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Solitá rio
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
e abril.
Era um puro país azul e proletá rio.
Anó nimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitá rio
nas ruas de Paris.
Vi minha pá tria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chã o. Pedaços
do meu país.
Restos.
Braços.
Minha pá tria sem nada
sem nada
despejada nas ruas de Paris.
E o trigo?
E o mar?
Foi a terra que nã o te quis
ou alguém que roubou as flores de abril?
Solitá rio por entre a gente caminhei contigo
os olhos longe como o trigo e o mar.
É ramos cem duzentos mil?
E caminhá vamos. Braços e mã os para alugar
meu Portugal nas ruas de Paris.
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, Publicaçõ es Dom Quixote,
2017
1. Aponta a realidade observada pelo sujeito poético, que serve de motivo e tema
para o poema.
Nã o volto aqui, dissera Lídia, e é ela quem neste momento bate à porta […].
É por causa do meu irmã o. Ricardo reis lembra-se de qu o Afonso de
Albuquerque regressou de Alicante, porto que ainda está em poder do governo
espanhol, soma dois e dois acha que sã o quatro, O teu irmã o desertou, ficou em
Espanha, O meu irmã o veio com o barco, Entã o, Vai ser uma desgraça, uma
desgraça, Ó criatura, nã o sei de que está s a falar, explica-te por claro, É que,
interrompeu-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que os barcos vã o revoltar-se,
sair para o mar, Quem to disse, Foi o Daniel em grande segredo, mas eu nã o
consigo guardar este peso para mim, tinha de desabafar com uma pessoa de
confiança, pensei no senhor doutor, em quem mais havia de pensar, nã o tenho
ninguém, a minha mã e nã o pode nem sonhar. Ricardo Reis espanta-se por nã o
reconhecer em si nenhum sentimento, talvez isto é que seja o destino, sabermos o
que vai acontecer, sabermos que nã o há nada que o possa evitar, e ficarmos
quietos, olhando, como puros observadores do espetá culo do mundo, ao tempo
que imaginamos que este será também o nosso ú ltimo olhar, porque com o mesmo
mundo acabaremos, Tens a certeza, perguntou, mas disse-o somente porque é
costume dar a nossa cobardia ao destino essa ú ltima oportunidade de voltar atrá s,
de arrepender-se. […] A ideia é irem para Angra do Heroísmo, libertar os presos
políticos, tomar posse da ilha, e esperar que haja levantamento aqui. E se nã o os
houver, Se nã o houver, seguem para Espanha, vã o juntar-se ao governo de lá . É
uma rematada loucura, nem conseguirã o sair a barra, Foi o que eu disse ao meu
irmã o, mas eles nã o dã o ouvidos a ninguém, Para quando será isso, Nã o sei, ele nã o
mo disse, é um destes dias, E os barcos, quais sã o os barcos, É o Afonso de
Albuquerque, mais o Dã o e o Bartolomeu Dias, É uma loucura, repete Ricardo Reis,
mas já nã o pensa na conspiraçã o que com tanta simplicidade lhe foi descoberta.
Recorda-se, sim, do dia da sua chegada a Lisboa, os contratorpedeiros na doca, as
bandeiras molhadas como trapos pingõ es, as obras mortas pintadas de morte-
cinza, O Dã o é aquele mais perto, dissera o babageiro, e agora o Dã o vai sair para o
mar, em rebeldia, deu por si Ricardo Reis a respirar fundo, como se ele pró prio
fosse na proa do barco, recebendo em cheio na cara o vento salgado, a amarga
espuma. […] nã o chores mais, lá grimas nã o adiantam, porventura mudarã o de
ideias, Nã o mudam, nã o, o senhor doutor nã o os conhece, tã o certo como chamar-
me eu Lídia. Ter dito o seu pró prio nome chamou-a ao cumprimento dos deveres,
Hoje nã o lhe posso arrumar a casa, tenho de ir a correr para o hotel, foi só o tempo
de desabafar, talvez nem tenham dado pela minha falta, Nã o te posso ajudar em
nada, Eles é que vã o precisar de ajuda, com tanto rio para navegar antes de
passarem a barra, o que mais lhe peço, por alma de todos os seus, é que nã o conte
nada a ninguém, guarde-me este segredo que eu nã o fui capaz de calar só para
mim, Fica descansada, que a minha boca nã o se abrirá . Nã o se abriu a boca mas
descerraram-se os lá bios, o suficiente para um beijo de consolaçã o, e Lídia gemeu,
porém da má goa que tem, embora nã o fosse impossível encontrar nesse gemido
um outro som profundo, nó s, humanos, é assim que somos, sentimos tudo ao
mesmo tempo. Lídia desceu a escada, contra o costume foi Ricardo Reis ao
patamar, ela olhou para cima, ele fez-lhe um gesto de aceno, ambos sorriram, há
momentos perfeitos na vida, foi este um deles, como uma pá gina que estava escrita
e aparece branca outra vez.
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto Editora, 2016
2. Explica, com palavras tuas, a hipó tese de definiçã o de destino, colocada pela
protagonista.
GRUPO II
Leia o texto.
Devemos ter vivido na rua Padre Sena Freitas uns dois ou três anos. Quando
principiou a guerra civil espanhola era aí que residíamos. A mudança para a rua
Carlos Ribeiro terá sido em 38, ou talvez mesmo em 37. Salvo que esta minha por
enquanto ainda prestá vel memó ria deixe vir à superfície novas referências e
5 novas datas, é-me difícil, para nã o dizer impossível, situar certos acontecimentos
no tempo, mas tenho a certeza de que este que vou relatar é anterior ao princípio
da guerra em Espanha. Havia por essas alturas um divertimento muito apreciado
nas classes baixas, que cada um podia fabricar em sua pró pria casa (tive
pouquíssimos brinquedos, e, mesmo esses, em geral de lata, comprados na rua,
10 aos vendedores ambulantes), o qual divertimento consistia numa pequena tá bua
retangular em que se espetavam vinte e dois pregos, onze de cada lado,
distribuídos como entã o se dispunham os jogadores no campo de futebol antes
do aparecimento das tá ticas modernas, à inglesa, dois atrá s, denominados
defesas, ou backs, e finalmente o guarda-
15 -redes, ou keeper. Podia-se jogar com um berlinde pequeno, mas, de preferência,
usava-se uma esferazinha de metal, das que se encontram nos rolamentos, a qual
era alternadamente empurrada, de um lado e do outro, com uma pequena
espá tula, por entre os pregos, até ser introduzida na baliza (também havia
balizas), e assim marcar golo. Com estes pobríssimos materiais divertia-se a
20 gente, tanto miú da como graú da, e havia renhidos desafios e campeonatos.
Observado a esta distâ ncia parecia, e talvez o tivesse sido por alguns momentos,
a idade de ouro. Mas nã o o foi sempre, como já se vai ver. Um dia, está vamos na
varanda das traseiras, meu pai e eu, a jogar (recordo que, nesse tempo, as
famílias de escassas posses passavam a maior parte do tempo nas traseiras das
casas, principalmente nas cozinhas), eu sentado no chã o, ele num banquito de
25 madeira, como entã o se usavam e eram tidos por imprescindíveis, sobretudo
para as mulheres, que neles costuravam. Por trá s de mim, de pé, a assistir ao
jogo, estava o Antó nio Barata. Meu pai nã o era pessoa para deixar que o filho lhe
ganhasse, e, por isso, implacá vel, aproveitando-
-se da minha pouca habilidade, ia marcando golos uns atrá s dos outros. O tal
30 Barata, como agente da Polícia de Investigaçã o Criminal que era, deveria ter
recebido treino mais que suficiente quanto aos diferentes modos de exercer uma
eficaz pressã o psicoló gica sobre os detidos ao seu cuidado, mas terá pensado
naquela altura que podia aproveitar a ocasiã o para se exercitar um pouco mais.
Com um pé tocava-me repetidamente por trá s, enquanto ia dizendo: “Está s a
35 perder, está s a perder.” O garoto aguentou enquanto pô de o pai que o derrotava
e o vizinho que o humilhava, mas, à s tantas, desesperado, deu um soco (um soco,
coitado dele, uma sacudidela de cachorrito) no pé do Barata, ao mesmo tempo
que desabafava com as poucas palavras que em tais circunstâ ncias poderiam ser
ditas sem ofender ninguém: “Esteja quieto!” Ainda a frase mal tinha terminado e
40 já o pai vencedor lhe assentava duas bofetadas na cara que o atiraram de roldã o
no cimento da varanda. Por ter faltado ao respeito a uma pessoa crescida, claro
está . Um e outro, o pai e o vizinho, ambos agentes da polícia e honestos zeladores
da ordem pú blica, nã o perceberam nunca que haviam, eles, faltado ao respeito a
uma pessoa que ainda teria de crescer muito para poder, finalmente, contar a
triste histó ria. A sua e a deles.
José Saramago, As pequenas memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, pp. 44-47.
1. Segundo o narrador,
(A) é-lhe impossível situar no tempo o episódio que vai relatar.
(B) os acontecimentos narrados ocorreram durante a sua infância.
(C) a história que vai relatar decorre de um sonho que teve.
(D) os acontecimentos relatados ocorreram com um seu vizinho.
3. A modalidade presente na frase “Devemos ter vivido na rua Padre Sena Freitas uns dois ou três
anos.” (l. 1) é
(A) deôntica com valor de obrigação.
(B) deôntica com valor de permissão.
(C) epistémica com valor de certeza.
(D) epistémica com valor de probabilidade.
4. A função sintática desempenhada pelo segmento sublinhado em “Quando principiou a guerra civil
espanhola era aí que residíamos” (ll. 1-2) é
(A) complemento indireto.
(B) complemento oblíquo.
(C) modificador.
(D) predicativo do sujeito.
5. O valor aspetual presente no enunciado “Havia por essas alturas um divertimento muito apreciado
nas classes baixas” (ll. 6-7) é
(A) iterativo.
(B) habitual.
(C) perfetivo.
(D) genérico.
7. No segmento “que podia aproveitar a ocasião para se exercitar um pouco mais” (ll. 29-30) está
presente
(A) uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e uma subordinada adverbial final.
(B) uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e uma subordinada adverbial causal.
(C) uma oração subordinada substantiva completiva e uma subordinada adverbial final.
(D) uma oração subordinada substantiva completiva e uma subordinada adverbial causal.
8. Identifique o processo fonológico ocorrido na passagem de TABULA- para “tábua” (l. 9).
10. Identifique a função sintática desempenhada pelo segmento sublinhado em “Com estes
pobríssimos materiais divertia-se a gente” (ll. 16-17).