Quanto à dimensão do direito,
a professora destacava que na escola elas tinham o direito de brincar,
devido à existência do parquinho e dos momentos livres no parque
ou na própria sala. Percebendo que a problemática do direito ao
lazer era muito mais ampla e envolvia mais que a possibilidade de
brincar na escola, mas as condições, as relações e as formas de lazer
no bairro, a pesquisadora questionou as ações didáticas frente à
perspectiva identitária almejada e os caminhos do trabalho pedagógico
multicultural crítico com tal temática. A própria professora sugeriu um
mapeamento das brincadeiras que as crianças vivenciavam em seus
momentos de lazer e, considerando sua experiência em atividades
de mapeamento, pontuou a necessidade de buscar essa informação
abordando os alunos individualmente, para que um não se deixasse
influenciar pela opinião de outros.

As brincadeiras levantadas foram analisadas pelas professoras


colaboradoras juntamente com a pesquisadora e perceberam que
havia certa diferenciação entre brincadeiras vivenciadas por meninos e
brincadeiras vivenciadas por meninas. Esse levantamento foi registrado
em um cartaz e todos discutiram as questões de gênero durante as
brincadeiras. Ao constatarem, além da problemática do gênero uma
diferenciação quanto à idade, que determinava a possibilidade de uma
criança poder ou não participar de uma brincadeira nas interações
com seus grupos e relatadas por elas próprias, também foi discutido
o que determina a possibilidade de participação de uma criança numa
brincadeira. Tanto nas segmentações em relação ao gênero quanto à

61 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
idade, notavam-se as exceções e estas foram utilizadas como exemplos
de que não havia um fator natural determinante, mas sim todo um
contexto cultural. Diante das reflexões foi acordado com as crianças que
a partir daquele dia trabalharíamos com algumas daquelas brincadeiras.

Assim, professoras e pesquisadora tomaram a decisão de iniciar


o trabalho pelas brincadeiras onde se observava maior apropriação
em relação às questões de gênero, como o futebol e a brincadeira de
bonecas. Entretanto, antes mesmo que se iniciasse o trabalho com
essas práticas, as criançastrouxeram paraas suas brincadeiras na escola
uma cantiga de cerê-cê-cê em que cantavam e faziam movimentos que
simbolizavam cantores jovens, provenientes de outros países e que
cantam em língua inglesa. Essa brincadeira fez a pesquisadora perceber
que ali estava uma prática de lazer carregada desentidos e informações
que as crianças nem sempre compreendiam. Tal brincadeira também
não foi mencionada pelas crianças no mapeamento inicial. Isso foi
discutido com a professora da turma, que sugeriu aprofundar o
conhecimento sobre a brincadeira, a música cantada, a língua falada
pelos cantores, seus países, a relação com o Brasil, o fato de cantarmos
coisas que não entendemos e a forma como eles conheceram aqueles
cantores, uma vez que não eram brasileiros.

Ao trabalhar com tal manifestação, dentre discussões e


abordagens sobre localização geográfica, linguagem, ritmos musicais
e mídia áudio-visual, surgiu por parte de uma criança o conhecimento
do hip hop, que ela dizia ter aprendido com o irmão e através de um
DVD. Percebemos que muitas crianças conheciam o hip hop, algumas
dançavam, outrastinham parentes que dançavam e outras viam jovens
dançando narua.Descobrimos que aquela era uma manifestação muito
popular no bairro e passamos a observá-la com mais cuidado, tendo
em vista as intenções de diálogo com a comunidade e a valorização da
cultura corporal do bairro e das crianças, em particular.

Em outro momento, as crianças expressaram em forma de


desenho o local em que brincavam, onde brincavam, do que brincavam
e com quem. Mais uma vez, professoras e pesquisadora analisaram
os desenhos e, após a discussão com as crianças, perceberam que

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 62


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
comumente brincavam sozinhas ou com parentes, na presença de
adultos, dentro de casa ou nas suas proximidades. Questionadas se não
brincavam em outros espaços, como praças, campos, a praia(localidade
relativamente próxima ao bairro), casa de amigos, as crianças não
relataram experiências dessa natureza, salvo pouquíssimas exceções.
Também não reconheciam a praça como espaço de lazer. Poucos
diziam conhecer a praça do bairro.

Diante dessa realidade e ao reconhecer a escassez e


precariedade dos espaços de lazer no bairro, os caminhos do projeto
foram redefinidos e o tema passou a ser “direito ao lazer: práticas
corporais de rua e a utilização de espaços públicos”. A partir daí foram
trabalhados o hip hop e suas diferentes formas de expressão, suas
origens e o forte teor de reivindicação por igualdade de direitos que
ele carrega ao longo de sua história. Posteriormente, foi trabalhado
o futebol, a relação entre o futebol da TV e o futebol que se brinca
na rua, as diferentes formas de brincar conhecidas pelas crianças
e a questão do gênero. Simultaneamente, as crianças puderam
experimentar, aprender e ensinar brincadeiras que poucos conheciam
devido à pouca idade e/ou estatura, como elástico, bolinha de gude e
corda. Outras brincadeiras foram estimuladas tensionando a questão
do gênero, como a brincadeira de bonecas, bonecos e casinha em que
os meninos foram chamados a serem os organizadores da casa e a
convidarem as meninas a participarem com eles.

Também foi questionada a situação da praça do bairro, seu


estado de conservação, a relação dos moradores e das próprias crianças
com a praça, como também do poder público. Para aguçar a percepção
acerca das condições físicas do referido espaço, uma das professoras
colaboradoras planejou uma aula no campo, em que as crianças
tiveram a experiência de conhecer, brincar e pesquisar numa praça
recém-reformada num bairro vizinho e depois na praça do próprio
bairro. Nas visitas as crianças experimentaram as possibilidades de
lazer ofertadas e as brincadeiras trabalhadas, observaram o estado de
conservação, identificaram o nome e localização, além dos recursos
que viabilizaram tal construção. O confronto entre o que foi observado
nas duas praças possibilitou às crianças uma indignação em relação

63 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
ao que lhes estava disponível no próprio bairro e a assunção de uma
postura crítica no sentido de reconhecer que tinham os mesmos
direitos que os moradores do bairro visitado.

Questionadas sobre o que gostariam que houvesse na praça de


seu bairro, as crianças expressaram através do desenho e verbalmente o
desejopormaisbrinquedos,árvores,segurançaecoleta/coletoresdelixo.
Durante a atividade do desenho, professora e pesquisadora abordaram
a possibilidade de eles reivindicarem seus direitos e foram discutidas as
diferentes possibilidades de isso ocorrer, utilizando, inclusive, exemplos
e reflexões sobre formas como comumente se reivindicam melhorias
entre os moradores do bairro, muitas vezes envolvendo depredações
e violência, quase sempre não atendidas. Em meio à realização de tal
atividade uma das crianças apresentou seu desenho dobrado em forma
de carta e disse que ali estava uma carta para o prefeito.

A atitude da criança, mais uma vez, mobilizou reflexões e novos


encaminhamentos entre a professora da turma e a pesquisadora. Foi
decidido que buscaríamos meios de as reivindicações das crianças
chegarem ao órgão competente. As crianças decidiram escrever uma
carta e anexar seus desenhos. Elas próprias sugeriam as palavras,
o que seria dito e a professora escrevia sempre solicitando a ajuda
delas na construção dessas palavras e frases. Com a proximidade do
encerramento do ano letivo e das festividades de final de ano, avaliou
se que seria inviável o envio da carta naquele momento. A professora
se comprometeu a dar prosseguimento ao que foi construído e
acordado junto às crianças no ano letivo seguinte, ainda que não fosse
ela a professora responsável pela turma deles.

Na conclusão das atividades do ano, cada criança construiu o


livro de sua história, registrando de forma escrita e desenhada o que
havia sido estudado, descoberto e vivenciado ao longo do ano, suas
preferências pessoais de lazer, amizades, etc. Com o início do ano
letivo de 2011, professora e pesquisadora deram início à tentativa
de encaminhar a carta com as reivindicações das crianças ao prefeito
do município. Diante da dificuldade de acesso, e com a criação da
Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (em abril de 2011), foi definido

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 64


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
um novo destino para o documento, uma vez que esse órgão respondia
diretamente pelos aspectos reivindicados na carta. Feito o contato com
o secretário, este se comprometeu a visitar a escola, falar diretamente
com as crianças e receber o documento em mãos.

Diante de tal possibilidade e reconhecendo que a problemática


do lazer no bairro era algo que atingia a todos que na escola estudavam,
foi discutido junto à equipe gestora da escola e ao corpo docente que
atuava no mesmo turno da turma participante da pesquisa a relevância
da atuação de todos no momento da visita. Todos os docentes se
engajaram na ação e foi elaborado um abaixo-assinado por parte de
todas as crianças estudantes na escola no turno da tarde, bem como
de seus professores.

No dia combinado, o secretário compareceu e conversou


pessoalmente com os presentes. Três representantes da turma foram
eleitos pelos próprios colegas para a entrega do documento. Era visível
o envolvimento das crianças com a ação, a alegria em manifestar as
reivindicações por seus direitos e de serem ouvidas, mais que isso, o
sorriso, entusiasmo e os fortes abraços no secretário, na professora
e na pesquisadora. Após o encontro, pareciam expressar a crença na
possibilidade de melhores condições de vida no bairro.

Sem nenhuma intenção de esgotar a descrição e a análise


do trabalho pedagógico empreendido e convictos de que o
caminho esboçado foi apenas uma das infinitas possibilidades de
encaminhamentos para as problemáticas culturais atreladas à cultura
corporal e ao tema direito ao lazer naquele contexto, enfatizamos
nesse momento o viés multicultural crítico que permeou as ações
didáticas. Além disso, a preocupação com a vivência da experiência
democrática e com o questionamento das relações de poder que
implicavam as interações sociais.

Nesse sentido, acreditamos ter apoiado o ensino, a prática


pedagógica, a instrução, a comunicação didática de ensinamentos e
saberes tal como sugere Larrosa (2006), para a educação de crianças,
como prática de diálogo, mais plural, aberta e, porque envolvida

65 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
implicitamente com a formação, articulada à justiça. Em relação a
esta última, inferimos, com o auxílio do autor, que o ensino que tem
o poder de mudar não é aquele que se dirige diretamente à criança,
ao adolescente, etc., dizendo-lhe como deve ser, como ele tem que
ver o mundo e o que deverá fazer, não é aquele que lhes oferece uma
imagem do mundo nem o que lhe dita como deve interpretar-se a
si mesmo e a suas próprias ações, tampouco é aquele que renuncia
ao mundo e à vida dos homens e se dobra sobre si mesmo. Assim, a
função do ensino consiste em violentar e questionar o conhecimento,
trivial e fossilizado, violentando e questionando, ao mesmo tempo,
as convenções que nos dão o mundo como algo já pensado e já dito,
como algo evidente, algo que se impõe sem reflexão.

Ao compreender a criança como um sujeito que se constitui


culturalmente, uma vez que a subjetividade se constitui na experiência
concreta que compreende as relações culturais e que a história aqui
contada é apenas um pequeno capítulo da vida daquelas crianças
e da professora-colaboradora, acreditamos que as ações didáticas
empreendidas junto a elas contribuíram na constituição de identidades
democráticas. Porém, como essa constituição é um processo discursivo
e contínuo ao longo da vida, levantamos a necessidade de permanente
discussão acerca do currículo escolar e das práticas empreendidas ao
longo da escolarização dessas crianças em vista de uma pedagogia
que melhor atenda às necessidades e diversidades culturais para uma
sociedade mais democrática e melhores condições de vida para todos.
A experiência narrada demonstrou que a pedagogia multicultural
crítica pode ser uma alternativa. ●

Referências

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 66


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67 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Crianças pequenas e a produção de culturas infantis

Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento

Reconhecer que crianças produzem cultura é algo recente no


universo de conhecimento sobre a infância. Os primeiros trabalhos
que trazem referências às formas de brincar das crianças e ao modo
como se relacionam socialmente foram realizados na primeira metade
do século XX, por Mead (1928) e Benedict (1935), antropólogas
envolvidas nos estudos de cultura e personalidade, linha de pesquisa
influenciada pela psicanálise freudiana, que tinha como foco as práticas
culturais educativas como base para a formação da personalidade
adulta (JAMES; PROUT, 1997; CHRISTENSEN; PROUT, 2005). Nas
pesquisas, realizadas com os adultos, o comportamento das crianças
durante suas brincadeiras e outras atividades sociais era observado
como informação complementar. Christensen e Prout destacam
que “no trabalho de Mead as crianças eram reconhecidas como
informantes e o pensamento infantil era visto como interessante em
si mesmo” (2005, p.47). Sobre o trabalho de Benedict, James e Prout
apontam que, “comparando as infâncias dos Zuni, Dobu e Kwakiutl,
ela encontrou diferenças marcantes em termos da responsabilidade
delegada às crianças, do grau de subordinação aos adultos e do modo

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 68


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
como as características de gênero eram distribuídas” (1997, p.17).
Ainda que apresentassem as vidas das crianças, sua questão principal
era a diversidade das culturas.

No Brasil, Florestan Fernandes, em 1944, realizou pesquisa


sobre o folclore infantil, que resultou no texto “As trocinhas do Bom
Retiro”. O estudo registra brincadeiras realizadas por grupos de crianças
em bairros operários e as destaca como processo de socialização
entre as crianças e pelas crianças. Segundo o sociólogo, “há uma
cultura infantil, cujo suporte social consiste nos grupos infantis”, e
seus elementos “provém da cultura do adulto” (2004, p.215). Mas
“nem tudo corresponde a coisas relativas ou provenientes da cultura
dos adultos”, pois as crianças elaboram “parte dos elementos de seu
patrimônio cultural” (Id., p.216). O estudo pioneiro sobre as culturas
da infância, entretanto, não teve continuidade de pesquisa.

O reconhecimento de que crianças constroem cultura vai se


configurar a partir da década de 1990, ou quase cinquenta anos

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junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
depois, tendo como base os estudos da infância sob a ótica de sua
dinâmica histórica, cultural e social (QVORTRUP, 2002, p.46). Nessa
perspectiva, o primeiro segmento do texto apresenta algumas
análises sobre o lugar da infância, a partir de uma perspectiva
geracional que, embora importante para a discussão sobre a infância,
terá antes o papel de contextualização do que o de aprofundamento.
Em seguida, pretende-se destacar os conceitos de ator social e de
agência9, e pesquisas realizadas com crianças, para fundamentar o
protagonismo infantil na construção de cultura. O último segmento
busca reafirmar as culturas infantis em pesquisas e práticas na
educação infantil.

O lugar da infância a partir de uma perspectiva geracional

Desde o início da Modernidade, a infância foi concebida


como tempo de passagem para a vida adulta. A configuração do
mundo iluminista vai pressupor “um mundo ordenado, certo,
controlável e previsível, construído sobre fundamentos de leis,
explicações e propriedades descontextualizadas, conhecidas
e universais” (MOSS; PETRIE, 2002, p.236) e, além de delegar
à ciência a responsabilidade de explicar e organizar o real,
enfatizando a razão, pretendia livrar o homem da ignorância,
voltando-se para a formação da criança, vista como a origem do
adulto, o homem de amanhã.

Configurava-se, contudo, uma inquietação da sociedade adulta


em relação à infância, pois, por um lado, era constatada a semelhança
do ponto de vista físico, mas, por outro, crescia o estranhamento em
relação ao modo pelo qual as crianças lidavam com o mundo. Assim,

9 Agency foi traduzido como agência pelos sociólogos portugueses, que utilizam essa
versão nas traduções e nos próprios textos, quando se referem à ação social, coletiva, entre
as crianças.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 70


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
“a criança, a infância, o comportamento infantil e as brincadeiras
de crianças não podem ser entendidas adequadamente através dos
mesmos mecanismos explicativos” (JENKS, 2002, p.196) utilizados
para a compreensão do mundo adulto.

Na análise de Jenks (2002), essa inquietação determinou um


estatuto da criança, cujos limites foram mantidos pela cristalização
de convenções e discursos em formas institucionais duradouras -
famílias, creches, escolas e outras instituições - “especificamente
concebidas para processar a criança enquanto entidade uniforme”
(p.189). Trata-se de uma visão de criança na qual o desenvolvimento
físico predomina, com reflexos no desenvolvimento psicológico,
principalmente o cognitivo.

O confinamento social da infância em lugares considerados


apropriados ao seu desenvolvimento e/ou socialização, faz parte
de um sistema de proteção10 e, ao mesmo tempo, de controle,
acompanhado por uma atitude paternalista, que Qvortrup
(1993, 1999) define como “uma estranha combinação de amor,
sentimentalismo, superioridade e marginalização” (1999, p.12). A
institucionalização da infância, mecanismo de adaptação às normas
e regras da sociedade moderna, não impede que as crianças ajam,
embora suas atividades sejam diferentes das dos adultos. A pouca
visibilidade dada as suas ações “significa que o mundo adulto não
reconhece a prática da criança, porque a competência é definida
somente em relação à práxis dos adultos - sugestão poderosa uma vez
que os adultos estão em posição soberana para definir competência”
(QVORTRUP, 2002, pp.54-55).

10 Cabe aqui esclarecer que um sistema de proteção é um direito da infância, em


relação à negligência, aos maus-tratos e violência, à discriminação, entre outros,
garantido legalmente, assim como o direito à provisão, de bens, serviços e recursos, tais
como alimentação, habitação, saúde e assistência, educação, por exemplo, e o direito
de participação em decisões sobre sua própria vida, acesso à informação, liberdade
de expressão e opinião, em condições de igualdade e não discriminação, conforme a
Convenção dos Direitos da Criança, documento da Organização das Nações Unidas, de
1989. A crítica refere-se a uma proteção exacerbada, visto que restringe a participação, e,
segundo Sarmento e Pinto (1997), “a interdependência dos diferentes direitos é a condição
de sua própria realização” (p.19).

71 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A predominância da visão de infância frágil e imatura
fortaleceu o adultocentrismo11. Em outras palavras, o ponto de
vista do adulto sobre a criança, reforçado pelo discurso científico
e sustentado pela concepção de criança determinada por uma
psicologia positivista, normatizava o desenvolvimento ao mesmo
tempo em que definia o certo e o errado nesse percurso. Tal
concepção pode também ser encontrada na sociologia, uma vez
que, “a maior parte das teorias sociais, devido à sua ênfase num
mundo adulto tomado por garantido, falha(ra)m estrondosamente
na constituição da criança enquanto ontologia independente”
(JENKS, 2002, p.194). Nesse sentido, a socialização das crianças
adquiriu contornos de inserção passiva e progressiva ao mundo
adulto, tendo sido encobertas as contradições e os conflitos
decorrentes do processo, assim como as relações sociais presentes
nos cotidianos das crianças.

A concepção de infância determinada pelo crescimento


físico, pela preparação para a racionalidade, pela inserção
progressiva à sociedade naturalizou as relações entre adultos e
crianças e permeia as diferentes instituições, inclusive a mídia12.
No entanto, Qvortrup (1993; 2002) defende que “a infância
constitui uma forma estrutural particular que não é definida
nem pelas características individuais da criança, nem pela idade
– mesmo que a idade possa aparecer como uma referência
descritiva por razões práticas” (1993, p.13). Essa defesa refere

11 Ferreira (2008) caracteriza o adultocentrismo como “o acúmulo de obstáculos ao


conhecimento da realidade de se ser criança e como problema crônico nas pesquisas sobre
as crianças” porque “1) impede o questionamento das categorias mentais mobilizadas e
das condições históricas e sociais que estiveram na base da sua produção; 2) não permite
o trabalho de desconstrução do essencialismo pelo qual o estudo da criança e da infância
tem sido atravessado, nem da natureza social da relação de poder entre adultos e crianças;
3) dificulta seu reconhecimento como atores que tem uma vida quotidiana intensa e
densa, em cujo quadro se produzem como seres sociais a partir do que lhes é proposto
pelos adultos e na sua interação com estes e com outras crianças”. (p.151)

12 Como exemplo, em 2009, um comercial de TV sobre o projeto de exploração de


petróleo num conjunto de rochas localizadas nas porções marinhas de grande parte do
litoral brasileiro, a camada pré-sal, apresenta vários depoimentos sobre sua importância.
Dentre eles, o de um garoto que afirma: é nesse Brasil (do futuro) que eu vou viver...

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 72


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
à primeira de suas nove teses sobre a infância como fenômeno
social, “a infância é uma forma particular e distinta em qualquer
estrutura social da sociedade” (1993, p.13).

O sociólogo argumenta que a infância é definida


arbitrariamente, de acordo com os interesses da sociedade na
qual se insere. Acrescenta, contudo, que as crianças fazem parte
da sociedade e são expostas às mesmas forças sociais, ainda
que de modo particular. Questiona também o desequilíbrio
entre proteção e participação (2005, p.7), o que compromete
a visibilidade da infância. Em outras palavras, o cerceamento
da participação das crianças na vida social ampla reduz suas
possibilidades de voz e de atuação social, o que torna as crianças
pouco visíveis (JAMES; PROUT, 1997; QVORTRUP, 1993, 1999,
2002, 2005, 2009; SARMENTO, 1997, 2000, 2004, 2005, 2007,
2008; CHRISTENSEN; PROUT, 2005).

Estudos sociais sobre a infância13 têm defendido a idéia de


que esta não pode ser abordada apenas pelo que as instituições
esperam dela, mas deve ser reconhecida como grupo específico
que produz e reproduz a vida social. A esse propósito, Pinto (1997)
esclarece que

o processo de valorização da infância e os estudos do processo


de desenvolvimento e de socialização das crianças conheceram,
a partir do século passado, desenvolvimentos qualitativos a que
não é alheio, certamente, o novo quadro de problemas sociais
originados pela industrialização e o movimento social pelos
‘direitos da criança’, [...] que procura valorizar a ‘voz’ e a expressão
das crianças [...] (pp. 49-50)

13 As pesquisas da psicologia sócio-histórica têm se somado a essa defesa. Entretanto,


observe-se que Corsaro (1997) considera que “mesmo quando outros [pais, pares e
professores] são levados em conta, o foco recai nos efeitos das variadas experiências
interpessoais para o desenvolvimento individual. Há pouca ou nenhuma consideração
sobre como relações interpessoais refletem sistemas culturais, ou como as crianças,
apesar de sua participação em eventos comunicativos, tornam-se parte daquelas relações
interpessoais e padrões culturais e os reproduzem coletivamente” (p.17).

73 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Valorizar a infância e reconhecê-la como portadora de voz se
opõe à expressão children are not human beings, but human becomings
(QVORTRUP, 1991) que, em tradução aproximada, significa crianças não
são seres humanos, mas tornar-se-ão humanos, representativa de uma
concepção de infância pré-sociológica14 (JAMES, JENKS, PROUT, 1998).
A ela se contrapõe “a dimensão da ação das crianças na construção de
seus mundos de vida” (SARMENTO, 2008, p.25), como se verá a seguir.

Atores, agentes e culturas infantis

Desde a década de 1990, têm sido apresentados novos estudos


sobre as crianças, que partem do paradigma de que a infância é uma
construção social. Essa formulação

fornece um quadro interpretativo para contextualizar os primeiros


anos de vida humana. Infância, como distinta da imaturidade biológica,
não é nem natural nem uma característica universal dos grupos
humanos, mas aparece como um componente específico estrutural e
cultural de muitas sociedades. (JAMES; PROUT, 1997, p.8)

O caráter estrutural exige a idéia de permanência da infância, ou


seja, a infância não se caracteriza como tempo de passagem, mas como
uma categoria permanente na estrutura social. De acordo com Qvortrup,

um conceito estrutural [...] visa caracterizar a infância como parte de


uma dada arquitetura social, e por isso é também útil para comparar a infância
com outros grupos em uma dada sociedade, bem como com a infância em
diferentes nações e períodos históricos (2002, p.48).

14 Os autores fazem um levantamento histórico-cultural de diferentes concepções de


infância (ou imagens sociais da infância, cf. SARMENTO, 2007), a partir da Modernidade,
classificando-as como pré-sociológicas em contraposição às concepções sociológicas,
delineadas a partir dos anos de 1990 do século XX.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 74


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
A infância como categoria estrutural, ao mesmo tempo em
que configura um espaço no qual as crianças vivem suas vidas, vai se
modificando assim como semodificam asoutras categorias, submetidas
às mesmas variáveis históricas, políticas, econômicas, por exemplo.
Nesse sentido, a infância é simultaneamente um lugar de mudança e
“uma forma estrutural permanente na qual todas as crianças vivem
sua infância pessoal. [...] Quando a criança cresce e torna-se adulto,
sua infância termina, mas a infância como forma não vai embora e
estará lá para receber novas gerações de crianças” (QVORTRUP, 2009,
p.26), o que, segundo o sociólogo, torna possível combinar a utilização
de infância, no singular, e de infâncias, no plural.

Essa perspectiva permite (1) considerar as crianças como seres


históricos, sociais, que estabelecem relações com outras crianças e
com adultos, como pessoas participantes da sociedade, ainda que
de forma limitada, que são influenciadas por eventos políticos,
econômicos, tecnológicos, dentre outros, e cujas qualidades –
recursos, criatividade, inventividade – são utilizados nessas relações
sociais; (2) reconheceras crianças como pessoas ativas na “construção
e determinação de suas próprias vidas sociais, das vidas daqueles que
as cercam e das sociedades nas quais elas vivem” (JAMES; PROUT,
1997, p.8). Em outras palavras, significa compreender as crianças
como coconstrutoras da sociedade (QVORTRUP, 1993; DAHLBERG;
MOSS, PENCE, 2003; CHRISTENSEN; PROUT, 2005), como atores
sociais. Diz Sarmento (2004) que “as crianças, todas as crianças,
transportam o peso da sociedade que os adultos lhes legam, mas
fazendo-o com a leveza da renovação e o sentido de que tudo é de
novo possível.” (p.10)

Parece oportuno esclarecer que o conceito de criança como


ator social é diferente da concepção de criança ativa. Esta última
tem como base a compreensão de que o pensamento infantil se
caracteriza por atividade particularista, ou seja, “a criança dedica
se à réplica repetitiva e muito concreta de estados objectais,
encontrando-se dominada por estruturas objectivas e habitando
um universo material” (JENKS, 2002, p.208). Isso significa que age
de maneira direta sobre o que está próximo, sem distanciamento ou

75 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
reflexão, uma vez que a ação é racionalmente regulada pela lógica
do desenvolvimento. Ou, nas palavras de Corsaro (2003/2007), “o
foco [está] no desenvolvimento individual humano e de como a
criança internaliza as competências adultas e o conhecimento”
(p.1). Concebida assim, a ação da criança é individual, sendo
desconsiderados tanto o fato de que ela faz parte de um meio
cultural quanto “as mudanças no seu grau ou intensidade de
membro e participação ao longo do tempo” (CORSARO, 2003/2007,
p.1, grifo no original). Dessa forma, a imagem da criança ativa está
próxima da apropriação do conhecimento cognitivo, se distancia
dos mundos sociais, e não pode ser confundida com o conceito de
ator social, cujas ações geram/repercutem contextos sociais.

O reconhecimento das crianças como atores sociais, que,


por meio das relações estabelecidas com adultos e com outras
crianças, constroem sua participação social enquadra o contexto
teórico que sustenta o conceito de agência. Mayall, em 2000,
diz que “é claro que, mesmo sem pesquisa formal, as crianças
são atores sociais: elas fazem parte das relações familiares; elas
expressam seus desejos, demonstram fortes ligações, ciúmes
e prazer, buscam justiça” (apud ALANEN, 2009, pp. 40-41), ou
seja, estabelecem relações sociais. Agência, entretanto, define a
amplitude dessas relações.

O que é agência? Os sociólogos Emirbayer e Mishe, em


artigo publicado em 1998, definem como

compromisso construído temporalmente por atores de diferentes


contextos estruturais – os quais, através da interação de hábito,
imaginação e julgamento, reproduzem e transformam as
estruturas em respostas interativas aos problemas postos por
situações históricas em mudança (p.970, grifo no original)

Nesse sentido, destacam a repetição, a projetividade e


a avaliação prática como elementos constitutivos da agência
humana, que correspondem, respectivamente, a ações orientadas
pelo passado, pelo futuro e pelo presente.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 76


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Sewell Jr. (1992) afirma que “ser agente significa ser capaz
de exercer algum grau de controle sobre as relações sociais nas
quais se está envolvido, o que, por sua vez, implica na habilidade
de transformar essas relações sociais de alguma forma” (p.20). Diz
ainda que a capacidade para a agência é inerente aos seres humanos,
mesmo que assuma diferentes formas e seja cultural e historicamente
determinada, o que indica que “todos os membros da sociedade
exercitam, em alguma medida, a agência na condução de suas vidas
cotidianas” (1992, p.20).

O conceito é importante para a compreensão da dinâmica


das relações sociais como um todo, incluindo aquelas estabelecidas
por e entre as crianças. Corsaro (2003/2007) relata que a aplicação
da teoria de Emirbayer e Mishe em casos concretos ajuda a romper
com as abordagens individualísticas: “a natureza relacional e coletiva
da agência, tende a suplantar o foco no actor individual” (p.3). Dessa
forma, os aspectos cognitivos perdem a prioridade, ou seja, a agência
proporciona um olhar sobre as “crianças como pessoas dignas de
estudo, por direito próprio e não apenas como recipientes de ensino
de adultos” (JAMES, 2009, p.34).

James localiza a origem desses estudos nas pesquisas realizadas


nos anos de 1970, quando psicólogos começaram a reconhecer
o trabalho de Vygotsky, o qual aponta as interações sociais entre
as crianças e entre crianças e adultos como elemento crucial do
desenvolvimento, além de reconhecer o papel da cultura na qual
as crianças estão inseridas desde o nascimento. Na mesma época,
sociólogos começaram a abandonar os preceitos durkheimianos ou
parsonianos de socialização, que a entendiam como transmissão de
valores, crenças e normas da sociedade à criança, considerando que
esta as absorveria passivamente. Dessa forma, começaram a apontar
o papel ativo das crianças nesse processo.

O trabalho de Hardman (1973/2001) é citado por James


como contribuição para a elaboração do novo paradigma, a partir
da defesa de que as crianças poderiam “desenvolver uma auto
regulação, um mundo autônomo, que não reflete, necessariamente,

77 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
o desenvolvimento precoce da cultura adulta” (p.87), assim como o
de Giddens (1979), que afirma que “cada ação que contribui para a
reprodução de uma estrutura é também uma ação de produção,
assim como é possível iniciar mudanças para alterar a estrutura, ao
mesmo tempo em que a reproduzimos” (p.69). Estrutura e agência são
conceitos complementares nos estudos da infância, pois

Conceber a infância como uma unidade na estrutura social torna


possível distinguir o desenvolvimento individual das crianças a partir
da história cultural e histórica da infância. A infância como uma forma
estrutural funciona como um quadro em que as crianças levam suas
vidas.

Agência constitui uma competência individual das crianças, e não um


sinal de sua subordinação em relação aos adultos. Como agentes, as
crianças dão sua própria contribuição para a reprodução social e cultural.
(QVORTRUP, CORSARO, HONIG, 2009, p.7)

Mayall, em 2002, distingue o ator social - alguém que age


socialmente – do agente – alguém que age socialmente e, ao fazê-lo,
contribui para ampliar os processos de reprodução social e cultural.
RetomandoSewell Jr.(1992),osagentestransformam asrelaçõessociais
de alguma forma, por meio da interação entre hábito, imaginação
e julgamento (EMIRBAYER; MISHE, 1998). Nesse sentido, estudar as
crianças como agentes é avançar em relação ao reconhecimento de sua
atuação como protagonistas de suas próprias vidas, compreendendo
as como participantes ativas das vidas das pessoas que as rodeiam,
nas sociedades nas quais vivem, que constroem relacionamentos e
culturas inspiradas nos mundos sociais adultos.

Um dos pioneiros nos estudos sobre agência infantil é William


Corsaro, que vem pesquisando crianças pequenas desde os anos de
1970, tendo realizado investigações nos Estados Unidos e na Itália.
A partir dessas pesquisas, realizadas em creches e pré-escolas, de
diferentes grupos sociais, envolvendo meninos e meninas, desenvolveu
dois conceitos importantes para a área: reprodução interpretativa e
culturas (de pares) infantis.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 78


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Sobre o primeiro conceito, Corsaro esclarece que interpretativo
tem o significado de aspectos criativos e inovadores desenvolvidos
pelas crianças em sua participação social; “o termo reprodução toma
a idéia de que as crianças não estão simplesmente internalizando
a sociedade e a cultura, mas que estão ativamente contribuindo
para produção e mudança cultural” (1997, p.18, grifo no original).
Acrescenta que “o termo também implica que as crianças são, pela sua
própria participação na sociedade, condicionadas pela estrutura social
existente e pela reprodução da sociedade” (1997, p.18).

As culturas de pares infantis são definidas como “um arranjo


estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que
as crianças produzem e compartilham em interação com os pares”
(CORSARO; EDER, 1990; CORSARO, 1997, p.95). Corsaro considera
que “características importantes das culturas de pares surgem
e se desenvolvem como resultado das tentativas das crianças de
atribuir algum sentido, e até certo ponto resistir, ao mundo adulto”
(1997, p.115). Segundo ele, da interpretação dos sistemas culturais
adultos, as crianças retiram elementos para a interação com outras
crianças, ao mesmo tempo em que os aspectos da cultura de pares
afetam a maneira como interagem com os adultos. Dito de outra
maneira, a apropriação provoca a reinvenção da cultura, inter
relacionando os mundos sociais/culturais infantis e adultos. Isso é
possível a partir do coletivo, da atividade em comum, na qual as
crianças negociam, partilham e criam culturas com outras crianças
e com os adultos.

Corsaro (2003/2007, 2009) destaca ainda a importância da


brincadeira para que se reconheça a agência coletiva das crianças.
Aponta que o jogo de fantasia se constitui na própria interação social,
num contexto implícito e improvisado que depende de recursos
complexos, como, por exemplo, o uso de soluções paralinguísticas
(voz, tom, entonação), manipulação orquestrada de objetos, descrição
verbal das ações, repetição do discurso (2003/2007, p.7). Afirma
também que as dramatizações de papéis, baseadas em modelos
adultos, por um lado “se referem primariamente a status, poder e
controle”, numa projeção do futuro, e, por outro, “permitem que a

79 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
criança faça experiências sobre como diferentes tipos de pessoas da
sociedade agem e se relacionam entre si” (2009, p.34).

A contribuição dos estudos sobre a agência das crianças, além de


reconhecê-las como sujeitos e compreender a produção das culturas
infantis, permite a captura de concepções, valores e rotinas dos adultos
em relação à infância, ou seja, “a criança não é imaginada senão em
relação a uma concepção de adulto, mas também é impossível criar uma
noção precisa da adultez e da sociedade adulta sem primeiro tomar em
consideração a criança.” (JENKS, 2002, p.187) Está presente uma relação
de reciprocidade, de interdependência entre as gerações.

Ferreira(2002)realizouumapesquisacomcriançasdeumjardimde
infância português, que acompanhou por nove meses, na qual apresenta
normaseregrassociaisconstruídas,apartirdosmundossociaisadultos,nas
relações queas crianças dequatro anos estabelecem no grupo.No estudo,
destaca que não há uma forma única e abstrata de agência, mas que as
crianças assumem diversos papéis sociais, que as revelam como “actores
sociais multifacetados, quer na ocupação, manutenção ou subversão de
determinadas posições sociais, quer na mobilização de diferentes modos
de acção quando lidam com os constrangimentos com que se deparam
ou exploram as suas possibilidades” (p.387, grifo no original). Do ponto
de vista das regularidades da experiência social das crianças no cotidiano
das culturas de pares, destaca a reprodução interpretativa do mundo
adulto, os processos de negociação, as estratégias de afirmação de poder,
dentre outras. O estudo evidencia a capacidade de produção simbólica e
a constituição das representações e crenças em sistemas organizados, ou
seja, em culturas (SARMENTO, 1997).

As crianças pequenas como produtoras de culturas

Os estudos sociais da infância não estão limitados à pequena


infância, tampouco às instituições de educação infantil, creches e

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 80


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
pré-escolas. Entretanto, são essas crianças, nesses espaços, que
têm contribuído para a elaboração de significativos conceitos nesse
campo, como se depreende das pesquisas de Corsaro e de Ferreira.
É possível considerar que isso aconteça porque a educação infantil
é o primeiro espaço coletivo frequentado por crianças, desde muito
pequenas, ou em razão da estrutura das instituições de educação
infantil que, mais flexível do que a escola de ensino fundamental,
permite mais tempo para as brincadeiras e para as relações
interpessoais entre as crianças.

Recentes pesquisas nacionais15 (ALMEIDA, 2009; BORBA,


2005; PRADO, 1998; dentre outras), sobre interações e brincadeiras
das crianças pequenas nas creches e escolas de educação infantil,
mais particularmente no cotidiano dos grupos, por meio de
suas falas e ações, têm demonstrado que as crianças encontram
maneiras de compartilhar seus saberes sobre o mundo e sobre
as relações sociais, mesmo em situações nas quais predomina
a mais absoluta descrença de que elas possam ser mais do que
recipientes passivos. A pesquisa realizada por Almeida (2009), em
escola de educação infantil da rede pública do município de São
Paulo, evidencia que as crianças utilizam o tempo possível para
agirem como sujeitos nas atividades propostas pela professora,
às vezes, subvertendo a própria proposição, ao mesmo tempo em
que respondem conforme o esperado. Contribui, assim, para tornar
visível a agência das crianças nas relações sociais estabelecidas
entre as crianças durante as atividades, ao longo do período em
que permanecem na escola, apresentando o que pensam e fazem
para além do que lhes é proposto oficialmente. A esse propósito,
Qvortrup (1993) comenta que crianças não são máquinas triviais16,
que sempre transformam inputs em outputs do mesmo modo,
“mesmo que os professores façam o seu melhor para transformá

15 Uma breve busca no Banco de Teses da CAPES, entre os anos de 2005 e 2009, a partir
das palavras “interações e brincadeiras educação infantil”, revela 55 trabalhos, dentre
os quais 11 teses. Ainda que se excluam uma sobre adolescentes e outra sobre pesquisa
realizada no ensino fundamental, o número parece significativo.

16 Expressão criada por Niklas Luhmann, sociólogo alemão, em 1991.

81 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
las nessas máquinas” (p.15). Ao contrário, são criativas, inventivas,
propositivas.

Parece, entretanto, haver certa desconfiança sobre o conceito


de culturas infantis. Talvez isso aconteça porque está relacionado aos
estudos sociológicos da infância, campo recentemente construído,
que pretende compreender a sociedade a partir do fenômeno
social da infância (SARMENTO, 2008). O campo tem consolidado
a produção e a publicação de pesquisas, principalmente em língua
inglesa e francesa, além das realizadas em Portugal e no Brasil,
onde, mesmo timidamente, constata-se a presença de grupos de
pesquisa17 na área e publicações (CASTRO, 2001; FARIA; DEMARTINI;
PRADO, 2002; VASCONCELLOS; SARMENTO, 2007; QUINTEIRO;
CARVALHO, 2007; SARMENTO; GOUVEA, 2008; MÜLLER; CARVALHO,
2009) vêm somar-se às internacionais.

É possível, ainda, que essa desconfiança seja decorrente da


concepção de que cultura é coisa de adultos, assim como política
ou economia, argumento passível de ser contestado a partir
da constatação de que “todos os eventos, grandes e pequenos,
terão relação com as crianças, e, em consequência, elas terão
reivindicações a serem consideradas nas análises e debates acerca
de qualquer questão social maior” (QVORTRUP, 1993, p.11).

Uma terceira alternativa para essa desconfiança poderia


advir do provável efeito de décadas de formação de profissionais
da educação pautadas pela normalização e normatização do
desenvolvimento. Sobre esse aspecto, Dahlberg (2009), em
artigo sobre políticas para a educação infantil, discute, a partir
de pesquisas e publicações sobre a educação de crianças
pequenas, diferentes interpretações sobre agência, brincadeira e
aprendizagem e educação infantil. Parece interessante destacar
sua afirmação que

17 Em março de 2010, o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq acusava 25 grupos de


pesquisa a partir da palavra-chave sociologia da infância.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 82


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
recentes pesquisas etnográficas com base na sociologia da infância
desafiam a concepção de crianças como recipientes passivos de
pré-concebidos e inquestionáveis conhecimentos transmitidos por
professores que detém o privilégio da autoridade e uma privilegiada
relação com o significado do conhecimento. (p.230)

A referência parece indicar que, uma vez superada a


normalização e normatização do desenvolvimento das crianças, e
consideradas suas culturas, é possível reconhecer práticas educativas
que não se pautam pelo devir, como, por exemplo, a experiência
pedagógica desenvolvida no norte da Itália, que parte do conceito de
criança “forte, poderosa, competente e, acima de tudo, conectada
aos adultos e outras crianças” (MALAGUZZI, 1993, p.10, apud MOSS;
PETRIE, 2002, p.101) e que tem desenvolvido condições educativas
que incorporam a participação das crianças e dos adultos. E, mais do
que isso, tem tornado públicas as situações de agência e de produção
de conhecimento e os resultados obtidos ao longo do trabalho, o que
permite vislumbrar uma pedagogia de relacionamentos, na qual “a
criança não é vista como sujeito autônomo e isolado, mas inserida em
redes de relações que envolvem crianças e adultos” (MOSS; PETRIE,
2002, p.143).

Damesmamaneira,constata-seodesenvolvimentodeexperiências
brasileiras18, sistematizadas, ainda pouco divulgadas, que reconhecem a
criança“emsuaagência,capaz detrazerinformações,valores,sentimentos
para compartilhá-los com as outras crianças e com os adultos, por meio
de relações sociais interdependentes” (NASCIMENTO, 2010, p.167). A
possível e desejável ampliação de publicações dessa natureza contribuiria
para a disseminação da concepção positiva da infância.

A experiência pedagógica do norte da Itália, as pesquisas


internacionais e nacionais com foco nos modos de compartilhamento
de saberes sobre o mundo e sobre as relações sociais das crianças

18 Ver MELLO, A. M. et al. O dia a dia das creches e pré-escolas: crônicas brasileiras. Porto
Alegre, Artmed, 2010, que traz um pouco do trabalho realizado nas creches da USP.

83 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
(CORSARO, 1990, 1997, 2002, 2005, 2009; FERREIRA, 2002, 2008;
ALMEIDA, 2009; BARBOSA, 2007; MÜLLER, 2006; DELGADO, 2006,
2007; COUTINHO, 2005, 2006; BORBA, 2005, 2009, entre outras), a
preocupação em ouvir as crianças pequenas sobre questões de seus
cotidianos (CRUZ, 2006, 2008; PAULA, 2005; TEIXEIRA, 2008) têm
referendado o conceito de agência e tornado mais visíveis as culturas
infantis.

O reconhecimento das crianças como produtoras de culturas


nas creches e escolas de educação infantil, nas escolas, nas famílias,
em qualquer ambiente em que aconteça uma rede de relações sociais
tende a fortalecer sua participação social, aumentando sua visibilidade
como sujeitos de direitos, de conhecimentos, de preocupações e de
desejos. Conhecer a infância significa ver e ouvir as crianças, repensar
os espaços educacionais a elas destinados, prever espaços e tempos
para que as crianças criem e recriem os mundos culturais nos quais
estão inseridas. A renovação do estatuto da criança e a criação de
novas práticas sociais e pedagógicas, voltadas agora para as crianças
competentes e pautadas por suas diferentes linguagens, serão bem
vindas. ●

Referências

ALMEIDA, R. P. W. Se essa escola fosse minha... A organização da educação infantil


e o grupo de crianças em contexto escolar. 2009. 129p. Dissertação (mestrado).
Pontificie Universidade Católica PUC, São Paulo.
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desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
II – Diversidade cultural

89 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Realidade e Utopia:
diversidade, diferença e educação

Neusa Maria Mendes de Gusmão

O presente artigo inspira-se em dois pontos


defendidos por Carlos Rodrigues Brandão (1984) quando
afirma que educação existe em todo e qualquer tipo de
comunidade humana onde não haja uma rigorosa divisão
social de trabalho entre sujeitos desiguais, em que a
escola e o ensino formal podem até não existir, mas exista
aprendizagem inerente à pratica social e da vida (ex.
indígenas). O autor afirma também que a educação existe
em sociedades hierarquicamente divididas em classes, ou
seja, aquelas que separam os sujeitos e acabam por colocá
los em oposição. Nessa dupla condição, a educação torna
se um desafio às práticas educativas e, em particular, nas
chamadas sociedades modernas, sociedades de classe. Com
essa referência em tela, busca-se aqui demonstrar e discutir
a realidade e a utopia de sociedades como a brasileira, nas
quais o sentido principal é o de separar tudo e todos num
contexto em que o saber pertence a poucos e a muitos
é negado. Diante desse fato, o desafio está na própria

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 90


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
construção de sociedades de aprendizagem, sociedades
que constituem processos integrativos da diversidade de
saberes, da diversidade de Ser e se fazer humano e parte
de realidades múltiplas, diversas, porém, de iguais direitos
de participação e vida.

Nesse sentido, as Sociedades de Aprendizagens buscam


compreender as diversidades sociais e reconhecê-las como
parte da vida social, na tentativa de superação dos modelos
educativos de características homogeneizantes que negam a
diversidade humana e engendram processos de exclusão de
diferentes segmentos sociais, tal como ocorre em sociedades
ditas modernas e de classe. Assim, olhar para a sociedade e seu
tempo, perguntando o que é diversidade aqui e agora, exige
um mergulho profundo no contexto das relações vividas entre
grupos portadores de diferenças. O ponto inicial é, portanto,
a realidade em que vivemos, ou seja, a sociedade brasileira,
hoje.

91 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Educação e escola: o caso brasileiro

Em razão de contextos de marcada pluralidade cultural que


caracteriza a realidade brasileira, o desafio que se propõe aos vários
campos do conhecimento e do saber constituídos diz respeito ao fato
de tal realidade se apresentar como hegemônica em termos da ordem
social e política e, ao fazer, de modo particular, no sistema educacional
e suas agências: as escolas.

A escola é instituição por excelência do sistema educacional


e tem por objetivo ser um espaço de construção, transmissão e
reconstrução do conhecimento elaborado pela sociedade. Contudo,
como instituição, a escola entende tal conhecimento como um corpo
de saberes instituído, legitimado por campos disciplinares diversos
que operam no interior da escola. Saberes esses, que se fazem como
conhecimento geral e universal, comum a todos os sujeitos sociais.
Nesse sentido, trata-se de uma instituição que não reconhece outros
saberes produzidos no cotidiano de grupos sociais diversos. Seu
espaço é marcado por conflitos, resistências e reações que expressam
as relações entre os homens em acordo com as posições que ocupam
no tecido social. Não há, portanto, como falar de educação sem levar
em conta o campo de tensão social e político que envolve a vida em
sociedade e, em particular, a forma assumida por essas tensões diante
da diversidade que caracteriza os diferentes grupos que compõem a
sociedade no caso brasileiro.

Poressarazão,osprocessosdecomplementaridade,contradição
e conflito inerentes ao espaço escolar acabam por originar movimentos
sociais de pressão por direitos incidentes sobre diversos grupos sociais
e instituições. É nesse contexto que, a título de exemplo, algumas
particularidades da luta negra, da luta indígena, da luta dos sem-terra e
outros grupos poreducação devem serconsiderados.Dizerque a escola
é um dos espaços sociais incumbidos da reprodução de ideologias não
exclui a sua existência enquanto espaço de resistência e reelaboração
de conhecimentos e valores instituídos socialmente. Evidencia-se

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 92


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
assim, que ela, escola, existe na dupla dimensão da educação: a dos
saberes tido como universais e a dos saberes produzido por diferentes
processos educativos gerados na vida cotidiana e tomados como
formas mais abrangentes de aprendizagens. Decorre desse processo
a produção de um corpo de saberes que, pautado por experiências
próprias e singulares de diferentes grupos sociais (BRANDÃO, 1984),
permite a tomada de consciência que ordena formas de organização
e de luta social por direitos e participação, entre os quais, o próprio
direito à educação escolarizada em seus diferentes níveis.

Dessas experiências e tomadas de consciência, pode-se dizer,


resultam processos que fomentam pressões políticas permitindo
o reordenamento das forças sociais no campo de tensão em que
diferentes grupos atuam e que possibilitam obter maior visibilidade
aos seus problemas, além de permitirem o fortalecimento da própria
luta. Um exemplo dessas lutas e embates é a conquista de amparos
de ordem legal que se apresentam como parte da legislação maior,
como é o caso da LDB – Leis de Diretrizes de Base – e os chamados
PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais19 em suas metas para com a
questão da diversidade cultural no espaço da educação escolarizada.
A diretriz legal impõe uma concepção de cultura e torna necessárias
a formação e a prática do profissional da educação, com vistas a sua
atuação no âmbito da diversidade social. Os envolvidos no campo
educacional tornam-se, então, sujeitos responsáveis pela superação
da homogeneização existente nesses espaços, obrigando-se a refletir
sobre suas práticas para além dos muros da escola e a construir
outro olhar na busca de uma compreensão alargada dos processos
educativos e dos problemas inerentes ao contexto de marcada
pluralidade cultural, como é o caso brasileiro.

19 LDB – Leis de Diretrizes de Base – faz parte da Constituição Federal Brasileira de l988,
através da Lei nº. 9394 e estabelece as diretrizes e as bases da Educação Nacional, tendo
sido promulgada em 20/12/96. Os PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais - consolidados
na lei em 15/10/97 definem o que deve constar no currículo escolar e, assim, orientar o
trabalho do professor-educador. Segundo Betty Mindlin, os PCNs impulsionam o sistema
educacional brasileiro entre outras coisas porque trazem consigo a questão da pluralidade
cultural como tema transversal a ser incorporado por todas as disciplinas do ensino.
MINDLIN, Betty. A verdadeira descoberta. In: Pátio, ano 2, nº 6. Agos/out. - l998. p. 12 a 16

93 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Contudo, a pergunta é: em sociedades como a nossa é
possível existir uma escola voltada para a diversidade?

A reforma do ensino que implantou a LDB colocou-nos,


como educadores, diante do desafio de ter que formar um
profissional da educação familiarizado cada vez mais com a
diversidade dos modos de construir e viver a vida numa sociedade
que não é apenas plural, mas é também hierarquizada, marcada
por contradições e conflitos. Contudo, segundo Valente (2003),
o texto da LDB é expressão das formas de agir e pensar da
sociedade brasileira; nessa medida, em muitas de suas passagens
“resvala numa armadilha ou deslize semântico que despolitiza”
conceitos próprios do campo antropológico, posto que se
encontrem desligados “da sua inerente problemática teórica” (p.
27). Ao fazê-lo, negligencia-se ou minimiza-se o fato de que as
realidades sociais são atravessadas por mecanismos de poder e de
dominação. Por sua vez, os PCNs, mesmo admitindo as relações
de desigualdades existentes em seu texto,

limita-se a considerar que as produções culturais, constituídas


e marcadas por essas relações de poder, envolvem o processo
de reformulação e resistência. Desse modo, são suavizados os
processos de dominação, de repressão, de homogeneização, sem
os quais a reação não poderia ser compreendida (VALENTE, 2003,
p. 29).

Como alerta a autora, os fatos podem conduzir as propostas


educativas a um paradoxo: o de reconhecer a diversidade, ao
mesmo tempo em que sustenta a intolerância e o acirramento
de atitudes discricionárias que justificam um tratamento desigual
àqueles que são diferentes.

Para além desse risco, o momento atual é um momento


crucial para a própria educação, já que, as políticas educativas
que reconhecem o caráter plural da sociedade brasileira por meio
da nova legislação em vigor vêm alterar significativamente as
práticas educacionais em médio prazo, reordenando uma mudança

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 94


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
de orientação na formação do futuro educador. Dos princípios
mais gerais da legislação maior – LDB e PCNs – às leis relativas
a segmentos específicos, sua cultura e história, tais como a Lei
10 639 e Lei 11 69520, caminha-se por caminhos cruzados entre
os impasses não resolvidos ou mal-compreendidos da própria
legislação. Por sua vez, as próprias circunstâncias do contexto
social e ideológico talvez possam conduzir o discurso técnico a ter
primazia na formação do educador em razão do imaginário social
que prevalece numa sociedade de base e realidade desiguais.

Nesse contexto, a realidade e a utopia conduzem o debate


da diversidade social humana de modo a tornar fundamental a
compreensão da diferença como propriedade que nos constitui
como sujeitos e que porta um sentido simbólico e histórico,
localizado e definido. Um exemplo: índios, negros, alunos de
periferia, do campo e de outros espaços, muitas vezes, são
apontados como maioria entre aqueles que vivenciam o fracasso
escolar. Ainda que estudos diversos apontem múltiplas razões
para tal, outros tantos apontam para os próprios sujeitos ou
para as condições sociais que possuem como responsáveis pelo
fato. Nesses casos, a direção que a explicação do fracasso escolar
assume não permite entender porque, apesar das repetências,
tais sujeitos insistem em retornar à escola, desmentindo em
parte, que a questão de falta interesse, inadaptação, maus
resultados seriam suficientes para afastá-los da escola. Para
essa população, a escola é ainda um valor e pensá-la exige levar
em conta dois aspectos: um que é o aluno e o professor como
sujeitos socioculturais, outro que é a própria escola em sua dupla
dimensão – espaço de regras, normas, obrigações, deveres, mas
também, de vida, relacionamentos, descobertas, acontecimentos
e resistências.

20 A Lei 10639/2003 introduz o ensino de História e Cultura Africana e Afro Brasileira


no Ensino Fundamental e Médio. Esta Lei foi modificada pela Lei 11.645/2008 e agrega
no mesmo pacote o ensino da história indígena e das culturas indígenas no Brasil. VER
conteúdo da lei em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/2003/L10.639.htm#art1

95 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Diferença e igualdade: as regras do jogo

A diferença e a igualdade, pensadas como construção que


resulta das relações entre os homens, não são categorias absolutas,
mas relativas no tempo e no espaço. Assim, falar de diferença exige,
então, que se pergunte: quem é diferente? Quando? Como? Por quê?

Há que se ter em mente que para compreender os homens,


mais que olhar para eles, deve-se olhar para as relações entre eles,
pois é nelas se pode compreender o homem por inteiro e apreender
aquilo que pode conceber sujeitos “iguais” e “diferentes”. Portanto,
é preciso que se considere a natureza do contato entre sociedades,
grupos ou segmentos de grupos que portam diferenças, para então,
contextualizar o que seja diversidade. Olhar cuidadosamente as
relações entre os homens permite compreender o sentido histórico
que constitui as diferenças, bem como, os processos de contínua
significação simbólica que são atribuídos aos diferentes sujeitos
ao longo do tempo, ou seja, a sua cultura, compreendida na sua
dinamicidade e transformação.

No entanto, a escola considera a cultura apenas como conjunto


de traços, elementos culturais fixos, e que não atende aos requisitos
da vida social, posto que não compreenda a cultura como processo
dinâmico, engendrado por relações as mais diversas e, por isso
mesmo, contraditória, complementar, complexa. A cultura envolve as
condições objetivas da vida em movimento, mas também, envolve os
sentimentos, emoções e representações sobre o que é vivido. Assim,
o que a cultura diz e o que está em jogo não são as diferenças, mas a
alteridade que constitui nosso mundo. Ou seja, as relações que nos
constituem enquanto um nós coletivo, parte da realidade de sujeitos
em relação, no interior de um contexto comum que partilham e, no
qual se complementam e se confrontam.

Por essa razão, no interior da prática pedagógica, nosso olhar e


nosso fazer, não são neutros, nem mesmo quando nos apegamos aos

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 96


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
valores mais humanitários, que são responsáveis pela nossa formação
e também pela nossa prática. Se o humanismo é um valor, é também
ideologia que mascara o nosso próprio fazer. Daí ser lamentável que
o professor imagine que ao negro se deva ensinar a dançar, tocar
tambor porque seria “próprio” de sua cultura; lamentável é a criança
negra querer partilhar com seu grupo uma dança portuguesa e o
professor negar porque acredita que não há portugueses negros, ou
ainda, o professor que diante do pesquisador diz que em sua classe
não há negros, apesar da evidente realidade que o contradiz. Esse
professor imagina, assim, que vendo a todos como iguais, não seja,
ele mesmo, racista. O fato exige uma postura de alerta constante e
o questionamento permanentemente de nossa prática e de nossas
atitudes no tratamento que damos à realidade Nesse sentido, cabe
pensar a educação e a escola como espaço de tensão e de conflito,
de cultura e de alteridade. Um espaço no qual é preciso resgatar
as “experiências de escolaridade” de e para professores e alunos,
resgatando as histórias de vida que trazem consigo. É preciso
compreender o que é vivido e como é vivido, uma vez que que disso
resultam efeitos nas atitudes e disposições (ENGUITA, 1999, p.176)
que afetam tudo e todos, do processo educativo à prática pedagógica.

Portanto, a realidade, o contexto, não é dada apenas quando se


afirma que o aluno é da favela, é criança de rua, pobre, é caiçara etc., mas
a partir do significado atribuído a isso tudo, o que tais fatos querem dizer,
em razão dese estar numa sociedade em que as relações entre os homens
são relações de hierarquia e de poder. Cabe perguntar quais os mitos, pré
noções, preconceitos, valores que percorrem as sociedades diante de tais
sujeitos, para entender por quais caminhos os próprios sujeitos transitam
e como esses mitos, pré-noções, preconceitos, valores, neles se encarnam
enquanto marcas que geram discriminação, preconceitos e negação.
Torna-se necessário ver a realidade social, como realidade construída
entre sujeitos sociais concretos e em termos de relações de poder e de
alteridade, no aqui-e-agora de suas vidas, mas compreendendo que
esse tempo é tributário de um tempo de antes, de um passado feito por
homens. Nesse sentido, exemplar é a questão negra no Brasil, ela mesma
emblemática com relação ao passado de escravidão para se ter em conta
o presente e o futuro das relações entre negros e brancos.

97 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Como diz Munanga (2005), a luta desses segmentos e de
outros na sociedade brasileira exige dos próprios educadores e de
outros especialistas “com conhecimento da realidade das sociedades
indígenas, das relações de gênero, dos homossexuais, dos portadores
de deficiência e outros”, a liberdade de incrementar esforços “contra os
diversos tipos de preconceitos e de comportamentos discriminatórios
que prejudicam a construção de uma sociedade plural, democrática e
igualitária”. (p.20)

Qual a sociedade que queremos? Esse desafio enseja


movimentos de luta e de conquistas por parte de diferentes segmentos
sociais, entre os quais está o negro brasileiro. Temos então, a conquista
de declarações, leis, como a Lei 10 639/2003, modificada pela Lei
11645/2008, a lei de cotas, diferentes ações afirmativas e outras
que resultam dos impasses vividos por grupos diversos tidos como
“outros”, como “diferentes”. Trata-se de impasses da ordem social
moderna, injusta e desigual que geram lutas e conquistas, muitas das
quais são expressas na forma de leis. São elas conquistas, porém, não
estão isentas de contradições, limites e barreiras na própria aplicação
daquilo que propõe para o conjunto da sociedade.

Aqui a questão da Lei 10639 é exemplar21. Trata-se de uma lei


que introduz História e Cultura Africana e Afro-brasileira no ensino
fundamental e médio e que, modificada pela Lei 11.645/2008, agrega
no mesmo pacote a história e a cultura indígena. A grande questão
colocada por partesignificativa de professores é que a lei consiste numa
reparação e, como tal, uma lei de negros e para negros, argumento que
se sustenta no entendimento que se tem do espírito das chamadas
Ações Afirmafivas22. Na afirmação desse aspecto, muitos se recusam

21 As ideias aqui desenvolvidas apoiam-se em palestra proferida pelo professor Dagoberto


José Fonseca em disciplina ministrada por mim no curso de Pedagogia da FE/Unicamp.
Possíveis incorreções são de minha inteira responsabilidade.

22 Ações Afirmativas são medidas especiais e temporárias que pretendem remediar um


passado discriminatório e acelerar o processo de igualdade, como diz Flávia Piovesan (In,
FONSECA, 2009) ou tidas como políticas de reparação.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 98


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
a trabalhar com a Lei dentro da sala de aula, com a alegação de que
o alunado não é somente negro e mestiço ou de que na sala de aula,
são todos iguais. O que não é compreendido e que está subjacente a
esse pensamento e a outros23 na justificativa de não implementação da
Lei 10639? O que não é imediatamente perceptível por professores e
outros sujeitos sociais? O racismo brasileiro.

Nos sistemas de ensino, nas escolas pedagógicas, onde o negro


é inserido? É importante saber isso para compreender como ele está
sendo estudado, interpretado, conhecido pelas crianças no ensino
básico e até no chamado ensino superior. Relembrando Munanga
(2005), o imaginário cativo que nos separa, aos negros e aos brancos,
nos afeta a todos. Não se pode esquecer “que o preconceito é produto
das culturas humanas que, em algumas sociedades, transformou-se
em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns
sobre os outros” (p.18). E esse é o caso da sociedade brasileira. Nesse
sentido, “como educadores, devemos saber que apesar de a lógica da
razão [ex.: os conteúdos disciplinares em sala de aula] ser importante
nos processos formativos e informativos, ela não modifica por si
o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do
negro e do índio na nossa sociedade” (p.19). Daí, a importância de
outros saberes na prática pedagógica, a importância e o significado
de esforços educativos possíveis de serem implementados na prática
educacional de cada dia.

Aqui se torna importante resgatar outros debates em torno


da Lei 10 639, mas que enfrentam resistência nas discussões com e
entre educadores dentro das escolas. A Lei, ainda que tenha sido uma
conquista da luta do segmento negro brasileiro, não está restrita a uma
questão entre negros e brancos, mas, diz respeito a um problema da
sociedade brasileira. Qual sociedade se quer daqui 20, 30, 40, 50 anos?
Não é a sociedade do hoje, é a sociedade do amanhã que está em

23 Ver BAKKE, Rachel R. Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro
brasileiras na aplicação da Lei 10639. Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social, FFLCH/USP, 2011

99 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
jogo. Não é uma sociedade para negros ou para brancos, mas para
todos. É isso que está em pauta na Lei em tela. Mesmo que ela peça
urgência para a questão racial aqui e agora, não se pode confundir a
questão maior, o amanhã da sociedade brasileira. A Lei nesse sentido
é mais que simplesmente ação afirmativa e não se confunde com
a interpretação do sistema de cota24, porque é mais que isso. Sua
perspectiva é a de direitos humanos. Portanto, a questão fundamental
que se coloca através dessa Lei para todos os sujeitos sociais, brancos,
negros, indígenas, homossexuais, homens e mulheres, crianças, idosos
entre outros, é:

Qual a sociedade que queremos para o futuro?

Qual o papel da Educação nesse processo?

O debate maior proposto é aquele que aponta para a existência


de sujeitos e agentes sociais neste país, que precisam descobrir que
é necessário caminhar juntos para formar efetivamente uma nação
coesa e livre. Para tornar possível uma sociedade de aprendizagem,
democrática e plural. Essa é a questão. Portanto, nesse sentido, é
preciso entender que esse é um fator de conquista, de luta permanente
e que há necessidade de se negociar esse espaço social. Nesse sentido,
temos que entender que não há conquista sem concessão, e não há
concessão sem conquista. Portanto a Lei foi e é um passo fundamental,
mas como apontam diversas análises, ela ainda “não vingou” e esta
é a expressão maior de que a conquista está apenas no patamar
inicial – do reconhecimento da diversidade, mas não de seu inteiro
conhecimento. No primeiro passo ela é multicultural resolvida no
aspecto legal e no discurso oficial e militante, mas encontra “barreiras”
para sua efetivação em razão dos valores e crenças que ordenam
estereótipos, discriminam e negam aos negros, sua cidadania. No

24 Cota é entendida como política de reparação que percentualiza as oportunidades


relativas ao segmento negro, no acesso a espaços sociais e culturais dos quais
historicamente foi alijado e, desse modo busca criar igualdade de oportunidades no
interior da sociedade brasileira, profundamente desigual. VER: FONSECA, Dagoberto José.
Políticas Públicas e Ações Afirmativas. São Paulo: Selo Negro, 2009

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 100


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
cenário da sociedade brasileira, não é diferente o contexto de outras
conquistas legais tais como o Art. 68, com as Cotas, etc...

Para Munanga (2005),

Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes


preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas
provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas.
No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos
jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir
os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que
foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados
(p. 17)

Por essa razão, cabe ressaltar que a Lei 10.639 carrega no


seu processo um dado catalisador que é a dinâmica de mexer com a
escola. Isso ela faz. Faz com que todos os agentes da escola repensem
a sua prática. Não só a escola pública, ou só a escola privada, ou
só a escola confessional, aquela que tem um grande contingente
de negros ou não, mas toda escola. Ela obriga a que se comece a
pensar quem é o cidadão brasileiro e qual a sua participação numa
sociedade de inclusão. Pensar o negro é, apenas, a ponta do iceberg
para se pensar em todos os brasileiros que vivem alguma forma de
exclusão como cidadãos deste país. É por em movimento mecanismos
e ações que permitam aos diferentes grupos fugir aos estereótipos e
à homogeneização a que são submetidos, para poder dizer com suas
particularidades e no conjunto das particularidades existentes no
Brasil, de uma sociedade melhor.

A dimensão do reconhecimento do outro, não conta ainda com


muitos especialistas, em África, em História e Cultura Africana, ou
ainda, em História e Cultura Afro-brasileira, como também são poucos
os especialistas em História e Cultura Indígena, como pressupõe a Lei
11 645. Do mesmo modo, são poucos os especialistas para atender
deficiência auditiva, visual, motora, as relações de gênero e de geração,
etc... O desconhecimento alia-se ao campo ideológico constituído por
séculos e exige a desconstrução de mentalidades “envenenadas”

101 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
como diz Munanga. Assim, diante dos fatos, o processo de inclusão
educacional para se fazer pleno, exige tempo e vai demorar
algumas gerações para que se possa atender adequadamente, de
modo equânime, a todos os segmentos presentes na sociedade.
Aqui importa compreender que cultura e ideologia em sociedades
como a nossa andam juntas e, apesar disso não representam
a mesma coisa. O fato exige saber o que são tais ideologias e
como se tramam no espaço da sociedade capitalista. Só assim, se
podem acessar novos caminhos a passos mais largos na questão
da diversidade sociocultural que informa nossa realidade e a luta
maior de todos.

Por enquanto, o que se tem não são os órgãos públicos


encaminhando a conquista da lei, mas professores comprometidos
e bem-intencionados, prefeituras mais liberais, governos estaduais
que possuem um secretário, uma secretária da educação que se
interessa pela questão, ou, nas escolas, diretores, coordenadores
que buscam a implementação da lei e o seu avanço. Apenas isso.
É importante? É. Mas será suficiente?

Toda a escola pode fazer isso? Pode. Há um dispositivo


legal na LDB e nos PCN’s de que cada escola pode constituir o seu
projeto político-pedagógico. Político para algumas administrações,
para outras é só o projeto pedagógico. O que em si, já limita o
próprio avanço. Dentro desse contexto, as unidades escolares
estão se movendo pelo país afora, mas, sempre, de modo bem
particularizado a partir dos compromissos que uma direção, uma
coordenação pedagógica ou do que um secretário da educação
possa ter e que exige uma posição da coordenação regional. No
entanto, isso não dá conta da realidade. Os problemas que se
apresentam na implementação da Lei 10 639 e outras revelam
que tais conquistas legais operam no interior de uma perspectiva
multicultural, mas não intercultural. Vale dizer, da constatação
das diferenças, mas não do diálogo entre elas. Por tudo isso,
uma proposta de educação intercultural é o desafio que medeia
as relações no campo educacional em termos de realidade e de
utopia.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 102


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Educação intercultural: diferença, diversidade e igualdade

A modernidade, o avanço tecnológico e o mundo


informacional presentes numa ordem social globalizada exigem,
cada vez mais, que a educação e sua agência maior, a escola,
conformem-se às imposições desse “novo” tempo. Contudo, o olhar
que mira o futuro esquece o presente e o passado, esquece que à
escola e ao processo educativo cabe a construção da aprendizagem
voltada para uma sociedade plural e democrática que considere os
saberes construídos por esses grupos no passado e no presente. A
conquista desse fato só é possível se reconhecermos nossa herança
e nosso legado, percebendo aí os limites e as potencialidades
do processo educativo, dentro e fora do espaço escolar, para
pensarmos uma sociedade plural e democrática em nosso futuro.

Antes de tudo, é preciso pensar que a educação e a escola


se fazem com pessoas, mas nem todas as pessoas encontram, no
espaço escolar e fora dele, condições plenas de se reconhecerem e
serem reconhecidos como cidadãos e sujeitos de direitos. Torna-se
necessário que ela, escola, e os que a constroem estejam alertas
e tenham em mente que os processos através dos quais uma
sociedade classifica os outros como menos, como inexistentes, a
diversidade social e cultural se torna um problema dos sujeitos,
das instituições, do Estado e da Nação. Tornam-se um problema
da escola, da família e de todos aqueles que respondem, direta ou
indiretamente, pela formação do indivíduo como pessoa e como
ser social. O problema esbarra nas dificuldades de reconhecimento
das especificidades dos chamados “outros” e acaba por revelar
o lugar de onde falam e como falam todos os envolvidos, dentre
esses, a instituição escolar.

O maior desafio da escola, portanto, é o de ser, além de um


espaço de ensino, um lugar de aprendizagem, capaz de investigar
o trabalho educativo e incorporar uma nova proposta de cultura,
diversa, complexa e dinâmica centrada na troca e na comunicação

103 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
entre diferentes, ou seja, uma escola intercultural numa realidade,
também ela, intercultural. E o que é uma realidade intercultural?

É uma realidade centrada no diálogo, na relação entre


saberes e que objetiva construir uma sociedade mais igualitária e
cidadã. Portanto, uma escola e uma sociedade que viabilize resgatar
a complexidade humana de modo a integrar o que é particular e
específico— único, por assim dizer — e o múlfiplo, mais geral e
universal. A busca é a de construir um caminho possível, ao conjugar a
unidade e o pluralismo da realidade social em busca de uma sociedade
verdadeiramente intercultural, conforme sugere Vieira (1999). Para
esse autor, pensar uma sociedade intercultural é pensar uma sociedade
centrada em processos de comunicação, reciprocidade e troca em
todas as dimensões da vida humana e também na aprendizagem
presente em toda e qualquer sociedade, porém manifesta de forma
diversa e em múltiplos estilos e que acarreta processos educativos
diversos dentro e fora da escola.

A educação consistiria aqui, em fecundos processos de


aprendizagem e começaria antes da escola, no curso de vida de
uma criança e adentraria o espaço escolar — da Educação Infantil
à Universidade —, fazendo-se presente no processo educativo. A
presença de tais processos no âmbito escolar exige a compreensão
de seus sentidos e significados, de seus limites e de suas
potencialidades, e desafia a escola que pretenda não ser apenas
lócus de ensino, mas, sobretudo, espaço de aprendizagem, de troca
e de comunicação.

Com isso, uma educação de caráter intercultural propõe àquele


que ensina, mas anseia educar, entender que a matéria prima da prática
pedagógica, provém da interação entre a bagagem cultural do aluno e
a do professor; de suas mentalidades em confronto e em diálogo; de
suas experiências na escola e fora da escola; e da interação destas com
os conteúdos vistos na escola (saber formal/cultura escolar). Assim,
a utopia que envolve a diferença e a diversidade cultural, ainda está
em construção, já que a sociedade brasileira e a realidade que lhe é
própria encontram-se envoltas em muitos embates e contradições.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 104


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Neste sentido, é exemplar25 o caso dos professores indígenas
que não possuem mais tempo para aprender as coisas de sua cultura,
pois, como professores oficiais de sua tribo, de seu grupo, precisam
usar todo o tempo para aprender e dar conta dos conteúdos que
seus superiores esperam que eles desenvolvam em sala de aula.
Trata-se de conteúdos que lhes chegam pela escrita em cartilhas,
textos, livros, documentos. Em nome da escola e das necessidades
do ensino, impossibilitados de viver o cotidiano, rompem com a vida
cultural própria e singular do grupo a que pertencem. Rompem com as
possibilidades da aprendizagem, pois, levados a privilegiar o saber da
escrita, o saber formal, perdem a dimensão da cultura como universo
simbólico e como mediação das relações de alteridade, privilegiando,
em suas práticas, a cultura escolar instituída desde fora. Deixam,
assim, de ter a possibilidade de serem professores interculturais, para
atuar no campo das diferenças entre o mundo indígena e a sociedade
inclusiva.

O exemplo torna evidente que não basta ensinar na


língua indígena; é preciso participar, partilhar, trocar e, com
isso, manter a aprendizagem no interior da própria cultura para,
como experiência, fazê-la dialogar com tudo aquilo que vem
como exigência e obrigatoriedade por parte da escola como
instituição. Não basta, portanto, ser um professor indígena a
ensinar indígenas para que o impasse do contato e do conflito
seja resolvido.

Na prática educativa para a diversidade, está em jogo o


compreender a natureza da instituição escolar e a que ela se destina
em sociedades como a nossa. Estão em jogo outros processos
educativos, outras formas de educação e construção de saberes que
não apenas o escolar. Contudo, o caráter neoliberal que sustenta
políticas de ação e de intervenção de caráter educativo propondo

25 Relato feito na apresentação da Profa. Ana Carla dos Santos Bruno na MR – 13, no 9º
Encontro de Antropólogos do Norte e do Nordeste – IXABANNE – Manaus, 2005.

105 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
valores gerais de tolerância26 e igualdade para com os diferentes, sem
vê-los em sua diversidade, ainda ronda sorrateiramente, mesmo as
mais importantes conquistas que emergem do tecido social e da ação
de diferentes grupos.

No Brasil e em outros lugares, ouve-se muito a respeito de


políticas sociais multiculturais e interculturais. Mas, em geral, tais
políticas privilegiam a ação e a intervenção, não para todos, senão
no espaço e na vida do outro, o chamado “diferente”, acentuando
sua diferença e transformando-a em estigma e desigualdade, em
preconceito e discriminação. storculturalidade, mas se utro, o chamado
“a, textos, livros, documentos.A ação e a intervenção das políticas
efetivadas em seu nome acontecem com um caráter político visível
e se estruturam no campo ideológico de forma prática e imediata,
segundo os interesses da sociedade, mas, quase sempre, sem ouvir
os sujeitos que pretendem atender. Ao intervir, a sociedade se impõe
como detentora de um saber sobre o outro, que dispensa saber quem
ele de fato é, o que pensa sobre sua vida ali onde está e quais suas
necessidades. É assim que, como políticas de fato multiculturais e
não interculturais, contemplam mais a prática (e o reconhecimento
do outro) do que a teoria (e o conhecimento do outro), quando, na
verdade teoria e prática deveriam ajustar-se num processo unívoco
que permitisse falar em aprendizagens múltiplas, dentro e fora da
escola. Em aprendizagens com o outro e não para o outro.

O sentido do processo de conhecimento, portanto, é o de


privilegiar a diversidade cultural, buscando compreender a natureza
do contato entre diferentes e, como tal, apreender o campo político
que os envolve conjunturalmente, mas que, também, diz respeito ao
contexto estrutural que coloca uns e outros em contato e em conflito.
No entanto, a alteridade própria das relações humanas é foco de
dificuldades quando se trata de reconhecer a existência da diversidade
humana para pensá-la no interior das práticas educacionais. Por mais

26 O conceito de tolerância exige uma reflexão crítica que desvende a natureza do tolerar.
Quem tolera quem? Para quê e por quê?

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 106


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
que se reconheça tal diversidade, esta se confronta com os limites de
uma natureza homogeneizante inscrita na educação, principalmente,
a educação moderna e institucionalizada em seu espaço maior, a
escola. O processo educativo, em sociedades como a nossa, exige a
compreensão profunda da cultura e da própria sociedade, na qual a
educação moderna e a escola que a representa se inserem.

Importa compreender que não existem sociedades sem cultura,


mas são as sociedades que criam a cultura, como diz Manoela Carneiro
da Cunha (1998), e isso exige saber que sociedade é essa. A sociedade
moderna é movida pela razão instrumental de reprodução do capital,
e sua racionalidade penetra todas as instituições presentes no tecido
social. Entre essas, a família e a escola, bem como os sujeitos que aí
estão com suas práticas e sua mentalidade socialmente construídas.
Nesse sentido, o processo educativo, também, é permeado pela
racionalidadeinstrumentaleordenaaspráticas pedagógicas, colocando
em confronto as muitas mentalidades do social que diferentes sujeitos
– pais e filhos; alunos e professores, entre eles – trazem para dentro
da escola.

Nessa condição, não se colocam em jogo os conteúdos e


as disciplinas que constituem a escola, já que não se trata pura e
simplesmente de currículo. Trata-se de discutir, preferencialmente,
o como se ensina e o uso que se faz de textos (escritos ou não).
Pressupõe considerar a experiência própria dos sujeitos envolvidos
na aprendizagem e no processo educativo, sejam estes pais ou filhos,
professores ou alunos. Significa estabelecer esforços no sentido de
desconstruir o imaginário e as representações coletivas, que bem diz
Munanga (2005) fazem parte de um inconsciente coletivo, possuem
dimensão afetiva e emocional que dão sustentação a crenças, valores,
estereótipos e atitudes que nos afetam, afetam a tudo e a todos.
Segundo o autor, “é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens
capazes de superar os limites da pura razão e tocar no imaginário e
nas representações” (idem, p. 20). Aqui, a experiência profissional e
de vida daqueles que educam em diálogo com os muitos saberes da
vida social faz da educação um recurso de potencial força na luta pela
igualdade de direitos. Assim, a informação que caracteriza os processos

107 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
educativos formais na dimensão do ensino, aponta para o fato de que
a escola não pode se limitar a isso, e faz-se necessário o resgate dos
processos não formais e informais de aprendizagem dentro e fora da
escola.

Considerações Finais

O desafio da escola e do sistema escolar contemporâneo


está em colocar ensino e aprendizagem a falarem juntos, a terem
voz juntos, já que se encontram cindidos pela sociedade moderna,
sociedade da escrita que não reconhece o saber construído na
vida social, fora da escola e da escrita. Trata-se de uma escola que
deixa de compreender o imaginário, que limita e coloca barreiras
ao próprio processo educativo e que precisa superar suas barreiras
na construção de uma nova sociedade, que, sendo moderna,
seja também, mais equitativa. Em jogo, práticas e saberes que
reconheçam e considerem a experiência do indivíduo como sujeito
coletivo que tem memória, tradição, história de vida, valores,
sentimentos, emoções. Trata-se de ter em conta que negros,
índios, idosos, deficientes, homossexuais e outros, são todos seres
concretos, reais, que vivem a vida, ao mesmo tempo, de modo
objetivo e subjetivo. Nesse sentido, são todos e cada um, um ser
sociocultural a demandar por um reconhecimento e um lugar na
sociedade. São todos, sujeitos de história e de singularidade e parte
integrante de uma humanidade possível.

No contexto de sociedades ditas modernas como a


nossa, portanto, a escola emerge como lócus do saber e espaço
educacional por excelência. Contudo, sob a égide da igualdade e da
homogeneização que a caracteriza, a escola transforma a educação
em tão somente ensino e obrigação. É o que gera negação,
discriminação e violência. E quem são os sujeitos que se nega e
discrimina? São os chamados “outros”, os diferentes – crianças,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 108


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
velhos, imigrantes, negros, indígenas, camponeses, caiçaras, etc...
Serão eles um problema social? Para quem e por quê?

Tribos indígenas, grupos étnicos, etários e outros são grupos


que existem no nosso tempo e, que não estão “fora” de nossa
sociedade. São eles parte de nosso presente histórico e, com isso,
elementos significativos de nossa própria alteridade. Quem hoje
desconhece a presença indígena no Brasil? Ou a presença de negros,
mulatos, mestiços? Que de nação jovem, estamos hoje envelhecendo
e que o velho, o idoso é agora alvo de políticas públicas, ações de
mercado? E por que reconhecemos tanta diversidade? Talvez, porque
cada um desses sujeitos está no nosso mundo, anda pela nossa
calçada, cruza nossa esquina e, mostra que não está distante de nós
no tempo e no espaço. Assim, não são eles, resquício, sobrevivência,
restos de um passado distante. Não são “menos”. Pensar dessa forma
é desconhecer a história como processo e fazer dela algo congelado
num tempo pretérito.

A existência desses grupos atua sobre nós e nossa realidade de


modo a exigir reconhecimento e, em decorrência, terem reconhecidos
os seus direitos. O caso dos indígenas brasileiros no Brasil é exemplar.
Vivem eles no interior da nação brasileira, são mais de 500 áreas
indígenas e cerca de 200 línguas em território brasileiro, porém se
diferenciam por terem uma cultura própria e um território físico e
social, diferenciado do território nacional já que demarcado por leis
e direitos singulares. No entanto, não estão apenas na floresta, estão
em nossas escolas e universidades, na TV. e nos jornais. São de carne e
osso, como qualquer outro ser humano e, principalmente, são de hoje,
do nosso presente, como foram de nosso passado e serão do nosso
futuro. Afinal, basta olhar para nossos jornais e noticiários, eles estão
lá, visíveis, organizados, reivindicando um lugar próprio e seus direitos.

Por tudo isso, a questão da escola se coloca por inteiro em sua


complexidade e se defronta com seu maior problema, qual seja o fracasso
diante da diversidade que constitui a sociedade brasileira. Fracasso
que não pode ser resolvido apenas no aparato ingênuo de uma falsa
igualdade que é pressuposta no espaço educacional, nas escolas, fazendo

109 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
tábula rasa das diferenças, como também não se resolve pelo simples
reconhecimento das diferenças culturais, como afirma Joel Rufino dos
Santos (1989). É preciso mais. É preciso apreender a diversidade por
aquilo que representa, por aquilo que ela é no jogo das relações entre os
homens e como parte de um campo de poder e de identidade.

Entender a possibilidade de expressão daquilo que somos exige,


de cada um de nós e de todos, irmos além das diferenças, para não
reificá-las e, assim, impedira emergência deuma realidade efetivamente
intercultural. Esse o desafio maior da escola, dos que educam e de todos
nós. As questões aqui colocadas demandam e impõem a necessidade
de reflexão e de intensa crítica a respeito da educação, da diversidade
e da diferença e dispõe o desafio de construção da utopia de um futuro
equânime e diverso a partir da própria educação.

O século XXI, diante da diversidade dos grupos sociais, em


sua utopia e realidade, busca caminhos que coloque o ensino e
a aprendizagem a dialogar para, assim, construir sociedades de
aprendizagem, cuja dimensão seja intercultural. Vale dizer, que o
presente século busca a construção de uma sociedade de troca,
compartilhamento e comunicação entre sujeitos diferentes, que
mantendo suas diferenças, possam ser iguais perante a lei, perante a
vida. Só assim, a educação, enquanto educação que se constrói como
e através do diálogo, revela sua própria natureza, a de ser “a morada
da prática cultural da diferença” (BRANDÃO, 2000, p.454) e, como tal,
nela pode-se gestar a utopia de um destino comum da humanidade.
Mais igual mais justa e, sobretudo, cidadã. ●

Referências

BAKKE, Rachel R. Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro
brasileiras na aplicação da Lei 10639. Tese de Doutorado. Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, FFLCH/USP, 2011.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 110


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VIEIRA, Ricardo. Histórias de vida e identidades. Professores e
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111 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Considerações sobre a tolerância moderna:
a defesa liberal, o discurso da UNESCO e a crítica marcuseana

Lenildes Ribeiro da Silva

Este texto traz algumas considerações sobre a temática da


tolerância que permearam a pesquisa de doutorado, em andamento,
intitulada O discurso moderno sobre educação, diversidade e tolerância:
osdocumentosdaUNESCOea críficadeMarcuse27.Proclamadocomoum
tema de grande relevância ainda no contexto do século XVII, o conceito
de tolerância passou por desdobramentos ao longo da modernidade
que lhe deram sempre novas conotações ora mais próximos, ora mais
distantes de seu sentido original. Trata-se de um conceito ambíguo e
contraditório que se tornou fundamental para o trajeto moderno em
diferentes períodos históricos e que, desde o contexto da emergência e
consolidação do liberalismo, segue incorporando, cada vez mais, outras
possibilidades e perspectivas filosóficas e políticas.

27 Pesquisa em desenvolvimento no programa de pós graduação da Faculdade de


educação da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, pelo grupo PAIDÉIA, na área
de Filosofia, História e Educação, Linha de pesquisa Ética, política e educação. Agência
financiadora: CAPES.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 112


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A pesquisa em questão busca retomar, mediante uma análise
crítica, os conceitos de diversidade e tolerância que se fizeram
presentes nas discussões sobre a educação em âmbito mundial a
partir de 1990, influenciando as políticas educacionais nacionais.
Compreendem-se tais conceitos relacionados à estrutura da sociedade
capitalista em constante processo de mundialização e globalização,
interrogando, mediante análise teórico/histórica, seu sentido e
relevância na atualidade.

O trabalho se caracteriza por pesquisa bibliográfica e análise


documental que objetiva fazer uma retomada histórica e filosófica dos
conceitos de diversidade e tolerância, chegando à sua incidência em
alguns relatórios e declarações mundiais sobre educação, publicados
pela UNESCO. A partir dessa inserção nos discursos mundiais sobre
tolerância sob o amparo desta instituição, o trabalho questiona
certo aplacamento das discussões e do debate sobre o conceito, o
que se verifica tanto nos documentos oficiais da UNESCO como nas
discussões sobre a educação no mundo que se desdobraram após

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a efervescência da temática na década de 1990. As análises críticas
realizadas nesta pesquisa se desenvolvem, especialmente, a partir do
pensamento de Marcuse (1970) e sua crítica à tolerância pura. Uma
espécie de tolerância apartidária, esvaziada de seu conteúdo político
em que “toleram-se políticas, condições e modos de conduta que
não deviam ser admitidos porque impedem, se é que não destroem,
as oportunidades de criação de uma vida sem medo e sem miséria”
(MARCUSE, 1970, p. 88).

Embora a tolerância tenha tornado ênfase na atualidade


como um princípio educativo a ser alcançado em todo mundo, ela foi
problematizada em diferentes períodos históricos, se apresentando como
um dos temas basilares da argumentação liberal iluminista no nascimento
e desenvolvimento da modernidade. Todavia, mesmo se tratando de um
tema que perpassa séculos de discussão, a sua interrogação hoje ainda é
necessária ao considerar que sua defesa tem sido tomadas, muitas vezes,
de forma acrítica, afirmativa e, portanto, ideológica. É na via contrária
dessa apropriação afirmativa e acrítica acerca da tolerância que a pesquisa
em questão tem buscado se dirigir. No trajeto da modernidade, entende
se que houve dois momentos em que a tolerância foi promulgada e que
possibilitam o entendimento da temática hoje.

O primeiro momento, diz respeito à emergência da


modernidade em que a tolerância foi defendida no centro do
pensamento filosófico e político de autores como Locke e Voltaire.
Naquele primeiro momento, a defesa da tolerância é proclamada na
transição do Antigo Regime para a modernidade, quando a busca pela
construção de uma nova sociedade mudava o foco dos problemas
sociais do âmbito sobrenatural para o terreno. É nesse contexto que
ideias como: liberdade, igualdade, justiça, e tolerância, entre outras,
passam a serem defendidas sob o amparo do direito político. A
exemplo disso, Locke faz a separação entre Igreja e Estado e defende a
tolerância mútua, Voltaire faz sua crítica à metafísica e ao fanatismo e
Stuart Mill traz a defesa da liberdade de pensamento e de expressão.
Ou seja, são pensadores que vão retirando a defesa da tolerância
das argumentações religiosas, colocando-as no palco das discussões
filosófico-políticas essenciais à construção do Estado moderno.

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O que este trabalho denomina segundo momento da defesa
moderna da tolerância se inscreve no reaparecimento da necessidade
desse conceito em meados do século XX, na reconstrução do mundo
no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial. Nesse segundo
período, a tolerância é discutida em âmbito mundial sob o amparo da
UNESCO, não restringindo mais às questões religiosas sendo, todavia,
ampliada para a diversidade cultural como um todo, discutindo as
questões de raça, gênero, etnias, entre outras.

A partir dessas breves considerações, é importante ressaltar


que, ao tratar dos discursos sobre a tolerância a partir de diferentes
contextos históricos, o trabalho intenta distanciar-se de uma mera
cronologia para imergir na compreensão do sentido filosófico, político
e social que marcou a defesa deste conceito nos desdobramentos
da modernidade. Este retorno histórico possibilita o entendimento
do que foi rompido e o que permanece fundamentando a defesa
da tolerância, tornando-se ponto essencial para a compreensão da
temática hoje.

Nesse raciocínio, este trabalho parte de um trajeto histórico


das concepções de diversidade e tolerância focando, primeiramente, o
contexto da Contra-reforma, no século XVI, apresentando as arguições
de Las Casas em favor dos índios na sua defesa de um método de
evangelização pautado não mais na violência, mas na tolerância,
conforme os princípios do próprio cristianismo. Naquele momento,
questões como liberdade, igualdade, entre outras, são enfocadas
trazendo elementos que nos séculos seguintes vão se configurando
conforme o pensamento liberal.

Nesse raciocínio compreende-se que, embora a defesa da


tolerância tenha se limitado, primeiramente, ao âmbito da liberdade
religiosa, os desdobramentos das revoluções burguesas possibilitam o
entendimento da liberdade em termos de direitos políticos, na medida
em que sua defesa vai sendo ampliada para outros espaços da vida
civil, como liberdade de propriedade, de imprensa, de pensamento,
entre outras. É o que pode notar, por exemplo, na letra da Declaração
dos direitos do homem e do cidadão (1789).

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Partindo dessa retomada histórica, o segundo momento da
defesa moderna da tolerância se coloca em meio ao cruzamento
entre o pensamento liberal-conservador e o crítico-revolucionário que
passam a fundamentar o debate da tolerância no século XX. Nesse
contexto, a defesa da tolerância no mundo tornou-se novamente
uma exigência na busca pela paz, entretanto, a vertente crítica que
então se constitui compreende que essa defesa não poderia mais se
inscrever nos moldes do pensamento liberal e sua visão burguesa de
mundo. Essa parte remete-se ao pensamento de Hebert Marcuse,
que, na década de 1970, desenvolve uma crítica radical à tolerância
proclamada nas sociedades capitalistas. Marcuse vem interrogar
as concepções de liberdade, individualidade e diversidade que se
desenvolvem articuladas com o que o autor vem chamar de cultura
afirmafiva, constituída numa ‘sociedade sem oposição’. Para o autor,

precisam ser criadas ainda as condições em que a tolerância possa


tornar-se novamente uma força libertadora e humanizadora [...]
Nos casos em que a tolerância serve principalmente para proteger e
preservar a sociedade repressiva, quando contribui para neutralizar a
oposição e imunizar os homens contra outras e melhores formas de
vida, ela está corrompida (MARCUSE 1970. p.114).

As críticas levantadas por Hebert Marcuse denunciam a


tendêncianeutralizante eideológicaquepermeiaadefesadatolerância
nessa sociedade e que, segundo o autor, impede o desenvolvimento
de uma tolerância democrática, universal, progressiva em relação
ao desenvolvimento da humanidade. Assim, “parte da luta toma
a forma de combate à ideologia da tolerância que, na realidade,
favorece e fortifica a conservação do status quo da desigualdade e da
descriminação” (MARCUSE, 1970, p. 125).

Tais considerações distanciam-se de uma defesa restrita


da tolerância, como tolerância pura, enfocando a necessidade
da delimitação daquilo que é intolerável com vistas ao progresso
humano. Isso se aproxima da crítica feita por Aurélio (1997) quando
alerta para o abrandamento do debate sobre o significado ambíguo
e contraditório da tolerância e em relação a este e à sociedade para

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 116


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uma discussão consensual, de sentido moralizante. Para o autor, “o
discurso da tolerância se banalizou a níveis inesperados de aceitação
e ineficácia, num consensualismo que tenta em vão iludir essa espécie
de resíduo problemático que se constitui em espinho do tolerantismo”
(AURÉLIO, 2010, p. 20).

Na proposta de desvio de uma apropriação ingênua, afirmativa


e, portanto, ideológica do conceito de tolerância, a pesquisa traz uma
análise crítica sobre atemática, considerando, sobretudo, o pensamento
marcuseano. Como foco de análise, tomam-se alguns documentos
da UNESCO para a educação que tratam dos conceitos de tolerância
e diversidade aprovados a partir da década de 1990, encerrando a
discussão com os desdobramentos da defesa da tolerância no interior
desta instituição após esta década. Dentre os documentos, destacam-se
o Relatório Educação: Um tesouro a descobrir (1993), a Declaração de
Princípios Sobre a Tolerância (1995) e a Declaração sobre a diversidade
cultural (2001). Nessa análise, são interrogadas as mudanças que
aconteceram a partir da própria UNESCO em relação à temática da
tolerância. Considera-se que essa temática teve sua efervescência
na década de 1990 e passou por um certo aplacamento nas décadas
que se seguiram, conferindo esse aplacamento às críticas diversas que
aqueceram o debate desde 1970. Embora as críticas levantadas no
decorrer do séculoXXtenham sido elaboradas porautores diferenciados,
existem pontos que são recorrentes na maioria delas, a saber:

1. O entendimento dos limites da tolerância como uma


contradição inerente ao próprio conceito;
2. A necessidade de distanciar-se do significado tradicional de
tolerância relacionado à condescendência e à permissão;
3. A interrogação dos sujeitos e objetos da tolerância;
4. Os problemas advindos da supremacia ou hegemonia
cultural e racional inscritas na racionalidade ocidental;
5. As contradições entre tolerância e desigualdade.

Se é possível encontrar pontos comuns na maioria das


abordagens críticas, a situação se diverge quanto às saídas para
as problemáticas levantadas. Nesse sentido, existem adjetivações,

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a exemplo das que se fizeram ainda na defesa liberal, conforme a
tolerância mútua de Locke referenciada na primeira parte do trabalho,
chegando a classificações mais atuais como: tolerância passiva e ativa,
tolerância negativa e positiva, entre outras. Algumas abordagens
reconhecem o tema como insuficiente, apontando como solução a sua
complementação com termos como o respeito. Outras vão aplacando
o debate da tolerância relacionando-a com questões como os direitos
humanos. A expressão mais radical da crítica da tolerância é feita pelo
pensamento marcuseano quando chega a denominar a tolerância que
se desenvolve na sociedade democrática nos limites do capitalismo
neoliberal como falsa e regressiva em relação ao desenvolvimento
da humanidade. A partir dessas e outras críticas, o conceito de
tolerância vai se mostrando em suas ambiguidades e contradições que
se estendem para além de suas raízes etimológicas e abrangem seu
caráter político e social, desvelando sua vertente ideológica.

As argumentações sobre a tolerância, assim, partem de uma


concepção tradicionale burguesa, chegando a uma crítica acalorada em
meados do século XX que coloca no cerne das questões a necessidade
da busca da igualdade e do reconhecimento das minorias no sentido
de romper com a separação entre sujeito e objeto, necessária a uma
tolerância no seu sentido progressivo. Compreende-se que a UNESCO,
que em princípio apóia-se numa visão liberal, atualiza e assimila
essas críticas, o que resultou em alterações de discurso no interior da
própria instituição. Tais alterações foram compreendidas a partir da
análise de algumas discussões realizadas em eventos regionais que
sucederam à publicação do Relatório Educação: um tesouro a descobrir,
desenhando o debate que permeou a aprovação da Declaração sobre
os princípios da tolerância e a Declaração sobre a diversidade cultural,
prosseguindo com algumas considerações sobre os rumos do debate
sobre a tolerância após a sua efervescência na década de 1990.28

28 Esta parte da pesquisa foi realizada durante o estágio de doutorando em Lisboa, Portugal,
na universidade nova de Lisboa, sob a orientação do professor Diogo Pires Aurélio. Na
busca por compreender outros discursos e debates que não faziam parte dos documentos
oficiais aprovados pela UNESCO, foram analisados a Conferência sobre tolerância na América

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 118


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Diante dessas análises, entende-se que as discussões que
marcam o trajeto da defesa da tolerância no pós-guerra apresentam
uma certa progressão em relação à sua defesa tradicional. Ainda
que implicitamente, os documentos oficiais da UNESCO parecem
permeáveis pelas críticas levantadas, todavia, sem abarcar o viés
marxista de que muitas partem. Ou seja, de forma aparentemente
contraditória, a nova direção das arguições da tolerância no interior da
UNESCO parece não passar a largo da crítica marcuseana, entretanto,
ainda sem romper de todo com a defesa liberal.

O raciocínio que subjaz toda a pesquisa parte, assim, de uma


visão burguesa da tolerância que caminha entre a dominação e a
proclamação da liberdade, no contexto das revoluções burguesas. Na
discussão do segundo momento da defesa moderna da tolerância, a
crítica marcuseana possibilita o entendimento da vertente ideológica
do conceito ao ser adequado aos ideias liberal e capitalista, tornando
se uma tolerância repressiva. Para Marcuse, isso é recorrente no
século XX quando a tolerância é defendida por meio de um discurso
institucionalizado amparado pela UNESCO, acrescentando que, como
símbolo de uma sociedade livre, a tolerância jamais pode tornar-se
“dádiva de poderes constituídos” (MARCUSE, 1970).

Nesse sentido, entende-se que as arguições que se


desenvolvem por intermédio desta instituição parecem ter perdido
a força de uma discussão partidária, implicando na polarização de
pensamentos inconciliáveis. Na tentativa de não passar imune pelas
críticas realizadas, sem, todavia, refutar um conceito que está na base
da criação da UNESCO, a defesa da tolerância prossegue no interior
desta instituição. Entretanto, como via de solução para o impasse que
se coloca nos debates sobre a tolerância na metade do século XX, a
UNESCO chega ao século XXI com uma discussão aplacada, permeada

Lafina e no Caribe, no Rio de Janeiro (1995) a Conferência: Educação para a Tolerância, em


Lisboa (1995) e ainda os relatórios do Comitê sobre educação para a paz, direitos humanos,
democracia, entendimento internacional e tolerância (de 1997 a 2001), no sentido de
compreender os desdobramentos das discussões sobre a temática a partir de 1995.

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junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
por outras questões como proteção do patrimônio, respeito à
diversidade e a defesa dos direitos humanos.

A tolerância situada numa discussão política, partidária e, de


certa forma, revolucionária, pode ser contextualizada em diferentes
momentos. No contexto de Las Casas, a defesa da tolerância estava
fundada claramente nos princípios cristãos. Os séculos seguintes
vão defender a tolerância no plano dos direitos civis pautada na
visão burguesa de mundo, liberal e capitalista. A crítica marcuseana
traz uma vertente revolucionária, de base marxista, na denúncia da
sociedade capitalista em que a opressão, as relações de poder, a
marginalização, impedem o cumprimento das promessas de liberdade
e igualdade, entre outras. Marcuse situa a defesa da tolerância como
um dos artifícios ideológicos dessa sociedade que tolera o intolerável
presente nessa estrutura, incluindo a impossibilidade de as minorias
se constituírem como sujeitos da tolerância em relação ao instituído.
Ele adverte que, “essa espécie de tolerância é desumana” (MARCUSE,
1970, p.103).

Nesse raciocínio, entende-se que, embora no primeiro


momento da defesa da tolerância moderna houvesse uma clara
orientação filosófica e política na via do pensamento liberal, o que
se verifica, na retomada dos discursos sobre a tolerância nos séculos
XX e XXI é uma visão menos partidária, polarizada, por vezes, entre
pontos inconciliáveis da crítica marcuseana, de base revolucionária, e
a defesa liberal conservadora. Isso possibilita a compreensão de que,
não podendo assumir uma visão tradicional conservadora, todavia não
podendo assumir a crítica revolucionária em sua totalidade, a defesa
da tolerância passa a operar pela via de uma neutralidade aparente. O
teor partidário e revolucionário da tolerância se perde na atualidade
quando sua defesa se faz pela via da reafirmação do existente e não de
sua transformação.

Entretanto, mesmo diante das críticas levantadas no século XX,


em que pesem suas adjetivações, ressalvas, e complementações, a
tolerância não é um conceito superado. Ela ainda é recorrente no senso
comum, nas diretrizes escolares e nas orientações mundializadas,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 120


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
conforme os documentos da UNESCO. Essa permanência do conceito
torna necessário seu debate para que ele se distancie de um vazio
moralizante no sentido de seu foco político inerente.

A tolerância é um termo complexo, ambíguo e inconcluso


e seu aplacamento após o ano de 1995 não conseguiu resolver as
questões levantadas pelas críticas ao conceito. A substituição de
um conceito por outro, ou seu aplacamento por questões menos
conflituosas, não soluciona a problemática social. Questionamentos
sobre a desigualdade, a opressão, as relações de poder, a barbárie
nas suas diversas formas, entre outros, constituem uma crítica
radical da tolerância e da sociedade em que ela é pronunciada e essa
crítica deve estar presente mesmo nas tentativas de subsunção do
conceito. ●

Referências

AURÉLIO, Diogo Pires. Um fio de nada: ensaio sobre a tolerância. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
DECLARAÇÃO de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In BRANDÃO,
Adelino (org). Os Direitos Humanos: antologia de textos históricos. São
Paulo: Landy, 2001.
DELORS, Jacques. Educação um Tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco
da Comissão Internacional sobre a educação para o século XXI. 6 ed.
Tradução de José Carlos Eufrázio. São Paulo: Cortez, 2001.
MARCUSE, Hebert. Tolerância repressiva. In Critica da tolerância pura.
Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
UNESCO. Declaração sobre os princípios da tolerância. Disponível em
Acessado em agosto de 2008.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf.

______. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Disponível


em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf.
Acessado em agosto de 2008.

121 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A formação cultural da Amazônia e a ocupação
econômica de Rondônia a partir de 1970:
o último round da resistência cabocla

Antônio Carlos Maciel

E se acabassem com o pequi de Goiás (como diz a música de João Carrero


e Capataz), com o queijo de Minas, com o churrasco gaúcho, com o açaí do
Belém, o jaraqui de Manaus? Só compreende quem tem idenfidade cultural
definida... Nascida cosmopolita, por quase meio século arigó-cabocla, Porto
Velho procura, atônita, sua idenfidade, ante a invasão da cultura caipira.

O processo de ocupação do Estado de Rondônia tem sido objeto


de estudo das mais diversas áreas de conhecimento. Antropólogos como
Teixeira (1999); sociólogos como Martins (1982 e 1986), Lopes (1983),
Silva (1984); economistas como Hébette e Acevedo (1982), Mesch
(1984) e Batista (2001); passando por historiadores, tais como Perdigão
e Bassegio (1992), e geógrafos como Becker et al. (1990), Coy (1986),
Santos (2001) e Amaral (1998), chegando a ecólogos como Miranda
(1987) e Fearnside (1989), têm apresentado suas interpretações a
respeito do processo de colonização desencadeado, a partir de 1970,
pelo Plano deIntegração Nacional, através deseus diferentes Programas.

Esses estudos são unânimes em reconhecer que esse é um dos


processos mais espetaculares – pela forma, pela intensidade e pela rapidez
– já ocorrido no Brasil. Em trabalho recente sobre o processo de ocupação
socioeconômica de Rondônia (MACIEL, 2004) faz-se uma análise desses
estudos, demonstrando que, apesar dos impactos inevitáveis, o processo
rondoniense foi o mais bem sucedido dos programas do Plano de Integração
Nacional,oquenãoimpededereconheceranaturezadoprocesso:socialmente

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 122


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
intensa, ecologicamente predatória, economicamente transformadora,
culturalmente implantada. Martins (1982), bem a propósito, afirma: “O que
temos agora é a aplicação de um outro modelo de ocupação, que pretende
anular e revogar os modelos anteriores [...]” (p.68-69).

Quanto a isso, no caso de Rondônia, José de Souza Martins está


completamente certo. De fato, em nenhum outro lugar ou tempo da
Amazônia, um processo de colonização revogou tão radicalmente o
processo de formação da cultura regional.

A formação da cultura cabocla

É quase consenso, entre historiadores e antropólogos, o fato


de que a formação da sociedade cabocla amazônica se fez em três

123 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
momentos: o colonial, decorrente das relações entre indígenas
e portugueses; o seringal, decorrente da economia da borracha,
no qual indígenas, caboclos e nordestinos, particularmente
cearenses, dão o tom da ocupação antrópica; e, finalmente, a
urbanização da cultura cabocla, decorrente do massivo êxodo
rural, a partir da década de 1920.

O primeiro momento vai da fundação do Forte do


Presépio, em 1616, que dá origem a cidade de Belém do Pará,
até meados do Século XIX, quando o declínio do extrativismo
das drogas do sertão dá origem ao extrativismo da borracha,
impulsionado pela crescente aplicação desta na indústria de
então.

Nesse período de aproximadamente 250 anos, a


ocupação da Colônia do Grão-Pará e Maranhão29 é realizada
por civis, militares e religiosos, a serviço da coroa portuguesa,
em luta direta contra as centenas de etnias existentes.

O caráter beligerante da ocupação, atenuado por uns


e enfatizado por outros, é um fato inconteste. Para Guzmán
(2006, p. 69-76) desde 1619 a Coroa portuguesa manteve
uma política de colonização e miscigenação do Grão-Pará e
Maranhão financiando, inicialmente, o transporte de açorianos,
e posteriormente, facilitando honrarias aos colonos que
casassem com indígenas. Segundo esse autor, o conjunto de
medidas oficiais (decretos, cartas régias e alvarás), entre 1751
e 1759, intensificam a promoção de uma política sistemática
de casamentos entre portugueses e mulheres indígenas de
diversas etnias. Apesar dessa visão institucional, esse autor
não dissimula o fato de que “a escravidão indígena foi o mote
de grande parte das atitudes coloniais na Amazônia”.

29 Nunca é demais lembrar, que a Colônia do Grão-Pará e Maranhão era independente


da Colônia do Brasil, portanto, duas Colônias distintas, e que somente a partir 1808, com
a vinda da família real portuguesa para o Brasil, àquela fora incorporada a esta. Sobre o
assunto, consulte-se Benchimol (1977, p.531, 549-550,557).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 124


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Para Ribeiro (1995), ao contrário, a política de colonização com
açorianos fazia parte da estratégia de estabilizar a sociedade nascente,
sendo um complemento das estratégias mais efetivas na região:
os descimentos, as guerras justas e as tropas de resgate. Cada uma
destas envolvia aparatos de aliciamento e chantagem (no caso dos
descimentos) e de guerra (no caso das guerras justas e das tropas de
resgate). Cada forma de conquista determinava a condição do vencido:
os indígenas descidos eram repartidos entre colonos (em seus núcleos
coloniais) e religiosos (em suas missões-reduções); os vencidos
ou capturados eram escravizados na lavoura, no extrativismo e no
transporte. Para o autor, dessa condição de reprodução social nasce
o embrião da sociedade cabocla: os destribalizados, os deculturados
(colonos) e os mestiços, em cuja convivência, forçada ou não, emerge
a cultura cabocla.

A historiografia regional, em particular, a do Amazonas (FREIRE,


1991;MACIEL, 1992;SOUZA, 1978)nãosóenfatizaanaturezabeligerante
do processo de conquista da Amazônia pelos portugueses, incluindo
as formas mercantis de organização e exploração do trabalho, mas
também destaca (como não o fazem autores de outras regiões do Brasil
e brasilianistas) as estratégias de resistência indígena, durante o embate,
como elemento determinante da sociedade e da cultura caboclas.

Em 1750, com a ascensão de D. José I ao trono português e


do Marquês de Pombal a Ministro, a exploração do trabalho deixa de
ser regulada pelo Regimento das Missões e passando para o Diretório,
com o qual a Coroa portuguesa retira o poder dos missionários sobre
os índios. Freire (1991, p.59) sintetiza:

O monopólio dos diretores, a retenção pelos colonos dos índios que


lhes eram concedidos, a deserção e fuga dos índios das povoações,
a resistência armada aos descimentos, as epidemias, provocaram um
esvaziamento das aldeias – verdadeiros currais onde se depositava a
mão-de-obra, deixando a própria Coroa Portuguesa sem os índios de
que necessitava para o seu serviço e para as obras públicas. O projeto
mercantilista de pombal entrava em crise e, com ele, o Diretório de
Índios.

125 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A Carta Régia de 1798, que extingue o Diretório e cria a
obrigatoriedade de “alistamento” no Corpo de Milícias e no Corpo
de Trabalhadores, também não resolve o problema do recrutamento
da força de trabalho por descimentos, em função do que continuam
utilizando as tropas de resgate e as guerras justas.

A irracionalidade do modelo português atinge o auge com a


fuga da família real para o Brasil, cuja, “capacidade bélica que não usara
contra Napoleão era agora empregada contra os povos indígenas”
(FREIRE, 1991, p. 61), contra a qual eclode a maior resistência à
dominaçãoportuguesa:acabanagem30.Aotérmino do conflito, todavia,
pode-se constatar que o Amazonas ainda se constituía na “única
unidade política que não havia sido portugalizada e que permanecia
majoritariamente indígena” (FREIRE, 1991, p. 62) e, sobretudo, não
falava português, uma vez que o nheengatu permanecia como língua
de comunicação comercial e popular, o que leva Joaquim Nabuco
(apud FREIRE, 1991, p. 62) a afirmar: “os portugueses vieram, viram,
mas não venceram”. Portanto, ao contrário do restante do Brasil, essa
região ainda precisava ser conquistada.

O segundo momento, que vai de meados do Século XIX até


a década de 192031, é fundamental para a consolidação da cultura
cabocla, porque efetiva a integração da antiga Colônia do Grão-Pará,
agora Províncias e, seguida, Estados do Pará e Amazonas ao Brasil;
porque a economia da borracha possibilita a criação de uma rede
urbana integrada aos seringais; estes, por sua vez, favorecem a criação
de uma estrutura social diferenciada da indígena, incluindo a língua

30 A Cabanagem “foi um movimento nativista popular armado, que envolveu grupos


indígenas autônomos, a massa de índios das aldeias, índios destribalizados (chamados de
tapuias), os caboclos mestiços, os negros” (FREIRE, 1991, p. 62).

31 A desestruturação completa dos seringais só vai se dar a partir da década de 1950.


A escolha da década de 1920, para fins desse estudo, decorre da importância do
primeiro grande êxodo rural para a consolidação das principais cidades-sede municipais,
urbanizando, por assim dizer, a cultura cabocla. O segundo grande êxodo ocorre durante a
década de 1970, principalmente para Manaus.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 126


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
de comunicação32; e, finalmente, a própria estagnação da economia
dos seringais entre as décadas de 1920 e 1960, propicia, às avessas, a
estabilidade da nova estrutura social e a constituição de um sistema
produtivo baseado num agro-extrativismo. E o fator determinante foi
a economia da borracha.

De fato, a economia da borracha possibilitou à região, em


particular a Manaus e Belém, a aquisição dos mais avançados produtos
do mundo de então: de urbanização, de consumo e deleite cultural,
que contrastavam com a pobreza dos trabalhadores e desempregados
urbanos, com a miséria dos seringueiros e demais trabalhadores
regionais.

Sem embargo, toda a estrutura urbana existente em Manaus


até meados dos anos 80, na área central da cidade, remonta à primeira
década do Século XX, o que comprova que a Manaus da belle-époque
alcançou elevado grau de urbanização, ainda que esta obra, a cargo dos
ingleses, tenha desprezado a lógica de ocupação do espaço regional e
só atendesse aos interesses dos coronéis, a ponto de o sociólogo André
Araújo revelar que “a ‘Paris dos Trópicos’, ao procurar negar a sua
identidade para buscá-la ‘no outro’, não percebeu que estava cercada
por uma ‘Banlieue’ de nordestinos famélicos e índios destribalizados”
(FREIRE, 1991, p. 59).

No lado rural, as contradições eram, ainda, mais gritantes.


Trabalhando sob condições irracionais, e preso ao sistema de
aviamento (SANTOS, 1980, p. 155-175), o seringueiro mereceu
de Euclides da Cunha (apud SOUZA, 1977, p. 100) uma defesa
indignada:

32 A estrutura social dos seringais, ao contrário dos aldeamentos e povoados (chamados


por Freire de currais de índios), dos quais não se distinguiam muito as vilas, até meados
do Século XIX, baseava-se na unidade familiar e na parentela (OLIVEIRA FILHO, 1979), em
cuja organização o nordestino exercia papel estruturante. Estima-se que meio milhão de
nordestinos tenha sido trasladado para a Amazônia pelas políticas subvencionadas pelo
Estado (RIBEIRO, 1995, p. 324; FERREIRA, 1982, p. 209-212; BENCHIMOL, 1977, p. 245-247.
Sobre a língua de comunicação ver Freire (2000 e 2004).

127 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Nas paragens exuberantes das héveas e castilôas, o aguarda a mais
criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais
desaçamado egoísmo. E clama: urgência de medidas que salvem a
sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o
esforço do homem; uma justiça austera que cerceie os desmandos; uma
forma qualquer de homes-tead que o consorcie definitivamente à terra.

De acordo com Souza (1977), nunca a cultura amazônica e os


valores regionais foram tão terminantemente negados. Com exceções
feitas ao poeta Raimundo Monteiro, ao romancista Ferreira de Castro e
ao cineasta Silvino Santos, a economia da borracha não produziu mais do
que arremedos de intelectuais-funcionários públicos, cuja obra consistia
na imitação do entulho cultural francês e na bajulação às oligarquias,
que se revezavam no poder, segundo ele,

Manaus e Belém se transformaram em pequenas reproduções da


Europa, sonhos de boa ganância materialista, de quixotes e sanchos
panças, da boa comida, do banquete eterno, das iguarias finas e vinhos,
picardias e liberações orgiásticas nos inúmeros bordéis altamente
especializados (1977, p. 90).

E por falar em bordéis, coube à mulher tal como ocorre hoje, em


muito maior escala, em Manaus33, um dos papéis mais dramáticos dessa
degeneração. Sendo o sexo feminino numericamente muito inferior ao
masculino, as mulheres, pela via da prostituição, faziam parte de um
comércio lucrativo (HARDMAN, 1988) e perigoso. Aos seringueiros, que
raramente poderiam fazer parte desse comércio, restava a masturbação,
o homossexualismo, a bestialidade, o adultério e o sexo compartilhado;
enquanto que os coronéis podiam desfrutar não só de suas esposas mas
também das cocottes importadas da França ou Rio de Janeiro. Souza
(1977, p.99) arremata:

33 Vale ressaltar, no entanto, que não é um privilégio de Manaus. A história do Ocidente,


em maior ou menor escala, tem conferido à mulher um papel subserviente; todavia, é sob
o Modo de Produção capitalista, que a condição da mulher assume sua condição bárbara,
em termos de força de trabalho, e degradante, sob a face da prostituição. Conforme Marx
Engels-lenin (1980).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 128


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Na sociedade tribal amazônica, a mulher estava integrada
sob diversas formas de submissão. Com o extrativismo da borracha,
onde a procura era maior que a oferta, ela seria transformada em
bem de luxo, objeto de alto valor, um item preciso na lista das
mercadorias.

No entanto, a degeneração completa da sociedade do


látex só teria início, de fato, em 1910, quando a primeira
produção de borracha asiática abala o mercado mundial
e determina a queda imediata dos preços do comércio
internacional do produto. E as razões da derrocada são
apontadas por Cano:

A internação florestal dos seringueiros, a não-abertura de


terras e a grande necessidade de mão-de-obra para a extração
do látex impediam o desenvolvimento local de uma agricultura
comercial produtora de alimentos. Embora sua mão-de-obra
fosse livre não criou o assalariamento, transformando sua mão
de-obra, pela economia do aviamento, em produtores diretos.
Sua estrutura de comercialização e o predomínio do capital
mercantil atomizaram o uso interno de parte do seu excedente,
permitindo ainda grande vazão para o exterior, seja na forma de
grandes importações de bens e serviços, seja na de remessa de
lucros e de juros (1983, p. 45).

Premidos pela concorrência internacional, sem indústria


manufatureira para outras demandas nacionais e sem poder
regional sobre o poder central, a economia da Amazônia entra em
colapso.

Com isso, o Amazonas recua ao mais retrógrado


extrativismo, fragilizando ainda mais a estrutura dos seringais
nativos, muitos dos quais entregues a sorte das florestas;
enquanto sua indústria manufatureira, com o passar dos
anos, foi sucateada e extinta; e o seringueiro, abandonado à
própria sorte no interior da selva amazônica. Wagley (1988)
é definitivo:

129 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
As condições atuais (1941) do Vale Amazônico qualificam
no, sem sombra de dúvida, como uma área subdesenvolvida.
Aproximadamente 60 por cento das pessoas que habitam a
Amazônia brasileira são analfabetos [...]. Em Manaus, [...] o índice de
mortalidade infantil era, naquele mesmo ano, 303 em 1.000. Segundo
as autoridades sanitárias, entretanto, esses dados são inferiores aos
índices reais. [...] o estado de deficiência alimentar, talvez mesmo de
semi-inanição, predomina em todo o Vale. A vida econômica do Vale
é francamente ‘primitiva e estagnada [...]. O transporte é efetuado
por vagarosas embarcações fluviais que em sua maioria são movidas a
carvão [...]. A indústria é primitiva e quase inexistente. O comércio da
região consiste basicamente em produtores florestais como borracha
bruta, óleos vegetais, couros e madeiras tropicais. As instalações de
utilidade pública, como esgoto, luz elétrica e água são insignificantes
[...]. Diante dessas condições, é fácil compreender porque não cresceu
a população da região amazônica do Brasil no período de 1920 a 1940,
quando, no país todo, seus habitantes aumentaram 36 por cento
(1988, p. 27, 28 e 29).

Por mais paradoxal que possa parecer, a formação cultural


da sociedade cabocla é produto tanto da riqueza da economia da
borracha e suas contradições culturais e de classe, quanto do extremo
isolamento aliado à profunda estagnação econômica.

Se no período anterior, que vai até meados do Século XIX,


era possível distinguir, entre os regionais, os destribalizados, os
deculturados (colonos) e os mestiços, tal como o faz Ribeiro (1995),
com a migração de aproximadamente meio milhão de nordestinos, a
miscigenação generalizada, a estruturação social de um campesinato
agroextrativista34 com reflexos acentuados nos centros urbanos
municipais, evidentes mesmo nas Capitais, além de um padrão
relativamente uniforme de reprodução social e cultural, incluindo a

34 Vale a pena lembrar que, no auge do sistema de seringais, houve várias crises de
abastecimento de produtos agrícolas. Com a decadência dos seringais, o caboclo aos
poucos volta a cultivar a agricultura e a diversificar o extrativismo vegetal e animal.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 130


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
língua portuguesa, um século depois já não o é mais. Isto é, a sociedade
cabocla amazônica. A diversidade dessa relativa uniformidade cultural
decorre, então, das diferenças de classes, divididas entre as oligarquias
decadentes, as classes médias intelectualizadas dependentes, os
trabalhadores urbanos empregados ou não, e o campesinato agro
extrativista35. O terceiro momento consiste na urbanização da cultura
cabocla e está dividido em duas fases: que vai dos anos 1920 ao final
da década de 1960, e desta aos dias atuais, ambas caracterizadas por
intenso êxodo rural36.

Com efeito, ao se fazer um balanço da economia da borracha


até 1920, chega-se a algumas conclusões: a primeira delas diz
respeito ao fato de que proporcionou a consolidação de uma nova
estrutura social amazônica, na qual as contradições étnicas dão lugar
às sociais.

De fato, na terceira década do século XX, já era possível


perceber que o seringal havia consolidado a miscigenação entre
índios, nordestinos e colonos portugueses, constituindo um tipo de
sociedade nacional (a sociedade cabocla), distinta da organização
social indígena, mas sua herdeira culturalmente. Numa palavra:
a sociedade cabocla se tornara efetivamente uma sociedade de
classes, culturalmente referenciada e historicamente situada. Por
outro lado, ainda nesta década, o que hoje são cidades-sede dos
principais municípios da calha amazônica já ostentavam o status de

35 É longa a lista daqueles que divergem dessa abordagem: uns associando o caboclo
apenas ao campesinato amazônico; outros questionando o próprio conceito em função de
tantas outras possibilidades (ribeirinho, pequeno produtor, interiorano, pescador, coletor,
agricultor de corte e queima, shifting cufivafion, etc.). De minha parte, afirmo que nunca
encontrei uma dessas categorias (desde que ele tenha um pedaço de terra) que não fosse,
ao mesmo tempo, todas as outras, dependendo da época do ano. Por outro lado, o agro
extrativista é apenas um tipo de caboclo entre os demais, como ainda há de se reafirmar
aqui.

36 Notadamente, não se trabalhará aqui a segunda fase, pelo simples fato de que, esse
processo ocorre no Acre, no Pará e no Amazonas, mas não em Rondônia. Aqui, a intensa
migração sulista avança pelos últimos redutos caboclos do Estado.

131 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
vila (distrito hoje) ou de cidade, mas sua existência era indissociável
da existência dos seringais37 e suas contradições sociais entre
seringalistas, aviadores, seringueiros e seus dependentes. Em
resumo, excetuando Manaus e Belém (onde a divisão do trabalho
alcançara um largo espectro de funções), o palco das contradições,
seja no seringal, seja na cidade, tem os mesmos personagens. É
esse o contexto em que se dá o primeiro grande êxodo rural e a
desestruturação dos seringais38.

O fato é que justamente nesse período, entre as décadas de


1920 e 1960, o êxodo rural consolida o modo caboclo de viver nas
cidades, incluindo as Capitais: da arquitetura urbanística, conforme
a classe social, à culinária; das relações de vizinhança e estrutura de
parentesco aos festejos e expressões folclóricas39.

37 Pelo intenso comércio, no qual é a base do aviamento, pela intensa comunicação via
rádio ou regatão e pelas relações familiares.

38 A desestruturação dos seringais e suas diversas formas de transformação em sítios


são amplamente relatadas pela literatura. Uma dessas formas se encontra num estudo
realizado em 2001, em um sítio, na localidade denominada Varadouro do Morgo, rio
Jamari, entre as cidades de Itapoã d’Oeste e Ariquemes, Rondônia, “Seo” Raimundo relata
como adquiriu suas terras. Segundo ele, quando o seringalista mudou de ramo na década
de 1960 (passou a explorar garimpo em suas terras) cedeu as colocações aos seringueiros
(que foram regularizadas após a morte do seringalista), em troca do trabalho de vigilância
deles. Ver Maciel (2001).

39 Excetuando-se os prédios públicos e as residências das oligarquias, a arquitetura


amazônica é peculiar e diferente do restante do Brasil; a culinária é baseada, mesmo hoje,
no extrativismo vegetal e animal regional; enquanto as relações de vizinhança se baseiam
na solidariedade do trabalho comunitário (mutirão) e numa comunidade em torno de um
santo padroeiro, o parentesco abrange, além dos indivíduos consanguíneos, agregados
e apadrinhados de diferentes maneiras; como cada comunidade tem um padroeiro, os
festejos acontecem o ano inteiro. Porém, a expressão mais eloquente da cultura cabocla
é o folclore: danças que reproduzem rituais indígenas, a vida e o trabalho na floresta, as
comunidades de aves e peixes, a miscigenação e a luta entre índios e portugueses, cuja
expressão máxima é o boi-bumbá, que representa tudo isso numa única dança. E não é
mera coincidência que essas expressões culturais tenham sido criadas exatamente nesse
período e, na mais importante delas, a de Parintins, a disputa (a guerra, na história real)
seja simbolizada pela Marujada (colono português) e pela Batucada (indígena).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 132


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Esse é o quadro sociocultural que as políticas de integração
nacional vão encontrar na Amazônia no final dos anos de 1960. Mas
a política de integração nacional tem interesses que vão além da
integração regional. Conforme Ianni (1981):

[...] a ditadura instalada no Brasil adotou principalmente duas políticas


na Amazônia. Uma, de inspiração geopolítica, destinada a refazer e
reforçar os laços da região com o conjunto do País, em especial o
Centro Sul, econômica, política, militar e culturalmente dominante.
Outra, de inspiração econômica, destinada a reabrir a Amazônia ao
desenvolvimento extensivo do capitalismo (1981, p.132).

É dessa forma e sob esses interesses que o grande capital se


instala na Amazônia. Mas essa expansão capitalista, de acordo com
Martins e Ianni40, não é uma expansão de estilo clássico: em primeiro
lugar, ela se dá sob uma aliança entre o grande capital monopolista
associado ao capital colonialista interno e o Estado autoritário.

Em segundo lugar, essa aliança, que converte a burguesia em


proprietária da terra, concentrando a propriedade fundiária em suas
mãos e introduzindo a grande empresa no campo, a um só tempo,
fragmenta o poder regional das oligarquias, submete pequeno e
médios produtores, altera as relações de trabalho e de poder e, não
satisfeita, converte imensas massas camponesas e indígenas em
populações supérfluas para, em seguida, transformá-las em massas de
intrusos, invasores, violadores da lei.

Em terceiro lugar, tais populações não se transformam, pelo


menos a maior parte delas, em proletários41, não só porquanto o
processo seja violento e rápido, mas também porque os instrumentos

40 Sobre a interpretação da sequência, consulte-se Martins (1982, p. 67-96; 1986, p. 81


91) e Ianni (1981, p. 33-45, 130-142; 1986, p. 55-73).

41 Ianni (1988, p. 140), a esse respeito, mantém uma posição contrária a de Martins, ao
afirmar que no campo “atendência predominante é a proletarização”, sobre o processo de
proletarização (transformação da força de trabalho em mercadoria).

133 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
tecnológicos, introduzidos na região, representam um salto
qualitativo muito grande em relação à tecnologia conhecida pelo
modelo extrativista.

Finalmente, em quarto lugar, é essa política de expropriação


e marginalização sociais no campo (ao contrário do que sustenta
a “doutrina de ocupação dos espaços vazios”, que fundamenta
a retórica oficial), a causa do esvaziamento do interior rural da
Amazônia.

Nos últimos quarenta anos, entre 1970 e 2010, pode-se


dizer que o capital alcançou seus objetivos econômicos e, apesar
das adaptações, a cultura cabocla resiste na grande calha (Acre,
Amazonas, Pará), porém, o mesmo destino não teve Rondônia.

A ocupação econômica de Rondônia a partir de 1970:


pecuária, agricultura comercial e extrativismo predatório

Rondônia era, até 1970, um Território completamente


extrativista42. Sua economia girava em torno de quatro
produtos extrativos: borracha, castanha, ouro e cassiterita,
cuja produção fora liderada pela borracha na década de 50 e
pela cassiterita, na de 60, sem nenhuma representação mais
significativa na área da agricultura e pecuária, o que, aliás, não
diferia dos demais Estados da Amazônia. Isso demonstra não só
uma economia dominada pelo extrativismo, mas também uma

42 Dados esparsos sobre a economia extrativista de Rondônia, entre as décadas de 50


e 60, podem ser encontrados em Lopes (1983, p. 11-15), Silva (1984, p. 09-28), Mesch
(1984, p. 131-140), Santos (1998, p. 42-44), Teixeira (1999, p. 94-105). Sobre a estrutura
social dos seringais de Rondônia, confira em Teixeira (1999, p. 107-138), sobre a condição
do seringueiro no período de transformação do seringal em garimpo, e deste, em
Assentamento, verifique em Maciel (2001, p. 06-15).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 134


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
sociedade que se mantinha a custa de relações não-capitalistas
de produção, na medida em que tanto nos seringais, quanto
nos garimpos predominavam formas não-assalariadas de
remuneração43.

Além disso, em ambas as formas de extrativismo


(borracha e castanha de um lado, ouro e cassiterita, de
outro), a agricultura tornou-se estruturalmente impossível,
tornando-as dependentes do aviamento, da caça, pesca e roça
de mandioca, no caso dos seringais, e da troca perdulária, no
caso dos garimpos44. Num e noutro caso, essas estruturas de
produção, com raríssimas exceções, só beneficiavam os agentes
comerciais, os seringalistas e os donos de garimpo.

Por outro lado, a situação específica de Rondônia,


enquanto Território Federal de um lado e, de outro, enquanto
área de grandes seringais, fez com que a geopolítica do governo

43 As formas não-assalariadas do seringal passam por diversas fases (TEIXEIRA, 1999,


p. 108-112), sendo a mais importante delas, a que decorre do endividamento através da
aquisição de produtos manufaturados descontados pelos dias trabalhados da família. Já
no garimpo, sai regatão entra marreteiro; sai o barracão entra a draga, com uma diferença
fundamental: o garimpeiro, pago em pepitas de ouro, está livre para trocá-las pelos
produtos que quiser, que vão do cigarro à alimentação, passando inexoravelmente pela
prostituta, religiosamente pagos com ouro, perdulariamente a preço de ouro (MACIEL;
OTT; CEMIN, 1990).

44 A impossibilidade da agricultura se expressa através de um confronto histórico entre


as tentativas de sua implantação na Amazônia e a resistência do extrativismo. Costa (1992,
p. 4-9; 1998, p. 42-64) identificou cinco períodos, nos quais essas tentativas ocorreram: a
primeira, de 1616 a meados da década de quarenta do século XVIII; a segunda, da política
agrícola de Pombal ao fracasso da Companhia do Comércio do Grão Pará e Maranhão; a
terceira, das propostas liberais de meados do século XIX (conforme Oliveira Filho, 1979,
p.126-130) à segunda década do século XX; a quarta, da década de vinte à de quarenta e,
por fim, da Operação Amazônia aos dias de hoje. Frise-se que as duas últimas investidas
já têm caráter agropecuário e que o modelo operacionalizado no Estado de Rondônia
contraria a conclusão de Costa (1998, p. 9), segundo quem, mesmo no quinto período, “O
setor pecuário moderno que se pretendeu formar em substituição às formas extrativas e
de agricultura camponesa da fronteira, não se formou”, grifo meu.

135 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
militar o transformasse no locus privilegiado dos projetos
de colonização integrada, baseados na pequena propriedade
rural45.

Assim, a transformação da estrutura extrativista, operada


pela desapropriação dos seringais e implantação dos projetos
de colonização, foi rápida e profunda, e pode ser medida pelo
que aconteceu na região de Ariquemes, onde 16 seringais deram
lugar a 6.223 famílias assentadas por dois projetos dirigidos,
entre 1974 e 1978. A intensidade pode ser aferida pelo que
afirma Becker (1990) “o crescimento demográfico entre 1970 e
1980 foi fantástico, com elevação das densidades de 0,4 para
8,5 hab/km²” (p. 177).

É desse modo que Rondônia passa a ser o palco da


maior explosão populacional da década de 70. A população
que havia aumentado 64,7%, de 1960 para 1970; na década
de 70, sobe para impressionantes 331,4% de crescimento
absoluto, enquanto que a taxa média geométrica chega a
15,74% de crescimento anual. Na década de 80, embora haja
uma contenção do crescimento exponencial, o crescimento
absoluto chega a 124,7%, mais que duplicando a população, e a
taxa média geométrica anual a 7,64%, o dobro da região norte
(3,85%) e o quádruplo da média brasileira (1,77%). Na década
de 90, enfim, a taxa média geométrica de crescimento, torna
se a menor da região (2,22%), ficando abaixo da média regional
(2,86%).

45 Acresce-se às condições específicas de Rondônia o fato de não possuir oligarquia


forte, o acesso rodoviário desde meados de 60, existência de manchas de terras férteis
próximas a BR, além de vastas áreas de terras devolutas (MESCH, 1984, p. 170), fatores
que, com a tutela do Estado, possibilitaram um fluxo migratório de tal intensidade que
motivou Becker (1990, p. 147) a repensar seu próprio conceito de fronteira, enquanto
“espaço não plenamente estruturado e, por isso, dotado de elevado potencial político [...].
Este é o caso de Rondônia [...]. A dinâmica do povoamento foi tal que aí se desenrola um
dos mais significativos processos de transformação econômica, social e política do Brasil
contemporâneo”.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 136


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Tabela 1 – Participação relativa da população rural e urbana,
crescimento absoluto do Estado e da capital, participação relativa da
capital, taxa média geométrica de crescimento anual do Estado, taxa de
crescimento absoluto do Estado e densidade demográfica – 1960/2000
1960 1970 1980 1991 2000
participação (%)
1-População Urbana 43,6 51,9 47,6 58,2 64,1
Rural 56,4 48,1 52,4 41,8 35,9
2-Rondônia 70.783 116.620 503.125 1.130.874 1.377.792
3-Porto Velho 51.049 88.856 138.289 286.471 334.585
4-População da capital (%) 72,12 76,19 27,49 25,33 24,28
5-Taxa média geométrica de
crescimento anual - 4,75 16,03 7,91 2,89*
6- Crescimento absoluto (%) - 64,7 331,4 124,7 21,8
7-Densidade (hab/Km²) 0,30 0,49 2,12 4,76 5,8

Fonte: Para 1, 2, 3, 4, 6 e 7; para 4: IBGE – Sinopse Preliminar do Censo Demográfico


2000, vol. 7, p. 1-30, 2-16, 2-18, 2-47, esses dados que divergem de FIERO (1995, p.64),
Batista (2001, p.37), Santos (2001, p. 96). Para 5 (*): Batista (2001, p.37), O IBGE (2000,
p. 1-30) apresenta a taxa de 2,22%.

Isso significa que o Estado deixou de ser o destino das


correntes migratórias nacionais (na década de 90, esse papel
coube ao Amapá, ao Tocantins e a Roraima) e passou a crescer
em função da própria população radicada. Nesse processo de
consolidação, todavia, há um fator que deve ser destacado: a
relação capital-interior.

A trajetória da primeira relação aponta para um dado


extremamente positivo e constitui um caso único na Amazônia.
Com efeito, no período extrativista, a capital, Porto Velho,
participava com 72,1% e 76,2% da população, de acordo com
os censos de 1960 e 1970. Com o processo de colonização, a
participação da capital cai para 27,5%, em 1980, portanto,
passando em uma década de ¾ para ¼ da população, mantendo
se em torno desse patamar em 1991 (25,3%) e em 2000
(24,3%). Numa palavra: a capital, que até 1970, representava
a massa da população “nativa”, essencialmente arigó-cabocla,
numa única década, vê-se completamente destituída dessa
representatividade, e passa a ser dominada pelos recém
chegados imigrantes caipiras das regiões Sul e Sudeste.

137 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Tabela 2 – Participação relativa da população do município da capital
em relação à da Unidade da Federação, nos censos demográficos de
1960/2000
das capitais
Municípios Participação relativa da população do município da capital em relação à
Unidade da Federação
1960 (1) 1970 (1) 1980 (1) 1991 (2) 2000 (2)
Porto Velho 72,12 76,19 27,49 25,33 24,28
Rio Branco 29,89 38,92 39,04 47,19 45,38
Manaus 24,31 32,70 44,34 48,05 49,90
Boa Vista 88,74 89,01 84,89 66,17 61,82
Belém 25,93 29,24 27,07 24,02 20,68
Macapá 68,09 75,34 78,09 62,09 59,42
Palmas ... ... 0,45 2,64 11,86

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000.


(1) População recenseada. (2) População residente.

Por isso, essa trajetória se constitui na melhor distribuição


populacional da região46, não só porquanto indique uma crescente
ocupação dos espaços rurais, mas também porque está acompanhada
de uma densidade demográfica (5,80 hab/km²), que apresenta a
segunda menor oscilação de taxa de densidade da Amazônia.

Os dados47 são elucidativos sobre a origem e o destino dos


imigrantes: a massa, de origem camponesa, em sua ampla maioria
expropriada, vem do Sul e do Sudeste, e se dirige ao interior do

46 A concentração da população nas capitais amazônicas parece só não ter sido um


problema para o Estado do Pará, na medida em que Belém tem historicamente oscilado
entre 20,68% e 29,24%, no período dado (1960-2000), por isso mesmo diferencia-se, de
forma positiva, da trajetória de Porto Velho. Todas as outras capitais se diferenciam de
forma negativa: Manaus é o extremo oposto, passa ascendentemente de 24,31%, em 1960,
para 49,90%, em 2000. Ver Censo 2000, Tabela 1.7, p. 2-15.

47 Grande parte dos colonos paranaenses, que emigraram para Rondônia, é descendente
de mineiros, capixabas e baianos, cujos pais emigraram nas décadas de 50 e 60 para o
Paraná. Participaram da abertura da fronteira Oeste desse Estado, mas não conseguiram
manter-se na terra e é na condição de expropriados que emigram novamente. Suporte
mais detalhado sobre as correntes migratórias e as condições de expropriação consultar
Martins (1982, p. 82-82), Becker (1990, p. 149), Silva (1975, p. 20), BRASIL (1976, p. 72-73).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 138


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Estado. Não é coincidência, portanto, que formação da nova base
econômica de Rondônia se faça a partir de uma agricultura, desde
cedo, comercial: adquirida a terra, aproveita-se os recursos naturais,
então abundantes, para torná-la agriculturável. O processo não
raramente passa ou pela venda da madeira, com cujos recursos
financeiros se limpa a área para as primeiras lavouras ou troca-se
a madeira pela limpeza da área ou, ainda, utiliza-se como lenha e
como matéria-prima para a construção dos equipamentos rurais.
Em quaisquer dos casos, os recursos naturais, particularmente a
madeira, são a primeira moeda. Desta maneira, o novo extrativismo,
de forma predatória, contribui com a agricultura, valorizando, do
ponto de vista dessa lógica, a terra.

Esse fato se torna relevante no processo de ocupação de


Rondônia, porque é o detour de uma lógica, que tem, na condição
do campesinato imigrante, o suporte da especificidade do processo
econômico. Sem embargo, a origem camponesa dessa população
e a condição de expropriados, em experiências anteriores, são
o fundamento do espírito pioneiro colonizador e não apenas
explorador-aventureiro e que, in limine, determinam o caráter sui
generis do processo. É com esse espírito que os dados da produção
agrícola podem ser interpretados:

Tabela 3 – Utilização das terras, segundo os resultados dos Censos de


1970, 1975, 1980, 1985 e 1995-1996 - Rondônia
Utilização das terras (ha) 1970 1975 1980 1985 1995-1996
Estabelecimentos 7.082 25.483 48.371 80.615 76.956
Área total (ha) 1.631.640 3.082.052 5.223.631 6.032.647 8.890.440
Lavoura permanente 12.273 45.763 170.178 215.465 254.334
Lavoura temporária 32.363 147.700 203.253 315.079 177.974
Lavoura em descanso - 10.064 39.327 83.022 69.220
Pastagem natural 82.186 60.046 242.653 221.572 343.369
Pastagem plantada 41.006 164.524 510.184 879.304 2.578.700
Matas naturais 1.070.591 2.551.749 3.829.753 4.070.888 5.090.420
Matas plantadas 446 297 165 8.065 41.040
Produtivas não utilizadas 350.328 56.341 73.573 90.855 236.626

Fonte: IBGE, Censos Agropecuários.


Nota: Os dados até 1985 referem-se a 31.12, no censo de 1995-1996 os dados
referentes a número de estabelecimentos, área total e utilização das terras referem-se
a 31.12.1995.

139 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A Tabela acima, representativa da evolução do uso da terra
em Rondônia, entre 1970 e 1995-6, permite visualizar que o processo
é irreversível e está em vias de consolidação. No geral, o censo
demonstra a expansão crescente da área plantada, exceção para a
lavoura temporária. Excetuando-se esta, portanto, a regra é a expansão
crescente do uso da terra por todos os grupos de atividade econômica,
com destaque para a área plantada de pastagem que, entre 1985 e
1995-6, triplicou confirmando, portanto, o processo de pecuarização
do setor primário do Estado.

A lógica da pecuarização é um fato constatado por diversos


autores. Alguns destes, explicam-na segundo prismas bastante
discutíveis: Fearnside (1989, p. 09, 14-19) vê apenas especulação e até
irracionalidade do colono; enquanto que Teixeira (1999, p. 213-218)
só consegue ver o caráter predador. Lopes (1983, p. 48), no entanto,
desde muito cedo e a partir de pesquisa de campo mais acurada, expõe
as condições concretas da construção dessa lógica “O aumento da área
de pastagem está diretamente relacionado com os baixos preços dos
produtos agrícola, com os problemas de financiamento para o café e o
cacau, além da vassoura de bruxa que tem atacado este último”, com
o que concorda Costa et al. (1996, p. 27). Mas não se trata apenas de
um déficit financeiro da atividade agrícola, baseada na monocultura,
trata-se, conforme se constatou através de levantamento em campo
(MACIEL, 2001, p. 23) de uma racionalidade camponesa construída,
segundo as condições do ecossistema e de um mercado de fronteira,
onde o aproveitamento dos recursos vegetais, transformados em
acesso e capital inicial, é fundamental para incrementar as culturas
agrícolas que vão “amansar” a terra e proporcionar a formação do
pasto e da fazenda, aspiração final, aliás, de todos.

Por essas razões, a longa experiência do colono com as


incertezas (preço dependente do mercado externo, das condições
climáticas, das políticas efêmeras dos governos) e as dificuldades da
agricultura (acesso ao crédito, custo elevado de produção e circulação,
precária infra-estrutura viária para escoamento,) consolidou a lógica
de propensão a um investimento mais seguro e, pela diversificação
que proporciona, mais rentável: a pecuária.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 140


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
É essa lógica que explica porque a área da pecuária triplicou,
passando de 879.304 ha, em 1985, para 2.578.700 ha, em 1995
6. Infelizmente, esse foi o último Censo agropecuário realizado,
portanto, após esse ano, em termos de área, o que se pode fazer é
estimá-la, a partir do efetivo do rebanho. Levando em consideração
que a média em 95-6 era de uma e meia cabeça por hectare, tem-se,
em permanecendo essa proporção, em 2002, um total de 5.359.926
ha de pastagens, só para o rebanho bovino. Assim, enquanto a área
da agricultura permanece estancada nos limites de 95-6, apesar
do crescimento das áreas plantadas de mandioca, soja e palmito, o
pasto duplicou sua área. Nos seis anos, que separam 1996 de 2002, o
efetivo também duplicou, passando de 3.937.291 milhões de cabeças
para 8.039.890 (IBGE, 2002). Marca extraordinária, dada a condição
sanitária do rebanho, a diversidade da produção e a cadeia produtiva
desencadeada.

Tudo isso significa, na prática, uma completa e profunda


alteração na forma de ocupar e usar as terras no Estado, transformando
a estrutura fundiária, baseada nos seringais e sua correspondente
forma de utilização, fundada no extrativismo vegetal, numa estrutura
fundiária camponesa, baseada na exploração racional da agricultura
familiar e da pecuária e, por conseguinte, na estrutura social do Estado.

Como decorrência, o eixo econômico, deixa de ser o até então


conhecido na Amazônia, que acompanha o curso dos rios, e passa a ser
o eixo que entorna a BR-364. Desse modo, segundo Matricardi ([1996],
p. 03) “A área ocupada com imóveis rurais que correspondia em 1970
a 7%, atinge em 1991 cerca de 57% da área territorial de Rondônia”.

O resultado da ocupação econômica de Rondônia e da


migração camponesa majoritariamente sulista (Sul e Sudeste), que
a acompanhou, é a transformação radical do espaço amazônico
rondoniense: no lugar dos seringais, há pastos e lavouras; o
transporte não se baseia na rede fluvial, mas rodoviária (Rondônia
possui, proporcionalmente, a maior rede rodoviária do Norte e o
deslocamento terrestre para qualquer município pode ser feito
em um dia – ao contrário do Acre, Amazonas e Pará, por exemplo);

141 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
desde o final da década de 1970, Rondônia é o terceiro Estado mais
desflorestado do Brasil; as cidades não se desenvolveram, foram
implantadas pelo planejamento urbano, de acordo com a lógica
sulista que vai da arquitetura à arborização.

A população cabocla do interior que, em 1970, representava


23,8%, parte da qual em pequenas Vilas e comunidades ao longo da BR
319, simplesmente ou desapareceuou foi confinada em guetos urbanos
(como acontece com o bairro Marechal Rondon, em Ariquemes).
Enquanto isso, a Capital, Porto Velho, deixou de ter a importância
econômica que tinha na década de 1980; sucumbiu politicamente
desde meados dos anos de 199048; e, hoje, culturalmente, salvo
minúsculos redutos, é uma cidade que se quedou à cultura sertanejo
caipira moderna.

Colonos e caboclos em Rondônia:


a sulinização de um espaço amazônico

Mas afinal de contas, quem são esses migrantes? Por


que escolheram Rondônia? Pode-se dizer, desde logo, que não
escolheram, foram escolhidos.

Primeiro porque a geopolítica da integração nacional dos


governos militares dividiu a Amazônia e o Centro-Oeste, de acordo
com uma estratégia econômica, que reservou uma função a cada

48 O governo Valdir Raupp (1995-1998) é a consagração do processo de colonização e


da pujança das economias municipais. Originário do município de Rolim de Moura, esse
governo, eleito sob o discurso da crítica ao descaso com a agricultura, marca a hegemonia
completa do interior, na medida em que já a possuía no legislativo. Desde então, são
representantes (e empresários!) do setor que se revezam no poder executivo: José Bianco
(1999-2002), do município de Ji-Paraná; Ivo Cassol (2003-2010), do município de Rolim de
Moura e, finalmente, Confúcio Moura (2011-2014), do município de Ariquemes.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 142


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Estado: o Pará ficou com os grandes projetos agrominerais, o
Amazonas com o enclave industrial, o Acre como reserva extrativista,
o Mato Grosso com as grandes empresas rurais e Rondônia com a
colonização integrada, baseada na pequena propriedade rural.

Segundo porque os programas de colonização, em especial


os de Rondônia, que pressupunham os fatores de fracasso do Pará,
foram programas dirigidos, inicialmente, a excedentes camponeses
do Paraná e da Bahia e, embora a migração se tenha generalizado, na
década de 1970, o processo de seleção levava em conta a condição
social, a experiência camponesa, a origem da migração e o número
de filhos da família49.

Gráfico 1 – Migração por naturalidade do colono

Fonte: Pesquisa de campo realizada em Ariquemes e Monte Negro, em Mai


Jun/2002.

49 Esse processo confirmado nas entrevistas de campo por Maciel (2004, p. 122), por
Sydenstricker (1990, p. 29-33), ao descrever a seleção para o Projeto Machadinho e por
Miranda (1987, p. 15-26).

143 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Com efeito, a seleção do colono por sua origem camponesa
majoritariamente sulista, associada à experiência com sistemas
produtivos de elevada inserção no mercado, tornaram-se requisitos
indispensáveis para reafirmar a condição de proprietário, quer pelas
estratégias produtivas de intensificação e diversificação, as quais
supõem aproveitamento racionalizado da divisão técnica e social do
trabalho, quer pelas tomadas de decisão para superação das crises
decorrentes das oscilações de preços do mercado. Essa peculiaridade
dos PADs, comum também aos PICs, torna-se um componente
relevante do caráter da formação social do colono, que possibilitou o
salto para uma nova formação social, orientada por uma lógica, aqui
denominada de pecuarização.

Essa nova formação social, portanto, resulta do encontro bem


sucedido entre as políticas públicas, constituídas pelos projetos de
colonização dos programas de desenvolvimento, e a propensão para
o trabalho, consubstanciada na intensidade de trabalho despendido,
pelos colonos, predominantemente de ascendência sulista. Do lado
das políticas públicas, vale enfatizar que o financiamento da produção
possibilitou trajetórias produtivas, até então desconhecidas nas fases
iniciais de ocupação campesina; do lado do colono, a disposição ao
trabalho para construir uma unidade produtiva competitiva, que
o tornaria um camponês fora dos padrões tradicionais, seja pelos
referenciais da sociologia clássica, seja pelos referenciais brasileiros
sobre a fronteira, seja pelos referenciais sobre a shifting culfivafion
cabocla. Os dados da coleta na região de Ariquemes são elucidativos.

A primeira questão que salta aos olhos, neste Gráfico 1, é o fato


de que não há nenhum migrante da região Norte, e os do Centro-Oeste
e Nordeste, a exceção da Bahia, são insignificantes. A migração, por
naturalidade, do Sudeste gira em torno de 40%; do Sul, em torno de
31% e, o Nordeste, em 25%. Ou seja, em torno de 71% das regiões Sul
e Sudeste.

Em se tratando de naturalidade, ainda, o Estado de Minas


Gerais aparece em primeiro lugar em emigração, seguido do Paraná,
Bahia e Espírito Santo. No entanto, quando se observa a emigração,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 144


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
a partir do Estado de onde as famílias se deslocaram para Rondônia,
a relação entre Minas e Paraná se inverte, conforme se pode verificar
pelo Gráfico 2, invertendo a relação Sul-Sudeste. Nesta, a migração do
Sul gira em torno de 40% e a do Sudeste em torno de 31%, portanto, as
duas regiões permanecem no mesmo patamar. Em termos de Estado,
o Paraná dispara em primeiro lugar, seguido de Minas, Bahia, Espírito
Santo e, a novidade, os dois Estados do Mato Grosso, notadamente,
por ficarem a meio caminho na rota da migração.

Gráfico 2 – Migração por Estado de emigração

Fonte: Pesquisa de campo realizada em Ariquemes e Monte Negro, em Mai-Jun/2002.

Esses dados confirmam a tese, segundo a qual o Estado do


Paraná recebeu forte migração do Sudeste, em particular de Minas
Gerais, quando da abertura de sua fronteira Oeste, do mesmo modo
como proporcionou um elevado índice de emigração, quando essa
mesma fronteira dá sinais de esgotamento (MARTINS, 1982).

A experiência paranaense, por isso mesmo, por se tratar de


um processo relativamente rápido de aquisição e de desapropriação
de terra, de um lado e, de outro, de trabalho assalariado rural,
em ambos os casos, de fracasso de uma empreitada de vida, que

145 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
tem por objetivo a propriedade da terra, será determinante para
a compreensão da luta pela conquista e permanência na terra,
em Rondônia. A conquista que se fará mediante a superação das
dificuldades impostas pelo acesso (aquisição), pelo meio físico
(desmatamento de floresta virgem e malária) e pela produção
e escoamento desta na fase inicial (infra-estrutura mínima); e a
permanência, que se fará pelas estratégias produtivas adotadas, cuja
reprodução só teria sentido se ampliada para o mercado, única forma
de, novamente, não ser expulso por este.

Sem a experiência paranaense, cujo legado, acima de


tudo, consiste na compreensão dos mecanismos do mercado
capitalista, é impossível compreender a determinação desse
colono em expandir sua produção, como é o caso de Fearnside
(1989, p. 27) que vê avareza e ganância, onde aqui se vê eficiência
produtiva.

Assim, a intensidade da migração camponesa sulista, apoiada


pelas políticas de Estado, não toma ‘conhecimento’ da cultura
cabocla, num primeiro momento, entre as décadas de 1970 e
meados dos anos de 1990, do Sul do Estado até 100 Km às portas de
Porto Velho. Nunca é demais lembrar que só na região de Ariquemes,
16 seringais e suas poucas famílias dão lugar a 6.223 famílias dos
projetos dirigidos, entre 1974 e 1978. Nessa proporção é que
impõem uma estrutura social, a camponesa de base agropecuária,
e um sistema cultural, o sertanejo-caipira, e seu conjunto de valores
simbólicos e materiais, que vai da arquitetura à culinária, passando
pelas variações linguísticas, relações de parentesco, formas de lazer,
nas quais se encontram a música, a dança e, a expressão folclórica
máxima, os rodeios das exposições agropecuárias.

Dominada a base econômica e cultural de 80% do Estado, o


segundo momento inicia com a conquista do espaço político, desde
o governo Raupp (1995-1998), a partir de quando as elites regionais
portovelhenses, surpreendidas pela sua própria incapacidade de
se incluir e gerir as novas condições do desenvolvimento, vão, elas
também, sucumbindo submissa e humilhantemente.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 146


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Hoje, Porto Velho é uma cidade que perdeu a biruta: invadida
literalmente pelos camponeses novos ricos, esforça-se para ser caipira,
enquantoescondesuacaracaboclaealmanordestina.Enessepapelficatão
bem quanto um índio, que se vê trajado de peão em cima de jegue. Atônita
e impotente vê o arraial Flor do Maracujá ser substituído pela exposição
agropecuária, as escolas de samba (e que isso não aconteça com a Banda
do Vai Quem Quer) pelo carnaval fora de época, a madeira-mamoré pelo
shopping.Sem teatro eoutros espaços artísticos, resta o mercadocultural, o
últimoredutodeumaculturateimosa,prestesaenfrentarseuúltimoround.

O último round da resistência cabocla em Rondônia

Do vasto referencialteórico acerca da ocupação socioeconômica


de Rondônia a partir de 1970, apenas um ou outro se preocupa com
a contradição entre colonos e caboclos, e com os impactos culturais
decorrentes. A maioria absoluta ou trata da luta entre camponeses
(colonos do Sul e Sudeste, principalmente) e a fazenda da grande
empresacapitalista,oudosimpactosambientaisdaocupaçãoantrópica.
Neste texto, procurou-se demonstrar que a ocupação socioeconômica
de Rondônia, fundamentalmente por camponeses do Sul e Sudeste,
a partir dos Projetos de Colonização do Programa de Integração
Nacional, iniciou uma transposição cultural, cujas consequências
chegam ao paroxismo exato no presente momento, quando a própria
capital, enquanto último reduto de resistência da cultura tradicional
amazônica em Rondônia, parece quedar-se ao poderio econômico
caipira e suas manifestações culturais, por consequência direta.

Para tanto, mostra-se como decorreu a formação cultural da


Amazônia, de acordo com três períodos determinantes: o colonial, o
seringal e a urbanização da cultura cabocla. O primeiro que se inicia
com a construção do Forte do Presépio, em Belém, no ano de 1616,
e se estende até meados do século XIX; o segundo, que vai deste
momento, quando a economia da borracha determinará a ocupação

147 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
sociocultural da Amazônia, até o ocaso dessa economia durante a
segunda década do século XX; e a terceira, a urbanização da cultura
cabocla, que se divide em duas etapas, a primeira, entre as décadas de
20 e 60, e a segunda, de 1970 aos dias atuais.

Demonstra-se, com base nessa periodização, como ocorreu


a formação da cultura cabocla, enquanto estrutura fundamental da
formação cultural brasileira, que essencialmente pode ser constituída
por cinco formações: a gaúcha no Sul; a caipira no Brasil central, que
corresponde grosso modo às regiões Sudeste e Centro-Oeste; a crioula
e a sertaneja, concentradas no Nordeste; e a cabocla, no Norte do país.

E por fim, demonstra-se que a ocupação socioeconômica de


Rondônia é uma ocupação completamente diferente de tudo que
a Amazônia já havia passado antes, tanto pela forma institucional,
baseada nos Programas de Colonização, quanto pela cultura majoritária
das populações, essencialmente, camponesas de origem já caipira,
segundo a uma vertente da tradição antropológica brasileira.

O processo iniciado, em 1970, muda radicalmente a paisagem


física, cultural e social de Rondônia, processo esse que, no presente
momento, chega à capital, Porto Velho, considerada aqui, o último
reduto da resistência cabocla. Mas a considerar, por um lado, o peso do
poder econômico e, por outro, a intensidade e rapidez das mudanças
culturais evidentes, pode-segarantir, poroutras experiências históricas,
que Porto Velho trava seu último e decisivo round. ●

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184 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Centro de Humanidades,
Universidade Federal da Paraíba, Campina Grande.
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.
SYDENSTRICKER, John M. Família, fecundidade e as estratégias de
assentamento em Rondônia: um estudo de caso. Campinas: NEPO/
UNICAMP, 1990.
TEIXEIRA, Carlos C. Visões da natureza: seringueiros e colonos em Rondônia.
São Paulo: EDUC, 1999.
WAGLAY, Charles. Uma comunidade amazônica; estudo do homem nos
trópicos. 3ª edição, São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1988.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 152


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
A constituição da diversidade cultural como problema curricular

Daniele P. Kowalewski

A recorrência de temas pertinentes ao multiculturalismo na


atualidade tem-se tornado uma constante nas análises teórico-sociais,
refletindo-se principalmente na área da Educação. Em contextos liberais e
democráticos,énotóriaalutapolíticareferenteàentrada decertosassuntos,
até então negligenciados, nos currículos escolares, como o questionamento
frenteaospreconceitosderaçaeetnia,sexualidadeegênero,dentreoutros.

No Brasil, país marcado tanto pela variedade cultural como pela


desigualdade socioeconômica entre seus habitantes, a inserção de
demandas multiculturais nas escolas toma um contorno todo específico.
Refletindo sobre essa peculiar conjuntura, objetivo melhor compreender
a introdução do tema da diversidade cultural como um assunto curricular.
Para tanto, pretendo analisar alguns dados sobre a emergência da questão
tanto em documentos oriundos do MEC, quanto da pesquisa acadêmica no
campo educativo brasileiro50.

50 As ideias que aqui se apresentam devem-se ao relatório realizado, junto e sob a

153 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A emergência da temática multicultural na Educação Brasileira

Para analisar o conceito de multiculturalismo diante da


especificidade da escola brasileira, parto do pressuposto de que as
escolhas pedagógicas são sempre éticas e políticas. Devido a isso,
cumpre percebermos – conforme exponho no quadro abaixo – como a
questão da diversidade foi inserida nos currículos por meio de muitas
lutas políticas e negociações de diferentes setores da sociedade civil e
não só da ação estritamente governamental.

Quadro 01: Diferenças culturais como questão educacional:


cronologia introdutória

Ano Documento Acontecimento


1985 Fim da ditadura Militar – redemocratização do país
1988 Federal
Constituição Artigo 242 (Título IX, Capítulo III, Seção II) §01, estabelece-se que “o
ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”
1996 Conferência
Viena de Contrária ao relativismo cultural.

1996 Lei de Diretrizes


Bases
Brasileira
Educação (LDB) da
e Acrescenta aspectos à Constituição em seu Art. 26 § 04: “o ensino de
história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes
culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente
das matrizes indígena, africana e européia”. Também visa
proporcionar aos indígenas “a recuperação de suas memórias
históricas; a afirmação de suas identidades étnicas; a valorização de
suas línguas e ciências”, além de “garantir aos índios, suas
comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos
técnicos e científicos as sociedade nacional e demais sociedades

orientação da Profª Helena C. Chamlian (2010), para o encontro anual da IALEI (The
International Alliance of Leading Education Institutes), que em 2010 teve como questão “A
Educação Multicultural”. Com o propósito de produzir um “estado da arte” sobre esse tema
no Brasil, fizemos, dentre várias outras pesquisas, um levantamento e análise inéditos
sobre as investigações de pós-graduação stricto-sensudos temas “multiculturalismo
e diversidade cultural” na área da educação entre os anos de 1997 e 2009. Esse tema
também é meu objeto de estudo em minhas pesquisas de pós-gradução, no mestrado
(KOWALEWSKI, 2010) e no doutorado, sob orientação da Profª Drª Flávia Schilling. Dado o
exposto, ressalto que este texto tem o propósito somente de socializar alguns resultados
que acredito relevantes para o atual debate sobre o tema.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 154


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
suas línguas e ciências”, além de “garantir aos índios, suas
comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos
155 técnicos e científicos as sociedade nacional e demais sociedades
indígenas e não índias”Art. 78.
1998 Publicação
Nacionais
Curriculares
Parâmetros dos Em seus temas transversais, a pluralidade cultural aparece ao lado de
ética, educação sexual, saúde, meio-ambiente e trabalho e consumo
como assuntos imprescindíveis a serem tratados pela Educação.

1998 Nacionais
Curriculares
Diretrizes Propõe uma “estética da sensibilidade” de valorização e respeito a
diferentes culturas.

2001 Mundial
Conferência
Combate de
ao Brasil assina compromisso – novas ações são pensadas para combater
o racismo -

Racismo,
Discriminação
Racial, Xenofobia
e Intolerância
Correlata
2003 Decreto
Negra)
Consciência
Lei 10.639(Dia da Acréscimo à LDB: obrigatoriedade do ensino de História da África

Institui o dia 20 de novembro (data da morte de Zumbi dos Palmares)


como o dia da Consciência Negra no Brasil

Primeira faculdade destinada a negros na América Latina.


(re) Inauguração
da Faculdade
Zumbi dos
Palmares
2004 Criação da SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade:
Alfabetização de jovens e adultos, educação do campo, educação
ambiental, educação escolar indígena, diversidade étnico-racial. Seu
objetivo principal é contribuir para redução das desigualdades
educacionais. Por meio da participação de todos os cidadãos em
políticas públicas que assegurem a ampliação do acesso à educação.
2005 Parecer
10.639 Lei Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
2008 CD/FNDE Nº. 14,
Resolução
28/04/08. Critérios para assistência financeira às instituições de educação
superior com o objetivo de fomentar ações voltadas para a formação
inicial e continuada de professores da educação básica e para a
elaboração de material didático específico no âmbito do Programa de
Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições de Ensino
Superior (Uniafro).
2008 Lei 11.645 Mudança da LDB: instituindo a obrigatoriedade de Ensino de história e
cultura africana, afro-brasileira e indígena.
2010 Estatuto Racialda
Igualdade Criação do SINAPIR (Sistema Nacional de Promoção da
Igualdade Racial).
Escolas são obrigadas a ensinar história geral da África e da população
negra do país.
Garantia de liberdade para exercício de crença e cultos de origem
africana.
Criação de linhas especiais de financiamento de construção para
comunidades quilombolas.
Discriminação racial passa a ser definida como “distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada em etnia, descendência ou origem
nacional”.
Desigualdade racial ficou definida como “as situações de diferenciação
de acesso e gozo de bens e serviços e oportunidades nas esferas
pública e privada”.
População negra é formada por todas as pessoas que se classificam

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
de acesso e gozo de bens e serviços e oportunidades nas esferas
pública e privada”.
População negra é formada por todas as pessoas que se classificam
como tais ou como pretos, pardos ou outro termo parecido.
A Capoeira é reconhecida oficialmente como esporte, podendo
receber recursos do governo.

Fonte: (KOWALEWSKI, 2010 – versão resumida)

Esta cronologia é bastante parcial, pois é fato conhecido que


essas conquistas devem-se a lutas muito anteriores ao período da
redemocratização brasileira (1984). Por conta disso, é digno de nota
que foi durante esse processo – consubstanciado na Constituição
Federal de 1988 – que se incluiu na pauta do ensino a consideração
da diversidade cultural brasileira. A primeira lei educacional
mais geral posterior, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de
1996 (9394/96), incorporava o disposto na Constituição e, ao
mesmo tempo, dedicava especial atenção aos povos indígenas.
Esse destaque foi influenciado pela atuação de Darci Ribeiro,
antropólogo indianista, autor do projeto de lei, bem como pela
própria mobilização desses povos para que suas particularidades
fossem pensadas nas discussões sobre currículos e diretrizes
educacionais.

Por outro lado, pode-se verificar que, em relação às


culturas africanas e afrobrasileira, o processo foi mais lento,
ganhando maior vigor após a assinatura de compromisso
do Brasil na Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em
2001, resultando em 2010, na promulgação do Estatuto da
Igualdade Racial.

Desse modo, percebe-se que o trajeto percorrido até


a sanção do Estatuto revela as dificuldades existentes no país
no tratamento das diferenças étnicas. Se, por um lado, parece
ser mais assimilável considerar as especificidades oriundas das
diversas culturas dos povos indígenas, promovendo com estes uma
educação diferenciadora e integradora; por outro, com as culturas
afrobrasileiras demonstrou-se necessário um extenso debate que,
ainda longe de ser esgotado,revela as dificuldades presentes na
superação da discriminação racial relativa a essa população, pois

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 156


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
tanto a afirmação da diferença quanto a luta pela igualdade são
reivindicadas para uma cultura considerada já integrada à cultura
nacional.

A fim de pensar a cultura brasileira em seu caráter pluriétnico,


a principal agenda a ser cumprida pelo sistema educacional
brasileiro na atualidade inclui, dentre outras demandas:transformar
o ensino de história; abarcar disposições específicas para lidar
com as diferenças, orientando escolas e professores; integrar os
alunos com os direitos civis plenos. Toda essa tendência a repensar
as diferenças pode ser verificada não só pelos documentos, mas
também pelas novas perspectivas apresentadas por meio das
pesquisas em educação. É o que veremos a seguir.

Apesquisa acadêmica sobre atemática“multiculturalismo e educação”

Análise de banco de dissertações e teses


(defendidas entre 1997 e 2009):

Notas Metodológicas:

Com intuito de fazer um mapeamento da produção acadêmica


sobre o tema multiculturalismo e educação, efetuei pesquisas no site
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), onde figura um banco de dados com as dissertações e teses
defendidas no país em todas as instituições do ensino superior. As
informações são fornecidas diretamente à CAPES pelos programas de
pós-graduação, que se responsabilizam pela veracidade dos dados.

Essa pesquisa foi demarcada entre o período de 1997 e 2009,


em que a questão do Multiculturalismo passa a fazer parte dos

157 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
documentos oficiais nacionais de educação, representado nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), com a publicação
do tema transversal “Pluralidade Cultural”, ao lado de outros
como “Ética”, “Saúde”; “Educação Sexual”, “Meio Ambiente” e
“Trabalho e Consumo”.

Devido à amplitude do número de trabalhos e,


principalmente, de temas vinculados ao multiculturalismo,
que vão desde diversidade e pluralidade cultural até a inclusão
de deficientes, passando por características de migrantes
e imigrantes, homossexualidade, envelhecimento, gênero,
optei por demarcar essa pesquisa nas seguintes palavras
chave: pluralidade cultural, multiculturalismo e educação,
priorizando questões vinculadas às demandas étnicas de
negros e indígenas, além de temas correlatos, como: Ação
Afirmativa, Aplicação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório
o Ensino de História e Cultura Africana e Afrodescendente nas
escolas.

De um total de 360 trabalhos encontrados, foram extraídos


165 para a presente pesquisa. O critério geral de filtragem51 foi
a temática da raça/etnia e, dentro dessa filtragem, a seleção se
deu, respectivamente, pela aproximação do título e das palavras
chave ao tema do multiculturalismo e educação. ao longo da
leitura desses trabalhos, iniciei uma classificação de acordo
com a ocorrência de determinados temas. Várias pesquisas
apresentaram mais de um tema, o que justifica o número
elevado de ocorrências em determinadas categorias. Isso feito,
busquei agrupar as legendas, para melhor descrevê-las, em
eixos temáticos, tais como: políticas públicas, educação, ensino,
matrizes teóricas e questões cruciais ao multiculturalismo,
conforme exponho a seguir.

51 Critérios de Busca: Autor: Todos, Assunto: Diversidade Cultural, educação, Instituição:


Todas; Nível: Todos, Ano Base: 1997 até 2009. Autor: Todos, Assunto: Multiculturalismo;
educação, Instituição: Todas, Nível: Todos, Ano Base: 1997 até 2009.Disponível: http://
capesdw.capes.gov.br/capesdw/Acessos entre 24/06/2010 a 06/07/2010).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 158


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Tabela 01: Total e nível (mestrado e doutorado) dos trabalhos analisados
Ano
defesa de Mestrado Doutorado Total

1997 01 01 02
1998 01 00 01
1999 01 01 02
2000 06 05 11
2001 05 03 08
2002 07 03 10
2003 13 02 15
2004 19 02 21
2005 12 03 15
2006 10 04 14
2007 14 04 18
2008 19 01 20
2009 22 06 28
Total geral 130 35 165

Descrição e análise dos dados

O gráfico abaixo demonstra os temas com maior número


de ocorrências encontradas nos trabalhos: Currículo e Formação
de Professores. Interessante notar como a inserção de demandas
multiculturais no currículo ou desses temas na formação docente
ganham ênfase em vários trabalhos. Isso não é fortuito ou isolado,
já que as alterações ocorridas no âmbito educacional brasileiro
parecem fazer parte tanto de um movimento sociopolítico global de
fortalecimentos identitários, quanto de mudanças locais, relacionadas
às demandas de grupos sociais pela inserção de seus reclames nas
diretrizes curriculares.

159 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Gráfico 01: Educação

educação

70

60

50

40

30

20

10

0
CUR FP LD LP CE EI EP EJA ED
Educação 63 51 7 1 19 6 20 6 2

CUR: Currículo
FP: Formação de Professores
LD: Livro Didático
LP: Língua Portuguesa
CE: Cotidiano Escolar
EI: Ensino Infantil
EP:Escola Pública
EJA: Educação de Jovens e Adultos
ED: Ensino à distância

A partir da leitura efetuada por Tomaz Tadeu da Silva em


Documentos de Idenfidade: uma introdução às teorias do currículo
(2007), acredito que os debates educacionais passam, de alguma
forma, por questões curriculares, o que também se evidenciou ao
longo da pesquisa:

Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos


apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento
que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente,
vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos:
na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer
que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 160


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
uma questão de identidade. É sobre essa questão, pois, que se
concentram também as teorias do currículo (Ibid., p. 15 e 16).

Para explicar as mudanças curriculares como lutas produzidas


pelo poder de gerar identidade, o autor delineia como a temática
multicultural aparece como posição enunciativa, produzida
ativamente.

Silva (Ibid), ao buscar compreenderas prioridades presentes nas


atuais discussões sobre como devem ser os currículos, destaca alguns
modelos curriculares contemporâneos52, como as teorias tradicionais,
com ênfase na ampliação da escolarização de massa voltada para as
atividades laborais, as teorias críficas, que expõem a fragilidade de
certos pressupostos dos presentes arranjos sociais e educacionais,
enfatizando as consequências da ideologia e das reproduções cultural
e social e também as teorias pós-críficas do currículo, com origem
nos países do Norte, principalmente nos Estados Unidos e Inglaterra.
Estas últimas apresentam como principais características: diversas
concepções sobre o ser humano, perspectiva dos grupos culturais
dominados, a busca por respeito, além da tolerância, o que, na visão
do autor, reflete uma tendência curricular pós-moderna. Utilizando o
currículo como um instrumento de luta política, sua ênfase recai nas
minorias excluídas, atribuindo especial relevância para os temas da
identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação, saber
poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e
multiculturalismo.

O autor afirma que os diferentes modelos de teorias podem


coexistir, entretanto, temos hoje a proeminência das teorias pós
críticas, fato esse que também se evidencia nesta análise sobre as
investigações efetuadas no âmbito educacional, que assinalou as lutas
em torno dos conteúdos curriculares como o tema mais examinado
pelos pesquisadores.

52 Essa síntese foi feita a partir de trechos e de impressões do livro de Tomaz Tadeu da
Silva (2007).

161 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
O autor também ressalta que se tornou lugar-comum destacar
a diversidade das formas culturais do mundo contemporâneo (Ibid., p.
85). Dessa maneira, deve-se, segundo o autor, questionar as conexões
entre educação e multiculturalismo como um fenômeno ambíguo, em
que se encontram manifestações e expressões de grupos dominados
juntamente com a fabricação de diversidades por poderosos
instrumentos de homogeneização, como os meios de comunicação de
massa. Não podendo ser separado das manifestações de poder, que
geram e avaliam as diferenças, o próprio multiculturalismo [incentivo
às diferenças culturais] é repleto de contradições. Não por acaso, aqui
no Brasil, este assume formas bastante amplas, sendo reivindicado
tanto para produção de novos livros didáticos como paradidáticos e na
formação docente, quanto na educação infantil e de jovens e adultos,
além da educação à distância, até fazer parte das escolas públicas e do
cotidiano escolar, conforme visualizado no Gráfico 01.

Se essas foram questões encontradas no âmbito geral da


educação, quando as metodologias educativas (aqui intituladas de
“ensino”) são abordadas nas pesquisas, o resultado é o seguinte:

Gráfico 02: Ensino


ensino

14
12
10
8
6
4
2
0
EA EM HH EF CAP EB EC EH LT LE LG AV
Ensino 10 1 2 13 4 4 1 1 1 5 2 4

EA:
CAP:
EB:
EM:Educação
HH:
EF: Ensino
Hip
Ensino
Capoeira
Hop
de
deFísica
bilíngue
Artes
Música EC: Estudos das Culturas
EH: Ensino de História
LT: Literatura
LE: Letramento
LG: Linguagem
AV:Avaliação

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 162


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Destacam-se aqui as ênfases dadas aos Ensinos de Artes e
Educação Física e, com menor incidência, práticas da capoeira e do hip
hop, estas últimas estreitamente vinculadas à cultura negra.

Como podemos observar neste Gráfico, incluem-se nas


preocupações dos estudiosos sobre as relações entre multiculturalismo
e educação, referências a várias formas de ensino (história, ciências,
música, ensino infantil, letramento e linguagem). Além disso, na
tentativa de afirmação da diferença e superação das disparidades
sociais, constatam-se preocupações metodológicas, ou seja, sobre
formas de se proceder durante a avaliação discente ou a necessidade
da educação bilíngue nos contextos indígenas, além de conteúdos
específicos. Esses dados levaram-me a inferir que a preocupação
com o reconhecimento da diversidade cultural perpassa quase todas
as formas de ensino contemporâneas. A ligação entre questões
identitárias e dessemelhanças sociais sugere ser a cultura brasileira,
ao mesmo tempo, sincrética e desigual, sendo as metodologias
consideradas formas de luta contra as discriminações no âmbito
escolar.

Gráfico 03: Matrizes Teóricas


Matrizesteóricas

25

20

15

10

0
5

EC: Pós-estruturalismo
ETM:
PE: Estudos
Etnomatemática
Culturais EC ETM PE MC PA PED IT
Matrizes Teóricas 19 6 2 8 3 2 20

PA: Pesquisa ação (além da teoria)


PED: Pesquisa em educação
IT: Interculturalidade
MC: Multiculturalismo crítico

163 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
As questões multiculturais, sempre atreladas às questões
identitárias apresentam, nas pesquisas educacionais, matrizes
teóricas bastante específicas: as maiores incidências são justamente
das teorias vinculadas aos estudos culturais e aos estudos sobre
a interculturalidade, um termo correlato ao multiculturalismo,
embora epistemologicamente diferenciado. A pesquisa-ação e o pós
estruturalismo também fazem parte das matrizes teóricas recorrentes
nos trabalhos pesquisados.

Merece destaque a ênfase dada em alguns trabalhos para o


Multiculturalismo Crítico, associado a Peter McLaren, como modo
de compreender as diferenças culturais e associá-las com formas
de emancipação. Outra relevante ocorrência é a dos estudos sobre
a etnomatemática, forma de ensino da matemática que leva em
consideração os conhecimentos de formas culturais diversas, como
a dos negros e indígenas, ampliando, segundo seus termos, o
conhecimento associado a apenas uma forma cultural.

Gráfico 04: Questões Cruciais ao Multiculturalismo

questões cruciais ao Multiculturalismo

20

15

10

0
ARA IV T RAC MDR MPB MN O IC ID IG
Questões Cruciais ao 3 4 10 17 5 1 10 12 2 18 2
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
Multiculturalismo CULTURAL:

IV
ARA:
T:
RAC:
MDR:
Tolerância
Invisibilidade
Racismo
Anti-racismo
Mito da Democracia
Negra Racial MN: Movimento Negro
O: Outro
IC: Inclusão
ID: Identidade
IG: Igualdade

164
desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
No gráfico acima, visualizam-se as questões consideradas
de grande relevância para esses estudos. O combate ao racismo
em relação aos negros aparece como a maior preocupação dos
trabalhos pesquisados, a ele unem-se os temas da construção do
“outro”, da alteridade e superação da “invisibilidade dos negros”
na cultura brasileira e no cotidiano escolar. Não menos importante
nas pesquisas são as conquistas e desafios do Movimento Negro no
âmbito educacional; são analisados assuntos como a tolerância e a
inclusão do “diferente” perante a cultura dominante e a afirmação
deste em sua identidade. Embora com menor incidência, também
são significativos os trabalhos que abordam a mistura de povos no
Brasil e o sincretismo cultural gerado por ela.

É recorrente ainda a necessidade de superação do


polêmico “mito da democracia racial”, sendo este, de modo geral,
caracterizado como “enganoso” por ostentar a harmonia entre as
raças e não considerar as profundas desigualdades ocasionadas pelo
racismo e subjugo de algumas culturas, além, é claro, da polêmica
questão sobre como “categorizar” os pardos. A busca por igualdade
tanto cultural quanto social e o papel desempenhado pela formação
educativa para que isso possa se concretizar também se constituem
como temas de pesquisa em alguns trabalhos.

Destaco, nesses resultados, a grande incidência de estudos


sobre questões curriculares e sobre o processo de formação de
professores, além da inclusão de temas sobre disciplinas voltadas
para educação física e arte que revelam as áreas e as maneiras pelas
quais atualmente incidem as questões da diversidade cultural no
contexto educacional brasileiro.

Dado o exposto, percebe-se que o tema do Multiculturalismo


e seu vínculo com a educação, num país diverso como o Brasil, não
só apresenta uma série de peculiaridades como remete a vários
desafios, para que se possa pensar em políticas públicas mais justas,
ou, até mais do que isso, qual a concepção de justiça que deve vigorar,
abarcando todos os setores e etnias da população (KOWALEWSKI,
2010).

165 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Considerações Finais

Encerrando este breve panorama de uma pesquisa


maior, ainda em curso, sobre multiculturalismo e educação, é
importante ressaltar uma particularidade brasileira, qual seja,
a miscigenação como sua identidade, embora as disparidades
sociais oriundas das diferenças persistam. Esse fato conduz
a um complexo processo de pressão dos atores, grupos e
movimentos sociais que reivindicam a especificidade de
sua cultura, num país que se vangloria de ser culturalmente
integrado, amalgamado.

Nesse sentido, um grande debate sobre uma educação


para a diversidade que vise o enfrentamento de dessemelhanças
parece sempre reivindicar mais justiça, enaltecendo ações de
reconhecimento das diferenças, como a inserção de temas
culturais no currículo escolar. Quanto a isso, parece haver
acordo entre os diversos grupos que abordam a questão, como
militantes, educadores, políticos, pesquisadores etc. O que
parece gerar mais conflito são os desentendimentos acerca do
que é justo para esses diferentes atores sociais. Nessas intensas
e necessárias disputas sobre o que deve constar no currículo
ou mesmo na formação dos docentes, algumas perguntas nos
auxiliam a sintetizar essas tensões, são elas: É possível lutar
por direitos culturais sem essencializar a diferença? A diferença
etnicorracial é sempre uma diferença social? E, afinal, o que
é uma escola justa em um país com nossas especificidades?
Parece-me que essas são questões urgentes que exigem não só
mais debate sobre as prioridades educacionais, mas também
um enfrentamento crítico, evitando a transposição de modelos
provenientes de realidades histórico-culturais diferentes da
nossa, além do questionamento de certas aproximações feitas
com bastante frequência entre o natural e o cultural, em um
contexto que mescla desigualdades econômicas e diferenças
culturais. ●

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 166


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Referências

CAPES. Disponível:http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/ Acessos entre


24/06/2010 a 06/07/2010).
CHAMLIAN, H.C e KOWALEWSKI, D.P.IALEI final report:“Multiculturalism and
Education in Brazil”.Disponível em:
http://www.intlalliance.org/fileadmin/user_upload/documents/
Conference_2010/NP-BR.pdf. Acesso em 19/06/2011.
FLEURI, Reinaldo Matias. “Políticas da Diferença: para além dos estereótipos
na prática educacional”. Educação & Sociedade. Dossiê: “políticas
educacionais e diferenças culturais”, v. 27, n° 95, maio/agosto 2006, p.
495-520.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Depois da democracia racial”. Tempo
Social.v. 18, n° 02, 2006, p. 269-287.
KOWALEWSKI, Daniele Pechuti. Diferenças culturais na educação: discursos,
desentendimentos e tensões. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação)
- Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/
tde-11062010-104834/>. Acesso em: 18 de Abril de 2011.
SILVA, Graziella Moraes Dias. “Ações afirmativas no Brasil e na áfrica do Sul”.
Tempo Social. v.18, n° 02, 2006, p.131-165.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às
teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SILVÉRIO, Valter Roberto. “Ações Afirmativas e Diversidade Étnico-Racial”
In SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Ações Afirmativas e Combate ao
Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2005,
p. 141-163.

167 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Corpos e culturas invisibilizados na escola

A.Cesar Lins Rodrigues


Marcos Garcia Neira

A escola contemporânea brasileira vem assumindo novas


configurações que precisam ser levadas em consideração, por
interferirem diretamente na sua dinâmica de funcionamento. Para
compreender o que hoje acontece, é fundamental analisar o percurso
constitutivo, a fim de identificar os fatores que seguem influenciando
as relações no interior da instituição. Partimos do pressuposto que a
constituição heterogênea da comunidade discente, quando acrescida
dos ideais político-ideológicos e de mercado configuram a organização
escolar na lógica de restrição de humanidades53, transformando em
indesejáveis quaisquer diferenças culturais (SILVA, 2000). As pessoas
diferentes são sujeitadas ao que preconizam os discursos de ordem
enaltecedores das benesses da modernidade ainda presentes no
currículo escolar - a apologia à ciência, ao progresso, à racionalidade,

53 Referimo-nos às condições de vida degradantes que muitas vezes coíbem o acesso


qualificado das camadas desprivilegiadas aos bens culturais, entre eles, a experiência
escolar.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 168


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
etc. (REIS FILHO, 1995 apud OLIVEIRA, 2006, p. 4). Nesse contexto, os
grupos humanos abjetos, quando submetidos ao agenciamento54 não se
enquadram nos pressupostos fundamentais para o acesso aos caminhos
de mobilidade social prometidos pela instituição educativa.

Se do ponto de vista social, a problemática já é bastante complexa,


imagine-se quando se busca focalizar a questão no interior da cultura
escolar. Os impeditivos para sua superação encontram-se profundamente
arraigados. O que nos levou a realizar uma genealogia do fenômeno com
vistas a reunir elementos conceitualmente fortes para enfrentá-lo.

Por ocasião do ingresso na modernidade, exigiu-se do Brasil


a adoção de uma série de requisitos fundamentais, dentre eles, a

54 “Termo utilizado para significar qualquer combinação ou ligação díspar — sem qualquer
hierarquia ou organização centralizada — de elementos, fragmentos ou fluxos das mais
variadas e diferentes naturezas: idéias, enunciados, coisas, pessoas, corpos, instituições”
(SILVA, 2000, p. 15).

169 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
apropriação de um modelo eugênico de família potencialmente
representativo (CASTELLANI FILHO, 1988; SOARES, 1994; CARONE,
2007; SCHWARCZ, 1993), amoldado aos referenciais europeus.
Como instituição, a escola concentrou o papel fundamental de dar
corpo a essa representação, trazendo em seu cerne a função de
transmissão cultural, envolvendo “produções simbólicas relativas a
gênero, raça, corpo, idade, religiosidade” (LINHARES, 2006, p. 104).
Consequentemente, na estrutura educacional, emolduraram-se, por
décadas, meios de exclusão, que selecionam o acesso à escola somente
para certos grupos de alunos advindos das camadas sociais mais
abastadas, em consonância com os ideais de formação de cidadãos
atrelados ao projeto hegemônico.

O panorama histórico da educação brasileira traz indícios


suficientes da presença do racismo nas escolas, o que acaba por
desencadearmecanismos deinvisibilizaçãodecorpos eculturas.Advém
daí o interesse em discutir os meios empregados para estratificar e
perpetuaras condições subalternas de determinados grupos no interior
da escola. Suspeita-se que os ideais de branqueamento vigentes no
Brasil desde o período pré-abolicionista figuram como importante
suporte da exclusão que nos dias atuais atinge certos grupos na escola.
Tal concepção racial repercute na constituição do povo brasileiro e
vem se arrastando desde o final do século XIX, mesmo que encoberta
por um discurso do primado da mestiçagem.

Pois bem, a realidade discursiva da aceitação da mestiçagem


no Brasil nunca esteve em conformidade com a concessão de
oportunidades equânimes a todas as pessoas e, o currículo, via de
regra, transitou superficialmente pela questão, já que os portões
escolares, até recentemente, encontravam-se fechados à população
negra. Ressalte-se que o percurso escolar limitado a uma camada
privilegiada, apesar de muitos avanços, perdura até hoje.

Com o advento da Constituição de 1988, muitas mudanças


influenciaram as políticas educacionais. Enfatizando que o ensino deve
ser ministrado com base nos princípios de igualdade de condições para
acesso e permanência, a instituição viu-se impelida a acolher a todos

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 170


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
aqueles que até então haviam sido rejeitados. Decerto, os problemas
não foram poucos. A ampliação do acesso acarretou a obrigatoriedade
do convívio com as diferenças. Com base em Hall (1997), a diferença é
desencadeada por distintos processos designificação estabelecidos por
meio de práticas sociais que expressam ou comunicam um significado.

No caso em tela, o movimento se dá a partir do escalonamento


entre os significados alusivos aos brancos e negros e às suas respectivas
culturas. O que se constata é uma maneira bem contundente de dar
solidez aos processos de exclusão vivenciados na escola.

Numa tentativa de apaziguar os conflitos resultantes, a escola


incorporou discursos neoliberais como a oferta de oportunidades
iguais para todos e as diferenças sociais decorrem de esforços
individuais, valores ou, até mesmo, questões genéticas (HALL, 2004).
Embora a instituição educativa não esteja sozinha na disseminação de
tal ideário, é certo que ela exerce um importante papel pela promoção
de um currículo monocultural.

A entrada dos novos alunos, de certa forma, pressiona


a estrutura curricular vigente em função das demandas que se
distanciam cada vez mais das referências culturais da elite baseados
no paradigma economicista da eficiência. Aos poucos, as distorções
entre as pretensões escolares e os resultados ficam cada vez mais
evidentes. Não há como dar conta de anseios diversos por meio de uma
escolarização referendada na inflexibilidade vinculada a um modelo
homogeneizante. Se, por um lado, a educação fundada em preceitos
meritocráticos favorece os grupos que compartilham dos significados
valorizados pela cultura escolar, por outro, colide frontalmente com os
provenientes dos nichos dissonantes.

Não são poucos nem brandos os efeitos desse processo. Em


termos de desempenho escolar, Carvalho (2009) afirma ser impossível
negar que a avaliação é resultado de escolhas culturais atreladas à
ideia de excelência vigente. Ao mapear os discentes que frequentam o
reforço escolar, a autora identificou uma incidência maior de crianças
negras, ressaltando comocritériopessoaldecadaprofessora definição

171 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
do grupo com baixo desempenho e, portanto, merecedor desse
procedimento pedagógico.

Isso indicia uma inclinação à racialização do fracasso


escolar, se avaliado a partir do critério pessoal dos professores
em um campo livre de manifestações interpretativas a respeito
de bons e maus alunos e do que venha a sê-lo. Endossando essa
focalização da indicação racializada, encontram-se os baixos
investimentos no capital cultural das diferenças. Para Rosemberg
(1999), os fracos desempenhos do grupo de crianças negras e
pobres emergem da socialização para a subalternidade iniciada
no berçário, desde vivências das rotinas de espera, do banho,
do brinquedo, da troca de fraldas, da comida, etc. Toda essa
precariedade vem provocar uma “morte educacional anunciada”
(FERRARO, 2009. p. 815).

Cada vez mais agravado pelos ditames da globalização, o


atual cenário escolar indica um acirramento das demarcações
territoriais. Ao privilegiar determinado repertório e desprestigiar
outro, o currículo sutilmente distribui os grupos culturais pelo tecido
social, colocando em curso uma certa política identitária. Sendo a
diferença “um processo social estreitamente ligado à significação”
(SILVA, 2000, p. 42), e pensando na significação como fruto da
linguagem circulante construída e reconstruída na sociedade
em função das relações de poder, a escola contemporânea,
povoada pelas diferenças, encontra-se permeada por narrativas
hierarquizantes, reafirmando constantemente o empoderamento
das identidades hegemônicas, quase sempre brancas, masculinas,
cristãs e euro-estadunidenses.

Como elemento fundamental dessa política, o currículo da


Educação Física desde o século XIX confere tratamento pedagógico
exclusivo às manifestações corporais dos grupos geograficamente
situados no hemisfério norte. Por meio do ensino de determinadas
práticas corporais e dos valores que agregam, esse componente
veicula significados coincidentes com o projeto de cidadão almejado
pelos setores economicamente privilegiados.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 172


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Saliente-se que as aulas de Educação Física não podem ser
vistas como o nascedouro de relações hierarquizadas, mas sim como
um ambiente propício à perpetuação de assimetrias encobertas pelo
discurso de uma suposta liberdade e igualdade de tratamento, vividas
a partir do desatar das amarras imobilizadoras das carteiras escolares.

Já é tempo de questionar os discursos de liberdade, ludicidade


e igualdade que, agregados à Educação Física, contribuem para
disseminar a ideia de um espaço propício à pluralidade de expressões.
Ora, em um ambiente em que as brincadeiras, danças, esportes e
ginásticas brancas são apresentadas como referências, às crianças e
jovens negros, só cabe submeter-se, aceitando-as passivamente ou
rebelar-se (NEIRA, 2011).

Tais mecanismos de subalternização dos negros e das suas


culturasconstituem-seemestratégias deanulação das identidades não
hegemônicas dentro da escola. Pode-se dizer, são influências sociais
que difundem uma estandardização, apagam as particularidades das
diferenças (HALL, 1997) e reforçam as hierarquizações estabelecidas
na busca do que se classifica como afirmação da identidade-referência.

Do racismo

O substantivo racismo, segundo o Dicionário Houaiss, dentre


outros significados, é o “conjunto de teorias e crenças que estabelecem
uma hierarquia entre as raças, entre as etnias”, ou “doutrina ou sistema
político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e
superior) de dominar outras”, ou mesmo, “preconceito extremado
contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente,
considerada inferior”. Dissertando sobre sua origem, Munanga (2000,
p. 24) explica que o termo foi criado em meados da década de 1920. O
conceito de racismo não é consensual, quando o “utilizamos em nosso
cotidiano, não lhe atribuímos o mesmo significado”.

173 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A primeira origem do racismo deriva do mito bíblico de Noé do qual
resulta a primeira classificação religiosa da diversidade humana entre
os três filhos de Noé, ancestrais das três raças: Jafé (ancestral da raça
branca), Sem (ancestral da raça amarela) e Cam (ancestral da raça
negra). Segundo o nono capítulo de Gênese, o patriarca Noé, depois
de conduzir muito tempo a sua arca nas águas do dilúvio, encontrou
finalmente um oásis. Estendeu sua tenda para descansar, com seus
três filhos. Depois de tomar algumas taças de vinho, Noé deitou-se
numa posição indecente. Cam, ao encontrar seu pai naquela postura,
fez, junto aos seus irmãos Jafé e Sem, comentários desrespeitosos
sobre o pai. Foi assim que Noé, ao ser informado pelos dois filhos
descontentes da risada não-lisonjeira de Cam, amaldiçoou este último,
dizendo: seus filhos serão os últimos a ser escravizados pelos filhos de
seus irmãos (p. 24-25).

Em relação ao surgimento e hierarquização do racismo,


comenta:

Insisto no fato de que o racismo nasce quando se faz intervir


caracteres biológicos como justificativa de tal ou tal comportamento.
É justamente o estabelecimento de relação intrínseca entre os
caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e
culturais que desemboca na hierarquização das chamadas raças em
superiores e inferiores (p. 25).

A hierarquização das raças tem o papel fundamental no


agravamento da situação de desigualdades dos grupos humanos
postos em posição inferior mediante a escala de valores desiguais.
No caso brasileiro, essa hierarquização encontra-se latente em vários
setores da sociedade onde, por conta das formas de expressão
utilizadas, contribui para a disseminação de representações que
pressupõem a neutralidade racial do branco (CARONE, 2007).
Como efeito, o indivíduo branco encontra-se isento de todas
as consequências devastadoras do racismo, pois, no imaginário
social coletivo, está encapsulado na neutralidade fenotípica e por
demais distante da estereotipia que, em contra partida, dilapida as
subjetividades dos negros e mestiços.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 174


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Tais fatos têm no mito da democracia racial um forte aliado
que reforça a ideia de que no Brasil o coletivo das raças vive em
perfeita harmonia sem quaisquer distinções em todos os campos,
representando um exemplo para toda humanidade, pois as diferenças
não ultrapassam as características físicas e as oportunidades são iguais
para todos.

A isenção do branco no processo de racialização confere aos


negros e mestiços, num tom de exclusividade, a pecha de culpados
pelas desigualdades raciais no Brasil (BENTO, 2007). Esse desfocamento
do branco vem banindo da pauta de discussões das desigualdades
sócio-históricas, as diferentes dimensões de privilégio conferidas a
ele, naturalmente munido do privilégio simbólico da brancura, o que
dentro do contexto da sociedade brasileira faz total diferença.

Essa situação nos reporta ao racismo de marca, expressão


cunhada por Nogueira (1985) para explicar a atuação do preconceito
racial no Brasil, definindo alguns fatores determinantes para a situação
social, econômica e de escolarização dos indivíduos não-brancos. Ao
contrário do racismo de origem, cuja simples suposição de que um
indivíduo descende de certo grupo étnico é motivo para que sofra
as consequências do preconceito, o racismo de marca “toma por
pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a
fisionomia, os gestos, o sotaque [...]” (p. 79). O conceito de racismo
de marca ajuda a perceber a fragilidade da argumentação do mito da
democracia racial, à medida que se observa um embranquecimento
progressivo dos indivíduos de acordo com o patamar de ascensão
sócio-econômica e o nível de formação, incluindo nesse exame a
ocupação dos cargos mais importantes, nos quais tanto a remuneração
quanto a possibilidade de exercício do poder são mais relevantes.

A contrapartida é o aumento do gradiente matizado dos


indivíduos, na medida em que os cargos requerem especificações
formativas elementares e oferecem menor remuneração, pequena
ou nenhuma condição de exercício do poder, ou baixas possibilidades
de mobilidade social. Esse fato contribui para o fenômeno que
Lins Rodrigues (2010) denominou de etiologia da miopia de

175 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
desmatizamento, ou seja, a desconsideração da multietnicidade do
povo brasileiro por parte da sociedade – tomando como referência
única e empoderada a raça branca – e todas as consequências
negativas trazidas aos sujeitos não-brancos. A miopia acomete as
mais variadas instâncias do poder em nosso país, circulando desde
as camadas governamentais e empresariais dos mais altos escalões,
até os formadores de subjetividades mais acessíveis, incluindo a
experiência escolar. Como resultado de tal “enfermidade social”,
tem-se o acirramento das desigualdades historicamente construídas
contra a população negra.

A situação se reflete perversamente nas crianças negras.


Vivenciando, desde o nascimento, práticas e discursos construtores
de um lugar subalternizado para o seu corpo e sua cultura, portanto,
para a sua identidade, a criança não-branca tem de conviver com
o dilema da autoinvisibilização refletida, que explica o fato de
enxergarem-se com as características fenotípicas do indivíduo
referência, às custas da anulação da autoimagem real num perverso
processo de assunção de uma identidade apócrifa.

Não se trata de uma construção casual ou singela. É,


sim, fruto de todo um engendramento social, culturalmente
alicerçado durante muitos séculos de diáspora africana, rejeição
da negritude e inconformismo com a mestiçagem no Brasil, tendo
como contraponto o massacre político-ideológico promovido pelo
referencial branco, masculino e euro-estadunidense. Esse é um
modo perverso de anulação das subjetividades – inscritas em parte
na “geografia do corpo” de cada um desses sujeitos –, construído
por ações incrustadas no cotidiano de cada criança (MUNANGA,
2010).

Constata-se que tanto o modelo euro-estadunidense, quanto


o referencial masculino de humanidade, configura, sobremaneira,
a ordem e a quantidade de veiculação dos mesmos. Basta verificar
que, em geral, nos programas televisivos, quando se tem algum
outro referencial de humanidade diferente do citado, esse ocupa
papéis subalternos dentro do contexto imagético.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 176


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
A criação da autoinvisibilização refletida reporta-se ao medo
da rejeição que, segundo Miskolci (2006, p. 685), “gera subjetividades
autodestrutivas em busca de adequação a qualquer custo”. Em
caráter apriorístico, arrisca-se inferir que, na televisão, o racismo
encontra-se presente, subliminar ou explicitamente, na maioria das
vezes perpetuando um estado de relações que direciona privilégios
e referências para o modelo monocultural, fixando personas
apresentadas como reais, porém bem distantes das verdadeiras (LINS
RODRIGUES, 2010).

Da invisibilização dos corpos

Nas palavras de Rodrigues (2006, p. 50), o corpo é “o mais


natural, o mais concreto, o primeiro e o mais normal patrimônio que
o homem possui”. Não obstante à importância de se ter o corpo como
tal patrimônio, para Lévi-Strauss (1988) o corpo é mais social que
individual, pois expressa metaforicamente os princípios estruturais da
vida coletiva.

Pensando com mais profundidade na socialização do corpo e


na concomitante expressividade da vida coletiva trazida a reboque,
destaca-seocurrículoescolarcomoexperiênciaconstrutora de gestos,
posições, vontades e comportamentos, caracterizando a criação de
uma “educação para o corpo”, configurada pela pedagogia gestual
(SOARES, 2005, p. 17). Se, para Vigarello (2004), o corpo é o primeiro
lugar onde a mão do adulto marca a criança e o primeiro espaço
onde se impõem os limites sociais e psicológicos que encaminharão
a sua conduta, é a escola o lugar, depois da família, onde “a mão do
adulto” opera a criança de maneira mais marcante. É ela o espaço
onde o corpo é descrito por uma linguagem particular, alternativa,
indicando e camuflando sua importância educacional para a correção
de atitudes físicas psicológicas no arbítrio das relações entre crianças
e adultos.

177 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
No processo de escolarização vigem métodos que irão permitir
com eficácia “o controle minucioso das operações do corpo, que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade, sendo o que se pode chamar de
disciplinas” (FOUCAULT, 2009, p. 133). O ato de disciplinar corpos
adquire o sentido da pedagogia gestual, na qual se indica, desde
a mais tenra idade, condutas adequadas a alunas e alunos, não
permitindo desvios dos padrões referenciais. Corpos retos, verticais
e de porte rígido estão presentes nos prólogos dos estudos sobre a
ginástica do século XIX. Através deles o disciplinamento dos corpos
ganha um importante espaço na formação do modelo de ser humano
para uma pretensa ordem coletiva (SOARES, 2005). Afinal de contas, a
preocupação disciplinar para com o corpo, conferida historicamente à
educação, reflete-se em nossas escolas por meio do comportamento
discente, pois “nosso corpo traz marcas sociais e históricas, portanto
questões culturais, de gênero e de pertencimentos sociais podem ser
lidas no corpo (NÓBREGA, 2005).

A ginástica dentro do Movimento Ginástico Europeu, em sua


base estrutural de partida, consolidou uma gama de práticas corporais,
aprisionando linguagens corporais e comportando uma idéia de saúde,
energia, vigor e moral ligada à sua prática. Nessas afirmações, Nóbrega
reforça o caráter disciplinador que a ginástica exerceu dentro da escola,
como sendo um caminho para a correção dos corpos destoantes
e inacabados, que irrompiam à sociedade por meio do “realismo
grotesco”55 causador de desconfortos para a burguesia dominante do
século XIX.

Admitia-se, nesse contexto, que o cuidado com o corpo por


meio da ginástica estivesse estritamente ligado à moral como uma das
condições primordiais para legitimação do sujeito via representação

55 Termo sugerido por Bakhtin para designar “o corpo e a vida corporal de caráter cósmico
e universal como porta-voz do povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente,
atribuindo às manifestações da vida material e corporal não somente a um indivíduo
‘econômico’ particular e egoísta, mas a uma espécie de corpo popular, coletivo, genérico...”
(1987, apud SOARES, 2005, p. 27).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 178


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
corporal. A dissociação da frivolidade e do entretenimento e a
associação dos exercícios físicos à vida cotidiana eram, na verdade, um
código de conduta desejado para todos os indivíduos, a fim de que
socialmente colecionassem benefícios (SOARES, 2005).

Os corpos em não-conformidade com a retidão e a eficácia


pautadas pelos modelos indicadores do referencial de humanidade,
estariam fadados ao expurgo social. O fato de se identificar indícios de
certas práticas de exclusão a determinados corpos em nossas escolas,
sugere um engendramento padronal, indicando a manutenção de uma
busca incondicional da retificação do corpo, pautada em modelos
perduráveis desde o século XIX, não obstante muitas vezes estivesse
maquiada pelos mais variados discursos e métodos.

Talvez esse exame possa se estender para além de uma simples


conjectura, à medida que em algumas aulas de Educação Física
persiste a busca pela retidão corporal56 encontra-se latente na ação
pedagógica, seja nas hierarquizações promovidas pelos olhares ou na
sutileza da negação indelével dos corpos diferentes.

Com relação ao fator “moral” como direcionador do trabalho


da educação do corpo, vale à pena lembrar Foucault (2009) quando
cogita sobre a escala do controle, sugerindo uma não restrição apenas
do corpo como unidade indissociável, mas sujeito a um trabalho
detalhado, exercendo sobre ele uma coerção sem folga, a fim de
escrutiná-lo no nível da mecânica, dos movimentos, gestos, atitudes,
ou seja, o desígnio do poder infinitesimal sobre o corpo ativo.

As técnicas disciplinares de controle ganham sofisticação ao


longo dos séculos XVII e XVIII, quando assumem o papel de fórmulas
gerais de dominação, diferenciando-se da escravidão, domesticidade,
vassalidade, ascetismo e do monasticismo que caracterizavam
os princípios da soberania. A partir daquele momento histórico,

56 Alusão ao anseio de aproximação ao corpo retificado, corpo-referência, identificado


com o padrão branco, masculino e europeu.

179 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
as disciplinas e as consequentes técnicas disciplinares têm como
principal finalidade um alargamento de cada sujeito sobre o seu
próprio corpo (FOUCAULT, 2009). Corpos bem disciplinados não
cedem espaço a distanciamentos do referencial de humanidade social
e hegemonicamente proposto.

A partir do século XVII, os aparelhos corretores da estética


invadem a medicina baseados nos princípios de estiramentos ou
pressões retificadoras,utilizadas segundo oprincípio defuncionamento
das máquinas simples. (SANT’ANNA, 2005). A concepção de corpo
máquina ganha destaque nesse mesmo século, em virtude dos
instrumentos corretores utilizados nesse período não se atrelarem
exclusivamente aos limites da medicina.

[...] À sua pretensão que se poderia crer exclusivamente ortopédica,


atribui-se algumas vezes um objetivo pedagógico. Espartilhos e
aparelhos de sustentação tiveram ao longo do tempo a função de
preservar e de modelar o corpo. É precisamente no final do século
XVII que esta função se impõe e se difunde. A partir desse momento,
a nova mecânica que pretende eliminar a deformação arroga-se o
poder de preveni-la. Ela pretende então firmar a postura, fixando-a;
assegura garantir uma forma, tornando através do hábito a postura
habituada a ela. O registro ao qual ela se refere corre o risco de parecer,
desde então, menos anódino. O que é confusamente mantido como
manipulação necessária e banal, no campo terapêutico, torna-se capaz
de revelar outros sentidos ao migrar para o campo educativo. Aquilo
que era tentativa casual de retificação e de anulação de um mal se
transforma aqui, mais abertamente, numa abrupta imposição da
norma. [...] Pois a aparelhagem artificial é como o prolongamento de
uma mão sonhando com a soberania suprema sobre o crescimento dos
corpos [...] limitando o corpo infantil a ser somente receptáculo passivo
de desenhos impostos exteriormente e silenciosamente (p. 26-27)

O dever de corrigir posturas físicas acaba por se tornar um


corolário das normas sociais e morais impostas ao modelo de ser
humano aspirado. Migrando para a educação, as técnicas corretivas
ganham um status bastante significativo. Em conformidade com o

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 180


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
projeto de sujeito almejado para o século XVIII, quando a burguesia
assumira o poder por meio de suas revoluções57, tem-se nos aparelhos
corretores um eficaz instrumento de contenção dos alunos. Um poder
magistral intervém nas atitudes por meio de gestos aparentemente
insignificantes, mas que têm a propriedade de potencializar as
condutas para corrigi-las ou reforçá-las (VIGARELLO apud SANT’ANNA,
2005).

Além das técnicas de contenção, evoluem as táticas autoritárias.


Havia uma necessidade de criar instrumentos de controle da criança
que interviessem para além dos limites da contenção pura e simples.
No fim do século XVIII, a atenção aos corpos sai do foco sobre a própria
aparência e dos contornos por ela propostos, estendendo-se aos
vigores e à robustez previamente trabalhada. Nas palavras de Vigarello:

Aparece uma nova cultura do corpo, que não deve mais ser buscada
nos livros de civilidade, na expressão atenta das ‘belas maneiras’ da
qual o espartilho é ao mesmo tempo a garantia e a testemunha, e
sim nos livros de higiene, no recenseamento e na declinação de forças
que apenas o exercício pode aumentar e convocar (apud SANT’ANNA,
2005, p. 32).

A condução do corpo por meio de aparelhos que outrora


representavam a mão do adulto agora é substituída por outra forma
de intervenção, distanciando-se para uma solicitação indireta das
forças contidas no próprio sujeito, implicando num trabalho sobre o
domínio de si mesmo, trazendo consigo o paradoxo de um fenômeno
de dominação alimentar em algumas de suas sofisticações, uma
construção mais requintada das autonomias (SANT’ANNA, 2005).

Ao redefinir o olhar e as pretensões sobre os corpos, Prata


(2005) argumenta que as sociedades disciplinares distribuem os

57 Consideram-se revoluções burguesas, a Revolução Industrial, a Independência dos


Estados Unidos e a Revolução Francesa, sendo essa última um marco de suma importância
para a educação, por conta da geração do embrião da escola moderna.

181 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
indivíduos por meio de técnicas de enclausuramento e organizações
hierárquicas, conforme as quais, temporalmente, controlam-se todas
as atividades, normatizando a aprendizagem e compondo as forças
produtivas, a fim de se ter um aparelho eficiente. Nesse caminho,
passa-se a utilizar técnicas de poder que extraem dos corpos muito
mais do que bens e riquezas, exercendo continuamente a vigilância
sobre os mesmos sob forma de obrigações crônicas e de tributos
(FOUCAULT, 2009).

As sociedades disciplinares veiculam o poder ligado à ortopedia


social, que tenta assegurar a ordenação das multiplicidades
humanas. Trata-se de produzir corpos dóceis, tornando o exercício
do poder economicamente menos custoso possível, estendendo
se os efeitos do poder social ao máximo de intensidade e tão longe
quanto possível, e ainda ligando o crescimento econômico do
poder ao rendimento dos aparelhos pelos quais se exerce, sejam
pedagógicos, militares, industriais, médicos. Em suma, fazendo
crescer tanto a docilidade quanto a utilidade de todos os elementos
do sistema (p.191).

Várias instituições se valeram de mecanismos para fixação de


condutas corporais. Porém, em se tratando de escola como o local
onde se perpetuaram as relações de poder pautadas na ortopedia
social, pode-se avaliar que a partir do século XV importantes
mudanças na sistemática de ensino foram estabelecidas e, dentre
elas, as primeiras experiências do que hoje pode se chamar de “sala
de aula” (DUSSEL; CARUSO 2003, p. 50). Segundo Snyders (1974
apud DUSSEL; CARUSO 2003), o governo das crianças se amoldou
ao enclausuramento em instituições que propunham uma formação
completa nos mais abrangentes aspectos, a fim de lhes impor
subordinação às normas cotidianas, situadas num espaço escolar
apartado da vida da rua.

De acordo com Querrien (1979, p.45), inicialmente apedagogia


orbitava em torno da seguinte pergunta: “como dirigir e ensinar uma
tropa de alunos, como governá-los?” A pergunta decorre do acesso
ao modelo militarizado como único referencial de disciplinarização

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 182


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
em massa no século XVII, tempo histórico determinante, no qual se
davam os primeiros passos na genealogia da escola moderna.

Porém, outro modelo de como governar um grupo também


se encontrava presente, o pastoralismo cristão. “Tudo parecia
indicar que, àquela época, os pedagogos não viam o conjunto
de alunos como ‘tropa’, mas sim como um ‘rebanho’” (DUSSEL;
CARUSO, 2003, p. 63). É certo que o poder pastoral advindo da
religião católica traz em seu escopo uma vigilância acirrada sobre
o corpo.

Visto como templo da alma, o corpo tinha detera contenção de


seus gestos como corolário para uma vida doutrinada e transcorrida
no caminho da retidão. A retidão preconizada pelo pastoralismo
cristão relacionava-se de maneira direta com a alma. Todavia, tinha
o seu princípio na retidão corpórea, conseguida de início por meio
dos aparelhos que atuavam nos corpos a ponto de endireitá-los
(VIGARELLO, 2004), ou seja, prontos para assumirem os novos lugares
a eles reservados dentro do espetáculo de saneamento humano.58

Relações entre retidão e educação moral foram reforçadas no


século XIX quando Amoros passou a pregar as vantagens da ginástica
comomeioeducacional.Anova prática, sob influências higienistastinha
como finalidade-mor a criação de normas de conduta, incorporadas
de maneira particular pelos sujeitos e refletidas socialmente em seus
comportamentos. Esse processo de conformidade corporal serviu de
base para a construção de um paradigma de humanidade que serviu
de sustentáculo dos ditames da sociedade capitalista e arrefeceu
se com a onda neoliberal. Fundadas na monocorporificação, as
recentes políticas educativas engendram mecanismos de anulação
das desconformidades corporais, assim entendidas sob a ótica míope
prevalente.

58 Diz-se da condução profilático-asséptica subjacente à retidão proposta ao corpo. Tal


condução é fundamental na gênese da eugenia posteriormente acatada como ideal de
construção da família moderna brasileira, tendo na escola um dos principais lócus de
disseminação.

183 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Da Educação Física

As motivações dos seres humanos com relação a determinadas


atuações comportamentais têm na cultura a gênese das significações,
produzindo certas atitudes em detrimento de outras; hierarquizando
as que devam ser exaltadas por sua importância e pertencimento
ao grupo social representado ou aquelas que serão inibidas por não
dialogarem com o que é concebido enquanto norma por esse mesmo
grupo (RODRIGUES, 2006, p. 49).

O regime de conduta estende-se por toda uma gama de


atitudes firmadas e confirmadas pela escola, concebida como
instituição que socializará as novas gerações, visando uma inserção
eficaz na cultura mais ampla. Atendendo a um grupo específico e que
tem no acolhimento de suas identidades representativas a garantia
da manutenção do empoderamento historicamente conferido a
seus representantes, a escolarização acaba exercendo um papel
fundamental na produção das diferenças pela recorrência ao requinte
e sutileza que caracterizam os mecanismos de educação corporal.

Enquanto a simples veiculação massificada das políticas de


reparação das desigualdades apresentada sob a forma de instrumentos
legais e pedagógicos situa-se no plano das ideias, encontra-se no
solo da escola, orbitando entre as práticas pedagógicas e as relações
cotidianas entre alunas, alunos e demais membros da comunidade
escolar, uma eficaz maquinaria da exclusão. Nesse âmbito, uma
considerável parcela de atrizes e atores pertencentes aos diversos
grupos “invasores” do espaço escolar, tidos como “diferentes”, são
posicionados como figurantes na dramaturgia pedagógica.

A arquitetura de tais feitos se concretiza nas formas, atitudes,


ações, discursos, atos, escritos, sussurros, falas, regras, regulamentos,
etc., ligados ao apagamento das alunas e alunos não enquadrados
na identidade-referência assumida como padrão na sociedade. Tais
mecanismos de invisibilização passam por uma elaboração cada

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 184


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
vez mais sofisticada. A sofisticação das ações que reforçam a não
legitimação de certos corpos aumenta drasticamente em volume e
perspicácia, a ponto de fazerem-se despercebidas aos olhares menos
atentos. Tenha-se, como prova de eficácia, sua habilidade em fingirem
se inexistentes. Basta observar que as denúncias são constantemente
vistas como enfadonhas ou meros exageros dos politicamente corretos.

Em meio às relações entre alunas, alunos, professores e demais


membros da comunidade escolar, a condição de corpos avessos à
identidade-referência imposta aos diferentes, passa pelo processo de
docilidade citado em boa parte da obra de Foucault (2009). Submetida
ao controle minucioso, porém não desnaturalizado, de suas operações
– no sentido da limitação de suas ações somente às de coadjuvantes
–, suspeita-se que essa condição avessa é dada às atrizes e atores,
que sujeita constantemente suas forças para lhes contextualizarem
numa relação de docilidade-utilidade. Tal relação incide sobre os
indivíduos produzindo um aumento do domínio de cada um sobre
seus próprios corpos, a serviço da sustentação de um status quo, no
qual as discrepâncias de legitimação tenham o privilégio do grupo
empoderado como fiel da balança.

É somente a partir da década final do século XIX que a educação


corporal passa a merecer a atenção das políticas oficiais, tendo em vista
seu papel determinante na constituição da força de trabalho (SOARES,
1994). Sob influência dos ideais de branqueamento promovidos pelas
elites pré e pós-abolicionistas, a ginástica introduzida pela missão
militar francesa apoiou-se na premissa da educação do físico e na
busca da saúde corporal, tendo em vista a constituição do indivíduo
forte e saudável (CASTELLANI FILHO, 1988). A ele caberia a construção
de uma nova performance sócio-humana para o país independente,
implicando, por conseguinte, num novo estilo de vida que aliava os
ideais higienistas e positivistas.

O nascedouro desse movimento foi a Europa, em especial na


França, onde a burguesia se estabelecia enquanto classe privilegiada,
criando a necessidade da construção de um modelo novo de homem
que cuidasse dos aspectos mentais, intelectuais, culturais e físicos.

185 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Coube à Educação Física viabilizar a construção do ser humano
apto a conduzir a nova sociedade (SOARES, 1994).

Inspirando-se no naturalismo, o pensamento positivista


encampa uma série de justificativas para as desigualdades sociais,
classificando-as como “desigualdades naturais” (p. 20). Era
preciso garantir aos naturalmente desiguais uma oportunidade
de igualmente se aproximarem da civilidade. Para tanto, uma
educação higiênica formadora de hábitos morais era o caminho
mais adequado, segundo o pensamento das elites brasileiras
baseadas na moralização sanitária europeia.

O processo higienista que construiria o novo corpo


independente, ex-colonizado e totalmente desvinculado do
“corpo relapso, flácido, e doentio do indivíduo colonial”,
segundo Castellani Filho (1988, p. 43), acabou por arrogar a
representação da classe social em ascensão e, por conseguinte,
da raça emergente, carta patente que elege a Educação Física
como uma importante aliada do racismo e dos preconceitos
sociais vinculados.

Acontecimentos de importância histórica surgiam no cenário


nacional em relação ao acirramento da política pró-branqueamento
aqui implantada desde o período pré-abolicionista. Senão o mais
importante, pelo menos um de importância fulcral fora a visita ao
Brasil de Joseph Gobineau59 em 1896, quando o mesmo discorre
sobre as consequências dadas em função dos casamentos inter
raciais (entre brancos e negros) disseminados veementemente no
país, gerando, como consequência, nuances de cores infinitas, fato
que, segundo o etimólogo, provocaria “uma degeneração do tipo
mais deprimente tanto nas classes baixas como nas superiores”
(CARONE, 2007, p. 14).

59 Diplomata, escritor, etimólogo e filósofo francês criador da teoria do determinismo


racial que teve forte influência no de desenvolvimento de políticas racistas européias no
século XIX.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 186


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Um outro forte aliado do pensamento pró-branqueamento
fora Nina Rodrigues60 que, sugestionado pelas discussões científicas
européias das escolas médico-legal francesa e criminalística italiana
– lombrosiana61 –, propunha uma “revisão do código penal brasileiro
para julgamento diferenciado, caso a caso, da responsabilidade
criminal dos mestiços” (CARONE, 2007, p. 15), baseado num suposto
gradiente matizado, conforme o qual quanto mais intensa a matiz,
mais passível de culpabilização.

Nesse contexto, as raças mais evoluídas deveriam


tutelar as raças de menor desenvolvimento, já que não só as
características físicas, mas também as mentais eram transmitidas
por hereditariedade, idéia advinda das concepções racialistas do
positivismo. As argumentações pró-branqueamento fundavam-se,
também, no favorecimento da modernização industrial do Brasil,
trazendo, a reboque, a importação da mão-de-obra européia “bem
afeiçoada” à economia industrial capitalista, forjando representações
paradisíacas no que tange à estreiteza inter-racial vigente (CARONE,
2007). Na verdade tais argumentações estavam para além do fardo
da população negra recém-liberta e deixada por conta do triste e
programado acaso.

60 Médico, antropólogo, sexólogo, etnólogo, legista, higienista, tropicalista e escritor


maranhense radicado na Bahia que difundiu idéias perversas sobre o racismo no Brasil,
atribuindo aos negros e mestiços uma inferioridade explicada como um fenômeno
de ordem perfeitamente natural, “produto da marcha desigual do desenvolvimento
filogenético da humanidade nas suas diversas seções e divisões”.

61 Refere-se a Cesare Lombroso, médico, cirurgião e cientista italiano que cria a


antropologia criminal, cujo maior ícone seria o do “delinquente nato”, o homem
delinquente, identificado sob as seguintes características corporais: protuberância
occipital, órbitas grandes, testa fugidia, arcos superciliares excessivos, zígomas salientes,
prognatismo inferior, nariz torcido, lábios grossos, arcada dentária defeituosa, braços
excessivamente longos, mãos grandes, anomalias dos órgão sexuais, orelhas grandes e
separadas, polidactia. As características anímicas, segundo o autor, são: insensibilidade
à dor, tendência à tatuagem, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral,
preguiça excessiva, caráter impulsivo. Há que se observar, com frequência, o fato de tais
características estarem diretamente vinculadas aos negros e mestiços, logo, suas teorias
serem consideradas como um marco pró-racista.

187 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
O que se pretendia era o convencimento das elites brancas
de que a imigração europeia aumentaria o coeficiente de “massa
ariana” no país gerando um tipo de darwinismo social, ou seja,
selecionando indivíduos naturalmente em proveito da purgação
racial.

Construída pelas elites dominantes brancas entre o final do


século XIX e começo do século XX, a ideologia do branqueamento
sofreu alterações importantes tanto no que tange ao sentido
funcional, quanto no que se refere à sua interpretação no imaginário
social. É interessante notar que, nos dias de hoje, ganhou a
conotação de discurso atribuído aos negros devido ao desejo de
alcançarem os privilégios da branquitude, à falta de uma identidade
étnica positiva, à experimentação das inúmeras consequências do
racismo, além do fato de viverem em uma sociedade onde vigora
um pseudo quadro de igualdade racial.

No contexto histórico discutido, ou seja, fim do século XIX e


início do século XX, a Educação Física referendada pelos higienistas
buscava a “disciplinarização do físico, do intelecto da moral e
da sexualidade visando multiplicar os indivíduos brancos, [...]
transformando homens e mulheres em reprodutores e guardiões
de proles e raças puras” (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 44). Diante
de tal quadro, observa-se que desde as primeiras décadas de sua
implantação, a Educação Física no Brasil tem um importante papel
na construção do éthos da hierarquização racial como premissa
de constituição da ontogênese de nosso povo. Nesse ritmo tenta
encobrir tais nuances racistas por meio dos pseudodiscursos sociais
igualitários, ao mesmo em tempo que ancora e fomenta o mito da
democracia racial no imaginário coletivo nacional.

Há que se ressaltar o atrelamento dos ideais de


branqueamento supracitados à subalternização das culturas não
legitimadas pelo ensino oficial conduzidos nas políticas que regem
o currículo oficial do componente. O fortalecimento da imagem
da cultura popular como menos importante em comparação ao
legado cultural europeu colonizador – classificado como erudito –

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 188


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
figura como elo forte da sustentação do desenho social excludente
proposto pela Educação Física. O esquadrinhamento dessas relações
ao longo da história traz como consequência mais perversa, o
reforço da invisibilização dos corpos e culturas negras na escola.

Diante desse quadro de entrevisões e muitas desconfianças,


fruto dos olhares iniciais lançados sob as relações que têm lugar
nas escolas e, especialmente nas aulas de Educação Física, vale
a pena investigar se as mesmas ultrapassam ou não o campo das
suposições, tendo uma genealogia própria que as ratifique ou as
indefira. Afinal, conforme Gomes (2003), se a escola, enquanto
instituição social responsável pela organização, transmissão e
socialização do conhecimento e da cultura, revela-se como um dos
espaços em que as representações negativas sobre o negro são
difundidas, por isso mesmo, ela também pode ser um importante
local onde se possa se dar a superação de preconceitos. ●

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191 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
III – Formação docente

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 192


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Formação docente e diversidade cultural:
proposições para a inserção qualificada da
temática nos cursos de pedagogia da
Universidade Federal de Rondônia/UNIR

Anselmo Alencar Colares

Introdução

O texto que ora está sendo socializado é fruto de inquietações


investigativas e reflexivas de professores do Programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade Federal de Rondônia –
UNIR, e que são docentes em cursos de formação de professores,
notadamente no curso de pedagogia. As referidas inquietações
investigativas ensejaram a elaboração de um projeto de pesquisa
visando: investigar a compreensão de professores e alunos quanto
à pluralidade/diversidade cultural; identificar nos currículos, a
presença de conteúdos e estratégias pedagógicas que favoreçam
a compreensão, o respeito e a valorização da pluralidade/
diversidade cultural; confrontar possíveis diferenças entre as visões
de estudantes e professores; Contribuir para a inserção qualificada
da temática da pluralidade/diversidade cultural nos cursos de
pedagogia da UNIR.

193 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
A aprovação do projeto junto ao CNPq representou maior
estímulo para o aprofundamento da compreensão do objeto de
estudo, especialmente por conta da necessidade de qualificar
a reflexão entre os futuros professores. Existem inúmeras
interpretações para esse tema e algumas delas retiram da
problematização o conteúdo ideológico, as relações de classe, e
transformam as discussões em mera identificação das singularidades
presentes no cotidiano. Procedendo desta forma, naturalizam as
desigualdades, confundindo-as com diferenças culturais. Desta
forma, podem até legitimar e reforçar preconceitos, em lugar de
enfrentá-los.

Tendo em vista que a Amazônia é marcadamente constituída


de pluralidades/ diversidades, mas que essa característica é pouco
considerada nos currículos escolares, acreditamos queuma mudança
de atitude quanto a essa problemática passa, necessariamente,
pela formação de professores. O curso de pedagogia, por ser não
só o maior responsável pela preparação dos profissionais de ensino
para a educação infantil e o ensino fundamental (séries iniciais),
mas também pelas questões curriculares da educação básica, pode
exercer um papel fundamental na mudança de percepção quanto a
temática da diversidade cultural.

A concepção teórico-metodológica que orienta a pesquisa


é o materialismo histórico, e os procedimentos incluem a
análise dos projetos pedagógicos, a aplicação de questionários
junto a alunos e professores e a realização de entrevistas para
aprofundamento de aspectos que exijam maior entendimento
das informações obtidas. Estamos na fase de análise dos dados,
mas já foi possível verificar que a temática da diversidade é
discutida de forma esporádica e com maior intensidade nas
disciplinas consideradas de Fundamentos da Educação, e, nos
demais componentes curriculares, quando se faz presente,
não difere muito das abordagens que se limitam aos festejos
de datas comemorativas a determinados acontecimentos, e as
suas respectivas singularidades culturais expressas em hábitos
alimentares, vestuário, músicas e danças.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 194


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Diversidade, diferença, desigualdade

Torna-se indispensável a problematização crítica do conceito


de cultura de modo a reconhecê-lo, em cada momento histórico e
nos diferentes espaços geográficos, enquanto produto de múltiplas
dinâmicas e de uma elaboração coletiva. As sociedades e culturas de
acolhimento, tal como se vê em Rondônia, vão sendo, elas próprias, a
expressão da diversidade de seus constituintes, embora mantendo as
matrizes e os elementos estruturantes que as caracterizam enquanto
contextos que foram recebendo e integrando a diversidade dos que
chegam.

A identificação cultural das comunidades minoritárias,


excessivamente baseada numa visão romântica e exótica, ignorando
os efeitos dos contatos, trocas e aculturações, pode suportar discursos
e práticas de formação e reforço aos guetos e às discriminações. A
incorporação de traços de outras culturas pode ser compreendida
como um processo de enriquecimento cultural. Se fizermos um
balanço, ao longo da história, parece inegável que o saldo é positivo
no que diz respeito ao resultado obtido com as trocas culturais, com a
interculturalidade.

A diversidade nas escolas quase sempre é percebida de forma


problemática, etnocêntrica e assimilacionista. Problemática porque os
alunos diferentes – sobretudo os pertencentes às minorias étnicas –
estão, frequentemente, associados a comportamentos desviantes, e
a sua presença na sala de aula, associada ao seu direito ao sucesso
educativo, coloca em questão as estratégias de ensino dos professores
consolidadas em contextos escolares monoculturais. Passam a ser um
problema, mas não necessariamente como ensejo de compreensão e
de mudanças de atitudes e orientações metodológicas. Etnocêntrico
porque predomina a dificuldade em perceber o aluno culturalmente
distinto, de acordo com referências no contexto de usa própria cultura.
Consequentemente, assimilacionista porque a gestão do currículo
é essencialmente orientada para a assimilação de conhecimentos,

195 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
atitudes e valores da cultura dominante, ignorando os
principais traços identitários dos alunos, cultural e etnicamente
diferentes (CARDOSO, 2006; SANTOMÉ, 2008).

As mudanças de atitudes frente a tais questões implicam


processos institucionais e pessoais, estruturados e continuados,
que problematizem as práticas anteriores orientadas para
contextos monoculturais. Implicam a conscientização acerca
das relações de si próprio com os demais, culturalmente
diversificados, e desafiam atitudes de análise e reflexão
acerca da nova realidade social e do papel dos professores na
promoção de mais e melhores oportunidades de aprendizagem
para todos os alunos.

Boa parte das perspectivas de educação multicultural


mantém referências implícitas a uma concepção estática de
cultura, ou seja, de um conjunto de características, mais ou
menos imutáveis, atribuídas a grupos de pessoas, firmando
o caráter totalizante e harmonioso das sociedades, os seus
aspectos integradores e funcionais. Assim vista, a cultura
é um todo funcional homogeneizado, transmitido de modo
semelhante de uma geração para outra. Essa perspectiva de
cultura, aliada ao seu conceito de relativismo cultural, tem dado
origem a uma concepção dominante de multiculturalidade que
se concentra nas variáveis identidade e diversidade cultural,
desvalorizando denominadores interculturais comuns que
desfiam mudanças mais profundas. Daí decorrem concepções
e práticas destinadas à “preservação” da cultura, a afirmação
de “identidades”, e a naturalização das diferenças e das
desigualdades sociais.

Ao fixar-se apenas na diversidade, as escolas entram em


uma espécie de modismo e perdem uma excelente oportunidade
de aprofundar o sentido da educação omnilateral, conforme
preconizado por Marx e superando a oposição entre profissão
e cultura, por via da unificação entre trabalho intelectual e
trabalho manual. (Vide Manacorda, 2007).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 196


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Caracterização das cidades onde apesquisa está sendo desenvolvida

A história das cidades, quando produzida com vistas a dar vez


e voz a todos os que dela tomaram parte, ganha uma importância
crucial enquanto elemento educativo. Faz-se necessário superar,
como apontam Moreira e Candau (2007) o daltonismo cultural, que
vê todos como idênticos, valoriza e legitima uma única cultura e, por
conseguinte, desvaloriza os saberes produzidos e as condições de vida
de grupos sociais minoritários e/ou marginalizados, conduzindo dessa
forma, ao silenciamento e à neutralização das culturas populares.

Rondônia apresenta uma acentuada diversidade em sua


população, devido aos fortes fluxos migratórios que marcam
sua constituição política. Desde a expansão inicial levada a cabo
por sertanistas oriundos do centro-sul, passando pelas levas de
nordestinos que foram induzidos a se tornarem soldados da borracha,
até aos empreendimentos que gradativamente foram tornando viável
a exploração econômica intensificada, tais como a instalação de linhas
telegráficas e a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
(EFMM) e, mais recente, da BR 364, ligando Cuiabá (MT) a Rio Branco
(AC), cujo traçado faz um corte que acompanha transversalmente
quase todo o espaço territorial rondoniense.

O Estado de Rondônia possui 237.590,864 km2, para uma


população de 1.562.409 habitantes (ano 2010), o que representava
6,58 hab/km2. São 52 municípios, incluindo a capital Porto Velho. O
produto interno bruto – PIB, de R$ 17.888.005,00 (dados de 2008),
tem sua maior fonte na Agropecuária 20,4%; na Indústria 14,6% e no
setor de serviços 65%. Em 2009, a renda média per capita era de R$
553,00, e a taxa de analfabetismo entre as pessoas de 10 a 14 anos,
era de 1,8%; e das pessoas com 15 anos ou mais, a taxa sobe para 9,8
%. (Fonte: IBGE).

Trabalho desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Estudos


de População (Unicamp) apontam forte deslocamento de pessoas para

197 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Rondônia, especialmente após a abertura da BR 364. Da década de
1970 para a de 1980, a migração saltou de 285.494 para 411.795. Nos
anos 1970, o estado do Paraná contribuiu com cerca de 36% (103.442
pessoas) do total de migrantes para Rondônia, seguido por Mato
Grosso (47.455), Mato Grosso do Sul (29.463), Espírito Santo (25.569)
e Minas Gerais (19.861). Na década seguinte, o Paraná praticamente
manteve o mesmo volume da década anterior: 104.083. Continuou
sendo o fluxo de maior importância, seguido de estados do Sudeste
(São Paulo, por exemplo, passou de 11.524 no período 1970/1980
para 30.060, entre 1981/1991), bem como os do Norte e Nordeste. No
período 1991/1996, Rondônia registrou uma diminuição do fluxo de
entrada anual de migrantes, registrando uma média de 12.986, contra
as 15.795 ao ano, dos anos 1980. (CUNHA e BAENINGER, 1999)

Quanto à migração vinda de outros estados para as diversas


microrregiões de Rondônia, no período 1970/1980, nota-se que a
microrregião de Ji-Paraná canalizava parcela expressiva (32,5% do
total, ou seja 92.718 migrantes) seguido pela microrregião de Vilhena
(66.360), Cacoal (57.031) e, mais distantes, as microrregiões de
Porto Velho (32.217) e Ariquemes (33.815 imigrantes). Os ganhos
populacionais foram expressivos em todas as microrregiões, à exceção
de Guajará-Mirim, considerada de média absorção migratória, com
um saldo migratório de apenas 2 mil pessoas nos 1970. A migração
para as microrregiões, nos 70, caracterizou-se pela diferenciação na
procedência do fluxo: enquanto para as microrregiões de Porto Velho
e Guajará-Mirim a migração com origem nos estados do Norte era mais
significativa,nasdemaisprevaleceuofluxomigratório oriundodoParaná.
No período 1981-1991, houve uma menor concentração da migrantes
para a microrregião de Ji-Paraná (que se manteve, praticamente
estável com relação a década anterior), passando a microrregião de
Porto Velho a revelar o mais expressivo volume (101.569 imigrantes).
Cacoal e Vilhena apresentaram alterações opostas em suas tendências
imigratórias de uma para outra década. Enquanto a microrregião de
Cacoal registrou elevado crescimento no volume de imigrantes nos 1980
(90.397 contra 57.031, da década anterior) a microrregião de Vilhena
registrou diminuição na entrada de imigrantes (de 66.360 para 35.029,
respectivamente). (CUNHA e BAENINGER, 1999, p. 1 a 30).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 198


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Os números revelam a diversificada composição populacional,
e sua relação com os processos migratórios internos mais recentes.
Registre-se que na tabela apresentada não constam dados relativos
a chegada de estrangeiros a Rondônia, a qual também foi intensa,
especialmente no contexto da construção da EFMM. Muitas famílias
não mais retornaram a seus locais de origem, ampliando a diversidade
culturalrondoniense econtribuindo paraumasituaçãobematípicapara
um estado situado na Região Norte. A paisagem, apesar dos intensos
desmatamentos, não deixa dúvidas tratar-se da Amazônia. Mas os
habitantes, são tão diversos em suas origens, e tão mais numerosos
os de mais longe que os nativos, que raramente no cotidiano urbano
podemos visualizar a presença dominante de pessoas com traços
físicos mais típicos dos povos da Amazônia.

A ocupação recente do espaço geográfico de Rondônia está


fortemente vinculada à construção de grandes rodovias, em cujas
margens estão localizadas as cidades mais populosas e mais prósperas,
e que também concentram o maior contingente de migrantes.

A transformação da estrutura extrativista, operada pela


desapropriação dos seringais e a implantação dos projetos de
colonização, foi rápida e profunda. É desse modo, que Rondônia
passa a ser o palco da maior explosão populacional da década de
70. A população que havia aumentado 64,7%, de 1960 para 1970;
na década de 70, sobe para impressionantes 331,4% de crescimento
absoluto, enquanto que a taxa média geométrica chega a 15,74% de
crescimento anual. Na década de 80, embora haja uma contenção do
crescimento exponencial, o crescimento absoluto chega a 124,7%,
mais que duplicando a população, e a taxa média geométrica anual
a 7,64%, o dobro da região norte (3,85%) e o quádruplo da média
brasileira (1,77%). Na década de 90, enfim, a taxa média geométrica
de crescimento torna-se a menor da região (2,22%), ficando abaixo da
média regional (2,86%).

Isso significa que o Estado deixou de ser o destino das correntes


migratórias nacionais (na década de 90, esse papel coube ao Amapá,
ao Tocantins e a Roraima) e passou a crescer em função da própria

199 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
população radicada. Nesse processo de consolidação, todavia, há um
fator que deve ser destacado: a relação capital-interior. Essa relação
aponta para um dado extremamente positivo e constitui um caso
único na Amazônia. Com efeito, no período extrativista, a capital, Porto
Velho, participava com 72,1% e 76,2% da população, de acordo com os
censos de 1960 e 1970. Com o processo de colonização, a participação
da capital cai para 27,5%, em 1980, portanto, passando em uma década
de ¾ para ¼ da população, mantendo-se em torno desse patamar em
1991 (25,3%) e em 2000 (24,3%). Por isso, essa trajetória se constitui
na melhor distribuição populacional da região, não só porquanto
indique uma crescente ocupação dos espaços rurais, mas também
porque está acompanhada de uma densidade demográfica (5,80 hab/
km²), que apresenta a segunda menor oscilação de taxa de densidade
da Amazônia. (MARTINS, 1982; SILVA, 1975).

A massa, de origem camponesa, em sua ampla maioria


expropriada, vem do Sul e do Sudeste, e se dirige ao interior do Estado.
Não é coincidência, portanto, que a formação da nova base econômica
de Rondônia se faça a partir de uma agricultura, desde cedo, comercial.

Quando da elaboração deste texto, buscamos ilustrar os


argumentos com imagens que pudessem provocar uma outra forma
de interação, levando o leitora desenvolver análises complementares.
Algo que nos chamou a atenção foi o fato de que, apesar de toda
esta farta diversidade populacional e cultural de Rondônia, o site do
Governo do Estado não dispõe de nenhuma informação. Em um item
da página principal denominado “Conheça RO”, há um link que aponta
para Turismo, Cultura e História. Ao clicarmos em “Cultura” aparece a
mensagem “Conteúdo ainda não cadastrado”.

O resultado da ocupação econômica de Rondônia e da migração


camponesamajoritariamentesulista(SuleSudeste),queaacompanhou,
é a transformação radical do espaço amazônico rondoniense: no lugar
dos seringais, há pastos e lavouras; o transporte não se baseia na rede
fluvial, mas rodoviária (Rondônia possui, proporcionalmente, a maior
rede rodoviária do Norte e o deslocamento terrestre para qualquer
município pode ser feito em um dia – ao contrário do Acre, Amazonas

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 200


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
e Pará, por exemplo); desde o final da década de 1970, Rondônia é
o terceiro Estado mais desflorestado do Brasil; as cidades não se
desenvolveram, foram implantadas pelo planejamento urbano, de
acordo com uma lógica que privilegia a arquitetura em detrimento da
arborização. Hoje em Rondônia prevalece uma “cultura” sertanejo
caipira moderna, pela forte presença de pessoas oriundas do nordeste
e centro-sul.

A seguir, apresentamos a caracterização de cada um dos


municípios abrangidos pela pesquisa, a saber: 1. Porto Velho; 2.
Guajará-Mirim; 3. Ariquemes; 4. Rolim de Moura; 5. Ji-Paraná; 5.
Vilhena.

Porto Velho, não somente é a capital, mas também o maior


município de Rondônia, tanto em extensão territorial (34.068,50
km²) quanto em população (428.527 habitantes). A sede localiza-se à
margem direita do rio Madeira, afluente do Rio Amazonas. Suas origens
remontam ao século XIX, quando da autorização para que navios
mercantes de todas as nações pudessem subir o rio Madeira (Decreto
Lei nº 5.024, de 15 de janeiro de 1873, assinado pelo Imperador Dom
Pedro II.

Oficializada como cidade em 1914, expandiu-se a partir das


instalações destinadas a construção da Estrada de Ferro Madeira
Mamoré, a qual foi concluída em 30 de abril de 1912, e inaugurada
oficialmente em 1º de agosto do mesmo ano.

Em 17 de novembro de 1903, com a assinatura do Tratado de


Petrópolis com a Bolívia, o Brasil se comprometia a construir uma
estrada de ferro, ligando os portos de Santo Antônio do Rio Madeira,
em Porto Velho, ao de Guajará-Mirim, no Rio Mamoré, destinada ao
escoamento dos produtos bolivianos.

Para facilitar o embarque e desembarque dos navios, o ponto


escolhido pela direção da Madeira - Mamoré Railway Co., foi um
velho porto situação à margem direita do Rio Madeira, o qual deu
origem a atual Porto Velho, capital do Estado de Rondônia. Parte

201 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
das terras que constituem Porto Velho pertenciam ao Município de
Humaitá, Estado do Amazonas, limítrofe do antigo Município de Santo
Antônio do Madeira, Estado de Mato Grosso. A construção da ferrovia
provocou aumento populacional e novas exigências quanto ao seu
gerenciamento. Em 24 de janeiro de 1915, Porto Velho ganhou o status
de vila e em 7 de setembro de 1919, foi elevada à categoria de cidade.
O Decreto federal n° 5.812, de 13 de setembro de 1943, criou vários
territórios federais, incluindo o do Guaporé, que em 1956 passou a
denominar-se Rondônia. Na época, havia apenas dois municípios:
Porto Velho e Guajará-Mirim. A Lei complementar nº 41, de 22 de
dezembro de 1981, criou o Estado de Rondônia, tendo como capital, o
município de Porto Velho.

A capital de Rondônia vive atualmente um processo de


intensas mudanças, provocadas pela construção de duas grandes
usinas hidroelétricas no rio Madeira. Mas uma vez recebe um forte
contingente populacional oriundo de diferentes localidades, tal como
ocorreu quando da construção da EFMM em cumprimento de acordo
firmado entre Brasil e Bolívia.

A Universidade Federal de Rondônia tem sua sede em Porto


Velho, Campus José Ribeiro Filho. O curso de pedagogia oferece turmas
apenas no período da manhã.

Guajará-Mirim também tem sua história intimamente ligada à


construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, embora o povoado
já tivesse sido constituído bem antes, sob a denominação de Esperidião
Marques, e ligado à Província do Mato Grosso.

Região habitada por diversas etnias indígenas, com destaque


para os pacaás-novos, aguerridos nos combates com os colonizadores
extrativistas. No ciclo da borracha, a extração do látex foi decisiva na
vida do município.

Em 12 de julho de 1926, a povoação foi elevada à categoria de


distrito, dois anos depois, tornou-se comarca com área desmembrada
do município de Santo Antônio do Rio Madeira, tomando o nome de

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 202


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Guajará-Mirim. O município foi oficialmente instalado em 10 de abril
de 1929

A UNIR se faz presente por meio do Campus de Guajará


Mirim, o qual congrega os Departamentos Acadêmicos Ciências
da Administração, Ciências da Educação, Ciências da Linguagem e
Ciências Sociais e Ambientais, respectivamente com os cursos de
Administração, Gestão Ambiental, Letras/Português e Pedagogia.
O Campus é responsável pela coordenação das funções de ensino,
pesquisa e extensão, tanto em termos de planejamento, como em
termos de execução e avaliação.

Rolim de Moura é a cidade mais populosa e economicamente


ativa da chamada Zona da Mata Rondoniense, com uma população
de 50.648 habitantes (IBGE 2010) e área de 1.458 km². A Zona da
Mata, além de Rolim de Moura, abrange os municípios de Alta Floresta
d’Oeste, Alto Alegre dos Parecis, Castanheiras, Nova Brasilândia
d’Oeste, Novo Horizonte do Oeste, Parecis, Santa Luzia d’Oeste e
São Filipe d’Oeste, totalizando uma população de cerca de 151.000
habitantes e área de 19.664 km².

Originou-se do projeto de colonização Rolim de Moura


implantado na área pelo INCRA, destinado ao assentamento de colonos
excedentes do Projeto Ji-Paraná. O nome foi dado em homenagem ao
Visconde de Azambuja. Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, segundo
governador da capitania de Mato Grosso. Foi desmembrado da área
de Cacoal e elevado a categoria de município através do Decreto Lei
Estadual n.º 071, de 5 de agosto de 1983.

A Unir se faz presente em Rolim de Moura por meio de um


campus que congrega os Departamentos Acadêmicos de Educação e
de Agronomia e Engenharia Florestal. Oferece os cursos de graduação
em Agronomia, Engenharia Florestal, História e Pedagogia.

Ji-Paraná é a segunda cidade mais populosa do estado de


Rondônia, com 116.610 habitantes. O nome do município é de origem
indígena, significando rio-machado (devido ao grande número de

203 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
pedras que se pareciam com machadinhas indígenas). Seu início
remonta a corrente migratória consequência da grande seca que
assolou o Nordeste, entre 1877 e 1880.

Como fruto do trabalho desenvolvido pelo Marechal Rondon,


em 1909 foi construída a primeira Estação Telegráfica, ligando Cuiabá
e Porto Velho (denominada de Presidente Pena).

A partir de 1968, milhares de imigrantes oriundos


principalmente da região Sul do país chegaram à região, atraídos
pela crescente mecanização na lavoura. Em 11 de outubro de 1977,
através da lei nº 6.448, o então presidente Ernesto Geisel concedeu
emancipação política à Vila de Rondônia, transformando-o na atual
Ji-Paraná.

A economia é movimentada pelo setor madeireiro, industrial


e de laticínios. A cidade conta com uma das maiores empresas de
granitos do Brasil, e a segunda maior empresa do setor laticinista.
Lavouras de relevância: arroz, café, milho e feijão. A pecuária
extensiva ocupa grande espaço geográfico, pois o rebanho ultrapassa
um milhão e meio de cabeças de gado. Devido à instalação de
indústrias de processamento de leite, existe um forte movimento de
migração do rebanho de corte para o leiteiro.

O Campus da UNIR em Ji-Paraná congrega os Departamentos


Acadêmicos de Ciências Humanas e Sociais, Educação Intercultural,
Engenharia Ambiental, Física e Matemática e Estatística. Oferece os
cursos de Engenharia Ambiental, Estatística, Física, Licenciatura em
Educação Básica Intercultural, Matemática e Pedagogia.

Ariquemes, município fundado em 21 de novembro de 1977,


possuiuma áreade 4.427 km², e asuapopulação éde 90.354 habitantes
(IBGE/2010). Está localizado na porção centro-norte do estado, a 198
quilômetros de Porto Velho, região denominada Vale do Jamari.

A ocupação inicial remonta ao final do século XIX, por conta


da exploração da borracha. Induzidos pelo Governo Federal, houve

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 204


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
um fluxo migratório de nordestinos que se transformaram em
seringueiros, formando um exercito de “Soldados de Borracha”.

O nome Ariquemes tem raízes na denominação da extinta


tribo indígena Arikeme, habitantes nativos da região. A ocupação
efetiva começou a partir de 1909, com a construção da linha
telegráfica de Cuiabá a Santo Antônio do Rio Madeira, em expedição
chefiada pelo Marechal Rondon. A descoberta da cassiterita (1958),
e a autorização para a construção da estrada precursora da BR-364
(em 1960), impulsionaram novas migrações, bem como os projetos
de assentamentos organizados pelo INCRA. Surgia assim a Nova
Ariquemes, que hoje desponta com uma economia expressiva,
sustentada na pecuária, na produção de café, cacau, guaraná e
cereais, e na garimpagem de cassiterita. Recentemente, Ariquemes foi
apontada, na revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, entre
as 25 melhores cidades do Brasil para se empreender, e o primeiro
município do interior com a maior arrecadação estadual.

O Campus de Ariquemes congrega os Departamentos


Acadêmicos de Ciências da Educação, de Engenharia de Alimentos e o
Departamento Interdisciplinar de Tecnologia e Ciências. É responsável
pela coordenação das funções de ensino, pesquisa e extensão, tanto
em termos de planejamento, como em termos de execução e avaliação
dos cursos de graduação de Engenharia de Alimentos e Pedagogia da
UNIR.

Vilhena guarda em seu nomea memória ea atitudedo Marechal


Cândido Rondon, que assim denominou o posto telegráfico construído
em 1910, prestando homenagem ao engenheiro maranhense chefe da
Organização Telegráfica Pública Álvaro Coutinho de Melo Vilhena. Mas
a região já havia sido desbravada cerca de 200 anos antes, quando
bandeirantes como Antonio Pires e Paz de Barro denominaram a área
como Chapadão dos Parecis.

Vilhena ganhou o status de Distrito em 1969, e sua emancipação


política ocorreu em 11 de outubro de 1977 (Lei nº 6.448, sancionada
pelo presidente Ernesto Geisel).

205 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Claude Lévi-Strauss, relatando sua passagem pela região em
seu livro Tristes Trópicos, mostra que, em 1938, havia apenas duas
famílias, abandonadas pela administração da linha telegráfica, e
vivendo da criação de bodes e cabras.

Seu povoamento intensivo se deveu ao fluxo migratório das


regiões mais populosas do País (sudeste/sul), a procura de novas
áreas para plantio. Em 1964, houve a distribuição de terras da União a
colonos dispostos a se fixarem na região.

A existência de um clima ameno, as muitas riquezas naturais


(especialmente madeira, hoje quase esgotada) e a construção da BR
364 (Brasília/Acre) foram fatores decisivos para que o município tenha
saltado para um total de 76.202 habitantes, de acordo com dados do
IBGE/2010. A cidade possui o melhor IDH do estado de Rondônia e o 9º
melhor da Região Norte do Brasil. As principais atividades econômicas
são a agricultura, pecuária, comércio e prestação de serviços

O Campus de Vilhena congrega os Departamentos Acadêmicos


de Ciências Contábeis e Administração, Ciências da Educação,
Comunicação Social/Jornalismo e Estudos Linguísticos e Literários.
É responsável pela coordenação das funções de ensino, pesquisa e
extensão, tanto em termos de planejamento, como em termos de
execução e avaliação dos seguintes cursos de graduação da UNIR:
Administração, Ciências Contábeis, Comunicação Social/Jornalismo,
Letras/Português e Pedagogia.

A formação docente para o contexto da diversidade rondoniense

Marcada por um processo de colonização centrado na exploração


das riquezas naturais, a Região Amazônica, tida como “Eldorado”, “Terra
Prometida”, dentre outros adjetivos, recebeu ao longo da história,
diferentes povos que vieram em busca de melhoria de vida, alguns

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 206


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
fugindo de situações conflitantes, outros buscando um local para se
instalar e se fixar, outros ainda visando simplesmente retirar o que o
lugar poderia lhes oferecer e voltar para sua localidade de origem.

Composta por diferentes culturas que foram se formando no


intensivo contato com a cultura indígena, cabocla, africana e européia.
De acordo com Loureiro (2001), a história da Amazônia é constituída
de “imposições culturais ora violentas, ora persuasivas, fruto de um
caldeamento étnico. Tudo é experiência de vida de seus habitantes.”
(p.289)

Em Rondônia, o acelerado processo de crescimento das cidades


após os empreendimentos voltados para a “integração” de seu
território à economia nacional ampliou as diferenças culturais entre
os nativos e os migrantes. Para além da diversidade natural, passou a
haver uma intensa diferença e desigualdade social, como produto de
um processo historicamente construído nas relações sociais típicas do
modo de produção capitalista.

As atividades consideradas culturais passaram gradativamente


a concentrar-se nas cidades, sob forte influência dos hábitos
e gostos dos grupos economicamente expressivos, enquanto
que as manifestações culturais periféricas ficaram propensas a
estigmatizações e depreciações, sendo vistas como aponta Loureiro
(2001, p. 81), “como inferior, primitiva, e folclórica”. Por conseguinte,
quando adentra no espaço urbano, tais manifestações culturais muitas
vezes são desconsideradas. Dessa forma, entendemos que a história da
constituição de Rondônia impõe pensarmos, enquanto formadores de
professores,quaispráticascontribuemparaatransmissão, avalorização
e o respeito para com a cultura local/regional? Como conviver com
o Outro, tendo presente o que nos aproxima e o que nos afasta, os
conflitos e o diálogo? Como são elaborados os conhecimentos sobre
as manifestações culturais oriundas das populações numericamente
inferiores, porém, mais expressivas em suas diversidades?

As manifestações culturais, em suas várias modalidades, podem


constituir-se em fontes deensinoe aprendizagem das diversidades, sem

207 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
que caiam na mera exposição pitoresca. Mas sendo problematizadas e
consideradas em toda a sua complexidade. Como afirma Bosi (2006, p.
319) a cultura é o “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de
uma dada formação social”, nesse sentido as culturas estão sempre em
movimento, vibram, palpitam e têm vida. Ela não é apenas adquirida,
mas também transformada. Vejamos algumas das manifestações
culturais ainda muito presentes em Rondônia:

Festa do Divino: uma das maiores tradições religiosas da


Amazônia Ocidental, realizada nos municípios do Vale do Guaporé:
Pimenteiras, Rolim de Moura do Guaporé, Pedras Negras, Costa
Marques, Guajará-Mirim e Cerejeiras. Essa festa foi trazida no século
XIX, na época em que a região pertencia ao Estado do Mato Grosso,
iniciando então uma tradição religiosa que se constituiu como
elemento maior da integração das comunidades guaporeanas. Apesar
de ter origem européia, o catolicismo e o culto ao santo relacionam
se bem com o mágico, os tabus, a crença nos pajés e seus espíritos,
traços peculiares aos habitantes amazônicos, onde predominam a
crença em poderes sobrenaturais da floresta, dos rios, as superstições,
as crendices e as lendas.

Festa do Boi Bumbá: acontece nas cidades de Porto Velho e


Guajará-Mirim, cujo tema central é a morte e a ressurreição do boi,
surgindo um enredo dramático, assim exemplificado:

Ao engravidar, Catirina, mulher do negro Francisco encarregado de


uma fazenda de gado, começa a ter desejos, entre eles, o de comer a
língua do boi preferido do patrão. Pediu ao marido que matasse o boi
para que ela pudesse satisfazer seu desejo. Temeroso de que Catirina
perdesse o filho, caso o desejo não fosse atendido, roubou o boi de
seu amo, para atendê-la. Ao descobrir o animal morto, o amo manda
os índios caçarem o negro Francisco, que por sua vez pede auxílio ao
pajé para ressuscitar o boi. O boi renasce e tudo vira uma grande festa.
(CAVALCANTI, 2000, p. 1024)

Essa apresentação folclórica foi herdada da região Nordeste,


porém no Norte, reúne elementos culturais portugueses, africanos e

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 208


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
indígenas. Dessa forma, o Boi Bumbá mantém o enredo tradicional,
incorporando muitos elementos alegóricos que representam a fauna,
a flora e a arquitetura da região amazônica. Como por exemplo: botos,
uiaras, cobras-grandes, curupiras, caiporas, matintapereira (Segundo a
mitologia tupi, é uma pequena coruja que canta à noite para anunciar
a morte próxima de uma pessoa). Uma verdadeira valorização regional
indígena, afirmando a marca cultural cabocla.

Destacamos também as danças típicas em coletivos


denominados quadrilhas, com amostras culturais regionais, no Arraial
intitulado Flor do Maracujá, que acontece em Porto Velho na última
semana de junho, por ocasião da comemoração das festas juninas.

A culinária também tem grande representatividade cultural,


sendo baseada em peixes e frutos da região, e o uso de temperos
frescos e saborosos como o cheiro verde, a cebolinha, a chicória, a
alfavaca e a pimenta-de-cheiro. Os pratos mais comuns são: caldeirada
de tucunaré, tacacá, tapioca, pato no tucupi, maniçoba, doce de
cupuaçu, caruru (camarão seco e quiabo, azeite de dendê e farinha de
mandioca), creme de pupunha, suco de açaí e cupuaçu.

O artesanato tem forte influência indígena, como a cerâmica


marajoara, máscaras indígenas, artigos feitos em palha. As criações
têm como matéria prima elementos naturais, tais como: sementes,
madeira, borracha, fibras naturais e pedras preciosas.

Na dança temos a marujada, o carimbó, as quadrilhas, o boi


bumbá e as cirandas. Deparamos ainda com a eficiente medicina
natural, muito usada pelos/as índios/as, negros/as, caboclos/as,
seringueiros/as e pelos/as camponeses/as. Há também as lendas
e os mitos que permeiam o imaginário do homem e da mulher
amazônica rondoniense, entre eles destacam-se: a Uiara ou Mãe
D’Água, metade mulher, metade peixe que encanta os homens e
os leva para o mais profundo das águas; o Boto, da família dos
golfinhos, transforma-se em belo rapaz sedutor, o verdadeiro Dom
Juan das águas; a Boiúna, cobra grande que se transforma em navio
iluminado; o Mapinguari, terrível inimigo do homem; o Jurupari,

209 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
demônio, espírito do mal e grande legislador, foi mandado pelo
sol para reformar os costumes da terra; o Muiraquitã, amuleto
esculpido em pedra verde; o Tupana, espécie de deus, ente
desconhecido, que troveja e mostra sua fúria pelo raio capaz de
carbonizar florestas e homens, dentre tantos outros. Na verdade
os mitos e as lendas são formas usadas pelo homem para entender
a natureza e seus fenômenos, bem como, para determinar regras
sociais a serem cumpridas e procedimentos esperados.

Outra manifestação cultural é a exposição agropecuária que


é realizada sempre na época de aniversário das cidades. Organizado
pelas Associações Rurais, o evento é palco para exposições pecuárias
e agrícolas, realização de shows e rodeios. Esse acontecimento
apresenta características estritamente das regiões sul e sudeste
brasileiro, com exceção de algumas apresentações musicais com os
artistas da região.

Uma educação escolar democrática e respeitadora da


diversidade cultural contempla em sua proposta de ensino e
aprendizagem as problemáticas do cotidiano de seus alunos e alunas,
transformando as realidades em objeto de análise e reflexão. Para
que possa ser efetivamente democrática, deve estar presente em
todas as tarefas acadêmicas, em todos os recursos didáticos, no
discurso dos professores, na maneira de pensar e de agir dos sujeitos
que vitalizam a escola. Ou seja, as ações didáticas, de acordo com
Santomé (1996, p. 151) “têm de propiciar a reconstrução da história
e da cultura dos grupos e povos silenciados”. Para isso é necessário o
diálogo, o ouvir, dar voz aos (as) estudantes para que os/as mesmos/
as interpretem os conflitos do presente e identifiquem suas próprias
posições, interesses e hipóteses. Nesse sentido, recriar o saber e
entender como ele se articula com o lugar onde estamos, do que
somos, de como somos e não como deveríamos ser.

Ao concentrarmo-nos na formação docente procuramos


elencar os elementos que já fazem com que a temática da diversidade
cultural apareça no ambiente de formação dos pedagogos na
Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Dessa forma atemo

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 210


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
nos aos elementos curriculares que favorecem a compreensão dos
discentes sobre as características culturais diversificadas que estão
presentes no ambiente escolar.

Verificamos que, muitas vezes, o discurso apresenta-se como


multicultural, mas se limita à identificação da diversidade em suas
particularidades, não aplicando tais características ao todo maior e
mais complexo do corpo amazônico. A compreensão da relação entre
a totalidade e a parte é fundamental para a leitura da realidade,
pois estão em intensa relação. E é a percepção dos mecanismos
que interagem entre o singular e o universal que possibilita maior
aproximação dos pesquisadores e docentes ao contexto em que
estão inseridos.

Até o momento já foram aplicados 108 questionários aos


discentes, os quais apresentam dados empíricos que propiciam
análises preliminares. Perante a pergunta “como você se
identifica?” 32% se declarou branco, 13% negro, 49% pardo, 9%
amarelo e nenhum indígena; 4% não respondeu e 51 % afirmam
já ter estudado a temática de forma sistematizada no curso de
pedagogia, principalmente nos últimos semestres (7º e 8º).
Todavia, as disciplinas dos chamados fundamentos estão situadas
nos primeiros semestres. A disciplina intitulada “Educação com
Povos da Floresta” é onde a temática é mais abordada, tendo
recebido 42% de indicação. Mesmo assim, 45% dos pesquisados
sugerem a inclusão de uma disciplina específica para tratar do tema
diversidade.

Quanto à realização de leituras relativas a temática da


diversidade, cerca de 66% dos discentes responderam negativamente.
Os dados já sistematizados apontam que a temática da diversidade
cultural ainda não se encontra suficientemente trabalhada nos
cursos de pedagogia pesquisados. Porém, indicam que os alunos
estão participando das discussões acerca da temática, seja na sala
de aula ou em eventos (tais como palestras ou seminários). Importa
destacar que a iniciativa docente existe e que, ao mesmo tempo, ela
carece de maior inserção curricular.

211 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Conclusão

Considerando que a UNIR está presente, através de seus


diversos campi, em todas as micro-regiões do estado, e o curso de
pedagogia é ofertado em vários municípios, a pesquisa foi estruturada
objetivando também compreender as diferentes formas que
docentes e discentes lidam com a temática da diversidade cultural,
considerando suas próprias realidades. Em cada um dos campi, o curso
de pedagogia apresenta singularidades, tendo em vista que não há um
projeto pedagógico unificado. Isso possibilita, por exemplo, variações
curriculares na abordagem do tema da diversidade. Todavia, faz-se
necessário identificarmos e compreendermos as formas diferenciadas
de concretização das abordagens, de tal forma que propiciem trocas
significativas para a formação dos docentes.

Osgovernos (emtodasasesferas), aolongodos anos,omitiram-se


noqueserefereàelaboração eimplantaçãodepolíticas públicasvoltadas
para a valorização e o resgate dos aspectos culturais característicos dos
povos tradicionais que constituem a população amazônica de Rondônia
(principalmente indígenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses e
demais grupos que constituem a camada mais pobre da sociedade). Os
saberes eas práticas culturais vãoperdendo força, seja pela falta deapoio
a sua difusão, seja pelos processos discriminatórios que sofrem diante
das manifestações sofisticadas que aparecem nas mídias. Dissemina
se, então, a idéia e a imagem de que não há uma cultura rondoniense
própria. Por conseguinte, cabe à escola desmistificar tais equívocos, a
partir da incorporação crítica, em seu currículo, da compreensão de
cultura, bem como dos condicionantes históricos que estão presentes
nos contextos em que ela é utilizada ideologicamente em função
de interesses de classe, obscurecendo sua compreensão ampla e
favorecendo divisões que são úteis para a legitimação das diferenças e
das desigualdades sociais.

Entendemos que a incorporação de traços de outras culturas


produz um saudável enriquecimento cultural. A diferença nos afasta,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 212


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
mas a diversidade nos faz melhores, pois ela revela nossa criatividade
frente aos desafios cotidianos. Se fizermos um balanço, ao longo da
história, parece inegável que o saldo é positivo no que diz respeito
ao resultado obtido com as trocas culturais, com a interculturalidade.
Assim sendo, não parece fazer sentido uma educação que,
anunciando-se diferenciada, se caracterize pelo fechamento em torno
de um suposto universo cultural a ser preservado. Uma educação
emancipadora fundamenta-se na luta pela igualdade, mas ao mesmo
tempo prima pelo respeito a diversidade, ultrapassando quaisquer
barreiras que impeçam o desenvolvimento pleno do ser humano. ●

Referências

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BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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213 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


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Brasília: CDI/Câmara dos Deputados, 1975.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 214


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
‘Pra não ser lavadeira’: professoras negras
de Educação Infantil em São Paulo, identidades e trajetórias

Míghian Danae Ferreira Nunes

Estudar as mulheres negras e seus percursos escolares torna-se


um imperativo em nossos trabalhos acadêmicos se desejamos ampliar
nossos conhecimentos acerca dos grupos sociais presentes em nossas
escolas públicas; aqui, trago algumas conclusões sobre pesquisa em
andamento no Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP) sobre as professoras negras de
Educação Infantil da cidade de São Paulo. Essa pesquisa está vinculada
às contribuições da história oral (MEIHY, 1996), entendendo-a como
uma sistematização dos referenciais africanos de oralidade (BÂ, 1982),
identificados no grupo afro-brasileiro pesquisado.

Os questionamentos que me levaram ao estudo mais


aprofundado sobre essa temática iniciaram-se quando ingressei na
rede municipal de São Paulo como professora de Educação Infantil,
há seis anos; chegando à universidade para realizar estudos de pós
graduação, acreditei ser possível transformar minhas inquietações
pessoais – fruto das relações que mantenho com meus grupos de
pertencimento racial, de gênero e origem – em pesquisa. Percebi

215 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
que o número de professoras negras em Educação Infantil era
maior do que em escolas de ensino fundamental e médio, evento já
comprovado em pesquisa realizada em 1985, tendo como autoras
Lúcia Elena Oliveira, Rosa Maria Porcaro e Tereza Cristina Nascimento
Araújo Costa, intitulada O lugar do negro na força de trabalho. Nessa
publicação, pode-se perceber que as mulheres negras que estão no
magistério atuam em maior número na Educação Infantil, comparado
aos outros níveis de ensino. Constatações muito semelhantes também
foram alcançadas pela pesquisadora Waldete Tristão de Oliveira em
sua dissertação Trajetória de mulheres negras na educação de crianças
pequenas no distrito de Jaraguá em São Paulo: processos diferenciados
de formação e de introdução no mercado de trabalho: “(...) cada dia
mais, surpreendia-me ao encontrar significativo número de mulheres
negras atuando nesse tipo de instituição, diferentemente do que eu
estava acostumada a ver e conviver desde o meu ingresso em Escolas
de Educação Infantil (OLIVEIRA, 2006, p. 26)”.

Também a pesquisadora Arlete dos Santos Oliveira comenta


suas impressões com relação ao “número significativo de mulheres
negras que trabalhavam nas creches” (OLIVEIRA, 2009, p. 22), em
sua dissertação Mulheres negras e educadoras: de amas-de-leite
a professoras. A mulher, para além das constatações biológicas
atribuídas ao termo, é um ser categoricamente relacional ao homem,
que tem sua identidade sexual fincada na cultura a qual pertence
e que se constrói a partir de suas diferenças para com os demais
grupos. A partir dos estudos de Joan Scott (1988), o termo gênero –
uma categoria relacional que indica “construções culturais – a criação
inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens
e às mulheres” (SCOTT, 1995) – ganha cada vez mais força quando o
assunto é a diferença entre os sexos, que não são, como já indicamos,
apenas biológicas. Se, em primeira instância, os diversos movimentos
feministas buscaram produzir trabalhos e pesquisas que evidenciassem
as mulheres e suas histórias (SCOTT, 1995), a consolidação do termo
gênero busca ir além do direcionamento unívoco e entende as
relações entre homens e mulheres como um importante ponto de
partida para contarmos a história de nossa sociedade e produzirmos
conhecimento. Reconheço a importância dessa construção teórica,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 216


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
mas, por também reconhecer que as teorias feministas e essa linha
inicial de pesquisa feminista não conseguiram dar conta de falar sobre
todas as mulheres – e aqui em específico falo da história das mulheres
negras – reivindico a importância de localizarmos nossos estudos
também a partir da ótica da história desse grupo, utilizando-me das
especificidades analíticas do termo gênero, quando necessário for,
para explanar alguns apontamentos/percepções.

Parafalarderaça,háumaparceladeestudiosos/as(GUIMARÃES,
2003; GOMES, 1995) que advogam sua utilização também como uma
categoria relacional, construída socialmente, indo além das definições
biologizantes que tomaram conta dos estudos nas áreas das ciências
humanas no início do século vinte no Brasil, impregnados pelas teorias
racistas europeias no campo da Medicina e do Direito. Guimarães faz o
seguinte questionamento:

O que é raça? Depende. Realmente depende de se estamos falando


em termos científicos ou de se estamos falando de uma categoria
do mundo real. Essa palavra “raça” tem pelo menos dois sentidos
analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela
sociologia [...]. Depois da tragédia da Segunda Guerra, assistimos a um
esforço de todos os cientistas — biólogos, sociólogos, antropólogos —
para sepultar a idéia de raça, desautorizando o seu uso como categoria
científica. O desejo de todos era apagar tal idéia da face da terra, como
primeiro passo para acabar com o racismo (GUIMARÃES, 2003, p. 95).

Mas, segundo o próprio Guimarães, tal intento não se


concretizou porque o termo raça continuou sendo usado tanto pela
sociologia como pela biologia para identificar diferentes questões
dentro de seus estudos específicos. O Movimento Negro Unificado
então

[...] vai reintroduzir a idéia de raça, vai reivindicar a origem africana


para identificar os negros. Começa-se a falar de antepassados, de
ancestrais, e os negros que não cultivam essa origem africana seriam
alienados, pessoas que desconheceriam suas origens, que não
saberiam seu valor, que viveriam o mito da democracia racial. Para o

217 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
MNU, um negro, para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar
sua raça. A idéia de raça passa a ser parte do discurso corrente [...] se
introduz de novo a idéia de raça no discurso sobre a nacionalidade
brasileira (GUIMARÃES, 2003, p. 103).

Cabe dizer aqui que a opção por utilizar o termo raça é, em


primeiro lugar, política, já que pretende suscitar o debate sobre
as configurações dos estudos sobre relações raciais no Brasil. Essa
disputa, de algum modo, levanta debates importantes sobre a
própria epistemologia do conhecimento, e mais: ousa reconstruir
uma arqueologia62 dos saberes produzidos até aqui sobre o assunto,
reafirmando as intencionalidades das pesquisas até agora feitas,
pulverizando as prováveis certezas que tínhamos sobre esse assunto.
Sendo raça uma categoria relacional, reafirmamos, com essa escolha,
que é a partir das relações que temos – com as pessoas, coisas,
eventos, lembranças, com a vida, enfim – que dizemos algo sobre
o conhecimento que produzimos. Não é um terreno seguro, nem
tranquilo. Mas necessário de ser reconhecido, confirmado, respeitado.

Interrelacionamos os termos mulher e raça para definirmos


o grupo social denominado mulheres negras. Mas, assim como nos
lembra Sudbury(2003), é preciso compreender que esse grupo nunca
foi homogêneo, sendo utilizado aqui como categoria, mas impossível
de ser apreendido numa concepção única, porque as teorias de opinião
feminista “valorizam a autêntica forma de expressão marginalizada,
mas, quando esta é trazida para o centro, outras novas são criadas”
(SUDBURY, 2003, p. 61) Pensando a reviravolta epistemológica que
propõe os estudos feministas em meados no século vinte, (LOURO,
1997) para a análise da própria configuração dos estudos feministas
vigentes, afirmo não ser possível falar da história da mulher usando
como referência única a mulher ocidental, branca, de classe média
e heterossexual. Seria talvez mais certo tentar falar das histórias

62 Segundo o livro Vocabulário de Michel Foucault, arqueologia seria “uma história das
condições históricas de possibilidade do saber [...] a arqueologia não é uma disciplina
interpretativa, não trata os documentos como signos de outra coisa, mas os descreve como
práticas”. (CASTRO, 2009, 41).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 218


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
e das mulheres, ainda assim sabendo que nossas constatações
não darão conta de toda a complexidade que tais termos trazem
para o debate contemporâneo acerca das identidades em jogo, das
categorias representativas, das questões de poder e política que estão
relacionadas com cada compreensão que se tem de cada um desses
termos. A expressão cunhada pelos movimentos feministas do século
passado que afirmava ser “o pessoal, político” é um emblema que diz
um pouco desse lugar constituído para falarmos das múltiplas histórias
de mulheres negras no Brasil. Essa frase não diz tudo, mas é um ponto
de partida para chegarmos a outras conclusões sobre o que significa
ser mulher negra no Brasil.

Desde que foram criadas na cidade de São Paulo63 as escolas


de Educação Infantil tiveram como exigência para admissão de suas
profissionais, o diploma de formação no curso de Magistério, sendo
assim um importante diferencial dos espaços denominados de
creches, já que estes não requerem os estudos em Nível Médio para
atuação de suas profissionais. Atualmente, com um maior número de
mulheres acessando o ensino superior (QUEIROZ, 2001), pode parecer
pouco a requisito dos estudos em segundo grau. Mas se pensarmos na
realidade brasileira das décadas de oitenta e noventa, e mesmo nos
primeiros anos do século vinte e um, conquistar o diploma de ensino
médio, sobretudo para o grupo de mulheres que estamos estudando
é/foi um passo deveras significativo para a mudança das condições de
trabalho e perspectivas de vida.

Essa pesquisa centra-se nas trajetórias profissionais destas


mulheres, levando em conta suas identidades de gênero e raça. A
metodologia de história oral se apresentou como um instrumento
necessário para fazermos valer as palavras ditas pelas professoras em
questão, que pode ser definido como a sistematização de um saber
tradicional de comunidades africanas – a oralidade. No primeiro livro

63 Para mais informações, consultar FARIA, Ana Lúcia Goulart de. A contribuição dos
parques infantis de Mário de Andrade para a construção de uma pedagogia da educação
infantil. IN: Educação e Sociedade, São Paulo, ano XX, n.69, dezembro 1999, p.60-89.

219 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
sobre a História Geral da África, publicado em 1982, há um texto que
nos informa sobre a importância primeira da palavra para associedades
africanas. Em A Tradição Viva, Hampatê Bâ cita seu mestre espiritual
Tierno Bokar Salif, reafirmando:

A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber,


mas não é o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem.
A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e
que se encontra latente em tudo o que nos transmitem, assim como o
baobá já existe em potencial em sua semente (SALIFAPUD BÂ, 1982,
p. 167).

Ainda segundo BÂ,

A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona


todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe
descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana
acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro
da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão
dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral
consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo
com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões
humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência
natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma
vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade
primordial (BÂ, 1982, p. 167).

Levando em consideração o pertencimento racial do grupo


que desejamos investigar e a ancestralidade presente em seus modos
de ser, é inegável que, se desejamos nos aproximar e coletivamente
construir modos de interpretação desses modos, é preciso reconhecer
em nossas pesquisas a importância dessa oralidade para a elaboração
da vida, do fazer cotidiano, do ensinar e aprender, do compartilhar,
do existir. Assim como BÂ (1982) acreditamos que “nenhuma tentativa
de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a
menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie”
(Ibid., p. 212).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 220


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Relacionando essas considerações aos trabalhos realizados
pelo Grupo de Estudos Docência, Memória e Gênero (GEDOMGE)64,
vinculado à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(FEUSP), podemos encontrar pontos de intersecção entre o modo
como professoras negras contam suas histórias e a discussão sobre a
importância da contra-memória para registrarmos histórias de vida e
formação docente. A contra-memória desenvolve “um tipo de análise
que não apenas ultrapassa os limites dos estudos centrados que se
formaram sobre o profissional no decorrer da história”, que apoiada
em “fontes não escritas ou não impressas”, ganha expressivo destaque
“quando o que se pretende é inverter, subverter ou demonstrar o
caráter dominador da memória estabelecida” (CATANI et al., 1993:
passim). Assim,

As críticas que se fazem ao caráter subjetivo das fontes apoiadas


na palavra, no depoimento, e na história de vida, podem ser
invertidas, pois exatamente essas fontes exprimem de modo claro
o que perigosamente se oculta na pretensa objetividade das fontes
estatísticas ou oficiais. Nenhuma fonte histórica é imune à crítica
interna, à exposição de seus limites e distorções, e nenhuma fonte
história, seja ela oral e escrita, pode sustentar-se sem a crítica
cruzada, o cotejo com outros dados e outras fontes (Ibid., 1993, p.
306).

Pensando as memórias de professoras negras como um dos


muitos lugares esquecidos da história oficial, precisamos compreender
tanto os motivos que tornaram esse esquecimento uma presença na
produção de nossa historiografia brasileira como também, construir
saberes sobre estas histórias, a partir da ótica dessas profissionais,
que, sendo mulheres presentes em cor e corpo, possuem forma(s)
específica(s) “de ser e estar no mundo, constituída pelas maneiras de

64 Grupo de pesquisa criado pelas professoras Denice Catani, Belmira Bueno, Cynthia
Pereira de Souza e Maria Cecília Cortez Christiano de Souza no inicio da década de noventa
na FEUSP que propunha “a realização de estudos alternativos sobre a formação continuada
de professores”. (CATANI et al., 1993, p. 300 e 301).

221 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
enfrentar os desafios, de aprender os caminhos possíveis e descobrir
os atalhos ocultos” (Ibid, 1993, p. 313).

Apesar da escolha pela escuta sensível às histórias de vida das


professoras negras, julguei ser indispensável realizar uma pesquisa
empírica junto às profissionais de educação da cidade, visto que
a Prefeitura não dispõe os dados discriminados sobre o gênero
e raça de suas profissionais65. Escolhi uma diretoria de educação
dentre as treze diretorias municipais existentes, levando em conta
a lógica organizacional da cidade no que diz respeito às questões
educacionais. Essa diretoria supervisiona trinta escolas de Educação
Infantil localizadas em três distritos municipais vinculados a duas
subprefeituras da cidade; nas referidas escolas trabalhavam, no
primeiro semestre de 2010, época da pesquisa, 759 (setecentos e
cinquenta e nove) professoras.

A pesquisa empírica buscou encontrar as mulheres negras


professoras deEducação Infantilde umadeterminada região da cidade
de São Paulo. Para tal empreendimento, organizei um questionário
contendo nove perguntas, sendo uma delas aberta, distribuindo-o
nas já mencionadas trinta escolas de Educação Infantil. Tendo visitado
as escolas e entregado o material para as coordenadoras – ou para
as diretoras, quando as escolas não dispunham de coordenadoras
–, após dois meses realizei nova visita para recolhimento dos
questionários e iniciei a elaboração de gráficos com as informações
obtidas.

Quatrocentas e seis professoras responderam aos


questionários, dentro do universo de 759 (setecentos e cinquenta
e nove professoras), o que dá 53,5% do total (Gráfico 01). Ressalto
aqui a dificuldade de acesso a algumas escolas, por não possuírem
linha de ônibus que atendessem às proximidades (algumas vezes, era
necessário caminhar de dez a vinte minutos do ponto de ônibus mais

65 Informação obtida através de um email recebido por mim diretamente da seção de


Recursos Humanos da Prefeitura de São Paulo, no mês de setembro de 2010.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 222


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
próximo para chegar até elas). Além disso, a falta da coordenadora
pedagógica em algumas escolas dificultou o trabalho, tendo solicitado
algumas vezes a colaboração do corpo técnico da escola (numa delas,
não obtive sucesso, pois ninguém pode ficar responsável por entregar
e recolher o material).

Gráfico 01 – Número de professoras/as que responderam aos


questionários enviados, 2010.

Professoras/es de Educação Infantil


56,00%
54,00%
52,00%
50,00%
48,00%
46,00% Professoras/es de
44,00% Educação Infantil
42,00%
Professoras/es que Professoras/es que não
responderam aos responderam aos
questionários - 406 questionários - 353
(53,5%) (46,5%)

Fonte:Respostasobtidas atravésdos questionários elaborados para a pesquisa empírica, 2010.

É importante assinalar que todos os homens (cinco)66que


apareceram nas listas de professoras das escolas pesquisadas
responderam os questionários (Gráfico 02). Algumas pesquisas
tentam elucidar os motivos que fazem com que os homens não
estejam presentes nesses espaços de educação67, apontando

66 Escolhi denominar o grupo pesquisado pelo gênero feminino, dada a imensa maioria
de mulheres presentes nele. Além disto, minha intenção aqui sempre foi registrar essas
informações a partir da ótica das mulheres que participaram desta pesquisa e, ademais, o
número de homens identificados é realmente ínfimo (aproximadamente 1%).

67 Segundo dados informados por ROSEMBERG (2001) a partir da RAIS (1988 e 1998), o
número de homens na Educação Infantil é de aproximadamente 6%.

223 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
questões que envolvem práticas de maternagem presenciadas
no interior da escola e que, a priori, são associadas às mulheres
(CARVALHO, 1999), desde a falta de motivação por conta dos
baixos salários e a falta de reconhecimento profissional. É
importante compreender que esse lugar,definido por e para
as mulheres, guarda relação com um ideal que temos dos
significados de ser mulher, ser criança e, por que não, daquele de
ser homem em nossa sociedade. Segundo Arce (2001), por trás
do mito de educadora nata, há uma intencionalidade de contínua
desvalorização da profissional de Educação Infantil, que trabalha
cotidianamente com aspectos considerados irrelevantes – a
criança pequena e o contato com seu corpo – para o modelo de
ser humano que se busca formar no mundo atual. Apesar de não
ser um tema específico deste trabalho, a constatação do número
de homens que atuam na Educação Infantil na pesquisa nos fez
querer compreender tais processos; acreditamos que o tema é
bastante fértil e carece de atenção por parte de pesquisadores/as
na área da educação e infância.

Gráfico 02 – Número de mulheres e homens em efetivo exercício nas


escolas de Educação Infantil pesquisadas, 2010.

Mulheres/Homens - Educação Infantil


120,00%

100,00%

80,00%

60,00%
Mulheres/Homens -
40,00% Educação Infantil

20,00%

0,00%
Mulheres - 401 Homens - 5 (1,2%)
(98,8%)

Fonte:Respostasobtidas atravésdos questionários elaborados para a pesquisa empírica, 2010.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 224


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Para situar a pesquisa em curso, creio ser necessário
falar um pouco sobre a escolha da metodologia de pesquisa
empregada, especificamente aquela utilizada para perguntar
sobre a cor das professoras envolvidas na pesquisa. Sabemos
que a inclusão do quesito cor em questionários de pesquisa
não é um fato recente68, mas as discussões a respeito de sua
utilização e o modo como as pessoas enxergam tal pergunta
tem suscitado vários discussões nas últimas décadas (BERQUÓ,
1987, 2003; SANSONE, 2004)69. Desse modo, decidi utilizar
dois modelos de classificação racial para este quesito: 1)
um, largamente utilizado nas pesquisas censitárias e demais
pesquisas que buscam classificar racialmente, aqui chamo
de modelo “IBGE”70 e 2) outro, que utiliza o critério de
autoclassificação, também conhecido como autoatribuição,
considerado por alguns autores como um “sistema de
classificação popular” (D’ADESKY, 2001; TELLES, 2003). Imaginei
que, utilizando os dois modelos, poderia ter um quadro mais
aproximado sobre como as professoras se enxergavam quanto
ao seu pertencimento racial, já que este é um dos temas centrais
desta investigação. O critério para análise para os casos de
professoras que utilizassem os dois modelos seria a invalidação
do modelo IBGE (1). Das quatrocentas e seis professoras
envolvidas, trezentos e cinquenta e duas professoras utilizaram
o primeiro modelo, restando cinquenta e duas professoras que
preferiram autoatribuir-se uma cor (Gráfico 03).

68 Desde 1872, o quesito cor aparece nas pesquisas censitárias, mas de modos muito
diferenciados. No referido ano, quem definia a cor dos/as escravizados/as, por exemplo,
eram seus senhores. A partir dos anos 40, esse quesito volta e, em 1970, ele desaparece.
A partir de 1980, as pesquisas retomam o quesito no modo como o conhecemos hoje, sem
interrupções. Para maiores informações, consultar ARAÚJO, 1988 e BERQUÓ, 1988.

69 Ver ROSEMBERG, 2004;

70 Esse nome faz referência ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já que
o modelo é uma cópia de modelo de classificação racial por ele empregado; O IBGE utiliza
o termo cor/raça para identificação racial, e entre as alternativas, é possível classificar-se
como branco, preto, pardo, amarelo ou indígena.

225 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Gráfico 03–Modelo deClassificaçãoutilizadopelas/osprofessoras/es.
Modelos de Classificação Racial utilizados pelas/os
professoras/es
100,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
0,00%

Modelos de
Classificação Racial
utilizados pelas/os
professoras/es

Modelo "IBGE" - Modelo


352 (87,1%) "Autoclassificação"
- 52 (12,9%)

Fonte:Respostasobtidas atravésdos questionários elaborados para a pesquisa empírica, 2010.

Apenas duas professoras não identificaram sua cor/raça, sendo,


portanto, retiradas desta análise. É perceptível que a grande maioria
das professoras elegeu o modelo “IBGE” para realizar sua classificação
racial, talvez por se sentirem mais confortáveis em manejar um
instrumento mais conhecido e não necessitarem da elaboração de
uma análise maior sobre como se viam com relação à questão da cor/
raça. Deste modo, temos 64,4% professoras que se classificaram como
brancas, 26,9% como pardas, 5,7% como pretas, 2,4% como amarelas
e nenhuma professora indígena (Gráfico 4).

Gráfico 4 – Modelo “IBGE” de Classificação Racial.


Modelo "IBGE" de Classificação Racial
70,00%
60,00%
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00% Classificação Cor/Raça

Fonte:Respostasobtidasatravésdosquestionárioselaboradosparaapesquisaempírica,2010.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 226


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Apesar de muitos/as pesquisadores/as utilizarem a junção das
categorias parda epreta (OSÓRIO, 2003)na constituição do termo negra/
negro, justificando para tal empreendimento a aproximação estatística
que há entre os dois, aqui decidi fazer análises conjuntas (Gráfico 5),
mas, quando necessário for, também recorro às análises separadas por
categorias, porque assim creio ser possível encontrar mais algumas
respostas e outrastantas perguntas acerca dessas definições. Essa opção
levou em conta algumas questões que apareceram durante a pesquisa
empírica que julguei serem pertinentes de serem levantadas, tanto na
análise dos dados quanto das entrevistas com as professoras escolhidas.
A primeira das questões é: a) por que as mulheres se definem como
pardas e não como pretas, e vice-versa, para além do tom da pele? b)
quais as identidades em jogo quando escolhemos uma cor/raça? c) o
que quer indicar o maior número de mulheres pardas e não de mulheres
pretas, não apenas aqui, mas no conjunto das pesquisas que levam em
conta a classificação racial? d) a que grupo racial se filiam as mulheres
que se identificam pela cor parda?

Gráfico 5 – Modelo “IBGE” de Classificação Racial (agregando pretas


e pardas), 2010.
70,00% Modelo "IBGE" de Classificação Racial (agregando pretas
e pardas)

30,00%
40,00%
50,00%
60,00% Cor/Raça
20,00%
10,00%

0,00%
228
Branca
(64,4%)
- 115(32,4%)
Preta/parda
(Negras) - Amarela
(2,4%)- 9 Indígena
(0,0%)- 0 Não
respondeu -
2 (0,6%)

Fonte:Respostasobtidas atravésdos questionárioselaborados para a pesquisa empírica, 2010.

227 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Outra questão que desejo também aprofundar nos estudos
dos grupos em separado diz respeito especificamente ao grupo de
mulheres que se declaram pardas. Minha inquietação reside no fato
de buscar entender se na escolha por essa opção há o vislumbre,
por parte das pessoas que assim se auto-classificam, uma certeza
de que, afastando-se do grupo que ocupa a base da pirâmide social
econômica no Brasil e no mundo, a saber, as mulheres negras, há
maior possibilidade de ascensão e oportunidade em vários setores da
sociedade, seguindo um pensamento expresso por Wood e Carvalho
(1994) que ressaltam que “a tendência de indivíduos de pele escura a
se mover para categorias mais próximas da branca estaria associado à
ascensão social” (p. 3).

Os dados obtidos também a partir do Modelo “Auto


classificação” de Classificação Racial (Gráfico 6) também nos apontam
certezas e dúvidas sobre as questões que dizem respeito às questões
de pertencimento racial.

Gráfico 6 – Modelo “Autoclassificação” de Classificação Racial.


Modelo "Autoclassificação" de Classificação Racial
50,00%
45,00%
10,00%
15,00%
20,00%
25,00%
30,00%
35,00%
40,00%

0,00%
5,00% Auto-classificação

Fonte:Respostasobtidas atravésdos questionários elaborados para a pesquisa empírica, 2010.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 228


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
As professoras que optaram pela auto-classificação não
fugiram a uma regra já observada por outros/as pesquisadoras/es
sobre relações raciais no Brasil: quando questionadas abertamente, as
pessoas escolhem diversas denominações para dizer o que consideram
ser sua filiação racial (TELLES, 2003; D’ADESKY, 2001). Em 1976, a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios registrou cento e trinta e
cinco cores descritas pelos/as brasileiros/as, em pergunta aberta sobre
a classificação racial, mas, como aponta Telles:

Em nova análise de 1976, encontrou-se que 135 termos foram


utilizados na amostra de 85.677 brasileiros, mas 45 desses termos
foram utilizados por uma ou duas pessoas. Oitenta e seis (86) pessoas
ou aproximadamente dois terços (64%) desses termos foram utilizados
por apenas 279 dos 85.677 entrevistados, correspondendo a 0,3% da
população. Logo, os brasileiros utilizaram uma vasta gama de termos
raciais, mas a grande maioria utiliza os mesmo termos (TELLES: 2003,
p. 107)

Vale ressaltar que apenas uma professora escolheu, após ter


marcado a opção “branca” na pergunta com alternativas fechadas,
escrever a palavra caucasiana em sua auto-classificação. Apesar
de antigo – o termo foi cunhado por um fisiologista e antropólogo
alemão chamado Blumenbach (1752-1840), que propôs uma
classificação das raças humanas baseada na combinação entre cor
de pele/origem geográfica: branca ou caucasiana, negra ou etiópica,
amarela ou mongol, parda ou malaia e vermelha ou americana – não
é usualmente visto em alternativas de pesquisa; outra questão que
me chamou a atenção foi que todas as professoras que se utilizaram
dos dois modelos para responder à questão sobre sua cor eram
pardas; assinalavam pardas no modelo “IBGE” para no modelo “Auto
classificação” utilizarem atribuições como “afrodescendentes, morena,
mulata, entre outras. As professoras brancas não demonstraram tantas
dúvidas sobre sua pertença racial e utilizam o modelo “IBGE” com mais
propriedade, indicando que talvez o modelo não atenda a um grande
número população, fixando, assim como outros instrumentos, uma
aparente norma em determinada alternativa e anomalias em outras.
Segundo Alves (2010), para algumas/alguns teóricos/as, os estudos

229 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
sobre branquitude iniciados na década de noventa nos Estados Unidos
demonstram que essa pertença racial não é invisível e não é intrínseca
às pessoas que se classificam como brancas: ela é uma construção
social e tem relação com questões como dominação, exploração e
“propriedade de corpos, de terra e de expectativas sociais” (HARRIS
APUD ALVES: 2010, p. 28). Ainda segundo Alves, contraditoriamente,
os/as principais autores/as dessa abordagem

acreditam que este poder, com efeitos tão visíveis, permite à


identidade racial branca assumir o status normativo que assegura
sua invisibilidade. De acordo com Frankenberg (2004) a história de
construção da invisibilidade da branquitude pode resumir-se em
quatro fases: aparecer – denominar-se – violar/saquear – tornar-se
invisível – apropriar-se. (ALVES: 2010, p. 29)

Apesar dos estudos sobre branquitude não serem o centro de


nossas discussões, entendo que é necessário fazer breves inferências
sobre os dados obtidos, de modo a contribuir com a análise sobre os
mais diversos temas evocados pelas respostas dadas aos questionários.
Acredito também que esses temas, mesmo não sendo recentes,
ganharam outros contornos a partir do surgimento das políticas de
ação afirmativa no Brasil, em final da década de noventa e meados da
década de dez. Apesar de estarem presentes em diversas esferas de
atuação do poder público e abrangerem não apenas grupos negros/
as e indígenas, foi na disputa pelo acesso a vagas no ensino superior
público que as discussões sobre quem é negro e quem é branco no
Brasil voieram à baila com mais intensidade, merecendo destaque nos
veículos de comunicação mais lidos e assistidos do país71. Essa pesquisa
busca, indo ao encontro das pessoas com/das quais quero falar, ouvi

71 A matéria publicada no jornal Folha de São Paulo denominada Tribunal Racial, sobre
o caso de irmãos gêmeos e suas diferentes respostas às perguntas sobre classificação
racial quando de suas entradas na Universidade de Brasília (UNB), a publicação do livro
Não somos racistas por um dos chefes de uma das centrais de jornalismo televisivo
e o manifesto contra cotas raciais entregues ao Supremo Tribunal Federal com 740
assinaturas de muitas personalidades brasileiras são episódios relacionados diretamente
à efervescência produzida pelos debates na área.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 230


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
las, para compreender de que modo lidam com as singularidades
inscritas na “geografia dos corpos” e nos sentidos de gênero, que
ajudam a definir muito de suas práticas culturais e profissionais.

Patrícia Santana (2004) advoga a importância dos estudos


sobre os professores negros – incluindo aí as professoras negras
– em seu livro Professor@s Negr@s: Trajetórias e Travessias para
compreendermos de que modo as diferenças produzem modos de ser
professora em nossas escolas. Apesar de ainda incipiente, ela cita um
pequeno número de teses e dissertações produzidas sobre o tema nas
últimas décadas e o destaque que este “campo de estudos” (SANTANA,
2004, p. 41) ganhou a partir de ações como a inclusão de um grupo
de trabalho na Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa
e Educação – ANPED sobre a temática, com o nome de Grupo de
Trabalho (GT) Afro-Brasileiro e Educação. Segundo Santana,

Os estudos sobre professores negros juntamente com outros


sobre relações raciais e educação, destacam a importância do
professor como agente fundamental no processo de desconstrução
do racismo. Nestes estudos, a responsabilidade dos educadores
frente à construção de um currículo que contemple a diversidade é
considerada imprescindível para a mudança de postura em relação ao
alunado negro. É destacada, também, a importância da efetivação de
políticas de formação a fim de capacitar esses profissionais para essa
tarefa (SANTANA, 2004: p. 41).

Lançamos mão das abordagens biográficas porque o desejo


é captar de que modo as professoras constroem sua(s) identidade(s)
(DUBAR, 2005; HALL: 2003, 2006) sem perder de vista os aspectos
subjetivos dessas construções; o desejo é também compreender de que
modo as reflexões, no momento mesmo da narração de suas histórias de
vida, podem elucidar paraas próprias entrevistadas, questõesespecíficas
relacionadas às suas maneiras de existir. Na área educacional, o trabalho
(auto)biográfico torna possível o conhecimento mais aprofundado
sobre as pessoas presentes no cotidiano escolar; conhecendo as
pessoas e trazendo-as para o centro do debate conheceremos a escola,
seu funcionamento e modos (NÓVOA, 1992, 1995; SOUSA et al, 1996)

231 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
a partir de uma perspectiva humana. Partindo de um olhar de dentro
dessas construções (auto)biográficas–sem esquecer de como esse olhar
também está eivado de concepções sócio-histórico-culturais–a intenção
é perceber a existencialidade em “sua textura completamente original
[...] singular“ envolvida “no seio de uma humanidade compartilhada”
(JOSSO, 2008, p. 20). Além dessas constatações, a certeza de que a
profissão docente é uma profissão feita a partir das interações humanas
(TARDIFF & LESSARD, 2009), constituindo-se com as pessoas envolvidas,
é o que move o trabalho investigativo para uma interlocução com estas
formas de pesquisa, que privilegiam as subjetividades e as experiências
pessoais imbricadas nas experiências de formação.

A técnica de história de vida elaborada por Nogueira (1968),


as análises sobre a história oral feitas por Meihy (1996) são também
aqui evocadas, constituindo um quadro amplo para a análise das
entrevistas com as professoras em questão, já que o primordial é deixar
falar as professoras, fazê-las falar, buscando soltar as possíveis amarras
metodológicas que nos prendem a uma leitura única dos discursos
aqui enunciados. É Luz (1998) quem nos relembra a importância de
construirmos “distintas possibilidades metodológicas de pesquisa no
que se refere à presença civilizatória africana nas Américas” (LUZ,
1988, 54), abandonando a perspectiva “edipiana, característica da
episteme ocidental [...], que visa penas transformar o outro no mesmo,
ou melhor, o outro fragmentado, submetido à veleidade de um poder
de visão universal” (LUZ, 2003, p. 63, grifos da autora).

Aqui escolhi analisar excertos de duas das oito entrevistas


realizadas com as professoras que se dispuseram a participar desta fase
da pesquisa; aqui, detenho-me mais especificamente no momento em
que relatam a entrada delas na rede municipal de ensino. As professoras
escolhidas, aquichamadas de Neuza Santos (negra)e Beatriz Nascimento
(preta)72 tem idade média de 40-45 anos e atuam em escolas de

72 Os nomes escolhidos para representar as professoras são nomes de mulheres negras


já falecidas, que tiveram muita importância em campos de atuação diferenciados na
sociedade brasileira.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 232


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Educação Infantil da rede municipal há aproximadamente 15
20 anos. O trabalho com as professoras implica em captar, por
meio de um gravador digital, os relatos biográficos narrados
pelas mesmas, partindo daquilo que as professoras consideravam
importante contar de suas trajetórias de vida e profissão. Apesar de
encaminharmos por email um roteiro de entrevista semiestruturada
para as professoras, já que algumas delas demonstravam
grande dificuldade em “falar livremente”, no dia marcado para
a entrevista este não era utilizado e as professoras geralmente
falavam por cerca de uma hora e meia a duas horas. Percebi que
o roteiro funcionava como uma base de apoio inicial, descartado
tão-somente elas se viam imersas no relato de suas próprias
histórias. Desse modo, a entrevista buscou trazer à tona aspectos
biográficos das entrevistadas, sem a pretensão de apreender
cronologicamentefatos, eventos, entre outros. A intenção primeira
era captar de que modo as entrevistadas falavam sobre si e como
construíam seu discurso acerca da situação que relatava, levando
em consideração também, minha presença enquanto professora/
pesquisadora negra.

Segundo Arfuch (2010), a entrevista, “esta forma peculiar”


de relato, tornou-se um lugar para onde também se direcionam os
esforços do trabalho biográfico na atualidade, posto que converge
para si “funções, tonalidades e valores” do gênero (ARFUCH, 2010, p.
151). É também Arfuch que nos auxilia na compreensão de que, longe
de ensejar uma descrição do passado e do presente das entrevistadas,
a intenção, com essa modalidade de registro é perceber

o momento autobiográfico na entrevista como processo especular


de substituição/identificação, que fala tanto da incompletude do
sujeito quanto, correlativamente, da impossibilidade de fechamento
de toda a narrativa pessoal. A entrevista é mais solidária com essa
lógica do que outros gêneros que aspiram a uma “coroação” do relato
– da vida –, e o “fechamento” que ela propõe é sempre transitório,
sua suspensão se aproxima do suspense, deixa sempre uma zona de
penumbra que o esgotamento da palavra, a tirania do tempo – na
interação, na tela – ou do espaço – na escrita – transformarão em

233 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
promessa de futuros encontros ou tematizações. (ARFUCH, 2010, ps.
163-164, grifo da autora).

Passemos então às falas das entrevistadas, principal


substrato da pesquisa. Neuza Santos nos relata como se tornou
professora de Educação Infantil:

(...) eu lembro que na época, a diretora perguntou se eu tinha


o magistério (por que nem todo mundo tinha o magistério) e a
professora que estava de licença, ela tinha o magistério, e ela só
poderia colocar nessa sala quem tivesse o magistério. Ela precisava
de alguém e me contratou, só depois é que eu fiz o concurso e
passei em um dos primeiros lugares. Eu trabalhava como diarista
em duas casas na época. O salário piorou quando eu entrei na
Prefeitura, a gente ganhava muito pouco! Mas eu queria muito ser
professora, foi para isso que eu tinha me formado! Ainda fiquei
indo aos sábados na casa delas, eu alternava e ia quinzenalmente,
porque elas foram muito legais comigo e me ajudaram nos três
primeiros meses que eu trabalhei na Prefeitura e demorei pra
receber, pagaram os óculos que eu precisei fazer, mas depois eu
saí. (Neusa Santos)

Essa professora expressa a importância que tinha para ela


poder atuar na área em que tinha se formado, contrariando uma
afirmação de alguns estudos educacionais acerca da desvalorização
do magistério de crianças pequenas. Apesar de não ter tido muitas
opções de escolha quando do seu ingresso no ensino médio, visto
que por sua condição social só poderia escolher um curso técnico
que estivesse disponível nas escolas públicas de sua cidade de
origem, ela afirma que “era muito estudiosa” e já ministrava aulas
particulares desde o fim do Ensino Fundamental, tendo assim uma
experiência com a área antes mesmo da entrada no magistério.
Por ser a mais velha numa família de cinco filhos, ensinava aos/às
mesmos/as e também aos vizinhos, o que lhe conferiu a impressão
de que fazer magistério seria o caminho mais próximo de sua
realidade. Quando perguntada que profissão teria seguido se não
tivesse escolhido a carreira de magistério, Neuza responde:

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 234


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Lavadeira. Com certeza. Minha mãe era lavadeira, minha avó tinha
sido lavadeira. E o bairro onde eu morava, ficava do lado do rio, então
essa era uma imagem que estava muito próxima de mim, não só pela
minha mãe. Até hoje, no meu bairro, eu fui lá em 2008, muitas pessoas
vivem disso, de lavar roupa.

Para não ser lavadeira, Neuza Santos tinha a absoluta certeza


de que precisava estudar. Apesar de não achar essa profissão uma
ocupação vergonhosa e saber de sua importância na engrenagem
da comunidade onde sua mãe vivia, Neuza compreendia que ter
apenas essa opção de profissão limitaria sua vida a espaços e
lugares demarcados pela falta de prestígio social da profissão, além
da baixa remuneração para o grande volume de trabalho executado,
caso de muitas atividades que se enquadram na mesma categoria
das lavadeiras, como a das empregadas domésticas, passadeiras,
cozinheiras, entre tantas outras, comprovadamente ocupadas em
sua maioria por mulheres negras em diversas partes do Brasil. Desse
modo, a questão que se apresenta não é se ser lavadeira é ou não
um trabalho digno, questão esta vinculada a discursos em sua maioria
produzidos por pessoas que nunca tiveram a necessidade premente de
passar boa parte da vida trabalhando como lavadeiras ou empregadas
domésticas, mas como são vistas as mulheres que sobrevivem desta
ocupação e quais os espaços a elas reservados em nossa sociedade.
Sendo assim Neuza, ao desejar afastar-se dessa sina familiar busca
tão somente romper com determinados estereótipos destinados às
mulheres negras do interior baiano e, ao realizar a caminhada rumo a
uma nova trajetória profissional, não desconsidera o esforço realizado
por sua mãe e avó para permanecerem vivas; além dessas questões,
Neuza evidencia de que modo o racismo atua na vida das mulheres
quando impõe certos obstáculos que, com o passar do tempo, tornam
se naturalizados por lógicas tais como mulher negra do interior baiano
igual a lavadeira, mulher negra do interior baiano igual a cozinheira,
entre tantas outras.

A professora Beatriz Nascimento teve sua trajetória


profissional marcada pelas falas preconceituosas de uma senhora
que a havia acolhido em sua casa em São Paulo, quando seu pai e

235 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
alguns/umas irmãos/ãs voltaram para a cidade natal no estado de
Minas Gerais, após a morte da esposa e mãe. Beatriz relata que
aceitou ficar morando em São Paulo, na casa desta vizinha, porque
queria continuar estudando, e sabia que tal empreendimento seria
difícil se voltasse com o pai, que pouca importância dava aos estudos
e queria apenas que todos/as trabalhassem. Antes de tornar-se
professora, havia tentado concluir um curso de cabeleireira e um
outro de enfermagem – segundo palavras da professora, seu sonho
“era ser pediatra, mas como Medicina era muito cara, vou fazer de
atendente de enfermagem, e conforme for...” – mas a senhora sempre
lembrava-lhe que seria impossível que pessoas brancas tivessem
coragem de “cortar o cabelo” ou “colher sangue” com ela. Beatriz
relata esse episódio, em conversa com uma outra mulher para quem
trabalhava como diarista e lhe propusera moradia á época de seu
ingresso no curso de magistério:

Eu falei assim, “Ah, Antonia, não vou estudar mais não!” e ela disse
“Porque?”. Eu respondi: “Dona Sara falou que professora preta é meio
difícil, não vou estudar mais, ela falou que não pode ter professora
preta”. Aí Antonia me disse: “Você já desistiu de dois sonhos, esse
você não vai desistir!”.

Beatriz não desistiu, formou-se e entrou na rede municipal e


estadual de ensino. Seguiu resistindo aos ataques racistas de pessoas
conhecidas e muito próximas, além de algumas colegas de trabalho.
Relacionando tais atitudes com os estudos sobre o candomblé e a
resistência que demonstrou à repressão sofrida sistematicamente
desde o período de escravização até o início do século vinte, o
pesquisador Júlio Braga (1995) afirmou:

Na verdade, toda vez que interessou aos propósitos de suas


reivindicações sociais, o negro soube, com extrema competência,
aproveitar-se da situação social em que vivia. Conduziu seu projeto
maior de ascensão social com habilidade, sabendo negociar,
aproveitando das raras ocasiões favoráveis, para sedimentar bases
sólidas que ainda servem de substrato às diferentes frentes de lutas e
investidas políticas atuais (BRAGA, 1995, p. 19).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 236


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
João José Reis (1989), em suas análises sobre as situações
de negociação a que estavam constantemente vinculados/as as/os
escravizadas/os a seus senhores também nos alerta que não é possível
ler essa história tendo como linha condutora a ideia de que tudo
não passou apenas de submissão do/a negro/a, vítima do sistema a
ele/a imposto. Assim também aqui não podemos compreender essas
histórias de vida com base numa ideia primordial de que para todos os
grupos sociais brasileiros adentrar a carreira do magistério constitui
se numa desvalorização profissional. Uma das constatações que nos
faz crer em modos de superação forjados dentro do grupo social
estudado são os resultados de pesquisas recentes sobre emprego na
Região Metropolitana de São Paulo: entre 2001 e 2009, 41,2% das
mulheres negras que participam ativamente no mercado de trabalho
encontravam-se na categoria de Serviços (aí englobados as atividades
vinculadas à educação), segundo o Sistema Pesquisa de Emprego e
Desemprego/PED. A ocupação desses postos é bastante significativa
para esse grupo de mulheres, já que por muito tempo, elas ocuparam
majoritariamente a categoria de Serviços Domésticos, atualmente o
segundo setor de atividade que mais as absorvem (30,8%). Precisamos
compreenderessas mudanças e permanências sob a ótica das próprias
mulheres negras, sem desconsiderar outros fatores relacionados,
como o sexismo e a classe social a qual estão vinculadas. Afirmar
essas vitórias, denunciando o racismo de gênero ainda presente nas
práticas sociais é um caminho possível para não perdermos de vista
as conquistas até aqui conseguidas, semeando o terreno das lutas
que virão com os frutos arduamente colhidos por gerações anteriores
à nossa. Aí também reside nossa força ancestral, nesta capacidade
de existir, resistindo em condições adversas, forjando uma cultura
específica para o enfrentamento dos preconceitos.

Com base nas análises das entrevistas, é possível afirmar


que a oralidade constitui-se importante lugar de resistência para
as mulheres negras que aqui falam. Entendendo resistência como
um movimento estratégico para a continuação e a existência da
população negra em terras brasileiras desde sua chegada até os
dias atuais, reafirmamos a importância do registro dessas histórias,
para que se inscrevam ao lado de tantas outras que contribuem

237 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
na compreensão das histórias das mulheres negras não com um
lugar apenas de submissão e desfavorecimento, mas também de
ressignificação dos espaços e sentidos atribuídos a elas e a seus
modos de ser e estar no mundo. Constatações muito próximas a
essas também chegaram outras pesquisadoras que estudaram
sobre as professoras negras em outros níveis de ensino: Nilma Lino
Gomes (1995) em pesquisa acadêmica também pode perceber que
o espaço escolar configura-se num lugar que escapa ao lugar social
e historicamente atribuído às mulheres negras, representando
também um esforço da população negra em superar processos
discriminatórios, dentro e fora da escola. Esse debate traz à tona
outros modos de enxergamos a escola e as pessoas que nela
habitam, fazendo-nos compreender a importância de uma educação
que privilegie a pluralidade cultural e as diferenças. ●

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 240


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
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241 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos:
preservação e educação para a multiculturalidade

André Muller de Mello


Rodrigo Christofoletti

Vamos amarrar os continentes com uma corda de corpos humanos


ou humanizá-lo com um corpo de cordas harmônicas?
(pichação de poeta desconhecido, São Paulo)

Poetas e chefes militares acostumaram-se, ao longo da história, a


pensar o mundo de maneiras diferentes. Muitas vezes são separados não
somente por suas idiossincrasias, mas, sobretudo, pela esperança que os
motivaepelaconcepçãodoquehádemaisfundamentalnaraça humana.
Umchefemilitarconsciente eumprofessorengajado se equivalem,tanto
quanto um facínora nos campos de batalha e um absenteísta nas salas
de aula. A diferença, neste caso, é meramente geográfica. Nos últimos
séculos soube-se mais sobre os batalhões militares (vivos ou mortos) do
que sobre os contingentes que sentavam praça nos espaços escolares. É
verdade que no último século essa equação tem se modificado. O século
que viu duas guerras globais acontecerem também viu um esforço de
universalização do ensino em grande parte do globo. No Brasil não foi
diferente. O ensino que se propôs universalista passa agora a enfrentar
outro desafio: aliar a universalização com o multiculturalismo, conceito
capcioso e que merece atenção.

Para discutirmos pontos relevantes sobre essa questão torna


se necessário municiarmo-nos de alguns subsídios que nos ajudarão a

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 242


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
perceber o quanto a transformação do último século foi determinante
para que pudéssemos, hoje, vivenciar uma educação multiculturalista
e plural.

Em 1912, há exatos cem anos, a quantidade de seres humanos


que habitava nosso planeta rompeu a barreira dos nove dígitos.
Pela primeira vez na história da humanidade havia mais de um
bilhão de pessoas vivendo no planeta Terra. Depois de um século,
os recenseamentos sinalizam uma contagem de pouco mais de sete
bilhões de pessoas, o que equivale dizer que, em pouco menos de
quatro gerações, os seres humanos setuplicaram sua capacidade
(pro)criativa, trazendo-nos não apenas novos olhares sobre a vida e
o mundo mas, sobretudo, novas maneiras de vivenciá-lo, de percebê
lo, projetá-lo e, mesmo, aculturá-lo. Culturas hibridas se plasmaram,
as hegemônicas perderam espaço e abriram flanco para outras
possibilidades e percepções sociais, ideológicas, psicológicas, culturais
e econômicas.

O século XX foi visto por muitos como um período que


pendulou entre a extraordinária produção em larga escala dos gêneros
mais diversos e a mais nefasta predação dos meios naturais, de onde
se originaram tais gêneros, mostrando uma face incongruente sobre
o que entendíamos como mundo moderno. Contraditoriamente, esse
pêndulo marcou a introdução de benesses tecnológicas próprias do
avanço da espécie: a penicilina, as inovações nas áreas da saúde,
ciência e tecnologia; o domínio da eletricidade; a microeletrônica;
as novas capacidades e habilidades humanas de sobrevivência,
convivência, persuasão e reconstrução; a modernização das posturas
pedagógicas; o currículo escolar coparticipativo; bem como a dilatação
da tolerância e da intolerância em diversos espaços. Todos esses frutos
fizeram o ser humano perceber que as transformações em larga escala
apontavam para uma significativa pista do quanto os papéis sociais
também mudariam nos próximos decênios, reflexo dos últimos cem,
cento e cinquenta anos.

O conceito de pluralidade cultural é apenas um dos muitos


denominadores evidenciados nesse período. Elaborado, inicialmente,

243 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
como sinônimo de uma plataforma onde se assenta um mosaico
étnico, elemento que confere aos diversos grupos um fator de
enriquecimento e protagonismo, identidade e coletivismo, o conceito
de pluralidade cultural tem sido alvo de indagações. Desde o século XIX
nos perguntamos: quão polissêmico pode ser o conceito de cultura?
Uma das possibilidades de resposta a esta questão seria pensarmos a
pluralidade cultural para além da soma das várias culturas, agregando
a esta discussão o elemento do sincretismo. O produto da relação
entre as pluralidades culturais não é, definitivamente, a simples soma
das diversas culturas presentes no mundo. Há um caráter sintético
nessa equação.

Para a compreensão do grau de multiplicidade cultural em


que vivemos hoje, lançaremos mão de duas figuras de linguagem:
precisamos menos de uma metonímia (entender a parte pelo todo)
e mais de uma catacrese, ou seja, a utilização de uma expressão que
não consegue descrever com exatidão o que se quer expressar, mas
é adotada por não haver outra palavra apropriada. Nesse caso, a tão
propalada palavra cultura é o ponto de partida para nossa inflexão.
Pensar cultura como um processo de intercâmbios significativos ajuda
a perceber o quanto seu entendimento necessita ser encarado a partir
da chave bourdieusiana das trocas simbólicas – enfatizando o quão
ricas são as especificidades e os pontos de contatos de cada expressão
cultural.

Se concordamos com a afirmação de que é a pluralidade cultural


que faz do mundo um lugar mais rico, “transétnico” (na essência deste
conceito) por que, até o momento, em alguns setores da sociedade, a
diversidade é contestada e vista como algo que aborrece ou perverte?
Por que em espaços como a escola, ou mesmo congêneres onde a
educação é o carro-chefe, ainda se questiona o caráter polivalente do
conceito de cultura?

A hierarquização, assentada na lei da superioridade, e seu


contrário mais triste, o da inferioridade compulsória, ajudou os
últimos dois séculos a se esquivarem da necessidade de responder
em que se baseavam tais teses discriminatórias (para não entrarmos

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 244


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
no conceito de racismo que é, por si só, muito pouco matizado e,
por isso mesmo, mistificado). Os cientistas destes últimos duzentos
anos esforçaram-se por identificar e classificar as diferentes etnias,
chegando a “conclusões incontestes” – como diria Noan Chomsky – de
que pertencíamos mesmo a uma única raça: a humana. Durante muito
tempo essa busca tornou-se uma das obsessões da ciência. Algumas
das etnias foram, por determinados momentos da nossa história
recente, consideradas inferiores, outras, assumidas como superiores.
A etnia branca/européia (tipologia também discriminatória) se tornou
o exemplo mais acabado de superioridade étnica. Mas a sandice não
habitou apenas cabeças dolicocéfalas do mundo branco europeu. A
opereta trágica, regida nervosamente pelas batutas dos Milosevics e
Kambandas73 de plantão, acabou por evidenciar nossa incapacidade
em responder ao velho axioma, protagonizado por Aristóteles, há mais
de dois mil anos atrás: o diferente, afirmava o filósofo, é o caminho
mais curto para se saber igual.

Como o mundo contemporâneo interpreta esse adágio?

A reafirmação das identidades ocorre em um caminho de mão


dupla: ora se reafirmam as identidades como povos diferentes, ora
como parte de um coletivo que se autonecessita e se autopromove. As
dimensões dessa reciprocidade podem ser sentidas nos mais variados
campos da atividade humana (dentro e fora de um país discriminatório
como o que vivemos, por exemplo). Assim, não é mais tolerável que
lados diferentes se repilam.

Por esse motivo, o desenvolvimento pleno das novas


gerações que se encontram, hoje, nos bancos da escola, depende
do enfrentamento deste desafio: como reconhecer o direito à

73 Referência a líderes políticos marcados (nos últimos vinte anos) pelo totalitarismo,
a intolerância e o holocausto que provocaram. Slobodan Milosevic, responsável pelos
ataques deliberados contra civis croatas, classificados como crimes contra a humanidade,
genocídio e limpeza étnica, em meados da década de 1990, e Jean Kambanda, considerado
culpado e condenado por genocídio de quase 800 mil pessoas da etnia tutsi, em Ruanda,
na África, no mesmo período.

245 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
diversidade quando há discordância de condutas e pensamentos? A
ideia da tolerância está no centro desse debate. Com um agravante:
a tolerância pressupõe reciprocidade de direitos; logo, também de
deveres. A manifestação da diferença — este universo de linhas que se
encontram num cruzar/entrecruzar de fios distintos — é, talvez, a mais
bela analogia para uma vida em que os mais iguais aceitem os menos
iguais, mesmo que deles sejam diferentes.

Diversidade na escola ou para um currículo assaz plural

“Uma das principais tarefas da cultura é fazer da necessidade,


liberdade; e da igualdade, chance geral!
(Jacob Klatzkin)

As discussões sobre igualdade de direitos e sobre a busca de


novas formas de conviver em sociedades pluriculturais nos levam a uma
das mais importantes construções culturais da civilização moderna: o
currículo escolar. Ao consolidar processos fundamentais através dos
quais toma forma a prática educacional realizada na escola, o currículo
escolar tem claro significado cultural: institucionaliza a maneira
como transmitimos cultura e saberes na sociedade, criando sentidos,
significações e sujeitos.

Tendo o currículo escolar a função social de ponte entre a


sociedade e a escola, assumindo a expressão formal que aponta tanto
a definição particular de cultura quanto os conteúdos desta cultura
que se deseja transmitir às novas gerações, faz sentido que, no Brasil,
haja movimentos pressionando e influenciando as políticas públicas
nacionais na educação.

Vale citar as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, marcos na


história recente da educação brasileira, veículos de reconhecimento da

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 246


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
urgência do combate ao preconceito, ao racismo e à discriminação.
Atribuem à escola sua responsabilidade e capacidade de ser espaço
de valorização das matrizes culturais que fazem parte da história
social brasileira. Alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, esses dispositivos legais projetam os desafios de discussão
do currículo escolar, agora atento à educação intercultural.

São apenas alguns exemplos de concretizações de ideais e


repercussões de acirrados e necessários debates sobre a função
socializadora da escola, enquanto instituição facilitadora da cultura.
Ambos são exemplos de ações afirmativas de movimentos sociais
que buscam tornar a escola mais bem instrumentalizada para lidar
com questões ligadas a uma sociedade multicultural. Está posto o
desafio: atualizar uma ideia de escola que surgiu bem antes da meta
de escola universalizada, rever e modernizar concepções filosóficas
de currículo anteriores ao ideal contemporâneo de convergência
de objetivos culturais. Reinventar salas de aula “inventadas” antes
de sermos sete bilhões de habitantes no planeta, muito antes
de constatarmos que o mito racial do século. XIX foi um terrível
equívoco capaz de desdobrar-se em nefastas consequências
políticas.

Felizmente o currículo é vivo, flexível e mutante, e pede


por intermináveis debates e revisões. Tão mutante quanto tudo o
que as sociedades entendem por adequados mecanismos sociais
de difusão do conhecimento público. Graças a tal capacidade de
refletir novos entendimentos e de avançar à medida que as próprias
sociedades amadurecem suas lentes sociais sobre a cultura e sobre
o outro, as escolas estão voltadas a incorporar, em suas práticas
pedagógicas, estratégias através das quais

“[...] se explicitem, busquem compreender e interpretar, na


perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expressão
e de organização de raciocínios e pensamentos [...] - promovam
se oportunidades de diálogo em que se conheçam, se ponham
em comunicação diferentes sistemas simbólicos e estruturas
conceituais, bem como se busquem formas de convivência

247 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
respeitosa, além da construção de projeto de sociedade em que
todos se sintam encorajados a expor, defender sua especificidade
étnico-racial e a buscar garantias para que todos o façam; -
sejam incentivadas atividades em que pessoas – estudantes,
professores, servidores, integrantes da comunidade externa aos
estabelecimentos de ensino – de diferentes culturas interatuem
e se interpretem reciprocamente, respeitando os valores, visões
de mundo, raciocínios e pensamentos de cada um.” (CNE/
CP 003/2004)

Educar para a diversidade, premissa tão cara quanto educar


para a sustentabilidade (se é que um dia tais objetivos pudessem
dissociar-se), passa pelo fundamental caminho da educação
inclusiva, por exemplo. Uma comunidade de aprendizado não
inclusiva provavelmente será incapaz de educar para a diversidade.
A inclusão é apenas uma entre outras tantas mudanças de
paradigma essenciais para que a escola seja menos reflexo/reforço
de sensos comuns ultrapassados - e perigosos - e mais campo de
inovações e de entendimentos capazes de impulsionar mudanças
desejadas. Para tanto, faz-se necessário constante questionamento
sobre as possíveis interações entre a prática e a teoria da educação,
sobre conteúdos, orientações, abordagens.

Educar para a diversidade também passa por saberes


disciplinares, tanto quanto pelo exercício cotidiano de valores e
atitudes. Saberes contextualizados através de práticas pedagógicas
que viabilizem oportunidades significativas de aprendizado, nem
sempre presentes dentre os objetivos curriculares: uma fascinante
história da África, para a qual o mundo esteve desatento até
pouco tempo; as resistências indígenas e sua presente vivacidade,
tanto nos distantes sertões e florestas quanto nas urbes; as lutas
latino americanas por liberdades, ausentes dos livros; os modelos
altermundistas (utópicos ou não, pois na escola importa o alerta e
o exercício social mais do que a viabilidade proposta); os debates
sobre as contradições do neoliberalismo e da globalização, possíveis
quando a escola dispõe-se a elaborar projetos de intervenção
solidária na comunidade; os exemplos de sucesso, jamais divulgados

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 248


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
pela mídia, das possibilidades apontadas pela economia social e
solidária (já são tantos, inspiradores); os paradoxos dos sistemas
lineares de produção e consumo, tanto quanto as rotas de colisão
adotadas pela radical lógica do mercado; as dimensões humanas
da biodiversidade, com suas inspiradoras e antigas etnosoluções
para as inquietas relações sociedade-natureza no século XXI; os
irresistíveis convites ao vôo da filosofia (recentemente reintroduzida
nas matrizes curriculares); as esclarecedoras narrativas históricas
das minorias, ainda sem a voz que lhes cabe; os heróis e figuras
míticas não-europeus; e, claro, as heroínas do passado e as atuais
lideranças femininas.

Tais saberes, quando ausentes na/da escola, inviabilizam


um projeto nacional de sociedade capaz de viver em um mundo
menos hegemônico, que rejeite as manifestações de intolerância
e que apreenda e vivencie, melhor, os conceitos de identidades/
diversidade individual, de grupo, social, nacional e internacional.
Para que este outro mundo seja possível, faz-se necessário
que a escola, enquanto expressão de equilíbrio de interesses e
forças que gravitam entre as distintas tramas político-culturais
da sociedade, utilize-se das ciências humanas e naturais para
empreender, no Brasil, (honestamente) tanto a crítica ao mito
da raça quanto a crítica ao mito da democracia racial. Todos
os componentes curriculares podem contribuir para um novo
exercício de interpretação do mundo contemporâneo, através de
uma abordagem transdisciplinar.

Na escola, como parte das práticas de rotina pedagógica,


dialogar com as comunidades através de documentários e obras
literárias diversas, como já se vêm fazendo, ilumina as concepções
superficiais que envolvem as relações entre ancestralidade e cor da
pele, ou entre esta última e identidade cultural. Com as inúmeras
tecnologias da informação disponíveis, facilitado acesso a produções
cinematográficas e um rico acervo online, é possível entrar em
contato com iniciativas e projetos que traduzam pontualmente a
diversidade cultural e todas as questões vindas das relações étnico
raciais.

249 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
Espaços extraclasse: aprendizado com diversidade

“Deve-se aprender a ler mais em profundidade que em largura”


(Quinfiliano)

Felizmente, nunca antes as escolas venceram com tanta


frequência e propriedade seus próprios limites físicos, projetando um
incremento nas ações educativas externas. A escola vem descobrindo
cada vez mais seu entorno, incorporando um olhar voltado para
a cidade e seus testemunhos históricos, com docentes dispostos
a planejar estudos do meio, visitas técnicas e orientadas a museus,
centros universitários, parques, bens culturais, bibliotecas, memoriais,
cinematecas, casas de cultura, bienais, etc.

Trata-se de espaços que privilegiam a salvaguarda dos diversos


registros dos processos de formação do território, de transformações
na paisagem, de resistências identitárias. O Monumento Nacional
Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, órgão da Pró-Reitoria de
Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo (USP),
vem assumindo, ao longo da última década, seu papel de bem cultural,
capaz de aproximar a escola da atualidade, para o estabelecimento de
diálogos entre o passado e relações sociais, culturais e tecnológicas
presentes em nossos dias.

Remanescente de um antigo engenho de açúcar, o sítio


arqueológico contendo ruínas quinhentistas encontra-se tombado
nas instâncias municipal, estadual e federal. Resultado dos processos
culturais vividos e marcados pela ação de senhores e escravos, posses
e lutas, interesses e disputas, passou a ser administrado pela USP em
1958, quando foi doado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas.

Fundado por iniciativa de Martim Afonso de Souza e sócios,


entre 1533 e 1534, o Engenho dos Erasmos tornou-se propriedade

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 250


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
dos Schetz por volta de 1540. Ainda no primeiro quartel do século
XVI, Erasmos Schetz aparece como fundador de uma empresa em
Leipzig. Seus negócios na Alemanha envolviam uma casa bancária,
seguros marítimos e minas de cobre e prata. Em seguida, suas
atividades comerciais estenderam-se até Antuérpia, Bruxelas e
Amsterdã. Os Schetz distribuíam seus produtos por toda a Europa
e tinham ligações de caráter comercial com italianos, holandeses,
franceses, portugueses, alemães, além da Companhia de Jesus. Sem
dúvida, o período de apogeu do Engenho São Jorge dos Erasmos
como manufatura açucareira foi sob a direção da família Schetz.
Os documentos da época colonial registram que esses negociantes
flamengos fizeram várias tentativas de vender sua propriedade no
Brasil entre 1593 e 1612.

O Engenho funcionou, segundo o historiador Paul Meurs, até o


século XVIII. E, ao longo desse período, produziu cana para exportação,
além de rapadura e aguardente para consumo interno em ambas as
vilas (Santos e S. Vicente) no século XVIII. Ao longo desse século,
porém, podemos constatar a decadência da propriedade. Para a
produção de açúcar e derivados, além da fábrica propriamente dita, o
Engenho comportava unidades administrativas e residenciais, inclusive
(sic) dependências dos escravos.

Das poucas informações que dispomos sobre a trajetória


mais recente desse empreendimento74, consta que, em 1943, os
terrenos com as ruínas foram adquiridos por Otávio Ribeiro de
Araújo, que loteou a propriedade e doou o Engenho São Jorge dos
Erasmos à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, no ano de 1958. No mesmo ano, Luís Saia, chefe do 4º Distrito
da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão
federal, relatou ao presidente da Comissão Especial do Engenho
São Jorge dos Erasmos, que realizou prospecção e definiu o partido

74 Com exceção dos achados arqueológicos realizados entre as décadas de 1990 e 2000,
coordenados pelos professores Margarida Andreatta, hoje no Museu Paulista/USP, e José
Luiz de Moraes, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Ver Relatório do Projeto
Arqueologia dos Erasmos. MAE/USP, 2003.

251 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
arquitetônico como de “modelo açoriano, tipo real e movido à
água75”. (SAIA, 1958).

De 1958 até a década de 1990, ocorreram poucas ações


efetivas de preservação, mas, em princípios dos anos 2000 uma nova
compreensão dotou as Ruínas de uma equipe que passou a propor
programas educacionais/preservacionistas em larga escala e para
múltiplos públicos. Preferiu-se, no quesito utilização, abrir para todas
as faixas etárias, as diversas camadas sociais e as múltiplas áreas, a
partir da proposição de projetos educacionais coligados a visitas
curriculares programadas conjuntamente e norteadas por técnicas de
educação histórico-ambiental formal e informal.

Dentre os diversos projetos educacionais em andamento,


integrantes de uma plataforma conceitual de ações de pesquisa,
extensão e difusão, destaca-se o enfoque na necessidade da
preservação como agente de criação de uma identidade (sociedade/
Ruínas). Por que preservar? Como preservar? As monitorias sócio
histórica e socioambiental, além do calendário cultural dos finais de
semana, terminam propondo questionamentos sobre a relevância
histórica de se ter nos “quintais” da cidade um bem cultural tão
especial.

Exemplo marcante dos programas educativos desenvolvidos


nas Ruínas Engenho é o projeto Portas Abertas, que teve como mote
central, em 2011, discussões sobre a diversidade/pluralidade cultural.
Dentre os objetivos do Programa, um se destaca: a valorização dos
aspectos culturais coletivos da formação do povo brasileiro e seus
diversos processos identitários.

Para a equipe de educadores desse patrimônio nacional


é explícito o fato de que as matrizes étnicas que forjaram nossa
civilização não possuem isonomia quanto aos seus papeis sociais. O

75 As Ruínas ESJE são tombadas pelas três esferas: federal (1962), estadual (1973) e
municipal (1990).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 252


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
afro descendente e o indígena aparecem, via de regra, retratados de
maneira preconceituosa nos livros didáticos. Essa quase ausência lhes
custou o ostracismo e a indiferença da grande maioria de estudantes,
que se tornaram adultos reproduzindo os preconceitos apreendidos
na fase escolar. Se pensarmos bem, nem sequer conhecemos
superficialmente suas diversas manifestações culturais. Nesse sentido,
a apresentação do grupo indígena Tupi Guarani Kangwaá de Peruíbe e a
interpretação de suas músicas, no projeto Portas Abertas, possibilitou
novas abordagens de apropriação da cultura desta etnia.

Com letras que evocam a cultura tupi-guarani, bem como seu


sistema de crenças e suas tradições, o grupo Kangwaá apresentou seus
instrumentos confeccionados com elementos retirados das florestas
tropicais: verdadeiros lutiês da floresta. Quase todas as letras foram
cantadas em tupi, com exceção da música conclusiva da apresentação
que mesclava o português e a língua nativa da tribo. Essa não é
uma diferença sem significado: deriva dessa escolha a mensagem
que a tribo deixa aos espectadores: “a natureza não discrimina,
que tal fazermos o mesmo?” – sugere o refrão da canção. Em um
espaço que envolveu culturas, matrizes e trajetórias distintas, num
empreendimento que marcou profundamente nossa maneira de ser,
receber atrações culturais como a Tribo Kangwaá de Peruíbe só reforça
a crença de que é preciso estreitar a colaboração entre as culturas,
garantir o respeito ao direito dos demais e assegurar o exercício das
liberdades fundamentais do homem e dos povos.

O conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais,


intelectuais e afetivos que caracterizam este grupo social: suas artes,
modos de vida, sistemas de valores, tradições e crenças mostraram
nos o quanto ainda precisamos nos conscientizar sobre a necessidade
de conhecer o outro. Essa alteridade passa inclusive pela criação e
definição de um currículo adequado para as escolas indígenas, para
que a cultura nativa não se perca no esforço do resgate das tradições
orais de seu povo. Como cenário das primeiras empreitadas européias
no que, hoje, é o Estado de São Paulo, pudemos, neste diálogo com
os Kangwaá, conhecer suas manifestações culturais e de resistência,
num esforço de reflexões, necessárias, sobre todas as populações

253 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
humanas que já ocupavam territórios específicos quando da chegada
dos portugueses.

Assim, analogamente, no segundo semestre de 2011


reservamos espaço para as comemorações do Ano Internacional do
Afrodescendentes, com participação ativa de três interlocutores
significativos: o Grupo Cultural Afro-Ketu, a antropóloga e escritora
infantil, Profª Drª Heloisa Pires e o historiador da cultura africana,
Prof. Ms. Paulo Campbell, que discutiram, em momentos diferentes,
questões relativas à africanização na e da cultura brasileira.

Registra-se também a participação da matriz portuguesa neste


ciclo de debates culturais. Danças folclóricas portuguesas fecharam
nosso calendário sobre diversidade e pluralidade cultural. O grupo
santista, Rancho Folclórico Típico Madeirense do Morro de São Bento,
concluiu a programação destinada à valorização do cadinho étnico
brasileiro, apresentando danças típicas da ilha.

***

Seja nas visitas monitoradas ou nas oficinas e atividades


culturais que ocorrem aos finais de semana, a expectativa é fazer
emergir emoções diversas capazes de construir juntas uma teia
de conhecimento. Imagens portadoras das heterogeneidades dos
fluxos comunicacionais, políticos, econômicos, disciplinares e
ritualísticos, cujo impacto nas subjetividades contemporâneas nos
possibilite vivenciar o território como um dos espaços privilegiados
de educação.

Portanto, a educação que se esforça para a apreensão e a


valorização da diversidade envolve também o uso qualificado de
bens culturais e a sua consequente preservação, grandes desafios
para governos e comunidades neste início de século. Em nossos
dias, a reconstituição sistemática de modos de vida de uma época
anterior, através de espaços e trocas sociais, converte o campo
da memória em teatro preferencial de uma busca objetiva de
conhecimento.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 254


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
A discussão sobre a relevância e o papel da memória nos dias
atuais sinaliza a escolha, por parte considerável da historiografia,
de eleger como foco de suas preocupações os chamados lugares da
memória, que nascem e vivem da constatação de não haver memória
espontânea. Torna-se, portanto, urgente criar arquivos, manter
aniversários, organizar celebrações, requalificar espaços justamente
porque essas operações não são naturais. Pois, como afirma Pierre
Nora, “sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria”
(1993, p.13). São eles, os lugares da memória, portanto, bastiões
sobre os quais se escora toda a escolha do lembrar.

Compreende-se com isto que a percepção e a crença em


diversos modos de vida e apreensões de mundo estão longe de ser
coisa do passado ou de sociedade ditas primitivas. A crença em deuses
distintos, a pluralidade, o polissincretismo, o amálgama cultural
fazem parte do caminho mais curto e seguro rumo à tolerância, à
coexistência e à alteridade, dentro e fora dos muros da escola.

***

Independentemente das questões elencadas, o significado


desta discussão continua atual, pois, historicamente, esse local
envolveu culturas, matrizes e trajetórias distintas. O povo que somos
hoje reproduz o cadinho da civilização criada em espelho às crenças
e culturas das matrizes que forjaram o brasileiro enquanto povo
multiétnico: nativos, africanos, europeus e demais etnias que por aqui
aportaram ao longo do século XX.

Por outro lado, se a civilização cristã ocidental (que é o nosso


exemplo mais próximo) permanece ainda hoje lidando com graves
problemas relacionados à violência, à miséria, à intolerância e a um
modelo insustentável de desenvolvimento, tais desafios estão no
âmbito dos valores, não na ausência de tecnologia ou de recursos.
Jamais houve antes tantos recursos e soluções tecnológicas para
que possamos construir um mundo mais justo, mais sensato, menos
predatório e desigual. E se o desafio é um estimulante para o espírito
humano, (no sentido mais amplo do conceito que imbrica sopro e de

255 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
vontade), a educação e a cultura tornam-se pilares essenciais para um
desenvolvimento civilizacional mais sinergético e transigente.

Em outras palavras, assegurar o exercício das liberdades


fundamentais dos seres e povos representa a criação e manutenção de
uma cultura da paz. Esse conceito, que só existe a partir da constatação
da diferença entre nós e outros, “implica na confirmação da existência
de modos distintos de construção social da realidade verificados
a partir de diferentes padrões” (VELHO, 1994, p. 63). Justamente
por isso, o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam os grupos sociais (suas artes
e letras, seus modos de vida, sistemas de valores, as tradições e as
crenças) necessitam produzir diálogos com outros valores e tradições,
consolidando de maneira paulatina o contrário do isolamento.

As escolas são o cenário propício para essa ação política,


por natureza. Mas outros espaços também podem ocupar
protagonismos. Uma das metas mais significativas dos projetos
educativos trabalhados junto à Ruína Engenho São Jorge dos Erasmos
é que os objetivos culturais e espirituais de nossa sociedade, hoje
submersa na materialidade, possam criar oportunidades para que
nos encantemos com as sonoridades, os mitos, as manifestações
culturais, idiossincráticas e ideológicas de todos, e não rechacemos a
diversidade, posto que é ingrediente fundamental no fortalecimento
de nossa identidade e pluralismo. Nesse sentido, em um cenário de
conflitos históricos, marcados pela usurpação do homem pelo homem,
ao invés da segregação, das relações focadas na opressão, optou-se
por estabelecer diálogos, respeito e reciprocidade.

A geração que conheceu a escola das últimas três décadas


aprendeu uma história maniqueísta, sobretudo quando o personagem era
o indígena e ou o escravo negro. A coadjuvância desses sujeitos históricos
semprefoicarregadadeum contraponto:o discursodo suposto vencedor/
protagonista. Contraditoriamente, graças aos movimentos de resistência
indígena e à atuação cada vez mais atenta dos movimentos militantes das
frentes étnicas, hoje, as escolas estão se adaptando para incorporar aos
seus currículos as culturas indígenas e africanas.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 256


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Se levarmos em consideração que do século XV ao XIX, mais de
75 milhões de mulheres e homens africanos foram retirados de suas
terras, dos quais, cerca de 3,6 milhões chegaram ao Brasil na condição
de escravos subjugados à força da cultura dominante, parece-nos
pertinente atentarmos para o fato que é pela via da resistência que a
cultura se fortalece enquanto identidade.

Entretanto, outro elemento que chama a atenção é que a


identidade dessas matrizes não surge simplesmente da tomada de
consciência de uma diferença de pigmentação ou de uma disputa
biológica entre populações negra, branca, amarela ou vermelha. Ela
resulta desse longo processo histórico que fez as pessoas acreditarem
que havia, de fato, diferenças substanciais fazendo dos negros e índios
inferiores em relação às demais etnias, sobretudo a branca. O binômio
resistência e identidade sustenta a ação educativa desenvolvida nas
Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, que leva em consideração a
interpretação dos contextos e agentes históricos, na construção das
matrizes do povo brasileiro.

Em um campo de forças e disputas que se sobrepõe


incessantemente, o que se percebe é que

“(...) num país onde quase não existe um discurso ideológico


articulado sobre identidade branca e amarela, justamente porque
os que coletivamente são portadores da pele branca e amarela não
passaram por uma história semelhante à dos brasileiros portadores
da pigmentação escura. Fala-se de identidade italiana, gaúcha,
espanhola, portuguesa, judia, árabe etc., e não da identidade branca.
Mas, quando se trata de alardear a cultura negra (...) todos já sabe
como funciona” (MUNANGA, 2004, p.8)

A busca pela interpretação das culturas, enquanto pontos


de contato necessários para a vivência e convivência das diferentes
visões de mundo, aponta para a relação dual imposta pela ciência
moderna entre o sujeito/produtor de cultura e os consumidores desta
mesma cultura criada e modulada, a partir de um ponto especifico de
compreensão. Ao buscarmos registrar as diversas culturas existentes

257 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
na matriz polissêmica brasileira é preciso que levemos em conta
a diversidade de papéis que seus aderentes assumem, ou ainda,
por quais campos de possibilidade estes passam e se adaptam para
realizarem seus projetos de vida, tal como nos revela Gilberto Velho,
nos seus escritos sobre projeto:

“A consciência cultural e a valorização do indivíduo singular,


baseado em uma memória que dá consistência à biografia, é o que
possibilita a formulação e condução de projetos. Portanto, se a
memória permite uma visão retrospectiva, mais ou menos organizada
de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação no futuro
desta trajetória e biografia, na medida em que busca, através do
estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através
dos quais estes poderão ser atingidos. (...) Assim, o projeto de cultura
que uma dada memória busca, acaba por associar-se aos significados
mais diversas que podem se dados a vida, ou em outros termos, à
própria identidade.” (VELHO, 1994, p.45)

Conscientes dodesafioquecercaesta modalidadedeaprendizado


e esta proposta de construção cultural, o reconhecimento do caráter
múltiplo de grande parte das sociedades alerta para a necessidade da
fragmentação dessa identidade fixa e bem localizada, em prol de outra,
dinâmica e multifacetada, enfatizando a pulverização dos padrões
culturais unívocos, em favor da construção de uma cidadania crítica.
Desse modo, projetos e realizações encurtaram seus espaços e passarão
a fazer parte de um processo natural de construção social.

Longe de esgotar a análise proposta, por este texto buscou-se,


antes, problematizar, a partir de um referencial intercultural crítico, as
contradições, os limites e as possibilidades contidos no discurso presente
em uma perspectiva devalorizaçãoda diversidade culturale daconstrução
de uma cidadania politizada e híbrida. Tal como sugere Ana Canen76,

76 Pesquisadora vinculada ao Programa de Estudos e Documentação Educação e


Sociedade – Proedes, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 258


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
“(...) uma educação multicultural voltada para a incorporação da
diversidadecultural nocotidianopedagógicotem emergidoemdebates
e discussões nacionais e internacionais, buscando-se questionar
pressupostos teóricos e implicações pedagógico-curriculares de uma
educação voltada à valorização das identidades múltiplas no âmbito
da educação formal. No Brasil, o debate assume especial relevância
no contexto da elaboração de uma proposta curricular nacional, que
inclui “pluralidade cultural” como um dos temas a serem trabalhados”.
(CANEN, 2000, p. 2)

A complexidade das representações acerca do conceito


de “multi” ou “pluri’ culturalidade indica que tais expressões
devem buscar mais que a junção de diferentes modus vivendis.
Devem atentar para ações transformadoras baseadas em
propostas curriculares que concretizem práticas educativas
mais conscienciosas, mas, não menos firmes. Do contrário,
teremos que continuar replicando, sempre constrangidos, os
ensinamentos do educador Paulo Freire, que afirmava: “não
se tergiversa com a cultura, nem com as patas desta enorme e
dinâmica centopéia!”. ●

Referências

ALMEIDA, Maria da Conceição X. Educação como aprendizagem da vida.


Educar, Curitiba, EFPR, nº 32, pp.43-55.
CADERNO Projeto Portas Abertas. RESJE-USP. Santos. 2005.
CANEN, Ana. Educação multicultural, identidade nacional e pluralidade cultural:
tensões e implicações curriculares. Cadernos de Pesquisa. no.111 São
Paulo - Dec. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742000000300007&lang=pt. Acesso
em: 23/10/2011.
DUSSEL, Inês; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula. Uma genealogia
das formas de ensinar. São Paulo, Moderna, 2003.

259 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


junqueira&marin editores desafios para os estudos da infância e da formação docente
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro,
Zahar, 2006.
LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura. A territorialização da racionalidade
ambiental. Petrópolis, Vozes, 2009.
LIPOVETSKY, Giles. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo
contemporâneo. Barueri – SP, Manole, 2005.
MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.) A declaração universal dos direitos humanos.
Sessenta anos. São Paulo, Edusp. 2008.
MUNANGA, Kabengele. A difícil tarefa de definir quem é negro no
Brasil. Entrevista. Estudos Avançados. vol.18 nº 50 São Paulo Jan./
Apr. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-40142004000100005&lang=pt Acesso em:
30/10/2011.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”, In:
Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.
Parecer do Conselho Nacional de Educação. CNE/CP 003/2004, Aprovado
em:10/3/2004.
Parecer do Conselho Nacional de Educação. CNE/CP 314/2004, Aprovado
em:10/11/2004
Relatório do Projeto Arqueologia dos Erasmos. MAE/USP, 2003.
SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. São Paulo:
Artmed, 2000.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 260


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Sobre os autores

Marcia Aparecida Gobbi (org.) – Doutora em Educação e Cultura


– UNICAMP – Departamento de Ciências Sociais e Educação.
Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (FEUSP). Email: mgobbi@usp.br

Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento (org.) – Doutora


em Educação. Docente da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP). Coordenadora
Associada PROCAD UNIR/FEUSP (2010-2014). Email:
letician@usp.br

André Muller de Mello - Biólogo voltado à Biologia da


Conservação, educador da Universidade de São Paulo nas
Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos. Integra a equipe
de professores responsáveis por projetos para o ensino
médio do Centro Paula Souza. Leciona em escolas técnicas
da Secretaria de Desenvolvimento do Estado de SP. E-mail:
bioandre2002@yahoo.com.br

261 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


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Anselmo Alencar Colares - Doutor em Educação (UNICAMP, 2003).
Professor Associado Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
/ Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação.
Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) / Instituto de
Ciências da Educação. Coordenador do Projeto de Pesquisa
Formação Docente e Diversidade Cultural. E-mail: anselmo.
colares@hotmail.com

Antônio Carlos Maciel - Doutor em Ciências Socioambientais pela


UFPA, professor do Departamento de Ciências da Educação da
Universidade Federal de Rondônia – Campus de Ariquemes.
Professor do Mestrado em Educação da UNIR. Líder do Grupo
de Pesquisa: Centro Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas
em Educação e Sustentabilidade – CIEPES/ITES/UNIR. Email:
maciel_ac@hotmail.com

A. César Lins Rodrigues – Professor da Prefeitura Municipal de


Cubatão. Mestre em Educação. Doutorando no Programa de
Pós-Graduação em Educação da USP. Membro do Grupo de
Pesquisas em Educação Física escolar da FEUSP.

Daniele P. Kowalewski - Mestre e doutoranda em Sociologia da


Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. Bolsista CNPq. Email: danielepk@usp.br

Lenildes Ribeiro da Silva - Pedagoga, mestre em educação pela UFG,


doutora em educação pela FE da UNICAMP. Docente na FASAM
(Faculdade Sulamericana de Goiania). Email: lenildesribeiro@
hotmail.com

Marília Menezes Nascimento Souza - Professora do Colégio de


Aplicação da Universidade Federal de Sergipe. Aluna do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo

Marcos Garcia Neira - Professor da Faculdade de Educação da


Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Metodologia do

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: 262


desafios para os estudos da infância e da formação docente junqueira&marin editores
Ensino de Educação Física. Coordenador do Grupo de Pesquisas
em Educação Física escolar da FEUSP. Email: mgneira@usp.br

Míghian Danae Ferreira Nunes. Mestranda em Educação –


Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. FEUSP.
Professora da rede municipal de educação de São Paulo.
Email: mighiandanae@yahoo.com.br

Neusa Maria Mendes de Gusmão - Antropóloga e professora titular


do DECISE – Departamento de Ciências Sociais na Educação e do
Programa de Pós Graduação em Educação – FE/UNICAMP e da
Pós-Graduação - Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia)
do IFCH/UNICAMP. Dedica-se ao estudo da Antropologia
da Educação e das questões étnicas e raciais em diferentes
contextos. E-mail: neusagusmao@uol.com.br

Rodrigo Christofoletti - Doutor em História e Bens Culturais pela


FGV/CPDOC. Educador da Universidade de São Paulo, no
Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos,
e da Universidade Católica de Santos/ Unisantos. E-mail:
r.christofoletti@uol.com.br ●

263 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL:


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