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LUZ.

10 FEVEREIRO 2023  REVISTA DO NASCER DO SOL


PAMELA
ANDERSON
A história real
da loira mais
cobiçada
dos anos 90

Pedro
Almeida
O português que organiza
PAULO MARIA/INTERSLIDE

a corrida mais longa


e difícil do mundo
10 12

SUMÁRIO
10
FEVEREIRO
2023

6. Nas redes Casa de Paco Rabanne assaltada dois dias após a sua morte
10. TikTok Dia dos Namorados à porta: os casais com mais influência nas
redes sociais 12. Grammys Looks, prémios e curiosidades da cerimónia
mais esperada na indústria musical 16. Celebridades Pamela Anderson,
Uma História de Amor - o documentário mais aguardado na Netflix
20. Poesia 92 anos de Augusto de Campos 28. Entrevista Pedro Almei-
da, diretor do Dakar 42. Agenda A produção internacional do musical
CATS regressa a Portugal 44. Shopping Especial Dia de São Valentim

2 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


16 20

EDITORIAL

Pamela, Lena e Bianca

C
orria o ano de 2018 quando a FIFA e vermelho. Pamela começou a carreira na
a Fórmula 1 anunciaram medidas que moda e publicidade precisamente após ter
viriam a gerar um debate intenso e a sido filmada entre os adeptos... durante um
dividir opiniões. À época, e com o jogo de futebol americano. Viu o sonho ter-
Mundial a ser disputado na Rússia à porta, os minar depois do roubo e divulgação de um
responsáveis pelo organismo que rege o fu- vídeo íntimo com o seu então marido, o mú-
tebol mundial pretendiam que as emissoras sico Tommy Lee, naquele que se revelaria
de televisão reduzissem os planos a destacar um dos primeiros casos para os perigos do
Laura «mulheres que podiam ser consideradas futuro, apoiado na dimensão ainda desco-
Ramires atraentes», presentes nas bancadas dos es- nhecida que as redes sociais viriam a ter tam-
tádios, com o objetivo de combater o sexis- bém nos casos de cyberbullying.
mo. Ainda antes, a F1 anunciava o fim das Aos 55 anos, Pamela Anderson entendeu
grid girls, com o então diretor comercial a ex- que podia finalmente sobrepor a voz à ima-
plicar que «a prática não ressoa com os va- gem - e assim contar a história além dos lou-
lores da marca e está claramente em desa- cos anos 90.
cordo com as normas atuais da sociedade». Já na fórmula 1, quatro anos depois da po-
Vem tudo isto a propósito dos nomes fe- lémica com as grid girls, as mulheres voltam
mininos que marcaram a última semana, a dar que falar na principal corrida de auto-
embora por motivos bem distintos. móveis do mundo - e especificamente na
Pamela Anderson voltou a ser uma das fi- grelha de partida. Lena Bühler, de 25 anos, e
guras mais comentadas depois do documen- Bianca Bustamante, de 18, foram as primei-
tário que protagonizou na Netflix e em que ras pilotos conhecidas do novo campeonato
procura humanizar a mulher por detrás das de F1 feminino que tem data prevista ainda
produções ousadas e do icónico fato de banho para este ano.

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VIVER PARA
CONTAR

JOSÉ ANTÓNIO
SARAIVA

Obrigado, Burger King!


Tínhamos desistido de um passeio à Serra da Estrela quando vimos notícias
de que nevara e havia neve com abundância na serra. Vamos, não vamos?
Nestes casos, quando se desiste de uma viagem e já nos habituámos
à ideia de não ir, é difícil voltarmos a entusiasmar-nos.

P
laneámos um passeio em família à num hotel esplêndido fundado por ingle- hora em fila compacta até ao local onde
Serra da Estrela. Quatro adultos e ses onde nos anos 50 esteve hospedada estacionámos o carro.
cinco crianças. Depois de tudo Christine Garnier, uma jornalista france-
combinado, escolhidas as datas e
feitas umas reservas de princípio nos ho-
téis, constatámos que não havia pratica-
sa por quem Salazar se deixou apaixonar.
Foi um bom começo. No dia seguinte via-
jámos para Seia, ficámos hospedados no
N ão vale a pena contar as peripécias na
neve: são sempre iguais. Estivemos
dois dias na região, visitámos a Guarda,
mente neve na serra e tudo voltou para Camelo, que começou como um restau- fomos a Celorico ao Solar do Queijo da
trás. A desilusão foi grande, sobretudo nos rante (estupendo) no centro da vila, de- Serra, subimos a Linhares da Beira – uma
miúdos, que nunca tinham visto neve e pois mudou de local, para uma zona mais bela aldeia histórica encarrapitada em
estavam em estado de grande excitação. nova, e finalmente deu origem a um ho- cima de um monte –, e ao quarto dia re-
Mas há mais marés que marinheiros – tel. Paradoxalmente, hoje o hotel está gressámos a Lisboa. Era o dia do meu ani-
concluímos, sem grande originalidade. aberto mas o restaurante fechado – por versário – um número redondo – mas não
Estávamos nisto quando vemos notícias falta de pessoal. Ironias do destino. tenho por costume fazer grandes festejos.
de que tinha acontecido um nevão e havia Seia foi a base de partida para o passeio O almoço seria em viagem. O meu fi-
neve com abundância na serra. Vamos, não na serra. Quando entrámos na estrada lho Zé conhecia um restaurante em Fáti-
vamos? Nestes casos, quando se desiste de que dá acesso à Torre, vimos gelo na ber- ma, uma casa de leitão ao pé de uma ro-
uma viagem e já nos habituámos à ideia de ma: era um bom sinal. E depois começá- tunda, e foi para aí que apontámos. Par-
não ir, é difícil voltarmos a entusiasmar- mos a ver pedaços de neve dispersa nas timos de Seia às 14h00, calculámos que
-nos. Mas foi o que aconteceu. Um dos adul- zonas sombreadas, que iam aumentando seria uma hora e meia de viagem, pelo
tos mostrou grande vontade de ir, arrastou à medida que subíamos. Quando nos que chegaríamos por volta das 15h30. Era
os outros, não disse nada às crianças para aproximámos da Torre, havia extensas um bocado tarde para almoçar, mas vale-
não provocar novas desilusões, reativou as zonas brancas. E por cima um céu azul, ria o sacrifício.
reservas nos hotéis – e lá partimos. sem uma nuvem, onde brilhava um sol Arrancámos. Primeiro, estradas de ser-
radioso. Melhor dia não podíamos ter es- ra. Depois uma via rápida. Pensei que fos-

A s coisas combinadas em cima da hora


são às vezes as que correm melhor. Na
primeira noite dormimos na Urgeiriça,
colhido.
A parte má é que muitos outros haviam
tido a mesma ideia – e tivemos de ir uma
se logo ali ao virar da curva, mas não era.
Andámos, andámos, andámos – a estra-
da parecia não ter fim. Depois mais um

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BURGER KING PORTUGAL
pedaço de estrada de serra e outra vez Reunimo-nos em assembleia para to-
uma via rápida. Passaram as 15h30, as mar uma decisão. E nisto alguém olhou
16h00, as 16h30, e nada. Até que, pelas à volta e exclamou: «Olha, um Burger
16h45, entrámos finalmente em Fátima. King!». Ali a uns 100 metros um letrei-
Demos logo com a dita rotunda e encon- ro assinalava a sua presença. As crian-
trámos lugar mesmo em frente do restau- ças deliraram. E ninguém pensou duas
rante. Estávamos com sorte. O pior viria a vezes: metemo-nos no carro e voámos
seguir: à entrada da porta, um letreiro para lá.
anunciava: «Leitão esgotado. Nova for-
nada às 17h30».

Às 16h45 entrámos
O almoço do meu dia de anos teve,
pois, lugar no Burger King de Fátima

N ão queríamos acreditar! Depois da-


quelas horas intermináveis na es-
trada, sonhando com o almoço que finalmente
– e devo dizer que me soube esplendi-
damente. Eu que, há uns meses, fiz um
artigo a lamentar a morte anunciada da
nunca mais chegava, o oásis revelava-
-se uma miragem! Eu sentia o estôma-
em Fátima, onde cozinha tradicional portuguesa – que
perde terreno para as pizzas, os hambur-
go colado às costas e desfalecia. íamos almoçar. gers e o sushi –, via-me ali deliciado a co-
Nem forças havia para pensarmos lu-
cidamente no que fazer. Esperar até às Encontrámos lugar mer um hamburger.
Em relação aos outros restaurantes, os
17h30 era impensável. Podíamos ir
buscar o leitão depois, para comer ao
mesmo em frente fast food têm uma vantagem que não é de
desprezar: estão sempre abertos e a co-
jantar, mas antes havia que encontrar do restaurante. mida nunca acaba. Não corremos o ris-
um sítio para mastigar alguma coisa.
Àquela hora, porém, não haveria ne- Estávamos com co de bater com o nariz na porta ou che-
gar lá e dar com um letreiro a anunciar:
nhum restaurante aberto; só poderia
ser um café, uma pastelaria, comería-
sorte. O pior «Hamburgers esgotados». Por isso, digo:
‘Obrigado, Burger King’. Foi o que sal-
mos umas sandes. viria a seguir vou o meu almoço de aniversário.

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NAS REDES

Cristiano Ronaldo
Os 38 com
família e amigos
Nas redes sociais, Cristiano Ronaldo
fez questão de mostrar como passou
o dia do seu 38.º aniversário. O cra-
que publicou várias fotografias com a
companheira Georgina Rodriguez e o
filho mais velho, assim como vários
amigos, como José Semedo, Miguel
Paixão e Ricky Regufe. «Obrigado a
todos por todas as mensagens de pa-
rabéns. Grato por passar o dia com a
família e amigos», escreveu o joga-
dor. Gio também fez questão de cele-
brar a data nas redes: «Dias felizes ao
amor da minha vida. Enamorada de
ti e do que somos juntos», escreveu
no Instagram. Dolores Aveiro e a
irmã, Kátia, também deixaram men-
sagens ao jogador nas respetivas re-
des sociais.

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Joana Sanz e Dani Alves Paco Rabanne
A visita na prisão: ‘Não o vou deixar Casa assaltada 2 dias após a sua morte
sozinho no pior momento da sua vida’ A casa de Paco Rabanne foi assaltada, no domingo, dois
Joana Sanz, mulher de Dani Alves, visitou o jogador na prisão. dias após a morte do estilista espanhol, que ocorreu na
À saída, explicou que não o iria «deixar só no pior momento sexta-feira passada, confirmaram as autoridades francesas
da sua vida». Recentemente a imprensa espanhola noticiou à agência de notícias AFP. «Os danos foram pequenos e
que a modelo pediu o divórcio, depois de o jogador ter sido não houve detenções». Paco Rabanne, ícone da moda,
acusado de violação por uma jovem de 23 anos. Nos últimos morreu, aos 88 anos de idade, na sua casa em Portsall, na
dias, Joana Sanz apagou mesmo todas as fotografias que tinha Bretanha, França.
com o jogador nas suas redes sociais.

Neymar
Os 31 anos
e a namorada
Neymar comemorou no do-
mingo o 31.º aniversário,
numa festa que contou com a
namorada Bruna Biancardi
(reataram recentemente o
relacionamento) e vários
companheiros do PSG, como
Messi e Hakimi. «Para-
bééééns Lindo. Já te falei
tudo hoje, to colocando essa
fotinho aqui só pra deixar
Shakira e Piqué registado. Que o seu novo
ano seja incrível e abençoa-
A pequena ‘vingança’ da artista colombiana do! Que não te faltem moti-
A separação de Shakira e Gerard Piqué continua a fazer correr vos para comemorar, ami-
muita tinta. No último fim de semana a cantora aproveitou o gos ao seu lado, realizações,
facto de o jogador catalão ter ido buscar um dos filhos que têm muuuitos gols e saúde. Que
em comum para uma pequena ‘vingança’. Piqué teve que es- Deus continue blindando o
perar trinta minutos, diante dos olhares e perguntas da im- nosso relacionamento. Te
prensa, antes que seu filho saísse de casa. Contudo, o ex-joga- amooooo! Conta sempre co-
dor mostra-se indiferente às várias polémicas e, nos últimos migo», escreveu a influencer,
dias, foi visto a passear pelas ruas de Barcelona de mãos dadas recebendo uma resposta
com a namorada Clara Chia. As imagens partilhadas pela im- curta do jogador brasileiro:
prensa espanhola mostram o casal cúmplice e sorridente. «Te amo».

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NAS REDES

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CAIXA DE COMENTÁRIOS
Héctor Bellerín
É o novo reforço do Sporting, mas ao
contrário do que é habitual quando um
clube anuncia a mais recente contrata-
ção, Bellerín fez sucesso nas redes so-
ciais pela pessoa que é e não pelos dotes
futebolísticos: é vegan, compra roupas
usadas e é defensor de causas como a
luta LGBTQIA+. O espanhol de 27 anos,
que já desfilou para marcas de luxo
como a Louis Vuitton, aterrou e não de-
morou a conquistar o like... de várias ce-
lebridades. Resta esperar para ver se
também vai conseguir o ‘gosto’ dos
adeptos sportinguistas no desfile pelos
tapetes verdes de Alvalade, onde irá ren-
der um modelo muito apreciado
no universo leonino: Pedro Porro.

Tabu
O último episódio da 2.ª temporada do
programa apresentado por Bruno No-
gueira foi alvo de criticas devido... à mu-
dança de horário. Podia ser um pequeno
pormenor mas uma vez que o tema do
episódio era dedicado à comunidade
LGBTQIA+ fez com que os telespectado-
res mostrassem o seu descontentamen-
to. «Hoje é tabu à séria… o programa foi
chutado para o horário em que os bons
costumes já foram dormir…» ou «En-
graçado como este ep. foi o único a ter
um horário diferente, enfim», pode
ler-se no perfil oficial do Instagram
da SIC. Nuno Markl também lamentou
nas suas redes sociais: «Que pena
ter ido para o ar tão mais tarde,
o último Tabu».

Leonardo DiCaprio
O ator é um dos solteiros mais cobiçados
de Hollywood. Ou, pelo menos, era. Di-
Caprio foi visto recentemente com uma
jovem modelo de 19 anos e os rumores
voltam a trazer à baila a teoria do ‘clube
dos 25’. As últimas 8 relações conheci-
das do ator foram com mulheres até esta
idade e já se fazem apostas sobre o tem-
po que esta alegada relação pode durar,
sendo que o máximo serão 6 anos, altura
em que a nova dona do coração do eter-
no Jack de Titanic, hoje com 48 anos,
completa 1/4 de século...

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TIKTOK ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS

Quando o TikTok
é palco do amor
A poucos dias daquele que é considerado o dia mais
romântico do ano - o Dia dos Namorados -, damos a
conhecer cinco casais que têm feito furor na rede
social. O conteúdo partilhado varia, mas o segredo
do sucesso é comum: duas pessoas, um só perfil.

‘Nicocapone’,
amar com humor
Há vários anos – o seu canal no YouTube
foi criado em 2016 – que Daniela Pinto

‘Explorerssaurus’: os viajantes
(portuguesa) e Nicolas Scuderi (italiano)
partilham nas redes sociais bocadinhos do
seu quotidiano. Transformando-se em
Passaram cinco anos desde que Raquel estava a fazer Erasmus em Valência. Uma ‘Nicocapone’, o casal começou por parti-
Janeiro e Miguel Mimoso decidiram mu- vez por mês, encontravam-se numa «ci- lhar vídeos sobre dois imigrantes a viver
dar de vida. O casal apostou no desco- dade aleatória», tiravam fotografias e pu- na Suíça. Dani, como é conhecida, falava
nhecido largando os trabalhos que ti- blicavam na rede social. Depressa se meio francês, meio português, criando
nham - Raquel era explicadora num cen- transformaram nos Explorerssaurus, co- uma caricatura das mulheres portuguesas.
tro de estudos e barmaid em discotecas e meçando a ser procurados por marcas Nico, por sua vez, reagia às brincadeiras.
Miguel business manager numa empresa de que lhes pagam, ainda hoje, para criarem Mais tarde e atingindo um alcance maior,
construção civil - para se dedicar àquelas conteúdos. O casal que partilha fotogra- o casal começou a dedicar-se, principal-
que eram e são as suas verdadeiras pai- fias e vídeos em paisagens de perder a mente, às pranks que fazem os seguidores
xões, tanto a viagem como a fotografia. respiração, já passou por mais de 30 paí- rir às gargalhadas. No Instagram, contam
No Instagram, começaram a documentar ses, coleciona 1,3 milhões de seguidores com 10 milhões de seguidores. Já no
a sua relação à distância, já que Raquel no Instagram e 887,7 mil no TikTok. TikTok, contam com 26,4 milhões.

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Um amor entre
mundos
Clément (francês) e Eloise (brasileira) co-
nheceram-se através das redes sociais.
Conversaram durante 7 meses em inglês e
com ajuda do tradutor, até Clément decidir
viajar até ao Brasil. 2 meses depois surgiu o
pedido de casamento e, 3 meses depois,
casaram-se. O casal vive atualmente na ci-
dade de Saint Germain, em França, e jun-
tos, partilham vídeos no Youtube, Insta-
gram e TikTok, mostrando a vida de um
casal culturalmente diferente. Clément é
apaixonado pela afro de Eloise. Está cons-
tantemente a defender que ela se mante-
nha exatamente como é e sofre quando esta
muda alguma coisa que se afaste das suas
raízes. O casal conta com 595 mil seguido-
res no Instagram e 968,4 mil no TikTok.

Discutir
com música
Com Jordan e Mel, um casal de brasileiro,
aprendemos que nem todas as discussões
precisam de ser más. O casal, nas suas re-
des sociais, publica vídeos onde substitui
as discussões por músicas. Ou seja, os
dois pegam nos instrumentais de canções
famosas e alteram a letra para dizerem o
que precisam um ao outro... com humor.
Depois deles, muitos outros casais come-
çaram a adotar a brincadeira, tanto no
Brasil como em Portugal. Reúnem 12,1
milhões de seguidores no TikTok,

Quando a diferença não interessa


No TikTok são conhecidos como os peculiar». Shane tem uma doença de
‘Squirmyandgrubs’, mas os seus nomes perda muscular grave e usa uma cadeira
são Shane e Hannah. O casal namora há de rodas. Hannah ajuda-o em tudo, já
mais de quatro anos (casaram-se em se- que o mesmo não tem qualquer mobili-
tembro de 2020) e, depois de começa- dade. Porém, a deficiência do marido
rem a partilhar vídeos do seu quotidiano não é entrave para nada. Nas suas redes
nas redes sociais, perceberam que as o casal mostra como, apesar de existir
pessoas adoravam assistir a este «amor uma doença, pode reinar o bom humor.

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GRAMMYS
LOOKS

Na passadeira
vermelha
dos Grammys
Madonna surgiu ‘irreconhecível’ e tornou-se
um dos rostos principais da 65.ª edição dos Grammys,
que decorreu em Los Angeles. Pharrell Williams
vestiu uma marca portuguesa; Harry Styles voltou
a surpreender com um macacão colorido e Blac Chyna
optou pelo modelito ‘Black Swan’. Também Sam
Smith e Lizzo deram que falar pelo looks excêntricos
usados no evento que premeia o que se faz
de melhor na indústria musical.

Madonna, de 64 anos, apresentou a atuação de Sam Smith e Kim Petras. «Se vos chamarem pro- Harry Styles venceu Álbum do Ano com “Harry’s
blemáticos, provocantes ou extravagantes, é sinal de que estão a fazer algo bem», afirmou, dirigin- House”. A estrela pop britânica estava a compe-
do-se aos «rebeldes de todo o mundo». No entanto, nas redes sociais, os espectadores questiona- tir com outros gigantes da indústria: artistas
ram se estava nomeada para o Grammy de “Melhor Cara”. «Irreconhecível», «Reação alérgica», como ABBA, Adele, Bad Bunny, Brandi Carlile,
«Vampira» e «Muppet embalsamado» foram outras reações dos internautas à cara da estrela da pop. Coldplay, Lizzo, Kendrick Lamar e Beyoncé.

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Melhor Álbum de Dança/Eletrónica por ‘Renais-
sance’, Melhor Gravação de Dança/Eletrónica
com a canção ‘Break My Soul’, Melhor Perfor-
mance de R&B Tradicional por ‘Plastic Off the
Sofa’ e Melhor Canção R&B por ‘Cuff It’: ei-los,
os prémios que Beyoncé arrecadou. Ainda que
não tenha vencido o Grammy de Álbum do Ano,
a artista norte-americana é a mais galardoada
de sempre com 32 prémios, no total. Além do
feito histórico, Beyoncé deu que falar nas redes
sociais por ter chegado atrasada à cerimónia
que decorreu na Crypto.com Arena. A artista de
41 anos não chegou a tempo de receber o pri-
meiro prémio porque... ficou presa no trânsito.

«Estou a divertir-me muito hoje em dia e acho Pharrell Williams usou óculos de sol com joias, joias de diamante e ouro e um boné de beisebol da Hu-
que estou a gostar novamente da moda e de man Made juntamente com um fato de couro vermelho. O estilo - feito de couro acolchoado cravejado -
brincar com as cores», disse a cantora Shania é de Ernest W. Baker, a marca portuguesa de moda masculina desenhada por Reid Baker e Ines Amorim.
Twain, que aos 57 anos foi um dos looks em A mulher do artista, Helen Lasichanh, também esteve presente no evento e escolheu o mesmo visual, mas
destaque no tapete vermelho dos Grammys. em preto. No site da marca, um bomber semelhante preto pode ser comprado pelo valor de 970 euros. >>

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GRAMMYS LOOKS

Sam Smith e Kim Petras arrecadaram o Grammy de Melhor Performance Pop de Duo/Grupo Jennifer Lopez dirigiu-se aos seus milhões de
com ‘Unholy’. Petras tornou-se a primeira mulher transgénero assumida a vencer um prémio fãs online depois de o seu marido, Ben Affleck,
Grammy. «Esta canção tem sido uma viagem tão incrível para mim», disse. «Quero só agrade- ter-se tornado viral pela sua aparição nada en-
cer a todas as incríveis lendas transgénero que me abriram as portas e me permitiram que es- tusiasmada nos Grammys. A cantora partilhou
tivesse aqui esta noite». Sam Smith também deu que falar com um dos looks mais arrojados da uma montagem de vídeos mostrando o vestido
noite, em Valentino. Gucci que usou e deixando claro que passa
sempre bons momentos com o companheiro.

A supermodelo Heidi Klum, de 49 anos, cami- Dwayne “The Rock” Johnson realizou um dos so- O galardão de Melhor Vídeo de Música foi atri-
nhou pelo tapete vermelho dos Grammys com nhos de Adele nos Grammy Awards deste ano. O buído a Taylor Swift por ‘All Too Well: The Short
um vestido ultra-decotado com detalhes em momento foi orquestrado pelo apresentador Tre- Film’. Harry Styles cantou ‘As It Was’ e Taylor
corrente de ouro da The Blonds. Klum compa- vor Noah, que deu início ao espectáculo abor- Swift (vestida por Roberto Cavalli) foi a única
receu com o marido e membro da banda Tokio dando Adele e explicando que a artista queria co- que fez questão de se levantar para dançar ao
Hotel, Tom Kaulitz. nhecer “The Rock”... E “The Rock” conhecê-la! som do tema do ex-namorado.

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Lizzo levou para casa o prémio de Gravação Cardi B apresentou a categoria de Melhor ál- Blac Chyna foi uma das surpresas da red carpet.
do Ano por ‘About Damn Time’. «Lizzo cobriu- bum rap. A rapper, de 30 anos, optou por um De plumas pretas e collants escuros transparen-
-se da cabeça aos pés com uma capa laranja vestido azul e ousado, do criador indiano Gau- tes, a socialite de 34 anos deu que falar - originan-
coberta de rosas». Lizzo usou um vestido e rav Gupta. do vários memes nas redes sociais - com uma
capa Dolce & Gabbana, que oferecia 2 looks criação do estilista Hollywood Larry.
diferentes.

A canção ‘Easy on Me’ valeu a Adele o prémio de Melhor Performance Pop a Solo. Adele não deixou Anitta não conseguiu levar para o Brasil o
os Grammys quando Harry Styles ganhou o Álbum do Ano, apesar da filmagem da cerimónia levar al- Grammy de Artista Revelação, pois este foi
gumas pessoas nas redes sociais a pensar dessa forma. Lizzo filmou a reação real de Adele, captan- entregue a Samara Joy, cantora de jazz nor-
do o seu entusiasmo. As duas pareciam estar a torcer pelo cantor, com Lizzo apontando a câmara te-americana. A artista brasileira apresen-
para Adele a determinado ponto. Adele perguntou: «Por que estás a filmar-me?» e Lizzo então mudou tou-se no evento com um vestido Atelier
a visão de volta para Styles, que havia subido ao palco naquele momento. Vestido: Louis Vuitton Versace.

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TELEVISÃO
CELEBRIDADES

A VERDADEIRA HISTÓRIA
DE PAMELA ANDERSON
O mais recente documentário da Netflix, Pamela Anderson,
‘Uma História de Amor’, coloca a atriz, modelo e antiga
playmate em primeiro plano a contar a história da sua vida,
passando a pente fino os maiores traumas e as injustiças
que sofreu por parte do olhar do público.

TEXTO Hugo Geada

Q
uando pensamos em Pa- amorosos entre ela e o seu ex-marido, te casamento, com um homem que esta
mela Anderson e vídeos como uma viagem numa gôndola nos ca- descreve como uma «pessoa normal».
caseiros, a nossa mente nais de Veneza ou um momento em que
pode, imediatamente, es- o músico, disfarçado de cavaleiro numa Uma longa jornada
capar para o controverso armadura prateada, declara o seu amor e marcada por traumas
vídeo desta a ter relações a pede em casamento outra vez. Na primeira parte deste documentário, co-
sexuais com o seu ex-ma- Tal como Pamela Anderson tem várias nhecemos os primeiros anos da vida de
rido, Tommy Lee, baterista dos Motley cassetes caseiras com muitos momentos Pamela e algumas histórias trágicas que
Crue, divulgado sem o consentimento de diferentes, neste documentário, esta quer marcaram o seu percurso.
ambos, mas não é isto que a antiga estre- também mostrar-nos as suas várias fa- Esta recorda a sua conturbada infância
la de ‘Marés Vivas’ nos quer mostrar. cetas e todas as dificuldades que passou marcada pelo seu pai, Barry Anderson, que
No documentário, ‘Pamela Anderson, na sua vida. maltratava a sua mãe, Carol, enquanto es-
Uma História de Amor’, lançado no dia 31 Ao longo de cerca de uma hora e cin- tava alcoolizado. A atriz recorda como, por
de janeiro de 2023, somos levados a um quenta minutos somos apresentados à vezes, tinha de sair de casa com o seu irmão
velho armário na casa da atriz que, entre vida da antiga playmate e todas as peripé- mais novo enquanto os pais estavam a dis-
diversas cassetes antigas, escolhe uma cias que esta enfrentou, desde o momen- cutir, assim como um episódio em que o
para nos mostrar. to em que foi descoberta depois de apare- pai agrediu a mãe porque esta começou a
Numa velha televisão com VHS, mos- cer num ecrã gigante durante um jogo de aspirar a casa durante um jogo de hóquei.
tra-nos diversas gravações de momentos futebol americano, até ao seu mais recen- Mas esta não foi a única historia infe-

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OS TRAUMAS
DA INFÂNCIA,
O CASTELO
DA PLAYBOY
E OS VÁRIOS
CASAMENTOS:
PAMELA PARA LÁ
DO FATO DE BANHO
VERMELHO

liz que recordou, refletindo sobre os abu-


sos sexuais que sofreu, entre os 6 e 10
anos, por parte de uma babysitter que era
uma amiga querida da família, referindo
que a tentou matar apunhalando-a com
uma caneta.
A mulher revelou ainda como foi viola-
da por um homem de 25 anos quando ti-
nha apenas 12. Para além destes crimes,
Pamela também foi violada por um na-
morado e o seu grupo de amigos quando
tinha 14 anos, uma história que ficou de
fora do documentário.
Estes abusos fizeram com que esta se
tornasse mais reservada e insegura de si e
do seu próprio corpo, culpando-se por lhe
ter acontecido estes crimes.
Esta faceta apenas seria revertida
IMDB

quando começou a sua carreira como >>

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TELEVISÃO CELEBRIDADES

1.
1. Pamela Anderson na estreia do documentário com selo da Netflix, 2. A atriz com o seu ex-marido, Tommy Lee, baterista dos Motley Crue 3. Na capa
da revista Playboy, Pamela Anderson foi a modelo que mais vezes foi fotografada para esta publicação

modelo. Depois de ter sido «descober- sua «sexualidade» e, além disso, foi a
ta» durante o jogo de futebol dos BC oportunidade para poder mudar-se a
Lions, em Vancouver, esta foi convida- tempo inteiro para os Estados Unidos,
da para fazer publicidade à cerveja Labatt onde continuou a servir como playmate,
(marca que figurava na sua t-shirt quan- e onde, com o passar do tempo, se tor-
do apareceu no ecrã gigante) e, pouco nou a modelo que mais vezes pousou
tempo depois, surgiu um convite para ti- para a revista da Playboy.
rar fotografias para a Playboy. Mas não seria apenas nesta revista para
Depois de lhe serem colocadas algu- adultos que Pamela elevaria o seu perfil
mas dificuldades para entrar nos Estados para um ícone sexual da sua geração. De-
Unidos – enquanto canadiana, esta não pois de ter rejeitado diversos convites, foi
podia trabalhar neste país –, Pamela convidada a participar na série ‘Marés Vi-
viajou de autocarro até Seattle, onde vas’, onde, com o seu icónico fato de banho
apenas confirmaram numa seleção alea- vermelho, tornou-se uma estrela global.
tória a nacionalidade das duas pessoas Os seus atributos físicos tornaram-na
(sentadas à sua frente e atrás de si), e uma das figuras mais reconhecidas do
rumou até Los Angeles onde começaria mundo e valeram-lhe uma presença
o improvável percurso que a tornaria quase constante em diversos talk-shows,
uma das maiores e mais reconhecidas em que, recorda, as questões centra-
celebridades do planeta Terra. vam-se no tamanho dos seus seios, afir-
Pamela explicou que depois de anos a 3. mando tratar-se de uma questão abor-
sentir-se reprimida esta experiência aju-
dou-a a libertar «algo». «No início esta-
va tímida, mas, no final da semana, era
capaz de sair nua à rua», é referido numa PAMELA RECORDOU
passagem retirada dos seus diários.
Esta experiência ajudou a modelo a
DIVERSAS VEZES EM QUE FOI ALVO
recuperar o seu «poder» e conquistar a DE ABUSO SEXUAL
18 LUZ 10 FEVEREIRO 2023
A ATRIZ
FALOU SOBRE
UM EPISÓDIO
VIOLENTO COM
TOMMY LEE
QUE A DEIXOU
A SANGRAR

2.

recida (uma vez que era repetida até à tória que já foi repetida até à exaustão (in- Uma visão renovada
exaustão). cluindo na série Pam & Tommy, que foi Apesar de alguns meios de comunicação
Esta afirma que sempre falou frontal- criticada e condenada pela canadiana, que condenarem a forma «açucarada», tal
mente sobre estas questões e era bas- acusou os criadores da série de serem uns como escreve o The Telegraph, como o docu-
tante verdadeira sobre as cirurgias que «cretinos»), o documentário aborda o mentário foi feito, com poucos testemu-
realizou, concluindo que esta sinceri- início, meio e fim do casal que trocou nhos, com exceção dos dois filhos de Pa-
dade e honestidade a tornaram um alvo alianças apenas quatro dias depois de se mela, a crítica elogiou a forma como a atriz
fácil para os entrevistadores homens. terem conhecido, no México. se abriu para falar sobre assuntos sensí-
Apesar de Pamela ainda recordar esta veis e reconheceu que, durante demasia-
Os casamentos relação com muito carinho, lembra tam- do tempo, fomos «injustos» com esta.
Ao longo do documentário, Pamela re- bém alguns episódios mais violentos, no- «Anderson é uma celebridade com a
cordou os diferentes casos amorosos que meadamente uma luta que ambos tiveram, qual nos preocupamos há décadas e que,
teve ao longo da sua vida, mencionan- em 1998, em que este agarrou no seu bra- por razões sérias e desagradáveis, conce-
do por exemplo, Mario Van Peebles, fi- ço com tanta força que começou a deitar demos residência permanente no
lho do icónico realizador afro-america- sangue, enquanto esta tentava proteger os zeitgeist», escreveu o editor sénior da The
no, Melvin Van Peebles, ou do surfista dois filhos do casal, Brandon e Dylan. Daily Beast, Kevin Fallon.
Kelly Slater, e como o Sylvester Stallo- Em relação a este episódio, num ví- «Mesmo quando não havia nada parti-
ne tentou que esta fosse a sua «mulher deo publicado no TikTok, a 4 de feve- cularmente grande a acontecer na sua car-
número um», oferecendo-lhe um apar- reiro de 2023, a atual esposa de Tommy, reira, lá estava ela, como se o seu lugar na
tamento e um Porsche, proposta que re- Brittany Furlan, afirmou que este «não consciência do público fosse menos uma
jeitou porque isso implicaria a possibi- quer saber» do mais recente documen- casa, mas sim um bunker de guerra forti-
lidade de existir uma «mulher número tário de Pamela, assim como a biogra- ficado onde ela permaneceu forçada. A
dois» (o ator de Rocky rejeitou estas fia que esta publicou recentemente, Lo- série de projetos centrados em Anderson
afirmações). ve, Pamela. «Tenho sorte de ter um ma- que foram lançados esta semana está a
Contudo, como não poderia deixar de rido realmente amoroso que se ri de forçar o público a reconhecer que ela não
ser, o grande foco foi a sua relação com todas estas acusações e não se preocu- teve voz ativa neste tema. Mesmo quan-
Tommy Lee, um dos casais mais mediá- pa com elas», afirmou, citada pelo blog do ela estava a falar, não estávamos a ou-
ticos e escrutinados de sempre. Numa his- StyleCaster. vir o que ela tinha a dizer». 

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 19


CULTURA
POESIA

AUGUSTO DE CAMPOS.
O ROSÁRIO HERÉTICO
DOS POETAS
No dia 14 de fevereiro, o poeta com o mais longo e vasto percurso e que é, ao
mesmo tempo, o mais entusiasta e jovem da nossa língua, completará 92 anos.
Um dos elementos fundadores do movimento da poesia concretista brasileira,
na década de 1950, Augusto de Campos tornou-se um elo crucial para fazer
sobressair na literatura aquele vigor e severidade de uma ética que opera por
meio de recusas, e, através do seu extraordinário trabalho como tradutor, foi
erguendo um concerto de vozes em desacordo com a sociedade ou com a vida.

TEXTO Diogo Vaz Pinto

H
á frases que nos dão cabo dos foi preciso entender a diferença crucial entre recia e enfastiava, especialmente se vinha na
dentes, sons que nos perdem esta e todas essas formas de toscos galanteios forma rimada. Sentia uma contração peran-
para impressões de fundo su- e do patetismo emocional ou essa queda dos te tudo o que me surgisse como desnecessa-
gerindo imprecações fabulo- intelectuais pelas delícias dos seus pensa- riamente enfático, solene, e, como Gom-
sas contra a narração exaus- mentos abstratos. A poesia começa, desde browicz no célebre ensaio “Contra os poe-
ta dos dias que correm. Há logo, por ser avessa e tornar-nos alérgicos a tas”, parecia-me que os versos recaíam
impressões tão lestas que nos todo o tipo de facilidades, instigando uma invariavelmente numa cantilena monótona,
fogem, se atam num instante e desatam no verdadeira repulsa por aquela ornamenta- nesse registo continuamente sublime. Como
outro, florindo num alcance imprevisto. E há ção forçada que trata de falsificar a beleza, ditos emplumados, ali o ritmo e a rima sina-
um risco na vigília que se fixa nessas fugas, do deixando esta de ser um ganho difícil, uma lizavam logo qualquer coisa de postiço, que
mesmo modo que há imagens que arruínam exigente reelaboração das hipóteses dadas, atuava como um soporífero, levando-me a
a nossa perceção. Numa época em que a para se tornar outra função decorativa. As- considerar que não há nada mais longínquo
amaldiçoada vulgaridade se intromete em sim, durante muito tempo tive a sensação de do deslumbramento do que esse estilo ama-
tudo, é preciso escapar do trajeto proposto, e que sempre que me deparava com aquilo a neirado ou afetado que usam os poetas, so-
mesmo dessas estradas secundárias que aca- que vulgarmente chamam poesia tinha de bretudo quando falam de si mesmos e da sua
bam por remeter para ele, e seguir ao invés lutar contra mim mesmo para não cair num Poesia. Tive sempre a sensação de que esta
a corta-mato, em contracorrente. Mas antes estado de estupor. Sentia a maior das resis- arte tinha demasiada tolerância para com
que tenhamos podido dar-nos conta de como tências àqueles modos, uma espécie de irri- certas formas de mistificação e snobismo,
a poesia é a relação de tudo aquilo que se co- tação que logo dava lugar à náusea, tendo a falsidade e mania, fórmulas para se abusar
lhe com um grande risco e só depois de se impressão de que estava a ser exposto a algo da tolerância e da boa-vontade geral, e pa-
desenvolver uma ética da recusa, primeiro desgraçadamente em esforço, que me abor- receu-me que, tal como sinalizava Gom-

20 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


O REGIME DE
TRANSCRIAÇÃO
A QUE SE ENTREGA
HÁ MUITO, LEVOU O
POETA BRASILEIRO
A RECONHECER
QUE A ‘POESIA É
UMA FAMÍLIA
DISPERSA DE NÁU-
FRAGOS BRACE-
JANDO NO TEMPO
E NO ESPAÇO’

coisas, blindar um núcleo cada vez mais es-


téril, incapaz de se confrontar com a diferen-
ça e a própria realidade. Era uma religião de
canários desses que, mesmo enfiados nas
suas gaiolas, se expostos na varanda, mal
entrassem em contacto com espécies livres,
não se livrariam de contrair alguma gripe e
perder de súbito o pio, morrendo sufoca-
dos. Como vincava Gombrowicz, «o estilo
nascido entre fiéis da mesma religião mor-
rerá em contacto com uma multidão de in-
fiéis». Tal como ele, entendia que para se
romper com esse mundo fictício e falso é
WIKIPÉDIA

preciso que qualquer forma de arte ao in-


vés de buscar um confronto com um grupo
de pessoas afins, deve antes robustecer-se
browicz, o poema havia inchado até assumir gurança, reservando-se e às suas sessões a numa relação com o inimigo e num con-
proporções monstruosas. Havia-se tornado, um regime de exclusividade, criando uns para fronto com o inimigo.
não apenas um regime paralelo ao das ideias os outros, não procurando outra coisa senão A poesia que hoje mais se celebra, nas suas
e frases feitas, como também uma missa es- estar em contacto com outros convertidos e combinações insistentes, contenta-se em
tética, e parecia-me que o polaco tinha toda fiéis, outros seres delicados e que estavam alargar um dicionário ao mesmo tempo po-
a razão ao considerar que, de todos os artis- igualmente investidos nesse regime ritualis- bre e obeso, engordado à base de picuinhices
tas, «os poetas são quiçá aqueles que caem ta que exclui todo o confronto. Os poetas e a e é cada vez mais omisso em relação aos ter-
de joelhos de forma mais persistente – re- própria Poesia estavam a tornar-se uma rea- mos capazes de gerar sobressalto e suportar
zam de forma mais fervorosa – são padres lidade cultivada em estufas e sob condições esses delírios que enfebrecem os sentidos e o
par excellence e ex professio, e a Poesia, nes- excessivamente controladas, e o estilo que se próprio sangue. É um diagnóstico recorrente
te sentido, torna-se simplesmente celebra- afinava naquele regime coral buscava neces- esse de que a poesia vive trancafiada em exu-
ção». Os poetas pareciam-me seres que se sariamente entreter um grupo cada vez mais berâncias perras, venerando uma linguagem
serviam de todas as escusas para se retira- homogéneo, excitar sensibilidades num mero sem correspondência com este mundo ou ou-
rem dos aspetos mais dolorosos da convi- ensejo de requinte que acabava por produzir tro qualquer, e que a metáfora se tornou um
vência artística, criando as suas zonas de se- uma experiência cada vez mais desfasada das modo desenfreado de se aquecer a voz para >>

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 21


FERNANDO LAZLO/DIVULGAÇÃO

Muito cedo, Augusto


de Campos deu-se conta
de um profundo desinteresse
que caracterizava a poesia
que se continua a fazer após
a explosão modernista

um canto que nunca rasga uma perspetiva tância de tudo o que escrevem, a poesia se go de três milénios de poesia e entre quase
mais vasta. De resto, algo que se tornou ca- encontrar numa situação catastrófica. E isto centena e meia de autores exemplos de uma
racterístico daqueles que usam o título e vivem é um diagnóstico que, de resto, poucos con- astúcia expressiva invulgaríssimos, erguen-
da representação de uma certa elevação é es- testariam, a não ser para sublinharem os seus do um «concerto de vozes dissonantes, mi-
tarem cada vez mais uns em cima dos outros, próprios casos enquanto miraculosas exce- noritárias», vozes que através dele encon-
num regime de isolamento em que «tudo se ções à regra. Face a este panorama, ganha tram uma passagem para a língua portugue-
torna exacerbado e até mesmo os poetas me- ainda maior relevo uma figura que surge nos sa sem perder a sua vitalidade tempestuosa.
díocres incham de forma apocalíptica e os antípodas de toda esta aleivosia agastante, Assim, como a crítica tem notado, «a partir
problemas triviais assumem proporções Augusto de Campos, poeta que foi decisivo desse percurso prospetivo que pode estar
exorbitantes» (Gombrowicz). para me reconciliar com os sinais ou mar- num único verso e que faz parte do ritmo
cadores mais identificáveis do discurso poé- do conjunto, existe uma invenção contínua
Poesia e a situação catastrófica tico. Como o próprio foi sinalizando tantas da margem».
A este respeito, basta ver todos os melindres vezes, e, em 1987, tornou explícito ao publi- Muito cedo, Augusto de Campos deu-se
que se causa interrompendo o ridículo am- car Linguaviagem (livro no qual aparecia es- conta de um profundo desinteresse que ca-
biente de publicismo que cerca a poesia, es- crito na quarta capa “crítica via tradução”), racterizava a poesia que se continua a fazer
crevendo uma crítica que se ocupe na de- o intuito era romper com o coro, abrir mar- após a explosão modernista, e que mais pa-
molição de um qualquer desses livrinhos tão gem nas próprias margens para uma flagran- reciam operações de limpeza e restauro a
incensados pelos pares. Tudo isto é um sinal te sensibilidade nova, um espanto que re- ordem anterior, um recuo face aos ganhos
de como essas manifestações à volta da poe- siste e aceita o confronto, a vida que há na das vanguardas, e até uma rendição dos poe-
sia revelam, afinal, como esta está domina- dissensão, que reconhece o quanto a vaia tas aos enredos burocráticos do prestígio e a
da por um sentido de perda, repetindo-se começa por ser a mais franca homenagem, esquemas fronteiriços. Assim, refletindo so-
até à exaustão com o simples fito de «vazar e que, assim, por meio de uma série de re- bre o período que antecedeu a formação do
o vácuo no vazio» esses recitais e elogios pú- cusas, estabelece uma diferença e uma for- movimento da poesia concreta, ele lembra
blicos ou prémios, tudo simulando uma apa- ma de encanto mais rude e profundo, que se que «enquanto os intelectuais do primei-
rência de triunfo, numa pompa que não es- arma e riposta às tentativas de rechaço com ro mundo eram basicamente monolíngues
conde como, apesar da quantidade absurda um fogo seu. Nas últimas décadas, Campos e autossuficientes, nós, do terceiro, assimi-
de poetas que continua a reclamar a impor- lançou-se numa pesquisa, colhendo ao lon- lando vários idiomas, fomos devorando

22 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


POESIA CULTURA

tudo e queimando etapas rapidamente com cálculo da imaginação», e que esta «pode vida se mostra mais “prolixa”, como «um
a pretensão de buscar uma síntese fulcra- ser infinitamente mínima, pequena, e mu- mendigo bêbado/ Que estende a mão à sua
da no critério poundiano da invenção». dar de forma na medida em que se monta própria sombra»... A partir de uma tradu-
Com um programa de tributo e de ardor, le- o tempo com outros poemas a partir de um ção dos poemas do Rubayat na edição in-
vando a efeito a noção de Maiakóvski de que jogo». «A partir dessa prática», adianta, «é glesa, de Edward Fitzgerald, encontrada no
«sem forma revolucionária não há arte re- possível se remeter a um termo alemão que espólio do poeta português, e que sobre ele
volucionária», Augusto de Campos foi sem- foi caro a Walter Benjamin, Spielraum, que terá exercido um fascínio que deixaria mar-
pre «filtrando o sal da linguagem», e os co- significa simultaneamente ‘espaço de jogo’ cas em tantas das experiências que ficaram
mentários que acompanham o seu traba- e ‘margem de manobra’». Ora, se «o sujei- na arca, Augusto rende esta versão: «Ah,
lho transcriador são verdadeiras salinas que to poético não existe sozinho, mas, pelo vem, vivamos mais que a Vida, vem,/ An-
ficam do ânimo com que desbrava os sinais contrário, habita intervalos específicos en- tes que em Pó nos deponham também;/ Pó
mais fulgurantes e dispersos desses espíri- tre invenção e memória, intervalos que só sobre Pó, e sob o Pó, pousados,/ Sem Cor,
tos insurretos, implicando-se da forma mais a palavra pode criar», Augusto de Campos sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem.».
ardilosa com vista a não trair nem deixar foi um verdadeiro criador de passagens, al- O regime de transcriação a que se en-
escapar a integridade ética e estética dos guém que se coloca diante de um texto, e trega há muito, levou o poeta brasileiro a
textos originais, admitindo sumptuosas va- que, admirando as possibilidades que nele reconhecer que a «poesia é uma família
riações e compondo uma espécie de rosá- se estendem, desenreda o próprio tempo e dispersa de náufragos bracejando no tem-
rio herético. Deste modo, vemo-lo sempre ressalva antes os elementos que fazem da po e no espaço», e, no texto de abertura
dedicado a essa radiação que dá sentido ao língua uma via, um meio de viagem, e o in- do livro Verso, Reverso, Controverso, ex-
menor detalhe, e na afinação de no respei- tenso esforço do seu trabalho buscando cru- plica essa angústia de um homem que se
to por esse «sinal de menos» (Eduardo Ster- zar diferentes acessos, suando, pingando e vê desamparado no seu tempo, e recorre
zi) que ele procede, reatando aqueles sen- medindo o fundo do abismo, faz dele um a Pessoa uma vez mais para notar que,
tidos que vão ficando soterrados na matéria maestro que vem a insurgir-se pela com- «com uma tal falta de gente coexistível,
fossilizada dos idiomas. E assim o achamos preensão de tudo o que falta, alguém que como há hoje, que pode um homem de
aferrado, este poetamenos, como inseto à traduz para consertar um vazio, estender sensibilidade fazer senão inventar os seus
beira do invisível, sorvendo a gota mais viva pontes, crivando o percurso daquelas mar- amigos, ou quando menos, os seus com-
da pulsação intemporal, e recosendo o que cas estranhas que prendem a nossa atenção panheiros de espírito?».
parece uma miragem, com essa linha que num fundo mais vibrante e que se destaca
mal se vê, um fio de pesca, tenso, capaz de face a esses «pontos sensíveis onde a críti- A obra
arrastar uma vida que se esconde e prefere ca se limita a conservar e a desconversar». Cabe aqui, ainda, assinalar esse outro título de
que seja sentida apenas a sua luta, erguen- E se ele está tão atento e empenhado em fa- um volume de ensaios de Augusto de Cam-
do uma vaga entre os sons, com o próprio zer emergir um trânsito entre sinais de ru- pos, originalmente publicado em 1978, e que
corpo cerzindo o mar através do pulso acha- tura, em resgatar um fulgor diverso, nesse impõe o foco sobre obras de rutura de escri-
do entre poças num espaço e num tempo aspeto está muito próximo de Fernando Pes- tores brasileiros, e que depois de se ter cha-
desarticulados. soa, com quem Augusto estabeleceu uma mado Poesia Antipoesia Antropofagia na pri-
correspondência bastante frutuosa, procu- meira edição, mais de 35 anos depois volta-
Poeta, ‘um inventor do tempo’ rando emergir dessa encruzilhada onde a va às livrarias acrescido de uma secção “… &
Num dossier dedicado ao poeta assinalan- cia.”, com novas incursões “errático-críti-
do os seus 90 anos, o crítico Eduardo Jorge cas” publicadas nesse período. O sentido de
de Oliveira lembrava que, na linhagem que reapropriação que domina toda a obra de Au-
cada poeta constrói para si, deixa de haver gusto, recolhendo achados e saltos fulguran-
uma distância cronológica tão grande e o tes e cumulando esse miolo de pão que a sua
que sai reforçado são os vínculos entre aque-
les que atuam por meio da recusa nos mais
AUGUSTO TRAZ inteligência achou em migalhas dispersas pe-
los caminhos, visitando nos períodos mais
diversos períodos históricos, e isto porque, DE NOVO À VIDA desencontrados um bom número de almas
«em primeiro lugar, o poeta é um inven-
tor do tempo». «A partir do poema emer- E AO NOSSO para as re-situar no seu próprio tempo e es-
paço, torna muito claro o quanto o poeta sen-
gem temporalidades na contracorrente das
disciplinas cronológicas e evolutivas, pois as
CONVÍVIO EXPRES- te falta de se achar acompanhado para não
ficar prisioneiro da sua época, para se evadir
seleções, traduções e montagens impri- SÕES URGENTES, dos limites e do resumo desesperante feito
mem acelerações e desacelerações, proje-
tam o passado no futuro, suspendem o pre- NOÇÕES QUE pelos nossos contemporâneos, com as «ve-
lhacas velharias que nos impingem» ao lon-
sente ou o remontam de modo combinado
com outros tempos». Este crítico vincava
DESMONTAM A go das nossas vidas. Augusto de Campos bus-
ca, deste modo, essa irmandade no tempo,
ainda como «a elaboração de margem é um PRÓPRIA MORTE assinalando como aqueles poetas primeiro >>

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 23


CULTURA POESIA

resistem e escapam ao edifício sufocante dos


dogmatismos e não cessam depois de inves- ‘INFERNO OU CÉU, e que me tinha tornado resistente a tudo
o que soasse a antigo, era apenas um equí-
tir contra ele, sendo que, nesse empenho,
provam ser «mais irmãos e mais próximos
DO BECO SEM voco, uma vez que confundia o antigo com
aquela afetação do discurso e o deleite ri-
que a diluente maioria dos literatti que nos SAÍDA/ UMA SÓ tualista com as formas que fazem do pas-

COISA É CERTA:
cercam». Outro traço distintivo desta obra é sado um culto mórbido, precisamente por
a imensa generosidade que caracteriza o seu este aparecer como estático e irrefutável,
esforço crítico, uma espécie de devoção que
faz de Augusto de Campos um especialista
VOA A VIDA/ E, e, também por isso, inofensivo. Ora, no
compromisso da sua atenção aos elemen-
em arrombar falsas portas e obstáculos, es- SEM A VIDA, tos mais frágeis de tudo o que passa pela
sas arrumações que sinalizam o idiotismo
historicista («os futurocratas passadófobos, TUDO O MAIS língua, no modo como emenda, desemen-
da, verte, reverte, sem inversões canhes-
que dividem a história em antes e depois de
si próprios, não passam de medíocres nar-
É NADA/ A FLOR tras, ao construir palmo a palmo essa ca-
tedral que nada tem de imóvel e que hon-
cisistas que já vão ser enterrados no próxi- QUE FOR LOGO ra a visão de um outro, Augusto de Campos
mo passado do futuro»), propondo em seu
lugar formas de dissecação radiosa, e trazen- SE VAI, FLOR IDA’ fez-me compreender que o novo e o an-
tigo se animam e restituem entre si um
do de novo à vida e ao nosso convívio ex- mesmo eco anterior, captando a passada
pressões urgentes, noções que desmontam num chão que cede em qualquer época, a
a própria morte. Nasce, assim, uma cons- cada verso, cada estrofe, tentando recu-
ciência que vinga atuando nas margens, a perar o efeito de propagação acústica bem
daqueles que se põem a escutar entre as par- como os restantes sinais que indicam e
tes mais singulares ou raras de cada idioma os compõem já um destino, esse que deve
momentos em que a gramática quase range estar inscrito e animar cada instante de
e alucina, quando o seu sistema circulatório te o seu estado de comoção e o balanço que um poema. Assim a tradução mostra-se a
produz acidentes reveladores e aberturas no- leva. Isto faz de Augusto de Campos um ba- forma de compreensão mais profunda de
vas. É importante ainda notar como as tra- tedor ilimitado, que não guarda segredos, um texto, pois está na perda como no ga-
duções de Augusto de Campos surgem acom- mas partilha esses assombrosos dons lin- nho, na forma como «a atenção lenta de-
panhadas desses comentários que traçam guísticos que lhe permitem seguir um ras- senrola» (João Cabral de Melo Neto) cada
para nós um mapa das soluções recusadas e tro mesmo séculos depois, mesmo se este plano em que se detém. E esta não pode
daquelas a que, com o seu fabuloso instinto parece já um tanto apagado, e estudar as simplesmente valer-se de uma experiên-
para buscar o nexo mais inquietante, fazem inflexões no seu respiro, remontar o pavor cia anterior para resolver um embate ines-
dele um explorador tão atento e escrupulo- e os impulsos a que se entregou. «A minha perado, mas deve precipitar-se e aos seus
so no que toca aos elementos formais da pa- maneira de amá-los é traduzi-los», adian- sentidos face a essa vertigem, desesperar
lavra, a essa temática de timbres que lhe per- ta Augusto. «Ou degluti-los, segundo a Lei antes de se dar por satisfeita com soluções
mite ser um cultor extraordinário dos aspe- Antropofágica de Oswald de Andrade: só apressadas, tomadas de empréstimo.
tos que irrigam de musicalidade vital um me interessa o que não é meu». E explica
verso ou uma frase. então como tradução no seu entendimen- Tradução, um ‘ato mágico’
Nos seus esforços de arqueologia, na vi- to nos leva ao conceito de “persona”, que Augusto de Campos rejeita qualquer selo de
vissecção de abalos ocorridos há muito é um quase heterónimo. «Entrar dentro da autoridade que ele mesmo não tenha verifi-
noutros idiomas, mais do que defender o pele do fingidor para refingir tudo de novo, cado. Prova de cada frasco, educa e refina a
valor dos clássicos por igual, Augusto ilus- dor por dor, som por som, corpo por cor. sua perceção, desenvolve essa habilidade ter-
tra esses elementos de ligação entre o novo Por isso nunca me propus traduzir tudo. rífica que retira estímulo e ânimo a cada obs-
e o antigo, esse refluxo intemporal de oxi- Só aquilo que sinto». táculo e dificuldade com que se depara, e que
génio, deixando à vista o vínculo que há o instigam a ser criativo nas suas propostas,
entre erudição e imaginação, como um e O crítico mais profundo ao ponto de entender que a própria desistên-
outro se atualizam. Tudo converge, as ex- Trata-se de um projeto poético de uma cia consegue ser bem mais fiel do que um re-
periências mais remotas e algumas que es- ambição e audácia sem par nos nossos sultado frio. Também por isso recusa ofere-
tão em processo nos nossos dias, sendo na dias, e que faz deste autor o crítico mais cer-nos essas fórmulas de substituição lite-
sua maioria ignoradas para dar lugar a coi- profundo que temos, erguendo e cruzan- ral, essas traduções que acabam por frustrar
sas de segunda ordem, tudo isso encontra do esses estrondos num rumor que come- a matéria vibrátil que se articula a partir de
a sua proximidade neste ouvido, capaz de ça a penetrar o edifício inexpugnável. Foi sensações alheias, «em que os sentidos e o
escutar a menor variação no ímpeto com o seu exemplo que me fez ver como mui- entendimento se povoam de relações entre
que alguém põe um pé diante do outro a to do desgosto perante os aspetos mais coisas de aparência estrangeira umas às ou-
uma larga distância, sentindo intimamen- postiços do regime de canto coral poético tras, ligando o familiar e o estranho»

24 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


Augusto de Campos foi um
verdadeiro criador de passagens,
alguém que se coloca diante
de um texto e que desenreda o
próprio tempo e ressalva antes
os elementos que fazem da
língua um meio de viagem

(Goethe). Ele entende que a restituição só


pode acontecer se os sons entretecerem en-
tre si a sensação do desabrido movimento de
uma alma, sacudindo o idioma, causando
nele uma impressão rara e refletida. Este mo-
vimento só pode ser alcançado criando «um
outro corpo vivo, que simulará um cresci-
mento orgânico, sempre com o olhar con-
tido, guardado, alucinado, no outro corpo
vivo, respirando não por si mesmo, mas pela
proximidade do outro, pela sua afinidade in-
demonstrável com ele». Isto é assinalado por
Maria Filomena Molder num ensaio recolhi-
do no volume Semear na neve em que cer-
ze uma série de leituras de autores como Wal-
ter Benjamin ou Paul Valéry, entregando-nos
o mais profundo dos ensaios escritos entre
nós sobre a arte da tradução. Neste texto, a
autora demonstra como aqui o ideal passaria
por dominar de tal modo «o mar da lingua-
gem» que se consiga restituir «todas as re-
ticulas, redes, elos, enleios, liames, tudo o
que forma esse tecido», e o faz «sem restos,
sem costuras, sem falsas bainhas nem re-
mates disfarçados»… Isto só é possível atra-
vés dessa obstinação que leva o tradutor a
empenhar-se de forma a resgatar as cadeias
reverberantes, a mesma intensidade, a com-
plexidade da trama que transporta o sentido
de um texto tratando-o como um organismo
de ressonâncias indissociáveis e infatigáveis. >>

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 25


CULTURA POESIA

Trata-se, por isso, de uma espécie de «ato lado, ele é o depositário ao mesmo tempo de si mesmo, do seu idioma. E isto por via
mágico», no entender de Molder, esse de um anseio e de uma nostalgia, e acaba do que ele chama “intradução”, essa for-
«transporte de um corpo vivo em laboração por intuir os elementos de passado e de ma de resgatar um texto dando-se todas as
contínua», de tal modo que é preciso não só futuro que há em todo o presente. liberdades na captura de uma mesma vi-
zelar pela sua sobrevivência, mas assegurar Esta foi a lição que nos ofereceu Santo são, na perceção fulgurante de uma realida-
que, à sua passagem, as perceções se mantêm Agostinho ao sinalizar a íntima ligação dos de comum. E recorde-se que, como Gui-
como que eriçadas, como se fossem estas a diversos tempos do tempo, e servindo-se, marães Rosa vincou, «o real não está na
ser arrastadas pelo seu esplendor, como se para esse efeito, da rememoração de um saída nem na chegada: ele se dispõe para a
este ser exigisse que se excedessem ao lon- poema para explicar como funciona a gente é no meio da travessia».
go da travessia. Seria como providenciar o eternidade: «Antes de começar, o poema O que Augusto de Campos faz é atirar-
transporte de um cetáceo através de dois está na minha antecipação; assim que o -nos nesse meio, no olho da coisa, na alu-
oceanos separados por uma massa continen- acabei, na minha memória; mas enquan- cinação espantosa, na irradiação em que
tal, uma operação que obrigasse a ir passan- to o digo, está a estender-se na memória, todas as hipóteses merecem ser pesadas
do água, mantendo-o fresco, com uma gran- pelo que tenho dito; na antecipação, pelo e sentidas, antes de se extrair um resulta-
de delicadeza e atenção, de modo a que a hu- que falta dizer. O que sucede com a tota- do derradeiro e, portanto, fatal. Nesse ba-
midade e o hálito fossem restabelecendo essa lidade do poema, sucede com cada verso lanço do que insiste, investiga, radicaliza
harmonia marinha. Seria, assim, possível tra- e com cada sílaba. Digo o mesmo da ação as hipóteses, desfigura para ser mais fiel
zer um corpo imenso do seu elemento, fazer mais longa de que faz parte o poema, e do no retrato. Assim, busca no avesso, exa-
a distância mais agreste, sem perder elemen- destino individual, que se compõe de uma mina em contraluz, para conhecer a dife-
tos essenciais, mantendo a vitalidade origi- série de ações, e da humanidade, que é rença e a distância que dá mais sentido à
nal, o fulgor, e compensando o que inevita- uma série de destinos individuais». intimidade com o original. Como se esti-
velmente se perde pelo caminho e com o Tendo isto por base, é fácil entender a for- casse a pele musical de uma composição
tempo. Mas, para isso, primeiro é preciso que ma como o tradutor participa desse desti- para perceber o que assume mais relevo
quem o faz esteja dolorosamente ciente da no que lhe parece ser alheio, acabando por na sua elasticidade, o que ela permite e
dificuldade da tarefa, dos desafios que im- extrair a sua identidade dessa memória que qual é o seu verdadeiro alcance. Mas fá-
plica esse tráfico quase impossível. Isto agu- se partilha e depois se estende ou desen- -lo sem rasgar ou romper, sem perder de
ça o engenho, obriga a invenção a superar- rola segundo um outro universo. Isto diz- vista nem a forma nem a alma, mas con-
-se, não se ficando por meras correspondên- -nos que traduzir é criar num campo de es- solando uma na outra. Deste modo, alar-
cias, mas forçando o lençol de uma língua a colhas que estão limitadas à partida e nun- ga-se o raio, a dicção expande-se, inspi-
cobrir o fantasma da outra. Assim, o tradutor ca inteiramente satisfeitas à chegada, daí a rada, acicatada. Sendo o perigo maior que
cuida não só da perturbação original, mas sua irresolução tão pregnante, e daí tam- um texto se arrume e ceda a uma forma
desse novo lugar que se cria no intervalo en- bém o rigor da «orquestração gráfica» por estagnada, imóvel, deixando de produzir
tre os idiomas, e isto só é possível se puder que se bateu Augusto de Campos, procu- vertigem, de obter o seu eco ou reflexo a
cuidar da eternidade em ambas as direções. rando desenhar o embalo da alma nos seus refranger-se numa distância cada vez
Não basta passar, por isso, o nariz sobre sucessivos arroubos, forjando um novo cor- maior. No limite trata-se de fazer cair o
o abismo, nem mergulhar nele o cantil e po ouvido num outro idioma, mergulhan- firmamento e as constelações, mesmo as
tomar um trago imaginário. É preciso es- do lá fora, para chegar mais fundo dentro só descobertas ou avistadas muito depois,
tar consumido pela severa sede que leva entre aquele desenho universal através do
alguém a ter a língua colada ao paladar, qual o texto se predispunha a recolher o
dominada por uma ardente sede de ex- pó de todas as estrelas.
pressão, colocando todo o seu peso na
busca da maior afinação de elementos Poesia: conferência sobre nada
possível. Essa é a sombra sempre entor- Somos o desejo de além mais do que o úl-
nada de quem mais se admira nos outros, timo passo em que ficámos, e Augusto
de quem é mais vivo confiando nos ins- sempre foi esse filho fiel à dedicatória que
trumentos que levam aquele que revela
tanta experiência em seguir outros a aca- ‘A POESIA É COR, É fez, no livro Balanço da Bossa e Outras
Bossas, ao pai Eurico de Campos, «pin-
bar por adiantar-se-lhes. O tradutor pare-
ce ir por fora, mas, afinal, prova ser o mais
SOM, É FRACASSO tor e compositor, pianista e sambista», e
que o ensinou: «a passar toda a minha
íntimo, estar mais dentro, cair como mor- DE SUCESSO, vida/ a defender causa perdida». A sua
to dando por si num outro lado renascido.
Ele fala-nos de limites, de não se abdicar E NÃO PASSA DE obra são como passos perdidos ecoando
esse desejo de expansão e desdobramen-
de qualquer sinal, ser inteiramente pre-
monitório, levando a coisa até à conse-
UMA CONFERÊNCIA to, e, deste modo, a sua sombra sente-se
mais como um ritmo persistente, absor-
quência que ela mesma exige. Por outro SOBRE NADA’ vendo e reavendo outros prismas, expe-

26 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


O pai Eurico de Campos,
‘pintor e compositor, pianista
e sambista’, ensinou Augusto
‘a passar toda a minha vida/ a
defender causa perdida’
AMNESTYINDIA.ORG

riências, tonalidades, ânimos e entusias- «O moderno contenta-se com tão pou- conferência sobre nada». E é preciso che-
mos. Uma revolução que não se cansa, co», disse Valéry. E Augusto de Campos gar ao nada como reverso, dar a sentir esse
não cede, não se desilude ou dececiona, fez-nos ver como o que mais interessava buraco que ordena a vida ao seu redor, e
pois percebe que não há propriamente um na modernidade era a sua proposta de impõe um sentido de urgência, um ape-
paraíso estático, mas é o próprio movi- convulsão, como não pretendia chegar a tite pelo que enriquece de cor e som para
mento e o balanço que nos dá a sentir uma fórmula final, mas sobretudo indis- que a contemplação nos entregue a esse
como o horizonte ferve de imagens, gera por, apurar o elemento inquietante que é tempo que não é um mero resíduo que se
essa miragem que instiga a vida, acalora mais expressivo da condição humana. In- esgota, para que se possa ancorar os sen-
o sentido, não deixa que ninguém se en- teressaram-lhe sempre mais os intradu- tidos nos aspetos eternos, e tudo não se
cerre num feito ou se adie sine die, perden- zidos e os intraduzíveis, «os que alarga- torne um motivo de renúncia a esse febril
do a capacidade de relacionar-se com os ram o verso e o fizeram controverso, para sentido único que nos cabia a nós desper-
outros. A poesia é, por isso, e como outro chegar ao reverso». Parece um jogo de pa- tar. E é para chegar aí mais depressa,
dos seus leitores notou, a fiadora de uma lavras, e é, mas um jogo que nos prepara aprendendo com os outros, com o que já
promessa de um paraíso que se esquiva, para o resto, para não nos ficarmos pela foi feito antes e melhor, que nos viramos
e que vale mais como utopia. literatura, porque nada disto serve de mui- para a poesia, essa síntese esfuziante que
Noutra versão colhida dos Rubayat, Au- to se nos ficarmos por aqui, se não for uma nos treina na «ordenação da informação
gusto vinca: «Inferno ou Céu, do beco sem compreensão e um embalo vital. No final para que o próximo homem ou geração
saída/ Uma só coisa é certa: voa a Vida,/ do prefácio “Antes do Anti”, do livro O An- possam achar o mais rapidamente possí-
E, sem a Vida, tudo o mais é Nada./ A Flor ticrítico, lê-se: «A poesia é cor, é som, é vel a parte viva dela e gastar um mínimo
que for logo se vai, flor ida». fracasso de sucesso, e não passa de uma de tempo com itens obsoletos». 

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 27


ENTREVISTA

O diretor de prova do Dakar é português. Pedro Almeida é o responsável máximo


pela equipa que organiza a corrida mais longa e difícil do mundo. São duas
semanas no deserto profundo, e a edição de 2024 vai ser ainda mais exigente. O
regresso a África tornou-se uma miragem.

Pedro Almeida
‘Há pessoas que gastaram
tudo para fazer o Dakar’
TEXTO João Sena

P
edro Almeida é um nome mantinha a atividade nos ralis tradicio- meio de setembro e acaba no final de mar-
bem conhecido no desporto nais, que eram a minha escola. Em 2012 ço. No período do verão é impossível pra-
automóvel. Durante muitos convidaram-me para organizar uma pro- ticar qualquer atividade desportiva no ex-
anos foi navegador de alguns va do campeonato do mundo de todo o terior devido ao intenso calor, que chega
dos melhores pilotos de ra- terreno no Qatar. Pensei, na altura, que aos 50 graus.
lis nacionais. Depois de era uma experiência pontual, mas não foi.
abandonar as corridas este- Os organizadores quiseram que eu conti- Como justifica que a prova mantenha a
ve ligado à organização de provas e foi di- nuasse responsável pela prova e, durante designação Dakar quando se realiza na
retor do Rali de Portugal durante 14 anos. seis anos, dividi-me entre o Qatar e o Ra- Arábia Saudita? Dakar é uma marca for-
A qualidade do seu trabalho, o profundo li de Portugal. Em 2018, optei por uma par- tíssima e tem um carisma muito especial.
conhecimento das regras e a sua correta ticipação mais ativa no Qatar. É das últimas provas que corresponde ao
aplicação e a enorme experiência vale- espírito de aventura que sempre esteve li-
ram-lhe o reconhecimento internacional. A sua atividade profissional está centra- gado ao desporto automóvel. Além disso,
Foi convidado para ser diretor de prova no da no Médio Oriente? Sem dúvida, atual- tem uma dimensão esmagadora que im-
Qatar, recebeu convite idêntico para ser mente trabalho para a federação de auto- pressiona qualquer pessoa, todos sabem
responsável pelos rally-raid da Andaluzia móveis e motos do Qatar. Organizo um ra- o que é o Dakar.
e de Marrocos e, há dois anos, a Amaury li convencional do campeonato do Médio
Sport Organisation (ASO) convidou-o para Oriente, uma baja do campeonato do Como era o dia a dia do diretor de prova?
ser diretor de prova do Dakar nos auto- mundo e sou responsável pelo campeo- Devo dizer que foram 15 dias duros. Le-
móveis. Faz também parte da comissão de nato nacional de todo o terreno do Qatar. vantava-me às cinco da manhã, seguia
todo o terreno da Federação Internacional No meio desta sequência, foi criado o para o bivouac onde estava a organização
do Automóvel (FIA), que tem por missão Campeonato do Mundo de todo o terreno e começava a acompanhar a prova. A par-
acompanhar o desenvolvimento da mo- e a ASO, promotora do campeonato, e a tida para os automóveis é muito cedo, nor-
dalidade. FIA convidaram-me para ser diretor das malmente antes das seis da manhã, e de-
cinco provas dessa competição. Com tudo mora mais de três horas. Uma especial de
Após muitos anos como responsável do isto, vai ser um ano extremamente preen- 400 quilómetros demora menos de quatro
Rali de Portugal, o que o levou a mudar chido e com a responsabilidade de ser di- horas para os mais rápidos, mas os últi-
de ambiente? A passagem dos ralis tradi- retor em 15 provas. mos podem demorar 12 horas ou mais, por
cionais para o todo o terreno foi uma mu- isso a minha equipa vai-se revezando para
dança gradual. Comecei a colaborar com Está ausente de Portugal grande parte do me acompanhar. O dia acaba normalmen-
o José Megre na organização de provas do ano? Sim, durante seis meses estou no Qa- te pelas 22 horas, altura em que consigo
Clube Aventura ao mesmo tempo que tar. A época de todo o terreno começa a publicar a ordem de partida para a etapa

28 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


‘NUNCA TINHA
FEITO PARTE
DE UMA
ORGANIZAÇÃO
COM ESTA
CAPACIDADE DE
PREVER, PLANEAR
E RESOLVER
SITUAÇÕES’

seguinte estabelecida em função da clas-


sificação da especial da véspera.

A prova desenrola-se ao longo de várias cen-


tenas de quilómetros em linha, como é fei-
to o controlo? O rali teve 14 dias competiti-
vos e alguns milhares de quilómetros. Exis-
te uma estrutura de segurança designada
PCO que controla, ao minuto, a localização
dos pilotos através de GPS, e reporta ao di-
retor de prova. A PCO dispõe de um con-
junto de sofisticadas ferramentas que per-
mitem saber, em tempo real, o que se pas-
sa com os concorrentes. Se, por exemplo,
um carro capotar ou tiver uma inclinação
excessiva recebemos uma mensagem do
inclinómetro, e se houver um impacto tam-
bém recebemos essa informação. Além dis-
so, temos comunicação, via satélite, com
qualquer equipa, e sabemos de imediato se
há uma situação grave. Se não for possível
comunicar, os carros têm um conjunto de
botões de alerta. É muito difícil que haja um
acidente e que não seja do conhecimento
imediato do diretor de prova. Temos quatro
helicópteros médicos e várias equipas no
terreno que acompanham em permanên-
PAULO MARIA/INTERSLIDE

cia a prova, e que estão prontas a atuar. A


equipa PCO trabalha até às sete da tarde. A
partir dessa hora, há outra equipa, em Pa-
ris, que tem a mesma informação e os
meios de controlo para acompanhar os con-
correntes mais atrasados. >>

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 29


ENTREVISTA

Estamos a falar de meios humanos e ma-


teriais impressionantes? Devo referir que
é uma organização altamente profissio-
nal, só assim é possível manter o Dakar a
um nível muito elevado como acontece
atualmente. Há, de facto, uma vasta es-
trutura humana e um trabalho de equipa
incrível na montagem e preparação da
prova. A ASO conta com centenas de vo-
luntários que trabalham há 30 anos para
o Dakar, e vivem-no com uma intensida-
de extraordinária. Este ano tivemos 215
automóveis e camiões, quase 200 motos
e 100 carros de uma competição para clás-
sicos, e toda esta gente viveu em bivouac,
que mudam de local quase todos os dias,
e tudo isso fluiu com uma facilidade ex-
traordinária.

Podemos saber os números envolvidos? Na


parte desportiva são, no mínimo, 500 ele-
mentos e dezenas de carros preparados
para o todo o terreno. A direção de prova,
que é a área que me diz respeito, é com-
posta por sete pessoas. Na área da logísti-
ca, não faço ideia do número de pessoas
envolvidas, mas é um batalhão com toda
a certeza. O Dakar tem ainda uma equipa
avançada que passa no percurso 24 horas
antes dos pilotos e identifica qualquer si-
tuação anormal. Existe ainda as equipas 1.
que fazem a partida e o final dos troços
que vivem durante 15 dias em gigantescos 1. Pedro Almeida foi diretor do Rali de Portugal durante 14 anos 2. O seu conhecimento, ex-
motorhomes, que foram adaptadas para o periência e rigor na aplicação das regras foram reconhecidos a nível internacional e atualmen-
efeito. te é responsável pelo Dakar 3. Sempre atento aos detalhes e com controlo total da maior pro-
va de desporto automóvel do mundo
Quais as mais valias de a prova se desen-
rolar na Arábia Saudita? A principal vanta- 2.
gem é que se trata de um grande patroci-
nador, depois há um envolvimento mui-
to forte das autoridades sauditas para o
bom funcionamento da prova. As entida-
des oficiais estão sempre muito presentes
quer na fase de preparação, quer depois
na fase de gestão da prova. O exército e a
polícia estão, naturalmente, envolvidos e
trabalham em gabinetes separados, na
FOTOS PAULO MARIA/INTERSLIDE

mesma área onde eu trabalho.

Já houve situações delicadas? Não pode-


mos esquecer que estamos numa zona
instável em termos geopolíticos. Em 2022,
houve um alerta e as autoridades precisa-
ram de ter o espaço aéreo livre para ativi-
dades de defesa e tivemos de mandar ater-

30 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


3.

rar todos os helicópteros, num minuto es- calor. Quem faz o levantamento do per- Tudo isso acontece com grande secretis-
tavam todos no chão, não dá para discu- curso vai para a estrada entre fevereiro e mo, só um número muito restrito de pes-
tir. Sem helicópteros não há o mínimo de abril, e regressa em setembro. No verão, a soas é que tem acesso à totalidade da in-
segurança e tivemos de parar a prova. estrutura geral da prova está definida. formação. Há uma outra equipa, que vive
permanentemente na Arábia Saudita, res-
A organização decidiu passar menos tem- ponsável por fazer os contactos com as
po nas grandes cidades, onde se concentra autoridades governamentais e desporti-
a população. Qual o motivo? Este ano redu- vas, e que vai assegurando o dia a dia da
zimos o contacto com os grandes centros organização da prova.
urbanos para termos um ambiente mais
esterilizado em termos de segurança. Nos ‘COSTUMO Vão haver novidades no percurso? A pro-
primeiros seis dias estivemos num gigan-
tesco campo junto ao Mar Vermelho, e foi
DIZER QUE HÁ va deste ano foi duríssima para a segun-
da metade do pelotão, mas para os pri-
daí que partiu toda a caravana. TRABALHOS QUE meiros foi relativamente fácil. O mo-

Quando começa a ser preparada a edição


FAÇO QUE, mento alto deste ano era a passagem
pelo Empty Quarter , um deserto pro-
de 2024? Qualquer prova desta dimensão EM VEZ DE fundo onde não há vida, com dunas im-
começa a ser preparada no dia seguinte a
ter terminado a anterior. A equipa res-
RECEBER, DEVIA pressionantes, como nunca tinha visto
na vida, e esperava-se que fosse extre-
ponsável faz um debrief sobre o que não SER EU A PAGAR mamente difícil, mas não foi isso que
correu bem, o que podia melhorar e as
ideias que ficaram por aplicar. No terre-
PELO PRAZER aconteceu. No próximo ano a passagem
por essa zona vai aumentar de intensi-
no, começa-se muito cedo por causa do QUE ISSO ME DÁ’ dade e dificuldade. >>

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 31


ENTREVISTA

1.

Apesar da longa experiência como navega- nheci um pai e uma filha do Paraguai que se possa pensar. Eu próprio, que tenho ex-
dor e, mais tarde, como organizador, o dormiram em tendas durante três sema- periência disto, nunca tinha feito parte de
Dakar ainda o surpreendeu? Marcou-me nas porque não tinham recursos financei- uma organização com esta capacidade de
muito a capacidade e a dimensão da orga- ros para ficar em motorhomes ou hotéis. prever, planear e resolver situações.
nização, era algo que não conhecia. A mi- Esse espírito de aventura e o querer che-
nha escola era a de um diretor de prova que gar ao fim são únicos. Mas depois não sa- Há particularidades interessante na organi-
controlava tudo e intervinha em todas as bem nada do regulamento da prova. zação do Dakar? Há detalhes surpreen-
decisões. Estava na dúvida se era um dire- dentes se tivermos em conta que se está
tor deste tipo que a ASO queria. Quando vi O Dakar deste ano teve algum momento no meio do deserto, e que mostram o cui-
a máquina a trabalhar de forma super efi- complicado? Tivemos um contratempo de- dado posto na organização da prova. A es-
ciente percebi que podia concentrar-me vido às péssimas condições climatéricas. trutura do bivouac principal, onde nor-
apenas nas funções de diretor de prova e Foi necessário alterar o percurso e a equi- malmente almoçam e jantam cerca de
deixei de me preocupar com questões de pa da ASO fê-lo com grande eficácia. Isso 3000 pessoas, é sempre igual, mesmo
outra ordem. No Dakar, chego cinco dias só foi possível com uma dimensão técni- quando se muda de local. No final do dia,
antes da prova começar e está tudo prepa- ca e humana que excede tudo aquilo que quando chego ao novo acampamento ele
rado. Depois, é só gerir o desenrolar da é exatamente igual ao que deixei antes,
competição. Nesse aspeto, foi uma surpre- não há nenhuma diferente, a única coisa
sa e uma lição. Surpreendeu-me pela ne- que pode mudar é a paisagem à volta. O
gativa o chamado espírito do Dakar. Há 50 caminho que faço para chegar ao restau-
ou 60 equipas organizadas, com meios so- rante, à casa de banho ou ao meu posto de
fisticados, que conhecem a regulamenta- ‘O DAKAR É UMA trabalho é exatamente o mesmo.
ção, depois há mais 200 equipas para quem
o Dakar é a aventura da sua vida e os re-
PROVA ONDE Para os pilotos mais antigos, o verdadeiro
gulamentos não fazem nenhum sentido. É EXISTE GRANDE Dakar era em África. Há alguma hipótese
muito complicado gerir um regulamento
que é respeitado à vírgula por uns, enquan-
ESPÍRITO de a prova voltar ao continente negro? A
decisão não passa por mim, mas como ob-
to outros não fazem a mínima ideia do que DE AVENTURA, servador diria que é muito difícil. Organi-
se está a falar. Ao fim de dois anos já con-
sigo fazer a síntese das duas, mas é difícil.
DE DESCOBERTA zar o Dakar custa uma fortuna, e não é fá-
cil encontrar em África um país ou um
E DE ENTREAJUDA conjunto de países que tenham capacida-
São verdadeiros amadores? Sim, há pes-
soas que gastaram tudo o que consegui-
ENTRE OS de financeira para fazer esse tipo de in-
vestimento. Depois, há a questão da se-
ram juntar para fazer o Dakar. Este ano co- PARTICIPANTES’ gurança. O Dakar tem enorme exposição

32 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


2.
1. A organização serve cerca de 3000 almoços e jantares diariamente no meio do deserto 2. O controlo da prova é feito através de vários helicópteros
e de inúmeras equipas no terreno. Os carros estão equipados com sofisticados equipamentos que permitem saber em tempo real o que se passa com
cada piloto 3. Pedro Almeida faz também parte da comissão de todo o terreno da Federação Internacional do Automóvel

3. mediática que convida à realização de


ações violentas que possam ter grande im-
pacto em todo o mundo. Na região da Ará-
bia Saudita isso é, até determinado pon-
to, controlável, na atual situação de Áfri-
ca parece-me difícil levar lá uma prova
com tal exposição mediática.

Não sente falta dos ralis tradicionais? Atual-


mente, um rali do Mundial está de tal ma-
neira esquematizado e a influência do pro-
motor é de tal forma grande que limita a
criatividade dos organizadores, por isso
não sinto falta. Os ralis tradicionais torna-
ram-se repetitivos e perdeu-se o espírito
de aventura, o que para uma pessoa como
eu, que já leva uns anos desta vida, dei-
xou de ser estimulante.

O que o leva a preferir as provas de todo o ter-


reno? Sempre tive o chamamento pelo de-
serto e este tipo de provas continua a encan-
tar-me pela componente de aventura que
os ralis tradicionais perderam. Cada dia que
vou para o deserto à procura de novas pis-
tas é um dia de enorme satisfação. Costumo
dizer que há trabalhos que faço que, em vez
PAULO MARIA/INTERSLIDE

de receber, devia ser eu a pagar pelo prazer


que isso me dá. Além disso, tenho o prazer
de fazer parte de uma organização que é úni-
ca no mundo das corridas e de estar ligado a
uma competição onde existe espírito de
2. aventura, de descoberta e entreajuda. 

10 FEVEREIRO 2023 LUZ 33


BIBLIOTECA
PESSOAL

JOSÉ CABRITA
SARAIVA

Mozart e os Alpes Suíços


Um génio? Sem dúvida. Mas nem por isso Mozart deixou de ser humano
– e era precisamente nesse ponto que estávamos em desacordo.

E Osim,
ra o último jantar do ano. O lume argumento era pertinente. Ainda as- no – e era precisamente nesse ponto que
crepitava na lareira. Estávamos sen- eu recusava-me a aceitar a ideia eu discordava do meu comensal.
sivelmente a meio da refeição, sa- de que um talento assim brotava de for- Quanto à origem desse génio, viria uns
tisfeitos e relaxados, com um bom ma absolutamente espontânea, como se dias mais tarde a encontrar uma passa-
copo de vinho na mão. Até que a conver- caísse do céu, sem haver um solo fecun- gem iluminadora em Conversas com
sa recaiu sobre um tema hoje fora de do e preparado onde ele pudesse flores- Goethe, de Johann Peter Eckermann. A
moda e que trouxe uma nota de dissonân- cer. Estava, aliás, a pensar no título do fa- figura em questão era Shakespeare, em
cia: génios. Afinal de onde surgem? Como moso livro de Norbert Elias – Mozart, So- vez de Mozart.
aparecem? ciologia de um Génio. No fim de contas, «Quando o isolamos [...] tem de se con-
Um familiar, sentado à minha direita, até um génio tem um contexto e não pode siderar a sua gigantesca grandeza como
trouxe à colação o nome de Mozart. «Com escapar à vida em sociedade. uma maravilha», diz Eckermann. «Mas
cinco anos já compunha!», lembrou. De «A imagem que ressalta de cartas, rela- se o analisamos no seu país e o colocamos
imediato senti-me transportado para os tos e outros documentos não se coaduna no terreno próprio e na atmosfera do sé-
tempos em que tive aulas de piano e an- com a imagem ideal pré-concebida de um culo em que viveu [...] reconhece-se que
dei a aprender, com alguma dificuldade, génio», escreve Elias. «Mozart era uma [...] que muito do que ele mostra tem ori-
um minuete do pequeno prodígio. Sei, por pessoa simples, que não deixava uma gem na força criadora do tempo em que
experiência própria, que a composição não grande impressão a quem se cruzava com viveu».
era especialmente brilhante... em todo o ele na rua, muitas vezes infantil e, no tra- A réplica de Goethe é ainda mais elo-
caso não deixava de ser espantosa para a to particular, por vezes bastante livre na quente. «O caso de Shakespeare pode
idade do autor. utilização de metáforas que se referiam a comparar-se ao das montanhas da Suíça.
«Estás a ver um dos teus filhos a com- excreções anais». Por essas e por outras, o Se colocar o Monte Branco no meio da re-
por música aos cinco anos?», perguntou- retrato que dele fez Milos Forman no ines- gião plana da charneca de Luneburgo não
-me. De facto não estava. Mas contrapus, quecível Amadeus terá deixado a então encontrará, de espanto, palavras para ex-
em primeiro lugar, que não tenho grande primeira-ministra britânica Margaret Tha- primir a grandeza dele. Mas se o observat
simpatia por estas crianças que parecem tcher um tanto desconfortável. na pátria própria, cheia de montes gigan-
quase animais amestrados e lembrei, de- tescos e chegar até ele percorrendo os seus
pois, que Mozart era filho de um músico,
o que pode ajudar a explicar a sua preco-
cidade. Vendo bem, já devia ouvir músi-
M ozart um génio? Sem qualquer dúvi-
da. Esta referência a uma faceta mais
prosaica não pretende de alguma forma
grandes vizinhos, Jungfrau, Finsteraar-
horn, Eiger, Wetterhom, Gotthard e Mon-
te Rosa, o Monte Branco não deixará de ser
ca desde que estava na barriga da mãe. diminuí-lo ou derrubá-lo do pedestal um gigante, mas já não espantará tanto».
«Sim, mas filhos de músicos não faltam onde merece estar. Creio que esta metáfora diz tudo. Os gé-
por aí. E Mozart só há um». Mas nem por isso deixou de ser huma- nios tocam o céu, não caem dele.

34 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


10 FEVEREIRO 2023 LUZ 35
DESTINO IMPROVÁVEL
DJERBA , TUNÍSIA

A ILHA DOS
FLAMINGOS
DE QUE OS PIRATAS
SE APODERARAM
Até há algum tempo, Ras R’mal era um grande
banco de areia, habitat de uma miríade de aves.
A popularidade internacional de Djerba
transformou-a no covil de uma operação
turística inusitada.

TEXTO Marco C. Pereira FOTOGRAFIA M. C. Pereira e Sara Wong

P
ouco depois de o condutor ra batida e húmida da via com início no não se embrenhava sequer em zonas en-
surgir, percebemos que, mes- istmo, põe-se nervoso e ao telefone. sopadas. E, se isso acontecesse, as poças
mo ao volante de um bom ji- Adiante, espera-o um jovem motoci- rasas pouco ou nada afetariam a potência
pe, vem aflito com a missão clista a caminho da pesca. Aliviado por 4x4 do jipe.
que lhe calhara. Em conversa encontrá-lo, Mahmoud digna-se, por fim, Queixamo-nos a Mahmoud daquele
com um outro, no dia ante- a explicar-nos o que se passava: «Os ca- ritmo. Convencemo-lo de que estamos
rior, tínhamos ficado com a minhos aqui podem ser traiçoeiros. Ele habituados a percursos todo-o-terreno e
ideia de que, mesmo se estava ali à vista, conhece-os. Eu não. Vamos atrás dele». que, se confiasse em nós, o manteríamos
os motoristas de táxi e afins, consideravam Dito e feito. Progredimos para norte. Aos a salvo de chatices. Mahmoud anui. Agra-
a península ora arenosa, ora lamacenta de esses e, depressa nos desesperamos, num dece ao guia-pescador. Despede-se.
Ras R’Mal um domínio exógeno temível. modo de câmara lenta imposto pelo motor Daí para a frente, de acordo com as
Mahmoud conta para cima de 60 anos. fraco e velho do motociclo do pescador. constantes dicas de “por aqui” e “por ali”
Há décadas que não se aventurava para Tentamos abstrair-nos da lentidão ridí- que lhe transmitimos, aproximamo-nos
aqueles lados, se é que alguma vez o tinha cula da viagem. Momentos depois, con- do meio e do ponto mais estreito da lín-
feito. Quando passa do asfalto para a ter- firmamos que, em pleno Verão, a estrada gua exígua de terra.

36 LUZ 10 FEVEREIRO 2023


Barcos de excursões
ancorados junto
à Ilha dos Flamingos

O casario de Houmt Souk, a capital da dos Flamingos, pecava pela incorreção do Vasculhavam as águas salgadas e salo-
ilha de Djerba, mantém-se a sul da lagoa uso de “ilha”. Mesmo na mais cheia das bras, em busca dos crustáceos que os ali-
de água rasa, conhecida por Bhar Mayet. marés, aquela farpa de terra mantinha-se mentam e rosam. Integravam uma comu-
Ao longe, na direção do Mar Mediter- ligada a Djerba, em concreto, à zona ocu- nidade de várias outras aves, de garças, de
râneo aberto, vislumbramos o que apa- pada pela aldeia de Mizraya. Trata-se, as- cegonhas, de colhereiros. A sua presença,
rentam ser grandes barcos de madeira. sim, de uma quase-ilha, se tal classifica- parte de um ecossistema bem mais com-
Ainda nos esforçamos por o confirmar ção fizer sentido. plexo, granjeou, em 2007, à península de
quando, noutra direção, à beira da lagoa, O nome acertava, todavia, na presença Ras R’mal o estatuto de zona húmida
um bando de aves hirtas nos capta a das criaturas pernaltas. Tínhamo-las, às Ramsar. Supostamente protegida. Na rea-
atenção. Aproximamo-las com a teleob- centenas, pela frente. Apesar de uma nos- lidade, vulnerável.
jectiva. Logo, fazermos acercar os bar- sa, gradual, mas ambiciosa incursão, pou- Estamos nesse entretém ornitológico
cos. A vista amplificada de ambos, con- co dispostas a debandarem. Fotografamos quando, da direção dos barcos, surge uma
firma-nos que estamos no lugar certo. E os flamingos. Ao fazê-lo, constatamos que fila serpenteante de humanos. O seu cami-
com sorte. são brancos e cinzentos, com partes das nhar errante trá-los no nosso caminho. E
Dos dois termos, a popularização de ilha asas e as pontas dos bicos negras. no das aves. >>

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DESTINO IMPROVÁVEL DJERBA , TUNÍSIA

1.

Decorridos alguns minutos, em vez de Assim foi até que Djerba se afirmou como resorts, demasiado próximas de onde os
dois, somos já uns vinte a observá-las. O um dos destinos populares do sul do Medi- hóspedes se alojavam. Ras R’mal estava
grupo demora o seu tempo. Quando o guia terrâneo, servida por dezenas de voos com ali ao lado. Djerba dotou-se dos barcos
dita o regresso, seguimo-los. origem em distintos pontos da Europa. que asseguravam a travessia a partir de
Apontados aos barcos ancorados e à área Nesse processo, à medida que os re- Houmt Souk. E de tripulações feitas pi-
mais desafogada da península. No encal- sorts se multiplicavam sobre a costa nor- ratas, encarregues de servir e de animar
ço da comitiva, chegamos ao pé de uma te da ilha, tornou-se imperativo encon- os passageiros.
primeira nau, ancorada contra um pon- trar pontos de litoral com visual e atmos- Era suposto termos desembarcado em
tão, também ele de madeira. Ao longo da fera de praia, alternativos às praias dos Ras R’mal, a bordo de uma delas. Propen-
margem sul da península, sucediam-se sos a improvisos, demos connosco em
outras mais, muito parecidas ou quase terra, a fazermos a viagem sobre rodas.
iguais, todas com escadas de corda a pen- Por fim, recuperamos o lugar no seio da
derem dos mastros, todas com os mastros comitiva da nau “Elissa”.
a almejarem o céu azulão sobre o Golfo Almoçamos. Após o que cruzamos o
de Gabès. mar de dunas e areia lisa que separa o sul
Uns poucos passageiros refrescam-se, do norte da península. A pé, por entre as
com a água translúcida pelos joelhos. dunas e uma frota deambulante de cale-
Muitos mais, estão para dentro da penín- ches tradicionais.
sula, ora a almoçarem na sombra de es-
truturas por ali montadas, ora em modo NOUTROS TEMPOS, Caminhamos rumo a uma linha de cha-
péus de sol cobertos de uma espécie de
balnear e distraídos com as oportunida-
des de compras e atrações oferecidas na
A PENÍNSULA sarapilheira, cada qual com o seu par de
espreguiçadeiras plásticas. Cada um des-
praia sem fim. DE RAS R’MAL ses chapéus abriga a sua família de visi-
Noutros tempos, a península ou quase-
-ilha de Ras R’mal, manteve-se entregue MANTEVE-SE tantes e banhistas. Parte deles, são turis-
tas europeus habituados à exposição de
à sua fauna e flora, apenas perturbada, a
espaços, por uns poucos pescadores ou
ENTREGUE À SUA biquínis e fatos de banho reduzidos. Uns
poucos, são tunisinos ou provenientes de
recoletores de tâmaras. FAUNA E FLORA países vizinhos e do Médio Oriente. Os

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2. 1. Escuteiros tunisinos de visita 2. Flamingos cinzentos 3. Uma das caleches da ilha

3.

princípios da fé muçulmana obrigam as do molhe que o abrigava, rumo à extre- A bordo, para gáudio dos passageiros, a
suas mulheres a banharem-se enfiadas midade da ponta nordeste da península tripulação de falsos piratas retoma a exi-
em trajes completos. Observamos um e, por forma a evitar baixios, num con- bição que, como a vinda, havíamos per-
grupo de amigas, a deleitarem-se com a torno pré-definido por boias que reo- dido, feita de malabarismos de cordas e
massagem do mar, uma delas, entusias- rienta as naus de volta a Houmt Souk. mastros, animada com os êxitos reggaeton
mada a dobrar, com um longo hijab en- Ainda no início da rota, passamos por do momento.
charcado a pender para trás da nuca. Os pescadores que se impõem a um desses Por baixo dos seus saltos, voos e cam-
homens, esses, banham-se com relativo baixios, as suas canas espetadas na areia balhotas, um agrupamento tunisino de
à vontade, uns poucos de t-shirt vestida. e na direção de Djerba. escuteiros entusiasma-se e exibe o seu
Indiferente ao recreio marinho, um pe- próprio espetáculo. Fazem do convés pis-
lotão de animadores e negociantes suge- ta de dança. À falta de raparigas, roçam
re os seus produtos e serviços. Expõem as pernas e os traseiros uns nos outros,
colares, pulseiras e chapéus típicos, pe- esforçados em emularem a fórmula de
quenas peças da olaria de Djerba e itens perreo que Porto Rico há muito impinge ao
necessários à praia, em vez de artesanais. mundo.
Proprietários de dromedários, por nor- O “Elissa” atraca. Lado a lado com oito
ma, nativos amazigh, conduzem-nos, ou nove outros barcos de piratas.
para cá e para lá, a venderem passeios so- Os piratas assistem o desembarque dos
bre as bossas solitárias dos camelídeos.
Um duo de jovens djerbianos trota so- DJERBA VIRIA passageiros. Com o dia ganho, ambos se
refugiam nos pontos de partida. Os vera-
bre cavalos. Quando nos veem de máqui-
nas e objectivas fotográficas pesadas,
A AFIRMAR-SE neantes nos resorts djerbianos das suas
férias. Os piratas, nos lares djerbianos que
prendam-nos com uma exibição de acro- COMO UM DOS os veraneantes ajudam a sustentar. 
bacias a galope que nos deslumbra.
Tão sincronizadas como na viagem DESTINOS
para a ilha, as embarcações zarpam de
regresso, a formarem uma fila náutica
POPULARES DO SUL COMO IR:
Para mais informações e reservas consulte a sua
conveniente. Também o “Elissa” parte DO MEDITERRÂNEO agência de viagens e solicite o produto Egotravel.

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RECEITAS
DO CHEF

Chef
José Lima
RESTAURANTE
DADOS DE QUEIJO BRIE COM AMÊNDOAS
TÁBUA DA RIA
(PRAIA DA BARRA)
E FRUTOS VERMELHOS
tabua_da_ria INGREDIENTES: MODO DE PREPARAÇÃO:
Queijo Brie 1- Cortar o queijo em cubos e passar por fari-
Farinha nha, ovo e no final a amêndoa
Ovo 2- Fritar a 180º até estarem douradas
Amêndoa picada 3- Servir com compota de frutos vermelhos e
Amoras as frutas frescas
Framboesa
Mirtilos

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SUNOMONO DE CAMARÃO HENDRICKS,
INGREDIENTES:
O PEPINO E A MALAGUETA
Pepino
Molho Su INGREDIENTES:
Sementes sésamo Gin Hendricks
Óleo de sésamo Pepino doce
Camarão Malagueta
Flor de sal Água tónica

MODO DE PREPARAÇÃO: MODO DE PREPARAÇÃO:


1- Laminar o pepino e colocar em flor de sal para secar 1- Gelar o copo e retirar a água “morta”
2- Escorrer bem e colocar dentro de um frasco com o molho Su 2- Cortar o pepino e a malagueta
3- Misturar o camarão cozido, óleo de sésamo e sementes 3- Colocar 50ml de Gin do copo e mexer. Adicionar água tónica
a gosto

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AGENDA

SEXTA, 10 SÁBADO, 11 DOMINGO, 12


PASSEGERS ORQUESTRA
- LES 7 DOIGTS DE LA MAIN METROPOLITANA
Coliseu Porto Ageas, Porto DE LISBOA - CONCERTO
21h00 DE CARNAVAL
A partir de € 15 CCB, Lisboa
17h00
Experimente uma original A partir de € 10
viagem de comboio com a
companhia de circo contem- Se está a pensar aparecer dis-
porâneo de Montreal, Les 7 farçado de detetive no Con-
Doigts. Um show inovador certo de Carnaval deste ano,
que combina acrobacia, tea- vai ter de descobrir a palavra
tro, música e dança, numa que se esconde no seguinte
performance verdadeira- enigma: zrgebcbyvgnan. Se
mente mágica entre estra- não conseguir, não faz mal.
nhos em trânsito. Apareça na mesma, mas dis-
farçado de outra coisa qual-
quer. Nesse caso, só terá de
tentar adivinhar o disfarce
que o maestro Jan Wierzba
trará este ano, depois de An-
tónio Variações em 2020 e de
Joker em 2022.

AS CANÇÕES DE AMOR
DE JORGE PALMA
Sagres Campo Pequeno, Lisboa
THE RITE OF TRIO ARON 21h30
CCB - Pequeno Auditório, Lisboa Hard Club, Porto A partir de € 23
21h00 21h30
A partir de € 12 € 22 É o regresso de Jorge Palma
aos concertos e às salas de
Os incontestáveis mestres do Conhecido por interpretar Lisboa e do Porto. O músico
“jambacore” voltam a atacar Ander na série Elite, da subirá ao palco do Sagres
com Free Development of Netflix, onde divide créditos Campo Pequeno (a 11 de fe-
Delirium, em que elevam ao com Dana Paola, Jorge López vereiro) e ao Coliseu do Porto
máximo o seu conceito mu- e Ester Expósito, Aron tam- (a 14 do mesmo mês), no
sical pós-pós-modernista. bém apostou no mundo da concerto inaugural do festival
música. Montepio às Vezes o Amor.

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SEGUNDA, 13 TERÇA, 14 QUARTA, 15 QUINTA, 16
DAVID FONSECA CATS O BARBEIRO DE SEVILHA L´INVITATION
+ RITA REDSHOES Até 19 de fevereiro Cinema Fundação Oriente, Lisboa
Teatro Maria Matos, Lisboa Sagres Campo Pequeno, Lisboa 19h00 19h00
21h00 Vários horários Realizador: Rafael Payare Gratuito, mediante levantamento
€ 18,50 A partir de € 22,50 de bilhete no dia
Rafael Payare faz a sua estreia
David Fonseca e Rita Let the memory live again! A pro- na Royal Opera House, con- L´Invitation é um recital de
Redshoes são os cantores dução internacional do mu- duzindo um elenco interna- canto e piano que convida o
convidados desta noite na sical CATS regressa a Portu- cional notável que inclui público a viajar pela identi-
sessão “Conta-me uma can- gal, numa fusão de música, Andrzej Filonczyk, Aigul dade do romantismo da poe-
ção”, em que os cantores dança e poesia. Akhmetshina, Lawrence sia francesa e portuguesa.
cruzam músicas e histórias, Brownlee e Bryn Terfel.
partilhando ainda uma can-
ção «daquelas que gosta-
riam de ter composto».

FRED MARTINS
O NOVO STAND-UP E JOANA AMENDOEIRA
DE FÁBIO PORCHAT Auditório Carlos Paredes, Lisboa
Coliseu Porto Ageas, Porto 21h30
22h00 € 15
A partir de € 25 MÁRIO BARREIROS
CARLOS ALBERTO MONIZ QUARTETO Um encontro entre o cantau-
O fenómeno do humor bra- Casa da Música, Porto Teatro Municipal de Bragança tor e violinista brasileiro e a
sileiro, responsável por êxi- 21h00 21h00 fadista portuguesa, num con-
tos como Porta dos Fundos, € 15 €6 certo de celebração da luso-
regressa a Portugal para fonia que presta homenagem
apresentar o seu solo de Carlos Alberto Moniz apre- Mário Barreiros lançou em ao mestre da guitarra portu-
stand-up comedy, inserido na senta Por esse Mar Abaixo, 2022 Dois Quartetos sobre o guesa Carlos Paredes, no dia
sua primeira digressão inter- um disco que espelha o seu Mar, no qual a bateria consti- em que este comemoraria 99
nacional. percurso de vida. tui o denominador comum. anos de vida.

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SHOPPING

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RETRATOS CONTADOS

NÉLSON MATEUS ALICE VIEIRA

“Eu vi um Sapo”
Q Q
uerida avó, uerido neto,
Na carta anterior perguntavas se continuo a ir correr para o Par- Para começar, nem penses que me vais meter a correr
que da Bela Vista. É verdade, sempre que tenho oportunidade ou a fazer caminhadas à parva!
mantenho essa prática. Principalmente ao fim de semana. Sa- A única caminhada que quero fazer é de casa para a es-
bes que faço o que está ao meu alcance para “chegar novo a velho”. planada da praia do sul, na Ericeira, onde gosto de passar as ma-
Sabes que a atividade física é fundamental para melhorar a nossa saú- nhãs a escrever em frente ao mar.
de física e mental. Dizem que ajuda a aliviar o stress e reduzir os sinto- Claro que me lembro da Maria Armanda e da canção “Eu vi um
mas de depressão e ansiedade, e que contribui para o bom humor. Sapo”!
Deve ser por causa disso que ando sempre bem-disposto, como A canção teve a autoria de César Batalha na música e Lúcia Car-
tu sabes. valho letra.
Bom humor a ti não te falta! No entanto, julgo que devias fazer boas Belíssimas memórias de infância. Da tua, claro, pois nessa altura já
caminhadas junto ao mar. Uma dica deste neto que tanto te ama. eu escrevia sobre a Maria Armanda para os jornais onde trabalhava.
Agora que não tem chovido, tenho mantido mais a prática da corrida. A canção ganhou o prémio de melhor letra na primeira edição
Por falar em chuva, como este ano choveu imenso formou-se um da “Gala Internacional dos Pequenos Cantores da Figueira da
lago perto do Parque da Bela Vista. Foz”, realizada em Setembro de 1979, tendo sido interpretada por
No outro dia, quando fui correr, ouvia-se o coaxar dos sapos, dez crianças do Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras (o famo-
imagina. so coro que deu voz à canção “A Todos um Bom Natal”).
Sabes que não preciso de muito para viajar até ás memórias do “Eu vi um Sapo” foi premiada e escolhida para representar Por-
passado. tugal, em 1980, no Sequim d’Ouro em Bolonha (Itália). A canto-
Não é que o coaxar dos sapos me fez lembrar a Maria Armanda e a ra escolhida foi Maria Armanda que foi considerada a melhor in-
canção “Eu vi um Sapo”? Recordas-te? térprete da Gala e ganhou o primeiro lugar no festival.
Julgo que foi perto de 1980. Lembro-me perfeitamente da Maria Ar- O single foi editado em Portugal pela Valentim de Carvalho tendo atin-
manda. Devia ter cerca de 4 anos e ninguém ficava indiferente à miú- gido o disco de Ouro, por duas vezes, o maior galardão dessa época.
da que dava nas vistas a cantar e dançar. Será que hoje os mais novos sabem o que é um “single”. Ve-
«Eu vi um sapo/ Com guardanapo/ Estava a papar/ Um bom jantar» lhos tempos!
«Tu viste um sapo/ Com guardanapo/ E o que comia/ E o que A vida da Maria Armanda não foi um mar de rosas como mui-
fazia» tos julgam.
«Eu vi um sapo/ A encher o papo/ Tudo comeu/ Nem ofereceu» Ficou órfã antes dos 4 anos e foi acolhida pelos padrinhos. Foi
«Tu viste um sapo/ A encher o papo/ E o bicharoco/ Não te a madrinha que a inscreveu na gala. Os padrinhos, muito velhos,
deu troco» andavam com ela para toda a parte.
Foi um sucesso! Todas as crianças cantavam em casa, nas escolas, Teve uma brilhante carreira até completar 20 anos de idade. A
nas festas… Até aos dias de hoje. partir daí abandonou o mundo do espectáculo, até hoje.
Não conheço nenhuma princesa que tenha beijado um sapo e esse se Ficou para sempre ligada ao sapo. Não deve ter sido fácil.
tenha transformado em príncipe. No entanto, ao longo da vida, todos O que será feito da Maria Armanda?
nós “engolimos” vários sapos. Não te esqueças que a Simone de Oliveira faz anos dia 16.
Faz parte! Aproveita muito o Dia dos Namorados.
Bjs Bjs

retratoscontados.pt info@retratoscontados.pt @retratoscontados RetratosContadosPortugal

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