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Parsifal
Tradução de
A. R. Schmidt Patier
Título original: Parzifal
(Do manuscrito medieval do século XIII,
atestado por Karl Lachmann)
© Copyright das notas by Sammlung Dieterich
Verlagsgesellschaft, Leipzig, 1977
© Copyright da tradução by A. R. Schmidt Patier, 1989
1ª edição: 1989
(Thot Livraria e Editora Esotérica, Brasília)
2º edição revista: 1995 (Editora Antroposófica,
São Paulo); 3ª edição: 2006
4ª edição — 2015
ISBN 978-85-7122-249-6
15-01665 CDD-831
Índices para catálogo sistemático:
1. Prosa : Literatura alemã 831
Sumário
Apresentação............................................................................. 13
Prefácio..................................................................................... 15
1. A cavalaria e a literatura........................................................... 15
2. O ciclo arturiano ou do Graal.................................................. 17
3. O Parsifal............................................................................. 19
4. A tradução....................................................................................... 25
Livro I
Prólogo...................................................................................................... 29
A viagem de Gahmuret à corte do Baruc..................................... 31
A viagem de Gahmuret à corte da rainha Belakane................ 36
A chegada de Gahmuret à corte de Zazamanc........................... 38
Gahmuret é recebido por Belakane................................................ 40
Preparativos para o combate............................................................ 44
Gahmuret recebe a visita de Belakane.......................................... 45
Os combates de Gahmuret diante de Patelamunt..................... 47
Recompensas amorosas...................................................................... 52
Negociações de paz............................................................................... 52
Gahmuret abandona Belakane....................................................... 57
O nascimento de Feirefiz.................................................................... 59
A chegada de Gahmuret a Sevilha.................................................. 59
Livro II
A viagem de Gahmuret a Kanvoleis............................................... 63
O torneio de Kanvoleis....................................................................... 67
Gahmuret entre três mulheres.......................................................... 75
Gahmuret no auge da fama.............................................................. 84
A morte de Gahmuret.......................................................................... 87
Lamentações de Herzeloyde.............................................................. 89
O nascimento de Parsifal................................................................... 91
Excurso do poeta................................................................................... 92
Sumário 7
Livro III
A infância de Parsifal no ermo de Soltane................................... 97
O primeiro contato de Parsifal com a vida cavaleiresca ...... 99
O primeiro contato de Parsifal com o mundo............................ 102
Parsifal e Iechute................................................................................... 104
O começo da via crucis de Iechute.................................................... 108
O primeiro encontro com Sigune.................................................... 109
Parsifal a caminho da corte do rei Artur...................................... 112
Parsifal na corte do rei Artur............................................................ 114
Keye castiga Cuneware....................................................................... 116
A morte de Ither..................................................................................... 117
Parsifal se apossa da armadura de Ither...................................... 119
O luto pela morte de Ither.................................................................. 120
O encontro com Gurnemanz............................................................ 121
Acolhida hospitaleira........................................................................... 122
Educação cavaleiresca........................................................................ 126
Parsifal despede-se de Gurnemanz................................................. 129
Livro IV
A chegada de Parsifal a Pelrapeire.................................................. 133
Parsifal e Condwiramurs................................................................... 136
A luta entre Parsifal e Kingrun........................................................ 141
O casamento de Parsifal e Condwiramurs................................... 144
O assédio de Pelrapeire....................................................................... 145
Clamide no acampamento de Artur............................................... 151
Parsifal abandona Condwiramurs................................................. 154
Livro V
Parsifal no castelo do Graal.............................................................. 159
Parsifal diante do rei do Graal......................................................... 162
Os mistérios do Graal.......................................................................... 163
O Graal..................................................................................................... 165
A pergunta postergada........................................................................ 166
O pernoite no castelo do Graal......................................................... 168
A partida de Parsifal............................................................................ 170
O segundo encontro com Sigune..................................................... 172
8 Parsifal
O segundo encontro com Iechute.................................................... 175
O duelo entre Parsifal e Orilus......................................................... 178
Parsifal reconcilia Orilus com Iechute........................................... 181
Orilus e Iechute no acampamento de Artur................................ 185
Livro VI
As três gotas de sangue na neve....................................................... 191
O duelo entre Parsifal e Segramors................................................. 193
Excurso sobre a natureza da Paixão............................................. 197
O duelo entre Parsifal e Keye............................................................ 198
Parsifal e Galvão................................................................................... 201
A admissão de Parsifal na Távola Redonda................................ 205
Cundrie amaldiçoa Parsifal.............................................................. 208
Kingrimursel desafia Galvão............................................................ 212
Clamide e Cuneware............................................................................ 215
Parsifal abandona a Távola Redonda........................................... 217
Excurso do poeta................................................................................... 221
Livro VII
Excurso do poeta................................................................................... 225
Galvão a caminho de Ascalun......................................................... 225
Galvão diante de Bearoche............................................................... 231
Obie menospreza Galvão................................................................... 231
Os primeiros combates diante de Bearoche................................. 233
Obie tenta humilhar Galvão............................................................. 235
Lippaut pede apoio a Galvão............................................................ 239
Galvão torna-se cavaleiro de Obilot............................................... 240
A batalha diante de Bearoche.......................................................... 244
Os notáveis feitos de Galvão............................................................. 246
O Cavaleiro Vermelho......................................................................... 250
A reconciliação de Obie e Meljanz.................................................. 253
Galvão despede-se de Obilot.............................................................. 255
Livro VIII
Galvão a caminho de Ascalun......................................................... 259
Galvão e Antikonie.............................................................................. 262
O ataque imprevisto............................................................................ 264
Sumário 9
O ataque à torre.................................................................................... 264
A intervenção de Kingrimursel........................................................ 266
Negociações de paz............................................................................... 267
A reconciliação...................................................................................... 275
A partida de Galvão............................................................................. 276
Livro IX
O terceiro encontro com Sigune....................................................... 281
O combate com o templário do Graal............................................ 286
O encontro na Sexta-feira Santa...................................................... 287
Os conselhos do eremita Trevrizent................................................ 290
Livro X
Galvão e o cavaleiro ferido............................................................... 319
O encontro com Orgeluse................................................................... 321
A insolência de Malcreature.............................................................. 326
As infâmias de Urians......................................................................... 329
Os motejos de Orgeluse........................................................................ 332
Excurso do poeta acerca das coisas do amor.............................. 334
Galvão diante do castelo encantado.............................................. 335
O duelo entre Galvão e Lischoys...................................................... 335
Hóspede do barqueiro......................................................................... 339
Livro XI
O castelo encantado de Clinschor.................................................... 347
Os terrores do castelo encantado..................................................... 351
Livro XII
As aflições amorosas de Galvão....................................................... 363
A coluna mágica................................................................................... 365
O combate com o turcoide................................................................. 367
A travessia do passo selvagem.......................................................... 371
A árvore de Gramoflanz..................................................................... 373
O combate aprazado........................................................................... 375
10 Parsifal
Galvão conquista Orgeluse................................................................ 377
Regresso festivo ao castelo encantado............................................ 381
Livro XIII
A festa no castelo encantado de Clinschor.................................... 387
Serviços recompensados..................................................................... 392
O regresso do mensageiro.................................................................. 395
A estranha biografia de Clinschor................................................... 400
A chegada de Artur............................................................................... 403
Artur parte para Joflanze................................................................... 406
Livro XIV
A partida de Gramoflanz................................................................... 415
A luta entre Parsifal e Galvão........................................................... 419
Gramoflanz no campo da luta......................................................... 420
Parsifal no acampamento de Galvão............................................ 422
O combate entre Parsifal e Gramoflanz........................................ 426
Gestões de apaziguamento................................................................ 429
Reconciliação......................................................................................... 438
A partida de Parsifal............................................................................ 441
Livro XV
O combate entre Parsifal e Feirefiz................................................. 445
Os irmãos se reconhecem................................................................... 450
Feirefiz e Parsifal no acampamento de Galvão.......................... 454
A festa em Joflanze............................................................................... 458
Parsifal, o eleito do Graal................................................................... 466
Livro XVI
Os sofrimentos de Anfortas................................................................ 473
Parsifal no castelo do Graal.............................................................. 475
Parsifal, o rei do Graal........................................................................ 477
O reencontro com Trevrizent............................................................ 478
O reencontro com Condwiramurs.................................................. 479
Kardeiz sucede a Parsifal................................................................... 481
Sumário 11
A morte de Sigune................................................................................. 482
Condwiramurs, a rainha do Graal................................................. 483
A festa no castelo do Graal................................................................ 484
Feirefiz e Repanse de Schoye.............................................................. 486
O batismo de Feirefiz........................................................................... 489
O reino do Preste João......................................................................... 491
A missão de Loherangrin................................................................... 493
Excurso final do poeta......................................................................... 495
Notas......................................................................................... 497
Índice onomástico..................................................................... 521
A genealogia do Graal
I – A estirpe de Artur........................................................... 534
II – A estirpe de Parsifal........................................................ 535
12 Parsifal
Apresentação
1. A cavalaria e a literatura
A cavalaria foi o evento mais notável da história europeia entre a
cristianização e os tempos modernos. O conjunto de ideais e práticas
próprios de uma ordem de pessoas que nela ingressavam mediante
educação e ritos determinados acabou constituindo-se em tema de
toda uma fase da Literatura.
O acesso ao status de cavaleiro exigia uma formação iniciada des-
de a infância. O feudalismo forneceu à cavalaria seus castelos, feudos,
armaduras e cerimônias de investidura, que consolidavam os laços
entre vassalos e suser anos. A instituição não apareceu de repente,
nem com todas as características de que se revestiria já na época dos
trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou no bojo da
Alta Idade Média, todos os demais aparatos que a distinguiam — os
brasões de nobreza, as ordens de cavalaria e as cerimônias de sagra-
ção — assumiram sua forma definitiva em torno do século XI. Com
efeito, o brasão mais antigo que se conhece1 é de Raul de Beaumont
(1087–1110). Naquele século se fixou igualmente o hábito de armar
o cavaleiro numa solenidade especial: a sagração. Sob a influência da
Igreja, essa cerimônia transformou-se aos poucos numa espécie de
sacramento que, via de regra, era precedido de vigília de armas, noite
de preces e bênçãos das armas.
O cavaleiro recém-armado tinha, a partir de então, o privilé-
gio de arriscar a vida nos torneios e usar as cores da bela a quem
dedicava seus ser viços. Seu objetivo maior era buscar a perma-
nência de seus altos feitos na memória coletiva. Ser imortalizado
pelos serviços prestados ao monarca, à sua dama ou aos fracos e
indefesos era um privilégio diante do qual a sobrevivência física
parecia pouco importante. As obrigações cada vez mais precisas
e compulsivas convertiam o cavaleiro num paladino empenhado
em acumular façanhas. Esse estado de coisas resultou necessaria-
mente num ambiente turbulento e competitivo. A Igreja franzia a
testa, reprovando esses jogos marciais, em especial a participação
Prefácio 15
da mulher como espectadora entusiasta e, não poucas vezes, objeto
de disputa entre os contendores. Mas quando os trovadores passaram
a enaltecer essas pugnas como manifestação meritória a serviço do
amor cortês, tais reparos começaram a ser alegremente ignorados. Os
trovadores e as damas venceram.
É oportuno estabelecer aqui a diferença entre a cavalaria, ins-
tituição secular, e as ordens cavaleirescas de caráter religioso. A dig-
nidade de cavaleiro podia ser conferida por qualquer senhor feudal,
com a participação da Igreja. Já as ordens de cavalaria eram criadas
pelo Papa, e seus membros eram um misto de monges e guerreiros,
que no alto da sagração faziam, além dos compromissos normais pe-
culiares à sua condição, o voto de castidade.
A primeira dessas organizações militares — a Ordem do Hospital
de São João de Jerusalém — hoje Soberana Ordem Militar de Malta
— foi fundada no final do século XI (1099). Somente no decurso do
século seguinte apareceriam em cena as outras duas grandes ordens
cavaleirescas — a dos Templários (1118) e a dos Teutônicos (1190).
Fica claro, pois, que não havia qualquer ordem de cavaleiros nos tem-
pos do rei Artur (século VI) e do imperador Carlos Magno (742–814).
Trata-se de meras idealizações livrescas. Quando a cavalaria se tornou
florescente, no decurso dos séculos XII e XIII, surgiu o desejo de
enobrecer suas origens fazendo-as remontar àqueles tempos heroicos,
e procuraram-se entre os guerreiros do rei bretão e os paladinos do
monarca do Santo Império Romano-germânico os paradigmas das
virtudes que se proclamavam. As ordens cavaleirescas instituídas
por Artur2 e Carlos Magno são, portanto, sonhos.
Esse fato nos leva a fazer outra distinção, desta feita entre a cava-
laria como instituição que de fato existiu e sua posterior reelaboração
pelos trovadores, isto é, quando a cavalaria passou do plano histórico
para o domínio literário.
Na literatura trovadoresca que elegeu a cavalaria como tema
podemos distinguir três fases: o período heroico, em que a guerra
prevaleceu sobre a galanteria (La chanson de Roland e El cantar
de mio Cid); a literatura cortês, de inspirações amáveis e modos
urbanos (o ciclo arturiano ou do Graal); o período da decadência,
assentado no artifício e no falso (Don Quixote de la Mancha).
16 Parsifal
A imagem lisonjeira que os trovadores nos apresentam do tur-
bulento Cid e do intrépido Roland não são propriamente falsas, mas
certamente versões idealizadas. A realidade era bem outra. A cavalaria
era um rude ofício, e só poucos seguiam à risca as solenes promessas
feitas no ato da sagração. Duas influências moderaram, em parte,
a agressividade do cavaleiro militante: a mulher e o cristianismo.
A literatura deu a tudo isso um remate magnífico, apresentando a
instituição cavaleiresca com uma imagem que todos gostariam que
tivesse, e não como de fato era.
Prefácio 17
Em seu Perceval ou le Comte du Graal apareceu pela primeira vez
o Graal, que não constava da primitiva matéria bretã. Iniciou-se
assim um ciclo que ora é chamado arturiano, ora do Graal. Robert
de Baron acresceu à história um novo personagem: o sábio Merlin.
Com o Erec, de Hartmann von Aue, o ciclo do Graal se esten-
deu até a Alemanha. Wolfram von Eschenbach, cuja obra será aqui
o objeto central de nossa atenção, ignorou o sábio Merlin e refundiu
inteiramente a matéria bretã, dando-lhe novo sentido. Com a obra
tardia Le morte d’Arthur, de Sir Thomas Malory (1408–1471), Artur
voltou à Inglaterra e encerrou o ciclo.
Uma característica do universo arturiano é a intemporalidade.
As personagens da Canção de Rolando e da Canção dos Nibelun-
gos — Carlos Magno e Átila (Etzel) — passam certamente por uma
reelaboração poética, mas continuam mantendo um compromisso
com a História e a Geografia. Comparados a estes, os personagens
do ciclo do Graal pertencem ao domínio da lenda. Aqui não se trata
mais do rei bretão que historicamente existiu, mas do Artur, perso
nagem lendário e literário que, com sua corte e sua Ordem da Távola
Redonda, vive liberto da barreira do tempo. Até a realidade torna-se
irreal. Nantes, a capital de Artur, é uma cidade geograficamente si-
tuada na Bretanha francesa. Mas o cavaleiro que sai de seus portões
mergulha logo no mundo irreal da aventura.
Nos diversos poemas do ciclo, Artur ocupa uma posição cen-
tral em relação à qual todo o restante é considerado. Ele próprio
não realiza feito algum. É um polo imóvel em torno do qual giram
os acontecimentos e florescem as façanhas. Mas todas as ações são
por ele determ inadas. O universo arturiano é um mundo de alegrias
e de festas. O herói é envolvido em intrigas, tensões e imprevistos,
mas se mantém à margem do impasse. Ele é sempre bem-sucedido,
bem-parecido e vencedor. A derrota é a sina do vilão e do adversário.
Para o verdadeiro herói arturiano, todas as complicações redundam
em alegrias. O itinerário do cavaleiro da Távola Redonda é quase
sempre o mesmo. Ele deixa as delícias da corte em busca de aven-
turas que sempre parecem desenrolar-se fora do tempo. O acúmulo
de façanhas resulta para ele na conquista da amada. Com isso ele
volta ao convívio da Távola Redonda. Essa constante permuta entre
18 Parsifal
centro e periferia parece ser o único fato importante que ocorre
nos romances arturianos.
3. O Parsifal
O presente estudo limita-se à análise comparativa entre o
Parsifal de Chrétien de Troyes e a obra homônima de Wolfram
von Eschenbach. Há várias razões para fazer o cotejo entre as duas
obras: a insistência dos analistas em apontar o poema de Chrétien
como fonte principal do Parsifal de Wolfram; a semelhança entre
ambas, onde ao lado do círculo arturiano existe o círculo do Graal;
e, finalmente, a declaração do próprio Wolfram, admitindo que a
história era a mesma, com a diferença de que ele teria contado a
‘história verdadeira’. O poeta alemão parece ter alguns motivos que
justificam sua afirmação. Chrétien reelaborou a matéria bretã e com
ela construiu a estrutura de uma obra literária que aparentemente
se prestava a uma interpretação psicológica. Wolfram identificou
o Graal com os problemas de sua época e o transformou num dos
mitos fundadores do Ocidente.
O tipo de enredo desenvolvido por Chrétien de Troyes em seu
Parsifal parece prenunciar um gênero hoje definido como Bildungs
roman (romance de formação), precedendo assim cerca de seis
séculos ao Wilhelm Meister, de Goethe. Trata-se de uma história
exemplar, que serve de modelo ao comportamento dos homens.
Nela a discussão sobre o acontecer da História é conscientemente
orientada para um objetivo educacional cujo resultado implica o
desenvolvimento global da personalidade.
Percebendo essa inter-relação, Robert A. Johnson, em obra
recente3, usa os conceitos junguianos para interpretar a obra de
Chrétien, na qual Parsifal está empenhado na busca do Santo Graal.
Nessa análise Johnson identifica o Graal com o self, e sua busca com
o processo de individuação (a demanda do Graal), uma evolução
progressiva através da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos
poucos um ser humano integral. Suas buscas terminam quando ele
acha o Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-se ‘ele mesmo’.
Não importa reproduzir aqui toda a história idealizada por
Chrétien de Troyes: o malogro do Rei Pescador, em virtude do qual
Prefácio 19
seu reino se transformou numa terra estéril (gaste terre), o empenho
de Parsifal em restaurar esse reino decadente mediante a conquista
do Graal, etc. Bastaria lembrar que a história termina quando Par-
sifal está prestes a achar o Graal, ou seja, quando está na iminência
de tornar-se ‘ele mesmo’.
Chrétien não foi além desse ponto, seja porque morreu, seja
mesmo porque não tinha mais o que dizer. Johnson afirma que “em
muitos sentidos ele parou onde nos encontramos também”. Seria o
caso de cada um retomar a busca e descobrir o Graal (o self) dentro
de si mesmo.
Wagner teria aproveitado o original de Wolfram, adaptando‑o
às exigências técnicas de seu Bühnenweihfestspiel (Festival sacro
cênico). Entretanto, em virtude das idiossincrasias de Wagner
essa reelaboração resultou, de certo modo, num desvio do texto de
Wolfram, fato que levou alguns admiradores do mago de Bayreuth
a uma interpretação que se aproxima bastante daquela feita por
Johnson: o aspirante ao Graal (Parsifal), ao empreender a demanda
(busca do aperfeiçoamento espiritual), vencendo os apelos munda-
nos (Klingsor) e governando o corpo físico (Kundry) pode, pela
ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini), e levando-o para a
cabeça (Mont Salvat) e atingir desse modo a perfeição (Nirvana).
A despeito de seu fascínio, essas interpretações atribuem aos
trovadores dos séculos XII e XIII intuições que eles provavelmente
jamais tiveram. Não se poderia, então, lançar contra essas teses uma
objeção que as faria desmoronar pela base? Provavelmente Chrétien
de Troyes jamais pensou em individuação, por não estar consciente
desse componente psíquico. Em todo o caso, Wolfram von Eschen
bach tinha a esse respeito uma orientação bastante diferente. Ver,
então, na busca do Graal um processo de individuação que leva o
homem ao seu centro, ao self, é uma interpretação totalmente mo-
derna que, apesar de válida, teria surpreendido Chrétien, Wolfram
e talvez até mesmo Wagner.
Tais versões modernas sucumbem quando submetidas a um
último teste. Elas contam uma história exemplar, em que os estados
de consciência são considerados do ponto de vista da consciência de
quem os experimenta. Não existe, no caso, qualquer agente externo
20 Parsifal
a impelir o aspirante nessa direção. Existe apenas uma motivação
interior. Tudo se passa em nível psicológico.
O Parsifal, de Wolfram, parece ultrapassar claramente esses
modelos. Existe, no caso, uma força externa — a missão — que se
propõe à vontade de Parsifal e a inclina. Essa vocação — um chama-
mento indeclinável — é o Reino do Graal, para o qual Parsifal — e
unicamente ele — foi convocado. Por isso ele nasce como avatar,
como herói restaurador.
As doutrinas da Igreja sobre as origens do Poder nos remetem
à Providência, uma espécie de ação pela qual Deus conduz os acon-
tecimentos e as criaturas para o fim que lhes foi destinado. Lendo
nas entrelinhas, percebe-se que Wolfram atribui ao Poder uma ori-
gem diferente. Segundo tal concepção tradicional e supracristã, a
transmissão do Poder Divino não se daria pelo desígnio normal da
Providência, mas por um ato pessoal da divindade, encarnando-se
em determinado governante. Essa visão cosmológica, herdada de
culturas pré-cristãs, admitia uma ordem cósmica em analogia à
ordem terrena, postulando um relacionamento íntimo entre esses
dois planos, cujo grande mediador era o monarca em seu palácio.
René Guénon, numa de suas obras4, remete a origem da noção
do rei-sacerdote ao mítico Melquisedeque, que reunia em sua pessoa
os poderes do monarca e do pontífice. Na Roma antiga havia igual-
mente a figura do Imperator et Pontifex Maximus. No Ocidente
cristão, a ideia de um personagem que fosse simultaneamente sacer-
dote e rei nunca foi inteiramente aceita. Durante a Idade Média, o
poder supremo estava dividido entre o Papa e o monarca do Santo
Império Romano-germânico. Na época de Wolfram essa separação
insatisfatória resultou em rivalidades intermitentes entre as duas
instâncias, traduzindo a ambição de cada uma no sentido de ab
sorver as atribuições da outra. Surgiram, então, dois partidos: os
guelfos, partidários do Papa, e os gibelinos, partidários do Impera
dor. A atuação de uma série de imperadores enérgicos da dinastia
dos Hohenstaufen fez esse antagonismo latente degenerar em hos-
tilidade aberta. Frederico I, o Barba-roxa, teve grandes dificuldades
com o Papa mas não soube, ao contrário de seus predecessores,
transpor esse antagonismo para o plano das ideias. Frederico II, ao
contrário, soube retomar a via sutil. Dotado de grande inteligência,
Prefácio 21
esse inimigo irredutível dos papas foi iniciado no sufismo islâmico
e nos mistérios templários. Falava diversas línguas, entre as quais o
árabe e o grego. Sua guarda pessoal era composta unicamente de
sarracenos que, dada sua condição de muçulmanos, não podiam
ser excomungados. Tendo organizado a Sexta Cruzada, firmou um
pacto com os Teutônicos e os Templários, que o aclamaram Impe
rador do Mundo. Assim fortalecido, marchou sobre Jerusalém, onde
ocorreu um fato insólito em que o Papa custou a acreditar. Ao invés
de oferecer combate, os príncipes muçulmanos entregaram a Frede-
rico as chaves da Cidade Santa, aclamando-o soberano do Ocidente
e do Oriente. Frederico estava entre irmãos. Mircea Eliade5 atesta
que Frederico II foi provavelmente o único monarca do Ocidente
cristão que se julgava divino, não apenas em virtude de seu cargo,
mas sobretudo por sua natureza inata — nada menos que um avatar,
um messias imperial.
Analisando atentamente o texto do Parsifal, descobrimos
um estranho paralelo entre o Reino do Graal e o Santo Império
da época de Wolfram von Eschenbach. Cercando-se, porém, de
cuidados, o poeta sugere muito mais do que afirma esse paralelo.
Sob o texto do poema que está diante de nós existe um pré-texto
destinado unicamente aos iniciados. Os incultos, entre os quais se
incluem os cultos profanos, verão no poema apenas um convite
ao entretenimento.
Em vários trechos da epopeia (livro VIII, 416; livro IX, 453;
livro XVI, 827) Wolfram aponta como fonte de seu Parsifal um
certo Kyot, o Provençal. Esse fato levou seus críticos a sustentar
a ideia de que Kyot seria apenas um personagem fictício atrás do
qual se escondia a prodigiosa inventiva do próprio Wolfram. Mas
nenhum desses analistas questiona as fontes de Chrétien. O poeta
francês, apontado como prógono de Wolfram, confessa que reco-
lheu os elementos de seu Parsifal de um ‘certo livro’ (le livre), sem
se dar ao trabalho de explicar que tipo de livro era esse e qual seu
autor. Como as duas histórias (até o Livro XIII) são basicamente
iguais, não seria o caso de se concluir que Chrétien e Wolfram se
tivessem servido da mesma fonte? E não teria sido essa a razão que
levou Wolfram a acusar o colega francês de ter deturpado a história
original de Kyot?
22 Parsifal
Examinando os dois textos descobrimos, contudo, algumas
diferenças notáveis. Assim, alguns lugares e personagens que em
Chrétien aparecem sem nome recebem um nome em Wolfram,
como o castelo do Graal (Munsalvaesche), o eremita (Trevrizent),
a virgem do Graal (Repanse de Schoye). Certos personagens rece-
bem nomes diferentes (Condwiramurs ao invés de Blanchefleur).
Outros nem sequer existem em Chrétien, como Feirefiz e Gahmuret.
Ademais, aparece em Wolfram grande número de nomes célticos
e uma rica terminologia cientifica árabe, que são simplesmente
ignorados por Chrétien.
Além disso, a corte de Artur e o reino do Graal são tratados de
modo diverso nas duas obras. Em Chrétien não fica muito claro qual
dos dois centros é o mais importante. Em Wolfram a prevalência
da comunidade do Graal sobre a corte de Artur é indiscutível. Ali
a Ordem da Távola Redonda não passa de uma escola preparatória
dos aspirantes do Graal.
Mas a diferença maior e que leva a todas as outras está na forma
pela qual é tratado o Graal nos diversos poemas do ciclo. Chrétien
não se atreve a sair do convencionalismo litúrgico. Para ele o G raal
é o vaso para a guarda da hóstia. Robert de Boron é ainda mais orto-
doxo. Em sua versão, o Graal é a um tempo o cálice da Santa Ceia e o
vaso em que José de Arimateia recolheu o sangue do flanco de Cristo,
aberto pela lança do centurião Longino. Para Wolfram o Graal é uma
pedra possuidora de virtudes miraculosas, cuja origem, segundo o
eremita Trevrizent, “recuava ao tempo em que o batismo se tornara
nosso escudo contra as penas do inferno” (Livro IX, 453). Ora, sendo
o batismo anterior à instituição da Igreja, o Graal já é cristão mas
ignora o primado de Pedro, isto é, do Papa. Como bom gibelino,
Wolfram ignora totalmente a Igreja como instituição. Pela leitura
do poema ficamos sabendo que Parsifal recebe sua educação ética
e cavaleiresca de três fontes leigas: da mãe, do eremita Trevrizent
e de Gurnemanz, o cavaleiro grisalho. Pelo mesmo critério o leigo
Trevrizent concede a Parsifal a absolvição de seus pecados. Sigune,
a prima de Parsifal, procede do mesmo modo. Piedosamente entre-
ga-se a uma vida de recolhimento e de devotamento a Deus, jamais
assistindo a uma missa sequer. Na corte do rei Artur o sacerdote apa-
rece às vezes oficiando a missa; no batismo de Feirefiz o sacerdote
Prefácio 23
está também presente por um breve momento; mas para que a pia
batismal se enchesse de água benta, foi necessária a presença do
Graal. Esse breve episódio simbólico foi compreendido por poucos
analistas de Wolfram. Ele significa simplesmente que o ato litúrgico
da Igreja só teria força e validade se fosse prestigiado e sancionado
pelo Graal, que por sua vez representava a autoridade superior do
rei-sacerdote de Munsalvaesche, isto é, o Imperador gibelino. Esse
quadro revela igualmente a função externa e subalterna da Igreja,
cuja mensagem era dirigida aos não iniciados, isto é, à massa dos
fiéis. O papel esotérico de grande mediador entre a ordem cósmica
e terrena cabia ao rei do Graal, o messias imperial.
Outro aspecto importante é a prevalência do estamento cava-
leiresco sobre quaisquer diferenças raciais e religiosas. Foi por ser
príncipe e cavaleiro que Feirefiz teve acesso à confraria da Távola
Redonda e ao centro espiritual secreto, o castelo do Graal, a des-
peito de ainda pagão. Mas para efeitos externos o cristianismo faz
sentir sua força. Para casar com Repanse de Schoye, a virgem do
Graal, o príncipe o Oriente teve de abraçar o cristianismo. Com
ela volta à Índia, que seria cristianizada. Seu descendente, o mis-
terioso rei-sacerdote Preste João, realizaria outro objetivo caro ao
gibelinismo: estabelecer uma aliança secreta entre o Oriente e o
Ocidente.
Como centro supremo, Munsalvaesche, o castelo do Graal, es-
tava situado no coração do mundo, em algum lugar não sabido. Sím-
bolo da majestade inacessível de quem era o intermediário supremo
entre a ordem divina e a terrena, essa cidadela proibida representa-
va o coração vivo e o segredo do Graal. Ninguém poderia decifrar
os mistérios desse palácio de púrpura e ouro se antes não tivesse
compreendido que, edificado segundo as leis divinas e naturais, ele
simbolizava o centro do Universo no sentido mais literal do termo.
Um terror sagrado se apoderava das pessoas autorizadas a transpor
seus portões. Entrar, penetrar! Raramente a palavra teve um senti-
do mais preciso. Parsifal experimentou essa sensação ao ingressar
ali pela primeira vez, sem ser convidado. Entrou como ‘forasteiro
desinformado’ porque, consoante afirma Wolfram, “somente aos
poucos adquiriu verdadeira experiência” (Livro I, 4). De lá se retirou
frustrado porque deixou de formular uma pergunta fundamental. Em
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compensação, sua segunda entrada foi triunfal. Sua presença e sua
palavra fizeram reflorescer a terra devastada. Ele restaurou o reino
e curou Anfortas, o rei enfermo, ao qual sucedeu.
Wolfram desenvolve em seu Parsifal dois temas centrais: a
Busca do Graal e a Restauração do Reino. O reino decaído repre-
senta a derrocada do Império Romano, em virtude da penetração
do cristianismo e da instituição do Papado. Na situação anterior
o chefe de Estado era igualmente o Sumo Pontífice (Imperator et
Pontifex Maximus). Ora, retomar essa tradição não implicava ne
cessariamente a superação do cristianismo, mas apenas a abolição
do primado de Pedro. A volta efetiva à tradição romana ofereceria
as condições necessárias para que o ‘Reino do Graal’, de oculto, se
tornasse manifesto, se afirmasse como realidade exterior e interior,
reunindo, como em suas origens romanas, o poder temporal e a
autoridade espiritual. Tal aspiração engendrou toda uma ideologia
— o gibelinismo — com cujos objetivos os Teutônicos e os Templá-
rios estavam comprometidos de alguma forma em dado momento
de sua história.
O gibelinismo não vingou, mas deixou sequelas. Permaneceu
como movimento subterrâneo, conturbando a esfera sagrada da
religião e o mundo profano da política. Séculos depois veio à tona
com o protesto de Lutero. Coube ao grade reformador realizar, em-
bora em termos mais modestos, o ideal gibelino. Nos países euro
peus que aderiram ao protestantismo, o chefe de Estado é também
chefe da Igreja.
4. A tradução
Wolfram von Eschenbach não quis identificar-se com o ofício de
Minnesänger (trovador). Chegou a repeli-lo com indignação (Livro
II, 115-116). Preferiu ser conhecido como cavaleiro m ilitante que,
em momentos de lazer, se dedicava à arte do verso. A despeito dis-
so, a posteridade o consagrou como expoente máximo da literatura
cortesã. Mais do que ao português, ao alto-alemão medieval se ajusta
o qualificativo de Bilac ‘rude e doloroso idioma’. Mas, utilizada por
Wolfram, a língua alemã nunca foi tão bela.
Prefácio 25
A presente tradução*, realizada com base no texto original ates-
tado por Karl Lachmann e confrontada com as edições em alto-ale-
mão moderno, teve em vista três objetivos: 1) ficar o mais possível
fiel ao texto original; 2) nada dizer além daquilo que o texto diz ou
expressamente sugere; 3) resgatar, sempre que possível, o sentido
de certas passagens do poema que os analistas qualificam como ‘a
sublime obscuridade de Wolfram’.
Em que consiste essa obscuridade? Trata-se de uma linguagem
oculta que os provençais chamavam de trobar clus, isto é, uma
terminologia simbólica utilizada por alguns trovadores dos séculos
XII e XIII para que sua doutrina não fosse acessível aos não inicia-
dos. Limitamo-nos a dizer não só o quão difícil foi a tarefa, mas ao
mesmo tempo como foi impossível a certeza de ter compreendido
de forma plena alguns desses trechos. Sempre que a barreira se
apresentou, preferimos manter a literalidade do texto e não lhe
atribuir um sentido que parecia insinuar-se sob o véu do símbolo.
A. R. Schmidt Patier
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