Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract
This essay analyzes Raduam Nassar’s work in the light of the Greek tragedy. The
fundamental element of the tragedy present in Lavoura Arcaica (1935) is the dramatic
conflict, the violent opposition which denouement, as an enanthiologic unity, transcends
the drama’s characters. The tone of conflict is crucial and relates with the Greek tragedy,
namely, the shifting from chaos to the order, among other fundamental tensions. The first
chapter, following the idea that the semantic depth of the Myth is still alive in the
philosophical language, discusses the logical as a byproduct of the chaotic, an approach
from Eudoro de Sousa. Such approach, related to what Nietzsche understood as
Apollonian and Dionysian appears vividly in the studied literary work. In the second part
of the text, we interpret the struggle between Ethos and Daimon, that leads to the Hamartia
through a concept of freedom born from the opposition between Humane and Divine.
Therefore, counting as well with analisys from Aristotle, Marcel Detiennem Albin Lesky
and Jean-Pierre Vernant, Françoise Dastur, among others, this essay aims to set the
dialogue between the Greek Tragedy and Lavoura Arcaica.
Na fala das musas — que sabem “aquilo que foi, aquilo que é, e aquilo que será”
— existe uma ambiguidade permanente. Cabe ao homem decifrar o que é verdadeiro, o
que é similitude, o que é fato e o que é simplesmente falso, uma vez que esses elementos
não se encontram separados no discurso. O mito explora a complementariedade entre ser
e não-ser, lethé e alethé, pois importa menos a clareza do trabalho conceitual do que o
movimento inerente ao ser das coisas. Segundo Marcel Detienne, em Os mestres da
verdade na tragédia grega, o mito representa a palavra-eficaz, posteriormente
modificado, a partir do nascimento da filosofia, pela palavra-diálogo. A ambiguidade
representa um perigo para a palavra dialogada. Essa última é que tem por tarefa a análise
categórica, isto é, os aspectos formais do ser e do dizer. Nasce em um quadro social,
político e econômico muito bem definido, o da cidade, fundando-se na publicidade e no
acordo da sociedade guerreira, na qual não havia mais sentido as ações e façanhas
individuais e desordenadas.1
1
Detienne, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Tradução de Andréa Daher. (Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988) 51-52.
democrático, onde cada cidadão tem o poder de elocução, aprovação e desaprovação. Na
tragédia, no entanto, a invocação divina e a aceitação humana do destino demonstram que
o surgimento desse novo discurso não apagou de todo o mítico, representado pela tradição
arcaica. Em outras palavras, a compreensão humana é nela atravessada pelo
incomensurável, pelo desconhecido, cujo enigma não se apaga diante do conhecimento
racional e compartilhado. Essa relação entre palavra-diálogo e palavra-eficaz — que
marca, de um lado, o ideal de clareza, de outro, a necessidade de exposição do enigma —
não pode ser entendida como uma simples oposição dentro do trágico, pelo contrário,
trata-se de uma composição sem vencido/vencedor.
De outro modo, a tragédia grega é característica por dar luz à contradição como
forma de pensamento, presente na palavra do discurso filosófico (palavra-diálogo) que
surgia, em detrimento da ambiguidade dos fatos (érgon), onde se refugiou o discurso
mitológico, a palavra-eficaz, que em razão de sua importância, recebia igual relevo. Em
meio a tal contraste, tornou-se objeto da tragédia, como entende-se na Poética, a imitação
(mímesis) de homens que praticam alguma ação característica de quando o homem não
sabe se deve “conduzir-se segundo a Diké ou segundo a Hybris, se está do lado da verdade
ou do lado da mentira”2. A dificuldade da ação está na superposição de duas potências de
igual medida: a deliberação humana e a insondável intervenção divina. É assim porque a
concepção da verdade está sendo modificada pela experiência de laicização e disputa pela
palavra, o que não significa o abandono da religião e da amplitude semântica que existia
na palavra-eficaz, poética, pautada pela oralidade. Esta tem por base do conceito de
verdade o domínio ontológico e não a clareza semântica da verdade lógica, alcançada
pelo diálogo. O eclipse da palavra-eficaz e o surgimento da palavra-diálogo é uma
experiência que a sociedade grega elaborou progressivamente por meio de um processo
de abstração de valores que dá lugar a essa última (a fala dialógica) que, com o advento
da cidade, ocupa o lugar mais alto3.
2
Ibid. 10-11
3
Ibid. 54-55.
4
Ibid. 73-74
dizer que o pensamento filosófico é herdeiro do pensamento mítico. Segundo Eudoro de
Souza, “O mítico é o que dá origem ao lógico; não o que lhe dá início, mas que o sustenta,
do início ao término”.5 Esta afirmação determina o lógos como subproduto do mito.
5
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. Brasília: (Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
6
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e outros.
(São Paulo: Perspectiva, 1999) 9-10.
7
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. Brasília: (Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
8
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor – (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 7-8.
O quarto é, no texto, um núcleo fechado que se irrompe com a chegada do irmão,
que tem o intuito de reestabelecer a unidade da família. O ambiente descrito aqui, onde
se misturam o desejo (no ato masturbatório sugerido logo em seguida no texto) e a dor da
angústia e do desespero, colhidos pelo protagonista em seu passado, é uma boa metáfora
do caos representado pela figura de André, que, aparentemente, vaga perdido em um
mundo sem sentido. Em oposição a esse movimento visceral está a casa da família,
rememorada pelo protagonista em diversas passagens em que relata a infância. Ela, e toda
a fazenda onde se encontra, rodeada pela lavoura que é o símbolo do trabalho, do amor e
da união da família, constituem outra atmosfera fechada, regida pela ordem paternal.
Simbolicamente a casa abriga a tradição construída em milênios, por isso, na qual o
sujeito está preso à regras culturais rígidas e aos costumes coletivos.
9
Ibid. 36-37.
10
Ibid. 155-156.
começar pela verdade e terminar do mesmo modo”11. À esta palavra o protagonista
progressivamente passa a opor-se, recusando os ritos paternos, isto é, os exercícios morais
da família, particularmente à mesa. Ao mesmo tempo, descobre o desejo:
É entre o excesso de luz – que cega – das leis do pai e a luz porosa –
que embriaga e sufoca – dos afetos da mãe que o filho vai insurgir. Ao
reino da necessidade, André, com seus ‘olhos noturnos’, procura
contrapor o reino do desejo (Jozef, 1992). Seu discurso é verborrágico,
às vezes obscuro: “as orações se interpenetram como orações
subordinadas e intercaladas, como se as ideias perdessem o medo de se
misturar (Jozef, 1992, p.60).12
Poderíamos opor o desejo profano de André aos ritos morais de Ihorana? Qual
será o resultado desta oposição, comparada à relação entre caos e ordem? Qual será, numa
escala de valores entre o caos e a ordem, o primeiro? Ora, se a lógica racional é
subproduto do caos, conforme a citação de Eudoro de Souza, então não é a ordem do pai
que é primeira. Ela representa, em termos nietzschianos, um princípio de ordenação
cosmológico apolíneo, posterior a Dionísio, representado pelo filho. O dionisíaco pode
ser lido como uma contra-valoração da vida, vendo-a de forma proto-empírica, isto é, da
perspectiva do todo, anterior às partes. O dionisíaco, então, abre espaço ao caos que
corresponde ao desejo, à desordem, à doença, à possessão epilética, à embriaguez, muito
presentes na obra de Raduan Nassar. O dionisíaco é responsável pelo impulso revelador
do que há de errático, louco, aniquilador e terrível na existência.
11
Ibid. 41-42.
12
Tardivo, Renato. Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica. (Cotia: Ateliê
Editorial, 2012) 32-33.
13
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 46-
47.
A leitura da obra sob a ótica dos conceitos nietzschianos corrobora com a
afirmação de Eudoro de Souza, segundo a qual o lógico é sub-produto do mítico, pois, a
bem ver, Apolo e Dionísio são mitos. No interior do caos dionisíaco, representado pelo
filho, outro princípio, contra-ordenativo, repousa. André aponta a inconsistência do
discurso paterno através das palavras com as quais o próprio pai edificava seu domínio
moral. Por essa razão as palavras do pai, no discurso do filho, são usadas de forma
inesperada e distorcida, apesar de aparentar fidelidade ao discurso original. Vemos isso
nos usos diversos que o filho faz da parábola contada pelo pai, a interpretação que André
faz da “história de um faminto” –em que é dito virtuoso um homem que se curva ante
caprichos de um hipócrita, e é recompensado pela paciência e subserviência – o que, para
ele, era somente um relato de como “é um requinte de saciados, testar a virtude da
paciência com a fome de terceiros”14.
O gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser
esses, em seus fundamentos os modos da família: baldrames bem
travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado. A paciência
é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato
quem não se submete.16.
14
Ibid. 109-110.
15
Sedlmayer, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai (Belo Horizonte: PosLit, 1997) 46-47.
16
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 60-
61.
submete. O grupo familiar espelha um princípio de ordenação racional, mas pré-
estabelecido, isento de crítica. Tomado em si, isto é, em seu ser, a família possui um
princípio hierárquico que ordena os indivíduos. Do avô ao pai, do pai ao primogênito, do
primogênito aos irmãos se estabelece uma lei de dominação não escrita, mas válida (como
na Antígona de Sófocles). O desequilíbrio é mãe, com sua carga de afeto... importante
perceber, nesse sentido, que a unidade familiar não é natural, apesar de afirmar-se como,
mas forçada pelo trabalho e pelo discurso dogmático do pai.
Em sua vontade de dizer ao irmão “Pedro, Pedro, é do teu silencio que preciso
agora, levante a viseira, passeie os olhos, solte-lhes as rédeas, mas contenha a força e o
recato da família, e o ímpeto áspero da tua língua”17, já se delineia, ao início do livro,
quando os irmãos se encontram, como André é regido por uma razão diferente daquela
expressa na linguagem da família, na figura do pai, e trazida à tona pela presença de
Pedro. Pouco a pouco se mostra o jogo de embates entre um verbo tradicional, arcaico,
paródico, patriarcal e um verbo original, caótico, delirante, vivido por André na
transgressão convulsiva e paroxística dos signos reinantes na linguagem paterna. Um jogo
digno das mais antigas tragédias.
17
Ibid. 67-68.
II
18
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e
outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999) 19-20
19
Ibid. p.20
20
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida Prado e
outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999) 10-11.
A tragédia mostra o percurso do homem que, em suas ações, assume a iniciativa, mas
cujo sentido verdadeiro lhe escapa, ultrapassa, e que pode se voltar contra o agente, como
ocorre a André e a Ihorana. O universo trágico é um universo dilacerado em contradições,
não apenas entre diferentes gerações, ou entre antigo e novo, mas entre regras, forças e
potências que brigam entre si, onde a justiça muda de lado e torna o seu contrário. A
tragédia apresenta a realidade de forma dividida e problemática e não há consciência que
possa pôr fim a sua interrogação. Assim é o universo de Lavoura Arcaica.
André não se vê livre de cair na armadilha do destino que engloba suas próprias
decisões, não é dono do jogo trágico, apenas tenta dar conta do enigma contido no futuro
e no autoconhecimento. A ação se inicia no caráter, mas não se finaliza sem a intervenção
do incomensurável, daquilo que já lhe era destinado. Em Lavoura Arcaica: Que culpa
temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, seu vício e constância? ”; e ainda:
“que culpa temos nós se fomos acertados para cair na trama desta armadilha? Temos os
dedos, os nós dos joelhos, as mãos e os pés, e os nós dos cotovelos enroscados na malha
deste visgo”22.
21
Tardivo Renato. Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica. (Cotia: Ateliê
Editorial, 2012) Apud. L. Perrone-Moisés. 35-36
22
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989)
129-130.
Dentro do universo e do tempo trágico, o que causa a reviravolta da fortuna ao
infortúnio é a hamartia (erro). Uma falha que não tem uma origem ou uma filiação com
o conceito de culpa. Por isso, sobre o erro cometido pelo personagem dentro da tragédia
não se instaura a mentalidade cristã. É assim porque hamartia não se dá por um tipo de
ação que pode ser evitada ou pela falta de caráter, mas pelos efeitos da natureza humana.
Assim, “o homem não naufraga em uma falha moral, vai a pique porque, dentro dos
limites de sua natureza humana, não está à altura de determinadas tarefas e situações”23.
23
Lesky, Alban. Do problema do trágico – in A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg e outros. 3ª.ed.
(São Paulo: Perspectiva, 1996) 30-31.
24
Ibid. 53-54.
25
Ibid. 31-32.
Pedro, do incesto cometido dentro da família, tem papel central em apontar a dinâmica
cerrada e violenta do conflito trágico na passagem que segue:
Será então por meio da transposição linguística, que beira o impossível do dizer,
que o romance Lavoura Arcaica possibilita a extenuação máxima do conflito. O efeito
catártico é proporcionado pelo estilo narrativo escolhido pelo autor para a trama, o verbo
encolerizado é transposto ao texto em um fluxo desimpedido e ininterrupto na maior parte
das vezes. Isso explica o efeito trágico alcançado, que Segundo Françoise Dastur, em
Hölderlin, Tragédia e Modernidade:
26
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 191-
192.
27
Dastur, Françoise. Hölderlin, tragédia e modernidade. (Cap. 3) In: F. Hölderlin. Reflexões. Tradução
de Antônio Abranches. (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994) 183-184.
catarse. O inebriamento causado pela narrativa invade o imaginário do leitor e o comove,
como no trecho que segue a morte de Ana : “A mãe passou a carpir a própria língua,
puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha
cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto”28
No romance de Raduan Nassar, o que figura isso muito bem é a metáfora do tempo
(e do destino, contida nele). Esse aparece como um rio “recolhendo e filtrando de várias
direções o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles
construir a razão mística da história”30. Esse rio, representa “o “antes” em que selados se
encontram os destinos do que venha a ser mundo e do dizermos nós o que o mundo seja.
O “antes” encerra possibilidades de mundos, realizadas ou irrealizadas, e a nossa
existência parece estar tão presa a umas, quanto a outras.”31 O antes é que nos determina.
A figura do destino, entrelaçada pelo tempo, é cravada por André no seio da família na
figura de Maktub — está escrito. Para o avô o narrador dedica o décimo quinto capítulo,
entre parênteses:
(Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e aos ventos,
assim como a outras manifestações da natureza que faziam vingar ou
destruir nossa lavoura, o avô, ao contrário dos discernimentos
promíscuos do pai em que apareciam enxertos de várias geografias,
28
Ibid. 192-193.
29
Lesky, Alban. Do problema do trágico – in A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg e outros. 3ª.ed.
(São Paulo: Perspectiva, 1996) 53-54.
30
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 182-
183.
31
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências,
por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: "Maktub.")32
32
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras, 1989) 89-
90.
33
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1988) 56-57.
REFERÊNCIAS:
Nassar, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º ed. rev. pelo autor. (São Paulo: Companhia das Letras,
1989).
Sousa, Eudoro de. Mitologia II: História e Mito. 2º ed. (Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1988).
Tardivo, Renato. Porvir que vem antes de tudo. Literatura e cinema em Lavoura Arcaica.
(Cotia: Ateliê Editorial, 2012).
Vernant, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução de Anna Lia de Almeida
Prado e outros. (São Paulo: Perspectiva, 1999).