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24/02/2024, 08:43 A HOMOSSEXUALIDADE COMO SUBTEXTO EM DOIS FILMES DE HITCHCOCK – CHARLES BERNDT – VÍCIO VELHO

VÍCIO VELHO

A HOMOSSEXUALIDADE COMO SUBTEX-


TO EM DOIS FILMES DE HITCHCOCK –
CHARLES BERNDT
EDIÇÃO 13 por REVISTA VÍCIO VELHO - 31/03/2020

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Coluna | Lorca

Hoje gostaria de voltar a falar sobre cinema, sobre a homossexualidade


no cinema e, mais especificamente, a homossexualidade, que aparece
de forma subliminar e alegórica, em dois filmes de Alfred Hitchcock.
Rapidamente, pretendo discutir, ainda, um pouco sobre a homossexu-
alidade, tantas vezes reprimida e escondida, na vida de muitos astros
da indústria cinematográfica.

Comecemos com Rope, um filme de 1948, que no Brasil recebeu o


nome de Festim diabólico. Na trama, temos dois jovens, Philipe Morgan
e Brandon Shaw, que estrangulam um amigo, David Kentley, com um
pedaço de corda. Para provarem a si mesmos que cometeram o crime
perfeito, os dois preparam um banquete, onde recebem diversos ami-
gos, incluindo a noiva e os familiares de David, e servem o jantar sobre
o baú onde o corpo está escondido. Nesta reunião, está presente, ain-
da, o professor universitário Ruppert Cadell, interpretado por James
Stewart, cujas aulas e palestras de modo inadvertido inspiraram o
assassinato.

Desde o início do filme, o modo como Philipe e Brandon se relacionam


evidencia uma relação bastante íntima, repleta de confiança, afetivida-
de e companheirismo. Assim, durante todo o desenrolar da história,
vemos os dois trocarem olhares, alfinetadas, tocando-se de leve, sem
falar nos seus trejeitos, bastante afetados, que apontam para uma ho-
mossexualidade relativamente reprimida. Confesso que desde a pri-
meira vez que assisti ao filme percebi que havia algo a mais ali, que
não era apenas a história de dois lunáticos, que, por esporte e prazer,
decidem assassinar um amigo em comum e correr o risco de serem
descobertos, escondendo seu corpo sob a mesa onde serviriam um fa-
buloso jantar. Aquele corpo escondido, para mim, é o que os dois du-
rante todo o filme tentam esconder: a homossexualidade e o fato de vi-
verem juntos, como um casal, naquele apartamento. O assassinato se-
ria, na verdade, a tentativa de se manterem no armário, de negarem

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aos amigos, à sociedade e ao mundo, reconhecidamente homofóbi-


cos, a real natureza da sua relação[1]. O prazer e o sadismo, sobretudo
de Philipe, de mentir e enganar a todos fica evidente em diversos mo-
mentos, principalmente quando mostra a corda com a qual enforcou
David, como se dissesse: “Vocês se deliciam no local onde cometo meu
crime, meu pecado, comem e bebem neste apartamento cujos hábitos
e modos de vida certamente reprovariam e julgariam se soubessem a
verdade”. De modo diferente, Brandon é aquele que se vê tomado
pelo pânico, a ideia de ser descoberto e ter seu crime exposto o ater-
roriza e mortifica durante todo banquete. Neste jogo de morde e asso-
pra, de mostra e esconde, em que fica evidente a hipocrisia de muitos
convidados, as atuações de Farley Granger e John Dall, que interpre-
tam Brandon e Philipe, respectivamente, não podem deixar de ser elo-
giadas. Uma vez mais, Hitchcock presenteia o público com um filme
minuciosamente bem feito e genial, rico em detalhes e passível de di-
versas leituras.

No fim da trama, de modo previsível, mas bastante coerente, Brandon


e Philipe são descobertos e quem o faz, como não poderia deixar de
ser, é a personagem de James Stewart, que cumpre o papel de repre-
sentar o conservadorismo e a hipocrisia da sociedade dos finais de
1940 e, talvez, da própria indústria de cinema de Hollywood, onde a
homossexualidade ainda era um tabu dos grandes. Desse modo, o
próprio professor Cadell, no seu papel de professor universitário, que
durante todo o filme se mostra um homem à frente do seu tempo, li-
berto de convenções e preconceitos sociais, aberto ao livre pensar, que
havia encorajado, com seu pensamento e suas aulas, Philipe e Bran-
don a cometerem o tal “crime” e, de acordo com nossa leitura, a assu-
mirem quem são de verdade, acaba por revelar sua verdadeira face,
sua hipocrisia, seu conservadorismo, seu preconceito. Então, incapaz
de praticar o que defendia, o professor limita-se a repreendê-los e jul-
gá-los, como se fosse de fato melhor e mais sensato do que eles.

O outro filme sobre o qual vamos tecer alguns comentários se chama


Strangers on a Train, de 1951, conhecido no Brasil pelo nome de Pacto

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Sinistro, cujo protagonista, Guy Haines, também é interpretado por


Farley Granger.

Neste outro longa dirigido por Hitchcock tudo começa em um trem,


onde, na primeira cena, acontece um encontro “sinistro”, uma conver-
sa pouco comum entre dois cavalheiros em um vagão da primeira clas-
se. Guy Haines, um tenista bastante famoso no país, acaba conhecen-
do Bruno Anthony, um homem extremamente desequilibrado, retrata-
do desde o início como uma espécie de psicopata, que propõe a ele
um pacto sinistro, um plano macabro, em que cada um assassinaria al-
guém de quem se quer ver livre. No caso de Haines, essa pessoa é sua
esposa Miriam, de quem quer se divorciar, para poder se casar com
Anne Morton, a filha do senador Morton, o seu patrocinador. No que
diz respeito a Bruno, a pessoa indesejável é seu pai, um magnata, que
deseja internar seu filho em uma espécie de hospício, devido aos seus
hábitos nada apropriados e à sua vocação para arranjar problemas.

A tensão que se estabelece entre Bruno e Guy na primeira cena, no en-


contro no trem, já aponta para o tom homoerótico do filme – há diver-
sas insinuações, seja pelo modo como os dois se olham, pelo modo
como Bruno toca no braço de Haines ou mesmo pela espécie de pacto
que os dois estabelecem, ainda que seja contra a vontade do tenista. A
verdade é que depois do encontro no trem, Bruno passa a perseguir a
personagem de Farley Granger, chegando ao ponto de assassinar, de
fato, sua esposa, Miriam, e chantageando-o, de modo a obrigá-lo a
cumprir sua parte no plano, isto é, matar seu pai.

Assim, partindo para uma leitura mais minuciosa, olhando para o que
está no subtexto, tal como em Rope, o que parece estar em jogo neste
outro filme de Hitchcock não é o pacto que visa dois homicídios, mas o
encontro casual entre dois homens e a chantagem que um deles faz,
ameaçando revelar a verdadeira identidade do tenista Guy Haines, isto
é, a sua suposta homossexualidade ou bissexualidade. A ideia expres-
sa já no título do filme – “Estranhos no trem” [2] – aponta para esse há-
bito bastante comum entre homossexuais, sobretudo em tempos em

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que a homossexualidade era vista como algo anormal e que merecia


ser vivido na clandestinidade. Homens, muitas vezes casados e pais de
família, encontravam-se com outros homens, quase sempre estranhos,
isto é, desconhecidos, em lugares ermos, em ruas vazias dos subúrbi-
os, em parques e lugares escondidos, de modo a viver sua sexualida-
de, seus desejos e taras homoafetivas. Em verdade, ainda hoje, muitas
vezes escondidos em perfis com fotos difusas, em sites e aplicativos
virtuais, muitos indivíduos continuam a esconder-se e a viver uma vida
dupla.

Guy Haines, um atleta de sucesso e reconhecido, então, se vê perse-


guido e chantageado por este homem que conhecera no trem, numa
madrugada qualquer. A sua vida vira de cabeça para baixo. Não é difícil
estabelecer uma relação com o brilhante filme Fatal Attraction (1987),
em que a personagem de Michael Douglas é perseguida por Alex For-
rest, interpretada pela magnífica Glenn Close, colega de trabalho com
quem manteve uma relação extraconjugal durante certo tempo. De
modo muito semelhante, no filme de Hitchcock, quase quarenta anos
antes, Bruno Anthony persegue o tenista Guy, ameaçando revelar o
que tramaram e fizeram naquela noite, no trem.

Há, no filme, diversos momentos que podem ser compreendidos


como homoeróticos: desde breves encontros furtivos e conversas em
cantos escuros das ruas até momentos como a fabulosa cena do car-
rossel, em que Bruno e Guy lutam, rolam no chão, agarrados um ao
outro, brigando para ver quem dominará a situação. No desfecho, tal
como também podemos ver no filme Fatal Attraction, a personagem
“desajustada”, que foge dos padrões de normalidade, é obviamente
punida e o homem branco burguês, casado e medíocre, que se recusa
a reconhecer sua verdadeira identidade e prefere viver uma vida du-
pla, tem sua paz e tranquilidade restabelecidas, e pode enfim retomar
sua vida infeliz, ao lado da mulher que não ama, mas usa para manter
sua máscara exigida pela sociedade – tudo ficará bem, pelo menos até
um novo encontro sinistro e proibido, talvez no trem, no ônibus ou
mesmo no trabalho.

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Pergunto-me, por fim, se ainda hoje temos filmes ou mesmo obras li-
terárias[3] que continuam a tratar da homossexualidade desta forma
velada, implícita, como algo a ser escondido ou, no mínimo, tratado
com discrição. A resposta parece ser positiva. Ouvi falar, recentemente,
de um filme nacional de bastante sucesso que, apesar de tratar aber-
tamente sobre uma relação homossexual, em nenhum momento, nem
mesmo na cena do casamento, vemos um beijo gay. Pergunto, intriga-
do, que tipo de casamento heterossexual acontece sem um beijo, sem
esse tradicional e costumeiro gesto que sela um compromisso conju-
gal? A homofobia, então, parece que não saiu de moda e continua en-
tre nós. A genialidade de um Hitchcock que conseguia falar sobre um
assunto proibido e execrado pela sociedade de mais de cinquenta
anos atrás contrasta, de modo claro, com a sociedade atual, que se diz
tantas vezes progressista, gay friendly, mas que faz cara feia para uma
cena de afeto entre dois homens ou se recusa a reconhecer que é ho-
mofóbica e preconceituosa ao apoiar discursos que não só humilham
gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais, mas que potencializam e in-
centivam todo tipo de agressões e crimes de ódio. Nesse sentido, con-
cluo o texto elogiando pessoas como o ator Farley Granger, o astro dos
dois filmes analisados acima, que teve a coragem de assumir e viver
sua homossexualidade e, inclusive, já no fim da vida, em 2008, publi-
car com a ajuda do seu companheiro uma biografia, Include Me Out,
em que fala sobre o assunto abertamente. Fica, ainda, a sugestão de
dois documentários fantásticos, The Celluloid Closet (1995) e The Silver
Screen: Color Me Levender (1997), que discutem e mostram como a ho-
mossexualidade está presente no subtexto de muitos clássicos de
Hollywood.

_______________________
[1] Impossível não lembrar, por exemplo, do filme franco-italiano La
Cage aux Folles (1976), dirigido por Édouard Molinaro – ou de Birdcage
(1996), seu remake estadunidense, dirigido por Mike Nichols –, em que
temos um casal homossexual que também precisa esconder sua ho-

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mossexualidade por conta de algumas pessoas que vão receber em


sua casa.

[2] Como não lembrar do nome de outro filme, em que a homossexua-


lidade aparece de forma explícita, L’Inconnu du lac (2013), conhecido no
Brasil pelo nome Um Estranho no lago?

[3] É importante mencionar o romance Cloro, publicado em 2018 e in-


dicado ao Prêmio Jabuti de 2019, do escritor Alexandre Vidal Porto,
que traz a história de Constantino, um homem de meia idade, que nar-
ra, após sua morte, sua vida armário, os conflitos do homossexual re-
primido e que não consegue viver com plenitude a sua sexualidade.

_______________________
Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em lite-
ratura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda
não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro
possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.

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