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com | 4 Quaresma, 10-03-2024 | ano 47º | nº 2 3 5 3

Giorgione, retrato de idosa.

rumo ao quinto
cente nário de C amões 1
A Velha do Restelo
V ELHO DO R ESTELO que Camões estava a reme-

O - lamento chocar-vos
- talvez não seja um
homem. Poderá ser uma mu-
ter para o antigo poema he-
lenístico. Li o artigo do Dr.
Carvalho há muitos anos e,
lher. Estaríamos a falar, no de imediato, a pista de vas-
fundo, da Velha do Restelo. culhar em Apolónio de Rodes
Por incrível que pareça, foi galvanizou a minha atenção.
na jesuítica revista «Brotéria» Seria possível....? Faria sen-
que se deu o primeiro passo tido....? Seria aqui que eu
que levaria, ulteriormente, ao encontraria a base para justi-
desvendamento da identida- ficar a minha intuição de que
de escondida do Velho do o Velho do Restelo era, na
Restelo, concretamente no realidade, uma Velha....?
número que saiu em Novem- Pensei logo na estância
bro de 1980. Nesse volume IV.90 d' Os Lusíadas, em que
da revista, o Dr. Joaquim uma mãe chorosa se despe-
Carvalho publicava um artigo de do filho que vai embarcar
sobre Os Lusíadas em que para a Índia. Meu Deus...
argumentava o conhecimen- parecia-me óbvio! Estes ver-
to, por parte de Camões, do sos eram a recriação camo-
poema «Argonáutica», es- niana da despedida chorosa
crito por Apolónio de Rodes da mãe de Jasão, antes de o
no século III antes da era filho embarcar para a Cólqui-
cristã. Segundo a análise da («Argonáutica» I.261-
feita pelo Dr. Carvalho a pas- 291). Pus-me, na altura, a
sos do poema «Argonáutica» estudar debaixo do micros-
(na tradução latina que Ca- cópio o Canto I da «Argonáu-
mões lera) e a passos d' Os tica», comparando-o com o
Lusíadas, haveria pormeno- canto IV d' Os Lusíadas. Não
res de riquíssimo significado me saía da cabeça a ideia
que não eram compreensí- obsessiva de que o Velho do
veis, na epopeia camoniana, Restelo era um disfarce da
a não ser que aceitássemos Velha do Restelo. A resposta
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apareceu em dois versos nunca mais serão proferidas
misteriosos do poema de - mas Apolónio consegue
Apolónio de Rodes («Argo- transmitir a sensação quase
náutica» I.315-316). Esses palpável de que a sua impor-
versos fizeram-me perceber tância é (ou teria sido) pre-
que o Velho agoirento de mente. Nunca mais serão
Camões é o desenvolvimento proferidas? Teriam ficado
de algo que Apolónio elide. para sempre não ditas, se
Ou seja: Camões faz-nos Camões não tivesse ressus-
ouvir a voz à qual Apolónio citado a velha sacerdotisa de
tira a fala. As palavras que Ártemis, colocando as pala-
ficaram por dizer no poema vras que ela nunca pôde di-
do século III a.C. são ditas, zer em voz alta na boca do
pela pena de Camões, no Velho do Restelo: «Vã cobi-
século XVI português. Que ça.... ó fraudulento gosto....
palavras são essas? No po- Que mortes, que perigos,
ema de Apolónio, somos co- que tormentas, que cruelda-
locados perante este mo- des.... Dura inquitação d'al-
mento de mistério e de silên- ma.... mísera sorte, estranha
cio: no momento em que os condição!» Ora diz-se que os
Argonautas estão já a dirigir- maiores intérpretes literários
se para a nau, avança ao seu não são as pessoas das Le-
encontro uma mulher idosa. tras, mas sim as pessoas dos
Esta anciã é sacerdotisa de sons, criadoras de música.
Ártemis e tem algo de urgen- Ninguém entendeu melhor
te para dizer ao herói, Jasão. Goethe do que o compositor
No entanto, a multidão arras- Hugo Wolf; ninguém enten-
ta o herói até à praia, antes deu melhor a poesia de Mi-
que a anciã consiga verbali- chelangelo do que o mesmo
zar a sua profecia. Apolónio Wolf ou Benjamin Britten;
pinta em dois versos a ima- ninguém entendeu melhor a
gem da Velha deixada para poesia de Rainer Maria Rilke
trás. Vêmo-la sozinha, silen- do que Paul Hindemith. Em
ciosa, na berma do caminho. 1975, um jovem de 12 anos
As palavras que lhe ficaram chamado Frederico assistiu,
atravessadas na garganta no Teatro Nacional de São
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Carlos, à récita da ópera «O quecerei nunca do chapéu à
Canto da Ocidental Praia», infante D. Henrique na cabe-
de António Vitorino d'Almei- ça da cantora. Sim, da canto-
da. A ópera não foi especi- ra. Porque o Velho do Reste-
almente bem recebida pelo lo - pelo menos é essa a mi-
público e a segunda coisa de nha recordação - foi cantado
que me lembro dessa ocasi- por uma mulher, Dulce Cabri-
ão foi de ouvir a minha mãe ta. Em 1975, os jesuítas da
no intervalo, a conversar com «Brotéria» ainda não tinham
o que se chamava na altura o publicado o artigo que levaria
grupo dos «habitués» de São a que, graças ao Dr. Carva-
Carlos, sobre a última récita lho e (já agora) à minha mo-
em que a minha mãe lá tinha desta pessoa, todos per-
ouvido ópera. E todos diziam cebêssemos o que poderia
que, no «Così fan tutte» de estar por trás desta intuição
Mozart, Teresa Stich-Randall artística. Mesmo sem o Dr.
tinha sido sublime. O que Carvalho e sem estas espe-
equivalia a dizer que a pre- culações do futuro Frederico
sente ópera portuguesa, com Lourenço (que, em 1975,
os seus cantores portugue- como já referi, ainda só tinha
ses, não era grande coisa. 12 anos), mesmo assim, a
Se a ópera era grande coisa abrir o Verão quente de
ou não já não vos saberia 1975, o Velho do Restelo
dizer - nem eu confiaria hoje assumira-se no palco do
naquilo que teria sido meu Teatro Nacional como Velha
gosto musical aos 12 anos. do Restelo, saudosa de uma
Mas há, de facto, uma coisa «Idade d'ouro» que, sem que
dessa récita que ficou na ela o soubesse, estava len-
minha cabeça para sempre: tamente a nascer: o Portugal
a figura do Velho do Restelo, do pós 25 de Abril, de que
que entra em cena a cantar todas e todos nos podemos
«Ó vã cobiça!». Não me es- orgulhar.

Prof. F RE D E R IC O L OU R EN ÇO . Escritor, tradutor e professor de Estudos


Clássicos da Universidade de Coimbra. Prémio Pessoa de 2016,
na sua página do Facebock, em 24.02.2004.
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