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Lavoura Arcaica e Tragédia Grega: Um Diálogo Necessário

Maria Augusta M. G. Dias


Universidade Estadual de Maringá
maria.augusta.1505@gmail.com

Abstract

This essay analyzes Raduam Nassar’s work in the light of the Greek tragedy. The
fundamental element of the tragedy present in Lavoura Arcaica (1935) is the dramatic
conflict, the violent opposition which denouement, as an enanthiologic unity, transcends
the drama’s characters. The tone of conflict is crucial and relates with the Greek tragedy,
namely, the shifting from chaos to the order, among other fundamental tensions. The first
chapter, following the idea that the semantic depth of the Myth is still alive in the
philosophical language, discusses the logical as a byproduct of the chaotic, an approach
from Eudoro de Sousa. Such approach, related to what Nietzsche understood as
Apollonian and Dionysian appears vividly in the studied literary work. In the second part
of the text, we interpret the struggle between Ethos and Daimon, that leads to the Hamartia
through a concept of freedom born from the opposition between Humane and Divine.
Therefore, counting as well with analisys from Aristotle, Marcel Detiennem Albin Lesky
and Jean-Pierre Vernant, Françoise Dastur, among others, this essay aims to set the
dialogue between the Greek Tragedy and Lavoura Arcaica.

Keywords: tragedy, Nassar, Myth, Destiny, contemporary literature.


I

O papel da invocação das musas e da palavra divina pela experiência mântica e


litúrgica ritualizada, na Grécia Antiga, mesmo antes das formulações estruturadas de suas
mais conhecidas tragédias, era assumido pelos poetas — dentre algumas outras figuras.
Em suas palavras os homens se reconheciam. Na fala desses mestres da verdade via-se o
destino e o próprio nome, uma vez que o discurso era hierarquizado, ou seja, não havia
nele espaço para a reinvindicação de uma fala dialógica. A verdade era entendida sem
qualquer espécie de contestação pública. Essa palavra-eficaz, tautegórica, é característica
da linguagem onde o poeta tem um papel protagonista na elaboração do mundo. A
experiência mítica não é pautada pela linguagem em sentido lógico, isto é, pela analítica
das categorias do que pode ou deve ser dito, mas pela possibilidade de uma visão acerca
do mundo e do enigma nele inscrito.

Na fala das musas — que sabem “aquilo que foi, aquilo que é, e aquilo que será”
— existe uma ambiguidade permanente. Cabe ao homem decifrar o que é verdadeiro, o
que é similitude, o que é fato e o que é simplesmente falso, uma vez que esses elementos
não se encontram separados no discurso. O mito explora a complementariedade entre ser
e não-ser, lethé e alethé, pois importa menos a clareza do trabalho conceitual do que o
movimento inerente ao ser das coisas. Segundo Marcel Detienne, em Os mestres da
verdade na tragédia grega, o mito representa a palavra-eficaz, posteriormente
modificado, a partir do nascimento da filosofia, pela palavra-diálogo. A ambiguidade
representa um perigo para a palavra dialogada. Essa última é que tem por tarefa a análise
categórica, isto é, os aspectos formais do ser e do dizer. Nasce em um quadro social,
político e econômico muito bem definido, o da cidade, fundando-se na publicidade e no
acordo da sociedade guerreira, na qual não havia mais sentido as ações e façanhas
individuais e desordenadas.1

A tragédia grega encontra-se na transição para um novo sistema de pensamento.


Nele triunfa a palavra-diálogo, muito ligada ao universo jurídico, onde os deuses se
afastam progressivamente do tempo e do mundo humano. A origem do trágico está,
assim, ligada ao desenvolvimento da sociedade onde a palavra precede a ação humana,
que é seu complemento e objeto. Onde o diálogo assume um caráter igualitário e

1
Detienne, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Tradução de Andréa Daher. (Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988) 51-52.
democrático, onde cada cidadão tem o poder de elocução, aprovação e desaprovação. Na
tragédia, no entanto, a invocação divina e a aceitação humana do destino demonstram que
o surgimento desse novo discurso não apagou de todo o mítico, representado pela tradição
arcaica. Em outras palavras, a compreensão humana é nela atravessada pelo
incomensurável, pelo desconhecido, cujo enigma não se apaga diante do conhecimento
racional e compartilhado. Essa relação entre palavra-diálogo e palavra-eficaz — que
marca, de um lado, o ideal de clareza, de outro, a necessidade de exposição do enigma —
não pode ser entendida como uma simples oposição dentro do trágico, pelo contrário,
trata-se de uma composição sem vencido/vencedor.

De outro modo, a tragédia grega é característica por dar luz à contradição como
forma de pensamento, presente na palavra do discurso filosófico (palavra-diálogo) que
surgia, em detrimento da ambiguidade dos fatos (érgon), onde se refugiou o discurso
mitológico, a palavra-eficaz, que em razão de sua importância, recebia igual relevo. Em
meio a tal contraste, tornou-se objeto da tragédia, como entende-se na Poética, a imitação
(mímesis) de homens que praticam alguma ação característica de quando o homem não
sabe se deve “conduzir-se segundo a Diké ou segundo a Hybris, se está do lado da verdade
ou do lado da mentira”2. A dificuldade da ação está na superposição de duas potências de
igual medida: a deliberação humana e a insondável intervenção divina. É assim porque a
concepção da verdade está sendo modificada pela experiência de laicização e disputa pela
palavra, o que não significa o abandono da religião e da amplitude semântica que existia
na palavra-eficaz, poética, pautada pela oralidade. Esta tem por base do conceito de
verdade o domínio ontológico e não a clareza semântica da verdade lógica, alcançada
pelo diálogo. O eclipse da palavra-eficaz e o surgimento da palavra-diálogo é uma
experiência que a sociedade grega elaborou progressivamente por meio de um processo
de abstração de valores que dá lugar a essa última (a fala dialógica) que, com o advento
da cidade, ocupa o lugar mais alto3.

A mutação do pensamento mítico ao lógos delineia, entre o domínio religioso e o


conhecimento racional diversas discordâncias, mas, em contrapartida, determina algumas
afinidades essenciais entre os dois conceitos4. Na medida em que o filósofo pretende o
lugar ocupado pelos poetas inspirados, mestres adivinhos e profetas da justiça, é possível

2
Ibid. 10-11
3
Ibid. 54-55.
4
Ibid. 73-74
dizer que o pensamento filosófico é herdeiro do pensamento mítico. Segundo Eudoro de
Souza, “O mítico é o que dá origem ao lógico; não o que lhe dá início, mas que o sustenta,
do início ao término”.5 Esta afirmação determina o lógos como subproduto do mito.

A verdade mítica não exclui o reconhecimento do ser positivo — que se poderia


chamar, a partir do surgimento da ciência e da filosofia, de objetividade —, embora
também visa o negativo — que é refratário, este sim, como se sabe, do domínio positivo.
Conclui-se disto que a tragédia problematiza a passagem daquilo que representa o novo
em detrimento do antigo. A tragédia ocupando, assim, um lugar entre o mito e o lógos,
olha para o passado e para o que ele diz, enquanto não é tão nova a ponto de abandoná-
lo. Como gênero literário, ela é a expressão particular de uma experiência humana ligada
a condições sociais e psicológicas definidas, onde o universo espiritual e religioso estava
plenamente presente nas instituições sociais.6 Por mais que a tragédia grega se defina por
ser característica de um contexto determinado, é uma forma de expressão que contrasta
os discursos onde “o mito ficará do lado do caótico e o lógico, do lado do cosmos”7,
segundo Eudoro de Souza em Mitologia II: História e Mito. Aqui está um primeiro
aspecto do trágico que se imprime no romance de Raduan Nassar. Nele há a inconciliável
oposição entre um pensamento antigo e ordenado, de um lado, e a novidade endereçada
ao pensamento novo, que visa o enigma e o caos, de outro.

Com o título “A Partida”, a primeira parte de Lavoura Arcaica começa momentos


antes do encontro de André, o protagonista, com seu irmão mais velho Pedro, no quarto
de pensão em que aquele morava desde que havia deixado a casa da família (e a lavoura);
e se estende até a confissão, por parte de André, dos reais motivos de sua partida, a saber,
o incesto cometido contra a família e consumado com a irmã. Tudo se inicia assim:

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o


quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral,
onde, nos intervalos da angústia, se colhe de um áspero caule, a flor do
desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro
os objetos do corpo; Eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa
velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar 8

5
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. Brasília: (Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
6
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e outros.
(São Paulo: Perspectiva, 1999) 9-10.
7
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. Brasília: (Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
8
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor – (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 7-8.
O quarto é, no texto, um núcleo fechado que se irrompe com a chegada do irmão,
que tem o intuito de reestabelecer a unidade da família. O ambiente descrito aqui, onde
se misturam o desejo (no ato masturbatório sugerido logo em seguida no texto) e a dor da
angústia e do desespero, colhidos pelo protagonista em seu passado, é uma boa metáfora
do caos representado pela figura de André, que, aparentemente, vaga perdido em um
mundo sem sentido. Em oposição a esse movimento visceral está a casa da família,
rememorada pelo protagonista em diversas passagens em que relata a infância. Ela, e toda
a fazenda onde se encontra, rodeada pela lavoura que é o símbolo do trabalho, do amor e
da união da família, constituem outra atmosfera fechada, regida pela ordem paternal.
Simbolicamente a casa abriga a tradição construída em milênios, por isso, na qual o
sujeito está preso à regras culturais rígidas e aos costumes coletivos.

A fazenda é o reflexo do arcaico, da prisão ideológica e familiar, da repressão, da


censura e do silenciamento, já que o pai, Ihorana, é o grande guardião — tanto da família
quanto da palavra. Ele coloca-se acima da intensa carga afetiva distribuída pela mãe, outro
pilar que sustenta a família, e que aparece descrita no texto por suas expressões de afeto:
“Não era no garfo, era entre as pontas dos dedos grossos que ela apanhava o bocado de
comida para me levar a boca ‘é assim que se alimenta um cordeiro’ ela me dizia sempre”9

A esse tronco familiar esquerdo, representado pela mãe, o protagonista narrador


acrescenta ainda André e Ana, e também o caçula Lula, em oposição ao tronco paterno.
O duplo tronco familiar se delineia pela maneira como os integrantes da família se
distribuem à mesa, assim narrada:

Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora


dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha
primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha
a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um
desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da
esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por
onde começava o segundo galho, fosse uma anômala, uma
protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela
carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares
na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família. 10

A história de André é habitada mutuamente pelas leis do sagrado e do profano —


embora a primeira se imponha sobre a segunda: “tudo em nossa casa é morbidamente
impregnado da palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre: é preciso

9
Ibid. 36-37.
10
Ibid. 155-156.
começar pela verdade e terminar do mesmo modo”11. À esta palavra o protagonista
progressivamente passa a opor-se, recusando os ritos paternos, isto é, os exercícios morais
da família, particularmente à mesa. Ao mesmo tempo, descobre o desejo:

É entre o excesso de luz – que cega – das leis do pai e a luz porosa –
que embriaga e sufoca – dos afetos da mãe que o filho vai insurgir. Ao
reino da necessidade, André, com seus ‘olhos noturnos’, procura
contrapor o reino do desejo (Jozef, 1992). Seu discurso é verborrágico,
às vezes obscuro: “as orações se interpenetram como orações
subordinadas e intercaladas, como se as ideias perdessem o medo de se
misturar (Jozef, 1992, p.60).12

Poderíamos opor o desejo profano de André aos ritos morais de Ihorana? Qual
será o resultado desta oposição, comparada à relação entre caos e ordem? Qual será, numa
escala de valores entre o caos e a ordem, o primeiro? Ora, se a lógica racional é
subproduto do caos, conforme a citação de Eudoro de Souza, então não é a ordem do pai
que é primeira. Ela representa, em termos nietzschianos, um princípio de ordenação
cosmológico apolíneo, posterior a Dionísio, representado pelo filho. O dionisíaco pode
ser lido como uma contra-valoração da vida, vendo-a de forma proto-empírica, isto é, da
perspectiva do todo, anterior às partes. O dionisíaco, então, abre espaço ao caos que
corresponde ao desejo, à desordem, à doença, à possessão epilética, à embriaguez, muito
presentes na obra de Raduan Nassar. O dionisíaco é responsável pelo impulso revelador
do que há de errático, louco, aniquilador e terrível na existência.

O apolíneo, ao contrário, na obra de Raduan Nassar, corresponde ao ramo da


família dominado pelo pai, ou seja, figura um mundo ideal, de sonho, e de bela aparência.
O dionisíaco se opõe a essa justificação estética do mundo representado pela hostilidade
aos impulsos sexuais, ao desejo, ao perspectivismo e ao erro; aproxima-se dos afetos e da
sensualidade, avesso à perfeição formal dos comportamentos da família. Diante da moral
cristã, a vida, no sentido dionisíaco, se opõe à razão e à ordem, sendo essencialmente
amoral. Assim, o caótico, isto é, a desmesura de André, é que se identifica com o impulso
original dionisíaco, e reivindica espaço à mesa da Família. “Pedro, meu irmão, eram
inconsistentes os sermões do pai”13, afirmava o protagonista.

11
Ibid. 41-42.
12
Tardivo, Renato. Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica. (Cotia: Ateliê
Editorial, 2012) 32-33.
13
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 46-
47.
A leitura da obra sob a ótica dos conceitos nietzschianos corrobora com a
afirmação de Eudoro de Souza, segundo a qual o lógico é sub-produto do mítico, pois, a
bem ver, Apolo e Dionísio são mitos. No interior do caos dionisíaco, representado pelo
filho, outro princípio, contra-ordenativo, repousa. André aponta a inconsistência do
discurso paterno através das palavras com as quais o próprio pai edificava seu domínio
moral. Por essa razão as palavras do pai, no discurso do filho, são usadas de forma
inesperada e distorcida, apesar de aparentar fidelidade ao discurso original. Vemos isso
nos usos diversos que o filho faz da parábola contada pelo pai, a interpretação que André
faz da “história de um faminto” –em que é dito virtuoso um homem que se curva ante
caprichos de um hipócrita, e é recompensado pela paciência e subserviência – o que, para
ele, era somente um relato de como “é um requinte de saciados, testar a virtude da
paciência com a fome de terceiros”14.

O discurso paterno, aos olhos do filho, permanece na superfície do ser, embasado


na beleza ornamental da palavra, justificado numa configuração estética, como dissemos
antes, na aparência, na arte de persuadir, não em razão do conteúdo ou da verdade, mas
pela força do efeito retórico.

Em Lavoura Arcaica, é justamente por ir contra esse jeito alusivo do


pai, por meio de parábolas, que André refutará seus sermões. As suas
críticas ao pai estabelecem um desencontro com a repetição incessante
das mesmas parábolas que, para o filho, são curvas que escamoteiam e
inibem, [...] camuflam, propagando a tradição e o mesmo, impedindo o
afloramento de sentimentos e opiniões que contradizem a verdade
cristalizada das Escrituras. 15

A desordem profunda do indivíduo presente nesses sentimentos e opiniões


(apresentada como doença) ameaça a unidade aparente da família que, por sua vez, toma
como ideal (ou saúde), além das Escrituras, o equilíbrio e constância da natureza, a
exemplo dos animais e das plantas da fazenda, que representam todo um cosmos paternal:

O gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser
esses, em seus fundamentos os modos da família: baldrames bem
travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado. A paciência
é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato
quem não se submete.16.

Em outras palavras, a justificativa do pai é dogmática: “O gado é assim. A


natureza é assim! ” A saúde da família é resultado da repressão do indivíduo, que se

14
Ibid. 109-110.
15
Sedlmayer, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai (Belo Horizonte: PosLit, 1997) 46-47.
16
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 60-
61.
submete. O grupo familiar espelha um princípio de ordenação racional, mas pré-
estabelecido, isento de crítica. Tomado em si, isto é, em seu ser, a família possui um
princípio hierárquico que ordena os indivíduos. Do avô ao pai, do pai ao primogênito, do
primogênito aos irmãos se estabelece uma lei de dominação não escrita, mas válida (como
na Antígona de Sófocles). O desequilíbrio é mãe, com sua carga de afeto... importante
perceber, nesse sentido, que a unidade familiar não é natural, apesar de afirmar-se como,
mas forçada pelo trabalho e pelo discurso dogmático do pai.

Em sua vontade de dizer ao irmão “Pedro, Pedro, é do teu silencio que preciso
agora, levante a viseira, passeie os olhos, solte-lhes as rédeas, mas contenha a força e o
recato da família, e o ímpeto áspero da tua língua”17, já se delineia, ao início do livro,
quando os irmãos se encontram, como André é regido por uma razão diferente daquela
expressa na linguagem da família, na figura do pai, e trazida à tona pela presença de
Pedro. Pouco a pouco se mostra o jogo de embates entre um verbo tradicional, arcaico,
paródico, patriarcal e um verbo original, caótico, delirante, vivido por André na
transgressão convulsiva e paroxística dos signos reinantes na linguagem paterna. Um jogo
digno das mais antigas tragédias.

17
Ibid. 67-68.
II

A presença do trágico no romance brasileiro se dá pela confrontação, no íntimo


das personagens, de lados opostos, de formas de vida que implicam categorias
ontológicas, psicológicas e linguísticas diferentes. Mas, para além disso, Lavoura Arcaica
expressa o caráter problemático dos fundamentos de poder exercidos entre os membros
da família patriarcal por meio de seus discursos, fechada num círculo estreito de valores
fixos. O pai é identificado pelo direito à palavra, o verbo paródico à mesa, lugar de
comunhão, sendo o arquétipo da medida e do desempenho, depositário da sabedoria,
enquanto a mãe (assim como Ana), em oposição, é aquela que observa ao canto, que
participa das cenas por sua ausência e se manifesta pelo silêncio latente, pela escuta, pelo
contato corporal e sensível.

As palavras no romance se apresentam numa multiplicidade sobreposta de


diferentes níveis, assim como na tragédia grega18. Há defasagem no diálogo falado,
captado entre as personagens e entendido pelos espectadores, e isso é essencial ao trágico.
Um mesmo discurso pode assumir caráter diferente de acordo com quem o interpreta.
Mais que marcar o acordo, o diálogo mostra a impermeabilidade, os pontos de conflito, o
desentendimento. Ele não gera comunhão de espíritos entre as personagens19, cada qual
se fecha em seu vocabulário unilateral que tem seus próprios sentidos e prerrogativas. As
palavras assumem a função contrária à comunicação, mostram as marcas do bloqueio, as
barreiras, os conflitos, a impermeabilidade entre as motivações das personagens que se
opõe em zonas de opacidade. Com isso, o homem acaba por cair nos artifícios de suas
próprias palavras e ações, reconhecendo o que não percebia após um choque violento que
revelará (tarde demais) os significados que se escondiam sob a cegueira.

Não há só a oposição entre passado e presente, mas esquemas de pensamentos


onde as palavras vêm a ser elementos de uma confrontação de questionamentos que
buscam entender o próprio homem e aquilo que nele há de desnorteante e
incompreensível. Isso é o que na tragédia grega se chamava de Deinós, e se apresenta
como “agente paciente ao mesmo tempo culpado e inocente, lúcido e cego, senhor de toda
a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de governar-se a si mesmo”20.

18
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e
outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999) 19-20
19
Ibid. p.20
20
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e
outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999) 10-11.
A tragédia mostra o percurso do homem que, em suas ações, assume a iniciativa, mas
cujo sentido verdadeiro lhe escapa, ultrapassa, e que pode se voltar contra o agente, como
ocorre a André e a Ihorana. O universo trágico é um universo dilacerado em contradições,
não apenas entre diferentes gerações, ou entre antigo e novo, mas entre regras, forças e
potências que brigam entre si, onde a justiça muda de lado e torna o seu contrário. A
tragédia apresenta a realidade de forma dividida e problemática e não há consciência que
possa pôr fim a sua interrogação. Assim é o universo de Lavoura Arcaica.

A tensão entre as dimensões racional e irracional e os impasses que os


protagonistas trágicos vivem podem ser entendidas também sob a ótica da dualidade entre
Ethos (caráter humanos, ou costumes) e Daimon (poder divino). Essa dualidade presente
na tendência psicológica das personagens para seguir ou seu caráter ou os princípios que
aprenderam, em contraste com a força que engloba as motivações irracionais, é um dos
elementos que surgem da lógica ambígua das tragédias. Segundo ela, o homem trágico
atua na distância entre agir por si e ser influenciado pelo desconhecido; por maktub, aquilo
que “está escrito”, palavra árabe que dá nome ao avô de André:

Atado, de um lado, pelo controle extremo das paixões e, do outro, pelo


excesso de afeto, André vai enfim reclamar os direitos de seu corpo
(Perrone-Moisés, 1996) no incesto concretizado com a irmã. A cena do
encontro amoroso, consumado na casa velha, aparece no capítulo
seguinte à menção de ‘maktub’. André trata de nos revelar que essa
paixão é um desdobramento da própria escritura da família, isto é, uma
paixão ‘pressentida’ que encontra a si mesma em um retorno radical a
estrutura familiar – a casa velha, a figura do avô, a ancestralidade. 21

André não se vê livre de cair na armadilha do destino que engloba suas próprias
decisões, não é dono do jogo trágico, apenas tenta dar conta do enigma contido no futuro
e no autoconhecimento. A ação se inicia no caráter, mas não se finaliza sem a intervenção
do incomensurável, daquilo que já lhe era destinado. Em Lavoura Arcaica: Que culpa
temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, seu vício e constância? ”; e ainda:
“que culpa temos nós se fomos acertados para cair na trama desta armadilha? Temos os
dedos, os nós dos joelhos, as mãos e os pés, e os nós dos cotovelos enroscados na malha
deste visgo”22.

21
Tardivo Renato. Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica. (Cotia: Ateliê
Editorial, 2012) Apud. L. Perrone-Moisés. 35-36
22
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989)
129-130.
Dentro do universo e do tempo trágico, o que causa a reviravolta da fortuna ao
infortúnio é a hamartia (erro). Uma falha que não tem uma origem ou uma filiação com
o conceito de culpa. Por isso, sobre o erro cometido pelo personagem dentro da tragédia
não se instaura a mentalidade cristã. É assim porque hamartia não se dá por um tipo de
ação que pode ser evitada ou pela falta de caráter, mas pelos efeitos da natureza humana.
Assim, “o homem não naufraga em uma falha moral, vai a pique porque, dentro dos
limites de sua natureza humana, não está à altura de determinadas tarefas e situações”23.

Na modernidade, o erro trágico pode ser interpretado a partir do conceito de


liberdade. Em Lavoura Arcaica, as personagens, apesar da consciência dos
desdobramentos possíveis de ações contrárias ao pensamento hegemônico, ainda não são
capazes de determinar os resultados de todas escolhas. Todo o efeito trágico se dá dentro
de um mundo regido pela liberdade, mas que depende do tempo também, não apenas da
consciência de quem tenta calcular as consequências das ações. O autoconhecimento é,
por essa razão, o benefício do trágico ao espectador (ainda que pela leitura de um romance
contemporâneo). Em outras palavras, a queda no infortúnio é inexorável, nada pode o
herói contra o destino, quem dirá o homem comum. Todavia, como aponta Albin Lesky,
“ainda no naufrágio face aos deuses e o destino há um transcender: para o ser que o
homem é, e na ruína experimenta a si mesmo como tal”24.

A essência da tragédia é a contradição. O problema está em que, enredado em suas


escolhas a partir do sentido psicológico, gnosiológico, político, etc, que configura o
domínio de cada personagem, fecham-se os canais de comunicação. Ao ignorar a
contradição, o herói expõe-se violentamente à confrontação, comprometido com a sua
unilateralidade e parti pris. Essa perspectiva, apontada por Lesky, coincide com a de
Goethe que, na tentativa de estabelecer a essência da tragédia, afirma, em 1824, que essa
se dá na medida em que ela é habitada por um desacordo insuperável, que não admite
qualquer solução. “Todo trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão longe
aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico”25.

A disposição das palavras em que se concretiza a crença de André de que na ordem


existe uma centelha de caos, quando o pai é tomado pela ira após a revelação, feita por

23
Lesky, Alban. Do problema do trágico – in A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg e outros. 3ª.ed.
(São Paulo: Perspectiva, 1996) 30-31.
24
Ibid. 53-54.
25
Ibid. 31-32.
Pedro, do incesto cometido dentro da família, tem papel central em apontar a dinâmica
cerrada e violenta do conflito trágico na passagem que segue:

o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de


cólera divina pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se
incendiava – essa matéria fibrosa, Palpável, tão concreta, não era
descarnada como eu pensava, tinha substância, corria nela um vinho
tinto, era sanguínea, resinosa, reinava drasticamente as nossas dores
(pobre família nossa, prisioneira de fantasmas tão consistentes!), e do
silêncio fúnebre que desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro,
como de um parto, um vagido primitivo
Pai!
e de outra voz, um uivo cavernoso, cheio de desespero Pai!
e de todos os lados, de Rosa, de Zuleika e de Huda, o mesmo
gemido desamparado
Pai!
eram balidos estrangulados
Pai! Pai!
onde a nossa segurança?
onde a nossa proteção?
Pai!
e de Pedro, prosternado na terra
Pai!
e vi Lula, essa criança tão cedo transtornada, rolando no chão
Pai! Pai!
onde a união da família?”26

Será então por meio da transposição linguística, que beira o impossível do dizer,
que o romance Lavoura Arcaica possibilita a extenuação máxima do conflito. O efeito
catártico é proporcionado pelo estilo narrativo escolhido pelo autor para a trama, o verbo
encolerizado é transposto ao texto em um fluxo desimpedido e ininterrupto na maior parte
das vezes. Isso explica o efeito trágico alcançado, que Segundo Françoise Dastur, em
Hölderlin, Tragédia e Modernidade:

Repousa sobre a união ilimitada, sobre a reunião do homem e deus no


furor, e aí ele é ungeheurer, insustentável porque monstruoso, não-
habitual, extraordinário. A transposição do limite, porém, é
compreendida ao mesmo tempo como esta monstruosa união do
humano e do divino. [...] A tragédia seria então, em si mesma, o remédio
para a monstruosidade que faz aparecer: a união ilimitada do humano e
do divino, a híbris da transgressão dos limites da finitude. 27

Ou seja, há presente na obra de Nassar a possibilidade privilegiada de, por meio


da representação artística das ações humanas, o que em termos aristotélicos seria a
mimesis, instaurar uma harmonia entre os homens. Trata-se da causa final da tragédia,
segundo Aristóteles, a saber, a manipulação das emoções de terror e piedade na forma da

26
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 191-
192.
27
Dastur, Françoise. Hölderlin, tragédia e modernidade. (Cap. 3) In: F. Hölderlin. Reflexões. Tradução
de Antônio Abranches. (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994) 183-184.
catarse. O inebriamento causado pela narrativa invade o imaginário do leitor e o comove,
como no trecho que segue a morte de Ana : “A mãe passou a carpir a própria língua,
puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha
cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto”28

A finalidade do trágico, porém, não se resume a catarse. Em Lavoura Arcaica, não


se pode reduzir simplesmente a substituição da ordem e da racionalidade paterna, fundada
na tradição, pela desordem egoísta e imediata do filho rebelde. Por mais trágicos que
sejam os acontecimentos, não é apenas isso que acontece. O conflito trágico, em Lavoura
Arcaica, se dá devido à conciliação dos conflitos em um plano superior, tornando-os
significativos. Para Friedrich Sengle, assim como em Lavoura Arcaica, o trágico
ultrapassa os limites dos conflitos e chega a uma compreensão conciliadora do mundo,
ainda que não ideal. Para Sengle, a tragédia acaba “numa palavra de fé avassaladora, que
afirma o destino representado no drama e a dolorosa constituição do mundo que nele se
manifesta”29.

No romance de Raduan Nassar, o que figura isso muito bem é a metáfora do tempo
(e do destino, contida nele). Esse aparece como um rio “recolhendo e filtrando de várias
direções o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles
construir a razão mística da história”30. Esse rio, representa “o “antes” em que selados se
encontram os destinos do que venha a ser mundo e do dizermos nós o que o mundo seja.
O “antes” encerra possibilidades de mundos, realizadas ou irrealizadas, e a nossa
existência parece estar tão presa a umas, quanto a outras.”31 O antes é que nos determina.
A figura do destino, entrelaçada pelo tempo, é cravada por André no seio da família na
figura de Maktub — está escrito. Para o avô o narrador dedica o décimo quinto capítulo,
entre parênteses:

(Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e aos ventos,
assim como a outras manifestações da natureza que faziam vingar ou
destruir nossa lavoura, o avô, ao contrário dos discernimentos
promíscuos do pai em que apareciam enxertos de várias geografias,

28
Ibid. 192-193.
29
Lesky, Alban. Do problema do trágico – in A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg e outros. 3ª.ed.
(São Paulo: Perspectiva, 1996) 53-54.
30
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 182-
183.
31
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências,
por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: "Maktub.")32

Como o acontecimento trágico se passa no tempo, e busca revelar sua dinâmica,


temos dela apenas o primeiro plano. A concepção trágica acaba por abarcar uma boa dose
de visão sobre seu verdadeiro ser, o que dele não deciframos. Vislumbrar o destino é o
que nos possibilita, pelo trágico presente na obra literária, um transcender que dê “valor,
ou espessura, ou densidade existencial, à morte que está na vida, como possibilidade de
transfiguração do destino, como a reabertura do destino para a realização de outros
possíveis irrealizados. ”33

32
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 89-
90.
33
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
REFERÊNCIAS:

Aristóteles. Poética. Seleção: José Américo Motta. Tradução e comentários: Eudoro de


Souza. 4. ed. (São Paulo: Nova Cultural, 1991 Coleção Os pensadores; v. 2)

Dastur, Françoise. Hölderlin, tragédia e modernidade. (Cap. 3) In: F. Hölderlin. Reflexões.


Tradução de Antônio Abranches. (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994)

Detienne, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Tradução de Andréa Daher.


(Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988).

Lesky, Alban. Do problema do trágico – in A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg e


outros. 3ª.ed. (São Paulo: Perspectiva, 1996).

Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras,
1989).

Nietzsche, Friedrich. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (São Paulo:


Companhia das Letras., 2007).

Sedlmayer, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai. (Belo Horizonte: PosLit, 1997).

Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1988).

Tardivo, Renato. Porvir que vem antes de tudo. Literatura e cinema em Lavoura Arcaica.
(Cotia: Ateliê Editorial, 2012).

Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida
Prado e outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999).

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