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pablo vierci

A sociedade da neve
Os dezesseis sobreviventes da tragédia dos Andes
contam toda a história pela primeira vez

Tradução
Bernardo Ajzenberg

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Copyright © 2008 by Pablo Vierci

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Título original
La sociedad de la nieve — Por primera vez los 16 sobrevivientes de los Andes cuentan la
historia completa
Capa
Flavia Castanheira
Foto de capa e quarta capa
El País, Coleção Caruso, Uruguai. Fotograma do documentário Vengo de un avión que cayó
en las montañas, de Gonzalo Arijón. © Ethan Productions — La Realidad
Preparação
Claudio Carina
Revisão
Pedro Borges
Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Vierci, Pablo, 1950-


A sociedade da neve : os dezesseis sobreviventes da tragédia dos
Andes contam toda a história pela primeira vez / Pablo Vierci ; tradução
Bernardo Ajzenberg — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

Título original: La sociedad de la nieve : por primeira vez los


16 sobreviventes de los Andes cuentan la historia completa.
ISBN 978-85-359-1668-3

1. Acidentes aéreos - Andes, Região - 1972 2. Andes, Cordilheiras,


dos, Região - Chile 3. Canibalismo - Andes, Região - 1972 4.
Narrativas pessoais 5. Sobrevivência após acidentes aéreos, nau-
frágios etc. I. Título.

10-04251 CDD-920

Índice para catálogo sistemático:


1. Cordilheira dos Andes : Chile : Sobreviventes :
Narrativas pessoais 920

[2010]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br

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Sumário

Agradecimentos ..................................................................... 9
Prólogo ................................................................................... 15

1. Março de 2006: voltar à montanha ................................... 21


2. Abandonados — Roberto Canessa................................... 27
3. A primeira morte: cair na cordilheira ............................... 41
4. A contagem regressiva — Coche Inciarte......................... 51
5. O adeus .............................................................................. 66
6. Lenços na praça — Daniel Fernández .............................. 73
7. A segunda morte ............................................................... 88
8. A história inacabada — Adolfo Strauch ........................... 93
9. O sol se esconde rápido ..................................................... 106
10. O diabo não dorme — Moncho Sabella ........................... 113
11. Um salto no vazio.............................................................. 127
12. A glória efêmera — Álvaro Mangino ............................... 136
13. Os que viram demais ........................................................ 150
14. Uma cruz amassada com um braço arrancado —
Gustavo Zerbino .............................................................. 158

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15. A terceira morte ................................................................ 171
16. Minhas conversas com Liliana — Javier Methol ............. 178
17. Condenados a caminhar ................................................... 191
18. Vivendo com o mínimo — Pedro Algorta ....................... 197
19. A salvação pelo leste .......................................................... 212
20. A longa travessia — Carlitos Páez .................................... 219
21. Ninguém nos ouve? .......................................................... 234
22. Os filhos da cordilheira — Roy Harley............................. 243
23. Os buscadores ................................................................... 255
24. No limite — Bobby François ............................................ 267
25. O abismo que escalamos ................................................... 282
26. Amigos por toda a eternidade — Tintín Vizintín ............ 291
27. “Venho de um avião que caiu nas montanhas”................ 305
28. Voar com as asas congeladas — Pancho Delgado ............ 317
29. A espera ............................................................................. 331
30. O que eu encontrei na montanha — Eduardo Strauch ... 338
31. Los Maitenes ..................................................................... 351
32. “Siga em frente, papai” — Nando Parrado ...................... 357
33. O reencontro ..................................................................... 372

Passageiros e tripulantes do Fairchild 571 ............................. 389


Créditos das imagens .............................................................. 391

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1. Março de 2006: voltar à montanha

Subir até a geleira no Vale de las Lágrimas em março de 2006,


onde está sepultada a fuselagem do F571 que caiu no sopé das serras
de San Hilario, entre os vulcões Tinguiririca e Sosneado, é uma
experiência arriscada.
Implica um percurso longo, uma subida vagarosa de dois dias
a cavalo em trilhas improvisadas, com menos de meio metro de
largura, o precipício sempre ao lado, numa cordilheira cujas paisa-
gens e alturas mudam continuamente, mas onde a vertigem do
risco iminente está sempre presente. Avança-se devagar, passo a
passo, seja na montanha ou quando se atravessam as correntes
impetuosas de água gelada que descem da cordilheira arrastando
tudo no caminho. Parecem querer levar até mesmo as mulas e os
cavalos, que cambaleiam mas não caem, firmando os cascos entre
as pedras no fundo antes de dar o passo seguinte. Alguns cavaleiros
avançam de olhos vendados para evitar os sobressaltos, confiando
no instinto dos animais.
A cada trecho surge uma imagem ou algum imprevisto que faz
você tremer. Tempestades de neve e ventos irrompem subitamen-

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te. Uma mula desliza barranco abaixo por vários metros, esper-
neando e levantando tanta poeira que fica impossível observar o
desenlace, até que consegue firmar os cascos numa saliência da
descida, com o cavaleiro curvado e agarrado à crina. Um cavalo
tropeça, apoia um joelho na trilha e fica se equilibrando no ar com
as patas traseiras sobre o precipício. Uma mula de carga se assus-
ta com a ventania e sai correndo em meio às rochas, galopando
montanha abaixo, largando sua carga pelo caminho, enquanto
um tropeiro dispara atrás dela a galope. Os códigos já estão se
alterando; a vertigem integra a paisagem. O grupo se aproxima da
pré-história.
Dois dias depois, quando se chega ao Vale de las Lágrimas, a
quase 4 mil metros de altitude, no centro da cordilheira dos Andes,
na fronteira entre o Chile e a Argentina, o panorama é grandioso e
aterrador. Faz lembrar um anfiteatro monumental: ao centro, so-
bre um promontório de rochas, há uma cruz de ferro onde estão
enterrados os restos dos mortos no acidente. Ao sul se divisa uma
sucessão infindável de montanhas e picos que vão até o Cabo de
Hornos, no fim do continente. Ao norte, uma paisagem semelhan-
te se estende até o Panamá, desdobrando seus 7240 quilômetros de
extensão e constituindo um maciço montanhoso mais longo que o
Himalaia; a oeste a visão se choca com um paredão de rochas e gelo
de 5180 metros de altura, a serra de San Hilario, tão imponente que
impede qualquer tentativa de se imaginar o horizonte. Para trás, a
leste, retorna-se à Argentina, de onde veio o grupo a cavalo. Os
infindáveis picos nevados culminam, na distância enevoada ao
leste, no mais alto de todos: o vulcão Sosneado, de 6 mil metros de
altura. Nessa paisagem de fim de mundo reina um silêncio inorgâ-
nico, interrompido de vez em quando pela violência do vento e o
rangido da geleira.
É necessário deixar os cavalos, que precisam descer mil metros
antes que o sol se ponha entre as montanhas para não morrerem

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congelados. Depois o grupo tem de caminhar mais oitocentos
metros a oeste da cruz de ferro até o local exato onde a fuselagem
do Fairchild está soterrada, no meio da geleira. Falta oxigênio, cada
passo exige um esforço maior que o anterior. Náusea, confusão,
dor de cabeça, o mal da altitude começa a se insinuar no corpo dos
menos acostumados.
Quatro sobreviventes do acidente de 1972 fazem parte do
grupo: Roberto Canessa, Gustavo Zerbino, Adolfo Strauch e
Ramón “Moncho” Sabella. Acompanha-os também Juan Pedro
Nicola, cujos pais faleceram no acidente. Como todos do grupo, ele
traz o filho, para que conheça a sepultura onde descansam os restos
de seus avós e dos outros que nunca mais voltaram. O filho observa
o pai, que está absorto, o olhar perdido nas cinco agulhas de pedra
com que o avião se chocou.
Quando a geleira fica mais próxima, e o paredão de neve da
serra de San Hilario tem suas dimensões aumentadas, os integran-
tes do grupo precisam se amarrar uns aos outros e colocar cram-
pons nas solas das botas antes de continuar a subida. A geleira, com
a fuselagem bem no centro, está logo ali, atravessada de lado a lado
por gretas de vinte a trinta metros de profundidade, dissimuladas
por finas camadas de gelo. Três montanhistas profissionais vão à
frente, sondando o terreno com suas piquetas e bastões. Alguns
metros atrás seguem os quatro sobreviventes.
A paisagem que Gustavo Zerbino viu no dia 13 de outubro de
1972, às 15h35, momentos depois do acidente, quando a fuselagem
destroçada encalhou no meio da geleira depois de deslizar a uma
velocidade estonteante, ziguezagueando, chocando-se contra os
conjuntos rochosos que surgem em meio à ladeira de neve, pouco
mudou nesses 34 anos. A primeira coisa que ele viu, ao sul, foram
as encostas abruptas cobertas de neve e coroadas no alto com as
pontas de pedra observadas poucos momentos antes por Juan
Pedro Nicola. As mais altas são as dos extremos, e foi contra uma

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dessas que se chocou a asa esquerda do avião, e seu ventre com as
do meio, quando se deslocava com os motores roncando ao máxi-
mo, numa tentativa desesperada de evitar uma colisão que àquela
altura, com a direção já totalmente perdida, era inevitável. Na di-
reção do oeste, observado do ponto onde se encontra a fuselagem,
o paredão de rochas cobertas de neve parece incrustado em posição
vertical, humanamente inalcançável, a não ser por uma façanha
acima de qualquer lógica, ou a menos que se esteja vivendo em uma
sociedade desconhecida.
No dia 13 de outubro de 1972, às 15h37, Gustavo Zerbino,
com dezenove anos de idade, pertencente ao grupo dos mais novos,
vivenciava o mesmo que agora. Sentia falta de ar, não tinha forças,
era assolado por dor de cabeça e estava muito confuso. Saiu ileso,
mas precisava ajudar o amigo Roberto Canessa, da mesma idade, a
escapar da armadilha onde caíra imobilizado debaixo de dois as-
sentos arrancados inteiros pelo impacto que o deixaram preso entre
ferros cortantes e pontiagudos. Imediatamente, os dois começam
a retirar os assentos que prendem os demais, feridos ou ilesos. Para
remover alguns cadáveres presos aos ferros retorcidos e aos destro-
ços da fuselagem, precisam amarrá-los pelos pés usando os cintos
de segurança e arrastá-los de quatro até a neve, para deixá-los ali
sem mais, de bruços, a três metros do desastre.
Gustavo corre com determinação para ajudar no que pode.
Não há tempo para pensar, apenas para colaborar com Roberto,
que enquanto cuida de um ferido examina o pulso de um mori-
bundo, momentos antes de improvisar um torniquete de emer-
gência para conter o sangramento de Fernando Vásquez, que teve
uma perna ferida pela hélice da asa direita que se soltou e avançou
na direção do aparelho. Logo depois ele retorce a tíbia quebrada de
Álvaro Mangino, encaixando-a no lugar e afastando-o do cami-
nho: já foi atendido. Agora é a vez de outro, um companheiro
emaranhado entre ferros, tremendo, com uma ferida na barriga,

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que logo se ergue para mostrar a Gustavo o tubo de metal cravado
em suas entranhas.
— Não está doendo. Só sinto frio — diz Enrique Platero.
Hoje está tudo intacto. Como se o tempo tivesse congelado.
Não há ferrugem nos restos do avião espalhados pelo local. Na asa
esquerda, partida ao meio exatamente onde ficava a hélice, brilham
com nitidez as velhas inscrições, o lugar de fabricação, a data, as
instruções técnicas. O céu se fecha de repente e o grupo decide
voltar oitocentos metros até o promontório de pedra onde está a
cruz de ferro, ao lado da qual se montaram duas barracas especiais
para a montanha.
Nuvens escuras avançam ameaçadoras, anunciando o vento
e as tempestades de neve que logo fazem as barracas sacolejarem
como se fossem arrancá-las do chão. Adolfo Strauch, que em
1972 pertencia ao grupo dos mais velhos, com 24 anos, anuncia a
iminência de uma avalanche. Observa com atenção, e logo depois
de fazer sua advertência ele mostra para a filha, Alejandra, como
se produz um gigantesco desprendimento de neve acumulada no
grande paredão a oeste, que provoca à sua passagem um forte
estrondo e gera um rastro de vapor. Mas agora eles estão a salvo,
a oitocentos metros de onde se encontram os destroços do avião
de 72.
De pé junto à cruz de ferro, com o braço sobre o ombro de
Roberto Canessa, Gustavo Zerbino vibra como se estivesse vivendo
um presente contínuo. Na noite anterior, no acampamento-base
de El Barroso, numa barraca de montanha que dividiu com um de
seus filhos, no meio do caminho para o Vale de las Lágrimas,
Gustavo não conseguiu dormir, assolado por náuseas e pesadelos.
Ao amanhecer, ele monta seu cavalo e sobe em silêncio, isolando-
-se no tempo. Quando consegue enxergar o Vale de las Lágrimas,
já está a bordo do F571. Seu relato, agora, se mescla com suspiros,
intercala-se com recordações tão vivas que ele chega a sentir que

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está dando um passo atrás, como em 1972, para se afastar dos des-
troços fantasmagóricos do avião partido.
No instante em que a aeronave se chocava com a agulha de
pedra, às 15h30, depois de despencar por uma coluna de vácuo
ilimitada, Gustavo livrou-se inconscientemente do cinto de segu-
rança e ficou de pé no corredor, segurando com toda força os su-
portes metálicos que delimitavam os bagageiros, para não voar
com o choque. Sentiu o impacto, e logo depois os assobios do ven-
to gelado e da neve que castigavam sua cabeça, as costas e as pernas,
e contou os segundos intermináveis que o corpo partido do avião
levava patinando sobre o gelo até parar abruptamente, esmagando
assentos e pessoas contra o compartimento de bagagens e o dos
pilotos.
Roberto Canessa sente o impacto da asa contra as rochas e
agarra a poltrona à sua frente com todas as forças. Surgem em sua
mente imagens soltas, impetuosas e confusas, que o encaminham
a um único desenlace: ele está protagonizando um acidente aéreo
na cordilheira dos Andes. A qualquer momento ele se espatifará
contra a montanha e conhecerá o que se esconde do outro lado da
vida.

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