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CLÁSSICOS CONTEMPORÂNEOS

Marca de água

JOSEPH BRODSKY

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS:

ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

OP130294@MAIL.TELEPAC.PT

JOSEPH BRODSKY nasceu em Sampetersburgo em

1940. Fixou-se como exilado nos Estados Unidos em 1972 e reside actualmente em Nova
Iorque. Além de quatro colectâneas de poesia publicadas em inglês, Elegia para John Donne e
Outros Poemas Escolhidos, Poemas Escolhidos, A Pari of Speech e To Urania, Joseph Brodsky é
autor de uma peça de teatro intitulada Marbles, de um conjunto de ensaios reunidos em Less
Than One e da narrativa Marca de Agua.

Recebeu o Grande Prémio de Poesia dos Estados Unidos e o Prémio Nobel de Literatura
(1987).

Tradução de Ana Luísa Faria

Joseph Brodsky

Marca de água
PLANETA

CLÁSSICOS CONTEMPORÂNEOS

Título original: Wutermark

Tradução: Ana Luísa Faria

© 1992, Joseph Brodsky

© Publicações Dom Quixote, Lda.. Lisboa

© Editora Planeta De Agostini, S. A., Lisboa. 1999, para a presente edição

Edição especial para PlaCresa, S.A.

Todos os direitos reservados

Terceira edição: Julho de 2000

ISBN: 972-747-412-8

Depósito Legal: 135.179/99

Impressão e encadernação: Cayfosa-Quebecor; Santa Perpétua de Mogoda


(Barcelona)

Impresso em Espanha - Printed in Spain

Para Robert Morgan

Há muitas e muitas luas, um dólar eram 870 liras e eu era um homem de trinta e dois anos.
Também o mundo era mais leve, dois biliões de almas mais leve, e o bar da stazione a que eu
chegara nessa fria noite de Dezembro estava vazio. Fiquei ali parado, à espera da única pessoa
que conhecia na cidade. Ela chegou bastante atrasada.

Todos os viajantes conhecem estes apuros: este misto de fadiga e de apreensão. É o momento
de examinar rostos e horários, de perscrutar as varizes do mármore debaixo dos pés, de inalar
o cheiro a amoníaco e o vago odor que nas noites frias de Inverno emana do ferro fundido das
locomotivas.

À excepção do barman ensonado e da matrona imóvel como um buda atrás da caixa


registadora, não se via ninguém. Nem um nem a outra me podiam valer, porém, como eu não
podia valer a nenhum dos dois: a minha única moeda na língua deles, o termo «espresso», já
estava gasta; usara-a duas vezes. Comprara-lhes também o meu primeiríssimo maço daquilo
que em anos vindouros traduziria por «Merde Statale», «Movimento Sociale» e «Morte
Sicura»: o meu primeiro maço de MS. Por isso peguei nas malas e saí à rua.

No caso improvável de alguém ter seguido com os olhos a

minha gabardina branca London Fog e o meu Borsalino castanho escuro, a silhueta não lhe
deve ter causado qualquer estranheza. Estou certo de que a própria noite não teria tido
dificuldade em a absorver. O mimetismo ocupa, julgo eu, um lugar importante na lista de
prioridades de todos os viajantes, e a Itália que eu trazia então no espírito era uma fusão dos
filmes a preto e branco dos anos cinquenta e do meio de expressão, também monocromático,
do meu ofício. O Inverno era, pois, a minha estação; a única coisa que me faltava, pensei, para
parecer um bandido ou carbonaro das redondezas era um lenço de pescoço. Tirando isso,
sentia-me capaz de passar despercebido, de me confundir com o cenário ou de me enquadrar
no enredo de um desses policiais de orçamento modesto - um policial ou, melhor ainda, um
melodrama.

Era uma noite ventosa, e ainda a minha retina não registara o que quer que fosse quando me
acometeu uma sensação de absoluta felicidade: atingiu-me as narinas aquilo que sempre foi
para mim o seu sinónimo, o cheiro a algas geladas. Para algumas pessoas, é a erva ou o feno
acabado de ceifar; para outras, os perfumes natalícios das agulhas de conífera e das
tangerinas. Para mim são as algas geladas - em parte devido às ressonâncias onomatopaicas da
própria conjunção (em russo, as algas são um magnífico vodorosli), em parte por causa da
ligeira incongruência e do oculto drama subaquático que essa ideia alberga. Há elementos em
que nos reconhecemos; quando inalei aquele cheiro nos degraus da stazione, os dramas
ocultos e as incongruências já eram havia muito o meu forte.

A atracção por esse cheiro deveria sem dúvida atribuir-se a

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uma infância passada nas margens do Báltico, pátria da sereia errante do poema de Montale.
E, todavia, eu tinha as minhas dúvidas quanto a essa atribuição. Para começar, a infância não
foi tão feliz como isso (as infâncias raramente o são, sendo antes uma escola de insegurança e
desamor-próprio); e quanto ao Báltico, para escapar à parte que dele me cabe, só mesmo
sendo uma enguia. De qualquer maneira, essa infância pouco tinha que a habilitasse a objecto
de nostalgia. Sempre senti que a origem da atracção estava alhures, para lá das fronteiras da
biografia, para lá da conformação genética de cada um - algures no nosso hipotálamo, que
conserva as impressões dos nossos antepassados cordados sobre o seu domínio nativo - a
recordação, por exemplo, do próprio ichthus que originou esta civilização. Se ele foi ou não um
ichthus feliz, já é outra história.

Um cheiro é, afinal de contas, uma violação do equilíbrio do oxigénio, invadido por outros
elementos - metano? carbono? enxofre? azoto? Consoante a intensidade da invasão, temos
um aroma, um cheiro, um fedor. É uma questão de moléculas, e a felicidade será, julgo eu, o
momento em que captamos, vogando livres, os elementos da nossa própria composição. Havia
ali uma quantidade dos meus, num estado de absoluta liberdade, e senti que mergulhara no
meu próprio auto-retrato, traçado no ar frio da noite.
O pano de fundo era todo em silhuetas sombrias de cúpulas de igreja e telhados; uma ponte
arqueada sobre a curva negra de um corpo de água, a que o infinito decepara as extremidades.
À noite o infinito, em terras estranhas, começa no último candeeiro, e aqui estava a vinte
metros de distância. Reinava um

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grande sossego. Alguns barcos mal iluminados rondavam de vez em quando por ali,
perturbando com os motores o reflexo de um grande CINZANO de néon que procurava firmar-
se no oleado negro da tona de água. Muito antes de conseguir os seus intentos, já o silêncio se
restabelecera.

JLJL. sensação era a de quem chega à província, a uma terreola desconhecida, insignificante - a
nossa terra natal, por exemplo

- após uma ausência de anos. Esta impressão devia-se em boa parte ao meu próprio
anonimato, à incongruência de uma figura solitária nos degraus da stazione: um alvo fácil para
o esquecimento. Além disso, era uma noite de Inverno. E lembrei-me do primeiro verso de um
dos poemas de Umberto Saba que traduzira havia muito tempo, numa outra encarnação, para
russo: «Nas profundezas do agreste Adriático...» Nas profundezas, pensei, nas brenhas, num
recanto perdido do agreste Adriático... Tivesse eu simplesmente virado a cabeça, e teria visto a
stazione em todo o seu esplendor rectangular de néon e urbanidade, teria visto as maiúsculas
a dizer VENEZIA. Não o fiz, porém. O céu estava cheio de estrelas de Inverno, como tantas
vezes sucede na província. A qualquer instante, dir-se-ia, poderia ouvir-se um cão ladrar ao
longe, ou cantar um galo. De olhos fechados, vi um cacho de algas geladas esparramadas numa
rocha húmida, talvez coberta de gelo, algures no universo, sem que eu soubesse onde. Eu era
essa rocha, e a palma da minha mão esquerda era esse cacho de algas esparramadas. Pouco
depois um barco grande e chato, uma espécie de cruzamento entre lata de sardinhas e
sanduíche, surgiu do nada e embateu com um baque surdo no cais da stazione. Um

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punhado de gente desembarcou a custo e passou por mim a correr, subindo a escada e
entrando no terminal. Vi então a única pessoa que conhecia na cidade; foi uma visão fabulosa.

V ira-a pela primeira vez alguns anos antes, nessa minha anterior encarnação: na Rússia. A
visão apresentara-se como eslavista - especialista em Maiakovsky, para ser mais exacto. Esse
facto por pouco não desclassificou a visão como objecto de interesse aos olhos do círculo a
que eu pertencia. Que tal não tenha chegado a acontecer dá bem a medida dos seus atributos
visuais. Cinco pés e pouco de altura, compleição delicada, pernas compridas, rosto fino, cabelo
castanho e olhos amendoados cor de avelã, com um russo aceitável nos lábios
maravilhosamente bem desenhados e um sorriso ofuscante nos mesmos, soberbamente
vestida de camurça levíssima e seda a condizer, rescendendo a um perfume inebriante e para
nós desconhecido, a visão era sem dúvida a mulher mais elegante que alguma vez nos visitara,
e a sua presença deu-nos a volta à cabeça. Era dessas criaturas que povoam os sonhos lascivos
dos homens casados. Além disso, era uma veneziana.

Por isso fizemos pouco caso da sua filiação no PC italiano e do seu consequente apreço pelos
nossos vanguardistas simplórios dos anos 30, atribuindo ambas as coisas à frivolidade
ocidental. Se ela fosse uma fascista confessa, acho que não a teríamos cobiçado menos por
isso. Era um perfeito assombro de mulher, e quando mais tarde se apaixonou pelo pior dos
idiotas que giravam na órbita do nosso círculo, um parvalhão endinheirado de origem arménia,
a reacção comum foi de surpresa e raiva, e não propriamente de ciúme ou decepção viril.
Vendo

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bem, não deveríamos, é claro, enraivecer-nos com a renda delicada que se deixa manchar pelo
ímpeto das secreções étnicas. Mas foi assim que reagimos. Porque era mais do que uma
desilusão: era uma traição à qualidade do tecido.
Nesse tempo o estilo estava para nós associado à substância, a beleza à inteligência. Afinal de
contas, éramos uns literatos, e há uma certa idade em que, quando se acredita na literatura,
se pensa que toda a gente partilha ou deveria partilhar as nossas convicções e gostos. Por isso,
se alguém tem um ar elegante, esse alguém é dos nossos. Desconhecedores do mundo cá fora,
e do Ocidente em particular, não sabíamos ainda que o estilo se podia comprar por atacado,
que a beleza podia ser uma simples mercadoria. Por isso considerávamos a visão como
prolongamento físico e encarnação dos nossos ideais e princípios, e o que ela trazia vestido,
incluindo as peças transparentes, fazia parte da civilização.

Tão forte era essa associação, e a visão era tão bonita, que ainda agora, passados anos,
embora eu pertencesse já a uma idade diferente e, por assim dizer, a um país diferente,
comecei a recair sem dar por isso na antiga atitude. A primeira coisa que lhe perguntei,
comprimido contra o seu casaco de pele de lontra no convés do vaporetto apinhado, foi a sua
opinião sobre os Motetes de Montale, que acabavam de vir a lume. O brilho familiar das suas
pérolas, trinta e duas ao todo, reflectido na centelha na orla da sua pupila cor de avelã e
promovido à prata esparsa da Via Láctea lá no alto, foi a única resposta que obtive, e já não foi
pouco. Fazer perguntas, no centro da civilização, sobre os seus frutos mais recentes, talvez
fosse uma tautologia. Ou talvez eu tivesse sido apenas descortês, já que o autor não era da
cidade.

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o lento avanço do barco através da noite foi como a passagem de uma ideia coerente pelo
subconsciente. De ambos os lados, metidos até ao joelho na água negra de breu, erguiam-se
os enormes baús lavrados dospalazzi, cheios de tesouros inimagináveis - provavelmente ouro,
a ajuizar pelo ténue brilho amarelo eléctrico que de tempos a tempos jorrava das frinchas das
persianas. A impressão de conjunto era mitológica, ciclópica, para ser mais preciso: acabava de
entrar no infinito que avistara dos degraus da stazione e deslizava agora por entre os seus
habitantes, junto ao bando de ciclopes adormecidos reclinados na água negra, abrindo e
tornando a fechar de vez em quando um olho.

A visão envolta em pele de lontra, ao meu lado, começou a explicar, quase num sussurro, que
ia levar-me ao hotel onde me reservara um quarto, que talvez nos víssemos amanhã ou no dia
a seguir, que gostaria de me apresentar o marido e a irmã. Agradou-me aquela voz sussurrada,
embora se ajustasse melhor à noite do que à mensagem, e respondi no mesmo tom
conspirativo que é sempre um prazer conhecer potenciais familiares. O comentário foi um
bocado forte para a ocasião, mas ela riu-se, um riso também abafado, levando aos lábios a
mão metida numa luva de pele castanha. Os passageiros à nossa volta, na sua maioria
morenos, e cujo número era responsável pela nossa proximidade, permaneciam imóveis e
mostravam-se igualmente discretos nas observações que de quando em quando trocavam
entre si, como se o conteúdo das suas conversas fosse também de natureza íntima. Depois o
céu foi momentaneamente obscurecido pelo gigantesco parêntese de mármore de

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uma ponte, e de repente tudo ficou inundado de luz. «Rialto», disse ela na sua voz normal.

Há algo de primevo nas viagens sobre a água, mesmo por distâncias curtas. O que nos informa
de que não deveríamos ali estar não são tanto os olhos, os ouvidos, o nariz, o palato ou as
palmas das mãos como os pés, que representam com estranheza esse seu papel de órgãos dos
sentidos. A água perturba o princípio da horizontalidade, em especial à noite, quando a sua
superfície se assemelha à da calçada. Por muito sólido que seja o seu substituto - o convés -
onde os nossos pés assentam, na água estamos por assim dizer mais alerta do que em terra, as
nossas faculdades apuram-se mais. Na água, por exemplo, nunca nos distraímos como na rua:
as nossas pernas vigiam-nos constantemente, a nós e aos nossos sentidos, como se fôssemos
uma espécie de bússola. Bem, talvez o que nos aguça os sentidos quando viajamos sobre a
água seja de facto um eco remoto, indirecto, dos bons velhos cordados. De qualquer maneira,
na água a nossa consciência do outro torna-se mais viva, como que reforçada pelos perigos,
quer os comuns quer os mútuos. A perda de rumo é uma categoria tão psicológica como
náutica. Seja como for, o certo é que nos dez minutos seguintes, embora avançássemos na
mesma direcção, vi divergirem pelo menos uns

45 graus o meu ponteiro e o da única pessoa que conhecia na cidade. Provavelmente porque
aquela parte do Canal Grande estava mais bem iluminada.

Desembarcámos no cais da Accademia, sujeitos a partir daí à topografia firme e ao


correspondente código moral. Ao cabo de um breve trajecto sinuoso por ruas estreitas, fui
depositado

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no átrio de umapensione algo acanhada, recebi um beijo na face

- mais na qualidade de Minotauro, ao que me pareceu, do que na de herói destemido - e os


votos de uma boa noite. Depois a minha Ariana desapareceu, deixando atrás de si um fio
fragrante do seu perfume caro (seria Shalimar?), que rapidamente se dissipou na atmosfera
bafienta da pensione impregnada de um leve mas omnipresente cheiro a mijo. Fiquei durante
algum tempo a olhar para os móveis. Depois tratei de dormir.

Foi assim que me achei pela primeira vez nesta cidade. Conforme veio a revelar-se, esta minha
chegada não teve nada de particularmente auspicioso ou ominoso. Se essa noite alguma coisa
pressagiou, foi que eu não havia de possuir nunca esta cidade; mas também nunca tive tal
ambição. Como começo, penso que este episódio serve, embora no tocante à única-pessoa-
que-eu-conhecia-na-cidade tenha pouco mais ou menos assinalado o fim da nossa relação. Vi-
a mais duas ou três vezes durante essa estadia em Veneza; e fui de facto apresentado à irmã e
ao marido. A primeira era uma mulher lindíssima: tão alta e esbelta como a minha Ariana e
talvez mais luminosa ainda, mas mais melancólica e, tanto quanto pude perceber, ainda mais
casada. O segundo, cuja aparência se me varreu por completo da memória por motivos de
redundância, era um reles arquitecto, dessa pavorosa seita do pós-guerra que fez mais
estragos na linha do horizonte europeu do que qualquer Luftwaffe. Em Veneza, o indivíduo
desfigurara dois campi maravilhosos com os seus edifícios, um dos quais era, claro está, um
banco, pois este género de animal humano adora os bancos com um fervor absolutamente
narcísico, com o amor de um efeito

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pela sua causa. Só por essa «estrutura» (como nesse tempo se dizia) merecia amplamente, a
meu ver, um par de cornos. Mas já que, tal como a mulher, também ele era, pelos vistos,
membro do PC, melhor seria confiar a missão a um camarada.

A culpa foi em parte da minha exigência crítica; por outro lado, quando algum tempo mais
tarde telefonei, uma bela noite, das profundezas do meu labirinto para a-única-pessoa-que-
conhecia-na-cidade, o arquitecto, pressentindo talvez no meu italiano coxo alguma intenção
menos própria, cortou o fio. A partir daí, só mesmo apelando aos nossos irmãos vermelhos da
Arménia.

Posteriormente, segundo me contaram, ela divorciou-se do indivíduo e casou com um piloto


da Força Aérea americana, que por acaso era sobrinho do mayor de uma cidadezinha do
grande estado do Michigan, onde eu vivi em tempos. Este mundo é pequeno, e por muitos
anos que vivamos, não há homem ou mulher que consiga torná-lo maior. Assim, se eu andasse
em busca de consolo, talvez me consolasse a ideia de que pisamos agora os dois o mesmo solo
- de um continente diferente. Já pareço Estácio a falar com Virgílio, é verdade, mas não admira
que um homem como eu veja na América uma espécie de Purgatório - para já não referir que o
próprio Dante sugeriu isso mesmo. A única diferença está em que o céu dela é muito mais
sólido que o meu. Daí as minhas incursões na minha versão pessoal do Paraíso, que ela tão
graciosamente inaugurou. Seja como for, nos últimos dezassete anos tenho voltado a esta
cidade, ou ressurgido nela, com a frequência de um pesadelo. Com duas ou três excepções,
devidas a ataques cardíacos,

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meus ou alheios, e às situações de emergência deles decorrentes, todos os Natais ou pouco


antes desembarcava de um comboio/avião/barco/autocarro e arrastava as malas carregadas
de livros e máquinas de escrever para este ou aquele hotel, este ou aquele apartamento. Estes
últimos eram geralmente emprestados pelos dois ou três amigos que aqui conseguira arranjar
no rasto da visão empalidecida. Tentarei mais tarde justificar o meu calendário de visitas (se
bem que tal projecto seja inútil, de tão tautológico). Por agora, gostaria de declarar que, sendo
embora um homem do Norte, a minha noção do Éden não depende nem da meteorologia nem
da temperatura. Dispensaria também de bom grado, aliás, os seus habitantes, e com eles a
eternidade. Arriscando-me a ser acusado de blasfémia, confesso que essa ideia é para mim
puramente visual, tem mais que ver com Claude do que com o credo, e não existe senão em
versões aproximadas. Esta cidade é de todas a mais próxima. Uma vez que não estou
habilitado a fazer uma verdadeira comparação, posso permitir-me ser restritivo.

Digo isto aqui e agora para poupar o leitor a uma desilusão. Não sou um homem moral
(embora tente manter a minha consciência em equilíbrio) nem um sábio; não sou nem um
esteta nem um filósofo. Sou apenas um homem nervoso, por força das circunstâncias e dos
meus próprios actos; mas sou observador. Como uma vez disse o meu querido Akutagawa
Ryunosuke, eu não tenho princípios; só tenho nervos. Aquilo que se segue, por conseguinte,
tem mais que ver com o olhar do que com as convicções, incluindo as respeitantes ao modo de
organizar uma narrativa. O olhar precede a pena, e decidi não permitir que a minha pena
minta sobre a sua posição. Se corri o risco de uma acusação de blasfémia, não é a de
superficialidade que me fará estremecer. As superfícies - aquilo que o

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olhar regista primeiro - são muitas vezes mais reveladoras do que o seu conteúdo, por
definição provisório, salvo, é claro, na vida depois da morte. Ao cabo de dezassete Invernos a
perscrutar o rosto desta cidade, devo agora ser capaz de fazer obra credível, um pouco à
maneira de Poussin: pintar o retrato deste lugar, senão nas quatro estações do ano, pelo
menos a quatro horas diferentes do dia.

A minha ambição é essa. Se me desviar do rumo, será porque desviar-se do rumo é aqui a
coisa mais natural do mundo, ecoando as águas. O que se segue, por outras palavras, poderá
não chegar a ser uma história, mas sim o fluir da água lamacenta «na época má do ano». Umas
vezes parece azul, outras parda ou castanha; é invariavelmente fria e salobra. O motivo que
me leva a sondá-la são os reflexos que contém, entre eles o meu.

Inanimados por natureza, os espelhos dos quartos de hotel são ainda mais baços por terem já
visto tanta gente. O que nos devolvem não é a nossa identidade mas o nosso anonimato, em
especial nesta cidade. Porque aqui a nossa imagem é a última coisa que nos interessa ver. Nas
minhas primeiras estadias ficava muitas vezes espantado ao entrever a minha própria figura,
vestida ou nua, na porta aberta do guarda-fatos; ao fim de algum tempo comecei a interrogar-
me sobre os efeitos edénicos ou póstumos deste lugar sobre a consciência que temos de nós
próprios. A dada altura cheguei até a desenvolver uma teoria do excesso de redundância, do
espelho que absorve o corpo que absorve a cidade. O resultado final é, obviamente, a negação
mútua. Um reflexo não pode de modo nenhum amar um reflexo. A cidade é suficientemente
narcísica para nos dis-

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solver o espírito numa amálgama, despojando-o das suas profundezas. Com efeitos análogos
sobre a nossa bolsa, hotéis e pensiones são, por isso mesmo, o alojamento mais indicado. Ao
fim de duas semanas de estadia - mesmo a preços de época baixa - ficamos simultaneamente
falidos e indiferentes aos bens deste mundo, como monges budistas. Numa certa idade e
quando se faz um certo tipo de trabalho, essa indiferença é benvinda, para não dizer
imperiosa.

Hoje em dia tudo isto está, evidentemente, fora de causa, desde que os espertalhões
começaram a fechar dois terços dos hotéis mais modestos durante o Inverno; o terço que
sobra mantém todo o ano as tarifas de Verão que nos fazem bater em retirada. Com um pouco
de sorte, talvez se arranje um apartamento, que como é natural traz consigo o gosto do dono
em matéria de quadros, cadeiras, cortinados, e a vaga sensação de ilegalidade da nossa cara
no espelho da casa-de-banho alheia em suma, precisamente aquilo de que pretendíamos
libertar-nos: nós próprios. Ainda assim, o Inverno é uma estação abstracta: avaro nas cores,
mesmo em Itália, e inflexível nos imperativos do frio e dos dias breves. Estas coisas exercitam-
nos os olhos para as coisas exteriores com uma intensidade maior do que a da luz eléctrica que
à noite nos dá a ver as nossas próprias feições. Se esta estação não nos acalma
necessariamente os nervos, subordina-os, ainda assim, aos nossos instintos; a beleza a baixas
temperaturas é a beleza.

De

• -J? qualquer forma, eu nunca aqui viria no Verão, nem à lei da bala. Suporto muito mal o
calor; e pior ainda as implacáveis emanações de hidrocarbonetos e sovacos. As manadas de
gente

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em calções, especialmente as que relincham em alemão, também têm o dom de me bulir com
os nervos, dada a inferioridade da sua anatomia - da anatomia de quem quer que seja - em
confronto com a das colunas, pilastras e estátuas; dado aquilo que a sua mobilidade - e tudo o
que a alimenta - projecta contra a estase do mármore. Devo ser daqueles que preferem a
escolha ao fluxo, e a pedra é sempre uma escolha. Nesta cidade os corpos, mesmo os mais
bem dotados, devem a meu ver andar cobertos de tecido, quanto mais não seja porque se
movem. O vestuário talvez seja a única aproximação que se nos oferece da escolha feita pelo
mármore.

É uma posição extrema, bem sei, mas eu sou um homem do Norte. Na estação abstracta a vida
parece mais real do que em qualquer outra, até mesmo no Adriático, porque no Inverno é
tudo mais cru, mais nu. Ou então vejam nisto uma forma de propaganda às boutiques
venezianas, que vendem muitíssimo bem a baixas temperaturas. Isto acontece em parte, como
é evidente, porque no Inverno precisamos de mais roupa só para conservar o calor do corpo -
e já não falo da necessidade atávica de mudar de pele. Porém nenhum viajante chega aqui
sem trazer de reserva uma camisola, um casaco, uma saia, uma camisa, umas calças ou uma
blusa, pois Veneza é o género de cidade em que tanto o forasteiro como o indígena sabe
antecipadamente que vai estar em exposição.

Não, os bípedes perdem a cabeça, em Veneza, a comprar roupa e a ataviar-se, por motivos que
não são propriamente práticos; fazem-no porque a cidade, por assim dizer, os desafia. Todos
nós alimentamos as mais diversas apreensões quanto às falhas da nossa aparência, da nossa
anatomia, quanto à imperfeição das nossas próprias feições. Aquilo que vemos nesta cidade a
cada passo, esquina, perspectiva ou beco agrava ainda

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mais os nossos complexos e inseguranças. É por isso que especialmente as mulheres, mas
também os homens - acorremos às lojas assim que aqui chegamos, e em força. A beleza
circundante é tal que sentimos logo um incoerente desejo animal de a imitar, de estar à sua
altura. Isto nada tem que ver com vaidade, nem com o natural excesso de espelhos que aqui
encontramos, sendo o principal a própria água. Acontece simplesmente que a cidade oferece
aos bípedes uma noção de superioridade visual inexistente nas suas tocas naturais, nos seus
poisos costumeiros. É por isso que aqui as peles voam, como voam a camurça, a seda, o linho,
a lã e qualquer outro tipo de tecidos. De regresso a casa, as pessoas olham com espanto para
as coisas que adquiriram, sabendo muito bem que não há, nos seus domínios de origem, onde
ostentar essas aquisições sem escandalizar os nativos. Vemo-nos obrigados a deixar essas
coisas desbotar e definhar no guarda-vestidos, ou a oferecê-las a um familiar mais novo. Ou
então há os amigos. Por mim, lembro-me de ter comprado aqui várias peças de roupa - a
crédito, evidentemente - que não tive estômago nem coragem para usar depois. Contavam-se
entre elas duas gabardinas, uma verde-mostarda e a outra de uma tonalidade suave de caqui.
Acabariam, respectivamente, nos ombros do melhor bailarino do mundo e do melhor poeta da
língua em que neste instante escrevo - embora qualquer dos dois cavalheiros esteja muito
longe de mim na estatura e na idade. A culpa é dos panoramas e perspectivas deste lugar, pois
nesta cidade um homem define-se mais pela silhueta do que pelas suas feições singulares, e as
silhuetas podem ser melhoradas. São também as rendas de mármore, os embutidos, os
capitéis, as cornijas, os relevos e as molduras, os nichos habitados e desabitados, os santos, os
ausentes, as donzelas, os anjos, os querubins, as cariátides, os frontões, as

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balaustradas com as suas barrigas de perna amplas e subidas, e as próprias janelas, góticas ou
mouriscas, que nos envaidecem. Porque esta é a cidade do olhar; as nossas outras faculdades
limitam-se a tocar um débil segundo violino. Basta o modo como os matizes e os ritmos das
fachadas se esforçam por aplanar as cores e os desenhos instáveis das ondas para nos fazer
cobiçar um belo lenço, uma gravata, ou outro enfeite qualquer; até um solteirão impenitente
fica colado às montras inundadas de vestidos vistosos e multicores, para já não falar dos
sapatos de verniz e das botas de camurça, espalhados como os muitos e variados barcos que
vogam na laguna. Os nossos olhos desconfiam que todas estas coisas foram talhadas no
mesmo tecido que as paisagens exteriores, e ignora a evidência das etiquetas. E, em última
análise, os olhos não estão muito enganados, quanto mais não seja porque a finalidade
comum de tudo é aqui ser visto. Numa análise ainda mais definitiva, esta cidade é um
verdadeiro triunfo dos cordados,. porque o olho, o nosso único órgão interno visível,
pisciforme, pode aqui nadar deveras: sulca as águas, agita-se, oscila, mergulha, revira-se. A sua
geleia exposta demora-se com um prazer atávico nos reflexos dos palazzi, nos saltos altos, nas
gôndolas, etc., reconhecendo-se a si própria como a instância que os trouxe à superfície
existencial.

N.

-Lio Inverno acorda-se nesta cidade, principalmente ao domingo, ao som dos seus inúmeros
sinos, como se para lá das nossas cortinas de tule vibrasse um gigantesco serviço de chá de
porcelana, sobre uma bandeja de prata, no céu cinzento-pérola. Abrimos a janela num gesto
largo, e o quarto fica instantanea-

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mente inundado desta névoa exterior, carregada de repiques, feita em parte de oxigénio
húmido, em parte de café e preces. Por muitos e por mais variados comprimidos que
tenhamos para tomar essa manhã, sentimos que ainda não está tudo perdido. Pela mesma
razão, por muito autónomos que sejamos, por mais que tenhamos sido traídos, por rigoroso e
desanimador que seja o conhecimento que temos de nós próprios, confiamos em que ainda
haja para nós uma esperança, ou pelo menos um futuro. (Disse Francis Bacon que a esperança
é um bom pequeno-almoço mas uma fraca ceia.) Este optimismo advém da névoa, do seu
elemento de prece, em particular se forem horas do pequeno-a.lmoço. Em dias como esses, a
cidade adquire de facto um aspecto de porcelana, com todas as suas cúpulas revestidas de
zinco a lembrar bules ou chávenas viradas ao contrário, e o perfil oblíquo dos campanários a
retinir como um molho de colheres abandonadas e a esfumar-se no céu. Isto para já não falar
das gaivotas e dos pombos, ora de contornos nítidos, ora a dissolver-se no ar. Embora este
lugar seja excelente para luas-de-mel, devo dizer que muitas vezes tenho pensado se não
deveriam também experimentar usá-lo para os divórcios - quer os que estão em curso, quer os
já consumados. Não há melhor pano de fundo para o dissipar de um enlevo; quer a razão
esteja ou não do seu lado, nenhum egoísta consegue conservar por muito tempo o estrelato
neste cenário de porcelana à beira da água cristalina, pois o cenário rouba-lhe a primazia. Não
ignoro, como é evidente, as consequências desastrosas que tais sugestões podem vir a ter
sobre os preços dos hotéis venezianos, mesmo no Inverno. As pessoas, no entanto, gostam
mais dos seus melodramas do que de arquitectura, e não me sinto ameaçado. É estranho que
se dê menos valor à beleza do que à psicologia, mas enquanto assim for, esta

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cidade continuará ao alcance da minha bolsa - ou seja, até ao fim dos meus dias, o que abre as
portas à generosa noção do futuro.

Somos aquilo para que olhamos - bem, pelo menos em parte. A crença medieval em que a
mulher grávida que quisesse ter um filho belo deveria olhar para belos objectos não é tão
ingénua como se possa pensar, dada a natureza dos sonhos que se sonham nesta cidade. As
noites, aqui, são parcas em pesadelos - a ajuizar, é claro, pelas fontes literárias (até porque os
pesadelos são o principal alimento dessas fontes). Para onde quer que vá, um homem doente -
em particular um inválido cardíaco - acorda fatalmente de vez em quando às três da manhã
num estado de terror absoluto, julgando estar a finar-se. Devo comunicar, no entanto, que
nunca tal me aconteceu aqui, se bem que escreva isto fazendo figas com os dedos das mãos e
dos pés.

Há melhores formas, sem dúvida, de manipular os sonhos, e pode sem dúvida argumentar-se
que a melhor via é a gastronómica. Pelos padrões italianos, porém, a dieta local não é
suficientemente extraordinária para justificar a concentração, só nas suas fachadas, de uma
beleza verdadeiramente de sonho. Pois é nos sonhos, como diz o poeta, que começam as
responsabilidades. Seja como for, alguns projectos arquitectónicos provêm seguramente dessa
fonte, pois não há na realidade outra coisa a que possamos reportá-los.

Se o poeta preferisse dizer simplesmente «Na cama», a ideia continuaria de pé. A arquitectura
é seguramente a menos carnal das Musas, já que o princípio rectangular dos edifícios, e em

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particular das fachadas, milita - muitas vezes energicamente contra a interpretação que os
psicanalistas fazem das suas cornijas, loggias, e outras coisas que tais, atribuindo-lhes formas,
não de mulher!, mas de nuvem ou de onda. Os projectos, em resumo, são sempre mais lúcidos
que as suas análises. Muitos frontones fazem aqui lembrar exactamente, porém, uma
cabeceira dominando a respectiva cama sempre desfeita, seja manhã ou noite. São bem mais
absorventes, essas cabeceiras, do que o hipotético conteúdo da cama, do que a anatomia da
amada, cuja única vantagem seria aqui a agilidade ou o calor.

Se alguma coisa há de erótico nas consequências de mármore desses projectos, é a sensação


nascida do olhar exercitado na sua contemplação - uma sensação análoga à das pontas dos
dedos quando tocam, pela primeira vez, no seio da amada, ou melhor ainda, no seu ombro. É a
sensação telescópica de entrar em contacto com a infinitude celular da existência de um outro
corpo

- uma sensação conhecida por ternura, e talvez só comensurável com o número de células que
esse corpo contém. (Toda a gente é capaz de entender isto, excepto os freudianos ou os
muçulmanos adeptos do véu. Mas talvez isso explique por que razão há tantos astrónomos
muçulmanos. Além disso, o véu é um grande instrumento de planeamento social, já que
proporciona a cada mulher um homem, independentemente da sua aparência. No pior dos
casos, garante que o choque da primeira noite seja, pelo menos, recíproco. Ainda assim,
apesar de todos os motivos orientais da arquitectura veneziana, os muçulmanos são nesta
cidade a espécie mais rara de visitantes.) De qualquer maneira, caiba a quem couber a
primazia - à realidade ou ao sonho - a nossa ideia da vida depois da morte parece ter sido
nesta cidade açambarcada por uma textura visual claramente paradisíaca. Uma simples
doença, por muito grave que seja, não

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suscita aqui visões infernais. Só com uma extraordinária neurose, ou uma acumulação
igualmente grande de pecados, ou ambas as coisas juntas, é que alguém sucumbiria num lugar
assim aos seus pesadelos. Isso é possível, claro está, mas não muito frequente. Para os casos
mais benignos de qualquer dos males, uma estadia aqui constitui a melhor das terapias, e o
turismo em Veneza é isso mesmo. Dorme-se bem nesta cidade, porque os nossos pés se
esfalfam a esmagar a agitação da psique ou, o que vem a dar no mesmo, uma consciência
pesada.

Talvez a melhor prova da existência do Todo-Poderoso seja o facto de nunca sabermos quando
vamos morrer. Por outras palavras, se a vida fosse um assunto exclusivamente humano,
receberíamos ao nascer um documento, ou uma sentença, indicando exactamente a duração
da nossa presença aqui: tal e qual como se faz nos campos de prisioneiros. O facto de isto não
acontecer sugere que o assunto não é inteiramente humano; que intervém nele algo que não
conseguimos imaginar nem controlar. Que existe uma instância que não está sujeita à nossa
cronologia, nem tão-pouco à nossa noção de virtude. Daí todas as tentativas que fazemos para
prever ou descortinar o nosso futuro, daí a nossa fé em médicos e ciganas, que se intensifica
quando estamos doentes ou em apuros, e que não passa de um esforço para domesticar - ou
demonizar - o divino. O mesmo vale para o nosso sentimento da beleza, quer natural quer
criada pelo homem, já que o infinito só pode ser apreciado pelo finito. Excepto no caso da
graça, os motivos de reciprocidade seriam insondáveis - a menos que façamos questão de
encontrar uma

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explicação Benévola para o facto de tudo nesta cidade ser tão caro.
DL

i J? profissão, ou antes, pelo efeito cumulativo do que tenho feito ao longo dos anos, sou
escritor; de ofício, porém, sou um universitário, um professor. As férias de Inverno na minha
escola duram cinco semanas, o que explica em parte o calendário das minhas visitas aqui - mas
só em parte. O que o Paraíso e as férias têm em comum é que ambos se pagam, e a moeda
com que os pagamos é a nossa vida anterior. O meu romance com esta cidade - com esta
cidade nesta estação do ano em particular - começou, portanto, há muito tempo: muito antes
de eu ter desenvolvido aptidões vendáveis, muito antes de poder sustentar a minha paixão.

Já não sei em que mês de 1966 - tinha eu vinte e seis anos

- um amigo emprestou-me três pequenos romances de um escritor francês, Henri de Régnier,


traduzidos para russo pelo excelente poeta russo Mikhail Kuzmin. De Régnier só sabia nessa
altura que fora um dos últimos parnassianos, bom poeta, mas nada do outro mundo. De
Kuzmin, só sabia de cor meia dúzia das suas Canções de Alexandria e das Pombas de Barro

- além de conhecer a sua fama de grande esteta, ortodoxo devoto, e homossexual confesso -
por esta ordem, julgo eu.

Quer o autor quer o tradutor tinham morrido havia muito tempo quando os romances me
chegaram às mãos. E também os livros estavam praticamente moribundos: volumes
brochados, editados no final dos anos trinta, sem capa digna desse nome, a desfazer-se-me
entre os dedos. Não me lembro nem dos títulos nem da editora; para dizer a verdade, mesmo
dos

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enredos só conservo uma recordação bastante vaga. Tenho a impressão de que um dos livros
se chamava Passatempos de Província, mas não garanto. Poderia ir verificar, é claro, mas o
amigo que mós emprestou morreu há um ano; e não o farei.
Eram um misto de romance pícaro e de policial, e pelo menos um deles, esse a que no meu
espírito chamo Passatempos de Província, situava-se em Veneza, no Inverno. A sua atmosfera
era crepuscular e perigosa, a sua topografia multiplicada pelos espelhos; os principais
acontecimentos tinham lugar do outro lado da amálgama, no interior de um palazzo
abandonado. Como tantos livros dos anos vinte, era bastante breve - umas duzentas páginas,
não mais - e tinha um andamento rápido. O tema era o do costume: amor e traição. Mais
importante: o livro dividia-se em capítulos curtos, de uma página ou página e meia. Do seu
ritmo emanava a imagem das ruas húmidas, frias e estreitas, percorridas ao fim da tarde num
estado de apreensão crescente, virando à esquerda, virando à direita. Para quem nasceu onde
eu nasci, a cidade que se desprendia dessas páginas era fácil de reconhecer e parecia um
prolongamento de Sampetersburgo, dotado de uma história mais propícia, para já não falar da
latitude. O mais importante para mim, todavia, na fase impressionável em que li esse romance,
foi ter dele recebido a mais crucial das lições em matéria de composição: a saber, que o que
torna boa ou má uma narrativa não é a história em si mas a ordem pela qual as coisas se
encadeiam. Quase sem dar por isso, acabei por associar este princípio a Veneza. Se o leitor
agora sofre, é por essa razão.

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Depois, um dia, outro amigo, que ainda é vivo, trouxe-me um número amarrotado da revista
Life com uma assombrosa fotografia a cores de San Marco coberta de neve. Depois, algum
tempo mais tarde, uma rapariga que eu namorava na altura ofereceu-me como prenda de
aniversário um acordeão de postais cor de sépia que a avó trouxera da sua lua-de-mel pré-
revolucionária em Veneza, e eu examinei longamente a colecção com a minha lupa. Depois a
minha mãe desencantou sabe Deus onde um pequeno quadrado de tapeçaria barata, um
trapo sem jeito que representava o Palazzo Ducale e com que forrei a almofada do meu sofá
turco - assim condensando a história da república sob o meu arcaboiço. Junte-se a isto a
pequena gôndola de cobre que o meu pai trouxera da sua missão de serviço na China, e que os
meus pais tinham em cima do toucador do quarto, recheando-a de botões desirmanados,
agulhas, selos e - cada vez mais - de comprimidos e ampolas. Depois o amigo que me dera a ler
os romances de Régnier e que morreu há um ano levou-me à projecção semi-oficial de uma
cópia pirateada, e por isso mesmo a preto e branco, da Morte em Veneza de Visconti, com Dirk
Bogarde. O filme, infelizmente, não era grande coisa; e, para dizer a verdade, também nunca
gostei muito do romance. Mesmo assim, a longa sequência inicial, com o Sr. Bogarde numa
cadeira de repouso, a bordo de um navio, fez-me esquecer os méritos ou deméritos da obra e
lamentar não sofrer de uma doença mortal; ainda hoje sou capaz de reviver esse sentimento.
Depois veio a veneziana. Comecei a ter a impressão de que esta cidade tomava, sem eu saber
bem como, contornos cada vez mais definidos, quase à beira do tridimensional. Era uma

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imagem a preto e branco, como convém ao que brota da literatura, ou do Inverno;


aristocrática, escura, fria, mal iluminada, com acordes de Vivaldi e Cherubini por pano de
fundo, e por nuvens corpos femininos drapejados à maneira de Bellini/Tiepolo/Ticiano. E
prometi a mim próprio que se alguma vez viesse a deixar o meu império, se alguma vez esta
enguia fugisse do Báltico, a primeira coisa que faria seria vir a Veneza, alugar um quarto no
rés-do-chão de um palazzo, para que as ondas levantadas pela passagem dos barcos me
salpicassem a janela, escrever duas ou três elegias apagando cigarros nas lajes húmidas do
chão, tossir e beber e, quando o dinheiro escasseasse, em vez de apanhar um comboio,
comprar um pequeno Browning e estoirar ali mesmo os miolos, incapaz de morrer em Veneza
de causas naturais.

Um sonho absolutamente decadente, como vêem; mas aos vinte e oito anos quem quer que
tenha dois dedos de testa é um bocadinho decadente. Além do mais, nada no meu plano era
exequível. Quando, portanto, com trinta e dois anos de idade, dei de repente por mim nas
entranhas de outro continente, no meio da América, usei o meu primeiro salário da
Universidade para pôr em prática a melhor parte desse sonho e comprei um bilhete de ida e
volta Detroit-Milão-Detroit. O avião estava apinhado de italianos, operários da Ford e da
Chrysler que iam passar o Natal a casa. Quando abriu a loja duty-free, em pleno voo,
precipitaram-se todos para a traseira do avião, e eu tive por instantes uma visão do bom velho
707 a sobrevoar o Atlântico à maneira de um crucifixo: asas abertas, cauda para baixo. Depois
veio a viagem de comboio, tendo no seu término a única

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pessoa que eu conhecia na cidade. O término era frio, húmido, a preto e branco. A cidade
ganhou contornos mais firmes. «E a terra era sem forma, e vazia; e havia trevas sobre o
abismo. E o Espírito de Deus moveu-se sobre a face das águas», para citar um autor que aqui
esteve de visita antes de mim. Depois houve a tal manhã seguinte. Era domingo, e todos os
sinos repicavam.

sempre perfilhei a ideia de que Deus é tempo - Deus, ou pelo menos o Seu espírito. Talvez a
ideia seja até da minha lavra, já não me lembro. De qualquer maneira, sempre pensei que se o
Espírito de Deus se moveu sobre a face das águas, as águas tiveram por força que o reflectir.
Daí a minha predilecção pela água, pelos seus sulcos, rugas e ondulações, e - sendo eu um
homem do Norte - pelo seu cinzento. Acho, muito simplesmente, que a água é a imagem do
tempo, e sempre que chega o Ano Novo esforço-me, de forma um tanto ou quanto pagã, por
estar perto da água, de preferência um mar ou oceano, para assistir à emergência de uma
nova dose, de uma nova chávena rasa de tempo. Não procuro uma donzela nua a navegar
numa concha; procuro uma nuvem ou uma crista de vaga que se quebre na praia à meia-noite.
Isso, para mim, é o tempo a sair da água, e deixo-me ficar a olhar para o desenho rendilhado
que fica na praia, não com a presciência das ciganas, mas com ternura e gratidão.

Eis o como, e no meu caso também o porquê, de eu ter posto a vista nesta cidade. A fantasia
nada tem de freudiano, nada que evoque especificamente os cordados, embora se pudesse
sem dúvida estabelecer alguma relação evolutiva - se não mesmo atávica - ou autobiográfica
entre o desenho que a onda deixa

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na areia e o exame atento que dela faz um descendente do ictiossauro, ele próprio um
monstro. A renda vertical das fachadas venezianas é o melhor vestígio que o tempo-feito-água
deixou em toda a terra firme. Mais: existe sem dúvida uma relação para não dizer uma
absoluta dependência - entre o carácter regular do suporte desse rendilhado - ou seja, os
edifícios da cidade - e a anarquia da água que desdenha a noção de forma. É como se o espaço,
aqui consciente como nunca da sua inferioridade em relação ao tempo, ripostasse com a única
propriedade que o tempo não possui: a beleza. E é por isso que a água agarra essa resposta,
por isso a distorce, a maltrata e a despedaça, mas acaba por arrastá-la consigo, afinal intacta,
para o Adriático.

Os olhos, nesta cidade, adquirem uma autonomia análoga à das lágrimas. A única diferença
está em que não se desprendem do corpo, mas subjugam-no por completo. Ao fim de algum
tempo - ao terceiro ou quarto dia aqui passado - o corpo começa a considerar-se como mero
portador dos olhos, como uma espécie de submarino ao serviço do seu periscópio pronto a
dilatar-se ou a semicerrar-se. Apesar da abundância dos alvos, as explosões do submarino
atingem sempre, claro está, o seu próprio casco: é o nosso coração, ou o nosso espírito, que
soçobra; só os olhos vêm à tona. Isto deve-se à topografia da cidade, às ruas - estreitas,
sinuosas como enguias - que por fim nos conduzem ao linguado de um campo com uma
catedral ao centro, cravejada de santos como um rochedo de lapas, e ostentando as suas
cúpulas medusinas. Seja qual for o destino com que aqui saímos de casa, estamos condenados
a perder-nos

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nestas vielas e ruas enoveladas que nos convidam a decifrá-las, a segui-las até ao fim
impalpável, pois geralmente terminam na água, de forma que nem sequer podemos chamar-
lhes becos. No mapa esta cidade parece um par de peixes grelhados na mesma travessa, ou
talvez duas pinças de lagosta ligeiramente sobrepostas (Pasternak comparou-a a um croissant
inchado); mas não tem Norte, nem Sul, nem Este nem Oeste; o único rumo que tem é p
enviesado. Cerca-nos como um mar de algas geladas, e quanto mais corremos de um lado para
o outro, procurando orientar-nos, mais nos perdemos. As setas amarelas nos cruzamentos
também não ajudam muito, pois também elas se encurvam. Algas que são, não ajudam,
iludem. E na mão de gestos fluidos do indígena a quem detemos para pedir indicações, o olhar,
alheio à torrente confusa dos seus A destra, sinistra, dritto, dritto, distingue prontamente um
peixe.

v ’ma rede presa nas algas geladas talvez fosse melhor metáfora. Dada a escassez de espaço,
as pessoas coexistem aqui numa proximidade celular, e a vida evolui segundo a lógica
imanente do mexerico. O nosso imperativo territorial nesta cidade é circunscrito pela água; as
persianas vedam, não tanto a luz do dia ou o ruído (que é ínfimo aqui) como o que possa
emanar de dentro. Quando estão abertas, as persianas parecem asas de anjos a espiar as
andanças sórdidas de alguém e, tal como a disposição das estátuas nas cornijas, o jogo das
relações humanas assume aqui uma aparência de joalharia ou, melhor ainda, de filigrana. As
pessoas, por estas bandas, têm mais segredos e andam mais bem informadas do que as
polícias dos tiranos. Assim que transpomos o limiar do nosso apartamento, em
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especial no Inverno, ficamos à mercê de todas as conjecturas, fantasias e rumores que se


possa imaginar. Se temos companhia, no dia seguinte poderemos deparar, na mercearia ou no
quiosque dos jornais, com um olhar de devassa bíblica impensável, julgaríamos nós, num país
católico. Se resolvermos aqui processar alguém, ou se alguém nos processar a nós, teremos
que contratar um advogado de fora. Este estado de coisas agrada, como é óbvio, ao visitante,
mas não ao indígena. Aquilo que o pintor esboça, ou o amador fotografa, está longe de ser um
divertimento para o habitante da cidade. Mas a insinuação como princípio de planeamento
urbano (noção que aqui só em retrospectiva ganha consistência) é melhor do que qualquer
moderna rede de ruas, e harmoniza-se com os canais da cidade, seguindo o exemplo da água
que, tal como o falatório atrás das nossas costas, nunca tem fim. Nesse sentido, o tijolo é sem
dúvida mais poderoso do que o mármore, embora ambos sejam inexpugnáveis para um
estranho. Ao longo destes dezassete anos consegui, porém, insinuar-me uma ou duas vezes
num dos mais recônditos santuários de Veneza, nesse labirinto-para-lá-da-amálgama que
Régnier descrevia nos Passatempos de Província. A coisa aconteceu de forma tão ínvia que não
me consigo lembrar dos pormenores, pois não pude seguir todas as voltas e reviravoltas que
na altura conduziram à minha entrada no labirinto. Alguém disse qualquer coisa a não sei
quem; outra pessoa que não devia sequer estar presente ouviu e telefonou a uma quarta, de
onde resultou convidarem-me certa noite para uma festa que a enésima dava no seupalazzo.

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^«-/ palazzo só recentemente viera parar às mãos da tal enésima pessoa, ao cabo de quase
três séculos de uma guerra jurídica travada pelos vários ramos de uma família que dera ao
mundo um par de almirantes venezianos. Em consonância com este facto, duas enormes
lanternas de popa, esplendidamente lavradas, assomavam no pátio do palazzo, um recinto
com dois pisos de altura cheio de todo o tipo de adereços náuticos, alguns dos quais
remontavam ao Renascimento. O enésimo, o último elo da cadeia, tomara finalmente posse
do edifício, após décadas e décadas de espera, para grande consternação dos outros
- aparentemente numerosos - membros da família. Não era marinheiro; era vagamente
dramaturgo e vagamente pintor. De momento, porém, o que mais sobressaía nesse quarentão
- um indivíduo baixo e esguio, trajando um fato cinzento assertoado de excelente corte - era
que ele estava muito doente. A sua pele parecia a de um convalescente de hepatite, amarela
como pergaminho - ou talvez fosse apenas uma úlcera. Não comia senão consommé e legumes
cozidos, enquanto os convidados se empanturravam de manjares cuja enumeração daria, por
si só, um capítulo à parte, ou mesmo um livro.

A festa comemorava, portanto, o facto de o enésimo ter tomado posse do que por direito era
seu, bem como o lançamento da sua editora especializada em livros sobre arte veneziana. A
animação já era muita quando nós três - eu, um amigo escritor e o filho dele - chegámos.
Estava imensa gente: luminárias locais e vagamente internacionais, políticos, nobres, figuras
do teatro, barbas e plastrões, senhoras mais ou menos vistosas, uma estrela do ciclismo,
universitários americanos. E, além disso, um punhado de jovens homossexuais risonhos e
saltitan-

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tes, presença inevitável, nos tempos que correm, onde quer que decorra um evento
minimamente espectacular. Presidia ao grupo .um maricas de meia-idade, exaltado e maldoso
- muito louro, de olhos muito azuis, muito bêbedo: o mordomo do palácio, cuja carreira
naquela casa chegara ao fim e que por conseguinte odiava toda a gente. E com boas razões,
diria eu, dadas as suas perspectivas de futuro.

Como a confusão era muita, o enésimo ofereceu-se cortesmente para nos mostrar aos três o
resto da casa. Assentimos prontamente e subimos num pequeno elevador. Ao sair da cabina,
deixámos para trás o século vinte, o dezanove, e boa parte do dezoito - para trás ou, mais
precisamente, para baixo: como sedimentos no fundo de um poço estreito.

Demos por nós numa longa galeria fracamente iluminada, de tecto convexo enxameado de
putti. A luz, fosse como fosse, de nada teria servido, já que as paredes estavam cobertas de
grandes quadros a óleo em tons de castanho-escuro, que iam do soalho ao tecto - nitidamente
feitos à medida daquele espaço e tendo a separá-los bustos e pilastras de mármore cujos
contornos mal se distinguiam. As telas representavam, tanto quanto podia perceber-se,
batalhas navais e terrestres, cerimónias, cenas mitológicas; a tonalidade mais clara era o
vermelho-vinho. Era uma mina de pesados pórfiros votada ao abandono, num estado de
perpétuo crepúsculo, com os óleos a velar o minério; o silêncio era aqui verdadeiramente
geológico. Não podíamos perguntar: O que é isto? Quem é o autor?, dada a incongruência da
nossa voz, pertencente a um organismo mais tardio e manifestamente irrelevante. Ou então
dir-se-ia uma viagem subaquática - éramos como um cardume de peixes a atravessar um
galeão afundado e cheio de tesouros, mas sem abrirmos a boca, para a água não a invadir.

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No outro extremo da galeria o nosso anfitrião virou bruscamente à direita, e nós seguimo-lo,
entrando numa sala que parecia um cruzamento entre a biblioteca e o estúdio de um
cavalheiro do século dezassete. A ajuizar pelos livros atrás da rede entrecruzada do armário de
madeira, vermelho e grande como um roupeiro, o século do cavalheiro até poderia ter sido o
dezasseis. Havia cerca de sessenta volumes gordos, brancos, encadernados a pergaminho, de
Alceu a Zenão; o suficiente, em suma, para um cavalheiro; mais fariam dele um pensador, o
que teria efeitos desastrosos nas suas maneiras ou no seu património. Para além desse móvel,
a sala estava praticamente despida. Não havia muita mais luz do que na galeria; consegui
distinguir uma secretária e um grande globo desbotado. Depois o nosso anfitrião fez rodar
uma maçaneta e eu vi a sua silhueta enquadrada por uma porta que dava para uma enfiada
delas. Espreitei para essa enfiada de portas e estremeci: pareceu-me uma infinitude mórbida,
viscosa. Respirei fundo e avancei.

Era uma longa sucessão de salas vazias. Racionalmente, eu sabia que não podia ser mais longa
do que a galena paralela. Mas era mais longa. Tive a sensação de caminhar, não tanto numa
perspectiva normal como numa espiral horizontal que suspendesse as leis da óptica. Cada sala
representava mais um passo para a dissolução, um grau superior de inexistência. Resultava
isto de três coisas: reposteiros, espelhos e poeira. Se bem que nalguns casos conseguíssemos
descortinar a designação das salas - sala de jantar, salão, possivelmente o quarto das crianças -
quase todas se assemelhavam entre si na sua aparente ausência de função. Eram quase
idênticas nas dimensões, ou pelo menos não pareciam diferir muito umas das outras nesse
aspecto. E todas tinham reposteiros nas janelas e dois ou três espelhos a adornar as paredes.

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Quaisquer que tivessem sido a cor e o desenho originais dos cortinados, estavam agora todos
de um tom amarelo pálido, e muito friáveis. Um dedo que lhes tocasse, ou mesmo um sopro
de brisa, destruí-los-ia irremediavelmente, como sugeriam os bocados de tecido espalhados no
soalho em volta. Estavam a mudar de pele, essas cortinas, e algumas das suas pregas exibiam
grandes zonas calvas, no fio, como se o tecido achasse que já cumprira o seu ciclo de vida e
regressasse agora ao estado anterior ao tear. Talvez o nosso bafo fosse, só por si, intimidade a
mais; ainda assim, era melhor do que oxigénio fresco, coisa que, tal como a história, os
reposteiros dispensavam. Não se tratava de decadência nem de decomposição, mas de uma
dissipação remontando o tempo, até ao ponto onde a cor e a textura não contam, até onde,
cientes talvez daquilo que os espera, se reunirão para regressar, aqui ou alhures, sob uma
aparência diferente. «Desculpem», pareciam dizer, «para a próxima havemos de ser mais
duradouros.»

E depois havia os espelhos, dois ou três em cada sala, de vários tamanhos, mas quase sempre
rectangulares. Todos tinham molduras douradas de grande delicadeza, com belas grinaldas de
flores ou cenas idílicas que chamavam mais a atenção para si próprias do que para a superfície
espelhada, já que a amálgama estava invariavelmente em mau estado. Em certo sentido, as
molduras eram mais coesas do que o respectivo conteúdo, procurando, por assim dizer, evitar
que este se derramasse pela parede inteira. Desacostumados de reflectir o que quer que fosse
além da parede fronteira, os espelhos tinham a maior relutância em nos devolver a fisionomia,
não sei se por avareza se por impotência, e quando se esforçavam por fazê-lo, as nossas
feições chegavam-nos incompletas. Pensei: começo agora a entender Régnier. De divisão para
divisão, à medida que

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avançávamos ao longo da enfiada de salas, via-me cada vez menos nesses espelhos
emoldurados, recebendo de volta cada vez mais trevas. Subtracção gradual, pensei para
comigo; como irá isto acabar? E acabou na décima ou undécima sala. Parei junto à porta que
conduzia ao aposento seguinte, a olhar para um espelho grande, um rectângulo de três por
quatro pés e moldura dourada, e em vez de mim vi o nada, negro como breu. Fundo e
convidativo, parecia conter uma perspectiva só sua talvez uma outra enfiada de quartos. Senti-
me zonzo, por momentos; mas, não sendo romancista, ignorei a opção e meti por uma porta.
A travessia fora, desde o início, razoavelmente fantasmagórica; a partir daí passou a sê-lo
irrazoavelmente. O anfitrião e os meus companheiros ficaram algures para trás; eu estava
sozinho. Havia em toda a parte uma grande quantidade de pó; o cinzento da poeira suavizava
as cores e as formas de tudo o que a vista alcançava. Mesas de mármore embutido, bibelôs de
porcelana, sofás, cadeiras, o próprio soalho. Estava tudo empoado, e às vezes, como no caso
dos bibelôs e dos bustos, o efeito era estranhamente vantajoso, acentuando as feições, o
pregueado das vestes, a vivacidade de um grupo. Mas geralmente a camada era espessa e
sólida; e, mais ainda, tinha um aspecto definitivo, como se não fosse possível acrescentar-lhe
mais pó. Todas as superfícies anseiam pelo pó, porque o pó é a carne do tempo, como disse
um poeta, a própria carne e sangue do tempo; mas aqui o anseio parecia ter chegado ao fim.
Agora o pó vai infiltrar-se nos objectos, pensei, fundir-se com eles, e por fim substituí-los. Isto,
dependendo, é claro, dos materiais, alguns bastante duradouros. Talvez nem sequer se
desintegrem; tornar-se-ão simplesmente mais pardos, pois o tempo não se negará decerto

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a assumir as suas formas, tal como já fizera naquela sucessão de câmaras de vácuo onde se
assenhoreara da matéria.

A última sala era o quarto de cama do dono da casa. Uma gigantesca cama de dossel, embora
lhe faltasse a cobertura, dominava o espaço: desforra do almirante pelo beliche exíguo a bordo
do navio, ou talvez o seu tributo ao próprio mar. A segunda hipótese era mais provável, dada a
monstruosa nuvem de putti em estuque que descia sobre a cama e fazia as vezes do
baldaquino. As esculturas, aliás, não pareciam propriamente putti. Os rostos dos querubins
eram terrivelmente grotescos: exibiam todos um sorriso corrupto e lascivo, enquanto olhavam
- fixamente - para a cama cá em baixo. Fizeram-me lembrar a coudelaria de jovens risonhos do
rés-do-chão; e reparei então num televisor portátil ao canto deste quarto em tudo o mais
absolutamente despojado. Imaginei o mordomo a receber aqui o objecto da sua escolha: uma
ilha convulsa de carne nua no meio de um mar de linho, sob o olhar atento da obra-prima de
gesso coberta de pó. Estranhamente, não senti repulsa. Pelo contrário, pareceu-me que do
ponto de vista do tempo o divertimento era sem dúvida o mais apropriado, uma vez que não
gerava coisa nenhuma. Afinal de contas, durante três séculos, o nada reinara aqui
soberanamente. Guerras, revoluções, grandes descobertas, génios, pestes, nunca tinham aqui
entrado, devido a um problema jurídico. A causalidade ficara sem efeito, já que os seus
portadores humanos só percorriam esta perspectiva na qualidade de curadores, uma vez de
vários em vários anos, se tanto. Por isso o pequeno banco de areia agitada no mar dos lençóis
estava, de facto, em consonância com o cenário, pois não podia, por natureza, fazer nascer
coisa nenhuma. A ilha do mordomo - ou deveria chamar-lhe antes vulcão? - existia apenas,
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quando muito, aos olhos dos putti. Não constava do mapa dos espelhos. E eu também não.

Isto só aconteceu uma vez, embora me tenham dito que há dezenas de lugares assim em
Veneza. Mas uma vez basta, especialmente no Inverno, quando o nevoeiro daqui, a famosa
nebhia, torna a cidade ainda mais intemporal do que os santuários secretos dos palácios,
obliterando não só os reflexos mas tudo quanto tem forma: edifícios, pessoas, colunatas,
pontes, estátuas. As carreiras de barco são canceladas, os aviões passam semanas sem aterrar
nem partir, e o correio deixa de juncar a soleira da nossa porta. O efeito é semelhante ao de
uma mão brutal que virasse do avesso todas essas enfiadas de salas, envolvendo a cidade na
poeira que lhes reveste o interior. A esquerda, a direita, o alto e o baixo trocam de lugar, e só
conseguimos orientar-nos sendo venezianos ou arranjando um cicerone. O nevoeiro é denso,
impenetrável e imóvel. Este último aspecto, no entanto, torna-se vantajoso se sairmos por
poucos minutos, para ir buscar, por exemplo, um maço de cigarros, pois achamos o caminho
de regresso graças ao túnel que o nosso corpo escava no nevoeiro; o túnel chega a ficar aberto
durante meia hora. É um tempo bom para se ler, para se ter a luz eléctrica acesa de manhã à
noite, para se moderar a veia autocrítica e o consumo de café, para se ouvir o serviço
internacional da BBC, para recolher cedo à cama. Em suma, um tempo para nos esquecermos
de nós próprios, induzido por uma cidade que deixou de poder ser vista. Sem disso nos darmos
conta, começamos a imitá-la, especialmente se, tal como ela, não temos companhia.

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A falta de termos aqui nascido, resta-nos ao menos o orgulho de partilhar a sua invisibilidade.

K
JL 10 conjunto, porém, sempre tive um tão grande apreço pelo conteúdo dos vulgares edifícios
de tijolo desta cidade como pelo dos de mármore, exemplares únicos. Esta preferência nada
tem de populista ou de anti-aristocrático; e também não é uma preferência de romancista. É
um simples eco do género de casa onde vivi ou trabalhei a maior parte da vida. À falha que foi
não ter aqui nascido veio somar-se, de facto, a falha suplementar de ter escolhido um ramo de
actividade que normalmente não leva os seus cultores ao piano nobile. Em contrapartida,
talvez haja um snobismo perverso no apreço pelos tijolos desta cidade, pelo seu vermelho-vivo
gémeo do dos músculos inflamados, desnudados pelas crostas de estuque solto. Tal como os
ovos, que tantas vezes - em especial quando preparo o meu próprio pequeno-almoço - me
levam a imaginar a civilização desconhecida que teve a ideia de produzir comida enlatada por
processos orgânicos, o tijolo e as construções em tijolo sugerem de certo modo uma categoria
alternativa de carne, uma carne que, não sendo viva, é quase escarlate e formada por
pequenas células idênticas. Mais um auto-retrato da espécie ao nível elemental, seja sob a
forma de muro ou de chaminé. Em última análise, e tal como o Todo-Poderoso em Pessoa,
fazemos tudo à nossa imagem e semelhança, à falta de um modelo mais fiável; os nossos
artefactos dizem-nos mais sobre nós próprios do que as nossas confissões.

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seja como for, raramente transpus o limiar das habitações vulgares desta cidade. Nenhuma
tribo gosta de estrangeiros, e os Venezianos são muito tribais, para além de serem ilhéus. O
meu italiano, oscilando descompassadamente em redor do seu zero fixo, constituía também
um elemento dissuasor. Notava sempre progressos ao fim de um mês, mas por essa altura
embarcava no avião que me afastaria da oportunidade de usar a língua durante mais um ano.
Por conseguinte, as minhas companhias eram nativos que sabiam falar inglês e americanos
expatriados cujas casas espelhavam uma versão idêntica e familiar senão mesmo um grau
idêntico - de abastança. Quanto aos que falavam russo, os figurões da universidade local, os
seus sentimentos para com o meu país natal e a sua política deixavam-me à beira da náusea.
Com os dois ou três escritores e académicos da cidade, o resultado era quase o mesmo:
demasiadas litografias abstractas nas paredes, demasiadas estantes de livros bem arrumados e
bugigangas africanas, esposas caladas, filhas macilentas, conversas moribundas sobre a
actualidade, a fama alheia, a psicoterapia, o surrealismo, que terminavam com a descrição do
trajecto mais curto para o meu hotel. Ou seja: a disparidade das ocupações comprometida
pela tautologia dos resultados líquidos, se quiserem resumir o problema numa fórmula. Eu
ambicionava passar as tardes no gabinete vazio de um solicitador ou de um farmacêutico lá do
sítio, mirando a secretária a trazer o seu café da pastelaria mais próxima, tagarelando
ociosamente sobre os preços dos barcos a motor ou sobre os aspectos positivos da
personalidade de Diocleciano, já que quase toda a gente aqui tem um grau de instrução
razoável, bem como um gosto vincado pelas coisas do mar. Faltar-me-ia cora-
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gem para me levantar da cadeira, os clientes seriam poucos; ele acabaria por fechar a loja e
iríamos até ao Gritti ou ao Danieli, onde eu lhe pagaria uma bebida; com um pouco de sorte, a
secretária viria connosco. Afundar-nos-íamos nas poltronas, trocando comentários maliciosos
sobre os novos batalhões alemães ou sobre os omnipresentes japoneses a espreitar através
das câmaras de vídeo, quais novos anciãos, para as pálidas coxas • nuas de mármore desta
cidade-Susana metida até ao joelho nas águas frias, marulhantes, coloridas pelo crepúsculo.
Mais tarde, talvez ele me convidasse para jantar em sua casa, e a sua mulher grávida,
debruçada sobre a pasta fumegante, me recriminasse com volubilidade pelo meu prolongado
celibato... Demasiados filmes neo-realistas, como se vê, e demasiadas leituras de Svevo. Para
estas fantasias se tornarem realidade, os requisitos são os mesmos que para morar num piano
nobile. Eu não os satisfaço, nem nunca passei aqui tempo suficiente para abandonar por
completo estes castelos no ar. Para termos outra vida, precisaríamos de embrulhar e arrumar
a primeira, e o trabalho teria que ser feito com competência. Ninguém consegue executar
convincentemente esse passe de magia, se bem que às vezes as esposas fugidas e os sistemas
políticos nos prestem uma boa ajuda... Aquilo com que sonha, na sua senilidade e decrepitude,
o cão velho do provérbio, não são novos amos, mas sim outras casas, escadas desconhecidas,
cheiros estranhos, mobílias e uma topografia diferentes dos habituais. E o melhor é não
perturbar esses sonhos.

J. Nunca dormi, portanto, nem sequer pequei, numa cama de casal de ferro forjado com
lençóis imaculados e frescos, uma

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colcha bordada e debruada de grossas franjas, almofadas como nuvens, e um pequeno


crucifixo com embutidos de madrepérola à cabeceira. Nunca exercitei o olhar vazio numa
oleografia da Madonna, nem na fotografia desbotada de um pai/irmão/ /tio/filho fardado de
bersagliere, com o seu capacete de penas negras, nem nos cortinados de chintz da janela, nem
na jarra de porcelana ou de majólica em cima da cómoda de madeira escura cheia de rendas
venezianas, lençóis, toalhas, fronhas, e roupa interior lavada e passada a ferro na mesa da
cozinha por um braço jovem, forte, queimado do sol, quase trigueiro, enquanto a alça do
vestido escorrega do ombro e pérolas de suor prateado cintilam na testa. (Já que falamos de
pratas, encontrá-las-íamos, com toda a probabilidade, escondidas debaixo de uma pilha de
lençóis numa das gavetas da tal cómoda.) Tudo isto saiu, é claro, de um filme de que eu não fui
estrela nem sequer figurante, de um filme que tanto quanto sei nunca voltará a ser rodado, ou
se o for terá adereços diferentes. No meu espírito, chama-se Nozze di Seppia, e não tem
enredo, só uma cena em que eu avanço pelas Fondamente Nuove com a maior aguarela do
mundo à minha esquerda e uma perspectiva infinita de tijolo vermelho à direita. Trago um
boné de pano, um casaco de sarja escura, e uma camisa branca de colarinho desabotoado,
lavada e passada a ferro pela mesma mão forte e tisnada. Pouco antes do Arsenale, viro à
direita, passo doze pontes, e sigo pela Via Garibaldi até ao Giardini, onde, numa cadeira de
ferro do Caffè Paradiso, está sentada ela, que há trinta e seis anos me lavou e engomou a
roupa. Tem à sua frente um copo de chinotto e um panino, um livrito desconjuntado - o
Monobiblos de Propertius ou A Filha do Capitão, de Puchkine; traz um vestido de tafetá preto,
com a saia pelo joelho, comprado há muito tempo em Roma, na véspera da nossa viagem a
Ischia. Ela ergue os olhos,

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cor de mostarda e mel, crava-os na figura do casaco de sarja grossa e diz: «Que grande
barriga!» Só a luz de Inverno poderá salvar este filme de ser um desastre de bilheteira.

Há algum tempo vi, não sei onde, a fotografia de uma execução no tempo da guerra. Três
homens pálidos, de estatura mediana, sem nada de especial que lhes distinguisse as feições (a
máquina apanhou-os de perfil) estavam alinhados à beira de uma vala acabada de abrir.
Tinham ar de homens do Norte - a fotografia foi de facto tirada, segundo julgo, na Lituânia.
Mesmo atrás de cada um deles estava um soldado alemão de pistola em punho. Entrevia-se ao
longe mais um grupo de soldados: os espectadores. Deve ter sido no princípio do Inverno ou
no fim do Outono, porque os soldados envergavam os seus casacões. Os condenados estavam
também todos três vestidos da mesma maneira. Traziam bonés de pano e grossos casacos
pretos por cima das camisolas interiores sem gola: o uniforme das vítimas. Como se tudo o
mais não bastasse, tinham frio. Era em parte por causa disso que enterravam a cabeça nos
ombros. Vão morrer daqui a um segundo: o fotógrafo disparou a máquina no instante anterior
àquele em que os soldados carregaram no gatilho. Os três rapazes da aldeia enterravam a
cabeça nos ombros e semicerravam os olhos como as crianças fazem na expectativa da dor.
Contavam ser feridos, talvez gravemente; aguardavam
- tão perto dos seus ouvidos! - o estrondo ensurdecedor de um tiro. E semicerravam os olhos.
É tão limitado o reportório das reacções humanas! O que os esperava era a morte, e não a dor;
porém os seus corpos não conseguiam distinguir uma da outra.

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V_yma tarde de Novembro de 1977, no Hotel Londra, onde estava instalado a convite da
Bienal sobre a Dissidência, recebi um telefonema de Susan Sontag, que estava no Gritti,
também a expensas da organização. «Joseph», disse-me ela, «o que é que faz hoje à noite?»
«Nada», disse eu. «Porquê?» «Bem, é que encontrei hoje napiazza a Olga Rudge. Você
conhece-a?» «Não. É a mulher do Pound, não é?» «É», disse Susan, «e convidou-me para ir lá a
casa hoje à noite. Assusta-me um bocado a ideia de ir sozinha. Importa-se de vir comigo, se
não tem outros planos?» Eu não os tinha, e disse-lhe que sim, com certeza, tendo percebido
muito bem - bem de mais, até - a sua apreensão. A minha, pensei, talvez ainda fosse maior.
Bom, para começar, no meu campo de actividade Ezra Pound é um negócio em grande,
praticamente uma indústria. Muitos grafómanos americanos encontraram em Ezra Pound um
mestre e um mártir. Na minha juventude, traduzi para russo bastantes poemas dele. As
traduções eram imprestáveis, mas estiveram quase a ser publicadas, por obra e graça de um
cripto-nazi que pertencia à direcção de uma sólida revista literária (hoje em dia o homem é,
evidentemente, um fervoroso nacionalista). Gostei dos originais pela frescura bombástica e
pelo verso enérgico, pela diversidade temática e estilística, pelas volumosas referências
culturais, então fora do meu alcance. Gostei também da sua divisa «fazer novo» - isto é, gostei
até perceber que a verdadeira razão para se fazer novo era ser já bastante velho aquilo que se
fazia; que estávamos, afinal, perante uma operação de cosmética. Quanto às provações que
Pound sofreu em St. Elizabeths, não tinham, aos olhos de um russo, nada de especial e, fosse
como fosse, sempre eram melhores do que os nove gramas de

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chumbo que as suas emissões de rádio em tempo de guerra talvez lhe tivessem valido noutras
paragens. Os Cantos também não me entusiasmaram; o erro fundamental era um erro antigo:
a busca da beleza. Para alguém com um tão longo passado de residência em Itália, era de
estranhar que ele não tivesse percebido que a beleza não pode ser tomada como um alvo, que
ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas. O mais justo,
pensava eu, seria publicar os seus poemas e os seus discursos num só volume, sem qualquer
prefácio erudito, e ver o que aconteceria. Um poeta deveria saber, melhor do que ninguém,
que o tempo não conhece a distância entre Rapallo e a Lituânia. Pensava também que é mais
viril quem reconhece ter dado cabo da vida do que quem teima na atitude do génio
perseguido, erguendo o braço numa saudação fascista ao regressar a Itália, para depois negar
a relevância do gesto, dando entrevistas reticentes, cultivando, de capa e bengala, uma
aparência de sábio, mas mais fazendo lembrar, afinal, um Hailé Selassié. Alguns amigos meus
ainda o tinham em grande conta, e eu preparava-me agora para conhecer a sua cara-metade.

A morada indicada ficava no sestiere Salute, tanto quanto eu sabia a zona da cidade com maior
percentagem de estrangeiros, em particular ingleses. Após algumas hesitações, encontrámos o
sítio - não muito longe, afinal, da casa onde Régnier morara na adolescência do século.
Tocámos à campainha, e a primeira coisa que vi, depois de a mulherzinha de olhos como
pequenas contas tomar forma na soleira, foi o busto do poeta, obra de Gaudier-Brzeska,
poisado no chão da sala. A ofensiva do tédio foi repentina mas irresistível.

Serviram-nos um chá, mas ainda mal tínhamos sorvido o primeiro gole, já a anfitriã - uma
senhora grisalha, diminuta,

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bem-posta, já com muitos anos em cima - ergueu o dedo afilado, que se encaixou numa
invisível espira mental, e brotou-lhe dos lábios franzidos uma ária cuja partitura é do domínio
público pelo menos desde 1945. Que Ezra não era fascista; que receavam que os Americanos
(estranha declaração, na boca de uma americana) o mandassem para a cadeira eléctrica; que
ele não sabia nada do que se passava; que não havia alemães em Rapallo; que ele só se
deslocava de Rapallo a Roma duas vezes por mês, para o programa de rádio; que os
Americanos, uma vez mais, estavam enganados quando pensaram que Ezra pretendia. .. A
dada altura deixei de registar o que ela estava a dizer

- não sendo o inglês a minha língua materna, é-me muito fácil fazê-lo - e limitei-me a acenar
com a cabeça nas pausas, ou sempre que ela pontuava o seu monólogo com um «Capito?» que
era quase um tique. Um disco, pensei; a voz do dono. Vê se és bem educado, não interrompas
a senhora; é conversa fiada, mas ela acredita. Penso que há algo em mim que respeita sempre
o lado físico da fala humana, independentemente do conteúdo; o próprio movimento dos
lábios é mais importante do que aquilo que os faz moverem-se. Afundei-me mais na poltrona e
tentei concentrar-me nas bolachas, já que não havia jantar.

O que me despertou do meu alheamento foi o som da voz de Susan, indicando que o disco
chegara ao fim. Havia no seu timbre uma sonoridade estranha, e pus-me à escuta. Susan dizia:
«Mas a Olga não pensa com certeza que os Americanos se zangaram com Ezra por causa dos
programas de rádio. Porque, se fossem só os programas, o Ezra seria apenas mais uma Rosa de
Tóquio.» Pois bem, foi das melhores réplicas que alguma vez me foi dado ouvir. Olhei para
Olga. Devo dizer que ela encaixou como uma valente. Ou, melhor ainda, como uma
profissional. Ou não terá percebido bem o que Susan disse - mas

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duvido. «Então o que foi?», perguntou. «Foi o anti-semitismo de Ezra», respondeu Susan, e eu
vi a agulha de corindo que era o dedo da velha senhora encaixar de novo na espira. Esta face
do disco rezava: «As pessoas têm que entender que o Ezra não era anti-semita; afinal de
contas, chamava-se Ezra; tinha vários amigos judeus, incluindo um almirante veneziano...» A
melodia era igualmente conhecida e igualmente longa - cerca de três quartos de hora; mas
desta vez era tempo de partirmos. Agradecemos o serão à velha senhora e despedimo-mos.
Pela minha parte, não senti a tristeza que geralmente se sente ao deixar a casa de uma viúva -
como, de resto, ao deixar seja quem for sozinho num lugar vazio. A velha senhora estava em
forma, vivia com razoável desafogo; além disso, tinha o reconforto das suas convicções - um
reconforto que faria com certeza o possível e o impossível por defender. Eu nunca conhecera,
creio, um fascista - nem velho nem novo; já lidara, porém, com um número considerável de
velhos membros do PC, e foi por isso que o chá em casa de Olga Rudge, com aquele busto de
Ezra no meio do chão, me acendeu no espírito, por assim dizer, uma luz. Virámos à esquerda
ao sair do edifício, e dois minutos depois demos por nós na Fondamenta degli Incurabili.

Ah, o bom velho poder de sugestão da linguagem! Ah, esta legendária capacidade das palavras
para evocarem mais coisas do que a realidade tem para dar! Ah, a ferramenta e matéria-prima
do ofício! O «Cais dos Incuráveis» remonta, evidentemente, ao tempo das pestes, das
epidemias que varriam meia cidade, século após século, com a regularidade de um agente
recenseador. O nome evoca os casos perdidos, espalhados pelas
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lajes de pedra, já sem forças sequer para caminhar, literalmente moribundos, à espera da
carroça - ou melhor, do barco - que os levaria dali. Archotes, fumigações, máscaras de gaze
para prevenir a contaminação, o ruge-ruge das sotainas e dos hábitos de monge, capas negras
esvoaçantes, velas. O cortejo fúnebre converte-se a pouco e pouco num corso carnavalesco,
ou mesmo num baile, onde a máscara seria indispensável, já que nesta cidade toda a gente
conhece toda a gente. Acrescentem-se a isto os poetas e compositores tuberculosos;
acrescentem-se a isto os mentecaptos convictos e os estetas perdidamente enamorados deste
lugar - e talvez o dique ganhe direito ao seu nome, talvez a realidade consiga agarrar a
linguagem. E acrescente-se ainda que a interacção entre peste e literatura (em particular a
poesia, e muito especialmente a poesia italiana) foi desde sempre muito complexa. Que a
descida de Dante aos infernos deve tanto às de Homero e Virgílio - cenas afinal episódicas da
Ilíada e da Eneida - como à literatura medieval bizantina sobre a cólera, com a sua tradicional
crença no enterro prematuro e na subsequente peregrinação da alma. Os mais zelosos agentes
do mundo infernal, afadigando-se em redor da cidade assolada pela cólera, tomavam muitas
vezes por vítima um corpo gravemente desidratado, colando os lábios às suas narinas,
sorvendo-lhe o espírito da vida e assim o proclamando morto e pronto a enterrar. Uma vez lá
em baixo, o indivíduo atravessava uma infinidade de salas e corredores, queixando-se de ter
sido injustamente lançado no reino dos mortos e pedindo desagravo. Quando o obtinha -
comparecendo, geralmente, perante um tribunal presidido por Hipócrates regressava cheio de
histórias sobre aqueles com quem se cruzara nos corredores e salas lá de baixo: reis, rainhas,
heróis, mortais famosos ou infames do seu tempo, arrependidos, resig-

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nados, rebeldes. Soa-vos a coisa conhecida? Pois bem, são os poderes de sugestão do nosso
ofício. Nunca sabemos o que engendra o quê: se a experiência gera linguagem, ou a linguagem
experiência. Ambas são capazes de engendrar muita coisa. Quando estamos gravemente
doentes, imaginamos todo o tipo de consequências e desenvolvimentos que, tanto quanto
sabemos, não ocorrerão nunca. Tratar-se-á de pensamento metafórico? A resposta, a meu ver,
é sim. Com a ressalva de que quando estamos doentes esperamos, mesmo contra toda a
esperança, uma cura, uma remissão da doença. O fim da doença é, deste modo, o fim das suas
metáforas. Uma metáfora - ou, em termos mais latos, a própria linguagem - é de um modo
geral aberta, tendente para o conúnuum: para uma vida depois da morte, se quiserem. Por
outras palavras (perdoem-me o trocadilho), a metáfora é incurável. Acrescente-se depois a
tudo isto a nossa própria pessoa, portadora deste ofício, ou deste vírus - de um par deles, aliás,
a aguçar-nos o apetite para um terceiro - arrastando os pés, numa noite ventosa, ao longo da
Fondamenta, cujo nome anuncia o prognóstico, não curando de saber a natureza do nosso
mal.

JL\. luz de Inverno nesta cidade! Ela tem a extraordinária capacidade de intensificar o poder de
resolução do nosso olho ao ponto da precisão microscópica - a pupila, em particular quando é
da variedade cinzenta ou mostarda-e-mel, humilha qualquer lente de Hasselblad e confere às
nossas ulteriores recordações uma nitidez digna da National Geographic Magazine. O céu é de
um azul vivo; o sol, fugindo da sua cópia dourada aos pés de San Giorgio, requebra-se por
sobre as inúme-

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ras escamas de peixe das ondulações marulhantes da laguna; atrás de nós, sob a colunata do
Palazzo Ducale, um pequeno grupo de indivíduos atarracados, de casaco de peles, percorre
velozmente os acordes da Kleine Nachtmusik, só para nós, reclinados na nossa cadeira branca,
a espreitar os estonteantes gambitos dos pombos no tabuleiro de xadrez do vasto campo. O
café-expresso no fundo da xícara é, ou pelo menos assim nos parece, a única mancha negra
num raio de milhas. Tais são aqui os meios-dias. De manhã a luz encosta-se à nossa janela e,
depois de nos abrir os olhos como quem abrisse conchas, corre à nossa frente, dedilhando
com os seus longos raios - qual rapazinho apressado a percorrer com um pau as grades de
ferro de um parque ou jardim - o perfil de arcadas, colunatas, chaminés de tijolo vermelho,
santos, leões. E ordena-nos: «Pinta! Pinta!», quer tomando-nos por Canalettos, Carpaccios ou
Guardis, quer desconfiada dos poderes da nossa retina para registar o que nos oferece, não
falando já da capacidade do nosso cérebro para o absorver. Talvez última hipótese explique a
primeira. Talvez sejam sinónimas. Talvez a arte seja simplesmente a reacção de um organismo
às limitações do seu poder de retenção. Seja como for, obedecermos à injunção, pegando na
máquina fotográfica e assim suprindo as falhas, quer das nossas células cerebrais quer da
nossa pupila. Se o dinheiro alguma vez faltar a esta cidade, a melhor solução será pedir auxílio
à Kodak - ou então sobrecarregar ferozmente de impostos os produtos da firma. Pelas mesmas
razões, enquanto este lugar existir, enquanto pairar sobre ele esta luz de Inverno, as acções da
Kodak serão o melhor dos investimentos.
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Ao pôr do sol todas as cidades são maravilhosas, mas algumas são-no mais do que outras. Os
relevos fazem-se mais brandos, as colunas mais redondas, os capitéis mais encaracolados, as
cornijas mais resolutas, as flechas das torres mais nítidas, os nichos mais fundos, os discípulos
mais bem togados, mais aéreos os anjos. Escurece nas ruas, mas continua a ser dia na
Fondamenta e nesse gigantesco espelho líquido onde os barcos a motor, os vaporetti, as
gôndolas, os batéis e as barcaças «como sapatos velhos em desordem» pisam diligentemente
fachadas góticas e barrocas, não poupando também o nosso reflexo nem o da nuvem que
passa. «Pinta», segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um
hospital ou chegando ao destino, o paraíso dofrontone de San Zaccaria, depois da sua longa
travessia através do cosmos. E sentimos a fadiga dessa luz, que fica ainda a repousar, durante
pouco mais de uma hora, nas conchas de mármore de San Zaccaria, enquanto a Terra oferece
a sua outra face à luminária. Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. Não traz consigo
calor nem energia, tendo-os deixado pelo caminho algures no universo, ou nos cúmulos mais
próximos. A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno,
torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou
Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde
veio a luz. Um objecto é, afinal, aquilo que torna íntimo o infinito.

l -4 o objecto pode ser um pequeno monstro, com cabeça de leão e corpo de golfinho. O
segundo enovela-se, o primeiro

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range os colmilhos. Pode adornar uma entrada ou simplesmente irromper de uma parede sem
qualquer propósito visível, despropósito que o tornaria estranhamente familiar. Em certos
ramos de actividade, e quando chegamos a uma certa idade, nada é mais familiar do que a
ausência de propósito. O mesmo se aplica à fusão de duas ou mais feições ou propriedades,
para já não falar dos géneros. No seu conjunto, todas estas criaturas de pesadelo - dragões,
gárgulas, basiliscos, esfinges com seios de mulher, leões alados, Cérberos, Minotauros,
centauros, quimeras - que nos chegam da mitologia (a qual mereceria, por direito próprio, o
estatuto de surrealismo clássico) são auto-retratos nossos, no sentido em que denotam a
memória genética que a espécie tem da evolução. Não admira que abundem aqui, nesta
cidade emersa das águas. Uma vez mais, nada têm de freudiano, nada de sub ou de
inconsciente. Dada a natureza da realidade humana, a interpretação dos sonhos é uma
tautologia que, na melhor das hipóteses, só a proporção relativa de luz e trevas poderia
justificar. É duvidoso, porém, que este princípio democrático vigore na natureza, onde nada
tem maioria. Nem sequer a água, embora reflicta e refracte tudo, até mesmo a si própria,
alterando formas e substâncias, umas vezes benigna, outras monstruosamente. Assim se
explica a natureza da luz nesta cidade; assim se justifica o seu amor pelos pequenos monstros,
bem como pelos querubins. É de presumir que os querubins também façam parte da evolução
da espécie. Ou então será o inverso, pois se recenseássemos os querubins desta cidade, talvez
concluíssemos que o seu número excede o dos habitantes.

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os monstros, porém, prendem-nos mais a atenção. Quanto mais não seja, porque a palavra
nos é arremessada ao rosto mais vezes do que a outra; quanto mais não seja, porque neste
mundo só na força aérea é que se ganham asas. A nossa consciência pesada bastaria para que
nos identificássemos com qualquer uma destas invenções de mármore, bronze ou estuque
mais com o dragão, para não irmos mais longe, do que com San Giorgio. No ramo de
actividade que passa por se molhar o aparo no tinteiro, podemos identificar-nos com ambos.
Afinal de contas, não há santo sem o seu monstro - para já não falar das afinidades octópodes
da tinta. Mas mesmo sem reflectirmos nesta ideia, sem a refractarmos, é evidente que esta é
uma cidade de peixes, peixes apanhados nas redes e peixes a nadar por aí. E, visto por um
peixe - provido, por hipótese, de olhos humanos, para evitar a famosa distorção dos seus - o
homem surgiria sem dúvida como um monstro; não um octópode, talvez, mas seguramente
um quadrópode. Algo, no mínimo, bem mais complexo do que o próprio peixe. Não admira,
por isso, que os tubarões nos persigam tanto. Se perguntássemos a uma simples orata -
mesmo uma orata ainda por pescar, em liberdade - o que acha da nossa aparência, responder-
nos-ia: és um monstro. E a convicção da sua voz soar-nos-ia aos ouvidos estranhamente
familiar, como se os seus olhos fossem da variedade cor de mel-e-mostarda.

Por isso nunca sabemos, ao caminhar por estes labirintos, se perseguimos um fito ou fugimos
de nós próprios, se somos o
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caçador ou a sua presa. Santos não seremos, seguramente, mas talvez também não dragões de
corpo inteiro; estamos longe de ser Teseu, mas igualmente longe do Minotauro devorador de
donzelas. A versão grega é, porém, mais certeira, pois - sendo parentes o matador e o morto -
o vencedor não ganha a partida. O monstro era, afinal, meio-irmão do trofeu; era, pelo menos,
meio-irmão da ulterior esposa do herói. Ariana e Fedra eram irmãs e, tanto quanto sabemos, o
valoroso ateniense teve-as a ambas. Planeando aliar-se pelo casamento à família do rei
cretense, ele poderia, aliás, ter aceitado a mortífera missão para dar mais respeitabilidade à
família. Como netas de Hélio, as donzelas deveriam ser puras e resplandecentes; os seus
nomes sugeriam isso mesmo. Se até a mãe, Pasífae, era, apesar de todos os seus sombrios
ímpetos, Ofuscantemente Luminosa! E quem sabe se ela não cedeu a esses ímpetos sombrios,
fornicando com o touro, cujos cornos evocam a Lua, precisamente para provar que a natureza
não obedece ao princípio maioritário? Quem sabe se, mais interessada no claro-escuro do que
na bestialidade, não ofuscou o touro por motivos puramente ópticos ? E o facto de o touro,
cuja linhagem carregada de simbolismo remonta às longínquas pinturas rupestres, ter ficado
cego ao ponto de tomar nessa ocasião por Pasífae a vaca artificial que Dédalo construíra, é a
prova de que a ascendência dela domina ainda o sistema da causalidade, de que a luz de Hélio,
refractada nela, Pasífae, continua a ser -^mesmo após quatro filhos (duas belas filhas e dois
rapazes sem préstírric») - ofuscantemente luminosa. Quanto ao princípio de causalidade,
devemos acrescentar que o grande herói desta história é justamente Dédalo, que, além de
uma vaca muito convincente, construiu - desta vez a pedido do rei - o próprio labirinto onde o
rebento com cabeça de touro e o seu matador um dia se defrontaram, com conse-

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quências desastrosas para o primeiro. Todo este caso é, em certo sentido, filho do cérebro de
Dédalo, e em particular o labirinto, pois se assemelha a um cérebro. Somos todos, em certo
sentido, parentes uns dos outros - o perseguidor, pelo menos, é-o do perseguido. Não admira,
portanto, que as nossas deambulações pelas ruas desta cidade, cuja maior colónia foi durante
quase três séculos a ilha de Creta, pareçam um tanto ou quanto tautológicas, em particular
quando a luz se esvai - em particular, isto é, quando os seus atributos pasifaicos, ariânicos e
fédricos se dissipam. Por outras palavras, em particular ao cair da noite, quando perdemos o
domínio sobre nós próprios.

Do lado luminoso temos, evidentemente, uma quantidade de leões: quer os alados, com os
seus livros abertos na saudação «A paz seja contigo, S. Marcos Evangelista», quer os de vulgar
aparência felina. Os alados, em rigor, também pertencem à categoria dos monstros. Dada a
minha ocupação, todavia, sempre os considerei como uma fornia mais ágil e letrada de
Pégaso, que voa, é certo, mas cujas capacidades para a leitura são bastante mais duvidosas.
Uma pata, pelo menos, é melhor instrumento para virar a página do que um casco. Nesta
cidade os leões têm o dom da ubiquidade, e com o passar dos anos adoptei sem dar por isso
este totem ao ponto de o colocar na capa de um dos meus livros: em matéria de fachadas, é o
melhor que um homem do meu ofício pode arranjar. E todavia são monstros, quanto mais não
seja por serem produto da fantasia da cidade, já que mesmo no zénite do seu poder marítimo
esta república não controlava qualquer território onde semelhante animal existisse, mesmo na
sua forma sem asas. (Os Gregos mostraram-

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-se mais terra-a-terra com o seu touro, pese embora a linhagem neolítica da criatura.) Quanto
ao Evangelista propriamente dito, morreu, como é sabido, em Alexandria, no Egipto - mas de
causas naturais - e nunca participou num safari. De um modo geral, o trato da cristandade com
os leões é insignificante, já que estes não existiam nos seus domínios, vivendo apenas em
África, e ainda por cima nos desertos. O que contribuiu, naturalmente, para a sua ulterior
associação aos padres do deserto; longe dessas paragens, os cristãos só poderão ter
encontrado o animal ao servir-lhe de repasto nos circos romanos, que importavam leões da
costa de África para os espectáculos. O seu exotismo - melhor dizendo, a sua inexistência - terá
sido o que despertou a fantasia dos antigos, levando-os a atribuir ao animal diversos aspectos
do foro do sobrenatural, incluindo os do comércio divino. Por isso não é totalmente absurdo
ver este bicho instalado nas fachadas venezianas, no papel improvável de guardião do eterno
repouso de S. Marcos; a própria cidade, se não a Igreja, pode ser vista como uma leoa a
proteger a cria. Além disso, nesta cidade, Igreja e Estado confundiram-se num só, de forma
perfeitamente bizantina. Foi o único caso, devo dizer, em que semelhante fusão se revelou -
desde bastante cedo - vantajosa para os súbditos. Não admira, pois, que em matéria de
celebridade Veneza tenha guardado para si, literalmente, a parte de leão, que o próprio leão
tenha tido a sua parte de leão, isto é, tenha sido humanizado. Em cada cornija, encimando
quase cada porta de entrada, vemos ou o seu focinho, com uma expressão humana, ou uma
cabeça humana com feições leoninas. Ambos, em última análise, pertencem à categoria dos
monstros (embora da variedade benevolente), já que nunca existiram. E também devido à sua
superioridade numérica relativamente a qualquer outra imagem gravada ou escul-

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pida, incluindo a da Madonna e a do próprio Salvador. Por outro lado, é mais fácil esculpir um
animal do que uma figura humana. Na generalidade, o reino animal teve fraca expressão na
arte cristã - para já não falar da doutrina. Por isso o bando veneziano de Felidae pode
considerar-se como a desforra do seu reino. No Inverno, os leões alumiam os nossos
crepúsculos.

Certo dia, por um crepúsculo que ensombrava as pupilas cinzentas mas cobria de oiro as da
variedade mostarda-com-mel, a proprietária destes últimos e eu próprio fomos encontrar um
navio de guerra egípcio - um pequeno cruzador, para ser mais preciso - fundeado na
Fondamenta delFArsenale, próximo do Giardini. Não me recordo agora do seu nome, mas o
seu porto de origem era seguramente Alexandria. Era um exemplar ultra-moderno de
equipamento naval, eriçado de toda a casta de antenas, radares, parabólicas, lança-mísseis,
torres antiaéreas, etc., além dos habituais canhões de grande calibre. De longe não se
conseguia adivinhar a nacionalidade do navio. Mesmo de perto podiam subsistir algumas
dúvidas, porque a farda e o porte da tripulação tinham uma aparência vagamente britânica. A
bandeira já fora arriada, e o bordéus do céu sobre a laguna transmutava-se em pórfiro negro.
Enquanto nos interrogávamos acerca da missão que aqui trouxera este vaso de guerra - uma
reparação urgente? o renovar do namoro entre Veneza e Alexandria? a recuperação da santa
relíquia roubada pela primeira à segunda no século XII? - os seus altifalantes despertaram de
repente e ouvimos: «Allah! Akbar Allah! Akbar!» O muezzin chamava os tripulantes à oração
da noite, convertidos por instantes em minaretes os dois mastros do

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navio. E o cruzador surgiu, acto contínuo, como uma Istambul de perfil. Senti que o mapa se
dobrara inopinadamente, ou que o livro da História se fechara ante os meus olhos. Tornara-se,
pelo menos, seis séculos mais curto: a cristandade já não era a irmã mais velha do Islão. O
Bósforo fundia-se com o Adriático, sem que pudessem distinguir-se as ondas de um e do
outro. Um chamamento distante da arquitectura.

Nas noites de Inverno, o mar, empurrado por um vento adverso de Leste, enche os canais
todos até acima, como banheiras, e às vezes extravasa. Ninguém sobe a correr do rés-do-chão
a gritar «Ai as canalizações!», porque aqui não há rés-do-chão. A cidade fica com água pelos
tornozelos, e os barcos, «acorrentados às paredes como animais», para citar Cassiodoro,
balouçam. Os sapatos do peregrino, tendo provado a água, estão a secar sobre o radiador do
seu quarto de hotel; o indígena mergulha no armário para pescar o seu par de botas de
borracha. «Acqua alta», diz uma voz na rádio, e a circulação humana esmorece. Ruas vazias;
lojas, bares, restaurantes e trattorias fechados. Só os letreiros continuam a brilhar,
habilitando-se enfim à sua quota-parte de narcisismo quando a calçada fica, fugazmente,
superficialmente, ao mesmo nível que os canais. As igrejas, porém, continuam abertas -
caminhar sobre as águas não é, aliás, novidade para o clero nem para os paroquianos; nem
para a música, gémea da água.

Há dezassete anos, chapinhando sem rumo por campo após campo, um par de botas verdes de
borracha conduziu-me ao limiar de um pequeno edifício cor-de-rosa. Vi na parede uma placa
dizendo que António Vivaldi, nascido prematuro, fora

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baptizado naquela igreja. Nesse tempo o meu cabelo ainda era predominantemente ruivo, de
um ruivo avermelhado; e comoveu-me deparar com o local de baptismo desse «clérigo
vermelho» que tanta alegria me tem dado, nas mais diversas circunstâncias e nas mais
remotas partidas do mundo. Se me não falhava a memória, fora Olga Rudge quem organizara a
primeiríssima settimana Vivaldi realizada nesta cidade - por coincidência, alguns dias apenas
antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Contara-me alguém que o evento tivera lugar no
palazzo da Condessa de Polignac, e que Miss Rudge tocara violino. Enquanto interpretava a
peça, reparou, espreitando pelo canto do olho, que um cavalheiro entrara no salone e ficara à
porta, pois todos os lugares estavam ocupados. A peça era longa, e ela começou a ficar um
tanto ou quanto inquieta, pois aproximava-se uma passagem em que teria de virar a página
sem interromper a execução. O homem avistado pelo canto do..olho mudou de sítio e em
breve desapareceu do seu campo de visão. A passagem estava cada vez mais próxima, e ela
cada vez mais nervosa. Então, no preciso instante em que teria que virar a página, uma mão
surgiu do seu lado esquerdo, avançou para a estante de música, e virou lentamente a folha. Ela
continuou a tocar e, quando a passagem difícil terminou, ergueu os olhos num agradecimento
mudo. «E foi assim», contou Olga Rudge a uma amiga minha, «que conheci Stravinsky».

Pode-se, portanto, entrar e assistir ao serviço. Os cânticos chegar-nos-ão um pouco abafados,


presumivelmente devido às condições atmosféricas. Se esta desculpa nos satisfaz, também
satisfará por certo o seu Destinatário. De qualquer maneira, não

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conseguimos acompanhá-los muito bem, quer sejam em italiano quer em latim. Por isso
ficamos de pé ou escolhemos um banco ao fundo da nave, e escutamos. «A melhor maneira de
ouvir a missa», dizia Wystan Auden, «é sem conhecer a língua». E é verdade que a ignorância
nos ajuda a concentrarmo-nos na cerimónia, tal como a débil luz que persegue o peregrino em
todas as igrejas italianas, especialmente no Inverno. Não é bonito deitar moedas na caixinha
da iluminação enquanto decorre o serviço religioso. Para mais, muitas vezes não temos no
bolso moedas que cheguem para apreciarmos plenamente o cenário. Em tempos que já lá vão,
trazia comigo uma potente lanterna, dessas que a Polícia de Nova Iorque distribui aos seus
agentes. Uma forma de enriquecer, pensei, seria começar a fabricar minúsculas lâmpadas de
magnésio como as que se utilizam nas máquinas fotográficas, mas de grande duração. Chamar-
lhes-ia «Clarão Duradouro» ou, melhor ainda, «Fiat Lux», e daí a um par de anos compraria um
apartamento algures no San Lio ou no Salute. Até casaria com a secretária do meu sócio,
secretária que ele não tem, uma vez que não existe... A música esvai-se; a sua gémea, porém,
subiu, como descobrimos ao sair

- não muito, mas o suficiente pára que nos sintamos compensados pelo coral esmaecido.
Porque também a água é coral, mais do que se possa pensar. É a mesma água que transportou
os cruzados, os mercadores, as relíquias de S. Marcos, os turcos, todo o género de barcos de
carga, de tropas ou de recreio; acima de tudo, esta água reflectiu todos quantos viveram, para
já não falar dos que apenas estiveram de passagem, nesta cidade, todos quantos alguma vez
caminharam ou patinharam nas suas ruas como agora fazemos. Não admira que durante o dia
seja de um verde lodoso e negra como breu à noite, rivalizando com o firmamento. Só por
milagre é que, esfregada ao correr da trama e

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a contrapelo durante mais de um milénio, ainda não tem buracos, continua a ser Ha O, embora
não possamos bebê-la; e ainda sobe. Parece de facto o papel de música, carcomido nas
margens, de uma peça constantemente a ser tocada, chegando-nos em partituras de marés,
em compassos de canais pontuados pelos inúmeros obbligati das pontes, das janelas com seus
painéis, ou dos remates curvos das catedrais de Coducci, para já não falar do pescoço de
violino das gôndolas. De facto, a cidade inteira, em particular de noite, faz lembrar uma
gigantesca orquestra, com as estantes de música debilmente iluminadas dos palazzi, com um
coro agitado de ondas, com o falsete de uma estrela no céu de Inverno. A música transcende,
como é óbvio, os que a executam, e não há mão que saiba virar a página.

É
• -j isso que aflige a orquestra ou, mais precisamente, os maestros, os pais da cidade. Segundo
os seus cálculos, esta cidade, só no nosso século, afundou-se vinte e três centímetros. Por isso
o que parece espectacular ao turista é uma enorme dor de cabeça para o indígena. E, se fosse
só uma dor de cabeça, não seria mau. Mas a dor de cabeça é coroada por uma crescente
apreensão, para não dizer medo, de que esteja reservado a esta cidade o destino da Atlântida.
O medo não é infundado, e não se deve apenas ao facto de a cidade, pelo seu carácter único,
representar como que uma civilização à parte. O maior perigo parece provir das marés altas de
Inverno; o resto é obra da indústria e da agricultura da terra firme, que assoreia a laguna com
os seus dejectos químicos, e da degradação dos canais obstruídos da própria cidade. No meu
ramo de actividade, porém, desde os românticos que o erro humano se apresenta como um

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culpado mais plausível, em caso de catástrofe, do que qualquer forza deL destino. (O facto de
os agentes de seguros conseguirem distinguir uma coisa da outra é uma verdadeira façanha da
imaginação.) Por isso, presa de impulsos tirânicos, eu instalaria uma espécie de comporta para
suster o mar da humanidade, que engrossou de dois milhões nas duas últimas décadas, e em
cujas vagas flutuam os seus detritos. Congelaria a indústria e a habitação numa área de vinte
milhas ao longo do litoral Norte da laguna, dragaria e desobstruiria os canais da cidade (quer
recorrendo à tropa para levar a cabo esta operação, quer pagando a dobrar às companhias
locais) e povoá-las-ia com peixes e com as bactérias apropriadas para os manterem limpos.

Não faço ideia de que peixes ou bactérias se trata, mas tenho quase a certeza de que existem:
a tirania raramente é sinónima da ciência. De qualquer maneira, telefonaria para a Suécia a
pedir conselho à Câmara de Estocolmo: nessa cidade, com toda a sua indústria e população,
assim que saímos do hotel os salmões saltam da água a cumprimentar-nos. Se o segredo
estiver na diferença de temperatura, poder-se-á tentar despejar blocos de gelo nos canais ou,
caso essa ideia não resulte, esvaziar regularmente de cubos de gelo os frigoríficos dos
indígenas, já que o uísque não goza aqui de grande voga, nem mesmo no Inverno.

«Nesse caso, porque é que lá vai nessa altura do ano?», perguntou-me certa vez o meu editor,
sentado à mesa de um restaurante chinês de Nova Iorque com um grupo de protegidos
homossexuais e ingleses. «Sim, porquê?», repetiram estes, fazendo eco ao seu potencial
benfeitor. «Como é Veneza no Inverno?» Ainda pensei em lhes falar da acqua alta; dos vários
matizes de cinzento na janela junto à mesa do hotel onde tomamos o pequeno-almoço,
rodeados de silêncio e da pálida neblina matinal dos rostos dos recém-casados; dos pombos
que

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acentuam cada curva e cornija do barroco veneziano, na sua afinidade dormente com a
arquitectura; de um monumento solitário a Francesco Querini e aos seus dois cães-esquimós,
esculpido em pedra da ístria semelhante, creio eu, na cor, às derradeiras coisas que ele viu,
moribundo, na sua aziaga viagem ao Pólo Norte, escutando agora o sussurro dos abetos do
Giardini na companhia de Wagner e Carducci; de um valente pardal empoleirado na lâmina
oscilante de uma gôndola, tendo por pano de fundo um infinito saturado de água, turvado
pelo sirocco. Não, pensei, olhando para os seus rostos frouxos mas ávidos; não, nada disto
serve. «Bem», disse, «é como a Greta Garbo a tomar banho».

A,

JL\^O longo destes anos, nas minhas estadias longas ou breves passagens por aqui, fui, creio
eu, ora feliz ora infeliz, em proporções quase iguais. Tanto fazia, aliás, quanto mais não fosse
porque eu não vinha com intuitos românticos mas para trabalhar, para terminar um artigo,
para traduzir, para escrever dois ou três poemas, se tivesse essa sorte; para ser, simplesmente.
Isto é, nem para uma lua-de-mel (o mais perto que estive disso foi há muitos anos, na ilha de
Ischia, ou então em Siena) nem para um divórcio. Trabalhava, portanto. A felicidade ou a
infelicidade vinham apenas por acréscimo, embora às vezes prolongassem a sua estadia para
além da minha, como se resolvessem escoltar-me. Convenci-me há muito da virtude que é não
nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos
entreter, não falando já do vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade.
Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hip-

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notizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me


preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa
pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia
garrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir
buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos
Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aguarela, e depois virei à
direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um
perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do
hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos
semicerrados, senti de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se
alguém me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi
uma felicidade animal, absoluta. Doze horas mais tarde, ao aterrar em Nova Iorque, deparei, é
claro, com o pior sarilho da minha vida - ou o que nessa altura me pareceu sê-lo. Porém o gato,
dentro de mim, resistia ainda; se não fosse esse gato, estaria agora a trepar pelas paredes
nalgum manicómio de luxo.

JLJ^ noite, não há muito que fazer aqui. A ópera e os recitais nas igrejas são, como é óbvio,
uma opção, mas exigem uma certa dose de iniciativa e preparação: bilhetes, horários e tudo o
mais. Não tenho jeito para essas coisas; é como cozinharmos, só para nós, uma refeição de
três pratos - ou talvez mais solitário ainda. Além disso, com a minha pouca sorte, de todas as
vezes que me predispunha para um serão no La Fenice, depa-

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rava com uma semana inteira de Tchaikovsky ou Wagner compositores a que sou igualmente
alérgico. Nem uma só vez Donizetti ou Mozart! Restam a leitura e a monotonia das
caminhadas, que são, no fundo, quase a mesma coisa, já que à noite estas estreitas vielas
empedradas são como passagens entre as estantes de uma imensa biblioteca esquecida, e
igualmente silenciosas. Todos os «livros» estão bem fechados, e só adivinhamos do que tratam
pelos nomes nas lombadas, abaixo da campainha. Aí sim, encontramos os nossos Donizettis e
Rossinis, os nossos Lullys e Frescobaldis! Talvez até um Mozart, talvez até um Haydn. Ou então
estas ruas são como guarda-fatos: as roupas são todas de tecido escuro, carcomido, mas com
forros de rubi e oiro rebrilhante. Goethe chamou a este local a «república dos castores», mas
talvez Montesquieu, com o seu terminante «un endroit ou U devrait n’avoir que dês
poissons», tenha sido mais certeiro. Porque, de ora em ora, na outra margem do canal, duas
ou três janelas bem iluminadas, altas, em arco, meio veladas de gaze ou tule, revelam um
candelabro octópode, a barbatana laçada de um belo piano, reflexos de um bronze opulento
emoldurando telas acobreadas ou rubescentes, a caixa torácica dourada dos barrotes de um
tecto - e sentimo-nos como se observássemos um peixe através das escamas, e dentro dele
houvesse uma festa.

De longe - com um canal de permeio - mal distinguimos os convivas da anfitriã. Com o devido
respeito pelo melhor dos credos ao nosso dispor, não me parece, devo dizê-lo, que este lugar
tenha evoluído apenas a partir dos famosos cordados, triunfantes ou não. Desconfio e sugiro
que terá nascido, antes de mais, do próprio elemento que deu a esses cordados vida e abrigo e
que, pelo menos para mim, é sinónimo do tempo. O elemento apresenta-se sob muitas formas
e matizes, com muitos

70

e diversos atributos além dos de Afrodite e do Redentor: calmaria, tempestade, vaga


encapelada, onda, espuma, ondulação, etc., para já não falar dos organismos marinhos. No
meu espírito, esta cidade ilustra todas as configurações conhecidas do elemento e do seu
conteúdo. Transbordante, cintilante, reluzente, faiscante, o elemento arremessa há tanto
tempo para o alto a sua substância que não é de admirar que alguns destes aspectos tenham
acabado por adquirir massa, carne, passando ao estado sólido. Por que razão terá isso
acontecido aqui, não faço ideia. Presumivelmente por ter sido aqui que o elemento ouviu falar
italiano.

^_^-’ olho é o mais autónomo dos nossos órgãos. É-o porque os objectos da sua atenção se
situam inevitavelmente no exterior. Salvo num espelho, o olho nunca se vê a si próprio. É o
último a fechar-se quando o corpo adormece. Permanece aberto quando o corpo está
paralisado ou morto. O olho continua a registar a realidade em todas as circunstâncias, mesmo
quando não há razão aparente para o fazer. Porquê?, perguntar-se-á. E a resposta é: porque o
meio circundante é hostil. A vista é o instrumento da adaptação a um meio que permanece
hostil, por muito bem que a ele nos adaptemos. A hostilidade do meio ambiente cresce
proporcionalmente à duração da nossa presença nele, e não me refiro apenas à velhice. Em
suma, o olho procura a segurança. Assim se explica a predilecção dos olhos pela arte em geral
e pela arte veneziana em particular. Assim se explica a apetência dos olhos pela beleza, bem
como a própria existência da beleza. Porque, sendo segurança, a beleza é refrigério. Não nos
ameaça de morte nem nos agonia. Uma estátua

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de Apoio não morde, como não morde o caniche de Carpaccio. Quando os olhos não
encontram beleza - que é como quem diz, refrigério - ordenam ao corpo que a crie ou, à falta
de melhor, habituam-se a descortinar na fealdade virtude. No primeiro caso, confiam no génio
humano; no segundo, alimentam-se da nossa reserva de humildade. Esta última é mais
abundante e, como todas as maiorias, tende a impor as suas leis. Tomemos um exemplo, a
título de ilustração: uma jovem donzela. Chegados a-uma certa idade, miramos as donzelas
que passam sem termos por elas qualquer interesse de ordem prática, sem aspirarmos a
montá-las. Como uma televisão deixada acesa num apartamento abandonado, o olho continua
a transmitir imagens desses milagres de cinco pés e oito polegadas, a cuja perfeição não faltam
o cabelo castanho claro, o desenho oval do rosto, à Perugino, os olhos de gazela, o busto de
ama de leite, a cintura de vespa, os vestidos de veludo verde-escuro, e os tendões finos como
lâminas. O olho pode avistá-las na igreja, num casamento qualquer ou, pior ainda, na secção
de poesia de uma livraria. Dotado de excepcional acuidade, ou pedindo auxílio ao ouvido, o
olho pode descobrir a identidade (associada a nomes tão assombrosos como, por exemplo,
Arabella Ferri) e, para mal dos seus pecados, a desanimadora firmeza das ligações românticas
dessas donzelas. Indiferente à inutilidade de tais dados, o olho continua a recolhê-los. De
facto, quanto mais inúteis os dados, mais viva a atenção. Perguntar-se-á porquê, e a resposta
está em que a beleza é sempre exterior; é, além disso, a excepção à regra. São esses dois
aspectos - a sua localização e a sua singularidade - que fazem oscilar descompassadamente o
olho, ou - no linguajar da humildade militante - que o desencaminham. Porque a beleza é onde
o olho descansa. O sentido estético é gémeo do nosso instinto de auto-conservação,

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e é mais digno de confiança do que a ética. O principal instrumento da estética, o olho, é


absolutamente autónomo. Em matéria de autonomia, só as lágrimas lhe levam a palma.

AS lágrimas podem aqui ser derramadas em diversas circunstâncias. Partindo-se do princípio


de que a beleza é a distribuição da luz mais adequada à nossa retina, as lágrimas traduzem a
incapacidade da retina, bem como da própria lágrima, para reter a beleza. De um modo geral,
o amor chega à velocidade da luz; a separação, à velocidade do som. É a degradação da maior
na menor velocidade que nos humedece os olhos. Sendo nós finitos, uma partida deste lugar
parece-nos sempre definitiva; deixá-lo para trás é deixá-lo para sempre. Porque a partida é um
exílio dos olhos nas províncias dos outros sentidos; no melhor dos casos, nas fissuras e
abismos do cérebro. Porque o olho se identifica, não com o corpo a que pertence, mas com o
objecto da sua atenção. E, para o olho, por motivos puramente ópticos,” a partida não é o
corpo a deixar a cidade, mas a cidade a abandonar a pupila. Do mesmo modo, o
desaparecimento do ente amado, em particular se for gradual, causa sofrimento, seja quem
for que se mova, e quais os motivos peripatéticos porque o faça. Sendo as coisas o que são,
esta cidade é a menina dos nossos olhos. Depois dela, tudo nos desilude. A lágrima é uma
premonição do futuro do olho.

Como é óbvio, toda a gente tem projectos para ela, para esta cidade. Políticos e grandes
empresários em particular, pois nada

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tem mais futuro do que o dinheiro. Tanto assim é que o dinheiro se sente sinónimo do futuro e
procura comandá-lo. Daí a abundância dos vãos propósitos de retocar a cidade, de transformar
toda a província do Veneto numa porta aberta à Europa Central, de desenvolver a indústria da
região, ampliando o complexo portuário de Marghera, intensificando o tráfego de petroleiros
na laguna e aprofundando a laguna para esse mesmo fim, de converter o Arsenale veneziano,
imortalizado por Dante, num escarro à imagem de Beaubourg, destinado a albergar o produto
das mais recentes expectorações, de acolher aqui uma Exposição Internacional no ano 2000,
etc. Toda esta saliva sai geralmente das mesmas bocas, e muitas vezes nas mesmas frases, que
pairam sobre ecologia, protecção, restauro, património cultural, e sabe Deus que mais. O
objectivo disto tudo é um só: a violação. Nenhum violador quer, porém, considerar-se como
tal, e menos ainda ser apanhado. Daí a mistura de objectivos e metáforas, alta retórica e fervor
lírico que incham o largo peito de deputados e commendatore.

Porém, sendo embora estas personagens muito mais perigosas - mais nocivas, sem dúvida - do
que os Turcos, os Austríacos e Napoleão todos juntos, porque o dinheiro tem mais batalhões
do que generais, nos dezassete anos em que frequentei esta cidade muito pouca coisa aqui
mudou. O que salva Veneza, como Penélope, dos seus pretendentes, é a rivalidade entre eles,
a natureza competitiva do capitalismo resumida aos laços de sangue entre os barões da
finança e os diferentes partidos políticos. A democracia é perita em pôr cada qual a sabotar a
engrenagem do vizinho, e o jogo do eixo dos governos italianos revelou ser o melhor seguro da
cidade. Tal como o mosaico ou quebra-cabeças político da própria cidade. Já não há doges, e
os

80000 habitantes destas 118 ilhas guiam-se não pela grandeza


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de uma visão singular mas pelas suas inquietações imediatas e tantas vezes mesquinhas, pelo
seu desejo de equilibrar o orçamento.

A largueza de vistas seria aqui, porém, contraproducente. Numa cidade deste tamanho, vinte
ou trinta pessoas sem trabalho são logo uma dor de cabeça para a câmara, o que, não falando
já da desconfiança inata dos ilhéus em relação à terra firme, explica o fraco acolhimento que
merecem os projectos desta última, mesmo os mais assombrosos. Por muito sedutoras que
sejam noutras paragens, as promessas de pleno emprego e de crescimento não fazem grande
sentido numa cidade com menos de oito milhas de perímetro, e que mesmo no apogeu da sua
prosperidade marítima nunca excedeu as 200 000 almas. Tais perspectivas poderão
entusiasmar os comerciantes, ou talvez os médicos; os cangalheiros, porém, opor-se-iam, pois
os cemitérios já hoje estão cheios e os mortos terão a partir de agora que ser enterrados na
terra firme. Em última análise, a utilidade da terra firme é precisamente essa.

Ainda assim, se o cangalheiro e o médico pertencessem a partidos políticos diferentes, tudo se


resolveria, poderiam fazer-se alguns progressos. Mas nesta cidade pertencem muitas vezes ao
mesmo, e começam logo a surgir entraves, mesmo que o partido seja o PCI. Em suma, por trás
de todas estas querelas, involuntárias ou não, assoma a verdade elementar de que as ilhas não
crescem. É isso que o dinheiro, também conhecido por futuro, também conhecido por políticos
volúveis e barões da finança, não entende nem aceita. Pior: sente que este lugar o desafia, já
que a beleza, fait accompli por definição, desafia sempre o futuro, considerando-o como um
presente hipertrofiado e impotente, ou como o seu horizonte esmaecido. Se este lugar é a
realidade (ou, como afirmam alguns, o passado), então o

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futuro, com todos os seus nomes de empréstimo, está excluído dele. Quando muito, resume-
se ao presente. E talvez nada o demonstre melhor do que a arte moderna, profética apenas
pela sua pobreza. Os pobres falam sempre em nome do presente, e talvez a única função de
colecções como a de Peggy Guggenheim e de outras concreções semelhantes de obras deste
século, habitualmente aqui exibidas, seja mostrar como nos tornámos reles, arrogantes,
egoístas e unidimensionais, instilar-nos humildade: não é concebível outro desfecho nesta
cidade-Penélope, entretecendo de dia os seus motivos e desfazendo-os de noite, sem Ulisses à
vista. Só o mar.
julgo que foi Hazlitt quem disse que, superior a esta cidade de água, só mesmo uma cidade
construída no ar. Era uma ideia calvinesca, e quem sabe se, na esteira das viagens espaciais,
não virá ainda a ser posta em prática. Enquanto isso não acontece, talvez o melhor
testemunho deste século, a par do desembarque na Lua, seja o ter deixado intacta esta cidade,
o tê-la deixado em paz. Eu, pessoalmente, desaconselharia mesmo as intervenções mais
benignas. É certo que os festivais de cinema e as feiras do livro condizem com o tremular da
superfície dos canais, com os seus rabiscos floreados, atentamente lidos pelo sirocco. E é certo
que converter este lugar numa capital da investigação científica seria uma opção agradável,
especialmente se levarmos em conta as prováveis vantagens da dieta local, rica em fósforo,
para qualquer tipo de esforço mental. Poderia usar-se o mesmo isco para transferir de
Bruxelas para aqui o quartel-general da CEE, e de Estrasburgo o Parlamento Europeu. E é certo
que seria melhor solução ainda atribuir a esta cidade e a uma parte dos seus arre-

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dores o estatuto de reserva nacional. Eu diria, porém, que a ideia de converter Veneza num
museu é tão absurda como a ânsia de a revitalizar com sangue novo. Para começar, aquilo a
que se chama sangue novo não passa nunca, no fundo, de velha urina. E, em segundo lugar,
esta cidade não se presta a ser um museu, sendo ela própria uma obra de arte, a maior obra-
prima que a nossa espécie criou. Não se renova um quadro, e menos ainda uma estátua. Há
que deixá-los em paz, guardá-los dos vândalos

- de cujas hordas talvez nós próprios façamos parte.

As estações são metáforas dos continentes disponíveis, e o Inverno é sempre um pouco


antárctico, mesmo aqui. A cidade não recorre tanto ao carvão como outrora recorria; agora
impera o gás. As magníficas chaminés em forma de trombeta, semelhantes aos torreões
medievais que servem de pano de fundo a todas as Madonnas e Cristos na Cruz, vegetam e
desaparecem gradualmente do horizonte. O resultado é que trememos de frio e vamos para a
cama com as meias de lã calçadas, porque os radiadores, mesmo nos hotéis, cumprem os seus
ciclos erráticos. Só o álcool consegue absorver o raio polar que nos percorre o corpo quando
pomos o pé no chão de mármore, com ou sem chinelos, com sapatos ou sem eles. Quando
trabalhamos à noite queimamos pártenons de velas - não para criar ambiente nem pela
qualidade da luz, mas pelo calor ilusório que delas emana; ou então mudamo-nos para a
cozinha, acendemos o fogão a gás e fechamos a porta. Tudo irradia frio, em especial as
paredes. As janelas ainda são o menos, porque já se sabe o que esperar delas. Na verdade,
apenas deixam passar o frio, ao passo que as paredes o armazenam. Lembro-me de uma vez
ter

77

passado o mês de Janeiro no quinto andar de uma casa perto da igreja de Fava. A casa
pertencia, nem mais nem menos, a um descendente de Ugo Foscolo. O dono era engenheiro
silvicultor ou coisa que o valha e ausentara-se, naturalmente, por razões de serviço. O
apartamento não era muito grande: duas divisões, esparsamente mobiladas. O tecto, no
entanto, era extraordinariamente alto, e as janelas também. Estas eram em número de seis ou
sete, pois o apartamento ficava na esquina do prédio. A meio da segunda semana o
aquecimento deixou de funcionar. Desta vez eu não estava sozinho, e tirávamos à sorte, eu e a
minha companheira de armas, para saber quem dormiria do lado da parede. «Porque é que
hei-de ser sempre eu a ficar junto à parede?», perguntava ela antes do sorteio. «Porque sou
uma vítima?» E os seus olhos toldavam-se de incredulidade quando via que perdera.
Agasalhava-se para a noite - camisola de lã cor-de-rosa, cachecol, collants, meias até ao joelho
- e, depois de contar uno, due, ire/, saltava para dentro da cama como se esta fosse um rio de
águas turvas. Para ela, italiana, romana, com uma gota de sangue grego nas veias,
provavelmente era mesmo. «A única coisa em que não concordo com Dante», dizia ela, «é na
forma como ele descreve o Inferno. Para mim, o Inferno é frio, muito frio. Por mim, mantinha
os círculos, mas fazia-os de gelo, com a temperatura a descer a cada espira. O Inferno é o
Árctico». Dizia-o muito a sério. Com a cabeça e o pescoço embrulhados no cachecol, parecia o
Francesco Querini naquela estátua do Giardini, ou o famoso busto de Petrarca (que por seu
turno é para mim o perfeito retrato de Montale - ou melhor, vice-versa). Não havia telefone no
apartamento; o caos das chaminés em forma de tuba invadia o céu sombrio. Dir-se-ia a Fuga
para o Egipto, com ela a representar os papéis da mulher e da criança, eu o do meu homónimo
eo

78

do burro; afinal de contas, estávamos em Janeiro. «Entre o Herodes do passado e o Faraó do


futuro», repetia eu para comigo. «Entre Herodes e Faraó, eis onde estamos.» Acabei por
adoecer. O frio e a humidade deram cabo de mim - ou melhor, dos músculos e nervos do meu
peito, já desarranjados pelas operações. O inválido cardíaco que há em mim entrou em pânico,
e ela meteu-me, não sei como, num comboio para Paris, pois nenhum de nós tinha grande
confiança nos hospitais venezianos, se bem que eu adore a fachada do de Giovanni e Paolo. A
carruagem estava quente, a minha cabeça parecia querer estalar, sob o efeito dos
comprimidos de nitroglicerina, um bando de bersaglieri, no nosso compartimento, festejava o
início da licença com Chianti e uma aparelhagem portátil. Eu não tinha a certeza de resistir até
Paris; mas o que contrariava o meu medo era a clara noção de que, se resistisse, voltaria muito
em breve

- enfim, daí a um ano - a esse lugar gelado entre Herodes e o Faraó. Já então, encolhido no
banco de madeira do meu compartimento, tinha plena consciência do absurdo desse
sentimento; porém, desde que me ajudasse a vencer o medo, o absurdo era bem-vindo. O
movimento da carruagem e os efeitos da sua vibração sobre o meu arcaboiço trataram, julgo
eu, do resto, arrumando ou desarrumando ainda mais os meus músculos, nervos, etc. Ou
talvez tenha sido apenas o facto de o aquecimento do comboio funcionar. Fosse como fosse, lá
cheguei a Paris, fiz um ECG, cujo traçado se revelou bastante razoável, e apanhei o meu avião
para os Estados Unidos. Por outras palavras, sobrevivi para poder contar a história, e para que
a história pudesse repetir-se.

79

<A Itália», dizia Anna Akhmatova, «é um sonho recorrente, que nos persegue até ao fim dos
nossos dias». Sublinhe-se, no entanto, que a chegada dos sonhos é imprevisível e que a sua
interpretação inspira bocejos. Além disso, se os sonhos alguma vez vierem a ser classificados
como género, o seu principal processo estilístico será sem dúvida o non sequitur. Tal poderá
servir, pelo menos, de justificação para o que até agora transpirou nestas páginas. Poderá
também explicar os meus esforços, ao longo destes anos todos, para garantir a recorrência
desse sonho, esforços de que tão maltratado saiu o meu super-ego como o meu inconsciente.
Numa palavra: tratei de ir regressando eu ao sonho, em vez de esperar que acontecesse o
inverso. É óbvio que nalguma altura teria que pagar o preço desta espécie de violência, quer
erodindo aquilo que constituía a minha realidade, quer forçando o sonho a adquirir contornos
mortais, como os que a alma adquire ao longo da vida. Creio que paguei de ambas as formas; e
não me importei, especialmente no caso da última, que viria a assumir a forma de uma
Cartavenezia (data de emissão, Jan. 1988) na minha carteira, da raiva nesses olhos de uma
variedade muito especial (exercitados, dir-se-ia que a partir da mesma data, na contemplação
de melhores panoramas), ou de algo não menos finito. A realidade sofreu bastante mais, e
muitas vezes sobrevoei o Atlântico, de regresso a casa, com a nítida sensação de que a viagem
me transportava da história para a antropologia. Apesar de todo o tempo, sangue, tinta,
dinheiro e tudo o mais que aqui derramei ou consumi, não posso em consciência dizer, nem
mesmo a mim próprio, que tenha adquirido alguma das feições do lugar, que me tenha
tornado, ainda que em ínfimo grau, um veneziano.

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O vago sorriso reservado aos conhecidos no rosto de um empregado de hotel ou de um dono


de trattoria não contam; e ninguém se deixaria enganar pelas roupas que eu comprava na
cidade. Tornei-me, gradualmente, um ser de passagem em ambos os reinos, e o que mais me
desanimava era a impossibilidade de convencer o sonho da minha presença nele. Nada, é
claro, que me não fosse já familiar. Julgo, porém, que se poderá falar de fidelidade quando
alguém volta ao lugar do seu amor, ano após ano, na estação errada, sem garantia de ser
correspondido. Como qualquer virtude, de facto, a fidelidade só tem valor se for instintiva ou
idiossincrática, e não racional. Além disso, quando se chega a uma certa idade, e se pratica, já
agora, um certo ofício, não é propriamente imperioso ser-se correspondido. O amor é um
sentimento desinteressado, uma rua de sentido único. É por isso que podemos amar as
cidades, a arquitectura em si, a música, os poetas mortos ou, se o nosso temperamento no-lo
permitir, uma divindade. É, no fundo, o que nos traz de volta a esta cidade - do mesmo modo
que a maré traz o Adriático e, por extensão, o Atlântico e o Báltico. Seja como for, os objectos
não fazem perguntas: enquanto o elemento existir, têm o reflexo garantido - sói» a forma de
um viajante que volta ou sob a forma de um sonho, porque o sonho é a fidelidade do olho
fechado. É a confiança que falta à nossa própria espécie, embora sejamos também
parcialmente de água.

Se o mundo fosse considerado como um género literário, o seu principal recurso estilístico
seria sem dúvida a água. Se tal não acontece, é talvez porque nem o Todo-Poderoso dispõe,
pelos vistos, de grandes alternativas, ou então porque o próprio

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pensamento tem uma configuração aquática. O mesmo poderá dizer-se da caligrafia; e das
emoções; e do sangue. A capacidade de reflectir é própria das substâncias líquidas e, mesmo
nos dias de chuva, podemos sempre demonstrar que a nossa fidelidade é superior à do
espelho, colocando-nos atrás dele. Esta cidade corta-nos a respiração, por todos os estados do
tempo, cuja variedade é, aliás, bastante limitada. E se somos, de facto, parcialmente sinónimos
da água, que é totalmente sinónima do tempo, os sentimentos que nos ligam a este lugar
enriquecem o futuro, contribuindo para esse Adriático ou Atlântico do tempo que armazena as
nossas imagens reflectidas, para quando há muito tivermos deixado de existir. A partir delas,
como de velhas fotografias cor de sépia, talvez o tempo consiga compor, à maneira de uma
colagem, uma versão do futuro melhor do que sem elas. Somos, assim, venezianos por
definição, porque lá longe, ao largo, no seu equivalente do Adriático ou do Atlântico ou do
Báltico, o tempo-água entretece, em croché ou ao tear, as Nossas reflexões - isto é, o nosso
amor por este lugar

- em desenhos irrepetíveis, à imagem das velhinhas mirradas, vestidas de negro, presentes em


todas as ilhas deste litoral e eternamente absortas na confecção dessas rendas que lhes
arruinam os olhos. É sabido que ficam cegas ou loucas antes de chegarem aos cinquenta, mas
são então substituídas pelas suas filhas e sobrinhas. Entre as mulheres dos pescadores, as
Parcas nunca precisam de pôr anúncio para que as vagas sejam preenchidas.

JLJL. única coisa que os indígenas nunca fazem é andar de gôndola. Para começar, um passeio
de gôndola é caro. Só os turistas estrangeiros e endinheirados é que o podem pagar. Assim se

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explica a média de idades dos passageiros das gôndolas: um septuagenário pode abrir mão,
sem estremecer, de um décimo do salário de um mestre-escola. O panorama desses Romeus
decrépitos e das suas Julietas trémulas é invariavelmente triste e embaraçoso, para não dizer
lúgubre. Para os jovens, isto é, para aqueles a quem mais conviria o passatempo, uma gôndola
é tão inacessível como um hotel de cinco estrelas. A economia reflecte, como é óbvio, a
demografia; mas é duplamente triste que assim seja, porque a beleza, em lugar de prometer o
mundo, fica reduzida a ser a sua recompensa. É isso, entre parênteses, que atrai os jovens na
natureza, cujos prazeres gratuitos ou, mais precisamente, baratos, estão isentos da carga de
sentido e de invenção presente na arte ou no artifício. Uma paisagem pode ser emocionante,
mas uma fachada de Lombardini diz-nos do que somos capazes. E uma forma - a forma original
de olhar para tais fachadas é numa gôndola: dessa forma podemos ver o que a água vê. Nada
mais distante, é claro, da agenda dos Venezianos, que se afadigam e correm de um lado para o
outro nas tarefas do dia-a-dia, literalmente indiferentes ou até alérgicos ao esplendor
circundante. O mais que se aproximam de utilizar uma gôndola é quando apanham o ferry
para atravessar o Grande Canal ou quando levam para casa uma compra mais volumosa - uma
máquina de lavar, por exemplo, ou um sofá. Mas não é provável que o patrão do ferry ou o
dono do barco cantem nessas ocasiões o «O sole mio». Talvez a indiferença do indígena tome
como exemplo a indiferença do próprio artifício ao seu próprio reflexo. Tal poderia ser o
argumento definitivo dos Venezianos contra a gôndola, embora se lhe possa responder
sugerindo um passeio nocturno, proposta a que uma vez sucumbi.

Era uma noite fria, de luar e silêncio, íamos cinco na gôn-

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doía, incluindo o dono, um engenheiro veneziano que, com a namorada, se encarregou dos
remos. Percorremos lenta e sinuosamente, como uma enguia, a cidade muda suspensa sobre
as nossas cabeças, cavernosa e vazia, fazendo lembrar, àquela hora tardia, um imenso banco
de coral rectilíneo ou uma sucessão de grutas desabitadas. Era uma sensação estranha:
movermo-nos dentro daquilo que habitualmente atravessávamos com os olhos - os canais; dir-
se-ia que adquiríamos uma dimensão suplementar. Pouco depois desembocámos na laguna e
dirigimo-nos para a ilha dos mortos, para San Michele. A Lua, invulgarmente alta, como um si
desconcertantemente agudo cruzado pela linha suplementar de uma nuvem, mal alcançava a
toalha de água, e o deslizar da gôndola era também absolutamente silencioso. Havia, de facto,
algo de claramente erótico na passagem sem ruído nem rasto do seu corpo ágil pela água
como no gesto de percorrer com a palma da mão a pele macia da amada. Erótico, porque não
tinha consequências, porque a pele era infinita e quase imóvel, porque a carícia era abstracta.
Connosco dentro, a gôndola talvez fosse um pouco pesada, e a água cedia momentaneamente
debaixo dela, fechando o rombo logo no instante seguinte. Além disso, impelida por um
homem e uma mulher, a gôndola não era sequer masculina. Tratava-se, de facto, de um
erotismo não dos sexos mas dos elementos, uma união perfeita das suas superfícies
igualmente laçadas. A sensação era neutral, quase incestuosa, como se estivéssemos
presentes quando o irmão acariciasse a irmã, ou vice-versa. Assim contornámos a ilha dos
mortos e tomámos o caminho de regresso a Canareggio... Sempre achei que as igrejas
deveriam ficar abertas toda a noite; pelo menos a da Madonna delPOrto

- não tanto em atenção à hora provável dos tormentos da alma como por causa da magnífica
Virgem com o Menino que nela se

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abriga. Apeteceu-me desembarcar ali e dar uma espreitadela ao quadro, ao espaço de uma
polegada que separa a mão esquerda da Madonna da planta do pé do menino. Essa polegada -
ah, bem menos de uma polegada! - é o que separa o amor do erotismo. Ou talvez seja o grau
supremo do erotismo. Mas a catedral estava fechada e seguimos pelo túnel de grutas, por esta
mina piranesiana abandonada, plana, enluarada, com os seus raros lampejos de minério
eléctrico, até ao coração da cidade. Eu sabia agora, porém, o que a água sente ao ser afagada
pela água.

Desembarcámos junto ao caixote de cimento do Hotel Bauer Griinwald, reconstruído depois da


guerra, no fim da qual foi dinamitado pela resistência local, pois albergava o quartel-general
alemão. Como monstruosidade, está em boa companhia ao lado da igreja de San Moisè - a
fachada mais buliçosa da cidade. Juntos, fazem lembrar Albert Speer a comer uma pizza
capricciosa. Nunca entrei em nenhum deles, mas conheço um senhor alemão que ficou
hospedado nesse edifício em forma de caixote e o achou muito confortável. Tinha a mãe a
morrer na altura em que aqui esteve de férias, e falava diariamente com ela ao telefone.
Quando ela expirou, o filho convenceu a gerência do hotel a vender-lhe o auscultador do
telefone. A gerência mostrou-se compreensiva, e incluiu na conta o auscultador. Mas ele era
com certeza protestante, ao passo que San Moisè é uma igreja católica, e além disso fecha
durante a noite.

85

E.

Ju-^quidistante das nossas respectivas moradas, este local de desembarque era tão bom como
outro qualquer. Leva-se cerca de uma hora a atravessar esta cidade a pé, em qualquer
direcção. Isto, é claro, desde que se conheça o caminho, como eu conhecia já na altura em que
saí daquela gôndola. Despedimo-nos uns dos outros e dispersámo-nos. Dirigi-me para o meu
hotel, cansado, não tentando sequer olhar à minha volta, murmurando para comigo estranhos
versos, saídos sabe Deus de onde, como «Saqueiem esta aldeia» ou «Esta cidade não merece
piedade». Pareciam passagens dos primeiros poemas de Auden, mas não eram. Apeteceu-me
de repente uma bebida. Inflecti em direcção a San Marco, na’ esperança de que o Florian ainda
estivesse aberto. Ia fechar; estavam a tirar as cadeiras da arcada e a colocar taipais de madeira
nas montras. Uma breve negociação com o empregado, que já mudara de roupa e se
preparava para regressar a casa, mas que eu conhecia vagamente, teve o resultado
pretendido; e, com esse resultado na mão, saí de baixo da arcada e contemplei a praça. Estava
absolutamente vazia, sem ninguém. As suas quatrocentas janelas em arco sucediam-se, como
sempre, num alinhamento exasperante, como ondas idealizadas. Este panorama sempre me
fez lembrar o Coliseu de Roma, onde, nas palavras de um amigo meu, alguém inventara o arco
e não fora capaz de parar. «Saqueiem esta aldeia», continuava a murmurar para comigo. «Esta
cidade não merece...» O nevoeiro começou a tragar a piazza. Foi uma invasão tranquila, mas
ainda assim uma invasão. Vi as suas lanças e alabardas a avançar em silêncio, mas muito
depressa, vindas dos lados da laguna, como soldados a pé precedendo a cavalaria pesada.
«Silenciosamente, e muito depressa», disse para comigo. O ray

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dos exércitos chegaria agora a qualquer momento, o Rei Nevoeiro, surgindo ao virar da
esquina em todo o seu esplendor de cúmulos. «Silenciosamente, e muito depressa», repeti
para comigo. Isto sim, era o último verso da «Queda de Roma», de Auden, e era este o lugar
«absolutamente alhures». De repente senti que ele estava atrás de mim, e virei-me o mais
depressa que pude. Uma das montras do Florian, alta e lisa, razoavelmente bem iluminada e
não coberta ainda pelo seu taipal, cintilava para lá dos farrapos de nevoeiro. Aproximei-me da
vidraça e espreitei para o interior. Lá dentro, corria um dos anos da década de 50. Nos sofás de
pelúcia vermelha, em redor de uma pequena mesa de mármore encimada por um kremlin de
bebidas e bules, estavam sentados Wystan Auden, com o seu grande amor Chester Kallman,
Cecil Day Lewis e a mulher, Stephen Spender com a sua. Wystan contava uma anedota e toda a
gente se ria. A meio da anedota, passou diante da montra um marinheiro bem constituído;
Chester levantou-se e, sem dizer sequer «Até logo», seguiu fogosamente no seu encalço.
«Olhei para o Wystan», contou-me Stephen, anos mais tarde. «Continuava a rir, mas corria-lhe
pela cara uma lágrima.» Nesse instante, para mim, extinguiu-se a luz da montra. O Rei
Nevoeiro entrou na piazza, montado no seu corcel, e começou a desenrolar o turbante branco.
Trazia molhados os borzeguins, molhado também o charivari; cravejavam-lhe o manto as
pedrarias baças, míopes, dos candeeiros acesos. Vinha assim vestido porque não fazia ideia
sequer do século em que estava, quanto mais do ano. Sendo nevoeiro, de facto, como poderia
saber?

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permitam-me que o reitere: a água é igual ao tempo e fornece à beleza o seu duplo.
Parcialmente de água, também nós servimos da mesma forma a beleza. Aflorando a água, esta
cidade apura as feições do tempo, embeleza o futuro. Nisso consiste o papel desta cidade no
universo. Porque a cidade é estática, ao passo que nós nos movemos. A lágrima é disso a
prova. Porque nós passamos e a beleza fica. Porque nos dirigimos para o futuro, enquanto a
beleza é o eterno presente. A lágrima é a nossa tentativa de permanecer, de ficar para trás, de
nos fundirmos com a cidade. Mas isso é contra as regras. A lágrima é um retrocesso, um
tributo do futuro ao passado. Ou então é o resultado que se obtém quando se subtrai a maior
da menor parcela: a beleza, do homem. O mesmo vale para o amor, porque também o nosso
amor é maior do que nós.

Novembro de 1989.

(fim do livro)

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