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E conforme o filme avança por todo o primeiro ato, vamos vendo o quão evoluído é o
povo de Bacurau. Eles velam Carmelita na casa dela e não numa igreja, fazendo um
ritual fúnebre próprio das regiões nordestinas, mas que revela um desprendimento da
religião nesse vilarejo. Talvez por isso Bacurau seja um vilarejo tão unido, porque não
existe crenças que fazem as pessoas se acharem melhores por isso e aquilo. No discurso
de Plínio sobre os herdeiros de Bacurau ele cita as profissões de médico até puta, sem
fazer um julgamento de dizer que tal pessoa é melhor e tal pessoa é pior.
E existem vários exemplos de como Bacurau é o retrato do que o Brasil deveria ser.
Seja nas escolas que são equipadas com tablets e computadores, aliados ao ensino
tradicional de Plínio, que mistura tradição e inovação na hora de ensinar as crianças do
vilarejo. Seja no trailer bordel da cidade que não é visto com maus olhos pelos
habitantes, já que sexo é algo comum e tratado sem ser um tabu e até mesmo as
representações LGBT que estão bem presentes nesse filme.
Indo desde a informante da cidade que é uma mulher transexual até Domingas que é
uma personagem principal abertamente homossexual, Bacurau é um vilarejo que não
julga ninguém pela pessoa que o outro escolhe amar ou pelo jeito de se vestir.
Domingas em nenhum momento é diminuída por ser lésbica, Lunga é exaltado mesmo
sendo uma figura andrógina, tanto que em certos momentos se referem a ele como A
Lunga e em outros como O Lunga. E é isso que classifica Bacurau como uma utopia, já
que o preconceito é algo enraizado, muitas vezes no próprio nordeste, como
infelizmente eu já presenciei.
Entretanto, a escolha dos roteiristas do filme parecem ser de criar um vilarejo
esclarecido, unido e forte. Por isso em Bacurau o principal monumento da cidade é o
Museu e a Igreja virou um depósito, sem os próprios habitantes perceberem. Quando a
primeira tragédia assola a região, um dos moradores fala para Domingas e Plínio que ele
quer reabrir a igreja, retratando o pensamento arcaico de que tragédias não acontecem a
quem dobra seus joelhos para entidades superiores. Bacurau, porém, não dobra seus
joelhos, mas sim se levanta para lutar.
O povo do vilarejo se une em vários momentos, como no funeral de Carmelita, na feira
da cidade, quando o prefeito Tony Jr chega e eles precisam se esconder e até na reunião
da cidade, onde Plínio novamente age como um líder ao esclarecer as verdadeiras
intenções do prefeito Tony Jr e ao lado de Domingas, continua abrindo os olhos da
população que resiste contra a negligência daqueles que supostamente deveriam se
importar com eles.
Aliás, a história do prefeito é algo que eu adorei no filme e explicarei o porquê. Parte da
minha família trabalha na política da cidade de Uruburetama, o interior onde eu viajava
muito quando era criança, e um dos meus tios foi prefeito da cidade. Por conversas de
familiares eu escutei muitas vezes que ele desviava dinheiro, e só pelo jeito dele era
claro que ele estava pouco se lixando para a população da cidade. Por essa razão que
Tony Jr é o maior retrato da realidade que o filme revela. É foda como a população
resiste a Tony Jr porque conhece as intenções dele e não se deixa levar pelo discurso
manjado que é repetido por uma miríade de políticos de quatro em quatro anos.
Por fim, a construção de Bacurau se consolida em cima de conhecimento e
esclarecimento. O povo da cidade é unido porque eles conhecem a si mesmos, porque
não tem julgamentos entre si e porque estão abertos a inovação na medida que mantém
a tradição da sua cultura viva. É por isso que em dado momento um “disco voador”
aparece e Damiano, um idoso, avisa ao personagem Pacote que aquele é um drone,
surpreendendo o público que esperava medo e falta de entendimento do povo da cidade
em relação a tecnologia. Porém Bacurau surpreende ao utilizar a tecnologia para se
proteger e se unir de forma mais rápida, e constantemente ao longo do filme, mensagens
e telefonemas são dados para avisar os moradores sobre eventos que estão acontecendo.
Por isso que na camada mais básica do filme, a mensagem que ele quer nos passar é que
conhecimento e esclarecimento são as principais ferramentas para evoluirmos como
sociedade. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles não apelaram para críticas ácidas
para mostrar que a sociedade brasileira é dividida, hipócrita e frágil ao inseri-la em
contraponto com Bacurau que é unida, fruto do esclarecimento e do afastamento da
religião, e que resiste a todos que querem exterminá-la. E a genialidade da obra se dá
por criar essa comparação justamente com um povo que supostamente é burro, não-
civilizado e que é constantemente marginalizado. Ao fazer o vilarejo de Bacurau ser
uma verdadeira utopia, o filme já faz várias pessoas torcerem seus narizes por elevar e
respeitar uma região menosprezada por séculos.
O que é uma pena. Pois se certos estados fossem que nem Bacurau, seríamos uma nação
muito melhor, e isso é fato.
A HERANÇA HISTÓRICA DO CANGAÇO E A RESISTÊNCIA NORDESTINA
Mas nem só de paz vive Bacurau e é do conflito que surge o filme.
Mantido em segredo por um bom tempo, a trama do filme é sobre um bando de
americanos que vê em Bacurau, um vilarejo isolado e negligenciado, uma oportunidade
de realizar um jogo sádico de extermínio humano. O que eles não sabiam é que o povo
de Bacurau é brabo que nem o pássaro que dá nome ao lugar e que ir até lá foi a pior
decisão que eles podiam ter tomado.
O negócio é que os problemas começam pequenos. É um caminhão que chega furado de
bala, cavalos que assustam a cidade durante a madrugada até que o problema evolui
para um massacre em uma fazenda um pouco distante do vilarejo e então que Bacurau
se vê sob ataque. O ponto de virada da trama se dá no momento em que dois
motoqueiros chegam no local, com suas roupas estranhas e seus capacetes.
Para quem não sabe o que é cangaço, lá vai uma explicação resumida que se conecta
com a história de Bacurau.
O cangaço foi uma forma de banditismo popular, em que o povo nordestino passou a
reagir diante das condições cada vez mais precárias e do poder dos grandes
latifundiários, que massacravam e dominavam os locais onde tinham poder. Lutando
contra isso, surgiram os cangaceiros que eram uma espécie de “anti-heróis” fazendo
muitas ações ruins como roubar e matar, mas também tendo muito apoio popular.
Alguns deles trabalhavam para os latifundiários prestando serviços, enquanto outros
eram independentes e lutavam pelo povo nordestino que se recusava a entregá-los para a
justiça. O mais famoso cangaceiro foi Lampião, que junto ao seu bando cravou o nome
na história e é reconhecido até hoje como o “Rei do Cangaço”.
Esse é legado que existe em Bacurau, algo que o casal de Estrangeiros iria saber se
tivessem visitado o museu da cidade, que contém em seu interior várias páginas de
jornal que ressaltam esse período histórico na região nordeste. Porém, de forma mais
concentrada o cangaço é incorporado no personagem Lunga, um fora da lei que luta a
favor da cidade e que é visto como um herói do povo, mesmo tendo feito ações ruins no
seu passado, assim como Acácio/Pacote só que em uma esfera maior.
Lunga é que forma a resistência da cidade, ao se compadecer da situação e voltar a
Bacurau. Ele mesmo admite que sentiu muita raiva daquele lugar, mas não consegue se
desvincular e por isso retorna. Com a violência em seu sangue e seu histórico, é ele que
se torna o centro da resistência do vilarejo.
Vale notar que a segunda mensagem que Bacurau explora de maneira clara é de como a
afirmação e a adoção da identidade cultural é a melhor forma de resistência contra os
opressores. Mesmo sendo subestimados, os habitantes de Bacurau sempre sentiram
orgulho de suas raízes e de seu Museu, que no terceiro ato do filme se torna o local onde
os americanos morrem ao perceber o legado do cangaço que o povo do vilarejo ainda
preserva. Mostrando que eles não são simplesmente presas indefesas, mas sim um povo
que responde com violência contra qualquer tipo de ataque bárbaro.
E quando os americanos restantes atiram contra a cidade, todo o povo começa a atirar de
forma conjunta, das suas janelas e portas, como se a própria cidade estivesse ganhando
vida para lutar contra aqueles que querem exterminá-la. Ainda no museu, Lunga mata
os últimos americanos degolando suas cabeças, como se fosse a ressignificação histórica
da morte de Lampião, que morreu decapitado pela justiça da época.
Porém, a violência da cidade é muito diferente da violência dos americanos. Mesmo
tendo um contexto histórico, o povo da Bacurau não é violento por ser, eles só expõem
esse lado diante do perigo e o filme dá vários indícios que mesmo sendo violentos, eles
continuam humanos. É por isso que Michael, interpretado por Udo Kier, é deixado para
viver enquanto os outros americanos são degolados e suas cabeças são postas em frente
à igreja perante toda a cidade. A humanidade de Bacurau pós-ataque existe na fala de
Pacote, que pergunta a Teresa se aquilo não foi demais ou no DJ Urso que fala o nome
de todos os habitantes do vilarejo que morreram e que foram colocados em caixões,
respeitando seus corpos e horando suas mortes.
O último ponto a ser analisado sobre a violência de Bacurau, é que eles são tão
racionais, que precisam engolir aquelas sementes que são um alucinógeno natural para
terem que lidar com a violência de seus atos, enquanto para os Americanos a violência é
algo inerente das suas personalidades.
Por fim, quando todos os americanos são mortos e Michael é capturado, a mulher de
Domingas fala para eles limparem o chão, mas não tocarem nas paredes, como uma
lembrança eterna daquele evento. Para fazer com que a cidade nunca esqueça de que
eles têm força suficiente para resistir contra as pessoas de fora.
Mas o melhor de tudo é que a violência é o último passo que o vilarejo dá na sua luta de
resistência. Antes disso eles recepcionaram os Estrangeiros muito bem, resistindo contra
eles ao mostrar sua cultura, falando sobre o museu da cidade, ao mostrar a música, na
figura do violeiro e por último na figura de Domingas fazendo comidas típicas para
Michael. Quando tudo isso foi rejeitado é que Bacurau pegou as armas numa última
tentativa de resistir, mostrando que a violência nunca é a melhor maneira, mas que em
certos casos é a única forma de se lidar contra a opressão.
A NECROPOLÍTICA E O CONTEXTO HISTÓRICO DE BACURAU
Bacurau poderia ter sido apenas um filme, mas sua importância é alçada ao máximo
pelo período em que ele foi lançado. Enquanto eu estava pesquisando sobre o filme e
lendo reações sobre ele, vi uma mulher que citou a relação entre a obra e o conceito de
necropolítica, que faz tanto sentido que é impossível pensar que os roteiristas não leram
sobre isso durante os dez anos que o roteiro passou na gaveta.
Segundo a jornalista Rosane Borges, com o trecho retirado de uma entrevista dela ao
site Ponte.org:
A necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é
um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. E o Achille Mbembe elabora esse
conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo. Uma das
inspirações dele é o Michel Focault, com a biopolítica. Ele vai trabalhar com o conceito
inicial, não contrapondo exatamente, mas dizendo: “a materialização dessa política se
dá pela expressão da morte”. O Estado não é para matar ninguém, ele é para cuidar. Que
a própria política não é o lugar da razão, é o lugar da desrazão. E isso vai ter um
desdobramento nas sociedades contemporâneas. A gente vê hoje um Estado que adota a
política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que se
divide entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas
comunidades do Rio de Janeiro, nas periferias das grandes cidades brasileiras. Não há
nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade. O que se tem é a
perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que
são reflexíveis e tem desdobramentos que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na
nossa chamada política de segurança.
Rosane Borges
Traçando um paralelo entre esse conceito e a obra, podemos ver a necropolítica na
revelação final de que o prefeito Tony Junior tinha relação com Michael, o líder dos
americanos. Ao chegar em Bacurau com uma van pronta para levar os americanos de
volta para casa, fica claro que Tony Junior queria o extermínio de Bacurau para ter que
lidar com um problema a menos.
Logo, fica claro que o Estado está pouco se lixando para aquele vilarejo isolado. Isso
fica mais claro ainda na cena inicial onde a represa que levava água até o local é
barrada, retirando um direito básico da vida dos habitantes de Bacurau. Fica claro
quando o prefeito leva mantimentos vencidos e remédio para deixar a população lesada,
pronta para o abate. A necropolítica é a roda que gira a história de Bacurau, podemos
até dizer que o filme é grande tutorial de como resistir a isso.
Já traçando paralelos com a nossa realidade, durante uma parte do filme, um dos gringos
assassina uma criança e diz que foi por acidente, falando que confundiu a lanterna dela
com uma arma e que a criança podia facilmente ter 16 anos, sendo uma clara alusão ao
que está acontece em lugares como o Rio de Janeiro.
Entretanto a relação entre necropolítica, Bacurau e o Nordeste se torna ainda mais forte
se inserida no atual contexto político, onde o presidente do país é alguém que
claramente não se importa com uma das regiões mais menosprezadas pelos governos
anteriores. Bolsonaro inclusive repetiu xingamentos como “paraíba” que é uma forma
das pessoas inferiorizarem os nordestinos em outros estados. Com isso em mente, fica
claro que o Nordeste precisa resistir a um Governo que não se importa com ele, assim
como Tony Junior não se importava com Bacurau. E preciso dizer que estamos
resistindo, pois dos 11 estados onde o Bolsonaro perdeu, 9 são do Nordeste, sendo a
única região em que ele não venceu.
Meu único medo é na fala de Michael, que antes de ser enterrado na cidade, diz que
aquilo é só o começo. Essa fala dele é quase uma profecia aos períodos horríveis pelo
qual o Nordeste já passou, indo de uma ditadura que pensávamos termos vencido até
uma ascensão da extrema-direita na política.
São tempos difíceis, são tempos de resistir. É tempo de ver Bacurau e aprender.
Aprender a ser como esse povo que não abaixa a cabeça para ninguém. Aprender a
aceitar a identidade cultural que temos e sentir orgulho dela, e mais ainda, aprender a
resistir contra a opressão mesmo que a violência precise ser um caminho.
Afinal, Bacurau é brabo. Assim como o Nordeste.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar esse texto, quero recomendar que você assista o filme novamente, tentado
reparar em todos os pontos apresentados aqui. Mostre essa obra para a família se puder,
mas divulgue Bacurau. Esse é um dos melhores, e essenciais, filmes de 2019 e merece
ser visto pelo máximo de pessoas.
Kleber Mendonça Filho deu um grito de resistência artística em um período onde o
cinema nacional está sendo tão desvalorizado. Afinal, Bacurau é o melhor exemplo de
como a sétima arte brasileira pode se reinventar fazendo obras de múltiplos gêneros
com múltiplas mensagens e fazendo-as com uma qualidade de fazer inveja. A lista de
prêmios que Bacurau venceu é de dar inveja, e só realça a importância e a qualidade da
obra. Infelizmente, não conseguimos uma indicação ao Oscar já que “A Vida Invisível”
foi escolhido como o representante do Brasil no prêmio. O que não é ruim, pois este é
outro filme incrível que futuramente será discutido aqui em outro texto. Porém, Bacurau
toca no orgulho americano de uma forma que seria quase impossível a Academia
premiá-lo. Então resta nós brasileiros aclamarmos essa obra que merece todos os
elogios possíveis.
Na dúvida, assista Bacurau e se for, vá na paz.
CURIOSIDADES SOBRE BACURAU
1. Carmelita é interpretada por Lia de Itamaracá, a cirandeira mais célebre do Brasil que
é considerada um Patrimônio Vivo de Pernambuco. Nada mais justo que ela ser a figura
mãe do vilarejo de Bacurau.
2. Lunga no roteiro original deveria ser uma mulher, em uma possível alusão a Maria
Bonita, esposa de lampião e a cangaceira mais icônica da história. Porém, no roteiro
final o personagem se tornou andrógino, sendo interpretado por Silvero Pereira que deu
a ele uma abordagem de “cangaceiro queer”.
3. Aliás, o nome Lunga é uma possível homenagem ao “Seu Lunga” um poeta e
repentista conhecido por todo o Nordeste por ser o “homem mais ignorante do mundo”.
Até hoje ele é citado em piadas por humoristas cearenses.
4. Lampião é uma figura que aparece de forma não física no filme. A primeira
referência a ele é na figura de Damiano e sua esposa que atiram contra os americanos
segurando a arma de lado, assim como Lampião e alguns cangaceiros seguravam. A
segunda referência é na maneira que o povo de Bacurau lida com os americanos,
degolando suas cabeças para exibi-las em frente à igreja assim como aconteceu com o
bando de Lampião quando ele foi capturado e morto.
5. O filme gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. Ele teve uma exibição
especial feita em Parelhas, que alcançou 2000 espectadores, e um fato bem interessante
é que os diretores fizeram uma cópia dublada do filme, já que uma boa parte dele é
falada em inglês com legendas, de forma que a obra pudesse ser mais acessível ainda.