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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus


de Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)

Disciplina: Curso de Produção Textual


Professor Responsável: Cláudia Trindade de Oliveira

ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli

LOST HIGHWAY; Direção: David Lynch. Intérpretes: Bill Pullman, Patricia Arquette,
Robert Blake. Produção: Asymmetrical Productions. Estados Unidos: October Films, 1997.
DVD (135 min).

O MACHISMO ONÍRICO E A MEMÓRIA QUE SE ESCOLHE: Resenha do filme


“Lost Highway” de David Lynch

Pensar o surrealismo no cinema da virada da década de 1990 para os anos 2000 seria uma
exercício impossível sem levar em consideração duas obras de David Lynch: Lost Highway (1997)
e Mulholland Drive (2001). Em ambas produções, os esquemas narrativos tradicionais são
abandonados em detrimento ao onírico, ao sugestivo e ao simbólico, elementos que dão abertura
para analisar certas subjetividades dos personagens e contextos representados.
Mais especificamente, a obra Lost Highway (no Brasil, A Estrada Perdida) consiste num
neo-noir co escrito com Barry Gifford, no qual um saxofonista de jazz de vanguarda, Fred Madison
(Bill Pullman), é acusado de matar brutalmente sua esposa, Renee (Patricia Arquette), motivado
por uma suposta infidelidade. Enquanto aguarda pelo julgamento, Fred é tomado por intensas dores
de cabeça, passando por uma sangrenta e surreal transformação, na qual se torna Pete Dayton, um
jovem mecânico sem quaisquer vínculos com o casal.
Ainda que seja difícil analisar o filme numa perspectiva cinematográfica tradicionalista,
pode-se dizer que nessa “transformação” se encerra o primeiro arco da obra. Nesses primeiros 50
minutos de filme, o telespectador é inserido na vida privada do casal, um ambiente de cômodos
escuros, frios como a relação dos personagens. A fotografia realça cômodos e corredores que
sugerem tamanhos desproporcionais, que vão aumentando conforme o assassinato se aproxima. Na
falta de grandes monólogos e conversas, o silêncio e os olhares demonstram o ciúme, o cansaço e
a agressividade reativa de Fred Madison, com especial destaque para atuação da atriz Patricia
Arquette, que torna a personagem quase como uma espécie de esfinge guardando algum segredo
sujo.
Como dito, Fred desconfia da fidelidade de sua esposa, mas em momento algum tem uma
confirmação de sua infidelidade, apenas indícios. Não obstante, o abismo sentimental entre os
personagens vai apenas aumentando, tendo como ápice a rápida cena de sexo entre o casal. Lynch
coloca uma carga simbólica poderosa nesse momento da narrativa, pois toda a fragilidade e
insegurança de Fred são evidenciados, com ângulos de câmera que colocam lado a lado a
insatisfação apática de Renée e o amante no auge de sua fraqueza e perturbação, sendo consolado
por leves tapinhas nas costas.
Entrementes, o casal passa a receber macabras fitas de vídeo no batente de sua casa, feitas
por um invasor misterioso gravando tanto o interior da casa, quanto Fred e Renée dormindo. Ao
todo, são três fitas que conspiram para aumentar progressivamente a tensão e o desfecho terrível
presente na última, que Fred assiste sozinho numa manhã. Já no primeiro arco, Lynch dará pistas
de quem é o suposto invasor.
Na festa do amigo (e suposto amante) de Renée, Andy, Lynch presenteia o telespectador
com diálogo surreal e perturbador. Ao pegar uma bebida para Renée, uma figura pequena e
misteriosa chama atenção de Fred. O “Homem Misterioso” (Robert Blake) é uma incógnita do
começo ao fim do filme. Provavelmente, o personagem seria uma representação da consciência de
Fred Madison, pois o sujeito diz conhecê-lo, e ainda por cima de sua casa, lugar no qual se encontra
no presente momento, ao mesmo tempo que na festa. Saca então um telefone portátil, e diz à um
estarrecido Fred para que ligue à sua casa e comprove, o que realmente acontece.
O estranho personagem aparecerá em momentos chave da obra, sempre carregando câmeras
de vídeo ou gravadores. É possível tomar O “Homem Misterioso” como o único portador de uma
suposta verdade na trama, pois as registra em vídeo. Fred, por outro lado, revela uma atitude
aversiva para com câmeras ou fotografias, como pode ser percebido na cena na qual ele e Renée
conversam com dois detetives sobre o suposto invasor. Ao ser questionado, frisa: “I Like to
remember things my own way [...] how I remembered them, not necessarily the way they
happened” 1
Após a bizarra e inexplicável conversa, Fred se retira da festa com uma Renée ligeiramente
bêbada, e é possível perceber uma crescente tensão entre o casal, nesta que será a derradeira noite
do assassinato, que Fred assistirá na manhã seguinte em vídeo-tape. A brutalidade do vídeo é
chocante, com uma Renée desmembrada, sangue por todo o quarto e um Fred totalmente
ensandecido, olhando desvairadamente para a câmera.
Já no segundo arco, o telespectador é praticamente jogado num novo filme. O jovem Pete
Dayton (Balthazar Getty) assume o protagonismo, e tudo leva a indicar que o rapaz é uma espécie
de arquétipo construído pelo enlouquecido Fred Madison. Pete não faz a menor ideia de como vai
parar na prisão, e os policiais, sem qualquer evidência do envolvimento do jovem com o
assassinato, e tão estarrecidos com o desaparecimento de Fred Madison quanto os telespectadores,
o libertam da prisão.
O mecânico Pete Dayton serve como um contraponto importante do personagem de Fred
Madison. Ainda que profundamente confuso e demonstrando uma certa alienação entre sua família
e amigos, é representado como um arquétipo do reativo Fred Madison. Pete é amado por seus pais
e seus amigos claramente se preocuparam com seu “sumiço”. Não obstante, namora uma bela
moça, e possui uma vida ligeiramente mais emocionante que o musicista de jazz avantgarde. Lynch
faz questão de ressaltar a sexualidade de Pete no segundo arco, tanto com sua namorada Sheila
(Natasha Gregson Wagner) quanto com a misteriosa Alice Wakefield. Ao contrário de Fred, Pete
se mostra sexualmente vigoroso e muito bem-sucedido com seus romances.
Ainda que Fred não retorne no segundo arco, uma personagem familiar dará as caras, agora
com outro nome e outra personalidade: Alice Wakefield (Patricia Arquette) affair de um cliente
perigoso da oficina na qual Pete trabalha, Dick “Mr. Eddie Laurent, (Robert Loggia). Aqui, o
telespectador atento acabará lembrando da primeira cena do filme, na qual Fred Madison atende o
interfone de sua casa, no qual uma misteriosa voz diz que “Dick Laurent está morto”.
Alice Wakefield, cujo próprio nome levanta algumas indagações irônicas sobre o caráter
onírico da narrativa, representa uma verdadeira Femme Fatale. Pete é arrebatado pela belíssima

1
“Eu gosto de lembrar das coisas do meu jeito [...] como me lembro delas, não necessariamente da forma
como aconteceram”
loura, pouco se importando com os riscos que essa paixão possa trazer. Após algumas noites
intensas juntos, Alice convence Pete a roubar um associado de Laurent, Andy (o mesmo da
primeira metade do filme, amigo de Renée), para que ambos possam fugir juntos. Este ponto é
crucial na obra, pois Alice revela para Pete que trabalha no ramo de filmes pornográficos.
Pete, no ardor de sua paixão e inocência, segue o plano de Alice, num tour de force que
levará ao brutal assassinato de Andy pelos amantes. Nesse momento, toda a frieza da personagem
é apresentada, enquanto na mansão de Andy, cenas de filmes pornográficos de Alice mostram uma
sexualidade insaciável da personagem, que deve ser comparada a representação sexual blasé de
Renée e Fred na primeira metade do filme. É como se o assassino tentasse justificar sua falta de
libido e incapacidade de satisfazer sua esposa, criando uma Femme Fatale sexualmente insaciável,
por suas inúmeras experiências sexuais, um medo masculino recorrente numa sociedade
heteronormativa e essencialmente machista. Ao criar Alice, Fred cria também pretextos para matar
Renée.
Após a fuga de Pete e Alice da mansão, ambos vão até a cabana de um receptador de bens
roubados que poderia vender passaportes e ajudar o casal a fugir. Num belo plot twist, o
telespectador descobre que o receptador é nada mais nada menos que o “Homem Misterioso”, e
numa onírica cena de sexo no deserto, uma nova transformação acontece, quando Alice sussurra
que nunca pertencerá à Pete: Dayton então se torna novamente Fred Madison, e Alice desaparece
ao entrar nua na pequena cabana. Neste momento, próximo à conclusão, é como se o personagem
tomasse consciência de seus atos, aceitando o fato de que matou Renée e Andy num brutal ataque
de ciúme.
Não obstante, “O Homem Misterioso” frisa para o personagem que não há nenhuma Alice,
apenas Renée, enquanto grava furiosamente Fred com uma câmera de vídeo. Fred foge de carro, e
também armado. Seu destino será o Lost Highway Motel, local onde supostamente estavam Dick
Laurent e Renée, numa cena que parece totalmente fora da linha narrativa e cronológica da obra, o
que faz pensar se não seria mais um construto da mente desvairada do personagem, buscando
justificativas para seu crime. Após invadir o apartamento de Laurent, Fred o espanca e arrasta até
o meio do deserto, e antes de executá-lo, o “Homem Misterioso” ressurge, mostrando um gravador
com cenas sórdidas de Renée e Dick Laurent.
Nesse momento do filme, abre-se a possibilidade de pensar uma suposta traição de Renée,
bem como seu envolvimento na indústria de pornô BDSM de Laurent. Porém, é preciso ressaltar
mais uma vez o fio condutor da obra: a memória de Fred Madison, e a forma como o personagem
quer lembrar e justificar a trama, e não necessariamente o que aconteceu. Pensar numa verdade
objetiva para uma obra “lynchiana” é uma impossibilidade, tal como os sonhos que falham em
mostrar mais que relâmpagos de uma consciência.
Portanto, Alice nada mais é do que uma representação de Renée, pretexto criado por uma
mente perturbada e ciumenta de uma Femme Fatale sexualmente manipuladora, envolvida com
criminosos e com uma indústria de filmes pornográficos. Dos poucos indícios que Fred tem da vida
passada de Renée, obtém combustível para as paranóias de ciúme. A conclusão da obra, por sua
vez, nada mais é do que um retorno à cena inicial do filme. Após matar Dick Laurent, Fred interfona
a si mesmo em sua casa e diz que o sujeito está morto, momento que pode ser entendido como uma
dura tomada de consciência, pois o filme se encerra com uma perseguição numa autoestrada, onde
Fred começa a passar por uma nova transformação, que é interrompida pelos créditos finais.
Em suma, Lost Highway é uma obra dificilmente palatável para fãs de narrativas fechadas,
seja por sua longa duração, ou por seus complexos ritmos narrativos, comuns na filmografia de
David Lynch, fator que exige revisitas cuidadosas e atentas, uma dinâmica nada fácil para uma
geração mais afeita aos blockbusters e cinemas de heróis, bem como às distrações modernas das
redes sociais. Portanto, ao telespectador que pretende se aventurar na estrada perdida de uma mente
desvairada, recomenda-se que preste atenção aos pequenos detalhes, que se sensibilize na
ambiência sonora de Angelo Badalamenti, e deixe de lado qualquer convencionalismo fílmico.
Aqui, a lógica (ou ilógica) dos sonhos se aplica melhor.

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