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Copyright © 2023 by Editora Metanoia

Copyright do prefácio © 2023 by Flora Cambala

Grafia actualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor em Angola em 2000.

Título original
Vozes Presas no Porão

Ilustração da capa
Natércio dos Santos

Revisão
Natércio dos Santos
Paulo Santana

Diagramação
Natércio dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


________________________________________________
Cambala, Flora, 2005-(…), Santos, Milucha, 2006-(…),
Gonga, Esmeralda, 2007- (…).

Vozes Presas no Porão / Flora Cambala, Milucha Santos, Aoi Tamashi.

Luanda : Editora Metanoia, 2023.

Título original: Vozes Presas no Porão


ISBN: 978-989-35055-0-2
________________________________________________
[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA METANOIA

Centralidade do Sequele, Bloco 12


Tel.: (+244) 945-794-280
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“Essa obra de ficção é dedicada a todas as almas
sem expressão, presas no porão, que gritam dentro de cada
um que se identifica com os versos escritos nesse livro.”
“Eu escuto vozes, elas falam
coisas terríveis sobre mim,
mas ninguém as escuta.
Elas moram na minha
cabeça e falam…

Se mate!”
— Anónimo
Prefácio

Se o meu corpo fosse uma casa, minha pele seria como


paredes que cobrem toda a minha existência, paredes essas que
fariam parte de uma arquitetura que tenta ser perfeita, mas que
tem janelas desgastadas por lágrimas, portas barricadas por
cartas e palavras que procuram por liberdade. Se o meu corpo
fosse uma casa, eu pensaria mil vezes antes de colocar todo o
lixo por cima da mesa. Eu deixaria os meus pesadelos na
despensa, pois eles são pesados demais para serem lançados
fora e insuportáveis demais para serem postos em cima da
mesa. Ao invés disso, prenderia cada pedaço meu dentro do
porão, prenderia cada voz em baús que se desgastariam com o
tempo, deixando cada ferida mais podre, cada sorriso menos
doce, cada amanhecer insuportável, até que eu percebesse que
uma vida com aquelas vozes dentro do porão seria uma vida
incompleta.
Então, se o meu corpo fosse uma casa, minha pele seria
como as paredes, meus olhos as janelas, minha boca seria a
porta e a minha mente seria o porão onde estariam trancados
todos os meus pensamentos, vozes, medos e angústias.
Eu sou uma casa. Eu sou a minha casa…
Porém, estou presa, com as minhas vozes, no porão.

Flora Cambala, escritora.


Índice

“Quando a tua alma grita” ............................................. 10


Por: Flora Cambala
“Sejam bem-vindos”...................................................... 12
Por: Flora Cambala
“Queremos sair” ............................................................ 15
Por: Milucha Santos
“O que me faz sair também me encarcera” ................... 16
Por: Flora Cambala
“Preciso fugir dos meus vícios” .................................... 18
Por: Milucha Santos
“O vício é escapar” ........................................................ 20
Por: Flora Cambala, Milucha Santos
“Salva-me, arte!” ........................................................... 21
Por: Flora Cambala, Milucha Santos
“Ouvem-se vozes” ......................................................... 23
Por: Mlucha Santos
“Adeus, eu” ................................................................... 25
Por: Milucha Santos
“Todas as vezes que eu morri” ...................................... 27
Por: Mlucha Santos
“Meu amor, depressão” ................................................. 29
Por: Milucha Santos
“Vários em nós” ............................................................ 30
Por: Milucha Santos
“O Porão” ...................................................................... 34
Por: Aoi Tamashi
“O fim do paraíso” ........................................................ 35
Por: Aoi Tamashi
“Pedacinhos de afecto” .................................................. 37
Por: Aoi Tamashi
“O modelo perfeito” ...................................................... 39
Por: Aoi Tamashi
“Usado, quebrado e reutilizado”.................................... 41
Por: Aoi Tamashi
“Eu só queria ser ela” .................................................... 43
Por: Aoi Tamashi
“Vazia” .......................................................................... 45
Por: Aoi Tamashi
“A liberdade” .................. Error! Bookmark not defined.
Por: Aoi Tamashi
“Para onde podemos fugir?” .......................................... 47
Por: Aoi Tamashi
“Com o tempo” ............... Error! Bookmark not defined.
Por: Aoi Tamashi
“Como raios ele me escolheria?”Error! Bookmark not
defined.
Por: Aoi Tamashi
“O complexo do balão vazio”........................................ 49
Por: Flora Cambala
“Escolho rebentar” ........................................................ 50
Por: Flora Cambala
“O fardo da perfeição” .................................................. 52
Por: Flora Cambala
“A apresentação favorita”.............................................. 54
Por: Flora Cambala, Milucha Santos
“Eu tenho seios caídos” ................................................. 55
Por: Flora Cambala
“Adultos não brincam com bonecas” ............................ 58
Por: Milucha Santos, Flora Cambala
“À minha criança interior” ............................................ 59
Por: Flora Cambala
“Por que ninguém me ouviu a gritar?” .......................... 60
Por: Flora Cambala
“Era suposto...” .............................................................. 63
Por: Flora Cambala
“Justiça?” ....................................................................... 66
Por: Flora Cambala
“E se eu soubesse?” ....................................................... 68
Por: Flora Cambala
“Lugares proibidos” ...................................................... 69
Por: Flora Cambala
“Desenhos na parede” ................................................... 71
Por: Flora Cambala
“Quando a tua alma grita”

Quando a tua alma grita,


Mas parece que estás apenas a encher um balão
Cheio de problemas, prestes a estourar sobre a tua cabeça
E então parece que a única opção
É te fechares dentro de ti mesma
Pela covardia e fraqueza.
Porque te encontras fraca dentro de uma guerra de espadas
Na qual apenas seguras uma pedra.

Quando sentes uma dor te corroer de dentro para fora


Como se fosses um pedaço de madeira
Sendo destruído por carunchos
Sentes o corroer
Sem poder fazer nada
Assim se sentiu a criança presa dentro do meu porão.

Quando os teus olhos reflectem a incerteza sobre o teu futuro


E a tua mente instintivamente se fecha
Parece que ninguém é capaz de te entender
Os teus passos parecem incertos
Os dias se tingem de cinzento
Presa no paradoxo entre o branco e o preto
A busca pela perfeição te faz cada vez mais incompleta
E aos poucos aprendes que ceder
é a melhor resposta ao sofrimento.

Eu confesso que talvez eu tenha arranjado uma fuga


Mas não a cura
Para silenciar as vozes na minha cabeça
Prendi tudo o que tornava o meu ser obscuro
Onde guardo partes de mim das quais não faço uso
Porque doem
Dói saber que lá no fundo eu escondo

10
Um passado horroroso
Inseguranças, vazios, vícios
Dói saber que não me permito ser
Apenas estar
Sempre com medo de ceder
E mais uma vez me quebrar.

Eu queria que tivessem me ajudado


Quando os meus ossos se transformaram em grades
Que sustentaram a minha carne
Mas prenderam a minha alma
Eu queria parar de me esconder
Poder viver e não apenas sobreviver
Eu queria poder livrar-me de tanta pressão
A pressão dos medos do passado
E medo do presente.

Eu queria
Mas para isso eu preciso me libertar
E libertar todas as partes que me compõem
Que nos compõem…
Preciso libertar as vozes no porão.

— Flora Cambala

11
“Sejam bem-vindos”

Bem-vindos ao meu interior


Cantos limpos, onde as mesas nunca têm pó
Onde os quadros esbanjam sorrisos
Onde nos vemos em cada piso da escada
Enquanto cada passo nos leva para o profundo da minha alma
E lá sentes o espaço te consumir
Te sugar para dentro do meu vazio.

Bem-vindos à minha casa


Onde não lemos
Porque perdemos as palavras
Onde não nos olhamos ao espelho
Pois odiamos o nosso reflexo
Onde esbanjamos uma despensa cheia de comida
Mas a nossa barriga está vazia.

Bem-vindos à minha casa


Mas não ao meu lar
Pois os quartos não se enchem com os sorrisos
E as lágrimas afundam as mobílias enquanto dormimos
A imperfeição racha cada objeto feito de madeira
Pois é pesada, mesmo quando ela é criada por mim mesma.

12
Bem-vindos ao meu lar
Onde parte de mim se encontra presa nesse porão
Dentre baús cheios de podridão
Dentre livros de psicologia ignorados
Versículos sobrevalorizados
Que nunca me ajudaram a sair desse lugar.

Bem-vindos ao meu lar


Onde as crianças não brincam com brinquedos
Onde os balões já não querem estar cheios
Onde…
De onde eu quero fugir
Onde as vozes se cansam de gritar
Vozes essas que perderam o som
Mas há força
Pois, dentre letras, elas gritam
Gritam sobre ti
Sobre mim
Sobre nós.

“Bem-vindos ao meu lar”

Bem vindos à minha casa perfeita


Mas ao meu lar sombrio
Porque em noites de frio
Eu senti o aperto das vozes a me abraçarem.

Bem vindos aos meus versos cansados


13
Às prosas que resumem histórias
Às rimas que rimam memórias
Ao balançar da arte que liberta
Liberta cada dor presa no âmago da minha alma
Bem vindos ao porão da minha casa.

De corredor em corredor
Do amor a dor
De mitos a realidade
Bem vindos a minha verdade.

— Flora Cambala

14
“Queremos sair”

Sou uma voz cansada


Somos vozes cansadas
Almas encarceradas
Vozes abafadas e atormentadas.

Pelos nossos traumas


E dependência
Pelas nossas inseguranças
O grande sentimento de insuficiência.

Somos vozes abafadas


Que querem ser libertadas
Que querem deixar de ser tentadas
A desistir a cada tentativa falhada de sair daqui.

— Milucha Santos

15
“O que me faz sair também me encarcera”

Procuro formas de sair desse lugar


Da minha mente, desse porão
Procuro formas de respirar um novo ar
E pisar um novo e fresco chão
Procuro sair do escuro dessa solidão
Preciso voltar e sentir o meu coração.

Preciso parar de gritar


Preciso correr, cantar, falar ou transar
Na internet navegar
Me afundar no mar de personalidades apressadamente forjadas
Esconder as minhas inseguranças através de reações.

Tudo o que eu procuro


Eu encontro e tenho
Por minutos
E em poucos segundos
Eu vejo a paz e a sanidade que tanto almejo
A ir para o ralo a baixo
Vejo tudo aquilo que fujo a voltar rapidamente
Com mais ferocidade.

Tudo o que eu procuro é uma forma de escapar


Destrancar a porta do porão
Fugir e nunca mais voltar
Fugir dessa sensação de estar presa
Dentro de mim mesma.

Eu espero sair, para outro lugar ir


Para outra parte dessa casa
Uma em que eu possa respirar
Sem ter que suplicar.
Pelo fim dos meus dias

16
Eu saio desse lugar às vezes
Eu vou, mas volto, sempre a chorar ou a gritar
Por tentar escapar e falhar
Então só me resta gritar
“Ouçam-me!”

— Milucha Santos

17
“Preciso fugir dos meus vícios”

Dá-me outra vez!


Onde estão? Eu preciso deles
Preciso deles para amenizar
Preciso deles para aguentar.

Para parar.

Preciso deles para respirar


Preciso de comprimidos para delirar
Para alcançar o corpo perfeito
Para alcançar a paz que eu almejo
Para os meus problemas controlar
Para poder dormir, me desligar

Eu preciso, desejo
Eu não aguento sem eles
É um castigo contínuo
E os comprimidos dão-me alivio.

Por alguns minutos, por leves segundos


Eu deixo de sentir, de sofrer
Deixa de doer ver o amanhecer
E chorar ao me ver no espelho
Deixa de doer ver o anoitecer
Poder dormir sem parecer que
Mergulhei em chávenas de café.

Muitos dizem que nada terei e que tudo vou perder


Mas tudo o que eu sou agora
São inseguranças e distúrbios alimentares
Problemas de personalidade
O que poderei perder se eu não me tenho?
Sinto que estou sem saídas

18
A tentar fugir da minha mente através de formas destrutivas
Me sinto tão cansada que deixo-me perder
Para não ter escolhas a fazer.

A minha alma é um zé ninguém


Cobarde, que usa drogas
Como cadeiras de rodas
Como um colete.

Um colete que tenta me proteger da minha mente


Sou uma alma dependente
Então, onde estão eles?
Eu preciso deles!

— Milucha Santos

19
“O vício é escapar”

Somos uma das vozes que tentou


E se cansou de tanto gritar
Até as nossas cordas vocais quase sangrarem
E a hipérbole? É de se admirar!

Chorar ao ouvir as nossas histórias


Das vozes que se sentem um fardo
Todas as vezes que tentam partilhar
Os pesos que carregamos
Pois é pesado até mesmo para aqueles que amamos

Nos sentimos cansadas e tentadas a parar de lutar


Para escapar dessa dura realidade
Pois ela se resume ao porão
Onde somos assombrados por traumas e dúvidas.

Tão alvejadas
Que chegamos a precisar tanto de comprimidos
Que nos prendemos dentro de um labirinto de vícios
Quando o nosso real vício é escapar…
Ou pelo menos tentar
Mas estamos cansadas de falhar.

— Flora Cambala, Milucha Santos

20
“Salva-me, arte!”

Cansei-me das mesmas aulas ilusórias


Tão ilusórias que chegam a ser falsa propaganda
Porque ouvimos a mesma coisa
Ditas como se alcançá-las fosse uma vitória.

Aulas padronizadas
Onde distúrbios são romantizados
Alguns passados à pano
Onde estar traumatizado não é sinal de alarme
Mas sim de vergonha.

Onde nos ensinam a estar mais fechados


Mais limitados…

Por isso, salva-me arte!


Liberta-me através das tuas vertentes
Me mostre um novo mundo
Onde eu poderei finalmente respirar.

Se o vício é escapar
Apenas a arte poderá me libertar.

— Flora Cambala, Milucha Santos

21
“Antes de partires,
por favor... me esvazie”

22
“Ouvem-se vozes”

Ouvem-se vozes
Vozes a chorar, a gritar
Vozes oprimidas, a lamentar
Naquele porão escuro e fechado
De uma casa a cair aos pedaços.

Ouve-se o som de cacos


a cair que em algum momento foram usados
Ouve-se o som da bulimia
descrita nos gemidos de estômagos embrulhados
Ouvem-se almas, mas não simples almas
Ouvem-se almas que viviam à base da inocência
Almas que se achavam belas
Longe do sentimento de insuficiência
Pela sua aparência.

Almas que não conheciam o corpo padrão


Diferente de agora, a ouvirem críticas e opiniões sem razões
Opiniões que dizem que o corpo deve ser medido por um padrão
Opiniões que dão razão as bocas que dizem “gordas não!”
As bocas que dizem “tão magra também não!”
Mesmas opiniões que alegam pregar sobre inclusão.

E aquelas almas que já não se ouvem gritar (?)


Que se deixaram necessitar tanto dessas opiniões para se aceitar
Que os seus corpos odiaram, mudaram e abusaram
Na tentativa de o tornar melhor
Mas que no final só um vazio encontrara
O que achas que é feito delas?

Dessas almas e outras pouco se falam


quando pregam sobre o corpo perfeito
Poucos falam do quão prejudicial é o padrão por eles imposto

23
Do quão radical são as medidas que muitos se submetem
Para comprar falsas sensações
Vendidas em propagandas superficiais
Que nada têm a oferecer além de consequências mortais.

— Milucha Santos

24
“Adeus, eu”

Adeus, eu
Despeço-me feliz
Por finalmente ver-te partir
Despeço-me feliz
Por não mais ver-te sucumbir.

Despeço-me dos dias em que foste torturada por traumas


Sendo atormentada dia e noite por lembranças
Despeço-me feliz por tudo isso serem agora águas passadas
Sinto-me aliviada por não mais ouvir-te chorar
Bater e muitas vezes gritar
E com a garganta inflamada você ficar
Sinto-me aliviada por estares finalmente em paz e descansar.

Adeus, eu
Orgulho-me por muitas vezes ter-te visto lutar
Por não teres parado de tentar
Por não teres parado de implorar
De encontrar forças para do porão escapares
Por teres te encontrado quando te perdeste
Em qualquer forma e dos teus traumas pudeste superar
Quando que, para isso, não te importaste
Em te tornares num viciado.

Agradeço por teres tentado


Por muitas vezes teres gritado
Por não teres desistido depois de muitos atentados
Agradeço-te por teres largado
As mãos da anorexia e da ansiedade
Da depressão e da bipolaridade
Por mesmo a coxear teres dado novos passos
Por teres te curado quando eras baleada por gatilhos
Por teres cuidado de ti quando ninguém ouviu os teus gemidos

25
Adeus, eu
Despeço-me feliz
Por ver-te partir
E com isso ver um novo ser nascer
Alegro-me por estar a escrever
Que a morte te salvou e arte não te abandonou
Que o que você tanto procurou finalmente encontrou
Que seus gritos foram ouvidos
E que da tua mente você finalmente se escapou
E que, no final, não desistir adiantou.

Adeus, eu.

— Milucha Santos

26
“Todas as vezes que eu morri”

Há dias em que sou esfaqueada


Em que sinto a minha alma ser cortada
Por uma lâmina com um metal
Feito de lembranças traumáticas, bastante afiada.

Um metal resistente feito de gatilhos


Que a cada vez que eu era cortada
Eu ficava mais danificada e no porão trancada
Que, quanto mais eu era esfaqueada, mais eu morria.

Cada corte trazia-me de volta a reviver


Todas as vezes que eu vi-me morrer
No chão de um porão
Onde a falta de sanidade e a depressão
Não largava a minha mão
Todas as vezes que eu era apunhalada
Cada parte da minha alma era magoada.

Todas as vezes que eu morri


Muitas vezes a minha mão parti
Por bater sempre na mesma porta
E, no final, ela não foi a única coisa que feri
Pois para me ir embora muitas coisas dolorosas eu fiz

Eu ia, mas estava sempre de volta


Pois eu sou esfaqueada quase todos os dias
E como o sangue do meu corpo
Também se esvazia a minha alegria.

Que durante o meu ferimento


São os transtornos mentais a minha única companhia
O que dificulta a minha partida
O que a mim dificulta deixar de reviver

27
Todas as vezes que eu me vi a morrer.

— Milucha Santos

28
“Meu amor, depressão”

Senti-me atraída
Pela sua tristeza profunda
E a sensação esquisita
De estar cheia e sentir-me vazia
Seu toque me confortava
Pois me tocava como lâminas
E com elas eu me cortava.

Estava tão apaixonada e viciada


Que contei para eles o que se passava
Eles ignoraram
E a minha depressão romantizaram
Eu estava tão entregue
Que nem me apercebi que estava a ser trancada
E que seus beijos sabiam a morte
E dela escapava com sorte.

Eu estava tão quebrada


Como os cacos que ela a mim dava
Para me concertar, para me colar
Que eu não via a sensação de conforto ilusório
De morte, que dava a depressão
Que a cada corte me sentia mais trancada nesse porão.

Então meus pulsos cortei


E em sangue me esvaziei nesse porão
Por romantizarem
O meu amor, depressão.

— Milucha Santos

29
“Vários em nós”

Não sou uma única alma


Porque me dividi em diferentes pedaços
Em diferentes corredores
Em diferentes traços
Comprimidos e cores.

Por vezes sou calma, como o azul


Até sentir-me intensa, como o vermelho
Por vezes sou uma confusão
Me perco no stresse e na tensão do dia-a-dia
Até encontrar-me completamente vazia
Esgotada
Como se existisse mais alguém dentro de mim
Usando a energia que tenho armazenado.

Sinto que há outra em mim


Uma outra parte de mim
Que me tranca no porão
Uma que fala várias línguas
Mas não a minha
Uma que nunca está satisfeita
Cheia de rigorosidade
Uma que mais me prende
Porque tem medo da inutilidade.

Que nada faz


A não ser me prender em acções que nunca aconteceram
Falo da ansiedade
Eu tanto falei sobre elas
Sobre as várias vozes em mim
Mas pela vossa ignorância
A vossa falta de atenção
Cada vez mais fica difícil

30
Escapar desse porão.

Quando eu contei
Que existiam vários em mim
Que tornavam mais pesado o meu existir
Que pareciam não serem apenas vozes
Pois corroíam os meus ossos
Apertavam o meu peito
E vinham com aquele desgosto
De viver aqui dentro
Por isso lá estão
Trancadas no porão
A gritar e a me atingir cada vez mais
Por isso preciso libertá-las
Me libertar.

Porque elas cresceram


Quando ao invés de as tratar
Eu preferi fugir
Mesmo sabendo que o que me faz sair
É o que me encarcera
Mais e mais vezes dentro de mim mesma.

Eu disse-vos que ouço uma voz


Que às vezes toma conta de mim
Do meu corpo, da minha mente
Que me impulsiona a dizer coisas
A fazer coisas
Eu sinto coisas
Mas não sou eu, é outra
“Dupla personalidade”
Disse-me o Doutor.

Outrora contei
31
E vocês acharam que era tudo frescura
Uma moda dos novos tempos
Que não apenas atingia a roupa
Mas também os meus pensamentos.

A influência de um objecto
E da Internet, que me deixa mais sensível
Para vocês parecia que…
Que eu queria chamar a tua atenção
Quando na verdade era mesmo depressão.

Eu contei como me sinto


Como falta algo em mim
Que me faz cair num acústico abismo
Com melodias profundas de agonia
Onde não se ouvem sinfonias de alegria.

Não somos únicas almas


Não somos mais crianças
Mas ainda precisamos ser cuidadas
Pergunto-me, quantas mais?
Quantas mais almas terão que definhar?
Quantas mais almas vão passar por isso sozinhas?
Quantas mais não vão aguentar
E vão acabar por se suicidar?
Quando vocês vão entender que precisamos de ajuda?
Que vamos precisar de vocês.

Eu contei, nós contamos


A Mariana contou
Que recuperar não depende de nós
Que por um transtorno
Ela, em minutos psicoticos
Magoava outros e a si mesma
Que escreveu uma carta a dizer que já era demais
Que não tinha o cuidado dos pais
E que sozinha não aguentava mais.
Tal como outras almas, ela estava encurrala, estava presa
32
Em um porão escuro que aos pouco ficava sem luz de presença
Até que por fim a luz apagou
E ela se suicidou.

Eu sou o início da história da Mariana


Aquela alma quebrada que foi ignorada
Aquela mente aprisionada que cada vez mais ficou cansada
Por ser atormentada por crises
E pelo anseio atordoante de ser abandonada.

Teremos nós o mesmo fim que aquela pobre alma?

— Milucha Santos

33
“O Porão”

Lá estava eu
Novamente sozinho
A visitar aquele horroroso sítio
Repleto de pesadelos vivos.

Fazia tempo que eu não visitava o porão


Achava que nunca mais me daria o luxo
De colocar lá as minhas mãos
Ou de ousar fazer qualquer outra questão.

Eu visitei o porão
Nele só havia escuridão
Seguranças a perecerem
E vários pesadelos.

Eu visitei o porão
E ele estava repleto de pó
Mas as suas vozes asquerosas gritavam sem dó
Exigiam para que eu me causasse dor.

Eu visitei o porão
Lá os meus pensamentos dançavam
As vozes cantavam
Os traumas giravam
E os pesadelos se esgueiravam.

— Aoi Tamashi

34
“O fim do paraíso”

O início é um autêntico paraíso


Devia ter-me dado conta disso
Quando o fim esteve perto e eu me senti vazio
É que…
O início fora tão bonito
Que achei que nunca passaria disso
Daquela onda de sentimentos
A onda de emoções e beijos
Que em alguns meses deram lugar a choros e lamentos.

Sempre achei que eu fosse o erro.

Que eu fosse a causa do nosso tormento


Coloquei as minhas falhas num copo e fui-me encher
Até que explodi por dentro.

Eu até tentei calar as vozes na minha mente


Mas elas diziam que no mundo havia muita gente
E que num estalar de dedos você poderia achar alguém decente
Alguém que, ao contrário de mim, não fosse demente.

Com o tempo
As marcas do meu desespero interno invadiram o meu corpo
E, muito antes do final, eu já havia me despedaçado todo
Só no fim, eu percebi que fui um tremendo tolo
Por fixar em minha mente que eu aguentaria mais um pouco.

O fim foi um autêntico inferno

35
Percebi que a minha mente era mais leve que feno
Mas com o final, veio a assustadora liberdade
A liberdade de me amar de verdade.

— Aoi Tamashi

36
“Pedacinhos de afecto”

Eu sempre corri atrás do vento


Catando e explorando avidamente
Os míseros pedaços do seu afeto
Fazer isso me corroía por dentro
Preferia pensar que tantas dores
não passariam de um pequeno momento
Afinal, fui instruído a valorizar o pouco que recebo

De qualquer forma, eu era imperfeito


A nadar e a voltar dentre os meus inúmeros erros
Pensava que ninguém me amaria
Se eu não tivesse determinados aspectos
Então, reprimi os meus sentimentos
Deixei a minha essência ser tomada pelo vento
Enquanto me perdia dolorosamente em cada momento

Nunca era suficiente


Nunca foi suficiente
Por mais que eu desse o meu suor, sangue e lágrimas
Por mais que baixasse o preço da minha alma
Ninguém me levava para casa
Ninguém me amava
E a vida só se tornava mais e mais amarga

Eu não vivia
Eu só seguia
Fazia o que qualquer um me pedia
Independentemente se aquilo me quebraria
Por que eu só queria…
Eu só perseguia
O amor e o afecto que sempre desejei durante a vida

37
Derrubei mil lágrimas
Enquanto esbanjava a minha alma para ser desperdiçada
E deixava que ela fosse queimada.

Eu guardei todo o meu ser


Porque eu não sabia o que era
Mas… com o tempo eu pude ver
Que esse tipo de coisa não se supera.

— Aoi Tamashi

38
“O modelo perfeito”

Eu não mudei
Não…
Eu me reiventei
Me despedacei
Me cortei
Porque eu queria criar uma peça nova
Uma boneca delicada e tola, sem precisar de esmola.

Sempre tive medo


Medo de ser outra pessoa
Medo de ser aquele que ninguém gosta
Medo de ser excluído a toda hora
Medo de não brilhar o suficiente
Medo de não ser suficientemente eficiente.

Então, eu me quebrei
Perdi até os meus melhores pedaços
E agora eu sou o melhor palhaço
Preso no porão, onde todo lixo é guardado
Antes de ser totalmente descartado.

E nem posso ousar dizer que sou a vítima


Ao longo do tempo, eu próprio tracei a minha trilha
Enquanto entregava o meu pescoço
E me prendia no calaboiço
Não posso gritar por ninguém
Eu criei este meu novo esboço.

E...

39
Quando me olho ao espelho
Eu não me vejo
Eu vejo um modelo perfeito da sociedade
Totalmente vazio por dentro.

— Aoi Tamashi

40
“Usado, quebrado e reutilizado”

Eu quis um sinal
Qualquer sinal
De que aquilo não acabaria mal
Que você não me pisaria, no final, mas…
Eu devia ter percebido que o meu amor por você seria fatal
E que misturado com a minha insegurança
Se tornaria colossal.

Eu amaria pensar que nada do que você fez foi por mal
Mas só quando o meu ar faltou
Percebi que algo estava anormal.

Você nunca segurou as minhas mãos


Encheu cada pedaço da sua boca para espalhar mentiras
Porque no escuro você me envenena
No escuro
Sou a sua princesa
Na luz, nunca fui nada além do que a sua boneca
A pessoa burra e apaixonada
Que te daria o mundo se pedisses a ela.

O tempo se passava
E os seus espinhos prendiam o meu raciocínio
O “nós” nunca passou de um truque de ilusionismo
Foi um ridículo ciclo
Em que eu era partida e reconstruida
Porque o seu orgulho era tanto
Que você não se atrevia a perder um dos seus amados “lixos”
E, no fundo, eu sempre soube disso
Sabia o quanto você amava brincar
Com a sensibilidade de quem não se ama
E transformar isso na sua arma

41
E, quando quiser, puder maneja-lá.

Eu…
Eu só queria ser amada
Mas fui repetidamente quebrada
Só para ser reutilizada.

— Aoi Tamashi

42
“Eu só queria ser ela”

Os lábios
Os olhos
O corpo
E a pele lisa
Ela era definitivamente mais bonita
Como raios ele me escolheria!?
Como ousaria pousar os seus olhos em mim
Se havia uma deusa grega bem ali?

Segui os seus passos dia após dia


Desesperadamente tentei agradá-lo como eu podia
Pois tinha em mente que um dia ele me procuraria
E por mim ele se apaixonaria.

Mas como ele poderia


Deliberadamente pensar em mim?
Havia uma rainha em suas costas
E eu? Eu só tinha prosas adornadas de belas rosas.

Seus toques
Tão singelos
Eram além de belos
E em meu âmago, eu implorava por um toque
Além daqueles que eu recebo
Eu queria um beijo.

Mas, e ela?
Ela recebia, e recebia vários!
Tão doces e castos que pareciam beijos de anjos
Enquanto eu, totalmente tola
Ansiava por um mínimo toque de lábios.

43
E eu escondia
O que eu sentia, o que eu era
Escondi toda essa parte de mim
Porque precisava parecer feliz
Para me manter ali.

Eu só…
Eu só queria ser tão bela
Viver como ela
Ter os sentimentos dela
Ter o namorado dela
Sinceramente?
Eu só queria ser ela.

— Aoi Tamashi

44
“Vazia”

Sempre me senti ausente


Como se nada do que eu fizesse fosse o suficiente
Notas altas e tudo mais
Nada era suficiente para agradar os demais
Vazios que pediam por mais
Principalmente os meus pais.

Eu deveria ser culpado


Por ser tão pouco amado
Quem ama não fica distante
Então, o que fiz de errado para que eles se afastassem?

Sempre fui além daquilo que esperavam que eu fosse


Tentei desesperadamente criar uma ponte
Para poder vos tocar e fazer parte da vossa fonte
Mas cada silêncio em vez da resposta, era um golpe
Era suposto serem a minha fonte de energia
Mas só me cansaram dia após dia
Com expectativas

“Mãe, desculpa por não ser tão bonito”


“Pai, desculpa por não ser o homem que tu querias”
“Eu só esperava um pouco do vosso amor e simpatia”

Na verdade, eu ainda espero


E isso me corrói por dentro
Talvez um dia vocês percebam o vosso erro
Enquanto isso
Eu ainda espero pelo vosso afecto
Abraços, beijos, carinhos
Para onde foi tudo isso?
Para onde foi todo o meu prestígio?
Agora me sinto vazio.

45
Actualmente, é sempre complicado demais
Mas gostaria de recuar alguns anos
Onde uma demonstração de afecto era nada demais
E agora estou a padecer
Nunca consigo os pedaços de amor que eu tanto almejo
Ou consideração que tanto desejo
E eu tento
Tento proporcionar-vos alegria
Mas tudo que dá errado é culpa minha.

Eu só queria me sentir amado


Só queria me sentir desejado
Eu só queria me sentir como se eu não fosse
um aborto que deu errado.

O meu ser está maltratado


O meu coração está machucado
Parece que serei eternamente rejeitado
Porque nunca sou o suficiente.

— Aoi Tamashi

46
“Para onde podemos fugir?”

A ansiedade me levou de novo


Roubou o meu corpo
Brincou com ele sem parar
Até que eu já não pudesse gritar.

Fechei os meus olhos por tanto tempo


Que quando abri
Eu não percebi
Quando o porão surgiu
Não percebi as mil vozes que moravam ali
E berravam constantemente, sem dormir
Tudo que eu queria era não poder ouvir
As barbaridades que elas diziam para mim.

Era mais fácil fugir


Era mais fácil fingir
Do que levantar para enfrentar os demónios que viviam em mim
Os demónios que criei e que não me deixavam dormir.

Eu sentia minha garganta apertada


Quando eles gritavam que ninguém me amava
Que eventualmente eu seria abandonada
Que eu morreria só, porque eu era odiada.

Elas são um exército


Me atacam a cada momento
A desenhar e a traçar lentamente linhas do meu tormento
A me fazer querer procurar a morte para achar alento

Mas…

47
Para onde podemos fugir?
Quando estamos presos na própria mente
Que nos mente e engana constantemente
Para onde podemos fugir?

— Aoi Tamashi

48
“O complexo do balão vazio”

Quão mais cheio eu me sinto


Mas vazio eu fico
A sentir uma pressão existencial
Uma corrida onde eu não anseio o final.

Na minha mente
Várias vezes me encontro reprimido
Por não ter escolha sobre a minha própria vida
A me sentir cada vez mais vazio.

De mim, dos meus sentimentos


Escondendo os meus pensamentos
Que apodrecem
Fedem igual a excrementos.

Mas eu encubro o cheiro


Com um manto de fingimento
E eu sei que estou a me perder
A me encher de tudo o que eu nem quero

Sou como um balão que se deixa levar pelo vento


Mas precisa rebentar.

— Flora Cambala

49
“Escolho rebentar”

Agora eu entendo o meu vazio


Estava a olhar para alguém
que já tinha escolhido o seu destino
Estava perdido.

Dentre desejos e ambições alheias


Dei a eles algemas e eles me prenderam
Mas eu sei que, por vezes,
me escondo dentro do vitimismo.

Como se eu não fosse parceiro


nos crimes que aconteceram comigo
Como se eu não tivesse olhado para os destroços
E simplesmente tivesse me deixado a sofrer.

Parece que quase toda gente quer um escravo


Quer se sentir valorizado
Mesmo que não deem valor
Quer desdenhar dos passos de outrem
Tratar dos seus sonhos como se nada fossem.

Eu me enchi
Achei que não era suficiente
Porque dei o poder a toda gente
De definir quem eu sou.

Porque eu nunca me encontrei


Sempre estive presa
Mil vezes desmoronei.

Chorei
Mas não é como se isso significasse estar livre das algemas
Por que nunca fui o suficiente?

50
Me enchendo da expectativa de toda gente
Mas esqueci que o ser humano é um ser insaciável.

Então...
Eu escolho explodir
Escolho rebentar
Desse porão sair.

Cansei desse lugar


De me prender
Eu quero viver e não apenas sobreviver.

— Flora Cambala

51
“O fardo da perfeição”

Como um balão, eu me enchi


De um ar que não era meu
Vivi por um castelo de expectativas
Que a minha mente nunca ergueu.

Limitada por uma corda feita de linha


Que costurou toda as minhas escolhas
Enquanto me deixava contida
Cheia das minhas próprias memórias
E de uma moral que romantizava a minha depressão
A me fazer sentir cada vez mais o peso da perfeição.

Tudo isso culminou para eu me sentir cada vez mais vazia


Por esse mesmo motivo, eu precisei rebentar
Precisei me libertar das correntes
Da dependência de aprovação
Sendo que eu mesma me negava.

Sentia o peso da falsidade a reduzir a minha veracidade a nada


Enquanto perdia rapidamente a minha essência
E por minha negligência
Perdi-me no significado da minha existência
Por seguir uma imagem estabelecida pela sociedade
Sem saber ao menos quem eu era de verdade.

Eu me enchi como um balão

52
Esqueci-me dos desejos e sonhos que ansiavam o meu coração
Eu me transformei em um barro
Moldada por críticas e rejeições
Alguém aversivo à imperfeições
Neguei os meus erros ao invés de corrigi-los

— Flora Cambala

53
“A apresentação favorita”

Por favor, me deixe respirar


O meu corpo não aguenta
Com qual padrão devo me pintar?
Sinto medo de me apresentar a plateia.

(Aos poucos me perco de mim mesma)

Todos dizem que eu sou a apresentação favorita


E que devo ter o peso na linha
Não ter uma opinião
Devo lutar para ser a apresentação principal.

Esquecer do meu eu
E beber do que as pessoas querem
Mas sinto o meu estômago a se enrolar
A bulimia a gritar, mas eles dizem…
“Seja perfeita”
E ao meu corpo dizem
“Faça dieta”.

Sou ajudada a me manter encurralada nessa sala


Toda vez que ouço que preciso mantê-la cheia
Devo agradar a plateia.

O mundo nunca se cala


A dizer que não posso ser desleixada
É errado ter defeitos
Mas...

— Flora Cambala, Milucha Santos

54
“Eu tenho seios caídos”

Sim, ao me olhar ao espelho


Eu não vejo o meu corpo perfeito
Não vejo um corpo atlético
E muito menos um prestígio estético.

Eu vejo os meus peitos


Segurados pelo sutiã
Porque sem o suporte deles
receberia críticas ao andar pelas ruas da cidade.

De homens
De mulheres.

Diariamente tomo o mesmo veneno


Penso em cirurgias para reparar os meus defeitos
Mas eu sei que, mesmo com elas, nada seria perfeito
Porque perseguir a perfeição
nos mostra o quão mais imperfeitos nós somos.

Então, eu tenho seios caídos


São detalhes que fazem parte de mim
Para uns não é excitante, mas...
Eu gosto deles assim
É o meu corpo
Por mais que não obedeça aos vossos desejos.

Há uma lista de requisitos para ser aceita


Tenho que aceitar ser podada
Para ser uma flor bela
Mas só que…

55
Com ou não seios caídos
Com ou não um corpo magro
Com ou não cabelos curtos
Com ou não a pele preta.

Eu me aceito do meu jeito


E me esvazio das expectativas
que têm sobre mim.

— Flora Cambala

56
“Mas além de mim,
há uma voz antiga que grita,
a voz dela…”

57
“Adultos não brincam com bonecas”

Havia uma boneca. Uma boneca linda e perfeita. Tão linda, tão
delicada, frágil pela sua porcelana e que era bem cuidada. Com ela se
brincava nas escadas de casa, horas e horas a viver as suas fantasias.
Bem… coisas de criança, crianças que usam tranças e correm pela
casa, que sujam-se na areia, mas continuam a brilhar como estrelas.
Bem… pelo menos assim eles dizem.

Havia uma boneca. Tão pura e ingénua, mas com o tempo


passou a ser transformada e descuidada. Nas escadas ela já não mais
brincava, ela fugia sempre que ouvia o ranger das escadas. Se ouvia
uma voz que cantarolava e o som do sorriso de alguém que se sentia
bem em abusar dela... de uma criança.

Porque a boneca era eu, a boneca destroçada, a criança que


deveria estar a fazer coisas de criança e não a brincar de casinhas
com um adulto. Seria cliché dizer que tudo acontecia quando todos os
olhos descansavam, mas não era bem assim....

Mataram a infância de uma menina que deveria estar a brincar


com brinquedos e não estar destroçada, em sua mente
trancada, a repetir esses eventos em sua mente
porque, mesmo tendo sido assassinada, ela
nunca foi sepultada.

— Milucha Santos,
Flora Cambala

58
“À minha criança interior”

Como falar se para todos não temos voz?


Como pode o rio desaguar
Se colocarmos pedregulhos na sua foz?

Em um canto do porão
Sem chamar muita atenção
Uma criança sentada no chão
Chorava calada.

Em seu olhar leio as visíveis palavras


Que mostram que nem todas as crianças
Vivem um conto de fadas.

Oh, pequenas almas miseráveis


Assombradas por pesadelos intermináveis
Sorria, mesmo que difícil
Hoje poderás gritar!

— Flora Cambala

59
“Por que ninguém me ouviu a gritar?”

São bocas silenciadas


Que foram proibidas de gritar
Almas marcadas
Feridas (im)possíveis de sarar
Rostos inocentes cansados de chorar
Rostos onde lágrimas escreveram histórias
Que depois de muito tempo, poderei contar.

(A criança finalmente fez soar a sua voz


Uma voz aguda silenciou parte do porão
E em um tom baixo começou a sua narração…)

Eu falo por eles e elas


Almas que travaram guerras.

Mentes feitas de pedra


Olhos que não puderam vislumbrar
De uma infância cor-de-rosa
Pois ela foi manchada da forma mais impiedosa.

Mentes cheias de pesadelos


Corpos pequenos
Que fogem de si mesmos
Em vez de fantasiar
Histórias, novas aventuras para brincar.

Lápis, que se cansaram de desenhar


O momento em que os seus sonhos foram roubados
E o seu mundo foi deturpado
Mundo não mais pintado
Verdades ocultadas em desenhos animados
E trivialmente faladas em noticiários
Um mal enraizado!

60
Ainda não sabes sobre o que falo?

Falo sobre a Aninha, a vizinha


Que depois de um tempo já não mais sorria
Em vez disso, se escondia
Por trás de grandes vestidos
Não para cumprir o grande estereótipo
De menina santa
Mas sim, para esconder a dor em sua alma

Para além de mim…

Falo sobre João


Que voltou com o calção amarrotado
O semblante fechado
Porque não conseguia explicar o ocorrido.

Com o corpo dolorido


Gritos impedidos
Medo e frio
Reprimiu-se sem contar o que tinha acontecido.

Falo sobre o olhar sofrido


De uma adolescente que foi abusada pelo seu tio
Mas normalizaram a situação
Mas as críticas surgiram quando ela padeceu de depressão.

Falo sobre o padrasto que abusou da enteada


Onde a mãe dependente calou-se e não fez nada
Falo sobre a minha criança interior
Assassinada, mas nunca sepultada
Falo sobre assuntos,
Transformados em vozes presas no porão.

Sou uma personagem, uma alma


61
Em forma de criança
Morta há anos
Mas aprisionada dentro da sua mente
A crescer fisicamente
Mas a morrer no seu inconsciente.

Crianças mortas nunca crescem


Elas permanecem
Aonde as suas vidas foram tiradas
No beco, no quarto, no lugar onde foi forçada
No meu caso, eu fiquei presa no porão.

Eu poderia contar como fui aprisionada…

— Flora Cambala

62
“Era suposto...”

Lembro de
Pés minúsculos
Da minha voz aguda
São as únicas lembranças que tenho de quando era miúda

Era um dia de chuva


O olhar dele preenchia o ambiente
Por mais que eu quisesse me esquivar, havia algo diferente
Tentei ignorar, não pensar
Havia crianças livres na rua e eu queria me molhar
Mas...

Seus passos pareciam rápidos até mim


O seu semblante fechado me assustou e eu tentei fugir
Mas seus braços me arrastaram até ao porão
E com apenas uma ação
O meu vestido foi arrancado
Aquele foi o dia do meu assassinato.

Não apareceram policiais para resolver o caso


Aparecem frases para justificar
Pessoas para criticar
Umas até disseram
“Ela estava a se insinuar”

Contei minutos
A sentir o fluxo
De cada dor
Senti o sabor da impotência
A transformar a minha mente
Em uma prisão, digo, em um porão.

Era suposto meu mundo ser repleto de cor

63
Mas faltaram tintas ao pintor
Porque tudo se tornou tão negro...

Eu ainda me lembro
Do cheiro
De quando os meus braços gritaram
quando foram pressionados pelo desespero
De sentir o meu corpo a ceder.

Eu gritei, gritei, mas ninguém apareceu


O meu olhar escureceu
A minha mente se tornou no lugar de onde eu nunca saí
A mão dele invadiu o meu corpo
Arrancou a minha alma
E o meu corpo se tornou em uma casa abandonada
Onde as vozes ainda repercutem em cada parede
Vezes e mais vezes.

Era suposto seres o meu tio


O meu padrasto, o meu primo
Um professor, um conselheiro sábio
Mas, em vez disso, usaste a tua força para me tomar
Para me estuprar
Violar a minha integridade.

Apenas eu sei a verdade


Mas a escondo por vergonha
O que me diriam na escola?
Seria eu vista como alguém sem honra?

Apenas eu sei a verdade


Eu sei o quanto eu gritei dentro do porão
Onde morreram a minha alma e o meu coração
Mas a minha voz ainda grita
São vozes de crianças
Vozes humanas, mas a sociedade é simplesmente surda
Para ouvir essas vozes,essas almas
Que choram
64
Porque suas vidas foram pintadas por traumas
Que as suas vestes não pediram
Que nem os críticos sentiram
Que seus corpos não consentiram.

Mas...
São almas que foram condenadas
A lembrar disso durante toda a vida.

— Flora Cambala

65
“Justiça?”

Eu me lembro da vez que a minha voz foi calada


O nó na minha garganta
E gritos tomaram o lugar de palavras.

Eu me lembro quando eu fui enjaulada


E tentei encarar tal acontecimento como nada
Mas é impossível crescer quando matam a tua infância
Qual é a desculpa?
Roupa curta?
Estava a me insinuar?

Até quando vão negligenciar


Por cima de almas que sofrem faz anos?

Meninas e meninos morrem


São carimbados com traumas
Têm as suas mentes atrofiadas
E por qual justificação? Excitação?

O engraçado é que não sabem quantas vítimas fazem


Quantos pesadelos criam
Quantos monstros inocentam
Em quantos traumas pisam.

Sem saberem
Que isso nos assombra diariamente
Crianças, adultos, não é diferente
Passado e presente
Quando vão falar deles?
Dos que padecem no porão?

Eu sou uma alma que pede por justiça

66
Quando falarão de nós?
Quando pararão de falar sobre o mundo cor-de-rosa
Enquanto várias crianças
deixaram de ser enxergadas como pessoas
E passaram a ser vistas como apenas objectos sexuais?

Procurei mil perguntas para responder às acções dele


Mais forte e mais velho do que eu
Agiu como se o meu corpo o pertencesse
Todos dias me culpo por não ter tido mais força
A culpa foi a forca
Onde morri lentamente.

Talvez questionem...
O que é o porão?

O porão é a mente
Que guarda medos e histórias diferentes
Que apanharam poeira
Histórias de terror e guerra.

E a pequena criança
Agachada bem lá no canto da sua existência
Contou-me a história dela
A minha história.

— Flora Cambala

67
“E se eu soubesse?”

68
“Lugares proibidos”

Grandes livros de educação moral e cívica


Que ocultam a física
Por uma moral que provavelmente
Não é representada pela cívica.

Más interpretações religiosas


Que demonizam palavras instruídas
A meninos e meninas
Sobre os seus próprios corpos

Mas, na verdade…
onde estão os demônios?
Nos lugares proibidos?

Pense comigo,
Eles não estarão mais protegidos pela ignorância
Estarão expostos aos perigos da ânsia
De saber mais sobre si mesmos
A internet que vos diga!
Mentes poluídas pela pornografia
Que constroem adultos que mal sabem
Sobre a sua própria sexualidade.

Mas, na verdade...
O que ensinar sobre os lugares proibidos traria, na verdade?
Talvez crianças que soubessem
Se expressar quando são assediadas
Interpretar quando certas aproximações são erradas.

Se crianças também são atacadas


Elas precisam se proteger
Em um mundo onde poucos conseguem entender
Quando uma criança evita, hesita

69
Nega ou foge de alguém.
Olhem bem aos sinais
Isso é um conselho aos pais
Ensinem sobre os lugares proibidos
Aos seus filhos.

— Flora Cambala

70
“Desenhos na parede”

Olhem para mim!

Sou uma adolescente vazia


Uma adulta criada sobre um teto de mentiras
Sou parte de uma mente que trava uma guerra-fria
Onde cada parte da sua vida
Luta contra outra.

Escrevi minhas verdades em forma de charadas


Eram brincadeiras de quando eu era criança
Mas eram a minha forma de me expressar
Desenhos na parede.

Eram brincadeiras do tempo em que eu era criança


Aprisionada em minha mente por vários motivos.

Estupro
Abandono
Conflitos
Gritos.

Fiz para vós desenhos na parede


Escrevi desejos neles
Escrevi todas as brigas dos meus pais
Escrevi a carência, o vazio que o abandono trás
Escrevi as agressões que recebia
Que me tornaram numa pessoa
Que lida com transtornos.

Uma bomba que explodi com a fricção de um fósforo

71
Nunca construam um castelo se as bases não forem sólidas
E quando digo “castelos”, eu me refiro a pessoas.

Crianças são o futuro


Mas por vezes são empurradas para o fundo
Para o escuro
Para o porão.

Uma criança morta dentro de um adulto


Pode matar uma multidão
Então, prestem atenção
Ouçam as vozes
Queremos ser ouvidos.

— Flora Cambala

72
Carta ao/a leitor/a...

Caro(a) leitor(a), caso esses poemas tenham ativado, de maneira


inconsciente, algum gatilho durante a leitura, nós, Editora Metanoia
em parceria com as escritoras da mesma obra, incentivamos a falar
com alguém próximo a si. Incentivamos também que, assim que tiver
oportunidade, procure um profissional afim de participar de terapias.

Se passou — ou tem passado — por situações de abuso e tem


sofrido em silêncio com isso, fale com alguém de confiança —
familiares ou amigos —, procure as autoridades de defesa e proteção
do cidadão — perto de onde mora, se possível —, mas
principalmente, procure por um profissional na área da saúde
mental. Não precisa ter medo ou vergonha, ele estará mais que
capacitado para ajudá-lo. E, principalmente, cuide de si.

Atenciosamente,
A Editora Metanoia.
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