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O banhista — Amor . . .

E o banhista voltou a pensar no que seria


um náufrago. Viu lá no fundo um barco
O banhista sob o sol aguarda a hora de cair naufragando e duas mãos chamando. Não sabia
na água, calção preto, chega de tênis mas logo os nadar, o banhista refletiu. Não sabia nem ao menos
tira e penetra os brancos pés na areia, senta e abre boiar. Era um homem só nas águas.
um livro de Walt Whitman, e ele nem sabe o que
O banhista arqueia levemente o dorso e
significa ler Walt Whitman à beira do mar nesse dia
mergulha. Não há peixes nem cântaros perdidos. A
em que há volúpia de sol e que as pedras sonham
água arde nos olhos. Recupera-se e vem à tona.
de calor, o banhista não sabe o que significa nada
Novamente o sol e nenhuma alma.
pois por enquanto ele quer ler os poemas de Walt
Whitman como quem passou a vida a procura-los e — Amor . . .
nos iintervalor dos versos ele olha o mar e singra
com os horizontes novos, pele do azul. Por Então volta para a areia, pega o livro de
enquanto o banhista passa um óleo de bronzear e poemas de Walt Whitman e entra pelo continente
deixa que o sol o atinja por inteiro, ele se estira e adentro porque não quer mais ouvir a voz do Amor
esquece o livro de Walt Whitman. Uma gaivota que não se revela e urtigas machucam os seus pés,
passa em linha reta. O banhista pensa sobre o que cacos de algum vidro distante, o matagal adensa-se
seria um náufrago. Mas logo coça a cabeça e diz e ele penetra, penetra decidido porque tem uma
baixinho que ouve uma voz: casa que o aguarda — uma casa escura, enfadonha
e pobre onde ele vê agora a mulher que dorme ele
— Amor — diz a voz. sabe que não dorme de preguiça mas porque
alguma coisa lhe falta, já não ressona a mulher já
O banhista sabe que naquele trecho da
não pede, faltam-lhe os dentes, o banhista achou-a
praia não há ninguém, praia deserta. Então, quem
ali desde que entrou na casa, mas ele não sabe o que
estaria a lhe dizer amor? O banhista suspeita da
fazer com a mulher, está distante do porto, está
brisa que começa a roçar nos seus cabelos. Porque
distante da terra onde há remédios ou comida
Amor é a palavra que o banhista nunca ouvira
adequada para quem não come há tanto, e antes que
assim naquela intensidade. A voz não temia mas
a mulher possa morrer de inanição o banhista tira o
não ousava além do que devia. O banhista resolve
calção preto e entrega-se à carne doente.
voltar aos poemas de Walt Whitman mas mal
termina o primeiro verso, a voz ecoa nos seus E o cheiro dos trapos se rasga e nasce o
ouvidos: prazer de um sândalo escondido que o banhista
bebe num movimento que a mulher contém e
— Amor . . .
devolve misturado ao seu próprio movimento.
O banhista olha suavemente para todos os
E o banhista vê uma única lágrima
lados. Já quer bem o que possa ser. E olha cada
derramar-se do olho da mulher. E viu que
canto, à procura.
consumou-se. E viu que era noite. Noite de Ano-
— Amor — mais uma vez. Novo. E isto ele se deu conta porque a voz de Paulo
VI desejava diretamente de Roma votos de justiça
O banhista repete Amor. E já ali estava e paz ao povo brasileiro neste novo ano.
amando. Irremediavelmente ele pensou. Tão
irremediavelmente que se eu não encontrá-la eu E num repentino o banhista pensa: há um
morrerei. Então o banhista deixou mais uma vez de rádio por aqui... não estamos tão distantes assim...
lado o livro de poemas de Walt Whitman, levantou-
se e entrou no mar. As ondas vinham cheias. Ele
ouviu como nunca a cadência do mar. A gaivota Referência
voltou em linha reta. Dessa vez o banhista a viu. E
a admirou por largos dois minutos. Para que toda NOLL, João Gilberto. O cego e a dançarina.
aquela beleza se havia uma voz que amava e não se Porto Alegre: L&PM Editores, 1986. p. 107-
revelava? O banhista sentiu-se todo excitado e 109.
sentiu que a água batia na altura do seu púbis. A
voz repetiu:

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