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Esta identificação, que postula uma perfeição de cada instante, é uma forma de
querer fazer esquecer ao espectador que este interrompe o curso de sua vida
cotidiana para ver e ouvir o que cada vez menos podemos chamar de cinema.
Está implicado, nesta equivalência entre o suporte e a mensagem (que é
destruída, desde que o suporte não possa mais coincidir com a mensagem, por
exemplo no fraquíssimo Fedora de Billy Wilder), um desejo secreto de afastar do
filme tudo o que poderia perturbar esta harmonia: os acidentes do suporte ou da
mensagem, uma espécie de brutal penetração da tela que restabeleceria a
comunicação interdita entre a sala de cinema e a rua.
Belíssimos filmes foram e serão feitos com este cuidado- sempre pronto a
aparecer nas declarações dos diretores, de forma raríssima em seus filmes- da
perfeição. Mélo de Alain Resnais resulta desta idéia de cinema: o domínio
(maîtrise) é utilizado para canalizar todos os caminhos da consciência dos
personagens , sem jamais sugerir uma possível disjunção entre os personagens
e os atores. Talvez esta disjunção seja também um interdito necessário à própria
consistência do cinema, ramificação do teatro que ganhou autonomia. Neste
sentido, a força de Mélo advém desta insistência manifestada por Resnais em
se dobrar à disciplina do teatro até o ponto extremo (ponto de usura dos ensaios,
diluição progressiva e quase natural do espaço cênico) onde o cinema vai poder,
sem a inflação de sua importância, tomar a dianteira da mensagem. Resnais foi
buscar, em sua modéstia de cineasta em relação ao teatro, a capacidade de
estreitar da forma mais envolvente a peça de Henry Bernstein, como se
encenasse uma intimidante obra-prima de Racine da qual não poderia excluir
nenhum suspiro. Se ele consegue extrair da peça mais do que esta contém, é
porque a confiança que estabelece com seus intérpretes permite projetar sua
representação no espaço minuciosamente atento e escrutador do cinema. Uma
espécie de perfeição da interpretação dos atores é atingido e fixado: o cinema,
ao fixá-la, assinala o que o separa de seu predecessor, o teatro, esta arte móvel,
incontrolável e efêmera.
Esta perfeição supõe a adequação exata dos atores aos personagens e dos
personagens aos atores, porque é preciso no cinema, que retoma do teatro estes
princípios, que o ator e o personagem façam, por assim dizer, igual e
reciprocamente caminho em direção um ao outro, até atingir o ponto em que
sejam indistinguíveis. Esta concepção de um cinema alavancado pela
dramaturgia- à qual o suporte deve se identificar até a aderência- foi a de
cineastas como Maurice Tourneur, Cecil B. DeMille ou Cukor, que não acordam
nenhuma função ao acidental. O acidental distrai e diversifica ( uma borboleta
que passa no campo acaba com o drama, em Griffith ou Renoir ela o ilumina); o
acidental ameaça a unidade do ator e do personagem, deixando ao espectador
a fadiga “suplementar” do ser humano, que não parece responder mais ao
personagem. O acidental é o ouro do pobre. Estas quatro ou cinco seqüências
do Raio verde são os momentos onde,- estando suficientemente garantida a
"armação" do filme-, a maîtrise renuncia provisoriamente a seus direitos, a seus
poderes, a sues cálculos para deixar entrar a luz do mundo, com sua linguagem
inalterável.
Por mais perfeitos que sejam os atores de Mélo - suas performances constituem
uma espécie de encantamento crepuscular e tumular onde atores e personagens
ardem e se extinguem, como se fossem condenados a viver suas vidas até a
morte, no teatro -, eles não tem, por efeito de uma espécie de acordo tácito com
seu metteur en scène, o direito de deixar escapar esta parte de si mesmos que
não é o ator, e que colocaria em risco a perigosa materialização deste fantasma
que é o personagem; esta parte que a câmera e o microfone do cinema da
perfeição não querem deixar emergir: a inconsciência feita carne. Por mais
imperfeita que possa parecer Marie Rivière- sob os rígidos critérios do
profissionalismo-, ela no entanto dá ao personagem de Delphine um caráter de
verdade que nenhuma atriz pode pretender reconstituir unicamente por suas
forças de intérprete, pois é precisamente na disponibilidade que ela mostra em
se abandonar e esquecer-se da atriz, quando o plano ou a seqüência esperam
este esquecimento e este abandono, que Marie Rivière encontra a verdade do
personagem: porque não há um personagem preestabelecido, cujo fantasma
deveria ser materializado pela atriz. Há a vida que se organiza como que por si
mesma, perto da câmera e do nagra 1, e há Marie Rivière, jovem comum dos
dias de hoje, como eram comuns as jovens em Renoir ou os jovens em Hawks.
Ela dispõe de seu tempo no tempo presente e, confiante, espera que seus
sentimentos falem: estes sofrem por longo tempo a ascese da incerteza, que
mascara de forma oportuna um caminho que a jovem arriscaria de reconhecer e
de tomar à primeira vista, perdendo assim o benefício, para ela e para nós
espectadores, de uma viagem caótica e imprevisível.
O cinema da perfeição está hoje também abandonado: Mélo, por ser o único,
não pode exercer o peso majoritário que Providence em seu tempo suportava
injustamente. As grandes máquinas (com exceção de Ginger e Fred, ápice
poético de Fellini), sejam abertamente coercitivas ou hipocritamente
espetaculares, postulam uma identificação com o mundo e tem por horizonte
cada vez menos secreto o apocalipse, ou seja, a dissolução total do espectador,
que hoje é apenas simbólica, e não mais a perfeição, que deixou de ser rentável.
A perfeição não é terrorista. A lista é longa de cineastas ou de filmes , de
Tarkovsky a Géode, que nos levam a admitir que o que apreciávamos ontem em
matéria de solidão convivial nas salas de cinema do bairro, - que nos levavam a
descobrir os pequenos filmes dirigidos pelos homens portadores do neologismo,
nos dias atuais ultrapassado, de cineastas- , é reencontrado hoje na Televisão,
e cada vez mais deve ser buscado por lá.
Nota:
1. Nagra: tipo de fita portátil para gravação do som construída a partir de 1950
pelo engenheiro suíço Stefan Kudelski. "Nagra" significa "ele vai gravar" em
polonês.
Cahiers du Cinéma número 388, outubro de 1986. Extraído do livro Poética dos
autores, Escritos de Jean-Claude Biette. Tradução: Luiz Soares Júnior.