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O dilema ético em torno das obras de crimes reais


Cesar Gaglioni 21 de set de 2021 (atualizado 27/09/2021 às 13h47)

Séries, filmes, podcasts e livros que abordam casos policiais famosos são campo fértil para discussões morais

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 A ATRIZ CARLA DIAZ COMO SUZANE VON RICHTHOFEN NO FILME "A MENINA QUE MATOU OS PAIS"

O serviço de streaming Amazon Prime Video estreia na sexta-feira (24) dois filmes ficcionais sobre o caso
Suzane von Richthofen (https://www.youtube.com/watch?v=-wQyssgiDh4) . Paralelamente, no dia 17 de
setembro a HBO anunciou a produção de um documentário
(https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/09/17/caso-daniella-perez.htm) sobre o assassinato da atr
Daniella Perez, em 1992.

Histórias de crimes reais são uma febre. E estão por todos os lados: podcasts, livros, séries, filmes. Há cana
de TV dedicados inteiramente ao gênero – caso do Discovery ID – e mais de 3.000 livros sobre o tema estão
disponíveis na Amazon Brasil. O fenômeno, no entanto, levanta discussões éticas sobre o consumo dessas
obras: para alguns sociólogos e ensaístas, esse fascínio desconsidera completamente a dor das vítimas e de
pessoas próximas a elas.

Neste texto, o Nexo dá um panorama do gênero de crimes reais e apresenta os argumentos sobre o consum
dessas histórias.

A origem do gênero

O gênero tem raízes na Inglaterra do século 16, quando eram publicadas revistas que davam detalhes
incisivos sobre crimes da época.

A partir do século 19, ganharam mais força, com a chegada da literatura policial e casos notórios como os
crimes de Whitechapel, em Londres, perpetrados pelo serial killer Jack, o Estripador. Na virada para o 20,
crimes reais estamparam capas de jornais mundo afora, impulsionando significativamente os lucros desses
veículos. “Se sangra, vende” (https://pepperdine-graphic.com/opinion-if-it-bleeds-it-leads-the-modern-
implications-of-an-outdated-
phrase/#:~:text=During%20the%20same%20time%20of,it%20bleeds%2C%20it%20leads.%E2%80%9D)
disse certa vez William Randolph Hearst, magnata da imprensa americana e que inspirou o protagonista de
“Cidadão Kane” (https://daily.jstor.org/why-william-randolph-hearst-hated-citizen-kane/) .

Nos anos 1960, o true crime – nome do gênero em inglês – conquistou as elites americanas com a publicaçã
de “A sangue frio”, de Truman Capote. O livro aborda o assassinato de uma família numa pequena cidade d
Kansas – o estilo quase poético de Capote e a profundidade da pesquisa do autor tornaram o “romance de
não-ficção” um best-seller perpétuo, até hoje utilizado nas faculdades de jornalismo.
Dali para frente, as histórias sobre crimes reais não pararam mais: a Califórnia ficou em frenesi pelo ainda
não identificado Assassino do Zodíaco entre 1968 e 1969 – o serial killer que fez 14 vítimas chegou a
demandar que suas cartas fossem publicadas no principal jornal de San Francisco, pedido que foi
prontamente aceito pelos editores; na década de 1970, Ted Bundy matou pelo menos 36 mulheres em três
anos – o número real, no entanto, pode ser bem maior.

Nos anos 1980, os EUA temeram Jeffrey Dahmer, assassino de 17 pessoas e praticante de necrofilia e
canibalismo. Na década seguinte, o país parou para assistir na TV o jogador de futebol americano O.J.
Simpson ser julgado – e inocentado – pela morte de sua ex-esposa, Nicole Brown.

Apesar do fenômeno aparentar ser puramente americano, o Brasil também teve sua própria cota de
assassinos e serial killers e de presença midiática constante em torno deles.

Nos anos 1960, começo da ditadura militar, Francisco da Costa Rocha – apelidado pelos jornais de “Chico
picadinho” – matou e esquartejou duas mulheres em São Paulo; nos anos 1970, também na capital paulista
José Paz Bezerra virou “o monstro do Morumbi” após matar 24 mulheres; por fim, na década de 1990 houv
o “vampiro de Niterói”, apelido dado a Marcelo Costa de Andrade, jovem que matou 14 crianças na região
metropolitana do Rio.

Tais crimes deram origem a programas policialescos (/expresso/2020/02/18/Quais-os-limites-dos-


programas-policialescos-da-televisão) como o “Aqui agora”, do SBT; e “Cidade alerta”, da Record, que segu
no ar diariamente. Na mídia impressa, jornais como o Notícias Populares, do grupo Folha, trouxeram
manchetes como “Psicóloga pega na marra e violenta o indigente” e “Pivete mata dois policiais na viatura”.

Para Luiz Peres-Neto, professor de comunicação na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing de
São Paulo), há de se fazer distinções entre os diversos tipos de jornalismo.

“O jornalista Joseph Pulitzer criou a diferenciação entre o chamado ‘yellow journalism’ (jornalismo marrom
no Brasil) e o jornalismo sério, com rigor de métodos. A partir daí, surgem os veículos dedicados apenas ao
sensacionalismo”, disse ao Nexo.

“Esse tipo de material depois foi para o rádio e, finalmente, para a televisão. O apresentador Gil Gomes sou
fazer essa transição. A partir dos anos 2000, houve o encontro desse nicho com o fenômeno da tele-realidad
Não se falava mais do que aconteceu, mas do que está acontecendo.”
A onda atual

A onda atual de obras de true crime teve início em meados da década de 2010, com a popularização dos
podcasts e o aumento da oferta (/expresso/2019/09/22/Os-impactos-da-guerra-de-streamings-no-
entretenimento) de serviços de streaming.

Duas produções são consideradas marcos definidores do fenômeno: “Serial”, podcast lançado pela jornalist
Sarah Koening em 2014, revisitando um assassinato ocorrido em 1999; e “Making a Murderer”, série
documental da Netflix de 2015 que questiona a condenação do mecânico Steven Avery pelo assassinato da
fotógrafa Teresa Halbach em 2005.

No Brasil, outras duas produções chamaram a atenção: “O caso Evandro” (/expresso/2021/06/16/Por-que


o-‘pânico-satânico’-se-perpetua.-E-quais-os-riscos-disso) , podcast lançado em 2018 pelo jornalista Ivan
Mizanzuk, que fala sobre um assassinato ocorrido no Paraná dos anos 1990; e “Praia dos ossos”
(https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/) , das jornalistas Branca Viana e Flora Thomson-Devaux
revisitando o assassinato da socialite Ângela Diniz nos anos 1970.

No HBO Max Brasil, há 45 títulos no catálogo – entre filmes e séries documentais – sobre crimes reais; na
Netflix, 42; no Prime Video, da Amazon, são 40; no Star+, da Disney, quatro. O levantamento foi feito pelo
Nexo.

1.200
é o número aproximado de podcasts true crime
presentes no Spotify, segundo levantamento feito pelo
Nexo

Apesar da ampla oferta de títulos, os fãs do gênero acham que é preciso mais (https://civicscience.com/tru
crime-viewers-would-kill-for-more-streaming-content/) . Uma pesquisa feita em 2019 com 2.000
americanos pelo Centro Civic Science mostrou que 62% do público interessado em true crime acha que mai
séries, filmes, podcasts e livros são necessários.

O PÚBLICO DO TRUE CRIME

O estudo mostra o cenário americano, mas, por observação, pode-se concluir que o gênero no Brasil não é t
destoante: a maior parte dos podcasts true crime no país são apresentados por mulheres jovens
(https://falauniversidades.com.br/conheca-5-podcasts-sobre-crimes-reais-produzidos-por-mulheres/) ; e
maioria das publicações (https://twitter.com/search?
q=%22true%20crime%22%20lang%3Apt&src=typed_query&f=live&lf=on) sobre crimes reais no Twitter
Brasil é feita por perfis femininos e jovens.

Mesmo com mulheres sendo vítimas significativas de crimes violentos ao redor do mundo – uma em cada
três (https://unstats.un.org/unsd/demographic-social/) , segundo a ONU (Organização das Nações Unidas
– as obras de crimes reais são uma forma de escape, segundo Amanda Vicary, professora de psicologia na
Universidade de Illinois, nos EUA.
“As mulheres têm mais medo (https://www.businessinsider.com/why-young-women-are-the-biggest-true-
crime-buffs-2016-3?r=US&IR=T) de serem vítimas de crimes do que homens”, afirmou ao site Insider em
2016. “Apesar de homens terem mais chances de serem assassinados, pelas estatísticas.” Segundo ela, o tru
crime é como um filme de terror ou uma montanha-russa, uma experiência de medo controlado que traz
adrenalina.

O crime como entretenimento

“Qualquer jornalista que não seja demasiado


obtuso ou cheio de si para perceber o que está
acontecendo sabe que o que ele faz é
moralmente indefensável. [...] Os jornalistas
justificam a própria traição de várias maneiras,
de acordo com o temperamento de cada um. Os
mais pomposos falam de liberdade de expressão
e do ‘direito do público de saber’; os menos
talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes
murmuram algo sobre ganhar a vida”

Janet Malcolm
jornalista americana

A frase acima abre o livro “O jornalista e o assassino”, clássico da reportagem, no qual Malcolm conta a
história de Joe McGinniss, jornalista, autor do livro “Visão fatal”, de 1983, que conta a história de Jeffrey
MacDonald, médico militar que foi condenado em 1979 pelo assassinato de sua esposa e duas filhas.

MacDonald acreditava que McGinniss escreveria um livro provando sua inocência, mas o resultado final foi
exato oposto: “Visão fatal” reiterou que o médico era culpado dos crimes.

Por isso, em 1984, MacDonald entrou com um processo contra o jornalista, alegando que o repórter forjou
uma relação próxima com ele e explorou o caso para fazer dinheiro. O caso chegou a um empate no júri e te
de ser resolvido extrajudicialmente.

Anedótico, o caso de “O jornalista e o assassino” abraça muitas das discussões éticas que giram em torno do
true crime: para alguns, trata-se de um bom entretenimento, como um filme de terror; para outros, é uma
exploração barata da dor alheia.

Autora de um livro sobre o crime como gênero audiovisual na América Latina, a jornalista e pesquisadora d
comunicação Luiza Lusvarghi acredita que o sensacionalismo é o padrão nessas produções
(https://oglobo.globo.com/ela/mulheres-lideram-producoes-audiencia-de-podcasts-sobre-crimes-reais-no
brasil-
25005853#:~:text=A%20lista%20de%20podcasts%20de,%E2%80%9COi%2C%20bonitas%20e%20bonito
.

“Infelizmente, o sensacionalismo sempre acompanha esse tipo de produção, tanto no jornalismo quanto na
ficção. Existe a ideia de explorar sentimentos alheios, o medo e o horror”, disse ao jornal O Globo em maio.

“Praia dos ossos”, podcast brasileiro sobre o assassinato de Ângela Diniz, quis se afastar dessa narrativa e
usar o crime como um ponto de partida para debater a questão de gênero no país.

“Quando começamos a concebê-lo, essas histórias de mulheres assassinadas já tinham virado uma fábrica d
conteúdo. Perde-se a conta de quantas séries e programas foram feitos. Mas a nossa ideia era fazer
justamente o contrário, até porque o caso não tinha nenhum mistério”, disse Flora Thomson-Deveaux,
idealizadora do podcast, ao Globo.

O jornalista Ivan Mizanzuk quis traçar um caminho similar no podcast “O caso Evandro”. “Existe uma
reflexão social de ‘ok, esse crime ocorreu, como é possível que ele tenha ocorrido’. E daí temos duas questõe
Primeiro, questionar ‘ok, onde foi que nós falhamos enquanto sociedade para que isso acontecesse?’ nos
casos que foram resolvidos sem sombra de dúvidas”, disse ao Nexo.

“E, nos casos em que há um mistério em torno, a gente tenta buscar formas de lidar com esse mistério, com
o sistema legal tem pesos e contrapesos para que coisas tão estranhas sejam abordadas da melhor forma.”

Mizanzuk acha que produções nacionais dentro do gênero true crime podem ser úteis para que o público
entenda como funciona o sistema legal brasileiro. “No Brasil isso é muito importante, porque estamos
acostumados com material dos Estados Unidos e não conhecemos direito como é o nosso sistema legal, isso
fundamental”, afirmou.
Na visão da americana Alice Bolin, jornalista, socióloga e autora do livro “Dead Girls”, que trata do fenômen
true crime, produções que tentam aprofundar essas discussões são apenas obras que trazem consigo um
verniz falso de seriedade (https://www.vulture.com/2018/08/true-crime-ethics.html) , mas que são tão
sensacionalistas quanto o “Dateline”, programa policialesco americano aos moldes do finado “Linha direta”
da TV Globo.

“Eu realmente gosto muito mais de ‘Dateline’ do que de ‘Serial’, que, na minha mente é entediante a ponto
ser desnecessário”, escreveu na revista Vulture em 2018. “Sempre me pego reclamando que o ‘true crime
bom’ não é divertido – eles nunca vão ser tão divertidos quanto a programação do Discovery ID.”

Na visão de Bolin, não há problema algum em se produzir ou consumir obras de true crime, desde que os
envolvidos sejam sinceros naquilo que buscam nas produções: entretenimento.

Os críticos do gênero apontam que tais produções não levam em consideração as dores das vítimas e de sua
pessoas próximas e também do local onde vivem. Tina Prigge, moradora da pequena cidade de Manitowoc,
nos EUA, virou ativista (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-47474996) contra o true crime depo
de ver o município servir de cenário para “Making a Murderer”, da Netflix.

“Os jornalistas chegam, ou então alguém de Hollywood, e eles querem fazer uma série em que possam vir
aqui e não aprender sobre quem vive nessa comunidade ou o que eles têm a oferecer. Para eles, é só um
nome, uma história”, disse à BBC em 2019.

No Reddit, Young Lee, irmão de Hae Min Lee, vítima do assassinato detalhado pelo podcast “Serial”, fez um
desabafo em 2014 (https://junkee.com/brother-of-serial-murder-victim-slams-podcast-on-reddit-you-don
know-what-we-went-through/45538) .

“Para vocês, ouvintes, é só mais um assassinato misterioso, um drama sobre crime, um episódio de ‘CSI’.
Vocês não estavam lá para ver a mãe de vocês chorando todas as noites, tendo um ataque cardíaco quando
soube que o corpo foi encontrado. Espero que vocês não passem pelo que passamos e tenham a história de
vocês jogada para 5 milhões de pessoas”, escreveu.

Na visão do documentarista Joe Berlinger, diretor da série de filmes “Paraíso perdido”, sobre assassinatos
ocorridos na década de 1990, não há resposta concreta
(https://www.nytimes.com/2015/03/17/nyregion/irresistible-tv-but-durst-film-tests-ethics-too.html) acer
da ética da produção e do consumo de true crime.

“A vida real não se comporta como o arco dramático de um roteiro, e há uma tentativa de juntar essas duas
formas de histórias na TV”, disse ao New York Times em 2015. “Isso não torna essas obras erradas ou ruins
Mas torna o momento um local interessante para debater a ética dos documentários.”

Anna Leszkiewicz, colunista de mídia da revista New Statesman, acha que é impossível produzir um true
crime que seja ético e divertido (https://www.newstatesman.com/culture/tv-radio/2016/01/serial-making
murderer-can-true-crime-entertainment-ever-be-ethical) ao mesmo tempo.

“Se a objetividade é necessária para se encontrar a verdade, não sei se esses dois objetivos são compatíveis”
escreveu em 2016. Para ela, uma obra que seja ética não será muito divertida; e uma obra divertida não será
muito ética, e que no fim das contas cabe ao público determinar se consumir essas produções é algo
interessante.

No mesmo tom provocativo, Janet Malcolm tenta estabelecer um motivo sobre por que crimes reais são
interessantes e por que não há resposta única sobre o dilema ético de consumir essas obras.
“A atração fatal de um processo é a infinita latitude do que ele oferece para escapar do mundo real da
ambiguidade, da dúvida, da desilusão, do compromisso e da acomodação”, diz.

“O mundo de um processo legal é o mundo do ideal platônico, onde tudo é claro, bem delineado, uma coisa
ou outra. Trata-se de um mundo no qual entramos por nossa própria conta e risco, porque é também o
mundo da loucura.”

VEJA TAMBÉM
EXPRESSO (/EXPRESSO/) A nova era da literatura policial no Brasil. E
sua história (/expresso/2019/08/04/A-nova-era-da-literatura-policial-no-
Brasil.-E-sua-história)

(https://thetrustproject.org/) SAIBA MAIS

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