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Capítulo ?

Não era uma tarde chuvosa, mas... estava para ser.


O céu estava avermelhado, como se fosse um mar de sangue, e as nuvens
estavam num tom de cinza escuro, preparadas para um possível dilúvio.
Aos arredores, todos os sons possíveis eram engolidos pelos inúmeros
barulhos de espadas colidindo, gritos de ódio e sei lá o quê mais pudesse estar
acontecendo nesse local amaldiçoado. Sinceramente... eu odiaria estar na pele dele
neste exato momento. Caído, no meio disso tudo, sem forças, ou até mesmo sem
vontade alguma de se levantar novamente... apenas observando manchas
avermelhadas voarem de um lado para o outro, como se naquele instante estivesse
rolando uma briga de tomates frescos, mas, esse não é o caso.
O mesmo está para morrer se não fizer nada. E para aqueles que ainda não
entenderam a situação... não se trata de tomates, mas sim sangue. O cheiro
metálico é estonteante, eu sei, mas, nada se compara a ter de sentir tal cheiro
enquanto você vê de forma clara e sem cortes — desculpa o trocadilho infame — o
que está gerando isso.
Corpos humanos são bem frágeis, eu sei, mas... não imaginava que monstros
também possuíssem uma fragilidade dessas. Suas peles grossas nem ao menos
tem chance contra as lâminas, que os retaliam como se aquilo não fosse nada
demais. Um braço, uma perna, até mesmo as cabeças deles são retiradas de seus
corpos como pecinhas de Playmobil. Desculpa a analogia... sei bem que aqueles
amarelados não sangram, mas, foi a primeira coisa que me veio à cabeça.
“Eu preciso me levantar...”
É, eu sei colega. Sei que você precisa se levantar, mas é complicado... ainda
mais quando se tem um ser humanoide com cabeça de javali vindo em sua direção,
com uma lança ensanguentada em mãos e os olhos possuídos pela fúria. Também
é claro que suas duas ou três costelas quebradas não o ajudam, sei bem como isso
pode incapacitar uma pessoa.
“Está acabado.” —, pensou o nosso colega enquanto observava tal criatura
urrar furiosamente, enquanto erguia para o alto sua lança, preparando-se para
acertar sua vítima.
Tão rápido quanto um flash, nem se pôde perceber ao certo como aquele javali
fora acertado e agora estava caído no chão. Um vulto passara tão depressa que
nem mesmo eu consegui ver o que aconteceu direito.
— Toya? —, disse um jovem pardo de cabelos ralos enquanto estendia à sua
mão para ajudar nosso colega caído a se levantar. — Todos se separaram... que
bom que ainda está vivo.
— Sinceramente? Preferiria estar morto. Essa dor que estou sentindo é
descomunal. — Reclamou Toya.
— Não diga essas coisas... você sabe que todos iriam ficar em prantos se você
morresse.

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— Desculpa. Foi só uma forma ruim de me expressar. — Disse mostrando
uma feição de dor.
— Venha aqui, deixe-me ver se consigo fazer-lhe algo. — Aproximando-se de
Toya, o jovem pôs sua mão em cima de suas costelas quebradas e aos poucos,
aquela feição de dor foi desaparecendo.
— O que você fez? —, indagou Toya surpreso.
— Nada de mais, apenas absorvi um pouco de sua dor para mim. Agora deve
estar suportável para andar até o nosso posto seguro mais próximo. — Vamos.
Ficar nesse campo aberto é como assinar nossa própria sentença de morte.
Ao terminar sua frase, uma flecha passou zunindo entre suas cabeças, coisa
que o fez ficar em alerta novamente.
— Apenas abaixe-se! —, gritou enquanto desferia um soco contra o chão que
acabou desnivelando o solo, levantando então uma parede feita de rochedos que
serviu de proteção para os dois naquele instante. — Eu e minha boca grande.
— Pelo menos a mira dessa pessoa não está em dia. — Disse Toya, com um
sorriso nervoso ao rosto.
— Não podemos ficar aqui para sempre.
— E odeio isso ser a nossa realidade, sabe? —, bufou.
Vindo de cima, atravessando a parede de rochedos e então caindo aos pés dos
dois, uma granada de fragmentação continuou rolando até que estivesse cozinhada
o suficiente.
— Mas que por... —, praguejou Toya e em uma fração de segundos ambos
saíram voando por conta da explosão.
De repente, um clarão. Sua visão estava turva e o corpo formigava, não tão
longe também dava para se escutar um barulho como se estivessem chamando por
ele, mas, seus tímpanos estavam danificados e nada mais podia ser escutado de
forma clara.
— TOYA! —, com um grito ao fundo, sua visão foi escurecendo mais e mais
até que seus olhos se fecharam completamente.

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Capítulo 1

— Toya? —, chamou-o uma voz feminina suave.


Assustado, o jovem garoto de cabelos ruivo-alaranjados acordou num pulo.
Virou-se em direção da voz e viu sua mãe sentada ao seu lado, com uma feição
preocupada.
— Você estava tendo um pesadelo... está até suando. — Disse ela.
Seus olhos azuis, frenéticos, percorriam da esquerda para direita analisando
o local onde ele se encontrava agora. Eram assentos acolchoados, reclináveis.
Várias janelas para cada dupla de assentos onde também havia pequenas
persianas que os protegia do sol. Um longo corredor para onde levava até a saída,
logo na extrema ponta da frente. Sim, um ônibus de viagem, para aqueles que
ainda não se situaram.
— Por quanto tempo estive dormindo? —, indagou Toya.
— Uma hora no máximo. Acabamos de sair da estação, mas, parece que houve
um problema no motor e acabamos parando na primeira estação que conseguimos.
— Paramos faz alguns minutos, para ser precisa. — Disse olhando para o seu
relógio de pulso.
— Ah sim...
— Por que não vai comprar alguma coisa para comer? Aproveite para ir ao
banheiro se quiser, nossa próxima parada seria só daqui a três horas de viagem.
Toya balançou sua cabeça assentindo, logo levantando-se e saindo do ônibus.
“Alguma coisa para comer... com esse tão pouco de dinheiro não sei se vou
conseguir comprar algo decente.”
Ao seu redor, haviam várias barraquinhas de comida sendo elas de: pipoca;
cachorro-quente; algodão doce, entre outros mais. Apenas coisas saudáveis, sabe?
Mas o que foi escolhido por Toya foram os cachorros-quentes e por sorte, talvez
apenas por conta de um roteiro não tão bom, eles não custavam tão caro.
— Vou querer dois. — Disse Toya, entregando o dinheiro ao vendedor.
Era algo simples, pão, salsicha, um pouco de molho e batata-palha. O pão não
estava murcho, e tudo parecia estar numa quantidade até que bem aceitável pelo
preço, coisa que era de se estranhar. Não julgando comidas de barraquinhas ou de
rua, mas, convenhamos, se não for num preço alto, a qualidade do produto é sim
questionável.
De repente um estrondo, logo seguido de uma explosão.
BOOM!
Um dos ônibus havia explodido e agora inúmeras pessoas estavam correndo
desesperadas, gerando uma balbúrdia. Ao fundo, um grunhido estranho, mais
parecendo um mugido? E tremulações no solo ocasionadas de forma ritmada, como
se algo muito grande e pesado estivesse andando ali perto.

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“Mãe!” —, vociferou Toya, internamente.
Largando o segundo cachorro-quente e então correndo para onde o seu ônibus
estava estacionado, nada mais que uma cortina de fumaça feita pelo fogo rodeava
o local. O cheiro da fumaça estava insuportável, tendo Toya que subir um pouco
sua camisa até o nariz para “conseguir” respirar um pouco.
O chão tremia cada vez mais e mais, enquanto Toya adentrava aquele mini-
inferno e o grunhido ficava cada vez mais alto. As chamas agora estavam mais altas
e estava ficando cada vez mais difícil a sua passagem.
“Eu tinha certeza de que era por aqui... ah, Jesus...”
Toya havia sim achado o ônibus, mas junto dele, encontrou também algo que,
sinceramente, não é tão agradável de se ver. Os corpos já mortos, em carne-viva,
caídos em frente à escadinha do ônibus. Foram pegos na explosão do ônibus ao
lado quando estavam tentando sair. O cheiro não era nada agradável, mas, Toya
precisava passar por eles para adentrar o veículo.
Tomando cuidado com as chamas, em um salto, Toya passou do chão para a
escadinha do ônibus, pisando na perna de um dos mortos.
“Foi mal.” —, seguindo veículo adentro, gritou: — MÃE?!
Às pressas, foi até a sua direção, logo tentando ajudá-la a se soltar do cinto
que havia emperrado. O chão tremia cada vez mais, de forma mais rápida e brusca,
mas, isso não era foco de Toya agora.
— Mãe... você está bem? —, indagou Toya extremamente preocupado.
— Estou sim... apenas com a coluna doendo, por conta da movimentação
brusca do ônibus, mas, o cinto me ajudou bastante. — Ela riu. — Por essas coisas
que eu digo para você sempre colocar o cinto.
Sua calma era desumana para a situação em que se encontrava, mas, isto era
algo normal vindo da mãe de Toya. Sempre positiva, serena, rara as vezes se
estressava e quando acontecia, durava no máximo cinco segundos.
— Acho que eu devo ter uma tesoura em minha bolsa... não estou conseguindo
te soltar de jeito nenhum... —, disse Toya.
— Respire, se acalme... vai dar tudo certo, está bem?
Revirando os bolsos de sua mochila, Toya ia jogando as coisas para fora em
busca de uma tesoura, pastilhas, sua escova de dentes, roupas, uma toalha, mas
nada de uma tesoura. Quando se lembrou de um estilete que sua mãe estava
usando mais cedo para moldar um pedaço de madeira, um hobby dela.
Quebrando a ponta mais velha e abrindo um pouco mais o estilete, Toya
cortou o couro do cinto e logo estava ajudando sua mãe a se levantar.
— Vamos! —, disse ele dando seus ombros como apoio para sua mãe.
Mas nesse mesmo instante, os dois ouviram uma respiração pesada, seguida
de uma bufada. Ambos pararam por um segundo, até que pensaram estarem
apenas ouvindo coisas. Só que o ônibus estremeceu e ambos tombaram para o
lado. Os tremores haviam parado, mas, logo ouviram um grunhido ensurdecedor.

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Por uma das únicas janelas que estavam abertas, sem a persiana, deu-se para
notar um enorme braço que possuía uma pelagem de cor marrom em cima da mão.
Novamente o ônibus se estremeceu de forma brusca e o nervosismo de Toya
apenas aumentou. Agora segurando o braço de sua mãe de uma forma mais firme,
o mesmo começou a andar bem mais rápido em direção à saída, mas, foi em vão.
Ouvindo um último grunhido, ambos caíram no chão com o estremecer do
veículo, então choraram-se contra o teto. O ônibus agora estava sendo virado e
manipulado como um brinquedo de criança. Os vidros quebraram, e agora apenas
deu-se para ver um enorme olho espiando pela janela. A criatura agitou-se ainda
mais ao localizar Toya e sua mãe, erguendo o ônibus para o alto com suas enormes
mãos e então penetrando a carcaça do veículo com seu chifre.
— Temos que correr! —, vociferou Toya, tentando conseguir equilíbrio para se
levantar.
Olhando pelo buraco deixado pela criatura, Toya teve uma perfeita visão do
monstro. Um dorso humano, musculoso, ombros largos com mãos e braços
enormes, pernas peludas, sendo ao invés de pés, cascos. Um focinho alongado com
um enorme piercing — argola — no nariz, chifres afiadíssimos na cabeça e olhos
bem escuros que se encontraram com os de Toya.
O mesmo pensou que iria ser engolido por aquele olhar penetrante, o medo
agora corria junto às suas veias e sim, ele estava paralisado. Tão petrificado a ponto
de não conseguir ouvir os chamados de sua mãe, que clamava de forma
desesperada. Os momentos passavam em câmera lenta para Toya, que sentiu o
braço de sua mãe sair de seus ombros, logo chegando ao seu peito. Sentiu um
aperto, mas, tinha sido um empurrão. O chifre daquele homem-touro gigante
passou raspando pelo peito de Toya, que logo caiu no chão, vendo a pior cena
possível acontecer em sua frente.
— Mãe...?
O sangue escorria lentamente e pingava no chão. Empalada, ainda
suspendida no ar, a mãe de Toya não se movia mais. Sem poder agir, nem mesmo
tendo forças para gritar, ele continuou ali no chão do ônibus, paralisado, enquanto
a criatura removia o seu chifre dos escombros e então preparava-se para mais um
ataque. Até que se deu para ouvir vozes vindo de fora do veículo.
— Cerquem-no! —, era uma voz masculina imponente. — Não o deixem atacar
novamente!
Tratavam-se de quatro pessoas que vestiam ternos pretos como agentes da
CIA. Dois deles rapidamente se posicionaram atrás do homem-touro e então
esperavam a ordem de seu capitão para agirem.
— Movimentação B-A, instrumentos a vontade! —, disse o mesmo de antes e
de repente, todos começaram a usar os ônibus (ou o resto deles) como terreno.
Pulando de um lado para o outro, a criatura não conseguia acertar-lhes golpes
ficando cada vez mais furiosa e confusa. Duas das quatro pessoas portavam rifles
onde iam dando acertos precisos contra o monstro enquanto ainda estavam se
movimentando pelo ar. Um terceiro tinha métodos mais antiquados, carregando
em mãos uma enorme espada, na qual mirava nas juntas dos joelhos de seu alvo.

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Pendendo para frente, o homem-touro caiu de joelhos no chão, logo recebendo
um tiro dos rifles, um em cada olho forçando-o a colocar suas mãos no rosto
enquanto gemia de dor. Finalizando, os três pularam afastando-se, e o último
homem — capitão dos três — ergueu sua mão esquerda para o alto e num clarão
sem fim, que não permitiu a ninguém ver o que realmente tivera acontecido,
atravessou o peito do monstro, que caiu morto no chão.
— Belo trabalho, capitão Lucian. Foi um excelente golpe. — Disse um de seus
companheiros de equipe.
— Agora não é hora para comemorações, vasculhem o local por possíveis
sobreviventes, comecem por este ônibus que ele estava focado. — Disse Lucian.
Ao entrarem, logo avistaram duas vítimas próximas ao local que o homem-
touro havia atacado e um dos homens gritou avisando ao seu capitão, Lucian.
Chegando mais perto, notaram um jovem garoto todo ensanguentado abraçado à
sua mãe, que tremia de medo.
— Está tudo bem com você? —, indagou um dos homens agora agachado, para
se comunicar com Toya, mas, não se teve resposta.
— Ele está em transe... —, disse Lucian, que havia acabado de subir no
ônibus. — Podem sair, eu mesmo irei leva-lo para fora.
Lucian colocou Toya em seus braços, logo notando que a feição do garoto
estava horrível e seus olhos cheios de lágrimas. Sua camisa estava rasgada no
peito, com um corte feio no mesmo. Ele fungava o nariz, mas, não conseguia dizer
uma palavra sequer, tremia e tremia, enquanto Lucian repetia, sussurrando ao seu
ouvido: “Está tudo bem agora... vai ficar tudo bem... não se preocupe...”.

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