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2022
PERSONAGENS
PRIMEIRO ACTO
PONCIA - Estão há mais de duas horas nesta cantilena. Chegaram padres de todos
os lugares. A igreja ficou muito bonita. A Madalena desmaiou no primeiro responso.
PONCIA - Era a única que gostava do pai. Ah! Graças a deus, que ficamos a sós um
pouquinho! Vim para comer!
PONCIA - Era o que ela queria. Agora que não come nada, preferia que
morrêssemos todas de fome. Mandona! Não lhe faltam desgostos! Agora, vou abrir-
lhe o pote dos chouriços.
PONCIA - Toma, leva um punhado de grão-de bico. Ela não vai perceber.
CRIADA - Sim.
PONCIA - Já vai. Limpa tudo bem. A Bernarda é tirana de todos os que a rodeiam. É
capaz de se sentar em cima do teu coração e ver como morres durante um ano,
sem perder o sorriso frio que leva sempre na sua maldita cara. Limpa os vidros.
PONCIA - De sobra. Desde que morreu o pai de Bernarda que não voltou a entrar
pessoa debaixo destes telhados. Maldita seja!
PONCIA - Trinta anos a lavar lençóis, trinta anos a comer sobras, noites a velar-lhe
o corpo cada vez que ficava doente. Não temos segredos uma para a outra. Sou
uma boa cadela: ladro quando me ordenam e mordo os calcanhares dos que lhe
vêm pedir esmola. Um dia, quando me fartar fecho-a num quarto e cuspo-lhe o dia
inteiro. Não lhe invejo nada. Restam-lhe cinco filhas feias. Tirando Angústias que
tem dinheiro, as outras têm uma única herança: pão e uvas.
(Soam os sinos)
PONCIA - É o último responso. (sai)
CRIADA - (Soam os sinos) Ai! Antônio Maria Benavides, que já não verás estas
paredes, nem comerás o pão desta casa! Fui a que mais te quis bem entre aquelas
que te serviram. Como hei- de viver depois de teres partido? Como viver?
BERNARDA - Menos gritos e mais obras. Devias ter a casa mais limpa para receber
as visitas. Sai daqui! Este não é o teu lugar. Os pobres são como os animais,
parecem feitos de outra carne. (Madalena chora). Não chores, Madalena. Queres
chorar vais para debaixo dos lençóis. Ouviste? (para Poncia) Está pronta a
Limonada?
BERNARDA - Leva para os homens. E que saiam por onde entraram. Não quero
que passem por aqui.
ANGÚSTIAS - Estava.
TODAS - Amén.
PONCIA (Entrando com uma bolsa) - Os homens mandaram este dinheiro para os
responsos.
(silencio)
BERNARDA - É assim que se tem de falar deste maldito povo sem rio, povo de
poços onde sempre se bebe água com medo que esteja envenenada.
ADELA - Tome, mãe. (Dá-lhe um leque redondo com flores vermelhas e verdes.)
BERNARDA - (Atirando o leque no chão) É este leque que se dê a uma viúva? Dá-
me um preto e aprende a respeitar o luto de teu pai.
BERNARDA- Pois é melhor que vás buscar outro. Durante os oito anos que durará
o luto do vosso pai não há-de entrar nesta casa vento da rua. Viveremos de portas e
janela emparedadas. Assim foi na casa de meu pai, e na de meu avô. Enquanto isso
podem começar a bordar o enxoval. Tenho na arca vinte peças de linho para lençóis
e fronhas. A Madalena pode bordá-los.
ADELA - Se não os queres bordar, ficarão sem bordados. Assim os teus brilharão
mais.
MADALENA - Nem os meus nem os vossos vão brilhar. Sei que não me caso.
Prefiro levar sacos para o moinho. Tudo a estar sentada dias e dias nesta sala
escura.
(fora de cena)
MARIA JOSEFA - Bernarda! Deixa-me sair!
CRIADA - Foi difícil contê-la. Apesar dos seus oitenta anos, sua mãe é forte como
um carvalho.
BERNARDA - Tem a quem sair. Com o meu avô também foi assim também.
CRIADA - Durante o enterro tive que lhe tapar várias vezes a boca com um saco
vazio, porque queria chamar a senhora para que lhe desse água de limpeza para
beber e carne de cachorro. Que é o que ela diz que a senhora lhe dá.
BERNARDA - Vai com ela e toma cuidado para que não se aproxime do poço.
BERNARDA - Não é por isso. É que perto do poço as vizinhas podem vê-la da
janela. Onde está a Angústias?
ADELA - Via-a a olhar nas grades do portão. Os homens tinham acabado de sair.
ANGUSTIAS - Ninguém.
BERNARDA - Achas decente que uma mulher da tua classe ande com o anzol atras
de um homem no dia do enterro do seu próprio pai? A quem olhavas? Responde!
ANGUSTIAS - Eu…
BERNARDA - Tu!
ANGUSTIAS - Ninguém.
PONCIA - Ela agiu sem saber o que fazia. Chocou-me vê-la escapulir-se para o
pátio. Fiquei atrás de uma janela a ouvir a conversa dos homens, que, como
sempre, não de pode ouvir.
BERNARDA - E ela?
PONCIA - O que tinha de acontecer. Voltaram quase de dia. Paca Roseta trazia os
cabelos soltos e uma coroa de flores na cabeça.
PONCIA - Não é daqui. E os que a levaram também não são de cá. Os homens de
cá não são capazes disso.
PONCIA - Claro!
PONCIA - É o que as tuas filhas estão na idade. A Angustias já deve ter mais de
trinta anos.
BERNARDA - Não teve noivo, nem lhe faz falta. Pode muito passar sem ele!
BERNARDA - Cala-te!
BERNARDA - Não. Nada. Nem o lenço com que lhe tapamos a cara.
(saem todas.)
PONCIA- Sim. O noivo nem a deixa sair da porta da rua. Coube-lhe a mesma sorte
da mãe e da avó.
MARTÍRIO- É melhor nunca ver um homem. Desde menina que tenho medo deles.
Ainda bem que Deus me fez fraca e feia e os afastou para sempre de mim.
AMÉLIA -E tu?
PONCIA - Uma boda durava dez dias e não havia más linguas. Hoje existe mais
luxo. Mas apodrecemos de medo do que possam dizer.
MARTÍRIO - A Adela?
MADALENA - Essa vestiu o vestido verde de seda que era para estrear no seu
aniversário e foi gritar para as galinhas “olhem para mim”.
AMELIA - Não.
MARTIRIO - Madalena!
MADALENA - Se viesse pela Angústias. Mas vem pelo dinheiro. Angústias está
velha, doente e de nós, sempre foi a mais feia. Se aos vinte anos parecia um pau
vestido, que será agora que tem quarenta.
(entra ADELA)
ADELA - O meu vestido é lindo, e deixou-me feliz. Estava a planear usá-lo no dia
em que fossemos comer melancia.
ADELA - Não.
ADELA - Por isso é que ele saiu e ficou a olhar pelo portão? Esse homem é capaz..
ADELA - Que este luto aconteceu no pior momento da minha vida. Vai ser duro
suportá-lo.
ADELA - Não me acostumarei. Não posso viver fechada. Não quero ficar aqui até
ficar com as carnes enrugadas como as vossas. Não quero perder o frescor da
minha pele. Amanhã vou vestir o meu vestido verde e vou passear na rua. Vou sair!
MADALENA - Adela!
MARTIRIO - Cala-te!
BERNARDA - Sim.
BERNARDA - Angústias!
ANGUSTIAS - Mãe.
ANGUSTIAS - Não era meu pai. O meu pai morreu há muito tempo. Já não se
lembra dele?
BERNARDA - Deves mais a este homem, pai das tuas irmãs do que ao teu próprio
pai. Graças a ele a tua fortuna cresceu.
(entram todas)
BERNARDA - Mesmo que a minha mãe tenha enlouquecido, eu estou nos meus
cinco sentidos. Não tenham ilusões. Até que saia morta desta casa mandarei no que
é meu e no que é de todas.
MARIA JOSEFA - Bernarda, onde está minha mantilha? Nada do que meu é para
vocês. Nem os meus anéis, nem o meu vestido preto de “moaré”. Porque nenhuma
de vocês se casará. Nenhuma! Bernarda, dá-me a minha gargantilha de pérolas.
MARIA JOSEFA - Escapei-me porque quero me casar, porque quero me casar com
um belo homem à beira-mar, já que aqui os homens fogem das mulheres.
MARIA JOSEFA - Não. Não me calo. Não quero olhar para estas mulheres solteiras,
com o coração a desfazer-se em pó. Quero ir para minha terra, Bernarda, quero um
homem para me casar e para ter alegria.
MARIA JOSEFA- Quero sair daqui, Bernarda! Quero casar à beira-mar, bem perto
do mar!
SEGUNDO ACTO
ANGUSTIAS – Não.
PONCIA –Essa não anda bem. Não tem sossego, sempre trémula e assustada.
MARTÍRIO – Não é mais, nem menos do que nós. MADALENA – Todas, menos
Angustias.
ANGUSTIAS – Acima de tudo, mais vale ter ouro na arca do que uma cara bonita.
(pausa)
PONCIA - Angústias, que foi que ele te disse a primeira vez que chegou até tua
janela?
ANGÚSTIAS - Nada demais. Assim: “Já sabes que ando atrás de ti, que preciso de
uma mulher bondosa, comportada, e essa és tu. Se me aceitas. . .”
MARTÍRIO - E tu?
ANGÚSTIAS - Eu não pude. Quase me saiu o coração pela boca. Era a primeira vez
que estava só, de noite, com um homem.
(Riem-se)
(Riem-se)
MADALENA - E depois?
PONCIA - Depois portou-se bem. Em vez de lhe dar para outra coisa, deu-lhe para
criar pintassilgos! Vocês que s-ao solteiras precisam de saber que os homens,
depois de casados, trocam a cama pela mesa, e depois a mesa pela taberna, e as
mulheres que não gostam, que apodreçam a chorar num canto!
PONCIA - Tenho a escola da tua mãe. Um disse-me não sei o quê, e matei-lhe os
todos os pintassilgos.
(Riem)
AMÉLIA - Adela!
MARTÍRIO - Não falem de loucos. Esta casa é o único lugar onde não se pode
pronunciar essa palavra. (Entra Madalena com Adela.)
ADELA – Dormi.
MARTÍRIO – Então?
ADELA – Deixa-me em paz. Dormindo ou não, pára de meter no que é meu! Faço
com o meu corpo o que bem entender!
ADELA – Não me olhes mais! Se quiseres dou-te os meus olhos que são bonitos, e
os meus ombros direitos para que corrijas essa corcova. Mas viras a cara quando
eu passar.
(sai MARTÍRIO)
ADELA – Segue-me por todo o lado. Às vezes vai ao meu quarto só para ver se
estou a dormir. Não me deixa respirar. E sempre “que pena essa cara! Que pena
esse corpo que não vai ser de ninguém”. Não, isso não. O meu corpo vai ser de
quem eu quiser.
ADELA – Cala-te.
PONCIA – Não sejas como as criancinhas. Deixa a tua irmã em paz. Se o Pepe
Romano te agrada, controla-te. Quem disse que não poderás casar com ele? Tua
irmã Angústias é uma doente. Nãoresiste ao primeiro parto. É estreita de cintura,
morrerá. Então o Pepe fará o que fazem todos os viúvos. Casará com a mais nova e
bonita, e essa és tu. Alimenta essa esperança, esquece-o, faz o que quiseres, mas
não vás contra a lei de Deus.
ADELA – Cala-te.
ADELA - Em vez de limpares a casa, e rezares pelos teus mortos, andas à procura
como uma velha bruxa de casos de homens e mulheres para te satisfazeres com
eles.
PONCIA – Vigio! Para que as pessoas não cuspam ao passar por esta porta!
ADELA – Que ternura tão grande te deu de repente pela minha irmã?
ADELA – Já vem tarde o teu conselho. Passaria por cima de minha mãe, se fosse
preciso para apagar este fogo que trago no peito. Que podes tu dizer de mim? Que
me tranco no quarto? Que não durmo? Sou mais esperta do que tu, não me
consegues agarrar.
ADELA – Tanto, quando o olho nos olhos parece que lhe bebo o sangue
devagarinho.
ADELA – Vais ouvir-me. Já não tenho medo de ti. Agora sou mais forte do que tu!
(entra ANGUSTIAS)
PONCIA – É do calor.
PONCIA – O mais caro. E os pós. Coloquei tudo na mesa do teu quarto. (sai
angustias)
PONCIA – Veremos.
MARTÍRIO (Com intenção) – São para eu ver. Não preciso brilhar para ninguém.
CRIADA - Estas rendas são muito bonitas para as roupas de criança. Infelizmente
nunca tive dinheiro para as comprar para a minha filha. Vamos ver se Angústias se
compra para as dela. Se lhe der para ter filhos, vais passar a vida a coser.
AMÉLIA - Nem eu. Não vou criar os filhos das outras. Olha as vizinhas do beco,
sacrificadas por aquelas quatro crianças.
PONCIA – Não há alegria como a dos campos nesta época. Ontem de manhã
chegaram os ceifadores. Quarenta ou cinquenta matacões.
PONCIA - Dos montes! E que alegres! Secos como as árvores! Aos gritos e atirar
pedras!
CRIADA - Já de noite chegou ao povo uma mulher dessas que bailam e quinze dos
rapazes levaram-na lá para o fundo do olival. Estive a vê-los de longe. O primeiro
que foi com ela, era um rapaz belo de olhos verdes.
ADELA - É possível?
PONCIA - Há uns anos este cá uma mulher como essa, e fui eu mesmo que dei
dinheiro ao meu filho para que fosse com ela. Os homens precisam dessas coisas.
ADELA - Bem que eu gostaria de ceifar para poder ir e vir. Assim se esquece o que
nos morde por dentro.
PONCIA - Cuidado. Não a abram muito. São capazes de dar um empurrão para ver
quem está a olhar. (Vão-se as três. Martírio fica sentada na cadeira baixa com a
cabeça entre as mãos)
MADALENA- – Não sei. Durmo que nem uma pedra. Porque queres saber?
MARTÍRIO – Não.
MARTÍRIO – Nada.
MARTÍRIO - Nenhuma.
MARTIRIO – Naturalmente.
(entra Bernarda)
ANGUSTIAS – Sim.
BERNARDA – É verdade?
MARTÍRIO – É.
ADELA – Não foi brincadeira nenhuma porque tu nunca gostaste de brincar. Foi
outra coisa que há muito te quer saltar do peito. Diz sinceramente.
MARTÍRIO – Cala-te. Não faças falar que até as paredes caem de vergonha.
BERNARDA – Adela!
BERNARDA – Adela!
ANGUSTIAS – Mãe!
BERNARDA – Silencio!
BERNARDA – Silencio, já disse! Bem via a tormenta a chegar, mas não acreditei
que estivesse tão perto! For Cambada de desgraçadas! Que ódio tão grande que
lançaram sobre o meu coração! Mas não se enganem, ainda tenho forças para vos
meter na ordem, a vocês, e a esta casa construída pelo meu pai, para que nem as
ervas saibam da minha desgraça! Fora daqui!
(saem as filhas todas) Tenho de segurá-las bem! Bernarda, acorda! É essa a tua a
obrigação!
BERNARDA – Fala.
BERNARDA – Fala, conheço-te bem demais para saber que me tens uma faca
apontada.
PONCIA – Sempre foste esperta. Mas filhos, são filhos. Agora estás cega.
BERNARDA – Disse que foi por brincadeira, que mais poderia ser?
PONCIA – Bernarda, passa-se aqui qualquer coisa! Não te quero culpar, mas nunca
deixaste as tuas filhas terem liberdade. Martírio é namoradeira, quer querias que
não! Porque não a deixaste casar com o Henrique Humanas? Porque no mesmo dia
em que ele disse que lhe ia falar à janela lhe mandaste um recado a dizer que não
viesse?
BERNARDA – Tornaria a fazê-lo mil vezes. O meu sangue nunca se juntará ao dos
Humanas!
BERNARDA – Sou, porque posso! E não és porque sabes muito bem qual é a tua
origem!
BERNARDA – Se não esquecer, pior para ela! Como gostarias tu de me ver a mim e
às minhas filhas a caminho de um bordel!
PONCIA – Não me meterei mais. Mas não te parece que o Pepe Romano ficaria
melhor com Martirio, ou com… a Adela?
BERNARDA – Angustias?
PONCIA – O meu filho contou-me que às quatro e meia ainda estavam a conversar.
ANGUSTIAS – Mentira!
ANGUSTIAS – Faz mais de uma semana que o Pepe se vai embora à uma.
MARTÍRIO – Não, mãe. Não ousei olhá-lo. (para Angustias) vocês não falam pela
janela do beco?
MARTÍRIO – Então..
PONCIA – O Pepe Romano esteve às quatro da manhã numa das grades da tua
casa.
BERNARDA – Não tens outro direito se não o de obedecer. Aqui não se dará mais
um passo sem que eu perceba.
(entra a criada)
CRIADA – A gentes da vila vêm a descer a rua! Os vizinhos estão todos nas portas!
BERNARDA – (para a Poncia) Vai ver o que é. (As filhas vão para sair) Onde vão?
Já sabia que eram janeleiras, mas lembrem-se de que estamos de luto! Para o
pátio!
(entram todas)
PONCIA – Bernarda!
ADELA – Um filho?
PONCIA – Agora para ocultar a sua vergonha matou-o e colocou o corpo debaixo de umas
pedras. A vila inteira a quer matar. Arrastam-na rua acima, correndo pelo olival dando gritos
que fazem estremecer a terra.
BERNARDA - Sim, venham todos com as varas das olliveiras! Venham todos matá-la!
TERCEIRO ACTO
(Estrondos)
(Adela levanta-se)
BERNARDA - (para fora) Tragam água fresca! Podes sentar-te. (Adela senta-se)
ANGÚSTIAS - Sim.
MARTÍRIO – Eu também.
BERNARDA – Quero que fales com a tua irmã Martírio, o caso do retrato foi uma
brincadeira que deves esquecer.
BERNARDA – Cada qual sabe o que lhe vai por dentro. Eu não me meto nos vossos
corações, mas quero harmonia na família. Compreendes?
BERNARDA – Não lhe deves fazer perguntas. E quando te casares, muito menos.
Olhas quando ele olhar e falas quando ele falar. Assim, evitas muitos desgostos.
MARTIRIO - Está uma noite boa para os ladrões.. ou para quem precisa de se
esconder.
ADELA - Que impressão me fez o cavalo. É tão bonito, tão branco que iluminava a
escuridão.
MARTIRIO - A Adela olhou tanto para cima que por pouco não torceu o pescoço!
MARTIRIO - A mim o que se passa por cima da minha cabeça é-me indiferente, já
me chega o que se passa dentro de casa.
ADELA - Tu lá sabes.
BERNARDA - Cada um com o seu feitio. Tu pensas de uma forma ela de outra.
ANGUSTIAS - Não.
ADELA - Eu não. Gosto de ver palpitar cheio de fogo o que está adormecido há
anos.
MARTIRIO - Essas coisas não têm nada a ver com a nossa vida.
MARTIRIO - Mãe, porque é que o noivo da Angústias não vem esta noite?
MARTIRIO - Ah.
(Entra a criada)
MARIA JOSEFA - Ovelhinha, filha minha, vamos até à beira do mar. A formiguinha
estará em sua porta, e eu te darei a teta e o pão. Bernarda, cara de leoparda.
Madalena, cara de hiena. Ovelhinha! Mééé, mééé. Tu não queres dormir, nem eu. A
porta sozinha se abrirá. Bernarda, cara de Leoparda! Madalena, cara de hiena.
Ovelhinha! Mééé, mééé. Vamos aos ramos do portal de Belém.
MARIA JOSEFA – Sei muito bem que é uma ovelha. Mas uma ovelha também pode
ser um menino. Melhor uma ovelha do que nada. Bernarda, cara de leoparda.
Madalena, cara de hiena.
MARIA JOSEFA - Este menino ficará também com o cabelo branco e terá outro filho,
e todos com o cabelo de neve. Seremos como as ondas, umas após outras. Depois
sentamo-nos todas e teremos o cabelo branco e seremos espuma. Por que aqui não
há espumas? Aqui só há mantos de luto.
MARIA JOSEFA - Eu tenho que me ir, mas tenho medo que os cães me mordam.
Não me acompanhas se fugir para o campo? Eu quero campo. Pepe Romano é um
gigante. Vocês todas o querem. Mas ele as vai devorar porque são grãos de trigo.
MARTÍRIO – Adela?
ADELA – E ainda vai no inicio. Tive a coragem que tu não tens. Vi a morte debaixo
deste tecto e fui procurar o que é meu, o que me pertencia!
ADELA – Sabes tão bem como eu que não Angustias quem ele quer.
ADELA – Sabes porque viste a forma como ele me olha. A mim. Sou eu quem ele
quer.
MARTÍRIO – Espeta-me uma faca no peito, se isso te satisfaz, mas não me digas
mais nada.
ADELA – Por isso não queres que eu fique com ele. Que te importa a ti que ele
abrace aquela que não ama. A mim que me importa. Pode ficar com Angústias cem
anos, mas que me abrace a mim, isso é terrível, porque também o desejas. Também
o amas!
ADELA – Não suporto mais o horror desta casa depois de ter provado o gosto da sua boca.
Serei o que ele quiser que eu seja, mesmo que venha o povo todo atrás de mim para me
queimar. Usarei a coroa de espinhos das amantes dos homens casados!
MARTÍRIO – Cala-te!
ADELA – Sim. Vamos dormir. Deixa que se case com Angústias. Eu estarei numa casa só
minha, onde ele irá sempre que desejar.
MARTÍRIO – Não levantes essa voz irritante! Tenho no meu coração uma revolta tão grande
que me sinto a sufocar.
ADELA – E ensinam-nos que deveríamos amar as irmãs! Porque é que Deus me deixou
sozinha no meio desta escuridão toda? Estou a olhar para ti e é como se nunca te tivesse
visto!
(ouve-se um assobio)
ADELA - É ele.
ADELA – Afasta-te!
MARTÍRIO – Mãe, esteve com ele! Veja como tem as saias cheias de palha! Esteve
com ele no curral!
ADELA – Acabou-se a prisão. Veja o que eu faço a vossa tirania. (rouba a bengala
de Bernarda) Não dê nem mais um passo! Em mim só manda o Pepe.
MADALENA – Adela!
ADELA – Eu sou uma mulher! Fica sabendo, esteve comigo no curral. Dominou-me
como um leão. E está à minha espera lá fora, consigo ouvi-lo a respirar.
MADALENA – Deixa-a! Que vá para onde nunca mais a vejamos! (Bernarda entra
com Martírio)
PONCIA - Mataste-o?
BERNARDA - Não foi culpa minha. Uma mulher não tem boa pontaria.
MARTÍRIO - Por ela! Se pudesse, faria correr um rio de sangue sobre a sua cabeça.
PONCIA - Maldita!
PONCIA – Abre!
BERNARDA – Não entro. Tu, Pepe, continua a correr vivo pela escuridão dos caminhos,
um dia caíras. Desçam-na da corda! Minha filha morreu virgem, ouviram? Levem-na para o
seu quarto e vistam-na como uma donzela. Virgem, ouviram? Toquem os sinos!
Não quero choros! É preciso encarar a morte de frente, guardamos as lágrimas para
quando estivermos sózinhas! Silencio! Havemos de nos afundar todas num mar de luto!
Adela, a filha mais nova de Bernarda Alba, morreu virgem, ouviram? Silencio, já disse!
Silencio!
FIM