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PERDOA-ME POR ME TRAÍRES


TRAGÉDIA DE COSTUMES EM TRÊS ATOS

POR NELSON RODRIGUES

(1957)

PERSONAGENS:

NAIR
GLORINHA
POLA NEGRI
MADAME LUBA
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
MÉDICO
ENFERMEIRA
TIO RAUL
GILBERTO
TIA ODETE
CECI
CRISTINA
JUDITE
MÃE
IRMÃOS

Atenção: Texto distribuído em caráter puramente de uso e leitura PESSOAL. Todos os direitos
reservados aos detentores legais dos direitos da obra. Para a representação e comercialização
legal da peça, entrar em contato com os órgãos competentes, como a Sociedade Brasileira dos
Autores Teatrais - SBAT (www.sbat.com.br). O site www.oficinadeteatro.com nao se
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PRIMEIRO ATO GLORINHA
(Tentada) — Vontade eu tenho, te juro!
(Nair e Glorinha estão na porta de Madame Luba, ambas
vestidas de colegiais, uniforme cáqui, meias curtas, cabelo
rabo de cavalo, pasta debaixo do braço. Glorinha vacila e a NAIR
outra insiste) Faz, então, o seguinte, olha: tu entras um instantinho só. Eu te
apresento a Madame Luba que é lituana, mas uma simpatia!
NAIR
Vem ou não vem? GLORINHA
E que mais?
GLORINHA
Tenho medo! NAIR
Tu dizes que, infelizmente, não podes, por isso, por aquilo,
NAIR inventa uma desculpa. E cai fora... Mas se não fores, quem
De quem, carambolas? Medo de quê? fica mal sou eu, porque prometi, batata, que te levava!

GLORINHA GLORINHA
(Suspirando) — De algum bode. Eu vou, mas fica sabendo: não me demoro nadinha!

NAIR NAIR
Já começa você. Que bode? Você não sabe o que quer, puxa!

GLORINHA (Nair e Glorinha na sala de Madame Luba. Em cena, Pola


Sei lá! (mudando de tom) E se o meu tio sabe? Negri, garção típico de mulheres. Na sua frenética
volubilidade, ele não pára. Desgrenha-se, espreguiça-se,
NAIR boceja, estira as pernas, abre os braços)
Espia: não foi você mesma, criatura, que me pediu pra te
trazer? POLA NEGRI
Salve ela!
GLORINHA
Pedi, mas... É o tal negócio. Você não conhece meu tio. NAIR
(Para Glorinha) — Esse aqui é o Pola Negri, liga pra chuchu!
NAIR Um número!
Conheço, até de sobra!
GLORINHA
GLORINHA (Atônita) — Muito prazer.
Duvido! Não te contei...
POLA NEGRI
NAIR (Para Nair) — É essa? (gira em torno da espantada
Um chato! Glorinha)

GLORINHA NAIR
... Te contei que, outro dia, só porque cheguei atrasada uma Dá tua opinião.
meia hora, ou nem isso, uns 15 minutos talvez — ele me deu
uma surra tremenda? E disse mais: que, na próxima vez, me POLA NEGRI
mata e mata mesmo! Legal!

NAIR NAIR
Conversa! Conversa! Não é?

GLORINHA POLA NEGRI


Pois sim! Eu que não abra o olho! (Cotuca Nair) — Madame deve estar estourando por ai. (sem
transição, para Glorinha) Manequim 42.
NAIR
Mas ele não vai saber! Saber como? (baixa a voz) Só essa GLORINHA
vez, está bem? (Intimidada) — Exato.

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POLA NEGRI (Com violento sotaque) — Eu sempre vou muito bem, nunca
(Para Nair) — Sou batata! ter uma dor de dentes...

NAIR NAIR
Eu tenho mais quadris! Trouxe-lhe aqui...

POLA NEGRI MADAME LUBA


Idade, mais ou menos, uns 17. Oh, sim, seu colega de colégio, Glorinha!
NAIR
Quase! GLORINHA
(Em brasas) — Estou abafada, Madame!
GLORINHA
16.
NAIR
POLA NEGRI (Falando quase simultaneamente) — Está com chove não
Melhorou. Assim é que é bom: 16, 15, 14... (sem transição, molha!
para Glorinha) Nervosa?
MADAME LUBA
GLORINHA (A Glorinha) — Sem motivo, não há motivo. Cadeiras, Pola
(Fora de si) — Mais ou menos. Negri! Oh, por que não sentam? Eu não querer cerimônia no
meu casa. Pola Negri traz biscoitinhos, licorzinho! (para
NAIR Glorinha) Eu podia ser seu mãe!
Uma pilha.
GLORINHA
POLA NEGRI Eu tenho que ir, Madame! Estão-me esperando... Nair me
(Otimista) — Mas passa. falou, agradeço muito, mas é que eu não posso, infelizmente...

NAIR NAIR
Questão de hábito. (Para Madame) — Ela que, depois não quer! (para Glorinha)
Parei contigo!
GLORINHA
(Para Pola Negri) — É que estamos com pressa. Você fica? MADAME LUBA
Vou-me embora, Nair! Eu compreendo, mas não precisa ficar nervosa... Não é bicho
de sete cabeças... E tome seu licorzinho... Eu não obriga
NAIR ninguém... No meu casa tudo espontâneo...
(Autoritária) — Sossega o periquito! Primeiro fala com
Madame Luba! GLORINHA
(Põe o cálice em qualquer lugar) — Então, já vou, sim?
GLORINHA
Meu tio me mata! MADAME LUBA
(Levantando-se) — Um momento!
POLA NEGRI
Pronto, aí vem Madame! GLORINHA
(Perturbada) — Imagine se meu tio sabe que fiz gazeta!
(Madame Luba é uma senhora gorda, imensa, anda gemendo
e arrastando os chinelos. Dá a impressão de um sórdido MADAME LUBA
desmazelo) Gazeta não ter importância...

MADAME LUBA GLORINHA


(Melíflua) — Como vai, Nair? Como está passando? (fala Não posso, Madame!
com Nair mas não tira os olhos de Glorinha).
MADAME LUBA
NAIR (Erguendo a voz com inesperada autoridade) — Senta,
Bem. E a senhora? menina! Você fedelha, eu não ser criança!

MADAME LUBA

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GLORINHA Manjaste?
(Numa explosão) — E se a polícia entra aqui?... Se leva todo
mundo e se, depois, meu tio vai me buscar no distrito?... POLA NEGRI
Madame, meu tio me mata a pauladas, juro à senhora! E pagas por quem? Por algum fichinha? Por Suas
(rebenta em soluços). Excelências! Isso em plena Capital da República Teofilista!
Por isso eu te digo e Nair sabe: Madame usou a cabeça! Nesta
POLA NEGRI casa vive-se tropeçando em imunidades!
A polícia aqui não pia!
MADAME LUBA
MADAME LUBA Eu ter o intelectual muito desenvolvido!
A polícia está no meu mão! Eu tomei meus providências!
Pola Negri, conta ela o meu esperteza! NAIR
Vou-te dizer outra coisa, que nunca te contei: só lá do colégio
(Glorinha chora) passaram por aqui umas dez... ou talvez mais. Por essa luz
que me alumia, no mínimo, dez!
NAIR
(Furiosa) — Sua burra, vê se, pelo menos, escuta! GLORINHA
(Mais segura de si e mais dissimulada) — Madame, eu
compreendo, mas comigo dá-se o seguinte: eu vivo muito
GLORINHA presa. Por que meu tio...
(Para Nair, num repente) — Você me paga!
NAIR
POLA NEGRI (Violenta) — Que máscara é essa?
(Começa a falar com grandes atitudes, rasgando gestos GLORINHA
imensos, com mil e uma inflexões) — O negócio é cem por Por que máscara?
cento. Presta atenção e vê como Madame Luba soube cranear
o troço. Em primeiro lugar, aqui só entra deputado, quer NAIR
dizer, freguês com imunidades. Te pergunto — a polícia vai Máscara sim senhora! (para Madame) Madame, Glorinha tem
prender um deputado? Com que roupa? E, além disso, isso duas caras! (a Glorinha) E aquela farra que nós fizemos, nós
aqui não é casa de mulheres araqueadas. Só trabalhamos com duas, sim!
meninas, de 15, 16 e até 14, de família batata!
GLORINHA
MADAME LUBA Sei lá de farra! Quando?
Viu?
NAIR
POLA NEGRI No carnaval, esse que passou! (para Madame) Madame,
(Cínico) — Por exemplo: tu, o teu caso! fomos uma turma ao apartamento de um cara. E lá, sabe como
é: bebemos e pintamos o caneco. A Glorinha estava com uma
GLORINHA fantasia sem alça, em cima da pele! (para Glorinha) Veio um
Eu? engraçadinho e, pelas costas, te puxou o fecho eclair até
embaixo! (para Madame) Ficou pelada, Madame!
POLA NEGRI
És de família ou não és? GLORINHA
(Veemente) — Madame, eu estava de pileque, Madame!
GLORINHA Tinha cheirado lança-perfume, tanto que nem me lembro!
Sou.
NAIR
POLA NEGRI Ainda tem coragem de falar em pudor!
Natural! Bola só um negócio: se, por um acaso, por uma
hipótese, a polícia entrasse aqui, já imaginaste o escândalo? GLORINHA
Ia-se saber que há uma casa, nessas e nessas condições, vê Olha, até agora não passei do beijo!
bem: uma casa infanto-juvenil, que oferece alunas dos
melhores colégios, a fina flor de 17 anos para baixo, as filhas NAIR
de famílias fabulosíssimas... vêm aqui, por dinheiro... (dá Muito cínica!
uma gargalhada esganiçadíssima) São pagas! Pagas!
GLORINHA
NAIR Você é que é mascarada!

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MADAME LUBA GLORINHA
Ah, não vamos perder tempo! O menina tem razão — beijo (Desesperada) — Você está maluca? Bebeu? (trincando os
não tirar pedaço. Você não correr perigo: só beijinho, só dentes) Nem vizinho, nem parente! Nunca!
brincadeira... Você poder casar depois, com véu e grinalda...
Não ter conseqüências... NAIR
Agora é tarde, porque o homem está aí, te esperando, há uma
POLA NEGRI hora!
(Para Madame) — O Excelentíssimo está com hora marcada.
Pergunta como é. POLA NEGRI
Sua boba, Te arranja uma boca rica num Instituto!
MADAME LUBA
Está quase. Não vai demorar. (para Nair) Vamos resolver o GLORINHA
situação. Eu não fazer papel sujo. (Feroz) — Vizinho, não!

NAIR MADAME LUBA


(Resoluta) — Pode deixar, Madame. (face a face com (Investe com insuspeitada violência, grita, enchendo o palco
Glorinha) Vamos liquidar a questão. É o seguinte: você a sua voz. A sua cólera é sincera) — Não grita! No meu casa
mesma disse que queria vir, combinou tudo comigo e em só eu grita! Na Lituânia eu tive tua idade, eu tinha tua
cima da hora quer dar pra trás. Agora é tarde não tem cinturinha, eu tinha teu corpinho... E eu vivia! Eu, curiosa de
escapatória. Carícia! Mas tu não querer vibrar, menina. Oh, tu não tem
vida! (brusca e selvagem) Chama o tio dessa menina! Chama
GLORINHA o tio! Telefone!
Mudei de opinião.
GLORINHA
NAIR Não!
Azar o teu. Olha: tem um deputado aí, que é tarado, maluco
por ti. NAIR
GLORINHA Vou telefonar sim!
(Atônita) — E me conhece?
GLORINHA
NAIR (Num apelo) — Você é minha amiga, Nair!
Te conhece. POLA NEGRI
Topas?
POLA NEGRI
(Ao ouvido de Glorinha) — Um mão aberta! NAIR
Sim ou não?
GLORINHA
Conhece de onde? GLORINHA
(Soluçando) — Mas eu devo fazer o quê? Afinal, nem sei!
NAIR
Te viu várias vezes. Capaz de te arranjar um big emprego NAIR
num Instituto desses. Pra Ivonete arranjou um empregão. (Aliciante) — Simples como água! Não é nada do arco-da-
Arranja pra ti, com o pé nas costas. velha: olha, pra mim é café pequeno e eu nem dou pelota.
(vaga) Basta que você seja camarada do homem e nada mais.
GLORINHA Te juro que não vai ter conseqüência nenhuma... Velho que
Ora veja... E como é o nome dele? não se agüenta em pé...
MADAME LUBA
NAIR Leva o menina no quarto, Pola Negri!
O Dr. Jubileu de Almeida.
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
GLORINHA Eu estou aqui. (de fato acaba de aparecer, na porta, o
(Recuando em Pânico) – Mas logo esses? Que mudou para a deputado Jubileu de Almeida, velho, velhíssimo.) (paternal)
minha rua? Que está morando na minha rua? Pode deixar a menina, Pola Negri!

NAIR MADAME LUBA


(Taxativa) – Pois é: esse. O menina muito manhosa, deputada!

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nem conheceu sua mãe... (exaltando-se e já sem controle das
POLA NEGRI próprias palavras) Mas deve ter retratos, lembranças!
De morte! (agarra-se a Glorinha)

DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA GLORINHA


(Aproxima-se. Inclina-se diante de Glorinha) — Olhe para O senhor está-me apertando!
mim, assim. Enxuga essas lágrimas e vamos conversar. Pode
usar o meu lenço, está limpo. (entregou o lenço a Glorinha) (Não há a menor conexão entre o que o Dr. Jubileu diz e o
(para Madame) Sabia que eu e Glorinha — seu nome é que o Dr. Jubileu faz)
Glorinha, pois não? — que eu e Glorinha somos vizinhos,
Madame? DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Ofegante) — Sabe datilografar? Te arranjo um lugarzinho,
MADAME LUBA aumentamos a tua idade, juro, arranjo sim, arranjo. Mas olha:
Oh, não sabia! não repare no que eu disser, não... (súbito põe-se a berrar
como um possesso. Fora de si) As duas modalidades de
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA eletrização que podemos observar nos corpos correspondem
Pois, é. E, agora, por obséquio, eu queria ficar a sós com a às duas espécie de carga elétrica encontrada no átomo!
Glorinha. (para Glorinha) Tem confiança em mim? (mudando de tom, num apelo soluçante) Não se mexa: fique
assim!
GLORINHA
(Assoando-se) — Mas ou menos. GLORINHA
(Num repelão selvagem) Me largue! O senhor está maluco!
(Saem os outros)
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA (Arrasta-se de joelhos e, de joelhos, a escorrer suor,
Mas você vai-me prometer uma coisa: que não chora mais. persegue a pequena) — Não interrompa! Não me interrompa!
Promete?
GLORINHA
GLORINHA (Enfurecida) — Velho gagá! (pula mesas, cadeiras)
Prometo.
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA (Num enorme lamento) — Eu não posso ser interrompido!
Assim é que eu gosto. E uma coisa: sua mamãe ainda vive?
GLORINHA
GLORINHA (Num berro) — Não quero, já disse!
Morreu.
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Contendo-se) — Viu como eu não lhe faço nada? Sou seu (Arquejante) — Por quê?
admirador, mas estamos aqui, conversando, normalmente.
Sua mãezinha morreu e... Tem pai? GLORINHA
(Atrás de um móvel) — Tenho que ir!
GLORINHA DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Sem ouví-lo, crispada) — Minha mãe matou-se! (Quase chorando) — Mas isso não é argumento! Façamos o
seguinte: — mais uns dez minutos, ou cinco. Cinco, está
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA bem? (numa lamúria infinita) Cinco, filhinha, cinco! Te dou
Ora veja! tudo, tudo... (Glorinha está encostada à parede, sem poder
fugir) Tens raiva de mim? Eu não te fiz nada. O que foi que
GLORINHA eu te fiz?
Quando eu tinha dois anos. Meu pai, então, enlouqueceu de
desgosto e meu tio tomou conta de mim. GLORINHA
Nada... Mas se meu tio sabe que eu vim aqui, que estou aqui...
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Passa a mão pelos cabelos de Glorinha) (Começando a DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
ofegar) — Desde que me mudei, que vejo você todos os Seja boazinha, camarada! (segura-a pelos dois braços. Berra
dias... Você tem um corpinho que... E a pele sem uma convulsivamente) — Vimos que o núcleo do átomo se
espinha, uma mancha. (trêmulo) As meninas têm, realmente, apresenta, ai, ai, ai! se apresenta constituído de prótons... O
um cheiro de menina... (muda de tom) Quer dizer que você

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núcleo do átomo, o núcleo do átomo, OH, o núcleo do (Sem ouví-lo) — Diz que os jornais me chamam de reserva
átomo... Constituído de prótons, o núcleo do átomo... moral! Explica, também, que eu sou professor catedrático!

(Glorinha desprende-se num repelão selvagem. O outro POLA NEGRI


persegue-a, trôpego, nos seus apelos frenéticos) Dou um jeitinho nela, já, já. (avança para Glorinha, que
recua).
GLORINHA
Sujo! Indecente! GLORINHA
(Feroz, para Pola Negri) — Você não é homem!
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
Escuta: eu te falo de longe, não me aproximo, juro! Não toco POLA NEGRI
em ti! Já sei o que te assusta: são essas coisas que eu digo não Sua gata!
é?
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
GLORINHA (Num apelo objeto) — Segura, Pola Negri! Segura!
(Num soluço) — Quero ir-me embora!
POLA NEGRI
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA (Dá um bote e agarra solidamente a menina. Subjugada pelas
Mas olha: essa coisa que eu falo é um simples ponto de costas, os braços para trás, Glorinha está indefesa). Pronto,
Física, compreendeste? Eu tenho que dizer um ponto de Excelentíssimo.
Física ou não sou homem, não sou nada! Na minha casa eu
não posso fazer isso... (arquejante) Um ponto de Física... Mas GLORINHA
se não queres ouvir, tu tapas os ouvidos pronto! (quer-se (Enlouquecida) — Te cuspo na cara!
aproximar de Glorinha mas esta ameaça-o)
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
GLORINHA (Está a alguns metros de distância) (balbuciante) — Gostas
Não velha que eu grito! de mim, meu anjinho?

DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA GLORINHA


(Entrega-se a um acesso de furor. Encaminha-se em direção (Frenética) — Tenho nojo!
à porta) (gritando) — Pola Negri! Pola Negri!
POLA NEGRI
POLA NEGRI Gosta sim, Excelentíssimo! Pode crer que gosta!
(Acudindo) — Chamou, Excelentíssimo?
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA (Delirante) — Gosta, Pola Negri, ela gosta? (e súbito, o
(Frenético) — Vem cá, Pola Negri. Que negócio é esse, afinal deputado põe-se a berrar) O núcleo envolvido por eléctrons
de contas? livres! (soluça) Elétrons, o átomo, o átomo! (suplicante para
Pola Negri) Continua dizendo que ela gosta de mim, Pola
POLA NEGRI Negri, mas não pára, sem parar!...
Que foi que houve?
POLA NEGRI
(Mecanicamente) — Gosta, ama, adora, sim, gosta muito!

DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA


(No auge) — Um átomo pode perder ou receber eléctrons na
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA sua periferia e essas operações destroem o equilíbrio entre as
Essa menina, se está aqui, é porque é uma depravada, uma cargas dos prótons e a dos eléctrons periféricos...
corrompida... (muda de tom) (choramingando, estende as
duas mãos crispadas) ... mas não quer nada comigo, Pola (Finalmente, o Dr. Jubileu cai de joelhos, porque alcança o
Negri! (novamente agressivo) Pensa talvez que eu sou algum máximo da tensão. Assim de joelhos, mergulha o rosto nas
borra-botas! Diz-lhe quem eu sou! duas mãos e tem um soluço interminável, grosso como um
mugido. Sincronizado com o deputado, Pola Negri dispara as
POLA NEGRI palavras)
Ela sabe, Excelentíssimo!
POLA NEGRI
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA Gosta, perfeitamente, gosta, adora, ama, adora!

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DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Por entre gemidos) — Ah, se minha mulher me visse aqui, Em termos.
ai, ai, ai, se minha mulher me visse aqui, uai, se me visse!
Minha mulher é neta de barões! Minha mulher! MADAME LUBA
Não valeu a pena, deputada?
POLA NEGRI
Continua, Excelentíssimo? DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
Meio sem sal, água com açúcar. (baixo para Madame, junto à
DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA porta) Interrompe muito. E, na minha idade, Madame, não
Chega, Pola Negri, chega! posso ser interrompido. (enfático) Não devo ser interrompido!
Ela é uma questão de treino, talvez de adaptação, quem sabe?
POLA NEGRI (faunesco) Mas interessa!
Vou largar essa chorona!
NAIR
(Empurra Glorinha. Levanta-se o Dr. Jubileu, assistido por (Cochichando para Glorinha) — É um negócio da China:
Pola Negri. Glorinha, livre de Pola Negri, atira-se em cima quinhentão por vez!
de uma cadeira, aos soluços. Entram Nair e Madame Luba.
Nair corre para Glorinha e Madame Luba para o Deputado) DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA
(Para Madame) — Manda vir, amanhã às onze horas da
NAIR manhã... E já vou... tenho que ir... (sai)
(Para Glorinha) — Viu como foi barbada?
GLORINHA
MADAME LUBA (Dirige-se para Madame, ainda nervosíssima) — Estou tão
(Para Pola Negri) — O coramina do deputada! sem graça, Madame! Tive tanto medo que, imagine a senhora,
não foi Pola Negri? até xinguei o deputado, Madame!
GLORINHA
(Ainda soluçante) — Eu me assustei! MADAME LUBA
O deputado não levar mal! (muda de tom, para Nair) Tu
NAIR amanhã não vem, por causa do tal negócio. (para Glorinha,
É pinto! com inesperada autoridade) Mas tu vem! Onze horas aqui!

MADAME LUBA GLORINHA


(Melíflua) — Cansadinha, doutor? (Em pânico) — Eu?

DEPUTADO JUBILEU DE ALMEIDA NAIR


(Caindo aos pedaços) — Já não sou criança! (toma a Mata o colégio e vem!
coramina que lhe dá Pola Negri)
MADAME LUBA
NAIR (Grita, possessa) — Menina, eu não admito desobediência no
Finalmente te convenceste de que não é nenhum bicho de sete meu casa! No meu casa, manda eu! (crescendo para
cabeças? Glorinha) Ou tu vem ou tu apanha um câncer na língua!
Agora pode ir!
GLORINHA
Estou zonza! POLA NEGRI
Onze horas em pontinho!
NAIR
Estão falando de ti! MADAME LUBA
Dinheiro, só amanhã. Paga amanhã.
GLORINHA
Acho que fiz um papelão! GLORINHA
(Corrida) — Madame, vou fazer todo o possível!
(De fato, Madame Luba e o Dr. Jubileu, que cochichavam,
falam agora mais alto) MADAME LUBA
Olha o meu praga!
MADAME LUBA
O menino valer a pena?

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(Saem, uma e outra, como duas escorraçadas. Permanecem NAIR
em cena Pola Negri e Madame Luba) Batata! Fiz tudo quanto é exame e não tem castigo: estou
mesmo!
POLA NEGRI
Abre o olho, Madame, que são duas araqueadas! GLORINHA
(Fascinada) — Então você facilitou! Mas não se nota, não se
MADAME LUBA percebe!
Oh, não há perigo! Quem me faz, paga! Mas não falar assunto
chato, Pola Negri! Falar coisas bonitas. Eu quero dormir, Pola NAIR
Negri... Oh, há 15 dias eu sonhar, todo dia, com cavalinho de Dois meses só. Imagine: a minha empregada, que põe fora um
carroussel., Eu deita, fecha os olhos e é batata: só sonhar com filho por mês, me ensinou uma porção de troços. Fiz...
cavalinhos de carroussel... Oh, não querer barulho! Desliga o
telefone! GLORINHA
E não adiantou?
(Escurece a sala de Madame. De novo Nair e Glorinha)
NAIR
GLORINHA Nada absolutamente.
Ainda vou ver se é negócio, se não é! Ah, se não fosse o meu
tio, o diabo do meu tio! Bem, e agora vou correndo, chispada! GLORINHA
Vais tirar?
NAIR
Espera! NAIR
Depende.
GLORINHA
Que é que há? GLORINHA
Como depende?
NAIR
(Crispa a mão no braço de Glorinha) — Tenho uma bomba NAIR
pra ti! De ti.
GLORINHA
Pra mim? GLORINHA
Por que de mim?
NAIR
E vais cair dura para trás. Dura! NAIR
Vamos sentar ali.
GLORINHA
Diz logo! (Sentam-se. Nair toma, entre as suas, as mãos de Glorinha)
GLORINHA
NAIR Fala.
Estou grávida!
NAIR
GLORINHA Você sempre não disse que achava a morte de sua mãe linda?
(Estupefata) — Mentira! Não disse?

NAIR GLORINHA
Sob a minha palavra de honra e quero que Deus me cegue se Disse.
minto!
NAIR
GLORINHA Você se fartou de dizer, no colégio, que achava sem classe
Tua família sabe? nenhuma essas mortes por doença, velhice ou desastre. Você
queria morrer assim como sua mãe: moça, bonita, tomando
NAIR veneno. Minto? Responde!
Isola!
GLORINHA
GLORINHA É isso mesmo!
Ou será rebate falso?
NAIR

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(Num transporte) — Terias coragem? NAIR
Ou não é?
GLORINHA
De quê? GLORINHA
Tenho mais medo do meu tio do que da morte. (agarra-se a
NAIR Nair) É ele que me impede de morrer contigo, no cinema...
(Sôfrega) — De morrer como tua mãe? (põe a mão no peito) Na Madame Luba só pensava nele...
Mas comigo, em minha companhia, nós duas abraçadas?
GLORINHA NAIR
(Com pungente espanto) — Morrer contigo? (Enfurecida) — Se eu fosse tu, só dormia trancada à chave,
por causa do teu tio!
NAIR
(Sofrida, veemente) — Não achas legal um pacto de morte? É
fogo, minha filha, fogo! (baixo e ardente) Eu morreria agora, GLORINHA
neste minuto se... (crispada de medo) Porque eu não queria (Num terror) — Já vou!
morrer sozinha, nunca! (com voz estrangulada) O que mete
medo na morte é que cada um morre só, não é? Tão só! É NAIR
preciso alguém para morrer conosco, alguém! Te juro que não (No seu medo feroz) — Não vai, não senhora! Fica comigo.
teria medo de nada se tu morresses comigo! Vai ao médico comigo!

GLORINHA GLORINHA
(Num protesto feroz) — Não! E a hora?

NAIR NAIR
(Quase chorando) — Eu não precisaria tirar o filho, não É cedo!
precisaria fazer a raspagem. (baixo e aliciante) E até já
imaginei tudo, vê só: agente entra num cinema e, lá, no meio GLORINHA
da fita, toma veneno, ao mesmo tempo. E quando acenderem Tarde. E, além disso, eu não posso ver sangue!
a luz, nós duas mortas... Estão levando um filme de Gregory
Peck... NAIR
(Desesperada) — Ou você pensa que eu vou sozinha a esse
GLORINHA médico? Tenho medo da dou e posso morrer, não posso?
De Gregory Peck? Que ótimo! (sôfrega) Dizem que o perigo é a perfuração, o perigo. Oh,
meu Deus! (selvagem) Te chamei para morrer comigo e não
NAIR quiseste! (de novo suplicante) Pelo menos isso, não custa.
(Num apelo de todo o ser) — Queres? Tua mãe não se Quero ter alguém comigo, alguém segurando a minha mão! E
matou? se eu morrer, quero que tu me beijes, apenas isso: quero ser
beijada; um beijo sem maldade, mas que seja beijo!
GLORINHA
(Transida de medo) — Tenho medo! GLORINHA
(Subitamente doce, depois de uma pausa) — Irei contigo! Te
NAIR levarei! (fusão com o consultório do fazedor de anjos.
Tens medo de tudo! Sentadas, mocinhas escuras e apavoradas, que parecem
criadas domésticas)
GLORINHA
(Fremente) — De tudo! Eu queria ir à casa de Madame Luba ENFERMEIRA
e te digo: tomei um banho caprichado, perfumei o corpo, me (Como no barbeiro) — Primeira!
ajeitei toda e, na hora, fiz aquela vergonheira... E quando
estou namorando — vem o medo outra vez... (com um esgar GLORINHA
de choro) medo não sei de quê... É você!

NAIR NAIR
De teu tio, ora! (Atônita) — Já?

GLORINHA GLORINHA
(Dolorosa) — Do meu tio? Sim, do meu tio! (Cotucando-a) — Anda!
NAIR

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(Num apelo) — Vem também! (estacam diante da
Enfermeira) MÉDICO
Então não convém assistir. É melhor não assistir.
ENFERMEIRA
É você ou ela? NAIR
(Num apelo) — Ela não olha, doutor!
GLORINHA
Ela! GLORINHA
Fico de costas!
NAIR
(Sofrida) — Da parte de Madame Luba. NAIR
(Num soluço) — Eu não quero ver o meu próprio sangue!
ENFERMEIRA
Ah, sim. O Pola Negri telefonou. (para Glorinha) E você? MÉDICO
(Para a Enfermeira) — Manda entrar a seguinte!
GLORINHA
Acompanhante. NAIR
NAIR (Gritando) — Não, doutor, não!
Estou nervosíssima e queria que minha amiga assistisse...

ENFERMEIRA
Entre ali, meu bem. MÉDICO
(Com irritação) — Ah, minha filha, você vai ter a santíssima
NAIR paciência, mas a Madame não autorizou anestesia! Apanhe
(Voltando-se) — Vai doer? um lenço e prenda nos dentes pra não gritar. (para Glorinha)
Dá um lenço a ela!
ENFERMEIRA
Pouco. NAIR
Não posso mais!
NAIR
(Com fervor) — Tomara. GLORINHA
(Dá o lenço. Baixo, ao ouvido de Nair) — Morde o lenço!
(O médico aparece, chupando tangerina e expelindo os
caroços) MÉDICO
Quietinha!
MÉDICO
Vamos entrar! GLORINHA
(Chorando também) — Não chora, meu bem!
ENFERMEIRA
(Para ele) — Pessoal de Madame Luba! ENFERMEIRA
(Que saíra, volta) — A água está acabando!
NAIR
(Para Glorinha) — Reza por mim! MÉDICO
(Atirando com o ferro cirúrgico) — Ora que pinóia!
MÉDICO
Muita gente na sala? ENFERMEIRA
Manda as outras embora?
ENFERMEIRA
(Para Nair) — Por aqui, meu anjo. (para o médico) Bastante. MÉDICO
Umas dez. (trevas. No palco apenas iluminados os quatro (Explodindo) — Ou você pensa que eu vou trabalhar sem
rostos: do Médico, da Enfermeira, de Glorinha e de Nair) água?

MÉDICO (Sai a Enfermeira. Volta o Médico à sua função)


(Para Glorinha) — Se impressiona com sangue?
GLORINHA
GLORINHA (Sôfrega) — Há perigo, doutor?
Mais ou menos..

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MÉDICO Chamar a Assistência, engraçado! (furioso) Bonito, o meu
Não amola você também! E que é que está fazendo aqui? nome nos jornais! E eu tendo que comparecer à polícia!
Desinfeta, vamos, cai fora, cai fora!
ENFERMEIRA
GLORINHA (Ressentida) — Você hoje está com seus azeites!
(Recuando) — Vou sim, vou... Aliás a minha situação...
Adeus, Nair... MÉDICO
Dobre a língua! Já lhe disse que não quero intimidades
NAIR durante o serviço. Aqui me chame de doutor, percebeu? E vê
(Meio delirante) — Não! Não!... Volta Glorinha, volta... Não se não me dá peso!
quero ficar só...
ENFERMEIRA
MÉDICO Não está satisfeito, manda embora! (insolente) E se ela
(Para Glorinha) — Mas vem cá! (entre suplicante e morrer?
ameaçador) Não me comenta isso lá fora! Sou um homem de
responsabilidade, um médico, afinal de contas e não é justo NAIR
que eu sofra por causa das poucas vergonhas que vocês Morre comigo, Glorinha...
andam fazendo! Vai, vai, e olha: nem um pio!
MÉDICO
(Cena iluminada em resistência. Glorinha recua, de frente (Arquejante) — Aqui todo o mundo fala em morte. (para
para Nair, até à porta) Nair, histericamente) Você não pode morrer no meu
consultório! (para a Enfermeira) Imagine! Eu me sujar por
GLORINHA causa de uma prostitutazinha! (suplicante) Se houver
(Antes de sair e com certa fascinação) — Quanto sangue! escândalo, com que cara vou aparecer perante a besta do meu
sogro, que é metido a Caxias?
NAIR
(Delirante) — Glorinha, eu não enxergo, foi embora... (na NAIR
embriaguez da agonia) E quem me beijará se eu morrer e Não quero morrer só... Doutor me salve, doutor!
quando eu morrer?

MÉDICO MÉDICO
(Num berro) — Não fala em morte! Essa bobalhona não pára de gemer! (para a Enfermeira) Põe
gaze, entope isso de gaze! E vá escutando: se me denunciares,
NAIR já sabe, eu direi que és uma fazedora de anjos muito
(Delirante) — Quero que, lá em casa, continuem pensando ordinária, direi que já mataste várias. Tenho tua ficha, não te
que eu sou virgem... esqueças!

MÉDICO NAIR
(Fora de si) — Ou você pára ou te bato na boca! (Num gemido de homem) — Glorinha me paga...
(Assombrado diante do destino, o Médico está falando com
ENFERMEIRA uma calma intensa, uma apaixonada serenidade)
(Baixo) — Chamo a Assistência?
MÉDICO
MÉDICO Mas não adianta gaze, nem Pronto Socorro, nada!
(Atônito) — Que piada é essa?
NAIR
ENFERMEIRA Não posso mais... Glorinha... Vamos morrer... Nós duas...
Acho melhor chamar. Glorinha...

MÉDICO MÉDICO
(Num berro) — Está de porre? (Tem nova explosão. Berrando) — Mas isso nunca aconteceu
comigo, nunca! Não sei como foi isso! (para a Enfermeira)
ENFERMEIRA Reza, anda reza, ao menos isso, reza!
(Violenta) — Não grita! (A Enfermeira cai de joelhos, une as mãos no peito)

MÉDICO MÉDICO
(Berrando) — Não rezas?

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ENFERMEIRA
Estou rezando!

MÉDICO
(Enfurecido) — Mas não reza só para ti! Pra mim também!
Eu quero ouvir! Anda! Reza, sua cretina!
(A Enfermeira ergue-se e rompe a cantar um ponto espírita.
O médico soluça)

FIM DO PRIMEIRO ATO

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SEGUNDO ATO Espeto, minha filha, espeto!

(Casa de tio Raul. Em cena apenas tia Odete, esposa de Raul. GLORINHA
Senhora taciturna, rosto inescrutável. De vez em quando ela E o pai?
pronuncia uma breve frase, sempre a mesma. Vive fazendo CECI
interminável viagem pelos cômodos da casa. Não se senta O pai? Sei lá? Deve estar subindo pelas paredes!
nunca.)
GLORINHA
TIA ODETE Mas não dormir em casa eu acho o fim!
Está na hora da homeopatia!
CRISTINA
(Tia Odete passa diante... Entra Glorinha, já de uniforme Já telefonaram pra assistência, polícia, necrotério, o diabo!
cáqui, pronta para ir ao colégio. Toma, na xícara grande, um
resto de café com leite. Aparecem na porta, duas colegas de CECI
Glorinha — Cristina e Ceci) O rádio está dando!

CECI CRISTINA
(Da porta) — Glorinha! Ou será que ela fugiu com algum cara?

GLORINHA CECI
Oba! Entra! Também pode ser desastre, suicídio, não é?

CECI CRISTINA
E teu tio? Vem cá, Glorinha! Foste ontem ao colégio?

GLORINHA GLORINHA
Não está. Pode entrar. Entra! (Transida) — Eu?

CECI CRISTINA
Você já sabe? Foste?

GLORINHA GLORINHA
De quê? Por quê?

CRISTINA CRISTINA
Não sabe? Não me lembro de ter-te visto!

GLORINHA CECI
Estou no mundo da lua. (Intencional) — Ou você não confia na gente?

CECI GLORINHA
A Nair desapareceu! Fiz gazeta, sim, mas olha: nem por um decreto meu tio pode
saber. Veja lá, Cristina! E você também!
GLORINHA
(Atônita) — Nair? CECI
Mas, claro!
CRISTINA
Desapareceu e espia só: não dormiu em casa! GLORINHA
Aliás, hoje, eu tenho um negócio às 11 horas, um lugar para
GLORINHA ir... E que lugar! Mas não vou, nem por um decreto!
Misericórdia!
CRISTINA
CECI Olha a hora!
(Animadíssima) — Ontem, não foi ao colégio, fez gazeta e
sumiu! GLORINHA

CRISTINA
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Ih, vamos chispando, antes que meu tio apareça! (vai ver GLORINHA
pastas, livros, cadernos) Imagina: não dormiu em casa, hoje (Num sopro de voz) — Eu não vou ao colégio?
pela primeira vez! Nunca fez isso!
TIO RAUL
CECI Eu disse: fica!
No mínimo andou-se esbaldando com alguma dona!
GLORINHA
GLORINHA Mas hoje tem prova parcial!
Pois sim! Meu tio não é disso! É uma coisa fora do comum!
TIO RAUL
CECI Pois não vai não senhora. (para as outras) E vocês sumam!
Vais-me enganar que ele não gosta de mulher?
CRISTINA
GLORINHA (Em pânico) — Com licença!
Não dá pelota! CECI
Até loguinho.
CRISTINA
Um mascarado! (As duas passam por ele, de cabeça baixa, como se fugissem)

GLORINHA TIO RAUL


(Já fez tudo que tinha que fazer. Na sua pressa frívola, vai (Na sua ferocidade contida) — Põe a pasta em cima da mesa.
beijar a tia na testa) — Até logo, titia, até logo! Agora fica assim, em pé, parada, que eu quero olhar os teus
16 anos.
TIA ODETE
(Lenta e doce) — Está na hora da homeopatia! GLORINHA
Mas titio, se eu não for hoje ao colégio, vou tirar zero!
CECI
(Estaca, como se, apesar de tudo, a loucura da outra a TIO RAUL
fascinasse. Com certo respeito) — Que mágica besta: Antes que eu me esqueça, você vai-me responder o seguinte:
“Está na hora da homeopatia”... você foi ontem à aula? Eu poderia perguntar ao próprio
colégio mas prefiro saber de ti. Foste?
(Apesar da gíria, há em Ceci um certo medo e um certo
encantamento. As outras já se adiantaram) GLORINHA
(Atônita) — Fui.
CRISTINA
Vem! TIO RAUL
E juras por que ou por quem? Juras pela alma de tua mãe que
CECI foste, ontem, ao colégio?
(Quase doce) — Foi derrame, foi? O que me invoca é que ela
não senta, não pára! GLORINHA
Pela alma de minha mãe?
(Encaminham-se as três para a porta, no justo momento em
que entra, em sentido contrário, o tio Raul. Glorinha estaca e TIO RAUL
as outras também) (Com certa veemência) — Por tua mãe sim! Ela morreu
quando tinhas dois anos, tu não a conheceste, mas lhes tens
GLORINHA amor ou medo? (carinhoso, baixo) Responde: gostas muito
Ah, titio! dessa mãe desconhecida?

TIO RAUL GLORINHA


(Sóbrio mas inapelável) — Volta. (Dolorosa) — Muito.

GLORINHA TIO RAUL


(Crispada) — Por que, titio? E juras por tua mãe? Que não fizeste gazeta?

TIO RAUL GLORINHA


Você fica. (Lenta) — Posso jurar.

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TIO RAUL GILBERTO
Mas espera! Não jures ainda, porque é dela mesma, é de tua Um só.
mãe, que vamos falar. (muda de tom) Que sabes tu de tua
mãe? JUDITE
(Debate-se nos braços de Gilberto, esganiçando o riso.
GLORINHA Gritando) — No ouvido não!
Bem, o senhor me disse que era bonita...
GILBERTO
TIO RAUL (No seu alegre desejo) — Por quê?
Sim. Bonita. E que mais?
JUDITE
GLORINHA (Rindo e arquejando) — Só de você falar espia como eu estou
Disse também que era uma santa. toda arrepiada! Não biinca assim! (súbito, Gilberto agarra-a
novamente. Esperneando e esganiçando a voz) Eu faço um
escândalo! (Gilberto beija-a no ouvido — com agudíssimas
gargalhadas) Não, Gilberto. Não! (é beijada na orelha)

GILBERTO
TIO RAUL Gostou?
(Excitado) — Exatamente: santa. Uma santa que, aos 22 anos
de idade, matou-se, quer dizer, tomou veneno. Muito bem. E JUDITE
se eu disser que menti? (sôfrego) Responde: queres saber (Num soluço) — Como é bom! Bom de mais!
quem foi tua mãe, tal como foi, queres? E saber porque se
matou? Queres? GILBERTO
(Arrebatado) — Minha histérica!
GLORINHA
(Com fervor) — Quero! JUDITE
(Com voluptuoso apelo) — Não me chame disso!
TIO RAUL
Que idade tens? 16. GILBERTO
(Glorinha afasta-se lentamente. Como uma sonâmbula, (Com divertido espanto) — Ué, você queria ser fria?
coloca-se no plano do passado)
JUDITE
TIO RAUL Isola.
Quando tu tinhas dois anos, e teus pais três de casados, ou
nem isso, eu recebi um telefonema. Entre parênteses — corria GILBERTO
um zunzum, naquela época, segundo o qual teu pai e tua mãe (Trincando os dentes) — Gosto que sejas assim: meio
andavam brigando muito... histérica!

(No plano do passado, acaba de aparecer o pai de Glorinha, JUDITE


Gilberto. Judite desfaz o rabo de cavalo) (Rindo) — Sou normal, ouviu, seu malcriado?

TIO RAUL GILBERTO


Teu pai teve um gênio muito violento. Judite era o teu (Rindo) — Normal mas custa!
retrato... A tua altura, o teu jeito, os teus olhos e, até o teu
andar. JUDITE
Vem cá. Agora chegou a minha vez: você vai deixar eu te dar
(Pausa na narração, para que seja vivida a cena evocada. uma mordida.
Marido e mulher adquirem vida e movimento. Gilberto
agarra Judite) GILBERTO
Não vale.
GILBERTO
Deixa eu te dar um beijo de estalo, no ouvido? JUDITE
(Sôfrega) — Uma mordida aqui! (puxa o próprio lábio
JUDITE inferior)
(Eletrizada) — Eu grito!
GILBERTO

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Não, senhora! E por que é que vocês mulheres gostam de GILBERTO
morder? Negas que era teu amante?

JUDITE JUDITE
(Desesperada) — Eu dou de leve, bem de leve! (Num soluço) — Juro!

GILBERTO GILBERTO
Não, seguro morreu de velho! (Agarra-a pelos dois braços. Fala quase boca com boca) —
(No plano do passado Judite imobiliza-se; Gilberto retira-se Então quem era?
de cena)
JUDITE
TIO RAUL Engano.
(Exasperado) — Pelo contrário, o casal mais feliz da família
e, ainda por cima, só pensavam em sexo! (muda de tom, GILBERTO
arquejante) E, um dia, eu sou chamado no escritório... Sua cínica!

JUDITE JUDITE
(Em desespero, ao telefone) — Alô! Alô! Quem fala? Por (Desprende-se com violência — gritando) — Eu não tenho
obséquio eu queria falar com Raul, ele está? Tenha a bondade amante!
de dizer que a cunhada dele, Judite, sim, Judite. Pois não.
(Fala ao mesmo tempo que olha para trás, num pavor GILBERTO
absoluto. Na extremidade oposta do palco, e também no (Com humor hediondo) — Responde: era aquele cara da
plano do passado, Raul) praia, que tu olhaste? Ou aquele do iate-clube? Fala! Ou
aquele da fila do Metro?
TIO RAUL
Pronto, Raul! JUDITE
Não respondo!
JUDITE
(Num soluço) — Sou eu!

TIO RAUL
Ah, como vai, Judite? GILBERTO
É a terceira vez que te encontro pendurada no telefone. A
JUDITE desculpa é sempre a mesma: engano. (calcando as palavras)
(Fora de si) — Não posso falar muito, Raul. Toma um táxi e Desculpa de adúltera! (frenético) Mas quero saber quem era e
vem para cá, correndo. você vai-me dizer agora, neste minuto, um nome!

TIO RAUL JUDITE


Alguma novidade? (Soluçando) — Eu menti!

JUDITE GILBERTO
Só pessoalmente! Estou correndo perigo de vida, Raul! E E confessas?
você talvez não chegue a tempo! Até logo, até logo! (desliga)
JUDITE
GILBERTO (Soluçando) — Não foi engano!
(Aparece na porta, em tempo de escutar as últimas palavras
de Judite. Num berro triunfal) Até que enfim! GILBERTO
Anda, o nome.
JUDITE
(Recuando e derrubando uma cadeira) — Que foi? JUDITE
Raul.
GILBERTO
Negas agora? GILBERTO
(Estupefato) — Quem?
JUDITE
(Com esgar de choro) — Mas o quê? JUDITE
(Violenta) — Raul, sim Raul! Eu estava falando com Raul!

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contrário. Dirás que não houve nada e que, até, somos
GILBERTO felicíssimos, que parecemos dois namorados.
(Lento) — Mas é meu irmão e não o teu amante! Foi ele que
telefonou para você? JUDITE
Devo mentir?
JUDITE
Eu telefonei para ele, eu! GILBERTO
Ou tens escrúpulos, sua ordinária? (está de frente para a
GILBERTO esposa e de costas para a porta. Não vê quando Raul
(Atônito) — Mas por que? A troco de quê? aparece)
JUDITE
JUDITE (Num sopro) — Chegou.
(Baixando a cabeça) — Não digo.
GILBERTO
GILBERTO (Vira-se lentamente. Falso e incerto) — Ora viva!
Fala ou te arrebento!
TIO RAUL
JUDITE Como vai, Judite?
(Por entre lágrimas) — Falei para Raul porque...
JUDITE
GILBERTO (Com sofrida cordialidade) — Assim, assim. E você, bem?
Continua!
TIO RAUL
JUDITE (Sóbrio) — Na luta.
... Porque já não agüento mais e queria ver se ele, enfim,
falava com você... Como Raul é a única pessoa no mundo que GILBERTO
você respeita, talvez ele me possa salvar, quem sabe? (Passa a mão nas costas de Raul. Com um riso grosseiro) —
Imagina você que, de vez em quando, eu estou no emprego e,
GILBERTO de repente, me dá uma saudade tremenda de Judite! Tenho
(Quase chorando) — Tu o chamaste? E ele vem para cá? que voar para casa. E te digo mais: a verdadeira lua-de-mel
não acaba...
JUDITE
Vem. TIO RAUL
(Olhando um e outro) — Mas, finalmente, que foi que houve
aqui?
GILBERTO
Agora? GILBERTO
Houve como? Nada. Não houve nada. Por quê?
JUDITE
Está a caminho.
TIO RAUL
GILBERTO E você, Judite, está calada, não diz nada?
(Desesperado agarra a mulher) — E lhe contaste alguma
coisa? Contaste? JUDITE
(Confusa e desesperada) — Eu? Bem, tenho andado meio
JUDITE indisposta e...
Não.
TIO RAUL
GILBERTO Só?
(Suplicante) — Nada, nada?
JUDITE
JUDITE (Na sua angústia) — Que eu saiba, só.
(Num berro) — Nada!
TIO RAUL
GILBERTO Já que é assim, eu devo dizer a você o seguinte: tenho um
(Desfigurado pela cólera, fala, rosto a rosto, com a mulher) defeito que não sei se é defeito. Sou muito franco, muito
— E não lhe dirás nada. Ou antes: dirás, sim, mas tudo ao direto. Talvez me falte tato, é esse o termo: tato. E vou ser

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mais uma vez franco, direto: ou você ou Judite me deve uma (Desesperada) — Eu não quero acusar meu marido!
explicação. Um dos dois.
GILBERTO
GILBERTO (Violento) — Mas se tu não me acusas, eu te acuso!
Não entendo. (exultante, anda de um lado para outro, possesso, em largas
passadas) Raul, está vendo essa mulher? Dei-lhe sim, com as
TIO RAUL costas da mão na boca e aqui no ouvido! Ela virou por cima
Vai entender. O caso é que eu estava no meu escritório e das cadeiras e eu te juro, Raul — tive vontade de matá-la!
recebo um chamado. Venho correndo e vocês me dizem que
não há nada. Ora, eu não sou criança! TIO RAUL
(Estupefato, para a cunhada) — ele te bateu?
GILBERTO
Mas chamado de quem? JUDITE
(Trancando os lábios) — Não sei.
JUDITE
Meu, Gilberto. Você não estava e, de repente, comecei a GILBERTO
passar mal, a sentir palpitações, falta de ar. (para Raul) Ando (Numa excitação tremenda) — Bem. Já conheces as razões de
muito nervosa ultimamente, uma pilha. (para Gilberto) minha mulher. Agora, as minhas. Um marido que bate, tem
Felizmente já estou melhor e você chegou... suas razões.

TIO RAUL JUDITE


Foi só o susto? (Enfurecida) — É mentira

JUDITE TIO RAUL


(Dolorosa) — Graças a Deus! Quais são suas razões?

TIO RAUL GILBERTO


Antes assim. Neste caso, eu me vou. Uma única: ela me trai. Basta?

JUDITE JUDITE
(Desesperada) —Não! (Possessa) — Quero que minha filha morra leprosa se, algum
dia, eu traí meu marido! (agarrada ao cunhado) Vou contar o
GILBERTO que houve e não houve mais nada. Raul, sob minha palavra de
Judite! honra: — um dia eu estava tomando banho, ele bateu na porta
e eu não quis abrir. Por isso, me bateu, me xingou de todos os
TIO RAUL nomes!
Você está escondendo o quê? Fale, pode falar!
GILBERTO
GILBERTO (Exultante — para o irmão) — Viste a falta de vergonha?
(Melífluo e ameaçador) — Diga a Raul que você não está Mulher é assim mesmo, tem prazer de contar a própria
escondendo nada, diga! intimidade sexual!

JUDITE TIO RAUL


(Soluçando) — Juro que não estou escondendo nada, Juro! Não tens outra prova além de um banho?
TIO RAUL
Ou não confia mais em mim!

GILBERTO
(Tem uma súbita explosão) — Não sabe nem mentir! (para GILBERTO
Raul, sôfrego) Raul eu não queria que tu soubesses e pedi a (Frenético) — E achas pouco? Não vês que isso é o sintoma?
Judite que te mentisse. Mas uma histérica não se controla. O sintoma, Raul? (na angústia de convencê-lo) Presta
(para Judite) Agora sou eu que exijo, eu, que contes tudo! atenção: antes, minha mulher não tinha vergonha de mim,
nenhuma, nenhuma! Já no namoro houve entre nós o diabo!
TIO RAUL Casamos e, no dia seguinte, tomou banho comigo, Raul.
Vocês brigaram? Tomamos banho juntos!

JUDITE JUDITE

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(Num protesto feroz) — Basta!
TIO RAUL
GILBERTO (Exasperado) — Mas você mesma não o chamou de canalha?
(Para Judite) — Foi você que começou. Agora vou até o fim.
(para Raul) Durante dois anos, todo o santo dia, o banho em JUDITE
comum era sagrado! E, de repente, Meu lugar é aqui!
Raul, vê só: De repente, ela começa a ter vergonha de mim,
pudor, Raul! Cortou o nosso banho — o banho que, durante TIO RAUL
anos, fora exigência dela mesma, Raul, dela própria! (Na sua cólera contida) — Uma última pergunta: quero saber
(violento) Isso queria dizer o quê? Mas claro: a mulher que se você ainda gosta do homem que a chamou de marafona?
passa a ter pudor do marido é porque tem outro, porque Quero saber se ainda o ama.
arranjou um amante! Ou não é?
JUDITE
TIO RAUL (Numa reação histérica) — Amo! Amo! (explode em soluços.
Mas isso é um raciocínio monstruoso! Ao mesmo tempo, Gilberto grita, exulta)

GILBERTO GILBERTO
Exato, raciocínio exato! (fora de si) Casei-me com uma (Agarrando o irmão) — Viste? (sôfrego) E, agora, acreditas
marafona! ou não que o banho foi um sintoma? (apontando a mulher)
Dei-lhe na cara, bati no ouvido, mas fica. E fica porque traiu!
JUDITE Fica porque é adúltera! Não tem brio, nem para fugir. (com
(Enlouquecida) — E eu com um canalha! um riso soluçante) Ela nem gritou, Raul! Apanhou sem gritar!
A inocente gritaria!
TIO RAUL
Gilberto, considero o que você está fazendo uma indignidade! JUDITE
(Alucinada) — E grito, sim. (gritando) Eu sou inocente!
GILBERTO
(Atônito) — Não, Raul! TIO RAUL
(Sem cólera e com asco) — Um merece o outro!
TIO RAUL
(Para Judite) — Você tem toda a razão, Judite. Eu, se tivesse JUDITE
de depor no tribunal, na polícia, em qualquer lugar, ficaria a (Desesperada) — Mas, se eu for contigo, ele põe outra em
seu lado e contra meu irmão. E vamos fazer o seguinte: meu lugar...
depois que você foi espancada e que chamou seu marido de
canalha, é óbvio, claro, que não pode haver mais nada entre TIO RAUL
vocês, nada! Isso tem que ser resolvido já. Você vai apanhar (Saturado) — Nesse caso, cessa a minha atuação e...
agora mesmo sua filha e vamos sair juntos.
GILBERTO
JUDITE (Precipita-se para o irmão num apelo) — Não vá, Raul!
(Crispada) — Para onde? Ainda não!

TIO RAUL TIO RAUL


Para a casa de seus pais. (Sóbrio e irredutível) — Você é um crápula!

JUDITE GILBERTO
Sair para não voltar? (Estende para o irmão as duas mãos crispadas) E se eu te
disser que estou doente? (segurando o irmão) Raul, não posso
TIO RAUL ficar entregue a mim mesmo, porque, te juro, sou capaz de
Mas evidente, para não voltar! matar minha mulher e de me matar. (com um ricto de louco)
Ainda agora tive a sensação de que as mesas da casa, as
JUDITE mesas, vinham-me estrangular! (aperta a cabeça) E minha
(Recuando) — Não quero. cabeça? São obscenos os miolos da minha cabeça! Eu olho e
TIO RAUL vejo os amantes de minha mulher. (aponta as paredes) Os
Não vem comigo? amantes escorrendo como água nas paredes infiltradas... E
quando tu chegaste, eu pensei que também tu desejarias
JUDITE minha mulher, que também acharias linda a minha mulher,
Eu fico!

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linda, linda, linda! (num apelo selvagem) Quero ser internado, Odeio minha mulher e odeio minha filha porque é filha de
Raul! minha mulher!

TIO RAUL (Gilberto imobiliza-se no plano da lembrança. Raul sozinho


(Atônito) — Calma. Eu tenho um médico conhecido. Falo na realidade)
com ele amanhã. TIO RAUL
Com a roupa do corpo, teu pai entrou na casa de saúde da
GILBERTO Gávea...
Não posso! Amanhã é tarde demais! Conheces alguma casa
de saúde? (Gilberto fala no plano da lembrança)

TIO RAUL GILBERTO


Para que? (Crispado) — Avisa que eu não quero ver ninguém! Nem
mãe, nem mulher, nem irmão, nem amigo. Voltarei, se voltar,
GILBERTO quando for outro homem. Não quero mais ser o que sou.
(Num esgar de choro) — Raul me leva, já, de táxi, Raul, ara (enfurecido) Quero ser louco em paz e só!
uma casa de saúde, já!
(Trevas no plano da lembrança. Raul, no plano atual)
TIO RAUL
(Conciliatório) — Não seria melhor, por exemplo... TIO RAUL
Psicanálise? Passou lá seis meses. Sabíamos notícias pelo telefone.
Ninguém o visitou, nunca. Jamais houve na terra um homem
GILBERTO tão só. E, um dia, eu telefonei...
Não, Raul! Quero um lugar em que eu possa gritar, onde eu
seja amarrado materialmente! Psicanálise, não. Calmantes, eu (Judite, no plano da lembrança, com gestos de quem faz sua
quero calmantes! Ou, já sei: malária! Não acredito em toilette)
psicanálise, mas acredito em febre! Quero que a febre queime
os miolos da minha cabeça e, sobretudo isto: não quero TIO RAUL
pensar. (num crescendo fanático) Não quero, não quero, não ... E lá me disseram: “Acaba de sair”. Mas não é possível!
quero! (termina num soluço) Saiu como? Teve alta? Assim tão de repente e sem avisar?
Ah! Ele queria fazer uma surpresa? Compreendo... Surpresa...
TIO RAUL
Eu chamo o médico aqui, ele vem aqui. (Por detrás de Judite, sem que esta o perceba, acaba de
aparecer Gilberto)
GILBERTO
Não espero nem mais um minuto, vamos! GILBERTO
TIO RAUL (Na paixão contida) — Linda!
Eu te levo.
JUDITE
JUDITE (Vira-se, rápida, em pânico) — Gilberto!
(Sofrida) — Um momento, Raul: eu quero beijar meu marido.
GILBERTO GILBERTO
(Recua, numa crise violenta, num berro) — Não! Teu beijo Minha carícia!
ainda tem a saliva do teu amante!
JUDITE
(Saem, Raul e Gilberto. Trevas no plano da evocação. No (Recuando) — Não avisou, por quê?
plano da realidade atual, aparece Raul)
GILBERTO
TIO RAUL (Avançando) — E o meu beijo? (agarra Judite)
(Apenas informativo) — Apanhamos um táxi na esquina. No
caminho ele gritava... JUDITE
(Fugindo com o rosto) — Cuidado com a minha pintura!
(No plano da lembrança, estendendo as duas mãos crispadas,
Gilberto geme) GILBERTO
(Ainda contido) — Como cheira bem!
GILBERTO
JUDITE

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(Com surda impaciência) — Vamos conversar.
JUDITE
GILBERTO (Mais informativa) — É promessa.
Primeiro o beijo!
GILBERTO
JUDITE Por mim?
Na face!
JUDITE
Por ti.
GILBERTO
(Fora de si) — Na boca, bem molhado, na boca, quero a GILBERTO
boca, essa boca, anda! (Num crescendo) — Pela minha cura? Pela minha volta?

JUDITE JUDITE
Mas eu tenho que sair! Mas claro!

GILBERTO GILBERTO
(Sem cólera e apenas espantado) — Sair? E eu? Estou aqui, (Num transporte) — Sentias tanto a minha falta. Oh querida!
de novo. Não compreendes que eu voltei? Que é a minha (apertando a esposa nos braços) Perdoa a minha insistência!
ressurreição (sôfrego) Te lembras quando eu te pedia para pôr E não penses que eu estou zangado, irritado. Eu não me
saliva em minha boca? (no ouvido da mulher) Eu quero beber irritarei nunca mais, eu te juro! Agora me dá o beijo e vai,
na tua boca, vem! sim, vai! Beija!

JUDITE JUDITE
(Brusca) — Espera um pouco! Depois e, aliás, já estou em cima da hora, atrasadíssima. Até
logo, até logo!
GILBERTO
Esperar ainda? GILBERTO
Eu te espero
JUDITE (Judite está um pouco afastada, da direção da porta)
Você não me avisou e eu assumi um compromisso. Paciência,
meu filho! GILBERTO
Vou-te beijar todinha, da cabeça aos pés!
GILBERTO
Mas Judite! Não percebes que não pode haver compromisso JUDITE
maior que a minha ressurreição? Ou tens medo de mim? (Com falsa voluptuosidade) — Não me provoca! (afasta-se.
Estou bom, tive alta, fiz malária, Judite! O marido chama-a, pela última vez)

JUDITE GILBERTO
(Lenta e falsa) — Infelizmente não posso faltar a esse E olha!
compromisso!
JUDITE
GILBERTO (Da porta) — Fala!
Com quem é esse compromisso?
GILBERTO
JUDITE (Com humildade) — Deus te abençoe!
(Vacilando) — Uma pessoa.
JUDITE
GILBERTO (Frívola) — Amém! (sai)
É mais importante do que eu? Do que o nosso amor? Faz o
seguinte: telefona, explica que eu cheguei, não custa! (Gilberto apanha uma combinação rosa, que está em cima de
uma cadeira. Passa a combinação no próprio rosto. Larga a
JUDITE combinação em cima da cadeira. Entra Raul)
Não é pessoa.
TIO RAUL
GILBERTO Mas que foi isso? (abraçam-se com tremenda efusão)
Como?

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GILBERTO (Luz sobre Gilberto e Judite. Ele, nu da cintura para cima, o
E mamãe? O pessoal todo? rosto ensaboado, está fazendo a barba. Ao lado, Judite de
quimono)
TIO RAUL
Você está com outra cara! GILBERTO
Não deixa faltar guaraná.
GILBERTO
A cara é o menos! Outra alma e te juro: eu sou outro, JUDITE
profundamente outro. (com angústia) E sabe por que é que E coca-cola. (toma nota. Gilberto pára, um momento, de fazer
enlouquecemos? Porque não amamos! a barba)

TIO RAUL GILBERTO


Quer dizer que a malária resolveu? Não cortando tua conversa. Na casa de saúde, depois da
malária, estive pensando o seguinte: nós estamos errados em
muitas coisas. Queres ver um exemplo? Não damos
importância ao beijo na boca. E, no entanto, vê se eu tenho
razão (com grave ternura) o verdadeiro defloramento é o
GILBERTO primeiro beijo na boca.
Pode falar de minha doença à vontade que eu acho até graça.
Bem, a malária deu certo, sim. E, aliás, não foi só a malária: JUDITE
sobretudo a vontade de viver para amar. Santa Bárbara!... (novamente frívola) Sanduíches, quantos?

TIO RAUL GILBERTO


(Olhando em torno) — E tua mulher? Talvez uns oitenta?
JUDITE
GILBERTO Dá?
Saiu agorinha mesmo, neste instante.
GILBERTO
TIO RAUL E sobra.
Como? Logo hoje, no momento em que você chega?
JUDITE
GILBERTO Fica faltando o quê?
Veja você que coincidência: cheguei quando Judite saía para
fazer uma promessa, em minha intenção, é claro. Te digo: as GILBERTO
mulheres são fabulosas. Por exemplo: esse negócio de Mais uns salgadinhos.
promessa é um achado perfeito. Nós não fazemos promessas.
(eufórico) O homem é um animal, positivamente. JUDITE
Ih, deixa eu tomar nota da mãe-benta!
TIO RAUL
Bem, eu também vou chegando, porque tenho que resolver TIO RAUL
uma parada. Passo amanhã por aqui. (Chamando) — Não tem ninguém? (fala do andar térreo)

GILBERTO JUDITE
(Comovido) — Passa e traz todo o mundo. Raul.

(Trevas. Em seguida, ilumina-se a extremidade oposta. GILBERTO


Aparece toda a família de Raul: a mãe, de preto, (Aproxima-se da imaginária escada) — Sobe, Raul!
enchapelada, irmãos, tios. Raul vem falar no plano da
realidade. Os outros permanecem imóveis, de perfil, TIO RAUL
cerimoniosíssimos) Estou com o pessoal.

TIO RAUL GILBERTO


Na manhã do dia seguinte apanhamos dois táxis e fomos, Mamãe, que surpresa!
todos, para a casa de Gilberto.
JUDITE
Esperávamos vocês mais logo.

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GILBERTO
(Eufórico) — Mas é uma invasão completa. (Cochichos entre os que ficam)

MÃE TIO RAUL


(Cortante, para Judite) — Não me beija, que eu estou (Baixo) — Observem os modos, as reações dele, observem! E
resfriada. depois digam se eu não tenho razão!

VOZES PRIMEIRO IRMÃO


Estás mais gordo! Corado! Bem disposto! O que eu sinto nele é uma bondade doentia, sei lá!

GILBERTO SEGUNDO IRMÃO


Ora, nós íamos fazer uma mesinha mais tarde! A malarioterapia é troço superado!

JUDITE (Gilberto com Judite)


Quer tirar o chapéu, D. Nieta?
JUDITE
MÃE Você viu a atitude de seu pessoal?
(Formal) — Estou bem assim! (para Raul) Fala, Raul!
TIO RAUL GILBERTO
Bem, Gilberto, nós queríamos conversar contigo. Vi e é por isso que estou aqui. Olha: não liga, meu anjo, não
liga! O que interessa é que eu te amo e mais do que nunca!
GILBERTO (incerto) Só acho que você está m pouco diferente, não sei.
Comigo? Pois não. Alguma novidade? Ou é impressão?

MÃE JUDITE
É assunto particular, meu filho. (Dolorosa) — Impressão.
(Gilberto mudou a camisa durante a conversa)

JUDITE
Não posso ouvir?

TIO RAUL
Exatamente. É assunto que interessa a nós e a Gilberto e a GILBERTO
mais ninguém. (Ansioso) — Ontem à noite eu não vi em você um abandono;
você ainda resiste, Judite, como se duvidasse de mim. Eu te
JUDITE beijei no ouvido e tu não reagiste como antigamente e... (com
Compreendo. Com licença. (sai) falsa euforia) De qualquer maneira, te achei divina... Bem,
deixa eu ir que estão me esperando... (de longe faz a mímica
GILBERTO correspondente) Um beijo nessa boquinha.
(Desconcertado) — Vem cá, Judite! (Judite não atende) Mas
ela não pode ouvir, por quê? JUDITE
Pra ti também.
TIO RAUL (Gilberto está com a família. Há um silêncio entre ele e os
Vamos lá para dentro! outros)

(Colocam-se todos na outra extremidade do Palco. Sentam-se GILBERTO


em pequenos bancos. Só Raul e Gilberto estão de pé) Parece um julgamento!

GILBERTO MÃE
(Com inquieta alegria) — Quanto mistério! Quem sabe?

TIO RAUL TIO RAUL


Gilberto, o que nos traz aqui é o seguinte. (Para os outros) — Agora eu peço que não me interrompam.
(para Gilberto) Hoje, bem cedinho, eu reuni toda a família
GILBERTO para comunicar o que você vai saber neste momento. Aliás, o
Um momento. Eu vou vestir uma coisa qualquer... Volto já... principal interessado é você mesmo. Trata-se do seguinte:
(sai) quando você foi para a casa de saúde, eu comecei a observar

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umas tantas coisas que me desagradaram. Finalmente, há um Por quê?
mês, fiz apenas o seguinte, vá escutando: paguei a um ex-
investigador, meu conhecido, para acompanhar os passos GILBERTO
(elevando a voz) de Judite! Quero que me responda: que interesse é esse? A mulher é
minha ou tua? E por que odeias a quem traiu a mim e não a
GILBERTO ti?
Por que de Judite? A troco de quê?
MÃE
TIO RAUL Acreditas ou não?
Já chegaremos lá. O fulano fez o diabo: espiou em buracos de
fechadura, ouviu nas portas, meteu-se detrás de guarda- GILBERTO
vestidos. No fim de vinte dias apareceu. Gilberto, a minha (Num grito estrangulado) — Não!
intuição estava certa. Hoje tenho aqui, comigo, tudo: nome,
endereço, telefone e sei, inclusive, de vários detalhezinhos de TIO RAUL
alcova. (Possesso) — Você resiste à evidência? Você recusa os fatos?
Recusa as provas?
GILBERTO
Mas que é isso? Nome de quem? E que endereço? GILBERTO
Recuso! Eu não acredito em provas, eu não acredito em fatos
TIO RAUL e só acredito na criatura nua e só.
(Feroz) — Do amante, percebeste? Do amante?
TIO RAUL
MÃE Mas é uma adúltera.
Do amante de tua mulher!
GILBERTO
PRIMEIRO IRMÃO A adúltera é mais pura porque está salva do desejo que
Falem baixo. apodrecia nela.

GILBERTO TIO RAUL


Vocês estão falando de Judite? (Para os outros) — Vocês estão vendo? (para Gilberto) É
essa a tua cara? Esse o resultado da malarioterapia?
TIO RAUL
Te digo, já, nome, profissão, residência, idade do amante. GILBERTO
Queres? (Veemente) — Ouçam ainda! Não acabei!

TIO RAUL
GILBERTO (Com achincalho) — Vamos ouvir! Vamos ouvir!
É mentira!

PRIMEIRO IRMÃO
Não gritem, que ela pode ouvir!
GILBERTO
MÃE Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a
Escuta o resto! todos. Devemos ser irmãos até dos móveis, irmãos até de um
simples armário! Vim de lá gostando mais de tudo! Quantas
TIO RAUL coisas deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de
Ainda ontem, dia de tua chegada, ela teve a coragem de te amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama
largar aqui e, sob que pretexto? De uma promessa! E a ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso
promessa era o amante, o amante que a esperava (muda de trair sempre, na esperança do amor impossível. (agarra o
tom, arquejante) Que dia era ontem? Sexta-feira. Muito bem: irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um
sexta-feira é um dos três dias da semana que ela se encontra simples eczema é o amor não possuído!
com o amante.
SEGUNDO IRMÃO
GILBERTO Bonito!
Acabaste?
PRIMEIRO IRMÃO
TIO RAUL Que papagaiada!

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GILBERTO
TIO RAUL Não responda, Judite!
(Contido) — E, finalmente, qual é a conclusão?
JUDITE
MÃE Mas é evidente que está alterado... E, depois não tem
(Para si mesma) — Meu filho não diz coisa com coisa... cabimento: diz “Perdoa-me por me traíres”, ora veja!

GILBERTO TIO RAUL


É que Judite não é culpada de nada! E, se traiu, o culpado sou E acha que ele deve ser internado, não acha Judite? Diga para
eu, culpado de ser traído! Eu o canalha! a sua sogra, seus cunhados, diga Judite!

TIO RAUL JUDITE


(Segura Gilberto pelos braços e sacode-o) — Tua cura é um (Crispada e com certa vergonha) — Deve ser internado!
blefe. A tua generosidade, doença! Agora sim, é que estás
louco! TIO RAUL
(Rápido e violento) — Vocês me ajudem!
GILBERTO
(Recuando) — Vocês exigem o quê, de mim? GILBERTO
Mas que é isso?
TIO RAUL
O castigo de tua mulher? (Gilberto é seguro, primeiro por Raul e, em seguida, pelos
outros. O doente esperneia e soluça)
MÃE
Humilha bastante! MÃE
Cuidado, não machuquem meu filho!
PRIMEIRO IRMÃO
Marca-lhe o rosto! GILBERTO
Amar é ser fiel a quem nos trai!
GILBERTO
Devo castigá-la eu mesmo? Na frente de vocês? (com súbita TIO RAUL
exaltação) Judite! Judite! (para os outros) Vocês vão ver! (Arquejante) — É preciso! Você não pode ficar solto! (para
Vocês vão assistir! (grita) Judite! Judite! os outros) Ponham num táxi e levem para a casa de saúde, já!

JUDITE GILBERTO
(Aparece, em pânico) — Que foi, meu Deus do céu? (Aos berros) — Não se abandona uma adúltera!

(Silêncio geral. E, fora então, de si, o marido atira-se aos pés MÃE
de Judite) (Chorando) — Você vai ficar bom, Gilberto!

GILBERTO (Saem Gilberto e os outros. Ficam Raul, D. Nieta e Judite)


(Num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
JUDITE
JUDITE Eu não entendo porque os médicos deram alta!
(Desprende-se num repelão selvagem) (apontando) — Está
louco! TIO RAUL
GILBERTO (Está de costas para ela) — Judite, por obséquio, quer trazer
(Sem ouví-la) — Perdoa-me! um copo de água?

JUDITE
(Para a família) — Não está em si! Eu não traí ninguém! JUDITE
Mineral ou do filtro?
TIO RAUL
(Para a família que se agita) — Ninguém se meta! Ninguém TIO RAUL
diga nada! (para a cunhada, caricioso e hediondo) Pode falar, Do filtro. Meio copo basta.
Judite! Quer dizer que você concorda conosco? Acha também
que seu marido recaiu, digamos assim? (Judite sai de cena)

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MÃE Te direi um detalhe, um detalhe só, e verás que é inútil
(No seu ódio, acompanhando-a com o olhar) — Como é mentir. (com um riso estrangulado) É verdade ou não que teu
limpa, como é cheirosa! Imagina tu que ela própria me disse amante exige que lhe digas pornografias? (exultante) E não te
que fazia a higiene íntima três vezes por dia, se tem contarei como soube disso, não! Talvez espiando no buraco
cabimento! Tanto asseio não havia de ser para o marido, da fechadura, ou ouvindo nas portas! (corta o riso vil) Agora
duvido! confessa a mim, antes de morrer: tens um amante?

TIO RAUL JUDITE


(Saturado) — Mamãe, o problema não é esse, mamãe. Eu (Com um riso soluçante) — Um amante? Um só? Sabes de
resolvo tudo, pode deixar. E saia um momento; espera lá fora, um e não sabes dos outros? (violenta e viril) Olha: vai dizer a
sim mamãe? tua mãe, a teus irmãos, às tuas tias — fui com muitos, fui com
MÃE tantos! (subitamente grave e terna) Já me entreguei até por
Humilha, ofende, mas sem violência. Violência, não. Nada de um bom-dia! E outra coisa que tu não sabes: adoro meninos
bater. na idade das espinhas!

(Sai. Judite reaparece com o copo de água. Raul apanha o TIO RAUL
copo) (Num soluço) — Ou te matas ou te mato! Bebe!

JUDITE JUDITE
Isso me estragou o dia. (Mudando de tom, quebrando a voz num soluço) — Eu me
arrependo do marido, não me arrependo dos amantes!
TIO RAUL (apanha o copo que vai levando à boca, lentamente.
Obrigado, Judite. Estragou o dia, acredito. Primeiro vou Enrouquecida.) — Minha filha!
adicionar isso aqui... (está pondo um pozinho) um marido
internado é muito repousante... (sóbrio e inapelável) Agora, (Judite bebe de uma só vez. Em seguida larga o copo que se
toma! estilhaça no chão. Cai de joelhos, com as entranhas em fogo
e tem um gemido grosso, de homem. Ainda agoniza quando o
JUDITE exausto Raul vai encontrar-se com a mãe)
(Recuando) — Para mim?
MÃE
TIO RAUL Passaste-lhe uma boa descompostura?
Segura!
TIO RAUL
JUDITE (Exausto de odiar e quase doce) — Ela não trairá nunca
(Está com as mãos para trás) — Mas que é isso? mais...

TIO RAUL FIM DO SEGUNDO ATO


(Ainda contido) — Adivinha!

JUDITE
(Com esgar de choro) — Remédio?

TIO RAUL
Veneno.

JUDITE
(Com voz estrangulada) — Você enlouqueceu?

TIO RAUL
Estou no lugar do irmão louco. Negas que tens um amante?

JUDITE
Nego. E você não é meu marido!

TIO RAUL

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TERCEIRO ATO TIO RAUL
(Imperativo) — Gosto que falem para mim!
(Raul acaba de contar, para Glorinha, a história de Judite.
Vai passando tia Odete que, por um momento, estaca e diz a GLORINHA
sua frase de sempre). Estou olhando!
TIO RAUL
(Na sua doçura triste) — Está na hora da homeopatia! (e (Com violência) — Responde: o que sentes por mim, agora,
passo adiante, mas, na sua ausência, sua sombra é projetada neste momento? E o que sentias antes? O que sentiste,
no fundo do palco) sempre, responde?

TIO RAUL GLORINHA


(Para Glorinha) — Então, eu respondi: “Ela não trairá nunca Não sei.
mais”!
TIO RAUL
GLORINHA Sabes! Tu me odeias? É ódio? Quero saber: tens ódio de
E morreu? Mamãe morreu? mim? (pausa) Ou é medo? Sim, claro: sempre tiveste medo
de mim, não é verdade? Eu te inspiro medo?
TIO RAUL
Morreu. GLORINHA
Respeito.
GLORINHA
Não foi suicídio? TIO RAUL
(Num berro) — Mentira!
TIO RAUL
(Batendo no peito) — Eu a matei! Eu! E olha: ninguém sabe, GLORINHA
ninguém! Inclusive minha mãe, meus irmãos, pensam até (Num soluço) — Juro!
hoje que foi suicídio! (baixo, com um meio riso hediondo)
(Cresce) Mas o assassino está aqui e sou eu, o assassino! TIO RAUL
(arquejando) Segurei a alça, fui ao cemitério e, à beira do (Atônito) — Nem amor, nem ódio, nem respeito: medo,
túmulo, derramei uma colher de pétalas em cima do caixão. apenas! Agora e sempre o medo! (com surdo desespero) Mas
Vê tu? se não respondes, se não dizes nada, hás de querer saber
porque eu te contei tanto, porque eu te contei tudo! Sim, sua
(Pausa) cachorrinha, o que eu não disse a minha mãe, o que eu não
diria a meus irmãos, a ninguém, eu disse a ti! (violentamente)
GLORINHA E por quê? (com um meio riso soluçante) Eu te darei a
Eu? explicação (Atônito) — Nem amor, nem ódio, nem respeito:
medo, apenas! Daqui a pouco... Primeiro responde: tens visto
TIO RAUL a Nair?
Não dizes nada?
GLORINHA
GLORINHA (Crispada) —Nair?
(Num soluço) — Nada!
TIO RAUL
TIO RAUL (Com falsa naturalidade) — Sim, exato, Nair, essa que vinha
(Segura Glorinha pelos dois braços e sacode-a, gritando) — aqui, que deixou de vir, Nair, perfeitamente. Tens visto?
Mas eu sou o assassino! É impossível que não tenhas nada a
dizer ao assassino de tua mãe! GLORINHA
Por quê?
GLORINHA
Nada! (vira o rosto) TIO RAUL
(Berrando) — Tens visto?
TIO RAUL
E viras o rosto? GLORINHA
Não.
GLORINHA
(Num brusco lamento) — Está-me machucando! TIO RAUL
Nem ontem?

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TIO RAUL
GLORINHA (Arquejante) — Mas não importa que mintas. Aos dois anos
Nunca mais! de idade já mentias. E te digo mais, toma nota: (com um novo
riso) deves mentir, agora podes mentir, mente, anda!
TIO RAUL
(Dispara as perguntas) — Vocês eram amigas? GLORINHA
E seu eu jurar?
GLORINHA
Nem tanto. TIO RAUL
(Fora de si, berra para a sobrinha) — Eu te ordeno que
TIO RAUL mintas!
Ou eram?
GLORINHA
GLORINHA (Soluçante) — Eu não menti!
Pelo contrário. TIO RAUL
Ah, não? Mas o médico me descreveu o teu tipo exatamente...
TIO RAUL
(Cortante) — Morreu. GLORINHA
(Interrompendo) — De palpite! Pode crer! Foi de palpite!
GLORINHA
(Atônita) — Quem? TIO RAUL
(Arquejante) — Palpite... O miserável batia com a cabeça nas
TIO RAUL paredes e queria que eu lhe cuspisse na cara... Mas Nair... Me
(Exultante) — Nair, essa mesma, que vinha aqui, que deixou contou tudo antes de morrer, tudo, sua descarada!
de vir, morreu. Está satisfeita?
GLORINHA
GLORINHA A Nair?
(Desesperada) — Não pode ser!
TIO RAUL
TIO RAUL Ia morrendo e contando!
(Mudando de tom) — Ontem eu estava aqui na minha casa,
muito bem, quando bate o telefone. A tendo: era alguém que GLORINHA
eu nunca vi mais gordo e que me chamava com urgência. Fui (Violenta) — Titio, é mentira, titio, não acredite! Nair é que
e veja você: era um ginecologista que te conhece. não presta, nunca prestou! É falsa, titio! Tão falsa! Menina
sem pudor nenhum, nenhum e posso-lhe provar! Ficou com
GLORINHA raiva, ódio de mim, porque queria morrer comigo e eu
A mim? recusei, sim!

TIO RAUL TIO RAUL


A ti! Falas assim de uma amiga que acaba de morrer?

GLORINHA GLORINHA
Mas, e o nome dele? Não era minha amiga!

TIO RAUL TIO RAUL


Ou nunca foste a um ginecologista? (Com sofrido espanto) — Se tu visses a hemorragia!

GLORINHA GLORINHA
(Com medo selvagem) — Nunca! Queria-me levar para lugares que só o senhor vendo!

TIO RAUL TIO RAUL


(Com riso ignóbil) — A inocente! (muda de tom. Violento) (Agarra Glorinha. Decisivo) — Vem cá e responde!
Por que mentes?
GLORINHA
GLORINHA Me oferecia até dinheiro, titio!
Palavra de honra, titio!
TIO RAUL

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Responde, olhando para mim, assim: Nair não tinha pudor, e TIA ODETE
tu? (com sua grave ternura) — Está na hora da homeopatia!

GLORINHA TIO RAUL


Eu? Não fala, ou antes: repete uma frase, vive e sobrevive por
causa de uma frase! (com surdo sofrimento) Mas talvez seja
TIO RAUL tão falsa como tu, na sua loucura de silêncio! Talvez me odeie
Tiveste pudor algum dia? E quando? como tu odeias! E eu só queria saber o que ela não diz, o que
ela não confessa! (e, súbito, começa a rir, em crescendo.
GLORINHA Corta o riso) (já sem excitação) Passei esta noite em claro,
Eu tenho pudor! vendo uma hemorragia. Estou cansado e com sede! (lento,
sem desfitá-la) Vai buscar um copo de água. (pausa) Não
TIO RAUL ouviste? Tenho sede. Vai buscar um copo de água.
Mas então explica: naquele carnaval, que eu passei fora, tu
foste ou não foste... GLORINHA
(Recuando) — Não.
GLORINHA
Não! TIO RAUL
TIO RAUL (Caricioso e ignóbil) — Tens medo? Medo de quê?
...Ao apartamento de um degenerado, com a fantasia em cima
da pele? Lá te puseram lança-perfume até na boca! E depois, GLORINHA
te arrancaram a fantasia, ou estou mentindo? Quero a verdade (Chorando) — Eu não fiz nada titio!
e você vai-me dizer a verdade! Fala!
GLORINHA TIO RAUL
Mentira de Nair! Mas se tens medo, por que não gritas?

TIO RAUL GLORINHA


Nem foste a uma casa assim, assim, só para deputados? Uma Não quero.
casa de meninas de família? (com uma doçura hedionda) Não
estiveste, lá, com um deputado? Ninguém mente na hora da TIO RAUL
morte e Nair mentiu? Ou, então, por que não corres?
GLORINHA
GLORINHA (Soluçando) — Não sei.
Mentiu!
TIO RAUL
TIO RAUL Mas eu sei: não corres, nem gritas, porque me pertences.
Ou a mentirosa és tu? Porém te aviso: se correres ou se gritares, eu estou armado e
te mato a bala, experimenta! (rindo) E compreendes agora
GLORINHA porque eu contei a história de tua mãe? (os dois estão falando
Ela! surdamente, rosto com rosto) (baixo) Porque vocês duas se
parecem como duas chamas e vão ter o mesmo destino,
TIO RAUL Glória!
E outra coisa: por que falas tão pouco, porque quase não
falas, por que dizes apenas “sim” e “não”, por que finges e GLORINHA
por que prendes os lábios? (Baixo também) — Não quero morrer!

GLORINHA TIO RAUL


(Fora de si) — Não sei! (Exultante) — E todos dirão que foi suicídio!

TIO RAUL GLORINHA


E como não falas nunca, a conclusão é que sou muito curioso (Soluçando) — Eu quero viver! (vai aos pés do tio, abraça as
de ti, de tua alma, de tudo que não dizes, de tudo que não suas pernas) Perdoa, titio!
confessa. (exasperado, virando-se na direção de dia Odete)
Porque eu estou farto de silêncio, farto de coisas não ditas. E TIO RAUL
não és só tu: minha mulher também. (Displicente e irônico) — Perdoar o que, se não confessaste
nada? Se negas tudo? Levanta! (ajuda Glorinha a erguer-se)
Queres mesmo viver e farias tudo para viver?

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GLORINHA
GLORINHA Ao senhor?
(Feroz) — Tudo!
TIO RAUL
TIO RAUL A mim!
Escura: há uma única hipótese de salvação para você!
GLORINHA
GLORINHA Mas, por quê?
(Feroz) — Oh, graças!
TIO RAUL
TIO RAUL Pelo seguinte: se me xingares, terás espontaneidade. É
Mas espera! É o seguinte: eu te perdoaria a vida se me preciso acima de tudo espontaneidade... Anda, xinga!
contasses tudo. Eu quero saber quem és. Eu sempre te julguei
uma coisa e vejo que és outra. Sempre te julguei, sabes quê? GLORINHA
Uma menina sem sexo, isso mesmo, — uma menina sem Mas eu não sei, titio!
sexo. Eu não admitia nunca que, até aos 16 anos, tivesses tido
um desejo, jamais. E, de repente, alguém me diz que há, em TIO RAUL
ti, uma deformação monstruosa. Eu quero saber se ás uma (Enfurecido) — Como não sabe? Sabe, sim! Por acaso, nunca
coisa ou outra. Nada sei de ti, nada de tua alma, ou por outra: ouviste um nome feio? Ou nunca disseste um nome feio?
sei de ti o que a Nair me contou. Agora quero a tua própria
confissão. E se disseres tudo, absolutamente tudo, eu te GLORINHA
perdôo a vida. Aceitas assim? Não.

GLORINHA TIO RAUL


Aceito. (Violento) — Ou preferes morrer? Porque eu te mato, Glória,
como matei a sem-vergonha da tua mãe! (quase doce) Vem,
eu te ensino. Por exemplo: me chama de canalha. Vamos, diz:
TIO RAUL canalha!
Ótimo. Vamos começar: tu me odeias?
GLORINHA
GLORINHA (Num sopro de voz) — Não tenho coragem!
(Vacilando) — Não. TIO RAUL
(Exasperado) — Mas sou eu que estou mandando!
TIO RAUL
(Exasperado) — Não odeias o assassino de tua mãe? GLORINHA
(Chorando) — Isso não, titio!
GLORINHA
(Fora de si) — Não! TIO RAUL
(Furioso) — Ah, não dizes? Não queres dizer? (súbito a
TIO RAUL esbofeteia. Glorinha, debaixo de bofetadas, recua
(Possesso) — Sua mentirosa! circularmente)

GLORINHA GLORINHA
(Têm uma explosão) — Pois odeio, pronto, odeio! (Aos soluços) — Pelo amor de Deus, titio!

TIO RAUL TIO RAUL


Ótimo; odeias... Diz ou não diz?

GLORINHA GLORINHA
Odeio. Digo. (tio e sobrinha estão rosto com rosto)

TIO RAUL TIO RAUL


(Ofegante) — Mas não basta... Quero sentir a espontaneidade, Estou esperando.
que nunca tiveste. Ainda estás inibida — o medo ainda te
domina, o medo. Responde: para salvar tua vida, tu me GLORINHA
xingarias? (Baixo) — Canalha...

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TIO RAUL TIO RAUL
Mais alto! Como não tocou em ti?

GLORINHA GLORINHA
Canalha! Ficou só de longe, gritando, mas sem chegar perto!

TIO RAUL TIO RAUL


Grita! (Na sua incredulidade indignada) — Nem ao menos tiraste a
roupa? Ficaste nua? Nua?
GLORINHA
(Num berro selvagem) — Canalha! (cai de joelhos, GLORINHA
soluçando) Era velho, gagá...

TIO RAUL TIO RAUL


(Arquejante e aplacado) — Muito bem: já chamaste de (Num berro) — Chega! (agarrando-a) Ou pensas que eu
canalha o tio que, até há um minuto, era sagrado, o tio acredito? Já me iludiste muito e basta! Só sabes mentir!
sagrado, o grande tio, o tio que era mais do que um pai, quase
um Deus... (faz a menina erguer o rosto) E, agora, podes GLORINHA
dizer tudo, Glória, é verdade o que a Nair contou? Bem: eu menti, sim, é mentira... eu...

GLORINHA TIO RAUL


(Num soluço) — Tenho tanta pena de Nair! Continua!

TIO RAUL GLORINHA


Não interessa Nair! (num berro) E por que choras? Enxuga as Tirei a roupa e não era gagá, não... Devia ter a idade do
lágrimas, anda, enxuga! (encarniçado) Eu te quero cínica, senhor...
bem cínica, bem ordinária, sobretudo ordinária! Nada de
atitudes de menina de família! (Glorinha já enxugou as TIO RAUL
lágrimas) Estiveste, ontem, na tal casa de meninas? (Num esgar de choro) — A minha?

GLORINHA GLORINHA
Sim, estive. Uns 48 anos, talvez.

TIO RAUL
(Passa a mão nos cabelos da pequena) (num soluço
estrangulado) — Quando eu me lembro que te vi nascer, que
TIO RAUL te segurei no colo, que te criei! (muda de tom) Mas se ele
Agora, presta atenção, que é importante: — o que houve entre tinha minha idade...
você e o deputado? Conta a verdade, Glória, não me esconda
nada, absolutamente nada. Quando vocês ficaram sós no
quarto... GLORINHA
Parecido com o senhor!
GLORINHA
Era sala. TIO RAUL
Comigo?
TIO RAUL
Ou sala. Mas... Por que sala? E na frente de todo mundo? GLORINHA
Com o senhor. (estão falando baixo. Esboça uma carícia por
GLORINHA cima da cabeça do tio) Só que tinha mais cabelos brancos. O
Não tinha ninguém, só nós dois. senhor quase não tem cabelos brancos. Um ou outro.

TIO RAUL TIO RAUL


O que foi que ele te fez? Te abraçou? Te beijou? (Atônito) — Não era esse velho, nosso vizinho? A Nair me
disse que era.
GLORINHA
Não tocou em mim! GLORINHA

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(Sem ouví-lo e falando baixo) — Pensei tanto no senhor, mas Chamo sim! (num berro) O senhor prometeu, titio! (tio Raul
tanto! vai apanhar um copo de água) (Glorinha frenética) E eu
menti! E eu menti! O Deputado era velho sim, e gagá! E não
TIO RAUL tirei roupa nenhuma! E ele não me tocou, não pôs a mão em
(fora de si, afasta-se, trôpego, da sobrinha. Fica falando de mim!
costas sem virar-se) — Te pagaram? Recebeste dinheiro?
TIO RAUL
GLORINHA (Está pondo um pozinho no copo) — Tens muito nojo de
Ficou para hoje e o homem quer que eu volte às 11 horas. mim?

TIO RAUL GLORINHA


(Vira-se assombrado, Precipita-se para a sobrinha. Do senhor não! Nojo do deputado, do Pola Negri, nojo de
Desesperado) — Quer que voltes, e tu? (muda de tom) Agora Madame Luba, do senhor, não, titio, juro, eu gosto do senhor!
responde: se eu não soubesse de nada, tu voltarias lá? Ou por TIO RAUL
outra: se eu te perdoar a vida, tu voltarás lá, às escondidas? (Estendendo-lhe o copo) — Toma.

GLORINHA GLORINHA
(Vacilante) — Não. (Está de mãos nas costas. Fora de si) — Eu não voltaria lá,
nunca! Fui ontem porque Nair pôs na minha cabeça que eu
TIO RAUL devia ir!
Mentira! Quero a verdade! Tua vida depende da verdade!
Fala! TIO RAUL
(Caricioso e ignóbil) — Segura!
GLORINHA
Quer mesmo saber? GLORINHA
(Fascinada) (apanha o copo) — E se eu não beber?
TIO RAUL
Tudo. TIO RAUL
Ou tu morres pelas próprias mãos ou eu te mato!
GLORINHA
(Violenta) — Pois bem; depois do que eu sei, eu voltaria, sim, GLORINHA
hoje às 11 horas e sempre. Para me vingar do senhor. (Lenta) — Se eu devo morrer, então eu quero um beijo! Um
beijo!
TIO RAUL
Por ora me chama de você. TIO RAUL
Tu me odeias e eu te odeio!
GLORINHA
(Viril) — Para me vingar de você. Dos outros, de todos. Dos GLORINHA
meus tios. De minha avó. E por você, o que eu sinto, é nojo. (Aproxima-se do tio) — Antes de morrer quero ser beijada!

TIO RAUL TIO RAUL


(Sardônico) — Nojo de mim, perfeitamente, e que mais? Não me odeias?

GLORINHA GLORINHA
(Exausta) — É só. Com o deputado eu só pensava no senhor... Agora me beija...
TIO RAUL (tio Raul ruça os lábios na testa de Glorinha) Na boca!
(Triunfante) — Acabaste, então? E não precisas acrescentar
mais nada. Disseste tudo, tudo o que eu queria saber, tudo! TIO RAUL
(começa a rir, em crescendo. Glorinha recua, apavorada) (Num estrangulado soluço) — Já te beijei!
GLORINHA
GLORINHA Quero na boca. (vira-se e vai pôr o copo em cima de um
Mas foi você quem mandou dizer tudo! móvel. Volta e aproxima o resto do tio) Primeiro me abraça!

TIO RAUL TIO RAUL


E me chama outra vez de senhor! (Magnetizado, obedece. Abraça a sobrinha) — Maldita! (há
um beijo frustrado) (tio Raul sôfrego) Não fecha a boca.
GLORINHA Beija-me abrindo a boca. Mas tu sabes. Eu sei que tu sabes

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beijar, que não é a primeira vez... Beija-me como beijaste os Seria lindo! E eu sei que você me ama! Não ama?
outros...
TIO RAUL
(Há um novo beijo, com desesperado amor) Primeiro respondo: ficaste nua para o deputado?

GLORINHA GLORINHA
E agora que o senhor me beijou, perdoa, titio! Não, titio!

TIO RAUL TIO RAUL


Perdoar? (Num imenso soluço) — Mas se for mentira, eu te amo assim
mesmo, te amo, te amo!
GLORINHA
(Num soluço) — Quero viver, titio! (De vez em quando tia Odete passa pela cena. E quando está
ausente, sua sombra, engrandecida, é projetada no fundo do
TIO RAUL palco, andando de um lado para o outro)
(Selvagem) — Então o beijo foi uma mentira, outra mentira,
só sabes mentir? Beijaste para te salvar? Foi medo? TIO RAUL
E, já que vamos morrer, Glória, podemos dizer tudo, um ao
GLORINHA outro, não precisamos esconder, nem calar, podemos soltar
(Desesperada) — AMOR! todos os gritos, todos. (violento, apontando para a sombra de
tia Odete) Só quem não fala é aquela ali, a louca do silêncio!
TIO RAUL Fala, Glória! porque podemos falar!
Ou ódio?
GLORINHA
GLORINHA (Trincando os dentes) — Velho!
Te amo.
TIO RAUL
TIO RAUL (Atônito) — Que mais?
(Com um esgar de choro) — A mim?
GLORINHA
GLORINHA Gagá!
Sempre. TIO RAUL
(Com surdo sofrimento) —Continua...
(Por um momento, tio Raul passa a mão por trás da cabeça
da sobrinha e contempla o seu rosto. Por fim, ele a empurra) GLORINHA
(Está rindo em crescendo. Às gargalhadas, aponta o tio) —
TIO RAUL Parece o deputado!
Esta foi tua última mentira na terra!
TIO RAUL
GLORINHA (Desesperado) — Eu?
(Agarra-se ai tio) — Posso fazer também o meu último
pedido na terra? GLORINHA
Tu!
TIO RAUL
Fala. TIO RAUL
(Segura a sobrinha pelo pulso) — Te parto a cara!
GLORINHA
Já que eu devo morrer, não quero morrer sozinha como Nair, GLORINHA
que morreu tão só. (baixo e suplicante) Morre comigo, junto CANALHA!
comigo! (soluçando) Juro que não teria medo de morrer
contigo! TIO RAUL
(Soltando-a) — Mas não te farei nada, nada! Escuta, Glória,
antes de morrer, escuta! Contei a história de tua mãe, porém
TIO RAUL não te disse que a amava, que sempre a amei. Ainda agora,
Morrer os dois? Nós dois? neste momento, eu a amo. (berrando) Eu matei a mulher, a
cunhada que me repeliu e porque me repeliu (agarra
GLORINHA novamente Glorinha — num soluço imenso) — JUDITE!

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GLORINHA TIO RAUL
Não sou Judite! Pronto, Glorinha!

TIO RAUL
(Atônito) — Então quem és? GLORINHA
Já não sou Judite?
GLORINHA
Glória! TIO RAUL
(Indica o copo em cima do móvel) (mais velho do que nunca)
TIO RAUL — Segura, Glorinha... Vamos beber... no mesmo copo... mas
(Num lamento) — És Glória, não és Judite? antes de morrer... diz... ficaste nua para o deputado?

GLORINHA GLORINHA
Judite morreu! (Segura o copo) — BEBE!

TIO RAUL TIO RAUL


(Sem ouví-la, delirante) — Judite, quando eu te fiz beber o Tu me amas?
veneno e caíste de joelhos, com as entranhas em fogo, eu te
segurei pelos cabelos, assim, Judite! (e de fato agarra GLORINHA
Glorinha pelos cabelos) Vi que ia morrer o corpo beijado por Te amo!
tantos, nunca beijado por mim! foste minha agonizando,
querida! Pela primeira vez, minha! Cerraste os lábios, para o TIO RAUL
meu beijo... Mas nem teu marido, nem teus amantes, ninguém Glorinha, eu te criei para mim. Dia e noite, eu te criei para
te beijou na hora em que morrias, só eu! mim! Morre pensando que eu te criei para mim!

GLORINHA (Os dois levam o copo aos lábios, ao mesmo tempo. Tio Raul
Assassino! bebe de uma vez só. Glorinha ainda não bebeu. Tio Raul cai
de joelhos, soluçando)
TIO RAUL
(Num meio sorriso soluçante) — Eu já não sabia se teu soluço TIO RAUL
era agonia ou volúpia, Judite... (Num apelo) — Bebe! MORRE COMIGO! (num grosso
gemido)
GLORINHA
(Exasperada) — Sou Glorinha! (Na sua ferocidade, Glorinha atira-lhe no rosto o conteúdo
do copo)
TIO RAUL
Oh, Judite, possuída por muitos só amada por mim! (está TIO RAUL
falando rosto a rosto com Glorinha). JUDITE...
(Fora de si Glorinha corre ao telefone. Tio Raul ainda se
GLORINHA arrasta)
(Violenta) —Basta de falar de minha mãe!
GLORINHA
TIO RAUL
(Voltando, lentamente, à realidade) — Tua mãe... (pausa) (Discando, em seu desespero) — Pola Negri! Sou eu, Pola
(num esgar de choro) Está chegando o momento em que Negri! Glorinha! Bem obrigada. Olha eu vou sim, avisa à
devias estar na casa das meninas! (trôpego vai buscar o copo) Madame e ao deputado que eu vou. Meu tio... não se opõe...
concorda... de forma que está tudo azul. Bye Bye.
GLORINHA
Anda como o deputado! (Tio Raul agoniza. Consegue erguer-se, num último esforço.
Mas acaba rolando no degrau. Glorinha corre, abre a porta
TIO RAUL e desaparece. Tia Odete, que vinha passando, estaca.
(Está apanhando o copo. De costas) Insulta! (De frente, Caminha lentamente para o marido morto. Senta-se no
agora, empunhando o copo, com a mão que treme) degrau. Pousa a cabeça de Raul em seu regaço.)

GLORINHA TIA ODETE


Treme como o deputado! (vem tio Raul ainda trôpego)
(Na sua doçura nostálgica) — Meu amor!

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FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

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