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Há um mal-entendido sobre o cinema.

Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de 


elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus 
trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento 
menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. 
Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma 
centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais 
perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da 
evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre 
esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles 
persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um 
termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos, minoria que acaba 
impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os 
fins e sua realização –, o espectador de cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua 
poltrona, virgem de hábitos e de leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, 
reinventar as tabelas de valores, enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os 
séculos liberaram da tarefa de julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele 
não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura 
ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios 
deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o 
modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e 
amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente 
revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas 
obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma 
potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria 
sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope. 
 
Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob 
os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós o 
procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. Essa 
arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia 
anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da 
tela, monstro de inocência e de rigor… 
 
O cinema começa com o sonoro. 
 
Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa 
arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que 
diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem 
procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos 
no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da 
apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem 
como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as 
formas aberrantes e as estruturas essenciais. 
 
A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à 
realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos 
do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era 
preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, 
na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, 
sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua 
forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto 
independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas 
a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria 
matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, 
igualavam as mais refinadas. 
 
Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de 
captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade 
Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, 
fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a 
possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as 
armas mais agudas do verdadeiro. 
 
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das 
deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse 
mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por 
uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é 
uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem 
metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não 
a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências 
traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das 
caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que 
conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com 
a revelação cortante de que ele tem o poder. 
 
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação 
Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de 
uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo 
às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo 
obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de 
todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que 
ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem 
diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que 
levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao 
registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais 
insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na 
esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao 
fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que 
essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith 
não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento 
a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, 
Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, 
pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, 
ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética 
minada por sua contradição interna. 
 
Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da 
palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção 
tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de 
posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar 
dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos 
estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso 
ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as 
obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de 
recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de 
seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os 
Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo 
assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart 
inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar 
com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha 
câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, 
eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe 
beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, 
eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, 
para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha 
câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o 
espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, 
objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede 
mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e 
o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição 
das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da 
objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a 
palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, 
filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é 
proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja 
inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que 
mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens 
suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo 
o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento 
resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da 
guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o 
vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se 
volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do 
verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as 
combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o 
cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os 
amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse 
estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si 
mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. 
Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, 
propõem-lhe um duplo que ele não reconhece. 
 
A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de 
aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência 
irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito 
das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se 
explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar 
suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do 
aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa 
superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras 
artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe 
uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas 
isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas eras da 
humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, 
enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo 
perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira 
razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível 
pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes 
de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, 
espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para 
os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de 
alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se 
compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em 
divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações 
do ponto de perfeição. 
 
Tudo está na mise en scène. 
 
A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante 
de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse 
tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que suporta com alegrias 
diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se 
chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, 
que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça 
musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias 
de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do 
último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o 
jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o 
esforço que o fez nascer. A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no 
interior do quadro devem tudo exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois 
últimos filmes de Fritz Lang, O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano. 
 
Documentário ou Feeria? 
 
A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de um 
desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação 
imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de 
alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais 
terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece numa aplicação 
que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre necessidade da arte 
porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em 
suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. A arte é a religião da lucidez. 
 
Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma 
coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio 
de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por 
sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão 
“Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? 
É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo 
real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do 
idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para 
restaurar o vazio no coração do espectador. 
 
O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e 
se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para 
“sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se 
fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios 
naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem 
incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo 
onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de 
angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais 
autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se 
reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua 
tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, 
portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na 
arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido 
percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e 
apaziguada. Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na 
luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do 
sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e 
passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo 
tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte. 
 
E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar 
impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade, o 
mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral, enquanto 
precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se reconciliar com 
ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio 
dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o mundo basta) é o projeto 
contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse projeto em seu estado de 
absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade, 90 minutos para nada, pois 
não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o 
mérito de ser real. 
 
Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel 
definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na 
realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe 
integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um 
direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio 
entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos 
dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve 
estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade. 
 
A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feeria, se o 
documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a feeria autoriza a 
mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e 
a feeria, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável. 
 
Vertigens e cintilações. 
 
A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o 
espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades 
particulares do cinema. 
 
Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, 
porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en 
scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: 
pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos 
privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais 
íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do 
corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção 
de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – 
noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de 
uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas 
pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós 
mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em 
raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, 
consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um 
estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos 
movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos 
radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar 
engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en 
scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma 
ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção 
cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após 
conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse 
sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” 
numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de 
procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma 
precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se 
satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa. 
 
A Fascinação. 
 
A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se 
arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, 
abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo 
do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do 
cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar 
de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica 
no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as 
metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música 
inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de 
nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo 
com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é 
a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias 
excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, 
inteiramente requisitados pelo exterior. 
 
A montagem transparente. 
 
Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm simplesmente 
das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre montagem que 
outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um 
ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência espectatorial a uma 
arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros que substituíssem uma 
necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de Gance, as de Eisenstein, ou a 
polyvision que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal, traduzem 
essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo 
calculado, como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. O erro dessas 
teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o 
espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e 
subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma 
continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a 
intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de 
transparente, puramente mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até 
restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse 
erro é devido, conforme já destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva 
do cinema com as artes tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, 
toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte 
da montagem, que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar 
os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível. 
 
Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou 
essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A 
própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. 
A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada 
ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade 
completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de 
planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um 
evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou 
de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, 
situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com 
este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, 
graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. 
Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele 
não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, 
tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera 
fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma 
transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz 
intensidade. 
 
DeMille superior a Hitchcock. 
 
Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os enquadramentos 
bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal revelador de 
impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único 
segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao recente Vertigo de 
Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como exemplos do que não se 
deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua 
angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem, 
procedem da mesma impotência diante do ator, ao suplantar uma incapacidade de revelar 
suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o 
ator, de tudo aquilo que está fora dele, da mesma forma que os escritores medíocres forçam 
o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás 
interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na 
maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (…), deixando à 
câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. 
Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não 
saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa 
maneira de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, 
Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele 
imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de 
modos diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a 
razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda 
parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de 
argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um 
expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-alívio atormentado 
e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se define por uma 
abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de Eisenstein nos faz 
inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo desenhar um homem, 
desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica. 
 
Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu 
devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar 
minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, 
meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e 
compreensão…”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o 
prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, 
Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é 
apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser 
uma contemplação de objetos raros e sem preço. 
 
Preeminência do ator 
 
Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiria um catálogo precioso, refinado – jóias 
gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços flamejantes, 
jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa outra série, navios 
longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados sobre o peito do herói 
– o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o ator. Porque o cinema é um 
olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos, ele 
nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou 
desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com 
embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço da vida rumo a deus. Não, como em 
Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo a um criador, tema exterior à mise en 
scène, mas o homem tornado deus na mise en scène, pela revelação de seus poderes, brecha 
aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o 
cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o 
cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua 
dupla condição de arte e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como 
reconciliação do homem com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno 
favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por 
natureza no coração da fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais 
pálidos da fascinação dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos 
equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga 
em que o amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do 
prazer, exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita 
do mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos 
do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig, 
Mizoguchi[10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada 
sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim, e que Hawks, 
Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. Quanto a Bresson, 
parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la. 
 
Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior 
parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função 
de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme 
nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: 
O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos 
atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame 
Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são 
profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur 
en scèneconsiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma 
espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cadametteur en scène possui seus 
atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a 
outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que 
engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a 
anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean 
Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada 
ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas 
em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos 
apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas 
contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas 
docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras 
convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e 
do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula 
resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são 
grotescos. O que seria preciso demonstrar. 
 
O Mal-entendido. 
 
Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre 
Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão 
diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas linhas eu me faço 
entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de 
filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias gerais, a partir da 
qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil, sumário 
e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que basta a um cineasta escrever 
seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus 
personagens, para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade 
ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. A 
derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a 
armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Essas 
obras arejadas, sedutoras, amparadas de todos os prestígios da cor, do espaço e dos 
sentimentos fortes, das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar 
que Hawks), das quais o único tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por 
sua ausência de justificação, sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem 
eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São 
cegueiras desse tipo que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” 
da tela grande estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram 
consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, 
mas Murnau, mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não 
saem de moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, 
permanece visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer 
sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros 
senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais 
sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé. 
 
O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no 
caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo 
“clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os 
atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que 
não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – 
algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a 
cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal. 
 
A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não 
exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o 
espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um 
cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade 
da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a 
definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e 
a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, 
por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O 
tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en 
scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um 
cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados 
em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. 
Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as 
árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a 
linguagem para dar conta de seres estéticos novos. 
 
É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o 
cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a 
nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de 
luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hajji Baba de Don Weis? 
Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas 
no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas 
simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as 
imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela. 
 
Michel Mourlet 
 
[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e 
comuns a toda forma de arte. 
 
[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu 
tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em 
Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece 
ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura 
econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas 
fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em 
relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a 
partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu 
platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as 
sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma 
arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e 
sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito 
original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o 
cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor 
progressivamente se distanciaria”. 
 
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso 
com o verdadeiro”. 
 
[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume 
espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme. 
 
[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a 
beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é 
bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, 
nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e 
fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”… 
 
[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material 
– das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica. 
 
[7] Grifos meus. 
 
[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66. 
 
[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69. 
 
[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que 
muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan 
e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer. 
 
[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo 
com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o 
terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas. 
 
[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre 
as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma 
revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas 
ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas. 
 
[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode 
ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a 
simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava 
em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées 
sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetivaporque 
seus colegas não o empregam. 
 
Cahiers du Cinéma nº 98, agosto 1959 
 
Tradução: Luiz Carlos Oliveira Jr. 

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