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MODA E ANCESTRALIDADE

Lúcia Tavares Leiro


Doutora em Letras/Universidade do Estado da Bahia

“Os africanos começaram a produzir sua própria roupa, a partir de


matérias-primas locais, e com o tempo essa passa a ser a roupa não
só do escravo, mas também a do colono” (...) “Isto está relacionado
com a origem étnica dos africanos trazidos para o Brasil. Na Bahia,
por exemplo, a maior força da cultura iorubá se tornou a grande
referência no vestuário, mas as nossas roupas são muito diferentes
das africanas da mesma etnia. Aqui não temos aquelas mangas
volumosas, as formas de amarrar os turbantes são diferentes” (Julia
Vidal apud VIRGÍLIO, 2016)

Resumo: o artigo aborda, a partir do conceito de ancestralidade e da linguagem como discurso, a


moda com base em três peças do vestuário – turbante, túnica e chita. Partindo deste ponto,
destaco e situo cada uma desses elementos ancestrais em diferentes usos, analisando as peças
inseridas na história e na cultura afro-brasileira. Ressalto ainda a moda como hábito e como
discurso, representação e, por isso, um elemento mediador importante nas construções e
negociações identitárias.

Palavras-chaves: moda – ancestralidade – turbante – túnica – chita

O estudo da moda tem sido objeto de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento,


incluindo a área de Letras cujos pesquisadores vêm desenvolvendo interesse pelos
estudos das linguagens e de suas interseccionalidades. A moda, essa segunda pele que
significa e é significada, que ora é inscrita como revelação das identidades, ora como
performance no jogo das relações, é ainda vista com desconfiança por acadêmicos, com
o argumento de que o assunto é irrelevante à ciência. Entre as feministas da segunda
onda, a moda também goza de pouco prestígio porque vista como um dos setores que
mais violenta a mulher já que, segundo esta leitura, a indústria da moda esculpe o corpo
idealizado e desejado pelos homens para submeter a mulher a um jogo especular que a
confina em si mesma. Com tantos discursos desanimadores, por que eu, acadêmica de
formação feminista, resolvo trazer a moda para o centro das pesquisas científicas e de
uma perspectiva feminista e ancestral? É a partir do conceito etimológico de modus, isto
é, maneira das pessoas se comportarem e, no nosso caso, se vestirem, é que proponho
um estudo criterioso sobre a linguagem visual do vestuário, para pensar como intervir
ideologicamente, politicamente nas práticas socioculturais a partir dos textos visuais.

Como linguagem, a moda é um lugar discursivo, intersemiótico, que cumpre o papel de


mediadora, de negociadora entre o sujeito e o mundo nas mais diferentes práticas
sociais. Enquanto discurso, a moda se faz na história, dialoga com outras textualidades,
podendo agir como mediação conservadora ou transformadora, a depender de como os
sujeitos de moda e a crítica a interpretem. Como realização intersemiótica, a moda faz
uso de códigos diferentes de linguagens – música, artes plásticas, dança, fotografia,
cinema- tornando-a complexa e multissensorial. Estes elementos fazem da moda, do
habitus de se vestir, um ritual de linguagens.

Ao usar o termo 'discurso', proponho considerar o uso de linguagem


como forma de pratica social e não como atividade puramente
individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias
implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma
forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente
sobre os outros, como também um modo de representação
(FAIRCLOUGH, 2001, 90-91)

Com isso, apresento a moda como lugar de disputas onde as ideologias, as identidades,
as corporalidades e suas performances são materializadas, historicizadas, modificando
os sujeitos e sendo também modificada por eles. É com esta dimensão sobre a moda e a
sua textualidade performática ancestral que me detenho nas próximas linhas, enlaçando-
a ainda a aspectos epistemológicos, sociais e históricos que a fazem ser um rito
dinâmico, em constante diálogo com a tradição, atualizando-se sem perder os seus
princípios.

Antes de adentrar nas questões mais específicas sobre Moda e Ancestralidade com base
nas produções da Afrobrasilidades, marca baseada em túnicas e turbantes feitos de
chitas, considero oportuno trazer as bases epistemológicas que legitimam a escolha do
objeto e a metodologia adotada. Falar da minha própria criação não é um exercício fácil
ou comum na academia porque a tradição científica, construída com base no
pensamento da modernidade, nos legou alguns axiomas seculares, e um deles exige que
o sujeito e o objeto estejam distantes, separados entre si. A partir dos anos 60 do século
passado, pesquisadores(as) de diferentes campos de enfretamento político e intelectual,
a exemplo das feministas, iniciaram um árduo processo de identificar as razões da
invisibilidade das mulheres nos espaços institucionais e, também, de alguns temas, bem
como os postulados que validavam o discurso da crítica que elegia uns em detrimento
de outros. No caso das feministas, uma das constatações era que esta tradição foi erigida
por homens e os seus juízos pautavam-se em suas vivências e interesses, fortalecendo a
sua imagem e protagonismo. Portanto, a crítica ao establishment vinha dos coadjuvantes
que não faziam parte ou não se reconheciam no código vigente. Eram feministas,
colonizados, imigrantes, que, relendo o discurso da modernidade, começaram a falar de
“relações de gênero”, “patriarcalismo”, “pós-colonialidade”, “micropoderes”, “ordem
do discurso”, “micronarrativas”, “decolonialidade”, “ancestralidade” para colocar o
fundamento da modernidade em xeque ao mesmo tempo em que a superava com
epistemologias que apontavam para releituras do cânone e para leituras das vivências
não contempladas pelas metanarrativas. A ideia de uma realidade construída por
discursos, por performances e não como verdades transparentes, rasurou a centralidade
fixa, para inserir a ideia de diferentes núcleos em movimento, em constante disputa por
lugares de poder, de visibilidade. Questionou-se, radicalmente, os postulados da
modernidade pautados na objetividade, na neutralidade e na universalidade, pilares
sobre os quais foi construído todo tipo de premissas e taxionomias da cultura ocidental.
É a partir deste lugar da crítica que sujeito e objeto passam a ser vistos como uma coisa
só, e os enunciados, visuais ou não, como construtos discursivos por meio dos quais as
ideologias se materializam e são inscritas nas disputas de poder pelos sujeitos.

Desta forma, estudar a moda a partir das criações que produzo me define como
produtora de cultura, neste caso cultura de moda ancestral, afro-brasileira, de crítica,
isto é, de alguém que busca fundamentar a análise desta produção a partir de categorias
científicas. Este recorte exige uma postura política desafiadora de produzir moda a
partir das identidades e das memórias dos povos tradicionais, e uma postura intelectual,
já que embasada em postulados éticos e estéticos que explicam esse movimento de
escrevivência, isto é, quando a escrita é fruto da vivência do sujeito, termo cunhado pela
escritora Conceição Evaristo, que uso para me referir ao gesto de falar das peças que
produzo, um dos objetos de minha pesquisa.
A TÚNICA

A túnica e do turbante são duas peças de vestuário extremamente importantes para a


cultura afro-brasileira. A túnica é uma peça muito conhecida no mundo da moda, pois
foi (e é) bastante usada por diferentes culturas. Como a história das indumentárias se
insere como linear e evolutiva, a túnica aparece mais ostensivamente nos períodos
antigo e medieval da história do Ocidente, sob o protagonismo dos sujeitos europeus
(embora a túnica fosse amplamente usada no Oriente Médio, Ásia e África). O contato
com os povos islâmicos, através da Turquia, graças ao poderio do Império Otomano que
se expandiu em direções diferentes, abarcando parte da Rússia, da Europa e da África,
rota bastante conhecida entre os europeus, fez deste trajo, peça de modelagem simples,
uma indumentária pomposa e luxuosa, com funções sociais diversas, informando
basicamente a classe social da pessoa, o gênero, a idade, o cargo, entre outras
significações dentro das práticas sociais de cada grupo. A aproximação entre os países
da Europa e o Oriente Médio fez a túnica islâmica (de origem turca, sobremaneira) ser
remodelada para vestir as mulheres e os homens europeus, como bem mostra o livro A
Roupa e a Moda, uma história concisa, de James Laver:

“O rei declarou ontem no Conselho sua resolução de estabelecer uma


Moda para as roupas , que ele nunca vai alterar”. Em 15 de outubro
comenta: “hoje o rei começou a usar sua túnica e vi diversas pessoas
da Câmara dos Lordes e também da Câmara dos Comuns, grandes
cortesãos, usando-a: é comprida, justa, de tecido preto ou recortado,
com seda branca por baixo e um casaco por cima, as pernas
guarnecidas com titãs pretas como as de pombo; e, sobretudo, espero
que o rei mantenha, porque é um traje muito fino e bonito”. (PEPYS
apud LAVER, 114, 2014)

A citação de Pepys extraída do seu diário e citada por Laver em seu livro, mostra a
moda turca incorporada ao cotidiano europeu, neste caso à Inglaterra, em decorrência da
aproximação cultural entre os dois registros. O que o livro de Laver não deixa explícito
é o contexto, isto é, porque os ingleses passaram a usar a túnica, já que a moda está
intimamente relacionada com o expansionismo cultural de grupos culturais e com a
política. Com base em dados históricos, é importante destacar que no século XVII o
Império Otomano está em crescimento - a sua dissolução acontece no início do século
passado - e que os conflitos entre os países eram inevitáveis em função do
expansionismo da cultura islâmica no mundo. O império turco ocupou diferentes
regiões, mostrando o poderio militar e político deste grupo, e fazendo com que, a partir
deste alargamento, a sua estética também fosse incorporada às conquistas.

Este contexto é importante para mostrar que a moda não pode ser analisada sem a
enunciação, sem observar as práticas sociais, o que lhe confere uma textualidade e,
portanto, um discurso. Da mesma forma que a resposta dos sujeitos ao prazer estético de
uma indumentária, não pode ser desmerecido, pois este prazer é importante para o
fortalecimento dos elos de afetividade e da autoestima. A moda começa a ser projetada
como um aliado poderoso no cenário de guerra, quando da formação dos Estado-
Nações, e as peças de vestuário passam a atender à função de afirmar o sentimento
nacionalista, a forjar um pertencimento geopolítico sob o discurso das identidades, a
instituir e fortalecer o binômio sexo-gênero, a delimitar as fronteiras das idades e a
demarcar as pessoas por meio de classes sociais. Com o mundo e os sujeitos tão
compartimentalizados, é compreensível que a classe hegemônica procurasse se afastar
de símbolos de outras nações ou ressignificá-los para uso em seu código. É neste
momento que a túnica deixa de ser usada em seu sentido mais tradicional, ao mesmo
tempo em que passa por um processo de ressignificação para manter-se presente no
Ocidente, mas com outra modelagem. Os homens deixam de usá-la, enquanto que a
mulher torna-se senhora absoluta das modelagens sem divisão, como acontece com a
calça. Estudar moda, portanto, é analisar o contexto e como ela se articula com a
tradição ao mesmo tempo em que busca se afastar, pesquisando as identidades, a relação
entre a forma de se vestir e às nações ou etnias, aos papeis sociais dos gêneros, aos ritos
iniciáticos, entre outros aspectos.

Com os estudos sobre a história da África contribuições sobre esta peça de vestuário
redimensionam a história da túnica, ao mostrar que diferentes etnias africanas a usaram
e continuam usando, mostrando que a história linear, diacrônica, não contempla os
movimentos sincrônicos que dinamizam e, não rara as vezes, contrapõe-se ao que é dito
pela análise diacrônica. Esta análise não dá conta, por exemplo, de mostrar que os
africanos, em geral de origem ou influência islâmica, continuam a usar as túnicas,
porque são modelagens que valorizam a estampa, o tecido, um dos produtos mais
comercializados do continente africano.

O que nos importa é que a túnica com a qual nos identificamos como afrodescendentes
são as recriadas na África, com as suas cores, texturas, estampas, ritos e mitos. O
colorido, possível porque o continente africano é um importante fabricante de
pigmentos e da técnica de tingir e criar estampas, está presente na vida dos africanos,
graças aos pigmentos extraídos de sua diversidade natural. Os corantes foi (e é ainda)
um das riquezas africanas que se expandiu rapidamente pela Europa na época da
colonização e do comércio desenvolvido com as grandes navegações. Desta
aproximação de culturas diferentes, as histórias foram sendo escritas, validadas pelo
colonizador e que chega para os países colonizados como uma via de mão única, já que
enunciada e conhecida apenas por uma das partes.

Como a história situa o sujeito no tempo e no espaço, é importante dizer que a túnica
atravessa séculos e é usada na contemporaneidade por meio dos africanos ou dos
afrodescendentes. A kaftan, o bubu, o abadá passaram a representar a africanidade e usá-
la é uma forma de se posicionar esteticamente diferente do vestuário ocidental. O bubu,
também chamado de robe senegalês, é usado por homens e mulheres e é com o objetivo
de ativar a memória que me debruço na composição que faço.

Em uma cultura ocidentalizada como as que foram forjadas pela colonização europeia,
na qual o uso da túnica, transculturada, é marcadamente direcionada para o feminino,
porque é associada ao vestido, a reintrodução desta peça na vida dos afrodescendentes
reforça a necessidade de se discutir temas como ancestralidade, representação de
gênero e decolonialidade, e a importância da moda na formação identitária dos sujeitos,
sobretudo diaspóricos. Portanto, o uso da túnica, para os homens, significa um duplo
enfrentamento no Brasil: a ancestral e a de gênero. A sintaxe visual que criei para o
processo de ativação da memória através da moda é formada pelas seguintes
modelagens:
1) Túnica tradicional, vertical (VTC) , de corte reto, usando toda a largura do tecido
1,40, com uma costura apenas na parte posterior. O tecido é alinhado de forma que a
costura fique na região posterior, na linha central das costas. Em seguida, dobro e faço
um côncavo para a gola e em seguida faço duas aberturas nas extremidades para a
passagem dos braços. O acabamento é feito com viés.

2) Túnica horizontal, assimétrica (HRZ), com laterais assimétricas, duas costuras


laterais e abertura para os punhos. É uma peça com manga longa. Acabamento com
viés. Aproveita-se toda a largura do tecido que é dobrado verticalmente, deixando a
aureola nas laterais que serão unidas e costuradas.

3) O bubu, peça que segue a modelagem da túnica horizontal, sendo que larga na parte
superior e estreita na parte inferior, formando um triângulo invertido. Como mostram os
modelos abaixo:
A túnica nunca deixou de ser usada pelos estilistas. A sua modelagem passou por
mudanças ao longo dos séculos, mas sempre foi uma peça presente na vida de qualquer
pessoa. Seu corte reto, amplo, sugere simplicidade e elegância, também praticidade,
sendo logo associada ao lazer. A territorialização da túnica ao espaço de lazer, à moda
praia, acabou restringindo o seu uso e tirando-lhe de circulação dos espaços sociais,
urbanos, causando-lhe certo desprestígio, diferentemente de quando era usada pelas
autoridades e cidadãos romanos e por autoridades africanas até os dias atuais. Este
desprestígio pode ser comprovado pelo uso da “mortalha”, uma túnica que, no Brasil,
passou a vestir o morto. Enquanto que em outros países, onde a túnica era usada
socialmente, não havia separação entre vida e morte, no Brasil, ela passou a vestir
exclusivamente os mortos, criando desta maneira uma linha de separação entre o
vestuário do vivo, significando positividade, e o vestuário do morto, associado à
debilidade, à negatividade, a partir de uma visão cristã. E como a morte é um tabu em
países de herança judaico-cristã, diferentemente das religiões de matriz africana, a
túnica passou logo a significar roupa de morto, imagem negativa, portanto. Além deste
sentido, a túnica (chamada de mortalha) foi amplamente usada durante o carnaval até o
início dos anos 80, sendo logo substituída pelo agbadá, que significa bata na língua
iorubá, peça usada pelos blocos não-afros ou um afro mais comercial, mas que sofre
mudanças na modelagem feita pelos foliões para ajustar-se mais ao corpo, sobretudo da
mulher. A resistência entre as mulheres à modelagem mais solta do corpo advém da
disseminação da estética do vestuário justíssimo, ocidental. Assim, trazer a túnica para o
uso social é rasurar significações distorcidas pela indústria cultural para recuperar a sua
importância e nobreza.

Neste processo de memória e de construção de uma identidade afro-referenciada, a


túnica é a peça do vestuário que deveria ser mais usada porque ela sintetiza
simbolicamente a África na linguagem da moda, ao lado do turbante. As estampas
africanas são desenhos e muitas vezes narrativas, histórias, e para que se visualize é
necessário que o tecido seja amplo. O corpo funciona como moldura e display móvel
pronto para mostrar a beleza e a história de um povo. Sobre este tópico, à guisa de
exemplificação, cito um trecho do livro de Laver que destaca o hábito da aristocracia de
imprimir histórias bíblicas, em linguagem visual, no tecido, servindo como mensagem,
identidade e como adorno: “há o registro de que um senador bizantino tinha em sua toga
uma série completa de quadros representando a vida de Cristo.” (LEVER, 49, 2014).
Portanto, a túnica tinha uma função para além de cobrir o corpo, de adorná-lo, ela
indicava a visão da pessoa, seus valores e filiação grupal. Na túnica, estampa e
modelagem são igualmente importantes, complementares, seguindo um dos princípios
filosóficos africano que é a de complementaridade e a de indissociabilidade entre forma
e conteúdo. As túnicas largas chamadas de grand boubou expressam o orgulho africano
de um produto feito em seu continente, a exemplo do povo Mali que produz a túnica
desde a fabricação têxtil até o consumo.

Foi partindo dessa consciência ancestral da túnica e do turbante que criei um conjunto
formado pela sintaxe túnica-turbante-chita que, como veremos adiante, também
considero um elemento ancestral africano. A literatura sobre moda informa que a chita é
um tecido originário da Índia, muito embora os indígenas da América Latina também
façam uso deste tecido. Longe de querer postular qualquer verdade sobre a sua origem,
me interessa partir de um lugar menos abstrato para um mais concreto, mais referencial,
e este lugar me informa que a chita foi usada pelas mulheres afrodescendentes em
diferentes contextos no Brasil, em especial na Bahia. Foi um tecido usado pelos
africanos escravizados, pela população mais pobre, e gozava de pouco prestígio porque
era sinônimo e mantinha uma relação metonímica entre a pessoa e a sua classe. É um
tecido usado por candomblecistas da nação angolana para vestir os nkisis, por isso que a
chita é um tecido diferente de quaisquer outros porque tem história e a sua história está
intimamente ligada aos afrodescendentes.

A pesquisa em fontes primárias dos registros fotográficos e históricos do século XIX


mostram mulheres vestidas com saia (axó) ou camisu, um tipo de bata cuja modelagem
traz um detalhe franzido na região do busto que se alarga em direção à cintura, e
mangas largas. Por cima do camisu, era sobreposto o pano da costa. A túnica, embora
fosse uma peça usada pelos africanos, não foi inserida nas vestes litúrgicas, sendo
apenas usada em eventos sociais por mulheres e, mais raramente, por homens que,
quando a usam, fazem sobre calças. Apesar de a túnica ser uma peça usada por homens
em diferentes regiões do Oriente Médio, Ásia e África, aqui no Brasil, ela ficou quase
que exclusivamente usada por mulheres, já que a associação ao vestido é imediata. É
importante dizer que túnica não deve ser chamada de vestido, apesar de semelhantes:

O TURBANTE
Outro elemento que faz referência à ancestralidade africana é o turbante, essa peça tem
a sua origem nos ojás dos terreiros de candomblé usados para proteger a cabeça do
iniciado e, também, para informar o cargo da pessoa. As suas cores refere-se ao Orixá
protetor da cabeça, a nação do Egbé e o cargo do filho de santo dentro do Ilê. Embora os
terreiros sejam espaço de preservação, o ojá passou por transformações ao longo dos
anos, desde o tipo de tecido (tricoline, crochê, tecido africano, brocados...) até o próprio
desenho da amarração (torcido ou aberto), sem perder a modelagem indicativa da nação
a que pertence o terreiro. O seu uso no âmbito da moda não é novidade, mas há um
cenário político atual que tem favorecido o protagonismo de afrodescendentes que veem
no turbante uma forma de reconstruir uma história de pertencimento que, por conta dos
efeitos da colonização, foram esvaziadas de sentido e a moda, da forma que se apresenta
hegemonicamente, é responsável por este processo de apagamento, negando a origem
do processo criativo trazidos de outros lugares. Portanto para o sujeito da diáspora
africana, o uso do turbante está para além de um hábito adornativo, é símbolo do
matriarcado no Brasil, faz parte do patrimônio material e imaterial, ativa e preserva a
memória, fazendo com que a moda seja um conjunto de ações e atividades que possam
traduzir, atualizar as formas, desenhos, cores, de peças ancestrais, sem perder a sua
referencialidade:

O turbante, o ojá estilizado para o uso social, é considerado pelas usuárias como uma
peça do vestuário que evoca poder, provavelmente pelo seu desenho que lembra uma
coroa ou por ser símbolo distintivo de líderes políticos e religiosos. É também a peça
que envolve o Ori, que comanda a inteligência e a criatividade, mantém o equilíbrio da
pessoa, daí porque o ojá é um elemento do vestuário importante para o candomblé.
Como na Bahia o uso do ojá é restrito às yalorixás, o turbante usado socialmente
demarca o lugar do sujeito e o liga a uma ancestralidade reivindicada, por isso que negar
a um sujeito o uso do turbante é tentar negá-lo de usufruir desta memória, desta
ancestralidade, o que seria nefasto para quaisquer sujeitos diaspóricos. O turbante é
inserido como moda neste início de século, como um habitus ancestral, reivindicado
pelos sujeitos que conhecem a história dos que lhes antecederam e se reconhecem neste
lugar formativo da cultura preservada pelos terreiros de candomblé. Foram as mulheres
religiosas de matriz africana que mantiveram o costume de usar o torço no cotidiano,
uma vez que não tinha separação entre o espaço público e religioso para o uso desta
peça. Com a perseguição pelo Estado, o seu uso passou a ser restrito às práticas
religiosas.

No Brasil, a túnica e as amarrações de cabeça chegam pelos africanos de diferentes


etnias em razão do tráfico negreiro, e o torço (ojá) era usado com bastante frequência
entre as mulheres. Os registros dos pintores do século XIX mostram o torço 1 nos
espaços públicos e privados. As africanas ou as afrodescendentes usavam além do
turbante, o pano da costa, este sobreposto aos ombros, atravessados ou não. Com o
tempo, o pano da costa e o torço foram sendo destinados exclusivamente aos espaços
sagrados, visto que com a perseguição ao candomblé, era arriscado usar qualquer
símbolo que pudesse identificar os adeptos das religiões de matriz africana. Até hoje
essa agressão é vista e pode ser acompanhada pelas mídias televisivas ou impressas,
ainda ecos de uma política de Estado, sob os auspícios de grupos religiosos
fundamentalistas, que perseguia e ainda persegue o povo de santo. Desta forma, é
importante mencionar que as mulheres não deixaram de usar suas vestes - o ojá e o
pano da costa - mas foram reservados aos terreiros, às festas litúrgicas.

Nos anos 70, os blocos afros do Carnaval baiano passaram a usar uma versão mais
elaborada do ojá, estilizada, explorando a criatividade da turbanteira 2 e abrindo espaço
para o uso desta amarração de cabeça para além das cerimônias religiosas, ainda que
esses blocos fossem protagonizados por candomblecistas. De qualquer sorte, era uma
maneira diferente de usar o ojá, redesenhado pelas mãos de mulheres do axé para outros
fins, com tecidos cujas estampas eram feitas exclusivamente para o bloco, com temas
específicos, todos fazendo referência à cultura africana ou à diáspora africana. Do
Carnaval para o uso social, isto é, para o uso cotidiano mais intensivo e amplo,
cerimonioso ou não, foi um longo tempo, quase meio século, mas que veio no momento
da colheita, singular, quando as políticas de promoção à cultura africana foram
instituídas, vide as leis brasileiras 10.639 e a 11.645, que inserem os estudos sobre a
história africana e indígena nos currículos escolares. Portanto, o movimento que hoje
vivenciamos no âmbito da moda advém da resistência e enfrentamento seculares para
que se tornassem políticas públicas, com avanços em diferentes setores, inclusive na
moda. É desta forma que entendo também o lugar da moda, como espaço pedagógico,
1 Faço uso do termo torço para me referir ao ojá, palavra iorubana.

2 Existem outros termos para quem faz turbantes: turbanistas, designer de turbantes (este último usado
por mim ao criar uma página no facebook específica para essas/esses profissionais)
por meio do qual podemos ensinar e aprender mais sobre as identidades, o odu3 dos
sujeitos de um grupo sociocultural, sobre civilizações e o conceito de belo que só os
objetos de arte possuem, a exemplo das peças de vestuário e acessórios. A Pedagogia da
Moda é esse movimento intelectual, acadêmico que visa educar as pessoas para o uso
consciente da moda, ensinando valores e princípios pautados no projeto civilizatório
afro-brasileiro, a partir de metodologias que torne o hábito de se vestir um gesto
estético-político.

O turbante vem sendo usado neste início do século XXI por mulheres e homens,
sobretudo jovens da periferia, para demarcar e afirmar um território estético tão
relegado pelas escolas e universidades públicas por não serem vistos como assunto de
relevância pedagógica, e, por isso, não compõem os currículos escolares. No entanto, a
força do movimento, inicialmente de forma espontânea com encontros em Parques e
Feiras, vem mostrando que a omissão do assunto dos estudos universitários e escolares
apenas significa mais um caso de epistemicídio, por ignorar não apenas um assunto,
uma área do conhecimento, mas impede que teorias possam dar conta de uma análise
mais aprofundada das atividades organizadas por lideranças que apostam no movimento
estético como uma das formas de afirmação identitária. A moda vem sendo também
protagonizada por estilistas afrodescendentes, principalmente mulheres, que por meio
dos tecidos, texturas, estampas, modelagens, inscrevem na história uma moda
esteticamente afro-referenciada e de vivência ancestral, o que significa dizer que o gesto
de vestir-se e de fazer uso de acessórios é uma extensão e exteriorização dos valores e
cosmovisão de um dado grupo sociocultural. Com isso, reforça-se a ideia africana de
que o belo deve ser também confortável, e em termos de moda o africano em seu
momento mais continental, preza por modelagens amplas4. Além do conforto, as formas
largas deixam à vista as estampas que são o motivo de orgulho e, por isso, as peças de
vestuário são feitas de tecido, inclusive sapatos e acessórios, e a modelagem da túnica,
do bubu, do abadá, representa a forma ideal de expor a arte nas estampas. O corpo é
visto como display para a projeção do produto que, neste caso, é uma confluência entre
forma e conteúdo.

3 Odu significa destino, mas também o caminho construído pelo livre-arbítrio.

4 É importante dizer que as modelagens ocidentais fazem parte do dia-a-dia dos africanos em razão do
processo de colonização. As peças mais tradicionais são usadas em momentos específicos ou por aqueles
que defendem um movimento de valorização do que é genuinamente africano. Trata-se de um processo de
descolonização baseado no uso e comercialização dos produtos feitos em África ou que expresse os seus
valores e riquezas.
Figura 9 Bubu com turbante afrobrasilidades

A CHITA

A chita é um dos raros tecidos no mundo cuja história se mistura a dos


afrodescendentes. Por ser um tecido de baixo custo (apesar dos recentes aumentos)
vestiu os africanos e seus descendentes no Brasil há séculos, o que significava dizer
também que vestiu a camada mais pobre da população. As narrativas literárias e as
telenovelas dão mostras da visão que as camadas mais ricas da população tinham em
relação ao tecido. Machado de Assis em História Comum nos apresenta a relação entre
moda, classe social e raça: “Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de
adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita (...)
Tinha-me comprado uma triste mucama.” (ASSIS, 1995, 35-36). A chita foi, portanto,
um tecido que vestiu as africanas ou as afrodescendentes escravizadas e que por esta
razão sempre gozou de desprestígio social. Explica-se, com isso, a possível resistência
das atuais afrodescendentes ao uso da chita em situações mais cerimoniosas ou até
mesmo públicas 5 com o fito de se afastarem de uma memória que venha fazê-las se
lembrar de uma origem social apresentada pela história oficial como negativa já que
associada à escravidão. Assim, afastando-se da chita, pelo menos publicamente, os
afrodescendentes estariam se afastando de um passado de tristeza, dos preconceitos, de
uma negação externa que a sua memória deseja esquecer. Recentemente em uma mesa
sobre Moda e Ancestralidade, durante o I Encontro Nacional sobre Moda e
Ancestralidade, realizado na Universidade do Estado da Bahia, uma participante, muito
emocionada, falou como a chita fazia parte de sua memória. O tecido era usado tanto
para forrar o colchão feito de capim, quanto para vesti-la, o que a constrangia quando
saia à rua porque era molestada pelas amigas que diziam que se vestia com o pano do
colchão.
É, contudo, pelo conceito de decolonialidade e de ancestralidade que o passado do
afrodescendente se reinscreve de outra perspectiva, mostrando uma origem para além
das terras brasileiras e, com isso, trazendo novos sentidos para a sua história, para as
suas origens, e esta foi uma das mais significativas contribuições epistemológicas na

5 Algumas mulheres confirmam o seu uso exclusivo em casa.


universidade. Isso fez com que os afrodescendentes buscassem por um começo que não
era o Brasil, mas a África, de onde vieram muitos reis e rainhas vencidos em conflito
com outras etnias, e que vieram na condição de escravos para as colônias, dentre elas o
Brasil. Desta forma, sem muito esforço, podemos inferir que a chita pode ter vestido a
nobreza africana aqui no Brasil. A chita, portanto, não era usada por escravos, mas por
soberanos, reis, rainhas, a nobreza africana escravizada. É desta forma que busco
resignificar a chita nas minhas criações, enobrecendo-a e aproximando-a das
modelagens largas usadas pelos africanos mais comprometidos com as suas referências
ancestrais, a fim de mostrar a beleza dos contrates de cores em motivos florais,
geométricos e animal print (estampa de animal)6.

Até recentemente a chita era exclusivamente usada em decoração – cortinas, almofadas,


toalhas de mesa - e só mais recentemente em acessórios – colares, brincos, calçados - e
de forma menos folclórica, como vestuário. Neste quesito, é importante destacar que a
chita é introduzida em espetáculos folclóricos com o objetivo de fantasiar, envolver,
suavizar momentos históricos de sofrimento em performances sentimentais e vazias de
sentido. Longe de ser uma evocação à memória, o fato de o tecido ser apenas usado em
espetáculos folclóricos mostra o quanto a moda está longe de discutir o uso da
vestimenta como instrumento de controle social. É restringindo o uso da chita à
decoração e ao espetáculo que a lançaremos aos porões de uma memória embaçada e
sedimentada pela reiteradas imagens e discursos que há anos a arquiteta Lina BoBardi
se referia, a de transformar a cultura local no olhar o Outro, como categoria “, própria
da Grande Cultura central, para eliminar, colocando no devido lugar, incômodas e
perigosas posições da cultura popular periférica.” Sendo assim, penso na chita como um
tecido que pode e deve ser usado em qualquer espaço social e não apenas como objeto
do folclore popular que no Brasil e, sobretudo Bahia, equivale a dizer de origem
africana.

Outra forma de regular a memória é engessá-la no tempo e no espaço. Em se tratando de


tempo, já discorri anteriormente sobre o uso nas apresentações folclóricas, já em relação
ao espaço, é importante destacar que a moda segue uma lógica hegemônica, que é
destinar o uso de uma peça a um lugar específico. A chita e as amarrações de corpo são
discursivamente apresentadas como moda resort ou moda praia e, sendo assim, a
(re)territorialização consiste em uma estratégia para reduzir o campo de visão e atuação
da chita e das amarrações, minimizando-as e, consequentemente, desvalorizado-as. A
segmentação no setor de moda muitas vezes impõe a maneira de como o corpo deve
circular nas diferentes práticas sociais, disciplinando-o a serviço de interesses de alguns
que, no nosso caso, não deseja que a chita, as amarrações e a túnica sejam valorizadas,
desejadas e amplamente consumidas. Se no século XIX a chita rivalizava com outros
tecidos nobres, no século XXI ela continua provocando mal-estar.

Para entendermos a importância da chita para o afrodescendente, vale dizer que no


Brasil, o tecido é usado nos terreiros para vestir Orixá, sobretudo de nação angolana:

O Candomblé de Angola-Congo é chamado pelo povo de outras nações de o


candomblé da chita, referência ao tipo de tecido utilizado nas roupas das
Muzenzas (do quimbundo: munzenza, plural: azenza) e Cotas (do

6 Eu uso as chitas produzidas pela Fabril Mascarenhas, localizada em Alvinópolis, MG. Na classificação
desta fábrica, as flores menores são chamadas de chitinha e as maiores de Reps-chitão. As estampas São
João seriam as mais geométricas (por exemplo, o xadrez) e Carnaval as estampas animal.
quimbundo: kota, plural: makota) para a cerimônia pública do templo.
Enquanto outras nações se preocupam com as sedas, brocados e richilieu, as
angoleiras gostam mais das padronagens dos panos multicoloridos e vistosos,
e segundo elas, nada é mais vistoso que uma chita cheia de ramagens.
(RODRIGUES, Aislan/ KIIENGI, Nganga, 2016)

Além de servir de vestimenta para as divindades, o morim, tecido de que é feito


a chita, é usado em diferentes rituais nos terreiros. Serve para vestir iniciados de cargo
menor, como abians, e para envolver os ebós, oferenda para os Orixás. Portanto, falar da
chita é fazer referência ao morim e é por esta razão que considero a chita um tecido
ancestral.
Em relação ao fragmento acima, a leitura que eu faço é a de que a chita se
aproxima do gosto angolano por razões estéticas, já que o tecido africano usado em
Angola é majoritariamente colorido, assim como a chita. Apesar de a fábrica Fabril
Mascarenhas, ser uma das maiores fabricantes de chita do país, ela não exporta para
outros países, mas chega ao mercado internacional através dos clientes atacadistas7. Esta
estética, traço constitutivo da cultura, é um dos indicadores da nossa ancestralidade,
pois o prazer visual por determinadas estampas, jogo de cores, texturas, caimento de
tecido, é cultivado pelo grupo social, por meio das pessoas que formam laços afetivos
com outras. O tecido, bem como as peças de vestuário, passa a ser um elo que fortalece
os sentimentos entre pessoas de gerações diferentes e situam os sujeitos em um lugar
social e identitário. O uso do vestuário como expressão da visão de mundo, das
transformações comportamentais, políticas e sociais deixam evidente a importância da
roupa em momentos decisivos na vida das pessoas. No cotidiano, isso é constatado em
ritos importantes, a exemplo de batizados, casamentos, velórios, formaturas, etc. A
túnica e o turbante de chita, sintaxe visual que compõe o meu processo criativo, visam
ativar a memória ancestral, redimensionando o olhar, modificando comportamentos e
situando os sujeitos na história.

Anexos:

Referência:

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Trad. Izabel Magalhães.


Distrito Federal: Editora Universidade de Brasília, 2001.

LAVER, James. Capitulo Final (por) PROBERT, Christina. A Roupa e a Moda: Uma
História Concisa. Trad. Gloria Maria Mello Carvalho São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.

7 Informação prestada pelo Sr. Astrogildo, funcionário da fábrica, por telefone, tentando explicar o
interesse do mercado externo pelo tecido.
RODRIGUES, Aislan/NGANGA, Kiiengi. Roupas Tradicionais no Candomblé.
Disponível em: http://aislanrodrigues.webnode.com/news/roupas-e-adere%C3%A7os-
tradicionais-no-candomble/. Acesso em: 09 jan 2016.

VIRGÍLIO, Paulo. Livro aborda influência da cultura africana no vestuário do


brasileiro. Disponível em: http://www.ebc.com.br/cultura/2015/02/livro-aborda-
influencia-da-cultura-africana-no-vestuario-do-brasileiro, Acesso em: 09 jan 2016.

LEIRO, Lúcia. Figuras de 1 a 13 retiradas do arquivo pessoal, exceto 7 e 8 que foram


extraídas da internet, fazendo parte do domínio público.

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