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Bem-vindo

ao inferno, Peter

Ele sentia um calor estarrecedor. Sentia o suor escorrendo por sua testa e,
quando abriu seus olhos, aquele alaranjado feroz fez sua vista arder e queimar.
Queimando... era exatamente isso que estava acontecendo com sua pele. Ele
estava queimando aos poucos e soube imediatamente que o forte cheiro de
podridão estava vindo do seu próprio corpo.
Peter olhou para suas mãos e viu o fogo caminhar por seu braço, subindo e
subindo por toda a extensão. Então, ele gritou, sentindo uma dor descomunal.
Peter sempre teve medo do fogo, nada lhe parecia mais terrível do que morrer
pelo calor.
Mas, ele já estava morto, não!?
Ele se lembrava de quando comeu a carne envenenada, de quando seus pulmões
pareceram estar sendo esmagados e pisoteados.
Oras, como ele podia estar morrendo novamente?
Peter logo conseguiu distinguir que estava no inferno. Quando vivo, essa era a
única certeza que ele tinha, sabia que quando morresse sua alma seria levada
pelas trevas.
Ele não foi uma boa pessoa quando estava no mundo. Peter soube se aproveitar
da beleza das garotinhas... Ah, sim. Ele soube degustar da inocência de cada uma
delas.
— Da inocência delas...— ele ouviu uma voz repetir.
— Quem está aí!? — Peter perguntou, tentando apagar o fogo que o consumia
lentamente, ao passo em que gritava, agonizando com as queimaduras pelo
corpo.
Ouviu uma risada. Uma risada ingênua, mas com uma leve malícia.
De repente, o fogo que antes tentava engoli-lo se apagou. Até mesmo a dor foi
embora. Agora tudo era tão escuro que Peter não conseguia enxergar um palmo a
sua frente. Ele percebeu imediatamente que a escuridão era ainda mais
aterrorizante que a própria brasa.
— Você brincou com a gente. Agora é a nossa vez de brincar com você. — Não
foi apenas uma voz que disse isso. Peter teve a impressão de ter ouvido pelo
menos três timbres diferentes. Ele conhecia aquelas vozes. Ele também tinha
certeza de conhecer aqueles odores de pureza.
— Eu já estou morto. Não há nada que eu deva temer — Peter falou. Ele mentiu
para ele mesmo. Muito embora ele não fosse religioso, acreditava quando diziam
que os pecadores sofriam com seus pecados mesmo depois de mortos.
As crianças deram outras risadas e dessa vez Peter sentiu pavor.
— Podemos sentir o cheiro do seu medo — disse uma das vozes. Peter
reconheceu aquela voz. Ele se lembrou perfeitamente de como a matou.
Lembrou-se de quando suas mãos percorreram aquelas pernas esbranquiçadas da
garota. De quando a sufocou com seu prazer carnal.
— Bianca. Quanto tempo, docinho — ele murmurou, tentando enxergar alguma
coisa que fosse por detrás daquele breu todo. — O que está fazendo no inferno?
Não foi uma boa garota?
Ele riu do seu próprio comentário.
— Não estamos no inferno e você não está morto. — Bianca falou, com sua voz
doce e gentil.
— Claro que estou morto. Seu pai me envenenou...
A criança soltou uma gargalhada espontânea e isso deixou Peter terrivelmente
preocupado e confuso sobre tudo que ele acreditava ter acontecido no dia da sua
morte. Ele lembrava-se perfeitamente de quando James, o pai de Bianca, disse
tê-lo envenenado. Lembrava-se de quando a escuridão sufocante o acolheu. De
quando começou a sufocar.
Não lembrava?
— Se não estou morto, então onde estou!? — ele perguntou, a voz falhou com
receio da resposta.
Houve poucos instantes de silêncio. Um silêncio agonizante.
— Não consegue sentir o cheiro de terra molhada? Não consegue sentir as
larvas comendo sua carne podre? — Foi outra garota quem perguntou. Era
Verônica, Peter recordou-se dos minutos com ela, lembrou-se exclusivamente do
seu choro escandaloso ao passo em que ele segurava seus pulsos acima da
cabeça para imobiliza-la e arrancar suas peças de roupa.
Peter não estava sentindo cheiro de terra molhada e também não sentia as larvas
comendo as carnes dos vãos dos seus dedos dos pés...até aquele momento.
Ele começou a sentir, tudo ao mesmo tempo. Rapidamente se deu conta de que
estava deitado e de que sua fonte de oxigênio estava limitada. Percebeu também
o pavor que ele tinha só em pensar que talvez... talvez os médicos tivessem se
enganado e que ele não estivesse morto quando foi enterrado. Para Peter, essa
também era uma das maneiras mais terríveis de morrer.
— Qu-e lugar é esse? Por que não consigo respirar? — ele perguntou e gemeu.
Usou suas mãos para tatear o vácuo. Seus dedos tocaram a madeira fria.
Um caixão? Pensou Peter. Que espécie de loucura era aquela?
As larvas deslizavam por sua perna, ele sentia algumas saindo da sua carne e
outras entrando; chacoalhou seus pés para tirar os insetos do seu corpo, mas eles
estavam grudados em seus dedos feito carrapatos. O devorando lentamente.
— O que foi!? O medo começou a tomar conta de você? — murmurou Bianca, e
pareceu ter feito isso bem próximo do ouvido de Peter. Ele podia jurar ter
sentido o aroma dela.
— Me tire já daqui!! — ele gritou, esmurrando seu próprio caixão. — Onde
vocês estão? Por que não vejo vocês?
— Estamos dentro da sua cabeça, da mesma forma que nossa inocência ficou
dentro de você quando você as roubou — disseram as três crianças juntas.
Peter gargalhou feito um louco ao ouvir aquilo.
— Eu estou em um pesadelo...logo eu...
— Você disse isso ontem — interrompeu Verônica.
— Disse também na semana passada — comentou Bianca.
— E ano retrasado — completou o garoto.
Oras, Peter também gostava de garotos e Mike fora o primeiro que Peter
havia...tocado.
Sim, Peter se lembrou de quando isso aconteceu, há tantos e tantos anos.
Recordou-se do boné vermelho que o menino estava usando naquele verão
quente, da regata azul escuro e da bermuda até os joelhos. A sensação estranha
que sentiu, do prazer desconhecido até então. Ele sabia que era errado as reações
que estava sentindo, mas seus olhos não conseguiram desviar daquele pequeno
garoto correndo no gramado e, quando as grandes mãos de Peter finalmente
tocou aquela pele aquecida pelo sol, ele sentiu o êxtase mais intenso de todos
que havia sentido. Era errado, Peter tinha consciência. Mas ele continuou ainda
assim.
Peter estava vagando até suas lembranças perversas e perturbadoras, mas quando
tornou a realidade sufocante em que estava, se deu conta do que Mike havia dito.
— Ano retrasado!? — Peter questionou. — Há quanto tempo estou aqui?
— Quinze anos — zombou as crianças — Ou talvez vinte.
— Estou realmente morto? — a voz de Peter tremeu feito a de uma criança com
medo de bicho papão.
Elas riram, todas ao mesmo tempo.
— Você não está morto. Você está no inferno e no inferno você nunca morre de
verdade — disse Bianca, sua voz quase cantarolava. — Você renasce para
queimar de novo e de novo...
— Você mentiu para mim!
— Você também mentiu quando disse que não doeria — falou Mike. Ah, o
pequeno Mike sabia como entrar na mente de Peter.
— E-eu não queria machucar vocês...mas vocês choravam e choravam como se
estivessem...
— Morrendo — completou Bianca. — Nós estávamos mesmo morrendo. Você
nos matou.
A dor das lembranças consumiu sua mente, o golpeou com a força de um
chicote. Peter ouviu quando uma das crianças sussurrou ao pé do seu ouvido:
— Bem vindo ao inferno novamente, pecador.
Peter sempre teve medo do que diziam sobre o inferno. Tinha horror daquele
fogo que eles diziam queimar eternamente, medo dos gritos agonizantes que
diziam haver lá. No entanto, Peter nunca achou que o inferno em que sua alma
estaria seria o que ele mesmo criou quando vivo. Agora, ali, ele estava
queimando em seus próprios pecados mentais e compreendia que isso era muito
pior do que qualquer fogo derretendo sua pele.
Ele chorou, desesperadamente e elas disseram:
— Não chore. Não irá doer.
Mas elas mentiram.
No inferno todos mentem.

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