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1

Pulsátil
Poemas canhestros &
prosas ambidestras

B-Sides

LIVRO GRATUITO

2014
Textos, fotos, ilustrações e edição:

Sammis Reachers

2
Não é poeta aquele que não haja sentido a tentação de
destruir a linguagem e de criar outra, aquele que não
haja experimentado a fascinação da não significação e
da não menos aterradora significação indizível.
Octavio Paz

3
Índice
Apresentação ............................................................................... 06
Poemas ........................................................................................... 07
Vou-me embora pra Pasárgada ............................................................................ 07
O editor de Poesia ...................................................................................................... 09
Parabellum .................................................................................................................... 11
A morte de Samuel Ricardo ................................................................................... 13
Farmacopéia Ekklesia .............................................................................................. 14
A Páscoa do Equalizador ......................................................................................... 15
Da conversão de Samuel Ricardo, jagunço de Lampião, no sertão da
Bahia, em 1931 ............................................................................................................ 16
A última Aurora ........................................................................................................... 17
Aos teólogos formados, em formação, aos cardumes por nascer .......... 18
O Reino ............................................................................................................................ 19
Aos 24 anos (pouco) antes de Cristo ................................................................. 20
Aria of Sorrow .............................................................................................................. 21
Crepúsculo dos Deuses: Ragnarök ...................................................................... 22
Da Centúria perdida do (falso) profeta Nostradamus ................................ 23
Evangélica, Poesia ...................................................................................................... 24
Foucault e eu ................................................................................................................ 25
Fundação Roberto Marinho ................................................................................... 26
Hai Kai ............................................................................................................................. 27
Lamento à maneira antiqua ................................................................................... 28
Mar Ocidental ............................................................................................................... 29
Menina-mulher ............................................................................................................ 30
O poema pitanga ......................................................................................................... 31
Cantiga dos Moleques Fruteiros .......................................................................... 32
Moleques moleskines feitos de Jamelão ........................................................... 34
O poeta é um desvelado ........................................................................................... 35
PADMA ……………………………………………………………………….……………….. 36
Peter Pa(i)n ………………………………………………………………….....…………… 37
Skywalker, Anakin: JEDI ……………………………………………………........……. 38
Sobre meninos e lobos ............................................................................................. 39
Casadoiro ....................................................................................................................... 41
Equívocos ....................................................................................................................... 42
Num bordel em Alexandria .................................................................................... 43
Rimbaudiano ................................................................................................................ 44
Ofício ................................................................................................................................ 45
Mote ................................................................................................................................. 46

4
O Zepelim Salmão ....................................................................................................... 47
Pew, o Cego ................................................................................................................... 48
Portões de Esparta ..................................................................................................... 50
Vaidade das vaidades ............................................................................................... 54
Jorge Luís Borges ........................................................................................................ 55
A Ilha (Secreta) de Patmos ..................................................................................... 56

Foto: Jurujuba .............................................................................................................. 57

Poemas primários: São Gonçalo de Todos os Santos ... 58


DIZ ..................................................................................................................................... 59
Apologia D’Eu ............................................................................................................... 60
A Suíte do Tempo e da Morte ................................................................................ 61
Tolices ............................................................................................................................. 62
Do Asfalto ....................................................................................................................... 63
Objeto-poema: “Machina Signifária” .................................................................. 64

Reflexões, Frases e Flashes ................................................... 65


Pintura: CRUZ ............................................................................................................... 88

Esparsas Prosas .......................................................................... 89


Sobre essa menininha, a Esperança ................................................................... 89
INGRESSOS À VENDA – Apenas para os que não podem
comprá-los .................................................................................................................... 97
Deus das circunferências ........................................................................................ 98
Jasão ................................................................................................................................. 99
Espasmos de Ecoteologia ..................................................................................... 100
Exposição-para-a-aniquilação do fariseu em mim .................................... 101
Foto: Abstrato ............................................................................................................ 102

A Poesia Carnal de Mathias Raws .................................... 103


Pulsátil .......................................................................................................................... 103
De como o poetastro cínico Samerson Mesmer Fassbender desconstrói,
em catastróficos versos, as sofridas heroínas dos contos infantis ..... 104
Ocarina de Bodom ................................................................................................... 106
Na esquina da Duque de Caxias com a Rio Branco .................................... 109
Autorretrato: Bufão, Clown de Pasárgada e mestre falsário, chora em
tintas a morte de Calíope ....................................................................................... 111

Sobre o autor ..................................................................................................... 112

5
Apresentação
Este livro é uma estranha antologia: reuni aqui poemas
esparsos, dos mais novos aos mais antigos, de bons comuns
poemas a B-sides, mas que não entraram, por quaisquer
motivos, nos meus livros anteriores.
E ainda um resgate: poemas de meu primeiro, terrível (de
ruim) e renegado livrinho, São Gonçalo de Todos os Santos
(1999).
Salgando a miscelânea, a segunda parte do livro reúne uma
pequena seleção de frases e pensamentos, geralmente
publicados no Facebook. Alguns espontâneos, outros
meditados, alguns devocionais, outros de viés mais carnal,
satírico, espirituoso ou apenas gotículas de ácido destilado. E
ainda algumas reflexões e prosas maiores.
Falando em carnalidade, o livrinho termina com alguns
textos de um certo Mathias Raws, falsário de passaportes e
ladrão de bancos (regenerado) inglês, de cujo um poema
retirei o título para este livro.
E para completar a medida de balbúrdia em tudo isso,
toques de minhas sinistras, canhestras incursões pelas artes
plásticas também estão aqui, na figura de uma pintura, um
objeto e fotografias.

Provocações, balões de ensaio testando limites, ‘tentando’


os limites: sem estranhamento não há arte, não há literatura
(mas apenas pedagogia, e a mais chã), sem o perigo das
bordas do abismo herético, não se pode fazer boa teologia, não
se pode expandi-la. Riscos que se corre e riscos que assumo,
pois não vejo outra opção para justificar-me enquanto escritor.
Não saberia fazer nada diferente.

6
Poemas
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


lá sou amigo do Rei
lutamos juntos
na Guerra Civil Espanhola
salvei-lhe a vida
(que ele perdera num jogo de carteado,
bem longe da liça)

Em Pasárgada os dias são bem mais longos


e eu não precisarei trabalhar, ou ao menos
não morrerei desse mal soturno.
Tenho lá seis namoradinhas
Natália Bruna Tabita Renata Tayane
e uma outra Bruna
e terei tempo para todas,
pois o tempo em Pasárgada é maior mais livre mais fosforescente
e aos domingos irei pescar com meu amigo El Rei
ou praticá-lo no jogo de cartas,
para que ele em apostando a vida não a perca
e ao não perdê-la seja também imortal como os demais deuses
asiáticos.

Vou-me embora para Pasárgada


Ela fica no outro lado do orbe,
no centro e topo da alteridade mesma:
lá as cartas de cobrança
jamais chegam em minha humilde porta
e as mensagens são transmitidas por meio dos beijos,
a estranhinsuspeitinstintiva (e doce) linguagem sem léxico
que não carece de dicionário que a traduza
ou gramática que a codifique.

Em Pasárgada tenho salvo-conduto em cada canto


e uma banda de rock onde canto e dou enfim utilidade a meus poemas
e as peles de meus inimigos, oh, são tapetes onde piso
na Grande Biblioteca Real, onde deito em livros
a meia metade de meus dias de fausto.

7
Em Pasárgada meu amigo é o Rei
conheci-o num jogo de cartas dos derrotados em Bilbao
porém em Pasárgada, amigos, nunca mais perderemos.

8
O Editor de Poesia

Sou um antologista
lido com volumes dantescos, homéricos, catastróficos
de poesia
marranos cabalistas de um Século de Ouro,
americanos movidos a LSD e mescalina

franceses efeminados sul-americanos


com ranço de Champs-Élysées ou com
versariamentos crioulos de Marx

Sim, sou um editor e antologista, lido


com volumes dantescos homéricos catastróficos
de VIDA,
marroquina espartana
turcomena cigana mujahedin
explodindo cafés em Berlim tanques em Pequim
ou silêncios na Revolução dos Cravos

e deixando estrategicamente poemas nos bolsos dos cadáveres


como os war poets ingleses
que serão publicados numa revista qualquer alemã
e que com exclusividade deitarei ao vernáculo,
ao cotejar com as versões em castelhano de Tradutor A e Tradutor B

sou um acumulado de livros, um Índice de enciclopédia ou de


camaradas,
uma biblioteca que esquece-se na semana seguinte
amigo de dores de Camões e Tasso
de culpa herdada de Bachmann e Celan,
um acumulado de suicídios impresso
em tamanho A5 papel pólen capa 4xcores laminada
sem orelhas como um Van Gogh num espelho

Lá venho eu pela estação Cinelândia, sapatos de dândi,


chapeleta gauche
roupas de um outsider - só um homenzinho com uma bolsa enorme de
papéis e víveres,
bananas e pão
cristão protestante um provisório (hiper)hebreu
Tzara triste (des)amparado em livros
ruminando sobre como desferir uma cantada Moraesiana-Eluardiana

9
nas solipsas atendentes da Biblioteca Nacional

Quanto a esses poetas, amigos invisíveis de uma criança solitária,


como um Kohélet, um Salomão que quer manter a paz em seu harém,
amo a grosso modo a todos eles, sem acepção
os que estão ao meu lado, co-
navegantes do mesmo zeitgeist
ou os que estão nas estantes de baixo, ou nas-
cendo nas de cima

Como o estivador de uma Ode Triunfal ou um contrabandista francês


mercando armas numa guerra africana, trans-
porto-os, e se abraço-os assim tão forte,
num enlaçar que é como um sorver a minha vida,
é para continuá-los em celulose,
em bits,
em vocês.

10
Parabellum

Sentar-me no banco 023 do Campo de Santana


observar as cutias equilibrando-se sobre duas patas
para roer amêndoas ou um mapa do céu
que algum apressado estudante deixou cair

Pensar em você, Noivinha de Cristo,


escrever o mais lindo poema de amor
de toda uma década, de toda esta
camonicamaleônica língua

Mas não; e se não posso tê-la, que a Literatura


não me possua o poema, que ele morra arquétipo,
abortado em mármore na tumba
das perfeições platônicas.

Os Imperativos Morais, esses radiosos


demônios concebidos na Luz,
a tudo manietam-me,
e dizem
resista soldado
combata soldado
morra combata resita
combata morra morra

Estou morto, cães de guarda,


sou um de seus santos, sou
uma sua besta de carga.

Teus olhos estelares,


ó Princesa do Planeta Koryander
são a magnum opus de Cristo,
sóis concentrados cujo fogo
queima sem arder
abrasando até as cinzas de cinzas de cinzas
de meu coração,
como quem chama Lázaro para fora...

Gosto de quieto observá-los


como um iogue observa uma mandala
em busca de libertação, de samadhi
ou como um exausto soldado de Cristo

11
observa todo o esplendor do Fim
deste sistema iníquo de coisas
que nos separam,
ó grande apocalipse meu.

12
A Morte de Samuel Ricardo

Para Kivitz, o temeroso da morte

Estou sentado solitário em meu sofá,


nesta sexta-feira da longa Paixão,
e ao contemplar a janela,
a luminosidade que ela deixa passar
filtrada pela diáfana cortina de linho,
penso que um dia a Morte entrará
por esta mesma janela, arrombando-a;
será talvez pela tarde, uma tardezinha
de paz e livros e solidão como esta.
Entrará epifânica, com um estrondo
de trovão, a Morte – um dragão
de escamas lindas, azuis como o céu e o mar.
Entrará arrombando os ferros,
explodindo a casa, ela a Morte,
a coisa mais desejável depois do Rei.

13
Farmacopéia Ekklesia

Ei-lo
crucificado em (forma de) flor,
espiral de galáxia primal
Ele-o-amor

Vamos, cristãos, industrializemos-lhe


o santo Sangue
consubstanciaremos cápsulas com ele
- Marias juntem suas mãos
em forma de concha,
de graal
capturem
uma gota
do Sangue

Criaremos cápsulas, comprimidos de


Amor Kerigmático,
o amor da Proclamação;
Amor Empático,
o amor pelos que sofrem;
Amor Charismático,
o amor de perdoar.

Vamos, cristãos, apressemo-nos


- Tome senhor, tome senhora,
ei!, menina, aqui
as suas cápsulas de hoje
Ei, rapazinho, engula
esse pranto, e tome junto as cápsulas:
Ele-aquela-flor
já ressuscitou, e você
para sempre foi desabilitado de morrer.
Sim, você que sonhou sempre
ser um guerreiro imortal: sorria,
soldado. Ele-a-tua-blindagem
chama-te, convida-nos para fora:

Vamos para fora combater.

14
A Páscoa do Equalizador

Cruz lent'arralastrando-lhe os passos


n'ínvios pedaços do vil
caminho

direção a mais contrária à do ninho


marcha o magro Deus para o antiabraço

espadas, crucifixos passos


abraços cancelados
pelo caminho
"jamais o conheci"
diz o covardecrasso

já tristetecida a coroa d’espinho


o choro paralisado no angelespaço
veja como vergam suas pernas finas quase as minhas
Deus diminuído em pó no da morte de largo lastro laço

anarcoroado maltraphilos numa cruz embaralçado


veja, eu o martelo
o suspendo, escarro, atravesso.
que eu não sei o que faço
sussurra ágapeado Deus num suspirespasmo

treme a terra. compreende o romano. sorri o anticristo.


morre o Cordeiro para equalizar o Caos & aplacar a Lei.

dentre três dias, anticristo, de baixo para cima


no mural dito ETERNIDADE, estarás crucificado.

15
Da conversão de Samuel Ricardo, jagunço de Lampião, no sertão
da Bahia, em 1931

Por Ti cancelo meus planos de vingança


por Ti
uma dúzia de vidas
cujos horários e rotas
eu já demarquei
não serão interrompidas

Por Ti
Deus que embaralha minha língua com fogo
e refreia a minha peixeira no peito do ar

Quantas velhotas livraste de carpir


pela morte certa dos trastes que pariram?

Mas além requeres, manda-me


amar o lixo, verter murro em abraço.

Tento, mas como isso??

Senhor, essa Arma Viva,


essa Carabina de Três Bocas, a arma
Teu Espírito:
Atravessa-me com isso,
fura-me o bucho com amor.

Aqui. Mira meu coração de pedra, Coronel.


Manda bala, Deus Grande.

16
A última Aurora

Ela aniquilará todas as precedentes,


ao aniquilar o Tempo,
ao estabelecer Deus-como-aurora

Quando orar esta noite, rogue,


rogue para que a aurora de amanhã seja calibrada
no nível máximo: ARMAGEDON

que o sol exploda com o dia


para que Ele venha ocupar o lugar do sol.

17
Aos teólogos formados, em formação, aos cardumes por nascer

“Porém tu, Senhor, és um Deus cheio de compaixão, e piedoso, sofredor, e


grande em benignidade e em verdade.” Salmo 86.15

Cale-se diante dEle toda a terra:


Pois não existe angústia
como a da Onisciência

Não há pesadelo maior


do que estar em todos os lugares
quando em todos os lugares
instalou-se aconchegada a dor

Não há ansiedade como


tudo poder, mas legislar
e limitar-se a Si mesmo
pelas Leis propostas

Cale-se cale-se cale-se

18
O Reino

Soldados cuja soma


não completa um soldado
dos tais é o Reino dos Céus

por tais
um Deus fez as vezes
no da Morte abraço

miseráveis miseráveis
tão sobremaneira
miseráveis

que nada a fazer,


ato algum,
senão amá-los.

19
Aos 24 anos (pouco) antes de Cristo

Um fliperama,
três fichas de KOF, dois lances
de vinho o mais barato

observar Ísis, o Coração do Mundo,


saindo de casa para o colégio
branca como um trovão esvoaçante,
que passa lento queimando o céu,
queimando as coisas
passíveis de fogo

ir à casa de um amigo,
ir à casa de dois,
por uma hora e quarenta e
quatro minutos olvidar
todas essas Leis canhestras
que me (im)pressionam o voo

ser apresentado a Mishima, Genet, Bukowski,


perder Ísis pelo Céu,
sair vivo desse dia.

20
Aria of Sorrow

Sete dialetos gregos


que ninguém domina
para cada dia da semana
um
para cada dia um variado
tipo de incompreensão
para cada dia
um dialeto,
uma forma sonora de silenciar
que domino
a cada dia
uma forma de me ignorarem
a cada dia
uma sintaxe de me distanciar
não que eu queira
não que eu queira
mas eles não podem
eles não podem
eles não podem
eles não podem
eles não podem

não que eu queira

21
Crepúsculo dos Deuses: Ragnarök

Um Dia feito da escuridão


de todos os dias
o Dia em que Odin-o-exaurido
será devorado pelo lobo Fenris,
Thor-do-trovão tombará sobre o cadáver
da serpente-sem-fim, Iormungand

Você é um dos homens


eleitos pelo deus, guerreiro?
Afie pois os dois caminhos de sua espada,
as duas asas de seu machado firme
e caia como vaga sobre o conflito:
será tudo em vão,
pois ao fim e ao cabo
como a Ordem venceria o Caos?

Mas você terá combatido,


você terá deveras combatido
e não foi afinal para isso e para este Dia,
ó boneco de pó predestinado,
que o pai Odin criou os homens?

22
Da Centúria perdida do (falso) profeta Nostradamus

Há uma espada desembainhada sobre a cabeça de Jonas,


mas a espada não cai, Dâmocles não morre;
Menelau segue mil vezes apunhalado, Esparta é o pó.
Há uma Esparta no meio do oceano Índico,

A base naval-militar-americana-imperial
em Diego Garcia; a filhinha de um dos generais
é o Antiterno, é o Anticristo,
hermosa hermafrodita criada com zelo.

O diabo ele tem doze anos e seios


que despontam, rubicundos e tesos.
Mulher que será homem,
ruivo antideus de pó.

23
Evangélica, Poesia

Partiste.
O poeta reverbera o Espírito.
Prenuncia as trombetas,
Estrelas
Que anunciar-Te-ão
Em Teu retorno.

24
Foucault e eu

A loucura como diluição dos múltiplos e sobrepostos filtros de


Realidade]

A loucura como aniquilação do fascismo da Realidade

A loucura como possessão demoníaca

25
Fundação Roberto Marinho

As mulheres da família, rol de gerações


assentam-se em silêncio concorde uníssono
para assistir a sequência de telenovelas:

Educandário de najas.

26
Hai Kai

O trovão ribomba.
A cada novo estrépito
Nasce-morre uma aurora

27
Lamento à maneira antiqua

Um coração de tipo e viés cigano


valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas tascas de cristal


sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;


recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.

28
Mar Ocidental

Em meio à praça
Em meio ao mar
Espero com flores
O cortejo passar

E além (a)dentro
(d)os livros, Álcoois de Guillaume
E Paul, no Cemitério Marinho
Ou no Waste Land
calçando as botas de Eliot

Meu amor acabou


E perambulo pelo cais,
Praças e mares
mercando narcóticos e livros

E em silêncio busco a Ti,


Deus maltrapilho,
Para que me ressuscite

*Guillaume Apollinaire
**Paul Valéry
***T.S. Eliot

29
Menina-mulher

Renovas o mundo,
Deita-o a girar

A tapeçaria do Caos
Tecem-na teus dedos
Delicados-brancos
tecem-na para que eu me deite,
leito de intempestivas andorinhas

há paz & forças sulfurosas


em teu beijo langoroso
pacificação e lento incêndio
em teus olhos-de-dilacerar

A balbúrdia em teu iPod


o último louvor da última levita,
ou o Pearl Jam cantando Last Kiss
a todo o momento, ressuscitando
um dia de poemas realizados
que talvez nunca tenha sido

A forma como entregas a tua vida


Como se fora dela o dia derradeiro

Teu sorriso tange os homens,


Arrebanha a minha dispersão

Hoje é o teu dia, lua cadente-sorridente


- Parabéns

30
O poema pitanga

Pitangas sabor de sol


sabor de sol e mar pitangas
fruta odalisca solar
em meus bolsos palato coração
dois bolsos repletos
para o viés do dia
valdevinas pitangas...

madeirites de sandboard,
dunas de Itaipu, adeus meu patrão,
deslizar pitangas...

afrodisíacas, afrodisiarcontes pitangas


a dor areal que o mar apaga
a felicidade maral que a areia gesta
nesta cópula sensorial sublimi(lu)nar

rubicundelirantes pitangas...

31
Cantiga dos Moleques Fruteiros

Pedrinho tem fome de mato,


das frutinhas que tantas dão por lá:

Cajuí, taperebá, araticum e cajá


Cambuci, guabiroba, cagaita e maracujá

Juca menino erradio


pulou a cerca do sítio,
e lá se foi, frutas a roubar:

Pindaíva, marôlo, sorvinha e biribá


saguarají, feijoa, sapoti e joá

Gustinho não poupa ninguém


nem atina se a fruta é veneno;
se tem polpa pouca
ou se nem polpa tem,
a de vez ele come,
a passada também:

Mangaba, guriri, tucum e butiá


uarutama, bacupari, marmelinho e ingá

Renato é um bicho-do-mato:
chafurda nas matas,
rompe pelos florestins
sabe o tempo de cada fruta,
e deita sozinho a fazer seus festins:

Babaçu, inajá, catolé e bacuri


sapota, cupuaçu, araçá e cacauí

Fernandinho é moleque mateiro:


gosta é de pelar pé de árvore
no pomar da avó.
É fruta que não acaba tão cedo
e lá vai ele, arteiro, trepar no arvoredo:

Grumixama, cubíu, marmixa e abiu


guaburiti, pitangatuba, murtinha e camu-camu

32
Saltam riacho, cerca de roça,
mata fechada e o que se lhes dá;
Comem de tudo e tudo sem pressa,
sorvendo o bom doce de tudo o que há:

Acumã, pequiá, jameri e jaracatiá


aboirana, curriola, fruta-de-tatu e cambuiú.

33
Moleques moleskines feitos de Jamelão

Frugal

Um novo amanhecer
De dentr’embaixo das mangueiras
Um novo literariar, (em) páginas fruteiras

as sementes das frutas que não conheci, sementes que meu sonho está
a&plantar
pelos campos, e recolhe araçás onde os há, e vai à beira do campinho
de pelada, àquela secreta jaqueira...
E 12 frutos há, como 12 tribos...

Mais à frente é nosso Campo de Sonhos, simbionte ambientação que


poeta algum pôde, naturalista algum

e desde sempre eu sei


q há um poder secreto nos jamelões que pulsam, açucarados e roxos,
e todo este campo de frutas é uma mão estendida
- do Deus meu.

você fala do poder das


goiabas anti-pranto do quintal de dona Célia e Wilson, ah!, nosso
Wilson lembra do caudal azul de todas as frutas do mundo.

34
O poeta é um desvelado

O poeta é um desvelado,
Qualquer criança, num qualquer soslaio,
Lhe desnuda o segredo:
Ele escreve
porque não sabe voar

35
PADMA*

A Luz é uma promessa, e fiel é Aquele que assevera.


A Escuridão é um Sistema de SIM(s), fausto abraço aberto,
Um sorriso largo de alvos dentes, de mel punhais.
Aconchegante deserto.

*Do sânscrito, flor-de-lótus

36
Peter Pa(i)n

Perfile as tropas, Sininho.


Não há volta para nenhum de nós;
Crianças, nossas ações
são as ações de homens desesperados.
Desconecte os Bulbos de Realidade,
mergulhe tudo no Sonho.

Ele é um anjo caído, o que se nos opõe;


sequer podemos vê-lo,
conhecer-lhe o plano ou a extensão do braço;

No Sonho e no Sonho apenas


é o único lugar onde poderemos
assassinar o nosso tão injustamente
poderoso inimigo.

37
Skywalker, Anakin: JEDI

O apelo da Escuridão é o apelo mesmo


da realização, a fragmentação
libertária da flor
do coração humano

O Terror como chuva fria desabando


sobre meus inimigos, intermitente, totalitária,
alcançando-os pelas costas enquanto correm
em busca de um abrigo que não existe,
não pode existir...

Pois meu sabre de luz, guilhotinando


fluorescente o ar, diz
que não há portas fechadas
para um Jedi
ou um Sith, tanto faz

Uma cidadela, um planeta,


os aglomerados de galáxias:
eis a oferta de especiarias
do lado negro da Força,
Força sem partido que nos cria e consome.

38
Sobre meninos e lobos

DARKNESS: Enabled for all players

I.
A Escuridão propõe
a Escuridão dispõe
a Escuridão é a mão
estendida convidando pra dança

A Escuridão ama os garotinhos,


são o seu alimento
ela os atrai
com a sua coleção de Espadas
ou com uma droga alotrópica e rara
(que suas glândulas secretam):

O AMOR.

Sim, são armas realmente terríveis.


E isto tudo é muito terrível.

II.
A Escuridão propõe-nos agora jogos heroicos
e incita a que esta noite todos
brinquemos de guerrilheiros:
saco o embrulho negro
e desvelo minha adaga
que brilha sob o luar como
uma asa de águia sob o sol.

Sorri a Escuridão
e seu semblante preenche-se
de lenta anelante ternura,
como a das mães.

Que importa onde nasce a lua?


Importa que brilhe
e seja um sol para os lobos,
os cães e os apunhalados
meninos que sobreviveram,

39
e vagam como surda nau.

(Entidade-Éden, Anti-Adão,
Jesus-Rei-e-Deus-meu,
reverta a funeralização de
meus processos,
a desarmonia em meus ossos:
Resgata-me do laço de Thanatos.)

*ESCURIDÃO: Habilitada para todos os jogadores.

40
Casadoiro

Procuro uma menina


que me dê amor verdadeiro,
não fingido, não sonhado

amor de abraço longo


e comida benfeita

confiança
como telhado novo sem goteiras

De minha parte
faço-lhe uma promessa:
ainda que eu não encontre
as palavras certas
eu encontrarei as ações
e isso
é o que de maior um poeta
pode prometer.

41
Equívocos

Perdi o poema que vinha


eu sangrei meu seio

supus primavera na esquina


era algazarra de um tiroteio

e eu lá de sonhos abertos
com os olhos intoxicados e quietos

na solidão central de seu meio

42
Num bordel em Alexandria

É deveras assustador, e há algo de demoníaco nisso.


Mas há homens que vendem palavras. Sim, PALAVRAS.
Há homens que compram.

43
Rimbaudiano

Não vendo explicações.


Sou um poeta:
Eu alugo armas.

44
Ofício

Não sou do ramo do comércio,


não sou do ramo da indústria ou dos transportes.
Sou do ramo das rosas.

45
Mote

Um homem sem um motivo


é um arsenal enterrado & apodrecido
d'armas duma revolução que inacontece

46
O Zepelim Salmão

Os motores queimando cada vez + propano


o azul celeste devassado, rasgado

Jesus ao leme, no coração


minh’alma cada vez + Oceano

47
Pew, o Cego

Jason Mason Midlesbrought Litton III


ou IV
às 05 h da manhã
está de pé, prestes a sair
para seu trabalho,
porteiro
No Castelo de Windsor
onde religiosamente serve
à Família Real Inglesa
de tão nobres varões assinalados.

Antes, como desde


seus zero anos
olha os retratos de sua família
quatro gerações
quatro honradas gerações
de serviços prestados
à valerosa Família Real,
salve-a Deus.

O primeiro retrato honra


Seu tataravô Eduard
morto na 1ª Guerra dos Bôeres.
Tombou como tombam os heróis da Pérfida Álbion;
foi empalado
e depois esquartejado e lançado às hienas.
Logo após temos Mathias Someller,
tio-bisavô distante, colono e soldado do Império,
morto na 2ª Guerra contra os Bôeres,
aqueles imundos cães neerlandeses.

Sucede-o no rol seu avô Jason Litton I, alfaiate


do Conde de Halifax, Deus o tenha!,
morto na Grande Guerra
junto com três de seus irmãos;
quatro heróis caídos ao naufragar
o navio de batatas que os levaria à batalha.

Deus salve a Rainha,


ele vê a foto de sua terna tia May,
enfermeira,

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flor primacial entre os patriotas,
múltiplas X estuprada & morta
na queda de Cingapura
para os japoneses
durante a Segunda Grande Guerra

E mais uma vez, como diariamente,


pontualmente
britanicamente
desde
seus 08 anos
lágrimas descem de seus
olhos piscianos
ou bovinos
séculos e séculos de bons serviços prestados
à Casa Real,
aos Eleitos de Deus
séculos tombando sobre séculos
de serventia

e em silêncio
Pew canta e recanta
o seu trecho preferido
do hino Rule, Britannia!,
a mais magnânima e perfeita
de todas as canções jamais gestadas:

“Governe, Britania! Governe os mares:


Os britânicos nunca serão escravos.” **

*Blind Pew, pirata, personagem de Stevenson em A Ilha do Tesouro,


referido alguma vez em Borges. De comum com o Pew de Stevenson-
Borges, este Pew aqui só tem a cegueira (neste caso, não física, mas de
alma, se as hienas possuem-na) e o nome, nome que aqui homenageia
dois mestres totais da arte de contar. Um deles decerto odiaria este
poema odioso: Borges nutria o obscuro sonho de ter nascido inglês.

** "Rule, Britannia! rule the waves:


"Britons never will be slaves."

49
Portões de Esparta

Portões de Esparta
estradas sulcadas
marcadas pelo arrastar de despojos

volto sem Orestes, Lísias e Aracturo:


há espartanos, sementes de tua expansão, ó Portão
enterrados por toda a Ilíria

Portões de Esparta,
braços de minha Mãe
é tão bom repetir essa palavra proibida,
‘Mãe’

tem misericórdia de mim

Veja, mãe,
um ateniense me deu esta lira
Sim,eu tenciono tocá-la,
se algum dos escravos puder me ensinar

Me perdoe também
por retornar tão limpo,
banhei-me no Eurotas
e lavei-me do sangue da campanha

Ao ver do promontório a curva de teu pórtico


lembrei-me dos rostos dos sessenta e oito que matei
e seus olhos repetiram-se diante de mim
como num oráculo, e vi os cem olhos de Argo
me olhando dentro

Você, que sempre preferiu uma ferida a um abraço,


você não tem outro olhar
que não estes dois pratos fundos de desprezo?

Em Cólquida, comi larvas


com neve e lembrei-me
da senhora e sua sopa negra

- Mamãe Esparta!!!

50
Sempre quis gritar isso
Tenha calma
Dissolva a ira,
Não estapeie meu rosto, senhora
sou um homem agora
e trago meu corpo mapeado
de cicatrizes, e todas elas
são inscrições de teu nome,
tatuagens do Hades

Se não filho, que sou-lhe, cidadela severa?


Um tipo de herói, um tipo
heroico de besta?

Sim, lembro perfeitamente,


“a ternura não te salvará na guerra”,
“mas a força de teu braço,
sustentando o escudo contra
a multidão de golpes”

Sim, eles sustentaram


seu filhote de lobo sobreviveu
à Guerra, esse oceano onde o sumo
de todas as veias deságua

2
Portões de Esparta
gravidez de lâminas
aborto coletivo do medo

Bom dia Esparta


clangor, troca de suores
bom dia

adestramento todo o dia,


bom dia noite nua e fria,
golpes sucessivos

bom dia espada,


escudo meu esquife,
mortalha de bronze

51
excelente dia ó sopa
negra e imunda,
fome mascarada
massacrada

Boa viagem soldado


volte com ouro e glória
ou sobre seu escudo

3.
Mãe, eu sei que esse nome lhe causa engulhos,
mas assim prefiro e de seu ódio assumo o risco
mãe, minha gélida-furibunda-única-mãe
eu queria não mais combater, mãe
queria lavrar como os que me ensinaste a desprezar,
amar lentamente a mulher que as Parcas me derem
sem partidas, sem despedaçamentos
vamos matar os persas e depois parar
parar de viver para matar
vamos lavrar, mãe
e viver longos anos

4.
Degreda-me então?!

Adeus meus amigos, adeus


Portões de Esparta:
tentáculos da Hidra
partam meu escudo,
harpias devorem-me enquanto parto
para que eu não use
a vergonha por cavalo

Ares, deus da cidade


Envie Nêmesis, envie
retaliação
Ares deus da guerra Ares
deus do caos abrangente
mova sua estátua, venha
até o pó venha
punir minha blasfêmia,

52
emudecer com seu grito
bestial a minha fruição de paz

53
Vaidade das vaidades

Como um punhal que nunca terminasse de entrar,


ou
Jormungand, a nórdica serpente-sem-fim que habita Midgard,
Apep, incansável cobra do caos egípcia que dia após dia tenta derrubar
o sol,]
Ouroboros, a cobra que morde sua própria cauda criando o infinito,
Satanás, a serpente edênica que rouba a morte e a dá ao homem:
eis a dor humana.

54
Jorge Luís Borges

Um cego inglês perdido


de sua(s) pátria(s)
pária em seu próprio elitismo

pós-paganista pulverizado
na espacialidade das bibliotecas

argênteo argonauta, (um) argentino


de tão misteriosa exceção,
um repetidor, um prestidigitador,
o fabulário, o crepúsculo,
o homem que foi Alexandria,
cabalas e runas,
um alquímico, um apossado
da barca de Caronte, do barco de Osíris

um tigre num espelho num labirinto


em Creta, em meu coração.

55
A Ilha (Secreta) de Patmos

Foi num dia em que eu estava, como já me era costumeiro, assentado


na praia deserta. Olhava absorto o mar. Ao volver a vista para ocidente,
vi de repente uma criança assentada na areia, construindo castelos.
Estava de costas para mim, mas virou-se no exato momento em que a
mirei, e pude ver-lhe o rosto. Era o rosto de um velho. Tinha um sorriso
sinistro na face, algo de meio maníaco, caricatural e doentio, como um
vilão de desenho animado. Uma máscara? Não. Ele erguia as torres de
seu castelo de areia com sofreguidão. Forçoso era admitir que a criança
era um prodígio; a perícia arquitetural de seu castelo era de
maravilhar, mesmo se fruto das mãos de um adulto. Ele soltava em tom
sempre crescente e intermitente grunhidos ininteligíveis, grunhidos
que eram como os de um bebê, num tom primal e indefinível, mas que
de alguma maneira me soavam familiares. Balbúrdia de chiados e
vozes que me impedia de sequer discernir quando ria ou chorava; seu
lamuriar era ora como grito, ora como canção; e houve mesmo
instantes em que eu julguei ouvir a abertura de uma ópera de Bellini,
ou um trecho de Espinosa... Após certo ponto, ao atingir o que parecia
ser o ápice de sua música caótica, ele golpeava com alegre fúria o
castelo de grãos de areia, de homens amontoados, que construíra. E
recomeçava outro castelo. E outro. Incansável em sua empresa.
Inamovível de seu sorriso doentio. Antigo e novo. Tinha também um
nome o menino, nome de funda raiz semítica, denotando talvez sua
origem: Satanás.

56
57
Poemas primários: São Gonçalo de Todos os Santos

Todo autor que se preze tem aquele livro da juventude que é


renegado, seja pela pouca qualidade, seja por mudança de
foco artístico/ideológico do autor, seja por pura birra. Eu
possuo o meu livro de juventude, o pequenino e terrível São
Gonçalo de Todos os Santos (1999). Realmente muito ruim e
prematuro. Mas alguns poemas tinham alguma qualidade, e o
poema Apologia D’Eu conseguiu até boa aceitação.
Aproveito pois este livro que é uma coletânea do bom e do
trash e publico aqui alguns dos poemas do livro, inclusive o
poema Diz, que gosto de considerar meu primeiro poeminha
‘de verdade’, quando escrevi, gostei e, do alto de meus 15 ou
16 anos disse: doravante farei isso. Afinal de contas, a
adolescência é a idade da idiotice, geralmente cavalar - como
são cavalares os hormônios que ribombam no corpo juvenil.

Ilustração a nanquim para a folha de rosto do livrete

58
DIZ

Silenciosas tábuas
talvez seu amor inconstante
por isso desesperei.

Agora
entre cubos de pedra
encontrei irmã
com dengos, com frescuras, com talento
sei lá com que.
Mulher vermelha, como todas.

Mas não foi a isso que vim;


os estiletes
seu coração ainda está aí?

Os frangalhos de meu ego


como explicar?
A lotação cheia...
Lotada? É, lotada.
É, inferno.
É, é vida.

59
Apologia D'Eu

Eu também
vendo balas
na rua

eu também
finjo não saber nada
disso

eu abro uma guerra


com uma espada
em seu peito

eu fecho a guerra
com um único beijo

minha noite
tem mais lobos

60
A Suíte do Tempo e da Morte

A suíte do Tempo e da Morte


os deuses reunidos em nosso túmulo
e aquele
que não toca instrumentos
aquele
que manipula espadas
pai do velho avô que nos conta
lembranças da Guerra Perdida
recordamos com o seu sangue
seus irmãos que a Guerra
ofereceu à Morte
filha bastarda ela

toda aquela repetição do Tempo em seus olhos


me lembrei
de quando cavava covas
para enterrar samurais no Sol
já cavei a cova daquele homem
enterrado com coras e espadas
três espadas que não brilhariam
mais
sob o olhar do Sol

o vejo ali
todo o Tempo
se repete em seus olhos

o Jonin vive
por todos os samurais que fomos

61
Tolices

Tola que és atolada na lama


de que vale planejar a Realidade?
Realize seus planos, a Realidade vos seguirá,
num uníssono azul
e tolo.

O cheiro de incenso que permeia


o não sei é mago,
abre portais e invoca demônios tolos,
sujos de lama e de seus pensamentos.

Disse uma vez, mais jovem:


“Lacrimejar não salva.” Ainda vale,
já que não sabemos fechar o portal.

62
Do Asfalto

Sou tempo
um jogo
sou uma rua dura de asfalto
sou Ernest Hemingway...

63
64
Reflexões, Frases & Flashes
Algumas frases e reflexões mais ou menos sérias, mais ou menos
válidas, menos ou mais - ou não - datadas, geralmente
publicadas como posts no Facebook, eventualmente em algum
blog. Ou inéditas.

*** *** e *** ***

A poesia é um esfoliante natural para os corações


empedernidos.

*** *** e *** ***

A sua sensibilidade precisa ser alimentada, assim como você


alimenta um cão, um amor, uma fornalha.

*** *** e *** ***

Alguns de nós, se por um instante investidos de super-


poderes, e encontrando-se face a face com o Adversário, ainda
assim continuariam a fugir e a clamar, como ovelhas que são;
alguns outros, igualmente ovelhas, na mesma situação, lançar-
se-iam sobre ele e (apoderando-se do que são, do que podem e
do que devem) retalhariam(-lhe) tudo que pudessem, e
transformariam o fogo de que ele é feito em pó espiritual...
Acontece que ele pode discernir uns de outros, dentre o
fabuloso rebanho de ovelhas: aos primeiros ele chama de
'presas'; para os segundos ele tem uma designação toda
especial: 'inimigos'.

*** *** e *** ***

65
" Temo o dia em que a tecnologia se sobreponha á nossa
humanidade: o mundo terá apenas uma geração de idiotas ". -
Albert Einstein

Em meu pensamento, vejo claramente que avançamos para


isso, e mais especificamente: para paraísos de realidade
artificial (virtual) onde os que tiverem condições ficarão
imersos, vivendo sonhos, e só quem não puder pagar lidará
com o mundo real... ninguém precisará de drogas, precisarão
de uma ou duas horas na 'Matrix', fazendo de conta que se é
Napoleão, o dono de um harém ou um pirata no Caribe...
Sou partidário da tecnologia, mas olho lá na frente e vejo no
que ela vai dar: no sonho da humanidade caída, recriar o
Paraíso sem Deus - assim acaba a escalada tecnológica. Não
vejo avanço além disso. Será como uma pandemia
alucinógena, quando máquinas puderem simular à perfeição
(induzindo respostas biofísicas nos corpos dos usuários)
realidades artificiais. Mas creio também que Cristo voltará
antes.

*** *** e *** ***

Não é sem ousadia que digo: sirvo a um Deus tão grande, um


Deus tão Deus, que Ele me salva até mesmo quando eu quero
me perder. Um dia em que já não suporto vem um anjo e me
barra a passagem, interpondo uma rosa em meu caminho;
noutro dia em que já não suporto vem um anjo e me dá uma
pesada, um (não há pecado em dizer) verdadeiro coice nos
peitos, um vade-retro, gurizão. E que me importa? Em cada
flor, em cada palavra, em cada golpe sei que é Ele que insiste,
é Ele quem me recolhe pela gola como uma mãe cata o filho
embriagado caído na sarjeta... É Ele quem diz, alta e
pausadamente, como quem fala a um surdo:
N Ã O M O R R E R Á S.

***

66
Nada na vida como a amizade, nada como passar e cruzar seu
olhar de paz com o olhar de paz de seus amigos.

*** *** e *** ***

Boa ação não salva, mas dá prêmio: ser um homem bom


demais é candidatar-se ao céu e às punhaladas.

*** *** e *** ***

Que preço você tem pago?


Há quanto tempo?

Que importa?
O Cordeiro é digno.

*** *** e *** ***

Status: CRUCIFICADO.
Mas quantas e quantas vezes, num único dia, eu
miseravelmente esqueço-me disto? Misericórdia Senhor!

*** *** e *** ***

A vingança é a continuação do crime, a extensão cancerígena


do pecado.

*** *** e *** ***

A forma mais segura de construir o Futuro, é construí-lo


dentro de nossas crianças.

*** *** e *** ***

67
Crianças, raciocinem comigo: Quanto mais sábio e instruído
um homem, ao errar, mais passível de punição ele é. Simples.
Mas porque a Lei brasileira reserva prisão diferenciada (ainda
que temporária) para quem tem diploma de nível superior?
Essa é a lei mais ridícula, suja, elitista, o mais imundo caso de
'legislar em causa própria' que nossos 'legisladores' nos
legaram... nosso corpo de leis é um corpo violado. O estranho
é que ninguém levanta essa bola, ninguém denuncia a
inversão, a imundície. E há quem acredite que o inferno não
exista. Existe sim, ele é quase um requisito axiomático para a
Humanidade... Afinal a Justiça, a tão falada, tem que existir de
verdade – e em algum lugar.

*** *** e *** ***

Terá sido por ódio silencioso contra a Realidade que alguns


construíram obras de fuga (LITERATURA) tão poderosas?

*** *** e *** ***

Brecht era ateu e comunista, mas sem ler Brecht, como você
afiará percepções e argumentos contra os que te oprimem?
O que quero dizer é: o homem é bichinho que precisa de
muito, precisa de muitos.

*** *** e *** ***

Uma pequena luz, ainda que a mais débil e fugaz, representa


um evento cataclísmico e revolucionário, quando deflagrada
nas trevas. Pois um lampejo que seja é capaz de mostrar à e na
escuridão que há algo além da própria escuridão, algo
superior, amável, anelável - mesmo que a princípio cause
efeito contrário, de repulsa e mesmo ódio. Brilhar nas trevas é
permitir à escuridão enxergar que o frio que a envolve não

68
vem de braços, mas de correntes. Brilhar é manifestar a
Verdade, e a verdade o que é, senão o Salvador?
Faça o bem como estiver, onde estiver, como conseguir.
Mesmo ferido, mesmo sozinho, deflagre luz, soldado de Cristo!

*** *** e *** ***

O mundo só sabe fazer uma única coisa: dar voltas. Gosto


disso. Pouco a perder, pouco medo. Muito a perder, muito
medo. Fé experimentada, aniquilação do medo. Aguardo
tomando meu café e escrevendo o próximo poema, a próxima
volta que o mundo dará. E a outra. Com suas surpresas, suas
novidades ou inesperadas reprises. Ainda que a próxima volta
venha encontrar-me numa cova ou numa prisão – como
esperar menos de um jogo? Roda, pião.

*** *** e *** ***

Ser serrado ao meio? Ser lançado ao poço? Ser espancado,


fugir para o deserto, ser engolido por um peixe? Sofrimento
físico algum se compara ao sofrimento moral, simplesmente
porque em relação a este é muito, mas muito mais difícil
resignar-se. Um homem pode se resignar à dor, há honra
nisso. Mas não há honra qualquer na humilhação. Não houve
então jamais profeta como Oséias.
Se um dia você for pregar sobre isso, me convide pra ouvir.
Nunca vi ninguém levantar essa bola.

*** *** e *** ***

A catástrofe de uma catástrofe não é a própria catástrofe, mas


a existência de um Universo onde as catástrofes são possíveis,
desde o início. Claro, há quase (quase não é ser, quase é roçar)
uma heresia aqui, ou uma definição parcial para a Liberdade.
***

69
No final, no último dos reducionismos, percebemos que há
somente dois tipos de homens: aqueles que lutam por uma
causa, e aqueles que lutam por uma coisa (geralmente, eles
mesmos).
Tristeza do céu, vergonha e amargura da terra, é ver tantos
cristãos militando na segunda opção.

*** *** e *** ***

Autoajuda barata num posto de gasolina em Vegas


Dê o seu melhor: Jamais serão lançados outros dados, além
deste único dado uma vez lançado, que ora voa, e é você.

*** *** e *** ***

As paredes do Sonho amanheceram pichadas


GREVE GREVE GREVE
Protestam as Musas

*** *** e *** ***

Quer saber se você é realmente prisioneiro de um simulacro?


Belisque agora o seu braço. Se doer, seja bem-vindo: só há dor
no Provisório. Não haverá dor alguma no estado Eterno
(Realidade das Realidades); ela (a dor) perderá totalmente a
razão de ser: o que não pode ser destruído não precisa de
mecanismos (internos ou externos) para garantir sua
autopreservação.
Pois a dor que nos açoita é a princípio apenas isso, mecanismo
para garantir (forçar) a sobrevivência do simulacro-corpo, do
simulacro-ente. Mas até esse princípio de salvaguarda pode
ser ignorado (mártires, suicidas por processos
violentos/lentos/dolorosos), ou desvirtuado (como ocorre
por exemplo na Síndrome do Pânico, talvez a patologia mais
absurda a nos ridicularizar perante nós mesmos e o próximo).

70
***
Quem precisa de Freud? O anseio de toda mulher é ser centro;
o anseio de todo homem é retornar ao estágio mítico, ao
estado-de-herói.

*** *** e *** ***

Se não se pode escapar de uma prisão, todos os esforços do


indivíduo são invitados no sentido de suprimir a consciência
da prisão, para camuflar a visão das grades. O que os olhos
não veem, o coração não chora. Assim caminha (em círculos
concêntricos) a humanidade sem Cristo, levando de arrasto
alguns cristãos...

*** *** e *** ***

(In)direta para um jovem amigo:


Sim, ela é linda. E amorosa como duas mães. E os olhos dela
colocam sua atenção em órbita, prisioneira da gravidade
deles.
Mas Deus já falou: essa não. Não é para ti. Nem ela nem a
esteira de problemas e dor que ela arrasta após si. Sei, sei,
pode-se ver: ela é o próprio amor encarnado, a compreensão e
a cumplicidade em pessoa, uma criança de alma em toda
aquela estrutura de mulher, eros e philos num único corpus. E
os&olhos...&ah.
Mas você vai peitar a Soberania? Vai de encontro à Porta?
Cantará como naquela música (Iris) do Go Go Dolls, "trocaria a
eternidade por você"? Por uma mulher, amigo?
Corra, amigo. Não tente enfrentar. Enfrente homens,
demônios. Já o fizemos antes. Dela você simplesmente corra,
corra mais rápido que Timóteo.
Ou depois não venha chorar na minha porta, ou na Porta que
Ele abriu em Nazaré. Espere pacientemente nEle. Enquanto
isso faça a boa obra, e quando estiver de boa vamos jogar

71
videogame para matar a saudade. De seu amigo de sempre,
Sam. Sem constrangimentos.

*** *** e *** ***

Quando olhamos para o início da Bíblia, vemos um Paraíso; e


depois vamos até a última página, ao livro de Apocalipse, e
estamos de volta ao Paraíso. Mas e toda a dor, todo o miolo
entre este início e o fim da História? Será justo afinal todo este
foco que damos a nossas próprias dores, dúvidas e decepções?
Há um Final Feliz! Isso lhe basta? Somos órfãos, no último
instante adotados, fazendo uma aparentemente longa, mas na
verdade fugaz viagem: uma viagem em direção ao mais feliz
de todos os finais. Órfãos de posse de um salvo-conduto de
Sangue, indo em direção ao Lar, à Família, ao PAI.

*** *** e *** ***

E a Queda criou a Máscara: juntas até o fim!

*** *** e *** ***

E o que afinal é a Queda, senão um kit de máscaras?

*** *** e *** ***

"As portas de meu coração estão de certa forma obstruídas,


embora não as minhas ações. Não fechei a porta - a porta
cerrou-se durante um desabamento; observo-a, a estranha
porta assoreada, com langor e enfado, e não tenho sequer pá
para cavar, ou interesse e força para reavivar os calos de
minha mão, com o trabalho bruto que abrir este tipo de
caminho exige. Quando me apraz, saio pela janela para
observar o céu. Sei, não é o ideal. Mas preciso avisar a quem

72
bater na velha porta, pois a espera do lado de fora, na
intempérie, pode frustrar. É um risco. Seria um desrespeito de
minha parte não dizer isso, não esclarecer a quem interessar
possa. Longe de mim frustrar, entristecer, confundir."
- Jurngën Skarsgaard, psicanalista dinamarquês morto na
Segunda Guerra (não procure por ele no Google...)

*** *** e *** ***

Na Arte, o grande gênio anda mais próximo da bestialidade do


que gostaríamos de acreditar.

*** *** e *** ***

Há uma fragilidade que gera imediata empatia; outra


fragilidade há que gera imediata repulsa, mesmo nojo. Por que
será?

*** *** e *** ***

Deixar de compartilhar a verdade com medo de magoar o


ouvinte, é acabar magoando a verdade.
E a verdade não é uma relatividade ou generalidade, mas uma
singularidade, um ‘norte’ fundacional para todas as coisas. Ao
fim e ao cabo, a verdade é uma pessoa: Cristo, de onde toda
verdade emana.

*** *** e *** ***

Uma vez, lembro como se fosse hoje, eu estava sentado no


chão de minha sala, e levantei-me para ir ao banheiro. Ao
cruzar com o espelho, meu Adversário, posto do outro lado do
mesmo, me olhou nos olhos e disse "Xeque." Fiz o esperado:
soquei o espelho, mas não atingi aquele que Deus em sua

73
soberania preferiu que fosse intangível para socos. E após isso
não havia nada a fazer, senão re-iniciar a cada dia com aquele
sorriso na mente, aquela palavra. E continuar a combater. E
combater. E descobrir que a proteção que eu imaginava
existir, era uma fábula, um mal-entendido inoculado por uma
igreja doente. Amadureci mil anos. Outros dizem que morri.
Mas ainda estou aqui, e Deus está em sua soberania celeste.
Ainda rolam os dados, e não há mais nada a perder, nada que
não tenha sido perdido ou maculado. De filho fui alçado a
soldado.

*** *** e *** ***

Às vezes você olha, e há um corpo estranho na igreja. Hora de


abraçar, vigiar e orar.
Às vezes você olha, e a igreja é um corpo estranho. Hora de
orar, vigiar e abraçar.

*** *** e *** ***

Vai formar uma equipe? Teste antes os espíritos.

*** *** e *** ***

Não há nada de original na escuridão.


Com o tempo e o sofrimento necessários, você descobre que a
escuridão é apenas um sistema de espelhos.

*** *** e *** ***

Me perdoe por todos os atalhos que tomei. Por dormir na


praça como um cão. Soldados não procuram abrigo, não
mendigam abrigo: soldados constroem abrigos.
***

74
Conheces-me desde antes daquele ventre, antes da
materialização. Nasci em Teu coração no Dia anterior aos dias,
o Dia que tornará. Pela Palavra, para a palavra me chamastes.
Minha ambição única é empossar palavras que possam sequer
aproximar-se de expressar as periferias da Tua Glória – como
uma criança correndo descalça pelas ruas de chão, que estica
e eleva as mãos ofertantes, e estica e eleva o louvor de seu
sorriso, e expande e expande seu sorriso, sem medo algum,
tentando tocar o Sol.

*** *** e *** ***

Sim, sim, ELE não faz acepção de pessoas. Apenas confere a


cada um meios de enxergar ângulos variados do mesmo
horizonte. E conforme você vê, você faz.

*** *** e *** ***

Só posso conhecer um homem numa situação extrema; só


conheço um homem depois de observar, quando prestes ao
precipício, qual partido ele toma.

*** *** e *** ***

Parece-nos que o tempo de Deus demora, pois nosso tempo


medimos em distância, e o dEle é medido por instância e
sincronicidade.
Mas um dia o trigo estará maduro na espiga, e Ele enviará o
anjo para a colheita.
Livra de tosquenejar o anjo que vela minha seara, Senhor; e
contempla: meus instrumentos de arar já estão embotados, e
o acalanto que existe para renovar-me, faz cada vez menos
efeito, menos sentido – e isso é fel quando o considero em
meu coração.
***

75
Perco as chaves de minha casa; insciente tenciono não mais
voltar. Mas moro sozinho, e de mais a mais, como NÃO voltar
se não existe um IR? Toda a Terra foi-me dada por lar, quando
em Adão fui expulso do Jardim. Em cada esquina posso
encontrar uma mulher que me ame, em cada subúrbio ou
grande burgo, uma senhora que aprecie meu espírito ordeiro
e minha despedaçada ternura, e seja-me por mãe.
Disposto ou cansado leitor, você talvez pense na hostilidade
do mundo lá fora – mas irmãos apunhalam irmãos no seio
flácido do melhor dos lares, e um me apunhalou no meu.
Vivo sob a Graça, mas o meu espírito ordeiro demais
(Eclesiastes 7.16) embaraça-me e me atrapalha, e por dias,
como um judeu errante ou um crente judaizante, arco e
tropeço e tombo sob o peso de todas as Tuas tantas Leis,
Senhor.

*** *** e *** ***

Deus é o Deus que ordena que se ame não apenas os inimigos


manifestos, mas igualmente o agente duplo, o de pensamento
& coração dobre.
Nietzsche dizia e escrevia que o cristianismo é a religião dos
fracos. Errou: é preciso entrar no estreito, é preciso envergar
o jugo suave, para entender o nível de forças que o verdadeiro
cristianismo requer. Pois no Universo do Deus ágape, amar
em verdade é a maior manifestação de poder, é a ação que
requer mais poder, dentre todas ao alcance de homens e
também de anjos.

*** *** e *** ***

A felicidade terrena é uma fruta que dá e passa. Aproveite a


época.

***

76
Mulher que se contenta com pouco e sabe estar feliz, quem a
achará? Seu valor em muito excede o de rubins.

*** *** e *** ***

Sei lá de novela. Eu leio Borges e assisto Naruto, sempre em


busca do élan épico que dá tino ao homem. Veadagem é o
cúmulo do anti-épico, que me perdoe Alexandre...

*** *** e *** ***

O marginal, a(s) namorada(s) do marginal, e a mãe do


marginal. Você precisa entrar numa favela para ver como eles
formam uma verdadeira trindade... já vi mães ligando, com a
maior e mais cúmplice frieza, para o filho para avisar que 'a
polícia tá entrando'. Mas sem qualquer afetação, uma coisa
fria, de comparsa mesmo. E aí passa o carro dos policiais e ela
resmunga pra amiga, "hoje é plantão do Nelson, aquele filho
da p©©©..." Alguém precisa escrever uma tese sociológica
sobre isso, sobre essa trindade de aceitações e marginalidade.

*** *** e *** ***

Assassinaram-no! Assassinaram-no! No metrô da Paulista,


com trinta e dois tiros o Status Quo!

*** *** e *** ***

Não somos ninjas, mas apenas porcos: como apagar nosso


rastro?
E ainda assim, o que não se revela pelo poder escancarado ou
sutil das próprias evidências, há de ser revelado naquele Duro
Grande*Dia.
Quem está de pé, cuidado para que não caia.
***

77
Seu medo de morrer é a maior ofensa, e em si mesmo a
perfeita negação, de tudo aquilo em que você diz (e muitas
vezes realmente acredita) acreditar. Pastor, profeta ou
neófito, não importa: há algo de torpe em sua base. Repense(-
se). Reafirme a morte e ressurreição de Cristo em sua vida, em
seu entendimento, em sua atitude em face a tudo. Entenda
quem você é, entenda que não há morte alguma para você.

*** *** e *** ***

Se você tem muitos pontos fracos, Satanás vai pulverizar o


ataque, serão medianos golpes, intercalados, cada um numa
ferida. Devagar e sempre, será a estratégia. Agora, se você tem
um único ponto fraco, ele deve ser um grande ponto, e por ser
único, um aviso: prepare-se para o impacto, pois ele pode
demorar, mas te atingirá com um cometa. Orai sem cessar...

*** *** e *** ***

Esconda melhor seus preconceitos, pois numa rede social ou


na esquina as pessoas podem ler nas entrelinhas, e traduzir
seu discurso. Ou melhor, abra sua mente e livre-se deles, deixe
que voem de volta para o inferno.

*** *** e *** ***

Desconsidere as aparências, isso faz parte de não julgar. Deus


tem um prazer persistente e sutil em fazer acontecerem coisas
INACREDITÁVEIS através de pessoas DESACREDITADAS.

*** *** e *** ***

O que representa a especificação de uma data, senão uma


arbitrariedade? O Tempo é um monstro - segmentá-lo o

78
civiliza? Não. Con-tinua monstro, um monstro inviolavelmente
con-tínuo.

*** *** e *** ***

Avaliadas as probabilidades, você conclui que o dia vai ser


tenso? Faça uma oração reforçada (2X) e ouça sua banda
favorita. Maximize-se. Depois desça lá & arrase. Inunde
lugares e situações com a luz dEle, que opera através de você.

*** *** e *** ***

Se não confio em bancos, se não confio - de um oficeboy do BC


ao dono do Bradesco - no sistema financeiro, confiaria em
uma nuvem? Hospedar arquivos em nuvem, apenas o
sumamente$necessário.
A frase é de meu cão Rex, o Cão di Drácula: Se um sistema onde
você esteja pretensamente inserido escapa (independe)
totalmente ao seu controle, ele não é um sistema, é um monstro.
E5monstros6têm6fome.
Meu cachorro tem um lado sinistro.

*** *** e *** ***

E quando fazer o que é certo implica em infelicidade


duradoura? E quando a cruz é banhada em chumbo, o que me
diz, amigo-da-cruz-de-papel? Nem se quisesse teria o que
dizer, insofrido amigo. Independente de quem seja, dos anos
de magistério eclesiástico. Não teria como saber como é estar
como Abraão ao pé do monte, pegando pela mão a Isaque para
sacrificá-lo, imerso na própria substância do absurdo...
Como Kierkegaard, o pai de dois séculos, esclareceu em
Temor e Tremor: a fé é um salto para dentro do absurdo. Um
voo sem escalas, objetivando, ao projetar-se sobre o absurdo,
alcançar&o&Deus-que-transcende.

79
(E você, amada criança, não tente entender; volte para dentro
da felicidade fácil, rogue ao Misericordioso para que você não
cresça. Ele nos ama e é fiel para poupar-te.)

*** *** e *** ***

Debele as mágoas, desbaste espinhos: acrescente hoje flores à


sua linha do tempo.

*** *** e *** ***

Há rei que peça que você mate; há Rei que peça que você
morra. Inevitavelmente um desses dois vai definir seu estar e
seu&porvir.
O que lhe solicita que morra é na verdade Senhor da Vida, e a
dará a você, a Vida além do tempo, além do calculável.
O que ordena que você mate, ao fim e ao cabo nada pode,
senão morrer contigo, e arrastá-lo para compartilhar para
sempre de seu castigo, o castigo dos usurpadores.
Pois só existe um Rei.

*** *** e *** ***

Amar é abaixar a guarda. Amar é expor-se. O amor é a soma de


três dos quatro braços da cruz. E Ele diz: pegue a sua e siga-
me. Exponha-se. Doe-se.

*** *** e *** ***

Dia vem em que você vai 'abrir' um livro e ele vai pedir login.
E, baseado em suas preferências globais, num sistema
parecido com o que Google ou Facebook rudimentarmente
usam, para direcionar-lhe propagandas personalizadas
conforme seu perfil, ele vai configurar a história,
'especialmente' para você. Um livro não terá 'uma' história:

80
um livro terá campos probabilísticos de narratividade, como
eu gosto de conceituar. Espere só um pouco. Espere a
inteligência artificial dar o próximo salto.

*** *** e *** ***

Às vezes dá pra sentir a música da escuridão, ela fala de


liberdade no estranhamento, de não-racionalidade, de fruição,
de mergulhar numa dimensão etérea da realidade, não
legislada (nada de Leis), não traumática (nada de Dores), não
hierarquizada (sem Deus e sem Estado), seja humana ou
espiritualmente. Já que nada direto, racional, nenhum
construto da honra ou do pó, convenceria a alma do poeta que
percebe a estatura de seu inimigo, ele (o inimigo) tenta com
música feita por não-instrumentos, metafísica ao cubo, o
inverbalizável. A tentação no inverbalizável, a velha tentação
do não revelado, do que 'só pertence a Deus', repaginada com
trajes6transparentes.
Com outros, basta dinheiro, mulheres, coroas de pó, figura
bonita num espelho, um simulacro de felicidade numa criança
no colo, um bom emprego, ser melhor que o vizinho, ou o
africano. Cargas menores deixam-se para as crianças: há
cavalheirismo em ti, adversário da vida? Nem nisso há
engano.

*** *** e *** ***

Deus existe e legisla: o suicídio não é uma opção.

*** *** e *** ***

Não adianta olhar de cima do poço, procurando entender o


que acontece lá embaixo. É preciso descer. Se você sobe a uma
tribuna para falar sobre o fundo de lama do poço, mas nunca
sofreu sua viscosidade, de que você fala? Serão palavras

81
políticas, retóricas. Não quero que você 'caia' no poço; mas
apenas que não julgue o mais fraco, ou mais forte, pois sofreu
mais que você.

*** *** e *** ***

Aquela encruzilhada onde, impotente para optar pela líquida


& perfeita virtude, você é forçado a escolher dentre, dos
males, o menor. Recarregue a arma, atenção com a
retaguarda: e seja bem-vindo à Queda.

*** *** e *** ***

Trafego entre estreitos. Impossível evitar as trombadas.

*** *** e *** ***

O que é a Eternidade? A morte do Evento?

*** *** e *** ***

Aquele momento triste de sua vida quando você, cansado,


queda-se cabisbaixo e pensativo, e com um laivo de amargura
transindo seu circunspecto coração, conclui que tudo o que
você precisa neste momento é... comer uma pizza. Portuguesa.

*** *** e *** ***

Há uma lenda terrível dos índios Papaliroches (Indonésia) que


diz que a princípio mulheres não deveriam existir, e homens
deveriam nascer em jacas. Essa lenda inconclusa (pois não
esclarece por que não foi assim, afinal) diz que se assim
fosse, e Deus optasse pela partogênese vegetal de sua criatura

82
(nesse caso) monossexual, ainda estaríamos dentro do
Aalmafai, o ‘Éden’ da cultura deles, numa boa...
É uma lenda maligna, queridos, com certeza. Imagine, homens
nascendo em jaqueiras. Imagine também estar agora no
Jardim do Éden. Bem, quem sabe.

*** *** e *** ***

Liberdade é liberdade praticada.

*** *** e *** ***

O capeta não desiste, não se cansa. Quando você


inocentemente pensa que ele jogou a toalha, o dia seguinte
vem e lá está ele de pé, uniformizado e pronto para outra.
Satanás deveria dar palestras motivacionais. Iria fazer
dinheiro e escola.

*** *** e *** ***

O Destino faz a parte dele. Nós é que muitas vezes não


fazemos a nossa.

*** *** e *** ***

E cá estamos nós, onde céu e inferno coabitam, ora em


imunda peleja, ora em imundo conluio.

*** *** e *** ***

Não existe celebração sem música. Não foi o anjo luciferino,


como alguns gostam de referir, quem criou a música, mas foi
Deus. O Universo inteiro é uma celebração de Sua glória, e a
música o permeia, como sangue numa veia.

83
***
Se não há nada a dizer, sustente o silêncio: ele é uma cortina
de ouro capaz de encobrir e proteger o maior dos idiotas.

*** *** e *** ***

O sangue de Jesus tem poder. Poder para libertar os cativos.


Também e poderosamente, os cativos nas engrenagens do
sistema.
Não pretendendo aqui desconsiderar a dimensão espiritual,
mas pelo contrário, completamente abarcando-a, pois
sabemos ser ela a base invisível e sustentáculo de toda a
opressão e injustiça sociais. Mas Satanás é espírito, e como tal
precisa de instrumentos: todo sistema de dominação indébita
começa no inferno e avança, de baixo para cima, expandindo-
se do espiritual e materializando-se em leis, sistemas,
oligopólios, conciliábulos... Tornando a corrupção humana, o
próprio estrato da Queda, em algo institucionalizado,
legalizado, ‘INDUSTRIALIZADO”, coberto por uma fachada que
muitas vezes a própria religião endossa. Se você acredita no
Deus de Israel e não noutro, lembre-se: Ele é o Deus dos
órfãos e das viúvas. Vá e descubra o que isso significa.

*** *** e *** ***

Covardia não é prudência. Há pessoas que passam a vida


inteira sendo covardes e tem-se a si mesmas em alta estima,
crendo firmemente que são prudentes. E o pior: transmitem
esse ‘valor’ aos filhos. E assim perpetua-se culturalmente a
servidão ao medo. Prudência é avaliar realisticamente a
totalidade das possibilidades e perigos e agir sobre o avaliado.
Medo é basicamente não agir ao menor sinal de perigo.

***

84
Que a sua dor não seja vã. Que, de LATÊNCIA, ela torne-se
sempre GESTAÇÃO. Que suas lágrimas sejam o ácido que
dissolva as paredes de sua crisálida. Que suas lágrimas
pavimentem de bons motivos o caminho para sua liberdade.
Liberdade dessa dor e dos que a semearam.

*** *** e *** ***

Ei! Ei, pidão! Deus é mais que as promessas de Deus.

*** *** e *** ***

Estou preso a um gênero, preso a uma espécie, preso a um


planeta, preso a um tempo, preso no Tempo

mas adoro falar de liberdade

*** *** e *** ***

Eva ofereceu a maçã a Adão. Sara ofereceu Hagar a Abraão. Os


resultados - nefastos, incontornáveis - estão marcados a ferro
na História.
O inimigo mais sutil é o inimigo INVOLUNTÁRIO, é a
SOMATÓRIA entre o tolo que aconselha e o outro tolo que
acata.
E você, que ‘presentes’ e ‘conselhos’ tem recebido? E o que
tem ofertado? Aconselhe-se primeiramente com Deus, busque
primeiramente em Deus conselhos para repartir!

*** *** e *** ***

Não importa saber donde nasce o sol, importa saber que ele
inexoravelmente*nascerá.
Não importa saber quando o Cristo vem; importa apenas

85
atentar para os sinais da Sua vinda. Importa crer que a
plenitude dos tempos se aproxima.

*** *** e *** ***

A história humana poderia ser resumida em três eventos: A


Queda humana, o natalício de Cristo e a volta de Cristo, ou
seja, a morte da História. Os demais eventos, os intermezzos,
são meros prelúdios e poslúdios para o Apocalipse.

*** *** e *** ***

A Literatura é um tipo de engenharia especializada em asas.

*** *** e *** ***

Os livros são as células-tronco do organismo dito Civilização.

*** *** e *** ***

O livro é um tipo de tijolo de antimatéria, usado para


DESconstruir prisões.

*** *** e *** ***

Prosa delimita, Poesia ‘ilimita’.

*** *** e *** ***

Atenção, leitores:
O estado do Poema é (gr)ave.

***

86
Na gramática de Deus, igreja é um substantivo que não
comporta plural.

*** *** e *** ***

Gosto muito de flores. Elas falam poderosamente de Deus.


Milhões de formas, tamanhos e cores diferentes... A ciência,
em sua empírica frieza, pode crer que as cores são um
mero(?) elemento funcional para atrair os insetos. Sim, isso,
mas não apenas isso: os insetos podem ser (e o são) atraídos
pelo cheiro, e por outros fatores. Para mim as flores são uma
demonstração GRATUITA de Seu poder, uma 'prova
sorridente'; simples, mas lindos e universalmente
disseminados MEMORIAIS. Ao vê-las de perto (gosto de tocar,
'analisar') lembro-me inevitavelmente dEle.
Cada flor é um mini-outdoor onde um Deus silencioso
sussurra: “Ei!”

*** *** e *** ***

Convive-se com o cisne, admira-se o reflexo das palavras do


sol em suas penas negras, a arquitetura curva de seu altivo
porte, a paz de seu avanço... sim, ele dá sinais, mas é belo, e
somos humanos, um tipo todo especial de tolos: tomamos
sempre beleza por saúde. Até que ele canta, e canta para
morrer, e já é tarde demais para um abraço.

*** *** e *** ***

Acumule tesouros que os lobos não podem rapinar – acumule


no refúgio secreto o quanto puder e não puder, toneladas do
único ouro que existe: ALMAS de homens salvos!

e
87
88
Esparsas prosas

Sobre essa menininha, a Esperança


Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio e cuja
esperança está posta no Senhor, seu Deus.
Salmos 146:5

Uma das chamadas três virtudes teologais, citadas pela apóstolo Paulo
em 1Co 13.13 (ao lado da Fé e do Amor) a Esperança é, das três, talvez
a virtude menos considerada, e no entanto parece-me ser a mais
inatamente presente no ser humano.

Mas quem é essa menina, essa força invisível, esse brilho nos olhos que
é a Esperança? Por que a Esperança resiste tão fortemente, mesmo
esmagada e esquecida no fundo de uma cela? Mesmo de joelhos
dobrados à coronhadas, mesmo diante do pelotão, com armas
apontadas para sua cabeça de olhos vendados, inchados de tanto levar
socos, torturada? Mesmo diante do sorriso imundo de Satanás, como
essa força, essa menininha, a esperança no escape, a esperança no bem,
a esperança no Altíssimo, resiste no subsolo deste edifício implodido
que é o homem? Tenho uma definição para a Esperança: Rebelião
contra a Queda.

A Esperança, a inata (por Deus plantada) rebelião contra a Queda viva


no coração humano, quando alcança a graça de encontrar seu objeto na
epifania (manifestação física da divindade) Jesus Cristo, torna-se de
Rebelião em Revolução. Mas ainda em estágio de Rebelião, manifesta-se
já sua maior singularidade: a Esperança humana, mesmo antes do
nascimento de Cristo e mesmo para aqueles que, ontem ou hoje, nunca
o conheceram, é já Cristo abraçando o mundo por toda a extensão da
história, do homem; é ela própria a ‘eternidade que Deus pôs no coração
de todo homem’ (Ec 3.11).

Talvez você tenha já ouvido falar no Fator Melquisedeque, um conceito


fundamental em Missiologia, e que foi proposto pelo antropólogo Don
Richardson, em seu livro de mesmo nome. Num resumo wikipediano,
lê-se que “O Fator Melquisedeque é designação dada à consciência
universal da existência de um Deus único, entre as diversidades de

89
expressões culturais e religiosas dos diferentes povos e civilizações ao
longo da história.” É como um ‘gancho’ deixado por Deus em cada
cultura, para facilitar a posterior assimilação da Revelação do
Evangelho.
Pois entendo nossa menininha, a Esperança, como a expressão básica,
elementar, a molécula feita e utilizada para erigir no homem aquilo que
Don Richardson definiu como o Fator Melquisedeque.

Uma outra metáfora: a Esperança como os tijolinhos que formam o


templo vazio que nasce junto com cada filho de Adão, templo este que
tem o tamanho exato de Deus, pois feito sob estrita medida. O homem
nasce um templo vazio, mas feito de Esperança. A Esperança, tudo o
que nos restou, é o edifício pronto para recebê-Lo (a Deus) em nós. A
Esperança é a mão que em nós o Espírito Santo usa para segurar o
outro lado da corrente, a Mão de Deus.

Jurgen Moltmann, teólogo alemão, proponente da principal corente da


assim chamada Teologia da Esperança, e que, soldado da Alemanha
derrotada na Segunda Guerra, foi mandado para campos de
prisioneiros de guerra na Irlanda, nos diz:

“Vi homens nos campos que haviam perdido a esperança. Eles


simplesmente se entregavam, adoeciam e morriam. Quando na vida a
esperança hesita e se desfaz, uma tristeza que vai além de todo o consolo
toma conta da pessoa. Já a esperança incomoda e inquieta. A pessoa não
se contenta mais com a situação, com a forma como as coisas estão.”

Moltmann foi inspirado pelo filósofo alemão Ernst Bloch, para quem
todo ser humano é instintivamente dotado de esperança, é insuflado a
buscar – avançando - a Utopia sonhada. Bloch era ateu e marxista
revisionista; tinha, portanto, uma visão secular para qual seria a Utopia
sendo perseguida pelo homem. Utopia esta que Moltmann
corretamente entende como o Reino vindouro de Cristo, cuja
ressurreição e ascensão são as marcas patentes da promessa de seu
Retorno, são como que os próprios signos da Esperança.

Se Moltmann era um soldado alemão aprisionado em campos de


concentração dos vencedores Aliados, e que durante seu sofrimento
em meio a tal situação achegou-se à esperança cristã, na outra face
desta estranha moeda, o psiquiatra judeu Viktor Frankl,

90
contemporâneo de Moltmann, desenvolvia as bases de sua
Logoterapia, enquanto prisioneiro também em campos de
concentração, mas como prisioneiro dos alemães.

Frankl, tendo perdido praticamente toda a sua família para a máquina


de extermínio de Hitler, agarrou-se (ele também) à Esperança
(entendida, em suas próprias palavras, como ‘fé no futuro e vontade de
futuro’), e desenvolveu sua doutrina baseado na valorização da
esperança (otimismo) como sentido para a vida. Frankl cedo percebeu
no homem um vazio causado pela ‘vontade de Sentido’, e concluiu
(renegando aqui seus predecessores e antigos ‘mestres’ Freud e Adler)
acertadamente que esse vazio tem origem espiritual, e desse vazio
decorrem os principais problemas psíquicos do homem.

Repito aqui a pergunta feita acima: que força é essa que resiste no
subsolo do edifício homem, mesmo quando este edifício é implodido?
Ambos os prisioneiros poderiam ter desistido de suas vidas e se
entregado, mas ambos vislumbraram, cada qual a seu modo, a
Esperança, e agarraram-se a ela com todas as suas forças, com tudo de
si. E passaram a desenvolver suas doutrinas tendo ela por fundamento.
Não é algo fascinante? Continuemos com Frankl:

“Estás no valo trabalhando. O crepúsculo que te envolve é cor-de-cinza, o


céu acima é cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos
teus companheiros são cinzentos, e também os semblantes deles são cor-
de-cinza. Retomas outra vez o diálogo com o ente querido. Pela milésima
vez lanças rumo ao sol teu lamento e tua interrogação. Buscas
ardentemente uma resposta, queres saber o sentido do teu sofrimento e
de teu sacrifício - o sentido de tua morte lenta. Numa revolta última
contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu espírito irromper
por entre o cinzento que te envolve, e nesta revolta derradeira sentes que
teu espírito se alça acima deste mundo desolado e sem sentido, e tuas
indagações por um sentido último recebem, por fim, de algum lugar, um
vitorioso e regozijante ‘sim’.”
Ao erigirem a Esperança como sua interna rebelião contra a derrota, a
solidão, o vazio e a morte, ambos venceram. É Agostinho de Hipona
quem diz: “A Esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a
coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a
coragem, a mudá-las.”

91
Causa fascinação que em situações extremas, de dor radical, holística
(abarcando todas as dimensões do humano), essa virtude resista
combatendo no coração desses e de tantos outros homens? Mas é isso
mesmo que ela é, o Princípio Combatente no coração do homem, a arma
do Santo Espírito. Mesmo atirada ao fundo lamacento do poço, como
José, como Jeremias, ela escava, ela escala, ela acredita - e oferece um
sorriso para insuflar os mutilados.

Há um poema de um grande poeta cristão francês, Charles Péguy, que,


em seu estilo intimista e desabusado, e que faz tão bom uso das
repetições (talvez como nenhum outro poeta que eu conheça), fala
oportunas palavras sobre essa menina magricela, mas apaixonante e
veementemente forte, a Esperança. Coligi esse poema na Breve
Antologia da Poesia Cristã Universal que organizei. É um pouco
extenso, mas vale a pena você ler.

A Esperança

Tradução de Guilherme de Almeida

A crença de que eu gosto mais, diz Deus, é a esperança.

A fé, isso não me espanta.


Isso não é espantoso.
Eu resplandeço de tal maneira na minha criação.
No sol e na lua e nas estrelas.
Em todas as minhas criaturas.
Nos astros do firmamento e nos peixes do mar.
No universo das minhas criaturas.
Sobre a face da terra e sobre a face das águas.
No movimento dos astros que estão no céu.
No vento que sopra sobre o mar e no vento que sopra
no vale.
No calmo vale.
No tão quieto vale.
Nas plantas e nos animais e nos animais das florestas.
E no homem.
Minha criatura.
Nos povos e nos homens e nos reis e nos povos.
No homem e na mulher sua companheira.

92
E principalmente nas crianças.
Minhas criaturas.
No olhar e na voz das crianças.
Porque as crianças são mais minhas criaturas.
Do que os homens.
Elas não foram ainda desfeitas pela vida.
Da terra.
E entre todos elas são meus servidores.
Antes de todos.
E a voz das crianças é mais pura do que a voz
dos ventos na calma do vale.
No vale tão quieto.
E o olhar das crianças é mais puro do que o azul do
céu, do que o leitoso do céu, e do que um raio
de estrela na calma noite.
Ora eu resplandeço de tal maneira na minha criação.
Na face da montanha e na face da planície.
No pão e no vinho e no homem que lavra e no homem
que semeia e na messe e na vindima.
Na luz e nas trevas.
E no coração do homem que é o que há de mais
profundo no mundo.
Criado.
Tão profundo que é impenetrável a todo olhar.
Exceto ao meu olhar.
Na tempestade que faz cabriolar as ondas e na
tempestade que faz cabriolar as folhas.
Das árvores da floresta.
E ao contrário na calma de uma bela tarde.
Na areia do mar e nas estrelas que são uma areia
no céu.
Na pedra do limiar e na pedra da lareira e na pedra
do altar.
Na oração e nos sacramentos.
Nas casas dos homens e na igreja que é minha casa
sobre a terra.
Na águia minha criatura que voa sobre os píncaros.
A águia real que tem pelo menos dois metros de
envergadura e talvez três metros.
E na formiga minha criatura que rasteja e que armazena
um pouquinho.
Na terra.
Na formiga meu servidor.

93
E até na serpente.
Na formiga minha serva, minha ínfima serva, que
armazena a custo, a parcimoniosa.
Que trabalha como uma desgraçada e que não tem
mesmo folga e que não tem mesmo descanso.
A não ser a morte e o longo sono de inverno.

Eu resplandeço de tal maneira em toda a minha criação.


.......................... ........................... .....................

A caridade, diz Deus, isso não me espanta.


Isso não é espantoso.
Essas pobres criaturas são tão infelizes que a não ser
que tivessem um coração de pedra, como não
haveriam de ter caridade umas para com as outras.
Como não haveriam de ter caridade para com seus irmãos.
Como é que eles não haviam de tirar o pão da boca,
o pão de cada dia, para dá-lo a desgraçadas
crianças que passam.
E meu filho teve para com eles uma tal caridade.
Meu filho irmão deles.
Uma tão grande caridade.

Mas a esperança, diz Deus, eis o que me espanta.


A mim mesmo.
Isso é espantoso.
Que essas pobres crianças vejam como tudo isso acontece
e acreditem que amanhã vai ser melhor.
Que vejam como isso acontece hoje e acreditem que vai
ser melhor amanhã cedo.
Isso é espantoso e é mesmo a maior maravilha da nossa
graça.
E eu mesmo me espanto com isso.
E é preciso que de fato minha graça seja de uma força
incrível.
E que ela escorra de uma fonte e como um rio
inesgotável.
Desde aquela primeira vez que ela escorreu e escorre
sempre desde então.
Na minha criação natural e sobrenatural.
Na minha criação espiritual e carnal e ainda espiritual.
Na minha criação eterna e temporal e ainda eterna.
Mortal e imortal.

94
E aquela vez, ó aquela vez, desde aquela vez que
ela escorreu, como um rio de sangue, do flanco
trespassado de meu filho.
Qual não deve ser a minha graça e a força da minha
graça para que essa pequena esperança, vacilante
ao sopro do pecado, trêmula a todos os ventos,
ansiosa ao menor sopro,
seja tão invariável, mantenha-se tão fiel, tão reta,
tão pura; e invencível, e imortal, e impossível
de apagar-se; que essa pequena flama do
santuário.
Que queima eternamente na lâmpada fiel.
Uma chama tiritante atravessou a espessura dos mundos.
Uma chama vacilante atravessou a espessura dos tempos.
Uma chama ansiosa atravessou a espessura das noites.
Desde aquela primeira vez que a minha graça escorreu
para a criação do mundo.
Desde então que a minha graça escorre sempre para a
conservação do mundo.
Desde aquela vez que o sangue do meu filho escorreu
para a salvação do mundo.
Uma chama impossível de se alcançar, impossível de se
apagar ao sopro da morte.

O que me espanta, diz Deus, é a esperança.


Eu fico pasmo.
Essa pequena esperança que parece uma cousa de nada.
Essa pequena esperança.
Imortal.
Porque as minhas três virtudes, diz Deus.
As três virtudes minhas criaturas.
Minhas filhas minhas crianças.
Elas próprias são como as minhas outras criaturas.
Da raça dos homens.
A Fé é uma Esposa fiel.
A Caridade é uma Mãe.
Uma mãe ardente, cheia de coração.
Ou uma irmã mais velha que é como uma mãe.
A Esperança é uma meninazinha de nada.
Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado.
Que brinca ainda com o boneco de neve.
Com seus pinheirinhos de madeira da Alemanha cobertos
de geada pintada.

95
E com seu boi e seu jumento de madeira da Alemanha.
Pintados.
E com seu presépio cheio de palha que os animais não
comem.
Porque elas são de madeira.
Entretanto é essa meninazinha que atravessará os
mundos.
Essa meninazinha de nada.
Ela só, levando os outros, que atravessará os mundos
volvidos.

***

Esperança humana: Rebelião contra a Queda, com Cristo tornada


Revolução contra a Queda. Muitos não suportam esta palavra, mas o que
dizer? O Cristianismo é mesmo fundamentalmente revolucionário.

Notas
Moltmann, Jürgen. Citado por Ed. L. Miller em Teologias Contemporâneas
(São Paulo: Vida Nova, 2011).
Frankl, Viktor E.. Em Busca de Sentido (Petrópolis: Editora Vozes, s/d).
Péguy, Charles. Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (Edição
eletrônica, org.Sammis Reachers, 2012).

96
INGRESSOS À VENDA – Apenas para os que não podem comprá-los

Por trás de todo homem há uma coleção, uma colcha de retalhos tecida
de pecados.
Seguindo o mesmo princípio, por trás de toda fortuna existe uma
coleção de crimes, de todos os tamanhos.
E olha que coisa mais simplória, você não precisa ser um comunista
comedor de criancinhas, e também não precisa de uma Bíblia, para
enxergar isso. Para conhecer o podre no homem, basta tão só ser
homem. Tão só contemplar seu reflexo numa poça d’água suja ou num
espelho da prata. O mesmo se dá com a sociedade humana (onde,
quanto mais se sobe, mais se falseia): basta rasgar seu fino véu de seda,
e contemplar a nudez obesa, untuosa, broxante-de-alma que ela
enverga.
Claro, temos os idiotas, que creem nas aparências, na justiça ‘divina’ do
status quo, e surpreendem-se em face ao brilho encerado de toda
máscara. Temos cem mil pastores para contextualizar e fazer
desvanecer no pó das palavras doces todas aquelas insuportáveis
palavras de fel e verdade que Jesus emitiu contra os ricos.
Aquela história de o buraco da agulha por onde deverá passar o
camelo, ser apenas mais uma parábola, por tratar-se de uma pretensa
porta que havia em Jerusalém, com o formato de buraco de agulha...
Essa máscara encerada, tem o tamanho de vestir seu coração? Ou só
cabe em crianças? Já observou homens adultos vestindo camisas curtas
e apertadas demais, camisas de seus filhos? Não é ridículo? Esse é o
problema das máscaras, das fantasias: o ridículo as acompanha como
escudeiro, infiel escudeiro pronto sempre para denunciar-lhes as
inverdades, pronto sempre para a verdade: desvelar sua condição de
falseio e simulacro.
Sou um protestante que precisa concordar com o padre da paróquia da
esquina: o céu é a pátria dos pobres. E raríssimos são os penetras no
grande baile-sem-máscaras do Rei. Apenas os suficientes para servir as
mesas.

97
Deus das circunferências

Um Deus que não se farta de perdoar minha pulsão de Jonas, o que


pode ser senão Amor?

Karl Barth, o maior teólogo do século XX, citando Kierkegaard, maior


teólogo do século XIX, repercutia que o amor de Deus, o ágape, é
“justiça equalizadora eterna”. Talvez você não entenda essas palavras,
mas veja: o amor é a linha forte que tece e sustenta este universo de pé,
e o justifica; constrói-lhe o Sentido, ele (Ele) próprio é o Sentido.

Pascal dizia que “O universo é uma esfera cujo centro está em todas as
partes e a circunferência em nenhuma.” Outros pensadores, utilizando
esta mesma metáfora da esfera, referiram-se a Deus.

O Universo é um coração, o próprio maquinário do Amor. Expande-se,


expande-se pois (coração) dilacerado. Tempo vem, a plenitude dos
tempos, em que se dará o Big Crunch, e ele retrocederá, imbuído de
fogo & revolução. Tornará para o começo e será novo, a perfeição de
uma esfera infinita porém estática, equalizada, equalizadora. Uma
esfera sem centro e sem circunferência.

98
Jasão
Como Paul Eluard, tive a felicidade máxima dos poetas: os olhos mais
bonitos que já vi em toda a minha vida, foram olhos que me amaram. E
não digo que eram os mais belos por me amarem: eram presto os mais
belos de per se, belos como um trecho de Agostinho ou um poema
embriagado declamado por Dylan Thomas.
E isso foi uma mui feliz conspiração do Universo em meu prol;
favorecimento assaz arbitrário (só sei que nada sei) de minha
quixotesca figura, e justificação secundária de minha vida.
Amendoados como uma Jerusalém, ora verdes, ora com a cor do mel,
ora indefiníveis, conforme as notas de luz que o maestro Sol tocava em
seu elogio. Brilhavam ao ver-me, ah!, os olhos mais bonitos e maiores
do mundo, e eu preciso dizer-lhe, mesmo que isso tenha passado e
como todas as paixões avassaladoras não fosse dos justos planos do
Deus de paz, não está justificada a minha pena? Sou um poeta pois
paguei o preço, enquanto era como Fausto e Dylan Thomas e Quixote e
pude fazer aqueles olhos brilharem mesmerizados, roubando assim do
sol a primazia. Como um argonauta que Cronos estendesse sobre sua
pele feita de células que são séculos, por breves lampejos furtei algo ao
sol, e foi meu o Velocino de Ouro. No mais, a uns Deus não cobra mais
caro que a outros? Longe de mim esperar sua compreensão, criança. Vá
para fora, roube também o Velocino.

99
Espasmos de Ecoteologia
Parabéns para os fortes que conseguem ver vídeos de cachorrinhos
tentando ressuscitar os amigos mortos, e outros vídeos expondo o
sofrimento de animais, que têm se ‘viralizado’ pela rede. Para mim é
insuportável, eu preciso desviar os olhos, desligar a TV, sair do recinto.
Se eu tenho mais 'pena' de bicho do que de gente? Bem, vamos lá:
Existem seres caídos, ou seja, homens (caído é igual a culpado -
consulte sua Bíblia, faça isso agora), e existem seres comprometidos
pela nossa Queda. Os animais, além de inocentes, são nossos credores,
devemos-lhes pela miséria em que os lançamos com a NOSSA, TODA
NOSSA, Queda. Quase chego a acreditar que, com a Queda, perdemos o
direito de soberania (Peter Singer gostaria de um argumento desses
rsrs). Mas não se escandalize ainda, pois não perdemos. A relação
homem/natura foi simplesmente prostituída. Animais = Inocentes
totais, e Homens = culpados hereditários: sim cabrón, nosotros. Sim,
nós: sua Bíblia diz que a culpa de Adão é a de todos nós (mas de
nenhum animal). Pegue-a, leia de novo. O peso nas costas do Homem é
maior do que ele pensa: Deus precisou morrer para reverter tudo que
Adão&matou.
Pois se o animal foi feito para o homem, e não o homem para o animal,
antes disso, ambos e todos foram feitos para Deus. E Ele vê, vela e
julgará o que os servos fizerem dos talentos confiados.
Um outro argumento: racionalidade é, de per si, uma arma, um meio
para defender-se, ou para escapar do apuro. Irracionalidade é estar-se
desarmado, nú; irracionalidade é fraqueza, é assimetria (em relação ao
homem, maior predador do animal e de si mesmo). Claro então que,
eticamente (agora você não precisa de uma Bíblia) sou obrigado a
defender os animais, os que, num combate armado, não possuem
armas.
Sou um Homem; desde meu pai Adão, não tenho opção senão pagar
ESTA OUTRA DÍVIDA QUE VOCÊ E SUA TEOLOGIA
JAMAIS&CONSIDERARAM.
Claro que uma vida humana vale mais que vidas animais (deixe-me
antecipar-me à sua crítica, cabrón), e caso precise optar entre uma e
outra, a imagem e semelhança de Deus me obriga (mais uma vez
eticamente) a optar pelo homem, mesmo culpado, mesmo contra meu
'coração'. Mas o mais fraco continua perfeitamente mais digno de pena,
pois a dor, essa criação divina (consulte pela última vez sua Bíblia)
amplificada/hiper-disseminada pela dobradinha Adão/Satanás, ah, ela
é universal. Até sua sogra sente dor, que dirá uma guaxinim ou gato.
Sorry...

100
Exposição-para-a-aniquilação do fariseu em mim

Há um fariseu em mim, e ele é como uma estátua num sonho de


Nabucodonosor. Ele tem um tribunal, promotores, e decepa cabeças
com sua katana.
Já vai longe sua carreira de crimes.
Que já poderiam ter sido descontinuados, Senhor.
Essa é a principal oração da psicoletividade ontológica ora nomeada
‘Sammis’, esse estranho nome de cachorro. Já vai longe a metástase, e
fico sempre a imaginar se o bem feito cobre o mal espargido em
silenciosa semeadura. Semeapedra. Semeaço. Semea-dor. Dores.
Aborte Senhor, aborte a ontoperação dita ‘eu’. Mas dias enbaraçam-se
em dias e Sua graça ignora meus pedidos de baixa, desenxerga o botão
azul-celeste de ‘delete’...

Pois então inunde esta ontounidade com Teu amor ágape, encha-me
até prestes a explodir, até que atinja o estado de omnipatia, o irmanar-
me com as dores de todos os homens do mundo, a expansão-
celebração-martirização epifânica do Espírito, do Jesus-em-mim, a
própria máxima operação do amor neste pó.

101
102
A Poesia Carnal de Mathias Raws

PULSÁTIL

Mathias Raws

Meu coração, ei-lo


transfeito numa Gaiola de Faraday
imune às descargas elétricas
do terrorista Cupido

Bunker-cápsula-pulsátil
de fibras (d)e carbono

meu coração um cavaleiro


templário & traído

103
De como o poetastro cínico Samerson Mesmer
Fassbender desconstrói, em catastróficos versos, as
sofridas heroínas dos contos infantis
Mathias Raws

BRANCA DE NEVE

Nunca houve mulher mais amorosa


e mais disposta a todos.
De cada anão, de cada cão
ela subtraía o coração e mais um gole
duma coisa qualquer. E ia somando tudo,
para criar em sua mente apreensora/disruptora
da Realidade, o Homem Total –
princesinha policínica em busca do ente polifálico.

Prestativa, amorosa como sói acontecer


nas alcovas de Cleópatra ou nas luas de Saturno.

CHAPEUZINHO VERMELHO

Ela é uma menina muito especial


e tem sempre palavras muito especiais

Ela tem uma Evazinha dentro do coraçãozinho


e traz sempre as maçãs no cesto,
são o seu cinturão de granadas

Traja com graça tântrica seu capuz vermelho & vivaz


que é para combinar com as mui parrudas maçãs
Tem também, secreto em seu espartilho,
um baralho incompleto, onde falta
o Rei de Ouros

e propõe criativos e sinistros jogos


a quantos famintos encontra

104
CINDERELA

De carruagem em carruagem ela avança,


estilosas abóboras Honda, Hyundai ou Citröen.
Pelos seus (des)caminhos despede sapatinhos
como quem atrai cães com carocinhos
de ração, para a carrocinha
de seu coração, de cristal swarovski
& para otários a prisão.
Transforma pais de família em sabão.

Omo.

GATA BORRALHEIRA

Destrói a bênção e chora quando dá,


seu choro dura sempre a exata metade
de uma noite, pois a mesma noite
provê quem a console. É uma escrava
de sua própria pulsão de luta.
“Mulher tem que ser safada mesmo.”
Seu homem é pouco, principezinho malsão
de salteadores, Hobin Hood lento, bonzinho
demais, tapete de igreja. Não é mais para ela.
Bom mesmo é o homem alheio. Ela o quer,
e tudo que ela quer, ela consegue.
Determinada. E poderosa. Dane-se.
Ela é poderosa.
Seu celular de quatro chips, o centro-de-sua-vida,
eletrônica Caixa de Pandora, bloqueado
por floreada senha, é como o raio de Zeus,
o arco de Diana: sua arma de caça & extermínio.

Ave Eva, ovo donde cedo ou tarde


eclode Jezabel!

105
Ocarina de Bodom

Mathias Raws

O que é a felicidade?

Seus olhinhos de Psilocke,


seus olhinhos de menina de ninja de turcomana

Isso a Felicidade,
Nossa expedição para roubá-la,
para onde expedi-la?
(Deus é um norte ou uma bússola?)

Seu sorriso iridescente


durante o jantar
o mar defronte, os
idiotas de través
olhando para você,
as mãos que você
escondia,
“minhas unhas não estão pintadas”

“Esta salada está passada”, você diz.


“Sim, os tomates estão azedos”
retruco, e em minha mente,
“azedos como meu passado
Ou a coleção de meus status de Facebook.”

(Deus, Ele é um norte ou uma bússola?)

Sua beleza que se recusa a envelhecer


sua beleza um golpe
contra as coisas, homens
solilóquios a profundidade a alteridade do que é mar

O que é a felicidade?

Queria que minha infelicidade


fosse apenas um status de Facebook,
um status que eu pudesse editar
ou excluir
com toques de dedo ou de adaga
mas não

106
O que é a felicidade?

sua beleza de índia de nissei de solstício


seu sorriso essa pedra de afiar auroras
suas frescuras suas alergias seu traquejo
o que é a felicidade?

a vergonha ombreando-me como um abutre,


o papagaio negro do maldito
Poema Sem Fim de meu naufragado alter ego
o toque do celular interrompendo o jantar,
a fruição calculada de seu sorriso

(Deus é um norte ou uma bússola?)

Deus da aurora, Deus do meio-dia,


Deus do crepúsculo
Grande Deus Trino
mesmo eternabrangente Deus
assuma o controle
se não posso curvar minha cerviz de pecador de
melancólico de suicida
assuma o controle
leve-me à página de desambiguação da Realidade
e mostre-me o que deu errado,
em que arquivos eu deixei
que se instalasse o vírus

o que é a felicidade?

Queria ouvir sua música, menina candente


seu matraquear de doçuras
no silêncio que rege este dia
tocada por uma orquestra de ocarinas
e pífaros, seu sorriso essa urgência
mas mais uma vez fui inter
-rompido:
o que é a felicidade?

Toque sua ocarina, menina, rompa


a maldição o feitiço pegue seu telefone e ligue
faça o papel do nosso Deus, assuma o controle

107
(A felicidade, ela é um norte ou uma bússola?)

aquele trecho da canção grunge & nonsense do Bush,


“second blond children / velvet... velvet...”
quem dera esse mundo de pedras fosse de veludo
ou as armas no porão, eu tivesse a expansão de usá-las

108
Na esquina da Duque de Caxias com a Rio Branco

Mathias Raws

"Pra começar preciso dizer, Ismael, que ela é a mulher mais bonita do lugar.
Isso aí, a rosa primaz do roseiral, e você conhece aquele roseiral garboso e
vivaz, como diria vovô. No mais é um mistério. Por vezes a encontrei de
madrugada, vindo de algum lugar, sempre sozinha, indefectivelmente de preto
ou combinações de preto e roxo, olhando para o chão, silenciosa... Roqueira,
gótica? Nunca a vi com camisa de rock, então a resposta pende para a
negativa. Muitas vezes a vi chorando. Lágrimas esparsas. Sintomas de TOC,
unhas roídas, pintura das unhas roídas, sempre e sempre. Roendo em público.
Mais forte que a vontade de esconder. Uma garota problemática?
Ismael, teve aquele episódio da rosa, mas não vou contar, virei piada no
trabalho, deixa isso quieto. Depois da rosa, um outro esbarrão, perguntei pelo
namorado. Ela disse que tinha. Sim, Ismael, também nunca o vi. E aí era bom
dia, boa tarde, boa noite, a cada encontro desproposital. Linda de morrer. Mas
hoje a lua estava cheia: a menina de pele de lua chorava compulsivamente. Ela
nunca fala nada, não seria hoje que falaria. Pegamos o mesmo ônibus. Ela
chorava compulsivamente. E eu de outro banco, cabisbaixo, falando com
Deus. Não consegui evitar. Sentei-me ao seu lado, 'você está precisando de
alguma coisa?' 'Não, obrigado...' E aquela vontade de abraçá-la, Ismael.
Abraçar a deusa frágil, a deusa do TOC e das lágrimas constantes e públicas.
Dez minutos, dez minutos e um idiota sem saber o que dizer. Apenas olhando
de soslaio para ver o que se escondia por trás daqueles cabelos negros sendo
véu na branca face, tentando enxergar que rotas de queda as lágrimas
tomariam rompendo pela pele de veludo. Nossa, agora fui piegas. Dane-se,
Ismael. Mas não conseguia falar nada. Nem perguntar o que acontecera.
Miséria. Dois párias, dois míseros exatos párias na cidade grande, e bastaria
um estalo de dedos para eu abraçá-la, e dois estalos para declarar-me. Mas e o
namorado? Perguntei uma vez, e isso não é pergunta que cavalheiro repita.
Mas nunca o vi, em meses. Não o vi ali enquanto ela chorava desconsolada.
Creio firmemente que ele não existe. No início achei que ela era lésbica: foram
anos sem vê-la com homem algum. Silenciosa. Noturna. Mas ela não tem
jeito, embora isso fosse amarrar muitas pontas soltas deste mistério, desta
mulher que me apraz admirar. É preciso mistério para abalar meu coração de
cobre, Ismael. Já escrevi poemas para proto-prostitutas, quantos poemas
aquele anjo mereceria? Meu ponto chegou, peguei um cartão, rasguei a parte
desimportante, deixei apenas os telefones, 'Me preocupo com você. Se
precisar de alguma coisa, me liga. Sem segundas intenções.' 'Obrigado', e havia
rara ternura em seus olhos de noite, como um veio de ouro que rompe ao pé
de um monte imaculado. Saí para o caos, respirando forte, pensando em
como ela continuaria a chorar e a chorar até chegar ao trabalho. Ela com suas
lágrimas, eu com minha impotência e ira. Filhotes de ovelha enxertados na

109
matilha."

110
Bufão, Clown de Pasárgada e mestre falsário, chora em tintas a morte de Calíope (2012).

111
Sobre o autor

Sammis Reachers nasceu em 09/05/1978 em Niterói – RJ. É poeta,


antologista, editor e blogueiro. Tem se destacado como promotor e
divulgador da poesia evangélica, através das antologias que organiza e dos
blogs como o Poesia Evangélica, onde já publicou mais de trezentos autores.
Atua também na promoção missionária, através do blog Veredas Missionárias,
publicações diversas e por ações nas redes sociais.

É autor dos livros de poesia:

Uma Abertura na Noite (2006)


A Blindagem Azul (2007)
CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012)
Poemas da Guerra de Inverno (2012 / 2014)
Deus Amanhecer (2013)
Pulsátil (2014)

Organizou as seguintes antologias:

3 Irmãos Antologia (2006 - textos de Gióia Júnior, Joanyr de Oliveira e


J.T.Parreira)
Sabedoria: Breve Manual do Usuário (2008 - antologia de frases)
Antologia de Poesia Cristã em Língua Portuguesa (2008)
Águas Vivas volume 1 (2009 – antologia reunindo textos de poetas evangélicos
contemporâneos)
Antologia de Poesia Missionária (2010)
Águas Vivas volume 2 (2011)
Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (2012)
A Poesia do Natal Antologia (2012)
Águas Vivas volume 3 (2013)
Antologia de Poesia Missionária volume 2 (2013)
Teatro Missionário – Peças Teatrais e Jograis sobre Missões e
Evangelização para Igrejas Evangélicas (2013 – em colaboração com Vilma
Aparecida de Oliveira Pires)
Revista Humorejo – Humor Gráfico Evangélico (2014 - charges, cartuns,
caricaturas e HQ’s)

*Todas essas obras podem ser lidas online ou baixadas gratuitamente (Acesse a
página ‘Biblioteca’ no blog Poesia Evangélica, para ter acesso a esses e a muitos outros
livros).

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Mantém mais de 10 blogs, incluindo os blogs literários:

Poesia Evangélica (desde 2006) - http://poesiaevanglica.blogspot.com


O Poema Sem Fim (pessoal) - http://opoemasemfim.blogspot.com
Liricoletivo - http://liricoletivo.blogspot.com
Mar Ocidental - http://marocidental.blogspot.com

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