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ANTUNES, António Lobo.

O meu
nome é Legião. Lisboa: Dom
Quixote, 2007.
Cid Ottoni Bylaardt
Universidade Federal do Ceará

A ntónio Lobo Antunes


tem o costume de
parafrasear Mallarmé
afirmando que um livro não se faz
com idéias, mas com palavras. O
Marina de Boa tarde às coisas aqui
em baixo, ou os amantes de Eu hei-
de amar uma pedra. Não tem uma
história emocionante como em O
manual dos inquisidores ou em A
romancista afirma ainda que não morte de Carlos Gardel. O que a
tem nada na cabeça quando começa presente narrativa preserva dos
um livro, e que as palavras é que livros anteriores é o trabalho da
puxam as palavras, e assim o livro linguagem, que a cada livro faz-se
vai-se escrevendo. Na época em mais presente, de forma mais
que lançou o livro Exortação aos contundente, na medida em que as
crocodilos, Lobo Antunes dizia que outras categorias da narrativa se
a história o interessava cada vez retiram paulatinamente. Esse
menos. Hoje, oito romances depois, processo de desnarrativização da
o ensinamento mallarmeano se escrita romanesca acentua-se de
impõe com cada vez mais força no forma mais nítida a partir de Não
texto do escritor português, e o entres tão depressa nesta noite
chamado enredo, a estrela do escura, compondo o que se poderia
romance tradicional, se dilui a chamar um terceiro momento na
cada narrativa que ele escreve. obra do escritor. O primeiro
O meu nome é Legião, romance momento é composto pelos sete
(?) publicado em 2007, não tem primeiros romances, em que o
personagens marcantes como a gênero se apresenta de maneira
Maria Clara de Não entres tão mais tangível em termos de trama,
depressa nesta noite escura, ou a narrador e personagens, e mesmo

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ANTUNES, António Lobo.O meu nome... Cid Ottoni Bylaardt – p.141-145.

em relação às noções de tempo e executor não cumpre sua missão de


espaço. A segunda fase incluiria desbaratar a gangue, ou pelo menos
os romances de Tratado das paixões não consegue relatar sua interven-
da alma a Exortação aos crocodilos, ção no caso. Ele culpa os negros e
em que as mencionadas categorias mestiços pelas desgraças sociais de
começam a se fragmentar, sobres- Portugal, e questiona em seu relato
saindo a indefinição de vozes, a a “justeza da política de imigração
desmaterialização da trama narrativa nacional”. Pouco a pouco, digres-
e a encenação da linguagem. sões vão-se infiltrando no relatório,
Em O meu nome é Legião, o e o relator começa a colocar
argumento é apresentado logo no inadvertidamente suas emoções no
primeiro capítulo: oito jovens delin- texto, admitindo a fraqueza: “estou
qüentes de idades entre doze e cônscio do erro e penitencio-me
dezoito anos cometem um latrocínio dele”. 1 Mesmo com toda essa
em um posto de gasolina. O relator consciência, o texto vai sendo
é um velho policial, que recebe a tomado pelas lembranças do pai,
missão de investigar o caso. Após da mãe e do padrasto, da filha, que
a leitura desse capítulo, o leitor que não gosta dele e que ele visita um
não conhece Lobo Antunes tende a domingo por mês, e por ações
esperar os desdobramentos da pouco romanescas, como contar
ação em eventos relacionados por palitos num paliteiro de restaurante.
causa e efeito, como a identificação Ele não suporta o que escreve, e
dos criminosos e seus motivos, os após o terceiro capítulo cede a
efeitos de sua ação sobre o corpo palavra. O que se tem daí em diante
social e as conseqüências para os são depoimentos de várias pessoas
marginais. Quaisquer expectativas relacionadas ao grupo de
nesse sentido são frustradas pelo delinqüentes. Após o policial, fala,
desenrolar dos relatos. então, uma prostituta cinqüentona
Do narrador dos três primeiros que foi “adotada” por um dos
capítulos espera-se que ele prenda delinqüentes, e faz seu relato à
os criminosos, contando com uma polícia sobre o crime e os
pequena equipe, e relate objetiva- criminosos, mas, como no discurso
mente os acontecimentos. Sua anterior, o texto é pleno de
escrita, entretanto, não consegue depoimentos pessoais. A narradora
ater-se aos fatos, como também seu chega a misturar a própria história

1
ANTUNES, 2007, p. 16.

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Revista do CESP – v. 27, n. 38 – jul.-dez. 2007

com a do policial dos primeiros que pretendiam. O narrador admite


capítulos, que retorna ao final do o fracasso: “renunciei às palavras e
sexto capítulo, entremeando sua o que digo são ecos do silêncio”.2
fala com a da depoente anterior. Sabe-se pelos depoimentos que
Comparecem então outras vozes, vários dos delinqüentes morrem,
que têm alguma ligação com o muitos deles traídos pelos próprios
crime: a mãe de um dos jovens, um parentes ou pessoas que lhes são
homem que se diz seu marido, a próximas. As notícias sobre os
irmã de um dos criminosos, um desdobramentos, entretanto, não
velhote viúvo casado com ela, um obedecem a uma lógica, a uma
homem que havia sido apresentado seqüência, mas aparecem aqui e ali
aos mestiços pelo irmão, que fazia em meio aos delírios dos locutores.
parte da gangue, um dos pivetes e É curioso que os relatores não
sua mãe, uma mestiça casada com apenas falam, mas escrevem; todos
um policial. São dezenove capítulos escrevem o tempo todo, mas não
em que não há uma seqüência conseguem dizer nada com suas
lógica, em que os próprios depo- palavras, seu discurso é um
entes são de difícil identificação, fracasso. Todos têm problemas
em que passado e presente se com a escritura: um declara que
alternam sem conexões lógicas, em detesta o que escreve; outro luta
que as vozes dos discursos se para “escrever decentemente”; um
misturam sem identificação precisa. terceiro lamenta o quão complicado
No décimo sétimo capítulo, o é escrever; outro despede-se ao
antepenúltimo, o policial do início final de sua fala esperando voltar
retorna e propõe-se organizar a em um livro vindouro; adiante um
desordem da escrita, tentando outro dá instruções aos leitores;
prender o texto em alíneas, de A) a todos se sentem aborrecidos,
Z). Esse narrador agora clama pela contrariados, incompletos. Entre
manutenção da ordem, tanto social relatos “oficiais”, depoimentos
quanto escritural, e ambas as testemunhais, desabafos, pretensões
tentativas falham: ele não consegue a uma bela escritura, desnuda-se,
prender nem os delinqüentes nem no meio do romance, o processo
o relato, e as frases escorrem por da narrativa:
entre as alíneas sem a objetividade

2
ANTUNES, 2007, p. 331.

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ANTUNES, António Lobo.O meu nome... Cid Ottoni Bylaardt – p.141-145.

Estou a fazer um livro, a mão contém verdades porque as vozes


escreve o que as vozes lhe ficcionais não mentem, são a
ditam e tenho dificuldade em verdade da mentira. E, por mais
escutá-las, se as vozes ditam
que um dos narradores tente
não é mentira, é tal qual, o meu
irmão e eu ordenam elas, e
enquadrar os fatos de A a Z, mesmo
portanto ponho o meu irmão e que outra voz diga que o final do
eu a cavarmos um buraco, não, ditado (equiparado aqui a um
ponho o meu irmão a cavar um suplício) se aproxima, a escrita
buraco e eu distraído com os não tem fim, sempre haverá quem
pássaros, assim está certo.3 fale algo mais: “entrego assunto a
quem falou antes de mim ou
Esse pequeno trecho mostra a
àqueles que porventura vierem
verdade da escritura, o que “está
depois uma vez que há sempre
certo”, que “não é mentira”, que é
“tal qual”. A verdade ficcional, quem venha depois corrigir o que
portanto, não depende de verifi- dissemos”.4
cação: ela está naquilo que as O meu nome é Legião é, assim,
vozes ditam ao escritor, e assim se bastante contemporâneo em sua
faz uma narrativa. estética da falta, da ausência, da
No último capítulo, um dos impossibilidade de os extremos e
menores criminosos, o de treze os meios se encontrarem para
anos, fala de sua detenção por sete compor um conjunto lógico. A
meses em um instituto de recupe- multiplicidade de enunciadores,
ração de menores, e nas últimas todos eles instáveis e descrentes
páginas, na seqüência de um ditado do poder edificante da escritura,
que um professor faz para os impede a identificação de uma voz
menores no instituto, uma voz “central” (ou a que deveria ser o
masculina sugere que aquela escrita centro, que não há). O clímax e o
é um ditado, confirmando o que a desenlace clássicos não mais
outra voz (ou a mesma?) da citação constituem o apelo da narrativa,
acima diz sobre o processo de que não aponta para uma solução,
criação. uma decisão, um ponto de chegada
O romance assume, assim, a qualquer. A desmaterialização da
configuração de um ditado, que trama narrativa mostra estruturas

3
ANTUNES, 2007, p. 265.
4
ANTUNES, 2007, p. 376.

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Revista do CESP – v. 27, n. 38 – jul.-dez. 2007

corroídas internamente por fatias, fragmentação, a indeterminação, o


entremeadas de vazios, parecendo relativismo. Apesar de acompa-
fadadas à auto-destruição, ao nharmos de perto a trajetória de
despedaçamento. A forma é ditada Lobo Antunes, não é sem perplexi-
pela lógica interna da obra: dade que lemos mais esse romance,
embora sejam dezenove capítulos no sentido de que ficamos sempre
mais ou menos equivalentes em na expectativa de como o autor
tamanho, as relações entre eles são continuará essa tendência de elimi-
definidas pelo próprio texto, sem nação da trama e de celebração da
nenhuma organização que defina a linguagem, e, sendo assim,
priori o que se pode esperar dos pergunta-nos sempre o que virá a
acontecimentos. Um traço adicional seguir, e aonde isso vai parar. Com
de contemporaneidade é a relação ao prazer da leitura, ao
revelação dos bastidores da envolvimento do leitor, traços
escrita, que apresentam uma sempre presentes nessa escritura
problematização direta do instigante, arriscaríamos dizer que
processo criativo. Considerando Lobo Antunes teve momentos mais
essa tendência de errância e emocionantes nessa que podemos
dispersão, percebe-se que o real chamar fase mais recente, como em
aqui perde seu poder ordenador Não entres tão depressa nesta noite
do texto literário, que recusa o escura e em Eu hei-de amar uma
tempo teleológico. Esse indeferi- pedra. É lícito, entretanto, esperar
mento do referencial coloca em sua tudo deste que é inegavelmente um
ausência a heterogeneidade, a nome superlativo da ficção em
diferença – ou a indiferença –, a língua portuguesa.

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