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RENAMO – UMA DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS

O DOSSIER MAKWAKWA

Paulo Oliveira

1
O AUTOR ........................................................................................................................................................... 5
O LIVRO .................................................................................................................................................................................... 6
UMA REDE DA CIA, O SERVIÇO NACIONAL DE SEGURANÇA E O CONTACTO COM A
‘RESISTÊNCIA’ ......................................................................................................................................................... 11
O CONTACTO COM O TEMÍVEL SNASP, O SERVIÇO NACIONAL DE SEGURANÇA POPULAR,
E COMO SE FABRICA O ‘AGENTE ALCINO’ ........................................................................................ 12
AS ‘RESISTÊNCIAS’ LISBOETAS, A FUMO, O MIRN DE KAÚLZA DE ARRIAGA, A MALTA DO
‘7 DE SETEMBRO’ E A PONTE PARA UM ENIGMÁTICO ‘ROBERTO CHIPANGA’ ..................... 14
EVO FERNANDES, ‘EMBAIXADOR’ DA RESISTÊNCIA, EMPREGADO DE MANUEL BULLOSA,
CABECILHA DA ‘COMPONENTE PORTUGUESA’ .............................................................................. 17
CHEGA A LISBOA O OPERACIONAL ORLANDO CRISTINA, SECRETÁRIO-GERAL DA
RESISTÊNCIA, O HOMEM DE MÃO DE JORGE JARDIM ................................................................... 21
ÁFRICA DO SUL: A DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS .......................................................................... 23
LA COURT MONIQUE: A PENSÃO DA MORTE LENTA, UM REDUTO PARA A RENAMO
DIRIGIDA PELO EX-PIDE ‘CARVALHO DAS BARBAS’ ..................................................................... 24
O ZANZA BUILDING, DE PRETÓRIA, CENTRO DO FURACÃO DE TODA A
DESESTABILIZAÇÃO NA ÁFRICA AUSTRAL ...................................................................................... 25
A ‘FARM’, UMA BASE PARA OS DIRIGENTES DA RENAMO JUNTO AO CORAÇÃO DA ÁFRICA
DO SUL .......................................................................................................................................................... 27
VINTE E SETE GUERRILHEIROS NA BAIXA DE PRETÓRIA .............................................................. 28
O ESTRANHO INDIANO ‘DOIS DEDOS’, O HOMEM À FRENTE DA TEIA NO MALÁWI................29
AFONSO DHLAKAMA: JOVEM E ‘VERDE’ POLITICAMENTE, ADORA COCA-COLA, MOTAS E
FILMES DE ‘KARATÉ’ ................................................................................................................................ 31
COMO A INTRIGA MINA O MOVIMENTO .............................................................................................. 32
ASSIM FUNCIONA O ESTADO-MAIOR DA RESISTÊNCIA MOÇAMBICANA EM ‘BASE DE
COMANDO RECUADO’ NO VIZINHO TERRITÓRIO DA ÁFRICA DO SUL .................................... 33
UM AGENTE DA DINFO PORTUGUESA DESTACADO JUNTO DA GUERRILHA, E COMO UM
TIRO NA NOITE ABATE UM DOS MITOS DO MOVIMENTO ............................................................ 38
UM ASSASSINO DE VULTO. ESTARÁ O HOMEM QUE MATOU HUMBERTO DELGADO
ENVOLVIDO NA MORTE DE ORLANDO CRISTINA? ......................................................................... 44
TERROR E CAOS COM UMA TREMENDA BOMBA EM PRETÓRIA ................................................. 45
ESCONDIDA ALGURES NAS MONTANHAS DE POTGIETERSRUST, A NOVA BASE SECRETA
DA RENAMO NA ÁFRICA DO SUL ......................................................................................................... 46
GIANCARLO COCCIA: COMO UM ‘JORNALISTA’ E AGENTE ESPECIAL, DÁ COBERTURA À
EXECUÇÃO MUITO SUI GENERIS DO PILOTO DE MIG-17 ADRIANO BOMBA .......................... 51
ESTA INICIÁTICA DESCIDA AO MATO. COMO É O DIA A DIA NA BASE DA GUERRILHA.
QUEM SÃO OS HOMENS DA RENAMO. O RESSURGIR DA ‘VOZ DA ÁFRICA LIVRE’ ............. 53
PHALABORWA: O VERDADEIRO CENTRO DE LOGÍSTICA E TREINO PARA AS VÁRIAS
GUERRAS NO SUB-CONTINENTE AFRICANO, BASE DE MERCENÁRIOS E DO CÉLEBRE
BATALHÃO 32 ‘BUFFALO’ ....................................................................................................................... 57
OS REABASTECIMENTOS AÉREOS: A LINHA CONDUTORA, O SANGUE VITAL PARA A
GUERRILHA .................................................................................................................................................. 62
UMA CAMINHADA INFERNAL PELAS MONTANHAS ........................................................................ 63
OPERAÇÃO ‘AGOSTO VERMELHO’ E A LUTA PELA TANTALITE, MINERAL ESTRATÉGICO:
MORTE E RAPTO DE DUAS DEZENAS DE SOVIÉTICOS .................................................................. 64
ALERTA MÁXIMO. HÁ UMA ‘TOUPEIRA’ INFILTRADA ENTRE NÓS ............................................ 66
A FUGA PARA PHALABORWA. UM PARAÍSO NO MEIO DA SELVA. A TERRÍVEL SEDE.
JAVALIS E ELEFANTES ............................................................................................................................. 68
O PLÁCIDO RIO DOS ELEFANTES DESLIZA PELAS MARGENS DESTA GUERRA. A NOVA
BASE JUNTO AO KRUGER PARK ............................................................................................................ 70
VASSALAGEM TOTAL: DE COMO PRETÓRIA AMEAÇA E CONTROLA DHLAKAMA ...................74
OS SECRETOS PARAQUEDISTAS DA RENAMO ................................................................................... 76
MAIS SABOTAGENS: FOGO TOTAL SOBRE CAHORA-BASSA. E DHLAKAMA É OBRIGADO A
LIBERTAR OS RESTANTES RUSSOS ...................................................................................................... 80
MANTO DE INCÓGNITA, NEBLINA E SILÊNCIO. RECEITAS PARA UM REABASTECIMENTO.
CHUVA DILUVIANA, UMA TREMENDA TROVOADA TROPICAL, E A PERIGOSA TRAVESSIA
DAS CHEIAS DO SELÁTI ........................................................................................................................... 81
NOITE DE TERROR NO ACAMPAMENTO .............................................................................................. 86
OS DIAS DE NKOMÁTI. FIM DA B.C.R. E ADEUS À ÁFRICA DO SUL ............................................. 88
A DELEGAÇÃO EM LISBOA: UM ‘SACO DE GATOS’ ....................................................................................................93
A OUTRA GUERRA — COMUNICADOS E PROPAGANDA................................................................ 96
LISBOA NÃO TRAVA CONFERÊNCIA DE IMPRENSA. UM ENCONTRO COM O K.G.B .............. 98
UMA MÃOZINHA DO C.D.S. NA REVISTA ‘A LUTA CONTINUA!’ ........................................................ 100
O ENGODO DAS CONVERSAÇÕES DE PRETÓRIA ............................................................................ 103
O AGENTE ESPECIAL COCCIA RESSURGE EM LOBBY SUL-AFRICANO EM ITÁLIA ................ 105
O GOLPE DA DERROTA EM ‘CASA BANANA’, E COMO DHLAKAMA FOGE DE MOTA ......... 107
TOM SCHAAF: UM SANTO TENTÁCULO AMERICANO................................................................... 110
GABINETE DE ESTUDOS ........................................................................................................................... 114

2
O MISTERIOSO E SINISTRO ALEXANDRE CHAGAS .................................................................................... 115
UMA ‘GORONGOSA’ EM QUELUZ. A HISTÓRIA DE UMA REPORTAGEM QUE NUNCA
EXISTIU E COMO SE ENGANA A IMPRENSA .................................................................................... 116
A ESTRONDOSA QUEDA DE EVO FERNANDES ................................................................................. 118
UMA JOGADA DE SITHOLE ...................................................................................................................................... 122
O ‘HOMEM DO MALÁWI’ ATERRA EM LISBOA EM MISSÃO DE INVESTIGAÇÃO ...................... 124
ALERTA EM MAPUTO. A ESPERADA MORTE DE SAMORA MACHEL .................................. 128128
O PENOSO CALVÁRIO DOS REFÉNS PORTUGUESES, E DE COMO O C.D.S. PRETENDE
INTERVIR ........................................................................................................................................................................... 133
A DINFO NA GORONGOSA. UMA JOGADA DO GENERAL LEMOS FERREIRA ......................... 134
O FIM DO CATIVEIRO................................................................................................................................................... 139
DE COMO MANUEL BULLOSA QUER SUBSIDIAR UMA CONFERÊNCIA DA RENAMO .......... 140
UM ‘ENVIADO ESPECIAL’ CAÍDO DE PARAQUEDAS EM LISBOA ...................................................... 141
AS ‘SECRETAS’ OFERTAS DA DINFO À RENAMO ............................................................................ 142
TENSÃO NA DELEGAÇÃO. O ‘SACO DE GATOS’ PRESTES A REBENTAR ................................. 144
VAGA DE EXCURSÕES À GORONGOSA. E DHLAKAMA ESPATIFA-SE DE MOTA ................... 146
O PLANO MANHOSO DE ÁLVARO RÉCIO ............................................................................................ 147
A CONSPIRAÇÃO ALASTRA EM LISBOA ........................................................................................................... 148
A VISITA A LISBOA DE ‘CHARLIE’ VAN NIEKERK: A INSTALAÇÃO DE APARELHAGEM
SOFISTICADA DE CRIPTOGRAFIA ........................................................................................................ 153
A GOLPADA NA DELEGAÇÃO DE LISBOA ....................................................................................................... 156
‘ACIDENTE’ E MORTE NO MALÁWI................................................................................................................... 159
O REGRESSO DA ‘EMINÊNCIA PARDA’ ............................................................................................... 162
MOÇAMBIQUE: UM NOVO CENÁRIO ................................................................................................... 163
MOÇAMBIQUE 1988-’91: UM RETORNO ENTRE A BRUMA DA NOSTALGIA E A TEIA DA
CORRUPÇÃO ........................................................................................................................................................... 167
RETORNO. DESDE A CINZENTA PARIS, NAS MÃOS DA D-13, A CONTRA-INTELIGÊNCIA...168
CONFERÊNCIA DE IMPRENSA DENUNCIA OS LAÇOS DA RENAMO COM A ÁFRICA DO SUL,
O GENERAL LEMOS FERREIRA E A CASA BRANCA ...................................................................... 171
‘ELES ANDAM AÍ!’: O ESQUADRÃO DA MORTE ENVIADO PELOS SUL-AFRICANOS A
MAPUTO ....................................................................................................................................................... 173
RAPTO EM CASCAIS. EXECUÇÃO NA MALVEIRA. O MISTÉRIO SOBRE EVO FERNANDES 176
HISTÓRIA DE UM EXÍLIO FORÇADO EM NAMPULA ...................................................................... 178
DEPOIS DA TEMPESTADE A BONANÇA: O REGRESSO À CAPITAL. AS LOUCAS NOITES DO
CALIFÓRNIA E AS TÓRRIDAS MULHERES DE MAPUTO ............................................................... 185
NA EMBAIXADA DA URSS: AINDA OS RUSSOS DESAPARECIDOS. A ENTREVISTA COM A
PRÉMIO NOBEL NADINE GORDIMER ................................................................................................. 190
AS CÁLIDAS ÁGUAS DA CATEMBE E A ESCALDANTE DILMA ............................................................ 192
A DROGA INUNDA MAPUTO: UM MERGULHO A PIQUE PARA A MORTE ................................ 197
PUNIÇÃO E DISSUASÃO: A NECESSÁRIA DOSE DE ULTRA-VIOLÊNCIA........................................ 200
A GUERRA CHEGA À CATEMBE. UM DUELO DE ARTILHARIA VISTO DA JANELA ............... 206
A LULÚ E AS ETERNAS TENTAÇÕES. GAJAS, COPOS, VÍDEO & ROCK AND ROLL ................ 207
SEMPRE ALERTA, CIDADE COMPLICADA. COMO AMESTRAR ESTA BANDIDAGEM.
PROVOCADORES E CORRUPTOS A RODOS ...................................................................................... 211
A HISTÓRIA DE UMA. UMA TERRÍVEL PEDRADA. CIÚMES, BEBEDEIRAS E DEVANEIOS..216
A ‘SULFÚRICA’ E LASCÍVIA ROSA DO PRÉDIO ZAMBEZE ........................................................... 221
O APERTO DA NOSTALGIA NA COOP E MALHANGALENE: ‘NUNCA VOLTES A UM LOCAL
ONDE JÁ FOSTE FELIZ’ ........................................................................................................................... 225
O CURIOSO FILHO DO EMBAIXADOR AMERICANO. NO REINO DA BAGUNÇA ..................... 230
UMA FUGA E ‘OPERAÇÃO ESPECIAL’ NA BEIRA. A EPOPEIA DAS VIAGENS EM
‘ANTONOVS’, ESSAS CARROÇAS DOS CÉUS DIGNAS DE UM FILME DE KUSTURIKA ........ 233
COMO É FÁCIL CAIR NUMA TEIA DE ACUSAÇÕES. PERIPÉCIAS E CURANDEIRAS. O DIA EM
QUE POR CIÚMES IA SENDO MORTO COM UMA RAJADA DE AK-47 ....................................... 243
AS REPORTAGENS ‘VIP’ PARA A SEGURANÇA E DIGNATÁRIOS DO REGIME. AS
DERRAPAGENS DO NEGÓCIO. PRAÇA DOS COMBATENTES, UM BAZAR DE IMUNDÍCIE..246
A LUTA CONTINUA! O CAMPEONATO DE SAIAS PROSSEGUE: FRACA É A CARNE ............. 250
COMO OS NEGÓCIOS DESCAMBAM E TEMOS AS ‘GANGS’ E A BÓFIA À PERNA .................. 253
ESTES LOUCOS DESPERTARES.............................................................................................................. 257
EPIFANIA À VOLTA DO CASO EVO FERNANDES: A TERRÍVEL REVELAÇÃO ......................... 260
O ADEUS À AVENTURA… SERÁ? .......................................................................................................... 264
C O N C L U S Ã O .................................................................................................................................................... 269
DOS OBJECTIVOS DA GUERRA .................................................................................................................... 270
A. PRETÓRIA E OS ASPECTOS ECONÓMICOS REGIONAIS ..................................................................... 270
B. PRETÓRIA E ALGUNS ASPECTOS ECONÓMICOS DE MOÇAMBIQUE .................................... 271
C. PRETÓRIA E OS ASPECTOS POLÍTICOS E DIPLOMÁTICOS................................................................ 272
D. PRETÓRIA E O ASPECTO MILITAR ................................................................................................................. 272
E. OUTROS OBJECTIVOS POLÍTICOS .................................................................................................................. 273
F. OS OBJECTIVOS DO GRUPO RENAMO ............................................................................................ 273

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G. A IMPORTÂNCIA DA ‘NOVA ORDEM GLOBAL’ ...................................................................................... 273
DOS MEIOS EMPREGUES ............................................................................................................................... 274
E PORTUGAL? A ‘COMPONENTE PORTUGUESA’ .................................................................................... 275
A P Ê N D I C E S ....................................................................................................................................................... 278
1. DENÚNCIAS DA EXECUÇÃO DE SUSPEITOS DA MORTE DE EX-SG DA RENAMO
ENVOLVEM DHLAKAMA ....................................................................................................................... 279
2. A HISTÓRIA DOS PLANOS PARA A ELIMINAÇÃO DO CABO ROLAND HUNTER COM
VENENO DE COBRA MAMBA ............................................................................................................... 281
3. MBUZINI: COMO TERÁ SIDO MORTO SAMORA MACHEL. HISTÓRIA DE UM
DESPENHAMENTO ANUNCIADO ......................................................................................................... 283
4. A HISTÓRIA SECRETA DA VOZ DA ÁFRICA LIVRE OU ‘RÁDIO QUIZUMBA’ (HIENA)....... 288
5. A HISTÓRIA DO ‘NAMORO’ ENTRE WASHINGTON E MAPUTO ................................................ 290

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O AUTOR
Nascido em Lisboa a 18 de Setembro de 1959, Paulo Oliveira vai para
Moçambique com a família em Agosto de 1960. Residirá sempre em Lourenço
Marques (Maputo) até Setembro de 1979, altura em que volta a Portugal.
Foi praticante e instrutor de paraquedismo no Aeroclube de Moçambique,
com licença de queda-livre, em 1978 e 1979, e cursou Engenharia Electrotécnica na
Universidade Eduardo Mondlane.
Na capital portuguesa, integra-se em Agosto de 1981 na ala externa da
Renamo, tendo assumido o cargo de director da emissora Voz da África Livre, na
África do Sul, de Fevereiro de 1983 a 16 de Março de 1984, data do Acordo de
Nkomáti entre a África do Sul e Moçambique. Parte desse período decorre no mato e
em ‘departamentos especiais’ de Pretória.
De novo em Lisboa, após Nkomáti, aparece como director da revista da
Renamo, sendo nomeado porta-voz e, mais tarde, em 1986, delegado do movimento
para a Europa Ocidental. Simultaneamente exerce funções de jornalista (internacional
e investigação) e de colaborador em diversos órgãos de informação portugueses.
Abandona a Renamo em 27 de Outubro de 1987 por divergências quanto ao
excessivo controlo sul-africano e à linha de actuação do grupo. Termina pois aqui esse
período de sete anos de envolvimento com o movimento de guerrilha africano, e em
que trabalhou mais precisamente na área de psychological warfare: guerra psicológica,
análise de Informação e propaganda.
Ainda em finais de 1987, edita um primeiro número de um boletim
independente sobre Moçambique e a África Austral, o ‘Moçambique Hoje’. Em 14 de
Março de 1988, já após uma certa liberalização do regime, regressa a Maputo.
Dessa vivência com o movimento de guerrilha compilou o escrito ‘Renamo –
uma Descida ao Coração das Trevas’ (O Dossier Makwákwa). E a verdade de toda
esta história, onde mora ela?, perguntam alguns. Poucos, muito poucos, que o
conhecem bem, tentam explicar tudo de outra forma: ‘Não, nem de um lado nem de
outro, como sempre, jogou só por si e para si’. A trip africana apesar de tudo o que se
noticiou e descreveu, não passou disso mesmo: um acumular, uma soma de revanche,
nostalgia imensa e um exílio da alma, urgente. Às vezes é assim, ele próprio afirma,
‘procura-se um local de despojamento onde possamos renascer, um deserto para tudo
esquecer, e deixarmo-nos renovar nesse estado de contemplação’. Acima de tudo,
como garantem, foi um certo exílio da alma e do espírito. Mas ninguém poderá nunca
explicar bem porquê, e ele não dirá nunca uma palavra. Sobre isto podemos estar
certos.
Possuindo alguns conhecimentos e amigos no Cairo e, mais ao norte, no delta
do Nilo, em Mahalla al-Kubra, e entre gente árabe nos banlieues parisienses, o facto
permitiu-lhe arranjar material para mais um romance de ficção actual ‘Mak: Operação
D7’, que classifica como uma ‘provocação’ ou, quase, um ‘manual de terrorismo’,
escrito em 1997.
Informatizou a embaixada e consulado de Moçambique em Lisboa e no
Porto, a partir de 1992 e até 1999. Além de programador de computadores,
especializando-se na construção de bases de dados para várias instituições e empresas,
tem como áreas de interesse a Teoria da Informação e a Teoria do Caos, com alguns
programas afins desenvolvidos em Visual Basic.

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O LIVRO
Este é o livro sobre a invulgar história que vivi desde a partida de Maputo
para Lisboa em 1979 e a minha vivência com o movimento de guerrilha
moçambicano, a Renamo, então Resistência Nacional Moçambicana, descrita muitas
vezes pelo regime como ‘bandidos armados’.
E se havia sido fácil ‘saltar’ de Maputo para a capital portuguesa, bem
diferente foi conquistar o caminho de regresso.
Nas primeiras partes do livro relato precisamente a experiência, o que me foi
dado ver, ouvir e saber, ao longo dos oito anos e meio, desde que deixei Moçambique
em 1979: o primeiro contacto com a RENAMO, os tempos que vivi com o
movimento na África do Sul, e o papel que desempenhei posteriormente como seu
representante em Portugal e na Europa ocidental e toda a trama envolvente. E o
regresso a Maputo, após a morte de Samora Machel e alguma transformação do
regime.
Os capítulos seguintes exibem uma pequena análise pessoal sobre o fenómeno
RENAMO e os contactos e apoios que complementaram, ou iam disputando, por
vezes, no exterior, a ‘gerência’ sul-africana sobre o grupo.
Alguns apêndices, contêm artigos pertinentes, elaborados ou seleccionados,
sobre assuntos pontuais, inseridos porém no emaranhado contexto da África Austral
e que, directa ou indirectamente, tocam na questão moçambicana e em partes citadas
neste livro.
Espero que o ‘Dossier’ não seja apenas e por si só um fim mas, pelo contrário,
uma pista possível para um contínuo trabalho de investigação sobre a situação
originada e prevalecente em Moçambique desde os finais da década de 70, associada
ao factor ‘RENAMO’, à sua génese, e às manipulações e interesses diversos nos
bastidores, envolvendo por vezes entidades portuguesas, sul-africanas e outras.

6
Marraquene, 30 quilómetros ao norte de Maputo Maio de 1992.
João Fifteen era o tipo perfeito de matsangaíssa, o guerrilheiro da Resistência,
que a imprensa estereotipara. Cabelo sujo estilo rasta, roupa esfarrapada, sorriso boçal
escancarado deixando perceber uns dentes podres, desalinhados. Mas Fifteen saía-se
bem nas emboscadas ou mesmo em qualquer execução ordenada pelos chefes. O
dedo do gatilho e uma boa visão nunca o atraiçoaram. Ele era mesmo bom, se fosse
necessário fazer sangue, e não era a perda do polegar esquerdo, anos antes, nas minas
de ouro do Transvaal, que o perturbava.
Avançava agora com os outros dez homens da sua secção, de regresso à base.
Seguiam-no. Obedientemente. De madrugada haviam cruzado de novo o Incomáti,
nas duas barcaças de madeira, desviando-se sabiamente dos hipopótamos e tufos de
vegetação flutuante, atracando uns três quilómetros a montante de Marraquene. As
ordens haviam sido precisas e simples: colocar mais cinco minas anti-carro, as que
sobravam, de um lote capturado já antigo, meio ferrugento, de fabrico russo, na
estrada de areia que ligava o cais do batelão à estância balnear da Macaneta. A meia
dezena de ‘marmitas’ fora devidamente enterrada, cada uma das minas separada
centenas de metros da seguinte.
Quatro dos mortíferos engenhos rebentariam nas semanas posteriores,
matando dois técnicos da multinacional britânica LONRHO e dezassete soldados
governamentais, ao mesmo tempo que mais umas toneladas de metal eram enviadas
para a sucata e se punha fim à procissão turística dos fins-de-semana. A quinta mina,
defeituosa, esperaria mais uns anos, a espoleta cedendo pouco a pouco. Parecia estar
marcada...
Fifteen e a sua secção, aliás, todo o pelotão, estavam longe de saber que
viviam os últimos feitos naquela que apelidavam de ‘segunda luta de libertação’. Um
mês depois, em Junho de 1992, localizado e confirmado por informadores de Maputo
o seu acampamento, todo o grupo foi aniquilado num ataque relâmpago aéreo e
terrestre, dirigido a partir de um héli MI-25, um dos poucos aparelhos sobreviventes
da Base Aérea de Mavalane. Do pelotão, restava Massala, chefe de secção, embora
cego de vez pelo rebentamento de uma granada RPG-7.
Nenhum deles viu ou celebrou o Dia da Paz, o cessar-fogo que chegaria em
Outubro desse ano. Quando a Comissão Militar Mista pouco depois iniciou os
trabalhos de desminagem, já ninguém se lembrava ou sabia da localização de qualquer
engenho anti-carro, perdido algures na estrada da Macaneta.

Maputo. Três anos mais tarde.


A maleta estilo ‘James Bond’ tinha o couro um pouco carcomido e as
dobradiças a ficarem enferrujadas. O grosso dossier, o arquivo com a história
dele, ocupava a maior parte do volume e repousava envolto num sem-número de
papéis, certificados escolares, caderneta de pára-quedista, caderneta de aluno-piloto,
caderneta militar, e toda a habitual série de documentos de identificação,
coleccionados obrigatoriamente ao longo de três décadas e tal. Cély, recém-viúva,
mexia e remexia a papelada, cercada pelas perguntas e olhos curiosos de meia-dúzia
de sobrinhos:
– Posso levar pitóla do tio Pálo?

7
– Para que é todos esses papéis tia Célia? O que é que tia Célia tá à procura?
– Vá! Vá! Sai daqui, todos! Estes trombadinhas... Esse sacana também só
queria era saber de política, guerra!
E ia resmungando entre dentes. Mecanicamente, levava de novo à boca o
copo com o líquido licoroso. Era já a segunda garrafa de ‘Grants’ em três dias, desde
que aquilo acontecera. Não! Não quisera ir ver como ficara a viatura, o Nissan
Langley turbo, azul metálico, transformado numa pilha de metal retorcido e calcinado
na picada para lá de Marraquene, já perto da Macaneta. Uma mina paciente, pensou.
Esperara meses sem explodir. Aguentara ainda três anos depois do cessar-fogo para,
ironicamente, vir acabar com ele, sim, ele. Sim, isto tinha mesmo que lhe acontecer...
A ele, que um dia havia até sido cabecilha dos matsangaíssas... A detonação do
potente engenho tinha posto mesmo um ponto final à sua teimosa vida de
aventureiro. Ele, que escapara já à morte no primeiro salto em queda-livre, à prisão e
possível fuzilamento por parte da Frelimo no início da década de oitenta, e às garras e
dentes de leopardos e leões do Kruger National Park da África do Sul. Nem em 1988
os sul-africanos haviam conseguido dar conta dele, quer em Lisboa, quer meses
depois já em Maputo. Enfim...
Ia tão entusiasmado quando partira na manhã de sexta-feira… parecia que
ainda o estava a ver. Chapéu de boer, Kalashnikov numa mão e a câmara de filmar na
outra. Era a primeira reportagem que fazia no mato desde que tinham regressado a
Moçambique, há quinze dias. Em 1991, a guerra, cada vez mais intensa, impedira-o de
chegar aos tandos de Marromeu, para assistir e gravar uma caçada-safari aos búfalos.
Agora, que o país respirava uma calma como desde há décadas não se conhecia, pelo
menos nas partes centro e sul, o director Matias, da EMOFAUNA, tinha dado o seu
ok para o trabalho em vídeo, uma filmagem aos hipopótamos do Incomáti, perto de
Marraquene.
A morte deve ter sido imediata. O carro aterrara uns vinte metros à frente da
enorme cratera aberta no trilho de areia. Patrick, o camera-man e ajudante de há
longa data, sobrevivera ainda dois dias com as pernas e um braço amputados, mas
não resistira às queimaduras.

A garrafa voltou a tinir ao pousar, agora mais ligeira, quase vazia.


– Bem, a tia Célia, logo, vai ler uma história para vocês, mas agora, de-sa-pa-
re-çam!
– Qual história, ti Célia?
– Esta! Esta, trombadinhas! Esta, que o maluco do tio Pálo escreveu. E,
brandia no ar aquele volume. Na capa podia-se ver em letra grossa de imprensa:
‘Renamo – uma Descida ao Coração das Trevas’.
– Mas isso ‘conteceu mesmo ti Célia, ou era brincadeira do tio?
– Olhem, se calhar isso só aconteceu na cabeça dele, vocês já sabem como
era... Não sei.
– Mas vai ler tudo, tudo hoje? Tia está a castigar-nos... É, já está bêbada
mesmo!
– Seus cabrõezinhos, hein? Agora, agora, ouviram, ninguém sai daqui até eu
acabar, tudo. Se quiserem vão pentear macacos, durmam, mas eu vou ler!

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RENAMO – UMA DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS

(O DOSSIER MAKWAKWA)

9
UMA REDE DA CIA, O SERVIÇO NACIONAL DE SEGURANÇA E O
CONTACTO COM A ‘RESISTÊNCIA’

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O CONTACTO COM O TEMÍVEL SNASP, O SERVIÇO NACIONAL DE
SEGURANÇA POPULAR, E COMO SE FABRICA O ‘AGENTE ALCINO’
A história demoraria para mim quase dez anos a completar-se. Precisar o seu
início é ainda hoje um pouco custoso fazê-lo. Contudo, aquele mês de Junho de 1979
foi deveras decisivo. Em Fevereiro do ano anterior havia visitado Lisboa e, após a
estadia na buliçosa metrópole, em comparação, é claro, com a pacatez de Maputo,
decidira que além de estudar Electrotecnia havia de fazer algo mais movimentado.
Decidi. Decidi que me iria inscrever no novo curso de pára-quedismo do Aeroclube
de Moçambique.
Os episódios das emergências em queda-livre, dos pára-quedas que não
funcionavam, as ameaças de abate da avioneta, etc., etc., seriam questões menores
perante tudo o que se seguiu.

No princípio de 1979 era vice-cônsul americano em Maputo um tal Jimmy


Kolker1. Por iniciativa própria, fiz algumas visitas à representação dos Estados Unidos
na capital, tentando obter para o clube alguns dos chamados pára-quedas ‘abatidos’ da
Força Aérea norte-americana. As relações entre Washington e Maputo conheciam
uma fase problemática e não houve nenhuma possibilidade de ajuda. Kolker, trinta e
tal anos, jovial, afável, cabelo acastanhado, fala extremamente bem português.
Apresenta-me agora o oficial de comunicações da Embaixada, Donald Anthony
Becker, que já fizera uns dois saltos de pára-quedismo nos ‘States’ e quer falar
comigo.
Dias depois Becker ingressa no Aeroclube tendo-lhe eu instruído os
procedimentos gerais sobre queda-livre. Becker é alto, cabelo revolto, meio arruivado,
óculos, extremamente brincalhão, ex-marine no Vietname. Participa normalmente nos
convívios do clube e organiza inclusive festas em sua casa, concorridas pelos colegas
do pára-quedismo. Por diversas vezes ‘piso o risco’, entro com ele na Base Aérea de
Mavalane, com um carro da Embaixada, um Volkswagen Passat azul-celeste. Nada de
suspeito ocorreu. Donald Becker saltaria ainda de um avião ‘Antonov-26’ da Força
Popular Aérea, tripulado por moçambicanos e soviéticos.
Tudo bem até aqui. Uma grande trama, Embaixada-CIA-Aeroclube, só iria
estoirar com Fred Laundale, outro diplomata americano, dois anos mais tarde, em
meados de 1981. Nem eu nem Becker estaríamos em Maputo para assistir ao fim
deste rastilho que fora ateado.

Toda esta absurda história tem raízes no ainda mais absurdo episódio dos
‘coelhos californianos’ e que se explica em meia dúzia de linhas, e conduz
inevitavelmente à Teoria do Caos e ao chamado ‘efeito borboleta’: um bater de asas
de borboleta em Pequim redunda num ciclone em Nova Iorque. Pois bem, nós aqui
temos um ‘efeito coelho’. Pilotos e paraquesdistas combinaram arranjar verbas para o
clube, criando coelhos, coelhos californianos, aqueles de pelo branco, fofinhos e
dóceis, de olhinhos rubi, e comercializando-os. Não tardam porém as desavenças
entre os dois universos e eu estava com um pé em cada mundo: ao mesmo tempo

1Jimmy Kolker tem actualmente o posto de embaixador, sendo embaixador americano no Uganda de
2002 a 2005

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paraquedista e aluno-piloto. Num conclave, a malta paraquedista decide um ponto
final à coelhada, numa noite de sexta-feira ‘rapta’ os bicharocos. Heresia das heresias!
A malta da pilotagem dos teço-tecos até apresenta queixa no comando da polícia.
Sábado estamos em casa de um dos instrutores já a ferrar o dente nos coelhos à
caçador quando tocam à campainha, é a autoridade. O americano Becker está
estupefacto: police, rabbits (coelhos)? E está visto, vai tudo de escantilhão para o
Comando da Polícia na ex-Andrade Corvo. O comandante não sabe o que fazer, tudo
aquilo é surrealista demais para ele… deita as mãos à cabeça: ‘vocês, resolvam lá isso
entre vocês… mas ainda trazem aí algum coelho?’ – Não!!!
E no Aeroclube a coisa é resolvida, instrutores, chefes de equipa, eu incluído,
estamos ‘apeados’, sem saltar por várias semanas. Ainda hoje, tantos anos volvidos me
pergunto: seria esta história tão diferente, não fosse o rocambolesco episódio dos
coelhos? Creio que seria… tudo isto precipitou uma série de acontecimentos em
cascata.
E é assim que num fatídico domingo, 10 de Junho de 1979 eu não saltara,
tendo levado para as pistas de aterragem da Costa do Sol o veículo da Embaixada
atribuído a Becker, mais um par de binóculos pessoais e uma máquina fotográfica,
com teleobjectiva, que pertencia ao diplomata norte-americano juntamente com um
rádio transmissor. As posições do exército na zona não haviam sido informadas pelo
Estado-Maior sobre os saltos de pára-quedismo previstos para esse dia e, tal como os
outros, eu acabaria por ser detido, com a agravante de ter comigo uns binóculos e
câmara fotográfica. De caminho, somos ainda obrigados a partilhar do almoço
servido à guarnição anti-aérea, carne guisada. Corrijo: nervos e tendões guisados, com
farinha de milho.
Encaminhado depois para a Base Aérea de Mavalane, identificado, e
apreendido o material, fui mandado embora, como todos os outros, aliás. Segunda-
feira de manhã falo com o comandante da base, o capitão João Carneiro Gonçalves,
que me diz para aguardar em casa e permanecer calmo, pois seria convocado
posteriormente. Carneiro Gonçalves seria bem conhecido dois anos mais tarde como
o célebre ‘agente Magalhães’ ao serviço da Segurança moçambicana, e que ajudaria a
descobrir essa tal rede da CIA em Maputo, alegadamente enraizada, precisamente, no
Aeroclube de Moçambique.

Quinta-feira, 14 de Junho. O telefone toca.


Um quadro da Segurança pede a minha comparência às 14h30 nas instalações
do SNASP, o Serviço Nacional de Segurança Popular, na Avenida Ahmed Sekou
Touré, o antigo Colégio Maristas, a dois passos dos ex-Velhos Colonos e do altíssimo
prédio Invicta que alberga a revista ‘Tempo’. Mas agora, este é um espaço tenebroso
de fama, conotado com desparecimentos vários, tortura e morte…
Três horas de conversa, de palheta escorreita, afinal, com um tal Fernando
Chombe, que é até um africano bonacheirão, sorridente, um pouco a atirar para o
forte. Binóculos, rádio, câmara fotográfica, Embaixada, americanos, espionagem,
Revolução, etc. Os ‘serviços’ sabiam e confirmavam que eu não era um espião.
Contudo, exigem colaboração: ‘o que é que o americano, os americanos, pretendiam?’
Mais uma reunião de três horas na Migração, dependente da Segurança, então
na Avenida Eduardo Mondlane, no dia seguinte, com o Chombe e um seu superior,
apresentado apenas como ‘camarada Ferreira’, alto e magro, ríspido no trato. Eu
passaria a funcionar sob o nome de código de ‘Alcino’, após um juramento que tive

12
que fazer, uma série de cinco pontos, culminando com o ‘estar ciente de que sobre
mim agirá a justiça popular’ caso não cumprisse com os outros quatro preceitos. Os
encontros seriam na Pastelaria Princesa, no Smarta e no Safari, na avenida 24 de
Julho. Não tinha, é verdade, vontade para aquilo, nem eram muitas, à altura, as minhas
simpatias para com o regime. Pelo contrário. Fui fazendo o jogo, dando informações
confusas, mas pensando desde logo em me descartar desta embrulhada. Informo até
o Donald Becker sobre o que se passava.
10 de Julho de 1979. Becker deixa definitivamente Maputo para ser colocado
em Kingston, na Jamaica. Na tarde do mesmo dia o ‘colaborador Alcino’ segue de
férias para Lisboa, com a família.

AS ‘RESISTÊNCIAS’ LISBOETAS, A FUMO, O MIRN DE KAÚLZA DE


ARRIAGA, A MALTA DO ‘7 DE SETEMBRO’ E A PONTE PARA UM
ENIGMÁTICO ‘ROBERTO CHIPANGA’
Descartar-me da situação... Era importante. Não sabia o que iria acontecer
quando os ‘serviços’ coligissem informações e verificassem que o novo colaborador
que recrutaram era, afinal, o mesmo indivíduo que outra repartição já vigiava por
críticas ao regime, tanto no Aeroclube como na Faculdade de Engenharia
Electrotécnica. A situação parece séria. Em Lisboa, começo a pensar profundamente
no assunto. Estabeleço um primeiro contacto com o Dr. Domingos Arouca, então
líder de um movimento, a FUMO, Frente Unida e Democrática de Moçambique, que
era de certa forma notada em alguma imprensa de direita. Arouca era já entrado em
idade, é casado com uma senhora portuguesa, professora, e salienta-se por ter sido o
primeiro advogado negro moçambicano, tendo estado preso pela PIDE.
Agora, Arouca aconselha-me a não regressar a Maputo. E fala entretanto das
divergências dele com a Resistência, a R.N.M. 2, ‘excessivamente controlada pelos
rodesianos’, afirma. Mas, à entrada para um dos encontros posteriores que com ele
tive, vejo a sair da moradia dele no Restelo um português que, mais tarde, iria
reconhecer como sendo Orlando Cristina, secretário-geral da Resistência Nacional
Moçambicana.
Domingos Arouca acrescenta ir formar as suas próprias guerrilhas e que acaba
de conseguir três mil uniformes de combate. Os anos seguintes desmentiriam a
vontade, ou possibilidades, de organização militar da FUMO. Ao mesmo tempo eram
expostas proezas de elementos que lhe são próximos, como teria sido a explosão do
seu próprio carro, atribuída a um tal Carlos Lacerda, ex-colono em Moçambique,
membro da conhecida família Lacerda, e um dos envolvidos no movimento do 7 de
Setembro que se tentou opor aos Acordos de Lusaca que abriram caminho à
descolonização. Era essa pois a maneira de Lacerda propagandear a FUMO. Uma das
reuniões do movimento no Hotel Roma, em Lisboa, esteve para ser contemplada
com publicidade idêntica mas Domingos Arouca opusera-se firmemente à ideia.
Arouca anuncia-me, por outro lado, que irão rebentar bombas em Maputo, o que
efectivamente acontece semanas depois, quando eu já estou de volta à capital
moçambicana: três carros armadilhados explodem no centro da cidade.

Agosto de 1979. Cá estou de novo em Maputo, regressado de breves férias e


para uma estada, afinal, também breve. Resolvo últimos assuntos que tenho a tratar,

2 Resistência Nacional Moçambicana ou Movimento Nacional de Resistência

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informo a família da situação, a ‘situação’, e trato da ida, rápida, para Lisboa.
Contorno os encontros tentados por Fernando Chombe e parto por fim a 14 de
Setembro.

Em Lisboa, sigo atentamente pela Imprensa a questão moçambicana, as


conversações sobre o futuro da ex-Rodésia, os acordos de Lancaster House e a
independência do Zimbabwe, já em Abril de 1980. Claro, claro, tudo isto ia
influenciar decisivamente a questão moçambicana, o futuro próximo do regime e da
oposição.
Até ao regresso de toda a família a Portugal, em Fevereiro de 1981, não
efectuo nem tento qualquer contacto com a Resistência, que sobrevive afinal e
relativamente bem à queda da Rodésia de Ian Smith. Pudera, com a mais possante
mão sul-africana logo a sustê-la após ser largada dos periclitantes braços rodesianos.
Os encontros que tenho com Arouca são cada vez mais espaçados.
Compreendo a falta de apoio que a FUMO sofre, preterida tanto por rodesianos
como, posteriormente, pelos sul-africanos, em favor da Resistência.
A FUMO esvaziava-se progressivamente como um balão largado, flácido.
Mesmo já em 1979, soube muito depois por um antigo elemento, uma boa parte dos
militantes em Portugal havia-se passado para o lado da R.N.M. Contactos com o
Maláwi, a pedido de Domingos Arouca, e feitos nesse ano por um mulatão idoso
morador em Camarate, antigo quadro prestigiado dos Caminhos de Ferro de
Moçambique, bem como por mais gente, para uma alternativa militar à Resistência,
haviam ficado sem resposta.
Duas figuras avultam contudo aqui neste naipe: Ivete Corte-Real Fernandes, a
esposa de Evo Fernandes, um dos fundadores da R.N.M., e o pai dela, Álvaro Corte-
Real. Entre outros, são apontados como exemplos de ex-FUMOs que, instigados pelo
empresário Jorge Jardim, então baseado no Gabão, e pelo Evo, se passaram para a
Resistência. E o próprio Evo, relatam-me, conhecera a Ivete numa das reuniões com
a FUMO, em que se tentara persuadir Arouca a aderir ao projecto ‘R.N.M.’
Se bem que na Imprensa e nos meios de retornados, os ex-colonos, o nome
de Domingos Arouca ficasse vincado, por obra de toda a carreira do período anterior
à Independência, do velho e bojudo advogado, doravante os apoios de antigos
colonos iriam inclinar-se mais para Cascais, onde se baseia Fernandes.
Da FUMO, em Lisboa, resta apenas a publicação de três números de um
boletim. Em 1982 Arouca entregaria a presidência do movimento ‘por motivos de
saúde’ a um jovem advogado moçambicano, quase desconhecido.

Evo Fernandes, como delegado da Resistência em Portugal, mantém-se com


um perfil relativamente apagado até 1982, utilizando até o pseudónimo de Roberto
Chipanga. Os jornais ‘Tempo’, ‘O Dia’ e ‘O Diabo’, são alguns dos órgãos de
Imprensa da direita que privilegiam a informação da Resistência mas que não focam,
a seu pedido, a figura do delegado. Regularmente, Fernandes assegura uns textos para
‘O Diabo’ que assina sob o nome de Hermenegildo Vasques, ‘correspondente em
Mbabane, Swazilândia’.
E quanto ao muito falado Jorge Jardim, a figura grada de Moç29ambique,
capitalista, agente secreto, etc., etc., das últimas décadas coloniais? A viver em
Libreville, no Gabão, onde residirá até à data da sua morte em 1982, e que acaba por
ser ultrapassado pelos rodesianos e pelo próprio Evo Fernandes. Dele, ficaria

14
essencialmente uma simbólica primordial.3 Após 1976, ano em que convencera os
rodesianos a fazer de Orlando Cristina, um seu antigo homem de mão e pisteiro, o
secretário-geral da Resistência, a influência de Jardim vinha a decrescer dentro do
movimento. A sua participação é tida por Fernandes como um mero ‘show off ’ de
quem pretendia controlar a R.N.M. sem ter já meios concretos, militares, para o fazer.
A condução da guerra seria efectuada, predominantemente, a partir do eixo
Salisbúria-Pretória, como o futuro se encarregaria de demonstrar.4
Como faço então para contactar esta gente de sangue na guelra, os que estão
no terreno, o Roberto Chipanga e companhia? São vagos, nos vários jornais que
contacto, até que indicam uma pista: o partido do ‘general’, tem lá malta de
Moçambique que está ‘ligada’…
O Movimento Independente para a Reconstrução Nacional, o MIRN, é um
partido, uma organização corpuscular da extrema-direita portuguesa. Tem à sua frente
o Kaúlza de Arriaga. Conheço uma tarde este velho general da Operação Nó Górdio.
Claro que o homem ainda se movimenta, embora quase senil, assim como um tal
coronel Repas, que havia estado nos teatros de operações de Angola, sonhando
ambos com o ex-Ultramar naquele quinto andar por cima da Lufthansa, num prédio
da Avenida da Liberdade.
O MIRN, ou gente do agrupamento, constituía assim em 1981 um dos
círculos não muito distanciados de Evo Fernandes. Eu que já antes tentara, em vão,
por intermédio de alguns jornalistas, saber do paradeiro desse tal ‘Roberto Chipanga’
e andava em círculos, parece que tenho aqui uma das pontas da meada. ‘Malta de
Moçambique’... A ‘malta’ mais não será porém, aqui e agora, que o rotundo Manuel
Gomes dos Santos, o ‘locutor Manuel’, desse Movimento Moçambique Livre, surgido
em 7 de Setembro de 1974 contra a independência de Moçambique, e agora militante
do MIRN, e quem me vai dar o endereço de Evo Fernandes. E ao estar perante este

3 Note-se por exemplo a simbólica das setas (mais tarde adoptada nas bandeiras da FUMO e da
RENAMO) e retratada já a páginas 150 do ‘Moçambique – Terra Queimada’: “... a moda das capulanas
fora lançada, na memorável apresentação no Ritz, em que até as flores vinham do Chimoio. Exibindo
as setas moçambicanas (símbolo da tradição lusíada, da unidade das gentes, do progresso e da paz) as
nossas moças tinham sido inexcedíveis. Lembro a resposta de uma delas a categorizada dama que
elogiava a harmonia e bom gosto da nossa insígnia: ‘É lindo, minha senhora, e mais belo ficará na
bandeira, quando formos independentes’. Por infelicidade de todos, a bandeira veio a ser diferente. Mas
a culpa não foi nossa”.

4 Veja-se o livro ‘Moçambique Terra Queimada’, Jorge Jardim – Lisboa 1976, Ed. Intervenção – a páginas
415, já no final da obra, marcada pela perspectiva imediata, o ‘sonho’ que tinha para o futuro de
Moçambique. Muito da retórica e da simbólica ‘renamista’ encontra-se já aqui presente: a ‘resistência’, o
azul da bandeira (da FUMO e da RENAMO) e mesmo a frase – irónica! – ‘a luta continua’. “Os
tanques russos não podem passar nas nossas picadas; as armas modernas de nada servem contra as
armas que não temos; e as nossas aldeias são tantas que não há mercenários comunistas suficientes para
as ocuparem. Mas eles, que são poucos, podem ser alvo fácil para a resistência do povo, quando se
desencadeie a sua revolta. (...) Regressarão muitos, para todos nos ajudarmos (...) Sobretudo para
termos, finalmente, liberdade. Surgem já raios de sol a romper o fumo da queimada. Em breve veremos o
céu que é azul. E essa será a cor da nossa bandeira. A bandeira de Moçambique erguida pelo governo da
maioria. Sob essa bandeira espero ainda viver em Moçambique. (...) Tal como eu, haverá milhares que
regressarão. Porque não sabem viver noutra terra. Porque querem viver nessa a que pertencem. Neste
livro contei uma história triste. Espero poder escrever outro a contar coisas diferentes. Haverei de o
fazer nessa terra em que quero viver e onde espero poder, um dia, vir a morrer. Entretanto, a luta
continua... E construiremos o Moçambique Novo.”

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Gomes dos Santos, no seu gabinete apertado, ou é ele que é enormíssimo, gordo,
balofo mesmo, parece que ouço e vejo agora momentaneamente, de volta, toda a
sonância, as labaredas, desses dias terríveis e de ódio que abalaram a então bucólica
Lourenço Marques, agitada por este punhado de gente que pôs a urbe a ferro e fogo,
trazendo a reacção da população negra, culminando tal façanha com umas centenas
de mortos, moradias e carros calcinados, e uma sensação de pânico e desconfiança
que foi factor determinante para a partida de muitos. Não resisto: ‘e então, porque é
que falhou tudo?’ Deve ter ouvido a mesma merda de pergunta milhares de vezes
desde 1974. ‘Foda-se e porras, e mais palavras com ‘f ’s e ‘c’s, e toma lá o endereço,
está aqui neste papel!’, um papelucho que acaba de rabiscar e dobrar.
Agosto de 1981. Rua Tenente Valadim 16, rés-do-chão, Cascais. Fica perto da
cidadela. Acabo de subir uma rampa íngreme, calcetada, esgueirar-me sob um velho
arco em pedra. Tenho no bolso e gravadas na mente as indicações do ‘locutor
Manuel’. Toco à campainha. Estou pois ufano, expectante, à porta da Resistência, e no
início de uma tortuosa estrada que iria percorrer durante mais de seis anos.
É a própria Ivete quem vem abrir. O Evo não se encontra em casa. Partiu
numa das muitas digressões que efectua ao estrangeiro em prol do movimento. ‘Nos
princípios de Setembro estará de regresso’. E a princípio fico na dúvida se esta Ivete
Fernandes que se me apresenta ao abrir a porta será mulher ou filha do Evo
Fernandes. É quase uma moça ainda, mestiça, franzina, frágil mesmo, e graciosa, de
longos cabelos lisos, e que mais parece uma mulata saída de uma qualquer telenovela
do Rio. Uns olhos castanhos, amendoados e vivos, brilham no topo daquele rosto
esguio. ‘Não, o Evo agora não está!’, repete ela ainda com o olhar a interrogar-me e
como se eu não tivesse compreendido bem à primeira.
Setembro. O escritório. Fica num amplo quarto andar a meio da Avenida
Columbano Bordalo Pinheiro, entre a Praça de Espanha e Sete Rios, em Lisboa. Evo
Fernandes, finalmente. Comigo, levo mais três ou quatro jovens, todos à volta dos
vinte anos, curiosos em conhecer e talvez apoiar a ‘Resistência’, e regressar depois, se
possível, a um ‘Moçambique libertado’. Nunca tinha visto sequer alguma foto ou
descrição dele. Quem me abre a porta é um tipo de altura média, bem proporcionado,
onde se destaca um sorriso simpático neste rosto bonacheirão perlado por um sinal
proeminente no lábio superior. Fernandes, devia ter visto logo pelo nome, é pois de
ascendência goesa. Os primeiros minutos permitem logo saber que estou perante
alguém culto e bem preparado como aliás viria a confirmar. Afável, brincalhão, que
até ostenta um certo estilo de ‘playboy’ refinado. E em resumo, o Evo torna-se por
algum tempo o verdadeiro ‘public relations’ do movimento.

EVO FERNANDES, ‘EMBAIXADOR’ DA RESISTÊNCIA, EMPREGADO DE


MANUEL BULLOSA, CABECILHA DA ‘COMPONENTE PORTUGUESA’
Evo Fernandes, conta-nos como é natural da Beira, numa voz pausada, sorriso
constante, e revela que está então com trinta e sete anos, formado em Direito. A
primeira impressão que nos deixa e que se acentuaria, é essa precisamente, como
disse, a de um homem bem falante, culto, meticuloso. Bastante meticuloso. Teimoso,
também, em extremo. Polémico director do ‘Notícias da Beira’ em 1974, um
periódico que era propriedade de Jorge Jardim, atravessara momentos difíceis
aquando do início do período de transição em Moçambique. Foi saneado do jornal, e
chega a ser detido pelas autoridades. A FRELIMO acusa-o de colaboracionismo não
só com Jorge Jardim mas também com a PIDE-DGS, os antigos serviços secretos

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portugueses. Ouço posteriormente outras histórias, de subordinados seus no ‘Notícias
da Beira’, que salientam as difíceis relações de trabalho com Evo Fernandes enquanto
director.
Fernandes no entanto, nestas reuniões dos sábados à tarde, entusiasma-nos:
espraia-se em dissertações políticas e filosóficas, nem sempre sobre Moçambique.
Daí, passa para episódios da altura dos seus estudos em Lisboa, e de uma anterior
educação pelos Jesuítas, e disserta ainda sobre o tempo em que chegou a ser condutor
de táxi. O gosto pelas aventuras espeleológicas em grutas ao norte de Cascais,
preenchem também algumas das conversa. E, ‘Evo’, porquê Evo? Ele explica-nos
sorridente, o nome pouco habitual, ou antes, a letra ‘E’: ‘o meu pai, acho, tinha pouca
imaginação… sou o filho mais novo, todos os outros tiveram nomes iniciados por
letras de A a D. Quando eu vim, tinha que ser um nome por E. Mesmo pouca
imaginação… a seguir, o cão que comprou baptizou-o de Faruk!’ Não insistimos em
mais explicações, está toda a gente a rir-se. E Moçambique? Parece que estamos
ansiosos sobre ‘a terra’…
E voltamos pois a África: fala-nos dos seus tempos de tropa no norte de
Moçambique, e como colaborou na Polícia Judiciária militar. A investigação a casos
de homossexualismo entre os militares. E de como as suas investigações foram
travadas ao tocarem em gente da entourage do próprio Kaúlza de Arriaga muito dada
ao Guilherme de Melo, do jornal Notícias, de Lourenço Marques, e afins.
E a franzina Ivete, a esbelta moça mestiça? A Ivete, apuramos agora, havia-se
casado com ele no ano anterior e era uma antiga residente da Beira, embora houvesse
nascido em Mocuba, na Zambézia. Nesta província, o pai andara ocupado na
exploração das minas de Marrupino, até 1974. Tal como Fernandes, Ivete mostrou
nos anos vindouros ser outra das pessoas protegidas pelo industrial Manuel Bullosa.
Continua a receber quarenta e oito contos mensais como funcionária de escritório da
herdade de Bullosa na Quinta dos Pesos, junto a Caparide, São João do Estoril,
embora já lá não trabalhe. Em Portugal, a viatura do casal Fernandes, um Renault-4, é
também património da Quinta dos Pesos. Evo Fernandes é advogado, pois, e
funciona ainda como assessor jurídico de algumas empresas desse industrial galego,
entre as quais a Livraria Bertrand, onde também detém algumas acções. Afinal, haverá
alguma verdade em tudo o que posteriormente se contará sobre uma alegada
‘componente portuguesa’ da Renamo, e que o regime de Maputo tanta questão faz
em brandir?
A residência de Evo, em Cascais, afigurava-se-nos de certa forma modesta,
imagem que se firma nos anos seguintes, ao percebermos progressivamente as outras
facetas que o delegado da Resistência adoptava fora de Portugal, e o alto calibre dos
negócios em que se envolvia. Um mundo de contrastes… O ser e o parecer… Mas, se
estávamos ali, era para participar na ‘causa’ e deixávamos essas considerações para
segundo plano.

Em 1980 havia sido impresso um fascículo, um assim chamado ‘Manifesto e


Programa da R.N.M.’, e uma das tarefas que nos cabe é a da sua divulgação em
Lisboa. O programa, como plataforma política, é muito genérico, mesmo pobre,
assentando em sete pontos, e não sofreria rigorosamente qualquer elaboração
posterior. Assim como os estatutos, o Manifesto fora concebido em conjunto pelo
secretário-geral Orlando Cristina e por Evo Fernandes. Os estatutos existiam, claro,
estas dezenas de linhas numeradas e agrupadas, mas não funcionavam, e eram até

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ignorados. Quem os conhecia? A situação está de tal modo que, em 1981, por
exemplo, poucos no exterior terão ouvido falar do próprio chefe do movimento, um
certo Afonso Dhlakama, tão subalternizado este se encontra, na prática.
Outra das prioridades do movimento para a mobilização em Portugal é a de
se conseguir jovens que integrem grupos de trabalho, de estudo. Isto, para que se
desse corpo à secção que a partir de 1982 Evo Fernandes passara também a gerir: o
recém-formado ‘Departamento de Estudos’.
Nunca houve, afinal, gente suficiente, efectivos que se sentassem para abordar
temas como Administração, Economia, Cultura, Religião, ou outros assuntos. A
implantação estava a ser difícil. Excepto uma meia dúzia de antigos colonos outrora
residentes em Moçambique, muitos já não encaram facilmente um hipotético
regresso, preferindo fortalecer as novas e mais seguras raízes neste Portugal pós-
revolução.
Como ‘filtro’ implícito ao delegado, efectuo algumas das entrevistas aos que
vêm agora contactar o Movimento. Tento ver o que se aproveita desta miríade, ‘serão
assim tantos?’, que telefonam ou batem à porta da ‘delegação’. Os absurdos eram
muitos, as ideias, disparatadas por vezes: surge um que por cinco mil contos, diz,
pode sabotar ou derrubar um dos Boeings 737 das LAM. Outro, quer vir treinar
guerrilhas para a mata de Monsanto. ‘Aquilo já está saturado de guerrilheiras em mini-
saia’, respondo-lhe eu.
Apenas um ‘happenning’ corta a quase generalizada apatia: o convívio anual
organizado em Monsanto, ou no Restelo, arredores de Lisboa, pela ANERM, uma
Associação dos Naturais e Ex-Residentes de Moçambique, essencialmente um grupo
de ex-colonos endinheirados e que pretende reaver os bens deixados em África. Mais
tarde mudam o nome para AEMO, Associação de Espoliados de Moçambique. Só
que Moçambique não é o ex-Congo belga, nem Lisboa é Bruxelas, e décadas depois
estará tudo praticamente na mesma em termos de ‘espólio’ recuperado. Mas bom,
fora as galinholas à cafreal que são sempre boazecas e a muita cervejola que corre
como a brisa fresca aqui neste Monsanto, e a música do conjunto Bayette, o convívio
é quase só isso, não possui propriamente um alto cariz político, mas surge antes como
uma exaltação nostálgica. Enfim, o movimento aproveita esses dois dias de festança
para um bombardeamento com panfletos e outra propaganda, contrariando até,
superficialmente, os desejos da ANERM que diz não querer nada de politiquices, mas
que até simpatiza com o movimento.
Voltemos à cidade de cimento, cinzentona. Um trabalho regular a fazer é o
recorte e arquivo de todas as notícias referentes à R.N.M. e a Moçambique, a escuta e
análise das emissões radiofónicas, e a recolha de qualquer informação tida como
importante para o movimento. Segundo o secretário-geral Orlando Cristina, que de
vez em quando faz escala em Portugal, informações obtidas em Lisboa e noutras
capitais europeias, em embaixadas ocidentais, permitiram há pouco evitar uma
ofensiva governamental, lançada em meados de 1982, contra a base principal do
movimento, na serra da Gorongosa.
E é ao longo 1982 que surge um novo objectivo: Orlando Cristina e os sul-
africanos necessitam urgentemente de mais mapas do território moçambicano.
Desdobro-me em diligências. São conseguidas por empréstimo, e copiadas fora de
Portugal, todas as cartas na escala de 1:250.000 elaboradas pelos Serviços Geográficos
e Cadastrais. Um contacto posterior com um major Jardim, do Instituto Cartográfico
das Forças Armadas portuguesas, passo-o ao Evo Fernandes. Daí consegue-se outro

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material, mais detalhado, especialmente sobre a região Sul, limítrofe à cidade de
Maputo. A guerra fustigará esta zona a partir dos fins de 1983.
Através do major Jardim, ou directamente do próprio Orlando Cristina, nunca
soube a verdade, obtiveram-se fotografias tiradas pelos serviços de propaganda do
exército colonial. As fotos serão de massacres cometidos pela tropa colonial
portuguesa 5 ou por guerrilheiros da Frelimo há anos atrás, ainda durante a luta pela
independência, em Moçambique. Pelo que apanho mais tarde, algo me deixa a
perceber que até serão de Wiriyamu, do enorme massacre, em Tete, material a que o
Cristina teve acesso ou produziu até.
– Mas vamos utilizar agora isto?, pergunto. ‘Estas pessoas morreram todas
antes de 1975, anos antes da Resistência?!’.
– Os mortos são eternos!, replica Fernandes. E as fotos acabam mesmo por
ser utilizadas na propaganda da R.N.M. e ‘papadas’ pelos jornais de Lisboa com quem
mantemos contactos.
Abril de 1982. Ingressara por esta altura no sector de Publicidade do jornal ‘O
Dia’ e em Julho deste mesmo ano começo agora a escrevinhar uns textos para as
páginas internacionais e de opinião, sobre a situação na África Austral, e fazendo a
apologia da Resistência. Com a ajuda de toda essa parafernália de material que vamos
‘fabricando’ ou que nos chove das matas.
Num dos muitos contactos que efectuo com vista a angariar publicidade para
o jornal, venho a conhecer o António Felizardo, ex-latifundiário de grande parte da
região de chá do Gurué, na Zambézia. Português branco, quarentão, bon vivant,
vivenda no Monte Estoril, felizardo da vida, deste continente e do outro, o Felizardo
torna-se um dos mais sólidos apoiantes da Resistência em Lisboa, e desenvolve
mesmo uma ponte entre a delegação do movimento em Portugal e o industrial
António Champallimaud, enquanto este se encontrava no Brasil. Tal ligação só será
suplantada pelos contactos directos realizados posteriormente por Evo Fernandes.
Nos finais do ano apresento Felizardo ao próprio Orlando Cristina. O secretário-geral
vem a Lisboa para o funeral do seu antigo patrão, Jorge Jardim, acabado de falecer no
Gabão onde estava à frente do banco central e da indústria petrolífera local.
É ainda através das demarches em publicidade para o jornal que chego a um
pequeno mas agradável restaurante em Algés, com óptima cozinha. Era o Gelfa, e o
dono é nem mais nem menos que o escritor Francisco José Viegas, autor não só de
peças literárias mas também de algumas especialidades culinárias como o ‘Bife à
Noites Longas’. Óptima, a carne, com toda uma série de temperos mesclados num
molho de que só ele conhece o segredo, pelo que garante.
Pois bem, num dos jantares para que me convida aparecem também dois
elementos de ‘O Jornal’, tal como previamente combinado, o jornalista António

5 Muito provavelmente virão mesmo do espólio de Orlando Cristina. Atente-se a um excerto do livro
de Jorge Jardim ‘Moçambique – Terra Queimada’, a páginas 111, precisamente sobre Wiriyamu ‘... só o
Orlando Cristina, meu experimentado companheiro de tantos anos, mantinha sorriso esfíngico e me
olhava desconfiado (...) e, a páginas a páginas 327, sobre uma conversa após um almoço com o coronel
Sousa Menezes – “Disse-me da preocupação que lhes causava, saberem que o Orlando Cristina possuía
documentos fotográficos e dados relativos à investigação que fizéramos sobre o caso dos massacres
ocorridos na região de Tete, em Dezembro de 1972. Nas condições em que se encontrava, qualquer
divulgação que disso se fizesse poderia conduzir a especulações contra os militares e comprometer,
mesmo, a posição política do M. F. A.’

19
Carneiro Jacinto (mais tarde assessor para a Imprensa do Presidente Mário Soares e
de uma série de personalidades) e o conhecido fotógrafo Joaquim Lobo. Acabou por
ser apenas uma conversa informal, eu não tinha ainda na altura qualquer estatuto
representativo oficial. Eles, pelo seu lado, apenas queriam uma confirmação, uma
reivindicação, leia-se, por alguém da Resistência, de que fora esta a autora de um
rapto realizado a sete cidadãos estrangeiros ao longo do oleoduto que liga a Beira ao
Zimbabwe. Claro que eu não estava em posição de o dizer. Além disso, o jantar estava
porreiro.

CHEGA A LISBOA O OPERACIONAL ORLANDO CRISTINA, SECRETÁRIO-


GERAL DA RESISTÊNCIA, O HOMEM DE MÃO DE JORGE JARDIM
Orlando Cristina. O secretário-geral anda já nesta altura por volta dos seus
sessenta anos, cabelo mais cinza que preto, levemente ondulado. Nascera em Lagos,
no Algarve, sul de Portugal. Estatura média. É alguém que muito naturalmente pode
passar despercebido no meio da multidão. Noto-o muito mais reservado que o Evo
Fernandes e a única coisa que destoava dessa transparência que se consegue entre as
multidões era apenas aquele olhar gélido, perscrutador, com promessas de algo de
terrível se a ocasião chegasse. Na verdade, tenho diante de mim um operacional
experimentado, que queria mais do mesmo. Um aspirante inglório a ‘Lawrence das
Áfricas’ mas mesmo esse papel se a alguém coubesse, teria estado mais ao alcance do
seu antigo patrão, o Jorge Jardim.
Cristina é com efeito uma figura com muito menos souplesse política que
Fernandes e a quem Jorge Jardim, diz-se, tratara como um autêntico lacaio. Um
Orlando Cristina que, já todos sabem do episódio, fora abandonado por Jardim no
Maláwi, para ser preso, e que mais tarde o mesmo Jorge Jardim iria libertar, para
vincar bem o seu poder. Orlando gabava-se que conhecera bem África. Pisteiro,
caçador profissional, homem da PIDE, carrega um sem número de epítetos. Fora até
casado com a filha de um chefe tribal do Niassa. Agora, vive com uma sul-africana
branca, a Francesca, nos arredores de Pretória.6
De 1976 a 1982, Orlando Cristina estivera em ascensão, primeiro junto dos
rodesianos e mais tarde na África do Sul. O brilho da sua estrela principiava a atenuar-
se, eclipsado pela impetuosidade de Evo Fernandes. A passagem de Cristina por
Lisboa, em Dezembro de 1982, deixa transparecer isso mesmo. Fernandes luta para
atingir o topo mas o mais maduro secretário-geral não cede facilmente.
Contra a vontade de Evo, fiz saber ao ‘número dois’, afinal o tal Dhlakama
deve ser o ‘número um’, não é verdade?, o meu desejo de ir ao interior de
Moçambique ou às bases da guerrilha na África do Sul, e trabalhar de perto com o
movimento.

As coisas começam-se a mexer e a serem tratadas com os sul-africanos. A


oportunidade surge por fim em Fevereiro de 1983. Orlando Cristina esteve no dia 10
deste mês de novo em Lisboa, de passagem para outros países europeus e para os

6 J. Jardim, in ‘Moçambique Terra Queimada’, a páginas 140 – ‘Dispúnhamos de uma razoável rede de
informações, em todos os campos, orientada pelo experimentado Orlando Cristina que havia servido
no Maláwi cumprindo missões delicadas e conhecia no máximo detalhe as regiões e as tribos do centro
e norte de Moçambique, cujas línguas dominava na perfeição. Era o ‘comissário político’ mais completo
que conheci. Tomava sempre o partido dos negros, com quem se entendia melhor do que com os
brancos e só havia que o travar, por vezes, no seu (incontível) nacionalismo moçambicano(...)’

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Estados Unidos. Eu vou dentro de uma semana para Pretória, como responsável da
‘Voz da África Livre’, a emissora da R.N.M. A missão, será a de substituir um
inoperante ou infiltrado Boaventura Bomba, o irmão do piloto moçambicano que
fugira há pouco com um ‘MiG-17’ para a África do Sul. Adriano Bomba, o piloto,
estivera até há algumas semanas em território sul-africano, à frente da ‘Voz’ e do
‘Departamento de Informação’ da Resistência. Fora entretanto para a base central da
Gorongosa, no centro de Moçambique, deixando Boaventura em seu lugar, na
emissora.
A situação na Rádio rebelde, revela-me o Cristina, não é famosa. Falamos
demoradamente. Sobre a ‘Voz da África Livre’ e sobre as declarações de Jorge
Costa, um desertor da Segurança moçambicana, à revista sensacionalista sul-africana
‘Scope’. Discutimos a eventualidade que se ventilava então de uma transferência a
curto prazo para Moçambique de parte do contingente cubano em Angola. E Cristina
na sua voz monocórdica lamenta-se ainda de um desaire militar no sul, um pelotão de
34 homens do movimento com quem se perdera todo o contacto, junto ao Rio
Limpopo, devido à acção do exército.
Acertamos últimos pormenores sobre a viagem. O chefe de escala da South
Africa Airways no aeroporto de Lisboa é um amigo do movimento, facilitará em caso
de qualquer dificuldade com a bagagem. Ouvidos os últimos conselhos de Evo
Fernandes e de Orlando Cristina, seja!, embarco na noite de 16 de Fevereiro no
‘Jumbo’ da SAA.

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ÁFRICA DO SUL: A DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS

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Há que ter homens que possuam uma moral… mas que ao mesmo tempo sejam capazes
de utilizar os seus instintos primordiais de forma a matar sem qualquer sentimento ou paixão,
sem crítica… sem qualquer criticismo… pois é isso que nos derrota[…] Não há nada que eu
mais deteste que o cheiro da mentira.7

17 de Fevereiro. O ‘747’ aterra no aeroporto de Jan Smuts, Johannesburg, a


cidade do ouro, como gostam de lhe chamar os ‘boers’ sul-africanos. À saída do avião
um elemento das forças armadas está à minha espera. Encaminha-me para um local
reservado da aerogare longe dos outros passageiros. A alfândega já sabia quem eu era:
o passaporte é verificado mas não lhe colocam qualquer carimbo. A bagagem é
também imediatamente recolhida.
O militar, quase um puto, desaparece por uns segundos. Regressa e leva-me a
outra sala, onde sou apresentado à secretária do Orlando Cristina, a Lucinda Feijão.
Vejo uma simpática senhora de uns cinquenta e alguns anos. Lucinda, tal como
Cristina e Fernandes, era uma antiga residente da cidade da Beira, onde o marido fora
engenheiro técnico. Trabalha com a R.N.M. desde os tempos da Rodésia,
praticamente a partir do início do movimento, em 1977. Um dos seus irmãos, Serras
Pires, caçador, será preso dois anos depois em 1984, na Tanzânia, e levado para
Maputo, acusado de ligações à Resistência, Mas essa será outra história ainda distante.
Bom, a Lucinda… um metro e setenta de altura suportam este rosto aquilino
encimado pelo cabelo grisalho em caracóis largos. Há muito que não via senhora tão
simpática e palradora, a querer agora aqui em meia dúzia de quilómetros explicar-me
toda a África do Sul actual, Moçambique e a Resistência.

LA COURT MONIQUE: A PENSÃO DA MORTE LENTA, UM REDUTO


PARA A RENAMO DIRIGIDA PELO EX-PIDE ‘CARVALHO DAS BARBAS’
Estamos a bordo de uma station VW Passat castanha perigosamente conduzida
pela Lucinda e apontamos a Eastgate, um dos modernos centros comerciais de
Johannesburg, onde almoçamos umas ‘cheese toasts’ (tostas de queijo) seguindo
depois para Pretória. Estou com uma constipação terrível, resultado do ar seco da
cabina do 747, sei lá e ela recomenda-me umas gotas homeopáticas que só aumentam
a farfalheira. Bom, rumo a Pretória, não é esse o objectivo? Quase não tenho tempo
de antena para falar tal a palradeira dela.
Na capital, sou deixado na ‘La Court Monique’, na Pretorius Street, inteiro e
feliz da silva por estar vivo após esta condução louca. Orlando Cristina chama-lhe a
‘pensão da morte lenta’ e é uma residencial usada maioritariamente por trabalhadores
emigrantes portugueses.
‘La Court Monique’, tal como o ‘Grand Hotel’ em Johannesburg, é um
estabelecimento hoteleiro pertencente a portugueses e com ligações muito especiais à
A.M.I., a Divisão de Inteligência Militar da África do Sul. A residencial em Pretória já
albergara no passado outros quadros da Resistência: Fanuel Gideon Mahluza, um dos
representantes no exterior, e Constantino Reis, um universitário fugido ao
regime, estiveram aqui, embora negros, no seio da mais branca e conservadora das
cidades sul-africanas e onde as leis do ‘apartheid’ funcionavam a 100%. À frente do

7 Esta, e outras, são citações extraídas e adaptadas do ‘Apocalypse Now’

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negócio da ‘La Court Monique’ está o Carvalho, o ‘Carvalho das Barbas’, um dos
antigos chefes da PIDE em Angola. O genro, que auxilia na gerência, é um tal José
Carlos Monteiro, ex-militar português em Angola, e se tornara mais tarde mercenário,
ao lado da UNITA e sul-africanos, na coluna que tentou marchar sobre Luanda.
Integrando depois o exército rodesiano de Ian Smith, participou em ‘raids’ contra
bases da ZANU de Robert Mugabe em Moçambique.
Um operacional transformado agora em pau para toda a obra, desde condutor
a estafeta. Continua com um porte atlético nos seus trinta e tal anos. Uma cabeleira
castanha levemente encaracolada emoldura um rosto talvez rugoso demais para a
idade onde despontam uns penetrantes e frígidos olhos azuis. Por tudo o que fizera e
me relatara, evidentemente, o Monteiro viveria doravante nessa frieza polar dos que já
tinham marchado até esse gélido coração das trevas, odisseia macabra que o marcara
para todo o sempre.
‘Liquidávamos tudo’, revela-me com orgulho. ‘Aquelas granadas de
fósforo dentro das palhotas... era um espectáculo! O que me custava mais a fazer era
abater as cabeças de gado...’ Finda a guerra da Rodésia, Monteiro estabelece-se na
África do Sul sendo um dos comandos que participa no ataque sul-africano a casas
do ANC (o Congresso Nacional Africano) na Matola, junto a Maputo, em 31 de
Janeiro de 1981. Das forças especiais passa a elemento da Divisão de Inteligência
Militar, o A.M.I., em tarefas de coordenação e de logística no apoio à R.N.M., tendo
alcançado a patente de ‘staff sergeant’. É aqui que se mantém agora.

O ZANZA BUILDING, DE PRETÓRIA, CENTRO DO FURACÃO DE TODA A


DESESTABILIZAÇÃO NA ÁFRICA AUSTRAL
É uma Sexta-feira, 18 de Fevereiro. Logo pelo esplendor das oito horas da
matina levam-me ao verdadeiro foco da ‘desestabilização’ sul-africana para os países
vizinhos. Pretória não é grande e de carro são uns cinco minutos apenas. Estamos no
décimo primeiro andar do Zanza Building, no n.º 116 da Proes Street. Este centro de
operações funcionara anteriormente no próprio edifício do Ministério da Defesa, o
Poyntons, na Kerk Street (ou Church Street, a Rua da Igreja, se quiserem, aqui temos
os nomes em inglês e africaans), a dois quarteirões de distância. Agora, este autêntico
‘centro do furacão’ encontra-se num local um pouco mais discreto, embora quase
todo o Zanza albergue instalações relacionadas com a defesa, nos seus catorze
andares. No décimo primeiro, além da ‘Mozambique Desk’ funcionam os gabinetes
que tratam das actividades contra outros países-alvo: Angola, Zimbabwe, Botswana,
etc. Todo este piso pertence à A.M.I. e é gerido por um general, meramente
administrativo. Na prática, o poder de decisão está nas mãos de um brigadeiro, o
brigadeiro Botha, isto no início de 1983.
Quanto à ‘Mozambique Desk’, esta é dirigida por Charlie Van Niekerk, na
altura coronel, coadjuvado pelo major Kayser. Charlie é código, entenda-se, o homem
chama-se Cornelius. Ou é código ou não grama do nome, pronto! Isto são postos de
promoção rápida, estas secções de ‘operações sujas’, e o major Kayser será
promovido a ‘commandant’, equivalente ao nosso tenente-coronel, em 1984 e Van
Niekerk tornar-se-á brigadeiro em 1986. E quanto ao historial desta gente? Bem, o
Kayser fora já oficial de ligação entre a R.N.M. e a África do Sul nos atribulados
tempos da Rodésia em que o regime de Ian Smith dava os últimos estertores. Baseado
em território rodesiano, reportava a Van Niekerk, aqui em Pretória.

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A história de ‘Charlie’ é mais completa: pode-se apontar Charlie Van Niekerk
como o militar sul-africano, destes tempos, mais ambientado à questão de
Moçambique e um dos mais envolvidos no processo de apoio à RENAMO. A sua
ligação aos assuntos moçambicanos remonta à época da guerra colonial, à era de
Kaúlza de Arriaga, desempenhando então as funções de conselheiro militar. O 25 de
Abril de 1974 vem apanhá-lo precisamente em Nampula na região norte de
Moçambique e onde se encontrava o comando operacional.
Deve ser de facto verdade o que dizem. Toda uma miscigenação atingiu os
primeiros ‘boers’, os emigrantes holandeses e outros, envolvendo as populações
indígenas. De vez em quando essas ‘ligações proibidas’ transparecem no fenótipo,
sobem inegáveis até cá acima vindas da profundidade dos genes, mesmo ao fim de
gerações: ruivos com traços negróides e pele mais escura do que seria de esperar.
Pouco há de ariano ou nórdico em vários dos oficiais superiores que conheci e Van
Niekerk era mesmo um ‘caso exemplo’ pois: cabelo ligeiramente ruivo e encrespado
de facto, de tal forma que, olhando para ele sem se saber que era um ‘boer’, podíamos
bem dizer que estávamos na presença de um mestiço. Com cerca de um metro e
oitenta, magro, mantém um porte militar impecável mas é alguém de trato muito fácil,
uma simpatia e... fala bem português. Muitíssimo bem, aliás.
Nas três salas do Zanza referentes a Moçambique trabalham também Orlando
Cristina, Lucinda Feijão, José Carlos Monteiro (o tipo da residencial), o piloto
português João Quental e, por pouco tempo, Antero Machado, um outro português
residente em Johannesburg, amigo de Quental e de Orlando Cristina, e dono de uma
agência de publicidade.
E eu? Pois bem, cá aterrei e fico igualmente no Zanza, pelo menos de
Fevereiro a Julho de 1983, orientando a partir daqui o trabalho da ‘Voz da África
Livre’. José Carlos Cabrita, também português e anterior responsável da emissora,
tivera acesso ao Zanza em 1982, mas deixara entretanto a R.N.M. e fora trabalhar
para a Swazilândia, na sequência de sérias divergências com Cristina. É uma conversa,
um tema que de vez em quando ainda vem ao de cima. Será que há mesmo algum
mau feitio no secretário-geral? Como irão ser as coisas daqui para a frente?
João Quental é um dos pilotos dos decrépitos ‘Dakota’ DC-3 do lote que a
Força Aérea sul-africana ainda mantém, pelo menos para as ‘cagadas’ nocturnas,
fazendo regularmente missões secretas de reabastecimento às zonas da Resistência e
aterragens na Gorongosa e noutras partes de Moçambique. Em fins de 1984, já como
piloto civil, seria detido numa das viagens que efectua a Maputo. As autoridades
moçambicanas viriam a libertá-lo no início de 1988. Quanto a Antero Machado,
distinguir-se-ia mais como artista plástico. No passado, traçara alguns panfletos para a
R.N.M. Agora, em princípios de 1983, acaba de escrever uma pretensa ‘nova
Constituição’ para Moçambique, um texto sem quaisquer pés nem cabeça, dos pontos
de vista político e jurídico.
Além das pessoas estritamente ligadas a cada um dos países-alvo, existem no
Zanza secções que dão apoio às diversas ‘desks’, como a secção de Propaganda ou
Guerra Psicológica que tem à frente o coronel Grayling, e a de Logística, encabeçada
pelo coronel Groblar. Com o Grayling hei-de trabalhar amiúde, claro! Então estou
aqui é mesmo para isso ou não é? Muita ‘informação’, desinformaçãozeca e
propaganda a rodos para auxiliar o esforço de guerra da Renamo, ou será que já me
esqueci pró que vim?!

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Ora, alguns desses mesmos traços que já apontei e que mostram uma certa
mistura genética estão presentes também neste outro coronel. O aspecto geral em
termos de estatura é porém completamente diferente. Se com Van Niekerk tínhamos
um ‘Trinitá’ mais envelhecido e magro, aqui temos o autêntico ‘Bud Spencer’ neste
corpanzil, cabelo escuro mas igualmente crespo, tez morena (já de nascença ou
crestada por este inclemente sol tropical?, interrogo-me) e Grayling fala em voz que
concorre em timbre com os ecos mais telúricos trazidos pelo trovão, compassada e
segura.
Durante os meses seguintes terei uma liberdade quase total no respeitante à
execução dos textos e direcção da emissora. Durante a maior parte do horário de
trabalho, das 08h00 às 12h30 e das 13h15 às 16h30, escrevinho textos, bebo coca-
cola, revia comunicados de guerra, mamo coca-cola, esboço um ou outro panfleto e
fazia a escuta de estações de rádio a sorver coca-cola. De vez em quando, um
briefing, reunião de trabalho, com Kayser, Grayling ou Van Niekerk, a arrotar coca-
cola pelo nariz. Ao longo dos primeiros dois meses, Orlando Cristina esteve quase
sempre ausente, em digressão pelos Estados Unidos e pela Europa, participando na
segunda semana de Março numa conferência do movimento, em Kiel, no norte da
Alemanha Federal. E a tentar tratar de uma reforma, a sua própria, acho eu.
Quarta-feira, 23 de Fevereiro. Atinge o auge a celeuma provocada pela
publicação, na revista sensacionalista sul-africana ‘Scope’, de um alegado ‘Relatório
Veloso’, Jacinto Veloso é então o ministro da Segurança, em
Moçambique, comprometendo círculos políticos e militares portugueses com a
FRELIMO. Segundo a revista, trata-se de documentos inéditos e divulgados pelo
renegado da Segurança moçambicana, Jorge Costa. Lembro-me que, ainda em Lisboa
e discutindo com Orlando Cristina a situação e revelações de Costa, o secretário-geral
da R.N.M. havia-me confidenciado ser forjada grande parte de tais informações, mas
que iria ser desencadeada brevemente uma campanha empolgante orientada pela
BOSS-NIS, a polícia de segurança de Pretória.

A ‘FARM’, UMA BASE PARA OS DIRIGENTES DA RENAMO JUNTO AO


CORAÇÃO DA ÁFRICA DO SUL
Ensinam-me também o que era a farm e o caminho até lá. A ‘quinta’. Todas as
manhãzinhas, aí pelas onze horas, dirijo-me pois a essa farm, à herdade, as instalações
do movimento a uma trintena de quilómetros de Pretória, e onde está localizado o
estúdio da ‘Voz da África Livre’. Tenho por tarefa entregar os textos, orientar o
pessoal e recolher as fitas já gravadas. Geralmente vou com este ‘licenciado em
mercenarismo’, o José Carlos Monteiro, ou com um tipo mais novato e simpático, o
cabo Roland Hunter, sul-africano de origem inglesa. A Lucinda Feijão grama do puto
à brava mas repete que é uma pena o gajo não tomar banho mais vezes, e eu a
desmanchar-me a rir sempre que ela começa a palrar sobre este Hunter. Ah! As fitas!
As fitas são depois levadas pelos militares sul-africanos ao centro emissor. Nunca
conheci as instalações onde ficava o transmissor, mas ouço amiúde que se localiza
algures entre Pretória e Johannesburg. A estação é dirigida por um outro brigadeiro,
começo a imaginar que esta tropa parece os exércitos do Alcazar e Tapioca dos livros
do Tintim, com mais brigadeiros que cabos, e o emissor, anteriormente pertencente

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aos correios sul-africanos, além de servir a R.N.M. emitirá ainda para a UNITA e
produz um programa especial para os militares cubanos em Angola8.
A farm compreende uma vivenda que serve de habitação a Orlando Cristina,
guardada por uma vintena de cães do Afeganistão, acho que sem filiação e
indiferentes à recente invasão do seu país pelos soviéticos, e pertencentes à esposa,
Francesca. Calculo que ponham a mona do Cristina completamente baratinada.
Pelo campo espalham-se umas dez casas pré-fabricadas, albergando os
elementos da ‘Voz da África Livre’ e eventuais visitantes. Afonso Dhlakama tem à sua
disposição outras duas dessas instalações pré-fabricadas. O conjunto é completado
por um camião-estúdio ‘Mercedes-Benz’ e pelo pequeno grupo gerador que fornece
energia a todo o complexo. Aqui, estamos praticamente no seio do mato, mas tudo
surge em tons de um verde desmaiado pois a seca martiriza este ano uma grande
parte da África Austral. Há porém uma sensação de liberdade, de enormes espaços
abertos, um sentimento que começa logo nas amplas estradas que se desdobram a
partir de Pretória e Johannesburg.
Por ocasião da minha chegada e tal como esperava, encontro Boaventura
Bomba a dirigir a ‘Voz’. Trabalham nos programas de rádio dois técnicos de estúdio,
moçambicanos, também locutores, e mais uns seis elementos na locução e tradução.
Os textos estão a ser escritos pelo Boaventura.
Pois bem, neste final de Fevereiro topo de passagem pela farm, e vivendo nas
pré-fabricadas, o Fanuel Gideon Mahluza, ex-militante da FRELIMO nos anos ‘60 e
da COREMO (Convergência Revolucionária de Moçambique) e agora representante
do movimento no exterior, e o Vicente Zacarias Ululu, este é um antigo estudante do
Instituto Moçambicano, de Dar-es-Salaam, desde os tempos de Eduardo Mondlane, o
malogrado primeiro presidente da Frelimo. Ambos possuem agora residência no
Quénia e haviam sido contactados em 1982 por Cristina, aderindo à ala externa da
R.N.M. Orlando Cristina propunha-se conseguir, e só agora o faz (será que ele se
apercebe que esta será alguma recta final para qualquer coisa?) o que ele chamava de
punhado de ‘diamantes negros’ para a Resistência: moçambicanos de origem, de
preferência negros, instruídos, capazes de enformar futuramente uma estrutura
política. Nesta altura os sul-africanos não são grandes apologistas da ideia.
Nos anos seguintes, Mahluza, então já como secretário das Finanças, viria a
sofrer uma perseguição cerrada por parte de Evo Fernandes, sendo expulso da
R.N.M. em 1985. Ululu esteve nos últimos anos da década de ‘90 no interior de
Moçambique, ocupando um cargo de secretário da Administração Interna e tentando
ensinar inglês a Afonso Dhlakama. E viria ainda a ser nomeado secretário-geral do
movimento, embora por reduzido tempo.

VINTE E SETE GUERRILHEIROS NA BAIXA DE PRETÓRIA


24 de Fevereiro. Estava a meio de uma manhã já tórrida, pelo menos lá fora o
ar reverbera em ondas de calor, a martelar viciosamente à máquina de escrever mais
um destes textos malucos, quando um tenente sul-africano aqui da A.M.I., o Johann
Hurter (nós na Resistência chamamos-lhe o ‘Voluntário’, o gajo fala bem português,
pois o exército da África do Sul conseguira ‘infiltrá-lo’, pô-lo a estudar há uns anos

8 Consultar a propósito o Apêndice 4 – A Voz da África Livre. Curiosamente, The Voice of Free Africa
(A Voz da África Livre, em inglês) havia sido já o nome de uma emissora operada pelos britânicos a
partir do Cairo, na Segunda Guerra Mundial.

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em Cabo Verde, é quase um puto de cabelo estilo Mick Jagger) e um outro militar me
pedem para ir com eles e com o João Quental, o piloto, até Pretoria West, servir de
intérprete e tomar conta de uns trinta tipos.
São eles vinte e sete, aliás, para ser mais preciso. Vinte e sete elementos da
R.N.M., fardadinhos à maneira, armados com Kalashnikovs, e que haviam sido
trazidos na noite anterior para um enorme armazém de pára-quedas militares, situado
num primeiro andar do centro da cidade. Encontram-se ‘em trânsito’. Aqui na mais
racista e fóbica das cidades sul-africanas onde um preto não pode ter um canivete
para limpar unha!
Tudo está no maior segredo. Existem várias portas fechadas à chave, desde as
escadas até ao armazém propriamente dito. Chega o pitéu e é feita uma primeira
distribuição. Às treze horas, nova ração de latas de ‘corned-beef ’ e sumo. Falo com
esta malta toda, estão risonhos, bem tratados, arranjo-lhes óleo, é para lubrificar as
Kalashes. Alguns têm umas latinhas já com óleo mas que cheira a ranço e peixe frito,
mas meus amigos, a AK-47 (a ‘costureirinha’, como lhe chamava a tropa portuguesa,
pelo som de cadência rápida) é assim mesmo, trabalha com tudo, quase nem precisa
de manutenção alguma.
O globo laranja e difuso, enorme, de hidrogénio atomizado deste sol dos
trópicos, desmaia ainda mais a Oeste de Pretória West. Ao escurecer, cerca das
dezanove horas, organiza-se a saída. A traseira de um enorme camião militar encosta
à porta do prédio. Os vinte e sete são levados até à Base Aérea de Waterkloof, nos
arredores.
O major Kayser pede-me que o acompanhe à base. Aqui, os homens do
movimento despem a farda, envergam roupa civil, e são divididos em grupos de nove.
Em cada um existem três raparigas, guerrilheiras. Bebem-se mais sumos. Chega uma
carrinha com caixas de armamento. Mais Kalashnikovs. Novas. As caixas são
distribuídas. Já há ferramenta a mais. Na pista, aguardam três aviões ‘Dakota’. Cada
grupo, com bagagem e armamento, dirige-se para o respectivo avião. Os seis motores
roncam na noite. Com o olhar esbatido, perdido num rol de pensamentos confusos,
hesitante, lata de cerveja e hambúrguer na mão, miro esta grelha imensa de luzinhas,
fiadas tremeluzentes que marcam as zonas brancas de Benoni e Bonaero Park…
lampejos etéreos elevados pela bruma que parece sugá-las tanto como o futuro
nebuloso dir-se-ia esvair as ténues expectativas de paz destas gentes e os anseios da
grande maioria despojada em toda esta imensidão. Pouco depois os ‘DC-3’
desaparecem ao longe, pirilampos verdes e vermelhos nas pontas das asas cinzentas
esbatendo-se eles também neste negrume arroxeado, rumando a nordeste. Dizem-me
que aterrarão na província de Inhambane, por apenas dois minutos, o tempo
suficiente para desembarcar homens e material.

O ESTRANHO INDIANO ‘DOIS DEDOS’, O HOMEM À FRENTE DA TEIA


NO MALÁWI
Caneta, papel, e não só! Estou contente com isto que me trazem, uma
máquina do caraças: tenho agora para me auxiliar no trabalho de escuta um
sofisticado rádio receptor de ondas-curtas fornecido pelos militares, o qual me
permite seguir devidamente os noticiários das diversas emissoras e interceptar as
comunicações dos correios, torres dos aeroportos e exército de Moçambique.
Sábado, 26 de Fevereiro. Tanta coisa e em tão pouco tempo… E é altura de
voltar à grande cidade, à Cidade do Ouro: o José Carlos Monteiro convida-me para

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uma ida a Johannesburg. Passamos por Germinston e dirigimo-nos depois ao bairro
de Hillbrow, mesmo no centro da cidade. Quando cheguei de Lisboa, com a Lucinda
Feijão, conheci a Johannesburg dos brancos. Mas hoje é Sábado e a grande metrópole
está tomada pela malta negra. E nós temos que contactar um elemento de ligação
acabado de chegar do Maláwi.
– Quem é o gajo?, pergunto.
– Um monhé!, diz rápido, o Monteiro.
– Monhé?...
– Yeah! Já vais ver. Petiscamos com o gajo, e falamos. Ou vice-versa.
Aquela zona de Jo’burg (diminuitivo de Johannesburg), Hillbrow, é como se
chama a parte central, a baixa, aos sábados parece um pequeno far-west: adivinha-se
facilmente pela fácies desta malta e pelo trajar, alguma pequena bandidagem mal
contida aqui, nestes fins de semana, e algumas garinas que devem é estar ao ataque,
pela indumentária que exibem. Mas bom, vamos ao trabalho!
O tipo em causa é o Gilberto Fernandes, ou Magid, comerciante indiano e
antigo residente em Moçambique. Este Magid virá nos anos imediatos a assumir um
papel relevante na ala externa da RENAMO, principalmente no Maláwi e em Lisboa.
Tem um irmão, comerciante tal como ele, e que permanece na cidade de Tete no
interior de Moçambique. Informações diversas estão assim a ser canalizadas para
Blantyre, a capital malawiana, e daí para Pretória.
Mais do que isso, Magid actua ligado a um comandante Jimo Phiri,
zambeziano e líder militar do grupo ‘África Livre’ que, em anos anteriores,
desenvolvera autonomamente uma guerrilha de baixo perfil no ocidente da província
moçambicana da Zambézia. Orlando Cristina conseguira também, em 1982, a adesão
dos elementos do ‘África Livre’ à R.N.M.
Desde a abertura em força da ‘frente da Zambézia’ que se dará ao longo deste
ano de 1983, mas principalmente em 1985 e 1986, Magid e Jimo iriam ser de grande
utilidade na rede de infiltração de armamento ao norte do rio Zambeze, a partir do
Maláwi.9 E há a salientar que Jimo, um moçambicano negro, e apesar da sua posição
na R.N.M. como membro do ‘Conselho Nacional’ e comandante militar, ele era já em
1983 tido como um ‘número três’ do movimento, foi sempre dependente,
economicamente, de Magid. Será que este raio de simbiose funciona? Um gajo militar
e africano (africano, que vê no ‘monhé’ um bicho pior que a cobra) dependente de
um civil, indiano?
Embora em 1988 os dois tenham cortado com a RENAMO, assumindo-se
como dirigentes de um outro grupo com raízes, novamente, regionais, a
UNAMO, União Nacional de Moçambique, nada há que indique algum fim nos
contactos entre Pretória e Magid. Em Lisboa, Magid vem a ser conhecido nos meios

9 A Zambézia pesou sempre grandemente na estratégia da Renamo, até desde os tempos de J. Jardim,
como ele bem demonstra em ‘Moçambique – Terra Queimada’, a páginas 156-157: “A Zambézia tinha-se
revelado imune às tentativas de penetração política da Frelimo (como ainda hoje) e com as suas
riquezas naturais, servidas por densa ocupação humana, representava a zona de mais importância para
decisão dos destinos do país. Sem o apoio da Zambézia não é possível unificar Moçambique e com esse
apoio contava eu para levar a cabo a tarefa que me tinha imposto. Sobretudo em caso de confrontação
com Lisboa. Na minha opinião, o futuro Moçambique deveria ter a sua capital nessa província, cêntrica
em relação às demais e Mocuba reunia as condições para se converter na Brasília moçambicana (...)”

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do movimento como o ‘Dois Dedos’, amputados há anos na sequência de um
acidente de viação que lhe feriu a mão direita.

AFONSO DHLAKAMA: JOVEM E ‘VERDE’ POLITICAMENTE, ADORA


COCA-COLA, MOTAS E FILMES DE ‘KARATÉ’
4 de Março, sexta-feira. De novo na farm. Será a ‘odisseia’ africana um pique-
nique? Pelo menos vou lá passar o fim-de-semana e participar num pequeno convívio.
Quando arribo, uma surpresa: tenho inesperadamente esta oportunidade de conhecer
Afonso Dhlakama, ao vivo e a cores.
Este primeiro encontro que temos serve mais para um conhecimento mútuo,
directo. Recebe-me bem. Tomamos café (óptimo! o homem também grama de café!)
e apresenta-me depois outros comandantes que, tal como ele, estão aqui na farm de
passagem. Vão na tarde deste mesmo dia embarcar para a Europa. Em Kiel, no norte
da Alemanha, começa dentro em pouco uma conferência da cúpula militar e da ala
externa da R.N.M.
Falamos sobre a situação no país em geral, com mais atenção para o sul, face à
ofensiva governamental, e sobre as demarches do movimento: na primeira semana de
Março a ‘Voz da África Livre’ transmitira apelos para acções violentas contra
cooperantes em Moçambique, um dos meus ‘textos malucos’. Dias depois, um
jornalista italiano da TV e um repórter moçambicano, são assassinados pelo
movimento, em Gaza. A guerrilha anuncia também a destruição de um comboio
entre Caniçado e Mabalane, na linha Maputo-Zimbábwe, e de outra composição,
perto da Beira. Já sei o que a casa gasta, e pelo que vejo depois em filmagens, são
cenas gore a dar com pau: o habitual é putos com Kalashes a mandar uma sprayada de
chumbo a autocarros, pessoal todo furado a saltar pelos vidros e a ser metralhado
sobre as fissuras do alcatrão. Com os comboios, é mais do mesmo mas em 70mm
como no écran gigante, o enlatado é mais comprido e tem que se regar mais, estilo
mangueirada. Incrível! Algumas destas acções têm putos de dez, doze anos à cabeça, a
perpetrar estas sanguinolentas emboscadas.
A cidade da Beira, que é a segunda do país, está novamente privada de água,
mais um catrapumba de trotil às condutas e estação elevatória, ao mesmo tempo que
se começa a falar de operações no sul do Niassa. Na fronteira de Tete com o Maláwi
a Resistência acaba de libertar três freiras estrangeiras raptadas há meses. Um pique-
nique diferente, para estas, sem dúvida.
Os sul-africanos chegam entretanto à farm para levarem Dhlakama e os outros
comandantes ao aeroporto, e pedem-me que traduza algumas orientações de última-
hora. Os homens da R.N.M. recebem os passaportes com que vão viajar, falsos,
obviamente. Os documentos identificam-nos como homens de negócios da
Swazilândia. E sorridente, sarcástico mesmo, observo estes oficiais brancos do mais
racista exército do mundo a ajudarem e ajeitarem eles próprios as gravatas desta malta
mais que retinta.
Quanto a Dhlakama, bem, é cedo para ter uma ideia definida sobre o homem,
o líder da R.N.M., o nosso ‘número um’. Um rosto jovem. Demasiado jovem, decerto.
Cabelo curto bem aparado, estatura mediana, talvez com o peso só ligeiramente acima
do ideal para a altura que tem.
E relembro agora, com mais sarcasmo e contido cinismo ainda, a história que
ouvira sobre a escolha, a lotaria que recaíra sobre o Afonso Dhlakama. Com a morte
em combate de André Matadi Matsangaíssa, em 17 de Outubro de 1979, houve, na

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altura, que fazer a escolha sobre os dois comandantes imediatamente abaixo. Um, era
um tal Charlie, o outro era este Dhlakama. As preferências de rodesianos, sul-
africanos e do Cristina vão para o actual dirigente, e Charlie é neutralizado, abatido,
para que não cause eventuais empecilhos ao vencedor. É assim esta ida às urnas,
democrática, no seio do movimento guerrilheiro.
Ainda pouco polido, e cru politicamente, é a impressão primeira com que fico
de Dhlakama. Uma face, diria mesmo, de rapaz, escondida por aqueles óculos não-
graduados. Na conversa, revela-me o fraco que sente por filmes, de guerra e ‘karate’,
sobretudo. Gosta imenso de Coca-Cola, não liga ao álcool nem fuma, e não disfarça
uma enorme paixão pelas motas. Está contente com os sul-africanos que lhe pagam
720 randes por mês e lhe fizeram um seguro de vida. Até aqui, penso, o ‘apartheid’ se
faz sentir: como responsável da rádio eu acabo por ganhar mais que o dirigente do
movimento.

COMO A INTRIGA MINA O MOVIMENTO


Neste fim-de-semana na farm fico alojado em casa do Constantino Reis. Este
jovem universitário havia fugido de Moçambique e, através da Suazilândia, chegara à
África do Sul. Fizera parte, na Universidade Eduardo Mondlane, de um grupozeco de
contestação, uns tais ‘Os Rebeldes do Aquário’. Diziam que o Machel tratava o
pessoal como se fossem uns peixinhos nuns globos de vidro mas a piada, ao tempo,
não provocou gracejos no regime, pelos vistos. Mais tarde, em 1985, Reis virá a
entregar-se às autoridades moçambicanas, na província de Sofala. O bom filho à casa
torna…
Ouço atentamente as bobinas gravadas, vamos ao detalhe, ao alinhamento:
claro que todos os dias sintonizo no rádio, lá em Pretória, as emissões, e sei o que a
casa gasta. As músicas antes da abertura da emissora, de início de emissão e do fecho.
São precisamente as mesmas de há anos. Algumas, desde os tempos da Rodésia: o El
Bimbo, como indicativo. Uma do colonial João Maria Tudela ‘Moçambique, que
palavra tão bonita…’ a abrir. E o brasileiro Lindomar Castilho ‘Eu canto o que o
povo quer…’ a encerrar os trabalhos.
A gente da Rádio, na prática, ‘está bem’, goza neste momento de uma relativa
liberdade. Deixam a farm quando querem e vão à cidade regularmente efectuar
compras. Outras vezes, numa carrinha Peugeot 504 do Boaventura Bomba, deslocam-
se até à mercearia de um madeirense, a cerca de dez quilómetros do campo. É quase
impensável todo este à vontade. Vou com eles até esse cantineiro e ainda a Pretória,
ao ‘Checkers’, um dos hipermercados. Prepara-se um braai, o churrasco (em africaans)
para as noites de sábado e domingo. Ah! E é da praxe. Uma última paragem numa
bottle store, armazém de bebidas. Bebida na África do Sul, só em loja própria. Mas não
é lá por isso que estes gajos bebem menos, pelo contrário, é um dos últimos escapes,
e aqui não há ‘apartheid’, preto e branco bebe tudo à fartazana..
As ‘bottle stores’!… Isto é um autêntico negócio nas vésperas de fim de
semana. Até à uma da tarde de sábado estão abertas estas lojas onde os sul-africanos
se podem atafulhar de bebidas alcoólicas. Nos supermercados e mercearias não há
álcool à venda. Proibidíssimo. Uma estrita moral fingida por indução pela
conservadora NHK a Igreja Reformista Holandesa, impede até desportos e
espectáculos aos domingos e venda (e consumo, se o pudessem proibiriam até dentro
de casa) de bebidas alcoólicas nos ‘dias santos’. É esta outra das facetas caricatas da
África do Sul. Todos já sabiam como funciona: abastecer à grande aos sábados até à

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uma da tarde para consumir todo o fim de semana! Aqui, tudo, tudo mesmo, fecha
antes da treze horas de Sábado. É sagrado. Depois, cada um na sua casa. E o
Domingo é mesmo o ‘dia do Senhor’: nem futebol, cinema, desporto, artes, ‘tá tudo
fechadinho.
Lata gelada de cervejola ‘Amstel’ nas unhas, desfruto de uma bela sombra
juntamente com o João Daniel, técnico e locutor, assim como o João ‘Wayne’
Azevedo, o Henriques Paulo e o Constantino Reis, que me falam da organização (ou
desorganização) dos programas, enquanto olho para a lata esverdeada e escura. Um
tal Machava, apresentam-mo como um ex-elemento da Segurança
moçambicana, estará aqui na farm só por mais alguns dias. Parece que todos me
querem dar relatório, aproximarem-se, chibarem-se todos. Todos?... Bem, quanto a
este Machava, os sul-africanos vão enviá-lo para um campo junto a Neilspruit, onde
irá proceder à triagem de refugiados moçambicanos que possam integrar a R.N.M.
Mesmo com quatro latitas de ‘Amstel' já emborcadas, algumas notas mentais
estão já alinhavadas, e noto entretanto que o chefe da segurança da farm, José
Domingos, um esparguete magríssimo, ossudo, de quase dois metros, quarentão,
exerce uma vigilância muito frouxa. Ouço-o atentamente e transparece uma certa falta
de poder, de indecisão, ou alguém no campo que nem tem patente militar como a
dele, acaba implicitamente por estar mais acima. Algo que notei por diversas vezes
nas bases da Renamo. Um poder de outro tipo, logístico ou financeiro, como o do
monhé Magid sobre o Jimo Phiri. Este pobre homem, na altura ainda não o sabemos,
claro, virá a morrer meses mais tarde vítima de um acidente com uma granada de
morteiro, já em Maringué, Manica, no interior de Moçambique, ao penetrar num
campo militar tomado ao governo, dizem-me que foi um obus que ficou por explodir.
À parte os comes e bebes e as farras, estes dois dias revelam-me as diferenças,
intrigas mesmo, que pululam entre o pessoal não só da farm em geral, mas da Rádio.
Em resumo, todos parecem simpatizar com o secretário-geral Cristina, excepto
Boaventura Bomba. No meio da trama existente, o secretário-geral tenta de algum
modo deitar água na fervura, mas não tem controlado totalmente a situação, muito
menos o ‘responsável’ da segurança do campo.

ASSIM FUNCIONA O ESTADO-MAIOR DA RESISTÊNCIA MOÇAMBICANA


EM ‘BASE DE COMANDO RECUADO’ NO VIZINHO TERRITÓRIO DA
ÁFRICA DO SUL
Sexta-feira, 11 de Março. Vou visitar pela primeira vez o ‘Estado-Maior’ da
R.N.M. instalado na BCR, a Base de Comando Recuado. O Estado-Maior situa-se
numa outra farm a cerca de cinco quilómetros do campo de Orlando Cristina. E aqui
tudo o que é informação transpira, nesta farm e na ‘outra’, não há qualquer culto de
secretismo ou sigilo. Logo sei que junto a esta base do Estado-Maior existia até há
pouco tempo uma outra, com dissidentes do Zimbabwe. Uma promiscuidade dos
diabos.
A Base de Comando Recuado da R.N.M. encontra-se aqui há poucas semanas
depois de ter sido retirada, por motivos de segurança, da zona de Phalaborwa, junto
ao Kruger Park e à fronteira com Moçambique. Aos responsáveis chegaram a ser
distribuídas granadas de fósforo para incendiarem totalmente as instalações, em caso
de eventual ataque de um grupo do ANC. Não poderiam restar quaisquer vestígios
detectáveis por jornalistas ou estranhos.

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– E foi assim que perdi a vontade de beber!, confessa-me o Raúl,
confirmando este episódio.
– Então?
– Imagine… uma noite foram dar comigo, eu bebia, muito… cerveja de lata,
ou de cartão, vinho, secos… tudo, e estava no chão, da minha tenda, com as granadas
em fila, um comboio feito com as granadas de fósforo. A olhar para elas, a mexer
nelas… Rebocaram-me dali, logo! Depois, foi um ‘abanão’ que levei, no dia seguinte.
Mas aprendi.
Acho que a repreensão valeu. Só agora começo a conhecer este Raúl mas
nunca o vi ébrio em todos os meses seguintes, ou pelo menos, ‘bêbado estragado’.
Vejo agora estas enormes tendas militares ligadas entre si como uma feira, um
grande bazar, e no interior as paredes recobertas de mapas e gráficos das acções de
guerra. É isto o Estado-Maior, ou parte do Estado-Maior: em posições perto, ao
redor, existem uns seis postos com operadores de rádio que complementam o
conjunto. Mensagens sempre a chegar, a serem processadas, e despachadas. À cabeça
disto tudo está Raul Domingos, vinte e cinco anos. Temos um ‘briefing’ de
aproximadamente uma hora, onde me faz o ponto da situação militar. Outras
informações, não esconde, são dadas pelos militares sul-africanos, que têm a todo o
momento um grupo de vinte e quatro pessoas captando as comunicações que se
processam em território moçambicano. A reunião é constantemente interrompida
pela entrada de estafetas fazendo o batimento e continência, a elevarem nuvens
densas de poeira que se desprendem deste pulvurulento solo sequioso há meses. Vêm
entregar ou receber mais mensagens.
Pelo que observei, Raul Domingos, um moçambicano negro, de etnia ‘ndau’,
tal como Dhlakama, e sendo os mandau uma das mais fortes etnias do centro do país,
raptado pela Resistência em 1979 de um comboio atacado na província de Sofala, é
de longe mais hábil e inteligente que o líder do movimento nestas coisas da guerra,
análise de mapas, trabalhos com números, planeamento e informações.
Nesta altura em que conheço o Raul, na África do Sul, é um sujeito magro,
sóbrio no trato, simples, embora sempre fardado a rigor, e com um controlo
estupendo de tudo o que se passa à volta e lá longe nas matas moçambicanas a
centenas e milhares de quilómetros daqui. Rosto magro igualmente, triangular como a
cabecita de um louva-a-deus, terminando numa tentativa de barbicha. Tem o discurso
solto, escorreito e inteligente, conforme vai explicando a situação militar no terreno.
Meses mais tarde numa outra base, ao fim do dia, havia de conhecê-lo nessas horas
em que terminadas as principais tarefas diárias, transpirava alegria e boa disposição e
desfiava um infindável rosário de anedotas.
Em fins de 1983 o Estado-Maior viria a ser dividido e Raul Domingos ficaria
como chefe do Estado-Maior Sul, com responsabilidade a sul do Rio Save. Mas agora,
é ele ainda o responsável a nível nacional. E no fim deste encontro sou apresentado
aos chefes das secções de Logística, o comandante Dick, e de Comunicações, o
comandante Elias. Dick será posteriormente, após Fevereiro de 1984, o chefe do
Estado-Maior Norte, englobando toda a região ao norte do Rio Zambeze.
Ora este Dick é, aqui pelo menos, a eficácia em pessoa, sempre numa roda
viva a tratar da logística tanto da própria base como no respeitante ao Estado-Maior e
aos abastecimentos para o interior feitos pelos sul-africanos. Magríssimo, um pau de
virar tripas autêntico caminhando que nem uma marioneta bamboleante, um
‘zombie’, enfeixado em altas botas castanhas de ‘cow-boy’, e com aquela cabeça

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esquelética onde encaixam os mortiços olhos amarelados (denotando, sei lá, alguma
hepatite crónica) velando sobre uma barba rala. Mas o Dick sabe ser simpático e
torna-se extremamente prestável. Nada é inatingível para ele que tudo providencia
então na próxima jornada de compras à cidade.
Quanto ao Elias, bem, tínhamos aqui uma quase mascote do Estado-Maior! É
o mais novo de todos, pouco passa dos vinte aquele rosto arredondado, um ovinho
de traços quase juvenis, e torna-se talvez o mais brincalhão ali. As funções que
desempenha são porém extremamente importantes e apesar da pouca idade, nas mãos
e cabeça de Elias está praticamente toda a rede de rádio-comunicações da Resistência.
É esta a área dele no Estado-Maior. E ali na base, directamente, controla as várias
posições de rádio, cada uma com o seu transmissor, antenas, baterias e geradores
manuais, e livros de cifra.

17 de Março. Orlando Cristina regressa da Europa, da conferência em Kiel.


Estiveram também presentes ao encontro, além de Dhlakama e de quatro
comandantes militares, Evo Fernandes, Antero Machado, um certo Artur
Vilankulos (que viera dos Estados Unidos e era agora o secretário das Relações
Externas), Gideon Mahluza, Vicente Ululu, e Artur Janeiro da Fonseca, um dos
representantes na Alemanha Federal. Participa igualmente o delegado-mor na RFA,
João Rajabo, bem como outros elementos vindos da França e América.
As instalações para a conferência haviam sido conseguidas pelo professor
Kaltefleiter, o conselheiro para assuntos africanos de Helmut Kohl, o chanceler
alemão. A segurança, visitas e logística diversa, estiveram a cargo de Wolfgang
Richter, um dos mais altos responsáveis do BND, Departamento de Defesa da
Constituição, os serviços secretos alemães, e que é padrinho de um dos filhos do Evo
Fernandes. De referir aqui que Kaltefleiter e um outro académico, o professor André
Thomashausen, da universidade sul-africana UNISA, têm sido desde há muito
denodados apoiantes da causa da R.N.M. E já o próprio Kaltefleiter havia estado
meses antes, no início de 1983, na farm perto de Pretória, em reuniões com Cristina e
outras estruturas do movimento.
Orlando Cristina volta pois à África do Sul numa altura em que crescem
rumores de movimentações em Johannesburg, no seio do grupo de portugueses
aderentes em 1974 ao tal movimento do 7 de Setembro, o ‘Moçambique Livre’, grupo
onde os irmãos Bomba gozavam de algum apoio. Tal círculo mantém ligações ao
próprio Ministério da Defesa sul-africano, num lobby diferente daquele que apoia
agora directamente a Resistência. Carlos Lacerda (o mesmo nome que já antes referi
como como ligado ao advogado Domingos Arouca em Lisboa, da FUMO), o
empresário Graça, os irmãos Matias, os Cardigas, outra importante família da era
colonial em Lourenço Marques, e Álvaro Récio, um empresário de peso, são nomes
repetidamente referidos de gente desse núcleo. Homens ligados ao capital, e que
pretendiam fazer da R.N.M. um mero cartaz que lhes permitisse a obtenção de
dinheiro.
O secretário-geral da Resistência há muito que havia cortado com esta gente
(por decisão própria?), e mesmo a A.M.I., a Inteligência Militar, tentava quebrar
qualquer apoio ou controle que descortinasse ainda a partir do grupo de
Johannesburg. As movimentações de apoiantes da FUMO e de uma
JUMO, Juventude Unida de Moçambique, onde haviam militado os irmãos Bomba,
foram obrigadas a parar. Os ‘Bombas’ eram agora considerados pela A.M.I. como

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prováveis infiltrados e via-se claramente Boaventura a gastar mais que aquilo que
recebia dos serviços militares de inteligência. Significativamente, observo, o
Boaventura resistira imenso em me fazer a entrega de poderes no respeitante à
emissora.
No meio do mato. No seio deste verde esbatido. No ventro do Caos: agora,
em menos de uma semana, o gerador da farm avaria-se e o estúdio também sofre, por
duas vezes, desarranjos graves. Porra! Foda-se! Que raio se passa! O Orlando Cristina,
o secretário-geral, não tem tomates e manda-me a mim para os cornos do touro. Um
touro-bomba de rastilho curto! Não foi piquenique não, é para isto que eu vim de
Lisboa, não é só para escrevinhar textos malucos a pedir que cortem o pescoço aos
russos e a debitar comunicados de guerra…
Pois bem, o Orlando mandara-me para os cornos deste touro, como é então
habitual dizer-se, e eu de uma penada resolvera isto o mais breve possível com o
afastamento definitivo do Bomba. Esquematizo uma série de ordens internas e
nomeações para a emissora. E a Lucinda só se ri, quando leio, no escritório do prédio
Zanza, a primeira versão da coisa: ‘Vão atirar-se a si como gato a bofe!’
Elaboro assim na terceira semana de Março um regulamento rígido para a
estação. Chego à rádio e anuncio de uma assentada: ‘Então isto agora é assim...’
Coloco Constantino Reis, ‘Rebelde do Aquário’ mas ‘manso’ na emissora, como
responsável dos noticiários, e expulso Boaventura Bomba, etc., etc. As medidas viriam
a receber, claro!, aprovação posterior por parte de Orlando Cristina. Aliás, adianta-me
o secretário-geral, Boaventura estava já em vias de ser expedido para o interior de
Moçambique. A par do mau desempenho na Rádio, são-lhe atribuídas fugas de
informação e provados os encontros que mantém com o grupo de Johannesburg, em
suma, a tal ‘infiltração’.

De Moçambique chegam notícias de combates, canhonaço intenso, em


Machutuíne, a uns meros oitenta quilómetros de Maputo, e em Pessene, próximo da
Moamba. Há igualmente rumores de pequenas acções para lá de Marraquene, trinta
quilómetros ao norte da capital. O cerco e asfixia à capital vai-se apertando.
‘Os sul-africanos parecem não saber o que fazer, ou o que desejam. Ordenam
ao Orlando Cristina que avise o Dhlakama para que não se avance mais que aquilo,
por agora’, escrevo ingenuamente na minha agenda, em fins de Março. Parece que
estão a dar ordens a um mainato, a pirâmide a funcionar ao contrário, a fazer o pino
sobre o vértice! Eu próprio, afinal, começo a colocar muitos ‘ses’, interrogações, na
vontade sul-africana de levar as coisas por diante. A impressão será reforçada após o
coronel Groblar, da logística da A.M.I., no Zanza, me garantir que o objectivo deles
nunca foi nem será, o de substituir o governo moçambicano, mas sim, ‘pôr Maputo
de joelhos’.
“Vejo também, que há falta ‘no nosso lado’ de formação e de quadros
políticos: preparação política, administrativa. Criava-se de novo um grande vazio se se
conseguisse tomar o poder. Ainda hoje fartei-me de conversar com o Afonso
Dhlakama e ele abordou receosamente esta questão. O próprio Afonso, reparo, está
ainda muito ‘verde’ em todo este cenário... para além de gostar de coca-cola, e estar
embevecido com filmes e motas”, escrevo eu em 31 de Março.
Dhlakama está pois de novo na África do Sul, vindo de Kiel. Neste último dia
de Março trazem-no a Pretória e vamos os dois, a pé, às compras, sem qualquer
guarda ou capanga, uma dupla a preto e branco na sede do país do ‘apartheid’. Ele

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quer umas camisas ‘balalaikas’ e de diversos géneros para levar para a Gorongosa.
Corremos algumas lojas de pronto-a-vestir de uns judeus, na Church Street, e
estivemos nesse supermercado ‘Checkers’ no rés-do-chão do ‘Poyntons’, o Ministério
da Defesa. Já na segunda-feira, 4 de Abril, Dhlakama irá mais uma vez para o interior
de Moçambique, por via aérea. Agora aqui, ao fim desta manhã calma, frente ao
Zanza e encostados ao ‘mini-bus’ da A.M.I., sorvendo duas ‘Cocas’ enlatadas,
voltávamos a dissertar sobre a guerra. E Dhlakama com o seu rosto bolachudo sobre
a transpirada latita vermelha garante uma intensificação das acções para as próximas
semanas.
Quanto à guerra, é isso mesmo, soma e segue, mais do mesmo: nos dias
imediatos a Resistência anuncia uma nova sabotagem no oleoduto Beira-Zimbábwe e
a morte de ‘três militares cubanos’ em Gaza. Nunca obtive quaisquer provas,
evidências, sobre a morte de soldados cubanos, nem neste caso nem noutros. Mas sei
que a África do Sul planeava por estes dias lançar uma campanha na informação,
alegando sobre uma provável vinda de tropas de Havana para Moçambique, efectivos
retirados de Angola. Este anúncio será uma das jogadas de antecipação. No
entretanto, e será este um dos degraus de uma crescente erosão ao omnipotente
Samora Machel, certa imprensa ocidental começará a especular sobre a possível
nomeação de Joaquim Chissano para um cargo de primeiro ministro.
6 de Abril, quarta-feira, meio da semana… não é habitual, mas… é feriado na
África do Sul, okay! Cristina convida-me a mim, ao João Quental e ao Antero
Machado, para um churrasco na farm ao almoço, onde se debate entre costeletas e
boerwors (salsicha sul-africana grelhada) e cervejas, a situação da emissora, e do
movimento em geral. O secretário-geral fala dos contactos que estabelecera
recentemente na própria ‘Voz da América’ com Joseph Valentin, chefe dos serviços
em português, e o locutor Tomé Mbuia João de origem moçambicana. Mais um
‘diamante negro’? Num giro que efectuo ao campo do pessoal da Rádio a conversa do
dia é sobre a ‘lei da chicotada’ acabada de instituir por Samora Machel, e os seis
fuzilamentos recentes, incluindo o do conhecido comerciante Goolam Nabi,
ocorridos em Maputo.

Escorrem lestos os dias entre a cidade e aqui a farm, entre Pretória e


Johannesburg. E tenho agora, por convite da Lucinda Feijão a uma ida até
Johannesburg, no fim de semana, a oportunidade de conhecer o marido dela, o
Moisés, bom homem, mas tornado um quase mudo funcional perante a
impetuosidade verbal da esposa. Já com setenta e poucos anos, é bastante alto e
magro o ‘Mr. Moses’ como lhe chama a Lucinda a brincar. Cabelo penteado para trás
tentando disfarçar uma calva nascente no topo do crânio, rosto afilado. E sempre
impecavelmente vestido, de camisa branca e gravata. Uma figura de respeito o senhor
Feijão. A recordação mais nítida que dele guardo é no entanto aquela de quando ficou
literalmente siderado, petrificado mesmo, numa altura em que fui com eles ao ‘Rand
Show’ neste mês de Abril e o desafio a andarmos na montanha-russa. Já tão a ver
como são aquelas montanhas russas todas artilhadas, as que perfazem um looping
completo. O sorriso que o enfeitava antes da curva vertical era o que ainda tinha,
estático, quando a composição se imobilizou. É quase preciso estalar os dedos para
despertá-lo desse autêntico estado de petrificação.
Mas a ida ao ‘Rand Show’ é apenas um intervalo nas preocupações sobre o
que se passa no campo da Rádio. Junto aos elementos da emissora, Boaventura

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Bomba continua a alimentar intrigas e efectua estranhas movimentações. No
escritório do Zanza, aconselho o seu afastamento rápido da farm ou medidas mais
radicais, mesmo a eliminação se necessário, por entre sorrisos da Lucinda. De notar
aqui, face ao que se vai seguir, toda essa ironia do destino, e que, Boaventura fora já
em fins de 1982, condenado à morte por Dhlakama, em Phalaborwa, e que só a
intervenção de Cristina impedira uma execução.
O IV Congresso da FRELIMO vai realizar-se de 26 a 30 de Abril, está mesmo
à porta. A 15 deste mesmo mês os sul-africanos avisam-me de que na semana
seguinte irão ocorrer acções de importância no interior e mesmo em Maputo, e que
devo estar a postos para comunicar com Lisboa. ‘Operação Sanduíche’ parece ser
nome de código para os acontecimentos aguardados. Nada afinal, do esperado, irá
acontecer. Alguns ds grupos de sabotagem a infiltrar em Maputo, alguns coordenados
por um tal John Macocola, terão sido denunciados pelos seus próprios mentores e
por agentes da FRELIMO. Macocola é um moçambicano negro, sargento no exército
da África do Sul, e é tido como um dos principais amigos de Boaventura Bomba.
Depois, depois… nada mesmo do que se esperava aconteceu: outros dos grupos a
infiltrar terão sido travados pelos sul-africanos, já na sequência do que veio a ocorrer
na farm junto a Pretória.

UM AGENTE DA DINFO PORTUGUESA DESTACADO JUNTO DA


GUERRILHA, E COMO UM TIRO NA NOITE ABATE UM DOS MITOS DO
MOVIMENTO

Nesta guerra, as coisas tornaram-se de certa forma confusas, por aí: poder, ideais, a velha
moral e as necessidades militares concretas. Lá pelo interior com esses natives deve ser uma tentação
ser-se um deus. Pois há sempre um conflito em cada ser humano, entre o racional e o irracional, entre
o bem e o mal. E nem sempre é o bem quem triunfa. Cada um de nós tem o seu ponto de ruptura. E
o Cristina terá alcançado o seu e obviamente tudo isto lhe deu volta ao miolo.10

Recuando poucos dias, até à última quarta-feira 13 de Abril, por volta das
onze da manhã, e já na estrada de areia que conduz à farm, cruzamo-nos com o
automóvel de Orlando Cristina. Eu sigo com o José Carlos Monteiro, como
habitualmente, e quase tão certinho como ómega, recolher as fitas gravadas para a
emissão. Paramos. Meia-dúzia de palavras. O secretário-geral segue para Durban, na
costa da província sul-africana do Natal, e conta regressar no domingo.
Com ele está um sujeito de uns quarenta e poucos anos, magro, altura média,
óculos escuros. É este o português por quem Orlando esperara nos últimos tempos.
O indivíduo de óculos escuros, sei depois, gosta de ser tratado apenas por ‘Chico’ e
não é outro senão o tenente-coronel Fernando Ramos, da DINFO, os serviços
secretos militares portugueses. Ramos está encarregue em Lisboa da ligação com a
RENAMO e do que nos ‘serviços’ militares se referisse a Moçambique. Aliás, nos
tempos de Cristina como secretário-geral, as relações DINFO-R.N.M. podiam ser
consideradas como razoáveis. Os serviços militares portugueses estavam, pelo menos
em 1982 e até meados de 1983, a dar uma verba mensal, simbólica, de vinte e cinco
mil escudos ao movimento, para qualquer pequena necessidade em Lisboa. Até eu no

10 in Apocalipse Now, adapt.

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mês que fiquei à espera de vir para a África do Sul e já depois de me despedir de ‘O
Dia’ beneficiei dessa verba.
– ‘A Voz’?, pergunta-me o secretário-geral.
– A arrumar a casa, riposto.
– Veja lá isso, a segurança, mantenha esses gajos na linha e… atenção ao
campo em geral.
– Okay! Na rádio estamos a afinar as coisas, alijou-se o que não interessa.
– Hummm… depois conversamos a sério, há algumas coisas que tenho que
lhe contar e discutirmos. Estou cá para a semana.
O velhote parece estar apreensivo, inquieto. Far-lhe-á bem mais esta série de
dias, junto ao Índico. E esta vez, na estrada entre Pretória e a farm, será a última em
que falo com o Orlando Cristina.

Domingo, 17 de Abril, onze e meia da noite. O telefone acorda-me em


sobressalto. Por estes dias eu já estou a morar no Nido Hotel, na Hamilton Street,
próximo da ‘La Court Monique’ de onde levantei âncora, um sítio muito mais decente
que a ‘pensão da morte lenta’. Do outro lado do fio, Lucinda Feijão, ofegante: ‘O
Orlando ! Feriram o Orlando!’
– Feriram como? Está morto, vivo?..., queria saber tudo de rompante – À
faca, a tiro? O que é que se passa?
– Feriram a tiro. Vá à pensão, corra! Venha com o Monteiro por favor para o
H.F. Verwoerd Hospital.

Chego à residencial quando o piloto João Quental estaciona o carro, acabado


de vir de Johannesburg. Já sabe do ocorrido. Quinze minutos depois chegamos ao
hospital. Orlando ainda está vivo, os médicos a tentarem operá-lo. Na sala de espera
estão a Lucinda Feijão, Francesca, a mulher do Orlando, o coronel Grayling e outro
pessoal da A.M.I., e ainda, o enviado especial nestes dias à África do Sul, junto da
Renamo, dos mais ainda especiais serviços de informação militar portugueses, o
tenente-coronel Fernando Ramos. Isto além de uns familiares do próprio Cristina e
supostamente próximos até do ‘grupo de Johannesburg’.
Decorridos sensivelmente trinta minutos após a nossa chegada, rompem os
primeiros choros, a atmosfera explode: o Orlando acaba de morrer.
Penetramos na sala de operações. O médico exibe o cadáver e explica na sua
lógica fria como todos os esforços haviam sido em vão: a bala entrara pelo pescoço,
seccionara um vaso principal e veio a alojar-se no estômago. Ponto final.

Francesca revela mais tarde como foi. O gerador da farm é desligado


habitualmente cerca das vinte e três horas. Eles estão já os dois na cama e apenas a
luz de uma vela ilumina o quarto. Devem ser umas 22h35, e ouve-se um raspar
insistente na janela, coberta só com rede mosquiteira e uma fina cortina. Conforme
Cristina ergue a cabeça para espreitar é disparado do exterior um único tiro, que o
atinge no pescoço. Francesca grita. Só então os cães começam a ladrar. Fernando
Ramos, que dorme noutro quarto, sai da residência empunhando uma pistola-
metralhadora UZI, mas já não avista ninguém.
O quarto do secretário-geral havia-se transformado entretanto numa poça de
sangue. Ramos e Francesca metem o semiconsciente Cristina no automóvel e seguem

38
para Pretória. Orlando aponta ainda para as casas dos da ‘Rádio’: ‘Those! Those!’
(Esses! Esses!) Não voltaria a falar.

José Carlos Monteiro, Fernando Ramos e João Quental, partem do hospital


rumo à farm para reunir o pessoal e tentar apurar algo. Fico à espera da Polícia Militar
para guiá-los até lá. Aparece finalmente o ‘jeep’ da PM. Passamos primeiro por um
quartel em Voortrekkerhoogte, uma colina sobranceira a Pretória com um
monumento enorme em formato de cubo, lá mesmo no topo, com o mesmo nome, e
dedicado aos pioneiros ‘boers’ e à sua marcha de exploração.
Uma meia hora depois, chegados à farm verificamos se terá sido alguma das
armas do campo que efectuou o disparo. Negativo. De súbito, o estrondo, um
sobressalto enorme, agora, o ‘Chico’ da Dinfo, desastrado, dispara uma das UZIs,
sem estragos porém. Uma calma reinstala-se, tensa, quebrada só por esta ansiedade e
pelo cheiro imenso a cordite mas não só. Há um odor agoniativo, adocicado, e
pestilento que adensa o ar morno da casa, com uns certos laivos metálicos: o chão do
quarto está coberto por pastas de sangue já escuro, espalhado por alguém que
escorregou. ‘Será possível um corpo ter tanto sangue…’ , vou mas é apanhar ar e dar uma
ronda a isto.
Do lado de fora da janela do quarto descubro outra cápsula de 9 milímetros.
É precisamente o tipo de munição usada por diversas pistolas e pelas UZIs. Todos os
elementos da farm são concentrados numa das salas da vivenda de Cristina. A Polícia
Militar inicia a sessão de perguntas. Boaventura Bomba levanta-se constantemente
para ir à casa de banho. Extremamente nervoso. Creio que está à espera de qualquer
protecção ou apoio que nunca chegou.
O Charlie Van Niekerk surge ali mais tarde, conferencia com o pessoal da
Polícia Militar. Ainda tem a lata de me perguntar: ‘Paulo quer ficar aqui o resto da
noite?’
– Eu? A fazer o quê, coronel? Vou ver se consigo descansar um pouco,
amanhã volto… - e ele esboça um sorriso fino.
Regresso a Pretória com o José Carlos Monteiro, mas foi já impossível, claro,
conciliar o sono.

Segunda-feira de manhã. De novo no Zanza Building, eu com umas gandas


olheiras, ‘tá visto. Pretória, o circuito oficial, parece preocupar-se mais em esconder o
que sucedera. Prepara-se uma declaração à Imprensa. Na AMI esboça-se um fio
condutor para relatar o acontecimento. Deveria afirmar-se que o secretário-geral fora
gravemente ferido no interior de Moçambique e de lá retirado. Cedo porém, as fugas
de informação iriam principiar, partindo da gente de Johannesburg.
Na farm, onde estou novamente, só às quinze horas desta segunda-feira
escaldante, opressiva, e sob um céu que parece uma redoma em cinzento difuso, é
que surgem os primeiros investigadores a sério, a Polícia Criminal. E há um gajo
idoso e doentio, goês mas de aspecto amarelento, a pele cerosa como a de um
canceroso avançado, alto, titubeante, fala bem português. Sei depois que este velhote
estivera em Moçambique e trabalhava na BOSS sul-africana há anos, desde o 25 de
Abril… Poderá ser este aquele de quem se fala, um ‘amigo’ do Cristina dos ‘velhos
tempos’, da polícia política colonial? O tal que esteve envolvido numa operação de
vulto na década de ’60?. É que se o Orlando Cristina não havia sido da PIDE, como
dizem que este é, então, pelo menos, terá estado nalgumas joint ventures… da fama, no

39
mínimo, não mais se livrará, ele e a malta a quem se ligava, militares, policiais e
informadores, nas suas operações especiais para o Jorge Jardim.
Claro que todos no campo são avisados repetidamente pela A.M.I. para
responderem apenas às perguntas relacionadas com o crime, e nada dizerem sobre
quem são. Respira-se medo, temor. Um ponto de interrogação desenha-se perante o
futuro próximo de cada um, aqui onde uma vida humana vale tão pouco.
E por entre este manto de terror e mistério, há espaço para deixarem
transparecer um facto curioso, no mínimo: o pessoal conta-me e comenta entretanto
o abate por Cristina, dias antes, quarta-feira ou ainda em dia anterior, de um pequeno
macaco que aparecera junto à casa, o macaquito assustara o bebé e a Francesca e o
Orlando não estivera com meias medidas. Ferra logo um tiro no bicho. Ora, segundo
a tradição e superstição africana, isso havia sido fatal para ele: a morte de um macaco
traz a morte para quem o abate! ‘Even the jungle wanted him dead, and that’s who he really
took his orders from anyway.’
As horas escoam-se lentamente. Resumindo, já suspeitávamos que o assassínio
havia sido obra do Boaventura Bomba e do amigo, Macocola. Este, estivera na farm
em casa de Boaventura, desde sexta-feira à tarde, aguardando, ao que consta, a
chegada de Orlando Cristina. Um dos elementos de um grupo de quatro operacionais
subordinados a Macocola, e que deveria logo na segunda-feira, hoje, ser infiltrado em
Moçambique, terá sido o responsável pelo disparo, após ser conduzido por
Boaventura até à janela do quarto.

As investigações no local terminam terça-feira ao princípio da tarde, pois tudo


se precipita. Isto é, logo depois de Constantino Reis me vir informar, chibar-se todo,
que vira no domingo ao anoitecer, na estrada, John Macocola e o tal grupo de quatro
operacionais, que costumavam ficar no campo junto ao Estado-Maior da R.N.M.
Antes, já Macocola havia saído com Boaventura, no carro deste, passando,
invulgarmente, rente à habitação de Cristina. Da janela da Peugeot 504 procuravam
decerto verificar se o secretário-geral já regressara de Durban. A polícia vai de
imediato interrogar de novo o Bomba e o Macocola. Deixo a farm semi-aliviado
pouco antes das catorze horas. Macocola e Boaventura estão a ser algemados juntos,
ao redor do tronco de uma palmeira. Nunca mais os tornei a ver.
Com a continuação dos interrogatórios mais gente é detida. Alguns, sem nada
a ver com o assunto, como foi o caso do Machava que era suposto ocupar um posto
de triagem na fronteira entre a África do Sul e Moçambique, para ir ‘auscultando’ a
leva de imigrantes e refugiados. Ora, assustado de morte, este Machava irá fugir da
carrinha que o transporta. Tenta atingir o Soweto nos subúrbios de Johannesburg e
esconder-se. Será apanhado. Diz-se que os sul-africanos não gostaram e que foi
morto. Tal como Macocola e Bomba, sabemos agora. Estes dois, segundo o tenente
Johann ‘Voluntário’ Hurter e o José Carlos Monteiro, sofreram um duro
interrogatório. Boaventura chega a estar a soro depois de tanta pancada e tortura,
para recuperar e falar mais. No fim, será também morto11.

Tenta-se o segredo mas o segredo torna-se ao longo da semana uma palavra


de letra cada vez mais miúda, a fuga de informações é tremenda. Sabe-se já de tudo,

11Consultar a propósito o Apêndice 1 sobre denúncias do envolvimento de Dhlakama na execução de


ex-quadros da Renamo em território sul-africano.

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na África do Sul e no exterior. A A.M.I. ainda pensa em colocar o grupo inicial de
familiares e amigos de Orlando, os que haviam estado no hospital na noite da sua
morte, num local remoto da Namíbia durante algum tempo. A própria Francesca
ameaça agora produzir um escândalo com todo o caso. Inútil já, qualquer medida. A
imprensa martela com a notícia.
O piloto João Quental e Fernando ‘Chico’ Ramos (o homem da Dinfo
portuguesa) vão frequentemente à farm por estes dias e eu aproveito a boleia. Numa
das vezes passo com este calvo e muito barrigudo aviador, bonacheirão sempre, pelo
pequeno aeroporto de Wonderbom, nos arredores de Pretória. “Estás a ver ali o
‘bicharoco’?”, pergunta-me.
– Yeah! Uma carcaça velha para o caraças!!! Observo estacionado na placa um
decrépito ‘Dakota’ cinzento, sem matrícula, que ele tripula nas missões especiais ao
interior de Moçambique. Um de um lote que ainda voa, ‘irmão’ dos que há semanas
atrás descolaram da base aérea de Waterkloof para levar o tal grupo de vinte e sete
para dentro de Moçambique.
Sábado, 23 de Abril, nove da matina. E cá estamos nós para a praxe, para esta
‘reforma antecipada’, o funeral do Orlando Cristina, em Zandfontein, perto de
Pretória. De Lisboa, veio a irmã. Sai escandalizada da capela no fim do serviço
fúnebre. Não está habituada à forma menos clássica da cerimónia: em vez de música
religiosa é posta a tocar uma cassete de Júlio Iglésias.
E entre choros e consolos familiares, os militares sul-africanos ‘consolam’ a
órfã R.N.M.: garantem que a luta continuará e que o orçamento para as actividades do
movimento, neste ano fiscal de 1983/84, será o maior, bastante superior ao habitual,
apesar de alguns entendimentos com Maputo que os políticos tentam agora acelerar.

Álvaro Récio, um empresário de peso, em termos de negócios e fisicamente


também, e que oscilara entre o grupo do 7 de Setembro / ‘Moçambique Livre’ e
Orlando Cristina, está também presente ao enterro em Zandfontein. Lucinda Feijão
diz-lhe que o assassínio foi obra do grupo de Johannesburg, há indignação, quase, no
rosto dela, áspero. Récio reage: ‘Não! Quem o matou, foram os amigos’.
Fernando ‘Chico’ Ramos e João Quental, uns líricos, estes, afirmam agora
possuir um alegado testamento político de Cristina, em que este expressaria a vontade
de que ficasse Antero Machado como secretário-geral, no caso da sua morte. Isto aqui
anda mesmo patinha da Dinfo metida, é o que penso agora… Mas o coronel Charlie
Van Niekerk põe logo travões a fundo neste devaneio, um ponto final ao assunto:
‘quem escolhe o secretário-geral é Afonso Dhlakama!’
Ora o ‘número um’ Dhlakama, devidamente aconselhado por Charlie
Cornelius Van Niekerk, irá dois meses mais tarde decidir-se por Evo Fernandes. Aliás,
a A.M.I. já não via Orlando Cristina com bons olhos nos últimos meses. Fernandes
será de longe mais dócil perante as ordens sul-africanas e bem implantado no eixo
Pretória-Bona.
Cristina apercebera-se disso mesmo e, dias antes de morrer, conseguira que
Dhlakama assinasse a exoneração de Fernandes do cargo de delegado em Lisboa,
alegando sobre questões da segurança pessoal de Evo em Portugal. ‘A última sacanice
que fez’, confidenciar-me-á depois Fernandes, já em Junho de 1983.
Não sei o que Orlando Cristina andava a tramar. Uma curiosidade apenas, e
que cheira então a dose grada de hipocrisia se o que o Evo conta é verídico: dias antes
de ser morto, Cristina entrega-me uma carta para dactilografar. É endereçada a Leo

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Milas, um negro que vive no Quénia, e de naturalidade incerta, dúvidas sobre ter
nascido ou não em Moçambique. Dizem, alguns, muitos até, ser agente da CIA, e que
já trabalhou para as Nações Unidas. Outros, dão-no mesmo como moçambicano,
garantem ser genuinamente filho da terra, independentemente de quem seja
marioneta. Parece ter estado com a FRELIMO, na Argélia, em 1963/64. Ora bem,
nesta missiva o Orlando Cristina afirma que ‘o único que há com categoria por aí fora
é o Evo Fernandes. Além do Evo, só Afonso Dhlakama. Com o resto, não havia
esperanças de se deixar de ser apenas um joguete, ou lacaios, nas mãos dos sul-
africanos’. Curioso. Ou estaria o Orlando à espera que eu comunicasse o teor ao Evo
para acalmá-lo? Pelo que vi no futuro, os militares sul-africanos, na realidade, odeiam
Milas. O Milas e um outro moçambicano americanizado, o Artur Vilankulos,
considerando-os agentes da CIA.

Ora, não há a certeza de nada, nunca tive provas absolutas, quanto ao


assassinato de Cristina. Não é impossível, dizia-se mesmo, que militares da
‘Inteligência’, a A.M.I., tenham estado por detrás do caso, infiltrando o grupo de
Johannesburg e levando através desse canal o Bomba e companhia a executar a acção.
Ou talvez tenham até contactado directamente Boaventura e Macocola para o efeito.
Mas insiste-se mais na tese que, por detrás da dupla executora Bomba e
Macocola, se encontra tão somente o grupo de Johannesburg, o qual, ironicamente,
inicia bons contactos comerciais com Maputo. A A.M.I. terá simplesmente
aproveitado a oportunidade, uma vez o Orlando morto, de se desembaraçar dos
Bombas e de John Macocola, e de colocar como secretário-geral alguém mais da sua
confiança.
As últimas declarações arrancadas ao Boaventura Bomba confirmam ter John
Macocola a seu soldo e que ele próprio, Bomba, carregara a arma do crime, uma UZI.
Mais, terá ele acrescentado (pura especulação?, é que isto, os ‘serviços’, às vezes
também são piores que um ninho de putas) que Dhlakama estaria a par da acção. Tal,
no entanto, afigura-se-me duvidoso, pois ao mesmo tempo surgem rumores de que
um golpe estaria também previsto contra o Afonso Dhlakama, de modo a colocar em
seu lugar o piloto Adriano Bomba.
O facto é que Boaventura, até ao dia do assassínio, contara ter as costas
quentes, não só pelo grupo de Johannesburg mas, principalmente, por círculos sul-
africanos nos ministérios do Interior e da Defesa. Assiste-se ao que parece, a uma
autêntica guerra de departamentos.
Por estes dias ocorre também o importante julgamento de um comodoro sul-
africano acusado de espionagem a favor da União Soviética. E tudo tem a ver com
tudo, claro… Torpedeando as iniciativas diplomáticas de Washington encabeçadas
pelo sub-secretário de Estado para os Assuntos Africanos, Chester Crocker, e que se
vão reflectindo aos poucos na nova realidade do dia a dia em toda esta região, a KGB,
argumentam já alguns, poderá estar indirectamente a apoiar sectores da extrema-
direita sul-africana, tentando precipitar confrontações e incrementar as já existentes.
No Zanza, revela-se entretanto que foram descobertos há umas cinco
semanas, documentos evidenciando desvios de fundos da R.N.M., ou a ela destinados,
e fraudes diversas, cometidos por volta de 1980 pelo grupo de Johannesburg, relativos
a donativos que nunca chegaram ao movimento. Isto refere-se precisamente ao
período agitado em que a Resistência é transferida da Rodésia para a África do Sul.

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UM AGENTE DE VULTO DA PIDE ENVOLVIDO NA MORTE DE ORLANDO
CRISTINA?
Mais um pormenor, por fim, a acrescentar ao caso. Curiosamente, chegara à
capital sul-africana na sexta-feira anterior à morte de Cristina, precisamente no dia em
que Macocola vai para a farm, um indivíduo que já estivera em Pretória e que
trabalhara para a R.N.M. Ele anda mais por toda a África do Sul, mais ligado à polícia
política civil, a temida BOSS agora rebaptizada como NIS.
Ou antes, digamos que este tipo havia sido também um ‘colaborador’, da
‘causa’… qualquer que ela seja, do Cristina, das suas antigas ‘operações especiais’, mas
isso eram águas passadas… Encontrar-se-ia mais conectado agora ao ‘lobby’ do 7 de
Setembro, em Johannesburg.
Esse homem, identificado agora com o nome de código de Rogério Castro,
- Rogério Ramon Pinto de Castro - mais não é do que o antigo agente da PIDE,
Óscar Cardoso, o mesmo que em Angola ajudara a fundar os ‘Flechas’ – tropas
não-regulares.
Agora, confidencia-me a Lucinda Feijão, eram por demais conhecidas as
divergências ferozes existentes nos últimos tempos entre Óscar Cardoso e Orlando
Cristina.

Em Moçambique, o canhonaço prossegue, e nós estamos aqui é para isto


mesmo, noticiar e propagandear: o princípio de Maio é marcado, segundo a
Resistência, pela explosão de uma bomba na base aérea de Nacala, ao norte do país.
Grupos armados intensificam os ataques na estrada nacional n.º 1. Jangamo, em
Inhambane, é flagelada por duas vezes. Conheço tão bem esta verdejante vilazinha,
não longe da orla costeira, perlada de palmeiras. Registam-se ataques contra sete
composições ferroviárias na linha Maputo-Zimbábwe, em que imagino o habitual
espectáculo ‘gore’ de ketchup humano polvilhado a chumbo, todo rebentado, e a
rebentar vidraças das caomposições destroçadas, a carga depois a ser pilhada para a
base mais próxima da guerrilha.
Um técnico italiano, Mário Ortolan, é raptado perto de Mocuba, na nortenha
província da Zambézia, e a R.N.M. exige um resgate de cinquenta mil randes, em
dinheiro ou medicamentos. A empresa italiana para quem o refém trabalhava está
disposta a pagar a factura.
Quanto ao lado governamental, a FRELIMO anuncia entretanto ter
capturado na capital um operacional sul-africano, Peter Schoeman, que se prepararia
para liquidar Samora Machel. Com todo este pano de fundo, em 5 de Maio, Roelof
‘Pik’ Botha e Joaquim Chissano encontram-se em Komatiport. Os políticos, os mais
diplomatas de ambos os regimes, tentam desarmar a situação.

Os dias escoam-se lentamente agora, muitos deles, reduzido eu ao hotel ou a


descobrir novas artérias e ruelas ali em Arcadia e Sunnyside, próximo da Pretorius e
da Hamilton Street, onde se ergue o Nido Hotel. E tenho agora mais tempo até para
reparar em todos os pequenos detalhes, mesmo aqui do serviço do Nido, a
subserviência máxima do pessoal de cor: ‘masta’ para aqui, ‘masta’ para ali, ‘yess

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masstaa!’, leia-se ‘master’, patrão, termo que invariavelmente dispensam aos brancos.
Um deles, é demais, excede-se, em palavreado e vénias, arcos autênticos, com a testa e
carapinha quase a roçar o chão. E eu só quero é daqueles opíparos mata-bichos em
que aqui o Nido também se excede: ‘egg egg egggsss’, ovovovo, e muito
‘coffecoffeecof ’, caféécafécafffé…. Pliiiiizzzz!’, doses duplas e a triplicar, pode ser
para ontem?! Thanks!!!
Em Pretória, a 17 de Maio, dizem-me para estar preparado para seguir, dentro
de dias, até um novo campo, no interior da África do Sul, onde já estão Dhlakama e o
Estado-Maior, para prosseguir o meu trabalho na área da Informação e Propaganda,
como chefe de departamento. ‘Shit!’ Já ‘tava mesmo a amolecer com a pasmaceira
destes últimos dias: passei tardes na piscina de Sunnyside, não longe do Nido Hotel,
revi a trilogia da Guerra das Estrelas, mais o Operação Octopussy do 007, o Blue
Thunder, com o Roy Schoder… que mais havia a fazer? Okay! ‘Tar preparado, agora!
Aconselham-me a ver primeiro as condições, a ponderar, se quero ficar
mesmo no mato ou permanecer em Pretória. A emissora ‘Voz da África Livre’ está
silenciada, calara-se há semanas, na sequência de toda esta frenética agitação causada
pela morte do Orlando Cristina. A maior parte do pessoal da farm fora já transportada
para a Gorongosa. E espera-se agora a vinda de sangue novo trazido do interior, uma
leva de novos elementos. Dos anteriores, apenas os locutores João ‘Kessari
Maitadzine’ Daniel e Henriques Paulo permanecerão em funções.

TERROR E CAOS COM UMA TREMENDA BOMBA EM PRETÓRIA


20 de Maio, sexta-feira, 16h30. Esta é a hora de ponta ao morrer de mais um
dia de trabalho, a hora de saída da generalidade dos empregos aqui na África do Sul.
No Zanza, estamo-nos a despedir para o fim-de-semana quando o mundo parece
rasgar-se, o prédio estremece, dir-se-ia que as vidraças se vão estilhaçar, saltar dos
caixilhos: uma potente explosão sacode toda a baixa. Da sala comum deste piso
observo incrédulo uma monstruosa nuvem castanha a erguer-se aqui tão perto. A dois
quarteirões, na Church Street, junto ao prédio da Força Aérea, acabava de detonar um
carro-bomba. O atentado terrorista, atribuído ao ANC, faz 19 mortos e 217 feridos.
Chego minutos depois ao local com a Lucinda Feijão, mas já a polícia está a isolar a
rua. O alcatrão e passeios encontram-se juncados com cadáveres disformes, gente
ferida e destroços de toda a ordem.
Passo o fim de semana com familiares em Johannesburg e é óbvio, a conversa
não foge deste brutal acontecimento que parece vir dilacerar uma certa vivência
tranquila até aqui. Assentaram há muito os destroços do carro-bomba mas a
inquietude, a insegurança, essas pairam mais ameaçadoras que nunca.
Na segunda-feira é a vez da África do Sul retaliar: pela rádio oficial e
televisões, acompanhamos os comunicados da defesa: a força aérea acaba de
desfechar um um ataque, logo ao nascer do dia, contra ‘seis alvos do ANC e sistemas
de mísseis soviéticos terra-ar’ junto à capital moçambicana. Aproximam-se
sorrateiramente com escamoteamento visual, vindo por leste após uma curva sobre o
Índico, mantendo o sol na sua retaguarda. Quanto ao ‘timing’, é o melhor possível: as
baterias de mísseis anti-aéreas estão impotentes. Em aproximação a Maputo encontra-
se o DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique, vindo da Europa, um alvo muito
mais ‘gordo’ nos radares, e seria uma loucura disparar uma salva de mísseis em tal
cenário.

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Noutra versão, a investida dos ‘Camberra’ e dos ‘Impala’ atinge apenas, e isto
segundo Maputo, uma unidade fabril e residências particulares. Dias depois e
tentando avaliar os efeitos do ‘raid’, a África do Sul envia em sobrevoo da zona
atingida um pequeno avião-espião telecomandado de fabrico israelita, o qual é abatido
sobre a baía de Maputo. Pretória graceja dizendo que um aparelho daqueles custa ‘só’
meio milhão de randes, enquanto cada míssil SAM-3, usado para o derrube, orça os
três milhões. Números…

ESCONDIDA ALGURES NAS MONTANHAS DE POTGIETERSRUST, A


NOVA BASE SECRETA DA RENAMO NA ÁFRICA DO SUL
Com a emissora suspensa, poucas vezes vou ao escritório do Zanza. Afinal,
‘tou mesmo por aqui a ficar ‘soft’, a amolecer, esquecido. E esquecido ficou também
o outro campo um pouco mais a norte que visitara há dias, tornou-se uma opção
abandonada.
Mas o que não falta neste enorme país é espaço, campo, campos, ‘farms’ e
bases militares. A 7 de Junho vêm-me buscar ao hotel para ir conhecer um novo
campo localizado a trezentos quilómetros ao norte da capital. Sigo com o cabo David
Borland, o ‘Doc’ (este australiano aqui no exército da África do Sul, é quase um
médico) e um outro cabo, Smith, este, de origem escocesa. Primeiro, passamos por
umas oficinas militares nos arredores de Pretória, mais uma vez perto de
Voortrekkerhoogte, comprovando que toda esta elevação simbólica guardando
Pretória está plena de instalações militares. Hoje estamos aqui com o fim de recolher
alguns rádios de comunicações que irão ser entregues aos homens da R.N.M.
A estrada que tomamos agora em direcção ao campo passa por Warmbaths,
Nylstroom, Vaalwater e Groesbeek. Quanto mais para o norte menos se nota a
presença e vestígios ingleses e mais são os nomes e marcas decididamente ‘africaans’.
Num local que parece ser identificado pelos militares como St. Mili (?), uns sessenta
quilómetros a noroeste da cidade de Potgietersrust, fica a nova Base de Comando
Recuado.
Estamos em terreno já bastante elevado. Abandonamos a estrada principal e
os últimos dez quilómetros são percorridos dentro de uma densa floresta, pertencente
a esta farm imensa e remota, perdida num colo entre montanhas. A estrada é uma
autêntica picada, pedregosa, quase intransitável e nas margens desta estreita via
sinuosa abundam arbustos espinhosos, as terríveis micaias, de picos longos, rijos e
acerados. Um perigo para quem a pé se embrenhe descuidado mata adentro.
De repente a floresta torna-se mais esparsa e destacam-se em frente árvores
bem mais altas, um renque de eucaliptos, e eis que desembocamos numa clareira
ampla em torno de uma construção térrea, uma moradia em tons brancos. Na
varanda fronteira um grupo abanca a uma das mesas. Reconheço logo o Van Niekerk
e, surpresa das surpresas… ‘ele, aqui?!’, o Evo Fernandes. É de um salto que saio da
viatura. Já não vejo o Evo desde Fevereiro, em Lisboa.
São cerca das dezasseis horas e aproveitamos para dar um passeio em redor.
Dissertamos longamente, claro, sobre os acontecimentos dos últimos meses, o futuro
do movimento, a morte do Orlando Cristina, Lisboa, a família, etc. E já depois do
pôr-do-sol vou com o Evo e o coronel Van Niekerk até ao campo da R.N.M. a cerca
de um quilómetro para sudoeste. E cumprimentamos o ‘presidente’, o Dhlakama está
cá! Sou bem recebido, por este sorriso afável, gorducho como uma bolacha Maria, os
olhinhos do ‘número um’ brilhantes e prescrutadores como sempre por trás dos

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óculos. Muito se passou já nestas poucas semanas desde as coca-colas tomadas junto
ao Zanza.
As instalações que agora alojam habitualmente o Dhlakama estão rodeadas
por uma alta vedação de paliçadas e lona. Àquela média luz do crepúsculo ainda
consego descortinar parte do campo que se estende para além deste recinto do
‘número um’: cerca de vinte tendas militares dispersas entre os arbustos. Uma
instalação de cinco tendas unidas em ‘T’ constitui o Estado-Maior. Lá estão de novo
Raul Domingos e os outros comandantes. Numa das extremidades da base situa-se o
refeitório e a barraca do posto médico. E por ali em redor, nas montanhas
circundantes, informam-me, e conforme pude testemunhar posteriormente, ficam
mais uma meia dúzia de postos com equipamento de transmissões, para comunicação
com o interior de Moçambique. A Base de Comando Recuado contará actualmente
com um total de noventa efectivos.
De regresso à ‘embaixada’ organiza-se o jantar. Prepara-se um braai, um
churrasco regado com muita cerveja em lata bem gelada, vinho e whisky. Além do
coronel Van Niekerk, de Fernandes e dos cabos, encontram-se também na residência
o coronel Grayling, o tenente Johann ‘Voluntário’ e um tal capitão Roy que está como
responsável directo pelo local. Os contactos entre a ‘embaixada’ e Pretória efectuam-
se também via rádio duas vezes por dia. Ouço o ‘Doc’ a tentar uma das ligações –
‘zero two, zero two, this is two one’. Doc é pois o nosso operador habitual das
transmissões, além de paramédico, e coloca-nos ao corrente de qualquer novidade
sempre que comunica com o Zanza.
Com mais calma só na manhã seguinte reparo bem neste magnífico cenário
envolvente apesar de a seca ter desmaiado já o verde da savana. Do lado do sol
nascente aí a uns dois quilómetros, corre uma cadeia montanhosa com os topos a
umas boas centenas de metros acima do nível deste colo em que nos encontramos. É
nessa direcção mas muito perto, logo a uns cem metros da residência, que se nota um
abaixamento, como que uma fractura do terreno, e que na altura de chuvas terá sido o
leito ocasional de algum ribeiro. Depois, é campo livre até essa escarpa que se avista a
leste.
E bem no lado oposto, para poente, olhando das traseiras da casa, estende-se
um plaino mais verdejante ainda, sulcado por estreitos braços, lembranças de riachos.
Ao fim dessa toalha ainda não ressequida pelo estio começa a erguer-se outra fiada de
montanhas, paralela à que corre a leste. Estamos pois nesta sela encaixada no highveld,
as terras altas sul-africanas. Um ar mais límpido enche o espaço, cristalino, ao
contrário da atmosfera fosca, tremeluzente, carregada, que sufoca Pretória e
Johannesburg. Contudo aqui, temos agora que contar com uma variação térmica
abrupta ditada pelo nascer e pôr do sol.
É também nessa direcção Oeste mas aquém das montanhas que se encontra o
campo da Renamo e onde se chega por essa estrada poeirenta que ontem usámos e
que, quase perpendicular à via principal, nasce junto à casa, bordejada no seu início
pelos tais eucaliptos. Uma estrada que corre ao lado dessa extensão de capim rasteiro
e ainda verde atrás da residência, um mato que se estende até ao campo
moçambicano, área ainda encharcada de alguma água e que outrora era quase
totalmente inundada pela derivação de um pequeno rio que estagna actualmente,
reduzido que está a algumas poças, mas imagino-o vivo, em estação de chuvas, a saltar
lesto entre os limites do acampamento e a base das elevações mais a Ocidente. Pela
manhã uma gritaria infernal solta-se dessas montanhas: hordas de babuínos

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cumprimentam em autêntico ritual o dealbar de mais um dia. Outras vezes, os
guinchos mais aflitos, então, surgem com o avistar do seu mais terrível inimigo e
predador, o leopardo. Pelo que nos contam, tais felinos fartam-se de rondar estas
paragens à noite.

As instalações da ‘embaixada’ não se cingem à moradia propriamente dita.


Adjacente existem umas dependências ocupadas por dois criados moçambicanos,
também guerrilheiros, o Thomas e o Panzula, e duas enormes tendas militares com
equipamento e armas.
O Thomas é um óptimo cozinheiro, habilidade que transparece pelo seu físico
forte, senão mesmo obeso, e que culmina num rosto redondo e alegre pleno de
bonomia. Brinda-nos matinalmente com um opíparo pequeno almoço completo de
omeletas, sumos naturais, torradas, bacon, etc. Panzula tem a seu cargo a arrumação
da moradia. Logo à esquerda da varanda existe um quarto independente que é onde
irei residir nesta estadia. A partir do corredor interior que abre perpendicularmente à
varanda temos uma divisão ocupada pelo ‘Doc’ e outro pessoal militar, e que serve
tanto de quarto como de sala de transmissões. Mais ao fundo temos um segundo
quarto e depois a cozinha. Este segundo quarto é ocupado pelo Evo e pelo Van
Niekerk e os outros oficiais superiores de passagem. Logo no início do corredor, à
entrada, encostada à varanda, temos uma enorme sala comum com mesa e divãs. A
seguir, mais uma divisão usada como quarto e as casas de banho. A moradia, uma
autêntica safe house perdida nos confins desta África sob os trópicos, calcinada pelo sol
e pela chacina, é suficientemente ampla para a quantidade de gente presente. E
suficientemente segura para o que nela se maquina.

Artur Vilankulos, que havia sido nomeado por Cristina como secretário das
Relações Externas na reunião de Kiel, substituindo então Gideon Mahluza, encontra-
se igualmente nesta ‘embaixada’, a residência, há já alguns dias. Vilankulos é um
megalómano puro. Vejo-o arrogante, vaidoso, sem comedimento. Para se lhe tirar
uma foto não descura uma pose de orador. Os choques dele com Fernandes são
agora frequentes e sobem de tom. E recordo que semanas antes, de passagem por
Lisboa, foi este mesmo Vilankulos, pelo que me contam, que tentara convencer Evo
Fernandes a apoiá-lo para se tornar no novo secretário-geral. Dizia sem escamotear
que esperava vir a ser primeiro ministro de Moçambique e que assegurava então a
Evo o posto de ministro dos Negócios Estrangeiros. Evo rira-se. Sabia bem com o
que contava.
Efectivamente, quando Fernandes chegou a St.Mili, o nome genérico desta
região, a escassas dezenas de quilómetros da cidade de Potgietersrust, já os sul-
africanos e Dhlakama tinham acordado em colocá-lo a ele, Evo, como secretário-
geral.
A nomeação, porém, só virá a público em finais de Novembro. Todos os
outros membros políticos do Conselho Nacional, negros, estão contra a decisão. Mas
não existe qualquer outro tipo de convergência nesta cúpula de modo a escolherem
um outro dos deles para o cargo. Este é o grande dilema desta gente. Khembo dos
Santos, de Nairobi, no Quénia, um tipo negro de voz pedante e esganiçada, alto,
óculos, cabelo farto, ou Gideon Mahluza, ou o impante e gordo Vilankulos, ex-futuro
primeiro ministro e eventual presente agente da ciaiei dos américas, ou Francisco Nota
Moisés, outro negro, mas proveniente da Suazilândia onde trabalha na estação de

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escuta da BBC, todos haviam cobiçado o posto e mostram-se agora a arreganhar os
dentes, descontentes. Os militares do Estado-Maior, como Raul Domingos, e os
‘generais’ operacionais, também torcem o nariz. As ordens de Dhlakama, contudo,
não se discutem. E por trás de Dhlakama estão obviamente os chefões sul-africanos.

Logo no dia seguinte à minha chegada eu e o Evo Fernandes damos um


extenso giro a pé, não só junto à ‘embaixada’, as instalações onde pernoitamos, mas
mais além, junto ao campo militar da Renamo, a BCR,. Os leopardos têm feito
algumas investidas na zona, contra cabeças de gado que pastam numa farm adjacente.
Nas traseiras de uma tenda, há pegadas de felino graúdo, e não longe, excrementos
secos com pelos misturados: ‘Leopardo!’, brada o Evo, ‘sem dúvida! Andam por aqui!’
Passamos agora o estreito veio do que antes fora o riacho, eu levo uma UZI, sempre
atentos à selva, quando ele me sustém: ‘Andam mais por aqui, e é gatarrão… tem
cuidado!’ Há uma quandidade de excrementos grossos por ali espalhados, e eu tenho
a UZI engatilhada, a corrediça puxada, destravada. Mas não há gataria alguma, pelo
menos a esta hora. Dias depois, conto o episódio ao Raúl Domingos que se rebola a
rir: ‘Ali, daquele lado do rio seco, aquele patamar escondido junto à encosta? São
gatas! São as miúdas DFs dos postos de transmissão que vão ali fazer ‘necessidades
maiores!!!’
Mas agora, quase no fim desta caminhada, o Evo refere que será bom
começar-se a dar um pouco de instrução política ao ‘velho’, ao Dhlakama: ‘é que o
gajo não pode ficar sempre assim rude, verde!’. Elaboramos então pequenas fichas-
sumário, mnemónicas, batidas numa velha máquina. Aquilo quase parece um mini-
dicionário político, apenas com os primeiros conceitos básicos: o que é Agricultura,
Economia, Política, Independência, etc., etc. Cada ficha aí com umas oito linhas.
Quando o Vicente Ululu estivesse baseado no campo, combinou-se, iria começar a
ensinar-lhe um pouco de inglês.
O almoço desse dia 8 de Junho passámo-lo eu e o Fernandes como
convidados de Dhlakama. Um decrépito gira-discos movido a pilhas arranha canções
africanas. Afonso Dhlakama ouve atentamente (conseguirá mesmo, por cima desta
cacofonia?) e entende o que vamos dizendo. Riu, ri-se muito, agora, com uma anedota
sobre leopardos surdos. Escutou os planos que tínhamos esquiçado para a sua
instrução e aceita-os. Admira-se com o que lhe contamos da última ideia do Cristina:
a de abandonar o movimento e a Francesca, e ir juntar-se em Hamburgo, na RFA,
com uma alemã rica que conhecera. É verdade. O Cristina não saltara do ‘comboio’ a
tempo de se safar e de uma ‘reforma’ tranquila e em glória. Mas Dhlakama irrita-se
sobretudo quando sabe das ligações estreitas do ex-secretário-geral com Antero
Machado e do seu alegado ‘testamento político’: ‘Não é possível, meus senhores,
então, ele… não é possível! O presidente (ele, Dhlakama) não pode aceitar uma coisa
destas!’
Na realidade os sul-africanos viam Machado e mesmo Quental demasiado ou
perigosamente conectados ao grupo de Johannesburg. Como reacção a toda esta
conversa, calculo, nas semanas seguintes serão completamente desligados dos
assuntos relativos à R.N.M., e João Quental acaba mesmo por ser expulso da Força
Aérea sul-africana.
Outra das conclusões deste almoço, e versando mais a parte da Informação:
Fernandes e Dhlakama concordam agora em que o movimento deverá passar a ser
citado pelo acrónimo ‘RENAMO’ preterindo-se a antiga sigla R.N.M.

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E aquelas escarpas que todos os dias topávamos a partir do varandim e por
cima das quais ia trepando a Leste o sol matinal, dir-se-ia desafiarem-nos
permanentemente a todos. Combinamos um passeio a seguir ao almoço. Parto
juntamente com o Evo, Van Niekerk, o ‘Voluntário’, o ‘Doc’ e o capitão Roy.
A distância engana-nos e as elevações estão afinal mais longe do que antes
pareciam, observadas ali da varanda como que ao alcance da mão. O solo é agora
íngreme e pedregoso, a vegetação dispersa-se um pouco mas amiúde as micaias
surgem-nos ao caminho. Grandes rochedos e a falta de trilhos por entre estes
autênticos penhascos obrigam-nos a desvios constantes. Estamos literalmente com a
língua de fora quando traçamos o azimute para um ponto que será uma passagem
relativamente mais abaixo nessa aresta cimeira e que nos permitirá talvez olhar para o
outro lado desse muro de pedra que nos afronta.
É já com o sol quase a despedir-se, a escassos graus sobre o horizonte às
nossas costas que alcançamos o topo e, aturdidos quase, sentamo-nos sobre a
plataforma pedregosa embevecidos com o cenário que nos é dado desfrutar. Faz em
tudo lembrar ‘Os Deuses devem estar loucos’, aquela cena ‘no fim do Mundo’
quando o bushman lança das alturas sobre o abismo a maléfica garrafa de Coca-Cola.
É enorme a distância que se avista dali do cimo, daquele quase precipício, pois é
acentuadíssimo o declive deste ‘outro lado’.
Mesmo com o sol a desmaiar já em tons laranja, vermelho e violeta para a
metade ocidental e este novo mundo a entrar nas sombras do crepúsculo, destacam-se
ainda no solo manchas de verde luxuriante por entre a palidez que avança empurrada
pela seca. Mas estamos contudo perante um cenário esmagador e que nos comunica
bem a altitude a que subimos desde as terras baixas do Rand, junto a Pretória e
Johannesburg.
É com a noite a cair que fazemos meia-volta e em passo apressado deslizamos
ou escorregamos pela encosta abaixo de regresso à ‘embaixada’, resvalando em pedras
soltas, roçando os picos matreiros das micaias. Não foi preciso usar armas contra
qualquer atrevido predador nocturno, acho que ali, pelo menos, éramos os piores de
todos, e é no meio de escuridão cerrada que alcançamos a segurança da moradia. Um
banho fresco a livrar-nos da poeira, suor e cansaço, e a cerveja gelada, são os
bálsamos benditos que nos tratam desta esticada.
Extenuados ainda, à volta da fogueira organiza-se já mais um braai, os sul-
africanos a teimarem na sensaboria da carne só temperada a sal antes da grelha, e nós,
moçambicanos e portugueses, a não dispensarmos o alho, o louro, o piri-piri. Depois,
acompanhados pelo cântico insistente da bicharada nocturna liderado pelas cigarras e
cada um já fincado no seu pedaço de carniça, rebobinam-se as recordações do dia e
desdobramos planos para as semanas seguintes.
No resto destes dez dias que passo na base, ocupo-me a elaborar a nova
estrutura da Rádio e a respectiva programação. Sentado a esta varanda apontada a
leste, recebendo a cálida brisa vespertina que passa fazendo festas fugazes no cabelo
curto, é neste preguiçoso remanso diário de fim de jornada que vou calmamente
delineando mentalmente, e ocasionalmente escrevinhando, os planos de trabalho
operacional para esses próximos tempos.
Numa das tardes treino o funcionamento da Kalashnikov e improvisa-se
então uma carreira de tiro junto à ‘embaixada’ no terreno aberto em direcção às
montanhas para leste e passando o fosso do tal ribeiro seco. ‘E para ali, pode-se

49
disparar?’, pergunto ingenuamente. “Sim!, responde lesto o ‘Voluntário’, para ali só há
leopardos ou pretos!”
Despejamos uma quantidade de carregadores numa fuzilaria tremenda. Em
comparação com a G-3 e outras armas, a ‘Kalash’ é amor à primeira vista. A arma por
excelência de todo o guerrilheiro e terrorista que se preze! Leve, eficiente, certeira.
Uma obra de arte do armamento ligeiro. Seria doravante a minha arma de eleição:
Kalashnikov, Saúde & Paz!, tornou-se o lema. Experimento ainda um revólver 357
‘Magnum’ e uma série de outras armas. E entregam-me por fim uma pistola ‘Star’ 9
milímetros com que passo a andar equipado.
Para apresentar aquando da reabertura da ‘Voz’ efectuo umas entrevistas que
registo em gravador portátil, as perguntas e respostas escritas neste caso pelo Evo, aos
três comandantes ‘generais’ da RENAMO que se encontram de visita à Base de
Comando Recuado: Vareia, Mário e Henriques Samuel. Os três haviam estado já
presentes na reunião ocorrida dias antes, onde Dhlakama indicara o novo secretário-
geral.
Ao contrário de Mário e de Vareia, analfabetos, Henriques Samuel
surpreendeu-me: inteligente, vivaço, as suas aptidões ultrapassam até largamente as de
Dhlakama e eu coloco-o, pelo menos, ao nível do Raul Domingos. As entrevistas de
Mário e de Vareia, com cerca de três minutos cada, levariam mais de três horas para
serem gravadas. Cada frase tinha que lhes ser ditada para eles a decorarem, aos
pedaços, e a repetirem para o microfone. Henriques Samuel pelo contrário tinha um
discurso fluente, escorreito, um autêntico quadro de Estado Maior ou operacional a
dar conta das respostas, imprimindo mesmo um tom inteligente, convicto. No ano
seguinte é com mágoa que venho a saber da morte em combate deste Henriques
Samuel, quando a RENAMO assalta a vila de Maganja da Costa, na Zambézia.

GIANCARLO COCCIA: COMO UM ‘JORNALISTA’ E AGENTE ESPECIAL,


DÁ COBERTURA À EXECUÇÃO MUITO SUI GENERIS DO PILOTO DE
MIG-17 ADRIANO BOMBA
Giancarlo Coccia. Já o nome diz tudo. É italiano, este gajo. Italiano, jornalista,
e com um senhor bigode à Salvador Dali, eternamente mergulhado em whisky, e que
dorme com um enorme barrete enfiado pela cabeça e de Kalash nas mãos. É… este
sujeito tão típico assim encontra-se igualmente na ‘embaixada’. É um dos ‘contactos
especiais’ de Van Niekerk.
Coccia reside desde há muito em Waterkloof, nesses arredores de Pretória
confinando com a base aérea. Prepara-se agora para ir ao interior de Moçambique
acompanhando Dhlakama e os outros comandantes operacionais. E para a
Gorongosa, tudo sincronizado, como se vê, partiria também, pouco tempo depois,
um outro jornalista, americano, transportado até aí desde Pretória, igualmente em
avião militar sul-africano: ele é o Alexandre Sloop, ‘Sandy’, o bem conhecido ‘Sandy’
de Lisboa, da penumbrosa agência UPI, United Press International, que se diz
fundada pela CIA, e que usará como ‘antenas’ as suas várias delegações e stringers
(correspondentes). Pois bem, convidado por Fernandes e vindo de Lisboa chegará
esse tal Sandy que só conheço de nome e ainda estive escalado para ir buscá-lo ao
aeroporto de Johannesburg. Só que agora estou aqui mais ao norte perdido nesta
imensidão do Transvaal oriental e com um lote de gente também pitoresca à volta.
Bom, mas voltemos então a este original italiano: o Coccia tem duas missões.
Primeiro, há que cobrir a história do movimento e chamar a atenção para o técnico

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italiano feito cativo pela RENAMO, pelo qual, anteriormente o movimento exigira
um resgate. Com efeito, Mário Ortolan será libertado quase de seguida e Coccia
efectua uma reportagem relatando a ‘boa vontade e sentido humanitário de
Dhlakama’.
Segundo, o jornalista italiano tem que entrevistar Adriano Bomba e isto com
um propósito bem firme: há que mostrar ao mundo que o ex-piloto e irmão de
Boaventura ainda está vivo, desmentindo assim alguns dos rumores que correm.
Coccia irá fazer a entrevista. Adriano Bomba responde, calmo, confiante, risonho
mesmo, pelo que me contam depois. E após a tomada de som, a fotografia, no
exterior, a pose. Ele espera por uma máquina fotográfica mas… surge antes, lesta,
uma ou mais Kalashnikovs. É liquidado de imediato. A Rádio RSA passará a
reportagem e entrevista de Coccia. A voz do ex-piloto de MiGs ‘confirmando’ para
toda a África Austral que Adriano Bomba vive! Isto é Informação!!!

Antes de regressarmos a Pretória fica assente que a emissora reabre a 1 de


Julho com o nome de ‘Voz da Resistência Nacional Moçambicana’. A emissão,
asseguram os sul-africanos, terá um sinal mais potente, de forma a alcançar agora a
mais nortenha e longínqua das províncias, Cabo Delgado, o berço dos temíveis
guerreiros macondes. Novo pessoal virá do interior a 28 de Junho. O orçamento das
Forças Armadas sul-africanas disponibilizado para o movimento é, efectivamente, o
maior de sempre, e foi lançado há duas semanas. Os reabastecimentos, suspensos
com a morte de Orlando Cristina, recomeçam esta quinta-feira, 16 de Junho.
E é assim, com efeito, que neste dia 16, ao fim da tarde, vindos da Base de
Comando Recuado, seguimos directamente para a Base Aérea de Waterkloof com
Dhlakama, Coccia (a caminho ainda dessa sua reportagem e derradeira entrevista
prestada pelo Adriano Bomba), os três comandantes operacionais e mais seis outros
elementos que integram o Estado-Maior. O sol está já a fazer caretas, a desaparecer
no horizonte oeste à esquerda de Warmbaths, a última cidade que deixamos para trás.
Pretória encontra-se a menos de 90 quilómetros. Uma cena quase cómica desenrola-
se agora, ali todos parados em fila, alinhados à beira da estrada atrás das ‘combi’
Nissan e Toyota, Dhlakama incluído, sem cerimónias, a urinarmos para o prado verde,
açoitados por um vento lateral, forte, que se levanta com o crepúsculo.
Em Waterkloof estes eternos passageiros-mistério acabam por embarcar num
avião ‘Transall-160’ do 28º esquadrão da Força Aérea sul-africana. Vou a bordo
despedir-me. Além dos homens seguem dez toneladas de armamento em três
contentores. Fico a assistir à descolagem desse C-160 e de três outros aviões idênticos
carregados de material e que rumam também para Moçambique. A ajuda de Pretória
volta a chegar à Gorongosa após meses de indecisão.
Sexta-feira. Visito de novo o Zanza. Por escassos minutos. A psicose das
bombas e dos falsos alarmes instala-se em Pretória. Soa mais um dos alertas e todo o
prédio é prontamente evacuado. De braços cruzados, expectante, a tagarelar com a
Lucinda Feijão sobre o relvado verdinho deste campo de jogos nas traseiras, entre
uma pequena multidão. Afinal, o prédio não se desmorona? Nem um estalido de
Carnaval? Já é a quinta ou sexta vez, diz a Lucinda exasperada… onze andares
descidos a pé, a correr. E o alerta não passou, mais uma vez, disso mesmo.
Em Maputo, as autoridades anunciam o começo de uma grandiosa ‘Operação
Produção’, destina-se a correr com os ‘improdutivos’ das cidades, os desempregados,
marginais, enfim, é uma enorme triagem aos indesejáveis, para a boa estética e

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segurança do regime. Quanto aos nossos amigalhaços sul-africanos, bem, pretendem
complicar ainda mais a situação no sul do país, ferrar mais uma rasteira em grande ao
Machel, começando a repatriar dezenas de milhares de refugiados moçambicanos que
enchem os campos fronteiriços.
Dia 20 o coronel Grayling da Psychological Warfare, a secção de Propaganda
Militar, vem ter comigo. Traz uma nota do Ministério do Interior pedindo que se faça
um texto para ser lido aos desgraçados desses repatriados. A nota afirma em resumo
que ‘o mal deles é a FRELIMO’. E o texto é escrito. Cinco dias mais tarde Pieter
Botha, então primeiro ministro, afirma ‘não ser mais possível o entendimento com
um Moçambique que continua a apoiar o comunismo internacional’. Nos serviços
militares considera-se que isto não passará de mera retórica e pressão, que o tempo
corre a favor de Maputo, e que qualquer entendimento ou pacto, adiando a
confrontação, será mais perigoso para a África do Sul.
Dia 23 de Junho conseguimos que a Rádio volte por fim a emitir. Esta é
apenas uma gravação experimental de meia hora, anunciando para breve o recomeço
regular dos programas. Vou com o José Carlos Monteiro e um técnico militar sul-
africano de comunicações efectuar a gravação-piloto ao camião-estúdio. Este
encontra-se ainda estacionado noutro campo do exército, perto de Petronella, um
pouco ao norte da anterior farm, e à direita da estrada que de Pretória se dirige para
Warmbaths. Algum do antigo pessoal da emissora também fora para aí transportado,
mas está agora quase todo ele recambiado para a Gorongosa.

ESTA INICIÁTICA DESCIDA AO MATO. COMO É O DIA A DIA NA BASE


DA GUERRILHA. QUEM SÃO OS HOMENS DA RENAMO. O RESSURGIR
DA ‘VOZ DA ÁFRICA LIVRE’.

Ia para um dos piores lugares do mundo, ainda sem o saber. Semanas e quilómetros de
distância, todo um rio acima serpenteando até à própria guerra, como um cabo de corrente ligado
directamente ao Dhlakama. Não era por acaso que seria o portador de algumas destas memórias do
conflito, bem como não era por mero acaso também que voltara a África. E não há forma de contar
algumas destas histórias sem debitar a minha própria odisseia. E se elas são uma confissão, decerto
que a minha também o é.12

Em 4 de Julho, ao fim do dia, regresso à nova Base de Comando Recuado. É


de certa forma estranha esta sensação. Largar voluntariamente as benesses da
civilização, de toda uma urbe apetrechada, os seus maneirismos e estilos, mesmo não
sendo Lisboa nem Maputo ou Lourenço Marques, mas era uma vida de cidade em
que sempre vivera e agora deixava.
Abalava assim decididamente para o meio do mato, à desabrida, pelas amplas
auto-estradas sul-africanas, janela escancarada, camisa enfunada e os tempos
próximos também eles plenos de promessas de aventura. À frente, estava a vida numa
base da guerrilha pois já tinha decidido que ficaria instalado na parte dos
moçambicanos. Enfim, tinha aceite essa mesma aventura, os imprevistos e, de certa
forma, o isolamento, o cortar de laços. Mas, afinal, o que é que eu busco? Boa parte
do caminho é acompanhada pela música de uma cassete dos Simon & Garfunkel, o
concerto no Central Park. ‘Mrs. Robinson’, o ‘Sound of Silence’ e tantas outras

12 in Apocalypse Now, adapt.

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preenchem em desfilada este entardecer rumo ao desconhecido no coração da selva
negra. ‘Bridge of Troubled Waters’, é isso mesmo que estou agora a galgar, uma
ponte, uma ponte que me conduz, não por cima, mas directamente às mais revoltas
águas em que alguma me vi. Acho que desde esta altura não mais conseguirei ouvir
como antigamente as canções deste duo… é algo que fica marcado a fogo,
sublinhando este mergulho na selva e, de certa forma, corte profundo com a
comodidade, mas não só. Há todo um cercear da alma, um retalhar de uma certa
moral, de sentimentos feitos, de certezas seguras. Senão estou no umbral do imoral,
pelo menos encontro-me no limiar do amoral que rege toda esta teia militar e
securitária tingindo os vários tentáculos de Pretória.
Já noite feita alcançamos o campo. E digo alcançamos, pois sigo com o
‘Voluntário’, o tenente Johann Hurter, que conduz esta carrinha backie de cores à civil
que nos transportou desde Pretória.

Uma tenda militar de cinco metros por cinco serve-me de residência,


enquanto outra, idêntica e unida à primeira, funcionará como área de trabalho,
arquivo e biblioteca. Num jantar para a minha apresentação oficial ao campo, provo
pela primeira vez mbeva e mbira assados, ratos do mato, limpos. A mbira é de tamanho
maior, tipo cobaia. De início, com a pouca luz dada por um candeeiro portátil a gás,
ainda penso que os tais mbeva sejam pássaros... Raul Domingos, chefe do Estado
Maior, faz as honras à casa, uma pequena introdução, apresentando o pessoal habitual
do campo e os recém chegados, da emissora, e desfaz o enigma do que eu pensava
serem codornizes ou qualquer passarada comestível. Ratos!!! Estou apresentado e
aceite, todos se riem e fincam os dentes no resto do pitéu.
A refeição, assim como quase todas as que passo nos oito meses seguintes que
vivo no mato, é constituída por farinha de milho (ushua) acompanhada de
carne, quando havia, claro, ou macabbage (hortaliças). Ficaria ao longo deste tempo
sempre no topo da mesa principal juntamente com o Raul Domingos.
Nos dias seguintes chegam os geradores e o camião-estúdio. Selecciono os
novos elementos da Rádio para as respectivas tarefas. O estúdio é colocado junto às
tendas da gente da ‘Voz’ e coberto com uma rede de camuflagem. E não muito longe,
a cinquenta metros das tendas, há uma estranha construção, a nossa ‘Casa Branca’! É
uma fiada de latrinas com paredes exteriores e separatas em lona descolorida. Uma
‘homenagem’, creio, à nova política norte-americana que é bem mais desfavorável
para com o movimento.
Uma vez por semana aproveito a ida semanal às compras, à cidade de
Potgietersrust, para adquirir bebidas e qualquer outra coisa que fuja à rotina do
campo. Os abastecimentos em géneros para a nossa base, estão a ser fornecidos tanto
a partir de um quartel em Pretória, em Voortrekkerhoogte, como da Base e Escola
Militar Aérea 85, de Pietersburg, a leste de Potgietersrust. Informam-me ainda que,
sempre ao fim do mês, um sábado à noite, faz-se um pequeno convívio, com refeição
melhorada, música e danças.
No entanto, pelo que observo, o poder de compra dos moçambicanos é uma
miséria: recebem apenas 40 randes, mesmo o chefe do Estado-Maior, Raul
Domingos, não passa deste montante. Em Potgietersrust os sul-africanos alugam
alguns filmes em vídeo. Sou convidado a assistir com eles na ‘embaixada’ a ‘O
Graduado’, com Dustin Hoffman, e um outro, que se pretende documentário, o
célebre ‘Africa Addio’, ultra-reaccionário, um fresco de um realizador italiano sobre as

53
descolonizações da década de ’60, e que até pessoal aqui da A.M.I., como o ‘Doc’,
considera ser ‘um pouco racista’.
Como referi já, a temperatura tem aqui nesta sub-região nuances bruscas.
Neste patamar seco do interior e junto às montanhas a temperatura até é amena e
agradável, durante o dia. Contudo logo que o Sol se põe, uma leve neblina parece
emergir ao nível do solo. A pouca humidade que persiste nestas paragens precipita-se
pela noite, com a chegada do frio súbito. É esta cacimba que começa a cair. O
termómetro à noite chega a baixar até aos 6 ou 5 graus centígrados. Não raras vezes
acordamos manhãzinha cedo com algumas das zonas mais recônditas, resguardadas,
cobertas por pequenos cristais brancos, uma finíssima película de geada.
Com o crepúsculo desperta também toda uma sinfonia trazida pelas cigarras,
grilos e outros pequenos bichos que pululam por sob este dossel tropical. Junto às
poucas poças remanescentes, atrevem-se alguns antílopes sempre de olho alerta nos
possíveis predadores. Os leopardos, já o sabíamos, rondam o campo de perto, bem
que lhes topamos o rasto. Mas felizmente têm entre os babuínos o seu petisco
preferido ou tecem assaltos ocasionais a uma pequena manada que pasta não muito
distante do tal renque de eucaliptos que despontam como sentinelas à boca da estrada
grande.
No entanto, existe agora muito trabalho a fazer e o clima ou o cenário não
constituem a nossa preocupação maior. Em 6 de Julho organizo um grupo de dez
elementos, afastamo-nos um pouco do campo subindo junto às margens do riacho e
efectuamos uma sessão de disparos com armas automáticas G-3, Kalashes, UZIs. O
objectivo é uma gravação áudio para se utilizar como efeito sonoro nos programas da
Rádio. Para defesa pessoal mantenho por estes dias a pistola-metralhadora UZI. As
UZI são de patente israelita, mas as deste lote são de fabrico belga. Reparo a
propósito que todas as UZIs que vi na África do Sul tinham o número de série
apagado. Foram decerto adquiridas por meios pouco ortodoxos.
Ao fim do dia é o banho habitual a que me acostumei, tomado neste riacho
quase seco. Sozinho ou com mais um ou outro dos elementos da emissora ou do
estado-maior avançamos rio acima até umas centenas de metros a montante do
acampamento, a agora inseparável UZI como companheira descansa numa rocha
junto à água enquanto aproveito uma das poucas poças restantes.
As emissões regulares da ‘Voz da RENAMO’ são retomadas afinal a 15 de
Julho incutindo-nos uma nova rotina e ocupação. E embora seja esta uma vida de
mato, e entre guerrilheiros, eu e o Vicente Ululu, que chegara entretanto do Quénia e
me coadjuvará na rádio, não somos afectados por obrigações ou disciplina militares.
Continuamos quadros civis do movimento. Ululu fica definitivamente instalado na
base e passa a meu adjunto oficial na emissora. Na Rádio, além deste engraçado
Ululu, negro trintão, maconde, ex-seminarista, dir-se-ia um ratinho pardo sempre a rir,
baixo e forte, e dos já citados João Daniel e de Henriques Paulo, os que não haviam
sido enviados para o interior, do grupo que já antes enformava a estação, está agora
um Augusto Chaviro, raptado em Sofala, onde era director provincial da Pecuária.
Posteriormente este Chaviro tornar-se-á secretário do ‘Departamento de Agricultura’
da RENAMO. Ouço atentamente a sua história e queixumes: quando foi capturado,
confessa, espancaram-no selvaticamente nas costas, onde começaram a crescer uns
tumores. Mostra-mos. É uma autêntica varíola de indução artificial, muito
chicotezinho, schambok, como aqui chamam, deve ter apanhado naquele lombo…
Aquilo está mesmo horrendo. Esmagaram-lhe os óculos, sob as botas de quem o

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capturou. Mas há mais neste novo lote: Jeremias, quarenta e tal anos, é o novo locutor
em língua macua. Estava como professor em Nampula quando a Resistência o raptou.
É muito calado, circunspecto, alto e magro. E temos também o João. É o novato e
consegue ser divertido apesar destas partidas que a vida lhe entrega, como ser
agarrado à unha e levado para um país vizinho onde agora sem saber como se
encontra na iminência de se tornar locutor. O João está com cerca de vinte anos e é
do norte de Sofala. Vai pois fazer locução em português e sena. Era também um
‘capturado’, está bom de ver. Aliás, posso bem dizer que noventa ou mesmo noventa
e cinco por cento dos elementos da Resistência que conheço agora, são todos eles
raptados.
Marieta e Lídia, com uns dezasseis anitos apenas, estudavam na Escola
Secundária de Morrumbene, Inhambane. A Marieta será locutora de chitsua, e a Lídia
de português. Elas, assim como a maior parte das outras DFs, as raparigas do
Destacamento Feminino, que existem no campo. Tinham sido raptadas da escola em
1982, um grupo de mais de trezentas, e obrigadas a um treino militar pela RENAMO.
Serviam todas elas, ainda, como amantes dos chefes e comandantes. Lídia chega-me a
relatar, e parece ainda estar horrorizada, traumatizada, tal a ênfase, a emoção que
transborda, uma acção militar em que participou, e como o comandante do grupo
queimara vivo e arrancara os olhos a um dos quadros da FRELIMO que haviam
capturado.
A partir de fins de Julho participo como tradutor e formador até, num curso
rápido ministrado por um novo militar sul-africano acabado de chegar ao campo, o
sargento Bass. O gajo até tem umas feições meio indianas, mas é africaans, pronto!
Ora, este e um curso prático sobre armamento: montar, desmontar, operar e dar
manutenção, a armas ligeiras como a AKM-Kalashnikov, G-3, Uzi, Tokarev, e
procedimentos com minas anti-carro e anti-pessoal. Isto ocupa-me das catorze às
quinze horas. Gramo disto à brava, e até dou sugestões de minas anti-carro e anti-
tanque reforçadas, com mais obuses à volta, dentro da mesma cova, granadas
incendiárias… tudo o que seja ‘espectacular’. Parece que estou ali a preparar uma
pizza, a sugerir ingredientes, topam?
O tenente ‘Voluntário’ orienta entretanto outras aulas dadas aos comandantes
e a outros elementos seleccionados, sobre sabotagem, guerrilha urbana e assassínio
com arma branca.
E é ainda pelos finais deste mês que faço uma extensa entrevista a Raul
Domingos para a ‘Voz da RENAMO’, onde se dá pormenorizadamente o ponto da
situação militar no país, na óptica do chefe do Estado-Maior. Nunca tal havia sido
feito e temos o feed back posterior de que foi ouvida e analisada com certa atenção
tanto em Moçambique como por representações diplomáticas e círculos militares na
África Austral. Nunca antes o Raul Domingos ou qualquer chefe de estado-maior do
movimento surgira a pronunciar-se na rádio e a escalpelizar o teatro de operações do
país.

E chega o sábado de final do mês, neste 30 de Julho. Na cidade de


Potgietersrust, eu, o logístico e lojístico Dick e mais alguns ajudantes, atarefamo-nos
em compras. No bottle store, então, nem se fala! Cerveja, é às grades, à fartazana. Só à
minha conta são duas grades de vinte e quatro latas cada, sem contar com os pacotes
de vinho sul-africano de Stellenbosch, embalagens de 5 litros e, para rematar, trouxe
ainda uma garrafita de Porto. À noite, já se adivinha o ambiente. Após um jantar

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melhorado, com o arroz, em vez da ushua, a farinha nossa de cada dia, frangos
assados e outras carnes grelhadas, bebeu-se a rodos ao som de música africana e das
Antilhas, e num cenário já preenchido pela dança sobre este terreiro poeirento junto
às tendas do refeitório.
Noite adentro a bebida vai-se infiltrando, e das cervejas passa-se às mais
pesadas, aos pacotões de vinho e, por fim, aos secos. A garrafa de Porto, essa, anda
num virote mas apenas entre dois ou três que a despacham num ápice, creio que sem
chegarem a apreciar devidamente o produto. Era chegada a altura do quanto mais
melhor. No meio do frio gélido que o álcool já vai atenuando, tinha-me arrastado
entretanto até junto da fogueira e cá estou eu numa das ondas de disparate. Nas
presilhas das botas militares, por sobre os calcanhares, trago encaixadas duas enormes
balas, ainda carregadas, de munição antiaérea incendiária e explosiva de calibre
14,5mm. E era assim que estava com os pés apontados para o lume quentinho
quando num repente me vêm rebocar desta loucura.
Depois, depois… só me lembro de ter bebido mais alguns tragos de qualquer
coisa e acordar frio, com a camisa azul toda aberta e de barriga para baixo na terra
gelada, devem ser cinco e meia da madrugada, quase não me consigo mexer,
desenvencilhar dali, tão enrodilhado me encontro na rede de camuflado que cobre o
camião-estúdio da rádio e para baixo do qual, não sei como, me tinha enfiado, ali à
distância de poucos passos da minha própria tenda. Alguns flashes dessas imagens
nocturnas e arranhões no braço esquerdo avivam recordações de um choque com
uma micaia, a meio da noite, acho que estava acompanhado pelo João Fifteen que
estava como oficial de dia e, tal como eu, mais bêbado que um cacho.

PHALABORWA: O VERDADEIRO CENTRO DE LOGÍSTICA E TREINO


PARA AS VÁRIAS GUERRAS NO SUB-CONTINENTE AFRICANO, BASE
DE MERCENÁRIOS E DO CÉLEBRE BATALHÃO 32 ‘BUFFALO’
Quinta-feira, 3 de Agosto. Acaba de principiar o mês mais seco do ano, e o
mais fresco, aqui, na África Austral. Mas a seca crónica já há meses, anos, que vem
cauterizando quase todo o sub-continente. Agora, sigo juntamente com Ululu e o
coronel Grayling para o leste do Transvaal, até Phalaborwa, cidade conhecida não só
por bordejar o Kruger National Park, e pelas suas minas de fosfatos, como também
pelas importantes instalações militares que alberga. E observo com certa satisfação
como o verde parece timidamente renascer conforme nos aproximamos do leste do
Transvaal, região sulcada por vários rios, mais baixa e húmida.
É aqui por toda esta zona de Phalaborwa que se encontram alguns dos
principais pontos de apoio à RENAMO em território sul-africano. E Phalaborwa
porquê? Por um lado, uma cidade já há décadas plena de significado e instalações
militares. Rodeada em geral por mato cerrado, propícia ao escamoteamento e treino
de forças especiais, como os batalhões de reconhecimento, entre os quais o célebre
Batalhão 32, o Batalhão ‘Búfalo’. Mais ainda, dos postos ou cidades ‘fortificadas’ e
militares, é das mais próximas à fronteira de Moçambique.
À chegada, vamos de imediato ao quartel ‘7 SAI’, o 7º Regimento de
Infantaria, situado logo à direita, para quem entra na cidade vindo pela estrada
principal. Um sem número de construções baixas e longas, onde se localizam diversos
armazéns, sob a responsabilidade de um português, o sargento Bento Maria,
alentejano, baixinho e magro, sempre à civil e de calções, camisa de manga curta, pele
tisnada, curtida pelos muitos anos ao sol. Dinâmico, o homem parece cheio de

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electricidade, sempre diligente. E já antes me haviam informado: é pois daqui, destas
instalações, que sai muito do material logístico e fardamento para equipar os homens
da RENAMO tanto na África do Sul como em solo moçambicano. Nos mesmos
armazéns trabalham então cinco militares negros, todos moçambicanos, bem
alimentados, disciplinados, vejo-lhes a satisfação no rosto, acho que se consideram
uns autênticos privilegiados pelo facto de se encontrarem aqui.
Após uma pequena conversa com Bento Maria, seguimos para os alojamentos
onde vamos pernoitar, num outro bairro militar na periferia da cidade. À noite,
jantamos em casa deste português simpático, que é casado com uma transmontana e
tem duas filhotas. O Grayling, eu, o próprio Ululu, somos recebidos em autêntica
familiaridade. Na TV sul-africana passa o ‘Shogun’, mas estamos é na nossa conversa
em torno das questões da guerra em Moçambique, e da emissora. Tocam à
campainha, e a casa tem mais uma visita: uma mulheraça enorme, um pedação de
mulher. Conheço enfim a capitã Mariana, de quem já ouvira falar, africaans, ela,
senhora alta e forte, cabelo encaracolado, casada com um português, e a responsável
no quartel de transmissões de Phalaborwa dos assuntos relativos à Resistência. É pois,
ela, ao que me garantem, uma das pessoas mais importantes na ajuda à RENAMO, no
sector das comunicações.

No dia seguinte de manhãzinha bem cedo, partimos em direcção ao campo de


treino. Tomamos a estrada que rumo ao norte segue encostada à vedação do Kruger
Park. Uns vinte quilómetros adiante voltamos à esquerda. Depois, é mais uma dezena
de quilómetros mato adentro. Pelo caminho já havíamos passado por uma pequena
posição militar guarnecida por soldados negros, moçambicanos no exército da África
do Sul. Cruzamo-nos também, amiúde, com diversos grupos de negros suados, alguns
quase desfalecidos, sob troncos enormes e grossos que carregam assim em marcha de
treino, grupos que me informam serem constituídos por moçambicanos. Quase todos
os moçambicanos, como estes que refiro, mesmo que integrados nas forças armadas
de Pretória, verão o seu futuro modificado em menos de um ano: serão passados para
o controle da RENAMO e enviados para Moçambique, por ocasião de um pacto que
se estabelecerá entre os dois países, o Acordo de Nkomáti. Em Agosto de 1983, tal
hipótese parece contudo ainda tão distante para todos…
A base a que chegamos agora é inteiramente constituída por pessoal da
Resistência e pelos respectivos instrutores sul-africanos, rodesianos e mercenários de
diversa nacionalidade. O seu abastecimento e logística estão a cargo de Bento Maria.
Um dos principais instrutores do campo, em explosivos, morteiros, baterias antiaéreas
e metralhadoras pesadas, é um tal Bibi, jovem mas experimentado soldado branco da
guerra da Rodésia, cabelo longo, desgrenhado, barba hirsuta, todo um ar de marginal.
Todos estes instrutores fazem parte do ‘5 Recce’, um batalhão de reconhecimento.
Forças especiais.
O principal motivo que nos leva a esta base é a captação devida de efeitos
sonoros de combate a serem utilizados na ‘Voz da RENAMO’ e efectuar um rol de
entrevistas a diversos elementos do movimento. Vamos com cinquenta homens
armados até ao campo de tiro, um enorme descampado a cerca de cinco quilómetros
desta base. Executa-se a gravação, simulando-se um combate, com ordens de fogo,
disparos, detonação de minas anti-tanque, morteiros de 60 milímetros, lança-granadas
RPG-7, metralhadoras pesadas, quarenta armas automáticas ligeiras e uma espingarda
lança-granadas, que também experimento. A seguir, registamos em fita canções da

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RENAMO entoadas pelos elementos presentes, entrecortadas por disparos de
metralhadora pesada e rebentamentos de minas e de explosivo plástico. Johann
Hurter, o tenente ‘Voluntário’, orienta a parte militar enquanto eu procedo às
gravações, coadjuvado pelo Vicente Ululu. O sincopado das metralhadoras pesadas
marca todo este ritmo. De vez em quando vem um tronco, um pedaço de árvore
pelos ares, resultado de mais uma deflagração de explosivo plástico. Para proteger os
ouvidos colocamos cápsulas vazias de munições de G3 ou AK-47. Terrífico!
O ‘Voluntário’ afirma, creio que meio a brincar, só nesta manhã, nos efeitos
especiais com os disparos e explosões, para captar assim som real para usar na ‘Voz’,
gastámos mais de um milhão de dólares em munições. Acho deveras exagerado.
Ao princípio da tarde regressamos à base, almoçamos com toda esta malta da
Renamo e forças especiais, e de seguida efectua-se uma formatura e marcha dos cerca
de trezentos efectivos moçambicanos do campo. A marcha é acompanhada de
cânticos militares e toda esta envolvência acústica serve de fundo sonoro para as
entrevistas que realizo. Diga-se em abono da verdade que o nível das entrevistas foi
mau e o próprio Dhlakama achou o programa ‘fraco’ quando este foi emitido: os
comandantes moçambicanos, nesta base pelo menos, nem tinham qualquer ideia ou
sentido político, e tudo o que haviam aprendido parecia resumir-se à prática militar.

Já noite cerrada regressamos à Base de Comando Recuado, perto de


Potgietersrust. Desde Phalaborwa que me encontro febril. Anginas e febre de carraça.
Em Pretória, quando necessário, podia receber tratamento no Hospital Militar n.º 1,
em Voortrekkerhoogte. Agora, sou levado no dia seguinte até à bem guardada Base e
Escola de Combate Aéreo 85, de Pietersburg, onde sou examinado e me receitam.
Observo, enquanto espero que me atendam, as manobras das aeronaves da base,
especialmente os aviões ‘Mirage’ e ‘Impala’, evoluindo em piruetas e sulcando este
céu tão azul. E todos estamos cientes que estão a meros quatro minutos do centro da
cidade de Maputo se precisarem de atingir qualquer alvo na capital moçambicana.
Mesmo após o regresso de Pietersburg a febre e anginas continuam. Por fim,
apesar da aversão a injecções, peço no posto médico do campo, ao Manuel Fatendo,
uma injecção de penicilina. Ele acabara de chegar, vindo de Nairobi, e é paramédico.
Dentro de algumas semanas será colocado no interior para apoio às bases do
movimento. Posteriormente, já em 1986, receberei a notícia de que Fatendo morrera
no Quénia após ter contraído um grave problema intestinal na lá Gorongosa. Mas
agora está ele aqui bem presente e prestável e diz que há já remédio, forte, forte, para
pôr ponto final: pois bem, as únicas injecções que o Fatendo tem aqui são de seis
milhões de unidades, a chamada dose cavalar. ‘Não se pode perder nada, diz ele, tem
que tomar toda!’ E é assim com um sorriso meio sádico que prime o êmbolo até ao
final. Parece que sinto uma bola de ténis dentro da nádega.
Arrasto-me do posto médico até à minha tenda. Por mais uns três dias
continuo a petiscar os comprimidos dados na Base Aérea de Pietersburg e mais
alguns, muitos, de uma caixa metálica enorme, 250 cápsulas de uma mistura de dois
antibióticos, que o nosso ‘Doc’ me arranjou. Estes três dias febris, delirante, bêbado
de febre, são passados a leite, pacotes sucessivos de um litro, com uma embalagem
sempre aberta à cabeceira. De noite, por entre o sono agitado, imagino coisas,
convulsões, chega-me como que um restolhar próximo nas altas horas da madrugada.
Ao quarto dia consigo levantar-me e tomo já uma refeição ligeira à mesa da adjacente

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biblioteca-escritório da ‘Voz’, acompanhado pelo Ululu e alguns outros elementos da
rádio.
– ‘Nhoca! Nhoca!’ Os berros sobressaltam-me dessas réstias de entorpecimento.
‘Cobra! Cobra!’ Uma tira esguia e rápida escapuliu-se de novo para o interior do meu
quarto, topo-a na minha visão periférica. ‘Veio de lá’, grita ainda o Ululu. Com paus
na mão e mil cautelas começamos a revolver tudo, a velha manta que recobre o chão.
Nada! Arrastamos malas. Nada! Puxamos a cama, os cobertores, e eis que surge a
cabecinha. Um corpo fino, listrado, alonga-se já em cima da cama e de súbito
encolhe-se em mola, para saltar ou fugir... O bastão quebra-lhe súbito a espinha, o
réptil contorce-se ferido de morte. ‘Já está!’, ouve-se gritar.
‘Viu, senhor director’, diz o João da rádio, este sena alto e também esguio.
‘Veio com cheiro do leite. Nhoca é assim... Teve muita sorte senhor director...’ E só
então me lembro, com um arrepio, dos sons de arrastar, aquele roçagar que já noites a
fio saía do meio das trevas. Uma sorte do caraças! No entanto dizem-me depois que
esta nem é das mais venenosas. É um tipo de cobra muito ágil e até fugidia. No dia
seguinte e igualmente à hora da refeição, surge outra cobrita idêntica à porta exterior
da tenda. ‘Isto já é demais!’, digo para mim. Mas o bicho logo se escapa. Ao fugir
parece voar rasteira, rente ao solo, a enorme velocidade. ‘É o marido da outra,
elucidam-me, vem à procura da companheira. Cobra é sempre assim’.
Assim quando se liquida um destes répteis, é hábito entre os africanos
deceparem-lhe a cabeça e queimarem os restos ou enterrarem os dois segmentos à
parte e afastados de gente. Ontem e hoje foram apenas dois dos episódios que
tivemos com os ofídios. Mas houve mais… Ainda aqui no campo de Potgietersrust, e
saindo um dos dias após o almoço para mato mais cerrado, à caça, como dizia eu a
brincar, a cerca de um quilómetro ao norte da ‘embaixada’, levando a UZI, alcanço
uma zona mais verdejante, um verde escuro, húmido e fresco. A vegetação adensa-se
bastante conforme o chão baixa para um sulco de alguns metros de largura, ferida
aberta em terra também mais escura. O dossel de verdura comprime-se em galeria aos
lados e logo por cima da cabeça. ‘Ninguém quis vir para este passeio, lamento-me eu,
e aqui estou só no meio da selva com este pedaço de metal nas mãos, já engatilhado...
vamos lá descobrir onde é que isto vai ter...’
É nesta altura que imagino ser isto provavelmente a continuação do riacho
que passava nas costas do nosso acampamento ou então do outro, do curso que terá
existido à frente da ‘embaixada’. Isso agora pouco importa, o arrepio súbito suplanta
tudo o resto: o que ouço e vejo deixa-me sem pinga de sangue, é algo de imediato que
vem do fundo dos tempos, sem apelo ainda aos circuitos racionais do córtex. O ruído
de galhos a oscilar sob o vulto negro, enrolado, luzidio, tremente… uma cabecita
triangular, túrgida agora. O braço levanta-se-me automaticamente sem que o cérebro
o diga, o cano está alinhado, o dedo do gatilho comprime-se para uma rajada rápida
que faz estalar toda a selva. A pouco mais de um metro à frente o réptil despenha-se
sobre o fundo daquele leito seco, o corpo retalhado. Mais uma curta descarga na
mona acaba com a mamba preta. Bem, a caça hoje fica por aqui, meia volta para o
acampamento para justificar os disparos.
Cobras… já em Phalaborwa iríamos dar sumiço a mais alguns destes répteis.
Se virem uma ‘cobra de vidro’ nem acreditam que é de facto uma ‘nhoca’, mas é,
quase parece uma fina corrente prateada, um verme, filiforme, e afinal trata-se mesmo
de uma cobra, venenosa até. Surgiria uma para nos dar cabo do juízo, nos escritórios
da ‘Voz’, bem como uma surucucu, cobra também pequena mas escura, não mais de

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trinta centímetros, de picada terrível e mortal. Esta última seria simplesmente
liquidada sob uma das botas militares que eu usava agora, e já dentro do pré-fabricado
da rádio.

Às vinte e duas horas do dia 6 de Agosto chegam ao campo quatro elementos


vindos do estrangeiro. Estas bases, BCRs e campos tornaram-se autênticos
entrepostos. Cá está o pedante Artur Vilankulos, de novo, o tão falado Jimo Phiri, do
Maláwi, o esganiçado Khembo dos Santos mais o apontado ‘agente’ da ciática
americana, o Leo Milas, ambos do Quénia.
Fica patente uma vez mais a ambição de Artur Vilankulos por um futuro
posto de primeiro ministro após uma entrevista que lhe faço para ser transmitida pela
‘Voz’. Chega a perguntar-me se Dhlakama já teria falado no assunto. Eu gravava
secretamente a conversa, como era meu hábito nestes casos, e entrego a cassete a
Afonso Dhlakama. De qualquer forma, Vilankulos já tinha o seu futuro traçado e não
era bem visto internamente pelos militares da RENAMO. Evidente é também o vazio
político de Khembo dos Santos: é o misterioso Leo Milas quem se encontra sempre
por detrás das palavras, decisões e ideias de Khembo. O lote de ‘diamantes negros’
arranjado pelo Orlando parece antes estar permeado por outros serviços e sufocar, ou
tentar sufocar, o amplexo estreito mantido pelos militares de Pretória e que não
gostam de disputa no seu controlo sobre o movimento moçambicano.
10 de Agosto. Em termos de Informação e Propaganda, conjugando-se com
o esforço militar, procuro agora sistematizar os acontecimentos no terreno. E é assim
que por ideia minha se passa a delinear e a baptizar as campanhas de maior vulto.
Insisti em devido tempo numa campanha a ser lançada furiosamente contra os
cooperantes do bloco de Leste em território moçambicano, militares ou civis em
sectores estratégicos. Então, a RENAMO anuncia agora, nesta data, o desencadear da
enorme e brutal operação ‘Agosto Vermelho’. Uma tentativa de coordenação e lógica,
e de enquadramento, aos actos de guerra que se vão acendendo pelo país.
Acho uma graça imensa aos textos do Evo Fernandes para a rádio: fala-me na
‘Rosa do Cairo’, ou será de Hanói? Bom, ele inventa uma tipa, a Judite, que será quase
sempre referida por 'Jú'. E a leitura destas cartas dominicais da Jú ficam a cargo da
Lídia, a nossa locutora de português. E o Evo insiste: ‘uma vol melosa, sensual, hein?!
Força nisso’. E lá se grava mais uma das cartas da ‘Jú’ para o soldado enganado ainda
nas fileiras da FRELIMO. ‘Quêrido sódádo qu’inda istás inganádo na tropa corrupta
desses ratos frelimeiros… quem te fala é uma tua irmã, sabes… quem defendes tu,
tão longe dos teus? Sabes o que a tua mãe está a sofrer neste momento, quem está
com a tua mulher, para tu aí no mato sofreres e morreres por essa gente corrupta e
que te escraviza?’ É mais ou menos isto, pois. Quanto ao resto da propaganda, há até
aquela que acaba por ser uma advertência para os próprios guerrilheiros, fala-se no
que alguns ‘ratos frelimeiros, soldados do regime’ passam: chegam a comer explosivo
plástico que tem um aspecto e consistência gordurosos, mais parecendo barras de
margarina culinária. Claro que sei perfeitamente que casos destes têm ocorrido é com
as nossas forças, Redundando quase sempre em morte por envenenamento.
Mas o pessoal da ‘Voz’ delira mesmo é com um texto que escrevinho sobre
um feiticeiro do sul de Moçambique e da sua entrevista a um ‘arakavuma’. Pois bem,
o ‘arakavuma’ em dialecto mais não é que esse bicharoco ‘blindado’, o pangolim, que
aqui em todo o Moçambique tem um certo sentido de sagrado e de profecia, de
mudança iminente e de grandes acontecimentos. É um bicho que usualmente surge

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após as chuvadas. E lá conto eu na minha historieta: ‘Grande ‘arakavuma’ veio com
chuva…’ e comunica ao suposto feiticeiro o fim próximo do Machel. Bom, o
pangolim ou tamanduá ou que raio é o bicho, adiantou-se por uns bons três anos…

OS REABASTECIMENTOS AÉREOS: A LINHA CONDUTORA, O SANGUE


VITAL PARA A GUERRILHA
11 de Agosto. Processam-se novos voos de reabastecimento ao interior de
Moçambique. Só nesta noite vão oito aviões ‘Hércules’ C-130 e ‘Transall’ C-160,
carregados de material, um para cada província, de Maputo a Nampula. Na Base de
Comando Recuado segue-se a norma habitual para tais ocasiões. Acende-se enorme
fogueira e todos ficamos acordados até chegar a informação de que o último avião
havia regressado. Pela noite, ouve-se música, dança-se e joga-se às cartas. Ninguém
dormiria, afinal, pois os aviões que foram mais longe, Zambézia e Nampula, apenas
voltaram às seis da manhã. E fala-se já na abertura da ‘frente de luta’ de Cabo
Delgado e pela primeira vez a ‘Voz da RENAMO’ começa a transmitir em maconde,
um dialecto desta província.
Evo Fernandes e Raul Domingos iniciam por estes dias um curso de pára-
quedismo. Está previsto que Evo partirá brevemente para a base do movimento na
Gorongosa, saltando de pára-quedas, aproveitando um desses voos de
reabastecimento. E uma ds principais funções dos C-130, C-160 e ‘Dakotas’ é, além
de providenciar mais material de guerra para o mato, a de teleportar gente, para
dentro ou para fora das ‘zonas controladas’, trazendo-as ou levando-as da África do
Sul. Punhados de gente que muitas vezes nem sabem ao que vão, ou para onde.
Recursos humanos, ao Deus dará, sujeitos aos caprichos desta guerra e dos que a
decidem.
E é assim que do ‘interior’ chega agora novo punhado humano, outros cinco
quadros: Albino Faife, mais tarde nomeado ‘comissário político’, Joaquim Vaz, ex-
funcionário dos Caminhos de Ferro, o comandante Daniel, o comandante Paulo
Ismaíl e o comandante Tristgainst… ‘que raio de nome!’, digo cá para comigo.
Este comandante Daniel virá a ser, meses depois, o chefe do Estado-Maior
Norte, entre Novembro de 1983 e Fevereiro de 1984. Joaquim Vaz passará então a
secretário particular de Afonso Dhlakama., e quase teve a cabeça no cepo: em Agosto
de 1985 seria ele o responsável pelo abandono da documentação comprometedora,
quando a FRELIMO conquista ‘Casa Banana’, a principal base da RENAMO no
interior de Moçambique. Vaz é um antigo soldado negro do exército português e
havia fugido para a RENAMO em meados de 1983, altura em que era chefe da
estação ferroviária de Marromeu, em Sofala. Quanto ao Paulo Ismaíl, o pobre só tem
uma das vistas, em Novembro, ocupará o cargo de chefe do Estado-Maior Centro.
Quando se olha pela primeira vez para o Joaquim Vaz, a caminho dos seus
quarenta anos, negro forte, educado, bem parecido, a primeira coisa que se nota é o
seu ar grave, rodeado de farta barba, um tipo pois hirsuto, corpulento, voz de trovão.
O Vaz parece uma versão simpática do Jonas Savimbi. É que no segundo imediato, de
súbito, o ar grave dá lugar à gargalhada sonora e cavernosa, à boa disposição
epidémica. É assim o Joaquim Vaz. Retrato de alguém que já conheceu o lado menos
mau da vida, uma certa comodidade.
Militou pois no exército colonial português e é aqui um dos poucos que tem
desde o início simpatias verdadeiras pelos ideais do movimento. Não lhe faltem a
barriga cheia e o repouso cuidado, problemas arredados, bem, bem ao largo, e será o

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homem mais feliz do Mundo. Adora Bob Dylan e a música ‘Mr. Tambourine Man’
que põe a tocar incessantemente. À noite é um dos que alinha sempre na jogatana ao
poker de dados, enquanto reconta pela enésima vez o episódio em que em Marromeu
deu abrigo a uma irmã religiosa e... pronto, as coisas acontecem, a irmã viu-se iniciada
noutros mistérios e verdades da vida, e ele só diz que lá nas profundezas dela a
senhorita parecia ter um badalo a tocar a tocar e que ele sentia, conforme ela se
retorcia toda...
É mesmo um amante do sossego próximo e da paz pessoal. ‘Senhor director,
não vale a pena ir provocar os bichos, arranjar problemas!’, responde-me ele,
invariavelmente, sempre que lhe proponho irmos à caça.
No respeitante ao Daniel, o mínimo que se pode dizer é ‘O riso nunca morre’.
Podia ser bem o slogan para este rosto jovial e sorridente. De vinte e poucos anos e
altura média, o Daniel é de fácil aproximação e trato, e um daqueles no campo com
quem acabo por ter mais confiança. Foi o único, aliás, que se atreveu e me arranjou
uma alcunha, ‘Director Cabecinha’. Esperto que nem um rato, inteligente, este
Daniel, com este sorriso que nunca despega nem mesmo nos momentos mais críticos
das discussões mais sérias.
Joaquim Vaz e o comandante Daniel deviam em princípio ir para Portugal
através de bolsas de estudo prometidas por Evo Fernandes. O plano, porém, acaba
por não se concretizar.

UMA CAMINHADA INFERNAL PELAS MONTANHAS


Afinal, até os guerrilheiros que passam meses e anos a fio no coração das
matas, gostam de um ‘pick-nick’ no campo! É assim que agendamos para um dos
domingos seguintes a escalada dos montes a oeste do nosso acampamento, e que se
erguiam logo a seguir ao riacho que se reduz agora a poças cada vez mais dispersas.
Somos um grupo aí de uma dezena compreendendo o pessoal de topo do
Estado-Maior, Raul, Domingos, Elias, e os recém chegados Albino, Paulo, Tristgainst,
Vaz e Daniel. Primeiro, caminhamos um pouco para sul, umas centenas de metros
bem mais a montante do local usado diariamente para os banhos. Diz-se existir por
aqui um trilho relativamente fácil para treparmos à encosta. Lá o trilho claro que
existe mas pouco falta para ser impraticável para nós, quase uma sessão de alpinismo!
A encosta é íngreme e agreste, contemplada com vegetação espinhosa. Faltam apoios
para os pés. Ora são rochedos arredondados enormes, lisos e escorregadios, ora é
uma espécie de gravilha que traiçoeiramente desliza sob os nossos pés e parece
querer-nos arrastar de novo para o vale, puxar-nos em queda. E nós aqui sem nada
onde nos agarrarmos, a vegetação é quase toda espinhos ou arbustos frágeis, a
alombarmos com a Kalash, a G-3 ou a UZI mais as marmitas do arroz e o frango já
assado, as garrafas de água gelada, os sacos com a lataria de refrigerantes e cervejas,
os nossos obuses, como dizemos jocosamente.
E logo hoje está um sol capaz de crestar-nos, trespassar implacavelmente o
vestuário. Evaporamo-nos literalmente. O stock de bebidas começa a ser sacrificado
logo aqui na subida. Por fim, arrastados, rastejando, não sei bem como, estamos no
topo, praticamente estatelados sobre o solo. Deslizamos rápido deste rebordo
traiçoeiro. Atrás, ao fundo à esquerda, algumas colunas de fumo elevam-se do local
do acampamento que mal se vê, as tendas bem dispersas e meio camufladas por entre
o arvoredo.

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Mas com mais atenção e binóculos, conforme me vai exemplificando o Raul,
podem-se descortinar os vários pontos chave: o sítio do camião-estúdio e tendas da
rádio, o posto médico, o Estado-Maior, até o cercado das instalações do Dhlakama.
Pequenos vultos circulam ocasionalmente e o Raul explica como se faz
cuidadosamente um reconhecimento a esta distância, com paciência, claro,
observando o tipo de movimentação, cadências e horários.
Acabamos por não encontrar os ‘nossos amigos’ babuínos que todos os dias
de manhã dão os bons-dias ao sol ou protestam contra as investidas sangrentas de
algum leopardo, mas numa ronda mais embrenhada para o meio do matagal,
juntamente com o Daniel, vislumbro uma gazela à distância de dezenas de metros. O
Daniel deixara-se ficar um pouco para trás e corre para mim quando ouve o disparo.
‘Então? Então?!’
– Uma gazela pá, disparei à cintura!
– À cintura da gazela?
– Não, pá... com a UZI mesmo à cintura, da cintura pá!
O Daniel só se ri, desdobra ainda mais aquele já eterno sorriso.
Não aguentamos mais e o conteúdo das marmitas vai à vida num ápice,
devorado, o nível das bebidas a baixar perigosamente, já no vermelho, por assim
dizer. E ainda falta a descida, e todo o percurso de volta. Claro que a meio do
caminho descendente por esta estúpida encosta já não levamos o peso de nenhuma
lata ou gota de água sequer. E eu sou um tipo de desidratação rápida. ‘Lixado!’ Ainda
não chegáramos a ‘terra firme’ e a sede manifesta-se já atroz. ‘Eu não aguento esta
merda!’
O outro pessoal também segue mais calado, sério. O acampamento ainda lá
muito para a esquerda, em baixo. Enfim, solo plano. O rio! Qual rio?... o que ficou do
rio, aliás. É só uma poça suja, um charco esverdeado com limos e pedras recobertas
pelo musgo, onde os bichos, reparamos nas pegadas, se vêm dessedentar ao fim do
dia. Ajoelho-me, bebo, sorvo que nem um camelo enquanto os outros disfarçam
agora o riso, mas por pouco tempo. Estão também tão atormentados por esta sede
horrível que quase todos, por fim, vão também ao charco saciar-se. Uma caminhada
dos diabos!

OPERAÇÃO ‘AGOSTO VERMELHO’ E A LUTA PELA TANTALITE,


MINERAL ESTRATÉGICO: MORTE E RAPTO DE DUAS DEZENAS DE
SOVIÉTICOS.
Estrondoso! A ‘Agosto Vermelho’ funciona. As minas de tantalite de Morrua,
na Zambézia são atacadas a 21 de Agosto pela guerrilha, que rapta vinte e quatro
geólogos soviéticos. É extremamente importante a tantalite, mineral estratégico
empregue na indústria aeronáutica, espacial e de armamento. Cobiçada por soviéticos,
americanos, israelitas, sul-africanos, potências europeias, enfim, quem tenha
capacidade para extraí-lo e processá-lo e integrá-lo nesses sectores industriais. No
assalto ao complexo mineiro é desbaratada a protecção militar local e do KGB ou
GRU (serviços secretos militares de Moscovo) e são abatidos quatro outros cidadãos
da URSS. A Operação ‘Agosto Vermelho’ está em marcha imparável. Os homens de
topo da RENAMO esperam transformar este feito militar numa vitória diplomática,
mas como estão enganados… Muito em breve, o futuro irá provar o contrário.
Quando esta informação me chega às mãos às tantas da noite, já no serão à
volta da fogueira e após o jantar, ordeno rápido que se liguem os geradores e se active

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o camião-estúdio. Chamo todo o pessoal da rádio. Vamos produzir uma emissão
especial, gravar já a nova fita com um comunicado de guerra. Quero que a bobine
siga logo de manhã para o emissor, isto caso tenhamos a sorte de haver viatura.
Já no ano anterior a guerrilha capturara meia dúzia de técnicos búlgaros que
foram depois resgatados pelo exército. Raul Domingos, chefe do Estado-Maior da
RENAMO, garante que o mesmo não pode suceder desta vez. Pelo meu lado, estou
céptico, e sempre defendi que a tomada de reféns não é a melhor estratégia para o
movimento, nem nunca foi, para qualquer movimento, historicamente, e que se deve
analisar friamente, na ocasião do ataque, o que fazer com eventuais técnicos, militares
ou pessoal estrangeiro.
A retenção de reféns apenas se pode traduzir, a prazo, numa derrota política e
diplomática, como sucedeu aliás. Mas ainda no final de Agosto somos informados de
que dois outros cooperantes da Europa de Leste são mortos na província do Niassa,
consubstanciando objectivos da ‘Agosto Vermelho’.

A 2 de Setembro vou com o ‘Doc’ em mais uma das viagens regulares a


Pretória. São no total uns mil e seiscentos quilómetros. Outras vezes trazemos a
‘combi’ ou um dos camiões. Como adoro estas amplas e longas estradas uma vez fora
da picada… uma sensação de liberdade do caraças! Farto-me de fumar, cigarro atrás de
cigarro destes ‘Camel’ da África do Sul, fortes. Começara praticamente desde que
‘aterrara’ no campo… e como parece acordar-me, espevitar ainda mais, o morder da
nicotina, o aspirar fundo o fumo, travá-lo, sentir picar o pulmão…
Desta feita partimos cerca das 22 horas, como habitualmente, aliás. Eu e o
‘Doc’ revezamo-nos na condução da combi, a furgoneta. De vez em quando paramos
num dos inúmeros drugstores ao longo da via, para um hambúrguer, cachorro quente,
ou pacote de russians, um tipo de salsichas fritas. Voltamos no domingo. É ao longo
do percurso que pela rádio e pelos jornais sabemos do que se acaba de passar com
um ‘Jumbo’ das KAL da Coreia do Sul, abatido pelos soviéticos, 269 mortos. A nossa
‘boa disposição’ para com os russos só pode aumentar.
15 de Setembro. O meio de um novo mês. As datas, os números, parece que
vão ficando martelados, não é uma impressão indelével o registo de cada dia, mas
algo que como a marca de um escopro ficará para sempre, duramente embutida, na
contagem e recontagem de todo este período… Ora, observo eu agora, quando se
deu a volatilização do Orlando Cristina, passara-se o mesmo: haviam trazido os
discos, livros e cassetes áudio do homem, as ‘Doce’, o Vítor Espadinha, etc. Agora, os
sul-africanos entregam à ‘Voz da RENAMO’, a mim directamente, uma aparelhagem
sonora e discos, o espólio do que havia pertencido a Boaventura Bomba. Já sei o que
aquilo quer dizer. O BB já não está entre nós, já não ouve desta música! São duas
caixas grandes com cento e tal LPs.
E quanto a som e imagem, numa certa vertente lúdica e educacional aqui para
as gentes do movimento, nesta base, pelo menos, aos fins de semana assiste-se agora à
passagem de filmes em vídeo. Dhlakama, que adora motas, coca-cola e filmes, e não
necessariamente por esta ordem, não costuma faltar às sessões quando se encontra na
Base de Comando Recuado. É! Em termos de entretenimento a base está mesmo
mais alegre.

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Da Zambézia chega-me a informação de que dois dos soviéticos conseguiram
escapar, ‘cabrõezecos da caraças, eu disse, resmungo eu’, fugiram durante uma troca
de tiros entre o grupo da RENAMO que os escoltava e soldados governamentais.
A União Soviética coloca entretanto quatro vasos de guerra junto à costa
moçambicana numa demonstração de força. Em discussão, conversa amena com o
chefe do Estado-Maior evidencio-lhe a situação melindrosa que é isso de andar com
reféns, e defendo que se deve retaliar com a liquidação de dois soviéticos para travar a
perseguição encetada pela FRELIMO. Raul Domingos está com uma medonha dor
de dentes e eu faço-lhe companhia, presto assistência junto do Estado Maior.
Prepara-se agora para enviar a ordem ao ‘interior’ via rádio, quando é travado pelo
coronel Van Niekerk que acaba de chegar. O responsável da A.M.I. pensa que talvez
seja uma medida necessária mas que é melhor contactar primeiro com Dhlakama e
Fernandes. E o secretário-geral que se encontra na Gorongosa, no interior de
Moçambique, acaba por desaconselhar tal acção, ‘que os russos podem retaliar contra
as representações do movimento, na Europa’.
Dias depois está ele a chegar aqui ao campo, a meio da noite, juntamente com
o Afonso Dhlakama. Haviam aterrado em Pretória. O avião em que regressam do
mato, um ‘Dakota’, esteve sob intenso fogo antiaéreo logo após a descolagem da base
da RENAMO. É aqui que se torna mais nítida a sensação de como estão
comprometidos estes esquemas.

ALERTA MÁXIMO. HÁ UMA ‘TOUPEIRA’ INFILTRADA ENTRE NÓS


Só meses mais tarde saberemos que há uma ‘toupeira’, um agente a propiciar
uma fuga de informações com origem em Pretória, e no próprio Zanza. Naquele 11º
andar, e alguém que conhecemos tão bem: o responsável é o cabo Roland Hunter, o
tal de ascendência britânica, e ex-estudante da Universidade de Witwatersrand, ‘não
faria mal nenhum esse jovem tomar banho mais vezes’ dizia dele a Lucinda Feijão. Já
há algum tempo que o Hunter vinha passando mensagens a círculos ligados ao ANC.
Será preso em Dezembro e mais tarde condenado a cinco anos de prisão. Ao saber do
caso, o tenente Johann ‘Voluntário’ Hurter ainda pretenderá trazer Roland para a Base
de Comando Recuado para o liquidar, mas Van Niekerk recusa tal medida extrema13.
9 de Outubro. Eu, Fernandes, Raul Domingos, Vaz e Daniel, participamos
num churrasco organizado a pedido do Evo que depois da ida ao interior, também ali
no campo pretende solidificar as pontes com o diverso pessoal. O cozinheiro arranja-
me uma bela perna de gazela que tempero e assamos sobre as brasa de uma fogueira
ao ar livre defronte das tendas da ‘Voz’. O novo secretário-geral tenta pois, embora
sem grande sucesso, diga-se em abono da verdade, quebrar o gelo entre si e os
militares do movimento. A sua ascendência goesa em nada o ajuda. É algo intrínseco
a esta gente cafreal.
10 de Outubro. Soam os alarmes, de certa forma: o campo entra em estado de
alerta máximo e principia-se a efectuar patrulhas em redor e nas montanhas. Dias
atrás, segundo os sul-africanos, foram avistados dois indivíduos negros a espreitar a
zona e a fugir. Diz-se também que no início do mês os radares teriam registado a

13 Tal ideia foi aliás equacionada a um nível muito mais elevado do oficialato dos ‘serviços’ sul-
africanos como surge plasmada num dos documentos da Comissão de Reconciliação, Verdade e Paz
sul-africana e do qual se reproduzem alguns excertos no Apêndice 2.

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passagem de um avião-espião soviético, um ‘Antonov-22’, a grande altitude e sobre
esta região.
Ajudo na instrução de um curso de fogo real com os elementos da ‘Voz’ e
com algumas das DFs, essas jovens do Destacamento Feminino. Mas isto é mesmo
do caraças: é preciso ordenar, gritar, para que comecem a disparar. E depois, tomam-
lhe o gosto, mas dizem que as mulheres são mesmo assim. É o cabo dos trabalhos
para cumprirem a ordem de cessar-fogo, berros, gestos, e não há meio de soltarem o
gatilho!
Ao mesmo tempo, do lado do regime, Samora Machel termina por estes dias
uma digressão à Europa ocidental. Assiste-se a uma certa diversificação, multiplicação
de laços e pontes, começando a contrariar algum do monopólio exercido pelos
soviéticos e Bloco de Leste, o que vai de encontro à política norte-americana para o
sub-continente protagonizada por Chester Crocker. Algo que não é bem visto pelos
‘falcões’ em Pretória. E tanto assim é que, em Maputo, por seu turno, ao mesmo
tempo, os escritórios do ANC sofrem um ataque bombista efectuado por alegados
agentes sul-africanos.
Quando se cumpre o quarto aniversário sobre a morte de André Matadi
Matsangaíssa, o primeiro dirigente da Resistência, em 17 de Outubro, realiza-se uma
concentração e parada no terreiro da base. Sob um calor tórrido Afonso Dhlakama
discursa desde as onze horas. Ataca a propaganda de Maputo. Refere-se às novas
zonas de guerra a norte do Zambeze e em Maputo. Gesticula fortemente de
Kalashnikov nas mãos e fala nos ‘milhões’ de mortos infligidos ao exército
governamental. Os berros de ‘Viva!’ e ‘Abaixo’ são entrecortados pelos hinos
máximos do movimento: ‘Moçambicano pega em armas / Na luta contra Machel,
boateiro / Inimigo do povo / Lutaremos até à sua liquidação...’ e este, o do sábio
mocho: ‘No dia que recebemos / A nossa independência / Todo povo ficou contente
/ Mas agora, tristeza... / Até o próprio mocho / Faz críticas ao machelismo / Qui
rouba o nosso povo / Mooçambicanooo!’
De repente ouve-se o motor de um veículo e eis que surge de rompante junto
à formatura um farmeiro ‘boer’ numa carrinha de caixa aberta, acompanhado de
quatro empregados africanos. O branco está petrificado, ao ver ali dezenas de homens
negros fardados, fardas heterogéneas, diga-se, alguns empunhando armas soviéticas.
O homem não acredita nesta tropa fandanga toda aqui, mas as armas são bem reais,
tal como as fardas, e o material humano, negro, que está dentro… Acerco-me do
carro e pergunto-lhe o que faz aqui. E também eu, sem obrigação aliás, envergo o
meu panamá da tropa sul-africana, botas e roupa militar… mas o gajo no carro não
está muito tranquilo. Diz que esta farm já foi dele. Agora é do exército, bem sabe, mas
mais longe ainda, possui umas cabeças de gado. Havia parado na ‘embaixada’ mas
pensava que estivessem todos a dormir, ninguém respondeu à buzina, e resolvera
prosseguir. O ‘boer’ regressa à ‘embaixada’ e creio que o proibiram de voltar.
Ultrapassado este incidente e com o pessoal ainda confuso, conclui-se a
cerimónia alusiva ao dia com uma sessão de cabanga (cerveja de milho) distribuída de
uma enorme cabaça pelo próprio Afonso Dhlakama que a todos vai servindo, como
um autêntico sacerdote na comunhão. O ritual está cumprido.

E quase a terminar este Outubro, já a 28, recebemos a notícia de uma


importante sabotagem nas linhas de Cahora-Bassa. E desta, foi de vez. Bem se
aconselhara os homens da HCB, a Hidroeléctrica de Cahora Bassa, a fazerem como

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os italianos. Instara-se o governo português a atitudes mais comedidas e equilibradas.
Doravante, os postes a serem derrubados fazem lembrar pedras de dominó
encostadas, a tombar. E desde essa data, e durante toda a guerra, a barragem
moçambicana não mais voltaria a fornecer energia à África do Sul. Daqui para a
frente, a situação das linhas condutoras só se agravará, irremediavelmente.

Fim do mês, e ponto final, também, a ‘Potgietersrust’: os sul-africanos referem


agora que é desaconselhável a permanência por mais tempo na actual farm. Os alertas,
as fugas de informação em Pretória, os sobrevoos de aviões-espiões, o farmeiro
‘boer’… tudo contribuiu para tal decisão. Fala-se em nova transferência, imediata, de
instalações. E a mudança é executada logo no primeiro dia de Novembro. Será
mantido segredo absoluto, até à última-hora, sobre qual o novo local escolhido.

A FUGA PARA PHALABORWA. UM PARAÍSO NO MEIO DA SELVA. A


TERRÍVEL SEDE. JAVALIS E ELEFANTES
A Base de Comando Recuado ficará agora a funcionar a uns seiscentos
quilómetros a noroeste de Pretória e instalada afinal bem próximo de Phalaborwa.
Partimos do antigo campo ‘St. Mili’, Potgietersrust, cerca do meio dia deste 1 de
Novembro, em diversos camiões fechados, e sem cores militares. Sigo no primeiro,
conduzido pelo cabo ‘Doc’. Na retaguarda abafadíssima vai o resto do pessoal da
emissora, com bagagem e armas. Subitamente, perto de Tzaneen, uma vilória, somos
obrigados a parar no caminho pela temível Polícia de Segurança. Um controlo. A
documentação da A.M.I. faz milagres e impede que os agentes inspeccionem a carga,
carga material e humana. Imagino a surpresa que seria.
Quase à meia-noite chegamos a Phalaborwa. Enveredamos pela estrada que
roça pela Palabora Mining Compay. Uns quilómetros à frente, após a pequena ponte
sobre o Seláti River e antes de se chegar à Water Board (a Companhia das
Águas) viramos à esquerda. Entramos assim em enorme zona florestal, alternando
com savana, área pertencente ao exército. Acampamos numa depressão do terreno,
uma cova afastada dezenas de metros da picada poeirenta que cruza esta nova farm. O
sítio porém é péssimo. Nos dois dias seguintes chegariam os restantes camiões vindos
do antigo campo. Estamos todos sem água e alimentação à excepção de umas latas de
sopa ‘Knorr’ que eu trouxera. E água para as cozinhar? A logística da mudança fora
mal preparada.
É uma balbúrdia tremenda a vida nesses primeiros dias no campo. Quando
chegamos é noite cerrada e cada um procura uma reentrância do terreno, um espaço
entre rochas para se abrigar até de manhã. Acordo sobressaltado com algo a passar
muito rápido sobre mim, e ainda estremunhado ouço dizerem que acabo de ser
‘atropelado’ por um javali, felizmente sem consequências.
Bem, agora há que erigir as tendas, esperar pela água e comida, enfim, instalar
todo um campo de raiz. A meio da manhã estão de pé as tendas da rádio. No fundo
daquela depressão no terreno será a área destinada ao Dhlakama, mas aquilo é tudo às
três pancadas, sem condições, o pessoal começa a resmungar entredentes. Então o
terreiro do Dhlakama não tem mesmo jeito nenhum: de todo o campo se vê a tenda
principal do presidente, a tenda para receber visitantes do presidente, a latrina do
presidente, a casa de banho do presidente, o escritório do presidente...
E de novo é a sede estuporada que nos invade a todos. Sabemos que o rio está
aqui tão perto, a dois passos, e contudo estamos terminantemente proibidos de sair

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desta área. Há ainda uma série de booby traps, armadilhas explosivas, pelo mato em
redor. O Bento Maria surge já após o meio-dia com alguns blocos de gelo que
chegam apenas para acalmar a sede imediata destas dezenas de pessoas. Ainda não há
quantidade suficiente para se cozinhar. A partir do meio da tarde, lá para o azimute
sul, vemos erguerem-se majestosas no céu aquelas nuvens em estilo de couve-flor e de
rápido desenvolvimento vertical, brancas de início mas que logo vão escurecendo, os
cúmulo-nimbos. Uma promessa de trovoada e chuva!
É de novo madrugada, mas estamos agora abrigados quando ouvimos os
primeiros pingos, grossos que nem berlindes, a tamborilarem sobre a lona militar da
tenda. E já um cheiro, aquele odor tão próprio da terra molhada, enche denso a
atmosfera. Algumas rajadas enfunam o tecido e do tecto desprende-se a película
pulverulenta acumulada em semanas de estio. Passa o vento, arrastam-se as
derradeiras trevas da noite que levam consigo os últimos aguaceiros, e a manhã abre-
se de novo esplendorosa a este sol que sobre aquele tão vívido verde, a leste, parece
rir-se para nós e lançar novo desafio. Com alegre surpresa descobrimos alguns litros
de água acumulados nas covas da lona do tecto. Em cuidados extremos reviramos o
tecido levando o líquido a resvalar para um balde. É uma festa. Enfim, para a sopa
‘Knorr’ já temos água.
De súbito, estremecemos todos: uma trombeta grave parece homenagear esta
conquista. A pouco mais de dez metros das traseiras das tendas um grupo de
elefantes toma o seu pequeno almoço, vagarosamente, sem medo mas com olhares
atentos. Recolhem os ramos mais tenros de uns arbustos com pouco mais da altura de
um homem, verdes e bem regados pela bátega nocturna. Depois, com a mesma
parcimónia e vagar com que chegaram assim partem discretos, tromba agitada de
satisfação, sem nos incomodar. Ao almoço e ao jantar sorvemos a sopa ‘Knorr’ com
o mesmo gosto de quem se delicia com as melhores iguarias deste planeta. É ao fim
deste segundo dia, quando estamos à volta de uma fumarenta fogueira aquecendo a
sopa para o jantar, que nos informam terem sido já retiradas as ‘booby traps’.
É grande a nossa ânsia quando acontece de novo a manhã, a terceira alvorada
aqui. Alguns conhecem bem o caminho para o Seláti River, os que haviam estado
antes por cá, na zona de Phalaborwa. Temos autorização para ir até ao Seláti! Um
reparo apenas: ‘Não beber dessa água nem usá-la para cozinhar’. Pelo menos a desta
parte do rio onde vamos agora. Pode ser extremamente venenosa. No Seláti são
descarregadas as águas provenientes das minas e indústrias de Phalaborwa, ligadas
essencialmente aos fosfatos. Contam-me que chegam a observar-se hipopótamos e
crocodilos mortos a flutuar. Porém, mais perto da confluência do Seláti com o rio dos
Elefantes, garantem, até já é seguro pescar. Felizmente será ao longo deste dia que
começarão a chegar mais bidões de água e alguma comida que alivia a dependência
das sopas liofilizadas que já enjoamos.
Mas apressemo-nos, o Seláti espera-nos. A pé, a corta mato, no verdadeiro
sentido da palavra, muitas vezes sem qualquer trilho que nos facilite, cortamos a
direito por entre o espesso matagal até à margem que sabemos existir para norte, a
pouco mais de um quilómetro. Subimos e descemos os vários desníveis do terreno, ou
antes, trepamos e resvalamos continuamente. Atenção especial às cobras, claro, e a
algum bicharoco suicida mais corpulento, pois vamos bem preparados de ferramenta
que obste a qualquer obstáculo desses. Predadores? Predator’s ‘r us!!! (os predadores
somos nós!).

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E de repente do meio da selva, isto parece uma cena em ‘technicolor’ retirada
de um filme do Tarzan, vimos dar a uma janela do Paraíso, uma abertura para um
caminho que se alonga paralelo a esta margem toda ela em verdes vivos, em terreno
de inclinação pouco acentuada e que retém as poucas dezenas de metros de largura
do Seláti.
Tudo é tão brilhante e verde aqui, em comparação com a palidez asfixiante de
Potgietersrust. Pelas bolas enormes de excrementos e pegadas, apercebemo-nos de
que os elefantes passaram aqui há pouco, sobre a faixa mais pantanosa à beira da
água. O ar vibra com os gritos de aves variadas, saguis, libélulas e outros insectos. O
rio corre manso, lânguido, um pouco barrento. Caminhamos para montante, na
direcção oeste. Em breve chegamos a um recanto cheio de sombras, árvores de maior
porte, e com algumas mesas em pedra e bancos cortados de grossos troncos. Um sítio
óptimo para ‘pick nicks’. Se aquilo era das forças especiais, pelo menos tinham mais
essa especialidade ali, a de arranjarem soberbos recantos para ocupar os momentos
livres.
No meio deste sossego imenso, um sopro sonoro corta a atmosfera, e eis que
alguns repuxos se jactam do seio da corrente. Uma pequena ilha escura e luzidia
parece subir das águas, erguer-se do rio. São os hipopótamos! Todo um grupo deles
que nos miram com curiosidade. Havíamos de vê-los até vezes demais. E agora,
conforme caminhamos já de volta, na outra direcção, ‘...o que é aquilo?’ Surpresos,
olhamos para esta madeira que flutua, vai contra a corrente… com saliências a
espreitar, a escassos metros da margem... ‘Sim! aquilo ali à direita, vês?!’, pergunto ao
Raul. ‘Eh pá! Cuidado! Crocodilo, pessoal!, grita o chefe do estado-maior. Cuidado
todos!!!’
Eram os ‘alfaiates’ do rio. Com uma sucessão de bolhas, e provavelmente
chateado com os nossos berros, o réptil submarino remeteu-se para paragens mais
fundas. Já com alguma fomeca despertada pelo passeio regressamos ao campo. Cá
está o pessoal do Dhlakama a resmungar ainda com a localização das instalações do
líder ‘número um’, e as culpas a recaírem sobre os ombros do ‘Voluntário’, o tenente
Johann Hurter, que foi quem sugeriu o sítio.

O PLÁCIDO RIO DOS ELEFANTES DESLIZA PELAS MARGENS DESTA


GUERRA. A NOVA BASE JUNTO AO KRUGER PARK
Quarto dia. Retiraram-se já os últimos elementos das tropas especiais sul-
africanas. Podemos enfim chegar até ao Rio dos Elefantes para tomar uma banhoca.
Somos um grupo de mais de uma dúzia e vamos desta vez num rumo aparentemente
nordeste seguindo pela estrada de terra batida que faz uma tangente à cova do
acampamento.
A cerca de dois quilómetros chegamos ao local que já albergara
anteriormente, a BCR. Parte do pessoal que vai comigo conhece, é claro, toda esta
zona, e vão ciceroneando os vários recantos: ali, um pré-fabricado albergou o
Dhlakama o ano passado. Mais perto do rio, uma fiada de outros pavilhões constitui o
armazém, cozinha, refeitório e cantina. Há algumas outras construções mais
pequenas, dispersas e toscas, em madeira e zinco, logo junto a um ‘T’ da estrada. O
caminho flecte no seu ramal para a direita, em direcção sensivelmente a sul, e para
montante, emparelhando com a margem deste rio dos Elefantes. Será para essas
bandas o sítio da nova ‘embaixada’, uma construção de dois pisos em cimento e duas

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rondáveis, segundo me contam, e com um jardim arrelvado até, pasme-se, aqui no
seio desta selva tropical.
Acercamo-nos da margem. Segue vagaroso e largo o Oliphants River, com
bem mais de cem metros de margem a margem. Lá para o fundo à direita, e à direita,
que é sinónimo de mais a montante, para o sul, nem se vislumbra daqui, existe uma
barragem. Avisam-me das cheias repentinas quando as comportas são escancaradas.
Mas agora é a preguiça em toda esta massa de água.
– Está a ver?, mostram-me os rochedos que fazem como que uma enseada
comprida, mas protectora, quase fechada. Das pedras para aqui podemos nadar.
São poucos metros de largura e a água chega apenas à cintura. Nus
completamente, afundamo-nos nas cálidas águas de pouca corrente. Ensaboamo-nos,
enxaguamos, alguns lavam até os dentes. Deixamos os filetes de água acabarem a
limpeza, arrastar o resto daquela poeira entranhada dias a fio. Claro, aqui estamos
protegidos dos grandes ‘alfaiates’, os crocs, mas mesmo assim chamam-me a atenção
para os bagres, aqueles peixes de água doce de longos bigodes e de tendências
carnívoras, principalmente, ao que dizem, por certas partes:
– Senhor director, cuidado com o ‘material’!, advertem eles a rir.
Acabamos por vestir as cuecas mas deliciamo-nos ainda, por largos minutos
mais, com estas águas que nem conseguem afinal ser suficientemente refrescantes.
Phalaborwa é isso mesmo, como dizem, tórrida, inclemente.
Saímos do banho, secamo-nos brevemente com as toalhas. O sol faz o resto.
Já vestidos, efectuamos um reconhecimento até à curvatura um pouco mais a jusante,
à esquerda. É a confluência já adivinhada, a foz do Seláti. Mesmo ali as coisas dão-se
com uma calma imensa, sem redemoinhos, torrentes ou rápidos. As duas águas
mesclam-se numa hidrodinâmica sem sobressaltos, fluida, alinhando algumas plantas
aquáticas, cachos verdes que parecem pequenos bolbos, balões soprados, deslizam do
Seláti até apanharem boleia da caudal principal. Dali só têm uma fuga: Moçambique,
Gaza, onde o Elefantes serve o imponente Limpopo que mais adiante após lamber o
Xai-Xai irá abraçar e morrer no azul do Índico.
Ao sexto dia e na sequência de um descontentamento generalizado sobre as
condições existentes, as coisas aceleram-se. Resolvem que já nos podemos transferir
para este antigo lugar ocupado pela Base de Comando Recuado em 1982.
Estamos encostados ao Kruger Park e o sítio é quentíssimo. Phalaborwa é um
termo antigo que significa em dialecto local ‘melhor que no sul’, presumivelmente em
termos climatéricos, ou de caça. Mas quanto à temperatura, é de facto um verdadeiro
inferno. Além disso, por estas paragens, e ao contrário de Potgietersrust, tem chovido
imenso. A humidade é insuportável.
O Rio dos Elefantes continua cheio, principalmente quando a barragem abre
as comportas. Leões, hipopótamos e babuínos rondam o campo. Os crocodilos são
como já sabemos uma autêntica praga e obrigam-nos a uma atenção muito especial
nos banhos de rio. Por fim preferimos os chuveiros, embora com água muito mais
quente. Na estrada e mesmo próximo da base surgem também elefantes, girafas,
javalis, zebras e antílopes de toda a espécie. Okay! Isto não é nada de extraordinário
em termos de infra-estruturas, mas é de certa forma uma base com condições e muito
melhor do que estávamos na zona de Potgietersrust. Well! Vamos então à mudança!

Um sol brilhante e quentíssimo desde manhã testemunha mais esta andança


em camião, e o ritual seguinte do erguer das tendas. Pela tardinha temos de novo os

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cúmulo-nimbos a encastelar a noroeste com perspectivas de mais trovoadas e chuva.
E estando neste rescaldo do trabalho de montagem, eis que surge mais uma das
nossas ‘amigas’ listradas: uma cobra, a rondar a colocação da tenda-biblioteca da
‘Voz’. Pobre bicho, não viveu o suficiente para se intelectualizar! E mais uma vez,
como que para provar o mito, cerca de uma hora depois lá surge nas proximidades o
‘marido’ e que conquista sorte igual, de ser alisado à paulada. Enfim, este ódio de
estimação que dura há milénios vem sempre ao de cima.
O jantar improvisado vem aplacar o cansaço que extravasa desta centena de
corpos gastos em mais uma contenda de ferros e lonas e estacas e armários, dossiers,
eu sei lá. E, milagre dos milagres, à direita do refeitório e cantina, temos à nossa
disposição um telheiro com uma série de chuveiros, ligados ao depósito que recebe
água canalizada. Um luxo autêntico. Água canalizada e energia eléctrica sem
dependência dos geradores! Quanto aos chuveiros, é bom de ver que aquilo seriam
banhos várias vezes ao dia, ou à noite. As melhores horas serão mesmo pela noite
adentro. Mesmo assim, com esta humidade tremenda, minutos depois temos de novo
a roupa pegada ao corpo.
A promessa de trovoada desanuviou-se ao longe e, quanto à brisa, hoje, nem
senti-la. O ar adensa-se de novo em humidade doentia. Dos mangais a norte chega
por vezes um odor característico a dióxido de enxofre, putrefacção, do efeito de
bactérias como a clostridium botulinum, a tornar negra a carniça vermelha ou outro
material orgânico que se decompõem. A malária ronda neste ar quente em rodopios
de nuvens de mosquitos. Não é só o tempo, o clima, que é adverso. Há aqui muito
mais em termos de bicheza do que nas montanhas de Potgietersrust. Como ‘cartão de
visita’ da fauna menor local, o Daniel do Estado-Maior é logo brindado com uma
tremenda ferroada de escorpião, ao vestir um par de calças. Bicho pequenino,
preto, mas malandro!, logo esborrachado. Perna inchada em pouco tempo, o Daniel é
todo ele dores e febres e suores.
E há mais surpresas logo na primeira noite aqui. ‘Que ruídos, que triturar é
este que me acorda a meio da madrugada...? O que é que foi isto a passar-me veloz
por cima, um caranguejo, aqui?!...’ Acendo a lanterna. ‘Incrível!’ Uma aranha enorme
de carapaça rija… não, não é daquelas peludas, estilo tarântula. Esta ‘minha’ aranha é
um caranguejo autêntico e entretém-se a devorar a um canto uma sua igual. Têm o
tamanho de uma mão aberta. ‘Um nojo!’. É mesmo com repugnância que agarro na
bota militar e de um golpe rebento com esta massa crocante. Uma poça de geleia
lamacenta alastra pelo chão, enfeitada com estilhaços quitinosos. E também as
centopeias iriam apresentar-nos cumprimentos, bem assim como as densas nuvens de
mosquitos em tortura contínua nocturna. Mas seriam as aranhas gigantes o que ali
mais impressionava e o seu canibalismo ruidoso que constatámos em diversas
ocasiões. Para mim, aquela era a parte horrível das ‘férias na selva’. Para os outros
bicharocos maiores estávamos nós melhor preparados... ‘Que venham!...’.
Dhlakama, a família e os guarda-costas ocupam com as suas tendas um
terreiro reservado perto do cruzamento em ‘T’ na via principal, à direita, de quem
chega ao campo. Quanto ao tal grande pavilhão pré-fabricado, volta a servir de
cozinha, refeitório e centro social. Outra construção, com mastro de bandeira ao lado,
fica a ser o escritório da ‘Voz da RENAMO’. Em 1982 havia sido ali a residência de
Dhlakama, o qual, agora, e por razões de segurança, não volta a ocupar o mesmo
espaço. No respeitante ao Estado-Maior, é por esta altura que se divide então em
Norte, Centro e Sul, e ocupa os pré-fabricados restantes.

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As tendas militares, há dezenas delas, são espalhadas por entre o arvoredo. A
nova ‘embaixada’, como referi, está junto à margem do Rio dos Elefantes a cerca de
meio quilómetro a montante, e volta a ser ocupada pela malta sul-africana que nos dá
apoio. Vou até lá e vejo que é constituída pela pequena construção de dois pisos, em
cimento, e por mais duas rondáveis.
Acomodação. Sistematização do trabalho. Logística. Comodidade. Compras…
as compras são agora efectuadas num supermercado das forças armadas, o SAWI,
junto ao Hospital Militar de Phalaborwa. A ida à cidade é um autêntico escape… e há
lá meia dúzia de gajinhas porreiras que enchem a vista, mas isso são outras histórias!
Afinal, ‘tou prá ‘qui é pró esforço de guerra, do movimento, não é verdade?...
aparentemente… e convém não descarrilar. E quanto à sistematização do trabalho, na
emissora, o trabalho, é logo reatado, e prossegue normalmente. Apenas o locutor
Chaviro, este tipo de aspecto mais intelectual e de costas cravejadas por essa varíola
artificial das chambocadas, as chicotadas que cumprimentaram a sua adesão pouco
voluntária ao movimento, é que continua a queixar-se da falta de óculos que os sul-
africanos nunca lhe arranjaram. Os seus glasses, continua a lamentar-se perante
mim, ‘foi aquele episódio que já contei ao senhor director…’ haviam sido
propositadamente esmagados quando foi raptado. Transmito a preocupação ao Raúl,
a Dhlakama e aos sul-africanos, que me prometem levá-lo a um oftalmologista militar.

Nos dias seguintes é o reconhecimento mais extenso à volta do local: com os


outros da rádio sigo ao longo do trilho que vai bordejando ali desde a confluência dos
dois rios, pelo Seláti acima. A uns quinhentos metros a margem abre-se em placa
rochosa ao nível das águas que permite passagens quase a seco para algumas
plataformas baixas, ilhotas revestidas a vegetação rasteira, capim esparso e arbustos
aquáticos já dentro do rio.
Há aqui uma certa imprecisão na definição da margem. Algumas zonas são de
mangal, lamacentas, entremeando a porção rochosa. Os canaviais e as tais plantas
aquáticas bolbosas, flutuantes, intrometem-se em toda a parte. Acho que sendo tão
fustigado pela química inclemente de Phalaborwa o Seláti ainda não decidiu bem o
que é que quer, se morrer pelas margens, se fluir livremente e engrossar o mais
possante rio dos Elefantes! Por entre as plataformas pedregosas e brincando com as
partes arenosas, correm riachos transviados que escapam ao corpo principal do rio e
se enovelam em pequenos regueiros. A água canta sobre as pedras, quebra-se em
novos fiapos prateados e revoltos que se enleiam de novo em complicados e fugazes
torvelinhos mas para logo reganharem a tranquilidade. Depois, é a calmaria que fica
mais a jusante dessas pequenas lagoas entre os baixios e canaviais. É aqui que me
mostram alguns bons locais para a pesca.
Das rochas sobranceiras basta estender um caniço por sobre essas pequenas
enseadas de fundo claro: ‘É garantido! Peixe, muito, senhor director, vai
experimentar!’. Mas por ora, voltamos à margem para retomar o caminho a montante.
Nenúfares e bolbos aquáticos estão aqui por toda esta orla, intrometem-se nos
canaviais, alguma vegetação apodrece ao ar, desmaiada sobre o rebordo pantanoso. E,
pelo flanco esquerdo, o terreno vai-se agora elevando progressivamente conforme
progredimos. O trilho corre já entre uma elevação, uma série de cabeços de dezenas
de metros de altura, formados por rochas estratificadas, de um lado, e a placidez deste
Seláti, por outro.

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E já sabíamos, calculamos, onde é que isto vai ter, todos possuímos um
mínimo de sentido de orientação intrínseco a todas estas andanças de há meses: é o
tal sítio aprazível para piqueniques que tínhamos já dias antes alcançado, as mesinhas
à sombra fresca, nesta parte em que o Seláti parece mais largo, quase um lago imóvel,
e que os crocodilos e hipopótamos igualmente apreciam. O cenário soberbo
desdobra-se de novo perante os nossos olhos, uma brisa solta-se, corre ligeiramente
mais fresca, roçando as plácidas águas. E é assim que após mais uma vez
contemplarmos este remanso por sob o sussurro das enormes copas, deste vivo
dossel verde escuro que finalmente proporciona uma leve frescura, ficamos quietos,
quase embevecidos, a seguir o sol no seu deslizar alaranjado para o horizonte envolto
em diáfano violeta e carmim. Depois, imbuídos ainda de toda esta imagem de calma
profunda e serenidade, voltamos resignados para a buliçosa base, para o sorvedouro
da empolgante e ansiosa máquina de guerra.

Do interior de Moçambique recebemos a informação, já nos finais de


Novembro, de que dois dos soviéticos acabam de morrer por doença. A linha férrea
Maputo-Zimbábwe é dada como encerrada pelas autoridades de Harare e as ferrovias
Beira-Moatize e Beira-Maláwi estão de igual modo paralisadas. ‘Estender a guerra a
todo o território. Paralisar o país e vias de comunicação. Flagelar os cooperantes
estrangeiros’, eram essas as palavras de ordem. E tão mais fácil, que é, destruir, algo
que demorou tantas décadas a erigir, desde as infraestruturas, ao material humano, à
confiança…
‘Todo o país…’ Na verdade, noticiam-se agora diversos ataques no sul do
Niassa, já bem no norte de Moçambique, e o corte da linha de caminho de ferro
Nacala-Maláwi. E os primeiros grupos armados começam a ser infiltrados em Cabo
Delgado, a última das províncias a ser tocada pela guerra, o berço do guerreiro povo
maconde.
O exército moçambicano, por seu lado, está na ofensiva, ou pelo menos é o
que se propagandeia, em Manica e Sofala, no centro do país, auxiliado pelas tropas da
brutal 5ª Brigada zimbabweana. O Estado-Maior da RENAMO diz ter sustido a
investida e acusa os zimbabweanos de atacarem aldeias civis e de matarem trezentos
populares. E cá mais para o sul, um desertor do exército fugido para a Swazilândia
fala de um ataque ao camião em que seguia, já perto da fronteira suázi.

VASSALAGEM TOTAL: DE COMO PRETÓRIA AMEAÇA E CONTROLA


DHLAKAMA
Em fins deste cada vez mais quente mês de Novembro, as divergências
escaldam e atingem um pico máximo, entre os sul-africanos e Dhlakama, a propósito
dos soviéticos raptados em Morrua. Se bem que a ‘Agosto Vermelho’ fosse
estruturada e baptizada em termos de propaganda, acaba por coincidir com um
esforço de Pretória em mostrar que é capaz de brandir alguns trunfos sobre este
tabuleiro da África Austral. Não acredito que o ataque a Morrua fosse por acaso, e
não se estivesse à espera de tomar como reféns os geólogos soviéticos. Tal, se não
aconteceu por acaso, terá sido planeado a um nível muito elevado, com o
conhecimento e por indução de altas autoridades políticas da África do Sul.
Estou estupefacto, ou talvez nem tanto, eu que já havia até ‘aconselhado’ o
Raúl Domingos sobre situações destas… E exemplificara até. Década de ‘60, desvio
de aviões, pirataria aéra, ‘Cuba! Cuba! Cuba!... depois, Munique, 1972, Setembros

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Negros, Brigadas Vermelhas e todo o filão seguinte, raptos, resgates, desvios de
aviões, exigências políticas… e desde a primeira hora está o indivíduo, o grupo, a lutar
isolado nesses golpes de mão, contra toda uma bateria de psicólogos, polícias,
políticos e militares que se revezam e aguentam horas e dias a fio, muito melhor,
passado o primeiro embate, essa vitória do instante, e vão agora estudando,
corroendo, desgastando, até reverterem totalmente a situação. Não se iludam. O que
há a fazer, decidir sobre a sorte dos desgraçados apanhados, é coisa para tratar nos
minutos imediatos à acção primeira. Senão… mais não é preciso afirmar. E a prova,
aqui está, bem crua agora.
Secretamente, fora já estabelecido um acordo entre Moscovo e Pretória. A
África do Sul deve utilizar toda a sua influência para libertar a curto prazo todos os
raptados e, imediatamente, três dos soviéticos que se encontram doentes.
Dhlakama mostra-se irritado e renitente em acatar a ordem dada por Pretória
para a libertação desses três reféns. Mas na manhã do dia 29, transparece a
ameaça: forças especiais sul-africanas têm dois aviões de transporte ‘C-160’
estacionados em Waterkloof e esperam apenas um sinal para intervir. Se a RENAMO
não liberta os três soviéticos, será o assalto, esta mesma noite. Os sul-africanos estão
prontos para saltar de pára-quedas sobre a Zambézia, atacar as duas bases do
movimento onde se encontram os três cativos e resgatá-los, se preciso for, pela força
das armas. O acordo que elaboraram com Moscovo, à revelia da RENAMO, é para
ser cumprido.
Todo este processo de pressão sobre Dhlakama, o Estado-Maior da
RENAMO e outros quadros militares no interior, envolve grande parte da manhã. É
um correr sem fim entre a Base de Comando Recuado e o quartel de transmissões em
Phalaborwa onde está a capitã Mariana. Dhlakama cede. Os três soviéticos serão
libertados pela Resistência.
As exigências do movimento, até então, para libertar os reféns, centravam-se
numa exigência de resposta da FRELIMO sobre a sorte dos ‘desaparecidos políticos’:
Joana Simeão, Mateus Gwengere, Urias Simango, Paulo Gumane e outros. Uma
forma de expor a faceta pouco recomendável de Maputo em matéria de direitos
humanos e o seu rol execuções sumárias de dissidentes políticos. A RENAMO
pretende também que a URSS retire técnicos e conselheiros militares do resto do país
para Maputo, decresça o apoio material que presta à FRELIMO, e que inicie um
discreto fornecimento de armas ao movimento. Em Lisboa, Evo Fernandes e Jorge
Correia, o novo delegado da RENAMO, efectuam os primeiros contactos com um
secretário da embaixada soviética, Lev Poromin.

Por esta altura, presto um certo auxílio ao Estado-Maior no referente à


compilação de informações adicionais. Conseguira recentemente, por exemplo, bons
dados de valor estratégico, mapas, fotos, material sobre Cahora-Bassa e pormenores e
diagramas sobre o sistema principal de distribuição de energia à cidade de Maputo.
Raul Domingos diz agora que eu ‘talvez tenha razão’, sobre a maneira de proceder
para com os reféns soviéticos. Refere-se à minha ideia e conselho, ainda na zona de
Potgietersrust, quando ele se encontrava com uma tremenda dor de dentes, e fora
sustido, na ordem, pelo Charlie Van Niekerk. ’Terminate. With extreme prejudice’.
(Liquidar! Rebentar com tudo!). ‘Dar cabo dos filhos da puta dos russos, dos dois ou
de todos, teria sido o melhor’, pensava eu, e enfim, sarcástico agora, satisfeito, via o
africano conceder-me razão por fim. E calculo que Dhlakama se encontre no mesmo

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estado de espírito após esta humilhação suprema que o coloca bem no seu lugar de
cipaio e mero capanga às ordens de Pretória. Afinal quem expõe quem? A FRELIMO
não abre o jogo sobre o destino que deu aos dissidentes, e Dhlakama mostra-se
menino obediente do patrão branco que o arma e protege. A bem da distensão, a
prazo, na África Austral.
É tarde, porém, para lamentações e recriminações. O mal está feito. A
estupidez impera e vence. Dos vinte e quatro capturados em Agosto, dois fugiram no
ataque ao grupo de escolta, tal como foi já referido. Três, escaparam-se
posteriormente, durante uma acção contra uma das bases do movimento. Dois
morreram por doença, e outros três são agora soltos sob pressão de Pretória. Esta
vitória militar vai-se desfazendo. Restam catorze reféns. E destes, doze serão
libertados em Janeiro, igualmente devido a pressões como estas brandidas agora pela
África do Sul.
Quanto aos dois últimos russos, terão sido liquidados pela RENAMO, em
local e altura desconhecidos, como desforra. Acho que subsistem hoje poucas dúvidas
sobre isto, e mesmo em papéis de Dhlakama surge escrevinhado algo como ‘os dois
soviéticos que querem, há muito, já, que foram para o abismo do comunismo’. Porque
não aparecem na contagem final? No lote dos últimos a serem libertados? Acho que
em dada altura, entre a libertação forçada destes três, ordenada por Pretória, e da
dúzia restante, Raúl Domingos, Dhlakama, ou algum dos ‘generais’ mais mal disposto
tenha decidido uma pequena ‘desforra’ ou lição.
Como ameaça e demonstração de força regional, nas águas ao largo de
Moçambique continuam a vogar entretanto quatro vasos de guerra russos: um porta-
aviões, um barco lança-mísseis, um cruzador e um navio de desembarque, vindos das
costas angolanas.

OS SECRETOS PARAQUEDISTAS DA RENAMO


Em 30 de Novembro há novo reabastecimento ao interior. Na ‘embaixada’
está um novo tenente, o ‘Long John’. Nessa noite lá surge ele ao longe do caminho
brumoso, para lá do estado-maior, em direcção ao nosso campo, a esta fogueira
imensa, onde se cumpre o ritual do costume sempre que há voos de reabastecimento.
Chega com uma Bíblia na mão, metralhadora na outra, e um cão de guarda. É ele
quem efectua uma pequena oratória nesta atmosfera preenchida de viciosos
mosquitos e fumo denso, bater de cartas, rolar de dados, e botas militares em danças
rodopiantes que afastam qualquer tentativa de sono. Os aviões só regressam à África
do Sul de madrugada. E largaram também, de pára-quedas, mais de duzentos
militares do movimento que haviam terminado cursos de sabotagem, técnicas de
guerrilha, armamento e... pára-quedismo, obviamente. E obviamente que tudo isto é
‘top’, ‘top secret’, pois oficialmente Pretória nunca deu um alfinete que seja à
RENAMO.
Pois, os paraquedistas do movimento… o esquema de formação acelerou-se
imenso nestes últimos tempos. Há todo um incremento do vector que leva gente e
material de território da África do Sul até aos confins de Moçambique. E eu estivera
precisamente, nos dois dias anteriores, a acompanhar estes saltos de treino, tanto na
zona de aterragem como de bordo do avião, um DC-3 ‘Dakota’. É demasiado radical
estar a bordo, o piloto deve ser um dos loucos destas coisas, a aterrar nesta simples
estrada de terra batida, o mecânico de bordo desfolha uma revista com gajas, e eu
sem paraquedas algum estou aqui em pé à porta, a incentivar a saída desta malta toda,

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a uns mil pés (trezentos metros de altitude) a levar com estes golpes de vento
tremendo, agarrado apenas à moldura da saída ou aos cabos onde engancham as tiras
amarelas dos paraquedistas, estes ‘espanta-galinhas’, como no Aeroclube, antes,
apelidávamos os que saltavam em ‘automático’. Deliro com este barulho, o troar dos
motores, a chicotada bem sonora da ventania… Não! ‘Tá porreiro, mas não se
compara com o Noratlas! O Noratlas então… se o Dakota parece uma ronceira
carroça mecanizada, o Noratlas é mesmo um tractor alado, um camião pesado a
rasgar os céus… antes de se ouvir já se está a senti-lo! Não, ninguém me convence
que aquela merda não funciona a gasóleo… Volto ao presente pois já este passarão
cinzento mete uma asa e nariz para baixo sacudindo-me deste abismo temporal, e
fazemo-nos à estrada poeirenta, com a carcaça mais aliviada após despejar estas estas
três dezenas de aprendizes.
A pista de areia e a zona de saltos, separadas uns quatro quilómetros entre si,
ficam mais ou menos a vinte quilómetros a noroeste de Phalaborwa e a uns quinze
quilómetros para sudoeste do campo de treino que visitei em Agosto. Bom, creio que
é mais ou menos isso. O ‘Voluntário’ efectuou nove saltos de treino, juntamente com
outros oficiais ligados à RENAMO. E na tarde deste dia 30 ocorreu a cerimónia de
entrega das ‘asas’ de páraquedistas a todos os do curso. Aos moçambicanos foi
distribuído um almoço de farinha com carne. Um contraste com aquilo em que nós,
eu e a malta do lado sul-africano, fincamos o dente: aqui, preparou-se mais um
opíparo churrasco, com nacos suculentos e grossos de carne a ser tostada sobre as
brasas, as chamas a lamberem costeletas, boerwurst, as tais salsichas boers, e admiro os
pingos que tombam e chiam sobre o carvão ardente, que só faz avivar mais este
aroma e se mesclam com os sons agradáveis do crepitar, e que se sobrepõem até à
gasosa de alta-octanagem e ao roncar dos ‘Dakotas’.

Caramba, uma guerra destas, mesmo que de encomenda, não pode ser só
traqueteamento, porra! Tem que haver política! É assim, pois, que nos princípios de
Dezembro, Afonso Dhlakama, Joaquim Vaz, agora investido como seu secretário, e
Vicente Ululu, deixam o campo para irem a uma nova conferência do movimento, de
novo em Kiel, no norte da Alemanha Federal. Presentes encontram-se também o Evo
Fernandes, Jorge Correia (o seu novo homem de mão em Lisboa), Artur Vilankulos o
pedante americanizado e mais que provável agente dos ‘américas’, Francisco Nota
Moisés da estação de escuta da BBC em terras suázis, Khembo dos Santos e Gideon
Mahluza, do Quénia, e João Rajabo mais o Artur Janeiro da Fonseca, da própria
Alemanha, juntamente com mais alguns quadros do exterior, ‘diamantes negros’ ou
de outra cor e de variegada ordem de grandeza. Não tenho informação sobre a
eventual presença de outros elementos militares da organização.
É aqui, neste ‘meeting’, longe de mais militares, que o Evo Fernandes,
auxiliado por Jorge Correia, convence Dhlakama a expulsar Vilankulos do
movimento, acusando-o de racista. Vilankulos conseguira anteriormente aglomerar na
Alemanha um grupo de moçambicanos, e aparecera já, diante de Dhlakama,
pressionando-o para que afastasse Fernandes. A reacção foi precisamente a contrária.
Realço porém, que na Alemanha, e após a morte macaca de Orlando Cristina, seria
este Artur Vilankulos e nunca, nunca, o Evo Fernandes, a ganhar as simpatias de
Franz Josef Strauss, o líder do partido CSU da Baviera. Os apoios a Fernandes, aqui,
pelo que vejo, advêm essencialmente dos ‘serviços’ alemães, o BND.

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João Rajabo, é o delegado na Alemanha. Não o conheço pessoalmente. E
temos agora uma surpresa grada com este tipo: o Rajabo é também nesta altura
afastado, expulso em grande velocidade da RENAMO, por estar envolvido no tráfico
de drogas. O homem forte do movimento, neste país, passa a ser o outro Artur, não o
Vilanculos, que esse também recebe um par de patins para voltar aos EUA, contar as
desgraças aos seus patrõezecos da CIA, como dizem, mas o Artur Janeiro da Fonseca,
um incondicional de Fernandes. Ora, este Fonseca acumula então as pastas de
delegado na Alemanha com a de secretário das Relações Externas. Mahluza, o nosso
entorpecido Fanuel Gideon Mahluza, com uma aparência de sapo gordo, sempre a
cambalear de sono logo que meta o traseiro numa cadeira (acho que o homem foi
picado pela tsé-tsé, o moscardo do sono, que lhe injectou a tripanossomíase) passa
para secretário das Finanças, nos eventuais intervalos lúcidos, isto muito
caricatamente e em todos os sentidos, pois o desgraçado nunca viu um centavo
sequer das contas do movimento, monopólio de Evo Fernandes.
Nos Estados Unidos, o professor negro moçambicano-americano Luís
Serapião substitui José Francisco como delegado nos ‘States’. O José Francisco fora
sempre uma figura muito apagada e quando mais tarde o ouço ao telefone e conheço
as historietas boémias do homem, entendo: há muito que ele se auto-apagara para o
interior de sucessivas botelhas de whisky. Quanto ao meu ajudante na emissora, o
meu ‘vice’ Vicente Zacarias Ululu, nomeiam-no secretário para a Educação, e um dos
homens, salvo seja!, de Nairóbi, o Khembo dos Santos, e isto pelo menos em teoria,
ficará com a pasta da Informação. Claro que só deverá receber informação
devidamente inquinada para ir (des)informar o seu controlador Leo Milas, outro dos
homens de mão dos ‘américas’, ao que se diz, mas isto já parece tudo um enorme
concurso de má língua… Em suma, a expulsão de Vilankulos e a nomeação de
Fonseca, marcam o fortalecer nítido do controlo sul-africano.
Nós, aqui envolvidos nesta jogatana, enquanto a guerra e os desastres naturais,
a desgraça imensa, segue imparável, triturando terra e povo: em Moçambique, o
governo anuncia que mais de cem mil pessoas morreram já à fome, durante o ano que
dentro em pouco finda, em consequência da seca e das acções de guerra.

A meio do mês de Dezembro, pouco após a reunião de Kiel, Dhlakama e


Fernandes aparecem de novo na Base de Comando Recuado. Fernandes passara por
Lisboa e traz consigo a mulher, a Ivete, e o filhote mais novo. Evo pretende vir
também com Renata, a sua amante em Kiel, e de quem tinha uma filha, para trabalhar
no campo como secretária. Mas o Dhlakama não está mesmo nada afim com
caldeiradas destas e opõe-se firmemente.
Porquê deixar Lisboa agora? Interrogo-me. Diz-se que o Fernandes, em
Lisboa, não se sentiria talvez muito seguro. Provavelmente, e isto até ele alegava,
devido à questão dos russos, que continua a tolher-nos por todos os lados: foi
armadilhado há poucos dias, o carro dele, ou antes, das empresas do Manuel Bullosa,
o ‘Renault 4’, com uma granada atada à jante de uma das rodas. Contudo quem fez o
trabalhinho terá telefonado a avisar. O atentado ficava-se pela ameaça. Acusa agora
um tal Dr. Martinho, ligado à embaixada de Moçambique em Lisboa, de estar por trás
da operação.
Os sul-africanos instalam entretanto no campo duas ‘roullottes’ novas, uma
para Dhlakama e outra para o secretário-geral. A Ivete até se adapta mais ou menos
bem a esta vida no campo, só está desgostosa, diz, com as quantidades de cerveja que

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me vê agora a consumir e limita-se a abanar a cabeça de cada vez que descarrego da
viatura mais duas caixas, 48 latas no total, destas Amstel ‘long tom’, quatro decilitros e
meio de cervejola em cada latita, todos os santos sábados. O puto, o Evo Miguel,
corre por tudo o que é sítio, está agora com uns quinze meses.
E isto, por estas paragens, sendo uma vida de constante mudança, e
mudanças, lá transfiro eu definitivamente o meu quarto da tenda militar para uma
parte do pré-fabricado onde funcionam os escritórios da Rádio. A antiga tenda
funciona como gabinete de trabalho que o secretário-geral ocupa e eu também, em
análise de informação e actividades várias.
Mas não há mãos a medir, quer em trabalho, ou a repensar mudanças. Ou no
que mais surge. Onde há homens, há problemas. E na ‘Voz’ surgem agora disputas
fortes entre os veteranos, o João Daniel e Henriques por um lado, e os elementos
mais novos no movimento.
Após uma discussão quase violenta com os chefes do Estado-Maior e
Joaquim Vaz, consigo que Dhlakama promova a ‘chefes’ os outros quadros militares
da estação. A hierarquia militar, pelo menos aqui no campo, engloba três postos bem
distintos: elemento, chefe e comandante.
O despertar na base para os militares é agora às 05h45, com formatura,
marcha de corrida e ginástica. Sete da matina é hora de ‘mata-bicho’, e quando
acabamos de receber géneros da base, Pretória, Pietersburg ou Phalaborwa, há ovos e
bacon além das sanduíches habituais, do leite, café, doce. Ao bater do meio-dia e meia
almoça-se, um almoço cujo teor também muito varia consoante distamos muito ou
pouco do último abastecimento, e às dezanove toma-se o jantar. Pois! Quanto, às
refeições, esta malta é assim: por mais que existam óptimos frigoríficos, havendo
carne, dá-se conta dela logo nos primeiros dias, e embora seja carne boa, guisam-na
invariavelmente, obtendo um molho onde nadam hortaliça e repolho, e que serve
depois para adubar a sempre presente sadza, ushua, massa ou que outro nome queiram
dar à farinha de milho, este betão nosso de cada dia das nossas refeições principais.
O calor aperta ainda mais e isto tem uma série de outras implicações: dos
treze cães de guarda que tínhamos na base, apenas dois conseguem escapar aos
afilados dentes dos crocodilos, ao irem banhar-se no rio dos Elefantes. Cão não
percebe: ‘banho, só das rochas para cá’! Quanto a nós, bom, o pessoal toma banho
nos chuveiros, regularmente, e até altas horas da noite. Até altíssimas horas da noite,
em noites enluaradas ou escuras como breu. E é aqui que um dos combatentes se
queixa, diz que foi quase atropelado por um ‘machimbombo’, um autocarro: o pobre,
é literalmente colhido por um hipopótamo, precisamente aqui junto aos chuveiros
cerca da uma da manhã. É uma noite escura, sem lua, visibilidade quase nula.
Distraído, o tipo acerca-se do telheiro, quando leva tremendo encontrão que o manda
ao ar. Parece que se assustaram mutuamente, o ‘bichinho’ foge e o encontro nocturno
não tem assim consequências de maior.
Assamos literalmente sob a grande abóbada incandescente como se algum
alquimista supremo apostasse em estufar-nos aqui vivos, a todos nós, neste seu
laboratório brumoso. O rio, a margem, a terra, tudo agora fumega sob esta onda
escaldante. A atmosfera reverbera, tremeluz rente ao chão, torna fosca a própria
verdura, o cinzento baço do rio. Ou são já as nossas pálpebras que se desfazem,
ardem, dissolvem em líquido salgado que tenta isolar essa parede térmica, o bafo
chamejante do próprio diabo africano. É o inferno pincelado em verde escaldante e

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ardente que se escapa da porta do forno desta Phalaborwa que bate todos os recordes
da África do Sul numa semana, com 46º à sombra, em mais de cinco dias.

MAIS SABOTAGENS: FOGO TOTAL SOBRE CAHORA-BASSA. E


DHLAKAMA É OBRIGADO A LIBERTAR OS RESTANTES RUSSOS
No fim do ano sabe-se que as linhas de Cahora-Bassa foram sabotadas em
seis pontos diferentes, nas províncias de Tete, Manica e Gaza. Os prejuízos diários
para Portugal derivados da inoperância da barragem atingem os cento e vinte mil
dólares. Por diversas razões, dizem os militares sul-africanos, não convém publicitar
estas novas sabotagens. Técnicos portugueses que haviam tentado reparar os danos
anteriores, acabam de ser feridos num ataque da guerrilha, e alguns deles foram
transportado para um hospital de Harare, no Zimbábue.
Em Maputo, no coração do regime, Samora Machel faz igualmente o seu
saldo do ano transacto e anuncia ter mais de três mil homens da RENAMO
capturados. A imprensa governamental acusa repetidamente o movimento de ataques
a autocarros civis, aqueles ataques perpetrados em regra por grupos de jovens
guerrilheiros, ou crianças-soldados na designação da ONU, que tão cedo aprendem
como a AK-47 é uma ferramenta tão fácil de operar e garante uma malga de arroz ou
farinha ao fim do dia, se se ‘portarem bem’, se obedecerem, em vez da chicotada
inclemente. Muitos deles são orfãos, raptados, os pais tragados já pelo sorvedouro da
guerra. O regime, esse, chama-os de ‘instrumentalizados’. Designações várias, nesta
outra vertente da guerra, a da propaganda.
Emparelhando com todo este recente desenvolvimento de contactos e nova
aproximação tentada entre a África do Sul e Moçambique, sob a égide norte-
americana, os militares sul-africanos contrapõem garantias a Dhlakama de que,
quaisquer que sejam as decisões políticas, os apoios ao movimento continuarão,
embora com cuidados redobrados. Dizem-me, em privado, que não poderão entregar-
se ao luxo de deixar morrer completamente esta organização com quase uma década.
Seria sempre mais difícil no futuro, a formação, se eventualmente necessário, de
qualquer outro movimento que servisse de instrumento de pressão, do que manter
um já existente, em estado latente, abastecendo-o à medida das exigências. Creio
também eu, que esta será a política que prevalecerá, sempre, agora e no futuro, a
menos que algo se modifique substancialmente em Pretória ou Maputo.

Escrevo a mensagem de Ano Novo para Dhlakama transmitir na emissora.


Efectuamos a gravação, junto à sua mesa de trabalho: uma hora de sucessivos ‘takes’
para seis minutos de mensagem.

Tudo a rodar em ‘câmara lenta’ pelo mês de Janeiro de 1984 que se arrasta
como um caracol. Um mês talhado à medida para o dorminhoco Gideon Mahluza,
que ora nos visita, nem sei se o homem repara que está cá, pois passa a maior parte
do seu santo tempo a dormir no terreiro em frente à ‘Voz’, sentado, à sombra, ao sol
agora… mas o homem nem nota que está a assar.
Sol durante o dia. Mosquitos sempre. Cervejolas ao fim de semana. Terreiro
em frente à ‘Voz’, e quase por trás há uma série de covas alongadas, trincheiras, que se
intrometem entre o pré-fabricado e a zona maior que comporta as tendas. São uma
armadilha autêntica, estas trincheiras. Para mim, não é preciso qualquer hipopótamo,
perco-me sozinho, uma das noites, a subir e descer por estas encostas de terra

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escavada, lata de cerveja na mão, meio zonzo já, e com um ataque de taquicardia a
ameaçar-me. ‘Porra! Foda-se! Só faltava isto!’, a merda da taquicardia persegue-me
desde 1978, acho que desde uma das emergências em queda-livre. Às vezes creio ser
caso passado mas ocasionalmente volta ao de cima. Lá encontro a saída deste
labirinto tortuoso de areia batida, o pré-fabricado… com a pressão forte dos
polegares sobre ambos os olhos, é um truque habitual, consigo pôr ponto final a mais
este episódio. Por hoje chega de cerveja, cama e calmex!
Mudanças. Planos… esta malta não pára: chega-se a aventar a hipótese de
uma mudança desta Base de Comando Recuado para o extremo norte do Transvaal,
próximo da cidade de Louis Trichardt. Pressente-se no ar a aproximação da nova fase,
crítica, para nós, no relacionamento entre Moçambique e Pretória. Os encontros
multiplicam-se, tal como as mensagens de boas intenções.
Ah! Voltamos uma vez mais à ‘russalhada’, isto tornou-se uma carga que nos
tolhe os movimentos, e o ‘Movimento’: doze dos catorze soviéticos ainda com a
RENAMO são libertados neste dia 27 de Janeiro. Os sul-africanos queriam ir buscá-
los à Zambézia para fazerem todo um show-off, entregando-os em Pretória. A África
do Sul deseja mesmo jogar uma cartada em grande, no plano diplomático.
À pressa, Dhlakama manda que os seus homens carreguem os doze russos, ou
lá o que quer que sejam essa dúzia, para lá do rio Chire, na fronteira com o Maláwi,
onde são abandonados. Do campo, tenho a ingrata tarefa de telefonar para Lisboa,
para o novo porta-voz Jorge Correia, e agências de notícias, dando conta da
libertação. E escrevo telefonar pois aqui a ‘embaixada’ conta agora com linha
telefónica ligada à rede sul-africana, permitindo qualquer tipo de chamada. Só as que
efectuamos para o Zanza, em Pretória, sofrem a encriptação de um pequeno
dispositivo adjacente.

MANTO DE INCÓGNITA, NEBLINA E SILÊNCIO. RECEITAS PARA UM


REABASTECIMENTO. CHUVA DILUVIANA, UMA TREMENDA
TROVOADA TROPICAL, E A PERIGOSA TRAVESSIA DAS CHEIAS DO
SELÁTI
Meados de Fevereiro. Uma constante é esta ânsia pelo que se segue, e que nos
corrói, o ponto de interrogação que se desenha, o ‘imprevisto’. Imprevisto?! Ainda
acreditam no Pai Natal? Já calculamos que vem aí uma jogada das grandes, para deixar
tudo bem e a brilhar em termos de ‘politicamente correcto’, que algo vai ser
sacrificado, para que parte possa prosseguir.
Que novas relações entre Maputo e Pretória? ‘Não se sabe como é que isto vai
ser, o que estará para a frente dos dias mais próximos’, escrevia eu a 18 de Fevereiro.
“Os americanos terão forçado a África do Sul a retirar a maior parte do apoio, o que
aparentemente vai suceder, já nas próximas quatro semanas. A situação aqui na ‘firma’
não se pode considerar famosa”.
Dhlakama parecia querer convencer-se, e só agora, do que eu lhe dissera, creio
que em Agosto. De como foi jogado, manipulado. E afinal, o que fazemos todos aqui,
neste enorme jogo? Uns, somos ou queremos ser mágicos, pequenos mágicos.
Outros, contentam-se em ser meros basbaques, espectadores, a grande maioria do
povoléu, plasticina moldável às mãos da Informação e Propaganda. Eu, pelo menos,
não me contentara em ser um simples espectador passivo do que acontecia em
Moçambique, e muito menos ser lacaio, ou um choramingão ‘tinhoso’, como certa
multidão que passou a arrastar-se por Lisboa na ladainha do ‘eu tinha… eu tinha…’

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em Moçambique, ou Angola. Sempre gostei de criar e imaginar, e de não me
conformar com o que põem à frente. Entre manipulado e manipulador, claro que
prefiro esta última opção. E, ‘lacaio’…? Dos sul-africanos, moçambicanos, dos
portugueses, de quem quer que seja? Sempre estive 100% consciente dos comos e
porquês de cada um dos passos e opções, e soube dos meus propósitos. Topam?
Mas, ai! Este Dhlakama… Compreenderá ele, finalmente, a sua condição de
lacaio, de cipaio, de capanga, quer tenha esta farda de caqui e as três fitas foleiras de
general, ou meta em cima do pelo o safari ou balalaika que o enfeitam quando vai às
compras à loja do judeu ou beberica coca-cola em Pretória? Deita as mãos à cabeça,
agora, este nosso ‘número um’, isto apesar das promessas de apoio futuro por parte
dos militares da A.M.I.
E é assim que escrevinho ainda: ‘a situação militar pode ser na realidade
razoável para o movimento, mas isso não basta. Confiou-se demais em que os
sucessos militares chegariam para quebrar o que diplomaticamente Machel conseguiu.
Se sair mais barato ao Ocidente, ou à África do Sul, conquistar os mesmos objectivos
pelo diálogo ou, a Pretória, diminuir assim a ameaça de ataques do ANC, decerto que
irão por essa via... Não se pode considerar que haja aqui qualquer ‘internacionalismo’
de direita e é pena verificar que estes ingénuos ainda não tenham reparado nisto’.
‘Hoje, até o empresário Manuel Bullosa volta a surgir em cena, tentando
investir novamente em Moçambique, no sector dos petróleos, e cada vez mais se
constata que a FRELIMO conta com apoios entre aqueles que antes combatia. A
África do Sul poderá conseguir suster parte do apoio ao ANC por um preço menor,
embora os militares não acreditem e, mesmo alguns, no governo e no Conselho de
Segurança do Estado, estejam declaradamente contra o diálogo. Isto só se entende
como estando a ser feito, primeiramente, sob grande pressão’.
Nas próximas quatro ou cinco semanas, tudo irá mudar. Vão-se efectuar os
últimos reabastecimentos aéreos ao interior. Ficarão suspensos até quando? São
enviadas trezentas toneladas de equipamento militar, garante-me um oficial de
Pretória, o major Fox. E em Lisboa, o Jorge Correia assegura à imprensa que o
movimento tem ‘stocks’ de armas que permitem manter por dois anos o nível actual
de operações.
Tenho nas mãos a ‘receita’ deste tratamento de logística que Pretória concede
à guerrilha moçambicana. Limitado no tempo, o período a que se refere esta
planificação, e não é integra:
‘Reabastecimentos previstos: Dia 23/2/84, Gaza, 2 aviões; Dia 25/2/84,
Gorongosa (supõe-se um avião apenas, quando não indicado); Dia 27/2/84, R. 5; dia
28/2/84, Búzi; dia 04/3/84, Gorongosa; dia 04/3/84, Zambézia; dia 07/3/84,
Região 4; dia 11/3/84, Gorongosa e dia 14/3/84, Inhambane’.
Ainda ne mesma ‘receita’, surge o seguinte: ‘Para além destes haverá outros
extras de Dakota, aterragens, suponho, que levarão 100 caixas de munições de cada
vez que for. Material de guerra que seguirá nestes reabastecimentos: 4.279 X 1.360
balas cxs munições AK 47 (leia-se quatro mil e tal caixas com mil trezentas e sessenta
balas de Kalashnikov em cada caixa); 210 cxs munições G3 X 1.000 b; 1.730 armas
AK 47; 680 cxs ob.M.60 X 10 ob. (680 caixas com obuses de morteiro de
60milímetros, cada caixa com dez obuses); 680 cxs ob.M.81 X 4 ob.; 110 cxs Minas
Anti-Carros X 5 M.; 1.112 cxs Roquetes RPG7 X 6 R.; 820 cxs explosivo X 20 kg; 31
cxs medicamentos x 100 kg. Em cada reabastecimento seguirão 4 M (morteiros) 60; 4

81
M 81; 4 M. 82 e 30 RPG 7 e metralhadoras (pesadas). Também seguirão para a
Gorongosa 100 pistolas com 100 balas cada.’
E quanto às aterragens em Dakota: ‘Plano de evacuação do pessoal: (da África
do Sul para Moçambique); 26/2/84, Dakota para Gorongosa a aterrar em Cangatore;
29/2/84, Dakota para Búzi a Jambar (?), 20 pessoas, ‘q’. (Estado-Maior?) Centro;
01/3/84, Dakota para Maputo A Jambar, 20 pessoas, Q Sul e 02/3/84, Dakota para
Zambézia a Jambar, 20 pessoas Q. norte’.
Está tudo demasiado nítido… esta dependência extrema em relação à
máquina de guerra sul-africana.

Todos os elementos da Base de Comando Recuado vão pois ser transportados


para território moçambicano, incluindo os que compõem este Estado Maior tripartido
geograficamente, assim como os moçambicanos que servem no exército da África do
Sul, e os outros, alguns que se encontram lá mais longe para os confins do Sudoeste
Africano, Namíbia. Ao campo, acaba de chegar um capitão sul-africano que vem
precisamente daí, da Namíbia, e que é um dos comandantes do célebre Batalhão 32
ou Batalhão ‘Búfalo’. Ele e outros soldados sul-africanos avolumam-se em
preparativos para uma deslocação ao interior de Moçambique nos dias imediatos.
O Dhlakama e o pessoal de transmissões, e mesmo o da emissora, regressarão
ao país. É esta a verdade inegável. Uns aterram em DC-3 Dakota, e outros serão
largados de pára-quedas. Muitos dos que ainda não possuem curso de paraquedismo
irão iniciar os treinos, imediatamente. Há todo um sentimento de urgência no ar. A
‘Voz da RENAMO’ vai cessar as emissões. Em princípio, eu e outro quadro devemos
permanecer na África do Sul como elementos de ligação. Mas tudo muda muito
rapidamente nesta urgência que nos envolve a todos. Afinal, dias mais tarde é-me
relatada uma nova verdade: acabarei também por regressar a Lisboa, e na África do
Sul ficam apenas quatro operadores de rádio, pelos meses vindouros. Isto, em termos
de comunicações militares, restritas, e muito discretas.
‘Também não posso considerar nada disto um choque’, aponto na agenda.
‘Era inevitável. Há meses que se esperava, que se sentia, o aproximar dessa
‘tempestade’ envolta em imagens de calmaria. No fundo, já nada me deixa
surpreendido ou aborrecido. Sinto realmente pena é de todos aqueles que não têm
uma Lisboa ou outro sítio para regressarem em paz, um bilhete de avião no bolso,
dos que têm lutado, obrigados a isso ou tentando acreditar em algo, desde 1977’.
Em Maputo, a tempestade é a sério: a depressão tropical ‘Domoína’ fustiga e
espalha, ela também, a destruição, o Caos, a desordem e a morte, em toda a parte
meridional do país.

Aproveito por outro lado estes dias de espera, monótonos e plenos de


interrogações, para ir a Phalaborwa às compras, ou em simples passeio. As minhas
viagens à cidade a pretexto das compras para o campo tornam-se quase diárias.
Conhecera na cidade uma moça portuguesa, que trabalha numa loja de artigos
fotográficos, e passo por lá, amiúde, para uns dedos de conversa. E desta forma,
pouco ando agora pela base durante o dia. Sempre, sempre em movimento… até já
queria comprar uma mota, não fosse a proximidade dos novos tempos que aí vêm.
Falei já, no princípio de toda esta parte, sobre Phalaborwa, e a estrada entre a
cidade e a farm militar onde nos encontramos. É bem patente, até neste caminho,

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como estamos mesmo junto ao Kruger Park, e aliás, a própria localidade de
Phalaborwa dorme encostada a esta enorme reserva de vida natural.
Ora, numa das viagens e logo à saída da cidade, passada a curva tangente à
enorme cratera das minas de fosfatos, à esquerda, há um vulto enorme e pardo que
cruza a estrada bem à nossa frente: uma leoa! Nem quero acreditar! Aqui, mesmo em
pleno alcatrão, tão próximo da cidade! Toda uma multidão de girafas, zebras, e outras
espécies são avistadas amiúde já na zona da estrada de areia. Nem mesmo o estrondo
enorme, as explosões subterrâneas efectuadas nas entranhas da terra pela Palabora
Mining Company, parecem assustar a bicharada. E no nosso campo, lá longe,
sentimos por vezes o solo a vibrar, um ruído profundo como o de um terramoto, um
ribombar cavo que a todos alerta.

Noutra ocasião, transposto o portão da picada que nos conduz para fora da
farm, estamos pois já na estrada principal, uma via em areia e que mais ao fundo lá
para baixo à esquerda vai dar à ‘Water Board’ e à barragem, temos agora a franquear a
pequena ponte que passa sobre o Seláti ou um dos seus afluentes. Estamos apontados
a Phalaborwa numa nova saída para ‘shoping’, as eternas compras e deambulações. A
ponte… um mero tabuleiro com rebordos baixos, pois pelo menos aqui, este rio, não
costuma ser muito largo. Mas tal como a maior parte dos rios africanos, o Seláti é
caprichoso, imensamente caprichoso nesta estação das chuvas. Estamos a caminho da
cidade e perante um destes caprichos.
A noite fora terrível. A trovoada, uma formação densa de cúmulo-nimbos
abatera-se sobre o campo com toda a força, os raios dardejavam, diversos por minuto,
dezenas deles, e os trovões, então, esses ecoavam sem interrupção, misturavam-se,
como um rebolar contínuo de rochas celestes. Trovoada tremenda, os raios saltam
que nem faíscas apocalípticas nesta gigantesca máquina electrostática, e espalha-se um
intenso cheiro a queimado. Alguma árvore deve ter sido fulminada. As tendas têm
todas elas um varão central de uns quatro metros de altura, em madeira, extremo
metálico. Felizmente nenhuma é atingida. O odor a ozono, o ‘cheiro eléctrico’, junta-
se agora àquele trave a queimado. Estamos envolvidos num ‘armagedão’ a sério entre
os elementos atmosféricos. E a seguir veio a chuva, mais uma tromba de água. Ali o
terreno drena bem, com ligeira inclinação, e as águas escoam-se céleres até ao rio dos
Elefantes.
A surpresa maior estamos a recebê-la então, agora, ao chegarmos a esta ponte,
apontados já a Phalaborwa. Incrível! O rio que aqui pouco mais é que um regato, leva
agora mais de sessenta ou setenta metros de largura, cobre o tabuleiro da ponte e não
parara ainda de subir. Os contornos do pavimento da ponte, os rebordos, adivinham-
se apenas pela turbulência. Mesmo à entrada está um veículo ligeiro, que já nem para
a frente nem para trás se consegue mexer, completamente isolado o sistema eléctrico.
Temos espaço ainda para passar, o nosso camião é bastante alto. A água aflora
contudo a parte debaixo das portas. E é então que do ligeiro uma senhorita, afinal a
única ocupante, lança um pedido de socorro. A única opção é rebocá-la, atravessar a
ponte com o ligeiro atrás.
O ‘Doc’ saca uma corda forte da caixa de carga e com água por cima dos
joelhos atamo-la ao chassis fronteiro do carro, ali ao lado do nosso camião. É nítida a
contínua subida do rio, as águas entram agora para o chão do camião pela porta
esquerda ainda aberta, a do ‘Doc’, diz-me para abrir também a minha, se a coisa
correr mal e o camião for arrastado só nos resta saltar. Embraiamos, e apesar desta

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força imensa que nos quer empurrar para a direita, de encontro aos baixíssimos
resguardos metálicos da ponte, chegamos a meio da travessia. O ligeiro, vai meio
obtuso, dir-se-ia um ‘hovercraft’, arrastado à força do cabo, consegue-se manter à
tona desta massa líquida como que a querer respirar com o focinho metálico trazido
aqui à rédea curta. Por fim, alcançamos o outro lado, as rodas a patinar na parte já
com menos água mas cheia de imundícies trazidas por esta impetuosa corrente. A
senhora é toda agradecimentos, o carro está a safo, em terreno seco, mais afastado da
ponte e das revoltas águas deste Seláti que antes conhecêramos tão sereno.
Em Phalaborwa, a nossa seca não é quebrada por estas cargas de água
diluvianas e cheias repentinas. O remédio é o habitual: compras feitas, abancamos ao
balcão do fresco bar do Hotel Phalaborwa. Ar-condicionado a toda a força, aquilo é o
máximo para quebrar os calores extremos desta parte da África do Sul. É aqui que
estamos, a meio da tarde de 9 de Fevereiro, já com um comboio de ‘cuba libres’
emborcados, esta mistura de rum e Coca-Cola, quando no noticiário debitado pelo
sistema de som ouvimos falar da morte de Yuri Andropov, o líder soviético. Claro que
todas estas mudanças, para nós, são sempre significativas. Andropov será substituído
por um outro líder efémero, pelos padrões russos, o Tchernenko, e que só aguentaria
escassos treze meses de reinado.
E resumindo a coisa, em termos de espaço, Phalaborwa gira ali à volta de um
rectângulo comercial de uma meia-dúzia de quarteirões com o Hotel num dos
vértices, os centros comerciais ‘OK’ e ‘Checkers’, ‘bottle stores’, barbearia, a loja de
artigos fotográficos onde está a moça minha amiga, o Gabinete de Turismo do
Kruger Park, algumas boutiques, Correios, bancos, etc. À volta de tudo isto temos
depois um enxame de instalações militares, Transmissões, o 7th SAI de Infantaria, o 5
Recce de Reconhecimento e, além do mais, a razão última, talvez, desta urbe, a
omnipresente companhia das minas de Phalaborwa. Um vasto espaço relvado
estendia-se pela aresta junto ao hotel e correios, e somos aí constantemente
perseguidos por aborrecidos seguidores das ‘Testemunhas de Jeová’ a querer-nos
impingir a ‘Sentinela’, mas com estes, podemos nós bem. Pronto, é esta, em suma, a
cidadezinha mineira e militar de Phalaborwa.
E não somos os únicos do campo, eu e o ‘Doc’, eu e o Hurter, ou outro sul-
africano, a gozar destas saídas. Numa das idas à cidade, a mulher de Dhlakama, dona
Rosário, e dois dos guarda-costas, vão igualmente às compras, pedem-nos boleia.
Pouco depois são detidos no centro de Phalaborwa por elementos da Polícia de
Segurança que lhes pedem a identificação. Aconteceu eu estar por perto e ajudar a
desfazer o embaraço, sei onde está o tenente ‘Long John’ que surge a correr.
Explicação dada em africaans e volta tudo ao normal, tempo de shoping pa’ todos!
Mais histórias destas do ‘shoping’, das compras? Há sempre, se
escalpelizarmos o que fica no rescaldo do comboio de ‘cubas libres’ que emborcamos
sem travão no Phalaborwa Hotel. Já antes, com o camião, em Potgietersrust,
havíamos indemnizado uns camponeses por um cabrito e dois burros atropelados.
Agora, bom, só me recordo deste dia em que o ‘Doc’ já nem quer pegar no volante da
‘combi’, faz-me um gesto para ser eu a pegar nos comandos, mete-se no assento
esquerdo com aquela cabeçorra vermelhona, cabelos e barba ruivos de fora da janela,
lá atrás vai mais um carregamento de bebidas e víveres para o fim de semana, e o
irmão de ‘sua excelência’ que também foi apanhar ar até à cidade. E ouço um
gorgolejar… “porra! o gajo, o ‘Doc’, tá mesmo a vomitar!”. E um urro tremendo,
medonho, troa aqui dentro deste tórrido invólucro metálico que é a Toyota, a levar

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com o sol de chapa, já no meio da picada. Os berros cortam ainda os ares, obrigam-
me a olhar, a ver esta porcaria de rasto amarelo-acastanhado das ‘cubas libres’ com
que o ‘Doc’ vai marcando território… mas há mais: já sei porque é que este
estuporado de australiano ‘tá prá aqui a urrar. Tem a testa com uma série de sulcos
vermelhos, conforme coloca de fora a cabeçorra, cortou-se nos afilados picos das
micaias que continuam a rilhar os lados da viatura. E de repente, estamos a marchar
sobre as rochas, eu também meio zonzo e a olhar para esta cena terrífica, não dou
pelo cotovelo brusco da picada… os urros são em stereo vêm também agora da
retaguarda, e a carrinha salta que nem um cavalo de rodeo sobre as pedras. ‘Foda-se!’,
é o mano de ‘sua excelência’, está agarrado à testa, foi arrear contra uma das antepara.
Volto a atenção para o importante, parar primeiro esta merda, e lá consigo deter por fim,
esta marcha tresloucada, raspando num par de árvores.

E o outro tenente, o Johann ‘Voluntário’ Hurter? Nem tem vindo ao


‘shoping’, à cidade. Mortiço, meio desaparecido, a iminência do acordo de
estabilização com Maputo leva-o a evidenciar alguns problemas psíquicos,
ultimamente. Trata os chefes do Estado-Maior da RENAMO por ‘mulheres com
medo’. Ameaça várias vezes de morte o próprio comandante Dick, entretanto
tornado chefe do Estado-Maior Norte, tão somente por este se demorar com as
compras. Um destes últimos dias, à tarde, tinha eu ido à pesca até à margem do Seláti,
a um quilómetro da base, quando ouço uma bala assobiar e logo o respectivo disparo.
O projéctil acerta na água a uns dois metros. Olho em redor e descubro o tenente, a
uns cinquenta metros, gritando do cimo de uma elevação: ‘tem que aprender a não vir
aqui sem arma!’. Porra, este gajo pirou mesmo, está mesmo maluco dos cornos…
É verdade, pois, tornara-se meu costume ultimamente, nalgumas destas
pasmacentas tardes, pegar num caniço aí de uns dois metros, com um fio de nylon na
ponta, e uma chumbada: era aquela a minha cana de pesca, como os homens da
RENAMO me haviam ensinado. Nada mais é preciso. O isco? O resto da ‘massa’ do
almoço, a sadza ou ushua, farinha seca. Fazem-se umas pequenas bolinhas onde se
enfia o anzol. Os peixes adoram disto à brava. Só numa das tardes apanho nove
peixes, de diversas qualidades, embora nenhum daqueles bigodaças, os bagres.
Enfiamo-los depois num espeto que, inclinado sobre as brasas, pomos a assar. Um
pitéu alternativo! Recomenda-se, com sal, limão e piri-piri. Ah! E uma cervejola bem
geladinha, sob uma árvore fresca, a ver o rio calmo a deslizar, lamber a margem
verdejante, e a cantoria suave da bicharada, as canções de embalar das cigarras e
trinados dos grilos, a despedirem-se de mais um dia…

NOITE DE TERROR NO ACAMPAMENTO


Subitamente esta melancolia imensa em que vivemos mergulhados é quebrada
na madrugada de 10 de Fevereiro. De muito perto ouvem-se rugidos fortes e logo uns
altos gritos. Choros, berros… Mas aqui, tão próximos do Kruger Park, tornou-se
habitual quase todas as noites escutarmos o rugir de leões, algumas vezes bem perto.
Leões, bandos de hienas, grupos de babuínos (o babuíno ou macaco-cão é um bicho
terrível, com dentes afiados que nem navalhas, e estraçalha a carne num instante,
ataca machambas, viola mulheres, despedaça gente) mais os hipopótamos, crocodilos
e cobras, são, é claro, uma ameaça sempre presente aqui. É o outro lado da medalha,
de sermos contemplados com a visão soberba deste pedaço do Paraíso.

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O acampamento está em alvoroço. Saio apenas com os ‘boxeurs’ vestidos, a
UZI e a câmara Kodak disk. ‘É ali!, apontam. Pondoro! Pondoro! Pondooooorooo!’
‘Pondoro’ é leão, em dialecto do centro de Moçambique.
– Ainda está ali dentro! Pondoro! O ‘ali’ é a tenda de três dos elementos da
‘Rádio’ juntinho ao local onde durmo.
Quase que digo, de início, ‘é bem feito’, quando ouvi os primeiros berros:
pensei que fosse algum dos sentinelas que tivese ferrado olho, pois isso estava a ser
crónico, um desleixo galopante, trazido pela monotonia que se instalara. ‘Uma patada
leonina deve fazer melhor que uma chávena de café forte’… Afinal não fora o caso, o
bicharoco era mesmo atrevido, ou está desesperado, atrevera-se por uma das tendas
adentro,
O ar estala como um lenços gigantesco que se rasga: soam as primeiras rajadas
de G-3 e Kalash aqui mesmo ao lado, destruindo o que restava da quietude nocturna.
Um dos tipos da Rádio, a dormir na tenda, o João, locutor em ‘sena’, foi atacado por
um leão.
O chefe Jofrisse, caçador, e feiticeiro oficioso da base, com um facalhão
enorme, uma catana, rompe a lona a partir de fora: há sangue por todo o lado, um
vulto escuro, o João, rebolou da cama, parece ter uma escotilha enorme aberta no
crâneo, rasgões fundos no abdómen e uma das pernas, o leão revolve ainda o colchão,
estraçalha a espuma de borracha, tenta abocanhá-lo de novo. Novas descargas de
fuzilaria e o bicho faz marcha-atrás, desaparece pela entrada da barraca, funde-se no
escuro da noite, pingando uma pista vermelha e escura sobre o solo terroso.
Desapareceu em direcção a oeste, seguindo o Seláti para montante. Uma equipa vai-
lhe no encalço. Outros estão a informar ‘sua excelência’, como é hábito agora
tratarem o Dhlakama, deste cagaçal todo.
Embora ferido gravemente, o João acabará por sobreviver. Parece que ‘tá tudo
desorientado, e sou eu que resolutamente ordeno que pequem no desgraçado e o
embrulhem numa manta para não entrar em choque e o levem para o pavlhão da
rádio e o anexo onde pernoito: ‘Deitem-no aí sobre a minha cama, enquanto não vai
para o hospital!’
Lá reagem por fim, o João é levado, quando se ouve já o motor de uma
viatura, está aqui o ‘Doc’ a chegar num camião. Olho para o relógio, pouco passa das
três e meia desta madrugada agitada. Em minutos o ‘Doc’ tem-no bem aconchegado
e com uma agulha espetada, a injectar-lhe soro, a evitar um choque mais profundo. O
João stá agora estabilizado, a gemer imenso porém, e a caminho do hospital militar de
Phalaborwa.
E quanto a este nosso ‘gatinho’? Após aturada perseguição e muitos tiros que
ferem o felino, este vem a tombar, mas apenas ao início da manhã, e a uns três
quilómetros do campo. Está explicado: é um leão velho, fugido do Kruger Park,
incapaz já de correr atrás da caça. Tornara-se assim num potencial devorador de
homens. A fome levara-o a aventurar-se até ao acampamento e a entrar na tenda onde
dormiam três elementos da Rádio: o Chaviro das costas em chaga, o velhote Jeremias
e este desgraçado do João.
O cadáver do bicharoco é então trazido com a ajuda de um carrinho de mão
até ao acampamento. Batemos algumas fotos. O Evo Miguel, o puto, filho do
secretário-geral, é colocado a cavalo às costas do leão. Depois, as garras e dentes são
retirados ao esquelético felídeo e postos a secar.

86
Quanto ao João, bom, o João é pois transportado de imediato para o Hospital
Militar de Phalaborwa após os primeiros socorros administrados pelo ‘Doc’ e em
Maio, já restabelecido, havia de ser levado de barco até às costas de Sofala
aproveitando uma posterior operação de reabastecimento.
Falta relatar um episódio relacionado com tudo isto: curiosamente, há já
alguns dias, antes deste episódio do leão, que o João me está a seringar os ouvidos, a
repetir que ‘anda a sonhar mal’. Compro-lhe em Phalaborwa, como pede, três
panos, branco, vermelho e preto, que ele entrega ao caçador e curandeiro Jofrisse, o
mais velho da base, para os ‘abençoar’. Agora, estão já as dentadas do leão bem
ferradas, pela barriga e cabeça dele, ele em franca recuperação e eu de visita ao
hospital:
– Com que então, pá, os panos não serviram de muito? Foi mesmo a ti que o
leão escolheu! A tenda é tão grande, os quartos dos outros dois até estavam mais
junto à entrada…
– Ah!, senhor director, replica ele de imediato, muito, muito obrigado! Se não
fossem aqueles panos a esta hora estava era morto...
Resolvo não discutir a lógica tradicional.
O resto do pessoal da ‘Voz’ dorme desde então no escritório. Todas as noites
ouve-se agora mais nítido o rugir dos leões, bem próximo do acampamento, ou
somos nós que estamos mais susceptíveis, com o ouvido apurado. Até a selva parece
querer ver-nos daqui para fora.
Pior, muito pior, no respeitante ao estado de espírito do tenente ‘Voluntário’,
aconteceria ainda num dos dias imediatos ao episódio dos disparos no rio, na minha
direcção. Regressava ele então à ‘embaixada’ com outros sul-africanos, os cabos e o
sargento Bass, vindos da cidade. O ‘Voluntário’ já vem bem aviado de álcool, e não
sei se já traria alguma suruma, liamba, a esvoaçar também nesta sua mona de cabelo
liso e escorrido ao estilo de Mick Jagger. Entra com o carro pela base adentro a toda a
brida. Derrapa, trava bruscamente em frente ao Estado-Maior Sul, irrompe pelo
barracão de pistola em punho, manda três tiros para o tecto, carrega os dossiers, num
ápice volta para o carro e arranca até à ‘embaixada’. O campo está estupefacto.
Regressa à noite, mais calmo: ‘Foi para ver como vocês são mulheres. Não reagem,
hein?!’. Este gajo pirou de vez…
Sensivelmente um ano depois a estas façanhas, e segundo um telefonema do
coronel Charlie Van Niekerk, para Lisboa, o tenente ‘Voluntário’ suicida-se ‘por
acidente’ num café da Namíbia, ao demonstrar com um revólver carregado como se
joga à ‘roleta russa’. Resta salientar aqui a insistência como este ‘Voluntário’ pedia nos
últimos tempos para abandonar o exército sul-africano e vir juntar-se a tempo inteiro
à RENAMO.

OS DIAS DE NKOMÁTI. FIM DA B.C.R. E ADEUS À ÁFRICA DO SUL


Finais de Fevereiro. Num destes dias, ao anoitecer, o alto e magríssimo
tenente ‘Long John’, e com toda esta atmosfera climática, política e militar, que ele tão
parece interiorizar, não obviar sequer com a leitura bíblica, e só o torna ainda mais
pele e osso, pede-me que o acompanhe ao aeroporto civil de Phalaborwa.
Dhlakama chega de Pretória num ‘DC-3’ de uma pequena companhia aérea
sul-africana controlada pelo exército. O ‘Dakota’ possui um enorme ‘£’ como
logotipo pintado na cauda. O chefe do movimento e o secretário-geral haviam estado
na capital sul-africana e esperam efectuar uma rápida visita aos Estados Unidos, para

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contactos diplomáticos. Já em Pretória, algo corre mal e os sul-africanos fazem
abortar a digressão.
4 de Março, é um Domingo. Realiza-se hoje o último convívio na base,
estando presente Afonso Dhlakama. Sabemos todos: no dia seguinte os diferentes
grupos começarão a ser transportados para o interior. Pela primeira vez vejo o
Dhlakama recusar as Coca-colas e tomar álcool. Desmedidamente. Emborca primeiro
uma garrafa de vinho do Cabo, de Stellenbosch, e a seguir outra, quase inteira, de
espumante. Enfeita o copo, no fim, com quatro dedos de whisky. Não tarda, principia
a piscar os olhos. Alguns elementos estavam-se já a rir, bem dispostos natural ou
etilicamente, ou por verem ‘sua excelência’ hoje tão bem disposto. E ‘sua excelência’
ordena, nesta sua nova boa disposição, que sejam então ‘chamboqueados’, batidos
com um cacete.
O pessoal deve estar mesmo com os nervos em franja pois nunca antes
assistira ao que hoje e já ontem aconteceu aqui pela base: miúdas das transmissões e
do posto médico, as DFs, literalmente torturadas. Ninguém me explica porquê. São
colocadas, uma meia dúzia delas, à torreira do sol horas a fio, braços em cruz, a
suportarem um pneu em cada mão.
Por isso não me admira a cena macaca que agora se desenrola: João Fifteen,
um dos oficiais de dia, é o primeiro a levar no pelo. Joaquim Vaz, o secretário
particular de ‘sua excelência’, como Dhlakama gosta cada vez mais de ser
tratado, começa por sua vez também a rir perante a cena dos outros, estendidos no
chão e a serem batidos. Riso fugaz que morre logo, pois cabe-lhe idêntica sorte.
Dhlakama ainda quer discursar. Pelo rosto, agora porcino, escorre suor e bebida.
Impõe silêncio. Clama que esta noite, aqui, de general de três estrelas passa a general
de quatro estrelas pois vai-se entrar noutra fase da guerra. A assistência aplaude. Os
guarda-costas avançam e levam-no devidamente apoiado, para irem deitá-lo. A festa
chegara ao fim.

Vive-se agora uma certa agitação em todo estes dias derradeiros. Um grupo de
cerca de duzentos homens moçambicanos esteve estacionado junto à ‘embaixada’.
Todos eles se encontram em trânsito, uns são provenientes da Namíbia e outros
pertencem a unidades militares sul-africanas baseadas na zona de Phalaborwa. A sua
bagagem e roupas são criteriosamente revistadas para que nada tenha rótulos ‘made
in South Africa’ ou dizeres em africaans. Vão ser imediatamente recambiados para
Moçambique.
5 de Março. É o dia em que o campo começa a ficar vazio. Durante a semana
que agora principia, todos os dias irá gente para Moçambique, largada de pára-quedas
ou aterrando com os aviões, caso sejam ‘Dakotas’. Porém, o grupo que acompanha o
Estado-Maior Centro, acabará por ir de barco, saindo do porto de Durban. É uma
sensação estranha assistir a este esvaziamento progressivo da base, toda esta
transposição integral de estruturas de comando para milhares de quilómetros de
distância.
Os sul-africanos dão agora luz verde para operações na província de Maputo
em larga escala: de uma assentada são sabotados trinta metros da linha férrea
Maputo-África do Sul, entre a Moamba e a capital moçambicana, a 22 quilómetros da
cidade. Uma aldeia comunal é literalmente varrida do mapa: cinquenta habitações são
destruídas e mortos cerca de oitenta camponeses. A própria Moamba, uma vila
emblemática onde se situara a reconhecida Escola de Artes Agrícolas, no tempo

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colonial, é também atacada, sendo incendiados os edifícios administrativos. E conta-
se como as metralhadoras anti-aéreas são tão úteis para outro fim, se dispostas,
apontadas horizontalmente: uma descarga de baterias antiaéreas, no fundo, são
metralhadoras pesadas, com munição explosiva e incendiária, é usada contra o quartel
da vila. Depois, há esse grupo avançado da RENAMO que tem já um recontro com o
exército, em Boquisso, não longe dos arredores da capital. Lembro-me perfeitamente
onde fica, a meio caminho na estrada entre Maputo e a aprazível Vila Luísa, ou
Marraquene. E nesta chuva de fogo e chumbo, nem os homens da imprensa escapam:
o subchefe de redacção do jornal ‘Notícias’ é assassinado numa emboscada na estrada
nacional n.º 1.
O mínimo que posso dizer é que se assiste a todo um ‘pressing’ militar em
volta de Maputo, ao mesmo tempo que Pretória parece estender a mão ao governo
moçambicano. E cumulativamente, é também sonoramente anunciado pela
RENAMO que as acções de guerra do movimento atingem pela primeira vez a
província de Cabo Delgado. Afinal, o que se preparava há semanas já, e todos
esperávamos. O planalto maconde é tocado por esta ‘segunda guerra de libertação
nacional’, como diz a propaganda do movimento.

Van Niekerk chega ao campo. Pede para falar comigo. Entrega-me os


oitocentos randes referentes a Março e mais três meses adiantados.
– O Evo, em Lisboa, tratará das contas de Junho para a frente, garante-me.
Digo que percebo, que é fácil de ver a situação…
– Paulo, não falta muito, em menos de um ano, estaremos na Costa do Sol a
comer bom camarão!
Rio-me com este último dito do coronel, ele também a espelhar um certo
sorriso brando que não oculta a seriedade da situação, as apreensões todas do
momento.
Então é assim: até sexta-feira, 16 de Março, impreterivelmente, terei que
deixar a África do Sul. Eu e todos, menos os quatro elementos que ficarão junto do
Bento Maria, em Phalaborwa, a assegurar um fluxo mínimo de comunicações
militares.
Escrevo para a família, em Portugal, pedindo que cessem o envio de
correspondência, pois ‘vou mudar de sítio’. Principio a arrumar tudo, as coisas
pessoais. Ouço música e presto redobrada atenção aos noticiários. A rádio sul-africana
acaba de anunciar que em 16 de Março será assinado um importante pacto, entre os
governos da África do Sul e de Moçambique, um tal ‘Acordo de Nkomáti’. Sorrio
amargamente. Afinal, nenhuma surpresa...
Despeço-me dos da ‘Rádio’. Sinto uma pena enorme das duas miúdas, a Lídia
e a Marieta, nomes de ‘guerra’, claro, pergunto-lhes se querem que uma vez chegado a
Lisboa tente contactar com a família em Morrumbene, enviando uma simples carta,
dizendo ao menos que estás vivas. Simplesmente horrorizadas, amedrontadas, pedem
que não, já com lágrimas nos olhos…

Afonso Dhlakama, Evo Fernandes, Joaquim Vaz, Albino Faife, este além de
comandante tornara-se um exímio desenhador de panfletos, lembro-me bem do
cartaz de uma botona militar a esmagar uma barata com farda da FRELIMO e
rebobino agora com um farto sorriso não só esse mas toda uma comicidade
elaborada pelo Faife, e é claro, os chefes do Estado-Maior, o comandante Daniel, o

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Nota Moisés (da Suazilândia, o ‘nosso’ homem da BBC), o Vicente Ululu, o Gideon
Mahluza (em estado ‘zombie’ permanente por uma carga de tsé-tsé) e que
sinceramente espero se candidate a um dos filmes de mortos-vivos do George
Romero, o Artur Janeiro da Fonseca (Alemanha), Khembo dos Santos (Quénia) e
Jimo Phiri (Maláwi), encontram-se todos na Base de Comando Recuado, neste
ambiente de fim de festa. Reúnem-se no refeitório do campo, na sexta-feira 9 de
Março, e no sábado.
11 de Março. Domingo. O último Domingo. O último dia. Despeço-me de
Dhlakama e dos que ainda não partiram. Rosário, a mulher de Dhlakama, seguiu
também neste dia, mais cedo, vejo-a passar com um alguidar cheio de tralha à cabeça
e mais um par de guarda-costas. Ficará no interior próximo da base central de ‘Casa
Banana’.
É o fim do campo junto ao rio, com toda a sua carga simbólica. A subida
pelas margens, as águas que passam, a lama em que nos enterrámos, o fogo que
libertamos, o calor que nos oprime e sufoca, a malária que nos cerca, a morte lenta
que não vemos. Mesmo sem napalm a chover sobre as palmeiras ou helicópteros com
as ‘Valquírias’ de Wagner, para mim, acho que tudo isto aqui à beira-rio tem algo que
nos remete para esse ‘Apocalypse Now’, o filme, alicerçado no ‘Coração das Trevas’,
de Joseph Conrad. Esta visão de um rio, fio condutor pela tenebrosa selva adentro,
uma bruma sufocante que nos vai sugando a todos, o que resta de bom em cada um,
corrompendo essa linfa espiritual por entre os pesadelos e sombras do mato. É o que
podemos esperar dali, na envolvência física ou, pior ainda, em sentido figurado. Água,
terra, a lama que nos afunda, uma névoa que nos envolve, o fogo que tudo consome e
purifica, a morte enlatada.
Era um pouco isso tudo, que se insinuava, talvez mais pernicioso ainda do que
a imagem directa da violência ou o seu rebentar próximo, o próprio mal. Sabíamos o
que fazíamos, o que acontecia lá para o interior, na margem de rios iguais a este ou
nos tandos e planícies abertas. Aquele rio que ali corre para Moçambique,
transportava igualmente os nossos ódios. Afinal, e parecia que ninguém queria admiti-
lo, os nossos principais inimigos e que sublimamos ou escamoteamos cada dia, nessa
nossa projecção do Mal. Não que o visse estampado nos olhos do Raul, do Vaz, do
Daniel, eram subtis o suficiente para que não transparecesse neles essa violência
bruta. Nem sei bem o que via nos meus próprios olhos cada nova manhã ao barbear-
me, a cada nova penteadela. Mas posso garantir que aquela inocência de há dois anos
atrás, estava perdida para sempre. Irremediavelmente.
Mas com os ‘operacionais’ de Phalaborwa, com o mercenário Bibi, as
centenas de outros que vi em treinos, mesmo no boçal Fifteen, nos ‘generais’
tenebrosos Mário, ou Vareia, aí sim, tínhamos a entrevista, o tête a tête, a
consubstanciação do Mal, desse ódio puro e primário. Imagino-me
momentaneamente do ‘outro lado’ e com esta matilha à perna, à volta, como
inimigos... Um pesadelo. Que gente é esta? Que gente era esta, também, antes de isto
tudo acontecer, desta guerra rebentar? Haviam de ter uma família, o que lhes fizeram?
Qual é o ‘apocalipse’ deste punhado de homens sem fuga, tantas vezes sanguinários,
sustidos momentaneamente aqui neste campo na África do Sul… qual será o
pesadelo de cada um deles? O que destruíram na juventude deles, nos sonhos de cada
um?
O estrondo da passagem de dois caças sul-africanos num voo rasante em
treino, em dog fight, interrompe-me a subida deste ‘rio’ de tortuosos pensamentos. Do

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terreiro chega já o som de uma buzina, é da ‘combi’ Toyota: o momento de partir
chegou.
Sigo para Johannesburg neste ‘mini-bus’, com Mahluza, sempre a dormir,
Fonseca e Nota Moisés, que descem no aeroporto de Jan Smuts. Chego já de noite a
Pretória, onde me hospedo, de novo, na ‘La Court Monique’. O fechar do ciclo! Evo
também já está na capital. Deixará a África do Sul na quarta-feira, dia 14,
directamente para Lisboa.
Efectuo algumas compras nos dias seguintes e vou com a Lucinda Feijão
marcar a passagem aérea. Escolho um voo Johannesburg-Madrid-Lisboa, fazendo
assim um ‘stop-over’ de dois dias na capital espanhola. Lucinda está desolada, com
tudo isto… para ela, é um segundo final, depois de já ter assistido à retirada do apoio
por parte dos rodesianos. Desolada também, informa-me da morte do coronel
Groblar, vitimado por um ataque cardíaco. Combinamos um último jantar na casa
dela.
Dia 16 de Março. O Acordo de Nkomáti. Na ‘La Court Monique’ sigo o
acontecimento pela TV sul-africana que abriu hoje excepcionalmente às onze da
manhã para transmitir o acto histórico. Ao fim desta tarde cinzenta, um militar da
A.M.I. leva-me ao aeroporto de Johannesburg. O procedimento é idêntico ao da
chegada: nenhum carimbo no passaporte. Às dezanove horas embarco, viro costas ao
país do ‘apartheid’.
Só voltarei a África quatro anos depois, em 14 de Março de 1988, aterrando
em Maputo. Muito longe de mim está porém tal ideia, em 1984. Agora, à partida da
África do Sul, encontro-me mais ocupado em recordar todos estes acontecimentos
que vivera desde que saíra de Lisboa.
Era um tempo de esperança, e de crença, de que bastava um abanão forte
para o sistema desabar. E nós estávamos aí para isso mesmo… Por mim, a nível
pessoal, nunca executei qualquer violência directa, claro, mas estava em contacto
permanente com toda a actividade e ordens emanadas do ‘nosso’ Estado-Maior, e
desenhava ou desencadeava em termos de guerra psicológica as grandes linhas de
acção, o que, de certa forma, pode ser até pior. Efectivamente, estes últimos treze
meses haviam sido plenos. Marcantes. E pronto, em Lisboa, resignar-me-ia agora a
ouvi-lo, todos só diziam que eu estava mudado…

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A DELEGAÇÃO EM LISBOA: UM ‘SACO DE GATOS’

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Assisti a horrores… horrores que também perceberam… mas não têm qualquer direito de
me chamar assassino. Podem ter o direito de me matar. Têm o direito de o fazer mas não o de me
julgar. É impossível por palavras, descrever, para os que não saibam, o que significa o ‘Horror’. O
Horror. Possui um rosto, o Horror… e temos que fazer dele, um aliado. O Horror e o Terror moral
devem ser os nossos aliados. Senão, tornam-se uns inimigos temíveis. Autênticos inimigos.14

Como parece tranquila em excesso esta Lisboa após o precipitado regresso.


Procuro o Evo Fernandes para concertarmos os próximos passos. Quanto à Ivete, só
retornará da África do Sul em Abril.
O secretário-geral apresenta-me ao Jorge Correia, o novo delegado. É um tipo
animado e alegre, trinta e tal anos, com uma calva no alto da cabeça e em contraste,
longos cabelos dos lados. Um bigode farto, e o eterno cachimbo dependurado são
outras das marcas deste novo representante. Vamos os três almoçar a um pequeno
restaurante em Cascais, não longe da cidadela e da caso do Fernandes. Futuramente,
combina-se, devo auxiliar o Correia no que diga respeito à Imprensa e Informação.
Propaganda, leia-se. E elaboram-se logo as listas de jornalistas a contactar, os mais
permeáveis à informação a produzir pelo movimento.
Jorge Correia é um amigo de há longos anos do Evo Fernandes e vivera
igualmente na cidade da Beira. O pai havia sido no tempo colonial um dos
responsáveis da PIDE em território moçambicano. Mas o afável Jorge, pelo contrário,
é um indivíduo bastante liberal. Após a Independência fixa-se em Portugal e
frequenta o curso de engenharia mecânica no Instituto Superior Técnico. Regressa a
Moçambique como cooperante em 1981. Dentro da RENAMO, aliás, estampam-lhe
logo com essa alcunha, o ‘cooperante’.
Quando Maputo dispensa os seus serviços no Ministério da Indústria, retorna
a Lisboa. Emprega-se na administração da Livraria Bertrand. Bullosa, caprichoso,
expulsá-lo-ia pouco tempo depois, ruidosamente. O Jorge encosta-se então a
Fernandes e à Resistência e nos finais de 1983, Evo nomeia o amigo como delegado
do movimento em Portugal.
Jorge é liberal e um rebelde nato. Começa cedo a morder a mão do dono, a
disputar terreno ao Evo, e mais adiante entrará em contradições sérias com Ivete.
Pouco tempo depois o secretário-geral e esposa irão aconselhar-me a ‘colaborar com
o Correia, pois, mas não demasiado…’. Os choques nascem sobretudo de questões
financeiras, é fácil de ver: o Evo nunca quer despender um centavo a mais. Mais
ainda, queixam-se, e não é apenas o Correia, o secretário-geral nunca entregou
quaisquer fundos ao delegado. O Jorge está agastado e diz que usou todo o dinheiro
pessoal de que dispunha, cerca de novecentos contos, tanto em gastos particulares
como nas actividades em prol do movimento. Só no início de 1984 é que o
representante em Lisboa principiará a receber noventa contos mensais.
Em contrapartida aos pagamentos o Evo exige informações, relatórios
rigorosos, sobre a actividade do mês. E cedo se chega à chantagem directa: sem
relatório não há vencimento. Já estão a topar o tipo de clima que se instala. Correia
principia, indirectamente, a tornar público os gastos desmesurados do casal
Fernandes no estrangeiro.

14 in Apocalipse Now, adapt.

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Em Cascais existem pilhas enormes de revistas e jornais acumulados há meses
com artigos sobre a RENAMO e Moçambique. Prossigo pois com uma do arquivo de
imprensa e respectiva análise, algo por vezes entediante, monótono.

E em Abril a Ivete regressa da África do Sul. E vem toda altiva, esta mulata
franzina e gira, mas com uns nervos de aço, afinal: diz-se investida de importantes
funções por Afonso Dhlakama. E acreditem, torna-se ela, na prática, a secretária do
secretário-geral, a administradora financeira do movimento, das contas em Portugal e
na Suíça.
Muitos tratam-na agora, jocosamente, por ‘secretária-generala’. Ou ‘generala’,
simplesmente. Quando não, por um cognome dito em tom pejorativo: a ‘princesinha
de Mocuba’, a vila zambeziana onde nasceu, no norte de Moçambique.
Refiro a propósito que Fernandes, em território português, nunca teve conta
bancária que se visse. Tudo aparenta estar em nome da esposa, temendo qualquer
acção judicial. Os fundos são movimentados pela Ivete ou pelo advogado Lacerda
Botelho.
Da documentação da RENAMO só uma ínfima parte se encontra na
residência de Cascais: há esquemas de segurança em funcionamento. O grosso,
mantém-se arquivado num sótão do escritório do pai da Ivete, Álvaro Corte-Real que
possui uma pequena firma de ‘import-export’ em Alcântara, Lisboa. Outra
documentação está bem escondida numa herdade de um antigo colono, na zona de
Mafra, ao norte de Cascais.

Esta é toda ela uma época de novos contactos, comezainas com jornalistas e
apoiantes, há um sem-número destes, na maioria antigos residentes em território
moçambicano e que ainda acreditam na causa e num hipotético regresso em breve.
Gente que ainda se sente desenraizada por aqui, apesar dos dez anos volvidos sobre
1974.
É assim que em meados de 1984 conheço mais activistas do movimento e que
assumem certa importância em termos de contactos, informações e dinheiros: um é
empresário no ramo de ‘import-export’ e transitário. Havia sido dono de plantações e
fábricas de caju em Inhambane. Português, tornara-se moçambicano, e curiosamente,
nascido cristão, convertera-se ao islamismo. Possui escritórios na Amadora, próximo
de Lisboa, que coloca à nossa disposição, para reuniões da RENAMO.
Quanto ao doutor Megre Pires, bom, homem pleno de histórias, bom
contador delas, tez curtida, foi um antigo administrador colonial, e vem a tornar-se
relevante para nós, em Lisboa. Alega conhecer Moçambique de norte a sul como as
palmas das mãos. É simpatizante e colaborador da RENAMO em Lisboa há vários
anos. Este velho agente colonial será em 1985 um dos principais elementos
impulsionadores de um gabinete de estudos, elaborando uma pretensa nova ordem
administrativa e constitucional para Moçambique.
O Megre Pires crê pois cegamente na vitória do movimento para breve, e de
uma maneira tão doentia, que até a mim me impressiona. Nem às gentes crentes de
Fátima reconheço tamanha devoção. Bem, tem a ‘cabeça feita’, só pode ser, é
periodicamente enganado pelo Jorge Correia que lhe garante viciosamente a pés
juntos, todos os meses, a queda de Maputo para a RENAMO no mês seguinte. E o
delegado estende a mão, a pedir nova contribuição financeira: ‘está connosco na
Vitória!’ E é assim que o desgraçado do Megre Pires chega mesmo a alterar as suas

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férias anuais para estar em Maputo aquando da ‘libertação’. ‘Uma frustração
completa’, berra depois, irado ainda com o Jorge Correia.

A OUTRA GUERRA — COMUNICADOS E PROPAGANDA


– Para que servem então os almoços corridos com a malta da ‘press’? Não é
para ficarmos quietinhos à espera que a guerra se resolva sozinha. ‘Press’, ‘pressing’,
esforço… diplomático, ‘informativo’. É para isso que estamos aqui em Lisboa e
dizemos envergar a camisola do Movimento.
Com Jorge Correia coordeno técnicas de informação e propaganda a martelar
nos comunicados. Na África do Sul, já referi, havia recebido juntamente com o
Vicente Ululu um curso de ‘Psychological Warfare’, de guerra psicológica,
propaganda, ministrado pelo coronel Grayling. E ligado a estas coisas da escrita, de
escrevinhar meias verdades ou meias mentiras, em casa do Jorge topo uma noite o
Ascêncio de Freitas. O Ascêncio também escrevinha, arranha alguma coisa na
informação, é um velhote com os seus sessentas e poucos, foi agricultor e agora está
aqui cheio de sangue na guelra. E depois, há ainda um gajo misterioso, um jovem de
trinta anos, mulatão alto e magro… Quem é este tipo?, indago ao Jorge.
– Não sabes? Ainda não o viste com o Evo?
– Náh…
– É o José Gaspar, pá, o Mascarenhas… chama-lhe ‘Chico’, é melhor.
Mascarenhas é sem dúvida um gajo esperto para este tipo de trabalho. Já
vamos ver porquê.
O Ascêncio de Freitas tem por aí uns livros publicados, historietas divertidas
da era colonial, plenas de lirismo, e ainda pretende escrever alguma coisa mais. Havia
sido cantineiro em Sofala e dono de uma plantação de ananases no Inchope, perto da
Beira. Trabalhava presentemente como contabilista numa firma de artigos ópticos, em
Lisboa.
Quanto a este ‘Chico’… Bom, o ‘Chico’ Mascarenhas é já um macaco velho
nestas andanças da malandrice política: fora quadro superior do SNASP (o Serviço
Nacional de Segurança Popular) em Maputo, o Director Financeiro máximo da
segurança, e desertara para a África do Sul em 1983. Daí consegue seguir para
Portugal (como? farto-me de indagar) juntamente com outro renegado dos ‘serviços’,
o Cipriano, e constroem toda uma ‘lenda’, elaboram uma série de documentação e
relatórios ‘confidenciais’ sobre a Segurança moçambicana, os quais vão vendendo a
Fernandes. Ivete efectua os pagamentos.
Ora, o bom do Ascêncio auxilia depois o ‘Chico’ Mascarenhas a redigir um
trabalho mais extenso de oitenta e tal páginas sobre a estrutura e historial do SNASP,
e que a mim me cheira a ‘intoxicação’ muito bem orquestrada, com vista ao eventual
lançamento de um livro. Só que os anos correm e nunca houve notícia de o mesmo
ter sido algum dia concluído.
Imprensa. Jornais… rádio… jornalistas. E isto da informação tem muito que
se lhe diga. Editável, publicável, ou nem por isso, servindo somente para ser
canalizada para quem dela precise para análise, em certas esferas decisoras: ‘serviços
de Informação’, desinformação, ou contra-informação…
E é assim que no campo da contra-informação o movimento começará a dar
algumas cartas em Lisboa, na segunda metade de 1984, contando com nova aquisição
de peso. Alguém que funciona em várias vertentes, este Ricardo de Melo, angolano e
mestiço claro, extremamente dinâmico com toda uma rede de contactos, a saber: por

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um lado, é ao tempo jornalista na ‘Rádio Comercial’ onde está à frente de programas
que têm a ver com a actualidade africana. Segundo, é quadro do partido português de
direita, o CDS, Centro Democrático Social. Mais ainda, colabora com a publicação
restrita ‘África Confidencial’, que mais que um órgão de informação, é um orgão para
captar informação para a DINFO, os serviços militares portugueses de inteligentsia (?),
ou canalizar informação já processada por esses mesmos serviços de acordo com os
objectivos estratégicos, em suma, manipular. Ora o Ricardo de Melo vai doravante
orbitar bem de perto a RENAMO portuguesa e torna-se progressivamente um dos
homens de mão do movimento no seio da imprensa lisboeta. Se bem que, nestas
coisas, o fluxo funcione sempre nos dois sentidos e conforme quem vai pagando. Mas
em suma, o Ricardo será, com efeito, extremamente útil, e em especial ao Evo
Fernandes.
De Phalaborwa, o sargento Bento Maria telefona-nos regularmente para
Lisboa, a Evo ou ao Correia, relatando as últimas mensagens oriundas do ‘quartel-
general’ na Gorongosa. Nkomáti está a ser cumprido mas não a 100%, tal como fora
garantido. Quero uma mensagem para ‘sua excelência’? O Bento recebe. Alguma
questão pertinente? Ligue-se para Phalaborwa que o Bento sabe como encaminhar.
Continua a funcionar o canal Lisboa-sul-africanos e Lisboa-Dhlakama. Na verdade,
Phalaborwa continua ‘ON’, vai falando, mas fala baixinho, ouviram?

Em Lisboa os meios privilegiados para a distribuição dos comunicados são as


agências de notícias estrangeiras UPI e AP, americanas, a Reuters, britânica, a France-
Presse, e a ANOP e NP, portuguesas. Na UPI cá continua o ‘Sandy’ Sloop, que fora já
até à Gorongosa, e que é a tal agência que, dizem as más línguas, mas tanta é a
insistência, caramba!, estará ligada à CIA… bocas! Não é? O que é verdade é que o
Sandy não nos larga da mão, nem nós a ele. E não nos esquecemos da BBC, onde está
o Ken Pottinger, também indicado como ‘agente’ dos serviços britânicos MI-6, a
Rádio Comercial, a Rádio Renascença, e jornais lisboetas, onde privilegiamos os de
uma certa direita, que não se coíbem de demonstrar o seu apoio à RENAMO.
Com toda a pompa informativa, rebentáramos há meses com os postes de
Cahora-Bassa. Agora, no início de Maio, tentam germinar com uma ideia estéril,
forçar as coisas, calcular taxas, esquecendo uma das principais regras da matemática: o
zero é o elemento absorvente da multiplicação. Nada vezes qualquer coisa é ‘nada’
mesmo! Ora, para inglês ver, ou para português, sul-africano e moçambicano ver,
dizer que as coisas estão a andar bem, caminhar no bom sentido, está tudo amigo,
beijinho na boca etcetera e tal, é assinado em Cape Town um acordo tripartido sobre
Cahora-Bassa, envolvendo precisamente os governos de Moçambique, Portugal e
África do Sul.
Só que, a barragem continua inoperacional. Eram meia-dúzia os postes
dinamitados? Pois eram! Mas agora há quarenta postes enormes por terra, alguns com
mais de trinta e nove metros de altura. Meus amigos, as novas tarifas de nada valem,
há alguém por aí que entenda esta regra simples?
Estou sentado em Phalaborwa. À minha frente, no tampo da mesa de
trabalho metálica, uma série de fotos, dispostas em colunas como uma paciência de
cartas. Um dos renques mostra precisamente os preparativos para mais uma
sabotagem às torres de Cahora-Bassa: há pacotes enormes de explosivos, do tamanho
de mochilas graúdas, amarrados aos postes. Um cabo condutor pendente, presumo
que pertença ao sistema de detonação. Outro cabo liga esse explosivo aos do poste

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seguinte. Dizem-me depois que a guerrilha até já faz as coisas mais barato, já sabe
acertar com rajadas de Kalashnikov nos isoladores e minar o terreno à volta para
dificultar as reparações…
Desperto. Volto ao presente, despego-me de mais este flash back, um dos
muitos em que por vezes mergulho.
Paralelamente a RENAMO envenena ainda mais as coisas, e insinuamos, aqui
em Lisboa, que Portugal poderá estar comprometido num processo que envolve a
contratação de mercenários em território português, com vista à defesa das linhas de
Cahora-Bassa. E em solo moçambicano, há mais sangue português derramado: um
cidadão luso é assassinado numa emboscada do movimento no sul de Moçambique.
Propaganda igual a pressão. Às vezes o objectivo é neutralizar qualquer
favorecimento ao inimigo. É o que acontece agora: ainda em Maio, Evo Fernandes
pede-me que escreva um artigo denunciando a Cruz Vermelha da RFA por ‘auxiliar
apenas o governo moçambicano’. Evo não terá sido bem sucedido em todos os
contactos que tivera recentemente na Alemanha e levara com os pés, da Cruz
Vermelha deste país.

LISBOA NÃO TRAVA CONFERÊNCIA DE IMPRENSA. UM ENCONTRO


COM O K.G.B.
Em 11 de Junho de 1984 promovemos uma conferência de imprensa no
Hotel Diplomático, em Lisboa, para fazer o ponto da situação em Moçambique. Isso,
mas não só: para testar o terreno. Aquilatar do comportamento das autoridades
portuguesas. Vamos lá a ver como é que estes tipos reagem…
A conferência será interrompida, já no final, por dois oficiais da polícia, muito
corteses, os homens sabiam que estavam ali a fazer um frete aos políticos que os
enviaram, alegando ordens do Ministério da Administração Interna e do Ministério
dos Negócios Estrangeiros. Fernandes encontra-se ausente de Portugal, em nova
digressão à Alemanha Federal e aos Estados Unidos e eu e o Jorge Correia é que
estruturamos este bate-papo. Afinal a constituição e a lei garantem ou não garantem o
direito a um cidadão nacional a expressar-se livremente em território português, e a
convidar um punhado de jornalistas para tomar uns cafés? Claro que sim! Mas esta
malta política de Lisboa cai vítima das suas próprias leis e decretos. Em suma, serão
muito mais ‘moços de fretes’ do que nós na sua atitude tão servil de não ferir
susceptibilidades junto aos governos dos novos países africanos de expressão
portuguesa. Pelo menos, em aparência, e em público.
E há tanto a comunicar, a alertar, a amedrontar, pois essa é também uma das
facetas: levar ao desinvestimento económico, e político. Martelamos essa tecla.
Insegurança. Medo. Há porém uma parte grande de verdade militar, a consubstanciar
esta propaganda: incrementam-se as emboscadas nas vias de Maputo para a
Suazilândia e África do Sul e as sabotagens às linhas de energia eléctrica que
abastecem a capital. Portugueses, querem ir para Moçambique? Para Maputo? Vocês
são capazes de viver, horas e dias a fio, numa cidade perigosa, sem luz nem água? É
para essa ilha de betão que querem ir? Cooperar?! Ninguém sai, a não ser por via
aérea! Há que espalhar o medo e o terror.
E os putos de guerra, os orfãos que viram os pais assassinados, são eles agora
os novos instrumentos de morte, colocados na primeira linha a dispararem contra
tranportes civis: mais um autocarro é atacado na estrada nacional n.º 1 ao norte de
Maputo e uma vintena de passageiros é assassinada. Outra emboscada, contra uma

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coluna de camiões em Tete, na estrada entre o Zimbabwe e o Maláwi, liquida trinta e
sete civis, em 21 de Abril. E a importante vila de Inhaminga, logo ao norte da Beira,
em Sofala, é assaltada em 6 de Abril.
Guerra total. Em intensidade, sem discriminação, por todo o território. Não
se poupe a terra dos bravos macondes! As acções de guerra começam também em
força na sua província, a de Cabo Delgado. Eles, que haviam sido na luta contra os
portugueses o principal sustentáculo da Frelimo em termos de força: fora isso
mesmo, a luta de libertação, os intelectuais do sul, aliados com estes guerreiros bravos
do norte. E chovem relatos de mais miséria e desgraça: em Manica e Tete, cerca de
cinquenta mil moçambicanos fugiram já para o Zimbabue, atingidos pela fome e pela
guerra.
E no interior, no ‘nosso’ interior, as zonas controladas pela guerrilha? Nestes
meses seguintes a ‘Nkomáti’, Afonso Dhlakama permanece tranquilo na Gorongosa.
Um comandante operacional, Ussufo, será encarregue, no terreno, da possante
‘Frente Norte’. O comandante Daniel, que estivera na Base de Comando Recuado, no
Estado-Maior, é destacado para Tete. O temível general Vareia, um elemento da etnia
ndau, tal como Dhlakama, e descrito como autêntico facínora, toma conta da ‘Frente
Centro’. Um outro general, Mário, igualmente feroz, de etnia xona, está responsável
da ‘Frente Sul’, enquanto Henriques Samuel, o mais jovem e sagaz, e que tanto me
surpreendera positivamente na BCR em Potgietersrust, avança decididamente com a
importante ‘Frente de Maputo’.

E em termos de esforços diplomáticos? Em Junho, Jorge Correia procura


aumentar a sua projecção política entre as fileiras do movimento, e alega ter-se
avistado em Londres com Jacinto Veloso, o ministro moçambicano da Segurança,
num encontro arranjado pelo milionário Tiny Rowlands, da Lonrho. Correia admitiria
mais tarde não serem ‘completamente correctas’ tais declarações.
Prosseguindo toda uma estratégia de destruição de infra-estruturas
económicas e de transporte, em Junho ainda, a RENAMO sabota a estratégica ponte
rodoviária sobre o Rio Pungoé, no designado ‘Corredor da Beira’ cortando o trânsito
entre a segunda cidade do país e o Zimbábue.
Há casos mal rematados. Ou que nem deviam ter principiado. ‘Foda-se! Não é
que volto a levar com a porra dos russos?’ Sim, esses mesmos que o movimento havia
raptado de Morrua. Falta o tal par que ninguém sabe deles, ou o Raúl, ou algum
comandante local, ou o Dhlakama, fartaram-se das jogatanas impostas e devem ter
rebentado com os gajos, aliás, muito na linha do que eu havia sugerido logo nas horas
imediatas à tomada dessas estratégicas minas de tantalite, na Zambézia. Pois, que os
russos não estavam lá a dar milho aos pombos, mas a explorar um dos mais valiosos e
estratégicos minerais: tantalite, usado na insústria aeronáutica, espacial e militar.
Insubstituível. Os soviéticos no local, em Morrua, quando foram varridos pela
tremenda operação ‘Agosto Vermelho’, eram todos geólogos comprometidos com os
serviços de informação militar de Moscovo, a GRU, ou com a KGB.
Well, well! Os russos então… o que é que querem mais, agora?
Em Cascais, acompanho então o Evo Fernandes a um meeting na esplanada do
Hotel Baía, um encontro ‘sensível’. Evo, acho, está com um certo receio de ser ele
próprio levado de saco. Vamos ter com um tal Lev Poronin, secretário da embaixada
da URSS, e chefe da ‘residentura’ da KGB em Lisboa. O cabecilha, à altura, do corpo
de espionagem soviética em Portugal.

98
A União Soviética pretende saber mais informações sobre os seus dois
cidadãos que continuam desaparecidos, sabemos as identidades, até, são eles o Yuri
Fedorovitch Gravilov e o Victor Alexeevitch Istomin. Obviamente que não estamos
preparados para fornecer qualquer dado novo. Eu até, no respeitante a algumas
matérias mais sensíveis, não abro já o jogo, completamente, ao Evo, sem querer isto
dizer que alinhe mais com o Jorge Correia. Este é um dos assuntos. Já sabemos, ou
calculamos, na ala militar, ou os que passámos pelas bases do movimento, na África
do Sul, que os russos, e como bem diz enigmaticamente o próprio Dhlakama nuns
escritos, ‘tinham ido para o abismo do comunismo’. A minha linha e a do Raul
Domingos teria afinal vingado, parcialmente, já na parte final? Mas mais vale deixar
algumas questões como esta, na dúvida, o Fernandes às voltas com ‘a escumalha dos
russos’, isto no meu entender, pois não podia haver complacência para com esses
filhos da puta, para eles é acelerador a fundo, e quantos mais melhor!
E é claro que voltamos a falar ao Lev Poronin que o movimento veria com
bons olhos uma diversificação de apoios, ‘que se Moscovo quisesse…’ se bem que
isto fosse mais para tomar o pulso à sensibilidade dos soviéticos, quase uma
provocação, que só arranca Niet! Niet! negas reiteradas, ali no momento, na esplanada,
e dias depois, ao telefone. E pelo nosso lado, será também, e sempre, Niet! Niet!, sobre
a sorte dos desgraçados geólogos desaparecidos.

UMA MÃOZINHA DO C.D.S. NA REVISTA ‘A LUTA CONTINUA!’


Evo Fernandes dá em finais de Junho permissão para a feitura de uma revista
ou jornal da RENAMO, colocando-me como responsável do projecto. Jorge Correia
deverá auxiliar-me nesta tarefa. O Correia mantém agora boas relações com gente do
CDS, como o José Gama e Anacoreta Correia. Contactos conseguidos precisamente
pelo jornalista Ricardo de Melo. Útil, este tipo da Rádio Conercial. Um achado!
Aventa-se assim, de início, utilizar a própria gráfica do CDS para a impressão do
boletim CDS. Contudo, e optando por atitude mais discreta, indicam-nos uma gráfica
‘amiga’ do partido, em Rio Maior, uns setenta quilómetros ao norte de Lisboa.
O primeiro número do boletim ‘A Luta Continua!’, uma paródia evidente à
principal palavra de ordem da FRELIMO, e que sairá com uma periodicidade
trimestral, é editado em Julho de 1984. Um segundo número é ainda impresso na
firma de Rio Maior. A revista escarrapacha uma listagem das acções bélicas e textos
sulfúricos de crítica ao regime. Exibe algumas fotos de combate e das ‘zonas
libertadas’ que nos são feitas chegar pelos sul-africanos, via Evo Fernandes. As
mensagens ‘presidenciais’ são escritas pelo Evo, a maior parte à revelia do próprio
Dhlakama. E o velhote, ex-plantador de ananases e cantineiro, o Ascêncio de Freitas,
escrevinha umas crónicas aceradas, mesmo em estilo insultuoso para com os
dignatários do regime.
Através da revista o movimento procura aumentar a mobilização e conseguir
fundos. Cada exemplar vende-se a cem escudos. ‘A Luta Continua!’ passa a ser cartão
de visita, junto da Imprensa, dos ex-colonos e de alguns moçambicanos contactados.
Os primeiros dois números são pagos pelo comerciante Abdul Satar Hassan,
dono do Hotel Universo. Satár é um indiano enorme de tamanho, obeso, luzidio no
cabelo, mas o que importa para nós é que possui boas ligações ao PSD, o Partido
Social Democrata, nomeadamente com um ex-ministro da Administração Interna,
Ângelo Correia.

100
Alomoçamos, eu o Correia e este indiano volumoso, um destes dias num
restaurantezeco do Campo Grande. Estou estupefacto: a refeição terminou e este
hindú está para ali a emitir ruídos medonhos… O Jorge depois explica-me que é
sempre assim. Barulhos de sucção e fricção, estalos enormes… o homem tem
dentadura nova e está a proceder à respectiva limpeza e adaptação. ‘Porra! Um nojo
do caraças, fico eu a pensar…’
Bom, mas vamos mas é ao que interessa. É este Satár, inclusive, quem
proporciona diversos encontros entre Jorge Correia e o Ângelo Correia, bem como
com o Luís Geraldes, outro quadro de topo do PSD.
O escritor Ascêncio de Freitas desencanta uma gráfica em Lisboa, a
‘Mobidique’, de um simpatizante do movimento, o Carlos Garcia Ramalho Araújo.
Carlos Ramalho havia sido expulso de Moçambique uns anos antes, por ‘actividades
contra-revolucionárias’, uma acusação fácil e habitual nesses primeiros tempos de
Samora Machel, para ‘engaiolar’ quem não se gostasse. Publicara depois já em Lisboa
um livro contra o regime moçambicano, o ‘Reaccionário Anónimo’, sob o nome de
Garcia Araújo.
Até Dezembro de 1985 asseguro meia dúzia de números da revista, com uma
tiragem de cinco mil exemplares por edição, quatro delas a cargo da Mobidique. Duas
destas edições são já pagas pelo simpatizante do movimento, e empresário, o António
Felizardo, que eu ‘recrutara’ em 1983, e que oferece também o papel. Os dois últimos
números têm os custos suportados pelo próprio dono da gráfica, o ‘Reaccionário
Anónimo’.
E apesar do acordo de boa vontade, salvo seja, de Nkomáti, o adido militar
sul-africano em Lisboa, coronel Coetzee, que Charlie Van Niekerk me aconselhara a
contactar se necessário, assegura o transporte para a África do Sul de mais de mil
exemplares de cada número do boletim. Daqui seguem para bases da RENAMO no
interior de Moçambique.
Jorge Correia e Ascêncio de Freitas, o Freitas reside em Setúbal, distribuem
grande quantidade de revistas a sul do Tejo: Costa de Caparica, Setúbal, Barreiro,
Santo André e Sines, procurando cativar mais alguns dos antigos colonos
portugueses. Correia desloca-se ainda ao Algarve e a Peniche nesta dupla função de
divulgar o boletim e recolher fundos.
E quanto ao casal de Cascais? O relacionamento intra-delegação? Os embates
de Jorge Correia com a Ivete e com Evo agravam-se sobremaneira, isto parece um
saco de gatos! O delegado, alegam eles, não presta quaisquer contas sobre os fundos
arrecadados nos eventuais contactos. E o Correia acusa-os de se comportarem como
uns lordes no estrangeiro, em sucessivos esbanjamentos de fundos.
Na zona de Setúbal outra pessoa destaca-se agora, cativada por esta
distribuição de revistas que principia a dar frutos: é o António Correia Umbelina, este
tipo alto e forte, português, gosta porém de ser tratado por Mwana Chuabo, filho da
Zambézia, em dialecto. O Umbelina é um antigo comando da guerra colonial, com
muito tempo passado nessa província nortenha e a guerra deu-lhe, em parte, a volta à
cabeça. Conta como disparava morteiradas com o cano debaixo do braçoe gaba-se de
ter participado na colocação de uma bomba em Setúbal, numa oficina de viaturas, ao
saber que havia sido para aí levado um carro roubado a amigos.

Com tanta gente enfiada neste ‘saco de gatos’, há sempre gatinhos mais
miúdos e que vão tocando nalgumas migalhas, à pala das movimentações maiores:

101
este fenómeno RENAMO, em Portugal, é pois aproveitado para fins meramente
pessoais por gente que nem pertence ao movimento.
Diga-se aliás, que entrar para militante do movimento, até 1984, em Lisboa, é
quase impossível: isto assemelha-se a um clube ou seita, extremamente reservado,
iniciático. Quanto a simpatizantes e colaboradores, isso sim, existem às dezenas. Ora,
tirando alguma da gente da moribunda FUMO que também se diz da RENAMO,
surgem diversos indivíduos recolhendo fundos em nome do movimento, sem
qualquer legitimidade.
Está neste rol um Willy ‘Nango’ Abreu, mestiço alto, morador em Oeiras, ex-
vereador da Câmara de Lourenço Marques. Um ‘assimilado’, como se dizia, pelas
autoridades coloniais, que pegaram nos últimos anos em mulatos e pretos de certa
confiança para o regime. O Nango não tem aqui carreira longa, pois vem a falecer em
1986 vitimado por um ataque cardíaco, tem cinquenta e poucos anos, nem carreira
alguma, oficial, pois nunca é aceite pelo Movimento.
Mas há mais artistas: ora temos aqui um auto-intitulado ‘comandante V. Litos’,
ou antes, Vasco Leitão, que terá sido até o que mais deu que falar. Comandante? Só se
for das tascas e patuscadas em Lisboa. Este indivíduo também mestiço, surgido em
Portugal nos fins da década de ‘70, assumira-se como ‘comandante’ da Resistência na
zona sul de Moçambique e activista político, dizendo ter escapado de Maputo para a
Suazilândia. V. Litos concede uma catrefada de entrevistas a jornais da direita
portuguesa e inicia depois um peditório ‘a favor da RENAMO’. É mais que óbvio
que nenhum dos fundos alguma vez chegou ao movimento. A grande guerrilha do
Litos era contra os copos de boa cervejola! Embora denunciado pela organização,
Litos atreve-se a prosseguir na sua cruzada até 1988. E a malta aqui, nós, até que
neste aspecto somos excessivamente plácidos, nunca nos deu para calar ou assustar
meninos como este…
Outro vigarista-mor da praça portuguesa terá sido um tal Agostinho, gestor
hoteleiro no Minho, um português, este safado, e que se arvora em responsável da
RENAMO para a região norte de Portugal. Organiza redes de recepção de fundos
que nunca nos chegaram. Por altura da morte de Samora Machel em 1986, reside ele
em Caminha, pois, e nesta localidade alguns ex-colonos organizam um pequeno
desfile nocturno pela vila, efectuando uma demonstração de fidelidade ao ‘resistente’
Agostinho. Simplesmente caricato, e surrealista, tudo isto!

Todos estes manhosos vão de certo modo minando os esforços de alguma


rede oficial que a RENAMO procura implementar: credenciados, verbalmente
apenas, parece que há medo em assumir algo por escrito, pelo Evo Fernandes,
funcionam mesmo como militantes, dois portugueses na parte norte de Portugal:
Adalberto Carrada, agente imobiliário no Porto, e Jorge Vasconcelos, artista plástico,
em Braga, ambos antigos residentes na Beira. Parece que a RENAMO tanto
internamente como no exterior não fugirá nunca às suas raízes históricas do centro
do país… será como dizem algo preso a uma malha regional? É o que no fim se
observa, toda esta tendência centrista, em termos geográficos, apesar do alastrar da
guerra para sul e até Cabo Delgado.
Em Julho de 1984, realiza-se novo convívio da ANERM, a Associação dos
Naturais e Ex-Residentes de Moçambique. O tal acontecimento anual, no bosque de
Monsanto, junto a Lisboa. Conseguimos colocar mais de dois mil exemplares só neste
fim-de-semana, e a delegação arrecada cerca de duzentos contos.

102
O mês de Setembro de 1984 é caracterizado por mais uma onda de raptos de
cidadãos estrangeiros. Quatro deles ocorrem no sul de Moçambique. Nem os
cidadãos portugueses são poupados. Dois terão sido levados pela RENAMO junto à
vila da Moamba e são empregados da empresa de construções TÂMEGA. A
delegação do movimento em Lisboa não possui qualquer informação. E não temos
igualmente, notícias mais a dar sobre dois técnicos italianos raptados em Corumane.
Estes, tiveram pior sorte, são encontrados assassinados semanas mais tarde.
No ano seguinte a empresa TÂMEGA contacta-nos, prometendo um milhão
de escudos portugueses pela informação do paradeiro dos seus dois trabalhadores.
Nunca tivemos porém qualquer notícia deles em todos estes anos. Presumo que
também tenham sido mortos.

O ENGODO DAS CONVERSAÇÕES DE PRETÓRIA


Ainda neste mês de Setembro iniciam-se movimentações e contactos
exploratórios na capital sul-africana, que em 3 de Outubro irão redundar na apelidada
‘Declaração de Pretória’. Tudo não passará de um plano da ala política em Pretória,
para agradar a Maputo e a Washington, e a alguns sectores do PS português, para
levarem a RENAMO a desarmar.
O ex-ministro português Almeida Santos e Pik Botha, elaboram um plano que
prevê um cessar-fogo e a integração social, em Moçambique e na África do Sul, dos
membros da RENAMO. Fala-se em assegurar pelo menos oito mil postos de trabalho
de cada lado da fronteira. Correm por esta ocasião rumores de um encontro havido
em Lisboa entre Fernandes e Almeida Santos, mas o contacto é desmentido por
ambas as partes.
A RENAMO, embora sem estrutura elaborada e autónoma, ou um programa
político credível, reconhecido mesmo pelos próprios militantes, pretende colocar
condições políticas.
Ora, isto mais não é que uma manobra dilatória, que permita prolongar, ou
quase perpetuar, o estado de guerra. Se há qualquer coisa para que o movimento não
está preparado é, precisamente, a participação na gestão da ‘coisa pública’: direcção
política e administrativa eficiente, funções de gestão, medidas macro-económicas, etc.
Realço isso mesmo. Corre-se o risco de precipitar de novo o país, tal como na
transição de Portugal para a FRELIMO em 1974 e ‘75, num autêntico vazio, em
todos os sectores. A juntar a todo o rol de males já legados por esta guerra.
Na realidade, em todos os anos em que milito na organização, apenas me
apercebo de esforços para fazer e prolongar a guerra. Os sul-africanos, esses, nunca
falam em conseguir livros de estudo, nunca ofereceram bolsas, nunca ministraram
cursos técnicos. Dificultam, inclusive, contactos com países que o possam fazer. Bem,
toda a exigência da RENAMO nestas conversações irá assentar sobre premissas
políticas, enquanto o movimento é simplesmente inconsistente nesse campo. Uma
utopia.
Vamos aos factos concretos: o negociador principal por parte da RENAMO é
sempre Evo Fernandes, que representa afinal os interesses dos militares sul-africanos
da A.M.I. Isto, enquanto os políticos de Pretória, como ‘Pik’ Botha, assumem eles um
papel de intermediário, na disputa dos seus ‘falcões’ com o governo de Maputo. Em
resumo, duas facções representadas ao nível do poder, em Pretória, e guerreando-se
sobre o tipo de relações a manter com Moçambique e as atitudes a tomar em relação

103
à luta que prossegue no terreno. A delegação de Maputo, essa, aguarda o resultado da
discussão, ao mesmo tempo que explana mais projectos com vista a garantir um
entendimento saudável com Pretória. A RENAMO mais tarde não passará de mero
bode expiatório desta falta de consenso entre os próprios sul-africanos, acabando por
ser indiciada como porta-voz ‘de facto’ da facção dos militares.
Mas ‘Pik’ Botha decerto que não tem autoridade bastante para publicamente
criticar o seu colega da Defesa. A RENAMO, ou antes, Evo Fernandes, torna-se uma
desculpa, e vítima fácil, aliás, de todo o processo. Os acontecimentos parecem
ultrapassá-lo.
Na verdade, quem dá a ordem à delegação da RENAMO, para o abandono
imediato das conversações, é o próprio Afonso Dhlakama, instigado pelos militares
da A.M.I. Fernandes garante-me isto mesmo, meses mais tarde, e lamenta-se já,
dizendo que teria sido melhor a RENAMO aceitar a continuação das conversações.
E Maputo, o que pretendia ou alcançou? Aparentemente, a FRELIMO quer
uma ‘mútua acomodação social, política e económica’ entre as duas partes, num
período após o início de um cessar-fogo. A RENAMO defende uma acomodação e
garantias, mas anteriores a qualquer paragem nas hostilidades.
Diz-se ainda que os militares sul-africanos ‘terão feito batota’: ocultaram
microfones na sala de reuniões para controlar o diálogo entre a delegação do
Ministério dos Estrangeiros de Pretória e a da FRELIMO. Acabam por vencer. A
guerra em Moçambique prosseguirá. Será a continuação da política de
confrontação, ainda que a um nível discreto, que os moderados em Pretória, apesar de
‘Nkomáti’, não conseguem deter.
Por esta altura Evo Fernandes redige um memorandum para o então vice-
ministro sul-africano dos Negócios Estrangeiros, o Louis Nell, lastimando o fracasso
das conversações. Dá para perceber que este Louis Nell se encontra mais próximo das
posições dos militares e da RENAMO, que o ministro a quem tem que obedecer.
Louis Nell, o coronel Charlie Van Niekerk, o brigadeiro Van Tonden, o
coronel Grayling e outros oficiais da A.M.I., realizam por estes dias visitas sucessivas
à Gorongosa. E dão garantias mais que satisfatórias a Afonso Dhlakama: o apoio de
Pretória não terminará.
Vejo semanas mais tarde diversas fotos tiradas por Jorge Correia a bordo de
um avião ‘Dakota’ sul-africano que o levou até ao interior de Moçambique,
juntamente com os militares de Pretória e outros quadros da RENAMO. Os sul-
africanos estão a transportar por via aérea, além de armas e munições, algumas
motorizadas (e coca-colas e filmes, presumo!) para grande satisfação do bom
motoqueiro que é ‘sua excelência’. Bom, além dos gostos pessoais, a verdade é que
isso permitirá um contacto rápido entre bases da guerrilha que estejam próximas.
Em fotos tiradas por Correia e por Fernandes, já na Gorongosa, observa-se
Louis Nell, Van Niekerk e Van Tonden, junto a material de guerra com aspecto de ser
novo. O vice-ministro sul-africano Louis Nell sentado sorridente numa bateria
antiaérea, em pose de disparo. Distingue-se também uma enorme quantidade de
morteiros, ‘Kalashes’, RPGs-7 e munições para armas pesadas, assim como aparelhos
de transmissão.
Quebradas as conversações, as autoridades de Lisboa ainda levam por tabela:
são também apontadas pelos sul-africanos moderados como co-responsáveis pelo
malogro do diálogo em Pretória. Em círculos chegados a Roelof ‘Pik’ Botha agita-se
a informação de que Mota Pinto, então vice-primeiro ministro do executivo

104
português, terá efectuado uma chamada telefónica para Evo Fernandes, e que tal foi
decisivo em conduzir ao retraimento da RENAMO nas discussões. Empolga-se aqui
uma vez mais a ideia da portuguese connection, a componente portuguesa, intensamente
explorado pelos ‘media’ nos meses seguintes, e que auxilia Pretória a sacudir de certa
maneira a água do seu capote.
Os contactos prosseguem porém na África do Sul, mas em muito ‘low-
profile’, procurando ressuscitar esta mais que moribunda ‘Declaração de Pretória’. No
dia 25 de Outubro, Fernandes passa por Lisboa e nomeia-me porta-voz do
movimento em Portugal, dependente do delegado, do Jorge Correia. Uma forma de
tirar peso ao Jorge Correia, mas também porque o Correia continua na capital sul-
africana, regressado da Gorongosa. Não me será muito difícil, penso, o contacto com
a Imprensa, pois já conheço a maior parte dos jornalistas em Lisboa ligados à questão
moçambicana.
Ivete, a ‘generala’, permanece em Cascais. E um destes dias telefona-me com
certa urgência. Quando nos encontramos, entrega-me uma lista de informações que
garante serem de fonte secreta e fidedigna. Creio hoje que terá sido mais uma remessa
preparada pelo ‘Chico’ Mascarenhas, o mulatão ex-SNASP, em manobra provocatória
ou para extorquir mais algum dinheiro. Consoante estas informações recém-chegadas,
pede-me para denunciar publicamente uma campanha que as autoridades
moçambicanas estariam a ultimar, para matarem Evo Fernandes. Mais, deve dizer-se
que a embaixada portuguesa, em Maputo, facilita tal acção, ao emitir passaportes para
agentes da segurança moçambicana.
Em conclusão, foi escrito um comunicado sobre o assunto e distribuído à
Imprensa. O primeiro a recebê-lo e a publicá-lo é, como não pode deixar de ser, o
Ricardo de Melo, cada vez mais envolvido nestas lides da RENAMO.
E no rescaldo desta graçola, e da minha inauguração desastrada como porta-
voz, dias depois sou processado judicialmente pelo Ministério dos Negócios
Estrangeiros português. O processo será arquivado em poucas semanas. Um dos
advogados da Ivete e do Evo Fernandes, o doutor Lacerda Botelho, trata
devidamente do assunto.
Jorge Correia regressa de África, e vindo do Porto temos aqui em visita um
novo colaborador, um jovem, o Jorge Silva, que Correia havia mobilizado nas suas
idas ao norte. Será um dos impulsionadores na distribuição da revista e comunicados,
pelo menos na região do Porto, conjugando esforços com o Adalberto Carrada. A
história dele mais não seria, se não fosse um aventureiro pouco depois: em 1986 é
preso ingenuamente, ao chegar à capital moçambicana com uma amiga. As
autoridades libertam-no em Fevereiro de 1988, num gesto de boa vontade, ao mesmo
tempo em que é solto o piloto João Quental, sim, esse mesmo, o da farm, e que
ingenuamente foi a Maputo ver o seu ex-colega da Força Aérea Portuguesa e agora
ministro da Segurança de Machel, o Jacinto Veloso. Às vezes a nostalgia e a aventura
comportam uma certa dose de risco, pois claro.

O AGENTE ESPECIAL COCCIA RESSURGE EM LOBBY SUL-AFRICANO


EM ITÁLIA
Lembro-me dele perfeitamente, ora se não me lembro! O Giancarlo Coccia.
O homem da derradeira entrevista ao malogrado piloto desertor Adriano Bomba,
irmão do Boaventura.

105
O nome de Coccia surge pois de novo à baila em 4 de Dezembro de 1984. É
citado pelo jornal italiano ‘L’ Europeo’ como sendo um especialista na diplomacia e
jornalismo paralelos e que concentra há anos a sua actividade na África do Sul. ‘L’
Europeo’ acusa Coccia de autêntico porta-voz da RENAMO e de ser actualmente um
‘autorizado conselheiro do embaixador italiano em Pretória, Giacomo Ivancihc’.
Segundo ainda o mesmo periódico, Giancarlo Coccia terá preocupado recentemente
as autoridades italianas ao fazer promessas a amigos seus, de alterar a política de
Roma na África Austral em benefício de Pretória, cujo lobby em
Itália, acrescenta, usufrui já de certas influências.

Não é só a RENAMO que apanha gente à unha por terras de Moçambique


ou dos países limítrofes. Em Portugal cresce a celeuma provocada pela detenção na
Tanzânia e em Maputo de quatro caçadores portugueses, alegadamente envolvidos
com a RENAMO. Um dos detidos, da família Serras Pires, é efectivamente irmão da
Lucinda Feijão que tão bem conheci, e trabalhava no Zanza como secretária do
Orlando Cristina e do Van Niekerk. Os quatro serão libertados meses mais tarde já no
início de 1985. Só me pedem, agora, num telefonema de outro familiar aqui em
Portugal, é que a RENAMO não se pronuncie em nada sobre este assunto. Bom,
tudo ultrapassado, o irmão de Lucinda Feijão virá até a contactar-me telefonicamente
no ano seguinte. Viaja constantemente entre Lisboa, Madrid e Pretória, mas não sei
pormenores. Em fins de 1986 é ele quem atende quando telefono para casa da
Lucinda, e ele até se assume como colaborador da RENAMO. Será alguém que
tentará manter-se equidistante nas divergências que em breve se avolumam entre os
militares sul-africanos e a delegação do movimento em Washington que ele
igualmente conhece.

E como esta guerra se tornou ela já uma imensa máquina de picar carne, não
só de militares mas, sobretudo, de gente civil, na sua maioria, pacíficos camponeses
que cometem o erro grasso de estar no tempo errado, na aldeola ou transporte
errados, em território moçambicano são reportados mais massacres, duzentos
quilómetros a norte de Maputo, numa aldeia dita de Laranjeira. Dezanove pessoas são
assassinadas. Há detalhes: ‘os elementos da RENAMO arrancaram os olhos a um
funcionário da Cruz Vermelha de Moçambique, três dos corpos encontram-se
severamente mutilados’, revela uma fonte da UNICEF. Um outro cidadão português
é morto pela RENAMO na estrada entre Ressano Garcia e Maputo.

No início de 1985 Evo Fernandes já não se encontra em Portugal: processos


judiciais pendentes, principalmente acusações de cumplicidade moral na morte de
cooperantes portugueses, como continua a ocorrer, desaconselham a sua
permanência até um clarificar da situação. O secretário-geral ficará assim ‘exilado’
quase todo este ano, dividindo o tempo pela Alemanha, França e Espanha.
Na RFA, como é sabido já, Fernandes recebe o apoio directo de Wolfgang
Richter, quadro do topo do BND, os serviços secretos alemães, e do influente
professor universitário de Kiel, Woerner Kaltefleiter. Os ‘serviços’ alemães cedem
residência e automóvel ao responsável da RENAMO, pelo menos até Setembro deste
ano de 1985. Em Paris, onde permanecerá por algumas semanas, o suporte é dado
por círculos ligados ao partido direitista RPR. No entanto, com a subida ao poder do
RPR, diluir-se-ão as promessas anteriormente feitas de maior apoio ao movimento

106
pelo partido francês. Uma coisa é o confotto do que se promete estando em
oposição, outra mais séria é ter já funções de Estado, com menos espaço de manobra
quando não se assumem plenamente certao entendimentos.
E mesmo estas aberturas ficarão em breves meses torpedeadas: após a
descoberta na ‘Casa Banana’, na Gorongosa, em 28 de Agosto de 1985, de
documentos comprometedores evidenciando as ligações ao BND, o secretário-geral
será aconselhado a deixar a RFA. A RENAMO não é capaz de manter o sigilo da
operação de apoio.
Agora, em Março de 1985 porém, é a Madrid que vou para me encontrar com
o Evo Fernandes. Madrid… o secretário-geral encontra-se agora numa órbita mais
próxima de território português.
Sigo juntamente com o delegado Jorge Correia e o empresário António
Felizardo. No aeroporto de Barajas somos recebidos pela Ivete. Transporta-nos para
o Princesa Plaza Hotel, onde eles já se encontram, bem no centro da capital, e onde
ficamos hospedados por dois dias. Um hotel cinco estrelas.
– Quem paga isto tudo, pá?, pergunto ao delegado.
– Eu não sou, nem tu. E ele ri-se. Nem hotel nem viagem. Correia limita-se a
afirmar que são os ‘amigos’ espanhóis do Evo. Os ‘amigos’, vimos a saber depois,
serão os ‘serviços’ militares de Madrid.

O GOLPE DA DERROTA EM ‘CASA BANANA’, E COMO DHLAKAMA


FOGE DE MOTA
O grande desaire militar e político para a RENAMO no ano de 1985, ou
mesmo em todos estes anos, é sem dúvida a tomada pelos governamentais e tropas
zimbabueanas da principal base em Moçambique, a ‘Casa Banana’, na zona da
Gorongosa.
A ‘Casa Banana’ fora sempre considerada inexpugnável pelos militares da
guerrilha. O mito está desfeito. Dhlakama escapa por um triz. Valeu-lhe essa
conhecida costela de motoqueiro e os meios ofertados pelos sul-africanos, a frota de
motorizadas: corre que nem uma lebre, foge, larga tudo, papéis, secretário, homens de
confiança, tropas, e salta para uma das motas, acelera, pira-se, e consegue apanhar um
helicóptero sul-africano após se esgueirar da região mais acesa dos combates e lançar
um SOS a Pretória. Uma das missões mais arriscadas dos ‘malucos’ da Força Aérea da
África do Sul, com a zona pejada de meios militares da FRELIMO e toda uma rede,
um apertado cerco, à região da Gorongoza.
Ivete Fernandes, bem cáustica sobre tudo isto, meses mais tarde, virá ter
comigo ao jornal ‘O Século’. Tenta passar-me a mão no pelo, como soe dizer-se, nós
já quase não nos falamos, e para eu atender o telefonema prévio a marcar encontro
num café, junto à Rua Augusta, alega até junto do PBX ser uma chamada da minha
mãe. Bom, o que é verdade é que a Ivete considerará que Dhlakama é um cobarde,
por este ter, segundo ela, abandonado os seus homens no terreno. Diz-mo
directamente, e que afirmou isso mesmo cara a cara a ‘sua excelência’ quando se
voltaram a falar na África do Sul: ‘o senhor presidente fugiu de mota, como um
cobarde, abandonou os seus homens no terreno, largou tudo e todos, até ser retirado
por um helicóptero sul-africano’.
Quanto ao Joaquim Vaz, aquele bom vivant que eu tão bem conhecera nas
BCRs em Potgietersrust e Phalaborwa, feito secretário pessoal de Afonso Dhlakama,
e responsável pela perda da documentação presidencial na base de ‘Casa Banana’, terá

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desaparecido em seguida. Nunca mais é visto por gente de fora do movimento, até
1990. Uma queda em desgraça, e que por pouco não lhe custou a vida.
Perante a enormidade da derrota militar, em Lisboa a RENAMO inicia uma
campanha de contra-informação procurando minimizar este terrível episódio da
Gorongosa, e anuncia ‘operações de cerco’ aos governamentais. É tudo falso, porém:
de Phalaborwa, estamos há semanas sem receber qualquer informação militar, tudo
desarticulado. Bento Maria não tem qualquer comunicado de guerra proveniente do
interior. A desorganização impera num ‘quartel-general’ que não existe mais, posto
em fuga rocambolesca. Recorremos à imaginação: emitem-se comunicados
reportando largas baixas entre os zimbabweanos, conselheiros da RDA e soviéticos
abatidos, etc., etc. E situação mantém-se assim neste caos até finais de Setembro.

A 25 de Setembro chegam a Lisboa oriundos dos Estados Unidos, o ‘zombie’


Gideon Mahluza e o Artur Janeiro da Fonseca, o homem da Alemanha. Hospedam-se
no Hotel Universo, o tal hotel pertença do indiano Abdul Satár, ligado ao PSD,
situado próximo do Rossio. Ora, os dois, haviam participado na Califórnia na reunião
anual da WACL, a Liga Mundial Anti-Comunista. Na mesma altura, Samora Machel
inicia uma visita a Washington, um autêntico marco nas relações entre os dois países.
Coincidência ou não, neste mesmo dia em Maputo explodem os enormes
paióis militares de Benfica. Em semanas, é a primeira notícia de certa forma favorável
para a guerrilha. As explosões dos paióis não terá nada a ver com qualquer acção do
movimento, embora este não demorasse a reivindicar a sua autoria, para distrair a
opinião pública das derrotas averbadas na ‘Casa Banana’. É muito mais plausível a
teoria que remete para uma jogada de elementos próximos dos soviéticos e que vêm
com maus olhos a aproximação aos americanos, fazendo ver a periclitância e
dependência de material bélico, de Maputo, em relação a Moscovo.
Janeiro da Fonseca e Mahluza concedem uma conferência de imprensa em
casa de Jorge Correia. Pouco há a acrescentar, em todo este contexto. ‘Casa Banana’,
já era, esse é o facto irrevogável e que muda tudo. Fonseca, nervoso, pede perante os
jornalistas uma garrafa de vinho verde ‘Gatão’. Diga-se de passagem, que o Artur
Janeiro da Fonseca adora ‘Gatão’, e desta mesma alcunha, ‘Gatão’, já não se livra
entre as gentes do moviemento que conhecem as suas andanças por Lisboa Claro que
o Jorge Correia lhe nega a bebida. A audiência sorri, divertida. Isto vale mais que
qualquer declaração sobre o raio dos paióis ou o desaire da ‘Casa Banana’! E Janeiro
da Fonseca não se fica por aqui, creio que o almoço já fora ele devidamente bem
regado, a ‘Gatão, calcula-se, e ‘derrapa’ ainda durante a conferência: anuncia
descaradamente os ‘bons contactos’ que manteve com a organização ‘Soldados da
Fortuna’, na prática, um clube de mercenários, baseado nos Estados Unidos. Está
uma autêntica miséria este Fonseca: tenta sorver agora um cocktail por uma
palhinha… chupa, sorve e o líquido não sobe. Só agora descobre que o plástico
colorido não é palhinha alguma, mas uma simples colher! Disfarço o riso… bêbado,
que nem um cacho, ele, olhos mais glaucos que um peixe arrancado há longas horas
da água.

Instado a abandonar a Alemanha Federal e França, Evo Fernandes regressa a


Lisboa, a maior parte dos problemas judiciais que haviam ditado a sua ausência de
Portugal foi já torneada.

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E é sempre interessante acompanhar esta constante mutação da malta da
RENAMO, quem trepa, quem cai, as cabeças que rolam… Semanas mais tarde,
sentindo-se de novo de movimentos mais soltos, e bem calçado por Pretória,
Fernandes torna público o afastamento compulsivo de Faniel Gideon Mahluza, o
‘dorminhoco’, e de Khembo dos Santos, o homem do Quénia. A ‘componente sul-
africana’ consolida-se aqui uma vez mais.
No prosseguimento da campanha de contra-informação, forja-se uma
pretensa carta-convite de Samora Machel a Artur Vilankulos, marcando um encontro,
durante a visita do presidente moçambicano a Washington. Numa reunião a que estou
presente, em casa do Jorge Correia, o delegado surge com esta ideia peregrina. O
‘Chico’ Mascarenhas, segundo Correia, tratará da montagem da carta e de entregá-la a
quem interessa. E Fernandes concorda. A carta, ou antes, uma fotocópia, será
entregue ao boletim de notícias africanas editado em Lisboa, o ‘África Confidencial’,
como informação fidedigna. E ‘Chico’ Mascarenhas, o mensageiro e confidente, faz
mais alguns tostões. O fac-símile da carta será efectivamente publicado no número
seguinte da ‘newsletter’. Xavier de Figueiredo, o director do ‘Confidencial’, só mais
tarde dá conta do logro em que caíra. Diga-se em abono da verdade, que este mesmo
boletim, no fundo, uma ‘antena’ da DINFO, os serviços militares
portugueses, publicará ainda uma notícia deturpada sobre a explosão do paiol,
fornecida desta feita pelo próprio Jorge Correia. Mas a informação fora igualmente
montada com a ajuda do ‘Chico’ Mascarenhas.

Ah! Por estes dias aterra aqui nos nossos círculos uma figura bem curiosa: o
engenheiro António da Cunha Coutinho. Açoreano, engenheiro civil e de minas. Tem
a particularidade de ser ‘Cavaleiro grã-cruz da Ordem dos Templários’. O homem é
membro honorário do Conselho Académico dos Altos Estudos Económicos e Sociais
de Bruxelas. Só que, este Coutinho, nunca esteve em Moçambique. Para ele, o
‘Ultramar’ havia sido Angola, onde se envolveu com a FNLA já depois do 25 de Abril
de 1974.
O engenheiro Coutinho é um dos novos apoios do Evo Fernandes em Lisboa.
Não apareceu por acaso, nem assim sem mais nem menos. Vamos almoçar um destes
dias, eu, o Fernandes, o Coutinho e o filho, e um padre, o padre Hipólito, que eu já
conhecia da casa do Evo, e que pertence à igreja dos Anjos, Lisboa. Ora o padre é
quem reboca este Coutinho para a causa da RENAMO. O repasto acontece na
clássica Sociedade de Geografia, na baixa lisboeta. E fica combinado: podemos dispor
doravante de uma das salas dos escritórios deste engenheiro Coutinho, situado junto à
Praça de Londres.
Aquele ambiente, porém, não me seduz: eu, sou ‘bicho do mato’, ainda mais
me tornei após a digressão à África do Sul, e agora, estes gajos todos amaneirados…
parece estar-se nos fins do século XIX e não nos derradeiros anos do século XX.
Coutinho e o filho assemelham-se a personagens saídas de um qualquer livro do Eça,
ou de Júlio Verne, arcaicos em tudo. E, pasme-se, o engenheiro fala-me nessa
‘Ordem’ quase secreta, a Ordem dos Templários… propõe-se mesmo fazer-me
‘cavaleiro’ da Ordem! Está claro que eu não estou para brincadeiras destas. ‘Oh meu
amigo!, insiste ele, agora já nem é preciso comprar dois cavalos!’
– Está bem, está bem, senhor engenheiro… depois falamos!
Coutinho pode-se considerar um homem de certo poder económico:
empresário, accionista de uma firma de serviços médicos, director bancário e

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colaborador de um outro banco, norte-americano. É ainda um dos líderes da chamada
Frente de Libertação dos Açores, um movimento separatista enfeudado a interesses
norte-americanos. É acusado pela esquerda portuguesa de ser um dos homens de
mão da CIA em Lisboa. No ‘Verão Quente’ de 1975 foi um dos principais
organizadores de manifestações em Lisboa e no norte de Portugal, integradas num
denominado ‘movimento das famílias cristãs’.
No almoço concordo apenas em utilizar esporadicamente o escritório do
engenheiro Coutinho, mas acabo por não aparecer. Sei contudo que um posterior
representante da RENAMO na capital portuguesa, o Manuel Frank, aceitou idêntica
oferta efectuada em fins de 1987.
E quanto ao padre Hipólito, um goês como o Evo Fernandes? Tornarei a vê-
lo no princípio de 1988, por mero acaso. Confessa-me, gostar até do serviço de
missionário, mas que Evo Fernandes lhe havia prometido um lugar de bispo caso a
Resistência vença. E é a rir-me por dentro que revejo esta corrente que engrossa dos
‘iluminados’ pela expectativa de uma vitória breve. Quantos não há agora por aí? Só
para citar outro, um que espera também desde este ano da graça de 1985 por uma
pretensa vitória da RENAMO, é o Abdul Satár: Correia já lhe prometera, garantira
mesmo, uma ‘vitória para muito breve’, e a colocação de Satár, ’assegurada por
Dhlakama’, jura Xicuembo chanhaca (por Deus), como ministro das Finanças e do
Comércio... Satár, está entusiasmado, paga um par de edições da revista da
RENAMO, mas com dinheiro pedido ao sócio, um português. Satár é macaco velho e
sabido!

Foi o riscar de um fósforo, este ano. E agora, no final de 1985, Ivete vai a Goa
visitar a mãe de Evo Fernandes. Estou siderado quando ouço o que ela conta, no
regresso: Em Goa, entrega a um astrólogo indiano a foto do Evo, mais a data, hora e
local de nascimento do secretário-geral… Estamos numa festa, uma festa de anos em
casa dos Fernandes, quando Ivete lança estas previsões. O Fernandes bem lhe lança
um olhar sério para que ela se cale, deve estar farto de ouvir a repetição da história.
Mas a Ivete avança no relato: ‘o astrólogo antevê uma longa vida para o Evo’, diz ela,
com entoação, ênfase, a mirar-nos a todos. ‘Há-de se tornar dentro de dois anos
primeiro ministro de Moçambique e será muito amado pelo povo’, acrescenta.
Mas há ainda algo de terrível nesta profecia: ‘sofrerá um atentado, traído por
alguém muito chegado dentro do movimento, mas irá recuperar, pois morrerá velho...’
Ivete está radiante. Como que tocado por uma premonição, revelação terrível, sinto
um rubor imenso a invadir-me, espalhar-se-me na face conforme me dirijo lesto para
a casa de banho para lavar a cara. Ivete talvez nunca devesse ter dito, repetido, aquela
frase fatídica. Por vezes, dizer algo é criá-lo. Seria eu no futuro o mesmo, se nunca
tivesse ouvido tal premonição? Mudaria isso alguma coisa? E este rubor súbito e
terrível? O que significa tudo isto? My God!!!

TOM SCHAAF: UM SANTO TENTÁCULO AMERICANO


Ainda Dezembro, de 1985. Há um novo personagem em campo, um
americano apoiante da RENAMO, Thomas Schaaf, que chega a Lisboa. Nunca ouvira
falar dele. Vem do Zimbabwe, onde esteve como missionário, e está na capital
portuguesa de regresso para os Estados Unidos onde voltará a residir. A residir, e não
só.

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Schaaf contacta comigo através do jornalista de ‘O Diabo’, António Maria
Zorro. O ‘Diabo’ esteve sempre ao lado da RENAMO, é um orgão identificado com
a extrema-direita portuguesa e tem como figura de proa e directora a conhecida
jornalista Vera Lagoa, deveras ‘politicamente incorrecta’ nestes tempos do pós-25 de
Abril.
Quanto ao Zorro, bem, está tudo dito se especificarmos que foi colega do
António Ferro, o propagandista-mor do regime salazarista. Já passou dos setenta e é
uma figura frágil, um cabide, magríssimo e pequeno, que me convida por vezes a
jantares no ‘Dragão’ de Alfama. No final, isto parece uma sessão de patinagem pouco
artística, o velhote já bem bebido, a escorregar e a derrapar por estes paralelipípedos
tão polidos, húmidos e traiçoeiros que revestem as ainda mais velhas ruas, o bafo da
meia dúzia de bagaços que ele acaba de emborcar a perseguir-nos teimosamente, e já
sei que neste rematar de jornada tenho sempre que escutar a mesma boa intenção:
‘conheço a Amália há anos, e o Eusébio… vou falar com eles, esses é que serão um
óptimo cartão de visita para a RENAMO…’
Nem Amálias nem Eusébios, temos que nos contentar com este tipo louro,
jovem e alto que o Zorro acaba de desencantar. O ‘Tom’ Schaaf nasceu na Rodésia,
está naturalizado americano, mas continua a passar longos anos na África Austral
trabalhando em missões protestantes. E reporta a Washington. A quem, em
Washington? Com o que verei nos meses seguintes, os ‘patrões’ de Schaaf não tinham
somente a ver com o ‘espalhar a palavra do Senhor’! Claro que não! Tinha mesmo
muito era de audição e manipulação.
Juntamente com Thomas Schaaf vêm dois acólitos ou lacaios, dois negros
moçambicanos que o auxiliam numa das igrejas do leste do Zimbabwe. Relata-me que
desde o início do ano tem mantido contactos com a gente da RENAMO no terreno,
e com o próprio Dhlakama, oferecendo medicamentos, roupa, comida e livros. O
superior dele na igreja é o seu próprio sogro (bendita igreja!) um tal Jonathan
Davidson, também americano, e que se mantém ao corrente de todas as
movimentações.
Tom afirma não ter problemas em andar nas zonas onde opera a RENAMO e
que tem usado várias vezes a estrada Zimbábwe-Maláwi, através de Tete, sem escolta.
Fala com um à vontade enorme dos contactos no Maláwi com a gente da RENAMO
e apoiantes. Nos Estados Unidos, esclarece-me ainda, está decidido a apoiar o novo
delegado do movimento, o Luís Serapião. ‘Pois, assim seja, Amén!’, digo cá para mim.
Aqui há gato! Este Schaaf, acabadinho de aterrar, emite desde logo um parecer
desfavorável em relação ao secretário-geral, e diz que a figura de Fernandes já
não é bem vista no interior, nem sequer pelo Dhlakama…
– Hummm… Calo os meus comentários. Deixemos correr o marfim.
Mas não é que o homem terá razão? Começam ainda neste mês de Dezembro
a circular rumores sobre um afastamento a médio prazo de Evo Fernandes do cargo
que ocupa. E em Washington, o professor Luís Serapião, que havia sido até nomeado
pelo Evo, principia ele também a marcar um distanciamento progressivo em relação
ao secretário-geral logo após a chegada deste Tom Schaaf. ‘Mas que gandas
maquinações que pr’áí vêm!’
O ano termina, estando ainda a decorrer uma campanha de solidariedade para
com o povo moçambicano, lançada em Portugal, o ‘Abraço a Moçambique’. A
RENAMO também não se fica e contra-ataca em propaganda, procurando
estabelecer um paralelismo entre a situação em Moçambique e aquela ocorrida na

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Rússia Soviética em 1920/21, editando uma brochura, ‘A Diplomacia da Fome’. E
como prenda envenenada no sapatinho o movimento envia também o seu ‘abraço a
Portugal’, derrubando agora, de uma assentada, mais de trezentos postes das linhas de
Cahora-Bassa. Um feito digno de figurar no Guinness. Kapput de vez para os
esquemas de transmissão de energia eléctrica da barragem, pelo menos enquanto
durar a guerra.
E como estas coisas de certa forma também têm a ver connosco, verdade seja
dita, convém referir que na África do Sul, o chefe da Inteligência Militar ‘AMI’,
general Westhuizen, um ‘amigo da RENAMO’, ascende a um lugar no poderoso
SCC, o Conselho de Segurança do Estado.

No dealbar de 1986 temos as autoridades à perna: a DCCB, Direcção Central


de Combate ao Banditismo, da Polícia Judiciária portuguesa investiga um processo,
uma queixa-crime mandada instaurar na sequência da morte do português Arnaldo
dos Santos, eventualmente ocorrida em 29 de Setembro de 1984 na estrada entre a
África do Sul e Maputo.
Eu, o Jorge Correia e Evo Fernandes, somos ouvidos na DCCB,
separadamente. Fernandes põe-me ‘à vontadex’, nada irá suceder, garante: ‘o processo
não tem pernas para andar’. Efectivamente, sou interrogado pelo inspector Marques
Monteiro, a quem Evo considera como ‘um amigo’ de há longos anos. E tem razão,
nunca mais se ouviu falar do processo. Nem a DCCB tem no fundo razões de queixa
da nossa parte, pois o secretário-geral ainda canaliza algumas informações do terreno,
da parte sul de Moçambique, respeitantes a uns foragidos portugueses acolhidos por
Samora Machel e pertencentes às FP-25, um grupo acusado por Lisboa como
associação terrorista.

Afinal, com quem conta agora, à séria, a RENAMO na capital portuguesa?


Quem é quem? Como vai este ‘saco de gatos’? Paralelamente à RENAMO, ou antes,
como meros simpatizantes mas críticos em relação à direcção luso-goesa do
movimento, reúne-se em Lisboa muito regularmente uma célula de quatro
moçambicanos: Willy ‘Nango’ Abreu, que já citei, João da Silva Ataíde, ex-
embaixador de Moçambique em Portugal e que pedira asilo político em França,
António Rocha, ex-cônsul em Harare, e Miguel Murupa, o mais conhecido dissidente
da FRELIMO nos tempos da luta armada anti-colonial.
Murupa encontra-se agora em Portugal como correspondente de algumas
publicações da Alemanha Federal. João Ataíde, por seu turno, viaja constantemente
entre Lisboa e Paris. Na capital portuguesa conta com o auxílio financeiro de um
industrial ligado a empresas de gás e ar líquido, Manuel Geraldes, que tivera
anteriormente interesses em Moçambique. E a luta continua: o Geraldes deseja ajudar
o movimento através do Ataíde, mas nunca, nem pensar, nunca com o Evo
Fernandes.
Em Lisboa movimentam-se ainda grupos extra-RENAMO e que se dizem,
reclamam, ser de oposição ao governo de Maputo. Conseguem o apoio de alguns ex-
colonos e de um ou outro país. A FUMO está agora arrumada num plano muito,
muito secundário, dirigida pelo jovem advogado João Khan. Algum tempo depois
este Khan e outra gente da FUMO vêm propor uma reconciliação com a RENAMO,
em mensagem verbal que me é transmitida pelo jornalista António Maria Zorro.
Dhlakama nega porém, hoje e sempre, qualquer aproximação a outros grupos.

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Mais destacada avulta a MONAMO, o Movimento Nacional
Moçambicano, de Máximo Dias, um outro advogado goês. Engloba gente que já
pertenceu à RENAMO e diz estar melhor preparada politicamente. Não possui
quaisquer homens em armas e passa quase despercebida em Moçambique. Máximo
Dias, recorde-se a propósito, foi um dos dirigentes do grupo GUMO, onde também
pontificou Joana Simeão, surgido em 1974. O GUMO não queria ‘aquela
independência’ dada por Portugal exclusivamente para as mãos da FRELIMO. E a
Joana Simeão, professora, pertence ao grupo dos sete desaparecidos, executados pelo
regime logo após a independência. O Máximo Dias afirma categoricamente ter apoios
entre países árabes e a RENAMO não hesita, acaba por lançar de imediato uma
campanha acusando-o de ligações à Líbia.
Nesta disputa das várias oposições em Portugal surge também uma
FRESAMO. A Frente de Salvação de Moçambique teve inicialmente à cabeça um ex-
RENAMO e ex-FRELIMO, um tal de Zeca Caliate. O Caliate pertencera ao
Departamento de Segurança da FRELIMO já durante a luta pela independência. Mas
o homem não se terá portado muito bem: foi punido e destituído, por violação de
menores, segundo se argumenta em Lisboa. Anos mais tarde tivemos depois este
mesmo Zeca Caliate a integrar a Resistência mas, oh azares dos azares!, acaba por
abandonar o movimento devido a divergências com o Orlando Cristina, e já sabemos
bem como o Orlando era quando tomava alguém de ponta.
‘Em vez de estar no partido de outros, que não gostam de mim, porque não o
meu?’ E o Caliate funda então a FRESAMO juntamente com outros moçambicanos
no exterior: o António Zenga Zenga, o Carlos Reis e o José Massinga. O Massinga
será o tipo com maior andamento e traquejamento internacional: integra-se ainda
noutro projecto, o ‘Friends of Mozambique’, algo que nasce agora pelas mãos do
Artur Vilankulos, o pedante americanizado corrido da RENAMO.
Falta referir um aspecto saliente deste José Massinga: o homem não é um zé-
ninguém qualquer, tem uma certa craveira, e havia estado preso em Maputo de 1981 a
1983, no rescaldo do chamado ‘caso CIA’. Ligações de ontem. Ligações de hoje,
muito provavelmente. E estava bem colocado, quando caiu em desgraça: era
funcionário no Ministério dos Negócios Estrangeiros moçambicano, e aparentemente
facilitara informações a elementos da representação diplomática dos EUA em
Maputo.
Em breve esta FRESAMO transformar-se-á em CUNIMO, não se riam, é a
Convergência Unida de Moçambique, o que o acrónimo quer dizer. E com nova
mutação, isto é como os vírus, pouco tempo depois passa a chamar-se
UNAMO, União Nacional de Moçambique. Pode dizer-se que este movimento,
escolham o nome que mais lhe gostem de chamar, tem uma base regionalista, ligada à
província da Zambézia, e vem sofrendo a influência de interesses malawianos.
A FRESAMO-CUNIMO-UNAMO irá tentar primeiramente uma luta
‘política’ de desgaste à RENAMO, o que aparentemente consegue. Evo Fernandes
será o alvo principal. Aliás, o Fernandes torna-se o bombo da festa para muitos. De
seguida, procurará conquistar alguns quadros do movimento de Afonso Dhlakama,
objectivo que também atingirá em finais de 1987. Clama ser Morrumbala, na
Zambézia, a ‘capital’ provisória da organização, e defende a via da luta armada para
lutar contra FRELIMO e RENAMO. Ena!

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GABINETE DE ESTUDOS
Praticamente só no início de 1986 é que começa a funcionar o novo Gabinete
de Estudos coordenado por Evo Fernandes. Efectuam-se agora reuniões semanais
nas tardes de sábado. O local utilizado é uma sala cedida pelo comerciante Abdul
Sátar nos seus escritórios da Avenida do Brasil, em Lisboa. Além de mim, do Jorge
Correia e do Fernandes, participa a família Megre Pires, o apoiante fanático, ex-
administrador colonial que alterara as férias para estar em Maputo aquando da
‘libertação’. E há quatro moçambicanos que acabo de recrutar, indicados por gente da
Gráfica Mobidique, que nos imprime a revista. Manuel Frank, um deles, é formado
em Direito.
Prepara-se o projecto de uma nova Constituição para Moçambique e de uma
estrutura administrativa, privilegiando o regulado. Mais tarde junta-se a nós o
engenheiro português Jorge Martins, funcionário do Ministério da Agricultura e
Pescas.
Nem acredito nisto: um ministério alberga agora reuniões da RENAMO!
Efectivamente, num dos sábados à noite a reunião de estudo da RENAMO tem lugar
precisamente na então sede desse ministério, um prédio localizado numa das esquinas
da Avenida da República, em Lisboa.
O mais curioso de tudo isto é que todo o trabalho de nada terá valido: nem o
projecto de Constituição, nem a estrutura administrativa, nem os estudos sobre
agricultura e pecuária. Dhlakama vai ignorar e desprezar completamente a actividade
do ‘Departamento de Estudos’. As clivagens entre a Gorongosa e Evo Fernandes
acentuam-se.

Jorge Correia também não está parado, nem tranquilo. Mais que tudo,
pretende quebrar a dependência financeira a Cascais, tentando desesperadamente
conseguir fundos junto de empresas laborando em Moçambique, como o grupo
Entreposto, a Riopele e a Arnaud.
Qual o ‘modus operandi’, então? Promete ‘segurança’ às instalações, e garante
que não ocorrerão ataques da RENAMO aos seus interesses caso auxiliem o
movimento. Pouco ou nada consegue.
Mais frutuosos serão os contactos que tem com o mesmo fim junto de
serviços secretos ocidentais, como o MI-5 e MI-6 da Grã-Bretanha. A ligação em
Lisboa é efectuada através de um tal ‘Billy’, que lhe foi apresentado pelo jornalista
Ken Pottinger, o tal correspondente da BBC. Quanto aos ‘serviços’ alemães-federais,
bom, estes também estão na mira do Jorge Correia, mas isto é terreno mais movediço
para ele, pois aí o Fernandes adiantou-se, mercê dos elos que mantém há muito com a
própria cúpula do BND, na RFA.
Mesmo assim o Jorge Correia consegue uma oferta dos alemães, em
equipamento: é um computador para a delegação, um Commodore 128, com todos
os acessórios periféricos.

Na Austrália estabelece-se pela primeira vez um grupo de apoio, através do


jornalista Geoff Hill, editor do jornal ‘The Australian’. Quem é este novo artista de
que nunca vimos mais gordo? Nunca nos vimos, mas o Geoff Hill iniciou um
contacto regular comigo através do telefone e de correspondência. Envio-lhe o

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material de propaganda que vai sendo editado. Em Camberra, a capital australiana,
enceta uma série de encontros de ordem política em nome da organização.
Esperemos para ver…
Em Junho de 1986 recebo em Lisboa um seu amigo que está de passagem
pela Europa, o Dave Morley, também australiano, e que serviu como mercenário no
exército rodesiano de Ian Smith durante a guerra. O boletim da ‘Rhodesian Veteran’s
Association’ traz a partir de então o meu nome e endereço como contacto da
RENAMO na Europa, e passa a ser-nos enviado pelo correio. É editado em São
Francisco, nos Estados Unidos, por outros ex-membros do exército rodesiano. Este é
dos tais casos em que ficamos a matutar: porquê o contacto? Infiltração? Nostalgia?
Seremos encarados como ‘irmãos de armas’? Nunca esquecendo que a Resistência
teve a sua génese na Rodésia e era apoiada precisamente pelas forças epeciais desse
país, os Selous Scouts, e em termos de ‘inteligência’ pelo Special Branch II.

O MISTERIOSO E SINISTRO ALEXANDRE CHAGAS


Não, nunca é o bastante, há sempre lugar para mais um. Não admira que
desde 1982 eu estava numa posição vocacionada para uma certa triagem da gente que
se aproxima e busca contacto. Um novo caso típico acaba de entrar nos radares. Aliás,
é uma reentrada. E, oh!, se não havia de dar que falar… mas não, não nos apressemos
para já.
Alexandre Xavier Chagas, ex-agente da PIDE. Podia ser esse o cartão de
visita. Contacta-me de novo. Havíamos tido um encontro breve meses antes. Agora,
“precisa mesmo de fundos para ele e a sua ‘célula’ em Maputo desenvolverem acções
violentas contra cooperantes e outros alvos. É a sério!”, garante.
Obviamente que eu não tenho autonomia para tal, nem posso tomar decisões
dessas. Como referi, conhecera o Chagas anteriormente. Pedira-me então, em carta
feita chegar através do jornal ‘O Dia’, um encontro na Residencial Pátria, na Avenida
Duque de Ávila.
A acompanhá-lo estava aí um sujeito misto, alto, acabado de chegar de
Moçambique, de nome Félix, e um outro português de uns sessenta anos, ligado à
causa monárquica. Da Residencial Pátria, Chagas voltaria para o seu ‘quartel’ em
Portugal, um hotel na Costa de Caparica. Também já nessa altura se dizia em busca de
dinheiro para as ‘células’.
Cuidado, muito cuidado mesmo com este Chagas… Tem um aspecto sinistro,
o homem, um olho apenas, não sei as circunstâncias em que perdeu a outra vista,
estatura reduzida, musculado, cinquenta e tal anos. Coriáceo, faz lembrar o Orlando
Cristina na sua frieza, mas este tem os cabelos mais encrespados, e esconde-se atrás
de uns óculos. Sempre me pareceu ter um perfil declaradamente mercenário e não
esconde agora ter ligações a círculos sul-africanos. Mas então, porque é que nos vem
pedir a nós em Lisboa, ‘dinheiro para as células’?
Uma nova carta que me envia pouco depois é bem elucidativa das águas em
que se move:
‘Tenho a máxima urgência em falar consigo e, por carta, como não tenho
confiança em ninguém, só lhe posso dizer que tenho importantes informações a dar-
lhe. São assuntos absolutamente explosivos, prioritários e de valor internacional.
Tenho a certeza que são básicos para a causa que o meu amigo e eu defendemos.
Tenho amigos que vieram de fora e lhe querem dar elementos bombásticos até a nível
jornalístico’.

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‘O senhor Félix, com quem o meu amigo falou quando estivemos juntos, quer
regressar ao M. via Suázi a fim de trazer em mão própria todos os elementos
referentes ao ANC a actuar lá. O nosso colaborador Cab. Bassa esteve a semana
passada na Suázi, com elementos afectos à S.A. (África do Sul) a fim de lhes
transmitir alguns elementos (poucos e bastante incompletos) sobre o assunto acima
referido. Todavia esses elementos estão na base das declarações feitas pelo P. BOT. (o
ministro sul-africano Pik Botha) acerca do apoio à R. (RENAMO)’
‘A totalidade destes elementos é o que o Sr.. Félix pretende ir buscar ao M.
(Maputo) ao mesmo tempo que trata do pagamento da dívida do outro senhor, que
está de férias. Convinha-lhe por isso mesmo, levar o que está orçamentado na medida
em que esse orçamento é indispensável ao bom andamento desse e outros assuntos a
tratar lá. Se o Sr. Félix não for até ao dia 8 do próximo mês de Maio, nesse caso, vai
fazer uma operação que o retém então cá pelo menos até ao fim de Maio, o que
atrasará e deitará tudo a perder’.
– Hummm…. Deixá-lo andar à nora!, é o que digo para mim próprio. O gajo
que vá bater a outra porta, tansos andamos já nós!

UMA ‘GORONGOSA’ EM QUELUZ. A HISTÓRIA DE UMA REPORTAGEM


QUE NUNCA EXISTIU E COMO SE ENGANA A IMPRENSA
Março de 1986. As fotos… as fotografias fornecidas há alguns anos, pelo
major Jardim ou mais provavelmente pelo Cristina, do exército português, ou da
FRELIMO, serão agora utilizadas: a RENAMO lança na imprensa uma campanha
alegando massacres cometidos pelos governamentais. A campanha é baseada nas
referidas fotos de arquivo, tiradas bem antes de 1974, refira-se, durante a guerra pela
independência. Tudo não passa de mais uma montagem, mera operação de
propaganda. E como bem diz o Evo, ‘os mortos são eternos’.
Ainda em Março, e muito mais importante, em termos de propaganda e de
fabrico descarado de informação, é a falsa reportagem na Gorongosa. Então isto é
assim: Ricardo de Melo, o jornalista da Rádio Comercial e quadro do CDS, e
Alexandre Sloop, o nosso amigalhaço ‘Sandy’ (e não se calam pá, continuam a dizer
que o homem é da CIA…vá-se lá saber!, mas que é, pelo menos, da agência
americana de notícias UPI, e que já estivera antes em 1983 no ‘interior’) obtêm
autorização da RENAMO para se deslocarem à Gorongosa em serviço de
reportagem e entrevistar Dhlakama.
As coisas por lá devem estar mais calmas, após a queda da ‘Casa Banana’, nas
imediações de Maringué, há meses, caso contrário não teriam mandado avançar os
jornalistas. Quanto ao Ricardo de Melo, este irá efectuar sobretudo um trabalho para
a agência sul-africana de notícias ARGUS, a qual paga a deslocação. A ARGUS é
detentora do jornal ‘Star’, editado em Johannesburg, e do ‘Pretoria News’, os dois
principais diários da África do Sul. E fará ainda, obviamente, uns floreados para a
estação emissora portuguesa. Ele que na ‘Comercial’ é o homem dos programas
africanos, como o África 2000 ou o Cabo da Boa Esperança.
Ricardo de Melo e Sandy chegam a Blantyre, no Maláwi. Tudo bem, até aqui.
Dentro de dois dias deverão penetrar em território moçambicano, encaminhados por
gente ligada ao Jimo Phiri, o representante local da RENAMO. Só que, muito
rapidamente, algo corre tremendamente mal: Ricardo de Melo chama a atenção das
autoridades de segurança ao fazer uma gravação em vídeo na baixa de Blantyre. O
Maláwi é um país extremamente sensível…

116
Para cúmulo do azar, no hotel em que se alojam está também uma importante
delegação moçambicana, vinda para inaugurar uma mostra comercial. Em conclusão,
os dois jornalistas são logo postos debaixo de olho. Na mesma altura, dois outros
repórteres ingleses, que vão também à Gorongosa, pernoitam neste hotel. Contudo,
os contactos pontuais que têm com Melo e Sandy não são aparentemente notados.
Continuam ‘limpos’.
Quanto ao par oriundo de Lisboa, a chatice bate já à porta: na véspera da sua
entrada em Moçambique, Ricardo de Melo e Alexandre Sloop são abordados por um
alto funcionário da Migração malauiana que os convida a sair do país, legalmente, no
dia seguinte, pelo aeroporto de Lilongué, sem enganos please!
Os jornalistas britânicos, felizes da vida, não são identificados como tal e
prosseguem até à Gorongosa. E em Lilongué, no aeroporto internacional do Maláwi?
É o desespero. Melo e Sandy escolhem um voo de regresso à Europa, com escala em
Nairobi. Já na capital queniana, inventando uma desculpa esfarrapada, mas já com
uma ideia em mente, Ricardo de Melo separa-se do jornalista americano. Alega que
ficará por ali a girar um ou dois dias, e que tentará mais uma vez entrar em
Moçambique ‘através de ligações que tem na Zâmbia’. Calcula que o americano não o
queira acompanhar nesta odisseia sem base sólida alguma. Sandy, está claro, é macaco
velho e batido nestas andanças, mas não é tonto, sabe salvaguardar as suas barbas
arruivadas, o seu charrito de suruma, como contam, tudo o que de comodidades
conquistou com o seu métier de jornalista ou mais que isso… e tal como o Ricardo de
Melo espera, não quer arriscar mais. Regressa a Lisboa.
Melo regressará também à capital portuguesa, num voo posterior. Já tem a sua
história fisgada: em Lisboa, vai discretamente para a sua residência, agora em Queluz,
nos arredores. Não sai de casa. Telefona-me. ‘Estás a conhecer a voz? Não digas
nomes pá’. E pede que vá ter com ele no dia seguinte. Avisa-me de novo: ‘Estou aqui,
mas não estou, OK?!’
Evo também telefona, quase de seguida: ‘Vem já a Cascais, por favor! Já te
conto!’ E ri-se. Não é caso para menos.
Em Cascais, fala-me da desgraça autêntica em que está o Ricardo de Melo, do
compromisso que este celebrou com a ARGUS, e de como o jornalista da Rádio
Comercial pretende mesmo ir para a frente arriscando-se a uma reportagem pirata.
‘Compreendes, diz-me o Fernandes, ele agora está completamente nas nossas mãos.
Vai pôr na merda da reportagem dele tudo o que quisermos. Leva as colecções de
fotografias que há por aí e começa já amanhã a trabalhar nisso com ele’.
Durante dois dias, em Queluz, montamos completamente a reportagem que
nunca existiu: fotos, entrevista com Dhlakama sobre Cahora-Bassa e outros temas, a
vida numa base da RENAMO, claro que eu sei disto a potes e faço o retrato
fiel, preparação operacional, historial, etc., etc.
Ricardo de Melo envia os ‘takes’ por telex para a África do Sul, à agência
ARGUS. A máquina (des)informativa está em movimento. Alguns dias mais tarde o
‘Star’ e o ‘Pretoria News’ trazem a ‘grande reportagem’ das matas moçambicanas. A
BBC e outras estações, inocentemente, reproduzem excertos do artigo. Deliro com
isto tudo, estou com ele na Rádio Comercial, e ele em directo num dos noticiários a
citar-se a si próprio em duplicado, uma vez que se refere a peças saídas nos jornais
sul-africanos, crónicas de um enviado da ARGUS ao coração das matas
moçambicanas. ‘Foda-se! Isto é demais!’ E ele também se ri ao fechar o microfone e a
topar o meu riso sarcástico.

117
O trabalho está concluído, apenas com um único erro de pormenor. Numa
foto com Afonso Dhlakama vê-se Joaquim Vaz, o antigo secretário pessoal do
presidente da RENAMO. Ora, a ‘reportagem’ que nunca existiu pertence
virtualmente a um período de alguns meses após o episódio da ‘Casa Banana’. Por
esta altura Joaquim Vaz encontra-se destituído das antigas funções e colocado pelo
movimento na prateleira. Nunca poderi estar ali ombro a ombro com o líder.

A ESTRONDOSA QUEDA DE EVO FERNANDES


Em princípios de Maio, Evo Fernandes vai a Paris e no regresso, refere-se a
contactos que classifica de proveitosos, em círculos próximos a Jacques Chirac. Vem
bem disposto, o Fernandes, mas será sol de pouca dura.
Na delegação, a triagem prossegue a toda uma miríade de contactos. Passa por
aqui mais um dos tais efémeros, que não se percebe bem o que querem ou buscam, e
que parece correrem antes atrás de um certo protagonismo. Em suma, temos mais
um mitómano, certamente, e este diz que quer abrir em Durban um centro de
refugiados, é arquitecto, patati-patatá, trinta e poucos anos, e que até entrou em
Moçambique com tropas especiais sul-africanas, conduzidos por malta da RENAMO
até perto da vila da Moamba.
Então, se é verdade tudo isto, para que precisa vir aqui a Lisboa contactar a
delegação local? Da sua MNRA, de Durban, a ‘Mozambique National Relief Agency’,
que diz ser pró-RENAMO e que visa ajudar refugiados, não mais ouço falar, nem
nada faz sentido. Durban fica bem longe das fronteiras moçambicanas. A tal agência
‘representaria perante a RENAMO os interesses dos refugiados e esta os
representaria a eles internacionalmente’. Entenderam? Poix! Eu não. Isto cheira-me é
a mais um agent provocateur! ‘Que mais terei eu que aturar aqui?’

Ainda em Junho recebo a informação de que Johnny Carlson, funcionário da


embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, encarregue de seguir as questões da África
Austral, incluindo Moçambique, deixará o posto brevemente. Será colocado em
Gaberones, no Botswana, como encarregado de negócios. E recordo-me bem do
nome: em 1981, Carlson, um negro americano, havia sido considerado ‘personna non
gratta’ em Maputo, na sequência do ‘caso CIA’. A sacanice do ‘caso CIA’… as
sementes deixadas desde 1979 no Aeroclube de Moçambique, com a entrada do
Anthony Becker a quem eu dei instrução de paraquedismo, e os amigos dele, da
‘agência’, que ele depois para lá encaminhou… ‘Well, well! Como é pequeno este globo!’
Só falta acrescentar que o Carlson, na altura em que o escândalo rebenta, não
está em território moçambicano, portanto não é directamente expulso, mas fazia parte
dos quadros da representação americana e não pode retornar a Maputo. Apesar do
incidente, nos anos seguintes passa a evoluir na linha de Chester Crocker, o sub-
secretário de Estado norte-americano para assuntos africanos, uma facção deveras
mais favorável ao regime moçambicano.

Julho. Fernandes anuncia ir em digressão a ‘um país europeu’. Apenas isto.


Secamente. O que é que se passa? O Evo, tão lacónico…
A viagem, afinal, é até à serra da Gorongosa. À recém (re-)instalada base
central do movimento. Algures num ponto perdido nos confins da mata e que
dificilmente virá em qualquer mapa, mais recôndito que a antiga ‘Casa Banana’.

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Regressa no dia 11. Extremamente cinzento, desiludido. Parece ser o
rompimento definitivo com Afonso Dhlakama. Passa a explicar: acaba de ser
demitido de secretário-geral, tal como os rumores que correm há meses
prenunciavam. O posto de secretário-geral é extinto e Dhlakama passa a concentrar
em si as respectivas funções.
Evo lamenta-se: ‘a Resistência já não é a mesma, há um racismo crescente.
Não vejo muito futuro para tudo isto. No entanto, salienta, é melhor permanecer por
dentro, embora com pouca vontade. As coisas podem-se influenciar mais facilmente
que estando por fora...’
As reacções são diversas: o grupo FRESAMO-CUNIMO-UNAMO mostra
grande satisfação pelo facto, numa conferência que acaba de realizar na RFA. Por seu
turno, no seio dos ex-colonos apoiantes é a desmoralização crescente. Interrogam-se
sobre o futuro próximo da RENAMO e se poderá na nova situação haver algum dia
um retorno a Moçambique. O Gabinete de Estudos cai progressivamente num
marasmo. Fernandes afirma não sentir muitas forças, nenhumas mesmo, para
continuar.

Na festa anual da ANERM, em fins de Julho, que este ano se realiza no alto
do Restelo, somos literalmente assaltados pelas preocupações dos simpatizantes. Eu e
Correia tentamos dissimular o nervosismo que grassa na delegação. Será assim até ao
terminar do convívio que dura estes três dias do fim de semana. O Jorge já está para
se ir embora, colocou no carro os exemplares restantes da revista, este ano sobraram
mais, e parece reflectir alto:
– O ‘mais velho’ ‘tá maluco? Ou fartou-se mesmo das diatribes do
Fernandes?, pergunta-me ele. O ‘mais velho’ é o ‘sua excelência’. Interrogamo-nos
igualmente sobre o que pensará Dhlakama fazer no futuro e a que se deverá a nova
estratégia. Só conseguimos especular em termos de hipóteses, sem muito em
concreto:
1. Influência de Schaaf e do ‘lobby’ da delegação americana? 2. Nova linha
tentada pelos sul-africanos? 3. Será que Pretória se manteve neutra neste reequacionar
de posições? 4. Escândalos financeiros na organização?
– Quem sabe o que vai naquela cabeça?, replico eu. ‘O Evo também tem
aquela maneira muito dele da fazer as coisas pá, sem dar muito cavaco, e a malta
negra, por ele ser goês, nunca o topou bem. Mais facilmente abraçam o Tom Schaaf
carregado de bíblias, mesmo que lhes venha com uma grande treta, e acabe de aterrar
por aí há poucos meses.’
– E sabes, queres saber mesmo uma coisa, pá?, indago ao Jorge.
– Humm… diz.
– Cá por mim, já estou por demais fodido e cansado destas barafundas todas,
para mim já chega, já tive a minha quota parte de aventura, e isto agora é mais
burocracia, demagogia e hipocrisia do que outra coisa, entendes pá? Isto, a porra do
movimento, esta caralhada toda, lá e aqui, já chega pá, tu é que ainda deves estar a
achar piada a esta merda, com tusa na língua e sangue na guelra. Eu, desde 1981,
sabias?...
Realmente, depois de tudo o que vi, de estar em imersão total no regime de
apartheid, de assistir a toda aquela subserviência, o ‘master’ ‘master’ de vassalagem
constante, de aquilatar o ‘saco de gatos’ autêntico que o movimento constituía, e o
seu papel primeiro, de ser precisamente isso, um instrumento lacaio de Pretória, ainda

119
me dispunha a prosseguir? Claro que estando eu em solo sul-africano a dúvida
instalara-se ainda lá, instilara-se e instalara-se, o propósito de tudo isto, e se algum dia
faríamos chegar a algum porto esta RENAMO tal como a entendíamos,
utopicamente como a pretendíamos entender, uma alternativa credível ao actual
sistema alicerçado em Maputo.
O Jorge ouve-me impassível a colocar estas minhas primeiras reticências,
como aliás havia de repetir-lhe, e falo em sair, ‘bater com a puta da porta!’. Volta a
acender o seu cachimbo que até deixou extinguir, tão levado está pelo meu discurso.
Lança renovada baforada, agora, ali no ar agitado e barulhento do Restelo, adensado
pelo fumo que se eleva das várias assadeiras de frangos. Parece transtornado, ou no
íntimo sabe que pode ser assaltado pelas mesmas dúvidas, afinal. E logo me alerta: ‘já
sabes o que é, descer de um comboio em movimento rápido… és capaz?’
Voltemos mas é ao convívio, deixemos por agora arredadas tais preocupações.
O que ficará de mais esta festa anual? Eu, por mim, tudo bem, toca é a aproveitá-la da
melhor forma possível.
Há que meter as grandes convulsões da RENAMO na gaveta e gozar a bom
gozar o resto deste convívio da ANERM aqui em Monsanto, junto ao Restelo,
saborear as boas galinholas assadas à zambeziana e melhor cerveja, geladinha, e a
transpirar. E o mais que o fim do dia tenha ainda para oferecer. O Correia já se foi
mais a ‘Luta Continua!’, as revistas, e agora a luta é outra, mais macia…
Ah! Está ali… já a tinha topado há pouco, uma troca mais prolongada de
olhares, ela está a ajudar na tenda da Cruz Vermelha. É a Ana Paula, de uma
companhia de seguros: ‘Es o Paulo, não é? E eu, a Ana Paula, alôôô… volto já’,
sussurra-me ao ouvido, conforme passa. É mesmo bem parecida a moça, sensual,
bamboleante, sobre uns ténis altos, um colar de argolas metálicas azuladas que jogam
com os olhos azuis-esverdeados dela. Ginga para lá, entrega alguma papelada ao
graduado da Cruz Vermelha, e aí vem ela, a rebolar-se mais ainda, num fato-macaco
verde que combina com este arvoredo da mata ao final do dia.
Lá ao fundo o sol já bateu a horizontal, a esconder-se para lá da brumosa
Sintra, e nem damos pelo lusco-fusco que se instalou, e que nos apanha já num
tremendo linguado, as mãos que escorregam agora ao nível dos rins… um
atrevimento, aqui, isto ainda ‘tá um maralhau do caraças por aqui à volta…
– Estás muito entretido, nem te interrompo!
Viro-me de repente, e dou de caras com um antigo colega do meu pai lá da
Sonarep-Petromoc, em Moçambique. ‘Hummm… olá!’
– Deixa, pá! Já vejo que estás bem entretido. Dá cumprimentos lá em casa.
– É a Ana Paula, uma amiga… Okay!
Claro que não basta ficarmos ali por Monsanto a fazermos figuras destas.
Como é que vai ser?
Reside perto do jardim das Amoreiras e num relâmpago, de táxi, passamos
por casa dela, tem que ir buscar umas coisas, diz.
Jantamos pelas Amoreiras, e em meia dúzia de minutos comprime a sua
história recente: como vem à festa todos os anos, nasceu em Lourenço Marques, foi
jogadora de basquetebol ‘lá’, e já era dos seguros, a família é uma mescla grande, ela é
branca mas de tez carregada, do lado da mãe ainda terá algum sangue índio, brasileiro,
e está-se a separar de ‘um ‘sacana’, ‘o gajo é um mesmo um sacana, proclama, mas
estes dois dias até ficou com o puto’.

120
Ela deve ter acabado de fazer uns trinta anos, pouco mais velha é que eu. E
continua a dar vazão ao que lhe vai na alma: ‘Oh pá! Ainda bem que vim espairecer,
senão ferrava com a tesoura ou uma faca no tipo! Não parou de me provocar estes
últimos dias! Já tirei tudo lá de casa…’ De uma cabina telefónica liga para o filho,
ralha ao puto: ‘já sabes, quando a mamã vira bicho!’.
Mas bom, esse é um episódio que nem me diz respeito. Perguntamo-nos
mutuamente o ‘como é?’ da ordem. Claro que ‘tou mais livre que um passarinho, tal
como ela agora parece estar. Nas Amoreiras, tem uma parte de casa que alugou de
uma amiga, e que até conheço mais tarde. Sugere agora um local perto da Escola
Politécnica, uma residencial São Mamede. Assim seja.
Está um dia e noite quentíssimos. No amplo quarto do primeiro andar pomo-
nos à vontade, e ela oferece-se para lavar ali mesmo no duche os ténis, e meias. Está
tudo porreiro, ela aliviou-se já do macacão, nem usa soutien, tem uns seios que
parecem dois pesseguinhos, pequenos mas empinados.
A janela está escancarada, deixamos entrar a brisa nocturna que traz consigo
toda a sonoridade ali da rua, malta que passa entre o Rato e o Bairro Alto, o ronceiro
eléctrico que chocalha e chia metalicamente. E nós, agora aqui, tranquilos, uma luz
ténue à mesa de cabeceira que até extinguios agora, basta o clarão que se infiltra de lá
de fora. Com as mãos ela alisa os próprios cabelos, revoltos, já ambos tomámos
banho e fartou-se de esfregar os seus caracóis longos e azeviche a uma enorme toalha
felpuda.
De um salto felino, como uma pantera autêntica, está sobre mim… agora
´não é o cabelo dela mas o meu corpo, estou deitado de costas, que se mete a alisar
com as mãos: ‘le touche de piel’, diz, a rir-se. E eu correpondo, claro. Mas ela vai
escorregando, baixando sempre mais, passa agora mãos, face, boca, pelo peito, desce
ao umbigo, leva as mãos às minhas pernas e em movimentos ondulantes, curvilíneos,
volta a subir, mas desce sempre a cabeça, a cara, sinto-a, sinto tão bem, e sabe bem,
os cabelos dela a deslizarem pela base do meu abdómen… oh!, e um pouco mais
abaixo, sim!, ela sabe o que fazer… as mãos em concha transmitem calor e confluem
com a boca, sinto os lábios, a língua, a deslizar pelo meu membro túrgido a querer
rebentar, e a concha morna das mãos dela a aumentarem ainda mais esta ebulição,
afagando os escroto, a massajar ternamente, agora, os testículos… e quando penso
que é isto apenas que ela deseja, quase que me adivinha o pensamento, é como se
fosse uma hélice, ela, tivesse um eixo no umbiguinho, faz meia volta e oferece-se
também ela a mim. Não, não é um berbigão mas uma amêijoa grada ali de sentinela à
fenda que forço com a língua e sinto húmida, salgada… penetro-a assim enquanto ela
prossegue, quente, cada vez mais tórrida, com as mãos, face, lábios e línguas, e os
cabelos dela que me varrem simultaneamente o baixo ventre e parecem concentra
mais ainda esta elevação que ela suga incessantemente, em ruídos húmidos… quando
sinto o calor dela fundir-se com o meu, dentro de mim, e o magma vir à superfície em
jactos, borbotões imensos e mornos que ela cala dentro de si, da sua boca ainda
móvel, e se agita em harmonia com as partes baixas e se deixa abrir, escancara toda
entre as suas pernas para que a penetre com a língua ao mais âmago, até onde
alcanço, e geme, mia felinamente também… agarra-se-me aos rins, chupando sempre,
sempre… em estremeções pequeninos, agora, toda ela… até que ficamos os dois
agarrados nesta posição, a arfar, voltando suavemente, depois, ao ‘touche de piel’
mútuo…

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Torna a rodar meia volta, ela, estamos agora boca com boca, ou a minha boca
com os seios dela, e suvamente deixamo-nos embalar, indiferente aos clarões e
sombras chinesas que se coam pela janela, ao clamor do trânsito que desliza ali a
poucos metros.
Também fuma, ela, e ofereço-lhe um dos ‘Marlboro’s. Travo bem o fumo…
não sei fumar sem travar o fumo, sentir a nicotina picar o pulmão… pelo nariz solto
agora uma longa baforada conforme a sustenho no braço direito, afago ternamente os
caracóis dos cabelos… ‘estou de baixa, penso, há que telefonar ao Jorge Correia, para
que avise o Fernandes… deixem-me estar um bocado nesta doce luta… esta guerrilha
travada em lençóis, estou de baixa por uns dias’.
A Ana Paula, será obviamente a namoradinha para esta próxima temporada…

UMA JOGADA DE SITHOLE


Um toque de clarim parece elevar-se dos ‘amigos’ em Pretória: as
interrogações existentes são mais ou menos esquecidas com a chegada da informação,
em princípios de Agosto, de que o ‘Charlie’ Cornelius Van Niekerk acaba de ser
promovido a brigadeiro, continuando à frente da ‘Mozambique Desk’ da A.M.I. Isto
não pode ser entendido de outra forma, que não mais outra punhalada severa no
espírito de ‘Nkomáti’.
Quanto à situação em Moçambique, e derivado sobretudo desta situação de
guerra que se eterniza, noticia-se que o Produto Nacional Bruto sofrera já uma queda
de 23%, apenas neste ano de 1985. O anúncio é feito por Rui Baltazar, ministro das
Finanças. E embrenhada no mato, a RENAMO conserva agora mais um par de
reféns, duas freiras, uma portuguesa e uma italiana.
É também por esta altura que o Jorge Correia recebe uma misteriosa chamada
telefónica. Quem está do outro lado do fio é Sakala, o ‘mão-direita’ do conhecido
reverendo zimbabweano Ndabaninghi Sithole, o mais forte opositor ao poder
instituído de Robert Mugabe.
– Então, ‘caldeirada’?, pergunto, ou algo de bom, desses gajos?
– Náh! Ver o que esta malta pretende, se têm algum poder de facto, e aquilatar
as intenções dos gajos… há que ir a Washington, pá!
Dias depois parte para a capital americana juntamente com Artur Janeiro da
Fonseca para tentar um ‘acordo político e militar’ com o partido deste dissidente
‘xona’ zimbabweano. Isto não será feito ao acaso nem à revelia de Pretória: um
brigadeiro da África do Sul, confessa-me o delegado, deu luz verde para uma
operação de apoio militar da RENAMO aos rebeldes do leste do Zimbabwe.
– E as contrapartidas?, indago eu.
– É isso que vamos ver.
O delegado em Lisboa e o secretário das Relações Externas chegam a
Washington, com as passagens pagas por um destacado elemento do ‘lobby’ mais
conservador norte-americano, o Charles Cox, um contacto regular, também, do Evo
Fernandes. A digressão conta ainda com o patrocínio da organização ultra-direitista
‘Heritage Foundation’.
Agora, já em Washington, são recebidos pelo delegado local, o Luís Serapião,
e por Tom Schaaf que mantém o delegado bem sob controlo, à rédea curta, e quase
em tudo dependente dele. Visitam o escritório de apoio à RENAMO estabelecido por
Schaaf, o MIO, ’Mozambique Information Office’ (Gabimete de Informação de

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Moçambique), que funciona em instalações de outro grupo conservador o ‘Free the
Eagle’, considerado próximo, politicamente, da ‘Heritage’.
Correia relata depois: ‘essa malta está cheia de papel, de dinheiro, comparados
connosco’. Só o MIO possui um orçamento mensal mínimo de cinco mil dólares e
isto apenas para propaganda, e conta com um extenso ficheiro computadorizado
sobre Moçambique e a RENAMO.
No escritório de Washington, além de Serapião e Schaaf, está habitualmente
um português, José Antas, piloto de helicópteros, e figura com ligações diversas ao
partido PSD, de Lisboa, pelo que ele próprio alega. Quanto ao bom do professor
negro Luís Serapião, que me farta de telefonar, e apesar das funções de representante
oficial da RENAMO, tem dificuldades, até, económicas, em se autonomizar. Ao
longo de todo o tempo em que é delegado nunca deixará de leccionar uma cadeira de
relações internacionais, na Universidade de Howard, em Washington, arcando ainda
com uma certa contestação por parte dos discentes que o consideram defender causas
‘politicamente incorrectas’.
E ocorrem episódios paralelos a esta deslocação à capital norte-americana,
não se limita a viagem a um entendimento com Sithole: num dos dias de permanência
em Washington, o Jorge Correia e Janeiro da Fonseca, acompanhados pelo delegado
Luís Serapião, chegam a ser recebidos, a título particular, porém, pelo então chefe de
comunicações da Casa Branca, Patrick Buchanan.
O encontro tem lugar numa das salas da própria residência presidencial
americana. Uma reunião é também conseguida entre os elementos da RENAMO e o
milionário da Louisiana, James Blanchard III, apoiante financeiro tanto da delegação
do movimento nos Estados Unidos como de Francisco Nota Moisés, agora no cargo
de secretário da Informação.
Há ainda contactos com funcionários do ‘National Security Council’ (o
Conselho Nacional de Segurança) e com os senadores Jack Kemp e Malcolm Wallop,
todos conotados com uma certa franja mais direitista dos republicanos. Antes de
regressarem à Europa, Jorge Correia e Janeiro da Fonseca procedem a uma
conferência de imprensa na capital americana.

– E o que é que querem então os dissidentes xonas zimbabueanos?, espicaço-


o. Era esse, não era, o motivo primeiro da digressão?
Ndabaninghi Sithole afinal, não possui quaisquer possibilidades, logísticas,
financeiras, militares, etc., etc., todos os ingredientes para cozinhar a abertura de uma
nova guerra, ou interesse real em lançar-se numa luta armada. ‘O homem não tem
rigorosamente nada, não tem sequer gente para isso’. Pretende isso sim um
compromisso com a RENAMO que levante expectativas entre potenciais apoiantes
financeiros. ‘Puta que o pariu!, brada o Jorge Correia. Serviu para passeio!’
Com a presença dos quadros da RENAMO chegados a Washington, e com
um acordo de princípios que Jorge Correia e Janeiro da Fonseca foram levados a
assinar, para não decepcionar os ultra-direitistas patrocinadores, Sithole consegue até
a obtenção de alguns fundos para prosseguir a vida folgada que tem levado na capital
americana.
Agora, chovem algumas críticas no seio do movimento, do ‘nosso’, como não
pode deixar de ser: clamam que o Jorge Correia foi sempre considerado como o mais
impulsivo para a assinatura de tal acordo por parte da RENAMO, acabando por ser

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apontado como responsável por o movimento entrar nesta patética ‘armadilha
Sithole’, trazendo uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.
O acordo previa como ponto principal o uso mútuo em Moçambique e no
Zimbabwe das áreas controladas pelos respectivos grupos armados. Dias depois,
Afonso Dhlakama, cheirando-lhe isto tudo a trapaça, ordena que se denuncie todo e
qualquer compromisso com Sithole, pois o que foi assinado em Washington, havia
sido feito à sua revelia.

Mas aqui em Lisboa o Jorge Correia não se dá por vencido nem acusa o
toque, e principia mesmo por esta altura a insinuar nos meios da imprensa afecta e
dos antigos colonos, que Afonso Dhlakama se prepara para indigitá-lo como novo
secretário-geral. ‘Isto é o máximo, de um gajo se atirar para o chão a rebolar a rir!’,
não me atrevo, claro, a ecoar alto o pensamento.
A mesma diatribe repete ele agora uma noite na sua residência do Bairro Alto,
perante mim, o ‘Chico’ Mascarenhas, o Ascêncio de Freitas e Miguéis Mota Lopes,
igualmente jornalista da Rádio Comercial, colega do Ricardo de Melo. Miguéis que é
um gajo enorme e bruto, maior que um guarda-fatos, acaba de emborcar volumoso
‘cocktail’, directamente de uma cafeteira. Acho que misturara, como é hábito, vodka,
whisky, gin, vinho, cerveja e Martini, mais umas pedras de gelo a chocalhar. Operação
terminada e já com um ‘charro’ de haxe a funcionar na cabeça e assessorado pela
mistura etílica, ouve as profecias políticas de Correia e não se contém: ‘Tu, tu já és,
pá!, mas é o ex-futuro-secretário-geral, meu-cabrão-filho-da-puta!’, e com uma
enorme cabeçada, desengonça a porta da sala. O Miguéis é assim... Embora tonto,
acaba por vezes por ser mais sóbrio que o Jorge Correia, nesta coisa de futurologia
sobre o movimento.

O ‘HOMEM DO MALÁWI’ ATERRA EM LISBOA EM MISSÃO DE


INVESTIGAÇÃO
E há alguém que eu já conhecera antes em Johannesburg e que aterra agora
em Lisboa, alguém que por conotações várias, conexões dentro de Moçambique e a
Pretória, e a certa ala no mato, vai ter importância decisiva nalgumas das acções de
infiltração de homens da imprensa ou mesmo no tocante ao apoio logístico
transfronteiriço.
É o indiano Gilberto Fernandes ‘Magid’, que eu encontrara em Johannesburg
em Fevereiro de 1983 com o sargento José Carlos Monteiro genro do dono da ‘Court
Monique’, enfim, o prometido há semanas ‘homem do Maláwi’, e que chega a Lisboa
só no princípio de Setembro.
O Magid bem repete: ‘férias! só estou de férias…’ mas é um estar de férias em
que ‘aproveita para se manter em contacto com a gente do movimento’. Isto aqui
cheira-me a mais coisa… não há coincidências assim, nem acasos, e as convulsões
internas propiciam estas vindas à superfície, como as de um notório mamífero
submarino que de vez em quando vindo lá das recônditas profundezas sobe à tona
para esquadrinhar e revolutear ainda mais as águas.
Encontra-se comigo, com Jorge Correia, Evo Fernandes, ‘Chico’
Mascarenhas, Ascêncio de Freitas e o ex-embaixador João da Silva Ataíde,
separadamente, para auscultar, tomar o pulso à organização em Lisboa. E chibar-se
todo, obviamente, ‘dar à morte’ quem bem entender e lhe aprouver: reportar a
Pretória ou directamente ao Dhlakama através do Jimi Phiri. Tudo o que tivermos

124
para enviar a Dhlakama, diz e sossega-nos, podemos entregar-lhe, que fará seguir para
a Gorongosa. No Maláwi, as coisas estão por agora ‘OK’, garante, e a polícia não tem
incomodado.
Magid confessa-me que fará relatórios circunstanciados a Dhlakama sobre as
intrigas que grassam em Lisboa e que sabe não estar eu envolvido nessas
‘cowboiadas’. Creio que os relatórios vão parar primeiramente a mãos sul-africanas.
Magid frisa a boa vontade sul-africana e os laços que mantém com Pretória. E fala na
empolgante ofensiva que se está a iniciar no vale do Zambeze, e confirma bem o seu
envolvimento, nos meses anteriores, na introdução maciça em Moçambique, através
do Rio Chire, de armamento diverso levado para o Maláwi pelos sul-africanos.
O ‘homem do Maláwi’ aconselha que me mantenha afastado das quezílias
correntes, pois Dhlakama está-se a preparar para ‘clarificar’ a situação em Portugal.
Sou ainda apresentado ao irmão de Magid, vindo também de férias e proveniente de
Moçambique, alguém considerado como colaborador do movimento, infiltrado nas
áreas governamentais. É o tal que reside em Tete e que procede ao envio regular de
informações. Bom, após todos estes anos, considero ainda hoje o Magid como um
agente inquestionável do Van Niekerk, e que a sua opinião em muito terá pesado nas
mudanças seguintes operadas em Lisboa.

Em Cascais, volto a encontrar-me com Evo Fernandes. Recebera eu dias antes


pelo correio uma carta e exemplares de um boletim ‘TFP Lusa Informa’, editado por
uma organização religiosa portuguesa, filial da TFP Trabalho, Família e Propriedade
internacional, um núcleo cristão muito, muito, ultradireitista. Evo explica-me ter sido
ele quem deu a minha direcção e que a TFP é um dos seus contactos e apoiantes. O
TFP Lusa Informa é propriedade de um tal Centro Cultural Reconquista na sua
versão portuguesa, e encontra-se presente em quinze países, estando englobada nessas
‘Sociedades de Defesa da Tradição, Família e Propriedade’, em suma, é mais um
movimento católico ultraconservador.
Mas volvemos a conversa para questões mais concretas, por exemplo, sobre
como realçar a nossa presença na Imprensa: na reunião com Fernandes, este assegura-
me ter falado com o director do matutino ‘O Século’, Jaime Nogueira Pinto,
garantindo a minha entrada para a redacção desse jornal, o que efectivamente
acontece a 16 de Setembro.
O Jaime Nogueira Pinto fora um antigo colega de Direito, de Evo Fernandes,
e surge agora ligado à ala mais conservadora do PSD e a algo denominado como a
‘Nova Direita’ portuguesa. Lecciona algumas cadeiras de índole política numa das
faculdades de Lisboa. Eu já o conheço desde há alguns meses, apresentado pelo
empresário António Felizardo, que me levara aos escritórios da revista ‘Futuro
Presente’, uma publicação também dirigida por Nogueira Pinto.
No semanário ‘O Diabo’, diz-se que é do Jaime Nogueira Pinto uma coluna
regular, extremamente racista, que assina sob o pseudónimo de ‘Sebastião Jáfoste
Maputo’. Mantém-se ainda colaborador habitual do jornal ‘O Semanário’. Estamos
aqui a falar de publicações todas elas a ver com uma certa direita.
Defensor acérrimo da UNITA de Savimbi, efectuou já várias viagens à Jamba.
Em Washington, move-se com frequência junto dos ‘lobbies’ mais direitistas, em
círculos da já referida ‘Heritage Foundation’ e afins, que mostram agora certas
simpatias pela RENAMO.

125
Fernandes aborda outro ponto. Mais sensível: permanece no movimento e
tem uma proposta que, deixa transparecer, será dos serviços militares sul-africanos. É
um projecto para se criar em Lisboa uma nova revista sobre a actualidade africana.
Através desse órgão de imprensa, a RENAMO, ou antes, a facção Fernandes,
passará a ter um boletim ‘oficioso’. Mais ainda: a nova revista servirá para ter na mão
um leque de jornalistas e de contactos, que irão fazer sobretudo a recolha de
informações tidas como ‘classificadas’. A maior parte da informação não será para
publicar, mas sim, irá ser canalizada para os ‘serviços’ nos bastidores do boletim, a
A.M.I.
O que é que se pretende com tudo isto? Cria-se-ia assim uma pequena central
de ‘inteligência’ sobre Moçambique. Há um contra, óbvio. Nem Fernandes nem eu,
podemos dar a face. Devo seleccionar jornalistas em Lisboa, um ou dois a tempo
inteiro, para integrarem o corpo redactorial, e apresentar um orçamento.
Nos meses seguintes o projecto ficará imobilizado, em ‘stand by’. Os
‘serviços’ ainda não tinham dado a autorização final nem providenciado os fundos. Só
em meados de 1987, estaria eu então, já muito distanciado de Evo Fernandes, é que
Ricardo de Melo lança o projecto, ajudado pelo seu colega na rádio, o Miguéis Mota
Lopes.
Sei depois que nessa altura Fernandes consegue os fundos suficientes, fundos
que serão administrados pelo advogado Lacerda Botelho. E cá teremos o Botelho,
que surge então ele próprio como accionista do boletim, o qual recebe o nome de
‘Africa Post’.
Chega ao meu conhecimento que para as despesas iniciais do lançamento e do
primeiro número, serão disponibilizados por Pretória oitocentos mil escudos
portugueses.

Bem, mas voltemos ao presente, vindo deste futuro ainda não escrito, por este
túnel do tempo… cá estamos nós de volta a 1986, ao mês de Setembro.
Dia 24 recebo logo de manhãzinha um telefonema de Fernandes. Está ufano:
‘tenho novidades para te dar!. informa. Olha, primeiro, aí o amigalhaço de Lisboa, o
Jorge Correia, foi retirado do cargo de delegado em Portugal’.
Estou estupefacto. Mas isto terá a ver com o que o ‘dois dedos’, o indiano
Magid andou por cá a cozinhar, e decerto com uma mãozinha do próprio Evo.
– Hummm….
– Não estás contente? Vá, não disfarces, diz lá que sim…
– Pois, hummm… mais trabalho, okay! E mais… falaste em novidades, há
mais?
– A segunda, olha, só te posso dar os meus parabéns! O Afonso Dhlakama
acaba de te nomear representante do movimento na Europa, em substituição do
Correia, e Delegado em Portugal. O Jorge passa só para responsável do boletim ‘A
Luta Continua!’.
Quanto mais eu quero ‘descer deste comboio em andamento rápido, mais
velocidade dão à locomotiva…’, que mais posso pensar?
A revista, devido a problemas vários, mormente a questão financeira, não se
publicava desde Dezembro de 1985. Mesmo na festa andámos por aí a vender
números atrasados… Estou surpreendido, surpreendido mesmo… Não havia sido
sequer auscultado para saberem da minha disponibilidade para o cargo. Okay, parte-se
sempre do pressuposto que se está a tempo inteiro, vinte e quatro horas por dia de

126
corpo e alma com a causa, qualquer que seja o ‘saco’ e o ‘número de gatos’
envolvidos… mas qu’ganda caldeirada! Porra! Quanto mais se tenta uma órbita
distante, maior a força centrípeta!
‘Bom, é isto que querem? Vai ser à minha maneira’: logo nos primeiros dias
resolvo reestruturar todo o esquema de funcionamento em Portugal, criando secções
na representação: Mobilização e Propaganda, Informação, e Administração e
Finanças
Isto, a curto prazo… a um tempo mais dilatado, quero é passar a batata
quente a outro, arranjar um moçambicano genuíno, ou um grupo lisboeta de
‘diamantes negros’, como dizia o outro, o malogrado Orlando Cristina.
Convido para encabeçarem estes sectores, respectivamente, o João da Silva
Ataíde, o José Gaspar Mascarenhas (o ‘Chico’), e o Ascêncio de Freitas. Todos
aceitam.
Pela primeira vez existe agora, oficialmente, uma cara negra a trabalhar na
delegação em Lisboa, o João da Silva Ataíde. Isto vem levantar novas expectativas
entre alguns moçambicanos pró-RENAMO mas, por outro, logo me traz a fúria e
hostilidade de Fernandes e de Janeiro da Fonseca, e a dos próprios sul-africanos. A
A.M.I. observa com extrema desconfiança estas manobras que acabo de imprimir à
delegação.
A minha nomeação não surte pois para o Evo nem para o secretário das
Relações Externas, o efeito pretendido: eu não serei mais o representante
domesticável em que haviam apostado. Pelo contrário. Nos meses seguintes irão ver-
me tomar posições ainda mais radicais que as de Jorge Correia contra o ‘controle’ de
Cascais e a hegemonia e influência sul-africanas no movimento.
Seria como lutar contra moinhos de vento. Correia bem avisara: — Não vale
a pena lutar contra o ‘sistema’. O Evo é o ‘sistema’, a África do Sul... Derrotar o Evo?
Tu não o consegues derrubar. Ninguém consegue derrubar o Evo. O Evo é o sistema,
porra!, acredita!, mesmo que se diga e aparente que caiu em desgraça. Espera e verás!
– O sistema?, eu, feito parvo.
– A África do Sul é o sistema... O Evo é deles, o Evo é o sistema…, insiste o
Correia.
– Então ‘mata-se’ o sistema, digo eu, meio a brincar.

As mudanças em Lisboa surgem precisamente numa altura em que se registam


demarches lançadas por Ataíde, Correia, Freitas e ‘Chico’ Mascarenhas, com vista a um
apoio financeiro indirecto. Tal ajuda será concedida através de facilidades ao crédito
bancário, proporcionadas por um banqueiro da praça lisboeta e amigo de João Ataíde,
o Bessa Gomes. E esta malta já está na prática a trabalhar nas minhas costas, eu estou
informado por outras vias, mas, ‘deixá-los andar…’ Não faltam sacos e não faltam
gatos!
O plano é abrir um restaurante ou ‘pub’ cujos rendimentos fossem
encaminhados para o financiamento da delegação em Portugal. João da Silva Ataíde e
Ascêncio de Freitas, nunca quiseram aparecer à frente do projecto. ‘Chico’
Mascarenhas e Jorge Correia assumem as responsabilidades imediatas, dando a cara.
Meses mais tarde, em Maio de 1987, ‘Chico’ Mascarenhas abre o bar ‘O
Musaico’, no Bairro da Graça, sacudindo logo de imediato o Correia de sócio. O ex-
delegado, não se perde e algum tempo depois reabre o ‘Aladin’, um pequeno
restaurante do Bairro Alto. Nunca nenhum deles prestou contas à delegação sobre as

127
movimentações financeiras conseguidas, nem deram qualquer satisfação ulterior a
Bessa Gomes, que pensa estar a contribuir para as finanças da RENAMO na capital
portuguesa. Ambos os negócios, porém, abrem falência em grande velocidade.
E o Jorge, é afastado do cargo porquê?, pergunto eu agora à Ivete, um dia
destes quando nos encontramos em Cascais. ‘É desta história toda dos investimentos,
restaurantes…’
– Não? Então, não sabes?
– Náh… sempre pensei que fosse por causa dos tacos.
– Não. Foi a Maria Bethânya… não me digas que não ouviste falar, não
conheces a história, oh Paulo, tu às vezes também andas meio distraído ou ‘tapado’…
– ‘Tás a brincar comigo. Não… conta lá.
– Foi a própria Mané (a companheira do Jorge). Chega a casa de repente e
apanha-o abraçado ao outro, ao Jorginho, enleados, ao som da Maria Bethânya, e
acho que na cama… mas não é só. O Jorge também anda com relações ‘demasiado
estreitas’ com outro indivíduo do Bairro Alto, um Luís…tem o restaurante, olha, o
nome diz tudo, é o Luís do ‘Põe-te na Bicha’.
Ah!, já vejo… isto aqui anda pimenta, muito piri-piri, e quem deve estar a
polvilhar a coisa aos quatro ventos deve ser o ‘Chico’ Mascarenhas, o homem das
novidades, e da ‘má língua’. Quanto a isto, não tenhamos dúvidas, em termos de
linguarice, a delegação, ou todas elas, este ‘saco de gatos’, é um falatório medonho.
Mas a representação portuguesa, então, essa, está pior que um bar de putas ou uma
horda de taxistas, no tocante a boatos. A difamação e o rumor espalham-se mais
rápidamente que uma epidemia de cólera num campo de refugiados…

ALERTA EM MAPUTO. A ESPERADA MORTE DE SAMORA MACHEL


Na delegação acompanha-se desde o início de Outubro com imensa atenção o
ambiente na capital moçambicana. ‘Aquela merda deve estar para explodir’, chego a
pensar. Apesar de uma certa frieza, de Cascais apelam à minha atenção: Fernandes, e
também Ivete, repetem-me que se espera ‘qualquer coisa’ em Maputo.
Mas é a Ivete, a ‘generala’ da delegação, quem mais insiste, reafirma, implora:
‘Paulo, por favor, está com atenção…’. Ou, por outras palavras, ‘mantém-te
contactável, junto do telefone, e sóbrio!’, conhecidas que são algumas das minhas
épicas carraspanas. Nunca antes apelaram para um nível de alerta, e prontidão do
género, nem em alguma outra ocasião posterior.
Em 12 de Outubro, Moçambique coloca as forças armadas em alerta total.
‘Receia-se um ataque sul-africano para derrubar o presidente Samora Machel’, chega a
noticiar a AIM, a agência de informação oficial, através do seu director, o malogrado
jornalista Carlos Cardoso. Dias antes, Pretória havia cancelado o recrutamento de
trabalhadores moçambicanos, após a explosão de mais minas junto à fronteira com
Moçambique. Os sul-africanos alegam que Maputo continua a apoiar o ANC.
Em 16 de Outubro principia na Zâmbia, perto de Victoria Falls, uma reunião
de emergência entre o presidente zambiano, Kenneth Kaunda, e o primeiro ministro
do Zimbabwe, Robert Mugabe, para discutir a situação moçambicana. Nos dias
seguintes term lugar, igualmente em território zambiano, mais uma cimeira dos líderes
da chamada ‘Linha da Frente’.
Maputo anuncia que diversos grupos armados têm penetrado no centro-
nordeste do território, massivamente, provenientes de bases no vizinho Maláui, e que
a situação se tornara demasiado séria no vale do baixo Zambeze. Há quem pense que

128
a guerra possa mesmo estalar agora entre Moçambique e o Maláwi, na sequência das
mais recentes e fortes ameaças ao regime do presidente Kamuzu Banda, em Lilongué,
proferidas por Machel.
Uma unidade de elite das forças militares moçambicanas, de uns seiscentos
homens, está, entretanto, para ser inteiramente equipada com a mais moderna
espingarda de assalto britânica, segundo reporta em Londres a revista especializada
‘Jane’s Defence Weekly’. A firma ‘Hall and Watts’, sob autorização do governo inglês,
acaba de efectuar uma primeira entrega do referido material, no valor de quatro
milhões de dólares. Isto é inédito, este tipo de cooperação e relações militares de
Moçambique com um país ocidental, preterindo equipamento soviético.

Segunda-feira, dia 20. Às cinco e um quarto da manhã toca o telefone. É


Fernandes quem fala, e que me pede para estar com atenção às notícias: ‘Sucedeu algo
muito importante… com o ‘núero um’ do outro lado’. Explica: ‘Ligou-me o amigo,
da África do Sul, olha, e acaba de me comunicar que o avião presidencial
moçambicano caiu durante a noite na província do Transvaal. Não tenho mais
pormenores. Mantém-te aí que ele vai também telefonar-te’.
Alguns minutos depois, é Bento Maria, de Phalaborwa, quem comunica: ‘Não,
Paulo, não há mais detalhes, estou para recebê-los’.
– Caiu sozinho? Fomos ‘nós’, ou como é que sucedeu? Sabotagem, fogo anti-
aéreo? Temos que reivindicar esta merda, aqui?!... e o cabrão, está morto, é?!!!
– Calma, já volto a ligar.
Chama de novo cerca das sete horas, hora de Lisboa. Confirma o local da
queda e anuncia a morte de Samora Machel e de outros ocupantes do aparelho.
Fornece-me uma listagem, debitada com certeza pelos militares sul-africanos. Apenas
dá, por engano, o nome do ministro da Defesa moçambicano como fazendo parte da
lista de passageiros a bordo. Contudo, o Alberto Chipande, não havia tomado lugar
naquele aparelho.
Bento Maria sublinha bem que devo ficar contactável telefonicamente.
Tornará ainda a telefonar e, diz ele, e possivelmente reivindicar-se-á a acção.
Fico em ‘stand-by’, a aguardar a clarificação dos acontecimentos.
Às oito da manhã, hora de Lisboa, sou o primeiro a dar à imprensa uma lista
provisória das vítimas, entrando em directo, via telefone, no noticiário da Antena-1,
da Radiodifusão Portuguesa. As agências internacionais anunciam também a morte
do presidente moçambicano, embora sem confirmação. A agência soviética TASS
noticia por fim, cerca das dez horas, o falecimento de Samora Machel, a bordo de um
avião de fabrico russo ‘Tupolev-134 B’.
Logo após este anúncio dirijo-me para o jornal ‘O Século’. Na secção
Internacional, onde trabalho, é uma azáfama completa. Não estou sozinho: no
‘Internacional’, encontram-se também o Eduardo Mascarenhas, chefe de secção, e o
Fernando Passaláqua, este último é um antigo jornalista do ‘Notícias’ de Maputo.
Passaláqua sorri cheio de vontade, ele que é sempre tão sóbrio em conversas e
emoções: ‘Aqui está!, diz, este velhote mestiço e ligeiramente calvo, gorducho,
brandindo uma tira de papel, o telex que eu aguardava há anos! Sabia que havia de
recebê-lo, mais cedo ou mais tarde... a notícia da morte desse gajo!’
O director, Nogueira Pinto, encarrega-me de coordenar tudo o que diga
respeito ao acontecimento. Retorno a casa para ir buscar o receptor de rádio de
ondas-curtas que trouxera da África do Sul, e que me permite monitorizar
devidamente as emissoras estrangeiras. Tenho também que redigir uma análise sobre
o novo cenário moçambicano. O telefone não pára. Sabem que funciono ali. Outros
129
jornalistas procuram mais informações e também uma posição oficial da RENAMO
sobre o assunto.
Já a tarde vai avançada quando o Bento Maria volta a contactar. Diz
simplesmente que já não é necessário aguardar e que a RENAMO deve distanciar-se
do ocorrido em Mbuzini. É esta a posição oficial. As máquinas de propaganda vão
começar a rolar. Acusações e recriminações ficam a cargo de Maputo e Pretória.
No ‘O Século’ surge ao princípio da noite um tal João Craveirinha, o sobrinho
do poeta José Craveirinha, e se diz ligado à FRESAMO-CUNIMO-UNAMO. Fala
com os olhos esbugalhados numa alegada ‘quinta coluna’ que se prepara para actuar
em Maputo e promete grandes mudanças na capital moçambicana. Ora, este João
Craveirinha tem uma actuação, diria mesmo, paranóica, mas é conhecido como bom
desenhador e grafista, mostra-me até uma gravura que diz acabou de desenhar
agorinha, alusiva à ocasião: uma pomba branca em pleno voo, trespassada por uma
espada…
Mais tarde, já em casa, em Alcântara, as chamadas sucedem-se. Solicitam
comentários, entrevistas, mais informações. A delegação pouco mais pode adiantar
além de algumas análises futuristas, críticas à actuação do defunto presidente, e
demarcar-se de qualquer acção que tenha provocado a queda da aeronave onde
viajava Samora Machel. Tudo o mais, é mera especulação.
O ex-embaixador João da Silva Ataíde surge na redacção do jornal num dos
dias seguintes, concedendo-me uma entrevista, onde faz essencialmente um pouco
desta futurologia e especulação política. Quem terá encomendado inicialmente esta
vinda dele? O seu ‘patrão’ Geraldes? Alguém em França? Ou isto germinou tão
apenas na cabeça dele? Mas logo se retrai: a pedido do próprio Ataíde, a entrevista
acaba por não ser editada. Conta-me que o ministério português da Administração
Interna o aconselha a não dar muito nas vistas.

Mais tarde começam a surgir de várias fontes especulações ou indícios sobre o


que poderá ter acontecido de facto em Mbuzini, o local onde se despenhara o
Tupolev presidencial. Fala-se num VOR (rádio ajuda omnidireccional) falso,
operando na mesma frequência do de Maputo.
Mbuzini fica não muito distante da Namaacha, uma vila moçambicana
fronteiriça, a pouco mais de 70 quilómetros em linha recta do aeroporto de Maputo.
As próprias luzes e ajudas rádio, inclusivé o VOR de Maputo, terão sido desligadas
enquanto foi activado um VOR ‘pirata’ em Mbuzini. Os factos são estes: frequência
do VOR é 112,70 Megahertz, localização habitual a 54 metros de altitude sobre o
nível do mar, e com as coordenadas 25 52 10 Sul, 32 36 30 Leste. A pista principal de
Mavalane-Maputo tem 12.008 pés de comprimento (3.600 metros aproximadamente)
e possui até um sistema de aterragem por instrumentos ILS, indicativo MA e
frequência de 110,30 Mhz orientada segundo o rumo de 225º.
De Lusaka para Maputo este voo nocturno tem que tomar um azimute de
167º, mas terá sido posteriormente desviado ‘para a direita’, por este rádio-farol
pirata, e que o encaminha para as montanhas dos Libombos, umas elevações com
cerca de 900 metros de altitude, enquanto a altitude do aeroporto de Maputo ronda
apenas os 50 metros.

130
Os pilotos iniciaram uma aproximação à zona montanhosa, desorientados
pela falsa rádio-ajuda, aguardando em breve um contacto visual, pensando que
estavam a descer para a zona plana nos arredores da capital de Moçambique. Em
suma foi isso que se terá passado15.
Mais importante ainda: falta salientar que um dispositivo crucial a bordo, o
indicador de distância vertical ao solo, encontra-se avariado há mais de quinze dias.
Ninguém se importou com isso. O avião continuou a voar. Caso estivesse operacional
teria feito soar um estridente aviso a bordo e lâmpadas de emergência teriam sido
activadas no painel de instrumentos.

A indicação de Joaquim Chissano como novo presidente de Moçambique não


apanha completamente desprevenida a delegação. Acha-se, isso sim, que a situação
será a prazo, pior para o movimento. Se Machel era esperto, afirma-se, Chissano é um
homem inteligente e com boa implantação internacional. Bem distante do estilo
caricato e provocador do anterior presidente.
Maputo acabava de se despedir do ex-presidente. A fazer o elogio fúnebre
esteve, choroso, o ‘número dois’ do regime, Marcelino dos Santos, o mesmo que uma
vez afirmara assertivamente ‘nunca, jamais, a bandeira vermelha será arreada em
Moçambique’. Cativa a multidão, agora, num sentido discurso feito na Praça da
Independência: ‘Quando voltava de mais uma missão de Paz, o nosso querido
presidente Samora Machel…’ Ah! Ganda Marcelino! Se é verdade o que dizem, que
também está envolvido no caso Mbuzini, são mesmo umas belas lágrimas de
crocodilo. Sendo mestiço, não será ele, logicamente, o sucessor do defunto Machel.
E afinal, o que dizem as teorias da conspiração aqui na capital do regime,
sobre o que aconteceu ao Tupolev-134 B? Resumem-se a isto: Machel tornara-se
extremamente imprevisível. Era um obstáculo a remover, por todos. E ‘por todos’,
entenda-se Frelimo, União Soviética, África do Sul. Removido Machel estão abertas
as perspectivas de traçar rumos políticos que não andem ao sabor das emoções e dos
caprichos do momento, mas que obedeçam antes às grandes maquinações que se
traçam para todo este sub-continente, quer pelas grandes potências, quer pelos
potentados ou países da região.

Em Lisboa, mantenho agora um contacto esporádico com dois quadros


superiores do Ministério da Administração Interna. Fizeram parte, anteriormente, do
‘Serviço de Estrangeiros’, o SEF, desse mesmo ministério. Pertencem actualmente ao
S.I.S., os novos serviços secretos civis portugueses. São eles o Francisco José Pereira
Simões e o Leonardo Manuel Judas Chagas, este último é um judeu alto e de barba,
quase nos seus sessenta anos. Apenas se preocupam em garantir que o movimento
nunca cometa algo de violento em Portugal, e que os informe de qualquer
anormalidade. O Simões chega uma vez com urgência tremenda ao jornal, ouvira um
rumor sobre qualquer acção de força. Tranquilizei-o devidamente. Pelo menos
comigo, nada seria feito em Portugal contrário à lei e à ordem.
Já os conheço desde os tempos de Jorge Correia como delegado. Pedem que
sempre que possível lhes faça chegar às mãos os comunicados ou informação
pertinente. Não posso falar de modo nenhum em qualquer apoio ao movimento por

15Já em 2006 será reaberta a investigação às causas de ‘Mbuzini’. No apêndice 3 transcrevem-se alguns
dos excertos pertinentes da comissão de inquérito.

131
parte destes elementos do S.I.S. A meu ver, sempre se mantiveram neutrais, pelo
menos enquanto fui delegado. A única ‘ponte’ que fizeram, era essa: manterem-se
informados e evitar qualquer agitação em Portugal.
Várias vezes me encontro agora com o Pereira Simões, ou ele visita o ‘Século’
ou vou ter com ele a uma pastelaria na Avenida Duque de Ávila e é até ele quem
sugere numa destas reuniões, um dos métodos possíveis para obter legalmente um
passaporte falso, à pala de alguém da mesma idade que tenha acabado de falecer: uma
visita a cemitérios, conservatória respectiva dos registos civis, e governo civil de
Lisboa…

Não só em Portugal se usa e abusa do nome de Afonso Dhlakama: nos


Estados Unidos é agora editado material ‘assinado’ por Afonso Dhlakama mas feito à
revelia do chefe da RENAMO. Está neste caso um texto lido numa conferência de
imprensa em Washington, a 26 de Outubro, e editado pouco depois pelo MIO, o
Mozambique Information Office, de Tom Schaaf. A assinatura reproduzida no
folheto não é de forma alguma a de Dhlakama, como se pretendeu fazer crer, mas o
‘número um’ nunca tomou qualquer posição disciplinar sobre o assunto.

De novo os possantes tentáculos sul-africanos fazem-se sentir em torno da


delegação de Lisboa. Há uma portuguesa, ex-moçambicana, Marília Ferreira, também
conhecida por Marília Mota , que começa por pedir-me um contacto. Apareço como
combinado no ‘hall’ do Hotel Tivoli-Jardim. É uma figura andrógina, cabelo azeviche
curtinho, e ela deve ter certa ascendência goesa.
A Marília vem com um propósito bem definido: anuncia-me estar em Lisboa
um industrial sul-africano que tem alguns assuntos a tratar com o movimento.
Curiosamente, ela encontra-se a trabalhar num ‘Instituto Luso-Fármaco’ que conta
com certa participação sul-africana.
O industrial, acabado de chegar de Johannesburg, chama-se Michael E.
Bowery. Isto é em rajada, encontro-me com ele logo de seguida, no mesmo hotel. A
sua empresa é a Wesbro Investments. E Bowery funciona ainda como correspondente
africano do ‘The Economist’, Intelligence Unit.
‘Ora, deixem lá ver bem o que temos aqui… ouçamos então estes tipos.’
Bowery diz-me precisar da colaboração da RENAMO, ‘para que RENAMO
evite atacar uma fábrica que tencionam instalar próximo de Quelimane’.
Pois!
‘Tal fábrica fica ligada a uma das etapas da indústria do ouro, onde é
necessário o coque, uma qualidade de carvão. Até aqui, estão a extrair o coque através
da calcinação da casca de cocos da Indonésia’.
– Sim…, incito-o a prosseguir.
– Isto é bom para a RENAMO, propõe. De futuro, pensam ter também como
fonte de abastecimento o palmar da Zambézia.
Pareceu-me um pouco de conversa fiada. Creio que Bowery está aqui mais em
missão de fazer uma ‘radiografia’ à nova delegação do movimento. Mas ao fim do dia
efectuo como é habitual nestes casos, o relatório da praxe, juntamente com o resto
dos casos do dia, e envio telefonicamente para Phalaborwa.

132
O PENOSO CALVÁRIO DOS REFÉNS PORTUGUESES, E DE COMO O C.D.S.
PRETENDE INTERVIR
Uma questão séria levanta-se em Portugal neste início de Novembro de 1986:
o caso dos reféns estrangeiros, portugueses sobretudo, nas mãos do movimento. Com
o assalto à importante vila do Luabo, na Zambézia, mais de cinco dezenas de
estrangeiros encontram-se agora raptados pela RENAMO.
Ao tornar-me delegado, herdo esta situação, que já se arrasta há quase um ano
para alguns dos raptados, e um dos reféns havia morrido entretanto. O rapto de mais
sete estrangeiros que ocorre agora em Ulongué, na Angónia, Tete, catapulta a questão
para as primeiras páginas.
Resta acrescentar que quatro destes novos reféns funcionam integrados num
projecto da CEE. E curiosamente, diversas movimentações, visando agora a
libertação de todos os raptados, parecem desde então mais fáceis.
Vou mantendo as autoridades portuguesas ao corrente da situação, através dos
contactos habituais com os homens do S.I.S., o Simões Pereira e o Judas Chagas.
Realizo também um encontro com o cônsul da RFA e outro com o cônsul britânico,
Anthony Abbott.
Pretendemos todos ver este problema ultrapassado o mais breve possível. Os
responsáveis do CICR (Comité Internacional da Cruz Vermelha) para África, Jean
David Chappouix e François Muzi, vêm a Lisboa. Os contactos que mantemos são
‘frutuosos’: esboça-se pela primeira vez a possibilidade de um auxílio do CICR a áreas
controladas pela RENAMO.
Os homens da Cruz Vermelha contactam também Maputo e há uma certa
abertura concedida pelas autoridades moçambicanas para que a organização
humanitária resolva o caso, ‘sem colidir com princípios de soberania do país’.
Dhlakama mostra-se duro numa primeira fase: ‘Paulo, aí em Lisboa deve dizer que o
Presidente da RENAMO vai manter os reféns em cativeiro até ao fim da guerra’,
sublinha ele em mensagem que me é passada pelo Bento Maria.
Ora, e cá está porquê, outra das razões para esta minha aversão a raptos e
reféns, e à exploração ou tropeçar em todas estas situações de fraqueza emocional,
além de ser algo que, tal como os feridos de guerra, tolhem movimentos e empatam
efectivos. E aqui, entopem comunicações, ensarilham as coisas, dão uma má imagem,
etc., etc.
Já explico. Aproveitando-se do drama dos reféns, levanta-se em Lisboa mais
um vigarista, um tipo que se diz arquitecto, um tal Manuel Marques de Jesus Lopes.
Contacta familiares dos raptados afirmando ser militante da RENAMO, como
aconteceu a Manuela Pereira Soares. Acrescenta, dizendo ter um transmissor de rádio
num prédio do Largo Camões, com o qual fala para a Gorongosa: ‘acabei agora
mesmo de conversar com o seu irmão’, diz à Manuela. ‘Não vale a pena a senhora
subir, não adianta. Ele está muito emocionado, a chorar. Por duzentos contos posso ir
pelo Maláwi e trazê-lo a Lisboa...’
A Manuela Soares por pouco que não caiu na vigarice. Mais tarde, chegam-lhe
a dizer que o irmão havia morrido, o que também é falso. Sorte tem este vigas do
Manuel Lopes que a RENAMO, pelo menos em Lisboa, não tenha um cariz violento.

Ricardo de Melo visita-me na redacção de ‘O Século’, arribando de Cascais.


Evo reconhece estar a perder o controlo sobre este terrível caso dos reféns. O mesmo

133
se passa com o secretário das Relações Externas, Artur Janeiro da Fonseca. Dhlakama
indigitara-me, a mim e apenas a mim, para resolver o assunto, sem prestar contas a
outrém.
Melo afirma que interesses jornalísticos e outros, o sacaninha não explicita,
‘exigem’ que ele esteja envolvido, e pede para ser intermediário no processo. Fala-me
de contactos que tem com o CICR e diversos governos. Ora bem, e depois?
Ora, eu não necessito de intermediários e dispenso o Ricardo de Melo.
Recuso igualmente um plano de assalto que este jornalista me propôs, à casa do Jorge
Correia, onde diz existirem diversos documentos comprometedores para si e para o
Evo Fernandes. Mas eu não tenho qualquer força policial nem nada a ver com
eventuais encrencas em que se tenham metido, a não ser reportá-las caso seja do meu
conhecimento, afectem o movimento, e esteja eu para me chatear ainda com isto,
neste tempo de poucas convicções, e estando a bordo de ‘um comboio cada vez mais
rápido e de onde custa a descer’, estando apenas contaminado com a alegria que
sobra da aterragem pouco feliz de Samora Machel, que pelos vistos é pior ainda que
descer de comboios expresso…
De forma alguma, eu não tenho nada a ver com os temores em que se
encontram, nem sei sequer que documentos são.
Mas não se esgotam por aqui as movimentações. O jornalista Waldemar
Paradela de Abreu tenta entrar no jogo dos reféns. Este Paradela de Abreu é na altura
o assessor de imprensa do líder do CDS, Adriano Moreira. Mantém igualmente boas
ligações ao BND da Alemanha Federal. Em coordenação com estes serviços secretos,
preparara uma abortada intentona golpista em Lisboa, no pós-25 de Abril, a chamada
‘Revolta da Maria da Fonte’. Conheci-o há tempos pela mão do Evo Fernandes.
Agora, temos um encontro em sua casa e mostra o interesse do partido, do CDS, em
estar envolvido na libertação dos reféns.
Paradela de Abreu detalha a oferta. O CDS quer enviar alguém, jornalistas
afectos ou um deputado, para dialogar com o Afonso Dhlakama na Gorongosa, mas
o partido nem tem dinheiro para as passagens. Pretendem que a RENAMO pague os
bilhetes. As finanças do partido andam pelas ruas da amargura, e o actual líder, o
Adriano Moreira, levara ainda há pouco uma ‘bofetada’ de Manuel Bullosa,
precisamente um dos empresários pró-RENAMO. Fora-lhe pedir alguns fundos, mas
o milionário galego apenas terá desembolsado cinquenta contos... Nem para os selos
dá!, lamenta-se o Paradela. A via CDS é igualmente rejeitada pela delegação após se
contactar o Dhlakama a propósito da oferta.

A DINFO NA GORONGOSA. UMA JOGADA DO GENERAL LEMOS


FERREIRA
O caso dos reféns prossegue, arrasta-se, dura, dura… Perto do fim de
Novembro trato eu pela primeira vez da ida de jornalistas ao interior de Moçambique.
Um, é o repórter fotográfico francês Thierry Secretant, da agência SYGMA.
Hospeda-se na Residencial ‘Senhora do Monte’, e combinamos um almoço no
Escorial, na Rua Portas de Santo Antão. Dia seguinte já tenho permissão do interior
para ele avançar até ao Dhlakama. O outro, é precisamente o meu colega e chefe da
Secção Internacional no ‘O Século’, o Eduardo Mascarenhas.
Importa antes do mais esclarecer e muito bem quem é este Eduardo
Mascarenhas, muito ligado ao aparelho de defesa português. O Mascarenhas faz parte
do Instituto de Defesa Nacional, e torna-se agora na nova e privilegiada ‘ponte’ entre

134
a DINFO e a RENAMO. E não se coíbe, o Mascarenhas, de gabar os seus
conhecimentos e ligações dentro do Estado-Maior General das Forças Armadas
portuguesas e à minha frente telefona e recebe telefonemas agora do próprio General
Lemos Ferreira, o chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.
Também na emissora católica Rádio Renascença o Eduardo Mascarenhas é o
homem especializado nos dossiers de tudo o que tenha a ver com defesa e forças
armadas. Faço um retrato rápido dele ao Dhlakama, que concorda com a ida, e até ‘O
Século’ está envolvido na digressão, suportando parte dos custos.
Ricardo de Melo, segundo afirmações do Evo Fernandes e de Jorge Correia,
fora a outra ‘ponte’ tentada pelos serviços militares portugueses, mas que se encontra,
agora pelo menos, em franco enfraquecimento.
Assim, nos últimos dias do mês, Secretant e Mascarenhas partem para as
matas moçambicanas, via Maláui. Já em Blantyre, são literalmente explorados por
Gilberto Magid, que cobra a cada um cerca de trezentos e cinquenta dólares por uma
viagem até à fronteira, às margens do Rio Chire.
É agora um Eduardo Mascarenhas desesperado, quase a chorar, que telefona
para Lisboa. Imagino-o, ele ali nos seus cento e vinte quilos, ou mais, é gordíssimo,
desesperado sobre o que lhe possa acontecer… em Lisboa, têm que pagar mais… a
reportagem e o frete para o Estado Maior e Lemos Ferreira ficam tão pertinho e tão
longe, do outro lado deste rio Chire… há a canoa onde têm que o meter, mas
convém que seja a bem que ele conheça as águas deste rio, rápido e tão pejado de
crocodilos esfomeados…
É isso mesmo: ‘O Século’ e a ‘Rádio Renascença’, órgãos de imprensa para
quem ele efectuará a reportagem, têm que dar mais umas dezenas de contos a um
contacto do indiano Magid aqui em Portugal. O dinheiro é entregue a uma tipa
residente na Costa de Caparica. Logo que o pagamento é cumprido, o Magid, o Jimo
Phiri acompanham os jornalistas até à Zambézia, transpõem o Chire, o bojudo do
Mascarenhas quase a fazer rolar de lado a canoa, mas o dinheiro extra ajuda na boa
vontade dos remadores a manter o equilíbrio e alcançar a outra margem. Chegam em
breve à primeira base da RENAMO no trilho para a Gorongosa.
Mas logo aqui o Secretant arranja chatices. Ingere drogas e discute com o
comandante da RENAMO na Zambézia, o ‘general’ Calisto Meque. Calisto ameaça
mesmo mandar chicotear o repórter francês, que reclama querer assistir a um grande
ataque, espectacular, e não apenas à detonação de uma mina na via férrea.
E neste entretanto o ‘homem do Maláui’ liga para Lisboa e lamenta-se a mim
em longa e lamuriosa conversa telefónica, da corpulência do ‘correspondente’ que
arranjei e que por pouco não lhe afundava a canoa com o peso! ‘Não voltes a enviar
um gajo assim, pá!’, pede-me ele.
No interior das matas moçambicanas os dois jornalistas negam-se por sua vez
a presenciar o fuzilamento de um alegado agente da FRELIMO detido pela
RENAMO. E agora os dois separam-se: enquanto Secretant permanece na Zambézia,
Mascarenhas obtém autorização para se avistar com Dhlakama e mais tarde com o
grupo maior dos reféns.
Falta um detalhe importante: o Eduardo Mascarenhas, note-se, é portador de
uma importante mensagem da DINFO e das intenções do seu amigo pessoal, o
general Lemos Ferreira, então Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas
Portuguesas, para ‘sua excelência’, Afonso Dhlakama.

135
Em conversa com o jornalista Mascarenhas, Dhlakama confessará a morte
dos dois soviéticos que haviam ficado como reféns em 1983, a tal ‘queda no abismo
do comunismo’, mas promete, por outro lado, uma maior flexibilidade em relação aos
cativos portugueses.
E a DINFO, o que tem agora a DINFO para oferecer à guerrilha? Uma
guerrilha e organização que Lisboa não reconhece, com quem nega veementemente
qualquer contacto, e que diz mesmo não possuir qualquer delegação em Lisboa.
A DINFO, garante Eduardo Mascarenhas, debitando a mensagem do general
Lemos Ferreira, irá reiniciar a ajuda interrompida, que já vigorara com o Orlando
Cristina. Uma ajuda simbólica, em pequena escala, que começará a ser concedida à
RENAMO, através de encomendas de medicamentos, na sua maior parte, a serem
enviados para a África do Sul..
De regresso a Lisboa, em princípios de Dezembro, Mascarenhas é portador
das primeiras fotografias e entrevistas feitas entre os raptados. Elabora ainda um
extenso relatório para a DINFO e para o general Lemos Ferreira. Alega ter andado
em todo o norte de Moçambique, mas sei pelos relatos da malta do movimento que a
área que visitou foi muito mais limitada.
O Mascarenhas mostra-me entretanto um mapa da nova zona de
responsabilidade, ou interesses, do Alto-Comando das Forças dos Estados Unidos na
Europa, a qual abrange agora Moçambique e outros países de África.
Em novas mensagens a Dhlakama, peço que reconsidere a situação dos
reféns, e friso em como seria favorável assistir-se à sua libertação por aqueles dias, já
próximo do Natal.

No dia 8 de Dezembro, realiza-se o baptizado da filha mais nova dos


Fernandes. Ocasião para mais uma festa. Embora ocupado que estou já na altura com
o caso dos reféns, consigo mesmo assim comparecer. As festas em casa do Evo são
sempre bem concorridas, por familiares e amigos, e também por gente ligada ao
movimento. Desta vez descubro algumas caras novas. E o Manuel Frank está
igualmente presente, este advogado negro que enformava o Gabinete de Estudos,
assim como o Moreno, o José Caetano Moreno, do Maláwi, de quem já tanto ouvi
falar. Tornou-se no tempo colonial um empresário na província de Nampula, quase
sempre ligado à comercialização de pedras semi-preciosas. No Maláwi, parece ser
agora ele e não Magid a receber as simpatias de Evo Fernandes.
Como habitualmente, cá está na festa a Palmira, a mulatona vistosa, viúva do
engenheiro Jorge Jardim, e a Mizé, mulher do Dion Hamilton, o britânico preso na
Beira, acusado de sabotagem aos tanques de combustível da Munhava, nos arredores.
A Mizé dá-me o número de telefone e combino contactá-la durante a semana
seguinte.
Mas vamos às coisas sérias. Falo um bom pedaço com o Moreno. Conta-me
sobre o negócio que possui em Lilongué de pedras preciosas e semi-preciosas, e das
ligações comerciais que mantém na Alemanha. Prometo ligar-lhe proximamente para
dialogarmos mais em detalhe sobre assuntos do movimento, e pelo que me conta em
particular, há por aí carradas de informação que desconheço.
Mas a conversa mais interessante da noite terá sido a que mantive com um tal
tipo anafado, cabelo muito preto e encaracolado, luzidio, o homem até tem certos
traços árabes. É o António José Lopes, também ele já um ‘habituée’ destas reuniões
festejantes em Cascais.

136
O António José Lopes reside em Oeiras e possui escritório no Estoril. A
actividade a que se dedica gira em torno do comércio da armas, ligado a sectores da
defesa portuguesa desse mesmo ramo. Simpatizante da RENAMO e amigo chegado
de Fernandes, tem contactos com diversos países, em círculos da defesa e segurança.
Será verdade, toda a acusação que se faz à RENAMO de uma envolvência em
esquemas destes? Como ‘representante oficial’ só me é dado agora ver uma das
pontas do iceberg? Onde começa e acaba o legal? Basta ver que com as sanções
internacionais a Pretória todo o armamento adquirido pelos sul-africanos vem por
canais muito pouco claros, ou é fruto das capturas efectuadas no sul de Angola.
Ora o José Lopes tenta agora abrir duas novas vias de apoio à RENAMO, em
fundos e em material. Divagamos sobre os contactos com Marrocos de que eu já
ouvira falar. Lopes prometefazer os possíveis para reatar as ligações. Anos atrás
Fernandes conseguira bons laços com um general marroquino, responsável no
Estado-Maior de Rabat. Mas o azar bateu à porta: a ligação durara pouco tempo e
não chega a produzir resultados pois o alto oficial seria um dos implicados numa
tentativa de golpe contra o monarca Hassan II, e acabou sendo fuzilado.
Outro contacto prometedor é com a China-Taiwan. Lopes conhece o ‘número
um’ dos serviços secretos da Formosa. Os mesmos serviços consideram já a
RENAMO como um potencial aliado ideológico. Encontram-se dispostos a conceder
um milhão de dólares ao movimento.
– Então o que é que falta?, pergunto já um pouco agastado, tudo isto me
parece um monte de tretas e não vou estar o resto da noite a ouvir contos da
carochinha.
– Precisam apenas de falar directamente com Dhlakama, pois têm escutado
relatos sobre a organização, envolvendo desvios de fundos...
– Ah! É lá possível…, às vezes até sei fazer uma cara de estupefacção.
Da Gorongosa, pelo menos por meu intermédio, nunca veio qualquer
resposta ao contacto ‘Taiwan’. Creio que mais uma vez o Evo Fernandes terá tomado
o assunto entre mãos. Não tenho porém qualquer conhecimento sobre a estadia na
Gorongosa de algum oficial da China nacionalista.

Dias depois acabo por contactar a Mizé, uma loiraça espampanante e gira,
alta, cavalona, com uns quarentas e poucos. Almoçamos juntos. Espera que o Dion
seja libertado em breve como prometem no consulado britânico em Lisboa, que estão
a par dos esforços desenvolvidos. Ocasionalmente falo-lhe de mapas, que tanto
precisamos na delegação. Lembra-se que tem guardadas algumas cartas geográficas
pertencentes ao marido, ele era piloto, e mais relacionadas com navegação aérea. Mas
servem, de qualquer das formas. A boazona da Mizé acaba por oferecer os mapas.
Encontro-me igualmente com o José Moreno. Mostra-me um cartão passado
ainda pelo Orlando Cristina, em 1977, identificando Moreno como membro do
Conselho Nacional da Resistência.
– O Dhlakama deve desconhecer isto, afirma, mas sem ligar muito ao assunto.
– Claro que sim, que desconhece. O Dhlakama aterra na RENAMO depois
disso!
Nos dias seguintes Moreno põe-me em contacto com um lote apreciável de
comerciantes que, tal como ele, haviam residido por longos anos em Nampula, e que
virão, ao longo de 1987, a apoiar financeiramente a delegação de Lisboa.

137
A boa notícia, algo de concreto, chegara ainda na primeira semana de
Dezembro através de mais uma mensagem por telefone chegada de Phalaborwa: ‘O
movimento poderá libertar, incondicionalmente, todos os estrangeiros capturados,
antes das festas natalícias’.
Dhlakama pede-me, depois dos omnipresentes ‘votos de boa saúde e
cumprimentos para si e para a sua família’: ‘Paulo, prossiga e acelere contactos com a
Cruz Vermelha Internacional’.
O local de libertação, para o grupo da Zambézia, que inclui quase sessenta
pessoas, será, em princípio, a cidade de Milange, junto à fronteira com o Maláwi.
Milange fora assaltada e tomada pela RENAMO meses antes e tem permanecido sob
controlo da guerrilha.
Agora, está tudo envolto no maior sigilo e até a própria delegação da
RENAMO no Maláwi desconhecerá a operação até ao dia marcado, 17 de Dezembro.
Quando toma conhecimento do que está em marcha, já à última hora, Magid ficará
indignado e telefona-me para Lisboa, censurando o facto de nada lhe ter dito. ‘Ordens
de Dhlakama’, respondo-lhe. O comerciante indiano parece espumar de raiva. Já vi
que também acabo de cair em desgraça perante este tipo.

Quanto ao Evo Fernandes e a Jorge Correia, estão completamente


ultrapassados pelos acontecimentos, não estão a par de nada, nem disso têm
necessidade, claro. Cada um por seu lado, tentam contudo intrometerem-se no
processo.
Isto é assim: toda esta informação vale alguma coisa, tem peso. Quem tem
informação, acesso a ela, e a transmite, é alguém com peso. Tanto um como outro,
bem como outros representantes ou a miríade de contactos e ‘amigos’ que pululam
por aí pelos vários continentes, está tudo ao mesmo: Serras Pires, José Antas,
australiano, etc., etc.; todos conhecem gente que conhece gente, todos querem ser os
confidentes de gente graúde, todos querem ter o acesso às verdades últimas e
quotidianos do movimento.
Pois bem, e nesta ânsia e comércio de informação, neste aquilatar de peso
informativo de cada um, e no jogo do faz figura, Correia estabelecera já um
compromisso, uma promessa de libertação, com o MI-6 britânico, um dos serviços
secretos de sua majestade, pois, em relação ao grupo de Tete, que inclui um inglês. Os
‘serviços’ de Londres deslocam mesmo um bimotor de Nairóbi para o Maláwi, e
aguardam apenas autorização da Gorongosa para lançar a operação de resgate. Está
claro que a luz verde de Dhlakama nunca chega, um Dhlakama que não conheça peva
destes enganos e peripécias..
A história de Fernandes é também interessante. No grupo de cativos de Tete,
o que se estava a laborar num projecto da CEE, encontra-se um cidadão da RFA. O
BND quer informações em cima da hora. Cascais está a pressionar-me para que abra
o jogo. Principio a mentir a Fernandes, ocultando toda a informação relacionada ao
caso, e acrescento que nem sei sequer se alguém irá ser libertado nos dias imediatos.
Os ‘serviços’ alemães, refere Fernandes, estão dispostos a pagar a ida de
Janeiro da Fonseca até Pretória, para se reunir com comandantes militares da
RENAMO. O BND enviará também um representante e dispõem-se a entregar
medicamentos à organização.

138
Começo a chatear-me a sério: replico ao ex-secretário geral, frisando que por
vontade de Dhlakama, sou eu e não o secretário das Relações Externas quem tem o
dossier do assunto.
Meia hora depois, Evo volta a ligar. Os alemães tratam da viagem de modo a
incluírem-me na delegação para Pretória. Volto a negar. Fernandes tenta o suborno
directo: ‘os medicamentos, e serão várias remessas, podem ser transformados em
dinheiro... A delegação precisa de fundos...’
– Up your ass!, e desligo-lhe o telefone. O gelo entre nós só aumenta.

O FIM DO CATIVEIRO
Dia 15 chega a confirmação de Dhlakama:
‘Aviso a Cruz Vermelha e os governos interessados. O grupo da Zambézia irá
ser libertado em Milange, dia 17, depois de amanhã’.
O CICR obtém autorização da FRELIMO para se deslocar em viaturas até à
cidade. Efectuará ao mesmo tempo uma entrega de medicamentos.
‘O grupo da Angónia, prossegue a mensagem presidencial, será libertado na
fronteira com o Maláwi, dezoito quilómetros ao norte de Zobué, na picada que vinda
de Mwanza entra em Moçambique’.
‘Passo a indicar as coordenadas: 34.25’leste, 15.26’ sul’.
Coordeno estas últimas informações com a Cruz Vermelha. Anuncio à
Imprensa a libertação iminente. Fernandes e Correia são apanhados completamente
desprevenidos pelos noticiários da rádio.

17 de Dezembro, é a Liberdade. Afinal, apenas para o grupo maior, o da


Zambézia. O grupo da Angónia, integrando os funcionários da CEE e três padres,
atrasara-se na marcha até à fronteira. Para estes é marcada uma nova data, 22 de
Dezembro.
Dhlakama enfurece-se agora ao saber que os libertados em Milange acabam
de ser levados do Maláwi para Maputo e logo pela madrugada de 18 de Dezembro
envia-me uma mensagem confirmando apenas a saída, dentro de quatro dias, a 22,
dos três religiosos raptados em Ulongué:
‘Por razões de segurança já não podemos libertar os cidadãos da CEE.
Contudo, poderão ser libertados mais tarde, depois de um estudo profundo sobre a
situação actual no Maláwi’.
‘Confirmo que os três padres sairão no dia 22, no local já acordado, às sete da
manhã’.
Rapidamente, imagino e dito uma nova mensagem para Dhlakama, na mesma
comunicação telefónica com o Bento Maria lá longe em Phalaborwa:
‘Peço, por todas as razões, humanitárias, diplomáticas e políticas, a libertação
de todos os que estão no grupo de Tete’. Só me resta aguardar, e que ‘sua excelência’
esteja bem disposto e imbuído deste espírito natalício. ‘Este gajo também facilmente
lhe chega a mostarda ao nariz… esperemos para ver’.
Dia 21, por fim, Bento Maria de novo, transmite a resposta de Dhlakama:
‘A minha posição de última-hora. Confirmo que todos aqueles estrangeiros
capturados em Ulongué, Tete, serão libertados amanhã, 22 de Dezembro de 1986, às
7 horas da manhã. Libertação irá ser realizada no sítio já combinado’.
Na manhã do dia 22 espero impacientemente junto ao telefone. A mensagem
chega por volta das dez horas:

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‘Comunico-lhe que todos os estrangeiros capturados em Ulongué foram
libertados às sete horas. A libertação verificou-se na fronteira de Tete com o Maláwi’.
O pesadelo chegara ao fim. O pesadelo, e esta política de empatas de andar a
escoltar interminavelmente um ou mais grupos de reféns.
Vou ao aeroporto de Lisboa aquando da chegada do ‘grupo da Zambézia’ e
também à vinda do engenheiro Orlando Basso, o técnico português que estava na
Angónia.
O facto de ter ajudado em todo este processo, e de ver agora ali de volta e
livres, todas estas pessoas, creio, foi uma das melhores prendas de Natal que se pode
conseguir.
O importante, contudo, é toda esta triste odisseia ter enfim terminado.

DE COMO MANUEL BULLOSA QUER SUBSIDIAR UMA CONFERÊNCIA


DA RENAMO
Resta acrescentar que em Moçambique, no plano militar, 1986 ficara marcado
pela retomada logo em Fevereiro, por parte da RENAMO, da zona de ‘Casa Banana’,
que agora não passa de um ponto no mapa, e uma área calcinada, no terreno., e por
uma penetração maciça dos grupos armados do movimento no vale do Zambeze e
em grande parte das províncias de Tete, Zambézia e Nampula.
A imprensa governamental insiste em que existem planos por parte da
RENAMO para dividir o país em dois, aliados a interesses externos, a saber: os do
Maláwi, com ambições de domínio territorial e regional, e que procura ainda uma
saída para o Índico, por um lado, e os da África do Sul, nos mais variados campos,
entre os quais o de enfraquecer decididamente o regime em Maputo, a razão primeira
para esta guerra.
O ano chega ao fim tendo-se por perspectiva, para breve, uma conferência do
movimento a realizar muito provavelmente no norte da Alemanha Federal, em Kiel.
Nos bastidores irá aparecer, além de Fernandes e dos ‘serviços’ BND, o industrial
Manuel Bullosa.

Logo nos primeiros dias de 1987 e apesar do gelo que se instalou entre nós,
sou apresentado por Evo Fernandes a Manuel Bullosa. O milionário galego pretende
conhecer-me. Mostrava-se susceptível a apoiar financeiramente a delegação e essa
nova conferência. Fernandes opta pela realização do encontro em Kiel, uma vez mais.
Nem que seja para estar perto da namorada ou amante que aí tem, a tal Renata de que
ocasionalmente ouvimos falar. Ao mesmo tempo, porém, lá vem ele com o mesmo
disco riscado, diz estar farto daquilo tudo e que ‘qualquer dia’ irá retirar-se de vez.
Onde é que eu já ouvi isto?
Bullosa concorda com Kiel, pede a lista de participantes e adianta que vai dar
cinco milhões de escudos portugueses. A meio do mês de Janeiro entrego-lhe a lista e
um orçamento para a delegação de Lisboa. Tudo parece arranjado entre mim e
Bullosa. Contudo, na véspera do velho empresário largar as notas, Fernandes apressa-
se a telefonar-me: afirma que daí para a frente trata ele do assunto. Discordamos
novamente.
E o Evo ri-se mais agora, dizendo que eu iria ver se ainda havia alguma
reunião em Kiel..E conclui com esta observação: ‘sabes, pá, sou há anos grande

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amigo da Peregrina Caetano, a secretária do Bullosa, e que sem eu dizer uma palavra,
a ela e a ele, o velho não vai dar nada!’.
Efectivamente, compareço no dia seguinte na sede da Livraria Bertrand, ao
Chiado. Bullosa lamenta-se: ‘Sabe, no fim-de-semana tive a visita de alguém altamente
colocado, das autoridades portuguesas. Desaconselharam-me qualquer iniciativa antes
do movimento ter uma figura de proa carismática. Em vez desse Afonso Dhlakama,
porque não se decidem por alguém como o Artur Vilankulos, por exemplo, com
simpatias nos Estados Unidos e por aí fora…?’ Isto só pode ser intoxicação ou
provocação, é o que se me apraz pensar. OK! O Evo ganhou por aqui, vamos a ver até
quando.
Bullosa defende ao mesmo tempo um plano para manter Joaquim Chissano
como presidente, por um período de uns sete anos, e de dividir territorialmente o país
pelas duas forças em presença durante um cessar-fogo: a RENAMO ao norte e a
FRELIMO ao sul do Rio Zambeze.
Acho tudo isto ridículo e utópico. Uma provocação. De qualquer forma, no
final da conversa, Bullosa dará duzentos contos portugueses, ’uns tostões para o
correio’. Ou uma bofetada. A conferência de Kiel não se realizou. Ao fim do dia
envio o relatório a Dhlakama com o conteúdo da reunião.

UM ‘ENVIADO ESPECIAL’ CAÍDO DE PARAQUEDAS EM LISBOA


Por esta altura chega a Lisboa um moçambicano, negro, jovem, de quem o
José Caetano Moreno já me falara. Ele é o Mateus Lopes ou, de seu verdadeiro nome,
o José Alfredo da Costa. E há toda uma lenda agregada e este homem: Mateus Lopes
conseguira escapar de Maputo ‘in extremis’, segundo se consta. E foge porquê?
Pertence desde há anos à RENAMO e é considerado como um agente infiltrado e,
agora, um enviado especial de Afonso Dhlakama.
Em Maputo tenta aliciar, embora sem muito êxito, alguns elementos das
Forças de Defesa e Segurança, argumentando na necessidade de uma aproximação
FRELIMO-RENAMO. Estivera também no Zimbabwe e Maláwi, de passagem, nas
digressões várias que efectua à Gorongosa.
Desde 1985 que mantém contactos diversos com o Evo Fernandes, e o ex-
secretário-geral confirma-me isto mesmo, embora laconicamente, durante as escalas
na capital portuguesa. E mais ainda: o Mateus Lopes tem sido subsidiado, ao longo
destes anos todos, principalmente pelo José Moreno.
Fora muito recentemente de novo à Gorongosa, ao novo quartel-general da
RENAMO, através do Maláwi. Estando desta feita o José Moreno em Portugal, por
estes tempos, contacta o Magid, que me telefona para Lisboa: “Conheces este tipo, oh
Paulo? Tenta ver por aí se o gajo está ‘limpo’!”. Fernandes, a quem eu indago,
conhece mesmo o Mateus Lopes e eu dou luz verde para Blantyre. Magid procede
então ao acompanhamento de Mateus Lopes até ao Rio Chire.
Agora, a digressão à Gorongosa já pertence ao passado, e o ‘enviado especial’
arribou a Lisboa. Uma escala demasiado longínqua para ir de uma capital africana a
outra, ainda para mais vizinhas, e da capital ao interior… Bom, encontro-me com o
José Moreno e o Mateus Lopes no restaurante ‘Fritz’ de um centro comercial em
Alcântara, Lisboa.
O ‘enviado’ é negro, africano genuíno, magrinho e alto, muito bem-falante e
bem formado. Estende-me uma carta de apresentação passada pelo gabinete de
Dhlakama e garantindo que eu posso trabalhar com ele. A mensagem é assinada por

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um José Augusto, o actual chefe do gabinete presidencial da RENAMO. E Lopes
salienta que enquanto permanecer em Lisboa, irá auxiliar no possível o trabalho da
delegação. Intrometer-se, vasculhar, observar… “Well! Well! Eu bem quero passar a merda
desta batata quente… não tenho um punhado de diamantes negros mas tenho um negro, o Ataíde,
um branco, o Ascêncio de Freitas, e um assim-assim, o ‘Chico’ Mascarenhas… agora aparece mais
este, olha, já são duas pedrinhas negras…”
Dias depois apresento-lhe os outros elementos que trabalham comigo. Dá
para perceber que acabei de meter uma raposa na capoeira. Uma desconfiança mútua
de cortar à faca.
Em privado, o Mateus Lopes fala dos contactos no Maláwi: são
essencialmente o José Moreno e um outro português de nome Pegas, e o reverendo
B.W. Chafungatira, residindo este em Chiromo, perto da fronteira com a Zambézia.
A preocupação que demonstro quanto aos apoios no Maláwi, é que estes
estão na prática divididos em três redes: 1. a rede Tom Schaaf, de comunicação e
infiltração de alguns bens, usando pessoal de missões evangélicas e um ou outro
mercenário americano, ocasionalmente; 2. a rede Moreno-Pegas e, separadamente,
Chafungatira, de condução de visitantes à Gorongosa e de canal de informações; 3. e,
finalmente, a rede Magid-Jimo Phiri-África do Sul, a mais importante, talvez, utilizada
para infiltração de jornalistas, visitantes, apoio a homens do movimento no Maláwi,
canalização de informações de e para a Gorongosa, e de injecção de equipamento
militar.

AS ‘SECRETAS’ OFERTAS DA DINFO À RENAMO


8 de Janeiro de 1987. No jornal ‘O Século’, Eduardo Mascarenhas anuncia-me
hoje o envio da primeira remessa de medicamentos e livros dados pelo Estado-Maior
General das Forças Armadas portuguesas, através da DINFO.
Poucos dias depois, Bento Maria confirma: ‘Paulo, informe aí os amigos
militares que a prenda chegou’. Acabam de chegar à sua caixa postal, em Phalaborwa,
algumas das primeiras encomendas de dez quilos cada, expedidas de Lisboa.
Não posso porém precisar, no total, que quantidades são enviadas ao todo
pela DINFO desta vez e nas seguintes e que chegam agora ali à P. O. Box 1772
Phalaborwa 1390 South Africa. Acho que isto, nem o General Lemos Ferreira se
atreverá a desmentir. Isto, e muito mais, que os comprovativos existem, em papel A4,
fotográfico, e gravações áudio, nas velhinhas mini-cassetes, de alguns dos telefonemas
mais escaldantes. Mas isto está tudo bem arquivado a sul do Equador e em boas
mãos.
“O que resta pensar? Depois da guerra colonial, do retalhar selvagem, as
pontes estendidas: as balas ou os pensos rápidos a um e outro lado para tentar
estancar a sangria deixada para trás. Primeiro, a metralha e o ‘napalm’, depois, a
descolonização exemplar, e agora, coopera-se com Deus e o Diabo. Tudo porreiro! ‘É
a forma habitual que usávamos por aí para lidar com a situação… primeiro retalhávamo-los a
metralhadora e depois oferecíamos-lhes pensos rápidos. Tudo uma farsa, e quanto mais mentiras via
mais detestava tudo isto’”.
Por outro lado, um contacto com o CICR permite-me apurar a informação de
que em Dezembro, em Milange, a Cruz Vermelha havia dado à RENAMO oitenta e
cinco estojos de primeiros socorros e setecentos quilos de medicamentos e roupas.
Nova entrega encontra-se agendada para este Janeiro de 1987.

142
Mais para meio do mês, o Artur Janeiro da Fonseca chega a Lisboa. Vou ter
com ele a um hotel em que se hospeda junto ao Parque Eduardo VII. Não é com
grande surpresa que o vejo acompanhado pelo Evo Fernandes. Fazem-me um
primeiro aviso velado. Mas suficientemente sério. É o Janeiro da Fonseca quem
verbaliza a ameaça:
– Trata de abandonar a merda desses laços com o Tom Schaaf e afasta-te da
delegação em Washington.
Em suma, é isto mesmo. É claro que eu não estou para ouvir tais conselhos,
ditados previamente por Evo Fernandes ao seu homem de mão. Insistentemente, o
Fonseca volta a recordar-me da confiança que depositaram em mim ao escolherem-
me para novo delegado. Respondo evasivamente. Evo Fernandes não se sente nada
seguro. Permanece calado o resto do encontro. ‘Puta que os pariu! Quando é que
transfiro mas é esta merda para a outra malta… E a porra do comboio que não
abranda!’

Dia 20, um novo telefonema a partir da África do Sul. Bento Maria informa-
me de que um industrial sul-africano pretende contactar-me:
– Paulo, esta é do Van Niekerk para si. Há aqui um mister John, já lhe dou o
número dele…’
O mister John atende e informa-me que estará na Europa, na Suíça, no dia 22.
‘Estou muito interessado em falar consigo e transmitir uma coisa ao seu movimento,
pode ir ter comigo?’ Por mim tudo bem, e o mister John diz que vai já tratar da
passagem aérea.
Dia 22 estou a aterrar em Zurique a meio da tarde, as fitas pretas das pistas do
aeroporto varridas constantemente pelos limpa-neves são as únicas linhas que
destoam na alvura da paisagem. Tomo o comboio para a estação central, e em
minutos estou hospedado no Carlton Elite. Lá fora está a porra de um frio de doze
ou treze graus negativos, mas esta é uma cidade completamente cliatizada.
O misterioso Mr. John com quem havia falado ao telefone, reserva mesa para
o jantar num restaurante próximo. Presente está também um outro sul-africano,
banqueiro, e um investidor grego residente em Johannesburg, o Zeno Souglides.
Os sul-africanos pretendem saber da situação militar na província de
Inhambane, principalmente na região de Pande, e entre esta localidade e a costa.
Querem voltar a explorar os jazigos de gás natural de Pande, e há igualmente a
possibilidade de outras indústrias associadas, como uma fábrica de amoníaco, só que
tem que se estudar o escoamento para a costa e a logística que daí virá. Tudo rebate
ao aspecto fundamental da segurança. Querem da RENAMO garantias de não
interferência e afirmam-se dispostos a empregar homens ligados ao movimento.
No dia seguinte, já em Lisboa, envio uma extensa mensagem nesse sentido ao
Afonso Dhlakama que responde ir tratar do assunto com os ‘contactos’ na África do
Sul. De qualquer forma, não volto mais a ouvir falar neste projecto para o gás de
Pande.

Início de Fevereiro. Janeiro da Fonseca vai à Gorongosa avistar-se uma vez


mais com o ‘número um’ Dhlakama. Mais mudanças bruscas se avizinham. No
regresso à Europa efectua uma curta escala em Nairobi, onde fica em casa do
Francisco Nota Moisés. É daí mesmo que agora me telefona: “Anuncia por favor, ‘sua
excelência’ pede para que divulgue na Imprensa, que o presidente da RENAMO

143
Afonso Dhlakama declara Evo Fernandes como já não fazendo parte do Conselho
Nacional, e que Jorge Correia foi expulso da RENAMO”.
Estou boquiaberto. Medidas drásticas… um frete a quem? Ou porquê?
Fernandes e Correia são agora acusados à boca cheia de confusionismo, abuso de
confiança e fraudes com fundos da organização.

TENSÃO NA DELEGAÇÃO. O ‘SACO DE GATOS’ PRESTES A REBENTAR


A recente chegada de Mateus Lopes só faz agitar mais ainda as já turbulentas
águas na delegação. Ataíde, pelo seu lado não antagoniza, será o único a dar-se bem
com o recém-chegado. Mas quanto ao ‘Chico’ Mascarenhas e ao Ascêncio de Freitas,
parecem sentir-se notoriamente ameaçados pelo novo elemento. Reuniões tensas
sucedem-se no British Bar, na Cervejaria Alemã, e no Cantinho do Aziz, um
restaurante moçambicano, e noutros locais habituais de encontro que utilizamos. O
Freitas e Mascarenhas não se cansam de me alertar em privado: ‘o Lopes é um quadro
da Segurança moçambicana’. E principiam a distanciar-se.
O sempre educado, e sólido em personalidade, Mateus Lopes, fisicamente a
sua magreza extrema até lhe empresta um ar frágil, goza contudo de autonomia em
relação à delegação, e está-se um bom pedaço nas tintas para o que o outro branco e
o ‘mulato’ em Lisboa pensem. E quem me faz lembrar este gajo, o Mateus Lopes, é
algo em que ando a matutar… Ah!... realmente… já sei! O Lumumba, o malogrado
congolês Patrice Lumumba, assassinado nos idos da década de ’60… é isso mesmo!
As feições são parecidíssimas.
No tocante a mim, prefere manter-me a par da maior parte dos assuntos: tem
encontros, por exemplo, e informa-me, com o conselheiro para assuntos africanos do
primeiro ministro português. Não consegue reunir-se com Cavaco e Silva, pois o PSD
considera ridículo, e uma gaffe até, um pedido do Mateus Lopes para a oferta de cinco
motas reforçadas para o Dhlakama e respectiva escolta.
E é todo um trottoir aos meios mais variegados aqui da capital portuguesa,
onde não falta, obviamente, a Imprensa, a ‘nossa’ imprensa, a que defende ‘a causa’. É
assim que o levo a almoçar com o Jaime Nogueira Pinto, que se encontra à frente de
‘O Século’, onde trabalho, e com o jornalista Nuno Rogeiro. O repasto de polvo
cozido com todos ocorre no ‘Mufi’, numa das ruazinhas nas traseiras do jornal, e o
Nogueira Pinto e o Rogeiro mostram-se relativamente bem impressionados com o
‘enviado’.
Na delegação, pensa-se e repensa-se em relançar a revista ‘A Luta Continua!’ e
deitam-se contas aos trocos. O ‘Chico’ Mascarenhas fala-me numa outra gráfica, a
Tipo-Set, em Santos, mais despachada, e pertencente a um familiar do Cipriano, o ex-
colega de Mascarenhas nos ‘serviços’ de Maputo e que com ele se pirou para a África
do Sul. Bom… se é que essa foi mesmo uma deserção genuína, coisa que nesta altura
do campeonato já eu duvido bastante.

O João da Silva Ataíde prossegue, nos seus momentos sóbrios, diga-se em


bom abono da verdade, as digressões habituais à capital francesa, onde vai
trabalhando por vezes, segundo diz, numa firma de ‘import-export’ de um tal amigo
que não conheço, nenhum de nós conhece, aliás, o Fréderique. Na empresa deste
indivíduo, são apoiantes ou simpatizantes da RENAMO, mas de uma RENAMO que
tivesse o Ataíde mais proeminente. Ataíde nem precisaria desse ‘trabalho’ eventual em
Paris, pois mantém-se a receber uma ajuda generosa e regular do tal empresário

144
Manuel Geraldes, da firma Ar Líquido. Mas o ex-embaixador desloca-se a França de
novo, e desta feita também dá um giro até Bruxelas.
Imagino-o em Paris… já em Lisboa, por vezes, é o que se sabe, com o vinhito
branco, bem geladinho… e os devaneios dele, depois, já o ajudei a entrar num táxi
apontado a casa, e ele lá de dentro a acenar para mim, para todos no passeio, como há
dias atrás junto ao Museu Militar, em Santa Apolónia. Quando lhe chamo a atenção,
numa altura de pouca lucidez ainda, explica-se: ‘treino… treino… se for para ministro
dos Estrangeiros, ou mais alto…’ Ah! ‘Tá tudo explicado!
Vejo-o como uma figura filiforme a cortar a manhã gélida da capital francesa,
uma lámina preta e ligeiramente curvada para a frente, com a inseparável pasta, a
retalhar a neblina junto ao Sena, em Saint Michel ou Saint Germain, antes de abancar
a um ‘bistrot’… à mesa, agora, sorvendo um ‘chateau’ blanc gelado,
independentemente da hora do dia.
No regresso a Lisboa fala-me agora dos encontros com membros do
Parlamento Europeu. Na capital belga avistara-se com o Holden Roberto, o líder da
FNLA de Angola. Mas é sobre França que ele vem todo ufano, foi recebido por
responsáveis das indústrias Dassault, do sector de armamento e aviação.
– O que é que essa gente quer? O que garantem os gajos?, pois é sempre esse
o jogo.
– Pretendem um contacto ‘sólido’ com o movimento. Estão dispostos a
fornecer até, à experiência, dez mísseis terra-ar. Mas tenho que tratar disto ao mais
alto nível.
O ex-embaixador moçambicano pede-me assim para, em próxima mensagem
a Dhlakama, enviar felicitações da parte do novo vice-cônsul português em Maputo, e
que é também seu amigo pessoal, o Dr. Gaifão. Ah! E é claro: a pertinência que ele,
Ataíde tem, de um encontro com ‘sua excelência’. Decerto que para tratar do assunto
‘Dassault’.

Sensivelmente por esta mesma altura o Ascêncio de Freitas tenta contactos


com a Pesca Nova, uma empresa sediada em Vigo, Espanha. Um dos patrões terá
mostrado simpatias para com a RENAMO e poderá mesmo auxiliar o movimento.
Dificuldades várias, de agenda, vão preterindo porém o encontro.
Quanto à AEMO, a Associação dos Espoliados de Moçambique, no fundo, é
uma organização dos antigos proprietários portugueses em Moçambique, sucessora
da ANERM, e que sempre se disse, oficialmente, apolítica, está também disposta a
ouvir-nos. Eu, o Ataíde e Mateus Lopes, participamos num encontro, na sede da
associação. Prometem estudar os apoios que pedimos, em termos financeiros e de
equipamento de escritório.
Ao longo de todo este mês de Fevereiro lançamos uma campanha junto dos
outros pequenos movimentos que pululam pela capital portuguesa: reunimo-nos com
gente da MONAMO incluindo, posteriormente, o seu dirigente, o Máximo Dias. Da
CUNIMO e ‘Friends of Mozambique’ contacto com o José Massinga e apresento-o a
Mateus Lopes. Por fim, avisto-me com os ‘independentes’, nesta altura, Chanjudja
Chivaca João e Inácio Chondzi, que andam sem eira nem beira, sem saber bem onde
aterrar.
A 13 de Fevereiro, Mateus Lopes retorna às matas moçambicanas via Maláwi.
Consigo que integre no seu grupo de acompanhamento, escolta e logística, até à
Zambézia, uma jornalista americana, a Sharon Benn. Quem é esta Sharon, que parece

145
tombar aqui também de paraquedas? Ela é a nova stringer, colaboradora, da agência
norte-americana UPI sobre a qual chovem essas insinuações de ser mais uma ‘antena’
encoberta da CIA e que tem no ‘Sandy’, o nosso já celebérrimo Alexander Sloop, o
seu responsável máximo na praça portuguesa. Esta infiltração constante, uma vez
efectiva, do Sandy, e outra tentada, e agora a da Sharon Benn, foge de caras à
estatística, à média conseguida por cada agência, ou não será? Mas a ‘agência’, a de
Langley, na Virgínia, a CIA, leia-se, andará mesmo sequiosa de informação. A Sharon,
se conseguir entrar, fará também umas peças para o jornal britânico ‘The
Independent’, um orgão que não tem sido até tão independente como isso, mostando
uma inclinação bem favorável para o movimento.

VAGA DE EXCURSÕES À GORONGOSA. E DHLAKAMA ESPATIFA-SE DE


MOTA
Mais jornalistas chegam todavia nas semanas seguintes ao interior de
Moçambique, através do Maláwi, após contactos connosco em Lisboa: é este o caso
de um Jorn Ruby, correspondente do jornal dinamarquês ‘Politiken’, de direita, e do
Michael Nicholson e mais dois elementos na sua equipa, efectuando uma reportagem
televisiva para a estação britânica ‘ITN’.
Não é só a partir de Lisboa que se traçam estas vias de infiltração: nos
Estados Unidos o Tom Schaaf acaba de organizar a penetração de Holger Jensen, do
ultra-direitista ‘Washington Times’, e prepara-se para coordenar a ida do jornalista
inglês Lorde Michael Cecil e do italiano Almérico Grilz. E pela primeira vez há baixas
entre esta imprensa conduzida pela guerrilha ao centro do furacão moçambicano:
Almerico Grilz virá a morrer ao filmar um combate junto ao Rio Zambeze, nos
princípios de Maio.
Semanas mais tarde a conhecida revista norte-americana de mercenários
‘Soldier of Fortune’ publica uma extensa reportagem efectuada junto da RENAMO,
em terras da Zambézia e da Gorongosa, pelo jornalista e mercenário Bob McKenna,
conhecido também nestes meios por Bob Mackenzie. McKenna irá mesmo nos meses
imediatos envolver-se em algumas operações especiais no apoio à RENAMO na
Zambézia, junto à fronteira com o Maláwi, instalando diverso equipamento de
rádiocomunicações.
Falta detalhar quem é este tipo, este operacional que surge aqui a fazer
concorrência directa pelas mãos de Tom Schaaf, aos operacionais a mando de
Pretória. Será tanto assim? Ora o Bob McKenna é cidadão americano, e cumpriu na
década de ’70 como muitos outros, o serviço militar no Vietname, onde é ferido em
combate. Desmobilizado, junta-se mais tarde ao SAS rodesiano (o Rhodesian Special
Air Service) onde serve dez anos, atingindo o posto de capitão. Após a queda da
Rodésia, milita como major no 1º Regimento de Reconhecimento sul-africano. Torna-
se depois no ‘número dois’ em comando do Regimento de Forças Especiais da Força
de Defesa do Transkei, e oficial do Destacamento de Inteligência da mesma força de
defesa do referido bantustão. Um bom curriculum e que em nada ajuda a RENAMO
a livrar-se desta fama que se lhe cola teimosamente às mãos como um ‘post it’
peganhento, de ligação contínua ao mundo dos mercenários.

E quanto ao presidente do movimento, falta acrescentar isto, está de novo na


Gorongosa para receber toda esta procissão jornalística e mercenária, retornado de
um hospital militar sul-africano. Então, o caso passou-se assim: o homem é doido por

146
motas, já se sabe, e o Van Niekerk e lá quem decide na AMI resolveram como já se
contou, ofertarem algumas motas de alta cilindrada e todo o terreno ao movimento.
As más línguas até diziam que era um presente envenenado e que os ‘boers’ se
queriam livrar já do Dhlakama. Mas não, não creio que fosse o caso. Ora as
motorizadas são óptimas, por vezes, para deslocações entre bases próximas, entrega
de algum tipo de mensagens, ou simples movimentação de quadros. E o Dhlakama
não larga a sua mota, e já mesmo antes, no terrível episódio da derrota em ‘Casa
Banana’, largara tudo e pirara-se a toda a velocidade numa ‘duas rodas’. Agora, bom,
fala-se num épico estampanço contra uma árvore, e que o 'número um' teve que ser
evacuado de urgência, de helicóptero, para ser tratado à cabeça na África do Sul.
Parece contudo estar recuperado do tremendo estoiro e cá está ele de novo
bonacheirão, aberto em sorrisos, abrindo coca-colas e saboreando mais umas
galinholas assadas juntamente com os repórteres estrangeiros.

O PLANO MANHOSO DE ÁLVARO RÉCIO


Março. Há quase quatro anos que não o via… Gordíssimo, ainda: o Álvaro
Récio chega a Portugal, proveniente da África do Sul e Swazilândia. Encontramo-nos
no ‘hall’ do Plaza Hotel. Este banqueiro e empresário, considerado um dos dirigentes
da comunidade portuguesa na RSA e que eu já conhecera no funeral de Orlando
Cristina, surge-nos como um novo ‘mensageiro da Paz’. ‘Tá bem abelha!
Refere-se a contactos com um tal Luís Filipe Costa, em Mbabane, um Luís
Costa que é mais do que sabido ser um dos quadros da Segurança moçambicana e
com boas ligações ainda à nova presidência em Maputo. Quanto à própria África do
Sul, bem, o Récio afirma categórico que começa a crescer de novo aí uma vontade
sincera para conseguir algum entendimento em Moçambique, entre FRELIMO e
RENAMO, mas que as movimentações não são tão fortes como haviam sido em
1984.
O empresário luso-sulafricano realça ainda que mantém estreitas ligações com
membros do Conselho de Segurança de Estado sul-africano e em círculos próximos
do próprio Pieter Botha, o primeiro-ministro, e do seu ministro dos Negócios
Estrangeiros, o outro Botha, Roelof ‘Pik’. Pede-me um sigilo extremo em todo este
assunto e que ausculte Dhlakama, sobre a oportunidade e condições para um eventual
reatamento do diálogo.
Mas como negociante e empresário o Álvaro Récio traz ainda outras
preocupações: pretende ‘cooperar’ com a RENAMO na exploração de jazidas de
pedras preciosas, especialmente esmeraldas. Consigo traz um catálogo e mapas
geológicos de Moçambique, com locais assinalados favoráveis à exploração, mostra-
mo. Contudo, pelo canal Phalaborwa-Lisboa, pelo menos que tivesse passado por
mim, Dhlakama não dá qualquer resposta às pretensões de Récio.

Em 25 de Março efectuamos uma nova conferência de imprensa no Plaza


Hotel. Bom, isto comporta sempre uns certos laivos de provocação: “vamos lá ver
como se comportam os ‘bichos’, se estão muito agitados…”. Os ‘bichos’, são as
autoridades, sempre subservientes a Maputo, como as consideramos, procurando não
melindrar o ‘governo amigo’. Não surgem impedimentos. Ninguém estrebucha. Já
toparam a coisa, que a intervenção deles só nos traz mais publicidade.
Objectivo: ameaçar os investimentos no Corredor de Nacala e também o
Maláwi, pela participação, agora, deste país, ao lado da FRELIMO na defesa da

147
referida linha férrea. Na ocasião, anuncia-se já o abate recente de quatro dezenas de
soldados malawianos perto de Malema.
E o Mateus Lopes, ‘enviado especial’, e que parece um autêntico ‘vai-vem’,
regressa agora a 10 de Abril. Apresento-o a diversos jornalistas de agências e estações
de rádio, iniciando-se assim uma nova campanha de propaganda.
Lopes comunica-me dias depois ter recebido da sua ‘rede em Maputo’
informações inéditas sobre o ANC, que transmito, a seu pedido, para o Afonso
Dhlakama. E principia-me também a falar em quantidades de um certo ‘material
branco’ que esperam na base de Chire para serem despachadas para a Europa através
de Moreno. ‘Não me digam que o mais velho mudou os gostos… depois da coca-
cola, anda agora envolvido em cocaína!’, mas sei posteriormente tratar-se de marfim.
Armas… mercenários… tráfico de material de espécies protegidas… isto está
bonito! E o ‘enviado’ traz mais uma em manga: que devo adoptar doravante um
nome de código: ‘Leopardo’. Bom, um nome a fazer jus, e combinação com o epíteto
que o ‘Chico’ Mascarenhas me dera já perante algumas das minhas ideias: ‘deves ter
sido um gajo extremamente ‘sanguinário’, à solta lá no mato com o movimento’…

A CONSPIRAÇÃO ALASTRA EM LISBOA


Abril correu num ápice e sem histórias de maior, dignas desse nome. Mas
entre 13 e 15 de Maio o Artur Janeiro da Fonseca está de novo em Lisboa. Isto parece
ser algo inédito, alargado: convoca também um trio, genuinamente moçambicano, da
delegação nos EUA, o Luís Serapião, o Boaventura Lemane e Benjamim Nguenha.
Isto tem todos os contornos de ser o ‘julgamento’ da delegação de Lisboa e do
‘enviado especial’.
Uma primeira reunião marcada para a tarde do dia 13, no Hotel Tivoli, não se
realiza, por ausência do Ascêncio de Freitas. O ex-secretário-geral Evo Fernandes
aguarda sossegadinho e matreiro na sombra o desenrolar destes acontecimentos.
Dia 14 de manhã, tenho porém um encontro agendado no Tivoli com a
delegação ‘americana’ e o Mateus Lopes. Casualmente, ou provavelmente até não, o
luso-moçambicano Jacinto Veloso, ministro moçambicano da Cooperação, e antigo
desertor da Força Aérea Portuguesa, está também no hall do hotel, em cavaqueira
amena com outro tipo branco. ‘Este gajo, aqui?...’ Tento até uma entrevista para ‘O
Século’, mas o Veloso recusa e abandona a sala.
Já da parte da tarde, e encontrando-me no jornal a seguir ao almoço, sou
informado dessa uma reunião ‘pirata’ do movimento, parece pois que é hoje que se
concretizará o tal encontro alargado… Tanto eu como o ‘enviado especial’ de ‘sua
excelência’, o Mateus Lopes, desconhecemos tal facto. Alguém amigo (claro que eu
criei também ao longo dos meses a minha própria rede de informadores) segreda-me:
‘está marcada para o restaurante Cantinho do Aziz’.
Entramos de rompante, e quando digo entramos, refiro-me a mim e ao
‘enviado’, e surpreendemos a reunião ainda antes do início. ‘Well! Well! Já vimos tudo,
fiquem bem!’
Estão siderados ao olharem para a porta. Evo Fernandes, a ‘eminência parda’,
mais uma vez, preside à mesa, tendo Gilberto Magid a seu lado. Embora fizéssemos
meia-volta, vêm-me contar que desmobilizam logo ali, os trabalhos ficam adiados. No
dia seguinte o Evo irá convocar esta reunião alargada para um local privado, o
escritório do Álvaro Corte-Real, o seu sogro, em Alcântara.

148
Nem eu nem Mateus Lopes iremos lá aparecer, claro. De qualquer das formas,
sabemos de tudo: o Evo Fernandes está a propor a substituição do delegado em
Lisboa, eu, pelo padre Guilherme Gonçalves. A audiência discorda: ninguém conhece
o Guilherme Gonçalves a não ser o próprio Evo, o Janeiro da Fonseca e poucos mais.
O padre é também surpreendido pela proposta. Aliás, quem de fora o conhece,
este desgraçado do Guilherme Gonçalves, é pelos maus motivos, pobre homem:
enfrenta um sério problema, vítima de acidente de viação na Beira, há anos, sofrera
grave traumatismo craniano. Tem a testa abaulada e muda rapidamente de humor e
de comportamento. Chegara a virar ao contrário, num repente, um prato cheio de
sopa, num restaurante lisboeta, pouco tempo antes. Padre numa terreola ao norte da
capital portuguesa, nunca escusa um engate às moças novas quando passa
por Lisboa. Acho que chega, é o bastante para o caracterizar.
Bem, a reunião de Alcântara não produz efeitos imediatos. Dhlakama recebe
os relatórios sobre a mesma, e como uma cobra grande leva meses a digeri-los. Os
escrevinhadores de serviços e que agora reportam a ‘sua excelência’ são o Evo
Fernandes, o Janeiro da Fonseca e o Gilberto Magid. Sei que o Luís Serapião também
envia qualquer coisa mas muito equilibrada, mas está com receio de também ir ‘borda
fora’. Ah! E o Mateus Lopes. Envia algo, diametralmente oposto.
Resta acrescentar: não é preciso este circo todo. Só que esta maralha não sabe.
Ainda há poucos dias perguntara eu ao ‘enviado’: “Não queres mesmo ficar a tomar
conta disto pá? Eu ajudo a fazer um relatório para o ‘mais velho’, ele compreenderá,
tenho agora outros planos a prazo… podes ser o tipo ideal para isto, não se liga ao
que dizem estes gajos daqui…”
O Mateus Lopes só me pede calma e que fique pois o ‘velho’ precisa de mim
aqui. Pois!
Quanto à delegação da RENAMO vinda de Washington, e que ficara alojada
no Hotel Americano, sai de Lisboa decepcionada, diz ter perdido tempo com a
viagem. A confusão está instalada, não há unanimidade nesta ‘oposição’, alguns nem
sabiam ao que vinham, como me confessa nos dias imediatos o professor Luís
Serapião. O ‘Piqui-Póque Fernandes’, corruptela de pick pocket (carteirista) como é
agora alcunhado o Evo por alguns moçambicanos em Lisboa, não pode ainda cantar
vitória.

No ‘Corredor da Beira’ a ligação entre o porto da Beira e o Zimbábue, junto à


vila de Gondola, mais sete estrangeiros são raptados. Pelo ‘Corredor’ passam a
estrada, caminhos de ferro e o pipeline ligando a segunda cidade do país à fronteira.
Agora, este novo grupo de raptados inclui uma cidadã norte-americana. E como
todos os outros actos de tomada de reféns, dá azo a mais uma movimentação
diplomática. Em Lisboa contacto outra vez o CICR, a Cruz Vermelha Internacional, e
a embaixada americana. Curiosamente, há um novo protagonista que surge no eclodir
e desenrolar desta história, procurando libertar a refém americana: um médico
português, dentista, amigo de Evo Fernandes e de Moreno, envolve-se caso,
procurando retirar benefícios pessoais. É o doutor Miguel Serôdio, com consultório
em Cascais. Quanta mais gente como esta existirá, há anos, a orbitar a RENAMO,
esta delegação ou outras, e que os representantes oficiais do movimento
desconhecerão até?
O médico pretende firmar-se como intermediário junto de alguns sectores
militares americanos, incluindo o general John K. Singlaub. Este oficial na reserva

149
passa por Lisboa semanas mais tarde. Eu estou fora e destaco o Ataíde para contactá-
lo. Convém realçar: este general John Singlaub é um dos apoiantes ferrenhos de uma
WACL, a Liga Mundial Anti-Comunista, e possui um projecto já delineado para o
eventual resgate dos cativos, espera somente uma autorização da RENAMO.
Singlaub conta levar um pequeno navio até junto das costas moçambicanas e,
com o auxílio de um helicóptero, voar para a Gorongosa e regressar com os reféns.
Afonso Dhlakama dá uma rotunda nega tanto aos planos do CICR (Cruz
Vermelha) como ao do general Singlaub. A preferência é agora concedida a um
esquema desenvolvido, e executado só em Agosto, por Tom Schaaf e pelo mercenário
Bob McKenna, na fronteira com o Maláwi. Esta gente encontra-se mesmo em franca
ascensão!

Uma organização religiosa anti-comunista, com instalações e gentes também


em Portugal, é uma denominada Acção Cristã para a Igreja do Silêncio. A Igreja do
Silêncio procura-me em meados de Maio. O seu representante em Portugal é o Pastor
José Augusto Trancoso. E pelos vistos esta gente tem fundos para investir, em ajuda
ou lá o que quer que seja. Bom, já a malta do Schaaf utiliza as mesmas técnicas, não é
verdade? Artimanhas de ofertas para se aproximar, estar presente no terreno, colher
informações. Afinal não é o mesmo que o Vaticano e outros fazem, implementando
toda uma rede de colecta de informação? Talvez, mesmo, a maior máquina de
intelligentsia do planeta, tudo isto à pala da ‘conversão das almas’.
O homem da Igreja do Silêncio fornece diversa literatura para distribuir em
Moçambique em áreas controladas pela RENAMO, incluindo oito caixotes com
Bíblias. Oferece ainda ao movimento diversos bens avaliados em dois mil dólares.
Regularmente esta Igreja do Silêncio passa a fazer chegar as suas encomendas
directamente à caixa postal de Bento Maria, em Phalaborwa.

A partir de Maio principia a funcionar uma ‘sede’ da delegação num


apartamento que alugo em Casal da Mira, Pontinha, arredores de Lisboa. É aí que se
efectuam agora discretamente as reuniões de sábado à tarde do grupo ‘anti-Cascais’.
Além de João Ataíde, participam um Inácio Chondzi, moçambicano negro e
baixotinho, ex-guerrilheiro da FRELIMO durante a luta armada contra Portugal, com
formação de artilharia na China, Argélia e Tanzania. O Chondzi é assim a modos que
atarracado mas musculoso. Vivia até aqui de expedientes. Exibe a sua perícia com
alguns gestos de artes marceais, culminando com uma série de saltos mortais que
fazem estremecer o apartamento. Seja! É nomeado como meu ‘segurança’ pessoal. Há
ainda um português ex-fuzileiro especial na guerra colonial e o Domingos Chale João,
este, é outro moçambicano, antigo empresário e corredor de automóveis, mais um
‘assimilado’, pois, na Lourenço Marques do antigamente.
Pessoal declaradamente ligado à extrema-direita portuguesa e conotados com
o MIRN e grupelhos afins, tratara eu já de os afastar há muito, embora no passado
tivessem auxiliado na distribuição de propaganda. Aos poucos, está-se a
‘moçambicanizar’ a delegação. Um esforço que, porém, muito em breve, está votado a
um rotundo fracasso: ireia constatar como tudo isto é já em vão, mesmo fútil. Os sul-
africanos não toleram facilmente quaisquer desvios.
Uma outra namorada surge entretanto, a Stella. Há muito que a Ana Paula das
festas da ANERM ficara para trás. Conheço esta volumosa mas bem torneada Stella
no restaurante tal moçambicano perto da Mouraria, O Cantinho do Aziz. Aos fins de

150
semana alguns dos encontros no Casal da Mira passam a ser menos políticos. A
Stella… nem sei mesmo por onde começar quando a tenho perante mim, a enlear-se
dengosa… é uma moça mista clarinha mas com todo este porte vultuoso, as curvas,
oh! My God!... tão bem cheias e a transparecer volúpias mil... O marido, português, pois
afinal é casada, esta atrevida!, fica ainda na Beira mais uns tempos, mas eles
encontram-se à beira do divórcio. E cá estamos nós a tratar das carências várias…
Resumindo, ela viera a Lisboa de férias e ainda volta a terras moçambicanas. Convida-
me a procurá-la, lá… e ‘lá’ é o mercado do Esturro ou o do Maquinino, se por acaso
eu me aventurar um dia até à cidade da Beira.
O Domingos Chale João também traz uma moça amiga, namorada, aqui para
o Casal da Mira, bem como um ou outro dos quadros, pois a casa é enorme, tem uma
série de divisões. E foi antigo seminarista, este Chale João, antes dessa coisa das
corridas de carros no autódromo de LM. Agora, já com uns copos bem bebidos, e o
franguito da ordem à cafreal degustado (nós mesmo o assamos no terraço das
traseiras, não é preciso acendalhas pois ele usa diluente e essa merda deve ter
cancerígenos á fartazana, aquilo faz uma explosão surda quando se lhe chega o
fósforo além de deixar um sabor característico e pouco cafreal na carne) bom, frango
papado e é chegada a hora das operações com as ‘madames’. Ah este Chale! A prática
seminarista vem sempre ao de cima: claro que é preciso uma benção para estas
‘operações especiais’… Conforme me retiro com a Stella para o quarto, lá está ele, a
fingir um ar e postura muito convictos: ‘in nome patre filius et spiritus santus…’ fazendo o
respctivo gesto cruzado. Obrigado, já chega, até já!

No campo do sério, algumas ‘células’ do movimento surgem entretanto. É o


caso da célula de Camarate, no limiar de Lisboa. O núcleo inicial foi formado por
gente ex-FUMO, por um enfermeiro e sindicalista do PSD, por antigos funcionários
dos Caminhos de Ferro de Moçambique integra alguns elementos femininos. Uma
das senhoras contacta-nos ao tentar saber do paradeiro de um irmão, raptado
recentemente em Moçambique. Acaba por integrar a causa, já era simpatizante, pelo
que conta. Ou será um meio mais para acelerar a libertação do familiar.
É que os raptos, por mais que empatem meios militares e comportem toda
uma carga negativa, por outro lado expôem a insegurança grassante no país e
continuam a ser, assim, a ordem do dia nas zonas de guerra. Os massacres igualmente,
toda uma chaga que a guerrilha não consegue justificar, nem livrar-se desta fama
horrenda e tenebrosa de perpetrar chacina atrás de chacina: Homoíne, agora. No
coração da província meridional de Inhambane.
A notícia deste medonho massacre surge a 20 de Maio. Dois dias antes, mais
de quatrocentas pessoas haviam sido chacinadas naquela enorme povoação no
interior da província de Inhambane. A imagem do movimento deteriora-se ainda
mais. Pego no telefone e interrogo o que se passa, em mensagem à Gorongosa,
enviada através de Phalaborwa. Dhlakama não responde conclusivamente. Dá uma
versão sem consistência e manda que se faça ‘o habitual’ para estes casos: negar a
responsabilidade. É o carimbo da ordem para todas as situações similares.
Luís Serapião, em Washington, surge com uma versão diferente da de
Dhlakama e ninguém sabe como responder acertadamente. Penso já muito a sério
que eu não devo mesmo nada estar ligado a tudo isto que está a suceder. É difícil,
logicamente, pactuar com tal situação, e manter qualquer imagem respeitável, após tão
trágicos episódios.

151
Mais ainda. E isto diz respeito a gente que eu conheço tão bem e com quem
convivi na BCR de Potgietersrust, na África do Sul. O ‘Chico’ Mascarenhas revela
mais um relato que acaba de receber, sobre atrocidades cometidas pelo movimento
em Inhaminga: um dos comandantes da RENAMO terá aberto o tórax a um
elemento da FRELIMO capturado e, estando este ainda vivo, ferra-lhe uma dentada
em pleno coração. Um tratamento especial para inimigos especiais. O ódio impera.
Não é a primeira vez que tal ouço, e os dedos apontam mesmo para gente altamente
colocada na estrutura militar do movimento, esses que conheço: o ‘general’ Mário e o
‘general’ Vareia.

Meados de Junho. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos cinco países


africanos de expressão oficial portuguesa reúnem-se em Lisboa. Um dos responsáveis
da AEMO (Associação dos Espoliados de Moçambique) simpatizante e apoiante da
RENAMO, aborda-me no ‘O Século’. Conhece o primeiro ministro moçambicano
Pascoal Mocúmbi há largos anos. Acaba de se avistar com ele e com Alberto
Massavanhane, outro quadro da FRELIMO, no Hotel Ritz. Também eles querem
sentir o pulso à delegação da RENAMO e averiguarem da disponibilidade do
movimento, e do Afonso Dhlakama, em acabar com a guerra.
Na tarde do dia 15 os cinco ministros dão uma conferência de imprensa em
São Bento, a residência oficial do primeiro ministro português. Tento participar na
conferência entrando com o meu cartão de jornalista de ‘O Século’, e já estou a ver a
barracada que isto vai dar: certinho como Ómega! Gera-se um burburinho imediato
entre os diplomatas nos jardins do palácio e a segurança portuguesa acaba por proibir
a minha presença.
Com esta provocação acabo de dar o pretexto que falta para a vingança de
Evo Fernandes: ao saber do ocorrido o ex-secretário-geral telefona agora ao Jaime
Nogueira Pinto, director de ‘O Século’ e convence-o a suspender-me de imediato e,
mais tarde, a demitir-me.
É alegada a incompatibilidade entre as funções no jornal e a participação
política, exemplificando com o que sucedeu em São Bento. Pelas mãos de Fernandes
e Nogueira Pinto entrara no ‘O Século’; pelas mesmas mãos sou agora posto fora.
Tenta-se por todos os meios ‘disciplinar’ e punir l’enfant terrible da delegação.

Por esta altura o delegado em Washington, Luís Serapião, efectua uma nova
visita a Lisboa, acompanhado desta feita do tal português parceiro de Tom Schaaf no
escritório do MIO, o José Antas, piloto de helicópteros e que se diz chegado ao
partido PSD. Encontro-me com o Antas, no Plaza Hotel, um hotel que se tornara
quase numa placa giratória do movimento para encontros desta índole, e onde me
entrega alguma da propaganda produzida pela delegação em Washington.
Mas não só, o Antas alonga-se sobre as démarches em curso nos meios políticos
e económicos americanos. Mais tarde, acompanha o Serapião em contactos diversos
com jornalistas em Portugal, feitos até à revelia da delegação de Lisboa. Que
propósito tem isto tudo, um delegado num país andar em campamha no outro? Bom,
lá voltamos ao ‘saco de gatos’, e quem quiser que se arranhe… pela minha parte, nem
chamo o delegado nos EUA à atenção. Cada dia que passa tudo isto tende a ser
menos a minha guerra.
Serapião surge contudo como potencial aliado nesta confrontação que se
avoluma com a facção do Fernandes. Sei que ele mantém ainda um encontro com os

152
homens da AEMO, os ‘espoliados’, mas vê ser-lhe negada uma reunião que pede a
Pascoal Mocúmbi.

Em Moçambique, prolonga-se o cativeiro, pela RENAMO, de um outro


português, capturado no Monapo, em Nampula. Isto, os reféns, é sempre um rosário
de lamentações. Na capital portuguesa recebo a carta de um ex-raptado no Luabo, um
dos que em Dezembro fora libertado e entregue em Milange à Cruz Vermelha:
“Entraram em minha casa, levaram tudo o que quiseram e estragaram. Fomos
até à base Praia e daí transferiram-me para a de Morrumbala. O comandante do
grupo sempre a dizer que tudo me seria devolvido. Nada me entregaram. Guardaram
tudo para eles. Não achei correcto. Na base de Morrumbala falei com o senhor
comandante Alface, mas também me despachou (…) em suma, levaram-me em
dinheiro português trinta mil escudos, em dinheiro francês duzentos francos e
dinheiro espanhol, duas mil pesetas. Penso que foi o comandante Inhavaco que ficou
com ele. Tiraram ainda, isto o comandante Henriques, uma pasta de protocolo, óculos
graduados, rádio ‘Xirico’, mala, relógio, porta-chaves e cassetes. Outro comandante, o
comandante Batata, ficou com um rádio ‘Xirico’ e uma Bíblia sagrada”.
Isto é apenas a queixa de um dos raptados. Dezenas e dezenas de outros
casos, idênticos ou piores, terão com certeza ocorrido, sem chegarem directamente ao
meu conhecimento.
E mesmo aqui nesta tranquilidade europeia, ao ir tomando conhecimento das
mágoas passadas, não nos podemos deixar dissociar da realidade no terreno: a guerra
intensifica-se no final do mês ao celebrar-se o décimo segundo aniversário da
independência. A cidade da Beira é de novo privada de energia eléctrica com a
sabotagem da linha proveniente da barragem do Revué. Grupos da RENAMO
efectuam esporádicas incursões a vários locais do leste do Zimbabwe, retaliando
contra a cooperação militar Harare-Maputo.

A VISITA A LISBOA DE ‘CHARLIE’ VAN NIEKERK: A INSTALAÇÃO DE


APARELHAGEM SOFISTICADA DE CRIPTOGRAFIA
Dia 24 de Junho recebo um telefonema de Cascais. ‘Afinal este gajo ainda me
telefona?’ Mas embora seja de casa do Evo logo passam o telefone a outro: o ‘Charlie’
Van Niekerk. Encontra-se de passagem por Portugal e visitava o Fernandes. Está com
uma voz séria. ‘Amanhã de manhã cedo, venha ter comigo ao Hotel Fénix, sabe onde
fica?’.
O Fénix situa-se no Marquês de Pombal, mesmo adjacente aos escritórios das
linhas aéreas sul-africanas. Assim, neste 25 de Junho que curiosamente é a data de
mais um aniversário de Moçambique, tomamos o ‘mata-bicho’ juntos.
Vamos ao objectivo fulcral da conversa e do encontro: ‘Já viu, Paulo… o
actual sistema de comunicações não é seguro. Vamos arranjar isto de outra maneira. A
sua casa é segura?’
Traz com ele dois técnicos, também do exército sul-africano, hospedados
igualmente no Fénix. São eles que vêm connosco no táxi a Alcântara instalar a tal
aparelhagem que impedirá uma interferência futura nas mensagens, qualquer
intercepção.
Os dois técnicos militares transportam as caixas, pois são duas, com o par de
aparelhos: um telefax, telecopiador marca ‘Nashua-Ricoh’, e um codificador militar
GretaCoder, fabricado na Suíça. Parece um gravador de vídeo mas mais fino, o

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codificador, com uma série de luzinhas no painel frontal, ligações à rede telefónica e
ao fax nas traseiras, e o local para o dispositivo mais importante, embutido também á
frente: o conjunto com o chip de múltiplas chaves, que é o que na realidade irá gerar o
código, o cérebro criptográfico de toda a máquina.
O Van Niekerk informa-me que existe equipamento semelhante em
Phalaborwa e que acaba de instalar outro ‘fax’ e codificador na casa do Janeiro da
Fonseca, na Alemanha Federal.
Os técnicos fazem a ligação à rede telefónica e efectua-se a experiência com
mensagens de e para Phalaborwa. Qualquer documento, mapa ou foto, inserido numa
das máquinas, pode ser codificado e enviado para qualquer das outras duas, onde será
descodificado e impresso. Rápido e seguro, acima de tudo. Em Portugal, pelo menos
três entidades tinham capacidade para interceptar comunicações telefónicas regulares:
a DINFO, a Polícia Judiciária e o Partido Comunista Português, com ajuda de
equipamento soviético.
A visita está praticamente no fim. O brigadeiro, o Charlie (não me esqueço e
já o felicitei até pela promoção) fala-me ainda de um projecto embrionário para
reactivar as emissões da ‘Voz da RENAMO’. Pensa-se agora, afirma ele, em colocar
uma pequena emissora a uns trinta ou quarenta quilómetros de cada capital
provincial, instalações móveis. Há, para resolver, a questão da formação dos quadros,
da segurança, da logística e, acima de tudo, da coordenação, de forma a que não se
contrariem na informação.

Em fins de Julho, Mateus Lopes está de novo no Maláwi, de passagem para


Moçambique. O João Ataíde, que viaja sob o nome de código de Manuel dos Santos,
deverá juntar-se-lhe nos próximos dias. Está previsto encontrarem-se com o
Dhlakama e resolverem o tal assunto do ‘material branco’, o marfim.
Mateus Lopes tem ainda por missão, como ‘enviado especial’ do presidente,
receber em Milange uma delegação americana, composta por políticos republicanos
conselheiros dos candidatos à nomeação para as eleições presidenciais dos EUA em
1988.
A representação do Partido Republicano é encabeçada por Stefan Halper e
integra um perito de questões africanas, Grover Norquist. Manteve conversações em
Maputo com o presidente Joaquim Chissano e com membros do gabinete
governamental e do partido FRELIMO. Seguiu depois para a África do Sul e
Zimbabwe. Uma vez na África do Sul aguardou por uma autorização de Dhlakama
para voar até à Gorongosa, mas tal pedido foi recusado, alegando-se razões de
segurança.
E se em Maputo já a delegação norte-americana se havia oferecido como
possível intermediára para a Paz, em Lisboa o empresário Bullosa emite entretanto as
suas próprias ‘propostas para a pacificação do país’, em carta que acaba de enviar ao
presidente Chissano.
E com tanta movimentação, este rol não ficará completo se não relatarmos
agora as peripécias que acabam de acontecer ao ‘enviado especial’. Aqui, ainda ele
está útil operacionalmente, para quem trabalha, e o episódio poderá ser visto mais
como um reforçar da ‘lenda’, a história toda que lhe dá cobertura:
No dia 1 de Agosto, Mateus Lopes é preso no Maláwi e interrogado pelas
autoridades. Fica detido até ao dia 4. Dhlakama tem agora que, muito à pressa, decidir
o que fazer. Isto é uma bronca, e a segurança parece furada por todos os lados: há

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que enviar a Milange outro representante, para se avistar com os americanos. Não
foram à Gorongosa por o movimento não garantir a segurança aí, nem para a entrada
e para a extracção. E quando envia alguém ao encontro do grupo, esse mesmo
alguém também enfrenta problemas de segurança.
A visita de ‘Manuel dos Santos’ (João da Silva Ataíde) fica de momento
adiada. José Moreno está também no Maláwi e diz-se em contacto com certos sul-
africanos, que poderão tentar uma operação de resgate para libertar Lopes. Eu porém
não acredito muito nessas boas intenções de sul-africanos quanto ao ‘enviado
especial’, e vejo-os mais capazes de lhe ‘apertar o papo’ que outra libertação qualquer.
E o Moreno… bem, o Moreno quase paga com a vida tantas demarches: é
envenenado num hotel de Lilongué, cai redondo no chão. Levam-no de urgência ao
hospital e o homem das pedras preciosas e semi-preciosas lá recupera.
E agora, quem vai tratar do pobre ‘enviado’, enviado para uma masmorra do
regime de Blantyre?
Luís Serapião, em Washington, tem bons contactos com o embaixador
malawiano nos EUA, desde Julho, e é ele, aparentemente, quem consegue a
libertação, conforme notifica uma mensagem para Dhlakama, a 4 de Agosto:
‘1. Mateus Lopes foi preso no Maláwi pelas autoridades policiais daquele país.
Porém, uma vez que fui informado pelo presidente, falei com aquelas autoridades e
Mateus Lopes foi liberto. 2. Expliquei a essas autoridades a missão que Mateus tinha,
para se encontrar com a delegação americana na qualidade de enviado especial de sua
excelência, o presidente. 3. As mesmas autoridades vão levar Mateus à fronteira de
Milange, onde espera encontrar-se com a delegação americana entre o meio-dia e a
uma hora do dia 5. (...) Gilberto Fernandes (Magid) encontrou-se também com a
delegação americana. Disse à delegação que tinha sido instruído pelo Artur Janeiro da
Fonseca, para que esta delegação fosse encontrar-se com o Jimo Phiri. Não sei como
é que tanto o Artur Janeiro da Fonseca como o Gilberto Fernandes foram
informados da presença da delegação americana, bem como de toda a operação. (...)
Quando a delegação americana ainda estava em Harare, Zimbabwe, um homem de
nome Ricardo de Sousa foi ao hotel deles, apresentando-se como homem da
RENAMO, e prometeu encontrar-se com a mesma delegação em Blantyre. Uma vez
em Blantyre, o Ricardo de Sousa, Gilberto Fernandes e Jimo, foram juntos encontrar-
se com a delegação. Fizemos todos os possíveis para salvaguardar a operação da
delegação americana como também a reputação da RENAMO .’
No Maláwi, pelo que se vê, continua bem acesa a disputa entre as diversas
redes. E como já se viu, qualquer entrada de jornalistas, pelo menos a partir de
Lisboa, tem que contar com um certo apoio em território malawiano. Ora, também
em Agosto organizo a entrada em Moçambique de outro jornalista francês, Eric
Gerard, repórter do jornal de direita ‘Le Fígaro’.
Após transposto o Chire, o ritual da praxe para estas entradas, embrenha-se
nas densas matas acompanhado pelo seu colega Henri de Maistre e, escoltado por um
pelotão do movimento, tem a oportunidade de assistir àquilo que descreve como a
‘sabotagem e gigantesco incêndio’ de uma fábrica, em Socone, na Zambézia. Já de
regresso a Paris, Gerard fará alguns contactos em nome da RENAMO, entregando
mensagens de ‘boa vontade’ a Jacques Focard, encarregado dos assuntos africanos do
primeiro ministro francês Jacques Chirac, e a Fréderic Mitterrand, o então conselheiro
do presidente François Mitterrand para questões de África.

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O jornalista do ‘Le Fígaro’ apresenta ainda a RENAMO junto da organização
humanitária ‘Médicos Sem Fronteiras’ que terá dado, segundo Eric Gerard, uma
‘resposta positiva’ aos pedidos de auxílio formulados por Dhlakama.

A GOLPADA NA DELEGAÇÃO DE LISBOA


Posso considerar que por esta altura, Agosto de 1987, existe já um número
razoável de quadros na organização que poderá iniciar tentativas de tornear o
‘monopólio’ sul-africano sobre a RENAMO. Não é todo um ‘cluster’ de ‘diamantes
negros’ mas há por aí ‘pedras’ de diversa qualidade e quilate.
Em Lisboa, conto com Mateus Lopes e João Ataíde, além de outros adeptos
moçambicanos. No Quénia, há o Francisco Nota Moisés. Corrijo: o secretário da
Informação transfere-se este mês de Nairobi para a cidade de Victoria, no Canadá,
continuando a ser subsidiado pelo milionário americano James Blanchard III. Nos
Estados Unidos, é o Luís Serapião e, bom… seguro pela rédea do Tom Schaaf.
E quanto à delegação portuguesa? Conseguimos mais apoio financeiro
regular, de alguns ex-proprietários coloniais, como é o caso do antigo dono das
salinas de Nacala. Contactos são também efectuados com o empresário Manuel
Lagos, da extinta Companhia do Algodão de Moçambique, mas este milionário está
reticente. Durante anos subsidiou o tal comandante ‘V. Litos’, convencido de que
andava a apoiar a RENAMO. Tão depressa não creio que se meta noutra.

17 de Agosto. O Mateus Lopes continua em Moçambique. Ataíde está em


‘trabalho’ na capital francesa. E o Artur Janeiro da Fonseca aterra em Lisboa.
Convoca-me para uma reunião urgente no restaurante Águia de Ouro, próximo do
Plaza Hotel e das agências noticiosas estrangeiras que se situam por ali, na zona da
Praça da Alegria. ‘Isto cheira-me a ganda movimentação!’
Presentes estão também o Manuel Frank, o Ascêncio de Freitas e o ‘Chico’
Mascarenhas., além, obviamento do Artur Janeiro da Fonseca e de uma garrafa de
‘Gatão’. Passemos à ordem do dia. O ponto primeiro e único é: ‘a reorganização
radical da delegação’.
A mensagem é directa:
Sou imediatamente substituído por Frank, como delegado, voltando para o
cargo de director da revista e continuando membro da delegação.
Segundo, há que organizar um encontro com os jornalistas para o dia
seguinte. Ascêncio de Freitas afirma que se recusa a funcionar na delegação tal como
estava anteriormente. Acusam-me de autoritarismo.
Terceiro, o padre Guilherme Gonçalves é nomeado secretário da delegação
para a Cultura, sorrio cinicamente, Freitas é colocado como secretário da delegação
para as Finanças, e Boaventura Macondzo, colega de Frank, em Direito, ocupa
doravante o posto de secretário da delegação para a Informação.
Na noite deste mesmo dia e com o Artur Janeiro da Fonseca já a meio de mais
uma carraspana de todo o tamanho, procedo-lhe à entrega da aparelhagem de
comunicações, que a confia a Ascêncio de Freitas. Quanto ao próprio delegado, o
Frank não possui sequer telefone em casa, por isso, na prática, não é ele quem
receberá as comunicações.
‘Já não era sem tempo! Lá mandaram parar a porra do comboio para um gajo descer!’

156
Após posteriores visitas do agora brigadeiro Van Niekerk a Lisboa, a situação
não é alterada. Também os sul-africanos reconfirmam Ascêncio de Freitas como
responsável pelo fax-codificador e mensagens. Pela primeira vez um delegado vê-se
ultrapassado e sujeito a receber mensagens em ‘segunda mão’, não tendo sequer a
certeza de que as suas são enviadas tal como pretende.
Volta-se nova página no calendário. Em Setembro as intrigas recomeçam. ‘Eu
tão calminho e estes cabrõezecos não me largam da mão…’. A nova delegação
pretende colocar-me como bode expiatório dos primeiros falhanços que averba.
Os moçambicanos em Lisboa afectos ao movimento mostram-se relutantes
em aceitar a mudança. O espectro de Fernandes espreita atrás de Frank. Todos
esperavam que fosse Ataíde, nos seus momentos lúcidos e sóbrios, mais cedo ou mais
tarde, a ocupar o posto de delegado. A tal mudança que eu igualmente defendera,
fazendo em devido tempo saber atempadamente que preferia o ex-embaixador nas
minhas funções.
A nomeação de Manuel Frank é assim encarada como uma nova investida, e
vitória, da facção Evo Fernandes, e a consolidação consequente da linha pró-África
do Sul. Mantendo-me ainda no movimento, agrupo em redor elementos como o ex-
embaixador João da Silva Ataíde, Chanjudja Chivaca João, antigo quadro da segurança
moçambicana, SNASP, o Inácio Chondzi, como meu ‘guarda costas’, e o tal corredor
de automóveis na Lourenço Marques dos anos ‘60, Domingos Chale João, que é
agora funcionário no ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa. Quanto ao
Chivaca João, bem, além de ‘segurança’, irá ser um precioso elemento para ir
debitando informações sobre o ‘grupo de Cascais’, o Evo e companhia.
O grupo reúne-se aos sábados na residência em Casal da Mira, e pensamos
constituir a curto prazo um centro de estudo e de informação, o CIMO, Centro de
Informação de Moçambique, que embora oficialmente independente da delegação,
mantenha alguns laços com o movimento.

Temos uma leve ‘comichão’ por vezes, alguém provocador, que é um tipo de
nome Latino, jovem moçambicano, estudante, diz ele, ou estudante trabalhador.
Desde os tempos em que éramos RENAMO delegação, oficialmente. Aterra quase
sempre no Cantinho do Aziz e não tarda a provocação barata. Tanto a malta da
FRELIMO que por lá para como a nós. E as coisas prosseguem mesmo agora.
Contam que este Latino já estudou em Roma, é um gajo miúdo em estatura mas de
língua viperina, e que funcionará para os ‘serviços’ italianos.
Estamos nós a uma mesa, e o ‘nós’ refere-se a mim, ao Ataíde e aos dois
‘seguranças’ oficiosos do CIMO, quando abanca o Latino com mais um chorrilho de
porcarias verbais. Meto a mão no bolso do casaco e levo-a abaixo da mesa. Ele está
sentado em frente, onde se encaixou sem autorização. ‘Olha, ainda bem que apareces
hoje pá! Já estamos fartos de te ver por aí e arranjámos-te colocação! Agora, daqui,
vais connosco directamente para uma pedreira ali junto ao Casal de São Braz,
Amadora, e daí para as fundações de uma obra… é de um gajo amigo, estamos lá a
tratar de uns pilares, faltam ainda uns litros de argamassa…’
– Porreiro! Vocês até que enfim que fazem alguma coisa de útil, vocês são uns
merdas, só fazem merda, a ponta de um corno. Então vou trabalhar… part-time não
é?
– Bom…, eu já com um enorme sorriso. Não é bem essa a ideia que temos:
vais para as fundações para ajudares a encher aquilo, a fazer volume, e levas é com o

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resto da argamassa à volta. Latino, bem vindo à imortalidade pá! A pedreira é só de
passagem, é para experimentar isto pá, olha por baixo da mesa.
Tem a minha ‘Mauser’ de olho pequenino negro 6.35 a olhar para ele.
– Mano, não vais fazer isso…
– Qual mano qual cááárááálho pá… claro que não, qu’é só a brincar pá, mas
agora levas é já com esta… espera aí… Eu ia a pegar numa das cadeiras mas o
Chondzi adiantou-se: Levas c’esta cadeira pelos cornos abaixo se não te pões já a
milhas… ohmeugandafilhodaputa!
Alguém viu o gajo? Já se sumiu porta fora.

A minha amiga Stella regressa a Moçambique. Para a residência de Casal da


Mira convido a Lurdes, uma jovem portuguesa que trabalha no Palácio Foz, um
género de ‘Ministério da Informação’ português. Ela é colega da ex-companheira do
anterior delegado, o Jorge Correia. Bem, em poucas palavras, acabamos juntos, e às
tantas sou eu a fixar-me por algum tempo na casa dela em Miratejo, do outro lado do
rio.
A delegação em Lisboa da RENAMO trata entretanto de constituir uma
associação que lhe sirva de capa ‘cultural e recreativa’ para as actividades que
desenvolve. É desta forma que surge uma tal ASSOPOMO, Associação Portugal-
Moçambique. Manuel Frank é apresentado por Evo Fernandes à AEMO e ao
engenheiro dessa ‘Ordem dos Cavaleiros Templários’, o António Cunha Coutinho, e
pelo menos da Associação dos Espoliados de Moçambique passa a receber apoio
financeiro. O engenheiro Coutinho lá conegue ceder agora uma sala para o trabalho
da delegação.

Nos finais deste mês de Setembro edito o primeiro número de um boletim de


informação sobre África, algo completamente autónomo em relação à RENAMO.
Trata-se do ‘Moçambique Hoje’. No CIMO sustentamos os custos de produção,
relativamente baixos. A ‘newsletter’ chega nas semanas seguintes à Gorongosa.
Dhlakama não gosta, está furibundo. Os dois ‘FFs’, Frank e Freitas, atiram com os
insucessos na Imprensa para cima do ex-delegado, de mim, obviamente.
Prosseguem com calúnias e queixas de que não me interesso em auxiliar a
nova delegação junto da informação. Ora, também não são essas, ao momento, as
minhas funções.
Cansado de insinuações e, aproveitando, por fim, a oportunidade de ‘largar a
merda do comboio ‘, envio a 27 de Outubro para a Gorongosa e para os órgãos de
informação, não um pedido, mas uma ‘declaração de demissão’. E seja o que tiver que
ser!
Desejo ‘boa sorte’ a Dhlakama, mas friso bem que não mais volte a contar
comigo. A 27 e 28 de Outubro, a imprensa propaga a notícia. Creio que ‘sua
excelência’ terá sido apanhado de surpresa pelos noticiários.
Nos dias seguintes o chefe da RENAMO envia-me uma mensagem através do
Ascêncio de Freitas e do Manuel Frank, que a faz chegar em correio registado. É no
fundo uma ameaça implícita: que pare com a nova revista; que me mantenha calado
sobre assuntos do movimento.
É óbvio que reajo mal, como reajo sempre a tal tipo de ‘conselhos ‘.

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Inácio Chondzi passa a funcionar na nova delegação como ‘dinamizador’, ou
‘dinamitador’, e informa-me como vão andando os diversos sectores. Sei que mantém
um contacto regular com o Fernando Trigo, do ‘África Confidencial’, jornalista
chegado aos círculos do poder, em Lisboa, nomeadamente à Presidência da República
e à DINFO. Através do Trigo é apresentado ao Dr. Bento Vieira, do Serviço de
Estrangeiros, que se mostra simpatizante da RENAMO e que lhe promete emprego.
Convém ainda referir que o Chondzi mantém ainda contactos com a Secção
Política da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, precisamente a secção que faz
o acompanhamento dos assuntos relativos a Moçambique. Por intermédio de
Chondzi eu próprio estabeleceria mais tarde algumas ‘pontes’ informais com a
referida secção. Ora, entroncamos por aqui na questão, no cerne de toda esta questão
de quem controla quem, e com quem se devem manter pontes e entendimentos: ora,
já há muito, chegando-me ao João da Silva Ataíde, ao Mateus Lopes, de certa forma
ao Serapião e até ao Nota, eu privilegiava um diversificar de fontes para o movimento,
um multiplicar de ligações. Incluindo Estados Unidos e França, para além desse
controlo férreo Pretória-Bona. Claro que, por agora, esta opção, a da diversificação, é
uma opção derrotada.

‘ACIDENTE’ E MORTE NO MALÁWI


A primeira notícia a ser divulgada pelo CIMO surge como um choque neste
30 de Novembro: Mateus Lopes deixara Lisboa há algumas semanas, após se
restabelecer de um desastre de motorizada que tivera na última viagem ao interior de
Moçambique e Partira de novo para a Gorongosa, em meados de Outubro. Ataíde,
finalmente, sob o nome de ‘Manuel dos Santos’, junta-se-lhe já no Maláwi em
princípios de Novembro.
Atravessados o Rio Chire e as terras zambezianas, encontram-se com Afonso
Dhlakama já bem a sul do Zambeze. Ontem, dia 29 de Novembro, num telefonema
que faço para a residência do José Caetano Moreno, em Cascais, este confirma-me
que os dois elementos deverão abandonar o Maláwi no dia seguinte (hoje) partindo
do aeroporto de Lilongué para a Europa, com escala no Quénia.
No dia 30 pelas dezoito horas, o telefone sobressalta-me da leitura. Do lado
de lá do fio é o José Moreno, presumo. Os sons são estranhos, a voz não lhe sai. Eu
quase que adivinhava…
‘Mateus Lopes’, o José Alfredo da Costa… ‘é meu amigo, e protegido, ele…
há já tantos anos, balbucia, desde miúdo que o conheço…’
– Então? O que se passa?!
– O Mateus e Ataíde morreram esta manhã, os dois…
– Não pode ser…
– Garanto-lhe, Paulo, está confirmado… às onze e quarenta e cinco, vítimas
de um acidente de viação, perto de Balakas. Iam já de Blantyre para o aeroporto de
Lilongué.
E ele não contém o pranto, agora. Só mais tarde voltaremos a falar. Nas horas
seguintes estou em conferência telefónica com pessoal em Lisboa, do CIMO, e de
outras delegações.
Quem vê as fotos dos destroços, tenho-as dias mais tarde nas mãos, quem
sabe dos antecedentes, das ameaças do Evo e do Magid, e quem conhece toda a
história, dá-lhe porém outro nome: assassínio. Há efectivamente a carcaça de um
Peugeot 504 toda calcinada, amolgada, mais um camião tanque de transporte de

159
combustível igualmente incendiado. O Moreno conta o que lhe disseram: nem um
quilos de restos humanos ficou.
O que resta, desta missão do malogrado par? O que fica por fazer? De
regresso à Europa, Mateus Lopes e João Ataíde deveriam trazer, aparentemente,
novas ordens de Dhlakama quanto ao funcionamento da organização no exterior.
Nunca se soube que delegações tal abrangeria, ou que orientações ou documentos
seriam. Colocado perante o facto consumado da morte dos dois quadros, afirma-se,
Dhlakama terá depois recuado nos planos traçados.
Tudo ficará na mesma. A delegação em Lisboa, pelo menos, não sofre
qualquer abalo ou nova mudança. Os obstáculos, em Portugal, à ‘gerência ‘ sul-
africana sobre o movimento, acabam de ser removidos. A única alteração ao nível da
representação da RENAMO será a substituição menor no sector da Informação: o
Macondzo, extremamente ocupado, pede para ser aliviado do cargo. É substituído
pelo ‘Chico’ Mascarenhas.

No Maláwi, um véu de silêncio parece tombar sobre o acontecimento.


Rumores não confirmados, chegados a Lisboa, falam de uma rajada de metralhadora
que atingira o veículo onde seguiam os dois moçambicanos, e que era conduzido pelo
Mateus Lopes. O ‘acidente’ terá sido montado posteriormente, deixando o Peugeot
504, propriedade de Pegas, o português amigo do Moreno, completamente destruído
‘após chocar com um camião’.
O filho do banqueiro português Bessa Gomes, então de passagem pelo país
de Kamuzu Banda, tenta apurar mais detalhes. Contacta a Direcção de Viação local.
Mais mistério ainda: o acidente, nunca existiu, não está sequer registado. Procura nos
hospitais e nas morgues. Os cadáveres não aparecem. Não há, sequer, registos de
autópsias efectuadas. Por fim, autoridades malawianas ameaçam-no com a expulsão
imediata, caso pretenda continuar as investigações.
A Lisboa chega poucos dias depois o filho do comerciante português Pegas
que procura agora apoiar a tese de um simples acidente: os malawianos estão a
apertar a família, para esquecer o assunto. O Pegas filho confessa-se, todavia, amigo
do adido militar sul-africano em Lilongué, o coronel Du Pree, que funcionara como
coordenador principal nos apoios à RENAMO a partir de território do Maláwi,
especialmente até 1986. Mais ainda: confirma ele ainda a chegada regular ao
aeroporto de Lilongué de aviões militares sul-africanos ‘Hércules’ C-130, com
contentores de equipamento militar, destinados a Du Pree. Parte deste material é
encaminhada para as fronteiras do Maláwi com Moçambique, para ser entregue aos
homens da RENAMO.
E alonga-se ainda, este filho do Pegas. fala nas ‘expedições nocturnas’ que
fizera recentemente, e com este ‘recentemente’ refere-se a Outubro de 1987, à
província moçambicana de Tete, acompanhando precisamente o coronel Du Pree. O
oficial sul-africano encabeça um grupo de comandos do seu país, integrando também
alguns portugueses.
Partiram de Lilongué e a coberto da noite cruzaram a fronteira, penetrando a
pé em território de Moçambique. Du Pree nunca lhe dissera o objectivo de tais
missões. Mas a dada altura do percurso abandona o grupo e avança algumas centenas
de metros, com uns dois ou três dos acompanhantes, em direcção a alguns vultos que
o aguardam. Parece ser o contacto com uma unidade da RENAMO, operando aqui
nesta zona, que identifica como sendo em Ulongué.

160
O último mês de 1987 é marcado por aquilo que se pode com propriedade
apelidar de ‘a revolta zambeziana’ no movimento. Jimo Phiri e Gilberto ‘Magid’
Fernandes, pois é Fernandes, também o seu apelido, demarcam-se da RENAMO e
arrastam outros quadros naturais da Zambézia.
No interior, membros militares simpatizantes com a ideia de separação,
rebelam-se contra elementos afectos à direcção Dhlakama que é maioritariamente
‘ndau’, e liquidam umas quatro dezenas de apoiantes do chefe da RENAMO. Esta
movimentação coincide com a transformação, oficial agora, da CUNIMO em
UNAMO, União Nacional de Moçambique. A nova organização acaba de realizar
uma conferência constituinte em Filadélfia, nos Estados Unidos. E em Lisboa, o
anterior delegado da RENAMO, Jorge Correia, tenta chegar-se ao novo agrupamento,
mas é de imediato afastado.
A UNAMO, conforme comentam vários observadores, poderá não passar de
uma ‘segunda RENAMO’, apoiada também, inicialmente, pelos sul-africanos. Não
surgiu ainda quem negue as ligações Magid-A.M.I. Só que, ao contrário da RENAMO
de Dhlakama, com base essencialmente ‘ndau’, de mãos sujas de sangue pelo peso
dos inúmeros massacres, e controlada ferreamente pelos homens das forças armadas
de Pretória, a UNAMO seria um ‘reservatório de guerra’, mais a norte, de
predominância zambeziana, sim, e que poderá aproveitar e jogar com certos
interesses do Maláwi. Mas, acima de tudo, um grupo, por enquanto, de ‘mãos limpas’.
Outros analistas vêm na UNAMO uma alternativa, uma manobra de diversão, criada
para distrair tentativas de controlo e influência montadas por outros países sobre a
‘mascote’ da R.S.A., a organização de Afonso Dhlakama.
No fim de 1987 amplificam-se em Lisboa os rumores sobre a possibilidade de
relançamento de um outro grupo, a COREMO, a Convergência Revolucionária de
Moçambique. Não é de modo algum uma organização nova, esta COREMO: surgira
inicialmente na década de ‘60 como uma dissidência à FRELIMO, logo após a morte
de Eduardo Mondlane. E tivera como presidente Paulo Gumane. Um dos sete
opositores grados ‘desparecidos’, liquidados pelo regime por alturas da
independência. Mais uma curiosidade: o seu chefe militar havia sido o Fanuel Gideon
Mahluza, o ‘zombie’ dorminhoco, que mais tarde venho a encontrar na RENAMO.
A COREMO chegou a ter uns trezentos homens em armas, e operava
tradicionalmente na província de Tete, a partir de bases na Zâmbia. Mas isso era nos
tempos já quase esquecidos… Agora, em contactos visando o restabelecimento da
COREMO, está envolvido aqui em Lisboa um tal Carlitos Colce, elemento que até há
pouco tempo orbitou bem próximo do chefe da MONAMO, o advogado Máximo
Dias.

Por último, mas não desprovido inteiramente de importância, registo a


passagem de Artur Vilankulos pela capital portuguesa nestes últimos dias de
Dezembro. Vem verificar o funcionamento da filial portuguesa da ‘Friends of
Mozambique’, ou antes, da AMIMO, Amigos de Moçambique, constituída algum
tempo antes.
A AMIMO é dirigida pelo José Massinga ex-funcionário dos Negócios
Estrangeiros de Moçambique, que tem como assessora uma jovem portuguesa
nascida em Lourenço Marques. Pois bem, o Vilankulos promete diversas bolsas de
estudo a moçambicanos, mas aparentemente nada de concreto se realiza. A sua

161
organização proporciona ainda alguns convívios de fim-de-semana. A ‘Friends of
Mozambique’ tenta sobretudo, pelo que me apercebo, descobrir elementos que
possuam ‘informações relevantes’. Oh! Ia-me esquecendo de referir: o Artur
Vilankulos, agora, também já é ‘Cavaleiro’. Entrega-me um dos novos cartões de
visita. Cavaleiro da Ordem Militar de Malta. ‘Mas q’a ganda malta!’

O REGRESSO DA ‘EMINÊNCIA PARDA’


É já no início de 1988 que Fernandes regressa de uma curta visita particular a
Goa, mas parte ainda em Janeiro para a Gorongosa. Em Pretória, encontra-se com o
Luís Serapião e Francisco Nota Moisés. Os dois elementos negros discutem com os
sul-africanos e temem pelas suas vidas: só Fernandes é que se resolve a subir para um
avião militar que o levará à base de Dhlakama no interior de Moçambique. Uma
autêntica ‘tour de force’. O antigo secretário-geral é apontado como estando neste
momento em franca recuperação política.
No ‘quartel-general’ de Afonso Dhlakama encontra-se também, e há quase
dois meses, Artur Janeiro da Fonseca. Terá ficado aí retido como punição, acusado de
ter fomentado toda a barafunda reinante na ala externa. Só Fernandes consegue
convencer Dhlakama a libertar o desgraçado Fonseca e volta para Pretória, com o
secretário das Relações Externas como um destroço resgatado de águas revoltas.
No fim do mês Evo Fernandes aterra novamente em Lisboa, numa altura em
que chega à capital portuguesa outro elemento da delegação nos Estados Unidos, José
Francisco. Isto está um bazar autentico: o Francisco promove contactos extra-
delegação com moçambicanos, encontros que acabam até por ser mais concorridos
que as reuniões convocadas pelo delegado Manuel Frank. A ASSOPOMO, a fachada
‘recreativa’ da RENAMO, tenta agora obter, embora sem sucesso, a cedência de
instalações de uma igreja evangélica e de umas outras, administradas pela Casa Pia de
Lisboa.

Por estes tempos, recebo a informação de que mais três jornalistas


estrangeiros estão a caminho da Gorongosa durante o final de Janeiro, para o serviço
habitual, uma reportagem a mais canhonaços e a eventual entrevista ao ‘número um’.
Fizeram-no desta vez com o auxílio da A.M.I. e da Força Aérea sul-africana. Então a
receita secreta é assim: tomam uma pequena avioneta militar ‘Kudu’, do 41º
Esquadrão Aéreo, no aeroporto de Lanseria, entre Johannesburg e Pretória. A
aeronave larga-os numa pista aberta no meio do mato, e que os jornalistas calculam
ser na Suazilândia, nalgum bantustão, ou ainda em área remota dentro da própria
África do Sul. Aí, são transferidos para um ‘Dakota’ sem qualquer identificação, e
tripulado por militares sul-africanos, que os leva até à Gorongosa.

No início de Fevereiro, renascem as ameaças. O ‘Chico’ Mascarenhas adverte-


me de que é bom eu não manter qualquer rotina nos dias imediatos, nem pernoitar
sempre no mesmo local.
“Oh velho (também me trata assim quando a coisa é séria) os sul-africanos
querem fazer-te a folha! Terão enviado alguém para ‘encerrar’ o teu dossier…”
‘Filhos de uma ‘ganda puta! Eu é que fodo-os a todos! Já vão ver… deixem passar algum
tempo…’
Agora, tratar das coisas a curto prazo. Já!

162
Tenho quatro locais diferentes de pernoita: a casa da família no prédio em
Alcântara, a residência de Casal da Mira, a casa da Lurdes em Miratejo, e uma parte de
casa em Miraflores, de uma amiga da tal Ana Paula, da Tranquilidade Seguros de há
um ano atrás.
Resolvo ir passar uns dias ao norte de Portugal levando o armamento
adequado, uma automática. No regresso, tudo parece estar calmo. Redijo alguns
artigos para o boletim ‘África Confidencial’, do Xavier de Figueiredo, e preparo o
número dois do ‘Moçambique Hoje’, o órgão do CIMO.
Logo nos primeiros dias de Março sou contactado por um moçambicano que
me traz uma história curiosa: conta ter recebido um pedaço de urânio, uma ‘pastilha’,
que serviria como combustível nuclear ou para experiências de laboratório. Fora-lhe
enviada como ‘sustento’ por um familiar. Este, trabalhara nas instalações atómicas sul-
africanas, em Pelindaba, perto de Pretória, e onde ocorrera uma sabotagem em
Agosto de 1986. Na confusão, foi desviada certa quantidade de urânio. Não sei que
isótopo ou o grau de enriquecimento.
Três pastilhas, pelo menos, terão sido transportadas para Moçambique. Uma,
acaba de chegar a Lisboa por barco, vinda da capital moçambicana. Está agora aqui
nas mãos deste tipo, o Sanibeque, com cara de cigano negro... Bom, se é verdade que
isto é mesmo urânio, porque algo, radioactivo, pode ser uma infinidade de coisas.
Garante-me que o invólucro em chumbo é seguro, não deixa escapar radiação em
níveis perigosos.
Pego ainda nesta pequena chapa baça. A curiosidade ultrapassa uma vez mais
a prudência. Pesadíssima. Mais denso do que seria, se contivesse apenas chumbo. É
provável que seja mesmo urânio. O Sanibeque sabe ou adivinha que eu tenho
contactos, e pretende que eu tente comercializar a referida substância mas acabo por
desinteressar-me do assunto. Estou em movimento uniformemente muito acelerado,
apontado a outra direcção.

MOÇAMBIQUE: UM NOVO CENÁRIO


Um outro artigo para o ‘África Confidencial’, que como já afirmei e estou
disso bem ciente, mais não é que uma ‘antena’ da DINFO, permite-me contactar com
diferentes opiniões sobre a nova situação moçambicana, relações entre Maputo e o
Ocidente, etc. Converso com o jornalista Eduardo Mascarenhas acabado de chegar de
Washington, onde acompanhou a visita do primeiro ministro português, e encontro-
me também com o adjunto do adido militar norte-americano em Lisboa, o major
James A. Padgett e o responsável da ‘secção política’ da embaixada dos EUA, Paul
Leach.
Eduardo Mascarenhas conta ter-se avistado com Charles Freeman, o sucessor
de Frank Wizner como assistente do secretário de Estado adjunto dos EUA para os
assuntos africanos. Correm rumores de que poderá estar para breve a entrega de
algum material militar americano a Maputo, como armas automáticas M-16. Quanto a
treino militar, não será muito provável, pelo menos para os tempos imediatos. A
administração Reagan encontra-se de malas aviadas, preocupando-se mais com a
questão Namíbia-Angola.
Novos debates no Congresso, sobre Moçambique, também não são
previsíveis. O senador Bob Dole, em comunicado, demarca-se do ultra-conservador
Jesse Helms e dos apoios deste à RENAMO. E o próprio Helms está agora muito
menos activo neste assunto. Quanto ao Eduardo Mascarenhas, garante que possui a

163
informação de que a Espanha se propôs treinar pelo menos nove mil soldados
moçambicanos, dando cursos que podem atingir os três mil homens por semestre.
A conversa com o major Padgett no gabinete deste da embaixada americana
em Lisboa, é também interessante. Padgett regressara há pouco de uma digressão a
Maputo e conta-me não serem confirmados os rumores de que Moçambique havia
recebido nos últimos cinco anos, 1983 a 1987, uma ajuda militar encoberta por parte
dos Estados Unidos, incluindo material de transporte, e metralhadoras e morteiros de
origem soviética, tudo avaliado em dez milhões de dólares.
A (des)informação nascera em meios conservadores americanos simpáticos à
RENAMO. De qualquer forma os EUA dão agora mais valor ao ‘não-alinhamento’
de Maputo e observam de bom grado as últimas transformações económicas e
políticas em curso no país16.

Em Lisboa, o contra-ataque de Fernandes prossegue em várias frentes. Agora,


estende-se ao próprio ‘África Confidencial’, onde colaboro actualmente. É o Evo
quem provoca ‘fugas de informação’ para a Imprensa, tentando inculpar-me como
cúmplice do Domingos Chale João, o tal ex-corredor negro de automóveis, num
processo fraudulento que este terá usado no Ministério dos Negócios Estrangeiros
português, para desvio de fundos. Nada tenho a ver com o caso e o próprio Chale
João seria, meses depois, absolvido em tribunal. Fernandes ocupa-se porém,
denodadamente, a tentar manchar a minha imagem e consegue pelo menos que seja
dispensada a minha colaboração no ‘África Confidencial’.

As ameaças ainda prosseguem e avolumam-se… No fundo, o que é que eu


pretendo, na realidade? Regressar a Moçambique? Confirmar a minha teoria? Cumprir
uma jornada nostálgica? Vender-me simplesmente aos sul-africanos para um prato de
camarões no Costa do Sol como prometera Van Niekerk em Phalaborwa? Ou
encerrar um ciclo e fazer valer a minha vontade?... Ah! Parece que é isto… Manipular,
mas agora ao contrário, inverter a pirâmide. Colocar uma estrutura a fazer o pino. E
remover ameaças.
Que compromissos tenho eu ainda com a RENAMO? Nenhum, desde
Outubro de 1987. A ligação morrera de vez. Não existem satisfações a dar a ninguém,
politicamente. O namoro com a Lurdes findara também. Não há qualquer jura nem
nada parecido. Considerava-me independente. Mais livre que um passarinho.
Deito contas a todo este período traçado desde 1981, quando abracei a causa
de RENAMO:
Inicialmente, acreditei ferreamente. Fui e participei. Em Lisboa e na África do
Sul
Observei bem a realidade do ‘apartheid’. E o grau de manipulação a que a
RENAMO e os seus líderes são sujeitos pelos sul-africanos, A pedra incontornável so
suporte ao movimento, e quem define as grandes linhas.
Igualmente assisti a todas essas ligações, conexões personalizadas, e que tantas
vezes são fluxos que correm paralelamente ou mesmo à revelia dos representantes do
movimento oficialmente designados.
Sociologicamente, destrinçam-se três planos: o individual, o grupal, e o
patrocinador. O grupo, a RENAMO, aqui, tenta que o indivíduo, líder, quadro,

16 Para mais detalhes, ver o Apêndice 5 – Aproximação Washington-Maputo.

164
membro, simpatizante, sinta também como seus as ambições e desígnios grupais,
ainda que a mando de um patrocinador que se mantém na retaguarda. Desta feita, a
África do Sul. No fundo, trata-se da arte de gerir vontades.
Tentei diversificar ‘patrocinadores’, apoios. Tal foi absolutamente impossível,
travado por Pretória.
Os que eram meus aliados, aqui em Lisboa, foram ‘biologicamente’ removidos
da arena política, no tal acidente misterioso no Maláwi. Claro que agora, imputo a
responsabilidade disto aos sul-africanos e até é este um dos factores que vai pesar nas
minhas decisões imediatas. Dentro de meses, porém, chocarei com uma teoria que
aponta precisamente no sentido oposto.
Doravante, irei pois tentar inverter a situação: induzir a que um grupo admita
que é também no seu interesse, cumprir a minha vontade, através de uma sugestão
bem alicerçada ou manipulada. Nem todos, claro, podem ser ‘pequenos mágicos’,
manipuladores… mas vamos experimentar.
Estou bem consciente, no final desta etapa: a única lealdade que subsiste
ainda, é para comigo mesmo, reduzidas a zero todas as outras, para com um ou outro
lado deste conflito.
Vamos jogar noutro teatro, é evidente. A mim, ninguém mais dará quaisquer
ordens ou ditames que eu não tenha previsto. Tentarei que assim seja.
Disponhamos pois as peças neste novo tabuleiro. É a hora da minha jogada.

Tudo se conjuga para uma diminuição dos riscos: a perspectiva traçada por
vários jornalistas, diplomatas, enfim, por um cada vez mais alargado quadrante de
opinião, sobre Moçambique, é hoje muito diferente daquela que eu conhecera em
1979. Os tempos do marxismo desenfreado da FRELIMO e do populismo barato
terão sido enterrados juntamente com o anterior presidente. Arrisco.
Efectuo os primeiros contactos com a embaixada moçambicana. Seguem-se
alguns jantares, longe de Lisboa, no Restaurante Mónaco, em Caxias. Pesam-se os
prós e os contras do meu regresso. Fala-se numa tal Lei da Amnistia, que eu até nem
tivera conhecimento disso e que, no fim, em nada influencia a minha decisão, pois sei
que de qualquer forma serei sempre aceite, claro que sim, com tudo o que tenho em
‘background’.
Informam-me que embarco a 12 de Março para Paris, e que daí sigo, no dia
imediato, para Maputo. Sexta-feira, 11 de Março, introduzo no computador da
universidade, o Instituto Superior Técnico, à cautela, uma mensagem para a minha
irmã, contando-lhe a verdade, que estou de volta a Moçambique e que se algo de
errado suceder, será por culpa dos sul-africanos e dos meus antigos ‘sócios’ da
RENAMO.
Sábado, 12 de Março. Em casa despeço-me com um ‘vou a Paris e regresso
provavelmente amanhã’. Peço à minha irmã para que verifique a sua área de memória
no computador do ‘Técnico’, na segunda-feira, caso eu não esteja entretanto de volta.
Às quinze horas, tomo o avião para França. Permaneçerei pouco mais de vinte
e quatro horas em Paris. Domingo à noite, embarco juntamente com dois
responsáveis moçambicanos no DC-10 das L.A.M., rumo a Maputo.
Recordo-me agora de tudo o que se havia passado nestes últimos dez anos.
Não. Não estou arrependido de nada, nem tão pouco, agora, deste retorno a
Moçambique. Hoje, quando revejo estas linhas, já de uma confortável distância no
tempo, estou certo de que voltaria a fazer o mesmo.

165
Pouco me lembro da viagem em si, pois o whisky puro fez das suas. Segunda-
feira, às dez da manhã, estou de novo na capital moçambicana, e com uma grande
história na bagagem. Os primeiros dias são passados no Hotel Rovuma. Prepara-se
paulatinamente a notícia para a Informação da minha chegada. Na segunda-feira
seguinte dia 21 é tornado público que me encontro em Maputo. Dois dias depois é a
conferência de imprensa: as férias do ‘agente Alcino’, iniciadas em 1979, haviam
chegado ao fim.

166
MOÇAMBIQUE 1988-’91: UM RETORNO ENTRE A BRUMA DA NOSTALGIA E A
TEIA DA CORRUPÇÃO

167
Ou chamem-lhe, se quiserem, um Novo ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’: doces guerrilhas
debaixo de saias... Todo um delírio que escorre em tinta impressa. Não é isto agora o que
queriam saber? Pois! Quantos não foram os que me perguntaram: ‘E depois? O que é
que aconteceu ao Paulo Oliveira, ao Makwakwa, após aquele retorno a Maputo em 1988?’ Este é
o fim do livro, que não podia deixar de ser escrito. Cru, puro e duro… Depois não
digam que não avisei.

RETORNO. DESDE A CINZENTA PARIS, NAS MÃOS DA D-13, A CONTRA-


INTELIGÊNCIA

Porra! Ainda estou em Paris. Penso sempre, cada uma das vezes, que volto a acordar no
meio da selva. Desperto e não sinto nada. Quando estava por lá, almejava voltar para casa…
quando estava em casa, só conseguia pensar em retornar ao mato… Estou aqui há um par de dias à
espera de uma missão, a amolecer… cada minuto que passo neste quarto sei que a Renamo
entrincheirada lá pela savana vai-se robustecendo. De cada vez que olho em volta sinto as paredes a
oprimirem-me um pouco mais. Mas todos conseguimos o que queremos. Desejava uma missão e para
mal dos meus pecados trouxeram-me uma, e de bandeja…

Primeiro foram os dias de duas semanas estonteantes. O contacto inicial na


Embaixada, depois os jantares do Mónaco, entre Caxias e Paço d’ Arcos, até à luz
verde para Paris. Um sábado cinzento, afinal, marcaria a chegada à ‘Cidade Luz’ e
encontra-nos na Rive Gauche apontando ao Hotel Cayre. Acompanha-me o 2º
Secretário da Embaixada moçambicana na capital portuguesa e que dentro em breve
tornar-se-ia por demais conhecido, o Rafael Custódio.
O Rafael era então um sujeito no início da casa dos trinta, alto e magríssimo,
um esboço de bigode fino, sobrevivente a um terrível bombardeamento aéreo
rodesiano no fim da década de ‘70. Há muito que estava com os ‘serviços’
moçambicanos e era ele que em parte iria manobrar um capítulo decisivo da actual
missão.
Pela minha parte, era a saída de uma situação que se arrastava desde Outubro
de 1987, quando decidira bater com a porta e largar a Renamo. Voltara a estudar,
editara uma newsletter própria, o ‘Moçambique Hoje’, e participara no ‘África
Confidencial’ do Xavier de Figueiredo. Não tardaram as ameaças da malta do
Dhlakama e, pior ainda, dos próprios sul-africanos que enviam uma equipa para
tentar ‘fechar’ o meu dossier. Tentativas goradas. Há algum tempo também que vinha
mantendo contactos com gente na Embaixada dos EUA, o assistente político Paul
Leach e o adido militar Padget, e quando recebo a proposta de regresso acabo por me
despedir deles informalmente.
Há muito também, antes mesmo de Outubro de 1987 e desde a morte de
Samora Machel, que as minhas expectativas já não coincidiam com as do movimento.
Mais que tudo, o pessoal que me é próximo e tentava moderar posições e desdobrar
alianças e suporte, vinha a ser sistematicamente apeado, política ou biologicamente: o
ponto fulcral é a morte no Maláwi do ex-embaixador moçambicano em Lisboa, João

168
da Silva Ataíde, e do ‘enviado’ Mateus Lopes ou José Alfredo da Costa. Um ‘acidente’
rodoviário a mascarar a emboscada, a eliminação. O Peugeot 504 calcinado,
incendiado conjuntamente com um camião tanque com o qual ‘haviam chocado’! O
Peugeot havia sido varrido a Kalashnikov. E tenho na memória, depois, os
depoimentos de José Moreno e de um tal Pegas. E da tentativa de assassinato no
Malawi, ao Moreno, por envenenamento… antes, e muito recentemente de novo,
quando este investiga ainda o ‘acidente’ do Peugeot... Okay, então esta gente não
brinca, e se é para jogar duro, vamos para esse tabuleiro!

Caiu a noite sobre a gigantesca urbe que só agora conheço pela primeira vez, e
o Custódio, um ‘habitué’, recomenda o Quartier Latin, isto tem alguma da tipicidade
dos bairros históricos de Lisboa mas há algo de diferente nesta cidade cortada ao
meio por um rio. E é claro, a noite não se esgota nas comezainas dali de Saint
Germain de Prés. Mais tarde seguiu-se a visita à zona quente parisiense, ou uma delas,
o famoso Pigalle. O Moulin Rouge e todos aqueles nomes sonantes estavam agora ali
a emergir da noite em cores garridas e contrastantes sacudindo o negrume,
entremeados por montras e vitrinas em vermelhos e verdes mais discretos
convidando a shows triplo X de sexo ao vivo. Empregados turcos e portugueses
prolongam o apelo insistente dos anúncios. É assim, parte da Paris nocturna, e de
momento o verdadeiro propósito da viagem ficava lá tão longe, tão longe, a mais de
dez mil quilómetros, que foi necessária a chegada do Domingo para trazer de volta a
Realidade que importa trilhar.
A nova manhã passa-se calma, quebrada apenas por um esticar de pernas até à
margem do Sena, do outro lado destaca-se a imensidão do Louvre, ‘e era isto,
matutava eu, a verdadeira Europa, cinzentona e velha’. Para mim, plataforma de
passagem apenas, como nunca deixei de encarar a minha presença cá, criado e
crescido que fui na imensidão verde africana. Não, isto nunca seria para mim
nenhuma ‘terra prometida’. Nem Lisboa, Madrid, nem esta Paris, apesar da dinâmica
do Sena serpenteando por entre o secular casario.
À tarde surge o ‘Aparece-Desaparece’ como eu por brincadeira havia de
chamá-lo mais tarde, o João Carlos Esteira. É ele o homem de topo da Contra-
Inteligência moçambicana, o ‘número um’ da D-13 do SNASP, o Serviço Nacional de
Segurança Popular. O momento e a pergunta decisivos: ‘É mesmo para ir? Não há
marcha-atrás...’ Vamos a isto!, retorqui firme. É para isto que cá estamos, não é
verdade?!’
O embarque é nessa mesma noite em Orly no DC-10 das Linhas Aéreas de
Moçambique. A aeronave iniciara o voo na Suécia, Paris era uma escala, e trazia a
bordo, até, a Graça Machel, viúva do antigo presidente moçambicano. Na aerogare,
além do Rafael Custódio (o ‘Alfa’, nome de código, então, em Lisboa, na ‘residentura’,
e que não viaja comigo) volto a avistar o Esteira que regressa a Maputo no mesmo
voo. Então, não viera ele a Paris de propósito para me levar?! No mesmo avião segue
outro quadro de destaque da Segurança, um branco, o Luís Filipe Costa, do qual já
ouvira falar. Mais tarde será este Costa o responsável máximo da TCT, uma empresa a
ser criada no âmbito do Ministério da Segurança/SNASP.

De Paris a Maputo a viagem é directa. São mais de onze horas de voo. Falta
ainda uma hora para a aterragem quando sobrevoamos a savana tocada pelos
primeiros raios matinais e apesar do whisky e calmantes não estou muito tempo

169
sentado. Resumindo, ia já com uma cardina considerável. Lá muito em baixo junto ao
solo estendiam-se as colunas de fumo de fogueiras da população, queimadas, o que
quer que fosse que desprendia aquelas volutas fumarentas para a atmosfera. Não paro
de aborrecer o Esteira: ‘Eh pá! Aquilo deve ser o disparo de armas pesadas, estou a
ver! Ali à direita!’. O Esteira muito calmamente pedia-me que regressasse ao lugar. ‘É
uma batalha de artilharia!’, insistia eu.
Mas bem, Paris perdera-se na distância dos milhares de quilómetros. Agora era
Moçambique brindando-nos com um dia quente, um bafo de dragão, neste dia 14 de
Março de 1988. Quase tropeço ao descer as escadas do DC-10. Esperam-me cá em
baixo uns tipos de fato escuro e ar severo que entrevejo ainda através dessa atmosfera
escocesa dos whiskies e num ápice trazem-me para um espaço reservado da aerogare
longe das formalidades aduaneiras e dos passaportes a que se entregavam entretanto
os outros passageiros.
Recolhida por alguém a minha bagagem sou levado para o Hotel Cardoso, na
zona da Ponta Vermelha, uma parte nobre da capital onde se situa o palácio
presidencial, e não muito longe, portanto, das novas instalações da D-13. Isto!... a vida
traz-nos curiosidades e coincidências destas. Quem diria: tinha eu uns cinco, seis anos,
frequento antes da entrada na Primária o então Instituto Infantil de Moçambique. Já
aí uma coincidência: um dos choferes havia sido um antigo empregado nosso,
empregado doméstico. Agora, ao aproximarmo-nos, qual é o meu espanto... Eu nunca
mais voltara, em anos recentes, àquela ruazinha, a do Instituto Infantil. Mesmo ao
início da rua, o prédio que se destaca, um pouco mais alto que as moradias restantes,
é a D-13! Volvidos todos estes anos, vinte e dois, ao local que o inocente Paulo então
apenas com cinco ou seis conhecia como ‘creche’, voltava o Paulo com toda uma
imensa e terrível história que emparelhava com a trágica guerra que assola este belo
país. Mas nos meados da década de ‘60 não havia ainda preocupações algumas destas
na cabeça de um puto de cinco anos. As palavras ‘guerra’, ‘terrorismo’, ‘turras’,
‘tropa’, eram uma realidade muito atenuada que me chega só lá mais para o final da
década, juntamente com um interesse pelos mapas, mas ainda algo difuso e distante
até aí.
E aqui estou... A D-13. O Instituto Infantil. Duas peças, dois marcos
próximos. Ainda resta alguma coisa a ligar os dois ‘Paulos’?... O torpor alcoólico e as
recordações esvaem-se depois ao entrar no Hotel Cardoso. Agora o Esteira
desaparece e está o vice-director da D-13, Virgílio Cambaza, a fazer de assistente de
ligação nas horas iniciais, e continuará a sê-lo ao longo dos dias seguintes. Mas ainda
nessa Segunda-feira, horas volvidas, decidem transferir-me para o Hotel
Rovuma, junto à Câmara (Concelho Executivo) e à Catedral, que é o hotel do partido,
tido por mais seguro. Um hotel muito sui generis com um calabouçozinho e tudo, na
cave, gabinete do SNASP na sub-loja para o que der e vier. Na década de ‘90 o
Rovuma seria adquirido pelo grupo português ‘Pestana’. Muitos que estiveram em
Moçambique antes conhecê-lo-ão, o edifício, por outro nome: é o antigo Prédio
Funchal. Albergava o Arquivo de Identificação além de ser o prédio sede da Força
Aérea Portuguesa em terras de Moçambique.
O Rovuma é um hotel cómodo ocupado por quadros superiores do Partido e
do Estado, governadores provinciais, generais e brigadeiros destacados para o sul, e
de passagem por Maputo. Havia sido inaugurado nos últimos tempos de Samora
Machel e encontra-se sob a alçada do Comité Central. O restaurante ‘vip’ do 12º e
último andar possui um panorama soberbo sobre toda a cidade e a baía. A comida

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não é má e existe um conforto razoável e comodidades várias, bebidas,
inclusive, apesar da escassez enorme que então aflige todo o país.
Começo por ficar no quinto andar, no 501, um quarto amplo com WC e uma
sala. Mais tarde ocuparei a suite 429, quarto andar, um espaço com um bom quarto
com cama dupla, duas casas de banho, sala comum e varanda com vista apontada à
baía, Catembe e parte baixa da cidade. Quanto às refeições, tanto posso tomá-las no
tal salão ‘vip’ do topo como encomendá-las por telefone para serem servidas na suite,
apesar de o aparelho fazer por vezes extremo mau contacto… mesmo assim
funciona, numa terra plena de dificuldades e quase paralisada.
Agora, neste primeiro dia, após o jantar e farto de estar encerrado no
hotel, também não tinha ainda segurança pessoal directa apontada e apresentada, nem
ninguém com quem falar, aventuro-me até um passeio pela 24 de Julho, uma das
principais artérias da cidade e a dois passos dali do hotel. Umas cervejolas serviram
entretanto para tirar a ‘babalaza’ (a ressaca) dos whiskies a bordo.
De novo no Rovuma ligo para os meus pais e quando me atendem em Lisboa
lá digo onde estou. É a surpresa, claro, enorme. Ninguém esperava isto. A minha irmã
não havia ainda consultado o computador do IST onde eu deixara uma mensagem
alojada a propósito desta minha ‘viagem a Paris’.
No dia seguinte principia o trabalho a sério que envolve sessões maratona de
gravações. O D-13 destaca um elemento, um oficial da Segurança, o Ruque, para
trabalhar comigo na recolha de toda a informação pertinente que disponho. Isto para
já não falar na mala de viagem repleta de papéis, que analisamos um por um, e que eu
entregara ainda em Portugal, ao Rafael Custódio, na estação ferroviária de Paço d’
Arcos. Relembro o episódio, cada um de nós a chegar num táxi diferente, vindos de
Lisboa. Pois bem, agora enchemos cassetes e cassetes, resultado de dezenas de horas,
dias, noites, madrugadas de conversa. Assim se passa toda esta semana de pouco
tempo livre para uma (re)descoberta de Maputo, da ex-Lourenço Marques, bem,
qualquer que seja o nome, tanto faz, daquela que continuarei a chamar como ‘a minha
cidade’.
Segunda-feira seguinte, 21 de Março. O ‘Notícias’ de Maputo reporta o
regresso de um ‘cabecilha da ala externa dos bandidos armados’: é a primeira alusão
oficial ao meu regresso. Dois dias depois, a 23, seria a célebre conferência de
imprensa.

CONFERÊNCIA DE IMPRENSA DENUNCIA OS LAÇOS DA RENAMO COM


A ÁFRICA DO SUL, O GENERAL LEMOS FERREIRA E A CASA BRANCA
A conferência... Okay! Fora um dos tópicos abordados com o António
Pacheco das Neves, o cônsul, e o Rafael Custódio, no último jantar havido no
Restaurante Mónaco, lá em Portugal, semanas atrás. Eu concordara em falar com
alguns jornalistas. Alguns!... E de novo é um regresso às origens, um sítio que para
mim é outro marco. A conferência teria lugar, afinal, num grande auditório
propriedade da EMOSE, a Empresa Moçambicana de Seguros, um primeiro andar de
um prédio na Avenida 25 de Setembro (ex-Av. da República). O edifício é o antigo
Prédio Nauticus. Quantas… quantas vezes eu aí fora, ao segundo andar? Um piso
preenchido por consultórios médicos onde ficava o do doutor Silvestre Freitas que
era o médico assistente da Sonarep-Petromoc, a refinaria de petróleos, o emprego do
meu pai. Quantas vezes não andei eu a traquinar aqueles elevadores para cima e para
baixo, a encravá-los, até à hora da consulta?

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E agora, conforme desço do veículo da Segurança, é o passeio já repleto de
gente com câmaras de TV e fotográficas. A custo abrimos caminho pelas escadas até
ao primeiro andar. Escancaram-se as portas do tal salão. Mais de meia centena de
jornalistas moçambicanos e estrangeiros estão presentes. Mas há mais... Mais de uma,
duas centenas de pessoas juncam aquela sala. Surpresa! Vejo o sorriso e o acenar
tímido de uma antiga colega de liceu, a Narry, a Narriman Hassane Puná. Retribuo o
cumprimento. Coitada da Narry. Poucos anos mais tarde matar-se-ia na marginal,
lança o carro em velocidade terminal contra o muro da Escola de Pesca, vinda do
Zambi. Remorsos pelo que fizera ao Ibraímo Remane, diz-se, um ‘caso por fora’. O
Remane era também um antigo colega meu do paraquedismo. Mas aqui e agora nada
disto havia ainda acontecido e a Narry está ali num cantinho, alta e magrinha, a sorrir
e a agitar a mão. E cumprimento ao fundo na assistência o Fernando Chombe, que
fizera questão de estar presente, e que anos antes, afinal, havia sido ele mesmo quem
fizera de mim o ‘agente Alcino’ do SNASP.
E está quentíssima esta sala. Cheia que nem um ovo, o ar quente e pesado,
não obstante estar-se a meio da manhã, meados de Março. Calor e fumo. O ar-
condicionado e ventoinhas é em vão que se esforçam por devolver um pouco de
frescura e limpidez, por amenizar a atmosfera. Mas, jornalista escreve muito, bebe
muito, fuma muito. Muito! E eu também. À minha frente o monólito negro da
embalagem de JPS, John Players! Os cigarros que o Evo fumava. Creio que foi a partir
daí que os experimentei, na África do Sul... Os JPS para mim seriam sempre os
‘cigarros do Evo’! Tinha bons gostos ele, efectivamente. Isso, o Glenfiddich, os
Porsches, dizia gostar de ter dinheiro suficiente para fazer de tal viatura um dos seus
prazeres. Essa tirada surgiu durante um vídeo a que assistíamos na Base de Comando
Recuado ainda lá para os lados de Potgietersrust, em 1983: ‘Os Cães de Guerra’, com
Christopher Walken, o filme extraído do livro homónimo de Frederick Forsyth.
Como retemos cada um destes momentos. E como tudo isso se interliga e volta agora
a surgir aqui perante os meus olhos. Evo insistia sempre na explicação da mensagem,
no sentido dos filmes. Acabou por ser um autêntico ‘pai político’. E contudo, fizera
desenvolver-se como que um certo complexo de Édipo. O que era Dhlakama no seio
disto tudo? E relembro também 1981, a minha chegada a Cascais, a primeira vez que
vou a casa dos Fernandes. E a maldita premonição, anos depois numa festa, a Ivette a
dizer que o astrólogo indiano previra que alguém muito próximo iria dar-lhe um
golpe terrível... Mas o Evo não acreditava e não previra de todo, isso não, o guião
deste filme que se iniciara.
Sou apresentado pelo Director Nacional da Informação. Os homens do
SNASP estão agora mais longe e discretos. Da própria entrevista, nada fora ensaiado,
combinado previamente, convidando-me antes os homens da D-13 a agir de acordo
com o que pensava que fosse melhor no meu interesse... Nenhuma questão me
surpreendeu. Havia jornalistas nacionais, estrangeiros estacionados em Moçambique,
e os que vinham da África do Sul até e de outros países vizinhos ou mesmo da
Europa. A conferência de imprensa chega a produzir ecos em Lisboa: o chefe do
Estado Maior General das Forças Armadas, general Lemos Ferreira, é obrigado a
emitir um comunicado: ‘o senhor Paulo Oliveira até pode dizer que a Terra é
quadrada...’. Claro que o Lemos Ferreira tem que calar o bico e meter a viola no saco,
logo depois. Maputo possui agora fotos, textos e registos de áudio que faz saber a
Lisboa possuir. As provas irrefutáveis da mãozinha da DINFO à RENAMO. A voz
de Lemos Ferreira nas chamadas para o ‘O Século’, com Eduardo Mascarenhas. Mais

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longe ainda, na Casa Branca, em Washington, há também reacções, onde o chefe de
gabinete de Ronald Reagan tem que admitir encontros que aí manteve com membros
da Renamo ‘a título pessoal’. Tudo isto para além do sonoro brado que faz rebentar
em Pretória, como é óbvio.
E em Lisboa não faltam agora detractores vários, a começar pelos jornais que
antes me recebiam de braços abertos, com um António Maria Zorro a bradar agora
histérico que o ex-delegado, eu, sofria de perturbações mentais, e o Expresso a clamar
que me encontrava na iminência de ser preso pela Judiciária por via ainda das tais
trapaças de um membro da delegação, funcionário no Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Atoardas, enfim, que não tapam o inescamoteável nem todo o acervo
de documentação colocado agora nas mãos das autoridades de Maputo.
Mesmo após a conferência de imprensa o trabalho de recolha / análise de
informação prossegue conjuntamente com o Ruque. O Ruque, esse jovem oficial de
ligação, é praticamente um moço, um oficial jovem mas sabido. Inteligente, olho vivo,
não lhe escapa nuance alguma. Magríssimo, aí à volta de um metro e setenta e cinco,
uma barbicha rala. Um dos tipos mais engajados e militantes que conheci, marxista-
leninista ferrenho, saudoso dos tempos do Samora Machel, enfim, um quadro que
não sobreviveria depois aos novos ventos no Ministério. Sei mais tarde que será ainda
colocado numa universidade zimbabweana mas ouvi que até por lá arranja uma série
de conflitos de índole política. Apesar dessa faceta é um bom comunicador, jocoso
quando não se trata do dogma, e as nossas sessões de análise / gravação muitas vezes
terminam madrugada adentro.

‘ELES ANDAM AÍ!’: O ESQUADRÃO DA MORTE ENVIADO PELOS SUL-


AFRICANOS A MAPUTO
Continuo pois no Hotel Rovuma mais uns quinze dias. No entretanto
colocam para minha protecção e a tempo inteiro um elemento operacional da
Segurança e que se aloja também no hotel. É ele o Zorro, nome de código, bem se vê.
Na realidade, chama-se Eusébio Anlaué, de raízes macondes e macuas, e que desde
jovem integra a ‘ala operativa’ do Ministério. Reside no bairro da COOP. Um bom
copofonista, além de gajo animado e conversador. Altura média e levemente para o
forte, musculoso, é o típico elemento dissuasor para casos destes.
A pé, com o Ruque ou o Zorro, ou com ambos até, ou ainda acompanhados
pelo Rachid, um outro elemento com a viatura de suporte, vamos diversas vezes à
Loja Franca, a Interfranca-Fnac, provisoriamente a funcionar nas instalações da
Facim, a Feira Agro-Pecuária Comercial e Industrial de Moçambique. O local de
eleição para compras em divisas (dólares, randes ou escudos portugueses) de artigos
que dificilmente se encontram nas lojas. No Rovuma também se mata algum do
tempo livre, há uma sala de bilhares e um grande e acolhedor lobby onde se escoam
uns bons e cálidos fins de tarde à volta de umas cervejas.
Depois, bom… fazem questão que eu visite a Matola. Levam-me de carro
uma das manhãs para que possa ver as casas do ANC atacadas pelos sul-africanos, ‘os
seus antigos amigos’, como salientam. Alguns dos alvos haviam sido destruídos por
um raid terrestre de comandos no início da década de ‘80, outros, uma fábrica e
residências, foram atingidos por esse ataque aéreo de Maio de 1983, estava eu na
África do Sul e, como relatei em parte anterior, o bombardeamento vem como
retaliação a uma explosão em Pretória que fizera mais de vinte mortos.

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A falta generalizada de bens de alimentação e outros está contudo a atenuar-
se. Não só por via da Fnac com a sua venda em divisas. É a abertura à economia de
mercado. Toleram-se os ‘dumba-nengues’ (confia nos pés, em dialecto) os mercados
informais, de rua, de passeio, de muro. Era bem pior a situação há poucos meses
atrás, afiançam-me. É fácil agora conseguir-se beber um refresco ou cerveja pagos em
meticais, a moeda nacional. O que seria impensável antes, fora dos spots turísticos.
Ao fim de mais duas semanas, isto é, no dealbar de Abril, conseguem-me
transferir para uma flat à conta do Ministério, no PH7, um prédio de doze andares no
bairro da COOP, Avenida Vladimir Lenine 2292. É a flat 3 de um primeiro andar e
não é nada má. Uma grande sala comum serve três quartos, há um corredor extenso
ligando o conjunto, arrecadação, cozinha e duas casas de banho. Praticamente todo o
mês de Abril é aqui passado, com a companhia diurna do Ruque e do Zorro e todo
um corrupio de visitas de outros elementos do Ministério e, à noite, apenas a
vigilância do Zorro. Amiúde surgia o Generoso, também referenciado como ligado à
Embaixada em Lisboa, o ‘Betinho’ Wate, o Nyerere e o António Mula, isto como
repetições mais notadas. O eterno sorridente e baixotinho Mula é o director
financeiro da D-13. Logo, uma necessidade ali. É também no PH7 que me surge pela
primeira vez o Mário Ngwenya que anos mais tarde virei a conhecer bem melhor em
Lisboa na Embaixada de Moçambique. Seria então o oficial ‘residente’ dos Serviços
moçambicanos, e meu aluno de Informática.
São colocadas duas AK-47 na residência, cada uma com dois carregadores e
mais uma pistola Walter para o Zorro para o que desse e viesse, e diversas granadas
defensivas. É já aqui na COOP que conheço a minha primeira amiga destes novos
tempos de retorno, a Tina. Ou antes, a Catarina. É paraquedista, ela, do Aeroclube de
Moçambique. O Aeroclube... Porra! Sempre o Aeroclube… Onde tudo começara,
toda a série de aventuras, e onde eu recebera há anos por brincadeira o tal cognome
de Makwakwa. Numa visita breve às instalações do clube, com o Zorro, avistara uma
destas noites a Catarina que volto agora a encontrar de passagem pela COOP.
De vez em quando é o ‘black out’ geral em toda a urbe e arredores, toda a
zona sul do país: mais uma acção de sabotagem da Renamo. E à falta de luz segue-se
a da água, quase sempre é assim se a quebra de corrente é prolongada: as bombas de
água param.
Com o Zorro vou até algumas das tascas locais como o Micael, no
prolongamento da Rua da Resistência (ex-Heróis de Marraquene), ou então ao
Rodoviário, na Av. 24 de Julho, ao Califórnia, num gaveto da Vladimir Lenine não
muito longe do Rovuma, em frente à escola secundária que em tempos o meu irmão
frequentara.

E então por uma vez, já a noite ia bem entrada, aventurei-me sozinho até ao
Topázio, na Rua de Bagamoyo. Nos tempos coloniais era a (má) afamada Rua Major
Araújo, ou a ‘Rua das Pretas Bem Vestidas’ como outros lhe chamavam. O Topázio!
Este antigo cabaret e agora funcionando mais como bar, está nas mãos de um
português, o Teixeirinha, proprietário igualmente do Golfinho Verde e da Pensão
Nini, aqui no Maputo, e do Ali-Babá de Nampula, além de ter ganho o concurso para
fornecimento de víveres ao projecto do ‘Corredor de Nacala’. Um ‘tuga’ bem lançado
nos novos tempos deste jovem país.

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Ainda não tivera tempo para completar a primeira caneca... rápido os homens
da Segurança estão aqui, e é para me levarem. Algum dos agentes vira-me a descer à
baixa, sem o Zorro. Pois! Eu partira assim que o guarda-costas adormecera.
Só dou pelo Zorro entrar, a olhar ansioso em todas as direcções, trespassando
de repelão porta e porteiro do Topázio, em pijama! E eu descontraído a falar com a
Selma uma mistinha de indiana que acabara de conhecer ali. Rebocou-me de seguida.
É a primeira vez que o vejo com cara de poucos amigos. Lá fora, uma viatura Lada,
soviética. Espera-nos o Virgílio Cambaza, ‘número dois’ da Contra-Inteligência:
‘Estas aventuras não são nada agradáveis! Mais vale um dia fechado na residência que
na B. O. não é?’ A B. O.! A ‘Brigada Operativa’. Era a parte da cadeia da Machava
administrada pela Segurança e de muito má fama e que não dava saúde a ninguém!
Ou a outra… havia também a B. O. com os respectivos cárceres nas instalações do
SNASP na Av. Ahmed Sekou Touré (ex-Afonso de Albuquerque) no que antes fora o
Colégio Irmãos Maristas. Onde ocorreu até a minha entrevista inicial com o Fernando
Chombe nos idos de ‘79. Portanto, está explicado como a partir daqui o Cambaza
ganhava a alcunha de ‘B.O.’

O dia 7 de Abril é feriado, Dia da Mulher Moçambicana. Temos uma prova de


que ‘eles’ andam aí, na cidade. ‘Eles’, a malta enviada por Pretória. Eu, o Zorro e o
Ruque saímos no Lada, a dar uma volta pelas ruas de Maputo, passamos o ‘Piri-Piri’,
na 24 de Julho, a batermos já a curva para a Julius Nyerere quando soa uma
deflagração, ‘parece um ganda foguete’, digo eu. Mas ali em Moçambique não há
foguetes em comemorações, quanto muito houve rajadas para o ar e isso só na
Independência. Uma bomba! Estamos na Julius Nyerere quando vemos o fumo, as
chamas, no mesmo quarteirão em que entramos, mas do outro lado da avenida. O
carro que ia à nossa frente está atingido, parado em ângulo estranho. Quase a chegar
ao prédio da Embaixada portuguesa está a viatura que rebentou, um tipo no chão,
ferido, em convulsões, está gente de volta dele. Mais tarde vimos a saber pelas
notícias: é Albie Sachs, um conhecido activista do ANC residente em Maputo.
Armadilharam-lhe o carro, ia a sair de casa. ‘Eles’ andam aí!

O que eu mais sentia então por esses dias era o isolamento. Só a Tina e outra
amiga dela apareciam de vez em quando ao almoço ou ao fim da tarde. Não sabia o
que é que o Ministério tencionava fazer, nada era dito de sólido quanto ao futuro. Sei
contudo que o Ministro da Segurança Mariano Matsinhe tem insistido nalgumas
reuniões internas, perante a estranheza que o meu caso gera em diversos quadrantes
dos ‘serviços’, com uma explicação já acordada: relembra o meu juramento como
membro do SNASP em 15 de Junho de 1979 e as minhas saídas subsequentes para
Lisboa em 10 de Julho e 16 de Setembro do mesmo ano. Salienta que eu “sempre
pertencera ao ‘serviço’”.
E o impacto da conferência de imprensa não se esgotara na abertura dos
telejornais do próprio dia e seguintes, ou nas primeiras páginas da imprensa local. Ele
eram entrevistas atrás de entrevistas, tanto para a imprensa escrita como à AIM, a
Agência de Informação de Moçambique, por intermédio do seu director de então, o
malogrado Carlos Cardoso.
Seria assim por semanas e meses a fio. Entrevistas com TVs da Alemanha
Federal e do Leste, e para a própria SABC, a estação oficial do país que era o principal
mentor da Renamo. Surgiria aqui a própria Nadine Gordimer, futura Nobel da

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Literatura. Jornalistas americanos do The New Yorker, congressistas dos EUA; etc.,
etc., um rodopio autêntico quer no Hotel Rovuma, na residência, no Hotel Polana ou
nas próprias casas das agências e correspondentes.
Mas pelo menos este Abril estava a ser pesado em termos de retenção na
moradia da COOP. Uma das noites carrego a minha AK, destravada já, culatra
accionada, bala na câmara, portanto, e quase alinhada para a posição do Zorro: “Oh
amigo, pá! Só tens uma solução se queres ficar aqui a dormir. É ir chamar esse gajo
do ‘Aparece-Desaparece’!”, o José Carlos Esteira, que se eclipsara quase na totalidade.
O Zorro só tremia, a queixar-se: “Sócio, és muito porreiro mas tens um bichinho aí
no cérebro... quando morde ou começa a fazer comichão... É um interruptor que
muda de posição.”
E surge mesmo o Esteira, altura em que lhe coloco as diversas questões.
Movimentação, viatura, emprego ou estudo. Dá-me algumas esperanças e recomenda
paciência.
Alguns dias depois mais recatado ainda terei que me manter: acabam de ser
descobertas em Maputo duas equipas especiais enviadas pelos sul-africanos com o
objectivo único de me localizar e abater. Seriam descobertos por puro acaso, quando
um dos veículos provoca um acidente junto ao restaurante Tico-Tico e cantina
universitária, abalroando e matando um casal que seguia de mota, ela grávida.
Diversas armas e outro equipamento, incluindo a minha foto, são encontrados a
bordo. Eles andam mesmo aí!

RAPTO EM CASCAIS. EXECUÇÃO NA MALVEIRA. O MISTÉRIO SOBRE


EVO FERNANDES
E como um estrondo informativo, tudo se precipita. Estamos a 17 de Abril,
Domingo. Outro Domingo, outro 17 de Abril, precisamente cinco anos sobre a data
da morte do Orlando Cristina. E perfazem-se 33 dias após o meu regresso a
Moçambique. O Sábado fora quebrado na sua rotina apenas com a passagem
precipitada, fugaz, do Ruque. Duas ou três perguntas mais para o dossier. Uma delas:
‘E lá em Lisboa, o Evo, costuma andar armado? Com quê?’
– Que me lembre… só se for com o revólver .32 oferecido pelo Brigadeiro
Charlie Van Niekerk numa das visitas a Lisboa.
Okay, e era tudo, por esse lado.
O Domingo, por ali, pelo menos em Maputo, nada de novo traria.
No dia seguinte contudo começam a surgir notícias sobre o desaparecimento
em Lisboa do Evo Fernandes. Os dias imediatos correm iguais. A Tina surgirá mais
uma vez. Até que Quarta-feira chega, este 20 de Abril, com um soalheiro fim de
tarde. Noticia-se que fora encontrado perto de Lisboa o corpo do ex-secretário geral
da Renamo, Evo Fernandes, abatido a tiro…
Talvez haja muito a escrever por aqui em redor disto. Mas de momento nem
eu tinha ainda conhecimento das facetas integrais do caso.
O pessoal do SNASP, da D-13, traz-me recortes da imprensa lisboeta. Um
dos oficiais, o Américo Pinto, que a partir de 1998 será colocado em Portugal como
‘residente’ (designação do oficial de topo da estrutura da segurança num dado país) da
Embaixada, passa a ser também visita regular e é ele quem mais parece acompanhar
esta vertente noticiosa.
E é ainda na sequência deste obscuro ‘caso Fernandes’ que volto a ser
entrevistado pelo Carlos Cardoso, da AIM, na sede da agência. Há que explicar o

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assunto, a situação, como um resultado desse ‘saco de gatos’ em que a RENAMO,
mormente a sua estrutura exterior, se transformara.

Não é só agora após a morte do Evo ou com a descoberta em Maputo das


equipas de eliminação que se torna premente o assunto da minha (des)localização e
segurança. Já no início do mês de Abril o José Carlos Esteira tentara o meu envio para
Inhambane, 400 quilómetros mais ao norte de Maputo. Por falta de gasolina (novo
detalhe) que assegurasse a logística de regresso de uma avioneta, a deslocação é
cancelada in extremis após estarmos já no aeroporto.
Agora, final do mês, ‘está tudo arranjado’, garantem. Ia uma temporada para
Nampula até a situação em Maputo amainar e o SNASP, o Ministério, tomar uma
decisão a meu respeito: trabalho ou estudo, ou o que quer que fosse.
Sexta-feira, 29 de Abril. Sai a revista ‘Tempo’, semanário e única revista de
âmbito nacional. Eu faço a capa, um grande plano: ‘Bandidos Armados (leia-se
RENAMO) Paulo Oliveira confessa-se e acusa!’ No interior são mais umas cinco ou
seis páginas com a transcrição da conferência de imprensa.
Sábado, 30 de Abril, anunciam-me a partida iminente. Não sei o que me vai
acontecer. Estes gajos são mesmo de confiança? Dizem para deixar tudo na residência.
Levar só o que é pessoal, as roupas. Mas o que é que estes tipos agora querem fazer,
cada vez mais enigmáticos... ou estão a preparar um ganda número?! Penso em tudo,
mais um ‘acidente’, uma encenação qualquer...
Acordam-me do pouco e instável sono às primeiras horas de Domingo, 1º de
Maio. Eu, o Zorro e o Ruque dirigimo-nos uma vez mais ao aeroporto. O Nyerere e
mais gente da Segurança já cá estão, o Nyerere a salientar que Maputo está mesmo
‘escaldante’ para mim, que sair da residência é um suicídio.
Deito contas, nestes minutos, a todas as andanças nocturnas, aos riscos
corridos: quantas tascas, restaurantes, não visitara eu e o Zorro nas nossas excursões
nocturnas? As tipas! Eu bem perguntara naquela noite confusa ao ‘Aparece-
Desaparece’:
– E então, gajas aqui na residência, como é que é?
– Sem problemas, mas não faças disto um campeonato!
– E a viatura para mim?, perguntara eu, tudo ainda na tal noite que relembro
agora.
– Queres um tractor, é?!, retorquia o Esteira, gozão.
E as tascas, além da do Micael, onde ajudámos a devorar uma imensa cabeça
de vaca e papas de sangue coalhado, regado tudo com muito e forte álcool, e se
situava no limiar dos subúrbios, as tascas, por vezes, ficavam lá bem enraizadas no
tutano do ‘caniço’.
Eu era sempre reconhecido pela populaça, claro: Paulo Oliveira! Paulo Oliveira!
— o carro cercado pela curiosidade gentia, o Zorro a atrapalhar-se já e a trocar as
mudanças em furioso marcha-atrás, uma das vezes. Depois, a deixar enterrar a viatura.
Eu com os copos e a Walther, dono deste mundo e da porta para o outro, a dizer ao
gajo, a berrar lá do meio da nuvem etílica ‘tens 10 segundos para tirar esta merda
daqui!’ A ‘merda’ era um velho Lada do gabinete do ministro. O Zorro a voltar a
tentar a marcha-atrás e quase que derruba um poste telefónico. A malta no exterior
do carro a dar palmadas amigáveis na chapa, as dentuças brancas a luzir no breu
envolvente do caniço como sinais reflectores... e saímos, de novo o alcatrão liso e
sólido apontando à COOP.

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Tudo isto perpassa agora num flash, todas estas noites loucas, findadas na
COOP com garinas que arranjávamos depois por aí, o Zorro sempre com algumas
mais toscas e a repetir a sua expressão da ordem ao levar a sua para o quarto: ‘sócio,
agora vou lançar as minhas granadas!’.
Não era só tascaria. Uma das noites eu e o Zorro fomos até à boite do Hotel
Girassol, na avenida Patrice Lumumba, sobranceiro às barreiras dominando a parte
baixa da cidade, Facim e Zambi. Foi uma noitada e pêras, música, dança, jantar e
copofonia. No fim, quase às seis da manhã, saímos, o Zorro bêbado que nem um
cacho. Eu a querer metê-lo no carro, ele o que faz é tirar um radiozinho do porta-
luvas e decide-se por ficar sentado no passeio, teimosamente, o rádio ao lado a tocar.
De novo tento metê-lo na viatura, e o tipo recusa. Bem, ficou por lá, eu a levar o Lada
até à COOP sem reparar que todo o caminho fora de luzes apagadas. Sou mandado
parar por um controle de trânsito, já mesmo em frente ao meu prédio. Desligo a
chave dou as boas noites, devem-me ter reconhecido, e entro no PH7. O Zorro lá
aparece passadas umas duas horas, ligeiramente aliviado dos vapores mais ruins do
etanol: ‘Sócio! Sócio! Fugiste com o carro tu!’ E lá foi dormir.
Bem, então este Domingo, 1º de Maio, eu e o Zorro somos
metidos, finalmente, no Boeing 737 da carreira habitual das LAM em direcção à
nortenha Nampula onde chegaremos cerca do meio-dia. A bordo, mais umas caras
simpáticas. Uma moça diligencia-se em agradar e empresta-me um romance policial,
um livro do inspector Maigret, de George Simenon, que nessa hora e tal leio quase
por inteiro: Maigret e o Enforcado. Pena que ela tenha que descer na Beira!

HISTÓRIA DE UM EXÍLIO FORÇADO EM NAMPULA


Após curta escala na cidade da Beira e mais uma hora de voo desde aí, a
paisagem cá em baixo mudou radicalmente. Já não são os extensos plainos que
dominam. Do solo irrompem montes proeminentes, altos e meio redondos, mas
perfeitamente separados. As serras de Nampula. Como seios da terra estendidos para
o céu. São a ocorrência geológica típica desta província. E o mesmo efeito permanece
até às cercanias da própria cidade, já a fazermo-nos à pista. Uma chegada, por fim,
tranquila, numa viagem sem acontecimentos. Somos recebidos pelo Director
Provincial de Segurança, o Faustino. Alto, boa e sólida aparência, e sempre, quase
sempre, solícito. Dei-lhe mais tarde a alcunha de ‘Cow-boy’. O Zorro é que gozava
com as minhas classificações. Vim a conhecer depois o vice-director Provincial, o
Camacho Júnior, que três anos mais tarde voltaria a encontrar destacado na cidade da
Beira, e um jovem, elemento de ligação, o Demógenes, que quase diariamente estava
connosco, acompanhado pelo motorista.
Do aeroporto fomos transportados ao Hotel Tropical, uma construção
extensa, alongada, de três pisos, em cores branco e verde que se integram
esteticamente bem na paisagem circundante, à beira dos canaviais que circundam o
estádio do Namutequilua. Aos tempos, o Tropical, então Hotel Paulo, fora um dos
melhores ou mesmo o melhor de Nampula, mas encontra-se agora semi-degradado,
como quase tudo. Redes mosquiteiras rebentadas, além da falta de água e de luz, que
só surgem umas escassas três horas por dia, mas isto sucede, aliás, sem culpa do hotel,
e em praticamente toda a cidade.
As refeições dos primeiros dias ainda as tomámos no Tropical mas o Director
Faustino, autorizado por Maputo, passou a destacá-las para o restaurante do Estrela
Vermelha, o clube de futebol de âmbito nacional pertencente ao Ministério da

178
Segurança, localizado aqui o seu polo provincial já nos arredores da cidade, nas
instalações do antigo Centro Hípico.
Podemos sempre escolher, encomendar a próxima refeição: frango, pato,
garoupa, camarão, pescado vário. E sempre magnificamente acolhidos pelo casal
responsável, o ‘Zero Watts’, é um pouco grave ele, no seu ar calmíssimo, e a ‘Mamã
Barba Pirata’, o Zorro é que os baptizara, e a senhora possuía uma barbicha
considerável, de facto.
Um dia, uma pequena festa, deixa-me deveras sensibilizado com o nível de
educação extrema de uma das miúdas, filha ou parente do casal, fruto decerto do
trabalho esmerado de alguma missão religiosa, assim como meses mais tarde me
tocaria profundamente a cerimónia de despedida que então fizeram. Procuravam
estabelecer aqui uma atmosfera quase familiar.
Mas a cidade de Nampula reservava-me mais surpresas agradáveis no
panorama humano: uma personalidade que também me marca é a de um oficial da
polícia, o subchefe da força local da cidade, que mostra ser, além de um bom
conversador, um amante sério da cultura e poesia. Empresta-me diversos livros do
José Craveirinha, começando pelo já mítico ‘Karingana wa Karingana...’ até ao
recente ‘As doces tangerinas de Inhambane’, além dos de outros escritores
moçambicanos. Faz bem este mergulho na literatura para olvidar todo um acumular
de tensões e preocupações dos últimos tempos.
O Zorro já conhecia bem Nampula e cedo me apresentou a outros amigos,
antes ainda de partirmos à caça da fauna feminina local. Colegas da Segurança,
essencialmente, como o Pascoal Rungo, o ‘Galo’, pelo seu chamamento característico
e cacarejado sempre que chegava às proximidades do hotel.
À noite, com calor, sem luz, sem rede nas janelas, os mosquitos são uma
tortura rodopiante, às dezenas dentro do quarto, a zumbir e a ferrar. Durmo com
uma das almofadas sobre a cabeça, mãos enfiadas em meias que fecham assim um
fato de treino que envergo apesar deste tempo quente e opressivo.
Nas manhãs e tardes desenrolamos o tempo a jogar às cartas, bisca e suecadas,
sobre o fundo sonoro das cassetes de música no gravadorzeco portátil do Zorro, a
tomar refrescos ou cerveja ou outra coisa mais explosiva: Enika, Mamão e Carrupeia.
São bebidas destiladas tradicionais mas estavam a ser produzidas industrialmente em
Nampula em duas fábricas propriedade de portugueses, madeirenses. Bebíamos
daquilo puro, aos cálices, sem gelo sequer. Um fósforo no fim, atirado para a alma da
garrafa tombada, arranca um jacto azul incandescente, mostra do teor alcoólico
daquilo.
Para diversificar o local de pernoita a Direcção Provincial de Segurança
arranjou-nos além do hotel uma flat, situada na rua que desce a partir do Hospital
Provincial de Nampula, do lado nascente. Cá ao fundo já no cotovelo para a esquerda
fica o apartamento. É um terceiro andar e tinha sido até há pouco a residência de
médicos soviéticos. Encontro alguns livros de medicina que acabo por devorar. Que
mais havia para ler? E ainda subsistiam alguns russos, também médicos, pelos
apartamentos em redor. Um dos dias surge pela varanda aos pulos um macaquito, um
sagui, que terá fugido da flat ao lado. Nheto! Nheto!, diz o Zorro a brincar com o Nyet!
Nyet! russo (não! não!). Explica ele que o macaco recusa-se a ficar com os donos, uns
soviéticos.
Entretanto apanho uma crise de anginas. Preciso de antibióticos e peço ao
Zorro. O remédio tarda... O Zorro arranja umas pastilhas quaisquer que tomo,

179
resignado. E, neste entretanto, o que é que eu encontro num dos armários do quarto?
Uma pêra de borracha, daquelas lava-ouvidos. Meto-a por dentro das calças e chamo
o Zorro: ‘Já viste como fiquei, pá?! Estou fodido! A merda das pastilhas que
trouxeste, o que me fez...!’ Pela braguilha espreita só a ponta bicuda da tal pêra que eu
fazia dar esguichos espaçadamente. ‘Olha-me esta merda!!!’, eu, em pânico fingido, e o
Zorro com uma cara de anormal, alarmada, de medo autêntico, a berrar para a sala,
para o oficial, o tal jovem Demógenes: ‘Rápido, temos que levar o sócio ao hospital!’,
e eu a mandar agora com um esguicho longo a marcar a gravidade do caso, mas a
desatar às gargalhadas logo de seguida, conforme retiro a pêra.
O que há mais para fazer em Nampula durante o dia? Livrarias? Há a o
INLD, o Instituto Nacional do Livro e do Disco. Vá lá, encontro uns livros de ficção
científica em português, da Caminho, autores soviéticos. Fora isso, só calhamaços de
medicina, em espanhol, e mais uma vez autores soviéticos. Leio Patologia, Medicina
Interna, Cirurgia, Diagnóstico Diferencial, etc., etc.
Visitamos o Museu Etnográfico. Vamos ao mercado central. Num dos
domingos é a vez de conhecer a célebre Feira de Nampula, defronte da catedral.
Compro um cachimbo bem giro e grande em pau-preto, tem pequenas incrustações
de marfim. Esta é também a ‘feira do pau-preto’ de Nampula, de fama nacional.

À noite alternamos entre vários locais. A Cervejaria Cristal oferece óptimos


camarões tigre, e de diversos tamanhos, e lagosta, a preços muito razoáveis. Há
também a cervejaria do ‘Capitão’, é um moço indiano cujo pai teria sido um incógnito
capitão no exército português, e, é claro, não posso deixar de falar na boite
‘Floresta’, o ponto alto das noites de Nampula: fica numa pequena rotunda ao fim da
rua onde se situa a Cristal, não muito longe do hospital e da nossa flat. À frente do
estabelecimento está o Nini, um dos novos empresários moçambicanos e da família
Pinto Baessa, uma das mais conhecidas de Nampula. Homem a atirar para o forte,
gentil, bonacheirão, faz-me lembrar a versão moçambicana do Bonga. Íamos então à
Floresta umas três vezes por semana, todos os santos dias, ou noites, em que está
aberta.
A Floresta... é aí precisamente que conheço a ‘Ventoinha’. Falo da Lurdes,
uma moça engraçada com vinte e tal anos, mista de chinesa e branco, cabelo
ondulado. Tem um ligeiro problema num joelho mas não é isso que a impede de
dançar e de se movimentar à maneira. A ‘Ventoinha’, como eu lhe chamava…
Baixotinha, esguia e ágil. Viera de uma zona varrida pela guerra, Namecedze, área
algodoeira, onde a família tinha umas plantações. Chega a aparecer-me com pedras
semipreciosas que eram desse sítio, aliás, quase toda a Nampula, província, é fértil
nestes achados geológicos.
Bem, se a Ventoinha girava, lá isso girava. Além de fresca era noutros sentidos
uma miúda tórrida, filha verdadeira daquele sol escaldante do norte de Moçambique.
Ficámos juntos a primeira noite que a conheci, aterrámos no hotel. Ai, ai! Esta mista
de chinesinha! Esquecia-me Lisboa, Frelimos e Renamos e da outra Lurdes que eu
deixara há meses em Portugal. E os sacanas do hotel, da recepção? Complicado,
algumas das noites seguintes. Tempo de Samora Machel era assim: quem não era
mulher, mulher casada, com hóspede, ali no hotel, era prostituta. Agora, vigorava a lei
do cambalacho: hóspede que estava sozinho, entra com mulher, é engate, tem que
pagar suborno à recepção.

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Claro que com a Segurança e gente próxima não se brinca. Com ou sem
‘Floresta’ a Lurdes aprendera o caminho e surgia para uma noitada ou eu ia buscá-la e
ninguém punha entraves a não ser um recepcionista teimoso, que pretendia à força a
comissão. Que noite esta! Já o Zorro se tinha despachado para a flat com o engate dele
e eu ali com a Lurdes naqueles quatro ou cinco degraus do Tropical, a noite é de breu
denso sem lua, a cidade apagada, o hotel sem réstia de luz à excepção da lamparina-
fio-com-azeite que amarelece um esconso da recepção. O resto mergulhou tudo em
tinta da China, e nós ali sentados nos degrau e eu a querer mergulhar também na
minha chinesinha mista. Quase acabamos nas escadas o que devíamos ter executado
lá em cima. Uma madrugada terna ali enleados os dois a receber o cacimbo de Maio,
eu a não querer subir nem a largar a Lurdes.
As coisas eram assim mesmo... pergunto-me contudo várias vezes depois
porque não acabei por ficar com a Lurdes. Uma miúda gira e afinal mexia tão bem as
partes que interessavam, a carne certa nos sítios certos, a boca uma ventosa cálida e
aveludada que pedia sempre por mais... E eu ali com a mania de vedeta do momento,
conhecido e reconhecido em cada rua e avenida sob o sol dos trópicos, só a noite sem
luz restaurava o meu anonimato, apontado em cada casa comercial, em cada
restaurante e... na Floresta. Qual era a gaja que não queria dançar e divertir-se com o
ex-cabecilha dos BAs?, com o Paulo Oliveira?!
E foi assim que veio a Aurora. Não a aurora, mas uma Aurora, de carne e
osso e tudo o resto. Voltaria até a reencontrá-la meses depois em Maputo mas sem
mais nada ocorrer então, o encanto passaria até lá. Okay, esta tipinha é mais para o
estilo sofisticado e aventureiro. Alta e bem proporcionada, mais clássica porém no
amor carnal, mulata clara que me marca pela vulva em cor e reflexos de nácar e toque
de cetim, como lhe digo ao ouvido, e ela ri-se!. Entregamo-nos um ao outro um par
de noites mas a Aurora precisava de mais movimento por Nampula, a pular de sítio
para sítio, e eu precisava mais da minha escaldante ‘Ventoinha’ em que me enrolava
perdidamente noites a fio, no apartamento ou no ‘tropical’ hotel com ou sem
recepcionistas anti-amor. E foi assim a Lurdes quem mais me acompanhou nestes
meses em Nampula.
Dançávamos na Floresta, eu com a Walter à cintura, acho que já nem o Zorro
se lembrava porque é que estávamos ali, e o Zorro já entretido com outra. Às vezes
eu libertava-o e regressava então sozinho. Lembro-me uma vez, não havia luz, o
habitual, não havia Lurdes, não habitual, deixei a flat para o Zorro e tratei de retornar
ao hotel furando o negrume, ruas e ruas a eito, eu a navegar em piloto automático, a
carburar vapores etílicos em direcção ao Tropical lá longe, a Walter engatilhada na
mão direita a atravessar quase toda a cidade, por artérias esconsas, mais esconsas
ainda neste breu denso de onde nem olhos ou dentes sequer sobressaíam como
tipificam os ‘cartoons’ sobre África.

Às tantas no Estrela Vermelha, após uma garrafa de aguardente de cana ou


outro álcool forte, lá vinha uma recaída, mais uma ‘recaída’… Dava-me para imitar os
leões do Kruger Park nos seus portentosos rugidos. Isso divertia a miudagem ao
máximo. Uns riam-se mas outros fugiam a bom fugir. E a coisa espalhou-se. Mesmo
noutros bairros como Carrupeia, mais tarde, e nunca lá tinha ido, ao entrarmos com o
jipe Niva, da Segurança, e sem estar à espera, ouço de súbito: ‘Leão! Leão! É o leão!’
Coitado do Zorro. Como passa mal comigo, com estas cenas e não só. Uma das vezes
não sei bem o que é que ele tinha ou o que me fez, ou se estava a curar uma ressaca,

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bom, uma sarna qualquer que ele apostou em ser naquele dia.... Ora, dou-lhe um
tratamento a Halcion. Tinha trazido esses comprimidos entre os vários medicamentos
comprados em Lisboa. Aquela Terça-feira, depois, para ele, nunca existiu. Amnésia
ante-retrógrada. Embora tenha voltado a acordar, mas à força, e se tenha arrastado
para atender o habitual telefonema de Maputo. O Halcion é um potentíssimo
tranquilizante, um hipnótico. Quatro dele no bucho e é ó-ó garantido por longas e
boas horas.
Coisa boa em Nampula são os charutos. Gandas charutadas, do genuíno. Os
conselheiros cubanos haviam partido há pouco e deixado, vendido aos indianos
locais, as suas reservas de charutos. Compram-se ali ‘Monte Cristo’ a 250,00 MT
(meticais), 25 escudos portugueses ao câmbio desta altura. Estava farto de charutos, e
do cachimbo de pau-preto em que experimento até o fortíssimo ‘cau cau’, o tabaco
bruto, negro, em rolo, que vendem na mercado central, e que vou alternando com o
belo tabaco ‘Holland House’ que a família me envia de Lisboa através da Embaixada
moçambicana e do SNASP.
O que é que havia mais a fazer em Nampula? Conhecia-se gente amiga, e nem
todas as amigas eram namoradas, por mais bonitas e simpáticas que fossem, como a
‘Estrela’ de Nampula, vizinha do Tropical: esta, mora num quarteirão defronte, junto
ao cinema. Havia até uma canção muito em voga, passava bastante na Rádio
Moçambique, a ela dedicada, a ‘Estrela de Nampula’.
E bem, eu tinha a Lurdes e o Zorro também arranjou uma namorada para
esses dias. Aliás, duas. Quanto à Helena, o gajo não tem pedalada para ela: ‘A Raquel é
muito meiga, muito mulher, dizia ele, mas a Helena, sócio, sabe todos-truques! Muita
aprendizagem com os cooperantes, está-me a pôr maluco!’, lamenta-se ele. Até hoje
não me contou bem o que é que a Helena lhe fez! A Raquel, morava numa rua que
dava para as traseiras do hotel e tinha um filhote de menos de dois anos a quem o
Zorro havia posto a alcunha de ‘Pinguim’.
Por estes dias acompanho ainda o Zorro a uma sessão para ver um ‘western’,
o Arizona Júnior, no Cinema Moçambicano, ali perto do Tropical, com uma razoável
densidade populacional de piolhos e pulgas por espectador. E entretanto arranjara eu
mais uma amiga ‘chegada’, a Zainabo, a terceira de cinco que alegrariam esses dois
meses de Nampula, uma parasita de outro quilate: a Zainabo é mais tradicional e
vinha naquela do get the most that you can (apanha o mais que puderes). Logo de chofre
ia sendo o meu kispo, o único que levara para Nampula, que estava na calha. Ficou o
kispo e levou logo foi um par de patins, como soe dizer-se.

Bem, a vida não era só gajas e ‘Floresta’ e pinocadas... Então, a faceta cultural
disto tudo? Foi assim que nos decidimos por uma visita de estudo, além da suecada
vespertina, dos dominós, dos refrigerantes e cervejolas batidos ali nas soalheiras
tardes deste Tropical sempre emoldurado pela verdejante relva e os ondulantes
caniços que juncam o trilho até ao estádio do Namutequilua ali tão próximo. Fomos
pois à nossa visita de estudo. E que visita!
Partimos em visita de estudo, como muito bem disse, às duas destilarias dos
tais portugueses, madeirenses. Uma, dentro dos próprios limites da cidade, destilava a
partir de banana, a marca Enika, e de papaia, com o rótulo Mamão. Visita cuidada e
forte, devidamente ciceroneada e que nos valeu ainda a oferta, a cada um, de um
exemplar de cada produto, que é também devidamente degustado e apreciado já na
calmaria Tropical, antes de mais uma noitada Florestal. Ai Nampula, Nampula! As

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mulheres de Nampula, as pistas de dança de Nampula, as bebidas de Nampula que
ajudam a esquecer os ameaçadores mosquitos e a guerra que parece coisa lá tão longe,
obliterar as memórias da África do Sul, Phalaborwa, a Lisboa dos comunicados, os
medos de Maputo...
Nos arredores, dias mais tarde, pois isto constituiu um autêntico ‘tour de
force’, foi a vez de o bairro de Carrupeia e a fábrica da bebida com o mesmo nome
serem brindados com a nossa atenção e visita. Estudo mais aprofundado aqui, levado
até às últimas consequências. A ‘Carrupeia’ é destilada a partir de uma mistura de
frutas incluindo laranja e toranja, desfeitas e fermentadas em... banheiras! Estão ali
todas à nossa frente alinhadas sob uns toldos em lona, ao sol, temperadas de moscas,
moscardos e outros insectos. Qu’importa?! É tudo p’ra destilar! Levam-nos à casa do
alambique. Dão-me a provar, eu insisto, num copo de dois decilitros, a ‘primeirinha’.
A primeirinha é a primeira aguardente a sair do alambique, a mais forte em álcool, ali
o alcoómetro mede bem 72º. E eu a emborcar aquilo tudo, dois decilitros límpidos
como cristal mas a 72º. Têm que me levar em ombros para o jipe, a camisa toda
transpirada. A prova está concluída.
Já no Estrela Vermelha havia ensaiado as aguardentes tradicionais, habituais
em todo o país, com uma garrafa de ‘tontonto’ ou ‘nipa’, uma aguardente feita a partir
de cana de açúcar e que, de então para cá, mesmo passados mais de dez anos, me
continua a enjoar, tal a dose nesse dia emborcada. Nem caipirinhas me aproximem do
nariz que é logo um turbilhão no estômago. Só sei que nessa tarde até dancei a canção
‘Tio António’ do Sam Mangwana. ‘Tio António’!, passaria então a chamar-me o Zorro.
De três em três dias fazia a partir do hotel o telefonema da praxe para Lisboa,
para a família. Estão todos bons mas seguem sempre ansiosos, apreensivos, a minha
odisseia distante.
Junho estava no fim. Nalgumas madrugadas cacimbosas e de lua cheia o rugir
do ‘leão’ trespassava aquela poalha diáfana que invadia o cinzento da noite. O ‘leão’
despertava no hotel, mais uma ‘recaída’, claro. Rugidos assustadores que por
brincadeira lançava pela janela, e além dos comentários amargos do guarda-costas
Zorro, no dia seguinte, geravam de imediato uma série de berros e batidas nas portas
por parte de cooperantes romenos e outros hóspedes que queriam dormir para se
levantarem cedo.
As tardes desdobravam-se preguiçosas embaladas em músicas extraídas ao
decrépito gravador: Simply Red, Sam Mangwana, cantores zairenses, das Antilhas, de
Angola, Moçambique e Cabo Verde desfilavam dezenas de vezes a fio. Ocasiões
houve em que a carga alcoólica era tal que recomendava à sesta e à permanência um
pouco mais, após o almoço, nos aposentos.
E é bem verdade: álcool e armas não combinam. Mandáramos abaixo duas
botelhas de vinho, ao almoço, lá no Estrela, e do que é que eu me lembro no regresso
ao hotel? Na recepção mando chamar o cozinheiro deles e peço uma tampinha com
óleo... vou lubrificar a Walter! Isto passa-se no quarto do Zorro, o Zorro junto à janela a
dormitar / ressacar sobre uma das camas, eu na outra, perto da porta, a Walter já
meio desmontada, mete carregador, tira carregador, trava, destrava, mete carregador,
acciona culatra, tira carregador, mais óleo, trava, destrava, óleo no gatilho...
Bradabaaamm!!! Uma dor quente inunda-me a face sobre o malar direito. No meio do
torpor vejo um botão do kispo a rolar sobre a colcha... Foda-se! Não é botão, isto é...
a bala!

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– Dá cá isso sócio!, o Zorro a berrar. ‘É essa merda! Essas brincadeiras! Viu?
Viu o que aconteceu? Tu podes estar morto! Viste isso?’ Apontava para o orifício na
parede em frente. Bendito construtor mafioso que pusera mais areia que cimento. A
energia cinética do projéctil fora quase toda ela absorvida no embate com a parede,
‘comida’ pela areia. A bala espalmara-se, aquecera. Não passa de um botão metálico
quentíssimo quando regressa e me atinge na cara. O quarto parece ainda reverberar
com o estrondo quando surgem hóspedes, empregados, o gerente, o cozinheiro. ‘Está
tudo bem, tudo bem!’, sossega-os o Zorro. ‘Tudo sob controle!’, confirmo eu, a face
inchada.
E Junho está mesmo no fim. Veio a informação de Maputo: íamos regressar.
O Ministro da Segurança, Mariano Matsinhe (o ‘2M’, como eu dizia) passara em
Nampula e eu através do Director Faustino fizera saber que estava farto da
permanência ali e que queria regressar à capital. Já me havia aborrecido com o
Faustino, então, sobre a falta de verbas, “o ‘pocket money’, vem ou não vem?”. Fecho-o
na sala da flat: ‘Então, oh Cow-boy, como é que se resolve isso, hein?!’ E a nota lá
veio, mas esta malta funciona assim, aplica às vezes uns fundos noutras alíneas não
previstas. É preciso protestar para que as coisas sejam repostas. ‘O interruptor do
cérebro do sócio!’, ri-se de novo o Zorro.

Efectuou-se, como já antes dissera, uma pequena festa de despedida na


véspera da viagem de retorno, no restaurante do Estrela Vermelha, com uma
variedade extensa de pratos de carne e peixe em sabores típicos locais, e além de
gente do Estrela, surge pessoal do SNASP e das forças locais de polícia nossos
conhecidos.
A Lurdes não falta à última noite no Tropical. Já tínhamos estado juntos na
Floresta até às tantas. Parecia tremer, a miúda, entregando-se completamente. Não
queria abandonar Nampula, ela, nem tão pouco a minha situação em Maputo estava
devidamente cristalizada. Tudo o que podia ser ocorreu então numa noite como se
isso fosse possível, tal compactação de tempo, gestos e afectos. Nem os mosquitos,
dir-se-ia, se atreviam a perturbar tais momentos, embora a Lurdes tenha depois
puxado o lençol, cobrindo-nos como uma pequena tenda, envolvendo-se de seguida
num fellatio tremendo, e ela uma felina ronronando, murmurando palavras como
doçura e mel, e virando-se cento e oitenta graus para que ao mesmo tempo eu a
satisfizesse igualmente nas entranhas das suas partes húmidas que um triângulo de
pelinhos macios levemente esconde. E foi assim que a alvorada de 3 de Julho nos veio
encontrar. Depois, foi tudo demasiado rápido até ao momento em que nos apartámos
num longo beijo e abraço de despedida, já nos degraus fronteiros do Tropical.
E quase na hora de zarparmos do hotel há um sibilar, estrondo tremendo,
como o de um RPG-7 a detonar, só vejo gente, tropas mesmo, que passavam
defronte, derrubados já ou a lançarem-se para o solo. Logo outro estoiro... Não é
mais, afinal, que uma dupla rapada de MiGs da Força Aérea, em dog fighting, manobras
de perseguição, num treino razante ao solo. Diversas passagens se seguiram,
perigosamente efectuadas a uma velocidade quase supersónica, as vidraças
sobrevivem contudo à experiência.
Então, ao meio-dia deste 3 de Julho de 1988, e para mim que sou fã dos
Doors a data de 3 de Julho é sempre simbólica, sendo hoje o 17º aniversário da morte
de Jim Morrison, em Paris, bem, como dizia, eu e o Zorro vamos mesmo para o
aeroporto.

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Vejo a Aurora, num relâmpago, ela à procura de um novo amigo cooperante
que também embarcava para a capital. Descolamos cerca das catorze horas. Nampula
e as suas serras arredondadas ficam para trás. Nampula e as suas mulheres de formas
torneantes, cada vez mais longínquas... Fazemos escala na Beira por não mais de
sessenta minutos, e não há que desesperar. Apontamos já a Maputo e às suas gentes, à
variegada fauna feminina onde não faltarão representantes sempre em ânsia das
histórias deste ex-‘cabecilha’. É já ao lusco-fusco que o trem de aterragem acaricia o
asfalto da pista 05 após contornarmos a Matola, o Língamo, a Catembe, e cruzarmos
o braço da baía. Espera-nos um transporte da Segurança e somos levados, não para a
COOP, mas de novo para o hotel do partido, o Hotel Rovuma. Suites 429 e 430.

DEPOIS DA TEMPESTADE A BONANÇA: O REGRESSO À CAPITAL. AS


LOUCAS NOITES DO CALIFÓRNIA E AS TÓRRIDAS MULHERES DE
MAPUTO
O tempo arrasta-se agora como um réptil preguiçoso, muito lento, por entre
as limitações de uns trocos em meticais que o Ministério aleatoriamente envia, em
complemento ao que paga com a estadia e alimentação no Rovuma.
Depois, começa a ser um hábito, vou com o Zorro até ao Aeroclube de
Moçambique. É nesta altura que reencontro muitos dos companheiros de
paraquedismo de outrora, do meu curso e seguintes, e alguns mais veteranos
ainda, revejo o meu antigo vizinho, o Dinar, instrutores, malta da pilotagem e tantos
outros. E obviamente, conheço malta nova que se tornam bons amigos, como o
Danúbio, a trabalhar na Polanacolor, e o irmão, o Octávio, das Linhas Aéreas de
Moçambique. Passam a visitar-me no Hotel Rovuma com regularidade.
E juntam-se-lhes outros, paraquedistas também: o Romão, electrotécnico, o
‘1º de Junho’, este já era do meu tempo, eu sei lá… Chegamos a ser um grupo de
doze, de quinze, ou ainda maior. Mais um colega do Danúbio, o Boavida, junta-se
também ao convívio. Desgraçado do Boavida. Uma vez apanha uma piela de caixão à
cova e ainda lhe deu para fumar um charro e do meu cachimbo de pau preto que
enchêramos com mais ‘suruma’, só topamos o Boavida a cair para o
lado, literalmente, a noventa graus, no sofá. Rebocámo-lo até ao chão da varanda da
suite para apanhar ar fresco, mais o frio do chão. ‘Faz-lhe bem!’... diz um deles. Lá
está ele, de borco, até que minutos mais tarde um gorgolejar nos chama a atenção: o
Boavida está ainda de lado no chão, a vomitar, deitado e tudo, grãos de milho de
maçaroca e cerveja a escorrerem-lhe da bocarra. E isto antecipou as coisas, o
Danúbio e o Octávio lá saíram mais cedo para remetê-lo à respectiva residência.
Afinal o Aeroclube e a malta não estão assim tão mudados em oito anos e meio!
O Rovuma tem boite própria a funcionar sextas e sábados à noite. Já lá
estivéramos antes. Insistimos em voltar, eu e o Zorro. Um reino de caos, música
africana e ‘Antilhas’ bem frenética, barulheira estridente que estoira com a escala
‘decibélica’, como lhe chamo. A atmosfera carregadíssima de calor, suor e fumo.
Acontece, lá termos ido estas poucas vezes. Esta, creio, seria a última, sempre a surgir
mais malta a querer-nos pagar ainda mais bebidas, cervejas, pessoal do Partido
querendo ser simpático, mas uma confusão comprimida, compacta, de gente,
impossibilitando qualquer movimento. O Zorro, esse então, estava que nem peixe na
água, e emborcou uma vez mais até ao limite, para além do limite. Resultado: eu é que
tenho que trazer o Zorro praticamente às costas, a reboque, até à zona residencial do

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hotel, o pessoal da recepção a rir, eu a servir afinal de guarda-costas ao meu guarda-
costas de olhos esbugalhados, glaucos, a balbuciar qualquer treta sem sentido.
Entretanto, por um destes dias, o Ministério coloca na minha suite uma TV a
cores e um aparelho de vídeo. A malta do Aeroclube encarrega-se de trazer diversas
cassetes, bem como o agora mais afável José Luís Cardoso, que se tornaria um bom
amigo: ele é o director de gabinete do Ministro. Chego a encomendar jantares para
dezena e meia de pessoas e as respectivas bebidas, cervejas, martini, scotch, vinho
português. No Ministério o director financeiro da D-13 diz que os gastos atingem já
os de um pequeno departamento e querem ver se arranjam uma residência. A da
COOP, dizem, ‘está ocupada’.
O Zorro arranja mais duas histórias neste entretanto. Primeiro, uma caldeirada
de todo o tamanho ao fazer vir de Nampula a Raquel e o ‘Pinguim’, e é claro, a
Rosália, a esposa, maconde terrível, desencadeia uma incursão surpresa ao Rovuma e
numa emboscada fila-o, parte-lhe o relógio a martelo, enfim, o que se estava à espera
numa situação destas. Poucos dias depois, deve ser ainda o stress da situação, e na
sequência de uma piela monstra do Zorro, tenho que lhe aliviar a Walter dos
respectivos ‘comprimidos’. Contam-me depois que o Zorro chega a casa a comer
laranjas e numa bebedeira tal que só lhe passa dois dias depois quando retorna ao
Rovuma.

Vou várias vezes ao snack-bar ‘Califórnia’. É a velha cervejaria Laurentina dos


tempos coloniais, perto do Rovuma, na esquina da Ho Chi Minh (Andrade Corvo)
com a Vladimir Lenine (Augusto de Castilho). Bebe-se ali até às tantas, madrugada
adentro, por vezes até à alvorada, até ser dia se preciso for.
E é numa destas noites longas que conheço a ‘Tainha’, ou antes, a Berta. No
meio de muito fumo de cigarro e suruma e de odor a cerveja que continua a jorrar,
barril atrás de barril. Não, desta vez não fui eu que lhe pus a alcunha. A Berta seria
também um caso sério no início deste novo período, pelo menos nas primeiras
semanas. No Califórnia veio bamboleando-se, franzina, um fio em pé, à distância, até
à minha mesa, numa destas madrugadas, ‘só para uma última bebida’. Sorridente, põe-
se a contar algumas piadas com certa ironia, provocadora, ela, no diálogo, a espicaçar
sempre uma certa agitação. Em termos informáticos diria que tem uma bios, um cerne
intrinsecamente provocador. Após essa ‘última bebida’ decidimo-nos mesmo por uma
última bebida na minha suite do Rovuma. Ora, creio que no subconsciente eu
buscava um prolongamento da ‘Ventoinha’, e a Berta ali estava: quase o mesmo corpo
franzino, também mista de chinês e mestiça, atiradiça, maneirinha para o ‘helicóptero’
como soe dizer-se, e com a escola completa. É ela pois quem preenche muitas das
minhas noites de Julho. Mora cá em baixo no fim da Avenida Patrice Lumumba (a ex-
Brito Camacho) a avenida onde residi até 1979, e mesmo por cima do café Dª Elvira,
no antigo Prédio Fiul.
E eu perdido por esta Tainha... no Dª Elvira emborco uma vez 22 cálices de
vodka pura, sem gelo nem nada. A Berta mantém-se nas cervejinhas. ‘Em vez do
hotel vamos para minha casa, pede ela. É aqui mesmo por cima, no último andar.
Nono.’ Com toda aquela garrafa completa de vodka no bucho aceito o desafio, a
escalada. ‘O que não se faz... não é? A pôrra, o cabrão do elevador, claro, há muito
que está avariado. Nove andares, mas são mais, isto é uma merda, há andares duplos,
o que um gajo faz atrás duma pachacha!, vou rosnando para mim. Mas a Berta
esforça-se, merece!’. Passámos uma noite terna no apartamento dela, luz discreta que

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deixa perceber uma casa cheia de enfeites orientais, estatuetas e quadros esquisitos,
extravagantes e originais, mas também com um certo ar reggae e de culto à cannabis.

Há toda uma fauna variada e bravia a pulular aqui no Califórnia. Temos o


João do Sheik, um tipo da Beira e pequeno dealer que se movimenta entre as várias
mesas qual bola de flippers, o Flash, outro gangsterzeco, e o Mano Gipsy, que param
tanto aqui, como no Dª Elvira, e noutros lugarejos sombrios, antes de apontarem à
baixa da cidade. O Califórnia não é contudo poiso só reservado a esta malta. Cá
aterram também o Betinho Wate, da Segurança, e grande amante de George Benson,
que pede para porem a tocar, e mora aqui perto, e o Nyerere, que conheço também
do Ministério, claro, bem como o meu amigo Dinar, do Aeroclube, meu colega do 9º
curso de paraquedismo nos idos de 1978 e ‘79. É verdade: o Dinar mora também por
aqui, a dois passos. E depois, logicamente, conheço a Rita, a ‘Ritó’, esposa deste
Dinar, e que à noite frequenta a escola secundária defronte ao Califórnia antes de
atravessar a rua e vir para a ‘Faculdade de Copofonia’.

E a Rita, que como é óbvio tem colegas, elas!, apresenta-me uma amiga, a
Sónia, bem alta, parece quase uma versão mais bem proporcionada da Grace Jones, e
que é da Matola, e é portanto a Sónia ‘Matulona’.
Para complicar ainda mais a caldeirada, a Berta ‘Tainha’ é também amiga do
Dinar e da Rita. Chegamos a páginas tantas que a Tainha e a Matulona são ambas
minhas namoradas. A Sónia é pois o oposto da Berta: altíssima, sem ser magra, bem
nutridinha, uma cabeleira ao estilo Angela Davis (lembram-se dessa americana?), uma
negra clarinha, estudiosa e amante da noite e dos prazeres vários! Quem diria que
com a minha idade ainda teria uma mulher a ensinar-me truques, mas bem, deixei-a
prosseguir num animado ‘fellatio’ logo na segunda noite em que insistia ir-me regando
o membro a cerveja Amstel. A Sónia é assim. Matulona e Malucazona... A nova
situação só levou a uma gestão mais cuidada das noites para ir acomodando a ‘escala’
necessária a todas estas manobras, isto é, à gestão dos recursos humanos. Um curso
completo.
E ameaçava isto a breve trecho tornar-se no tal campeonato de que falara o
‘Aparece-Desaparece’, o João Carlos Esteira, pois vinha já aí uma séria terceira
concorrente, a Dilma.
A Dilma era uma moçambicana baixa e rechonchudinha, com uns ‘pára-
choques’ confortáveis, como eu dizia, tornada portuguesa pelo casamento que tivera
entretanto um ponto final. E em Maputo todos conhecem todos, todas conhecem
todas, e era fácil nesses dias a conversa ir ter ao Paulo Oliveira, e pronto, a confusão
estava instalada. O corrupio não tinha fim. A Berta, a Sónia, a Dilma, passam comigo
cada uma por sua vez vários dias, noites longas, neste Rovuma, bem como outras
amigas: a Tuta, a Fátinha (depois empregada num restaurante da Feira Popular) e,
outro caso sério que entretanto aterra: é a Rosa, a Rosa do prédio Zambeze, uma jóia
da noite pescada ao acaso na 24 de Julho, por mim e pelo Dinar, juntamente com
outra amiga. Baixotinha, franzina, mas mexida, oh lá! se não é! Eléctrica, ecléctica.
Esquelética, não! E sabida em todas as artes do prazer e da sedução. Figura miúda
mas onde sobressaem as perninhas musculosas, o rosto redondinho, e uns lábios, uns
lábios, todos eles, bem carnudos.
E temos ainda uma Madalena mas esta não passa de um número apenas, uma
outra tipinha mista, conhecida no Califórnia e (re)vista depois em festa posterior no

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próprio Rovuma. É por esta altura também que a ‘cantora’ vem estacionar na suite.
Dá pelo nome de Filó, a Filomena, pretendente a cantora na boite Sanzala, junto à
Facim. Mostra-me logo várias fotos de micro na mão, que arrancam desde já outras
imagens pecaminosas à minha mente, ela vestida a lantejoulas. Temos aqui mais outra
coincidência interessante: conta-me que o pai era contínuo-chefe no Liceu Josina
Machel (ex-Salazar, onde eu estudara) e que trabalhava lá há muito, muito tempo.
Mostra-me a foto tipo passe do pai, que acabo por reconhecer. A Filó desdobra-se em
espectáculos para além do canto e creio não a ter deixado ficar mal, em atençãozinha,
também, ao papá, claro, em memória dos velhos tempos. A moça, aliás, percebe de
microfones!
Devem pensar por esta altura que eu já estava por aí pendurado e esquecido
pelo SNASP, só gajas e cervejolas e malta do paraquedismo... Não é bem assim. O
Zorro ocupou durante certo tempo a suite ao lado, a 430. O pessoal do Ministério
chegava a vir três e quatro vezes por semana. Continuo nalgumas noitadas
acompanhado pelo Zorro, se não era o Califórnia, era o Rodoviário, o
Central, também na 24 de Julho, mais próximo do Cine África (ex-Manuel Rodrigues),
ou íamos ainda até ao Micael, nos confins para lá da COOP.

Depois, há os almoços dos sábados. É a almoçarada da praxe em casa do


Dinar e da Rita. Eles têm dois putos traquinas, o Dinas e a Ritinha. Sendo o Dinar
mestiço e a Rita negra, os miúdos saíram dois diabretes a atirar para o misto,
agitadores natos, independentemente da cor. O hábito era irmos ao Mercado Central
(o ex-Vasco da Gama) e enchermos os cestos de galinholas, caranguejos, camarão,
mais os acompanhamentos da ordem. Quase sempre era uma carilada valente,
devidamente carregada em piri-piri. As cervejas vinham em latas ou eram os vulgares
xigumbogumbos, as garrafas plásticas de dois litros de coca-cola mandadas encher no
bar mais próximo com cerveja do barril. Mais raramente, era um cartão de vinho sul-
africano, embalagem de cinco litradas, ou uma garrafa de scotch para rematar,
adquirida no dumba-nengue. E não esqueçamos a propósito o aperitivo, pobre
substituto do vinho do Porto, a xitipandota, um licor destilado de toranja, naquela
altura já devidamente controlado e industrializado, com 37 graus alcoólicos, mas
contam-me histórias de aquando do seu lançamento: era a bebida ‘derruba homens’
como diz o nome, com graduação de 60 e 70º, e que enviou gente desta para melhor.
O problema com o Dinar é que se anda a meter na droga. Já não falo na
inocente suruma (liamba, cota-cota, dagga, tchemba, ganza ou outro nome que lhe
queiram chamar). Estou a referir-me ao cavalo, à heroa (heroína), à coda (codeína) aos
speeds, etc. e tal. Ele e um grupo considerável, e estes então não era só o consumo
mas o que faziam para conseguir manter o nível de absorção. O Dinar tinha sempre
empregos fixos, Caminhos de Ferro, armazéns, mas a outra malta vivia do ar, do
expediente: era o caso do Qui-Qui, da Dina, Norinha, Susana ‘Tetas’ Oliveira (são
portuguesas, estas três), o Gregório... No meio das peripécias todas desse consumo o
Dinar já usava a ‘gringa’ (a seringa) pra meter prá viola (veia) e desenvolvera entretanto
uma infecção séria nos dedos das mãos. Uns dizem poder ser início de sida, mas outra
história relata que lhe haviam frito os dedos no Califórnia após uma confusão que
acabara no não pagamento da despesa e ele todo drogado a querer enfiar um pau de
vassoura pela pachacha da Rita adentro... Uma cena felliniana, ao que contam.
Bom… além das drogas e bebida em geral, há neste quadrante, o das
bebidas, um gosto em especial do Dinar: é o ‘chindere’, como chamam aqui no sul à

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aguardente de cana. E o que não falta por aí são as ‘tias’, as donas de casas onde a
vendem a copo. Ainda me leva duas ou três vezes a uma, em frente ao prédio Invicta,
mas fico-me pelas cervejas e por meter a tocar na aparelhagem as cassetes dos Doors,
Live at the Hollywood Bowl.
À porta da casa do Dinar compra-se outra bebida cafreal, a cabanga. Cabanga
ou ‘mal coado’. Uma cerveja feita à maneira indígena, fermento de cereais vários, e às
vezes, ao que dizem, aquilo até ganha uns bichinhos. A mistura é depois passada,
coada grosseiramente por um pano, e é então servida, sendo um refresco de teor
alcoólico de cerca de 10º. E isto vem desenterrar outras memórias, a lembrança de
Potgietersrust, a Base de Comando Recuado, no distante 17 de Outubro de 1983.
É a tal cerimónia do aniversário da morte do André Matadi Matsangaíssa, o
primeiro presidente da Renamo. O ‘17’ para a Renamo terá um valor quase
cabalístico. Em 17 de Outubro de 1977 era dado início à luta armada, isto,
oficialmente. Dois anos depois, em 1979, saindo das montanhas, preparado desde a
véspera pelos curandeiros, dizendo-se imune às balas inimigas, o comandante André
avança à frente dos seus homens contra a Vila da Gorongosa. Surgem os primeiros
tanques russos, a cavalaria e infantaria governamentais. Mas aquele avanço rebelde é
imparável, peito oferecido à brisa matinal, ao inimigo, no clamor da batalha soam os
primeiros estampidos das potentes peças dos blindados. O André desaparece logo ali,
trespassado literalmente a meio do corpo por um obus.
Quatro anos depois, nesta base próxima a Potgietersrust, é a tradicional
cerimónia anual. O 17 de Outubro de ‘83. Quatro anos se passaram já e é o
Dhlakama, na sequência de um processo de escolha quase aleatório, e com o
consequente ‘calar’ de outro potencial comandante adjunto, que está alçado a chefe-
mor e presidente. Ao mesmo tempo estamos ali a comemorar os seis meses da morte
do ex-secretário geral, o Orlando Cristina, abatido em Pretória a 17 de Abril. Uma
curiosidade do caraças… não me canso de afirmar. É que precisamente cinco anos
mais tarde, a 17 de Abril de 1988, morreria em Lisboa o Evo Fernandes.
Termina a parada nessa farm sob controle militar em Potgietersrust. As
palavras de Dhlakama dinamizaram a audiência, fizeram a súmula dos últimos
sucessos no terreno. Agora é a comunhão. Estou junto com os chefes de estado-
maior. É a primeira vez que tomo cabanga, preparada e benzida pelo curandeiro
daqui da base, o Jofrisse. Vem numa cabaça enorme este líquido turvo, de textura
grossa, malcoado. Com uma cabaça pequena, e qual sacerdote, o Dhlakama verteu
um pouco para o solo, ‘para os espíritos, para os antepassados’, e vai agora
distribuindo-a por todos, todos bebemos das mãos dele pela mesma cabacinha
pequena. Um ritual como se impõe.

Volto a encontrar-me com o Rafael Custódio, corrido entretanto de Lisboa,


dão pois o homem como ‘personna non grata’ na sequência do caso Fernandes, e visito-
o numa noite na sua residência das Torres Vermelhas. Tinha-me trazido para Maputo,
e estavam com ele ainda, algumas das minhas cassetes vídeo. E aqui no hotel
continuo a contar com a presença dos ‘Danúbios’, o próprio Danúbio e o irmão
Octávio, e a outra maralha do paraquedismo, sempre com novos filmes para
assistir, 50% para o estilo porno: ele são a Minouche, o Garganta Funda, e toda uma
série do género. E conseguira eu entretanto uma cópia do Apocalypse Now, o meu
filme de culto preferido, e não há sessão alguma que não principie pelo ‘Apocalypse’.
É este o rito. O Kurtz, o Willard, o Killbird dos hélis com o seu I love the smell of

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napalm by the morning..., desfilam todos até aos the horror!... the horror! derradeiros de
Brando. Só então, após ‘a missa’, se passa às novidades.

NA EMBAIXADA DA URSS: AINDA OS RUSSOS DESAPARECIDOS. A


ENTREVISTA COM A PRÉMIO NOBEL NADINE GORDIMER

‘Não, não estou a par de qualquer actividade ou operação do género, nem estaria disposto a
debater tal operação mesmo que de facto tivesse existido…’

Apesar do distanciamento temporal em relação ao meu regresso e à


conferência de imprensa, as entrevistas não param e eu sinto até certo prazer em
manipular a minha imagem e dar, além daquilo que procuram, uma certa
originalidade, algo fabricado. Tirando a frieza para com ‘esses cabrões’ da equipa de
TV da Alemanha de Leste, como os considero, e que encontro numa moradia da
Sommerschield, foi tudo bem recebido.
Quando chegam à minha suite, os outros alemães, os da TV da RFA,
encontram o espaço já amaciado numa densa neblina doce de ‘cannabis’ proveniente
do cachimbão em pau-preto, a carburar em pleno com várias cabecitas de peganhenta
cota-cota. Os sorrisos e inalações profundas deles denotam logo um reconhecimento
positivo dos compostos a bailar na atmosfera. E uma ou outra semente estaladiça vai
marcando alegremente o ritmo da entrevista. Na Polana, na Rua Friedrich Engels,
alongo-me numa entrevista com jornalistas americanos e canadianos, e no Polana vou
ao encontro do correspondente da Reuters.
E quanto ao tratamento quase VIP do Rovuma e às expectativas próximas?
Bem, a D-13 do SNASP às vezes deve de se fartar com os meus telefonemas
nocturnos e reclamações, eu com uma carga de barbitúricos no bucho, afinal sem
dormir, e a chateá-los. O José Luís Cardoso do gabinete de ‘sua excelência’, aqui o
‘sua excelência’ é o Ministro da Segurança, tenta acomodar as coisas o melhor
possível. O Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane
contacta-me por telefone para ajudá-los a esclarecer algumas questões históricas da
RENAMO, e o seu director virá até ao Rovuma.
Telefona-me o próprio Ministro da Segurança, Mariano Matsinhe: ‘os
camaradas soviéticos da Embaixada querem dar-lhe uma palavrinha...’. Camaradas o
caralho!, penso eu, mas digo aceitar o encontro.
Já estava mesmo a ver o assunto… outra vez a merda dos russos! Foda-se! Lá
rebobino a merda toda desta história. Em Agosto de 1983 a RENAMO atacara essas
minas de Morrua, na Zambézia, minas de tantalite, um mineral estratégico. Há mortos
entre a russalhada, logo no ataque, feridos, e o tal grupo de 24 que é raptado. Quantas
vezes tenho que repetir esta porra? O exército persegue, a África do Sul mandará
libertá-los, exige, ameaça Dhlakama, e enfim, há uns a quem eu e o Raul Domingos,
Chefe do Estado-Maior de então, déramos entretanto uma sugestão de solução
diferente.
No dia imediato o Zorro vai comigo ao edifício da Avenida Agostinho Neto
(ex-31 de Janeiro) junto ao Cinema Continuadores (Nacional). Os russos estão todos
simpáticos, pudera!, e conduzem-me a uma sala no 2º andar onde sou recebido por
um responsável da Embaixada. Uma secretária traz-nos café e bolinhos. Mais
simpatia! Queriam pois saber o que era feito dos tais dois russos ainda desaparecidos
após estes anos todos, desse lote raptado em Morrua, no âmbito da operação que eu

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baptizara então como ‘Agosto Vermelho’ quando estive ligado à sua sistematização,
desenrolar, e acompanhamento informativo e propagandístico: uma operação visando
principalmente pessoal do bloco de leste.
Já em Lisboa eu e o Evo Fernandes tivéramos o encontro, sem resultados,
claro, com o 2º secretário da Embaixada da URSS na capital portuguesa, com o tal
Lev Poronin, e o tema era o mesmo. O Fernandes não tinha novos elementos, eu
também não me descosia com o que sabia. O Dhlakama, em público, não falaria
nunca nessa falta de dois elementos na ‘contabilidade’ sobre o grupo raptado em
Morrua. Nalguns escritos privados havia porém um documento em que se referia ao
caso: ‘os dois russos já foram para o abismo do comunismo’, relata ele, irónico.
Agora aqui na Embaixada soviética em Maputo, é óbvio que eu nada mais
posso acrescentar além de que ‘ignorava tudo sobre o assunto’ e que melhor seria
tentarem contactar o Jorge Correia, ex-delegado em Lisboa, e que logicamente não
sabe mesmo nada. E creio que eles perceberam a anedota daquilo tudo pois quem
estivera no mato, na altura, era eu. E para mim a russalhada continuava a ser o
inimigo, enquanto ainda ‘mexessem as patitas’, a nível planetário.

E por fim veio a derradeira entrevista dada no Rovuma. Só mais tarde, na


COOP, iria aparecer uma equipa de congressistas americanos a compilarem uns
dossiers sobre violações dos direitos humanos cometidos pela RENAMO, etc. e tal.
Quem surge portanto, agora, é alguém enviado pela SABC, a corporação de
radiodifusão e televião sul-africana. É uma equipa, aliás, a efectuar um programa
especial dedicado à guerra civil em Moçambique. O grupo é liderado por uma famosa
jornalista e escritora, a Nadine Gordimer. Poucos anos depois será conhecida em
todo o mundo ao receber o Prémio Nobel da Literatura. É uma senhorita já de idade,
frágil, muito faladora e simpática, tem alguns traços que lembram até a Lucinda Feijão
que eu conhecera em Pretória no escritório da RENAMO. Nadine é de ascendência
judia, a família imigrara para a África do Sul no início do século. E, está bom de ver,
eu tinha uma encenação para este team. Numa dessas noites de cervejola e charros,
como mais adiante explano, eu e o Dinar tratáramos de retocar o quadro grande
pendurado na sala, uma pintura com uma aldeia junto a um rio sinuoso. E bem à
moda do ‘Apocalypse Now’ acrescentamos helicópteros, bombardeamentos de
napalm, antiaéreas, etc. Estão a ver o quadro, aliás, o cenário?... e o que a D-13 teve a
mais que desembolsar com a estadia?! Faltava o envolvimento sonoro. Obviamente, o
‘The End’, a voz de Jim Morrison, o som dos The Doors. A Nadine queria um plano
filmado, anterior à entrevista propriamente dita, e acho que conseguiu algo de
original. Fizemos vários ‘takes’, ela a bater à entrada da 429, eu a abrir a porta como
que surpreso, a música dos Doors a troar logo, avassaladora... E a Nadine a comentar
na peça: ‘... vim encontrar um homem perturbado, muito perturbado!’ Ah! Ah! Ah!

É com grande satisfação que recebo a surpresa arranjada por malta do


Ministério: batem à porta, mas agora não se trata de mais nenhum jornalista: ao abrir
depara-se-me o Albino Jossias Ngomane. Tanta coisa para as filmagens com a Nadine
e afinal agora é que é uma surpresa à porta. O Albino havia sido empregado
doméstico em nossa casa, na Malhangalene e na Patrice Lumumba, por mais de doze
anos, desde que eu era puto, e até 1979. O Albino...
– O que é que fazes, pá?, atiro-lhe. Como chegaste até aqui?
– O Ministério. O nosso Ministério.

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O Albino trepara até chefe do equipamento militar do Ministério, responsável
do paiol do SNASP. Está bem mais velho. Surge com um fato de treino vermelho,
vistoso. Claro que na nossa última residência na Patrice Lumumba, próxima do Hotel
Girassol, já o víramos muito próximo da gente da Residencial Monte Carlo,
controlada pelo SNASP. E é mais uma coincidência, o Albino está nesta altura no
posto antes ocupado pelo ex-cunhado, um tal Zandonga, daquela que seria a minha
futura companheira.

AS CÁLIDAS ÁGUAS DA CATEMBE E A ESCALDANTE DILMA


Por vezes pego nos meus livros e entrego-me à leitura descontraída por entre
a placidez verdejante, calmíssima, tocada pelas sombras frescas do Jardim Tunduru
(ex-Vasco da Gama) logo ali poucos passos abaixo do hotel. Leio mais Craveirinha e
também Calane da Silva, na sua ‘Xicandarinha na Lenha do Mundo’.
De resto a situação pouco se altera até ao fim do ano. Os almoços aos
sábados em casa do Dinar prosseguem mas uma semana resolvemo-nos por uma ida
até à Catembe na outra margem da baía. O ferry-boat encontra-se avariado e é uma
pequena e periclitante lancha que desafiadoramente efectua a viagem.
Não podemos deixar de procurar o afamado ‘Diogo’ que eles já conhecem e
eu me farto de ouvir falar em Maputo. Saímos da ponte cais e inflectimos para a
esquerda seguindo sempre pela orla marinha. À passagem pelo Clube Náutico
aproveitamos para repor o nível de segurança de cerveja e já não estamos longe do
destino. Que vista soberba, aqui, da minha cidade! Após o diáfano e subtil verde azul
da baía e sob o azul cobalto celeste entrecortado por alvos cirros, o skyline, o perfil, da
antiga Lourenço Marques é uma imagem que fica gravada a fogo, implantada em
qualquer mente. Imagino quando os meus pais cá chegaram em 1960, num paquete,
comigo ao colo, apenas com onze meses então, e o que terão sentido perante este
maravilhoso panorama.
E aqui em redor de nós, na Catembe, impera agora o manso cantar dos
eucaliptos, o murmúrio suave das casuarinas, afagados pela brisa constante que sopra
da Inhaca e das paragens mais a sul e que os fazem baloiçar parecendo cumprimentar-
nos num aceno em verde. Por fim, vencendo praticamente um túnel dessa vegetação
alta, nascemos para uma clareira onde alcançamos o Diogo, uma construção rasteira
em cor de tijolo, simples, duas salas em cotovelo, um balcão, e nada disso contudo
nos interessa. Por nada deste mundo iríamos abdicar da ‘esplanada’ e da vista
magnífica sobre o espelho da baía. Meia dúzia de mesinhas sorviam a sombra debaixo
do arvoredo e é logo aí que nos (re)dessedentamos em mais uma rodada de cervejas,
e cocas, para os putos do Dinar. A sombra, a vista, o rumorejar das árvores e o aroma
adocicado dos eucaliptos… os sentidos são literalmente assaltados por todo este belo
cenário, sensações balsâmicas.
Chegou entretanto a comezaina: os camarões com piri-piri, então, são
excelentes, regados com Laurentina, 2M ou a boa cerveja sul-africana. Não queremos
que o dia acabe mas já as sombras se alongam e beijam o azul das águas, o sol desce
para os azimutes dos Libombos inundando os eucaliptos e casuarinas num calmo
verde laranja, incendeia de rubro a cidade lá longe. E depois, sabemos que é altura de
partir, é a hora em que as cigarras começam o seu canto e como que nos incitam a
tomar o último barco de regresso.

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E o rol de namoradas continua a crescer, pelos vistos. Nem a moça da
tabacaria do hotel escapa, rebocada uma das noites de Sábado da boite do Rovuma. A
Rita porém é a madrinha-mor. Apresenta-me uma tal Carla, branca, a mãe andava no
engate há long time e a pequena não faltava muito para também lhe seguir as pisadas...
tudo bem. Até que uma das tardes cai-me de pára-quedas outra das prendas da Ritó.
Foi assim: estávamos em casa do Dinar a bater umas cervejas, uns xigumbogumbos,
quando chega a Emerência. É uma mestiça muito gira de vinte e poucos, cabeleira
volumosa, arranjada e alaranjada, ela muito bem apresentada, ‘emérita’, um vestidinho
leve, arejado, e logo ao final do dia segue-me até ao Rovuma. ‘Posso jantar contigo?’
Que outra coisa teria eu coragem de responder? Pronto… Uma moça mais que se
enrosca e entrega integralmente ao lusco-fusco daquele Sábado em que só perto da
meia-noite nos lembrámos do tal jantar e apelámos aos serviços do 10º piso. A
Emerência fora casada com um português que falecera e lhe deixara uma casa, uma
vivenda, no Bairro Triunfo, ali junto à praia no caminho para a Costa do Sol. A
Emerência contudo nunca se recomporia da perda, ao que parece, em termos
afectivos e psiquiátricos, deixara abandalhar a moradia, além de possuir uma filhota
para a qual não tinha às vezes muita cabeça para dela cuidar. Na manhã seguinte
deixo-a ainda na suite e vou à baixa, e ela promete voltar também, que já não quer sair
de ao pé de mim... ‘Mau, mau, mau! Foda-se! E a minha liberdade? Já me estão a lixar e a
reprogramar… a ser encurralado!’
Isto é daquelas armadilhas em que um gajo corre mesmo o risco de cair. Volto
da baixa e não é que a pequena já tinha ido a casa e vindo? Não reconheço o quarto: a
cómoda, armários, mesas de cabeceira, tudo cheio de bonecada, peluches! É com
muita diplomacia que peço para arrumar aquilo... ‘Ordem do Ministério, tenho que
me ausentar da capital!’ Ajudo-a até com certa mágoa a arrumar as coisas, a moça a
choramingar, bonita à mesma, é mesmo gira, mesmo a chorar... e bem, não desarma
nos dias seguintes, em tentativas de emboscada, um esconde-esconde autêntico,
espreitadelas, para eu conseguir fazer a ‘aproximação à pista’, à porta do Rovuma, a
recepção a auxiliar-me na filtragem. Já eu lhe tinha dito, mas por fim a Ritinha fala
com ela a acalmá-la e a explicar a situação, e a recomendar-lhe que voltasse ao
tratamento médico.

Estamos agora em Dezembro, um Dezembro quentíssimo como todos os


dezembros sob os trópicos e em que a redoma celeste parece derreter e tombar em
difusa luz cegante, dissolver cimento e alcatrão em ondulantes e tremeluzentes
colunas de calor. Neste Sábado decidira ir à Catembe. Combinara há dias com uma
das namoradinhas, a Dilma, a minha ‘número três’ do lote aberto desde que viera de
Nampula. Apanhamos a lancha-suicida, vai cheia, como sempre, a popa onde nos
sentamos quase a bordejar a água, deixando ouvir um tchap-tchap-tchap monótono.
Mamanas carregadas de cestos, fruta, volumes diversos, sobrecarregam o pobre
barquinho. “Se isto vai ao fundo, penso, por mim okay, sei nadar porreiramente, e a
Dilma, a Dilma também, além de ter este par de belos e cheios ‘flutuadores’. Não há-
de ser nada!”
Em meia hora chegamos à outra margem. O mesmo velho pontão de
atracagem. A mesma fiada de casas de pescadores sobre estacarias ali há décadas,
como se mirando a quietude desta baía-lagoa, costas viradas para os mangais, para o
Língamo, e lá mais ao fundo para os contrafortes dos Libombos. Rápido apontamos
bússola ao ‘Diogo’. A Dilma vai dando pequenos passinhos saltitantes, eu até abrando

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a minha marcha para nos mantermos a par, seguimos abraçados a maior parte do
caminho. É uma moça meiguinha, bem rechonchudinha e de cabelo curto
encaracolado, clarinha, e uma senhorita séria com a cabeça no sítio, não é dessas que
andam para aí a abrir com qualquer um. Mais à beira-mar, molhando os pés, lá
continuamos de mão dada, passeio entrecortado por um abraço estreito e tremente
ocasional, um beijo longo e húmido em que mutuamente nos acariciamos.
Conseguimos mesmo assim ir progredindo e chegar às casuarinas, aos eucaliptos e
pinheiral do Diogo, onde matamos a sede e acalmamos a fome abancados frente a
pratos de camarões. Quer provocar-me esta Dilma: um fio de cerveja gelada pinga,
escorre-lhe, e ela deixa!, sobre os seios, entre o vale pronunciado, na fundura que
dorme entre aqueles dois montes carnosos! E voluptuosa, sensualmente, mete mais
um camarão à boca, olhando-me, sem ligar ao fio refrescante que a molha.
A tarde avança preguiçosa e quente, inebriante, até que nos vamos banhar.
Não, não é em frente ao Diogo desta vez. Deixamos para trás os pescadores, os
barquinhos de vela triangular clara que voam ou balouçam hipnoticamente sobre a
vaga pequena entre o Diogo e o pontão do ferry. Vamos mais para a direita, umas
centenas de metros lá onde não se topa vivalma. A praia é nossa, o mundo é nosso...
Qualquer coisa habitada, só no perfil de Maputo a diluir-se na lonjura ou no voo
curvo de um Boeing fazendo-se à pista.
É vistoso e erótico o bikini dela, um vermelho que salta naquele cenário
balsâmico, uns deltas apertadinhos, pequeníssimos, tanto para os flutuadores como
para as pernocas e ‘partes vitais’... estou sentado mesmo na orla, nesta fronteira
mutante entre o dourado e o azul espumoso, a água morna a molhar-me pernas,
barriga. Ela ainda em pé agitando-me junto à face, bem à altura do rosto, as partes
apetecíveis que o vermelho quase não cobre, e reparo naquele umbigo, uma
buzininha saliente, e quando a puxo para mim não resisto, é para tocá-lo, premir,
empurrá-lo para dentro com a língua marota. E ela ri-se, rajada cristalina, o único som
que corta este silêncio, rematado só, em fundo, pelo marulhar suave. Como que
reflecte a cidade, o corpo castanho claro, dourado e brilhante, o dela, banhado já nas
águas e no esplendor desta tarde luminosa. Emoldura-se pelo verde que à esquerda se
desdobra para poente na direcção da vila e do ferry... mexe-se e retorce-se, o pano
desliza, quer fugir, parece ganhar vida própria sobre as curvas cheias, pouco tapa já de
carne este fatinho de banho vermelho vivo, simples película que mais não esconde
que os biquinhos dos seios fartos, e o triângulo fatal. Parece rebentar com força de
carne que explode, esta ténue faixa encarnada, sobre a pele dela, e que insiste em
roubar reflexos fantásticos a este fim de tarde.
Em gesto malandro puxo-a por uma das pernas para a fazer baixar-se ao meu
lado na fronteira entre a areia branca e as águas azul-esverdeadas desta mansa baía.
Pequeninas ondas vêm marulhando cumprimentá-la, afagar e lamber o vértice inferior
do triângulo escuro no meio das coxas e que a peça de tecido parece só pintar...
Adivinha-se, vê-se-lhe o vinco agora à transparência. Mais acima os mamilos saltam,
rebentam viçosos, e ela, vencida, desata a peça superior oferecendo-me tudo, que
agarro, sorvo, chupo, toda esta carne roliça. Mas quero mais, mais... mais abaixo, o
umbigo de novo, e ali, deitando-a de costas, escorrendo por ela abaixo levo a língua
com força a enfiar o tecido pelo vinco frontal que parece abrir-se entre pernas, por
aquele rego adentro, ela torce-se, rebola na areia e arrasta-me decidida um pouco mais
para o largo onde a água nos dá pela cintura. E é tão pequena ela, ao lado de mim,
mas é a mim que me chama ‘pequeno’, e dá-me descanso, abraça-me, anicha-me o

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rosto, a cabeça... protegida agora entre as paredes dos seus volumosos e tenros seios
como abrigos carnudos e que ao meu toque enrijecem-se, mas só um pouquinho.
Afundo-me nesta macieza segura, agarro-a, pego nela toda ao colo, e só depois é que
a trago, assim embalada, para a areia. São belos os curtos cabelos da Dilma
desencaracolando-se na testa sobre os seus grandes e ternos olhos castanhos, ternos e
salgados, sinto-os, conforme passeio a língua sobre eles, sobre toda ela, dos sensuais
flutuadores agora túrgidos até ao pequenino umbigo arrebitado, e me deixo conduzir
pelo jeito das suas mãos suaves ao monte de Vénus. A areia soprada pela brisa traça-
lhe minaretes sobre a pele, enquanto eu, mais abaixo, a língua como trincha viva, lhe
afago, pinto a saliva esse triângulo carnudo entumecido. Brisa marinha... Maresia... É
o cheiro dela, interior, íntimo. Tudo se conjuga num travo inebriante que para sempre
associarei à Catembe.
Tomamos banho, água pela barriga, mas logo os calções e fato de banho estão
numa perna só enfiados, ou na mão, que diabo!, atiramos com aquilo para a areia. A
Dilma puxa-me para dentro de água, até ao fundo... emergimos, puxa-me para ela,
contra ela, para dentro dela. No interior dela! Com jeitinho... Envoltos pela baía
morna... isto nunca acontecera... sexo ali dentro de água, estas cálidas águas que
pouco nos passam da cintura. A Dilma delira, agarra-se então ao pescoço, e nós
quedamo-nos ajoelhados agora, vou penetrando-a mansamente, compassadamente ao
ritmo das ondas suaves, e uma vela alva e triangular cruza ao longe insuspeitando o
que se desenrola ali naquela calmaria longa onde só pequeninos frémitos se soltam,
nos aquecem e arrepiam simultaneamente, até que nos inundamos mais do que a baía
consegue. A Dilma sufoca, suspira, conforme nos espasmos finais a estreito mais
ainda e, meigamente, a trago então e devolvo ao areal quente, onde já sobre ela a
acalmo deste estonteante namoro aquático. Ajudo-a a vestir-se e a limpar-se, após,
desnorteados, só ao fim de minutos termos dado com as toalhas e recuperado as
roupas de banho.
Há tempo ainda para uma passagem breve pelo ‘Diogo’ para mais algumas
cervejas e bifanas, e por volta das dezoito, quase ao pôr do sol, arriscamo-nos de
novo à pequena e ronronante lancha. Faz fresco agora, neste sopro de fim de tarde, e
o movimento da embarcação e os salpicos são algo agrestes. Protejo-a, embrulho-a o
melhor que posso e ela anicha-se meigamente, suave e mais calma, como quem
dorme neste embalo.
Não nos conseguimos separar assim. A Dilma vem esta noite para o Rovuma.
Uma noite cálida e doce em que dormimos com as janelas escancaradas. Uma noite
para ‘baratas de quatro asas’: um adejar ruidoso faz-nos acender a luz e dar com uma
baratona ao canto, são bem oito centímetros de bicharoco. E o nosso namoro não
findara com a tarde.
A Dilma retoma-me com intensidade redobrada para cima dela, implora para
a beijar, ‘devorar toda’. Vai ternamente pegando-me nos cabelos, desalinha-os, vai
acariciando-me a face e faz-me baixar, abocar-lhe os seios, afagá-la toda. A concha da
minha mão desliza-lhe pelas costas e passa-lhe entre as pernas, agarra caracóis
pequeninos, aveludados, esguios dedos perscrutam-lhe a macia gruta, o dedo mais
longo a enfiar-se maroto, fundo, cada vez mais fundo... a minha outra mão nos seios
dela, e com a língua molho-lhe já a marca do umbigo e ela, como esta janela que se dá
à noite, abre-se fresca e quente a um tempo, escancara-se toda, pernas afastadas ao
máximo, ronronando, rugindo baixinho, e eu a provocar, a brincar ainda, só com a
língua pelo interior das coxas ansiosas, subindo, orbitando primeiro só em volta do

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ponto fulcral, até que em mergulho súbito lhe abocanho esta amêijoa ao mesmo
tempo que com um ‘plop’ retiro o dedo mucoso. Ah!... Ah!... a maresia, a Catembe! O
cheiro íntimo da mulher é um cheiro de mar, a peixe, que acorda desejos dos mais
fortes no subconsciente de um homem. O cheiro do princípio do mundo, da Criação.
Trimetilamina, é o que dizem os biólogos, no colo do útero, nos peixes, no mar. E
perante aquela amêijoa, ostra rosada, aberta e molhada e que salgada se me oferece,
mais não posso fazer que devorá-la como me pede, penetrá-la toda com a língua em
movimentos frenéticos, doidos, até ela, a Dilma, não ser mais que uma fêmea a saciar-
se, relinchando, gritando de prazer em torno deste eixo oral, a apertar-me, cingir-me a
cabeça entre as suas coxas frementes, e segurando-me nesse torno de carne, a vir-se
em convulsões tetânicas num queixume felino, alto, saciado já, repuxando-me agora
inteiro sobre ela até que com o membro pleno de desejo a penetro com ímpeto,
docemente depois, e lhe faço renovar o prazer já longo até à langorosa erupção final.
Retiro-me dela com cuidado, e há estas gotas, fios, pingos de luar que se desprendem
e deixo agora tombar, escorrer sobre ela, após o dilúvio que fizera ajuntar ao seu
cacimbo morno. Um néctar que recobria já o acesso às profundas desse mar interior
que vive sob o seu secreto jardim.

Por esta altura já devem ter perguntado porquê, porque é que não parei por
aqui, escolhi uma destas namoradinhas e assentara de vez no seio da verdejante beleza
tropical, embalado pelas cálidas e doces, e plenas de trimetilamina!, águas primordiais
deste oceano Índico, ou da terna baía-lagoa onde tantos rios se vêm espraiar.
A tentação não pára e quando nela mergulhámos já o bastante, qualquer bóia
de salvação parece pequena demais, e as coisas acontecem, ou agudizam-se. A Dilma
voltaria outras noites, voltou ainda uma noite festiva de Dezembro, decorria um
‘party’ no terraço do 2º andar do hotel, dois pisos por baixo daquela varanda do
quarto. A Dilma sai manhãzinha cedo antes do nascer do sol, a festa continuava
porém naquela esplanada quando se me depara essa Madalena que já antes conhecera
no Califórnia. E eu não tenho mesmo juízo: mando-a subir: ‘4-2-9, ouviste?!’ E cá
está ela, para uma alvorada intensa, alta e magra ela, uma jibóia que se enleia e me
satisfaz classicamente no fim de mais uma noite. Mas esta Madalena não é moça para
grandes histórias e não constitui assim mais que uma passagem fugaz, um asteróide
do amor.

Antes do fim do ano há ainda uma ida à Catembe, a derradeira, em 1988, com
a Rita e o Dinar, mais uma professora da Rita. Sem histórias de vulto, a viagem
marinha e petisqueira, essa ritual digressão ao Diogo, e as também tradicionais
paragens à ida e à volta no Clube Náutico da Catembe, para repor níveis etílicos. E já
em Maputo o outro ‘ritual’ cumprir-se-ia uma vez mais. Ficamos os quatro a jantar no
Rovuma. Depois, já estão a adivinhar... Lições fora d’horas! O casalinho partiu, e um
‘casalinho’ ficou. A professora teve a sua aula e queria um sócio, um parceiro, para um
investimento não sei em quantas dezenas de dúzias de ovos para qualquer
industriazeca... O que é que eu ali podia fazer, com as guerrazitas com a D-13, ainda
em curso, sobre a fixação de subsídios... OK, tenho ainda o bastante para deslocações
e alguma farra, mas não é altura para investimentos destes.

Uma aventura de fim de semana minha e do Dinar com duas pitinhas, quebra
a rotina: uma sexta ao entardecer estamos perto do Pigalle, famosa pastelaria da 24 de

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Julho, quando passa um par de miúdas a quem assobiamos. Olham para nós,
sorriem... São duas estudantes, dezanove, vinte anos.
– Uma coca-cola?, perguntamos.
– Pode ser também um bolo?!
– Sim! Sim!, confirmamos nós. ‘O que fazem?’
– Passear, apanhar a carreira para a Matola... Ainda meio envergonhadas,
olhinhos brilhantes. No fundo, sabem talvez melhor que nós ao que vêem: ‘Viemos
da escola!’
– Têm problemas de ir mais tarde?, indagamos. ‘Vamos passear, ou até ao
hotel... janta-se...’, a D-13 paga!, pois. E não pensaram duas vezes, alinham logo.
Fico com a mais rechonchudinha, clarinha, a Tina. O Dinar estaciona com a
garina dele na sala, eu no quarto, após o pedido breve para o jantar que é servido de
imediato aqui na suite. Agora, um black out total impõe-se... A Rita! O Dinar, ‘saíra dos
radares’.
A pequena Tina é apertadinha mas tem já genica. Isto de desmamar jovens
tem que se lhe diga, ainda tudo muito verde como o lanho da palmeira, a atirar
mesmo para o clássico, pouco abrasivo e lustro, classic! classic!: mim em baixo tu em
cima etc. e tal, sem muitas avarias ou variantes. Pronto, está bem. Serviço consumado
e descanso merecido e...
Braddaabamm! Damos um bruto salto. A porta da suite acaba de receber uma
trombada das valentes e uma série de murros. ‘Sei que estão aí! Dinaar! Dinaaaar!!!’. A
Rita!
Cá dentro tudo quietinho e silencioso, a minha gajinha treme em medo
mortal, tinha-se acabado há pouco pois, este ‘primeiro round’ com as garinas... O
Dinar também não se ouve. Por meia hora são as trombadas da desalmada Rita contra
a porta, e os berros… uns berros que o Dinar depois comentará: ‘saídos das
profundas dos infernos!’. Mas agora não se ri ele. Por fim o estardalhaço morre
gradualmente.
Um telefonema para a recepção e a chamada do miliciano de serviço e do
chefe de piso instituem um ‘regime de segurança para o senhor Paulo’ e evitam
ulteriores violações ao espaço próximo, ‘diga-se que os senhores foram chamados de
urgência ao Ministério!’.
‘Visitantes?... Desconhecemos...’, respondem à Ritó. E o capanga Zorro, por
esta altura, só muito ocasionalmente surge no Rovuma, vagara-se já a suite vizinha, a
430.
Enfim, foi um fim de semana de sexo dedicado à juventude. E Domingo lá
partiram elas contentinhas em direcção ao por do sol da Matola, papinho cheio, em
todos os sentidos.

A DROGA INUNDA MAPUTO: UM MERGULHO A PIQUE PARA A MORTE

O ano termina, não sem outras aventuras mais pesadas, mas que não me
dizem respeito, e assiste-se à detenção provisória da ‘Tainha’ Berta, do Qui-Qui e de
outros desse grupelhozeco. A história passou-se assim: já há dias que a Dina, uma das
portuguesas, e o marido, esse Qui-Qui, andavam desentendidos. Toxicodependentes
eles todos, a Berta não, era só uma ‘surumazita’ de vez em quando, e a tensão subia
no grupo. Algo vai mesmo muito mal. Dizem-me depois que não é apenas o
relacionamento entre eles, o que acontece é que há certo produto adulterado (heroa?

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coca?) a circular nestes dias, que terá sido apreendido pela polícia, ‘envenenado’ e
reposto em circulação.
Bem, é quase meia-noite, ‘vá lá! esta noite tenho folga, até estou a dormir sozinho!’, e
chega um telefonema da recepção. É o Dinar: ‘Desce pá! Desce! É a Dina. Mandou-
se da casa da Tainha cá para baixo... Sim, pá! Do nono andar, sem ‘reserva’ (o pára-
quedas extra). Lá estão as piadas cínicas do tempo do paraquedismo a vir ao de cima,
mesmo em momentos trágicos. ‘Sim!..., continua ele, pfffiuu! aterrou!’. Na prática
eram mesmo onze ou doze pisos, havia andares duplex, e o rés-do-chão é mais
elevado ainda. ‘Está mortinha da silva, pá, toda rebentada. Anda, rápido!’
Isto é noite para mais um maço de Marlboros. Lá me visto à pressa. Num
ápice atravessamos os três quarteirões até ao prédio do Dª Elvira no fim da Patrice
Lumumba, ali mesmo defronte da Embaixada britânica. No local encontra-se já uma
brigada da PIC (a Polícia de Investigação Criminal) dirigida por uma médica cubana,
acompanhada de um fotógrafo, e com um gerador portátil e holofotes. A Dina
mandara-se pela varanda das traseiras, um patamar que serve todos os apartamentos
do piso, e viera tombar sobre o cimento cá em baixo, adjacente a uma pequena
oficina. Há braços e pernas em ângulos esquisitos, a cabeça estoirada como um fruto
maduro deixado cair, a médica em luvas enfia a mão por uma bolsa autêntica aberta
no músculo da coxa. E no meio desta confusão, o Dinar, que já mandara abaixo mais
um charro, não se cala: ‘Eeehh... eh pá, oh Makwakwa..., como me chamavam no
paraquedismo, ela teria feito melhor aceitar quando a convidaste para estacionar uns
dias no Rovuma... até as coisas acalmarem’. Todos sabiam que eu era um bom
samaritano para essas coisas, um albergue permanente, principalmente para as
gajinhas, uma Suíça. Enfim, uma vida desperdiçada, sem asilo.
A cena seguinte é a Tainha Berta a levar umas bofetadas da malta da PIC, o
Qui-Qui e outros, a Norinha e o Gregório, a averbarem uns pontapés e cacetadas
valentes. Vai tudo preso para interrogatório. São libertados logo de seguida, no
comando da PIC. Havia uns vestígios mínimos de suruma na residência da Berta,
nada que constitua crime, e o tombo fora suicídio simples, nada de homicídio. ‘Uma
queda-livre com avaria e sem reserva!’, conclui o Dinar esmagando a ‘bita’ de mais um
charro.
O pessoal queixa-se pois é do produto mais ‘pesado’, andava ‘marado’, a pôr
toda a malta como louca, arritmias cardíacas até... Não muitos dias estão volvidos e há
nova vítima deste flagelo da droga, outra moça portuguesa, a Susana Oliveira, ou
Susana ‘Tetas’. Culpam uma overdose que lhe terá, como avaria, provocado uma
fulminante síncope cardíaca.

E é no dealbar do novo ano que se dá um dos marcos maiores da minha vida,


um ponto de inflexão. Tanto a Rita como o Dinar falam numa ‘boa amiga’
acabadinha de chegar da cidade da Beira. Prima da Sónia ‘Matulona’. Eu praticamente
já não andava com a Sónia, a não ser uma queca ou outra, pinocadas quase por
acidente. O Dinar e a Rita apresentam-ma a ‘vedeta’, a novidade, numa dessas noites
longas embalados no Dª Elvira, o snack-bar situado precisamente sob o prédio da
Berta Tainha. Maputo é pequeno! E somos viciosos nos lugares, invariavelmente.
Poucos dias depois vem também com eles ao Rovuma. Passamos a ser
amigos, pelo menos. Mas o encontro, a primeira visão, a versão primeva nessa noite
no Dª Elvira é que terá sido decisiva. A Célia, africana clara, estatura média e bem
proporcionada, exibe um cabelo desfrisado, ondulado em caracóis largos que lhe

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emolduram o rosto de feições finas, traços levemente indianos até, cabelos que
deixam descair uma madeixa que se recurva sobre a vista. Por trás desta cortina
esparsa espreitam uns olhos castanhos vivos e meigos que parecem pedir salvação.
Diz-me o seu nome em dialecto, o nome tradicional: Xiçaladzaco, a que fica para trás.
Não sabe porquê. Somos amigos, apenas amigos então, até aqui, até esta noite, agora,
em que ela chega sozinha, quase de madrugada. E quando digo sozinha é porque ao
abrir a vejo sem a Rita e o Dinar, mas há uma outra face a sorrir. É a Virgínia, a
Inhamajau (a carne deles, em dialecto), uma outra amiga da Célia, lá da Beira. Bem,
seria a Célia que praticamente a partir daqui se torna a minha companheira. Mas nessa
noite não o podíamos ainda adivinhar.

No hall do Rovuma uma moça mista de indiana, aí dos seus dezoito aninhos
dirige-se a mim. É encorpada e bem girinha. Apresenta-se: Virla. Virla Oliveira.
Estudante do ISRI, Instituto Superior de Relações Internacionais. Relações quê...?!,
digo eu meio a brincar. Nunca chegou a haver nada de mais profundo entre os dois, lá
em cima na suite nas duas ocasiões em que combinamos ela aparecer, exclusivamente
para falar de assuntos de política moçambicana e internacional. Considera-se como
‘sobrinha’, amante pois, do Marcelino dos Santos, o ‘número dois’ da FRELIMO, o
partido no poder, e admite que em Maputo no dia da queda do Tupolev 134-B do
Machel, horas antes, se falava já à boca pequena no ‘acidente’ que aí vinha. Mais uma
achega para a teoria da conspiração, a juntar ao que o pessoal da D-13 até conta sobre
uma reunião incendiada, em ânimos, na sede de Comité Central, uma semana antes da
morte do ex-presidente: ‘Machel, você tem tantos cargos já, tem tudo, no Governo,
no Partido, mais, é presidente da Juventude Moçambicana, presidente de Honra da
Mulher Moçambicana, Bureau Político, Comité Central do Partido… só discutir
política, poder… e o inimigo a atacar. Se tombar uma cobra aqui em cima da mesa,
presidente, o que vai fazer?’ Os quadros, antigos combatentes, elites políticas
questionavam pois, duramente, o ex-presidente, nos dias anteriores ao
despenhamento do Tupolev. E há ainda o episódio, quando um jornalista português
indaga ao malogrado Samora sobre o Poder e a Solidão, é um Samora coerente com
essa sua intransigência quem responde: ‘Poder é isso mesmo, também, é Solidão… o
Poder não se partilha, exerce-se…’, até à morte, claro, até às últimas consequências.

De resto, poucas protuberâncias assinalam a lisura do período de ‘implantação


da Célia. A Fátinha, uma moça que conheci na Feira Popular, trabalha lá num
restaurante, visita-me amiúde. A Célia chega a defrontar-se com ela, mas só de
olhares. A Fátinha cede. Não passarão de episódios esporádicos, acidentes, como a
Célia chegar e estar o Dinar e Rita na sala e eu com a Fátinha no quarto, e o Dinar
sempre cínico, a espicaçar a Célia: ‘É os teus atrasos, pronto! Agora convém não
incomodar ali dentro, que ele está ainda em operações!’.
A Célia muda-se pois de armas e bagagens para o Rovuma. Ela reside na
COOP, uma vivenda da família, em frente ao PH 2. Acabara de se separar do Peter,
um namorado holandês, diplomata, com quem estivera na Beira mais de um ano.
Agora, anda receosa, meio fugida a um chefe da 1ª esquadra por qualquer desacato
em que se metera na boite ‘Sanzala’ com a mulher desse polícia, esgatanhando-a toda.
A minha suite continua portanto local de asilo.
Visitamos várias vezes os ‘Dinares’, os ‘padrinhos’, e as tasquinhas por perto.
Ela prefere o Búzio (o ‘minigolfe’) e o Sanzala. De início deixo-a ir sozinha até, ainda

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não gosto muito, eu então, de sair para locais demasiado movimentados, ‘fora de
controlo’, aqui em Maputo. E ocasionalmente recebemos a visita da Virgínia
Inhamajau que tem um cabelo com que embirro tremendamente, desfrisado e
arrepanhado para o alto, indomável, com uma mancha amarelada na frente...
Desgraçada!
Está claro que largo em grande parte as minhas namoradinhas, pelo menos
aqui no Rovuma. Estão lixadas a minha liberdade e independência, pôrra! Um ‘25 de
Junho’ ao contrário, para mim!
Estas apostas mútuas, pernoitas mútuas, vinham arrancar até comentários
jocosos à criadagem. O funcionário que trata da suite é o Armando Ndeve, um negro
latagão aí à volta dos seus quarenta anos. Tem cara de quem dá forte e feio no
‘chindere’, na aguardente tradicional. Ao entrar de manhã, e a bater na porta só
depois de já estar cá dentro, solta logo um estridente ‘Tchh! Tchhh! Tchhh! Áicone! (não
pode ser!)’, ao vislumbrar uma tipa(s) no quarto e outra(s) na sala a dormir.
O Dinar chama-lhe o ‘Instrumentos’, em linguagem do paraquedismo e
pilotagem lá do do Aeroclube, andar ou navegar ‘por instrumentos’ é levar as coisas
sem sequer as ver ou reparar nelas, alheado. O Ndeve parecia um pouco assim mas lá
que topava, isso topava, bem demais até, as miúdas ali estacionadas, ‘asiladas’. A
preocupação maior dele é porém a inhamacadza, em dialecto, um reumatismo que lhe
‘comia’ a perna. E tem sempre histórias saborosas a contar, cujo trave é por vezes
derivado de corruptelas na tradução ou apreensão de frases. Falecera um colega dele
lá do hotel, e pergunto-lhe: ‘Então o homem morreu de quê?’. E ele, rápido, de olhos
esbugalhadíssimos: ‘Dizem entrou sangue naqueles peça que tem nos cabeça e chama
autópsia!’
– ‘Ah!’. Descodificando, na autópsia viram que tivera um derrame cerebral.
Outra série grande de Tchh! Tchhh! Tchhh!: é uma Segunda-feira, e após entrar
desnorteado, está a olhar então para esse quadro enorme na parede da sala, com uma
imagem plácida de uma aldeia na curvatura de um rio... O quadro não é bem o da
véspera. Foi a seguir a uma tarde e noite terrível de copos, eu, o Dinar, a Rita e a
Célia, mais uns barbitúricos à mistura e a velha surumazeca. Contávamos histórias,
fazíamos até a reportagem virtual da inauguração da imaginária Ponte Samora Machel
ligando à Catembe e a uma etérea auto-estrada para a África do Sul, e de repente
estávamos todos a olhar para o quadro e a rir. Foi quando eu disse: ‘estou a ver ali um
ataque aéreo, MIs-24, MiGs, um tapete de napalm... o que é que achas? The horror! The
horror!’
O sorriso do Dinar dizia tudo. Deitar mão às canetas de feltro e estojo de
pintura para os olhos e maquilhagem vária da Célia foi um ápice... Tchhh! Tchhh!
Tchhh!!!, o Armando parece estar ainda a tentar completar um concurso do ‘descubra
as diferenças’. Um ‘Tchhhhh! Tchhhhhh! Tchhhhhhhh!’ só suplantado quando descobre os
quatro vasos na varanda com outros tantos pés de planta de suruma, a cannabis sativa,
que já estão quase da minha altura e a ganhar cabecitas peganhentas. E é claro que
nunca tive problemas com a minha plantaçãozinha experimental de cânhamo indiano,
todos os dias devidamente regada e a levar o solzeco da tarde.

PUNIÇÃO E DISSUASÃO: A NECESSÁRIA DOSE DE ULTRA-VIOLÊNCIA


O Dinar é um gajo porreiro mas o contacto com esse grupelho do Qui-Qui
parece por vezes ultrapassar o do fortuito encontro no Califórnia ou o da simples
vizinhança. As relações azedam quando o topo a injectar-se na casa de banho, e a

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deixar um esguicho de sangue na parede: ‘sabes, o Rovuma tem aí por baixo um
calabouço na cave, pá, não sabes? Queres?’. Isto de o gajo andar de gringa a chutar na
viola deixa-me baratinado. Ainda a suruma, vá lá, agora isto...
E a cena das mãos do gajo não para, até que lhe dão um antibiótico fortíssimo
e põem um dreno num dos dedos, e depois, é então com cloreto de etilo, o ‘cheirinho
da Loló’, que o anestesio localmente. Deixa cá dar mais umas sprayadas valentes nas
ventas, nas ‘turbinas’… uns jactos entorpecentes que o deixam mesmo meio a dormir,
em semi-anestesia geral. E agora o ‘aprendiz de cirurgião’ Makwakwa é que lhe repõe
aquela porcaria de drenos, umas palhinhas, no local, com o pobre Dinar a soltar uns
grunhidos telúricos neste seu estado meio-comatoso.
Ou seria pela Berta Tainha, ou pelo Dinar, o que é certo é que o grupo do
Qui-Qui aprendeu o caminho do Rovuma. E bem, houve pelo menos um almoço em
que, no passado, vieram até as malogradas Dina e a Susana ‘Tetas’, passaram por aí de
raspão, é verdade, isto quando ainda convidei a Dina a asilar-se lá na suite... Águas
passadas.
Bom, o que é certo é que um dos gajos desse grupinho entra no Rovuma,
conseguindo passar o filtro da recepção, a vigilância da segurança, e o próprio hotel,
possui até uma célula do SNASP, e os tais calabouços na cave, mas bem sabemos que
nunca há impermeabilidade total nestas coisas, e chega à minha suite a meio da
manhã, eu ausente, quando as mulheres da limpeza mantêm algumas das portas
abertas, sem porém estarem permanentemente no local.
O nome dele é Rogério e já se tinha aviado com um potente rádio de ondas
curtas, AM e FM, cedido pelo Ministério, arrumado o vídeo a um canto, para a leva
seguinte, certamente, e algumas roupas, quando é interceptado pela Segurança ao sair
da suite com vários artigos.
Calha que minutos depois chego eu ao hotel, e vejo o chefe do posto do
SNASP a chamar-me com urgência, a levar-me ao seu gabinete. E lá ‘tá esse gajo, um
tipo meio indiano e misto, acho que era este até um dos irmãos da Tuta, uma tipa que
em dado momento reboquei até à suite após um encontro noctívago na 24 de Julho.
Muito bem, estamos aqui agora é para resolver isto, um pouco de punição e dissuasão.
Cá vai mais uma dose de ‘ultraviolência’, como diria o Alex, protagonista principal da
‘Laranja Mecânica’. Nem teve tempo de ver o cinzeiro de vidro a vir esborrachar-lhe
o focinho, e cá temos o nosso amigo vermelhinho a espreitar de dois lanhos, a
escorrer-lhe do nariz. Agarro-lhe na pescoceira: ‘Queres voar? Meu filho da
puta!, reboco-o até à janela, o tipo quase a borrar-se, em pânico, mirando o vazio,
miando, miaumiando...
E o chefe da segurança a anuir com a cabeça, a pensar que eu estou a sério ‘Se
quiser lançá-lo...’, tudo bem por ali. É assim que as coisas funcionam. Ficamo-nos
pelo enxoval de porrada, e sendo aquilo um bandidozeco típico, despachamo-lo para
a Primeira Esquadra onde se diligenciam a brindá-lo com uma série de descargas
eléctricas, e que posteriormente me relatam. E claro que não deixei de pagar uns
copos valentes ao comandante, que nos conhecemos já e temos ambos ‘cartão de
sócio’ no grande clube da copofonia por estas noites de Maputo, ‘para compensar os
watts de energia gastos’. É assim mesmo que as coisas têm que ser. Ordem, Saúde e
Paz. Amén. Educando o Povo!

Acompanho a Célia um destes dias para ir conhecer a Elsinha. Mora numa rua
da Malhangalene que entronca na Agostinho Neto, não longe da Embaixada

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soviética. Mais uma coincidência: a Elsa é antiga namorada do Dinar. Tem um puto, o
Ivan, chamam-lhe o ‘Vanito’, de um antigo companheiro africano, mas agora vive
com o Paul Fauvet, conhecido jornalista britânico da AIM.
Ora uma das aventuras dos nossos tempos no Rovuma tem origem numa
noite de copos, envolvendo também esta Elsinha: tínhamos nós ido ao Zozó, a boite
da Feira Popular, eu, a Célia, e a Elsinha. Três da manhã. Não estava com o carro, eu,
por esta altura, tomamos um táxi, mas em chegando ao bar Miraflores, na Vladimir
Lenine, saímos ali para um derradeiro copo, estando a dois passos da casa da Elsinha.
Entramos, ocupamos quatro lugares num dos cantos, e não passam cinco minutos
está um gajo grandalhão junto da mesa: ‘Você...!, para mim, isto, aguenta mesmo duas
mulheres, assim?!.’ E segue-se um comboio de provocações a mim e a elas. Penso até
servir-me da fusca sob a axila mas há outros métodos. Há um polícia que entretanto
me reconhece, aproxima-se e interpõe-se. Insultos, empurrões, de repente estamos à
porta do WC, o tipo grande a querer já deitar a mão à ‘Walter’ do agente, um repelão,
e estão os dois lá dentro já quando o estrondo tudo sacode. ‘Quem vai sair com ela, a
arma, nas mãos?’
É o polícia! O agente sai de arma empunhada enquanto uns berros chorosos se
elevam do interior, altíssimos, o outro derreado no chão, espreitamos agora, parece
estar a aprender a nadar numa poça de sangue, a dar com as barbatanas, e aquela poça
rubra só alastra: no joelho direito é a erupção, a rótula estraçalhada pelo tiro. O ferido
é metido num jipe, vai já a defecar patas abaixo. Não há problema connosco, o polícia
também está dentro da razão. O que acabara de ser baleado é afinal o major Milagre,
veterano dos antigos combatentes da luta anti-colonial.
Depois de tudo aparentemente serenado tratamos de sair. Objectivo: o
Rovuma, deslizar pela Vladimir Lenine abaixo, e a Elsinha por seu turno está
apontada ao quadrante contrário, à casa dela, logo ali.
‘Heiii!!!’, ouvimos agora. ‘Isto não fica assim, com o meu major lá do Niassa,
vocês vai ver!’ A brincadeira continua então... ‘Oh amigo!, digo, vamos terminar isto a
bem..., insisto eu. Acabou?!’
É um gajo jovem e espigadote, alto e magro, este complicado que agora surge.
‘Mas quando não vai pagar vou perseguir àhoje, àoutro dia...’, e mãos nos bolsos não
nos larga, a voz cada vez em tom mais agressivo, até que digo: “Não queremos
chatice. Vamos para o Rovuma, porta-te bem, ainda tomas um ‘scotch’!” Já eu estou
completamente baratinado também com este gajo, e o cheiro a sangue só faz é saltar-
me mais ainda este ‘interruptor’ no cérebro, instintos de auto-defesa, de ataque
prematuro e certeiro. A palrar, ainda a ameaçar, segue-nos sempre, até ao hotel.
Entramos… este cabrão está a pedi-las!
O tipo insinua-se logo atrás de nós. A recepção, ao menos, está sempre
iluminada. O miliciano da entrada, meio escondido, vigia a um canto, já nos
reconheceu. ‘Fechar! Fechar portas!!!’, berro. ‘Esse gajo! Identificação!!! Já!!!’, em
poucas palavras explico a situação mas logo o tipo se vê encurralado, só agora topa a
jogada, o logro, a armadilha.
Como um gato salta para a AK do miliciano, apanhado algo desprevenido,
mas que agarra ainda a arma, e estou eu já a fazer uma ‘chave’ apertada à pescoceira
desse brincalhão: ‘Filho da puta! Vais ver agora como é que é!!!’, a bandoleira rebenta,
entramos no jogo do puxa-puxa e com um safanão maior a AK está de novo
integralmente nas mãos do milícia que desfere feroz coronhada, e já outros fardados

202
da força de protecção chegam em tropel, em correria, derrapam, todos querem
molhar a sopa, dar um ar da sua graça. O ‘gato’ está no meio da matilha!
Num ápice está controlado, amarrado mais este espertinho. E aqui não se
brinca: é levado logo para o pequeno pátio nas traseiras, ‘chamboqueado’, chicoteado
com grosso cabo em aço, um cabo do elevador. O porta-chaves da suite é uma
bisarma, uma placa sólida de metal que pesa bem umas trezentas gramas e me serve
de martelo. Após o episódio da AK e o que aquilo podia ter dado, estou furioso, o
‘interruptor’ do cérebro ligado para a posição que o Zorro não gosta, on, overdrive,
turbo. O ‘bichinho’ a fazer das suas. A Célia, que se havia refugiado atrás de umas
colunatas e saltado depois para além do balcão, chegou já ao pé de mim. É ela agora
quem implora, mas eu mando-a para cima, para a suite: ‘Chega! Pára! Pára!’, quando o
sangue começa a espirrar da mona deste cabrão atingido pelo implacável e vicioso
porta-chaves. Minutos depois é metido no cárcere do hotel onde fica dois ou três dias
até ser recambiado para a terrível B.O. da Machava.
Meses mais tarde voltaria a ver o Major Milagre, ainda de muletas. O ‘sócio’
dele, esse, encontrá-lo-ia também mais de um ano depois, com um aspecto deveras
patético, de louco, acho que nunca recuperou daquela fatídica noite e das ‘carícias’ da
B.O.
Além da ultraviolência são também as ‘recaídas’. Há cada cardina, que não sei
não, como encontrávamos o caminho de volta, de carro, táxi, a pé. As recaídas eram
do género de chegar quase de gatas às onze da noite, meia-noite, madrugada adentro,
depois de sempre na copofonia por horas a fio, e uma vez no Rovuma, quase sem
conseguir falar, ao balcão da recepção, a apontar para as chaves... Na parte que se
segue estamos a tentar acertar com a porta do elevador, eram dois, e pareciam quatro.
E às vezes, no meio de um magote de gente, políticos ou militares do partido e
governo, rebenta o escândalo, eu a começar a entoar o hino da RENAMO, o ‘inimigo
odioso’ nesta guerra fratricida, todos a olharem, a reconhecerem-me, olhares
escandalizados, quase violentos, e a Célia a tentar desculpar-me: ‘é uma recaída!’, e eu,
alegre, insisto: ‘No dia que recebemos / A nossa independência / Todo povo ficou contente / Mas
agora, tristeza... / Até o próprio mocho / Faz críticas ao machelismo / Qui rouba o nosso povo /
Mooçambicanooo!’ Ou então: ‘Moçambicano pega em armas / Na luta contra Machel, boateiro /
Inimigo do povo / Lutaremos até à sua liquidação...’. Começo a entoar, prossigo, volto à
carga ainda. A Célia desespera com tudo isto. E os outros, até parece, finalmente,
compreenderem: ‘uma recaída’. E o quarto andar lá chega, porta aberta, pareciam
duas, e eu a sair do elevador, e da recaída efémera, com um sorriso trocista. O grande
manipulador de situações. Sempre consciente, porém.

‘Entenda… esta operação não existe, nem nunca existirá!’ Já estão a adivinhar. Há
sempre uma escapadela: a luta continua! O campeonato. Agora, um autêntico
campeonato, a queda num vórtice, num maelstrom acelerado. A Rosa do Zambeze
dera-me o telefone dela e da Dª Ester, no mesmo prédio Zambeze, e que aluga
quartos. E se este campeonato prossegue, só espero é que as minhas ‘operações’ se
mantenham discretas, com uma certa lisura. É que tem já alguma história recente na
cidade, este prédio Zambeze, um ‘mira mortos’, mesmo defronte ao cemitério S.
Francisco Xavier. Fama não só com o negócio de quartos ou pelas artes
empreendedoras de algumas locatárias.
Uma tragédia sucedeu há poucos meses. Num dos apartamentos do último
piso, o sétimo, habitava um casal, funcionário ele das Linhas Aéreas de

203
Moçambique, comissário de bordo de longo curso nos voos do DC-10 para a Europa.
A pequena arranja um namorado, o conhecido locutor Luís do programa ‘No Calor
da Noite’, da Rádio Moçambique. Certinho como Ómega: todas as santas semanas o
comissário embarcava e o Luís aterra nos lençóis do sétimo andar do Zambeze. Mas
atenção: as ‘fugas de informação’. É matemático, tinha que acontecer. Uma Quarta-
feira o nosso comissário lá vai para o Aeroporto, os amantes ouvem e vêem o DC-10
descolar lá ao fundo... via aberta. O Luís fazia-se mais uma vez à pista do Zambeze. E
o tripulante? Efectuara uma troca essa semana, sabidão já! E com uma ‘gang’ de mais
três despenha-se sobre o terreno de operações, o locutor é sovado, amarrado, e faz a
reportagem única da sua primeira queda-livre ao ser disparado pela janela do sétimo
andar.
Tragédias à parte o Zambeze tem coisas confortáveis. Encontro-me aí várias
vezes com a Rosa e a irmã, a Fina. Por estes dias a Berta e a amiga Álima mantêm-se
ao largo, e uma outra prima da Taínha, a ‘Gina-China-PornoStar’, que eu já
conhecera, está fora dos radares, foi de avião para o norte do país. Mas não é isso,
pois, que interrompe o zambeziano campeonato.
Além do mais, este é um tempo de escrita e reflexão, e de escutar alguma boa
música. No deck de cassetes da Célia toco vezes sem conta a ópera-rock ‘The War of
the Worlds’ (A Guerra dos Mundos) que ficaria quase como um hino, para nós, destes
primeiros dias. E acho que foi bem isso que se passou, analisado tudo agora,
friamente, à distância espaço-temporal, uma ‘guerra dos mundos’. Do meu e do da
Célia. E também ela se lamenta: ‘Há sempre uma parcela de ti, no teu cérebro,
inalcançável, uma muralha fria, uma carapaça que tapa essas emoções.’

As histórias da RENAMO estão quase esquecidas. Há um único facto a


salientar: a chegada do Chanjudja Chivaca João que me segue as pisadas e ‘dá o salto
para Maputo’. O Chanjudja, que já fora aqui da Segurança, e que após eu bater asas
ouvira as lamentações do Fernandes, em Cascais, coisas como: ‘estou rodeado de
traidores, estamos todos infiltrados’. Pois bem, eu havia puxado o João para a
delegação da RENAMO em Lisboa, para dinamizar malta na margem sul do
Tejo, zona do Barreiro e Moita. Em Novembro de 1988 dera-se a quebra dele com a
delegação e chegara entretanto a Maputo, mas só agora, no início do ano de 1989, é
que nos voltamos a encontrar. Está alojado no Hotel Tivoli na Avenida 25 de
Setembro. As histórias de Lisboa. As histórias com o Chanjudja...
O Chanjudja nos meus últimos tempos como delegado da RENAMO
tornara-se um dos principais apoiantes, e mesmo depois. Ele e o outro elemento com
treino na China, Tanzania e Argélia, o Inácio Chondzi, eram na prática os ‘guarda-
costas’, os meus ‘Zorros’ de então. Mesmo já depois de eu sair de delegado e de bater
com a porta, principalmente nos tempos do ‘CIMO’. Embora mantivesse contactos
com o Evo Fernandes, o Chanjudja não alinhava com a nova orientação. ‘Jogava’. Foi
aguentando o esticar da corda.
As histórias! Como desfila tudo isto de novo, e no que as coisas por vezes
descambavam: era hábito irmos a restaurantes moçambicanos, africanos em geral, e
numa vinda de um desses jantares, recordo-me, íamos ter com um apoiante ou
simpatizante a um bar do Intendente, o ‘Lindoso’. Somos interceptados, barrados por
um escumalhazeco, acho que com pretensões a assaltante, e era um canivete ou uma
navalha que o cabrão tinha, ainda a balbuciar para ali qualquer coisa sobre querer
dinheiro e sobre pretos...

204
Bem, não estava este gajo a ver com quem se estava a meter e o que lhe ia sair
na rifa. Eu trazia a arma, uma automática, no bolso do casaco, mas nem é necessário.
Uma rasteira e um pontapé na cabeça foi o bastante para o dominar e pôr de
gatas: ‘Querias quê meufilhadaputa?! Dinheiro? Carteira? Diz lá isso outra vez...’ Um
pontapé na bocarra amarelenta. A arma surge só para uma beca de terrorismo
psicológico, ‘Vamos fuzilar esta merda oh Chanjudja!’, o João agora só se ri e ferra-lhe
mais um pontapé medonho de chocalhar os côndilos occipitais e logo como um
guindaste, é alto também, o Chanjudja, upa-o para o meter de novo sobre patas. Dou
uma chupadela forte no charuto, ouve-se o avivar do tabaco, um charuto de uma
caixa ofertada pelo Felizardo, um dos portugueses apoiantes da Renamo, e sem ter
tempo de se aperceber o que lhe acontece o escumalhazeco tem a orelha a ser
grelhada pela ponta incandescente, aos pulos macacos em curta órbita sustida pelo
braço do João: ‘É disto que andas à procura não é meu cabrão? Alguém que te faça
frente! Uma palavra e fodemos-te os miolos agora mesmo ...hum! ...hum!’, e um
derradeiro pontapé bem arreado sela o encontro e a nossa boa acção cívica para
aquele dia. Lá fomos até ao sórdido antro do ‘Lindoso’ e das suas gajas mergulhadas
em néon, fumo e álcool... e histórias. Histórias de outras traquinices.

Devido às saídas da Célia, uma viciosa, esta gaja, temos algumas bulhas sérias.
Uma das vezes o quarto é quase destruído: pelo menos os candeeiros da mesa de
cabeceira e o telefone não escapam. É uma Segunda-feira. Uma irmã da Célia, a Aida,
vem buscá-la. ‘Vocês estão bem é separados! Então isto admite-se, um quarto
destruído, roupa dela estraçalhada! Hein?!’ E a Aida é namorada do então Procurador-
Geral da República, o Eduardo Mulembwé, hoje Presidente do Parlamento.
Separados!... só até Quinta-feira. Telefonamo-nos reciprocamente. Quinta ao fim do
dia volta ela para o hotel. Não temos emenda.
No Ministério, após muitas demarches minhas, mesmo uma audiência com o
Alberto Chipande, o ministro da Defesa, conseguida por um amigo e hóspede
também do Rovuma, o Brigadeiro Manuel Manjiche, atribuem-me um subsídio de
cem mil meticais e cem USD. Em moeda portuguesa não é nada, pouco mais de vinte
notas. Em Moçambique é muito, mas... eu e a Célia fumamos bem e adoramos os
nossos copitos por fora, a borga nossa de cada dia e cada noite, etc. e tal. Mais tarde
entregam-me para uso próprio um ‘Lada’, uma lata aparentada do Fiat 124 e chapinha
amolgada de matrícula ostentando o MLS 55-21 que pela série se vê logo à distância
ser da ‘Segurança’, um veículo pertencente à D-1, a Directoria do Gabinete do
Ministro. Ainda deu para muita volta o velhinho Lada.
O António Mula como responsável financeiro da D-13 surgirá várias vezes
para efectuar pagamentos a mim e ao hotel, ou simplesmente para jantar connosco.
Noutras ocasiões aparecem também o Betinho Wate e outros da contabilidade da D-
13. Num dos jantares o Mula começa já aqui a palrar demais sobre a ‘Operação Evo
Fernandes’, o que falhou, que no seu entender foi a logística, o ‘cacau’ não terá
chegado a tempo ao vector de fuga… e eu a mandá-lo ver o filme, o vídeo, está mais
malta presente, do paraquedismo, embora ele esteja para aqui meio grosso a debitar
isto quase em surdina.
O Fernandes... Como se costuma dizer, artistas que passam e não esquecem,
um fantasma que não nos larga. Por esta altura já estava eu mais que fartinho de
equacionar sobre a dimensão de toda a operação, o envolvimento até ao pescoço de
certo pessoal da embaixada em Lisboa e outro em trânsito, de malta que agora

205
conheço perfeitamente bem da D-13 e que até são gajos porreiríssimos, pelo menos
para mim, pudera!, no dia a dia. Mas meses depois todo este tema voltará à baila,
claro, conforme o descontentamento no Ministério entra em franca inflacção.

A GUERRA CHEGA À CATEMBE. UM DUELO DE ARTILHARIA VISTO


DA JANELA
Acompanho agora a Célia ao Búzio, ao Sanzala, e redescubro outros ‘spots’ da
Maputo nocturna. No Búzio ou Minigolfe, é a Virla, essa tal estudante do ISRI, o
Instituto Superior de Relações Internacionais, e eventual ex-amante do Marcelino dos
Santos, que vem ter connosco. Esta cara de anjinho também não engana ninguém
mas a Virla tem toda uma ‘souplesse’ intrínseca. Outra amiga é a Isabel Dimande.
Torna-se amiga próxima nestes tempos no Rovuma, somos vizinhos. Ela anda cá e lá,
quero dizer, faz ping-pong Moçambique, África do Sul e outros países da região. Diz
estar num departamento sensível da polícia moçambicana e ser uma das oficiais de
ligação à Interpol.
E do Rovuma topa-se bem mesmo a Catembe, e a Catembe continua pois a
ser este apelo constante: a simbólica, talvez, da travessia do plácido espelho da baía,
superfície de paz entre a tensão urbana e o despedaçar da guerra ao longe. Comunhão
em verde, azul e dourado. E os prazeres de uma refeição no Diogo, ou de uma noite
de jazz no Clube Náutico, como acontece agora.
Partimos ao fim da tarde afrontando a brisa que se levanta a saudar o sol
poente. Pequenas ondas parecem cumprimentar, escoicear a lancha, apressando-a.
Restos da ondulação ao largo que vem morrer para lá da Inhaca. Do pontão até ao
Clube restam escassas centenas de metros de caminhada e afinal neste Sábado as
instalações encontram-se tomadas por uma festa privada, mas os músicos lá estão, a
tocar, e despejamos ainda umas cervejolas aqui quase à beira-mar, entre os acordes
dos trompetes e saxofones, e eu já tocado e a dizer à Célia que me apetece é despejar
uma caneca na concha do sax para ver o som que dá, e ela a mandar-me calar, que
estamos ali por especial favor, a cabeça pousada no meu ombro, hoje ela mais
tranquila e serena que eu.

Catembe, Catembe... Sonância mágica, esta, das terras do régulo Tembe. Terra
que abraça a sul esta baía tão calma baptizada ‘Delagoa’ pelos ingleses, lagoa-baía ou
baía-lagoa onde quatro rios vão debitar as suas águas, desde o Incomáti no extremo
norte, sobre a Macaneta e Xefina, o Matola, banhando o Língamo, o Umbelúzi e o
Tembe mais a sul. É um sítio relativamente pacato esta Catembe. Casas modestas e
térreas de pescadores, onde em muitos deles se mescla sangue indiano com o cafreal,
está ali essa fiada de construções rasteiras logo à direita de quem abandona o pontão
do ferry: a velha Catembe. Mais para esquerda e para o centro é a Catembe das
últimas décadas, da fixação do colono português, das tentativas de se criar um polo
turístico apontado a sul, e nasce assim o esboço de uma povoação com alguns bares e
cantinas. E depois, é quase só a estrada poeirenta que por dentro segue também até
ao Diogo e mais além, lá ao fundo, conduz à antiga pousada Marisol e à Ponta
Mahone.
Eu e a Célia voltamos num almoço ao Diogo. Quando digo ‘almoço’... bem, é
um almoço que se estende langoroso até às dezoito horas, quase ao pôr do sol, e é ao
lusco-fusco que chegamos à ponte cais, já o cinzento tomba do céu, não há luz
eléctrica, um militar do controle a pedir os papéis, ‘documentos!’, e a desatar às

206
gargalhadas conforme eu perdido de bêbado avisto uma ratazana que se esgueira a
correr e a aponto, que ele lhos peça primeiro, a ela, que passou já por nós a caminho
do barco. Claro que não é necessário mostrar documentação. Dois ou três cigarros
bastam. É quase sempre assim, em Maputo, em todo o país. Um nível de segurança
pendurado em cigarros, em nicotina efémera, em cinza, esboroando-se…

E poucos dias não estão ainda decorridos quando no Rovuma, a meio da


noite, somos sacudidos por explosões que troam lá ao longe, embora fortíssimas.
Abeiramo-nos da janela: ‘É na Catembe!’, diz a Célia. É mesmo… efectivamente.
Pouco para além do centro da vila. A terra fende-se, reverbera lá na lonjura como o
batuque gigante e frenético dessas trovoadas que descem dos Libombos. Disparos de
armas pesadas, morteiros, canhões ou RPG-7, explosões várias, e há algo agora que se
incendeia. Mais um foco de incêndio nasce do lado sul. Irão durar horas. Um duelo
de artilharia. A guerra volta a ouvir-se próximo de Maputo. A calma e placidez da
Catembe é só aparente. Em guerrilha não há nunca certezas feitas. O nosso paraíso
não escapa a esta regra terrível.

A LULÚ E AS ETERNAS TENTAÇÕES. GAJAS, COPOS, VÍDEO & ROCK


AND ROLL
A tentação é grande. A carne é fraca. As zangas com a Célia multiplicam-se e
por vezes, no rescaldo, vai ela estacionar uns dias na casa da COOP, a casa da família.
Ora, a Célia nunca recuperou totalmente da morte a tiro, da irmã, pelo marido desta,
do Ministério da Segurança, o tal Zandonga, responsável pelo armamento. Essa irmã
é que era ‘a família’. Na COOP resta a mãe, os dois irmãos, uma irmã mais velha, e as
sobrinhas e sobrinhos. Uma outra irmã reside perto. Quanto ao pai, empresário, vive
na África do Sul.
Ora numa destas ausências da Célia, um dia até, em que me encontro
adoentado, batem à porta, quase à meia-noite. É uma apinocada Lulú que surge, uma
Lulú amiga da Célia e que eu só vislumbrara ainda de raspão, a afamada Lulú e mais a
sua perícia aos bobós! Mesmo doente não tenho coragem de a mandar embora: ‘se
quiseres entrar...’ Eu estou ali deitado, a TV no quarto. ‘...olha, a Célia zangou-se,
voltou para a mãe... Não tenhas problemas!’ Parece que era o que queria ouvir, e ela
não teve, claro, problemas.
Possui uma boca de oiro e seda, cetim escuro, esta Lulú, estatura mediana,
talvez a atirar para o baixo, maneirinha, carnes firmes, bem nutrida, sem chegar a ser
roliça. Despe-se ao meu lado e querendo-me poupar, devido ao meu estado, acaricia-
me já o membro com os seios bem cheios, firmes, redondinhos. Depois, muito
ligeiramente, aflorando toques, quase sem se dar por isso, vai insinuando gestos e
prazeres, baixa-se, desliza como se escorresse todo o seu corpo sobre o meu, descai
em direcção aos pés da cama, a mão em concha acariciando-me as partes baixas, até
que faz a língua assessorar esses afagos e num movimento vagaroso, dir-se-ia com
parcimónia, engole e devolve continuamente o membro inchado, ritmicamente, um
membro em rubro arroxeado que já não conhece cansaço ou se ressente sequer da
febre do corpo. Para fora, só regurgita o tronco exangue, cumpridor, que tão bem ela
soube acolhê-lo. Mais nada foi preciso, nem de outro modo provar, as capacidades, a
arte excelsa desta Lulú. Claro que desde aí ficamos bons amigos, depois de mais esta
‘operação especial’.

207
Estão a findar os jantares com a malta do Aeroclube, as sessões de vídeo e os
convívios do Rovuma, que haviam prosseguido mesmo já no tempo da Célia.
Aproxima-se o congresso do partido FRELIMO. O Rovuma tem que ser aliviado dos
hóspedes habituais para acolher os delegados ao congresso e convidados.
Em fins de Maio de 1989 arranjam uma flat num 5º andar de uma ala do tal
prédio Nauticus, hoje, da EMOSE, coincidentemente, o mesmo onde se realizara a
conferência de imprensa, à minha chegada. Na mudança damos boleia à Isabel
Dimande, a ‘agente especial da Polícia’, pelo menos como se intitula, e que vai
instalar-se também na baixa, no Tivoli. E é assim que mais tarde surgirão outros bons
serões, eu, a Célia, a Isabel e o também ex-RENAMO Chanjudja.
Reunimo-nos à tarde ou após o jantar no bar do 1º andar do Tivoli. O João
quando está bem disposto toca guitarra, entoa até canções cubanas, estivera na ilha do
Fidel há alguns anos atrás quando ainda se encontrava integrado na FRELIMO.
Quantas vezes não obrigámos nós aquele bar do Tivoli a fechar já de madrugada, e
tivemos que levar o último empregado a casa, de boleia? Mas passam-se uns bons
tempos, a recordar Lisboa e, claro, as peripécias no seio da RENAMO. O Chanjudja,
então, não pára de repetir a mesma história do Evo, a derrubar tudo da secretária
dele, em Cascais, num ímpeto de cólera, quando lhe levam a notícia da minha chegada
a Maputo: ‘estou rodeado de traidores’.
A nossa flat é um pouco acanhada. Um quinto andar, às vezes sem elevador, e
sem água ou luz, em dia ou noite de sabotagem, mas bem, isso é em toda a cidade,
excepto em prédios com gerador próprio e cisternas enormes. Quanto à água, a
empregada encarrega-se diariamente de manter cheio o ‘depósito’ do apartamento,
trazendo-a em jerry-cans desde o rés do chão. O nosso ‘depósito de segurança’ é um
bidão de 200 litros, originalmente um tambor de combustível de aviação. Os cortes de
corrente na zona são contudo frequentes. Em toda a baixa é assim. Resignação…
habituamo-nos. E tão depressa como se foi, a luz regressa. Sabe-se logo: ‘Energia!!!’.
Um berro portentoso, uníssono, largado pela criançada, ecoa por toda a zona, alerta
para o restabelecimento da corrente.
No mesmo piso temos uns vizinhos agradáveis, aliás, são os únicos deste
andar, e gente de confiança, do sistema: a moça é a Malosse, irmã do Frederico
Mangoba, que fora meu instrutor de paraquedismo há mais de onze anos, ‘ou toda uma
eternidade atrás!’, lá no Aeroclube. O marido dela, o Pio, trabalha no ministério da
defesa, secção de contabilidade e finanças. E temos ainda o puto deles, o ‘Abanico’, é
como lhe chama a Célia, o Mswati. O irmão desta Malosse é o Mandevo. Sabemos
quando o gajito está em casa: música rap altíssima a toda a hora, ameaça a estrutura
das vidraças, o andar, o prédio… bom, mas são todos gente porreiraça.

É por esta altura que começo a conhecer melhor todo um naipe de amigas da
Célia que nos visitam assiduamente, como a Lisete e a Rosinha. A Rosinha é da Beira,
muito pequenina mesmo, ela é a ‘Baixinha’. Porém tem uns bíceps bem
desenvolvidos, foi nadadora federada esta ‘Baixinha’, mas dizem as más línguas que
passou depois foi a nadar para tudo o que fosse vergas de cooperante... Bocas! Invejosos!
Más línguas! No Bairro Triunfo, junto à praia, visitamos pois essa outra, a Lisete. É
mista, cabelo encaracolado e aloirado. Um escândalo: despreza praticamente a mãe
que é negra, tem-na em casa e apresenta-a como se fosse uma empregada, a criada. O
sonho maluco desta Lisete: abrir um bordel, um ‘palácio de putas’! E continuamos a
ver a outra amiga da Beira, a tal Virgínia ‘Inhamajau’, com a sua eterna madeixa

208
erguida à frente, descolorada, uma moça forte e a atirar para o alto mas de tetas
descaídas como ‘sapatilhas’. O terror desta gaja são os camaleões e gala-galas (lagartos
ultra coloridos) e quase desmaia ao vê-los. Os ‘répteis’ que gosta de domar são doutra
estirpe. Claro, é também outra bebedora inveterada, seja cervejola, vinhaça ou secos.
O clima ‘puxa’! Estamos todos desculpados.
O Dinar e mulher, a Sónia ‘Matulona’, a Dilma, afinal também é amiga da
Célia, pôrra!!!, a malta do Aeroclube, voltaram, continuam a visitar-nos no novo local.
Maputo é um mundo. Um mundo pequenino. Estamos na baixa e várias vezes à noite
vamos até ao Continental, um dos mais conhecidos cafés de Maputo, fama que vem
desde os tempos da então Lourenço Marques, a par com o Scala, mesmo defronte.
Mesmo na ‘mouche’ da baixa, na confluência da Samora Machel (D. Luís) com a 25
de Setembro (República).

Conheço aqui no seio da ‘baixa’ mais velhinha, das ruelas desses já distantes
inícios do século XX, o estabelecimento do Sr. Khan. É casa de um piso só, plantada
como uma vigia à esquina entre a Rua da Mesquita e a Consiglieri Pedroso.
Entabulamos conversa uma das tardes. Está no ramo das cassetes áudio, novas,
gravadas e por gravar, um empresário do som que migrou do cinema móvel. Andava
com uma carripana pelas províncias, em projecções, até a guerra estalar a sério.
Meteu-se já na duplicação de cassetes, é um dos pilares deste novo reino da ‘cassete
pirata’. E sou em quem o introduzirá na era do vídeo, afinal.
Logo me pergunta, baixinho: “e filmes ‘giga-giga’...?”, o gesto é sugestivo,
explica tudo.
– Ah! Porno?! Vamos ver o que se arranja..., respondo, já a pensar no
Danúbio e nas suas cassetes da ‘Minouche’ e companhia.

O Continental, Scala e a Rua de Bagamoyo (Major Araújo) são território do


característico Gipsy. O Mano Gipsy! Que já conheço, claro, do Califórnia e afins.
Cruzo-me com ele amiúde. Vive no hotel Carlton ou no que dele resta, esse resquício
de arquitectura colonial, que até a mim e à Guiducha, outra ‘namoradinha’, acolhe.
Bem, o Gipsy compra e vende tudo, ‘desde uma agulha a uma mulher’, dizem. É um
dos chefes do pequeno business da baixa de Maputo. O Dinar apresentara-mo no
Califórnia, há meses, mas não tem nada em catálogo que me interesse, é bom de ver.
Há mais um punhado de gente a orbitar agora, alguns que se aproximam por
intermédio da Célia, como um casal, a Judite e o maconde Banú. O Banú é o
Decidério Januário, afinal oficial no SNASP, o ‘meu’ Ministério. Quanto à Alice, moça
africana, que entrevejo agora, magrinha e alta, mesmo agirafada, já está ‘ocupada’,
juntara-se com o Herman Gonçalves, um português já nos seus sessenta e tal anos,
antes auto-exilado lá para as terras dos cangurús, na Austrália. E eu, eu… há esta
miríade de amigalhaços da ordem, mais ou menos chegados, amigas e namoradinhas,
e copofonia, e rodo entretanto cada vez mais a cidade, mas não se reduz a vida a isto,
decido por assentar um pouco e entrar neste negócio do Khan. Audiovisual, agora.
Seja!
Sempre apreciei filmes, bons filmes. Aqui, contudo, não é bem a qualidade
que está em jogo, mas o que é que se pode fazer? Meia dúzia de contactos, visitas a
dumba-nengues, para aguentar fornecedores, e passado um pouco até à porta de casa já
me vêm vender cassetes vídeo. Algumas a cinco mil meticais, outras a seis mil. Isto foi
rápido, um rastilho: poucos dias após virmos para a baixa, dera com a loja do Khan.

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Depois, faláramos no assunto. Disse-lhe para, à experiência, ficar com algumas
cassetes vídeo para venda, que era toda uma nova área em expansão. E estava agora a
vender-lhas por 10, 15 e 20, ou mesmo 25 mil meticais, se eram das boas, originais.
Daí à duplicação nesta área foi outro passo. Estou a comprar cassetes a uma média de
seis mil cada e a vendê-las a quinze. Mais tarde, passaria também a duplicá-las em
casa... e já estão a ver o filme!
Voltemos em pirueta a este Gipsy: voluntaria-se agora em ajudar
ocasionalmente na venda de cassetes vídeo por outras áreas, refugos que o Khan não
absorvia, e noutros negócios de ocasião, aparelhos de vídeo, TV, etc., etc., que
surgiam, e eu tomava às vezes à consignação. O Gipsy tem um ‘faro’ do caraças para
o negócio… é natural da Beira, de seu nome original João Faneca, e aí, para grande
contrariedade sua, é mais tratado como o ‘Galinha’. ‘Deve ser por quase não ter
pestanas, será?’, interrogo-me vezes sem conta, sem me atrever a perguntar-lhe a
razão.
Bom, e na mais nobre zona da cidade, em contraste com as vielas torpes da
antiga baixa, na Sommerschield, visitamos Banús e Gonçalves. O Gonçalves, esse
português velhote gasto pelos anos e pela luta da vida, não se cansa de desbobinar
historietas de Sidney. Ostenta um cabelo e sobrancelhas que em tudo faz lembrar uma
mescla de Brejnev e Ernest Borgnine. Fala num filme em que entrou, ‘On the
Beach’, em que os papéis principais foram do Gregory Peck e da Ava Gardner que
chegou a conhecer. Manteve-se por lá nessa imensidão de cangurus, fugido ao regime
salazarista e só regressa a Portugal, a Moçambique aliás, após o 25 de Abril. É um ex
libris do ‘contra’, com o seu pensamento anarquista constante. Um homem bom,
pleno pois de contos, desde a maçonaria à cabala, a todas as acrobacias políticas por
que passou, até um alinhar pontual com o Partido Trabalhista australiano onde
conhece o Bob Hawke. Um comboio em fila dupla, e tripla, de garrafas de whisky
Grants, cobre toda uma das áleas do jardim junto ao muro da casa. Pelo entardecer e
noite fora, dá ele cabo de mais de uma garrafa desse scotch, enquanto vai debitando
os seus relatos, imbuído que baste de um certo cariz místico e mítico. Nas horas de
expediente, é um ‘expert’ a laborar no terminal de carvão do porto, por parte da
Manica Trading Services.
Por um destes dias de meados de 1989, um fresco Domingo, vou mais a Célia
a uma cerimónia em casa dos Banús: o aniversário do falecimento do pai do
Decidério. Todo um ritual completo, rezas, evocações bíblicas e espirituais
tradicionais, animistas. Comida, há em quantidade, e bem regada por mais de um
barril de cerveja.
Tornam-se estes Banús companhia constante. Vamos inúmeras vezes aos
copos, e a copofonia é até às tantas, como se adivinha, no bar ‘Volante’ do Rachid,
junto ao Minigolfe. ‘Quando vim aqui pela primeira vez, a este bar móvel? 1963?’ Já
na altura existia esta extensa roulotte, tinha vindo com o meu pai, lembro-me
perfeitamente, até junto ao parque de campismo, ver os macaquinhos por aí à solta,
os saguis do parque. Continuam a existir, os símios, embora em menor número.
O Volante fica pois aqui mesmo ao lado do Búzio, a boite do Minigolfe. O
parque de campismo, esta parte aqui próxima, pelo menos, é agora da Bonifica, a
cooperação italiana.
E além do Rachid, outro ponto de paragem é o vicioso Miraflores da célebre
confusão com o Major Milagre e que acabou com um balázio. O proprietário é o

210
Langa, rotundo, pesadíssimo, este empresário. Anos mais tarde em Lisboa tomarei
conhecimento da sua morte num acidente na EN1, perto da Manhiça.
Depois, aos domingos, passamos a encontrar-nos com a malta amiga lá pela
Rua de Bagamoyo, a rua do Carlton, mas é para algo decente, a estas horas de
Domingo: estamos no célebre ‘Submarino’. Restaurante pertença de três portugueses,
e, pelo menos nestes almoços dominicais, abre-se um parênteses, torna-se um sítio
decente, altamente recomendável, livre do estigma e imagem de marca da Rua Araújo,
e sem ‘pretas bem vestidas’. O prato forte é o Cozido à Portuguesa, doses
pantagruélicas, com a originalidade de ser a alheira a substituir a faltosa farinheira que
não existe então em Moçambique.

É inevitável. Principio a duplicar cassetes vídeo à fartazana, pois apresentara


um projecto ao Ministério para que me subsidiassem na abertura de um clube vídeo.
Explico: tinha já umas instalações em vista, a meias com uma ex-atleta, a Ludovina
Oliveira, que na outra parte do espaço iria explorar um cabeleireiro.
O subsídio chega aos soluços e no total é apenas de vinte milhões de meticais,
dá para parte do equipamento: vídeos, câmaras de filmar, gravadores, decks de
cassetes áudio e duplo-decks, quantidades de cassetes virgens áudio e vídeo.
Como se processa então tudo isto? Para o pessoal do Ministério não palrar
muito? Segue-se a ordem das estruturas de topo, do ministro, canalizadas pelo
director de gabinete e director financeiro do Ministério: o capital é entregue pela
Padaria Pão Fresco. A Pão Fresco localiza-se na Avenida de Moçambique, bem, ali era
já a Estrada Nacional 1, que de Maputo parte para o norte em direcção a Marraquene
e ao resto do país. A padaria fica mesmo a seguir ao cruzamento do desvio para
Mahalazine-Houlene, não longe da Missão de São Roque. Um sítio pleno de
memórias: Há quantos anos? Vinte, quase vinte, fora em 1970. Estivera aqui acampado
nos terrenos da missão, três dias com os escuteiros da Malhangalene e todos os
outros de Lourenço Marques, quando tinha apenas onze anos.
O senhor Ariel, um mestição claro, encorpado e afável, um pouco pró calvo, é
o responsável da Pão Fresco e lá vai dando o subsídio conforme pode. Porquê a Pão
Fresco? A padaria é uma das várias instituições formadas pelo Ministério da
Segurança e ainda administradas pelo César Bento, o director financeiro do SNASP,
com vista a conseguir fundos adicionais ao orçamentado pelo estado para o
funcionamento do ministério. E assim se vai escoando o resto de 1989.

SEMPRE ALERTA, CIDADE COMPLICADA. COMO AMESTRAR ESTA


BANDIDAGEM. PROVOCADORES E CORRUPTOS A RODOS.
Estar no centro da baixa por um lado é cómodo, por outro é estar no centro
do furacão de uma certa bandidagem: assaltos a viaturas, lojas, montras e escritórios.
Os pisos inferiores do nosso prédio, com vários escritórios, são assaltados diversas
vezes. De vez em quando dou algum dinheiro ao miliciano armado, um estímulo para
reforçar a vigilância.
Da varanda adjacente ao nosso quarto, debruçada sobre a 25 de Setembro,
testemunhamos contudo em noites de fins de semana a escumalha a rondar os carros,
a tentar forçar as portas, embora com o Lada não se metam, que sabem que aquilo
‘morde’. Querem é Toyotas e outros afins. Tenho resposta para tais brincadeiras:
garrafas de litro de coca-cola ou outras, em vidro, cheias de água, autênticas granadas
caseiras. É vê-los a ganir quando estoiram no alcatrão ou no passeio perto deles.

211
Claro que com os carros relativamente próximos não me posso arriscar a um
falhanço atirando com as ‘outras’, repletas de líquido inflamável, e são uns frascos
pressurizados com um rastilho em tecido e parafina que preparei. Lá dentro, cloreto
de etilo, o ‘cheirinho da Loló’. Ensinei à Célia como é que se usa aquilo, em defesa à
porta, se alguém tentar entrar. E antes do madeiro grosso da porta existe ainda um
portão de barras. Tudo porreiro! Além de que a Célia possui também as suas armas:
numa zanga terrível transporta lá de baixo uns pedregulhos enormes arrancados ao
passeio, e selvaticamente atira-os para dentro de casa trespassando as vidraças
existentes sobre a entrada. ‘Raio de miúda! Ganda bebedeira hoje!’, eu não me calo perante
tal atrocidade. O álcool torna-a violentíssima. Quase destrói o apartamento. Na
manhã seguinte está de novo um anjo frágil... Compreende-se isto?
Mais uma série de roubos no prédio, nos escritórios. O ‘meu’ miliciano
desaparece de circulação. Acaba de ser preso. Está ele próprio envolvido nos assaltos,
coordenou os grupelhos de malandros que agiam contra as instalações que era
suposto defender. É assim que está Maputo. Meia dúzia de cigarros compram um
gajo.
Uma dessas noites, ‘não há cá pão para malucos’, como se costuma dizer: com
o Lada mando uma trombada contra um desses malandrins que ia a fugir, o carro
avança já em cima do passeio do café Djambu, a roçar as mesas da esplanada deserta,
é de madrugada. Com o choque o delinquente é catapultado ao ar, parece o space
shuttle, e aterra de quatro, ‘mas algo não está bem!’... rasteja... endireita-se, olá!… há
qualquer coisa de muito errado com as peças dele, deixo-o desaparecer, todo
desengonçado já, a rebocar uma das patas. Punido! Meus amigos, isto tem que ser
assim, pulso firme.
E há malta que recebe para estar num posto, cumprir com o seu dever para
ser pago ao fim do mês... não é? Tínhamos ido à Feira Popular. O Lada e eu, com o
livrete da Segurança / SNASP, temos assim livre trânsito para tudo o que é sítio, além
do óbvio combustível grátis nas bombas à esquina do ex-Largo do Alentejo com a
Rua da Malhangalene (Rua do Porto), a estação de serviço do Ministério. Ora, eu
estacionara a viatura no interior da Feira perto do restaurante onde jantáramos. São
duas ou três da manhã. Queremos sair. O portão da Feira está fechado. Buzinadela
breve. ‘Porque é que esse cabrão fechou o portão a cadeado?’ E uma fila vai-se formando atrás.
Quatro, cinco, seis veículos... nada! Buzino. Nada! Acelero o motor... Nada! ‘Foda-se,
vou rebentar com esta merda!...’
– Não!, berra a Célia. Desembraio, a acelerar já lentamente. O focinho do
Lada beija a estrutura de ferro e arame, um pouco mais de gás... e clang!!! crangadabum!
ziiing!, as duas partes do portão a oscilar, rebatem para fora, a corrente e cadeado a
esvaírem-se num recôndito escuro ao lado entre o capim, uns berros agora do sacana
aos pulos a vestir, enfiar umas calças, patas no ar, a gesticular como um louco fugido...
e já nós estamos na 25 de Setembro, eu a cumprimentá-lo com um manguito, os
faróis dos outros na retaguarda parecem sorrir para nós! O meu amigo Gipsy contar-
me-á depois: ‘o tipo do portão estava lá na casota a dar uma queca a uma amiga...’, e
foi isso, pronto, trabalho descurado...
Estávamos afinal ali a dois passos, nós, no coração da baixa, e a maior parte
das vezes o Lada ficava até a tomar conta do prédio, como eu dizia. Portanto íamos a
pé, já meio incendiados pelas cervejolas do fim de tarde, à procura de um jantar à
maneira num dos nossos restaurantes preferidos lá da Feira: ou era a Brisa (de um
português), o Morabeza (de cabo-verdianos), o Satélite, onde o Chanjudja tinha uma

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amiga que tomava conta daquilo, ou o Bigodinho, de um tal Pedrito, ele é músico e
temos sempre, aí, uma bela envolvência sonora, além da enorme diversidade de
cervejas em lata, importadas. Aí paira também, invariavelmente, um dos ícones desta
Feira, o Mano Zeca. Não é muito dotado de cabeça, este mestiço cinquentão e
esquelético, mas sempre pleno de piadas e saídas giras, confusões com graça. Não sei
como é que esta figura filiforme aguenta tanto litro de cerveja a bordo… Ah! E
temos ainda o Picolé, de uma amiga da Célia que vive com um canadiano. Além da
profusão de comes e bebes existe o Zozó, claro: é a boite da Feira. Mas nesta noite
que vos conto agora, tínhamos ido apenas jantar e estamos de volta a casa, a pé.
É o nosso quarteirão, o da EMOSE (Nauticus), que é igualmente o da loja
Eduardo Silva. Depois, há o do Hotel Tivoli e Djambu, estão a ver? E por fim o da
antiga Cruz do Oriente, Bambi, Marialva, Teatro Avenida e Prédio Cardoso, o edifício
logo adjacente aos terrenos onde antes, sazonalmente, se fazia o Luna Parque ou
montavam tenda os diversos circos, e onde após a independência se instala esta Feira
Popular, quase inteiramente gastronómica, e aberta todo o ano.
Ora é neste quarteirão que estamos a entrar, vindos da Feira, e esvoaçamos
etilicamente a meio da largura do prédio Cardoso quando, rasando a Célia, se
despenha à nossa frente um pedação de sucata... Há provocações habituais quando
em Maputo se vê uma natural da terra com um estrangeiro, mas quem fez isto, o
suicida cabrão que fez esta pôrra, não deve ter visto quem estava com ela! Já há dias
nos tínhamos chateado com um puto que mandei ao ar e alcunhámos de Tupolev (o
fatídico avião do Machel), o puto aterrou mal mas ficou bem, e nosso amigo,
agradecido quase pela reeducação e trocos recebidos. Bom… Estão a ver agora o
filme: início de madrugada, carburador cheio e uma provocação destas, perigosa!...
Apanho logo ali dois ou três gajos do sítio. ‘Quem foi o cabrão, hein?! Estão a ver
isto?’ Mostro o documento do SNASP, reboco-os para próximo da luz da montra,
estão agora a reconhecer-me. Um borra-se quase, chocalha, agita-se como vara verde.
‘Chibam-se’ todos: ‘Sim, sim... Manuel... eleishe! Manuel, do terceiro esquerda!...’ E
okay. ‘Bico calado, agora’, recomendo. Calmamente pego na Célia e vamos para casa.
Dormir. Eu, até às quatro e meia. Falara entretanto com o novo milícia da zona:
‘Camarada! Temos trabalho para fazer, 4h45, não falha!’
Às cinco estamos a dar um par de coronhadas na porta daquele cabrão.
– Quem é?... , e isto só ao fim de mais uma série delas.
– Abre essa merda! Segurança! ‘Dá cá isso!’, digo eu ao miliciano.
O claque duplo de meter uma na câmara deve trazer o gajo à realidade... ‘É já
ou queres uma rajada através desta merda?! Abrir!’
Lá está o madeiro a entreabrir-se e a carantonha de um tipo até bem tratado,
não passa fome, este, barba rala, uns trinta e tal anos.
– Senhor Manuel..., ia eu começar.
– Sim, sim, sou... Está a abotoar agora a camisa.
– Vamos já andar, sair... E logo ali leva o primeiro enxoval.
Na casa estão que nem ratinhos, ninguém bule. E lá vai o gajo de repelão
arrastado escadas abaixo, rebocado para o passeio. Pensa que vai para a esquadra mas
estamos a levá-lo é para o prédio da EMOSE, para dar-lhe um tratamento eléctrico a
valer que nunca mais vai pôr as patas em sucata para atirar a ninguém! E do 5º andar,
há que remetê-lo à B.O. Chegamos ao nosso prédio e aí o gajo resiste ao tentarmos
encaminhá-lo do passeio para a entrada do edifício... Mau! E deve ter chegado o
primeiro ‘ferry’ da Catembe, há uma leva de gente a passar agora, apressados, mas

213
alguns estacam em círculo que se forma, miram o tipo ali a berrar sob uma chuva de
coronhadas na mona e braços, o relógio foi já para o maneta, transformado em algo
em ‘2D’, bidimensional, por uma cacetada certeira, e o nosso amigo vermelhinho a
cumprimentar-nos, não falta à festa! Acaba por ficar assim, pronto, é em saldos! O
gajo a lamentar o arremesso do pedaço de metal e a reconhecer o erro, pronto, e trata
tudo de dispersar com o sentido do dever cumprido, do espectáculo grátis
presenciado, de uma lição de civismo aprendida.
Não gostaria de insistir muito no mesmo tom, mas a realidade é que se torna
difícil de escamotear ou doirar esse ‘combate’ incessante predador-presa. Combate...! E
nem sempre as potenciais presas o são, ou estão desprotegidas. Por vezes, o jogo
inverte-se então, e o predador torna-se presa, não é mesmo?
Preparávamo-nos para ir ao Búzio. Eu, a Célia e a Rosinha. O Lada estava no
mecânico, íamos apanhar táxi. Enquanto pago a conta no Continental a Célia e a
Rosinha atravessaram já para o passeio que dá para a Casa Coimbra, o local onde
vendiam antes a tal Rifa do Desportivo. Ao cruzar a avenida topo já um burburinho,
uns tipos novos a cercá-las e a chateá-las, eu a fazer sinal a um milícia, elas a
regressarem agora a correr ao Continental, a Rosinha a guinchar, ‘a bolsa! querem
apanhar-me a carteira!...’ e partimos eu e o militar como uma seta atrás do criminoso
maior: Continental, Casa Vilaça, curva à direita, Modelândia, estamos a contornar o
quarteirão, Rua Joaquim Lapa, apontados agora ao jardim dessa praça que era antes a
7 de Março, atravessamo-la a correr em direcção à Casa Amarela e sai o primeiro tiro
para o ar, mas o assaltante consegue escapar, refugia-se nessas ruínas queimadas e já
antigas de uma agência bancária que aí existiu há anos. É este o far-west da baixa de
Maputo. Não há que transigir!

E não são só bandidozecos. Ele há também os provocadores natos,


especializados, ‘personalizados’, como no meu caso venho a perceber, e até com
conotações políticas derivadas de a FRELIMO já não ser a mesma, de os comunistas
do PCP em Maputo já não estarem como peixe na água. E quando se é bêbado,
estúpido e comunista, como fez um tal Sérgio Ferreira, careca, e do Porto, segundo
diz ser, e se topa até pela pronúncia, neste sistema agora em franca desmarxização,
vamos provar como a máquina funciona mesmo contra os seus ex-mentores e
apoiantes.
Sentado numa mesa do Continental com a Célia, são nove e tal da noite e
saboreamos cada qual a sua caneca de loirinha gelada, topamos este indivíduo branco
e calvo, português, que abanca noutra mesa, acerca-se agora e pede licença para se
sentar, ao que eu acedo, e está já a perguntar se não sou o Paulo Oliveira...
– Sim, retorqui eu sem problemas e de boa fé.
E o filho da puta: ‘É isso, a história de uma traição!... O cabecilha dos
bandidos armados da RENAMO! Jornalista nos pasquins da reacção em Portugal, O
Dia, O Diabo...!’, e não se cala, o gajo, ‘de onde é que me saiu este alien..?’, estou já a
perguntar-me e a sair dos carretos: ‘este bastardo veio ao sítio certo se quer arranjar
problemas’.
– Vamos estar calados!, convido eu.
E o tipo insiste: ‘...este era do jornal O Dia, uma central de mentiras, contra o
povo, o jornal da reacção! Chefe dos bandidos armados!’.
Averba o primeiro encontrão, mas o papagaio não se cala. Mais gente agora a
assistir à faladura, à volta da mesa, e já nem a Célia mostra apreciar aquilo. ‘Será que vou

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espatifar a careca deste filho da puta com um pontapé ou uma canecada, ou dar-lhe uma fuscaçada?!
Isto é caso para mandar este cabrão para a B.O., aí é que vai levar um aviamento...’
Balcão do Continental. Telefone. Volto à esplanada, tranquilo, o arauto
continua. Poucos minutos depois o chiar de um jipe, portas traseiras a abrirem-se e
três à civil, pistola à cintura, a agarrar neste coiote, o bandalho a ser sugado
literalmente para o interior. Peço à Célia para aguardar e sigo com o jipe até à B.O.
Assisto só ao início da esfrega. Sei que o director das instalações, o Zumbira,
encaminhou bem a coisa. Dois dias depois é o Gipsy, o ‘Mano Gipsy’, que me conta:
‘Vocês são fodidos pá! Eu conheço aquele gajo, o Sérgio. Não sabe beber, é um
provocador nato. Diz que levou porrada, pediu água e vocês encheram um bidão de
duzentos litros, desses do combustível de aviação, encheram de água e puseram o gajo
lá dentro toda a noite, dormiu aí, assim... vocês pá!’
Creio que isso era qualquer tipo de vírus político despoletado pela cerveja.
Não se passaram muitos dias e a cena repete-se, agora à tarde, no mesmo local. Este
burro não aprendeu a lição! Muito rápido com um milícia atrás reboco o gajo à
Primeira Esquadra, logo ali na entrada da Consiglieri Pedroso, e onde já existe uma
certa amizade com o comandante. Uns sopapos prévios, só para fazer libertar os
vapores do álcool, e num carro deles carrego este pedaço de asno até à B.O. na Av.
Sekou Touré.
Sala de espera. Empurro o gajo para os destroços de um divã, uma ordem ao
sentinela: ‘se esse cabrão se levantar daí ferra-lhe um tiro na cabeça. À minha
responsabilidade’. O sentinela conhece-me. Está já a accionar a culatra, um sorriso
molda-lhe os lábios. E aquele cabrão ainda a querer mexer-se, a erguer a crista careca,
a protestar. Um pontapé nas trombas faz-lhe melhor que um Valium. Acalma-se.
Esfrega a mona, e quem se ri agora sou eu, ao ver como funciona a ‘máquina’: quem
diria, ainda há poucos anos, um tipo do PCP a levar assim uma trepa, uma esfrega
destas no SNASP…
No entretanto, dá-se a cena macaca que me arrepia, o choque bruto de volta à
realidade que me conduzira de volta a este país. Chega mais um grupo de agentes da
‘secreta’ com uma captura na zona do ‘cem por cento’, a área de guerra, da Moamba:
um ‘inimigo’. Um dos meus ex-amigos. Dir-se-ia uma radiografia, é uma figura
esquelética, translúcida, a que está aqui, que só faz lembrar as fotos de Auschwitz.
De volta à outra realidade: o Sérgio está entregue, é o que interessa. O
Zumbira informa-me poucos dias depois que aquelas não eram as primeiras chatices e
que o fulano acabou por ser expulso do país, metido num avião, recambiado para
Lisboa.

Ainda estamos na baixa quando se dá uma peripécia ligeira envolvendo a


viatura e que só mostra o quão galopante (e é confortável, estando do lado certo,
claro) anda a corrupção por estas bandas: combinara com o Khan dar aulas de
condução aos filhos. Na zona da Feira Popular, Zambi, Facim e marginal da praia,
efectuamos as práticas.
Uma destas solarengas e radiosas manhãs estou com os dois jovens indianos a
dar a volta à rotunda entre a Escola de Pesca e a Facim, a entrar na 25 de Setembro
em direcção ao centro da baixa, penetrando por toda esta larga e bela avenida,
autêntica galeria entre eucaliptos e casuarinas, já com um deles ao volante, quando
salta um agente de trânsito para o meio da via, um pouco mais lá à frente, a apontar
decididamente para a berma. Travo ainda longe, deslizando depois, trocamos de

215
assentos, estou já eu ao volante com um sorriso cândido quando faço o carro
escorregar até eles. Mas estes gajos não são ceguetas. Ah! Ah! Ah!, parece dizer o
cumprimento que fazem. ‘A chapa de Instrução?’ Lá vamos para o comando da
cidade, um agente a bordo.
Chegamos, e continuo eu sorridente, é a minha vez. Porquê? Aquilo tudo, só
para me entregarem nas mãos de um amigo meu, o Major Choque, um nome porreiro
para um chefe de trânsito da cidade, a quem eu regularmente arranjo medicamentos.
Bem, é entrar por uma porta e sair pela outra. Claro que conhecia o Choque desde os
tempos do Rovuma, ele, e até o superintendente nacional da polícia de trânsito, o
Zacarias Cossa, fartinhos que estamos de tomar copos juntos no ‘Bico Dourado’ da
Patrice Lumumba. Recomenda-me que basta pendurar uma chapa a dizer ‘Instrução’
nos dois pára-choques.
Até há pouco tempo, aliás, conduzia eu mesmo sem carta. Onze anos de
condução, indocumentado. Em Portugal, na África do Sul, onde quer que fosse. Sem
um único acidente. Acabo por a tirar agora na escola do ministério do Interior onde
são formados os agentes de trânsito e até os quadros do próprio SNASP. Claro que
foi fácil para quem há muito conduz e tenta saber o código, pelo menos nos
intervalos lúcidos entre copos…

A HISTÓRIA DE UMA. UMA TERRÍVEL PEDRADA. CIÚMES,


BEBEDEIRAS E DEVANEIOS.
Por esta altura de finais de 1989 sou obrigado a falar em todas as histórias à
volta da Célia, das pielas da Célia, como foi a tal destruição das vidraças sobre as
portas, ou o ficar na cama até às tantas e o ‘café’ ou ‘chá’ matinal às onze horas não
ser mais que um novo copo de cerveja, ‘para começar o dia’. É inescamoteável esta
situação de vício.
E se as manhãs são relativamente sóbrias, o pós-almoço comporta quase
sempre a sua carga de xigumbogumbos e de latinhas de cerveja. E lá vem a recaída,
autêntica, da Célia, com múltiplos factores: a perda do puto (um desmancho induzido
tempos antes de me conhecer e que atribuía a um tal Franco, da cooperação italiana),
a perda da irmã mais querida há poucos anos, a Argentina Inês, e que para ela era
mais que a mãe, caída sob as seis balas desfechadas pelo marido, esse tal Zandonga,
na vivenda da COOP, e tudo isso, claro, potenciado pelo álcool. De tal forma que já
se confundem causa e efeito, neste feed back de duplo sentido. Desfilam os traumas
todos dela desde que em criança com nove anos tivera que deixar o Pafúri e vir para
Maputo, devido à guerra com a Rodésia. Tudo isto é agora sublimado, volta ao de
cima, e confere-lhe como que uma outra identidade. Isto, mais as aventuras ou
desventuras, e os desvios erráticos que tomara então na capital. E precisava
desesperadamente da bebida para exorcizar tudo isso, para ‘morrer’ e ressuscitar de
novo, na manhã seguinte, emergindo, ou afogando-se, num novo copo.
Da família carrega ainda um fardo de crenças e práticas de feitiçaria. Acredita
profundamente. Era vê-las, ela e a Rita falarem de como ‘alguns’ feiticeiros ‘com más
intenções’ abandonam os seus corpos pela noite e ‘vogam’ até aos das vítimas para
lhes comerem o fígado. Quem diz fígado diz outra coisa. Embora o ‘comerem’ aqui
não queira dizer bem devorar mas antes atacar, controlar, ou algo parecido. E a Rita a
frisar bem as certezas: ‘Alma di meu pai, juro!’, um pai, bêbado, ou distraído, coitado,
que ficara há tempos a fazer de sapata ao comboio lá para os lados das Mahotas.

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Mas a feitiçaria da Célia, isto é, a que ela diz que da mãe passará para ela, ou já
passou até, provém de muito longínquas antepassadas, bisavó, avó, todas as que ela se
lembra, no ramal feminino: ‘Então a minha avó, com o cesto em vime, tapado, com
aquela cobra grande, lá no Pafúri, pediu-me para pôr a mão...’, conta ela. Pelo relato
vejo que tem todos os contornos de uma cerimónia iniciática, e ela convence-se da
sua ‘força’ nova e imunidade. E cada ‘feiticeira’, cada ‘nhamussorro’, tinha a sua palhota
própria para os rituais, as missas, os objectos, as roupas, panos, rabos de animais para
agitar os ossinhos e conchas que se lançam, o xithlolo. Na COOP teria que ser
construída a da mãe, no jardim traseiro da vivenda.
E a Célia?... O que é que lhe está a acontecer vocalmente? Só posso
interpretar aquilo, que eu mesmo ouço, aliás, como glossolália: a Célia é capaz de
acordar estremunhada a meio da noite com uma voz gutural medonha, que ela
própria não parece comandar ou aperceber-se sequer, e mais estranho que tudo o
mais, a sequência de sílabas dissonantes não consta de nenhuma língua, dialectos
conhecidos, dela ou de quem quer que seja que a escute, não é língua ocidental, ou
eslava, ou africana... nada disso.
Mas é assim que as coisas se passam, dizem-me, não é só com ela que sai esta
língua ‘dos espíritos’, ou dos ‘demónios’… Será esta a tal língua primitiva inerente ao
nosso aparelho fonético e estratos cerebrais mais profundos, primitivos, funções do
mesoencéfalo e tronco cerebral, uma réstea da tal língua comum pré-Babel como
alguns aventam? A tal ‘língua dos anjos’ que a IURD e pentecostais usam para as suas
práticas religiosas? Mas a glossolália chegou inclusive a ser utilizada pela própria igreja
e missionários cristãos, como recordo de alguns artigos que li sobre o fenómeno.
Enfim, a Célia acorda e não tem lembrança, felizmente talvez, de algum destes
episódios.
E os meus despertares ‘malditos’? A Célia também protesta. Têm mais a ver
com sonhos de agitação, pesadelos povoados por RENAMOs e FRELIMOs. Claro
que a faço sempre relembrar das crises dela, espíritos e glossolália... E limita-se a
resumir, ela, sobre essas alvoradas à Makwakwa: ‘isso são os teus traumas pá’.
É! Será mais o imprinting, a ‘modelagem’. É o que chamam os psicólogos a
essas ‘gravações’ no primeiro ano de vida, esse registo inicial tão importante, que
marca a fogo o carácter de qualquer um. O ‘Makwakwa’ concorda... E também são as
‘traições’ que a vida lhe entrega. E que geram por sua vez as suas golpadas, como que uma
satisfação, um cinismo constante, que escamoteia tudo isso. Constróem a sua carapaça
‘inultrapassável’, nos dois sentidos, porventura. Como uma gigantesca barreira de gelo. Uma defesa
contra sofrimento maior, fissura que induz mais dor, afinal.
Makwakwa sabe-o, enfim. Sub- e conscientemente... Conhece tudo isto. E disseca cada uma
das partes, a fatia primeira, esse ano inicial, onze meses, aliás, passado durante o dia com a avó
paterna imbuída de certa perversidade, ciúme... E as traições! O cãozito que adorava, a Laika,
abandonada, sacrificada aos vizinhos... teria sido isso que lhe fez ver que a vida é traição? O
carácter efémero, periclitante, de tudo? Mas na altura nem parecera acusar o toque, ele... Tudo isso o
moldara sucessivamente ao longo da infância, até ao estilhaçar tremendo de todo o seu mundo na
Malhangalene, com o 25 de Abril. O fim do seu mundo... Começara da forma mais suave possível,
como que só um aviso, pela rádio: a BBC de Londres, na tranquilidade da sala de estar, fazia saber
que acontecera um golpe de estado em Portugal... Depois, nada mais fora o mesmo. O Mak
nalgumas coisas, a vida do Mak, para ele, parou mesmo nos seus quinze anos, na Malhangalene.
‘Não se pode fugir à sua natureza’, dizia. E refugiava-se, em recônditos vários: a
paixão, lógica, pelo Caos, pelos sumérios e pelos seus mitos, ou os riscos radicais do

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paraquedismo. Obsessões em série com que procura aplacar, cobrir os seus demónios
interiores, personagens, papéis, que substituem o ‘Paulo’ ideal que não existe mais e
devia ter continuado a crescer na Malhangalene, apesar das ‘traições’. ‘Agia contra mim
próprio?’ Não, não era nenhum suicida… frio, antes, no seu calculismo. Um perigo,
não para ele mas para os ‘outros’: ‘afastar, remover ameaças, inimigos’, é o seu lema.
Mesmo após sair da RENAMO. Precisava desesperadamente de um inimigo de
confiança ou que a isso pudesse ser promovido. ‘Um guerrilheiro está sempre em luta. A
minha guerra não termina enquanto não devolver ao Caos o corpo do meu último inimigo!’ Dera
conta, assim, de alguns ‘inimigos’, ‘e de muitos mais amigos’, provavelmente…
‘Terrorista? Terrorismo?! O terrorismo é o café, o estimulante da política!’, conclui. ‘Um terrorista
não se alimenta de televisão, alimenta-se de vontades, determinação. E sobre a guerra: ‘Armemo-
nos! Ide!’, é esta a hipocrisia que cita por vezes, mas não se coibiu de ele próprio estar
no terreno de luta, ou pelo menos próximo: ‘o bom soldado não é o que morre pela pátria,ou
pela causa, mas sim o que faz o soldado inimigo morrer pela sua’.
A Célia tenta compreender ‘este’ Makwakwa, mesmo quando ele diz,
agnóstico e brincalhão que é, que a religião é uma questão essencialmente freudiana:
‘Tivesse Freud surgido há seis mil anos no Oriente Médio, e conseguido globalizar a sua mensagem,
tudo teria sido diferente. Muito charlatão desempregado existiria. Assim, o que é que conseguimos?
O ‘deus’ dos judeus é um ‘deus punheteiro’ vocacionado à destruição da sua própria obra e criação,
neste jogo de computador cósmico que inventámos, à imagem, aliás, do Apzu e Tiamat
mesopotâmicos, e do posterior Cronos dos gregos…’

O projecto do João Chanjudja arranca também: vai explorar o espaço do


‘Música-Bar’ na Av. Samora Machel, logo a seguir ao Continental. Ainda lhe empresto
uns dois milhões, de meticais, claro. O ‘Música’ já existe desde os tempos coloniais,
era uma discoteca, discoteca das antigas, de venda de discos, OK?!, e abria agora como
bar e pequeno restaurante. É um sítio onde se junta diverso pessoal da Segurança, o
Cardoso é visita assídua, e nós idem, a vivermos aqui a dois passos. A Célia e a Beta, a
mulher do Chanjudja, dão-se bem, e a Célia acaba por ter um canto numa das saletas
onde está umas horas por dia com um balcão expositor e vitrinas para a venda e
aluguer de filmes.

Cá aterram, entretanto, mais duas histórias, inócuas, não, não há avisos ‘XXX’
agora: no pequeno apartamento da baixa a Célia vai recebendo visitas de amigas.
Surpresa!, algumas são ‘minhas’ amigas. A Lulu da boca de ouro e seda macia, cá está,
e há mais outra moça da Beira que fica umas noites aqui em casa, a dormir no sofá. A
Rosinha baixotinha, a outra amiga da Beira, também cá passa algum tempo, e a Zaida,
uma cavalona mista de indiana e que mora no Prédio Invicta, idem, e até aqui tudo
bem, pronto.
Eu é que estou de mãos atadas, para mais não dizer, percebem? Quase isso...
A Zaida esgueira-se para a cozinha minúscula para ir fazer uns ovos estrelados para o
pequeno-almoço e lá vou eu, consigo roubar-lhe uns beijos fugidios mas que acabam
por nos tirar o fôlego, e enfiar-lhe dois destes meus dedos esguios de pianista pela
pachacha acima por sob as calças de licra preta e calcinhas que nem a cor vejo...
Ficam-me os beijos e o cheiro íntimo e inebriante desta Zaida.
A Célia contudo é quem domina regularmente na cozinha apesar da (ou das)
empregada(s) doméstica(s). Alterna-se culinária portuguesa e africana, desde o
muchucho ou tocossado (água e sal, tomate e cebola com peixe ou carne, bom para

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passar ressacas, se for muito picante) até às diversas variantes de caril, ou peixe frito
ou grelhado bem temperado, garoupa, camarão, ou a sempre bem vinda costeleta de
vitela grelhada. Só com este lastro me consigo abalançar devidamente às baterias
copofónicas diárias.

E uma das noites vamos à Feira Popular, eu, a Célia, a Rosinha, a outra amiga
da Beira e... a Lulu. A Célia já vai devidamente acelerada e parece não aguentar muito
mais: ‘Fiquem, vou para casa dormir.’ Matreira, esta Célia. Enfim, sós! Digo eu para
mim. Sento-me no rebordo de pedra do pequeno lago junto à entrada principal e
defronte do bar Morabeza que é onde vamos pescar as canecas. Não tarda muito está
a Lulú sentada nos meus joelhos, a mini-saia não é obstáculo algum ao contacto
‘pernal’, quente... Conversa inocente até, creio, cada um com o seu vaso de loirinha na
mão, quando de repente todas as outras estão a sussurrar: ‘A Célia!’ Lá vem ela a
adejar pelo portão, parece voar baixinho, disparada: ‘Eu sabia, meu cabrão, isto é mais
forte do que tu!’
Olho para o chão, para os calhaus vermelhos e rudes, para a caneca agora
vazia, para a Lulú que se levanta mas deixa o seu calorzinho nas minhas pernas, o
perfume no ar e no meu corpo... Ergo-me, agito a caneca rumando ao Morabeza.
‘Bem, é preciso mais uma!’ Nem olho para trás quando a cabeça estoira, uma dor surda e
escura na nuca, que se desvanece em nada… porque estou desmaiado, caí de borco,
com uma réstea de visão periférica de um gesto da Célia e um rochedo a agigantar-se
num ‘zoom’. Mas nenhum dos meus sistemas, racional ou límbico ou reptiliano,
qualquer que seja, esperava um ataque autêntico, selvagem, da Célia. Daí a não-
reacção, anti-natural, a nuca oferecida ao projéctil.
Foram segundos, apenas, esta passagem pela inconsciência. Há vozes vindas
de um carro ali estacionado: ‘isso não se faz, não é assim...’. Um calor passa para as
costas conforme me sento, mas já não é o meigo quentinho da Lulú: escorre-me
sangue da nuca. Aos poucos a camisa está, em parte, empapada. A Célia desaparece
entretanto, a polícia chegara e reconhecera-me, levam-na para a Primeira Esquadra
onde lhe dão umas ‘chambocadas’. Querem-me levar ao Hospital Central, chamar um
táxi, ambulância, e mando aquela gente toda ter juízo, ‘já chega de caralhadas’. Pago
as cervejolas e rumo sozinho até casa, uma escala técnica no Tivoli, mas resolvo
depois não incomodar o Chanjudja. Sento-me um minuto num dos bancos à entrada.
Casa! Relatório dos estragos.
A ferida é do caraças, parece uma moeda gigante, mas não há nenhum golpe
aparentemente a precisar de pontos. Vamos apostar que não exista nenhum
traumatismo craniano daqueles de começar a dar vómitos e fazer bater a bota em 48
horas. Resolvo ir à procura da Célia, à esquadra. Bato a esquina do John-Orr, na rua
da Vilaça e Modelândia, em direcção à Joaquim Lapa. E afinal já ela aí vem, a meio da
rua. Abraça-se a mim a pedir desculpa, e conta das cacetadas que, valha-nos isso!, parece
que lhe sacudiram a bebedeira para fora do pelo. Regressamos ao apartamento onde
com água tépida, uma toalha, algodão e água oxigenada, me limpa a ferida. Tenho
uma boa coagulação e, banhoca tomada e T-shirt limpa, estou como novo, ou quase.
Continua a pedir-me desculpa beijando-me e findamos a madrugada a fazer amor.
Este relacionamento com a Célia é mesmo um boião de nitroglicerina.

E depois temos quem? A Dilma. Sim, a Dilma. Também amiga da Sónia, da


Berta e da Célia, há anos... É quase o Natal de 1989. Faltam poucos dias, aliás. Calculo

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que a Célia até tenha a consciência um pouco pesada, ‘roubara-me’ afinal a essa gente
toda. Pronto… infelizmente ou não, a Dilma não quer mais ‘cowboiadas’ comigo. A
Catembe e o Rovuma ‘foram tão bons, não foram?!’ mas ficaram já lá para trás.
Desta vez a Dilma chega com um puto, pouco mais terá que dois anos feitos.
Loirinho, franzino, é seu afilhado este Carlinhos. A história é terrível. E mais ainda,
para mim: a mãe do Carlinhos, portuguesa, está louca. Poucos meses antes do miúdo
nascer, ela grávida, portanto, e o marido que é também português e camionista insiste
em continuar a fazer a Estrada Nacional Nº 1 em direcção ao norte, volante nas
unhas, desafiando a guerra feroz, as mortíferas emboscadas da RENAMO.
Quando se despedem nesse dia de meados de 1997 mal supunham ser o
derradeiro frete em que ele se atrevia. Um ataque repentino, como toda a emboscada
de guerrilha o é, ceifa-lhe logo a vida, destrói o camião. Nunca chegaria a conhecer
este puto nem o Carlinhos saberia alguma vez o que é ter um pai. E a Dilma parece
estar a dar-me uma bofetada, inconscientemente ou não, a ser perversa mesmo, deixa-
nos o puto ao cuidado da Célia que parece até abrandar a bebida, e ao meu, que era
ainda, à altura do terrível drama, o porta-voz e delegado dos ‘bandidos armados’ da
RENAMO para Portugal e Europa Ocidental. Fora certamente mais um desses
ataques que eu alegremente reivindicava em Lisboa, em pormenores acrescentados ou
não, marcando ‘o inexorável avanço dos nossos combatentes’ É assim com uma
amargura imensa que olho para o sorriso e olhinhos deste puto, riso e olhares tão
indevida e injustamente roubados ao pai, e reparo na injustiça ou não desta situação
em que a Dilma me coloca. Enfim, mais uma daquelas ‘casualidades de guerra’.

Eu protesto contra a pequenez da flat, algumas das condições, inicio mesmo


uma manhosa greve de fome. Até de Lisboa me telefona a jornalista Noémia de
Sousa, da NP. À noite, a Célia sorrateiramente faz-me sempre um ovo estrelado. É
escandaloso, confesso, uma greve destas num país assim. O Cardoso, como actual
director de gabinete do ministro da Segurança, e que é agora o elemento de ligação
principal comigo, ameaça retirar a viatura Lada.
Oficialmente o subsídio mensal é fixado em 200 USD e duzentos mil meticais,
recebido o incentivo para início de actividade. Só conto com as cassetes, venda e
duplicação e aluguer, para aumentar o orçamento. Alugar o tal espaço com a
Ludovina Oliveira está já fora dos planos.
Em Fevereiro de 1990 o Cardoso consegue por fim recuperar-nos o
apartamento da COOP, aquele onde eu já estivera em 1988. Estou garantido com o
Lada, e sem ameaças, a carta está em dia, pois então, até a tirara na escola de
condução da polícia, e a Célia está satisfeita. O Cardoso, apesar das birras passadas
que tivemos, é afinal assim a modos que um primo, descubro entretanto: vivera junto
com uma prima da Célia, a Gina, e tinham um miúdo.
Perante as minhas teimosias e imposições, perguntara-me o Cardoso num
encontro na Migração, ‘pertença’ do SNASP: ‘mas tu drogas-te pá?’ E eu, “Só se for
cafeína ou ‘conaína’!” Insistiria sempre no tema, o Cardoso, para receber
invariavelmente a mesma resposta. Mas daqui para a frente tornamo-nos ainda
melhores amigos. Já eu o recebi em Lisboa anos mais tarde, e de novo ele, em Maputo
me atenderia, mas isso, então, eram ainda tempos distantes no futuro.
A malta habitual continua a visitar-nos aqui na COOP. Os Dinares, os Banús,
os Gonçalves, os do ACM (AeroClube de Moçambique) com mais uma carga de
filmes ‘XXX’, sádicos ou ‘choque’ como o terrível e bem real ‘De todas as mortes’, a

220
Rosinha, a ‘Inhamajau’ Virgínia e outras amigas da Célia e minhas, até a Tainha Berta
e a Álima vinham, mas sem tentativas de aventuras ulteriores. Pelo menos aqui. A
Elsinha, a companheira do Paul Fauvet, é mesmo grande amiga da Célia desde os
tempos em que ambas viviam na COOP e vem habitualmente aqui a casa, como já o
fazia antes, aliás, na 25 de Setembro.
Encho uma das divisões da flat com equipamento áudio e vídeo e respectivas
cassetes gravadas ou virgens, material adquirido na maior parte no ‘Xitende’, uma
firma especializada da baixa, que é a antiga casa Baily. Continuo a adquirir cassetes
gravadas, à porta, e na ronda que faço a ‘dumba-nengues’, os mercados informais,
principalmente no ‘Estrela Vermelha’. Parte será vendida ao senhor Khan. É a altura
em que inicio as filmagens vídeo com a câmara recém-adquirida. Cada reportagem de
casamento rende cerca de trezentos mil meticais. Esta câmara ainda irá dar raia, mas
não em casamentos, com algumas das gajas amigas, pois claro…

A ‘SULFÚRICA’ E LASCÍVIA ROSA DO PRÉDIO ZAMBEZE


Mas as outras ‘recaídas’ acontecem. Recaídas que nem a Célia ou a vinda para
a COOP curam. É o eterno e vicioso retorno ao prédio Zambeze e à Rosa, à sulfúrica
Rosa que encontrei uma noite na 24 de Julho, e não consigo largar... esta minha
grande ‘aspiração’. Essa Rosa que abrocha e desabrocha continuamente e que cavalga
este meu Caos. Recordo tão bem a última vez… e o recordar só faz ansiar por mais
ainda… é vicioso tudo isto…

Foi uma das últimas vezes em que estivera com ela a sós, esta Rosa
escancarada, e que puxara ela da filosofia após termos puxado tudo de nós. Tentava
explicar-lhe eu, depois, a raiz das coisas: “E foi nesses tempos remotos de
Etemenanki, Babel, como melhor conhecemos isso, que tudo se terá confundido...
Olha, até os computadores, entre si e ao nível básico, falam e percebem em binário, a
língua comum, universal, deles, da actualidade. A única que surge após quatro ou cinco
mil anos. Os novos ‘sacerdotes tecnológicos’ imitam Enki, o ‘deus habilidoso’,
baralham para conduzir ao Caos informacional, e desse Caos obrigatoriamente
resgatam, fazem surgir algo de novo, estimulam a criatividade. Destruir a estagnação
em que se caíra: é essa a mensagem de Babel”.
Prossigo, estamos envoltos numa nuvem de fumo e de odores corporais, de
cheiro a fluidos íntimos…
“Noam Chomsky (o activista de Timor), George Steiner, tantos outros,
tentam várias abordagens como, após Babel, as línguas divergem, moldam o
pensamento de forma diferente, e influenciam a reciprocidade entre o hardware
humano (o nosso bioware) e o nosso software... Novas línguas, as actuais, são as que se
estabelecem por cima da nossa antiga língua comum, sobre esse ‘código binário’
humano primitivo que terá existido”.
– Queres dizer que estás na prática feito também um linguista?!, interrompe
ela a minha lengalenga.
– Mas aqui as nossas línguas convergem! Línguas, e tudo! Nem falemos mais
em pentecostes e glossolália, este é que é o dom das línguas! Vou-te contar agora a
‘Parábola do Bom Mamífero!’
E enfiando a cabeça fundo entre as coxas dela com um grunhido feliz
confirmava: ‘Sim! Mais ou menos isso! Linguista! Um grande linguista!’ É sempre
assim... O que buscamos nesta gruta primeva? A lagoa tépida das origens nessa

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langonha que tudo cobre, inunda e afoga, e onde nos deixamos mergulhar. O regresso
ao Caos nesse ventre, ao mar cálido e rico de toda a Criação, da Origem. Buscamos
uma nova cosmogonia neste acto no plano antropomórfico que insistimos em
cumprir e repetir ritualmente, pela qual nos entregamos, morremos e renascemos no
pulsar de um membro cheio entre estas quentes pregas de cetim rosa. Rosa! Isto é a
vida!, digo eu... e surpreendentemente ela, filosoficamente, replica, todos os taxistas e
gajas da noite são aliás prenhes nestes rasgos de filosofia, claro, e esta agora não foge
à regra e ainda meio a gemer, consegue ciciar: ‘Sabes, a vida não passa de umas férias
que a morte nos dá!’
Era assim por vezes. Sexo e filosofia de ponta e a Rosa parece gramar disto à
brava. Quase parecia ela entender essa linguagem binária, primordial, pelo menos a da
carne entende, a origem de tudo. Faz disto uma verdadeira profissão de fé a que se
entrega de corpo inteiro, por fora e por dentro, e de alma também. Decerto um treino
anterior pelos italianos da Bonifica e dos Pequenos Libombos não é estranho a
tamanha arte e devoção.
Não há dúvida que a Rosa, devidamente amestrada que foi, esta fêmea
sequiosa e ardente, está feita uma autêntica máquina sexual viva. Insaciável. À custa
dos corpos dos outros, do dela própria também. Informação recursiva, recorrente.
Feed back! Realimentação!, dirão os técnicos destas coisas.
A Rosa é assim. Um mundo de alquimia que faz despertar nela, acompanhado
com grunhidos babados de prazer... É tudo isto que tenho em background a convocar-
me o espírito. Quando penso no que se poderá tornar a manhã…

Vicioso pois, o Zambeze... viciosa também a Rosa do Zambeze. Agora, eu


telefonara-lhe. Estava à minha espera cá em baixo, na Karl Marx, mesmo à entrada do
prédio. Uns ténis brancos e um vestidinho de malha, cinzento, muito justo, que como
celofane lhe adere ao corpo. O cabelo apanhado em pequenos totós salienta-lhe as
feições finas do rosto. Puxa-me para o vão das escadas, o lanço a caminho do
primeiro andar... de repente cinge-me, a face redondinha dela contra a minha, boca,
dentes que se entrechocam. Com a sua mão miúda traz a minha por sob o vestido
para que a sinta e penetre logo aqui com os dedos, a mão direita escorrega lentamente
para o interior dela... e há o beijo, longo, molhadíssimo em troca de línguas que se
comprimem ponta com ponta e se encharcam na boca do outro, empurram até ao
outro céu da boca, ao palato, à garganta que se oferece, bocas que aspiram, sorvem,
babam. Abandono o beijo, essa sucção máxima, e mordo-a levemente no queixo,
pequenas dentadinhas, mas a mão dela insinua-se pelo fecho das minhas calças, sob
os shorts, lança-me uma trinca mais forte à orelha, penetra-a com a língua, ela... e eu
aperto mais com os dentes, mordisco-lhe com força o pequeno queixo. Já a boca dela
vampirosamente desliza para o meu pescoço e na parte esquerda suga-me todo,
morde-me reciprocamente, um chupão que dói, dói mas sabe bem!
Passos na escada do prédio e que se dirigem para cá. Obrigam a soltarmo-nos,
a acelerarmos o passo escadas acima até à casa da Ester. Mergulhamos para o quarto,
puxo-lhe, iço-lhe o vestido para o céu, lanço-o sobre a cabeça dela, poupo-lhe só por
agora as calcinhas, queria assim, ao princípio, já ostentam como que um bafo húmido,
mancha pegajosa, e ela compreende que é para se pôr de gatas sobre a coberta, ao
que a imito, ligeiramente atrás e baixando-me, com a língua afasto o leve rebordo do
tecido para ter acesso aos seus segredos húmidos, a penetrar lentamente, até ao
fundo, neste cunilingus inicial. Está rapadinha! Pareço arrancar-lhe um arrepio conforme

222
aboco, abocanho toda a parte baixa do fundo das costas ao montículo clitoriano,
rapada completamente, à volta do sexo! Do umbigo desce apenas um fino e macio fiozinho
piloso. Sinto-a, sorvo-a. ‘bendito o fruto salgado do vosso ventre!’, é este o santo
abismo de que se não tem temor, local de uma ‘morte parcial’, boa, que se busca e
aceita repetidamente. Agita-se ela. Irradiam dali ondas de prazer que a fazem tremer
como um pequeno sismo até que com dois dedos a acalmo, até ao mais fundo de si,
ela a virar o rosto para trás, implorando-me: Tudo! Mete tudo! Os pés da cama apontam
à janela. Só os raios perpendiculares penetram a direito e iluminam o interior desta
cavidade cuja fenda destapo afastando a borda das calcinhas, arrancam reflexos
avermelhados ao tecto no fundo desta abóbada carnal... É quase algo de cabalístico
que me desperta recordações de poços iniciáticos, Stonehenge, de grutas e aberturas
por onde entra o sol apenas em certos momentos nessas vaginas sagradas da terra,
alinhamentos cósmicos. Avanço, entro nela mais uma vez ‘linguisticamente’. Deixo
cozinhar, apurar o meu ‘sexto membro’, oral, neste calor salgado do seu microondas
biológico, mar interior… Emanações mornas, uma embriaguez, desprende-se deste
segredo. Tudo! Mete tudo!, sussurra insistentemente, parece gorgolejar...
E ágil, com o membro viril, agora, mesmo ela de calcinhas, fi-lo deslizar pela
abertura estreita, gotejada, que lhe toma agora a forma, ritmicamente. Não é só de
prazeres vaginais, esta Rosa, e eu ia-a conhecendo cada vez melhor. Sustendo-nos
com o braço direito vou rodando-a lentamente com o esquerdo até que a barriguinha
e tetitas cónicas dela apontam agora o tecto. Com os dentes trato de libertá-la da
prisão última das calcitas. Era isto que ela queria, ela mesma faz deslizar a almofada
por sob as nádegas e abre-se toda, oferece-me esta flor de pétalas húmidas: ‘Mete! Mete
mais!’
Com as mãos segura-me nas nádegas puxando-me mais para dentro dela. Ela
quer agora a parte clitoriana, é esta a faceta que nela vou revelando nos últimos
tempos. Os toques todos, exploramos cavidades e convexos… Sinto-a como esmaga
a pontinha da língua dela contra a minha, como me quer tocar nos meus com os
mamilos dela, esfrega-se, umbigo contra umbigo, e puxa-me ainda para cima, com
força ela mesma comprime a verga, faz a ponta do meu pénis penetrar sobre o topo
de cada um dos seus mamilos, até que está preparada para o acto derradeiro. Faz o
mesmo de novo com o membro conforme lança outro chupão ao pescoço para o
transformar logo num avanço da linguinha, introdu-la toda numa das minhas orelhas,
mordisca-a. Pega-me, põe a glande a roçar-lhe, massajar-lhe o clitóris, a ponta da
minha uretra contra o topo do seu montículo, com mais força, fricciona e comprime,
até que compreende que é com jeito que lhe posso dar tudo o que anseia. Numa
carícia longa de vaivém faz eclodir a descarga, uma profusão tal que lhe recobre de
nata o pequeno monte, escorre como lava, desliza, inunda, substitui o carmim naquela
fendinha arredondada e borbulhantemente lhe desliza até ao ânus, um fiozinho, só,
beija a almofada. Encharcada em suores e fluidos corporais é ela quem me quer
morder o queixo e não deixa que tente ao menos levantar-me ou ajudá-la a erguer-se.
Põe as mãozinhas depois entre as próprias coxas como a querer proteger algo... Vou
mesmo à casa de banho! Nem toalhas ali temos, tamanha havia sido a pressa ao entrar.
Volto, meio composto, cabelo alisado. Lá conseguira desmanchar a rigidez do
mastro para uma mijadela rápida. Ela está frente ao espelho, limpa entre as pernas!, não
sei como, uma expressão ainda mais feliz no rosto. Por brincadeira é pela ponta do
pénis que torna a rebocar-me para a cama, e volta ainda atrás, liga a pequena

223
ventoinha em cima da cómoda. Tresanda a sexo este quarto! É também isto que nos
parece incitar, faz-nos pedir, lança-nos num ‘remake’.
Com um empurrão no peito atira-me de costas para a cama, ‘Vá! Deitado!’ A
boca dela aproxima-se da haste musculosa, de novo empinada. Cresce para ela,
sugando ruidosamente, mas só de início. Apenas o som é já o bastante para excitar
um morto, este ‘glup... glup!’ sôfrego... Mas passa logo à fase discreta e deslizante, a
boca correndo molhada, oleosa, para cima e para baixo, toda a mucosa em contacto,
ou só os lábios, depois, aflorando em círculo, abrochando!, a glande, abaixo e acima,
dentro e fora, a língua premindo agora apenas a ponta. Volta a abocanhar, gemendo-
se toda, só a glande, este fruto rubro arroxeado que ameaça explodir. ‘Forte sucção! É
um Hoover!’ Quer ela agora pôr-se por baixo, sim!
‘Põe-te de gatas, de joelhos, por favor!’, ronrona ela, ‘Assim! Monta-me, senta-te, abre as
pernas, aí... um pouco abaixo das maminhas!’ Ela na cama, quase deitada, serve de sela, as
duas almofadas sob as ancas a apoiá-la e eu montado, assente logo abaixo dos
conezinhos de carne que ela agora estreita, aperta um contra o outro para com eles
me acolchoar e envolver o membro, sacudindo-se levemente para cima e para baixo.
E com as mãos pega nele, amacia-me e afaga-me as bolas frementes, sopesa-
as... sinto o magma inquieto vir à superfície, ela parece senti-lo também borbulhar sob
as suas palmas e abre, escancara a boca ávida que toma a forma de entoação de uns
‘Áááhh Aaah ou Óóóhh’ abertos como quem sonoramente está com toda a devoção a
entoar num coro de igreja e é a meio de um ‘Óóôôh’ mais largo, a imagem de um beber
ao chafariz, que o primeiro esguicho como que atraído por aquele encanto se solta,
irrompe pela boca carnuda aberta sem tocar nos lábios, olhos dela a luzir, e lhe aflora
a garganta. A mão dela que agarra, reage já, aperta com mais força o pénis cuspidor, o
segundo jacto aí está, a ejaculação inunda-lhe o rosto sob a vista direita, na covinha ao
lado do nariz, e em cordão grosso que ela ajuda escorre-lhe para a boca, a garganta
feliz, desejosa, aplacada, deglutindo tudo. A outra mão dela masturba, inflige
contracções ao clitóris, penetra-se-lhe na vagina outra vez mais húmida a deixar
escorrer o seu mar interior, transbordante de novo.
Escolho o vale para o terceiro e derradeiro rio significativo, o regato expande-
se entre seios, com a mão auxilio a peça varrendo os dois cones, espalhando a seiva de
que ela parece tomar o aroma inebriante. Com as duas mãos ela agora estende este
lago lácteo como se fosse ‘nívea’, quer-se afogar neste derrame, besuntar toda antes
de com as duas mãos trazer o membro aos lábios para o limpar, sorver-lhe as últimas
gotinhas de prata líquida. Só então o liberta.
Vou à casa de banho, ajeitar o cabelo, pelo menos isso. Apenas isso! Cheira...
cheira! É mesmo! Quando volto ela já se limpou, adivinho como... como não
desperdiçou nada! E sorrio-lhe, ela a terminar de passar o batôn vermelho escuro
pelos lábios, a acender por fim um dos cigarros, um Marlboro dos meus.
A morte... O cemitério S. Francisco Xavier ali do outro lado da rua, mesmo
em frente ao prédio Zambeze, este ‘mira mortos’. A morte... Ela a olhar a distância,
por sobre esse terreiro. Nos olhos dela uma partícula negra parece deslizar oblíqua
para o alto. Volto-me. O DC-10... Não, é um 737. Lá longe lança-se em plena força
para o azul dos céus, cheio de vida a bordo, ejaculando milhares de litros de
combustível pelos esfíncteres dos seus reactores: ‘Vida’ química para o pássaro de
alumínio e aço.
A ‘vida’... aqui, dentro do quarto. Cheio do cheiro dela, digo-lhe. ‘Do meu...
Do teu! é mais do teu!’, digo a provocá-la. ‘Do nosso, pateta...’, retribui ela, a rir-se, a

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encolher-se na gargalhada. Baixa-se como se fosse apanhar qualquer coisa, eu mando
mais uma puxa do Marlboro aceso, do dela, quando lhe sinto os dentes ferrarem-se de
mansinho sobre o pénis que sob as calças quer adormecer mas logo dá um baque
sobressaltado. ‘Vai-te!, diz ela, Vai-te! Ou não saímos daqui hoje. Queres lavar-te?
Sabão azul e branco?’ Um abano de cabeça. Não, antes o cheiro da Rosa, que
persista... Vale a pena correr o risco!
E ela acaba também por descer à rua. ‘Um café?’, convido-a. Vamos aqui
perto, logo ao início da Karl Marx, à Leitaria Latina, ao lado da Casa Haffejee, e
mesmo por baixo de um outro ‘matadouro’ para gajas. A Rosa opta por um copo de
leite morno. E... ‘Não! Não!...’, digo para mim. É uma provocação isto! Era de propósito:
pelos cantos da boca deixa escorrer dois fiapos líquidos, a olhar-me de frente. Limito-
me a virar a cabeça, sorridente, para a esquerda, a perder o olhar através da montra, lá
para fora, tamborilando com os dedos sobre o tampo da mesa: ‘Chega, Rosa!, só por
hoje, claro. Chega!
Em casa, à noite, é que é pior: ‘Então, puseste a camisola cinzenta de gola
alta? ‘Tás com frio?’ Doente!, respondo. ‘Sinto-me com febre, suponho que deve ser
paludismo’. E ela até que se aproxima, põe-me a mão dela na testa e de repente leva-a
ao pescoço, rebate a gola para baixo: ‘É! Tens aqui uma ganda ferroada! Meu cabrão!
Uma mosquita com dentes! Tu não me enganas! O que é que andaste a fazer?!’

O APERTO DA NOSTALGIA NA COOP E MALHANGALENE: ‘NUNCA


VOLTES A UM LOCAL ONDE JÁ FOSTE FELIZ’
Aqui na COOP, porta ao lado, reside a Dona Anita Pinto Baessa, familiar
ainda do Nini, o dono da Floresta, a boite lá em Nampula. Tem duas filhas e um filho
a viverem com ela, já adultos. Uma simpatia esta Dona Anita. E no décimo primeiro
andar vive o Patrick, um moço africano que irá ajudar nos negócios ‘vídeo’: filmagens,
aquisição e venda de cassetes e outro equipamento. A Cristina, uma pequena mista
dos seus vinte anos, pequenina mesmo, estudante no liceu Josina Machel, mora no
sétimo. Cedo se torna nossa amiga, bem como duas manas também mulatinhas,
muito giras, a Paulinha e a Marisa, do PH 8, o prédio ao lado. E há ainda a Lígia,
pretinha e rechonchuda, que habita no nosso edifício no último andar, o décimo
segundo, com uma tia, e a Laurinha de um outro prédio adjacente, o PH 6, moça
africana e toda atiradiça, sabida, esta. Chega a ser namoradinha, muito efémera, do
Chanjudja que acusa de ser ‘demasiado clássico’. O Chanjudja, o outro ex-RENAMO,
tem pois a sua Beta lá no Tivoli, e uma aquisição recente que o terá ‘enfeitiçado’,
dizem as más línguas, uma hipopotamozinha com um jipe Suzuki azul. É verdade… é
esta a envolvência actual, e cedo arranjámos mais malta amiga na COOP, e faz-nos
bem esta renovação de ares.
Ora, relembrando estes primeiros dias aqui, o que há a citar? Logo de início
tenho que abrir a temporada com uma garrafada nos cornos de um guarda da própria
COOP. O caso ocorre assim: madrugada escuríssima, umas cinco horas, quando ouço
o ‘tric-tric-tric’, o dispositivo manual para içar a plataforma de pintura suspensa na
fachada do prédio, desde o terraço, e que passa junto à janela do quarto. Arma ao
lado da cama, uma ‘kalash’, Kalashnikov, Saúde & Paz! como eu gosto de dizer. Dentro
do quarto está como breu. Quente. Dormimos com a janela aberta. E contra o escuro
exterior distingue-se agora o contorno de um vulto que se prepara para entrar, patita
já a tactear. ‘Que faço a este cabrão?! Uma rajada que fode-lhe já os miolos?’ Tinha ordem para
isso, pelo menos, contra qualquer intruso. Avisto as garrafas de cerveja vazias, uma

225
pousada no chão ao lado da cama e da arma. Do lado da Célia, então, parece uma
procissão. Deslizo silencioso, descalço, de caminho tenho a garrafa na mão e está a
cabeçorra dele a procurar vislumbrar o interior quando do alto lhe aterra um
formidável golpe e temos este verme grosso que parece recuar no escuro, descambar
agora, despenhar-se... um estardalhaço metálico e de madeiros, cabos a oscilar, tudo
suplantado pelo estrondo cavo do baque no solo. Uns pingos de sangue que vejo pela
manhã são o único sinal da brincadeira. Claro que o gajo foi logo corrido deste posto.
A administração da COOP, responsável por estes prédios, não admite brincadeiras
destas.
COOP. PH 7. Perto da vivenda, moradia da família da Célia. Vamos lá
regularmente e eles vêm todos visitar-nos à vez ou em grupinhos. A mãe é uma
senhora simpática meio tolhida por uma trombose e quase que não fala português. É
devido a esse achaque físico que não tem exercido ultimamente como ‘curandeira’
mas todos confirmam o mesmo, que ‘os poderes’ serão um dia da Célia. Terá isto
principiado já?
E estou também a menos de duzentos metros, quem diria, da minha antiga
residência na Malhangalene, a da Rua de Coimbra, e Largo do Algarve. Onde morei
até ao último mês de 1974, altura em que passámos para a Patrice Lumumba. Toda
uma sensação estranha, até do telefone me lembro, o 27284. Como me recordo bem
até, de quando puto, ver este PH 7 e os outros a serem construídos, a subirem dia
após dia. E antes... eram estes os terrenos onde vínhamos lançar os papagaios de
papel. Um autêntico regresso às origens. No centro deste arenoso Largo do Algarve,
ao fim da Rua de Coimbra, continuam a existir as três mangueiras fartas e o velho
canhoeiro. É à sombra fresca de uma das mangueiras que um mecânico de rua me
conserta o tubo de escape do Lada. Onde há uma eternidade atrás repousavam os
destroços de um calhambeque Ford com que brincávamos… Ali, o prédio da família
nossa amiga em que à noite se projectavam filmes a preto e branco, e juntava-se a
multidão de pretos a observar esta borla até vir o jipe da polícia militar, cobrar a
cavalo-marinho a ousadia de ali estarem. Todo este largo onde de facto existi, cresci e
de certa forma findei. Depois… nada mais foi o mesmo. A imensidão de nomes
engraçados que tínhamos, eu, altíssimo e magro, desengonçado a andar, era o ‘sobe e
desce’, ou o ‘faísca’, pelas experiências de electricidade ou pólvora, mas a alcunha que
me ficaria para todo o sempre associada aqui a este cantinho da Malhangalene foi o
gazela… um quase-antílope nos jogos de futebol e brincadeiras de putos. Será
possível, o assalto brutal desta memória imensa?
Será isto real? É verdade que estou mesmo aqui, que voltei cá? Ainda sou eu? E onde é
que estão todos?... É isto que me derrota... Apenas isto. Logicamente, será este um dos
locais privilegiados para as filmagens pessoais no momento de um dia regressar a
Lisboa, penso, mas qual o significado, já patético, disto tudo? Valeu a pena? ‘Nunca
voltes a um lugar onde já foste feliz!’, recomenda-se, e só posso concordar.
Não fosse o ‘miolo humano’ e os PHs pouca diferença fazem do tempo
colonial. E quanto ao quotidiano, bom… o ‘miolo de consumo’ é que não será bem
idêntico: ainda há alguns artigos racionados no supermercado da COOP, a livraria
tem pouca coisa além das publicações nacionais do INLD, algumas até interessantes,
e material vindo de editoras de esquerda em Lisboa, como a Caminho, ou livros
importados da URSS, livros técnicos e alguns romances de ficção científica que
adquiro e leio. O ‘Mealheiro Cooperativo’, um incipiente banco próprio ‘morto’ pelo
25 de Abril e Independência, é hoje o local dos escritórios da COOP, mas continua a

226
existir a estação de serviço da BP e um restaurante, ‘O Favo’, no PH 8. Chocalho a
cabeça… por vezes penso que nada disto é real, e vou acordar… e mesmo o acordar,
o despertar, é sempre uma incógnita: onde, onde estou? Quem são os amigos hoje? Estou em
Moçambique… com quem? No mato… mato… com quem? Na Malhangalene? Na Polana? Em
Lisboa… shit! Qualquer hotel nas Europas… Phalaborwa, Johannesburg, Pretória… ainda? Ah!
Não! Aqui de novo, é verdade…

Quanto ao enquadramento FRELIMO-RENAMO, e Ministério, não há que


esquecer nunca essa vertente, não é?, como é que vim aqui aterrar? pois!, recebo a
visita, já não só institucional, porém, do Cardoso, e também, como amigos afinal, do
António Mula e Américo Pinto, e este virá a ser um futuro ‘residente’17 em
Lisboa, bem como do Mário Ngwenya, Betinho Wate, Timóteo, Nyerere, sei lá, todos
eles, impossível citá-los a todos.
Por fim, e acho que são os últimos, quanto à palradeira sobre os ‘BAs’, leia-se
‘bandidos armados’, amados ou não, é a vez de receber a tal delegação do Congresso
norte-americano investigando a questão dos direitos humanos em Moçambique e as
práticas pouco saudáveis da RENAMO.

Um incêndio medonho devora por completo o Prédio Pott, na Av. Samora


Machel, esquina com a 25 de Setembro, e permite-me efectuar juntamente com o
Danúbio um exercício de reportagem com a câmara-vídeo, diferente daquelas dos
casamentos, e das reportagens ao interior das gajinhas minhas amigas. O Danúbio,
agora na Polanacolor, uma casa de fotografia bem conhecida da 24 de Julho,
trabalhara já em reportagem vídeo na TV Experimental de Moçambique. Em poucos
minutos o ‘Pott’ está consumido. Prédio velho, do início do século XX. É mais um
marco arquitectural e sentimental que se esfuma na desatenção a um fogareiro: estava
pejado com refugiados, o Pott, e esta gente ‘adora’, salvo seja, desgraçados…, adora
cozinhar a carvão e lenha, mas não é para nenhum braai ou churrasco, tão somente
para cozer mais uma gamela de farinha de milho aguada para fingir que alimentam os
putos e reabastecer as esquadrilhas de moscas.
Fazemos vários ‘takes’ ao nível da rua, do prédio do Scala logo defronte, e do
topo dos antigos prédios Lusitânia e do dos Criadores. Vemos os edifícios em volta
serem evacuados, a própria Foto Lusitânia na 25 de Setembro, do João Corte Real,
um português nosso conhecido. Homem de luta e persistência este Corte-Real. Anos
mais tarde teimará em resistir a um grupo de assaltante e será abatido a tiro, à porta
de casa. Uma rajada de kalash ceifar-lhe-á esta coragem e a vida.

Com Lada ou sem Lada, de táxi ou a pé, não é por estarmos mais longe da
baixa que abandonamos a Feira Popular ou a Julius Nyerere (a Gruta e o Pequim) ou
o Madjedje, o Búzio e o Rachid-Volante. Não!!!
Então, estamos nós numa dessas noites malucas no Zozó, a célebre boite da
Feira Popular. Acho que tínhamos ido com os Banús, ele possui também um Lada
atribuído, azulinho, mas haviam partido já. Decidimos ficar mais uns minutos, ou
horas, depois de encontrarmos o ‘Galinha’, ou seja, o Mano Gipsy, o Fanecas, como
lhe queiram chamar, o tal que negoceia tudo, de uma agulha a uma mulher. São vinte
e duas latas de cerveja Castle preta, milk stout, latas de 0.45 litros, bebidas só à minha

17 Nos finais da década de ’90, e portanto com funções de oficial máximo da ‘Segurança’ em Lisboa

227
pala e que meti pois já ao bucho. Três e meia da matina... tombo ao executar um
rodopio na pista de dança ao som de Steve Kakana, músico sul-africano. A Célia,
arrastada no abraço, despenha-se por simpatia. É! É hora de partir… Ela já havia
arranjado um táxi mas há mais pessoas a bordo, acho que era para partilhar o táxi,
mas aquilo para mim é já confusão, o interruptor-bichinho no cérebro oscila... Não! A
pé!
Já viram o que é trepar a Vladimir Lenine toda dali até à COOP, uns cinco
quilómetros, àquela hora da manhã, da madrugada? Acho que levava a pistoleta na
sovaqueira esquerda além do famoso facalhão que na COOP já decapitara uns ratos
na cozinha, ‘para eles saberem’, e que adorava sacar por vezes nos restaurantes para
defrontar os bifes mais resistentes e chocar os assistentes, a lâmina é quase uma
catana. Mas como ex-cabecilha dos BAs não podia decepcionar, defraudar as
expectativas do público, pois claro.
Okay, passámos já o Jardim Tunduru, o quarteirão da Rádio Moçambique e
dos Telefones, o Califórnia fica agora mesmo para trás, e é a hora de me aliviar com
outra mija, digo até à Célia: ‘podes ir atravessando para o passeio direito, continua a
subir, vá!’
– Mas, e se vem alguém, pá... já viste as horas?
– Isto tem que ser uma cidade segura, não tenhas medo, vá! Se eu digo que é
seguro é porque é!, e agora eu até já mijara mas continuava a escalada pelo passeio
esquerdo, ela no direito... E cá está! Certinho como um relógio suíço! Lá vem um bando de
cabrões rufias preparado para traquinar com ela, e eu a sussurrar ‘se digo que esta é uma
rua segura é porque é mesmo!’, pareço o capitão Killbird dos hélis do ‘Apocalypse Now’ a
dizer para se fazer surf à vontade que é seguro!!! O Vietcong não faz surf!
‘Ôi mana! Aqui tão só, estamos a brincar não é mana?!!!’
Aí está a provocação. Ela sem abrandar e eles já a perseguir, são três a
quererem encurralá-la, e eu meio bêbado e no velho jogo do bêbado a cem por cento,
trôpego até mais não, aos tropeções desajeitados, cruzando já em ziguezague o
alcatrão vazio de carros, de novo no passeio, o direito, agora, mais uma imitação de
uma mija junto à árvore próxima, achegando-me como um avião decidido à
aproximação final à pista, ‘vamos a eles, fazer estes cabrões!’
‘Ôi mulungo! (branco!) Olha este mano...’
A merda da frase morreu-lhe logo na goela ao ver o brilho do aço na lâmina, a
minha mão esquerda a cravá-lo ao poste, boca aberta eu, exibindo os caninos: ‘Queres
que te rompa a garganta meu filho da puta?! Mesmo com os dentes arranco-te o nariz
à dentada, uma vampirada!’
A Célia não sabia se havia de tremer ou desmanchar-se a rir. Mas onde estão
os outros? Os dois compinchas deste saíram já do radar. Estou nos meus dias ‘OK’,
parece, o interruptor voltara ao normal e com um safanão despacho aquele ‘mano’ rua
abaixo: ‘Vá lá, pá! Estás nas tuas noites de sorte!’
Pronto. Direcção: COOP, rota apenas entrecortada por uma recaída com o
hino da RENAMO repetido vezes a fio, a chocar a maralha noctívaga por aí isolada,
Vladimir Lenine acima, Malhangalene, e até na COOP onde alguns vizinhos insones
abanam a cabeça.
O ‘nosso tempo’ reparte-se pois entre o Búzio, o Zambi e o Zozó, no tocante
a boites, e cada vez mais abrange o Picolé, o restaurante de uma Dulce, que não sei se
é dulcíssima mas é nossa amiga, do companheiro canadiano, e da irmã dela, na Feira
Popular, e onde ensino a maninha como se faz uma ligação directa nos Niva, o jipe da

228
fábrica Lada. Mais perto de casa continuamos a ter o Micael, a tasca preferida, e há
ainda o Take Away Maputo, e o Ciao (gelados italianos) e o Guicalango, um
restaurante transformado agora em retiro de jazz, no início da Mao Tsé Tung (ex-
Massano de Amorim). Isto, além do Volante-Rashid e do Naval e uma constelação ou
galáxia de lugarejos vários e que com o arrastar da noite se transformam em nebulosa
de néons, sombras, berros e copos.
No Guicalango é a grande surpresa: ao fim de mais de quinze anos venho a
encontrar numa noite de jazz um colega de turma do Liceu Salazar, agora Escola
Secundária Josina Machel. É ele quem se farta de me dar conselhos por essa
madrugada fora, uma madrugada densa de fumo de cigarros e charros, volutas
moldadas pelos sonoros timbres dos trompetes e saxofones, provérbios q. b. sobre o
sentido da vida, mas o jazz está mesmo a bater forte e a salvação do ‘Salvador’
Salvado, é este o nome do esbatido colega, perde-se nesta noite e na noite dos
tempos, tarda já, e custa tanto em se fazer ouvir... Mais um daqueles encontros-
desencontros marcantes dos quais tenho a vida mais que pejada. Surpresas que até
deixam já de o ser neste filme caleidoscópico muito pouco linear e pleno de flash
backs. ‘Mais uma Beck! Gelada!’, só para rematar a noite, pliiiass! E parece que só falta
ouvir um ‘yes massta!’

Este período de meados de 1990 fica marcado também pela nossa presença
regular no Música-Bar acompanhando o Chanjudja e por voltas sem fim com o Lada,
eu a levá-lo até aos limites: desligo a chave e aquela merda prende logo a direcção, um
arrepio! Deu-me para tentar a experiência mesmo no topo do viaduto curvo ao descer
as barreiras. No último instante o voo mortal foi evitado, consigo desbloqueá-lo. Dias
depois levo-o até à pista do Autódromo da Costa do Sol e é a bater nos 140 que
fazemos a curva do cotovelo, a viatura russa em franco protesto. Digo fizemos
porque a bordo vai a Célia, a Elsinha e o puto, o Vanito.
Num destes dias os Banús levam-nos a uma festa imensa na Matola, uma
‘banja’. É em casa do Langa, esse barrigudo proprietário do Miraflores. Vivenda
enorme, bela moradia num terreno amplo como um campo de futebol. Um almoço
que se une ao jantar. É todo um novo-riquismo à africana, até a casa de banho tem
paredes alcatifadas, foda-se! E música! Sempre música, muita música e dança. Cresceu
do nada, riquíssimo agora este Langa, com negócios a prosperar na África do Sul e
Suazilândia.
E com o Patrick aqui do prédio… bom, estamos agora em força nas
reportagens de casamentos. Parece que este jovem negro com cara de anjinho
aprende rápido a mecânica da coisa, dos negócios.
A compra de materiais à porta tropeça porém nos primeiros problemas com
dois putos traquinas: também cá do prédio, o Rogério, é um bandidozeco misto com
catorze anos, vende-nos uma garrafa de Martini e passada meia hora está a estouvada
da mãe a lixar-nos os ouvidos. A garrafa está paga e meio bebida, o que é que ela
quer? O outro, o Cajito, é mais complicado, é de uma moradia próxima e vem vender-
nos cassetes de vídeo ‘que o tio mandou, filmes que já não vê’, e que afinal são fruto
de um assalto. Assalto a casa do dono dos carrosséis da Feira Popular que até já é
nosso conhecido. O Cajito tem também uns quinze anos mas é um bandido feito. À
mãe do Rogério digo-lhe que meto o puto na B. O., ao que a mulher estrilha e berra
que vai queixar-se ao Ministro. Quanto ao Cajito, acabarei por ajudar a polícia numa
perseguição longa, sucessiva, em moradias da família em que é referenciado, mas

229
chegamos sempre atrasados. Por fim é o ‘Grupo Dinamizador’ da COOP que o
detecta e detém e me faz logo saber da informação. Chego ao ‘grupo’, está lá o safado
que cumprimento com uma garrafada de coca-cola e mais um pontapé na cabeça à
laia de abanão, e está o puto feito em cachalote a mandar um repuxo vermelho, um
spray a saudar os céus. Mona entrapada, mete-se o tipo atrás das grades. Por pouco
tempo, infelizmente. Esta miudagem não tem emenda! A própria família, em breve,
será uma vítima.

O CURIOSO FILHO DO EMBAIXADOR AMERICANO. NO REINO DA


BAGUNÇA
Uma outra amiga da Célia é a Sofia. Embora sendo de Maputo estivera
igualmente na Beira. Vem com um amigo estrangeiro: é americano o Charles ‘Carlos’
Jacob, e filho do embaixador americano em Nairóbi, Quénia. Américas? Quénia?
Mau! Mau! Mau! Namora com a Sofia e acabarão por ficar uns meses na nossa casa. O
Carlos, cabelo e barba ruivos, tem então uns vinte e cinco anos, vai contribuindo para
as despesas e arranja depois emprego na embaixada americana aqui em Maputo. Não
larga porém a sua bicicleta que serve de vector de ligação entre as várias tasquinhas. É
como um jogo de ir ligando os pontos. As tascas, aqui. Quantas tascas mais não sei
que (re)descobrimos com ele pela Malhangalene e subúrbios fora.
Uma aventura, depois, de apertar o coração, de pisar o risco: convida-nos no
fim do mês para uma refeição especial. Comida chinesa, gostam? Sim!, todos. Vamos,
então! Qual é o chinês, o restaurante afamado de que ele tanto fala? Fica na baixa.
Consiglieri Pedroso. O restaurante da Guida, uma das minhas namoradinhas… porra!
Do arrepio, só lentamente nasce o alívio, conforme os minutos passam após
entrarmos e nos sentamos. Depois, no caminho para o WC confirmam, é o dia de
folga da Guiducha!
Além da bicicleta era igualmente inseparável do Carlos uma garrafa de vodka,
espalmada, encaixada num bolso traseiro. Acho que toda a cidade o conhece, um
ícone autêntico. As discussões também surgem entre eles, Sofia e Charles, não é só
connosco. Engalfinham-se como gatos. Então uma vez, indo de carro, próximo do
Esquimiradouro e junto à TVE, televisão, aquilo é medonho: descamba tamanha luta
no carro, fora do carro, bom, é até ao miradouro da Friedrich Engels que dura esta
dialéctica.
Aguentam-se... Eu e a Célia, idem. Nós os quatro à mesa, mais uma vez, a
Célia com uma bezana, uma carroça terrível, que me leva quase a virar a mesa e o
repasto, um tocossado de peixe. Nervos em franja. Vivemos sobre o gume. Enfim,
Maputo é um laboratório de resistência de tensões, cidade quase hermeticamente
fechada e sujeita a essas leis da termodinâmica social. O Carlos só desiste da Sofia, de
Maputo, de tudo em Moçambique, quando nos fins de Julho lhe roubam a bicicleta e,
por isso, pelo simbolismo disso, resolve deixar o país.

Agosto de 1990. O Ministério paga a passagem ao meu irmão mais novo para
que venha de Lisboa visitar-me. Fica connosco quase um mês. Não creio que tenha
gostado muito desta Maputo que (re)encontra. Também o levámos em demasia para o
circuito dos copos e ele não alinha em bebidas. Lembro-me que com ele as nossas
rotas tocam o Madjedje, onde a Célia me pespega uma bofetada por eu acariciar as
maminhas de uma empregada, nossa amiga, demasiado amiga... E a Célia entretanto
inaugura novo período crítico de carraspana épica em cima de carraspana e eu a ter

230
que trancá-la na arrecadação-saleta, e que ela escala internamente para logo sair pela
abertura no topo a mais de três metros de altura, e volta à sala de novo, ainda mais
ameaçadora. Contudo levamos o meu irmão à Feira Popular, ao Sanzala, Zozó, onde
viu o Gipsy, e decreta então que eu estava irremediavelmente perdido e
condenado, ao Búzio, ao Guicalango, e posteriormente conhece o Picolé da Dulce, o
Bigodinho do Pedrito, onde se digna tomar o único copo de cerveja durante esta
estadia, o Satélite, etc., etc. Sem esquecer, claro, o Continental, e o magnífico Costa do
Sol, num dia luminoso onde a Xefina e a Inhaca parecem levitar ao longe sobre as
águas da baía e do Índico. E é aí onde damos conta de pratadas de camarões que só
fazem lembrar, mal, as despedidas e promessas do Van Niekerk ainda na África do
Sul. Não foi preciso vir pela mão dos sul-africanos para uns camarões na Costa do
Sol. Nesta, e em muitas outras vezes.

Mês após mês o tempo escoa-se. O negócio vídeo prossegue. Em casa


repousam ou giram mais de quatrocentos títulos gravados. Compra, venda e revenda
de equipamento, é a outra vertente do negócio, além das reportagens. Malta que
chega oriunda da ex-RDA deixa aqui o material à consignação para ser vendido. Um
irmão da Elsinha, a que vive com um jornalista inglês, tem um negócio parecido, mas
embarca em Antonovs rumo à Zambézia e a Nampula.
Para as cassetes de venda tenho clientes regulares como o senhor Khan. É
através dele e de uma senhorita zambeziana que conheço o Sadrú, também de origem
indiana, e a face não me é estranha: Claro! Lisboa! Era condutor de eléctricos da
Carris, precisamente da carreira 19, a que parava e saía de defronte do meu prédio na
praceta lá em Alcântara. Como é pequeno este planeta. O Sadrú regressara a
Moçambique e mora no prédio da antiga Casa Conceição, na Malhangalene, no topo
da Av. Vladimir Lenine. Mais do que cassetes ele também adquire equipamentos para
enviar para as províncias.
As sessões com a malta do Aeroclube prosseguem. Além de fitas ‘XXX’ há
bons filmes pelo meio, e o Danúbio esmera-se em coisas raras e chocantes como um
tal que já citei e que roça o sadismo, é uma cópia alemã do Faces of Death. Terrível!
Imagens reais das várias formas de morrer, e matar: desde desastres, até ao sacar
cabeças de galinha à dentada, culminando no fuzilamento de William Tolbert, o
presidente da Libéria, na praia, ele mais a sua equipa. Die allen der todden é assim um
autêntico filme-choque. As sessões! É um ritual que prossegue. E ninguém vê mais
nada sem primeiro (re)assistir, sempre!, à ‘missa’: as duas horinhas e meia do
‘Apocalypse Now’, o bailado dos helicópteros, os tapetes de napalm, o surf, os Stones,
a voz grave de Morrison, a frieza de Willard, a loucura jornalística de Dennis Hopper
e o monólogo louco-esclarecido de Kurtz até ao ‘horror!’ final.

Já Maquiavel dizia: ‘se queres ser respeitado, tens que ser amado ou temido.
Não podendo ser ambas as coisas, em caso de dúvida, que sejas antes temido!’ Mais
ou menos isto, não discuto. É assim: numa das noites vamos para os copos, são vinte
e uma e tal, e a Célia, que é a última a sair, já está acelerada etilicamente. Voltamos às
três e meia da manhã. A porta da rua, cá da flat, continua escancarada. Só agora é que
ela se dá conta que não a fechara. Acendemos as luzes, corremos as divisões... Tudo
intacto! Ninguém penetrou. É assim que as coisas se tratam: há que infundir um
terror de morte, once a terrorist, always a terrorist (uma vez terrorista, sempre terrorista)
Ou, ‘daqui ninguém sai vivo!’ como diria o Jim Morrison, dos Doors.

231
E tem mesmo que ser assim. ‘Há um tempo para tudo’, já vem no Eclesiastes!
Um tempo para amar, um tempo para dar porrada, punir, defendermo-nos. Ser
temidos, se preciso for, ser respeitado. Estar preparado para tudo. Estou pronto para
tudo: a mão que faz o bem tem que ser também capaz, de quando o momento chega,
infligir o castigo maior, sem hesitações. E desse caminho não me demovo.
Quando for para cair que seja de vez. A t-shirt que envergo por vezes, di-lo
bem, como mensagem estampada graficamente: é um embondeiro, árvore sólida,
magnífica. Resistir, resistir sempre. Para contra-atacar. Resistir à intempérie. Quando
cai, se é que cai, arrasta tudo o que está à volta, esmaga os macacos nos ramos, os que
fazem poiso em seu redor. Todos derrubados, sem excepção.

A Nena, sobrinha da Célia e com uns quinze anitos agora, tem já a ‘gang’ dela:
é um tal grupo ‘Fantastic’. Além da Nena são as duas sobrinhas da Célia, filhas da
falecida irmã, juntamente com outros jovens que habitam no prédio do ‘Cortiço’
(Vladimir Lenine com a 24 de Julho) que vão engrossando o grupo. Pedem-me várias
vezes a cedência da flat para darem festas. Quase duzentas pessoas! O que esta
miudagem consegue mobilizar…
Festas... Às vezes lá tenho eu que começar a evacuar a flat. As coisas fogem ao
controle. E há os provocadores natos... Mais que uma vez terminarão em bagunça, e
uma ocasião, ainda, culminou-se com uma rajada de AK-47 no meio dos distúrbios cá
em baixo, disparos dados pelo miliciano privado que contratei entretanto, o Samuel, o
pessoal aos pulos sobre os capots dos carros da vizinhança que espuma de raiva.
Fora numa dessas primeiras festas que surgira já no final, e no meio do
empolgante ruído, o comandante Zita, um dos cabecilhas da polícia local, mas que foi
logo acalmado com umas cervejolas e fatias de bolo para ele e para os seus homens.
Foi através dele, aliás, que contratei o Samuel.
Ao fim de cada dia o Samuel chega e vem à residência levantar uma das armas
que eu lhe entrego, ou é a AK-47 ‘Saúde & Paz’ ou uma pistola-metralhadora PPSH,
checa, 9 milímetros. Acabou a tropa há pouco tempo, com vinte e tal anos. É alto e
ainda um miúdo, pelo menos em feições. Dou-lhe boleia, uma vez, até à Matola. Uma
sóbria palhota serve-lhe de habitação. A mulher denota um aspecto decrépito, gasto,
pelas dificuldades inúmeras da vida ali nos subúrbios. Um puto de meses berra e caga-
lhe nos braços. Um puto com mais movimento de moscas que o aeroporto de
Frankfurt tem de Boeings e Airbus. É num beco que o Samuel leva o resto da sua
existência, fora das horas de vigilância. Um beco que no fim entronca na estrada
Matola-Maputo junto ao restaurante antigamente luxuoso ‘Casa Branca’.
Além desse grupelho que é o ‘Fantastic’ a Nena, tão nova, conta já com um
‘namorado’ mais ou menos certo, o Adriano. É um cooperante italiano quarentão
com residência na zona nova da Matola. Mas o desgosto chega abrupto: o Adriano
está morto, assassinado! Matam-no uma noite ao chegar a casa, um grupo de malta
sentada no muro que acaba com ele à faca e lhe leva a carteira.
Quem conhece a história diz que isto é uma montagem. A verdade é que o
Adriano andaria metido num circuito de filmagens porno com miudinhas. Uma das
pequenas, azar o seu, é filha de gente graúda que decide mandar fazer justiça através
da ‘máquina estatal secreta’... Mais uma ‘operação encoberta’. A Nena não pára de
chorar: ‘foi o Serviço do Ti Paulo...’ É capaz de ter sido, sei lá. Ali há pau para toda a
obra se preciso for.

232
E cá temos mais um caso bicudo nestes primeiros meses de 1991. O mundo é
um sítio perigoso e também não está nada saudável, nada bem mesmo, prepara-se
para a guerra do Golfo. Aqui, porém, as nossas batalhas vão sendo outras, topam?
Eu, que na flat da EMOSE andara mais à trela curta, agora com a viatura à fartazana
e aqui na COOP é um mundo de oportunidades que se torna a erguer. Às vezes
aparecem de onde menos se esperam.
A Gina, ex-companheira do Cardoso do Ministério, e prima da Célia, passa a
vir à COOP. Depois, chega a altura de conhecer onde ela mora, as famosas Torres
Vermelhas, lá perto da D-13 e do palácio presidencial. Mora ela, e as suas duas manas,
a Medina, que é a mais jovem, e a Ana Paula, uma recém divorciada.
Ó-lá-lá!, como dizem os franceses. E mais não acrescento, pelo menos aqui,
que outro volume será dedicado a todas estas histórias escaldantes, num futuro que
espero próximo… Em suma, qualquer sistema que se preze tem que controlar os seus
esfíncteres, e tivemos uma fuga de informação, e pôrra mais uma vez! A Célia tem
razão. Eu, quase transparente fico, agora, quando a coisa é descoberta, logo poucos
dias depois da ‘operação especial’ que tenho com a recém-conhecida Ana Paula. Nem
as primas dela eu poupo, nem a família escapa. Eu não lhe dou tranquilidade,
segurança… será?
Depois, ainda me apanha no carro, ao fim de uma manhã, a dar dinheiro a
uma gaja que sai da viatura. A Célia a ajudar no negócio em venda directa das
cassetes, a contactar lojas, a correr a cidade a pé, e eu a partir garinas nas palmeiras da
praia, no banco da frente do carro, mais esta gaja, agora, uma Amina, que ela vê a
descer, e que encontrei a deslizar pela Karl Marx. No calor do momento dera-lhe o
número de telefone da Dª Anita, a vizinha, e seringa agora horas mais tarde os
ouvidos da Célia: ‘Não queira saber o marido que tem em casa, o corrupto, o que ele
fez comigo, e mandou-me esperar no Continental com três contos, que ia buscar
dinheiro para uma máquina de costura que eu lhe pedi!!!’. Puta do caralho!

UMA FUGA E ‘OPERAÇÃO ESPECIAL’ NA BEIRA. A EPOPEIA DAS


VIAGENS EM ‘ANTONOVS’, ESSAS CARROÇAS DOS CÉUS DIGNAS DE
UM FILME DE KUSTURIKA
Não admira que as zangas crescessem. Eu também chateava-me demais com
essas cenas e às vezes dava-lhe um abanão mais sério. E a Célia, quando conseguiu,
pirou-se para a Beira, para casa de familiares e amigos...
Pirou-se para a Beira... ‘a cabrona da Célia...’ Não queria aprofundar este triste
capítulo, mas... Basta dizer que consegui ir à Beira quando soube onde ela estava e, no
final, voltaríamos juntos para a COOP, embora as zangas se prolongassem ainda mais
umas semanas. Perdoámo-nos mutuamente... Hummmm… bom, então, foi assim:
Lancei-me para casa do Cardoso quando as sobrinhas me contam que ela se
fora embora de Maputo. Não sabem para onde. Muito me lamento eu ao Cardoso
nessa manhã de Domingo com o desaparecimento da Célia dos meus radares. Talvez
tenha sido aí na casa dele a maior carraspana da minha vida: mais de uma garrafa de
JB, seco, em jejum, às primeiras horas da manhã. O Cardoso não sabe de nada mas
está disposto a auxiliar com ‘a máquina’ do Ministério, logo que hajam pistas. E eu
encenara até um desaparecimento de ‘documentos-RENAMO’ em que trabalhava,
que ela ‘terá levado...’ O que o desespero nos faz fazer!
Vomito e consigo chegar ao carro, quase a rastejar. ‘Da Sommerschield para a
COOP...’ No carro está-se melhor, os comandos obedecem, o Lada ronrona baixinho

233
a acalmar-me, incutir confiança... ‘Olá!’ É a casa da família da Célia, nem de propósito.
Como doido irrompo pela porta, está a pobre da mãe que não fala português, e eu a
gesticular e a abaná-la, o irmão da Célia, o Lourenço, a pegar já no telefone a ligar
não sei para onde e eu a arrastar-me de novo para o carro e a conseguir chegar ao PH
7, à porta que lá consigo abrir, e à cama, onde aterro ou me despenho.
Pancadas na porta... Quantas horas escorreram já? A campainha... rastejo,
gatinho, e é quase sentado que a abro. É um cliente das cassetes de aluguer e amigo
nosso: ‘Oh pá, pobre bicho, desgraçado!’, diz ele jocoso. ‘Vai, vai dormir!’. Só voltaria
dias depois.
Agarro-me a sumos de laranja em série. Acho que vomito mais e volto à cama
que gira como a hélice de um helicóptero. Às três da tarde torno ao carro. Arranca à
primeira e disparo para o aeroporto. Da Monumental para entrar na Acordos de
Lusaka é o capotamento... ooopppss! quase! Não foi… Eram só duas rodas apenas a
suster-nos no alcatrão, a chiar, populaça em pânico a pisgar-se do monstro em metal,
desvairado, que aí vem. Terminal de passageiros. Partidas. Migração. Ordem para
vistoriar todos os talões de embarque dos últimos dias, da LAM... Nada. Esta cabrona
é esperta se passou por aqui. África do Sul ou Beira? Eram as minhas dúvidas
principais. Nada! Nada de nada!
A informação terrível chega uns três dias depois. Eu já tinha nesse dia pegado
num amigo, o Laisse, da PIC (a Judiciária daqui), como se a Segurança não fosse
capaz de resolver isto, e dera-lhe um pato congelado, ‘O meu pato!...’ berra a Célia
posteriormente, e ele arranjara uns mandatos de captura civis da PIC em nome dela, e
com o Laisse andara assim a distribui-los pela periferia de Maputo até às últimas
posições militares na EN 1 (a saída para o norte) e depois da Matola (estrada para a
África do Sul). Chegamos à borda da zona do 100%, área de guerra. Levávamos a
foto, fotos dela. Nada, até aqui. À tarde, com uns gelados e refrescos, as sobrinhas
chibam-se todas: ‘Ti Célia foi prá Beira!’ O senhor Valadas, português, do PH 9,
tratara da viagem num avião ‘charter’, do Botswana, e que estava a fazer a carreira
Johannesburg-Beira só com uma breve escala em Maputo. ‘Deve estar ainda na casa
de uma tia, deram-me o nome, lá na Beira. Mas tem um amigo da Cruz Vermelha
Internacional, o Pyos, que diz que se quer casar com ela, que ela já conhecia antes, e
que disse para ela ir.’ Ora a cabrãozona...!
Tinha eu já adquirido o bilhete Maputo-Beira para o Boeing 737 da LAM
quando encontro o Pascal, comandante da Força Aérea, e que é por coincidência um
primo afastado da Célia. Vai a comandar, a pilotar um Antonov-26 a caminho da
Beira, precisamente no dia seguinte. ‘Se eu quiseres vir...’ Claro! Aceito de imediato. Já
não ando de Antonov desde os últimos saltos de paraquedismo em 1979, em Junho,
queda-livre de 12.000 pés (cerca de 3.600 metros), um minuto e dez de retardo...
Haviam sido, pois, de um Antonov. Okay, que seja o ronceiro Antonov a levar-me.

Passo em revista os últimos dias caleidoscópicos, estroboscópicos. Primeiro,


fora o início da guerra do Golfo, eu todo entusiasmado a instalar no terraço, 13º
andar do PH, as antenas de longa distância para captar as emissões de TV da
Swazilândia e África do Sul e que retransmitem a CNN. Depois, dia 6 de Março, nada
disto se previa, organizara eu a festinha de anos da Célia, e é tudo uma desilusão
agora. As corridas, desesperadas, o Cardoso, o Khan, ultimar algumas vendas, as
sobrinhas da Célia, o PH 9 (quem comprara o bilhete), o Grupo Dinamizador, o

234
Laisse da PIC e o pato congelado, a Matola e EN 1, as terras do ‘100%’, essas zonas
declaradamente de guerra.
Mesmo nesta ânsia, não parava. Por um lado eram os filmes ao fim da tarde,
no quarto, as vizinhas queridas que não lhes toco, garanto!, Marisa, Paulinha e Cristina.
Uma das fitas é o longo ‘África Minha’, e elas aqui limitam-se é a assistir vídeos e a
dançar, umas brincalhonas, as três numa dança com a PPSH, a pistola-
metralhadora, eu a rir-me, muito simbólico e freudiano, isto tudo!
A outra face da moeda, agora. Há que carpir as mágoas, por esta altura. Pôr a
‘contabilidade’ em dia. É uma plataforma giratória o quarto da COOP nestes dias
pré-Beira. A Rosa do Zambeze vem fazer-me uma ‘consulta’. Além das ‘operações’
naturais diverte-se ainda, ela também, mas mais a fundo, com o cano da PPSH,
acreditem!, à laia de dildo, e um fellatio simulado, ainda, à arma. A Rosa excede-se!
E por fim, mas não o menos, temos a São e a Guida da baixa. A São vem
também até aqui ao meu ‘consultório’ temporário nesta liberdade forçada. É uma
senhorita mista clarinha e de óculos, com os seus trinta anos. Uma dona de casa,
vizinha do outro lado da rua, da Vladimir Lenine, mas que manda uns ares de
secretária, extremamente cuidada no aspecto. É assim a atirar para o baixote,
levemente rechonchuda, mas maneirinha. Em suma, confortável. Vem cá para as
cassetes vídeo mas um olhar mais profundo e um gesto atrevido apontam-na até ao
consultório, o quarto. E que consulta! De tirar o fôlego. Sacia-se e sacia-me até à
exaustão. Quem precisa de cassetes, com isto? A ressaca da São viria semanas mais
tarde. Falatórios, invejas. A coisa ia dando muito mau resultado. As tais fugas que os
esfíncteres informacionais não controlam.
Por fim, nesta etapa do campeonato, regresso à Guida tórrida, a Guiducha do
Restaurante Tai-pan que com o americano Carlos Jacob visitáramos até, a Guida que
eu arrastara para o Carlton, um dos ‘matadouros’ para onde já tantas eu guindara para
serem arpoadas... Ah! Guiducha! Esta também vai dar que falar. Apanho-a em casa, na
Sommerschield, e ela, com terror da Célia, mesmo sabendo a história presente,
prefere ir para o Zambeze. A câmara de vídeo vai connosco: ‘Tens uma de vídeo? Okay!’
Parece que aquilo ainda a excita mais. Está em ebulição!
Cá estamos nós no Zambeze, o ‘matadouro’ da casa da dona Ester, o centro
de operações que eu e a Rosa usamos habitualmente. A Guida está mesmo insaciável,
como sempre, excita-se ainda mais, levada ao rubro frente à câmara a apanhar-nos em
plano médio, grandes planos depois, em curtos intervalos eu de mastro feito a corrigir
a mira. Depois de ser ela a abocanhar-me abre-se toda agora para a vermos bem, eu e
a câmara, o seu interior, e deixa que eu a penetre todinha com a língua, dedos, a lente
em macro, e finalmente com o membro já inchado, roxo-rubro e meio babado.
Grunhe, ronca de prazer, ronrona como uma gata satisfeita.
Mas não é aí que termino, com as carícias dela com a mão suave enquanto a
satisfaço e filmo... Ela prefere um longo bobó que a câmara segue e capta por inteiro
até ao repuxo final, a Guida a não deixar desperdiçar gota, nada de nada. E não nos
ficamos por aí. É mais uma meia hora de operações em que repetimos mas ela
oferece agora as tetitas a uma derradeira punheta de mamas. Uma descarga profusa,
copioso aluvião! Compreende-se agora o sentido, o alcance dos mitos sumérios que
recordo: como o deus Enki, o deus da sabedoria oculta e das águas, irrigou Dilmun
com a sua ‘água da vida’, ou manda reanimar a deusa Inanna, ou cria o Eufrates num
supremo acto de masturbação. Ah! Minha Guiducha ‘mesopotâmica’ deste Zambeze! E esta
cassete também irá dar que falar!...

235
Bom! Voltemos mas é ao presente.

Levo uma missiva do Cardoso para o Director Provincial da Segurança, mais


uma carta do Chanjudja, são amigos, para que todo o auxílio me seja prestado.
Mandato civil da PIC, fotos, cassetes vídeo.
Mesmo munido com bilhete de Boeing, para mais tarde, estou na placa do
aeroporto à hora combinada com o Pascal e ele aí está. O ‘bicho’ é efectivamente um
Antonov-26, idêntico aos que conhecera no paraquedismo. Uma carga heterogénea
que mais faz lembrar um dos filmes do Kosturika com ciganos, mas aqui é malta
africana. O avião vai pleno que nem um ovo, mesmo no cockpit além do trio da
tripulação seguem mais duas patentes militares. Há gente a encher todos os bancos
dispostos longitudinalmente, costas contra a parede da fuselagem. Há mais gente pelo
chão, gente na rampa traseira de acesso quando ela quase se fecha, e digo ‘quase’
porque fica ainda uma folga, uma fresta considerável, contra todos os princípios
aerodinâmicos. Mas o Antonov até marcha com porta aberta e tudo como nos
momentos em que saltávamos de pára-quedas. E há mesmo de tudo: móveis, sacos,
cestos, mantas, até dois cabritos, um deles na rampa, eu a controlar pelo canto do
olho o caprino, antevendo o eventual momento em que seja sugado para fora por
algum solavanco ou filete de ar.
São uns mil quilómetros até à Beira, quase duas horas de viagem em cabina
não muito pressurizada. Falta pouco para aterrarmos quando há alteração de ordens e
de percurso: pela rádio pedem que as duas patentes sejam deixadas já em Quelimane,
a capital da Zambézia, mais ao norte umas boas centenas de quilómetros.
Estamos a fazer a aproximação à pista, eu levanto-me e chego até ao cockpit,
e o Pascal a berrar-me: ‘Vês? Vês aqueles rastos ali no alcatrão?! Uma merda pá, eu
meio queimado, álcool!, e esta merda (outro Antonov) com os fusíveis lixados...
Recolho o trem, ainda não tenho sustentação total, à descolagem disto, vês? buumm!
Barriga! Lixei os hélices e a barriga toda dessa merda pá, a merda não incendiou, sorte
dentro do azar!’
– O fusível?, perguntei eu.
– Já estava em ligação directa! É suposto, isso estando porreiro, nunca
acontecer, nunca permitir recolher rodas enquanto estejam a suportar peso, percebes?
Este Pascal é doido! Toda esta malta, aliás, que se atreve nos Antonovs e MI-
8s.
Aterramos por cima daqueles rasgos feios e com hélices em ‘reverse’ a
auxiliarem na travagem. Apontamos à aerogare. É só uns minutos em Quelimane em
que aproveito para restaurar os níveis etílicos e levar seis latinhas de Amstel para
bordo, para o cockpit, onde tenho agora lugar. Eu só, e os tripulantes. Daqui admiro
porreiramente à descolagem toda esta verdura luminosa que circunda Quelimane,
palmares sem fim que me lembram o ‘Apocalypse Now’...
Pascal à esquerda, navegador e co-piloto. Chego a sentar-me aos comandos no
lugar do co-piloto. Vá lá... Ninguém quer mamar nenhuma cerveja. Meninos hoje
bem comportados! Eu não renego as Amstel e de Quelimane à Beira faço estalar duas
geladinhas louras. Abanco agora nesse local do cockpit com uma redoma de vidro
para o exterior, o lugar dedicado ao observador de bordo. À frente, uma pequena
mesa e ventoinha, impotente perante esta canícula.
O radar de bordo em modo meteorológico mostra-nos uma formação de
cúmulo-nimbos que engrossam erectos lá adiante. É daqueles dias quentes e húmidos

236
onde facilmente se formam estas nuvens de grande desenvolvimento vertical e de
grande turbulência, capazes de se resolverem em chuva, trovoadas e granizo, ou
trazerem um temível ‘wind shear’, potentes correntes verticais que como mão de
gigante atiram aviões ao solo. Cumprimos uma larga curva para tornear esta ameaça
que controlamos em ‘zooms’ diversos pelo radar, fazendo variar o alcance de dezenas
a centenas de quilómetros.
E por fim fazemo-nos à pista da Beira sobrevoando uma região costeira,
inundada, cheia de mangais e vegetação rasteira, sem linha de costa bem definida. É
assim o litoral de Sofala, desde a embocadura do Save até ao Zambeze. ‘Batemos’
umas cervejas numa pequena esplanada junto à aerogare, eu, o Pascal e os outros dois
tripulantes, enquanto aguardo a chegada, que não demora, de um jipe da Segurança.
Têm instruções para me alojar e para me conduzirem ao Director Provincial e ao
Director Provincial do Ministério do Interior, que tutela a polícia civil, a PPM, Polícia
Popular de Moçambique.
Já antes pusera uma cópia do mandato e fotos a circular pelos balcões das
companhias de aviação e de táxis aéreos. Deixamos agora cópias nas posições
militares e policiais periféricas da Beira. Rumo à residência do Director Provincial de
Segurança. O Director Provincial do Ministério do Interior está presente. Observam
as imagens. Dão-me indicações de boites possíveis, as mesmas que eu já tinha. Nomes
que eu já escutara da boca da própria Célia.
Daqui, conduzem-me à residência controlada pelo SNASP onde eu deveria
ficar. A ‘base de operações’! É uma casa da TCT (Transport and Commodities Services),
outra empresa subsidiária do SNASP tal como a Pão Fresco. À frente da TCT
nacional estava o Luís Filipe Costa, o quadro da Segurança que eu encontrara no
aeroporto de Paris, à partida. Mas aqui, em Sofala, o ‘cabeça’ provincial é o Gaspar,
que me coloca perfeitamente à vontade. Alto, menos de trinta anos, este empresário
simpático e falador, está sempre risonho, rosto aberto sobre um ameaço de barbicha
no queixo. Não há ninguém na Segurança, claro, que não me queira conhecer, ainda
para mais o ‘2M’, o ministro Mariano Matsinhe, a frisar sempre, em reuniões, como
continua a constar-me, que eu sou ‘quadro’ desde 1979 em missão especial… poix!
Falta ainda a grande surpresa: quem está agora como ‘nº 2’ na TCT Beira?
‘Sócio! Sócio!’, ouço berrar, estridentemente: o Zorro! Surge de rompante na sala, a
abraçar-me. Sala... é um salão, aquilo, nesta bela moradia de vários pisos, ajardinada,
garagem para vários veículos, no bairro da Ponta Gea. Fica a dois passos do Náutilus
e do Veleiro, dois ‘spots’ de boa comezaina e diversão.
Há trabalho a fazer. Já volto!, prometo, depois de largar ali o saco com que
viajo. O agente-condutor do Lada-Niva recebera orientações para seguir as minhas
ordens, não só como motorista. ‘Começar pelos locais nocturnos embora seja ainda
meio da tarde’…
– Vamos ao Oceânia!, sugiro.
Como um tiro na ‘mouche’. Corro vários empregados que já lá se encontram,
o chefe de mesa... Vê bem as fotos...
– Conheço! Esta, sim, é! Esteve cá ontem, ou dia antes, com amiga que mora
cá, Virgínia (a Inhamajau), e Rosinha também, e uma Lisete, não é a Lisete do Bairro
Triunfo, mas outra amiga negra, homónima. E estava com prima da menina Célia,
humm... mora ali na praça, uma rotunda que nos indica onde é, lá próximo, e assim
uns milhares de meticais trocaram de bolsos. Sabemos a casa da tia, primeiro ponto, o
condutor-agente conhece perfeitamente qual a residência.

237
Uma volta à rotunda. Volta de reconhecimento ao quarteirão. É uma moradia
branca que dá mesmo para a praceta redonda, a Beira está pejada dessas rodelas
rodoviárias. Casa de dois pisos. Sem saídas traseiras. A entrada e varanda apresentam
grandes arcadas. Não há escada traseira exterior... Vamos a isto!
Uma campainhadela estridente... Outra, mais insistente. Uma senhora africana
clara de uns quarenta e tal anos vem abrir. Assusta-se, mas parece logo sossegar, ou
talvez nem tanto, ao avistar o tipo de veículo.
– Onde está?, eu com a foto na mão. ‘Já! Senão pagas tu, entrar já!’
Chega um tipo, o marido, decerto, há também uns putos por ali a chiar, a chiar
mais, agora, mas o gajo tem juízo e vê que a coisa não é para brincadeiras. Passo o
palavreado do modo de rajada para tiro-a-tiro ao que ele emparceira então neste jogo.
Okay, está ali, ela, deve ter ido até à praia, como estava vestida e pelo que dissera, e
não deve mesmo tardar.
A mensagem é clara, muito muito clara mesmo. Nem preciso ficar ali.
– Voltarei dentro de uma hora e quero ‘tudo arrumadinho’, percebeu? Não
façam mais disparates, senão quem paga são vocês... não sabem no que se estão a
meter, hein! Segredos do Ministério, até... Isto é para ficarmos amigos,
compreende?, e há por fim uma primeira troca de sorrisos.
Vamos tomar uma cervejola eu e o agente local do SNASP. Deixamos escoar
as loirinhas e o tempo, setenta minutos, três ou quatro latitas... Vá, vamos lá!
Damos a volta à rotunda. Mais rápido que o carro já o meu pescoço se torceu
para olhar a residência, um vulto... lá está a cabronazinha! Sentadinha, meio deitada,
aliás, aproveitando a curvatura de uma das arcadas e o muro da varanda, pernas
distendidas sobre o parapeito, um ‘sacudu’ ou mochila dormindo ao lado. Bato com a
porta do carro, o agente sai também, mãos nos quadris, em espera atenta. A Célia não
ri nem sorri sequer, cara muito amuada... ‘Sabia que vinhas!, diz ela. Já calculava!’
E desbobina o rol de queixas e factores. Eu, o eterno corrupto com as gajas e
sem projecto de vida definido, as zangas que descambam em violência, a história do
puto que ela antes aguardara do tal Franco e, além do mais, que havia alguém na Beira
que ela já conhecia dos tempos do Peter (o antigo companheiro holandês). Era um tal
Pyos, suíço, da Cruz Vermelha Internacional, patati patatá, etc., etc., o que já as
sobrinhas tinham ventilado. E tinha vindo a ‘gang’ toda de amigas: Rosinha,
Inhamajau, Lisete, a pretinha, e esta até já tinha lugar cativo no acampamento dos
cooperantes.
Digo-lhe poucas frases: ‘Explicavas bem a situação e logo se via...’ Agora,
baldar-se assim à má fila, à francesa, isso ‘é acordar os maus espíritos’... o que de mais
terrível há em mim. ‘Queres que te explique melhor e até onde é que isso pode ir?
Queres que comece por aí á fuscaçada, a principiar por esse tal Valadas do PH 9 e a
terminar nesse Pyos?!’ Corria o risco de ser uma tarefa pírrica! ‘Há que pensar com a
cabeça fresca nos próximos dias’, proponho-lhe.
– Vamos para a residência da Segurança, acrescento, que lá estás segura! Uma
piada de mau gosto. ‘Está lá o Zorro’, e ela conhecia-o, claro.
Ainda não temos bilhete para o Boeing Beira-Maputo. O Pascal e o ‘seu’
Antonov estão lá mais para o norte, noutras províncias. Só dentro de três ou quatro
dias passarão pela Beira. E ela, já meio a gracejar: ‘o primo Pascal vai ter que me
ouvir!’. O Pascal e outra prima da Célia, a Aurora Chambal, locutora da Rádio
Moçambique, seriam doravante uns primos mais chegados. O Pascal, valha-nos Deus,
era cada cardina que não sei como é que aquele homem ainda tem um Antonov nas

238
unhas. Na nossa casa na COOP cairia literalmente em coma, várias vezes. Entende-
se… o álcool acaba por ser das poucas fugas nesta pressão em crescendo que cobre
todo o país.

Agradeço aos directores provinciais respectivos comunicando a boa resolução


do caso, e que ‘a situação de segurança está controlada’. Na moradia da TCT
convidam-nos a ficar ali enquanto esperamos transporte, ‘sem problemas!’,
reafirmam.
É pequena a Beira. Mesmo a pé vamos até ao centro facilmente. Jantamos no
restaurante do Hotel Embaixador, lá no topo, os empregados com uns curiosos fatos
em estilo colonial e altos chapéus.
Na manhã seguinte, porém, dirijo-me à sede provincial do SNASP.
Dispensam-me o seu segundo veículo, um jipe Lada-Niva, como sempre. E encontro
aí outro amigo, o ex-vice provincial de Nampula, Camacho Júnior.
Nos dias imediatos a Célia leva-me a conhecer a zona envolvente da Beira, o
farol do Macúti, a praia, o acampamento estrangeiro onde reside a tal Lisete, o Veleiro
e o Náutilus, restaurantes, e a boite, o Oceânia. Passamos rápido pelo Arcádia e pelo
‘Moulin Rouge’ local que fica à beira do rio Chiveve. Só posteriormente é que me
conta que estava lá o Pyos, no Oceânia, e que não me dissera nada ‘para eu não
destruir aquilo’.
O cabrão do jipe Niva falha na ignição. Esta marda de latas da russalhada! Lá
vamos à ligação directa. Desde Nampula que tenho essa lição bem sabida para os
Niva.
De novidades, bem, há uma pequena indisposição intestinal que me leva ao
hospital provincial, onde sou muito bem atendido e medicado, diga-se sem abono da
verdade. E numa destas voltinhas sem nada fazer, ao longo desta gincana que é a
Beira, dou boleia a um jovem. Mete conversa. Quer-me vender uma ‘banana’, ou
quantas quiser, de ‘cota-cota’, suruma, a mil meticais. Em Maputo o produto é trinta
vezes mais caro... e eu tenho o Antonov, sem controle algum... sem limite de carga...
mas recuso liminarmente.

A Célia lá me convence a transportá-la a um ‘che’, um curandeiro, é como ali


chamam. Para consultas, para apurar se comigo ‘dá resultado’ ou remédio para cortar
de vez e eu desimaginar-me! Cada um mata o tempo à sua maneira enquanto se
aguarda a preciosidade que é o vector de retorno à capital.
A Beira é realmente difícil, uma gincana, como disse já, no tocante ao código
viário e sinalização, uma cidade muito diferente da geometria linear e em ângulos
rectos de Maputo. Mas desenrasco-me bem neste caos geométrico sem nos
perdermos. Realmente esta cidade tem pracetas e ruas também completamente
esburacadas, e como já me haviam devidamente alertado. Próprias, é mesmo, para
veículos todo o terreno, 4 X 4. A uma delas então, eu, hoje estou cínico, até proponho
um nome: Praceta Evo Fernandes, de tão esburacada que está, ele que queria tanto ser
presidente da câmara da Beira e não primeiro ministro, pelo menos segundo alegava.
O Grande Hotel da Beira é todo ele um quarteirão suburbano disposto em
altura: o caos e a imundície galgam-lhe pelas paredes, é o desregramento total, repleto
agora de refugiados e famílias de ex-militares. É uma imagem de desespero, mesmo
para os de fora, e mais constrangedora para quem o conheceu antes no seu esplendor
dos tempos coloniais. Visito a baixa, não só junto ao Embaixador, mas igualmente as

239
principais ruas comerciais e de serviços onde vou marcar passagem pelas LAM,
apesar da promessa de boleia num Antonov. Visitamos lojas de indianos. Para a Célia,
são as roupas, e para mim é uma faca tipo Rambo.
Com o Zorro vou visitar mais algumas tascas e os mercados do Esturro, do
Maquinino e da Manga, bairros periféricos. Ando eu à procura da ‘minha’ Stella dos
tempos idos de Lisboa. Essa moçambicana muito querida, alta, rechonchudinha,
olhos achinados, toda ela uma bonequinha terna. Relembro como a conhecera
primeiro por fora, no Cantinho do Aziz, o restaurante zambeziano em Lisboa, e por
dentro logo a seguir, na minha antiga casa de Casal da Mira. Voltara a Moçambique,
reconciliada ou não, com o marido, um português. Pronto! Resigno-me, não
encontramos a Stella. Terá regressado a Portugal? Mais tarde dizem que sim e que o
marido é hoje polícia na capital portuguesa.
Num almoço no Náutilus comemos umas deliciosas lulas grelhadas, e em
generosa quantidade. Não se fazem rogados na Beira quanto a peixe e mariscos, nas
doses servidas. Efectuamos uma visita ao porto e à praia, aqui toda uma extensão do
areal tornou-se um verdadeiro cemitério de barcos, um navio de porte considerável
encalhado há décadas, desfaz-se em ferrugem como um gigantesco monstro castanho.
Compramos camarões tigre baratíssimos, na praia, aos pescadores. À porta da
moradia vêm também vender-nos camarão tigre e peixe, fresquíssimos e baratos. Não
há jantar sem camarão grelhado, frito ou estufado, quantidades deles, nem sem
bebida, e a Célia atira-se em novo campeonato do dela: cervejolas e tudo o que seja
etílico. Como banda sonora deste período temos uma cassete áudio que a família me
enviara de Lisboa, a ‘Hits 90’, com o Bayla Morena Bayla, I can see clear now (de
Johnny Cash), etc. e tal. Toca e re-toca a mesma fita. E a Célia estaciona no sofá da
sala de estar, no rés-do-chão, após jantares destes, completamente desligada, o Zorro
e o Gaspar nos quartos respectivos ou vão dar um giro.
Às vezes, durante o dia, vem a Lisete visitar-nos, e se não é essa é a Rosinha,
ou a Inhamajau-Virgínia e uma jovenzinha amiga delas, a Dulce, que quer ir para
Maputo e que fico de apresentar ao Pascal.
Uma noite destas, com a Célia no sofá a cozer uma piela, manhosamente
esgueiro-me de casa após o jantar e pego no carro... Baixa com ele! Uma gajinha atira
olhares como um farol nesta imensidão nocturna e está mesmo é a pedir para ser
rebocada dali do prédio da açucareira, não longe do Embaixador. O ‘matadouro’ que
ela conhece não está OK hoje. Arrisco... A residência. Que seja! É enorme. A Célia
continua ‘desligada’. Faço sinal à moça. Pé ante pé entramos, indico-lhe a escada: lá
em cima, no topo. A miúda segue-me... um estalo no degrau... não é nada, afinal. A
Célia nem com uma morteirada. Avante! Segundo andar, o quarto. Hora de
‘operações especiais’. ‘Lançar as minhas granadas’!!!... Pôrra! Esta gaja está com o
período! Foda-se! Eu não sou o Drácula! Ela desculpa-se, e pronto… Lá tem que ser
o velho bobó para resolver a coisa mais a brincadeira com as tetas, para animar esta
noitada. Sem muita história mais conclui-se o mini-serão, arrumação do local, descida
ao piso térreo e regresso à baixa. Tudo OK! Volto à moradia, e a minha moribunda
não se mexeu ainda.
É preciso ser-se frio para estas histórias todas, ou quente-frio, não é? Um
semifrio?... Não há classificação. Eu também já ando bem ressabiado com isto tudo.

O Pascal regressa. Está num hotel da baixa. Vamos visitá-lo e combinar a


viagem para Maputo. Está ainda pendente de vários factores. Temos bilhetes para a

240
LAM, contamos também com a possibilidade dele no Antonov-26, e há ainda os
russos com o Antonov-12, maior, um passaroco de quatro motores e vinte toneladas
de carga, de que ele nos fala. O ‘seu’ Antonov, o ‘26’, é de 2 turbo-propulsores hélice
e de dez toneladas, isso já eu sei de cor desde os dias do paraquedismo, e esses
pormenores para o caso não interessam desde que cheguemos é a Maputo. Tudo
bem, que seja o que surgir primeiro. Na vez seguinte que vamos ao hotel dele, à noite,
é para umas cervejas bem batidas e para levarmos a Dulce. Para já ficam conhecidos,
ou amigos, mas a minha responsabilidade termina aí. Creio que ele lhe garante a
viagem, pronto.
A TCT é-me explicada pelo Gaspar e Zorro, quando recebemos a visita do
Director Nacional da Emofauna, o director Mateus, que se encontra de passagem.
Vem organizar a batida anual aos búfalos nos tandos de Marromeu, planeiam abater
umas duas mil cabeças. Dá-me o contacto em Maputo, é na antiga Espingardaria
Diana onde o meu pai comprava as armas de caça. Claro que eu quero ir, se for
possível, para uma reportagem. Ora, a TCT, em Sofala, está envolvida num grande
projecto de serração de madeiras, e noutros pontos do país aposta forte no turismo,
isto além da criação de lagosta no arquipélago do Bazaruto, em Inhambane, para ser
exportada viva para o Japão.
E não sei bem como, na noite seguinte, abre-se nova discussão com a Célia, e
de um momento para o outro está ela com a minha faca Rambo que eu comprara nos
monhés. Um gesto rápido e aí vem a lâmina a sibilar, a atingir-me as calças, arranhar e
chocar com estrondo no chão. ‘Oh minha querida, tu queres mesmo é brincar, não é?
Podia ter feito isto logo no primeiro dia mas é agora mesmo. Anda daí que vou pôr-te
num sítio sossegado...’, os calabouços da BO, da Segurança.
Mas a BO é terrível demais. São três da manhã e eu a ligar da esquadra para o
director provincial do Interior. ‘Sim, sim!, diz ele aos subordinados. Fazer o que
manda o senhor Paulo.’ Choça com ela, então. É cruel demais, mas as coisas são assim
mesmo. O tal ‘interruptor-bichinho’ no cérebro não perdoa desta vez.

E sorte tem ela, não é por muito tempo esta licença sabática. O Pascal, após
contacto com a base aérea, telefona-me de manhã cedo: ‘Aproveita agora o Antonov-
12, parte dentro de duas horas. Vemo-nos lá em baixo!’.
São as despedidas apressadas ao Gaspar e ao Zorro, os agradecimentos uma
vez mais a eles e aos directores provinciais. O Zorro ajuda-me a arrumar as coisas em
poucos minutos. É só o meu saco e a mochila da Célia, ver se não ficou nada
esquecido na residência. O Zorro acompanha-me ainda. Esquadra, primeiro,
‘levantar’ a Célia, está de chinelos, ela, e uma garrafa de cervejola nas mãos, a tagarelar
toda à vontade, e teimosa, está a recusar os sapatos: ‘vou mesmo assim já disse!’.
Aeroporto, agora. Apresentam-me ao comandante Leopardo, responsável máximo da
base aérea, e aí está ele, o Antonov-12 estacionado na placa, motores a zumbir.
Este não é mais que um velho avião cargueiro, nem chega a ser um ‘combi’,
um misto. É o Antonov-12 que se vê por vezes ao longe, na Base Aérea de Mavalane,
em Maputo. Tem os dizeres da Aeroflot mas mantém-se é ao discreto serviço das
forças armadas, transportes ou algumas operações especiais. E cá está o conhecido
racismo russo a funcionar: o único branco ali sou eu e fazem-me logo sinal para subir.
Explicam que se fosse outro branco qualquer era a mesma coisa. Deixo a Célia trepar
à minha frente pelas periclitantes escadas, é mais um escadote, aliás, a rampa está
obstruída com qualquer coisa monstra.

241
O transporte é mais uma vez ao ‘estilo Kosturika’, já estão a ver bem como é:
cabritos a fazer mé-méee, galinholas numa rede de vime, pilhas de azulejos, um major
numa cadeira envolvido pela estrutura de uma cama de bebé com as grades laterais
mas sem o fundo montado e, a cereja no topo do bolo, cá está o que impedia a
rampa, um blindado BTR que é preso agora com cabos de aço às argolas de carga no
chão do aeroplano. Topam mesmo?
Sentamo-nos em dois caixotes, há muitos. Aquela merda alada tem todo o ar
de ir cheia e pesada a valer e ir abrir um buracão terra adentro direitinha para o
inferno! ‘Vai mesmo descolar?’ Mais uma ‘boa’ notícia: só o cockpit é pressurizado.
Nós, somos carga! Aqui, todo o resto da fuselagem, nyet, nada! Pior que no Antonov-
26 em que havia um mínimo de pressão. Iremos voar a quase seis mil metros, se isto
subir!, durante quase duas horas.
O bólide pesadão engole quase toda a pista e com a ajuda dos flaps começa a
erguer-se mantendo uma atitude quase na horizontal. Um triplo estrondo marca a
recolha dos trens. Ganhamos alguma velocidade vertical, agora. Uns fiapos brancos
riscam perto do aparelho, nebulosidade ligeira. Refresca um pouco mas não o
suficiente. Passa já do meio da manhã e isto acaba por se converter num forno, uma
fornalha, e em muito baixa pressão. É mais fácil as coisas entrarem em ebulição!
Não tanto pelos solavancos, esta merda é desconfortável à brava e cobre-nos
com um barulho medonho, um muro opaco, nem o DC-3 Dakota, nem o Antonov-
26, nem o NordAtlas, ruidosos típicos dos céus, atingem este nível de decibéis e
trepidação. Não, o principal é a despressurização, pá!, não há oxigénio, compreendem
os peixes cá fora como é que é? Ouviram falar como é quando se chega pela primeira
vez à Cidade do México? Respira-se fundo, com força, rápido, e só se fica pior.
O major está de cabeça entre os joelhos, há gente semi-desmaiada, vomita-se
lá atrás ao pé de uma das enormes rodas do blindado. Eu devo talvez a minha
‘formação’, esta relativa imunidade em que vou, aos saltos de paraquedismo, sempre
sem máscara de oxigénio, mesmo a 12 mil pés, e se calhar à bronquite, em puto, e à
sinusite: estou mais ou menos habituado a carburar em baixo teor de oxigénio. Saco
de uma cerveja. Ofereço uma lata ao major. Abana a cabeça e uma das mãos, parece
não conseguir falar mas os olhos tentam agradecer. ‘Célia! Cervejinha? Ainda está
fresca!...’, a mão dela abana, rejeita quase com violência... ‘Foda-se! A Célia está mesmo
mal... Recusar uma cerveja!’ Ela também com a cabeça baixa, parece noutra dimensão...
Enfim. Cá vai disto, e puxo a patilha da lata. É uma explosão! Pudera. Com esta
enorme diferença de pressões. A palma da mão evita que o líquido jorre cá para fora.
‘Cá vai disto...’. Uma. Duas. Três cervejolas. Maputo à vista.
Os ouvidos também o indicam. Temos estado a descer nos últimos minutos.
Engulo, engulo, engulo, bocejo, bocejo... Uns clics e clacs cá dentro da mona e as
coisas começam a restabelecer-se. As turbinas do nariz já funcionam melhor. Arzinho
da terra! ‘Ainda há cerveja?!’, é a Célia, que recobra para este mundo.
Fazemo-nos à pista, a ‘23’, os inversores a funcionar, aliás, isto são hélices, a
contrariar o avanço em passo negativo, a travarem auxiliando os freios, e apontamos
às instalações e placa da Base Aérea. Lá está o nosso Lada. Dois, conforme observo
melhor, o Chanjudja trouxera o nosso, como lhe pedira ao telefone, e um amigo, o
Issá, também do Ministério, conduzira o dele.
Saltamos desta carcaça barulhenta e passamos pelos helis MI-24 que do
Rovuma tantas vezes víamos a rapar baixinho partindo para operações além Catembe.
Os célebres lançadores de mísseis ar-solo que os equipam, multitubos, jazem ali por

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terra com mais peças e apetrechos, e mecânicos circulam como abelhas ocupadas à
volta daquilo tudo. Não vamos logo para as viaturas. Tenho a porra da t-shirt toda
encharcada mas, bem, não resistimos a entrar no bar dos oficiais da base, é parte da
fuselagem de um antigo NordAtlas, adaptada. A cerveja está um mimo, gelada, e é
raro o sítio de Maputo com um ar-condicionado assim, capaz de neutralizar o calor
que cai destes céus difusos, cegantes.
É a hora do regresso ao PH 7. Um lugar parece esperar por nós mesmo
defronte à entrada do prédio. O retorno está feito. A Célia voltou, mas os próximos
dias serão ainda de tensão.

COMO É FÁCIL CAIR NUMA TEIA DE ACUSAÇÕES. PERIPÉCIAS E


CURANDEIRAS. O DIA EM QUE POR CIÚMES IA SENDO MORTO COM
UMA RAJADA DE AK-47
A Célia, e uma moça vizinha nossa, do mesmo prédio, a Lígia, passam dias
numa curandeira do Chamanculo. A Célia não desiste, deve ser a continuação do raio
do ‘trabalho’ que o tal ‘che’ principiara na Beira. Vou levá-las e buscá-las farto desta
merda e só vejo, nos raros momentos em que espreito a palhota ritual, a entrada de
packs de latas de cerveja e mais latas... ‘Isto está bonito!’
Depois, é a chegada do Pascal e que traz a Dulce pelos céus. A miúda
telefona-nos do aeroporto, vou buscá-la e largá-la a casa da tia, nas já célebres Torres
Vermelhas. No primeiro andar toco mas nem a Gina ou a Paulinha estão em casa.
‘Pena...!’
Mais copofonia. Nova zanga com a Célia. Vai estacionar em casa da mãe.
‘Vai!, digo-lhe. Vê o que fazes! Quando tiveres essa cabeça curada, volta. Vais mas é
para estares lá com juízo!’
Pois! Não tarda muito, três, quatro dias depois, a informação a cair: ‘A Célia?
Em casa? Nã!, diz alguém no Rachid: ‘Todos os dias caidinha da silva até de
madrugada no Picolé!’, o Picolé da Dulce, na Feira.
‘Ah cabronazinha! Vai ser esta noite! Levo o Samuel... não levo?... É melhor, e
a PPSH que é mais maneirinha’.
Antes, das nove às onze e meia da noite estou ainda com a Cristina, a Marisa e
a Paulinha, as vizinhas, a ver uns filmezecos. Depois, hora de acção! Apanhar essa
sacaninha!
Muito, muito calmamente, estaciono. Há um portão como que de propósito
junto ao Picolé. Sorrateiramente estou a entrar mais o Samuel, o guarda nem se atreve
a perguntar nada, vira a cara para o lado acendendo um cigarro. E lá está!, sentada ao
balcão num banco elevado, a sobrinha Gugu ao lado, a Dulce e irmã mais o
empregado atendendo, e é agora que ela me vê, esboça uma fuga, curta, para a
cozinha. Já aí está o Samuel que fora dar a volta, com um delicado ‘Menina, por favor
vamos para a viatura!’ A Gugu a começar a chilrear qualquer coisa deveras
ininteligível, o pequeno bar paralisado, donas e empregado e clientes. Já sabem do que
a casa gasta, não é mesmo para se meterem. A sobrinha fica logo por ali, pela baixa,
feita já uma coruja das noites maputenses, e nós rumo à COOP. O Samuel tem as
suas ordens. Claro que a Célia está agora convencida quanto ao regresso. Quanto a
deixar a copofonia isso é outra história!
Os dois dias seguintes passam-se sem algo de maior a destoar. Até que há
umas garrafas de vinho tinto que voltam a enfeitar o armário e a Célia passa a noite a

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beber, a arrumar a casa, a beber, a ver prateleiras, a beber, a abrir gavetas, as gavetas
do ‘clube de vídeo’, até que depara com uma cassete sem rótulo mas já aberta...
São seis da manhã de um Domingo, ouço mais ruído, ‘então esta gaja ainda em
arrumações, não veio dormir?’ Mais barulho e o estrondo de uma porta a bater, a porta da
rua! ‘Que diabo?!’ TV ligada, o vídeo em ON... mas o que é que esta tipa está a ver? Não há
cassete ali, cassetes... O quarto do material! Corro. As gavetas... a cassete! A cassete da
Guida!!!
Estou em pijama, com violência dispo-me e ponho calças e t-shirt, ténis,
pesco a chave do carro. Rés-do-chão, um berro ao Samuel: ‘A Célia?’ E ele, tranquilo
como sempre, ‘Sinhora já foi! Para ali. Por trás do prédio’, explica ele. O atalho para a
casa da mãe a uns quatro ou cinco quarteirões. – Vem!, aponto-lhe o carro.
Salto para o Lada. Afinadinho como o tenho agora arranca logo à primeira.
Voamos do passeio para o alcatrão, Vladimir Lenine, cento e oitenta graus a chiar,
Praça da OMM, Kenneth Kaunda, PH 9, PH 4, até ao 1, volta à direita, volta à direita
e à esquerda já para a rua dela, e já a vejo! Lá ao fundo na outra extremidade, acabou
de bater a esquina e vem na nossa direcção, a casa dela mesmo à nossa esquerda,
avanço com velocidade, ela já nos viu, está a tentar retroceder mas hesitou, já o Lada
galgou o passeio e num ângulo trava-a contra o muro de uma moradia, a porta direita
a abrir-se para a impedir de continuar. Estico-me todo, sobre o banco e sobre o
Samuel: ‘Onde está?’, e interrogo-me, mas topo logo, ‘a bolsa...’ É na bolsinha que leva
à cintura, uma forma rectangular desponta lá dentro. Atiro-me àquilo que se
desprende com violência. Cá está ela, a cassete... ‘Não tens juízo, oh miúda?’
– Meu cabrão! O teu ministro há-de saber! Ia entregar isto ao Cardoso, ao
Matsinhe! É para aqui que vai o investimento, é?!
A Célia até tem razão. Tento deitar água na fervura, adiar as explicações. E o
que é que havia para explicar? ‘Hum, huumm... Bem?! Vamos lá para casa, okay,
depois falamos...’, digo-lhe de mansinho.
Mesmo sem a cassete a Célia acaba por ir queixar-se ao Cardoso. Tudo se
junta nesta semana. E o Cardoso mais uma vez voltará à eterna pergunta do ‘andas a
drogar-te, pá, ou o que é isso?’ e eu com a eterna resposta da cafeína e conaína. Pois,
além da Célia aterrara uma queixa da Beira: ligam daí para o Ministério e mais uma
vez seria o Cardoso a arcar com o caso, é um desembargador, juiz da relação. ‘Esse
vosso homem que era dos BAs... sim, esse!, o Paulo Oliveira, raptou a minha filha
para Maputo, num Antonov, com a ajuda de um piloto... Não sei onde ela pára!’ O
papá da Dulce! Foda-se! Já viram a história como está? Como está esta merda toda
deturpada? Sem embargo, o que é que quer esse cabrão do desembargador? Que o
prenda e vá metê-lo na BO? Lá fui às Torres Vermelhas, desta feita noutro tipo de
missão humanitária, à Dulce e à tia, para que esclarecessem de vez a merda do
assunto, telefonassem e sossegassem o papázinho da menina.
E por fim a juntar à carga do Cardoso é mais uma história com o Rogério, o
puto bandidozeco lá do prédio, e a mãe a chatear-me de novo a cabeça e eu a dar-lhe
com a ameaça da BO, que curo o puto em dois tempos, e vai ela também chiar para o
Cardoso, ela que já fora funcionária do Ministério. E a Célia lá diz mais umas
atoardas, algumas meio acertadas outras não, a contar agora que eu deitei mau olhado
à senhora que a fulminava com o olhar... Bom, e querem saber mesmo o que se
segue? É esse o filho que ela quer, não é? ‘Maus espíritos’ vêm mesmo aí! Dois dias
depois uma trovoada tremenda abate-se sobre Maputo, a COOP é flagelada por
faíscas em série, eu e a Célia à janela, chuva em grossos cordões, ventania uivante,

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janelas que batem... um vulto destaca-se sob os flashes estroboscópicos dos
relâmpagos... e vem qualquer coisa destrambelhada lá de cima quase desde o terraço,
vidros, madeiras que se ouvem estilhaçar... o vulto quase a chegar ao prédio... e vem
mesmo aí o barulho, toda uma janela abate-se-lhe aos pés! A mãe do Rogério escapa
por centímetros ao bólide de madeira e vidro, leves escoriações apenas.
Decorre mais uma semana. Deambulo por aí pela cidade em expedientes, só
chego às treze e tal, e é a Célia de rompante: ‘devias ter estado aqui! Tu assombraste a
senhora! Ambulância e tudo! A mãe do Rogério... no hospital. Atropelada. Muito mal,
não dava acordo de si.’. A senhora escapa, toda partida menos a língua. Quando
retorna à realidade já não tem os brincos de ouro. O filhinho Rogério afanara-os, a
primeira preocupação dele, ela ainda estendida no alcatrão. É esta a nova Maputo!

A história da Beira continua a ter rescaldos vários: eu a brincar, a inventar uma


história quase de espionagem, desvio de papéis pela Célia quando ‘desertara’ do PH,
se calhar estrangeiros envolvidos, e não é que existiam e se descobre o tal Pyos
envolvido num esquema? Pelo menos é o que diz o SNASP e surge agora na
imprensa: Pyos, funcionário da Cruz Vermelha Internacional, instalado em Sofala, é
expulso. A Segurança acusa-o de fornecer fardamento e outra logística à RENAMO.
A Célia acusa-me a mim e aos meus amigos no Ministério de ‘maquinação em larga
escala! Que o Pyos é um homem bom.’ Pois!
Parece que o que sucedeu lhe dá ímpeto redobrado para voltar à carga com a
história da Guiducha. ‘Onde mora essa vaca? Vá lá, diz!’ Vamos de carro na Salvador
Allende, batemos a esquina à direita, na pastelaria Princesa, quase a chegarmos ao
Pigalle... e estoira a violência: com uma chave, ferramenta pesada na mão, procura
atingir-me a cabeça, uma guinada bruta à esquerda, eu, a tentar travar... já o Lada
galga uns centímetros do passeio. ‘Minha puta! O que é que queres? Lixar-nos
é?!’, mas está embrutecida pelos copos e raiva, nem ouve. Tenta golpear-me até que
lhe tiro a peça das garras: ‘Chega! OK?! Isto há culpas dos dois, não é?!’ Bem, eu já
levava uma quilometragem muito maior. A populaça junta-se. Reconhecem-me. Um
sorriso em como está tudo bem, um polícia ou miliciano para receber os cigarros da
praxe, está tudo OK camaradas! Uff! Esta foi por pouco… com esta louca-bêbada ao
lado! Nunca se sabe como a história de uma simples voltinha de carro acaba.

A segurança das minhas ‘operações especiais’ está mais furada que um balão
que tenha levado com um tiro de caçadeira. Isto, ou são elas a gabarem-se, ou a
provocarem a Célia, ou as vacas de outras vizinhas com invejas e cócegas na
pachacha. Fim de uma plácida tarde. Calor que baste, mas ainda assim suportável. Cá
estamos nós a bebericar, eu e a Célia e o meu ‘gerente’ para assuntos áudio & vídeo, o
Patrick do 11º. No vídeo vemos habitualmente telediscos pela hora do anoitecer:
Bruce Springsteen, Milli Vanilly, Billy Ocean, UB 40 Labour of Love II, Pink Floyd e,
em áudio, tantas outras coisas possíveis. A Célia avança pela vinhaça: tintol, uma
zurrapa agreste sulafricana que vem naqueles cartões de cinco litradas. Aos poucos
principia a inflectir a conversa: ‘E então, as cassetes vídeo?’
– Bem!
– E os alugueres de cassetes vídeo?
– Então não vês? Bem... razoavelmente.
– E os empréstimos de cassetes vídeo? ... Hein?!, e já falo para mim: ‘onde é
que esta cabra quer chegar?’

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– E a São? Hein? A puta da São? Metes-lhe três cassetes a tocar na cona é?!
Ou é outra coisa que lhe enfias?!
Foda-se! Estou feito! Alivio o choque com umas goladas valentes à lata de
Amstel. O Patrick em background contra a parede e com a sua cabeça de ovo quer
rir-se de orelha a orelha mas fulminado pelo meu olhar queda-se em estátua, múmia
autêntica, e a Célia sai disparada para o quarto onde bate com a porta. ‘Vai chorar,
digo para mim, atingiu aquela fase’. É a outra fase das bebedeiras dela: alegre-raivosa
(alternando com depressiva) na sua identidade ou fase 2, prostrada ou em coma,
depois, sono, acordar, ressaca, primeiro copo do dia e alegre de novo para a fase 1,
emborcar alegremente.
Vai chorar mas, não... ouvem-se, são atiradas, as portas do guarda-fatos, e
escuta-se um novo som, metálico e terrível, de gelar, um clang-clang bem sonoro:
duas posições, a segurança destravada para tiro a tiro e rajada, depois, e o claque-
claque característico da culatra a ser accionada. Bala na câmara da Kalash, posição de
rajada!... Foda-se! O que vem aí? Os meus últimos segundos neste planeta! Fugir?
Enfrentar? Não há tempo, porta do quarto aberta, ela está aí, aqui... já a dois metros...
uma mistura de ‘Shining’ e ‘Alien’. Saltar?...
– Diz lá como é meu cabrão? Como é que foi? É isto que queres é? Deixei de
ver o cano, só o orifício, parece fazer pouco de mim... Vais comê-las todas! Estas!, e o
dedo dela no gatilho, arma bem aperrada, os pés..., tudo, tudo bem, tal como eu lhe
ensinei... Foda-se! A minha velha Kalashnikov Saúde & Paz! Foda-se!
– Célia!, é o Patrick agora, saindo do modo de múmia, e que por trás avança e
se abeira dela, deita a mão ao cano que faz apontar para o tecto. ‘Isto não se resolve
assim!’ E a Célia parece entender, o dedo retira-se do gatilho como um verme que
leva um piparote, larga o guarda-mato, a raiva desiste perante a razão. Só agora é que
chora.
Pego na ‘ferramenta’, mecanicamente saco o carregador, rebato a culatra,
apanho a munição que salta, devolvo-a ao ‘magazine’, disparo a arma vazia, o clic
seco da ordem... duplo clang para retornar a patilha à posição de segurança. Gatilho
outra vez... Nada! Travado. Okay! Meto-lhe o carregador por fim. Inofensiva de novo.
‘Chega! OK?!’

AS REPORTAGENS ‘VIP’ PARA A SEGURANÇA E DIGNATÁRIOS DO


REGIME. AS DERRAPAGENS DO NEGÓCIO. PRAÇA DOS COMBATENTES,
UM BAZAR DE IMUNDÍCIE
A vida continua. Há que prosseguir com os negócios. Desmultiplico-me entre
o Khan, o Sadrú, o Gipsy, os dumba-nengues, o Música-Bar, o João Corte-Real da
Foto Lusitânia, as compras à porta, as video-reportagens. Os contactos institucionais
com o Ministério atenuam-se até que o subsídio mensal desaparece tal como
acordado antes. Nos serviços de registo e notariado da capital continuam a fornecer-
me as respectivas listas para contactos visando a reportagem de casamentos.
Efectuamos assim, eu, a Célia e o Patrick, já a funcionarmos com duas
câmaras, a reportagem do casamento de um comandante das LAM, realizada no
Clube de Golf da Polana, outra, do irmão do reitor da Universidade E. Mondlane, no
Bairro do Jardim, e onde conheço o Ministro Armando Guebuza, eterno fumador de
cachimbo. Há depois ainda as bodas do Paulo Mutero, da Segurança, e cujo padrinho
seria o Amade Miquidade, que acaba de substituir o Mariano Matsinhe como ministro
da Segurança. A irmã do Miquidade, uma surpresa, é uma antiga colega do

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paraquedismo que reencontro aqui. E recordo ainda outro casamento mais tradicional
e religioso, no Chamanculo e Malhangalene. O camera-man adjunto é o Patrick, e a
Célia, por vezes, também filma, quando ainda está na sua fase alegre.
Num certo desanuviamento relacional vamos aproveitar as últimas semanas
de tempo quente indo até à praia. Eu, a Célia e os sobrinhos. Apanho um escaldão
terrível nas costas e ombros, o que me leva à cama e a tomar anestésicos. E foram
poucas horas ao sol, dessa vez. Mordo literalmente o colchão, a Célia a aplicar mais
pomada calmante. Os excessos! Sempre os excessos, da minha parte.
Uma antiga amiga dela e que parece ajuizada, é a Gininha. A Gininha está
casada com um técnico da base aérea. Eles são de Nampula mas fixaram-se agora em
Maputo. Portuguesa, ela, que decidira ficar. Vivem no PH 2. Precisamente o mesmo
prédio onde mora a família da Elsinha: mãe, irmãos e irmãs. Com o Helder continuo
a tratar de um certo intercâmbio vídeo: continua ele a fazer a sua revenda de
equipamento pelas províncias. A mãe, a dona Estrela, enfermeira e extremamente
religiosa, auxilia na Igreja Adventista do 7º dia na esquina da Vladimir Lenine com a
Eduardo Mondlane. O Pastor encontra-se de férias na África do Sul. A dona Estrela
toma conta do apartamento dele, próximo da igreja, na Eduardo Mondlane. Para os
negócios tenho-me até avistado aí com o Helder: ‘o que há para ‘businar? (fazer
business) E tipas?’ Este gajo também é fértil em esquemas. Esta flat do pastor é um
sítio porreiro para umas gajas, uma orgia autêntica em terreno sagrado, desafia o
Helder. ‘E que tal uma missinha satânica ao som de heavy metal?’, quase lhe
respondo. Começo a pensar para a ocasião em duas crentes muito atiradiças, a Lurdes
e a Aninhas, manas, precisamente dessa igreja, e que eu já andava com a vista em
cima.
A família da Célia tem vindo mais vezes visitar-nos e nós temos retribuído.
Fomos ao aniversário do Lourenço, um dos irmãos, e também lá está o outro mano, o
Estêvão, recém chegado da África do Sul. O pai veio igualmente e é nesta ocasião que
o conheço. E pronto! Acelerador a fundo como sempre a Célia está feita com os
copos, no fim as irmãs só pedem: Paulo, leva a tua mulher para casa, por favor! E a
Célia a berrar que não é filha da ‘mãe’ dela, esta Dona Ucelina, que mesmo a data de
nascimento está trocada, patati patatá...
A Aida já eu a conhecia da incursão que ela executara ao Rovuma aquando da
minha primeira zanga com a Célia. Além dela há a Esperança, a ‘Mariquinhas’, a mãe
da Nena das festas dos Fantastic e que namorara com o tal malogrado italiano, e que
eu já conhecia bem. A Dona Ucelina virá até passar umas semanas a nossa casa
enquanto fazem obras na moradia. Boa senhora, não falando português não mói
muito a cabeça, é já idosa e derreada pelas duas tromboses. O pai da Célia, após anos
na África do Sul, decide retornar a Moçambique para reinvestir nos negócios e lojas
na Macia, Manhiça, Mapai e Pafúri.
Só volto a ver o pai da Célia uma segunda e última vez: convidamo-lo para vir
comer uma carilada de caranguejo a nossa casa, um prato que ele adora. Com Coca-
Cola. Não toma álcool. Os sobrinhos Edson, Dinha e Gugu de 10, 11 e 13 anos,
órfãos há seis, filhos da falecida irmã, passam bastante tempo connosco. A Célia
adora-os. Também a sofisticada Nena filha da ‘Mariquinhas’ aparece por cá. Ela e as
amiguinhas da pandilha ‘fantastic’ ou ‘fun tastic’... Juntam-se pois as sobrinhas todas e
essa malta do tal Fantastic, pronto, é o núcleo duro dessas festas que acabam
invariavelmente em bagunçadas valentes, a malta aos pulos até em cima dos carros
dos moradores, mais disparos do Samuel, já estão a ver a reposição constante do

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filme, não é? Mais sessões do mesmo! E o Samuel cá continua, ao fim do dia vem
levantar uma das armas que devolve às 7 da matina para ir ferrar umas horas durante
o dia à Matola. E mesmo assim está bem, que lhe pago o dobro do habitual: oitenta
mocas ao fim do mês, uns três contos portugueses.

O Zorro, quando de passagem por Maputo não deixa de visitar-nos.


Conhecemos a casa dele na rua dos Presidentes, também na COOP. O António Mula,
o financeiro da D-13, volta a aparecer, aliás, vem sempre. Já há meses, por sugestão
dele, diga-se, havíamos começado um esquema que ele me apresentara todo
entusiasmado: era ele o ‘banqueiro’, o ‘Dom Preto’, um esquema em pirâmide, creio,
um pouco ao inverso da Dª Branca ou eu é que era o ‘banqueiro’ forçado? Parece que
era assim: ele ia emprestando, depositando(?) em mim, duzentos mil meticais ao mês,
ou mais, a 10% mensais, e queria deixar os juros a capitalizar. Eu disse que sim, que
era bom para os dois lados... Topam o esquema? Não sei em quanto é que isso vai
ainda hoje, mas não importa, pois não? Ainda fez uns seis meses de depósitos ou
mais, antes de começar a falar nos tais juros... que se calhar poderia investir uma parte,
aumentar o negócio que tinha para aí nessas barracas de comes e bebes na Praça dos
Combatentes ou nas Mahotas... Pobre Mula... Pobre ‘Vampirinho’, como lhe chamava
a Célia, que ainda não abrira a pestana! Nas mãos de predadores mais terríveis. E
ainda o estou a ver, ele, pequenino, desdobrando-se em enormes vénias sorridentes…
sempre a argumentar nestes esquemas furados que tão logo se viram contra ele.
E por falar em Praça dos Combatentes, nesse ‘dumba nengue’ maior de todos
quantos conheci, my god!!!, como é possível, um espectáculo destes? Vou lá com um
amigalhaço um destes dias, mora nos subúrbios, e queria comprar carne, carne de
vaca… mesas e mesas, tábuas periclitantes, carne a escurecer, a apodrecer ao sol,
temperada por nuvens de moscas. Pergunto: mas não é melhor levar esta, rosada,
acabada de cortar? O outro agita a cabeça, ‘não, esta até tem mais sabor…’ Comi
frango, morto na altura. E não é só esta carne semi-putrefacta, o ‘dumba nengue’ mor
da capital tem secção de farmácia, de um lado ‘é para dor de cabeça’, ‘aqui é malária’,
‘estes é antibiótico’. Espalham-se por cima de pratos e cinzeiros, ou de latinhas,
comprimidos, cápsulas avulso, escolhidas à mão, pela cor, com os dedos que se
enfiam no nariz, e abrem a braguilha para um alívio rápido atrás dos caniços. Não há
embalagens, prazos de validade, controlo algum. Toda a imensa rotunda e quadrantes
adjacentes se tornaram em enorme hipermercado, sujo, imundo, a céu aberto, um
regalo para os putos, para compradores ávidos e de pouco dinheiro, e para
vendedores desesperados e sem escrúpulos. Um paraíso para a ‘machimba’ (porcaria)
e para as moscas.
Quanto às festividades nocturnas, bom, o Zambi, restaurante e boite, passa a
ser poiso privilegiado nas nossas noites. É uma boite afamada desde os tempos
coloniais. Está a ser explorado pelo Alex Barbosa, um conhecido empresário
português. E está mais que visto, os copinhos continuam: a Célia no meio desta
diversão noctívaga, toda ela a oscilar entre a alegria, a raiva e a depressão. A contar
histórias da meninice em que decerto já meteu muita água, água ou álcool, em como
ganhou um prémio Nobel no Pafúri atribuído por um banco, ou que acertou num
búfalo com uma pressão de ar e o búfalo a atirou de tal forma que ‘aterrou’, salvo
seja, nas margens do rio. Histórias do género, e que eu finjo acreditar. Para quê
contrariar e acirrar mais as coisas?

248
E chega o mês de Junho. O Ministério, cumprindo uma promessa antiga
firmada ainda em Lisboa, e repetida pelo ‘Aparece-Desaparece’, quando falo sobre
um veículo, lembram-se? ‘Queres um tractor?’, arranjou-me um subsídio de dez a doze
mil randes para a aquisição de uma viatura particular. Após diversos contactos dou
com um Nissan Langley turbo, azul metalizado, sun roof, ar-condicionado, faróis
rebatíveis, extras diversos. Uma ‘mini-bomba’. A Célia está radiante. Esquece um
pouco as amarguras. Facilmente passo os 180-190 à hora mesmo na cidade, na
Kenneth Kaunda ou 25 de Setembro junto à Facim. Todos admiram o Nissan,
mesmo a polícia, que não tem carro para perseguir aquilo.

Com o Mano Gipsy há mais negócios. Incluem-se duas máquinas de escrever


eléctricas IBM que já não preciso delas. Uma viera da D-13 e a outra pertenc(ia)era
aos serviços centrais de contabilidade do SNASP, pois resta dizer que nos ‘tempos
mortos’, até aqui, entretivera-me a escrevinhar vários episódios, já, deste Renamo –
Uma Descida ao Coração das Trevas (O Dossier Makwakwa), partes deste livro que me
rebate para a tortura dos dias e me corrói a alma. Um murro forte de memórias, uma
torrente ígnea, toda esta catarse. Bom... indo à outra questão, acho que cada
maquineta ainda rende umas duzentas mil brasas (meticais), através do Gipsy, fomos
despachá-las a um monhé. Mais um business. Uma sucata, aquilo, nos novos tempos. O
contabilista do Ministério e o ‘Vampirinho’ bem que perguntam por elas, mas há
sempre resposta, ‘falta o prefácio, índice, apêndice... o posfácio’, vou respondendo a
cada investida com este enigmático sorriso de sempre. E entretanto, eu já adivinhava,
sabia mesmo, o Ministério está a encolher, a definhar, e aquilo era mesmo para ir tudo
prá sucata, assim, não se perdeu.
É nos negócios com o Sadrú, no equipamento que me entregam à
consignação, para venda, e que o Sadrú costuma adquirir depois, para despachar para
as províncias, que os problemas estalam. Estamos entre Julho e Outubro de 1991. E
pronto!... as minhas aventuras com gajas também não têm fim, tal como as
carraspanas da Célia, verdadeiras descargas emocionais. E há toda uma série de
fenómenos em cascata.
Eu arriscava-me nas contas, nos gastos. Contava sempre com o que aí vinha,
topam? É que desde a Beira, e após conhecer por lá o Director Mateus, da Emofauna,
com as boas ligações à TCT, eu esperava luz verde para ir filmar um documentário
sobre a tal caça aos búfalos em Marromeu, e ir ao arquipélago do Bazaruto onde aqui
a TCT possui instalações turísticas e viveiros para a criação e exportação de
lagostinha viva para o Japão. Esta outra reportagem vinha sendo combinada há meses
com o Luís Filipe Costa. Tudo se atrasa. Em Marromeu, devido à guerra, dois
pisteiros que partem para o norte de Sofala, para essa região, são raptados ou mortos
pela RENAMO. Já estão a ver o que me esperava e como iria ser recebido de ‘braços
abertos’ pelos meus antigos comparsas da guerrilha?! Bazaruto… quanto aqui ao
Bazaruto, por questões de logística da própria TCT, ainda não há data.
E não é só esta expectativa gorada que me torpedeia A ‘gestão’ deste meu
‘gerente’ africano e cabeça de ovo, o Patrick, conduz a endividamentos em cadeia.
Prazos ultrapassados, credores / donos do equipamento a martirizarem-nos a vida, e
os ‘clientes’ a fazerem-se de esquecidos, quando não, outras vezes, o próprio Patrick
rematava os negócios lá muito à maneira dele, a querer ser mais esperto que nós.
Aprende rápido, este gajo!

249
A falta de liquidez conduz ao risco, à alienação de material entregue pela
malta, maioritariamente esses regressados à força da ex-RDA, e induz-nos
pontualmente a vendas a preços iguais ou inferiores ao estipulado, do que eles
queriam ‘para eles’.
Estão já a ver a cena: atrasar os pagamentos, confiando ainda nos fundos a
virem das reportagens para a Emofauna (em que ano?...) e TCT, e que nunca se
realizariam, aliás. E os gastos são os mesmos, casa, água, luz, talho, peixe, mercado,
roupas, bebidas, cigarrada, garinas... Ainda, a gasosa para o carro, que também bebe
bem, mais do que eu, àquelas velocidades vertiginosas, e respectiva manutenção. Já
não há gasosa grátis, aqui. De vez em quando até cambio mais alguns dólares, vindos
de Lisboa juntamente com a roupa, jornais, tabaco de cachimbo e outros artigos
enviados pela família através do vector Embaixada e SNASP.
Resumindo, o negócio estava afundado mas isso não diminui a minha alegria
nem as voltinhas do costume.

A LUTA CONTINUA! O CAMPEONATO DE SAIAS PROSSEGUE: FRACA É


A CARNE
As solicitações são muitas. Tantas as tentações. Num dos paradeiros ou
pardieiros do Gipsy, o ‘Mundo’, e a que o velhote luso-australiano Gonçalves chama
antes ‘Imundo’, bem ao lado do Carlton e defronte do Submarino, deparo com duas
maninhas ou meio-irmãs como é habitualmente o caso, ou tão só amigas. ‘Não! Não
vamos para o Carlton, dizem, vamos para nossa casa!’ E é a rir que confessam não ser
irmãs mas muito, muito amigas. É quase na praça Mac Mahon, hoje Praça dos
Trabalhadores, junto aos Caminhos de Ferro. A flat é no prédio da Anfrena, quarto
andar. Sem elevador, mas o esforço compensa. As duas ao mesmo tempo? ‘Sim!’,
respondem sorridentes. Sim! E nem vale a pena contar o resto do filme, não é?
Outras houve que não fizeram muita história, como uma tal Flávia, amiga dos
Banús, e que encontramos na Feira Popular. Reboco-o para o Zambeze, para o
‘matadouro’ da Dona Ester. ‘Uma muralha de carne’, esta Flávia, é um tonel de
chicha. Alta e imensa em cintura, coxas, ancas, as tetas então, uns igloos, e no
entrepernas há ali um delta que ombreia à vontade com o Nilo. É carrossel para uma
volta só.
O hotel do Gipsy, o Carlton, torna-se ‘matadouro’ principal. É onde venho
aterrar com a ‘Camponesa’ como a trata o Gipsy, uma gaja branca filha de
portugueses que se deixou perder por estas terras e fugida agora dos confins da
Moamba devido à guerra. Uma aprendiz destroçada, sem graça, com a cabeça
ausente, a pensar talvez na próxima morteirada. E da rua da Resistência (Heróis de
Marraquene) esquina com a antiga rua de Bragança, vem a ‘Miúda’, a Lena, já vinte
anitos, mas é baixotinha. Uma amostra de gente, em tamanho. Mista, botinhas de
camurça castanha, um vestido mini que lhe aperta as formas levemente roliças, faz
sobressair mais ainda o terno par de pêssegos que orgulhosamente parece querer
ainda empinar mais. Esta mulatinha aprendeu antes os truques todos e não desilude…
Atrevida, quer vir a minha casa, diz, ao PH 7, até sabe onde moro: ‘Quando menos
esperas tens uma visita minha’, insiste ela, a provocar, ‘ainda vou viver contigo!’
Quase de joelhos, eu: “Lá não! Por favor! Queres que te matem, ‘Miúda’?”

Que mais querem em histórias atrevidas? A da gaja polícia de trânsito que me


está a passar uma multa de seis mil meticais por não ter triângulo? E eu a insinuar que

250
ela por outro lado deve ter um ‘belo triângulo’. A Filó, sim, a Filomena. E eu que
pego logo ali em duas notas de cinco, dobradas, e com meiguice lhe meto no bolso
sobre o seio esquerdo tendo todo o cuidado em acariciar-lhe o sítio do biquinho... A
Filó dá-me a morada, é ali perto, na Malhangalene, próximo da antiga casa da minha
avó. Amanhã de manhã está de folga.
Lá estou eu no dia seguinte. Ela de macacão azul cinzento. É alta e magrinha a
Filomena, cabelo curto, uma carinha de louva-a-deus. Levei-a os dois dias seguidos,
salvo outras aventuras esporádicas, para um quarto, nesse outro ‘matadouro’ sobre a
Casa Haffejee no topo da Karl Marx. É apertadinha esta Filó, apertadinha e seca, mas
só ao princípio, não deve rodar em muitas cowboyadas. Apertadinha e seca, mas
resolvemos isso já com um fenomenal cunnilingus que a humedece, salga e folga um
pouco, até a faz parecer agora estar a esvair-se em gelatina, a trimetilamina. Maresia.
Lubrificada que nem com ‘Castrol’ penetro-a impetuosamente, ela a agarrar-se com
braços estreitos mas fortes, pistões autênticos, o ritmo aumenta mais e mais,
passamos o pico, o orgasmo final conjunto, mantenho a velocidade bem acima do
limite, não acredito que esta Filó me vá passar uma multa por excesso de velocidade.
Arfa agora. Imagino-a assim, como que a fugir para o rubor sob aquela epiderme
castanha, bem lhe sinto o quente que emana do corpo, a testa, as tetinhas, estes dois
conezinhos bicudos que escoam o resto destes sismos que lhe dou, bicudozinhos e
perlados de suor, os pelos na linha média abaixo do umbigo colados ao corpo, e
imagino-a ela a agarrar sofregamente num apito carnudo. Parece ler-me o
pensamento, como me agarra terna no sexo e puxa, puxa sempre, faz-me subir até à
cabeceira, para umas apitadelas finais. Encosta à berma Filó que vou-me lavar, minha
querida agente tens um belo triângulo!

‘Business’… Negócios… Tenho que ir ver uns equipamentos à rua de


Nachingweia. É a ‘rua do quartel’ (rua General Bettencourt) por detrás da COOP,
que liga a Kenneth Kaunda à Kwane Nkrumah (Nevala). Cá estou no sítio, mas da
minha amiguinha nocturna, a Amina, que sei mora por estas bandas, não há rasto,
ficou só a recordação acidental de uma dessas noites pós-Beira com a Célia ainda na
casa da mãe. E se bem que ande à cata de equipamento, o filme dessa noite turbulenta
volta a desenrolar-se mesmo à luz do sol que inunda esta manhã ainda fresca… falte
embora o cacimbo nocturno, e a Amina também, toda ela cacimbosa.
Então foi assim: passava da meia noite e eu lancei-me à caça. Foi na Julius
Nyerere que a encontrei e que me contara onde vivia. Sei que é por aqui, pronto,
onde ando agora desesperadamente à procura como um predador, mas enfim, nunca
mais vi este passarinho de uma noite, só me recordo de eu já ‘tar meio envolto, então,
em etílicos vapores... ‘É para ir e voltar ou para dormir?’, indagara ela.
- O que quiseres... queres ficar? Estás à vontade... ‘Hummm... Está bem!’, e o
está bem era ‘para ficar’.
Mas nem esperou até chegarmos a casa. Era ainda o tempo do Lada com
volante à esquerda e ela encontra uma segunda alavanca de mudanças entre as minhas
pernas. As calças chateiam-na e ouço, sinto o zip a ser aberto. Vamos na rua de
Nevala e sinto o pénis molhado pelos lábios, pela língua mexida, a ser engolfado pela
boca dela, e como um sempre em pé, um boneco de mola, o membro enche-lhe a
boca de carne inchada. É assim nestes preparos que batemos a curva para a ‘rua dos
quartéis’. Vou na brasa, só quero é chegar à COOP. ‘A casa! Ao quarto! À cama!’
Inundar esta gaja toda... encharcá-la... e ela entretanto já aqui a chocalhar-me entre as

251
pernas, agora são as mãos que não estão quietas, agarram sempre, mais abaixo, o saco
‘deles’. Aperta-os devagarinho. ‘O que é isto...? Na estrada! O que é aquilo ali à
frente?... As calças. A estrada. O mostrador, 110-120 Kms/hora… As sentinelas à
direita na porta do quartel... O cão! Os cães!!! No meio da estrada!!! São quatro, em
círculos, aos saltos, no meio da rua, a orbitar uma fêmea como qualquer atractor
matemático. ‘Impossível! Não não não! Não travar! Não curvar! A esta velocidade
não! Aguentar!’ Berro. Felizmente que ela tirou a boca, assustada. Sentimos a pancada.
Várias. Trituramos carne, ossos... gemidos logo esmagados. Não páro, abrando só
levemente. Na porta de armas do quartel está tudo na mesma. Deixou só de haver
movimento no alcatrão, no retrovisor há uma mancha horizontal que se desvanece ao
fundo mas a atenção logo vai para o guarda-lamas que solta agora um gemido
horrível, algo está a roçar o pneu. Viramos à esquerda na Keneth Kaunda, Vladimir
Lenine, casa. Puxo para fora a chapa do guarda-lamas amolgado, endireito-o. Pneu
fodido! No dia seguinte falam-me em três cães e uma cadela mortos, despedaçados
‘por um selvagem’...
Casa. Quarto. Cama. A Amina é profissional disto. Acaba o que vinha a fazer
já no carro. Quer tudo. ‘Eu a ela’, pede-me então, que aceito, sorvo-a
desalmadamente. Eu depois em cima dela num atraque clássico. Por fim termina
como começou em renovado fellatio para adormecer meiga, ancorada aos meus
braços. Até que mansamente, com um beijo húmido, penetrante e salgado,
desaparece-me ao fim da madrugada dissolvendo-se por entre a semi-consciência em
que pairo neste meu torpor etílo-sódico.

Como já devem ter topado, parte deste livro é também uma curta e singela
homenagem, na medida do possível, a todas as namoradinhas deste período 1988-‘91
que encontrei em Moçambique e de certa forma marcaram essa fatia da minha vida.
Há todo um rol, algumas repetições. Como a Ana Paula... esta Paulinha que tanta
volta me dá à cabeça. A irmã da Gina. Priminhas da Célia… e eu que não perdoara, e
enrolados que já andámos uma vez… bom, vêm à COOP visitar-nos.
A Ana Paula de novo surge num conjunto amarelo, amarelo creme: saia pelo
joelho, desta feita. Estamos a meio da tarde. Depois, bem, seguem-se uns copos bem
batidos como é de esperar. A Célia aviada, a Gina aguenta-se tal como eu, e a
Paulinha assim-assim. Há tempo ainda para um curto lanche. E eu não tenho culpa,
mais uma vez. Provocação-Tentação. O binómio fatal irrompe quando menos se
espera. O lanche vai animado, umas bifanas primeiro, depois o bolo, a Célia numa
ponta da mesa a tagarelar com a Gina, e a Paulinha à minha frente, mãos baixas
agora, parece revolver, alisar (ou enrolar?) a saia, mas volta à cerveja com a mão
esquerda no copo. Pelo canto do olho vejo que se torce, o braço direito sempre em
baixo... e a mão dela que desaparece assim, parece ir mais abaixo, escarafunchar...
Esqueço-me de abocar a caneca. Depois, levanta-se do lugar para cortar e oferecer-
me uma fatia de bolo com essa mão... leva-ma à boca... ‘Não gostas?! pergunta
matreira, desafiadora, os olhos lampejantes, implorantes... ‘Está bom! Cheira!...’, o
dedo!, quererá ela dizer. O cheiro inebriante que me assalta e logo reconheço!... O
cheiro ‘dela’! E enfia-me o pedaço pela boca, dedo e tudo, ‘Vá!’... e eu, eu quero este
dedo! Eu quero a Ana Paula! Eu quero de onde veio este dedo!
Ofereço-me para levá-las a casa. A Célia obviamente já não está a postos para
a descolagem, como eu calculara.

252
Torres Vermelhas. Claro que é para subir. A Gina, cúmplice, escamoteia-se no
seu quarto. Mais ninguém em casa... e eu com a Paula. Enfim, sós, uma vez mais…
Estou já despido, ela puxa o vestido por cima da cabeça obrigando-me a
lambê-la toda, mamas, umbigo, faz-me espetar a boca sobre o clitóris torneando-me a
cabeça e, com as mãos na minha broca, e depois na nuca, quer que eu a encha com a
língua. Eu sobre a cama, de costas, é ela que me monta agora, que se baixa depois e
me sorve o órgão viril, volta a pôr-se de novo como numa sela, as pernas abertas em
ângulo largo, eu vejo apenas uma gruta rosa e o clitóris curto, um grelinho bonito e
todo molhado que ameaça escorrer. Não está toldada a Paula mas tem os olhos
provocadores, semifechados por este êxtase, prazer intenso... E de uma assentada
traz-me para o chão alcatifado, põe-se de gatas, de joelhos, convida-me a montá-la
assim ‘na cona!, roga, assim, assim’, à canzana, em suma. Pede-me de joelhos, não é?!
Sacrifico-me. De joelhos, também. Uma mão no chão, a outra auxilia o membro já
oleoso na penetração e ampara-lhe agora as maminhas. Ela morde-me de levezinho o
braço. Vira a face para trás, para me mirar na atracagem, com aqueles olhos
amendoados tão implorantes e ávidos.
Volto a tirar o pénis com um ‘flop’ húmido ao despegar-me desta ventosa
macia. Ela tossica agora e perscruto aquela mucosa rosa que se agita como o interior
de um pequeno fole. Num esforço, distensão, faz sair a mucosa daquela entrada
erógena, quase a revira do avesso para que a penetre mais facilmente depois, tudo
aquilo me envolve agora, como que se agarra já ao meu membro e o puxa, faz com
que a conaça o sugue para dentro dela. Penetração total, no âmago da Paula, que
geme, ronrona, e quase uiva ao se desfazer num espasmo, mais, espasmos contínuos,
contorções, contracções que ameaçam estrangular a minha virilidade. Retenho-a,
puxo-a ainda mais para mim pois ao mesmo tempo aumento a inundação dela
sentindo-me borbulhar no seu interior em franco dilúvio. Como vamos acabar isto?...
Mas tem que ser.
À porta já, encharcados em suor, em fluidos corporais, damos de chofre com
a Gina, trocista. Há quanto tempo está aqui? Foi atraída pelos estertores finais do
acto? Fizemos assim tanto barulho? A Gina parece cheirar-nos, espera trocista que
nos lavemos... Eu ainda hoje penso que queria juntar-se à festa... Passo-me por água à
pressa. Prometo as mechas para o cabelo à Paulinha e chego ao carro. Finjo ajeitar a
jante, pego no pneu, passo as mãos pela borracha suja. Finalmente chego a casa.
‘Atrasadíssimo! Cansadíssimo! Mais um furo!’, exibo pesaroso as mãos medonhas. A
Célia não se ri e só vira costas: ‘Andas outra vez a fazer muitos furos, ultimamente.’

COMO OS NEGÓCIOS DESCAMBAM E TEMOS AS ‘GANGS’ E A BÓFIA À


PERNA
Voltamos à história dos negócios? Só para aliviar um pouco a temperatura.
Resumindo, estava mais no fundo que o Kursk... Os ‘donos’ do equipamento, ou
‘otários’, começavam a tocar à campainha, às vezes logo a partir das cinco e meia da
matina, e isto prolongava-se até à meia noite: ‘O dinheiro ou o aparelho!’ é o slogan
preferido. Às vezes até era eu já a fazer a frase, ‘É isso não é?!’, concluía eu. ‘Siiim!’,
eles. A polícia civil já ameaçava, mas sem muita convicção. Tudo se precipita com
mais uma história do tal puto bandidozeco, o Cajito, que veio vender cassetes vídeo
de novo roubadas e que eu já vendera até, ao Khan, e tive que recuperá-las. Cassetes
que nem me interessavam os filmes que tinham a bordo. Mas a gota de água foi
mesmo a ‘cabala’ de uma câmara vídeo.

253
Então, é assim: tínhamos ido buscá-la, essa malfadada câmara, ao bairro do
caniço nos confins da Malhangalene. Era mais um jovem regressado da ex-RDA e o
gajo estava a pedi-las. Queria mesmo uma cabeçada destas. Então, um milhão e
quatrocentos por uma merda de marca esquisita, desconhecida... E revende-se por
quanto? Irreal! É cabeçada que o cabrão quer, não é? A fazer-me perder tempo…
uma anedota! Eu e o Patrick convidamo-lo a entregar à consignação, e eu garanto: ‘O
que é isso, eh pá! O que é isso, pá? Uma câmara de vídeo... Ninguém desaparece com
isso... Não é nenhum motor de um MiG pois não? para vender na África do Sul...’ A
câmara trocou de mãos.
Bem, por esta altura já tínhamos à perna o ‘gang’ do Santos, ‘gang’ de
assaltantes terrível que nos havia confiado uma aparelhagem completa e a que já
déramos sumiço, vendêramos e comêramos a nota e o Santos e escumalha adjacente a
berrar e a ameaçar à porta. Depois, tínhamos o ‘tio Mala’, como lhe chamávamos, um
gajo quase cinquentão. Vinha pedir a nota, o dinheiro, mala, como se diz em dialecto,
de uma TV que trouxera do ‘John’, as minas de ouro da África do Sul. Dizia ‘mala’
‘mala’ mas já aprendera também: “dinheiro ou ‘parelho’!” Bom, isto vai aquecer!
O ‘Pata de Galinha’, com uma doença dérmica numa das mãos, habita no PH
8, prédio ao lado, o mesmo das nossas amigas Paulinha e Marisa. Trouxera um vídeo
da RDA que ‘busináramos’ já e pagámos às prestações, seis ou sete, muitas, ele à porta
a chiar constantemente à hora do jantar. Um outro, Joaquim, desengonçado e
pançudo, começa por estacionar lá em baixo desde as cinco da manhã. O diagnóstico
é grave também: o vídeo e TV a estas horas já devem estar na Zambézia profunda, há
semanas que isso foi para o Sadrú. Não desarma, este Joaquim: um entardecer
pacífico estou eu a ver videoclips descansadamente, abancado no sofá ao pé da porta,
mesinha do vídeo ao lado, TV em frente, pilha de cassetes aos pés... bradaddbbann!!!
Mais uns toques inamistosos à porta seguidos de campainhada ofensiva. O Samuel
deve estar já lá em baixo nas últimas baforadas de algum cigarro e não subiu ainda
para vir buscar nenhuma das ferramentas. A Célia abre... O Joaquim vem exaltado,
vejo mais uma cabeça, um irmão, quem quer que seja é demais! ‘Aparelho ou
dinheiro! Dinheiro ou aparelho!’
Falo-lhe em Antonovs, em províncias e dificuldades, é guerra irmão!, mas ele
quer passar à acção. Baixa-se e começa a desligar cabos, e aquela merda, ‘chuva’ no
écran, ‘snow crash’, não é o meu clip preferido... O que é que este cabrão está para aqui a
fazer?! Olho de esguelha para a Célia: ‘Está no guarda-fatos, pronto! Traz lá aquilo!’
Ele, se calhar, pensará estupidamente que ‘aquilo’ é a nota.
Linda menina! A Célia percebe, sorri cúmplice. O meu sorriso, esse, consigo
travá-lo eu. Está o macaquito agarrado já ao paralelepípedo negro baço. Num
relâmpago, o cabrão ainda nem alçou o pescoço para ver, está a Célia ao pé de mim,
atira-me a Kalash que apanho em voo: ‘Tira daí as patas meu ganda-filhodaputa! Rua!’,
segurança destravada, bala no sítio, selector para rajada, ok, ‘Corto-te já ao meio seu
cão!’, um pontapé na pançazeca e vai de cú porta fora. Braadabbamm!!!
– Próximo!, eu, já a brincar. ‘Vá, miúda, traz aí mais uma Amstel! Estas
merdas fazem-me calor… pôrra!!!’
Até os videoclips ficaram por aí, hoje, e quando volto a mirar o televisor, lá
para as tantas, está já a Célia com uma daquelas fitas ‘choque’, o ‘Canibal Feroz’ ou
coisa parecida, e eu meto-me a corrigir mais uns acrescentos manuscritos ao ‘génesis’
deste livro sobre a RENAMO, interrompido por olhares fugazes ao écran onde só

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passa porcaria: ‘.... e então não havia aqui uma família de canibais? Havia, havia sim,
mas nós comêmo-los todos a semana passada!’. Instrutivo!

Há ainda um filho da noite, nosso conhecido de locais como o Madjedje. É o


Steffani, moçambicano, apesar do nome, negrão alto, vinte e poucos anos. É um de
muitos irmãos, muito parecidos todos. O pai é juiz mas o Steffani até já se meteu em
várias cowboyadas, grupos bravos, enfim, como o tal do Qui-Qui e companhia,
‘drugs’ etc. e tal. Entrega uma TV a cores, grande, e que o Sadrú muito agradece, ‘bom!
Bom TV!’, deve estar à rasca de guito o Steffani, e agora, a merda do guito, hein, que
não chega das províncias? Depois, depois de muito martelar à nossa porta e bradar,
ouço do outro lado as palavras ‘pai’... ‘é juiz’ e mais adiante ‘morte’ ‘matamos’… ‘a
tiro’, e rio-me. Mais tarde lá se contentará com um terço do estipulado e uma antena
de TV para captar a África do Sul. Com o quê, não sei!
É extensa a série. Estes foram os mais marcantes, porém. E tudo isto é pois
interrompido pela tremenda história da câmara de vídeo, um milhão e quatrocentos
mil meticais, pedira aquele coiote. O Júlio Rittos, dono da Filmarte, na 24 de Julho,
portuga, fica com ela por setecentos e cinquenta mil. Paga parte em dólares parte em
meticais. Destrocamos dólares e cheque. E agora? O Patrick, contentezinho com os
seus 10% como sempre. Vamos pensar nisto para o Picolé! Arejar! Umas Amstel bem
geladinhas ao que a Célia não diz que não. Foda-se! Roubaram-nos o carro, não é
Patrick?! Levaram a merda da câmara agora, o carro ali estacionado à frente do
Continental, junto à Rifa do Desportivo. Cheio de marginais o sítio... Não é?, o
Patrick, lentamente porém, faz-se luz naquela cabeça de ovo negro: ‘Compreendo. É
verdade, até vi uns riscos na bagageira, forçaram aquilo.’
Manhã seguinte, a má notícia ao coiote. Vê logo pela nossa cara de caso que
as coisas não correm bem. O ferro na sovaqueira, uma Makarov, mora aqui contra
qualquer loucura. ‘...e é assim, pá!, concluo, uma merda para ti, levaram-me também
uns cheques e cassetes, já apresentei queixa...’, mostro-lhe o papelinho sebento
passado pela esquadra da baixa, de onde vimos, e com o carimbo da Malhangalene,
onde também participo e explico ‘a situação triste’.
Parece silvar, sopra, mas não há cachalotes em África pois não? É só este gajo
magrinho, nervoso, como se agitado até ao osso pela suave, até, brisa matinal. ‘Vou-te
mantendo informado, acrescento, o máximo a fazer, posso dar-te 5% por mês e é de
todo o coração, com a melhor boa vontade, topas?!’
O tipo parece que não se ficou. Conhece um certo inspector Bazar, da PIC,
que serve as esquadras da Malhangalene, Acordos de Lusaka e outras. No Sábado
correm os ‘dumba-nengues’ todos, a 24 de Julho... a Filmarte... as montras da
Filmarte... as ‘novidades’ da montra da Filmarte... ‘A câmara! A minha câmara!!!’ O
Bazar conta-me depois que o gajo berrava que nem um cabrito a ser morto. Em
resumo, o gerente da Filmarte, um africano, vai logo de cana. ‘Como? A quem
comprou aquilo?’, perguntam-lhe. Vai ‘dentro’ de Sábado até Segunda-feira.
Segunda à hora do almoço, efectivamente, a Célia comunica-me logo ao voltar
eu para a comezaina, chegado dos meus giros habituais: ‘Ligaram da esquadra daqui
da Malhangalene, para tu lá ires já, ou contactares...’ Contactar! É melhor ‘contactar’.
Telefonar. Catorze horas batidas, e ligo: ‘Então, já há boas novidades da câmara?’
Realmente havia, contra todas as expectativas. ‘Temos aqui umas informações
interessantes que deve querer saber. Pode vir até cá?’

255
Cinco minutos desde casa. O Bazar, no primeiro piso. Directo ao
assunto: ‘Com que então roubada! Apareceu na Filmarte, pois então não tinha que
aparecer? Você vai ficar preso, não é?! Como vamos resolver isto?’
O microfone externo da câmara ficara até com o Gipsy que tinha um
comprador para isso e o Bazar aceita que eu vá até à baixa recuperá-lo. Regresso com
a peça. ‘Vamos resolver isto a bem, okay?’, propõe ele. Concluindo: quem fica dentro,
da minha parte, é o Patrick, ele é que fizera o negócio com o gerente da Filmarte, foi
coisa entre gerências. Uma semana à sombra, até eu pagar ao Bazar a ‘fatia’
correspondente ao seu trabalho, luvas!, ao tempo despendido. Faz-se cobrar
igualmente com grossa fatia ao regressado da ex-RDA para reaver a câmara. E nós já
noutra cabeçada qualquer para compensar a quebra de rendimentos, a ‘fatia’ do Bazar,
e sobra o Rittos, desgraçado, que fica a arder e bufa para ali enraivecido. Quem paga
ao Rittos? Leva um cheirinho e a promessa do resto.
Estas peripécias fortalecem até o relacionamento com a PIC. Temos amigos!
Uns amigalhaços que se tornam o Bazar e o inspector Búfalo, que é o responsável
máximo da BBC. Não, não é a do Big Ben, a BBC de Londres, é a Brigada de Busca e
Captura da PIC. Ajudo-os por vezes, até, com a viatura. Os gajos outras ocasiões
preferem as motas potentes, as Tenerés. O Patrick rapidamente aprende o jogo deles:
‘chular’ vítima e delinquente. Cabeçadas também, muitas, quando calha.
Um dos agentes tem um familiar na Petromoc da Matola, é guarda junto ao
terminal petrolífero. A Petromoc. A antiga Sonarep, onde o meu pai trabalhou de
1960 a 1981. Entramos na zona de armazenamento junto ao terminal marítimo, isto a
meio de uma das tardes, e chegamos a uma residência com jardim fronteiro, a
moradia do guarda. É para levar um bidão cheio de gasolina. Pela ‘porta do cavalo’,
topam? A Polícia de Investigação Criminal em cambalachos destes. O Patrick torna-se
agora aprendiz de extorsionista com estes gajos. Tem bons mestres. É como
funcionam ocasionalmente, estes tipos da BBC: para não deterem os visados,
efectuam-se acordos. E deita-se mão a tudo o que dê lucro.
Fazendo então o somatório dessa semana agitada, à pala da câmara, passámos
a conhecer bem, bem demais e sem querer, a mãe do Patrick. Ao fim do terceiro dia
da detenção dele veio estacionar nas dependências da flat, ali, espojada no chão, eu
com o pé a apontar, a perguntar à Célia ‘o que é aquilo ali?!’, e a Célia a puxar-me de
lado e a contar quem é aquele réptil gordo. Bom, o Patrick que não se queixe que isto
são ossos do ofício e todos os dias cumprimos a nossa excursãozinha nocturna: íamos
à esquadra bater umas cervejolas com este refém que nos fizeram. Com ele e com os
guardas. Estava tudo OK! Só um sacrificiozinho mais, não é Patrick?! No fim tudo se
arranjou a bem, recebemos de volta a minha própria câmara vídeo que o Bazar
mantivera como ‘refém’ material. É assim que as coisas aqui funcionam.
Claro que há mais histórias na esquadra, como é que se põe um gajo teimoso
a palrar, os tais métodos que eu gosto sempre de ver e comentar. Aqui na esquadra da
Malhangalene a brincadeira preferida chama-se ‘Qual foi o peixe que comeu a bolacha
do camarada comandante’! É assim: há um jardim pequeno na parte da frente da casa,
com um laguinho ao meio. Alguns peixezecos laranjas ou dourados tentam nadar na
água já acastanhada. Logo para começar, o suspeito leva uma bordoada ou bofetada
que o aterra entre a sebenta peixaria policial. ‘’Tás-a-ouvir-pá! Agora tens que
descobrir e agarrar qual foi o peixe que comeu a bolacha do comandante!’ Lá anda o
desgraçado a patinhar no lodo, já todo encharcado e cagado, porcaria e peixes a
escorregarem-lhe das mãos, até que feliz, de gatas, de joelhos, escorrega, reequilibra-

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se de pé, ostenta risonho, orgulho total, um peixito a estrebuchar, a querer escapulir-
se do aperto das mãos: ‘Apanhei! Está aqui!...’ Catrapaz!!! Uma ganda bofetada e
despenha-se de novo no lodaçal: ‘Estás a ouvir pá! Esse está inocente! Apanhaste um
inocente! Depois dizem que a polícia é que anda para aí a prender inocentes meu
cabrão! Não foi esse o peixe que comeu a bolacha do comandante! Paff!’, outra
bofetada. ‘Procura!!!’ Aprende-se muito nestes fins de tarde ou noitinhas desta
esquadra da Malhangalene. Fazem-nos bem estas visitas ao Patrick!

A ‘conversa’ com a Célia… A conversa necessária com a Célia. Não só pela


situação imediata como quanto à evolução política que o Cardoso tem agora
abordado. Claro que eu podia ficar em Moçambique. Eu até fora afinal um dos que
fizera parte de toda a conjuntura conducente à nova fase política. Mas não havia nada
de estável. Que emprego ou subsídio se pode garantir nesta ‘tempestade’ ou, no
mínimo, nessa frente fria de novo clima político que se aproxima? O Chanjudja
também soçobra a olhos vistos, ele e o ‘Música’, a ele a hipopotamozinha do jipinho
azul e dona do Satélite papa-lhe o guito todo. O pouco que ainda fazia. Era
insuficiente o montante com que partíramos. Eu, pelo menos, tinha ainda a opção de
uma retaguarda, de poder regressar a Portugal. Com a Célia, se ela quiser. Se tudo
falhasse, havia a família ainda, não é? Duas coisas a fazer: alugar a flat, ‘businar’
(vender) o carro. Liquidar dívidas ao pessoal do equipamento. Bem, esta última
parte... Vou mas’é dormir! Mas o sono pouco mais trará que pesadelos, e despertares
intranquilos. Já sei como é.

ESTES LOUCOS DESPERTARES...


Os despertares à Makwakwa… O sonho, de novo o mesmo sonho recorrente, da
gruta, de entranhas telúricas. A caverna sombria. Húmida, escorregadia e limosa que
ofende e protege. Um verme gigante nela, e por ela domesticado, que com ímpeto
nela entra e se recolhe, regenera. Adormece sempre para um novo despertar, desafio
sem fim. ‘Ela, a que domina o dragão marinho!’ Atiratu Yammi, a Tannit cartaginesa,
Ninhursag, Ishtar, Asherah... quantos nomes, na lenda, desde os primórdios ou
confins do tempo, desde a noite abissal, desde que o tempo é tempo e tudo criou...
Numa (re)iniciação cíclica voltará a caminhar para a luz, ele. A luz que o fará retomar
a forma longa e cheia. Serpente, cobra de vida que se faz venerar. Verme gigante de
carne que traz à mente as formas reptilianas de Dune, de Frank Herbert. A caverna
ama o verme. Alisa-lhe rugosidades nas suas próprias pregas. Suga-o e incha-o. Alisa-
se a si, caverna viva. Acomodam-se e partilham fluidos nesta osmose, alquimia sábia,
simbiose carnal. A caverna ama-o e precisa dele. Anseia, sabe-o, o sonho di-lo. O
verme cá fora combate, disputa território. Mas no seu interior é dócil... Dócil...
‘Doçura... Mel...!’, ouve-a terna, murmurar, essa voz com uma entoação de Nampula.
Não ataca nada na gruta, nesse rego de maresia, cavidade magmática, acolhedora. Ele
pertence ali, sabe-o também. Quando se retira é como a do caracol a baba desta
‘nhoca’, cobra gigante. A porta da gruta é agora uma rosa nacarada, uma ostra, que
traz à memória programas da National Geographic TV algures no Pacífico. É sagrada
a baba desta cobra. Preciosa. Preciosa e perigosa... Há um tchap-tchap-tchap que
lembra a lancha da Catembe, embalador e hipnótico, confortável, transmitindo
estímulos, sentimentos como os de pequeninas ondas aflorando corpos tensos, vagas
que se vêm esvair na orla de uma qualquer praia tépida e tranquila por entre o odor

257
salgado. A maresia. Gruta. A cobra que se afasta regressa à árvore e mais uma vez se
enrosca ansiando novo recolhimento às profundas cavernas.
De repente a paisagem transmuta-se, quem domina o verme são turbas que se
agitam cá fora na luz. O verme está cá fora, iluminado no seio da multidão ululante
que gira em espiral imensa em torno de enorme construção zigurática. Sete andares
de pedra trabalhada e escadaria, lápis-lazúli persa, blocos argilosos do aluvião de entre
Tigre e Eufrates... Como um obelisco inchado. O verme desapareceu, fundiu-se,
parece ter-se transfigurado neste templo-obelisco apontando os céus. Os Céus, ‘An’,
no seu topo brumoso onde astrólogos esquadrinham o alto, especialistas agrícolas
vigiam as nuvens e o tempo, cuidam da fertilidade boa da divindade Terra, ‘Ki’.
Inanna! Inanna!, as vozes guturais em uníssono fazem troar o chão. Mas pululam já os
berros de novos tempos cortando esse trovão: Ish-tar! Ish-tar! Mar-duk!, gritos
compassados, mais fortes de minuto a minuto.
Entregam-se a uma celebração orgíaca gigante, ‘espalhando e suplantando o
Caos’. Está numa Mesopotâmia em transição, o sumério atropelado pelos semitas,
amorritas e babilónicos. Etemenanki, a ligação Céu-Terra, o obelisco zigurate ergue-se
perante os seus olhos, faz parte dele. A torre. À imagem da carne criadora. A torre,
também, simbólica da confusão das línguas, raiz da diversidade. No local de uma
encruzilhada espacial e temporal de civilizações, carrefour cósmico.
Há muito que Enki enchera o Eufrates, que inundara o desértico Dilmun
dando-lhe a sua água da vida. Na encruzilhada e confusão de línguas a lenda sobrevive.
A torre, o marco, é testemunha, vê dissolver-se uma generalização primeva da
glossolália, a língua subconsciente, que se misturava até aqui com a prática verbal
quotidiana. Mercadores vêm e vão a Melukha, Dilmun... e ‘confundem’ mais línguas e
dialectos. Do sul, uma escrita nova, sinaica, suplanta pouco a pouco a suméria
pictórica, até explodir alfabeticamente na Fenícia. A grande confusão e balbúrdia! E
estão todos ali agora no acto de sagração, de cultuar a Criação, Terra, Céu, Mar,
Caverna, Serpente, Árvore, Colheitas, Gente, Nuvens, Tempo... Que os deuses sejam
favoráveis! Há que imitar a Criação inicial de todo o Universo e de todo o Tempo,
repetir a cosmogonia... cultualmente, pagar o tributo, agora. Cortesãos e cortesãs
acordam para o ritual, toda uma prostituição cultual que se oferece até a quem mora e
a quem passa. Honrar Gruta e Serpente. Terra e Céu. Côncavo e convexo carnais,
afinal. Será sempre assim...
A cerimónia finda, os archotes incendeiam-se para a noite inundados desse
betume mágico e escuro que nalguns poços brota do solo. O negrume em breve
beijará o horizonte leste. Hamurábi esfuma-se em nuvem de poeira na sua carruagem
em fogo. Deserto. Verde mais adiante. Rio. Margem. A noite fica lá para trás. A
margem. Ponte... Sabe só que aquela é a ‘Ponte Dona Ana’... ponte do Zambeze...
Ana... Paula! Atravessa uma imagem da Paula, a ponte penetra protoplasma, carne,
cavernas, até uma margem que não vislumbra nítida ainda, a Dilma agora, cujos seios
morenos fazem de amuradas gigantes que sustêm o tabuleiro púrpura e passo-lhe
agora os mansos caracóis púbicos, o ‘V’ de um entre pernas amplo e molhado, e logo,
espetado, surge o dedo cheiroso e húmido da Ana Paula que parece chamar, atrair
para dentro da gruta rosada da sua nave carnal, catedral telúrica e protectora que se
desenha no horizonte que corre para abocanhar-nos, mas que se transforma já no
interior da Rosa… Um caleidoscópio lúbrico como no 2001 do Kubrick. Tronco
tremendamente erógeno, que aponta nesta altura à boca toda aberta da Lulú que vem
abocar o capôt tornado em fogo rubro deste bólide. Trava! É com o pé a estoirar que

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trava a fundo e detém a carruagem, o Langley. Ainda é o meio do rio... porém a água
leitosa ergue-se do leito do Zambeze em muralha prateada e luarenta que teima em
escorrer grossa, o interior começa contudo a solidificar-se num betão estruturado. O
Zambeze é já um prédio. À vez, é casa e protecção, caverna artificial. Torre de betão,
verme mutante que se espalma, ergue e desafia o Céu.
Acorda-se... Não é o sol mesopotâmico ou a luz que entra pela greta exsudada
de uma caverna. Tão só a claridade de um novo dia que se coa pela janela
escancarada. ‘Dormiste mal?, pergunta ela, a Célia, sempre a mexeres-te!’
– Restos de paludismo!, ‘o verme que desperta! É dia de ir ao Zambeze
aplacar a serpente...’ Nova missão com a ‘sacerdotisa’ Rosa…

Num último serviço humanitário ia quase escrevendo o ponto final das


minhas aventuras. Os manos do paraquedismo, Danúbio e Octávio, mais a namorada
deste, vieram a uma derradeira sessão vídeo na COOP. O Octávio carrega um
problema. Ele e a pequena: a tipinha havia engravidado, andam os dois nas LAM,
funcionários da companhia, e frequentam agora um curso de pilotagem comercial que
não pode ser interrompido. O Octávio engravidou-a ou ela deixou-se engravidar,
enfim, há que resolver o assunto.
Vêm-me pedir boleia, agorinha mesmo, até à dona Helena, enfermeira do
hospital central, uma conhecida ‘desmancha’ que habita a moradia que nos tempos
coloniais fora a esquadra da PSP da praia, defronte ao Miramar e à entrada do parque
de campismo.
Quando chegamos ao Nissan turbo estamos todos bem bebidos, muitíssimo
bem regados, cerveja, principalmente. ‘Levar a carruagem de fogo azul até ao limite!...’
Já na 25 de Setembro, à tarde, frente à Facim batera os 190 à hora... Vejo agora o
ponteiro a avançar, a teimar sempre, a rodar mais para a direita, 185... roça os 190.
Ultrapassa a marca pequena dos 195 a caminho dos 200... Não! Não pode ser! É já o
último! O último quarteirão e o mais pequeno da Kenneth Kaunda! Pé a fundo no
pedal do meio, um silvo, chiar ganido, tremido, lembro-me do DC-10 a travar,
borracha queimada impregna o ar, não há distância suficiente. Com um estrondo
estamos aerotransportados, ressaltamos do passeio dessa curva, a Keneth Kaunda ao
fundo inflecte numa curvinha à esquerda para entroncar na Julius Nyerere e nem
tocamos na relva desse ‘V’, e este não é o ‘V’ macio e húmido do entrepernas da Rosa
ou da Ana Paula, é arredondado e arrelvado mas faz-nos saltar em ricochete, já
estamos perpendicularmente, pois, ao alcatrão da Julius Nyerere, com carros a travar
chiando à nossa direita, para aterrarmos enfim na rotunda central também ajardinada.
Do outro lado espera-nos o abismo, o precipício das barreiras que tomba literalmente
sobre a Penha-Palhota e a marginal. Os rasgos profundos dos pneus sobre a relva
roubam e comem energia cinética à fartazana, detêm os cavalos desta carruagem
louca. Não fossem africanos, o Octávio e namorada deviam estar pálidos a esta hora.
Da Julius Nyerere ergue-se um coro de imprecações em português e dialecto. Já aí
podia ter sido um acidente do caraças! Ou então, resvalado barreiras abaixo! Nesta
altura não é ocasião para arrepios, ter-se medo ou pensar. O motor funciona, o carro
mexe-se logo que engato a marcha atrás, volante torcido para a direita e de cauda
entramos na Julius Nyerere. Toca a pôr a primeira, endireitar o guiador e desandar. De
novo no fluxo! O vapor dos copos parece ter passado instantaneamente. Uma descarga
de adrenalina. ‘Vamos à Dª Helena?!’

259
EPIFANIA À VOLTA DO CASO EVO FERNANDES: A TERRÍVEL
REVELAÇÃO
Por esta altura em que se respira toda uma atmosfera de fim de festa, acaba
por ser já possível ligar uma série de peças anteriormente soltas. Esclarecem até
‘porque é que convém eu não estar ali’. Falam-me em segurança pessoal, em risco, e
num rol de todas as incógnitas que se seguem. É todo um edifício securitário que se
desmorona e é cada um por si. Uma era de desapontamentos em catadupa e também
tão fértil em confissões, esta, que a malta da ‘Segurança’ exibe quando me visita.
Altura de rasgar véus e desnudar a verdade.
E os velhos artistas que passam e não esquecem vêm sempre à tona nestes
tempos de exposições-choque, de efectuar sumários, totais e sub-totais. Contam-se os
que sortudamente ainda ficaram ‘deste lado’, do da vida, e os que mais ou menos
ingloriamente nos deixaram a meio deste complicado jogo, que cada um domina
apenas só em parte, numa fatiazinha estreita.
Não falta também, darmos um pouco de líquido licoroso ‘para os espíritos’,
vertermos cerveja, vinho ou whisky, para o chão, estejamos em terreiro, restaurante,
ou chão de parquet num apartamento, antes de entrar no miolo grado das histórias, da
torrente impetuosa da bebida, em cada uma destas sessões.
– Pois é, principio eu, uma das vezes, ‘a viúva do Mateus Lopes, já a
conseguiram colocar numa casa ou ainda anda por aí?’ Refiro-me à desgraçada
companheira do mais desgraçado ainda ‘enviado’ que pereceu juntamente com o ex-
embaixador Ataíde nesse freak acidente de viação muito mal engendrado lá no
Malawi, em 1987.
– Ainda!, e o ‘ainda’ quer dizer que ‘ainda não’.
E na ânsia de a copofonia se estender até ao jantar, jantar incluído, o Mula e o
Wate debitam o resumo da história, para espanto maior meu, destruindo uma das
vertentes maiores deste meu ‘factor humano’ com que eu alicerçara em grande parte a
minha decisão de voltar a Maputo, para a FRELIMO, uma vez que os sul-africanos
haviam liquidado a dupla que me apoiava, a mim e ao ‘CIMO’, e que batia o pé ao
Evo Fernandes…
– Não! Os sul-africanos não foram… fomos nós, a Segurança!
Claro como a água… nunca perdoariam a decisão do Ataíde em desertar para
a RENAMO. Demorou, mas chegou a lâmina da punição, o longo braço da
Segurança do Estado, clamando por vingança. E porquê também o Mateus Lopes?, a
pergunta óbvia que se seguia.
– Quanto ao Mateus, o José Alfredo da Costa, já havia feito o seu trabalho e
era um agente gasto, mais que descoberto e denunciado… um agente ‘queimado’. A
política é assim. O ‘job’ foi o verdadeiro autor do ‘acidente’ no Malawi. E nas bases
da RENAMO, por toda essa semana, foram mais uns quarenta à vida, eliminou-se
gente em postos sensíveis, transmissões, chefes de gabinetes…
– Resumindo, finalizo agora eu esta parte, foi o ‘job’, como diria o ‘Chico’
Mascarenhas.
E eles os dois a rirem-se e a uparem mais duas garrafitas de cervejola, a
servirem-se de uma pratada do jantar que discretamente aterrara: “Foi o ‘job’!”
– E o ‘Chico’?, creio que já estou mesmo provocador, agora, mas estes gajos
têm uma cara de já estarem eles também fartinhos disto tudo, o Mula ‘Vampirinho’,
miúdo e esquelético com a barbicha rala, o Wate de óculos à Trotsky, a meter o
gargalo da garrafa ‘Laurentina’ na boca, despreocupado…

260
– O ‘Chico’…, começa o Mula, com aqueles olhinhos penetrantes, a olhar-me
de baixo, embora estejamos sentados nós todos, mas é sempre assim, ele, a olhar de
baixo, “o ‘Chico’ Mascarenhas dava-se mal era com o vice-ministro. O ‘Chico’
continua a ser um dos nossos… ontem, hoje, e sempre. A RENAMO ‘desconseguiu’
conquistar o Chico.”
Essas palavras continuarão a ecoar mesmo através do frio abismo dos anos,
por mais de uma década… até um dia que volto a ver o ‘Chico’ de novo em Lisboa,
em 1993 e sei que ele ainda ‘é’ da RENAMO evidentemente, está na RENAMO, mas
muito possivelmente é ainda FRELIMO e ‘job’. O ‘Chico’, que sei constar depois do
corpo de deputados do ‘movimento’, já como oposição pacífica. O ‘Chico’, hábil e
versátil na (des)informação e no disfarce, enfim, o ‘Chico’ um submarino e uma
‘toupeira’ do ‘job’ infiltrando até aos dias de hoje as fileiras da RENAMO.
Matuto no caso… das duas, uma: ou tudo isto é verídico e os dois confiam em
mim… ou, nada disto é informação, pelo contrário, afixemos-lhe o rótulo de
‘intoxicação’, a contar que, indo eu aterrar em Lisboa, mais cedo ou mais tarde veicule
a frase de modo a chegar aos ouvidos da RENAMO e se queime assim, entre os seus
pares, o desertor ‘Chico’ Mascarenhas. Nada de novo, nestas técnicas. E
curiosamente, recordo as palavras de um outro Mascarenhas, o gordo agente da
DINFO, o Eduardo, meu colega no ‘O Século’, em Lisboa: “o vosso Chico, sei pelos
‘serviços’, continua a ser um membro do SNASP…”. E é óbvio que o ‘Chico’
estrebucha quando lhe conto isto: ‘esse gordo, pá, essa bola de sebo desse Eduardo
pseudo-jornalista, está a pedir é que eu lhe assoe o nariz ou dê um canhonaço!’
E para rematar, falta a ‘cereja no topo do bolo’, o caso Evo Fernandes. Exige
o sacrifício de mais meia grade de ‘Laurentina’, cervejolas geladinhas, tiradas a
transpirar da geleira, e que parece agora ali, se não a suarem em bica, a verterem
lágrimas por esta e por tantas histórias que macularam os últimos anos desta terra…
Fernandes… o fazedor de paz, como se pretendera arvorar, numa demanda
da paz que só conseguira traçar a via, um corta-mato, atalho célere, para a sua própria
paz eterna, tão antecipada.
A dupla da Segurança está de língua solta, em correria de tempos e cenários,
pródiga em reviver até, diria, todo o episódio… Será que extraem ainda alguma
satisfação orgásmica?, indago-me, ao rebobinarem esta ‘Idade de Ouro’ da máquina
de picar carne do Estado?
Ouço-os e sinto-me tombar num vazio, um vazio enorme, cinzento, uma
penumbra que enegrece cada vez mais e nega os azuis e verdes, os laranjas e dourados
desta terra… Deixam-me, depois, perco o contar dos minutos e horas… sozinho,
tento sintetizar, ordenar as peças que derramaram ali como chumbo líquido… claro
que já suspeitava, da maior parte do conteúdo deste odre de fel…
Até o próprio Evo Fernandes tivera já diversos contactos com um grupo
encabeçado por um tal Alexandre Xavier Chagas. Falo no Alexandre Chagas na parte
anterior deste ‘Renamo – Uma Descida ao Coração das Trevas (O Dossier Makwakwa) sobre
a delegação em Lisboa. O Chagas surgira-me em 1986 e ‘87 como representante de
células clandestinas na zona sul do país, e Maputo, e que pretendiam desencadear
ataques na cidade contra cooperantes de Leste e gente do Partido. Esse Chagas, ele
também uma chaga, com uma vista apenas e de temperamento sádico, e fora membro
da OPVDC colonial (Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil) em
Cabo Delgado, sendo dado também como colaborador da PIDE.

261
A história é velha, agora. Venderam ao Evo em finais de 1987 e início de ’88,
a lenda de uma ligação ao major-general Bonifácio Gruveta e à linha pacifista dentro
da Frelimo. Tentar-se-ia uma reunião mais abrangente, diziam, no futuro próximo,
para perto de Évora, com mais gente da Renamo, etc. e tal. Mas para já, em Abril de
1988, o Chagas telefona ao Evo e combinam um jantar no conhecido Beira-Mar em
Cascais, junto à Rua Direita, de onde iriam depois, diz o Chagas matreiro, a um
encontro com o Gruveta. O Evo atira-se a um dos seus pratos favoritos, angullas, e
uma vez a comezaina terminada entram num Citroen DS conduzido por um tal
Messias e ainda na companhia de um outro acólito do Chagas.
Em resumo, o corpo, baleado, seria descoberto lá para os lados de Sintra e da
Malveira da Serra, poucos metros distanciado da estrada, meio coberto pela
gabardina, capuz sobre a cabeça. Segundo se apurou, os disparos, seis, foram todos
feitos dentro da viatura, pelo próprio Chagas. Alexandre Chagas e os outros dois
suspeitos põem-se em fuga.
Ele, será apanhado em Marrocos poucos dias mais tarde.
Sei, anos depois dos acontecimentos, como um pescador da Costa de
Caparica, amigo dele desde há muito, é que lhe dera boleia no seu barco. Era também
na Costa de Caparica que Alexandre Chagas ficava quando de passagem por Portugal,
zona onde fizera alguns amigos. Quem conta essa parte da história e o conheceu na
cadeia de Vale de Judeus ao norte de Lisboa, relata que foi agarrado por burrice
apenas, ao descurar o embarque de avião, de Marrocos para fora: atrasara-se ou
metera-se com umas ‘mulheres da vida’ lá por terras marroquinas, e a PJ portuguesa
entretanto fora informada pela gente de Rabat da possível presença dele. Envia uma
equipa. Faz a localização e confirmação positiva de que é o Alexandre Xavier Chagas.
Pagam a uma dessas tipas com quem ele anda e que lhe mete qualquer coisa na
bebida. O Chagas dorme que nem um anjinho e é conduzido pela PJ a um avião da
Força Aérea Portuguesa que o traz para território nacional.
Quem conta as linhas acima refere outra versão da história: que nem todos os
disparos foram feitos dentro do carro, que Evo Fernandes foi levado para um
barracão e torturado, espancado e ‘violado’ com um bastão ou pau de vassoura.
Confirma-me o extremo sadismo de Alexandre Xavier Chagas posto em tal acção.
Enfim, o Tribunal de Cascais condena-o a 18 anos de cadeia dos quais
cumpriria pouco mais de metade. O facto de Alexandre Chagas ter admitido o
crime, chamando a si toda a responsabilidade, não impediu que o governo português
decretasse o meu conhecido e amigo Rafael Custódio, então 2º secretário da
Embaixada de Moçambique em Lisboa e ‘residente’ (o chefe da ‘antena’ SNASP aí)
como personna non gratta. Mas bem, como é que surge aqui neste cenário, em Abril de
1988, o Alexandre Xavier Chagas?
A história giza-se em poucos parágrafos. O Chagas conseguira certo suporte
de alguém na África do Sul, Exército, AMI (os mesmos do apoio à Renamo), lobbies
paralelos, BOSS, ou portugueses, bem, quem quer que fosse. Na última reentrada em
território moçambicano, por estrada, o grupo é interceptado pelo SNASP. Fuga de
informação? Estava já em jogo duplo, o Alexandre Chagas, a colaborar com o Partido
FRELIMO, como pretendem alguns? Enfim, pressionado ou não o Chagas é ‘virado’.
Creio que a filha estaria já, na altura, em Maputo.
Tudo se terá passado desde fins de Fevereiro. Está claro que ele e o restante
do grupo estavam detidos pela Segurança. Mas bem, o Chagas é levado a colaborar,
continuando o resto do grupo preso, e a filha sob controlo, em Maputo, e após a

262
minha chegada e audição é que Alexandre Xavier Chagas terá sido expedido para
Lisboa, numa missão que, dizem algumas más línguas, há muito fora delineada mas
mantida no ‘congelador’, desde os tempos de Sérgio Vieira como ministro da
Segurança, até estes dias fatídicos, os dias posteriores ao meu regresso…
Falta acrescentar um facto curioso: este Sérgio Vieira, tido como um dos mais
sanguinários tipos do regime ao tempo de Samora Machel, e que já foi também
director do Banco de Moçambique, outro não é que o irmão do conhecido José
Castelo Branco, também conhecido por ‘O Conde’, ou ‘Tatiana Romanova’,
imaginem!, o Castelo Branco do actual jet set lisboeta. Dizem que agora o homem
perde anos de vida cada vez que lhe contam as diatribes do mano em Portugal, mas
isso são outras histórias.
*

E tudo tem a ver com tudo. Nem ninguém pode negar a sua própria natureza,
nem por vezes se pode fugir a um destino ou ao seu lugar na História, ou haverá até
muitos caminhos que vão ter à mesma solução, ou nova encruzilhada. Não posso
contudo de deixar de ver, repetir sempre, em retrospectiva, o que aconteceu ao Evo.
Toda a cumulação de factores, grandes ou pequenos que vieram culminar na sua
morte, e como voluntária ou involuntariamente se acaba por ser actor maior ou
menor numa destas peças. Como em 1981 cheguei à moradia dele, pela primeira vez,
na zona antiga de Cascais, a Cidadela, à Rua Tenente Valadim, 16 rés-do-chão. A
Ivette a vir abrir... O Fernandes então de viagem ao estrangeiro. E como um estigma
eu portaria já sobre a testa a palavra morte gravada a fogo. Nenhum de nós ainda o
sabia, o que aquele futuro misterioso e complexo da guerra nos reservaria... os
maquiavelismos que sairiam da autêntica caixa de Pandora montada nas Europas e
África do Sul, e em Moçambique... Tudo sempre em nome da Paz! Bom, e depois há
a vinda da Ivette anos mais tarde, da tal visita à Índia, a previsão do astrólogo: ‘algo que
vão urdir contra o Evo, de alguém muito chegado...’ e a premonição terrível que me assalta.
Quem podia parar isto, porém?
E se mais recuarmos, chegamos ao ponto em que tudo começou, pelo menos
a minha participação activa no movimento, ao ponto de eu, meio por brincadeira,
dizer que vou escrever uma tese: ‘Como é que os coelhos californianos do Aeroclube
de Moçambique liquidaram o Secretário-Geral da Renamo’.
Pois. Como relatei logo ao início, tudo principia aí no tal episódio absurdo dos
coelhos, quando paraquedistas e pilotos discordaram sobre verbas ou qualquer coisa e
enfiámos, nós, os paraquedistas, os coelhos ao tacho. Belos coelhos de criação
adquiridos no Ministério da Agricultura. Condenação: proibidos de saltar, nós, os
mentores, e é nesse período que, estando apeado, levo o veículo desse aluno, dos
‘américas’, e a quem eu dera instrução, o Donald Becker, oficial de comunicações da
embaixada americana, para a zona de saltos na Costa do Sol.
My God! Como isto tudo vem de novo tão nítido à baila… O veículo mesmo sendo
de matrícula diplomática a ser vistoriado… eu, logo ali detido e quase acusado de
espionagem só pela posse de uns meros binóculos, câmara com teleobjectiva e walkie-
talkie... e que calha estarem apenas ali no carro. Claro que é um equívoco, mas
estavam lançadas as sementes do caso que mais tarde me atirou para Lisboa. Revejo
os tais encontros com o ‘camarada’ Ferreira, no SNASP e com o Fernando Chombe,
e como nasce o ‘agente Alcino’...
Como pesou este factor inicial dos coelhos, no cômputo total da aleatoriedade
e determinismo que preenchem os dias deste universo, das nossas vidas? Este é um

263
rodopio, redemoinho demoníaco que invade a minha percepção do espaço-tempo e
não mais sairá do meu pensamento, disso estou mais que certo, por mais livros que
leia sobre cosmogonia, determinismos e livre-arbítrio…

Agora, revejo estes minutos que acabam de se escoar, o António Mula, o


financeiro da D-13, e o Betinho Wate, que vieram dar as despedidas e papar mais uma
jantarada, e de caminho ‘vazar o saco’, e a deixarem-me para aqui com este fardo…
tudo, infelizmente, mais nítido…
Vejo-os ainda nesse amparo mútuo, no umbral da porta, e a repetirem-se,
parecem uma versão negra dos irmãos ‘Dupond(t) dos livros do Tintim: ‘o vector de
fuga do Chagas falhou mas, é esta merda, mano, por culpa do ministério que alongou
a estadia dele em Marrocos’, palavra de ‘Vampirinho’, poix!
– E é sempre esses ‘pequenos detalhes’, essa merda das verbas que não
chegam a horas certas, aqui foi a merdice de Marrocos, o ‘caixa d’óculos do Wate, a
rebocar já a porta, entalando dois dedos.
– Foram-se! Uff! O Watt deve ir ouvir mais umas velhas guitarradas da era em
vinil, do George Benson, suponho, e o Mula aponta para a barraca dele na Praça dos
Combatentes… e eu prá’ qui fico a alinhavar o resto ‘destas merdas’! A olhar, agora,
para a Célia que não proferira uma única palavra durante toda a conversa. Ela sabe
bem, que tem que manter aquele bico bebedor bem calado.
Curiosidade ainda maior: quem estava mesmo a viver, compulsivamente ou
não, na residência da COOP, no PH 7, até à minha mudança, ido do Rovuma em
1988? Nesta safe house controlada pela Segurança, num prédio que alberga também o
dirigente timorense Mário Alkatiri?
Quem voltara a viver ali, enquanto eu nos meses seguintes estaria baseado em
Nampula, e de novo no Rovuma, e depois num apartamento na baixa, na 25 de
Setembro?
A filhinha do Alexandre Xavier Chagas, acompanhada pela sua tia
Domingas... Enfim, de uma forma ou de outra, todos ajudámos a ‘pacificar’ o Evo
Fernandes.

O ADEUS À AVENTURA… SERÁ?


Após um acordo com a ENACOMO e a administração da COOP sub-
alugamos o apartamento a um cooperante português, por prazo definido.
Provisoriamente vamos residir no hotel... o hotel Girassol, na Patrice Lumumba, onde
às vezes levava umas amiguinhas, e que tão bem conheço, residi lá defronte, com a
família, entre 1974 e ’79.
Isto é tudo provisório, antecede a rampa de lançamento. É só até à venda do
carro e ao recebimento integral do dinheiro referente à habitação. No Girassol está a
morar também o casal Banú-Judite que acabam também de sub-alugar a vivenda da
Sommerschield. E encontramos por lá mais gente conversadora, e bebedora, como
um professor moçambicano que mais tarde verei amiúde em Lisboa, no Martim
Moniz. Há ainda uma figura imponente, o Solange, negociante zambeziano, um negro
claro muito, muito ‘forte’ para mais não dizer, rotundo!
Quem sobra? Há agora o condutor da D-13 do Ministério, destacado pelo
Cardoso às nossas ordens para dar todo o apoio, uma vez o Langley Turbo afeiçoado
a outros donos. E é este condutor e os táxis que usamos frequentemente nestes
últimos dias. Tanta coisa a tratar ainda… A ironia do destino volta a marcar-me: um

264
dos táxis é um Peugeot 404 agora pintado num grená escuro. A matrícula, MLF 43-
40, não engana porém, é o antigo carro do meu pai! Shit! O nosso último carro em
Moçambique. Quando conto ao chofer ele nem queria aceitar o pagamento mas
insisti e acabámos a tomar uma cervejola. O carro fora comprado por um indiano e
ele é apenas o condutor. Tudo isto me faz pressa, agora, em ir embora, encerrar este
ciclo. Já chega!
Com os Banús apontamos vezes sem conta à discoteca do Pigalle, isto está
assim, até algumas pastelarias e restaurantes, à noite, transmudam-se em autênticas
boites. Se já os ‘Grupos Dinamizadores’ e esquadras não abdicam de ter os seus bares,
bebedouros concorridos pela população, não é?, qual é o mal? Jantamos também no
‘Chai’, o antigo Clube dos Lisboetas, próximo do Girassol, e que tem um serviço de
luxo. A Princesa, o Hotel Santa Cruz, a Smarta e o Cardoso (hotel) são outros dos
locais de comezaina e beberagem visitados.
Ao Zorro, o antigo guarda-costas, nos momentos lúcidos, visito-o e despeço-
me dele já na sua casa da COOP, na rua dos Presidentes, uma flat espaçosa, em
duplex. O Zorro encontra-se mais calmo agora, aqui em Maputo, regressado da
comissão na TCT da Beira. Esquecidas estão as histórias de Nampula, da Raquel e
‘Pinguim’, que desencadearam a ira da esposa, essa maconde de impor respeito, com
os tradicionais golpes a varrer e marcar em diagonal a sua severa face como, vem-me
sempre isto à ideia, a merda desta figura de estilo, como se tivesse deixado tombar a
cabeça num cortador de relva.
Outro parênteses, aguentem só mais um pouco: ainda não falei no BM. As
BM são outro dos nossos poisos nocturnos. Não! BM aqui não é ‘Banco de
Moçambique’ não. São as famigeradas Barracas do Museu e ficam obviamente muito
próximas ao Museu de História Natural (Álvaro de Castro) e defronte ao meu antigo
liceu (Salazar / 5 de Outubro / Josina Machel).
E Moçambique também tem um Michael Jackson, mestiço, e é por aqui
também que ele pulula, quando não está em mais um show pelas boites e cabarets de luxo
ou de lixo da capital, com muita perícia em saltos e passos de dança entre
barraquinhas, este ‘Michael Jackson’ moçambicano, a imitar o genuíno no ‘Thriller’ ou
no ‘Bad’... E é ‘bad’ mesmo a dar conta de mais uma galinhola cheia de piri-piri.
Fartamo-nos de o encontrar por aqui e fica a ser mais um, do já alargado leque de
amigalhaços que temos por aí nestas noites de perdição.
Ocupam boa parte de um quarteirão estas ‘BM’, uns terrenos baldios
preenchidos agora bem à balda por comboios desiguais e desirmanados, desregrados,
de barracas de comes e bebes. Outros buracos esconsos por entre o capim, bem lá no
meio, permitem o alívio de necessidades. Necessidades menores e necessidades
maiores. Insalubres estas BM. Mas mesmo assim o pessoal vicioso da noite não
abandona aquilo. Um reino do caos, tertúlia de passeio, onde até pululam jornalistas e
deputados a par com o pé descalço, intelectuais e homens do Partido. Assistimos a
uma cena em que um ‘responsável’ é descoberto, desancado e arrastado dali pela
esposa que chega num bruto jipe: ‘Aqui! Há três dias aqui perdido sem ir a casa! Não
protesta! Vamos!!!’ É o habitual na zona BM. Por vezes encontramos o Cardoso, o
Tomás Vieira Mário, o Benjamim Faduco, estes dois últimos são jornalistas bem
conhecidos cá da praça.

Os últimos dias são ocupados em assuntos de documentação e dinheiros: o


visto para a Célia no Consulado Português, depois de tratar do seu BI, e a autorização

265
militar dela, após passarmos na Administração do Distrito Urbano nº 1. O BI lá se
consegue através de um Certificado de Notoriedade, na Conservatória dos Registos
Centrais, com todo o precioso auxílio legalista e administrativo com muito unto à
mistura. Depois, segue-se a compra dos bilhetes na TAP após cambiarmos dinheiro
no indiano do quiosque existente na arcádia do prédio Nauticus-Emose.
O levantamento do cheque da Enacomo é mais complicado. Bem, no banco
só querem dar 6 milhões por dia, isto é um apelo à minha má disposição, e eu tenho
um cheque de 18 milhões para levantar. Telefonam à Enacomo, confirmam que está
tudo correcto, mas o banco hoje só dá um máximo de 6 milhões. Chamo o gerente.
Eu e o Aníbal, condutor e agente do Ministério, convidamo-lo a ser ‘responsável’,
para ele, para a família, para o banco, ou enfrentar umas férias de prazo e
comodidades indefinidos na BO, ‘sair já agora daqui algemado! É isto que quer?
Tenha juízo!’. E lá vieram os dezoito.
Enfim, cá está portanto o que interessa, a passagem ‘ida e volta’ Maputo-
Lisboa pela TAP, confirmada para 21 de Outubro, uma Segunda-feira. Com o Aníbal
percorro a cidade em filmagens. A Malhangalene e a nossa antiga moradia nos
tempos coloniais, as ‘nossas’ escolas e liceus... Uma filmagem a juntar a outras que
fizéramos pouco antes na praia com a Célia, sobrinhas, Patrick e uma ou duas
‘malucas’ do Fantastic, em tardes soalheiras passadas entre palmeiras e casuarinas na
Costa do Sol, só faltava a ‘minha’ Paula que trouxera para aqui há semanas. Ela, elas,
as outras todas, Paulinha, Guida, Rosa, Fátimas, etc., não é? Claro que não fico com
elas em fita, com nenhuma delas. Só nas nossas memórias esses ‘filmes’ perdurarão.

Despedimo-nos da malta no Girassol, de alguns amigos mais chegados. Um


adeus ao Polana e ao Cardoso (hotéis, os respectivos bares, onde se está sempre bem).
Um adeus forte e sentido à família da Célia. Pareço ser garantia sólida, ou pelo menos
relativa, de que a bagunçada vai continuar, pelos semblantes deles. Talvez falte até
uma despedida mais formal. Sabem apenas que estamos de abalada. Desconhecem
dia, hora, companhia aérea ou voo, e não há data para o regresso. Melhor assim. Parte
das dívidas, só parte, está saldada. Decidira um gesto magnânimo após uma série de
copos que induzem uma certa reflexão sobre o sentido disto tudo. Um comboio de
rifas que faço e sorteio, decide os felizes ‘contemplados’ pelo gesto. Aguarda-se ainda
a próxima extracção. Livres, agora, em direcção a Portugal.
O Aníbal como condutor auxilia-nos nas últimas démarches e na Segunda-feira
à tarde está connosco no aeroporto para o check in. De súbito, um imprevisto!, surge a
mulher do Sadrú. E há qualquer coisa como 900 mil meticais em saldo a favor dele,
mas explicamo-nos, ‘vamos só ali a Portugal casarmo-nos e já vimos!’. A cara dela não
expressa muito convencimento. Na pista roncam já os motores do Tristar em
aquecimento. Minutos finais. E aparece mais um, um amigalhaço do Chanjudja, que
até ajudara a acomodar as coisas, a fazer a ponte com o Bazar, para amigavelmente se
resolver o caso da câmara: ‘e então não avisam nada, resolveram já tudo com ele e o
Rittos?’ Pois!
Por outro lado, bem a propósito destes ‘business’, mais tarde, no final da
semana, um telefonema para Maputo contar-me-á a ‘cena macaca’ no jardim da
esquadra da Malhangalene, ocorrida dois dias depois, na Quarta-feira ao anoitecer:
um magote de gente de volta do inspector Bazar a ulular, uivar até, dizem, à espera
‘desse’ que disse para estar ali Quarta à tarde. Uns, haviam corrido para o aeroporto

266
para checkar o voo LAM mas nada viram. E o Patrick cabeça-de-ovo, esse, sumiu, anda
por fora a ajudar a BBC da PIC, a fazer mais alguma boa acção.
Agora, ainda é Segunda-feira, e após conseguirmos sair da sala da aerogare e
efectuar o check in, o Cardoso está já connosco na área de embarque, a entornar as
últimas cervejolas. Não calculamos quando voltaremos, eu e a Célia, a Maputo, a
Moçambique, a África. Portugal é agora um destino com um grande ponto de
interrogação pintado. Reprimem-se contudo as emoções. Quase quatro anos em Maputo!
Fora um regresso nostálgico, mas a nostalgia da Malhangalene, por exemplo, onde eu
crescera, essa, havia desaparecido, curada num quase choque temporal. E agora, é a
saudade já, antes mesmo de partir, por estes novos amigos todos que vou deixar atrás,
estas amigas por quem já suspiro! Até quando? Até quando, Maputo, Lourenço
Marques, ou o que quer que seja que se chame... pouco interessam nomes. O local
apenas, esse sim, mudado porém, mas de tantas lembranças na juventude, com todos
ainda, familiares, bicharada, os cães Kurika e Kiss, a gataria, até o Albino que voltei a
reencontrar agora, foi o único, aliás, sobrevivente desses tempos. Olhar para um
edifício, casa ou escola, não passa de uma observação à carapaça das coisas. Fora tudo
tão linear nesse passado vivido aqui, até ao momento em que, como um globo de
vidro caído, tudo se precipitara e quebrara, para sempre. Será assim, mais uma vez...
Outra clivagem. Outro choque. Até quando? Um abraço ao Cardoso, através dele para
a Gina, e irmãs!, obviamente. Um adeus a todos do Ministério. O avião espera-nos.
– Paulo, e agora…?, a Célia não se cansa com perguntas sobre o futuro
imediato.
– Gostava de descansar, sabes? À beira do deserto, talvez. Egipto, árabes...
– O que estás p’rá ‘í a falar? Árabes? Conheces alguns? Todos terroristas, não
é?
– É relativo!, eu com um sorriso enorme a deixar o sarcasmo, o cinismo,
virem ao de cima. Saborear este secreto sentido das palavras.
‘Nunca voltes a um lugar onde já foste feliz!’ Será mesmo? A consciência afoga-se,
recicla-se nestes primeiros whiskies a bordo trazidos quase à socapa por especial
favor, embora o meu irmão bem dissesse que a que eu tivera, a consciência, há muito
imigrara para uma grade de cervejas. Não! Não pode haver lugar para remorsos. Há
que evitar os ‘síndromas à Lord Jim’, personagem de Joseph Conrad.
Ou, como diria Ernst Junger, esse romancista e ensaísta alemão
contemporâneo: ‘Como é possível que uma fraqueza, um erro, uma falta, nos persiga
tanto tempo e não consigamos apagá-la?’ É isso. Não se pede desculpa pelo passado!
– ‘O whisky é bom’, diz a Célia.
– É relativo!, replico. Miro o fundo do copo acenando já a pedir outro, dois!
duplos! A Célia bisa também. ‘É isso! Não há perdão. Toda a absolvição e todo o
castigo não passam de acto simbólico. A tragédia reside em que nada se pode
rectificar do que aconteceu’, insiste Junger.
A hospedeira está agora com a corneta enfiada na mascarilha de latex, como
um preservativo gigante, a fazer o folclore habitual para os novatos, mas o mal é que
lá em cima quando a coisa dá para o torto ficamos todos azulinhos da silva, os mais
claros, claro, em hipoxia. Agito o copo, sinto e ouço o chocalhar do gelo, e é como
que um marulhar suave que se vai erguendo deste líquido capitoso e monta agora
num crescendo, fundindo-se com o troar dos reactores.
Maputo, um adeus então até Abril de 1997. Além de Lisboa e Paris, o Cairo, e
Mahalla al-Koubra estão à nossa frente, só que de momento ainda não o sabemos. O

267
Tristar descola, oferece o peito metálico à atmosfera que se adensa à sua frente, à
ventania que sopra da baía. A saudade, essa, para nós, já aterrou… é sempre assim…
Está vento sul e o avião usa a pista 23, apontada à Catembe, e gira
suavemente, agora, sobre a asa esquerda, cumprimentando as águas da lagoa-baía,
deixando-nos saudar em despedida este azul e o esmeralda escuro que explode lá fora
para além do torpor do whisky e da dupla vidraça. Lá muito em baixo, parece nem
existirem mais, abandonamos à sua sorte guerras e aconchegos, estropiados e
amantes, todo um universo, aqui, cada vez mais distante e etéreo...

Perguntaste-me do que é que sinto mais saudades... Este abismo profundo


e livre, que na horizontal e em tons de verde se espraia por todos os azimutes 360
graus à nossa volta, qualquer que seja a direcção em que nos queiramos
precipitar. O odor, a fragrância matinal do verde húmido, ou da terra negra onde
pululam as criaturas ao crepúsculo, banhada pelos tons laranja de um sol que se
deita… e também, não mais poderei esquecer, o toque cálido e metálico da minha
Kalash, o seu cheiro oleoso, este conforto eterno sempre ao lado, sob um céu azul
profundo, recobrindo essa terra prenhe de promessas…

268
CONCLUSÃO

269
DOS OBJECTIVOS DA GUERRA

Em 22 de Novembro de 1979, o então primeiro ministro sul-africano Pieter


W. Botha, convoca uma reunião de homens de negócios e de dirigentes públicos em
Johannesburg, para discutir aquilo que chama de base para uma ‘Constelação de
Estados da África Austral’, com vista a ‘promover a paz e o progresso no sub-
continente’. A nova guerra em Moçambique, recorde-se, começara três anos antes.
Com a ascensão à independência das duas antigas colónias portuguesas de
Angola e Moçambique, e com o declínio do governo branco de Ian Smith, na
Rodésia, Pretória enfrenta cada vez mais o síndroma do cerco, não só militar. Os sul-
africanos sabem quão importante será o domínio económico da região, como factor
de pressão política sobre os seus vizinhos negros, em tentativas futuras de tornear os
crescentes bloqueios e sanções propostos pela comunidade internacional.
Neste contexto, Moçambique ocupa, estratégica e geograficamente uma
posição chave, como plataforma de entrada e saída de mercadorias para os países do
hinterland, o interior. Mas o futuro do sub-continente, ligado logicamente ao fim, mais
ou menos distante, do sistema do apartheid, joga-se igualmente na esfera económica.
Pretória cede assim à tentação de ter na mão, de controlar a todo o custo, as artérias
vitais para as economias dos estados vizinhos. Quando o método persuasivo, a ideia
da ‘Constelação de Estados’ falha, e os países negros da região replicam com a criação
da SADCC, Conferência para o Desenvolvimento dos Países da África Austral, em 1
de Abril de 1980, e com a instituição de uma PTA, Preferential Trade Área, ou Área
de Comércio Preferencial, em 21 de Dezembro de 1981, novos meios são utilizados,
ou incrementados, procurando inverter esta tendência de perda de influências.
A via militar, directa ou indirecta, principalmente contra os países da chamada
Linha da Frente, é agora privilegiada. Moçambique será também um dos alvos-chave.
A guerra de ‘desestabilização’ iniciada pela Rodésia de Smith, será, doravante, gerida
directamente, e intensificada, a partir de Pretória.

A. PRETÓRIA E OS ASPECTOS ECONÓMICOS REGIONAIS


Os números dão bem a ideia da fragilidade das economias de alguns países da
SADCC perante Pretória, e dos danos causados, por exemplo, pela guerra em
Moçambique.
A República da África do Sul é detentora de cerca de 75% da rede ferroviária
do sub-continente. Em 1980, 89% do tráfego de mercadorias de e para o Zimbabwe,
passa através da RSA. Esse valor baixa porém para 74% no ano seguinte. Harare
esperava que a dependência do seu tráfego em relação aos portos sul-africanos
decrescesse até ao nível dos 30%, o que viria a ser negado pelo escalar da guerra em
Moçambique, afectando os chamados ‘corredores’ da Beira e do Limpopo.
Ainda em 1985, 64% das importações zambianas e cerca de um terço das suas
exportações, incluindo o estratégico cobalto, passam pela África do Sul, bem como
60% das exportações do Maláwi. Até 1984, 90% do tráfego malawiano é realizado
através dos portos moçambicanos de Nacala e da Beira. Posteriormente, as
mercadorias malawianas passam a utilizar preferencialmente o corredor rodoviário
Zobué-Changara, através da província moçambicana de Tete, o território do

270
Zimbabwe e portos sul-africanos, o que se traduziu em custos adicionais de 60
milhões de dólares/ano.
Os países da SADCC tentam entretanto contornar os problemas colocados ao
sector de transportes pela guerra em Moçambique, pensando reabilitar a via férrea
TAZARA ligando a Zâmbia ao porto de Dar-es-Salaam, e duplicar a capacidade de
manuseamento do porto da capital tanzaniana, com o auxílio do Banco Mundial.
Fala-se também noutro projecto, a ser caucionado pelo BAD, o Banco Africano de
Desenvolvimento, e que ligará o Botswana à Zâmbia através do Rio Zambeze: uma
ponte a ser construída perto de Kazungula, local onde se juntam as fronteiras da
Namíbia, Botswana, Zâmbia e Zimbabwe, ou então, uma outra ligação, rodoviária,
entre Pandamatenga, no Botswana, e Victoria Falls, no Zimbabwe, o que incluiria o
aumento da actual ponte de Victoria Falls ou um sistema de ‘ferry’.

Ocupando posição privilegiada no tocante à produção e às reservas mundiais


de diversos metais e minerais estratégicos, a RSA interpõe-se na via, ou procura
controlar canais, entre outros países africanos produtores, e consumidores como os
Estados Unidos.
Tomemos como exemplo o caso de dois minerais tidos como estratégicos: o
cobalto e o crómio. Os portos da África do Sul são ainda os maiores escoadouros
para o crómio zimbabweano e para o cobalto da Zâmbia. Do total de cobalto
consumido pelos Estados Unidos, 61% é manuseado através de terminais sul-
africanos e, ainda em 1984, os EUA eram dependentes, quanto a este mineral em
qualquer coisa que ronda os 95%, das suas importações. 49% do cobalto usado pelos
americanos é produzido no Zaire e Zâmbia, passando a maior parte pela África do
Sul. Em 1984, o Zaire e a Zâmbia só por si, produziam, a nível mundial, 62% do
cobalto, e o Zimbabwe é responsável pela produção de 8% do crómio consumido
pelos Estados Unidos. O Zimbabwe possuirá ainda, segundo estimativas, 11% das
reservas mundiais de crómio. Os sul-africanos estão pois bem cientes do impacto
destas estatísticas.

B. PRETÓRIA E ALGUNS ASPECTOS ECONÓMICOS DE MOÇAMBIQUE


Uma faceta a considerar, no relacionamento económico de Pretória com
Maputo: em 1981 por exemplo, há 59.400 trabalhadores moçambicanos a laborar
legalmente na RSA, principalmente no sector mineiro, os quais são responsáveis pelo
menos por 3% do Produto Nacional Bruto de Moçambique.
Fonte de divisas importante, seria também a barragem de Cahora-Bassa.
Encontra-se inoperacional desde 28 de Outubro de 1983, no que toca ao envio de
energia para a África do Sul. Projectos para uma nova central hidroeléctrica em
Cahora-Bassa, na margem norte do Rio Zambeze, têm sido relegados devido à
situação de guerra. Essa segunda central poderia abastecer de electricidade vastas
áreas do Maláwi, Zâmbia, Zimbabwe e Tanzânia.
O facto de as sabotagens às linhas de Cahora-Bassa fazerem os sul-africanos
abdicar de uma fonte barata de energia, que poderia suprir cerca de 8% do total das
suas necessidades internas, não trava porém a vontade dos militares de Pretória em
inviabilizar a barragem.
Objectivo ainda deste conflito na parte sul de Moçambique: dominado o país
economicamente, após a asfixia e cerco que se pretendem com a guerra, no entender
de Pretória tanto Maputo como toda a parte meridional de Moçambique poderiam

271
servir como entreposto comercial privilegiado para o Transvaal, caso as sanções ao
estado do ‘apartheid’ se agravassem. Isto são, refira-se, as ideias que predominam
durante grande parte da década de ‘80.
De considerar foram também certos argumentos, e aqui Pretória emparceira
com os círculos mais conservadores de países como a Alemanha, de uma disputa
económica no campo das matérias-primas travada com antigos países do Leste,
produtores ou não de certos minerais estratégicos. Talvez se insira neste cenário o
ataque desencadeado pela RENAMO em 21 de Agosto de 1983, às minas de tantalite
em Morrua, na Zambézia, e que vinham a ser exploradas pelos soviéticos.

C. PRETÓRIA E OS ASPECTOS POLÍTICOS E DIPLOMÁTICOS


A situação de instabilidade em Moçambique veio a servir de lição, exemplo,
ou ‘laboratório’, a brandir perante outros países da região, suspeitos por Pretória de
darem guarida a movimentos como o ANC. Os sul-africanos aproveitam-se também
do rapto de técnicos estrangeiros por grupos armados, não só em Moçambique mas
também em Angola, para expor o seu poderio regional e encetar até pontes
diplomáticas, pois laços comerciais já existiam, embora secretos, com os países do
antigo bloco de Leste.
O Acordo de Nkomáti surge como o corolário de todo um trabalho político e
diplomático, não só de Pretória, é verdade, mas que os sul-africanos agitam como
estandarte da sua ‘boa vontade’. A RSA, de troublemaker (agitadora) como era até
então conhecida, pretende assim passar a ver-se considerada como
peacemaker (pacificadora), ao negociar e pactuar com um estado africano vizinho que,
para mais, se declarara marxista. Após atear o fogo, Pretória tenta travestir-se com um
papel de ‘bombeiro’, que na realidade nunca foi.

D. PRETÓRIA E O ASPECTO MILITAR


Fazer divergir as atenções e esforços militares para questões internas,
preterindo eventuais tentações de apoio a guerrilhas anti-apartheid, terá sido um dos
pilares em que se basearam os objectivos práticos idealizados pela África do Sul com
a guerra fomentada em Moçambique.
Tal situação de desgaste ou permanente ameaça, obriga os diversos países
negros da zona a dirigir grande parte dos respectivos orçamentos para o campo da
defesa e segurança. Moçambique aplica mais de 40% do seu Produto Nacional Bruto
neste esforço de guerra. O Zimbabwe tem que criar mais uma brigada, a sexta, para a
defesa da zona leste do país, e possui ainda mais de uma dezena de milhar de
soldados em território moçambicano, despendendo com tal força cerca de meio
milhão de dólares por dia.
Não falta também quem afirme que os sul-africanos procurariam, com uma
eventual partilha de Moçambique em dois, pelo Zambeze, ter acesso numa primeira
fase à zona ao norte desse rio, que passaria a servir como plataforma para o
prolongamento dos seus ‘raids’ a países mais setentrionais que albergassem gente do
ANC, tornados mais inacessíveis após a ascensão da Namíbia à independência.
Estariam visados neste caso a Zâmbia, a Tanzânia, e a parte norte do Zimbabwe.
Contudo, o regime sul-africano possui agora, finais dos anos ’80, aviões para
reabastecimento em voo do tipo ‘Boeing-707’, e que permitem à sua força aérea
atingir território tanzaniano.

272
E. OUTROS OBJECTIVOS POLÍTICOS
Politicamente o Maláwi parece ter aderido ao plano de desestabilização para
Moçambique, pelo menos até até 1986. As ambições malawianas prendem-se mais,
porém, com velhos interesses regionais, que defendem para o país uma ‘saída natural’
para o Índico, ressuscitando o sonho de uma chamada ‘Rombézia’.
O caso de forças noutros países, nomeadamente da Europa Ocidental e
Estados Unidos, envolvidas no apoio à RENAMO, pode ser visto como o resultado
de uma exacerbação de círculos mais à direita que militam constantemente, e
justificam até a sua existência, em proclamadas cruzadas anti-comunistas. Mas alguns
líderes tidos tradicionalmente como conservadores, veja-se o caso de Margareth
Thatcher e de Ronald Reagan, acabaram por reafirmar o seu apoio à política
moçambicana, principalmente a dos últimos anos, e negaram legitimidade, ao
contrário do que fizeram com a UNITA, ao grupo armado RENAMO, não se
coibindo de o classificarem como terrorista.

F.OS OBJECTIVOS DO GRUPO RENAMO


Se forças estrangeiras, se gente no governo ou em certos círculos do poder
em Pretória, têm objectivos através da RENAMO, que metas terá o próprio grupo
armado?
Embora não haja sido convenientemente desenvolvido um esboço de
programa político traçado pelos líderes do grupo no início da década de ‘80, e que
serviria como pretexto para legitimar a guerra ordenada e manipulada por Smith e por
Pretória, tal programa está hoje completamente obsoleto ou ultrapassado pela nova
realidade moçambicana: uma realidade de progressivo não-alinhamento e de abertura
económica, política e social.
A questão que ainda faz correr no fim da década de ’80 e dealbar dos anos ‘90
os homens, os líderes, aliás, do grupo RENAMO, é cada vez mais, ou apenas, um caso
de poder, poder de grupo, poder pessoal. Daí, que também não seja de estranhar o
facto, de que os seus últimos, ou únicos aliados internos, sejam alguns dos antigos
régulos, chefes tribais, que haviam perdido toda a força com a chegada da FRELIMO,
ou os que ainda não enterraram as bandeiras do revanchismo e da vingança.

G. A IMPORTÂNCIA DA ‘NOVA ORDEM GLOBAL’


Se bem que ocorram guerras de ‘baixo perfil’, mantidas algumas até, diz-se,
para que subsistam em determinadas zonas governos fracos ao invés de nações fortes,
e que aceitem, assim debilitados, quaisquer preços e condições em troca das suas
riquezas naturais, mão-de-obra e soberania, parece haver agora um consenso alargado
sobre o caso concreto de Moçambique e a posição chave que representa. O interesse
fundamental nesta zona centra-se na liquidação dos resquícios do ‘apartheid’ e na
promoção de um clima de paz e de desenvolvimento integral, extensivo pois a todos
os países da região. Sem isso não existirá sequer produção regular de matérias-primas,
nem é possível o seu escoamento em condições rentáveis.
O degelo entre os dois principais blocos político-militares, e o fim posterior
do bloco de Leste, abre boas perspectivas à resolução dos conflitos regionais,
incluindo o caso moçambicano. A ‘guerra fria’ cedeu lugar a uma sã convivência, e
mesmo à cooperação EUA-Rússia. A concorrência decerto que não desapareceu mas,
ao contrário do embate permanente Washington-Moscovo das últimas décadas, o
globo assistirá talvez ao estender de três grandes potentados económicos, competindo

273
entre si e procurando consolidar tentáculos a sul, em direcção ao ‘terceiro-mundo’, e
com as respectivas sedes em Washington, Bruxelas, a ‘capital’ da CEE, eventual futura
capital de uns ‘Estados Unidos da Europa’, e Tóquio, envolvendo a esfera da
ASEAN, o mercado comum do Extremo-Oriente.
No ‘terceiro-mundo’, na África Austral também, assiste-se assim a um diluir
das tensões ideológicas e à tentativa de estabelecimento de mercados-comuns
regionais, buscando acima de tudo o fortalecimento ou sobrevivência política internos
da classe dominante em cada nação membro, isto é, dos actuais detentores do Poder
em cada Estado, e a defesa, se possível, da respectiva soberania. Faz-se votos
apenas, e os conflitos que surgem pela Europa lembram um espectro que em África
também pode surgir, que um pretexto ‘nacionalista’, agora assente em bases étnicas,
não venha substituir os motivos emprestados antes pelas razões ideológicas para
disputas pelo Poder e para o lançamento de novas sementes de guerra.
A Guerra, esse prolongamento da Política, parece contudo um valor em
regressão mundial, e a ‘superestrutura ideológica’, como diziam os marxistas, torna-se
cada vez menos alheia à fria realidade económica, à necessidade de cooperar, de
produzir em Paz.
Mas, para os moçambicanos, ainda pouco sentido fará a nova perspectiva
optimista que ilumina hoje o Planeta, a ‘nova ordem mundial’, pois que, até que se
calem de vez as armas e pare o banho de sangue interno, e se construa uma economia
forte e próspera para todos, pouca atenção se prestará às boas intenções globais. E, o
novo ‘clima’ que se espera de harmonia, nunca será um contento para as multidões de
mortos, de estropiados, os deslocados e os famintos, de ontem e de hoje.

DOS MEIOS EMPREGUES

Dos objectivos, ilegítimos ou não, se porventura os houve no grupo


RENAMO algum dia, pouco mais haverá a relatar. Objectivos próprios, entenda-se.
Os meios, porém, todos os conhecemos já, das sangrentas notícias ou imagens que
nos chegaram, das áreas afectadas por esta guerra. Meios, dizem alguns, que são só
por si um fim, ‘a guerra pela guerra’.
No aspecto material, se bem que exista uma percentagem de armas tomada
internamente pela guerrilha, o grosso delas, é bem sabido, vem do exterior, sendo a
RSA o principal fornecedor e a mais importante plataforma de trânsito. Há muito que
os sul-africanos possuem armamento produzido nos ex-países comunistas, mercê das
capturas efectuadas no sul de Angola, das compras aos grandes traficantes e, também,
pelos negócios efectuados ‘sob a mesa’ com a ex-URSS e outros estados.
Importa igualmente referir, para além dos meios materiais, armas,
equipamento de comunicação, fardamento, etc., e da instrução, o ‘factor humano’:
como é que o movimento armado consegue subsistir, em efectivos? Tirando alguns
comandos sul-africanos e mercenários, destacados apenas para certas missões
específicas, é sabido que a maior parte dos homens que integram a RENAMO é
constituída por moçambicanos, lançados numa autêntica luta de irmãos contra
irmãos. Em que condições?
O chamado ‘Relatório Gersony’ elaborado e divulgado em meados de 1988
pelo Departamento de Estado norte-americano, é bem elucidativo quanto à coerção
que o grupo armado exerce sobre as populações, raptadas ou controladas, para que
estas sejam obrigadas a entregar alimentação e outros bens e, por fim, a servir de

274
‘carne para canhão’. Uma autêntica cadeia de terror permite o funcionamento da
‘máquina’ RENAMO.
O homem de arma na mão, que obriga uma aldeia a dar comida ou que rapta,
foi ele por sua vez, em muitos dos casos, uma anterior vítima. Agora, é ‘vítima’ só dos
chefes, dos régulos, dos mais velhos no grupo, dos comandantes, os quais, alguns pelo
menos, são eles próprios também ‘vítimas’ mais remotas. Se bem que no início o
grupo contasse somente com algumas dezenas ou centenas de descontentes com a
política marxista moçambicana, com raros adeptos de alguns dos efémeros grupos
políticos do período de transição para a independência, e com antigos servidores das
forças coloniais, hoje, e isso posso testemunhá-lo pela vivência que tive no
movimento, noventa a noventa e cinco por cento dos efectivos militares, chefes
incluídos, são antigos raptados, treinados e integrados mais tarde nas fileiras. Antes,
raptados. Hoje, raptores. E o processo não pára.
Para muitas destas pessoas, actualmente empunhando as armas do
movimento, apanhadas por tal teia, as reacções que têm são as de como alguém que
tivesse perdido para todo o sempre a identidade de pacíficos cidadãos, esquecido
totalmente os valores, a postura digna, da vida anterior. Sentem-se irrecuperáveis
socialmente. Como num ‘inferno’, diria eu a um correspondente da BBC-TV. Muitos
vêem-se segregados para sempre, numa vida sem sentido ou esperança, onde já nada
importa, depois do que são obrigados a fazer. Daí ao assassinato fácil, à chacina, à
entrada neste ‘Apocalypse Now’ moçambicano, é um passo. É o caminhar para uma
zona de penumbra psicológica, de onde muitos temem recuar: medo deles próprios,
medo da morte na fuga. É também a insegurança, mesmo quanto a promessas de
amnistia, mesmo que os horrores cometidos não tenham sido voluntários. A eventual
falta de segurança no local onde ficariam, se se entregassem ao Governo, que poderia
redundar em novo rapto e na morte certa, é também um desincentivo.

E PORTUGAL? A ‘COMPONENTE PORTUGUESA’

Naquela que foi considerada de ‘ala externa’, e pelo que vi numa primeira fase,
pelo menos em território português, os ‘quadros’ eram constituídos em grande
percentagem por portugueses e indianos que viveram anteriormente em
Moçambique, ou por moçambicanos que há mais de duas décadas haviam militado na
FRELIMO, sensivelmente até à morte de Eduardo Mondlane. Muitos destes, há vinte
anos que se tinham desligado quase totalmente da realidade moçambicana e, só agora,
‘sentiam o apelo da saudade’.
Alguns negócios, subsídios, extorsão a empresas e particulares, potenciais
alvos da guerrilha, ou eventualmente futuros investidores, alimentaram em parte, ao
longo dos anos, a estrutura externa. A intriga, a difamação, o boato, imperaram por
vezes como as armas mais solicitadas na tentativa de cada um se guindar aos lugares
cimeiros desta pirâmide de violência.
Mas, pergunta-se, quanto à posição oficial de Portugal, tudo isto somado, qual
terá sido o resultado prático?
Primeiro, há que considerar uma descolonização que foi tudo menos
exemplar, para colonizadores / ex-colonos, e ex-colonizados, deixando em herança o
massacre, a fome, a ditadura, neste acto de entrega territorial feito em cima do joelho,
e com a pressão e ‘bluff ’ soviéticos a rebentarem em Lisboa.

275
Depois, há ainda os mistérios, as verdades que soçobram, como a do velho
cargueiro Angoche, ainda de mastros à tona no meio da baía de Maputo. Não foi com
o 25 de Abril que surgiu a coragem de contar o que se passou! Ou a vergonha seria
ainda maior? Será que alguém que assumiu altas patentes militares ou de Estado terá
afinal as mãos manchadas com o sangue de dezenas de compatriotas? Frelimo e
autoridades portuguesas calam-se para sempre sobre este e outros casos. O Acordo
do 7 de Setembro, para a Independência, foi aplicado e tornado público. O Acordo
Militar, Lisboa-FRELIMO da mesma data, mais de trinta anos depois continuará no
segredo dos deuses. Porquê? Será assim tanto o nojo e a revolta que ainda fará
despontar após mais de um quarto de século?
Compare-se ainda, a posição tão diferente da cooperação italiana (e outras) e a
atitude portuguesa. Lisboa faz um frete declarado aos novos governantes de África.
Mas isto de fazer fretes, em proveito de outros, obviamente, já vem de longe. Desde o
meio da década de ‘60, mais que o confronto da guerra fria, as outras potências
europeias e os EUA envolvem-se no continente negro, defrontam Rússias e Chinas,
lançam ou consolidam tentáculos em África. Os impérios prolongam-se por outros
meios. Portugal, parece destinado a perpetuamente perder terreno. Primeiro política,
agora economicamente. A Espanha, a Inglaterra, a Itália e até o Japão, estão por vezes
mais fortementes implantados nos novos países lusófonos que a antiga metrópole, e
sem complexos:
A Itália mantém, e assume, laços com os dois lados do conflito moçambicano.
‘Coopera’ com Maputo e com a Renamo. Paga, e não é atacada, em vários
empreendimentos, em Maputo nos Pequenos Libombos, na Zambézia e em
Nampula. A Hidroeléctrica de Cahora-Bassa e Lisboa não querem ouvir falar em tal
esquema. E sofrem as consequências.
O Governo português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, negam até
que exista em seu território qualquer delegação e delegado da Renamo. Mas através
dos serviços de informação civis e militares, pagos pelos cofres dos Ministérios da
Administração Interna, Gabinete do 1º Ministro e Ministério da Defesa, sustêm
pontes, ainda que ténues, com a Resistência. Em 1982 pagavam ainda um pequeno
subsídio mensal ao movimento, endossado ao secretário-geral Orlando Cristina.
Outros governos não têm qualquer pejo em exibir o seu relacionamento com ambas
as partes do conflito, ao mais diverso nível.
Por último, e não menos importante, é o facto de estes mesmos ‘serviços de
informação’ portugueses serem tidos, até, na conta de risíveis, por parte de
conceituadas agências da ‘inteligência’ internacional, e daí deriva em primeira
instância o facto de o território nacional se tornar ele próprio arena de contenda, e
usado a bel prazer por serviços ou grupos estrangeiros, como no caso do assassínio
do palestiniano Issan Sartawi, no Algarve, ou da própria execução de Evo Fernandes
nos arredores de Lisboa. Nem o sistema de transmissões usado pela Renamo após
1986, entre Phalaborwa e Lisboa, estavam as autoridades portuguesas capacitadas
para interceptar (algo a que só os serviços americanos e soviéticos podiam deitar o
dente), nem se atreveram sequer a apreender o equipamento, um conjunto
NashuaFax e Gretacoder.
E por último, por mais que se divirja sobre a sua importância, o facto
incontornável é que a ‘componente portuguesa’ da Renamo, por mais que militasse
contra interesses portugueses no terreno, só seria de facto silenciada, não por Lisboa,
mas com a morte de Evo Fernandes, a mando de Maputo, em 17 de Abril de 1988. A

276
senda da Paz, ou de uma certa paz, e interesses que o antigo secretário-geral rebelde
demandava cada vez com mais insistência, acabaria por trazê-lo afinal à própria
morte. O governo moçambicano não podia perder a face, ou pelo menos, toda a face,
ao entrar em negociações com a guerrilha. O aniquilar da ‘componente portuguesa’, o
que quer, ou quem quer que isto designasse, com mais ou menos poder, acabaria por
ser o sacrifício pedido, e consentido.

No regresso a Moçambique em 1988 não abdico de forma alguma de uma


série de valores, anteriormente ‘pró-ocidentais’, algumas generalidades cada vez mais
difusas, hoje, que defendi e defendo. Pelo contrário. Compreendo, isso sim, que tanto
RENAMO como África do Sul tentassem forçosamente fazer parte em espírito e em
corpo de um ‘Mundo Ocidental’ que, afinal, cada vez menos as aceitava.
Deixei ainda, de caminho, três ‘conselhos’ aos responsáveis de Maputo, aos
moderados da FRELIMO de hoje, se se quisessem bater politicamente com os que se
clamavam da Oposição: rejeitar e condenar abertamente a política, e o modo de a fazer,
instituída por Machel, e acusar sem desvios ou compaixão o anterior presidente.
Segundo, recuperar e incentivar o regime de regulado, o direito consuetedinário,
relativamente bem aceite pelas populações, como forma de controle administrativo e
jurídico local. Por último, sem inibições nem complexos, efectuar descaradamente
uma ultrapassagem política ‘liberalista’ à RENAMO, pela direita, se é que a
RENAMO então já saberá alguma coisa do que é isso, de Direita e Esquerda, pelo
menos na área económica.

277
APÊNDICES

278
1. DENÚNCIAS DA EXECUÇÃO DE SUSPEITOS DA MORTE DE EX-SG DA
RENAMO ENVOLVEM DHLAKAMA

A agência Lusa tentou obter em 2004 uma reacção do presidente da


RENAMO Afonso Dhlakama, às alegações sobre as execuções de ex-quadros do
movimento, surgidas na comissão sul-africana de Reconciliação Verdade e Paz, mas
tal não foi possível. Dhlakama alegou encontrar-se em constantes reuniões na
preparação de um encontro com o presidente moçambicano, Joaquim Chissano.
No entanto, o então comandante-chefe das Forças Armadas da RENAMO e
negociador do processo de paz de Roma de 1992, Raul Domingos, confirmou apenas
que ‘esses tipos de crime (execuções) passaram-se na África do Sul em pleno regime
do apartheid’, o que torna muito difícil apurar responsabilidades.
O antigo comandante dos serviços de informação das Forças Armadas da
África do Sul (SADF) Cornelius Van Niekerk proferiu declarações que
consubstanciam tais alegações enquanto testemunha de acusação em várias audiências
do julgamento de um perito em guerra química, Wouter Basson, acusado de 61
crimes, incluindo assassínio e fraude. Os novos dados relançaram o mistério que
envolveu a morte do ex-secretário-geral da RENAMO, Orlando Cristina.
Em relação ao assassínio de Orlando Cristina, Raul Domingos prefere afirmar
que ‘nunca se soube quem foram os assassinos’. Mas o perito em guerra química
Wouter Basson é também acusado de ter estado envolvido em agressões aos cinco
membros da RENAMO, os alegados autores do assassínio, através do uso de
químicos durante um interrogatório, em 1983.
O interrogatório e a alegada execução terão sido feitos na Faixa de Caprivi,
Namíbia, por membros da própria RENAMO e com a colaboração dos serviços de
informação das Forças Armadas sul-africanas. Esta mesma versão é agora confirmada
por Van Niekerk, que declarou em tribunal ter providenciado o transporte dos
suspeitos e de membros do ‘Conselho de Guerra’ da RENAMO, acompanhados por
um grupo de sul-africanos, para a Faixa de Caprivi.
Van Niekerk confirmou que naquele local decorreu um interrogatório, dentro
de um bungalow, mas ao qual não assistiu pois ele e outros altos oficiais sul-africanos
mantinham-se no exterior, entretidos com um braai, um churrasco. Van Niekerk
afirma contudo que ouviu tiros e constatou depois que os cinco suspeitos estavam
mortos, alguns com várias balas. O antigo comandante declarou que arranjou lona
para envolver os corpos e correntes para que estes ficassem mais pesados, sendo
depois atirados para o mar, algures no Oceano Atlântico.
Van Niekerk denunciou ainda um plano para matar o alegado espião do
Congresso Nacional Africano (ANC) Roland Hunter, com veneno de mamba, para
encobrir a eventual morte deste e a delação que este providenciou na altura sobre o
envolvimento das Forças Armadas na execução dos cinco membros da RENAMO.
Hunter acaba por ser autorizado a declarar-se culpado de acusações menos graves do
que as de alta traição, para que o envolvimento das SADF com a RENAMO pudesse
ser ocultado, e o plano para o matar não chegou a ser executado.
A acusação chamou ainda a testemunhar um detective que investigou o
assassínio de Orlando Cristina, Mike Holmes, que afirmou que vira o perito químico
Basson a injectar um dos suspeitos com um líquido. O suspeito em causa seria

279
Boaventura Bomba, que terá sido injectado com produtos químicos por Basson, e
mantido vivo desta forma, durante horas, para que fornecesse mais informações antes
de ser executado.

280
2. A HISTÓRIA DOS PLANOS PARA A ELIMINAÇÃO DO CABO ROLAND
HUNTER COM VENENO DE COBRA MAMBA

O Dr. Wouter Basson, o oficial responsável pelo projecto secreto sul-africano


de armamento químico e biológico ‘Project Coast’, terá pedido a cientistas que vieram
a trabalhar no RRL (Roodeplaat Research Laboratories), a principal instalação de
pesquisa, teste e produção de armas biológicas da África do Sul, que lhe fornecessem
uma cobra mamba e toxinas de mamba. Ora este expert terá elaborado um plano em
que usaria tal toxina no assassínio de um ‘traidor’ descoberto nas fileiras das Forças de
Defesa Sul-Africanas, por forma a simular um simples acidente por mordedura de
cobra. Veneno de cobra terá sido ao tempo usado na eliminação de outros opositores
do regime de Pretória.
Ora, o que faz este Basson? Aborda um tal Dr. Goosen que chefia uma equipa
de investigação da Universidade de Pretória, no Centro de Pesquisa Animal, e que
vinha já efectuando diversas pesquisas com veneno de cobras. É aí que obtém o réptil
e a dose de veneno, às seis horas da madrugada de um determinado dia do final de
1983. Basson afirmou que tal serviria para a eliminação de um ‘inimigo do Estado’ e
que tinha que parecer um acidente. Fala também estar interessado em conseguir
outras endotoxinas que não deixassem vestígios e que seriam usadas para misturar em
bebidas ou impregnar tabaco. Os académicos acabam por cooperar e o doutor
Goosen será até promovido a director executivo dos RRL.
Pois bem, vários testemunhos de operacionais da tropa sul-africana
convergem no facto de que depois se tornou claro para todos que o alvo do plano de
Basson era precisamente o cabo Roland Hunter, membro da DST (Directorate of
Special Tasks), um dos ramos da AMI, a Divisão de Inteligência Militar, e um dos
quadros responsável por serviços administrativos da Operation Mila, outro dos nomes
do extenso programa secreto de apoio das Forças de Defesa da África do Sul à
RENAMO.
A secção de contra-inteligência da Division of Military Intelligence descobrira que
Hunter passava ‘informação altamente sensível’ sobre o calendário de voos e
abastecimentos aéreos secretos e pontos de destino em território moçambicano.
Quem eram os receptadores de ‘tão interessante’ informação? Ora, nem mais nem
menos que os arqui-inimigos do regime do apartheid, elementos do ANC (o
Congresso Nacional Africano) com quem Hunter simpatizava, acabando por
pertencer até, ao que consta, a uma das células do movimento na Universidade de
Witwatersrand.
O Coronel Cornelius van Niekerk, responsável da Secção Leste da DST
(apoio à RENAMO e desestabilização em Moçambique) efectuou consultas com
Basson sobre a melhor forma de elaborar o desaparecimento de Hunter sem deixar
vestígios problemáticos. E é então que Basson sugere o seu ‘Plano Mamba’.
Contudo, decide-se posteriormente deixar que o caso seja tratado pelo
Departamento de Segurança da SAP (a South African Police) num low profile, e que
Hunter fosse preso e indiciado simplesmente por traição, o que acaba por suceder a 8
de Dezembro de 1983.
Veneno ofídeo terá sido usado todavia por Basson e elementos operacionais
da sua equipa, noutras operações de eliminação.(…). No julgamento de Basson, Philip
Morgan, ‘um misterioso Mr. Q’, antigo membro das forças especiais rodesianas

281
Selous Scout que mais tarde se juntou a empresas de alta tecnologia como a EMLC,
Elektroniks, Meganies, Landbou en Chemies e a SRD, onde produziu diversas armas
‘especializadas’ para as forças de segurança, testemunhou que viu uma cobra mamba
negra num dos gabinetes de um tal Mijburgh da equipa de Basson. Em duas ou três
ocasiões Mijburgh pediu-lhe que abrisse uns orifícios numa lata de laranjada Game
onde injectou depois uma substância, soldando de seguida os buracos. Tal substância
seria qualquer tipo de veneno, presumivelmente toxina de mamba(…). Em suma, algo
de que Roland Hunter se livrou, mas vindo a ser condenado a cinco anos de prisão.

282
3. MBUZINI: COMO TERÁ SIDO MORTO SAMORA MACHEL. HISTÓRIA DE
UM DESPENHAMENTO ANUNCIADO

(…) A tripulação do Tupolev 134-B de fabrico russo desviou-se do seu rumo


e efectuou uma volta fatal para a direita na direcção da fronteira sul-africana pois
estava a seguir os sinais de um VOR (Very high frequency omnidirectional radio),
uma rádio-ajuda, que não era a de Maputo.(Notes 1)
A caixa negra com os registos de voz da cabina, Cockpit Voice
Recorder, recuperada dos destroços vem confirmar tal facto, e que eles pensavam que
estavam de facto a seguir a rádio-ajuda do aeroporto de Maputo. Evidencia-se dos
destroços que pelo menos um dos mostradores tinha a frequência correcta, a usada
habitualmente por Maputo. [Aim, Agência de Informação de Moçambique, 17.10.87]
Os pilotos encontravam-se sóbrios e fisicamente capazes de desempenharem as suas
tarefas, e que eram membros de comprovada competência, e que as condições
atmosféricas na noite de 19 de Outubro não eram desfavoráveis [AIM:20.1.87]. Que
VOR era o que seguiam, se era o genuíno ou um engano, isso nunca foi determinado.
Duas hipóteses se levantam:
(…) a aeronave foi desviada por interferência electrónica exterior com os seus
instrumentos navegacionais[AIM: 23.10.86].(Nota 1) Engano de índole electrónica
pode ser efectuado por um falso feixe emissor pré-posicionado. Há toda uma
experiência já acumulada levada a efeito pelos israelitas em termos de técnicas de
engano electrónicas e uma vez dominada a técnica de se direccionar um tal feixe de
emissão o processo torna-se deveras simples Uma vez que os sul-africanos gozavam
de uma estreita cooperação militar com Israel isso não seria um problema, que
Pretória se equipasse com todo esse relevante equipamento e know how. [Minty,
SAPEM Nov.1987]. O Presidente Joaquim Chissano acaba por afirmar em Junho de
1987 que a morte de Samora não se tratou de um acidente. (AIM:17.10.87 (Nota 3)
Ou, há a hipótese de a colisão se ter devido a erro do piloto. O tempo estava
mau, afirmam os defensores desta teoria (Nota 4), densamente nublado e que a
aeronave, que estaria correcta se se estivesse de facto a fazer a aproximação a Maputo,
estava com uma altitude demasiado baixa sobre a montanhosa região de Komatipoort
[New African, Dez.1986]. A Comissão de Inquérito Sul-Africana, do juiz Cecil Margo
clama que a colisão se deveu à tripulação soviética pois a aeronave se cingiu a outro
VOR que por engano confundiram com o de Maputo.[AIM Inf. Bull no.127
Febr.1987]
Ora os defensores da ‘conspiração’ alegam que o Presidente Samora Machel
era um alvo principal da África do Sul [AIM:21.10.86] que já duas semanas antes da
queda o acusava de um renovado apoio às guerrilhas do ANC. Pretória bane uma
nova leva de trabalhadores moçambicanos para as minas da África do Sul e nestas
semanas preliminares ao ‘desastre’ conduz efectivamente toda uma prodigiosa
campanha de desestabilização contra Moçambique. A 7 de Outubro o ministro da
Defesa da RSA, general Magnus Malan, ameaça pessoalmente o líder moçambicano.
O tom vitríoloco deste criticismo da África do Sul para com Moçambique e Machel,
especialmente por porta-vozes militares, acaba por dar crédito às teorias de que o
governo da RSA acabou por ficar agastado de vez com Machel e se quis
desembaraçar dele.[AC 12.11.86]. O antigo ministro moçambicano da Informação,
José Luís Cabaço (Int.KdJ 11.94] afirma que embora não existindo provas sufucientes

283
de que a África do Sul tenha morto o Presidente Samora Machel, pessoalmente
acredita que foram responsáveis por tal, pelas razões:
1. Na quarta-feira anterior à morte de Samora Machel, Carlos
Cardoso, director da AIM, Agência de Informação de Moçambique, recebe uma
mensagem a dizer que o presidente faleceu. 2. Antes de partir para Lusaka, na véspera
do fatídico voo, Samora Machel organiza um encontro com os jornalistas, e as chefias
partidárias e militares e diz ter recebido informações que os sul-africanos o
pretendem eliminar. Dá instruções claras do que fazer caso não regresse. 3. E a África
do Sul possuía as razões seguintes para se livrar dele: sob pressão de líderes da Linha
da Frente o Presidente Banda do Maláwi foi forçado com os membros da Renamo
que até aí usavam o país como plataforma para ataques a Moçambique. Banda aceita
as recomendações mas permite que os guerrilheiros se esgueirem de volta às
províncias de Tete e da Zambézia permitindo à Renamo uma larga na Zambezia
(onde a Frelimo possuía um contingente reduzido), chegando a aproximar-se da
cidade de Quelimane, capital provincial e quase cortando Mozambique em dois, o que
aliás providenciaria ao Maláwi uma saída para o mar, segundo alguns alegam.(…)
Se houve conspiração, e quanto à cadeia de comando, tal teria que ter sido
planeado a um nível muito elevado em Pretória, certamente Malan, etcetera, se é que
apenas em Pretória.
Vladimir Novosselov, único tripulante sobrevivente, o tal engenheiro de
bordo, afirma em entrevista [Komsomolskaya Pravada 19.11.86] estar convencido de
que não foi acidente mas um caso de armadilha, o piloto Yuri Novodran, tinha mais
de 25 anos de experiência, bem como os demais: ‘O voo era normal, descolámos,
apontámos a Maputo com o altímetro nos 11.400 metros, sobre a Zâmbia. Após
cruzar a fronteira com Moçambique descemos para os 10.600. Foi pedida depois a
Maputo a respective autorização para aterragem, concedida pelos serviços
aeroportuários. Condições atmosféricas favoráveis. Maputo encontrava-se à nossa
frente e um pouco para a esquerda. À direita e relativamente próxima, a fronteira sul-
africana. Descíamos agora lentamente. Altitude a 5.200 metros. Baixámos então para
os 3.000, ainda a 113 quilómetros da pista de Maputo. O comandante Novodran
desliga o piloto automático e toma o controlo manual do rumo. Um excelente
comandante, bem como o navegador Kudriachov e o operador de rádio, Choulipov,
com mais de 14 mil horas de voo, Nunca conheceram comandante com mais calo que
Novodran. Descemos para baixo dos mil metros. A última coisa que me lembro no
painel de instrumentos é da leitura do altímetro nos 970 metros. [AIM, boletim nº.125
Dez. 1986]
Fernando Manuel João ‘Rendição’, chefe da guarda presidencial, o
sobrevivente com menos ferimentos, conheço-o pessoalmente e é enorme, um
armário, este ‘Rendição’, foi em busca de auxílio. É o segundo desastre aéreo de que
escapa, poucos anos antes sai ileso dos destroços incendiados de um Antonov-26 em
Cabo Delgado onde morre uma série de gente, incluindo a esposa do ministro da
Defesa Alberto Chipande.
Agora é o Fernando ‘Rendição’ quem por volta da meia-noite consegue
contactar a polícia de Komatipoort a partir do telefone de uma missão e pede que
informem Moçambique acerca do despenhamento. Mas de facto o governo
moçambicano só às 06h50 da manhã seria oficialmente informado do desastre pelas
autoridades sul-africanas. Outro sobrevivente, Almeido Pedro, relata como a polícia
da África do Sul surge em cena a revolver a papelada, a colher documentação, e não

284
para tartar dos feridos que gemiam ainda, alguns. Houve gente que pereceu por falta
de assistência. (Nota 5)

Notas:
1. Na transcrição do CVR, o Cockpit Voice Recorder (gravador de voz da
cabina) assume relevância que o Tupolev efectuou tal desvio fatal em direcção à
fronteira pois o sinal VOR que estava a seguir não era o VOR do aeroporto de
Maputo.[AIM, Bol. Inf. Nº.127 Fev.1987]. Às 21h11 e 28 segundos o comandante
afirma ‘efectuando desvio… não devia ser a direito?’ O navegador replica ‘é o que o
VOR indica…’, significando acreditarem estar a seguir o feixe de VOR transmitido
pelo aeroporto de Mavalane, em Maputo. De facto a aeronave acaba de concluir uma
viragem fatal de 37 graus para a direita, para sudoeste. Tal desvio iniciou-se sobre a
zona entre Magude, uma vila a uns 100 kms ao noroeste de Maputo, e a fronteira sul-
africana. E significa tal que o aparelho se encontra agora a afastar-se de Maputo e não
a efectuar a aproximação devida à capital como a tripulação pensava. Até Magude, o
aparelho voava com um ligeiro desvio de apenas 4 a 6 kms em relação ao plano de
voo estabelecido, isto é perfeitamente normal e em termos navegacionais significa que
se mantinha no seu rumo.
Os sul-africanos ainda tentaram passer a ideia de que o avião se teria fixado ao
VOR do aeroporto de Matsapa, junto a Manzini, na Suazilândia, e o único outro
VOR que legitimamente se poderia conceber como podendo ter sido tomado pelo de
Maputo, por engano. Só que os VORs de Matsapa e Maputo operam em frequencies
de radio diferentes. O relatório aos destroços mostra sem dúvida que o VOR do
aparelho estava fixado para os 112,7 Mhz, a frequência do VOR de Maputo. A
tripulação estava farta de voar para Maputo, sendo 70% das aterragens nocturnas.
Sabiam bem quais eram as frequencies e de forma alguma foram enganados por
Matsapa pois até tal rumo que seguiriam, extrapolado, se entrassem em espaço da
Suazilândia, passaria a 35 kms de Matsapa, a leste. Quando uma aeronave segue um
VOR acabará por passer sobre ele, directamente. A ‘radial’ 045 graus do VOR
Matsapa (um VOR transmite-se pelos 360 graus) e cada radial tem um certo código
de identificação, é uma das aproximações a uma das pistas desse aeroporto. Só que tal
radial nada tinha a ver com o rumo tomado, interceptava-o vários quilómetros a
nordeste de onde ocorreu tal desvio de rota. Não, o Tupolev não podia ter virado de
acordo com a teoria de que seguiria tal radial do VOR de Matsapa. As evidências pelo
contrário apontam para a outra hipótese de que terá seguido um VOR enganoso e
poderoso que o afastou da rota, e estava a transmitir na mesma frequência do de
Maputo, que foi entretanto desligado bem como as luzes de sinalização do próprio
aeroporto, tal como várias fontes indicaram.
(…)
3. Embora o Tupolev tivesse penetrado numa zona military e operacional do
espaço aéreo sul-africano, espaço aéreo especialmente restrito sob vigilância apertada
de radar 24 horas por dia, com todo um sofisticado sistema de defesa já
computadorizado, o sistema de radar Plessey AR-3D, integrado desde 1982 num
sistema de controlo e comando, não foi emitido qualquer aviso de que a aeronave
estava fora de curso e a penetrar no espaço aéreo da África do Sul. Nem um alerta de
que as montanhas apresentavam um perigo imediato para aquele avião. Nenhuma
acção preventive foi efectuada de acordo com o jornal de Johannesburg, 'Business
Day' de 21.10.86, citando uma força governamental sul-africana. E o avião

285
presidencial estava afinal a ser seguido pelos radars da África do Sul já há centenas de
quilómetros, mesmo ainda quando sobrevoava território do Zimbábue. Mesmo assim,
nenhum aviso soou. [AIM 18-25.11.86]
Questão: Porque não avisou o sistema de controlo aéreo sul-africano o piloto
do Tupolev 134 de Samora Machel de que se encontrava for a da rota e na iminência
de penetrar no espaço aéreo da África do Sul?
Questão: Que acampamento militar misterioso era esse, surgido semanas
antes junto ao local de queda? O comportamento sul-africano no rescaldo imediato
da queda foi também suspeito. A polícia chegou às duas da madrugada e o auxílio
médico só por volta das 06h00, 4 horas após. E só 9 horas após a ocorrência às 06h50
informaram Maputo. E mesmo assim inicialmente disseram que havia sido na
província do Natal a mais de 200 kms do local.
Questão: A África do Sul sabia de que avião se tratava, onde e quando.
Porquê toda essa espera e informação enganosa? Questão: Porquê sse atarefaram
antes com a papelada dispersa entre os destroços do que em auxiliar os poucos
feridos?
Está bem documentado que nos dias antecedentes ao desastre assistiu-se a um
crescendo da presença militar no Transvaal oriental (incluindo o local da queda) e à
colocação em Komatipoort de uma unidade de recce (Comandos de Reconhecimento),
as unidades avançadas por excelência. No dia do despenhamento existia já todo um
alerta militar em todo o Transvaal leste e norte e as autoridades sul-africanas
admitiram mesmo posteriormente que seguiram pelo radar o avião presidencial
[AC:12.11.86]. Há toda uma morosidade suspeita na chegada ao local da queda dos
efectivos da própria tropa sul-africana, no meio deste dispositivo todo. Onde é que se
encontravam então os militares sul-africanos? O relato factual da comissão de
inquérito internacional dá conta de que encontrou já abandonado um acampamento
militar no lado sul-africano da fronteira comum com Moçambique, aproximadamente
150 metros a sudeste do sítio onde a aeronave primeiramente embateu no solo.
Testemunhas do lado moçambicano da fronteira afirmam ter sido desmontada e
removida uma tenda grande no dia imediato à ocorrência. ‘O comandante da
companhia do exército sul-africano da área de Komatipoort afirma não ter
conhecimento de quaisquer acampamentos com tendas grandes naquela área
específica’. [AIM:22.1.87].
E segue-se ainda toda uma montanha de desinformação: primeiro, identificam
o engenheiro de bordo como sendo o piloto. O engenheiro de bordo sobreviveu,
encontrava-se na altura do embate nas traseiras da aeronave. Relatos (de Pik Botha
1/11/86) de que havia certa quantidade, pouca, de alcóol no sangue do navegador e
co-piloto sugerindo que os russos, amantes de vodka por natureza, estavam
embriagados. Quantidades mínimas de alcóol são produzidas na decomposição de
seres vivos, claro, de forma natural. É ainda o ministro dos estrangeiros sul-africano
Pik Botha que afirma ser a aeronave velha e obsoleta, referindo não estar equipada
com um dispositivo de alerta de proximidade ao solo. Algo que é categoricamente
rejeitado. O Tupolev 134 foi fabricado em 1980 – tinha meia dúzia de anos. E possuía
tal dispositivo e outro equipamento electrónico da última geração da altura, usando
circuitos integrados, devidamente actualizados nesta tecnologia.[AIM:2.11.86], mas
que não estaria a funcionar desde há duas semanas! Avariado, avaria provocada ou
não, e não substituído.

286
4. O director da meteorologia moçambicana, Sérgio Ferreira, reafirma que o
tempo estava bom na parte meridional de Moçambique exibindo fotos de satélite com
toda a sequência ao longo do dia, algum aumento depois da nebulosidade no fim do
período mas a visibilidade permaneceu boa. [AIM 27.10.86]

287
4. A HISTÓRIA SECRETA DA VOZ DA ÁFRICA LIVRE OU ‘RÁDIO
QUIZUMBA’ (HIENA)

Com a assinatura do acordo de Nkomáti, chegavam ao fim quase nove anos


de emissões piratas dirigidas para Moçambique e com origem, primeiro, na Rodésia
do Sul e, mais tarde, numa zona do Transvaal, África do Sul, algures entre Pretória e
Johannesburg.
A Voz da África Livre, apelidada de ‘Rádio Quizumba’ (hiena) pelas
autoridades moçambicanas, surgiu logo em 1976, no ano seguite à independência,
operando a partir de Gwelo, hoje Gweru, na ex-Rodésia. Cedo se mostrou ser o
órgão principal de propaganda do MNR-RNM, acrónimos vários da Resistência ou
RENAMO. Os primeiros tempos são contudo marcados por emissões feitas
autenticamente num estilo de saudosismo dos tempos coloniais, onde Orlando
Cristina aparece como realizador e locutor dos programas. O tempo de antena não
excedia em regra os cinco minutos e ia para o ar intercalado numa retransmissão em
onda curta da Rhodesia Broadcasting Corporation, a emissora oficial rodesiana.
Na realidade, só mais tarde as emissões adquirem o nome de ‘Voz da África
Livre’, atingindo os programas a duração de trinta ou sessenta minutos, transmitidos
em onda curta nos noventa e nos sessenta metros e, posteriormente, ganhando um
espaço, com um emissor mais potente, na faixa de onda média.
Num certo estágio das transmissões em Gwelo, os rodesianos usaram um
emissor de 100 quilowatts em onda média alcunhado de ‘Big Bertha’ pelos serviços
secretos de Salisbúria. Tal emissor também servira no passado a rede de transmissões
da rádio oficial da Rodésia do Sul.
A banda de onda curta dos 60 metros tem sido deveras a mais utilizada pelas
estações clandestinas transmitindo para os Estados vizinhos da África do Sul. Entre
1976 e 1984 pelo menos onze destes postos de rádio, alguns servindo-se do mesmo
transmissor, na mesma frequência ou em frequências diferentes, foram detectados
como estando a operar a partir de território sul-africano ou da antiga Rodésia. Uns,
não passariam de ‘estações’ de experiência, para programas posteriores, que serviriam
movimentos como a UNITA e a RENAMO.
A VOBCR da UNITA, Voice of Black Cock Resistance, ou seja, A Voz do
Galo Negro, utilizava a frequência dos 4 950 quilohertz, usada também em certa
altura pela Voz da África Livre, mais tarde Voz da RENAMO. Nos estúdios da Voz
da RENAMO apareceram por diversas vezes em 1983 e 1984 entre as fitas que
chegavam para serem regravadas, bobinas contendo programas de propaganda em
espanhol e que eram destinados aos militares cubanos em Angola.
No início de 1980, pouco antes da independência do Zimbabwe, as emissões
da Voz da África Livre haviam mudado de novo, da onda média para a onda curta,
numa frequência ocupada meses antes pelas ‘estações-teste’ RBD, Radio Big Daddy, e
RDB, Radio Danny Boy, emitindo de território sul-africano. É precisamente na
mesma altura em que se dá início às transmissões da Voz do Galo Negro, da UNITA.
A frequência usada então pela ‘África Livre’ era a dos 4.762 khz, a mesma de
emissões da RBD e da RDB, e do programa especial para os militares cubanos em
Angola, não identificado, que operou igualmente nos 7.210 khz, mais outra
frequência em que se escutaram os testes ‘Big Daddy’ e ‘Danny Boy’. Em Setembro
de 1981 a Voz da África Livre operava tanto em 4.762 khz como em 4.950 khz.

288
Devido a interferências da emissora religiosa Transworld Radio, emitindo a partir da
Swazilândia com grande potência, a Voz da África Livre / Voz da RENAMO
mudaria a sua frequência para os 4.772 khz, em Novembro de 1983.
Especialistas de rádio concordam com a tese de que as diversas estações, ou
pelo menos algumas delas, eram de facto uma só, funcionando com um mesmo
emissor, de antenas orientadas, e com capacidade para mudar de frequência.

289
5. A HISTÓRIA DO ‘NAMORO’ ENTRE WASHINGTON E MAPUTO

Alguns dos meios mais conservadores em Washington alegam no princípio de


1988 que armamento ligeiro e equipamento militar, incluindo metralhadoras,
morteiros, ‘jeeps’ e camiões, de origem soviética, haviam sido dados nos últimos
cinco anos pela Administração norte-americana a Moçambique. Tal ajuda, segundo
círculos direitistas pró-RENAMO, terá atingido os dez milhões de dólares.
Em 25 de Fevereiro de 1988 o ‘lobby’ pró-RENAMO nos EUA reúne-se para
debater este rumor, tornado público treze dias antes pela organização conservadora
‘Heritage Foundation’. A 26 do mesmo mês, elementos do Mozambique Research
Center, uma nova fachada da delegação da RENAMO nos Estados Unidos, estão a
tentar obter junto do Congresso americano mais dados sobre aquilo a que
denominavam já de ‘Mozambigate’.
A ajuda militar dos Estados Unidos a Moçambique, sugerida já em 1984 pelo
então presidente moçambicano Samora Machel, através de um qualquer esquema
envolvendo fundos para a cooperação do orçamento federal, fora expressamente
proibida pelo Congresso (pela Emenda Helms, 1985) quando uma proposta de auxílio
nesse campo foi aventada. Tal ajuda envolveria a entrega de material não-letal avaliado
num milhão de dólares. Segundo o Congresso, Maputo deveria, entre outras
condições, limitar a um máximo de 55 o número de conselheiros militares
estrangeiros.
O ‘Backgrounder’, jornal da Heritage Foundation, e o diário conservador The
Washington Times, afirmam entretanto que a ajuda militar secreta a Maputo terá sido
confirmada por ‘um alto membro da Administração Reagan’, e que fazia parte de um
esforço no sentido de ‘levar Moçambique a atenuar laços com a URSS’. Os mesmos
relatos referem ainda que a ajuda encoberta incluiria pessoal de segurança para a
escolta do próprio presidente moçambicano.
Em Lisboa, fontes diplomáticas sul-africanas consideram tais notícias ‘simples
rumores sem fundamento, ainda para mais recorrendo a armamento soviético.’
Quanto a material americano ‘não fora detectada qualquer espingarda de assalto M-16
em Moçambique’. As mesmas fontes, ligadas ao departamento militar da embaixada
de Pretória, confirmam porém a entrega pelos sul-africanos a Moçambique, desde o
Acordo de Nkomáti, de dúzias de camiões militares para ajuda na protecção às linhas
de Cahora-Bassa.
A Casa Branca e o Departamento de Defesa americano declinam em
comentar as informações. O Departamento de Estado, após adoptar de início a
mesma posição, não nega a notícia, acrescentando apenas, em 26 de Fevereiro: ‘nós
obedecemos à Lei’. Os apoiantes da RENAMO em Washington reagem. Alegam que
a ajuda militar poderá mesmo ter sido feita, sem chocar com a lei, socorrendo-se de
orçamentos para fins diversos que não o relativo à assistência e cooperação. Adiantam
ainda, citando Grover Norquist, conselheiro de Pete du Pont, um ex-candidato
republicano às eleições presidenciais, que o fornecimento desse auxílio fora
‘confirmado’ por um oficial da DIA, a Defence Intelligence Agency. Alegam também
que Portugal teria sido um dos países utilizados na canalização desse equipamento:
‘foreigner manufactured equipment was channeled through Portugal’.
Fontes da embaixada dos EUA em Lisboa mostraram-se surpresas sobre a
questão de Washington poder estar a fornecer armamento à FRELIMO, mas não

290
podem confirmar ou desmentir a notícia. Colocam a hipótese de que tudo poderá ser
apenas uma manobra inserida na campanha para as presidenciais, da autoria de Bob
Dole, um senador então pró-RENAMO e correndo contra George Bush (pai). E o
‘lobby’ da RENAMO nos Estados Unidos contrapõe, declarando que a primeira
‘fuga’ de tais informações partira do próprio Departamento de Estado, ‘gente do
Bush’. Mas, admitem que Dole também lá possa ter alguém.
Recorde-se entretanto que de 1981 a 1987 Moçambique recebera já dos EUA,
em ajuda humanitária e outra, mais de 241 milhões de dólares. De salientar ainda que
a então embaixadora americana em Maputo, Melissa Wells, e organizações
humanitárias dos Estados Unidos como a AID, oficial, ou a CARE, não-
governamental, há algum tempo que vêm insistindo na necessidade de um ‘auxílio
militar adequado’ para proteger a distribuição de assistência.

Apesar de desmentidos do Pentágono, persistiram fortes indicações de que


terá ocorrido no dia 3 de Fevereiro de 1988 na capital portuguesa, uma reunião entre
o primeiro ministro moçambicano Mário da Graça Machungo e o então secretário da
Defesa norte-americano Frank Carlucci. Círculos da própria chancelaria americana
consideraram ‘muito pouco provável’ ter ocorrido o encontro dentro da
representação diplomática, mas fontes em Washington afirmam terminantemente que
Carlucci esteve por hora e meia incommunicado na embaixada, a altura em que pode ter
recebido Machungo.
O Pentágono confirmou entretanto a visita realizada em fins de Janeiro de
1988 a Maputo pelo tenente-general Howard Crowell Jr.., Chefe do Estado-Maior do
Comando das Forças dos Estados Unidos na Europa. A viagem, considerada de
‘orientação’, e que envolveu ainda um diálogo com diversos líderes de outros países
da região, permitiu a Crowell um encontro com os mais altos membros do governo
moçambicano. As autoridades moçambicanas teriam aproveitado a visita de Howard
Crowell para reiterar o seu interesse na abertura imediata de uma cooperação militar
entre os dois países.
Confirma-se também que é precisamente o Alto Comando das Forças dos
Estados Unidos na Europa, o EUCOM, que desde 1987 passou a supervisionar as
questões militares e diversos conflitos que se desenrolam em grande parte do
continente africano, incluindo Moçambique. A informação é corroborada por um
mapa tido anteriormente como ‘secreto’ e elaborado em princípios de 1987.
Crowell, saliente-se, ocupava o terceiro lugar na hierarquia do EUCOM,
possuindo uma ligação constante e directa ao general J. R. Galvin, o presidente do
EUCOM, e centralizando todas as matérias relativas a logística, informação, pessoal e
administração.
Nesta sua viagem à África Austral, que incluiu também escalas no Zimbabwe,
Maláwi e Tanzânia, o tenente-general Crowell fez-se acompanhar por um grupo de
onze conselheiros, destacando-se nestes o ‘political adviser’ do EUCOM, o
embaixador A. C. Davis. Em Maputo, a delegação do EUCOM teve encontros com o
presidente Joaquim Chissano, com o ministro da Defesa, Alberto Chipande, e com
quase todo o gabinete governamental.
Informações de bom nível asseguram que os interlocutores moçambicanos de
Crowell se manifestaram abertos a todo o tipo de assistência militar dos Estados
Unidos: material de guerra, apoio logístico e treino. Outras informações adiantadas
em Washington, sensivelmente nesta altura, por Charles Freeman, o então assistente

291
do subsecretário de Estado para Assuntos Africanos, e feitas em privado durante a
visita aos EUA do primeiro ministro português Cavaco e Silva, referem efectivamente
o interesse do Departamento de Estado na concessão de ‘um pequeno auxílio militar’
a Maputo.
Os responsáveis militares americanos que visitaram Moçambique no início de
1988, confirmam também que os moçambicanos dão uma certa preferência ao estilo
de treino dado pelos Ocidentais, e salientam a satisfação de Maputo, por exemplo,
quanto ao trabalho de formação recebido no Zimbabwe e que é ministrado pelos
ingleses do BMATT, British Military Assistance Training Team.
A juntar à lei do Congresso que inviabilizou até agora a concessão de auxílio
militar dos EUA a Maputo, existiram outros óbices: a imagem da situação em
Moçambique relatada pela embaixada local dos Estados Unidos pesou com certa
força, pelo menos até à altura em que a embaixadora Melissa Wells tomou posse. A
partir daqui, a representação diplomática passou a contar também com um adido
militar, e o respectivo adjunto, mais em sintonia com a posição da chefe da missão. A
cooperação militar com Moçambique tivera no anterior adido militar, o tenente-
coronel Doyle Raymer, um sério adversário. Ao tempo de Melissa Wells, o adido
militar Richard Anthony Rodrigues e o seu adjunto, Randy L. Nored, seriam
considerados mais ‘neutros’ e sem levantarem objecções aos relatórios da
embaixadora.
A remoção do tenente-coronel Doyle Raymer, os massacres contínuos
atribuídos à RENAMO e a morte, presumivelmente por assassínio, do ex-embaixador
de Moçambique em Lisboa, mais tarde quadro da RENAMO, e no qual alguns meios
da Administração Reagan se sentiriam dispostos a apostar, ajudaram a que a
FRELIMO avançasse numa melhoria da sua imagem perante Washington,
comparativamente à oposição armada. Por seu lado, Maputo firmou também no
princípio de 1988 um contrato anual de 67.500 dólares com uma empresa de
marketing, a Bruce Cameron, com o fim de montar uma campanha na imprensa e de
mover influências com o propósito de melhorar a imagem do país nos meios norte-
americanos.
Corroborando factualmente o parágrafo acima, círculos diplomáticos dos
EUA em Lisboa são categóricos ao afirmar que após acontecimentos como o
massacre de Homoíne, imputado à RENAMO, e com a morte de João da Silva
Ataíde, os Estados Unidos decerto que não irão dar um único cêntimo ao movimento
de Dhlakama. A análise de Washington em relação à RENAMO passa doravante a
recair em apenas três figuras, consideradas significativas: o ex-secretário-geral da
organização, assassinado posteriormente em Abril de 1988, o chefe militar dos
guerrilheiros e líder, Afonso Dhlakama, e o ‘mestre’ do plano de desgaste sul-africano
contra Moçambique, e brigadeiro da Inteligência Militar da África do Sul, Cornelius
‘Charlie’ Van Niekerk. Tudo, figuras que os americanos não eram capazes de
controlar.

292
Quando Cély acabou a leitura, a garrafa jazia inerte na horizontal, oca,
apontando para meia dúzia de latinhas de água-soda. Os sobrinhos, enrodilhados nas
mantas, dormiam há muito. Edson até ressonava. Custou a fixar-se-lhe o olhar no
mostrador do relógio. Apagou a lâmpada de quarenta velas, mas uma claridade ténue
coava-se já pela janela, anunciando para breve o nascer de um novo dia. Às doze, lá
teria que estar no aeroporto, para as últimas formalidades e o adeus à urna que seguia
para Portugal. Agora, agora nada seria o mesmo.
O dossier... Ele, afinal, nunca se mostrou muito interessado em editá-lo.
Tivera ainda coragem, sim, tivera força para escrevê-lo, mas não quisera dar-lhe a
forma de livro, sabe-se lá porquê. Dizia que já havia gasolina a mais na imensa
fogueira moçambicana. Era isso, pensou ela. Mais valia que fossem aquelas quase
duzentas folhas a consumirem-se num fogo purificador.
Era segunda-feira. Abriu bem as janelas da cozinha e a porta das traseiras,
para deixar escapar os últimos rolos de fumo que se elevavam do lava-louças, onde
acabara de arder o livro que nunca o seria. Pela primeira vez, em muitos anos,
permitiu-se beber uma chávena grande de café, bem forte, que ajudou a expulsar o
hálito do whisky.
Sim, tinha que empunhar a ‘arma caída’. Ela, que em tempos já o ajudara nas
filmagens de casamentos, quando iniciaram o negócio, estava pronta a olhar a vida de
frente, a ir para a luta do dia a dia. Restavam-lhe as duas câmaras de vídeo super-VHS,
a mesa de montagem, o outro equipamento. Pegando na pequena agenda esverdeada
que havia sido dele, sublinhou os números telefónicos da empresa de fauna e das
conservatórias do Registo Civil. Até ao fim-de-semana, jurava, havia de ter uma
reportagem na mão.

– Mas, Ti Cély... nome dele era mesmo Makwakwa ?


– Não, tá claro que não, trombadinha. Esse foi um nome arranjado pelos
amigos do pára-quedismo. E foi aí que tudo começou...18
– Tiiiiaaa! Tiiiiiaaa!!!, os berros da criança, vindos da cozinha, pareciam urros
agora: ‘Deitou fogo minhas coisas, cadernos da escola! Ardeu tudo!!! Tia tá doente
mesmo!!!’

E o livro sobreviveu.

18 A alcunha nasceu numa noite distante de 1978, durante uma marcha em corrida até à zona da Costa
do Sol, ainda como aluno paraquedista. O instrutor era um tal Carlos, o ‘Vietname’, e o cómico é que o
verdadeiro Makwákwa era um tipo também alto mas negro como o nome, da região de Inhambane,
deixa entender. No meio do esforço da marcha tudo se confundia e foi a risada geral quando um se
vira para mim a chamar Makwákwa. Claro que o dito logo se transformou em alcunha, pelo menos ali
entre a malta do Paraquedismo e do Aeroclube.

293
‘Apocalypse Now’ acaba por ser uma referência, esse filme que vira em Lisboa
no velho Monumental, em fins de 1979. Écran gigante, som Dolby surround. A
guerra, o napalm, Wagner estrondoso, bailado de helicópteros, a insanidade à solta
que adeja e se infiltra como um rio selva adentro e que tudo engolfa.
Como não cair na tentação de comparar assim a guerra que de um lado e
outro se ateia em Moçambique?
O delírio visual, a banda sonora, a ‘Voz’: o monólogo grave de Brando. As
dúvidas e rebates de Willard em ‘off ’ e que lhe destroem a fé. Há algo que fica, que
teima em persistir e procura explicar este rasgão na alma e no racional, um rasgão por
onde o napalm se escoa, tudo dissolve, e derrete consciências para, inutilmente, tentar
tudo resolver e apagar. Esmagador.
Talvez por tudo isso me tenha permitido usar (e abusar) aqui de algumas
referências e citações.

294
Este livro é dedicado a todos os que lutaram por Moçambique

A guerra civil moçambicana não fez escolhas quanto às vítimas. Ceifou gente simples
embrulhada em capulana, em serapilheira ou mesmo em cascas de árvore. Atingiu também aqueles
que trajavam ‘Pierre Cardin’, safari ou camuflado. Muitos. De um lado e do outro, confundindo-se
na tragédia armada dos dias, nessa vida quotidiana marcada a chumbo, dissolviam-se igualmente
juntos no negrume da noite, da emboscada, e da morte. Sem a farda, eram uns e outros os mesmos,
vítimas deste conflito sangrento que a todos chacinava e baralhava. Só assim, nessa amálgama
confusa, jogo de espelhos que a propaganda ampliava, se compreende a frase que ouvi a um camponês
em Nampula: “De manhã cumprimentamos ‘Bom dia Camarada Soldado’ e à noite dizemos ‘Boa
noite Camarada Bandido’!”

Lista de intervenientes entretanto desaparecidos:

Orlando Cristina, ex-secretário geral da Renamo, morto nos arredores de Pretória


Evo Fernandes, ex-secretário geral da Renamo, morto perto de Lisboa
Boaventura Bomba, ex-director da Voz da África Livre, executado na África do Sul
John McKola, moçambicano, sargento no exército da África do Sul, na logística de apoio à
Renamo, executado na África do Sul
Comandante Henriques Samuel, comandante de uma das zonas operacionais, morto em
combate
Chefe José Domingos, comandante do acampamento na África do Sul, a Base de Comando
Recuado, morreu no interior de Moçambique num acidente com um obus de morteiro
José Fatendo, agente médico, morreu no interior de Moçambique, por doença
Inácio Chondze , quadro da delegação em Lisboa, morreu em Maputo, por doença
Johann Hurter, o ‘Voluntário’, tenente do exército da África do Sul, ‘suicidou-se’ na Namíbia
João da Silva Ataíde, ex-embaixador de Moçambique em Lisboa e, depois, quadro da delegação
da Renamo, morto no Maláwi
José Alfredo da Costa/ Mateus Lopes, enviado especial de Dhlakama, morto no Maláwi
Ricardo de Melo, jornalista da Rádio Comercial, em Lisboa, morto em Luanda
Carlos Cardoso, que enquanto director da AIM (Agência de Informação de Moçambique) me
entrevistou duas vezes após o meu regresso a Maputo, foi morto na capital moçambicana em fins de
2000
Já a encerrar a revisão destas folhas, chega-me em 10 de Março de 2006 o choque do brutal e
misterioso assassinato, na cidade da Beira, do José Gaspar Mascarenhas, o ‘Chico’.

Nota: qualquer semelhança entre personagens e acontecimentos descritos neste livro com
pessoas e casos da vida real não será pura coincidência.

Maputo, Dezembro 1989 / Lisboa, Março 2006

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