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Parsifal

‘Wolfram von Eschenbach’


Miniatura dos manuscritos trovadorescos de Manesse
(Heidelberg, Alemanha), século XII
Wolfram von Eschenbach

Parsifal
Tradução de
A. R. Schmidt Patier
Título original: Parzifal
(Do manuscrito medieval do século XIII,
atestado por Karl Lachmann)
© Copyright das notas by Sammlung Dieterich
Verlagsgesellschaft, Leipzig, 1977
© Copyright da tradução by A. R. Schmidt Patier, 1989

Direitos desta edição reservados à


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04738-020 São Paulo – SP — Tel.|Fax (11) 5687-9714
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Revisão e projeto gráfico interno: Jacira Cardoso


Vinheta de abertura dos ‘Livros’: Cena da folha do manuscrito
trovadoresco de Manesse (Heidelberg), início do século XIV
Capa: Casé (sobre miniatura catalã de 1195)

1ª edição: 1989
(Thot Livraria e Editora Esotérica, Brasília)
2º edição revista: 1995 (Editora Antroposófica,
São Paulo); 3ª edição: 2006

4ª edição — 2015

Atualização e produção editorial: A d Verbum Editorial


www.ad-verbum-editorial.com.br

ISBN 978-85-7122-249-6

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wolfram von Eschenbach, 1170-1220.


Parsifal / Wolfram von Eschenbach ; tradução
de A. R. Schmidt Patier. – 4. ed. – São Paulo :
Editora Antroposófica, 2015.

Título original: Parzifal.


ISBN 978-85-7122-249-6

1. Parsifal (Personagem legendário) 2. Prosa


alemã 3. Romances arturianos I. Título.

15-01665 CDD-831
Índices para catálogo sistemático:
1. Prosa : Literatura alemã 831
Sumário

Apresentação............................................................................. 13
Prefácio..................................................................................... 15
1. A cavalaria e a literatura........................................................... 15
2. O ciclo arturiano ou do Graal.................................................. 17
3. O Parsifal............................................................................. 19
4. A tradução....................................................................................... 25

Livro I
Prólogo...................................................................................................... 29
A viagem de Gahmuret à corte do Baruc..................................... 31
A viagem de Gahmuret à corte da rainha Belakane................ 36
A chegada de Gahmuret à corte de Zazamanc........................... 38
Gahmuret é recebido por Belakane................................................ 40
Preparativos para o combate............................................................ 44
Gahmuret recebe a visita de Belakane.......................................... 45
Os combates de Gahmuret diante de Patelamunt..................... 47
Recompensas amorosas...................................................................... 52
Negociações de paz............................................................................... 52
Gahmuret abandona Belakane....................................................... 57
O nascimento de Feirefiz.................................................................... 59
A chegada de Gahmuret a Sevilha.................................................. 59

Livro II
A viagem de Gahmuret a Kanvoleis............................................... 63
O torneio de Kanvoleis....................................................................... 67
Gahmuret entre três mulheres.......................................................... 75
Gahmuret no auge da fama.............................................................. 84
A morte de Gahmuret.......................................................................... 87
Lamentações de Herzeloyde.............................................................. 89
O nascimento de Parsifal................................................................... 91
Excurso do poeta................................................................................... 92

Sumário 7
Livro III
A infância de Parsifal no ermo de Soltane................................... 97
O primeiro contato de Parsifal com a vida cavaleiresca ...... 99
O primeiro contato de Parsifal com o mundo............................ 102
Parsifal e Iechute................................................................................... 104
O começo da via crucis de Iechute.................................................... 108
O primeiro encontro com Sigune.................................................... 109
Parsifal a caminho da corte do rei Artur...................................... 112
Parsifal na corte do rei Artur............................................................ 114
Keye castiga Cuneware....................................................................... 116
A morte de Ither..................................................................................... 117
Parsifal se apossa da armadura de Ither...................................... 119
O luto pela morte de Ither.................................................................. 120
O encontro com Gurnemanz............................................................ 121
Acolhida hospitaleira........................................................................... 122
Educação cavaleiresca........................................................................ 126
Parsifal despede-se de Gurnemanz................................................. 129

Livro IV
A chegada de Parsifal a Pelrapeire.................................................. 133
Parsifal e Condwiramurs................................................................... 136
A luta entre Parsifal e Kingrun........................................................ 141
O casamento de Parsifal e Condwiramurs................................... 144
O assédio de Pelrapeire....................................................................... 145
Clamide no acampamento de Artur............................................... 151
Parsifal abandona Condwiramurs................................................. 154

Livro V
Parsifal no castelo do Graal.............................................................. 159
Parsifal diante do rei do Graal......................................................... 162
Os mistérios do Graal.......................................................................... 163
O Graal..................................................................................................... 165
A pergunta postergada........................................................................ 166
O pernoite no castelo do Graal......................................................... 168
A partida de Parsifal............................................................................ 170
O segundo encontro com Sigune..................................................... 172

8 Parsifal
O segundo encontro com Iechute.................................................... 175
O duelo entre Parsifal e Orilus......................................................... 178
Parsifal reconcilia Orilus com Iechute........................................... 181
Orilus e Iechute no acampamento de Artur................................ 185

Livro VI
As três gotas de sangue na neve....................................................... 191
O duelo entre Parsifal e Segramors................................................. 193
Excurso sobre a natureza da Paixão............................................. 197
O duelo entre Parsifal e Keye............................................................ 198
Parsifal e Galvão................................................................................... 201
A admissão de Parsifal na Távola Redonda................................ 205
Cundrie amaldiçoa Parsifal.............................................................. 208
Kingrimursel desafia Galvão............................................................ 212
Clamide e Cuneware............................................................................ 215
Parsifal abandona a Távola Redonda........................................... 217
Excurso do poeta................................................................................... 221

Livro VII
Excurso do poeta................................................................................... 225
Galvão a caminho de Ascalun......................................................... 225
Galvão diante de Bearoche............................................................... 231
Obie menospreza Galvão................................................................... 231
Os primeiros combates diante de Bearoche................................. 233
Obie tenta humilhar Galvão............................................................. 235
Lippaut pede apoio a Galvão............................................................ 239
Galvão torna-se cavaleiro de Obilot............................................... 240
A batalha diante de Bearoche.......................................................... 244
Os notáveis feitos de Galvão............................................................. 246
O Cavaleiro Vermelho......................................................................... 250
A reconciliação de Obie e Meljanz.................................................. 253
Galvão despede-se de Obilot.............................................................. 255

Livro VIII
Galvão a caminho de Ascalun......................................................... 259
Galvão e Antikonie.............................................................................. 262
O ataque imprevisto............................................................................ 264

Sumário 9
O ataque à torre.................................................................................... 264
A intervenção de Kingrimursel........................................................ 266
Negociações de paz............................................................................... 267
A reconciliação...................................................................................... 275
A partida de Galvão............................................................................. 276

Livro IX
O terceiro encontro com Sigune....................................................... 281
O combate com o templário do Graal............................................ 286
O encontro na Sexta-feira Santa...................................................... 287
Os conselhos do eremita Trevrizent................................................ 290

Livro X
Galvão e o cavaleiro ferido............................................................... 319
O encontro com Orgeluse................................................................... 321
A insolência de Malcreature.............................................................. 326
As infâmias de Urians......................................................................... 329
Os motejos de Orgeluse........................................................................ 332
Excurso do poeta acerca das coisas do amor.............................. 334
Galvão diante do castelo encantado.............................................. 335
O duelo entre Galvão e Lischoys...................................................... 335
Hóspede do barqueiro......................................................................... 339

Livro XI
O castelo encantado de Clinschor.................................................... 347
Os terrores do castelo encantado..................................................... 351

Livro XII
As aflições amorosas de Galvão....................................................... 363
A coluna mágica................................................................................... 365
O combate com o turcoide................................................................. 367
A travessia do passo selvagem.......................................................... 371
A árvore de Gramoflanz..................................................................... 373
O combate aprazado........................................................................... 375

10 Parsifal
Galvão conquista Orgeluse................................................................ 377
Regresso festivo ao castelo encantado............................................ 381

Livro XIII
A festa no castelo encantado de Clinschor.................................... 387
Serviços recompensados..................................................................... 392
O regresso do mensageiro.................................................................. 395
A estranha biografia de Clinschor................................................... 400
A chegada de Artur............................................................................... 403
Artur parte para Joflanze................................................................... 406

Livro XIV
A partida de Gramoflanz................................................................... 415
A luta entre Parsifal e Galvão........................................................... 419
Gramoflanz no campo da luta......................................................... 420
Parsifal no acampamento de Galvão............................................ 422
O combate entre Parsifal e Gramoflanz........................................ 426
Gestões de apaziguamento................................................................ 429
Reconciliação......................................................................................... 438
A partida de Parsifal............................................................................ 441

Livro XV
O combate entre Parsifal e Feirefiz................................................. 445
Os irmãos se reconhecem................................................................... 450
Feirefiz e Parsifal no acampamento de Galvão.......................... 454
A festa em Joflanze............................................................................... 458
Parsifal, o eleito do Graal................................................................... 466

Livro XVI
Os sofrimentos de Anfortas................................................................ 473
Parsifal no castelo do Graal.............................................................. 475
Parsifal, o rei do Graal........................................................................ 477
O reencontro com Trevrizent............................................................ 478
O reencontro com Condwiramurs.................................................. 479
Kardeiz sucede a Parsifal................................................................... 481

Sumário 11
A morte de Sigune................................................................................. 482
Condwiramurs, a rainha do Graal................................................. 483
A festa no castelo do Graal................................................................ 484
Feirefiz e Repanse de Schoye.............................................................. 486
O batismo de Feirefiz........................................................................... 489
O reino do Preste João......................................................................... 491
A missão de Loherangrin................................................................... 493
Excurso final do poeta......................................................................... 495

Notas......................................................................................... 497
Índice onomástico..................................................................... 521
A genealogia do Graal
I – A estirpe de Artur........................................................... 534
II – A estirpe de Parsifal........................................................ 535

12 Parsifal
Apresentação

Resgatada de suas longínquas origens medievais, de cujas fon-


tes hauriu Richard Wagner para compor sua célebre ópera homô-
nima no século XIX, a história de Parsifal contada por Wolfram von
Eschenbach remonta a seu antecessor em um século, Chrétien de
Troyes, autor de Perceval. Do alemão medieval ao alto-alemão moder-
no, e de ambos ao português, foi percorrido um longo caminho cuja
última etapa se deve ao admirável empenho do presente tradutor.
Por suas palavras no prefácio, somos didaticamente introduzidos
nas sutis e complicadas tramas dessa imensa tarefa que consistiu em
verter para a nossa língua uma obra de tal vulto. Também por suas
mãos somos habilmente conduzidos na com­preensão do contexto
literário, histórico e espiritual em que o imenso poema foi escrito.
Inexistente em edição brasileira até 1989, quando da primeira
publicação do presente texto por outra casa editora — num em­
preendimento, diga-se de passagem, pioneiro —, a grande obra de
Eschenbach é agora relançada em versão revista e com características
gráfico-editoriais visando a uma adequação ao contexto. Empenhados
na publicação deste precioso documento que, sob forma de tão an-
tigo poema, atesta o incansável e recorrente círculo das aspirações
e sofrimentos humanos, procuramos conferir-lhe um digno lugar
entre os expoentes da literatura universal vertidos ao português.
Afinal de contas, quem é Parsifal? Personagem verídico ou não,
lendário a quem o queira, real a quem assim acredite, ele tem sua
existência garantida num inefável mundo que a nenhum estranho
cabe alcançar de fato: o interior de cada um de nós, onde se de-
senrola a busca individual em direção a um escopo aparentemente
intangível. Alcançá-lo ou não é algo que pressupõe, sem sombra de
dúvida, a medida de nossos esforços.
Iniciemos, pois, o longo caminho desta leitura exemplar.

Jacira Cardoso, editora


Agosto de 1995
Prefácio

1. A cavalaria e a literatura
A cavalaria foi o evento mais notável da história europeia entre a
cristi­aniza­ção e os tempos modernos. O conjunto de ideais e práticas
próprios de uma ordem de pessoas que nela ingressavam mediante
educação e ritos determina­dos acabou constituindo-se em tema de
toda uma fase da Literatura.
O acesso ao status de cavaleiro exigia uma formação iniciada des-
de a infân­cia. O feu­dalismo forneceu à cavalaria seus castelos, feudos,
armaduras e ce­rimônias de investidura, que consolidavam os laços
entre vassalos e suse­r anos. A instituição não apareceu de repente,
nem com todas as características de que se revestiria já na época dos
trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou no bojo da
Alta Idade Média, todos os demais aparatos que a dis­tinguiam — os
bra­sões de nobreza, as ordens de cavalaria e as cerimônias de sagra-
ção — assumiram sua forma definitiva em torno do século XI. Com
efeito, o brasão mais antigo que se conhece1 é de Raul de Beaumont
(1087–1110). Naquele século se fixou igualmente o hábito de armar
o cavaleiro numa soleni­dade especial: a sagração. Sob a influência da
Igreja, essa ce­rimônia transfor­mou-se aos poucos numa espécie de
sacramento que, via de regra, era prece­dido de vigília de armas, noite
de preces e bênçãos das armas.
O cavaleiro recém-armado tinha, a partir de então, o privilé-
gio de arris­car a vida nos torneios e usar as cores da bela a quem
dedicava seus ser viços. Seu objeti­vo maior era buscar a perma-
nência de seus altos feitos na memória coletiva. Ser imortalizado
pelos serviços presta­dos ao monarca, à sua dama ou aos fracos e
inde­fesos era um privilégio diante do qual a so­brevivência física
parecia pouco impor­tante. As obrigações cada vez mais precisas
e compulsi­vas convertiam o cavaleiro num paladino empenhado
em acumular façanhas. Esse estado de coisas resultou necessaria-
mente num ambiente turbulento e compe­titivo. A Igreja franzia a
testa, reprovando esses jogos marciais, em especial a participação

Prefácio 15
da mulher como espec­tadora entusiasta e, não poucas vezes, objeto
de disputa entre os contendores. Mas quando os trovadores passaram
a enaltecer essas pugnas como manifestação meritória a serviço do
amor cortês, tais reparos começaram a ser alegremente ignora­dos. Os
trovadores e as damas vence­ram.
É oportuno estabelecer aqui a diferença entre a cavalaria, ins-
tituição se­cular, e as or­dens cavaleirescas de caráter religioso. A dig-
nidade de cavaleiro podia ser con­ferida por qual­quer senhor feudal,
com a participação da Igreja. Já as ordens de cavalaria eram criadas
pelo Papa, e seus membros eram um misto de monges e guer­reiros,
que no alto da sagração faziam, além dos compromissos normais pe-
culiares à sua condição, o voto de castidade.
A primeira dessas organizações militares — a Ordem do Hospital
de São João de Jeru­salém — hoje Soberana Ordem Militar de Malta
— foi fundada no final do século XI (1099). So­mente no decurso do
século seguinte apareceriam em cena as outras duas grandes ordens
ca­valeirescas — a dos Templários (1118) e a dos Teutôni­cos (1190).
Fica claro, pois, que não havia qualquer ordem de cavaleiros nos tem-
pos do rei Artur (século VI) e do imperador Carlos Magno (742–814).
Trata-se de meras idealizações livrescas. Quando a cavalaria se tor­nou
florescente, no decurso dos séculos XII e XIII, surgiu o desejo de
enobrecer suas ori­gens fazendo-as remontar àqueles tem­pos heroicos,
e procuraram-se entre os guerreiros do rei bretão e os paladinos do
monarca do Santo Império Romano-germânico os paradigmas das
virtudes que se proclamavam. As or­dens cavalei­rescas instituídas
por Artur2 e Carlos Magno são, portanto, sonhos.
Esse fato nos leva a fazer outra distinção, desta feita entre a cava-
laria como institui­ção que de fato existiu e sua posterior reelaboração
pelos trovado­res, isto é, quando a cavalaria passou do plano histórico
para o domínio literário.
Na literatura trovadoresca que elegeu a cavalaria como tema
podemos distin­guir três fases: o período heroico, em que a guerra
prevaleceu sobre a ga­lanteria (La chanson de Roland e El cantar
de mio Cid); a literatura cortês, de inspirações amáveis e modos
urbanos (o ciclo artu­riano ou do Graal); o período da decadência,
assentado no artifício e no falso (Don Quixote de la ­Mancha).

16 Parsifal
A imagem lisonjeira que os trovadores nos apresentam do tur-
bulento Cid e do intré­pido Roland não são propriamente falsas, mas
certamente versões idealizadas. A realidade era bem outra. A cavalaria
era um rude ofício, e só pou­cos seguiam à risca as solenes promessas
feitas no ato da sagração. Duas in­fluências moderaram, em parte,
a agressividade do cavaleiro militante: a mulher e o cristianismo.
A literatura deu a tudo isso um remate magnífico, apre­sentando a
instituição cavaleiresca com uma imagem que todos gostariam que
tivesse, e não como de fato era.

2. O ciclo arturiano ou do Graal


Os germes da cavalaria se mostram mais numerosos entre os
povos ger­mâni­cos, para os quais as artes marciais e a mulher eram
objeto de uma veneração que se assemelhava a um culto. A despeito
disso, a cavalaria nunca adquiriu entre os ale­mães o refina­mento
e o esplendor que, depois, os franceses lhe sou­beram comu­nicar.
A cavalaria não é criação de qualquer povo europeu em par-
ticular. Con­tudo, é certo que ganhou maior brilho na França, onde
pela primeira vez recebeu trata­mento literário. Esse fato tornou os
franceses preponderantes em matéria de poesia, como em quase
tudo o mais. A França é nossa Grécia moderna. A lírica trovado­resca
foi obra da Provença; a épica ou roman courtois nasceu no norte
da França. Os franceses só não inventaram o tema predomi­nante
na poesia cortês — a chamada matéria bretã —, que foi importada
da Inglaterra.
Como personagem histórico e líder político dos bretões, Ar-
tur foi menci­onado pela pri­meira vez pelo historiador Nennius de
Mércia (cca. 800 d.C.) em sua Historia Brittonum. Foi basea­do em
Nennius que o bispo inglês Geoffrey of Monmouth (1100–1154)
redigiu sua Historia Re­gum Britanniae, onde o Artur histórico já
aparecia en­volto num halo de lenda. Enquanto per­maneceu restrita
à sua nativa Inglaterra, a figura do rei bretão se movia numa esfera
interme­diária entre história e mito. Para se tornar personagem lite-
rário, Artur teve de emigrar para a França.
Na reelaboração e divulgação internacional do tema, Chré­tien
de Troyes tra­tou a maté­ria bretã como se fosse assunto nacional.

Prefácio 17
Em seu Perceval ou le Comte du Graal apareceu pela primeira vez
o Graal, que não constava da primi­tiva matéria bretã. Iniciou-se
assim um ciclo que ora é chamado arturiano, ora do Graal. Robert
de Baron acresceu à história um novo per­sonagem: o sábio Merlin.
Com o Erec, de Hartmann von Aue, o ciclo do Graal se esten-
deu até a Alema­nha. Wol­fram von Eschenbach, cuja obra será aqui
o objeto central de nossa atenção, ignorou o sábio Merlin e refundiu
inteiramente a matéria bretã, dando-lhe novo sen­tido. Com a obra
tardia Le morte d’Arthur, de Sir Thomas Malory (1408–1471), Artur
voltou à Inglaterra e encerrou o ciclo.
Uma característica do universo arturiano é a intemporalidade.
As perso­na­gens da Canção de Rolando e da Canção dos Nibelun-
gos — Carlos Magno e Átila (Etzel) — passam certa­mente por uma
reelaboração poética, mas continuam mantendo um compromisso
com a Histó­ria e a Geografia. Comparados a estes, os personagens
do ciclo do Graal pertencem ao domínio da lenda. Aqui não se trata
mais do rei bretão que historicamente existiu, mas do Artur, perso­
nagem lendário e literário que, com sua corte e sua Ordem da Távola
Redonda, vive liberto da barreira do tempo. Até a realidade torna-se
irreal. Nantes, a capital de Artur, é uma cidade ge­ograficamente si-
tuada na Bretanha francesa. Mas o cavaleiro que sai de seus portões
mergulha logo no mundo irreal da aventura.
Nos diversos poemas do ciclo, Artur ocupa uma posição cen-
tral em rela­ção à qual todo o restante é considerado. Ele próprio
não realiza feito algum. É um polo imóvel em torno do qual giram
os acontecimentos e florescem as faça­nhas. Mas todas as ações são
por ele deter­m inadas. O universo arturiano é um mundo de ale­grias
e de festas. O herói é envolvido em in­trigas, tensões e impre­vistos,
mas se mantém à margem do impasse. Ele é sempre bem-sucedi­do,
bem-parecido e vencedor. A der­rota é a sina do vilão e do adversário.
Para o verdadeiro he­rói arturiano, todas as complicações redundam
em alegrias. O itinerário do cavaleiro da Távola Redonda é quase
sempre o mesmo. Ele deixa as delícias da corte em busca de aven-
turas que sempre parecem desenrolar-se fora do tempo. O acúmulo
de façanhas resulta para ele na con­quista da amada. Com isso ele
volta ao convívio da Távola Redonda. Essa cons­tante permuta entre

18 Parsifal
centro e periferia parece ser o único fato importante que ocorre
nos romances arturianos.

3. O Parsifal
O presente estudo limita-se à análise comparativa entre o
Parsifal de Chrétien de Troyes e a obra homônima de Wolfram
von Eschenbach. Há várias razões para fazer o cotejo entre as duas
obras: a insistência dos analistas em apontar o poema de Chrétien
como fonte principal do Parsifal de Wolfram; a semelhança entre
ambas, onde ao lado do círculo arturiano existe o círculo do Graal;
e, finalmente, a declaração do próprio Wolfram, admitindo que a
história era a mesma, com a diferença de que ele teria contado a
‘história verdadeira’. O poeta alemão parece ter alguns motivos que
justificam sua afirmação. Chrétien reelaborou a matéria bretã e com
ela construiu a estrutura de uma obra literária que aparentemente
se prestava a uma interpretação psicológica. Wolfram identificou
o Graal com os problemas de sua época e o transformou num dos
mitos fundadores do Ocidente.
O tipo de enredo desenvolvido por Chrétien de Troyes em seu
Parsifal parece prenunci­ar um gênero hoje definido como Bildungs­
roman (romance de forma­ção), precedendo as­sim cerca de seis
séculos ao Wilhelm Meister, de Goethe. Trata-se de uma história
exemplar, que serve de modelo ao comporta­mento dos homens.
Nela a discussão sobre o acontecer da História é conscien­temente
orientada para um objetivo educacional cujo r­esultado implica o
desen­volvimento global da personali­dade.
Percebendo essa inter-relação, Robert A. Johnson, em obra
recente3, usa os conceitos junguianos para interpretar a obra de
Chrétien, na qual Parsi­fal está em­penhado na busca do Santo Graal.
Nessa análise Johnson identifica o Graal com o self, e sua busca com
o pro­cesso de individuação (a demanda do Graal), uma evolução
progressiva através da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos
poucos um ser huma­no integral. Suas buscas terminam quando ele
acha o Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-se ‘ele mesmo’.
Não importa reproduzir aqui toda a história idealizada por
­Chrétien de Troyes: o malo­gro do Rei Pescador, em virtude do qual

Prefácio 19
seu reino se transformou numa terra estéril (gaste terre), o empenho
de Parsifal em restaurar esse reino decadente median­te a conquista
do Graal, etc. Bastaria lembrar que a história termina quando Par-
sifal está prestes a achar o Graal, ou seja, quando está na iminência
de tornar-se ‘ele mesmo’.
Chrétien não foi além desse ponto, seja porque morreu, seja
mesmo porque não tinha mais o que dizer. Johnson afirma que “em
muitos sentidos ele parou onde nos encontramos também”. Seria o
caso de cada um retomar a busca e descobrir o Graal (o self) dentro
de si mesmo.
Wagner teria aproveitado o original de Wolfram, adaptando‑o
às exigên­cias técnicas de seu Bühnenweihfestspiel (Festival sacro­
cênico). Entretanto, em virtude das idiossincrasias de Wagner
essa reelaboração resultou, de certo modo, num des­vio do texto de
Wolfram, fato que levou alguns admiradores do mago de Bayreuth
a uma interpretação que se aproxima bastante daquela feita por
Johnson: o aspirante ao Graal (Parsifal), ao empreender a demanda
(busca do aperfeiçoamento espiritual), vencendo os apelos munda-
nos (Klingsor) e go­vernando o corpo físi­co (Kundry) pode, pela
ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini), e ­ levando-o para a
cabeça (Mont Salvat) e atingir desse modo a per­feição (Nirvana).
A despeito de seu fascínio, essas interpretações atribuem aos
trovadores dos séculos XII e XIII intuições que eles provavelmente
jamais tiveram. Não se po­deria, então, lançar contra es­sas teses uma
objeção que as faria desmoronar pela base? Provavel­mente Chrétien
de Troyes jamais pensou em individuação, por não estar consciente
desse componente psíquico. Em todo o caso, Wolfram von Eschen­
bach tinha a esse respeito uma orientação bastante diferente. Ver,
então, na busca do Graal um pro­cesso de individuação que leva o
homem ao seu centro, ao sel­f, é uma interpretação totalmente mo-
derna que, apesar de válida, teria surpreendido Chrétien, Wolfram
e talvez até mesmo Wagner.
Tais versões modernas sucumbem quando submetidas a um
último teste. Elas contam uma história exemplar, em que os estados
de consciência são considera­dos do ponto de vista da cons­ciência de
quem os experimenta. Não existe, no caso, qualquer agente externo

20 Parsifal
a impelir o aspirante nessa direção. Existe apenas uma motivação
interior. Tudo se passa em nível psico­lógico.
O Parsifal, de Wolfram, parece ultrapassar claramente esses
modelos. Existe, no caso, uma força externa — a missão — que se
propõe à vontade de Parsifal e a inclina. Essa vocação — um chama-
mento indeclinável — é o Reino do Graal, para o qual Parsifal — e
unicamente ele — foi convocado. Por isso ele nasce como avatar,
como herói restaurador.
As doutrinas da Igreja sobre as origens do Poder nos remetem
à Provi­dência, uma es­pécie de ação pela qual Deus conduz os acon-
tecimentos e as criaturas para o fim que lhes foi destinado. Lendo
nas entrelinhas, percebe-se que Wolfram atribui ao Poder uma ori-
gem dife­rente. Segundo tal concepção tradicional e supracristã, a
transmissão do Poder Divino não se daria pelo desíg­nio normal da
Providência, mas por um ato pessoal da divindade, encarnando-se
em determinado governante. Essa visão cosmológica, herdada de
culturas pré-cristãs, admitia uma ordem cósmica em analogia à
ordem terrena, postu­lando um relacionamento íntimo entre esses
dois planos, cujo grande mediador era o monarca em seu palácio.
René Guénon, numa de suas obras4, remete a origem da noção
do rei-sacerdote ao mítico Melquisedeque, que reunia em sua pessoa
os poderes do monarca e do pontífice. Na Roma antiga havia igual-
mente a figura do Imperator et Pontifex Maximus. No Ocidente
cristão, a ideia de um personagem que fosse simultaneamente sacer-
dote e rei nunca foi inteiramente aceita. Durante a Idade Média, o
poder supre­mo estava dividido entre o Papa e o monarca do Santo
Im­pério Romano-germânico. Na época de Wolfram essa separação
insatisfatória resultou em rivalidades intermi­tentes entre as duas
instâncias, traduzindo a ambição de cada uma no sentido de ab­
sorver as atribuições da outra. Surgiram, então, dois partidos: os
guelfos, partidários do Papa, e os gibelinos, partidários do Impera­
dor. A atuação de uma série de imperadores enérgicos da dinastia
dos Hohens­taufen fez esse antagonismo latente degenerar em hos-
tilidade aberta. Fre­derico I, o Barba-roxa, teve grandes dificuldades
com o Papa mas não soube, ao con­trário de seus predecessores,
transpor esse antagonismo para o plano das ideias. Frederico II, ao
con­trário, soube retomar a via sutil. Dotado de grande inteli­gência,

Prefácio 21
esse inimigo irredutível dos papas foi iniciado no sufismo islâmi­co
e nos mistérios templários. Falava diversas línguas, en­tre as quais o
árabe e o grego. Sua guarda pessoal era composta unicamente de
sarracenos que, dada sua condição de muçulmanos, não podiam
ser excomungados. Tendo organizado a Sexta Cruzada, firmou um
pacto com os Teutônicos e os Templários, que o acla­maram Impe­
ra­dor do Mundo. Assim fortalecido, marchou sobre Jerusalém, onde
ocorreu um fato insólito em que o Papa custou a acreditar. Ao invés
de oferecer combate, os príncipes muçulmanos entre­garam a Frede-
rico as chaves da Cidade Santa, aclamando-o sobe­rano do Ocidente
e do Oriente. Frederico estava entre irmãos. Mircea Eliade5 atesta
que Frederico II foi provavelmente o único mo­narca do Ocidente
cristão que se julga­va divino, não apenas em virtude de seu cargo,
mas sobretudo por sua natureza inata — nada menos que um avatar,
um messias imperial.
Analisando atentamente o texto do Parsifal, descobrimos
um estranho parale­lo entre o Reino do Graal e o Santo Império
da época de Wolfram von Eschenbach. Cercando-se, porém, de
cuidados, o poeta sugere muito mais do que afirma esse paralelo.
Sob o texto do poema que está diante de nós existe um pré-texto
destinado unica­mente aos iniciados. Os incultos, entre os quais se
incluem os cultos profanos, verão no poema apenas um convite
ao entreteni­mento.
Em vários trechos da epopeia (livro VIII, 416; livro IX, 453;
livro XVI, 827) Wolfram aponta como fonte de seu Parsifal um
certo Kyot, o Provençal. Esse fato levou seus críticos a sustentar
a ideia de que Kyot seria apenas um personagem fictício atrás do
qual se escondia a prodigiosa inventiva do próprio Wolfram. Mas
nenhum desses analistas questiona as fontes de Chrétien. O poeta
francês, aponta­do como prógono de Wolfram, confessa que reco-
lheu os ele­mentos de seu Parsifal de um ‘certo livro’ (le livre), sem
se dar ao trabalho de explicar que tipo de livro era esse e qual seu
autor. Como as duas histórias (até o Livro XIII) são basicamente
iguais, não seria o caso de se concluir que Chrétien e Wolfram se
tivessem servido da mesma fonte? E não teria sido essa a razão que
levou Wolfram a acusar o colega francês de ter detur­pado a história
original de Kyot?

22 Parsifal
Examinando os dois textos descobrimos, contudo, algumas
diferenças notá­veis. Assim, alguns lugares e personagens que em
Chrétien aparecem sem nome recebem um nome em Wolfram,
como o castelo do Graal (Munsalvaesche), o eremita (Trevrizent),
a virgem do Graal (Repanse de Schoye). Certos personagens rece-
bem nomes diferentes (Condwiramurs ao invés de Blanchefleur).
Outros nem sequer exis­tem em Chrétien, como Feirefiz e Gahmu­ret.
Ademais, aparece em Wolfram grande número de nomes célticos
e uma rica terminologia cientifica árabe, que são simples­mente
ignorados por Chrétien.
Além disso, a corte de Artur e o reino do Graal são tratados de
modo diverso nas duas obras. Em Chrétien não fica muito claro qual
dos dois centros é o mais impor­tante. Em Wol­fram a prevalência
da comunidade do Graal sobre a corte de Artur é indiscutível. Ali
a Ordem da Távola Redonda não passa de uma escola preparatória
dos aspirantes do Graal.
Mas a diferença maior e que leva a todas as outras está na forma
pela qual é tratado o Graal nos diversos poemas do ciclo. Chrétien
não se atreve a sair do con­vencionalismo litúr­gico. Para ele o G­ raal
é o vaso para a guarda da hóstia. Robert de Boron é ainda mais orto-
doxo. Em sua versão, o Graal é a um tempo o cálice da Santa Ceia e o
vaso em que José de Arimateia recolheu o sangue do flanco de Cristo,
aberto pela lança do centurião Longino. Para Wol­fram o Graal é uma
pedra possuidora de virtudes miraculosas, cuja origem, segundo o
eremita Trevri­zent, “recuava ao tempo em que o batismo se tornara
nosso escudo contra as penas do inferno” (Livro IX, 453). Ora, sendo
o batismo anterior à instituição da Igreja, o Graal já é cristão mas
ignora o primado de Pedro, isto é, do Papa. Como bom gibelino,
Wolfram ignora to­talmente a Igreja como instituição. Pela leitura
do poema ficamos sabendo que Parsi­fal recebe sua educa­ção ética
e cavaleiresca de três fontes leigas: da mãe, do eremita Trevrizent
e de Gurnemanz, o cava­leiro grisalho. Pelo mesmo critério o leigo
Trevrizent concede a Parsifal a absolvição de seus pe­cados. Sigune,
a prima de Parsifal, procede do mesmo modo. Piedosamente entre-
ga-se a uma vida de recolhimento e de devota­mento a Deus, jamais
assistindo a uma missa sequer. Na corte do rei Artur o sacer­dote apa-
rece às vezes oficiando a missa; no batismo de Feirefiz o sacerdote

Prefácio 23
está tam­bém presente por um breve momento; mas para que a pia
batismal se enchesse de água benta, foi necessária a presença do
Graal. Esse breve episódio simbólico foi compreendido por poucos
analistas de Wolfram. Ele significa sim­plesmente que o ato litúrgico
da Igreja só te­ria força e validade se fosse prestigi­ado e sancionado
pelo Graal, que por sua vez representava a autoridade superi­or do
rei-sacerdote de Mun­salvaesche, isto é, o Imperador gibelino. Esse
quadro revela igualmente a função externa e subalterna da Igreja,
cuja mensagem era dirigida aos não iniciados, isto é, à massa dos
fiéis. O papel esotérico de grande mediador entre a or­dem cósmica
e ter­rena cabia ao rei do Graal, o messias imperial.
Outro aspecto importante é a prevalência do estamento cava-
leiresco so­bre quaisquer diferenças raciais e religiosas. Foi por ser
príncipe e cavaleiro que Feirefiz teve acesso à con­fraria da Távola
Redonda e ao centro espiritual secreto, o castelo do Graal, a des-
peito de ainda pagão. Mas para efeitos externos o cris­tianismo faz
sentir sua força. Para casar com Repanse de Schoye, a virgem do
Graal, o príncipe o Oriente teve de abraçar o cristianismo. Com
ela volta à Índia, que seria cristianizada. Seu descendente, o mis-
terioso rei-sacerdote Preste João, realizaria outro objetivo caro ao
gibeli­nismo: estabelecer uma aliança secreta entre o Oriente e o
Ocidente.
Como centro supremo, Munsalvaesche, o castelo do Graal, es-
tava situ­ado no coração do mundo, em algum lugar não sabido. Sím-
bolo da majestade inacessível de quem era o inter­mediário supremo
entre a ordem divina e a ter­rena, essa cidadela proibida representa-
va o cora­ção vivo e o segredo do Graal. Ninguém poderia decifrar
os mistérios desse palácio de púrpura e ouro se antes não tivesse
compreendido que, edificado segundo as leis divinas e naturais, ele
sim­bolizava o centro do Universo no sentido mais literal do termo.
Um terror sagra­do se apoderava das pessoas autoriza­das a transpor
seus portões. Entrar, pene­trar! Raramente a palavra teve um senti-
do mais preciso. Parsifal experimentou essa sensação ao ingressar
ali pela primeira vez, sem ser convidado. Entrou como ‘forasteiro
desinformado’ porque, consoante afirma Wol­fram, “somente aos
poucos adquiriu verdadeira experiência” (Livro I, 4). De lá se retirou
frus­trado porque deixou de formular uma pergunta fundamental. Em

24 Parsifal
com­pensação, sua segunda entrada foi triunfal. Sua presença e sua
palavra fizeram reflo­rescer a terra devastada. Ele res­taurou o reino
e curou Anfortas, o rei enfermo, ao qual sucedeu.
Wolfram desenvolve em seu Parsifal dois temas centrais: a
Busca do Graal e a Restau­ração do Reino. O reino decaído repre-
senta a derrocada do Im­pério Romano, em virtude da pene­tração
do cristianismo e da instituição do Papa­do. Na situação anterior
o chefe de Estado era igualmente o Sumo Pontífice (Imperator et
Pontifex Maximus). Ora, retomar essa tradição não implicava ne­
cessariamente a superação do cristia­nismo, mas apenas a abolição
do primado de Pedro. A volta efetiva à tradição romana ofereceria
as condições necessárias para que o ‘Reino do Graal’, de oculto, se
tor­nasse manifesto, se afirmasse como realidade exte­rior e interior,
reunindo, como em suas origens romanas, o poder temporal e a
autoridade espiritual. Tal aspiração engendrou toda uma ideologia
— o gibelinismo — com cujos objetivos os Teu­tônicos e os Templá-
rios estavam comprometidos de alguma forma em dado mo­mento
de sua história.
O gibelinismo não vingou, mas deixou sequelas. Permaneceu
como movi­mento subter­râneo, conturbando a esfera sagrada da
religião e o mundo profano da política. Séculos depois veio à tona
com o protesto de Lutero. Coube ao grade refor­mador realizar, em-
bora em termos mais modestos, o ideal gibelino. Nos países euro­
peus que aderiram ao protestantismo, o chefe de Estado é também
chefe da Igreja.

4. A tradução
Wolfram von Eschenbach não quis identificar-se com o ofício de
Min­nesänger (trovador). Chegou a repeli-lo com indignação (Livro
II, 115-116). Pre­feriu ser conhe­cido como cavaleiro m­ ilitante que,
em momentos de lazer, se dedicava à arte do verso. A despeito dis-
so, a posteridade o consagrou como ex­poente máximo da litera­tura
cortesã. Mais do que ao português, ao alto-alemão medieval se ajusta
o qualifica­tivo de Bilac ‘rude e doloroso idioma’. Mas, utili­zada por
Wolfram, a língua alemã nunca foi tão bela.

Prefácio 25
A presente tradução*, realizada com base no texto original ates-
tado por Karl La­chmann e confrontada com as edições em alto-ale-
mão moderno, teve em vista três objetivos: 1) ficar o mais possível
fiel ao texto original; 2) nada dizer além daquilo que o texto diz ou
expressamente sugere; 3) resgatar, sempre que possí­vel, o sentido
de certas passagens do poema que os analis­tas qualificam como ‘a
sublime obscuridade de Wolfram’.
Em que consiste essa obscuridade? Trata-se de uma linguagem
oculta que os proven­çais chamavam de trobar clus, isto é, uma
terminologia simbólica utilizada por alguns trovado­res dos séculos
XII e XIII para que sua doutrina não fosse acessível aos não inicia-
dos. Limita­mo-nos a dizer não só o quão difícil foi a tarefa, mas ao
mesmo tempo como foi impossível a certeza de ter compreendido
de forma plena alguns desses trechos. Sempre que a barreira se
apresentou, preferimos manter a literalidade do texto e não lhe
atribuir um sentido que parecia insinuar-se sob o véu do símbolo.

A. R. Schmidt Patier

* Elaborada em prosa, mantendo a característica original da divisão em ‘livros’,


em número de dezesseis. As estrofes originais (827 ao todo) delimitam-se pelo
sinal da barra ( / ), constando sua numeração na margem externa do texto. (N.E.)

26 Parsifal

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