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Maria Vitalina Leal de Matos

f"'tt..

Fernando Pessoa publicou na revista Centauro, em 1916, APAIXAO


catorze sonetos, que intitulou Passos da Cruz.
É inegável a relação que os poemas estabelecem com a Via Sacra. SEGUNDO FERNANDO PESso·A
Porém, o hermetismo dos textos, de beleza alucinante, e a ausência
de qualquer alusão à devoção referida, dificultam a interpretação. (Guião para um espectáculo)
O trabalho de determinar a relação entre os dois «textos» - que Edições Colibri
revela uma espiritualidade cristã, mas de cariz gnóstico - fez aparecer
a possibilidade de uma encenação que se afigura difícil
mas vivamente sedutora.
Aqui fica a proposta, um desafio ao mundo do espectáculo.

ISBN 978-972-772-897-8

,IIII,IIIIIIJIIIIIIIIIIIIIIIIIII
Maria Vitalina Leal de Matos

A Paixão segundo Fernando Pessoa

Guião para um espectáculo

Edições Colibri
Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação

MATOS, Maria Vitalina Leal de, 1939-

A paixão segundo Fernando Pessoa : guião para um Espectáculo. -


(Extra-colecção)
ISBN 978-972-772-897-8

cou 821 .134.3-1 Pessoa, Fernando.09 Índice

Primeira parte

Passos da Cruz ............................ .......................... .................. 9

·············· ··· ······ ··· ············ ···· ····· ······ ················· ······· ···················· 9
11 •••••• ••••••••• ••• •••••• ••• •••• •••••• ••••••••• •• ••• •••••• ••••••• ·· •·•••• ••·••••••• •••• •• ····• • 10
I11 .. ••.•..• ...••• •••••• •••.••.. . ..• . .. .•..•••• •.. •. .... ... ..••• .. ••••• ••••.•. .•. . ... . •. ••• •• •. • 11
Título: A Paixão segundo Fernando Pessoa . IV ···································· ························································· 12
Guião para um espectáculo v .............................................................................................. 14
Autora: Maria Vitalina Leal de Matos VI ............................................................................................. 15
Edição: Edições Colibri VIl ........ ........... .. ...................... ....................................... ..... ... .. 16
Capa: Tiago S. Cunha sobre quadro de Charles Filiger, VIII ...................................... ..................................................... 17
Christ au Tombeau IX ............................................................................................. 18
Reproduction réservée. Musé départemental du Prieuré, 2 bis,
X ............................ ............................................. ............ ......... 19
rue Maurice Denis 78100 Saint-Germain-en-Laye (France)
XI .................... ................................................. .............. .......... 20
Depósito legal n.º 293 139/09 XII .............................................................................. .... .......... 22
XIII ................................ ..................................... ...................... 23
XIV ...... ....................................................................... ............. 24
Lisboa, Abril de 2009

5
Segunda parte

Leitura dos «Passos da Cruz >> ............................... .................. 27

Terceira Parte
O espectáculo ................. .... .................................................... . 33

Primeira Parte
Quarta parte

O relacionamento dos dois <<textos>> ........................ .............. 37

Quinta parte

Poemas de Fernando Pessoa de conteúdo iniciático


- Grandes mistérios habitam ....................................... 45
11 -Neste mundo em que esquecemos .. .. ............ ............ 46
111 -Natal ........................................................................... 47
IV -Iniciação ..................................................................... 48
V - A morte é a curva da estrada .................................... 50
VI - Eros e Psique .............................. ................. ............. 51
VIl- No túmulo de Christian Rosencreutz ........................ 53

6
PASSOS DA CRUZ

Esqueço-me das horas transviadas ...


O Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros ...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas ...

5 Aconteceu-me esta paisagem, fadas


De sepulcros a orgíaco ... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas ...

No claustro sequestrando a lucidez


1o Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,


E a cor do Outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância ...

V. 1. Esqueço-me das horas transviadas. Este primeiro verso enuncia desde logo a dimensão
fundamental do conjunto, que é o esquecimento, desconhecimento, e, em certas situações, a
possibilidade de acesso ao conhecimento.
V. 2. Todo o soneto tem um tom outonal.
V. 11. O convés, e mais geralmente o navio, o barco, a viagem por mar constitui um tema
recorrente em Fernando Pessoa, tema que se pode relacionar com as viagens que fez para e da
África do Sul. O tema tanto pode estar ligado ao entusiasmo e à energia da viagem, da parti-
da, como à inércia, à frustração de não partir nunca, de não mudar, à inquietação e ansiedade
de quem se sente incapaz de fazer aquilo que queria ou que devia.
V. 14. Pela estrada da minha dissonância. Verso que constitui uma síntese do drama do Autor
ou da sua tragédia pessoal, constantemente expressa na poesia.

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11 111

HÁ um poeta em mim que Deus me disse ... ADAGAS cujas jóias velhas galas ...
A Primavera esquece nos barrancos Opalesci amar-me entre mãos raras,
As grinaldas que trouxe dos arrancos E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
Da sua efémera e espectral ledice ... O convés sem ninguém cheio de malas ...

Pelo prado orvalhado a meninice O íntimo silêncio das opalas


Faz soar a alegria os seus tamancos ... Conduz orientes até jóias caras,
Pobre de anseios teu ficar nos bancos E o meu anseio vai nas rotas claras
Olhando a hora como quem sorrisse ... De um grande sonho cheio de ócio e salas ...

Florir do dia a capitéis de Luz ... Passa o cortejo imperial, e ao longe


Violinos do silêncio enternecidos ... O povo só pelo cessar das lanças
Tédio onde o só ter tédio nos seduz ... Sabe que passa o seu tirano, e estruge

Minha alma beija o quadro que pintou ... Sua ovação, e erguem as crianças ...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos Mas no teclado as tuas mãos pararam
E cismo o seu perfil de inércia e voo ... E indefinidamente repousaram ...

Notas Notas
~· 1. A con~ição de poeta apresenta-se aqui como uma comunicação de Deus, uma imposi- Neste soneto o decadentismo é particularmente notório, com as suas metáforas extravagantes,
çao, um desrmo . o gosto pelos materiais preciosos, pela opulência, pelos neologismos.
V. 2. O soneto fala de primavera, flores e de alegria (ledice), mas associa-a à morte. V. 2. «Üpalesci amar-me entre mãos raras». O sentimento narcísico é frequente em Fernando
Pessoa.
V. 8. A hora apar:e~~ freq uent~mente na poesia de Pessoa, com um significado pessoal que
resulta du ma senstbtltdade parttcular ao tempo, quer à sua transitoriedade, quer ao valor úni- V. 4. De novo «O convés», aqui nitidamente num contexto de solidão e vazio.
co de cercos momentos. V. 9-12: «Passa o cortejo imperial, e ao longe I o povo só pelo cessar das lanças I Sabe que
passa o seu tirano, e estruge I I Sua ovação, e erguem as crianças ... » Não posso deixar de ver
aqui um eco do salmo 41 : «A minha alma estremece ao recordar I quando passava em cortejo
para o templo do Senhor, I entre as vozes de alegria I da multidão em festa». Embora a cono-
tação dos cortejos seja oposta, a cena do cortejo e do júbilo da multidão são as mesmas.

10 11
Vv. 5-8. Na sequência desse beijo e dessa descida, o poeta encontraria então o gesto «Tornado
Puro Gesto», ou seja o arquétipo do gesto, a sua Ideia, uma forma perfeita de conhecimento;
que assumiria então o aspecto de «gesto-face I da medalha sinistra», etc. Um gesto através do
qual se superam, pelo ajoelhar na procissão, ou seja pelo respeito religioso, as lutas e hostili-
dades entre os reis irmãos.
IV
V. 9. «Teu gesto que arrepanha e se extasia». Os dois movimentos são de sentido contrário,
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse enunciando de outra forma a conciliação antes entrevista.
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!, V. 12. A palavra «caverna» explícita o mito sob cuja inspiração o soneto se constrói, e cujo
E, beijando-o, descesse p'los desvãos conteúdo enuncia as condições do conhecimento humano.
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse
Vv. 13 e 14. Expressão da forma momentânea e fugaz pela qual são contempladas as Ideias.
Tornado Puro Gesto, gesto-face No contexto do corpus em apreço, este soneto parece designar um método de conhecimento
Da medalha sinistra- reis cristãos feito de «aproximação e afastamento», de «conjunção e renúncia»2 .
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!. ..

Teu gesto que arrepanha e se extasia ...


O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais ...

Caverna em estalactites o teu gesto ...


Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!. .. E o sonho é o resto ...

Notas
É nítida, neste soneto a referência ao mito da caverna de Platão 1.
V v. 1 e 4: O soneto começa enunciando um desejo de «beijar I Teu gesto, sem beijar as tuas
mãos!», rejeitando portanto o contacto físico.
Esse «beijar teu gesto» abriria para uma descida «p'los desvãos do sonho», desenhando uma
dimensão vertical que vai dominar o poema; e esta descida torna-se passagem para o conhe-
cimento.

1
Ver Maria Vitalina Leal de Matos, ,( 'Passos da Cruz" de Fernando Pessoa. Primeira fase de uma
abordagem semiótican, in A Vivência do tempo em Fernando Pessoa e outros ensaios pessoanos, Lisboa,
ed. Verbo, 1993, pp. 331-343. 2 Maria Vitalina Leal de Matos, «Ü estatuto do sujeito nos "Passos da Cruz", , ibidem, pp. 354-55 .

12 13
VI
v
VENHO de longe e trago no perfil,
TÉNUE, roçando sedas pelas horas, Em forma nevoenta e afastada,
Teu vulto ciciante passa e esquece, O perfil de outro ser que desagrada
E dia a dia adias para prece Ao meu actual recorte humano e vil .
O rito cujo ritmo só decoras ...
Outrora fui talvez, não Boabdil,
5 Um mar longínquo e próximo humedece Mas o seu mero último olhar, da estrada
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras ... Dado ao deixado vulto de Granada,
E, alada, leve, sobre a dor que choras, Recorte frio sob o unido anil ...
Sem qu'rer saber de ti a tarde desce ...
Hoje sou a saudade imperial
Erra no anteluar a voz dos tanques ... Do que já na distância de mim vi .. .
10 Na quinta imensa gorgolejam águas, Eu próprio sou aquilo que perdi .. .
Na treva vaga ao meu ter dor estanques ...
E nesta estrada para Desigual
Meu império é das horas desiguais, Florem em esguia glória marginal
E dei meu gesto lasso às algas mágoas Os girassóis do império que morri ...
Que há para além de sermos outonais ...

Notas
Notas Vv. 1-4. Mais uma vez o poeta afirma a coexistência em si mesmo de um outro ser. Insiste na
Vv. 3 e 4. O soneto fala de perda e esquecimento, de desconhecimento. Nestes versos, do rito palavra perfil, que designaria o rosto. Parece haver dois rostos que se sobrepõem. Porém, este
só se decora o ritmo que é adiado para prece. «outro ser» desagrada I Ao meu actual recorte humano e vil. Esta falta de coincidência entre
Vv. 12-14. De novo, a afirmação da desigualdade, outra forma de dizer a dissonância do sone- dois seres que coexistem na mesma pessoa, a indecisão sobre a identidade constitui uma expe-
to I. riência frequente em Fernando Pessoa.
o~ tercetos glosam a mesma sensação.
E também o ser outonal, que rima com o tom do mesmo soneto.
V. 5. Boabdil, ultimo rei de Granada, é expulso pelos castelhanos e chora ao abandonar o rei-
no. A mãe invectiva-o com desprezo, dizendo-lhe «Chora como uma mulher, tu que não fos-
te capaz de te defender como um homem».
V. 12. E nesta estrada para Desigual: mais uma vez, um verso que sintetiza o drama ou tragé-
dia do poeta, constantemente enunciado na obra.

14 15
VIII

IGNORADO ficasse o meu destino


Entre pálios (e a ponte sempre à vista),
VIl E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu póstumo hino ...
FosSE eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver, Florescesse em meu glabro desatino
Noite de Vida sem amanhecer O himeneu das escadas da conquista
Entre as sirtes do meu doirado assomo ... Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino ...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer Meus ócios ricos assim fossem, vilas
Meu intuito gloríola com ter Pelo campo romano, e a toga traça
A árvore do meu uso o único pomo ... No meu soslaio anónimas (desgraça
Fosse eu uma metáfora somente A vida) curvas sob mãos intranquilas ...
Escrita nalgum livro insubsistente E tudo sem Cleópatra teria
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas, Findado perto de onde raia o dia ...
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas Notas
Na última tarde de um império em chamas ...
De novo, um soneto tipicamente decadentista, onde as imagens de jóias e as metáforas estra-
nhas, além do "enjambement" ousado, criam um conjunto paradoxal e confuso, onde se acu-
Notas mulam os enunciados de fracasso, desatino, inércia, 6cio, desassossego , em contraste com as
Admite-se uma condição insubsistente, ser Uma cousa existente sem viver, mas com a condição alusões a conquista, impulso cristalino, aurora.
de um gozar de um final glorioso (porém, no v. 7, dito gloríola), espectacular, triunfal, apesar Nos tercetos, a alusão a Cleópatra e ao ambiente romano mostram que todo o soneto é con-
de trágico (vv. 12-14). cebido sob a inspiração do drama de António e de Cleópatra. Nos dois últimos versos pode-
mos encontrar de novo algo de semelhante à conclusão do soneto anterior. Um fim trágico
que ainda assim participa do clima triunfal, heróico e opulento da narrativa que o antecede.
A esta luz, a contradição expressa torna-se interpretável em analogia com o percurso de Antó-
nio, como o antagonismo entre a vontade heróica e a sua decomposição, produzida não pela
sen,sualidade ("sem Cleópatra", sublinha o texto), mas «pelo fascínio do luxo e do ócio>> 3 .

3 Maria Vitalina Leal de Matos, «Ü estatuto do sujeito nos "Passos da Cruz"», Ibidem , p. 352.

16 17
IX X
MEU coração é um pórtico partido AcoNTECEU-me do alto do infinito
Dando excessivamente sobre o mar. Esta vida. Através de nevoeiros,
Vejo em minha alma as velas vãs passar Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
E cada vela passa num sentido. Vim ganhando, e através estranhos ritos
Um soslaio de sombras e ruído De sombra e luz ocasional, e gritos
Na transparente solidão do ar Vagos ao longe, e assomos passageiros,
Evoca estrelas sobre a noite estar De saudade incógnita, luzeiros
Em afastados céus o pórtico ido ... De divino, este ser fosco e proscrito ...
E em palmares de Antilhas entrevistas Caiu chuva em passados que fui eu .
Através de, com mãos eis apartados Houve planícies de céu baixo e neve
Os sonhos, cortinados de ametistas, Nalguma coisa de alma do que é meu.
Imperfeito o sabor de compensando Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
O grande espaço entre os troféus alçados Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Ao centro do triunfo em ruído e bando ... Outrora a sua capital de olvido ...

Notas
Notas
V. 1. O pórtico partido, relaciona-se com o pórtico ido do v. 8. Esta figura atravessa alguns dos O soneto representa um progresso no domínio central dos poemas, o conhecimento. Neste
poemas: no soneto IX, «Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar»; e no soneto XIV, corpus temos referências frequentes a um saber indeciso, ao entrever de formas fugazmente
«Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo ... » Dir-se-ia que os pedaços ou fragmentos ganham vislumbradas, «assomosn , fragmentos de indícios, cujo sentido não pode entender-se na sua
todo o sentido através da Grade Ogiva do Soneto XIV, que é o seu arquétipo, e que aspiram a enunciação desconexa, e se exprime na desarticulação sintáctica.
reco nsti tu ir.
O soneto X constitui um discurso mais articulado sobre a origem e a natureza do ser do sujeito.
Este soneto exprime com alguma clareza a imensa distância entre o impulso para o espaço, o
Entretanto a 2a quadra revela «um ser fosco e proscrito. Mas «enquanto se opera a degradação
longe, o exótico, a miragem da ilha, a grandeza, a glória (troféus) e, em contraste, o destino
descrita, ocorrem sinais que irrompem na ignorância e no esquecimento progressivos, como
(imperfeito), por ausência de vontade, a incapacidade de partir, a ocasião perdida.
autênticas reminiscências que abrem clarões de conhecimento [o qual] não provém de um
Aqui, o excesso assume uma conotação disfórica; é ele que origina o erro e que impede o sen- esforço atribuível ao sujeito, mas são fruto do acaso, ou do domn. 4
tido.
Este texto ganha em ser lido a par do poema Iniciação. Dir-se-ia que o despojamento que esse
V. ' l4. De novo, o triunfo ern ruído e bando adopta um sentido depreciativo que faz eco ao poema descreve se torna condição que prepara o sujeito para o conhecimento.
soneto III, onde «O cortejo imperial» embriaga «O povo que estruge sua ovação», insinuando
uma multidão acéfala, que idolatra o tirano.
4 Ibidem, p. 354.

18 19
«Em oposição à realização triunfal em que o sujeito se expandiria em ruído e espectáculo,
propõe-se no soneto XI o misterioso florescimento do princípio através do Fim.»s
Esta designação da origem vista no contexto dos primeiros versos, sugere que «a identidade
XI tem de se encontrar na subordinação ao destinador», à «oculta mão que colora alguém em
mim». E, de súbito, o conteúdo aqui depreendido faz vir à superfície o significado paixáo»6
NÃO sou eu quem descrevo. Eu sou a tela (passividade, sofrimento, aceitação da vontade do outro, subordinação).
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro em mim gela,


E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso ... E a hora como um leque fecha-se ...


Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar .. .
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se ...

E, abrindo as asas sobre Renovar,


A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado ...

Notas
Este soneto (onde ecoa o II) continua o progresso no conhecimento. O sujeito sabe-se agido
por outrem (oculta mão).
Os vv. 3 e 4 introduzem outra novidade: apesar da intenção (?) de perdimento, surpreenden-
temente «O meu princípio floresceu em Fim». Por muito hermético que seja o sentido dos
versos, percebe-se que inesperadamente, e contrariamente ao objectivo, ao nexo do sujeito, o
4o verso tem um conteúdo claramente eufórico. Dir-se-ia que é a origem que se descobre no
Fim.
A 2a. quadra produz igualmente uma mudança no sentido geral do corpus: roda a temática
que podemos designar por luxo, opulência (presente em muitos dos sonetos anteriores) se
revela sem importância, formas decepcionantes; o que parece confirmar o verso 11: «Ü tédio? 5 Ibidem, p. 356.
A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se ... ». 6 Ibidem.

20 21
XII XIII

Ela ia, tranquila pastorinha, EMISSÁRIO de um rei desconhecido


Pela estrada da minha imperfeição. Eu cumpro informes instruções de além,
Seguia-a, como um gesto de perdão, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
O seu rebanho, a saudade minha ... Soam-me a um outro e anómalo sentido ...

«Em longes terras hás-de ser rainha•• Inconscientemente me divido


Um dia lhe disseram , mas em vão ... Entre mim e a missão que o meu ser tem,
Seu vulto perde-se na escuridão ... E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Só sua sombra ante meus pés caminha ... Por este humano povo entre quem lido ...

Deus te dê lírios em vez desta hora, Não sei se existe o Rei que me mandou.
E em terras longe do que eu hoje sinto Minha missão será eu a esquecer,
Serás, rainha não, mas só pastora - Meu orgulho o deserto em que em mim estou ...

Só sempre a mesma pastorinha a ir, Mas há! Eu sinto-me altas tradições


E eu serei teu regresso, esse indistinto De antes de tempo e espaço e vida e ser ...
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir ... Já viram Deus as minhas sensações ...

Notas Notas
Este soneto é particularmente enigmático. A novidade do tema da pastora, a promessa de ser Aquilo que fora incompreensível, ou enigmaticamente enunciado, assume agora uma forma
rainha, logo negada, não encontra qualquer eco nos sonetos anteriores. Dir-se-ia apenas que a muito mais clara. Na sequência dos sonetos li, VI, X e XI, este texto assume a «consciência
natureza se introduz no corpus com a conotação de simplicidade. da dualidade no interior do ego». A clarificação interior reflecte-se na coerência discursiva.
Apenas os vv. 13 e 14 recordam a problemática do conjunto «esse indistinto I Abismo entre o A identidade do destinado r continua desconhecida, não obstante a sua glória dar ao sujeito «O
meu sonho e o meu porvir ... ». desdém I Por este humano povo entre quem lido ... », v. 7 e 8.
O último terceto revela uma reminiscência «De antes de tempo e espaço e vida ser». A entre-
visão de Deus, que pela primeira vez recebe designação.

22 23
XIV

CoMO uma voz de fonte que cessasse


(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce Segunda Parte
Parou ... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce ..

A paisagem longínqua só existe


Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste ...

E, perto ou longe, grande lago mudo,


O mundo, o informe mundo onde há a vida .. .
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo ...

Notas
Diversas referências a conteúdos de sonetos anteriores (palmares de sonho, tédio) cessam,
para dar lugar ao mistério si/ente (v.7); um silêncio em descida I P'ra o mistério (vv. 10-11).
Encontramos de novo , como no soneto IV a dimensão vertical descendente como acesso ao
conhecimento (aqui mistério), e a referência à hora não determinada, como se adquirisse um
sentido transcendente.
V. 14 «Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo ... » A ogiva, perfaz as figurações parciais ou
fragmentárias (o pórtico partido e o arco) forma perfeita que constitui a expressão mais clara,
ou o arquétipo do sentido reconstituído e descoberto.

24
Leitura dos «Passos da Cruz»

Fernando Pessoa escreveu uma série de 14 sonetos, que in titulou Passos da Cruz e
que publicou na revista Centauro, em 19167 •
Mais tarde, na edição dos Poemas de Fernando Pessoa preparada por A. Casais
Monteiro para a editora Ática, esses sonetos forma mantidos como um conjunto com
unidade e autonomia, o que lhes vem do título comum, do uso dum mesmo metro,
da mesma forma fixa, o soneto, do mesmo estilo, da numeração que vai de I a XIV e
que evidencia a sua seriação e a ligação entre todos.
Trata-se portanto dum corpus bem individualizado e que deve ser visto como
uma unidade textual.
Sobre este conjunto, que não tem suscitado muita bibliografia, escrevi dois estu-
dos que me permitem estar relativamente à vontade na sua leitura e interpretação 8 .
Trata-se, evidentemente, dum texto alusivo à Via Sacra e às suas catorze estações.
Mas para além do título e do número dos poemas, nenhum outro elemento faz expli-
citamente referência à paixão de Jesus ou à devoção da Igreja.
O estudo aprofundado que realizei permite-me contudo dizer que se trata
dum texto em que F. Pessoa enuncia a sua própria paixão- no sentido de doença e de
sofrimento passivamente vivido- sobre o fundo da paixão de Jesus Cristo, por alusão
e em contraste com ela.
Trata-se assim dum texto de nítido conteúdo existencial e religioso, apesar da
ausência de referências, ou de qualquer outra forma de remissões, aos textos sagrados
ou à iconografia da devoção; a leitura da sequência dos sonetos, em paralelo com os
passos da Via Sacra revela-se produtiva, não numa relação de reflexo directo, mas
através da problemática do sujeito que enuncia - de forma cifrada, hermética, e duma

7 Richard Zenith informa-nos que Fernando Pessoa trabalhava nestes sonetos desde 1913 .
8 Maria Vitalina Leal de Matos, «Passos tÚl Cruz de Fernando Pessoa: primeira fase de uma abordagem
semiótica>>; e «Ü estatuto do sujeito nos Passos da Cruz», A vivência do tempo em Fernando Pessoa,
Lisboa, ed. Verbo, 1993 .

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beleza impressionante - um percurso agónico de paixão. Este percurso dá-se no âmbi- «Tenho sonhado mais do que Napoleão fez.
to de um universo absurdo, dum mundo informe, caótico, onde a vida acontece sem Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
se saber porquê. Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
O homem toma consciência de si e do mundo, mas o sentido está-lhe vedado. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
No entanto, à sua roda, tudo são sinais. A enunciação do confronto das aparências, Ainda que não more nela;
dos indícios, com o esforço para lhes captar o significado - utilizando a disciplina Serei sempre o que não nasceu para isso;
imposta pela forma difícil e epigramática que é o soneto, e recolhendo o máximo de Serei sempre só o que tinha qualidades;
riqueza que esse confronto do espírito com o mundo lhe proporciona - torna-se Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
então uma via de interpretação guiada pela hipótese inconfessada, mas que se insinua E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
em certos trechos 9 , de que uma salvação poderia resultar da gnose desses sinais. E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Assim, como quem reúne os restos de tesouros saqueados, ou de ruínas desertas, Crer em mim? Não, nem em nada.»10
observando os constrangimentos duma poética erudita mas vazia de conteúdos, como
se esses mesmos constrangimentos garantissem a beleza do texto (beleza que aparece Trata-se da incursão no subsolo duma personalidade radicalmente religiosa, onde
como exigência absoluta e, talvez até, como «método» para o conhecimento procura- convergem «uma percuciante angústia metafísica e um inexorável cepticismo» 11.
do), o poeta alinha os catorze poemas, ensaiando «composições» ou «figuras», donde Esta é a sua paixão: o sofrimento e a pas~ivjpade perante o mal e a confusão que
talvez resulte algum sentido, alguma compreensão, alguma redenção. o dominam, num mundo incompreensível que o abafa, e do qual não consegue, nem
tenta libertar-se.
Suponho que se poderia realizar um espectáculo com base nestes poemas, tomar Contudo, em toda a obra se debate com o absurdo:
essas «composições)), uma por uma, no cotejo dificilmente decifrável com o texto
matriz que o poeta escolheu como guia- a Via Sacra. «Não haverd, enfim,
Para as coisas que são,
Não se pode supor que Fernando Pessoa tenha pretendido exprimir uma vivência Não a morte, mas sim,
exemplar ou de sentido moral. O que se deixa entrever através da espessa dificuldade Uma outra espécie de fim
de interpretação destes textos é a descida aos infernos de um ser muito particular, Ou uma grande razão
neurótico, pecador, fraco e, acima de tudo, incapaz de optar: de se decidir pela vida, Qualquer coisa assim
de assumir um caminho e de o prosseguir (renunciando a outros), e de se construir Como um perdão?»12
desta forma como o sujeito dum destino, capaz de escolher e de criar valores.
Fernando Pessoa não é capaz. Definiu-se à saciedade como um abúlico e um fra-
cassado:
1
°Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Ed. Ática, 1958, «Tabacaria», pp. 258-59.
11
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Verbo, 19, p. 9.
12
9 Tal como é confirmado por muitos outros poemas, sobretudo os de conteúdo iniciático. Fernando Pessoa, Poemas, Lisb?a, Ed. Ática, 1958. p. 206.

28 29
O único caminho de acesso ao desconhecido e de busca do sentido foi o da poe-
sia: «Hd um poeta em mim que Deus me disse» 13 •
É isso que faz nos poemas dos Passos da cruz, poemas que dizem o esquecimento,
o sem sentido, a ignorância em que a vida mergulha; mas no meio da qual o poeta
percebe cintilações, assomos, fragmentos de luz. Mas trata-se de clarões entrevistos no
subterrâneo, na gruta onde está soterrado e acorrentado (como no mito da caverna de
Platão, aliás evocada no soneto IV), fulgurações que tanto podem ser indícios da ver-
dade salvadora, como brilhos de jóias artificiais e enganadoras.
O homem toma consciência de si e do mundo, mas o sentido está-lhe vedado.
No entanto, à sua roda, tudo são sinais. O confronto das aparências, dos indícios, Terceira Parte
com o esforço para lhes captar o significado - utilizando a disciplina imposta pela
forma difícil e epigramática que é o soneto, e recolhendo o máximo de riqueza que
esse confronto do espírito com o mundo lhe proporciona- torna-se então uma via de
interpretação guiada pela hipótese que se insinua em certos trechos 14 de que uma sal-
vação poderia resultar da gnose desses sinais 15 . Na perspectiva gnóstica, a salvação con-
siste, ou pdo menos exige, o conhecimento.
Fernando Pessoa interroga a paixão de Cristo como forma de entender a sua
própria paixão. Assim, cada "estação" é interpretada em clave pessoana, e estabelece-
se uma aproximação entre a paixão de Jesus e situações que o poeta vivencia: desde o
desconhecimento a que a vida condena, e da busca- mas às cegas - que através da
poesia se faz (poesia que é um destino e uma cruz), passando por «quedas», enganos,
quimeras; e também por indícios, reminiscências, sombras e gritos, o percurso do
homem passa pela interrogação sem resposta, pela visão fragmentada e dispersa, pela
tomada de consciência de erros e de enganos; e finalmeme, pelo despojamento dos
sentidos desejados ou imaginados, pela submissão à dor, pela travessia do «fim».

13 Ib. «Passos da Cruz>>, p. 37.


14 Tal como é confirmado por muitos outros poemas, sobretudo os de conteúdo iniciático.
15 Fernando Pessoa definiu-se como cristão gnóstico.

30
O espectáculo

Creio que seria possível, com base neste texto, montar um espectáculo, um even-
to cultural, ou uma cerimónia de forte significado religioso, ou até uma celebração
litúrgica, enfim diver~as formas de espectáculo de teor mais religioso ou mais profano,
mas de qualquer modo· com grande densidade estética e com um intenso apelo espiri-
tual, embora dirigido sobretudo a um público culto.

A minha proposta consiste no seguinte:


Fazer um espectáculo mulcimédia, conjugando os seguintes elementos:
• o texto de F. Pessoa:
- uma «plaquette» com os 14 sonetos, e uma pequena nota explicativa a distri-
buir por todo o público, com referência: a) à poética em que se insere (decadentista e
simbolista, que explica o tipo de linguagem e de metáforas usados, bem como o gosto
do conteúdo hermético e estranho); b) ao sentido do texto pessoano; c) pequenos
comentários elucidativos que permitiriam estabelecer a relação entre o texto pessoano
e a Via Sacra.

• A declamação e/ou a encenação dos sonetos por um ou vários actores; uma


mise en scene, pensada em termos teatrais; em alternativa, uma encenação em ballet
moderno resultaria certamente muito bem.
• Eventualmente, alguns textos bíblicos (do Novo e do Antigo Testamento)
de narrativa do «passo» evocado nas estações ou de sugestão do seu significado;
• Música: clássica, mas eventualmente também Jazz (espirituais negros, p. ex.)
- gravada, ou executada in loco, por coros ou solistas - com vista a criar um clima,
uma ambiência, e a proporcionar introduções, cortes, e sobretudo pausas de reflexão,
meditação e/ou oração.
• Iconografia: a ser projectada num grande écran, de modo a dar o comple-
mento visual, e a enriquecer deste ponto de vista a abordagem verbal. Poderia usar-se

33
toda a iconografia religiosa, desde a mais antiga à mais recente, em planos por inteiro
ou em detalhes ampliados;
e também iconografia de F. Pessoa: fotografia e obras de pintores ou grafistas que
têm tomado a sua obra como ponto de partida; e outras imagens (pintura, fotografia,
cinema, documentários) susceptíveis de introduzir também o sofrimento e a paixão
dos homens. Com base nos elementos seleccionados e trabalhados seria feito um dia-
porama a decorrer em concatena!j:ãO com as abordagens textuais (orais e escritas).
É possível utilizar a iconografia de modo a apoiar a interpretação dos poemas,
explorando o mesmo confronto que Fernando Pessoa aproveitou; criando como que
um didlogo entre a encenação dos poemas e as imagens projectadas no écran; também Quarta Parte
se pode integrar palavras, nestas imagens, um ou outro verso do soneto em questão,
ou um versículo significativo.

3. Concretizando, o espectáculo ou celebração teria lugar num auditório ou


numa igreja onde fosse possível montar um grande écran; dispor de instalação sonora
para a ampliação das vozes e a emissão da música; e onde houvesse espaço para a dis-
posição cénica dos principais intervenientes: leitores dos poemas de F. Pessoa, dos
textos bíblicos, dos comentários ao texto pessoano;
E poderia obedecer à seguinte sequência:
1. Uma introdução ao espectáculo, de forma que se entenda o que se vai seguir;
no caso de se tratar duma celebração, esta introdução deveria ter um carácter explica-
tivo sobre a sua motivação e objectivos;
2. Para cada estação:
-declamação do soneto, e sua «encenação>>.
- leitura dos textos bíblicos ou de comentadores escolhidos; música;
-Toda a sequência seria acompanhada da projecção de imagens em articulação
ngorosa com a parte sonora.

34
O relacionamento dos dois «textos »:

Sonetos de F. Pessoa Estações da Via Sacra


I
A condição humana é o esquecimento e a
dissonância; os 14 sonetos exprimem a Jesus é condenado à morte
ideia de que a vida intra-mundana condena
ao desconhecimento.
li
Em face da impossibilidade do conhecimen-
to, a não ser através de indícios fugazes, Imposição da cruz
de reminiscências, a poesia será a imposi-
ção da cruz.
111
As quimeras da opulência e do poder como Primeira queda
desejos que levam à queda.
IV
Formula-se um voto que levaria ao encon-
tro do conhecimento, através do «método ,
platónico: adesão e desprendimento. Seria
assim possível aprofundar o conhecimento
e superar os conflitos através da aceitação
~o sagrado. Jesus encontra sua Mãe
E extremamente significativo que esta pos-
sibilidade de conhecimento se enuncie por
referência ao encontro com a mulher, com
o feminino , a quem é atribuído o poder de
entreabrir o entendimento e de propiciar a
harmonia.

37
v partir «do alto do infinito''· Este esclareci-
O sujeito anulado, reduzido à superfície, à mento aparece como o despojamento do
aparência, e tendo como horizonte o adia- engano, que prepara a lucidez.
mento, o desaparecimento, a desistência. A Simão leva a cruz de Jesus XI.
ideia de ajuda parece constituir uma infide-
A descoberta do sentido: o erro é abando-
lidade ao carácter solitário da paixão; um
nado. Paixão: aceitação, obediência, sofri-
modo de maior desconhecimento.
mento e morte. A identidade encontra-se na Jesus é pregado na cruz
VI subordinação ao destinador e na travessia
A ideia de rosto desperta a capacidade de do «Fim».
A face de Jesus A aceitação do sacrifício torna-se condição
visionar a identidade original da qual a vida
distancia e desiguala. de lucidez e de compreensão.
XII.
VIl
Abandono de toda a ambição e anulação Jesus morre na cruz
O «intuito gloríola» : um fim triunfante pode-
Segunda queda do sujeito. Emergência da simplicidade.
ria remir a insignificância da vida - nova
forma da queda. Nas palavras de Dante, XIII.
"un bel morir tutta la vita onora". O sujeito dividido: identidade positiva -
VIII consumação integral da missão; e desco- Jesus é despregado da cruz
Sujeito paradoxal: a imensa distância entre nhecimento do destinador. Primeira nome-
o impulso e o destino por falta de vontade; ação de Deus.
o homem condena-se assim à ignorância Jesus exorta as mulheres de Jerusalém XIV.
do sentido. As mulheres de Jerusalém Nova etapa do conhecimento. Cessa a alie-
padeceriam desta ignorância ao engana- nação do sujeito e o mistério surge.
rem-se sobre a vítima que lamentam.
«Deus, a grande Ogiva», coroa uma série Jesus é deposto no sepulcro
IX. de imagens fragmentárias do sujeito e da
O erro e excesso que impedem o sentido. demanda do sentido. Dar-Lhe este nome
Terceira queda equivale a atribuir-Lhe a plenitude do senti-
De novo a miragem do triunfo como tenta-
ção inferior. do.

X.
O sujeito dual: a vida é a perda progressiva
da origem até ao deserto do «olvido». Con- Jesus é despojado das suas vestes
tudo, a consciência do erro permite o reco-
nhecimento da identidade que se origina a

38 39
VIII
Jesus exorta as mulheres de
~ sujeito confuso, pelo paradoxo entre o impulso gran- Jerusalém
Relacionamento dos dois «textos»: d1oso e o falhanço da acção.
IX
Sonetos de F. Pessoa Estações da Via Sacra
O ~rro, a queda no excesso (excesso de ser, de perso- Terceira queda
I nalldades, de possibilidades) impede a descoberta do
O hom~m está condenado ao esquecimento e ao des- Jesus é condenado à morte
sentido.
conhecimento.
X
Jesus é despojado das suas
11 O despojamento, primeira fase do conhecimento/salva- vestes
O sujeito tem como cruz a poesia. Imposição da cruz ção; o sujeito agido, passivo.
Esta seria forma de conhecimento/salvação se não esti-
vesse acorrentada à inércia. XI
Renúncia total à acção. O sujeito como instrumento usa- Jesus é pregado na cruz
111 do, pregado. Este abandono abre as portas do conheci-
A opulência e a miragem do poder levam o homem à Primeira queda mento I salvação
queda e ao vazio.
XII
IV A morte, como renúncia total. O sujeito anula-se entre- Jesus morre na cruz
Uma figura de mulher entreabre a porta do conhecimen - Jesus encontra sua Mãe ga-se à passividade da natureza, simbolizada p~la pas-
to/salvação: o desprendimento, o desapego dos senti- tora.
dos.
XIII
v Jesus ~-despregado significa a consumação da missão . Jesus é despregado da cruz
Aceitar ajuda leva a um maior desconhecimento. A pai- Simão leva a cruz de Jesus Esta fo1 Integralmente cumprida.
xão é solitária.
XIV
VI A passividade absoluta, o sepulcro, coincide com a des- Jesus é deposto no sepulcro
A ~ontemplação da face revela a falta de coincidência, e A face de Jesus coberta_ do mistério: «Deus, a grande Ogiva••, a plenitude
a v1da como «estrada para Desigual». do sent1do.
VIl
Mai~ uma ilusão, mais outra queda: um fim glorioso pode
Segunda queda
rem1r a insignificância da vida.
(Dante: «Un bel mo rir tutta la vita onora>>)

40 41
Quinta Parte
Poemas de Fernando Pessoa
de conteúdo iniciático

Grandes mistérios habitam


O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,


Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.


Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

45
II

Neste mundo em que esquecemos


Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos, III
São aqui esgares e assomos.

Tudo é noctumo e confuso NATAL


No que entre nós aqui há.
Projecções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso Nasce um Deus. Outros monem. A verdade
Ao olhar que a vida dá. Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
Mas um ou outro, um momento, E era sempre melhor o que passou.
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Qual no outro mundo é o intento Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Do gesto que o faz viver. Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição, de um olhar.

Sombra do corpo saudosa,


Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.

46 47
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes


Ficou entre nós na Sorte.
IV
Não 'stás morto entre ciprestes.
·····················································
Neófito, não há morte.
INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,


Pois não há sono no mundo .
......................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,


E a sombra acabou sem ser.
V ais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro


Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada


Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

49
48
VI

EROS E PSIQUE
v
A morte é a curva da estrada, ... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas
Morrer é só não ser visto. no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de
Se escuto, eu te oiço a passada Adepto Meno;, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
Existir como eu existo. DO RITUAL DO GRAU DE MESTRE DO ÁTRIO
NA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL

A terra é feita de céu.


A mentira não tem ninho. Conta a lenda que dormia
Nunca ninguém se perdeu. Uma Princesa encantada
Tudo é verdade e caminho. A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada

Ele tinha que, tentado,


Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

50 51
VII
Longe 0 Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem, NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém. Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e
sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos
levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo
Mas cada um cumpre o Destino - corpo célebre, inteiro e incorrupto ... , e tinha na mão um peque-
Ela dormindo encantada, no livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é,
depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facil-
Ele buscando-a sem tino
mente submetido à censura do mundo.
Pelo processo divino
FAMA PRA TERNITA TIS ROSEAE CRUCIS .
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro


Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
Quando, despertos deste sono, a vida,
E, vencendo estrada e muro,
Soubermos o que somos, e o que foi
Chega onde em sono ela mora.
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia, Conheceremos pois toda a escondida
Ergue a mão, e encontra hera,
Verdade do que é tudo que há ou flui?
E vê que ele mesmo era
Não: nem na Alma livre é conhecida ...
A Princesa que dormia.
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:


Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu ...


De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

53
52
11
Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
Mas antes era o Verbo, aqui
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
Quando a Infinita Luz, já
Do Caos, chão do Ser, foi
... ...... ...... ...... ......... ........................
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.
Calmo na falsa morte a nós exposto,
Mas se a Alma sente a sua forma errada
O Livro ocluso contra o peito posto,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
O Verbo deste Mundo, humano e ungido
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,


Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,


No sangue actual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.

III

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,


Dormimos o que somos, e a verdade
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos


Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

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