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Literatura e Cinema 1

Anouk Aimée em Le Rideau Cramoisi, de Alexandre Astruc.

por
Jean Domarchi

Os autores de filmes sempre se inspiraram em obras literárias que, no princípio,


eram alheias a toda preocupação cinematográfica. O êxito ou o insucesso de tentativas
do tipo não deixam de suscitar problemáticas preocupantes, pois não parece óbvio que
uma obra-prima literária deva, necessariamente, dar origem a um grande filme.
Pareceria até, a priori, que as chances de fracasso são, em tais projetos, infinitamente
mais constantes do que as de sucesso, se se considerar uma concepção de arte que
queira cada gênero submisso às leis que lhe são próprias e que fazem sentido apenas
para ele. A experiência, no entanto, nos obriga a admitir que uma peça ou um romance
nada perde ao ser adaptado e que também pode haver na adaptação um
enriquecimento. Pode até ser que tal peça ou tal romance encontre o seu sopro de vida
no cinema e que a metamorfose sofrida por ela lhe restitua o frescor inicial que vários
anos de rotina e inércia a fizeram perder. De onde vem o mistério, e como fazer com
que o cinema, de todo modo, possa realizar uma obra inteiramente nova respeitando

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“Littérature et Cinéma”, Cahiers du Cinéma N°18, pp. 15-20, março de 1953.

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fielmente as intenções de uma obra já existente? Tentar resolvê-lo é, na verdade,
levantar novamente o problema do estatuto da obra de arte. Se somos adeptos da
absoluta especificidade de cada gênero literário; se pensamos em termos de pintura
pura, romance puro, cinema puro, responderemos que não existe nenhum
denominador comum entre o romance, o teatro e o cinema, de modo que a
transposição de um romance para a linguagem do cinema seja inconcebível porque a
forma do romance e o seu conteúdo obedecem a uma lógica interna que exclui toda
tradução cinematográfica. E, reciprocamente, o cinema, enquanto arte, e, como tal,
regida por uma técnica e por procedimentos específicos, seria alheio a toda referência
que não tirasse sua justificativa de uma necessidade propriamente cinematográfica.
Cada gênero teria a sua linguagem, cuja morfologia e cuja sintaxe seriam
estabelecidas de tal maneira que faríamos uma adequação ideal entre forma e conteúdo
somente com a condição de que este conteúdo possa ser exprimido apenas numa
determinada e única forma: a do romance ou a do cinema, mas certamente não a do
romance e a do cinema. O romance absoluto seria no máximo um modo de expressão
cuja significação se esgotaria apenas na leitura, sem que houvesse a necessidade de se
remeter a uma compreensão mais aprofundada da imagem ou mesmo da palavra. Se
é verdade, como pretendia Goethe, que todo tema dita ao autor a forma ideal a que o
corresponde, a adaptação não teria sentido: no melhor dos casos, seria supérflua e
repetiria2 a obra que pretende transpor. A justificativa seria de ordem sociológica
(difundir, por exemplo, uma peça até então reservada a alguns privilegiados), e não
estética. Não se poderia, de modo algum, participar da essência do gênero romanesco
fazendo apelo a uma experiência, por definição, estranha a essa essência, com o
romance excluindo precisamente todo apelo à imagem pelo simples fato de que
implica apenas uma visão da alma.
Que credibilidade dar a essa concepção? Evidentemente, não seria uma questão
de ressuscitar aqui as controvérsias relacionadas à autonomia ou à dependência
recíproca dos diferentes domínios da arte. Digamos apenas que os adeptos do romance
puro e do cinema puro empobrecem singularmente o sentido do conteúdo (ou do
assunto de uma obra) quando pretendem que este implica uma forma ou uma
linguagem privilegiada, isolada de todas as outras. Pensar assim é esquecer que o
conteúdo tem uma infinidade de significações possíveis e que cada uma delas pode
vir de uma formulação estética diferente da própria formulação original, mesmo que,
na mente do autor, a formulação escolhida pareça preferível às outras. Dependendo
da época, o lado dramático de uma obra pode prevalecer sobre o seu lado filosófico
ou sobre o seu aspecto narrativo e vice-versa. O papel do diabo, do qual falava André
Gide, é o sentido que outros homens (contemporâneos do autor ou pertencentes às
gerações seguintes) revelam em função das suas necessidades e suas preocupações.
Se recusamos esse sentido tão privilegiado ao conteúdo, que direito temos de nos
limitar a uma única forma de expressão, mesmo que o autor a tenha julgado superior?
Se admitimos, então, que a importância de uma obra de arte, qualquer que seja ela, é
mensurada pela abundância de suas significações possíveis, abundância essa que se

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Repetiria: no original, “faire double emploi”. Poderíamos traduzir por “duplica a obra”, mas esta
expressão, no francês, diz respeito a uma coisa que é repetida inutilmente. [Nota do tradutor]

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revela apenas com o tempo, como não admitir que se estaria sendo fiel à inspiração
profunda de uma obra antiga ao realizar uma obra nova, de um gênero novo, que, pelo
simples fato de servir-se de uma técnica diferente, explicita o sentido autêntico que
essa obra tem para nós e que, longe de trair a significação inicial, não faz senão
aprofundá-la? Quando Murnau, por exemplo, deu uma tradução cinematográfica do
Tartufo de Molière e do Fausto de Goethe, a linguagem expressionista da qual ele se
serviu poderia parecer como que um desconhecimento das situações profundas que
haviam guiado a feitura do Tartufo e do Fausto. Na verdade, ele revela o conteúdo
latente de duas obras que exigem equivalências plásticas diferentemente mais
eficazes, mais constringentes do que as que propõe o teatro. A hipocrisia é, por
excelência, o que se vê, bem como as repetidas manifestações dos poderes do além;
ou, se preferir, a dimensão fundamental da hipocrisia e da feitiçaria é uma dimensão
visual que se exprime apenas numa visão que elimina todos os obstáculos nascidos
de uma apreensão unilateral e parcial do espaço e do tempo, isto é, numa visão
cinematográfica. Ousando uma comparação filosófica, eu diria que o cinema é hostil
a uma visão monadológica do mundo, em que cada mundo ou cada substância
separada possui um ponto de vista sobre o mundo inteiro que é irredutível ao ponto
de vista de outro mundo. O espaço e o tempo do cinema realizam um continuum
irredutível às normas da espacialização e da temporalização da percepção comum;
ambos se anulam em um presente puramente vivo, como diria Husserl, que não é o da
consciência ingênua, mas sim o de uma consciência transcendental que apreende o
puro fluxo do real como tal e exprime a duração como fluxo puro no qual o passado
é, a um só tempo, suprimido e retido como o que já o é e o futuro, anunciado como o
que não o é ainda e que, por consequência, virá a ser. Tal como a consciência – diria
Husserl –, o cinema é onitemporal e portanto supratemporal; é também oniespacial e
portanto supraespacial, e é nisso que me parece consistir sua originalidade
fundamental.
Se, portanto, o Tartufo e o Fausto de Murnau nos parecem tão perfeitamente
plausíveis, é por um motivo bem simples: Murnau leva ao seu máximo a eficácia
dramática dessas duas peças explorando ao máximo os recursos de uma linguagem
visual que, por ser sobre-humana, reencontra e reproduz plasticamente a insólita
inspiração multívoca de Molière e de Goethe. As intenções profundas desses dois
autores, que o teatro havia podido – e com razão – realizar apenas imperfeitamente,
encontram-se explicitadas em nova forma nos dois filmes realizados por Murnau.
Depois disso, pouco importa que Murnau se refira a uma estética expressionista que
pode soar datada. O fato é que, ao nos restituir o lado sobrenatural das aventuras de
Fausto, ao reproduzir, a partir de um sistema de equivalências apropriadas, o lado
mágico do fogo, da terra e do céu, ele redescobre a fantasmagoria do universo
goethiano. Ele é o próprio Fausto, e os poderes do doutor não são outros que não os
do metteur en scène tal como eram, cem anos antes, os do jovem Goethe. O eterno
mito de Fausto torna-se o de Murnau, demiurgo genial e criador de um mundo
imaginário, sem deixar de ser o da tentação carnal e da aventura intelectual de uma
consciência insatisfeita para a qual o mundo não mais basta.
Vemos então, com as considerações anteriores, o papel decisivo
desempenhado pelo metteur en scène. Não se trata apenas, da parte dele, de comentar

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uma obra e explicá-la: o que importa é que as desventuras do herói sejam as suas e
que as peripécias do romance ou da peça que ele transpõe tornem-se peripécias
plásticas que reflitam as suas próprias lutas para recriar uma realidade que lhe é
exterior. Apropriando-se do romance ou da peça, ele concorre com o criador inicial
apenas para reencontrar, com um modo de expressão diferente, obstáculos que esse
criador já havia encontrado. Ele será tão fiel à inspiração originária que terá sucedido
em substituir suas próprias figuras retóricas, suas próprias metáforas – digamos, o seu
próprio sistema de equivalências – pelas figuras retóricas e pelas metáforas do autor
inicial. Mas essa fidelidade só será perfeita contanto que o sistema de equivalências
do metteur en scène – que é revelador do seu dom pessoal de criação – corresponda,
traço por traço, termo a termo, ao sistema de equivalências do romancista ou do
dramaturgo. Ou, se preferir, o sentido profundo de uma obra só será revelado se
houver conformidade entre dois sistemas de equivalências que refletirão, ao mesmo
tempo, o tema fundamental da obra adaptada e as preocupações fundamentais do
adaptador. É o que me parece ser o mérito do Macbeth de Orson Welles. De fato,
Welles permanece na autêntica tradição de Murnau quando compreende que não há
nada melhor para um drama metafísico do que uma transposição plástica que revele
não somente os tormentos de Macbeth, mas também os do próprio Orson Welles. A
vontade de poder de Macbeth se metamorfoseia, diante dos obstáculos vencidos na
realidade, em uma tragédia da imaginação em que tudo se torna pretexto à criação
verbal, em que o herói se opõe ao destino pelas palavras e a poesia se torna refúgio
supremo do déspota perseguido. À dura necessidade opõe-se a liberdade da função
poética; à linguagem prosaica dos maquinadores, o esplendor das imagens do homem
designado pelas forças de baixo. Macbeth não é ambicioso, ou, se o é, é por poder,
por conta de Lady Macbeth – espírito frio, racional –, implacável assim que suas
maquinações desmoronam. Macbeth, como muitos outros heróis de Shakespeare, é
um artista que age como tal e que encontra na poesia razões para enfrentar o destino
e pactuar com as forças das trevas. Seria, assim, uma questão de fazer presente esse
mundo em que os fantasmas da imaginação se impõem com eficácia tanto quanto o
real cotidiano, esse mundo em que as forças demoníacas participam ativamente da
vida de todos os dias pois é o lugar do conflito permanente entre o além e o inferno,
entre a luz e a sombra. Como Fausto, Macbeth tem um pacto com Satanás, e, na
verdade, não há mais solução de continuidade entre a terra e o céu e o inferno. Fausto
e Macbeth não são senão as apostas episódicas de uma luta perpétua. Welles
compreendeu bem que os verdadeiros protagonistas do drama de Shakespeare eram
as forças das trevas e as forças divinas, e ele adota a mesma ótica que Murnau. É o
mundo ainda marciano, caótico, informe dos primórdios do cristianismo que se torna
o ator essencial, e é o Orson Welles metteur en scène, e não o Orson Welles ator, que
desempenha o papel decisivo, pelo fato de que ele nos deve impor, restituir na
evidência do presente os conflitos enterrados para sempre no passado. Ele reencontra,
assim, a inspiração profunda do Fausto de Murnau, que só exprimiu fielmente o tema
orientador da obra de Goethe ao reproduzir, pelo simples jogo de luz e sombra, pela
sagaz articulação de planos, o tempo e espaço insólitos do século XVI alemão, ainda
impregnado pelo espírito da Idade Média.
Essas considerações nos fazem sentir (eu espero, ao menos) quão indispensável

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é esse tipo de cumplicidade – entre o metteur en scène e a obra que ele adapta; somente
ela resulta nos grandes sucessos.
Essa conivência, ou melhor, essa harmonia pré-estabelecida, eu a enxergo na
adaptação que Alexandre Astruc fez de Rideu Cramoisi, que é a primeira novela da
coletânea de Barbey d’Aurevilly, “Les Diaboliques”. A sucessão de planos, a
repartição de luzes e sombras, o papel que é dado ao que é dito e ao que é feito, tudo
obedece a uma necessidade interna que comanda imperiosamente a economia da obra.
Aos momentos de máxima tensão dramática correspondem os momentos de máxima
tensão estética, que nos impõem, evidentemente, uma situação estranha e singular. A
câmera vai direto ao essencial, recusa toda imagem gratuita que romperia com o rigor
do desenvolvimento. Da mesma forma que, com seu estilo, Barbey evitara de bom
grado tudo o que essa história tinha de escabroso e de excessivo, Astruc redescobre
com imagens a progressão de uma atração carnal que nenhum obstáculo poderia
impedir, e eu duvido que a força da lítote, da alusão ou da elisão seria tão grande
quanto aqui. A palavra intervém apenas para evitar a distensão da história, que deve
ser a mesma de uma fundição de metal, evitando o tempo morto e retendo da duração
anônima e solitária do herói da aventura apenas os instantes privilegiados e vividos
por ele, em toda sua fragilidade e fugacidade. Ainda aí, o herói aparente não é o
verdadeiro herói. No filme de Astruc, o verdadeiro herói é o tempo e, para além deste,
o próprio Astruc, que se esforça em conquistar o tempo do cinema como tempo
irredutível da consciência ingênua, isto é, como tempo específico. Todas as
equivalências plásticas que substituem o estilo de Barbey estão aí apenas para
reproduzir o eixo de duração próprio da novela cinematográfica. É falso dizer, então,
como alguns críticos não hesitaram em fazer, que Le Rideau Cramoisi sacrificou a
estética do filme mudo, pois é antes o contrário que seria verdade. Le Rideau Cramoisi
é, para os média-metragens, o equivalente a Cidadão Kane, a Sombra do Pavor, à
Regra do Jogo e a À nous la liberte; isto é, um filme falado em que a linguagem falada
encontra sua verdadeira destinação, que é estabelecer com a imagem aquilo que
Baudelaire chamava de um “sistema de compensação”. Da mesma forma que, num
quadro, um volume se opõe a uma linha para acentuá-la ou para neutralizá-la, a
palavra, no cinema, desempenha um papel idêntico. Ela deve destacar ou destruir a
imagem sem jamais parafraseá-la. Essa verdade, que alguns hesitam em repetir aqui,
muitos poucos cineastas a puseram em prática; tanto pior para o cinema.
Eu falava acima a respeito da cumplicidade necessária que deve haver entre o
metteur en scène e a obra que ele adapta. É surpreendente que ela não tenha se
manifestado no Othello de Orson Welles. Explico: é impensável depreciar este filme
de valor incontestável? Parece-me, simplesmente, que ele não tem convicção. Por
quê? Sem me entregar a uma crítica formal que excederia o escopo deste artigo,
limitar-me-ei a estas poucas reflexões. Parece que o sol de Veneza e o seu esplendor,
bem como o sol e o esplendor de Marrocos, foram fatais a Welles. Ele nos deu um
tipo de ópera visual comparável a alguns quadros da decadência cristã. Penso mais
em Tiepolo do que em Ticiano ou Tintoretto. Othello é o ponto de encontro entre dois
dramas: o da vingança de Iago e o da culpabilidade de Othello. É preciso que Othello
já se sinta culpado pelo simples fato de existir e ser negro para que ele caia tão
facilmente na armadilha de Iago. Ele o escuta com tanta complacência apenas porque

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lhe parece inconcebível ser amado por uma mulher da aristocracia veneziana, ele que,
afinal, é apenas um mercenário e um negro. É esse segredo que seria preciso revelar,
assim como seria importante dar a Iago o seu lugar essencial3, e não reduzi-lo a um
papel de comparsa. Essa tragédia psicológica exigia, portanto, uma grande economia
dos meios, um ascetismo cênico do qual Welles não dispõe aqui. Ele está preso ao
exotismo artificial de Veneza que, nos elisabetanos, é puramente exterior, e releva o
pitoresco mais banal para se dar ao luxo de algumas sequências (aliás belíssimas)
perfeitamente supérfluas. A contraprova da leitura é, desse ponto de vista, reveladora,
assim como o havia sido para Macbeth, na medida em que sugere outros Othellos
possíveis. Nunca é sem correr riscos que se adota, no cinema, soluções fáceis.

JEAN DOMARCHI

(Tradução: Miguel Fernandes)

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O tema da vingança é um leitmotiv que aparece constantemente no drama elisabetano, de Thomas Kid
a Cyril Tourneur. [Nota do autor]

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