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OLIMPIA

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Ouvrage publié avec le soutien du Centre N ational du Livre
- Ministere Français Chargé de la Culture.
Cet ouvrage a bénéficié du soutien des Programmes d'aide à la publication
de l'Institut français.

Obra publicada com o apoio do Centro nacional do Livro


- Ministério Francês da Cultura -
Esta obra teve o apoio dos Programas de Apoio à Publicação
do Instituto Francês

Título original: Les Sériestélévisées


Tradução: Pedro Elói Duarte
Revisão: Gabinete Editorial Texto & Grafia
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro

© Armand Colin, 201 O

Fotos da capa: Mareia Cross e Hugh Laurie


© Corbis/VMI

Todos os direitos desta edição reservados para


Edições Texto & Grafia, Lda.
Avenida Óscar Monteiro Torres, n. 0 55, 2. 0 Esq.
1000-217 Lisboa
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 03
E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt
www.texto-grafia.pt

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.ª edição, junho de 2011

ISBN: 978-989-8285-42-3
_Depósito Legal n. 0 329100/11

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Auto,;,
será passível de procedimento judicial.

O texto deste livro segue as normas do


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
Ml·.MÉ·SIS
ARTES E ESPETÁCULO�'< .. . , , . ..

A organização contemporânea da sociedade coabita, de forma nem sempre


harmoniosa, com a fruição do espetáculo nas suas mais variadas expressões.
Uma coleção de livros sobre as artes do espetáculo que delas preconizem
uma vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o nosso espaço
de participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do espetáculo
encerra dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter igual acesso.
Em "Mi.mé.sis" terão presença obras de natureza estética, técnica, infor­
mativa, ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o cinema,
o teatro, a dança, a música, entre outros, serão os protagonistas desta coleção.
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INTRODUÇÃO

Sucesso e desconhecimento das séries

Os apreciadores de séries multiplicam-se. Não só já não vivem escondidos


como dantes, quando o opróbrio recaía sobre um género considerado «comer-
cial» e «degradante», como também se manifestam, discutem, mostram o
seu entusiasmo e parecem não temer qualquer crítica. Desde inícios dos anos
1990 que a série Hélene et lesgarçons· é eleita pela maioria das crianças e dos
adolescentes; no entanto, a série é objeto de escárnio e muitas vezes desprezada,
testemunha do sentimento geral do espaço público erudito relativamente à
televisão em geral e a este tipo de programa em particular. Contudo, em 1994,
a socióloga Dominique Pasquier mostra a importância deste programa mercê
da sua adaptação perfeita aos desejos e necessidades das crianças. A difusão de
Twin Peaks obtém um sucesso ligado à curiosidade . Outro fenómeno notável
foi o êxito de uma série americana difundida em França no canal de cabo
Canal Jimmy, a partir do verão de 1994, intitulada A Balada de Nova Iorque
(NYPD Blue). Segundo os seus poucos espetadores (o canal ainda não era muito
conhecido), a série constituíu uma espécie de choque emocional e narrativo.
O êxito, na segunda metade dos anos 1990, de Friends entre os adolescentes
e os estudantes transforma esta série num acontecimento mediático. A série
Ficheiros Secretos (X-Files) provoca polémicas públicas e fortes críticas que
não dizem realmente respeito ao «grande» público apaixonado pela série. E
começam-se a encontrar comentários (mas não verdadeiras críticas) nos grandes
jornais diários sobre as séries televisivas.
No entanto , a verdadeira explosão francesa data da primeira década do
século XXI. Os canais chegaram à conclusão de que as séries se tornaram o
principal «programa chamariz» da televisão junto do público (à exceção da
telerrealidade em «grandes programas», como a Academia de Estrelas).Desde
há alguns anos que as diferentes variações dos CSI têm as melhores audiências
da televisão francesa, enquanto Sem Rasto (Whitout a Trace)aumenta regu-
larmente os sharesdos canais públicos. Os canais por cabo franceses devem
também os seus maiores êxitos às séries, quer se trate do Canal Jimmy, do 13e
Rue, do Série Club, do Paris Premiere ou do TMC. Os magazines dedicados
às séries proliferam, sobretudo os dedicados às novas séries e às suas estrelas,
como os blogues, os fóruns ou sítios de discussão.

* Hélene et les Garçons(«Helena e os Rapazes») é uma série televisiva francesa, em 280


episódios, criada por Jean-François Porry, produzida pelaAB Productions e difundida de
11 de maio de 1992 a 22 de novembro de 1994 no canal TFl. [N.T.]

7
AS SÉRIES TELEVISIVAS

o interesse é geral, ou quase: as séries ainda não são levadas a sério pela
imprensa cultural ou pelos estudiosos. Não existe em França qualquer verdadeira
crítica de séries televisivas que se assemelhe de algum modo à crítica americana.
A Les Jnrockuptibles, revista ao serviço de artes médias como o cinema ou o rock,
não tema uma rubrica sobre «séries»; os artigos do Libération que tratam das
séries continuam a ser mal informados, breves e superficiais. Face aos artigos
de fundo do New York Times, que, em 1995 (Weiraub, 1995), escreve que as
séries televisivas se tornara m mais criativas e interessantes do que o ci nema,
os jornais franceses fazem fraca figura. Os académicos não se interessam pelas
séries, à exceção de alguns especialistas de cinema como Genevieve Sellier e
Pierre Beylot, organizadores do primeiro colóquio dedicado ao género, realizado
em 2002; no entanto, os seus alunos, em muitos casos fanáticos das séries,
adorariam verem ilustradas as questões de escrita audiovisual ou de economia
dos media com exemplos retirados da produção das séries.
Acrescentemos que existem muito poucas obras que tratam da questão das
séries televisivas; a maioria adota um tom arrogante e· condescendente. Num
livro publicado em 2006, na editora suíça Peter Lang, Danielle Aubry (2006:
p. 195) escreve, a propósito de Twín Peaks (série criada, escrita e produzida por
David Lynch), sem procurar sequer justificar a sua opinião: «Os maneirism os
formais e estilísticos que parecem tão surpreendentes, tão audaciosos e origi­
nais à primeira vista[...] não conseguem camuflar a inanidade profunda do
conteúdo ou, pior, a sua misoginia complacente, aviltante, o seu sentimenta­
lismo que, por vezes, roça a pieguice». A série é um género que suscita ainda
esta forma de juízo categórico, completamente contraditório com tudo aquilo
que se poderia escrever e que, por certo, nunca seria tolerado a propósito de
um filme desse mesmo cineasta. Face a uma produção académica americana
ou inglesa exuberante e apaixonada, a ausência francesa parece ainda mais
assombrosa. Só alguns amadores e conhecedores, no verdadeiro sentido do
termo, como Martin Winckler (2002) ou Alain Carrazé (2007), defendem e
analisam com energia o universo das séries, em particular através da nod.vel
e erudita introdução ao fenómeno proposta por Carrazé na obra Les Séries
télé, publicada na Hachette.
Faltam até as palavras para falar das séries. Pelo menos duas fizeram-me
muita falta nos artigos que escrevi sobre o tema: em primeiro lugar, um equi­
valente ao termo de leitura para a televisão. Fala-se de «audiência», mas esta
designação denota meramente a presença de um público. Apercebi-me então
de que alguns autores canadianos utilizam o termo «telespetaleitura» *, que
penso ser excelente e que, com gratidão, lhes tomo de empréstimo. De resto,
o francês encontra-se cruelmente desmunido para descrever a competência
mediática, o saber que adquirimos progressivamente pela familiarização com
os programas de televisão. O inglês propõe vários termos que associam uma
competência e a capacidade de agir por ela autorizada: policy (a conduta da

* Tradução possível do original «téléspectature», no sentido de uma leitura por parte


do telespetador. [N.T.]

_j
INTRODUÇÃO

política), agency (o poder de agir), literacy (o saber ler e, por extensão, o saber
ler literário). Utilizarei nesta perspetiva o neologismo «mediada», derivado
do inglês mediacy, que vários autores utilizam para designar os nossos saberes
adquiridos sobre a televisão.
É tempo, se não de acompanhar, pelo menos de tentar compreender um
movimento popular que percorre, como veremos, todas as classes sociais e todas
as faixas etárias. Este livro constitui uma tentativa de introdução ao universo
serial, destinada aos apreciadores de séries e, ao mesmo tempo, aos universi-
tários interessados nas questões da produção televisiva, da narrativa popular
e da sua receção, ou nos novos problemas narratológicos trazidos pelas séries:
com efeito, podemos «entrar» de várias maneiras no mundo das séries. Deste
ponto de vista, a obra é também um catálogo de abordagens metodológicas
possíveis para tratar de um género vasto e proteiforme.
É por isso que este livro não se intitula «História das Séries Televisivas» e
não tem uma vocação de recenseamento. Foi necessário proceder a algumas
escolhas, que, por certo, não agradarão aos apreciadores de algumas séries de
que não falaremos. Questões de opção pessoal e também de disponibilidade
guiar-nos-ão para delimitar o campo deste estudo, ainda que o critério prin-
cipal seja a necessidade de ilustrar o melhor possível o desenvolvimento atual
do género. Nesta perspetiva, tivemos de privilegiar o domínio americano, isto
por muitas razões convergentes. A primeira, que não é fútil, é o veredicto do
público, nunca desmentido, particularmente em França. No momento em
que escrevo estas linhas, leio no TélécâbleSat Hebdo • (7 de fevereiro de 2009):
«As séries CSI continuam a ganhar audiência em França . Este gosto pelas
séries americanas é um fenómeno em todas as televisões francesas. No canal
France 2, a série Sem Rasto voltou a bater a ficção francesa de segunda-feira
no canal TFl.» Só algumas séries britânicas e, pelo menos em certas partes do
mundo como a África , as telenovelas sul-americanas (Thomas, 2003) fazem
concorrência aos produtos americanos. A não ser que se pense, como alguns
iluminados, que a televisão está nas mãos de manipuladores políticos e que o
seu público é um exército de parvos embrutecidos, temos de reconhecer que
um sucesso assim tão generalizado assenta em algumas qualidades.
É verdade que os Americanos compreenderam rapidamente que a noção de
«série» se adapta perfeitamente às formas de difusão da televisão. 1 Love Lucy
e Dragnet, séries que anteciparam e influenciaram fortemente os dois grandes
géneros da sitcom e da série policial, começaram a sua programação em 1951. A
França, singularmente, nunca acreditou nem refletiu numa verdadeira política
de produção de séries. Contudo, não foi por falta de antecedentes históricos:
os romances de folhetim do século XIX ou os seriais cinematográficos dos anos
1910-1920 tiveram um sucesso enorme. No domínio da ficção televisiva, a
lógica que começou por se impor foi a das antologias. En votre âme et conscience
ou La Caméra explore le temps (cujas primeiras difusões datam de 1956 e de
1957) apresentam argumentos e personagens diferentes no seio de quadros

* O Té/écâble
Sat Hebdoé um semanário francês dedicado à programação televisiva. [N.T.]

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AS SÉRIES TELEVISIVAS

relativamente semelhantes. Estas antologias refletem o «dever de cultura» que


guia técnicos e produtores, como observa com nostalgia Jean-Jacques Ledos
(2007). A televisão deve então transmitir um património «cultural» que lhe
preexiste. É verdade que o faz com altas ambições artísticas, brilhantemente
descritas por Gilles Delavaud no seu ensaio L~rt de la télévision (2005).
Como não se acredita realmente nas capacidades do instrumento, os meios
continuam a ser irrisórios, como confessa implicitamente Jean d'Arcy, diretor
de programas durante sete anos, dirigindo-se aos realizadores no dia da sua
entrada em funções: «Fabriquem-me, com as câmaras de vídeo, com os dois
estúdios que têm, mais cenários e atores, algo que se assemelhe tanto quanto
possível aos filmes que não posso programar» (citado por G. Delavaud, p. 57).
No outro lado do Atlântico, é também o tempo das antologias, celebrado pelos
historiadores como «a primeira idade de ouro da televisão americana». Esta
época é, talvez, a única em que as produções de ficção francesa e americana
se assemelham.
Nos Estados Unidos, as séries sobrepõem-se rapidamente às antologias
,-m finais dos anos 1950. Em França, os anos 1960 assistem à introdução de
verdadeiros folhetins, como Le Temps des copains; no entanto, nunca foram
dados meios aos produtores que lhes permitissem rivalizar, por exemplo, com
as séries inglesas Coronation Street ou Crossroads, que estrearam em 1960 e
1964. Nenhuma tentativa é feita para concorrer com as séries britânicas de
aventuras, como Danger Man (1960-1968) ou Os Vingadores (The Avengers,
1961-1969), transmitidas de forma errática nos ecrãs (a noção de temporada
só foi assimilada há uma década), mas com grande sucesso. As séries são até
mais ou menos colocadas no índex em inícios dos anos 1980, por causa do
«escândalo ideológico» provocado pela série Dallas - um escândalo muito
revelador das nossas ignorâncias. Dallas é considerado exemplar da produção
americana, enquanto se desconhece o grande número de séries «liberais»
produzidas nesta época, como I Spy, cujo protagonista é negro, Uma Família
às Direitas (Ali in the Family), que escarnece com virulência das opiniões
de direita (Gomery, 2008: p. 215-260), ou M*A*S*H, apresentada de forma
parcial numa versão francesa que, graças a uma tradução cautelosa, atenua a
carga antimilitarista que a série contém
Quando a França começa a produzir séries, os seus produtores sofrem de duas
grandes desvantagens relativamente à produção americana. Em primeiro lugar,
a falta de meios, uma vez que o género é considerado menor no interior de um
media também considerado subalterno. A pobreza financeira da produção tem
um efeito direto no número de episódios produzidos: a quantidade necessária
para fidelizar o público nunca é atingida. Torna-se assim impossível rivalizar
com as séries anglo-saxónicas. Além disso, o sistema de produção leva a confiar
a escrita de todos os episódios a um só autor, que, sozinho, não pode construir
as variações indispensáveis ao bom funcionamento da série: uma série não é
um filme. Um contraexemplo feliz e recente deste ponto de vista é o da série
Plus bel/e la vie, que conseguiu fidelizar um público em torno de um projeto
bastante claro ao utilizar de forma eficaz as melhores receitas da soap-opera.

10
INTRODUÇÃO

Por outro lado, a consciência mais ou menos vaga do dever cultural


impregna todos os episódios de Navarro (que estreia em 1989). A produção
francesa permanece literalmente marcada por palavras de ordem provenientes
de uma intelligentsiaque continua a pensar que deve guiar as escolhas do
grande público. Mas a pedagogia raramente se dá bem com a ficção. Desde
Thierryla Fronde (1963-1966) até Les Brigadesdu Tigre(1974-1983) ou Marie
Pervenche (1984-1986), a produção francesa sofre dos mesmos problemas,
embora Maguy (1985-1993), no género cómico, e O ComissárioMaigret (Les
Enquêtesdu CommissaireMaigret, desde 1967), no género policial, constituam
exceções brilhantes.
Nos anos 1990, as séries americanas libertam-se dos últimos jugos que
pesavam sobre elas e propõem uma sequência de obras-primas. Os franceses
tentarão imitar os produtos americanos: por exemplo, La Crim', que utiliza
as receitas de A Balada de Nova Iorque, mas apresenta um esquema narrativo
rotineiro. Devemos também saudar individualidades como Pierre Grim-
blat ou Hugues Pagan, que, numa ou noutra época, tentaram impulsionar
uma verdadeira produção. Atualmente, existe esperança: Clara Sheller, Les
Enquêtes de Nicolas Le Floch, Engrenages,em géneros diferentes, seguiram
recentemente caminhos mais ambiciosos, mantendo-se dentro de tradições
narrativas nacionais.
Contudo, temos de reconhecer que a exploração americana do campo das
séries continua a ser incomparável. Ao longo do tempo, manteve-se ambiciosa e
plena de ensinamentos. Tanto no plano dos modelos de produção, da invenção
narrativa e genérica, da consciência de questões culturais, políticas, feministas,
económicas e sociais, como no da exploração de territórios ficcionais inédi-
tos, as séries televisivas americanas continuam à frente das outras produções
nacionais, que, em muitos casos, as copiam. É por isso que-retiraremos delas
a maioria dos nossos exemplos ...
Para a organização deste trabalho, vários métodos eram possíveis. Proceder
por produção nacional não era conveniente, pelas razões já avançadas. Uma
descrição por géneros seria também uma possibilidade, que foi frequentemente
experimentada pelos analistas. Mas uma classificação é, por um lado, difícil de
estabelecer por causa do grande número de pontos de passagem e, por outro,
não pode pretender à estabilidade, uma vez que o equilíbrio e até a definição
dos géneros mudam constantemente em função dos modos de produção. Seria
possível uma apresentação cronológica (a que se mantém fiel Alain Carrazé),
se quiséssemos, por exemplo, fiar-nos na temporalidade americana: o tempo
dos pioneiros (1951-1960) antes da época do domínio dos «Bigthree»(NBC,
CBS, ABC, 1960-1980); em seguida, o período da segunda idade de ouro,
de acordo com Robert Thompson (1996), em que se assiste à ascensão das
cadeias por cabo e que obriga a algumas transformações globais da produção
(1980-1992); por fim, a entrada da Fox e, sobretudo, o desenvolvimento dos
canais HBO e Showtime, que revolucionaram a paisagem televisiva e estimu-
laram a inovação e a criatividade (de 1992 aos nossos dias). Mas este plano
teria conduzido a uma história da televisão americana, que não é o objetivo

11
AS SÉRIES TELEVISIVAS

desta obra. Assim, optámos por uma divisão em perspetivas complementares.


Com efeito, podemos ver as séries munidos de óculos diferentes: cada parte do
livro corresponde a um ponto de vista possível sobre o tema e a um método
de o abordar.
Uma vez não são vezes, e começaremos por abordar os problemas da
difusão televisiva e do público; a adequação das séries aos modos de difusão
televisivos revelar-se-á um traço decisivo do desenvolvimento dessas séries.
Prosseguiremos com o estudo da produção, os seus princípios genéricos
e os seus modelos.
Em seguida, situaremos o formato no interior do grande movimento da
narrativa popular e dos seus géneros essenciais, cuja origem se encontra no
século XIX.
Uma vez estabelecidas as suas relações com os públicos e as suas situações
industriais e culturais, poderemos especificar as características particulares
da arte delicada das séries televisivas.
Por último, veremos que as séries nunca abandonaram a ambição de
descrever a nossa realidade contemporânea (à exceção das séries francesas?).
Deste modo, poderemos analisar o problema de forma profunda e através de
pertinências distintas. Esta análise geral será ilustrada por múltiplos exemplos,
examinados segundo perspetivas específicas: selecionaremos nesta ou naquela
série alguns elementos ou aspetos capazes de representarem a nossa tese, sem
nunca termos a pretensão de um exame monográfico de alguma delas. Insis­
tiremos nas qualidades narrativas e estilísticas das séries: em muitos casos,
do poder de atração junto dos públicos que elas representam, sublinham-se
apenas a sua facilidade de utilização e de consumo. Mas descuram-se com
frequência as suas contínuas inovações ou as utilizações renovadas de antigos
processos frequentemente cinematográficos, nomeadamente no domínio
narrativo. Sublinhá-las levará, talvez, os especialistas do cinema e da ficção
em geral a interessarem-se um pouco mais pelas séries.
Que esperar desta abordagem multidirecional? As séries surgirão sucessi­
vamente em diferentes etapas da sua existência, sob focos distintos, capazes,
como pensamos, de recompor uma imagem global do tema. Qualquer série
depende das suas condições de difusão e da história particular da sua produ­
ção; inscreve-se também numa relação significativa com a história dos grandes
géneros narrativos, é o objeto de uma construção original frequentemente
inventiva, introduz uma relação singular com a realidade, suscita interpreta­
ções plurais pelos seus diferentes públicos. Seriam necessários vários estudos
monográficos para especificar cada uma destas dimensões. Uma série poderá
servir de exemplo no capítulo sobre a produção e depois, noutro capítulo,
por causa das suas qualidades estilísticas; outra aparecerá apenas no capítulo
dedicado à narrativa serial.
Por exemplo, analisaremos como 24 exacerba os princípios narrativos do
folhetim, ao jogar com o tempo real da série; observaremos também como a
protagonista de 1he Closer, série produzida por James Duff para a TNT desde
2005, enfrenta o problema do estatuto de uma mulher dirigente numa empresa

12
INTRODUÇÃO

masculina. Estas duas séries têm, evidentemente, outras características que


não especificaremos aqui. Há muitos outros temas que não serão tratados,
como, por exemplo, as lutas de difusão entre redes, constantes nos Estados
Unidos e mais recentes em França; é o caso do combate travado pela France
2 e a TFI por ocasião da sua difusão respetiva, ao domingo, das séries Sem
Rasto e CSJ. Os temas relacionados com as séries são numerosos e todos eles
constituiriam excelentes matérias de sociologia da cultura ou de história das
formas de representação.
Se, como escreve John Dewey (2005: p. 110), a função das obras de arte
consiste em propor às comunidades sociais experiências através das quais
revivam de forma renovada as suas práticas quotidianas mais problemáticas,
e se, como o mesmo autor insiste (p. 149), o meio essencial utilizado para esse
fim pelos artistas é a busca de um dinamismo formal perfeitamente adaptado
a uma matéria específica, as séries televisivas criaram, sem qualquer dúvida,
um novo registo da arte. Este afirmou-se ao utilizar rapidamente instrumentos
originais, mas afirmando sempre as suas relações com, por um lado, a imensa
herança da ficção popular e, por outro, com as dificuldades da vida contem­
porânea. Nesta perspetiva, parece que a arte das séries televisivas segue um
caminho inverso do utilizado pelas artes clássicas, que parecem querer romper
com o nosso quotidiano demasiado banal. É tempo de deixar de ignorar a
importância que o género adquiriu para numerosos públicos e de construir
um aparelho metodológico que a possa avaliar.

13
Primeira Parte

Difusão televisiva,
séries e públicos
• A série, género dominante da televisão

• A cumplicidade entre públicos e séries


Capítulo 1

A série, género dominante


da televisão

1. A instalação da televisão nos lares


Faltam estudos sobre os inícios da televisão em França, pelo menos quanto
às reações do público: não se sabe exatamente quem via televisão, em que
locais se colocava o recetor, quais as reações dos primeiros telespetadores,
como situavam o novo media relativamente ao cinema ou à rádio, por exemplo.
No entanto, esta história dos inícios da difusão televisiva, particularmente
a das hesitações a que deu lugar, é crucial para se compreender a emergência
e, depois, o desenvolvimento do género serial na televisão. Por isso, anali­
saremos a história amer.icana, muito melhor documentada e extremamente
interessante (é verdade que a história britânica foi também objeto de estudos
apaixonantes, como a obra Do Not Adjust Your Set, de Kate Dunn, publicada
em 2003). Como está cheia de peripécias, é muito instrutiva e permite apre­
ciar mais facilmente aquilo que sabemos da história francesa. Além disso, as
séries nasceram nesse contexto social e económico: conhecê-lo é uma etapa
fundamental do nosso trabalho.
A televisão americana só se desenvolve realmente nos anos do pós-guerra.
Ainda em 1941, David Sarnoff, presidente da RCA, o principal fabricante
de televisores, prevê que a deslocação do habitat do centro da cidade para os
arredores será acompanhada por um gosto pronunciado pelos divertimentos
no domicílio oferecidos pela televisão (Boddy, 1998: p. 28); no entanto, a sua
previsão será confirmada a partir dos anos 1950. Com efeito, como conta Anna
McCarthy (2000), a difusão televisiva conhece os seus primeiros êxitos nos
bares e tabernas dos centros urbanos. Os clientes frequentes reúnem-se para
assistirem, em especial,. às transmissões desportivas. O público é essencialmente
masculino, mas de várias origens sociais. O bar e o seu televisor desempe­
nham o papel de uma sala de espetáculo, onde a assistência pode comportar­
-se quase da mesma maneira que o público nas bancadas do estádio. Assim,
numa primeira fase, a receção da televisão desenrola-se no espaço público e
não no espaço privado, em conformidade, aliás, com hábitos formados no
início do século, que levam pequenas comunidades a encontrarem-se após o
trabalho nesse género de locais de lazer e descontração. Se a receção pública

17
AS SÉRIES TELEVISIVAS

da televisão tivesse continuado a dominar, não há dúvida de que a série não se


teria adaptado tão bem aos desejos e necessidades do público. Nesta época, a
difusão da televisão é ainda limitada: em 1947, foram vendidos apenas 60 000
televisores, a maioria deles em Nova Iorque.
O início dos anos 1950 marca uma inversão de tendência espetacular. As
vendas de televisores explodem, ao onto de, em 1955, a televisão estar instalada
p
em dois terços dos lares americanos, ou seja, 36 milhões de recetores; recorde­
-se que, na mesma época, havia ap enas cinco milhões de televisores em toda
a Europa. É muito fácil relacionar este gosto imoderado com a edificação de
aglomerados habitacionais na periferia das grandes cidades, onde se refugiam
aspirantes a classes médias, mesmo quando têm de habitar provisoriamente
em casas prefabricadas ou em autocaravanas: David Sarnoff tem finalmente
razão. Em 1949, a revista Business Week observa que a televisão se tornou o
espetáculo dos pobres (Boddy, 1998: p
. 27): é verdade que se trata ap enas de
Nova Iorque, mas muito em breve esta conclusão estende-se a todo o país.
Observemos também que, em França, a venda de televisores aumentará dez
anos depois, nos anos 1960, quando a p
olítica de construção imobiliária der
os seus frutos.
Nesta época, portanto, o recetor de televisão substitui a rádio na sala de
estar (Gomery, 2008: p. 108-141), alterando toda a disposição da casa, como
veremos. A organização da difusão segue, de resto, a já instalada p
ela rádio.
As grandes redes radiofónicas - NBC, CBS e ABC - tornam-se os grandes
distribuidores de programas de televisão. Estes são retomados pelas estações
locais afiliadas, que, em 1950, são cerca de uma centena. Este «chapéu duplo»
das grandes redes irá gerar indecisões (Spigel, 1992, pp. 77-78): por exemplo,
em inícios dos anos 1950, hesita-se em transformar soap-operas radiofónicas
em séries televisivas; e será também necessário esperar por 1951 para que as
redes se lancem na produção de programas destinados a preencher as tardes,
até então deixadas à descrição das cadeias locais.
Na sua obra Make Roomfor TV(1992), Lynn Spigel oferece uma descrição
notável da revolução que constituiu a instalação da televisão nos lares ame­
ricanos durante a década de 1950: através da leitura das revistas da época,
verifica que o recetor se torna um dos eixos da vida familiar, o que implica
algumas mudanças. Por exemp lo, o local do televisor coloca um problema
(pp. 89-90, 101): frequentemente confinadas à cozinha, as mulheres estão
afastadas do televisor situado na sala de estar, e procuram-se soluções que
lhes permitam seguir todos os programas. O resultado foi aquilo a que hoje
se chama as cozinhas «americanas». As revistas interrogam-se também sobre
as relações no seio do casal: embora seja verdade que o marido fica em casa,
longe dos lugares de perdição urbanos, retido pelos programas de televisão,
particularmente desp ortivos, não haverá o risco de estes o impedirem de
participar eficazm�nte na vida familiar e até de cumprir o dever conjugal
(pp. 88, 96)? Uma questão recorrente diz respeito às crianças: os pais ficam
contentes com o facto de as filhas, principalmente, passarem mais tempo l
na sala graças à televisão, mas teme-se a imoralidade dos programas, tanto
-1
_/

18 ,1
1. A SÉRIE, GÊNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

mais que se verifica que são sobretudo os programas para adultos que atraem
a juventude.
Estas diferentes problemáticas que agitam o campo mediático americano
demonstram como a televisão está agora associada à família e, mais ainda,
..
à vida doméstica. E evidente que a indústria dos programas está totalmente
consciente desse facto. Rapidamente, começa a dirigir-se sobretudo às donas
de casa, símbolos incontestáveis do lar, ao ponto de a imprensa se agitar:
surgem críticas às representações emascu1adas dos homens nas primeiras fic­
ções, daí resultando uma telefobia inevitavelmente misógina (pp. 62-65). É
verdade que os anunciantes se dirigem sobretudo às mulheres para venderem
eletrodomésticos e... televisores.
Quanto aos programas, inscrevem-se naturalmente na principal tradição
do entretenimento americano, o espetáculo de vaudeville nascido em finais
do século XIX. Note-se que aquilo a que os Americanos chamam «vaudeville»
é um espetáculo composto de sequências curtas e variadas: ao malabarista
sucede um cantor, depois vêm domesticadores de animais ou cómicos (Portes:
pp. 82-83). Para muitos historiadores (por exemplo, Snyder, 1989), este tipo de
espetáculo marca a entrada dos americanos na era da cultura popular moderna.
Evidentemente, é adaptado ao novo meio de comunicação e, sobretudo, à sua
localização familiar: «Ao misturarem as tradições do entretenimento vivo
com narrações a propósito de sensatas famílias americanas» (Spigel: p. 151),
as grandes redes encontram uma primeira solução para reunirem as famílias
frente ao pequeno ecrã. O Texaco Star Theatre, animado por Milton Berle,
já um clássico da programação radiofónica da NBC, passa na televisão com
tal sucesso que muitos restaurantes resolvem encerrar durante o programa: as
«macaquices» do ator, associadas aos números apresentados pelos convidados
e inseridos numa narrativa muito indolente, fazem deste programa a primeira
vedeta da televisão.
No entanto, rapidamente os críticos exigem uma maior continuidade
narrativa. Assim, as comédias familiares esquecem as suas origens do espe­
táculo de variedades: procura-se um novo equilíbrio narrativo que privilegie
as articulações da história. As novas vedetas são famílias televisivas, como
os Ruggles, sem dúvida uma das primeiras sitcoms (a série estreia em 1949).
Esta série desenrola-se quase totalmente na sala· de estar familiar, imitando
assim a situação dos telespetadores: as aventuras da família Ruggles erani
semelhantes às dificuldades vividas pelo seu público. Assim, desde inícios dos
anos 1950, a televisão americana abre caminho a uma maior narrativização
dos seus programas de entretenimento, de que a passagem de testemunho do
palhaço Milton Berle para o humorista Charlie Ruggles é um símbolo reve­
lador. Os vestígios do espetáculo de variedades, ainda presentes nas sitcoms,
por exemplo através da interpelação direta dos telespetadores (Spigel, p. 159),
desaparecem de um género que nasce por volta de 1951: os dramas produzidos
no interior de antologias por um patrocinador específico constituem outro
índice da procura de narrativa pelos públicos. São o equivalente da nossa era
dos «dramas», estudada por Gilles Delavaud (2005): filmados em direto, são

19
AS SÉRIES TELEVISIVAS

concebidos com cuidado por escritores reconhecidos, como Paddy Chayefski


ou Reginald Rose (Stempel, 1996). Acarinhados pelos críticos dos grande s
l
jornais e propondo geralmente temáticas sociais e políticas ambiciosas, os his­
toriadores chamam-lhe a «primeira era de ouro da televisão». Contudo, obtêm
um êxito relativo face às comédias familiares, de inspiração mais popular e
festiva, igualmente mais conviviais.
O conceito de série ainda não se impôs, apesar de I Love Lucy e Dragnet
demonstrarem, desde 1952, a eficácia de um género já não decalcado do teatro
ou da rádio, mas que utiliza modos cinematográficos de produção. Milton
Berle ou a equipa de The Ruggles trabalham numa corda muiro esticada: estes
programas quotidianos são transmitidos em direto, escritos diariamente, à
mercê do mais pequeno incidente. Além disso, são esgotantes para toda a
produção: esta tradução imediata do modelo radiofónico, com tecnologia
menos exigente, não era sustentável a longo prazo. Assim, é dirigindo-se para
outro modelos que a produção televisiva encontra um equilíbrio satisfatório
tanto para a indústria como para o público. A sua constituição arriscada
é testemunha das incertezas da época. Em 1950, a CBS quer que um dos
seus êxitos radiofónicos, My Favorite Husband, interpretado pela sua vedeta
Lucille Bali, igualmente habituada aos estúdios cinematográficos, se torne
uma sitcom televisiva rodada em Nova Iorque. No entanto, Lucille Bali,
casada com o ator Desi Arnaz, não quer deixar Hollywood. O casal propõe
então à CBS que produza aquilo que viria a ser I Love Lucy num estúdio
californiano. Para reduzirem a duração das rodagens, têm a ideia de filmar
simultaneamente com várias câmaras, dirigidas pelo antigo operador de
Fritz Lang, Karl Freund, e na presença de um público, a fim de se obter o
ambiente das filmagens ao vivo. O resultado é depois montado e enviado para
Nova Iorque (Marc & Thompson, 1992: pp. 27-29). I Love Lucy constitui,
portanto, a primeira sitcom filmada da história da televisão. Beneficia de
argumentos que destacam a fantasia dos atores, apresentando uma Lucille
Bal despojada dos seus atrativos mais sedutores, a fim de não chocar a sala
de estar familiar: a televisão não é o cinema (Spigel, 1992: p. 153). A série
I Love Lucy cria um acontecimento quando o produtor Jess Oppenheimer
decide fazer da gravidez de Lucille Ball um acontecimento da ficção. No
momento exato em que a família Arnaz-Ball ganha mais um membro, a sua
família ficcional Ricardo imita-a (Stempel, 1996: p. 31).
Dragnet apresenta outra faceta dos hábitos hollywoodescos. O seu cria dor,
Jack Webb, é ator e escritor, autor na rádio de numerosos «crime shows» ins­
pirados nos filmes negros nascidos com a guerra e rodados pela Warner Bros
ou pela Universal, dos quais é intérprete regular. A escrita de Jack Webb é
apreciada pelo seu realismo: conheceu grande sucesso radiofónico com os seus
dramas, cujos protagonistas são «hardboiled detectives». D ragn et, outra série
radiofónica, é inspirada em diários de bordo da polícia de Los Angeles. Webb
convence a NBC a transpor a série para a televisão, ·utilizando os modos de
produção e as equipas do cinema de série B. O êxito é imediato, o que prova
que o filme de baixo orçamento pode servir de modelo à produção televisiva

_J
20
1. A SÉRIE, GÉNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

de séries, tanto no plano da narrativa como da realização (Marc & Thompson,


1992: PP· 131-136). Dragnet constituirá um exemplo a seguir pelas séries de
aventuras: fórmula narrativa precisa, ritmo idêntico em todos os episódios,
constituição de personagens recorrentes. Está tudo lá, com uma exceção: Webb
é o autor total de Dragnet, escritor, produtor e personagem principal - uma
. ·
forma de trabalhar que não se perpetuará.

2. Vida familiar e televisão


Tanto I Love Lucy como Dragnet obtêm tal sucesso que se tornam referências
para a produção televisiva, não só para os seus géneros respetivos, a sitcom e
o policial, mas também para toda a produção de ficção americana. Por que
razão este tipo de produções - que podem dar lugar a encontros regulares,
programdveis tanto pelas redes como pelos telespetadores, rodados em condições
que lhes asseguram uma qualidade constante - se impôs como um verdadeiro
modelo? Para abordarmos esta questão, temos de analisar as condições de vida
familiar, criadora de rotinas e hábitos necessários à vida coletiva.
Muitos autores viram a vida familiar, a vida de casa, como o núcleo de
um paradoxo. Numa primeira perspetiva, a casa é o refúgio dos constrangi­
mentos e das obrigações da vida pública, da sua ordem imposta, contra a qual
se pode resistir, mas à qual temos globalmente de nos submeter. Abrigados
nas paredes de casa, podemos, pelo contrário, dar livre curso aos anseios de
desordem espacial e temporal. É neste aspeto que insiste Jean-Paul Filiod
(2003), no seu artigo «Que confusão é esta?». No entanto, o autor insiste
também nos limites à liberdade de cada um impostos pela vida familiar. É
necessário que todos os habitantes da casa cheguem a um compromisso que
permita justapor o conjunto das desordens pessoais sem pôr em perigo a vida
coletiva. Do mesmo modo, Jean-Hugues Pécheux (1999) mostra que cada
membro da família é portador de dois ideais diferentes quanto à liberdade:
por um lado, a do grupo e, por outro, a sua própria. Numa obra já clássica,
François de Singly (2005) sublinha como a família contemporânea se tornou
medida e instrumento do desenvolvimento pessoal: como se o assentimento
dado a um conjunto de normas coletivas garantisse o apoio do grupo familiar
na autorrealização.
Assim, a vida doméstica não é apenas retiro ou asilo: é também constru­
ção. Necessita, portanto, de regularidades, escolhidas e elaboradas no seio da
família. Como escreve Perla Serfaty-Gazon (2005, p. 103): <<a casa é o lugar
de muitos rituais» que marcam os tempos fortes da vida familiar, momentos
de reencontros, refeições ou lazeres familiares. A ritualidade privada, na
medida em que é a expressão da face coletiva da família, e na medida em
que cada um pode participar na sua elaboração e nela encontrar o seu lugar
particular, constitui uma parte decisiva da vida no lar. Atinge muitas vezes
as ações mais ínfimas da vida coletiva: a disposição da mesa familiar, do
sofá, das tarefas domésticas ou das formas admitidas de conversação são

21
AS SÉRIES TELEVISIVAS

objeto de rituais particulares; até o amor se esconde em pequenas cerimónias


quase anódinas.
Os estudos sobre os comportamentos dos telespetadores (por exemplo,
Donnat, 1998: pp. 115-150) confirmam a inscrição da televisão no dispositivo
ritual geral. Provam que o pequeno ecrã se instalou progressivamente nas
nossas vidas íntimas e nos nossos hábitos, a ponto de as formas infinitamente
variadas do consumo televisivo serem intensamente marcadas por liturgias
privadas ou cerimónias domésticas. Do mesmo modo, é claro que a televisão
é pouco vista ao acaso. Cada um constrói os seus encontros, que repartem as
horas de escuta entre cada um dos membros do grupo fami liar e respeitam 0
conjunto dos hábitos - rituais - da família. Quando chega a hora de ligar a
televisão, cada qual senta-se no sofá no seu lugar habitual, enquanto a posse do
telecomando é sempre confiada à mesma pessoa. É verdade que esta atribuição
pode mudar em função da hora ou do dia. Em muitos casos, existe até uma
espécie de regulamento quanto à posse do telecomando: em função da hora
e também do dia, «admite-se» que um ou outro disponha do telecomando.
A instalação frente ao televisor é, portanto, objeto de hábitos solidamente
enraizados nos espíritos familiares.
Talvez seja arriscado estender as análises realizadas, nos anos 1970, por
sociólogos britânicos sobre as «subculturas» à descrição da vida familiar.
No entanto, algumas analogias são desconcertantes: não se poderia ver a
organização da vida familiar como uma maneira de construir uma rede de
valores e de modos de vida que a protege dos constrangimentos externos,
da mesma maneira que Stuart Hall (1976: p. 41) observa as subculturas
construídas pelas classes dominadas? A família apropria-se dos programas
tornando-os elementos do seu modo de vida; e os programas, transforma­
dos ou digeridos pela «subcultura» familiar, acabam por representar a sua
situação, as suas aspirações ou reivindicações. Como veremos, as séries são
excelentes candidatos a desempenharem um papel importante neste quadro
familiar e cultural.
As redes sociais nascidas no seio de outras comunidades podem contribuir
para dar força e vigor a essas representações, como mostrou Dominique Boullier
(2003) a propósito das discussões no refeitório. Além disso, as conversas de
colégio relatadas por Dominique Pasquier (1999) ou as discussões entre fãs
mais velhos descritas por Henry Jenkins (1992) a propósito de séries, permitem
que objetos vistos em espaços privados participem mais largamente na vida
dos públicos. Alguns tornam-se até capazes de contribuir para os estilos que
certas comunidades de públicos dão ao seu modo de vida (Hebdige, 2008):
podem ser exibidas como emblemas distintivos por coletivos particulares. Se
Buffy, a caçadora de vampiros, constitui uma personagem tão importante
para muitas jovens americanas de origens diversas, não será porque representa
uma «solução», evidentemente imaginária ou fantástica, de problemas reais
que resultam das relações com os homens? Segundo Stuart Hall (pp. 47-48),
o papel dos estilos de vida criados pelas minorias sociais é tornar públicas as
contradições em cujo interior o espaço público as queria encerrar.

22
1. A SÉRIE, GÉNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

3. Grelhas de programas e encontros televisivos


Podemos agora compreender por que razão a série se tornou um género
tão importante na produção televisiva, mas também no género mais vasto
da narrativa popular. Antes de pormenorizarmos a adaptação perfeita do
género à produção e à difusão televisivas, devemos insistir no facto de este
percurso não ter sido fácil. Durante muito tempo, a série foi amaldiçoada e
desprezada, particularmente em França. Mas, mesmo nos Estados Unidos,
começou por ser recebida pelos intervenientes da área cultural com alguma
condescendência. Sobre isto, há uma história famosa: em 1961, quando o
género serial se impóe como dominante, Newton Minow, que fora nomeado
pelo presidente Kennedy responsável pelo organismo de regulação da televisão,
fala da programação televisiva como uma «vast wasteland». Esta opinião não
é isolada: por exemplo, um dos «heróis» da era de ouro dos anos 1950, Paddy
Chayefsky, proclama a quem o quer ouvir, no início da década seguinte, que a
televisão deixou de ser criativa (Marc & Thompson, 1992: p. 125). É verdade
que não basta ser escritor para controlar a criação televisiva; outra organização
e outros ofícios se instalaram, que Chayevsky compreende mal e que não lhe
convêm. A nossa nostalgia pela era dos grandes dramas ainda não desapareceu,
como demonstra a obra de Jacques Ledos, publicada em 2007, L:Â.ge d'or de
la télévision 1945-1975, onde o autor lamenta o desaparecimento da televisão
«cultural» dos artesãos dos primeiros tempos.
O espetáculo cinematográfico começou por ser concebido a partir daquilo a
que chamamos music-hall. Vários filmes, de tipos diferentes, eram apresentados
separados por um intervalo. O cinema representava um entretenimento para
um público barulhento, descontraído e familiar. As salas de bairro, sobretudo,
mas também as grandes salas exclusivas, um pouco mais silenciosas, seguem
mais ou menos este modelo perfeitamente adaptado ao público da época. A
produção dos filmes era também concebida para se ajustar a esta forma de
difusão. Chegou então a política dos autores e a ideia de que se ia ao cinema
para ver um filme especial elaborado e realizado por um artista de cinema.
Esta conceção transformou as maneiras de ir ao cinema: a sessão reduziu-se,
literalmente dedicada àquilo a que se chamava o «grande filme». Uma parte
considerável da produção desapareceu, como as atualidades, ou converteu-se:
o desenho animado do início da sessão também desapareceu, até a indústria
de animação renascer com o folhetim televisivo; quanto ao documentário,
torna-se reportagem ou «tema» na televisão.
Tal como o cinema, a televisão teve de se adaptar aos hábitos dos seus
públicos. A situação da receção televisiva incitou os difusores a porem em
prática políticas de programação capazes de inserir o espetáculo televisivo
no interior da vida familiar. Além disso, procuraram conciliar as rotinas e os
ritos familiares com a difusão dos programas, oferecendo encontros pontuais
e precisos aos telespetadores. A sua regularidade permitiu a elaboração de
uma mediada eficaz: a competência da telespetaleitura não mais deixou de
se aperfeiçoar.

23
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Os programas que facilitam a planificação da difusão formam o quotidiano


da televisão. Constituem o seu esqueleto essencial e, entre eles, figuram as
séries televisivas. Não há dúvida de que a televisão necessita de acontecimentos
exceciona is fornecidos pelo desporto, pela política e pela atualidade, e não
hesita em dramatizar alguns programas para os apresentar como ocasiões
singulares. Assim, o próximo jogo é, inevitavelmente, o jogo do século, a pró­
xima reportagem é uma reportagem excecional ou exclusiva, etc. No entanto,
mesmo quando conseguem captar o único ou o excecional, transformam-no
imediatamente em imagens ritualizadas. Pensemos, por exemplo, nas imagens
das torres do World Trade Center atingidas pelos dois aviões, passadas depois
infinitamente nos nossos ecrás. Esta excecionalidade contém em si mesma
os seus limites: a regularidade é necessária, sobretudo do ponto de vista das
famílias. É o que explica que as cadeias não parem de construir cadências gra­
ças a emissões regulares, formatos inalterados e apresentadores recorrentes. A
grelha de programas é disso uma manifestação exemplar: c:onstitui um sistema
complexo de propostas de encontros regulares, promessas (Jost, 1999), capazes
de se inserirem no interior de outra forma de regularidade, nomeadamente o
conjunto dos ritos que organizam a vida dentro de casa.
Nesta perspetiva, o domínio da reatividade dos públicos face aos programas
parece representar um objetivo prioritário tanto das redes de difusão americanas
como das cadeias europeias. A apropriação regular de um programa televisivo
por um ou vários membros da família é necessária ao seu prolongamento. Esse
programa tem de encontrar o seu lugar no interior da ritualidade familiar.
Tem de se inserir no interior do quadrofamiliar da receção tel evisiva. Tal como
toda a vida social, essa é regular, mas sincopada, constituída por sucessões de
diferentes sequências, cada uma das quais obedece à sua própria lógica. É por
isso que o conceito de fluxo deve desaparecer de todas as formas de explicação
ou de reflexão a propósito da televisão. À exceção do facto de os fluxos de
eletrões atravessarem o recetor de televisão, não tem qualquer pertinência.
Não explica nem a produção nem a receção dos programas televisivos. O
termo foi inicialmente utilizado pelo importante sociólogo inglês Raymond
Williams (1975), quando, ao viajar pela primeira vez aos Estados Unidos,
permaneceu longas horas no seu quarto de hotel em frente ao televisor sem
chegar a perceber a ordem que organiza a programação. Recebe o movimento
de imagens sonoras como um fluxo ou um escoamento. Como Williams
reconhece, antes de generalizar imprudentemente a sua experiência, trata-se
da visão de um telespetador inexperiente e até incompetente. Poderíamos
comparar a sua atitude à de um leitor de Ulisses de Joyce que nada conhecesse
das evoluções da literatura ou à de um espetador dos «drippings» de Pollock
que ignorasse a história da pintura após 1900. Esta interpretação do desfile
de imagens vinda de um principiante conduziu a muitos desprezos e ceguei­
ras; falou-se assim da televisão esquecendo a diversidade dos programas. A
noção de fluxo pareceu cómoda e de uso fácil a investigadores que tinham,
tal como toda a sua classe social de origem, muito pouca simpatia por um
media bastante popular.

24 l

j
1

1
.....,.,
-----------------·-

1. A SÉRIE, GÉNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

Desde há pelo menos cerca de 15 anos que a literatura académica anglo­


-saxónica criticou largamente um conceito perfeitamente desajustado ao
seu objetivo. De forma a contribuirmos para encerrar a história da sua
utilização, recordemos a crítica que dele propôs a historiadora do cinema e
da televisão Kristin Thompson (2003: pp. 5-16). Esta historiadora mostra
que tudo aquilo que sabemos dos modos de telespetaleitura, quer se trate
de estudos etnológicos ou de medições de audiência, revela que o contexto
da receção televisiva é descontínuo: o espetador escolhe incessantemente e,
ao escolher, produz cortes na programação. Prefere ver um programa ou
passar para outro através de zapping, deixar de ver televisão para se dedi­
car a outra atividade. Por outro lado, esses mesmos estudos confirmam
que a interrupção de um programa (de uma série) por outro (uma pausa
publicitária) não prejudica de modo algum a compreensão do primeiro,
sobretudo se o segundo programa nada tiver a ver com aquele que ele fra­
ciona (também não podemos dizer que responder a uma pergunta colocada
por um familiar faz esquecer o romance que se está a ler). De resto, desde
o seu início que a literatura popular habituou os seus públicos aos ritmos
sincopados: os primeiros romances apareciam em folhetins na imprensa
popular, mas apareciam sempre na mesma página e na mesma coluna.
Poderíamos eventualmente dizer, conclui Kristin Thompson, que a noção
de fluxo se aplica, quando muito, ao desejo do difusor: este sonharia com
um telespetador preso frente ao seu recetor e privado de telecomando. Mas
também não é o caso: os responsáveis das cadeias são realistas e sabem que
têm de produzir programas para preencher expectativas diferentes. Em
_suma: oriundo de um quadro técnico, o conceito de fluxo não tem qualquer
aplicação ao domínio da televisão.
Podemos regressar à realidade da ritualidade da vida familiar e à neces­
sária adaptação da programação televisiva. A sua resposta primordial é,
desde as origens, a proposta de programas diversos concebidos como um
conjunto de encontros diferentes, mas regulares e pontuais. A «grelha de
programas», anunciada e publicitada, não só pela imprensa, mas também
representada no interior da difusão, é o quadro de apresentação da produção
televisiva suscetível de satisfazer a condição ritual da receção. Implica um
sistema de períodos horários memorizáveis que orientam a telespetalei­
tura. Permite construir hábitos recetivos, conjugar de forma satisfatória
os ritmos dos programas e a vida familiar dos telespetadores. Como todo
o telespetador rapidamente percebe, induz um conjunto de interrupções
promocionais ou publicitárias: estas interrupções são o preço a pagar por
todos os media «gratuitos». O funcionamento geral da grelha de programas
assegura, portanto, uma comunicação fácil entre difusores e públicos:
graças aos anúncios, os primeiros podem manter as suas promessas e os
segundos podem acomo dá-las aos seus gostos e aos seus modos de vida.
Entre elas, a mais impor tante é a promessa de um prazer incessantemente
renovado e quase garantido: é neste ponto que encontramos as séries e a
sua definição televisiva.

25
AS SÉRIES TELEVISIVAS

4. A série, ou a adaptação da produção


à difusão
Continuemos a exploração da resposta dos programadores à exigência de
regularidade telespetadorial. A ·assiduidade dos públicos se conserva apenas
graças à grelha de programas e à sua comunicação por via da imprensa. No
interior dos programas, e até nos interprogramas (Esquenazi, 1998), os difuso­
res realizam um conjunto de gestos dirigidos ao telespetador, a que Goffman
(1974) talvez gostasse de chamar «atos rituais televisivos», que se destinam a
exibir a cumplicidade dos responsáveis televisivos em relação às ordens ritu­
ais familiares através da encenação de uma conivência quase obsessiva entre
difusão e públicos.
Programas como Le Vraijournal (Canal+, 1996-2006) ou Tout le monde
en parle (France 2, 1998-2006) foram até estruturados a partir de manifes­
tações desmedidas desse comportamento: piscares de olhos, tratamentos por
tu, frases obrigatórias (como «desconfiem dos ...» lançadas por Karl Zéro no
primeiro, os toques, jingles, tipos de entrevistas, etc., de Thierry Ardisson
no segundo formam um arsenal impressionante de atos de fala rituais que
parecem ter o objetivo de introduzir o telespetador no seio de «cerimónias»
construídas em redor de conivências frequentemente densas (Rouquette,
2001). Os jogos baseados em regras e provas constituem outro tipo de pro­
gramas que criam efeitos rituais (Leveneur, 2009). Os recentes programas
de telerrealidade, baseados em «passagens obrigatórias» desesperadamente
uniformes, são outro exemplo.
Se toda a televisão lúdica ou informativa parece possuída por uma mania
do gesto cerimonial, ou pelo menos cúmplice, consagrado à «ligação» entre
um programa, um apresentador e «o» público, o único género ficcional capaz
de manter a regularidade telespetadorial é a série. De facto, a série é conce­
bida para se inscrever na ritualidade recetiva: a sua programação obedece à
lei do regresso do mesmo, constituindo cada episódio uma promessa feita
aos telespetadores de obedecer exatamente e sem estados de alma a uma
fórmula narrativa sempre perfeitamente respeitada. Não vemos <<Chantagem
Mal Sucedida/Death Lends a Hand» ou « Tempo de EsperaiLady ín Waíting»
(episódios 2 e 5 da primeira temporada), mas um Columbo todas as semanas
à mesma hora. Não seguimos lhe Young and the Restless, mas reencontramos
personagens familiares, uma espécie particular de vizinhos, todos os dias no
mesmo sofá. Enq uanto género, a série corresponde exatamente às exigências
da programação televisiva; é o exemplo de uma programação ideal, como
foi, por exemplo, o romance de folhetim nos primeiros jornais populares do
século XIX (Angenot, 1975). Precisamente, a série responde de forma dupla à
exigência de regularidade: por um lado, pode ser pontualmente programada e
inscrever-se na grelha de programas de forma simples semana após semana -
adapta-se facilmente à ritualidade familiar; por outro, apresenta um programa
cujas regularidades são aparentes e explícitas: o telespetador reconhece-as
facilmente e pode reencontrar-se nelas sem qualquer dificuldade.

26
..
1. A SÉRIE, GÉNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

Evidentemente, a ideia de obras em série não é específica da televisão.


Para nos convencermos disso, basta pensarmos nos romances populares do
século XIX, que fornecem aventuras heroicas dia após dia nos primeiros jornais
modernos. A exploração pelos músicos do conceito do «tema e variações» é
a origem explícita de numerosas obras musicais: as explorações por Johann
Sebastian Bach ou por Ludwig van Beethoven de uma forma rematizada são­
-nos familiares. A série impôs-se também na pintura moderna, pois falamos
da «série» dos Reféns de Fautrier ou da «série» das Mulheres de De Kooning.
A série musical ou pictórica é uma coleção de obras cujo ponto comum é
definido de maneira essencialmente formal: por exemplo, as «Variações Dia­
belli» formam um conjunto de trechos inspirados na mesma valsa composta
por Anton Diabelli. Cada uma delas submete a «variações» um ou vários
componentes da valsa inicial. Do mesmo modo, as Mulheres de De Kooning
são uma série de figuras de mulheres simplificadas, mas vigorosas, que se
destacam de um fundo cada vez mais desordenado.
A série de obras ficcionais inscreve-se geralmente no interior de um género
literário, que o teórico da literatura popular John Cawelti (1977: p. 6) define
como «uma combinação ou uma síntese de certo número de convenções
culturais específicas e de uma forma ou de um modelo narrativo mais uni­
versal» (Cawelti prefere o termo «fórmula» a «género», mas reservamos a este
outra utilização). Um género, portanto, está associado a um tipo de modelo
narrativo utilizado no interior de um universo cultural característico. Deve­
mos acrescentar aqui um traço importante. Qualquer género está associado
a um método convencional de tratamento da narrativa; o western é narrado
na perspetiva da personagem genérica do pioneiro que não teme penetrar em
territórios desconhecidos, e a história policial é contada a partir do ponto de
vista do detetive.
Uma série de narrativas ficcionais é constituída a partir daquilo a que se
poderia chamar uma «escalada em particularidade» do género: os criadores da
série utilizam os constituintes de um género fixando-lhe certas características.
Por exemplo, o romancista John Connelly situa os seus romances policiais em
Los Angeles e faz do inspetor Harry Bosch o seu herói, sempre confrontado
com um criminoso sem escrúpulos e com colegas limitados. Proponho que
chamemos «fórmula» ao quadro estrito criado para uma série (Esquenazi,
2002). Tal como no caso das «Variações Diabelli» ou das Mulheres de De
Kooning, destacam-se alguns traços particulares que se encontram em todos
os episódios da série. Estes são tão formais quanto temáticos.
A serialidade televisiva parece mais rigorosa do que outras formas de seria­
lidade porque obrigações várias levaram os programadores a criarem fórmulas
de uma exatidão impressionante. Por exemplo, a duração de cada episódio deve
ser absolutamente constante; em muitos casos, nas séries destinadas a serem
cortadas pela publicidade, a cadência narrativa de cada episódio deve obedecer
a uma prescrição temporal categórica. O modo de produção audiovisual· que
desloca equipas extensas e frequentemente renovadas constitui outra obrigação
da serialidade televisiva: os cenários não podem ser alterados. Por último e, sem

27
AS StRIES TELEVIS
IVAS

dúvida, o traço mais · i. mport


. ante, e, necessário que cada serie
, . consiga
. msenr-s
. . e
rapidamente nas re '
· d ' ,.
gu 1 an·dades te1espetadoriais. Ao longo dos ep1so 10s, nao
se pode tolerar qu
alquer desvio relativamente à fórmula original da série: por
conseguinte, esta t
. em de apresentar um rigor total.
Este ngor é a origem
direta da criatividade serial. Qualquer produção
cult ral está obrigad
� a à inovação, como lembrou sem grande sucesso Edgar
Monn, em 1962, em Cult
ura de Massas no Século xx - O Espírito do Tempo: a
p ro�u�ão de s éries não foge à regra. Como mostra Marc Alvey (2000: P· 47),
os limites da convencional
idade serial foram incessantemente testados pela
indústria a fim de criar fórmulas seriais inovadoras a mistura genérica ou a
:
transferência de personagens de um género para outro são muito frequentes.
Segu ndo a justa expressão de Alvey, a exploração da «inovação convencional»
é uma constante da indústria americana. De modo que se pode afirmar sem
qualquer paradoxo que a criatividade inesgotável dos produtores de séries
resulta diretamente da reflexão sobre as convenções.
Será possível delimitar o domínio das séries de televisão? Em certos casos,
distinguiram-se dois domínios, o dos folhetins e o das séries propriamente
ditas (Benassi, 2002): por um lado, a atenção do telespetador é mantida por
uma história cuja próxima peripécia é apresentada no episódio seguinte; por
outro, é-lhe prometida uma nova história, mas inteiramente duplicada a par­
tir do modelo da anterior. No entanto, muitos folhetins {na verdade, quase
todos) comportam elementos seriais e nenhuma série está isenta de evoluções.
Hoje em dia, a maioria dos produtos segue uma dupla lógica de folhetim e de
repetição. De modo que se pensou também que qualquer produção televisiva
ficcional com episódios é uma série (Carrazé, 2007). Contudo, se a adapta­
ção de Claude Barma para a ORTF do romance de Alexandre Dumas, Le
Chevalier de Maison-Rouge, é feita para ser difundida em quatro episódios,
não visa conquistar um público regular ano após ano, ao contrário da série
Os Vingadores (The Avengers), apresentada na mesma altura.
Parece então que, apesar de tudo, podemos propor um critério para deli­
mitar aproximadamente o território serial. No seu estudo indispensável sobre
a soap-opera, Robert Allen (1985: p. 137) observa que o género se caracteriza
sobretudo pda resistência ao desfecho final: é uma espécie de folhetim que
oferece momentos de resolução narrativa parcial, mas que tem o cuidado de
deixar a porta aberta a novas peripécias. É aquilo a que Mary Ellen Brown
(1994: p. 60) chama «abertura» do género. O que vale para a folhetinesca
soap-opera vale também para outros tipos de série. Todas as séries devem velar
para manter a sua abertura, a sua capacidade de propor novas histórias: esta
necessidade traduz, ao nível da produção, o desejo de captar o público de uma
forma regular e potencialmente «infinita». As séries baseadas em histórias inde­
pendentes garantem, por exemplo, uma capacidade ilimitada de duplicação.
O inspetor Columbo pode continua r a investigar até à morte de Peter Falk ...
Quanto às séries cuja história se estende por vários episódios, adotam uma
dispersão narrativa que lhes permite conservarem algumas histórias «no fogo»:
uma conclusão local não significa um fim geral. Paradoxalmente, uma vez

28
1. A SÉRIE, GÉNERO DOMINANTE DA TELEVISÃO

lançada, uma série pode ter dificuldade para acabar. Recordemos o estratagema
de Alan Ball, que, para ter a certeza de que a sua série Sete Palmos de Terra (Six
Feet Under) acaba no fim da quinta temporada, realiza um episódio final que
apresenta a morte futura de cada uma das suas personagens. De uma forma
mais geral, as séries só acabam com o desinteresse do público, o que confirma
a dependência da produção televisiva relativamente às reações dos públicos.
Nesta perspetiva, aquilo a que os Americanos chamam miniseries, que
são ficções desenvolvidas e terminadas em poucos episódios, surgem como
produtos que se situam apenas no limite do universo das séries: o desfecho
anunciado, a unidade de uma história mesmo que contada em várias histórias
parecem incompatíveis com o projeto tanto cultural como económico das
séries televisivas.
Chegamos então a uma conclusão inevitável: nas circunstâncias que
rodearam o desenvolvimento do meio televisivo, era inevitável que a série se
tornasse um dos géneros favoritos do sistema. Adotada pelos telespetadores,
que nela encontram uma espécie de conforto e segurança nas suas vidas
quotidianas, foi também progressivamente acarinhada tanto pelas grandes
redes de difusão como pelas casas de produção, na medida em que o género
lhes assegura benefícios substanciais. Atraiu logicamente, como veremos nos
capítulos seguintes, personalidades ambiciosas que, a pouco e pouco, inven­
taram um novo ofício, o de «criador» de série. Este, que deve possuir grandes
competências culturais, de escrita, económicas e de gestão, afirmou-se com
fortes personalidades, como Rod Serling, Patrick McGoohan, Steven Bochco,
Dick Wolf, etc. Se estamos no caminho certo, se a importância atual das séries
resulta do lugar dos televisores na sala familiar, temos de encontrar provas
disso tanto no conteúdo como no pormenor dos modos de receção das séries.
É o que tentaremos verificar no capítulo seguinte.

29
Capítulo 2

A cumplicidade entre
públicos e séries

1. Estudos
O espetáculo televisivo afirmou-se então como um espetáculo doméstico: vai
procurar os seus públicos onde estes privilegiam comportamentos característicos
daquilo a que se chama vida privada. Na medida em que as séries constituem
o produto televisivo mais completo desta forma de difusão, a telespetaleitura
das séries devia ser influenciado por ela. Podemos pensar, por exemplo, que
as apreciações dos telespetadores serão geralmente mais afetivas do que o são
relativamente a outros produtos culturais ficcionais. As investigações sobre os
públicos de séries começam a ser muito numerosas, particularmente no mundo
anglo-saxónico, e iremos interessar-nos por algumas delas, que se tornaram
clássicos do estudo dos públicos de televisão: permitir-nos-ão aperfeiçoar as
nossas expectativas e constituir aquilo a que poderíamos chamar um modelo
da telefilia serial.
Seria difícil não começar por um dos estudos pioneiros, o de Ien Ang (1991),
publicado pela primeira vez em 1982, Watching Da/las. A autora começa por
constatar o sucesso da série junto da população holandesa: «Deixava de ser
possível», escreve Ang, «evitar discutir a popularidade da série quando todos
começavam a interpretar as suas próprias vidas através dela» (p. 5). A socióloga
coloca então um anúncio numa revista feminina de grande audiência, a Viva,
pedindo às apreciadoras da série que lhe escrevam a fim de lhe explicarem
por que razão gostam da série ou por que a detestam. Ang recebe 42 cartas,
a maioria muito pormenorizada, que descrevem experiências, hábitos e senti­
mentos de telespetadoras interessadas ou intrigadas pela série. Na sua maioria,
as cartas provêm de mulheres cultas e capazes de reflexividade (pp. 10-12)�
Estes documentos constituem um testemunho apaixonante da relação fre­
quentemente íntima entre as telespetadoras e a série.
Depois de se ter desembaraçado de alguns estereótipos sobre a receção
televisiva (como o da suposta passividade dos telespetadores), Ien Ang veri­
fica que as mulheres que lhe escrevem se mostram envolvidas ou compro­
metidas com a série. As razões invocadas são diversas: diferentes episódios
ou personagens podem desempenhar aí um papel primordial. No entanto,

31
AS SÉRIES TELEVISIVAS

estão todas ligadas à «capacidade de imaginar as personagens como "pessoas


,
verdadeiras, » (p. 30): a série é apreciada pelo seu realismo, ainda que es te
seja paradoxal. De facto, as telespetadoras reconhecem facilmente que não se
interessam nada pelas aventuras político-económicas da personagem de J. R.
e que as situações descritas por Da/las são, em muitos casos, improváveis;
mas sentem uma forte proximidade em relação às personagens femininas, aos
sentimentos e emoções que estas exprimem. É aquilo que Ien Ang designa
pelo «realismo emocional» de Da/las. Isto não significa que os membros do
público sejam, de alguma maneira, engolidos pela ficção. Pelo contrári o,
segundo a autora, cria-se um balanço constante entre identificação e dis­
tanciamento que caracteriza o prazer das telespetadoras de Dallas. Assim,
a indiferença delas em relação à história das batalhas petrolíferas não lhes
anula o investimento e a emoção face aos dramas das personagens femininas,
que algumas telespetadoras confessam que poderiam ser os seus próprios
dramas. Veja-se o caso deste testemunho, que, após ter sublinhado a falta
de interesse pela personagem de J. R., conclui desta maneira: «Mas Dai/as
poderia realmente acontecer. Por exemplo, posso sentar-me com prazer e
ver, fascinada, alguém como Sue Ellen. Esta mulher podia viver entre nós,
com os seus problemas e os seus tormentos. Ela é humana. Eu poderia ser
como ela, por assim dizer» (carta 2, p. 44).
Na sua obra exemplar sobre a série britânica EastEnders, David Buckin­
gham (1987), ao questionar um jovem público residente no bairro onde se
desenrola a série, chega à mesma conclusão: os adolescentes estão fortemente
implicados na sua relação com o programa (p. 157). Buckingham caracteriza
a adesão deles por uma mistura de implicação alegre e um distanciamento
crítico muitas vezes veemente. É verdade que este é motivado tanto pela
série como pela polémica violenta que a rodeou, suscitada pelos ataques da
Senhora Whitehouse, presidente de uma associação puritana de defesa dos
telespetadores. As reações dos jovens telespetadores constituem, por vezes,
respostas às acusações de grosseria e de indecência que circulam na imprensa
em relação à série. De resto, enquanto as telespetadoras de Da/las marcam
nas suas cartas o quão sabem pertencer a uma vasta comunidade virtual, os
jovens questionados por Buckingham vivem concretamente o caráter coletivo
da sua telespetaleitura: para eles, aliás, é impossível esquecerem o programa,
tantas são as conversas que este suscita nos recreios (p. 162).
As dificuldades e as alegrias das jovens personagens da série suscitam
�uitos debates entre os adolescentes, que dizem respeito essencialment e à
sua plausibilidade: o público questionado pelo autor é perito nesta matéria
(p. 176). Quando a série parece distanciar-se dos problemas da juventude,
o interesse é menor: a questão do realismo ou, mais exatamente, de uma
certa maneira de ser realista é, como na discussão sobre Da/las, um ponto de
partida necessário. Após esta fase prévia, as escolhas das diferentes persona­
gens passam por um crivo e são objeto de análises frequentemente cerradas.
Segundo Buckingham, com o seu grande número de personagens, a série
oferece numerosas perspetivas para apreender a narração e facilitar assim

32
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

a sua discussão (pp. 171, 80): o longo tempo da narração serial permite o
desenvolvimento do seu universo específico e dos diferentes pontos de vista
que o balizam.
O estudo de Dominique Pasquier (1999) sobre três jovens (sobretudo)
apaixonadas pela série Hélene et les garçons, realizado essencialmente a partir
de cartas enviadas por essas telespetadoras para a produção, revela a afeição
de um público muito jovem pela série. Neste estudo, que hoje é considerado
um clássico entre os trabalhos franceses sobre a receção em torno dos pro­
dutos da cultura industrial, a autora não tem dificuldade em mostrar como
as jovens fãs da série conhecem os arcanos da produção audiovisual. Sabem
que, ao escreverem para a AB Productions, que produz Hélene et les garçons, se
dirigem mais a atores do que a personagens de ficção (p. 28): por conseguinte,
distinguem perfeitamente o ficcional do real, ao mesmo tempo que compre­
endem esta fronteira mais como maleável do que como rígida. As�im, veem
os comportamentos das personagens como modelos que podem comentar
segundo os critérios aplicáveis à realidade e que até podem seguir (p. 107).
Vejamos um exemplo de uma· mistura deste tipo, cuja autora é uma jovem
de 13 anos: «Hélene, sabes que por vezes te invejo. Fazes um belo casal com
Patrick [desempenhado por Nicolas] (... ). Pergunto-te como é ter de beijar um
rapaz que mal conheces? Namoras com alguém? Eu não, mas gostava muito
de namorar com um amigo» (p. 104).
Estas cartas mostram também até que ponto ver a série constitui uma ati­
vidade: as jovens telespetadoras parecem nunca parar de pensar e de imaginar
o universo no qual vivem Hélene e os seus amigos Nicolas, Laly, Sébastien e
todos os outros; discutem-no com as mães (quando estas o permitem) e com as
amigas e até escrevem aos seus heróis favoritos, pesando cuidadosamente cada
palavra nas suas cartas. Por exemplo, uma criança de dez anos escreve: «Hélene,
penso que, neste momento, as coisas não estão bem para Laly, Sébastien e
Linda, tenho pena que a Laly e o Sébastien se tenham separado, pois ficavam
bem juntos, mas a Laly disse que ela e o Sébastien seriam apenas amigos e que,
para o Sébastien, isso não o impede de sair com a Linda» (p. 110).
Podemos dizer, com Dominique Pasquier, que a série soube mobilizar o
seu jovem público e permitiu inscrever o universo ficcional de Hélene et les
garçons no interior do quotidiano familiar e escolar das crianças. Em particular,
a socióloga mostra como as mães mais disponíveis (em muitos casos oriundas
dos meios populares), as que aceitam ver uma ficção que não foi pensada real­
mente para elas, ganham assim uma nova intimidade com os filhos (p. 163).
Os fóruns na Internet são outra fonte interessante que, atualmente, dá
acesso às reações dos telespetadores. Consideremos o exemplo dedicado à
série Clara Sheller, disponível no site da França 2. Ao lermos as mensagens aí
deixadas, não podemos deixar de reparar o quão se assemelham às cartas das
raparigas reunidas por Dominique Pasquier: o mesmo interesse pelos atores por
detrás das personagens, os mesmos comentários gerais sobre o valor exemplar
de determinado comportamento, as mesmas adesões ao universo ficcional e
às suas peripécias:

l 33
--
AS SÉRIES TELEVISIVAS

«Gostei da primeira temporada Clara Sheller. Mélanie era petulante, maliciosa


e correspondia perfeitamente à personagem. Frédéric Diefenthal, além de ser
bonito, ajustava-se bem à sua personagem. O par Doutey-Diefenthal dava grande
relevo e consistência às personagens.
Esta série é um divertimento que faz refletir sobre as evoluções da nossa sociedade
(há dez anos, as televisões nunca teriam ousado mostrar beijos apaixonados e calo­
rosos entre homens). Quem falava de bissexualidade, de homossexualidade feliz?
Os sentimentos de Gilles em relação a J.-P. existem desde o primeiro dia, pois ele
encontra aí plenitude, conforto, sinceridade, paixão, etc. Mas há um problema,
é um homem! E esse homem viril, futuro pai, não pode assumir o facto de (lhe)
o dizer!»

De resto, não é absurdo pensar que algumas das raparigas que escreviam
cartas sobre Hélene et les garçons se tornaram, 15 anos depois, participantes no
fórum de Clara Sheller. .. Algumas mensagens que operam uma transferência
de parte do universo ficcional para a vida privada dos interhautas são parti­
cularmente notáveis: mostram investimentos afetivos totalmente comparáveis
aos dos fãs de Da/las ou de Hélene et les garçons. Vejamos dois exemplos:

«Eu sei que tive a sorte de encontrar a minha Clara, há já dez anos (e tenho apenas
vinte). Aliás, devia pedir direitos de autor por essa série: Clara e JP somos nós,
estão tão enamorados como nós, ou até menos. »
«Sou perdida, egocêntrica, desvairada no amor, terrivelmente insensível quando
penso no meu futuro ... e agradeço aos argumentistas por terem feito destes
defeitos qualidades em Clara ... Sei que se trata de uma ficção ... mas sinto-me
menos triste esta noite e mais original uma "insuportável. .. adorável"!»

A série suscita também polémicas que resultam das audácias dos autores a
respeito da representação da sexualidade. Algumas reações aos ataques contra
imagens de alguns episódios consideradas inconvenientes manifestam a cum­
plicidade participante de internautas que percebemos sentirem-se ofendidos
por esta hipocrisia descabida:

«Interessantes as vossas observações. Terá esta simpática série chocado tanto


a vossa sensibilidade (a vossa moral?) para que alguns tenham vontade "de
vomitar"? Bem-vindo ao mundo real! Esta série não é nada grotesca, mostra
que o amor é complicado. E sim, um rapaz pode amar uma rapariga E um rapaz.
Porque se trata de amor e não de nádegas. Felizmente, o mundo não se reduz
à vossa pobre visão da vida (pai/mãe/missionário). Queremos depressa a tem­
porada 3 de Clara Sheller!»

Uma série muito diferente como Os Simpson suscita uma implicação com
características análogas às já mencionadas. O estudo recente de Jonathan Gray
(2005) é particularmente interessante, uma vez que associa um estudo da
semântica da série a um estudo da receção. Esta é limitada: 0 autor interrogou
35 estudantes de uma universidade londrina sobre as suas relações com a famosa

34
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

série de animação. A primeira conclusão de Gray diz respeito à capacidade de


Os Simpson se assemelharem aos jovens do Goodenough College ao suscitarem
referências comuns. Uma das respostas mais esclarecedoras neste sentido é
a de uma jovem que declara só ver a série para não se sentir excluída pelos
colegas: a mediada simpsoniana parece-lhes indispensável para participarem
na vida universitária (p. 128). Um paradoxo aparente guia o resto da análise
do autor. Os entrevistados começam por descrever a série como «inteligente,
mas engraçada», ou então como «engraçada, mas inteligente»: como se a sua
subtileza contradissesse, de certa maneira, a sua comicidade. Uma análise
mais profunda mostra que aquilo que leva realmente os estudantes a ligarem
a televisão para verem a série é o prazer, baseado quer na criatividade das
piadas, quer na acidez e mordacidade da caricatura proposta (p. 143). Por
fim, as duas interpretações da série associam-se rapidamente, e os estudantes
inicialmente sensíveis à repetição das rábulas reconhecem que a sua eficácia
satírica também lhe é indispensável (e vice-versa). A mistura de um burlesco
integral e de uma sátira social eficaz é a marca garantida de Os Simpson: a
certeza de a encontrar na série justifica a telespetaleitura de novos episódios.
Alguns gestos rituais são particularmente apreciados, como o «d'ooh!» de
Homer, que os estudantes também gostam de utilizar em diferentes situações
que os professores não gostam de imaginar ... O pretexto da caricatura não
impede que a série Os Simpson se mostre tão realista quanto Dallas: no entanto,
o realismo emocional da segunda é substituído por um realismo carnavalesco
(p. 134), ao qual regressaremos no fim do nosso percurso.
Os pontos comuns entre estas descrições são numerosos e impressionantes.
O primeiro é a assiduidade dos públicos: são todos telespetadores regulares
de produtos que lhes oferecem um prazer não dissimulado. Daí resulta uma
grande competência interpretativa do universo ficcional da série: a capacidade
de compreenderem e de se apropriarem deste universo (a sua mediada) é evi­
dente. Por outro lado, a série não se interrompe entre as projeções: discussões
e memorizações mantêm a sua vida imaginária. Como observa Christine
Geraghty (1981: p. 10) a propósito das personagens de Coronation Street, estas
continuam a viver entre os episódios através das conversas e das conjeturas
dos telespetadores, que são confirmadas ou infirmadas, desenvolvidas ou
contraditas pela continuação da série.
A implicação afetiva dos telespetadores é forte. Ainda que seja frequen­
temente condensada pela relação deles com uma personagem «preferida»,
nunca se resume a isso: a identificação com uma personagem nada explica.
É todo o universo ficcional que está na origem da adesão. A afeição nunca
desmentida pelos vilões das diferentes séries não se explica de outra maneira.
A capacidade de estes universos se repercutirem na vida social dos públicos
pode parecer impressionante: mas, embora «privada», a vida televisiva não
está afastada da corrente da vida pública, profissional e social dos públicos.
Mulheres perturbadas por Sue Ellen ser oprimida pela família Ewing, jovens
comovidas com Hélene e os seus amigos, estudantes ansiosos pelas estroinices
de Homer, todos sabem «ligar» a sua telespetaleitura aos seus hábitos e estilos

35
AS SÉRIES TELEVISIVAS

de vida. O instrumento indispensável desta transferência é a comunidade


de interpretação a que cada um sente pertencer: constitui o - lugar onde se
desenvolve a relação com a série.

2. Comunidades de interpretação de séries


O que talvez tenha espantado um leitor pouco apreciador de Dallas ou
de Hélene et les garçons são as i nterpretações destas séries delimitadas por Ien
Ang e Dominique Pasquier. Se se evoca Dai/as, é geralmente para escarnecer
do exibicionismo do capitalismo americano e não para elogiar a modernidade
dos retratos das mulheres da série. Estamos na presença de interpretações
difíceis de compreender. Decorrem de preocupações e competências que não
nos são familiares. Inversamente, cada um dos públicos questionados pelos
sociólogos citados é homogéneo e parece partilhar as mesmas interpretações
da sua série favorita. Stanley Fish (1980: p. 171) propôs chamar comunidade
de interpretação a um coletivo que reage de forma comum face a um objeto
simbólico: «As comunidades de interpretação são formadas por aqueles que
partilham as mesmas estratégias de interpretação, não para lerem os textos
(no sentido de "receber os textos"), mas para os escreverem, estabelecerem as
suas propriedades, atribuir-lhes intenções. » Para Fish, o texto é literalmente
constituído, não materialmente, mas simbolicamente, por uma estratégia de
interpretação específica e pelo coletivo que a utiliza. Estas camaradagens inter­
pretativas formam-se na vizinhança de situações vividas análogas. Os estudantes
de literatura vão reagir de maneira semelhante face a textos propostos nas
aulas porque têm em comum um conjunto de receitas interpretativas que lhes
guiam o trabalho e porque sabem o que deles se espera enquanto estudantes:
assumem a sua identidade de estudante ao compreenderem os poemas da forma
como os compreendem (Fish, 2007: pp. 55-77). Como vimos, os estudantes
interrogados por Buckingham formam uma comunidade de interpretação de
EastEnders muito distante da visão puritana da série defendida pela Senhora
Whitehouse e pela sua associação, que é outro coletivo interpretativo.
Para apreender uma série, qualquer telespetador mobiliza uma mediada
característica de uma comunidade de interpretação particular. Esta pode ser
restrita e limitada, reduzida aos membros da família. Pode ser virtual (sabemos
que outros veem da mesma maneira que nós e no mesmo momento). Mas a
consciência de pertença a essa comunidade é decisiva na nossa apreciação e na
nossa adesão à série. As confirmações que podemos encontrar graças à conversa,
no recreio, na cafetaria, etc., estimulam o nosso gosto e aumentam o rigor das
nossas interpretações. As três características comuns dos exemplos atrás citados
ganham todo o seu sentido neste contexto. O prazer associado à telespetaleitura,
a adesão aos objetos e a competência interpretativa não se poderiam desenvolver
fora de quadros interpretativos, como iremos agora explicar em pormenor.
Devemos começar pela questão do prazer telespetadorial, do qual uma
interpretação persistente sobrecarregou durante muito tempo a análise da

36
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

ficção televisiva. Investigadores e analistas insistiram na ideia de que os


públicos de televisão só assistem aos programas para romperem com as suas
tristes vidas quotidianas: estes programas teriam como única virtude a de
os fazer pensar «noutra coisa»; o único prazer que encontrariam seria o de
se isolarem de uma esfera pública insuportável. O termo a destacar aqui é a
«evasão»: conhecemos o sucesso extraordinário desta explicação das práticas
dos telespetadores. Desde a publicação do famoso texto de Katz e Foulkes
sobre os «media como evasão» (1973), em 1962, muitos foram os autores que
repetiram a tese da manipulação de um público de massas, ao qual se fornecem
imagens simplesmente capazes de o desviar da sua existênçia alienada ou de
o manter afastado de qualquer reflexividade.
No entanto, se reconhecermos a afirmação reiterada dos públicos de séries
segundo a qual têm prazer em viver essa reelaboração contínua de universos
ficcionais cada vez mais ricos e diversos à medida que a série vai sendo trans­
mitida, e gostam de transformar esse prazer em conversas, discussões, brinca­
deiras, disputas, referências disponíveis na vida quotidiana, começamos a poder
examinar a importância que as séries televisivas adquiriram principalmente
desde há alguns anos. Podemos ver a série televisiva como digna concorrente
do romance ou do filme no domínio da narrativa de ficção e podemos admitir
que pode gerar sentimentos e juízos análogos aos originados por outras ficções:
estas desempenhariam, para comunidades interpretativas com limites sociais
bem marcados, o papel de reservas de imaginários, se não subversivos, pelo
menos alternativos às grandes narrativas nacionais coletivas no interior das
quais poderiam não encontrar um espaço satisfatório.
Apreender as outras características da receção televisiva torna-se também
mais fácil quando se admite que os programas são objeto de uma escolha e
que os programas são escolhidos porque dão prazer a comunidades de telespe­
tadores. A primeira destas características, muito visível como já verificámos,
é a afeição suscitada pelas séries. Os telespetadores estão ligados ao universo
das suas séries favoritas de uma forma intensa e íntima: fazem realmente
parte da sua vida mais privada. Os jovens fãs de séries questionados em 2008
(Esquenazi, inédito) ficam geralmente emocionados quando evocam alguns
momentos fortes da sua relação com a série. Uma jovem fala, de lágrimas nos
olhos, das suas discussões calorosas com a melhor amiga sobre a série One Tree
Hill. Outra diz-me que, quando tem dificuldades ou problemas, distrai-se com
episódios de Friends, que ela mantém como fundo sonoro. Um jovem fala­
-me da sua vida com o inspetor Columbo, que é uma espécie de modelo para
ele, que estuda Direito e vem de um meio modesto. Falar das séries favoritas
parece levar alguns fãs à confidência. É claro que podemos ter sentimentos
semelhantes por outros produtos culturais. No entanto, parece existirem razões
particulares para as séries serem objeto de tal adesão. Uma fá de Dallas, citada
por Ien Ang (p. 57), refere-se a uma delas quando escreve: «É tranquilizador
· ver sempre as mesmas personagens. Assim, ficamos cada vez mais dentro da
série [... ]. Quando me sento para ver, tenho sempre a impressão de que, de
certa maneira, também faço parte da família... »

37
AS SÉRIES TELEVISIVAS

A regularidade da série e o regresso das mesmas personagens conferem


grande familiaridade com o universo ficcional. Temos a certeza de nela reen­
contrar os mesmos cenários, objetos e pessoas, tal como aqueles que nos são
mais queridos. É verdade que não dominamos os desenvolvimentos da série,
mas também não dominamos o nosso próprio futuro. Capaz de prosseguir a
sua história durante anos, a série cria universos ficcionais que parecem escapar
ao fim do romance e do filme. De tal maneira que a nossa história se mistura
com a da série, as suas peripécias combinam-se com as nossas próprias des­
venturas e, com ela, tecem um «documentário de ficção» original.
Outra razão para os sentimentos de afeição em relação às séries favoritas
parece-me residir na capacidade de criarem referências comuns. Um exemplo
notável é dado por Bob Hodge e David Tripp na obra Children and Television
(1986: pp. 183-187). Os autores falam da utilização, por crianças de 11 a 13
anos, de Prisoner, uma série australiana que descreve a vida numa penitenciária,
como uma fonte tanto irónica como séria para descreverem a sua vida na escola.
Neste caso, a série é deslocada de um universo para o outro e, por assim dizer,
é representada pelos alunos dentro dos muros da escola. Cada um vê a série em
casa; mas basta saber que os outros também veem para se ter a certeza de que
as referências à série serão por todos compreendidas. Outro exemplo, que data
aproximadamente da mesma época, é descrito por Jane Feuer em Seeing Through
the Eighties (1995: pp. 131-134): para alguns telespetadores pertencentes à comu­
nidade homossexual, a série Dinastia representava a apoteose de uma estética
«camp» dedicada ao travestismo. De tal maneira que, «no interior da subcultura
urbana homossexual, Dinastia funcionava mais como um ritual do que como
um texto» (p. 132). As transmissões de novos episódios tornam-se pretexto para
festas loucas reservadas aos iniciados. A familiaridade com o objeto mantém
a adesão tanto mais facilmente na medida em que é abertamente partilhada.
Devemos também referir a grande competência narrativa e sintática demons­
trada pelos fãs das séries. Em primeiro lugar, temos os testemunhos negativos:
quando uma série se afasta do trajeto que fixou, quando não respeita aquilo a que
chamaremos a sua «fórmula», os telespetadores escrevem para protestar, avisar
e ameaçar. Dominique Pasquier (p. 125) dá um exemplo disto a propósito da
tentativa feita pelos produtores de separarem os dois protagonistas de Hélene et
les garçons: a possível infidelidade de Hélene é imediatamente vista como uma
heresia para as jovens telespetadoras, não por conservadorismo (admitem os
amores passageiros de outras personagens), mas porque sabem que a constância
de Hélene é o eixo narrativo da série. A série americana dos anos 1980 Cagney
& Lacey fornece outros exemplos, como o da oposição dos telespetadores à
substituição de Meg Poster, intérprete de uma das heroínas, após a primeira
temporada (D'Acci, 1994: pp. 34-35). Não podemos deixar de citar as mani­
festações londrinas contra a substituição de Noele Gordon nesse monumento
nacional em que se tornou a série Crossroads (Hobson, 1982). Os membros
dos públicos desagradados com estas mudanças não se limitam a indignar-se:
erguendo-se como representantes da comunidade de interpretação, dirigem-se
diretamente à produção para a voltarem a pôr no «bom caminho» narrativo.

38
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

Esta mediada aparece sob muitas outras formas frequentemente subtis; por
exemplo, na análise do papel das personagens femininas Pamela e Sue Ellen,
em particular do alcoolismo desta última, pelas telespetadoras de Da/las (Ang,
1991: PP· 43-44). O grupo de telespetadoras questionado por Mary Ellen
Brown (1994: PP· 84-92) mostra a sua capacidade de articular os diferentes
fios narrativos de Days ofour Lives. Quanto aos estudantes interrogados por
Jonathan Gray (pp. 149-150), encontram quase naturalmente um estilo refletido
para descreverem os diferentes modos paródicos utilizados por Matt Groening
e os seus acólitos para construírem as várias personagens de Os Simpson. Nos
comentários dos fóruns de Internet encontramos facilmente intervenções que
tentam fazer uma análise geral dos valores da série. Citemos uma descrição
de Clara Sheller, da qual retiramos o seguinte excerto: «O ritmo da série e
os planos sobre Paris: nada a acrescentar! O argumento está numa forma
romanceada e ficcional, muito realista quanto às angústias da solidão afetiva
e à dificuldade de exprimir os sentimentos dos "perversos", dos "desviantes",
dos "anormais", tal como os definimos.»
Quando se insiste nas entrevistas aos verdadeiros fãs, obtêm-se análises
formais muito interessantes, quer se trate das estruturas narrativas, do papel
da música ou dos estilos de realização. Parece então indiscutível que a mediá­
eia serial leva os verdadeiros conhecedores a adquirirem um autêntico saber
analítico. Este baseia-se em comparações com outras séries ou com antigas
leituras, em discussões com outros fãs ou, por vezes, em informações obtidas
na Internet: a telespetaleitura de uma série (como, de resto, de qualquer outro
objeto simbólico) só pode ser coletiva, quanto mais não seja porque, para a
compreender, cada um utiliza saberes comuns. Assim, uma pessoa nunca
se sente um telespetador solitário frente ao pequeno ecrã, mas membro de
·um vasto coletivo para o qual ver determinada série é um ato perfeitamente
compreensível e justificável. Como as séries não são objeto de uma crítica
pública, porque não há espaço comum onde essas ficções televisivas possam
ser discutidas, a necessidade de uma comunidade interpretativa faz-se sentir
de forma particularmente forte. Além disso, os universos ficcionais seriais têm
a hipótese de se desenvolverem longamente, em muitos casos durante anos:
as comunidades interpretativas seriais beneficiam disso para se conservarem,
para crescerem mais do que as outras. As retransmissões aumentam esse poder,
permitindo que as comunidades de interpretações mantenham vivas as séries
favoritas durante muito tempo após terem sido transmitidas.

3. Os públicos de séries no espaço público


É quase inimaginável que, em França, os coletivos, sob qualquer forma,
se apoderem do espaço público para defenderem uma série, uma personagem
ou uma fórmula narrativa. No entanto, nos países onde as séries são consi­
deradas produtos culturais como os outros, este facto não é raro. Podemos
ver então comunidades de interpretação de séries a saírem do anonimato e

39
AS SÉRIES TELEVISIVAS

a reivindicarem ruidosamente o seu lugar no espaço público. O caso de O


Caminho das Estrelas (Star Trek) é particularmente notável.
O seu criador, Gene Roddenberry, ex-polícia e militar, concebeu em inícios
dos anos 1960 este projeto bizarro de uma polícia interplanetária confrontada
com a estranheza e a diferença cultur;l. Conseguiu miraculosamente que a
série fosse aceite pelo estúdio Desilu, dirigido pela antiga vedeta de / Love
Lucy, Lucille Ball. O estúdio, por sua vez, obteve um financiamento da rede
NBC, que escolheu a série para lançar os seus programas a cores. No entanto,
na primavera de 1967, a rede ameaça não renovar O Caminho das Estrelas
após uma primeira temporada com índices de audiência hesitantes (Solow e
Justman, 1996). Contudo, a série inscreve-se numa grande tradição americana,
a da ficção científica. Sobretudo durante o maccarthysmo, a ficção científica
foi um refúgio para argumentistas ou escritores que recusavam alienar a sua
liberdade de expressão política. A coberto de invasões extraterrestres, monstros
surgidos das entranhas da Terra ou guerras interplanetárias, conservam uma
voz liberal no país. Assim, Gene Roddenberry não hesita em pedir auxílio a
Harlan Ellison e a Isaac Asimov, escritores e grandes autoridades no meio da
ficção científica e particularmente da Science-fiction and Fantasy Writers of
América, uma organização profissional de autores de ficção científica. Estes,
com alguns outros como Robert Bloch, Frank Herbert e Dick Matheson,
lançam uma campanha intitulada «Save Star Trek»: pedem aos seguidores
e simpatizantes que inundem a rede com um dilúvio de cartas a reivindicar
a continuação de uma série ambiciosa e inteligente, fonte de muitos debates
e especulações que se tornarão o lugar de uma reflexão liberal enraizada na
paisagem cultural do país. A rede deixa-se convencer, tanto mais facilmente
porquanto não deseja anular os seus programas a cores.
A história de O Caminho das Estrelas não termina neste episódio. É verdade
que a série original não se prolonga para além da terceira temporada. Mas
os seus 80 episódios serão constantemente retransmitidos, a ponto de várias
outras séries terem sido concebidas como continuações: Star Trek: Enterprise,
por exemplo, é rodada entre 2001 e 2005. Estes renascimentos sucessivos não
teriam sido possíveis sem a vida intensa da série entre os seus fãs. Henry Jenkins
(2000) interessou-se particularmente pelas formas de reescrita da série: os fãs
apropriam-se do universo e das personagens da série para construírem histórias
«Star Trek» à sua maneira. Nesta matéria, a tradição americana é importante:
o autor estima que, em inícios dos anos 1980, existem mais de 300 fanzines
inspiradas por séries (Star Trek é a mais representada) ou filmes. Um largo
público feminino apaixona-se por esta reescrita: estas fãs dividem-se entre a
fidelidade à série e o desejo de dar mais importância às personagens femininas
e de prolongar as amizades em relações amorosas. Os fãs mais antigos erigem­
-se como árbitros ou como guardiães da tradição, que eles conservam tanto
quanto podem nas grandes convenções «Star Trek».
De resto, o lugar das personagens femininas nas séries foi muitas vezes
objeto de debate. Prova disso são os debates a que deu origem a série Cagney
& Lacey nos anos 1980. As suas autoras, Barbara Avedon e Barbara Corday,

40
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

são duas jovens envolvidas nos movimentos feministas liberais dos anos 1970.
Começam por preparar o projeto de um filme dedicado à amizade de duas
mulheres que se lhes assemelham, mergulhadas num meio duro e masculino,
usando �m arquétipo da ficção popular, o par de polícias. Passam uma dezena
de dias com as agentes policiais de Nova Iorque: Avedon e Corday querem fazer
das suas heroínas personagens realistas e credíveis. Cagney & Lacey constitui
um argumento cuidado, documentado e muito informado sobre os problemas
enfrentados pelas mulheres nos seus locais de trabalho. O produtor Barney
Rosenzweig, seduzido, não consegue convencer uma grande produtora a finan­
ciar o filme. Será necessário esperar alguns anos para que a CBS se convença a
rodar um telefilme a partir do argumento de Avedon e Corday. No contexto de
inícios dos anos 1980, em que as grandes redes se preocupam com o público
das classes médias e abastadas, parece possível apresentar mulheres de forma
não convencional, na condição, certamente, de não se ultrapassarem certos
limites. O filme é rodado com uma vedeta então glamorosa, Loretta Swift, e
uma atriz menos conhecida, Tyne Daly. O meio feminista publicita a difusão.
A Senhora Steinem, diretora da prestigiada revista MS, organiza uma receção
com as duas atrizes: os números das audiências são notáveis: Cagney & Lacey
obtém 42 o/o das frações do mercado. Nasce então a ideia de produzir uma
série que perpetue as personagens pelo menos durante algum tempo. Dá-se
início a uma gigantesca negociação, descrita por Julie D'Acci (1994), entre os
representantes da CBS, a produção, os meios feministas, o público e a imprensa
sobre aquilo que pode ou deve ser mostrado na televisão acerca dos problemas
das mulheres. Ano após ano, a série é posta em causa, celebrada, criticada e
modificada: a comunidade interpretativa da série mobiliza-se regularmente
durante toda a difusão. O primeiro episódio é transmitido em março de 1982
e o último em maio de 1988. Entretanto, foram transmitidos 123 episódios.
Dos momentos mais calorosos da discussão, devemos reter o afastamento da
primeira intérprete de Cagney na série, Meg Foster. Esta, que sucedera a Loretta
swift, é considerada demasiado agressiva pelos responsáveis da CBS: para que
fosse encomendada uma segunda temporada, exigem que seja substituída por
Sharon Gless, uma mulher loura e bonita. As insinuações segundo as quais Meg
Foster daria à personagem de Cagney um tom homossexual têm algo a ver com
esta exigência, sobretudo porque as ligas da virtude começam a intrometer-se
no assunto. Sharon Gless, inicialmente mal recebida pelos primeiros fãs, acaba
por dar uma volta paradoxal à sua personagem, que satisfaz a rede CBS e as
observadores feministas de uma série que, ao misturar investigações policiais
e discussões feministas, consegue ganhar um público fiel.
O episódio «Escolha», transmitido na primavera de 1984, ocasionou outra
discussão. Cagney poderia estar grávida e estava previsto que tencionasse
abortar. No entanto, a CBS protesta e, após negociações sobre o que pode
ser dito em relação à conceção, a� controlo de natalidade e ao aborto, Terry
Louise Fisher, então responsável pela produção, é obrigada a aceitar algumas
modificações que enfraquecem singularmente o proj:t�. De u?1.ª forma �eral,
o feminismo explícito do início dá lugar a um femm1smo tac1to, seguindo,

41
AS SÉRIES TELEVISIVAS

aliás, o movimento de reação dos anos Reagan. Para os nossos fins, imp orta
verificar como, neste país culturalmente distante da França, uma série televisiva
policial e melodramática foi uma questão importante na discussão pública,
ocupando não só a empresa responsável pela difusão, mas também revistas de
imprensa, grupos de pressão, escritores, argumentistas e atrizes.
Cito estes exemplos, entre muitos outros, para mostrar até que ponto as
séries fazem parte da vida cultural americana. A época atual não foge à regra:
Twin Peaks, A Balada de Nova Iorque, Oz, Lei e Ordem (Law & Order), Os
Sopranos, Buffy, Caçadora de Vampiros, etc., foram objeto de debates muitas
vezes inflamados que, e isto é uma novidade, constituíram temas de estudos
académicos; todas estas séries geraram conjuntos de ensaios ou de trabalhos
universitários. Em França, faltam ainda locais que permitam a discussão sobre
as séries televisivas. O exemplo de lhe Prisoner (o de McGoohan) ilustra, a
contrario, esta falta: o cenário onde esta série foi rodada é uma aldeia do País
de Gales destinada a abrigar turistas, Portmeirion. Esta aldeia subsiste após a
rodagem, o que permite que os fãs, muitos deles franceses, aí se encontrem em
datas fixas. Surgiu um clube de fãs, que conserva zelosamente a integridade
da série (Le Guern, 2002). Os atrasos franceses nesta matéria são gritantes,
ainda que os fóruns e blogues da Internet permitam acalentar algumas
esperanças. Isto não impede que inúmeros fãs «silenciosos» (pelo menos no
espaço público, porque, quando interrogados., tornam-se geralmente muito
faladores) vejam as séries.

4. Uma cumplicidade n1antida


Os fabricantes de séries sabem que a questão fundamental para o seu
produto é conseguir obter dos públicos uma constância na telespetaleitura.
O argumento principal deles reside na construção de universos originais e,
ao mesmo tempo, acessíveis: iremos estudá-los nos próximos capítulos. Por
agora, concentramo-nos noutras práticas, menos centrais, mas que têm a
sua importância e que consistem em incluir no conteúdo dos programas um
conjunto de gestos dirigidos explicitamente aos telespetadores.
Com efeito, algumas séries recorrem a pequenas cerimónias características
que permitem o reconhecimento imediato do seu universo ficcional. Um dos
primeiros a compor este ritual foi, sem dúvida, Jack Webb, autor de Dragnet: o
aviso inicial - «Senhoras e senhores, a história que agora irão ver é verdadeira.
Os nomes foram alterados para proteger os inocentes» - está inscrito numa
insígnia de sargento da cidade de Los Angeles, enquanto se ouve o pequeno
acorde composto por Walter Schuman. Em seguida, ouve-se a voz do sargento
Friday, que comenta alguns planos da cidade; a sua intervenção termina inva­
riavelmente com «J'm a cop». Estes segundos iniciais identificam rapidamente
a série e facilitam a entrada do telespetador na ficção. A «cerimónia» serial
mais longa e, talvez, a mais famosa encontra-se em Missão Impossível, criada
por Bruce Geller quase uma década depois de Dragnet. Beneficia da música

42
2. A CUMPLICIDADE ENTRE PÚBLICOS E SÉRIES

fortemente ritmada de Lalo Schiffrin e de um genérico constituído por flashes


e inspirado no ritmo da publicidade. Depois vêm a comunicação da missão
e a escolha dos (mesmos) membros da equipa, tudo isto inserido no interior
de uma cenografia obsessiva. Como observa Martin Winckler (1993: p. 42),
para uma série cujo «primeiro recurso é a encenação», o aperitivo ritual é
particularmente sedutor.
Por vezes, estes gestos cerimoniais são muito mais curtos: têm a forma de
uma nota capaz de fazer sorrir o telespetador cúmplice. O gesto de braço do
inspetor Columbo no momento em que se afasta, que anuncia o seu regresso,
e a pequena questão que tem ainda a colocar, os gestos demonstrativos de Joey
em Friends ou o círculo dos amigos de Que Loucura de Família (1hat 70s
Show) são alguns destes ritos seriais destinados a conservar a conivência de
um público com a sua série.
Um dos mais importantes inventores de séries contemporâneos, David
Kelley, criador de Ally McBeal, Causa justa (1he Practice) e Boston Legal, todas
dedicadas a escritórios de advocacia situados em Boston, é um especialista do
piscar de olho dirigido diretamente ao telespetador. Boston Legal constit�i, deste
ponto de vista, um exemplo perfeito. Sem que a série deixe de ser um panfleto
burlesco a propósito da sociedade de George Bush, é capaz de jogar a todo o
momento, de forma quase infantil, com a sua própria definição. Um advogado
quer entrar na firma e provar a sua determinação através de uma canção: entoa
o leitmotiv musical do genérico da série que então começa. Uma personagem
presente desde o início da série cruza.,.se com novos advogados: pergunta-lhes
por que razão não apareceram nos primeiros episódios da temporada. Os dois
· protagonistas, amigos apesar das suas diferenças, encontram-se no fim de um
episódio e o mais jovem declara: «Vimo-nos muito pouco neste episódio!»
As referências a outras séries são numerosas: um dos episódios utiliza até
imagens de uma série rodada 40 anos antes, em que um dos atores também
desempenhava o papel de um advogado. Em Ally McBeal, Kelley encontra
já uma maneira original de exprimir as emoções das personagens ao jogar
com a conivência com o público. Insere numa narrativa realista trucagens
que permitem, por exemplo, que a língua de Ally, agora gigantesca, abrace
um belo rapaz, ou que o seu punho se mova de repente aos saltos para atingir
um adversário enervante. Esta partilha dos fantasmas das personagens com
o espetador constitui uma forma pouco comum de participação.
O género da soap-opera distingue-se de todos os outros pelos modos
mais subtis de obterem a fidelidade e a cumplicidade do telespetador. Não se
trata aqui de sair do mundo ficcional para jogar com a enunciação da série.
O processo mais conhecido é o do cliffhanger: um episódio termina com
um acontecimento que deixa perigosamente em jogo uma das personagens
e a sua resolução só chegará na semana seguinte. No entanto, cada cena da
série parece feita para abrir novas portas, novas questões. Declarações como
«Vou-: me redimir de tudo o que fiz», «Tudo se irá resolver», «Não há razão
para nos preocuparmos», «Será obrigado a falar-nos», «Apanharei os dois»,
todas elas pronunciadas por diferentes personagens no fim de sequências do

43
AS SÉRIES TELEVISIVAS

famoso episódio de Dallas em que o bebé de J.R. e de Sue Ellen é raptado,


encorajam suposições e conjeturas, debates e previsões. A «resolução adiada»
é um instrumento eficaz da participação do telespetador: a partir do saber
acumulado sobre o universo da série, os públicos tentam adivinhar um futuro
esboçado (Geraghty, 1981: pp. 9-25).
A utilização de estilos audiovisuais originais é uma forma mais rara de
obter a identificação da série. Neste plano, o fim da década de 1980 e o início
dos anos 1990 foram períodos frutuosos: Twin Peaks e os seus planos fixos
extravagantes,Lei e Ordem e a sua encenação rápida, sombria e documental,
A Balada de Nova Iorque e os seus desenquadramentos contínuos são exemplos
comuns. Dedicaremos um capítulo ao estudo da estilística serial. Contudo,
antes de explorarmos os seus modos de produção, notemos que cada série
tem a sua ritualidade e as suas cerimónias, que são outras tantas marcas de
reconhecimento.

44
Segunda Parte

Produção das
séries televisivas
• Produção das séries

• Percurso de um inventor de séries: Steven Bochco


Capítulo 3

Produção das séries

1. Dupla economia das séries televisivas

A produção de programas para a televisão é particularmente complexa:


segue duas lógicas diferentes, uma comercial e outra cultural, e mobiliza
três ou quatro tipos de parcerias. Vejamos como John Fiske (1987) explica
este percurso complexo: o sociólogo americano começa por verificar que «a
mercadoria cultural não pode ser adequadamente descrita apenas em termos
financeiros: a circulação que é essencial ao seu sucesso produz-se no interior
de uma economia paralela, que é cultural» (p. 311).
Para se compreender bem esta interação necessária entre o económico e o
cultural, devemos seguir atentamente o processo que assiste ao nascimento do
produto cultural televisivo. Voltemos a Fiske: «Numa primeira fase, os produ­
tores do programa vendem-no a distribuidores: o programa é simplesmente
uma mercadoria material. Em seguida, o programa-mercadoria muda de papel
e torna-se um produtor. E a nova mercadoria que produz é um público, que,
por sua vez, é vendido a anunciantes ou a patrocinadores» (p. 312). Nesta
segunda transação, o produto televisivo muda de papel, deixa de ser uma mera
mercadoria. É a sua capacidade de reunir telespetadores em frente do pequeno
ecrã que circunscreve o seu valor. Ora, os telespetadores não compram esse
programa: veem-no porque é fonte de prazer. Este segundo valor do programa
é, portanto, totalmente cultural. No caso dos canais pagos, os telespetadores
pagam por um prazer que se pode chamar «global», fornecido pelo conjunto
de programas. Assim, a circulação do produto televisivo, crucial para o seu
sucesso, desenrola-se no interior da economia cultural: as significações, os
prazeres e ·as identidades sociais são as medidas das escolhas. Esta conclusão
esclarece a noção de comunidade de interpretação: podemos apreendê-la como
· um coletivo homogéneo capaz de, num dado contexto, dar um valor cultural
específico a um produto industrial. Assim, os públicos são agentes decisivos,
mas oblíquos, do circuito de produção: não tomam qualquer decisão direta,
deixando essa tarefa ao cuidado de três outros tipos de agentes: os produtores,
os difusores e os anunciantes. Todas as decisões são tomadas avaliando o qu e
serão as suas reações, medidas com maior ou menor eficácia. Anunciantes

47
AS SÉRIES TELEVISIVAS

ou produtores não deixam de prever o interesse cultural dos públicos para


tomarem decisões económicas.
Poder-se-ia objetar a John Fisk o facto de nenhum parceiro da transação
nunca esquecer um ou outro dos dois valores do produto televisivo. A re de
que efetua uma transação comercial com o produtor avalia a cada momento
o seu valor cultural; e os telespetadores sabem que se trata também de um
produto que deve ser vendido. Deste ponto de vista, talvez seja melhor consi­
derar, como o historiador Michael Baxandall (1991: pp. 89-90), que o produto
cultural é objeto de operações de «permuta» entre diferentes parceiros, em que
o financeiro e o cultural se trocam. É verdade que não é a produção televisiva
que interessa ao autor, mas sim a produção pictórica. Baxandall cita vários
exemplos muito esclarecedores: o dos contratos firmados entre comanditários
e pintores no Renascimento (pp. 174-175), ou o do acordo feito entre Picasso
e os seus agentes por volta de 1906 (pp. 99-100). É impressionante verificar
as sirnilitudes entre a produção pictórica e a produção televisiva: nos dois
casos, o económico e o cultural são incessantemente avaliados, calculados
e trocados. Parece então que podemos também ver a produção televisiva
como o resultado de urna permuta baseada numa troca «impura» entre o
económico e o cultural.
As séries televisivas são, sem falsa modéstia e de maneira perfeitamente
explícita, um objeto inegavelmente cultural e económico; a sua produção
implicará obrigatoriamente um acordo económico-cultural entre diferentes
parceiros. Mais precisamente, a história da produção de urna série será sem..:
pre a história de produtores depositários de um pro_jeto cultural, que tentam
fazê-lo reconhecer como um projeto igualmente económico por difusores e
anunciantes. No caso americano que agora nos ocupará, veremos os estúdios
de produção a lidarem com as exigências das redes (ABC, NBC, CBS, agora
chamada Fox), elas próprias inspiradas pelos anunciantes. No caso da televisão
pública francesa, serão os representantes do Estado encarregados da produção
que lidarão com outros representantes do Estado responsáveis pelos orçamentos.
Detenhamo-nos por momentos neste ponto, urna vez que pode chocar
alguns leitores. Estes estão habituados a considerar que existe uma separação
clara entre o comercial e o cultural ou o artístico. Designar alguns produtos
culturais como «obras de arte» parece indicar que só têm valor no interior
de um mundo «cultural» ou «artístico». Inversamente, quando chamamos a
um filme «espetáculo de entretenimento», quando dizemos que um livro é
«literatura de aeroporto» ou que um programa de televisão é um «produto
de consumo» supomos que estes «produtos culturais» são apenas produtos
num sentido estritamente comercial. As análises de John Fiske e de Michael
BaxandaU podem alertar-nos e lembrar-nos que os quadros de mestres são
vendidos e que os romances «cor-de-rosa» são muitas vezes lidos de forma
apaixonada. Seria então prudente postular que qualquer produto cultural tem,
simultaneamente, um valor mercantil e um valor cultural. É muito possível que
alguns marchands de arte só se interessem pelos preços dos quadros, enquanto
· alguns visitantes de galerias se impressionam com o seu valor cultural. Do

48
3. PRODUÇÃO DAS SÉRIES

mesmo modo, podemos pensar que os dirigentes da TF 1 • são apenas sensíveis


ao número de pessoas que poderão ver os anúncios da Coca-Cola durante os
intervalos publicitários do CSl mas não há dúvida de que os telespetadores
veem a série por outras razões, ligadas à qualidade da narrativa. Um produto
cultural pode ser «produto» para alguns e «cultural» para outros, mas é a reunião
das duas faces que o constituiu enquanto·tal (Esquenazi, 2007: pp. 52-56).
Em todos os casos, aquilo a que chamaria a «troca televisiva» revela-se
complexo. Os parceiros nunca são menos de três e as respetivas motivações
são diferentes: às cadeias, aos seus financiadores e aos públicos acrescentam-se,
em geral, os fabricantes efetivos dos programas. Além disso, cada contexto
sócio-histórico altera a natureza da troca: contingências variáveis podem
dar preeminência a um ou outro dos parceiros da troca. Só uma constante
se evidencia nas diferentes situações de produção televisiva: o interesse das
cadeias em manterem o prazer do telespetador a fim de assegurarem que a
regularidade da telespetaleitura persiste para além das variações contextuais.
Como vimos, esta vontade está na origem da produção das séries.
Em França, atualmente, coexistem pelo menos três formas de organização:
a televisão comercial, a televisão pública e a televisão por subscrição (Canal
+, canais por cabo). Uma delas é particularmente complexa, uma vez que o
terceiro parceiro é duplo: as cadeias públicas beneficiam de um financiamento
público e de fontes publicitárias (pelo menos por agora). A televisão comercial
parece ter modificado a sua abordagem desde há alguns anos. Depois de ter
levado a cabo uma política puramente quantitativa, em que só importava o
número de telespetadores, começou a visar certos públicos de forma muito
mais precisa, em particular públicos «jovens»: a telerrealidade é feita direta­
mente para estes públicos. Esta política levou a M6 e a TFI a programarem
séries maioritariamente americanas, ousadas e, por vezes, violentas, o que
nem sempre agrada ao público mais velho: a dona de casa com menos de 50
anos já não é o centro da direção comercial destas cadeias. As cadeias públicas
recolhem naturalmente este público menos recetivo à novidade e também mais
abastado, o que não deixa de causar algumas dificuldades para as direções
publicitárias. Este público privilegiado tornou-se difícil de atingir. Os resultados
financeiros inesperados da France Télévision em 2009 decorrem deste facto:
o fim da publicidade à noite provocou um aumento muito forte durante a
parte da tarde e a um aumento dos recursos suplementares. Os canais por cabo
cultivam a sua distinção: são obrigados a propor «mais» ou «melhor» do que
se faz nos outros, daí a chegada relativamente recente do Canal + ao mercado
das séries e a aquisição daquilo que a cadeia vê como produtos de «carácter».
Esta gestão a três (práticas comerciais) induz formas de concorrência que
não deixam de ser interessantes para a produção de séries. Parece que, muito
em breve, poderemos ver uma produção francesa a rivalizar com a produção
internacional.

* A TFl, abreviação de Télévision Française 1, é a mais antiga cadeia nacional de


televisão generalista francesa, atualmente privada. [N.T.]

49
AS SÉRIES TELEVISIVAS

2. O exemplo americano
Parece-nos necessário descrever pormenorizadamente o caso americano
para compreendermos em que contextos sucessivos foram elaboradas as séries
de sucesso. Estas diferentes situações têm, porém, um ponto em comum: a
procura de um equilíbrio entre a convenção e a inovação parece guiar sempre
os agentes e as suas discussões.
Os historiadores da televisão americana concordam na existência de três
períodos distintos (Marc, 1984; Thompson, 1996; Brown, 1998; Gomery,
2008). A «idade de ouro>> confunde-se com a época do domínio dos anun­
ciantes. Estes negoceiam com as quatro grandes redes (CBS, NBC, ABC e
DuMont) as grelhas de horário em que poderão colocar os programas que eles
próprios escolhem. Possuem os seus próprios estúdios, na maioria localizados
em Nova Iorque, e assumem assim toda a responsabilidade da produção. Esta
estrutura assegura grande liberdade aos produtores executivos: se o êxito for
uma realidade, podem realizar os seus projetos de acordo com os seus desejos.
Os grandes programas apresentados por Milton Berle ou Ed Sullivan sabem
mostrar-se inventivos, variados e geralmente ambiciosos e até reflexivos; graças
a eles, assiste-se a um renascimento da tradição do espetáculo de variedades
(Body, 1998: p. 29). Florescem também antologias como a Philco Television
Playhouse, que têm muitos pontos em comum com as grandes séries dramá­
ticas da primeira televisão francesa: temas ambiciosos e atores experientes
asseguram-lhes grande qualidade. A única diferença é que os autores não são
grandes «clássicos» como em França, mas alguns dos mais importantes escritores
contemporâneos (Stempel, 1996: pp. 44-56). Durante este período, existem
muito poucas séries, no sentido que demos a este termos, ainda que surjam
nos ecrãs algumas soap-operas derivadas frequentemente da rádio, como 1he
Goldberg ou Burns and Allen's. No entanto, como vimos, é nesta época que
nascem 1 Love Lucy e Dragnet, que mostram como se pode continuar a fazer
cinema na televisão, passando do filme para a série. A era da transmissão em
direto termina em finais dos anos 1950 e começa então o reinado do suporte
filme para a produção de ficção televisiva.
O êxito de J Love Lucy e de Dragnet prova aos grandes estúdios de
Hollywood que o seu próprio futuro passa pelo produto televisivo e, em
particular, pela série, digna sucessora da produção genérica. O escândalo dos
jogos falseados acelera a revolução. Estes jogos eram programas patrocinados
e produzidos pelos anunciantes: após ter verificado os prejuízos provocados
pelo monopólio dos anunciadores sobre a produção televisiva, a organização
de controlo da televisão (FCC) decide que a produção de programas passará
a ser controlada pelas redes. Depressa florescem os acordos entre estas e os
grandes estúdios: começa aquilo a que Douglas Gomery (p. 129) chama a
«hollywoodizaçáo>> da televisão. O circuito de produçã o transforma-se. Um
produtor independente ou que trabalha para um grande estúdio concebe um
projeto. Este é proposto a uma rede pelo estúdio, que o pode fabricar. A rede
sonda os anunciantes e decide eventualmente financiar um «piloto» e, depois,

50
3. PRODUÇÃO DAS SÉRIES

uma primeira temporada. Os anúncios inseridos no progr�ma pagam a rede


(Gomery, p. 114). Os diferentes parceiros da troca são agora quatro: as redes,
os anunciantes, os públicos e as instituições de produção de Hollywood. As
redes estão no centro da troca. Serão os senhores incontestados do jogo até
inícios dos anos 1980: a política das redes torna-se o fator determinante da
produção televisiva. Quanto à produção efetiva dos programas, está nas mãos
dos grandes estúdios. Mas estes não gerem a totalidade da produção, como
nos anos 1930: põem as suas instalações e infraestruturas à disposição de
produtores independentes. Alguns chegam a ter estúdios próprios: Lew Was­
serman, agente de numerosas vedetas e um dos primeiros a compreender que
o futuro de Hollywood passava pela produção televisiva, compra os estúdios
Columbia e fornece séries para a NBC. Lucille Ball prossegue a aventura de
I Love Lucy ao fundar a firma Desilu: contrata Quinn Martin, que cria Os
Intocáveis (1he Untouchables), Gene Roddenbery, criador de O Caminho das
Estrelas, e Bruce Geller, inventor de Missão Impossível. Esta situação instável
da produção beneficia alguns outsiders, como Rod Serling, que roda nos estú­
dios MGM para a CBS uma série que foi um dos únicos verdadeiros sucessos
das antologias dos anos 1950, A Quinta Dimensão (Twilight Zone). A série
mantém-se entre 1959 e 1965, que propõe uma reflexão sobre a sociedade
contemporânea. Os estúdios Desilu produzem ainda l Spy, ·série realizada
por Sheldon Leonard, que apresenta as aventuras de dois agentes do FBI, um
deles negro: é considerada muito realista, apesar do facto de, em finais dos
anos 1960, o FBI não contar ainda com nenhum agente de cor...
O dinamismo dos independentes é reforçado pela lei dos direitos audiovi­
suais, que entra em vigor em 1971. As redes pagam muito mal a produção de
séries: em muitos casos, os produtores só ganham para as despesas. No entanto,
a partir dos anos 1970, não só as redes adquirem os direitos apenas para um
pequeno número de transmissões, como também os produtores podem vender
os seus direitos às estações locais, não episódio por episódio, mas em bloco:
quando a série se conservou durante tempo suficiente na rede (pelo menos
90 episódios), pode ser livremente retransmitida. Estas retransmissões podem
assegurar receitas confortáveis aos produtores (Tinker e Rukeyser, 1994: p. 88;
Williams, 2000: pp. 62-63). A produção de séries começa então a poder render
muito dinheiro. Grant Tinker, que exercera elevadas responsabilidades em
várias redes, aproveita para criar, com a atriz Mary Tyler Moore, a sociedade
independente MTM, que irá exercer grande influência sobre a produção
televisiva americana pelo sucesso das suas séries (o Mary Ijler Moore Show,
estreia da «série», dará o exemplo a partir de 1971) e pela sua organização do
trabalho propícia à criatividade (Feuer, 1984).
Devemos acrescentar que a concorrência das redes beneficia a produção
independente. Se é verdade que a NBC se alia à Universal para que esta lhe
forneça um conjunto importante de séries «com as chaves na mão», cada
rede está sempre em busca de ideias novas que vão mais além. A renovação é
necessária para a sobrevivência. Os produtores inde�en�entes têm t ambém
·A _
muito a ganhar com o jogo da inovação. Quando os md1ces de aud1enc1a de

51
AS SÉRIES TELEVISIVAS

uma rede descem, procuram produtos novos: os limites da «convencionalidade»


são assim continuamente testados pelos produtores de acordo com as redes,
como mostra o exemplo de Marc Alvey (2000: pp. 45-47).
O início dos anos 1980 marca uma segunda viragem na televisão americana:
as redes já não estão sozinhas. Primeiro, a televisão por cabo, depois, a difusão
dos videogravadores constituem concorrentes cada vez mais fortes para a CBS,
NBC e ABC. O facto de o recetor poder servir para outras coisas que não
receber uma emissão é a primeira mudança: a cassete de vídeo desenvolve-se
rapidamente. Os grandes estúdios começam a vender rapidamente os seus filmes
depois de serem transmitidos nos canais por cabo, por exemplo, aos distribui­
dores de cassetes, prática que se tornará corrente após os anos 1990 (Gomery:
pp. 302-303). No entanto, aqueles que nesta época preveem o desaparecimento
das redes enganam-se. Nasce até uma quarta rede, a Fox, dirigida por Rupert
Murdoch. Este utiliza os seus próprios estúdios para fornecerem a sua rede de
televisão. Dá o exemplo dos agrupamentos verticais que se desenvolverão com
a desregulação levada a cabo pelo governo de George W. Bush.
Contudo, do ponto de vista que aqui nos ocupa, é o desenvolvimento
da televisão por cabo que constitui o acontecimento mais importante. Os
canais por cabo visam especialmente nichos específicos: o cinema clássico, o
desporto, de que a HBO se torna especialista, e a meteorologia tornam-se os
alvos dos canais especializados. Estes despertam rapidamente o interesse dos
Americanos. Em 1983, 40 o/o dós lares têm televisão por cabo e, em 1990, já
são 90 %. A audiência das grandes redes cai, passando de 94 o/o em 1975 para
67 o/o em 1990. A produção de séries altera-se, enquanto os canais por cabo
ainda não as produzem. Com efeito, a concorrência destes canais diz respeito,
sobretudo, aos rendimentos mais elevados. Os novos projetos de séries são
melhores e suscetíveis de atrair um público mais abastado. Vários projetos
dos anos 1980, como LA. Law ou 1hirtysomething, nunca teriam visto a luz
do dia se a NBC ou a ABC, os seus distribuidores respetivos, não tivessem
acenado aos seus anunciantes com receitas consideráveis: os produtores de
séries de qualidade são os beneficiários da nova concorrência.
Deste modo, uma série com uma audiência reduzida, mas que atrai um
público abastado será mais facilmente defendida pelos anunciantes e, portanto,
pelas redes (Thompson, p. 31). Em inícios dos anos 1980, A Balada de Hill Street
(Hill Street Blues) fornece um primeiro exemplo. Por razões que explicaremos
mais à frente, esta série desorienta um pouco o público e obtém resultados
medianos. No entanto, impressiona a crítica e atrai categorias socioprofissionais
elevadas. Assim, Fred Silvermann, que dirige a rede NBC e que é o iniciador
do projeto da série, mantém-na multiplicando as retransmissões. Em seguida,
anuncia a segunda temporada, na sequência de recompensas recebidas pela
série nos prémios Emmy. A Balada de Hil Street terá sete temporadas e 148
episódios (Thompson: pp. 66-67). Várias séries são diretamente concebidas
para agradarem à geração dos «yuppies», em particular 1hirtysomething, criada
por Marshall Herskovitz e Edward Zwick para a ABC, que estava então em
dificuldades e procurava novas soluções. Esta série trata das dificuldades

52
3. PRODUÇÃO DAS SÉRIES

existenciais de um pequeno grupo sem grand�s problemas financeiros, mas


com aspirações que acabam por ser defraudadas (Feuer, 1995: pp. 68-80).
Twin Peaks, série nascida de uma carta branca dada pela ABC ao cineasta
muito na moda David Lynch, é outro exemplo da nova política dos estúdios.
A nova política das séries tem uma consequência muito importante: reduz­
-se a vigilância muito apertada que até então era exercida sobre o conteúdo da
produção. Os estereótipos e as convenções vão sendo abandonados. 1he Cosby
Show e as suas personagens afro-americanas são um grande sucesso. Nesta série,
fala-se de sexualidade e começa-se a mostrar a nudez. São também discutidos
os problemas sociais e pessoais provocados por certas doenças como o cancro
da mama. Esta abertura marca o início de um fenómeno que culminará nas
séries do fim do milénio.
Os responsáveis pela produção desta época são, em simultâneo, herdeiros
e inovadores. São os sucessores dos géneros e dos hábitos que se instalaram
desde Dragnet e / Love Lucy. Irão também conceber novas formas de tratar
as personagens e os géneros usuais destinados a públicos fartos de narrativas
demasiado convencionais e mais exigentes. É também neste período que se
afirma o poder do escritor sobre a produção. Como escreve Tom Stempel,
autor de uma notável história dos escritores de televisão, «muitos escritores
transformam-se em produtores para conservarem o maior controlo possível
sobre os seus materiais» (p. 202). Embora alguns deles, como Steven Bochco,
tenham dado o passo um pouco mais cedo, a emigração dos escritores para os
lugares de comando da produção de séries afirma-se nos anos 1980. Torna-se
cada vez mais evidente que «os escritores controlam a televisão», como afirma
Marshall Herskovitz (Longworth, 2000: p. 85).
Ainda que nos falte algum distanciamento histórico, parece que o ano de
1995 e a política agressiva do canal de cabo HBO representam outra viragem
na história das séries televisivas. Este canal por cabo começou a trabalhar com
alguns grandes eventos desportivos, filmes clássicos e programas eróticos.
Autorizado a codificar o seu sinal em meados dos anos 1980, entra plenamente
no sistema económico assente na venda mensal de programas a assinantes. A
cadeia começa a lançar-se na produção em finais dos anos 1980, com a sua
filial HBOIP, que fornece comentários, ficções e comédias não só à casa-mãe,
mas também à Fox. Os programas da «casa» visam claramente «os valores
culturais que [a cadeia] pensa que os assinantes valorizam» (Santo, 2008:
p. 20). Em seguida, toma a decisão de se lançar numa programação de séries
de alta gama. A cadeia oferece meios consideráveis a criadores reconhecidos,
como Tom Fontana, David Chase ou Alan Ball, recentemente oscarizado
pelo argumento de Beleza Americana (American Beauty): devem conceber
séries originais tanto pela forma como pelo tema, de 12 a 15 episódios em
vez dos 24 tradicionais, mas com o mesmo -orçamento global. A HBO faz
saber, com grande publicidade, que os seus autores são totalmente «livres» nas
suas escolhas. Permite, por exemplo, que Tom Fontana aloje os seus cenários
e a sua administração num edifício adquirido para a rodagem de Oz, retrato
emocionante da vida nas prisões americanas (Edgerton, 2008: p. 8). Ao mesmo

53
AS SÉRIES TELEVISIVAS

tempo, exibe explicitamente uma política de «distinção» relativamente ao resto


da televisão, professando que «HBO, lt's not TV>> através das suas mensagens
publicitárias. Este slogan e a sua crítica aberta aos programas das redes aliam-se
à desconfiança da grande imprensa em relação à televisão (Anderson, 2008:
p. 25). As séries propostas pela HBO serão então «diferentes», impertinentes,
profundas e inteligentes.
Observemos, como Christopher Anderson, que esta estratégia é muito
ambígua. Em primeiro lugar, porque a razão pela qual a HBO se envolve na
política de produção de séries é a mesma por que as séries são o programa
favorito das redes: «As séries dão estabilidade e regularidade aos nossos pro­
gramas», declara Chris Albrecht, presidente da HBO (citado por Anderson:
p. 33). Em segundo lugar, apesar de exibirem uma forte identidade visual, as
séries produzidas pela HBO não podem ser demasiado diferentes da herança
serial, sob pena de afastarem o público. De resto, utilizam muito bem esta
herança, tanto mais que a maioria dos autores da HBO foi formada no seu
trabalho para a CBS, NBC e ABC. Por último, para relativizar uma afirmação
de Avi Santo (p. 32), a HBO não foi a promotora de uma política de qualidade
para as séries televisivas: as grandes séries de inícios dos anos 1990-Balada de
Nova Iorque, Lei e Ordem, Ficheíros Secretos, etc. -, produzidas por diferentes
redes, demonstram já grande ambição.
Mas não deixa de ser verdade que a HBO derrubou o muro erigido pelas
grandes redes e acabou com o monopólio delas. Ao mostrar que outros mode­
los de produção eram possíveis, o canal abriu um camínho que seria seguido
por outros, como o Showtime ou o FX. Séries brilhantes e audaciosas, como
O Protetor (lhe Shield) ou Dexter, tornaram-se possíveis graças à decisão do
HBO. Abaladas, as grandes redes reagiram, produzindo cada vez mais séries
segundo o «modelo HBO» (com maior número de episódios), como Donas de
Casa Desesperadas (Desperate Housewives), produzida pela ABC e inicialmente
rejeitada pela HBO. A situação parece então particularmente aberta: qualquer
potencial criador de séries pode encontrar numerosas produtoras a quem
propor os seus projetos. O sucesso crítico e popular das séries atrai cada vez
mais grandes atores e técnicos de qualidade e fornece instrumentos perfeitos
a esses criadores. Podemos então dizer que a política da HBO, sem romper
com um movimento já plenamente iniciado, o acelerou.
Que devemos concluir deste breve panorama da evolução da produ ção
americana de séries? Penso que podemos destacar dois pontos essenciais:

• seja qual for o estado da situação da produção, apareceram sempre mar­


gens, maiores ou menores, que permitiram a exploração da «inovação
. co nvencional» (Alvey) e a exploração mais profunda das possibilidades
oferecidas pelo género serial;
• a pouco e pouco, nasceu um novo ofício, o de criador de séries. Este reúne
duas competências. A primeira é a da escrita: a capacidade de conceber
um universo e personagens suficientemente ricos para sustentarem a
recorrência serial é fundamental. A segunda é a da gestão: a gestão da

54
--
3. PRODUÇÃO DAS Sl:Rf ES

produ ção �e �ma série que implica reunir e dirigir equipas frequente­

mente vanave1s, organizar o trabalho delas, manter a continuidade da
série e enfrentar as exigências das redes, é uma tarefa pesada.

Os criadores de séries não têm então a responsabilidade de escrever todos


os episódios, como pensam erradamente os autores franceses. Podem até nem
escrever nenhum episódio, como Bruce Geller, criador de Missão Impossível.
Contudo, são a encarnação do projeto e o garante da sua realização e da
coerência da su a evolução. O filme, enquanto trabalho de equipa, é da res­
ponsabilidade do seu criador. O realizador do filme vela pela realização de
cada plano; o criador da série vela pela conformidade de cada episódio com
o projeto inicial. O filme tem, por vezes, um argumentista e um realizador
disti ntos. Em certos casos, a série tem um criador e um produtor executivo
diferentes: o primeiro concebe o universo ficcional da série e o segundo
concebe as formas audiovisuais que a vão encarnar. É o caso de Serviço de
Urgência (ER), criada por Michael Crichton e produzida por John Wells, que
soube perfeitamente colocar em episódios o projeto do escritor. No entanto,
encontramos hoje cada vez mais personalidades que seguem os seus projetos
na totalidade, ou seja, desde a criação do universo ficcional até à sua con­
cretização audiovisual.

3. A invenção das séries televisivas


Existem realmente pilotos nas séries televisivas, contrariamente ao cliché
segundo o qual a série é um produto anónimo, concebido em gabinetes co­
merciais. Seja qual for o contexto particular, o projeto de cada série é objeto
de uma negociação entre diferentes tipos de agentes: contudo, para que seja
concretizado, é necessário que um indivíduo o torne seu, se aproprie dele, se
torne o seu garante e o leve até à realização. Seguiremos agora a história de
alguns destes indivíduos que souberam ajustar-se às exigências dos estúdios e
dos difusores e fazer de certas séries a sua obra, infletindo, ajustando, organi­
zando e por vezes até defendendo os projetos que pensavam encarnar.
A história de Gene Roddenberry (Solow e Justman, 1996), «writer-producer»
de O Caminho das Estrelas, é particularmente edificante. Herbert Solow,
responsável pelos novos programas do Desilu, pequeno estúdio criado pelas
atrizes L ucy Ball e Desi Arnaz, de que a série Os Intocdveis fora o primeiro
sucesso, recebe em abril de 1964 um antigo aviador e ex-polícia de Los Angeles,
mal vestido e balbuciante. Este apresenta-lhe um projeto que se assemelhava
às aventuras de Buck Rogers ou de Flash Gordon, mas vividas pela tripulação
de uma nave espacial que tem a missão de manter a ordem da «Federação dos
Planetas Unidos» e contadas da forma mais realista possível. A ficção científica
foi sempre um meio de expressão p olítica nos Estados Unidos, sobret ud o nos
_
tempos difíceis do maccarthysmo: os anos 1950 acolhem filmes como o liberal
O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still, Robert Wise, 1951)

55
--
AS SÉRIES TELEVISIVAS

ou a Invasão dos Violadores (lnvasion ofthe Body Snatchers, Don Siegel, 1955),
uma fábula anticomunista.
Solow vê no projeto de Roddenberry uma oportunidade para introduzir
na televisão uma problemática familiar à literatura ou ao cinema. Conseg uem
convencer a NBC e o seu patrão, Grant Tinker, a realizarem um episódio
piloto. Roddenberry e Solow reúnem alguns antigos técnicos de cinema de
ficção científica, operadores ou especialistas de efeitos especiais como Byron
Haskin, para rodarem no pequeno estúdio uma primeira aventura da nave
Enterprise, desenhada a partir de antigas capas de revistas de pulpfiction. Este
primeiro piloto é considerado demasiado cerebral e demasiado erótico pela
NBC, que, porém, encomenda um novo piloto; no estúdio Desilu, tomam
precauções e preparam três episódios. Esta nova tentativa revela-se decisiva e
o estúdio Desilu envolve-se durante três anos na realização de 80 episódios
de 52 minutos. Trata-se de um desempenho extraordinário para o pequeno
estúdio, que, todas as semanas, tem de «inventar» um novo planeta, ou seja,
um novo cenário, e resolver inúmeros problemas. Alguns destes marcarão
criações memoráveis, como o do «teletransporte», que permite evitar fazer
aterrar a Enterprise, operação financeiramente muito dispendiosa.
Entretanto, Roddenberry multiplica-se, absorvendo e apropriando-se das
ideias de todos aqueles que passam pelo Desilu, impondo uma atriz negra e
outra oriunda da União Soviética para desempenharem papéis recorrentes,
fazendo com que o espírito de tolerância guie as pesquisas e as ações do capitão
Kirk e do tenente Spock, os protagonistas da série. A história de O Caminho
das Estrelas está muito longe de se parecer com a representação de um indústria
hollywoodesca apenas interessada nos resultados financeiros e especialista
na manipulação. O impacto de um «intruso» como Gene Roddenberry na
indústria americana e o seu lugar na cultura política e cultural do país só é
surpreendente se admitirmos esta imagem cómoda.
Quase ao mesmo tempo e nos mesmos lugares, nasce outro projeto original,
levado a cabo por Bruce Geller. Filho de um juiz do Supremo Tribunal, Bruce
Geller obtém em 1952 um diploma da universidade de Yale. É rapidamente
contratado para o departamento de argumentos da firma Warner, torna-se
escritor independente e redige episódios de séries, folhetins, canções e libre­
tos de comédias musicais. Esta passagem por diferentes géneros e diferentes
tipos de escrita aperfeiçoa e diversifica o seu talento de escritor. Em finais dos
anos 1950, ingressa numa pequena casa de produção dirigida pelos atores de
Hollywood Dick Powell, Charles Boyer e David Niven, onde trabalha com
Sam Peckinpah em The Westerner, série cujo título é expressão manifesta do
género. Dirige a produção do Dick Powell Show, antes de assu_mir a direção
da sexta temporada da série que dá a conhecer Clint Eastwood, Rawhide
e
(Liardet, 1996: pp. 8-9). Neste resumo, podemos observar a existência d
vo,
interações características entre o mundo cinematográfico e o mundo televisi
mes
entre «autores» de cinema e «produtores» de séries. Impressionado pelos fil
eller
europeus de Jules Dassin (Du Ri.fifi chez les hommes, Topkapi), Bruce G
z, os
propõe à produtora decisivamente prolífica de Lucille Ball e Desi Arna

56
3. PRODUÇÃO DAS SÉRIES

prot�gonistas. de 1 Lov� L�cy, um projeto de telefilme que inicialmente se


destmara ao cmema, Brigg s Squad. Após várias peripécias, a produtora Desilu
deci�e finalme�t� transformar o argumento inicial num episódio piloto e,
depois, numa sene, que a CBS aceita financiar (Carrazé e Winckler, 1993:
pp. 185-193). A série, rebatizada Missão Impossível, ultrapassa regularmente
os seus orçamentos e a rede hesita todos os anos em mantê-la. No entanto, o
êxito nacional e internacional assegura-lhe a sobrevivência, ainda que a venda
da Desilu à Paramount torne mais incerta a posição de Geller. Este recusou
sempre transigir em relação ao estilo narrativo da sua série e não aceita as
mudanças exigidas pelos seus novos patrões. Acabará por ser excluído da
produção das últimas temporadas.
Na produção da sua série, Geller sabe rodear-se de colaboradores notá­
veis, como John Alton, que aperfeiçoa o estilo da fotografia, Lalo Schifrin na
música, John Chambers e depois Dan Stiepeke nas maquilhagens, e Jonnie
Burke nos efeitos especiais, todos vindos do cinema. A questão do ritmo
narrativo preocupa-o particularmente: «Fascinado pelo ritmo infernal dos
anúncios publicitários, Geller introduzia numerosos inserts [... ], que acele­
ravam consideravelmente a montagem», observam Alain Carrazé e Martin
Winckler (1993: p. 186) na sua excelente obra. A rapidez do episódio piloto
assusta de tal modo os responsáveis da CBS que hesitam em produzir a série.
Mais importante ainda, trabalha com dois argumentistas, W. R. Woodfield e
Alan Balter, para que estes desenvolvam a fórmula de escrita mais ajustada ao
universo que Geller quer descrever, um mundo de espiões que mais parecem
empresários do espetáculo: com efeito, todo o trabalho destes espiões consiste
em enganarem os inimigos com o auxílio de ilusões e encenações cada vez
mais perfeitas. Aos instrumentos dos espiões ou da polícia, os heróis preferem
os do teatro e do ilusionismo: são estes processos que os tornam famosos.
Norman Lear representa um dos melhores exemplos daquilo a que se
poderia chamar a tradição carnavalesca da série televisiva. Após a guerra,
trabalha para o programa de Jerry Lewis e de Dean Martin e, depois, torna-se
realizador e argumentista de um programa que mistura comédia e números
musicais. Com o fim dos programas transmitidos em direto, deixa de trabalhar
para a televisão e torna-se produtor de teatro. Mais tarde, cria uma empresa
de produção que realiza vários filmes a partir de 1963. Os anos 1960 não são
nada propícios ao espírito cáustico, impertinente e irreverente dos primeiros
tempos da televisão. No entanto, o início dos anos 1970 e a emergência da
contestação social dão-lhe algumas esperanças. Propõe à rede ABC a ideia
de uma série adaptada de uma série britânica, que põe em cena um conflito
de gerações entre pais reacionários e filhos liberais. O projeto amedronta os
responsáveis da rede, mas a CBS, que quer ver-se livre das comédias rurais
já antigas, aceita o programa (Marc e Thompson: pp. 49-51): a novidade
proposta por Lear convém à rede. Auxiliado pelos seus dois antigos parceiros
Rob Reiner e Carl Mishkin, Lear prepara cuidadosamente as provocações de
uma comédia cujo protagonista é reacionário, racista, irascível e eternamente
contestado pelo genro. As situações encandeiam-se, revelando um após outro

57
AS SÉRIES TELEVISIVAS

os estereótipos da sociedade americana, a ponto de a CBS sentir necessidade


de avisar os telespetadores de que a série é um tratamento humorístico «das
fragilidades, preconceitos e inquietações da América». O protagonista lança
diatribes frequentes contra os «larilas» e os «coloridos», mas é também vítima
do desemprego e da insegurança social. O genro opõe-lhe um discurso racio­
nal e liberal, mas igualmente pontificante e ingénuo, de maneira que a série
nunca é demasiado maniqueísta e permite que as situações cómicas se desen­
volvam até ao seu termo. Uma Família às Direitas (Ali in the Family) obtém
um enorme sucesso imediato, dura nove temporadas e dá origem a várias
séries derivadas (ou «spin-ojf»). Graças a Norman Lear, a tradição popular
do espetáculo carnavalesco, muito presente no vaudeville do sé culo anterior,
reinstala-se na televisão.
Avancemos uma dezena de anos para falarmos da fábrica de talentos que foi
a MGM, produtora cujo papel sublinharemos no capítulo seguinte. Dick Wolf
foi um dos numerosos criadores de séries que fez as suas primeiras obras na
firma criada por Grant Tinker. Aqui, trabalha com Steven Bochco e participa
na escrita dos argumentos de A Balada de Hill Street. Formado na publicidade,
gosta da fórmula e da concisão, o que seduz Bochco. Este confia-lhe a produ­
ção das últimas temporadas da série. Em seguida, participa na escrita e, por
vezes, na produção de outras séries, antes de ter a ideia de uma série dividida
em duas partes quase iguais e adaptada a várias formas de difusão. Hesita
entre vários projetos e acaba por se decidir por Lei e Ordem, polícia e justiça.
Dick Wolf tem grandes ambições para a sua série: quer contar a história de
uma investigação e, depois, do processo que se lhe segue através de pontos de
vista opostos, os dos diferentes protagonistas da série, polícias ou advogados.
Wolf deseja documentar o funcionamento da justiça americana através das
dificuldades com que esta se defronta (Courrier e Green, 1998). O projeto é
rejeitado pela ABC e pela CBS devido à sua complexidade narrativa e à falta
de um protagonista: nenhuma personagem aparece durante mais de metade
do episódio. Por fim, Brandon Tartikoff e, depois, Don Olhmeyer aceitam
defender para a NBC, durante três anos, um projeto de tal modo exigente
que precisará desse tempo para se impor junto do público e se tornar um dos
maiores êxitos da televisão americana: a opção pela qualidade revela-se muito
recompensadora, uma vez que a série, sem nunca diminuir as suas exigências,
continua hoje a ser exibida e já vai na vigésima temporada (Longworth, 2000:
PP· 2-5).
Desde o início da produção que Dick Wolf impõe uma escrita audiovisual
à altura do projeto, inspirando-se na·.realizaçáo documental de A Batalha de
Argel (La Battaglia di Algeri, Gillo Pontecorvo, 1966): não haverá nenhum
tempo morto, nenhum plano geral, nenhuma imagem descolorida. Pela primeira
vez, metade de uma série é rodada em Nova Iorque em exteriores, em 16 mm,
com uma câmara na mão; os pormenores do estilo da série, dos quais Dick
Wolf diz, com orgulho, que são hoje uma marca de fabrico reconhecida, são
elaborados pelo operador de câmara Phil Oetiker e pelo diretor de fotografia
Ernest Dickerson. Este, com Constantine Makris e John Beymer, aperfeiçoa

58
3. PRODUÇÃO DAS SÉRIES

uma arte da «câmara neutra» lacónica e densa, segundo a expressão empregue


por Dick Wolf. Ed Sherin, especialista na direção de atores, é contratado para
definir o estilo do desempenho dos atores, que é ensinado aos numerosos
intérpretes que participam na série. É pedida ao compositor Mike Post a
elaboração de sequências musicais de pontuação, que permitem acelerar mais
o ritmo narrativo: como vemos com este exemplo, a arte da realização não é
estranha aos criadores de séries.
Quando Steven Spielberg descobre o argumento de Michael Crichton
sobre Serviço de Urgência, há já 15 anos que este tenta vendê-lo a várias grandes
produtoras. Estamos em inícios dos anos 1990 e Spielberg parece finalmente
decidido a passar ao pequeno ecrã este retrato realista do trabalho hospitalar,
com a sua narrativa fragmentada e a sua multiplicidade de personagens que
não param de se cruzar e de se entrecruzar. No entanto, no decurso de algu­
mas conversas, o escritor fala ao realizador do seu último projeto, intitulado
Parque jurássico Uurassic Park): imediatamente seduzido, Spielberg abandona
rapidamente o primeiro projeto e abraça o segundo. No entanto, tem a ideia de
fazer do argumento de ER uma série confiada a John Wells, produtor de China
Beach, série de sucesso sobre uma equipa de enfermeiros durante a guerra do
Vietname. Contudo, Crichton exige que Wells respeite a forma do seu argu­
mento. Wells e a sua equipa transbordam de criatividade para encontrarem
os equivalentes visuais das ideias do argumento de Crichton. Utilização de
tetos verdadeiros, rodagem de mais 80 o/o de planos em steadycam (câmara
transportada na mão, que acompanha os atores), regulação dos movimentos
das personagens, que desviam a atenção da câmara à maneira de um bailado:
nada é esquecido para vencer a aposta do argumento inicial. O prestígio de
Spielberg e de Crichton permite certamente que Wells convença a NBC a não
regatear a produção. Decide-se igualmente não poupar nos termos médicos,
tendo em conta que o público admitirá não compreender o pormenor das ope­
rações. Todos os casos tratados na série serão inspirados por casos reais: uma
equipa dedica-se à recolha de factos médicos graças a uma rede de informadores
que trabalham nos diferentes serviços de hospitais do país. Os argumentistas
contratados para a temporada são regularmente reunidos a fim de «monta­
rem» a dezena de histórias diferentes que formam cada episódio da série. John
Wells consegue satisfazer plenamente o escritor ao cumprir magistralmente
o caderno de encargos de que é depositário, obtendo, ao mesmo tempo, um
dos maiores sucessos da história das séries (Pourroy, 1996).
Para a HBO, era quase evidente e natural convidar Alan Ball para dirigir
uma série para a firma. Estamos no fim de 1999 e o jovem argumentista obtivera
recentemente um Oscar pelo melhor argumento original com o filme Beleza
Americana. «Alan Ball» tornara-se um nome de autor que representava uma
marca de qualidade e era exatamente isso que a HBO procurava nesse fim do
século para impor a sua marca televisiva. Alan Ball pode então fazer as suas
exigências. Não só escolhe um tema difícil- uma empresa funerária- como
também quer produzir e dirigir os episódios. Não lhe falta experiência: trabalhou
em Nova Iorque como diretor artístico de uma companhia teatral, escreveu

59
AS SÉRIES TELEVISIVAS

várias peças, participou na escrita de episódios de várias séries e mostrou 0


seu talento no seio do melhor cinema de Hollywood.
Sete Palmos de Terra (Six Feet Under) distingue-se rapidamente e obtém
vários prémiós logo na primeira temporada. Ball faz aí várias experiências, sobre
a escrita musical da série, a encenação dos monólogos, que são momentos-chave
de cada episódio, ou a mistura de tons burlescos e dramáticos (Akass e McCabe,
2005). A própria narrativa, ao partir de uma situação clássica, constrói uma
reflexão muito contemporânea acerca da qual voltaremos a falar. Os atores
afirmam-se de temporada em temporada e aprofundam progressivamente as
personagens cuja riqueza é surpreendente. Alan Ball terá o cuidado de encerrar
Sete Palmos de Terra no fim da quinta temporada, pondo em cena a morte
de cada uma das personagens principais; trava assim a trajetória de uma série
que talvez a HBO esperasse continuar.
Estes seis resumos contam uma mesma história: numa situação económica
de produção específica, alguns autores souberam adaptar-se para dirigirem
projetos originais ou instalarem no interior de modelos convencionais algumas
características singulares ligadas às situações sociais contemporâneas. Por
exemplo, Gene Roddenberry traduz a sua amarga experiência policial graças
aos universos de ficção científica, beneficiando da audácia de produtores
independentes numa altura em que a indústria da televisão procura novos
rumos; Norman Lear beneficia de uma atmosfera contestatária e do declí­
nio da comédia rural para escarnecer da xenofobia, do chauvinismo ou do
racismo; Dick Wolf apresenta a era das grandes «batalhas culturais» dos anos
1990 (Martel, 2006) através dos conflitos judiciais, baseando-se no desejo de
qualidade das redes.
A produção cultural americana soube sempre cultivar, ao mesmo tempo e
de forma indissociável, «a norma e a margem» (Bourget, 1998), a convenção
e a invenção. A produção televisiva não foge à regra geral. Em cada fase da
história da televisão, existiram latitudes que permitiram que personalidades
obstinadas levassem a cabo projectos frequentemente muito ambiciosos.
Desejando, acima de tudo, dirigir-se ao maior número possível de pessoas
graças à televisão, estas personalidades exprimiram uma inquietação, críticas,
um tema, através de formas narrativas das quais conhecem todos os meios.
Uma destas personalidades constitui, sem dúvida, um símbolo. É por isso que
dedicaremos o próximo capítulo a Steven Bochco.

60
Capítulo 4

Percurso de um inventor
de séries: Steven Bochco

1. A aprendizagem
Steven Bochco é, sem qualquer dúvida, um dos mais prestigiados cria­
dores de séries televisivas da paisagem cultural americana. Construiu a sua
notoriedade resistindo às injunções dos responsáveis das redes ou dos estúdios,
beneficiando também da sabedoria dos conselhos dos diferentes responsáveis
que conheceu, como Grant Tinker ou Brandon Tartikoff Além dos seus vários
êxitos, a grande influência que lhe é reconhecida, a ponto de ser considerado
uma lenda da televisão americana (Longworth, 2000: p. 193), deve-se tam­
bém à forma como soube escolher e formar os seus colaboradores. Muitos são
os grandes nomes da criação de séries americanas que com ele começaram
a carreira: Dick Wolf (Lei e Ordem), David Kelley (Ally McBeal) ou David
Milch (Deadwood) foram argumentistas e produtores de A Balada de Hill
Street ou de L.A. Law.
O percurso de Bochco, ainda que notável, não é excecional: é até perfei­
tamente exemplar. Quando Richard Levinson e William Link (1986: p. 25),
também eles criadores de numerosas séries, lhe perguntaram se a televisão
é o meio do produtor, Steven Bochco respondeu: «A televisão é o meio do
escritor, o que explica por que os escritores se tornam produtores. » O seu
percurso pessoal é uma forte ilustração desta transformação obrigatória para
todos os escritores de televisão que desejam controlar minimamente o futuro
dos seus argumentos. Quase todos os grandes criadores da televisão americana
seguiram o mesmo percurso: em primeiro lugar, uma formação de escritor
e, depois, a aprendizagem da produção e da sua organização. As inflexões
da carreira de Steven Bochco são também, para nós, um perfeito exemplo
daquilo que é um inventor de televisão, dois termos que ainda temos alguma
dificuldade em associar.
Nascido em 1943, Bochco faz um bacharelato em Belas-Artes, com
especialização no domínio da escrita para teatro. Beneficia de uma bolsa de
estudo atribuída pelo MCA a jovens escritores. Graças ao seu padrasto, faz
um estágio na Universal. Empregado no departamento de ficção, aprende a
materialidade do trabalho de escrita para a ficção audiovisual. Acaba por ficar

61
AS SÉRIES TELEVISIVAS

uma dezena de anos neste departamento, posto pela sua direção à disposição
de diferentes produtores. Trabalha como argumentista e como direto r de
escrita. Escreve, por exemplo, complementos narrativos para argumentos
demasiado curtos: o exercício é, por um lado, difícil, pois trata-se de seguir
os passos de um autor e as suas preocupações, e, por outro, característico do
argumentista de séries, que tem de se ajustar a uma fórmula semântica muito
rigorosa (Levinson e Link: pp. 17-18). Conhece um primeiro grande sucesso
quando trabalha numa série criada por Richard Levinson e William Link,
Columbo. A série começa por ser uma peça de teatro cujo papel secundário, o
de um inspetor andrajoso, desempenhado por Thomas Mitchell (o bêbedo de
A Cavalgada Heroíca/Stagecoach), rouba o protagonismo ao papel principal, o
de um criminoso, interpretado por Joseph Cotten. O êxito da peça convence
a Universal a propor à NBC a realização de um telefilme. O diretor de pro­
dução, Don Siegel, aceita e escolhe Peter Falk para substituir Mitchell, que
entretanto falecera. Quando o sucesso leva a NBC a fazer de Columbo uma
série para a temporada de 1972-1973, Siegel escolhe Bochco para supervi­
sionar a escrita dos argumentos. A sua função é verificar a conformidade de
tudo o que é escrito pelos diferentes autores ao espírito e à forma da série. O
supervisor da escrita é então, se assim podemos dizer, o guardião do templo;
Bochco tinha uma tarefa particularmente temível na medida em que Levinson
e Link, de um lado, e Falk, do outro, eram particularmente exigentes. Além
disso, Bochco reserva para si a escrita de certos episódios, alguns dos quais se
tornaram famosos (Dawdiziak, 1991).
Mais tarde, Bochco colabora na escrita de outras séries, como a NBC
Mystery Movie, e depois a Universal dá-lhe a tarefa de preparar «pilotos», ou
seja, telefilmes suscetíveis de se tornarem séries. Esta função é importante,
pois trata-se de convencer o difusor, os anunciantes e o público a fazer de um
telefilme o modelo de um universo serial. Os seus sucessos são reduzidos e
alguns projetos falham. No entanto, Bochco sabe como se distribuem as relações
de força no mundo da produção de ficções televisivas e aprende a conhecer
os processos particulares da permuta televisiva, onde se trocam o cultural e
o económico. Progressivamente, a Universal encarrega-o de «produzir», ou
seja, de organizar rigorosamente o fabrico de episódios de uma ou várias
temporadas de uma série. O papel do produtor corresponde ao do pro dutor
executivo dos grandes anos de Hollywood: o método do «producer-unit system»,
estudado por Bordwell, Staiger e Thompson (1988), é aplicado pelos estúdios
às séries televisivas; contudo, o produtor de séries tem mais responsabilidades,
na medida em que é o garante da continuidade artística. Bochco descobre
que a sua experiência de autor não o preparara realmente para a função, �as
compreende que velar pela continuidade de uma série é uma função essencial
e que um argumentista não está em má posição para a realizar.
Em 1976, escreve e produz uma série policial que durará apenas uma
temporada, Delvecchio. Bochco conhece então vários futuros colaboradores
de A Balada de Hill Street, como o escritor Michael Kozoil e os atores Charles
Haid e Michael Conrad. A fidelidade aos talentos que conheceu ao longo do

62
1-:' ..

4. PERCURSO DE UM INVENTOR DE SÉRIES: STEVEN BOCHCO

seu percurso será uma das suas grandes forças. Como escreve Todd Gittlin
(1994: p. 276), Bochco domina o seu ofício na perfeição, pacientemente
aprendido no seio dos estúdios da Universal. Nesta época, decide trocar
a Universal por uma firma independente, que afirma cada vez mais a sua
influência sobre a produção televisiva, a MTM. Esta empresa é dirigida
por um antigo diretor da NBC, Grant Tinker, que professa a separação
de tarefas: os financeiros têm a missão de tratar dos acordos comerciais,
os produtores e escritores são responsáveis pela confeção das séries. Estes
encontram na MTM uma liberdade criativa inédita no domínio televisivo.
A pouco e pouco, o método fará escola.
Os seus inícios não são inteiramente coroados de sucesso. Prova disso é a
vida breve da série Paris, de excelente qualidade, segundo o museu da tele­
visão de Los Angeles (http://museum.tv/archives/, 2009), que põe. em cena
um capitão da polícia e criminologista afro-americano com vários problemas
pessoais. Bochco aprecia a direção de Grant Tinker, de quem dirá mais tarde
que sabe construir o ambiente necessário à criação (Longworth: p. 198). Tudo
está pronto para o nascimento de uma ficção de grande importância; basta
que as circunstâncias se prestem a isso, o que acontecerá no início dos anos
1980. São estas circunstâncias que passamos a descrever.

2. A necessidade de uma renovação genérica


e a «revolução» Da/las
Do ponto de vista da ficção, o desenvolvimento da rádio e, depois, da tele­
visão americana é marcado pela mesma divisão: a conceção dos programas não
é a mesma conforme sejam difundidos em prime-time ou em day-time (Allen,
1985: pp. 77-78). Os primeiros são preparados para um público masculino
e os segundos para um público feminino. Esta divisão prolonga aquela que
a indústria de Hollywood operou entre o cinema de aventura e os «women's
films» ou ficções sentimentais, dos quais David Selznick se tornou especialista.
Se olharmos mais para trás, vemos que esta divisão se enraíza, como mostrou
Nora B aym (1978), na oposição entre dois estilos de literatura popular, uma
aventurosa e masculina, a outra sentimental e feminina. Neste longo e duplo
trajeto em que dois géneros narrativos fortemente sexuadas vivem lado a lado
evitando cruzarem-se, um culturalmente valorizado e o outro continuamente
depreciado, o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 marcam um ponto
de transformação: iremos encontrar-nos no raro caso em que duas linhagens
ficcionais se vão não só combinar, mas também fecundar-se reciprocamente.
O período inicia-se com um aumento do interesse pelos géneros narrativos
femininos, mesmo entre os universitários, pouco apreciadores deste tipo fic­
cional. Os gender studies são os primeiros a manifestarem-se nesta matéria: o
famoso artigo de Tania Modleski, «The Search for Tomorrow in Today's Soap­
-opera», data de 1979 e prossegue o trabalho empreendido por Carole Lopate
(1977), antes de a obra dirigida por Richard Dyer (1981) sobre Coronation

63
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Street marcar uma viragem no interesse crítico. Provavelmente pela primeira


vez, o género da ficção sentimental é levado a sério no espaço público.
Os patrões das grandes redes de televisão interessam-se também um pouco
mais pelas soap-operas. Desde logo porque os heróis dos cop-shows dos anos
1970, Mannix, Kojak ou Baretta, já não são lucrativos (Tartikoff, 1993: p. 159).
Estes, que ocupam tradicionalmente o horário nobre, começam a aborrecer
seriamente um público feminino que deseja que os seus gostos sejam levados
em conta.
Neste contexto, o êxito de Da/las constit u i u m acontecimento. A série
criada por David Jacobs impõe-se de forma progressiva. Cinco episódios na
primeira temporada e duas dezenas na segunda, em que um sucesso moderado
recompensa uma subtileza e uma complexidade narrativas pouco habituais
numa soap-opera. Um golpe de mão fará o resto: a terceira temporada, que
obtém maior sucesso, termina com o disparo sobre J. R. A América espera
fervorosamente durante o verão pelo início da temporada seguinte e pela
solução do enigma. Dallas prova que uma soap-opera, a custo de intrigas
múltiplas e de suspenses quase policiais, pode impor-se no horário nobre (Marc
e Thompson, pp. 198-199).
Para os patrões das redes, torna-se evidente que é necessário procurar novas
soluções narrativas, ainda que a dificuldade permaneça: como conciliar os dois
grandes géneros dramáticos, as cop stories, dominadas por narrativas lineares
em torno de um heroi forte e único cuja psicologia se resume à sua vontade
de conservar ou de restituir a ordem instituída, e as soap-operas, fechadas em
torno de uma comunidade duradoura com equilíbrios instáveis, em que a ação
reside apenas no comentário infindável de aventuras sentimentais e sexuais?
Se designarmos porformula a estrutura ontológica da qual alguns elementos
são constantes e outros variáveis e que define precisamente uma série, parece
que as fórmulas que definem, por um lado, os cops chows e as que, por outro,
caracterizam as soap-operas são inconciliáveis

3. A invenção de A Balada de Hill Street


A situação é clara. De um ponto de vista comercial, as grandes fórmu­
las comerciais dos anos 1970 estão esgotadas: o cansaço dos telespetadores
desafia os responsáveis da produção a encontrarem novas fórmulas culturais
a fim de recuperarem o equilíbrio económico. Esta conjuntura não deve as
suas especificidades apenas à indústria televisiva. Quase todas as situações de
instabilidade cultural geradoras de novidade podem ser descritas da mesma
maneira. Quer se trate dos mercados florentinos do século XIII descritos por
s
Frederik Antal (1991), novos-ricos e novos comanditários de obras pictórica
em busca de um estilo ajustado às suas conceções da fé, ou da emergência de
ura
uma classe de peq1:1enos burgueses letrados em finais do século XIX à proc
undo
de legitimidade, de que Flaubert seria um representante exemplar, seg
esm
Christophe Charle (1979) ou Pierre Bourdieu (1992), encontramos a m a

64

---
4. PERCURSO DE UM INVENTOR DE SÉRIES: STEVEN BOCHCO

aliança: uma situação económica (por vezes política) inédita e um vazio cultural
que reclama «uma nova arte de inventar» (Bourdieu: p. 377). Acontece então
que um artista (pintor, escritor, cineasta, escritor-produtor, etc.) se apodera
da situação e propõe uma solução. No caso que nos ocupa, esse artista será
Steven Bochco. É verdade que nem todos os impulsos vêm dele, mas será ele
quem fará a maior parte do trabalho.
Devemos ao sociólogo Todd Gittlin (1994: pp. 273-324) e ao historiador
Robert Thompson (1996: pp. 59-74), bem como a dois agentes importantes
desta época, o patrão da NBC Brandon Tartikoff (1993: pp. 159-167) e o do
Studio MTM Grant Tinker (1994: pp. 123-131) quatro descrições precisas
e convergentes da elaboração da série. O impulso vem de Fred Silverman,
então responsável pela NBC. Impressionado com o êxito do filme Fort
Apache, The Bronx, realizado em 1980 por Daniel Petrie, Silverman pede a
Brandon Tartikoff, diretor do departamento de ficção, que prepare uma série
análoga à intriga do filme: interessou-se por esta história de uma esquadra
de polícia num bairro difícil de Nova Iorque um pouco abandonado pelas
autoridades. Tartikoff recorre à MTM e a Steven Bochco para executarem
o projeto. No entanto, Bochco não tem qualquer vontade de refazer um
cop show: com Michael Kozoll, prepara uma série centrada num hotel,
«que [seria] como uma pequena cidade, onde entram e saem pessoas que
enfrentam dificuldades e situações variadas» (Gittlin: p. 279). Contudo, a
rede insiste na sua história de polícias. Tartikoff condescende: não seria um
cops-and-robbers clássico, mas sim o retrato de uma comunidade que enfrenta
múltiplos problemas pessoais e profissionais, inserida num contexto social
muito marcado: uma esquadra.
Bochco e Kozoll começam por ficar desiludidos com a proposta de
Silverman; no entanto, Bochco encontra no projeto algumas semelhanças
com Delvecchio ou Paris, as suas séries anteriores. Avalia também as enormes
dificuldades que se anunciam: tal série iria contra todos os hábitos das redes.
Apoiado por Grant Tinker, pede à NBC total autonomia criativa e reuniões
sucessivas com o departamento das normas e padrões, que define o que se
pode e o que não se pode fazer na rede. Como relata a Levinson e a Link
(pp. 22-23), obtém, para sua grande surpresa, tudo o que pede no plano cria­
tivo (o primeiro episódio será transmitido em janeiro de 1981). A discussão é
mais difícil com a censura interna da NBC, quando anunciam o que será a
esquadra, «medonha, dura e grosseira», segundo a descrição de Gittlin (p. 281).
De facto, o ecrã não será preenchido por um bom polícia íntegro, mas sim
por uma larga amostra de polícias diferentes, por vezes estranhos e muitas
vezes imperfeitos. Além disso, a presença de uma advogada mais que sensu al,
de um hispânico e de um afro-americano entre os responsáveis da esquadra,
já para não falar do carácter ridículo do chefe dos serviços de intervenção,
provocam a ira dos diretores da NBC. Alguns argumentos, como aquele em
que os agentes descobrem um homem que parece ter relações sexuais com
uma cabra, cristalizam particularmente a atenção. Mas Bochco não cede; as
intervenções musculadas de Grant Tinker (Tinker: p. 99), que exige que se

65
..
AS SÉRIES TELEVISIVAS

dê liberdade aos seus «producers», mostram-se necessárias para o nascimento


e para a sobrevivência da série.
Steven Bochco decide que o interesse fundamental da narrativa deve residir
na comunidade profissional reunida na esquadra de Hill Street. A investigação
policial será secundária e destinada essencialmente a mostrar as relações entre
os polícias e com os habitantes do bairro. A extrema dificuldade dos prota­
gonistas em conservarem a dignidade e a humanidade tanto dos concidadãos
como de si próprios dramatiza por vezes violentamente a narrativa de certos
episódios, antes de se tornar o tema principal de A Balada de Nova Iorque,
lançada dez anos depois pelo mesmo produtor e que pode ser vista como uma
continuação de A Balada de Hill Street.·Ao mesmo tempo que concebe com
Michael Kozoll personagens. e situações da série, Bochco procura os técnicos
capazes de criarem a atmosfera de «alta densidade, de energia nervosa e de
caos controlado» (Gittlin: p. 281) que deseja ver no pequeno ecrã. Contrata,
por exemplo, Gregory Hoblit, que frequentara os mesmos meios universitários
de Coppola, Scorsese ou Schrader, para coordenar a produção. Este último
empenha-se em «sujar» a imagem, o som, o cenário e o guarda-roupa a fim de
mostrar a esquadra decrépita que o criador deseja. Hoblit torna-se o precetor
de todos os que são chamados a colaborar: ensina-lhes a fazerem aquilo que é
interdito em toda a parte. Assim, convence pacientemente Michael Cronjaguer
de que não será despedido se aperfeiçoar a fotografia sombria e a imagem suja
da série. Para filmar o episódio piloto e dar o tom, a produção contrata um
realizador reconhecido e considerado intrépido, Robert Butler. Bochco resolve
confiar a Ted Post, músico ambicioso, a composição das escansões musicais
que pontuam a narrativa sem a tentarem acompanhar. Quase todos os atores
escolhidos já haviam trabalhado com Bochco ou com Kozoll, que os julgam
capazes de darem rapidamente vida a um cenário ou a uma história (Levinson
e Link: pp. 23-25).
É sobretudo a fórmula narrativa que requer toda a atenção de Steven
Bochco. Os argumentos de A Balada de Hill Street serão compostos de histórias
múltiplas, de que cada episódio apresenta um fragmento. O aperfeiçoamento
desta técnica, dita de arcos narrativos, torna obrigatório o trabalho coletivo:
um mesmo episódio pode conter várias histórias, cada uma com um autor,
que devem ser articuladas entre si. Além disso, cada arco narrativo pode ser
comentado pelo pessoal da esquadra e pelos seus familiares, à maneira da
soap-opera. Cada um deve aparecer, se não como uma investigação social,
pelo menos como uma atividade policial, à maneira do cop-show. Os vários
escritores ao serviço da série deverão compreender, prosseguir e adaptar o
trabalho dos outros. É adotado um método de trabalho: a estrutura de cada
episódio é desenvolvida de forma progressiva e paciente em reuniões entre
argumentistas e produtores antes de a escrita final do episódio ser confiada a
um deles. Este método, que implica a participação geral na escrita, permitirá
que a série suporte a saída de Michael Kozoll após a primeira temporada,
substituído por Leffrey Lewis e por David Milch, o que não afetará a qua-
lidade da escrita.

66

-
... c---------------------------------------
1

4. PERCURSO DE UM INVENTOR DE SÉRIES: STEVEN BOCHCO

4. A que se assemelha um episódio de


A Balada de Hill Street?
A primeira cena de cada episódio dá o tom da série: o sargento Esterhaus,
um polícia simpático, descreve diante de um auditório pouco atento e hete­
róclito as missões da esquadra para o dia. O zunzum não para, enquanto a
câmara, frequentemente agitada, parece aderir ao ajuntamento de polícias. As
personagens passam umas em frente das outras, mantendo o quadro numa
espécie de movimento perpétuo. Com frequência, a câmara captura os breves
olhares que cada um lança sobre o outro. Assim, o ponto de vista é o do grupo
sobre o grupo, que inclui também os delinquentes com que lidam os polícias
de Hill Street. Em seguida, desenvolvem-se vários fios narrativos que tecem
uma manta de retalhos: as ruturas são rápidas e as recuperações são aleatórias.
Uma estória pode ser abandonada durante muito tempo e, depois, reaparecer
de repente. No episódio piloto, os polícias estão essencialmente ocupados
com uma tomada de reféns numa mercearia, enquanto pequenos incidentes
de ordem profissional ou privada não param de surgir. De resto, a série não se
priva de lembrar aquilo a que os telespetadores escaparam: o chefe da força de
intervenção deambula pela esquadra, propondo serviços que ninguém quer.
Constantemente ridicularizado e provocando catástrofes repetidas, veste o seu
colete à prova de balas como um símbolo da sua fraqueza.
A personagem principal é o chefe da esquadra, o capitão Furillo, patronímico
que parece fazer dele um herdeiro de Batman. No entanto, o seu papel consiste
em consolar ou em negociar acordos privados entre as diferentes personagens.
No primeiro episódio, tenta que o chefe de um bando local intervenha para
permitir que os jovens gangsters fechados numa mercearia com os seus reféns
saiam sem que haja feridos. Quando um helicóptero fretado pelos media dá a
crer a estes que estão a ser atacados, Furillo lança-se sobre eles para os proteger
com o seu próprio corpo. Os seus colaboradores agem da mesma maneira:
os agentes Hill e Renko põem fim a uma briga com facas ao incitarem uma
mulher a dar mais satisfação sexual ao marido. A socióloga Jane Feuer (1995:
p. 63) vê em Furillo uma figura patriarcal destinada a manter a ordem. No
entanto, parece-me que o capitão, ele próprio muito dependente da sua bela
amante, a advogada Joyce Davenport, está mais próximo das mães fortes
características das ficções sentimentais: manter a ordem significa sobretudo,
em A Balada de Hill Street, resolver os problemas de toda a gente, incluindo
as cenas domésticas entre os casais de agentes que fazem equipa. Furillo, que
reencontra tradicionalmente a sua companheira na intimidade das cenas finais,
é uma personagem próxima da interpretada por Noele Gordon em Crossroads,
célebre série britânica cuja protagonista é proprietária de uma pensão familiar
e se ocupa dos problemas da comunidade. A parceira do capitão, Davenport,
parece cheia de iniciativa e muito «profissional»: completa bem o contraste
proposto por A Balada de Hill Street com as séries que a precederam.
Tudo se passa como se a série tivesse deslocado a estrutura narrativa das
soap-operas, organizada em torno de uma família, para os bairros difíceis de

67
--
AS SÉRIES TELEVISIVAS

um subúrbio: este torna-se uma «família» por vezes desesperante, mas que
continua a ser o único elemento de união. Além disso, as autoridades «fami­
liares» parecem ter comportamentos mais oriundos das universidades de maio
de 1968 do que das casas burguesas: a noção de «comunidade» sentimental
parece revisitada pelos herdeiros da contestação política. Este ponto de vista
inspira uma visão crítica das instituições americanas, políticas, judiciárias e
policiais, cuja representação oferecida na série não é muito lisonjeira.
A Bala.da de Hill Street mostra perfeitamente a amálgama entre vida pro­
fissional e vida privada, investigações policiais e problemas conjugais, abrindo
assim caminho às narrativas de séries atuais tão diferentes como Serviço de
Urgência, Sete Palmos de Terra ou Nip/Tuck: se há crimes e investigações é,
essencialmente, para ilustrar as dificuldades da esquadra e do seu pessoal.
Reciprocamente, os problemas privados mais não fazem do que prolongar
os problemas encontrados durante as investigações. Os autores conseguem
desdobrar a vida diversa de uma comunidade cujos guardiães ajuramentados
parecem muito próximos. Encontra-se assim finalmente um compromisso
entre a soap-opera e o cop-show. Se a investigação, sem perder o seu interesse
específico, está ao serviço da descrição de um grupo de homens e mulheres,
deixa de haver antinomia entre os dois géneros e passa a existir complementa­
ridade. Esta fusão efetiva, típica da prática da escrita popular, dará o exemplo
e origem a numerosos e felizes casamentos genéricos nos anos seguintes. Para
que Jacques Derrida (citado in Gere, 2007: p. 129) possa escrever que os
géneros literários são aquilo que não se mistura, tinha de ignorar realmente
toda a ficção popular ...
O piloto e os primeiros episódios de A Bala.da de Hill Streetchocam algumas
plumas virtuosas e não obtém grande sucesso. Os primeiros telespetadores
sentem-se incomodados. Na Grã-Bretanha, por exemplo (Jenkins, 1984),
embora considerem o programa interessante, os críticos ficam perturbados:
não sabem o que chamar à série. Será um cop-show com passagens semelhan­
tes a uma soap ou a uma soap-opera que finge ser um policial? No entanto,
Silverman e Tartikoff vêm nisto uma vantagem e apoiam a série: após a trans­
missão dos 13 primeiros episódios, a NBC volta a passar os dois primeiros e,
uma semana depois, o terceiro e o quarto, e os seguintes à razão de dois por
semana. Durante o verão, uma retransmissão completa terá grande sucesso
graças ao passa-a-palavra e a uma crítica cada vez mais entusiasta (Gerrold,
. 2004: p. 75). O público acaba então por se habituar e faz da série um sucesso
relativo. Além disso, A Balada de Hill Street coleciona os prémios atribuídos
tanto aos autores como aos produtores. A NBC, pouco habituada aos elogios
críticos, fica satisfeita com o prestígio que lhe dá a série e resolve apoiá-la
durante alguns anos. A série torna-se também um ponto de referência muito
importante dos escritos académicos. Poucos deixam de fazer referência à sua
1
elaboração, ao seu êxito e às mudanças que induz. As interpretações não são

unânimes. Citemos, por exemplo, Todd Gittlin (1994), para quem o êxito da 1

série decorre da apresentação das contradições de uma sociedade americana


pouco inclinada a acreditar na política. Jane Feuer (1995) viu nela o ponto de

68
4. PERCURSO DE UM INVENTOR DE SÉRIES: STEVEN BOCHCO

partida da exibição daquilo a que chama «culpabilidade yuppie»: a geração dos


estudantes contestatários de 68, reconvertida aos negócios, sentia-se pouco à
vontade ao verificar que constituía o mais forte apoio da ideologia reaganiana.
Paul Kerr (1984), mais interessado nos problemas estéticos, vê no realismo
da série uma forma de evitar os estereótipos que espreitam em todas as séries
policiais. Para ele, A Balada de Hill Street é, sobretudo, o ponto de partida de
uma estética «impura» de equilíbrio instável.

5. De A Balada de Hill Street


até à Balada de Nova Iorque
O êxito rapidamente reconhecido de A Balada de Hill Street vale a Steven
Bochco uma reputação considerável. Os seus projetos passam então a ser
recebidos com a maior das atenções. A preparação da série seguinte dá disso
um exemplo. Ainda enquanto está a produzir A Balada de Hill Street, assina ·
um contrato com a NBC para fazer uma série jurídica. No entanto, alguns
conflitos internos na MTM levam ao seu despedimento pela nova direção
da firma; Bochco assina imediatamente um contrato lucrativo com a 20th
Century Fox para preparar aquilo que viria a ser L.A. Law, em acordo com
o novo patrão da NBC, Grant Tinker, seu antigo patrão da MTM. Recruta
então uma ex-advogada que se tornara produtora, Terry Louise Fisher. Bochco
contrata também escritores capazes de descreverem o mundo jurídico e casos
judiciais interessantes, entre eles, um jovem advogado com gosto pela escrita,
David Kelley. Este dirigirá rapidamente a produção da série quando Fisher
se incompatibiliza com Bochco, continuando este a lançar séries para outra
rede, a ABC (Thompson: pp. 121-125; Levine, 1996: pp. 17-19).
L.A. Law herda alguns dos aspetos mais característicos de A Balada de
Hill Street e, ao mesmo tempo, afasta-se deste modelo em muitos pontos. A
vida de grupo é o que surge como traço mais comum: em L.A. Law, a atenção
centra-se num escritório de advogados e nos seus vários colaboradores, com
as suas relações de poder e as suas relações sentimentais. Em cada episódio,
misturam-se várias histórias, algumas das quais desenrolando-se durante grande
parte da temporada. Em contrapartida, esta série apresenta personagens mais
distintas em cenários mais elegantes. A violência física desapareceu para dar
lugar a uma violência psicológica. A lei não é aqui apresentada como a arte
de punir os maus, mas sim como a aplicação difícil das regras jurídicas a um
conjunto de diversas práticas sociais. Certamente por influência de Fisher, as
personagens e as problemáticas femininas estão muito mais presentes e têm
mais importância.
Bochco não tem tempo para se envolver na produção como tinha na altura
de A Balada de Hill Street. O seu novo contrato com a ABC, que o autoriza
a criar dez séries sem condicionalismos, leva-o a realizar várias experiências
nem sempre coroadas de sucesso. Será ao dar uma continuação a Balada de
Hill Street que recriará um universo igualmente rico.

69
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Melhor do que ninguém, Joyce Millman (2004: p. 11) pode explicar o


quão forte é a filiação entre A Balada de Hill Street e a Balada de Nova Iorque:
«Acima de tudo, A Balada de Nova Iorque e-A Balada de Hill Street têm como
tema uma família no trabalho, um grupo de pessoas sem laços de parentesco
que partilham um espaço de trabalho, que é para eles uma família de substitui­
ção.» Urna personagem particular liga as «famílias» das duas séries: o tenente
Norm Buntz, que., na primeira, desempenha o papel da ovelha negra racista
e sexista, é o herói da segunda série, com o nome de tenente Andy Sipowicz.
Interpretado por Dennis Franz, tem as mesmas características (às quais se
acrescentam o alcoolismo e a homofobia) e comportamentos semelhantes.
Se A Balada de Hill Street seduziu de forma progressiva, A Balada de Nova
Iorque será imediatamente um choque cuja audácia, aqui resumida por Alain
Carrazé (2007: pp. 180-181), é surpreendente: «A Balada de Nova Iorque é
muito mais do que uma série inspirada nos filmes urbanos negros, uma série
criminal sombria e sem concessões, um brilhante desempenho de atores e
uma encenação insana.»
O contrato de Bochco com a ABC assegura-lhe maior liberdade de pre­
paração do que aquela de que dispunha dez anos antes. No entanto, a decisão
de fazer do pior dos polícias um dos protagonistas da série e de o estabelecer
depois como seu eixo e o seu ponto de referência começará por colocar nume­
rosos problemas aos difusores que transmitem A Balada de Nova Iorque. Que
vemos nos primeiros 25 minutos do primeiro episódio da série? Um polícia
presta um testemunho falso, mostra uma grosseria descarada em relação ao
procurador, bebe até não conseguir manter-se de pé, agride violentamente um
suspeito num restaurante, tem relações sexuais com uma prostituta e, por fim,
é abatido por um vadio também mais ou menos ridículo. Parece interessante
descrever as dificuldades com que Steven Bochco se debateu para impor tal
personagem como herói de uma série policial: poderemos assim avaliar como,
nos Estados Unidos, uma série constitui um objeto cultural importante que
pode ser publicamente defendido ou criticado.
Regressemos à conceção de A Balada de Nova Iorque. Uma vez tomada
a decisão, com David Milch, então seu principal colaborador, de acentuar o
realismo sombrio de A Balada de Hill Street, de situar a série em Nova Iorque,
cidade de todas as misturas e de todos os crimes, e de retratar a polícia num
ponto de extrema corrupção, Bochco começa a negociar com os responsáveis
da rede. Estes concordam em transmitir uma nova série com polícias numa
esquadra e em situá-la em Nova Iorque. Mas ficam assustados, tal como os
anunciantes, com a vontade de Bochco e de Milch de reconstituírem a lingua­
gem muito pouco cuidada dos representantes da lei e de apresentarem a crueza
da violência quotidiana com que estes são confrontados, bem como as partes
de sexo e de nudez que, para os criadores, são necessárias. Enquanto David
Milch trabalha com um célebre e experiente tenente da polícia nova-iorquina,
Bill Clark, recolhendo com ele os casos que inspirarão os argumentistas, Ste­
ven Bochco tem de negociar sob pressão e a passo e passo com os patrões da
rede. É tanto mais difícil porquanto, na mesma altura, o Senado investiga a

70
r 4. PERCURSO DE UM INVENTOR DE SÉRIES: STEVEN BOCHCO
1

perigosidade da violência e da sexualidade exibidas na televisão. Bochco lança


como argumento o princípio da autenticidade da representação que sempre
defendeu, incluindo nos seus fracassos como Civil Wars, e a rede responde-lhe
em nome da decência pública. Como recorda David Milch numa entrevista
(Boles, 2002), as negociações prolongar-se-ão durante um ano inteiro. Por fim,
chegam a um acordo: é definido o «reservatório» de insanidades admissíveis
e fixado o seu volume por episódios (Milch e Clark, 1995).
Contudo, a série passaria por mais dificuldades. É organizada uma projeção
do episódio piloto para os 225 canais afiliados da ABC nos Estados Unidos.
Embora a sua qualidade seja reconhecida, alguns dos representantes ficam
chocados tanto com a aspereza da linguagem como com certas algumas de
amor um pouco vigorosas demais. A personagem do detetive Sipowicz, o seu
alcoolismo e os seus perjúrios também não deixam de agitar algumas cons­
ciências católicas. É grande o risco de a ABC resolver não difundir o telefilme
ou que o passe a uma hora muito tardia, o que significaria que a série não
teria continuação. O reverendo Wildmon, representante da poderosa Ameri­
can Family Association, publica anúncios nos jornais para manifestar a sua
hostilidade ao projeto e fazer pressão sobre a ABC. No entanto, não ganhará a
causa. Dois elementos essenciais fazem os pratos da balança penderem a favor
da série: em primeiro lugar, a hábil campanha de imprensa levada a cabo pelo
próprio Steven Bochco, que se indigna contra a tentativa de censura de que
é vítima. Alguns dias após a transmissão do primeiro episódio, o New York
Times fará dos excessos de Wildmon uma das razões da atenção pública em
relação à série e do sucesso obtido pelo episódio piloto (Elliot, 1993). Contudo,
A principalmente a convicção de Bob Iger, patrão da ABC, e a confiança de
Dan Burke, responsável pelas redes afiliadas à ABC, que permitirão que a série
seja largamente difundida e, depois, desenvolvida. Apesar de ser um cristão
convicto, Burke reúne-se várias vezes com Bochco e resolve confiar nele: deixa
o argumentista decidir o grau de crueza verbal ou sexual necessário à série.
A originalidade e a força de A Balada de Nova Iorque são imediatamente
reconhecidas pelo público, que assiste de forma cada vez mais maciça à pri­
meira temporada. A crítica dá conta da sua própria estupefação; por exemplo,
o crítico do New York Times, John O'Oconnor, afirma que o programa de
que mais se fala é também, desde há muito, o melhor que passa na televisão
(O'Connor, 1993). As 50 redes afiliadas, que, antes, haviam decidido não
transmitirem a série, reviram a sua atitude, apesar dos esforços do reverendo
Wildmon, que acusa David Milch de ser heroinómano (o que, na verdade, fora
há 20 anos) e viciado no jogo. Os seus esforços serão vãos, em parte porque
a grande imprensa defende aberta e sistematicamente a série. O New York
Times dedicará meia página a dar a palavra a David Milch, a Steven Bochco
e a outros para lhes permitir defesa mediática.
É-nos muito difícil apreender a importância desta controvérsia americana:
a nossa condescendência relativamente às séries impede-nos de perceber o que
estava em jogo. Nos Estados Unidos, onde a ficção popular é, desde as origens,
o cadinho em que se constroem os imaginários da nação, ninguém se admira.

71
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Consideremos o exemplo de um dos fundadores desta cultura, James Fenimore


Cooper. Tal como os seus outros escritos, O Último dos Moicanos (1826) não
é apenas um «puro» romance de aventuras, mas também uma apologia polí­
tica de uma certa ideia da América, e foi assim que o público o recebeu. Para
os seus criadores, Jerry Siegel e Joe Shuster, dois judeus consternados com o
crescimento do fascismo no período de entre as duas guerras, Super-Homem
é um Hércules dos tempos modernos, capaz de lutar contra as tiranias. É
também um último recurso face a Hitler. Os seus comics são testemunhas de
um período em que grande parte da criação ficcional popular (particularmente
cinematográfica) defende uma política externa intervencionista. Voltaremos a
falar da implicação natural da cultura popular nos domínios social e político,
mas é preciso, desde já, manter esta ideia presente.
A história de Steven Bochco ilustra não só a tenacidade de um autor, no
sentido pleno do termo, que se bateu para impor os seus projetos, mas também
a resolução e até o arrojo dos dirigentes de uma rede muito comercial de difusão
televisiva. Bob Iger, por exemplo, conserva o seu projeto e o seu orçamento
bastante elevado em relação às normas previstas, ainda que alguns dos seus
anunciantes habituais para os cop-shows renunciem à Balada de Nova Iorque
e que algumas redes afiliadas recusem transmitir a série: sabe que a inovação
é necessária a qualquer produção cultural e que, por vezes, é preciso saber ir
para além dos hábitos. A indústria cultural americana revela-se aqui capaz
de promover a inovação, mesmo que esta choque as sensibilidades conserva­
doras: mais à frente, veremos como é que a rede Fox, dirigida por espíritos
reacionários, se acomodou a uma série como Os Simpson, de enorme sucesso
popular, que nunca deixou de criticar e de escarnecer da rede que a difunde.
É evidente que a personalidade de Bochco não é estranha a esta receção: a
sua experiência e os seus êxitos anteriores foram importantes para a confiança
atribuída àA Baúida de Nova Iorque. O compromisso (dificilmente) conseguido
entre todos os intervenientes assentou, em grande parte, nas garantias que o
criador de A Balada de Hill Street podia oferecer.
Ao representarmos o duplo contexto económico e cultural da produção
de séries através do percurso de Steven Bochco, quisemos sublinhar aquilo
que surgiu sempre como uma evidência: as séries são fabricadas segundo um
processo pouco diferente de qualquer produção cultural ou artística. Algumas
pessoas (podemos chamá-las autores) têm projetos e entram em negociação
com instituições para concretizarem esses projetos, que, na maioria dos casos,
defendem e representam geralmente uma grande ambição. O seu trabalho, o
conhecimento do ofício, os colaboradores que recrutam, as culturas e gostos
de todos, os hábitos de trabalho de uns e outros contribuem para a produção
de objetos por vezes notavelmente originais, como é o caso de A Baúida de Hill
Street ou de A Balada de Nova Iorque, capazes, além disso, de encontrarem
(no caso que nos ocupa) públicos consideráveis que os apreciam. Voltaremos
às novidades formais, narrativas e culturais de A Balada de Nova Iorque, que
me parece ser, devo confessá-lo, a digna sucessora das maiores obras do cinema
americano, as de um John Ford, por exemplo.

72
Terceira Parte

Séries televisivas
e narr�çao
• A inscrição da série na história da ficção popular

• As séries «imóveis»

• As séries «evolutivas»

-
Capítulo 5

A inscrição da série na
história da ficção popular

1. Uma herança
Qualquer produção cultural se situa na confluência de dois fluxos. O
primeiro resulta da história económica, social e política das instituições de
produção; o segundo decorre da história dos géneros e modelos simbólicos. Por
exemplo, foi a forma como se articularam estas duas dimensões, económico­
-social e cultural, que «produziu» a tragédia clássica (Viala, 1985). Do mesmo
modo, a produção de séries não é um mero fenómeno económico e social. É
também herdeira de géneros narrativos criados pouco a pouco desde inícios
do século XIX. Os produtores de séries são os descendentes dos romancistas
e dramaturgos, criadores de aventuras e de romances: é a importância desta
herança que desejo ilustrar neste capítulo.
A evolução das conjunturas de produção e o desenvolvimento das transfor­
mações genéricas possuem as suas temporalidades específicas: as acelerações
económicas nem sempre estão em sintonia com as dinâmicas simbólicas. É
pouco provável que os modos de produção habituais na indústria da televisão
procedam diretamente da economia da primeira metade do século XIX. Em
contrapartida, é certo que os formatos narrativos utilizados e desenvolvidos pelos
criadores de séries decorrem da escrita romanesca e teatral nascida entre 1800
e 1840. Para termos uma ideia da intensa criatividade dos produtores atuais,
devemos começar por avaliar o capital simbólico que herdaram. É claro que
não podemos fazer aqui uma descrição rigorosa ou até suficiente dessa herança.
Por isso, limitar-nos-emos a sublinhar algumas das suas articulações decisivas.
A herança de que falamos poderia ser chamada «ficção popular», que é um
termo menos desvalorizador do que «paraliteratura» ou «cultura de massas»,
entre aqueles que são ou foram utilizados: designa o tipo de enunciação tratada e
o público visado pelos objetos produzidos, sem levar em conta o meio utilizado
(a literatura, o cinema, a banda desenhada e a televisão contribuíram para a
sua prosperidade). Poucas obras tentaram apreendê-lo de forma global. Marc
Angenot (1975), entre outros, mostrou como a ficção popular está ligada à «era
industrial», ou seja, de facto, à emergência de um público alfabetizado, que
dispõe de algum tempo e de algum dinheiro, e apreciador de literatura e de

75
AS SÉRIES TELEVISIVAS

espetáculo. Por impulso de audaciosos empresários da imprensa ou do teatro,


foram colocadas à disposição de públicos cada vez mais numerosos histórias
de ficção cada vez mais populares. Apesar de as elites resmungarem face a
esta profusão de novas publicações e ainda que a censura tente muitas vezes
travá-la, o gosto por histórias às vezes rocambolescas, sempre entusiasmantes,
é indesmentível. Corresponde a necessidades profundas, como demonstrou a
obra mais rigorosa sobre a matéria.
A análise magistral de Peter Brooks (1995 [1976]) em The Melodramatic
Imagination é, com efeito, incontornável. Nesta obra, o autor descreve a emer­
gência do género do melodrama como a consequência de um abalo do mundo
resultante do Iluminismo. Este atacou a conceção habitual do Sagrado intangível
e inabalável, fonte de todo o valor moral. Este novo estado de espírito tornou
arcaicos e obsoletos os princípios da literatura trágica. A necessidade de uma
nova consciência moral seria a fonte da reflexão política e de um novo tipo de
representação teatral: daí decorreria o género melodramático, bem como os
seus fundamentos, motivos e formas. Assim, «o melodrama não representa
simplesmente uma "queda" para fora do mundo trágico, mas também uma
resposta à perda da visão trágica» (p. 15). Evidentemente, o melodrama não
podia romper com toda a organização antiga do mundo. Por exemplo, o mundo
melodramático está também fortemente polarizado entre as noções de bem
e de mal; mas o bem não está situado num céu livre de qualquer impureza,
mas sim misturado num certo número de virtudes identificáveis em alguns
indivíduos que partilham a nossa realidade concreta.
A força específica da obra de Brooks reside no facto de não esquecer
nenhum aspeto da «imaginação melodramática». O seu estudo apoia-se
num corpus de melodramas escritos para o teatro, entre 1800 e 1830, por
dramaturgos franceses: segundo Peter Brooks, o sucesso do género junto
do público popular, bem como junto das classes burguesas, encorajou estes
autores a investirem neste género mais do que em outros, embora os seus
desenvolvimentos romanescos sejam internacionais. Resumamos a sua aná­
lise das estruturas narrativas, dos registos e das personagens do melodrama,
examinados com uma clareza exemplar.
A estrutura narrativa do melodrama parece imutável. Num universo familiar
tranquilo, surge subitamente o mal, que tem como função principal ensombrar
a pureza da personagem principal. Esta, normalmente uma jovem inocente, é
obrigada a fugir por não conseguir provar a sua probidade. Depois de muitas
peripécias, a personagem é finalmente reconhecida como portadora dos sinais
do bem na sequência de um desfecho súbito, mas apaziguador (pp. 30-33).
A intriga é um drama da cegueira: as ações do «vilão» tornam a sociedade
incapaz de reconhecer a inocência. O caráter terrestre do melodrama não faz
dele um confronto psicológico; o bem e o mal, embora sejam encarnados por
indivíduos que partilham o nosso quotidiano, representam ao mesmo tempo
forças sociais que lutam duramente entre si. O combate trágico entre deuses
e demónios transforma-se numa batalha pela definição do laço social, em que
o individualismo e a avidez se opõem à virtude.

-
76
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5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

Como se compreende, o núcleo melodramático articula-se em torno de


códigos mundanos (contrariamente à tragédia). Por conseguinte, é importante
que estes códigos sejam perfeita e rapidamente identificados pelo espetador.
O melodrama é, pois, enfático por necessidade narratológica e não por gosto.
Assim, as pesadas maquinarias utilizadas pelo espetáculo melodramático, tal
como os monólogos inflamados e patéticos das diferentes personagens, não
são ornamentos desajeitados, mas sim as formas melhor adaptadas às questões
narrativas do melodrama (pp. 41-42). Do mesmo modo, Brooks mostra que
as suas peripécias principais estão associadas ao reconhecimento dos prota­
gonistas: como o mal-entendido inicial decorre de erros de identificações, os
desfechos identitários sucessivos são indispensáveis. São os momentos privile­
giados da transmissão da emoção, de que depende a implicação do espetador
na narrativa: o melodrama tenta criar uma relação de empatia sentimental
entre personagens e espetadores, que dá ao género o seu modo de existência
teatral específico, a sua verosimilhança particular (pp. 82-83).
Peter Brooks insiste na função social do melodrama: para ele, trata-se do
«principal modo da descoberta, da manifestação e da eficácia do universo moral
fundamental na era da dessacralização» (p. 15). É verdade que o melodrama
se desenrola num universo muito quotidiano. Mas não é por isso que as suas
questões são diminuídas: o melodrama não constitui uma forma ficcional
subalterna ou medíocre, mas sim uma tentativa de responder às mudanças
sociais em curso. No entanto, o drama teatral não consegue fazer esquecer
por completo a lógica trágica: segundo Brooks, terá fracassado em constituir
uma representação completamente aceitável da nova época (p. 95). O romance
popular que nele se inspira e que lhe sucede revelar-se-á mais eficaz.
A brilhante demonstração de Brooks abre caminho a uma compreensão
geral dos desenvolvimentos literários do século XIX. Uma análise completa,
que não podemos fazer · aqui, mostraria, seguindo o próprio Brooks, que
o romance gótico poderia ser facilmente considerado uma versão sombria
da imaginação melodramática (pp. 50-52). Depois, uma leitura atenta dos
primeiros romances de aventuras, os de Walter Scott (lvanhoe) e de James
Fenimore Cooper (O Último dos Moicanos), revelaria afinidades e similitudes
entre as suas obras e as características do melodrama atrás descritas. CoQ1
efeito, é muito fácil encontrar em Scott ou em Cooper todas as marcas da
narrativa melodramática. Por exemplo, as personagens de Cooper procuram
constantemente definir a sua própria identidade e decifrar o significado das
marcas que descobrem nos outros. O reconhecimento do outro desempenha
aqui um papel tão mais fundamental quanto as personagens pertencem a
povos diferentes. Do mesmo modo, as cenas dialogadas sobrepõem-se às
cenas de ação. O «vilão» Magua tem muito tempo para explicar o destino
que o levou à vingança e ao mal, que o torna incapaz de reconhecer a pureza
das duas jovens inglesas. lvanhoe confronta-se com a mesma problemática:
judeus, normandos, saxões, todos procuram reconhecer no outro o signifi­
cado identitário dos gestos e comportamentos. Além disso, o herói Wilfred
de Ivanhoe quer que o seu pai Cedric reconheça finalmente a pureza do seu

77
AS SÉRIES TELEVISIVAS

ser. As c�nas de declaração não faltam então nem em Scott nem em Coop
er.
Ambos situam o melodrama num quadro aventuroso em que os heróis já não
são seres imobilizados pela sua inocência, antes tendo aprendido agir e a reagir
_
para suscitarem o restabelecimento do bem.
Assim, os três grandes géneros literários vistos como as origens genéricas
da ficção popular parecem partilhar preocupações cuja importância no melo­
drama teatral é mostrada por Peter Brooks.
Por conseguinte, podemos avançar a hipótese de que toda a literatura
popular modern a consiste em apropriações variadas da estrutura e das
p ersonagens melodramáticas (não é certo que a literatura clássica moderna
decorra do mesmo quadro: Brooks mostra como ele impregna dois escritores
clássicos como Balzac e James). O caso da ficção popular e do seu desenvol­
vimento a partir dos anos 1830 na imprensa industrial e depois na edição
especializada interessa-nos particularmente. Sem nos determos demasiado
na sua evolução, podemos dizer, sem risco de nos enganarmos, que esta
ficção é plenamente melodramática. Eugene Sue é então, sem dúvida, um
dos melhores símbolos dos autores que tentam conjugar a veia do teatro
melodramático francês com o modelo aventuroso explorado por Walter
Scott ou pelo romance gótico.
As segmentações sociais e culturais, por um lado, e o desenvolvimento
económico que permite o aumento do número dos leitores, por outro, susci­
tam a partir de 1860 uma divisão genérica determinante. Os grandes géneros
da ficção popular que hoje conhecemos emergem de forma muito rápida. A
estabilização de uma sociedade burguesa com contradições manifestas e a
distinção cada vez mais clara entre vida privada e vida pública, entre outros
fatores menos decisivos, geram duas grandes tensões no interior dos géneros
ficcionais populares: a divisão entre géneros femininos e masculinos será
ainda mais radical do que a divisão entre géneros baseados na ilusão e géneros
realistas. Por um lado, o policial, o fantástico e a ficção científica e, por outro,
o romanesco e o sentimental, etc., terão as suas próprias normas e critérios e
serão associados a públicos relativamente especializados. Não se trata apenas
de dispersão, mas também de hierarquização: os géneros realistas e masculi­
nos, frequentemente associados, serão valorizados em detrimento dos géneros
femininos e sentimentais (ainda que todos os géneros populares conservem
traços da sua origem melodramática, como mostrou Linda Williams [1998]
no caso do cinema).
As diferenças genéricas não devem disfarçar três factos primordiais quanto
ao desenvolvimento comum da ficção popular. O primeiro é o seu sucesso
realmente extraordinário, cuja dimensão supera todos os fenómenos culturais
da nossa história (da história da humanidade?). Em inícios dos anos 1970, Ray­
mond Williams (1974),· um dos pais fundadores dos culturalstudies, escrevia:
«Desde os últimos 50 anos que nunca a maioria da população teve acesso tão
e a
regular e constante à ficção dramática. » O gosto insaciável (a «procura») p �
­
ficção popular levou à formação de indústrias poderosas nos domínios da edi
ram
ção, do cinema e da televisão. Esta produção e a sua apropriação aumenta

78
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

progressivamente o saber-ler (a litteracy) dos leitores futuros (tele)espetadores:


o consumo maciço da ficção deu aos públicos competências «naturais», que
os «tornam capazes de seguirem histórias complexas» e que fizeram deles
«consumidores sofisticados de narrativas» (Thompson K., 2003: p. 79). Esta
alta qualificação de todos os géneros de públicos capazes de julgamentos
objetivos, mordazes e justificados encontra-se, por exemplo, nas leitoras de
literatura romanesca entrevistadas por ]anice Radway (1991). Já referimos que
esta qualificação existe também nos públicos das séries.
Segunda observação geral: apesar de a divisão genérica necessária à
especialização da produção e dos públicos ser um facto constante da ficção
popular, ela nunca implicou uma definição dos géneros fixa ou sequer estável.
As relações entre os géneros são sempre suscetíveis de transformações e de
influências. Um género único pode dividir-se em vários subgéneros capazes
de adquirir autonomia: veja-se o caso do romance de aventuras, que parece
nunca parar de se dividir. A constituição de um novo modelo narrativo por
reunião de dois géneros mais antigos é um acontecimento mais raro, mas
sempre marcante: demos um exemplo disto no capítulo anterior, quando
descrevemos a invenção do «drama profissional» com A Balada de Hill Street.
Rick Altman (1999: pp. 49-82) mostrou de forma muito pormenorizada que
o dinamismo genérico é o principal ponto de comunicação entre produtores
e públicos de ficções populares: sucessos e insucessos acompanham-se de
gestos críticos rapidamente analisados pelos produtores, que se veem então
na obrigação de reagir, quer reutilizando as mesmas convenções genéricas de
forma mais inventiva, quer testando novas convenções. A observação daquilo
a que se poderia chamar o dinamismo genérico conduz assim à inteligência da
inovação no domínio da produção cultural de ficções populares.
Por fim, as observações de Altman permitem-nos compreender melhor
por que razão a evolução genérica parece estar sempre ligada ao desenvol­
vimento social e político dos povos ocidentais. Assim, certas práticas caem
em desuso quando se produzem tomadas de consciência ou evoluções sociais
importantes; a personagem da «jovem inocente», característica de uma grande
linhagem melodramática, parece hoje dificilmente explorável, a menos que
sofra transformações consideráveis. É possível que Buffy, heroína da série
Buffy - Caçadora de Vampiros (1997-2003), seja uma descendente distante
dessa personagem. Por vezes, a criação de um género ou de variantes genéricas
resulta muito diretamente de condições sociais específicas: o policial francês
dos anos 1970, de que Jean-Patrick Manchette é um representante exemplar,
acompanha a agitação contestatária deste período; é difícil não associar o
policial «afro-americano» de Chester Himes e de Walter Mosley ao movi­
mento dos direitos civis dos anos 1960. Historiadores da arte como Martin
Warnke (1991) ou Michael Baxandall (1985) mostraram como a história social
e religiosa do Renascimento produziu literalmente a iconografia da pintura
coeva. De todas as nossas formas culturais atuais, a ficção popular parece ser
a que se mostrou mais apta a reagir às situações sociai_s, por vezes com uma
prontidão incrível, como veremos.

79
AS SÉRIES TELEVISIVAS

2. O género e a fórmula

É claro que a televisão não herda diretamente do melodrama francês do


século x1x: desde esta época até 1950, o melodrama transformou-se e, sobre­
tudo, dividiu-se. A sua divisão parece seguir a evolução das representações:
com efeito, tudo se passa como se a separação entre espaço público mascu­
lino e espaço privado feminino, característica da emergência das sociedades
burguesas, tivesse o poder de suscitar a especialização dos géneros. O drama
da inocência, estudado por Brooks, desdobra-se ou dissocia-se: a inocência
perturbada do mundo público é restaurada por especialistas, aventureiros ou
policiais; e a inocência perdida do lar e das suas figuras alegóricas, as jovens
inocentes, é restabelecida pelo casamento ou pela sua restauração. O romance
de aventuras e o romance sentimental seguem dois caminhos que parecem
complementares, ainda que o desprezo elitista de que o segundo é objeto o
coloque no fundo da hierarquia cultural, enquanto o primeiro beneficia de
uma legitimação relativa. Seria necessário esperar pelo fim do século xx para
que os seus caminhos se voltassem a cruzar - esboçámos esta ideia quando
falámos da elaboração de A Balada de Hill Street.
Evoquemos, por exemplo, as origens e a estrutura da história policial.
Começa por ser o efeito de um deslocamento: o romance de aventuras,
quando é situado em meios urbanos em pleno desenvolvimento em finais do
século XIX, torna-se a história das peripécias que acompanham as operações
de manutenção da ordem social. O Oeste americano ou a Idade Média eram
terrenos de certa forma naturais para as aventuras de Uncas ou de Ivanhoe.
Uma grande cidade, em princípio pacificada, é ainda perturbada pela inter­
venção dos vilões: de facto, torna-se um lugar propício à aventura a que se
chamará «policial». O esquema melodramático conservou-se: a cidade e a
ordem social são abaladas por um crime súbito e anónimo. Os guardiães da
ordem entram em ação: têm de descobrir quem são os criminosos e quais os
seus motivos e, depois, pô-los fora de ação. Qualquer narrativa policial resulta
então, como mostrou Todorov (1971), da articulação de duas histórias, a
história da investigação e a história do crime. Cronologicamente, a segunda
precede a primeira; mas, em muitos casos, a primeira só é efetivamente
conhecida após a conclusão da investigação, que tem o objetivo de elucidar o
crime. No entanto, são possíveis muitas variantes: James Ellroy, por exemplo,
habituou-nos ao desenrolar alternado do crime e da investigação. Três tipos de
personagens (três actantes) são necessários à narrativa policial: o investigador,
o criminoso e os representantes da sociedade em que se desenrola a história,
como a vítima. Cada personagem aparece na história policial inserida numa
destas três definições, podendo eventualmente mudar de uma para a outra
no decurso da investigação. Algumas histórias policiais são construídas em
torno da identificação do criminoso, enquanto outras narram a luta entre uma
equipa de investigadores e uma equipa de. criminosos. Acrescentemos que a
perspetiva do bem, e, portanto, da justiça (de uma certa definição da justiça),

80
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

regula a narrativa policial, o que explica que a narração adote frequentemente


o ponto de vista do investigador.
Quando as séries nascem, encontram já géneros contemporâneos cons­
tituídos e bem estabelecidos no interior do universo da narrativa popular.
Vão naturalmente apoiar-se nas várias convenções genéricas e adaptá-las ao
contexto industrial e cultural televisivo. Para compreendermos como as séries
souberam cristalizar, misturar e cinzelar essas convenções a fim de ajustarem
os géneros populares aos condicionalismos formais, sociais e políticos da
televisão, temos de definir de forma rigorosa o seu instrumento essencial: a
fórmula, não o argumento, mas a máquina de fabricar argumentos, não o
conjunto das personagens, mas a reserva de modelos de personagens, não a
encenação, mas a definição de um quadro de encenação.
Partirei da definição deste termo dada por John Cawelti (1977) na sua obra
indispensável Adventure, Mystery, and Romance. No entanto, aplicar-lhe-ei
uma ligeira modificação: Cawelti usa o termo «fórmula» com o sentido que
até aqui demos ao de «género». A sua preferência provém da ambiguidade,
particularmente na literatura, deste termo: com frequência, denota a divi­
são clássica entre tragédia, drama e comédia, fixada desde a Antiguidade.
As análises de Peter Brooks atestam, pelo contrário, a historicidade destas
categorias: um género literário, compreendido como uma prática escriturai,
só pode ser definido em função de circunstância económicas, culturais e
sociais específicas. Um género particular está sempre situado. Ao adotarmos
este ponto de vista, não corremos o risco de cair na confusão e continuaremos
a falar de género, tanto mais que reservamos uma utilização distinta para o
termo «fórmula».
O que é um género, segundo Cawelti (para ele, uma fórmula)? Trata-se «de
uma combinação ou de uma síntese de certo número de convenções culturais
específicas e de uma forma narrativa mais geral» (p. 6), menos dependente
de contingências históricas. Assim, a forma narrativa quase universal do mal
ou do crime cometido e depois reparado pode encarnar-se na paisagem da
fronteira do Oeste americano para constituir o western ou estabelecer-se no
mundo urbano da industrialização para fundar o policial. O exemplo desen­
volvido por Peter Brooks ilustra claramente esta definição: o melodrama teatral
resulta da associação entre um esquema narrativo imóvel, em que a inocência
aviltada pelos agentes do mal é finalmente reconhecida, e as convenções do
mundo burguês de inícios do século XIX. Nesta perspetiva, expressões como
o «género policial» parecem um tanto imprecisas: o policial contemporâneo,
elaborado, por exemplo, no Norte da Europa graças a autores como Henning
Mankell ou Stieg Larsson, não pode ser confundido com o policial vitoriano
de um Conan Doyle.
No entanto, temos de reconhecer à forma narrativa policial, por exemplo,
uma capacidade de adaptação impressionante: qualquer paisagem cultural
parece capaz de a acolher quando a questão do bem e do mal não está
completamente esclarecida (não há policiais em ditaduras). Há romances
policiais africanos, chineses, russos, etc. Poderíamos então distinguir dois

81
AS SÉRIES TELEVISIVAS

níveis da utilização do termo «género»: o primeiro denotaria a combinação ·


narrativa que o caracteriza, independente (ou relativamente independente)
dos universos sociais onde se encarna. O segundo poderia designar mani­
festações específicas de um género no interior de uma expressão como 0
«género melodramático francês de inícios do século XIX» ou «o (género)
policial americano do período de entre as duas guerras». Haveria o género
como forma e o género situado. Tzevan Todorov (1970, 1971) é um especialista
do estudo das formas narrativas genéricas: os seus estudos sobre o policial ou
sobre o fantástico constituem autoridade. Peter Brooks fornece um exemplo
perfeito do estudo de um género tomado na segunda aceção. Alguns géneros
situados foram objeto de numerosos estudos, como o filme negro americano
ou a comédia musical americana. As relações entre os dois significados são
numerosas. Por exemplo, um género situado como o western pode ir tão longe
na sua apropriação da forma genérica da história de aventuras que, por sua
vez, pode ser considerado um modelo geral.
Como abordar as séries na paisagem genérica? Claramente, a .ficção televi­
siva inspirou-se no corpus descomunal da .ficção popular e das suas categorias
narrativas. Não há dúvida de que lhes impôs os seus próprios condicionalismos,
o que, como vimos no primeiro capítulo, levou à preponderância da série no
domínio. Neste sentido, a série é um género (televisualmente) situado. Mas
o subgénero das séries policiais pertence também ao universo da narrativa
policial, uma vez que dele retira a sua estrutura formal. É sob este ângulo
que analisaremos nesta parte as séries televisivas: a relação que nos interessa
é a que liga os géneros «não situados» (definidos apenas pelos seus sistemas
narrativos) e o campo das séries televisivas. Para definirmos esta relação, temos
de nos reapropriar do conceito de fórmula.
Quando analisamos, por exemplo, um romance policial relacionando-o
com o género em que se inscreve, podemos abordá-lo como a sua encarna­
ção imediata e visível: apresenta uma narrativa que endossa uma estrutura
característica do género e um quadro que localiza esta narrativa num uni­
verso adaptado à situação contemporânea. No entanto, uma série não é uma
narrativa, mas sim um grande número de narrativas situadas de forma mais
óu menos análoga. Ao analisarmos uma série, somos confrontados com um
conjunto de narrativas que poderiam ser comparadas com o conjunto das
histórias de Sherlock Holmes. O especialista das séries televisivas beneficia
de uma vantagem sobre o cronista das obras de Conan Doyle: os responsáveis
pela sua produção compreenderam rapidamente que çada episódio devia seguir
um modelo estável.
Este modelo constitui a fórmula da série (por vezes, os profissionais
chamam-lhe a bíblia). É o ponto principal das negociações entre produtores
e difusores, o instrumento essencial da formação dos técnicos e dos atores que
vão participar na produção, a garantia dada aos públicos de que estes encon­
tram o mesmo universo em todos os episódios. A definição da fórmula e a
sua inscrição particular no interior de um género constituem, portanto, fases
decisivas do estudo de uma série e do seu lugar na história da ficção popular.

82

rtd
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

Uma fórmula representa a expressão mais imediata da negociação entre o


económico e o cultural, ou, mais exatamente, entre uma situação económica,
social e política e a história especificamente cultural da ficção popular.
Neste capítulo, limitar-nos-emos a apreender uma fórmula como um
conjunto de especificações narrativas que determinam uma utilização carac­
terística de um género. Cada fórmula representa uma matriz capaz de engen­
drar encarnações análogas de um modelo genérico particular; a fórmula de
Columbo, por exemplo, é uma trama policial que conserva a personagem do
tenente da polícia e que permite engendrar uma sequência de filmes policiais
estruturalmente idênticos. A sua fórmula caracteriza uma série, mas não a
define por completo: as utilizações muito diferentes da fórmula do CSI p elas
três séries que dela derivam provam isso claramente. No entanto, representa
uma estrutura muito sugestiva daquilo que é a série. A noção de fórmula
permite-nos compreender como as séries utilizam as estruturas narrativas
genéricas de modo frequentemente original.
Expliquemos em pormenor o modo de extração de uma fórmula no interior
de um género. Designámos por género a ligação entre um esquema narrativo e
um universo cultural. Esta aliança é selada pela repetição de uma orientação:
o restabelecimento da ordem no policial, o reconhecimento da inocência no
melodrama são orientações desse tipo. Uma fórmula resulta da ancoragem do
género: certos elementos são fixados, enquanto outros permanecem variáveis.
Que traços do género policial são fixados pela fórmula de Columbo? Em pri­
meiro lugar, o protagonista, recorrente, está perfeitamente desenhado. O seu
carácter, o seu estatuto e o seu universo social estão definidos. Em segundo,
a forma da narrativa é delimitada por uma definição precisa da associação
entre a história do crime e a história da investigação: o espetador começa
por descobrir a perpetração do crime e a encenação preparada pelo assassino;
esta não engana o tenente Columbo, que segue os passos do assassino e a
quem confia com malícia as suas dúvidas; acaba por apanhá-lo e destruir-lhe
o álibi. Como acontece em qualquer série, a fórmula de Columbo institui a
permanência de um esquema e de um ritmo narrativos. Alguns elementos
que pertencem mais especificamente à linguagem audiovisual são também
fixados: é privilegiado um estilo de iluminação, de enquadramento e de
montagem. Por exemplo, o afastamento do tenente visto da perspetiva do
criminoso, seguido do seu regresso a fim de colocar uma questão «esquecida»,
compõe um enquadramento recorrente de Columbo. As intervenções musicais,
o genérico e certas frases dialogadas são também estabelecidos: favorecem
um reconhecimento rápido da série. A totalidade dos elementos imutáveis da
fórmula circunscreve também o campo de variabilidade da série. Por exemplo,
nem todos os crimes entram no esquema de Columbo. O tenente não lida
com criminosos recorrentes nem com homicidas dos bairros mal afamados.
Para que a sua estratégia e a encenação específica de Columbo funcionem,
é necessário um adversário concebido à sua altura: o tenente Columbo só
enfrenta criminosos prestigiosos e astuciosos, que cometem crimes, mas que
não querem perder a sua posição social.

83
AS SÉRIES TELEVISIVAS

O estabelecimento de uma fórmula implica, portanto, uma relação bem


identificada com um género. Várias séries contemporâneas estabeleceram uma
relaçáo crítica com o melodrama clássico: a análise desta relação permitir-nos-á
compreender melhor a definição das fórmulas.

3. Um exemplo: as metamorfoses
contemporâneas do melodrama
Deixámos o melodrama no momento em que, sob a ação de forças sociais
modernas, deixava de ser o representante exemplar da ficção popular para se
tornar apenas uma das suas duas facetas. O melodrama teatral de inícios do
século XIX mistura conflitos do espaço público e dramas do espaço privado.
No entanto, a divisão entre esfera pública e esfera privada tornou-se uma
doutrina social importante da sociedade burguesa. A ficção popular do fim
do século acompanha este movimento: a cisão entre aventuras no domínio .
público e desventuras sentimentais privadas alarga-se a partir de 1880 e a
combinação dos dois géneros torna-se cada vez mais difícil. O género aven­
turoso fragmenta-se: história de aventuras, história policial ou história de
espionagem correspondem, respetivamente, ao espaço natural, à vida urbana
e ao confronto entre Estados. O melodrama privado tende a centrar-se na
casa e na família; o lar constitui rapidamente o ponto focal do género. O
melodrama clássico, ligado ao espaço público, fazia do afastamento da jovem
a regra: as atribulações num mundo social hostil de uma personagem que não
foi feita para ele estarão na base da maioria dos romances melodramáticos
do século XIX e de muitos filmes decorrentes deste género (Andrin, 2005).
O regresso a casa e o perdão do pai, que constituem o desfecho feliz do
melodrama clássico, dão cada vez mais lugar à conquista de um marido e,
portanto, à construção de um novo lar.
Hoje, é sobretudo o romance que atesta a persistência do melodrama da
jovem inocente: o estudo de ]anice Radway (1991) sobre as leitoras dos livros
da Harlequin • dá mostras da vitalidade das narrativas articuladas em torno
dessas personagens. No entanto, o cinema, sobretudo a rádio e depois a tele­
visão contribuíram para definir outra forma de narrar o privado: o próprio
lar torna-se o eixo da narração. As dificul dades da sua preservação e da sua
proteção são o centro narrativo da história e, logicamente, a mãe desempen�a
o papel principal. De forma progressiva, impõe-se como uma figura essencial
do melodrama. O género do melodrama maternal será ilustrado nomeada�
mente graças à soap-opera. Robert Allen (1985: pp. 107-112), historiador �o
'
genero, exp1·1ca como a a1·1ança com a publicidade e, portanto, as exig· eAnctas
comerc1a1
• • s 1avorec
r:. eram a msta
• Iação do melodrama maternal: a soap-opera foi
o nome ironicamente dado a esta aliança.

* A Harlequin Enterprises Ltd. é uma editora especializada em pequenos romances


de amor. [N.T.]

84
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

Falaremos então de duas formas sentimentais, o «melodrama da filha»


e o «melodrama da mãe». A personagem central do primeiro é expulsa (ou
expulsa-se) da casa e vive algumas aventuras até à conquista de um homem
com quem fundará, por sua vez, um lar no qual supomos que será feliz. O
segundo apresenta uma mãe forte, que colmata todas as brechas do seu lar e
que conserva o vigor da sua chama. De certa maneira, as duas personagens
são uma e a mesma figura, vista em duas épocas diferentes da sua existência.
Compreende-se porque o melodrama foi descrito como uma representação
ideológica de uma família «ideal», ainda que fundada na desigualdade dos
sexos. Ao mesmo tempo, uma história sentimental é uma aventura que
sujeita o ideal familiar a provas por vezes críticas. A sua representação não é
inevitavelmente enaltecida e o happy-end nem sempre esconde as faltas e as
interrogações. Uma manifestação desta crítica implícita é a criação de géneros
e de personagens derivados claramente saídos de figuras melodramáticas, mas
numa forma invertida ou travestida. Por exemplo, a «mulher fatal» parece
resultar de uma inversão operada sobre a personagem da jovem pura, símbolo
do melodrama clássico.
As séries televisivas fizeram (quase) sempre este jogo duplo: nelas, vemos
sucederem-se cenas classicamente melodramáticas e figuras que ridicularizam
ou criticam o melodrama. Lucy Ricardo, a protagonista de 1 Love Lucy, é
uma dona de casa com uma ambição profissional constantemente frustrada,
como se, para ela, a representação melodramática fosse demasiado limitada.
Dallas ou Dinastia, pouco apreciadas em França, apresentam também mães
que se tornaram infelizes, no limite da loucura, por causa da vida familiar. A
época contemporânea projetou-se um pouco mais longe: já não são (apenas)
as liberdades que se tomam com a narrativa melodramática; são os próprios
fundamentos do género que são abalados. Os primeiros episódios de O Sexo e
a Cidade (Sex and the City, 1998-2004), de Sete Palmos de Terra (2001-2005)
ou de Donas de Casa Desesperadas (2004-?) contêm declarações explícitas de
destruição dos cânones do melodrama. Cada uma destas séries destrói um dos
pilares da narrativa melodramática e coloca a questão do futuro do melodrama.
Mais precisamente, nos primeiros cinco minutos dos primeiros episódios, uma
mesma questão é explicitamente formulada: o que acontece com personagens
situadas no interior de uma estrutura melodramática quando o contexto social
nega a essa estrutura o seu sentido e os seus valores?
Dos três exemplos que escolhemos (Erva [Weeds] ou. A lly McBeal tam­
bém serviriam), O Sexo e a Cidade é o mais franco. As primeiras imagens
do episódio inaugural mostram algumas palavras escritas no ecrã de um
computador: «Once upon a time ... » Depois surge a voz daquela que será a
protagonista, Carrie Bradshaw. A imagem materializa o conto que ela narra:
uma jovem inglesa recentemente emigrada conhece um príncipe da finança
nova-iorquina, que a seduz, que lhe promete casamento e que, por fim, a
abandona. São precisos menos de três minutos para narrar o fracasso inevi­
tável da história melodramática clássica da jovem inocente. Longe do seu lar,
conheceu o seu príncipe encantado, que se aproveitou dela e a abandonou

85
AS SÉRIES TELEVISIVAS

sem qualquer remorso. A narradora termina assim a sua história: «Percebi ue


q
ninguém a avisara do desaparecimento do amor em Manhattan... Bem-vinda
à idade da não-inocência!» A jovem pura do melodrama aceita fundar um
lar e tornar-se mãe porque acredita partilhar desse forte sentimento a que se
chama amor. O Sexo e a Cidade estabelece-se num mundo de onde o amor
desapareceu: a série apresenta quatro jovens mulheres solteiras que poderiam
ser mães num quadro melodramático, mas que construíram a sua vida num
mundo diferente. As suas tentativas para ajustarem as vidas à cisão entre 0
amor e a sexualidade são-nos contadas por uma delas, que sublinha os seus
tormentos e as suas graças.
Sete Palmos de Terra efetua de forma extremamente brutal uma operação
de destruição similar. Lidamos aqui com uma família que gere uma empresa
funerária; os seus membros preparam a sua reunião por ocasião das festas de
Natal. Nos primeiros segundos, vemos a mãe a desempenhar o seu papel de
protetora do lar, aconselhando uma condução prudente ao pai. No entanto,
este não a ouve e morre num acidente de viação. No seguimento do primeiro
episódio, vemos o lar desintegrar-se e o verniz que mantinha cada um no seu
lugar a estalar. O pai está frequentemente ausente das histórias melodramáticas.
Contudo, ele é a sua condição de possibilidade: se nunca se fala de dinheiro
no melodrama é porque o pai ausente fornece «naturalmente» os recursos
ao lar. Sete Palmos de Terra é dedicado, não ao desaparecimento do pai, mas
àquilo em que se torna a estrutura de sentimentos normalmente ligada ao lar
no melodrama quando os membros da família têm de reorganizar a vida na.
ausência desse apoio pecuniário que é também um apoio emocional. As per­
sonagens da família deixadas sem este apoio normativo, que as protegia tanto
quanto oprimia, deverão construir as suas identidades enfrentando terríveis
dificuldades e colocar a questão de uma nova espécie de lar.
Donas de Casa Desesperadas funciona de forma mais insidiosa e mais ambí­
gua, ainda que o primeiro episódio seja também ocasião de uma operação de
depuração drástica. A série desenrola-se num daqueles subúrbios americanos
nos quais se desenvolve plenamente, desde a Segunda Guerra Mun dial, a
ideologia familiar, fundamento do melodrama. Aqui, as mães são guardiãs,
protetoras e também, de certa maneira, carcereiras (como a série insinuará na
segunda temporada). Uma delas, que se apresenta como plenamente realizada
-nesse triplo papel (será a narradora da série), suicida-se após menos de três
minutos de projeção. Às suas quatro amigas, que tentam também mostrar-
. -se esposas e mães realizadas, deixa uma questão: será que se pode ser ainda
«uma dona de casa»? Elas debatem-se com esta questão sob o olhar cín ico da
defunta Mary Alice, que comenta com acuidade cada gesto das amigas; no
entanto, esta não tem qualquer lição a dar, uma vez que preferiu o crime ao
desmoronamento da fachada da sua casa. Ao contrário das personagens de O
Sexo e a Cidade e de Sete Palmos de Terra, as de Donas de Casa Desesperadas
e
não estão no pós-melodrama. Tentam perpetuar o seu modelo, ainda qu
possuídas por uma dúvida cada vez mais insistente. Nesta série, o melo drama
é corroído a partir do interior e não destruído de início. A questão é diferente

86
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

da que ensombra Sete Palmos de Terra: «como representar o privado de forma


verosímil após o melodrama?»; mas sim: «como encontrar uma posição acei­
tável nas representações sociais para mães ativas, sexual e profissionalmente,
sem sucumbir ao cinismo?» A personagem de Bree Van De Kamp (Márcia
Cross), situada no centro das contradições, é sem dúvida a figura essencial
deste questionamento, como mostram os autores de ensaios dedicados à série
(Akass e McCabe, 2006).
Não é por acaso que os criadores destas três séries - Darren Star, Alan
Bali e Marc Cherry - são homossexuais declarados. O homossexual não tem
qualquer lugar no melodrama: não é o inimigo, mas negam-lhe todo o direito
à existência. Esta constatação põe-nos no caminho do primeiro elemento
contextual que faz parte da explicação desta reflexão televisiva. Desde inícios
dos anos 1990 que os Estados Unidos vivem no clima das «culture wars», cuja
origem está ligada a reivindicações homossexuais. A partir de então, muitos
foram os temas de confronto público; contudo, a questão das identidades
sexuais, do seu reconhecimento, nunca saiu da agenda pública (Martel, 2006:
pp. 221-286). O género ficcional mais envolvido na inserção de mulheres e
homens em identidades rígidas não podia deixar de se encontrar no âmago de
um questionamento conduzido por agentes diretamente implicados. O exem­
plo fora dado por Joss Whedon e pela sua série Buffy- Caçadora de Vampiros
(1997-2003): uma jovem loira e frágil, típica do melodrama adolescente, foi
transformada em heroína de série fantástica, perita em lutas corpo-a-corpo,
combatente impiedosa de vampiros quase todos do sexo masculino numa
série que o próprio Whedon proclama como feminista. Como observa Elana
Levine (2007: pp. 174-175), as identidades múltiplas e fragmentadas de Buffy
abrem caminho a personagens femininas que recusam submeter-se às normas
genéricas (no duplo sentido do termo).
Estas séries inscrevem-se, portanto, num clima propício à telespetaleitura
atenta. Não são exatamente esperadas, mas são capazes de encontrar públicos
compreensivos. Como vimos, o aparecimento dos canais por cabo - HBO,
Showtime, TNT - fornece aos criadores os instrumentos para concretizarem
as suas ambições. Alan Ball é um dos seus melhores exemplos: argumentista
laureado com um Oscar pelo filme Beleza Americana, prefere escrever e criar
para a HBO a série Sete Palmos de Terra em condições extremamente favo­
ráveis do que continuar a escrever para o cinema. Responsável por todos os
aspetos da produção, pode cuidar tanto quanto deseja da sua realização. O
fim do milénio e os anos seguintes constituem então um quadro inesperado
para o melodrama: apoiado por um meio de comunicação social de grande
audiência, beneficia de um contexto económico tão favorável quanto os que o
cinema por vezes lhe pôde dar (o cinema clássico americano, o cinema indiano
dos anos 1970 e 1980); além disso, beneficia da atenção pública, incluindo
das classes intelectuais, como nunca em toda a sua história. Por último,
sem dúvida o ponto decisivo, o melodrama encontrou uma certa categoria
de indivíduos decididos a «dedicar-se-lhe», inventando «uma nova arte de
inventar» o melodrama (Bourdieu, 1992: p. 377): todas estas personalidades

87
AS SÉRIES TELEVISIVAS

são marcadas pela revelação e pela afirmação da sua homossexualidade numa


sociedade finalmente mais aberta.
Vimos como O Sexo e a Cidade, Sete Palmos de Terra e Donas de Casa
Desesperadas criam, desde os seus primeiros minutos, perturbação na estrutura
melodramática. Podemos perguntar como podem essas séries desenvolver-se.
As soluções adotadas, todas diferentes, têm um ponto comum: apoiam-se na
experiência acumulada pela televisão e na sua história cultural.
Curiosamente, O Sexo e a Cidade assemelha-se aos programas «de generali­
dades» como descritos por Casetti e Odin (1990: p. 17): organizados em torno
de um animador e do seu palco central, incluem «variedades, informações,
jogos, espetáculos e anúncios publicitários». Do mesmo modo, Carrie Bra­
dshaw conduz o espetáculo de Sexo e a Cidade pelas suas interpelações diretas
dirigidas ao telespetador ou pelos seus comentários em voz over. É secundada
pelas observações das três amigas reunidas em torno de várias refeições:
cada uma representa uma opção ou uma escolha relativamente a temas do
episódio, segundo a lógica dos intervenientes reunidos nos debates. Os temas
são também ilustrados por «reportagens», estórias rapidamente contadas que
põem em cena uma das quatro protagonistas, bem como por intervenções
captadas à maneira das entrevistas de rua do telejornal. A moda está também
presente na forma de apresentações de roupas ou de móveis, que são anúncios
mal disfarçados (Kõnig, 2006). Cada episódio acaba por ser construído como
um talk-show em torno de «uma análise não sentimental das relações íntimas
e dos hábitos de acasalamento» (citado in Simon, 2008: p. 193), de um ponto
de vista inteiramente feminino. Na maioria dos casos, os homens aparecem
como monstros mais divertidos do que malévolos, vítimas inconscientes das
suas obsessões (Greven, 2006). A fórmula da série faz do talk-show uma das
possibilidades narrativas da difusão serial: a vida em Manhattan de urna
população sem dificuldades financeiras e, porém, mergulhada numa espécie
de indecisão moral e identitária é descrita e discutida. Esta descrição permite
que a série efetue uma espécie de inventário de todas as questões ligadas aos
comportamentos e atitudes associados à sexualidade. Ao mesmo tempo, a
persistência de uma nostalgia associada à era do melodrama e às suas crenças
conserva uma relação forte com o género. Carrie Bradshaw e as suas amigas
parecem estar ainda em busca do homem (do marido) ideal e de um lar, o
que as últimas temporadas parecem não interditar.
A série Sete Palmos de Terra está mais próxima de preocupações melo­
dramáticas, ao mesmo tempo que assume a destruição total do fundamento
do género. O tema da ficção e a primeira preocupação das personagens é, de
facto, a reconstrução de um lar; mas este lar já não pode ser comum, pois
da morte do pai resulta o desmoronamento identitário da família Fisher. A
lógica da família patriarcal de que o melodrama integrou os valores já não tem
significado para as personagens. A errância dos heróis já não pode ser regulada
pela promessa de um final feliz. A escolha de uma fórmula classicamente serial
serve de esqueleto à narração: cada episódio começa com uma morte e um
cadáver, do qual a empresa familiar terá de se ocupar. As circunstâncias· do

88
5. A INSCRIÇÃO DA SÉRIE NA HISTÓRIA DA FICÇÃO POPULAR

falecimento ou a atitude da sua família induzem a reflexão e as confissões das


personagens principais: Alan Ball encontra aqui um dos motores clássicos do
cinema hollywoodesco, em que a ação serve de fio condutor à resolução das
dificuldades pessoais dos heróis.
Os membros da família cruzam-se mais do que se encontram: os dois
irmãos, a irmã e a mãe seguem trajetórias cada vez mais estranhas a uns e
outros. Os seus confrontos são ocasião mais de confissões monologadas, pre­
ciosamente encenadas por Alan Ball, do que de diálogos, como se cada um
estivesse isolado no interior de uma forma de estranheza particular (McCabe,
2005). Cada qual se pergunta como poderia ser o seu lar, sabendo que a figura
clássica do pai se tornou impensável e que o sítio melodramático simplesmente
desapareceu. As particularidades de cada um implicam, além disso, que
nenhum lar possa servir de modelo; assim, como mostra Dana Heller (2005:
p. 80), a empresa Fischer funciona como lugar de negociação do inter-racial,
do intercultural e do governo das emoções. Este quadro induz uma rutura
com os hábitos formais do melodrama. Já não podendo apoiar-se no campo­
-contracampo clássico da soap-opera, Alan Bali faz do cinema europeu dos
anos 1960 (Antonioni, Bergman) e da sua montagem abrupta de personagens
isoladas umas das outras a referência visual da série.
As heroínas de Donas de Casa Desesperadas começam por parecer menos
abaladas pela brutalidade do acontecimento inicial da série. A morte de Mary
Alice não altera os hábitos das quatro mulheres que eram suas amigas. As
aparências continuam a ser as suas preocupações principais. A inscrição da
série em cenários, cores e atitudes que fazem lembrar as grandes soap-operas dos
anos 1950 acentua este aspeto brilhante e encantador da série. No entanto, em
Donas de Casa Desesperadas, «nada é o que parece» (Akass e McCabe, 2006:
p. 3). Desde o primeiro episódio e da cerimónia de enterro que se percebe que
manter as aparências não é fácil. Pelo contrário, trata-se de um combate: a
personagem de Bree Van De Kamp, sempre muito elegante, que se conserva
sorridente e paciente em todas as situações a custo de esforços enormes, é o seu
emblema. Se só se consegue manter uma «fachada» ultrapassando numerosas
dificuldades, esta já não pode parecer natural, mas torna-se uma construção
artificial (McCabe, 2006). Assim, em Donas de Casa Desesperadas, o melo­
drama já não é rompido como em O Sexo e a Cidade e Sete Palmos de Terra,
mas sim minado desde o âmago dos seus fundamentos mais sérios (Chambers,
2006). O lar já não é o lugar da segurança por excelência, mas o de todos
os perigos: o homem, nomeadamente o marido, já não é um garante, mas
um concorrente e até um adversário. Tudo se passa como se as mães (no lar)
heroínas da série fossem atiradas para os tormentos das aventuras sofridas pelas
jovens inocentes do melodrama das origens: mas já não são inocentes e já não
devem atravessar um mundo exterior hostil, mas sim sobreviver às provações
de que o próprio lar é a origem. Donas de Casa Desesperadas consegue a faça­
nha de fundir numa única forma narrativa os dois ramos do melodrama: as
quatro heroínas são jovens eternas em busca de uma quietude impossível de
encontrar num mundo cujo ouropel já não engana ninguém. A fórmula da

89
1

AS SÉRIES TELEVISIVAS

série testemunha esta fusão. Cada episódio resulta da justaposição de episódios


que pertencem a arco� narrativos diferentes; cada um deles está ligado a urn
dos lares. transformado em terreno fechado e secreto de uma hi stória frequen­
temente rocambolesca: como se as mulheres fatais do filme negro tentassern
transformar-se em donas de casa perfeitas sem poderem manter a distância
o seu estado anterior (Jermyn, 2006). Nenhum desfecho parece alguma vez
poder ser-lhes dado, uma vez que a saída inevitável do melodrama, a promessa
do home, sweet home, está definitivamente quebrada. A ironia da série decorre
daí, tal como a diversidade das interpretações que dela foram dadas.
A riqueza destas três séries, que apenas aflorámos, decorre em grande
parte do conhecimento notável do género melodramático e das suas regras
de que dão mostras os seus criadores. Estes e os seus colaboradores souberam,
de forma perfeitamente eficaz, integrar nas séries as suas próprias preocupa­
ções, ainda que o resultado consista numa metamorfose dessas regras. Janet
McCabe (2006: p. 79) atribui a Donas de Casa Desesperadas a inteligência de
ter «dado uma forma representativa aos paradoxos e às incertezas que definem
a feminilidade contemporânea». Parece-me que esta afirmação poderia também
aplicar-se às outras duas séries. O novo melodrama que daí decorre parece tão
expressivo das angústias contemporâneas como o melodrama clássico de iní­
cios do século XIX descrito por Peter Brooks: o novo melodrama já não trata
de um mundo sem Deus, mas sim de um mundo sem consenso a propósito
das identidades sexuais.

90
Capítulo 6

As séries <<imóveis>>

1. Classificar as séries?

Fizeram-se numerosas tentativas para classificar as séries. De facto, qual­


quer discurso geral sobre as séries contém uma taxinomia implícita. Parece­
-me que se podem distinguir pelo menos três maneiras de as inventariar. A
primeira, como esboçámos no capítulo anterior, consiste em analisar a gestão
da herança dos grandes géneros da ficção popular pelo universo serial. Os
géneros do policial, do sentimental, do fantástico, etc., já existiam antes do
desenvolvimento da televisão: ao utilizar as suas receitas, esta pôde basear-se
no saber-fazer dos produtores e no saber-ler dos públicos acumulados pelo
livro e pelo filme. Deste ponto de vista, poderíamos estudar o modo como
cada género se introduziu na televisão.
O estudo do género policial poderia, por exemplo, começar com a mistura
operada por Jack Webb, a quem se reconhece geralmente um papel de inicia­
dor na produção de séries policiais. Jack Webb soube integrar o realismo do
cinema policial contemporâneo numa fórmula policial precisa, estritamente
repetida de episódio em episódio, ligada a um herói inflexível e íntegro, um
«osso duro de roer» semelhante aos heróis de Hammett. Dragnet revelar-se-á
um exemplo a seguir pelos futuros autores de policiais televisivos. Cada epi­
sódio começa com a descoberta de um crime ou de uma atividade criminosa,
prossegue com o acompanhamento do trabalho de investigação e termina com
a detenção ou morte dos criminosos. A narração é dividida segundo quatro
atos impostos pelos três cortes publicitários. Sublinhada pelas explicações
em offmuito pedagógicas do inspetor Friday e por certas réplicas recorrentes
(«]ust the facts .. . »), pontuada por frases musicais de Miklos Rosza, a história
desenrola-se sem percalços até ao seu termo: a ordem social, momentanea­
mente abalada pelo ato criminoso, é rapidamente reposta por Friday e pela sua
equipa. Compreende-se por que David Marc (1984: p. 74) escreveu: «Dragnet
não só foi um êxito, como também uma ideologia. » As fronteiras entre tipos
de personagens estão delimitadas. Guardiães da ordem, criminosos e cidadãos
inocentes estão identificados sem qualquer ambiguidade: a rigidez da escrita
da série não é apenas tributária das necessidades televisivas, mas também

91
l
AS SÉRIES TELEVISIVAS

a : s
do contexto político do maccarthysmo. A mecânica narrativ domina o
iente. Assim, o
investigadores são engrenagens numa máquina oleada e efic
realismo da série B de Hollywood contemporânea posto ao serviço de polícias
que se assemelham aos detetives privados d os anos 1920 constitui a primeira
apropriação televisiva do património da história policial.
m n s
Outra maneira de classificar as séries poderia consistir e difere ciar o
modos genéricos em função das idades da televisão. Este formato de análise
permitiria destacar as especificidades gerais da expressão do económico pelo
cultural em cada época. Neste sentido, dever-se-iam delimitar os princípios
genéricos correspondentes à economia particular de cada contexto de produção.
Por exemplo, a divisão clara entre séries de aventuras, em que cada episódio
possui a sua própria unidade narrativa, e as comédias e soap-operas ligadas
às narrativas abertas sem verdadeiro desfecho (a que se refere o estudo de
Stéphane Benassi, 2002) é característica das décadas de 1960 e 1970. Nesta
época, os responsáveis pelas grandes redes estavam ainda convencidos de que
os programas destinados às mulheres deviam ser diferentes dos dirigidos aos
homens: daqui resulta a divisão entre séries masculinas e séries femininas, de
acordo com a herança da ficção popular: a sucessão de narrativas fechadas,
construídas de forma idêntica segundo um encadeamento inevitável, inspira-se
em modelos como As Aventuras de Sherlock Holmes; e o folhetim «puro», em
que cada episódio se conclui com um suspense e uma questão («Que acontecerá
aos nossos heróis? Conseguirão escapar ao perigo que os ameaça? Saberá na
próxima semana»), era perfeitamente dominado por Dumas filho quando o
jornal Le Siecle publicava diariamente Os Três Mosqueteiros. A «série-folhetim»
e a «série-série» foram, portanto, instrumentos imediatamente disponíveis
para os primeiros produtores de séries e é fácil compreender porque depressa
se apoderaram deles.
Mas são raras as séries que se limitam a apresentar apenas uma história
dividida em parcelas ou uma sequência de histórias autónomas em torno de
um mesmo protagonista. Até uma série como O Caminho das Estrelas contém
uma evolução folhetinesca, que tem a ver com as relações entre as diferentes
personagens. «Série-série» e «série-folhetim» são limites nunca alcançados que
não descrevem a diversidade serial.
As perspetivas que esboçámos não oferecem uma solução simples para o
problema da taxinomia das séries. Como nenhum princípio se impõe a priori,
optarei por propor um princípio de classificação baseado na adaptação da série
à sua função. Definimos a série como o formato ficcional melhor adaptado à
programação televisiva: é concebida para ser difundida regularmente e para
instituir uma temporalidade do encontro com os públicos. O tempo ou, mais
exatamente, a construção de um tempo ficcional adaptado a esta obrigação
prag�ática é, portanto, uma condição determinante para qualquer série. Mais
prec1sa ente, a forma narrativa com que uma série �umpre a sua promessa

pragma�tca de regressar t�das as semanas ao mesmo lugar da grelha horária
1

caracteriza-a enquanto serie, um produto ficcional episódico


e, por isso, único.
Proponho então distinguir as séries em função da sua
gestão narrativa do

92
6. AS SÉRIES «IMÓVEIS»

princípio pragmático que as define como «séries». Algumas preferem fazer dos
seus encontros com os públicos reiterações de uma mesma estrutura, negando
assim a passagem do tempo histórico. Nestas séries, as personagens são sempre
iguais a si mesmas e o universo ficcional não evolui. Maggie, a bebé Simpson,
chupa a sua eterna chucha hoje como há 18 anos. O tenente Columbo nunca
passa à reforma e faz as suas investigações há quase 30 anos sempre da mesma
maneira. Outras séries, pelo contrário, aceitam utilizar o tempo cronológico
como uma passadeira entre o pragmático e o narrativo: o universo pessoal da
série envelhece um pouco em cada um dos seus encontros com o público, ou
seja, com cada episódio. A série acompanha o movimento do tempo que ritma a
vida humana, fazendo dele um dado narrativo. O detetive Sipowicz (A Ba/a,da
de Nova Iorque) vê connosco o seu primeiro filho a morrer e o seu segundo
filho a nascer e a crescer. Os seis amigos solteiros de Friends apaixonam-se,
zangam-se, reconciliam-se e acabam todos por se casar.
Por conseguinte, teríamos as séries imóveis e as séries evolutivas. Ou, mais
exatamente, séries essencialmente imóveis e séries essencialmente evolutivas:
os Simpson permanecem iguais a si mesmos, mas o seu universo acompanha
a atualidade da sociedade americana. E as personagens de Friends conservam
os mesmos traços de caráter e as mesmas atitudes ao longo de todas as dez
temporadas de presença.
Esta oposição servir-nos-á de guia para esboçarmos uma classificação
narrativa do género. Esta não terá qualquer carácter sistemático e exclusivo:
os territórios de cada classe sobrepõem-se e os casos «puros» são raros. Além
disso, há maneiras muito diferentes de construir séries imóveis e maneiras
ainda mais numerosas de criar séries evolutivas. No entanto, parece possível
distinguir as duas grandes categorias de séries respetivamente «imóveis»
e «evolutivas»: as primeiras garantem ao telespetador que regressam a um
universo ficcional com regras invariáveis; as segundas fazem corresponder à
sucessão dos episódios uma evolução dos seus universos ficcionais. As primei­
ras afirmaram a sua preponderância até 1980 e as segundas desenvolveram-se
principalmente a partir desta data. Neste capítulo, dedicar-nos-emos às séries
imóveis e aos seus paradoxos, antes de, no capítulo seguinte, examinarmos as
diversas espécies de séries evolutivas.

2. As séries nodais
O tipo mais evidente das séries imóveis é composto pelas produções em
que cada episódio narra uma aventura com a sua abertura e a sua conclusão
segundo uma fórmula imutável. O seu desenrolar narrativo está associado a
uma ordem invariável com um esqueleto fixo: as suas personagens recorren­
tes são inalteráveis e até as suas personagens episódicas seguem um modelo
determinado (para Columbo, é evidentemente impossível investigar um
crime mafioso). A fórmula destas séries constitui uma espécie de núcleo
narrativo constante: «um homem comete um crime e monta o seu álibi; o

93
AS SÉRIES TELEVISIVAS-------------.-
������:..::.:::
tenente Columbo persegue o assassino, destrói progressivamente o seu álibi e
entrega-o à justiça» é o núcleo narrativo constitutivo de _Columbo. Em topo­
grafia, é considerado nodal um lugar onde todos os c�m1nho� se encontram:
0 núcleo narrativo de uma série como Columbo
consiste precisamente numa
sequência de pontos nodais que são também pontos de passagem obrigatória
para cada episódio. Proponho designar este género serial pela expressão séries
nodais, de que Dragnet é historicamente o primeiro exemplo, imediatamente
realizado e eficaz.
Ainda que as séries imóveis nodais pareçam hoje um tanto antiquadas,
constituíram grandes êxitos do pequeno ecrã desde 1950 até à década de 1980.
E podem ainda ser eficazes, como demonstra o exemplo de CSl Quase to das
encontram o princípio da sua imobilidade na associação entre um protagonista,
na maioria dos casos insubstituível (Monk, McGyver, Perry Mason, etc.), e
uma fórmula narrativa implacável. O carisma do intérprete é geralmente o
principal argumento do género; daí procedem diretamente o seu sucesso e
os seus limites. As mais interessantes souberam conjugar a repetibilidade das
suas receitas com uma exploração contínua dos seus próprios postulados. As
personagens contemporâneas de Spooks ou de Dr. House são disso exemplos:
sempre no limite da loucura, propõem heróis que são também anti-heróis
e que poderiam abalar a imobilidade da série numa evolução imprevisível.
Algumas séries imóveis nodais assentam em fórmulas rigorosamente tão
notáveis que podem dispensar o herói carismático. Em cada um dos seus 440
episódios, Lei e Ordem conta uma história diferente segundo uma fórmula
idêntica. No entanto, permitiu-se renovar várias vezes todos os intérpretes das
suas personagens recorrentes. Certos papéis importantes, como o assistente
do procurador, foram desempenhados por seis atores diferentes: é certo que
cada uma das personagens aparece muito mais como uma engrenagem nar­
rativa indispensável num dispositivo perfeitamente organizado do que como
uma personalidade original ou decisiva. No final desta parte, regressaremos
a este exemplo, depois de termos comentado a utilização impressionante da
imobilidade narrativa proposta por duas séries quase contemporâneas: Missão
Impossível e The Prisioner.
A primeira foi uma das séries que mais explicitamente conduziu a sua
narração com uma fórmula repetitiva e que fez disso mesmo o seu emblema.
Já contámos de forma breve a história do seu criador, Bruce Geller, e da
invenção da série. A sua produção desenrolou-se sempre numa atividade febril
e num ambiente conflituoso: as exigências da sua escrita e da sua realização
foram certamente responsáveis por isso. Nem todas as temporadas alcançam
a perfeição formal da segunda e terceira; mas estas, às quais se deveriam acres-­
centar alguns episódios isolados, constituem uma das melhores explorações
da estrutura nodal.
Nenhuma série parece tão «repetitiva» como Missão Impossível. Podemos
até dizer que a repetição é nela exposta ou afixada. Esta característica é tã o
evidente que foi destacada por todos os comentadores: Carrazé e Winckler
(1993: p. 59) escrevem que muitos episódios - quase todos durante as qu atro

94

...
6. AS SÉRIES «IMÓVEIS»

Pri meiras temporadas - são construídos segun do um piano 1mutave


· , 1 », e D enis
·
Liardet ob�er�a que « o desenrolar [de cada episódio] é ritualizado com um
esquema similar» (p. 63). São então passagens literalmente obrigatórias os
fragmentos da ?1i.ssáo a cumprir apresentados em grandes planos entrecortados,
o encontro anommo do chefe da equipa com um gravador que dá as ordens,
a :sc�lha sem��e repe:ida d�s m�smos .colaboradores, a preparação final da
m1ssao num dialogo amda misterioso para o telespetador, tudo ritmado pelos
acordes célebres de Lalo Schifri n
Analisemos agora a função desta ritualização da repetição no interior da
fórmula da série. Em primeiro lugar, observamos que a missão executada no
episódio é também organizada quase ao segundo e ao milímetro e que se
desenrola de forma perfeita, à exceção de alguns rápidos momentos de surpresa
depressa resolvidos. Os próprios membros da equipa cumprem as suas tarefas
de forma quase mecânica. Revelados um a um graças à regularidade de uma
montagem rigorosa e descritiva, entregam-se ao seu trabalho de especialista
sem sobressalto nem emoção. Somos inicialmente incapazes de perceber o
sincronismo da sua atividade, mas quando esta se aproxima do seu termo,
compreendemos que todos concorrem para o mesmo resultado. Melhor, à
medida que a intriga se desenvolve, os seus próprios adversários tornam-se
fantoches ou marionetas nas suas mãos.
O sucesso narrativo da série está constitutivamente ligado a esta ritualidade
serial: é absolutamente necessária à exploração dos enredos de cada episódio.
Isto porque a regularidade e até a banalidade têm aí uma função muito par­
ticular: permitem as extravagâncias da realização das missões. De facto, estas
assentam num princípio raro na ficção popular de aventuras (Maurice Leblanc
utilizou esta técnica para as suas Aventures d'Arsene Lupin), o da simulação.
Que devem fazer os membros da «Impossible Mission Force», cujas façanhas·,,
nos são mostradas na série? Devem cumprir uma missão de interesse vital
para os Estados Unidos (abortar um golpe de Estado, neutralizar um espião
vindo do bloco de Leste, impedir que uma arma terrível seja acionada, etc.),
que não pode ser realizada por meios clássicos (destruições, detenções, etc.):
só podem recorrer a truques, ao disfarce, ao ilusionismo. Em suma, os seus
instrumentos são os da encenação. Para que os «vilões» lhes deem, de alguma
maneira de bom grado, aquilo que procuram, inventam um espetáculo, uma
ilusão, que os seus adversários devem tomar pela realidade. Assim, assistimos
à invenção e à encenação de uma fantasmagoria: «A missão da IMF é um
trabalho de marione tista, de ilusionista, de apresentador de feira» (Carrazé e
Winckler, 1993: p. 44). Em cada episódio da série, há, portanto, dois níveis
narrativos: 0 primeiro é o do fabrico da representação, que é objeto de uma
apresentação ritualizada ao extremo, que segue a ordem minuciosa e repeti­
tiva característica da fórmula; o segundo é o da representação oferecida aos
vilões, que, pelo contrário, é pretexto para uma criatividade desenfreada,
uma fantasia arrebatada, ainda que se pretenda sempre ciend:fica e rigorosa.
A extravagância deste segundo nível é inversamente proporcion�l_a� rigor do
protocolo seguido no primeiro e é evidentemente este que poss1b1hta aquele.

95
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Assim, a monotonia aparente da série é apenas a tela que permite a grand


e
invenção e o ainda maior espetáculo.
Outra série, quase contemporânea de Missão Impossível, conseguiu também.
dar uma notável consistência narrativa à repetição inserida no âmago das séries
nodais. A personagem principal de The Prisioneré o «prisioneiro n.0 6», agente
secreto demissionário, que foi raptado e levado para a Village, uma prisão sem.
vedações, da qual ninguém consegue fugir. É-lhe exigida uma informação que
parece ignorar, enquanto ele próprio pede explicações que ninguém lhe quer
dar. Em cada novo episódio, o n.0 6 desperta na Village para ser confrontado
com um novo n.0 2 que lhe quer extrair essa famosa informação. A narração,
portanto, é extremamente repetitiva e o seu desenrolar é quase imutável. Além
disso, a Village vive apenas de atos rituais sem qualquer conteúdo: a famosa
frase de despedida «be seingyou!» é o traço mais visível deste conjunto de gestos
que, na nossa vida quotidiana, se destinam apenas a permitir a conversa e que,
no universo de 1he Prisioner, lembram o estatuto de cativos aos residentes da
Village. Repetidos até à exaustão, são aquilo a que Freud (1988: pp. 138-140)
chamou «atos compulsivos», cuja origem é localizada pelo psicanalista na cul­
pabilidade obsessiva da consciência. Segundo o autor, estes atos compulsivos
tornam-se objeto de um cerimonial que acaba por formar um abrigo para o
sujeito. É da culpa que trata 1he Prisioner, mas de uma culpa fictícia construída
pelos carcereiros. Assim, os rituais da série de Patrick McGoohan, enquanto
jogam num modo ficcional com a repetição da presença do telespetador frente
ao seu televisor, têm, pelo contrário, a função de lembrar incessantemente a
dependência de todos os residentes da Village.
Portanto, não é por acaso que 1he Prisioner foi comparada aos maiores
romances da governação pela clausura, como 1984 de Orwell ou O Processo
de Kafka (Carrazé e Oswald, 1989). Dá destes textos uma representação
audiovisual capaz de transformar o princípio formal da serialização num prin­
cípio ficcional da dependência. Tanto mais que a série não é apenas nodal: o
mistério, que se instalou desde os primeiros minutos e que só será desvendado
no último episódio, faz dele também um folhetim fascinante. O carácter de
objeto «de culto» de uma série, ainda admirado e por vezes venerado, está-lhe
certamente ligado {Le Guern, 2002).
A intrusão de A Balada de Hill Street e de uma política que privilegia as
séries evolutivas não eliminou as séries nodais. A época atual assistiu ao nas­
cimento de grandes êxitos nodais, como CSI. Uma série nodal atual pode até
vir a ser a mais longa série dramática da história: Lei e Ordem, cujo primeiro
episódio foi emitido no dia 13 de setembro de 1990 e cuja vigésima temporada
foi rodada para ser emitida em 2009-2010. A fórmula da série é simples, mas
permite grandes variações. Um crime é cometido, um réu é julgado: tudo parece
narrativamente límpido. Mas esta evidência esconde um percurso muito rico,
que permitiu à série tratar de todos os males da América.
Cada episódio começa com a descoberta de um crime, que compõe 0
prólogo do episódio. Após o genérico, que incl ui numerosos documentos
fotográfico s que mostram a" realidade da criminalidade nova-iorquina, ª
96
/ Love Lucy (1951-1957)
. .
. s1tcom
A pnmeIra e a pnme1ra
. vedeta: Lucille Bali

el (1966-1973)
Missão Impossív a s aparên
cias
c omédia d
Martin Landau e a
The Prisioner (1967-1968)
Um funcionário da vigilância: o n.0 2

THE
MA
RY
TY.lER
MOORE
SHOW

The Mary Tyler Moore Show (1970-1971)


Uma mulher independente
A Balada de Hill Street (1981-1987)
Polícias diferentes
Os Simpson (1989-)
Os Simpson e a paródia: tudo acontece

Lei e Ordem (1990-)


A justiça em ação: o procurador Sam Waterson/Jack McCoy
Serviço de Urgência (1994-2006)
A efervescência das urgências

Oz (1997-2003)
A verdadeira vida na prisão
Buffy-Caçadora de Vampiros (1997-2003)
A jovem que desafia os vampiros, a morte e os homens

O Sexo e a Cidade (1998-2004)


O divórcio do sexo e do amor
Sete Palmos de Terra (2001-2005)
A família Fisher antes do desmembramento

O Protetor (2002-2009)
A corrupção generalizada dos polícias de Los Angeles
Donas de Casa Desesperadas (2004-)
Donas de casa de luto pela amiga e pelos seus estatutos
6. AS SÉRIES «IMÓVEIS»

investigação começa. Consiste essencialmente em 1· nterrogatonos, · levados a cab o


. . .
Pelos d01s mvesugadores, que conduzem, após consultas de ficheuos, · , ·
,,
ª . ,
comparaçoes, etc., uma hipotese acerca da culpa de determinado indivíduo.
de varias

Surgem discus�ões com o c�pitáo sobre a estratégia da investigação e a validade


_
das �rova� obttdas: os dois mvestigadores apresentam frequentemente pontos
de vista diferentes: Quando o resultado parece suficientemente tangível, um
�os pro cu�a�ores e chamado, que emite um mandado de detenção. Após um
mterrogatono na presença do advogado, o suspeito é acusado.
Começa então uma nova fase: realizam-se negociações duras entre os pro­
curadores e os advogados dos réus, que dizem respeito sobretudo aos termos
da acusação. Misturam-se aqui considerações morais - po r exemplo, entra em
linha de conta a vontade de punir os acusados mais culposos - e considerações
de direito. Os arcano s jurídicos são sabiamente decompostos: as reuniões no
gabinete do juiz a fim de avaliar a legitimidade das provas e das testemunhas,
ou os debates contraditórios diante do tribunal civil para se decidir o estatuto
do processo são mostrados e explicados. As relações de poder características da
sociedade americana exibem to do o seu peso, que permite que os poderosos
intervenham e transformem aquilo que está em causa nessas negociações.
As discussões entre os procuradores e o District Atto rney s obre as diferentes
manobras e manipulações da lei correspondem às discussões da primeira parte
entre os investigadores e o capitão. Podemos aval iar aqui o poder específico do
mundo judiciário. Por fim, o processo é levado ao Supremo Tribunal de Nova
Iorque. Iniciam-se interrogatórios e contrainterrogatórios; o cortejo das objeções
e das discussões sobre essas objeções, o peso de uma questão indeferida, mas
cuja enunciação tem importância para os jurados, a atitude das testemunhas, a
dialética da moral e do sentimento são apresentados e dissecados. 433 episódios
até hoje (verão de 2009) seguem este caminho imutável.
Esta descrição revela como a controvérsia é o centro estrutural de Lei e
Ordem: Dick Wolf, criador da série, confidenciou até que o episódio ideal seria
aquele em que «as. seis personagens [o s três polícias e os três procuradores]
tivessem pontos de vista diferentes sobre o mesmo enigma moral» (Longworth,
2000: p. 14). Mas, mais frequentemente, é todo um conjunto de desacordos
sociais, morais e jurídicos que é apresentado em cada episódio. Estes opõem
polícia e justiça, polícias entre eles próprios, procuradores entre eles próprios,
procuradores e advogados ou grupos de pressão. O veredicto final, que está
longe de ser sempre favorável ao s heróis, constitui mais uma pontuação ter­
minal do que uma conclusão. A força narrativa da série prende-se com este
modo de avanço da narrativa através da discussão: as perso nagens têm menos
importância do que os seus debates, o que explica o fac�o de todos os papéis
recorrentes terem sido interpretados pelo menos por dois atores.
idade narrativa da
O ritmo da contro vérsia ajusta-se perfeitamente à veloc
série: de facto, nodalidade não significa lentidão. Vários processos de realiza­
começar cada
ção são concebidos para acelerar o ritmo, como o cost�me de
sequência por um travelling com personagens em �ovime�to ou p elo_ plan.o
, Sherm, que
«giratório», inventado pelo segundo produtor executivo da séne Ed

97
AS SÉRIES TELEVISIVAS

permite oferecer vários pontos de vista num só plano. No entanto, é sobretudo


a densidade narrativa de Lei e Ordem que dá uma impressão intensa de velo­
cidade. Nunca se perde tempo em ações inúteis; se um nome é dado, passa-se
diretamente para o interrogatório, sem mostrar a busca ou a detenção. Se os
procuradores discutem sobre um mandado, aparecem logo em audiência diante
de um juiz para defenderem a sua legitimidade. Os debates entre inspetores são
também aceleradores narrativos: preparam os telespetadores para compreen­
derem as ações futuras e permitem novos atalhos. A qualidade da realização,
da escrita dos argumentos, bem como a sua atualidade sempre brilhante, são
as razões principais do êxito da série imaginada por Dick Wolf, apesar de a
sua velocidade parecer ter limitado a sua audiência francesa (continua a ser
atualmente emitida por quatro canais da TNT).

3. Soap-operas e sitcoms
Se o equilíbrio imóvel das séries nodais é fácil de perceber, o das soap­
-operas parece mais delicado e frágil. De forma surpreendente, a experiência
prova que esse equilíbrio se mostra mais eficaz do que o das séries nodais:
algumas soap-operas, como The Young and the Restless, produzida desde 1973
até hoje à razão de 36 episódios por temporada, parecem, de facto, eternas.
No entanto, qualquer narrativa parece admitir leis de abertura e de fecho que
não permitem que a soap-opera se imobilize ou continue indefinidamente.
Mas consegue «contrariar» a sua narração para suspender indefinidamente a
história e obedecer idealmente às regras da programação televisiva: a soap-opera
representa o paradoxo de uma narrativa suspensa, interminável, em perpétuo
devir, mas que opera uma repetição contínua do passado: talvez pelo facto
de o presente nela fazer apenas breves aparições, a soap-opera constitui uma
aporia narrativa realizada, que concretiza de forma perfeita a estrutura do
melodrama maternal.
É também o género televisivo mais estudado pelos investigadores anglo­
-saxónicos, devido às suas extravagâncias narrativas e ao interesse que os gender
studies lhe atribuem. Todos os autores insistiram nas antilogias da narrativa
«soapiana». Robert Allen (1985: p. 69) insiste, por exemplo, no facto de a his­
tória não contar; só os múltiplos incidentes ou, mais exatamente, a expetativa
e o comentário destes constituem a sua substância narrativa. Ien Ang (1991:
p. 54) ou Tania Modleski (1984: p. 88) deduzem daí o carácter infindável ou
interminável da narrativa: como nenhum acontecimento marca um momento
importante ou é capaz de agir como uma causa, a comunidade dos protago­
nistas perdura indefinidamente. Qualquer conflito, qualquer rivalidade entre
personagens é infinitamente adiado ou encontra uma resolução meramente
temporária (Geraghty, 1981: pp. 11-15). A tagarelice adquire uma importância
determinante: com a ação infinitamente suspensa, restam os comentários, as
confissões, as maledicências, as disputas, as paráfrases, etc., em suma, todos
os géneros de conversa: a soap-opera é um género profundamente oral (Brown,

98
6. AS SÉRIES «IMÓVEIS»
------------�--------=::.:...:..:=...:::::=�����'.-=.!:!::..
4: . 59). A suspen sã cons a nt mente reiterada
199 p _ � � � da ação só é possível por­
u
q ea so ap-op era m ult1 �hca as 1 �tngas e assa incessantemente de uma para
, �
ou tra: estas deslocaçoes autonzam replicas e repetições, que permi
a tem aos
telesp etadores reconhecerem-se no interior da sobreposição das tramas, sem
que elas efetivamen�e avancem (Geraghty: p. 11). Deste modo, as diferentes
narrativas ricocheteiam u mas nas outras, contribuindo para baralhar as pistas

e aument ar as interpretações cruzadas: cada personagem manifesta-se, então,


pelos seus diversos pontos de vista sobre os seus problemas e os problemas dos
outros. Assim, os sentimentos vividos pelas personagens ou que estas podem
viver tornam-se as verdadeiras questões narrativas da soap-opera. Cada uma
delas torna-se a origem de uma perspetiva geral sobre o mundo ficcional
(Modleski, 1984: p. 91; Brown, 1994: p. 51). Esta diversidade faz da soap­
-opera uma narrativa aberta, constitutivamente propensa a autorizar inúmeras
interpretações (Ang, 1991: p. 124); consegue também desmultiplicar-se nas
inúmeras conversas que suscita entre as suas telespetadoras: «As soap-operas
são concebidas para serem discutidas» (Brown: p. 19).
Tania Modleski pensa que o sujeito/espetador da soap-opera é «uma espécie
de mãe ideal» (p. 92), que possui uma sabedoria universal válida para toda a
comunidade. A imagem é forte: a soap faria de qualquer espetador uma mãe
melodramática. No entanto, as versões contemporâneas da sabedoria maternal
variam, como demonstra a diversidade dos interesses em torno de uma mesma
série: as telespetadoras de Da/las, divididas, segundo Ien Ang, entre Sue Ellen
e Pamela, portanto entre duas interpretações da história, não adotam o ponto
de vista da matriarca Ellie Ewing. Os diferentes estudos dos sociólogos tendem
mais a mostrar que a soap-opera não tem como centro de interesse principal
a figura da mãe «ideal», mas sim as turbulências do quadro familiar e um
questionamento permanente se não do quadro comunitário, pelo menos da
conformidade das ações das várias personagens com esse quadro.
Estamos agora em melhor posição de compreender o paradoxo da narra­
tiva da soap-opera. Nos seus preciosos estudos sobre a narrativa, Jean-Michel
Adam (1999: pp. 86-94) propõe desta uma definição que coloca o acento
tónico em seis propriedades do discurso, segundo ele, características da
narrativa: u ma história inclui uma sucessão de acontecimentos (I) ligada
por uma un idade dramática (II) que põe em cena uma transformação (III)
através de u ma unidade de ação (IV) e de uma causalidade narrativa (V);
a última fase da história é a da avaliação frequentemente mora l da trans­
formação (VI). Tudo se passa como se as personagen s da soap-opera só se
ocupassem com esta última fase de glosa interminável a propósito daquilo
que p oderia acontecer, ou do que poderia ter acontecido ou até daquilo que
efetivamen te se passou. Não é um derradeiro e normalmente breve comen­
tário, mas estende-se sobre a quase totalidade do tempo dos episódios. A
soap-opera seria uma narrativa de segundo grau, o comentário interminável
de narrativas possíveis. É por isso que a história «soapiana», interminavel­
mente mergulhada na sua autoavalia ção, pode «não avançar», manter-se
perfeitamente (ou quase perfeitamente) imóvel.

99
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Este quadro geral permite dar sentido a alguns traços característic os


da soap-opera destacados por Robert Allen (pp. 101-104): a resistência ao
fecho e a temática doméstica resultam assim diretamente do gosto pela
glosa do género (o doméstico é aquilo de que toda a gente pode falar).
Em contrapartida, o seu didatismo e a sua orientação feminina foram-se
desvanecendo: desde os seus inícios radiofónicos até finais dos anos 1920
(Allen, 1985: pp. 101-104), a soap-opera desenvolveu-se e aperfeiçoou as
suas estruturas. A paleta dos seus temas alargou-se, o seu didatismo desa­
pareceu e a sua feminilidade já não é tão maciça. A estrutura narrativa, cuja
composição esboçámos no parágrafo anterior, afirmou-se e é agora o seu
pilar simultaneamente firme e flexível. Permite que a soap-opera perdure,
mas também que se transforme. Com efeito, o género mostra-se par ticu­
larmente apto para as misturas: séries tão diferentes quanto Twin Peaks ou
O Sexo e a Cidade devem muito à soap-opera, embora a primeira seja poli­
cial e fantástica e a segunda cómica e (anti)melodramática. Curiosamente,
a herança da soap-opera e da sua estrutura imóvel torna-se mais fácil de
avaliar graças às séries epígonas do género. Por exemplo, ao escrever sobre
Donas de Casa Desesperadas, Rosalind Coward (2006: pp. 31-32) pode
considerar o tratamento dos mundos emocionais e sexuais de Dallas ou de
Dinastia «de grande modernidade»: conflitos de geração entre mães e filhas
e lutas dos mais jovens contra o chauvinismo masculino são, para a autora,
exemplos de problemáticas sociais contemporâneas. É muito irónico que
o género mais desacreditado, o mais desprezado (a campanha de imprensa
desencadeada contra Dallas na altura da sua estreia em França é, a este
respeito, bastante representativa), constitua uma das fontes fundamentais
da inspiração contemporânea na televisão e no cinema.
Um terceiro grupo de séries imóveis, talvez hoje menos vivo do que a
soap-opera, é composto pelas comédias de situação ou sitcoms. Trata-se de um
género em que a produção francesa se ilustrou, com, por exemplo, Maguy, que
conta 333 episódios em oito temporadas nos anos 1980. Entre as sitcoms que
desempenharam um papel importante na história da televisão e, sem dúvida,
também na história social do país, destaca-se Ihe Cosby Show. Construída em
torno do cómico Bill Cosby, esta série apresenta uma família afro-americana,
os Heathcliff, cujo pai é obstreta e a mãe advogada. A apresentação regular de
uma família de colarinhos brancos afro-americanos em inícios dos anos 1980
numa série cómica de grande sucesso (foi uma das séries mais importantes
desta década) legitimou a integração de minorias nos programas de televisão
e credibilizou-lhes a incorporação na sociedade americana.
A sitcom propõe um método diferente da fórmula fixa ou da soap-opera
para conservar a sua imobilidade. Pertencente ao género cómico, baseia-se na
repetição de gags ou de estilo de gags que propõem aos públicos uma forma
de cumplicidade de segundo grau, que torna secundárias as questões narra ti­
vas. Isto é tão evidente na família Heathdiff como na família Simpson, que
parece ser a sua antítese: branca, socialmente desvalorizada, aberta a todos
s, enquanto os Heathcliff são afro-americanos, privilegiados
le '1(,. os preconceito
ISBAM�-
Sisema g 00
BitlliollCallG

t -"4�
6· AS SÉRIES «IMÓVEIS»

e tolerantes. No entanto, o importante é aquilo que aproxi


· ,. . ma a ram.e. 1,1.ia de
desenhos animados. da familia mais realista·· uma atmosre .e. ra , um am b·1ente e,
.
sobretudo, um conJunto de piadas que são piscadelas de olho aos telespetado-
· d , , .
res. Frzen s �' sem qua1 quer duvida, uma das sitcoms de sucesso entre as mais
recentes. Reune todos os processos cómicos habituais da sz',,com: 1- Iremos agora
descrever alguns dos mais típicos do género.
O primeiro destes processos, inerente à sitcom, está associado à tipifi
cação
das personagens. A personagem de Monica em Friends é maníaca: daí uma
q�a�tidade quase ilimitada de gags que permitem concluir uma sequência ou
_
imc1ar outra. SeJa qual for o assunto da conversa, Monica (Courteney Cox)
pode usar uma das suas réplicas habituais sobre a organização obrigatória
da cozinha ou a propósito de uma minúscula mancha no tapete - réplicas
que, sem a conivência previamente instaurada entre os telespetadores e a
tipificação da série, pareceriam incongruentes. Cad a personage m possui a
sua face, como diria Erving Goffman, que dá aos argumentistas soluções
seguras. Um segundo processo essencial às sitcoms assenta na definição de
ritmos internos, que atuam como os refrãe s das canções. Em Friends, uma
das formas rítmicas características da série gira em torno do breve silêncio
que precede numerosos gags. Uma das personagens faz uma afirmação·
geralmente espantosa, que bloqueia a cena durante um curto momento;
depois, essa p e rsonagem ou outra relança a ação ao contradizer pronta­
me nte o enunciado precedente: então, toda a ge nte começa a mover-se, o
que concluiu fre quentemente a cena. A repetição de gestos ou de mímicas,
geralmente inv e ntados pelos atores, é um dos instru me ntos mais eficazes
para m anter a cumplicidade da sitcom com o público. Das p ersonagens de
Friends, Chandler, interpretado por Mathew Pe rry, foi quem mais criou
esses traços de reconhecimento. Contudo, o célebre movimento de Joe (Matt
LeBlanc), que, com as mãos atrás da nuca, bate com os cotovelos um no
outro para significar a rejeição grosseira, tornou-se famoso até nos re creios
das escolas francesa s.
As sitcoms constroem então a sua i mobilidade repetindo em cada episódio
um jogo de graç as rituais, ligeiramente v ariadas de um ep�s�dio pa�a outro,
mas que utilizam esquemas idênticos. Enquanto o comentano peri:1ite q�e- a
soap-opera conserve a narração, a sitcom re cusa levar as suas nar�aço�s a seno
e anul a- as ou anula os seus efe itos, através de e ngra çados atos ritua
is conhe­
cidos e re�onhecidos pelos públicos. Assim, a sitcom pode também perdurar
e constituir uma série imóvel.
de no da I d e Golumbo ou de Lei e Ordem, i:a ver º i:
A narrauvi borreia per-
· · 'd a
entes
sistente d a soap-opera ou as pi· adas dup1·icadas d a sitcom são . rormas d 1Ier .
· que
de conservar o tempo narrauvo e de construi·r essas cadeias narrativas
só têm um fecho fictício. Séries nodais, soap-operas e SZtcoms ,c�nseguem
, por
. O auxd10 de processos
meios diferentes ' bloquear o d esenrolar narran· vo co m pu, bl'icos.
d.1versos mas que requerem to dos grande curoplicidade com os
. m as
b en eficia
Estes sã� norm almente seduzidos pela grande vantagem de q ue b
. 0'd'ios ªnteriores não é a so
lutamente
se, ries imóveis: o vision amento dos ep1s
101
.......

AS SÉRIES TELEVISIVAS

necessário e a sua falta não dificulta (ou dificulta muito pouco) a compreensão
dos episódios seguintes. No entanto, atualmente, a sua importância está a
diminuir no universo serial e tendem a dar lugar a outros tipos de jogos com
o tempo, que reunimos sob o nome de séries evolutivas.

102
Capítulo 7

As séries <<evolutivas>>

1. A emergência do tempo longo


Ainda que as séries imóveis tenham dominado a paisagem serial durante
muito tempo, os produtores perceberam rapidamente que tinham outras
soluções. Zorro, uma das primeiras séries da Disney, nos anos 1950, utiliza
«cliffhangers» no fim de cada episódio. Zorro está preso numa sala com paredes
amovíveis, que o podem esmagar: para saber se irá sobreviver, siga o próximo
episódio. Nos anos 1960, O Fugitivo junta duas temporalidades: a primeira
assemelha-se às das séries imóveis e a outra ao tempo longo da demanda,
que aqui se materializa numa viagem através dos Estados Unidos. Embora
não se possa falar de road-movie, a série traça um retrato de várias paisagens
americanas desfavorecidas.
No entanto, é difícil não perceber o desenvolvimento das séries a que
chamaria evolutivas (por falta de um termo mais expressivo) e a redução cor­
relativa do número de séries imóveis como um avanço na história das séries.
É certo que é sempre delicado considerar uma transformação histórica como
um progresso, como se a passagem do tempo significasse sempre uma melho­
ria. Por exemplo, seria fácil invocar Lei e Ordem, uma das mais importantes
séries contemporâneas, que está associada às séries imóveis. Contudo, parece
que o jogo com o tempo característico do género serial se enriqueceu com as
séries evolutivas, multiplicando as possibilidades de organização do tempo: a
imobilidade e o jogo com a imobilidade são apenas uma possibilidade entre
muitas outras. Assim, somos tentados a considerar, com historiadores como
Robert Thompson, que a produção de A Balada de Hill Street constitui uma
verdadeira viragem da história serial, que abre caminho aos dois grandes
tipos de séries evolutivas, criando o género da série coral e desdobrando as
possibilidades da série folhetinesca.
O que muda exatamente com as séries evolutivas? Regressemos por momen­
tos ao nosso ponto de partida: a série é o género ficcional melhor adaptado à
difusão televisiva. Esta alcança o público na sua intimidade e na regularidade
do quotidiano. As séries imóveis propõem aos telespetadores a segurança de
encontrarem uma estrutura ficcional fixa e personagens idênticas a si mesmas.

103
AS SÉRIES TELEVISIVAS

No entanto, o tempo passa e os telespetadores envelhecem. Por que não fazer


evoluírem ao mesmo tempo as personagens ficcionais das séries? O género
serial e a multiplicação dos episódios de uma mesma ficção oferecem, nesta
· matéria, novas potencialidades para toda a escrita ficcional. Torna-se possível
renovar ou reformar personagens ano após ano, mostrar as transformações
de uma família ou percorrer o passado e o futuro numa ordem sempre a
definir, como mostra a sequência formada por O Caminho das Estrelas e os
seus diferentes epígonos.
Além disso, pode ser estabelecida outra relação com o público, que tem
a possibilidade de se tornar um perito dos mundos ficcionais seriais. No seu
estudo sobre os fãs de séries, Henry Jenkins (1992: pp. 60-85, 95-102) expõe
longamente a especialização exibida por telespetadores informados que revêem
antigos episódios à luz dos novos e que tendem a ver-se como a memória viva
da série. Tornam-se assim os «controladores» do trabalho dos produtores
e não hesitam em criticá-los se pensarem que estes se desviam das normas
admitidas do universo ficcional. Os públicos podem conservar o seu gosto
durante vários anos e reatualizá-lo à medida que visionam os episódios. Deste
ponto de vista, mesmo o seu «fim» (o facto de já não se produzirem novos
episódios) não acaba com a vida da série, como sublinham Elana Levine e Lisa
Parks (2007: p. 4) a propósito de Bujfy - Caçadora de Vampiros. A memória
da série permanece assim viva e o facto memorial torna-se uma componente
essencial do universo serial.
Desde há cerca de 20 anos que muitas séries tem explorado o seu próprio
potencial quanto à construção de uma temporalidade ficcional original.
Embora estas tentativas não esgotem certamente todas as possibilidades,
limitar-nos-emos a descrever os seus dois resultados mais importantes, que
são duas definições possíveis do tempo ficcional.
As primeiras apresentam em cada episódio um fragmento de vida, quase
sempre a de uma comunidade e dos seus membros. A história destes enriquece­
-se lentamente com um conjunto de acontecimentos umas vezes vulgares,
outras vezes decisivos. A vida de cada um constitui uma pequena crónica e o
conjunto de todas forma uma rede de vozes por vezes difusas, mas suscetíveis
de, a qualquer momento, voltarem a convergir: a sua continuidade é formada
por diferentes descontinuidades. Proponho o termo série coral para designar
uma forma narrativa que se aparenta à biografia: mas trata-se da biografia de
uma comunidade. O estado da comunidade protagonista depende assim de
todos os episódios passados, sem que se estabeleça claramente urna relação
direta de causa e efeito. As séries folhetinescas, pelo contrário, fazem depender
mais estritamente cada episódio do anterior. Estas séries podem cultivar o
cliffhanger de fim de episódio, à imagem dos seriais tradicionais: assentam na
construção da expetativa de um acontecimento e na promessa feita ao espeta­
dor de prosseguir a ação no ponto em que foi provisoriamente interrompid a.
A série 24, por exemplo, assume plenamente este princípio radical da série
folhetinesca. Mas as séries contemporâneas souberam desenvolver formas mais
complexas de folhetim. Serviço de Urgência, que é essencialmente uma série

104
7. AS Sl:RIES «EVOLUTIVAS

coral, apresenta também folhetins lentos, que se estendem durante toda uma
, .
temporada ou até varias temporadas. Cada um deles avança graças a cenas
curtas, frequentemente cortadas de forma abrupta• o
rolhe t'1m mtro
11 · duzm-se
·
cada vez mais noutros géneros: algumas séries corais contêm folhetins mais
amplos e complexos �o q�� os folhetins com cliffhanger. Estas séries entre­
laçam de certa maneua varias temporalidades e, portanto, várias formas de
telespetaleitura. Compreende-se que a nossa distinção não divide estritamente
dois territórios mutuamente exclusivos. Muitas são as séries que participam
nos dois modos; contudo, distinguimo-las a fim de melhor exemplificar as
estratégias temporais das séries.

2. As séries corais
É verdade que as séries corais existem há muito tempo. O western serviu
inicialmente de veículo a este tipo de série: Cheyenne (emitida a partir de 1955)
eMaverick (1957-1962), criada e produzida por Roy Huggins, constituem, para
os historiadores americanos, os maiores êxitos na matéria (Marc e Thompson
R., 1995: pp. 141-146). Mas as séries crónicas contemporâneas souberam dar­
-lhes novas dimensões e abrir-lhes caminhos inexplorados.
Já mostrámos como a primeira destas séries, A Balada de Hill Street, é o
produto da combinação de dois tipos de séries imóveis, as séries nodais e as
soap-operas. Os polícias da esquadra de Hill Street abrem um novo caminho,
por onde seguirão St. Elsewhere, L.A. Law, Serviço de Urgência, A Balada de
Nova Iorque, etc.; i nscrevem também a mistura genérica como um recurso
para os produtores de séries, que, doravante, não param de misturar os géneros
tradicionais, muitas vezes de forma extremamente inesperada: por exemplo,
Buffy- Caçadora de Vampiros resulta da aliança impressionante entre a soap­
-opera, a escola e o fantástico. No seu notável Textual Poachers, Henry Jenkins
(1992: pp. 133-134) mostra que a série de culto Beauty and the Beast pode
bem ser vista como um romance trágico ou como um romance moderno oti­
mista, como uma história de aventuras ou ainda como a saga de um mundo
marginal subterrâneo. A mistura dos géneros, a transferência de um género
para outro, bem como o cruzamento dos géneros tornam-se moeda corrente
no domínio das séries e, neste sentido, A Balada de Hill Street constitui um
golpe de mestre. Daí resultarão várias formas de séries corais.
Que tipo de temporalidade constrói a primeira grande série de Steven
Bochco e, na sua sequência, as outras séries corais? Estas séries apresentam uma
comunidade, como acontece na soap-opera ou na sitcom, mas esta comunidade
t
não é sentimental como na soap-opera, ou burlesca como na sitcom. Em mui os
casos, é profissional: trata-se então de uma equipa de polícias ou de um serviço
hospitalar (daí O nome profissional drama dado pela crítica americana a estas
�éries). Os membros da comunidade protagonista têm tarefas profissionais que
são objeto de narrativas fechadas. Têm também relações de trabalho, que podem
tornar-se relações pessoais ou que podem interferir com as suas vidas privadas.

105
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Deste ponto de vista, a vida comunitária inscreve-se no interior de um tempo


longo, sem verdadeiro começo nem fim manifesto: a comunidade renova-se ao
mesmo tempo que os seus membros evoluem. Estes podem mudar ou evoluir,
apaixonar-se ou divorciar-se; podem também desaparecer e ser substituídos por
outros. Neste sentido, determinante para a definição da série, esta adota o tem o
p
da vida comum, ainda que, na maioria dos casos, os episódios narrados sejam
acontecimentos marcantes. As narrativas profissionais inserem-se no interior
do tempo crónico da comunidade percorrido pela s érie: ilustram ou esclarecem
frequentemente a evolução dos seus membros. Assim, as narrativas fechadas,
curtas ou longas, marcam pontos de referência no tempo longo da comunidade.
Observemos que a apresentação de uma comunidade social era já um
dos grandes temas do cinema de Hollywood: não podemos deixar de notar a
semelhança do esquema narrativo das séries corais com o de grande parte do
cinema clássico ameriqrno. Muitos dos filmes de Ford ou de Hawks apresen­
tam comunidades. Filmes como A Patrulha Perdida (The Lost Patrol, 1934),
Tormenta a Bordo (1he Long Voyage Home, 1940), O Vale era Verde (How Green
Was My Valley, 1941), assinados por Ford, ou Paraíso Infernal ( Only Angels
Have W'ings, 1939) e Bola de Fogo (Bali ofPire, 1941), realizados por Hawks, são
construídos a partir das reações que uma aventura passada no espaço público
ou profissional produz sobre os diferentes membros da comunidade. Por isso,
não é surpreendente encontrar numerosas correspondências entre estes filmes
e as séries corais, ainda que estas tenham sobre aqueles a vantagem da longa
duração. Algumas são evident es, como a herança que representa O Padrinho
(The Godfother) para Os Sopranos (The Sopranos); outras, talvez menos evidentes,
são igualmente importantes, como o cinema de Ford para as séries produzidas
por Steven Bochco. A elaboração problemática da comunidade parece cont i­
nuar a ser um dos maiores temas americanos, que dá à série televisiva, após a
literatura e o cinema, os seus maiores êxitos (ao contrário da ficção francesa
centrada no indivíduo?).
O esquema geral das séries corais permite numerosas variações. Durante
a primeira temporada de A Balada de Hill Street, Steven Bochco e Michael
Kozoll multiplicam as investigações em que participam os membros da
esquadra; também não hesitam em dessincronizar o tempo dessas diferentes
estórias com a unidade fundamental do género serial, o episódio: nenhuma
dessas estórias coincide com a duração de um episódio. Algumas são muito
breves e resumem-se a uma interpelação ou a uma visita domiciliária, enquanto
outras se estendem por vários episódios. A pedido da NBC, a partir da segunda
temporada, resolvem ajustar uma das histórias à duração de um episódio. A
primeira temporada é um exemplo radical da narrativa fragmentada permitida
pela série coral. A Balada de Hill Street poderia ser assim vista como herdeira de
tentativas narratológicas em que se inscrevem autores como John Dos Passos
ou Tom Wolfe (Gittlin, 1994; Thompson R., 1996).
Em A Balada de Nova Iorque, Steven Bochco parece prosseguir com
David Milch o trabalho narrativo empreendido em A Balada de Hill Street.
A série organiza-se inicialmente em torno da sala comum dos inspetores do

106
7. AS SÉRIES «EVOLUTIVAS»

15.0 distrito de Nova Iorque: local de passagem, de discu


ssão, de tensão e de
n
co � �ro to, co �stitui um ponto de referência e de amálgama das várias intrigas.
Inst1 tm tambe m a esqua dra como o centro da comunidade urbana: todas as
suas dificuldades, as suas diferenças, as suas misérias e as suas loucuras con­
verg em para a esquad ra, que, de alguma maneira, tenta dar-lhes solução. A
reação dos polícias, eles próprios mais ou menos em perdição, é a de amigos
ou até de membros da família. Isto faz da série, segundo a correta definição
de Joyce Millman (2004: p. 10), «uma reflexão sobre a sociedade a partir dos
laços familiares que nela existem».
Num episódio de A Balada de Nova Iorque, vemos os inspetores do 15.0
distrito a empreenderem duas investigações distintas. Ainda que, em certos
casos, existam três investigações no mesmo episódio, duas delas acabam sempre
por se juntar numa mesma investigação. Cada urna é construída segundo o
mesmo encadeamento de três tipos de sequências: a descoberta do crime e as
primeiras conclusões que orientam a investigação, seguidas ao longo de todo
este inquérito por várias concertações entre os investigadores, entre eles próprios
e com o seu chefe; o diálogo com testemunhas, que, ao mesmo tempo, é uma
avaliação dessas testemunhas; por último, os interrogatórios dos suspeitos,
quase sempre obrigados a confessarem graças à habilidade e, por vezes, à
violência dos protagonistas da série. Esta estrutura é a parte imóvel da série:
cada investigação só é concluída após a confissão dos culpados, obtida graças
às pressões exercidas pela equipa da esquadra.
Em simultâneo, seguem-se vários arcos narrativos de curto ou longo alcance.
Alguns estendem-se apenas por alguns episódios: por exemplo, na primeira
temporada, o trabalho suplementar de proteção aceite por Kelly ou a história
do advogado Golstein, vítima de uma agressão. Outros duram toda a tempo­
rada. Ainda na primeira temporada, desenvolve-se a dupla história amorosa do
detetive Kelly com a sua mulher e com a sargento Licalsi, a chantagem exercida
sobre esta por um mafioso que levará a jovem ao homicídio, e a vingança do
detetive Sipowicz contra o bandido Marino, que o tentou matar, ela própria
ligada à questão da reintegração do polícia no seio da equipa do 15.0 distrito
e do seu conflito com o tenente Fancy.
O resultado global é dominado por uma sensação de vertigem narra­
tiva: a rapidez e secura dos encadeamentos reúnem cenas que se referem a
temporalidades diferentes (ao ponto de dificultarem a compreensão para
um público não familiarizado). A unidade de conjunto e a sua continuidade
são asseguradas, por um lado, pela fórmula rígida das investigações e, por
outro, pela evoluçã o mais imprevisível da comunidade. Todos os membros da
esquadra estão envolvidos em níveis diferentes: participam nas investigações,
mantêm relações conflit uosas ou amistosas entre si e têm também dificuldades
pessoais recorrentes. É sobretudo a personagem de Sipowicz que constitui o
cimento e O fermento da série. Como sublinha Sharon Bowers (2004: p. 15),
Andy Sip owicz tende a ser o emblema exclusivo _da «família». É pro�ável que
nunca uma personagem de ficção tenha b�nefic1ado de tanta ate?çao, �alvez
nunca a história de um indivíduo tenha sito contada de forma tao paciente:

107
AS SÉRIES TELEVISIVAS

ódios da série, apres ta as


presente quase maciçamente durante os 261 epis �� _
e os seus exc essos em todos o s ep1so d1o
s
suas contradições as suas violências
idade fervor osa , qua se
da série; em com;ensação , confere-lhes uma expressiv
presentad o doente , ansioso e
frenética. Polícia violento e racista, é também re
impulsivo, tratando o filho com cuidados extremos. Esforça-�e por do�inar
os seus impulsos e, em muitos casos, consegue- o: enc�rna O arduo caminho
da comunidade em direção a um apaziguamento poss1vel.
Causa Justa e Ally McBeal são duas séries criadas, produzidas e escritas por
D avid Kelley, emitidas respetivamente pela ABC e pela Fox quase ao mesmo
tempo. Ambas narram a vida de um escritório de advogados situado em Bos­
ton. No entanto, enquanto a primeira trata de advogados principiantes e sem
prestígio, que lutam para sobreviverem e para ganharem os seus processos a
qualquer custo, a segunda é so bretudo uma série sentimental e cóm ica, na
qual os debates judiciais esclarecem as emoções das personagens. O mesmo
D avid Kelley propõe atualmente uma série que volta a apresentar um escritó­
rio de advogados em Boston. Boston Legal reúne os elementos das suas séries
anteriores, combinando desta vez o sério com o burlesco, para fazer uma das
séries com o tom mais livre da história serial americana.
As séries «Kelley» têm o seu local central, que é o próprio escritório de
advogados. De todas estas séries, Ally McBeal é, sem dúvida, a que propõe a
organização espacial mais aprimorada. O grande escritório central permite
suscitar colisões entre as personagens: os seus cruzamentos rápidos são oca­
sião para choques, olhares sedutores, surpresas ou revelações quase sempre
burlescas. No gabinete de cada um dos advogados são tratados os casos sérios
da série, ou seja, aqueles que dizem respeito às emoções das personagens (a
protagonista dispõe, além do seu gabinete, do seu apartamento privado). Na
sala de reuniões, assiste-se à preparação dos processos e as casas de banho
mistas permitem catarses e crises. Por fim, o grande bar onde os advogados
se enc ontram para beber, dançar e cantar reúne-os num sentimento de comu­
nhão recuperada. A topografia narrativa organizada por David Kelley e pelos
seus colaboradores permite mudar rapidamente de tom e de intriga: nunca
.ficam os surpreendidos com essas ruturas, pois o público está habituado aos
estilos associados aos locais onde se desenrola a ação. Por exemplo, as passagens
c ontínuas das questões privadas para as questões públicas, características das
séries c orais, tornam-se aqui mais fáceis: dos gabinetes dos advogados para a
sala do tribunal, basta uma mudança de plano.
A sucessão de intrigas e a passagem de uma para a outra por simples cruza­
mento de personagens no escritório central são outra marca de fábrica das séries
criadas p or David Kelley. Em certos episódios de Boston L l, são tratadas
ega
d as uestões judiciais e duas questões internas ao escritório : no episódio 12 da
� �
pnn_i;u� temporada, «Fr m Whence We Carne», a queixa de alguns professores

de c1enc1as contra o seu diretor, que os quer obrigar a ensina
rem O criacionismo,
e um caso de homicídio cometido por um homem enfez
ado e medíocre alternam
com as consequênci s �o despedimento de u m dos
� advogados e com as dificul­
dades de uma secretaria com outro advogado,
que tem observações demasiado

108
?. AS Sl:RIES «EVO
LUTIVAS»

libidinosas. No último episódio da tempor


. , . ada, desenvo1vem-se
.
mrng as.. uma d ramattca, na qual Alan Sh apenas duas
ore, interpretado por
tenta salvar da execução um condenado à m James Spader,
orte no Supremo Tribu
a outra é mais biz�rra, na qu�l uma mulher nal do Texas;
na casa dos cinquenta é acus
de rec�rr�r � prostitu tos: a mistura dos géner ada
os e a diferença de tom reforça
a c ons1stenc1a de cada uma das duas intrigas. m
Outra técnica utilizada por David Kelley
e pelos seus argumentistas consis
te
em mudar o estilo das conversas: cer tas person
agens, como Dennis (William
Shatner), costumam responder de forma ridícula
ou cómica às questões sérias. A
pouco e pouco, a série enriquece-se com personãgen
s cada vez mais numerosas,
capazes de passarem de um género para outro. Est
a mesma conceção guia o
acompanhamento musical da série, ue utiliza frequent
q emente uma versão
divertida de mickey-mousing (modo musi cal que sublinha a ação, muito usado
nos desenh os animados): um comportamento mais ou meno
s sério de uma
personagem é subitamente alterado por um acento musical paród
ico, técnica
já utilizada com grande sucesso em Ally McBeal. A personagem de Alan
Shore
incorpora esta técnica nas suas intervenções no tribunal: estas começam como
graças no tom mais jocoso e terminam de forma extremamente séria, por vezes
de modo tão grave e tão convicto que a emoção se apodera do telespetador.
Vejamos , por exemplo, alguns excertos de uma intervenção exemplar (episódio
3/22), em que a desenvoltura constitui a trama da indignação do advogado
(Shore defende um homem que atacou o governo dos Estados Unidos por ter
sido detido durante dois anos em Guantanamo):

- Meritíssima, um advogado tem de saber pôr o seu país acima do seu cliente.
É por isso que, contra todos os hábitos, peço o indeferimento do requerimento
do meu cliente!

[A juíza pergunta-lhe por que razão parece desolado.]

_ Não é verdade! Nada tenho a fazer! O problema é do meu cliente. Olhe para ele,
é um choramingas. Bateram-lhe um pouco, foi um pouco amordaçado, um pouco
sexualmente agredido [...].Queria ser ouvido, ter um processo, um advogad_o: �u
Ih e provassem que e, culpado'. Mas estamos em guerra, é preciso fazer sacnf1c1os. �
. ,
Comecemos por um pormenor: os Direitos Humanos. Admito tambem que o
·
governo seja especialista na matena. • · É extremamente brilhante. Chamar «com-
. _
batentes inimigos» aos prisioneiros de guerra evita ter de resp�1�ar a� conven çoes
de Genebra contra a tortura! Bnl · h ante., B asear o campo de pns1one1ro.s em c ub a
.
· · - ., B n·1hante.I E' segundo as novas
evita ter de respeitar a Constituiçao diretivas do
, . , .

t
, . tambem a Ment1ss1 ma, temos
Pentagano, � isto _é o que eu refiro penso que
ser preso
pequenos tribunais em Guan anamd que dão ao suspeito o direito de
. d eradas inadmis síveis num
para toda a vida e até executado graças a provas cons'i
. de condenar à morte por
tribunal civil ou militar! Imagine! Ter a poss1'bilidade
- 0 btidas sob coerçao - .' B n'lhante'
ouvir dizer ou por confi ssoes

.
� imp
As misturas e as ruturas nao edem ue Kelley realize empreendimentos
e .
q
L eual cada inter-
de 1ongo alcance. ontmuan do com o exemplo de Boston ó' '
. . f:az parte de uma discussão paródica
venção de um dos membros do escnt ó no

109
AS SÉRIES TELEVISIVAS

n
e séria sobre as leis os hábitos ou as mentalidades americanas. Deste po to
O iberal Shore, sempre
de vista, as conver�as entre o republicano Crane e l
engraçadas, prosseguem uma controvérsia constante sob:e O eStado do, país,
as suas loucuras, as suas inconsequências, as suas corrupçoes, mas tambem os
s eus fundamentos mais íntimos. Todos são afetados pela lo ucura ambiente,
ao ponto de o comportamento sério ou normal parecer uma mascarada: em
Boston Legal, o grotesco é portador da verdade. , .
Serviço de Urgência não tem as mudanças de tom caractensttcas de Ally
McBeal ou de Boston Legal. A sua atmosfera é uniforme, mas comp õe a mais
célebre das séries corais, cujo êxito lançou o género em França. Este êxito
dissimulou por vezes a obstinação de Michael Crichton, autor de um argu­
mento exigente sobre a vida dos serviços de urgência dos hospitais americanos
nos anos 1970, que esperou duas décadas para ver o seu projet o realizar-se.
Durante todo este tempo, nunca cedeu em nada sobre as ambições do projeto,
que acabaram por ser transmitidas ao produtor John Wells: este, já produtor
d e uma anterior série coral, China Beach, soube compreender e traduzir em
imagens sonoras o audacioso projeto de Crichton. A fim de mostrar, da forma
mais precisa e exata, o ritmo frenético a que está sujeita a comunidade de
trabalhadores de um grande hospital de Chicago, construiu-se um est údio no
qual se conservaram os tetos para dar profundidade aos longos travellings, que
são uma das marcas de fábrica da série. Wells dá grande atenção à formação
médica dos atores; manda comprar material médico, contrata médicos como
consultores e argumentistas e encarrega uma rede de enfermeiras hospitalares
de alimentar com casos reais as estórias narradas pela série (Pourroy, 1996).
Wells opta por planos longos e incessantemente móveis. Uma câmara na
mão, graças ao processo da steadycam, dá à série o seu estilo característico: o
congestionamento horizontal do quadro, os corredores estreitos, as múltiplas
personagens que tentam abrir caminho e os gritos dos socorristas que expõem a
condição dos recém-chegados são apenas equilibrados pelo ligeiro contrapicado,
pelos tetos altos e pelos raríssimos grandes planos: estes fixam (enfim, temos
vontade de dizer) um instante de emoção. Estas opções de realização fornecem,
ao mesmo tempo, o princípio narrativo da série: a narrativa é fragmentada em
cenas de alguns segundos, cada uma dedicada a uma das histórias do episódio
e literalmente cruzadas pela câmara. Um mesmo travelling pode conter três ou
quatro cenas, atravessando os casos como os socorristas circulam de um doente
para outro. Durante o episódio «Make ofTwo Hearts» da primeira temporada,
passamos em poucos instantes do caso de uma criança com febre para o de
um cão atropelado por um camião, do caso de jovens que involu ntariamente
tomaram LSD para o de um jovem com as pernas esmagadas. Passaram-se
apenas dez minutos. A própria câmara parece ultrapassada: alguns casos são
_
esquecidos, enquanto outros beneficiam de sete ou oito
. «cenas» ' no sentido
preciso ue o termo tem em Serviço de Urgência.
� As relações entre O pessoal
do hosp ta� confund m-se no curso da ação e segu
� � em a mesma lógica: as con­
versas sao mterrom p1das e depois retom a
das, ca da diálogo não dura mais do
que 15 segundos. As emoções sucedem às m
e oções, cada uma imediatamente

110
1
1
1
1
7. AS SÉRIES «EVOLUTIVAS»

apagad;i pela seguinte. A evolução das personagens recorrentes é assim diluída


através de numerosos episódios e até de temporadas inteiras.
O «caos» da realização e a narração fragmentada restituem uma crónic
a
concisa da vida do hospital, baseada na cont inuidade de um ritmo que pode­
ría mos dizer e� acel�ração constante. As raras pausas são fornecidas pelos
momentos de v1�a pnvada conseguidos pelos protagonistas e pelos doentes
entr�gues aos cmdados do pessoal hospitalar. No entanto, os primeiros são
dommados por um desespero vulgar e os segundos pela perspetiva de uma
morte próxima. Em Serviço de Urgência, a vida depende, como de um alento
vital, dos esforços dos médicos para tratar e salvar. Estes parecem sempre
enraizados na disciplina coletiva. Numa entrevista concedida a James L.
Longworth (2000: pp. 119-136), John Wells afirma que trabalhou sempre e
foi formado em universos seriais dos quais nenhuma personagem se liberta
realmente. Com efeito, St. Elsewhere ou China Beach já eram séries corais:
nestas, é privilegiado um coro narrativo . O pessoal hospitalar de Serviço de
Urgência forma, por seu lado, um coro ou talvez um bailado regulado por
uma disciplina de ferro. Serviço de Urgência é, talvez, a única verdadeira série
dançada; uma imagem notável disto mesmo é o turbilhão da câmara e dos
médicos à volta do homem com um gancho de talhante espetado no braço
durante o mesmo episódio «Make of Two Hearts»; a chegada do seu filho
gravemente ferido e o lamento de uma menina também ela condenada, que
segue toda a cena por detrás de uma vitrina, amplificam a sarabanda da câmara
em torno das personagens.
Uma das séries que impôs a marca de fábrica HBO no universo serial
conseguiu acrescentar uma dimensão suplementar à alternância característica
das séries crónicas: Os Sopranos oscila entre os pro blemas «profissionais» dos
gangsters protagonistas da série e os problemas familiares do capo Tony Soprano;
a terapia que Tony faz com a doutora Melfi p ermite, além disso, que a série
reflita estas duas dimensões no diálogo entre as duas personagens. Assim, as
suas conversas tornam-se o «centro espiritual do programa», como escreve
Ellen Willis (2002: p. 6). São tanto mais eficazes porquanto a «comunidade
profissional>> de Os Sopranos se concebe a si mesma como uma família, que
interfere com os laços de sangue entre as personagens. São, de resto, as mesmas
frustrações que Tony sente nas discussões com a mãe ou nas suas relações c�m
Christopher no s primeiros episódios da primeira temporada, de tal maneira
que os comentários da do utora Melfi se aplicam aos dois domínios. Não há
dúvida de que a simplicidade da realização facil!ta a passagem d� �m nível
para o outro e a sua colocação em paralelo. Se e verdade que a sene marca
incessantemente a sua influência em filmes de Francis Ford Coppola ou de
Martin Scorsese como O Padrinho o u Tudo Bons Rapazes (1he Goodfellas)
(Pattie, 2002), a discussão contínua sobre a conservação da f�mília aproxi �a-a
ainda mais da tradição da soap-opera. Poderíamos fazer mmtas comparaçoes,
por exemplo, com uma série como Dallas: a :eg�lidade de que se r�deiam
· araçao com
J · R. e os seus amigos na"o engana ninguém e nao impede a comp
a máfia de Os Sopranos.
111
AS SÉRIES TELEVISIVAS

O primeiro episódio toma algumas pretensões. A voz de Tony a contar


a sua vida à doutora Melfi abre caminho aos diferentes níveis de narração e
às suas interferências. No entanto, a partir do episódio seguinte, as reuniões
entre a doutora Melfi e Tony deixam de englobar os outros níveis; permitem
comentar e completar as narrativas do familiar e do profissional. Além disso,
estes últimos níveis narrativos não deixam de ter interações. Quase todas as
conversas familiares introduzem um motivo profissional e vice-versa. Assim,
durante a primeira discussão entre Tony e a sua mãe, esta pede-lhe que inter­
venha nos negócios do tio; no início do segundo episódio, o roubo do carro
de um professor do filho de Tony conduz a uma intervenção musculada dos
colegas de Tony. Esta conceção da série coral, que não assenta numa simples
alternância, mas numa intricação entre níveis narrativos, caracteriza a série
de David Chase tão bem quanto a presença do comentário que enumera os
encontros entre o protagonista e a sua médica.
A mistura das intrigas implica também a mistura dos tempos. O tempo
enraizado da família e dos valores que esta presume sem realmente os praticar;
o tempo atual da manutenção do poder e das fontes de rendimento finan­
ceiro, que é um tempo da ação sobre a qual se tenta falar o menos possível; o
tempo retrospetivo da terapia, que tenta avaliar as temporalidades familiares e
mafiosas e, ao mesmo tempo, construir a sua própria memória. A simplicidade
dos encadeamentos e da realização, bem como a competência de públicos
formados por numerosas séries corais, autorizam esta composição dos tempos
que se entrechocam e se confrontam no interior do espírito de Tony Soprano,
verdadeiro cruzamento dos modos temporais.
Tony faz parte das personagens capazes de exprimirem os contrastes e
antinomias dos difereptes estratos temporais, características das séries corais.
Já falámos de Andy Sipowicz, herdeiro dos preconceitos raciais, posto na
presença da realidade das identidades plurais da Nova Iorque contemporâneà,
que tem de encontrar em si mesmo a força para transformar as suas atitudes
e crenças; ou James Spader, o advogado frívolo e libertino, que acredita nas
grandes causas e se erige em defensor de um liberalismo «esquerdista» (segundo
critérios americanos, é claro), tentando desesperadamente ligar as suas duas
personalidades. Quanto a Tony Soprano, nunca poderá resolver as dissonâncias
da sua vida: a sua família nunca se assemelhará à família Corleone retratada
por Coppola; ele próprio nunca terá o garbo de Don Vito ou a determinação de
Michael. Os seus esforços, que visam aproximar-se dos outros ou reconciliar-se
consigo próprio, nunca terão êxito.

3. As séries folhetinescas
Todas as séries corais têm também aspetos folhetinescos e seria certamente
possível analisá-los nesta perspetiva. No entanto, não são determinadas tão
claramente quanto as séries folhetinescas pelo seu encadeamento. Estas
assentam em formas de causalidade mais rigorosamente ligadas à sucessão

ll2
7. AS SÉRIES «EVOLUTIVAS»

dos episódios. O estatuto dos encadeamentos narrativos não se torna, porém,


imediato: a identificação do sistema causal específico de uma série nem sempre
se resume ao motivo do cliffhanger. Penso que podemos distinguir três tipos
de série folhetinesca.
O primeiro é o do folhetim «puro»: neste, a ação depende estritamente
daquela que a precede e o suspense deixado no .fim de cada episódio constitui
o motivo principal do desejo do telespetador de continuar a ver a série. O
segundo tipo de série folhetinesca é a série com enigma: é apresentado um
mistério no início, que se torna o centro da história, e cada avanço constitui
mais um passo na resolução do mistério. A causalidade não é tão imediata
quanto no folhetim puro: as personagens e os públicos da série com enigma
têm de fazer a triagem entre indícios verdadeiros e pistas falsas em vista de
uma resolução global do mistério. Por último, algumas séries folhetinescas
parecem marcadas por uma fatalidade ou por um peso: um acontecimento
determinante exerce peso sobre toda a série. Já vimos, por exemplo, o papel
desemp enhado pela morte do pai em Sete Palmos de Terra, que obriga todas
as personagens a encontrarem um novo lugar no universo familia r: este aspeto
fatal exerce peso sobre uma série que vai buscar as suas características a todos
os territórios na rrativos seriais. Para ilustrar estas formas diferentes da série
folh etinesca, analisaremos sucessivamente os casos de 24, Perdidos (Lost) e
O Protetor ('lhe Shield).
Em 24, a narração é das mais simples e mais clássicas do género. Segue
deliberada e manifestamente um ritmo adaptado ao da difusão televisiva: cada
temporada conta uma história que se desenrola num dia e em que cada hora é
objeto de um episódio de cerca de 40 minutos. No entanto, es ta austeridade
aparente constituiu uma das mais eficazes e originais formas narrativas da
história serial. Ao acompanharem de forma tão .fiel a gramática televisiva,
Joel Surnow e Robert Cochran enfrentam um desa.fio difícil: a transformação
do ritmo da difusão num ritmo ficcional, segundo uma operação rigorosa
de homologia, requer precisão e exigência. A série é realizada com um rigor
imperturbável. A contração da ação obriga a narrações simultâneas: assim,
vemos personagens diferentes a fazerem coisas diferentes em sítios diferentes . A
técnica do ecrã dividido (split screen) é utilizada para dar a sensação necessária
de simultaneidade. Permite também condensar os múltiplos fios narrativos
numa só imagem, frequentemente dramática. A história é invaria�elmente
deixada em suspenso: quando se abandona uma personagem, esta esta semp:e
em plena ação. Poucas são a s sequências de 24 em que uma personagem na�
é deixada a debater-se com uma ação difícil ou preocupada com o que se va1
seguir. Grandes planos que mostram um rosto �rispado fecham muit�s das
sequências; 0 grão muito fino da imagem e a prox1m1dade extrema da camara
permitem-lhe alcançar uma intensidade impressionante.
O termo suspense é, de resto, 0 principal de 24,. como_ o é c:rtamen�e �m
mtens1ficaçao� parox1st�ca
qualqu.er folhetim. No enta nto, 24 propõe uma
dos erre1tos de su ense apenas suporta, ve1 graças a uma organizaçao narrativa
sp ano, basead o
sem d efeit os. Cont ud�, não se trata de um suspense hitchcocki

113
AS SÉRIES TELEVISIVAS

na ignorância da personagem e no saber do telespetador. O suspense de 24


inverte a regra hitchcockiana: é a personagem que parece ter em mente uma ·
ideia desconhecida do telespetador. A sensação de estar incessantemente atra­
sado em relação à ação determina a telespetaleitura e produz uma ansiedade
comunicativa. Mesmo o ponto final das diferentes temporadas deixa ainda
zonas de sombra. o desejo de saber surge então como a grande força motriz
da série, tanto mais que a montagem das várias cenas parece seguir uma lógica
implacável: cada plano é chamado pelo anterior, como o plano de um olhar
reclama o plano do objeto desse olhar.
A divisão narrativa é outro postulado da série. Para levar a cabo uma
construção narrativa complexa em «tempo real», é necessário apresentar vários
níveis narrativos, que se irão juntar, mas que são autónomos durante grande
parte da temporada. Contrariamente às passagens de uma narração para outra
em Boston Legal, não produzem distância nem flexibilidade. Pelo contrário,
ligados pela unidade de tempo evidente, a unidade de lugar e a unidade de
ação que se sente, estão ligados também pelo acento colocado sobre as emo­
ções das personagens e sobre as tensões que existem entre elas: cada situação
em cada nível exacerba conflitos e sentimentos. Daí resulta uma forma de
continuidade da intensidade emocional, à qual nenhuma personagem está
imune. A convergência final à medida que nos aproximamos do fim das 24
horas não diminui essa tensão. O puzzle reconstitui-se, mas a imagem que
aparece não é menos traumatizante.
O folhetim de Perdidos assenta numa série de enigmas. O primeiro e
principal enigma diz respeito ao lugar onde se encontram os sobreviventes do
acidente de aviação que abre a série. O episódio inicial levanta com veemência
as questões que assombrarão a ilha e os seus refugiados e que não deverão
encontrar resposta sob pena de fecharem a série. Os criadores e argumentistas
tinham então de resolver dois problemas aparentemente contraditórios: era
necessário conservar e desenvolver o enigma principal e aquilo que com ele se
relacionava; ao mesmo tempo, era preciso atrasar esses desenvolvimentos, a fim
de não esgotar rapidamente a série. As soluções, sem serem particularmente
originais, permitiram que a série durasse, o que, para uma série de enigma, é
um desempenho notável.
O enigma é um género narrativo que se distingue da surpresa (nem as
personagens nem os espetadores sabem o que vai acontecer) e das duas formas
de suspense (em que há conhecimento por parte das personagens ou por parte
dos espetadores). Aqui, as personagens e os espetadores estão em igualdade:
sabem que há qualquer coisa, mas não sabem do que se trata. Deste ponto de
vista, a estratégia narrativa do enigma é difícil de manter: só deve ser desven­
dado no fim extremo do percurso narrativo e a .narração tem de conservar
incessantemente o interesse. Qualquer história enigmática é então construída
sobre uma promessa paradoxal: por um lado, deve desvendar o enigma; por
outro, não o deve (de outro modo, a série acabaria). Para uma série, a dificul­
dade é ainda maior, uma vez que esta se estende por várias temporadas e por
numerosos episódios.

114
7. AS SÉRIES «EVOLUTIVAS»

As séries televisivas, nomeadamente as séries «imóveis», utilizam geralmente


0 esquema e nigmático para estrut urar episódios. Contudo, raras são as que
conseguem conservar um enigma durante uma temporada ou durante toda
a vida da série. O tamoso exemplo de Laura Palmer e da investigação do seu
assassínio em Twin Peaks ilustra todas as dificuldades que se opõem ao pro­
longamento de um enigma: a pressão do difusor, a pressão dos públicos e o
desinteresse de David Lynch pela resolução não ajudaram o desenvolvimento
da série.
No entanto, Perdidos conseguiu manter os seus telespetadores em suspense
com o mesmo enigma durante seis temporadas (anunciadas: por altura da
escrita deste livro, a sexta temporada ainda não foi emitida) e 121 episódios.
Para vencer o desafio, a estratégia narrativa utilizada pelos autores, J. J:
Adams e Damon Lindelof, consistiu, por um lado, em construir enigmas
locais, desvendados relativamente depressa, capazes de desviarem a atenção
do público do enigma principal. Um dos primeiros será o nome do prisioneiro
do marshall, que está algemado durante a viagem. Estes enigmas locais podem
depois ser transformados em elementos de suspense quando são desvendados
aos espetadores antes de o serem às personagens. Os enigmas locais estão
quase sempre associados a personagens com segredos. Este processo permite
que a série centre a ação em personagens diferentes de acordo com o desen­
rolar da ação.
Mas é o segundo tipo de solução que parece mais original e que despertou
a imaginação dos públicos. Ao transformar regularmente o enigma da ilha,
ou seja, acrescentando novos elementos capazes de transformarem as questões
colocadas às personagens e à telespetaleitura, Perdidos fez mais do que conservar
o seu princípio vital: este processo converteu a série num gigantesco jogo do
ganso, em que cada casa fornece as suas próprias hipóteses sempre equívocas.
Em cada nova introdução de um elemento enigmático, a compatibilidade
deste com o enigma tal como apresentado antes é analisada pelos públicos.
Estes inventam novas soluções gerais, regularmente desmentidas por Damon
Lindelof. Os responsáveis pela série anunciaram que «tudo» seria revelado no
último episódio da última temporada. É claro que a explicação final pode
não estar à altura das expetativas, como acontece frequentemente com as
histórias de enigmas; restarão o percurso e o jogo fantástico para os quais
foram convidados os telespetadores.. Como explica Tzevan Todorov (1970), o
género fantástico constituiu-se ao recusar escolher uma explicação definitiva
e deixando planar a indecisão. Será que a série Perdidos favorecerá este género
de solução? Sabê-lo-emos em breve.
O Protetor, série policial importante da primeira década do século XXI, toma
a seu cargo a herança de A Balada de Nova Iorque: o protagonista é um polícia
corrupto, mas indispensável à esquadra. Os episódios são maioritariamente
estruturados por duas investigações que aparecem alternadamente no ecrã.
No entanto, a série ultrapassa largamente a problemática da série de Steven
Bochco e David Milch, que se baseava no imaginário americano clássico
do herói restaurador da ordem social_. Se o detetive Vic Mackey conserva o

115
AS SÉRIES TELEVISIVAS

seu batalhão de inspetores, não é, como Andy Sipowicz, em nome de toda a


comunidade: Mackey quer salvar a própria pele e a dos seus, é tudo. A série,
produzida pelo FX, um dos novos canais por cabo inspirados na HBO, é
conduzida pelo seu criador, Shawn Ryan, em terrenos desconhecidos de uma
forma plenamente assumida. O primeiro episódio de O Protetor exprime, de
maneira talvez ainda mais clara do que Sete Palmos de Terra, o terreno esco­
lhido pela série, no qual se manterá e que determinará a sua evolução futura
e suscitará o seufim no termo de sete temporadas e 88 episódios.
Neste episódio, Vic Mackey, desempenhado por um ator habitado pelo
seu papel (Michael Schiklis), é apresentado como uma figura marcante da
· esquadra de Farmington, nos arredores de Los Angeles, mas também como
traficante de droga e proxeneta, que convive com chefes de bandos. O novo
capitão, que quer recuperar a ordem e o moral na sua brigada, introduziu um
informador na equipa de Mackey. Quando a vida de uma rapariga raptada
por um pedófilo está em perigo, o capitão recorre a Mackey, sabendo que este
não utilizará os meios legais previstos pelo regulamento. No interrogatório,
o pedófilo inquieta-se com a presença de Mackey e pergunta-lhe se vai fazer
o jogo do «bad cop». Mackey responde: «No. Good cop and bad cop leftfor the
dtiy. I'm a different kind of cop. » A cena parece indicar que a única resposta
ao problema contemporâneo da manutenção da ordem é a utilização de um
representante dessa nova raça de polícias. À noite, o protagonista faz uma
operação policial contra um traficante concorrente. Aproveita a ocasião para
matar o agente encarregado de o investigar com a arma do traficante. Este
crime pesa sobre Mackey e sobre os outros membros da sua equipa, bem como
sobre toda a esquadra de Farmington, durante toda a duração da série.
A importância atribuída a esta traição inicial induz a possibilidade de, em
O Protetor, se sobreporem três níveis de temporalidade. O primeiro e o mais
importante decorre de uma narração pontual: os casos resolvidos num ou em
vários episódios remetem para a base «imóvel» da série. O segundo nível é
o do folhetim de temporada: cada temporada tem as suas próprias histórias,
frequentemente ligadas ao aparecimento de uma guest star. Quando Manica
Rawling (Glenn Close), por exemplo, se torna capitã da esquadra durante a
quarta temporada, as suas relações difíceis com Mackey e com o chefe de
um bando de traficantes locais alimentam a história de numerosos episódios
até à detenção do bandido e à saída de Rawling no fim da temporada. Final­
mente, último nível, o crime inicial de Mackey exerce um forte peso sobre o
seu comportamento e sobre o das outras personagens; obriga-o a prosseguir
a sua carreira semicriminosa, semipolicial, com todos os desequiHbrios que
essa hibridez implica. A sua família desmorona-se. A sua colaboração com os
chefes é perturbada, mesmo quando está de acordo com a ação deles. As suas
relações pessoais com os colegas, incluindo com os membros da sua equipa
que acabam por o trair, serão destruídas. As cerca de 60 horas de ficção de
O Protetor conseguem consumar com uma lentidão exasperada, mas tam�
bém com uma brutalidade desesperada, a impunidade de que o protagonista
beneficia: O Protetor é o folhetim do destino inexorável que apanha, de forma

116
7. AS SÉRIES «EVOLUTIVAS»

gradual mas inevitável, a sua presa. A amálgama das temp oralidades, a sua
penetração mútua e contínua, permitem que a série desenvolva em simultâneo
as suas diferentes histórias folhetinescas até ao seu termo.

4. Uma arte do tempo


A nossa divisão das séries televisivas que o põe a imobilidade à mobilidade
mostra-se frágil. Com o seria de esperar de uma classificação dos géneros fic­
cionais, as diversas categorias s o brepõem-se umas às o utras. Poder-se-ia dizer
que qualquer série possui pelo menos um núcle o móvel e um núcleo evolutivo .
Se algumas séries, como Columbo, conseguem permanecer idênticas a si pró­
prias, o que lhes reduz o núcleo evolutivo ao extrem o mais simples, p or outro
lado, as séries mais evolutivas têm um forte eixo reprodutível. Esta c onclusão
não é de espantar: o conceito de série pressupõe uma identificação fácil de
qualquer episódio e, portanto, a presença repetida de estruturas narrativas,
ritmos e personagens. Por conseguinte, há mais um espaço complexo das séries
televisivas, desde as mais imóveis até às mais evolutivas, do que uma oposição
firme entre duas categorias.
O facto mais c onstante é o seguinte: a temp oralidade episódica mas regu­
lar da telespetaleitura impõe uma construção específica do temp o ficcional
característica de cada série. Deste ponto de vista, nenhum género ficcional
é comparável ao das séries televisivas. Os produtores de universos ficcionais
seriais são constitutivamente levados a transformar o tempo da difusão em
temporalidades ficcionais subtis. Em A Imagem-tempo (L1mage-temps, 1985),
Gilles Deleuze afirma que o filme deve ro mper com a sua tendência natural
para a linearidade de modo a apresentar «imagens do tempo». Pelo contrá­
rio , a linearidade é uma tendência rara das séries televisivas. Até as séries
folhetinescas po dem parecer muito variadas, como vimos com O Protetor ou
Perdidos. Com efeito, os produtores de séries aproveitam as potencialidades
do seu instrumento para propor mudanças de época no interior do passado
(O Viajante do Tempo/Quantum Leap) ou do futuro (a saga O Caminho das
Estrelas), histórias da vida (A Balada de Nova Iorque), crónicas institucionais
(Serviço de Urgência), genealo gias adolescentes (Dawson's Creek), etc. Além
disso, nenhuma delas se resume à sua temporalidade principal: t o das seguem

variados percursos temporais provisórios. Em muitos casos, as suas organiza­


ções respetivas são , como vimo s, n otavelmente elaboradas e pormenorizadas.
C ontinuando c om Gilles Deleuze (1980: pp. 9-37), po deríamos talvez falar
de organizações temporais rizomáticas para designarmos o tempo real. Muita
s
são as séries que o bedecem aos princípios do rizoma enumerados pelos a�tores
de Mille Plateaux·. Po r exemplo , regras com o «qualquer ponto po de ser hg�
do
com qu alquer outro e deve sê-lo » (p. 13) ou «um rizoma pode ser rompido,

* Mille P/ateaux, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Paris, Éditions de Minuit,


1980. [N.T.]

117
AS SÉRIES TELEVISIVAS

quebrado num ponto qualquer, mas prossegue seguindo uma das suas linhas
e seguindo outras linhas» (p. 16), parecem sistematicamente aplicadas pelos
produtores, quer porque são forçados pelas vicissitudes da pro dução, quer
porque o tempo serial assim o exige.
Como observámos no início deste capítulo, o talento temporal das séries
explica sem qualquer dúvida a persistência dos seus imaginários no espírito dos
públicos. Nos seus trabalhos sobre os «Quadros Sociais da Memória», Maurice
Halbwachs ( Cadres sociaux de la mémoire, 1944) mostra que são necessárias duas
condições para que uma recordação reapareça na nossa memória. A primeira
é que essa recordação possa imiscuir-se entre as nossas preocupações atuais;
além disso, e esta é a segunda condição, devemos ver essa recordação através
da perspetiva do grupo social para a qual faz sentido (pp. 141-143). Estas duas
condições são facilmente preenchidas pelas séries: qualquer novo episódio faz
lembrar pela sua própria estrutura os que o precederam, de tal modo que lhes
confere nova vida através das nossas recordações. As repetições de emissões, as
compras de DVD ou os descarregamentos ilegais são outra forma de reatualizar
continuamente a nossa memória. Por outro lado, os públicos das séries sabem­
-se hoje numerosos e diversos. É fácil encontrar outros apreciadores, mesmo
que não se pertença a uma comunidade de fãs. Aqueles que partilham aquilo
a que poderíamos chamar «cultura das séries» ou, talvez, «telefilia em séries»,
formam uma comunidade interpretativa numerosa, desenvolvida e ramificada.
A arte serial não pode deixa r de ser uma arte do tempo e da memória; a sua
apropriação por comunidades de telespetadores fornece-lhes as bases dos seus
recursos e da sua perenidade.

118
Quarta Parte

A arte (narrativa)
das séries
• Estilos e formas

• O pleno, o íntimo
Capítulo 8
Estilos e formas

1. Virtuosidade estilística
A crítica francesa, como Serge Daney (1988), por exemplo, insistiu muito
no «facto» de a televisão não ter a ver com a «imagem», no sentido em que este
meio seria, depois de analisado na sua totalidade, incapaz de inventividade
(áudio) visual, inc�paz de inovação e incapaz de construir uma organização
visual expressiva. E um discurso lancinante sobre a «torneira de imagens», a
«ditadura do índice de audiências», um público «próximo da abj eção». Nada
a censurar, tudo a rejeitar: é um raciocínio que permite misturar no mesmo
saco Ally McBeal e Big Brother, programas herdeiros do «ignóbil» Janela
Indiscreta (Rear Window). Longe de ser isolado, o discurso de desprezo de um
Ignacio Ramonet junta-se ao do último congresso da Associação Francesa dos
Investigadores do Audiovisual Francês (2008), onde se podia ainda contestar
qualquer alcance significativo do termo «telefilia».
Até os historiadores americanos, entre os que abriram caminho a um
estudo científico da produção televisiva, parec em possuídos por contradições
semelhantes. Horace Newcomb (1974), o primeiro desses historiadores, pensou
poder dividir o domínio entre uma televisão largamente maioritária e sem
interesse e alguns programas de qualidade. Ora, como lembra fortemente
Jane Feuer (2007), qualquer abordagem académica baseada numa definição a
priori da qualidade relativiza consideravelmente o estudo (sobretudo quando
essa definição vem de outro domínio). Em Television's Second Golden Age,
uma das obras que, hoje em dia, constitui autoridade no estudo da televisão,
Robert Thompson (1996) faz de Steven Bochco o primeiro verdadeiro «autor»
da televisão, aquele que mostrou que a produção tele visiva podia alcançar o
nível da arte. A Balada de Hill Street (1981-1987) seria a primeira «obra» da
televisão. No entanto, quando se analisa a produção televisiva das origens ,
encontramos ambições e sucessos us ualmente qualificados de «artísticos».
Gilles Delavaud (2005) demonstrou-o brilhantemente em relação à França.
Quanto à produção americana, perguntamo-nos por que razão os mes_mos
críticos que se deleitam com as projeções dos grandes filmes negros de Wilder
ou de Preminger não apreciam pelo seu justo valor os episódios de Os Intocáveis

121
AS SÉRIES TELEVISIVAS

(1959-1963), muitos deles realizados por cineastas reconhecidos. Se virmos


atentamente algumas produções de sucesso de 1955 a 1980, encontraremos
muitas vezes nelas a mesma criatividade que existe nas melhores produções de
série B de Hollywood. Como acontece em muitos casos, a realização é nelas
de uma simplicidade plenamente eficaz. Se é pouco marcada, é porque está ao
serviço do espetáculo narrativo. Desprezamos facilmente as histórias, escriturais
ou audiovisuais, cuja escrita assenta na mais engenhosa valorização do universo
.ficcional, e preferimos as ficções realistas com «tema», que parecem utilizar o
esquema ficcional apenas para transmitir uma mensagem. A Balada de Hill
Street é, talvez, uma das primeiras séries explicitamente realistas: portanto,
não foi por acaso que a investigação académica tanto a apreciou.
A arte das séries nasce com elas: as invenções técnicas, dramatúrgicas e
de argumento de I Love Lucy são disso testemunhas. Embora se trate de um
género «menor», popular e guiado pelo gosto da caricatura, deliciaram o
público da televisão e inspiraram numerosos projetos. Gostaria de descrever
o artesanato dos primeiros criadores regressando a uma das primeiras grandes
séries americanas: Os Intocáveis. Esta série é emitida nos ecrãs americanos
a partir de 1959 e ilustra de forma brilhante o deslocamento da produção
televisiva de Nova Iorque para Hollywood, neste caso, para os estúdios da
Paramount. Todo o conhecimento técnico acumulado pelos realizadores e
pelos técnicos de cinema contribui para a realização da série. Um realizador
experiente como Tay Garnett (Nos Mares da China/China Seas, O Carteiro Toca
Sempre Duas Vezes/lhe PostmanAlways Rings Twice) realiza três episódios da
primeira temporada, tal como um especialista do filme negro da grande época
como Howard W. Koch ( O Homem que Destruiu a Alma/Shieldfor Murder,
Big House, USA). A escrita dos episódios é confiada a autores de romances
policiais tão importantes como W. R. Burnett ( O Pequeno César/Little Caesar,
Quando a Cidade Dorme!AsphaltJung/e) e a argumentistas comprovados como
Robert C. Dennis. Estes aplicam um princípio hitchcockiano cuidadosamente
respeitado por Quino Martin, produtor executivo da série: «Quanto melhor
o vilão, melhor é o filme. » A encenação e, nomeadamente, a oposição entre o
jogo neutro dos protagonistas e a expressividade exuberante dos intérpretes dos
diferentes vilões traduzem a sua aplicação. Os atores aproveitam e saciam-se,
quer se trate de atores secundários· experientes que deram corpo a inúmeros
«tough guys» como Ted de Corsia ou Leslie Nielson, vedetas como Thomas
Mitchell ou jovens prometedores como Peter Falk ou Kay Francis. O preto e
branco é duro e claro, a iluminação dos rostos é muito cuidada e a montagem
em profundidade de campo é utilizada com frequência. Em Os Intocáveis, a
máquina de Hollywood funciona em pleno regime. Assim, torna-se possível
perfazer as histórias e, conservando-se uma fórmula rígida, utilizar o talento
de cada um para cinzelar narrativas, diálogos e personagens.
A série Os Intocáveis é um exemplo perfeito da maneira como o artesanato
hollywoodesco se apropria do instrumento televisivo. A Missão Impossível mostra
como um recém-chegado adapta este instrumento para
O fazer tocar novas
partituras. Já falámos aqui da carreira de Bruce Geller
e da sua obstinação em

122
8. ESTILOS E FORMAS

produzir Missão Impossí�el em boa� condições; expusemos também O paradoxo


do argumento de uma formula senal assente num ritual quase monástico e, ao
mesmo tempo, numa imaginação desenfreada e extravagante. A sua encenação
tem por objetivo transcrever este paradoxo e jogar com ele, 0 que confere à
série o seu estilo particular.
Cada elemento da realização será inevitavelmente colocado sob O signo
de uma contradição permanente. Citemos, para começar, o desempenho dos
atores que interpretam os heróis. Dois deles, encarregados de desempenha­
rem os papéis das personagens necessárias à ilusão que vai enganar os vilões,
sublinham o seu jogo num nível extremo: Barbara Bain e Martin Landau
travestem-se com um prazer não dissimulado. Inversamente, os outros mem­
bros da equipa permanecem perfeitamente impassíveis e neutros: Peter Lupus
e Greg Morris propõem uma interpretação desajeitada e fria, a dos técnicos
que não aparecem em cena.
Existe também um contraste forte entre vários efeitos especiais. Missão
Impossível tem a característica de exibir a criação desses efeitos: como o tra­
balho de equipa consiste em produzir ilusões e fantasmagorias, é ela que, na
ficção, é encarregada de executar os truques preparados pela equipa técnica
da série. O truque da máscara é o emblema desta colaboração. Martin Lan­
dau, ator de muitos talentos, tinha de desempenhar papéis diferentes graças
a complexas operações de maquilhagem. Embora esta técnica tenha sido
utilizada na rodagem do primeiro episódio, revelou-se depois impraticável,
pois atrasava as filmagens de uma forma insuportável para a produção. Daí
resultou uma invenção espantosa de engenho e habilidade, em que intervém,
segundo Martin Winckler (Carrazé e Winckler, 1993), não a máscara, «mas
a ideia da máscara» (p. 28): a personagem de Rollin Hand, interpretada por
Martin Landau, parece fabricar cuidadosamente uma máscara flexível com os
traços de uma das personagens que a equipa deve enfrentar; quando aplica a
máscara no rosto, basta uma simples mudança de plano para que o ator vedeta
seja substituído pelo intérprete da personagem visada pela maquilhagem.
Todos os desdobramentos se tornam possíveis: assim, o ator que até então
desempenhava o papel de «vilão» interpreta de repente um dos heróis que
finge interpretar a sua personagem ...
A interpretação dos atores e os efeitos especiais estão ao serviço de uma
montagem notavelmente inteligente. Bruce Geller, tal como Andy Warhol na
mesma época, sente fascínio pelos anúncios publicitários (Carrazé e Winckler,
p. 186). Grande apreciador do olhar documental de um Jules Dassin nas cenas
de Du Ri.fifi chez les hommes ou Topkapi, insufla-lhes uma vivacidade oriunda
do mundo da publicidade; acompanhamos o trabalho de equipa, passando
rapidamente de um membro para outro. Cada cena surge como a peça de um
puzzle cuja imagem total nos escapa; a velocidade de execução da montagem
impede-nos de a formar completamente antes do fim do episódio. Apesar de
sabermos que os vilões serão vítimas de um golpe montado, somos incapazes
de compreender completamente esse golpe. Assim, o ponto de vista do teles­
petador está dividido: sabe, tal como os membros da equipa, que existe uma

123
- 1

AS SÉRIES TELEVISIVAS

encenação; e, tal como os vilões, não sabe exatamente o que se está a tramar.
O rigor e a intensidade da montagem, pontuada pelos acordes célebres de Lalo
Schifrin, são os elementos constitutivos deste olhar duplo.
É a discrição que marca a arte audiovisual de Missão Impossível. Pelo
contrário, é difícil não notar o estilo de A Balada de Nova Iorque. Como
ponto de comparação, vemos apenas o cinema experimental dos anos 1960
e a sua câmara titubeante. O estilo da série baseia-se na generalização do
desenquadramenco, que é declinado de várias maneiras; confere uma insta­
bilidade generalizada a todo o universo de A Balada de Nova Iorque. A mais
manifesta é um sobressalto lateral da câmara, que afeta quase todos os planos
fixos (contudo, pode ser substituído pela troca muito rápida dos campos­
-contracampos). Outra forma de desenquadramento resulta de uma espécie
de tique que afeta cada personagem da série: assim que aparecem na imagem,
viram a cabeça, como se o interesse estivesse sempre noutro lado, fora de campo.
O equilíbrio da imagem é assim alterado: parece oscilar permanentemente
ou hesitar entre várias saídas. Outro hábito da série consiste em contradizer
qualquer movimento da câmara por um movimento contrário ou diferente:
as montagens contrastadas de vistas da cidade que permitem encadear as
sequências resultam deste princípio de encadeamento por sacudidela. Do
mesmo modo, uma personagem que sai de uma sala é imediatamente «con­
tradita» pelo movimento inverso de outra personagem. Acrescentemos que
o desempenho de Dennis Franz, que interpreta a personagem principal da
série, representa uma encarnação desta lógica do desenquadramento: todos os
seus tiques e manias marcam a sua personagem com o tremor incontrolável
que impregna A Balada de Nova Iorque.
No cinema de ficção, poderíamos evocar os filmes de John Cassavettes
ou de Miklos Jancso, que também utilizam sistematicamente o desenqua­
dramento. Contudo, os desequilíbrios contínuos da câmara em A Balada de
Nova Iorque obedecem a necessidades diferentes das destes dois cineastas: são
um equivalente visual da instabilidade dos protagonistas, de todo o mundo
dos polícias e até da comunidade nova-iorquina, que são objeto da ficção.
A identidade visual de A Balada de Nova Iorque visa exprimir o turbilhão
dos níveis narrativos descritos no capítulo anterior: a visibilidade dos efeitos
visuais da série não procura celebrar ou manter uma política de autor baseada
na «mise en scene», mas sim intensificar a credibilidade do seu universo
ficcional. É importante compreender o estatuto da encenação no domínio
serial; não é menos pensada, moldada e refletida do que no cinema. Mas, da
mesma maneira que as encenações complexas do clipe de vídeo pretendem
apenas exprimir o universo musical pessoal do cantor, as encenações estéreis
constituem a marca identitária de um universo ficcional e não de um autor­
-realizador. Se o realizador dos episódios iniciais da série desempenha um
papel importante (menor, porém, do que o primeiro produtor executivo) na
concretização do seu estilo visual, os realizadores que lhe sucedem adaptam
essa marca aos argumentos dos novos episódios. A
arte da encenação no
sentido cinematográfico do termo está presente na
televisão; mas já não está

124
8. ESTILOS E FORMAS

ao serviço dos autores-cineastas, mas sim dos criadores de séries, «escritores


visionários», inventores de universos ficcionais.
Para terminar esta ilustração sibilina da riqueza estilística das séries, gostaria
de estudar mais em pormenor a encenação de uma série contemporânea de A
Balada de Nova Iorque, que seguiu caminhos completamente opostos a partir
de um ponto de partida idêntico. Departamento de Homicídios (Homicide: Life
on the Street) propõe também a crónica de uma esquadra e dos seus membros.
O seu chefe é, tal como em A Balada de Nova Iorque, um afro-americano.
Apesar do facto de Departamento de Homicídios ser também uma referência
estilística para os profissionais, as semelhanças limitam-se a este ponto.
O trabalho de investigação de David Simon (1993), repórter do jornal Balti­
more Sun, que acompanha durante um ano os detetives da brigada criminal da
cidade e que narra não só as investigações, mas também as discussões da vida
quotidia na entre detetives, serve de base à série. Barry Levinson, originário de
Baltimore, argumentista (Bom Dia Vietname/Good Morning Vietnam, 1987;
Encontro de Irmáos!Rain Man, 1988) e realizador de filmes que se desenrolam
frequentemente na sua cidade natal, fica sensibilizado com o rigor testemunhal
do livro e resolve transformá-lo numa série. Para preparar a produção, contrata
Tom Fontana, futuro criador de Oz (1997-2003), que participara na aventura
de St. Elsewhere (1982-1988), primeira grande série hospitalar (produzida pela
MTM, tal como A Balada de Hill Street). Levinson e Fontana rodeiam-se
de uma plêiade de excelentes atores e argumentistas, que utilizam de forma
muito eficaz as narrações e as descrições de David Simon para construírem
personagens e histórias.
Levinson impõe um estilo documental (câmara de 16 mm segurada na mão,
imagem frequentemente caótica) e, ao mesmo tempo, inspirado na montagem
em ruturas dos filmes da «Nouvelle Vague», como O Acossado (À bout de sou.ffle),
que torna a série pouco comum: surpreende os seus primeiros públicos e a NBC,
o difu sor, pensa rapidamente em suprimi-la. Levinson consegue in extremis
convencer o canal a manter a série: o êxito dos quatro episódios da segunda
temporada, que poderiam ter marcado o canto do cisne de Departamento de
Homicídios, e o auxílio de Robin Williams, que interpreta um pai de família
abalado no episódio Bop Gun, revelam-se aqui decisivos. A série pode então
crescer e desenvolver todas as suas potencialidades através de sete temporadas
e 122 episódios. A sua fórmula beneficia de um ponto de referência pitoresco
e eloquente, capaz de estruturar cada episódio, as suas narrativas e estórias.
Trata-se de um grande quadro onde estão escritos os nomes das personagens
assassinadas: a tinta negra assinala os casos resolvidos e a tinta vermelha marca
as investigações em curso. Quando o telefone toca para anunciar um homicídio,
o detetive que responde fica automaticamente encarregado da investigação:
0 nome da vítima é escrito no quadro debaixo do nome de um detetive. Um
mesmo episódio comporta frequentemente várias investigações conduzidas sem
convicção aparente, a principal das quais termina numa cena final na sala de
interrogatórios chamada «a caixa»; o seu objetivo é claramente definido pelo
inspetor Pembleton logo no primeiro episódio da série, «Gone for Goode»:

125
AS SÉRIES TELEVISIVAS

«Não é a um interrogatório que terão o privil égio de assistir mas sim a u ma


conversa de vendedores de tapetes, à exeção do facto de eu não vender tapetes,
nem viaturas de ocasião roubadas, nem terrenos pantanosos na Florida, nem
bíblia. Aquilo que vendo é a pena de prisão mais pesada possível a um- cliente
que não tem interesse particular no meu produto ... » Em Departamento de
Homicídios, o ofício de detetive não é organizado pela busca da verdade, mas
sim por uma negociação contínua, uma espécie de comédia, em que a vida
de uns e outros representa aquilo que está em causa. São as conversas entre
polícias que constituem a parte quantitativamente mais importante da série:
fúteis ou sérias, revelam os sentimentos e as reações dos polícias face aos crimes
e criminosos que têm de enfrentar, as suas receitas e métodos para escaparem
ao mal e regressarem à banalidade da vida.
A encenação assenta na conjunção de duas atitudes que, à primeira vista,
parecem antagónicas. Em primeiro lugar, a vontade de autenticidade dos autores
é evidente, tanto na narração das investigações de crimes muito vulgares (o
que não exclui o estranho ou o insólito) como na apresentação de persona­
gens de polícias sem relevo nem talentos especiais. No entanto, a vida banal
destes investigadores é exposta como se se encontrassem e soubessem estar
num palco que nunca é retirado ou anulado: a teatralização das atitudes e a
dramatização do vulgar constituem o segundo princípio da série. Combinado
com o naturalismo, constitui um princípio de organização da cenografia e do
quadro, bem como da montagem (Kalat, 1998: p. 22). Daí resultam os traços
característicos do estilo de filmagem que iremos agora enumerar.
O encadeamento abrupto das cenas é o primeiro destes traços: impede
que a emoção se instale e associa todas as cenas de Departamento de Homi­
cídios num vasto teatro policial. Cada sequência é, de certa maneira, inter­
rompida pela seguinte, que não nos pede licença para começar: deixamos
uma investigação e os inspetores que dela estão encarregues e passamos
para outra. Abandonando uma conversa enfática sobre a morte de Lincoln
tida em torno de um cadáver ensanguentado, descobrimos um comentário
rigoroso sobre as qualidades respetivas das diferentes formas de canap és
enquanto o orador examina manchas de sangue no pavimento. Somos assim
tanto empurrados de uma história para outra quanto transportados de uma
cena para outra, de uma pose para uma declamação. O primeiro episódio
conta cinco investigações levadas a cabo por quatro equipas diferentes de
detetives, às quais se devem acrescentar várias discussões acerca do estatuto
particular de um dos detetives, as discussões «caseiras» entre duas e quipas
de detetives e a chegada de um novo agente ao departamento. Daqui resulta
que Departamento de Homicídios nunca se subjuga (ou muito raramente) ao
ritmo de uma narração particular (citemos, entre as exceções marcantes, o
extraordinário episódio da temporada 6 intitulado «The Subway», em que
uma personagem fica presa entre um metropolitano e O cais): a cadência
caprichosa e impertinente da série impõe-se em cada um dos seus pontos,
identificando-se perfeitamente com a vida regular
e, ao mesmo tempo,
caótica dos seus protagonistas.

126

J
1 ,,....• -

8. ESTILOS E FORMAS

O grande plano é outro instrumento da teatralização específica da


série. A
câmara acompanha de muito perto os detetives em todos os seus movimentos
e, quando é possível, capta-lhes os rostos, as mímicas e os modos afetados. N 0
entanto, nenhum grande plano tem tempo de se instalar: um esgar ou uma
atitude captada, e a câmara foge, como na primeira cena do primeiro episódio.
Nesta cena, acompanhamos os detetives Crosetti e Lewis, que, armados de
lanternas, procuram invólucros de balas numa rua escura. Com o auxílio de
panorâmicas rápidas, a câmara passa dos seus olhares para os acidentes do
macadame. Alguns cortes brutais fazem-nos regressar aos inspetores, antes
de voltarmos para a rua. As lógicas espaciais ou temporais não são respeita­
das: as ruturas de orientação e as marchas-atrás abundam. Um movimento é
interrompido, outro inicia-se. Assim, passamos dos dois detetives que falam
debaixo da luz de um candeeiro para a imagem de um deles na sombra a
acender um cigarro. Aos pés iluminados pelas lanternas, sucedem-se as suas
silhuetas a caminharem na ruela. Mais abruptas ainda são as mudanças de
plano «no local» que abundam em cada cena: uma personagem enquadrada
numa certa postura é filmada duas vezes sob o mesmo ângulo, mas com um
distanciamento diferente. Dois planos rápidos e desfasados sucedem-se para
mostrar Crosetti a acender um cigarro ou Lewis a calçar luvas. Só o falatório
incessante dos dois homens assegura uma forma de continuidade à sequência.
Não que seja muito organizado: trocam considerações gerais sobre a relação
entre procurar e encontrar, depois sobre o comportamento dos homens e das
mulheres na casa de banho, alguns insultos, eventualmente também algumas
observações banais acerca do crime que investigam. Esta verborreia persistente
de tom constantemente afetado e cáustico fornece, porém, unidade à sequência:
mais do que o corte abrupto dos planos, faz parte do trabalho dos detetives
sobre a «cena de crime». Ao cenário cru e rude da rua sangrenta sobrepõe-se
um teatro verboso ao qual os polícias emprestam a sua insensibilidade aparente
e os seus comentários insignificantes.
No teatro de Departamento de Homicídios, um conflito parece recorrente.
É a única coisa a que os inspetores parecem dar importância: a parceria com
um colega é uma preocupação crucial para a equipa de detetives. Isto é reve­
lado no primeiro episódio numa cena de almoço em que se reúnem Crosetti,
Lewis, Felton, Howard e o tenente Giardello. Apesar da imobilidade das
personagens, a agitação errática da câmara descrita a propósito da primeira
cena está igualmente presente: sucedem-se planos curtos (de seis segundos
em média), que multiplicam ruturas e raccords falsos, m�vimentos iniciados e
depressa contrariados. Cruzam-se duas conversas: as queixas do agente Felton
contra O detetive Pembleton e a eterna querela entre Lewis e Crosetti, desta
vez a propósito de uma comparação entre o comportamento desse mesmo
Pembleton e o da personagem de Gary Cooper em O. Comb
oio Api�ou 7:ês
d1scussao
Vezes/High Noon (Fred Zinnemann, 1952), o xerife W1ll Kane. A
acaba por irritar Giardella, a ponto de obrigar Felton a tornar-se O colega de
Pembleton . Nesta sequência, tal como na sequência inicial, o desmantelamento
da realidade espacial (o «cenário»), por um lado, graças à rapidez dos raccords

127
AS SÉRIES TELEVISIVAS

m
entre os planos e, por outro, devido à variedade da_ convers�, produ_z u a
cena abstrata, artificial, que pertence apenas aos detetives da brigada criminal
de Baltimore. As dificuldades que sentem em assumir o seu ofício e as suas
tentativas de fazerem deste um trabalho como os outros tornam-se os pontos
essenciais da narração, muito para além da capt�ra eventual dos criminosos.
O cúmulo teatral em Departamento de Homicídios reside nas cenas de
interrogatório no interior da «caixa». Estas revelam o que está verd adeira­
mente em causa, ou seja, o confronto entre o trabalho de polícia e a justiça.
Os detetives tentam fazer com que os suspeitos confessem, utilizando todos
os recursos dramáticos dos seus papéis. Uma demonstração exemplar disto
é dada por Pembleton para proveito do novato Bayliss no episódio inicial.
Pembleton puxa Jonathan pelo nariz, jovem prostituto que estrangulou um
cliente mais repugnante do que os outros. Nesta ocasião, a câmara estabiliza­
-se. Só os recursos do campo-contracampo são utilizados, que permitem
que a ordem espacial do quadro se constitua numa disposição hierarquizada
ajustada à narração. Através da pressão exercida, Pembleton consegue que o
jovem não peça explicitamente um advogado, que confesse ter estado presente
no momento da morte da vítima e que admita finalmente tê-lo estrangulado.
Bayliss desempenha o papel de testemunha, inicialmente desconcertado e,
depois, indignado pela artimanha de Pembleton e pelo seu sucesso. Se a caixa
é o lugar de um ordenamento do mundo, onde a maioria dos culpados começa
a ser punida, ela é o resultado de um mercado de patetas em que o talento de
atores chamados «detetives» se pode exprimir.
O mundo dos detetives parece inicialmente fechado sobre si mesmo, imper­
turbável e indiferente. Como explica o detetive Munch no fim do episódio,
enquanto, com Crosetti e Lewis, vigia sob uma chuva forte e numa noite escura
um assassino improvável, o crime é para eles como um «relvado: cortamos a
relva e, na semana seguinte, é preciso recomeçar». Mas, rapidamente, a taga­
relice sempiterna e volúvel dos polícias surge como uma espécie de manto de
proteção, uma maneira de evitar a materialidade do crime. Departamento de
Homicídios acaba por ser uma mistura curiosa: a sua ascendência «Nouvelle
Vague» é clara e evidente. A mistura de documentário e de teatralizaçáo ini­
ciada por Jean Rouch e prosseguida por Jean-Luc Godars em O Acossado dá o
seu tom a uma saborosa expressão da «vida de esquadra», à qual os romances
de Ed Mac Bain sobre o 87.0 distrito haviam oferecido uma primeira figura­
ção. Ainda que a estrutura narrativa da investigação não esteja tão presente
como noutras narrativas policiais, a vida policial é aqui, em contrapartida,
brilhantemente representada.

2. Virtuosidades rítmicas
Os ritmos das narrações seriais são extremamen
te variados. Os ritmos
lentos abundam alguns deles de um modo , ·
, : quase parod1co, como em certas
soa»
-r -o»e
r ras: a log1ca do comentáno
· sobrepo, e-se de rorma
r tão evidente em certos
128
8. ESTILOS E FORMAS

episódios de Ihe �
oung a�d t�e Restless que a ação fica pendente. Várias séries
,
m p ortan tes nascidas em m1c1os dos anos 1990 privilegiaram, pelo contrário,
i
a velocidade e até a impetuosidade nas suas fórmulas narrativas: Serviço de
Urgência ou A Balada de Nova Iorque, atrás descritas, são disso exemplos. Um
grande sucesso da adoção de um ritmo endiabrado por uma série «imóvel»
é Lei e Ordem, cujo núcleo narrativo imóvel não o impede de manter uma
cadência desenfreada, como já refe�i mos.
Contudo, falarei aqui apenas da inteligê?cia excecional da narração lenta
desenvolvida por algumas séries policiais. E verdade que o tempo não lhes
é contado: aproveitam-no para apresentar ou desenrolar tranquila e pausa­
damente as suas narrações. Mesmo uma série veloz como A Balada de Nova
Iorque po de ser vista como um imenso fresco da decência e da educação num
mundo indecoroso e grosseiro, um grande romance de aprendizagem de um
homem maduro e desesperado. Gostaria de considerar três exemplos muito
diferentes, dos quais dois nos farão sair da paisagem americana: a produção
europeia, sobretudo inglesa, tem uma longa familiaridade com a lentidão, à
qual devemos prestar homenagem.
Na paisagem serial, uma série serve de forma quase mecânica de contraste
a qualquer discurso avaliador: a série alemã Derrick, de enorme sucesso inter­
nacional e de uma longevidade excecional, é universalmente ridicularizada
pelo seu peso e mofeza narrativa. Os seus 281 episódios não têm uma quali­
dade uniforme; no entanto, muitos episódios atingem uma perfeição estática
execional, em que a investigação policial, transformada em demanda moral, é
transcendida por uma emoção literalmente ética. A fórmula destes episódios é
a ·seguinte: um crime é cometido; alguém sente-se responsável por esse crime.
O inspetor Derrick encontra-o e deixa-o conduzir a investigação. Essa pessoa
coloca-se diante do culpado e espera. O culpado debate-se, pede a Derrick
que o liberte desse intruso. Mas o inspetor resiste e impõe a presença teimosa
dessa pessoa. O facto da responsabilidade moral do crime acaba por vir ao
de cima e conduz ao desfecho. O crime e a culpa bastam: um dia, alguém
terá de os assumir efetivamente. Neste esquema, a investigação deve manter­
-se perfeitamente imóvel. Quando se aceita não a ver já como uma narrativa
policial, mas antes como uma investigação aprofundada sobre o significado
do sentimento de culpa, a narração em Derrick não só é lenta, como também
está repleta de uma veemência quase comovente. Se quisermos explicar a
invenção desta estranha forma narrativa, temos certamente de lembrar que
todos os episódios da série são escritos por um único homem, Herbert Reine­
cker. Este, durante muito tempo membro do partido nazi, refugia-se após a
guerra numa casa durante uma dezena de anos. A culpa não lhe era estranha
(Sandoz, 1999: pp. 44-51).
ência entre
Na Grã-Bretanha, os anos 1980 as�istem a uma nova concorr
nspirada
ª BBC e a ITV. A produção de Inspector Morse é disso exemplo. I
e em 1987
nos romances brilhantes e subtis de Colin Dexter, a série nasc
po r impulso de um . O pró ­
_ jovem produtor, Kenny McBain Este co?vence
prio Colin De da
xter e Ted Childs, diretor de programas de .ficçao na ITV,

129
AS SÉRIES TELEVISIVAS

oportunidade do projeto. Seduzido pelo cuidado com que a BBC lançara os


seus últimos projetos, Ted Childs deseja seguir esta via de uma «qualidade»
renovada. McBain propõe a John Thaw, ator habituado aos papéis de polícia
duro e violento, uma nova experiência: desta vez, trata-se de desempenhar
o papel do polícia culto e distante retratado nos romances de Dexter, alheio
aos hábitos administrativos e inquiridores dos seus colegas. Os pro dutores
contratam argumentistas com provas dadas, como John Minghella e Julian
Mitchell, para escreverem adaptações cuidadas dos romances de Dexter ou para
criarem episódios inéditos de uma série que se inscreve na tradição britânica da
adaptação escrupulosa de obras literárias, tanto no plano da tradução estilística
como no dos cenários e guarda-roupa. Colin Dexter ficará suficientemente
satisfeito com o resultado para aparecer em todos os episódios, à maneira de
Hitchcock nos seus próprios filmes (Bishop, 2006).
Como mostra Jean Decottignies (2004: p. 29) no seu livro sobre a vida
poética do inspetor Morse (La Vie poétíque de l'inspecteur Morse), os livros
de Dexter definem-se como investigações à Sherlock Holmes, mas feitas ao
contrário: não é dos factos que vem a luz, mas da imaginação de Morse e das
suas várias intuições: apesar de se enganar muitas vezes, consegue geralmente
aproximar-se de uma verdade ambígua. Daí resulta um estilo britânico de
investigação, um tanto caótico, em que domina a «bifurcação narrativa»
(p. 109). A série adota na sua fórmula um modelo de narração fiel a esta
característica de Dexter, que, de certa maneira, modela a sintaxe da série. Pelo
menos três processos são utilizados para concretizar o modelo narrativo dos
romances, aos quais poderíamos respetivamente chamar resposta diferida,
divisão narrativa e digressão.
O primeiro processo consiste em abrir uma falha no inquérito policial: uma
testemunha começa de repente uma espécie de monólogo suscitado por uma
questão, mas que não parece relacionar-se com a investigação. Frequentemente,
a câmara afasta-se, antes de se aproximar quando o inquérito retoma o seu fio.
As testemunhas não são interrompidas pelos investigadores e Morse acaba por
encontrar nelas as respostas que procura. Esta forma de diálogo, em que um
dos locutores segue o movimento do seu próprio pensamento sem responder
aos outros, é frequente na série. Irriga quase todas as suas sequências com
diálogos um pouco longos.
Quando o diálogo não segue este percurso oblíquo, é submetido aos efeitos
de rutura que presidem à articulação das sequências: o princípio organizador da
planificação por cenas assenta na justaposição de fios narrativos aparentemente
sem ligação entre si. Por exemplo, no episódio «Cherubim and Seraphim» da
sexta temporada, quatro níveis narrativos sobrepõem-se durante os primeiros
20 minutos. Só um deles parece ligado à investigação, embora o seguimento
mostre outro que é igualmente importante. Certas personagens estão ligadas
apenas a uma dessas narrações. O próprio Morse quase não aparece. Todas estas
pistas acabam por se juntar, de tal maneira que não podem ser consideradas
«arcos narrativos» à maneira dos estudados em A Balada de Nova
Iorque; são
antes os elementos de uma trama que revela um contexto geral, 0 do crime,

130
8. ESTILOS E FORMAS

mas que n ão são todos necessários à investigação. Esta


constr ução institui,
m
ao es o m tempo, o r itm o da sé e
ri : cada mudança produz uma espécie de
desorie ntação que nos imp ede de perceber o avanço da história. Cada uma
implica u ma forma de lentidão ou de adiamento: a série adota assim uma
cadência sincopada, que constitui um d os seus traços sintáticos específicos.
A digressão desempenha um papel importante em cada episódio de fnspector
Morse. Pode tratar-se de uma digressão pura e simples, em que a investigação se
torna um pretexto para a evocação de recordações, para uma reflexão psicológica
ou metafísica. Por exemplo, a meio do episódio «Cherubim and Setaphim»,
Morse e Lewis recordam as relações com os pais. Mais tarde, quando Morse
se encontra com o chefe, este expõe-lhe a sua visão das crianças. O conjunto
das digressões representa em cada episódio uma espécie de discurso autónomo
no interior do episódio, que não está efetivamente no interior da história, mas
que compõe um comentário à narração.
Se é verdade q ue as diversas formas de ruturas, ao mobilizarem a atenção
do telespetador, criam curtas acelerações na narrativa, esta é globalmente
marcada por um tempo longo: a resolução do enigma parece não avançar.
Não só é tornada mais lenta pelas diversas figuras de digressão, como também
são numerosas as pistas falsas, normalmente resultantes de uma intuição
imprudente do protagonista. Assim, graças a efeitos puramente sintáticos,
Jnspector Morse consegue desfiar uma trama cheia de paragens e de desvios,
enriquecida por uma rede complexa de apreciações e emoções, que se conclui
rapidamente como se o desfecho fosse quase inútil.
A fórmula de CSJ - Crime Sob Investigação deu lugar a três séries diferentes,
o que constitui uma experiência in vivo apaixonante. Esta fórmula é mais ou
menos respeitada pelos produtores das três equipas, cujas ficções se desenro­
lam respetivamente em Las Vegas, Miami e Nova Iorque: duas delas, apesar­
do seu ponto de partida semelhante, opõem-se como a noite ao dia. As s uas
realizações respetivas são antagónicas na medida em que revelam dois mundos
discordantes. Falaremos aqui apenas de CS1· Las Vegas, a série original, mais
rica do que as suas duas (falsas) cópias, mais atenta em conformar-se à aposta
narrativa representada pela sua fórmula, que se revela de uma impressionante
criatividade narrativa e visual.
O sistema narrativo de qualquer história policial é o resultado da trama
de duas narrativas: a primeira é a do crime e a segunda é a da investigação
(Todorov, 1971). A preeminência de uma so bre a outra e as relações que man­
têm ao longo da narração definem a sua particularidade. A articulação entre
as duas narrativas, geralmente operada pela única cena que lhes é co�um, a
cena do crime, é decisiva. A fórmula de CSI prescreve que as pesquisas dos
investigadores na cena do crime bastem para c o nstituir a narrativa da investi­
ens, frequentes
gação e para reconstituir a narrativa do crime. Algumas imag
nas primeiras temporadas, sintetizam este projeto. Nomeadamente qu �n�o
se i os um investigador (narrativa da investigaç ão) que procura ve5ngios
gu m
na cena do crime. Um desses vestígios leva-o a imaginar O m?do co�o as

coisas se passaram: a imagem oriunda do seu rac1• 0c1m 1
• o (narrat tva do crime)

131
AS SÉRIES TELEVISIVAS

sobrepõe-se então à sua no interior do mesmo cenário. Assim, dispomos da


articulação de duas narrativas constitutivas da narração policial sem sairmos
da cena do crime. Muitos foram os autores que observaram que o «paradigma
indiciário», do qual Carlo Ginzburg (1989: pp. 139-179) mostrou o carácter
decisivo para as ciências humanas contemporâneas, se aplica também à ficção
popular e, em particular, ao género policial: se qualquer investigação consiste
em interpretar os vestígios do crime, CSl· Las Vegas representa um paroxismo
da narrativa policial, tanto mais que foi com pleno conhecimento de causa
que os produtores elaboraram a sua escrita e a sua realização.
A lei narrativa da série, escrupulosamente seguida, prescreve aos investiga­
dores as suas identidades: são cientistas, biólogos, químicos e etnólogos. São
filmados tqtalmente absortos no seu trabalho de recolha e tratamento dos
indícios (Bignell, 2007: p. 164). Acompanhamos a sua investigação paciente
em longas e lentas panorâmicas, apenas suspensas pela imobilização súbita
da personagem: um indício foi revelado, que nos é mostrado por um grande
plano. O profundo silêncio que impregna a investigação (Turnbull, 2007:
p. 30) não é rompido. O bailado dos gestos, acompanhado por uma música
«espetral» (Lury, 2007: p. 111), só é interrompido pela descoberta do indício.
Por vezes, o olhar torna-se mais acutilante: a câmara aproxima-se mais do
objeto, que pode ser uma parte do corpo examinado pelo médico legista ou
o indício levado para o laboratório, e parece penetrar na sua estrutura. Estes
planos, frequentemente elogiados pelo seu carácter espetacular, são também
uma encarnação perfeita da vontade dos investigadores de explorarem todos
os indícios que têm à sua disposição a fim de proporem uma interpretação
justa dos factos. Como escreve Jonathan Bignell, «a câmara não só segue o
olhar dos investigadores, como também o completa, o explica e concretiza
a sua atividade de construtor de saber» (p. 165). O autor designa, com boa
razão, os investigadores de CSl· Las Vegas por «heróis do conhecimento»: o
trabalho deles segue uma ordem metódica conforme ao trabalho científico.
Observações no terreno, formação de uma hipótese interpretativa e verificação
sucedem-se com uma regularidade e criatividade perfeitas. A narrativa não se
interrompe durante esses minutos de observação paciente, antes se confunde
com a narração minuciosa e racional da exploração da cena do crime.
A realização da série aperfeiçoou-se ao longo do tempo: o espetacular
está presente desde a primeira temporada, mas Anthony E. Zuiker, produtor
executivo e criador da série, não hesita em dar-lhe o seu estilo característico
nas temporadas seguintes. Os tons das cores tornam-se mais frios e o azul aço
domina largamente (Turnbull, 2007: pp. 129-130). A sombra cai sobre Las
Vegas e a equipa: tudo é pretexto para mostrar os investigadores na penumbra.
Contra-luzes, distribuição de manchas luminosas no plano de fundo, crimes
cometidos em lugares escuros apenas iluminados por lanternas, etc., compõem
um ambiente gelado, meticuloso, onde os gestos lentos dos investigadores são
pormenorizados em detrime to dos seus rostos impenetráveis. Quando são
_ _ �
finalmente dummados, continuam quase inexpressivos. A
investig ação pros­
segue como um raciocínio, cujas bases só surgem de
forma progressiva, sem

132
8. ESTILOS E FORMAS

golpes de te atro, mas com uma lógica imperturbável · Quan . �


to aos cnmes sao
gera1mente fin. os, por vezes sem ou tros motivos que nao � um a fi'una ,
· su'b·1ta. A
descoberta quase abafada dos seus mecanismos acentua os
d'1scretos esgares
do rosto de W·1 111am
· petersen (Grissom) ou de Mar H
g e1genberger (Cathe-
rm ·
· e), 1·1geiras, mas e1 oquentes constatações de horror
. , quando confirontam
finalmente os assassmos com os seu s atos (Esquenaz 2006) C'"'l· L r r.
� e narrativas
. . , . i, • v. • as v egas
c m po mexo rave1 s , nas quais a lentidão é posta ·
o
ao serviço de uma
maquinaria delicada, mas implacável.

3. Virtuosidades genéricas
Já vimos como a história das séries é marcada por um conhecimento dos
géneros que permitiu misturas notáveis: A Balada de Hill Street, evidentemente,
mas também O Sexo e a Cidade, que se afasta deliberadamente do melo drama
para fabricar uma sitcom, ou Boston L ega l, sitcom e série coral. Parece que,
também deste ponto de vista, o início dos anos 1990 marcou uma viragem.
A mistu ra dos ,géneros, s em se tornar uma palavra de ordem, passou para os
meios ser iais. E difícil arriscarmos uma razão geral para este movimento. No
entanto, não há dúvida de que a difusão familiar da televisão, que junta os . ·
cas ais em frente do pequeno ecrã, facilitou o melting-pot genérico . De resto,
como observa Henry Jenkins (1992: p. 4), o interesse novo e frequentemente
crítico dos públicos femininos pelos géneros da aventura precipitou as coi­
sas: daí re s ultaram a introdução de problemáticas femininas nos géneros da
aventura e, depois, o alargamento dos géneros feminin os a estes últimos. A
verdade é que, atualmente, as divisões dos géneros se desvanecem cada vez mais.
Ilustraremos este fenómeno com duas séries da última década do século XX e
com um a sé rie mais recente.
Twin Peaks não misturou apenas os géneros: misturou também escandalo­
samente os estatutos. Pela primeira vez de uma forma tão retumbante, é dada
carta b ra nca a u m homem que representa a elite artística para fabricar urna
série televisiva . Em bu sca de respeitabilidade, a ABC aceita com entusiasmo
um projeto de David Lynch e de M ark Frost, brandindo junto dos media o
nome do primeiro, conhecido pelos seus filmes apreciados, mas relativamente
desconhecidos (Thompson R., 1996: pp. 152-155). Embora outros cineastas,
corno Mich ael M ann ou Steven Spielberg, já tivessem produzido para a tele­
visão, Lynch era o primeiro «artista» de cinema reputad� a faz�r. urna série
televisiva . Twin Peaks não iria frustrar as expetativas . Mmtos cnt1cos falam,
ão
como seria de esperar, d a novidade absoluta; porém, � �ue cham� a atenç
ue sao as soap­
é a dívida da série para com os grandes géneros telev1s1vos q
003:
-operas e as histórias de detetives. Como observa Kris tin Thompson (2
esta mistura compõe também a
subs tância de alguns filmes
PP· 129 -13 0),
re alizados por Lynch na mesma época, corno Veludo Azul (Blue
Velvet): ao
· d r.
acre s centar-lhe a suspeit
, ·
a e 1antast1co a qu
· P,e-aks se dedicará cada vez
1. wtn
e --r.
mais, é a inspiração primordial do criador Lynch ne sta época.

133
AS SÉRIES TELEVISIVAS

O assassínio de Laura Palmer na vila aparentemente tranquila cujo nome


dá título à série suscita uma investigação e múltiplas intrigas que alimen­
tam Twin Peaks. A investigação é realizada pelo agente Dale Cooper (Kyle
MacLachlan), ajudado pelo xerife local Harry Truman (Michael Ontkean).
Desenvolve-se de uma forma imprevisível através da vila e parece envolver
toda a regente que nela reside. Os erros de Laura Palmer revelam-se como
sintomas de um aviltamento generalizado. No entanto, a narração não segue
uma lógica policial. Com efeito, a construção da narrativa imita a de uma soap­
-opera: cada episódio de Twin Peaks procede de uma sucessão de cenas lentas,
sem movimentações de personagens nem, na maioria dos casos, de câmara.
Somos diretamente instalados no centro dos confrontos e dos conflitos. Em
cada cena, as discussões.exacerbam-se e a ação torna-se violenta. Uma espécie
de histeria generalizada propaga-se de cena para cena, num travestismo bem
conseguido das soap-operas.
Contudo, a gramática da narrativa não é suficiente para explicar certas
características desta cenografia. Em primeiro lugar, na maioria dos casos,
as cenas não se relacionam entre si. De resto, as personagens confrontam-se
não por causa de um desacordo, mas devido a acessos de fúria, para che­
garem a um auge de frenesim ou de efervescência. Aparecem iluminadas
de diferentes maneiras: podem ouvir vozes, depender de uma obsessão, ver
um espetro. Nem o agente Dale Cooper escapa, que recebe a visita de um
gigante misterioso. Só o xerife se comporta de forma normal: constitui a
bitola da anormalidade dos outros. A loucura generalizada de Twin Peaks
dá à série um tom entre o maravilhoso e o fantástico mais pessoal: constitui
a referência mais estável da relação entre a série e vários filmes do autor.
Ao mesmo tempo, tendia a arruinar ou a complicar as intrigas policiais e
soapianas que a série também continha. O desinteresse de David Lynch por
estas intrigas criou, aliás, um conflito com a ABC, que exigia que a série
desse uma solução ao mistério do assassínio de Laura Palmer: o público seria
finalmente satisfeito, mas este desfecho constituiria o canto de cisne da série
(Thompson R._, 1996: pp. 130-131).
Buffy- Caçadora de Vampiros representa um caso mais clássico de mistura
de géneros. A série de Joss Whedon justapõe uma série universitária e uma
série fantástica: a sua heroína é uma adolescente frágil que prossegue os seus
estudos e que está condenada a perseguir os vampiros porque. é a «eleita», o
seja, é a única que pode impedir que o mal se instale na Terra. O axioma da
série, a sua base, combina a comédia dos amores adolescentes com o duro
combate travado por Buffy (Sarah Michelle Gellar). A sua personagem para­
doxal permite que a série multiplique as inversões. Em primeiro lugar, as suas
capacidades físicas de combatente vão contra todos os estereótipos e todos os
hábitos. Ela constitui um hápax de que o criador da série quis fazer o emblema,
uma espécie de careta dirigida ao mecanismo vulgar das séries de aventuras. A
personagem de Buffy não é apenas uma mulher a quem foi dada uma tarefa
de homem. Está também presa entre feminilidade e feminismo, como observa
Elana Levine (2007): gostaria de ser uma rapariga como as outras e namorar

134
8. ESTILOS E FORMAS

tranquilamente com os rapazes, mas tem de dar provas de autoridade e ser


uma «mulher forte» face às terríveis situações que deve enfrentar.
As histórias de desejo entre �umanos e vampiros não faltam em Bu.ffy _
_
Caçadora de Vampiros: a travessia das fronteiras das espécies que estava já no
centro de A Bela e o Monstro (1he Beauty and the Beast), há dez anos, pode ser
vista como o símbolo mais claro da fusão identitária atual (Fuchs, 2007). De
facto, uma história de amor liga Buffy, representante dos humanos no com­
bate contra os vampiros, e Angel, vampiro arrependido. Curiosamente, neste
par, Buffy é a figura masculina, enquanto Angel surge como uma espécie de
homem fatal cuja beleza é a principal definição. A mistura dos géneros em
Bujfy - Caçadora de Vampiros não é, portanto, um simples procedimento.
Tem a ver com a temática mais profunda da série, a da inversão dos papéis e
da transposição dos limites.
Tanto Twin Peaks como Buffy - Caçadora de vámpiros suscitaram, de
formas certamente diferentes, muitas reações por parte das comunidades
de fãs. Outras séries utilizaram a mistura de géneros com fins menos sérios.
Dr. House, série policial e médica, constitui um exemplo excelente. O seu
produtor, David Shore, não esconde as suas fontes: a personagem principal
inspira-se diretamente na de Sherlock Holmes e são muitas as referências da
série aos romances de Conan Doyle. E não há dúvida de que o Doutor House,
tal como o seu ilustre antepassado, é misantropo, droga-se com regularidade,
não suporta os colaboradores, ao mesmo tempo que tem uma necessidade
crucial da presença destes, e, sobretudo, resolve enigmas: no entanto, os seus
inimigos não são malfeitores, mas sim vírus e micróbios. É o médico a quem
são confiados os casos desesperados, face aos quais os seus colegas se confessam
impotentes. Dr. House é, portanto, uma série médica que funciona como uma
série policial. É também uma comédia, pois as graças cínicas e sarcásticas do
médico imp edem que seja levado demasiado a sério. Ao mesmo tempo, o auto­
ritário e irascível herói mostra-se frequentemente frágil e desamparado: como
se David Shore e os seus argumentistas tivessem ousado seguir um caminho
apenas esboçado por Conan Doyle. Talvez seja privilégio dos herdeiros ousar
continuar aquilo que fora apenas esboçado pelo autor «inicial» (sabemos que
Doyle se inspirara em Émile-Gaboriau, etc.).
Embora a série não queira parecer demasiado «séria», suscitou pelo menos
duas obras filosóficas (Jacoby, 2008; Blitris, 2007). O pragmatismo afirma­
tivo de House, que guia as suas investigações e que enfrenta frequentemente
as objeções éticas dos colegas, motiva discussões sérias e, ao mesmo tempo,
engraçadas; o seu contexto dramático confere-lhes, porém, um carácter_i�q�ie­
tante e violento, que, com efeito, pode suscitar a reflexão. Em certos ep1sodios,
como «No Reason>> (2/24) ou «Hous e's Head» (4/15), os autores co?seguem
materializar um espaço da razão pura, onde o espírito de House se liberta de
quaisquer condicionalismos materiais. O seu delírio lógico parte em bus_ca de
soluções médicas. Neste típico clima sarcástico da série, misturam-se realidade
concreta e realidade racional. A encenação desvanece as suas diferenças eª busca
obsessiva da verdade característica de House-Holmes aparec e em plena luz.

135

--
AS SÉRIES TELEVISIVAS

A mistura de géneros, quando é assumida com segurança e ousadia, parece


conduzir quase mecanicamente a uma reflexividade que ilumina toda a série.
Outros exemplos, como Erva (Weeds), que conta a história de uma residente
de um bairro suburbano que é levada pela morte do marido a vender várias
drogas, simultaneamente sitcom, soap-opera e série policial, poderiam ta mbém
ilustrar esta regra.
Parece extremamente difícil negar às séries o carácter de verdadeiros projetos
estéticos. Estão sempre ligadas às suas fórmulas narrativas e, portanto, aos
seus universos ficcionais: deste ponto de vista, inscrevem-se na linhagem da
cultura popular e continuam a herança dos grandes contadores romancistas
ou cineastas que nos maravilham desde há dois séculos. Ao mesmo tempo,
os produtores também aprenderam as lições de mise en scene oriundas não só
do cinema, mas também da publicidade e até da banda desenhada: a primeira
série televisiva centrada no super-herói Batman, emitida pela primeira vez em
1966, já soubera transcrever, por exemplo, as célebres bolhas da banda dese­
nhada original. É verdade que a análise textual, tal como era feita sobre corpus
de filmes, não pode ser diretamente transposta para o caso das séries. Outros
métodos, mais abertos aos contributos da história da arte e da sociologia das
obras, serão certamente necessários. Mas a inexistência atual de métodos de
análise não significa de modo algum o falhanço formal da produção serial.

136
Capítulo 9

O pleno, o íntiino

1. Especificidades seriais

Sublinhámos a herança de que beneficiam as séries televisivas, a da ficção


popular: vimos como os postulados de um género particular servem de base
aos produtores, que nele introduzem preocupações contemporâneas. Analisá­
mos também como o domínio serial reorganizou a classificação dos géneros
de ficção em função da condição decisiva da coordenação do tempo ficcional
com a temporalidade da difusão. E reconhecemos a criatividade estilística
e narrativa dos produtores, capazes de exprimir formalmente as obrigações
narrativas de cada série.
Este capítulo será dedicado às duas propriedades narrativas características
das séries televisivas: são propriedades «específicas» no sentido em que as con­
dições de produção e de difusão das séries funcionam como um catalizador
espontâneo dessas propriedades. É verdade que as séries não são as únicas
ficções que oferecem mundos ficcionais generosos: os leitores de Tolkien
podem, com razão, ver O Senhor dos Anéis como um fresco fértil. E a atenção
ao íntimo também não é específica das séries: os leitores dos romances de
Delly sabem isso. No enta nto, as suas situações particulares tornaram as séries
particularmente aptas, por um lado, para a profusão ficcional e, por outro,
para a descrição intimista: os universos seriais são opulentos e por vezes até
luxuriantes, e esta exuberância permite-lhes colocarem as suas personagens
sob uma lupa aumenta dora capaz de pormenorizar sentimentos e emoções.
Antes de exemplificarmos estas propriedades seriais, vejamos as suas signifi­
cações respetivas.
As séries, pelo menos as de sucesso, têm tempo para enriquecer progres­
sivamente o seu mundo ficcional e, como dizem os teóricos dos mundos
ficcionais, para o «mobilar» de forma considerável. É verdade que qualquer
mundo ficcional continua a ser incompleto relativamente ao nosso mundo
(Dolezel, 1998: p. 22). No enta nto, o texto .ficcional usa cada linha ou cada
imagem para a completar sempre de forma mais eficaz. E as séries têm, s�bre
os outros géneros, uma forte vantagem ligada à sua duração. Podem c?nsohdar
pacientemente e, em muitos casos, sabiamente a sua textura nos tres planos

137
AS SÉRIES TELEVISIVAS

da quantidade, da credibilidade e da qualidade que caracterizam, segundo


Lubomir Dolezel (pp. 135-184) os mundos ficcionais:

• as séries podem aumentar quase indefinidamente o número de perso­


nagens e aperfeiçoar as características ou modelar os temperamentos de
cada personagem ao longo das suas participações na ação;
• ao multiplicarem as personagens, multiplicam também os pontos de vista
possíveis sobre o mundo ficcional e enriquecem-no com outras tantas
perspetivas. Aquilo a que Dolezel chama <<autentificação» do universo
ficcional reforça-se e aumenta-lhe a credibilidade;
• por último, podem aumentar a sua «enciclopédia ficcional»: a narração
pode seguir caminhos imprevistos e geralmente férteis que justificam
os catálogos dos lugares, ações e personagens propostos pelos fãs.

Como o autor sublinha (p. 112), o destinatário da história ficcional desem­


penha um papel fundamental na sua construção: é ele quem decide sobre a
coerência e a homogeneidade do mundp ficcional. Ao aceitar entrar no jogo,
não hesita depois em completá-lo de acordo com as necessidades (Esquenazi,
2009). Esta atividade faz parte da experiência prática deste tipo de narração.
As narrativas oferecidas pelas séries devem também fornecer aos seus públicos
margens reservadas às suas capacidades imaginativas: as que têm uma vida
mais longa, que ultrapassa a da primeira difusão, conseguem dar uma verda­
deira profundidade aos seus mundos ficcionais, incorporando-lhes zonas de
sombra misteriosas que se prestam à reflexão, ao son,ho e à imaginação. Assim,
o mundo ficcional está incessantemente em expansão, enquanto conserva todo
o mistério dos seus buracos negros e da sua antimatéria: os desenvolvimentos
propostos pelos fãs americanos de O Caminho das Estrelas ou de A Bela e o
Monstro (Jenkins, 1992) são disso testemunhas.
A segunda grande característica das séries televisivas é o seu gosto pelo
íntimo. Antes de tudo, definamos rigorosamente aquilo a que chamamos
«intimidade» nesta obra, para não a confundirmos com «vida privada» ou
«sentimento». Para isso, podemos recorrer a algumas observações propostas
por sociólogos. Alfred Schutz (1994: pp. 109-115), por exemplo, inspirando-se
em George Herbert Mead, mostrou como a consciência só podia ser concebida
através de tensões. Descreve as diferenças entre os «Eu que assumem papéis»
ou Eu públicos, e o Eu unificador, que é o resultado dos diferentes papéis e a
sua síntese incessantemente em construção, como o produtor da nossa cons­
ciência. Norbet Elias (1991) mostra de forma extensa e precisa como o nosso
ser público, ao assumir as normas da nossa comunidade, é o fundamento de
uma consciência de ser, nessa comunidade, uma pessoa particular. Um dos
seus exemplos é particularmente elucidativo em relação ao nosso propósito
atual. Ao descrever a troca que constitui uma conversa, Elias escreve: «Os
pensamentos de ambos os interlocutores podem modificar-se ao longo do
diálogo. Pode dar-se o caso, por exemplo, de se estabelecer um acordo entre
eles durante a conversa. Pode dar-se o caso de um convencer o outro. Este

138
9� O PLENO, O ÍNTIMO

assimila-se então ao outro. Integra-se no edifíc'io d0 pensa


, . mento individual do
outro. Modific a esse ed'ifício e modifica-se a si· p ropno atravé s dessa ·
mtegraçao»
(p. 61). A conversa, fio condutor de muitas séri·es, surge como um
. transfcorma-
ª�
..
dor das imagens que formamos de nós pro'pri·os. E uma express· 1·
. • 1:11ed'lata
das diferenças criadoras de consciência. Daí a nossa defi ntça o: a intimidade
,
e, o trabat,''ho continuo ae coordenaçao entre ima(I',
J •
º em pu'b''
eica e presença de uma
contznuzaaae pessoal. A presença de uma v ariação ent re a mm
• •J J
. · ha presença face
, · 1 , ou a s minhas pre senças sucess1v .
e e a va, r1os .
a comum'd ade socia · as iac tipos de
. . . , .
comum'dades soc1a1s e a minha propna tentativa de os um·fi car d,a origem . ao
. . . .
sentimento de mumidade e necessita da sua m anuten çao. • A poss1·b·t·d 11 ade de
,
oferece r o espetaculo da intimidade de outrem é uma das mais ' , ·
· extraordmanas
_ , . · ·
da ficçao: esta na ongem de numerosos processos, como a voz rntenor ou a
narração subj e tiva. Não há dúvida d e que a série televisiva é grande apreciadora
desta forma de espetáculo.
Não insistiremos na primeira razão deste interesse. A difusão da televisão
�o� l�res dos telespetadores propicia uma maior atenção ao espetáculo da
mttmidade: o afastamento do espaço público é propício ao retorno sobre si
próprio, como já insistimos longamente. No entanto, não devemos confundir
privado com intimidade. No seu estudo sobre a receção de Serviço de Urgência,
Sabine Chalvon-Demersay (1999) mostra como os públicos franceses são sen­
síveis à intimidade das relações profissionais entre os membros do Community
Hospital de Chicago, local onde se desenrola a série Serviço de Urgência. O
espetáculo da intimidade, compreendido como representação das diferenças
entre a pessoa e os seus papéis, diz respeito tanto à vida pública como à vida
privada. Enquanto 1he Young and the Restless se dedica aos papéis amorosos e
Donas de Casa Desesperadas aos papéis familiares, Dallas joga nos tabuleiros
familiare s e profissionai s. E muitas séries contemporâneas, como N
ip/Tuck,
não hesitam em mostrar as interações entre estes três níveis.
tempo
A razão principal do interesse das séries pela intimidade é o longo
rta Pearson
de que dispõem. Num texto notável ao qual regressaremos, Robe
por ser tipificada
(2007: p. 50) mostra que a personagem serial tem de começar
s facilmente o tipo
e estável: a telespetaleitura é facil itada se reconhecermo
permanecer mais ou
de personagem com que lidamos e se essa personagem
Deve também evoluir
menos igual a si própria durante os vários episódios.
sob pena de se repetir e
e, eventualmente, transformar-se, insiste a autora,
sonagens, que, para ele, são
aborrecer. Os seus encontros com as outras per
fundarem a sua definição
eventuais espelhos, autorizam os produtores a apro
da multiplicidade das per­
e até a alargarem-na. O jogo da ação e das reações
hecimento da intimidade de
sonagens aumenta incessantemente o nosso con
sua paixão por Serviço
cada uma delas. Uma jovem questionada a propósito da
personagens da
de Urgência pode assim responder que conhece táo bem as
édito).
série quanto os membros da sua família (Esquenazi, in
surgirem como
A sensibilidade dos fãs à intimidade leva hoje as séries a
ritárias.
um dos instrumentos privilegiados da exploração de identidades mino
Diferentes Como Nós (Queer as Folk) ou 1he L Word apresentatam protagonistas
139
AS SÉRIES TELEVISIVAS

s, para n�o falar das


homossexuais no interior de quadros narrativos usu_a� _já ,
ou comicas. Secret
inúmeras personagens homossexuais em séries policiais
Diary of a Cal/ Gir l apresenta as dificuldades de ��a call-girl
em constr uir
_
a sua respeitabilidade face aos outros e aos seus
proxm;os. Rus�el T. Dav1es,
Ron Cowan e Daniel Lipman, produtores das duas vers�es de Diferentes Como
Nós e de Secret Diary ofa Ca ll Girl, estão muito consc1e?tes � contente� por
poderem apresentar temas e personagens pouco conve�cionais n�m meio de
_
comunicação social de grande audiência. As séries televisivas continuam a ser
um dos principais vetores da manifestação pública de minorias, e isto não data
de hoje: emitida a partir de 1965, a série 1he FBI, criada por Quinn Martin,
já mostrava agentes afro-americanos antes de estes começarem efetivamente
a trabalhar na agência.

2. Plenitude dos universos ficcionais seriais


Talvez seja possível descrever numa só obra o mundo proposto por uma
série de longa duração, ainda que a experiência nunca tenha sido realmente
tentada. De qualquer forma, é certamente impossível fazer tal descrição no
âmbito desta obra. Uma coisa é certa: sempre que se pede a um fã para falar
de uma série, nunca mais se cala e parece literalmente impregnado por um
universo vivido como um planeta real. Os autores de estudos de receção provam
claramente isso e cada nova investigação é apenas mais uma confirmação. Como
estes estudos já foram aqui citados, não voltarei a eles. No entanto, gostaria de
lembrar uma observação importante de uma das pioneiras. Dorothy Hobson
(1982: pp. 101-104), autora de um livro sobre a série britânica Crossroads,
que durou 24 anos, confessa que não consegue compreender as reações dos
públicos: a impregnação destes no mundo da série é tão forte que é difícil para
uma pessoa menos familiarizada percebê-los completamente. Este diagnóstico
é confirmado a contrario por Jonathan Gray (2005: p. 8), que indica que o seu
conhecimento de Os Simpson lhe permitiu manter um verdadeiro diálogo com
fãs e perceber todas as suas diferentes interpretações. Ao falarmos de universos
ficcionais, lidamos com algo vasto e complexo: limitemo-nos aqui a descrever
alguns modos de extensão característicos desses universos.
Comecemos com as soap-operas: Crossroads, por exemplo, é a história de
um motel e da sua proprietária, interpretada por Noele Gordon. Esta resolve
ou ajuda a resolver os problemas dos seus empregados e dos seus hóspedes. O
p�nto fulcral da série é, então, um lugar particular que tem as suas próprias
leis e encarnado por uma personagem particular. Trata-se do modelo de
numerosas soa�-�peras, e� particular das ma is clássicas. É apresentado um
_
local, que servira de cenano cardinal à série, onde as personagens podem
encontra r-se em torno de uma personagem central (ou de um casal central,
como Hélene et les garçons). Se, como escreve Robert Alle (19
n 85: p. 70), a
estrutura narrativa de qualquer soa1>-o11>er.·,., assenta no ·
. r r "' sistema das suas perso-
nagens, sistema que tende a preser vá-las das turb
u l"encias
· mtro
· duzi'das pela

140
J 9. O PLENO, O ÍNTIMO

sequência dos acontecimentos, esta necessita de um centro gravitacional em


torno do qual todos possam girar sem nunca dele se afastarem em definitivo.
A sucessão dos episódios inventaria o que pode acontecer no i nterior deste
sistema. A série torna-se inesgotável: e se a narração nunca se esgota, basta
introduzir uma personagem par a que todas as relações tecidas entre as perso­
nagens sejam afetadas. Consider ar a mudança e, depois, o desenvolvimento
progressivo de um novo estado de equilíbrio pode ser o tema de uma temporada
inteira. Todas as séries construídas em torno de uma residência ou de uma
casa apresentam este enc adeamento de sistemas de equilíbrio mais ou menos
estabilizados; toda a certeza narrativa serve apenas p ara ser ab alada por um
acidente de produção, de difusão ou por um a inven ção narrativa. Poderíamos
ir buscar à biologia o conceito de metastabilidade (Simondon, 1989) pa ra des­
crever os equilíbr ios instáveis que constituem a matéria-prima das soap-operas.
Além disso, as tr ansform ações de estados do mundo ficcionais não subs­
tituem apen as um pelo outro: a sua sucessão enriquece a memória da série. E
cada personagem não é apenas um carácter geralmente tipificado e facilmente
reconhecível pelos telespetadores; torna-se uma figura carregad a de uma história
pessoal cad a vez maior à medida que a série se desenvolve. Cada uma d as suas
aparições é suscetível de evoc ar acontecimentos ou encontros que a levaram
ao ponto em que se encontr a: «A complexidade da rede de relações entre per­
sonagens na soap-opera deriva em grande medida do facto de as personagens
terem, simultaneamente, histórias e recordações» (Allen, 1985, p. 72).
As soap-operas desenvolvem-se a partir de um núcleo capaz de aumentar
indefinidamente. No entanto, continuam perfeitamente centradas. As séries
corais, pelo contrário, estendem-se a partir das margens. As diferentes persona­
gens seguem independentemente os seus caminhos. Embora possam convergir
ou reencontrar-se, as su as bifurcações respetivas obedecem a leis autónomas.
Em A Balada de Nova Iorque, os incidentes entre Andy Sipowicz e o seu
chefe, o tenente Fancy (James McDaniel), amplificam-se progressivamente
para acabarem por representar um dos temas principais da série, o racismo e
a coabit ação das minorias. As diferentes personagens de Serviço de Urgência

seguem caminhos separados, e cada um deles contribui para o aumento da .


densidade da série: por exemplo, os problemas conjug ais do doutor Greene
(Anthony Edwards) ou da carreira de Joh n Carter (Noah Wyle), inicialmente
estudante e depois médico da equipa do hospit al. Esta expansão a partir d as
margens é visível, sobretudo, em Sete Palmos de Terra, u�.ª vez q�e se acom­
Cada
panha da dissolução progressiva do centro, a casa de familia dos F1sher.
o lado.
membro da família afasta-se dela para tent ar construir a sua vida noutr
es a c asa
Até para a mãe Ruth (Fr a nces Conroy), qu e nel� conti�u� a vi:er, � _
a
muda de significado. Nes te sentido, Os Sopranos e um a sene mais ambigua.
personagem principal, Tony Soprano, chefe de família e chefe de bando, parece
dividir-se em vários fragmentos, sempre difíceis de manter juntos; no ent�nto,
resiste e continua a desempenhar o se u papel atr avés de solavancos sucesSlVOS.
· Como vemos, as séries corais oferecem soluções variadas para al argar os
seus territórios ficcionais. De uma forma geral, poder-se-ia conceber a su a

141
AS SÉRIES TELEVISIVAS 1
extensão não como uma dilatação à maneira das soap-operas, mas antes como
um crescimento por partes: um dos pontos da série começa a crescer e este
aumento afeta cada vez mais todo o mundo ficcional. Em Causa justa (The
Practice), um dos advogados tem como especialidade a destabilização das tes­
temunhas: a prática de Eugene Young (Steve Harris) acaba por afetar o próprio
escritório e tornar-se tema de conversa para as outras personagens, mesmo que
nunca tenham estado presentes durante os seus interrogatórios. A memória
da série, que passa certamente pela dos públicos, engloba progressivamente
esse traço particular no interior do universo de Causa justa. Como sucede nas
soap-operas, a conservação e a renovação da memória da série constituem o
objetivo principal da sucessão dos episódios: trata-se de juntar ao encadeamento
sincrónico o património mais denso e mais intenso possível. Disto depende
a particularidade da telespetaleitura das séries.
As séries de mistério como Perdidos têm muitos pontos em comum com
as soap-operas. Grande parte das suas estruturas narrativas é, aliás, análoga: o
universo da série enriquece-se incessantemente com as relações que se criam e
se desfazem entre as personagens. O tecido relacional constitui, de certa forma,
o quotidiano da série. Ao contrário da soap-opera, as séries de mistério possuem
desde o primeiro episódio um passado memorial que o público vai conhecendo
a pouco e pouco. O alegado rapto da irmã exerce peso sobre o passado e o
presente de Fox Mulder, herói de Os Ficheiros Secretos; e a conspiração que
serve de fio narrativo a esta série começou muito antes do seu episódio inicial.
A primeira temporada de Perdidos é parcialmente consagrada à apresentação do
passado das principais personagens entre os sobreviventes do desastre aéreo. As
temporadas seguintes estão repletas de hipóteses sobre o passado da ilha que
poderiam explicar os seus enigmas atuais. Por conseguinte, este género de série
não vive apenas do seu mundo «real». A este, acrescentam-se mundos virtuais,
ecos de alegadas significações do mundo de base: os universos funcionais das
séries de mistério são mundos folhados, sequências de mundos possíveis mais
ou menos compatíveis. As interpretações e os sonhos dos públicos, muito
solicitados pelo género, contribuem para o folhado e, portanto, para a riqueza
do universo ficcional. Por isso, como observa Matt Holls (2005), não é de
admirar que as séries de «culto» sejam, em muitos casos, séries de mistério.
Alguns projetos seriais distinguem-se pela sua originalidade, dificilmente
redutível à de outros. Casos Arquivados (Cold Case) é um desses casos parti­
culares. O prolífico produtor Jerry Brukheimer pediu à jovem argumentista
e produtora Meredith Stiehm que adaptasse uma série canadiana sobre casos
pendentes que são depois resolvidos por uma nova investigação. É fixada uma
fórmula: a irtvestigação consistirá em encontrar testemunhas ainda vivas e em
obter os seus testemunhos. Cada contacto leva a outra testemunha e, portanto,
a uma nova recordação. A reunião das memórias das personagens permite dar
uma solução ao enigma. A partir desta fórmula muito convencional, Stiehm
adota um sistema que é frequente nas histórias policiais, mas utilizado de
forma muito original. Cada entrevista dá origem a um ftash-back que faz
reviver o passado; a série divide-se entre o tempo da investigação - a busca

142
9. O PLENO, O ÍNTIMO

de testemunhas - e o tempo do crime - a reconstituição do passado graças às


recordações das testemunhas. Esta é feita com um cuidado especial.
Não só a produção tenta reconstituir o guarda-roupa, os penteados, as
.
atitudes e os comportamentos, não só recria o ambiente musical da época
graças a uma boa escolha de canções, como também a própria realização se
molda aos hábitos do período. O grão da película, as cores e os movimentos
da câmara esforçam-se por recompor um mundo americano rigorosamente
localizado no tempo, até no estilo da sua representação tal como nos chegou
hoje. Ao longo dos episódios, sucedem-se diferentes peripécias da história
cultural, política, social e racial americana. São apresentadas através de uma
série de acontecimentos pouco significativos, mas perfeitamente exemplares
das contradições contemporâneas. Os crimes não são escolhidos ao acaso;
pelo contrário, ilustram pelo seu carácter edificante um problema americano.
Casos Arquivados privilegia largamente as épocas agitadas e todas as fontes
de perturbação: a história dos costumes e preconceitos americanos retratada
pela série exibe o racismo ordinário, a homofobia latente, a dificuldade das
mulheres para integrarem o mercado de trabalho ou para fazerem reconhecer
a sua sexualidade. A série não hesita em remontar muito longe no tempo. Por
exemplo, uma história tem a ver com o assassínio de uma jovem operária numa
fábrica de armamento durante a Segunda Guerra Mundial. Os investigadores
começam então a procurar testemunhas ainda vivas: estas descrevem· uma
jovem encantada com o seu novo universo de amizades femininas e que acaba
por morrer. Casos Arquivados, através de curtas e trágicas parcelas de vida,
põe lado a lado facetas minúsculas, mas expressivas da história americana. A
empresa é, em geral, um sucesso.
Com efeito, a realização está à altura das ambições. Uma das maiores
dificuldades da narração consiste em ligar as duas temporalidades de cada
episódio. Meredith Stiehm prefere não abandonar estas passagens obrigató­
rias; os deslizes da câmara por detrás de u,m obstáculo, que permitem passar
«nu m só plano», graças a longas panorâmicas laterais, de um ator para o
outro que desempenham a mesma personagem no presente e no passado são
particularmente conseguidos. A escolha dos atores revela-se importante. Não
se trata apenas da sua semelhança física, mas também do modo como o peso
do ato passado afeta o presente: o ator que desempenha a personagem no
tempo da investigação parece sempre escolhido em função das marcas que
tem no rosto e que a narração nos leva a atribuir à recordação do crime. O
crime, determinado pela ordem social, provoca uma ferida que o presen�e não
consegue curar. O fim da investigação e a sua resolução não são sufic1ent�s
para anular a melancolia da série: Meredith Stiehm traça um retrato sombno
de esperanças desfeitas e de juventudes sacrificadas. A frágil sil�uet� �om
cabelo louro da investigadora principal, Lily Rush (Kathryn Morns), e disso
um símbolo perfeito.
As séries têm sabido aproveitar as possibilidades oferecidas pelo tempo ,
se não ilimitado, pelo menos considerável do seu modo de difusão: os mu�­
dos ficcionais das séries são, sem qualquer dúvida, dos mais ricos e mais

143
AS SÉRIES TELEVISIVAS

emocionantes propostos pela produção contemporânea de ficção. Algumas


delas desenvolvem-se quase independentemente das personagens recorren­
tes: por exemplo, 0 papel da equipa de investigadores de Casos Arquivados
é extremamente pequeno quando comparado com o panorama americano
apresentado pela série. Contudo, outros universos ficcionais estão associados
às suas personagens principais. Os itinerários de Tony Soprano, de Andy
Sipowicz ou até do capitão Kirk e dos seus diferentes sucessores são essenciais
no desenvolvimento de Os Sopranos, A Balada de Nova Iorque e O Caminho
das Estrelas. É por isso que terminaremos este capítulo com o estudo do
aprofundamento das personagens permitido pelas séries. No entanto, antes
disso, examinemos o elemento característico da riqueza ficcional das séries, o
seu gosto pelas subtilezas da intimidade.

3. Formas do íntimo
Definimos a intimidade como a diferença entre a pessoa e o papel, para
utilizarmos o vocabulário de Erving Goffman (1991); a consciência da nossa
participação na vida social choca com a consciência da nossa unidade e produz
o sentimento de si ou intimidade. O espetáculo da intimidade é um privilégio
da ficção: a realidade nunca nos dá acesso à intimidade dos outros nem repre­
senta a nossa própria intimidade senão por projeção. Mas a narrativa ficcional
não é travada por estas limitações.
Qualquer personagem de ficção tem uma dupla função narrativa: é, em
simultâneo, objeto e sujeito da narrativa, aquele a quem acontece qualquer
coisa e aquele graças a quem interpretamos o que acontece. Corno mostrou
Kate Hamburger (1986), a personagem (central) da narrativa ficcional é
também um representante da atividade enunciativa: por não poder aparecer
no universo ficcional, o autor delega os seus poderes numa personagem,
como faz, por exemplo, Conan Doyle com o Dr. Watson. Por vezes, o autor
prefere tornar anónima essa personagem que vê e interpreta a ação: chamou­
-se-lhe «narrador extradiegético», o que é inapropriado, uma vez que tem de
pertencer ao mundo ficcional se o quiser interpretar (Martinez-Bonati, 1981).
Deste ponto de vista, qualquer ficção assenta numa diferença no interior da
personagem entre a sua existência descrita como a de um dos protagonistas da
ficção e essa mesma existência que se tornou um ponto de vista geral sobre o
universo ficcional (nem todas as figuras que aparecem na narrativa oferecem,
ao mesmo tempo, um ponto de vista; neste sentido, devemos distinguir as
personagens das figuras ficcionais). Por conseguinte, a ficção está constituti­
vamente ligada à apresentação da intimidade (Esquenazi, 1994). Enquanto
a narração «clássica» tende a ocultar esta diferença constitutiva, as séries
representam claramente o íntimo, por razões que já aqui assinalámos. Pode
até dizer-se que expõem frequentemente a diferença da personagem para dela
fazerem o tema principal: a intimidade torna-se o tema essencial da narrativa.
A exploração meticulosa das personagens pelas séries, de que falaremos mais

144
9. O PLENO, O ÍNTIMO

à frente, é disso uma consequência direta. As soap-operas foram as grandes


especialistas desta exposição: fizeram dela o seu centro narrativo, graças ao
diálogo e ao grande plano. Cont udo, veremos que as soap-operas não foram
as únicas a enveredar por este caminho.
Nesta matéria, as séries contemporâneas mostraram u ma criatividade
especial. A influência anteriormente referida do cinema europeu dos anos
1960 (Antonioni, Bergman) sobre os principais produtores adqui re aqui todo
o sentido. Já analisámos alguns dos processos utilizados pelos autores de séries :
as vozes over paradoxais de O Sexo e a Cidade e de Donas de Casa Desesperadas
conseguem produzir a intimidade feminina como tema das suas ficções; e
vimos como o universo complexo de Os Sopranos podia girar em torno dos
encontros entre Tony e a sua psicanalista. Vejamos outros exemplos.
Uma produção notável dirigida por Graham Yost, à qual, infelizmente, a
NBC não deu tempo para que se desenvolvesse, será o nosso primeiro exem­
plo: com efeito, Boomtown oferece uma demonstração perfeita da eficácia do
processo no domínio policial. Em cada episódio, as sequências sucessivas são
orientadas pela visão de uma das personagens e essa orientação é anunciada
por um cartão. No primeiro episódio, o primeiro ponto de vista privilegiado
é o do procurador McNorris, que dá uma conferência de imprensa no local de
um crime. Uma questão colocada por uma jornalista deixa-o pouco à vontade.
Passamos depois para o ponto de vista de Andrea, a jornalista, retomando a
sequência ligeiramente atrás. Descobrimos agora que a cena pública é também
uma cena privada que se passa entre o procurador, a sua mulher e a jornalista.
Ao acompanharmos Andrea, ficamos a saber que é amante do procurador;
encontra-se com ela, mas são interrompidos pela detenção de um dos assassi­
nos. Novo rec uo no tempo: regressamos à descoberta do corpo por Gary, um
polícia. Seguimos este a fazer as primeiras descobertas e a regressar ao veículo
com o parceiro, Tom. Cruzam-se com o carro dos assassinos e inicia-se uma
perseguição. Os polícias são obrigados a separar-se: Tom persegue o criminoso
que estava no lugar do passageiro, que tenta fugir a pé, mas acompanhamos
Gary, que persegue o carro num parque de estacionamento. O fugitivo escapa.
Regressamos ao ponto em que havíamos deixado Tom no encalço do outro
assassino. Quando o vai apanhar, cai num rio. Voltamos a encontrá-lo no
duche, em casa, e depois a telefonar ao pai. Chegada a noite, encontra-se com
Gary em frente à casa onde o assassino fora identificado. Neste momento,
regressamos ao início com Fearless, o inspetor responsável pela investigação.
Este jogo de desfasamentos no tempo multiplica os pontos de vista sobre
a narração, todos objetivos, mas todos parciais: cada personagem tem apenas
uma visão fragmentária do todo. A justaposição do ponto de vista de Andrea
com o do seu amante reflete-a e dá-lhe uma dimensão priva da. As conversas
entre Tom e Gary refletem aquilo que vimos do procu rador e preparam
também a intervenção dos inspetores, cuja perspetiva dominará o fim do
episódio. Embora a ação sej a policial, a ju s taposição dos ângulos sob os quais
é apresentada afasta-nos da sua atualidade e leva-nos a considerar o espelho
que deforma imagens de cada pers ona em, ue se sobrepõem sem nunca s e
g q

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AS SÉRIES TELEVISIVAS

queStão essen�ial
anularem. As diferenças íntimas multiplicam-se e tornam-se a
ra narrativ a
da n a rrativa. O fio policial permanece linea r, enqua nto a espessu
aumenta: ao longo dos episódios, a intimidade das personagens parece c a� a
vez mais dividida ou até quebrada. A personalidade do procurador McNorns,
inicia lmente homem forte da narrativa, degrada-se quando se revela m as suas
contradições . É pena que Boomtown não tenha sido produzida por um canal
de cabo, onde teria certamente encontrado o seu público.
Num estilo diferente, Ally McBeal propõe também uma forma i�s?lita de
representação da intimidade da person agem. Trata-se da segunda sene sobre
escritórios de advogados de Boston criada por David Kelley. Este, argumentista
e produtor muito prolífico, confere à s érie um tom excêntrico e a té demente
que exacerba os sentimentos das personagens para melhor as ridicula rizar. As
situações resultam sempre de emoções fortes sentidas por um dos protagonistas.
A série diverte-se então a dar-lhes representações truculentas: por exemplo,
após a passagem de uma figura sedutora, homens e mulheres ficam com as
línguas fora , à semelhança do famoso lobo de Tex Avery quando olh a p a ra as
pin-ups que abrilhantam os seus desenhos animados. As varia ções sobre este
tema são numerosas: por exemplo, a cabeça da secretária que cresce indefi ni­
damente, ou uma mão que de repente se torna extremamente flexível para dar
um gigantesca bofetada num interlocutor. No episódio 1/19, quando se ouve
a voz off de Ally pronunciar «Comia-se... » à vista de um belo advogado, o
seu rosto transforma-se numa boca de cão com a língua de fora : David Kelley
exibe com prazer as suas dívidas para com o cartoon.
A invenção pode seguir ta mbém novos caminhos, como os reflexos de
Ally (Calista Flockart) que dançam no vidro, enquanto observa um homem
que lhe agrada (1/17). O gagpode também necessitar de uma re a lização com­
plexa, como a fuga de Ally de uma discussão demasiado ac erbada : começa
a nadar no escritório, que s e transformou num enorme aquário (1/16). Josh
Levine (1999: p. 104), na obra que dedica a David Kelley, descreve a cena da
s eguinte maneira: «Cazin [um dos produtores] e nche o cenár io com fumo
e filma-o; ao colorir a imagem, pode dar ao fumo o aspeto de água . Calista
Flockart é então filmada a nadar frente a um ecrã azul. No computa dor,
Most [diretor dos efeitos especiais] mistura os dois filmes num só.» O bebé
dançarino que acomp anha Ally durante muitos episódios da primeira e
da s egunda temporada é, sem dúvida, a ide ia mais brilhante da série no
género. O diálogo gestual, reple to de cabriolas e de saltos, estabel ecido entre
a advogada e o bebé fantasmagórico mima de forma excele nte a relação da
jovem consigo própria.
Que acrescentam à s érie as brincadeiras de David Kelley? O comporta­
mento de uma personagem numa determinada situação e a sua reação a essa
situação são-nos semp�e revela dos. O modo dJvertido utilizado pela produção

para ay�esentar _sentim��to de uma personagem priva-a de qualquer carcter
dramat1co ou seno: part1c1pamos, sem nos comovermos, na emoção de All
y
ou de John. A intimidade é simultaneamente revelada e frustrada. Não se
pode dizer que, em Ally McBeal, as emoções sejam ridículas: aquilo que é

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9. O PLENO, O ÍNTIMO

ridicularizado é a importância que as person agens lhes atribuem, ainda que


essas perturbações e outras fraquezas sejam a origem dos seus juízos.
Terminaremos com uma das mais concertadas representações da intimidade
feitas por uma série: já falámos do projeto de Sete Palmos de Terra, série concebida
e produzida por Alan Ball; descrevamos agora a sua realização. A exploração
da intimidade de personagens muito diferentes é partic ularmente cuidada: são
utilizados muitos processos criativos para descobrir a forma que adquire em tal
personagem a diferença íntima entre uma circunstância dada e o sentimento
da sua própria pessoa. Muitos deles adquirem um aspeto irónico ou sarcástico,
que mistura alegremente o verdadeiro e o falso. No episódio 1/11, Nathaniel
e David, os dois irmãos obrigados a colaborar para conserva�em a empresa
funerária familiar, vão a Las Vegas para um congresso profissional. David
toma a palavra e inicia um discurso geral sobre a profissão e levanta os olhos: os
ouvintes estão exageradamente espojados nos assentos, adormecidos. No plano
seguinte, voltamos a ver David no seu púlpito no momento de iniciar o mesmo
discurso; desta feita, pronuncia um discurso destinado a defender os empresários
independentes. A audiência está agora bem desperta e muito interessada. Nada
distingue as duas versões e não sabemos qual é a «verdadeira». No episódio
2/12, Keith, amante de David e polícia, é abordado pelo seu sargento, que lhe
relata a decisão do julgamento sobre o disparo mortal que Keith fez contra um
desconhecido ameaçador; Keith fora considerado culpado e expulso da polícia.
A câmara fixa-se no rosto consternado de Keith. O plano seguinte leva-nos de
volta ao sargento, que explica que a comissão acabou por aprovar o seu gesto:
não seria alvo de qualquer sanção. Mais uma vez, nenhuma indicação visual ou
sonora permite escolher entre realidade ou fantasia. Só a continuação do episódio
permite compreender aquilo que realmente aconteceu. A mesma significação
decorre das duas cenas: David ou Keith, enquanto pessoas, temem falhar nos
seus papéis sociais e a câmara mostra esse medo, tão real quanto o próprio facto.
Em Sete Palmos de Terra, realidades, medos e fantasmas misturam-se fortemente
para formarem uma única substância contraditória.
A conversa com os fantasmas é outro processo de apresentação da intimidade
utilizado pela série. O fantasma mais frequentemente presente é Nathaniel Sr.,
o pai morto na primeira sequência e que parece assombrar constantemente os
filhos. Há sempre uma conversa pessoal e destrutiva de ilusões que se instaura.
No episódio 1/6, Nathaniel descobre a casa secreta onde o pai se escondia.
Imagina que o casebre servia de local de encontros adúlteros do pai. Depois,
o pai aparece e fala com o filho das ocasiões falhadas de diálogo. Nesta visão,
to das as interpretações se fundem, possibilitadas pela simplicidade da filmagem.
Que o pai s eja uma espécie de marioneta manipulada pelo inconsciente do
filho, ou que seja uma verdadeira personagem num mundo onde os fantasmas
coexistem com os vivos, tudo é possível. Graças à sua ambiguidade, estas
conversas com fantasmas permitem-nos, melhor do que outras cenas, sentir
a pertu rbação das personagens.
O sonho é utilizado de forma tão realista quanto o fantasma ou a conversa
com os fantasmas e desempenha um papel análogo. No início do episódio

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AS SÉRIES TELEVISIVAS

2/6, Ruth, a mãe da família Fisher, deambula pela sua casa totalmente vazia
de móveis. Depois, descobre uma pessoa que dorme num sofá. Abana-a para
a acordar. Então levanta-se Ruth, que sonhava com Ruth a acordar Ruth,
como se a própria personagem tivesse de se arrancar do seu torp or �a�iliar.
_
Por vezes, são utilizados outros meios menos ortodoxos: no mesmo episodio, o
computador de Brenda, a amante de Nathaniel, começa a dirigir lhe �rí�icas e

a discutir as suas reações. Até O mero diálogo, o instrumento mais classico da
narrativa audiovisual para apresentar a intimidade, encontra uma utilização
original: parece que um dos seus princípios consiste no facto de as personagens
só dirigirem aos outros observações ou críticas que se poderiam aplicar a si
próprias, marcando assim uma lucidez paradoxal, porque inconsciente. Ruth
diz: «Não se pode ser íntimo com alguém sem ficar dependente» (2/11). E, no
mesmo episódio, Brenda, que dormira com dois estudantes, diz a Nathaniel:
«As pessoas cometem erros. Nem sempre sabem porquê. » Nathaniel pensa que
Brenda está a falar dele, mas o duplo sentido é flagrante para a telespetaleitura.
O produtor e os argumentistas de Sete Palmos de Terra fazem viver lado a lado
personagens que se ocupam sobretudo em controlar os seus próprios trajetos:
os diferentes processos narrativos utilizados compõem uma arte frágil da
representação de almas dilaceradas digna dos mestres Antonioni ou Dreyer.

4. O aprofundamento da personagem
A personagem das séries é, com frequência, contraditória: na maioria
dos casos, o seu comportamento é previsível, mas, por vezes, inesperad o. As
suas transformações, quando ocorrem, são geralmente surpreendentes. Os
acidentes de produção são uma das primeiras razões desses compor tamentos
sur preendentes: não há dúvida de que os projetos profissionais dos intér pretes
influenciam o futuro das suas personagens. As relações mutáveis entre diferentes
personagens, a posição subitamente mais impor tante que um dos atores e a
sua personagem adquire na ficção podem também influenciar a evolução da
narração. Por exemplo, na primeira série de A Balada de Nova Iorque, estava
previsto que o protagonista seria o detetive John Kelly, papel desempenhado
por David Caruso; mas, rapidamente, foi o detetive Sipowicz quem mais
se notabilizou e quem empurrou o parceiro para fora da série. Este tipo de
incidentes pode adquirir grandes proporções: para conservar e desenvolver
a personagem de Alan Shore, interpretada por James Spader, David Kelley
decide «suicidar» a série que até então estava a produzir, Causa justa, para
iniciar outra série que a continuaria, intitulada Boston Legal.
Contudo, não são estes incidentes brutais que formam o tecido principal da
pe�s�nagem. A �rin�ipal res��nsável pela sua constituição complexa é a escrita
,
mult1pla dos episodios das senes. Se analisarmos os genéricos dos 63 episódios
de S�te Pal": os1e Te;ra, descob�imos 11 autores, 8 dos quais escreveram mais
de cmco episódios. E claro que isto não significa que estes autores sejam aban­
donados a si próprios. Todos os testemunhos de autores e de produtores provam

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9. O PLENO, O ÍNTIMO

que as reuniões semanais das equipas de argumentistas dirigidas pelo produtor


executivo são decisivas para a redação final dos episódios. Por exemplo, Brannon
Braga, autor de numerosos episódios de séries decorrentes de O Caminho das
Estrelas e pro dutor executivo, afirma: «Tínhamos duas reuniões de produção
sobre cada argumento com todos os responsáveis, e discutíamos cada uma das
cenas - era muito fastidioso» (citado in Messenger Davies, 2007: p. 182). No
entanto, os diferentes autores não podem deixar de integrar as suas próprias
preocupações nos episódios que escrevem. Assim, não surpreende encontrar
novas temáticas introduzidas por um episódio, depois continuadas por outros,
que reforçam o percurso pessoal de uma personagem. Acrescentemos que a
direção da série também não é imóvel: um produtor executivo pode chegar
para uma nova temporada e infletir o destino da série e, por conseguinte, o
das personagens. Existem, portanto, muitas razões práticas que explicam o
desenvolvimento das personagens de ficção graças à produção de séries. A
dialética contínua entre o criador da série, os seus produtores executivos e
os seus argumentistas - o primeiro guardião de uma ordem que iniciou e os
segu ndos animados pelas figuras que essa ordem lhes pode inspirar - tem
como resultado desenvolvimentos frequentemente apaixonantes.
A situação da escrita serial explica as conclusões de Roberta Pearson (2007)
no seu artigo a propósito da personagem das séries. A autora começa por definir
as características de qualquer personagem de ficção: o comportamento habitual,
o físico, o registo de linguagem, · as interações com as outras personagens, o
ambiente e a biografia são as seis componentes que a autora lhe atribui (p. 43).
Não tem qualquer dificuldade em mostrar que uma personagem de série tem
grandes vantagens relativamente ao seu homólogo cinematográfico, pelo menos
quanto ao ambiente e às interações com os outros. Conclui que as séries de
longa duração podem criar personagens muito mais elaboradas do que todos
os outros tipos de ficção (p. 55). A única diferença é que as personagens de
séries têm, menos do que as outras, a capacidade de se transformarem em
profundidade, uma vez que a regularidade serial as obriga a mostrarem uma
estabilidade persistente. No entanto, também neste ponto, as séries têm ainda
créditos por explorar, ainda que o exemplo de CSI proposto por Pearson não
seja, neste sentido, conclusivo: A Balada de Nova Iorque ou Serviço de Urgência,
por exemplo, são séries marcadas por grandes transformações.
One Tree Hill é um drama adolescente tipicamente americano que obteve
grande sucesso em França (um paradoxo sobre o qual nos devíamos interrogar
de vez em quando). O seu criador e produtor, Mark Schwahn, desenvolveu
a série na cadeia por cabo WB de forma relativamente estranha. O ponto de
partida é claramente dramático e totalmente clássico: dois meios-irmãos, cujo
pai comu m só reconhece e se ocupa de um deles, acabam por se reunir através
do seu talento para o basquetebol. À sua volta, grav itam alguns rapazes e,
sobretudo, várias raparigas. O caminho parece traçado, que poderia evocar 0
�as tragédias clássicas, famílias desunidas, mães rejeitadas, ódios enraizados.
E claro que os esquemas narrativos da soap-opera são análogos aos da tr�gédia
grega (Dupont, 1990): sabemos também que as histórias familiares constituem

149
AS SÉRIES TELEVISIVAS

a estrutura da história da ficção. No entanto, não podemos ficar por estas


analogias sem nos enganarmos sobre a construção dos objetos e as r�ações
dos públicos. Tal como as outras soap-operas adolescentes, para ser explicada,
One Tree Hill deve ser situada no seu contexto social e cultural.
A primeira temporada da série conta com 23 episódios, de cerca de 40
minutos, centrados no mesmo grupo de personagens. O ritmo da realização é
lento, mas o da narração é muito rápido: os amores e os ódios ricocheteiam de
forma incessante uns nos outros. Só a trajetória da relação entre os dois irmãos
corresponde às expetativas e hábitos: de início mutuamente hostis e malevo­
lentes, aprendem a conhecer-se e a apreciar-se. O estereótipo narrativo parece
servir de medida a todas as surpresas reveladas pelo desenrolar da série. Em
primeiro lugar, a geração dos pais é mostrada como uma espécie de contraste:
cada um vive não exatamente em reclusão, mas confinado numa amargura e
num desespero crescentes. Parecem não ter qualquer saída, sejam quais forem
as suas eventuais tentativas. Os jovens só podem contar consigo próprios:
vão compreendendo isso aos poucos. Lucas, o irmão bastardo, inicialmente
descrito como o anjo da história, passa depois por todos os braços femininos
da série. O ambiente calmo e aprazível dá lugar a uma violência estonteante.
As personagens dos dois irmãos percorrem de forma acelerada as provas de
várias vidas: é certamente por isso que Mark Schwahn resolve iniciar a quinta
temporada com um salto temporal de vários anos em relação à anterior. Em
One Tree Hill, a evolução das personagens principais assemelha-se aos sonhos
de um adolescente: são-lhe apresentadas várias vidas, que ele percorre a toda
a velocidade e depois esquece, passando para outros sonhos e outras vidas.
Ao ver os irmãos Scott a deambularem de um salto narrativo para outro,
aborreci-me profundamente. Depois, ouvi vários jovens fãs (Esquenazi, inédito),
sobretudo raparigas, a falarem-me da série e das emoções que lhes provocava.
Depois de voltar a ver a série, comecei a perceber como os jovens interessados
se podiam sentir «afetados» pela série. A desloçação do olhar interpretativo
não é uma experiência tão frequente para que a possamos negligenciar. Acabei
por ser sensível à utilização pelos autores do salto narrativo como revelador de
falhas pessoais. Os criadores de séries «adolescentes» adquiriram agora grande
experiência; sabem adotar um ritmo estranhamente próximo das descobertas
sucessivas características desta idade. O seu frenesim mais não é do que uma
imagem da consciência baralhada dos públicos a que se destinam. Neste
sentido, One Tree Hill é um sucesso.
Regressemos a Sete Palmos de Terra para ilustrar a densidade das persona­
gens de séries com o exemplo de David Fisher (Michael C. Hall), filho mais
novo da família e verdadeiro sucessor do pai à cabeça da empresa funerária
familiar. O seu desenvolvimento intelectual e afetivo ao longo dos episódios,
longe de ser linear e, em todo o caso, nunca completamente dominado, é um
exemplo perfeito. David é homossexual, mas, no seio da família, é conhecido
como u� �orne� rigoroso, severo e até aborrecido: pelo menos é assim que o
veem O Jrmao mais velho, Nathaniel (Peter Krause), e a irmã mais nova, Claire
(Lauren Ambrose). Tal como a toda a família, a morte súbita do ai, chefe de
p

. 150
9. O PLENO, O ÍNTIMO

família e fundador da empresa, abala-o. O funeral abre uma brecha no muro


de silêncio que se erigira entre a sua vida sexual e a família: a irmã surpreende-o
com O amante Keith (Matthew St. Patrick), que veio com O seu uniforme de
polícia. Recebe a confissão da infidelidade da sua mãe e fica profundamente
chocado, ao contrário do irmão Nathaniel. Na primeira temporada, com 13
episódios de 50 minutos, David segue um caminho difícil, esforçando-se por
integrar as suas duas vidas.
No segu ndo episódio, encontra-se na presença da sua antiga noiva, que o
obriga a reafirmar diante da família que o casamento continua fora das suas
perspetivas, ainda que esconda a sua homossexualidade. Dois episódios depois,
David conversa longamente com Paco, um jovem morto numa rixa de bandos:
como vimos, o diálogo com os mortos faz parte do quotidiano dos Fisher.
Paco fica ao lado de David durante toda a cerimónia e este acaba por lhe pedir
conselho: Paco convida David a afirmar os seus direitos. Mesmo que, neste
caso, se trate da atitude que a Fisher & Sons deve adotar face às tentativas
de compra feitas pela concorrente Kroehner, esta sugestão e o seu resultado
feliz influenciam David na conduta da sua vida. Passa inicialmente por uma
série de fantasmas mais ou menos infantis que ilustram a sua nova força. É a
paróquia que beneficia com a sua audácia: tornado diácono, esforça-se para
que seja recrutado um sacerdote liberal. Contudo, não consegue assumir a
sua vida com Keith. Um incidente provoca um desentendimento entre os dois
homens: um automobilista que os vê juntos chama-lhes «maricas». Enquanto
David não liga, Keith reage brutalmente e quer que este o siga na sua afirmação
de si. Mas David continua com medo, o que sela a sua rutura com o polícia.
Segue-se um episódio entusiasmante e doloroso: detido por ter tido relações
com um prostituto e salvo de uma condenação pela intervenção de Keith,
David reflete na degradação a que a sua dissimulação o leva. A sua tomada de
posição corajosa contra a exigência de exclusão de um sacerdote homossexual
e a afirmação da sua própria sexualidade frente à paróquia reunida marcarão
uma viragem na sua reconciliação pessoal e constituirão o prelúdio para as
suas tentativas de reconquistar Keith.
Evocamos aqui apenas algumas das principais etapas da evolução de David
Fisher durante a primeira temporada de Sete Palmos de Terra. Devemos imaginar
que cada uma está inscrita num episódio e possui a sua própria homogeneidade.
Não se sucedem imediatamente: os seus ecos respetivos atravessam assim a
vida quotidia na da personagem, mudando-lhe o humor e modificando as suas
relações com os outros protagonistas, nomeadamente as mantidas com o irmão
Nathaniel. Além disso, são alimentadas pela evolução dos outros: assim, a mãe
Ruth (Frances Conroy) toma consciência da pobreza da sua vida passada e
tenta, na maioria das vezes desastradamente, mas francamente, compreender
a vida dos filhos . Por muito sucinto e insuficiente que seja o nosso resumo,
que diz respeito apenas à primeira temporada (de cinco) de Sete Palmos de
Terra, podemos ainda assim extrair algumas conclusões. Aquilo que a série
permite acentuar é a singularidade de uma personagem. Se é verdade que
cada autor de ficção deve propor personagens acessíveis à leitura e, portanto,

151

--
AS SÉRIES TELEVISIVAS

suficientemente tipificadas, utiliza depois todo o seu romance ou todo o seu


filme para a particularizar. Os criadores de séries dispõem não só de grande
número de horas de emissão, como também de uma difusão fragmentada,
estend ida por vários anos, que dá à telespetaleitura todo o tempo necessário
para compreender e aceitar as evoluções das personagens. As narrativas seriais
podem avançar, bifurcar-se, voltar atrás, saltar para a frente ou mudar de
direção quando os públicos já assimilaram alguns dos traços específicos que
caracterizam as suas personagens.
Como vimos, em Sete Palmos de Terra, a mistura dos níveis de realidade
permite a evolução das personagens. Fantasmas, sonhos e realidade são
apresentados de uma forma que lhes dá uma textura idêntica. A relação de
David com Paco, já aqui referida, é disso um bom exemplo. O diálogo entre
eles começa quando David procede ao embalsamamento do cadáver de Paco
no laboratório da empresa. A ação «real» e o diálogo «imaginário» são assim
misturados. Depois, ambos permanecem junto do caixão enquanto as duas
«famílias» de Paco se reúnem, a família consaguínea e os membros do bando
a que pertencia. Observam e comentam os conflitos que vão nascendo. David
reconhece-se em Paco, também ele dilacerado entre as suas duas identidades.
A sua empatia leva-o a seguir as sugestões de Paco, com as consequências de
que já falámos. A cena adquire ainda mais intensidade: o chefe do bando,
inicialmente ameaçador, está na origem de uma oração comovente que reúne
todos os próximos de Paco. Não sabemos se esta cena é um sonho de Paco
ou se é um desfecho imprevisto: a ambiguidade permanece, mas já não tem
importância. A intensidade da cena e a posição equívoca de David, que vê o
fantasma e os vivos no mesmo espaço concreto, materializam o seu dilema
pessoal e preparam-nos para a sua evolução. A revelação das contradições em
que cada um se debate torna-se o fulcro da série: «derrotas morais e fragilidades
funestas» (Heller, 2005: p. 75) são exibidas sem falso pudor, mas são sobretudo
partilhadas. A câmara nunca se afasta das personagens para as abandonar ou
simplesmente para as deixar sozinhas. Associamo-nos a fraquezas que são as
nossas e livres de qualquer condenação, de qualquer julgamento. A própria
música é cuidadosamente dedicada a este cortejo escrupulosa (Kaye, 2005).
Como se compreende, toda a realização tende a permitir a observação
da intimidade das personagens, algo que poucas ficções tornam possível. Os
acontecimentos, as suas repercussões sobre as suas vidas e sobre os seus sonhos
são associados e combinados para oferecerem uma visão em profundidade;
esta é também vista no fluxo dos movimentos e interrogações das outras
personagens. O telespetador observa cada uma delas e o seu mundo próprio,
bem como as tentativas de todos para fazerem coabitar esses mundos. Neste
jogo, a personagem é uma placa sensível que deriva ao tentar infletir a sua
própria trajetória: são as derivas minuci osamente avaliadas desta viagem que
testemunhamos. Percebe-se que este resumo incrivelmente conciso inspira os
autores reunidos por Kim Akass e Janet McCabe em torno da série. Joanna
di Mattia (2005) dedica um ensaio aos dois irmãos e observa que «o medo da
fraqueza de David é um efeito da reiteração dos papéis familiares» (p. 154). A

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9. O PLENO, O ÍNTIMO

crise familiar leva-o a um «gradual "coming-out" durante a primeira tempo­


rada», que se revela ser «um sintoma da sua viagem em direção a uma maior
abertura aos outros » (p. 155). A autora explic a que esta de s c o berta pro gressiva
se deve em grande pa rte ao facto de a família viver num espaço essencialmente
feminino: «O trabalho deles implica lidar c om pessoas num momento de crise
emociona l e de desgosto» (p. 157). Nesta travessia simultaneamente coletiva
e individual, é David quem acaba por se to rnar o · mais capaz de s er o chefe
de família, o mais capaz de reconstruir uma família pa ra a lé� da família
patriarcal destruída no início da série (p. 160).
O va lor simbólico que uma personagem de séries pode representar não
diz apenas r espeito ao público . O seu inté rprete pode ter cons ciência dele ao
ponto de adotar um c omportamento ditado pela personalidade im aginária
que de sempenha. Ed Asner, intérprete d a pers onagem de Lou G rant na
série homónima, quase acabou por se c onfundir c om o j or nalista liberal que
interpr e tava e le vou a série à sua perda. A série, produzi da nos a nos 1970 p or
Grant Tinker, descr e ve a e quipa de redação de um gra nde j ornal que re age a
todos os acontecimentos c ontempor âneos . Lou Grant é um êxito, e a figura
Asner
do jorna lista voluntario so e íntegro t orna-se extremame nte popula r.
em, o que não
co me ça a faz e r política utiliz ando a re putação da sua personag
a m a sé ri e e que exigem a sua i nterrupçã
o
a grad a aos patr o ci nado re s que apoi
o F urillo na esquadra
(Ker r, 1984). René Enriquez inter preta o pa pel do capitã
dos primeiros hisp ânicos a
descrita po r A Balada de Hill Street. É ta mbém um
r ie i�p or ta�t:. Tornado n��a
desempenhar um pa pel de autoridade nu�a sç Slo ­
e e obtem o di r�1to d� s�p ervl
es pécie de he rói para a sua c omunid ade, exig 1

no interior d a _sene (G1ttlm, 1994).


na r O comportamento da sua pe rsonagem �et e Ordem, Ben Stones,
l Mo ri ty, inté pre te do primeiro procurador d�
Micha e ar r
urador-geral
sã ent r Di ck Wo lf, c riad or d a sene , e O pro c
assiste a um a dis cus o e
199 0, le vava a cab o um a gran
de campanha
Reno, que, e m iní cio s do s a no s
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contra a violência te lev isiv r ar
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de igual para igual. D e p o is de so el e
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e dur a ria m � i�oº


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· dª ª po ssi bi
As séries me e recem am
po rta nte s qu an t o as personagens principais .
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e, d·isso um res e r va to
A Balada de Nova .1.orque s . I nter pretado
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rapida mente uma pers onagem
de ingenuidade in sere-se p eneeiºt ª
mente nu m a se
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omo qua se o
me.surados.
conteúdo com o no da. e1orma. Ta1 e at s sa� o s empre des r.
te nu m en to d e c u 1Pª · Os seus o
m b é m o m ais rrac o e
de um cons tan se
ua d ra, mas ta , . .
nt o a pa ssa r Pela esq l s s eu s d emonios.
Será o polícia mai vio le iar
. owi· cz, não e, capaz de si enc
s o

timorato. Ao contrári o d e S 1p
153
AS SÉRIES TELEVISIVAS

a sua passagem parece totalmente determinada por esta fatalidade. A Balada


de Nova Iorque compõe uma família cuja intensidade não teve igual, ainda
que os críticos e académicos americanos prefiram celebrar Os Sopranos como
uma série com «mais marca de autor».
Mais do que os outros, este capítulo parece-me insuficiente: só grandes
monografias poderiam dar conta, de forma mais exata, tanto da plenitude
dos mundos ficcionais como da delicadeza da apresentação do íntimo. Na
ausência desses estudos, para concluir, sou levado a invocar o testemunho
dos fãs. Já evocámos a observação de Elana Levine e de Lisa Parks (2002),
organizadoras de uma antologia de ensaios sobre Buffy- Caçadora de Vampiros.
Na introdução, afirmam que uma série como esta nunca morre. O fim da
produção não impede as repetições, a distribuição internacional, a venda dos
DVD ou as novas séries diretamente influenciadas pela original. Contudo,
esta presença física não é decisiva: para os fãs, as discussões sobre os episódios
nunca se acabam. Assim, concluem elas, «considerar que uma série televisiva
tem uma vida para além da morte ou vê-la como "não morta" não significa
confundir a televisão com a vida» (p. 5). Jonathan Gray (2005: pp. 125-126),
ao partilhar a vida de uma comunidade de estudantes, mostra que «a vida»
de Os Simpson faz parte da vida desses estudantes; estes mergulham nela com
deleite para a prolongarem ou a usarem a fim de interpretarem a sua própria
vida. Henri Jenkins (1992) propõe numerosos exemplos de apropriações de
universos ficcionais seriais que se tornam mundos possíveis imaginados e muito
vivos, a ponto de interferirem incessantemente com a vida real. Ao ver os fãs
como «biscateiros textuais» (p. 27), o autor escreve que os universos seriais
são apropriados ou possuídos pelos fãs através de três tipos de processos: o
primeiro consiste em atrair o universo ficcional para a realidade; o segundo
em multiplicar as leituras e as reinterpretações da série; o terceiro, por último,
em inseri-la na vida social por meio de diferentes tipos de troca. O diálogo
constitutivo específico da intimidade atinge dimensões pouco habituais: são
os mundos que se debatem, que se interpretam mutuamente, em busca de
novas identidades.

154
-;_- ... -

Quinta Parte

Séries e crítica
social
• Atualidade das séries

• Séries e tradição do carnaval


Capítulo 10

Atualidade das séries

1. Cultura popular norte-americana


e imaginários políticos .
As propriedades da difusão regular e domiciliária do espetáculo televi­
sivo representaram o princípio organizador deste trabalho. Guiaram a nossa
abordagem da diversidade narrativa e do enraizamento cultural das séries .
televisivas e, depois, das suas características e das suas especificidades. Até ao
momento, deixámos na sombra apenas as consequências de outro princípio da
difusão televisiva, o da atualidade. Trata-se sobretudo da parte informativa da
televisão, que se revela determinada pela paixão da atualidade: dela decorre,
por exemplo, a noção de direto. No entanto, a parte ficcional da televisão não
deixa de reagir aos constrangimentos exercidos pela atualidade: os problemas
e outros debates de sociedade são uma matéria-prima quase obrigatória das
séries televisivas. A reação dos produtores nem sempre é tão imediata quanto
se desejaria, ainda que uma das séries de que iremos falar neste capítulo, Lei
e Ordem, proponha um episódio, da temporada 2001-2002, que analisa as
consequências da política da «luta contra as forças do mal» preconizada pelo
presidente Bush (Esquenazi, 2009: pp. 177-181). A preocupação em interes­
sar explicitamente os públicos com problemas contemporâneos que estão no
centro das inquietações dos telespetadores esteve na origem de muitos projetos
seriais. Deste ponto de vista, a televisão prossegue uma longa tradição da cul­
tura popular norte-americana, que desde as suas origens foi um instrumento
essencial da expressão das ideias tanto de esquerda como de direita, como se
diz na Europa, ou tanto liberais como conservadoras, como se diz nos Estados
Unidos. Após o cinema, a banda desenhada, o romance de ficção científica, o
policial, etc., a televisão seguiu naturalmente esse caminho.
Para percebermos como as séries televisivas norte-americanas desem­
penharam naturalmente um papel social e cultural importante, temos de
transformar a nossa perspetiva francesa durante algum tempo. A divisão entre
uma arte verdadeira e uma produção comercial é-nos de tal forma familiar e
habitual que faz parte da própria ideia que temo� da nossa cultura nacio�al.
A missão cultural por excelência tal como defimda por Malraux no proJ eto

157
AS SÉRIES TELEVISIVAS

do primeiro ministério francês da Cultura é evocada por Philippe Urfalino


(2004: p. 16) no início do seu livro clássico: trata-se de «tornar acessíveis as
obras fundamentais da humanidade e principalmente da França ao maior
número possível de Franceses». Estas linhas orientam ainda as nossas conceções,
quer se trate de defender a exceção cultural francesa ou de discutir programas
do ensino secundário ou programas de televisão. A ideia de que uma série
televisiva possa ser um programa cultural não entra na cabeça de ninguém,
porque a nossa definição de cultura exclui que se possa simplesmente colocar
essa questão. Nas ideias de Malraux, não faltam os buracos negros. Urfalino
mostra claramente como, neste esquema, a ideia de sensibilidade se opõe à
de educação: a verdadeira cultura é aquilo que se «sente» e não aquilo que se
pode aprender. Mas, então, como se poderá mudar alguma coisa à apreensão
de quem «não sente?» O desprezo académico pelos que gostam da «falsa»
cultura encontra aqui o seu fundamento teórico. De resto, quem decide quais
são as «obras fundamentais da humanidade»? Esta questão e as suas respostas
possíveis atiram-nos para o poço sem fundo da ideia de aristocracia cultural
(Esquenazi, 2007: pp. 13-30). Ainda não chegou o dia em que será efetivamente
discutida a nossa conceção aristocrática da cultura. Pedirei apenas ao leitor
que se coloque numa perspetiva mais aberta para ler este capítulo.
Os historiadores norte-americanos estudaram profundamente tanto a
constituição do gosto popular pelo entretenimento e pela ficção (Rosenzweig,
1985; Fuller, 1996) como as relações da cultura americana com, por exemplo,
o desenvolvimento do cinema (Sklar, 1976; Belton, 1994; Jenkins, 1992)
ou da banda desenhada (Wright, 2001). Nas suas obras, o termo cultura é
compreendido num sentido antropológico: para eles, a cultura é aquilo que
constitui o laço de uma comunidade social. Evocarei algumas das suas con­
clusões. A primeira diz respeito ao interesse constante de toda a população
norte-americana pelo entretenimento, pelo espetáculo e pela literatura popular.
Roy Rosenzweig, por exemplo, mostra como desde as suas origens a classe
operária aprecia o entretenimento e as ficções: encherá os Nickelodeons logo
que estes abrem. Quase imediatamente, são construídos outros no centro da
cidade, e são as classes médias e superiores que se precipitam para o cinema.
As discussões apaixonadas relatadas por Janet Staiger (1992) em tor�o de lhe
Birth of a Nation e do debate parlamentar acerca de uma eventual censura
federal sobre o cinema relatado por Jacques Portes (1997), um dos melhores
historiadores franceses da cultura norte-americana, provam o interesse, por
vezes desconfiado, das elites pela ficção popular.
Outro ponto decisivo diz respeito à influência mútua dos diferentes domí­
nios: o do vaudeville sobre o cinema, do cinema sobre O romance e vice-versa,
o contributo das comédias, etc. Jonathan Gray (2005) sublinha fortemente
como o estudo das obras só pode ser intertextual. Os cruzamentos operam-se
de forma incessante, temas e géneros permutam-se e alimentam os vários meios
de c��unicaçá social. O cinema revela-se um grande recup
� erador, antes de a
telev1sao assumir a herança da ficção popular. Terce
iro traço constante: todos
os autores referem a alta consciência que os produtor
es têm do seu trabalho , que

158
10. ATUALIDADE DAS SÉRIES. 1
1
,i
sabem fazer parte da cultura nacional. A constituição do weste
rn e a evolução,
1
''
p o r exemplo, da obra de John Ford (McB ride, 2007) manifestam :/
a atenção li
à lenda norte-americana e à sua crítica. Bradford Wright mostra, de resto, [;
a '1
1
que p onto a política dos super-heróis, Super-homem ou Capitão América,
está ligada à do país. Quanto aos públicos, as suas tentativas recorrentes de
�nfl�enciarem os produto res culturais e a violência das suas reações por vezes
1nd1gnadas, outras vezes entusiásticas, revelam a convicção da sua atenção à
produção cultural. A etno grafia dos públicos explorou cuidadosamente esta
disposição e mostrou o quão enraizada está nos espíritos (Pustz, 1999).
Um autor francês, a quem devemos prestar forte homenagem, fez um
retrato admirável Da Cultura na América: Frédéric Manel (De la culture en
Amérique, 2006) expõe, por exemplo, a lógica complexa do financiamento da
cultura nos Estados Unidos, que envolve inúmeras instituições e organismos.
Descreve também a intensidade das «guerras culturais» que se desenrolam desde
1990 (pp. 221-286): os subsídios atribuídos pela instituição federal encarre­
gue da cultura a certas exposições, como a de fotografias de Mapplethorpe,
que mostram homossexuais que sofrem de SIDA (pp. 241-242, 266-267),
começam por suscitar essas guerras ao provocarem a ira da nova direita. Os
apoiantes desta direita querem «recuperar» a cultura a todo o custo, mas os
artistas e as associações organizam-se e a imprensa divide-se. Devemos lembrar
que a desconfiança relativamente aos subsídios estatais não é apanágio dos
conservadores. A tradição americana é a da fundação e do donativo: «Hoje,
os Americanos doam em média mais de 250 mil milhões de dólares por ano
às organizações sem fins lucrativos» (p. 307). As polémicas encontram então
um terreno extremamente favorável, como demonstra a que rodeia os inícios
.de A Balada de Nova Iorque já aqui referidos. A presidência Clinton, emblema
das culturas multirraciais e pluralistas, exacerba as tensões. Os atentados do 11
de setembro interrompem provisoriamente os debates, mas o extremismo da
nova direita no poder volta a deitar achas na fogueira e inflama os liberais: mais
atrás, citámos o extraordinário discurso de Alan Shore, personagem principal
da série Boston Legal, a propósito de Guantánamo. Recorde-se que o episódio
foi emitido durante a presidência Bush, e devíamos tentar imaginar uma série
francesa de «grande audiência» que falasse desta maneira, por exemplo, das
expulsões de estrangeiros ilegais pelo governo de Sarkozy para tomarmos
consciência da liberdade de expressão da cultura americana, comercial ou não.
Nos Estados Unidos, dado que uma produção é portadora de ideias,
valores e princípios americanos, é vista com seriedade e atenção, mesmo que
se destine inicialmente ao prazer. Não é de admirar que a representação que
propõe possa ser analisada sob o ângulo do seu rigor, da sua pertinência ou da
sua recetividade. Como vimos desde o início do nosso percurso, as séries não
são exceção à regra. Recordemos alguns dos nossos exemplos. Nos anos 1960,
a comunidade da ficção científica ergueu-se para defender a série O Caminho
das Estrelas, que corria o risco de ser anulada pela sua rede di�usora. Depois, a
que uma
série esteve na origem de outras séries, filmes, romances e fanzmes, em
a se inte,
imaginação geralmente liberal transborda de criatividade. Na décad gu

159
AS SÉRIES TELEVISIVAS

uma América conservadora desconfia das apresentações explícitas dos mais


':5
negros preconceitos contemporâ neos em Uma Família J?i�eitas e obriga a
rede a vigiar a sua produção. Dez anos dep ois, um ator hispamco d� -,:4 Balada
de Hill Street começa a considerar a sua personagem um mandatano da sua
comunidade. Algumas feministas interessadas em defender uma apresentação
realista dos problemas femininos encorajam os autores e a rede a prosseguirem
a exploração empreendida por Cagney & Lacey. Em inícios dos anos 1990,
alguns representantes oficiais da justiça ficam preocupados com a imagem
deles apresentada em Lei e Ordem e questionam os seus responsáveis, a ponto
de levarem à demissão de um dos atores. Representantes de uma organização
religiosa tentam interditar a difusão de A Balada de Nova Iorque, que outros
defendem de forma apaixonada. Atualmente, O Sexo e a Cidade e Donas de
Casa Desesperadas provocam debates e controvérsias sobre o devir do feminismo.
Poderíamos ter invocado outros exemplos, como o do crítico Jeff Greenfield,
que acusa Columbo de se basear no ódio de classe: o pequeno tenente mal
vestido persegue os seus ricos adversários por inveja. Ou o do episódio «The
Court Supreme» (emitido em abril de 2006) da série Boston Legal, no qual
Alan Shore discursa diante da mais alta instância americana; dirigindo-se aos
juízes, acusa-os de terem transformado o Supremo Tribunal, consagrado à
proteção dos direitos e das liberdades, num campeão da discriminação, um
protetor do governo, um criado do mundo dos negócios. A acusação é de
tal modo forte que os altos magistrados ficam impressionados: alguns deles
convidam David Kelley para discutirem com ele e para lhe darem um sermão.
Neste contexto, não é de admirar que os produtores de séries tendam
naturalmente a associar os seus produtos à atualidade social, política e eco­
nómica. O habitus americano não os predispõe a dissociarem vida política e
vida cultural, pelo contrário. Como veremos ao seguirmos dois fios diferentes,
o primeiro temático e o segundo estético, muitas foram as séries que apresen­
taram universos ficcionais que representaram contradições contemporâneas.
Em certos casos, enveredaram por desvios, como Miami Vice, série produzida
em meados dos anos 1980 pelo cineasta Michael Mann, na qual a guerra do
Vietname está metaforicamente presente. No outro lado do espetro, algumas
não recuaram face à provocação: as produções de Norman Lear, Steven
Bochco ou David Kelley são disso testemunhas, limitando-me aos criadores
de que falei. Tratando-se de qualquer produção cultural americana, esquecer
esta preocupação constante com a realidade contemporânea seria um grave
contrassenso. Iremos agora descrevê-la de forma pormenorizada a propósito
do universo serial.

2. As séries e o feminino
Um mundo é apresentado, no interior do qual os públicos encontram uma
representação dos seus próprios interesses, preocupações e interrogações: este
modo de apresentação é aquele através do qual a realidade é representada

160
10. ATUALIDADE DAS SÉRIES

pela ficção (Esquenazi, 2009: pp. 155-164). As séries televisivas, mais do que
outros géneros ficcionais, são levadas a apresentar os seus mundos ficcionais
como paráfrases da realidade: dependentes do médium televisivo, estão, com
efeito, condenadas a mostrar uma sensibilidade aguda em relação à vida con­
temporânea. Para ultrapassarem a concorrência e obterem sucesso, os difusores
exigem que estejam no centro da atualidade, que participem no gosto tele­
visivo pelo presente. Assim, não é de admirar que as ficções propostas pelas
séries sigam as mínimas modulações da realidade dos públicos. A temática
feminina não é a única que nelas aparece. A questão do exercício da justiça
é, evidentemente, uma temática constantemente explorada pelo cinema ou
pela televisão americana. Seria apaixonante descrever as suas manifestações
e evoluções, particularmente contemporâneas. No entanto, para esclarecer
aqui o diálogo estabelecido pelas séries americanas com a realidade, iremos 1!
descrever uma pequena história do feminismo serial, um tema talvez menos t
!!
frequentemente abordado.
Se compreendermos o feminismo como a tomada de consciência feminina
da situação culturalmente minoritária das mulheres, há duas maneiras possíveis
de descrever a sua história. Em primeiro lugar, há uma história do feminismo
explícito, conduzida por mulheres que· tomam partido no espaço público. Este
passa, por exemplo, em França por personalidades como Marguerite Durand,
que anima um jornal diário inteiramente escrito por mulheres entre 1897 e
1905 e que reivindica um «espaço de criatura livre na sociedade» (citado por
Bonvoisin e Magnien, 1986: p. 17). Esta história tem as suas heroínas, como
Simone de Beauvoir, que marcam uma época. O brilho das grandes figuras
eclipsa quase sempre o avanço, lento e sinuoso, de um «povo» feminino mais
subterrâneo e sem acesso ao universo da tomada de palavra pública. Alem disso,
parece que os dois mundos se ignoram ou têm dificuldade em se compreen­
der. Os malentendidos são frequentes: o feminismo público costuma criticar
ferozmente o mundo das lantejoulas, das estrelas e das indústrias culturais,
enquanto certos trabalhos sobre o mundo feminino lhe atribuem um benefício
feminista. Os grandes estudos realizados em finais dos anos 1950 mostram,
por exemplo, a associação entre desejo feminino de independência e fascínio
face a essas mulheres que parecem (sem dúvida erradamente) perfeitamente
independentes, as estrelas (Giroud, 1958; Chombart de Lauwe, 1964).
Neste âmbito, as interpretações divergem quando se trata de apreender o
papel da ficção popular no desenvolvimento de uma consciência feminina.
Lamenta-se a valorização pelo melodrama dos papéis femininos tradicionais; no
entanto, admite-se que o melodrama valorize as mulheres enquanto heroínas de
ficções em que as contradições femininas são patentes. Tania Modleski (1984)
ou ]anice Radway (1991) expuseram com clareza esta condição paradoxal do
melodrama, forma feminina e fonte de uma reflexão feminista. Os autores
da série L Word, dedicada a heroínas que, na sua maioria, são lésbicas, não
hesitaram em apresentar as suas personagens como provocadoras no interior
de uma forma melodramática tradicional. Não quero dizer aqui que as séries
desempenharam um papel decisivo no aparecimento de uma reflexão feminista,

161
AS SÉRIES TELEVISIVAS

mas sim obser var que souberam apresentar heroínas e situações capazes de
espelhar contradições em que as mulheres nor malmente se encontram.
A série I Love Lucy, emitida entre 1951 e 1957, foi certamente um dos
primeiros grandes êxitos da televisão americana. A sua protagonista é i nter­
pretada por Lucille Bali, vedeta do cinema habituada aos papéis de comédias.
Na série, com O marido Ricky, interpretado pelo seu verdadeiro marido Dezi
Arnaz, forma uma família bastante representativa das novas classes médias
americanas. Lucy desempenha O papel da pertu rbadora: as suas ações geral­
mente «loucas» ameaçam O bom funcionamento familiar calculado segundo
as normas sociais usuais. As suas tentativas de escapar àquilo que o marido e
a sociedade definem como o seu lugar no lar «tran sformam-se numa comédiá
que constitui o centro do espetáculo» (Marc, 1984: pp. 16-17). Lucille Ball não
hesita em utilizar os disfarces mais variados e menos esperados, que a colocam
muitas vezes em situações profissionais surpreendentes, para revelar os apetites
da sua personagem (Spigel, 1992: p. 154). A comédia desvela aspirações que
não são satisfeitas pela ficção (o final feliz vê sempre o regresso a casa da esposa
reconciliada), mas que continuam a ser a principal alavanca narrativa. São
também expostas ao olhar de um público popular que aprecia sem qualquer
dúvida essa personagem cheia de esperança e dinamismo. I Love Lucy representa,
ao lado da soap-opera, o outro grande modelo narrativo da representação das
heroínas femininas, o da comédia. Continuará a ser muito utilizado até aos
dias de hoje e também largamente desprezado pelos observadores.
Os anos 1960 não são muito propícios à exposição dos problemas relativos
aos costumes, à moral ou às desigualdades entre os sexos. A Guerra Fria, o
assassinato dos Kennedy e a guerra do Vietname ocupam os espíritos sem
ocuparem o pequeno ecrã. O momento é de mudança e de virilidade: os anos
1960 são dominados pelos westerns, como \Vagon train, Rawhide e Bonanza.
Só algumas séries fantasistas ou paródicas ( Casei com uma Feiticeira/Bewitched,
lhe Adams Family, Batman) fazem aparecer outras preocupações (Stempel,
1992: pp. 95-96). Contudo, os anos 1970 são mais abertos às inquietações e
às reivindicações. lhe Mary Tyler Moore Show mostra o exemplo, como conta
de forma precisa Serafina Bathrick (1984).
A série baseia-se na popularidade de Mary Tyler Moore, vedeta de uma
sitcom da década anterior, em que representava uma personagem semelhante à
de Lucille Bali. James Brooks e Alan Burns, promotores da ftura
u
série, querem
agora fazer dela uma mulher divorciada que trabalha numa estação de televisão
de Mineápolis. No entanto, a produção da CBS prefere que a personagem
de Mary Richards tenha vivido uma rutura difícil em vez de ser oficialmente
divorciada. A série tem então·como protagonista uma mulher que vive sozinha
e que trabalha. As si coms nunca haviam corrido o risco de apresentar mulheres
:
trabalhadoras: por isso, era preciso minimizar as provocações. Com efeito,
Mary Richards desempenha o papel de mediadora no interi
or da redação da
WJM-TV, cumprindo profissionalmente a tarefa tradi
cional reservada às mães
de famí i , a de con iliadora. Poder-se-ia aleg
�� � ar, como Bathrick (1984: p. 105),
_
que a sene mais nao faz do que deslocar e desenvolve
r a ideologia familiar

162
10. ATUALIDADE DAS SÉRIES

nos locais ele trabalho. Contudo, a modernidade dos temas abordados, como
a educação sexual (p. 117), bem como o retrato das relações de uma mulher .1
í
i
com homens numa situação profissional, faz da série uma testemunha da
mudança profunda nas mentalidades norte-americanas: entre 1950 e 1970,
o número de mulheres casadas trabalhadoras duplicou e a percentagem de
mulheres no mundo assalariado passou de 34 o/o para 43 %. O tema torna-se
natural: prova disso é o êxito da série junto dos públicos.
Ainda que de maneira menos concertada, há outra série que manifesta esta
transformação. Os Anjos de Charlie (Charlie's A ngels) é uma série glamorosa,
onde a beleza das atrizes é decisiva. São também detetives e prendem os vilões.
A ideia de deixar de confinar as mulheres aos papéis tradicionais e de as tornar
heroínas de uma série de ação estava no ar: é muito sintomático que a ideia
tenha tido origem na mente de um produtor como Aaron Spelling, cujo obje­
tivo não era certamente participar numa reflexão sobre a sociedade. Embora
os anjos de Charlie vençam normalmente ao seduzirem os seus adversários,
utilizam também armas mais viris. E abrem caminho a outras mulheres de
ação menos encantadoras. A década termina com uma série inicialmente pouco
apreciada: Dallas, hoje qualificada como série «essencialmente moderna», põe
em cena mulheres elegantes e ricas. Contudo, Pamela ou Sue Ellen não são
realmente felizes. No melhor dos casos atormentadas, no pior refugiadas no
álcool (Coward, 2006), comovem um largo público feminino, como mostra a
obra de len Ang (1991). As confissões de um público de mulheres holandesas
apaixonadas pelas mulheres de Dallas e por estas sensibilizadas designam uma
proximidade entre heroínas e públicos femininos, comovidos pelo seu «rea­
lismo emocional» (Ang, 1991, pp. 41-46). Os públicos femininos consideram
plausíveis e facilmente identificáveis os sentimentos vividos pelas personagens
face à incompreensão e à dureza masculinas.
A personagem de Joyce Davenport, interpretada por Verónica Hamel,
constitui uma autêntica viragem na história do feminino televisivo. Tanto
neste domínio como noutros, A Balada de Hill Street é uma série precursora.
Davenport, advogada que trabalha para o procurador da cidade, é retratada
«com uma força e uma profundidade atípicas em personagens femininas na
televisão contemporânea» (Thompson, 1996: p. 69). Contrariamente às mulhe­
res de Da/las ou de Os Anjos de Charlie, Davenport enfrenta frontalmente os
homens tanto na sua vida profissional como na sua vida sentimental. As suas
relações com o capitão Furillo, o seu parceiro amoroso e também seu colega,
são marcadas pela vontade de fazer respeitar as suas opiniões e desejos. Nem
todas as séries dos anos 1980 introduzem personagens femininas tão autên­
ticas: Miami Vice, por exemplo, que tem outras qualidades, continua presa
ao gancho do sexismo. Mas L.A. Law, herdeira direta de A Balada de Hill
Street, ou Modelo e Detetive (Moonlightning) apresentam também mulheres
complexas com personalidades originais. China Beach, uma das séries que faz
a ligação entre as duas décadas, celebra explicitamente a coragem e o ceticismo
das enfermeiras durante a guerra do Vietname. Segue-se uma visão da guerra
deliberadamente sombria. A série está repleta de «cadáveres ensanguentados,

!:
163
--.. ,
AS SÉRIES TELEVISIVAS

soldados enlameados e buracos infestados de ratos» (Thompson, 1996: P· 151),


numa narração original que mistura documentos e ficções.

Cagn,ey & Lacey, como já vimos, é um projeto dos anos 1970 que so enco
trou o seu lugar dez anos depois. O seu maior mérito é o de situar as suas
heroínas em três níveis diferentes e mostrar a sua difícil navegação entre esses
níveis. Temos, em primeiro lugar, 0 par de polícias formado pelas duas jovens.
Vemo-las na sua vida profissional, a lidarem com uma ordem social incerta, e
seguimos o fio das suas conversas, entre confidências, queixas e cumplicidades.
As suas relações com os colegas e chefes representam o segundo nível narrativo
da série: ambas têm de fazer respeitar o seu estatuto face a polícias vulgares.
Utilizam duas estratégias diferentes: Cagney (Loretta Swift e depois Sharon
Gless) é mais encantadora e Laney (Tyne Daly) mais impertinente. No terceiro
nível, aparecem na sua vida privada, familiar ou celibatária. Esta organização
narrativa permite que a série aborde temas variados, situando-se também em
planos distintos, desde a extrema dificuldade em fazer aceitar a autoridade na
rua até à doença e às dificuldades do par. Julie D'Acci (1994: p. 57) recorda,
por exemplo, o episódio «The Clinic» (5/6), em que uma explosão numa crítica
que pratica abortos conduz a numerosas discussões entre as duas mulheres e
ao seu apoio a uma jovem, que, apesar da solidão e da pobreza, decide ficar
com o filho. Compreende-se o interesse de um largo público por esta forma
honesta de colocar questões.
A década iniciada com A Balada de Hill Street apresenta mulheres entre
homens e que reivindicam o seu lugar em diferentes tipos de universos. Os
anos 1990 vão mais longe, desde logo ao mostrarem mulheres que sofrem
de males reservados aos homens. A Balada de Nova Iorque apresenta uma
mulher polícia corrupta e uma detetive alcoólica. A mulher do Dr. Carter, em
Serviço de Urgência, deixa-o por ambição profissional. Algumas personagens
masculinas homossexuais estão presentes em certas séries: a homossexualidade
feminina é francamente abordada, incluindo nas séries «universitárias» como
Friends. Com a personagem de Ally McBeal, David Kelley inverte o esquema
habitual: a série retrata uma mulher impedida de viver a sua vida amorosa por
causa da sua carreira profissional.
Nada simboliza melhor a nova liberdade assumida pelos criadores de
séries e autorizada pelo contexto económico contemporâneo do que a per­
sonagem de Buffy, a caçadora de vampiros. Já falámos desta série criada por
Joss Whedon a propósito do princípio da mistura de géneros. Mas esta não
é a única originalidade da série. Para interpretar a sua heroína, Whedon
escolhe uma jovem magra, franzina e loura (Sarah Michelle Gellar), a priori
mais apta para representar uma princesa do que uma temível combatente. A
adolescente abate, episódio após episódio, todos os monstros atrozes e temíveis
que lhe aparecem à frente. Cada um destes monstros constitui a representa­
ção de uma masculinidade obsessiva (incluindo as suas adversárias fêmeas),
o q�e faz da �é�ie �m belo catálogo caricatural de machistas pomposos. O
_
femm1smo re1vmd1cado por Whedon para a série pode também ser visto no
posicionamento contraditório da personagem de Buffy. Com mostra Elana
o

164
----·--- -- - --------- ---

J�
10. ATUALIDADE DAS SÉRIES

Levine (2007: pp. 170-172), é muito representativa do «pós-feminismo» dos 1.


anos 1990, em que se tornou mais importante ser uma mulher forte do que i-
uma mulher feminista, e em que a identidade feminina é concebida como
múltipla e complexa. No entanto, não é apenas Buffy quem vive o jogo duplo
da série. A única personagem que aparece como um possível alter ego da
heroína é Angel (David Boreanaz): vampiro, mas não só, pois está dividido
entre as forças do bem e as forças do mal. Até à sua queda, está apaixonado
por Buffy. Num texto sugestivo, Allison McCracken (2007) mostra como a
apresentação de cada personagem se opõe de forma surpreendente: o corpo
de Boreanaz é valorizado e erotizado, enquanto o de Gellar, pel_o contrário,
é filmado de forma mais pudica. Assim, «[Angel] inverte a espetacularização
habitual do corpo feminino ao funcionar rapidamente como o homem fatal
de Buffy» (p. 120). Chega até a ser vítima de uma cena de tortura (2/10), que
lhe expõe o corpo para satisfazer o sadismo de Drusilla, uma sedutora vam­
pira. O homem efeminado faz parte do estado de espírito feminista da série.
A época atual é marcada por uma explosão das identidades se�uais. Já falá­
mos da ambição descritiva da sexualidade feminina em O Sexo e a Cidade ou
da enciclopédia do desespero das Donas de Casa Desesperadas, bem como dos
esforços de reconstrução de famílias não paternalistas em Sete Palmos de Terra.
Poderíamos acrescentar o declínio masculino em Nip/Tuck ou a decadência do
polícia defensor dos oprimidos em O Protetor. As mulheres frágeis são agora
raras: até a doutora Cameron em Dr. House, inicialmente enternecedora, se
afirma enérgica e decidida ao longo dos episódios e das temporadas. ./

Das séries recentes, a personagem feminina mais original e mais engraçada


é, talvez, Brenda Leigh Johnson (Kyra Sedwick), a heroína de 1he Closer.
Produzida pela rede de cabo TNT, a série utiliza uma forma clássica da
narrativa policial, o whodunit: vários suspeitos para o crime e uma revelação
tardia. A intriga policial constitui a base do verdadeiro interesse da série: o
confronto da chefe Johnson com chefes e subordinados. A atitude de uma
mulher responsável num meio profissional masculino é geralmente retra­
tada de uma forma tristemente imóvel: a personagem desdenha a virilidade
ambiente para se impor aos colegas masculinos (as séries· da TFl fazem disto
uma especialidade). Mas Johnson reúne todos os estereótipos da personagem
feminina de comédia. Inevitavelmente desastrada, terrivelmente desregrada,
excessivamente encantadora, manobra como fazia Katharine Hepburn em As
Duas Feras (Bringing Up Baby) ou Claudette Colbert em Uma Noite Aconteceu
(It Happened One Night), duas comédias dos anos 1930. Mas a chefe Johnson
nunca cede sobre a sua autoridade e sabe pôr no lugar os homens que a rodeiam
de uma maneira perfeitamente eficaz. Convidada a pedir desculpas pela sua
forma franca de falar, aceita fazê-lo para conservar o seu cargo e depois volta
atrás e diz o que pensa aos responsáveis que a rodeiam. Esta personagem
mais feminina do que natural mostra, porém, uma autoridade e um domínio
profissionais impressionantes. É o fim do mito do patrão rabugento e duro,
mas justo e eficaz: a chefe Johnson e a sua intérprete constituem uma troça
festiva das variadas formas de masculinidades «viris». Assume os estereótipos

165
AS SÉRIES TELEVISIVAS

naturalidade p erfeita
atribu ídos aos comportamentos femininos com uma
crescentemos que ela
e volta-os com elegância contra os seus depositários. A
Hol�es: Tal com� o
pertence à rica linhagem dos descendentes de Sherlo ck
on e uma obsessiva
Dr. House (ou Monk, num estilo menos ambicioso), Johns
esol er os crimes
dependente de uma droga (aqui, o chocolate), capaz de r :
uff perm ite p erceber a
mais difíceis. O registo paródico da série de James D
posteriori a feminilidade do herói de Conan Doyle .
como
As séries americanas (poderíamos juntar-lhes várias séries britânicas,
Silent W'itness, com Amanda Burton) souberam apresentar regularmente, desde
1950, problemáticas e personagens femininas contemporâneas. Podiam parecer
simplesmente seguidoras; fala-se delas, elas falam disso. A infelicidade das
mulheres é amplamente descrita por Be tty Friedman e outros nos anos 1960.
Dalias chega muito mais tarde . No entanto, é atrav és de um meio concreto
e direto que a mensagem chega efetivamente a uma população importante.
Desde há algum tempo que parece que as séries adquiriram outra dimensão ao
participarem na reflexão sobre os problemas femininos, expondo- os, gozando
com os homens (sobretudo), com as mulheres e as suas relações. A acuidade do
ponto de vista televisivo, que é constitutivamente levado à renovação, parece
mais do que nunca ajustar-se perfeitamente à reflexão contemporânea: enquanto
as feministas se reviam em Cagney & Lacey, hoje discutem apaixonadame nte
a exemplaridade eventual de Buffy, de Ally McBeal, de Carrie Brashaw, de
Bree Van de Kamp, etc., todas elas protagonistas de séries. A «realidade» destas
personagens· parece de tal forma convincente que pode servir de modelo ou
de contramodelo à nossa «verdadeira» realidade.

3. Realismos seriais
A maneira mais segura de ser «autêntico» no domínio audiovisual consistiu
sempre em eliminar o mais claramente possível o espetáculo e O espetacular.
_
O ne orre alismo italiano do pós-guerra, por exemplo, rejeitou o estúdio, o
ator profissional, suspeito de «representar em excesso», e todos os efeitos de
câ�ara que não serviam a ação: a produção «invisível» é essencial a qualquer
realt�mo. A c?nsequên�ia desta invisibilida de seria a maior aproximação
posstv�l do u�1;erso ficcional a um mundo real. Evidentemente, há aqui uma
ar�adi�ha te o:tc�: nada ver d produção não significa ausência de produção.

Alem disso, nao e por um universo ficcional se assemelhar a um mun o rea 1
, . d
que o publico dele se apropria e o interpreta c omo proximo
. ,. . ' · daqui·1o que
considera real ou autent1co. No entanto, a e'tiº ca do rea 1·
, . , . ismo de fi m·da pe1o
cnt1co Andre Bazm (1975: pp. 48-61) e caracteri'za da
. pela o b ngaçao
· ,., moral
d o re alizador de escolher sempre na sua apresenta .
, . . ,., ,., aqui1o que esta, mais
çao .
prox1mo da situaçao real, guiou muitos cineas r , raros
, . tas, rotog r e, como vere-
mos, pro dutores de sen es. Apesar de diferentes (nao
. ,., se escapa ao paradoxo
. ) , as suas obras são geralmente reco
rea11sta ,., . , .
nhec1"das como versoes ace1tave1s
de realidades partilhadas.

166

--
1 O. ATUALIDADE DAS SÉRIES

A tradição mais antiga do realismo serial é britânica. No domínio poli­


cial, uma série como Ihe Sweeney,
rodada no exterior entre 1975 e 1978, é
disso exemplo. Atualmente, a notável e muito dura série ln Deep prossegue
a tradição. No entanto, de acordo com os objetivos deste trabalho, falarei
antes de algumas séries americanas recentes mais acessíveis. Nomeadamente,
várias séries produzidas pela HBO demonstraram grande talento no domínio
do realismo. Este enraíza-se geralmente num gosto pronunciado pelo docu­
mentário. Em inícios dos anos 1980, a cadeia por cabo que começa então a
produzir programas contrata Sheila Nevins para dirigir a produção dos seus
documentários (Mascaro, 2008: pp. 240-243). Esta trabalhou com Richard
Leacock e os irmãos Maysles, promotores americanos do «cinema direto»
nos anos 1960. Sheila Nevins impulsiona várias séries documentais, como
Frontlines, que se destacam pela liberdade de tom e pela abordagem direta.
Uma década depois, quando a HBO se lança na produção de ficção, a cadeia
recebe favoravelmente vários projetos ficcionais realistas e, por isso, filmados
num estilo próximo dos documentários caseiros.
O primeiro deles é Oz, projeto sobre a vida nas prisões. O seu criador,
Tom Fontana, argumentista de St. Elsewhere e produtor de Departamento de
Homicídios (Homicide, Life on the Street), utiliza armazéns nova-iorquinos para
construir o seu cenário e para instalar a administração da série (Malach, 2008:
p. 55). Esta concentração confere à série a sua atmosfera fechada e opressiva.
Fontana retrata lutas de clãs no interior da prisão e as disputas entre mafiosos
italianos, muçulmanos ou neonazis. A câmara mostra tudo ou quase tudo,
sem nunca recuar, numa luz transparente, a fim de servir a vontade realista
do autor. A presença de um narrador, um dos reclusos, abre uma brecha
na representação naturalista da narrativa: Augustus Hill aparece acima da
confusão no início e no fim dos episódios para se dirigir a nós e retirar uma
lição daquilo que acontece. Esta passagem aumenta a carga pedagógica de
uma ficção de tom sério.
Tony Fontana e Barry Levinson haviam produzido a série Departamento
de Homicídios, inspirada na longa descrição do jornalista David Simon, que
passara um ano a seguir os inspetores de uma esquadra da cidade. Embora
Departamento de Homicídios tenha adotado um estilo visual elegante e tipifi­
cado, o projeto da série continuava assente nas conversas registadas por Simon
e reconstituídas pelos diálogos da série. Alguns anos depois, parcialmente
insatisfeito com a realização, Simon propõe outro projeto sobre inspetores de
Baltimore: esta será Sob Escuta (The Wire), série produzida pela HBO. Simon
constrói, temporada após temporada, um retrato surpreendente dos problemas
de uma cidade com uma população largamente afro-americana e pobre. Cada
temporada possui a sua própria problemática e os seus próprios protagonistas.
A primeira sequência do primeiro epis?dio dá o tom da real�z�çáo. Rastos de
sangue são iluminados pelas luzes azuis de um carro da policia. Um homem
está morto, estendido no passeio. Dois homens estão sentados nos degraus
de uma casa em frente. Falam do morto: primeiro, da injustiça da sua alcu­
nha («o ranhoso»), depois falam dos seus hábitos estranhos que o levavam a

167
AS SÉRIES TELEVISIVAS

homens sabe que� é


ser regularmente espancado. Percebemos que um dos
, ce t mente �ohc1a,
o homicida, mas diz não querer testemunhar. O outro _ � � ,
hta da v1tima . A
continua a falar-lhe no tom da conversa sobre a alcunha mso
plan�s �édios.
câmara capta-os de lado em planos cur tos, grandes plan os ou
A sequência dura mais de dois minutos. Em Sob Escuta,,� na �
rra ao e lenta,
aria� lugar a
repleta de conversas estranhas em situações_ que, noutras senes, �
o
cenas de ação �iolentas. Todas as personagens beneficiam deste ntm mdolente
para revelarem facetas múltiplas e complexas. A primeira temporada é dedicada
à destr uição dara de um bando. D'Angelo Baksdale, jovem que beneficia de
uma posição importante no bando, revela-se desagradado com a violência do
seu tio, chefe do bando, e irá traí-lo. A equipa organizada de polícias bons e
muito maus segue uma curva acidentada, em que as más notícias são nume­
rosas e as boas muito raras. A escrita audiovisual da série, falsa mente plana,
discreta, encerra todos numa espécie de solilóquio. As sequências sucedem-se
sem laços aparentes que não a sua simultaneidade. Observamos as atividades
dos diferentes atores; as relações que estabelecem entre si são pormenorizadas. A
desconfiança domina sempre. O isolamento e a solidão n ão são opressivos, mas
apenas um dado evidente aceite por cada personagem. A unanimidade crítica
de que a série beneficia nos Estados Unidos louva particularmen te o carácter
perturbador da descrição de uma cidade onde a criminalidade parece natural.
Tanto Oz como Sob Escuta mereciam longos estudos, que certamente sur­
girão um dia e talvez deem uma audiência decente a estas séries. Lei e Ordem,
em contrapartida, já conquistou um vasto público francês, ainda que a sua
difusão pareça paradoxal: é emitida (verão de 2009) por várias cadeias populares
(TFI, TMC, TF6, 13e Rue, que faz dela uma espécie de emblema), ao mesmo
tempo que é o símbolo da programação «de qualidade» e faz a unanimidade na
intelligentsia nos Estados Unidos. No entanto, também neste país, é emitida
numa cadeia popular (NBC) desde há quase 20 anos. Já falámos da grande
organização narrativa da série e das suas temáticas delicadas. Vimos a sua
simplicidade narrativa, que tem a ver com uma fórmula límpida, e também
a sua complexidade, que resulta das suas ambições temáticas e pedagógicas:
o funcionamento judiciário do país é esmiuçado parte por parte, episódio
após episódio. Descrevemos também a obstinação de Dick Wolf em impor
um estilo audiovisual destinado em todos os seus aspetos a colocar o acento
tónico no realismo da narrativa. Queremos agora sublin har o modo de escrita
de episódios sistematicamente baseado na adaptação de casos reais.
Todo o trabalho de Dick Wolf tem a ver com o que somos em sociedade, e
Lei e Ordem ataca diretamente a ideia e a prática do «nós», como diria Norbert
Elias (1991), o� sej a, a representação que devemos partilhar e que define os
_
modos ?e ex1stenc1a de �a�a um no seio do coletivo. Este princípio determina
a maneua de adaptar vanos casos para a série. Kevin Dwyer e Juré Fiorillo
(2006) re�n�ram 25 desses casos, todos adaptados por diferentes argu mentis­
1

tas da séne: e destes qu� extr�1mos o nosso primeiro exemplo (12/1). Em Los
Angeles, um casal de simpatizantes neonazis acei'ta guardar em casa um par
.
de enormes p1tbulls. Os cães aterrorizam uma J·ovem v1zm · · ha, que se queixa ao

168
10. ATUALIDADE DAS SÉRIES

porteiro. Certo dia, os cães fogem e reduzem a farrapos a jovem que regressava
do trabalho. Nas entrevistas, os neonazis afirmam que a vítima provocava os
cães. São levados a tribunal e condenados a quatro anos de prisão. Examine­
mos agora como trabalham Wolf e a sua equipa, neste caso, os argumentistas
Kathy McCormick e Douglas Stark, bem como o produtor executivo Barry
Schindel, para adaptarem este caso no primeiro episódio da segunda tempo­
rada, intitulado «Who Let the Dogs Out?». Em primeiro lugar, transformam
os neonazis em burgueses respeitáveis - um deles é até advogado. Não é
necessário que o episódio se centre na nossa aversão em relação aos neonazis,
mas sim no tema principal, que é o da responsabilidade dos proprietários de
cães. Dão-lhes também um motivo: os cães são criados para participarem em
combates de animais. O próprio crime é situado no Central Park: a pessoa
morta é uma mulher que praticava jogging. Em seguida, introduzem desde o
início do episódio o debate sobre as obrigações dos proprietários de animais:
um dos investigadores gosta dos cães e defende várias vezes a ideia de que tudo
não passa de um acidente. O debate será continuado de forma mais técnica no
seio da equipa de procuradores a fim de definirem o grau de responsabilidade:
será que se trata de um homicídio por negligência, um homicídio involuntário?
Desde a investigação judicial até à audiência pública, torna-se evidente que a
questão a que os jurados devem responder é a seguinte: teriam os proprietários
consciência ou não do perigo representado por esses cães? Para responderem,
têm de enfrentar com os advogados a questão mais geral: «Que responsabi­
lidade se tem sobre outrem quando temos em casa uma arma, seja qual for
a forma dessa arma?» O procurador acaba por provar que os proprietários
nada podiam ignorar e conseguir a condenação (ficcional) dos réus. Como
se percebe, a adaptação visa eliminar aquilo que poderia parecer demasiado
singular no caso e suscetível de lhe anular a exemplaridade. Realizada esta
eliminação, os argumentistas esforçam-se por levantar o problema social e a
sua tradução judiciária, as suas dificuldades e ambiguidades; tomam o cui­
dado de apresentar as diferentes possibilidades e interpretações, bem como
de defender diferentes pontos de vista. Deste modo, é alcançado outro nível
de generalidade, o do tratamento de tais crimes.
Vemos que o termo «realismo» não é suficiente para compreender a relação
de Lei e Ordem com a realidade contemporânea. A série não apresenta ou
não se limita a apresentar um caso de polícia no qual se inspira para propor
uma situação ficcional análoga: o universo ficcional não é apenas uma repre­
sentação de um universo real. Com efeito, o caso de polícia é transformado
a fim de ganhar em generalidade. Por analogia com os hábitos da imprensa
diária, poder-se-ia dizer que passa da rubrica «casos de polícia» para a rubrica
«sociedade»: é tratado desde o início como uma exemplificação de situações
muito mais gerais. A imprensa reúne casos que se assemelham àquele tomado
como ponto de partida para apontar a recorrência de um problema social.
Lei e Ordem tem uma ambição ainda maior; os argumentistas começam por
construir um caso particular capaz de isolar cada uma das dificuldades sociais e
jurídicas que querem tratar. Assim, beneficiam da carga emocional do singular

169
AS SÉRIES TELEVISIVAS

· arem. Em seguida'
e po dem Jogar com a sua exemplan·dade para O generaliz . , .
e pisod10 a proble-
tem o cmdado extremo de apresentar, desde o 1'nício do
A •

' · · · · · licial para colocarem


matica social inerente ao crime: aproveitam o quad ro po , .
' º " · · s policias sobre
a distancia o smgu 1ar atraves' das d'iscusso"es real1'zadas pelo
vog�dos segu e
as suas interpretações respetivas do crime. O trabalho d�s a�
este caminho, clarificando-o: os da defesa ao darem u ma JUSnficaçao ou uma
desculpa, os da acusação ao clarificarem a noção da justiça q ue defendem. No
nosso exemplo, a questão «que representa a posse de um cão q ue se sab� que
d
pode ferir ou matar?» é progressivamente decifrada, compara a e exammada
sob todas as suas perspetivas; depois, é discutida a atitud e da sociedade face
àqueles que ultrapassam os limites. Uma diversidade incrível de questões é
abordada pelos 433 episódios de Lei e Ordem emitidos até hoje. O impacto
do dinheiro sobre a justiça, a corrupção policial, o racismo, a memória das
guerras asiáticas foram temas abordados numerosas ve zes, sempre postos de
maneira diferente.
Num episódio (12/24), que, de resto, descrevemos de forma mais porme no­
rizada noutra obra (Esquenazi, 2009: pp. 177-181), emitido em maio de 2002
e inspirado em várias agressões contra muçulmanos após os acontecimentos
do de setembro, a série trata da alternativa face à qual o país se encontra.
11
Um homem mata um emigrante árabe, sobre quem tem boas razões para
suspeitar de que pode ser um terrorista: o procurador McCoy apresenta o
dilema: «Não sejamos a primeira geração a sucumbir ao medo. A forma como
reagirmos face ao terrorismo definirá quem somos na realidade [... ] Até onde
i remos no sacrifício dos nossos valores para lutar contra o terrorismo?» Um
dos episódios mais comoventes (14/11) apresenta o crime de um sem-abrigo
reduzido a uma vida animal após ter perdido a mulher, os filhos e o emprego.
Numa miséria absoluta, luta contra outro sem-abrigo que recusava partilhar
um pedaço de pão. Mas será que a sociedade pode pedir contas àquele que
ela conduziu à miséria absoluta?
Os autores da série têm agora plena confiança no seu instrumento. Utilizam­
-no em temas diretamente ligados tanto às suas como às nossas preocupaçõ
e s.
Sabem que p�d� atrair públicos consideráveis, prontos a acom
. � panhá-los
quando a h1�tona e capaz de captar as nossas pre ocupaçõ e
_ s e esperanças. O
modelo ficc10nal senal adapta-se admiravelmente a
qualquer tentativa de
aprofundame�to: o seu �ltro traveste as nossas reali
dades para poder vê-las
de outra mane!r�, de mais longe, mas talve z mais e
ficazmente do que através
do �o�ui:ne ntano ?este ponto de vista, estes
.' autore s inscrevem-se numa
ant1qmss1ma trad1çao
. popular, com a qual termi'naremos a nossa
viagem.

170
Capítulo 11

Séries e tradição
do carnaval

No momento de concluir esta obra, impõe-se uma conclusão: fizemos como


se uma série fosse um objeto bem definido pelas suas fronteiras e pela sua uni­
dade. Caracterizámos as propriedades desta ou daquela série tendo em conta
a abordagem privilegiada no capítulo. No entanto, as séries são enunciados
particularmente instáveis. Como Bakhtine (1977: pp. 25-30) mostrou, cada
enunciado, conversa ou discurso, poema ou editorial, só adquire sentido no
contexto de uma rede social e simbólica particular: assim, muda de sentido
quando passa de uma rede para outra. O enunciado-série é particularmente
dependente destas transformações. Em primeiro lugar, o seu comprimento e
a complexidade narrativa dele decorrente abrem incessantemente pistas novas,
que a produção, ela própria marcada por mudanças frequentes de orientação,
poderá ou não aprofundar; depois, as suas difusões numerosas e diversas
situam-na sucessiva ou simultaneamente no interior de contextos sociais muito
diferentes, que lhe propõem interpretações variadas. A experiência realizada
(num curso de mestrado em ciências da comunicação) por uma estudante
genebrense, que consistia em questionar separadamente homens e mulheres
que vivem juntos a propósito das suas interpretações respetivas de Donas de
Casa Desesperadas, é perfeitamente esclarecedora acerca deste ponto: parece
que estas pessoas partilham o mesmo universo, mas não viram a mesma série.
Dado que este livro é uma introdução, devemos confessar que «esquecemos»
a densidade semântica das séries e recorremos a certas estratégias para não
sobrecarregar a leitura desta obra dedicada a objetos mal conhecidos: leitores
habituados a verem filmes ou livros como obras únicas pensam espontaneamente
que uma série pode ser perfeitamente delimitada enquanto texto singular. Este
princípio levou a algumas aproximações: por exemplo, optámos por descrever
essencialmente os primeiros episódios das várias séries, omitindo assinalar
� maioria das variações das temporadas seguintes. Também não insistimos
nas saídas e entradas de personagens, nas mudanças de responsabilidade na
produção, nem nas transformações exigidas pelas cadeias ou pelos públicos,
todos eles motivos de eventuais evoluções.
Neste último capítulo, porém, tentaremos respeitar mais o desenvolvimento
serial abrindo perspetivas, talvez, pouco habituais. Se cada série pode ser vista

171
AS SÉRIES TELEVISIVAS

como um conjunto de narrativas que possuem forte coerência, o domínio


serial é marcado por mudanças contínuas: quer analisemos as séries de forma
separada ou global, temos de verificar como os fenómenos de intertextualidade
são nelas dominantes. Não param de repetir e, por vezes, contradizer em
novos episódios aquilo que foi anteriormente dito; não param de se citar ou
de se influenciar mutuamente, de partilhar episódios (os famosos cross-over),
personagens Oohn Munch, que passa de Departamento de Homicídios para Lei e
Ordem), atores (William Shatner, de O Caminho das Estrelas para Boston Legal)
e inspirações. Também não hesitam em incorporar personagens de romances
ou efeitos cinematográficos: assinalámos a influência de Conan Doyle sobre
as séries contemporâneas, bem como a influência do cinema europeu dos anos
1960 sobre as séries dos anos 1990. Robert Thompson (1996: p. 82) observa
que St. Elsewhere exibe sem discrição a sua florescente intertextualidade, as
suas autorreferências, as suas alusões a outros entretenimentos populares
contemporâneos ou as suas paródias do cinema de Godard. A abordámos
esta vitalidade, sem a nomear, ao descrever as brincadeiras de David Kelley
em Ally McBeal ou em Boston Legal, ou ao falar do comentário do género do
melodrama proposto por algumas séries contemporâneas. Dever-se-ia analisar
as variações da personagem de Sipowicz sempre que muda de parceiro em A
Balada de Nova Iorque, as numerosas referências das séries às suas próprias
construções (Seinfeld, Modelo e Detetive) ou as alusões e referências que os
autores de Perdidos se comprazem em introduzir na sua narração. Nesta eferves­
cência, devemos também incluir a atualidade, reservatório de acontecimentos,
de personagens e de problemáticas que as séries se apressam a ficcionar. Lei
e Ordem deu-nos disto muitos exemplos; teria o mesmo resultado se, neste
sentido, considerássemos Os Homens do Presidente ( West Wtng) ou Lou Grant.
Deste ponto de vista, as séries inscrevem-se na mais antiga das tradições
da arte popular, o carnaval. Este facto foi assinalado por muitos analistas a
propósito de séries tão diversas como Dinastia (Feuer, 1995: pp. 134-135), Sete
Palmos de Terra (Merck, 2005: pp. 60-62) ou Buffy- Caçadora de Vampiros
(Middleton, 2007: pp. 146-148). A análise de Mikhail Bakhtine (1970) é aqui
preciosa, uma vez que nos permite compreender o fundamento social e político
do carnaval: «As brincadeiras de carnaval, com os atos ou ritos cómicos que
a ele se ligam, tinham uma importância enorme na vida do homem da Idade
Média» (pp. 12-13). Chegado a esta conclusão, o autor avalia a importância
do carnaval pela sua frequência. Observa que todas as festas sérias, religiosas
ou civis, eram de alguma maneira duplicadas: à festa oficial juntavam-se «ritos
e espetáculos organizados no modo cómico» (p. 13). Estas repetições nunca
eram insignificantes: «Dão uma imagem do mundo, do homem e das rela­
ções humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficiais, exteriores
à Igreja e ao Estado; pareciam ter edificado, ao lado do mundo oficial, um
"segundo mundo" e uma segunda vida na qual todos os homens da Idade
Média estavam misturados» (p. 13). O autor mostra também que não se trata
de uma criação da Idade Média, que já existem tradições carnavalescas, por
exemplo, na Roma antiga.

172
11. SÉRIES E TRADIÇÃO DO CARNAVAL

O termo carnaval ou cultura carnavalesca designa então um segundo mundo


da representação, edificado pelo povo a partir do primeiro mundo construído
pelos po derosos: a t roça, a caricatura, o excesso e o riso são nele características
c.onstantes. A cultura popular moderna que acompanha a industrialização
do mundo ocidental no século XIX inscreve-se diretamente nesta tradição: o
seu ponto culminante é, sem dúvida_, o espetáculo de variedades (vaudeville)
americano (Nasaw, 1995), que dará ao cin ema nascente o seu pessoal, as suas
referências e também o seu público (Allen, 1980). A escrita e a visão p opular
não lhe escapam. Seria muito interessante, por exemplo, mostrar como se
encontram todas as características do carnaval em Alexandre Dumas ou em
Eugene Sue, apenas dissimuladas pelo manto da história de avent uras.
No entanto, se os poderosos da Idade Média toleravam e até participavam
nas diferentes formas de carnavais, uma nova categoria de poderosos, embora
menos influentes politicamente, não podia aceitar que a literatura se tornasse
em parte uma faceta da cultura carnavalesca. O respeito pelo sério e pelo
profundo em que assenta o estatuto académico está em.causa. O sucesso da
ficção popular junto de uma população que agora adquiriu o direito de voto
deve ser limitado. As inúmeras diatribes contra a cultura popular escrita,
filmada e televisiva não vão parar após o pontapé de saída marcado pelos
artigos de Sainte-Beuve publicados em 1839 (Dumasy, 1999). Os produtores
de ficção popular tentarão proteger-se, mascarando a sua produção com um
véu de seriedade. Alguns dão-se mal com os ataques contínuos contra as suas
produções, como demonstra o «infeliz» Maurice Leblanc, «condenado» ao
sucesso pelas aventuras de Arsene Lupin (Derouard, 1989). Podemos pensar
no que se tornaria a ficção popular sem este erudito manto de desaprovação.
Será que teria cultivado com mais constância o grotesco e o extravagante, em
vez de, em certos casos, procurar a legitimidade e a seriedade?
Esta questão não poder ser aqui seriamente colocada. Em contrapartida,
o que podemos fazer é verificar que, desde o início, as séries enveredaram
por caminhos carnavalescos. A loucura de Lucy, protagonista de / Love Lu-cy,
manifesta o excesso e a intemperança específicos do carnaval; por exemplo,
a incrível história do parto de Lucille Ball, quase filmado em direto e logo
integrado na ficção. Quanto ao pomposo inspetor Faraday, herói de Drag;net,
está também ligado, embora à sua revelia, ao carnaval: prova disso são as
caricaturas das personagens que a imprensa, a televisão e as bandas dese­
nhadas apresentam imediatamente. Personagens como o inspetor Columbo,
o tenente Belker (A Balada de Hill Street), e hoje o Dr. House ou Brenda
· Leigh Johnson (7he Closer) são bons exemplos disso. Não há dúvida de que,
por obrigação das redes e da decência, as séries tranquilizam graças a finais
felizes conformes às expetativas de respeitabilidade. Só enganam quem quer
ser enganado e alegram ainda mais todos os outros. Mas isto não significa que
as séries sejam uma forma disfarçada de resistência social. Podemos perceber
o que Jonathan Gray (2002: p. 12) escreve a propósito de um dos formatos
naturais do carnaval: «A paródia é simultaneamente conservadora e subver­
siva, simultaneamente apoiante e destruidora do statu quo. » A brincadeira

173
AS SÉRIES TELEVISIVAS

carnavalesca só se torna crítica social em certas condições, que nunca temos


a garantia de estarem reunidas .
Uma série tornou-se a encarnação da inspiração carnavalesca e popular da
ficção serial. C om efeito, a série Os Simpson possui todas as características que
Bakhtine atribui à obra de Rabelais. Deliberadamente grosseira e escatoló­
gica, provocadora e possuída pelo demónio do exagero, muitas vezes também
sexista e intolerante, nada escapa ao seu apetite de crítica destrutiva: a escola,
a publicidade, o espetáculo, a política, a família, os intelectuais, mas também
a televisão e particularmente a rede Fox, produtora e difusora da série, são
os seus alvos privilegiados. O seu êxito é tão grande que contradiz uma das
análises mais consensuais sobre os media, considerados uniformemente confor­
mistas e reacionários. A série, considerada pelo 1he Times o melhor programa
do século xx (citado in Gray, 2002: p. 6), difundida no mundo inteiro com
igual sucesso, tornou-se um objeto de culto, situação que se pensava reservada­
ª filmes ou a séries com público limitado a uma comunidade considerável,
mas numericamente pequena. Como quase todas as séries, Os Simpson é o
resultado de um admirável concurso de circunstâncias: um desenhador sem
sucesso (Matt Groening) junta-se a um famoso produtor de Hollywood (James
L. Brooks, criador, cerca de 20 anos antes, do Mary Tyler Moore Show) para
preencher os intervalos de uma sitcom; propõe-lhe então as aventuras de uma
família simultaneamente vulgar e excêntrica. Brooks aceita sem hesitações e
contrata um veterano para organizar a produção (Sam Simon). Groening e
este escolhem de forma surpreendente os delirantes autores de uma fanzine
redigida nas profundezas do Colorado para dirigirem a escrita dos episódios:
George Meyer, o seu redator-chefe, torna-se rapidamente o responsável por
uma escrita de argumentos decisiva para o sucesso de Os Simpson. Último
milagre, a rede Fox, desesperadamente em busca de um êxito, promete nunca
censurar a série. Ao fim de três temporadas, a série já é um triunfo (Turner,
2004: pp. 16-27).
Como sublinharam os seus exegetas, a série Os Simpson é fundamentalmente
satírica. Chris Turner (pp. 55-76) descreve a série como uma anatomia sarcástica
da sociedade americana. Define o seu princípio fundamental pela vontade de
«ir demasiado longe» (p. 56): a personagem imita um comportamento social
reconhecido, mas leva-o um pouco mais longe. Este passo consiste muitas
vezes na exibição de uma atitude geralmente exagerada. Assim, Mr. Burns
não se limita a ser um financeiro ávido; exibe abertamente a sua avidez como
um modo de vida. É neste sentido que a série utiliza aquilo a que Jonathan
Gray chama super-estereótipos (p. 64): a série não se limita a utilizar (como
todas as outras)· estereótipos a fim de permitir um reconhecimento fácil das
personagens pelo público; e\ibe o estereótipo. O alvo favorito da série, a
família americana tal como ret�atada em certas sitcoms xaroposas, sofre esse
(mau) trata�ento. �s Simpson poderiam ser uma família muito parecida
com as familias amencanas, o que, de resto, deseja. No entanto, cada um dos
seus membros é um pouco «excessivo»: cada personagem ultrapassa os limites
habituais do estereótipo. Marge é uma mãe tão próxima do lar familiar que se

174
11. SÉRIES E TRADIÇÃO DO CARNAVAL

diria não poderem ser separados. Bart é o filho turbulento, mas de tal forma
turbulento que recusa apreender e agir de outra maneira que não brutalmente.
Homer é, por certo, o pai esfomeado e irascível, mas tão esfomeado que é
capaz de devorar o próprio braço e tão irascível que não consegue dominar a
fúria a ponto de estrangular o filho. Quanto a Lisa, é a menina sobredotada
das sitcoms, mas tão sábia que serve de exemplo a todos e parece, por vezes,
representar uma sabedoria universal. Este exagero é exatamente o combustível
dos carnavais trocistas da Idade Média. Bakthine descreve como «se procuravam
as analogias e consonâncias mais superficiais para travestir o sério e obrigá-lo a
adquirir traços cómicos» (p. 95). Travestir o sério e o estereótipo ultrapassando
os seus hábitos e representações usuais constitui precisamente o exagero de Os
Simpson. Assim, qualquer tentativa de se assemelhar a uma família comum
conduz inevitavelmente a uma catástrofe, pois um dos membros da família
ultrapassa limites justamente estabelecidos para esse fim. É verdade que a
desagregação nunca ocorre por completo e que a família se reconcilia no fim
de cada episódio. Mas este desfecho constitui apenas um processo inevitável:
como Homer costuma dizer, que seria de nós se a família se separasse? Com
efeito, a série acabaria imediatamente; em muitos episódios, esta conclu�ão é
explicitamente enunciada (Gray, p. 53).
Não há dúvida de que a personagem de Homer é a mais representativa
da série. É o exagero por excelência, repete sentenciosamente os estereótipos
mais gastos, é capaz de todos os impulsos. Como sugere Turner (pp. 85-125),
Homer é o escravo dócil das paixões mais fúteis do mundo contemporâneo.
A sua capacidade de devorar donuts e de ver televisão é impressionante. Os
autores, porém, atribuem-lhe a capacidade de reagir: quando um cometa
ameaça Springfield (6/14), começa por se refugiar no abrigo do vizinho Flan­
ders, antes de expulsar este por falta de espaço. Finalmente envergonhado,
leva a comunidade a juntar-se a Flanders na colina para esperar o cometa.
Esta capacidade permite-lhe não ser apenas um perfil que representa todos
os males do país, mas uma verdadeira personagem, com os sçus exageros e as
suas reações. É verdade que só os seus excessos o conduzem a tais impulsos,
como se não fosse capaz de aprender de outra maneira senão mergulhado nas
consequências dos seus desregramentos. Além disso, esta súbita inteligência é
apenas provisória. Nos últimos momentos desses episódios, Homer mostra a
sua resistência a qualquer memorização. E a série pode continuar...
As características de Os Simpson podem ser também encontradas em
numerosas séries, certamente atenuadas ou dissimuladas, mas bem presentes.
Em séries mais antigas, os traços do carnaval servem de inspiração direta:
M*A*S*H ou Twin Peaks parecem introduzir diretamente as suas persona­
gens em situações reais à maneira das cerimónias cómicas da Idade Média. A
inspiração carnavalesca está igualmente patente nas séries contemporâneas.
Uma das personagens mais próximas de Homer Simpson é Dennis Crane,
interpretado por William Shatner em Boston Legal. A mesma segurança, a
mesma fria obstinação em assumir todos os estereótipos norte-americanos, a
mesma tendência para repetir asneiras, Crane é uma versão chique de Homer:

175
AS SÉRIES TELEVISIVAS

a sua segurança permitiu-lhe ter grande sucesso na profissão de advogado. O


seu colega, Alan, reúne por seu lado a loucura de Bart e a sabedoria de Lisa
(observação do meu filho Antoine). Quanto às mulheres de Donas de Casa
Desesperadas, poderiam ser uma representação de Marge Simpson. Por vezes,
toda a série parece uma adaptação apenas mais calma de Os Simpson. A sabedoria
de Buffy é mais trágica do que a de Lisa, e a sua personagem parece também
incapaz de se tornar uma adulta no mundo contemporâneo. A família tradi­
cional é maltratada em todos os seus aspetos pela quase totalidade das séries
recentes. O desmembramento da família Mcnamara em Nip/Tuck é terrível
e muito menos engraçado do que o caos da família Simpson. Em Friends, o
grotesco está reservado aos pais, todos eles travestidos de forma efetiva ou
figurativa e perfeitamente dignos de figurarem no catálogo simpsoniano;
quanto aos filhos, a teimosia de cada um deixa-os permanentemente à beira
de um cataclismo possível. Certas situações não deixam qualquer espaço para
o exagero: Oz descreve um mundo real excessivo, um mundo já exagerado.
A série consegue, pelo menos, ser honesta na sua representação da realidade
das prisões. Um regresso assumido ao carnaval é um traço marcante do nosso
tempo, de que o Gay Pride é uma espécie de pérola: as séries participarão
nisso à sua maneira.
Talvez no dia em que levemos as séries mais a sério (quando lemos as
entrevistas de David Chase, criador de Os Sopranos, tão arrogante como
qualquer artista respeitável, perguntamo-nos se esse dia não terá já chegado),
estas percam a sua mordacidade e a sua influência sobre o nosso mundo. É
até provável que esta obra tenha contribuído para isso! Estamos ainda longe e
podemos esperar a continuação da exploração do tragicómico contemporâneo
pelas séries.

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184

. . ,
.,,.
Indice das séries analisadas

24, 2001, criada por Joel Surnow e Michael Cochran: 12, 53, 104, 113-114, 135,
140,170
Ally McBeal, 1997-2002, criada por David Kelley: 43, 61, 85, 108-110, 121, 146,
164,166,172
Balada de Hill Street (A) (Hill Street Blues), 1981-1987,criada por Steven Bochco e
Michael Kozol: 52,58,61-62,64,66-70,72,79-80, 96,103,105-106,121-122,
125,133,153,160, 163-164, 173
Balada de Nova Iorque (A) (NYPD Blue), 1993-2005, criada por Steven Bochco e
David Milch: 7,11,42,44,54,66,69-72,93,105-107,115,117,124-125, 129-130,
141,144, 148-149, 153-154, 159-160,164,172
Boomtown, 2002-2003, criada por Graham Yost: 145-146
Boston Legal, 2004-2009, criada por David Kelley: 43, 108-110, 114, 133, 148,
159-160,172, 175
Buffy, Caçadora de Vampiros (Bujfy, the Vampire Slayer), 1997-2003, criada por Joss
Whedon:22,42,79,87, 104-105, 134-135,154,164-166,172,176
Cagney & Lacey, 1981-1988,criada por BarbaraAvedon e Barbara Corday: 38,40-41,
160,164,166
Caminho das Estrelas (0) (Star Trek), 1966-1969, criada por Gene Roddenberry: 40,
51,55-56,92, 104,117,138,144,149,159,172
Casos Arquivados (Cold Case), 2003-,criada por Meredith Stiehm: 142-144
Columbo, 1971-1978, 1989-2003, criada por Richard Levinson e William Link: 26,
28,37,43,62,83,93-94,101,117, 153,160, 173
Crossroads, 1964-1988,criada por Hazel Adair e Peter Ling: 10,38, 67, 140
CSJ, 2000-, criada por Anthony E. Zuiker: 7,9, 13,49, 83,94,96, 131-133,149
Departamento de Homicídios (Homicíde, Life on the Street), 1993-1999,criada por Paul
Attanasio e Barry Levinson: 125-128, 167,172
De"ick, 1974-1998,criada por Herbert Reinecker: 129
Donas de Casa Desesperadas (Desperate Housewives), 2004-,criada por Mark Cherry:
54,85-86,88-90,100,139,145,160,165,171,176
Dr. House (House M.D.), 2004-, criada por David Shore: 94,135,165-166, 173
Dragnet, 1951-1958, 1967-1970, 1989-1991, 2003-2 004, criada por Jack Webb: 9,
20-21,42,50,53,91,94,173
EastEnders, 1985-,criada por Julia Smith e Tony Holland: 32,36
Ficheiros Secretos (X-Files), 1993-2002, criada por Chris Carter: 7,54, 142
Friends, 1994-2004,criada por Marta Kaufmann e David Crane: 7,37, 43, 93,101,
164,176
Hélene et les garçons, 1992-1994,criada por Jean-François Porry: 7,33-34, 36,38,140
1 Love Lucy, 1951-1957,criada por Jess Openheimer, Madelyn Pugh e Bob Caroll Jr.:
9,20-21,40,50-51,53,57,85, 122,162,173
Inspector Morse, 1987-2000, criada por Kenny McBain: 129,131
Intocdveis (Os) (The Untouchables), 1959-1963 criada por Quinn Martin: 51,55,121-122
Lei e Ordem (Law & Order), 1990-, criada por Dick Wolf: 42,44, 54, 58, 61, 94,
96-98, 101,103,129,153,157,160, 168-170,172

185
AS SÉRIES TELEVISIVAS

Lou Grant, 1977-1982, criada por Allan Burns, James L. Brooks e Gene Reynolds:
153,172
One Tree Hill, 2003-,criada por Mark Schwahn: 37,149-150
Oz, 1997-2003,criada por Tom Fontana: 42,53, 1 25, 167-168,176
Perdidos (Lost), 2004-, criada por Jeffrey Lieber, J.-J. Adams e Damon Lindelof:
113-115, 117,142,172
Serviço de Urgência (ER), 1994-2006, criada por Michael Crichton: 55, 59,68, 104-105,
110-111,117,129,139,141,149,164
Sete Palmos de Terra (Six Feet Under), 2001-2005, criada por Alan Ball: 29,60,68,
85-89,113,116, 141,147-148,150-152,165,172
Sexo e a Cidade (O) (Sex and the City), 1998-2004, criada por Darren Star: 85-86,
88-89,100,133,145,160,165
Simpson (Os) (1he Simpsons), 1989-, criada por Mat t Groening: 34-35, 39, 72, 93,
100,140,154,174-176
Sob Escuta (1he Wtre), 2002-2008,criada por David Simon: 167-168
1he Closer, 2005-,criada por James Duff: 13,165,173
1he Mary Tyler Moore Show, 1970-1977,criada por Allan Burns e James L. Brooks: 162
1he Prisioner, 1967-1968,criada por Gregory Markstein e Patrick McGoohan: 94, 96
1he Young and the Restless, 1973-, criada por William J. Bell e Lee P. Bell: 26, 98,
129, 139
Twin Peaks, 1990-1991, criada por David Lynch e Mark Frost: 7-8,42,44,53, 100,
115,133-135,175,

186
,,.
Indice

INTRODUÇÃO
Sucesso e desconhecimento das séries .............................. 7

Primeira Parte
Difusão televisiva, séries e públicos
Capítulo 1
A série, género dominante da televisão
1. A instalação da televisão nos lares .. . . .. . ..... . . . .. . . . .... . .. . ... 17
2. Vida familiar e televisão . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . ...... . .. ..... . ... 21
3. Grelhas de programas e encontros televisivos . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . 23
4. A série, ou a adaptação da produção à difusão . . . . . . . . . . . . . . ... . . .. 26

Capítulo 2
A cumplicidade entre públicos e séries
1. Estudos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . .. . . . . . .... . . . . . ... . . 31
2. Comunidades de interpretação de séries . . . ... . . . . . . . . .. . .. . . . . . . . 36
3. Os públicos de séries no espaço público . ... . . . . . . . . . . . ... . . . . . . .. 39
4. Uma cumplicidade mantida . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . .... .... . .. ... . 42

Segunda Parte
Produção das séries televisivas
Capítulo 3
Produção das séries
1. Dupla economia das séries televisivas ....................... · . · . · 47

2. O exemplo americano ................. ·................. , . . . .. . 50

3. A invenção das séries televisivas ............................ , ... 55

Capítulo4
Percurso de um inventor de séries:
Steven Bochco
1. A aprendizagem ...................... , . · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 61

2. A necessidade de uma renovação genérica e a «revolução» Dallas ..... 63

Balada de Hill Street ................ · . · . , · · · · · · 64


3. A invenção de A

187
AS SÉRIES TELEVISIVAS

4. A que se assemelha um episódio de A Balada de Hill Street?


········· 67
·······
5. De A Balada de Hill Street até à Balada de Nova Iorque · · · · · 69

Terceira Parte
Séries televisivas e narração
Capítulo 5
A inscrição da série na história
da ficção popular
1. Uma herança ........................... · · · · · · · · · · · · · · ······· 75
2. O género e a fórmula ..................... · · · · · · · · · · · · · ······· 80
3. Um exemplo: as metamorfoses contemporâneas do melodrama ······· 84

Capítulo 6
As séries «imóveis»
1. Classificar as séries? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
2. As séries nodais .................................. · · · · · · · · · · · · 93
3. Soap-operas e sitcoms ........................................ . 98

Capítulo 7
As séries «evolutivas»
1. A emergência do tempo longo . .................. .. .. .. ... . .. .. . 103
2. As séries corais ................ .. . ... ...... . . . . .............. 105
3. As séries folhetinescas ................. . . ...... . . . ..... . . ..... 112
4. Uma arte do tempo ........................................... 117

Quarta Parte
A arte (narrativa) das séries
Capítulo 8
Estilos e formas
1. Virtuosidade estilística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
2. Virtuosidades rítmicas ....................................... . 128
3. Virtuosidades genéricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133

Capítulo 9
O pleno, o íntimo
1. Especificidades seriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
2. Plenitude dos universos :ficcionais seriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
3. Formas do íntimo . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
" 144
4. O aprofundamento da personagem .............................. 148

188
ÍNDICE

Quinta Parte
Séries e crítica social
Capítulo 10
Atualidade das séries
1. Cultura popular norte-americana e imaginários políticos 157
2. As sédes e o feminino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
3. Realismos seriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

Capítulo 11
Séries e tradição do carnaval

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

Índice das séries analisadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

189

Você também pode gostar