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Cinco

mandamentos para a crítica de cinema


Por Carlos Adriano

Algumas regras não-dogmáticas, inspiradas pela obra do crítico André Bazin,


que morreu há 50 anos

Seria tão inevitável quanto previsível que um artigo a propósito do


cinqüentenário da morte de uma personalidade da cultura e das artes
buscasse recordar seus principais feitos e recortar sua contribuição em
perspectiva.

Mas seria igualmente tão inevitável quanto previsível que um tal artigo
(se) colocasse a (e à) disposição para articular a pertinência e atualidade
deste legado. É uma operação em que a memória atiça o exemplo
regenerador.

Pensar nos 50 anos da morte de André Bazin faz pensar nos últimos e nos
próximos 50 anos da existência da própria crítica de cinema.

Bazin morreu em 11 de novembro de 1958, aos 40 anos. Apaixonado


militante da crítica, tomava-a como forma de educação do leitor e de
contribuição ao cinema. Animou cineclubes, escreveu em jornais. Fundou
e editou a mítica meca bíblica de todos os críticos, "Cahiers du Cinéma". E
ainda criou uma das teorias mais profundas e profícuas do cinema.

Teoria que até explica o fascínio que a arte do filme exerce há mais de cem
anos. Não é possível pensar estetica e historicamente o cinema sem a
“ontologia da imagem” de Bazin. Que, por sua vez, é crucial para se
entender o cinema que surge após quase findar a era da natureza de índice
(fotográfico) da imagem, o chamado cinema digital, pós-fílmico.

Sob o risco de subestimar a importância do crítico, bastaria sumariamente


dizer que, sem André Bazin, não existiria a Nouvelle Vague (ou, ao menos,
ela não teria sido o que foi; o que implica não relevar a importância de
Henri Langlois na formação do mesmo movimento).

E nem é necessário dizer que a nova onda francesa, capitaneada por


Chabrol, Godard, Resnais, Rivette, Rohmer e Truffaut, espalhou sua maré
e repercutiu em outras praias ao redor do mundo, influenciando a
emergência de cinemas novos da Alemanha à Itália, do Brasil ao Japão.

O fato de haver outras ondas novas de cinema, anteriores ou


contemporâneas à Nouvelle Vague, como o cinema underground nos
Estados Unidos ou o cinema letrista na própria França, é prova do mister
do crítico que deve saber apontar e reparar os lapsos.
No tipo de exercício que se conjectura, cumpre ter em mente os contextos
e a moldura da época. O mais fácil e o pior seria o lamento da nostalgia
romântica. Pode até ser mesmo que o cinema não seja mais aquele. Assim
como o mundo. O perigo das comparações é compensado pela ambição de
encontrar ressonâncias, de retroprojetar conexões.

Em 1943, Bazin percebeu que o dispositivo da crítica seria o instrumento


fundamental para a melhora do cinema. Autor de um texto incomparável,
tanto pelo estilo preciso e elegante como pelo poder de articular o geral e
o específico, Bazin configurou uma imagem de pensador do cinema.

Cada artigo escrito cumpria o desígnio de melhorar a qualidade do cinema


francês. E, por extensão, servir religiosamente à glória da realidade. Levou
uma vida devotada, em última instância, à educação, e devastada pela
fadiga intensa consumida em várias atividades e por seqüelas de
tuberculose e leucemia.

Com Alexandre Astruc (que publicou o artigo “La caméra-stylo” em


"L’Ecran Français", 1948, identificando câmera e caneta), Bazin articulou
um conceito-chave do cinema moderno: o diretor do filme como autor. Tal
idéia seria assumida e radicalizada pela “política dos autores” de Truffaut,
Rohmer e Rivette.

Após a Liberação, Bazin agitou cineclubes da Alemanha ao Marrocos, além


dos que fundara na Maison des Lettres (Sorbonne) e em Travail et Culture,
e servia de inspiração aos intelectuais do Quartier Latin e aos operários
de fábricas nos arrabaldes de Paris. Costumava espalhar o evangelho do
cinema também em salões de igrejas.

Escrevia regularmente em jornais (no diário "Le Parisien Libéré" e no


semanal "Observateur") e em revistas ("Esprit", "La Revue du Cinema" e
"Les Temps Modernes"; a primeira foi fundada por Emmanuel Mounier e a
última foi editada por Sartre e Merleau-Ponty, três dos filósofos que mais
impressionaram Bazin).

Ele chegou a escrever um livro sobre o cinema francês da Ocupação e da


Resistência. A ação cineclubista de Bazin gerou o Festival dos Filmes
Malditos, em Biarritz (1949), que confrontou pela primeira vez a
vanguarda francesa (Cocteau) e os “jovens turcos” (Rivette, Godard,
Truffaut), cinéfilos críticos que virariam cineastas.

Com o artigo “O mito de Stalin no cinema soviético” ("Esprit", 1950) fez


um diagnóstico severo entre o velho e o novo (cinema), cometendo a
blasfêmia (para as hostes comunistas) de fazer uma comparação entre
Stalin e Tarzan. No apêndice de 1958, Bazin sugere que Nikita Kruschev
pode ter lido seu artigo (no discurso-denúncia de 1956 sobre Stalin,
Kruschev mencionava a manipulação e a distorção histórica forjada pelo
cinema contra a União Soviética).
Em abril de 1951, André Bazin cria os "Cahiers du Cinéma", com Jacques
Doniol-Valcroze, Joseph-Marie Lo Duca e Léonide Keigel. Se os fanáticos
da revolução cultural na China seguiam um livrinho vermelho, os fiéis da
revolução anunciada do cinema na França rezavam por aquela revistinha
de capa amarela.

O compromisso com a teoria e a história do cinema não excluía o


contemporâneo. As atualidades, ou seja, a produção corrente dos filmes
da época, é que forneciam a pauta para os artigos e as capas da revista. A
idealista fenomenologia baziniana não renegava a imanência cotidiana.

Haveria hoje algum crítico de cinema capaz de cumprir o pão diário das
resenhas e fermentar uma teoria do cinema (além de traçar “a evolução da
linguagem do cinema”, título de um de seus artigos)? Pois Bazin resenhava
na imprensa de grande circulação e em revistas especializadas, quando
bolou uma das teorias mais fecundas e duradouras para o cinema e a
fotografia.

“Ontologia da imagem fotográfica” (1945) é um ensaio-axioma que situa o


cinema como fato cultural de triunfo num arco histórico de quatro mil
anos, da arte funerária egípcia ao advento do filme sonoro. Densa ode ao
cinema como puro tradutor dos traços da natureza e da realidade. Apoiada
em Jean Renoir, Roberto Rossellini e Orson Welles, esta teoria é, a grosso
modo e num resumo brutal, o desejo de um realismo de verdade na luta
contra a morte.

A fotografia como múmia do tempo. É “uma das formulações mais sutis do


problema da ‘presença do real’ na imagem cinematográfica”, diz Ismail
Xavier, que incluiu “Ontologia da imagem ...”, “Morte todas as tardes”
(1949-1951) e “À margem de ‘O erotismo no cinema’” (1957) na antologia
"A Experiência do Cinema" (1991), e prefaciou "Ensaios: Cinema" (1991),
seleta baziniana extraída dos quatro volumes de "Qu’Est-Ce Que le
Cinéma?" (1975).

Em “Por uma crítica cinematográfica”, Bazin não alimenta ilusões


demagógicas: “Não há mais qualquer necessidade de se pedir desculpas
pelo esnobismo. No mundo moderno do negócio anônimo, a esnobação é a
filantropia dos imbecis. Como a massa daqueles filantrópicos
inconscientes não pode encontrar neles mesmos as verdadeiras operações
para suas opiniões, o problema volta-se para uma política efetiva de
esnobação na perspectiva mais geral de uma política do cinema”.

Não foi por acaso que André Bazin salvou da delinquência o pequeno
moleque marginal François Truffaut e o transformou no crítico que
assinaria o polêmico “Uma certa tendência do cinema francês” e que,
depois, seria diretor de filmes, um dos mais respeitáveis da França. A
conduta adotiva fazia parte da pedagogia do crítico de cinema.
É curioso e fatídico acaso que "Os Incompreendidos", o filme de Truffaut
que arrebentaria a Nouvelle Vague na tela de Cannes, tenha começado a
ser filmado na mesma noite que Bazin morreu. O filme foi dedicado a
Bazin, que não teve tempo de ver os caminhos e descaminhos, entre
radicalizações políticas e e(s)téticas temperadas por intrigas, seguidos
por seus pupilos.

Bazin também foi baliza para outro elemento "bande à part". Colin
MacCabe defende a hipótese (no livro ''Um Retrato do Artista aos 70") de
que todo o cinema de Godard pode ser explicado à luz de Bazin. Godard
não se cansou de bisar uma idéia seminal de Bazin como epígrafe de seus
filmes –está, por exemplo, em "O Desprezo" (1963) e "História(s) do
Cinema" (1998): “O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que está
em acordo com nosso desejo”.

MacCabe é um dos críticos que sustenta a existência de um cinema


baziniano de 1895 a 1982. Época do real filmado por meios foto-ópticos,
químicos e mecânicos. Se o nascimento se deu à luz da sessão pública e
paga dos irmãos (e artesãos da fotografia) Lumière, o óbito se daria com
o diabólico festim de computação gráfica de "Tron" (Steven Lisberger). Ele
é também um dos que sustenta a morte da crítica em 1975, com o
lançamento massivo e televisivo de "Tubarão" (Steven Spielberg).

Em dezembro de 1977, Truffaut terminava o prefácio à biografia "André


Bazin", obra-chave de Dudley Andrew publicada no ano seguinte, com uma
constatação que, 30 anos depois, não perdeu a atualidade nem a
pertinência. Após diagnosticar, contundente, o estado da crítica e do
cinema de então, Truffaut lamenta: “Sim, nós sentimos falta de André
Bazin”.

Como um exercício de atualização e provocação do legado de uma


abstração crítica extraída do signo Bazin, segue abaixo uma espécie de
proposição-guia (manual de boas maneiras?) com alguns mandamentos
possíveis e não-dogmáticos para se saber fazer (bem) uma (boa) crítica de
cinema. Mesmo que não se saiba como será o cinema daqui em diante, mas
sobretudo tendo sempre em mente essa hélice híbrida e migratória.

1. Saber escrever

O fundamento do ofício não é, à toa, a base mesma do trabalho e do


produto do crítico. Se alguém escreve sobre cinema, ou sobre filmes, ele
ou ela devem saber usar a língua para lograr seu objetivo. É a matéria de
seu pensamento, do que suas opiniões são feitas. O que implica não apenas
saber escrever com a devida correção (gramatical, ortográfica) como
também saber retorcer a linguagem se for necessário. Dois dos atributos
mais cultuados são o da clareza e o da concisão. Dizer suas idéias não deve
ser um show de exibicionismo que escamoteia o vazio delas. Nem a
indigência do escrito pode comprometê-las. Mas, acima de tudo, preza-se
um texto bem escrito. De tão bem escrito, que dá até gosto de ler.

2. Saber escolher o objeto

Num mundo com tanta informação em circulação, a tarefa de seleção é tão


importante quanto o próprio objeto selecionado. É evidente que a
imprensa das corporações pauta os assuntos da conveniência do comércio.
Mas, assim como Hitchcock, Nicholas Ray ou Douglas Sirk souberam
interpolar tensões autorais entre as engrenagens industriais, um crítico
pode “furar” o bloqueio ao mencionar, "en passant", determinado filme ou
cineasta "outsider" na resenha do "blockbuster". Neste mundo de
saturação midiática e concorrência mercadológica, há sempre interesse
pelo furo do “novo” (artigo em falta no mercado). Portanto, exceto os casos
das pautas impostas, é o crítico que propõe determinada pauta.


3. Saber ler o texto e entender o contexto

Supõe-se que o diálogo é a língua da tolerância. O crítico, ao dialogar com


o filme e ao se dispor como instância mediadora entre o filme e o
espectador, deve depor a vaidade e o preconceito, e tentar ler o que o texto
de imagens e sons realmente mostra ou não (para além ou aquém do que
se projeta na tela), segundo a proposta do objeto-filme ou sujeito-autor.
Ver o que filme não conseguiu fazer não significa dizer o que o crítico
queria que o filme tivesse feito. Seria enxergar o resíduo potencial da obra,
ou a potência de seu resíduo. Promessa do inacabado. Perceber o que ela
queria dizer, mas não conseguiu. Compreender a proposta original do
filme, e avaliá-lo por essa condição, é o começo da boa crítica.


4. Saber articular seu repertório em função da obra

É baba de be-a-bá a lei da teoria da comunicação (embora o cinema não se


encaixe muito à vontade nesse escaninho) que a recepção de uma obra é o
cotejo entre repertórios (de quem faz e de quem lê). Ainda mais quando a
obra é do signo novo, que confronta o repertório apriorístico do
espectador. Um crítico deve ter o mínimo conhecimento de causa. O
próprio ofício implica o jogo de um juízo de valor, que, por sua vez, implica
a consciência da história daquele objeto. Faz parte da regra das
comparações. Conhecer outros filmes para entender aquele filme. O que
significa reconhecer outras críticas, respeitando a apuração e citação de
referências. Teoria e história não devem ser incompatíveis com a
atualidade.


5. Saber ter generosidade, desinteresse, honestidade

Se há de haver uma ideologia (com exceção da ideologia do próprio


cinema) ou profissão de fé afirmativa, esta seria baseada em condições de
negação (sob o influxo afirmativo da dialética de Adorno, a marca da
distinção): não usar o cinema como meio de alpinismo social; não traficar
o cinema entre moedas venais da ganância; não tratar o cinema como seita
separatista adversa da comunhão; não fazer do cinema instrumento de
auto-promoção; não reduzir a grandeza do cinema à mesquinhez do
próprio ego; não devotar-se ao cinema com interesses estranhos à sua
missão de reencantar o mundo e revelar o conhecimento; não roubar a
chama dos que amam verdadeiramente o cinema.

Se este artigo acabou por se exaurir como arremedo irremediável de


manifesto, não foi algo intencional, mas também não terá sido indesejável.


Publicado em 17/3/2009

Carlos Adriano
É cineasta e doutor em ciências da comunicação pela USP. Todos os seus
filmes foram apresentados no 56º Festival de Locarno (seção "Cineastas
do Presente") e no 16º Videobrasil (sala no eixo curatorial "Cinema Vídeo
Arte"). Realizou "Remanescências" (coleção New York Public Library), "A
Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha" (melhor curta documentário Chicago
Film Festival) e "Militância" (exibido no MoMA, Nova York). Teve roteiros
premiados por Petrobras, Ministério da Cultura e Bolsa Vitae. Com
Bernardo Vorobow é autor do livro "Peter Kubelka: A Essência do Cinema"
e organizador de "Julio Bressane: CinePoética".

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