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Título Original

O taxidermista e outros textos

Copyright René Piazentin, 2016

Reservam-se os direitos desta edição à:


GIOSTRI EDITORA LTDA.

São Paulo - SP - República Federativa do Brasil.

Impresso no Brasil
ISBN: 978-85-8108-967-6
CDD: B869-2

Editor Responsável Alex Giostri


Editor Assistente Fábio Costa
Capa e Diagramação Felipe Braz
Foto da capa Guilherme Pinheiro
Revisão final de texto Giostri Editora Ltda.

Piazentin, René
O taxidermista e outros textos

1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2016

1 - Literatura dramática – Dramaturgia


2 - Dramaturgia Brasileira – Teatro

1º título: O taxidermista e outros textos

1ª Edição
Giostri Editora LTDA.

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Prefácio
Tennessee Williams dizia que a dramaturgia é a criação de um
universo à parte e que o autor teria o poder de dar sentido à vida
enfrentando aquela primeira folha de papel em branco [diante da
tela do seu computador] que a maioria dos mortais não consegue
encarar de tão assustadora a experiência.
René é um criador de universos e fábulas. Em O Taxidermista,
girafas, cavalos, cachorros e zebras falam – e estão mortos. Em
Dinamarca ele mistura Hamlet com a seleção dinamarquesa de 1986:
o pai esqueleto-espectro fuma, o menino carrega o tempo todo um
saco na cabeça e queremos acabar rápido para saber como será a
vingança. E em Sobre Elefantes e Coelhos, corpos desaparecem depois
de mortos e a “Mulher da long neck” tem o molde do rosto tirado
logo após seu suicídio. E é o rosto mais beijado do universo.
Universos paralelos com outras regras e lógicas, porém com as
mesmas estatísticas. Seus mundos estão acabando, como o nosso.
Suas peças misturam a realidade desse mundo cruel e resultam na
criação de um mundo ainda mais cruel e absurdo – pois, segun-
do Adorno, se a arte mostrar o mundo em toda a sua carga de
violência, o choque resultante pode levá-lo a uma revolta contra
a injustiça, e esta é a sua verdadeira contribuição à libertação dos
homens.
E, acima de tudo, são peças fantásticas para serem encenadas.

Nelson Baskerville

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Cena 1
(Luz abre: atores entram em cena. Vestem-se, em um jogo de cena que se re-
petirá ao longo da peça todas as vezes que as figuras forem se transformando,
com atores diferentes passando a representá-las.)
Brownie (Narração) - Quando os europeus descobriram o or-
nitorrinco, em 1798, algumas pessoas no Reino Unido pensaram

O TAXIDERMISTA
que aquilo era uma fraude: a brincadeira de mau gosto de um
taxidermista, costurando um bico de pato no corpo de um castor.
Rudy(Narração) - O primeiro problema é você garantir que o animal
seja usado o mais rápido possível. A decomposição começa assim
Personagens que o animal morre: sem oxigênio as células entram em desequilíbrio,
Lola, menina as bactérias que estão no corpo invadem os tecidos e as que estão no
Dr. Sharif, taxidermista meio ambiente vão agindo até deixar o animal irreconhecível.
Jamal, entregador de pizza, antes médico Toy (Narração) - Dois organismos diferentes não se decompõem
Brownie, girafa de maneiras iguais, mas as etapas são as mesmas. Não importa se
Rudy, girafa o animal em questão é um ser humano, uma zebra, uma girafa,
Toy, cachorro um cavalo ou um cachorro: todos passam pelo mesmo processo.
Cavalo 1, um cavalo (Dr. Sharif está sentado à mesa. Entra uma menina carregando uma mala)
Cavalo 2, outro cavalo
Lola - Dr. Sharif ? (Sem responder, ele apenas ergue os olhos e vê Lola)
Cavalo 3, outro cavalo O senhor é o Dr. Sharif ?
Cavalo 4, mais outro cavalo
Dr. Sharif (Acenando positivamente com a cabeça) - Uhum.
Zebra, uma zebra
(Todos os animais estão empalhados) Lola (Aproxima-se e estende a mão) - Muito prazer, Dr. Sharif. Meu
nome é Lola.
Dr. Sharif (Sem retribuir o cumprimento) - E o que eu posso fazer
por você, Lola?
Lola - Eu queria aprender a empalhar animais.
Dr. Sharif(Levanta-se, entre irônico e espantado) - Você quer um
curso de taxidermia?

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Lola - Taxidermia, isso. Posso deixar minha mala aqui? só parados no tempo. (Depois de uma pausa) Dr. Sharif, é verdade
Dr. Sharif (Observando) - Você trouxe uma mala. que antigamente os zoológicos tinham animais vivos?

Lola - É. É o meu cachorro. Ele morreu ontem. Dr. Sharif (Rememorando) - É sim. Há muito tempo.

Dr. Sharif (Certificando-se do que ouviu) - Você tem um cachorro Lola - Eu achava que eles eram sempre empalhados.
dentro da mala. Dr. Sharif (Noutro tom) - “Empalhar” é um termo que não se
Lola - É, é o Toy. Ele foi meu companheiro por onze anos. Eu usa mais.
queria muito que ele fosse empalhado. Lola - Por quê?
Dr. Sharif - E o Toy está aí, nessa mala. Dr. Sharif - Porque hoje em dia as pessoas usam algodão ou ser-
Lola - Isso. O senhor quer ver, ele... ragem de parafina. Só se usa palha quando não se tem outra coisa.

Dr. Sharif (Interrompendo) - Lola, como você conservou o Toy? Lola - Entendi. Como é essa serragem de parafina?

Lola - Na mala tem bastante gelo. Dr. Sharif - Serragem, ora. O que sobra da parafina industria-
lizada.
Dr. Sharif - Desde ontem?
Lola - Posso ver?
Lola - Eu fui repondo. Minha casa não é longe daqui. Eu podia
ter chegado mais cedo, mas antes de sair eu troquei o gelo. (Tempo) Dr. Sharif - Infelizmente eu não tenho por aqui.
O senhor pode me ensinar a empalhar? Lola - O senhor faz com... Algodão?
Dr. Sharif - Você quer o seu cachorro taxidermizado ou quer Dr. Sharif - Não. Com a guerra ficou difícil conseguir. Se nem
aprender a fazer isso? nos hospitais tem algodão suficiente, que dirá para taxidermizar
Lola - As duas coisas. Quero que o senhor me ensine para que eu animais.
possa empalhar eu mesma o Toy. (Tempo) Me disseram que o senhor Lola - O que o senhor usa, então?
empalha animais. Me disseram que o zoológico inteiro é obra sua.
Dr. Sharif (Depois de um tempo, um tanto constrangido) - Palha.
Dr. Sharif - Você já visitou o zoológico?
Lola - Ah...
Lola - Uma vez. Mas era muito pequena. Para mim tudo aquilo
Dr. Sharif - O problema da palha é que é um material orgâni-
era maravilhoso. Eu lembro que o meu pai me levava pela mão o
co. Uma coisa ótima para criar cupim e outros bichos. Até plásti-
passeio todo e tinha que me colocar nos ombros para eu poder
ver os bichos por cima das cercas. Na época eu nem percebi que co bolha é melhor para preencher.
eles eram empalhados. Acho que eu pensei que os bichos estavam Lola - Plástico o que?

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Dr. Sharif - Bolha. (Ela parece não entender)Plástica bolha. Aque- Lola - Eu prefiro estar junto. O senhor se importa?
le cheio de bolinhas, que as pessoas estouram. Você nunca viu? Dr. Sharif - Você é quem sabe.
Lola - Não.
Lola (Depois de tempo, hesitante) - Vai cheirar mal?
Dr. Sharif - É uma coisa divertida. Faz tempo que não temos
Dr. Sharif - Fazendo a incisão certa, não. A pele sai inteira,
por aqui.
não é preciso nem fazer a evisceração. Não tem derramamento de
Lola - Eu nem imagino isso. Para que serve? sangue, nem de bile, de nada. (Pega algumas bolinhas de gude de dentro
Dr. Sharif - Para empacotar, para embalar coisas em mudanças. de um frasco) Com quatro bolinhas dessas, com duas nós fazemos
A gente sempre vê o plástico sendo usado para fora... Eu achava os olhos e com as outras duas, o escroto.
engraçado pensar nele por dentro. Não deixa de ser uma mudança
Lola - Escroto?
ou uma viagem também. Só que do bicho. (Tempo) Lola, onde es-
tão os seus pais? (Ela balança a cabeça, negativamente) A guerra? Dr. Sharif - Escroto. O saco.

Lola - Meu pai levou um tiro. Minha mãe ficou doente. Lola - Ah...
(Silêncio) Dr. Sharif - Eu nunca sei quando usar termos técnicos ou não.
Dr. Sharif - Você não tem mais irmãos? Lola - Tudo bem.
Lola - Tinha um irmão menor. (Pausa) Dr. Sharif - Nós tiramos toda a pele e tratamos para que ela
Dr. Sharif - Tudo bem. (Pega a mala e vai saindo) Volte na sexta- fique conservada. Depois moldamos mais ou menos os volumes
feira. Acho que até lá eu termino. do corpo com arame.
Lola - Mas eu quero ajudar, esqueceu? Lola - O senhor aproveita só a pele?
Dr. Sharif - Por que você quer aprender isso? Dr. Sharif - É. Só a pele. Você não vai querer o resto, eu acho.
Lola - Eu quero fazer isso pelo Toy. Lola - Não. Acho que não. Eu posso ajudar o senhor então?
Dr. Sharif - Não é suficiente vir buscar ele pronto? Dr. Sharif - Pode. E não precisa me chamar de senhor.
Lola - Eu quero estar junto, pelo menos.
(Saem)
Dr. Sharif - Você realmente acha que faz diferença?
Toy (Narrando) - Na verdade tudo é uma questão de pele, daquilo
Lola - Não sei. que envolve, mais do que o que está por dentro. Diferente dos
Dr. Sharif - Ele não vai se importar, eu garanto. Não é melhor outros animais, a visão é o que o ser humano tem de mais desen-
ficar com a lembrança dele vivo? volvido. Aquilo que está por fora, que é visível, dá mais identidade

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do que todo o resto. Mesmo assim, o olfato se mantém como Brownie - Não sei se ficou claro, mas eu e o Rudy éramos um
testemunha do nosso lado animal: um perfume que percebemos casal. Depois que ele morreu eu chorei por dias. Não tinha mais
de repente nos traz de volta a memória da infância, de lugares ou vontade de comer e quando nasceu nosso filhinho eu não conse-
de pessoas, instantaneamente. guia cuidar dele direito.
Rudy - Brownie estava grávida quando eu morri.
Cena 2
Brownie - Eu vi o Rudy morrendo.
(Rudy e Brownie)
Rudy - Um dia uma bomba de gás caiu no zoológico e Brownie
Rudy - Eu sou Rudy. A girafa. Um mamífero artiodátilo e rumi- morreu sufocada.
nante do gênero Giraffa, da família dos girafídeos e, no meu caso,
Brownie - E então o Dr. Sharif taxidermizou Rudy e eu.
com cinco metros de altura. Uma noite um grupo de soldados
(Olham-se, carinhosos) E agora estamos juntos de novo.
entrou no zoológico atirando e eu fiquei assustado. Na verdade eu
fiquei muito assustado. Estava escuro e eu comecei a correr, sem
Cena 3
enxergar muito bem para onde ia.
(Toy)
Brownie - Eu sou Brownie. A Girafa. Na realidade Rudy é
uma girafa macho e eu sou uma girafa fêmea. Então vou chamar Toy - Eu sou Toy, o cachorro. Eu estou aqui, mas estou lá tam-
Rudy de “o” Rudy. bém, sendo aberto pelo Dr. Sharif. Uma lástima eles não terem
plástico bolha. Um cachorro, mesmo sendo um animal médio,
Rudy - Eu corri tanto, apavorado com o barulho, que bati mi-
pode ficar bastante deformado depois de taxidermizado. É muito
nha cabeça em uma viga do teto e cai.
estranho falar sobre você mesmo quando você já está morto, ainda
Brownie - A queda não matou o Rudy. O problema veio de- mais enquanto assiste duas pessoas te abrindo para tirar a sua pele
pois. e depois forrar uma réplica sua com ela. Esse processo não tem
Rudy - Eu tentei me levantar da queda para fugir. Isso me fez vida útil determinada, então provavelmente eu vou virar um enfeite
ter um derrame. ou algo assim por muito tempo. Isso se a Lola me deixar em um
lugar protegido de umidade, claro. Sinceramente, depois de morto,
Brownie - Quando uma girafa tenta se levantar depois de uma
eu não vejo muita vantagem nisso... Acho até um pouco bizarro. E
queda, a pressão do sangue do coração até o cérebro é grande demais.
ela ainda acha que isso é uma espécie de homenagem. Uma pessoa
Rudy - As girafas só se deitam quando estão em segurança, por- normal não empalharia sua mãe ou seu pai, por exemplo. Não que
que para levantar leva muito tempo. Fazer isso com pressa e com não seja possível, mas a aparência não seria muito agradável. A pele
medo é fatal. humana não tem tanto pelo e ficaria difícil esconder as manchas

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marrons e pretas depois do processo de conservação. Mas mesmo por causa do stress, do medo. Mas a maioria morreu de fome
que o resultado fosse perfeito, a chance de a pessoa ser considerada ou doente. Não dava para tratar de todos ao mesmo tempo nem
psicopata seria grande. Então por que com um bicho de estimação tinha comida suficiente.
tudo bem? Nesse momento eles já retiraram toda a minha pele e
Lola - E por que o senhor começou a empalhar os bichos mor-
limparam toda a carne que ainda tinha ficado grudada. Já remove-
tos?
ram o esqueleto e estão tirando ossos das patas e estão decidindo se
vão aproveitar o meu crânio ou não. Dr. Sharif (Depois de um tempo) - Tinha um menino que morava
aqui perto. Ele gostava muito do casal de girafas. Quando a coisa
Cena 4 ficou feia e os bichos não tinham o que comer, ele jogava ossos por
cima do muro para eles. Engraçado que justamente as girafas não
(Sharif e Lola)
comem isso. Quando a primeira morreu, eu decidi começar por
Dr. Sharif - Amanhã eu faço a estrutura para ele ficar de pé. ela. Eu arranjava todo o tipo de desculpas para ele não entrar aqui.
Você sabe em qual posição vai querer?
Lola – E quanto tempo levou?
Lola - Posição?
Dr. Sharif - Um mês.
Dr. Sharif (Exemplificando) - Sentado, em pé, dando a pata,
Lola - E depois ele viu?
deitado, correndo atrás do próprio rabo...
Dr. Sharif - Depois ele sumiu também. Eu nunca soube o que
Lola - Acho que tanto faz. Ele já era velho. Fica um pouco ridí-
aconteceu com ele. Mas como eu já tinha começado,resolvi conti-
culo colocar o Toy numa postura muito ativa.
nuar. (pausa) Bom, por hoje chega. Vamos deixar o Toy descansar.
Dr. Sharif - Sempre achei isso. Amanhã, continuamos. (tempo) Você pode vir cedo. Prometo que
Lola - Seria como colocar uma pessoa de oitenta anos em uma não vou fazer nada sem você aqui.
pose de filme de ação. Lola - Até amanhã então.
Dr. Sharif - De qualquer forma não é muita gente que pede (Sai)
para conservar bichos de estimação. Então é melhor perguntar.
Brownie (Narrando) - A girafa foi um dos animais preferidos
Lola - Achei que fosse o contrário. dos surrealistas, provavelmente porque eles enxergavam ali uma
Dr. Sharif – Eu trabalho mais com os animais que morreram cabeça de camelo presa em cinco pescoços de cavalo unidos em
aqui. Quando a guerra começou só eu fiquei aqui. Era impos- um corpo de dromedário sem a corcova, tudo isso em uma pele
sível dar conta do zoológico sozinho. Alguns bichos morreram de onça. Não se sabe ao certo o que motiva uma pessoa a imaginar
com balas perdidas e com as bombas de gás. Outros morreram girafas pegando fogo, mas Salvador Dalí pintou cinco obras assim.

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Cena 5 (Entra um homem de capacete, com uma pizza)
Rudy (Para Brownie) - Bonito trabalho. Entregador - Boa noite. Entrega da pizzaria Halal. Meia
pepperoni com queijo extra, meia frango.
Brownie (Para Rudy) - Muito limpo. Nem uma gota de sangue.
Rudy - Pepperoni com queijo extra!
Rudy (Para Sharif) - Você está pegando o jeito, doutor.
Brownie - Parece bom. Frango é que é sempre meio sem graça.
Dr. Sharif - Obrigado, Rudy.
Dr. Sharif (Mexendo nos bolsos) - Quanto ficou?
Brownie - Na nossa época você não tinha essa maestria toda.
Entregador - Vinte e dois e cinquenta.
Dr. Sharif - Sempre se começa de algum lugar.
Dr. Sharif (Reconhecendo a voz) - Jamal?
Rudy - Por isso a minha orelha esquerda ficou assim, doutor?
Rudy (Para Brownie) - Ele conhece o entregador?
Dr. Sharif - Eu achei o resultado ótimo.
Brownie (Para Rudy) - Parece que sim.
Brownie (Para Sharif) - Da última vez que o Rudy reclamou Entregador (Tentando se livrar rapidamente da situação) - Eu vou
o seu argumento para se defender foi bem grosseiro. Antes de deixar aqui um cardápio com as nossas promoções, boa noite...
repetir, espero que você pense um pouco dessa vez.
Dr. Sharif (Cercando-o) - Jamal!
Dr. Sharif - Eu fiz com a melhor das intenções. Vocês estão
Rudy (Para Brownie) - Conhece.
juntos de novo, não estão? Ou será que vocês iam preferir que eu
simplesmente tivesse enterrado os dois ali fora? Brownie (Para Rudy) - Curioso isso não?

Rudy - Eu não reclamei de ter sido taxidermizado, doutor. Re- Entregador (Tirando o capacete) - Como vai, Sharif ?
clamei da minha orelha. Dr. Sharif - Você virou entregador?
Brownie (Acalmando Rudy) - Da esquerda, querido. Você tem Jamal - É um emprego bom. Você não precisa pensar em muita
que admitir que a direita ficou ótima. coisa. Eles te dão um endereço, uma pizza e pronto. As ruas não estão
tão perigosas agora. Eu tenho um fixo e uma comissão por entrega...
Dr. Sharif (Para Rudy) - A sua orelha esquerda foi a primeira
coisa que eu taxidermizei na vida. Eu acho que vocês podiam Dr. Sharif (Entrega o dinheiro a ele) – Aqui está...
levar isso em consideração. Jamal (Constrangido) – Obrigado.
Rudy - Se a evolução tivesse acontecido de outra maneira e fossem Dr. Sharif - Você deixou o hospital?
as girafas que empalhassem os humanos, o senhor ia ver, doutor.
Jamal – Ah, muito trabalho, muita responsabilidade... Eu queria
Brownie - Nós dois íamos caprichar na sua orelha. Pode ter certeza. mais tempo para mim, sabe?

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Dr. Sharif - Claro, claro... (Aponta uma cadeira) Você não quer Jamal - De um zoológico de bichos empalhados? Eu acho que
sentar um pouco? os seus bichos não iam sentir sua falta.
JAMAL (Sentando) - Obrigado. Eu acho que aqui era a última entre- Rudy (Enquanto come) - Eu não. O que você acha, Brownie?
ga, de qualquer jeito. As pessoas confundem muito, sabe? Acham Brownie(Idem) - Um pouco, acho.
que “Halal” é nome de restaurante de comida árabe, eu fico mais
tempo explicando que é uma pizzaria do que fazendo as entregas. Dr. Sharif - Tem que ter espaço para alguma outra coisa além
do que é simplesmente necessário, Jamal. Um lugar onde as pes-
(Enquanto a conversa segue, Rudy e Brownie comem a pizza) soas possam ir para passear, se divertir, coisas assim. Isso também
Dr. Sharif - Desde quando você largou o hospital? faz parte da sobrevivência.
Jamal - Uns cinco anos já. Jamal - E você acha que um zoológico de bichos mortos é uma
Dr. Sharif - E a Offa? espécie de diversão?

Jamal - Foi embora. Dr. Sharif - As pessoas vão a museus de cera, não vão? Qual o
problema de um zoológico com animais taxidermizados?
Dr. Sharif - Ela conseguiu sair?
Jamal - Um museu de cera não é feito de pessoas mortas, Sha-
Jamal (Acenando positivamente com a cabeça) - Ela tem um primo do rif! É feito de réplicas. A diversão também pode ser duvidosa,
outro lado que recebeu ela lá. Eu estou juntando dinheiro para ir mas é bem diferente.
também. Acho que mais um ano e eu consigo.
Dr. Sharif - É uma tentativa de deixar as coisas paradas no
Dr. Sharif - Se você precisar eu tenho algum dinheiro guardado... tempo, de qualquer jeito.
Jamal - Você nunca pensou em sair? Rudy (Para Brownie, enquanto come) - Eu achei a comparação ruim.
Dr. Sharif - Não. Brownie (Idem) - Eu também.
Jamal - Por quê? Jamal - Lembra da história do barco de Teseu?
Dr. Sharif - Agora que as coisas estão melhorando não faz Dr. Sharif - O da mitologia?
mais sentido.
Jamal - Isso.
Jamal - Você acha que estão melhorando?
Dr. Sharif - Não.
Dr. Sharif - Você não?
Jamal - Dizem que os atenienses conservaram o navio de Teseu
Jamal - Um pouco. Mas ainda não é o melhor lugar para se viver. na cidade. Eles iam trocando as partes podres por novas, até que
Dr. Sharif - De qualquer jeito eu preciso cuidar das coisas aqui. chegou uma hora em que já tinham trocado praticamente tudo.

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Daí começou uma discussão: alguns filósofos achavam que o na- Jamal - Eu lidava com a realidade. Abria pessoas mortas para
vio era o mesmo e outros achavam que não era. dizer para os vivos por que elas estavam ali. Ou por que elas não
Dr. Sharif - E você acha o que? estavam mais ali, como queira. Até que a realidade ficou demais
para mim. (Vai saindo) Espero que você goste da sua pizza.
Jamal - Quando você taxidermiza os bichos usa só a pele, não?
Dr. Sharif - Você pode voltar mais vezes.
Dr. Sharif - O crânio, às vezes.
Jamal - Você tem o número. Experimente a de queijo de cabra.
Jamal - E o resto? Os órgãos, os outros tecidos, a carne...? Joga É ótima.
fora?
(Sai)
Dr. Sharif - Jogo.
Cena 6
Jamal - E isso tudo não é o bicho também? Juntando tudo, tal-
Rudy (Para Brownie) - Sobrou um último pedaço de frango, você
vez mais o bicho do que só a pele, não acha?
quer?
Dr. Sharif - Raciocínio perfeito para um médico legista.
Brownie - Pode comer, eu não gosto muito.
Rudy (Para Brownie) - Faz sentido.
Dr. Sharif - Vocês comeram a pizza toda?
Brownie (Concordando) - Todo sentido.
Rudy (Constrangido) - Tem um pedaço de frango ainda. Eu ia
Dr. Sharif - Você pensou nisso tudo enquanto entregava pizzas? pegar, mas se você quiser...
Jamal (Sem responder à ironia) - A história tem uma continuação: Dr. Sharif - Pode comer, Rudy.Eu vou fazer outra coisa.
alguns atenienses foram recolhendo as peças velhas do navio toda
(Sai. Brownie passa para Rudy o último pedaço. saem as duas girafas.)
vez que ele era restaurado. Um dia, chegou em Atenas um foras-
teiro e pediu para ver o barco. Mas qual era “o barco de Teseu”? Toy (Narrando) - Nesse momento o Dr. Sharif passa pela sala
O navio restaurado ou os destroços guardados? onde me deixou. Quer dizer, onde deixou o que ele aproveitou de
mim. Ele vai ficar algum tempo lá, pensando no próximo passo
Dr. Sharif - As duas coisas.
e aplicando um pouco de formol nas patas. Aqui tem uma passa-
Jamal - E como uma coisa pode virar duas, ao mesmo tempo? gem de tempo. Pela manhã Lola vai chegar e pedir para me ver.
Dr. Sharif - Ter deixado o hospital realmente fez você ter mais Ele vai arrumar a estrutura de arame que vai me sustentar de pé,
tempo. ajeitar as bolinhas de gude dos olhos... E as outras duas. Ela vai
gostar do resultado, mas eu não. A vantagem é que a partir do
Jamal - Você lida com as aparências, Sharif. momento em que eu estiver pronto só vou aparecer deste jeito
Dr. Sharif - E você? (aponta para si mesmo). O Dr. Sharif melhorou muito desde a orelha

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esquerda do Rudy, mas precisa treinar mais. Infelizmente eu ainda Lola - O senhor tem um zoológico de bichos empalhados, tra-
faço parte desse momento intermediário. balha com animais mortos e nunca pensou nisso?
Dr. Sharif - Eu não vejo a menor necessidade em acreditar em
Cena 7 alguma coisa “depois”. O agora já dá muito trabalho.
Dr. Sharif (Para Lola) - Você gostou do resultado? Lola - O senhor não acha que existe alguma coisa tipo uma “alma”?
Lola (Observando Toy – presente na cena ou imaginário) - Acho que Dr. Sharif - O que eu acho não vem ao caso.
sim. (Tempo) O senhor acha que o Toy está em algum lugar agora?
Lola - Mas no Egito eles acreditavam.
Dr. Sharif - Claro. Ele está lá, na outra sala.
Dr. Sharif - Só que a ideia de “alma” para eles era bem mais
Lola - Não. Não o Toy empalhado. O Toy mesmo. complicada. Ela tinha oito partes que sobreviviam à morte, fora
Dr. Sharif - O “Toy mesmo” morreu, não? o corpo.
Lola - Eu sei. Mas o senhor acha que acontece alguma coisa depois? Lola - Oito partes fora o corpo?
Dr. Sharif - Alguma coisa sempre acontece. No caso dele, Dr. Sharif - Isso. Para eles o ser humano era formado não só
aconteceu aquilo lá (aponta para a outra sala). pelo corpo, mas por outras oito partes imortais.
Lola - Mas muita gente acha que não é só isso, não? Lola - E o senhor sabe tudo isso sem nunca ter se interessado
Dr. Sharif - Muita gente acha. pelo assunto.

Lola - No Egito eles mumificavam as pessoas. É um pouco o Dr. Sharif - Eu nunca me preocupei se esse tipo de crença
que o senhor faz, não é? tem algo de real ou não. Isso não me impede de me interessar por
mitologia, por exemplo.
Dr. Sharif - Não eram exatamente “as pessoas” que eles mu-
mificavam. Eram os faraós. Lola - Eu me lembro das pirâmides e das múmias. É tudo o que
eu aprendi na Escola sobre o Egito.
Lola - Os faraós eram pessoas, não?
Dr. Sharif (Retomando) - A parte mais importante das oito
Dr. Sharif (Irônico) - Pessoas mais “pessoas” que as outras pessoas. imortais era o coração. Mas a mais interessante era a que eles
Mas de qualquer forma sim, eles acreditavam na vida após a morte. chamavam de Ka: uma espécie de sombra que seguia a pessoa
Lola - E o senhor não. durante a vida. O Ka podia aparecer para os outros como um
Dr. Sharif (Refletindo) - Acho que eu nunca parei para pensar fantasma, independente da pessoa estar viva ou morta.
no assunto. Lola - Como assim? Eu podia ter um fantasma mesmo estando viva?

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Dr. Sharif - Podia. Podia inclusive assombrar as outras pessoas. Dr. Sharif - Não só eles. O ser humano sempre gostou de
Lola – Nossa... bem legal. colocar animais no meio das coisas. Isso não só na mitologia, mas
nas idiotices que faz. Nas guerras, por exemplo.
Dr. Sharif - Depois vinha o Ba, que podia assumir a forma
que quisesse, mas geralmente era representado como um pássaro Lola - Tipo cavalos.
com cabeça de gente, que flutuava em torno da tumba durante o Dr. Sharif - É, os cavalossão um bom exemplo. Eles foram
dia, alimentando o falecido com água e comida. tão importantes que os povos que não tinham cavalaria se deram
Lola - O morto comia e bebia? muito mal. Só quando inventaram os tanques de guerra é que eles
Dr. Sharif - Uhum. A função do Ba era fazer o morto se juntar ao começaram a ficar ultrapassados.
Ka. A soma dos dois era o Akh, a parte imortal que vive dentro do Lola - Nossa. Não é justo colocar um cavalo para combater um
Sahu, o corpo espiritual. Caso o morto se saísse bem no Julgamento tanque mesmo.
Final, esse corpo espiritual subia aos céus saindo do corpo físico...
Eles ainda tinham uma outra parte, o Sekhem, que era a personifi- Dr. Sharif - Não é justo colocar um cavalo para combater. No
cação da força vital do homem que vivia entre as estrelas junto com zoológico tem um espaço com quatro cavalos empalhados. Eles
o corpo espiritual e o que eles chamavam de Ren, o “nome verda- morreram em uma batalha aqui perto. Eu estava escondido aqui
deiro”, a parte vital do homem em sua jornada através da vida e do dentro. O barulho dos tiros e das bombas dava medo. Depois de
pós-vida. Por último vinha o Shwt, a sombra, que eles acreditavam um tempo, ficou tudo em silêncio. Até o ouvido se acostumar,
que também era uma entidade, já que pode se descolar do corpo. depois de tanto estrondo, demora um pouco. Depois de um tem-
Lola - Foram as oito partes já? Eu perdi a conta... po o zumbido foi passando e eu comecei a ouvir, meio longe, um
som de gritos de dor. Eu saí para olhar e percebi que os gritos
Dr. Sharif - Que eu me lembre já. No final das contas o co-
não eram humanos. Eram horríveis demais para sair da boca de
ração do defunto era pesado numa balança e tinha que ser mais
um homem, mesmo sofrendo, mesmo ferido. Aí eu vi quatro ca-
leve que uma pena.
valos caídos. Dois já estavam mortos, outros dois estavam com
Lola (Depois de uma pausa, concluindo) - Dava muito trabalho mor- os olhos arregalados de um jeito que achei que eles iam pular das
rer no Egito. órbitas e urravam, berravam, eu nem sei como explicar.
Dr. Sharif - Não, era a mesma coisa. Dava trabalho só en-
Lola - E o que o senhor fez?
quanto você estava vivo e acreditava nisso tudo.
Dr. Sharif - Eu fiz o que eu tinha que fazer. O que qualquer
Lola - Eles gostavam de misturar bichos com gente também
um tinha que fazer. (Tempo) Você quer ver os cavalos?
não é? Eu me lembro de uns desenhos de gente com cara de ca-
chorro, de gato, essas coisas. (Ela faz que sim com a cabeça. os dois saem.)

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Cena 8 Cavalo 2 (Irônico) - Muito.
(Quatro cavalos vêm até a boca de cena e começam a jogar cartas) Cavalo 3 - Para qual civilização mesmo?
Cavalo 1 - A gente não devia estar lá? Cavalo 1 - Dos homens, ora.
Cavalo 2 - Por quê? Cavalo 3 - E qual a nossa vantagem nisso tudo mesmo?
Cavalo 1 - Eles estão indo ver a gente, não? Cavalo 1 - Ser o animal mais importante para a civilização hu-
Cavalo 3 – Ah, que se danem! mana, ora essa!
Cavalo 4 (Didático) - Por alguma convenção que eu não vou Cavalo 2 (Para o Cavalo 3) - Pensei que fosse o cachorro.
saber explicar, eles estão vendo.
Cavalo 1 - Cachorro?
Cavalo 1 - Mesmo com a gente aqui?
Cavalo 3 - O doutor Sharif inclusive acabou de taxidermizar
Cavalo 4 - É. (Aponta para as cartas na mão do outro cavalo) Você um, aqui mesmo.
descarta.
Cavalo 1 - Um! Nós somos quatro!
Cavalo 1 (Observa as cartas que tem na mão, escolhe uma e descarta) -
Cavalo 4 - Só um instante. Ele tem um ponto.
Minha carta preferida.
Cavalo 2 (Sem compreender) - Valete? Cavalo 3 - Tem?

Cavalo 1 - É. As pessoas sempre se lembram da roda, do fogo e Cavalo 1 - É verdade que a gente é o animal mais importante
da agricultura quando falam dos acontecimentos importantes para o para o desenvolvimento da humanidade. Tem argumentos para
desenvolvimento do homem. Mas pouca gente lembra dos cavalos. isso! Desde a Grécia os homens nos adoram. O mito do centauro,
por exemplo. Apareceu lá!
Cavalo 2 - E o Valete é a sua carta preferida por causa disso?
Cavalo 2 (Irônico) - Nossa, que honra não? Uma mistura da
Cavalo 1 - Valete é meio um cavaleiro, não é?
inteligência do ser humano com a força bruta dos imbecis aqui.
Cavalo 3 - Não. Valete era um empregado doméstico na França.
Cavalo 4 - Eu acho que é uma forma de demonstrar impor-
Cavalo 2 - Você confundiu com “ginete”, seu burro. tância sim.
Cavalo 3 (Retomando a discussão, sem dar tempo para o Cavalo 1 res- Cavalo 1 - E os hunos?
ponder qualquer coisa)- E mesmo que fosse um cavaleiro, isso seria
Cavalo 2 (Surpreso) - O que tem eles?
motivo para gostar da carta?
Cavalo 1 - Você não acha que a gente foi importante para a Cavalo 3 - Hunos?
civilização? Cavalo 2 - De onde você tirou os hunos agora?

28 29
Cavalo 3 - Os bárbaros? Cavalo 3 (Rindo) - Genial!
Cavalo 1 - Eles passavam boa parte de seu tempo montados Cavalo 4 (Rindo) - “Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?”
no lombo dos cavalos. Cavalos (1, 3 e 4 juntos, rindo muito) - Branco!
Cavalo 4 (Apoiando) - É verdade. Eles guerreavam e dormiam (Mais risadas)
nos cavalos.
Cavalo 2 (Retomando) - A questão é a seguinte: (Todos voltam-se
Cavalo 3 (Irônico) - Provavelmente eles não desmontavam para para o Cavalo 2) se os humanos não tivessem usado cavalos como
fazer suas necessidades também. nós nas guerras talvez nós não tivéssemos morrido.
Cavalo 2 (Mais irônico ainda) - Uma honra mesmo ter um bárbaro (Silêncio)
mijando e cagando em cima de você enquanto mata outras pessoas.
Cavalo 4 (Para os outros) - Ele tem razão.
Cavalo 1 - Que engraçado. Sabia que os cavalos eram disputa-
Cavalo 1 - É, pensando por esse lado...
dos a tapa pelos guerreiros?
Cavalo 3 - É...
Cavalo 2 - O que não era disputado a tapa por essa gente?
Cavalo 2 - Aliás, pensando cientificamente, nós nem podería-
Cavalo 4 - E os cavalos que viraram heróis? E o cavalo de
mos estar aqui agora.
Alexandre?
Cavalo 4 - Por que estamos mortos?
Cavalo 3 (Interrompendo de súbito) - Alexandre?
Cavalo 2 - Não. (Para o Cavalo 1) Você se esqueceu de um deta-
Cavalo 4 (Para o Cavalo 3) O Grande!(retomando) E o de Napo- lhe. Mais importante que o fogo, a roda, a agricultura e os cavalos.
leão, que ele mandou empalhar de tanto que gostava dele?
Cavalo 1 – Qual?
Cavalo 2 (Irônico) - O cavalo de Napoleão! O que ninguém se-
quer lembra o nome, só repete aquela piada imbecil? Cavalo 2 - Polegares opositores. (Silêncio constrangedor. Eles se
entreolham. olham os próprios polegares, que não poderiam existir.) Nós
Cavalo 1 - Piada? jamais poderíamos estar aqui, jogando cartas.
Cavalo 2 - “Qual era a cor do cavalo branco de Napoleão?” (Recolhe o baralho. saem todos. Jamal volta.)
(Todos os outros riem) Cena 9
Cavalo 2 (Surpreso com a reação) - Vocês não conheciam? (Jamal observa o ambiente por um tempo. entra o Dr. Sharif.)
Cavalo 1 (Rindo) - Muito boa! Jamal - Talvez a morte, no fim das contas, seja mais forte do
Cavalo 4 (Rindo) – “Cavalo branco!” Qual a cor! que a vida, já que viver sempre demanda algum esforço enquanto

30 31
a morte é algo para o qual todos escorregamos sem trabalho ne- Dr. Sharif - Agora eles estão vindo para o lado de cá também?
nhum. Talvez o Nada vença ao final. Talvez o Nada seja inevita-
Jamal (Decidido) - Eu vou hoje.
velmente a outra face de tudo o que existe.
Dr. Sharif - Você não precisa ir pelos túneis. Eu posso em-
Dr. Sharif - Mas ainda assim existe alguma beleza nisso. (Nou-
prestar um dinheiro, eles atravessam você.
tro tom) Dessa vez você veio sem uma pizza.
Jamal - A menina ainda está aqui? Jamal - Não precisa. Eu já resolvi.

Dr. Sharif - Ficou olhando o zoológico. Dr. Sharif - Isso é suicídio.

Jamal - Os seus bichos empalhados. (Noutro tom) Você tem um Jamal - Eu só vim aqui me despedir.
cigarro? Dr. Sharif - Leva o dinheiro.
Dr. Sharif - Parei. Jamal - A não ser que você queira vir junto.
Jamal - Merda.
Dr. Sharif (Decidido também) - Eu fico.
Dr. Sharif (Notando o nervosismo dele) - O que está acontecendo,
Jamal (Tentando convencer Sharif) - Eu tenho um contato bom
Jamal?
lá. Honesto. Para ele atravessar um ou dois ao mesmo tempo é
Jamal - Eu preciso ir embora. Hoje. o mesmo risco. Não dá tempo de querer barganhar muito. Vem
Dr. Sharif – Você não estava juntando dinheiro? junto. Traz a menina também.
Jamal - Não dá para ser do jeito mais seguro. Eu não tenho Dr. Sharif - A menina?
tempo. (noutro tom) Certeza que não sobrou nenhum cigarro aqui?
Jamal - Ela também não tem mais ninguém aqui.
Dr. Sharif (Após um gesto negativo com a cabeça)- O que aconte-
ceu? Dr. Sharif - Como você sabe?

Jamal - A Offa. Ela foi ferida. Jamal - Fui eu que atendi o pai dela na emergência do hospi-
tal. Ela estava junto. A mãe eu soube que morreu depois. Não é
Dr. Sharif - Ferida como?
muito difícil saber o que acontece com as pessoas por aqui. Até
Jamal - Parece que não é nada sério, mas eu tenho medo de porque não sobrou muita gente.
deixar ela lá assim.
(Entram Rudy e Brownie)
Dr. Sharif - E a família dela?
Dr. Sharif - Você pode tentar convencer ela a ir junto. Mas
Jamal - O primo sumiu faz uma semana. Ela estava sozinha na
pelos túneis não.
casa, escondida. Quem me mandou o recado foi um vizinho que
atravessou hoje pelos túneis. Jamal - Eu só aceito o seu dinheiro se você também for.

32 33
Dr. Sharif - Eu dou o dinheiro para vocês irem. Mas eu fico. Dr. Sharif - Vocês ficam escutando tudo, sempre?
Jamal – Você não percebeu ainda, Sharif ? Logo não vai ter nin- Brownie - Eu mais do que ele. Afinal a orelha esquerda ficou
guém para visitar o seu zoológico de qualquer jeito. péssima.
Dr. Sharif - Você gosta de mitologia, Jamal? Ou só do barco Dr. Sharif - Ela precisa ir embora. Eu não faço questão.
do Teseu?
Rudy - O que você acha, Brownie?
Jamal - Por quê?
Brownie - Se for por nossa causa não se acanhe, doutor. Há
Dr. Sharif - Esse zoológico é a minha pedra, Jamal. Como muito tempo você não precisa mais alimentar a gente.
Sísifo.
Rudy - Claro que uma pizza de vez em quando cai bem, mas é
Jamal - Uma pedra que toda vez que chega no topo, rola até pura gula mesmo.
embaixo.
Dr. Sharif - Eu não tenho mais o que fazer aqui, nem em ne-
Dr. Sharif - Isso. nhum outro lugar, Rudy.
Jamal - Um passatempo absurdo em um mundo cada vez mais Brownie (Para Rudy) - Deu uma certa pena agora.
absurdo.
Rudy (Para Brownie) - Também fiquei.
Dr. Sharif - É um pouco sem sentido. Mas é a minha paixão.
Dr. Sharif - Eu estou falando sério.
É possível viver de outro jeito?
Brownie - Ok, desculpe.
Jamal (Sem responder o questionamento) - Fala com a menina. Eu
vou avisar que nós vamos sair hoje à noite. Rudy - Foi mal.
Dr. Sharif - Eu tento. (Jamal vai saindo.) Traz a tal pizza de Dr. Sharif - A menina ainda tem uma vida inteira pela frente.
queijo de cabra. Ela pode seguir adiante, fora desse lugar.
Jamal - O sujeito para quem eu trabalhava foi embora ontem. Brownie - E você acha que do outro lado do túnel vai ser melhor?
(Sai) Rudy - Como uma “luz no fim do túnel”?
Dr. Sharif - Por que não?
Cena 10
Brownie - E se ele for um psicopata?
Rudy (Para Sharif) - Então quer dizer que você vai ficar aqui
com seus bichinhos e mandar a menina ir embora junto com o Rudy - Um pedófilo!
entregador de pizza. Brownie - E se ele quiser a menina para vender os órgãos dela?

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Rudy - Ou como escrava sexual! Rudy – Francamente!
Brownie - Uma “boneca viva”! Dr. Sharif - E depois, essa história de que a zebra é um dos
Rudy - Você não pensou nisso? animais preferidos pelas crianças é pura invenção de vocês.
(Entra Lola)
Dr. Sharif – Não! Provavelmente meu lado psicótico se limita a
imaginar que duas girafas mortas e empalhadas conversam comigo! Lola - Dr. Sharif... Por que a zebra tem que ficar cercada pelos
leões mesmo depois de empalhada?
Rudy (Ofendido) - Você podia responder só “sim” ou “não”.
(Silêncio. Rudye Brownie olham para o doutor)
Brownie (Idem) - Não precisava ser grosseiro.
Dr. Sharif - É uma instalação que recria o ambiente natural
Dr. Sharif - Não, não pensei em nada disso. Eu conheço o
desses animais, Lola. Os leões caçam zebras.
Jamal. O único risco que ela corre é se o contato dele der para trás
e ele cismar em ir hoje de qualquer jeito, pelos túneis. Lola - Poxa, mas nem depois de morta e empalhada ela pode
ter sossego...
Brownie - Agora ela está lá, olhando os leões.
Dr. Sharif - É uma situação que vemos na Natureza. A culpa
Rudy - Deve estar se perguntando por que você criou um am-
não é minha.
biente com uma zebra caída e dois leões se aproximando.
Lola - Eu gosto das zebras, doutor.
Brownie - Ela deve estar pensando: “será que nem depois de
morta a zebra pode descansar em paz, sem ser apenas uma presa?” Dr. Sharif (Olhando para Rudy e Brownie) - Sério?
Rudy (Para Sharif) - Você sabia que a zebra é o quarto animal Lola - Depois dos cachorros e dos ursos, acho que é o bicho
mais querido pelas crianças? que eu mais gosto.
Brownie - Só perde para o cachorro, o urso e a girafa. Dr. Sharif - Mais até que das girafas?
Rudy - Elas acham que é um cavalinho com pijamas. Lola - Girafas? Acho que sim, por quê?
Brownie - Você deve ter acabado de deixar a menina traumati- Dr. Sharif – Por nada.
zada.
(Rudy e Brownie contrariados)
Rudy - “Nem depois de morta a pobre zebra descansa...”
Lola - Eu acho as zebras bonitas...
Dr. Sharif - É uma espécie de instalação que recria o ambiente
natural desses animais. A culpa de um leão caçar uma zebra não é Dr. Sharif - Uma espécie de cavalo de pijama...
minha. Culpem a natureza! Lola - Isso! Por isso eu achei de mau gosto ver o bicho ser ca-
Brownie - Que mau gosto, doutor! çado mesmo depois de morto, sabe?

36 37
Dr. Sharif - Nos museus de cera as pessoas são retratadas em Dr. Sharif - É. Como você se imagina, para sempre?
poses que lembram o que elas eram quando vivas. Lola - Não sei. (Tempo. Refletindo.) Brincando com o Toy... Sen-
Rudy - Ou o que elas são. Nem toda personalidade em um mu- tada na mesa da cozinha... Enquanto minha mãe faz o almoço e
seu de cera está morta. meu pai reclama... Olhando meu irmão dormir... Casando com o
menino que morava perto da nossa casa.
Brownie - Verdade.
Dr. Sharif - E o que aconteceu com ele?
Lola - Pois é. Então a zebra vira só uma caça?
Lola (Depois de uma pausa) - Morreu. Faz um mês e quatorze dias.
Dr. Sharif (Pausa) - Tudo bem. Podemos mudar a zebra de po-
sição. Dr. Sharif - Você contou... (Ela faz que sim com a cabeça. tempo)
Você notou uma coisa, Lola?
Lola - Sério?
Lola - O quê?
Dr. Sharif - Sério.
Dr. Sharif - Nas cenas que você imaginou, todos já estão mortos.
Lola - Agora?
Lola - É.
Dr. Sharif - Não. Depois. (noutro tom) Sabe o que eu penso às
Dr. Sharif - Todas as coisas que prendem você aqui já morreram.
vezes, Lola?
Lola (Pausa curta.Olha para ele.) - E não é a mesma coisa com
Lola - Não. você?
Rudy (Para Brownie) - Claro que ela não sabe. Dr. Sharif (Depois de tempo) - Certo. Vamos mudar a zebra de lugar.
Brownie (Para Rudy) - Ele acha estranho conversar com girafas (Saem os dois)
mortas mas pensa que a menina pode ler pensamentos agora!
Dr. Sharif (Voltando-se para as girafas) - Foi uma pergunta retórica! Cena 11
(Para Lola) Se eu fosse taxidermizado, iam me colocar exatamente (Voltam os quatro cavalos)
aqui. Do jeito que eu estou agora. Ou taxidermizando outro bicho. Cavalo 2 - O doutor é muito influenciável.
Lola - É assim que você se imagina, para sempre? Todos - Ô!
Dr. Sharif – É sim. E você? Cavalo 1 - Ela ficou mesmo com pena da zebra.
Lola - Eu o que? Cavalo 4 - Da gente ninguém tem pena!
Dr. Sharif - Se imagina como? Cavalo 3 (Irônico) - “Cavalo de pijamas”. Que piada!
Lola - Empalhada? Cavalo 1 - Bom, mas elas são da nossa família, sim.

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Cavalo 2 - Nós morremos no meio de uma batalha e ela tem Cavalo 1 - “Burro”? Olha, da primeira vez que você disse isso
pena da zebra por causa da cor da pele! eu não comentei nada, mas agora chega: você acha bacana usar o
nome de outro animal para me ofender?
Cavalo 4 - E correm mais que nós.
Cavalo 3 - Mas são subespécies diferentes mesmo.
Cavalo 3 - A coitadinha de pijama parece muito inofensiva,
mas o coice dela é mais forte que o nosso. Cavalo 1 - São! Somos de subespécies diferentes sim! E o que
isso quer dizer?
Cavalo 2 - Ela podia até quebrar a mandíbula de um leão daqueles.
Cavalo 4 - Que ela não é nossa igual.
Cavalo 1 - Daqui a pouco vocês vão ficar com pena do leão!
Cavalo 1 - A questão não é essa! Vocês não percebem? Leões,
A zebra é a vítima, não vamos começar com inversões de valores.
zebras, cachorros, cavalos, girafas, no final estamos todos aqui,
Cavalo 2 – Ah! Ele defendendo as minorias! E a gente? juntos. E qual a nossa vantagem nisso tudo?
Cavalo 3 – É! Você nem zebra é. É um cavalo! Cavalo 2 - Eu só acho que ela podia ter se importado mais com
a gente.
Cavalo 2 (Repetindo, assertivo) - Cavalo!
Cavalo 1 - Ela se importou muito com o cachorro que morreu.
Cavalo 1 - Eu não preciso ter nascido zebra para ser simpático Pediu para o doutor empalhar inclusive. Sabe o que adiantou? De
a elas! E denunciar a violência que elas sofrem! Assim como nós nada. Ele está tão morto quanto a gente. Assim como a zebra.
sofremos. Todos nós somos vítimas aqui! Talvez com um pouco mais de técnica no processo porque ao
Cavalo 2 (Irônico) - Até o leão. longo dos anos o doutor melhorou nisso, e só.

Cavalo 1 - Nesse caso até o leão, sim! Cavalo 3 - Mas isso não muda o fato de que a zebra...
Cavalo 1 (Interrompendo) - A zebra é nossa igual sim! E se não
Cavalo 3 - Tudo bem!Eu não sou contra as zebras! Eu até te-
fosse, o que muda? E mesmo sabendo que o leão come a zebra
nho um amigo zebra! Eu só acho que você poderia se preocupar
porque tem que se alimentar eu concordo com a menina: depois
um pouco mais com os seus semelhantes.
dos dois mortos eles não precisam ficar mais presos nesta cena
Cavalo 2 (Para o Cavalo 1) – É, porque uma hora você defende pela eternidade inteira! E se alguém é responsável por essa mer-
a civilização humana. Outra hora as zebras. Não podia se preocu- da toda são os homens! Você sabia que existem negros, brancos,
par um pouco com os cavalos, seus iguais? orientais e mais um monte de raças que vieram a partir da mistura
dessa gente toda? E eles nem sabem se o termo “raça” é o melhor,
Cavalo 1 - Uma coisa não tem a ver com a outra. E a zebra é
porque no fundo são de uma única espécie! Não são zebras e leões
nossa igual!
uns dos outros. Nem são subgrupos! Nem são zebras e cavalos! E
Cavalo 2 - Você é burro, cara! Somos de subespécies diferentes! ainda assim se matam! E ainda colocam a gente no pacote!

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Cavalo 4 (Depois de um tempo) - É. Ele tem um ponto. Toy - O resultado não ficou muito bom, para ser sincero. Sem falsa
Cavalo 2 - É. modéstia, eu acho que era melhor do que isso aqui (Aponta a mala).
Rudy - Eu acredito. A julgar pela minha orelha. Ela também era
Cavalo 3 - Que merda, não?
bem melhor que isso.
Cavalo 4 - Poxa, fiquei com pena da zebra.
Brownie - A esquerda, querido. A direita é linda.
Cavalo 2 - Eu também. Maldito seja o polegar opositor.
Toy - Agora eles estão lá, mudando a zebra de lugar. Provavel-
Cavalo 1 - Maldito seja. mente não vão perceber se eu for embora.
(Saem) Rudy - Aproveite. Você é um cachorro. Mais fácil fugir sem ser
percebido.
Cena 12
Brownie - Imagine duas girafas fazendo isso.
(Rudy e Brownie entram. Em seguida entra Toy, com uma mala)
Toy - Vou aproveitar a minha imortalidade conseguida a contragos-
Rudy - O cachorro.
to e sair por aí, já que esse nosso processo não tem vida útil determi-
Brownie - Com uma mala. nada. Melhor que virar enfeite ou algo do tipo na casa dela.
Rudy - Para onde você vai, Toy? Rudy - Uma mesa de centro.
Toy – Eu vou embora. Acho que as coisas vão ficar mais fáceis Brownie - Um apoio para os pés.
para a Lola se eu sumir. Rudy - Um criado-mudo.
Brownie - E o que tem nessa mala? Toy - É, vocês entenderam a ideia.
Toy - Eu. Por alguma convenção estranha eu estou aqui e dentro Brownie(Para Rudy, rindo) - “Criado-mudo”! Muito boa!
da mala ao mesmo tempo.
Rudy (Para Toy, desculpando-se por Brownie) - Foi mal. (Para Brownie)
Rudy - Eu ouvi o amigo do doutor falando sobre isso. O que é que foi, minha girafinha?
Brownie - A história do barco de Teseu. Brownie – Querido, você pensou no criado-mudo de forma
Toy - Deve ser. Eu também acho melhor ela ir embora. De pre- literal ou como um exemplo de mobília mesmo?
ferência sem nenhuma lembrança minha. Rudy- Como assim?
Rudy - Especialmente de você empalhado. Brownie (Tentando ser didática) - “Criado”... “mudo”... Hein?
Brownie - Não é uma lembrança muito boa. (Rindo muito)

42 43
Rudy(Rindo, fingindo ter entendido) - Ah! (Confidencial, para Toy) Eu entregador de pizzas – negocia que os três sejam levados para o
não entendi nada. outro lado. De lá, ele pretende encontrar ajuda para sair do país
Toy –Bom...Adeus. Espero que ela vá embora também. E logo. e começar a vida em outro lugar. Ele dá todas as suas economias
como parte do pagamento e diz que o Dr. Sharif ajudará com pelo
Rudy - Até mais ver, Toy. menos o mesmo tanto. O sujeito olha as notas, conta uma a uma e
Brownie - Cuide-se. acena com a cabeça afirmativamente. São quase seis horas da tarde
quando Jamal volta. Eu ainda estou sendo admirada por Lola e pelo
Toy - Vocês também. Até.
doutor quando ele entra e conta as novidades. Lola, que não sabia
(Sai Toy) de nada, diz que só concorda se o doutor for junto. Ele reluta. Jamal
Rudy(Consigo mesmo, ainda tentando entender) - Criado... Mudo... tenta convencer os dois. No começo da noite todos devem estar
lá, com o resto do dinheiro. São seis e quinze da tarde quando os
Brownie - Rudy! Você sabia que “Toy” é “brinquedo” em inglês?
primeiros disparos e explosões começam a ser ouvidos aqui perto.
Rudy - Sabia. Seis e dezesseis: eles continuam a discussão sobre a importância de
Brownie - E não é irônico um cachorro com nome de “brin- ir embora. Seis e dezoito: Jamal vai até a janela. Seis e dezenove: o
quedo” terminar empalhado? doutor se aproxima dele. Seis e dezenove e trinta e dois: Lola grita
para que eles se afastem. Seis e vinte: os sons de tiros e explosões
Rudy (Didático) - Ele não “terminou” empalhado, Brownie. To-
ficam mais altos, pessoas gritam lá fora. Seis e vinte e um: Dr. Sharif
dos nós aqui “terminamos” antes do doutor nos empalhar.
e Jamal se afastam da janela e gritam para que Lola se deite no chão.
Brownie - É, tem razão. Seis e vinte e um: a duzentos metros de distância um soldado atira,
(Vão saindo) sem mirar, para a frente. Seis e vinte e um e cinco segundos: Lola
cai no chão. Seis e trinta: o barulho cessa e os dois, que estavam
Rudy (De súbito) - Ah! E eu não pensei na ironia quando falei do
deitados até esse momento, voltam a olhar pela janela. Seis e trinta
criado-mudo. Pensei no móvel mesmo.
e vinte segundos: convencidos de que o perigo passou, voltam-se
(Saem) para Lola, e só então percebem que ela não está mais viva.
(Sai)
Cena 13
(Entra a Zebra) Cena 14
Zebra - São cinco e meia da tarde, é um domingo. Lola e o Dr. (Palco vazio. Entra Lola)
Sharif acabaram de me mudar de lugar. Em algum ponto da cida- Lola - A pele dos seres humanos é diferente dos animais que
de, perto dos túneis, o amigo do Dr. Sharif – o médico que virou tem muito pelo. Ela fica muito mais aparente.Como o processo

44 45
de taxidermização acaba causando manchas amarronzadas e pre-
tas, fazer isso com um ser humano é arriscado porque o resultado
pode ser bem feio. Acho que no meu caso foi quase um milagre.
Sei lá.Às vezes eu penso que o Dr. Sharif estava esse tempo todo
se preparando para quando chegasse a minha vez. Ele queria me
convencer a ir embora e no final das contas eu acabei aqui, para
sempre. E virei mais um motivo para ele não ir. Algumas coisas
me deixaram surpresa nessa minha vida depois da morte: não ter
encontrado minha mãe, nem meu pai, nem meu irmão, nem o
menino que morava perto. Nem o Toy. Eu também achava que
o Dr. Sharif falava com os animais que ele empalhou quando
ninguém estava vendo. Mas pelo menos comigo ele nunca falou.
Eu também não tentei falar com ele. Talvez ele não queira falar
DINAMARCA
comigo. Não sei. Mas eu não me arrependi de mudar a zebra de
lugar. Acho que foi a coisa certa. Acho que foi a coisa certa sim. Personagens
O Fantasma
(Luzes caem, em resistência) (usando uma roupa de esqueleto nos moldes de fantasia de Halloween)
O Menino
(que usará um saco de papelão na cabeça)
A Mãe
O Padrasto
A Menina

46
Cena 1 controlou Inglaterra, Noruega, Suécia, Islândia, parte das Ilhas Vir-
gens, partes da costa Báltica e o que é agora o norte da Alemanha.
(Palco vazio, apenas uma carteira de escola, antiga, de madeira. O Menino
está sentado nela, virado de costas para a plateia. Usa uma camisa da seleção (Ao longo do último texto, o som da narração vai sendo suprimido por uma
dinamarquesa da Copa de 1986 com o número 11 e o nome Laudrup nas cos- música até ser totalmente substituído. O Menino sai. Black-Out).
tas. Uma luz diagonal corta a cena, iluminando apenas o Menino e a carteira.
Todo o resto é penumbra. Entra um homem vestido de esqueleto – o Fantasma Cena 2
- que faz a narração a seguir, enquanto o Menino faz suas anotações.)
(Sala de uma casa, sofá virado de frente para o público, onde vemos um casal
Fantasma - A Dinamarca é um país escandinavo da Europa se- assistindo o vídeo do casamento do Príncipe Charles com Lady Diana Spen-
tentrional localizado a 56° norte e 10° leste, sendo o mais meridional cer. Os comentários e o som da gravação nos permitem concluir isso, já que as
dos países nórdicos, a sudoeste da Suécia e ao sul da Noruega, deli- imagens não são visíveis.)
mitado ao sul pela Alemanha. As fronteiras da Dinamarca estão no
A Mãe - Eu acho cafona traduzirem “Charles” por “Carlos”.
Mar Báltico e no Mar do Norte. O país é composto por uma grande
península e muitas ilhas, muitas vezes chamadas de Arquipélago Di- O Padrasto - “Príncipe Charles”. Muito mais bonito. De que
namarquês. É uma monarquia constitucional com um sistema parla- adianta ter um título desses e ser chamado de Carlos?
mentar de governo e economia mista capitalista com um estado de A Mãe - Também acho. (Noutro tom) Esse casamento foi bonito,
bem-estar social. Ela possui o mais alto nível de igualdade de riqueza não foi?
do mundo, sendo considerado o país com menor índice de desigual-
O Padrasto - Foi. Mas durou uns dez anos só.
dade social. (Na penumbra, ele entrega um bilhete ao Menino) Pesquisas
classificaram a Dinamarca como “o lugar mais feliz do mundo”, com A Mãe - Grande coisa. Essa cerimônia valeu bem a pena, acho
base em seu princípio de saúde, bem-estar, assistência social e edu- que ela nunca mais esqueceu. Um bilhão de pessoas assistindo no
cação universal e o segundo país mais pacífico do mundo, depois da mundo todo, sabe o que é isso?
Nova Zelândia. A Dinamarca também foi classificada como o país O Padrasto - A filha da puta era seguida desde que começou
menos corrupto do mundo, compartilhando o primeiro lugar com a namorar com ele. Morreu fugindo desses abutres, mesmo de-
a Suécia e a Nova Zelândia. (O Menino lê o bilhete enquanto a narração pois de separada. Grande merda esse luxo todo.
segue. Pega o saco de papelão onde guardava seu lanche, retira tudo de dentro, faz
dois buracos e o enfia na cabeça.) A origem da Dinamarca está perdida na A Mãe - Você não gosta de luxo?
pré-história. Sua fortaleza mais antiga é do século VII. Sua unifica- O Padrasto - Lógico que gosto. Mas nesse caso valia a pena
ção aconteceu em 456 e após o século XI, os dinamarqueses fica- para ele, não para ela. Ela foi só a loira gostosa que casou com o
ram conhecidos como vikings, colonizando, invadindo e negociando Príncipe e depois tomou um pé na bunda.
em toda a Europa. Em vários momentos da história, a Dinamarca
A Mãe - Olha esse vestido.

48 49
O Padrasto - Já vi um milhão de vezes. A Mãe - Não. (Virando-se para ele, já que até então ela ficara com os
olhos vidrados à frente) Vai pegar a pipoca?
A Mãe - Olha a tiara dela. Ouro, diamante... Até o sapato é en-
feitado com pérolas. O Padrasto - Você fez pipoca?
O Padrasto - O uniforme dele tem mais dignidade, não pre- A Mãe - Fiz, mas esqueci na pia. Pega lá, não quero perder essa
cisa de tanto fru-fru. parte dos cavalos.

A Mãe - Depois desse dia virou “princesa de Gales”, “Sua Al- (O Padrasto sai. Entra o Fantasma vestido com a roupa de esqueleto.Senta-se
teza Real”, “Condessa de Chester”, “Duquesa da Cornualha”, no braço do sofá, ao lado dela. Levanta metade da máscara, descobrindo o rosto
“Duquesa de Rothesay”, “Condessa de Carrick”, “Baronesa de até o nariz, acende um cigarro, fuma. O Padrasto volta com a tigela de pipoca).
Renfrew”, “Senhora das Ilhas” e “Princesa da Escócia”. O Padrasto - Faltou um pouco de sal.
O Padrasto - Você decorou isso? A Mãe - Já me basta um marido morrer de pressão alta.
A Mãe (Embevecida) – É tão lindo. O Padrasto (O Fantasma dá a volta e senta-se ao lado do Padrasto)
- Você sentiu isso?
O Padrasto - Você queria ter tido um casamento assim?
A Mãe - Isso o que?
A Mãe - Você não?
O Padrasto - Sei lá, um calafrio.
O Padrasto - Eu não. Encher o bucho de um monte de gente
interesseira que só está ali pela festa... Quantos tinham aí? Umas A Mãe - A janela da cozinha está fechada?
mil pessoas? O Padrasto - Não vi. (Noutro tom) Faz dois meses já, não?
A Mãe - Mil? Tinham mais de 3500 convidados. Todos os chefes A Mãe - Do que?
de estado da Europa participaram. O Padrasto - Que ele morreu.
O Padrasto - Todos? Duvido. A Mãe - Mais de dois meses. Nem parece que passou tanto tempo.
A Mãe - Está bem, menos o rei Juan Carlos da Espanha. O Padrasto - Dá impressão que é bem menos.
O Padrasto - Por quê? A Mãe - Fez dois meses semana passada. O Menino marca na
A Mãe - Sei lá, tinha alguma coisa a ver com uma disputa política parede do quarto.
qualquer. O Padrasto - Aqueles riscos que ele faz é por isso? Parece
O Padrasto - Você não se cansa de ficar assistindo isso e de- coisa de presidiário.
corando essas coisas? A Mãe - Deixa ele, coitado.

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(Enquanto o diálogo corre, o Fantasma come das pipocas e eventualmente O Padrasto - Ele me olha de um jeito estranho. Mesmo por
bate as cinzas do cigarro na tigela, sem ser notado). trás daquela máscara estúpida, eu sei que ele fica me olhando. Dá
para perceber. Outro dia eu fiquei encarando ele também. (Fala,
O Padrasto - E aquele troço que ele colocou na cabeça? Não
enquanto a Mãe, sem perceber, volta a prestar atenção ao vídeo) Eu pergun-
vai tirar mais não?
tei “o que é que você está me olhando?” e ele nada. Perguntei de
A Mãe - Deixa ele. Acho que ele ainda não assimilou a coisa novo, “o que é que você está me olhando?” e ele quieto. Eu segurei
toda. Ele tem aquele jeito dele, meio desajeitado. o braço dele e apertei, “o que é que você está me olhando? O que
O Padrasto - Para dizer o mínimo. Esse menino é meio estranho, é que você está me olhando?” mas ele continuou mudo. Eu quase
ele sempre esbarra nas coisas, derruba tudo, parece meio retardado. dei na cara dele, mas quando eu levantei a mão eu senti um negócio
estranho. Aquele olhar dele por trás do buraco, parecia congelado,
A Mãe - Deixa ele, coitado. parecia um olho de morto... (Para ela) Você está me ouvindo?
O Padrasto - E essa coisa de andar sempre com aquela mes- A Mãe (Como que saindo de um transe) - Desculpa, é que eu acho
ma camiseta? esses cavalos tão bonitos...
A Mãe - Ele sempre gostou de futebol. O Padrasto (Desliga a TV) - Escuta! Eu fiquei olhado para
O Padrasto - Ele jogou todas as outras roupas fora. E ele ele e ele não me respondia... Eu ia bater nele mas não consegui...
já não tinha muitas. Esse menino fede. Ele usa as mesmas rou- Porque ele me olhava como se estivesse morto! O olhar dele pa-
pas por dias. E aquele saco de papel que ele não tira da cabeça... recia de um morto... Parecia igual ao do pai dele quando morreu...
Quando será que ele lavou aquela cabeça pela última vez? Aquele olho meio turvo, mas que ainda ficava me olhando...
A Mãe - Os mortos não enxergam mais nada, querido.
A Mãe - Ele toma banho. Eu vejo ele usar o banheiro e ouço o
chuveiro ligado. O Padrasto - E se eles enxergassem?

O Padrasto - Só se ele fica batendo punheta. Banho é que A Mãe - Como assim?
não toma. Chega perto dele para você ver. Ele cheira mal. O Padrasto - E se eles enxergassem? E se ele estivesse olhan-
do para a gente?
A Mãe - Ele precisa de um tempo.
A Mãe - Essa história já está enterrada. Igual ele.
O Padrasto - Chega perto dele para ver.
O Padrasto - Eu dormindo na cama que era dele.
A Mãe - Eu não quero chegar perto dele para ver.
A Mãe - Ele morreu, não morreu? Que diferença faz você ou
O Padrasto - Experimenta!
qualquer outro? Ele morreu. Pressão alta. Tanto faz você ou qual-
A Mãe - Você por acaso chegou perto dele? quer outro.

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O Padrasto (Como que querendo se convencer) - Pressão alta. Tan- com uma bola de futebol. Sabia que antes das bolas de couro ou
to faz ser eu ou qualquer outro. qualquer outra coisa era meio comum comemorar as vitórias nas
guerras chutando a cabeça dos inimigos para lá e para cá? Parece
A Mãe (Levantando, pegando o Padrasto pela mão) - Vem, vamos deitar.
que inclusive eles colocavam duas estacas marcando por onde elas
O Padrasto (Levando a pipoca) - Mas ele me olhava, juro. Igual- deviam passar. Tipo um gol. (Ele segura a cabeça do Menino com as
zinho o olhar do pai. O mesmo jeito. duas mãos. AMenina passa, puxando uma sequência de bonecas amarradas
A Mãe - Vem, vamos. uma na outra. Ela para depois de um tempo e o observa, sem perceber o
Fantasma) - Me escuta.
(Saem)
Menina (Para o Menino) - Oi.
Cena 3 Fantasma - Você não tinha idade para ver, mas o Jesper Olsen
(Fica o Fantasma. entra o Menino. Ele observa no canto da cena para ter marcou aos 33 minutos do primeiro tempo. E de repente, um
apagão. Um apagão. E você perde o jogo.
certeza de que os dois saíram. Vira o sofá. As costas do móvel ficam voltadas
para a plateia revelando o que pode ser a parede de um quarto. Na superfície, Menina (Ela senta-se ao lado dele, porém nenhuma resposta) – Hoje
uma série de marcas de giz, como fazem os presidiários marcando os dias você não quer brincar?
que passam na parede. Ele tira uma mala – que pode ser a mesma mochila Fantasma - 5 a 1, de virada. Nem sempre o melhor time ven-
de escola da primeira cena – e pega um pedaço de giz. Marca um novo risco. ce. Eu comecei ganhando o jogo. Eu era como o Jesper Olsen.
Abre um diário ou caderno de anotações e folheia.) Até dois meses atrás. Até morrer.
Fantasma (Sentando-se ao lado do Menino, que fica com as costas
eretas e tira os olhos do caderno) - Me escuta. (Tempo) Você acha que Cena 4
eu sou só um pensamento na sua cabeça, não é? (O Menino tampa Menina (Silêncio. Ele continua parado) - Eu entrei porque a porta es-
os ouvidos) Você acha que tampando os ouvidos você vai conseguir tava aberta. Sua mãe falou que eu podia quando eu quisesse. Ela dis-
parar uma voz e ao mesmo tempo acha que ela é só uma imagi- se que você precisa de companhia de gente da sua idade e tal. (Tem-
nação sua. Percebeu que não faz o menor sentido? (Pausa) Me po. O Fantasma sai.) Você quer que eu vá embora? (Nenhuma resposta)
escuta. (Ele tira as mãos dos ouvidos) Eu ainda estou aqui. (ele tampa Tá bom. Desculpa te incomodar. Pensei que podia. (Ela faz menção
os ouvidos de novo) Você tampando os ouvidos assim parece um de ir embora. ele faz um gesto, como que pedindo para que ela pare) Você quer
goleiro segurando a bola para fazer cera. Ainda mais com esse que eu fique? (Ele permanece com a mão no ar) Por que você não fala?
saco de papel na cabeça. Parece uma bola de couro daquelas an- Você nunca tira esse negócio da cabeça? (Silêncio) Olha, não precisa
tigas. (Ele tira as mãos dos ouvidos de novo. O Fantasma se levanta e fala ficar chateado comigo, mas dá um pouco de medo... Na verdade eu
enquanto dá a volta no sofá) Engraçado a sua cabeça ficar parecida acho que “medo” não é a palavra certa... Acho que dá um pouco

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de... Aflição. Mas tudo bem, se você quiser ficar com isso na cabeça depois de vencer os três jogos da primeira fase, incluindo uma go-
não tem problema, eu não ligo. Sua mãe já tinha me avisado. (Pausa) leada de 6x1 no Uruguai. Em compensação, na segunda fase ela
Você consegue falar com isso aí? (Pausa) Você podia tentar. Eu acho perdeu de 5x1 para a Espanha, logo no jogo das oitavas. Mas não
que eu ia conseguir entender mesmo com a sua cabeça dentro desse tem problema. Nem sempre o melhor time vence.” (Para o Menino)
saco. (Pausa) Tenta. (Pausa) Hein? (Pausa) Qualquer coisa. (Silêncio) É É, eu também acho. (Ele faz um gesto para que ela continue lendo) “Eu
algum tipo de promessa? Sei lá, eu não acredito muito nessas coisas não tinha idade para ver os jogos na época, mas eu consegui uma
mas eu sei que as pessoas fazem isso, de prometer ficar sem comer fita VHS com os jogos da Dinamarca na Copa. Só que a minha mãe
um negócio que você gosta muito por não sei quanto tempo ou gravou o casamento do Príncipe Charles com a Lady Diana em
ficar sem fazer isso ou aquilo para que alguma coisa boa aconteça. cima.” (Para o Menino) Puxa, chato isso. (Sons ritmados de um colchão de
Tipo uma troca com Deus, acho. Foi isso? mola, fora de cena. Talvez gemidos abafados. Elapara de ler e olha para ele. O
Menino (Pausa. Ele fala, de forma abafada) - Rasmussen... Fantasma volta, observando a cena, de pé, atrás do sofá. Certo constrangimento
da Menina.)Bom... Acho que eu vou indo... Amanhã eu volto, ok?
Menina - Hein?
(Ele faz que sim com a cabeça. Ela sai. Ele vira-se depois dela sair, ficando
Menino - Rasmussen... Busk... de costas para o público, observando os riscos na parede.)
Menina - O que?
Cena 5
Menino - …Morten Olsen… Ivan Nielsen…
(Entra o Padrasto, com um roupão ordinário. Ele se prostra ao lado do sofá
Menina - O que é isso? virado.)
Menino - ...Rasmussen, Busk, Morten Olsen, Ivan Nielsen... O Padrasto - Posso entrar? (Nenhuma resposta. Ele se aproxima
Menina - Eu não sei o que é isso! mesmo assim) Esses riscos aqui na parede são por causa do seu pai,
Menino - ...Lerby, Bertelsen, Arnesen, Bergreen, Jesper Olsen, certo? (Ele não responde) É, eu também fiquei chateado quando ele
Laudrup, Elkjaer... morreu. Era meu irmão, afinal de contas. É chato, mas a vida é as-
sim. Você perdeu seu pai mas o pai dele perdeu um pai antes e as-
(Ele vai pegando ritmo e repetindo os nomes desde o começo, sempre na mesma sim por diante. Eu me lembro quando o seu avô morreu, a gente
ordem, cada vez mais rápido) era mais novo que você. Eu e o seu pai ficamos tristes e tal mas o
Menina - O que é isso? (O Menino para. aponta para a própria ca- que a gente ia fazer? É a vida. (Tempo. Olha os riscos na parede. Como
misa) Uma camisa de time. Ah, isso é um time de futebol. (Ele faz que contando) Sessenta e... Tudo isso? (Ele não demonstra reação. Tem-
sinal para que ela espere. Pega o caderno de anotações, folheia, estende a ela, em po) Esse saco. (Tempo, aponta para a própria cabeça) De papelão. Na
uma determinada página. Ela lê) “A Seleção de futebol da Dinamarca cabeça. Eu sei que isso é por causa do seu pai e que é até bonito
ficou conhecida como “dinamáquina” na Copa do México de 1986, fazer luto quando morre alguém, mas ficar insistindo nisso muito

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tempo é ficar ostentando sofrimento de um jeito meio esquisito. boca de cena, agora de costas para eles e abraçando o diário. Sons de TV
Meio menininha inclusive. Seu pai queria que você fosse um ho- ligada novamente. O Fantasma permanece próximo ao Menino.)
mem, que enfrentasse as coisas. (Tempo) Infelizmente é normal os
pais morrerem antes. Já imaginou se fosse o contrário? Se você Cena 7
tivesse morrido e ele estivesse aqui? Aí sim a coisa ia ser estranha.
(Mãe e Padrasto assistem TV. Sons ininteligíveis de diálogos de filme. O
Mas eu te digo: querendo ou não ele era doente. Nunca se cuidou.
Menino permanece meio que isolado à frente, mas no mesmo espaço que eles,
Tinha pressão alta. Fumava. Bebia. Fora outras coisas quando era
como se estivesse ao lado da TV ao invés de à frente dela.)
mais jovem e que não vem ao caso. (Tempo) Agora você é como se
fosse meu filho. (Ele vai saindo) Então tira essa merda da cabeça. A Mãe - Você não quer assistir o filme, filho?
(Sai. O Menino fica um tempo em silêncio. Se aproxima do sofá e faz outro O Padrasto - Me encheu o saco para pegar desenho e agora
risco, marcando mais um dia. Senta-se contra a “parede” do sofá.) ele nem dá trela.

Cena 6 A Mãe (Para o Padrasto) - Fica quieto! (Para o Menino) Você gostava
tanto desses desenhos, por que não quer assistir aqui com a gente?
(O Fantasma entra e senta-se um pouco mais a frente, observando o Menino.)
Fantasma - Essa é a hora em que você dá de ombros. (O Me-
Fantasma - Vai ficar tapando os ouvidos de novo? (Tempo. Ele
nino dá de ombros, sem se virar para eles)
se vira para o Fantasma mas não tampa os ouvidos) Melhor. Eu avisei que
essa história do saco de papelão na cabeça ia parecer ridículo. Mas O Padrasto - Eu nunca gostei desses desenhos onde tem bi-
se você quer assim, eu não vou discutir com você. Se eu fosse uma cho falando.
ilusão da sua cabeça eu não ia poder falar sobre coisas que aconte- A Mãe - Ah, é tão bem feito...
cem fora da sua imaginação, não concorda? (O Menino faz que “sim”
Fantasma - Presta atenção, mas fica mexendo no seu caderno.
com a cabeça. senta-se ao lado do Fantasma) Pois então. Nesse momento,
(O Menino permanece aparentemente alheio, folheando coisas no caderno e/
enquanto eu estou aqui com você, seu padrasto e sua mãe estão
ou anotando)
na locadora de vídeo aqui embaixo. Eles vão ter a brilhante ideia
de alugar um desenho animado para fazer você ficar menos triste. O Padrasto - Esse leãozinho é meio viado. Devia estar na-
(Tempo) Provavelmente eles acham que é por isso que chamam de quele outro desenho.
desenho “animado”. Então eu quero que você preste atenção. Você A Mãe - Que desenho?
pode se fingir de louco ou fazer de conta que não está dando muita
bola para o que eles vão assistir, mas presta atenção. O Padrasto - Do viadinho...?

(Durante a fala do Fantasma, a Mãe e Padrasto, viram o sofá de volta à A Mãe - Bambi?
posição inicial. Sentam-se. O Menino permanece sentando, mais próximo à O Padrasto - Isso, Bambi.

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A Mãe - Ele é criança, não é “viado”. É um filhote de leão. (Para O Padrasto - Ele foi avisar que o filho está no meio do estou-
o Menino) Vem, filho. Vem assistir. (O Menino vira-se para ela mas ro da manada. Entendi. Para ele pegar o filho.
volta a se isolar) A Mãe - Ele está entrando no meio dos bichos.
Fantasma - Fica aqui. O Padrasto - Até parece. Já tinham pisoteado ele.
O Padrasto - Ele não está vendo mesmo, dá uma adiantada. A Mãe - Xi, será que ele pega o filho?
A Mãe - Eu estou. O Padrasto - Já pegou. Desenho sempre dá tudo certo.
O Padrasto - Está nada, adianta isso. Pelo menos para um Fantasma (Para o Menino) - Vai.
ponto mais agitado. (Ela adianta) Isso, avança um pouco. Tem que
ter alguma luta, sei lá. Já é desenho de criança, ainda fica parado, A Mãe - O outro leão está olhando tudo.
com um monte de bichinho, enche o saco. O Padrasto - O que foi avisar ele?
A Mãe - Estou perdendo todo o filme porque você não tem A Mãe - É. (O Menino dá a volta e observa por trás do sofá, sem ser
paciência. notado) Ih, ele caiu de novo.
O Padrasto - Não é filme. É desenho. Aí! Para. (Ela para de O Padrasto - Pronto, já conseguiu pegar o filho.
avançar o filme) Que que é isso? A Mãe - Agora foi ele que caiu no meio dos bichos.
A Mãe - Você não me deixou ver o filme direito... Deve ser um O Padrasto - Já se salvou de novo, falei que eles sempre se
estouro de manada, sei lá. salvam. Vai subir o morro.
O Padrasto - Eu gosto desse outro bicho aí. É uma hiena, A Mãe - O outro leão está em cima do penhasco. Vai ajudar ele.
né? Gostei dela.
O Padrasto (Repetindo a fala do desenho) - “Irmão, me ajude”.
A Mãe - Você não quer ver, filho? Agora está mais animado. (Ele
não reage) A Mãe - Eles são irmãos?

O Padrasto - Quem é esse leão grande aí? Fantasma - São.

A Mãe - Acho que é o pai dele. Você não me deixou ver direito! O Padrasto (Repetindo a fala do desenho) - “Vida longa ao rei...”
(O Menino ouve, começa a prestar mais atenção) A Mãe - Ele derrubou o outro! O leão caiu!
O Padrasto - E esse outro leão? O Padrasto - Chega! Desliga essa merda!
Fantasma (Para o Menino) - O irmão. Fantasma - O leão caiu.
A Mãe - Não sei. A Mãe - Calma, é só um desenho...

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O Padrasto - Eu não quero ver isso. Desliga essa merda! (Per- Elkjaer... Rasmussen Busk Morten Olsen Ivan Nielsen Lerby Ber-
cebendo que o Menino estava vendo) Por que você está vendo isso? Isso telsen Arnesen Bergreen Jesper Olsen Laudrup Elkjaer...
não é filme para criança.
(Black out)
A Mãe - Vamos pro quarto, vamos. Já desliguei. Pronto.
(Saem. O Menino fica olhando a TV, já desligada. Senta-se no sofá.) Cena 9
(Palco vazio. entra o Padrasto. Ele senta no sofá. encontra o caderno do Me-
Cena 8 nino. Folheia. Para em uma página aleatória.)
Fantasma - Agora me escuta. (O Menino fica sentado no sofá, costas O Padrasto (Lê) - 78% da população faz parte da Igreja Na-
eretas, olhando para frente. Enquanto o Fantasma fala, os sons do colchão de cional, que é de tradição luterana. 10% são agnósticos, 3% mu-
mola continuam). Você esqueceu de mim? (O Menino faz “não” com a çulmanos, 1,4% ateus e 0,4% budistas. 28% acreditam em Deus,
cabeça) Você esqueceu quem você é? (Ele repete o gesto com menos convic- 47% acreditam em algum tipo de espírito ou força vital e 24% não
ção) Você é muito mais do que pensa que é. Você é o meu Laudrup. acreditam em nada. 25% acreditam que Jesus Cristo é o filho de
Se algum dia amou seu pai, vinga esse assassinato monstruoso. (O Deus e 18% acreditam que ele é o salvador do mundo. (Para a leitu-
Menino levanta-se, avança para a boca de cena. Deixa o caderno aberto so- ra. Comenta) Essa conta não bate muito... Tem porcentagem errada
bre o sofá. Um foco acende sobre ele, isolado pela escuridão. O Fantasma se aqui. Mas enfim... Então meu pecado é mortal em pelo menos 81%
aproxima, à beira do limite da luz que o foco propicia) Todo assassinato é dos casos. E agora? Pedir perdão adianta? (O Menino aparece com uma
monstruoso. Esse, porém, foi ainda pior. Não foi um apagão, não
faca, atrás do foco. O Padrasto se ajoelha) Perdão, Deus, perdão! Perdão
foi a morte se apoderando de mim como uma serpente que dá o
luteranos, perdão ateus, perdão muçulmanos, perdão budistas, per-
bote sem aviso, enquanto eu dormia na minha cama. Não foi um
dão meu irmão... Que merda... Que merda... Por que eu fui fazer
estouro de manada em cima de mim. A cobra que tirou a minha
isso? Me rendeu um dinheiro, uma casa, uma mulher – que já era
vida agora quer que você a trate como pai e rouba o meu lugar na
amante, de qualquer jeito... Valeu a pena? Viver com remorso, com
minha própria cama. 1x1, 2x1, 3x1, 4x1, 5x1, um jogo roubado.
medo de ser descoberto, com a consciência perturbada toda a noite
Lembra quem você é. Lembra disso meu filho. Lembra disso.
antes de dormir? (O Menino vai baixando a faca) Grande coisa ficar
(Sai. O Menino permanece sozinho, no foco. Ele volta a balbuciar a escalação com tudo aqui e viver desse jeito, sem poder encostar a cabeça no
da Dinamarca de 1986, acelerando, aos poucos) travesseiro em paz... (O Menino vai se afastando) Até porque mesmo
Menino - Rasmussen... Busk... Morten Olsen… Ivan Nielsen… que nunca ninguém descubra eu corro o risco de estar sendo visto
Lerby… Bertelsen… Arnesen… Bergreen… Jesper Olsen… por aquele que repara em tudo. Cada erro, cada trapaça, cada peido,
Laudrup… Elkjaer... Rasmussen, Busk, Morten Olsen, Ivan Niel- nada escapa... (O Padrasto vai se levantando) Bom, não adianta nada.
sen, Lerby, Bertelsen, Arnesen, Bergreen, Jesper Olsen, Laudrup, Agora já fiz a merda, voltar atrás vai ressuscitar meu irmão? (Olha

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para cima) Não vai, né Deus? Então que se foda. Que se fodam vo- Elkjaer... Rasmussen Busk Morten Olsen Ivan Nielsen Lerby Ber-
cês, luteranos! Que se fodam vocês, budistas, que se fodam vocês telsen Arnesen Bergreen Jesper Olsen Laudrup Elkjaer
muçulmanos, que se fodam vocês cristãos de todo o tipo, que se (Vai repetindo. A confusão entre os três continua, ao mesmo tempo em que o
fodam ateus, que se fodam os judeus que ainda não tinham entrado Fantasma aparece, atrás do sofá)
na conta, que se fodam os agnósticos. Eu já estou fodido mesmo.
Fantasma - Elkjaer... Gira de um lado para o outro... Ficou
(Sai. O Menino entra correndo no foco, com a faca novamente erguida. Perce- difícil... Tocou para Bergreen... Quando ele tocou para a frente,
be que não há mais ninguém ali. Senta-se. Luz abre, entra a Menina) passaram a rasteira nele. Pênalti para Jesper Olsen. É ele quem
vai cobrar. 25 anos. Bate de esquerda. Cobra o pênalti de forma
Cena 10 perfeita, deslocando o goleiro Zubizarreta.
Menina - Oi, eu entrei porque a porta estava aberta e a sua mãe (O Fantasma sai.Ele deixa a faca cair no chão. Eles se abraçam)
disse que... (Ele faz um gesto com a mão, como quem já sabe da explicação
A Mãe - O que está acontecendo, meu filho? O que está acon-
e ela para) O que é isso na sua mão? (Ele olha para a própria mão, até
tecendo?
então sem se lembrar que estava empunhando uma faca. Coloca a faca de
lado) O que você ia fazer com uma faca? (Ele fica parado, com o olhar (Entra o Padrasto)
fixo à frente. Ela se aproxima.) Fala comigo! Por que você está com O Padrasto - O que aconteceu?
essa faca na mão? (Entra a mãe) A Mãe - Nada, nada, ele pegou uma faca da cozinha e não queria
A Mãe - Quem pegou a faca grande da cozinha? (Vendo os dois no me devolver. Mas já está tudo bem, não é meu filho? Está tudo
sofá, a Menina discretamente aponta para ele) Menino! Você pegou a faca? bem, não está?
Eu já não disse que faca não é brinquedo? Me dá isso aqui! (Ela se O Padrasto (Aproximando-se) - Uma faca? O que você queria
aproxima dele e tenta tirar a faca de sua mão, ele resiste) Me dá essa faca! com essa faca? (Ele não responde. Para a Mãe) O que ele estava fa-
Menina - Entrega a faca para a sua mãe! zendo com a faca?

A Mãe - Seu doente! Solta isso! Para que você quer isso? A Mãe (Pegando a faca) - Nada, ele só não queria devolver. Está
tudo bem. Vamos para dentro, vamos.
Menina - Dá a faca para ela!
O Padrasto (Para o Menino) - Sabe do que você precisa, mo-
Menino (De início lentamente, com dificuldade, depois cada vez mais
leque? De porrada! Você queria fazer o que com essa faca, hein?
rápido) - Rasmussen... Busk... Morten Olsen… Ivan Nielsen…
Lerby… Bertelsen… Arnesen… Bergreen… Jesper Olsen… A Mãe (Para o Padrasto) - Ele só uma criança, calma!
Laudrup… Elkjaer... Rasmussen, Busk, Morten Olsen, Ivan Niel- O Padrasto - Criança é o caralho! Esse moleque é um doente.
sen, Lerby, Bertelsen, Arnesen, Bergreen, Jesper Olsen, Laudrup, Quero que se foda a idade! Fez cagada tem que se foder! (Para a

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Mãe) Cadê essa faca? Me dá aqui! Me dá! Eu quero que ele pegue Menina (Depois de um tempo) - Você ficou com vontade de matar
a faca de novo! Quero ver o que ele vai fazer com a faca! (Para a ele, não ficou? (Pausa. Ele faz que sim com a cabeça) É, eu também
mãe) Vai, dá para ele! fiquei. Mas eu acho que com uma faca não vai dar certo. Eles vão
esconder todas, pode apostar. (Tempo) Eu fui pesquisar sobre a
A Mãe (Para o Padrasto) - Para com isso, pelo amor de Deus! Olha
Seleção da Dinamarca. A de 1986. O Arnesen, daquele time que
a Menina aí...
você falou, não jogou no último jogo contra a Espanha, quando
O Padrasto (Para o Menino) - Olha aqui seu doente: dessa vez eles perderam de 5x1. Foi de virada, você sabia? O Olsen marcou
eu não vou fazer nada, por causa da sua mãe, entendeu? Mas fica o primeiro gol de pênalti no final do primeiro tempo, mas depois
esperto. Fica esperto porque eu ainda vou te bater muito, você dali a “dinamáquina” parou de funcionar.
ouviu? Muito! Não pensa que eu me incomodo com essa história Menino - Jesper Olsen.
de não bater em criança não. Você me ouviu?
Menina - Isso, o Olsen.
A Mãe - Vamos para dentro, vamos. Menino - Tinha dois Olsen.
O Padrasto (Insistindo) - Você me ouviu, caralho? Menina - É. Tinha.
A Mãe (Para o Padrasto) - A filha do vizinho está aí, não fica fa- Menino - Rasmussen – Busk - Morten Olsen - Ivan Nielsen – Lerby
zendo isso na frente dela. – Bertelsen - Arnesen – Bergreen - Jesper Olsen – Laudrup – Elkjaer.
Menina - Não tem problema, eu não ligo. Menina - O Arnesen não jogou esse jogo. O goleiro também
era outro.
O Padrasto (Para o Menino) - Você me ouviu?
Menino (Depois de uma pausa) - Hogh. (Pausa) Hogh – Busk -
Menino (Meio que sussurrando) - Você não é meu pai.
Morten Olsen - Ivan Nielsen – Lerby – Bertelsen – Arnesen…
O Padrasto - O que? Menina (Interrompendo) - Esse foi o que não jogou.
A Mãe - Vamos para dentro, vamos, deixa ele. Menino (Depois de uma pausa) - Andersen. (Pausa) Hogh – Busk
O Padrasto (Para ela) - Esse menino é doente, eu já cansei – Morten Olsen – Ivan Nielsen – Andersen – Bergreen - Jesper
dessa história de saco de papel na cabeça, desse olhar de morto Olsen - Bertelsen – Lerby - Michael Laudrup – Elkjaer.
atrás desses buracos, de não falar com ninguém, de ficar esbarran- Menina (Repete) - Hogh – Busk – Morten Olsen – Ivan Nielsen
do nas coisas e derrubando tudo, de ficar marcando a parede con- – Andersen – Bergreen - Jesper Olsen - Bertelsen – Lerby - Mi-
tando quantos dias faz que o pai morreu. (Para o Menino) Eu não chael Laudrup – Elkjaer.
sou seu pai mesmo. Seu pai morreu. Morreu, entendeu? (A Mãe Menina e Menino (Juntos, repetem a escalação. Fora de cena, voltam os
arrasta o Padrasto para fora de cena. Silêncio. Ficam a Menina e o Menino.) sons ritmados do colchão de molas.)

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Hogh – Busk – Morten Olsen – Ivan Nielsen – Andersen – Bergreen (Ela volta a se sentar, bem na ponta do sofá) A coitada teve que ir com a
- Jesper Olsen - Bertelsen – Lerby - Michael Laudrup – Elkjaer… rainha até o ginecologista real, para terem certeza de que ela era vir-
Hogh – Busk – Morten Olsen – Ivan Nielsen – Andersen – Bergreen gem. Não é de se estranhar que ela sofresse de bulimia e que no dia
- Jesper Olsen - Bertelsen – Lerby - Michael Laudrup – Elkjaer… do casamento estava quase oito quilos abaixo do seu peso normal...
Hogh – Busk – Morten Olsen – Ivan Nielsen – Andersen – Bergreen Você sabia disso? (A Mãe parece desconfortável, mas continua sentada.
- Jesper Olsen - Bertelsen – Lerby - Michael Laudrup – Elkjaer. Coça as mãos, esfrega os braços, por fim recolhe novamente a travessa e volta
a bater as claras) Sabia que ela tentou suicídio? Cinco vezes. Cortou
(Black-Out)
os pulsos. Se atirou de uma escada. Se jogou contra um armário de
vidro. Se cortou no meio de uma discussão com o Príncipe Char-
Cena 11 les. Tomou remédios... Príncipe Charles... O “cara de peixe”, como
(Sons repetidos de algo batendo, fora de cena. Entra a Mãe, com uma tra- ela chamava o marido. Sabia que o corpo dela foi embalsamado
vessa, batendo claras em neve. Passa por trás do sofá. Olha para frente. uma hora depois da sua morte? Provavelmente para esconder uma
Interrompe o processo e procura algo. Por fim, acha um controle remoto e gravidez. Sabia que tem quem ache que ela e o namorado foram
liga a TV. Novamente o vídeo do casamento. Senta-se no sofá e assiste. O mortos pelo serviço secreto britânico e a família real? (Ela para)
Fantasma entra. Senta-se ao lado dela. De tempos em tempos, olha para a Vocêsabia que o marido da Rainha pode ser um racista que não
TV, depois desvia o olhar para ela, volta para a TV. Em pequenas reações, podia aceitar que a mãe do futuro rei britânico se cassasse com um
ela parece sentir frio com a proximidade dele.) árabe muçulmano? Será que o Príncipe Charles, o “cara de peixe”,
fez parte do complô para poder se casar com a Camila Parker? (Ele
Fantasma (Levantando a máscara até o nariz e falando, enquanto fuma
se levanta. Ela continua parada, sentada) As pessoas fazem promessas
um cigarro.) - Você acha que se ela soubesse de tudo o que ia acon-
demais, juram por Deus, aquela coisa de “assim na Terra como nos
tecer depois ia ter se casado? (A Mãe não responde, obviamente não ouve
céus” e todo o resto. Eu não teria casado. (Sai. Ela fica parada.)
o que o Fantasma diz, mas reage sutilmente a ele) Julho de 1981. Perto do
nosso, pelas minhas contas. Mas não lembro mais. Pelo menos não
Cena 12
direito. As pessoas fazem promessas demais, juram por Deus, aque-
la coisa de “assim na Terra como nos céus e todo o resto”. Será que (Entra o Menino)
se ela soubesse de tudo o que ia acontecer depois ia ter se casado A Mãe - Filho. (Ele para e fica observando a mãe.) Eu vou prepa-
mesmo assim? Mesmo ele sendo um príncipe, mesmo depois da rar uma coisa para você. Seu aniversário está chegando, afinal de
Disney, depois do Andersen, depois dos contos de fada? Você acha contas. Achou que a mamãe ia deixar passar em branco? (Ele con-
que ele teve alguma coisa a ver com a morte dela? (Ela se levanta, meio tinua parado) Vou fazer aquele bolo que você gosta, com pêssego e
de súbito. Desliga a TV) Você acha que ela era meio louca? Sabia que abacaxi. Foi difícil achar abacaxi no mercado, viu? Acho que não
ele teve uma babá louca, que ameaçou o pai dela com uma faca? é época. (Ele continua parado) Você não fala nada, filho? (Tempo)

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Olha, eu sei que você ficou chateado com o seu padrasto. Ele é viver depois disso? Como um filho olha para o pai que ergueu uma
assim mesmo, fala as coisas sem pensar, mas é um bom homem. faca contra ele? Como a gente segue acreditando em um Deus que
Menino (Repete, meio em tom de pergunta) - Bom... Homem? manda o pai matar o filho só para testar ele? E se tivessem outros
personagens na história? E se a mulher do Abraão fosse quem tives-
A Mãe - Isso, filho. Ele é um bom homem. Ele ficou muito cha- se que matar o filho? E se a mulher tivesse que matar o Abraão mas
teado com você também. (Se aproxima do Menino) Ele é como se se o anjo não chegasse a tempo e ela acabasse matando mesmo? E
fosse seu pai, agora. se ela tivesse matado sem Deus ter pedido? Abraão tinha um irmão?
Menino - Meu pai? E se fosse ele quem tivesse matado Abraão e deixado o filho vivo e
casado com a mulher do irmão mesmo sem o anjo nem Deus terem
A Mãe - É, meu filho. Ele agora é como se fosse seu pai. Você
pedido nada? Como o filho olha para mãe depois disso?”
ofendeu o seu pai, entende?
(Ela para de ler. Ele fica um instante olhando para ela, pega o caderno das mãos
Menino - Você.
da mãe e sai. Bem devagar, a mãe retoma a ação de bater claras. Entra a Menina)
A Mãe - Eu o que?
Menino - Ofendeu. Cena 13
A Mãe - Você tem ódio de mim porque eu casei de novo? (Tem- Menina - Oi. (Ela não responde. A Menina vem para a boca de cena, de
po) O que você queria? Que eu também colocasse uma máscara de costas para a plateia, observando a Mãe bem de frente) Oi? Está tudo bem?
papel na cabeça e ficasse sozinha no meu quarto fazendo riscos de
A Mãe - Oi.
giz na parede a cada dia que passasse só porque o seu pai morreu?
Eu tenho defendido você. Eu não quero que ele te bata. Eu não Menina - O seu filho está aqui? Eu entrei porque a porta estava
quero que ele te incomode. Quer usar um saco de papel na cabeça, aberta e você me disse que eu podia entrar quando...
tudo bem. Você quem sabe. (Ele fica olhando a mãe, em silêncio)Você A Mãe (Interrompendo) - Não sei.
me odeia? (Silêncio)Por quê?(Tempo. O Menino pega seu caderno, folheia.
Menina - Hum. (Depois de um tempo) Posso fazer uma pergunta?
Encontra uma página. Entrega para mãe, aberto. Ela olha. Começa a ler.)“-
Tem um filósofo dinamarquês que fala que um dia Deus mandou A Mãe - Não sei.
Abraão levar seu único filho para o alto de um monte e oferecer ele Menina (Que entendeu a resposta como um “sim”) - Por que ele usa
em sacrifício. Eu nunca consegui escrever o nome direito. Mas ele aquilo na cabeça?
diz que Abraão fez o que Deus mandou mas quando levantou a faca
para matar o filho um anjo disse que ele não precisava mais, que era A Mãe - Pergunta para ele.
só um teste. Eu nunca parei para ficar pensando muito sobre o que Menina (Sentando-se no chão) - Ele me mostrou o diário dele.
ele escreveu, mas sempre ficava na dúvida: como eles conseguiam Mas não fala por que colocou aquele saco de papel na cabeça.

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A Mãe - Você leu? Afeganistão, em Kosovo e no Líbano. Eu não sei direito onde é
Kosovo, mas Afeganistão e Líbano é bem longe, não é?
Menina (Fazendo um sinal afirmativo com a cabeça) - Tem muita
coisa legal que ele escreveu. Você sabia que quando a Dinamarca A Mãe - Você tem certeza?
e a Suécia estavam em guerra criaram uma lei muito estranha que Menina - Que é longe?
até hoje está em vigor: se o mar que separa os dois congelar e
A Mãe - Não. Que ele não fala do pai no diário dele.
um sueco vier caminhando até a Dinamarca, os dinamarqueses
podem bater nele com um pedaço de pau. Mas essa lei não fala Menina - Eu não achei.
dos noruegueses. Quer dizer, norueguês pode. Sueco não. Sabia? A Mãe - Ele está aí, com você? O diário?
A Mãe - Não. Menina - Não.
Menina - E sabia que a Dinamarca foi o primeiro país a legali- A Mãe - Onde ele guarda?
zar a pornografia, em 1969?
Menina - Pergunta pra ele.
A Mãe - O que?
A Mãe - Ele marca a parede do quarto.
Menina (Sem dar atenção) - O inverno lá não é muito frio. A Menina - Ele risca a parede?
temperatura média é 0 °C. No verão a média é 16°C. O outono é
a estação mais chuvosa e a primavera a mais seca. A Mãe - Risca. Cada seis dias são seis riscos em pé, no sétimo
ele corta os seis com risco deitado e marca uma semana. Hoje foi
A Mãe - Você decorou tudo isso? o risco sessenta e oito.
Menina - Só as partes interessantes. Tem muita coisa. 99% da po- (Pausa. Ela não fala nada. O Menino entra, ao fundo, do outro lado da
pulação acima de 15 anos é alfabetizada, sabia? Tem muita coisa da cena. Observa.)
Copa do Mundo de 1986 também. Até hoje o esporte mais popular
Menina - Eu acho que eu volto depois então.
da Dinamarca é o futebol. Uma pena eles não terem ganhado a Copa.
A Mãe - Não. Pode esperar aqui. Ele já vem. Já deve ter visto que
A Mãe (O Fantasma volta.Permanece em pé, atrás do sofá. Observa) -
você chegou. Ele parece um fantasma, sabe? Você acha que está sozi-
Ele não fala nada do pai?
nha e de repente repara que tem uma pessoa com um saco de papel na
Menina – Do pai? Acho que não. Eu gosto da parte que ele cabeça olhando para você. Eu vou terminar isso na cozinha. (Ela sai)
fala da “Defesa Dinamarquesa”. Eu comecei achando que era a
defesa do time, sabe? Porque ele escreve meio assim, começa um Cena 14
assunto e depois muda. A “Defesa Dinamarquesa” é o exército (A Menina olha para os lados, verifica que ninguém está olhando o tira a mala
deles. Tem uns 140 mil soldados em missões pelo mundo, tipo no debaixo do sofá. O Menino vem e senta-se ao lado dela. Não há sobressalto

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algum, como se ela esperasse que ele aparecesse a qualquer momento. Abrem a Cena 15
mala. Ele pega o diário, folheia, acha um trecho, estende para ela.)
(Ainda no escuro, entra a Mãe com um bolo e velas acesas. A única luz da
Menina (Ela olha para a página. Olha em seguida para ele) - Isso aqui é cena, inicialmente, são apenas as velas. O Padrasto acompanha, um tanto
novo? (Ele concorda com a cabeça) Da última vez que você me mostrou contrariado com seu chapéu de papel na cabeça. Ao longo do diálogo dos dois,
não tinha. (Ele faz um sinal para que ela leia) “Meu pai sempre gostou da a luz abre aos poucos.)
Seleção da Dinamarca. Ele gostava muito do Jesper Olsen, mas dizia
O Padrasto - A gente precisa mesmo usar esses chapéus ridí-
que tinha um jogador que era diferente de todos os outros. O Jesper
culos na cabeça?
fazia os gols, mas o artista, que tinha visão de jogo e mestre em dar
gols aos companheiros era o Michael Laudrup. Com treze anos ele A Mãe - É um aniversário. De uma criança. Só tem a gente aqui.
já tinha sido sondado pelo Ajax, mas não foi para a Holanda porque Isso é um problema?
o pai dele, que também era jogador, achou que o filho era jovem O Padrasto - Você podia já ter deixado o bolo cortado pelo
demais. Vinte anos depois, ele acabou encerrando a sua carreira no menos.
Ajax, depois de conquistar o Campeonato Holandês e a Copa dos
A Mãe - A faca fica comigo. Não se preocupe.
Países Baixos. Ele e o irmão Brian seguiram os passos do pai. Seus
filhos mantiveram a tradição, assim como o filho do seu irmão. De- O Padrasto - Eu me preocupo. Me preocupo sim. Esse meni-
pois que o meu pai morreu eu fiquei pensando nisso. De manter a no é doente. Eu não sei por que você deixa ele usar aquele troço
tradição. Ele precisa de um Laudrup, mesmo depois de morto, para na cabeça. Parece uma assombração.
dar o passe para ele poder fazer o gol. Ele sempre gostou muito de A Mãe - Você cismou com isso.
futebol. E da Dinamarca. Da Dinamarca e das coisas da Dinamarca.
O Padrasto - Ele não gosta de mim.
Eu me lembro dele me contar que a peça de teatro mais famosa do
mundo se passa na Dinamarca. Um príncipe que quer vingar a morte A Mãe - Na cabeça dele você tomou o lugar do pai.
do pai, que foi assassinado pelo irmão que depois casou com a viú- O Padrasto (Olha para ela, pausa) - Na cabeça dele?
va.” (Ela para, olha para ele de novo, meio surpresa) Você acha que... (Ele
A Mãe - Você entendeu o que eu quis dizer.
interrompe com um gesto, para que ela continue lendo) “Ele me contou que a
história era muito antiga, que vinha de um conto do ano 1200.” (Ela O Padrasto - No final das contas ele está certo.
olha para ele) Nossa... (Continua a leitura) “E que esse conto de 1200 A Mãe - Esse assunto está morto e enterrado.
também vinha de uma lenda mais antiga ainda. Mas o importante é
O Padrasto - Meu irmão está morto e enterrado. O assunto não.
que em todas elas o assassino do pai morre no final.” (Ela para de novo.
Olha para ele. Pausa. Ele faz que “sim” com a cabeça.) O importante é que (A Menina entra)
em todas elas o assassino do pai morre no final. Menina - Oi... (Eles não respondem a saudação, apenas viram-se para
(Black-Out) ela. Pausa) Ele está aqui?

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A Mãe - Não. Eu achei que ele estivesse com você. Menina - Nada!
Menina - Ele estava... Mas achei que estivesse vindo para cá... O Padrasto (Aproximando-se dela) - Aquele diário dele, cadê?
Certeza que ele nãoentrou?
Menina - Deve estar com ele, ué. (Ele segura o braço dela) Me solta!
A Mãe - Ele não entrou aqui.
O Padrasto - Isso é mentira! Você é a única pessoa com quem
Menina - Ele estava estranho... ele conversa! Certeza que ele te falou alguma coisa!
O Padrasto - Ele é estranho. Menina - Alguma coisa? Alguma coisa tipo o que?
Menina - Não, mais que o normal... O Padrasto - Ele é doente. Pode pensar muita coisa. Você
A Mãe - Por quê? sabe que ele é doente. Que ele fantasia coisas. Ele usa aquele saco
de papel na cabeça por quê?
Menina - Ele me agarrou pelo pulso de repente... Ficou me
olhando, assim, com o braço esticado. Ficou assim bastante tem- Menina - Por quê?
po. Depois balançou a cabeça e soltou um suspiro. Aí ele me O Padrasto - Me fala!
soltou e foi andando para trás, sem tirar os olhos de mim. Mesmo
Menina - “Vida longa ao rei”? (Ele solta a Menina. A Mãe entra)
com o saco de papel na cabeça dava para ver que ele ficou me
olhando até chegar na escada. Aí desceu e eu não vi mais. Achei A Mãe - Ele não está lá. Mas deixou isso aqui. (Estende uma folha
que tinha vindo para cá. Hoje é o aniversário dele, não é? de papel para o Padrasto) Lê.
A Mãe - É. O Padrasto (Ainda olhando para a Menina, pega o papel que a
Mãe estende a ele. lê.) - “Mãe: eu queria derreter. Ou explodir. Ou
O Padrasto (Para a Mãe) - Vai ver se ele não está no quarto.
evaporar. Queria que o suicídio não fosse pecado. Por que depois
A Mãe - Se ele tivesse passado por aqui eu tinha visto. de dois meses só você foi se casar? Por que depois de dois meses
O Padrasto - Vai ver se ele não está no quarto. do pai ter morrido você troca ele pelo meu tio, pelo irmão dele?”
(Para a Mãe) O que é isso?
A Mãe - Eu vou. Mas eu sei que ele não está. (ela sai)
A Mãe - Continua.
O Padrasto (Para a Menina) - O que foi que ele te falou?
Menina - Do que? O Padrasto - “Ele não era bom para você? Acho que uma
gata ou uma cadela ia ter chorado mais antes de achar outro mari-
O Padrasto - De mim. do. Bom, eu não sei o que pode ter de doce nisso tudo. Acho que
Menina - Como assim de você? não verei mais vocês.” (Para a Mãe) Ele fugiu?
O Padrasto – É. O que ele te falou de mim? A Mãe - Eu não sei! Eu acho que ele vai se matar!

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O Padrasto (Retomando a leitura) - “Pode falar para ele comer não teve autópsia, que aquele meu amigo médico topou deixar
o bolo do meu aniversário. Por mim ele pode comer tudo. Eu por isso mesmo e assinou que ele teve um infarto... Dois meses
não faço questão. Não quero bolo nenhum, não quero carinho só né? Quem sabe não exumam o corpo? Quem sabe não desco-
nenhum. Se você quiser comer também problema seu. Só a meni- brem que a medicação dele estava trocada e ele morreu por isso?
na que mora do lado eu não quero que coma. Ela é minha única E quem trocou? Você vai assumir essa culpa? Ou fui só eu?
amiga. Duvido que vai me trocar por um pedaço de bolo.” A Mãe - Eu não posso deixar ele sumir!
A Mãe - Ele vai se matar! Eu vou ligar para a polícia! O Padrasto - Ele volta. É isso que ele quer, deixar você assus-
O Padrasto (Fazendo um gesto para ela parar) - Não! tada, fazer a gente brigar... Quem sabe forçar a polícia a entrar no
A Mãe – Me deixa! Eu vou chamar a polícia! meio... Você não entende?

O Padrasto - Fica aí! A Mãe - Eu não sei...

A Mãe – Antes que ele faça uma besteira! O Padrasto - Você quer me ver preso? Você quer ir para a
cadeia? Me fala?
O Padrasto (Para a Mãe, mais violento) - Fica aí mesmo. (Para a
Menina) Vai para a sua casa. (Ela parece ainda não entender o que está acon- A Mãe - Não...
tecendo) Vai, anda! Não tem mais nada para você fazer aqui! (Ela sai cor- O Padrasto - Pois é, nem eu. Então fica quieta, se acalma.
rendo. Para a Mãe) Você ficou louca? Como assim ligar para a polícia? Ele vai aparecer. E eu vou fazer questão de encher ele de porrada.
Para ele aprender.
A Mãe - Meu filho sumiu? Você não entende isso? Preciso explicar?
A Mãe - Deixa o menino. Ele está chateado, coitado...
O Padrasto - Seu filho é louco! Louco! Preciso explicar? Mas
ele não tem coragem de se matar! Você sabe que ele sempre foi bun- O Padrasto - Então esquece isso. A gente vai ficar aqui e
da mole. Ele é covarde. Não, ele não vai fazer nada. Daqui a pouco esperar. Entendeu? Ele vai voltar logo mais. Duvido que tenha
ele volta. Está querendo chamar a atenção, você não percebe? culhão de dormir na rua. A gente deixa a porta aberta, pronto.
Quando ele chegar eu juro que não encosto nele.
A Mãe - Ele pegou aquela faca no outro dia... Ele estava trans-
tornado... Fora de si... Nunca vi ele daquele jeito... A Mãe – Você jura? Jura que na bate nele?
O Padrasto - Ele teve um surto. Só isso! Quem quer se matar O Padrasto – O filho é seu, não é?
não fica avisando. Se ele fosse se matar você tinha encontrado A Mãe – É, é sim...
ele morto no quarto, não um bilhetinho idiota desse tipo. Agora
tudo bem! Quer chamar a polícia, vai em frente! Sabe o que vai O Padrasto – Então. Você resolve. Tudo bem?
acontecer? Eles vão perguntar do meu irmão, vão descobrir que A Mãe - Tudo...

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O Padrasto (Pega a faca que estava com a Mãe, corta o bolo) - Aqui. voltando.) Lá é o melhor lugar do mundo. É outra civilização. A
Come um pedaço. Ele não quis o bolo, a gente come. Pronto. (Ela gente ia poder fazer ginástica. Jogar futebol. Andar de bicicleta.
pega o pedaço da mão dele, ele corta outro) A gente comemora. Que se Subir em pau-de-sebo. Tomar banho de mar. E quando a gente
dane se ele não está aqui. (Come) Bom. cansasse deitava na beira do rio. (O Padrasto observa a Menina, atrás
do sofá.) E você ia me contar histórias do seu diário e a gente ia
A Mãe - Eu vou deixar o resto do bolo aqui no sofá, quando ele
escrever outras. A gente ia ser amigo da Rainha. E tomar chá com
chegar ele vê. Quem sabe ele vai estar com fome?
ela todo dia. E você ia se naturalizar. E jogar na Seleção deles.
O Padrasto - Isso, deixa. Mas deixa tudo cortado. Leva a faca
O Padrasto - Você entra aqui o tempo todo sem avisar?
para o quarto. Aliás leva todas as facas para o quarto. Não custa
Menina (Assustada) - Desculpa! Eu... Queria ver se ele tinha
nada ter cuidado.
voltado... A porta fica aberta, a mãe dele me disse que eu...
A Mãe - Está bem.
O Padrasto (Interrompendo, chegando perto dela) - Que você podia
O Padrasto - Vamos, deixa isso aí. (Ela corta o resto do bolo em entrar, assim, tipo casa da mãe Joana?
fatias e deixa sobre o sofá.Saem) Menina - Eu não sei quem é a mãe Joana...
O Padrasto (Olhando para ela) – Olha, aquela outra hora, que
Cena 16
eu peguei você pelo braço, me desculpa, viu?
(Entra a Menina, arrastando as bonecas,entre procurando algo e abatida.
Menina – Tudo bem.
Penumbra.)
O Padrasto - Quer bolo?
Menina - Ele não vai voltar mais? (Pausa) Ele não vai voltar mais?
Menina - Ele disse que não queria que eu comesse né? (Repetindo
(Pausa) Não... Ele foi embora... Foi embora...Hogh…Busk…Mor-
as palavras do Menino) “Se você quiser comer também problema seu.
ten Olsen… Ivan Nielsen… Andersen… Bergreen… Jesper Ol-
Só a menina que mora do lado eu não quero que coma. Ela é minha
sen… Bertelsen… Lerby… Michael Laudrup… Elkjaer… (Senta-
única amiga. Duvido que vai me trocar por um pedaço de bolo.”
se no sofá, ao lado do bolo. Noutro tom.) Você podia ter esperado mais...
A gente podia ter fugido... Fugido para algum lugar longe daqui... O Padrasto (Pegando mais um pedaço, comendo) - Foda-se. (Ri. De-
pois finge se corrigir, enquanto come) Ah, desculpa. Eu não sou muito
Para a Dinamarca... A Dinamarca é o melhor lugar do mundo...
educado, sabe? Não tenho essas frescuras, não precisa se ofender.
Eu sei... A gente ia ficar amigo da Rainha, a Rainha Margarida...
(Sentando mais perto dela) Quantos anos você tem?
(Pausa) Eu queria ter te trazido margaridas, mas murcharam todas
quando você sumiu... Você não sabia que eu também não era feliz Menina - Onze.
aqui? Você não podia esperar? A gente fugia. Ia para a Dinamar- O Padrasto - Idade bonita. Você parece mais velha, sabe?
ca. Lá sim. Tudo ia ser aventura. (Pausa. O Padrasto, ao fundo, vai Desenvolvida. (Tocando nela) Ele nunca quis beijar você?

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Menina - Quem? Não! usado como inseticida, mas que na cidade é usado como veneno de
Padrasto - Que bobo. Também, com aquele saco na cabeça... (Ofe- rato. Um grama pode matar uma pessoa de 60 kg em trinta minu-
recendo bolo para ela. O Fantasma entra. Observa) Pega um pedaço, come... tos. Ele não tem cheiro e nem gosto, e ataca o sistema nervoso cen-
tral, causando parada cardíaca e paralisia nos pulmões entre outras
Menina - Não quero.
coisas.” (Enquanto ela lê, ele se aproxima e vira ela para ele. Podemos ver que
O Padrasto - Come, anda. (Ela come, contrariada) Um pedaci- a boca da Menina ainda meio suja de bolo) Desculpa... Eu não queria ter
nho só... Ele não vai ligar... (Ela come rápido, limpando a boca com as comido... (Ele se aproxima mais dela) A gente podia ter fugido... Para
costas das mãos) Isso... Não é gostoso? a Dinamarca... A Dinamarca é o melhor lugar do mundo... A gente
Menina (Faz que vai levantar) - Eu acho que vou indo. ia ficar amigo da Rainha... Lá é o melhor lugar do mundo... Você
ia me contar histórias do seu diário... Você jogar na Seleção deles...
O Padrasto (Segurando a menina) - Espera... A gente está con-
(Devagar) Hogh… Busk… Morten Olsen… Ivan Nielsen…
versando...
Menino e Menina (Ele repete os nomes que faltam junto com ela) -
Menina - Me solta!
…Andersen… Bergreen… Jesper Olsen… Bertelsen… Lerby…
O Padrasto - Não grita! Michael Laudrup… Elkjaer… (Ela tomba nos braços dele)
Menina (Olhando fixamente para ele) - “Vida longa ao rei.” Fantasma - “Deponha-a sobre a terra, que de sua carne bela e
(O Fantasma, atrás do Padrasto, toca-o nos ombros. Ele larga a Menina, imaculada brotem as violetas...” (O Menino deita a Menina no chão. O
como que sentindo a presença) Fantasma continua a comer o bolo) Das vantagens de se estar morto: não
O Padrasto (Levantando) - Então fica aí... Para ver se aquele se preocupar mais com calorias, sódio, colesterol ou veneno. (Noutro
louco volta... Fica aí... (Saindo, ainda agindo como se tivesse sentido a tom. Enquanto o Menino sai de cena, o Fantasma continua a narração) A Es-
presença de alguém mais na sala) vai a merda... Vão a merda vocês panha vinha de duas vitórias, tinha um bom time e já tinha tirado a
todos...(Sai. O Fantasma pega o diário do Menino. Abre em uma página. Dinamarca da final da Eurocopa de 1984 nos pênaltis. Não tem pro-
Arranca. Estende para a Menina. Ela notadamente percebe ele ali.) blema. Nem sempre o melhor vence. O final pode vir antes. Como
se a história do futebol começasse com um jogo onde a cabeça do
inimigo era a bola e terminasse com a goleada de 6 a 1 contra o
Cena 17
Uruguai. 8 de junho de 1986. Celeste Olímpica contra Dinamáquina.
(O Fantasma acende um cigarro. O Menino entra. A Menina, sentada quase Logo aos 11 minutos Laudrup avança pelo meio, abre na esquerda
ao lado do Fantasma, lê a folha que o Fantasma lhe entregou, enquanto ele, para um chute certeiro de Larsen. Oito minutos depois, o Uruguai
sentado no sofá, se serve do bolo) tem um jogador expulso complicando a situação que piora ainda mais
Menina (Lendo)–“O chumbinho é um veneno ilegal, que não tem aos 41, depois de uma arrancada de Larsen pela esquerda que deixa
registro, mas que pode ser comprado bem fácil. É um agrotóxico Lerby na boca do gol, só com o trabalho de empurrar a bola para as

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redes. Aos 45, Francescoli cava um pênalti que ele mesmo converte
para a Celeste. No segundo tempo Laudrup marca o terceiro aos 52,
faz uma jogada individual para deixar Larsen anotar o quarto e mais
um passe perfeito para o mesmo Larsen marcar o quinto. Aos 43 do
segundo tempo, a “locomotiva humana” Larsen avança pela direita e
deixa Jesper Olsen livre para marcar o sexto e último gol.
(O Menino volta, carregando o saco de papel que antes usava na cabeça. O
saco contém um volume que sugere uma cabeça humana. Na outra mão uma
faca. Está todo sujo de sangue. Em off, a narração do jogo Dinarmaca 6 x 1 Sobre elefantes
Uruguai. Ele deixa o saco de papel cair no chão e vai chutando, enquanto anda
pela cena. O Fantasma apenas observa, enquanto termina de comer o bolo.) e coelhos
Off (Junto à música) - “(...) Laudrup... se der espaço ele vai embora...
Saiu do segundo... Elkjaer... Esse conhece... De perna esquerda ba- Personagens
teu... Goooool... É da Dinamarca, é como sempre de seu artilheiro Homem
Elkjaer... O toque é para Elkjaer... Vai para cima do Azevedo. Puxa Entre 30 e 40 anos
o cruzamento, a bola passa. Goooool... Da Dinamarca... Lerby
Mulher-Coelho
meia dúzia! Francescolli... Quem sabe aí pode sair alguma coisa, Por volta dos 30 anos, usa uma roupa de coelho (menos a cabeça)
um na marcação, outro na cobertura... Francescolli... Ele se jogou
Mulher da Long Neck
em cima da defesa, e o árbitro vai apontar a marca de pênalti. Fran- Idade indefinida, dança ao longo da cena parando apenas para
cescolli. Craque do time, ele contra o Rasmussen... Partiu Frances- desenhar o contorno do próprio corpo deitado no chão, com
colli bateu... Goooool... Do Uruguai! Francescolli número dez! Faz giz. Usa sapatos de dança e um relógio de pulso
o seu primeiro gol na Copa e o primeiro gol do Uruguai no jogo!
Goleiro de um lado, bola do outro! Não teve castigo, veja por outro (Observação: as músicas citadas nas rubricas são sugestões. Na realidade o
ângulo! Rasmussen escolheu o canto direito e ela foi no esquerdo... importante é que na seleção final apareça o trompete ou algum instrumento
Laudrup... Sai do primeiro... Vai fazendo fila... Se deixar ele vai lá de sopro que lembre, vagamente, o som produzido pelos elefantes)
dentro... Olha o Laudrup... Que gol! Gooolaço de Laudrup! É o gol
do artista, do craque, da grande fera! Anote o nome dele: Michael
Laudrup! Tem só vinte e dois anos de idade! Laudrup! Três para a
Dinamarca, um para o Uruguai!...”
(A narração vai sumindo enquanto a música sobe. Talvez nem haja tempo
de ouvir os seis gols. Luzes caem até Black-Out.)

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Cena 1 Homem - Não sei, eu não saí o dia todo.
(No Black-Out, começa Almost Blue, de Chet Baker. Foco. Vemos o Ho- Mulher-Coelho - E ontem?
mem, vestido com um roupão, como que recém saído do banho, sentado. Meio Homem - Que tem ontem?
encolhido, movimentos de vai e vem para frente e para trás com o corpo, aper-
Mulher-Coelho - Quando você saiu na rua estava frio ou
tando as mãos como que querendo se aquecer. Por fim, o Homem se abaixa,
quente?
pega uma caixa debaixo da cama e coloca no colo. Começa a remexer no con-
teúdo dela. Entra a Mulher-Coelho – vestida com uma roupa de coelho, me- Homem - Eu não saí ontem.
nos a cabeça, que carrega debaixo do braço – e senta-se ao lado dele na cama) Mulher-Coelho - Ok, da última vez que você saiu.
Mulher-Coelho - Você vai acabar ficando gripado desse jeito. Homem - Eu não me lembro.
Homem - Essa roupa deve ser bem quente. Mulher-Coelho - Então vamos pensar. Você está com frio,
Mulher-Coelho - Muito. Por isso eu não coloco a cabeça certo?
quase nunca. Homem - Agora?
Homem (Olhando para ela, aponta a cabeça de coelho que ela leva debai- Mulher-Coelho - É.
xo do braço) - Você nunca usava a cabeça quando distribuía aqueles Homem - Estou.
panfletos na rua?
Mulher-Coelho - Então. Você termina de se enxugar e co-
Mulher-Coelho - Panfletos? loca uma roupa.
Homem - Aqueles papeizinhos, não sei como você chama aqui- Homem (Apontando) - Na gaveta de baixo tem camisetas.
lo. É panfleto, não é panfleto?
Mulher-Coelho (Fora do foco, supostamente abrindo a gaveta en-
Mulher-Coelho - Ah, do restaurante. Não. (Pausa) Você quanto fala com ele) - Por que você coloca as camisetas na gaveta de
não vai vestir uma roupa? baixo e não na de cima?
Homem - Vou. Homem - Que diferença faz?
Mulher-Coelho - Eu podia emprestar a minha, mas você Mulher-Coelho - Camiseta – parte de cima. Gaveta de cima.
não ia gostar, acho. Calças-parte de baixo. Gaveta de baixo. É uma lógica, não? Até por-
que você deve trocar de camisetas mais do que troca de calças, fica
Homem - Nem ia servir.
mais prático. (depois de uma pausa) Todas as suas camisetas são pretas?
Mulher-Coelho - Vamos por partes, antes que você se res-
Homem - São.
frie. Está calor ou frio lá fora?

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Mulher-Coelho - Então pode ser qualquer uma. (Pega uma Homem - Cuecas e meias dentro da mala. Não desfiz ela toda.
das camisetas e joga para o Homem. ele deixa a caixa de lado e vai se vestin- Mulher-Coelho - Depois de um mês?
do com ela, mas permanece sentado) Onde estão as calças?
Homem - Eu saí pouco. Não precisei.
Homem - Na gaveta de cima.
Mulher-Coelho (Indo até a mala, que está próxima do armário,
Mulher-Coelho (Mesma busca) - Bom, menos mal que não
procurando meias) - Todas elas são brancas?
tem couro.Todas jeans.
Homem - Acho que sim.
Homem - Calça de couro nunca ficou bem em mim. Tem umas
mais claras outras mais escuras. Mulher-Coelho (Dando uma pausa na busca) - Você já estava
de cuecas?
Mulher-Coelho - Dever ter. Mas com essa luz parecem to-
das iguais. (Joga uma para ele) Você não emagreceu nem engordou Homem - Estava. Tem sempre uma seca no box. Eu lavo no
desde que Veio para cá? Certeza que todas servem? banho e deixo secando.

Homem (Enquanto se veste) - Da última vez que eu vesti estavam Mulher-Coelho - Muito ecológico. (Jogando as meias) Pronto.
todas boas. Homem (Calçando as meias) - Pronto.
Mulher-Coelho - Quando foi isso? Mulher-Coelho - Você vai descalço?
Homem - Não sei. Homem - Não. Os sapatos devem estar debaixo da cama.
Mulher-Coelho - Você não sai daqui desde quando, afinal? (Ela se enfia embaixo da cama e por fim volta com os sapatos dele)
Homem - Um mês, acho. Mulher-Coelho (Entregando os sapatos) - Quem está pagando
Mulher-Coelho - E quem traz comida? a sua conta aqui?

Homem - Eu telefono. Eles trazem. Tem um bar razoável aqui Homem - Eu tinha uma reserva.
no hotel. Eles fazem sanduíche. Mulher-Coelho - Tá, mas uma reserva não te desobriga de
Mulher-Coelho - Você não tinha parado de comer carne? pagar.

Homem - De queijo. Homem - Uma reserva de dinheiro, não de quarto.

Mulher-Coelho - Queijo que vem da pecuária. Mulher-Coelho - Ah sim. Isso é bom. (Pausa) Gostei do
nome do hotel.
Homem - Ok, a gente não precisa ter essa conversa de novo.
Homem (Ele coloca os sapatos. Ainda sentado.) - Sabia que você ia
Mulher-Coelho - Onde você guarda as meias?
gostar.

88 89
Mulher-Coelho (Ainda sentada no chão) - Quer que eu guar- construírem um prédio bem na frente da sua janela. O andar é alto,
de a caixa para você? mal dá para escutar o sino e mesmo assim são só umas quatro vezes
Homem - Obrigado. ao dia. (Andando pela cena, a luz acompanha) Aqui é a passagem para os
quartos, como não tem corredor, você já percebe que o espaço foi
Mulher-Coelho - Posso ver? bem aproveitado. (Luz abre quadrada em outro ponto da cena) Olha esse
Homem - Não. quarto. Percebe que ele é quadrado e que o armário embutido não
faz canto com a janela? Quer dizer, você pode colocar uma televi-
Mulher-Coelho - Eu estou aí?
são no quarto sem problema, entende? Aqui (luz segue) Tem o outro
Homem - Está. quarto, e o banheiro ali. Você... (Ele age como se a outra pessoa estivesse
Mulher-Coelho - Eu não olho. Tudo bem. (Ele estende a saindo do cômodo onde estão) Tem o banheiro e a cozinha ainda, você...
caixa para ela. Ela a coloca de novo debaixo da cama) Pronto? Espera, o que... (Como se a outra pessoa estivesse correndo, ele vai atrás,
até a sala) Ei! O que... (Se “debruça” sobre a janela) Puta que o pariu...
Homem - Pronto.
Puta que o pariu... (Senta no chão como se escorregasse pela parede. Tira um
(Luz abre, revelando todo o palco. Ele se afasta, para o fundo da cena, como celular do bolso) Alô... Moça, é uma emergência. Não, olha, eu estou
se chegasse perto de uma janela. Com os dois ainda em cena, começamos a aqui na rua... É, é desse telefone que eu estou falando, é um celular,
ouvir a introdução de My Funny Valentine. Entra a Mulher da Long Neck, não tem fixo aqui. Um sujeito acabou de se jogar... Não, moça, eu
que dança ocupando todo o espaço. Aos poucos uma mudança de luz faz com não sei, eu estou aqui em cima, olha, na rua...
que toda a cena se escureça, com exceção de um corredor central onde fica a
Mulher da Long Neck. Os dois saem de cena. A Mulher da Long Neck Cena 3
cruza o palco dançando ao som de Chet Baker)
(AMulher da Long Neck, que continuava dançando ao longo da cena, para,
olha alguma coisa no chão, deita-se. Desenha com um giz o contorno do seu
Cena 2 corpo. Dá um último gole na long neck. Olha a garrafa. Lê.)
(Ao mesmo tempo em que Chet Baker vai sumindo ao fundo, o Homem
Mulher da Long Neck - Água, malte, lúpulo. Graduação
volta. Passa a agir como se mostrasse um apartamento para um interessado
alcoólica 5,0%. Conservar ao abrigo do sol e calor, em local seco e
imaginário, com a luz acompanhando o deslocamento cômodo a cômodo)
sem odor. Não congelar. Evitar choque físico. (Olha para cima e desce o
Homem - Aqui é a sala (Luz abre, quadrada, desenhando um primeiro olhar, como que “desenhando” na imaginação a trajetória de uma queda. Volta
espaço), você pode perceber que é bem ampla, dá para fazer dois a olhar o rótulo.) Engraçado. O alcoolismo é a terceira causa de mortes
ambientes tranquilamente. (Chegando ao fundo da cena, observando a no mundo. Só perde para o câncer e para as doenças cardíacas. O
vista) Olha, tem uma igreja ali embaixo e uma escola estadual do cigarro mata muito, tudo bem, mas ninguém se envolve num aci-
lado, então você nunca vai perder a vista. Não corre o risco de dente de trânsito porque fumou um maço antes de dirigir. Ninguém

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bate na mulher e nos filhos porque deu um trago num Continental Mulher-Coelho (Sem dar muita atenção ao comentário) - Você
sem filtro. Ninguém se mete numa briga de bar e morre com tiro ou sabia que o vegetarianismo é a maneira mais fácil de conter o
facada porque mandou ver num Marlborão antes. O cara que fuma aquecimento global, o efeito estufa e a fome no mundo?
estraga a saúde dele mesmo, não tem mais vítimas envolvidas. Claro
Homem - Você acredita nisso?
que existem os “fumantes passivos”, mas a coisa é muito a longo
prazo, então não se compara com o problema do alcoolismo. (Er- Mulher-Coelho - Não é questão de acreditar. É científico.
gue a garrafa. Olha novamente o rótulo) Melhor aproveitar enquanto não Homem - Deixa eu te perguntar uma coisa: as pessoas estão se
proibiram. Ainda mais que contém glúten. (Sai de cena apenas para pegar suicidando por aí que nem loucas e você está preocupada com o
outra garrafa e retorna. Ouvimos Autumn Leaves, ao mesmo tempo em que entra aquecimento global?
a Mulher-Coelho – vestida com uma fantasia de coelho, menos a cabeça - com uma
tabuleta pendurada no pescoço onde se lê: “animais são para amar, não para co- Mulher-Coelho - Por que “que nem loucas”?
mer”. Ela lança ao ar panfletos, como se os distribuísse para pessoas imaginárias.) Homem - Tem uma onda de suicídios aí. Hoje mesmo eu...
Mulher-Coelho - Lentilha. Grão de bico. Quinoa. Arroz Mulher-Coelho - Eu acho que não é questão de ser louco.
integral. Animais são para amar, não para comer. (O Homem levan-
Homem - Tudo bem, mas o aquecimento global vai pegar um
ta-se, passa por ela) Animais são para amar, não para comer.
mundo vazio, se as coisas continuarem desse jeito...
Homem (Olhando o papel que recebe) - Isso é o nome do restaurante?
Mulher-Coelho - O aquecimento global é a consequência
Mulher-Coelho - Cozinha macrobiótica, 100% vegetariana.
do uso de recursos naturais de forma exagerada e irresponsável,
Homem (Enquanto guarda o papel no bolso) - Obrigado. que gera os gases que prejudicam o clima e potencializam o efeito
Mulher-Coelho - Não coma nada que tenha um rosto. estufa. O desmatamento das florestas, por exemplo.
Homem - Eles te pagam para ficar aqui distribuindo isso? Homem - Pois é, mas as pessoas vão acabar antes das florestas,
Mulher-Coelho - Na verdade, não. Eu faço isso como tra- já pensou nisso?
balho voluntário. Mulher-Coelho - Não dá para saber. Nesse meio tempo,
Homem - Sério? não justifica espremer o planeta como se fosse uma laranja.

Mulher-Coelho - Sério. Tem uma ONG que financia o res- Homem - Tudo bem, não estou dizendo para espremer o planeta
taurante. Nós ajudamos na divulgação como forma de difundir o como se fosse uma laranja, mas tem um monte de gente se suicidando,
vegetarianismo. sem o menor motivo aparente. Sem querer ser chato, mas eu fico mais
preocupado com as pessoas do que com os animais, me desculpe...
Homem - Entendi. Você é uma espécie de Hare Krishna vestida
de coelho ao invés da roupa laranja. Mulher-Coelho - Isso é antropocentrismo.

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Homem - Espera. Eu me preocupar que o meu vizinho pode pu- (A Mulher da LongNeck, que não parou sua dança, deita-se, repete mais
lar da janela para se matar e cair na minha cabeça ainda por cima, ao uma vez a sequência de desenhar no chão o contorno de seu corpo, desenhando
invés de ficar chateado porque ele fritou um bife antes está errado? também, desta vez, um cachorro ao lado da silhueta)
Mulher-Coelho - É natural que os humanos se imaginem o Mulher-Coelho - Quer dizer, o cachorro aparece na sua his-
centro do universo e que para manter sua qualidade de vida pen- tória só em uma situação de risco. Antes ninguém lembrava dele.
sem que qualquer coisa vale. Mas provavelmente é esse tipo de Homem (Desistindo) - Tudo bem, pode voltar ao efeito estufa.
pensamento que gera o impulso do seu vizinho se jogar da janela
Mulher - Enquanto o seu vizinho pula da janela, tem um monte de
e cair em cima de você, não acha?
florestas que viram plantação de soja ao invés de ajudar no equilíbrio
Homem - Certo, você fala dos “humanos” como se não fosse do clima, das chuvas, da biosfera, já pensou em inverter a situação?
gente. Você acha que é o que? Um coelho?
Homem - Ué, mas não são vocês vegetarianos que adoram soja?
Mulher-Coelho - Se eu fosse um coelho não mereceria sua
Mulher-Coelho - Esse é um engano comum. A maior par-
atenção?
te do desmatamento que visa plantação de soja é para ração ani-
Homem - Se você fosse um coelho não estaria falando comigo. mal, não alimentação humana. Ou para extração de madeira para
Mulher-Coelho - E teria menos direito à vida do que o seu carvão. Mas principalmente, para dar espaço para os bois. Sabia
vizinho? Isso é especismo, sabia? que só na Amazônia tem 70 milhões de bois?
Homem - Ah, meu Deus... Homem - Bom, alguém deve comer essa carne toda.
Mulher-Coelho - Um Deus criado à sua imagem e seme- Mulher-Coelho - Claro, 70 milhões de bois infelizes, con-
lhança, aposto. Jamais um Deus em forma de... coelho, por exem- finados em espaços menores do que deveriam, comendo ração
plo. É claro, a sua espécie tem que ser mais importante que as com um monte de hormônios, sendo sacrificados de maneira dis-
outras. Por isso você deve achar normal usar animais em testes cutível... Você gosta de cinema? Já assistiu o “Terráqueos”? (Sem
cruéis, contanto que a sua espécie saia na vantagem. dar tempo para que ele responda) Cara, é um filme que mostra a nossa
Homem - Mas eu... conexão com a natureza e como os animais são tratados, confina-
dos para servir de alimento...
Mulher-Coelho - Você, que é mais inteligente que um coelho,
também não acha que justamente por isso tem mais responsabilida- Homem - Não assisti.
des e deveres em relação aos seres vivos com capacidade de sentir Mulher-Coelho - Pois devia. Sabia que além do desmata-
igual à sua, mas com menor poder de decisão, como os animais? mento os animais produzem, com a digestão, gás metano, que é
Homem - Tudo bem. Meu vizinho pode se jogar do prédio e perigoso e ruim para o clima?
cair em cima de um cachorro, por exemplo. Melhorou? Homem - Boi peida.

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Mulher-Coelho - Uns 40% do metano vêm da pecuária Homem (Depois de um tempo, olha para ela, retira novamente o papel do
bovina. E esse gás é vinte vezes pior que o CO2. Ou seja, a pecuá- bolso, olha) - Você costuma comer lá também?
ria é bem pior para a atmosfera do que os carros, sabia?
Mulher-Coelho - Eu praticamente só como lá. O almoço
Homem - Certo. Você acha que isso tudo vai fazer eu ficar com está dentro do pacote.
mais vontade de ir até o seu restaurante.
Homem - E você já almoçou hoje?
Mulher-Coelho - Tem mais. 64% do total de amônia – que
Mulher-Coelho - Só as três horas, depois que eles fecham
causa a chuva ácida - vêm da pecuária e prejudica os oceanos.
para os clientes normais. Por quê?
Sabia que os oceanos absorveram 48% de todo C02 emitido pelos
humanos na atmosfera nos últimos 200 anos? Homem - Eu vou almoçar lá hoje então.

Homem - Eles fazem vocês decorarem tudo isso e ficarem dis- Mulher-Coelho - Você vai ver como se acostuma bem rá-
tribuindo esses panfletos com roupa de coelho? pido.
Mulher-Coelho (Resoluta) - Tem mais. 75% dos peixes que Homem (Saindo) - Vamos ver. Se ninguém pular de um prédio e
você vê no mercado vem da pesca predatória, que ameaça a exis- cair em cima de mim.
tência de várias espécies como o atum e o linguado. Os corais (Black-Out)
também estão se deteriorando pela acidez das águas. Além disso,
a pesca em águas profundas pode destruir corais de centenas de
Cena 4
anos. Para que a recuperação da vida marinha fosse possível, as
águas precisariam estar limpas, o que está cada vez mais difícil. Mulher da Long Neck - (Novamente deita-se para desenhar
o corpo. Sentada, dentro do desenho, dá um último gole na cerveja) Se um
Homem - Olha, tudo isso é muito interessante, mas eu retiro o
suicida levasse em conta a maior eficácia e rapidez e a menor
que eu disse. Eu prefiro os Hare Krishnas.
quantidade de dor ou desconforto possíveis, provavelmente não
Mulher-Coelho - E tem as criações de porcos também. Sa- se atiraria do alto de um prédio. Apesar das chances dele morrer
bia que uma criação de porcos média produz a mesma quantidade serem de algo em torno de 93,4% - considerando uma altura ra-
de fezes de uma cidade de12 mil habitantes? E que essas fezes e zoável, claro – pode demorar até cinco minutos, tirando o tempo
urina ficam depositadas no solo e geram risco de contaminação da queda. Do mesmo jeito, cortar os pulsos, apesar de popular, é
das águas? Por isso não é uma questão de acreditar ou não, é cien- doloroso, demorado e pouco eficaz. A chance de a pessoa sobre-
tífico! Animais são para amar, não para comer. viver é de 94% e a dor, em uma escala de 0 a 100, pode chegar a
(Nova silhueta desenhada pela Mulher da Long Neck. A cada vez que isso 71. (Mesmo jogo – sai, pega outra garrafa, volta, segue a dança.Um foco no
acontece, ela sempre deixa a garrafa no centro do desenho, sai, e retorna com outra) canto direito da boca de cena se acende. Mulher-Coelho.)

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Mulher-Coelho - Quando a gente trabalha na rua, distri- ter para quem. (Ele faz menção de pegar a carteira como quem fosse pagar
buindo coisas de qualquer tipo, as pessoas devem achar que a diretamente a ela) Não, eu não pego em dinheiro.
gente não presta atenção em nada, que a coisa toda é muito me-
Homem - Mas eu...
cânica. Pelo contrário. Pelo menos eu prestava atenção em tudo
enquanto distribuía aqueles panfletos. Quando eu te vi dobrando Mulher-Coelho - Não pego.
o quarteirão já percebi que tinha alguma coisa estranha. Eu tinha Homem – Você não tem... Sei lá, a luvinha da roupa de coelho?
feito uma regra para mim mesma: eu distribuía aqueles flyers para
Mulher-Coelho – Eu nunca uso. Atrapalha para distribuir
seis pessoas seguidas, depois deixava passar duas pessoas e reco-
os flyers.
meçava a contar. Bom, quando você passou você deveria ser o
segundo da leva dos que não iam ganhar nada, mas eu quis falar Homem – Ah... Eu nunca lembro dessa palavra... “Flyer”...
com você. Eu sei lá porque, mas me deu vontade. (Enquanto ela (Noutro tom) Mas como você faz no dia a dia?
fala, a Mulher da Long Neck traz uma série de coisas para a cena: uma mesa Mulher-Coelho – A gente já toca em sujeira demais. Por
dobrável, duas cadeiras, pratos, etc. Senta-se em uma das cadeiras e observa isso eu não pego em dinheiro.
a Mulher-Coelho até que a fala dela termine) Eu não achei que você
Homem - Mas não devia ser o contrário? Já tem tanto micróbio
fosse gostar do almoço de verdade mas também achei melhor
mesmo que não faz diferença.
não te perguntar isso. (O Homem senta-se na cadeira que ficou vazia,
mas não interage com a Mulher da Long Neck) Foi bem estranho você Mulher-Coelho - Esse é o pensamento errado. É a mes-
ter achado normal que eu não tivesse trocado de roupa depois do ma coisa da pessoa que usa açúcar no café porque já comeu
restaurante fechado, mas fiquei com medo de tocar no assunto e demais no almoço mesmo. Tudo o que você puder evitar já é
descobrir que talvez você achasse legal. (Ela se aproxima da mesa, a um lucro.
Mulher da Long Neck sai de cena liberando o lugar para ela, que se senta) Homem - Sei. Você é uma daquelas pessoas bem geração saúde,
Homem (Comendo) - É, até que você tinha razão. A comida não que não coloca nada que não seja natural para dentro do corpo.
é ruim não. Mulher-Coelho - Só tinta.
Mulher-Coelho - E já são mais de três da tarde. Como o Homem - Tinta?
restaurante está fechado e normalmente só a gente come depois
Mulher-Coelho - É. Eu sou tatuadora.
desse horário, tecnicamente você ganhou um almoço grátis.
Homem - Não, não precisa... Homem (Depois de uma pausa) - Sério?

Mulher-Coelho - Não tem mais ninguém aqui. A moça Mulher-Coelho - Sério. Você acha isso estranho?
do caixa já foi inclusive. Mesmo que você quisesse pagar não ia Homem – Não. É que eu nunca ia imaginar uma tatuadora...

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Mulher-Coelho (Interrompendo) - É por isso que eu uso essa e eu ficava segurando um espelho com a mão esquerda enquanto
roupa. Esse foi um dos poucos empregos onde as pessoas não tatuava com a direita. Aqui do lado esquerdo eu fiz um elefante
tem preconceito, até porque minha pele fica toda coberta. africano e do lado direito um indiano. Embaixo do seio esquerdo
tem um rinoceronte e do direito um lêmure. Ele é bem fofo. Aí nos
Homem - Tatuadores geralmente tem as mãos tatuadas.
ombros eu fiz um mapa-múndi que se divide em dois, cada metade
Mulher-Coelho - Eu não tatuo as mãos. de um lado, com as áreas de desmatamento em preto. Essas são as
Homem - Por quê? maiores. Nos espaços entre uma e outra eu coloco bichos menores.

Mulher-Coelho - Porque eu mesma me tatuo. Não deixo nin- Homem - Então nas costas você não tem nada tatuado.
guém marcar o meu corpo além de eu mesma. Então eu ia conseguir Mulher-Coelho - Não. Eu ia tentar, mas acabei achando que
tatuar a esquerda mas a direita não - eu sou destra, sabe? – daí achei me- ia ser muito complicado depois de uma hora no espelho decidindo
lhor não tatuar nenhuma das duas. Fora que ajuda você conseguir cobrir se fazia ou não. Ficou uma pinta, só. Desisti.(Olhando o prato dele)
se quiser. Tem um pessoal que diz que isso é falta de atitude minha e tal. Acabou?
Homem – Mas o normal não seria você trabalhar... num estúdio Homem - Hein? Ah, já. Obrigado.
de tatuagem, por exemplo? Mulher-Coelho – Não quer mais nada?
Mulher-Coelho – Ah, sei lá... (Pausa) Homem – Não, estou bem mesmo.
Homem - O que? Mulher-Coelho – Se quiser, pode comer. É tudo orgânico
Mulher-Coelho - Nada. e feito no dia, eles vão doar o que sobrar para um banco de ali-
mentos depois.
Homem - É que deu a impressão que você ia falar alguma coisa.
Homem – Tudo bem mesmo.
Mulher-Coelho (Meio indecisa) - Ah...
Mulher-Coelho – Está bem então.(Ela pega o prato e coloca
Homem - Hum?
sobre o seu. Sai levando os dois)
Mulher-Coelho - Na real eu não sou uma tatuadora muito
Homem (Percebendo que a intenção dela é lavar os pratos) - Pode dei-
boa, sabe? Eu gosto dos desenhos que eu faço em mim, mas não
xar, eu posso fazer isso.
acho que eles são bons o suficiente como aqueles que o pessoal
faz questão de ostentar e tal. Mulher-Coelho (De fora de cena) - Tudo bem. É melhor por-
que eles têm câmeras na cozinha, podem ficar perguntando quem
Homem - É, não posso opinar. era o cara que veio filar um almoço grátis. São só dois, não tem
Mulher-Coelho (Enquanto aponta o próprio corpo) - Aqui no pei- problema. E daqui eu ouço você. E eu tenho prática em usar pou-
to eu fiz uma águia americana. Deu trabalho porque foi a primeira ca água. (Noutro tom) O que você faz, aliás?

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Homem - Eu era corretor. Mulher-Coelho - Assim. O cara se matou mas meio que...
Mulher-Coelho - Corretor de imóveis? sumiu. Tem testemunhas, todo mundo viu o corpo caindo, se es-
borrachando, mas quando chegaram perto – puff! - simplesmen-
Homem - É. Mas eu acho que me aposentei. te sumiu. Nem sangue, nem corpo, nem nada. Não é estranho?
Mulher-Coelho - Esse ramo está meio em crise, não está?
Homem - O cara do prédio sumiu?
Homem - Acho que eu é que estou em crise com o ramo.
Mulher-Coelho - Sumiu. Você não tinha ouvido ainda?
Mulher-Coelho - Eu acho estranho um emprego onde (Enquanto passeia pelos desenhos no chão) Tem outros caras se matan-
você fica entrando na casa das pessoas. De gente que você nem do por aí do mesmo jeito que sumiram também. Está todo mun-
conhece. Tem tanta história, não? do falando disso. O sujeito cai no chão, se estropia todo, morre,
Homem (Concordando com a cabeça, mesmo sabendo que ela não o vê) - mas quando você chega perto não tem mais nada ali. Eu sempre
Muita história. penso nisso, sabia?

Mulher-Coelho - Você viu que um sujeito se jogou de um Homem - Numa explicação?


prédio ali perto de onde a gente se encontrou? Mulher - Explicação?
(Novo desenho no chão da Mulher da Long Neck) (Mais um desenho da Mulher da Long Neck)
Homem - Vi. Homem - É, de o porquê as pessoas sumirem.
Mulher-Coelho - As pessoas estão se suicidando muito es- Mulher - Não. Em me matar. Eu tatuei seis coelhos aqui no
ses últimos tempos. braço. Toda a vez que eu penso a sério nisso e desisto, coloco um
Homem - Fui eu que te disse isso. Mas você estava preocupada coelho para lembrar.
demais com o efeito estufa. Homem (Pausa. Olha para ela) - Por quê?
Mulher-Coelho (Voltando) – Pronto. Viu como foi rápido. Mulher - Ah, para mim o coelho é um símbolo de vida, sabe?
Homem – É, você é boa nisso. Pelo menos eles estão se reproduzindo o tempo todo. (Noutro tom)
Lembra daquela piada do coelho pai e do coelho filho?
Mulher-Coelho - Sabia que eles não encontraram o corpo?
Homem (Sem dar muita atenção para a história da piada) - Você pen-
Homem - Como assim?
sa em se matar?
(Os dois vão até o desenho que a Mulher da Long Neck fez no chão, obser-
vam, enquanto a Mulher da Long Neck vai levando embora as coisas que Mulher-Coelho - O tempo todo.
havia trazido para a cena) Homem - Como assim?

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Mulher-Coelho - É verdade. Mas eu queria achar um jeito Me processar depois? Me prender? Eu só acho que é um tabu besta
bacana, sabe? A vida as vezes parece tão sem sentido que pelo me- não poder discutir sobre isso. Sem aquele papo de que o cara “é
nos a maneira que você escolhe para se matar deveria ser bem foda. covarde perante a vida” e tal. Cada um sabe de si mesmo, não?
Homem - Se todo mundo agora some depois que morre já me Homem - É, mas tem muita gente que acaba fazendo isso por
parece bem foda. impulso. Deprimido, drogado, sei lá.
Mulher-Coelho - “Bem foda” para mim, não para os ou- Mulher-Coelho - Tem sim. Mas você nunca pensou nisso?
tros. Tem um monte de sites na internet com fóruns de discussão
Homem - Não “o tempo todo”.
sobre isso, mas nenhum deles aceita trocar ideias sobre como se
matar, nem dicas, nem nada. Falam que é “apologia”. Mulher-Coelho - Tá, não o tempo todo. Mas pensou.
Homem - E você queria falar sobre como se matar pela internet? Homem - Todo mundo deve ter pensando um dia. Ainda mais agora.
Mulher-Coelho - Qual o problema? Uma vez me disseram Mulher-Coelho - Então, não quero saber por que sim ou
que tinha um livro que ensinava o melhor jeito de se matar. Eu por que não. Mas me conta: como você faria, se fosse se matar?
estou cagando para as implicações religiosas ou filosóficas, estou
Homem (Depois de pensar um tempo) - Acho que me jogava do alto
preocupada com a coisa mesmo, entende? Sei lá... O ser humano
de um prédio.
fez tanta cagada com o planeta, não pensa duas vezes antes de
foder com o meio ambiente, com a fauna, com o clima, mas acha (Outro desenho)
um absurdo que uma pessoa simplesmente resolva acabar com a Mulher-Coelho - Nossa, sério?
própria vida. É assim: você é livre para foder com o planeta ou
para se matar aos poucos consumindo toda essa merda que colo- Homem - É, por quê?
cam na comida, contanto que pague direitinho ao longo da vida Mulher-Coelho - Só porque está na moda?
inteira. Mas se quiser meter uma bala na cabeça, cortar os pulsos
Homem - Não. Eu já pensava antes.
ou pular da janela não pode. É feio. É errado.
Mulher-Coelho - Deve doer, não?
Homem - Você parece bem engajada em salvar o planeta. Se
todo mundo que se preocupa com isso resolvesse meter uma bala Homem - Depende do tamanho do prédio, acho. Um bem alto
na cabeça não ia sobrar nada mesmo. Nem a esperança de que um acho que ia fazer você chegar no chão com tanta força que nem
dia alguma coisa mude. ia dar tempo de sentir nada.
Mulher-Coelho - Olha, eu não vou ficar defendendo o sui- Mulher-Coelho - É, pode ser. O cara que se jogou do pré-
cídio porque eu acho um contrassenso, sabe? Até porque quem me dio hoje não deve ter sentido nada. Era bem alto. Engraçado que
impede? O dia que eu quiser me mato e pronto. Vão fazer o que? ele caiu bem na frente de uma igreja. Será que dá sorte?

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Homem - Talvez tenha dado sorte para quem resolveu não ir à Mulher-Coelho - É. Sabia que eles nunca esquecem de na-
missa naquele horário. da?Aquele papo da “memória de elefante”... Você já deve ter ouvido
Mulher-Coelho - É. Morrer com um suicida caindo em falar isso. É cientificamente provado mesmo, não é tipo uma piada.
cima de você é muita metalinguagem. Homem - E daí?
Homem - É.(Pausa) Mas e você? Mulher-Coelho - Daí que deve ser foda não esquecer de
Mulher-Coelho - Como eu faria? nada. Você imagina? Eu sei lá, mas acho que eles se isolam para
morrer quando dá um “tilt”, sabe? Quando a cabeça não aguenta
Homem - É.
mais guardar tanta coisa. Deve ser horrível não esquecer de nada.
Mulher-Coelho – Ah, eu sempre penso em algo menos
rápido. Tomar um monte de comprimidos, mas de um jeito que Homem - É. Deve dar um “tilt” em algum momento.
você dê uma viajada, não que desmaie e pronto. Essa combinação Mulher-Coelho - Sempre tem umas coisas que é bom es-
eu não pensei em como seria. quecer.(saem)
Homem - Pensei que tivesse o lance de cortar os pulsos. Por
causa dos coelhos e tal. Cena 6
Mulher-Coelho - Ah sim, isso, cortando os pulsos e entrando (A Mulher da Long Neck desenha um novo contorno no chão. Senta-se.Dá
numa banheira. É batida, mas tudo bem. A combinação dessas duas um último gole na cerveja. Olha o relógio de pulso.)
coisas. De repente algum remédio que ajude a fazer o corte não doer. Mulher da Long Neck - A cada quarenta segundos uma
Aí eu deitava ali, a água morna, deixando o sangue ir escorrendo de- pessoa se suicida no mundo. São mais de 800 mil pessoas por ano.
vagar. (Pausa) O ser humano devia ter mais consciência de si mesmo, Fora os que tentam e não conseguem. É um tipo de epidemia.
sabe? Os elefantes, por exemplo, se isolam da manada quando estão Quando você percebe, está no meio. Tem um vizinho, um amigo,
mais velhos e mais fracos que os outros. Tipo vão embora para morrer.
alguém da família. Você vai até a janela ver se está chovendo, se
Homem - Por isso você tatuou os elefantes? precisa levar um casaco ou um guarda-chuva e de repente... alguém
Mulher-Coelho - É, também porque eles estão em extin- passa caindo bem na sua frente. (Olha de novo o relógio) Daqui a vinte
ção. Aí eu coloquei um africano e um indiano. Não sei qual é qual, segundos alguém vai se suicidar em algum lugar do mundo. E se
mas são diferentes. você acha que a maior chance desse cara estar se matando é em
algum país rico, tipo Dinamarca, Suécia ou algum lugar assim, isso
Homem - É, eu não estou vendo, mas eu acredito.
é um engano: 75% dos suicídios acontecem nos países mais pobres
Mulher-Coelho - Mas eu não acho que seja só por isso, sabe. ou emergentes. Pelo menos em números absolutos. Então, em nú-
Homem - Que eles se isolam? meros absolutos, provavelmente daqui a dez segundos deve morrer

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alguém na Índia, na China, na Rússia, no Paquistão ou no Brasil. (A Mulher da Long Neck desenha um contorno de um corpo, talvez maior,
(Ela olha o relógio de pulso e rola no chão, chegando a algum outro ponto, e co- contendo o Homem e a Mulher-Coelho dentro, na sequência do diálogo)
meça um novo desenho de contorno. Enquanto ela desenha o novo contorno, ou-
Mulher-Coelho (Depois de um pausa um pouco constrangedora) -
vimos Chet Baker com Alone Together. Entram a Mulher-Coelho e o Homem)
Desculpa, eu nem deixei você falar. Acho que eu estava nervosa.
Mulher-Coelho - Você gosta de cinema? (Ele faz um sinal posi-
tivo com a cabeça mas antes de conseguir falar algo ela retoma) Gosta? Homem - Por quê?
Eu gosto. Eu estava vindo para cá com você e me lembrei do “Cães Mulher-Coelho - Sei lá. Eu te conheço há duas, três horas.
de Aluguel”. Sabe, do Tarantino? (Ele tenta comentar mas ela não deixa ele E já te chamei para almoçar e agora trago você aqui na minha casa.
interromper sua fala) Todo mundo fala muito do “PulpFiction” ou dos
Homem - Tudo bem.
mais recentes mas eu acho que o “Cães de Aluguel” é o que eu mais
gosto. Tem uma coisa... Essência, sabe? É, essência... como se o estilo Mulher-Coelho - Quer beber alguma coisa?
dele estivesse todo resumido naquele filme. O resto foi só uma ques- Homem - Uma cerveja, pode ser. Tem?
tão de ir trabalhando os elementos que ele já tinha colocado lá no
“Cães”. Você não acha? (Ele tenta responder, mas ela parece empolgada de- Mulher-Coelho - Acho que tem. (A Mulher da Long Neck sai
mais com a própria reflexão sobre o filme que nem dá atenção) Lembra daquela e retorna com duas long necks e entrega sem ser notada uma para cada um,
cena do policial sendo torturado? O cara liga o rádio e enquanto ouve e continua sua sequência. Pausa) Você sabia que Moçambique perdeu
uma música nada a ver com a situação começa a torturar o outro, metade dos seus elefantes por causa da caça?
meio dançando, como se nada demais estivesse acontecendo... Esse Homem - O que?
lance da música é muito interessante, você não acha? Ao invés de co-
locar uma trilha bem sinistra ou que reforça a tensão, o Tarantino co- Mulher-Coelho - São trinta mil elefantes caçados por ano
loca uma que dá um clima totalmente oposto e isso cria uma... Tem lá por causa do marfim. Nessas três horas... (Pausa curta, calcula. A
um nome para isso...(Pausa, tentando encontrar o termo) Fricção! Uma Mulher da LongNeck desenha outro contorno do seu corpo) Deu tempo de
fricção, duas coisas que não se encaixam diretamente na mesma cena. matarem dez elefantes em Moçambique.
Tipo no “Laranja Mecânica”. (Pausa curta) Você assistiu, não assistiu? Homem - Cerveja não tem glúten?
Homem - O “Laranja Mecânica” ou o “Cães de Aluguel”? Mulher-Coelho - O que?
Mulher-Coelho - Os dois.
Homem - Pensei que você não comesse nada com glúten.
Homem - Assisti.
Mulher-Coelho - Eu bebo cerveja, não como.
Mulher-Coelho - Então sabe do que eu estou falando.
Homem (Irônico) - Ah, então pode.
Homem (Olhando para ela) - Sei. (Pausa) Fricção. Duas coisas que
não se encaixam diretamente, na mesma cena. Mulher-Coelho - Estou fazendo uma exceção.

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Homem (Pausa) - É muita coisa, não? Mulher-Coelho - Tudo bem. A gente pode ver outra coisa.
O “Terráqueos” que eu te falei é bem bom.
Mulher-Coelho - O que?
Homem - Pode ser.
Homem - Dez elefantes em três horas.
Mulher-Coelho - Bom, o DVD fica lá dentro. Se você não
Mulher-Coelho - É... (Nova pausa um pouco constrangedora.
se incomodar com a bagunça.
Ela vira a long neck que estava bebendo, ao mesmo tempo em que a Mulher
da Long Neck faz a mesma ação) Olha, você gosta de cinema. Eu Homem - Com esse monte de elefantes morrendo lá fora eu
também gosto. Se você quiser eu tenho um monte de DVDs. juro que não me incomodo com esse tipo de coisa.
Sei lá. A gente pode assistir alguma coisa enquanto conversa. Eu (A Mulher da Long Neck pega as garrafas da mão de cada um deles. De-
acho que quando duas pessoas não se conhecem direito é sempre pois, saem os dois)
um jeito de acabar aparecendo assunto, não? Como eu já vi todos Mulher da Long Neck (Deixa cada uma das garrafas no chão
os filmes para mim não tem o menor problema se você quiser e desenha novo contorno do corpo em volta delas) - Tirando os números
comentar alguma coisa no meio, ou lembrar de algo que tenha a absolutos, tem vários países considerados de “primeiro mundo”,
ver com a cena do filme... Quer dizer, se fosse no cinema mes- com os melhores índices de qualidade de vida e altas taxas de
mo era bem chato, eu acho um saco quando as pessoas estão ali suicídio. Seria um pouco simples demais dizer que na Dinamarca,
falando no meio da sessão e você querendo assistir o filme, mas na Suíça ou na Suécia as pessoas se matam por causa do frio, mas
em casa tudo bem. Você quer outra cerveja? (Ele olha para a garrafa nos Estados Unidos, por exemplo, os estados “mais felizes” têm
para conferir o quanto ainda tem mas antes de responder “sim” ou “não” ela mais suicídios do que os “menos felizes”. Utah foi considerado
segue) O “Cães de Aluguel” mesmo, eu veria de novo numa boa. o 1º estado americano em satisfação com a vida etem a 9ª maior
taxa de suicídio. Nova Iorque, que ficou em 45º lugar em “felici-
(A Mulher da Long Neck senta-se de costas para o público, assistindo os dois)
dade”, tem o menor índice de suicídios de todos os estados.
Homem - Você acha que eles também estão sumindo?
(Ela sai de cena para pegar outra garrafa e seguir sua dança)
Mulher-Coelho - Quem?
Homem - Os elefantes. Cena 7
Mulher-Coelho - Deve ser mais difícil para eles. (Um foco no canto direito da boca de cena se acende. Mulher-Coelho, agora
com outra roupa. Talvez um pijama. Mulher da Long Neck dança)
Homem - Por causa do tamanho?
Mulher-Coelho - Aquele dia que você foi lá em casa pela
Mulher-Coelho - É. Sei lá. Você não acha?
primeira vez eu estava com vergonha. No elevador eu fiquei refa-
Homem - Eu não sei se eu quero ver o “Cães de Aluguel”. zendo todo o meu caminho de casa até o trabalho tentando lembrar

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se não tinha nenhuma calcinha jogada no corredor. Quando eu tirei Homem - Você nunca foi num zoológico?
a roupa de coelho e joguei por cima daquele cartaz ridículo que eles Mulher-Coelho - Nunca. Deve ser meio uma prisão. Eu
mandam a gente deixar pendurado no pescoço eu pensei: “será sou contra. Desde pequena. Meu pai tentou me levar uma vez.
que ele está aqui para me amar ou só para me comer?” É besta te Ele ficava me arrastando pela mão e eu chorando. Até que ele
contar isso agora, mas a última coisa que me preocupava ali era se desistiu. Deve ter sido na mesma semana que eu parei de comer
você tinha assistido o “Cães de Aluguel”, ou “Terráqueos”. A últi- carne. Eu tinha uns seis anos.
ma coisa que me preocupava ali eram os elefantes em Moçambique.
Homem (Depois de um tempo) - Eu gostei de ter vindo aqui.
Eu estava pensando se você ia ver o meu elefante africano do lado
esquerdo e o indiano, do direito. Se você ia ver o meu rinoceronte Mulher-Coelho (Pausa) - Eu também. (Pausa) Posso te
embaixo do seio esquerdo e o meu lêmure aqui perto do direito. A mostrar uma coisa?
minha águia. Os meus bichos em extinção. Porque eu mesma era Homem - Pode.
um bicho em extinção, que talvez não fosse visto por ninguém. E
Mulher-Coelho - Mesmo?
por acaso você me viu. Os bichos em extinção que ninguém visita.
Homem - Mesmo.
(Ele entra em cena, luz abre)
Mulher-Coelho - Você promete que não vai se assustar?
Homem - Você fica bem sem a roupa de coelho.
Homem - Agora eu vou me assustar se você não mostrar.
Mulher-Coelho - Fico bem sem roupa ou sem a roupa de
Mulher (Ela arregaça um pouco a manga do pijama. O punho está
coelho?
enrolado em papel-filme) - Eu fiz outro coelho.
Homem - Sem a roupa de coelho. (Pausa, corrigindo-se) Quer di-
Homem - Hoje?
zer, sem as duas coisas.
Mulher-Coelho - Ontem. Logo depois que você dormiu.
Mulher-Coelho - Obrigada.
(Pausa. Ele fica em silêncio, sem saber muito bem o que dizer) Obrigada.
Homem - As tatuagens são boas também.
(Black-Out)
Mulher-Coelho - Ah, eu gosto delas. Mas tem vezes que eu
me arrependo de ter feito eu mesma. Sei lá. Outra pessoa fazendo Cena 8
seria mais fácil, acho. Ou ficaria melhor.
(Um foco no canto esquerdo da boca de cena se acende. Homem. Outra roupa,
Homem - Seu zoológico de bichos tatuados. talvez pijama. Mulher da Long Neck dança)
Mulher-Coelho - É... Na verdade, eu gosto de pensar neles Homem - Quando você foi lá em casa eu fiquei feliz. Acho que
como a minha “reserva”. Zoológico deve ser um lugar muito triste. eu não recebia ninguém lá há muito tempo. Eu me esforcei para

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comprar coisas que você pudesse comer, acho que nem sabia que Mulher-Coelho - Vou fazer um coelho em você.
existiam tantos tipos de folha além de alface e agrião. Eu gostava Homem - Eu acho que eu gosto mais dos elefantes.
de ter você por perto. Quando você me mostrou o coelho que
Mulher-Coelho - Pode ser. (Tocando o local) Aqui, no meio
tatuou na sua casa enquanto eu dormiaeu me senti bem. Eu achei
das costas.
estranho não ter ficado com medo, como se aquilo me desse algu-
ma responsabilidade sobre você, mas eu não fiquei. Eu não falei Homem - Ah, se é para ter uma tatuagem eu prefiro em um
na hora porque não sabia como te dizer isso, mas acho que não lugar que eu possa ver.
era eu que estava te salvando de nada, acho que você é que estava (Mais um contorno desenhado pela Mulher da Long Neck)
me salvando de alguma coisa. Pelo menos ali.
Mulher-Coelho – Ah, desculpa. Acho que eu estou tão acos-
(Mulher-Coelho entra. Luz abre. Ela veste uma camisa dele) tumada em fazer em mim mesma que quando é em outra pessoa eu
Mulher-Coelho - Você fica bem de pijama. sempre penso em uma parte do corpo que em mim eu não alcanço.

Homem - Entendi. Fico melhor de pijama do que sem nada. Homem - Tudo bem. Sabe, eu andei pesquisando sobre os ele-
fantes depois do que você me contou.
Mulher-Coelho - Ah, as pessoas se dividem em dois gru-
pos: as que ficam melhor vestidas e as que ficam melhor peladas. Mulher-Coelho - Ah é?

Homem - E eu faço parte do primeiro grupo. Homem - É. Parece que eles são bem inteligentes.

Mulher-Coelho - Ah, tudo bem. Pijama pode ser um gru- Mulher-Coelho (Concordando) - Muito!
po intermediário, vai. Homem - Tem gente que acha que eles são mais próximos dos
humanos que os macacos.
Homem - Vou fazer umas tatuagens. Aí você vai gostar mais.
Mulher-Coelho - Eu acho que são, sim.
Mulher-Coelho - Sério?
(Mais um contorno desenhado pela Mulher da Long Neck)
Homem - Não sei.
Homem - Tem uma coisa que eu achei curiosa. Parece que eles
Mulher-Coelho - Puxa, bem legal. Posso te tatuar?
são meio obcecados com a morte.
(A Mulher da Long Neck desenha um novo contorno no chão)
Mulher-Coelho - É, aquela coisa deles se isolarem e tal.
Homem - Eu nunca pensei em fazer tatuagem.
(A Mulher da Long Neck para, levanta-se e passa a observar as figuras
Mulher-Coelho - Você não gosta? desenhadas pelo chão, até ali)
Homem - Em você, por exemplo, eu gosto. Mas em mim eu Homem - Mais do que isso. Eu li que eles conseguem entender
acho que eu nunca tive nada que eu quisesse tatuar mesmo. mesmo o que acontece com os outros membros das manadas.

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Que eles conseguem identificar os ossos de outros elefantes. E Mulher-Coelho - Você conhece aquela história da desco-
que eles passam horas chorando quando encontram as ossadas. nhecida que se afogou no rio Sena?
Mulher-Coelho - Que triste. Homem - Não. Que história?
Homem - Ah, e aquela sua conta está desatualizada. São cem Mulher-Coelho - No final do século XIX. Uma moça que
elefantes morrendo por dia. se afogou no rio Sena. O corpo dela ficou no necrotério um tempo
Mulher-Coelho - Puxa. (Tempo) Acho que a minha conta para ver se alguém reconhecia. Daí um cara que trabalhava lá ficou
era só em Moçambique. tão impressionado com a beleza do rosto dela que resolveu tirar um
Homem - Pode ser. Bom, mas agora eu recebo essas coisas por molde. Bom... depois, não sei como, começaram a fazer reproduções.
email. Homem - As pessoas compravam reproduções da cara de uma
Mulher-Coelho - Não é curioso? moça afogada?
Homem - O que? Mulher-Coelho - Ela virou uma espécie de musa na época.
Mulher-Coelho - As pessoas sumirem depois que mor- Tipo uma Mona Lisa afogada. Quer dizer, ao invés de desapare-
rem. Pensa só: os elefantes por exemplo. Eles tem essa questão cer depois de morta, ela fica rondando por aí até hoje.
com a morte e com os parentes que encontram mortos. Imagina Homem - Não sei se ela se importa, mas deve ser bem ruim sim.
você chegar lá e não ter nada?
Mulher-Coelho - Pelo menos dizem que ela é a mulher
Homem - Bom, eu não tenho certeza se eles estão sumindo mais beijada do mundo.
depois de mortos também.
Homem - Como assim?
Mulher-Coelho - Tá, esquece os elefantes. Vamos falar dos
humanos. Mulher-Coelho - Sabe aqueles bonecos que as pessoas
usam para treinar primeiros socorros? Respiração boca-a-boca,
Homem - A gente inverte os papéis, é isso?
massagem torácica e tal?
Mulher-Coelho - Mais ou menos. Mas pensa: isso não é
terrível? Lidar com a morte já é bem ruim. Com a pessoa sumin- Homem - Sei.
do depois, então, não é quase como se ela nunca tivesse existido? Mulher-Coelho - Parece que o cara que fez o primeiro des-
Homem - Deve ser. Não tinha pensado por esse lado. ses bonecos usou o rosto dela como molde.

Mulher-Coelho - Eu acho. Homem - Você está inventando isso.


Homem - O contrário também deve ser bem ruim. Existir para Mulher-Coelho - É sério. Parece que o filho dele quase
sempre. Não é meio assustador? morreu afogado uma vez. Aí quando ele foi criar o boneco ele

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queria chegar numa aparência bem natural, de uma pessoa in- Mulher-Coelho - É? Com o que?
consciente mas que não desse medo. Homem - Qualquer hora eu te mostro.
Homem - Eu acho que qualquer afogado deve ter uma cara que (Black-Out, apenas um foco onde a Mulher da Long Neck está)
dá medo. Ainda mais se for suicídio.
Mulher-Coelho - Pois é. Por isso ele quis usar o rosto dela Cena 9
como molde. (pausa)Bom, se você pensar que milhões de pessoas
Mulher da Long Neck (Sozinha no foco de luz, depois de fa-
usaram esse equipamento nos treinamentos de primeiros socor-
zer um novo desenho) - O suicídio quase sempre tem relação com a
ros, ela é a mulher mais beijada do mundo.
depressão, mas nem todas as pessoas que ficam deprimidas estão
Homem (Depois de um tempo) - É... deve ser tão ruim quanto de- a ponto de cometer suicídio. Geralmente isso acontece quando o
saparecer mesmo. quadro depressivo é grave. Álcool e drogas também tendem a com-
Mulher-Coelho - Na verdade, depois de morto acho que plicar a coisa. Geralmente a pessoa que se mata dá alguns sinais,
tanto faz. Só para quem fica por aqui deve ter alguma diferença que nem sempre são percebidos. (Pausa) Ou não são levados a sério.
ter alguma coisa para lembrar da outra pessoa ou não. (Um foco acende no canto direito da boca de cena. Mulher-Coelho nele, en-
Homem - Por isso eu faço uma caixa. quanto a Mulher da Long Neck dança.)

(A Mulher da Long Neck, que até aqui estava observando as silhuetas, Mulher-Coelho - As pessoas se suicidando e desaparecen-
deixa-se cair no chão e volta a desenhar) do. E mesmo assim todo mundo continua acordando de manhã,
indo trabalhar, levando os filhos na escola, como se nada estivesse
Mulher-Coelho - Caixa? acontecendo. (O Homem entra no foco, aos poucos a luz abre)
Homem - É. Eu guardo coisas que eu não quero esquecer em Homem - Na verdade é isso mesmo: o “nada” acontecendo.
uma caixa.
Mulher-Coelho - Pode ser. (Pausa) Olha o que eu achei.
Mulher-Coelho - Eu faço tatuagens. (Estende para ele uma foto)
Homem - Você vai lembrar de alguma coisa olhando para elas? Homem - É você?
Mulher-Coelho - Claro. Você por exemplo é o meu sétimo Mulher-Coelho - É.(Pausa) Era. Atrás está escrito 12 de
coelho aqui no braço. agosto.
Homem - É assim que você vai se lembrar de mim? Homem (Olhando o verso) - Tem uns... Sei lá... uns vinte anos, né?
Mulher-Coelho - Também. (Pausa) E você? Mulher-Coelho - Nesse dia eu estava sentada nesse balan-
Homem - Você já está na caixa. ço e a minha mãe bateu essa foto. Era uma máquina Polaroid do

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meu pai, naquela época já não era tão nova. Eu estava meio con- a escola? Quem cruzou na rua? Será que alguém passou por você
trariada na hora da foto porque eu queria tomar sorvete e eles não e chamou a atenção? (A Mulher da Long Neck traça mais um desenho)
queriam me dar, meu pai dizia que muito doce é ruim para crian- A placa de um carro, a saia curta da moça, o cachorro do vizinho,
ça. Mas justamente naquele dia, quando a gente entrou no parque, a risada de uma criança que talvez estivesse saindo do parque feliz
eu estava de mãos dadas com os dois e eles sempre faziam uma porque tomou um sorvete de morango muito bom, o mendigo que
brincadeira de me levantar, cada um erguendo um braço, sabe? estava meio invisível pedindo um trocado, o vento que bateu no seu
rosto e estava frio, duas ou três gotas que você sentiu na testa ou no
(Novo contorno desenhado pela Mulher da Long Neck)
nariz antes da chuva começar... O que será que aconteceu no dia 10
Homem - Sei. de julho de vinte anos atrás? De dez anos atrás?
Mulher-Coelho - Então, bem na hora que eles me levan- Homem - É claro que eu não lembro de nada disso.
taram eu vi uma menina saindo com um sorvete de massa, eram
Mulher-Coelho - E o dia 10 de julho do ano passado?
duas bolas e ela lambia aquele sorvete de um jeito que parecia o
Como foi acordar, escovar os dentes, tomar banho? Como estava
melhor sorvete do mundo. Na hora eu senti o cheiro de morango
seu intestino? Você cagou? Alguma coisa que você comeu de vés-
e dava para sentir o gosto. Eu pedi para a minha mãe e ela olhou
pera fez mal? Você lembra o que você almoçou? Com quem você
para o meu pai. Eu ainda estava no ar quando virei a cabeça para
cruzou na rua naquele dia? Como estava o tempo, o que você
ele e vi ele fazer só um “não” com a cabeça. Eu fiquei com tanta
estava vestindo? (pausa) Quando você tira as datas importantes
raiva na hora que fechei os olhos com força e quando abri eles já
ou as coisas muito especiais, o resto todo está morto, não acha?
estava me colocando nesse balanço da foto. Até hoje o cheiro de
sorvete de morango me deixa mal. Homem (Pausa) - Não sei. Ou em algum lugar dentro da nossa
cabeça.
Homem (Olhando a foto, meio sorrindo) - Essa parte do sorvete é
uma das coisas que você queria poder esquecer? Mulher-Coelho - É a nossa memória se suicidando um
pouco. Que nem esses caras se atirando dos prédios.
Mulher-Coelho - Que dia é hoje?
Homem - Acho que é o nosso jeito de não dar “tilt” na cabeça.
Homem - 10 de julho.
Mulher-Coelho - É. (Pausa) Mas é estranho. Estranho por
Mulher-Coelho - Você lembra do dia 10 de julho de vinte que algumas coisas somem e outras ficam. (Pausa) Quantas pes-
anos atrás? Nos detalhes, eu digo. Você acordou, deve ter escovado soas dever ter desaparecido enquanto gente conversa aqui, agora?
os dentes, talvez tenha apertado o tubo de pasta com mais força ou
menos força, tomou banho, a água podia estar mais ou menos quen- (A Mulher da Long Neck, que continuara sua dança, para e observa os
te, seu café da manhã pode ter sido nada, ou muito bom... Quantos diversos desenhos pelo chão. Depois segue.)
passos você teve que dar para sair? Você trabalhava? Ou foi para Homem - Não sei.

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Mulher-Coelho - Acho que eu estou começando a concor- Homem - Pronta?
dar com você. É capaz das pessoas sumirem antes das florestas. Mulher-Coelho - Pronta.
Acho que antes até do que os elefantes.
Homem – Você lembra que tem lactose, açúcar, essas coisas, né?
Homem (Sorri) - Tudo bem. De qualquer jeito eu vou continuar
tentando não comer mais carne. Pelo menos não com você por perto. Mulher-Coelho – Hoje pode. Vamos.

Mulher-Coelho (Depois de uma pausa, olhando para ele) - Me (Black-Out)


leva para sair?
Cena 10
Homem - Aonde você quer ir?
(Foco apenas na Mulher-Coelho)
Mulher-Coelho - Tomar sorvete.
Mulher-Coelho - Você nunca vai entender, eu acho. Mas eu
Homem (Devolvendo a foto para ela) - Levo.
não tinha mais espaço para outro coelho no braço. Quando você
Mulher-Coelho (Olhando para a foto) - E se a gente começar a não estava na sua casa, eu olhava pela janela e ficava imaginando
ficar menos sensível para as coisas? Se as pessoas somem... Se não fica como seria... sumir. O que vinha depois? Como é isso de “desa-
nada... (Pausa, olhando para ele) Quando eu era bem pequena e a minha parecer”? Eu me lembrava de coisas bobas que a gente tinha feito
avó morreu a minha mãe me disse que ela tinha ido viajar. Só isso. juntos e de como era bom estar ali e de repente me veio essa sen-
Mulher da Long Neck - “A vovó viajou”... sação: que a maioria das pessoas se mata porque está deprimida a
ponto de querer desistir da vida. E que comigo era o contrário. Eu
Mulher-Coelho - ...e pronto. Não falou de céu, de morte,
queria escolher justamente um momento feliz para ficar com essa
de nada. Nem para onde ela tinha ido. Ela nem se deu ao trabalho
sensação comigo. O meu jeito “bem foda” de me matar foi justa-
de criar um itinerário. Quando eu perguntei quando ela voltava
mente esse: tentar terminar a vida em um dia bom, não deprimida.
minha mãe disse que não sabia e pediu para eu passar o azeite.
Por isso você está lendo essa carta agora. Por isso quando chegar
Mulher da Long Neck - “Me passa o azeite?” aqui eu não vou estar mais. Obrigada pode ter sido o sétimo coelho
Homem - O que quer dizer “passar o azeite”? no meu braço. Mas não cabia um oitavo. A culpa não é sua.

Mulher-Coelho - A gente estava almoçando. (O foco se apaga. Por alguns segundos, black-out em silêncio. Luz abre, apenas
contra, junto com “My Funny Valentine” com Chet Baker – na versão com
Homem - Ah. Desculpa, achei que era uma expressão.
a introdução longa, instrumental. A Mulher da Long Neck entra, com sua
Mulher-Coelho - Deve ter sido o primeiro almoço de fa- dança, e desenha um novo contorno no chão, com duas grandes orelhas de coelho.
mília depois que ela morreu. Eu notei que a minha vó não estava O Homem entra, com uma caixa de papelão. Senta-se ao lado do desenho, com
lá e achei estranho. (Guarda a foto no bolso, levanta-se) a carta dela nas mãos. A Mulher da LongNeck senta-se ao lado dele)

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Mulher da Long Neck - Você está aqui esperando al- Homem - Tudo bem. (Pausa) Que horas são?
guém, não está? Mulher da Long Neck - Quatro e vinte e três. (Estendendo
Homem - Por quê? a garrafa) Certeza que você não quer um último gole? (Ele faz que
Mulher da Long Neck(Sem olhar para ele) - Tá na cara. (Pausa) “sim” com a cabeça.) Sim de “quero” ou sim de “não”?
Quanto tempo faz que você fica sentado aqui? (Pausa) Um mês? Homem – De não.
(Pausa) Dois? (Ela termina a cerveja de um gole)
Homem - Quarenta e cinco dias. Mulher da Long Neck - Você parece bem cansado. Por
Mulher da Long Neck - Hum... (Pausa) Foi daquela janela? que não arranja um hotel por aqui? (Pausa) Não é melhor que vir
Homem - Eu não quero falar disso. (Pausa, ela dá um gole na cerve- todo dia? Quer dizer, em algum lugar você deve ficar, então não
ja, olhando para cima) Foi. tem sentido ficar indo e voltando todo dia.

Mulher da Long Neck - É mais comum do que parece, Homem - Se eu quisesse ficar perto não tinha entregado o meu
sabia? apartamento.

Homem - O que? Mulher da Long Neck - Você quem sabe.

Mulher da Long Neck - As pessoas virem se sentar no Homem (Depois de um pausa) - Você conhece algum?
chão, perto do meio-fio. As pessoas somem agora depois que Mulher da Long Neck - Hotel?
morrem. Virou um tipo de cemitério, só que sem corpo nenhum. Homem – É.
(Pausa) De vez em quando elas olham para o chão, como se ti-
vesse um rosto conhecido para ver. Mas não tem nada. (Pausa) Mulher da Long Neck - Tem um ali na esquina. Você
É porque aqui não tem um rio. Em outros lugares as pessoas se não liga para luxo né?
jogam nos rios para se afogarem. (Pausa) Você mora ali? Homem - Não.
Homem - Morava. Mulher da Long Neck – É, achei que não. Ele é mais ou
Mulher da Long Neck - Você deixou a sua casa? (Pausa) menos. E não é caro.
Depois? (Pausa) E vem aqui todo dia? Homem (Depois de uma pausa) - Acho que vou ficar nele.
Homem - Venho. Mulher da Long Neck - Quer que eu te leve até o quarto?
Mulher da Long Neck (Olhando para cerveja) - Essa é a úl- Eu posso ajudar em alguma coisa.
tima cerveja que eu tenho. Mas eu te dou um gole, se você quiser. Homem - Obrigado. Eu só quero dormir mesmo.

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Mulher da Long Neck (Dando de ombros) – Eu posso te Cena 11
colocar para dormir. (Almost Blue. depois de um tempo, foco – voltamos à primeira cena. Homem
Homem – Não, tudo bem. e Mulher-Coelho, no hotel. Ele ainda descalço, ela entrega os sapatos para ele.)
Mulher da Long Neck - Você que sabe. (Apontando) Dá Mulher-Coelho - Quem está pagando a sua conta aqui?
para ver daqui ó. Homem - Eu tinha uma reserva.
Homem - O que é aquilo piscando? Mulher-Coelho - Tá, mas uma reserva não te desobriga de
Mulher da Long Neck – Ali? É o luminoso do hotel. É pagar.
uma tromba, não dá para ver daí? Homem - Uma reserva de dinheiro, não de quarto.
Homem - Tromba? Mulher-Coelho - Ah, sim. Isso é bom. (Pausa) Gostei do
nome do hotel.
Mulher da Long Neck - É. Uma tromba, de elefante. O
hotel chama “Elefante”. Homem (Ele coloca os sapatos. Ainda sentado.) - Sabia que você ia
gostar.
Homem - O hotel chama “Elefante”?
Mulher-Coelho (Ainda sentada no chão) - Quer que eu guar-
Mulher da Long Neck - Isso. “Hotel Elefante”. de a caixa para você?
Homem - Me contavam muitas histórias de elefantes. Homem - Obrigado.
Mulher da Long Neck - Sério? Mulher-Coelho - Posso ver?
Homem - Sério. Um coelho costumava contar. Homem - Não.
Mulher da Long Neck – Interessante. (Pausa) E o que o Mulher-Coelho - Eu estou aí?
coelho te falava?
Homem - Está.
Homem - Alguma coisa sobre a memória deles. Mulher-Coelho - Eu não olho. Tudo bem. (Ele estende a
Mulher da Long Neck - Ah... O comentário clássico. caixa para ela. Ela a coloca de novo debaixo da cama) Pronto?
(Tempo) Bom, dá uma espiada. Se não curtir devem ter outros por Homem - Pronto.
aqui. A vizinhança precisa deles.
(Luz abre. Ele se afasta, para o fundo da cena, como se chegasse perto de uma
Homem - Eu vou gostar sim. janela. Mulher da Long Neck segue sua ação costumeira)
(Black-Out) Mulher-Coelho - Você tem certeza?

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Homem (Depois de uma pausa) - Lembra quando a gente falou Mulher-Coelho - Se eu deixasse eles abertos a menina po-
dos elefantes, deles nunca esquecerem nada? Que talvez eles se dia ir embora de novo.
retiram para morrer não porque já estão velhos ou doentes, mas Homem (Pausa) – Então. Você é o meu “tilt”.
justamente porque não esquecer de nada deve dar uma espécie de
tilt na cabeça? Então. Mulher-Coelho (Pausa) - E você é o sétimo coelho do meu
braço. (pausa) Eu não queria que você fosse embora assim.
Mulher-Coelho - Então.
Homem (Pausa) - E você é só uma imaginação minha agora.
Homem - Você é o meu “tilt”. Esse “tilt” que eu não consigo
tirar da cabeça... Você lembra dos elefantes. Então. Esse é o “tilt” Mulher-Coelho - Por isso eu não posso falar nada além
que fez a minha cabeça ficar do tamanho da cabeça de um elefante daquilo que você já sabe. Ou do que leu na carta que eu te deixei.
daqueles que morrem cem por dia no mundo, com uma lembrança Homem - Sabe o que é engraçado? Uma vez um amigo meu se
toda cagada que fica lá dentro e não sai. Eu fico lembrando de você jogou da janela. Ele não queria se matar de verdade. Ele teve um
ali, sentada na minha frente, de um jeito tão vívido que parece que surto e queria sair de casa, não achava a chave da porta. Depois fo-
mesmo que eu sumisse agora essa imagem ia continuar vagando ram descobrir que ela estava no bolso dele o tempo todo. Mas ele
sozinha por aí, sem precisar mais de mim. Você sentada na minha não percebeu. Agora é como se eu estivesse na mesma situação.
frente. Tinha uma luz laranja de fim de tarde que entrava pela janela.
Mulher-Coelho - Se matando sem querer se matar?
Mas alguém do lado de fora barrava a luz e ficava uma sombra no
seu rosto que não me deixava saber se você estava sorrindo ou não Homem - Eu não sei o que eu quero. Só sei que não consigo
porque você estava olhando para baixo, para o cardápio. Eu pensei – viver com isso na cabeça.
Mulher da Long Neck - ...ela sempre escolhe a mesma Mulher-Coelho - E eu sou a sua chave, dentro do bolso.
coisa mesmo, não entendo por que olha tanto o cardápio... Homem - E eu sou o seu coelho tatuado no braço.
Homem - ...e de repente a pessoa que estava do lado de fora Mulher-Coelho - Você é o meu coelho tatuado no braço.
foi embora e o seu rosto ficou todo iluminado. E você pediu um
sorvete. Homem - Mas eu não tenho um coelho. Tenho um elefante
que você tatuou. Sabe que eu sempre olho para ele? Eu gosto
Mulher-Coelho - ....e o parque onde o meu pai e a minha dele. Entre elefantes e coelhos eu sempre achei que eu fosse mais
mãe me erguiam pelos braços apareceu na minha memória com a do primeiro grupo que do segundo. Por isso quando eu cheguei
mesma nitidez do dia em que eu olhei a menina tomando o sor- naquele dia e não te encontrei, eu fiquei desesperado porque não
vete quando eu dei a primeira colherada. fazia sentido. Por mais que você dissesse que pensava nisso o
Homem - E aí você sorriu, limpou o canto da boca com um tempo todo eu via em você uma vida que eu não tinha. Se alguém
guardanapo e fechou os olhos por um tempo. devia se matar era para ser eu, não você.

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Mulher-Coelho - Eu queria ser o seu coelho, não o seu ele- Homem - O que?
fante. Pelo menos não esse elefante que fica dentro da sua cabeça.
Mulher-Coelho - Se a gente morre um pouco todo dia, no
Homem (Pausa) - Sei lá. fim das contas você acaba nascendo um pouco todo dia também.
Mulher-Coelho (Pausa) - Lembra de quando eu falei para E de novo. E de novo. Então na verdade você não mata aquilo que
você que eu não era uma tatuadora muito boa? te fez querer se matar. Você mata a sua chance de nascer de novo.

Homem - Lembro. Eu não concordei. Eu gostava das suas tatuagens. Homem - E se a vontade de se matar é justamente para não ter
que nascer o tempo todo?
Mulher-Coelho - A minha reserva de animais em extinção.
Que você achava que era um zoológico. Mulher-Coelho (Sorrindo) - Essa história de nascer e mor-
rer o tempo todo pode parecer um pé no saco. Mas ainda não
Homem - Naquele dia que eu não te achei, eu li a carta que você
deixou e fiquei imaginando eles ganhando vida e saindo da sua inventaram nada melhor.
pele antes de você tocar no chão. E quando você estivesse quase Homem - De qualquer jeito, você é só uma imaginação minha
caindo eles iam te segurar antes de voltar para a sua pele de novo. agora.
Mulher-Coelho - E você me deixou tatuar você. Mulher-Coelho - Podem ser os meus pensamentos tam-
Homem - Deixei. Mas não nas costas. Você tatuou um elefante bém que continuam por aí, só que agora dentro de você. (Pausa)
no meu braço, para eu poder olhar para ele. Cuida bem do seu coelho.

Mulher-Coelho (Com um sorriso) - E esse é o momento em (Black-Out)


que eu viro a chave no seu bolso.
Homem - Como assim? Cena 12
Mulher-Coelho (Rindo) - Eu sou uma tatuadora muito ruim, (Luz abre e vemos todo o palco, repleto dos desenhos que a Mulher da Long
lembra? O que eu tatuei no seu braço é um coelho, não um elefante. Neck fez. Ela os observa. O Homem entra, pouco depois, carregando a
caixa)
Homem - Claro que é um elefante. Eu olho para ele todo dia.
Mulher da Long Neck - Você gostou do hotel?
Mulher-Coelho (Sorrindo para o Homem) - Olha de novo.
Homem - Você ainda está aí?
Homem (Olhando o próprio braço) - Como assim...
Mulher da Long Neck - Ah, eu não tenho muito o que
Mulher-Coelho - Eu jamais iria tatuar um elefante em
fazer não. Eu achei que você fosse ficar lá, de vez.
você. Esse é o coelho que você me deu e agora eu deixo para
você cuidar. (Pausa) Sabe o que eu acho? Homem - De vez?

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Mulher da Long Neck - É, aquela coisa clássica. A pes- Mulher da Long Neck - É. Milhões de pessoas te beijan-
soa vai para um hotel, se hospeda, pede para não ser incomoda- do para treinar resgate, primeiros socorros e tal. Dá uma sensação
da... Você sabe. de que todos chegaram bem atrasados.
Homem - Não. Eu só queria dormir um pouco mesmo. Homem - Um pouco.
Mulher da Long Neck - Que bom. (Pausa) E toda a sua Mulher da Long Neck - Mas mesmo assim é uma histó-
bagagem está dentro dessa caixa aí? ria boa, vai.
Homem - É, era do que eu queria me livrar. No final, foi só o Homem - Bom, se você está me dizendo que é a sua história,
que eu trouxe comigo. você que me confirma se ela é real ou não.
Mulher da Long Neck - O que tem dentro? Mulher da Long Neck (Rindo) - Um fotógrafo na Ingla-
terra descobriu por acaso a história de duas gêmeas que tinham
Homem - Nada demais. Se eu contasse ia parecer bobo.
nascido em Liverpool, no século XIX. Uma delas se apaixonou
Mulher da Long Neck - Um sujeito carregando uma cai- por um ricaço e fugiu para a França. Parece que ela foi dada como
xa enquanto olha para um coelho tatuado no braço já parece bem desaparecida até a outra ir para Paris, ver as reproduções pela rua
bobo. e reconhecer o rosto da irmã. Imagina: duas gêmeas. Uma desa-
Homem - A gente acredita em coisas bobas, tudo bem. Se as parece e anos depois a outra vê o rosto da irmã reproduzido em
pessoas simplesmente somem depois que elas morrem eu posso gesso. Deve ser como ter visto o próprio rosto quando mais nova.
acreditar que carrego uma caixa com coisas que vão sumir se eu Uma máscara mortuária de você mesmo mais novo...
abrir, não posso? Homem - A história real é essa então?
Mulher da Long Neck - Tudo bem. E eu posso acreditar Mulher da Long Neck - Não. Na verdade, teve um artista
que eu sou a mulher mais beijada do mundo. que fez uma pesquisa extensa sobre esse caso, comparando as fei-
Homem - A mulher mais beijada do mundo é aquela moça que ções dela com fotografias antigas da mesma época. Ele descobriu
se afogou no rio Sena. que na verdade ela era uma atriz húngara chamada Eva Lazlo, que
foi assassinada pelo seu amante em Paris.
Mulher da Long Neck - Que as pessoas chamam de
“desconhecida”. (Apontando para o rosto) Foi o molde deste rosto Homem - Essa é a versão oficial então.
que eles tiraram para beijar. Mulher da Long Neck - Não sei. Eu tenho a minha ver-
Homem - É meio irônico ser a mulher mais beijada do mundo são.
depois de já ter morrido não acha? Homem - E qual é?

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Mulher da Long Neck - Que ela ainda anda por aí, as- Mulher da Long Neck - Todas essas pessoas sumindo
sombrando os que tentam se matar ou tentando fazer eles mu- na verdade estavam aí o tempo todo. Não sumiu nada. Continua
darem de ideia. Parece que ela era uma bailarina frustrada que tudo aqui. (Pausa) Continuar vivo ainda é a melhor opção... Nem
depois de morta conversa com algumas pessoas e gosta de tomar que seja pela certeza de que ainda não inventaram nada melhor.
cerveja longneck. (Vai saindo) (Música entra enquanto o Homem observa a desconhecida Mu-
Homem - E o que tem depois? (Ela para) lher da Long Neck sair de cena. Luzes vão baixando. Entra Trumpet
Solo, com Harry James.)
Mulher da Long Neck - Como assim?
Homem - Você é a única pessoa que eu conheço que morreu e
não sumiu.
Mulher da Long Neck - Sério?
Homem - É.
Mulher da Long Neck - E isso é estranho?
Homem - Eu acho.
Mulher da Long Neck - Mais estranho que sumir de re-
pente? Você não acha que existir é tão esquisito e estranho de
explicar quanto não existir?
Homem - Ou tão estranho quanto.
Mulher da Long Neck - Ou tão estranho quanto. (Pausa)
Que nem a sua tatuagem.
Homem - O que tem ela?
Mulher da Long Neck - O seu coelho.
Homem - Eu sei. A única que eu tenho.
Mulher da Long Neck - Ele era um elefante quando eu te
vi a primeira vez. (Pausa. Sorri.) Sabe o que eu acho?
Homem - O que?

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