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HOWARD S.

BECKER

MUNDOS DAARTE
EDIÇÃO COMEMORATIVA DO 25.º ANIVERSÁRIO
REVISTA E AUMENTADA

TRADUÇÃO:
Luís San Payo

Livros
Horizonte
ÍNDICE GERAL

Índice de Ilustrações ........................................................................................................ 7

Prefácio à Edição Çomemorativa do 25.º Aniversário..................................................... 9

Prefácio à Primeira Edição............................................................................................... 21

Agradecimentos .............................................................................................................. . 25
Tiwlo:
Mundos da Arte
Tiw/o original:
1. Mundos da Arte e Actividade Colectiva ..................................................................... . 27
Art\Vorlds
Autor:
2. As Convenções ............................................................................................................ . 58
Howard S. Becker
Tradução: 3. A Mobilização dos Recursos ....................................................................................... . 80
Luís San Payo
Rel·isiio: 4. A Distribuição das Obras de Arte ................................................................................ . 99
Carlos Pinheiro e Raquel Mouta
Capa: 5. A Estética, os Estetas e os Críticos .............................................................................. . 127
Vasco Rosa
À 6. A Arte e o Estado......................................................................................................... . 152
1Q 1982, 2008 Thc Regents ofthe Univcrsity ofCalifomia
7. A Obra e a Sua Versão Definitiva................................................................................. 172
Publicado sob autorização de University ofCalifomía Prcss

© Da edição portuguesa: Livros Horizonte, 2010 8. Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs ................................ . 196
ISBN 978•972-24-1585•9
9. Arte e Artesanato ......................................................................................................... . 229
Paginação:
Gr.ífica 99
Impressão:
l O. A Mudança nos Mundos da Arte ............................................................................... . 249
Tipografia Lousanense
Outubro 2010 11. A Reputação .............................................................................................................. . 287
Dep. lcgal n.º 317531/10
12. Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário .............................................. . 302
"
Reservados todos os direitos de publicação
Bibliografia ..................................................................................................................... . 313
total ou parcial para a língua portuguesa por
LIVROS l)ORIZONTE, LDA.
Rua das Chagas, 17-1.º DLº-1200-106 LISBOA Índice Remissivo ............................................................................................................. . 321
E~mail: geral@lhTOshorizonte.pt
www.livroshorizonte.pt

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

1. Página de uma série de Sholamin-e («representações de várias ocupações»), período


Edo, Japão; artista, poeta e calígrafo desconhecidos................................................. 36

2. Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q.................................................................................... 43

3. e e cummings, «r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-n>....................................................................... 48

4. Três desenhos realistas de uma árvore....................................................................... 51

5. Jim Sohm e Diana Weber em Romeu e Julieta de Prokofiev pelo San Francisco Ballet.... 60

6. Símbolos convencionais para indicar as casas de banho de homens e mulheres...... 61

7. Interpretação de Formal III pelo Oberlin Dance Collective...................................... 65

8. Mestre dos Painéis Barberini,Anunciação: Reflexão................................................ 67

9. Partitura de Formal II de Randolph Coleman ........................................................... 74

l O. Robert Frank, Navy Recruiting Station, Post Office Butte, Montana ..................... 77

11. Interpretação da peça Oedipus de Harry Partch . ........... ....... ............. ........... ..... .. .. . ... 85

12. Cena do filme Sob a Bandeira da Coragem, realizado por John Huston.................. 93

13. Programa de um concerto dado pàr Ludwig vau Beethoven a 2 de Abril de 1800 . .. 131

14. Cartaz anunciando «The Bus Show»......................................................................... 134

15. Exposição «The B.us Show»...................................................................................... 137

16. Marcel Duchamp, En avance du bras cassé.............................................................. 139

17. Andy Warhol, Brillo .................................................................................................. 140

18. Marcel Duchamp, Fonte............................................................................................ 145

19. Júlio César de Shakespeare numa encenação de Orson Welles,


com um guarda-roupa moderno....................................................................................... 160

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Mundos da Arte

20. Howard S. Becker, The Blessing of the Fishing Fleet in San Francisco, fotografia
e prova de contacto···········································:························································ 175
21. A pe1formance Cookie pelos membros do Tactile Art Group ................................... 182

22. Charles Ives ............................................................................................................... 202

23. Conlon Nancarrow e a instrumentária para criar as suas composições para piano... 210

24. Padrões de colchas..................................................................................................... 215

25. Reclusos cantando..................................................................................................... 218

26. Simon Rodia, as Torres Watts.................................................................................... 221

27. James Hampton, Throne ofthe Third Heaven of the National Millenium General PREFÁCIO
Assembly ................................................................................................................... . 222

28. Robert Arneson, Sinking Brick Plates ...................................................................... . 235 À EDIÇÃO COMEMORATIVA DO 25.º ANIVERSÁRIO
29. Marilyn Levine, Brown Satchel................................................................................. 236

30. Robert Arneson, Tjpewriter....................................................................................... 237


AVANÇAR À MEDIDA QUE SE FAZ: COMO EU ESCREVI MUNDOS DA ARTE
31. Robert Ameson, A Tremendous Teapot...................................................................... 238

32. (a) Gertrude Kasebier, fotografia sem título.............................................................. 247 Mundos da Arte foi publicado em 1982, após vários anos de gestação, leituras e
(b) Robert Frank, Covered Ca,; Long Beach, Califórnia.......................................... 248 pesquisas. Não era um «projecto» na sua acepção habitual. Não me limitei a investigar
um grupo de artistas (os músicos de jazz de Chicago) ou uma determinada comunidade
33. James M. Davis, The Railroad, 'Tis Like Life ........................................................... 262 artística (o mundo do teatro de São Francisco) ou uma forma específica de arte praticada
34. Fabrico de estereoscópios na Underwood & Underwood ......................................... 266 num determinado contexto. Partiu, pelo contrário, de um conjunto de considerações
de base empírica sobre as várias questões que nos podemos colocar e os tipos de es-
35. Armazéns da Underwood & Underwood .................................................................. 267
tratégias a que recorreríamos se nos predispuséssemos a estudar qualquer um destes
36. Anúncio de estereogramas no catálogo da cadeia de lojas Sears-Roebuck...................... 269 fenómenos. Portanto, pode-se dizer que Mundos da Arte é um modo de olhar para as
artes com o objectivo de criar problemáticas de investigação. O meu mentor, Everett
37. A Buddy Petit Jazz Band de Nova Orleães................................................................ 274
Hughes, sempre me avisara para evitar o excesso de teorização, algo que segundo ele
38. A Jimmie Lunceford Orchestra.................................................................................. 274 seria coisa para realizarmos no final da carreira, e eu tomava-o a sério. Mas eu tinha
39. Anónimo,A Dewy Morning-The Farmers Swprise............................................... 277 muitas ideias que se adaptavam melhor a uma abordagem comparativa do que à obser-
vação minuciosa de um caso isolado, e assim que comecei a pensar seriamente nelas
40. Estereoscópios na sala de aula................................................................................... 278 não tive outra alternativa senão procurar onde é que elas me levariam.
41. Alfred Stieglitz, The City ofAmbition ....................................................................... 281 Visto de outra perspectiva, claro, Mundos da Arte é investigação empírica, embora
muitos dos dados empíricos tenham sido reunidos ou criados por outras pessoas e com
42. Walker Evans, HollSes and Billboards, Atlanta, Georgia, 1936 ................................ 284
outras finalidades, tendo-me eu limitado a utilizá-los. Também recorri muito à minha
experiência de vida como material bruto. São ambas boas fontes de dados e de ideias
para qualquer trabalho de investigação.
De qualquer modo, eis como tudo aconteceu.
Em finais dos anos sessenta tinha já realizado vários grandes projectos sobre
problemas de ensino centrados naquilo que eu e os meus colegas chamávamos «cul-
tura estudantil» - as visões partilhadas que ajudavam os estudantes a ultrapassar as
dificuldades que lhes eram criadas pelos professores, directores de escolas e outros.

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Mundos da Arte Prefácio à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

Tínhamos estudado a «cultura estudantil» numa faculdade de medicina (Becker et ai., nós os emergimos, os inventamos em resultado do que aprendemos quando encetamos
1968), numa politécnica (Becker et ai., 1968), e em vários estabelecimentos de ensino o noss~ trabalho. Isto implica usar o que aprendemos diariamente, aplicando todas
vocacional (escolas comerciais e profissionais) (Becker, 1972). Eu tornara-me muito as teonas que temos sobre essas descobertas diárias e depois, baseados nisso, gerar
bom nestes estudos. Ficara com a sensação - claro, não exacta, mas era o que sentia na novos problemas e perguntas. Fazemo-lo com a ajuda de ideias geradoras, aquilo a que
altura - de que poderia encetar qualquer nova pesquisa nesta área e, em poucos dias, Herbert ~lu~er (1~69, _?P· 147-52) chamou «~onceitos sensibilizadores». A ligação
obter os resultados daquilo que poderia representar três anos de trabalho de campo. entre teona e mvestigaçao, colocada de forma simples e abstracta, é a de que as teorias
E por isso fiquei aborrecido. levantam questões, sugerem coisas a observar, apontam para o que ainda não sabemos
Tive a sorte de escapar a esta situação entediante em finais de 1970, quando inter- e a investigação responde às questões mas também nos alerta para o em que nunc~
rompi um ano de estudos na Northwestern University e estive no Center for Advanced tínhamos pensado, e que por sua vez sugerem hipóteses teoréticas. Mais à frente darei
Study in Behavioral Sciences em Palo Alto, na Califórnia. Foi aí que comecei a trabalhar exemplos deste vai-e-vem entre teoria e dados.
deliberadamente em Mundos da Arte. Queria fazer algo diferente, abordar uma nova _ En~e ~s ideias geradoras que me orientam mal começo a abordar algo, há três que
área de actividade. Achava que a sociologia da arte era um campo pouco desenvolvido. sao mais importantes:
Havia poucas coisas, e o que havia, na minha jovem perspectiva arrogante, não era A ideia de que a sociologia estuda a forma como as pessoas fazem coisas em con-
muito bom na sua maioria, como os livros dos pensadores europeus que então escreviam junto, aquilo que aprendi com Blumer (1969, pp. 70-77) quando se referia a «acção
a maior parte do que existia sobre o assunto (p. ex., Goldmann, 1965), uma abordagem conjunta». (Prefiro dizer «acção colectiva», inas atribuo-lhe o mesmo significado.)
densamente filosófica, centrada nos problemas clássicos da estética, preocupada com Isto quer dizer que, em tudo o que abordo ou penso estudar, envolvo sempre todas
juízos de valor artístico, e por aí fora. Por outro lado, o reduzido volume de trabalhos as pessoas, incluindo em especial as convencionalmente tidas como pouco importan-
realizado nos Estados Unidos era maioritariamente quantitativo e não abordava tes. E que, além disso, trato tudo o que está relacionado com o meu tópico- incluindo
realmente a organização da actividade artística (p. ex., Mueller, 1951 ). todos os artefactos físicos - como resultado da acção de pessoas em conjunto. Uma
É uma questão interessante saber quando é que uma determinada investigação tem importante questão de investigação é saber como é que elas conseguem coordenar a
realmente início. No caso de Mundos da Arte poderia dizer que começou antes de me sua actividade a fim de produzirem um resultado, qualquer que ele seja.
ter tornado sociólogo, quando comecei a tocar piano (com 11 ou 12 anos). Esta foi uma A ideia de comparação, de que podemos descobrir coisas acerca de um caso obser-
experiência que determinou e continua a determinar a minha vida e o meu trabalho vando outro que seja semelhante sob vários aspectos mas que não é igual. Colocando
como sociólogo. Facultou-me muito daquilo a que, de certo modo, podemos chamar dois ou mais desses casos lado a lado permite-nos ver como é que o mesmo fenómeno
«dados», observação de acontecimentos, memórias de conversas, coisas que sabia que - as mesmas formas de actividade colectiva, os mesmos processos - adquire formas
poderia usar nas minhas reflexões. diferentes em lugares diferentes, de que dependem essas diferenças e como é que os
Segui o procedimento de Hughes no que respeita a fazer pesquisa e pensar sobre seus resultados divergem.
os seus resultados, coisa que era muito intuitiva. Ele sabia como o fazer e, quando A ideia de processo, de que nada acontece de uma vez, de que tudo acontece por
se esforçava, conseguia explicar como o fazia, até certo ponto (ver os seus ensaios etapas, primeiro isto, depois aquilo, e que isso nunca pára. Que aquilo que tomamos
reunidos em Hughes, 1984). Cresci numa época de autoconsciência metodológica e como um estado final a ser explicado é apenas um ponto que escolhemos para pararmos
portanto fui levado a ser reflectivo, mais do que ele alguma vez o foi, acerca do modo o nosso trabalho, não é algo dado naturalmente (ver Becker, Faulkner e Kirschenblatt-
como fazia o que estava a fazer. -Gimblett, 2005). A análise sociológica consiste em descobrir, passo-a-passo, quem
Começo sempre um projecto, como no caso de Mundos da Arte, muito consciente fez o quê, como é que coordenaram a actividade e quais os seus resultados.
daquilo que não sei. A minha ideia do tópico é confusa, estou convencido de não estar Utilizei o meu ano de liberdade em Palo Alto para realizar muita da pesquisa-base
a colocar as questões certas, e igualmente convencido de que; qualquer que seja o para aquilo que veio a ser Mundos da Arte. Essa pesquisa tomou duas formas - leitura
modo que a questão ou o problema venha a assumir, não sei quais os métodos certos intensiva e experiência pessoal - e consistiu numa combinação entre as coisas que
para o seu estudo. E sou sempre - não me gabo disto mas reconheço apenas que é o aprendera acerca do modo como se realizavam os trabalhos de arte e as ideias que tinha
que faço - suficientemente arrogante para ignorar a maior parte daquilo que outros já acerca do que essas observações significavam (é para isto que a teoria serve). Mais uma
escreveram acerca daquilo que vou estudar. vez, as directrizes mais importantes eram as de que a arte era de algum modo, viria a
Isto não significa que não tenha qualquer ideia. Não concordo com a ideia daqueles descobri-lo, colectiva; que as obras de arte eram o resultado de um processo; e que a
que acreditam poder partir para o campo assumindo-o como uma tabula rasa, à espera comparação seria central para a minha investigação, que iria sempre comparar esta com
que as coisas «emerjam». Isto é gramaticalmente errado. Os tópicos, as questões e os aquela forma de arte, esta maneira de fazer as coisas com aqueloutra, e de que iria espe-
assuntos não «emergem». É preferível dizer que, embora seja uma palavra estranha, rar que a comparação me revelasse aspectos importantes daquilo que estava a estudar.

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Mundos da Arte Prefácio à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

Tinha sido pianista em bares, clubes nocturnos e de striptease desde a adolescência A utilização teórica que fiz destas descobertas (e houve muitas semelhantes) con-
e sabia, dessas e de outras experiências que tivera no campo das artes, que as obras de sistiu na generalização daquilo que observara. Bem, o que é que observara durante as
arte se tomavam aquilo que eram fruto de uma rede de actividades coordenadas leva- minhas experiências com as impressões fotográficas? Que os artistas habituados a
das a cabo por muitas pessoas diferentes. A minha intuição recorreu a essas experiên- trabalhar com um determinado material se tomavam dependentes desse material.
cias para me dizer que estudar essas redes e actividades seria uma forma proveitosa Quando este se tomava inacessível, como quando um fabricante deixava de o produzir,
de abordagem da arte. Contudo, achei que necessitava de novas experiências sobre as ou começavam a utilizar outros materiais aos quais não estavam habituados ou então
quais reflectir. A área da minha experiência pessoal sobre a qual menos sabia era a das passavam a fabricar aquilo que já não podiam comprar. Os resultados eram diferentes,
artes visuais - o facto de não desenhar bem deixara-me traumatizado desde a escola mas os fotógrafos não paravam de trabalhar; eles sobreviviam à mudança. No entanto,
primária (ver Becker 1998, pp. 132-38) - portanto tive aulas de fotografia, uma arte a posição teórica que não era convincente, à luz daquilo que eu estava a ver e a viver,
visual que não exigia que se desenhasse, no San Francisco Art Institute. Acabei por era de um estrito funcionalismo, que sustentava, digamos, que se o material X era
me envolver muito na fotografia e no então bastante activo mundo fotográfico da zona necessário para realizar obras de arte do tipo Y, se X se toma inacessível, Y, tomando-
da baía de São Francisco que a escola me deu a conhecer. A fotografia tomou-se um -se impossível, deixará de existir. A revisão teórica passa por uma ligeira mudança de
laboratório no qual pude explorar as minhas ideias acerca dos mundos da arte. Aquilo discurso, contudo não deixa de ter grandes consequências: quando o material X se
que aprendi facultou-me respostas para as quais, por assim dizer, não tinha perguntas, toma inacessível o artista pode (a) criar ele próprio o material, (b) encontrar outro que
bem como respostas para questões que já tinha formulado. o faça, ou (c) realizar a obra sem ele. Se o fizer sem ele, a obra não será o que poderia
Portanto, para ser mais específico, aprendi por mim mesmo, na câmara escura, ter sido, mas isso não significa que não existirá. Dito de outro modo, não é uma ques-
de que forma os fotógrafos dependem dos materiais que eles (e eu) compravam nas tão de tudo ou nada.
lojas de artigos fotográficos. Comecei por aprender a fazer impressões fotográficas Esta teoria funciona a uma escala mais ampla. É verdadeira não apenas para algo
num excelente papel fabricado pela Agfa, chamado «Record Rapid». Alguns meses específico e, afinal, trivial, como o papel de impressão para fotografia. Em princípio,
após o início da minha aprendizagem dos rudimentos de impressão neste papel, a aplica-se também ao nível mais geral, até mesmo sociedades inteiras, fenómeno que
Agfa parou de o produzir, e em breve fiquei a saber, quando passei a imprimir em o funcionalismo na realidade sempre quis generalizar. Portanto, o que acontece quan-
Varilour, fabricado pela DuPont, que imprimir noutro papel significava aprender de do formas familiares, das quais outros elementos da sociedade dependem, se quebram
novo como é que o papel reagia a diferentes tempos de exposição e de revelação. ou mudam completamente? A sociedade deixa de existir? Esse é o prognóstico implí-
Como se não tivesse aprendido a lição, ao fim de pouco tempo a DuPont também cito ou explícito de um funcionalismo sério. Eu diria que aquilo que acontece no .caso
deixou de produzir o Varilour e tive de mudar outra vez de papel. (Com o advento da impressão fotográfica em papel platinado também é o que acontece aqui - pode
da fotografia digital todos estes conhecimentos arduamente conquistados tomaram- afirmar-se que a sociedade deixará de existir na forma para a qual aquele tipo de fa-
-se rapidamente obsoletos, mas isso é outra história.) Evidentemente, eu não era o mília era necessária, mas a sociedade não desaparecerá. Será diferente, mas isso não
único a ser afectado cada vez que estas empresas deixavam de fabricar os seus pro- é a mesma coisa que desaparecer.
dutos. Muitos profissionais, para quem isso era mais importante do que para mim, Além deste tipo de observações ocasionais devidas à minha participação, também
deparavam-se com problemas semelhantes. De facto, como fiquei a saber depois, li muito. Os meus primeiros pensamentos teóricos acerca de arte surgiram de algumas
quando o papel de impressão feito à base de sais de platina, outrora usado rotineira- descobertas em campos alheios à sociologia. Tinha encontrado, graças ao meu hábito
mente por muitos fotógrafos, deixou de ser fabricado, alguns resistentes continuaram pouco sistematizado mas proficuo de leituras, vários livros sobre música, literatura e
a imprimir nele, mas agora tinham de fabricar o seu próprio papel, sensibilizando-o artes visuais que continham ideias que se entrosavam com as minhas inclinações teó-
com uma solução de platina. ricas. No seu livro Emotion and Meaning in Music (1956), Leonard Meyer usava a
Também tirei proveito de alguns «dados» obtidos a partir dos meus contactos nos ideia de «convenção» - uma forma artificial mas consentida (como mais tarde apren-
mundos das artes. Susan Lee, uma amiga minha, era a responsável pelo programa de demos a dizer, «socialmente construída») de realizar algo-para analisar o modo como
dança da Northwestem University, onde eu leccionei. Contou-me histórias sobre bai- os compositores e os instrumentistas usavam padrões convencionais de melodia, har-
larinos que tinham sofrido graves acidentes porque o pessoal auxiliar de cena não tinha monia e rítmo para criarem tensão e relaxamento emocional, e assim, significado
desocupado convenientemente o palco, e os adereços desarrumados originaram algu- musical. Uma colega de Meyer, Barbara Herrnstein Smith ( 1968) mostrou como os
mas quedas. Um negociante de arte contou-me uma história passada com um dos poetas, de modo semelhante, recorriam a artificias convencionais para indicar quando
«seus» artistas que tinha enviado uma obra para um museu apenas para confirmar que é que um poema chegava ao fim. E Ernst Gombrich ( 1960), o conceituado historiador
era demasiado grande para passar pela porta do museu e demasiado pesada para ser de arte, tinha analisado como é que os pintores representavam árvores, pessoas e outros
suportada pelo seu chão. objectos «reais» recorrendo a técnicas convencionais (William Ivins (1953) tinha

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Mundos da Arte
Prefácio à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

chegado a uma conclusão semelhante na sua análise das técnicas de estampagem e de várias vezes), mas também foram os responsáveis pela importante ideia de filmar as
gravura, e eu também conhecia esse livro). primeiras sequências do filme, no Kansas, a preto-e-branco, e de o filme passar a co-
O que esses outros entendiam por «convenção» era algo partilhado por aqueles que lorido quando Dorothy chega à terra de Oz.
faziam arte e aqueles que a liam, ouviam ou olhavam - modos de ver e ouvir que eram Estaria eu apenas a recolher anedotas, histórias engraçadas para fugir à secura das
conhecidos por todos os envolvidos e que, por isso, formava a base para a sua acção minhas teorias e tomá-las «mais interessantes»? De modo nenhum. Vou explicar aqui
colectiva. E quando reparei que estes académicos estavam a falar da mesma coisa que o método básico que então usei e ainda uso para desenvolver as minhas ideias com a
eu - que «acção colectiva» e «convenção» eram a mesma coisa - percebi que poderia ajuda de exemplos empíricos como estes.
usar toda a pormenorizada pesquisa que tinham feito como material bruto para o meu No caso da arte (e é igual para tudo a que me proponha a pensar), primeiro faço
próprio trabalho. Isso deu-me a coragem para prosseguir. uma listagem daquilo que Everett Hughes descreveu como o elenco de personagens,
Agora tinha um pouco de teoria, não querendo beliscar-lhe a dignidade deste modo, todas as pessoas que possam ser apropriadamente (ou mesmo inapropriadamente)
para balizar o meu enfoque. Aqueles que fazem trabalho de campo sabem que as consideradas como tendo contribuído para o acontecimento ou objecto que quero
queixas são dados especialmente bons acerca da actividade organizacional. Porquê? analisar (o filme, o romance, a actuação musical, teatral ou a dança). Aqui é particular-
Porque as organizações consistem em (eis a teoria) modos regularizados de interagir, mente importante evitar que as convenções nos deixem cegos. Será que o pessoal
modos conhecidos de todos os que participam na forma como as coisas são feitas. auxiliar de cena faz parte do esforço colectivo criador do bailado? Será que os vende-
Os participantes tomam esses modos como garantidos - são aquilo que chamei «con- dores dos bilhetes e os empregados do parque de estacionamento também fazem
venções» no estudo das artes - e sentem-se incomodados quando outros não se com- parte? A maioria das pessoas, penso eu, consideraria inapropriado incluir estas pesso-
portam como esperado. E então queixam-se, e as suas queixas expõem claramente o as numa lista de participantes cruciais. Mas sem elas o espectáculo não se realizaria.
que era tido como garantido ou «o modo como aqui se fazem as coisas», que é, afinal, Portanto também as incluo. (A lista mais completa é a que aparece nos créditos no
aquilo que um sociólogo quer saber. final dos filmes de longa metragem.)
Conduzido por esta pequena porção de teoria, o meu enfoque sofreu um desvio e Depois de feita a minha lista, vou à procura de problemas, tal como já descrevi.
tomou-se uma espécie de trabalho de campo. Comecei à procura de dados não (ou Este ziguezaguear também não é convencional. A maioria dos analistas encara os
menos) trabalhados. Conduzido pelo axioma de que a vida social é acção colectiva, problemas e as dificuldades talvez como inevitabilidades mas nunca como algo essen-
procurei material que indicasse quem eram as pessoas que de algum modo participavam cial para a compreensão de uma obra de arte, e provavelmente nem sequer uma coisa
na realização de uma obra de arte. Debrucei-me em particular sobre registos autobio- muito agradável de escrutinar. Eu tomo-os centrais, acreditando que ao fazê-lo irei
gráficos - livros sobre arte escritos pelos próprios intervenientes - e procurei sobre- descobrir as formas fundamentais de cooperação que tomam a arte possível.
tudo livros cheios de queixas sobre organizações e colaboradores. Estes foram fáceis E depois sigo as duas outras ideias que descrevi como centrais: processo e compa-
de encontrar. Quase todos os livros sobre arte estão repletos deste tema. Os composi- ração. Vou combiná-las ao descrever como usei uma experiência que tive quando
tores de Hollywood queixam-se de que os produtores, que tomam as decisões sobre a · aprendi fotografia durante o ano que passei em Palo Alto, uma experiência que moldou
música dos filmes, não percebem nada de música e fazem exigências impossíveis de a minha compreensão da natureza das obras de arte visual e, além disso, de todos os
cumprir (Faullmer, 1983); os pintores queixam-se das dificuldades em encontrarem os tipos de obras de arte.
materiais que querem ou dos coleccionadores e dos donos de galerias que não pagam Normalmente os fotógrafos fazem muito mais fotografias do que aquelas que usam.
aquilo que o artista acha que o seu trabalho vale (Moulin, 1967); os editores queixam- Na altura em que aprendi a fotografar, antes de se ter inventado a fotografia digital,
-se de que os escritores fazem mudanças incessantes aos seus livros, enquanto os es- eles gastavam rolos e rolos de película; normalmente, para aqueles que usavam câma-
critores se queixam de que os editores não publicitam adequadamente as suas obras. ras de 35 mm (que era o que a maioria dos fotógrafos usava), rolos de trinta e seis
Outros livros investigavam as actividades de pessoas habitualmente tidas como imagens. Era habitual fazerem muitas fotografias dos mesmos objectos, lugares, pes-
secundárias na realização da «verdadeira» obra de arte. Sutherland ( 1976), um analis- soas e acontecimentos. Nos casos mais extremos, o fotógrafo usava uma câmara
ta literário, demonstrou até que ponto os editores desempenhavam um papel impor- equipada com um motor (especialmente em eventos desportivos) e podia fazer dezenas
tante na construção dos romances ingleses vitorianos, e Harmetz (1977), um crítico de fotografias do mesmo acontecimento em sucessão rápida. Depois de revelada a
de cinema, analisou metodicamente a contribuição de todos os que tiveram algo que película, faziam aquilo a que se chamava uma «folha de contacto» ou «prova de con-
ver com a realização de O Feiticeiro de Oz - as costureiras que fizeram os vestidos, tacto», com cada uma das trinta e seis fotografias. Isto proporcionava-lhes um modo
os anões que interpretaram os Munchkins, mas em especial as pessoas-chave como os conveniente para inspeccionarem o que tinham feito.
compositores da música, que não só, como ele demonstrou, conferiram continuidade A maioria dos fotógrafos considerava crucial esta etapa da inspecção. Era então
e coerência ao filme (o realizador, que deveria ser o responsável por isso, foi substituído que escolhiam, entre as muitas imagens semelhantes, aquela que queriam, aquela onde

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Mundos da Arte Prefácio à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

a luz ou o enquadramento ou a disposição das pessoas e as suas expressões ou a dis- fim de um grande filme de Hollywood como o símbolo supremo das redes cooperati-
posição dos objectos mais transmitia o que o fotógrafo decidia que era a coisa a trans- vas que faziam a arte de que eu estava a falar.
mitir. Este processo de tomada de decisão, que os fotógrafos chamavam «edição», A comparação consiste em descobrir algo em comum entre duas coisas e depois
produzia o material bruto para a etapa seguinte do processo, que consistia em fazer reparar no que elas diferem. Ambas as operações são analiticamente importantes.
impressões a partir dos negativos seleccionados. A semelhança, no caso do processo de edição, recai sobre a ideia de escolha, em cons-
À medida que ia aprendendo mais sobre fotografia, também aprendi que a impressão tatar que as obras de arte não passaram simplesmente a existir mas que foram cons-
envolvia muitas pequenas decisões semelhantes: sobre o grau de contraste do papel truídas, cada elemento a seu tempo, e através da elaboração e da disposição desses
que se escolhia para imprimir, sobre o seu tempo de exposição à luz e o tempo que elementos. Mas a descoberta de semelhanças desencadeou imediatamente a busca de
ficava no revelador - contribuindo todas estas decisões para notáveis diferenças na um estrato subjacente de diferenças. Olhar para as diferenças entre os exemplos -
fotografia final. Estas diferenças eram, no fim, substanciais, criando distintas e muito entre, digamos, a fotografia e a escrita de romances - produz diferentes versões desse
diferentes a nível do seu significado e impacto emocional. Portanto o meu comprome- processo, introduz actores diferentes e enfatiza etapas diferentes. O processo físico de
timento inicial com a teoria do processo acabou por se ver justificada aqui de um modo elaboração da obra encontra-se mais presente nos fotógrafos, e todas as escolhas
absolutamente explícito no trabalho dos fotógrafos. envolvidas parecem estar nas suas mãos, enquanto a característica dos romancistas é
Não se pense que apenas me bastou aprender isto sobre a fotografia para confirmar produzirem um original cujas cópiás são feitas por outras pessoas que usam maquina-
o papel do processo. Pense-se no que acabei de descrever sobretudo como uma metá- ria de outro tipo e processos de produção diferentes (isto não significa que os escritores
fora para a acumulação das centenas de coisas semelhantes que aprendi sobre todos não se queixem dos resultados físicos!). Estes dois aspectos da comparação suscitam
os tipos de artes. É aqui que o processo de comparação entra em acção. novas questões de investigação, traçam novos caminhos a desbravar.
O elemento-chave do processo de edição no qual os fotógrafos se envolviam era a Escrever um livro como Mundos da Arte é em si mesmo um processo. Eu não
escolha. Chegado a um ponto crucial - a eliminação de grande parte das fotografias parti com a ideia de escrever um livro sobre arte. Queria apenas explorar a minha
- o fotógrafo fazia escolhas, que por sua vez influenciavam o trabalho resultante. intuição de que a arte era uma actividade colectiva e ver até onde isso me levava. Dado
E este processo continuava. Não é apenas uma escolha que irá influenciar a imagem que o tema me despertou interesse, comecei a leccionar uma disciplina de sociologia
final; é uma sucessão continuada de escolhas. Assim, questionei-me: suponhamos que da arte, coisa que então não era tão comum como hoje. As conferências que passei a
um processo de escolha semelhante afecta outros objectos de arte e acontecimentos proferir todas as semanas sobre assuntos que despertaram o meu interesse a partir das
de um modo semelhante. Consequentemente, para mim, e à medida que prosseguia leituras e reflexões sobre as minhas experiências ajudaram-me a criar um enquadra-
com as leituras e investigações informais, a pergunta da investigação tornou-se: quem mento, a delimitar a temática. As solicitações de estudantes interessados também me
faz que escolhas sobre uma obra e com que resultados? levaram a esboçar pequenos trabalhos para usar nas aulas: a história do homem que
Houve outro livro que influenciou seriamente o meu modo de pensar: a expli- construiu as torres Watts em Los Angeles fascinou os alunos e tomou-se a génese do
cação de J. H. Sutherland (1976) acerca das relações entre editores e escritores de capítulo sobre os mavericks e a sua arte.
literatura inglesa durante o século XIX e inícios do século XX, as relações entre tão À medida que ia acumulando exemplos, que os ia comparando, que os ensinava e
estimáveis romancistas como Charles Dickens, William Makepeace Thackeray, ia criando o enquadramento que lhes conferiu uma ordem coerente, comecei a imagi-
George Elliot e Thomas Hardy e os homens que publicaram os seus livros. As ex- nar artigos acerca de um ou de outro aspecto do processo. Escrevi esses artigos em
tensas investigações de Sutherland nos arquivos de editoras revelou que os editores parte porque quiseram que eu o fizesse, mas também em resposta a convites para falar
interferiram abundante e consequentemente nas obras que publicaram. Sugeriam aqui, participar numa conferência acolá, contribuir com um artigo para um livro ou
alterações nos enredos e no modo de escrever, insistiam em formatos que maximi- uma revista. Cada solicitação parecia um chamamento para encetar algo que devia
zassem os lucros das vendas às então ubíquas bibliotecas que emprestavam livros, fazer, embora evidentemente não tivesse qualquer tipo de obrigação.
e afectaram de muitas outras maneiras os conteúdos e o estilo dos livros que publi- Após vários anos, tinha acumulado sete ou oito artigos sobre vários aspectos daquilo
caram. que de repente encarei como uma espécie de teoria consolidada. Espalhei pelo chão os
Os exemplos de Sutherland ensinaram-me que, além do putativo artista, existiam artigos que escrevera e observei - foi tanto uma descoberta visual como o resultado de
outras pessoas envolvidas no processo de edição, que tomavam decisões que ajudavam uma reflexão racional - onde estavam os buracos e o que teria de escrever para os preencher.
a moldar o resultado final da obra. E prossegui com o procedimento comparativo Tive finalmente de me confrontar com a questão que será provavelmente a mais
tendo isto em mente. Foi fácil encontrar mais exemplos: produtores cinematográficos difícil para qualquer escritor: quando é que chegarei ao fim? A investigação está
e compositores de música para filmes, donos de galerias de arte e curadores de museus, terminada? O livro está pronto? (ver, outra vez, Becker, Faulkner, e Kirschenblatt-
editores literários, e por aí fora. Encarei finalmente a lista de créditos que passava no -Gimblett, 2005).

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Mundos da Arte Prefácio à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

Com Mundos da Arte não tive de me preocupar com o facto de ter ou não ter feito a passar um mês no seu Centro no CNRS. Aí conheci Pierre-Michel Menger, Domi-
suficientes entrevistas ou observações. Os meus dados, os meus exemplos, tinham nique Pasquier, Sabine Chalvon-Demersay e outros sociólogos da arte, muitos dos
apenas de cobrir uma variedade suficiente de situações e de formas de arte de modo a quais também me ofereceram livros e artigos em francês para ler. Quanto mais lia,
que sentisse não estar a deixar de fora nada que pudesse contribuir para tomar o meu mais fácil se tomava ler ainda mais.
enquadramento analítico mais complexo. A complexidade era o meu objectivo, não a Depois Alain Pessin convidou-me para ir a Grenoble para participar numa confe-
generalização. Ou, melhor, as minhas generalizações iam ser sobre aquilo que era rência sobre a «sociologia das obras» (Majastre e Pessin, 2001). Escrevi um artigo
possível, sobre o que valeria a pena tentar saber numa investigação acerca da activi- para esse encontro («L 'reuvre elle-même») que explorava as implicações do argumento
dade artística. Portanto, essencialmente, só precisava de decidir quando é que as coisas de Mundos da Arte, segundo o qual as obras de arte não têm uma existência estável e
tinham chegado ao seu termo. estão constantemente em mudança. Este tema continuou a ocupar-me e quando me
Resolvi o problema quando comecei a pensar no meu trabalho sobre a questão da surgiu a oportunidade de organizar uma conferência sobre sociologia da arte para o
arte enquanto actividade colectiva, como um processo em si mesmo, no qual escrever Social Science Research Council de Nova Iorque, elegi-o como tema central do en-
um livro era uma etapa, mas não a última etapa. O livro era, pelo contrário, um rela- contro. Houve vários sociólogos que colaboraram na aventura de produzir um livro de
tório em construção numa linha de elaboração que se estendia para o futuro. As minhas ensaios (Becker, Faulkner e Kirschenblatt-Gimblett, 2005) explorando diversas face-
generalizações podem estar erradas ou incompletas, mas foram, apesar de tudo, pro- tas do problema (dois dos artigos sobre os quais se baseou a conferência - o meu e o
visórias, como são necessariamente todas as conclusões científicas (ver Latour, de Menger - tinham sido apresentados no encontro de Grenoble). E, para acabar em
1987). grande, enquanto Robert Faulkner e eu discutíamos a comunicação que ele apresen-
Portanto, nunca tive a intenção de elaborar uma Teoria da Arte abrangente, signi- tara na conferência, que versava sobre o modo como os músicos de jazz praticavam,
ficando as maiúsculas unidade, integralidade, definitividade. Essa nunca foi a minha descobrimos um tema em que ambos queríamos trabalhar: o repertório de jazz; como
noção de teoria. Para mim, teoria é um conjunto mais ou menos coerente de ideias que é que se formou, foi mantido e se desmultiplicou na rotina de trabalho dos músicos.
me indicam o que procurar enquanto prossigo nas investigações de um tema, e foi isso Neste momento estamos bem embrenhados neste projecto.
que quis que Mundos da Arte fornecesse, a mim e a quem quer que o lesse e achasse Eu não pretendo recomendar aos investigadores que querem saber quando é que o
que valeria a pena seguir as suas ideias. No melhor dos sentidos kuhniano (Kuhn, seu trabalho está terminado que aprendam uma nova língua, encontrem novos colegas
1970), o objectivo do livro foi fornecer um enquadramento que pudesse continuar a e investiguem mais. A lição que tirei da minha experiência é, sobretudo, que nunca
gerar ideias plausíveis de investigar. chegamos ao fim, mas paramos ocasionalmente para partilharmos com os nossos co-
O projecto continua, até hoje, enquanto continuo a explorar algumas dessas ideias. legas aquilo que aprendemos.
Mas também envolve, tal como o livro sugere, outras pessoas. Isto não é a história de
um pensador heróico a trabalhar no isolamento a fim de criar uma nova visão e trazê-
-la à fruição. Não constam aqui tais episódios românticos. Quando escrevi Mundos da
Arte encontrei pessoas com quem pude reflectir em conjunto - todos os autores que
consultei, alguns dos quais já mencionei aqui, bem como as pessoas com quem con-
versei e que estavam activamente empenhadas no trabalho artístico, tendo colaborado
com algumas delas, enquanto estudante ou colega.
Continuei à procura de parceiros com essa finalidade, mas também encontrei pes-
soas com quem cooperei em projectos específicos. Destaco uma destas linhas de tra-
balho que aconteceu após a publicação do livro.
O meu trabalho inicial para o livro levara-me a interessar-me pelo trabalho dos
sociólogos da arte franceses. O único que era então conhecido nos Estados Unidos era
Pierre Bourdieu, mas eu estava mais interessado no trabalho empolgante e etnográfico
de Raymonde Moulin. Ela tinha escrito um livro sobre os mercados de arte em França
em meados do século XX (Moulin, 1967) que eu tinha mas que não conseguia ler,
porque nessa altura não sabia ler francês, apesar de ter passado num exame para o
doutoramento que certificava que sabia. Aprendi por mim mesmo a ler francês a fim
de poder ler o estudo de Moulin, e acabei por encontrar-me com ela, sendo convidado

18 19
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

Foram talvez os anos que passei a tocar piano nos bares de Chicago e arredores
que me levaram a considerar que aqueles que se dedicavam a este trabalho sem
prestígio eram tão importantes para a compreensão da arte quanto os mais conhe-
cidos músicos criadores dos famosos clássicos do jazz. O facto de ter crescido em
Chicago - onde as concepções democráticas de Louis Sullivan se corporizavam
nos arranha-céus de um centro de cidade que eu não conseguia deixar de explorar,
e onde o Institute of Design de Moholy-Nagy permitiu a este refugiado da Bauhaus
dedicar-se ao seu ideal de artesanato na arte - talvez me tenha levado a pensar que
os artesãos que participam na realização de obras de arte são tão importantes quanto
aqueles que as idealizam. O meu temperamento pouco dócil talvez seja responsável
por um antielitismo visceral. A verdade é que uma formação sociológica na «tradi-
ção da escola de Chicago» recebida de Everett C. Hughes e Herbert Blumer levou-
-me certamente a um cepticismo acerca das habituais definições dos objectos de estudo
da sociologia.
Cada um destes factores contribuiu de certo modo para determinar a perspectiva
deste livro, completamente diversa daquela que os sociólogos costumam adaptar face
às artes. Considerámos a arte como um trabalho executado por determinadas pessoas,
enfatizando mais os padrões de cooperação entre os indivíduos que realizam as obras
do que as obras em si ou aqueles que convencionalmente são definidos como os seus
criadores. Assim, pareceu natural recorrer a um modo de análise que, tal como outros,
já tínhamos aplicado a outros tipos de trabalho e noutras condições. Isto implicava
inevitavelmente encarar a arte como um trabalho não muito diferente dos outros e tratar
os indivíduos a quem chamamos artistas como trabalhadores não muito diferentes dos
outros, em especial daqueles que participam na realização de obras de arte.
A ideia de um mundo da arte constitui o cerne desta análise. Para os autores que se
ocupam da arte, a expressão «mundo da arte» é frequentemente usada de uma forma
metafórica e livre para designar aquelas personalidades cuja fama está associada a
objectos e eventos com honras de imprensa e que atingem preços astronómicos.

21
r
Mundos da Arte Prefácio à Primeira Edição

Demos-lhe uma utilização mais técnica, para designar a rede de indivíduos cuja afastados do cerne da perspectiva adoptada e, por isso, ocuparem um lugar secundário
actividade cooperativa, coordenada graças a um conhecimento partilhado dos meios nesta reflexão. Aliás, formulámos estes problemas em função daquilo que queríamos
convencionais de trabalho, produz o tipo de obras que estabelecem precisamente discutir. Não é certo que os dois tipos de análise sejam incompatíveis ou contraditórios.
a notoriedade do mundo da arte. Esta definição tautológica reflecte a análise aqui Talvez não sejam senão dois conjuntos diferentes de questões destinadas a interpelar
adoptada. Com efeito, trata-se menos de elaborar uma teoria sociológica logicamente os mesmos dados empíricos.
organizada da arte do que de examinar as possibilidades oferecidas pela ideia de um Não fomos evidentemente os primeiros a colocar as artes sob esta perspectiva. Já
mundo da arte, para proporcionarmos uma melhor compreensão das modalidades de existe uma sólida tradição de textos relativistas, cépticos e «democráticos» sobre as artes.
produção e de consumo das obras de arte. Cada capítulo aborda esta ideia sob um O exemplo de etnomusicólogos como Charles Seeger e, especialmente, Klaus Wachsmann
ângulo ligeiramente diferente, evocando as principais características dos mundos da representou uma grande fonte de inspiração e de caminho a seguir. O livro Prints and
arte, descrevendo a sua emergência e a sua persistência, constatando de que modo o Visual Communication, de William Ivins, levou a pensar em muitas questões a partir de
seu funcionamento influi na forma e no conteúdo das obras ou reformula questões outra perspectiva e dotou-nos das ferramentas nécessárias a esse exame. A análise do
recorrentes nas anteriores análises das artes. mundo da pintura francesa do século XIX proposta por Cynthia White demonstrou
Penso ser genericamente verdadeira a afirmação de que, e diferentemente das as vantagens de um estudo que abarcasse todos os artistas de uma época e não apenas as
ciências da natureza, a sociologia não revela nada que não se soubesse antes. A boa personalidades mais famosas. Estas e outras fontes, que usámos com grande liberdade
ciência social produz uma compreensão mais aprofundada de coisas que a maioria das neste livro, dão uma ideia da tradição subjacente a este trabalho. Tal como para todas
pessoas já conhece. Este não é o lugar mais apropriado para nos alargarmos sobre esta as tradições, os seus iniciadores não podem ser considerados responsáveis por aquilo
questão. Sobre esta análise diremos apenas que, se é que possui alguma qualidade, não que os sucessores fazem em seu nome.
se deve à descoberta de factos ou de relações até aqui ignoradas. Pelo contrário, é fruto
de um exame sistemático das implicações que o conceito de mundo da arte pressupõe.
Embora a ideia de partida possa parecer banal, muitas das suas implicações não o são.
Por isso, parece óbvio afirmar que se aquele cujo trabalho contribui para a consecução
de uma obra de arte não desempenhar o seu papel, a obra resultará diferente. Já não é
tão óbvio discutir as implicações de decidir qual desses indivíduos é o artista, enquanto
os outros desempenham apenas a função de pessoal de apoio.
Dado que nos concentrámos nas formas de organização social, comparámos fre-
quentemente formas de expressão e obras com reputações artísticas muito diferentes.
Debruçámo-nos simultaneamente sobre Ticiano e a banda desenhada e analisaram-se
partituras musicais de filmes de Hollywood ou canções de rock and rol! com a mesma
seriedade com que se tratou a obra de Beethoven ou de Mozart. Como a questão da
reputação é central nesta análise, estas comparações acontecem com muita frequência.
Lembramos aos leitores que as considerarem ofensivas que o foco desta análise é a
organização social, não a estética.
Esta perspectiva surge como diametralmente oposta à tradição dominante na
sociologia da arte, que a considera como algo de especial, onde a criatividade vem à
superfície e o carácter essencial de uma sociedade se exprime sobretudo através das
grandes obras de génio. Em vez de dar ênfase à rede de cooperação a tradição dominante
coloca o artista e a obra no centro da sua análise da arte enquanto fenómeno social.
Tendo essa diferença em consideração, será talvez apropriado dizer que não se fez aqui
sociologia da arte, mas sociologia das profissões aplicada ao domínio das artes. Não
alimentaremos disputas quanto a esta apresentação das. coisas.
Não se contestou directamente o ponto de vista mais tradicional senão no último
capítulo, aflorando alguns dos temas com que ele mais directamente se debate. Não
porque estes não possam ser tratados nos termos aqui propostos, mas por estarem

22 23
1

AGRADECIMENTOS

Como este livro concede um destaque particular às redes de cooperação e de auxílio


graças às quais as coisas se realizam, posso avaliar melhor que a maioria dos autores
tudo o que o meu trabalho deve a um enonne número de pessoas e de organismos.
É impossível agradecer a todos de fonna precisa e detalhada, pois isso levaria uma
eternidade. Assim, alinhei os nomes por ordem alfabética, o que não significa que me
dispenso de atribuir-lhes as minhas mais sinceras gratidões.
Iniciei as pesquisas que forneceram o material para este livro em 1969-70, quan-
do ocupava no Center for Advanced Study in the Behavorial Sciences um lugar em
parte financiado por uma bolsa do National Institute for Mental Health; não podia ter
encontrado um lugar mais propício ao tipo de pesquisa preliminar a que me queria
dedicar durante esse ano. Cheguei a um primeiro esboço do manuscrito em 1978-
-79, altura em que fui bolseiro da John Simon Guggenheim Memorial Foundation.
Agradeço a essas duas instituições o apoio que me concederam. Por outro lado, sou
membro do departamento de sociologia da Northwestern University (Evanston) desde
1965, que foi desde sempre um espaço intelectual maravilhosamente estimulante.
Várias partes deste livro já publicadas em livros e revistas sob uma fonna um
pouco diferente foram recuperadas e adaptadas com o consentimento dos editores
originais:
«Art as Collective Action», publicado na American Sociological Review 39,
(Dezembro 1974): 767-76, com a autorização da American Sociological Association.
«Art Photography inAmerica», publicado no Joumal ofCommunication 25 (Inverno
1975): 74-78, com a devida autorização.
«Art Worlds and Social Types», publicado no American Behavioral Scientist 19
(Julho 1976): 703-718, com a autorização da Sage Publications.
«Arts and Crafts», publicado no American Journal oJSociology 83 (Janeiro 1978):
862-889, com a autorização da University of Chicago Press.
«Stereographs: Local, National and Intemational Art Worlds», editado em Points
of View: The Stereograph in America - A Cultural History, de Edward W. Earle

25
r
Mundos da Arte

(coordenação), Rochester, Nova Iorque: Visual Studies Workshop Press, 1979, pp. 88-
-96, com a devida autorização.
«Aesthetics, Aestheticians, and Critics», editado em Studies in Visual Communi-
cation 6 (Primavera 1980): 56-68, com a devida autorização.

Os meus agradecimentos aos editores que me autorizaram a citar as seguintes


obras:
Anthony Trollope, An Autobiography, University of Califomia Press.
William Culp Darrah, World ofStereographs, William C. Darrah.
Patricia Coopere Norma Bradley Buferd, The Quilters: Women and Domestic Art,
Doubleday & Company, Inc. ,
Raymonde Moulin, Le Marché de la peinture en France, Les Editions de Minuit. 1
Françoise Gilot e Carlton Lake, Life with Picasso, McGraw-Hill Book Company.
Michael Baxandall, Painting and Experience in Fifteenth Centwy Italy, Oxford MUNDOS DA ARTE E ACTIVIDADE COLECTIVA
University Press.
Barbara Herrnstein Smith, «Fixed Marks and Variable Constancies: A Parable of
Literary Value», com a autorização da autora.
Vivian Perlis, Charles /ves Remembered: An Oral Hist01y, Yale University Tinha por regra estar à minha secretária todas as manhãs às 5h30m; e tinha também por regra nunca
Press. falta,: A 11111 antigo criado que estm1a incumbido de me acorda,; e a quem eu pagm1a 5 libras anuais
por essa tarefa, também não lhe era permitida qualquer desculpa. Durante todos esses anos passados
em Waltham Cross, ele nunca se atrasou uma única vez com o café que estava incumbido de me traze,:
Os seguintes amigos e colegas ajudaram-me de diversas maneiras:
Sou certamente obrigado a admitir que é principalmente a ele que devo o meu êxito. Ao começar
Bernard Beck, Nan Becker, H. Stith Bennett, Bennett Berger, William Blizek, àquela hora, podia terminar o meu trabalho de escrita antes de me vestir para o pequeno-almoço.
Philip Brickman, Derral Cheatwood, Kenneth Donow, Edward Earle, Philip Ennis,
ANTHONY TROLLOPE, 1947 [1883], p. 227
Carolyn Evans, Robert Faulkner, Eliot Freidson, Jane Fulcher, Blanche Geer, Barry
Glassner, Hans Haacke, Karen Huffstodt, Irving Louis Horowitz, Everett C. Hughes,
Bruce Jackson, Edward Kealy, Robert Leighninger, Leo Litwak, Eleanor Lyon, Arline
Meyer, Leonard Meyer, Dan Morganstem, Chandra Mukerji, Charles Nanry, Susan Talvez o escritor inglês estivesse a brincar ao narrar este episódio, contudo, o facto
Lee Nelson, Richard Peterson, Ellen Poole, Barbara Rosenblum, Clinton Sanders, de se fazer acordar e de lhe trazerem o café todas as manhãs era uma faceta constitutiva
Grace Seiberling, Barbara Herrnstein Smith, Carl Smith, Malcolm Spector, Anselm do seu modo de trabalho. Poderia certamente ter passado sem aquele café matinal se
Strauss, Helen Tartar, Susan Vehlow, Gilberto Velho, Klaus Wachsmann, Brenda Way assim o quisesse; mas não teve necessidade de tal. Qualquer um poderia ter desem-
e Nancy Weiss. penhado o papel do criado; mas dado o modo de trabalho de Trollope, aquela tarefa
tinha forçosamente de ser realizada.
A autorização para a publicação da entrevista com Alain Pessin, foi-nos gentilmente Todo o trabalho artístico, tal como toda a actividade humana, envolve a actividade
cedida por Presses de l'Université Lavai para esta edição comemorativa do 25.º ani- conjugada de um determinado número, normalmente um grande número, de pessoas.
versário. A entrevista surgiu ainda em Sociologie de l'art, Opus 8. É devido à cooperação entre estas pessoas que a obra de arte que observamos ou escuta-
mos acontece e continua a existir. As marcas dessa cooperação encontram-se sempre
presentes na obra. As formas de cooperação podem ser efémeras, mas na maioria dos
casos transformam-se em rotinas e dão origem a padrões de actividade colectiva aos
quais podemos chamar mundos da arte. A existência de mundos da arte, bem como o
facto de afectarem tanto a produção como o consumo das obras de arte, sugere uma
abordagem sociológica das artes. Não se trata de uma abordagem cuja finalidade seja
a de produzir juízos estéticos, embora muitos sociólogos da arte se tenham entregue
a essa tarefa. Pelo contrário, ela possibilita uma melhor apreensão da complexidade

26 27
Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

das redes cooperativas que geram a arte, do modo como as actividades de Trollope e dificuldade ou problema. Por exemplo, podemos imprimir ou fotocopiar livros sem
do seu criado se coordenam com as dos impressores, editores, críticos, bibliotecários grande dificuldade. Outras obras de arte exigem uma enorme perícia de execução. Uma
e leitores no seio do mundo literário vitoriano, enfim de todas as redes e fenómenos ideia musical sob a forma de uma partitura tem de ser interpretada, e isso implica uma
análogos envolvidos em todas as artes. formação específica prévia, competência e sensibilidade. Depois de escrita, uma peça
de teatro tem de ser interpretada e isso também exige uma formação específica prévia,
competência e sensibilidade. (O mesmo se aplica à impressão de livros, embora nem
AARTECOMOACTIVIDADE sempre tenhamos consciência desse facto.)
Outra actividade fundamental para a produção de obras de arte consiste no fabrico
Imaginem-se todas as actividades necessárias para que uma obra de arte se possa e na distribuição dos materiais e do equipamento necessários à maioria das actividades
apresentar enquanto tal. Por exemplo, para que uma orquestra sinfónica possa dar um artísticas. Os instrumentos musicais, as tintas e as telas, as sapatilhas e a roupa dos
concerto, foi necessário inventar instrumentos, construí-los e conservá-los em bom bailarinos, as câmaras e as películas - todos estes elementos têm de ser fabricados e
estado. Foi necessário conceber uma notação e compor música utilizando essa notação. postos à disposição das pessoas que os usam para produzirem obras de arte.
Os músicos tiveram de aprender a tocar nos seus instrumentos as partituras resultantes, A realização de obras de arte exige tempo. O fabrico dos equipamentos e dos mate-
foi necessário dispor de tempo e de um local conveniente para os ensaios, anunciar riais também. Esse tempo tem de ser obtido a partir de outras actividades. Regra geral,
o programa do concerto, organizar a publicidade, vender bilhetes e atrair um público os artistas conseguem o tempo e os materiais de que necessitam ganhando dinheiro de
capaz de escutar e de alguma forma compreender e apreciar o concerto. Podíamos uma forma ou de outra e utilizando-o para comprarem aquilo de que necessitam. Na
fazer uma lista idêntica para todas as artes do espectáculo. Mediante algumas pequenas maioria dos casos, mas nem sempre, ganham dinheiro difundindo as suas obras junto
modificações, esta lista também é válida para as artes plásticas (os materiais em vez dos do público em troca de alguma forma de pagamento. Claro que algumas sociedades e
instrumentos e a exposição em vez do concerto) e para as artes literárias (substituindo certas actividades artísticas não se inscrevem em circuitos de uma economia estrita-
os materiais pela linguagem escrita e a exposição pela publicação). mente monetária. Nesses casos, um organismo governamental pode atribuir subsídios
A lista de coisas a fazer varia evidentemente de um meio de expressão para ou outro tipo de apoios aos projectos artísticos. Existem também outras sociedades
outro, mas podemos enumerar a título indicativo os tipos de actividades que têm onde aqueles que produzem obras de arte podem trocá-las directamente pelos bens de
de ser executadas. Para começar, alguém tem de ter uma ideia do género de obra que necessitam, ou podem consagrar à produção artística o tempo livre que lhes sobra
que se pretende realizar bem como da sua forma particular. Esta ideia pode ter após terem cumprido as suas obrigações. Podem executar as suas actividades comuns
germinado na mente do autor muito tempo antes da efectiva realização da obra, ou de tal modo que o produto daí resultante possa ser considerado arte, tanto por elas como
pode surgir no decorrer: do processo de trabalho. Ela pode ser magnífica e original, por nós, mesmo que o trabalho não seja considerado oficialmente como tal: era o que
penetrante e emocionante ou superficial e banal, completamente impossível de dis- acontecia com as mulheres que confeccionavam colchas para uso familiar. Qualquer
tinguir de entre milhares de outras ideias concebidas por outras pessoas igualmente que seja o seu modo de produção, as obras são distribuídas, e a distribuição produz os
desprovidas de talento e indiferentes ao que realizam. A concepção da ideia pode meios que irão permitir a futura realização de outras obras.
exigir um esforço e uma concentração enormes, mas também pode surgir esponta- Outras actividades a que podemos genericamente chamar de «apoio» também
neamente ou como resultado da aplicação de fórmulas ou de procedimentos mais têm de se realizar. Estas variam em função da disciplina artística: varrer o palco
do que comprovados. A qualidade da obra não está obrigatoriamente relacionada e trazer café, esticar as telas e emoldurar as pinturas acabadas, fazer a edição de
com o seu modo de criação. Os procedimentos de criação artística resultam sempre texto e a revisão tipográfica. Incluem actividades técnicas - manipular as máquinas
bem com determinadas pessoas, enquanto com outras isso nunca acontece; todos utilizadas para a execução da obra -, bem como outras que visam apenas libertar
conduzem a obras cujo grau de qualidade varia do melhor ao pior, quaisquer que os executantes das tarefas quotidianas mais fastidiosas. Digamos que se trata de
sejam os critérios fixados. uma categoria residual onde englobaremos todas as actividades que se tomam mais
Uma vez concebida, a ideia terá de ser executada. A maioria das ideias artísticas difíceis de classificar.
assume uma forma material: um filme, uma pintura ou uma escultura, um livro, um Uma vez realizada a obra, é necessário que alguém lhe seja sensível, afectiva ou
bailado, algo que se possa ver, ouvir ou tocar. Mesmo a arte conceptual, que pretende intelectualmente, que «descubra nela alguma coisa», que a aprecie. Trata-se do velho
circunscrever-se apenas a ideias, toma a forma de um texto dactilografado, de um enigma - se uma árvore cai na floresta e ninguém a ouve, será que produziu barulho?
discurso, de uma fotografia ou de qualquer combinação destes. - que aqui podemos resolver recorrendo a uma simples definição: o fenómeno que aqui
Os meios necessários para a execução de certas obras de arte parecem tão aces- nos ocupa consiste na realização e na fruição de uma obra; não ocorre sem a presença
síveis, que uma parte ou a totalidade da realização da obra não implica qualquer de um público que reaja e aprecie.

28 29
Mundos da Arte e Actividade Colectiva
Mundos da Arte

Outra actividade consiste em criar a argumentação que justifique o sentido e Os poetas, por exemplo, dependem dos impressores, dos editores e dos distribui-
o interesse de todas as actividades já enumeradas. Esta justificação adquire quase dores para a difusão das suas obras. Mas sempre que esses intermediários não estão
invariavelmente a forma de um discurso estético mais ou menos ingénuo, de uma disponíveis, seja por motivos políticos ou económicos, descobrem-se outras manei-
legitimação filosófica que confere àquilo que se encontra em processo de realização ras de pôr as obras a circular. Os poetas russos faziam circular as suas obras sob a
a qualidade de arte e explica como é que a arte traz qualquer coisa de indispensável forma de originais .dactilografados. Os leitores voltavam a dactilografar os originais
aos indivíduos e à sociedade. Toda a actividade social é acompanhada de justificações para multiplicar o número de exemplares em circulação, sempre que as tipografias
desta ordem, necessárias nos períodos em que observadores exteriores se questionam do Estado se recusavam a imprimi-los e distribuí-los. Nos países capitalistas, se os
sobre a sua utilidade. Existe sempre alguém que coloca estas questões, a começar por editores comerciais se recusam a publicar um livro, um poeta pode fotocopiar as suas
aqueles que se entregam à própria actividade. Subsidiariamente a isto, trata-se de avaliar ~bras, tal como acontece frequentemente com os poetas americanos, por vezes uti-
as diferentes obras e de determinar se elas correspondem às normas que servem como lizando clandestinamente o equipamento disponível na escola ou no escritório onde
justificação estética da sua classe de pertença, ou se não seria a própria justificação que trabalham. Se, depois disso, ninguém quiser distribuir as suas obras, eles próprios
deveria ser reconsiderada. Só através deste exame crítico do trabalho realizado e em o podem fazer, oferecendo exemplares a familiares ou a amigos ou vendendo-os a
curso é que os participantes na realização de obras de arte decidem aquilo que devem desconhecidos na rua. Também podem simplesmente guardar as obras para si. Foi o
fazer ao iniciarem uma nova obra. que Emily Dickinson fez quando, após algumas infelizes experiências com editores
A maioria destas coisas não pode ser feita de improviso. Exige uma certa que modificaram a sua «ignorante» pontuação, percebeu que não poderia publicar as
formação prévia. As pessoas envolvidas devem aprender as técnicas inerentes suas obras sob a forma que desejava (Johnson, 1955).
ao tipo de trabalho que irão realizar, quer se trate da concepção de ideias, da Claro que, quando se limitam a utilizar os meios de distribuição marginais ou quando
sua execução, de uma das inúmeras actividades de apoio, ou ainda da fruição, não recorrem a qualquer circuito de distribuição, os artistas ficam prejudicados, e as
da reacção e da crítica. Portanto, é preciso que existam pessoas que forneçam a instrução suas obras adquirem uma forma diferente daquela que tomariam se tivessem direito a
e a formação necessárias a essa aprendizagem. uma distribuição normal. Geralmente, eles encaram essa situação como uma verdadeira
Finalmente, tudo isto pressupõe a existência de uma ordem social capaz de garantir calamidade e esforçam-se por ter acesso aos circuitos regulares de distribuição, ou a
uma certa estabilidade à acção daqueles que trabalham na área artística, de lhes dar a qualquer outro serviço convencional que lhes foi recusado. Mas, como veremos, os
impressão de que existem efectivamente regras neste jogo. Se os sistemas de apoio e de meios convencionais de levar avante as actividades de apoio reduzem consideravel-
distribuição se baseiam na propriedade privada, o direito de propriedade tem de estar mente o _campo de po~sibilidades. O facto de não os poderem utilizar, embora implique
garantido. O Estado, que persegue objectivos susceptíveis de mobilizar pessoas para verdadeiros mconvementes, também proporciona novas perspectivas. O acesso a todos
uma acção colectiva, deve permitir a produção dos objectos e eventos que constituem os meios e procedimentos normais é um presente envenenado.
a arte e deve providenciar um apoio activo. _E!s-nos portanto bastante afastados de uma teoria funcionalista que sugere que as
Utilizou-se repetidamente o imperativo: as pessoas devem fazer isto, o Estado act1V1dades devem desenrolar-se de uma determinada maneira sob pena de um colapso
deve fazer aquilo. Quem é que disse que isso tem de ser assim? Por que é que tal do sistema social. Os sistemas sociais produtores de arte sobrevivem de diversas ma-
ou tal pessoa deveriam fazer tal ou tal coisa? É fácil imaginar ou recordar casos em neiras, embora nunca de forma idêntica às do passado. A tese funcionalista é verdadeira
que essas actividades não foram cumpridas. Relembremos o que se disse no início: no sentido trivial em que os procedimentos em vigor não sobreviverão no seu estado
«Imaginem-se todas as actividades necessárias para que uma obra de arte se possa ~ctual a não ser que todas as condições necessárias à sua perpetuação se mantenham.
apresentar enquanto tal.» Isto é, os imperativos só funcionam se o evento ocorrer E enganadora quando pretende sugerir que existe uma certa necessidade de perpetuar
de uma maneira específica e não de outra. Mas nada obriga a que ele ocorra apenas de esses procedimentos exactamente como se encontram.
uma determinada maneira. Mesmo que uma ou outra destas actividades não sejam
cumpridas, a obra será realizada de outro modo. Mesmo que ninguém aprecie a obra, ela
A DMSÃO DO TRABALHO
continuará a existir. Mesmo que ninguém apoie a sua realização, ela realizar-se-á sem
apoio. Mesmo que uma parte do material necessário não esteja disponível, o trabalho
realizar-se-á de outra maneira. Naturalmente, essas carências terão repercussões na Estando dado como assente tudo aquilo que é necessário fazer para que uma obra de
obra produzida. Não será a mesma obra. Mas daí a dizer que a obra não pode existir se arte adquira o seu aspecto definitivo, quem é que se vai ocupar dessas tarefas? Tome-
não se efectuarem todas as actividades evocadas, existe uma grande diferença. Essas mos o caso extremo em que apenas um indivíduo desempenharia todas as funções:
actividades podem-se realizar de diversas maneiras e conduzir a resultados, também ele construiria tudo, inventaria tudo, teria todas as ideias, interpretaria ou executaria
eles, muito diferentes. a obra, fruiria e apreciaria essa obra sem a intervenção ou a ajuda de qualquer outro

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

indivíduo. Esta situação é difícil de imaginar, pois todas as artes que conhecemos, tal QUADRO 1
como todas as actividades humanas, envolvem a cooperação de outrem. HURRJCANE, LISTA DE CRÉDITOS

Se existem outras pessoas que assumem partes dessas actividades, como é que os
participantes repartem entre si as diversas tarefas? Tomemos o outro caso extremo Realização Jan Troell
onde cada actividade fosse executada por uma pessoa diferente, um especialista, Produção · Dino de Laurentiis
que não fizesse senão uma operação muito específica, um pouco à semelhança do Argumento Lorenzo Semple, Jr.
que acontece nas linhas de montagem industriais. Esta também é uma situação Baseado no romance Hurricane de Charles Nordhoff e James Norman Hall
imaginária, embora na prática algumas artes se aproximem dela. A longa lista de Produtor executivo Lorenzo Semple, Jr.
créditos que passa no final de cada longa-metragem de Hollywood é um testemu- Director de fotografia Sven Nykvist, A.S.C.
nho evidente dessa grande segmentação de tarefas. Essa parcelização do trabalho, Música Nino Rota
que caracteriza precisamente os filmes realizados com grandes orçamentos, é Editor Sam O'Steen
impulsionada pelas convenções colectivas que atribuem competências exclusivas Produção, guarda-roupa e cenografia Danilo Donati
aos diversos sindicatos profissionais_ e por um sistema de promoção na carreira da Realizador da 2: equipa Frank Clark
indústria cinematográfica que se baseia no número de citações no genérico (Faulkner l.º assistente Jose Lopez Rodero
analisa o papel dos créditos nas carreiras dos compositores de Hollywood). 2. º assistente Fred Viannellis
Parece não haver limites para a segmentação das tarefas. Considere-se a lista de 3.º assistente Ginette Angosse Lopez
créditos que aparece no genérico final do filme Hurricane (ver quadro 1), realizado Assistente de realização George Oddner
em 1978. Existia um director de fotografia, Sven Nykvist, mas não era ele quem Assistente de realização da 2." equipa Giovanni Soldati
operava a câmara. Isso era o trabalho de Edward Lachman. Entretanto, Lachman não Assistente de produção da 2: equipa Goran Setterberg
executava todas as tarefas relacionadas com o manuseamento da câmara. Era Dan Operador de câmara Edward Lachman
Myhrman que a recarregava e, sempre que era necessário acompanhar a focagem Operador de câmara submarina da 2: equipa Sergio Martinelli
durante a rodagem de uma cena, era Lars Karlsson o responsável por essa operação. Assistente de imagem Lars Karlsson
Em caso de um problema técnico, quem reparava a câmara era Gerhard Hentschel. Assistente de imagem da 2." equipa Sergio Melaranci
O trabalho de vestir e de maquilhar os actores, preparar e cuidar do guião, preparar Assistente de câmara DanMyhrman
os cenários e os adereços, visionar a continuidade dos diálogos e dos aspectos vi- Mecânico Gerhard Hentschel
. suais das cenas e até de gerir o orçamento do filme durante a rodagem - todos estes Chefe de iluminação Alfio Ambrogi
trabalhos estavam distribuídos por um número de pessoas cujos nomes apareciam Efeitos especiais Glen Robinson
na lista final que desfilava no ecrã. Esta lista de créditos ainda não exprime todo o Aldo Puccini
pormenor da divisão do trabalho envolvido; alguém teve de dactilografar o guião e Joe Day
de o reproduzir em vários exemplares, outra pessoa teve de reescrever as diferentes Equipa de efeitos especiais Jack Sampson
secções de orquestra da música composta por Nino Rota, depois um chefe de or- Raymond Robinson
questra e um conjunto de instrumentistas, cujos nomes não constam da lista, tiveram Joe Bernardi
de interpretar essa música. WayneRose
De facto, as situações com que nos deparamos na actividade artística situam-se Mestre-de-obras Aldo Puccini
algures entre os casos extremos em que uma única pessoa executa todas as tarefas e
aquele em que existe uma pessoa diferente para cada uma das mais pormenorizadas ASSISTÊNCIA TÉCNICA NA CONSTRUÇÃO
tarefas. As diversas categorias de trabalhadores desenvolvem cada qual um tradicio- DO RESERVATÓRIO E DA VILLA LALIQUE
nal «feixe de tarefas» (Hughes, 1971, pp. 311-16). Para analisar um mundo da arte, C.G.E.E. ALSTHOM-PATEETE
procuramos as categorias de trabalhadores que caracterizam esse mundo e o feixe de SOB A SUPERVISÃO DE M!CHEL STREBEL
tarefas que cada um desempenha.
Coreógrafo Coco
Consultor técnico Milton Forman
Director de arte Giorgio Postiglione

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

Ilustrador Mentor Huebner o nível de vida que atingira, graças à colaboração com Diaghilev e os Ballets Russes
Caracterizador Massimo de Rossi (ver White, 1966, pp. 65-66, 279-80 e 350).
Assistente de caracterização Adonellade Rossi A formação dos músicos clássicos reforça esta divisão do trabalho. O compositor
Supervisor de guião Nikki Clapp contemporâneo Philip Glass explicou que a maioria dos alunos que se inscreve na
Cabeleireiro Ennio Marroni disciplina de composição da Juilliard School of Music já possui urna boa técnica
Adereços George Hamilton num instrumento. Depois de entrarem na escola, consagram muito mais tempo à
Guarda-roupa Franco Antonelli aprendizagem da composição do que ao seu instrumento, enquanto os indivíduos que
Misturador de som Laurie Clarkson se especializam na interpretação instrumental continuam a praticar a tempo inteiro.
Operador de microfone John Stevenson Passado pouco tempo, os instrumentistas tocam muito melhor do que os aprendizes
John Pitt de composição, tão bem que estes acabam por abandonar o seu instrumento; as obras
Chefe maquinista Mario Stella que compõem são fáceis de interpretar pelos instrumentistas, embora os autores não
Coordenador de duplos Miguel Pedregosa as consigam executar (Ashley, 1978).
Duplos Pablo Garcia Na área do jazz, a composição é bastante menos importante do que a interpretação.
Roman Ariznavarreta Os grandes temas do repertório (blues e velhas canções populares) fornecem apenas
Fotógrafo de cena Frank Conner o enquadramento da verdadeira criação. Quando os músicos improvisam, recorrem a
Fotos especiais Alfonso Avincola esse espólio, mas poucos deles ou dos ouvintes saberá realmente quem compôs «Sunny
Relações públicas TomGray Side of the Street» ou «Exactly Like You». Alguns dos temas de improvisação mais
Assistente de diálogos Norman Schwartz conhecidos não têm pura e simplesmente qualquer autoria. Podemos afirmar que o
Assistente de montagem Bobbie Di compositor é o intérprete, e que a improvisação equivale a uma composição.
Auditor de produção Brian Gibbs Na música rock, as duas actividades são, em princípio, desempenhadas pela
Auditor assistente Rex Saluz mesma pessoa. Os intérpretes mais competentes compõem os seus originais. Aliás,
Operador de grua Dan Hoge os grupos de rock que tocam a música dos outros não passam de pálidos imita-
Castingpor McLean/Ebbins/Mansou dores, e um novo grupo não se afirma senão a partir do momento em que começa
Casting local e assistente de diálogos John Alarimo a interpretar as suas próprias composições. As duas actividades são distintas - a inter-
Automóveis Fiat pretação não é simultânea com a composição, como no jazz - mas ambas fazem parte
do feixe de tarefas de um mesmo indivíduo (Bennett, 1980).
Nenhum dos aspectos técnicos de uma arte pode tornar uma repartição de tarefas A divisão do trabalho apresenta variantes da mesma ordem em todas as artes.
mais «natural» que as outras, embora certas divisões do trabalho sejam tão tradicionais Alguns fotógrafos, como Edward Weston, realizaram sempre as impressões das suas
que frequentemente as consideramos inerentes à disciplina artística. Tomemos como fotografias partindo do princípio de que essa operação é parte integrante da criação
exemplo as relações entre a composição e a interpretação da música. Na música sinfó- da fotografia; outros, como Henri Cartier-Bresson, nunca realizaram as suas próprias
nica e na música de câmara clássicas de meados do século XX, as duas actividades são impressões, deixando essa tarefa a técnicos que conheciam perfeitamente as suas
bastante distintas, e cada qual é tida como um trabalho extremamente especializado. .exigências. Na tradição ocidental, os poetas não têm o hábito de incorporar os ele-
Mas isto nem sempre foi assim. Beethoven, como a maioria dos compositores da sua mentos manuscritos nas suas obras. Confiam os originais aos tipógrafos que se en-
época, também interpretava a sua música ou a de outros, tal como podia dirigir uma carregam de converter aquele material numa forma legível; só vemos os manuscritos
orquestra ou improvisar ao piano. Hoje em dia, são raros os intérpretes que também das suas poesias quando estamos interessados nas revisões que fizeram pelas suas
se dedicam à composição, tal como o faziam os pianistas Rachmaninoff e Paderewski. próprias mãos sobre os originais (ver, por exemplo, Eliot, 1971) ou no caso raro de
Quando os compositores dão concertos, é porque a interpretação é um desafio mais Wílliam Blake, que gravava e imprimia as suas próprias chapas, surgindo os poemas
aliciante do que a. composição. Por exemplo, Stravinsky escreveu três peças para directamente do seu punho e tornando-se a grafia, desse modo, parte integrante da
piano, duas com acompanhamento orquestral, destinadas a pianistas com o seu nível obra. Na poesia oriental, pelo contrário, a caligrafia é tão importante como o conteúdo.
de virtuosismo, e um concerto para dois pianos que ele podia interpretar com o seu do poema (ver a figura 1); a sua reprodução em caracteres mecânicos iria privá-la de
filho Soulima nas localidades mais pequenas onde não existia uma orquestra sinfónica. algo de crucial. Para dar um exemplo mais prosaico, os executantes de saxofone e
A interpretação dessas peças (cuja absoluta exclusividade lhe esteve reservada durante de clarinete compram as palhetas para os seus instrumentos nas lojas de música, mas os
vários anos) e a direcção de orquestra para as suas próprias obras permitiram-lhe manter oboístas e os fagotistas compram canas e manufacturam as suas próprias peças.

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Mundos da Arte e Actividade Colectiva

Cada indivíduo que participa na realização de obras de arte tem, portanto, de realizar
um feixe de tarefas muito específico. Apesar de a divisão das tarefas ser, em grande
medida, arbitrária - podia ser diferente e baseia-se no acordo tácito da totalidade ou
da maioria dos participantes - não é, contudo, fácil de mudar. Geralmente, as pessoas
envolvidas encaram a divisão do trabalho como um facto adquirido, um fenómeno
quase sagrado que advém como que «naturalmente» do material utilizado e do meio
\ '
..,,, de expressão. Elas adoptam a estratégia que Everett Hughes (1971, pp. 311-15) obser-
vou entre as enfermeiras, que tentam livrar-se das tarefas que consideram enfadonhas,
baixas ou indignas, em favor de novas tarefas mais interessantes, gratificantes e pres-
l tigiantes. Portanto, todas as artes se baseiam numa ampla divisão do trabalho. Isto é

~
bastante evidente no que diz respeito às artes do espectáculo. Um filme, um concerto,
uma peça de teatro ou uma ópera não podem ser obra de apenas uma pessoa que exe-
t cutaria todas as tarefas do princípio ao fim. Mas será que precisamos de evocar a noção
de divisão do trabalho para compreender a pintura, que parece uma ocupação muito
~

z ')]_ /j mais solitária? Claro que sim. A divisão do trabalho não implica que todas as pessoas
associadas à produção da obra trabalhem sob o mesmo tecto, como os operários de
uma linha de montagem, ou que vivam na mesma época. Ela significa apenas que a
~
t('1
produção do objecto ou do espectáculo assenta no exercício de certas actividades, reali-
zadas por determinadas pessoas no momento desejado. Assim, os pintores dependem
dos fabricantes de telas, de molduras, de tintas e de pincéis; dependem dos galeristas,
dos coleccionadores e dos conservadores dos museus para acederem aos espaços de
exposição e ao apoio financeiro; dependem dos críticos e dos historiadores de arte para
~
a justificação do seu trabalho, do Estado para as ajudas materiais, bem como das leis
'> fiscais susceptíveis de encorajar os coleccionadores a adquirirem obras e depois a legá-
-las à sociedade. Dependem do público pelas respostas emocionais às suas obras e dos
~( outros pintores, tanto dos seus contemporâneos como dos mais velhos, que instauraram .
a tradição pela qual as suas obras adquirem significado. (Ver Kubler, 1962, e Danto,
1964, 1973 e 1974 sobre a tradição.)
O mesmo acontece com a poesia, que parece uma actividade ainda mais solitária que
a pintura. Para realizarem o seu trabalho, os poetas não necessitam de outro material
senão aquele que a maioria das pessoas utiliza nos seus empregos. Lápis, canetas, uma
máquina de escrever e papel são o suficiente; e se estes não estiverem disponíveis,
sabemos que a poesia começou por ser uma tradição oral e que uma grande parte da
FIGURA 1. Página de uma série de Shok1111i11-e («representações de várias ocupações»), período Edo
poesia popular ainda hoje se perpetua exclusivamente sob essa forma (até ao mo-
(1615-1868), Japão. Na literatura ocidental apenas as palavras do poema são importantes, mas na mento em que alguns estudiosos das artes populares como Jackson, 1972 e 1974, ou
maioria da literatura oriental a caligrafia é tão importante como as palavras e aquele que a executa é um Abrahams, 1970, a transcreveram e publicaram). Mas esta aparência de autonomia é
artista tão importante como o poeta. Tinta e aguarela sobre papel. Artista, poeta e calígrafo desconhe- ilusória. Os poetas dependem tanto dos impressores e dos editores quanto os pintores
cidos. O poema diz: «Os sons do martelar continuam/ No alto a lua clara/ As pessoas, maravilhadas, dos galeristas, e o seu trabalho só adquire significado completo face a uma tradição
escutam ... » (Asian Art Museum, São Francisco, Avery Brundage Collection).
com a qual se possa cónfrontar. Mesmo uma poetisa tão independente como Emily
Dickinson utilizava uma métrica inspirada nos hinos protestantes que o público ame-
ricano reconhecia e apreciava.
Deste modo, todas as obras de arte, exceptuando as absolutamente individualistas
e ininteligíveis produzidas por uma personalidade autista, implicam uma certa divisão

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

do trabalho entre um grande número de pessoas. (Ver esta questão da divisão do Na mesma época, ou mesmo antes, alguns clientes preocupavam-se menos com os
trabalho em Freidson, 1976.) materiais e um pouco mais com a qualidade da execução. Um contrato de 1445 entre
Piero della Francesca e um cliente (outro homem da Igreja), embora não deixasse de
mencionar o ouro e o azul-ultramarino, enfatizava sobretudo certas exigências face à
A ARTE E OS ARTISTAS competência do pintor, especificando que «nenhum outro pintor senão o próprio Piero
poderá executar a tarefa» (citado por Baxandall, 1972, p. 20). Eis outro contrato ainda
Todos aqueles que participam na criação de obras de arte e, de um modo geral, a mais detalhado:
sociedade no seu conjunto, estão convencidos de que a arte exige talentos, dons ou
aptidões que poucas pessoas possuem. Algumas são mais dotadas do que outras e são O mencionado mestre Luca obriga-se e promete pintar (1) todas as personagens previstas sobre
raras as que merecem o título honorífico de «artista». É a ideia que Tom Stoppard a dita abóbada, e (2) especialmente as faces e todos os pormenores da metade superior dessas
personagens, e (3) que nenhuma pintura seja executada sem a presença pessoal do próprio Luca
nos consegue transmitir em termos concisos através de uma das suas personagens em (... ). E fica acordado (4) que todas as misturas de cores serão feitas pelo próprio mestre Luca (...).
Travesties: «Um artista é alguém suficientemente dotado para fazer mais ou menos (Citado por Baxandall, 1972, p. 23.)
bem aquilo que os outros, que não possuem tais dotes, não conseguem de modo
algum realizar ou que fazem mal» (Stoppard, 1975, p. 38). Reconhecemos os que
possuem esses dons através das suas obras porque, e sempre segundo essa crença Este contrato é completamente diferente. Aqui o cliente quer assegurar-se de que,
comum, a obra de arte expressa e encarna os raros talentos do seu autor. Através pelo preço a pagar, será contemplado com algo mais precioso do que o ultramarino a
do exame da obra apercebemo-nos de que ela só pode ter sido executada por um quatro florins a onça. Ele quer a mestria singular de um artista. «Parece que o cliente
indivíduo especial. do século XV pretendeu cada vez mais demonstrar a sua opulência através da qualidade
Achamos importante saber quem possui e quem é desprovido desses dons específica de comprador de talentos.» (Baxandall, 1972, p. 23.)
porque atribuímos direitos especiais e privilégios àqueles que os têm. Num ex- Esta mudança não era senão uma primeira etapa no sentido da actual e arreigada
tremo, deparamos com o mito romântico que defende que pessoas possuidoras convicção de que uma obra de arte se distingue, antes de mais, pela expressão do
de tais dotes não podem estar sujeitas aos constrangimentos normalmente impos- talento e da imaginação de um grande artista. Naquele momento, a especial indivi-
tos aos outros membros da sociedade; temos de as autorizar a violar as regras da dualidade do artista já era reconhecida, mas ainda não lhe conferia os direitos que veio
convivência, do decoro e do senso comum que todos os outros indivíduos são obriga- a adquirir mais tarde.
dos a respeitar sob pena de sanções. Em troca, a sociedade receberá obras de carácter Apesar de os artistas poderem demonstrar a posse de dotes singulares, de fornecerem
excepcional e de valor inestimável. Esta crença não está presente em todas as socieda- um trabalho considerado como particularmente importante para a sociedade e por isso
des, nem sequer na sua maioria; é característica das sociedades ocidentais, bem como obterem privilégios exclusivos, é conveniente garantir que apenas aqueles que possuem
daquelas que foram alvo da sua influência desde o Renascimento. realmente o talento requerido acedem a essa posição privilegiada. Existem mecanismos
Michael Baxandall (1972) situa essa evolução das mentalidades europeias no século xv muito concretos para fazer essa triagem, que variam em função das sociedades e das
e encontra uma prova disso na modificação dos contratos entre os pintores e os seus disciplinas artísticas. Num extremo, temos a corporação ou a academia (Pevsner, 1940)
clientes. Num dado momento, esses contratos estipulavam o género da pintura, as que impõem uma longa aprendizagem e excluem aqueles que elas não aprovarem. Nos
modalidades de pagamento e, sobretudo, a gama de cores a usar, fazendo-se menção países onde o Estado não concede grande autonomia à arte, mas controla as instituições
expressa do dourado e dos azuis mais dispendiosos (alguns destes pigmentos eram que conferem aos artistas formação e saída profissional, o acesso à prática do oficio
bastante mais baratos do que outros). Assim, um contrato realizado em 1485 entre é igualmente restringido. No pólo oposto, temos países como os Estados Unidos da
Domenico Ghirlandaio e um cliente (um homem da Igreja) especificava que, entre América onde todos podem aprender; aqueles que participam na criação artística
outras coisas, o pintor devia: submetem-se aos mecanismos do mercado livre para que desse modo se possam distinguir
os verdadeiros talentos dos outros. Sob este sistema, as pessoas aceitam a ideia de que
Pintar o quadro a expensas próprias, com cores de boa qualidade e com pó de ouro sobre os os artistas possuem um dom especial, mas defendem que para os descobrir é necessário
ornamentos, como é de regra (... ) e o azul deve ser ultramarino, com o preço de quatro florins conceder as mesmas oportunidades a cada indivíduo e avaliar os resultados.
a onça( ... ). (Citado por Baxandall, 1972, p. 6.)
Os criadores de obras de arte, e de um modo mais geral todos os membros da
sociedade, designam as actividades necessárias à produção de uma forma de arte como
Isto assemelha-se ao tipo de contrato que normalmente se estabelece com um «artísticas», porque estas exigem os dons ou uma sensibilidade que só o autêntico
empreiteiro, especificando com precisão a qualidade do aço e do betão a utilizar. artista possui. Encaram-nas como actividades nucleares da arte, pois permitem a uma

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

obra de arte distinguir-se de um produto industrial, de um artigo artesanal ou de um direito do controlo sobre a gravação e a mistura das suas interpretações. Isto teve duas
objecto natural (no caso de a obra ser um objecto). As outras actividades são apenas consequências imediatas. Por um lado, o trabalho de mistura, agora assinalado nas
casos de destreza manual, de jeito para o negócio ou de qualquer outra aptidão menos capas dos discos, começou a ganhar reconhecimento e impôs-se como uma actividade
rara, menos característica da arte, menos necessária para o êxito da obra, menos digna artística que requeria um talento especial. Por outro lado, indivíduos que se tinham
de respeito. Os que exercem essas actividades são relegados para a categoria de pessoal afirmado como músicos famosos começaram a executar eles próprios essa tarefa ou
de apoio (assistentes ou ajudantes) e o título de «artista» apenas é atribuído aos que recrutaram antigos músicos para a fazer. A mistura, outrora uma mera actividade
executam as actividades nucleares. técnica, tornou-se uma componente essencial do processo artístico e era reconhecida
Quer se trate de uma actividade nuclear, com os seus obrigatórios e exdusivos como tal (Kealy, 1979, pp. 15-25).
atributos artísticos, ou de uma actividade de simples apoio, ela pode sempre mudar de A ideologia em vigor postula uma correlação perfeita entre exercer a actividade
estatuto. Como vimos, a pintura era outrora considerada um trabalho qualificado, mas nuclear e ser um artista. Se se tem essa actividade, então é-se forçosamente um
não mais do que isso. Contudo começou lentamente a conquistar um carácter mais artista. E reciprocamente, sendo um artista, aquilo que se faz é forçosamente
especial a partir do Renascimento. Mais à frente, noutro capítulo, mostraremos como arte. Donde uma certa· confusão quando, quer do ponto de vista do senso
as actividades artesanais podem ver o seu estatuto redefinido como arte e vice-versa. comum ou na perspectiva da tradição artística, essa correlação não acontece.
Para já, bastará referir o exemplo do engenheiro de som e misturador, que se ocupa dos Por exemplo, se a ideia de dom ou de talento implica (como é frequente) a
aspectos técnicos da gravação musical e da sua preparação para a difusão comercial. ideia da espontaneidade de expressão ou da inspiração sublime, os métodos
Edward Kealy (1979) descreve a evolução do estatuto dessa actividade técnica. Até profissionais de trabalho de muitos artistas originam uma curiosa incongruência.
meados dos anos 40 do século XX: Os compositores que escrevem um determinado número de compassos de música por
dia, os pintores que pintam um determinado número de horas por dia- quer estejam a
A perícia do engenheiro de som consistia em tirar o melhor partido possível das características «fruir o prazer desse momento ou não» - despertam algumas dúvidas face aos talentos
acústicas do estúdio, escolher a posição.dos microfones e corrigir ou equilibrar os níveis so- sobre-humanos que se esperava que demonstrassem. Trollope, que acordava bem cedo
noros durante a gravação. As possibilidades de acertos eram muito limitadas porque a música
era registada directamente num disco ou em fita magnética. A questão estética primordial era
para exercer as suas três horas de escrita antes de ir trabalhar como funcionário dos
de ordem prática: em que medida é que um registo reproduz com fidelidade os sons de uma correios britânicos, era quase uma caricatura dessa conduta profissional e metódica,
execução musical? (p. 9) «antiartística»:

Aqueles que viveram como escritores - trabalhando todos os dias como operários da literatura
Após a Segunda Guerra Mundial, os progressos técnicos tornaram possível a «alta- - certamente concordarão que três horas diárias permitem a um indivíduo produzir tanto quanto
se desejou. Mas para isso, deve exercitar-se para trabalhar sem interrupções durante essas três
-fidelidade» e o «realismo das salas de concerto». horéjs - terá de educar o seu espírito de tal forma que não necessite de mordiscar a pena e de
contemplar a parede nua à sua frente, antes de encontrar as palavras pretendidas para expressar
Um bom operador de som esforçar-se-ia por garantir que todo o tipo de ruídos indesejáveis não as suas ideias. Nessa época, era meu hábito - e ainda o mantenho, apesar de me ter votado ul-
ficassem gravados ou então que a sua presença fosse minimizada, que os sons fossem gravados timamente a um certo desleixo - escrever com o relógio à minha frente e exigir a mim mesmo
sem distorção e devidamente equilibrados. As próprias tecnologias de gravação e, portanto, o duzentas e cinquenta palavras de quarto em quarto de hora. Pude constatar que as duzentas e
trabalho do operador de som deveriam passar despercebidos para não quebrar no ouvinte a ilusão cinquenta palavras iam aparecendo a um ritmo tão regular quanto o movimento dos ponteiros
de estar no Philharmonic Hall, e não na sala de estar da sua casa. (p. 11) do relógio. (Trollope, 1947, pp. 227-28)

Com o advento da música rock, os músicos cujos instrumentos incorporavam os Deparamo-nos com outra dificuldade quando alguém que reclama o estatuto de
últimos desenvolvimentos da tecnologia electrónica começaram a utilizar de uma forma artista se furta a exercer alguma actividade considerada como nuclear ao trabalho
experimental as técnicas de gravação como parte integrante da criação musical. Como, de um artista. Dado que a definição daquilo que é considerado actividade nuclear
na maioria dos casos, tinham aprendido a tocar imitando gravações tecnicamente muito varia com o tempo, a divisão do trabalho entre o artista e o pessoal de apoio também
trabalhadas (Bennett, 1980), quiseram muito naturalmente introduzir esses efeitos no está sujeita às mesmas variações, constituindo uma fonte de sérias dificuldades.
seu trabalho. Os novos equipamentos, nomeadamente os gravadores multipistas, tor- Até que ponto é possível restringir a actividade nuclear sem se perder o estatuto
naram possível a montagem e a combinação de elementos gravados separadamente, e de artista? A parte que constitui a contribuição do compositor para a obra final tem
permitiram manipulações electrónicas dos sons produzidos pelos músicos. As estrelas variado consideravelmente. Os intérpretes virtuosos, desde o Renascimento até ao
rock, relativamente independentes das regras corporativas, começaram a reclamar o século XX, criavam floreados e improvisavam sobre a partitura dada pelo compositor

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Mundos da Arte

(Dart, 1967, e Reese, 1959), portanto, os compositores contemporâneos começaram


a criar pautas onde só forneciam as indicações mais sumárias aos seus intérpretes
(a tendência inversa, que consiste em restringir a liberdade de interpretação dos
músicos ao fornecer indicações cada vez mais precisas, foi dominante até uma
época muito recente). No mundo da música contemporânea, John Cage e Karlheinz
Stockhausen (Wõrmer, 1973) são considerados compositores, mesmo que muitas
das suas obras deixem ao critério do músico a decisão sobre a forma de interpretar
passagens inteiras. Os artistas não têm necessariamente de manipular os materiais
que constituem a obra de arte para serem considerados artistas; os arquitectos ra-
ramente constroem aquilo que desenham. Mas uma tal atitude levanta problemas
quando um escultor constrói uma peça limitando-se a fornecer um conjunto de
instruções a uma oficina de construção mecânica. Muitos recusam-se a classificar
como artistas os autores de obras conceptuais que consistem em instruções que
nunca materializam a construção de um objecto. Marcel Duchamp transgrediu a
ideologia dominante quando assinou e apresentou como autênticas obras de arte
uma pá de neve produzida comercialmente ou uma reprodução da Gioconda, na qual
desenhara um bigode (ver figura 2), relegando, deste modo, Leonardo da Vinci para
o conjunto dos indivíduos considerados pessoal de apoio, bem como o inventor e
o fabricante da pá. Por mais chocante que esta ideia possa parecer, acontece algo
idêntico na realização das collages, que são inteiramente compostas por elementos
de obras de outras pessoas.
Outra confusão surge quando ninguém consegue distinguir, de entre os participantes
envolvidos na produção de uma obra, qual ou quais possuem o tal dom particular e,
consequentemente, têm o direito de ser designados como autores da obra acabada,
bem como o de dirigir as actividades dos outros. Eliot Freidson (1970) realçou que,
na actividade colectiva do mundo da medicina, os participantes concordam em atribuir
ao médico o dom particular e as prerrogativas que daí advêm. Mas qual das principais
categorias de participantes é que desempenha um papel preponderante e incontestado
na realização de um filme? Os teóricos do cinema de auteur insistem que um filme
deve ser entendido como a expressão da sensibilidade e da imaginação do realizador,
que tudo dirige, mesmo quando entra em choque com os constrangimentos impostos
pelos produtores ou com a falta de cooperação dos actores. Uns consideram que é o
argumentista, se tal lhe for permitido, quem controla o filme, enquanto outros defendem
que o cinema é uma arte de actores. Penso que ninguém defenderia que a sensibilidade
do contabilista da produção ou do assistente de câmara fossem determinantes para o
filme, mas Aljean Harmetz (1977) demonstrou-nos com clareza que a contribuição de
E. Y. Harburg e HaroldArlen, os responsáveis pela música de O Feiticeiro de Oz, foi
determinante na fase de montagem do filme.
Este problema assume uma forma especial na questão de saber se, ao reagirmos
perante uma obra de arte, devemos ter em consideração essencialmente as intenções
do autor, ou se podemos interpretar a obra de diversas maneiras sem privilegiar essas FIGURA 2. Marcel Duchamp, L.H.0.0.Q. Quando Marcel Duchamp desenhou um bigode numa
intenções (Hirsch, 1979). Dito de outro modo, admitimos que o autor imprime algo reprodução da Gioconda e assinou a gravura, transformou Leonardo numa pessoa de apoio ao seu
de específico à realização da obra, algo que mais ninguém conseguiria fornecer? trabalho. (Colecção particular. Fotografia cedida pelo Philadelphia Museum of Art.)

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

O público que pensa assim reagirá certamente em função das intenções do autor. Tudo isto é importante não só porque tem implicações sobre o modo como apre-
Mas esta opinião nem sempre é unânime: para os músicos e ouvintes de jazz, o modo ciamos e avaliamos a obra, mas também porque a reputação de um artista é o resul-
de interpretação dos temas do repertório não é determinado pelos seus criadores. tado da soma das apreciações feitas a toda a sua produção. Cada obra atribuída de
Aqueles que participam na realização de obras de arte podem estar de acordo quanto forma definitiva a Ticiano acrescenta ou subtrai algo ao total que nos permite medir
às intenções prevalecentes - as do autor, do intérprete ou do público - e, deste modo, a grandiosidade desse artista. É por isso que o plágio suscita reacções tão violentas.
ultrapassar todas as dificuldades d~ ordem teórica ou prática. Estes problemas surgem Não se trata apenas de um bem que é roubado, mas também do fundamento da sua
quando os participantes entram em desacordo e os procedimentos habituais suscitam reputação.
um conflito inultrapassável. A análise sociológica fornece uma explicação para este A reputação do artista e da obra reforçam-se mutuamente. Atribuímos maior valor
problema filosófico e estético; evidentemente, esta resposta não resolve o problema. a uma obra realizada por um artista que admiramos, tal como admiramos à partida
Adopta-o como objecto de estudo. um artista de cujas obras gostamos. Quando a distribuição da arte implica uma tran-
Finalmente, dado que a condição de artista depende da produção de obras de sacção no mercado, o nível de reputação pode ser convertido em valor financeiro; isto
arte que materializem e expressem os seus talentos e dons, os participantes nos implica que a decisão de retirar a autoria de uma obra a um artista famoso e admirado
mundos da arte inquietam-se face à autenticidade das obras. O artista que passa faz com que ela perca automaticamente o seu valor. Houve museus e coleccionadores
por ter realizado uma obra realizou-a de facto ele próprio? Será que alguém pode que sofreram grandes perdas financeiras em consequência disso, e os especialistas são
modificar ou retocar uma obra original de tal modo que aquilo que nos é apresen- frequentemente alvo de fortes pressões quando pretendem desmentir atribuições de
tado já não corresponde exactamente ao que o artista realmente desejava ou criou? obras que implicaram enormes investimentos (Wollheim, 1975).
Se, uma vez acabada a obra, o artista a alterou tendo em conta experiências ou Para Trollope, a questão da importância do nome do artista para a avaliação da
críticas entretanto surgidas, o que é que se pode inferir relativamente às aptidões obra era suficientemente interessante para que realizasse uma experiência:
desse artista? Se a nossa opinião acerca do artista se baseia na sua obra, temos
necessariamente de saber quem a realizou, e a obra merece, consequentemente, a Após alcançar sucesso corno escritor( ... ) apercebi-me de urna enorme injustiça nos meios
da literatura que nunca me tinha atingido, e da qual nunca suspeitei enquanto fui desconhe-
avaliação que fazemos dela e do seu criador. Tudo se passa como se a realização de
cido. Parecia-me que a notoriedade, uma vez adquirida, trazia consigo demasiadas mor-
obras de arte fosse um concurso, uma espécie de exame escolar que exigisse uma domias ( ... ). Considerava que o trabalho daqueles que surgiam depois de mim era de
avaliação equitativa, baseada numa rigorosa observação dos factos. A importância uma qualidade tão boa, senão melhor, e contudo não eram devidamente apreciados. A fim
desta correlação entre a pessoa e a obra é tal que existem investigadores que se de o confirmar, decidi tomar-me eu mesmo um desses aspirantes e começar uma série de ro-
dedicam a verificar quem executou determinadas pinturas, se o quadro exposto sob mances anónimos para verificar se conseguiria adquirir uma segunda identidade, já que, tendo
o nome de X é realmente uma obra de.X, se a música que ouvimos foi composta pela ganhado notoriedade graças às minhas qualidades literárias, deveria obter de novo esse resultado.
(Trollope, 1947, pp. 169-70)
pessoa que pensamos, se o texto de um determinado romance foi de facto escrito
pelo indivíduo cujo nome consta na capa, ou se se trata de um plágio cujo mérito
ou responsabilidade cabem a outrem. Ele escreveu, e publicou sob anonimato, dois contos onde se esforçou por disfarçar
Por que é que estes factos são importantes? Apesar de tudo, a obra não se altera o seu estilo e a sua forma característica de desenvolver uma narrativa:
mesmo que se descubra que o seu autor foi outra pessoa. Quer tenha sido escrita por
Shakespeare ou por Bacon, uma peça não se mantém sempre a mesma? Sim e não. Por uma ou duas vezes, ouvi-os mencionados [os contos] por leitores que não sabiam que
o autor era eu, e sempre em termos elogiosos; mas [eles] não alcançaram um verdadeiro
O conto de Borges (1962) sobre Pierre Menard realça de modo singular essa ambigui-
sucesso ( ... ). Blackwood [o editor], que evidentemente conhecia o autor, quisera publicá-
dade. Ele conta-nos que Pierre Menard, um escritor francês autor de vários romances -los, na firme esperança de que as obras de um escritor estabelecido se imporiam, mesmo na
e obras convencionais, decide escrever o Dom Quixote - não uma nova versão do ausência do nome desse escritor ( ... ). Mas os factos não corresponderam às suas expectativas
romance, mas o mesmo Dom Quixote de Cervantes. Depois de um enorme trabalho, e ele recusou uma terceira tentativa, embora um terceiro conto estivesse pronto (... ). Claro que
consegue escrever dois capítulos e uma parte do terceiro. As palavras são exactamente nada disto prova que não pudesse ter alcançado novamente êxito se tivesse mantido a determi-
as mesmas de Cervantes. Mas, como sublinha Borges, Cervantes utilizava a linguagem nação de outrora( ... ). Outros dez anos de trabalho intenso e não remunerado poder-me-iam
ter facultado uma nova reputação. Mas uma coisa pelo menos parecia-me evidente: apesar de
da sua época, enquanto Menard emprega uma linguagem arcaizante que, ainda para todas as vantagens que a prática da minha arte me tinha concedido, eu não conseguia levar
mais, não é a sua língua materna. E por aí fora. A pessoa que escreve e a época em que os leitores ingleses a ler o que lhes dava, a não ser que o fizesse sob o meu nome. (Trollope,
escreve constituem dados que influenciam o juízo que fazemos da obra e, portanto, 1947, pp. 171-72) -
aquilo que ela nos pode revelar acerca do seu autor. (Para mais observações sobre este
conto de Borges, ver Danto [1973], pp. 6-7.)

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Trollope concluiu que: do trabalho era um costume e estava na origem de uma arte artesanal extremamente
especializada. Fez desenhos com grandes áreas de cores uniformes, pensando deste
É normal que para todas as coisas o público se fie numa reputação bem estabelecida. modo simplificar o trabalho do impressor. Ora, afinal tinha tomado tudo mais dificil.
É natural que um leitor de romances procure numa biblioteca livros de George Eliot ou de Wilkie
Collins, tal corno urna dama vai ao Fortnurn & Mason quando deseja urna empada. Fortnurn &
Para pôr tinta numa área maior da pedra, o impressor tem de fazer várias passagens
Mason só puderam tomar-se aquilo que são pelo efeito conjugado de um certo contexto temporal sobre a mesma superficie, criando o risco de surgirem marcas do rolo. Os impressores,
e das suas óptirnas empadas. Se Ticiano nos enviasse do outro mundo urna pintura( ... ) seria que nutriam um enorme zelo e orgulho pela sua arte, explicaram ao artista que podiam
necessário algum tempo para que o cático do Times descobrisse o seu valor. Podemos troçar da imprimir os seus desenhos, mas que iriam ter muitas dificuldades em evitar os traços
falta de discernimento assim demonstrada, mas este peso da avaliação é humano e sempre foi do rolo sobre as grandes superficies. Ele ignorava esses detalhes técnicos quando
assim. Afirmo tudo isto agora porque os meus pensamentos sobre esta questão persuadiram-me executou os desenhos e propôs a utilização dos traços do rolo como uma componente
de que é necessário ter em consideração a amargura dos autores desiludidos. (Trollope, 1947,
p. 172) estética da obra. Os impressores recusaram-se categoricamente a realizar o trabalho.
Os traços do rolo eram um sinal evidente (aos olhos dos outros impressores) de falta
de perícia, e a ideia de que uma gravura com esses traços pudesse sair da sua oficina
era-lhes absolutamente insuportável. A curiosidade artística do escultor tinha colidido
AS CADEIAS DE COOPERAÇÃO com as normas profissionais dos impressores. É um exemplo eloquente do modo como
os grupos especializados de apoio se regem por normas e preocupações que lhes são
Tudo o que não é realizado pelo artista, ou seja, por aquele que exerce a actividade próprias (ver Kase, 1973).
nuclear sem a qual a obra não seria arte, tem de ser feito por outra pessoa qualquer. O artista estava à mercê dos impressores porque não tinha a capacidade de impri-
O artista encontra-se deste modo no centro de uma rede de cooperação onde todos mir as litografias por si próprio. Este caso é um exemplo das escolhas que um artista
os intervenientes realizam um trabalho indispensável à consumação da obra. Sempre tem de enfrentar quando inserido em qualquer cadeia cooperativa. Ele pode delegar a
que o artista depende de outras pessoas, existe uma cadeia de cooperação. As pessoas realização do trabalho e deixar que as coisas sejam executadas tal como o pessoal de
com quem coopera podem partilhar completamente as suas ideias sobre o modo como apoio está preparado para as fazer; pode tentar persuadir essas pessoas a realizarem o
o trabalho deve ser executado. Este consenso existe quando os participantes exercem trabalho segundo as suas indicações; pode ensiná-las a trabalhar segundo o seu mé-
qualquer uma das actividades necessárias, sem que, apesar da divisão do trabalho, se todo; ou então, é ele quem realiza as coisas. Exceptuando a primeira, qualquer uma
constitua um subgrupo em torno de uma função especializada. É o que se passa nas destas alternativas implica um investimento adicional de tempo e de energia que pode
formas de arte simples e muito difundidas, como na dança quadrilha, ou em segmentos ser economizado se se recorrer aos procedimentos habituais. Os laços do artista com
da sociedade onde todos os membros estão em contacto permanente com actividades a cadeia de cooperação de que depende têm um grande peso sobre o tipo de obra que
artísticas. No século XIX, os americanos oriundos de «boas» famílias possuíam conhe- ele pode efectivamente produzir.
cimentos musicais suficientes para interpretarem as baladas de Stephen Foster, tal como Podemos encontrar exemplos semelhantes em todos os domínios da arte. e e cum-
os seus homólogos do Renascimento interpretavam madrigais. Nestas circunstâncias, mings teve algumas dificuldades em publicar o seu primeiro livro de poesia porque as
a cooperação acontece de modo simples e rápido. suas bizarrias tipográficas assustavam os impressores (Norman, 1958; ver figura 3).
Pelo contrário, quando grupos de profissionais especializados se encarregam de A realização de um filme suscita um sem-número de dificuldades da mesma ordem:
exercer as actividades necessárias à produção de uma obra de arte, os seus membros têm actores que não querem ser filmados senão num ângulo que os favoreça, argumentistas
preocupações estéticas, financeiras e profissionais muito diferentes das do artista. Sabe-se, que não aceitam a mínima modificação dos diálogos e operadores de câmara que se
por exemplo, que os músicos de orquestra se preocupam muito mais em interpretar as recusam a utilizar técnicas não convencionais.
suas partes com brio do que com o sucesso de uma obra em particular; e isto por um boa Os artistas criam com frequência obras que não se adaptam às estruturas de
razão, já que o êxito deles depende em grande medida da impressão que exercem sobre produção ou de apresentação existentes. Façamos um pequeno exercício mental.
o seu empregador (Faulkner, 1973a, 1973b). Podem sabotar uma nova obra que, dada a Imaginemo-nos no papel de um responsável pelo departamento de escultura de
sua dificuldade de execução, os leva a soar mal, porque os seus interesses profissionais um museu e que convidámos um famoso escultor para expor uma obra recente.
chocam com os do compositor. Ele chega ao volante de um camião que transporta uma monumental construção com-
A ocorrência de conflitos estéticos entre o pessoal de apoio e o artista também é posta por várias peças de maquinaria industrial, enormes e pesadas, que resultam numa
frequente. Um escultor meu conhecido foi convidado a utilizar os serviços de uma obra de formas interessantes e agradáveis. Ficamos imediatamente rendidos e muito
oficina de litografia. Como sabia pouco daquela técnica, ficou grato por poder confiar entusiasmados. Pedimos ao escultor para levar o camião até à zona de descargas do
o trabalho de impressão à mestria daqueles artesãos veteranos, já que esta divisão museu. É então que ambos nos apercebemos de que a porta é muito baixa; tem quatro

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r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r público. Não porque os directores dessas organizações sejam uns empecilhos reaccio-
who
nários, mas porque os espaços são concebidos para acolher obras de dimensões habituais,
a ) s w ( e loo ) k
upnowgath
e os recursos de que dispõem não lhes permitem realizar nem os trabalhos necessários para
PPEGORHRASS acolher obras não conformes, nem suportar os prejuízos resultantes da apresentação de
eringint(o- obras que não encontram a adesão do público.
aTHE) :1 Como é que se faz então, para que as obras que fogem às normas possam ser
eA expostas, interpretadas ou difundidas? Voltar-se-á a este assunto mais à frente. Para já,
!p: sublinhe-se apenas que existem frequentemente circuitos paralelos de distribuição
s a públicos e empresários receptivos a novas experiências. Os primeiros procuram meios
(r
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alternativos de difusão, os outros apostam sobretudo nos resultados. As instituições
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de ensino oferecem muitas vezes este género de possibilidades. Têm bastante espaço
rea (be) rran (com) gi (e) ngly e podem recrutar entre os seus alunos indivíduos mais ou menos disponíveis, o que
,grasshopper; lhes permite mobilizar efectivos com os quais os estabelecimentos mais comerciais
não podem contar: verdadeiras multidões para as cenas de multidões, ou combinações
FIGURA 3. e e cummings, «r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r». e e cummings teve problemas com o público e com perfeitamente inesperadas de instrumentistas e cantores para experiências musicais.
os impressores porque a sua poesia obrigava-os a fazerem as coisas de um modo inabitual. (Excerto Os artistas que se adaptam às possibilidades oferecidas pelas instituições habituais
de NO THANKS, poemas de E. E. Cummings, com a autorização de Liveright Publishing Corporation.
© 1935 E. E. Cummings. © 1968 Marion Morehouse Cummings. © 1973, 1978 Nancy T. Andrews.
são em maior número. Ao ajustarem os seus projectos às condições existentes, aceitam
© 1973, 1978 George James Firmage.) os constrangimentos específicos dessa rede de cooperação. Sempre que um artista
depende de outras pessoas para qualquer coisa de indispensável, tem duas hipóteses,
ou aceita os constrangimentos impostos por essas pessoas, ou investe o seu tempo e
metros e meio de altura e a obra é bastante maior, qualquer que seja o lado abordado. energia para obter essa coisa por outros meios.
O escultor propõe a demolição de uma parte do muro da entrada, mas entretanto
também nos apercebemos de que a obra é demasiado pesada: Mesmo ultrapassada a
dificuldade da entrada, o chão iria ceder sob o seu peso. É um museu, não uma fábrica, AS CONVENÇÕES
e portanto não foi concebido para suportar tais cargas. Por fim, o escultor, muito con-
trariado, vai-se embora com a obra. Aprodução de obras de arte exige que pessoal especializado coopere segundo moda-
De modo idêntico, certos compositores escrevem músicas para um número de lidades bem definidas. De que modo é que os participantes chegam a um entendimento
executantes que excede em muito aquilo que as organizações de concertos podem sobre essas modalidades? Poderiam, evidentemente, partir sempre do início de cada
pagar. Os dramaturgos escrevem peças tão extensas que os espectadores aban- vez. Um grupo de músicos podia discutir e chegar a um acordo sobre a gama de sons a
donam a sala antes do fim do espectáculo. Os escritores escrevem romances que utilizar, de instrumentos a fabricar para produzir esses sons, o modo de combinar esses
até os leitores mais competentes consideram ininteligíveis, ou que exigem pro- sons para criar uma linguagem musical, e sobre a maneira de criar com essa linguagem
cedimentos de impressão inacessíveis para os editores. Esses artistas não são obras de uma determinada duração, destinadas a um certo número de instrumentos
estouvados; não é essa a questão. Aquilo que importa realçar é que as esculturas que seriam tocados para um certo número de ouvintes recrutados segundo critérios
expostas nos museus ultrapassaram a porta de descargas e não fizeram ceder o chão. muito precisos. Guardadas as devidas distâncias, é um pouco aquilo que observamos
Os escultores sabem que os museus não podem acolher peças muito pesadas nem aquando da criação de uma nova companhia de teatro, ainda que na maioria dos casos
demasiado volumosas e têm isso em consideração quando realizam o seu trabalho. apenas alguns destes aspectos sejam realmente tidos em conta.
Os espectáculos apresentados na Broadway têm uma duração considerada razoável para Normalmente, as pessoas que cooperam para produzir uma obra de arte não partem
que os espectadores assistam à totalidade das representações, e as obras interpretadas completamente do zero. Pelo contrário, baseiam-se nas convenções existentes e de uso
pelas orquestras sinfónicas são escritas para um número de executantes que não exceda partilhado, que fazem parte dos habituais métodos de trabalho no domínio artístico
os meios financeiros dos organizadores. considerado. As convenções artísticas abrangem todas as decisões que se tomam para
Quando os artistas realizam um trabalho inadaptado às instituições existentes, de produzir uma obra, embora qualquer convenção possa ser revista, tendo em conta a
um ponto de vista puramente material ou tendo em consideração certas convenções necessidade de se satisfazer especificamente um determinado trabalho. As convenções
(o peso da escultura ou a duração dos espectáculos), as obras não são apresentadas ao ditam a escolha dos materiais, por exemplo, quando os músicos acordam em utilizar

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as notas de determinadas escalas modais, ou de uma escala diatónica, pentatónica


ou cromática e as harmonias que lhes estão subjacentes. As convenções indicam os
procedimentos a adaptar para traduzir as ideias ou as sensações, como, por exemplo,
quando os pintores utilizam as leis da perspectiva para dar a ilusão de profundidade
ou quando os fotógrafos utilizam o preto, o branco e as diferentes cambiantes de
cinzentos para reproduzir o jogo da luz sobre os volumes. As convenções prescrevem
a forma que deve tomar a combinação entre as disciplinas artísticas e os géneros,
por exemplo, a sonata na música ou o soneto na poesia. As convenções indicam as
dimensões apropriadas para uma obra, a duração mais sensata para um espectáculo,
as proporções e a forma geral mais indicada para uma pintura ou uma escultura.
As convenções regem as relações entre o artista e o público, ao determinarem os direitos
e as obrigações de uns e de outros.
Os historiadores de arte, os musicólogos e os críticos literários encontraram no FIGURA 4. Três desenhos realistas de uma árvore. As convenções das artes visuais permitem aos
conceito de convenção artística um bom meio para justificarem a capacidade que os artistas atribuir características comuns aos objectos familiares para que o público os interprete como
artistas possuem para realizarem obras que tocam e fazem reagir o público. Ao utili- realistas. Estas três maneiras de desenhar a mesma árvore (utilizam respectivamente as convenções
zarem uma organização de sons tão convencional como uma escala, os compositores europeias do século XVI, do início do século XX e da pintura clássica indiana) são todas facilmente
entendidas como uma árvore. (Desenhos de Nan Becker.)
podem provocar e manipular as expectativas do ouvinte quanto às notas que se segui-
rão. Podem depois atrasar e frustrar a satisfação dessas expectativas, criando tensão e
apaziguamento à medida que a expectativa vai sendo satisfeita (Meyer, 1956, 1973;
Coopere Meyer, 1960). É precisamente devido ao facto de tanto o artista como o pú- Os actores de comédia podiam interpretar cenas burlescas para três personagens sem
blico terem um conhecimento e uma vivência comuns das convenções em jogo, que a qualquer ensaio, porque apenas tinham de recorrer a um conjunto de sátiras que sabiam
obra de arte suscita a emoção. Barbara H. Smith (1968) mostrou o modo como certos de cor e distribuir entre si os diferentes papéis. Os intérpretes de música de dança que
poetas exploram as convenções das formas poéticas e da declamação para conduzirem nunca tenham tocado juntos conseguem passar uma noite inteira a tocar sem outra
a obra a uma conclusão evidente e satisfatória, onde as expectativas suscitadas no combinação prévia senão a indicação dos nomes dos temas (Sunny Side of the Street
início do poema são simultânea e satisfatoriamente resolvidas. E. H. Gombrich ( 1960) em dó maior) e da contagem do tempo («um, dois, ... um, dois, três, quatro»); o título
analisou as convenções visuais que os artistas utilizam para dar ao espectador a ilusão indica uma melodia, a respectiva harmonia e talvez algumas indicações de contraponto.
da realidade (ver figura 4). Em todos estes domínios (e noutros, como a cenografia, As convenções que regem as personagens e a estrutura dramática no primeiro caso,
a dança ou o cinema), a emoção artística só se torna possível devido à existência de e a melodia, a harmonia e o tempo no segundo, são suficientemente conhecidas para
um conjunto de convenções às quais tanto o público como o artista se podem reportar que o público reaja sem dificuldades e como previsto.
para que a obra seja investida de significado. Embora bastante uniformizadas, as convenções raramente são rígidas e imutá-
As convenções são necessárias à arte, ainda sob outro aspecto. Ao poderem to- veis. Não constituem um corpo de regras intangíveis que cada um deve observar
mar decisões com maior rapidez e ao organizarem-se em função dos métodos mais para tomar as suas decisões. Mesmo quando parecem fornecer indicações muito
convenientes, os artistas podem consagrar mais tempo à obra propriamente dita. precisas, deixam lugar a uma parcela de indeterminação que será dissipada pelo
As convenções permitem coordenar mais facilmente e com maior eficácia as activi- recurso aos modos de interpretação habituais, ou através da negociação. Uma
dades dos artistas e do pessoal de apoio. William Ivins (1953), por exemplo, mostrou certa tradição da prática interpretativa, frequentemente codificada por escrito,
como, nas artes gráficas, vários artistas podiam colaborar na realização de uma indica aos artistas como desempenhar os papéis dramáticos ou como abordar as
mesma prancha quando usavam um sistema convencional de marcação de sombras, partituras musicais. As partituras do século XVII continham relativamente poucas
de relevos, etc. Estas convenções permitiam depois ao espectador descodificar esses indicações, mas os tratados dessa época explicavam como resolver as questões
signos essencialmente arbitrários. Nesta perspectiva, o conceito de convenção fornece deixadas em aberto pelos compositores, no que diz respeito à orquestração, à
um ponto de encontro para as ciências humanas e sociais, já que se torna intercambiável duração relativa das notas, às improvisações, às variações e aos floreados. Os músi-
com as tão familiares noções sociológicas de norma, regra, representação colectiva, cos descodificavam as partituras tendo em conta todos esses estilos de interpretação
costume e hábito. Todas estas noções remetem para as ideias e formas de pensamento habituais, o que lhes permitia uma melhor coordenação das suas actividades (Dart,
comuns que estão na base das actividades de cooperação no seio de um grupo de pessoas. 1967). O mesmo acontece nas artes plásticas. Durante o Renascimento, os temas, o

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simbolismo e as cores da pintura religiosa italiana eram ditados em grande medida ou menos consensuais entre todos aqueles que se interessam pela prática da fotogra-
por convenções; mas muitas decisões eram da livre iniciativa do artista, permitindo fia de arte (Rosenblum, 1978), mas também a constrangimentos do material e dos
assim que obras bastante diversas vissem a luz do dia, também elas a partir de con- equipamentos fabricados pelas principais firmas da especialidade. As objectivas, os
venções muito circunscritas. Porém, a adopção de uma temática e de um vocabulário corpos das câmaras, os selectores de velocidade, os obturadores, as películas e o pa-
convencionais forneciam aos espectàdores os meios de decifrar os sentimentos e os pel sensível disponíveis no mercado não representam senão uma ínfima parte de tudo
significados inscritos nos quadros. Mesmo onde a interpretação das convenções se havia aquilo que poderia ser fabricado, uma selecção de produtos compatíveis entre si e
fixado através do uso, tomando-se desse modo ela própria convencional, os artistas cuja utilização permite a obtenção de fotografias aceitáveis. Com alguma imaginação,
podiam decidir em conjunto fazer as coisas de outra maneira, pois a negociação abria também é possível utilizá-los para alcançar efeitos não previstos pelos fabricantes.
essa possibilidade de mudança. Como contrapartida destes constrangimentos temos acesso a um material normalizado
As convenções exercem grandes constrangimentos sobre o artista. Elas são par- e fiável, produzido em série, que os fotógrafos apreciam com agrado; uma película
ticularmente constrangedoras porque não existem isoladamente, mas fazem parte de Kodak Tri-X comprada em qualquer parte do mundo tem as mesmas características e
complexos sistemas interdependentes, de tal modo que uma pequena mudança pode produz, mais ou menos, os mesmos resultados.
envolver toda uma série de mudanças em cadeia. Deparamos sempre com a presença As limitações inerentes à prática convencional não são absolutas. Existe sempre a
de um sistema de convenções nos equipamentos, nos materiais, nos temas, na formação, possibilidade de se fazerem as coisas de outra maneira, desde que se esteja preparado
nos espaços e nas instalações disponíveis, nos sistemas de notação e ainda noutros para pagar o preço desse esforço suplementar, e enfrentar os obstáculos à difusão
elementos que sofrem obrigatoriamente mudanças em resultado da alteração de apenas dessas obras. A experiência do compositor Charles Ives é um exemplo desta segunda
um dos seus elementos (cf. Danto, 1980). possibilidade. Ives trabalhou bastante sobre a politonalidade e a polirritrnia no início
Considerem-se todas as mudanças produzidas pela passagem da escala cromática do século XX, numa época em que elas ultrapassavam as competências dos instrumen-
de doze tons, convencional na música ocidental, para outra constituída por quarenta e tistas de formação clássica. Os músicos nova-iorquinos que tentaram interpretar a sua
dois tons por oitava. Foi o que Harry Partch (1949) fez nas suas composições musicais. música de câmara e as suas obras sinfónicas afirmavam que elas eram impossíveis de
Os instrumentos ocidentais tradicionais não conseguem produzir esses microtons fa- ser executadas, que os seus instrumentos não podiam reproduzir tais sonoridades, que
cilmente e, para a maioria deles, isso é completamente impossível. Toma-se, portanto, as partituras eram absolutamente impraticáveis. Ao fim de algum tempo, Ives aceitou
necessário adaptar os instrumentos habituais ou, então, inventar e fabricar outros. Se finalmente as críticas, mas continuou a compor a sua música. O que toma este caso
surgem instrumentos novos, ninguém sabe tocar neles e os músicos têm de aprender por si. interessante é que, apesar da grande amargura que sentia, ele viveu esta situação como
A notação ocidental convencional não serve para escrever uma música com quarenta uma grande libertação (Cowell e Cowell, 1954). Se ninguém conseguia tocar a sua
e dois tons. É necessário inventar uma nova notação e os músicos têm de aprender a música, então ele não tinha necessidade de escrever em função das capacidades dos
decifrá-la. (Aqueles que usam a escala cromática convencional de doze tons para as suas músicos, de aceitar as convenções constrangedoras que regem a cooperação entre
composições beneficiam de recursos comparáveis sem disso se aperceberem.) Enquanto um compositor e os intérpretes da sua obra. Dado que a sua música não se destinava
para executar correctamente uma música composta a partir dos doze tons são suficientes a ser tocada, ele nunca necessitou de a dar como acabada; absteve-se de aprovar a
algumas horas de ensaio, uma música que utilize quarenta e dois exige muitíssimo mais leitura precursora da Concord Sonata feita por John Kirkpatrick, pois isso signifi-
trabalho, tempo, esforço e recursos. Na maioria dos casos, a interpretação da música caria que nunca mais a poderia alterar. Ives também não era obrigado a adaptar a
de Partch aconteceu da seguinte maneira: uma universidade convidava-o durante um sua escrita musical aos constrangimentos materiais impostos pelos modos de finan-
ano lectivo. No início do ano, ele recrutava um grupo de estudantes interessados no ciamento habituais e, assim, escreveu a sua Quarta Sinfonia para três orquestras.
seu projecto; estes construíam os instrumentos (que ele já tinha inventado) sob a sua (Essa impraticabilidade foi-se atenuando com o tempo; Leonard Bernstein dirigiu
direcção. Durante o Inverno aprendiam a tocar esses instrumentos e a decifrar a notação a primeira apresentação pública da Quarta Sinfonia em 1958, tendo sido executada
que Partch tinha inventado. Na Primavera ensaiavam várias obras e, para terminar, várias vezes desde então.)
realizavam um concerto. Sete ou oito meses de trabalho resultavam finalmente em Regra geral, a ruptura com as convenções e com todas as suas manifestações nas
cerca de duas horas de música. Afinal, duas horas que podiam ser preenchidas com estruturas sociais e na produção material implica um.acréscimo de problemas para os
música mais convencional, executada por um conjunto de músicos de orquestra e após artistas e a diminuição da circulação das suas obras. Mas, simultaneamente, também
oito ou dez horas de ensaios. A diferença de recursos requeridos dá-nos a medida dos amplia a sua liberdade de opção por soluções alternativas e o abandono das práticas e
constrangimentos impostos pelo sistema convencional. dos procedimentos habituais. Se isto é assim, podemos encarar qualquer obra de arte
De modo semelhante, as convenções que especificam as condições daquilo que é como o fruto de uma escolha entre a facilidade das convenções e o sucesso, por um
aceite como uma boa fotografia não correspondem apenas a critérios estéticos mais lado, e a dificuldade do inconformismo e a ausência de reconhecimento, por outro.

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MUNDOS DAARTE Os mundos da arte não têm fronteiras precisas, noutro sentido ainda. O sociólogo que
estuda os mundos da arte consegue discernir tão bem como os próprios participantes,
Os mundos da arte são constituídos por todas as pessoas cujas actividades são ne- mas não melhor, aquilo que é «realmente arte», aquilo que provém da produção artesanal
cessárias à produção das obras que esse mundo, bem como outros, define como arte. ou comercial, aquilo que constitui uma expressão da cultura popular, ou aquilo que
Os membros dos mundos da arte coordenam as actividades através das quais as obras é apenas sintoma de um estado particular de delírio. Porém, os sociólogos resolvem
são produzidas, reportando-se a um conjunto de esquemas convencionais incorporados esse problema das fronteiras com maior facilidade que os membros de um mundo da
em práticas comuns e nos artefactos de uso mais frequente. As mesmas pessoas coo- arte. Uma das questões importantes, na análise sociológica dos mundos da arte, é sa-
peram frequentemente de modo regular, mesmo rotineiramente, e de modo semelhante ber quando, onde e como os intervenientes estabelecem uma demarcação entre aquilo
para produzirem obras semelhantes, de tal forma que podemos pensar num mundo da que consideram característico e tudo o resto. Os mundos da arte dão bastante atenção
arte como uma rede estabelecida de cadeias cooperativas que ligam os participantes à tentativa de determinar aquilo que é e o que não é arte, aquilo que é ou não é o seu
entre si. Se não forem exactamente as mesmas pessoas a intervirem em conjunto e de tipo de arte, quem é e quem não é artista. É através da observação do modo como um
cada vez, os seus substitutos terão também um bom conhecimento das convenções mundo da arte estabelece essas distinções, e não tentando estabelecê-las nós próprios,
em vigor, de modo a que a cooperação possa prosseguir sem dificuldades. As conven- que podemos compreender muito do que se passa nesse mundo. (Ver Christopherson,
ções facilitam a actividade colectiva e proporcionam uma considerável economia de 1974a e b, para um exemplo deste processo na fotografia de arte.)
tempo, de energia e de outros recursos; contudo, não é impossível trabalhar à margem Entretanto, os mundos da arte estabelecem constantemente relações estreitas e
dessas convenções, é apenas mais difícil e mais oneroso sob todos os pontos de vista. essenciais com outros mundos dos quais se querem diferenciar. Partilham idênticas
A mudança é possível e acontece de facto sempre que alguém descobre um meio de fontes de abastecimento com esses mundos, recrutam aí pessoal, adoptam ideias daí
reunir os recursos materiais e humanos necessários, ou reformula completamente o provenientes e competem com eles disputando-lhes o público e os recursos financei-
trabalho de tal modo que este não dependa dos meios comuns. ros. Num certo sentido, os mundos da arte e os mundos das artes artesanal, comercial
Nesta perspectiva, as obras de arte não representam a produção de autores isolados, e popular fazem parte de um sistema social mais vasto. Assim, e apesar de todas as
de «artistas» possuidores de dons excepcionais. Pelo contrário, elas constituem a produção pessoas envolvidas perceberem e aceitarem as diferenças que as mantêm separadas,
comum de todas as pessoas que cooperam segundo as convenções características de um uma análise sociológica deverá revelar, acima de tudo, aquilo que as aproxima.
mundo da arte tendo em vista a criação de obras dessa natureza. Os artistas constituem Além disso, os mundos da arte levam alguns dos seus membros a criar inovações
um subgrupo dos participantes desses mundos que, por acordo mútuo, possuem um dom que depois não são aceites. Algumas dessas inovações engendram pequenos mundos
particular e trazem, em consequência, uma contribuição indispensável e insubstituível distintos; outras permanecem adormecidas durante anos, e algumas gerações ou anos
à obra, tomando-a uma obra de arte. depois são aceites por um mundo da arte mais vasto; outras permanecem magníficas
Os mundos da arte não têm fronteiras precisas que permitam afirmar que uma curiosidades de interesse meramente documental. As suas diferentes fortunas reflectem
determinada pessoa pertence a um mundo específico e outra não. A questão aqui não tanto os juízos de valor artístico atribuídos pelos mundos da arte contemporâneos, como
se prende com traçar uma linha de demarcação entre um mundo da arte e o resto a acção francamente fortuita de todo um conjunto de outros factores.
da sociedade, mas sobretudo com assinalar grupos de indivíduos que cooperam A unidade elementar de análise é, portanto, um mundo da arte. Mas estas duas
tendo em vista a produção de coisas que, pelo menos para eles, são aceites como noções, «mundo» e «arte», são problemáticas, porque a obra que serve como ponto
arte. Seguidamente, é importante verificar se existem outros indivíduos igualmente de partida à investigação pode ser produzida no seio de redes de cooperação muito
indispensáveis para essa produção, de modo a que aos poucos se construa uma diversas e sob definições muito diversas. Determinadas redes são vastas, complexas e
imagem o mais completa possível da rede de cooperação que se estende em torno especificamente orientadas para a produção de obras do tipo das que aqui nos interes-
da obra considerada. Um mundo da arte é feito da própria actividade de todas essas sam. As redes mais pequenas podem incluir apenas algum do pessoal especializado
pessoas que cooperam entre si. Não se trata exactamente de uma estrutura ou de característico das redes mais vastas e complexas. No seu limite mais extremo, o mundo
uma organização, e não usaremos esses termos senão para evocar a ideia de redes pode ser constituído unicamente por aquele que realiza a obra empregando um material
de pessoas que cooperam entre si. Por comodidade, admitimos frequentemente que fornecido por pessoas que não tinham a intenção de cooperar na produção da obra e que
a cooperação de muitas pessoas é tão periférica e relativamente pouco importante ignoram essa contribuição. Os fabricantes de máquinas de escrever são parte integrante
que não a temos em consideração. Não nos esqueçamos todavia de que esse estado dos pequenos mundos de inúmeros aspirantes a romancistas que não têm qualquer
das coisas pode alterar-se, e que aquilo que hoje é negligenciável pode ser primor- ligação com o mundo literário, tal como é tradicionalmente entendido.
dial amanhã se, por qualquer motivo, esse tipo de cooperação se tornar subitamente De modo idêntico; a actividade cooperativa pode ser encarada como estando sob
difícil de obter. a alçada da arte ou sob qualquer outra denominação mesmo se, neste último caso, ela

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Mundos da Arte Mundos da Arte e Actividade Colectiva

desembocar numa produção que nos pareça semelhante à dos bens da arte. Como a pode ser tal que alguns intervenientes importantes do mundo da arte são induzidos a
«arte» é uma etiqueta prestigiante que confere certas vantagens àqueles que a podem satisfazer principalmente os interesses do aparelho de Estado em vez dos interesses
associar à sua actividade, são muitos os que a reivindicam para o seu trabalho. Outros, daqueles que se reclamam como defensores da arte. Em certas sociedades teocráticas,
também em grande número, não estão preocupados em saber se aquilo que fazem é arte a produção daquilo que, na perspectiva das nossas sociedades, consideramos como obras
ou não (esse é muitas vezes o caso das artes populares ou domésticas como a decoração de arte é um aspecto acessório das actividades de natureza religiosa. Em sociedades
de bolos, os bordados ou as danças folclóricas) e não acham nem depreciativo, nem emergentes, as questões de sobrevivência podem constituir uma situação tão premente
importante, que as suas actividades não sejam consideradas artísticas por aqueles que que tudo aquilo que não contribua directamente para a produção· de alimentos e de
se preocupam com esses assuntos. Certos membros de uma sociedade podem contro- outros bens de primeira necessidade passará por um luxo dispensável: o trabalho que,
lar a aplicação do termo honorífico arte, o que limita o número dos beneficiários das do nosso ponto de vista, consideraríamos como arte é executado a título de necessidade
vantagens que lhe estão associadas. doméstica. Todo o trabalho que não possa ser justificado por uma necessidade prioritária
Dados todos estes motivos, é bastante dificil determinar aquilo que uma análise é imediatamente excluído. Antes de poderem conceber objectos ou acontecimentos
dos mundos da arte pode deixar de lado e aquilo que deve ter em consideração. definidos como artísticos, as pessoas necessitam de suficiente liberdade política e
Limitar a análise à arte habitualmente definida como tal por uma dada socieda- económica para o fazer, o que não é o caso para muitas sociedades.
de implica eliminar muitos aspectos interessantes: os casos marginais em que as Parece necessário insistir neste ponto, porque muitos autores normalmente associa-
pessoas aspiram à notoriedade sem a obter, ou ainda aqueles em que as pessoas dos à sociologia da arte tratam-na como um fenómeno relativamente autónomo, livre
realizam um trabalho que poderia passar por arte aos olhos de um observador dos constrangimentos organizacionais que pesam sobre outras formas de actividade
exterior, mas cujos criadores não estão interessados nessa possibilidade. Isso permi- colectiva. Não se examinam essas teorias no presente trabalho porque elas conduzem
tiria o domínio dos mecanismos de definição da arte pelos próprios actores sociais - o a questões filosóficas bastante diversas dos problemas prosaicos de organização social
que poderia constituir seguramente o objecto do nosso estudo. Mas ao introduzirmos aqui debatidos (ver Donow, 1979). Na medida em que aquilo que propomos infirma
no campo da análise tudo que uma dada sociedade define como arte, correríamos a hipótese de uma independência face aos constrangimentos económicos, políticos
certamente o risco de cobrir um domínio demasiado vasto. Podemos incluir quase e organizacionais, o nosso propósito implica forçosamente uma crítica das análises
tudo numa definição desse género, aplicando um mínimo de razoabilidade. Por isso, desse tipo.
não aceitámos as tradicionais definições de arte para esta análise, mas também não se Os mundos da arte produzem obras e conferem-lhes igualmente um valor estético.
incluiu tudo, restringindo-nos às situações extremas em que esta etiqueta é contestada, Este livro não enuncia juízos estéticos, tal como ficou clarificado pelos comentários
e àquelas em que as pessoas fazem qualquer coisa que parece aparentar-se claramente anteriores. Pelo contrário, analisa os juízos estéticos tomando-os como fenómenos
com aquilo que é qualificado como «arte», de modo a que os mecanismos de definição característicos da actividade colectiva. Nessa perspectiva, a interacção de todos
se inscrevam também no cerne da presente reflexão. os participantes produz um sentimento partilhado do valor daquilo que produzem
Tudo isto levou-nos a dar uma grande atenção a obras às quais não é habitual conce- colectivamente. A apreciação comum das convenções partilhadas e o apoio mútuo que
der valor ou importância artística. Interessámo-nos pelos «pintores de fim-de-semana» dispensam entre si convencem os participantes de que aquilo que fazem tem valor.
e pelas costureiras de colchas, bem como pelos pintores e escultores provenientes da E se eles agem tendo a «arte» como referente, a conjugação dos seus esforços dá-lhes
tradição das belas-artes, pelos músicos de rock and rol/ tal como pelos intérpretes de a certeza de produzirem obras de arte dignas desse nome.
música clássica, pelos amadores tal como pelos profissionais. Desse modo, espera-se
deixar transparecer a natureza problemática de noções como «mundo» e «arte», e
evitar a atribuição de um peso excessivo aos critérios que estabelecem as definições
convencionais da arte para uma sociedade.
Embora os mundos da arte não possuam fronteiras precisas, caracterizam-
-se pelo grau de independência variável, pela relativa impermeabilidade à ingerência
de outros grupos sociais organizados. Por outras palavras, aqueles que cooperam para
a realização das obras aqui analisadas podem ser livres de organizar a sua actividade
reclamando-a como arte, tal como acontece em muitas sociedades ocidentais contempo-
râneas, quer façam uso dessa possibilidade ou não. Talvez se apercebam de que devem
ter em consideração outros interesses representados por grupos organizados sobre
outras bases. O controlo exercido pelo Estado sobre determinadas esferas da sociedade

56 57
As Convenções

e é forte a probabilidade de a terceira nota ser um sol, quer dizer, a terceira constituinte
do acorde perfeito, que se segue «logicamente» às duas primeiras notas evocadas. Po-
demos sugerir uma solução para a pergunta porque reconhecemos uma estrutura que,
uma vez completada, conduz-nos à nota em falta (ver Meyer, 1973).
Como é que reconhecemos essa estrutura? Aí, necessitamos de abandonar o
campo da psicologia da forma para nos debruçarmos sobre o funcionamento dos
mundos da arte e dos mundos sociais em geral. Efectivamente, a questão diz respeito
à difusão dos conhecimentos e esta advém da organização social. Reconhecemos
essas estruturas (a escala diatónica e o acorde perfeito) porque todos aqueles que
cresceram num país ocidental e, sobretudo, frequentaram a escola, as conhecem
obrigatoriamente. Nós que estamos imersos numa cultura que utiliza essas escalas
2 e harmonias, ouvimos desde a mais tenra idade canções (canções de embalar, lenga-
lengas e mais tarde canções populares de todos os tipos) constituídas por esses
AS CONVENÇÕES materiais convencionais omnipresentes na música ocidental. Desde muito jovens,
aprendemos o nome dessas notas (transcritas para uma pauta e representadas por
signos convencionais) e aprendemos a solfejá-las. Portanto, podemos responder à
pergunta porque aprendemos há muito tempo todos os rudimentos necessários para
Considere-se a nota: ~ ' dó central. É a primeira nota de uma mel~dia que a sua resolução. Qualquer membro de uma sociedade ocidental poderia responder à
tenho na cabeça. Resolva-se"este problema: qual é a nota seguinte? pergunta no caso de ter aprendido esses rudimentos durante a infância. (É o que nos
· Alguns dirão que é ----.,-- , ré, um tom acima do dó central, para outros será autoriza a usar um exemplo musical numa obra que não se destina exclusivamente
' mi, dois tons acima do dó central. Outros ainda desconfiarão que tenho algo a músicos.) Outras pessoas, que tivessem crescido em contacto com uma tradição
mais desafiador em mente e tentam um dó sustenido ou, verificando que nada obriga musical completamente diferente, talvez não entendessem a pergunta. E se a com-
a melodia a subir, escolherão o si da oitava anterior. De facto, é um problema sem preendessem, não poderiam resolvê-la, pois ignorariam as convenções sobre as quais
solução; os dados que possuímos não são suficientes. Poderá ser uma daquelas notas, repousa a solução do problema.
ou outra qualquer, da escala cromática. Já nos debruçámos sobre o modo como as convenções providenciam, a todos
Suponhamos agora que nos é fornecida uma indicação suplementar, a segunda os participantes dos mundos da arte, as bases de uma acção colectiva apropriada à
nota da melodia. É a primeira solução proposta: ré. Qual é a nota seguinte? Desta vez, produção de obras características desses mundos. Diferentes grupos de participantes
a maioria presumirá sem grande hesitação que se trata de um mi. Se a segunda nota detêm o conhecimento de diferentes partes do conjunto de convenções utilizadas por
não fosse um ré mas um mi, a maioria talvez propusesse um sol como nota seguinte. um mundo da arte. Em geral, conhecem aquilo que lhes é indispensável para facilitar
Apesar de nunca poderem estar completamente seguras, tanto num caso como noutro, a sua parte da acção colectiva.
as pessoas interpeladas pensam que a probabilidade de estarem certas é muito maior No intuito de organizar a cooperação entre alguns dos seus participantes, cada
neste momento. mundo da arte recorre a convenções conhecidas de todos, ou quase todos, os in-
Por que é que a primeira pergunta era tão difícil? Por que é que é muito mais fácil divíduos plenamente integrados na sociedade onde estão inseridos. Por vezes,
responder quando se conhecem duas notas em vez de uma? A explicação é interessante um mundo da arte utiliza materiais profundamente enraizados na cultura e sem
não por ser difícil, mas porque nos faculta um melhor entendimento da organização relação com a história da disciplina artística considerada. Por exemplo, no bailado
social dos mundos da arte. clássico, a nossa concepção convencional do papel dos homens e das mulheres e
É mais fácil adivinhar a nota seguinte quando conhecemos as duas primeiras, dos seus laços sentimentais fornece a trama sobre a qual se elabora uma série de
porque duas notas permitem-nos pressentir uma estrutura, coisa que não acontece figuras coreográficas, onde um homem forma par com uma mulher, a corteja,
quando só conhecemos uma nota. Se as duas primeiras notas são ~~~, dó e ré, a por quem é recusado mas que acaba por conquistar (ver figura 5). Se os espectá-
estrutura que vem à mente é a escala diatónica dó - ré - mi - fá, etc.7 e~ terceira nota culos de dança podem assentar em enredos tão reduzidos, é porque já conhecemos
tem fortes probabilidades de ser um mi, ou seja, a terceira nota da escala, que se segue o essencial da história (mais ou menos como aprendemos as notas da escala) e porque
«logicamente» às duas primeiras. Do mesmo modo, se as duas primeiras notas forem essas indicações nos bastam para reconstituir os vários episódios da acção que se vai
, dó e mi, a estrutura evocada é a do acorde perfeito maior dó - mi - sol, desenrolando sob os nossos olhos.

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As Convenções

Em certos casos, o mundo da arte apoia-se em convenções propriamente artísticas,


mas de tal modo enraizadas na vivência das pessoas que estão incorporadas na sua
bagagem cultural, tal como a divisão sexual dos papéis, onde o ballet vai buscar a
sua significação. Imaginemos que assistimos a um filme de ficção durante uma hora e
meia. A certa altura uma das personagens principais afasta-se lentamente enquanto a
câmara recua. O que é que se passa? O filme acabou. Na sala, as pessoas levantam-se,
deitam fora os seus pacotes de pipocas e vestem os casacos antes de se dirigirem para a
porta da saída. Urna interrupção da imagem e urna música que aumenta de intensidade
constituem dois meios convencionais para indicar o fim de um filme.
As convenções que regem a representação de personagens por pictogramas apelam
ao conhecimento empírico que todos possuímos dos principais elementos da anatomia
humana. Adicionamos-lhes a nossa concepção convencional do vestuário masculino
e feminino a fim de criar, por exemplo, plàcas para indicar as casas de banho dos
homens ou das mulheres, com a certeza de que qualquer pessoa as compreenderá de
modo satisfatório para não entrar na porta errada (ver figura 6).
As formas de arte orais usam simultaneamente convenções culturais indepen-
dentes do meio de expressão e convenções artísticas suficientemente conhe-
cidas da linguagem cultural de todo o indivíduo plenamente socializado. A poesia
baseia-se em grande medida nos efeitos de associação e de evocação utilizados
tanto no discurso corrente, como no literário. Na evolução de uma língua, os fonemas
assumem significados que são assinalados pela sua própria sonoridade, simplesmente

FIGURA 5. Jim Sohm e Diana Weber em Romeu e Julieta de Prokofiev pelo San Francisco Ballet.
O ballet clássico assenta no nosso conhecimento das convenções dos papéis do homem e da mulher
e no carácter da sua ligação romântica para providenciar muitas das pequenas narrativas da dança.
(Fotografia cedida pelo San Francisco Ballet.)

FIGURA 6. Símbolos convencionais para indicar as casas de banho de homens e mulheres. O conhe-
cimento convencional da anatomia humana, do vestuário e da representação de ambas as figuras
possibilita o uso destes sinais para marcar as respectivas casas de banho sem suscitar qualquer tipo
de enganos.

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Mundos da Arte As Convenções

porque um certo número de palavras de uma dada família semântica já contém o mes- a guerra do ~ietname, um dos clássicos do teatro de rua punha em cena um grupo de
mo som. Em inglês, o som «gl» colocado no início de uma palavra remete para um homens vestidos de soldados americanos armados com espingardas, que perseguiam
fenómeno luminoso. Poderíamos citar inúmeros exemplos: gleam, glow, glitter, glint, uma mulher vestida de vietnamita, numa rua cheia de gente. Eles apanhavam-na e
g!are, etc. (Esta observação também sofre de contra-exemplos, tais como glide e gland, «matavam-na» friamente. Em seguida, após a formação de um aglomerado de pes-
«escorregam e «glande», que começam pelo som «gl», mas não possuem a mesma soas curiosas, o grupo proferia um discurso sobre o significado político da guerra.
conotação. Apesar de tudo, os falantes da língua inglesa conotam geralmente a ideia de Os transeuntes aderiam porque aquilo que lhes era mostrado era imediatamente com-
luz com o fonema inicial «gl».) Do mesmo modo, as palavras terminadas em «ump» preensível para qualquer adulto que vivesse nos Estados Unidos nessa altura.
evocam peso ou inabilidade: dump, bump, rump, lump, stump, grump, etc. (Bollinger, Os conhecimentos periféricos às artes apenas acessíveis a um restrito segmento
1950). Os poetas podem modular o sentido geral de uma passagem recorrerendo a da população podem servir de base a obras concebidas precisamente para esse grupo.
sons «significantes» que reforçam ou modificam o sentido daquilo que é expresso. Os autores de livros e de filmes para adultos podem pressupor como conhecidos factos
Esta propriedade dos sons torna-se evidente quando se inventam palavras. É possível que as crianças ignoram e produzir obras imediatamente compreensíveis para os
obter efeitos humorísticos pela justaposição de sons que evocam ideias contraditórias. adultos, mas que não suscitam qualquer eco junto das crianças. Baxandall cita outro
Por exemplo, glump evocaria um fenómeno luminoso pesado e grosseiro. exemplo: para colmatar as necessidades do seu oficio, os comerciantes italianos do
A poesia, tal como outros géneros literários, também emprega procedimentos cujo século XV começaram a aprender os métodos de medição de mercadorias e as fórmu-
efeito está estritamente ligado à história da disciplina. Smith (1968) analisou uma las algébricas de cálculo das taxas e proporções, enquanto os pintores usavam esses
série de procedimentos que produzem a sensação de finalização e de fecho num poema. mesmos métodos para analisar os volumes no espaço pictórico. Os comerciantes, que
Algumas formas acabam de um modo característico; sabemos que chegamos ao fim também eram compradores de pinturas, estavam desse modo igualmente aptos para
de um soneto depois de termos lido os catorze versos cujas rimas estão dispostas numa apreciarem aquilo que os pintores realizavam pictoricamente; tinham conhecimentos
ordem precisa. Procedimentos correntes e menos rigorosos produzem idêntico efeito de matemática e:
de fechamento. O tópico do poema pode.ser tratado de uma maneira que parece defi-
(... ) utilizavam-nos com maior frequência do que nós, em vários assuntos importantes. Serviam-
nitiva. O último ou os dois últimos versos podem completar um argumento ou enfati- -se deles para se entregarem a jogos e fazer piadas, compravam livros luxuosos sobre o tema e
zar a pureza de estilo. Os últimos versos podem compor-se principalmente ou orgulhavam-se das suas proezas nesse domínio (... ) quer se tratasse ou não de quadros. Essa espe-
exclusivamente de monossílabos, ou conter palavras que designam o fim ou remetem cialização constituía, de um modo bastante singular, uma aptidão para a apreciação da experiência
para essa ideia: «último», «alcançam, «termo», «repouso», «paz», «sono», «morte», visual: estarem receptivos à estrutura das formas complexas, bem como às combinações de corpos
«Inverno»). O leitor sensível à poesia talvez não reconheça conscientemente esses geométricos regulares e aos intervalos susceptíveis de agrupamento em séries. Devido ao treino
indícios, mas terá a impressão de uma conclusão. na manipulação de fracções e na análise do volume ou da superficie dos corpos compostos,
eles eram sensíveis aos quadros que incluíssem as marcas de processos análogos( ... ). Naquela
A música recorre a toda uma série de procedimentos técnicos suficientemente sociedade, o estatuto conferido por essas capacidades era, para o pintor, um encorajamento à
conhecidos de qualquer indivíduo plenamente socializado para serem directamente sua utilização nas pinturas( ... ) e ele fazia-o. (Baxandall, 1972, pp. 101-2)
utilizados pelos artistas. Desse modo, os compositores podem, por exemplo, contar com
o facto de o público reconhecer a «tristeza» evocada pelo modo menor, ou o carácter
«latino-americano» de determinadas estruturas rítmicas. Alguns conhecimentos, especialmente quando comuns, são considerados demasiado
As convenções mais familiares a todos os membros de uma sociedade proporcio- vulgares para servirem de base a uma obra de arte. Para Mikhail Bakhtin (1968), o gran-
nam algumas das formas mais básicas e importantes de cooperação características de de contributo de Rabelais para a literatura foi a introdução da linguagem da rua na arte
um mundo da arte. Sobretudo, permitem criar um público entre aqueles que não têm, (obscena, vulgar e irreverente), abalando de uma assentada os estilos constrangedores
ou quase não têm, qualquer tipo de formação ou conhecimentos numa determinada do pensamento feudal, bem como a sua estrutura social. Bakhtin observa que a maioria
área artística, ou seja, escutar música, ler livros, ir ver filmes ou espectáculos e retirar da arte é inevitavelmente, e por virtude do seu financiamento pelas classes dirigentes,
daí algo. O conhecimento dessas convenções delimita o contorno exterior de um concebida numa linguagem séria e oficial que toma como referência a autoridade do
mundo da arte, assinalando aquele público potencial ao qual não se pode exigir qual- poder estabelecido. Mas por detrás de tudo isso, circula uma corrente subversiva de
quer conhecimento específico. As formas de arte que visam atingir um público o mais cultura popular que ridiculariza aquilo que é tomado como oficialmente sério e solene,
abrangente possível exploram ao máximo esses recursos. Algumas delas, nomeada- profanando-o através da escatologia, da blasfémia e do humor obsceno. Essa cultura
mente os programas de televisão mais populares, fazem-no sistematicamente. Outras, popular, que se manifestava no falar e nos costumes dos mercados e das feiras, manteve-
como o teatro de rua, utilizam-nas de modo menos convencional quando pretendem -se viva durante toda a Idade Média, apesar de não ter encontrado qualquer expressão
atingir um público mais vasto. Em Nova Iorque, durante a época de protestos contra na arte religiosa e oficial dessa época. À medida que essa ordem feudal foi entrando

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Mundos da Arte As Convenções

em decadência, a linguagem e as imagens da cultura popular começaram a ocupar um esse formalismo que consideram estéril e hermético, inspirando-se em comportamentos
lugar cada vez maior na literatura, culminando no obsceno livro de Rabelais. e assuntos da vida quotidiana. Coreógrafos como Paul Taylor e Brenda Way utilizam
Outras convenções emergem no seio do próprio mundo da arte e não são conhe- a corrida, o salto e a queda em vez das figuras mais estilizadas do bailado clássico, e
cidas senão daqueles que lidam com esse mundo. Existe normalmente uma aceitação mesmo da dança moderna tradicional (ver figura 7). Os fotógrafos Robert Frank, Lee
geral em tomo da distinção estabelecida por David Rume na sua análise dos critérios Friedlander e Gary Winogrand utilizam o enquadramento enviesado, o retrato cortado
do gosto (1854 [1752]), onde ele sublinha que se a excelência artística é matéria de e os temas banais da fotografia de amador como meio de escape ao formalismo da
opinião, certas opiniões têm mais peso do que outras, porque aqueles que as detêm fotografia de arte convencional.
possuem uma experiência maior das obras e dos géneros em questão, o que lhes
permite operar discriminações mais subtis e fáceis de justificar. Têm um maior co-
nhecimento das convenções que presidem à realização dessas obras, porque seguem
mais de perto aquilo que se passa no domínio em questão. Um espectador que tenha
assistido a várias encenações da mesma peça, apresentadas em diferentes teatros por
companhias diferentes, com outros guarda-roupas, outros cenários, outra iluminação
e dentro de outro espírito, pode conceber uma ideia mais precisa daquilo que admitem
as interpretações convencionais desse texto e, de um modo geral, daquilo que os textos
do mesmo género toleram.
Essa competência separa o público ocasional do público assíduo e conhecedor,
aquele a quem os artistas esperam captar a atenção porque compreende melhor a ver-
dadeira dimensão do seu trabalho. Conhecedor das convenções do género, o público
experiente pode colaborar mais intensamente com os artistas no esforço comum de
produção da obra. Por outro lado, os frequentadores mais assíduos de manifestações
artísticas, aqueles que vão aos espectáculos e às exposições, ou os que gostam de lite-
ratura, proporcionam uma sólida base de apoio a essas actividades e ao seu sistema de
produção. Esse público iniciado pertence ao mundo da arte e participa mais ou menos
constantemente na actividade de cooperação que o constitui.
Afinal, o que é que este público mais assíduo sabe que o diferencia daqueles que
apenas reagem como sujeitos plenamente socializados? A lista inclui coisas como, por
exemplo: o conhecimento da história das tentativas análogas já ensaiadas num deter- FIGURA 7. Interpretação de Formal Ili pelo Oberlin Dance Collective. A dança contemporânea recorre
minado género ou disciplina, as características dos diferentes estilos e períodos, os a movimentos - claudicar e cair, por exemplo -que o ballet clássico (e o seu público) interpreta como
argumentos de diferentes posições sobre as grandes questões levantadas pela história, erros. (Fotografia cedida pelo Oberlin Dance Collective.)

a evolução e a prática dessa arte. Esse público pode conhecer várias versões da mesma
obra, estar preparado para sentir e compreender aquilo que implica o tratamento de Os compositores Terry Riley e Philip Glass usam as fórmulas repetitivas simples
materiais habituais no vocabulário da disciplina. A esta lista também se juntam, sem das melodias infantis em vez dos desenvolvimentos harmónicos complexos da mú-
dúvida, informações anedóticas, mexericos e bisbilhotices próprias do mundo da arte, sica erudita mais tradicional. Em todos estes casos, as fórmulas tradicionais que os
antigos e recentes, bem como dados sobre a personalidade dos participantes nesse inovadores substituem por outra coisa são precisamente aquelas que, aos olhos de um
mundo, independentemente daquilo que as suas obras revelam. Tratando-se destes público menos preparado, distinguem a arte de tudo o resto. Esse público não vai a
elementos, poderíamos questionar-nos sobre a sua utilidade para a compreensão das um espectáculo de dança para ver os intervenientes correr, saltar ou cair; isso pode
obras: é um velho debate que ainda não foi dado como encerrado. ser visto em qualquer lado. Ele vai lá para ver homens e mulheres a executarem os
Os conhecimentos que o público iniciado possui sobre uma arte entram frequente- movimentos dificeis e sabiamente codificados, representativos da «verdadeira dança».
mente em conflito com o que os profanos sabem, por causa de certas transformações A faculdade de encarar o comum como material artístico, de ver na corrida, nos saltos
inovadoras. Muitas artes têm uma longa tradição de formalização, na qual os elementos e nas quedas, para além da sua realidade imediata, os componentes de uma linguagem
utilizados sofreram uma estilização que os distancia daquilo que as pessoas fazem ou diferente é portanto apanágio de um público iniciado. Qualquer outro indivíduo conhece
produzem na «vida real». Para inovar, os artistas procuram frequentemente escapar a de certeza os elementos em questão, mas não na sua dimensão artística.

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Mundos da Arte

Entretanto, os conhecimentos do público iniciado não englobam a totalidade do


saber dos profissionais do mundo da arte. Ele não sabe mais do que o necessário
para desempenhar o seu papel na actividade cooperativa, ou seja: compreender,
apreciar e apoiar as actividades daqueles que têm a qualidade de artistas no mundo
considerado.
A difusão do saber convencional evolui. Aquilo que todos sabem numa determinada
época pode deixar de fazer parte da cultura geral de qualquer indivíduo plenamente
socializado, para passar a ser conhecido apenas pelos participantes mais experientes de
um mundo da arte. Baxandall (1972) mostrou que os episódios da história religiosa que
serviam de tema à pintura italiana do Renascimento eram perfeitamente conhecidos do
cidadão comum educado na fé cristã. Os pintores podiam estar seguros de que, através
de alguns meros indícios convencionais, o público saberia reconhecer o episódio exacto
da Anunciação representada num quadro (ver figura 8) e, consequentemente, apreciaria
essa obra em conformidade. Hoje em dia, esse conhecimento da história religiosa já só
•pertence ao grupo restrito dos estudiosos que se interessam de um modo muito específico
pela pintura antiga. Bakhtin (1968) mostrou que, hoje em dia, poucas pessoas conse-
guem ler Rabelais, porque ele choca ou aborrece os leitores privados desse contacto
com a cultura popular que lhes permitiria tomarem-se sensíveis ao humor (e, portanto,
à mensagem política) das suas obras. Inversamente, uma experiência reservada a um
círculo restrito de inovadores e aficionados, como a faculdade de apreciar a música
atonal, pode, com o tempo, expandir-se para círculos mais vastos.
Existe outro grupo que coincide parcialmente com o público iniciado: os estudantes
das artes. As profissões que exigem uma formação mais ou menos formal podem per-
der uma parte dos seus efectivos durante a escolaridade e depois uma outra no início
da vida activa. Nem todas as pessoas formadas em Medicina exercem a profissão.
Nos Estados Unidos, existe uma percentagem significativa de estudantes de Direito
que não segue a carreira jurídica. A proporção daqueles que exercem efectivamente o
oficio para o qual se formaram varia sensivelmente segundo os ramos de actividade
e o país em questão.
Hoje em dia, existe um número impressionante de americanos que se formam nas
mais diversas áreas artísticas mais ou menos exigentes. Ingressam em cursos universi-
tários, formam-se em disciplinas difíceis e consagram muito tempo e esforço impondo
a si próprios grandes sacrifícios, mas também aos seus familiares e amigos. Finalmente,
são poucos os que acabam por se tomar artistas profissionais. Nenhuma arte proporciona
recursos suficientes que permitam sustentar financeiramente ou dar a devida atenção
a todas ou a uma grande parte das pessoas com formação artística, do modo que é
habitual nos mundos da arte para os quais foram preparados. Esta precisão é importante:
FIGURA 8. Mestre dos Painéis Barberini, A111111ciação, século XV. Os pintores do Renascimento
se as artes estivessem organizadas de outro modo - menos profissionalizadas, menos
italiano utilizavam sinais convencionais para indicar a fase da Anunciação que pretendiam representar.
orientadas para o vedetismo, menos centralizadas- esses apoios existiriam, sem dúvida. Esta pintura representa o momento de «Reflexão» (Cogitatio), em que a Virgem, inquieta pela sau-
O problema surge quando milhares de estudantes passam a alimentar a expectativa dação do anjo Gabriel («Bendita sejas entre as mulheres»), se interroga sobre aquilo que ele lhe vem
de se tomarem estrelas da Broadway, de serem primeiros bailarinos em prestigiadas anunciar. (National Gallery of Art, Washington, colecção Samuel H. Kress.) (Ver Baxandall, 1972,
companhias ou de ganhar o prémio Nobel da literatura. As artes podiam estar organi- pp. 49-56.)
zadas, e assim foi em tempos, de maneira a refrear esse tipo de ambições.

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Mundos da Arte As Convenções

Apesar de tudo, são muitos os que se preparam para seguir uma carreira artística. representar. É o público mais compreensivo e mais indulgente, com o qual se torna
A maioria inicia uma formação e abandona-a entretanto, não forçosamente porque possível o confronto com as experiências mais audazes.
essas carreiras deixaram de os seduzir, mas porque pensam que a formação escolar Os três grupos até aqui identificados pertencem todos ao mundo da arte; antes
não é necessária, nem mesmo desejável, para a carreira que visam. Talvez tenham de mais, enquanto consumidores de obras de arte - adquirem objectos e livros
razão. Theodore Hoffinan (1973) mostrou que, apesar de todos os anos se atribuírem ou assistem aos espectáculos - depois, e a diversos níveis, enquanto estudantes ou
milhares de diplomas, são poucos os actores célebres provenientes das escolas de indivíduos já com formação no domínio das artes. Proporcionam, por um lado, um
arte dramática. Também realça que os estudantes que concluíram a sua formação e os importante apoio material através do dinheiro que dispensam e, por outro,
que receberam uma formação mais ou menos completa desempenham um papel de um apoio estético fundamental com a sua adesão e sensibilidade. Estes três grupos
grande importância para a economia do mundo da arte, porque constituem uma base tecem uma estreita relação entre si. O núcleo constituído pelos estudantes e antigos
de inovação e de apoio constante para o teatro profissional nova-iorquino, e mais parti- estudantes desempenha a tarefa de detector para as facções menos avançadas do
cularmente para o seu sector de vanguarda. Em Nova Iorque, 15 por cento do total dos público. Os seus membros correm mais riscos, mostram-se mais receptivos às novas
bilhetes de teatro são comprados por estudantes das artes dramáticas, que assim apoiam convenções propostas pelos inovadores, assistem a um maior número de falhas e
voluntariamente o teatro experimental que não tem quaisquer expectativas de atrair desastres, estão mais dispostos a testemunhar experiências que se revelam sem in-
o grande público, menos sintonizado com as convenções da criação contemporânea. teresse. Contribuem com ambos os tipos de apoio mencionado para o maior leque
Aqueles que receberam uma formação mas abandonaram essa via podem repre- de tentativas produzidas pelo mundo da arte e, desse modo, encorajam a experimen-
sentar uma considerável proporção adicional de público para qualquer uma das artes. tação. Facilitam o acesso de certos segmentos mais conservadores do público à
O público da dança, e particularmente da dança contemporânea, é composto em grande actualidade da criação, eliminando os insucessos mais óbvios, as tentativas que,
medida por bailarinos, estudantes e antigos estudantes dos cursos de dança. Observe-se mesmo segundo os seus padrões, não conseguem alcançar o êxito. Resumindo, ga-
o público de qualquer espectáculo de dança. É dificil encontrar entre os frequentadores rantem aos outros que aquilo que sobreviveu a esta selecção preliminar merece
dos teatros e dos concertos tantos homens e mulheres com aquela postura elegante, atenção; essa garantia é precisamente aquilo que os autores procuram. Deste modo,
gestos suaves e estudados e aquela forma fisica manifestamente trabalhada. os participantes menos empenhados não descobrem senão certas inovações e algumas
novas convenções cuidadosamente seleccionadas, apresentadas de modo a provarem
De modo semelhante, de entre os milhares de estudantes que se inscrevem todos
ser dignas ou merecedoras de uma tentativa de apreciação.
os anos em cursos de fotografia, poucos são os que se tornam fotógrafos profissionais,
Sabemos pouco acerca do modo como as avaliações críticas da arte se difun-
pessoas que vivem dessa profissão (esta distinção justifica-se porque um número
dem entre os diversos segmentos do público. Elihu Katz e Paul Lazarsfeld (1955)
considerável dos participantes mais notáveis do mundo da fotografia de arte não vive
elaboraram um modelo geral da influência como fenómeno em dois tempos (two-
desta actividade, ou então subsiste principalmente do ensino e das conferências que
-step mode), apoiando-se nos seus estudos acerca da transmissão de mensagens através
proferem, e não da venda das suas fotografias). Mas estes estudantes compram livros dos meios de comunicação. Certas pessoas influentes conferem maior atenção aos media
sobre fotografia, inscrevem-se em cursos, participam em seminários, assistem a con- e formam uma opinião mais sólida; é por seu intermédio que os outros membros da
ferências e, deste modo, dão uma contribuição fundamental para o funcionamento das colectividade recebem a informação desses meios e de tudo o que lhes diz respeito.
engrenagens económicas do mundo da fotografia de arte. Mais, eles constituem uma Acontece o mesmo com os médicos quando começam a prescrever um novo medica-
larga fatia do público cultivado de quem os fotógrafos de arte podem esperar uma ver- mento: alguns médicos mais influentes dessa comunidade ensaiam o medicamento.
dadeira compreensão para o seu trabalho. Os inquéritos realizados por Hans Haacke Se tudo correr bem e considerarem o produto eficaz, outros médicos, influenciados por
junto do público das galerias de arte revelaram que os artistas e os estudantes de arte eles, passam também a prescrevê-lo (Coleman, Katz e Menzel, 1966). Necessitamos de
representavam entre 40 a 60 por cento do total dos visitantes, sendo os estudantes 1Oa estudos que nos mostrem de que maneira é que, em determinados mundos da arte, se
15 por cento (Haacke, 1976, pp. 17, 42). propagam os juízos feitos sobre os estilos, os géneros, as inovações, as obras e certos
Quais são as convenções a que estas pessoas são sensíveis ou conhecem? Quais são, artistas. Quem é o primeiro a ter uma opinião formada? Quem é que ouve e segue essa
portanto, os papéis que podem desempenhar na cooperação estruturada que constitui opinião? Por que é que a opinião do primeiro é respeitada? Concretamente, como é
um mundo da arte? Para além daquilo que todos os profanos e os amadores sabem, esta que aqueles que descobrem uma novidade digna de interesse a transmitem aos outros?
fracção privilegiada do público conhece as dificuldades técnicas do oficio e os obstáculos Por que é que lhes é dado crédito?
que é preciso superar (não apenas profissionais) para se atingir e seduzir um público.
Ao estarem do outro lado da barreira - que separa os criadores e os executantes dos O conjunto de convenções que sustenta as actividades cooperativas dos criado-
consumidores da arte- estas pessoas estão mais preparadas para apreender a obra e os res e do seu pessoal de apoio é completamente diferente. Muitas das convenções
seus objectivos e discernir o interesse que uma tentativa, mesmo que frustrada, pode de produção que proporcionam a cooperação correspondem a formas simples de

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normalização que ilustram a noção filosófica de convenção analisada por David (necessariamente onerosos) aumenta ainda mais a probabilidade de os métodos con-
K. Lewis (1969). Lewis utiliza uma linguagem técnica que não é necessária neste vencionais se perpetuarem, pois a mínima modificação implica custos muito elev;i.dos.
momento; os leitores que desejarem aprofundar o conhecimento da sua análise Quando as convenções são normalizadas desta maneira, e são definitivamente incor-
deverão consultar o texto original. Sintetizando, Lewis tenta compreender como poradas nos usos e nos materiais adoptados, aquele que possui uma certa experiência na
é que as pessoas conseguem coordenar as suas actividades, como é que (perante situ- arte em questão é tido como conhecedor desses requisitos mínimos. Eles permitem os
ações em que todos os indivíduos perseguem um objectivo comum mas, face a várias automatismos sobre os quais assenta a produção das obras de arte, mesmo para aqueles
alternativas, não é clara a melhor forma de o atingir) decidem optar pela mesma solução mais preocupados em se distanciarem dos procedimentos convencionais. A dança mo-
e alcançam o resultado pretendido sem grande dispêndio de esforços. A conduta mais derna, que procura diferenciar-se do bailado convencional, parte do princípio de que os
evidente para as pessoas envolvidas seria o exame da questão em conjunto e a criação recém-admitidos nesta prática receberam uma formação clássica e adquiriram uma prepa-
de um consenso sobre a via a seguir. É o que muitas vezes fazemos. Porém, e com maior ração tisica, hábitos e concepções que são os corolários dessa formação. Mesmo quando
frequência, consideramos isso inútil porque dizemos a nós próprios: «não há qualquer se quer desprender das convenções, é preferível empregar uma linguagem convencional
dúvida sobre o que é preciso fazern, ou «a coisa mais natural a fazer é X», ou «se todos para explicar aquilo que se quer fazer, pois é essa que todos conhecem.
fazem o que parece ser mais fácil, vai tudo correr bem», ou outras fórmulas semelhan- O equipamento utilizado, em particular, engendra este tipo de saber universal.
tes. Apercebemo-nos de que podemos alcançar a coordenação desejada sem consulta Quando o equipamento incorpora as convenções, tal como uma máquina fotográfica
mútua. Como é que o fazemos? Tendo como referência soluções adoptadas no passado de 35 milímetros incorpora as convenções da fotografia contemporânea, aprendemo-
em circunstâncias análogas, soluções que cada participante conhece e sabe que são -las através do uso desses utensílios. Portanto, qualquer pessoa capaz de manipular os
conhecidas por todos. Dadas essas condições e o desejo comum de coordenação das aparelhos sabe fazer o que é requerido para desenvolver urna actividade coordenada.
actividades individuais, o mais simples, e portanto mais provável, é que cada um faça Isto também é válido para um bom número das convenções presentes no domínio da
aquilo que os outros conhecem e do modo que todos sabem. Esta é a solução mais música, que assimilamos pela prática de um instrumento.
simples porque cada um sabe que os outros reconhecem os seus procedimentos, e, Muitas convenções ganham forma pelo efeito conjugado de considerações técnicas
assim por diante, segundo um encadeamento de suposições tão vasto (de facto, nem e de outros factores. Durante muito tempo (grosso modo, o período balizado por Alec
sempre tão vasto) quão necessário para que cada um se convença a si mesmo de que Wilder em American Popular Song 1900-1950), a canção popular americana utilizou
é isso que deve fazer. quase exclusivamente uma estrutura de trinta e dois compassos repartidos em sequências
Se as pessoas envolvidas fazem aquilo que é mais provável, ·obtêm o resultado de oito, onde os temas se dispõem na ordem A-A-B-A, as melodias não ultrapassam
pretendido e aumentam simultaneamente a probabilidade de essa solução ser adoptada os dez graus da escala e os intervalos estão limitados às possibilidades da escala dia-
na próxim~ ocasião, o que aumenta ainda mais a probabilidade da sua escolha unânime tónica. A maioria das interpretações dessas músicas reduzia-se a dois ou três refrães.
no futuro, e assim por diante. Lewis chama «convenção» ao meio que todos adopta- A escolha das sequências de oito compassos e da estrutura de trinta e dois compassos
ram para resolver o problema de coordenação. Este conceito abrange perfeitamente era puramente arbitrária. A tessitura e os intervalos eram adaptados à limitada educa-
os procedimentos normalizados de fazer as coisas que caracterizam todas as artes. ção musical dos cantores e do público leigo, que deveria conseguir cantá-las também.
De entre as várias coisas que os artistas e o pessoal de apoio fazem ao coordenarem O número de refrães correspondia ao que naquele tempo era possível incluir num disco
as suas actividades, muitas são escolhidas a partir de um leque de possibilidades onde de setenta e oito rotações.
cada uma será válida, desde que utilizada por todos. Ao recorrerem a convenções extremamente normalizadas, os artistas podem
Não há justificação lógica, por exemplo, para afinar os instrumentos de música no coordenar as suas actividades nas circunstâncias mais desfavoráveis. Na época em que
«lá» do diapasão fixado a 440 ciclos por segundo. Não existe justificação lógica para eu tocava piano nos bares de Chicago, nos anos quarenta, era frequente tocarmos pela
designar por «lá» essa nota, nem de a transcrever numa pauta de cinco linhas em vez noite dentro, durante sete ou oito horas seguidas. Perto do fim da noite, os músicos
de quatro ou seis, por exemplo. Mas todos fazem assim porque, ao agirem desse modo, ficavam muito cansados e sonolentos. Apercebi-me de que, precisamente pelo facto
cada participante tem a certeza de poder coordenar a sua actividade com a dos outros de os temas que tocávamos obedecerem a convenções muito simples, eu conseguia
sem correr o risco de mal-entendidos. No fundo, é uma justificação suficiente. tocá-los mesmo estando meio, ou até mais do que meio, adormecido. Acordava fre-
Algumas das convenções que coordenam as actividades entre os artistas e o pes- quentemente a meio de uma parte, e não me perdia senão a partir do momento em
soal de apoio resultam apenas deste tipo de normalizações. Quando uma determinada que me apercebia de que estivera a dormir e, portanto, não sabia onde estava. Se tinha
convenção parece dada como adquirida, quando quase todas as pessoas implicadas a conseguido chegar até ali, era com certeza porque sabia que todas as frases tinham
adoptam mais ou menos permanentemente, os esquemas de onde ela procede podem oito compassos, restringiam-se a apenas alguns dos acordes possíveis, e que estes
ser incorporados em equipamentos permanentes. A existência desses equipamentos obedeciam a poucas combinações. David Sudnow (1978) descreveu o modo como os

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esquemas deste género acabam por se inscrever tanto nas reacções fisicas do intérprete um encorajamento; conseguem produzir as suas obras sem qualquer ajuda dos outros
como nas suas faculdades cognitivas, de tal modo que, mesmo a dormir, é possível poetas e podem contar principalmente com os conhecimentos técnicos dos impressores
tocar bem e sem falhas. e distribuidores à medida das suas necessidades. Em contrapartida, a música orquestral,
Dado que o equipamento acaba por incorporar um conjunto de conven- o bailado, o teatro e outras artes colectivas envolvem necessariamente a cooperação de
ções de modo tã.o coercivo, os artistas dão frequentemente largas à sua criati- várias categorias de artistas. Estes grupos de trabalho possuem sistemas mais elaborados
vidade usando esses materiais e equipamentos de modos não previstos pelos para um rápido desenvolvimento e transmissão de novas convenções.
seus criadores. O material fotográfico tornou-se cada vez mais normalizado, Dado que as convenções não mudam todas simultaneamente, os artistas podem
à medida que esta indústria se foi concentrando nas mãos de algumas grandes ainda usar uma boa parte dos conhecimentos adquiridos durante a sua formação para
empresas. Por outro lado, os fotógrafos passaram a despender mais tempo e coordenarem as respectivas actividades. Quando iniciam a sua formação (em grande
imaginação na tentativa de obter efeitos inéditos com o material comercializado (aquele medida, extra-escolar), os jovens músicos de jazz aprendem que as canções populares
que as empresas comercializam sob uma forma facilmente utilizável e relativamente em que se baseia a maioria dos temas de jazz são constituídas por uma sequência cen-
barata, e não a que seria possível fabricar). As películas disponíveis no mercado têm tral (bridge) de oito compassos que pode adquirir uma de duas formas harmónicas,
um grau de sensibilidade à luz que está normalizado e são concebidas para serem e que tomam respectivamente o título da canção célebre onde aparecem: o bridge de
reveladas e originarem provas segundo as técnicas mais convencionais. Mas os fotó- J Got Rhythm, constituído por quatro acordes sobre dois compassos cada - III7 (em
grafos manipulam-nas de modo a obterem um negativo adulterado e cuja impressão si bemol, um acorde de sétima sobre ré), VI7 (sétima sobre sol), II7 (sétima sobre
em papel exige um tratamento laboratorial pouco ortodoxo. Os músicos produzem dó), V7 (sétima sobre fá), ou o bridge de Honeysuckle Rose pela série 17 (em fá, um
sons com os seus instrumentos que os fabricantes e os professores nunca imaginaram, acorde de sétima sobre fá), IV (si bemol), 117 (sétima sobre sol), V7 (sétima sobre dó).
como, por exemplo, quando tocam directamente nas cordas do piano em vez de usarem Quando se toca um tema pela primeira vez, é possível conhecer muito rapidamente
o teclado. oito dos seus compassos desde que se saiba qual é o seu bridge, pelo menos no jazz
Nos segmentos do mundo da arte que se ocupam dos equipamentos e materiais, a tradicional. Os músicos das orquestras de dança aprendem mais ou menos de cor uma
cooperação acontece por intermédio das convenções incorporadas nesses artefactos. série de canções conhecidas, a fim de poderem interpretar a pedido, e sem partitura,
Dado que os seus utilizadores conhecem o leque de material disponível no merca- uma versão orquestrada de qualquer uma delas. Compreendi que estava ultrapassado
do, uma simples referência a um número de catálogo produz o resultado desejado. no meu oficio de pianista para casamentos, festas de beneficência, encontros natalícios
Os fabricantes, os fornecedores e os reparadores constituem sempre um segmento para empresas e outros eventos para os quais normalmente se solicita a presença de
estável e suficientemente conservador de um mundo da arte. O mesmo se aplica às uma orquestra, quando me apercebi de que já não bastava conhecer apenas as canções.
pessoas que manuseiam o material segundo as directivas dos artistas: os pedreiros Houve uma noite em que o apresentador, em vez de anunciar uma canção do nosso
(segundo as directrizes dos arquitectos), os electricistas (segundo as directrizes dos repertório habitual, anunciou My Fair Lady e era esperado que eu conhecesse todas
cenógrafos) ou os impressores (segundo as directrizes dos autores). as partituras, incluindo as sequências de acordes, de todas as comédias musicais em
Os artistas aprendem outras convenções (é a sua cultura profissional) durante cartaz na Broadway. Tendo estado afastado durante algum tempo daquele meio, não
o período de formação e depois ao participarem na actividade diária do mundo da tinha o meu repertório em dia e não podia corresponder a situações que exigissem o
arte. Só são detentores dessa cultura aqueles que participam regularmente nessas conhecimento do repertório convencional do momento. Os músicos mais jovens, que
actividades - os praticantes profissionais (tal como definidos por cada mundo da tinham entrado há menos tempo na profissão, conheciam-no sem dúvida, tal como eu,
arte). As convenções traduzem a adaptação continuada dos agentes da coopera- na minha juventude, dominara um repertório suficiente.
ção às condições de exercício das suas actividades. Quando as condições mudam, É raro fixarem-se previamente os aspectos a coordenar na preparação e na apre-
as convenções evoluem também. As escolas transmitem aquilo que corresponde sentação de uma determinada execução. Mesmo nas interpretações mais codificadas,
a um dado estado do saber, geralmente ultrapassado, salvo nos raros casos em que a existe espaço para diversas opções. Os violoncelistas devem determinar previamente
escola está integrada no mundo da arte (como acontece com certos conservatórios e os golpes de arco e Omodo de ataque de uma passagem que irão interpretar em con-
departamentos de musicologia no mundo da música contemporânea). Deste modo, só junto. Os executantes de instrumentos de sopro que tocam nos mais diversos tipos
é possível aprender as convenções em vigor através de um contacto ou participação de orquestras devem decidir como é que vão tocar os grupos de oito notas ligadas:
mais directa com as coisas que estão a acontecer num determinado momento. seja atribuindo-lhes um valor igual como nas execuções de concertos convencionais
O grau de cooperação necessário entre os próprios artistas varia de um mundo da (JJJJ JJJJ), seja prolongando ligeiramente uma nota sobre duas como no jazz
arte para outro. No caso da poesia, esse grau. de cooperação é relativamente menos ( lj JJ lj lj). Uma linguagem convencional permite resolver rapidamente estas
J J 1 )

exigente. Os poetas encontram junto dos seus pares certas vozes críticas, um público ou questões.

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Mundos da Arte As Convenções

Os critérios de interpretação, isto é, os aspectos que permitem várias hipóteses ou que essa música vai sendo cada vez mais interpretada, os músicos que não tiveram esse
abordagens de interpretação, desempenham um papel ainda mais importante no teatro contacto com os compositores deparam-se com partituras onde uma notação insólita
do que na música, porque a maioria dos textos contém menos indicações precisas do (ver figura 9) serve para indicar os efeitos sonoros já conhecidos, mas para os quais não
que as partituras musicais. Quando estabelecem os detalhes de uma representação, os existe o hábito da sua anotação ou utilização. Assim, os clarinetistas podem descobrir
actores e os encenadores utilizam um vocabulário convencional cujos termos técnicos r)
nas suas partituras notas de meias semínimas (J ou para indicar quartos de tom, ou
permitem determinar os movimentos dos intérpretes em palco, o tempo que devem encimadas por um triângulo (T) destinado a assinalar um estalido com a língua, por
deixar passar antes da deixa seguinte ou a direcção do olhar durante um momento de exemplo. Os instrumentistas podem produzir esses sons, mas devem saber, ou aprender,
silêncio, etc. (Lyon, 1975). tudo aquilo que é necessário para uma boa compreensão da nota utilizada. A partir de
Por vezes os mundos da arte sofrem cisões que dão origem a subgrupos autónomos. então, os compositores podem empregar essa notação para obter os sons pretendidos, e
Nesses casos, os membros de cada subgrupo conhecem um certo número de convenções os músicos sabem aquilo que têm de fazer. Isto permite a ambas as partes uma melhor
e tomam-se os depositários desse saber. Por exemplo, as pessoas que toéam a chamada coordenação das suas actividades. (Ver Rehfeldt, 1977, num manual que tenta ilustrar
«nova música» apercebem-se de que os compositores querem que eles consigam tirar com clareza as novas notações e os novos efeitos instrumentais.)
sons não convencionais dos seus instrumentos. A maioria dos executantes aprende a Os mecanismos que produzem e sustentam uma cultura profissional podem tomar-se
produzir esses sons junto do próprio compositor, graças aos seus conselhos ou traba- obsoletos e, quando isso acontece, a capacidade dos profissionais para trabalharem em
lhando com outras pessoas com quem partilham relações mais estreitas. Mas à medida conjunto entra em colapso. Robert Lemer lembra que foi necessário normalizar coisas
tão simples como a escrita e a ortografia durante a Idade Média, para que a literatura
se tomasse uma actividade concreta:
62 • C O N V E N TI O N S

Após a queda de Roma, a diversidade regional das formas de escrita estava no seu auge, e os
A textos tinham-se tornado difíceis de decifrar porque, em determinadas regiões, os escribas escre-
viam deliberadamente de maneira esotérica, utilizando signos e rabiscos complicados, enquanto
noutros casos desleixavam e atabalhoavam o seu trabalho. Foi necessária uma inversão dessa
tendência para permitir a difusão da comunicação e do saber( ... ). Embora a escrita cursiva da
época tenha proporcionado uma maior rapidez de redacção graças à utilização das ligaduras
entre as letras, continuava a ser praticamente ilegível e foi sendo lentamente substituída, em
finais do século VIII, por aquilo que se designa carolino minúsculo, caracterizado por letras
pequenas, distintas e perfeitamente legíveis( ... ). Em breve, toda a Europa Ocidental utilizava
a mesma escrita, e os manuscritos tornaram-se mais fáceis de ler, não só porque a nova escrita
era mais legível, mas também porque existiam espaços e as frases começavam por maiúsculas,
contrariamente à prática romana que ignorava os espaçamentos e a pontuação. (Lemer, 1974,
pp. 182-84)

Sem esta simples normalização, a arte literária não teria sido possível. Mais à
frente veremos como é que a difusão deste tipo de normalização delimita um mundo
da arte.
A posse de uma cultura profissional, portanto, caracteriza um grupo de participantes
que utiliza certas convenções para exercer o seu oficio artístico. O essencial daquilo que
eles sabem é adquirido através da prática quotidiana e, regra geral, nenhum dos outros
participantes do mundo da arte necessita dos mesmos conhecimentos para desempenhar
FORMAT 2 R•t1dolph Cohman Parl ■ ,1971
o seu papel. Esse saber facilita a execução do trabalho, mas a sua posse não é necessária
para a compreensão das obras em si. O grupo que se define pela posse do conhecimento
FIGURA 9. Partitura de Formal IL de Randolph Coleman. Os compositores contemporâneos recor- dessas convenções pode ser considerado como o núcleo do mundo da arte.
rem a formas de notação pouco habituais. Os intérpretes que sabem executar sem problemas as obras Os grupos mais pequenos formam-se no seio de um mundo da arte considerado
escritas de um modo convencional necessitam de indicações e de um treino especial para executar
esta «nova música». (Pauta reproduzida com a autorização do compositor e das Smith Publications; no seu conjunto. Cada obra de arte cria um mundo único sob certos aspectos, numa
© 1977 Smith Publications.) combinação de dados convencionais com elementos inovadores. Sem os primeiros,

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Mundos da Arte

ela seria ininteligível; sem os segundos, seria insípida, transfonnando-se numa espécie
de música de fundo como a que se ouve nos supennercados ou como as pinturas que
encontramos penduradas nas paredes dos quartos de hotel. As variações podem ser
tão ínfimas que só um aficionado repara nelas, ou tão evidentes que seria impossível
passarem despercebidas. Tanto num como no outro caso, confonne o mundo da arte
onde as obras são criadas e consoante o público a quem elas são apresentadas, haverá
mais ou menos coisas a aprender, novidades específicas dessa obra.
De um modo geral, os artistas exploram progressivamente as suas próprias inova-
ções e elaboram assim uma série de convenções peculiares ao seu trabalho. (Muitas
vezes, os artistas colaboram no desenvolvimento de inovações no seio de grupos, e as
escolas ou as «capelas» artísticas que se fonnam elaboram então convenções que lhes
são próprias.) Aqueles que cooperam com os artistas, principalmente o público, fazem
a aprendizagem dessas convenções mais singulares e originais em contacto com as
obras isoladas ou com um conjunto delas. O artista também as pode aprender de modo
empírico, realizando uma obra ou um conjunto de obras, ou poderá desenvolvê-las no
decurso de experiências nunca apresentadas ao público.
Cada obra do artista, ou conjunto de obras, também nos faz penetrar num mundo
que define em parte o uso de elementos até então desconhecidos e, portanto, pouco
compreensíveis à primeira abordagem. As pessoas que se entregam à descoberta de
um trabalho inovador, apesar do hermetismo que este possa inicialmente apresentar,
talvez aprendam o bastante para conseguir interpretá-la. Os novos dados tornam-se
então convencionais, no sentido técnico anterionnente definido; são assimilados pelas
partes envolvidas de modo a que se assuma que todos os conhecem e saberão usá-los
na interpretação das obras em questão. Estes participantes são em menor número do
que os envolvidos nas situações mais gerais já descritas: reduzem-se ao criador da
obra e aos membros do público que dedicaram esforço e tempo para aprenderem as
convenções específicas da obra, ou do conjunto das obras, de um determinado artista.
É deste modo que alguém se torna um adulador de Mozart ou um fã de Charlie Parker.
O público familiariza-se com as novas convenções através do contacto directo
com a obra e, frequentemente, através das vivências partilhadas com os outros em
tomo dessas obras. Ele vê e entende os elementos inovadores nos mais diversos tipos
de contextos. O artista ensina-lhe o que significam e os efeitos que podem produzir.
Também lhe ensina a criar os contextos onde os pode reencontrar. Foi deste modo que
Robert Frank se tomou célebre ao renovar a iconografia na fotografia contemporânea,
dando um novo valor simbólico às bandeiras, às cruzes, aos automóveis e a outros
elementos banais da paisagem urbana (ver figura 10). Ao mostrar invariavelmente a
bandeira americana em contextos onde é tratada com indiferença, e mesmo de modo
provocador - como objecto decorativo num gabinete de recrutamento da Marinha, FIGURA 1O. Robert Frank, Navy Rec111iting Station, Post Office-Butte, Montana. Os artistas ensinam
onde um funcionário descansa com os pés sobre a secretária, ou como motivo gráfico novas linguagens aos seus públicos. Robert Frank ensinou uma geração de fotógrafos e espectadores
de uma tabuleta comercial -, ele ensina-nos a experimentar, perante essa bandeira, a ver em objectos como carros, bandeiras e cruzes o simbolismo especial que ele lhes atribuiu no
contexto do seu livro The Americans. Robert Frank (The Americans, 1959; fotografia a preto e branco,
uma impressão completamente diferente dos sentimentos patrióticos que ela deveria
sem data, cedida pelo artista.)
invocar. Essa utilização das bandeiras e de outros símbolos laicos ou religiosos, mais
ou menos original para Frank mas que inicialmente surpreende o público, passou a

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Mundos da Arte As Convenções

fazer parte do vocabulário corrente da fotografia contemporânea de conteúdo social. Resumindo, diferentes grupos e subgrupos possuem em comum o conhecimento
Aquilo que originalmente era a linguagem de Frank, que era preciso aprender com ele das convenções em vigor numa disciplina artística e adquiriram-na de diversos modos.
para interpretar e compreender o seu trabalho, tom.ou-se uma linguagem familiar. Quando as circunstâncias o permitem ou exigem, aqueles que partilham esse saber
Cada obra em si, pelo simples facto de se distinguir (por pouco que seja) de todas podem agir concertadamente segundo as modalidades inerentes à rede de cooperação
as outras, ensina ao seu público qualquer coisa de novo: um novo símbolo, uma nova em questão e, desse modo, criar esse mundo e afirmar a sua existência. Falar da orga-
forma, um novo modo de apresentação. Mais importante ainda, se se considerar o nização de um mundo da arte (da sua divisão interna em diversos tipos de públicos,
conjunto da obra de um artista ou de um grupo, à medida que as inovações se vão dos produtores e dos indivíduos que constituem o pessoal de apoio) é outra maneira
desenvolvendo (processo que pode atravessar toda a carreira de um artista), aquilo de falar da distribuição dos saberes e do seu papel na acção colectiva.
que ela propõe como novo atinge de tal maneira as pessoas que podemos falar de
educação de um público. Para dar um exemplo banal: o público de certas transmissões
de rádio e de televisão aprende a antecipar certos comentários e piadas que pontuam
infalivelmente cada sessão. Quando um cómico célebre abre a porta de um armário
e faz cair uma avalancha de objectos, os espectadores começam às gargalhadas antes
de ele ter aberto a porta do armário porque aprenderam a rir só com a ideia daquilo
que se vai passar. Dando um exemplo mais sério: os grandes compositores ensinam ao
seu público novas possibilidades harmónicas e formas musicais. Os testemunhos de
Debussy, que sensibilizou os seus ouvintes para o «orientalismo» da escala por tons,
ou de Webem, que os iniciou na escuta de fragmentos melódicos distribuídos, nota a
nota, por conjuntos de instrumentos em vez de executados por apenas um.
As pessoas que compreendem estas convenções de um artista formam um grupo
cuja coesão pode ser muito efémera, se é que se poderá falar de um grupo. Não po-
demos falar de um grupo a propósito dos leitores fiéis a Dickens. Eles nunca agem
colectivamente. Fizeram apenas a mesma escolha entre todas as obras literárias
disponíveis no mercado. Seriam muito provavelmente incapazes de explicitar as
convenções ficcionais de Dickens - de explicar, por exemplo, como é que ele leva
a caracterização das suas personagens até à caricatura para de seguida lhes conferir
dimensões humanas mas sabem como reagir a essas convenções que conhecem
bem.
Por outro lado, quando as convenções de uma obra ou do conjunto de uma obra
são autenticamente inovadoras, sem contudo serem muito conhecidas ou mesmo
ignoradas, o público que fica interessado pelo novo trabalho não está apenas a fazer
uma escolha baseada no seu grau de reputação, ele adopta uma atitude que implica um
maior empenhamento. Em muitos casos, não se trata apenas de obedecer a um impulso
ou de satisfazer uma curiosidade, mas de agir concertadamente com todas as outras
pessoas interessadas, permitindo que esse trabalho inovador exista e seja difundido.
Esse público pode achar necessário, desejável ou útil aderir a um organismo destinado
à promoção da dança moderna, tomar-se assinante de uma revista de literatura van-
guardista, assistir à única e efémera projecção de um novo filme, etc. Será excessivo
encarar esse público como um grupo constituído, habituado a agir em conjunto, mas
também não se trata de um agregado de indivíduos completamente isolados. Essas
pessoas fazem de algum modo o esforço comum de partilharem o seu interesse por
convenções inovadoras e tomá-las mais conhecidas, ou pelo menos de encorajar a sua
viabilidade como um dos recursos possíveis de uma arte. ·

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A Mobilização dos Recursos

Para se realizar uma obra de arte, qualquer que ela seja, são necessários recur-
sos. A natureza desses recursos depende da disciplina artística e do género de obras
em questão. A litografia, tal como é habitualmente praticada, exige pedras, tintas e
lápis litográfico. No caso de Picasso, exigia também o virtuosismo do senhor Tuttin.
A poesia exige poucas coisas: um lápis, papel e uma boa memória para os casos e)f.-
tremos das obras transmitidas oralmente. A ópera de grande repertório exige enormes
recursos materiais (guarda-roupa, cenários, iluminação, todo o material de orquestra,
um teatro especialmente equipado) e recursos humanos (músicos, cantores, técnicos
e gestores). Qualquer forma de arte necessita destes dois tipos de recursos, em quan-
tidades e combinações cuja importância e complexidade variam geralmente entre os
extremos da ópera e da poesia.
Quando pretendem realizar uma obra, os artistas procuram saber onde e como
3 encontrar os recursos exigidos. Será que existem? Será que um determinado material
é fabricado? Existem pessoas com formação específica para o trabalho que pretendo
A MOBILIZAÇÃO DOS RECURSOS levar avante? Existindo esses recursos, será que os consigo obter? Qual será o seu
custo? Será que essas pessoas querem trabalhar comigo? O que é que eu lhes posso
dar ou o que é que elas esperam de mim? Como é que os mundos da arte se organizam
Era sempre o senhor Tztltin quem se encan-egava de imprimir o trabalho de Pablo [Picasso},já que para que os artistas possam encontrar com facilidade os recursos necessários à boa
o desprezo deste pelos processos da litografia convencional originava constantemente uma série de execução dos seus projectos?
litígios com os impressores. O problema é que o senhor Tztttin não gostava do trabalho de Pablo.
Para ser mais preciso, ele detestava-o. Qualquer que seja a forma como os artistas obtêm recursos, os sistemas
Pablo tinhafeito uma litografia de uma das suas pombas de 11111 modo absolutamente pouco convencio- de distribuição, ao não fornecerem senão determinadas categorias de material e de
nal. A camada do jimdo era em tinia preta de litogrqfia e a pombafora desenhada por cima com guache pessoal, privilegiam as obras que empregam os recursos mais fáceis de encontrar.
branco. Dado que a tinia litográfica contém cera, o guache nunca adeririafacilmente àquela supe1ficie. Mais, esses sistemas não fornecem forçosamente aquilo de que os artistas verda-
Apesar dis~o. Pablo conseguiu 11111 resultado maravilhoso sobre o papel litográfico. Quando Mourlot deiramente necessitam, porque estão nas mãos de pessoas que têm as suas próprias
[o proprietário da oficina litográfica] chegou à Rue des Grands-Augustins e viu o que Pablo tinha
feito, disse: «Como é que você pensa que vamos imprimir isso? Não é possível.» Explicou a Pablo exigências, os seus interesses e imperativos de organização. Esses fornecedores
que, teoricamente, quando se transferisse o desenho para a pedra, o guache iria proteger a pedra e podem ter em consideração as aspirações dos artistas, mas não se lhes sujeitam
a tinta só passaria nas partes onde não havia guache; mas, por outro lado, em contacto com a tinia obrigatoriamente. As cadeias de cooperação que ligam os artistas aos fornecedores
líquida, o guache iria certamente dissolver-se, pelo menos em parte, e escorre,: de recursos, tanto humanos como materiais, COf1:Stituem um aspecto característico de
«Entregue o trabalho ao senhor Tztttin; ele saberá como fazer», insistiu Pablo. todos os mundos da arte.
Quando voltámos à oficina de Mourlot, o senhor Tz1ttin ainda andava às voltas com apomba. «Nunca nin-
guém fez uma coisa destas», ralhava o homem. «Não consigo trabalhar nisto. Isto nunca poderá resulta,:»
Eleanor Lyon ( 1974) sugeriu a ideia de uma oferta global de recursos para circuns-
«Tenho a certeza de que você consegue realizar esse trabalho», respondeu Pablo. «E aliás, penso crever esses mecanismos. Conforme a disciplina, serão tintas, instrumentos de música,
que a senhora Tztltin irá.ficar muito contente quando receber uma gravura da pomba. Far-lhe-ei papel fotossensível, actores, músicos, operadores ou dançarinos, todos mais ou menos
uma dedicatória.» fáceis de encontrar. A liberdade de escolha permitida pela oferta é variável, tal como
«Muito agradecido!!, respondeu Tztltin, com desagrado. «Ainda por cima, com este guache que lhe a sua qualidade e condições de acesso. A oferta cresce em função de uma procura real
pôs em cima, isto não vaifimciona,:JJ
ou potencial. Fabricam-se tintas e os comerciantes colocam-nas no mercado na firme
«Então, tudo bem ... !!, disse Pablo. «Vou convidar a sua.filha para jantar comigo e digo-lhe que
género de impressor o pai é.!! esperança de as vender, tal como os jovens aprendem a tocar tuba ou a dançar com a
O senhor Tztttin olhou para ele estupefacto, e Pablo continuou: «Claro que sei que 11111 tra- firme esperança de·serem recrutados para exercerem esses talentos a título profissional.
balho destes talvez seja 11111 pouco difícil para a maior parte das pessoas daqui, mas também Tanto num caso como noutro, essas esperanças podem não concretizar-se; as tintas
pensei, erradamente, admito-o agora, que você era a única pessoa capaz de o realiza1:JJ não são vendidas, os jovens artistas sofrem uma desilusão.
Por.fim, e estando em jogo o seu orgulho p1vfissional, o senhor Tztltin acedeu, embora contrariado. Os fabricantes e os distribuidores dos materiais, e o pessoal que oferece os seus
GILOT E LAKE, 1964, p. 86*
talentos, não procuram apenas satisfazer as necessidades dos artistas. Também têm
* ln Life witlz Picasso, Françoise Gilot e Carlton Lake. © 1964 Françoise Gilot e Carlton Lake. as suas preferências e as suas exigências. Se o aumento da procura aumenta os custos
Utilizado com a autorização da McGraw-Hill Book Company. de gestão do material disponível, talvez se deixe de conseguir encontrar uma gama

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

completa de cores junto dos vendedores. Se a guitarra e a bateria suscitarem uma um pouco mais do seu ambiente habitual e utilizaram papel de lixa e diversos materiais
grande procura entre os jovens, as orquestras sinfónicas poderão vir a ter dificuldades de bricolagem.
em recrutar violoncelistas. De uma maneira mais geral, aqueles que controlam a oferta Não é necessário construir equipamentos especiais para fornecer esse material
de recursos também estão submetidos a certos imperativos que influenciam os meios de aos artistas. O normal funcionamento da economia de mercado engendra uma
trabalho dos artistas. Como a oferta de recursos humanos exige muito tempo e apela produção tipificada, cuja diversidade basta para as necessidades dos artistas. Nos
a investimentos de um tipo completamente diferente, faremos a sua exposição depois Estados Unidos, a procura de papel de máquina, para escrever ou de impressão
de analisar a oferta de recursos materiais. suscitou a disponibilização da oferta de uma gama de cores, formatos e qualidades
suficientemente vasta para responder a todas as solicitações dos artistas plásticos
que realizam colagens ou esculturas em papel, e mais ainda do que o estritamente
OS RECURSOS MATERIAIS necessário para as exigências do escritor ou do poeta mais extravagante (para os
papéis expressamente destinados às artes plásticas, a história é outra). Para qualquer
O artista pode necessitar de um material muito específico e que mais ninguém um destes casos, a oferta de recursos destinada às actividades comuns cobre todas
utiliza ou, pelo contrário, pode usar um material corrente e normalizado muito fácil as necessidades dos artistas.
de encontrar, e isso tem influência sobre o seu trabalho. É a organização da produção A situação é idêntica quando alguns artistas usam recursos concebidos para uma
económica da sociedade que determina quais os materiais que estão disponíveis e sob aplicação industrial ou comercial, ainda que nesse caso a escolha se revele frequen-
que condições. Para nos cingirmos ao essencial, reportar-nos-emos aqui aos sistemas temente mais limitada, seja porque as aplicações industriais não exigem um material
de mercado tais como vigoram na maioria das sociedades contemporâneas. tão variado, ou porque os artistas não sabem onde o procurar. Os fotógrafos de arte
não constituem a principal clientela, nem mesmo a secundária, visada pela indústria
Determinadas disciplinas artísticas utilizam produtos que são concebidos e fabri-
fotográfica. Esta orienta a sua produção para o mercado profissional (estúdios de
cados tendo em vista as suas próprias intenções; por exemplo, a tinta de óleo em tubos,
fotografia e aplicações industriais de todos os tipos) ou para o mercado familiar da
os instrumentos de música ou as sapatilhas de dança. Muitas vezes o fabrico desses
fotografia de recordação, que não obrigam, nem um nem outro, à disponibilização
artigos atinge um tal nível de tecnicidade que os artistas não os conseguem confeccionar
de uma gama tão variada quanto aquela desejada pelos artistas. Entretanto, essa
por iniciativa própria, ainda que alguns o tentem fazer, como os executantes de fagote
mesma indústria fabrica produtos que os fotógrafos de arte só recentemente desco-
que fabricam as suas próprias palhetas. Outras disciplinas requerem matérias-primas
briram que podiam ser usados para colorir as imagens sem a necessidade de recurso
que se podem encontrar na natureza: os escultores costumam recuperar troncos de a equipamento especial ou à complexa manipulação laboratorial. Resumindo, a
árvores que tenham sido abatidas. Outros ainda utilizam materiais correntes e que, procura industrial e comercial engendra uma oferta de recursos variada, mas os ar-
de facto, foram inicialmente concebidos para outros usos. É desse modo que os poetas tistas talvez não conheçam tão bem a sua existência comparativamente aos bens
utilizam o papel e as máquinas de escrever que se encontram nos escritórios ou em domésticos de consumo corrente.
casas particulares, que os escultores utilizam o metal e o ferro de soldar normalmente Existem, é claro, muitos artigos fabricados expressamente para um uso artístico.
empregues na indústria, e que os artistas plásticos tiram partido de objectos de uso Os instrumentos de música e o papel de desenho constituem dois exemplos evidentes.
comum, utensílios domésticos ou produtos alimentares. Em ambos os casos, os fabricantes fazem parte integrante do mundo da arte em questão.
Os artistas que se servem de artigos .correntes e que não foram concebidos para fins Eles produzem visando um mundo da arte e são sensíveis ao que consideram serem as
artísticos estão menos sujeitos às convenções dos mundos da arte. Em contrapartida, necessidades dos seus participantes. Os artistas usam os produtos destes fabricantes
têm de se acomodar àquilo que as pessoas utilizam para outros fins e que, portanto, porque, no decurso da sua formação, aprenderam a fazer precisamente aquilo que o
é fácil de encontrar. Como se trata geralmente da solução mais económica para obter material disponível permitia. Os fabricantes de instrumentos são membros integrantes
materiais de trabalho, os artistas que têm menos dinheiro costumam recorrer ao se- do mundo da arte musical. Embora sejam solícitos face às necessidades dos artistas, não
guinte: os materiais são oferecidos, emprestados ou até roubados em qualquer lugar. deixam também de lhes impor constrangimentos com o material que disponibilizam.
Quando o Tactile Art Group (uma oficina baseada na invenção de uma nova forma de Se os produtos que fabricam convêm de um modo geral à maior parte dos praticantes
arte que Philip Brickman e eu animávamos na Northwestem University) realizou as de urna arte, é simplesmente porque estes últimos têm o hábito de trabalhar com o
suas primeiras obras, quase todos os artistas do grupo utilizaram materiais que qualquer material em questão.
jovem estrldante tem em casa, nomeadamente alimentos como farinha, sobremesas Em simultâneo e pelos mesmos motivos, a produção dos fabricantes praticamente
instantâneas, feijão em lata, diversas misturas de frutos ou de legumes, expostos em nunca responde às necessidades daqueles que tentam criar algo de novo (ou de velho, se
recipientes vulgares, e nos quais o público era convidado a mexer. Outros afastaram-se formos por aí), numa dada disciplina. Quanto mais o material está adaptado à execução

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

de algo de concreto, menos se presta a usos alternativos. Se um instrumento musical aperfeiçoamentos. Estes processos, que não apresentam qualquer tipo de dificuldade, estimulam
como o saxofone está destinado a emitir sons da escala cromática, não o poderemos s
a criatividade, a independência e a autonomia( ... ). (Photographer Formulmy: Chemical and
Laborato,y Resources, catálogo III, 1979, sublinhado meu.)
utilizar para tocar quartos de tom ou intervalos mais pequenos. Para tal, era preciso
inventar e construir instrumentos completamente diferentes. De modo semelhante,
certos artistas que não encontravam junto dos fornecedores o papel que desejavam para Os fornecedores de material nem sempre impõem constrangimentos às activi-
o seu trabalho começaram a fabricar o seu próprio papel. Nesse processo, aprenderam dades dos artistas. De tempos a tempos, os inventores criam novos tipos de equipa-
a explorar de outro modo as possibilidades artísticas do papel, trabalhando-o na sua mentos e materiais que, uma vez disponíveis, abrem novas perspectivas aos artistas.
própria substância e não apenas sobre a superfície. A fotocópia a cores, a telecópia e a videografia deram vida a um tipo de imagens até
Os constrangimentos que o material convencional exerce sobre o artista dependem então desconhecidas. Presentemente, os artistas podem por exemplo obter a cor através
em certa medida do grau de concentração monopolista do mercado. Se o mercado for de um simples contacto do papel com uma fonte de calor e, depois, transformar as
dominado por apenas um fabricante ou um pequeno número de empresas (no limite, imagens coloridas manipulando os dispositivos ópticos de uma máquina. Podem criar
o Estado controla o fabrico, de modo a que todas as decisões de produção estejam deformações verticais e horizontais da imagem jogando com a velocidade de recepção
centralizadas), esses monopólios serão relativamente indiferentes às necessidades ou ou de emissão de uma teleimpressora. Todo esse material electrónico gerador de ima-
aos desejos das minorias artísticas. Tomemos o fabrico de material fotográfico como gens, destinado originalmente aos escritórios e às empresas, alargou-se a uma nova área
exemplo. George Eastman, o fundador da Eastman Kodak, tinha o dom de descobrir das artes visuais chamada «sistemas generativas». (Thompson, 1975, descreve esse
procedimentos capazes de desafiar a concorrência e de assegurar a exclusividade co- fenómeno e fornece vários exemplos de obras assim produzidas.) Os artistas souberam
mercial (Jenkins, 1975). Isto teve enormes consequências para os fotógrafos de arte. rapidamente explorar as novas imagens de síntese feitas em computador.
O papel sensível é fabricado por duas ou três empresas, e se a sua gestão assim o exigir,
elas podem muito bem suprimir alguns dos artigos usados pelos artistas. Por exem-
plo, muitos artistas aprenderam a tirar partido dos efeitos estéticos do Record Rapid,
um papel de tons quentes acastanhados, o único do género a sobreviver à crescente
concentração da produção na mão de poucas empresas. Quando a Agfa deixou de
fabricar esse papel, os fotógrafos tiveram de inventar novos procedimentos artísticos
para colmatar o seu desaparecimento.
A dependência relativamente aos fabricantes e aos .fornecedores impõe aos
artistas constrangimentos mais ou menos incómodos, conforme o grau de homo-
geneidade da produção num dado mundo da arte. Se os artistas têm todos a mesma
ideia das obras válidas e do modo de as realizar, existem fortes hipóteses de o
material disponível se limitar àquilo que é necessário para criar esse tipo de obra.
Quando um mundo da arte tem um repertório mais diversificado, geralmente os
fabricantes tentam corresponder a essa pluralidade. Se o sistema económico tolerar
e encorajar as suas iniciativas, os responsáveis das empresas assumirão volunta-
riamente o risco de alimentar um mercado mais restrito e minoritário. Esses forne-
cedores disponibilizam com frequência os materiais de base destinados ao fabrico
dos produtos convencionais, que vendem a sociedades dispostas a substituírem as
grandes empresas na resposta às solicitações dos artistas. Teremos uma percepção
do estado de espírito que preside a esse género de iniciativa lendo um extracto do
catálogo de uma pequena sociedade que comercializa produtos químicos destinados
a materiais de impressão inusitados:
FIGURA 11. Interpretação da peça Oedipus de Hany Partch. Tendo composto para uma escala de
A vantagem de utilizar estes processos, com produtos preparados em casa, é um maior domínio quarenta e dois tons, Partch teve de construir os seus próprios instrumentos e teve de ensinar as pessoas
sobre o resultado final e a garantia do fabricante de que eles não o obrigarão a renunciar ao a tocarem neles. Um grupo de estudantes do Mills College toca nos instrumentos Harmonic Canon I,
seu método de trabalho pessoal( ... ). Além disso, permitir-lhe-ão realizar inovações e mesmo Diamond Marimba e Cloud-Chamber Bowls, num concerto realizado em Março de 1952. (Fotografia
cedida pela Mills College Library.)

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

Quer sejam concebidos expressamente para um uso artístico, quer sejam fabricados mundo da arte. Aos olhos dos participantes nesse mundo, aquele que realiza «verdadei-
para outros fins e depois adaptados ou adulterados, os artistas acedem a esses materiais ramente» as coisas, que toma as decisões que conferem coerência e interesse artístico
e equipamentos graças aos diversos mecanismos de distribuição de bens existentes. à obra, é o artista, que pode ser uma de inúmeras pessoas ligadas à realização da obra,
Nos casos em que uma economia de mercado rege a distribuição dos bens, os artistas concorrendo todas as outras para lhe dar assistência. Não subscrevemos a posição de
podem sempre comprar ou alugar aquilo de que necessitam, desde que tenham dinheiro relativa importância que o termo «pessoal» encerra, mas utilizamo-lo para realçar que é
(quanto à maneira de ganhar esse dinheiro, é uma outra questão que se abordará mais precisamente a concepção corrente nos mundos da arte.
à frente). Os artistas sem dinheiro podem roubar; não é raro certos artistas famosos Pode até ser instrutivo fazer um exercício de desumanização e considerar os ele-
admitirem, ou gabarem-se de, no início das suas carreiras, terem roubado os materiais mentos do pessoal de apoio como recursos, reunidos a partir de uma oferta global tal
ou os equipamentos de que necessitavam. Logo nas primeiras aulas de fotografia, o como no caso dos recursos materiais. Perguntar-nos-emos então, como é que esta oferta
professor dizia-nos para não tentarmos poupar papel quando procurávamos imprimir se constitui e como é que aqueles que ela engloba se encontram associados a projectos
uma boa prova a partir de um negativo: «Usem-no todo, depois comprem mais e, quando artísticos, assumindo uma função de apoio.
já não tiverem dinheiro, roubem-no!» Os artistas também podem recorrer a trocas. Por A oferta de recursos humanos para os mais diversos projectos artísticos é cons-
vezes os comerciantes aceitam obras de arte como forma de pagamento pelo material, tituída por aqueles que estão aptos para executar as várias tarefas especializadas
mas não é a única possibilidade, tal como o testemunha a solução adoptada por um requeridas e que se apresentam disponíveis para tal. O seu número, especialidade
pequeno teatro de vanguarda, descrita por Eleanor Lyon: profissional e condições de recrutamento variam de uma disciplina para outra e de
um lugar para outro. O mundo do teatro da Broadway tem à sua disposição talvez
Uma parte dos recursos materiais era obtida através de trocas negociadas. Os comerciantes dez vezes mais (falando por baixo) actores com aptidões de formação extensiva,
locais ofereciam acessórios e roupa em troca de uma menção nos programas. Outros adereços
eram fornecidos pela secção de arte dramática da universidade local, porque patrocinava os capazes de desempenharem correctamente vários papéis nos mais diversos géneros, do
éspectáculos que se realizavam durante as férias de Verão. Entretanto, o material obtido deste que aqueles que estão efectivamente no activo. Por outro lado, muito poucas pessoas
modo limitava o conteúdo do espectáculo. Era necessário modificar o aspecto visual de certas possuem a singular combinação de competências exigidas para o trabalho de apoio, e
cenas porque algumas das roupas disponibilizadas não se enquadravam na concepção estética nem todas estão dispostas a trabalhar para o teatro. Normalmente existe uma grande
original. (Lyon, 1974, p. 89) quantidade de candidatos para as funções envoltas numa aura «artística» (no teatro, são
os dramaturgos, os actores e os encenadores) e uma penúria de mão-de-obra qualificada
Se ninguém fabrica os materiais desejados ou necessários é possível criá-los por para os outros trabalhos desprovidos desse prestígio. Se as pessoas pudessem escolher,
nós próprios. É essa a solução adoptada por muitos artistas. Ao procederem desse haveria mais voluntários para escrever romances do que para prepará-los para a im-
modo, sujeitam-se a todos os inconvenientes e problemas, descritos mais à frente, que pressão, para dar grandes concertos de música do que para consertar os instrumentos,
atingem os mavericks e os solitários. para desenhar sobre pedras litográficas do que para executar a sua impressão.
Ao insistirem na utilização de equipamento não normalizado, são obrigados a As pessoas alimentam a oferta de recursos humanos ao aprenderem a executar
consagrar uma parte do seu tempo a esses preliminares em vez de se entregarem exclusi- as tarefas que ocorrem num mundo da arte e a preencher uma das funções de apoio
vamente ao seu trabalho artístico. Além disso, aquilo que fazem com esse material de que os artistas desse mundo necessitam. Quer sejam estudantes, autodidactas ou
exige muitas vezes competências que não se exigem normalmente aos membros do se tenham formado pela prática, essas pessoas aprendem a conhecer determinadas
seu mundo da arte, de modo que outras pessoas que cooperam na realização da obra convenções em vigor no mundo da arte e a aplicá-las nas situações concretas de
serão apanhadas desprevenidas. Harry Partch, que usava uma escala de quarenta e dois produção artística. Quando solicitadas, provam ser relativamente intercambiáveis
tons, teve de inventar uma notação e fabricar os seus próprios instrumentos porque no exercício da sua função e mostram-se capazes de desempenhar o seu trabalho tão
ninguém no mundo da arte musical estava habilitado para realizar aquilo que, até ele o bem como os colegas. Essa oferta de pessoal intercambiável é uma das coisas mais
fazer, parecia impossível (ver figura 11 ). importantes que um mundo da arte proporciona aos artistas. Quando se está seguro
da possibilidade de se encontrar sempre um substituto de idêntico v~lor para alguém,
também é possível continuar tranquilamente o trabalho artístico. E por isso que as
OS RECURSOS HUMANOS redes e as convenções de cooperação constituintes de um mundo da arte são simulta-
neamente libertadoras e constrangedoras. Como veremos, a aptidão dos participantes
Existe uma certa indelicadeza ao falarmos das pessoas que cooperam na produção para preencherem funções onde são intercambiáveis contribui para determinar as
de obras de arte como «pessoal» ou, pior mesmo, quando nos referimos ao «pessoal de fronteiras de um mundo da arte. É evidente que os artistas reconhecem a existência
apoio». Contudo, esse termo designa correctamente a importância que eles têm num de elementos nitidamente mais eficazes do que outros no seio do pessoal de apoio

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

e sabem a quem é que podem entregar determinadas tarefas com total confiança: Podem tocar aquilo que quiserem enquanto o resto do grupo continua a
quais são os actores que compreendem imediatamente as indicações cénicas, quais interpretar um trecho musical. Quaisquer que sejam os enganos ou cacofonias pro-
são os bailarinos capazes de executar os passos e as figuras que o coreógrafo tem em duzidos pelas crianças, eles acabam por ser abafados pelo barulho dos outros instru-
mente, quais os operadores de câmara que conseguem criar os efeitos visuais que o mentos. Elas tentam acompanhar aquilo que ouvem e aprendem rapidamente a tocar
realizador deseja e quais são aqueles que não têm capacidade de realizar estas coisas, as suas partes durante estas sessões colectivas de música. Depois de aprenderem a
obrigando por isso a inflexões e a adaptações na ideia original. interpretar uma parte daquilo que lhes compete, podem esforçar-se por aprenderem
Como é que as pessoas adquirem estas competências de base? Os membros de ainda mais, acabando por pôr os seus serviços à disposição do quadro de oferta de
um mundo da arte são em grande medida autodidactas. Têm de assimilar a formação técnicos competentes.
recebida interiorizando mentalmente as lições, tal como o fazia David Sudnow (1978) Muitos aprendem os oficias do pessoal de apoio numa escola. Embora sejam escolas
quando era estudante de piano. Certas pessoas não aprendem senão através do exercício profissionais no sentido estrito, elas também formam «artistas». Desse modo, pode-se
prático. H. Stith Bennett (1980) descreve-nos como é que, nas regiões montanhosas do aprender o oficio de operador de câmara ou de técnico de iluminação numa escola
Colorado, os jovens músicos de rock aprendem sozinhos a tocar os seus instrumentos, de cinema, ou estudar para realizador ou argumentista. É que, no seio da indústria
esforçando-se por reproduzir de ouvido as músicas gravadas em discos, sem a ajuda cinematográfica, a distinção entre artistas e pessoal de apoio é tão confusa que os seus
de professores ou sem recorrerem a qualquer tipo de manuais. É um método dificil, membros se consideram frequentemente, e por vezes são considerados, como artistas
mas dando crédito às palavras de Bennett, esses jovens acabam por utilizar os discos no seu sentido mais estrito. Idêntica confusão reina nas escolas de música: quase
como se se tratasse de partituras, imitando tão bem o que ouvem que conseguem todos os estudantes que sonham em tomar-se violinistas ou pianistas virtuosos fazem
aprender o conteúdo de quarenta minutos de música num único dia. Ao realizarem essa carreira nas fileiras de uma orquestra sinfónica (no caso dos violinistas), ou acabam
formação completamente sozinhos, os iniciados integram na sua prática as conven- na maior parte das vezes por dar aulas dos seus instrumentos ou por seguir actividades
ções do mundo da arte a que aspiram, pois adoptam as obras existentes como modelo. mais lucrativas como a gravação de músicas para filmes, quando não se dá o caso de
Se conseguirem ter êxito com a sua aprendizagem, poderão oferecer os seus serviços renunciarem por completo a uma carreira musical (Faulkner, 1971).
para exercerem a actividade de apoio em que se formaram e ampliar a correspondente A vocação das escolas de arte é igualmente variável. Algumas dedicam-se resolu-
oferta de recursos humanos. tamente a formar apenas artistas. (O meu primeiro professor de fotografia advertiu-nos
Alguns aprendem através da prática, fazendo um estágio, ocupando um emprego antes de iniciar o curso: «Esta escola chama-se Instituto de Arte de São Francisco.
subalterno que lhes permita acompanhar o trabalho de profissionais confirmados, ou Se vocês vieram aprender outra coisa que não arte, estão no local errado. Peçam o
simplesmente estando integrados numa actividade, quer a saibam cumprir ou não. reembolso das vossas propinas enquanto é tempo!») Outras optam por ensinar aos
Aquele que ficou conhecido pelo cognome de «Leonardo da Vinci» dos copistas alunos oficios para os quais parece haver uma procura no mundo da arte em questão
musicais, aprendeu o seu oficio desse modo, como o revela um artigo publicado no (Pevsner, 1940). Na Grã-Bretanha, desde há muito tempo e salvo raras excepções,
New York Times: todas as escolas de artes plásticas ensinam as técnicas de impressão, as artes gráficas
e a fotografia comercial, no intuito de preparar os alunos para as carreiras gráficas da
Certo dia, cruzei-me na rua com o responsável da biblioteca de música da Paramount Publix publicidade e demais sectores conexos. Embora atribuam uma particular import~ncia
Corporation. [Ele tinha uma formação de violinista, mas trabalhava numa farmácia.] A compa- ao mercado industrial e comercial, as políticas dessas escolas não são contudo muito
nhia geria a Twentieth-Century Paramount e organizava durante o ano manifestações musicais diferentes das implementadas nos estabelecimentos públicos que formam bailarinos
por todo o país. «Ora vejamos, vejamos», disse-me ele. «Você realizou estudos musicais. Pois
bem, venha daí comigo!» Estávamos em 1925, e ele oferecia-me um cargo onde eu ia receber para as companhias subvencionadas de bailado, ou músicos, cantores e actores para
sessenta dólares por semana, o que não era nada mau naquela época. Entrei numa grande sala, as óperas e teatros em Inglaterra, na Escandinávia e noutros países. Essas institui-
onde estavam perto de quarenta pessoas a transcrever músicas. Fiquei a olhar para elas. Sempre ções potenciam uma oferta de recursos humanos aos mundos da arte estabelecidos;
tivera dificuldades em desenhar uma clave de sol. Mas aprendi a fazê-lo. O patrão disse-me: sem querer, alimentam também as empresas artísticas que funcionam à margem do
«Você tem música em casa? Vá transcrevê-la.» Aprendi portanto a fazê-lo aos poucos, avançando
lentamente. Copiava sobretudo música para bares noctumos, arranjos para orquestras de dança.
sistema, ao dotarem de uma sólida formação todo um contingente de profissionais
Também transcrevi muita música para filmes. (Schõnberg, 1978) rebeldes cujos projectos não se encaixam nas estruturas estabelecidas. (Como já fiz
notar anteriormente, as escolas de dança ensinam as técnicas da dança clássjca, cujo
vocabulário está na base do desenvolvimento dos outros estilos de dança, pois é isso
Segundo uma lenda pouco fidedigna, os músicos de origem cigana entregam que se espera dos bailarinos.)
uma pequena guitarra a crianças com apenas seis anos de idade e põem-nas no Que faz um artista quando a oferta de recursos humanos existente não corresponde à
meio de uma orquestra em plena acção. Não recebem qualquer tipo de indicação. procura? De um modo geral, os artistas cujo trabalho diverge a este ponto dos métodos

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convencionais formam o seu próprio pessoal, tal como aqueles que quando precisam O pessoal de apoio contratado para postos permanentes numa instituição estável goza
de um material difícil de encontrar o fabricam eles próprios. Podem abrir uma escola, de motivações que não coincidem com as do artista com quem trabalha. Enquanto o artista
fundar um grupo de trabalho ou recrutar assistentes a quem ensinam a fazer aquilo que se preocupa com o alcance estético da obra e com os efeitos que terá sobre a sua reputação,
pretendem do seu pessoal de apoio. Se tiverem objectivos francamente heterodoxos, 0 pessoal de apoio quer saber até que ponto é que a sua colaboração num dado projecto
talvez recusem aceitar pessoas que já tenham uma experiência ancorada nos métodos poderá ter, a longo prazo, influência sobre a sua carreira na instituição. Contratado pela
mais tradicionais ou que receberam uma formação clássica,já que essas pessoas teriam sua aptidão para cumprir uma função bem precisa, à qual consagra todo o seu tempo,
de desaprender muitas coisas. Aformação clássica cria a perspectiva de uma carreira que esse pessoal torna-se tão orgulhoso, tão ciente do seu trabalho que pode, por um com-
não se coaduna com a perspectiva da aceitação de muitas privações, de uma disciplina portamento tipicamente corporativo, contrariar o processo da produção artística. A partir
de trabalho rigorosa e desconcertante, e com o facto de deixar o sucesso profissional, do momento em que cumpriu correctamente a sua tarefa, o resto pouco lhe importa. Por
no sentido tradicional, para segundo plano. outro lado, também se pode sentir subvalorizado na sua função, tal como acontece com os
Admitindo que existe uma oferta de pessoal de apoio intercambiável, como é que músicos mais ambiciosos que se sentem diminuídos nos incógnitos naipes das orquestras,
aqueles que a constituem se integram nos projectos artísticos para os quais concorrem? onde nunca terão qualquer hipótese de se entregarem a interpretações mais expressivas e
Existem dois mecanismos fundamentais que intervêm na maioria dos sistemas e que criativas (Faulkner, 1973a e 1973b), ou ainda com os actores residentes, receosos da sua
geralmente ocorrem em diversos tipos de formas mistas. Num deles, o pessoal dispo- anulação pelo contínuo desempenho de personagens tipificadas. O pessoal técnico talvez
nível trabalha para um organismo que desenvolve projectos artísticos: uma carreira no tema menos este tipo de situações do que aqueles que, outrora, alimentaram aspirações
seio deste organismo engendra os dispositivos de atribuição dos empregos. No outro, artísticas. De modo idêntico, as organizações dotadas de pessoal fixo com capacidades
os membros do pessoal disponível são convocados separadamente para cada projecto, limitadas também se sentem diminuídas nas suas actividades.
segundo uma fórmula semelhante à dos profissionais por conta própria. Em ambos O pessoal de apoio age frequentemente de modo calculado no intuito de conservar ou
os casos, alguns conseguem seguir uma carreira num ou em vários organismos, ou melhorar a sua situação no seio do organismo onde trabalham. Quando os empregados de
através da constituição de uma rede de relações que lhes garante um trabalho regular. uma editora decidem quanto tempo ou quanto dinheiro deverão investir na preparação,
Em ambos os casos, o pessoal de apoio e os artistas para quem trabalham estabelecem promoção e distribuição de um livro, não estão apenas preocupados em optimizar uma
relações cujo grau de estabilidade varia sensivelmente. obra em particular. Estão simultaneamente interessados em perspectivar o modo como
Muitas das obras características de vários mundos da arte são produzidas por os recursos da empresa poderão ser mais bem repartidos entre os vários projectos em
instituições dotadas de pessoal permanente. É frequente as pessoas manterem-se curso e até que ponto é que uma má decisão poderá afectar as suas carreiras. É por isso
durante vários anos seguidos na mesma orquestra sinfónica, na mesma companhia de que tantos romances estão condenados desde o dia da sua publicação (Hirsch, 1972):
dança, no mesmo teatro ou na mesma oficina de litografia. Quando mudam, seguem tendo em conta os estudos de mercado, o responsável pelo departamento comercial (um
uma trajectória profissional bem traçada, que as conduz a outro organismo do mesmo exemplo clássico de uma posição de apoio) pode decidir que será inútil despender mais
género onde permanecem novamente durante muitos anos. Quando esses organismos verba relativamente a um livro acabado de imprimir. Ele não será objecto de publici-
controlam o mercado de trabalho desse modo, as pessoas orientam as suas actividades dade ou de quaisquer outras formas de promoção que permitem chamar a atenção dos
e carreiras em função das necessidades e contingências que esses organismos impõem críticos e do público para uma determinada obra, passando assim despercebida entre a
aos seus empregados. Primeiro preocupam-se simplesmente em conseguir entrar: será massa de novas publicações.
que conseguirei um lugar de clarinetista numa orquestra? Numa orquestra prestigiada? Outros dois motivos recorrentes e que acontecem frequentemente em simultâneo são
Mais tarde, talvez tentem mudar para uma instituição com maior reputação no mesmo o desejo de alcançar um trabalho melhor noutra organização e o orgulho no ofício. Para
sector de actividade; a sua cultura profissional incita-os a preferirem os empregos satisfazer um e outro, é necessário garantir que a sua parte foi cumprida com perfeição,
considerados mais desejáveis e dignos de um empenho suplementar. O organismo a independentemente do resultado do projecto no seu conjunto, mesmo que o perfeccionismo
que pertencem acaba por determinar aquilo que devem fazer e aquilo que se espera numa dada tarefa comprometa o êxito da obra. Os compositores receiam que, para contor-
deles para qualquer projecto em particular. Um actor residente desempenha durante narem as dificuldades das passagens mais complexas, os músicos de orquestra sabotem
anos a fio os papéis que lhe são atribuídos pelo teatro onde trabalha. Um músico de deliberadamente (é pelo menos essa a percepção dos compositores que se sentem lesados)
orquestra sinfónica interpreta as obras que o chefe da orquestra escolhe como repertório as suas.novas obras durante os ensaios, sob o pretexto de que as suas partes respectivas são
para uma dada temporada. Quando a admissão e o despedimento obedecem a regras impossíveis de tocar ou que estão cheias de erros de notação na partitura. Aqueles que adap-
burocráticas, e as convenções colectivas, a legislação laboral ou os regulamentos tam este comportamento talvez desejem produzir uma boa impressão sobre outro eventual
internos da instituição garantem a segurança dos empregos, a integração do pessoal empregador (Faulkner, 1973a e 1973b, descreve essas aspirações junto dos músicos das
é mais durável. orquestras sinfónicas) ou simplesmente preservar a reputação entre os seus pares.

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

O pessoal de apoio também pode estabelecer ligações com os artistas através do


sistema de trabalho independente, em que se constituem equipas para projectos preci-
sos e segundo as necessidades do momento. Os artistas utilizam os meios de que
dispõem, financeiros ou outros, para assegurarem a participação de certas pessoas, tal
como fazem para adquirir material. Neste sistema de colaboração, a participação do
pessoal de apoio não ultrapassa o tempo de duração do contrato. Os seus membros
podem queixar-se de não terem tempo suficiente para se dedicarem a um projecto que
os interessa de modo particular, mas a lógica do trabalho independente impele-os numa
fuga para a frente. Lillian Ross (1969 [1952]) explica como é que John Huston, após
ter terminado a realização de Sob a Bandeira da Coragem, começou logo a filmar
A Rainha Aji-icana. Muito do trabalho que ficou por concluir no primeiro filme foi
feito por outras pessoas. Tendo decidido que o filme seria um fracasso se não fosse
completamente refeito, a direcção da MGM submeteu-o a alterações substanciais.
O filme foi completamente modificado, apesar dos vigorosos protestos do produtor
Gottfried Reinhardt que lutava por preservar o espírito da obra tal como Huston a
concebera. Ele acabou por se dar por vencido quando o novo vice-presidente da MGM,
Dore Schary (que acabara de substituir Louis B. Mayer na sequência de manobras que
surpreenderam e indignaram o mundo do cinema), mostrou interesse pessoal em re- FIGURA 12. Cena do filme Sob a Bandeira da Coragem, realizado por John Huston. Nos sistemas
fazer o filme Gá que Nicholas Schenck, o presidente da empresa proprietária da MGM, de trabalho por conta própria, o pessoal de apoio trabalha durante o período em que vigora o acordo de
o tinha incitado a assumir essa responsabilidade, dada a sua posição de vice-presidente, prestação do serviço. John Huston, realizador de Sob a Bandeira da Coragem, permitiu que os executivos
pelo que muitos consideraram o filme horrivelmente amaneirado ). Huston, sobre quem do estúdio lhe alterassem drasticamente o filme quando o acabou de filmar e partiu para África para fazer
A Rainha Aji-icana. (Fotografia cedida pelo Museum ofModem Art/Film Stills Archive.)
afinal devia recair toda a responsabilidade artística do filme, estava em África e igno-
rava a polémica criada em torno do seu filme (ver figura 12). Quando finalmente se
apercebeu daquilo que se passara, limitou-se a enviar um telegrama a Reinhardt: «CARO O dono de uma organização estável pode recorrer a este género de atitudes: meter
GOTTFRIED. ACABO DE RECEBER A TUA CARTA. SEI QUE TE BATESTE COM DIGNIDADE. na linha um subordinado dotado de talento mas ligeiramente indisciplinado, para que
ESPERO QUE NÃO TENHAS DADO CABO DA TUA REPUTAÇÃO POR MINHA CAUSA.» não volte a cair na tentação de, por amor à arte, esquecer os interesses da empresa.
Apesar de ter deixado o filme para trás, Huston teve sorte. Os críticos, pelo menos, É evidente que os motivos de um superior não têm forçosamente de ser tão mercantis;
apreciaram as qualidades artísticas do filme. Os adversários também não se enganaram; noutro contexto, talvez tivesse advertido alguém para subordinar os aspectos comerciais
o filme foi um autêntico desastre financeiro. às exigências artísticas.
Para retomarmos a questão de como as decisões podem ser motivadas por con- Num sistema de trabalho independente, as pessoas são contratadas tendo como
siderações exteriores ao projecto em si, detenhamo-nos um instante sobre as razões referência a sua reputação. Eis o relato de um compositor de Hollywood recolhido por
invocadas por Schenck para autorizar Schary a refazer completamente o filme Sob a Robert Faulkner: «O nosso valor corresponde apenas ao último filme que fizemos».
Bandeira da Coragem. Como tencionava substituir Mayer por Schary, procurou dar Os trabalhadores independentes não gozam de qualquer protecção face às consequências
uma satisfação profissional a este último sem contudo deixar de o fazer compreender de um trabalho falhado. Contudo, alguns deles conseguem trabalhar com regularidade,
em que é que consistia a sua nova função no seio da companhia: · passando de um projecto para outro sem perda de tempo. Isso deve-se em parte à sua
capacidade de corresponderem satisfatoriamente às tarefas exigidas pelos artistas para
Dore é jovem. Exerce este trabalho há pouco tempo. Achei que o deveria encorajar para que não quem trabalham. No mundo do cinema, um compositor deve ser capaz de fornecer uma
desanimasse. Teria sido fácil recusar-lhe aquela tarefa. Mas, afinal, disse-lhe sim.Achei que seria
música que corresponda às expectativas do realizador, isto é, que crie o ambiente preten-
benéfico como experiência. Podemos comprar quase tudo, excepto a experiência.
De outro modo, como é que eu poderia formar Dore? Apoiei Dore. Deixei-o fazer o filme. Eu dido sem originar qualquer perda de tempo ou despesas supérfluas. Mas importa não
s,abia que a melhor forma de o ajudar era deixá-lo cometer um erro. Agora ele ficou a saber. esquecer que, em princípio, qualquer técnico competente pode executar as tarefas de
E cometendo erros que um jovem vai aprendendo. Penso que não voltará a querer fazer um apoio, enquanto, para exercício das actividades nucleares da arte, só são admitidas
filme como aquele. (Ross, 1969 [1952], p. 220) pessoas dotadas de um talento especial. Os membros do pessoal de apoio não são

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

Às vezes, deparamos com realizadores que nos confrontam logo à primeira com pedidos como:
insubstituíveis. Eles são intercambiáveis. Consequentemente, os artistas que precisam
«Faça-me algo moderno, muito moderno!». Tentamos perceber aquilo que querem dizer e depois
de alguém para um determinado projecto podem fazer a sua escolha entre os vários apercebemo-nos de que, para aquelas pessoas, Tchaikovsky é moderno. É sempre a mesma his-
trabalhadores competentes disponíveis. Todos estes trabalhadores têm o perfil tória. Você sabe, é como aquele produtor que diz: «Preciso de uma coisa arrojada, nova, única,
adequado. tem de ser algo de diferente, como Bela Barstock (sic).»
É :fundamental possuir competências próprias para singrar num sistema de trabalho
independente, mas isso não basta. Os trabalhadores independentes também devem
tecer uma rede de relações, a fim de garantir que o maior número de potenciais em- Somos obrigados a concluir que, quanto mais as tarefas de apoio se apresentam
pregadores conheça as suas capacidades e o seu número de telefone em caso de ne- como indispensáveis para o êxito de um projecto, menos as pessoas que as realizam
cessidade. A reputação facilita as coisas. Se uma pessoa satisfez completamente num deveriam ser intercambiáveis. Contudo, continuam a ser tratadas desse modo. É raro os
dado trabalho, aumentarão as hipóteses de outras pessoas correrem o risco de a em- produtores abandonarem um projecto quando não conseguem a parceria do compositor
pregar e de a recomendar a terceiros. Os compositores mais solicitados de Hollywood que desejavam, mas isto já acontece com maior frequência quando não conseguem
recomendam sistematicamente aos clientes os seus pares menos conhecidos mas nos contratar o actor ou o realizador pretendido. Esforçam-se mais para encontrar um
quais depositam inteira confiança. Uma rede de relações é constituída por um certo substituto para o compositor, do que quando o contabilista ou o segundo electricista
número de pessoas que conhece outras suficientemente bem para lhes entregar em em que pensaram não está disponível (para referir dois dos créditos mais insólitos
mãos uma parte de um projecto. O elemento-chave dessa rede assenta na confiança. citados nos genéricos dos filmes americanos).
Quando iniciei a minha vida profissional como pianista de fim-de-semana, em Chicago, Os diferentes participantes nos sistemas de trabalho independente, isto é, os
nos anos quarenta, um músico mais velho que se dispunha a recomendar-me a-tercei- artistas, os outros responsáveis empregadores e o pessoal de apoio, também podem
ros quis conhecer as minhas aptidões: «Tens a certeza de que és capaz? Porque se não ter motivações alheias à produção da obra propriamente dita. Pauline Kael cita o
cumprires, ficarei em maus lençóis. Aliás, não serei só eu a sofrer as consequências, eloquente exemplo de um director de produção que negociara um contrato de adapta-
isso terá implicações negativas sobre outras três ou quatro pessoas.» (Ele estava a ção para cinema do romance The Group de Mary McCarthy:
recomendar-me a alguém que, por sua vez, me recomendava a outra pessoa, através
de uma cadeia com vários elos [Becker, 1963, p. 107].) Os trabalhadores independen- [O seu] entusiasmo pelo projecto tinha pouco que ver com as qualidades literárias ou com o
potencial dramático da obra da Sr: McCarthy. Devia-se sobretudo à [sic] fabulosa hipótese de
tes elaboram cadeias estáveis que lhes asseguram mais ou menos trabalho regular, contratar por pouco dinheiro um grupo de deslumbrantes desconhecidas [as principais persona-
apoiando-se na confiança e nas recomendações mútuas. gens eram oito estudantes], fazer delas umas vedetas e de as ter à mão para futuras produções ou
Faulkner demonstrou a estabilidade deste sistema para aqueles que acabam por para outras transacções chorudas ( ... ). Dentro de um património composto por oito jovens rapa-
constituir uma elite: menos de 1Opor cento dos compositores de Hollywood escrevem rigas, certamente se encontrariam novas Capucines ou Ursula Andress; com um harém de jovens
beldades presas a um contrato, qualquer produtor-negociante na área do cinema podia ficar mais
46 por cento das partituras dos filmes que utilizam música original, esses filmes são
rico que os maiores proxenetas de todos os tempos. (Existem mesmo realizadores de Hollywood
feitos por menos de 8 por cento dos realizadores e 30 por cento do total dos filmes é que ganham mais dinheiro com os direitos de exclusividade das vedetas que lançaram no mer-
repartido entre os produtores e os compositores mais cotados. Do lado oposto, a esma- cado do que a realizar filmes.) (Kael, 1968, pp. 68-69)
gadora maioria dos produtores e compositores nunca trabalhou em mais de um único
filme. Um dos compositores mais cotados explicava: «O principal objectivo é manter
a máquina a rodar ininterruptamente, conseguir mais e melhor trabalho. Em quantos Quem quiser garantir a colaboração do pessoal de apoio deve captar a sua atenção e
mais projectos nos envolvermos, maior é o número de pessoas que nos conhecem e, suscitar o seu interesse. Em ambos os sistemas, contratação no seio de organizações ou
tenhamos esperança, sabem o que poderemos fazer pelos seus filmes.» trabalho independente, não é o mesmo tipo de atenção que está em jogo. Os assalariados
Os membros do pessoal de apoio provam que são dignos de confiança sempre que de um organismo podem, se o empregador considerar útil, dispensar uma parte da (ou
cumprem adequadamente as tarefas exigidas pelos artistas empregadores. Deparam-se toda a) sua atenção a uma obra pelo tempo que for necessário. É frequente trabalharem
com dificuldades quando o empregador não utiliza uma linguagem técnica suficiente- em vários projectos simultaneamente. Normalmente trabalham durante períodos suces-
mente precisa para descrever aquilo que pretende; ele saberá verificar que o resultado sivos mais curtos e circunscritos a cada projecto. Dedicam toda a sua atenção a um
não é o pretendido, mas não é capaz de dar indicações objectivas. Faulkner descreve projecto que, uma vez concluído, é imediatamente esquecido. Brecht podia ensaiar o
os obstáculos com que se deparam os compositores quando trabalham para produtores Berliner Ensemble durante meses a fio, mas, como mostra o exemplo de John Huston e
que não sabem nada de música e acham que um bom compositor deve compreender do filme Sob a Bandeira da Coragem, os produtores de Hollywood não podem prender
por meias palavras aquilo que os realizadores desejam. Ele cita o testemunho de alguns a atenção das pessoas senão durante o curto período em que estas são efectivamente
compositores: remuneradas. Como os orçamentos são sempre calculados até ao mais ínfimo pormenor,

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Mundos da Arte A Mobilização dos Recursos

as actividades que não estão directamente ligadas ao projecto em curso raramente são como materiais. Uma das modalidades de permuta consistia em atribuir a qualidade
pagas. Pauline Kael procurou descobrir por que é que os filmes atingiam um grau de de «membros» da trupe às pessoas que participavam nos trabalhos, conferindo-lhes
mediocridade tal que nenhuma consideração estritamente comercial podia justificar. o direito de opinarem sobre aquilo que se fazia e de serem financeiramente contem-
A sua investigação em torno do filme The Group deixa entrever dois tipos de explica- pladas com uma percentagem dos eventuais sucessos. Talvez mais importante ainda,
ções. Assim, ela notou com certa perplexidade que nenhuma das pessoas envolvidas «Os actores esperavam do Western Theatre uma oportunidade para ali actuarem» (p. 85)
na realização do filme possuía a mínima informação acerca de Mary McCarthy, a sua e, consequência mais aborrecida, muitas pessoas ofereciam-se para realizarem os tra-
vida ou obra, e que portanto não se podia contar com esses elementos na elaboração balhos técnicos e outras tarefas menos atraentes na simples esperança de agarrarem
do filme. O funcionamento do sistema de trabalho independente dá-nos algumas uma oportunidade de subirem ao palco para representarem. Isto conduzia a dívidas
justificações para esse tipo de lacunas. Os cineastas não podem ter um conhecimento de reconhecimento tais que, «por vezes, o encenador sentia-se na obrigação de aten-
aprofundado de todos os escritores e de todos os assuntos que transportam para o ecrã der a esta expectativa implícita. Infelizmente, alguns péssimos actores acabaram por
no decurso das suas carreiras; o seu tempo é inteiramente dedicado aos pormenores desempenhar pequenos papéis, obrigando a trupe a ter de tomar a penosa decisão de
mais prementes do projecto em curso. Não têm tempo e não seriam recompensados por dissuadir esses participantes de futuras. representações» (p. 88). Ainda por cima, a
isso, mesmo que tivessem disponibilidade para adquirir o tipo de cultura geral que Kael escolha das peças que a trupe podia representar estava condicionada pelo critério de
adquiriu no decurso do seu trabalho. Eles preparam-se para o seu trabalho aprendendo selecção dos actores, ou seja, baseava-se no voluntariado daqueles que se tornavam
exclusivamente a saber como fazer filmes; ela prepara-se para o seu lendo as obras de seus membros: «Como não havia senão três actrizes experientes na trupe, qualquer
Mary McCarthy. O trabalho independente ensina a concentrar toda a atenção naquilo peça que exigisse um elenco maior de interpretações femininas era posta de parte»
que num dado momento é mais premente. (p. 86). Finalmente, também não podiam apresentar peças com um elenco muito
Pauline Kael reparou num erro nos diálogos do filme quando este ainda não estava reduzido de intervenientes; como explicou um dos actores: «Quem gostaria de ser
acabado. Uma das jovens deveria ter afirmado que todos os membros do seu grupo actriz numa trupe onde não havia nada para fazer durante oito semanas? Ninguém
tinham votado em Roosevelt, excepto uma, que se tinha esquecido; pelo contrário, ela gosta disso. Portanto temos de encontrar peças em que todos possam participar.»
afirmou que todos os membros da sua turma tinham votado em Roosevelt, alterando o (p. 86).
sentido daquela frase e consequentemente uma ideia muito importante para o sentido Como vimos, uma grande parte do pessoal de apoio nutriu, ou continua a acalentar,
geral da história. Quando Pauline Kael se apercebeu daquele erro durante o visiona- o sentimento de exercer uma actividade verdadeiramente artística. Seria exagerado dizer
mento do filme, avisou o produtor e o realizador, sugerindo-lhes que o rectificassem que num mundo da arte se é sempre pessoal de apoio de outra pessoa qualquer, e seria
durante a regravação. Ao constatar mais tarde que nada havia sido feito, ela insistiu: falso pretender que todos os participantes se consideram artistas. Mas estas afirmações
peremptórias tocam directamente num ponto muito importante: num mundo da arte,
Cada um deles insistiu que eu devia ter ouvido mal aquela sequência do diálogo. Nenhum deles toda a função pode ser tomada como artística, e tudo aquilo que um artista faz, mesmo
se preocupou em verificar o que eu assinalara, pois, aquando da antestreia para a imprensa, pude o mais incontestado, pode tornar-se uma actividade de apoio para qualquer outro. Além
confirmar que o erro se mantinha. Naquela altura, Lumet [o realizador] estava em Londres,
a fazer outro filme, e Buchman [o produtor] tinha partido para a Côte d'Azur. Pensando que disso, são muitos os domínios artísticos onde não se sabe muito bem quem é o artista
poderia encontrar alguém que não ficasse indiferente àquele erro, fui ter com vários membros da e quem é o pessoal de apoio. Quando Robert Rauschenberg apagou um desenho de
equipa. Após me terem dito por três vezes que se ambos os Sydney [Lumet e Buchman] tinham DeKooning, ou quando Marcel Duchamp desenhou um bigode na Gioconda, foram
feito Helena pronunciar a palavra «turma» era porque assim o queriam. Acabei por ir ter com os autores das obras originais mero pessoal de apoio? Se não o foram, o que é que os
Ralph Rosenblum, o responsável pela montagem do filme. Ele percebeu imediatamente que se diferenciava? Que dizer então daqueles cuja obra entra, sob forma reproduzida, na
tratava de um erro, mas tinha uma série de outros problemas mais importantes para resolver: dada
a ausência de ambos os Sydney, encontrava-se sozinho para contestar os cortes que o National composição das colagens de outro artista qualquer?
Catholic Office for Motion Pictures [... ] exigia. (Kael, 1968, pp. 96-97) John Cage disse que a música era a avaliação moral do som. Podemos generalizar
a sua observação: quando falamos de arte, fazemos uma avaliação moral do valor
relativo das várias contribuições para uma determinada obra. Não é de surpreender
Aqui o princípio funciona ao contrário. Como ninguém exigia aos trabalhadores que muitos intervenientes se destaquem conferindo maior valor à sua contribuição
independentes que prestassem atenção àquele detalhe, eles tinham-no negligenciado. pessoal do que à do artista. (Atente-se ao ponto de vista do responsável pela mon-
E se os artistas não tiverem dinheiro? Mesmo numa economia monetária, é pos- tagem de um filme em Rosenblum e Karen, 1980, pp. 230-31.) Se nos mantivermos
sível sobreviver com pouco dinheiro, apesar de todos os constrangimentos que isso neutrais face a esta questão, talvez seja dificil aceitar a ideia de que a «interferência»
implica. Uma pequena trupe de teatro que foi objecto de um estudo feito por Lyon de alguns participantes na produção de uma obra de arte signifique necessariamente
(197 4) subsistia essencialmente das permutas que realizava, tanto de recursos humanos que a obra é menos valiosa em termos artísticos; talvez a obra em questão necessitasse

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Mundos da Arte

precisamente desse tipo de intervenção. Vimos que os críticos apreciaram favora-


velmente o filme Sob a Bandeira da Coragem apesar da brutal ingerência de outras
pessoas no trabalho do realizador. De modo idêntico, os compositores entrevistados
por Faulkner queixavam-se da forma como os realizadores e os produtores desfigura-
vam as suas músicas e as suas ideias. Mas a música não constitui o aspecto essencial
de um filme; deve ficar subordinada às imagens (pelo menos nos filmes de ficção,
inclusivamente nos menos convencionais).
Recapitulemos: os artistas utilizam recursos materiais e humanos. Escolhem-nos
tendo em conta a oferta de recursos correspondente e constitutiva desse mundo da arte.
A natureza e o conteúdo dessa oferta varia segundo os mundos da arte. As estruturas
económicas características de uma dada sociedade determinam em larga medida os
materiais que os artistas poderão usar para o seu trabalho e as pessoas que têm dispo- 4
níveis para trabalhar com eles. O grau de concentração monopolista da produção de
determinados bens, a rendibilidade dos mercados minoritários e as necessidades dos A DISTRIBUIÇÃO DAS OBRAS DE ARTE
artistas, no que ao material especialmente concebido e fabricado para eles diz respei-
to, são dados que têm uma influência decisiva sobre a disponibilidade dos recursos
e, consequentemente, sobre aquilo que os artistas podem fazer. Do mesmo modo, os
organismos através dos quais o pessoal de apoio encontra os projectos onde trabalha _dão Os artistas profissionais margi11alizados ( .. .) debatem~se com uma dificuldade terrível. À medida
que os anos vão passando, o seu ateliê fica cada vez mais atravancado com pinturas que ninguém
origem a preocupações corporativas e a ambições profissionais que podem contrariar
quer compra,; testemunhos ostensivos que insistem diariamente em lembrá-los da incapacidade
as intenções dos artistas que os empregam. de obterem (ou readquirirem) o reconhecimento do seu trabalho ( ...) alguns chegam a desesperar
Nas suas previsões, os artistas têm em consideração as características e as por nunca terem alcançado nenhum sucesso, ai11da que modesto, ou por 11ão encontrarem 11111 novo
condições de obtenção dos bens e das pessoas disponíveis, e essas considerações estilo tão vendível como o precedente, e abandonam a pintura. Tal como 11111 artista afirmou a este
têm um grande peso na adopção de uma estratégia para a execução do projecto. respeito: «Quando não se conseguem vender as pi11t11ras e se co11tinua a produzi!; experime11ta-se
Os recursos disponíveis permitem realizar determinadas coisas, que surgem como fatalme11te 11111 sentimento de ra11cor, a 111e11os que se seja uma pessoa muito forte, e a maior parte
dos artistas 11ão é.»
mais ou menos fáceis. A estrutura da oferta reflecte sempre o funcionamento de um
LEVINE, 1972, pp. 306-7
determinado tipo de organização social e torna-se um dos componentes do sistema de
constrangimentos e de possibilidades que governa a produção artística.

Após a conclusão de uma obra, os artistas precisam de a difundir, de encontrar


um mecanismo de distribuição que a torne acessível às pessoas susceptíveis de a
apreciarem e que, simultaneamente, lhes reembolsem o esforço, dinheiro e materiais
investidos e lhes forneçam os meios materiais que permítam realizar mais obras. Um
artista pode trabalhar à margem de qualquer tipo de distribuição. Muitas obras, uma
vez acabadas, nunca foram tornadas públicas pelos seus autores ou foram totalmente
negligenciadas pelo público ao qual se dirigiam. Muitos artistas, talvez a maioria, não
conseguem ganhar dinheiro suficiente com as suas obras, de modo a poderem dedicar-
-se exclusivamente a esse tipo de trabalho.
Contudo, os mundos da arte plenamente desenvolvidos criam sistemas de distri-
buição que integram os artistas na economia da sua sociedade. Põem as obras à
disposição dos públicos que as apreciam e que estão preparados para as comprar a um
preço que permita aos artistas continuar o seu trabalho. Esses sistemas de distribuição,
tal como outras actividades de cooperação inerentes a um mundo da arte, podem ser
controlados pelos próprios artistas. Mas, geralménte, quem deles se ocupa deles são

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

intermediários especializados que, por vezes, obedecem a interesses diferentes dos italiana do século XVII. No mundo da poesia contemporânea, os criadores contam
interesses dos artistas de quem divulgam as obras. Como estão por dentro do negócio, consigo próprios, mas podem beneficiar de ajudas públicas ou privadas. Deste modo,
procuram racionalizar uma produção «criativa» relativamente flutuante e caprichosa os artistas podem escolher o sistema de distribuição que lhes pareça mais vantajoso
(Hirsch, 1972): os marchands têm de ter obras para expor nas suas galerias, e os direc- ou menos constrangedor.
tores dos teatros precisam de espectáculos para preencherem os seus programas. Eles A distribuição tem uma enorme incidência sobre a reputação. Aquilo que não
precisam disso, mesmo que os artistas não queiram produzir o género de obras que é distribuído não é conhecido e, portanto, nunca poderá gozar de qualquer tipo de
mais parecem corresponder à procura, ou criem outras menos adaptadas ao sistema. consideração nem adquirir a mínima importância histórica. É um círculo vicioso,
Os distribuidores querem disciplinar uma actividade desordenada, com o intuito de pois aquilo que não tem reputação não é distribuído. Quando abordarmos a questão
garantir a estabilidade dos seus negócios e de criar também as condições favoráveis do valor artístico, teremos de ter portanto em consideração o modo como os sistemas
a uma produção regular. Isso condu-los frequentemente a interessarem-se pelas obras de distribuição, e os preconceitos profissionais que os veiculam, modificam a ideia
por motivos completamente alheios ao seu valor artístico, seja qual for o modo de daquilo que poderá ser incluído ou excluído dessas categorias.
apreciação (Moulin, 1967).
Como a maioria dos artistas aspira aos beneficias da difusão, trabalham sem nun-
ca perder de vista aquilo que o sistema de distribuição característico do seu mundo O AUTOFINANCIAMENTO
pode aceitar. Que género de obras é que ele pode difundir? Quais são as obras que
o sistema ignora? O que é permitido esperar em troca e por que tipo de obras? Con- Em muitos mundos da arte, nomeadamente na poesia e na fotografia contemporâ-
soante os sistemas de distribuição, existem diferentes categorias de intermediários que neas, os lucros do trabalho artístico são tão diminutos que a maioria dos praticantes
fazem circular as obras e o dinheiro entre os artistas e o público, e elos mais ou menos recorre ao sistema do autofinanciamento. Os artistas com menores recursos financeiros
directos de comunicação e de influência que se estabelec_em entre os produtores e os não podem realizar um trabalho que exija equipamento, material, pessoal ou espaços
consumidores dessas obras. As obras de arte trazem sempre a marca do sistema que excessivamente onerosos. Disciplinas artísticas como a poesia e a fotografia, que não
lhes assegura a distribuição, mas em graus diversos. Quando os artistas não vivem da exigem senão um investimento relativamente baixo, atraem muitos praticantes. Ora,
actividade artística, a influência do sistema de distribuição é mínima. Quando trabalham quanto maior for o número de praticantes, maiores são as dificuldades com que se depa-
expressamente para um cliente, essa influência atinge um máximo. Quando os artistas ram para financiar uma actividade artística a tempo inteiro através dos ganhos realizados
realizam obras sem conhecerem previamente o seu público, a influência exerce-se com a venda das suas obras. A maioria dos artistas que escolhem essas disciplinas pro-
por meio dos constrangimentos impostos pelos intermediários, dado um sistema de cura meios de subsistência periféricos ou alheios à criação artística propriamente dita.
distribuição necessariamente mais complexo. Essa influência toma-se mais vincada Alguns partilham a sua vida com alguém que ganha dinheiro suficiente ou é possuidor
sempre que os distribuidores tecem ideias pessoais sobre a forma que as obras de arte de uma fortuna capaz de colmatar as necessidades de sobrevivência. Outros herdaram
deverão assumir, ou quando não conhecem suficientemente as convenções da arte ou ganharam dinheiro suficiente que lhes permite dedicarem-se livremente à sua arte.
que permitem exprimir preferências ou exigências que parecem legítimas aos artistas. Outros ainda conseguem um emprego graças à posição social ou ao grau de formação.
Em contrapartida, os artistas aceitam voluntariamente como parceiros aqueles clientes É assim que muitos poetas financiam o seu trabalho criativo. T. S. Eliot foi emprega-
ou intermediários que demonstram possuir esses conhecimentos. do bancário antes de trabalhar numa editora. Wallace Stevens era consultor jurídico
Nesse sentido, são obras de arte aquelas que acabam por se conformar às possibi- numa companhia de seguros e William Carlos Williams exercia medicina. Os artistas
lidades do sistema de distribuição porque, na maior parte dos casos, aquelas que não também podem ter um oficio de subsistência no próprio mundo da arte. Os pintores
se lhe adaptam não são difundidas. Dado que a maioria dos artistas deseja difundir as podem ser fabricantes de telas, os compositores podem fazer orquestrações e os escritores e
suas obras, abstém-se de realizar um trabalho incompatível com o sistema. Mas, ape- poetas podem ser editores. Habitualmente, leccionam a sua arte numa escola, universidade,
sar de trabalharem sem perderem ~sses elementos de vista, isso não significa que lhes instituto ou dão aulas particulares.
sejam completamente submissos. Os sistemas evoluem e adaptam-se aos artistas, tal Será que essas ocupações deixam suficiente tempo livre para um verdadeiro trabalho
como estes evoluem e se adaptam aos sistemas. Além disso, os artistas podem retirar-se artístico? Os artistas queixam-se frequentemente dos efeitos nefastos das suas «acti-
de um sistema existente e criar outro, ou pelo menos podem tentar fazê-lo. Também vidades diurnas» (a expressão é comum nas artes performativas, onde a «actividade
podem renunciar a todas as vantagens da distribuição. De um modo geral, os mundos artística» ocorre geralmente à noite) sobre o seu trabalho. Elas consomem uma grande
da arte possuem vários sistemas de distribuição que funcionam simultaneamente. parte do seu tempo, ou então estão de tal modo ligadas à sua arte que interferem nega-
No mundo da pintura contemporânea, o sistema dos marchands-galeristas coexiste tivamente com o trabalho da criação artística de obras originais. É por isso que muitas
com o mecenato e a encomenda directa, e o mesmo se passava no mundo da pintura vezes os fotógrafos que fazem um trabalho comercial se queixam dessa influência

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

sobre a sua obra pessoal; adquirem vícios dos quais têm dificuldade em se libertar. trabalhos artísticos. Elas tiveram de demonstrar a sua seriedade por meios alheios aos
Os artistas podem preferir trabalhar como professores ou exercer uma profissão liberal, da pintura. Algumas arranjaram trabalho como professoras em escolas ou departamen-
porque isso permite-lhes gerir melhor o seu tempo. Também podem optar por exercer tos de arte das universidades locais, apenas com o intuito de adquirirem uma certa
actividades de menor prestígio e intelectualmente menos exigentes, ainda que lhes respeitabilidade, como uma delas explicou a Michal McCall:
deixem pouco tempo livre e sejam fisicamente mais penosas.
Os artistas que financiam as suas próprias obras não são obrigados a submeterem- Ela está casada com um homem muito rico, que está muito feliz com o facto de apoiar financeira-
-se aos sistemas dominantes de distribuição característicos da sua disciplina. Não têm mente o seu «passatempo». Mas ela aspira à independência material - pelo menos relativamente
necessidade de difundir as suas obras, só pela contrapartida pecuniária. Se estiverem ao seu trabalho artístico. Diz que nunca se poderá considerar plenamente uma pessoa adulta
senão sob essa condição. É necessária uma verdadeira tenacidade para realizar um trabalho sério
suficientemente isolados ou afastados do mundo da arte, essa situação parecer-lhes- quando não se possui independência material. (McCall, 1978, p. 307)
-á mais libertadora do que frustrante. A partir do momento em que não precisam de
produzir sob os condicionalismos da distribuição, podem esquecer as exigências do
sistema e realizar obras pequenas ou grandes, longas ou curtas, claras ou ininteligíveis, McCall observa que «vender arte é uma das soluções para este problema. Não
executáveis ou inexequíveis, pois estão protegidos contra os constrangimentos de um só permite obter lucros, como também constitui uma possibilidade para provar a si e
sistema de distribuição rígido, incapaz de integrar obras que transcendem as normas. aos outros que a arte é um oficio e não uma mera ocupação.» Outra pintora, que não
(Esta possibilidade encontra a sua maior expressão no caso dos artistas mavericks e leccionava, disse-lhe:
naifa, dos quais falaremos mais à frente.)
A maioria dos artistas mantém laços suficientemente fortes com o mundo da arte por- É impossível subsistir com as vendas que fazemos em St. Louis. Mas eu gostava de vender
que necessita do sistema de distribuição para fazer chegar as suas obras junto do público algumas obras. Uma espécie de prova de que sou uma artista. Então, poderia afirmar que ganhara
ou como meio de garantir a sobrevivência económica. Alguns recorrem aos canais de dinheiro cada vez que o meu marido me aborrecesse. Eu não tinha a intenção de vender fosse
o que fosse, mas agora que tenho uma série de desenhos, comecei a pensar em vender alguns
distribuição existentes e que, normalmente, são utilizados por aqueles que vivem da sua (... ). (McCall, 1978, p. 307)
produção artística. As suas obras são publicadas, expostas ou executadas nos mesmos locais
e através dos mesmos circuitos utilizados pelos profissionais. Não diferem dos profissionais
senão pela vantagem de poderem ignorar os constrangimentos do sistema quando estes lhes Estas mulheres querem, entre outras coisas, diferenciar-se do mundo dos «pintores
desagradam. É por isso que o autofinanciamento constitui a fórmula que permite maior de quadros» (como McCall o designa), que pintam à margem dos circuitos oficiais ou
liberdade aos artistas. Por mais reduzida que seja a oferta de recursos, eles podem sempre a despeito das ideologias e das estéticas em vigor no mundo da pintura. Um pintor de
criar o seu próprio sistema de distribuição. É frequente os artistas plásticos fundarem ga- quadros é alguém que se gaba, por exemplo, de executar muito rapidamente as pinturas,
lerias cooperativas, onde partilham os lucros e assumem uma grande parte do trabalho de e de realizar várias ao mesmo tempo:
gestão e de promoção em troca da possibilidade de exporem as suas obras com regularidade.
Os cantores e os músicos que ainda não atraíram as atenções dos organizadores de con- Eu começo por aplicar uma aguada em todas as telas. Depois, executo todos os planos de fundo.
certos e das editoras discográficas realizam :frequentemente recitais ou concertos por E finalmente, passo mais ou menos duas horas à volta de cada quadro a executar os detalhes e
conta própria. o primeiro plano. (McCall, 1977, p. 38)
Quando um sistema de distribuição instituído rejeita muitos dos artistas desejosos
de nele participar, alguém pode organizar uma alternativa paralela que contemple essas Sobretudo, os pintores de quadros mostram e vendem os seus quadros em exposições
obras. Foi assim que, na década de 1860, surgiu o Sa/on des Refusés em Paris, para organizadas pelas sociedades de artistas amadores das quais fazem parte e também
expor as pinturas rejeitadas pelo júri do Salon «oficial»; o mesmo se passa quando competem entre si nos concursos que elas promovem:
as obras recusadas por determinadas editoras são publicadas por outras, a expensas
dos próprios escritores. Mas estes exemplos lembram-nos também que a participação Cada um traz uma pintura. Existe um tema, por exemplo, uma paisagem de neve em Janeiro
no sistema de distribuição oficial é um dos índices que permite a um mundo da arte ou as flores durante a Primavera. Cada um deverá fazer uma pintura sobre aquele tema. Depois
reunimo-nos para as avaliar. Todos votam e ganha-se um determinado número de pontos se
diferenciar os verdadeiros artistas dos amadores. Às pessoas que recorrem, por um formos escolhidos. (McCall, 1977, p. 39)
motivo ou outro, a sistemas paralelos arriscam-se a serem definitivamente classificadas
como meros amadores.
Michal McCall (1977, 1978) realizou um estudo sobre as pintoras de Saint Louis, Os pintores de quadros podem produzir obras em nada inferiores às dos profissionais
um mundo da arte provinciano, onde era muito dificil estabelecer o respeito pelos seus (Michal McCall não aborda essa questão, e não se trata de admitir apriori um tal juízo),

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

mas expõem em condições que os membros de um mundo da arte «sério» associam satisfaz os mecenas depende unicamente dos seus gostos e juízo pessoal, embora
ao amadorismo e que, portanto, não podem aceitar. (Existe aqui um certo paralelismo os juízos dos outros os possam influenciar também. Se um número suficiente de
com o que se passa nos clubes de fotógrafos amadores, descrito no capítulo 10.) pessoas considerar que o artista não é merecedor de apoio, o mecenas poderá cortar
Portanto, o autofinanciamento resolve certos problemas (não todos) inerentes aos o subsídio. Mas não necessariamente. Os mecenas mais obstinados e seguros dos
sistt:;mas de distribuição de um mundo da arte. Não é obrigatório recorrer a esse sistema seus juízos ignoram com frequência os críticos, tendo já financiado muitas obras
para financiar o trabalho se a disciplina escolhida não exigir grandes despesas, se os inovadoras e controversas. Em qualquer dos casos, os mecenas mais poderosos a
recursos para cobrir as despesas forem suficientes, mesmo quando estas são elevadas, nível político, financeiro ou social controlam frequentemente a oportunidade de
ou se for possível obter aquilo de que se necessita através de permutas. Contudo, exibição ou de interpretação das obras que financiam. Nesse sentido, contribuem
poderá haver uma forte vontade de dar a conhecer o trabalho a um público adequado. para moldar o gosto dos outros.
Se o melhor, ou o único, meio de atingir o público consistir em recorrer ao sistema Nas sociedades estratificadas onde se pratica o mecenato, existe uma relação
de distribuição oficial, então será necessário alinhar com esse sistema ou imaginar complexa entre a riqueza, o conhecimento, o gosto, os sistemas de apoio financeiro
outra forma de atingir o mesmo objectivo mesmo renunciando à apreciação desse aos artistas e as características das obras produzidas. Os mecenas esperam dos artis-
público. Por vezes os artistas evitam deliberadamente os públicos que só os meios tas que concebam obras que correspondam às belas-artes que aprenderam a apreciar
convencionais de difusão permitem atingir, porque esses públicos esperam do e a valorizar. Portanto, o modo como os mecenas são educados determina em grande
sistema que lhes apresente precisamente as obras que preferem e que já sabem medida aquilo que financiam. A capacidade de projectarem os melhores artistas e de
apreciar. Não se interessam pelas obras diferentes, aquelas que o sistema não encomendarem as melhores obras demonstra a nobreza de espírito e de carácter que
consider!l. os poderosos e abastados pensam que têm, de modo que um bom mecenas se encontra
sempre, implicitamente, numa posição de topo.
Essas correlações, que Francis Haskell ( 1963) estudou e pôs em evidência no mundo
O MECENATO da pintura italiana do século XVII, clarificam as constantes e os limites gerais do sistema
de mecenato. Durante esse período, os principais mecenas foram os sucessivos papas,
Num sistema de mecenato, uma pessoa ou um organismo paga integralmente o os cardeais que eles nomeavam (frequentemente parentes próximos, de tal modo que
trabalho de um artista durante o período em que ele está envolvido na realização das poderíamos falar de um mecenato familiar) e as ordens religiosas. Os mecenas enco-
obras encomendadas, ou um número preciso de obras, ou simplesmente algumas obras. mendavam obras destinadas a glorificar ou a exaltar os méritos dos grupos que repre-
As pessoas que concedem esse apoio financeiro aos artistas provêm das camadas mais sentavam. Tratava-se de decorar as igrejas - os tectos ou as paredes de uma capela, ou
abastadas da sociedade. Tiveram tempo para adquirir um sólido conhecimento das até todo o interior de uma igreja (a encomenda mais importante foi, talvez, a decoração
complicadas convenções que regem a grande arte, e essa cultura autoriza-os a contro- da basílica de São Pedro de Roma) - ou de financiar a construção e a ornamentação
larem pormenorizadamente, se assim o desejarem, o trabalho artístico que financiam. escultórica de uma nova igreja. Os mecenas desempenhavam frequentemente um papel
O mecenas pode ser um governo que encomenda pinturas ou esculturas para determinados activo na concepção da obra, indicando temas e elementos de composição de acordo
lugares públicos, ou que, em certas ocasiões, atribui um salário regular a um artista pelos com as convenções artísticas da época, tendo em vista futuros objectivos políticos ou
seus serviços, como acontece com os poetas laureados. O mecenas pode. ser uma Igreja. ambições familiares. Por isso, quando o papa Urbano VIII encomendou a Bernini uma
A partir do Renascimento, papas, cardeais e representantes de diversas ordens religiosas obra monumental para a basílica de São Pedro, ele
italianas começaram a conceder apoio financeiro a artistas aos quais encomendavam
pinturas e esculturas da maior importância como, por exemplo, a decoração integral deve ter intervindo pessoalmente na elaboração do repertório iconográfico: velou certamente
para que aquele lhe ficasse .associado. As abelhas do brasão dos Barberini [o nome do papa tinha
de igrejas. Existem Igrejas que ainda praticam o mecenato, embora hoje em dia sejam sido Maffeo Barberini] sobem pelas colunas e ficam pendentes na comija sobre folhas de bronze.
frequentemente substituídas nesse papel pelas empresas, que encomendam obras para O sol dos Barberini resplandece sobre os capitéis luxuriantes. Se tivermos alguns conhecimentos
decorar, por exemplo, a sua sede social, ou para apresentá-las ao público e melhorar assim rudimentares de botânica, reconhecemos imediatamente as folhas de loureiro, outro emblema dos
a sua imagem (Haacke, 1976, 1978). As pessoas mais abastadas continuam a encomendar Barberini, sobre as colunas, em vez das tradicionais parras de videira. Daí em diante, a história
obras para as suas colecções particulares, ou para as doar a determinadas instituições. da família iria estar indissoluvelmente ligada à história da basílica. (Haskell, 1963, p. 35)
Alguns chegam mesmo a atribuir pensões a artistas sem nada pedir em troca.
O artista que tem um mecenas não tem outra obrigação senão satisfazer esse Urbano VIII era o mecenas ideal. Pagava bem e atempadamente, ao contrário
mecenas. Os acordos de mecenato podem ser absolutamente privados, embora a dos outros mecenas. Este homem culto, familiarizado com a linguagem sabiamente
obra financiada possa ser publicada, exposta ou profusamente difundida. Aquilo que codificada da pintura do seu tempo, podia participar na elaboração de um vocabulário

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

ornamental capaz de exaltar os temas religiosos mais precisos, sem deixar de contemplar o camponês que dá feno aos cavalos; o ferreiro. Homens no seu quotidiano de lazer: que bebem
simultaneamente as significações profanas, políticas e dinásticas, através de subtis jogos junto à estalagem mas sem se apearem do cavalo para não perderem tempo; que dançam a tarantela
perante espectadores atentos; que jogam à 11101m numa velha gruta; pessoas vestidas com fatos
iconográficos. Um bom mecenas também tinha o poder de proporcionar aos pintores brilhantes para a festa do Carnaval. Ou então, uma brusca intrusão de violência, com um mag-
os locais de eleição para trabalhar: as igrejas mais importantes e as suas partes mais nífico bandido de pistola na mão - trajando um chapéu com penas cuja cor intensa vibra contra
importantes, onde todos poderiam observar as obras. Isto proporcionava aos artistas um céu tempestuoso - a cavalgar por uma quinta adentro e aterrorizando o moço de estrebaria
escolhidos urna grande notoriedade e a posterior possibilidade de se libertarem da e o seu cão. (Haskell, 1963, p. 132)
tutela dos mecenas mais incómodos ou dificeis. Com efeito, um artista que gozasse de
urna boa reputação podia contar com que outros o desejassem convidar para decorar os Os pintores que se dedicavam a este estilo popular não usufruíam dos favores
seus palácios ou igrejas. As famílias e as comunidades religiosas disputavam entre si dos mecenas nobres, mais conservadores ou presos às tradições. Mas estes mecenas
os serviços de Bemini, e ele pôde realizar obras nos locais mais espectaculares .. tomavam-se cada vez mais raros e contribuíam cada vez menos para o financiamento
Para pagar bem e sem atrasos, um mecenas tinha de possuir urna fortuna pessoal ou da produção pictórica; assim, as pinturas fundadas no seu saber e cultura de classe
a possibilidade de ter acesso às riquezas da Igreja. Os papas foram grandes mecenas, atraíam cada vez menos os pintores talentosos. ·
que juntavam frequentemente as suas riquezas pessoais à do Vaticano, podendo assim Resumindo, um sistema de mecenato instaura urna relação directa entre aquilo que os
continuar a gastar mesmo quando a situação económica em Roma se degradou. Claro mecenas querem ou podem compreender e o que os artistas realizam. O mecenas paga e
que quando um papa morria e era substituído por um membro de outra família, os não decide cada toque ou pincelada, mas antes o género e os ternas que lhe interessam.
seus herdeiros perdiam geralmente os beneficias eclesiásticos e, portanto, perdiam a Escolhe artistas que lhe possam dar aquilo que deseja. Num sistema de mecenato que
capacidade de pagar tão bem e atempadamente. funciona bem, os artistas e os mecenas aderem a convenções e a urna estética comum,
Para medir a importância do gosto e da cultura dos mecenas, basta observar o graças às quais podem cooperar na produção de urna obra: o mecenato através do
comportamento daqueles que não possuíam nem um nem outra e deixavam de agir apoio financeiro e das directrizes, enquanto o artista contribui com a criatividade e o
com os pintores segundo as convenções em uso. À medida que a riqueza e o poder trabalho de execução.
dos Estados pontificais foi declinando, os negociantes mais prósperos começaram a O exemplo italiano dá-nos pontos de comparação para os sistemas de mecenato de
chamar a si as prerrogativas do mecenato: «Na verdade, o mecenato era considerado diferentes sociedades. Muitas vezes, as classes mais abastadas não partilham um sistema
um atributo essencial da condição aristocrática e muito frequentemente não tinha nada de valores e de tradições comuns comparável ao que subentendia o barroco italiano.
que ver com um interesse ou urna sensibilidade artística verdadeiros» (Haskell, 1963, Podem afirmar a sua «nobreza» concedendo um apoio financeiro aos artistas, mas não
pp. 247-48). Mas estes nouveaux riches não eram idênticos aos antigos mecenas. podem cooperar na produção de obras que justifiquem e exaltem a sua condição social.
Estranhos à tradição cultural dos seus predecessores, não queriam quadros inspirados O mecenas de Marcel Ducharnp financiou a produção de urna série de objectos esotéricos
na mitologia ou na simbologia religiosa complexa que a sua educação não os tinha que não exaltavam de modo algum a sua condição social. Entretanto, isso fê-lo entrar num
preparado para apreciar. Preferiam os quadros cuja temática se inspirava na vida quo- mundo da arte contemporânea extremamente vedado aos não iniciados, dando-lhe uma
tidiana. Haskell observa que: posição, ou pelo menos urna função, num mundo onde a hierarquia não tinha qualquer
relação com a do resto da sociedade, baseando-se acima de tudo nos gostos comuns dos.
um desejo comum pelos aspectos mais pitorescos da «realidade» na arte aproximou os amadores praticantes da arte, e talvez apenas numa pequena faixa de entre eles. Os Rockefeller e
não iniciados de várias e diferentes civilizações e foi realmente satisfeito por um leque de artistas os Guggenheirn utilizam os seus recursos financeiros e a sua posição social para erigirem
que ia do sublime ao execrável. (Haskell, 1963, p. 132)
monumentos à sua glória, sob a forma de museus de primeiro plano, acolhedores da arte
contemporânea de vanguarda. Ora, a arte apresentada nesses museus encarna a ideologia
Não é necessário ter-se recebido urna formação específica para contemplar quadros dos movimentos artísticos contemporâneos, e é manifestando um conhecimento muito
realistas de factos quotidianos, porque eles apelam a conhecimentos que, numa dada apurado dos mistérios dessa arte que os mecenas podem afirmar a sua posição nesse
sociedade, todos possuem. É possível admirar a mestria com que esses factos foram mundo. (É bom lembrar que na Itália do período barroco eram, ao contrário, os pintores
evocados, a exactidão e a fidedignidade da representação. Em vez das pinturas sobre que aprendiam a conhecer as ideias, a simbologia e a estética daqueles que ocupavam o
o Destino, as Virtudes, os dignitários da Igreja ou os anjinhos, os novos mecenas pre- topo da hierarquia social e detinham os meios para o apoio financeiro.)
feriam quadros que representassem: O mecenato apresenta-se de forma diferente para as artes do espectáculo, onde os
custos de funcionamento dos organismos contemporâneos (orquestras, óperas, teatros e
homens a trabalhar: o padeiro a bater a massa; o aguadeiro fora dos muros da vila; o companhias de dança) são tão elevados que nenhum mecenas tem a capacidade para os
comerciante de tabaco que enche os cachimbos dos soldados durante as suas pausas; assumir sozinho. Consequentemente, as pessoas que poderiam sustentar individualmente

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

os pintores ou os escritores colaboram para apoiar esses organismos, e a coordenação da sua em função de uma estratégia de relações públicas e de imagem de marca, e por isso são
acção comum exige o estabelecimento de todo um dispositivo de conselhos e de comissões bastante mais conformistas, destinadas a impressionar favoravelmente o maior número
destinado a recrutar os fundos necessários. Os mecenas dessas grandes empresas culturais possível de pessoas. Haacke cita as reflexões de alguns decisores, bastante reveladoras
dão dinheiro suficiente para assegurar a manutenção de uma oferta contínua de manifesta- do estado de espírito que preside às relações entre arte e negócio:
ções, bem como a preparação de novos espectáculos. Isto não lhes fornece nenhum objecto
de colecção que possa testemunhar o seu gosto ou interesse pelas artes, mas os seus nomes O prazer e a satisfação que retiro da arte é sobretudo estético e não intelectual.
Não me interesso verdadeiramente por aquilo que o artista pretende transmitir; não é um acto
figuram nos programas: às vezes são agraciados por terem financiado um novo espectáculo intelectual, é aquilo que eu sinto.
(por exemplo, uma ópera ou um bailado) e retiram daí um certo prestígio. NELSON ROCKEFELLER
Hoje em dia, portanto, os particulares estão em posição de se tomarem esses modelos
de generosidade iluminada que Francis Haskell identifica com o mecenato ideal. Eles
têm dinheiro, e a maioria é bem informada quanto baste nos domínios da arte contem- Mas o mais significativo no mundo dos negócios é o reconhecimento cada vez maior de que as
artes não constituem um fenómeno isolado, de que têm uma relação com todos os aspectos da
porânea para despender esse dinheiro de bom grado. Contudo, nem sempre dispõem vida, incluindo os negócios - de que são, de facto, essenciais para os negócios.
das infra-estruturas que permitem garantir a maior repercussão pública à apresentação FRANK STANTON
das obras, a menos que sejam, como um bom número dos maiores coleccionadores de
arte moderna, os principais responsáveis ou doadores de museus importantes. Certos
coleccionadores, como Solomon e Peggy Guggenheim, Gertrude Whitney e Joseph O apoio que a EXXON concede às artes funciona como um lubrificante social.
E se queremos que os negócios prossigam nas grandes cidades, é necessário um ambiente
Hirshhom, criaram inclusivamente museus com os seus nomes. (Joseph Hirshhom, que lubrificado.
consagrou certamente enormes somas de dinheiro à arte contemporânea, fê-lo de um ROBERT K.!NGSLEY,
modo que suscita dúvidas sobre a profundidade da sua adesão aos desafios estéticos Departamento de Relações Públicas da EXXON Corporation
dessa arte; ele era capaz de comprar todo o conteúdo do ateliê de um artista onde não (citadoemHaacke, 1976,pp.116, 117e 120)
estivera mais de vinte minutos.)
Por seu lado, o mecenato de Estado oferece a possibilidade de expor as obras nos
locais mais prestigiados ou mais frequentados. Quando as administrações públicas Quando os mecenas contemporâneos proferem este tipo de observações sobre a
encomendam obras, comemorativas ou não, destinadas a espaços públicos, constitui- arte, entram quase sempre em conflito com os artistas e com outros participantes dos
-se um sistema de apoio com o qual os artistas podem, por vezes, contar. Mas ele é mundos da arte contemporânea que são politicamente mais progressistas e têm uma
aleatório, porque a arte não faz parte das despesas públicas prioritárias. Por outro ideia muito diferente das relações entre o Estado, os negócios e as artes. Num inqué-
lado, os funcionários têm geralmente contas a prestar aos seus superiores, que nem rito feito aos visitantes de uma galeria de vanguarda em Nova Iorque, Haacke pôde
sempre têm um gosto apurado, ou então precisam de agradar a um público pouco constatar que estes se situavam politicamente mais à esquerda e se manifestavam mais
conhecedor. Por todos estes motivos, as encomendas oficiais dirigem-se preferen- audazes nas suas preferências do que os responsáveis dos principais programas de
cialmente aos artistas mais representativos dos valores e dos estilos consagrados (ver apoio financeiro à arte pública. Em média, 70 por cento das pessoas frequentadoras
Moulin, 1967, pp. 265-84). Como resultado, as obras definidas como politicamente das galerias americanas de arte contemporânea tinham um interesse profissional pela
radicais, obscenas, sacrílegas, ou distantes dos critérios convencionais da arte, não arte. Setenta e seis por cento achavam que os artistas e o pessoal dos museus deveriam
são contempladas com as ajudas públicas em nenhum país. estar representados nos conselhos de administração dos museus (ideia que desagradava
Apesar desses constrangimentos, são muitas as obras contemporâneas de grande fortemente aos ditos conselhos). Setenta e quatro por cento tinham apoiado a candi-
importância que devem a sua existência à iniciativa governamental. Nestes casos, os datura de McGovem (democrata, que concorria contra Nixon) às eleições presidenciais
funcionários «iluminados», no sentido atribuído por Haskell, que assimilaram perfei- de 1972. Sessenta e sete por cento achavam que os interesses das companhias comer-
tamente as convenções e a estética do mundo da pintura e da escultura contemporâneas ciais eram incompatíveis com o interesse público. Sessenta e seis por cento auferiam
controlam o funcionamento das burocracias que facultam os fundos públicos afectos um rendimento anual inferior a 20 000 dólares, e 81 por cento achavam que a política
à arte. Eles servem de barreira entre os artistas e certas pressões políticas, mas não fiscal americana favorecia os mais ricos. Quinze por cento pensavam que todos os
impedem todas. André Malraux foi um desses funcionários iluminados quando assumiu museus nova-iorquinos aceitavam expor obras críticas face ao Governo americano de
o cargo de ministro da cultura. então. Quarenta e nove por cento afirmavam possuir uma sensibilidade progressista e
As coisas não são muito diferentes no mecenato das empresas, mesmo se, como 19 por cento situavam-se resolutamente à direita (Haacke, 1976, pp. 14-36). Resumindo,
demonstrou Hans Haacke (1976, 1978), aqui as escolhas são assumidas e realizadas o público da arte contemporânea estava convencido de que os trabalhos que mais lhe

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

interessavam eram controlados por pessoas que possuíam opiniões diametralmente de comercialização existentes prestam consideráveis serviços a determinados artis-
opostas às suas, no que à arte dizia respeito. tas, concedendo-lhes apoio, contacto com um público conhecedor e as ocasiões de
O mecenato de Estado, que será abordado rµais à frente, varia em função do regime apresentarem as suas obras em boas condições. Apresentam menores vantagens para
político em vigor. Para já, limitar-me-ei a sublinhar que o Governo pode ter o mono- os artistas cujas obras não se enquadram muito bem no sistema e são absolutamente
pólio dos meios de produção e de distribuição da arte. Nesse caso, o Estado deixa de desfavoráveis para aqueles cujas obras não se enquadram de modo algum.
ser simplesmente uma das fontes de financiamento possíveis e passa a ser a única: Em certos sistemas, um empreendedor investe na constituição de um acervo de obras
nenhuma obra pode vir a público sem o seu apoio. Em muitos países, a literatura e a de um ou mais artistas e faculta um espaço onde os eventuais clientes podem apreciar
música provêm do sector privado, enquanto o Estado controla a indústria do cinema, e comprar essas obras. Se se tratar de artes do espectáculo, o empreendedor investe na
directamente ou por intermédio de subsídios financeiros. Os dirigentes pensam prova- produção de manifestações, financiando geralmente a sua preparação, ou então garantindo
velmente que o cinema representa maiores perigos para a estabilidade do regime, porque uma receita mínima e vendendo os bilhetes. Em ambos os casos, uma parte significativa
atinge um maior número de pessoas do que as obras escritas. Ou então isso acontece do investimento retoma ao intermediário para que este possa continuar a oferecer uma es-
porque o Estado é o único a dispor dos meios financeiros passíveis de produzir um colha de obras suficientemente ampla. Podemos comparar as duas variantes relativamente
filme apresentável. Em certos países, o Estado conserva por princípio o monopólio de simples deste sistema a dois tipos: o do marchand-galerista e, para as artes do espectáculo,
todas as formas de comunicação e de actividade económica. Neste caso, já não se trata o do agente-produtor. Estes sistemas de modesta envergadura são aqueles que distribuem,
de um mecenato de Estado, mas mais exactamente de uma nacionalização das artes. por regra, as obras únicas. No pólo oposto, encontramos o empreendedor que investe na
produção de múltiplos exemplares de uma obra destinada a uma grande difusão, como é a
regra no caso da indústria discográfica, no cinema e na edição de livros. Podemos agrupar
A COMERCIALIZAÇÃO todos estes sistemas sob a rubrica de indústrias culturais, como o fez Paul Hirsch (1972).

Num sistema de comercialização, os artistas produzem obras que são vendidas ou


difundidas publicamente. Na maioria das situações, os intermediários profissionais OS MARCHANDS
dirigem os organismos que vendem obras ou bilhetes de espectáculos àqueles que os
podem comprar. Algumas proposições relativamente simples permitem circunscrever Francis Haskell (1963) e Harrison e Cynthia White (1965) descrevem a passagem
o funcionamento de um sistema de comercialização. 1) A procura efectiva é criada dos sistemas de mecenato para os sistemas dominados pelos marchands, as galerias e
pelo conjunto de pessoas dispostas a dar dinheiro por obras de arte. 2) Elas procuram os críticos. Na Itália e na França dos séculos XVIII e XIX, houve um grande número de
aquilo que aprenderam a apreciar e a desejar, fundadas na sua educação e vivência. 3) abastados comerciantes e de homens de negócios que começaram a comprar pinturas
Os preços são submetidos à lei da oferta e da procura. 4) As obras que o sistema con- por prazer, e também para estabelecerem a cultura e o bom gosto convenientes àposição
templa são aquelas que pode distribuir de maneira suficientemente rendível para social a que aspiravam. Simultaneamente, muitas pessoas tomaram-se artistas, sedu-
continuar a funcionar. 5) Os artistas são em número suficiente para produzirem obras zidas pelas perspectivas de carreira que o mecenato parecia oferecer. Sob o regime
que o sistema pode efectivamente distribuir para poder continuar a funcionar. 6) Os de mecenato, havia poucas exposições públicas, e estas reuniam enormes quantidades
artistas cujas obras o sistema não pode ou não aceita contemplar encontram outros de telas durante um período de tempo relativamente curto, a fim de permitir aos poten-
meios de distribuição; ou então devem resignar-se a uma distribuição muito reduzida ciais mecenas a escolha dos seus protegidos. Por ocasião do Salon oficial em Paris, o
ou praticamente nula. Estado concedia prémios que guiavam a escolha dos mecenas.
Os artistas podem confrontar o sistema de comercialização com as mesmas três Entretanto, o número de pintores que procurava um mecenas ultrapassava as
questões aplicadas aos mecenas. Que tipo de apoio financeiro faculta o sistema de capacidades do sistema. Harrison e Cynthia White (1965) estimam que, por volta de
comercialização àqueles que realizam obras de arte? Como é que mobiliza o público 1863, três mil pintores (homens) parisienses reconhecidos e mil pintores das províncias
que partilha as convenções e os gostos que entram em jogo na realização das obras? executaram cerca de 200 000 quadros de qualidade (p. 83).
Como é que garante a apresentação das obras ao público, contribuindo desse modo
para a construção de reputações e carreiras? Para os intermediários que dirigem esses Em nenhum momento, o sistema foi capaz de assegurar a comercialização desta acumulação de
organismos, convém não esquecer, é importante que os mecanismos de produção e de objectos únicos, sem sair do enquadramento que lhe competia. Evidentemente, não era necessário
escoar todas as pinturas, e o sistema emergente dos marchands e dos críticos também não ases-
distribuição permaneçam relativamente estáveis e previsíveis, a fim de eles próprios coava completamente. Mas era necessário vender o suficiente para dar ao artista aquela aparência
poderem continuar as suas actividades e, portanto, continuarem a dispensar serviços de rendimento regular que exigia a concepção burguesa da sua própria existência. (... )
ao público bem como aos artistas, recolhendo de passagem alguns beneficios. Os sistemas

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

Era necessária uma clientela muito mais ampla para as pinturas, e era possível recrutá-la( ... ). Uma galeria é composta por: um marchand, que normalmente dispõe de um es-
Os marchands aceitaram, encorajaram e serviram clientelas provenientes de outros meios sociais paço onde apresenta obras de arte a eventuais compradores, um grupo de artistas (as
(... ). Os potenciais compradores eram em número e diversidade suficiente para que uma lógica «descobertas» do marchand) que executaram as obras postas à venda, um grupo de
de mercado pudesse prevalecer em detrimento de uma lógica assente num sistema de relações
individuais. (White e White, 1965, pp. 88, 94) clientes que mantém a galeria através de aquisições regulares, um ou vários críticos
que publicam comentários e exegeses, e contribuem assim para suscitar o interesse
e a procura das obras dos artistas da galeria, e por fim um grupo mais numeroso de
Hoje em dia, as artes plásticas são comercializadas na sua quase totalidade por frequentadores das galerias que são convidados para as inaugurações, que vão ver as
uma rede internacional de marchands. Tendo em consideração a análise do mercado exposições e alargam o público dos artistas da galeria falando deles e das suas ex-
da pintura proposta por Raymonde Moulin (1967), um estudo que entretanto setor- posições a outras pessoas. Os potenciais compradores não possuem as competências
nou um clássico e ao qual as reflexões que se seguem devem muito, os marchands estéticas e técnicas dos artistas porque pertencem a categorias sociais menos cultivadas
inserem o artista na economia da sociedade ao operarem uma transformação dos que a dos mecenas, e porque a cultura do mundo da arte é cada vez mais um assunto
valores estéticos em valores económicos, o que permite aos artistas viverem da sua de iniciados e de profissionais, centrada no aprofundamento de questões provenientes
arte. Normalmente, os marchands especializam-se querna pintura «consagrada», quer da sua própria tradição (ver Kubler, 1962).
na arte contemporânea. Os seus métodos comerciais e as vertentes económicas da sua Os marchands especializam-se quase sempre num estilo ou num movimento artís-
actividade variam em consonância: tico. Os «seus» artistas têm pontos em comum, de modo que aqueles que vão à galeria
podem estar mais ou menos seguros de encontrarem obras que se fundamentam sobre
Quer estes marchands [de obras consagradas] se especializem na pintura antiga ou na pintura princípios e convenções análogas. Através de uma frequência regular das exposições
moderna, dos mestres do impressionismo aos mestres do século XX, as obras postas à venda de uma galeria, aprende-se a apreciar esse estilo, a compreender as hipóteses que
possuem, no plano cultural, um estatuto de legitimidade e, no plano económico, um estatuto de oferece, a descobrir as emoções que pode suscitar, a conhecer melhor os artistas e o
valor garantido( ... ). As suas escolhas artísticas podem basear-se na selecção já operada pela contexto, as intenções e os fundamentos estéticos ou filosóficos das suas obras (graças
História. Os erros de juízo não se situam senão ao nível da identificação e da autenticação das à leitura dos catálogos e das indicações que acompanham as obras expostas). O pessoal
obras. (Moulin, 1967, pp. 99-100)
da galeria fornece informações mais completas e personalizadas aos clientes. Explica
o trabalho de tal ou tal artista, de uma das suas pinturas ou esculturas, indica as rela-
ções que tem com outros estilos importantes ou movimentos actuais e tece algumas
Mesmo que estas obras tenham sido alvo de críticas desfavoráveis, o inegável lugar
considerações sobre a estética do seu trabalho, evocando sempre as modalidades de
que ocupam na história da arte garante-lhes um valor permanente. Esse valor é ainda
pagamento, o melhor local onde o cliente poderá expor a obra em sua casa e a forma
sustentado pelo carácter definitivamente limitado da oferta: um artista desaparecido
como ela completaria a sua colecção.
não voltará a pintar, mesmo que se possam descobrir outras telas suas não inventaria- Essas informações, que ajudam a apreciar o trabalho dos artistas de uma galeria,
das e mesmo que outros artistas mortos (como acontece frequentemente) se possam alimentam-se de todos os elementos fornecidos pelos críticos e pelos estetas. Como
juntar à lista daqueles que deixaram uma obra de importância histórica (ver Moulin, veremos no próximo capítulo, os estetas formulam os princípios filosóficos que con-
1967, pp. 424-41).
ferem legitimidade artística às obras, e o garante de serem fruídas. Os críticos, por seu
Em compensação, a oferta de quadros contemporâneos é praticamente ilimitada. turno, mantêm-se atentos à actualidade. Estão a par dos acontecimentos que agitam
A venda de obras contemporâneas exige um espírito de empreendimento, um certo o mundo da arte ao qual pertencem, das exposições, das compras mais importantes,
gosto pelo risco. «O marchand inovador aposta numa obra desconhecida: o seu dos novos movimentos que têm incidência sobre as reputações e os preços das obras.
objectivo é trazê-la à existência pública e impô-la no mercado.» (Moulin, 1967, Expõem teorias muito particulares que permitem contextualizar uma obra ou um
p. 118). Mas como é que esse empreendedor pode saber se a obra e o artista em conjunto de pinturas. Hàrrison e Cynthia White (1965) citam um exemplo caracterís-
que apostou, e que recomenda aos outros, terão o favor do público? Ele não pode tico do modo como certos críticos explicaram, naquela época, o impressionismo aos
ter qualquer certeza enquanto a História não o definir como tal, através da inter- potenciais compradores:
venção de um determinado número de pessoas que poderão partilhar a sua opinião,
permitindo inflacionar o preço da obra. Os marchands inovadores sabem que não No campo da cor, realizaram uma verdadeira descoberta, cuja origem não se encontra em
podem dissociar os aspectos estéticos e financeiros das suas actividades, nem das nenhuma outra época (... ).A descoberta consiste em terem reconhecido que a luz intensa esbate
suas avaliações. Além disso, não podem esperar que a História estabeleça o valor. os tons, que o sol reflectido pelos objectos tende, por força da claridade, a levá-los a essa unidade
Esforçam-se por persuadir aqueles cuja intervenção fará História e, isto, através da luminosa que funde sete raios prismáticos num único brilho incolor, que é a luz. De intuição em
intuição, conseguiram pouco a pouco decompor a luz solar nos seus feixes, nos seus elementos,
actividade da sua galeria.

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Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

e reconstruíram a sua unidade através da harmonia geral das cores do espectro que espalhavam outros. Raymonde Moulin (1967, pp. 190-225) sublinha a diversidade de motivações
sobre as suas telas( ... ). (Edmond Duranty, citado em White e White, 1965, p. 120) dos coleccionadores, que vão desde o snobismo cultural à especulação pura e simples,
passando pela paixão pela pintura ou a necessidade compulsiva de acumulação que
Este tipo de observações ajudava as pessoas ainda influenciadas pela pintura aca- Evan S. Connell, Jr. (1974) tão bem retratou no seu romance. Raymonde Moulin
démica a apreciarem as pinturas que não representavam personagens célebres, não mostra como é que a confusão entre os valores económicos e estéticos é evidente,
comemoravam acontecimentos marcantes e não exaltavam os valores patrióticos ou mesmo nos comportamentos do especulador:
religiosos.
Os textos da crítica exercem uma influência particularmente forte quando de- O especulador faz duas apostas, estreitamente ligadas entre si e muito próximas, uma sobre
monstram em que é que a criação contemporânea se liberta das normas antigas que o valor estético a outra sobre o valor económico das obras que compra, instaurando cada um
desses valores garantias recíprocas entre si. Ganhar esta dupla aposta significa afirmarmo-nos
se tornaram demasiado fracas e revela novas fontes de prazer estético. Assim, John simultaneamente como sujeito económico e sujeito cultural. (Moulin, 1967, p. 219)
Szarkowski, um crítico muito influente no mundo da fotografia, explica por que é
que o livro de Robert Frank, The Americans, foi mal acolhido quando foi editado em
1958, e aquilo que nele se podia ver na condição de nos libertarmos das convenções Jogando com toda esta gama de elementos, os marchands (ajudados pelos textos da
do momento: crítica) atraem um público, uma clientela interessada no trabalho exposto. Os compra-
dores, que aprenderam a apreciar as obras, revelam a outras pessoas as qualidades de
As reacções mais violentas vieram de fotógrafos e de especialistas em fotografia( ... ) que reco- um novo estilo ou movimento artístico apoiando as suas afirmações no exemplo das
nheceram até que ponto o trabalho de Frank punha em causa as normas do estilo fotográfico - a suas próprias aquisições, o que dá ainda maior peso aos argumentos dos marchands.
retórica fotográfica - às quais aderiam largamente fotógrafos 'de tendências muito diferentes.
Essas normas reclamavam uma textura clara e precisa da superficie, dos volumes e do espaço.
A partir daí, as obras passam a ser universalmente encaradas como formas impor-
Era nessas características que residia a sedução e a beleza material da fotografia. (Szarkowski, tantes de investimento. As obras de arte bem escolhidas garantem mais-valias conside-
1978, p. 20) ráveis, e muitas vezes superiores aos investimentos mais clássicos. Mas como lembra
Raymonde Moulin (1967, pp. 462-76), quando se deu uma queda brutal do mercado
The Americans - a visão muito pessoal e corrosiva de Frank sobre o seu país durante os tempos bolsista nos Estados Unidos em 1962, os coleccionadores americanos venderam os
de Eisenhower - baseava-se numa elaborada compreensão social, num rápido sentido de visão
seus quadros e provocaram uma queda ainda mais brutal das cotações dos pintores
e numa intuição revolucionária das possibilidades do pequeno formato, que dependia mais de
um bom grafismo do que da elegância da descrição tonal (Szarkowski, 1978, p. 17) contemporâneos, tanto em Nova Iorque como em Paris. Quanto ao preço das obras
consagradas pela História, essas sofreram uma baixa muito ténue.
Compreende-se, então, a importância dos conselhos esclarecidos para um correcto
Os críticos fazem frequentemente as mesmas descobertas que os marchands, e uns investimento de dinheiro na arte contemporânea. Os críticos e os marchands mais
e outros colaboram na promoção de pintores ou de escultores cujas inovações lhes procurados, que têm uma reputação de bons avaliadores do valor estético (e portanto,
pareçam sedutoras e defensáveis. Os marchands expõem a obra, enquanto os críticos económico), formam o gosto dos compradores e, desse modo, garantem a rendibilidade
fornecem o aparelho discursivo que permite justificá-la e apreciá-la. Tanto uns como dos seus investimentos nas obras que ainda não são consagradas. O valor dos seus
outros compram frequentemente para a sua colecção pessoal certas obras que chamam investimentos cresce à medida que conseguem persuadir mais pessoas das qualidades
a atenção no seio da criação contemporânea. O contrário seria surpreendente: não dos «seus» artistas. De modo que é mais vantajoso para os marchands acompanhar o
foram eles os primeiros, ou quase, a seleccionar essas obras, porque lhes agradavam e trabalho de um artista mal começa a ganhar nome, pois o valor das obras aumentará
lhes pareciam dever contar para o evoluir da pintura, mas também porque desejavam com a sua notoriedade.
encorajar os artistas ainda pouco conhecidos comprando as suas obras? O valor económico das obras de arte levanta questões que se relacionam com o
Os marchands precisam de pessoas que não se limitem a ser apreciadoras de arte, sistema de distribuição, nomeadamente o problema da autenticidade das obras postas
mas que as comprem e conservem, ou seja, coleccionadores. Ora, a maioria das pessoas à venda. Este não se coloca quando se trata de um artista vivo e desconhecido (quem
que gosta de arte contemporânea não compra. Um dos inquéritos efectuados por é que falsificaria as suas obras?), mas adquire uma importância decisiva se estiveram
Haacke junto dos frequentadores das galerjas mostra que apenas 18 por cento deles grandes somas de dinheiro em jogo, se o artista está morto, ou se está vivo, mas não
tinham despendido 2000 dólares em obras de arte (Haacke, 1976, p. 46). Os marchands é possível certificar a autoria de tal ou tal obra. Quando surgem essas situações, os
tentam fazer dos apreciadores coleccionadores de arte. Ou seja, tentam suscitar, além especialistas colaboram com os marchands, recorrendo aos métodos de investigação
da predisposição para a arte, motivações como o orgulho no assumir dos gostos, a da história da arte para autentificar as obras, ou aos da estética para uma apreciação
confiança demonstrada através do acto de aquisição e o prazer em exibi-la perante os do valor relativo dos artistas, das obras ou dos movimentos. Recorrem aos métodos

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de análise estilística para confinnar ou infirmar a atribuição de uma pintura a Ticiano. deparam-se por vezes com dificuldades em retê-los. Tal como todas as relações que
Podem ser levados a estabelecer a proveniência exacta de uma obra, a retroceder, estabelecem com o pessoal de apoio, os artistas encaram os marchands como uma
graças a uma série de índices, até ao seu primeiro proprietário. Houve especialistas benesse que suscita contradições. É certo que os marchands desempenham papéis que
como Bernard Berenson que colaboraram com o marchand Joseph Duveen para os artistas não gostam de assumir. Moulin cita um pintor francês:
incitar uma geração inteira de abastados americanos neófitos a investir fortunas
em obras cuja autenticidade garantiam. Na mesma época, Berenson pretendia es- Para ser honesto, é preciso dizer que todos tentamos encontrar uma galeria, para escapar ao lado
tabelecer os métodos de atribuição sobre bases rigorosas e sólidas. Essas técnicas administrativo, ao lado promocional do qual o marchand se encarrega, para nos defendermos,
para não termos de lidar com os coleccionadores. É um dia perdido quando temos de lidar com
de investigação muito apuradas passaram, desde então, a ser parte integrante do sistema de um coleccionador; perdemos três horas antes do encontro devido à ansiedade; depois, se o
actividade pelo qual uma comunidade de marchands, críticos, especialistas e colec- encontro não der resultado, ficamos vexados; se resultar, ficamos eufóricos. O pintor não pode
cionadores define o valor. acorrer a tudo. (Moulin, 1967, p. 333)
Resumindo, os marchands, os críticos e os coleccionadores chegam a acordo sobre
o valor das obras e sobre o modo de o atribuir. Assim, podemos afinnar que o marchand
criou ou fonnou um público para as obras que representa, um público que possui tantos Sobretudo, estando dado como garantido o interesse que poderá haver em investir
conhecimentos sobre esse conjunto de obras como um nobre ou um papa italiano em num jovem pintor, os marchands mais bem estabelecidos «apropriam-se» dos artistas
relação à pintura barroca. São conhecedores e entendidos em arte, e o pintor pode criar e asseguram-se do monopólio das suas obras através de contratos de exclusividade:
para eles, seguro de que reconhecerão a sua criatividade, talento e mestria técnica. o artista compromete-se a ceder toda a sua produção em troca de uma verba mensal
Claro que um marchand deve começar por descobrir artistas. Dedica-se a uma que lhe pennitirá viver, trabalhar e comprar material. Finalmente, o marchand está
intensiva prospecção, recruta artistas e incita-os a produzir suficientemente para bem posicionado, graças às suas competências comerciais e contactos no mercado da
suscitar interesse entre a clientela regular da galeria. Mareia Bystryn (1978) assi- arte, para saber como converter um valor estético em económico, ou seja, aquilo que
nalou a existência de uma divisão do trabalho entre as galerias no mundo nova- o artista não sabe fazer. A este respeito, Raymonde Moulin cita o exemplo de Jacques
-iorquino da pintura contemporânea. Umas apadrinhavam uma grande quantidade de Villon. Embora conhecida e apreciada, a sua pintura não se vendia. O artista tinha
artistas relativamente obscuros e ofereciam-lhes a oportunidade de submeterem os seus perto de setenta anos quando o marchandLouis Carré se começou a interessar por ele
trabalhos à apreciação de críticos e coleccionadores respeitados. As outras escolhiam e, graças a uma série de exposições inteligentemente programadas, multiplicou por
nesse grupo de artistas aqueles que tinham sido alvo de encorajamento, cuja obra tinha mil o preço das suas pinturas. (Moulin, 1967, pp. 329-33)
sido bem acolhida pela crítica e retivera a atenção de alguns coleccionadores impor- Por outro lado, os marchands nem sempre honram as suas dívidas. O seu comércio
tantes. Os marchands, que necessitam de renovar constantemente a oferta de obras a é sensível às flutuações das conjunturas económicas, e se as coisas correm mal, eles
expor e a vender, impõem constrangimentos aos artistas. Aconselham-nos frequente- podem rescindir os contratos. Os mafrhands cuja situação não é suficientemente sólida
mente a orientarem a sua obra na direcção que julgam mais indicada e levam-nos a podem deparar-se com dificuldades para pagarem aos artistas, e estes podem ter dificul-
produzir em quantidade suficiente para sustentar a galeria (os artistas de uma galeria dades quando quiserem recuperar as obras que não foram vendidas (Haber, 1975, faz
devem fornecer-lhe obras suficientes para pennitir a alternância das exposições) e um relato circunstanciado de um incidente deste género). Sobretudo, como sublinha
para se manterem na carreira (um artista pouco produtivo deixa de ser um artista no Raymonde Moulin, os interesses económicos do artista raramente convergem com os
activo ou, pelo menos, deixa de desempenhar um papel de destaque na estratégia da do marchand. Este deseja frequentemente guardar uma obra durante vários anos, espe- ·
galeria). Em conjunto, estes dois tipos de galerias mobilizam pennanentemente um rando que a sua cotação suba, mas o pintor quer que as suas obras sejam expostas,
forte contingente de artistas dispostos a arriscarem o seu tempo, energia e reputação compradas e mostradas nos locais onde se possa falar delas, suscitando críticas e suges-
realizando obras que poderão não atrair a atenção. Elas criam um público suficien- tões que ele poderá aproveitar para o trabalho futuro. Dito de outro modo, o artista quer
temente numeroso para assegurar o trabalho dos artistas e constroem reputações que ver a sua reputação crescer o mais depressa possível, enquanto o marchand pode julgar
confirmam uma posição no patamar dos méritos do mundo da arte. Entre si, operam mais vantajoso esperar por uma subida da cotação a longo prazo. Os artistas que já
uma escolha entre os artistas estreantes, incitando uns para grandes produções e para possuem uma certa reputação podem procurar outro marchand que lhes garanta melho-
uma maior confiança nos seus trabalhos, enquanto vão dando a entender aos outros que res condições.
atingiram os limites das suas capacidades. (Encontramos uma tipologia mais elaborada O sistema das galerias está estreitamente ligado à instituição museológica.
das galerias no livro de Raymonde Moulin, 1967, pp. 89-149.) O museu é o último depositário da obra posta em circulação por um marchand, por
Embora os marchands não tenham muitos problemas em recrutar artistas estreantes dois motivos: 1) regra geral, uma obra que entra para as colecções de um museu passa
(são essencialmente os estreantes que têm dificuldades em encontrar um marchand), a fazer parte do seu espólio, seja porque é essa a vontade do doador, seja porque os

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conservadores, que puseram em jogo as suas reputações de peritos na aquisição de ciosos da possibilidade de qualquer tipo de ofensas, que preferem não correr riscos
determinadas obras, não querem assumir a hipótese de cometerem qualquer erro ou desnecessários.
de assumir responsabilidades públicas ao revenderem as obras cedo de mais; 2) quan- O poder do dinheiro sobre o conteúdo dos museus tem efeitos mais subtis do que
do um museu expõe e compra uma obra, atribui-lhe a consagração máxima a que ela aquilo que nos é permitido perceber imediatamente numa análise mais superficial.
pode aspirar no mundo contemporâneo das artes plásticas; a partir de então, nada Os autores do Anti-Catalog (Catalog Committee, 1977) analisaram a colecção particular
poderá acrescentar mais importância e repercussões do que aquelas conquistadas com do casal John D. Rockefeller III, exposta no Whitney Museum, aquando das come-
a reputação do artista. morações do bicentenário dos Estados Unidos. Eles mostraram até que ponto é que
Nos museus privados, as decisões pertencem em última instância aos administra- aquela colecção (e as de muitos museus americanos, constituídas no mesmo espírito)
dores, que garantem a atribuição do financiamento. Nos sistemas políticos que auto- exaltava o sucesso financeiro e escamoteava os antagonismos sociais, o problema das
rizam a acumulação privada de riquezas e bens, mesmo os museus públicos têm minorias e outras questões desagradáveis para os abastados mecenas.
normalmente como administradores representantes das camadas sociais mais abastadas,
que podem angariar para o museu donativos em arte e em capital. No seu estudo sobre
o ChicagoArt Institute, Vera Zolberg (1974) explica que, no princípio, eram mecenas OS PRODUTORES
ricos quem dirigia a política do museu, intervindo nas aquisições, exposições e em
outras actividades de carácter artístico. Depois, delegaram essa autoridade em histo- Uma vez que no mundo das artes do espectáculo os artistas não criam produtos
riadores de arte provenientes do meio académico, mais qualificados do que os amado- que se possam armazenar, expor e vender, os sistemas de distribuição apresentam
res para avaliarem a «real» importância das obras. Por fim, à medida que os museus aqui configurações necessariamente diferentes. Apenas se assemelham ao sistema
se foram transformando em instituições maiores e mais complexas e se começou a das galerias na medida em que um empreendedor consagra tempo, esforço e dinheiro
reconhecer a importância da observação das regras de gestão em todos os seus domí- para pôr de pé os elementos que depois apresenta a um público. Contudo, não se trata
nios, os mecenas abandonaram a administração sendo substituídos por gestores repu- de objectos que são vendidos a um público, mas de bilhetes que permitem assistir
tados, que podiam ser totalmente alheios ao mundo da arte. a um trabalho artístico. É possível vender objectos a compradores que os tenham
Essas transferências de competências na organização dos museus não impedem os previamente contemplado e apreciado. Um espectáculo é, inversamente, vendido
artistas de se confrontarem com certas dificuldades perante essas instituições. Tal como antes da sua fruição. O produtor tem a tarefa de vender bilhetes suficientes para
os marchands, os directores dos museus e aqueles que lhes concederam mandato per- que o espectáculo lhe garanta lucros e possa pagar aos artistas, procurando simul-
seguem interesses que nem sempre coincidem com aqueles a que os artistas aspiram; taneamente criar um público que aprecie a obra e aumente a reputação dos artistas.
e para complicar toda a situação, o pessoal do museu é muitas vezes tentado a assumir Os produtores encarregam-se de tudo que é necessário para cativar um público e
uma conduta que pensa ser a que mais convém aos interesses da administração, ainda juntá-lo num local apropriado ao espectáculo. Alugam o espaço onde será apresentado
que esta não acalente tais interesses. Assim, muitos museus americanos manifestaram o espectáculo, fazem a publicidade, vendem bilhetes, gerem o orçamento e asseguram
relutância em expor obras contemporâneas portadoras de uma mensagem política a presença dos auxiliares indispensáveis (técnicos, porteiros, etc.). Na maioria dos casos,
explícita, sobretudo durante a época da guerra do Vietname, momento em que a arte garantem uma remuneração fixa aos artistas em vez de lhes proporem uma percentagem,
assumiu uma forte componente política. Para citar um exemplo eloquente, o artista e é aí que reside o risco: se o espectáculo não atrair público suficiente, o produtor terá
Hans Haacke tinha preparado, sob solicitação de um conservador do Museu Gugge- de pagar do seu bolso a diferença entre a receita efectiva e os custos, à qual acresce
nheim, uma obra que denunciava as práticas dos proprietários dos bairros-de-lata no ainda a remuneração devida aos artistas.
Lower East Side de Nova Iorque. O director do museu recusou a apresentação desse Os produtores têm ainda outros pontos em comum com os marchands de pintura.
trabalho sob o pretexto da componente «política» explícita. O conservador que tinha Proporcionam a apresentação de uma obra a um público conhecedor, apto a aceitar as
tomado aquela iniciativa foi dispensado e, como medida de retaliação, muitos artistas convenções e a proposta pessoal inscritas na obra do artista. É deste encontro que
contemporâneos boicotaram o museu. Este acontecimento inspirou sem dúvida a podem retirar os lucros que lhes permitirão que o trabalho prossiga. Contudo, os pro-
obra em que Hans Haacke descreve minuciosamente as relações entre os museus e os dutores têm de adoptar, forçosamente, métodos diferentes. Para viabilizar financeira-
meios corporativos. (Ver Haacke, 1976, para uma análise mais aprofundada.) O mais mente um espectáculo são necessários mais clientes do que para manter uma galeria.
curioso desta história é que nenhum dos administradores do museu tinha interesses Se numa galeria os custos das exposições podem ser cobertos com as compras de alguns
privados naqueles bairros-de-lata ou ligações aos seus proprietários. Portanto, eles visitantes, os produtores de espectáculos têm de recrutar um público que pague e que
não teriam provavelmente objecções a colocar a uma obra que denunciasse aquela esteja interessado em apreciar aquilo que lhe é proposto. Em vez de bilhetes individu-
situação. Os profissionais que administram estas instituições estão aparentemente tão ais, os produtores preferem vender assinaturas e reservas. Não apenas porque esta

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modalidade proporciona uma recolha antecipada de dinheiro, mas também porque os num conjunto de normas artísticas habitualmente aceites e numa concepção partilhada
assinantes se mostram disponíveis para receber formação no domínio em questão, quer daquilo que se pode esperar do dinheiro gasto. Os espectadores que pagam um bilhete
se trate de música contemporânea, de dança de vanguarda, de teatro clássico, de mú- caro para assistir a um concerto ou a uma peça de teatro que não dura senão meia hora
sica ligeira ou de concertos de câmara, de música sinfónica ou de ópera. O público ficam com a impressão de terem sido roubados. Quando um actor secundário substitui
precisa de adquirir experiência para apreciar verdadeiramente as obras referentes a um uma vedeta, muitos espectadores exigem o reembolso do bilhete. Uma obra demasiado
determinado género, e pode fazê-lo através das assinaturas. vanguardista para o seu público provoca uma vaia de protestos. O público americano
O produtor não é obrigatoriamente uma pessoa célebre, tal como Sol Hurok ou Bill é bastante permissivo com os artistas medíocres, mas, noutros países, os espectadores
Graham nos Estados Unidos. O seu papel pode ser desempenhado por um organismo: podem originar verdadeiros escândalos quando aquilo que lhes é apresentado não tem
um teatro regional, uma sociedade de concertos sinfónicos ou um estabelecimento a qualidade esperada. A insolência do público da ópera em Itália é lendária.
semipúblico. Os artistas assumem frequentemente a responsabilidade de produzirem Os produtores têm relações bastante menos pessoais com o público dos seus es-
os espectáculos, nomeadamente em situações de menor envergadura. Um teatro local pectáculos do que os marchands com os seus clientes. Mas entregam-se com o mesmo
pode, desse modo, assumir todas as tarefas de produção e os riscos financeiros (ver fervor a ensinar àqueles que o desejam a apreciar as obras que promovem. Não podem
Lyon, 1974 e 1975). Esses grupos, que não podem esperar angariar senão um público contar com um público que, à semelhança dos tempos de outrora dos mecenas reais,
relativamente restrito, têm consequentemente de limitar os investimentos. não só gostava de apoiar os artistas, mas conhecia bastante bem as convenções artís-
Quando os investimentos são muito avultados, o espectáculo toma-se um empreen- ticas para também fazer parte do espectáculo. Os artistas e o público hodiernos já não
dimento para o qual é necessário contratar pessoas por períodos de duração variável, no partilham uma tal cultura de classe. A capacidade de apreciar as artes do espectáculo
quadro de um sistema de trabalho independente evocado no capítulo anterior. E aí, o pressupõe, como para as artes plásticas, uma cultura e uma sofisticação ausentes nas
produtor toma-se indispensável, pois é ele que se ocupa de reunir as pessoas chamadas pessoas mais desfavorecidas socialmente. É àqueles que distribuem a arte que incumbe
a cooperar. Após este passo, o projecto poderá ser levado a bom termo e desencadear a tarefa de lhes trazer esta cultura. Os intermediários que garantem a comercialização da
uma série de representações cujas receitas equilibrarão o investimento inicial. arte proporcionam assim aos artistas a hipótese de apresentarem o seu trabalho a um
Certos organismos são permanentes, por exemplo as companhias de teatro ou de público ao qual formaram o gosto: a integração dos artistas na economia da sua socie-
dança, as orquestras sinfónicas ou as companhias líricas. Como os seus programas dade e a capacidade de viverem da sua arte depende disto. (Ver Zolberg, 1980, para uma
incluem muitas obras conhecidas e apreciadas pelo público, essas instituições não comparação dos sistemas de distribuição nos mundos da música e das artes plásticas.)
têm dificuldades em cativar a clientela que lhes convém. As dificuldades surgem
quando alguns artistas do grupo, ou os responsáveis pela programação, preferem
aderir prematuramente às mais recentes tendências do respectivo mundo da arte e AS INDÚSTRIAS CULTURAIS
apresentar obras mais contemporâneas ou experimentais, para as quais o público
ainda não está completamente cativado. Os artistas que experimentam esse desejo Paul Hirsch (1972) usou o termo indústrias culturais para designar as «empresas
pensam que, ao escolherem esse tipo de obras, subirão na consideração dos seus comerciais que fabricam produtos culturais de difusão nacional» (e «internacional»
pares e dos amadores iniciados cuja opinião sentem como fundamental. Mas a obra -poderíamos acrescentar). Falou também do «sistema industrial da cultura, composto
é desconhecida e experimental e o público fiel à instituição queixa-se do seu herme- por todos os organismos que se ocupam de filtrar os novos produtos e as novas ideias
tismo. Nas artes do espectáculo, todos os grupos permanentes de uma certa dimensão provenientes do pessoal "criativo" do subsistema técnico e transmitidas aos níveis
se debatem com este tipo de dificuldades. Os agrupamentos mais pequenos, que administrativo e institucional de organização» (p. 642). Retomando a sua análise,
implicam menos gastos, podem pelo contrário especializar-se na apresentação de esses organismos visam públicos muito vastos dos quais ignoram quase tudo e dos
obras inovadoras e atrair um público mais restrito e mais assíduo. quais, portanto, não podem prever as reacções, apesar de todos os estudos de mercado
Uma instituição que tenha dado boas provas pode apresentar obras e intérpretes em e sondagens. Não se pode saber com segurança a que convenções esse público é
excelentes condições porque tem um público fidelizado. Qualquer que seja o concerto sensível, nem quais as representações socialmente determinadas da cultura e da arte
apresentado pela New York Philharmonic ou por outra orquestra similar dispõe das que governam as suas escolhas. De onde a impossibilidade de realizar ou de suscitar
melhores condições para atrair público. obras que se adaptem ao gosto de um público. Hirsch cita um porta-voz da indústria
Os espectadores que compram um bilhete sem terem visto ou escutado aquilo que discográfica, uma indústria cultural por excelência:
pagam antecipadamente podem ficar desiludidos com o espectáculo, podem ficar com a
impressão de que o dinheiro pago não saldou as suas expectativas ou que não lhes deram Fabricámos discos que pareciam ter tudo o que era necessário (artistas, canções, arranjos, pro-
aquilo que esperavam. Essas queixas fundam-se todas, de uma maneira ou de outra, moção, etc.) para garantir à partida uma venda recorde (... ). Pois bem, eles foram um retumbante

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fracasso. Por outro lado, produzimos discos para os quais prevíamos um sucesso modesto e que dos leitores que tinham começado a ler o romance, mas o tinham considerado sem
se tomaram verdadeiros êxitos de vendas. (Brief, 1964, citado por Hirsch, 1972, p. 644) interesse. Por outro lado, o departamento comercial podia dar conselhos para o segui-
mento da trama narrativa do livro tendo em consideração a curva de vendas. O que
Hirsch sublinha, por fim, que, para se confrontarem com este ambiente incerto, levou Sutherland a afirmar:
essas indústrias adaptam várias estratégias, nomeadamente a «proliferação dos pro-
motores» - que fazem chegar os produtos aos retalhistas e às pessoas ligadas aos Muitos dos romances dessa época, que parecem puro produto do génio criativo, eram frequente-
mente (... ) fruto de uma colaboração, de um compromisso ou de uma encomenda. (Sutherland,
meios de comunicação susceptíveis de influenciar as vendas - a «produção excessiva 1976,p.6)
de novidades, fruto de uma distribuição selectiva» e a «cooptação de gatekeepers».
As indústrias culturais mais características das sociedades contemporâneas são a edição
de livros, a edição discográfica, o cinema, a rádio e a televisão. Estes eram efectivamente os modos de influência dos editores sobre o trabalho
Poderíamos pensar que são indústria~ recentes, fruto das invenções técnicas que dos romancistas. Como veremos, esta influência foi determinante para o estilo e a
exploram. Mas a verdade é que todos os seus aspectos essenciais existiam já na indústria composição dos romances.
editorial inglesa da segunda metade do século XIX. (Sutherland, 1976, sobre o qual me Mas regressemos a algumas das principais características deste sistema de difusão.
baseei bastante para o tema em questão.) Os editores da época vitoriana desenvolve- As reacções do público são imprevisíveis, e as pessoas que realizam ou distribuem as
ram um sistema de distribuição baseado nos preços elevados e numa oferta reduzida, obras não têm qualquer contacto real com esse público. A difusão das obras em múl-
absorvendo as enormes livrarias itinerantes uma grande fatia do volume de vendas tiplos exemplares, no caso do livro e do disco, ou por meio da transmissão mecânica,
para todos os romances. Em geral, os romances eram publicados em três volumes. para os programas de rádio e de televisão, impede-as de conhecer pessoalmente os
O preço de venda, fixado em um guinéu e meio, era bastante alto para permitir aos consumidores. Não têm essa relação directa com o público que caracteriza o mecenato
editores escoarem um mínimo de exemplares nas livrarias que lhes permitissem recolher e a actividade das galerias. Nestes dois últimos sistemas, os criadores e os distribui-
receitas consideráveis mesmo fazendo grandes descontos. Sutherland cita o exemplo de dores estabelecem um verdadeiro diálogo com o público, por vezes mesmo durante a
«um romance intitulado Zaidee, de uma tal Mrs. Oliphant, que as edições Blackwood realização das obras, e sabem o que ele pensa, aquilo de que gosta e não gosta. Ora,
publicaram em 1856. Imprimiram 1578 exemplares a um custo de 358 libras esterli- não se sabe tão rapidamente nem tão seguramente aquilo que o público das indústrias
nas. Foram vendidos cerca de 496 exemplares que renderam 535 libras e 10 xelins. culturais pensa. Com efeito, apesar de todos os estudos de mercado, nunca ninguém
Assim, ao guardar para si dois terços da tiragem (1031 exemplares) [o editor] cobria se pode gabar de certezas.
os seus custos». Sutherland acrescenta que uma das explicações para a «idade de ouro Não conhecendo o seu público, os artistas realizam necessariamente as suas obras
do romance inglês (... ) reside na própria sobreabundância de romances nessa época e sem saberem quem as irá consumir nem sob que circunstâncias ou com que resultados.
no facto de os editores poderem acolher uma grande quantidade de talentos literários Como sublinhou Charles Newman, «hoje em dia, nenhum grande escritor americano
candidatos ao sucesso» (Sutherland, 1976, p. 17). Dito de outro modo, era tão fácil pode dizer para quem é que escreve» (Newman, 1973, p. 6). Um autor popular ou
cobrir os custos, que os editores podiam permitir-se publicar uma grande quantidade um cineasta também não podem afirmar saber a quem se dirigem. Mesmo que visem
de livros. O encorajamento que isto dava aos aspirantes a romancistas conduziu à um determinado público, nada lhes garante que as suas obras atinjam esse público.
proliferação de muitos novos talentos. Então, os artistas (e aqueles que distribuem as obras) constroem para si uma espécie
O sistema transformou-se a partir do momento em que as pessoas descobriram de público imaginário a partir de indícios fragmentários recolhidos de vários modos.
meios de explorar o crescente gosto pela literatura de ficção, manifestado por um Os retalhistas podem transmitir informações aos-agentes comerciais, estes comunicam-
público inglês cada vez mais instruído. Sutherland evoca vários métodos, como a cria- -nas aos seus superiores, que por seu turno as fazem chegar aos responsáveis pela
ção de grandes bibliotecas de empréstimo e a reedição imediata das obras completas produção. Estes últimos- podem transmiti-las aos artistas, modificando-as mais ou
de determinados autores. Outros dois métodos, a edição em folhetim nas revistas e a menos. As informações que circulam pelos canais indirectos raramente são exactas ou
publicação de fascículos mensais, permitiam imprimir e difundir um romance à medida utilizáveis quando chegam por fim ao artista. À falta de mais indicadores, o melhor é
que ia sendo redigido. O autor e o editor podiam então ter em conta as reacções do contar com o que existe.
público para a preparação da continuidade do livro. Em caso extremo, era possível Sendo impossível determinar aquilo que o grande público pode acolher favo-
acabar com um romance mal recebido pelo público, deixando de o escrever, publicar ravelmente, as indústrias culturais incitam todos e mais algum a proporem pro-
ou distribuir. Os editores sabiam imediatamente quando um livro não funcionava, jectos. A elaboração do projecto fica quase exclusivamente a cargo do artista, que
pois as vendas dos fascículos, ou do periódico onde apareciam os episódios, sofriam assume as despesas na esperança de que a indústria se interesse pelo seu trabalho
um brusco abrandamento, que não se explicava apenas pela desistência previsível e o distribua. As indústrias não contemplam senão algumas das inúmeras propostas

122 123
Mundos da Arte A Distribuição das Obras de Arte

recebidas. Corno nota Paul Hirsch, «teoricamente, os organismos maximizam os para a data de entrega do manuscrito dava a Thackeray a possibilidade de redigir aquilo
seus ganhos através da mobilização das suas capacidades de promoção para que o contrato estipulava expressamente (contrariamente aos hábitos da época, nota
sustentar a venda massiva de urna pequena gama de produtos» (Hirsch, 1972, Sutherland), ou seja, urna narrativa «não interrompida». A complexa intriga desfaz-se
pp. 652-53). Lançam os produtos com a ajuda de campanhas de publicidade selectiva numa cena final onde todas as tensões acumuladas desde o início se resolvem de um só
e outros métodos de promoção, verificando depois os efeitos dessas medidas sobre as golpe. Enquanto «ninguém, penso, se precipitaria para os últimos capítulos [A Feira das
vendas. À medida que vão recolhendo essa informação, retiram alguns dos produtos da Vaidades e de Pendennis] para descobrir o que iria acontecerno fim» (Sutherland, 1976,
lista de promoção, obstando efectivarnente as suas hipóteses de sucesso. Quando a es- p. 114), a intriga minuciosamente elaborada de Henry Esmond criava uma verdadeira
colha é tão vasta, qualquer produto que não seja alvo de urna atenção particular toma-se expectativa. Sutherland sublinha igualmente que, devendo Thackeray receber o fim do .
insuficientemente conhecido para alcançar aqueles a quem poderia interessar. (Bliven pagamento no momento da edição do livro, este foi o seu romance mais cuidado do
[1973] descreve, a partir do depoimento de um agente comercial, o modo corno os ponto de vista da apresentação e da revisão de provas. Ele conclui que «Hemy Esmond
editores reajustam constantemente as suas estratégias de lançamento de novidades.) deve uma parte da sua glória» ao editor George Smith (Sutherland, 1976, p. 116).
As obras que chegam ao público são postas no mercado em quantidades variáveis Os efeitos do sistema editorial variam segundo as circunstâncias, pois as relações
e são lançadas com mais ou menos publicidade. O sistema providencia deste modo de força entre os editores e os autores podiam ser muito diferentes, bem como o grau de
quantias variáveis de dinheiro (por vezes enormes), a ocasião mais ou menos favorável confiança mútua e a importância das pressões exercidas sobre o autor. Em Os Últimos
para apresentar a sua obra e hipóteses relativamente escassas de atingir um público Dias de Pompeia de Bulwer-Lytton, surgem capítulos supérfluos e cantos sem qual-
cujos gostos e concepções condizem com a obra. Corno não existem relações directas quer relação com o resto, porque faltavam cerca de cinquenta páginas ao manuscrito
com o público, o artista torna corno referência, por um lado, as reacções dos seus pares, original para perfazer os tradicionais três volumes (Sutherland, 1976, p. 57). Os textos
por outro, as dos responsáveis pela distribuição. de Trollope foram expurgados para satisfazer os escrúpulos religiosos de C. E. Mudie,
O sistema exerce a sua influência sobre as obras através das relações de interacção que dirigia a maior livraria itinerante, e cujas compras representavam uma grande parte
entre os responsáveis das indústrias culturais e os artistas. Tomemos o exemplo de uma dos benefícios adquiridos com os romances de sucesso (Sutherland, 1976, p. 27).
questão tão simples como a extensão de uma obra. Os escritores aprendem a conceber Barbara Rosenblum ( 1978) apresenta um quadro em tudo semelhante para a foto-
o seu trabalho em função das extensões comercialmente aceitáveis. Acreditando em grafia de arte contemporânea, que nos adverte que a arte não está completamente sujeita
Trollope (1947 [1883], p. 198), que escrevia numa época em que os romances em três aos circuitos de distribuição, contrariamente a outras formas de trabalho. Comparando
volumes eram a norma, «um autor apercebe-se rapidamente do número de páginas o trabalho dos fotógrafos de arte com o dos fotógrafos de moda e de imprensa, ela
que deve preenchem. Sutherland cita outros exemplos. A divisão do romance em epi- mostra que, nestes dois últimos casos, o conteúdo da imagem é determinado pelo tipo
sódios publicados periodicamente e a possibilidade de introduzir um fim abrupto no de canais adaptados. As fotografias de imprensa reflectem as escolhas dos chefes de
folhetim dissuadiram os romancistas de perderem tempo com a redacção de um livro redacção no que diz respeito aos temas, ao estilo e às características dos procedimen-
que talvez nunca terminassem, ou de articularem sabiamente, nos primeiros capítulos, tos de impressão. Quanto aos fotógrafos de moda, eles vergam-se completamente
os elementos que não desenvolveriam senão muito mais à frente na obra. Adaptaram aos desejos do cliente, que está frequentemente presente no momento da execução
a forma burlesca, perfeitamente ilustrada na obra As Aventuras de Pickwick, que po- do trabalho. Quanto aos fotógrafos de arte, eles estão inseridos num sistema bastante
diam interromper em qualquer momento sem grandes prejuízos para a continuidade da mais livre, que autoriza uma maior diversidade de obras. Com efeito, a fotografia de
intriga. Entretanto, quando um romancista se tomava suficientemente conhecido para arte contemporânea apresenta uma grande diversidade de estilos e de temas.
assegurar um determinado volume de vendas apenas com o seu nome, encontrava-se As exigências das indústrias culturais engendram uma uniformização mais ou
numa posição de força para exigir da parte do editor a garantia da publicação integral menos importante dos produtos, que traduz menos uma escolha dos autores da obra do
dá obra, independentemente das vendas iniciais. Assim, quando Charles Dickens ad- que as propriedades do sistema. As características normalizadas dos produtos podem
quire uma determinada notoriedade, começa a escrever romances de construção mais tornar-se uma espécie de critério estético para quem as avalia: na sua ausência, a obra
rigorosa, como Bleak House. será catalogada como trabalho amador. As emissões das grandes cadeias de televisão
Aeste propósito, Sutherland cita um romance de Thackeray, Henry Esmond. Enquanto nacionais têm uma espécie de perfeição técnica que serve como referência para avaliar
A Feira das Vaidades era originalmente uma série de histórias breves pagas mensal- as outras cadeias, mesmo que essa perfeição crie constrangimentos aos quais os «teleas-
mente, o contrato paraHemy Esmond autorizava, e chegava mesmo a obrigar, o autor a tas» independentes procuram escapar. Um livro que não apresente margens regulares
compor um todo mais coerente. Thackeray deveria ser pago em três fases, a primeira no à direita da mancha do texto parece atabalhoado, e um filme é «pobre» quando não
momento da àssinatura do contrato, a segunda aquando da entrega do manuscrito aca- houve orçamento suficiente para passar para o ecrã aquele tipo de realismo luxuoso
bado e a terceira no momento da edição do livro. O facto de adiar o segundo pagamento tão usado em Hollywood.

124 125
Mundos da Arte

A ARTE E A DISTRIBUIÇÃO

Os artistas produzem aquilo que o sistema pode aceitar. Isto não impede que
se possam produzir coisas de outro modo. Alguns artistas, de facto, renunciam às
possibilidades de apoio e de promoção características de um dado mundo da arte, para
produzirem outro tipo de obras. Mas, regra geral, o sistema não distribui este tipo de
obras. Esses artistas permanecem desconhecidos, ou dão origem a novos mundos da
arte que se constituem em torno daquilo que o sistema instituído deixa de fora. Esses
novos mundos fundam :frequentemente as suas actividades através da criação de novos
circuitos e métodos de distribuição.
Determinadas obras adaptam-se a todos os sistemas e, inversamente, todas as obras
se poderiam adaptar a determinados sistemas que não existem obrigatoriamente num 5
dado momento. Charles Newman opõem-se àqueles que predizem a morte anunciada
do romance como forma literária. Para ele: A ESTÉTICA, OS ESTETAS E OS CRÍTICOS
o custo de produção e de comercialização daquilo que fazemos [romances] excedeu simples-
mente a margem de lucro da indústria, e essa doença foi durante muito tempo escamoteada por
teorias sobre a agonia dessa forma literária e todas essas metáforas de doença no seu estado
A ESTÉTICA COMO ACTIVIDADE
terminal (Newman, 1973, p. 7). ·

Os estetas estudam os postulados e os argumentos que as pessoas usam para classi-


Não se trata portanto de afirmar que as obras não podem ser distribuídas, mas que ficarem as coisas e as actividades nas categorias de «belo», de «artístico», de «arte», de
as actuais instituições não podem ou não as querem distribuir. Estas metem um travão «belas-artes», de «não-arte», de «má arte», etc. Elaboram sistemas que lhes permitem
à evolução (como acontece com todas as componentes institucionais de um mundo construir e justificar essas classificações definindo os casos a que se aplicam. Os críticos
da arte), incitando os artistas a produzirem aquilo que elas adoptam e de onde retiram usam esses sistemas para formularem juízos sobre certas obras e para explicarem o
benefícios. seu valor. Por seu turno, esses juízos determinam a reputação das obras e dos artistas.
Como iremos ver, seja como for produz-se uma evolução, por um lado porque Os difusores e o público têm em consideração essa reputação quando decidem atribuir
aqueles artistas cujas obras não se enquadram no sistema existente e que, portanto, ou não o seu apoio moral e financeiro, o que acaba por ter uma incidência directa sobre
se encontram à margem procuram criar outros sistemas, por outro porque os artistas os recursos conferidos aos artistas para prosseguirem o seu trabalho.
consagrados utilizam o seu poder de sedução sobre o sistema existente para o obrigar Este conceito apresenta a estética como uma actividade e não como um corpo de
a aceitar as suas próprias obras não conformes. doutrina. Os estetas não são os únicos a entregarem-se a esta actividade. A maioria dos
participantes dos mundos da arte também formula :frequentemente juízos estéticos.
Os princípios, argumentos e juízos estéticos ocupam um lugar importante no sistema
de convenções que permite aos membros dos mundos da arte agirem em conjunto.
A criação de uma determinada estética pode preceder, seguir-se ou acompanhar a
elaboração das técnicas, -das formas e das obras que compõem a produção de um
mundo da arte e pode surgir de qualquer um dos seus participantes. Às vezes, são os
próprios artistas que formulam explicitamente essa estética. Com mais :frequência,
criam uma estética implícita, mediante escolhas de materiais e formas.
Nos mundos da arte mais complexos e mais estruturados, os profissionais especia-
lizados (críticos e filósofos) constroem sistemas estéticos dotados de uma coerência
lógica e de uma validade filosófica. A criação desses sistemas pode tornar-se uma
verdadeira indústria em si mesma. Um esteta, cujas propostas fundam um sistema de
ordem sociológica que examinarei mais à frente, dá esta definição da estética:

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

A estética ( ... ) é o ramo da filosofia que se interessa pelos conceitos que usamos quando «manipu- directamente na produção de obras de arte específicas. Quando tomam as decisões que
lamos» as obras de arte através do discurso, do pensamento ou por qualquer outro meio. A função conferem à obra o seu aspecto definitivo, os artistas procuram sobretudo aquilo que pode
do esteta consiste em analisar, apoiando-se sobre a sua própria apreensão da Instituição Artistica,
o modo como os diversos grupos e indivíduos falam e agem enquanto membros dessa Instituição, justificar essas decisões. É certo que um artista não pondera ao pormenor todas as ques-
a fim de evidenciar as regras que definem a lógica da Instituição e que regem o desenrolar das tões de fundamentação filosófica de ordem geral antes de as resolver, mas sabe quando é
suas operações internas (... ). que as suas decisões vão em sentido contrário ao das teorias, mesmo que pelo sentimento
No seio da Instituição Artística, o enunciado de factos precisos (decorrentes, por exemplo, da de uma vaga insatisfação. Uma estética geral intervém de modo mais explícito a partir do
interpretação rigorosa de uma obra de arte) implica uma avaliação precisa. As regras constitu- momento em que alguém propõe uma modificação considerável da prática corrente. Se
tivas fixam critérios de avaliação precisos que se impõem aos membros da Instituição. (Kj0rup,
1976, pp. 47-48) um músico de jazz desejar abandonar as estruturas tradicionais de doze e de trinta e dois
compassos e substituí-las por estruturas onde a extensão das frases e das sequências
são um elemento da improvisação, vai precisar de descobrir motivos defensáveis para
Ainda que isto possa parecer um pouco esquemático, é fácil perceber que os partici- essa mudança.
pantes de um mundo da arte entendem deste modo o papel dos estetas e da estética. Por outro lado, uma estética coerente e defensável contribui para a estabilidade
Um sistema estético claramente formulado presta-se a diversos usos num mundo dos valores e, desse modo, para a homogeneidade da prática. A consolidação dos
da arte. Liga as actividades dos participantes à tradição da arte e autoriza-os a reclamar valores não constitui um simples exercício filosófico. Os participantes de um mundo
os recursos e as vantagens de que normalmente dispõem as pessoas que produzem esse da arte que têm a mesma posição sobre o valor de uma obra podem adoptar a seu
tipo de arte. Considerando um exemplo concreto, se alguém argumentar que o jazz respeito uma atitude mais ou menos idêntica. Uma estética sobre a qual nos possamos
apresenta um interesse estético igual ao de outras formas de arte musical, poderá, na apoiar firmemente para avaliar as coisas garante a permanência de certas estruturas
qualidade de músico de jazz, concorrer a uma bolsa de uma fundação artística ou a um de cooperação. Quando os valores são estáveis e demonstram a sua permanência, as
lugar de professor num conservatório, tocar nas mesmas salas onde se realizam espectá- outras coisas também se estabilizam: o preço das obras e, portanto, os mecanismos
culos com orquestras sinfónicas e esperar que o seu trabalho tenha um reconhecimento comerciais de um mundo da arte, a reputação dos artistas e dos coleccionadores, bem
idêntico ao dos compositores ou intérpretes mais respeitados. Uma formulação estética como o prestígio relativo das colecções institucionais e particulares (ver Moulin, 1967).
demonstra que, quando baseada em argumentos suficientemente gerais e convincentes, A estética elaborada pelos estetas procura garantir um fundamento teórico sólido para
as actividades de determinados membros de um mundo da arte são da mesma ordem as escolhas dos coleccionadores.
que outras actividades que já usufruem dos privilégios ligados à «arte». Considerado sob esta perspectiva, o valor estético nasce da convergência dos pontos
Como resultado, o título de «arte» torna-se simultaneamente indispensável e supér- de vista dos participantes de um mundo da arte. Se esta convergência não acontecer,
fluo para aqueles que produzem as obras em questão. Ele é indispensável se conside- não existirá também valor nessa acepção do termo: os juízos de valor que não são alvo
rarmos que a arte se distingue por um acréscimo de qualidades, de beleza e de de unanimidade não podem servir de base para uma actividade colectiva e, portanto,
expressividade, e quisermos por conseguinte realizá-la de modo suficientemente incon- não têm muita incidência sobre as actividades que os põem em jogo. Uma obra tem
testado para exigirmos os recursos e as vantagens que habitualmente lhe são concedidas: qualidades e, portanto, um valor, quando há unanimidade em relação aos critérios
se o sistema estético em vigor e as pessoas que o aplicam recusarem ao pretendente a usados para a avaliar e quando lhe foram aplicados os princípios estéticos aceites de
qualidade de artista, o seu projecto desmorona-se. É supérfluo porque, mesmo que as comum acordo.
pessoas não considerem como arte aquilo que é apresentado, o artista pode continuar o Mas num mundo da arte organizado, são muitos os estilos e os movimentos que
seu trabalho sob outra designação e com o apoio de outro mundo de actividades coo- rivalizam entre si numa disputa pela maior atenção, procurando que as suas obras
perativas. sejam expostas, publicadas ou executadas nos locais onde o público costuma acorrer.
Em qualquer disciplina artística, muitos trabalhos não são considerados arte no Como o sistema de distribuição de um mundo da arte tem uma capacidade limitada,
momento em que são executados. Como veremos, certas pessoas praticam o desenho não pode apresentar todas as obras e movimentos artísticos, nem pode portanto dar a
ou a fotografia em empresas vocacionadas para o fabrico e a venda de produtos indus- todos a hipótese de recolherem os benefícios de uma apresentação ao público. Os grupos
triais, outras produzem vestuário e colchas no âmbito das suas actividades domésticas. disputam entre si o acesso a essas vantagens expondo os motivos lógicos das suas
Existem pessoas que produzem sozinhas as suas obras, com um mínimo de apoio reivindicações. Uma análise lógica raramente consegue apaziguar as querelas sobre
cooperativo, à margem de qualquer justificação social concebível e, evidentemente, à a repartição dos recursos, mas certos participantes dos mundos da arte, sobretudo
margem de qualquer estética filosófica defensável. aqueles que têm acesso aos canais de distribuição, sentem-se frequentemente tentados
Para voltar à utilidade de uma estética para um mundo da arte, podemos sublinhar que a agir em conformidade com princípios lógicos. Os debates estéticos tornam-se mais
uma estética solidamente estabelecida orienta o desempenho daqueles que participam apaixonantes a partir do momento em que não se trata apenas de resolver no abstracto

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

as questões filosóficas, mas também de decidir sobre a repartição de valiosos recursos. HOJE, QUARTA-FEIRA, 2 DE ABRIL, 1800, Herr Ludwig van Beethoven tem a honra
Quando se é confrontado com a questão de saber se o jazz é realmente música e se a de dar um grande concerto no Royal Imperial Court Theatre junto ao Burg. Serão apresentadas
fotografia é realmente uma arte, se o free jazz é realmente jazz e, portanto, música, e as seguintes peças:
se a fotografia de moda é verdadeiramente fotografia e, portanto, uma arte, o objectivo
• Uma grande sinfonia do falecido mestre-de-capela Mozart.
dos debates consiste, entre outras coisas, em decidir se as pessoas que fazem.fi"ee jazz • Uma ária da Criação do mestre-de-capela Herr Haydn, interpretada por Mlle. Saal.
podem tocar nos clubes de jazz perante o seu público, e se o trabalho dos fotógrafos • Um grande concerto para pianoforte composto e interpretado por Herr Ludwig van
de moda pode ser exposto nos museus ou nas galerias importantes. Beethoven.
Nesta corrida por um reconhecimento dos movimentos e dos estilos, os estetas • Um septeto, respeitosamente dedicado a sua Majestade a Imperatriz, e composto por Herr
intervêm com argumentos capazes de convencer os outros participantes de um mundo Ludwig van Beethoven para quatro instrumentos de cordas e três instrumentos de sopro,
da arte de que o trabalho em questão entra nas categorias que interessam a esse mun- interpretados por Herren Schuppanzigh, Scheiber, Schindlecker, Bar, Nickel, Matauschek
e Dietzel.
do. O conservadorismo dos mundos da arte, reforçado pelo modo como as práticas
• Um dueto da Criação de Haydn, interpretado por Herr e Mlle. Saal.
cónvencionais se emedam umas nas outras em tomo das actividades, dos materiais • Herr Ludwig van Beethoven improvisará ao pianoforte.
e dos lugares perfeitamente concordantes entre si, toma particularmente problemá- • Uma nova grande sinfonia com orquestra completa, composta por Herr Ludwig van
tica a aceitação de qualquer mudança. Na maioria das vezes, não se propõem aos Beethoven.
participantes de um mundo da arte senão pequenas mudanças, que deixam intactos Os bilhetes para os camarotes e para a plateia adquirem-se junto de Herr van Beethoven
os métodos habituais. No mundo da música sinfónica, a duração dos concertos em na Tiefen Graben, n.º 241, 3. 0 andar, ou na bilheteira.
nada se alterou nestes últimos anos, pelo duplo motivo de que o aumento da duração
acarretaria despesas suplementares, em virtude dos acordos colectivos, e também
porque não se ousa reduzi-la muito por medo de desagradar ao público pagador. O PREÇO DO BILHETE É O USUAL
(Nem sempre foi assim. A duração dos concertos diminuiu sensivelmente desde a
época de Beethoven, talvez devido à sindicalização dos músicos, corno se pode ver
na figura 13 [Forbes, 1967, p. 255].) A composição das orquestras sinfónicas não O INÍCIO DO CONCERTO É ÀS 18H30
sofreu grandes alterações, e o mesmo aconteceu com os materiais sonoros (os sons
FIGURA 13. Programa de um concerto dado por Ludwig van Beethoven a 2 de Abril de 1800. Nessa
da escala cromática temperada) e com os locais onde essa música era tocada. Dada
época os concertos tinham uma duração mais longa. Programa de um concerto realizado em Viena
a concorrência de todos estes factores para um certo imobilismo, os inovadores têm citado em Forbes, 1967, p. 255.
de encontrar uma justificação sólida para cada nova prática que introduzam.
Os estetas adoptam normalmente um tom moralista nos seus escritos. Partem do
princípio de que a sua tarefa consiste em encontrar uma receita infalível para estabe-
lecer a divisão entre as coisas indignas do epíteto de Arte e as obras que mereceram Os estetas podem argumentar que não tencionam fazer juízos de valor, mas apenas
esse título honorífico. Sublinham-se as palavras «indigna» e «merecem porque os distinguir a arte da não-arte o mais objectivamente possível. Como todas as sociedades
discursos estéticos estabelecem uma distinção moral entre o que é e o que não é onde os estetas exercem esse papel fazem da palavra arte um termo honorífico, o próprio
arte. Os estetas não procuram apenas classificar as coisas em categorias cómodas, facto de traçar uma linha de demarcação contribui invariavelmente para estabelecer
como faríamos com as espécies vegetais, mas distinguir o meritório do que não o é, uma hierarquia entre as realizações que poderiam pretender aceder ao estatuto de obras
e isto de modo definitivo. Não querem abordar a arte numa perspectiva mais global de arte. Os estetas não necessitam de ser participantes cínicos nas maquinações do
e ter em consideração aquilo que poderia ser interessante ou constituir um valor mundo da arte para que o seu trabalho tenha essa utilidade.
qualquer. Procuram sobretudo uma justificação aceitável para excluir determinadas O facto de as posições estéticas emergirem frequentemente no decorrer de batalhas
coisas. A lógica deste empreendimento (a atribuição de títulos honoríficos) obriga-os a travadas para impor uma novidade em nada altera a situação. Para defender essas
eliminar muitas coisas, pois um título que pudesse ser alcançado por qualquer objecto posições, também é necessário demonstrar que certas coisas não são arte, a fim de
ou actividade já nada teria de honorífico. As consequências práticas do seu trabalho se poder afirmar que outras o são. Uma estética que elevasse tudo ao patamar da arte
exigem a mesma diligência selectiva, pois tanto os difusores corno o público e os outros não satisfaria aqueles que a utilizam no contacto quotidiano com a realidade de um
participantes de um mundo da arte esperam dos estetas que estes lhes indiquem um mundo da arte.
meio claro e defensável de fazerem escolhas difíceis.

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

A ESTÉTICA E A ORGANIZAÇÃO encontro da boa fotografia de arte contemporânea e dos seus autores com um público
mais vasto do que o habitual (ver figura 14). As fotografias deviam ocupar os espaços
Outra função dos estetas e dos críticos consiste em reactualizar constantemente a normalmente reservados à publicidade, ou seja, 17 fotografias por autocarro em for-
teoria geradora de valores adaptando, por meio da crítica, os pressupostos teóricos à matos que podiam variar entre os 30 cm e os 50 cm de altura. Para ocupar quinhentos
realidade da produção artística. Quando os artistas produzem obras novas, não o fazem autocarros, eram portanto necessárias 8500 fotografias, todas seleccionadas entre a
apenas como um desafio à estética oficial, mas também em resposta às tradições do produção recente de fotógrafos contemporâneos.
mundo da arte onde estão inseridos, tradições que podemos encarar como sequências Existirão realmente 8500 fotografias contemporâneas notáveis que mereçam tal pu-
de problemas e de soluções (Kubler, 1962), e em resposta às ideias sugeridas por outras blicidade? Ao interrogarmo-nos deste modo, pressupomos a existência de um ponto de
tradições (a arte africana e a sua influência na pintura ocidental) ou às perspectivas vista estético e crítico sob o qual poderíamos avaliar as fotografias e distinguir aquelas
abertas por novas técnicas, etc. Uma estética deve estar permanentemente actualizada que têm qualidade suficiente. Sem procurar estabelecer uma tal perspectiva estética,
de modo a continuar a servir de caução lógica para aquilo que o público toma como procuremos simplificar o problema. Suponhamos que a qualidade seja uma grandeza
obras de arte importantes, e manter assim uma relação coerente entre aquilo que há mensurável segundo um parâmetro único que permita classificar as fotografias. (Na
muito foi aceite e aquilo que é agora proposto. realidade, os membros competentes do mundo da fotografia de arte, mesmo aqueles
Como os princípios e os sistemas estéticos fazem parte do conjunto das práticas que pertencem a um dos seus inúmeros segmentos rivais, adoptam toda uma série de
interdependentes que constituem um mundo da arte, influenciam e são ao mesmo tempo parâmetros quando avaliam as fotografias.) Nessas condições, será fácil dizer se uma
influenciados por elementos como a formação dos artistas e do público, as formas de fotografia é melhor do que outra, pior ou de idêntica qualidade. Mas continuaríamos
apoio financeiro, moral ou outro, e os modos de distribuição e de apresentação das sempre sem saber quantas seriam merecedoras de uma apresentação pública, quantas
obras. São todos particularmente sensíveis às exigências de coerência que encerra a poderiam ser qualificadas de «muito boas», «notáveis» ou «belas», quantas seriam
ideia de arte. dignas de entrar na colecção de um museu ou de figurar numa história da fotografia
O conceito de arte é demasiado impreciso para dar conta de todos esses fenómenos. de arte.
Tal como acontece com outros conceitos complexos, a sua enorme generalidade acaba Para se produzirem juízos desta ordem, é necessário estabelecer um limiar que
por mascarar a realidade. Quando tentamos definir a arte, descobrimos múltiplas excep- será forçosamente arbitrário. Mesmo se, numa distribuição ainda que homogénea
ções, casos que correspondem apenas a determinados critérios implicados ou enunciados de elementos, uma clivagem e um ponto determinado permitirem diferenciar
pelo conceito. Quem diz «arte» designa normalmente uma obra que possui um valor claramente os dois conjuntos separados, a utilização dessa clivagem como limiar de
estético, qualquer que seja a maneira como este é definido, uma obra legitimada por selecção não pode ter senão uma justificação prática, e nunca lógica, pois é perfeita-
uma estética coerente e defensável, uma obra à qual as pessoas autorizadas para tal mente arbitrária. Portanto os sistemas estéticos propõem e legitimam constantemente
reconhecem um valor estético, uma obra apresentada num local apropriado (museu, juízos e divisões desse tipo. De resto, «The Bus Show» desagradou bastante ao mun-
sala de concerto, etc.). Muitas vezes, as obras possuem alguns destes atributos mas não do da fotografia: a operação deixava supor que era admissível traçar uma linha de
todos. São expostas e apreciadas, mas não possuem valor estético, ou então possuem demarcação precisamente onde era permitido ocupar 500 autocarros e não onde as
valor estético, mas não são expostas onde deveriam, nem são apreciadas pelas pessoas convenções o teriam imposto (a julgar por aquilo que se faz actualmente nos museus,
certas. A generalização inerente à noção de arte sugere que esses atributos se encontram uma das melhores exposições de fotografia de produção contemporânea englobava
em conjunto presentes na realidade. Se não for esse o caso, deparar-nos-emos com as cem a duzentas obras).
eternas dificuldades decorrentes da definição da arte. Se os sistemas estéticos autorizam a dividir as obras de arte dignas de serem expos-
Alguns participantes dos mundos da arte tentam reduzir as contradições e, portanto, tas ou executadas das que o não podem, isso terá repercussões sobre as condições de
o número de excepções, conciliando a teoria com a prática. Outros procuram abalar difusão das obras. As instituições têm uma margem de manobra real, mais estreita, no
o statu quo e privilegiam, pelo contrário, as excepções. Para ilustrar esse facto, anali- que respeita à quantidade de obras que podem apresentar ao público. Os equipamentos
semos esta questão: quantas obras de arte grandiosas (ou excelentes, ou belas) é que existentes (salas de concerto, galerias de arte, museus, bibliotecas) dispõem de um
existem? Não temos a intenção de as enumerar e, aliás, não pensamos que esse número espaço limitado, os critérios de gosto em vigor reduzem as possibilidades de utilização
(se é que pode ser calculado) seja importante. Mas esta questão evidencia a influência desse espaço (já não aceitaríamos ver pinturas penduradas sobre toda a superfície das
recíproca das teorias estéticas e da organização dos mundos da arte. paredes, do chão até ao tecto, como acontecia no Salon oficial) e as expectativas do
Em 1975, Bill Arnold organizou uma exposição de fotografia em Nova Iorque, público e a sua capacidade de atenção impõem limites suplementares (mais música
«The Bus Show», dispersa por quinhentos autocarros (Arnold e Carlson, 1978). Queria poderia ser tocada se o público não se importasse de assistir a seis horas de concerto
«apresentar fotografias notáveis num espaço público», com o objectivo de permitir um em vez de duas, embora, dadas as actuais tarifas, os problemas financeiros decorrentes

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1
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1
A Estética, os Estetas e os Críticos

da remuneração dos músicos tomem essa situação de qualquer modo impossível).


As capacidades existentes podem ser sempre melhoradas, ou construindo ou graças
a um melhor agenciamento, mas a certa altura, passamos a ter apenas um determi~
nado tempo e um determinado espaço, e portanto não podemos apresentar senão um
determinado número de obras.
Num mundo da arte equipado deste modo, a estética pode, com essa definição
anteriormente imaginada da qualidade segundo um parâmetro único, operar no sentido
de fazer corresponder o limiar de qualificação das obras à capacidade de acolhimento
dos equipamentos. Ela pode colocar a fasquia bastante alta para que o número de
obras apresentadas ou escolhidas fique aquém das possibilidades existentes (por exem-
plo, quando num determinado ano um júri decide que nenhuma obra é merecedora
de prémio). Ou então pode colocar a fasquia demasiado baixa para que o número de
obras dignas de apresentação ultrapasse a capacidade dos equipamentos disponíveis.
Estas duas últimas situações instauram uma dúvida sobre a eficácia do aparelho
institucional do mundo da arte, sobre a validade da sua estética ou até sobre ambas.
Então, começam-se a exercer pressões a favor de critérios estéticos suficientemente
ténues para permitir eleger mais ou menos a quantidade de obras que os organismos

heBus ho podem acolher; reciprocamente, as instituições são forçadas a oferecer possibilidades


de apresentação suficientes para acolher todas as obras às quais a estética atribui o
rótulo de qualidade.
There w1II be an exh1b1hon oi photographs in 500 New York City public buses in May oi 1975. Por seu lado, o sistema de distribuição, que necessita de obras para distribuir,
The purpose oi lhe show 1s to present excellent photographs in a pubhc space. Ali prints w1II
appear w1th lhe photographer's name and lhe picture's t1tle. · obriga a uma revisão dos juízos estéticos sob a forma de «redescobertas» de obras e
Photographs accepted for lhe exh1b1hon w1II become pari oi lhe permanent colleclion oi lhe de artistas até então pouco apreciados. Raymonde Moulin observa que as pinturas dos
L1brary oi Congress. Send duplica te pnnts oi each photograph you wish to subm1t; one pnnt will
go on a bus. lhe other lo lhe L1brary oi Congress. Vou must stale what rights you grant to lhe grandes mestres e outras obras consagradas de valor incontestado, ao entrarem cada
L1brary oi Congress w1th each photograph: loan. reproduct1on, or neither without your spec1hc vez mais nos museus e nas colecções particulares, desaparecem do circuito comercial
approval.
Vou may subm,t photographs to be cons1dered for one person shows or as pari oi lhe group dos marchands e das galerias. Ela cita o testemunho de um marchand francês:
exh1b1I. Smce lhe photographs will be placed m lhe interior adverlisingspace oi lhe buses there
are certam s,ze requ1rements. and m lhe case oi one person shows. a spec1l1c number oi pholo•
graphs are needed to 1111 lhe available spaces.11 you are submilting for group exhibition. send us É impossível fazer fortuna vendendo Renoirs se não se fizer parte da dinastia superior de mar-
any number oi pholographs m any oi lhe me calegones. For one person shows. you must submit chands. Como não existem muitos, os quadros ainda disponíveis atingem preços tão elevados
lhe exacl number oi photographs needed to fill a bus, in each oi lhe size categones. lhe size que o seu armazenamento é impossível. Os marchands tomam-se então intermediários entre
requirements and number oi photographs for each bus is as follows: 14 photographs with an
,mage he1ghl oi 9 inches; one horizontal photograph w,th an 1mage he1ght oi 13 inches; lwo verti- dois coleccionadores ou entre um coleccionador e um museu. As redescobertas devem-se ao
cais w,th an 1mage he1ght oi 16 inches. Pholographs nol accepted for one person shows w1II auto- facto de as coisas descobertas já não existirem. (Moulin, 1967, p. 435)
mahcally be juned as pari oi lhe group exhibilion.
AII work must be unmounted and untnmmed. Remember to subm1t duphcate prints oi each
photograph. Work not accepled w1II be returned if postage is included. On lhe back oi each prinl
wr1te your name. lhe p1clure·s hlle, and lhe righls you granl to lhe L1brary oi Congress. Enclose a Uma redescoberta consiste numa campanha para chamar a atenção de determinados
3" x 5" file card w1th your name. address. and phone number. Mali pnnls to: Bus Show. Photog-
raphy Department. Prall lnshtule, Brooklyn, New York 11205. For informahon call (212) compradores para artistas cujas obras ainda são relativamente numerosas no mercado
636-3573. The deadlme for subm1ssion is March 1. 1975.
e que, portanto, se vendem a preços razoáveis.
Th1s exh1b1!1on 1s made poss1ble w,th support from lhe New York State Counc1I on lhe Arts.
Poster e 1975 by Prall lnslilute. Pholograph by 8111 Arnold. Raymonde Moulin sublinha o papel desempenhado nessas ocasiões pelos especia-
listas do juízo estético:
FIGURA 14. Cartaz anunciando «The Bus Show», uma exposição de fotografias contemporâneas
A reavaliação de determinados estilos e de certos géneros não é independente do esforço dos
organizada por Bill Arnold em 1975 e que se propunha expor o trabalho de 8500 fotógrafos contem-
especialistas, historiadores ou conservadores dos museus (... ). [Existe uma] colaboração
porâneos, utilizando as áreas normalmente reservadas à publicidade dentro dos autocarros. O cartaz
involuntária entre a pesquisa intelectual e as iniciativas comerciais na redescoberta e no lan-
destinava-se a informar os fotógrafos que desejassem participar nessa manifestação. (Cedido por Bill
çamento dos valores artísticos do passado. O juízo dos conhecedores instaura a autoridade,
Arnold.)

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

mas as sucessivas gerações de especialistas não contemplam os mesmos sectores do passado.


Vários factores podem contribuir para a mudança de orientação da sua curiosidade ( ... ).
Os aspectos mercantilistas situam-se ao nível das consequências e não das causas. Os histo-
riadores distanciam-se dos campos bem definidos em que, no actual estado da pesquisa, as
mudanças de cronologia e de apreciação estão condenadas ao fracasso. Preferem as zonas de
sombra. (Moulin, 1967, p. 430)

Deste modo, os historiadores de arte descobrem o valor de pintores até então negli-
genciados no preciso momento em que os marchands procuram esse tipo de obras para
vender. Raymonde Moulin evoca as exposições consagradas aos amigos de artistas já
célebres e cita este exemplo:

KikoYne, nascido a 31 de Maio de 1892 em Gome!, fez parte do famoso grupo da galeria
Zborowski, do qual ele e Krémegne eram à época os mais cotados. Desde então, os outros
membros do grupo - Modigliani, Pascin, Soutine - morreram e os seus quadros já só se
encontram a preços muito elevados. A galeria Romanet consagrou grandes exposições aos
dois sobreviventes: a primeira a KikoYne, no início de Junho, a segunda a Krémegne, durante
a temporada de 1957-58. (Moulin, 1967, p. 438, extraído de Connaissance des Arts, n.º 64, 15 FIGURA 15. Exposição «The Bus Show». Dado que era impossível saber em que autocarros se
de Junho de 1957, p. 32) encontravam as fotografias, elas não puderam ser alvo de um comentário personalizado por parte
dos críticos e, portanto, esta exposição não teve quaisquer reflexos na reputação dos artistas que nela
Uma outra forma de ajustar aproximadamente a quantidade de obras consideradas participaram. (Fotografia cedida por Afterimage, Visual Studies Workshop.)
interessantes ou valiosas à capacidade do sistema de distribuição consiste, para os
artistas, em orientar-se para obras para as quais exista espaço, contornando as discipli-
nas e os géneros onde já existe «saturação». Na medida em que os sistemas estéticos exclusivamente aos discos, a ponto de usarem efeitos só possíveis de obter em estúdio,
modificam os seus critérios para homologar a quantidade de obras que os mecanismos com um material complexo.
de distribuição de um mundo da arte podem acolher, mesmo para os mais exigentes de
entre eles, aqueles que estabelecem uma demarcação estrita entre aquilo que pertence
à arte e aquilo que fica de fora tomam-se, na prática, demasiadamente relativos para A TEORIA ESTÉTICA INSTITUCIONAL: UM EXEMPLO
evitarem esse ambicioso objectivo.
Quando emergem novos estilos de arte, eles competem por um espaço disponível, Ao centrar este livro em questões de organização social, não procurámos elaborar
propondo novos critérios segundo os quais as suas obras merecem ser apresentadas uma teoria estética fundada sobre a sociologia. Tendo em vista o que foi dito, compreende-
nas estruturas existentes. Podem também dar azo à criação de novos espaços, tal como -se bem que a tentativa de elaborar uma estética no mundo da sociologia seria em vão,
aconteceu com «The Bus Show» (ver figura 15). (Com efeito, os lugares «diferentes» pois só as estéticas desenvolvidas em ligação com as actividades dos mundos da arte são
não preenchem completamente a função que lhes é atribuída. «The Bus Show» apre- susceptíveis de aí exercer influência. (Gans, 1974, é uma interessante tentativa de um
sentava o grave inconveniente de não poder contribuir para a reputação de nenhum sociólogo no sentido de desenvolver uma estética, especialmente em relação à questão
artista. Como ninguém sabia onde é que num determinado momento se encontrava o do valor estético das obras produzidas pelos e para os mediá.)
autocarro que continha as fotografias de tal ou tal fotógrafo, os críticos não podiam Paradoxalmente, um certo número de filósofos propuseram uma teoria que, sem
observá-las senão por acaso, e nem mesmo os amigos e os pares dos artistas sabiam ser sociológica, dá um lugar de destaque às considerações desse tipo para nos permitir
onde estavam as obras.) Os mundos da arte não têm todos a idêntica faculdade de imaginar o que poderia ser uma abordagem propriamente sociológica. Essa teoria esté-
acrescentar facilmente o número de obras postas à disposição do público nos espaços tica, dita institucional, pode servir para ilustrar o fenómeno anteriormente evocado,
habituais. As bibliotecas modernas (mas não as livrarias [Newman, 1973]) acolhem a saber, a criação de uma nova estética destinada a levar em linha de conta obras
facilmente enormes quantidades de material impresso. Similarmente, inúmeras obras que o mundo da arte já homologou. Facto igualmente irónico, uma concepção mais
musicais podem ser difundidas sob a forma de gravações. Mas os concertos e os reci- sociológica de um mundo da arte permite resolver determinados problemas que essa
tais oferecem tão poucas saídas que os músicos passam a destinar as suas composições teoria suscita, como nos propomos demonstrar ao fazer um desvio das questões

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Mundos da Arte

que temos vindo a tratar. (Donow, 1979, propõe uma interpretação sociológica
mais abstracta da teoria.)
Da anterior análise, fica a sugestão de que as novas teorias destinadas a substituir,
prolongar ou modificar as que já existiam, emergem quando as teorias antigas deixam
de levar em linha de conta as qualidades de uma obra favoravelmente acolhida pelos
membros qualificados do mundo da arte em questão. Quando uma estética deixa de
poder estabelecer a legitimidade daquilo que já é legítimo de qualquer maneira, alguém
constrói outra teoria mais adequada. (Isto que aqui referimos deve ser entendido como
uma pseudo-história, indicando numa narração linear algumas relações que possam
ter ou não ter acontecido exactamente como são descritas.)
Assim, e para apresentar as coisas de um modo bastante sumário, o juízo feito.
sobre as obras das artes plásticas fundamentou-se durante muito tempo numa teoria
que prescrevia a essas artes a imitação da Natureza. Chega o momento em que essa
teoria se toma impotente para esclarecer as obras que são consideradas como novas.
Tal aconteceu, por exemplo, com as medas de feno e as catedrais de Monet, mesmo
quando se pretendia ver nelas tentativas para estabelecer relações entre a luz e a cor.
Uma teoria expressiva da arte considerou depois a qualidade das obras a partir da sua
capacidade para exprimir as emoções, as ideias e o temperamento dos seus autores.
Ainda assim, foi necessário remodelar ou substituir essa estética para abordar o abstrac-
cionismo geométrico, a pintura gestual e todas as obras que escapavam ao seu campo de
aplicação (da mesma maneira, nem essas teorias nem aquelas que lhes eram análogas
nos podiam indicar grande coisa sobre a música aleatória).
A teoria institucional visa resolver os problemas levantados pelas obras que
ofendem tanto o senso comum como as sensibilidades mais refinadas, não deixando
entrever qualquer traço de intervenção do artista, nem na sua concepção nem na sua
realização material. Os defensores da teoria institucional interessam-se por obras como
o urinol ou a pá de neve expostas por Marcel Duchamp (ver figura 16), que devem o
seu estatuto de arte à assinatura de Duchamp, ou as caixas de Brillo expostas por Andy
Wharol (ver figura 17). O senso comum objecta que essas obras, independentemente
de quem as tenha realizado, não exigem qualquer mestria ou sensibilidade artística,
pois não imitam a realidade, já que provêm directamente dela, e não exprimem nada
de interessante, porque não passam de objectos banais. As críticas das pessoas mais
refinadas são bastante parecidas.
Apesar de tudo, essas obras alcançaram um enorme renome no mundo das artes
plásticas contemporâneas e fizeram muitos rivais. Os estetas, colocados perante um
facto consumado, elaboraram uma teoria que situava o carácter artístico e a qualidade
da obra fora do objecto propriamente dito. A partir de então, essa qualidade tinha de
ser encontrada na relação dos objectos com um dado mundo da arte, com as estruturas FIGURA 16. Marcel Duchamp, En avance du bras cassé. Os «readymades» de Duchamp chocaram
institucionais onde se inseririam a produção, a distribuição, a fruição e a exegese da arte. simultaneamente as sensibilidades do senso comum e da crítica: eram artefactos já existentes que
Arthur Danto e George Dickie formularam as teses mais importantes da teoria Duchamp se limitava a assinar. (Yale University Art Gallery, oferta de Katherine S. Dreier para a

L
1
institucional. Danto debruçou-se sobre a essência da arte, sobre aquilo que, na relação
de um objecto com um mundo da arte, conferia a esse objecto o estatuto de arte. Num
célebre enunciado sobre esse problema, :: afurnou:

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Collection Société Anonyme.)

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

Dickie concentra a sua atenção nas formas e nos mecanismos organizacionais.


Segundo ele:

Uma obra de arte, no seu sentido taxonómico é: 1) um artefacto, 2) um conjunto dos seus aspectos
que lhe conferiu o estatuto de candidata à apreciação de uma ou mais pessoas que agem em nome
de uma determinada instituição social (o mundo da arte). (Dickie, 1975, p. 34)

Uma ampla e interessante literatura paralela cresceu em torno deste ponto de vista
para criticá-lo e desenvolvê-lo (Cohen, 1973; Sclafani, 1973a e 1973b; Blizek, 1974;
Danto, 1974; Mitias, 1975; Silvers, 1976). (Os sociólogos irão encontrar uma certa
familiaridade entre a teoria institucional da arte e as diversas teorias sociológicas que
tomam por objecto o modo como as definições sociais são criadoras da realidade-por
exemplo, a teoria dita do desvio [ver Becker, 1963],já que ambas encaram o carácter
do seu objecto de estudo consoante o modo como o definem as pessoas ao agirem
colectivamente.)
Os filósofos tendem a argumentar a partir de exemplos hipotéticos, e o «mundo
da arte» de que falam Dickie e Danto só tem a consistência necessária para garantir
as suas demonstrações. Os seus detractores também não se preocupam muito com os
caracteres dos mundos da arte presentes ou passados e encarregam-se, pelo contrário,
de denunciar as incoerências lógicas dos modelos utilizados nessa teoria. Nenhum dos
que participou neste debate abarcou os mundos da arte em toda a sua complexidade
organizacional como se faz aqui, mesmo se o nosso ponto de vista não é incompatível
FIGURA 17. Andy Warhol, Brillo. As obras da «Pop Art» foram muito criticadas por não apresen- com aquela tese. Mas ao recolocarmos os mundos da arte numa perspectiva mais
tarem as características convencionalmente exigidas a qualquer obra de arte. (Fotografia cedida por complexa e mais empírica, podemos ultrapassar determinados problemas perante
Castelli Archives.)
os quais o discurso filosófico chegou a um impasse, o que permitirá talvez facilitar
o trabalho dos estetas e aprofundar simultaneamente a análise do papel da estética
Para considerar uma coisa como arte, é necessário algo que o olhar não consegue discernir, um num mundo da arte.
ambiente de teoria estética, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte. (Danto,
1964, p. 580)
QUEM?
A teoria de onde proveio a ideia de realizar a caixa de Brillo, as relações entre essa
ideia e outras reflexões sobre aquilo que faz as obras de arte serem realmente arte, e Quem é que pode atribuir a uma coisa o estatuto de candidato à apreciação e, por-
a sua relação com os outros objectos que essas obras inspiraram, tudo isso forma um tanto, o estatuto de obra de arte? Quem é que pode actuar em nome dessa instituição
contexto onde a caixa de Brillo e o objecto «caixa» em si se tornam arte porque é esse social que é um mundo da arte? Dickie responde sem hesitar. Segundo ele, o núcleo
o sentido que adquirem. Ou, para apresentar as coisas de outro modo: de um mundo da arte é composto por um determinado número de pessoas que podem
agir em seu nome:
A partir do momento em que uma coisa é considerada uma obra de arte, ela toma-se
objecto de uma interpretação. É a isso que ela deve a sua existência enquanto obra de arte, e, Um grupo de pessoas, não verdadeiramente organizadas mas contudo em relação, compreen-
quando a qualidade de arte lhe é negada, ela despoja-se da sua interpretação para se tomar apenas dendo nomeadamente artistas (... ),produtores, directores de museus, frequentadores de museus
uma coisa. A interpretação é, em certa medida, função do contexto artístico da obra: reveste uma e de teatros, jornalistas, críticos que trabalham para todo o tipo de publicações, historiadores
significação diferente segundo a sua situação na história da arte, os seus antecedentes, etc. Como de arte e filósofos da arte. São estas as pessoas que fazem girar a máquina do mundo da arte
obra de arte, ela adquire finalmente uma estrutura que um objecto perfeitamente idêntico é de e que asseguram desse modo a sua perpetuação. (Dickie, 1975, pp. 35-36)
todo incapaz de assumir se for um objecto real. A arte existe num ambiente de interpretação,
de modo que uma obra de arte é um suporte da interpretação. (Danto, 1973, p. 15)

· 140 141
Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

Mas ele também sublinha que: dos museus não possuem competências para fazerem os juízos que fazem, que num
mundo melhor não seriam autorizados a emitir tais juízos, porque estão mal informados,
Por outro lado, todo aquele que se considera membro do mundo da arte também se torna parte imbuídos de preconceitos ou influenciados por considerações que lhes são extern.as.
dele ipsofacto. (Dickie, 1975, p. 36) ,Uns pensam que eles são demasiado vanguardistas e não dão toda a atenção que seria
necessária aos estilos e géneros consagrados. Outros pensam exactamente o contrário
Com esta última afirmação, os estetas são avisados de que a perspectiva de Dickie (ver Haacke, 1976). Muitos dos participantes recusam a arbitragem dos responsáveis das
não os ajudará com certeza a distinguir o meritório daquilo que não o é. Esta definição instituições porque, sob os mais variados aspectos, eles surgem como os representantes
é bastante vaga. Eles não podem aceitar o corolário de que os representantes de um dos ricos e dos poderosos das comunidades que servem (ver Catalog Committee, 1977;
mundo da arte que conferem aos objectos o título honorífico de obras de arte possam agir Haacke, 1976; Becker e Walton, 1976). Assim, as suas decisões seriam provenientes
segundo a sua própria autoridade. Expressam o seu desacordo baseando-se em contra- tanto de um preconceito de classe como de uma dada lógica estética.
-exemplos de algum humor. Imaginemos que um tratador do jardim zoológico decide Os membros de um mundo da arte também não chegam a um consenso sobre
o peso real dos juízos emitidos por determinadas categorias de profissionais. Esse
que é membro do mundo da arte e, nessa qualidade, confere um título de apreciação,
desacordo reflecte a ambiguidade da posição que essas pessoas ocupam no mundo da
portanto o estatuto de obra de arte, ao elefante que está sob a sua guarda. Não é por isso
arte. Frequentemente, não se sabe muito bem se a opinião de tal ou tal crítico conta
que o elefante passa a ser considerado uma obra de arte, não é verdade? O tratador do
verdadeiramente, se outras pessoas se vão inspirar nas suas actividades: todas as cir-
jardim zoológico não poderia ainda assim agir em nome da arte? Bom, claro que não,
cunstâncias ligadas às mudanças e às lutas políticas que agitam o mundo da arte têm
o elefante não é uma obra de arte, todos o sabemos (Dickie, 1971; Blizek 1974). aqui uma certa importância. Para além do peso real dos seus veredictos, é também a
Mas como é que o sabemos? Muito simplesmente porque temos uma noção da própria posição de pessoas como os críticos, os marchands, os membros de comissões
organização dos mundos da arte que parte do mero bom senso. Os mundos da arte e outros júris, que é problemática. Esses equívocos, que uma análise filosófica ou
existem de tal modo que alguns dos seus membros são considerados por muitos ou sociológica não tem o poder de dissipar, devem-se ao facto de o respeito de que esses
pela maioria das pessoas interessadas como mais habilitados que outros para falar em especialistas necessitam para assegurar a sua autoridade não lhes ser facultado pelos
nome de um mundo da arte. As pessoas interessadas são aquelas que participam nas interessados senão de modo esporádico e inconstante.
actividades cooperativas onde as obras desse mundo são produzidas e consumidas. A teoria institucional não pode portanto fornecer aos estetas os meios para distinguir
Os membros deste modo habilitados podem ser considerados como tais em virtude categoricamente as obras de arte daquelas que não o são. Dado que o acordo sobre o
da sua experiência, porque possuem um dom inato para reconhecer a arte, ou porque especialista habilitado a decidir o que é arte varia muito conforme as situações, parece
aquele é o seu trabalho e porque devem estar bem preparados para o saber. Pouco realista apreender o artista segundo uma variável contínua e classificar os objectos, quer
importa a razão. O que lhes permite estabelecer e afirmar a distinção é a autoridade sejam ou não artísticos, em vez de se limitar à dicotomia da arte e da não arte.
que os participantes lhes reconhecem de comum acordo. As próprias maneiras de conferir a qualidade de arte a objectos ou a manifestações,
Um sociólogo não tem de decidir quem é que está habilitado a conferir a etiqueta e de a ratificar, variam segundo os mundos da arte. Vantagens materiais como a atri-
de arte (ou, para usarmos a fórmula de Dickie, a conferir um estatuto de candidato a buição de bolsas, prémios, comissões, espaços de exposição ou outras possibilidades
apreciação). Só precisa de observar a quem é que os membros de um rnundo da arte de apresentação das obras (publicação, produção, etc.) têm como efeito imediato per-
conferem essa prerrogativa, no sentido em que, a partir do momento em que as pessoas mitir ao artista continuar o seu trabalho. Vantagens menos palpáveis, como a opinião
em questão decidem que uma coisa é arte, os outros comportam-se consequentemente. favorável de determinadas sumidades do mundo da arte, têm efeitos indirectos, mas
Certas características comuns aos mundos da arte mostram que a teoria institucional consideráveis, sobre as carreiras dos artistas. Os seus beneficiários são inseridos nos
não é capaz de satisfazer a aspiração dos filósofos de se poder distinguir definitivamente movimentos de ideias que determinam as mudanças e as novas tendências. Recebem
aquilo que é arte daquilo que não é. Antes de mais, é raro que todos os participantes a confirmação de que as suas orientações têm fundamento e ajuda quando necessitam
estejam verdadeiramente de acordo sobre as pessoas que estão habilitadas a falar em de resolver problemas quotidianos, tudo coisas que são recusadas aos artistas que se
nome da arte no seu todo. Algumas ocupam posições institucionais que as autorizam limitam a ter uma carreira de êxito em termos mais convencionais.
de facto a decidirem aquilo que será aceitável. Deste modo, os directores dos museus
poderiam decidir se a fotografia é arte porque poderiam tomar ou não a decisão de a
expor nos seus museus. Eles até poderiam classificar o tipo de arte a que pertenceria (por QUAIS?
exemplo, as artes «menores» ou o seu contrário, quaisquer que sejam), escolhendo expor
as fotografias em grandes salas onde normalmente se expõem pinturas, ou relegá-las Quais são as características que um objecto tem de possuir para ser considerado
para um espaço menos prestigiante. Mas alguns participantes acham que os directores uma obra de arte? A teoria institucional parece indicar que tudo pode ser objecto de

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

apreciação. Em resposta a um oponente que defendia que certos objectos, como «pione-
ses, envelopes, talheres de plástico de certos restaurantes», não podiam ser apreciados
(Cohen, 1973, p. 78), Dickie afirmou:

Mas por que é que não podemos apreciar as qualidades vulgares de Fonte [o urinol que
Ducharnp expôs corno obra de arte; ver figura 18] - a sua superfície branca e brilhante, a
profundidade quando reflecte os objectos envolventes, a sua agradável forma oval? Ela
possui qualidades idênticas às das obras de Brancusi e de Moore que ninguém recusa.
De modo idêntico, os pioneses, os envelopes e os talheres de plástico possuem características
que podemos apreciar se lhes quisermos dedicar a nossa atenção. Um dos interesses da fotografia
reside na sua capacidade de abarcar e valorizar as particularidades dos objectos vulgares. Pode-se
fazer o mesmo, sem recorrer à fotografia, limitando-nos a observar. (Dickie, 1975, p. 42)

Então, basta dizer que uma coisa é arte para que se tome arte?

Não é assim tão simples: mesmo se, apesar de tudo, for um baptisrno conseguido aquilo que
faz de um objecto urna obra de arte, nem todos os baptisrnos resultam. Existem, forçosamente,
algumas condições a satisfazer, tanto pela pessoa que nomeia corno pelo objecto que é nomeado:
se elas não forem preenchidas, bem se poderá dizer «eu te baptizo», que nada daí advirá. (Cohen,
1973,p.80)

Cohen tem razão: nem sempre se tem êxito quando se aplica a etiqueta de arte a
qualquer coisa. Mas não deduzamos daí que os limites se confinariam à própria natu-
reza do objecto ou da manifestação e excluiriam ipso facto, e sem recurso possível,
determinados objectos do domínio da arte.
Em qualquer mundo da arte, a designação daquilo que pode ser tido como arte
obedece seguramente a determinadas condições estabelecidas por um consenso
prévio sobre os critérios a aplicar e sobre as pessoas que os podem aplicar. Apesar
das suas divergências, de doutrina ou outras, os membros de um mundo da arte são
frequentemente capazes de designar com alguma certeza os artistas e as obras que
merecem atenção. Deste modo, os músicos de jazz que defendem diferentes estilos
podem simultaneamente estar de acordo para afirmar que certo músico ou certa
interpretação tem «swing». As pessoas do teatro também serão unânimes em avaliar FIGURA 18. Marcel Duchamp, Fonte. Os estetas estão em desacordo quanto ao tipo de qualidades
que uma obra de artes plásticas deve possuir para que seja considerada arte. Poderão as propriedades
se uma dada cena «funciona» ou não. Quando se trata de decidir apoiar determinadas físicas de uma obra como Fonte ser apreciadas? (Fotografia cedida pela galeria Sidney Janis, Nova
obras e os seus autores, os artistas entram por vezes em violento desacordo, e em casos Iorque.)
extremos suscitam juízos muito menos seguros, sobretudo quando se trata de estilos
recém-introduzidos na prática de um mundo da arte ou, pelo contrário, desconside- Nesse sentido, um consenso ou uma mera denominação não podem transfor-
rados a ponto de serem rejeitados. Mas a maioria dos juízos são incontestados, não mar o que quer que seja numa obra de arte, porque essa qualquer coisa não se
apenas por se limitarem a reproduzir juízos já confirmados, mas porque se baseiam adequa aos critérios em vigor num mundo da arte. O que não contradiz em nada
na aplicação sistemática dos mesmos critérios por parte de membros experientes a ideia de que é o baptismo que faz a obra de arte. O mundo da arte chega à una-
do mundo da arte. Hume descreveu esse fenómeno no seu ensaio sobre os critérios nimidade sobre os critérios que determinadas obras satisfazem de modo tão evi-
do gosto, e não deixa de ser interessante relembrar o modo como a maioria dos médicos, dente que quase se toma automático, e este consenso é também consequência do
quando confrontados com uma série de dados clínicos, chegam ao mesmo diagnós- baptismo. Ele surge porque, em princípio, os membros do mundo da arte não têm
tico (poderíamos encontrar situações idênticas em todos os domínios das actividades qualquer dificuldade em classificar as obras nessas circunstâncias. A definição daquilo
1
especializadas). que pode ser arte tem os seus constrangimentos, mas eles impõem-se na mesma

144 145
Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

medida da adequação entre as características dos objectos e das regras de classificação profunda argumentação ideológica. Outras, nomeadamente os gerentes dos teatros,
em vigor num mundo da arte. os operadores dos estúdios de gravação e os impressores, exigem apenas que as suas
Por outro lado, esses critérios que fazem parte de um consenso tendem a modificar- facturas sejam saldadas.
-se. O diálogo constante entre os artistas e os outros participantes leva a constantes A resposta à questão não reside forçosamente, e não devia mesmo residir, no estabe-
rectificações dos critérios de juízo e da sua aplicação. No início dos anos trinta, os lecimento de uma norma específica que estipularia a quantidade de dispositivos
músicos, os críticos e os amadores de jazz declaravam unanimemente que os instru- institucionais exigida pelo funcionamento de um mundo da arte. As actividades em
mentos eléctricos não podiam produzir aquilo que consideravam como verdadeira questão podem ser praticadas por um número muito variável de pessoas e não exigem
música. Tiveram de reconsiderar os seus critérios quando Charlie Christian demonstrou forçosamente todo o aparelho institucional de que dispõem mundos tão desenvolvidos
a inúmeras pessoas que a sua guitarra eléctrica lhes podia desencadear o mesmo tipo como o da escultura e da pintura contemporâneas, ou o da música sinfónica e da
de emoções que uma guitarra acústica. ópera. Quando falamos de mundos da arte, é muitas vezes nestes que pensamos. No
entanto, é possível produzir pinturas, romances, música, bem como todo o tipo de
outros objectos ou de manifestações artísticas, sem ter de recorrer a todo o pessoal
ATÉ ONDE? de apoio que compõe esses mundos (críticos, fornecedores de material, produtores,
fornecedores de espaços, públicos diversos). Convém recordar que o leque de situa-
Os estetas, tanto os partidários como os adversários da teoria institucional, ções é balizado por um limite inferior: qualquer que seja a actividade artística, existe
preocupam-se com os efeitos da teorização estética sobre os artistas e os mundos da sempre a capacidade para se cumprir sozinho todas as tarefas necessárias. Não é
arte. Receiam, entre outras coisas, que uma teoria demasiadamente restritiva desenco- uma situação habitual, e não seduz muitos artistas, mesmo que por vezes lhes pareça
raje inutilmente certos artistas e entrave a sua criatividade. É sobrestimar a influência invejável, quando têm problemas com os outros participantes. Quando o número de
das teorias estéticas sobre o comportamento dos mundos da arte. Se existe influência, pessoas que estão envolvidas cresce, a actividade desenvolve-se até ao ponto em que
ela exerce-se sobretudo no outro sentido. Mas os «institucionalistas» tiram uma con- se forma um núcleo estável de pessoas que coopera regularmente para produzir o
sequência importante da sua análise: se os artistas querem ser reconhecidos enquanto mesmo género de obras. Se esse número aumentar ainda mais, atinge-se um estádio
tal, têm de convencer as pessoas que irão certificar o carácter artístico do seu trabalho. onde os diferentes artistas podem produzir tendo em vista um público mais vasto e,
(A análise institucional sugere, em princípio, que qualquer um pode fornecer essa con- a partir daí, certamente anónimo, mas que podem esperar cativar em certa medida.
firmação, mas esses teóricos admitem de facto que ela deve ser.fornecida pelo mundo Digamos que o primeiro nível de organização corresponde a um mundo esotérico e o
da arte existente.) Ora, se a arte não é senão aquilo que um dado mundo da arte reco- último a um mundo exotérico. O nome que lhes é dado e o limite da sua demarcação
nhece como tal, existe uma escapatória (analisada num capítulo posterior), que consiste não têm senão uma importância relativa. O que importa, antes de mais, é constatar
em organizar sobre bases novas um mundo da arte que confirmará a natureza artística que são arbitrários, pois na realidade esses níveis são muito diversos e repartem-se
daquilo que é produzido. De facto, essa estratégia provou repetidamente a sua eficácia. por múltiplos eixos.
E ainda que as tentativas goradas sejam em muito maior número, ela mantém-se
apesar de tudo uma eventualidade perfeitamente possível.
Mais dificuldades se apresentam quando se quer criar um mundo da arte para aí QUANTOS?
fazer homologar as obras que não encontram lugar nos mundos da arte existentes.
Os recursos (nomeadamente os apoios financeiros) já estão atribuídos às actividades Nem Dickie nem Danto indicam com clareza quantos mundos da arte é que exis-
artísticas em presença, de tal modo que é preciso explorar novas fontes de finan-
tem. Segundo Dickie:
ciamento, novos sectores de oferta de recursos humanos, outros modos de provisão
de material, equipamento, etc., sem esquecer os espaços onde apresentar as obras. O mundo da arte é compósto por um feixe de sistemas: teatro, pintura, literatura, música, etc., e cada
Dado que as teorias existentes não homologam as obras em questão, é necessário qual instaura um quadro institucional para a atribuição de um estatuto aos objectos provenientes do
elaborar uma nova estética, um novo estilo de crítica, e enunciar novos critérios de seu domínio. Não se pode fixar qualquer limite ao número de sistemas envolvidos na noção genéri-
avaliação. Contudo, ao afirmar que «é necessário» fazer tudo isso, levanta-se um ca de arte, e cada um dos principais subsistemas contém outros subsistemas. Estas características d_o
problema de definição, da mesma ordem daqueles que a análise filosófica suscita. Até mundo da arte tomam-no suficientemente elástico para acolher inclusive as expressões criativas mais
onde é que é preciso ir na organização de um mundo da arte e na instauração do seu radicais. Um sistema completamente novo, comparável ao teatro por exemplo, podia reunir-se num
único bloco. Frequentemente, um subsistema junta-se aos outros no interior de um sistema. Por
aparelho institucional, antes de se poder fazer aceitar a obra em questão para além
exemplo, esculturas de lixo no campo da escultura, ou o happening no campo do teatro. A longo
do círculo dos iniciadores desse novo mundo? Os meios e os argumentos necessários prazo, essas reuniões podem acabar por constituir sistemas completos. (Dickie, 1975, p. 33)
para convencer as pessoas são muito variáveis. Para algumas, é necessária uma

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Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

Para Blizek (1974), trata-se de uma questão empírica, mas ele também faz notar de Edna Hibel (... ). Finalmente, o sonho dos Craig concretizou-se e o Hibel Museum of Art
que o termo «mundo da arte» é demasiado vago para que se saiba se existe um mundo tornou-se uma realidade. A colecção Craig constituiu o núcleo de um conjunto composto por
único e subdivisões, ou vários mundos talvez independentes, acrescentando que, nesta todas as obras de Edna Hibel oferecidas pelos seus fervorosos admiradores. O museu de Palm
Beach presta homenagem à generosidade, à perspicácia e ao entusiasmo dos Craig. (Hibel
última hipótese, poderia haver aí incompatibilidade entre eles. Muitas destas observa- Museum of Art, 1977)
ções são bastante relevantes.
Empiricamente, os subsistemas correspondentes às diferentes disciplinas artísticas Os segmentos regionais, menos isolados que o exemplo dado, orientam geral-
podem subdividir-se em segmentos distintos e quase totalmente isolados uns dos outros. mente os seus esforços para os centros capitais do «grande» mundo da arte (McCall,
Falámos dos estilos e dos movimentos artísticos como se eles disputassem as mesmas 1977). Aqueles que aí participam sofrem de uma falta de oportunidades para expo-
retribuições e os mesmos públicos (ainda o faremos quando examinarmos as mutações rem e, sobretudo, da sensação de que o sucesso na sua região pouco lhes facilitará
no seio dos mundos da arte), mas isso nem sempre é verdadeiro. Na maior parte das o acesso ao mundo maior ao qual aspiram, um mundo que praticamente os ignora.
vezes, os membros de um grupo encontram um público e apoios em sectores da sociedade Se definirmos os mundos da arte pelas actividades que os seus participantes exercem
que não teriam dado o seu apoio aos outros segmentos do mundo da arte susceptíveis colectivamente, podemos questionar-nos sobre quais as actividades que caracterizariam
de entrar em concorrência com eles. Muitos mundos da pintura recorrem aos mesmos um mundo de arte global (que reuniria todas as artes inventariadas) e que nos autorizaria
fornecedores de material que os artistas contemporâneos reconhecidos, mas possuem a falar de um único mundo. Entrevemos dois.
dispositivos diferentes, e frequentemente eficazes, para a exposição, a difusão e o fi- Primeiro, as subcomunidades associadas às diversas disciplinas artísticas são fre-
nanciamento dos seus trabalhos. Nos Estados Unidos, os «Cowboy Artists ofAmerica» quentemente submetidas a constrangimentos externos comuns, que as colocam peran-
trabalham para uma clientela que admira Charles Russell e Frederick Remington (dois te dificuldades análogas. Desse modo, uma crise económica pode colocar todas as
pintores especializados nas cenas do Far West e expostos nos «verdadeiros» museus), formas de arte numa situação financeira delicada (embora a Grande Depressão de 1929
mas que não dispõe dos meios ou da oportunidade para comprar as obras destes. não tenha tido esse efeito nos Estados Unidos). Um governo pode impor a mesma
censura a todas as artes, de tal modo que a experiência que os artistas tiram de um
Apesar do desprezo dos críticos de arte da costa Este, a pintura e a escultura cowboy agradam domínio serve para advertir os outros daquilo que os pode esperar. Assim, um deco-
de tal modo que os seus preços sobem mais rapidamente do que balões enchidos a gás. A arte rador de teatro poderia modificar os seus projectos em função da censura e adivinhar
cowboy tem as suas grandes figuras, as suas galerias e até a sua própria casa editora. (Lichtens- aqu_ilo que lhe será permitido apresentar em cena pelas reacções dos censores face a
tein, 1977, p. 41) um disco de um cantor popular, um livro recente ou um novo filme. Na medida em
que os participantes de todos esses mundos têm uma experiência comum da censura
No extremo, o aparato de um mundo da arte pode constituir-se em tomo da obra de e antecipam as suas reacções da mesma maneira, exercem uma forma de actividade
um único artista relativamente isolado do mundo mais vasto e reconhecido da sua dis- colectiva e constituem desse modo um mundo da arte. Se se associassem para lutar ou
ciplina. Basta apenas que alguém consiga obter os meios para tal. Tomemos o exemplo para protestar contra a censura, ou cooperassem para a contornar, isso seria outra
de Edna Hibel. A sua obra, embora exposta em lugares prestigiados, não gozou de um forma de exercer uma actividade colectiva pela qual se define um mundo da arte.
grande prestígio junto dos artistas e dos coleccionadores contemporâneos. E apesar de Em segundo lugar, os artistas de diferentes mundos podem ter objectivos pareci-
tudo, foi-lhe consagrado um museu inteiro: dos e as mesmas ideias sobre o modo de os alcançar. Nos períodos de nacionalismo
exacerbado, os artistas podem esforçar-se por exprimir nas suas obras o carácter e as
O Hibel Museum of Art, de Palm Beach, deve-se à iniciativa de Ethelbelle e Clayton aspirações do seu país. Para tal, devem encontrar uma linguagem e técnicas capazes
B. Craig. Os Craig, que eram desde há muito tempo os mais importantes coleccionadores de de veicular os sentimentos do seu povo, bem como os seus próprios sentimentos.
obras de Edna Hibel, tiveram a ideia de fundar o Hibel Museum para aí abrigar a sua colecção Na medida em que os membros dos diversos mundos debatem o conjunto dessas ques-
mundialmente célebre (... ).Na sua primeira visita [em 1961] à recém-inaugurada Hilbert Gallery
em Rockport, no Massachusetts, Ethelbelle e Clayton Craig ficaram apaixonados pela obra de
tões, poderíamos afirmar que eles participam num mundo da arte global.
Edna e compraram cinco pinturas para a sua já extensa colecção de arte( ... ). À medida que a Os organismos artísticos especializados numa dada disciplina empregam frequente-
colecção dos Craig ia crescendo, crescia também a sua simpatia pela artista e pela sua obra e mente pessoas vindas de outros sectores, que lhes fornecem o pessoal de apoio para a
consolidava~-se os laços de ~mizade e de admiração mútua, a ponto de o domicílio dos Craig actividade dominante. Os artistas plásticos criam cenários para o teatro e para o bailado,
se tornar praticamente um museu consagrado a Edna Hibel ( ... ). Os Craig quiseram evitar que os escritores redigem libretos para ópera, os músicos compõem e executam música para
essas ob:as se dispersassem, o que teria impossibilitado aos estudantes, aos investigadores e filmes, etc. Quando os artistas cooperam deste modo para além das fronteiras dos sub-
aos adm1radores de terem acesso a um panorama representativo num único lugar. Assim, au-
mentaram o ritmo das aquisições e enriqueceram a sua colecção com inúmeras obras-primas
sistemas, podemos dizer que participam num mundo de arte global. E essa faculdade de
cooperar pode incitar os membros de mundos que até então não se encontravam ligados

L_ 148 149
Mundos da Arte A Estética, os Estetas e os Críticos

a conceber novas formas de colaboração e a forjar novas teias suplementares no mundo mundo da arte (ou da sociedade), dignos de gratificações especiais em virtude dos teste-
da arte global. Enfim, os participantes de mundos da arte específicos provêm frequente- munhos do seu talento. A teoria institucional permite aos membros dos mundos da arte
mente de uma mesma facção restrita da sociedade, por exemplo a burguesia culta ou a definirem de forma diferente esse talento particular, identificando-o (por exemplo) com
pequena nobreza. Talvez tenbam frequentado as mesmas escolas, ou talvez pertençam a capacidade de enunciar ideias novas e fecundas, e legitima desse modo simultaneamen-
a famílias unidas por laços de parentesco ou de amizade, e esses laços servirão para te o papel e as gratificações especialmente concedidas ao artista.
forjar um mundo da arte global, ou pelo menos poderão suscitar as interacções regulares A nossa análise da teoria institucional traz algumas cambiantes à descrição dos
que os conduzirão a colaborarem no quadro das actividades anteriormente evocadas. mundos da arte. Podemos observar que as autoridades do mundo da arte têm o poder
A análise desse problema revela-nos com clareza que falar de mundos da arte é de homologar a qualidade artística de uma obra, mas que esse poder é muitas vezes
uma simplificação. A expressão «mundo da arte», não o esqueçamos, é apenas um contestado. Donde a impossibilidade de satisfazer os estetas, que desejariam poder dis-
modo de designar as pessoas que participam regularmente na realização de obras de tinguir aquilo que é arte daquilo que não é, segundo critérios decisivos em consonância
arte. As interacções regulares são precisamente aquilo que faz existir o mundo da arte: com a acção das autoridades artísticas. Isto tem algum interesse, pois os estetas não são
resolvem-se portanto geralmente as questões de definição procurando observar quem os únicos a nutrir um tal desejo. A bem dizer, os sociólogos insistem frequentemente
faz verdadeiramente o quê e quem coopera com quem. Desse modo, os problemas de que campos como a sociologia da arte ou a religião ou a ciência são determinados por
lógica e de definição com os quais a teoria estética institucional se depara (em que a alguns critérios definitivos. Se procurarem que o critério em questão entre em sinto-
dimensão empírica não é de modo nenbum negligenciável) podem ser resolvidos com nia com as concepções popular ou oficial da arte, será impossível satisfazer tanto os
o conbecimento dos factos examinados caso a caso. sociólogos como os estetas.
Também constatamos que, em princípio, todo o objecto ou toda a acção pode
receber uma legitimidade artística, mas que na prática cada mundo da arte submete
A ESTÉTICA E OS MUNDOS DA ARTE
essa legitimação a regras e a procedimentos que, ainda que não sejam irrevogáveis
nem infalíveis, não deixam de tomar menos improvável a ascensão de determinadas
coisas ao patamar de obra de arte. Essas regras e esses procedimentos estão inscritos
A teoria estética institucional ilustra deste modo o fenómeno analisado no início
nas convenções e nos esquemas de cooperação que permitem aos mundos da arte levar
deste capítulo: quando uma teoria estética se toma impotente para legitimar aquilo
a bom termo as suas actividades regulares.
que os artistas fazem, e sobretudo aquilo que as outras instituições do mundo da arte,
Vemos o que poderia autorizar a afirmação de que todas as artes compõem um
nomeadamente os organismos de difusão e o público, consideram como arte, e de
único e vasto mundo. As formas já descritas de cooperação entre membros de seg-
excelente qualidade, os estetas fornecem os novos argumentos lógicos necessários. mentos especializados (a experiência partilhada da censura do Estado, a afirmação
Caso contrário, outros o farão em seu lugar, ainda que os outros participantes possam de uma arte nacionalista, a colaboração pluridisciplinar) podem ser tomadas como
muito bem continuar as suas actividades sem procurarem uma justificação para as suas as actividades de um único e vasto mundo da arte. Como esse género de cooperação
acções (de facto, tudo depende da amplitude dos debates que o seu trabalho provoca). parece muito pouco corrente, e isso em todas as sociedades, talvez seja melhor dizer
As teorias mimética ou expressiva da beleza na arte não lograram explicar nem justificar que os mundos da arte realmente activos são aqueles que correspondem às várias
a predilecção suscitada por obras contemporâneas tidas em grande apreço no mundo das disciplinas artísticas. Contudo, essa é uma questão empírica que só um trabalho de
artes plásticas. Dada a avidez da concorrência pelos recursos e as honrarias no mundo da pesquisa permitirá elucidar.
arte contemporânea, e o número de filósofos que estavam receptivos a essa questão, era Finalmente, observamos que os estetas (ou aqueles que preenchem a sua função)
bastante previsível que a teoria institucional ou algo de semelhante emergisse. fornecem a argumentação que permite justificar a existência e a especificidade das obras
Trocando o problema do objecto em si por uma relação entre esse objecto e uma en- de arte, e portanto os apoios que elas reivindicam. A ausência dessa argumentação não
tidade chamada mundo da arte, a teoria institucional forneceu uma nova justificação para impede contudo a existência da arte e dos artistas, mas estes ficam mais vulneráveis a
as actividades de muitos artistas contemporâneos. Ela respondeu às questões embaraçosas uma contestação das suas aspirações. É isto que leva normalmente os mundos da arte que
dos filósofos para quem as obras reputadas devem ser demonstrações de sabedoria, de atingiram um certo estádio de crescimento a produzir essa argumentação, cuja fórmula
sensibilidade estética ou de profundidade espiritual, e que, confrontados com a produção mais especializada é a estética, e cujo produtor mais especializado é o filósofo.
desses artistas, se questionavam se um chimpanzé, uma criança, um doente mental ou um
indivíduo normal, isento de qualquer talento artístico, não seria capaz de fazer a mesma
coisa. Esta última insinuação era provavelmente a mais prejudicial. É uma forma de dizer
que os artistas não possuem qualquer talento em particular, e que se trata portanto de um
argumento falacioso aquilo que os levou a considerá-los como membros privilegiados do

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A Arte e o Estado

ou o insulto à religião podem protegê-los contra esses aspectos prejudiciais da arte,


entravando a produção de um determinado tipo de obras.
Enfim, o Estado encontra sempre alguma vantagem na mobilização dos cidadãos
para uma acção colectiva. Os dirigentes políticos estão frequentemente persuadidos
de que os símbolos veiculados pela grande arte e pela arte popular têm uma influência
real sobre a atitude dos cidadãos em se mobilizarem por tal ou tal causa. As canções
revolucionárias podem servir para estimular a acção revolucionária; a música e os
filmes patrióticos podem fortalecer convicções e consolidar sistemas de hierarquia.
Certas formas de arte exacerbam os descontentamentos, semeiam a dúvida nos espí-
ritos e tornam as pessoas avessas a desempenharem o seu papel tal como o Estado o
pretenderia. Outras obras de arte inspiram e dão origem a comportamentos que vão
6 no sentido dos objectivos perseguidos pelo Estado.
Os dirigentes políticos e os responsáveis governamentais são por vezes suficien-
A ARTE E O ESTADO temente cínicos para se cingirem a estas últimas considerações. Outras vezes
também, as suas opiniões estéticas pessoais incitam-nos a considerar como belo e
altamente artístico tudo o que for conforme aos seus interesses políticos e a julgar
como medíocre, senão como absolutamente «inartístico» e mesmo inepto, aquilo que
Os Estados e os seus aparelhos administrativos participam na produção e na distri- possa contrariar esses interesses. É desse modo que a fusão da política e da estética
buição da arte no seio dos seus respectivos países. As assem.bleias e os governos influi sobre a própria noção de arte, sobre a reputação de determinados géneros
fazem as leis, os tribunais interpretam-nas e os funcionários zelam pela sua execução. e de certas disciplinas artísticas, e sobre o renome pessoal dos próprios artistas.
Os artistas, os públicos, os fornecedores, os distribuidores, todos aqueles que de um Os Estados têm preocupações variáveis e concedem uma atenção também muito variável
modo ou de outro cooperam na produção e no consumo das obras de arte, agem no à arte. O governo de uma sociedade industrializada pode preferir a ordem e a harmonia à
quadro dessas leis. Dado que o Estado possui o privilégio exclusivo de fazer as leis discórdia e à «anarquia», enquanto os dirigentes de uma sociedade em pleno desenvolvi-
(mesmo que as colectividades possam adaptar regulamentos que digam respeito ao mento podem temer que a arte não instigue o ardor pelo trabalho e o rigor moral supos-
seu domínio, na medida em que sejam compatíveis com a lei geral), ele desempenha tamente indispensáveis ao crescimento económico. Um Estado pode proibir as obras de
sempre um papel na realização das obras de arte. Cada vez que o Estado não utiliza os arte que evocam a mistura das raças, enquanto um outro as pode apoiar, e até incitar.
meios de controlo que esse privilégio exclusivo põe à sua disposição, está ainda assim O Estado defende os seus interesses apoiando aquilo que aprova e colocando obstá-
a exercer uma forma de intervenção que tem a sua importância. culos àquilo que desaprova, ou proibindo-o pura e simplesmente: intervém na produção
Os Estados e os seus representantes, tal como os outros participantes na reali- das obras que são suspeitas de atentarem contra os seus interesses censurando-as de
zação de obras de arte, agem em função dos seus interesses. Estes não coincidem várias maneiras, chegando mesmo a prender ou a eliminar aqueles que as realizam
necessariamente com os dos artistas. Em muitos países, o regime vigente adapta uma ou consomem.
perspectiva mais favorável em relação à arte, já que esta atesta o alcance cultural e
o nível de progresso de uma nação, do mesmo modo que uma rede de auto-estradas
ou uma companhia aérea nacional. Nesses casos, o Estado toma disposições legais A PROPRIEDADE ARTÍSTICA
para favorecer as artes de várias maneiras. Quando os artistas financiam as suas
actividades negociando as suas obras como bens alienáveis dos quais são proprie- Em muitas sociedades, mas não em todas, as obras de arte são mercadorias que se
tários, as leis que regem o direito de propriedade interessam-lhes directamente. compram e vendem como qualquer outra. Os artistas e os agentes económicos cola-
O Estado pode inclusivamente considerar como oportuno o estabelecimento de uma boram, frequentemente num clima de desconfiança e de má vontade mútua como já
legislação relativa à cedência de bens artísticos, com o intuito de proteger os direitos pudemos ver, para produzirem objectos e manifestações que serão comercializados,
e a reputação dos artistas. vendidos ou difundidos em conformidade com a legislação em vigor. O Estado, ao
Acontece que os cidadãos consideram determinadas actividades artísticas como elaborar e fazer aplicar essa legislação, não demonstra com isso qualquer interesse
incómodas ou inquietantes e, até muitas vezes, decididamente perigosas. As leis que particular pelas obras de arte. Preocupa-se simplesmente com a regulamentação de
instauram as proibições, nomeadamente sonoras e visuais, do ultraje às boas maneiras uma actividade económica, sendo a arte um sector de comércio como os demais.

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Mundos da Arte AArte e o Estado

Aos olhos do legislador, a propriedade artística é concebida e decompõe-se numa Os falsificadores podem acrescentar ou modificar uma assinatura numa pintura,
série de direitos. Os direitos do detentor de um bem variam segundo a natureza desse terminar uma pintura inacabada, conseguir atribuir ao mestre a obra de um aluno ou
bem. Do mesmo modo, a lei reparte de maneira variável os direitos que dizem respeito de um aprendiz, falsificar um quadro de grande valor ou realizar uma obra à manei-
a uma obra de arte entre as diversas categorias de pessoas associadas à sua produção. ra de um artista cotado (Bauman, 1972, pp. 932-34). Um legislador americano acha
O primeiro de todos os direitos diz respeito à posse exclusiva do objecto físico. que as actuais leis não protegem os coleccionadores de pinturas contra o risco de
Os artistas que produzem objectos, nomeadamente nas artes plásticas, vendem o direito aquisição de uma falsificação:
de posse material de um objecto único ou realizado em número restrito: uma pintura,
uma escultura ou um exemplar de uma gravura ou de uma fotografia de tiragem limi- Embora todos os estados americanos tenham previsto leis penais para sancionar a contrafacção,
nenhuma dessas leis visa expressamente o fabrico e a comercialização de quadros falsos. O có-
tada. Aquele que compra o objecto ou que o recebe como oferta adquire o direito da digo penal californiano é exemplar a esse respeito: quem quer que imite a assinatura de outrem
sua posse e pode a partir de então vendê-lo ou dá-lo a um terceiro ou a uma instituição. com uma intenção fraudulenta ou tente apresentar como autêntico um documento falsificado
Alguns objectos não possuem esse carácter único. Um exemplar impresso de uma obra é considerado culpado de contrafacção. Essa lei visa antes de mais os documentos escritos ou
literária não pode ser comparado a um objecto único a não ser que se trate de uma os títulos de pagamento como os cheques ou as notas, sem fazer menção das pinturas. Mesmo
edição muito rara. Neste caso, o valor real da obra reside no seu conteúdo literário e se se estendesse esta lei às obras pictóricas, subsistiria um vazio jurídico no que diz respeito a
várias outras formas de contrafacção pictórica. (Bauman, 1972, p. 940)
não no objecto que a materializa. (Um manuscrito autógrafo em que a caligrafia é parte
integrante da obra seria um objecto único, mas as técnicas de reprodução permitem
multiplicar os exemplares e, portanto, os seus possuidores.) A partir do momento em Dito de outro modo, o Estado não adaptou medidas legais suficientemente precisas
que compramos um livro, adquirimos o direito de ler esse exemplar onde e quando no domínio artístico, e as leis em vigor, destinadas sobretudo a proteger os efeitos do
quisermos. O escritor e o editor detêm o direito de imprimir e de vender exemplares comércio, não são de grande ajuda neste âmbito.
a um público de leitores. A questão das contrafacções não se deveria pôr com as obras de arte produzidas em
Nas artes do espectáculo, o artista vende o direito de assistir às manifestações que grande número de exemplares, livros, discos ou filmes, porque, neste caso, nada incita a
apresenta: espectáculos de dança, concertos ou peças de teatro. Os seus direitos de fabricar obras falsificadas. Dado o elevado número de exemplares posto em circulação,
propriedade consistem em poder impedir as outras pessoas de o ver ou escutar se não a autenticidade desempenha um papel muito negligenciável no preço da obra para que a
pagarem (esse direito foi invocado por um artista de circo que instaurou um processo realização de falsificações mais ou menos credíveis valha a pena. É fácil constatar, por
contra uma cadeia de televisão para impedir a difusão de uma sequência filmada onde simples comparação, que se comprou aquilo que se desejava. E, no entanto, acontece
aparecia catapultado por um canhão). Esses artistas interpretam frequentemente obras que algumas pessoas copiam o original, não para enganar os compradores acerca da
de outros compositores, autores dramáticos ou coreógrafos. Nesse caso, o autor da obra mercadoria, mas para evitarem o pagamento das somas devidas ao titular dos direitos
tem a faculdade de vender ou de conceder o direito da representação em público ou em de reprodução, quer seja o autor, o editor, o artista registado, o produtor dos discos,
privado, no quadro de um objectivo lucrativo ou não. etc. Essas contrafacções lesam muito mais o produtor do que o consumidor.
Quando os objectos ou as manifestações se tomam bens comercializados, as Os artistas cujas obras são difundidas em múltiplos exemplares estão protegidos
disposições legais criadas pelo Estado determinam quem vende o quê e definem pelas leis relativas ao direito de reprodução e ao direito de autor. Estas leis são conce-
as condições dessa venda. bidas dentro do mesmo espírito que aquelas que regem as autorizações das patentes
Os objectos únicos e semi-únicos não levantam os mesmos problemas que as obras industriais. O legislador procura favorecer a invenção ou a criação artística ao garantir
presumidamente reprodutíveis quanto aos direitos de propriedade dos autores e da- ao autor um beneficio sobre o seu trabalho através do expediente de um monopólio de
queles que as adquirem. As leis estabelecidas pelo Estado criam esses problemas e exploração válido para um determinado número de anos. Ele parte do princípio de que,
resolvem-nos simultaneamente (quando não se mostram impotentes para criar uma sem essa garantia, ninguém quereria despender o esforço necessário para um trabalho
solução). Assim, a questão das contrafacções coloca-se em termos diferentes para as de criação que o Estado considera importante e quer encorajar. (Isto nem sempre é
obras únicas e para as outras. Um documento literário pode constituir uma forma de exacto; as relações que os criadores da arte popular tecem com o mercado não os levam
impostura, por exemplo uma autobiografia de uma personalidade célebre que não a desejar esse tipo de garantia nem mesmo a precisar dela, como veremos mais à frente.)
tenha escrito uma única linha, mas o livro que eu compro é assumidamente um exem- A regulamentação dos direitos de reprodução tem incidências sobre o conteúdo das
plar dessa pretensa autobiografia. Em contrapartida, os objectos únicos, raros por obras, como o revela a observação daquilo que se passa na ausência dessa protecção
definição, adquirem um valor que ultrapassa a estimativa das suas qualidades intrín- jurídica. Como demonstrou Wendy Griswold ( 1981 ), os romancistas americanos do
secas. Daí a tentação de realizar obras susceptíveis de passarem por algo de diferen- século XIX especializaram-se nas aventuras do Far West porque os editores podiam
te do que são na realidade, de passarem por algo evidentemente mais precioso. aceder a outro tipo de obras populares (nomeadamente o romance de costumes) a um

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Mundos da Arte A Arte e o Estado

preço mais vantajoso, repescando romances britânicos sem pagarem quaisquer direitos Tal como no caso das falsificações, a lei é pouco específica, e só uma decisão dos
aos seus autores,já que nenhuma convenção internacional era aplicada naquela época. tribunais pode estabelecer os direitos respeitantes a ambas as partes em litígio. Nos Estados
Esses direitos são invocados pelo artista quando ele estabelece um contrato com um Unidos, o costume de promover as novidades discográficas recorrendo aos animadores
empresário (marchand, produtor de espectáculos, editor de livros, produtor de discos, das estações de rádio apoiava-se na observação da jurisprudência:
etc.) que, comó vimos anteriormente, sabe transformar o valor estético em valor de
Apassagem de discos na antena era uma prática sedutora, sobretudo para as pequenas estações de
mercadoria e dispõe das infra-estruturas necessárias para tal. Mal informados acerca dos
rádio independentes, pois permitia preencher os programas com poucos custos. Numa primeira
aspectos financeiros, os artistas apercebem-se frequentemente de que os seus contratos fase, a oposição manifestada pelos editores de música e por um certo número de intérpretes,
não os contemplam com os lucros que esperavam. R. Serge Denisoff explicou como · como Fred Waring e Bing Crosby, entravou a radiodifusão de discos, mas sem conseguir acabar
isso se passava com os músicos de rock nos Estados Unidos: com ela. Como concluiu o Meritíssimo Juiz, a protecção do direito de exploração acabava com
a venda do disco. Consequentemente, «não se pode proibir as rádios de utilizarem discos para
A maioria dos contratos prevê um adiantamento no momento da assinatura e uma percen- as suas emissões». Esta interpretação da lei de 1909 sobre os direitos de autor, e a atitude dos
tagem sobre os lucros da venda dos discos (... ). Frequentemente, esse adiantamento não é editores de música que viram na rádio um bom meio de dar a conhecer as suas canções, fizeram
senão uma prestação sobre os direitos, de tal forma que os 20 000 dólares entregues a um da rádio uma via magistral para o sucesso público das obras de qualquer compositor de canções.
artista pela Wamer Brothers ou pela Capital Records serão reembolsados à casa de produ- (Denisoff, 1975, p. 219)
ção antes de o disco ter começado a produzir dinheiro. Os gastos com impostos, produção,
publicidade ou estúdio, por exemplo, são frequentemente incluídos no adiantamento sobre
os direitos. O montante dos adiantamentos varia conforme as editoras discográficas e os Do mesmo modo, os tribunais tiveram de regulamentar a comercialização dos
artistas. Os MC5 receberam um adiantamento de 50 000 dólares, aos quais se somaram materiais que facultavam a simples particulares a gravação de filmes e de emissões
20 000 dólares. Tal como os [Grateful] Dead, eles deram por si com uma dívida de 128 000 televisivas.
dólares na Atlantic Records. Pode acontecer que uma gravação obtenha o disco de ouro [cor- A política fiscal de um país tem uma grande influência sobre a produção e a distri-
respondente a um número de vendas de um milhão de dólares apenas no território americano] e
não reverta um único cêntimo para os artistas, porque eles negociaram mal o contrato. (Denisoff,
buição das obras de arte. Raymonde Moulin lembra que (1967, p. 58, citando Reitlinger,
1975, pp. 68-70) 1961 ), a pintura inglesa do século XVIII começou a entrar nas colecções americanas
depois da supressão, em 1909, da taxa de 20 por cento sobre as obras de arte anti-
Como todos os contratos, aqueles que os artistas estabelecem com os distribuidores gas, e a pintura francesa moderna após a supressão, em 1913, da taxa sobre as obras
fundam-se sobre a prática corrente, o que muitas vezes acaba por anular as vantagens contemporâneas. Ela sublinha também que, por outro lado, a dimensão especulativa
aparentemente estipuladas. Rayrnonde Moulin sublinha que na França os marchands dos mercados da arte sobre os quais se debruçou foi amplificada em França devido à
de quadros: ausência de um imposto sobre as mais-valias em capital, e nos Estados Unidos pelas
vantagens fiscais concedidas aos coleccionadores que doavam obras de arte a museus
têm a tendência de recusar( ... ) qualquer valor jurídico ao contrato. Eles insistem no carácter nacionais. Cada modificação da lei nesse domínio repercute-se imediatamente sobre
secundário da obrigação jurídica em relação à obrigação moral. O contrato é, segundo eles, um o mercado da arte e, portanto, sobre a vida profissional de todos os que participam no
acordo de cavalheiros e o que conta é a lealdade pessoal, o valor da palavra dada, muito mais que mundo da arte em questão.
o significado jurídico do contrato, o qual contribui para perverter as relações de confiança entre as
Evidentemente, estas observações só são válidas para os países onde existe uma
pessoas ( ... ). O seu objectivo é o de dissociar, através de todos os meios, as relações entre artistas
e marchands do respectivo contexto económico e jurídico. (Moulin, 1967, pp. 322-23) economia de mercado de tipo capitalista. Quando as actividades económicas são diri-
gidas por uma burocracia de Estado, a administração fixa as modalidades de atribuição
Evidentemente, os artistas apercebem-se de que esses procedimentos não lhes são e de cedência dos diferentes direitos sobre as obras de arte. Não conhecemos muito
propriamente favoráveis: bem esses sistemas, nem os seus efeitos sobre o funcionamento dos mundos da arte.
Na medida em que nesse caso os artistas se tomam empregados do Estado, talvez se
Os artistas, por seu lado, referem-se à desigualdade da relação de forças existente entre os con- encontrem numa situação comparável à dos engenheiros americanos ou franceses cujas
tratantes (... ). Eles acham que o espólio acumulado pelo marchand, porum lado, e a solidariedade invenções pertencem automaticamente à empresa empregadora.
entre os marchands, por outro, concedem a estes últimos garantias contra o eventual recurso do Os governos põem em prática uma legislação sobre a propriedade artística que
artista, qualquer que seja a protecção legal de que beneficiem os autores de objectos que não são
regula as actividades económicas dos mundos da arte e fornece um quadro jurídico
meras produções mercantis, mas a expressão de uma personalidade criadora( ... ). [Citando as
declarações de um pintor:] «E depois, se recorrêssemos a um processo judicial, íamos ao fundo. aos sistemas de distribuição. Por outro lado, podem (embora seja pouco frequente)
Depois disso seria dificil encontrar outro marchand que nos aceitasse. Os marchands são muito procurar proteger legalmente a reputação do artista: a lei garantirá a integridade do
solidários a esse respeito.» (Moulin, 1967, p. 324) laço que une a pessoa do artista à obra que funda a sua reputação. Admitindo que sa-

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bemos exactamente aquilo que o artista queria pôr na sua obra, o que por si só já não é Rauschenberg brincou com esse sentimento através de um gesto muito simples mas
muito evidente, estaremos moral ou legalmente autorizados a modificar essa obra pelo de grandes repercussões estéticas: apagou um desenho de Willem DeKooning com o
simples facto de ela nos pertencer? Se vendermos uma pintura, será que o comprador consentimento do autor. O efeito produzido tem mais a ver com a intervenção em si
pode acrescentar um bigode a uma das figuras representadas, tal como fez Duchamp do que com o aspecto final da obra.
numa reprodução da Gioconda? Uma vez vendido um quadro, poderemos exigir o Dado que a reputação do artista se funda sobre as suas obras, os participantes
livre acesso a essa obra a fim de proceder a alguns retoques finais? dos mundos da arte consideram que o autor não deverá modificar uma obra após a
Os mundos da arte permitem modificações nas obras de arte quando a alteração sua apresentação pública. Se o artista retoca ou modifica aquilo que foi considerado
não afecta a reputação do artista e condenam-nas quando as modificações contribuem inferior para que o juízo final assente sobre um corpo de trabalho revisto e que apenas
para confundir os nossos juízos e para pôr em dúvida o mérito do artista. Para os mostra o seu lado melhor, é como se fizesse batota nesse jogo das reputações que se
participantes dos mundos da arte, as obras de arte são o produto da visão pessoal de trava com a História.
um indivíduo, que se exprime através da sua sabedoria, gosto e sensibilidade própria. Os participantes de um mundo da arte não invocam qualquer protecção legal
Os mundos da arte fazem e desfazem as reputações em função dos juízos emitidos se as modificações feitas na obra não impedem o exame crítico da versão original.
pelos seus membros acerca das obras que os artistas tomam como a expressão mais Os escritores fazem frequentemente aquilo que está mais ou menos proibido aos artistas
conseguida da sua personalidade. A reputação de um artista assenta sobre as suas obras plásticos, pois recompõem as suas obras e podem até fazer diligências no sentido de
na medida em que pode, tendo em conta as condições da sua realização, reivindicar fazer desaparecer as versões anteriores com as quais já não estão satisfeitos, comprando
para si a total responsabilidade pela mesma. Se outra pessoa (ou o próprio artista, em edições inteiras ou impedindo a publicação de um texto do qual detêm a exclusividade
certas condições) modifica a obra, esta última deixa de dar uma ideia exacta da sua dos direitos de autor. Henry James recompôs bastante os seus romances antes de os
importância artística, ou do temperamento artístico do seu autor e, portanto, não pode reunir numa colecção de obras completas. Esta também é uma prática corrente para
contribuir para estabelecer uma reputação. os compositores. Stravinsky reformulou várias das suas obras muitos anos depois de as
Dado que as obras afectam as reputações, o artista recusa-se geralmente a submeter ter composto. Em todos estes casos, as edições anteriores continuaram evidentemente
as suas obras ao juízo do público (qualquer que seja a forma que este tome) enquanto disponíveis; as novas versões vieram simplesmente aumentar a produção que faz a
não estiverem prontas para tal. E é esse um dos raros casos onde a lei pode afectar reputação do artista. As revisões não implicam a destruição de um objecto considerado
a criação de uma reputação. A legislação francesa (que concede ao artista garantias único, mas sobretudo a criação de mais um objecto suplementar.
mais completas e precisas do que noutros países, como sublinha Raymonde Moulin) De modo semelhante, ninguém exige a protecção legal da reputação quando a paterni-
reconhece a noção de «direito moral» do artista, que engloba vários direitos ligados dade da obra é partilhada entre vários participantes, desde a concepção até à execução, tal
ao acto de criação, nomeadamente o de obrigar a respeitar a integridade da obra e o como acontece nas artes do espectáculo. Os compositores não são responsáveis por aquilo
de proibir a divulgação de uma obra inacabada. Raymonde Moulin evoca o processo que os músicos fazem com as suas obras, tal como os autores dramáticos não são respon-
movido pelo pintor Georges Rouault contra os herdeiros de Ambroise Vollard para sáveis pelo modo como as suas peças são interpretadas. Como as obras nunca fornecem
recuperar 819 telas não assinadas que ele cedera por contrato ao marchand. Apesar suficientes indicações sobre as modalidades da sua interpretação, cada representação é
do compromisso escrito de Rouault, o tribunal decidiu que: diferente e essas diferenças nem sempre correspondem à vontade do autor. Aeste respeito,
podemos dizer que cada representação modifica o projecto inicial do artista e a própria
a venda de uma tela inacabada não implica a transferência da sua propriedade,já que, enquanto obra. Quando o autor detém o direito de autorizar ou de obstar as representações, em
não atingir aquele grau de perfeição do qual apenas o pintor é o juiz, ele poderá sempre princípio pode impedir uma interpretação que ameace desfigurar o original. Este controlo
arrepender-se de ter pintado uma obra que julga indigna do seu génio e recusar que aquilo que é-lhe, na melhor das hipóteses, dado durante o tempo em que detiver o direito de ex-
pintou represente a materialização do seu pensamento. (Moulin, 1967, p. 326)
ploração e, portanto, pode- recusar a interpretação da sua obra a todo aquele de quem
desconfia. Mas uma vez concedida a autorização, o compositor ou o autor nada podem
Os participantes dos mundos da arte estão muito presos a essa ideia da existência fazer contra uma interpretação medíocre, ou muito distante, ou seja, totalmente con-
de um elo privilegiado entre o artista e a sua obra, sobretudo nas artes plásticas, onde trária às suas intenções. Se Shakespeare tivesse visto a encenação de Júlio César feita
normalmente as obras são objectos únicos. Daí a vivacidade das reacções quando se com um guarda-roupa moderno apresentada pelo Mercury Theater (ver figura 19), não
modifica uma obra acabada. Quando Clement Greenberg repintou uma escultura de se poderia opor às inovações de Orson Welles, pois já há muito tempo que a sua obra
David Smith, suscitou uma chuva de protestos; foram várias as vozes que se levan- caíra no domínio público.
taram a defender que para se preservar o espírito de David Smith, a escultura devia Shakespeare provavelmente não se teria preocupado, já que a obra era suficien-
sofrer as marcas do tempo, e que Clement Greenberg tinha desvirtuado a obra. Robert temente conhecida para que Welles fosse culpabilizado por tudo aquilo que naquela

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produção não corresse bem. Os autores contemporâneos preocupam-se muito mais com OS DANOS
a interpretação das suas peças, pois podem ser-lhes imputadas as imperfeições de uma
representação que não respeitou as suas intenções. Regra geral, todos os participantes O Estado também coopera na produção de obras de àrte quando toma a defesa
na criação de uma obra que possuem qualidades de artistas, e que gozam do prestígio dos cidadãos a quem o trabalho de um artista causa danos. Nesse caso, o Estado não
ligado a esse título, têm a sua dose de responsabilidade pelo resultado final. Podem manifesta um interesse particular pelas obras de arte, tal como quando cria leis para
preocupar-se apenas com aquilo que é da sua responsabilidade. Assim, os actores proteger a propriedade artística. A sua primeira preocupação é a de manter a ordem
podem aceitar papéis em peças que consideram medíocres, mas que lhes facultam pública e garantir o pleno usufruto dos direitos garantidos a todos os cidadãos, fazendo
uma ocasião para provarem o seu talento, e os autores dramáticos podem preferir uma aplicar as regras do jogo.
má interpretação à ausência de qualquer interpretação, na esperança de que o público (Talvez seja bom sublinhar que a cooperação de um ou de outro dos participan-
saiba discernir as suas qualidades para além das carências dos actores. A maior parte tes a que me refiro, em particular os artistas, pode tomar a aparência de uma não-
das vezes, os artistas não possuem qualquer recurso legal no que diz respeito à sua -cooperação aos olhos dos outros. Por outras palavras, a acção do Estado pode restringir
reputação, ainda que, como vimos, e sempre que exigido, a lei francesa que garante o a actividade dos artistas e até impedi-la por completo. Apesar de tudo, ela representa o
respeito do direito moral mostre que tipo de protecção é que o Estado pode garantir. papel desempenhado pelo Estado na rede de cooperação que produz a obra sob a sua
Resumindo, o Estado elabora uma legislação que protege alguns direitos sobre forma definitiva. Não se trata de saber se o Estado ajuda os artistas a conduzir a bom
as obras de arte consideradas uma propriedade. Quando a cooperação que origina as termo os seus projectos, mas se exerce uma influência sobre o aspecto final da obra.)
obras de arte acontece numa economia de mercado, as regras do direito comercial e Os cidadãos podem queixar-se de que o trabalho de um artista interfere com o livre
as leis sobre a propriedade artística regem conjuntamente essa cooperação, estabele- e legítimo exercício dos seus direitos e apresentar queixa contra o artista em questão.
cem as condições de exercício das actividades e definem o quadro das estratégias de Muitas queixas são resultado de desconforto físico e de contrariedades várias. Uma
comercialização. equipa de cinema incomoda os habitantes de uma determinada localidade com a pre-
sença dos seus veículos e material. Os músicos que ensaiam durante várias horas in-
comodam os vizinhos. Um escultor que utilize materiais inusitados espalha odores
desagradáveis, ou até tóxicos, na atmosfera circundante. Nos países em que a admi-
nistração não se ocupa desses danos senão a partir do momento em que é apresentada
uma queixa, um artista pode prosseguir durante muito tempo com uma actividade que
é incómoda para a vizinhança sem ser molestado. Perante a lei (e no espírito das par-
tes em litígio), esses artistas são comparados aos poluidores industriais, e passíveis
das mesmas sanções. A diferença entre os artistas e os industriais não reside na natu-
reza do delito, mas nos meios de defesa de que dispõem. Uma empresa cujas máquinas
barulhentas incomodam os vizinhos dispõe frequentemente de meios para atrasar o
passo à justiça que seriam muito onerosos para a maioria dos artistas.
As autoridades locais ou nacionais podem isentar os artistas dessas coacções, tal
como o fazem com os industriais, a partir do momento em que acham que isso é do
interesse geral. Os municípios autorizam frequentemente as equipas de cinema a usa-
rem as suas ruas como cenário, interrompendo a circulação durante longos períodos
de tempo, e justificam essas decisões com benefícios financeiros da sua presença para
o comércio local.
Fora estas excepções, existem duas formas de regular os litígios. Seja reduzindo o
incómodo infligido aos queixosos, insonorizando o local usado para os ensaios de uma
orquestra ou instalando um sistema de ventilação que evacue os gases poluentes, por
FIGURA 19. Júlio César de Shakespeare numa encenação de Orson Welles, com um guarda-roupa
exemplo, seja indemnizàndo de um modo ou de outro as pessoas lesadas. (Os produ-
moderno. Os autores dramáticos têm pouco controlo sobre o modo de apresentação das suas peças,
em especial depois da sua morte. Em 1937, Orson Welles e o MercuryTheatre recorreram à utilizaç~o
tores de cinema concedem frequentemente dádivas a obras locais para abafar as recla-
de figurinos modernos na peça Júlio César de Shakespeare para estabelecerem um paralelo com os mações.) Estas soluções aumentam as despesas profissionais dos artistas, tal como os
acontecimentos políticos de então. (Fotografia cedida pela New York Public Library.) equipamentos antipoluentes aumentam os custos de produção dos industriais. Como

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essas despesas são muito pesadas para a maioria dos artistas, à excepção dos cineastas, Como as rádios eram o principal suporte publicitário dos discos e não queriam
as queixas por danos podem efectivamente impedi-los de continuarem o seu trabalho, arriscar perder as autorizações de emissão, os cantores e os produtores de discos des-
ou pelo menos de realizarem as obras tal como pretendiam. Esta ameaça obriga fre- cobriram aí um obstáculo suplementar à sua corrida ao fabrico de êxitos.
quentemente os artistas a realizarem as suas obras com materiais e técnicas que evitam Nos países onde a liberdade de expressão constitui um direito fundamental prote-
o risco de incómodos, ou a procurarem locais que lhes permitam trabalhar como de- gido por disposições legais análogas aos direitos da Primeira Emenda da constituição
sejam e que não suscitem reclamações. Os músicos de rock observados por Bennett americana, os artistas podem invocar esse direito em sua defesa. (Quando as rádios o
(1980) ensaiavam em moradias isoladas em plena montanha para evitar conflitos com invocaram contra a comissão que queria interditar-lhes determinados discos, foram
os vizinhos. _rejeitadas.) Mas isso leva-nos a questões que se cruzam com o problema da censura
Que tipo de incómodos é que podem parecer suficientemente graves para caírem governamental, que se examinará mais à frente.
sob a alçada da lei? Um reclame cuja luz cintilante entre pela janela e não deixe dormir Resumindo, o Estado pode influenciar a produção das obras de arte ao proteger
representa sem dúvida um grande incómodo. Será que um reclame cujo motivo abstracto legalmente os cidadãos que se digam incomodados com as actividades do artista ou
parece completamente incompreensível também pode representarum incómodo? Ou um com o produto das suas actividades. Os artistas sabem-no e, na sua maioria, inflectem
reclame que contenha motivos sacrílegos? Teremos fundamentos para nos queixarmos o seu trabalho de modo a evitar esse género de aborrecimentos, ou então preparam-se
se tivermos perante os olhos a imagem de uma mulher acorrentada e que consideramos para lhes fazerem frente.
sexista, ainda que não corresponda à definição legal de obscenidade? E se se tratar de
uma imagem que mostre indivíduos de todas as raças a apertarem as mãos, quando
isso choca com as nossas opiniões políticas? Ou dir-nos-ão que se essas imagens não A INTERVENÇÃO DO ESTADO
nos agradam, o melhor será olhar para outro lado?
Algumas pessoas não protestam em seu nome, mas para proteger o grande público O Estado também influi sobre o trabalho e a produção dos artistas ao intervir directa-
contra obras de arte que podem parecer chocantes. Elas fazem crer que coisas sem mente nas suas actividades. Esta intervenção pode tomar diversas formas: o apoio oficial,
dúvida admissíveis no quadro de uma difusão confidencial, tomam-se intoleráveis a censura ou a repressão. Neste caso, o Estado defende os seus próprios interesses. Toma
quando difundidas de modo tão amplo que o público não pode evitar vê-las ou ouvi-las. medidas que se destinam a servir as suas causas e a favorecer as actividades que os seus
Assim, pode-se compreender que um autor empregue um vocabulário extremamente cru representantes julgam primordiais ou importantes para a sua manutenção e para o bem
quando os seus leitores sabem o que podem esperar, mas esse mesmo vocabulário será público. Na verdade, essas acções, como todas as acções governamentais, são legitimadas
inaceitável em anúncios publicitários que se impõem ao olhar dos transeuntes despreve- pela prioridade concedida à defesa do interesse geral. Mas contrariamente às acções an-
nidos. Às vezes, as pessoas contestam mais o modo de comunicação do que aquilo que teriormente evocadas, elas não são tomadas em nome de um qualquer cidadão que exige
é comunicado. Por exemplo, os utilizadores da Grand Central Station, em Nova Iorque, a autoridade do Estado para fazer respeitar as regras do jogo, visando apenas o seu inte-
levaram a cabo uma acção para impedir a difusão de música e de mensagens publicitá- resse pessoal. O Estado age deste modo porque também tem interesses a defender. Estes
rias naquela estação de comboios. Não era o conteúdo das canções ou das mensagens referem-se à salvaguarda da ordem pública (sendo as artes tidas como actividades que
publicitárias que os incomodava, mas o facto de serem obrigados a ouvir algo contra a podem contribuir para a reforçar ou perverter), à irradiação da cultura nacional (conside-
sua vontade. rada como um bem em si e um aglutinador da unidade nacional: «o nosso património»)
Os poderes públicos variam consideravelmente na sua demonstração do zelo em e ao prestígio internacional do país.
proteger o público contra as obras litigiosas. Denisoff (1975, pp. 402-18) descreve como O Estado persegue os seus interesses concedendo ou recusando aos artistas as
é que a Comissão Federal da Comunicação, cedendo às pressões das forças políticas da ajudas cujo controlo é, em última instância, seu. Dado que só se tiverem dinheiro é
direita, proibiu as rádios independentes de passarem determinados discos que supostamen- que os artistas conseguem obter o material de que necessitam, o Estado pode influen-
te faziam a apologia do consumo de drogas, sob pena de lhes ser retirada a autorização ciar o tipo de trabalho que eles produzem ao desbloquear subsídios para determinado
de emissão. A comissão publicou um aviso onde se podia ler nomeadamente: tipo de obras e recusando-os a outras. Pode também agir sobre outras necessidades
dos artistas. Se o acesso aos circuitos de distribuição depende do sector privado
Compete ao organismo emissor determinar se tal ou tal disco alerta para os perigos da droga ou (marchands, editores, responsáveis pelos media, etc.), o Estado pode orientar as
se, pelo contrário, encoraja o consumo ilegal dessas substâncias. O objectivo do presente aviso escolhas através da proibição da difusão de certas obras ou géneros ou da produção
visa recordar aos organismos emissores que devem apreciar esses conteúdos caso a caso, e que
não podem continuar a programar discos cujos responsáveis ignoram o conteúdo das letras.
de determinados artistas. Pode recusar aos artistas o acesso aos meios de produção
(Denisoff, 1975, p. 407) artística, o que constitui uma forma de pressão particularmente eficaz nas disciplinas
onde os investimentos são muito elevados para serem suportados por uma única

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pessoa (por exemplo, o cinema). Finalmente, para criarem, os artistas têm de se man- de espectáculo pertencentes à colectividade pública, fornecer equipamentos e material
ter vivos e livres para realizarem o seu trabalho. O Estado exerce a coerção extrema ou atribuir salários a determinadas categorias de pessoas.
ao privá-los de liberdade ou mesmo da vida. Nenhum artista, por mais apolítico que Qualquer que seja a forma desse apoio, a administração reserva-se sempre
seja, consegue realizar a sua obra se o Estado não se abstiver de usar esses meios de o direito de rever o montante dos créditos atribuídos, o seu destino e a lista dos
repressão. Nenhum deles desconhece a faculdade que o Estado possui de o ajudar ou beneficiários. Ela tem também em conta tanto o trabalho efectivamente realiza-
de o reduzir ao silêncio, e o seu trabalho é disso testemunho, ou mantendo-se sabiamente do pelos artistas como as reacções por ele suscitadas. Ou mais exactamente, as
dentro dos limites autorizados ou arriscando deliberadamente a sua transgressão. reacções que esse trabalho suscita no seio da clientela eleitoral dos governan-
tes. Nas democracias parlamentares, os eleitos temem que os seus adversários
digam aos eleitores que o dinheiro dos contribuintes serve para financiar obras
O APOIO OFICIAL ineptas, obscenas, herméticas ou subversivas. A intervalos regulares, alguns
membros do Congresso americano insurgem-se em nome dos eleitores contra
Um governo pode considerar que todas as artes, ou algumas de entre elas, constituem as obras que o Ministério dos Negócios Estrangeiros selecciona para as expo-
uma dimensão essencial da identidade e da reputação da nação, como a ópera para sições no estrangeiro, contra as obras introduzidas nas bibliotecas públicas ou
a Itália, e subvencioná-las da mesma forma que qualquer outro elemento importante contra projectos subvencionados pelas instâncias federais. As administrações
da cultura nacional que não consiga sobreviver sem apoio. Pode achar que as artes são frequentemente acusadas de concederem apoio a obras obscenas ou antipatrióticas.
representam um componente dinâmico da vida nacional, que favorece a ordem social, Por outro lado, quando o poder pertence a uma pequena oligarquia que não presta
mobiliza a população em torno de objectivos de interesse nacional e que a afasta de contas aos cidadãos, como acontece com as ditaduras militares ou com os· regimes
certas actividades anti-sociais (muitos governos assumem claramente o segundo termo de partido único, aqueles que atribuem as ajudas aos artistas não são influenciados
da divisa «pão e circo»). O apoio oficial visa nomeadamente conservar nos museus as senão pelo restrito grupo dirigente. Estes burocratas da arte podem actuar por sua
realizações do passado recente ou remoto, e assiste-se actualmente às exigências que conta enquanto tiverem a aprovação dos dirigentes, ou pelo menos enquanto estes não
as jovens nações fazem às antigas potências coloniais para lhes restituírem as obras de manifestarem o seu desacordo. Quando viviam sob a ditadura militar, os intelectuais
arte que desejam reintegrar nos respectivos patrimónios culturais. Mas muitas vezes brasileiros explicavam como é que a Embrafilm (a entidade cinematográfica governa-
o apoio oficial também é concedido a artistas em actividade, a estabelecimentos de mental) financiava os projectos que melhor se adequavam à política da Junta Militar que
ensino artístico, a companhias de espectáculos, a espaços de exposição, a publicações estava no poder, nomeadamente os melodramas históricos que exaltassem os grandes
ou para despesas de produção, bem como bolsas ou outros subsídios que libertam o momentos da História brasileira para congregar a opinião pública em torno de um
artista para trabalhar. grande propósito nacional. As cúpulas dirigentes avaliam a incidência das artes sobre
Jane Fulcher analisou o fenómeno do «Orfeão», essas sociedades populares de os seus objectivos mais !atos e dão indicações aos seus funcionários para atribuírem
canto coral que o Segundo Império francês encorajava, com o intuito de «melhoram as ajudas em conformidade. (Quando o poder está nas mãos de um pequeno grupo, a
a condição dos trabalhadores e de os «pacificam: opinião de determinadas pessoas bem colocadas pode ter um peso desmesurado sobre
as decisões. Se, por exemplo, um filme é considerado indecente pela mulher de um
O proletariado constituía uma classe de párias, «sem moral», a «classe perigosa». general, a equipa que o realizou terá dificuldades em encontrar financiamento para
Os cabarets frequentados pelos trabalhadores eram qualificados como «antros de deboche» futuros filmes.)
e de agitação política clandestina. Era preciso substituí-los por «diversões honestas» e «não
Além da clientela política, os funcionários da arte possuem uma clientela no próprio
perigosas» como o orfeão ( ... ). Como a lembrança dos últimos levantamentos operários
ainda estava fresca nas suas memórias, os meios conservadores e governamentais, seio dos mundos da arte dos quais se ocupam. Sob um regime ditatorial, essa clientela
mostrando-se extremamente desconfiados, desejavam sobretudo uma arte «harmoniosa». não tem qualquer influência, mas noutras circunstâncias representa uma fonte de poder
O orfeão encarnava os seus ideais mais preciosos (... ). O orfeão representava um meio de autónomo. As personalidades que se interessam de perto pela arte usam a sua influência
«cultivo» dos operários, de lhes inculcar o «bom gosto», de os acalmar e de os amaciar, de os para obter o apoio ou a aprovação da ajuda governamental. Os artistas, os seus amigos
ajudar a formar o seu «juízo», em resumo, de vigiar a «moral» (... ). O orfeão foi alvo de amplos e familiares representam uma fatia de eleitores que pode ser conquistada por quem
apoios, tanto materiais como ideológicos. (Fulcher, 1979, pp. 51-52)
zelar pelos seus interesses artísticos. Alguns deputados especializam-se na legislação
Quando o Governo considera que as actividades artísticas servem os interesses relativa às artes. Utilizam todos os meios de acção ao seu dispor para colocarem as
nacionais, concede o apoio financeiro que poderia vir de outras fontes, ou que é causas que defendem na ordem do dia e obterem em contrapartida um apoio, financeiro
impossível obter de outro modo. Pode atribuir ajudas directas que os artistas ou os ou outro, da sua clientela artística. Quando o Estado manifesta vontade em apoiar as
organismos utilizam como entendem, oferecer o acesso a espaços de exposição ou artes, os mais altos responsáveis têm de demonstrar aos artistas e ao seu público que

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esse apoio é real. Os funcionários colocados sob a sua tutela devem portanto escolher A CENSURA
essas franjas do eleitorado. Assim, as pessoas que concedem bolsas aos fotógrafos
passam muito tempo a explicar as suas decisões de escolha e os princípios das suas No outro extremo da coerção, os governos actuam abertamente no sentido de im-
políticas de ajuda ao mundo da fotografia de arte. pedirem a criação de determinadas obras de arte, mandam destruir as obras que apesar
A importância do apoio público torna-se maior ou menor, em função do aumento de tudo conseguiram ser realizadas, ou prendem ou fazem desaparecer os artistas
ou da diminuição da parte que representa no conjunto dos recursos necessários à pro- em questão. Sob tais circunstâncias, mesmo um modo de repressão menos enérgico,
dução artística. Se as actividades artísticas se inserem num mercado regido pelas leis como o puro e simples desinteresse, torna-se uma forma de intervenção activa. Esses
da oferta e da procura, os artistas podem sempre procurar (e por vezes encontrar) apoio exemplos demonstram que o Governo, quer queira quer não, desempenha um impor-
:financeiro através da angariação de um público ou clientela. Se o Governo se recusa tante papel na rede cooperativa da produção artística. A partir do momento em que
a subsidiar a publicação do meu livro, talvez um editor aposte nesta obra, ou então pode intervir para impedir a produção ou a distribuição das obras de arte, e mesmo
poderei talvez :financiá-lo eu mesmo (e as edições de autor ainda têm um bom futuro que não o faça nunca ou raramente, a sua abstenção constitui uma forma decisiva de
pela frente). Pelo contrário, se o sector da edição de livros é controlado pelo Estado, cooperação nas actividades artísticas. Os artistas contam com essa ausência sempre
não me resta qualquer alternativa. Nesse caso, a política de ajuda governamental pode que lidam com um Estado que não recorre senão raramente ou nunca ao seu poder
tornar-se, de facto, semelhante ao exercício de uma censura. de censura. Dado que o Estado pode agir a qualquer momento, todas as obras de arte
Contudo, é muito raro não existirem alternativas ao apoio governamental. Mesmo possuem uma dimensão política. Intervindo ou não, o Governo faz saber se atribui ou
quando a maioria dos teatros são subsidiados pelo Estado, certos grupos podem usar não um carácter político pernicioso a uma dada obra. Mesmo uma obra à qual o autor
os seus próprios recursos para :financiarem todo um conjunto de actividades, sem se não atribua qualquer intenção política, pode adquirir um significado político face à
limitarem ao que o Estado está disposto a encomendar. Na Polónia, os grupos de tea- actuação governamental.
tro académicos viabilizaram desse modo a existência de um teatro paralelo, de nível O Estado pode combater o artista ou a sua obra, ou atacá-lo através desta. Nos
profissional, que levava à cena as peças excluídas das salas oficiais (Goldfarb, 1978). regimes totalitários, os artistas correm riscos consideráveis. Dado que as obras podem
Na ex-União Soviética, os manuscritos cuja publicação era proibida circulavam sob a incitar à insurreição ou à resistência, o Governo é levado a associá-las aos outros grupos
forma de samizhdat dactilografados clandestinamente. É mais fácil encontrar soluções de agitadores perigosos. Irving Louis Horowitz estabeleceu uma tipologia dos governos
para as disciplinas artísticas que não exigem grandes meios, e é sabido que a literatura é a partir das atitudes que estes tomam face aos seus contestatários. Ela contempla um
menos onerosa que o teatro. Quando a ajuda pública representa o essencial do :financia- leque que vai desde as «sociedades genocidas em que o Estado, por decisão arbitrária,
mento das artes, os artistas são obrigados a ter em conta as opções governamentais. Se pune com a morte as condutas desviantes ou dissidentes», até às «sociedades permissi-
existirem outras opções de :financiamento (mecenato, mercado de arte, etc.), os artistas vas onde a concepção da normalidade que rege as tomadas de decisão é definida pela
tentarão obter aquilo que o Estado está disposto a conceder e recorrerão a apoios comunidade e não pelo Estado» (Horowitz, 1980, pp. 44-45). O artista, que em certas
extra-estatais para o resto. sociedades é tomado pelos governantes como um elemento singular entre todos os
Como qualquer apoio pode a todo o momento ser retirado, os organismos públicos desviantes e dissidentes potenciais, confronta-se com as sanções mais brutais.
exercem uma grande influência sobre o trabalho dos artistas, dado o espectro da hipótese Quando o Estado não ataca directamente os artistas, a forma de censura mais total
das recusas de ajuda às obras tidas como inconvenientes, sem interesse ou inoportunas. consiste em destruir as obras que incomodam o Governo. O arquétipo moderno dessa
Quando existem modos alternativos de :financiamento, eles não conseguem impedir o acção é o «auto-de-fé» de livros, ainda que isso não implique a destruição da obra.em
trabalho criativo, mas se o apoio oficial for a solução mais fácil, a inércia do sistema si, mas apenas um certo número dos seus exemplares. As obras continuam a existir
incita os artistas a orientarem-se para projectos que se circunscrevem aos limites fora dos territórios onde esse governo exerce a sua autoridade, e nomeadamente nos
daquilo que o Estado se dispõe a apoiar. A atribuição de ajudas oficiais é a forma de países estrangeiros que têm um sistema e objectivos políticos diferentes. (Ray Bradbury
intervenção e de controlo estatal menos coerciva e, portanto, a menos decisiva. Ela evocou, no seu Fahrenheit 451, o caso extremo em que um regime implacável consegue
depende dos objectivos visados pelo Governo. Ao constituir um dos componentes da destruir todos os exemplares de livros existentes, mas onde contudo as obras sobrevivem
rede de cooperação que dá origem às obras de arte, o Governo exerce o mesmo tipo sob uma forma imaterial, porque as pessoas as registaram na sua memória.)
de influência que os outros membros dessa rede. Mas ele é o único com objectivos As obras das artes plásticas, que são objectos únicos, podem ser completa e defi-
abertamente políticos e com tantos recursos (ver Clark, 1976, 1977). nitivamente destruídas. É o que acontece frequentemente no seguimento de grandes
convulsões políticas, tais como guerras civis e invasões estrangeiras. Muitos teste-
munhos preciosos da arte religiosa inglesa desapareceram desse modo após o Cisma
Anglicano, bem como inúmeras obras de arte asteca e inca após a conquista espanhola.

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Mundos da Arte A Arte e o Estado

Em Inglaterra, o rei quis destruir os símbolos cujo alcance religioso poderiam con- perfeitamente natural para todos. Ela advém daquilo que todos consideram como sendo
gregar o povo. Na América Latina, os conquistadores queriam mais prosaicamente as normais atribuições de um Governo que concebe correctamente o seu papel (Deni-
recuperar os materiais preciosos que eram usados por aqueles povos. É de notar que, soff cita uma declaração de um adversário reaccionário dos Beatles: «Temos de nos
a esse respeito, a arte conceptual se assemelha à literatura: é possível destruir todas proteger para que esses quatro guedelhudos, esses anticristos, não destruam o equilíbrio
as versões e exemplares de uma obra, mas a ideia continua viva enquanto alguém se afectivo e mental dos nossos jovens, e por fim, de toda a nação.» [Denisoff, 1975, p.
lembrar dela. 385]). A censura leva por vezes esta lógica até domínios onde a sua necessidade não
Na maioria das vezes, a censura não é assim tão impiedosa ou total. Ela intervém ao é tão unânime quanto a necessidade de proteger as crianças.
nível da distribuição mais do que ao da criação ou da conservação das obras. O Estado A potencial eventualidade de uma intervenção por parte do Estado, já o referimos
proíbe a venda, a exposição ou a representação nos locais habituais. Dado que todos os anteriormente, confere uma dimensão política a todas as obras de arte. Se o Estado
mundos da arte têm circuitos de distribuição (que passam ou não por intermediários), se abstém de censurar uma obra, as pessoas podem deduzir que ela não veicula qual-
a censura consiste em recusar ao artista o acesso a esses dispositivos institucionais; a quer mensagem política perigosa, independentemente das reais intenções do artista.
obra pode ser realizada, mas não é fruída ou apoiada como habitualmente. O Estado E inversamente, se o Estado proíbe uma obra de arte, as pessoas vão tentar atribuir-lhe
pode, por exemplo, proibir um autor de enviar uma obra literária pelo correio se esse uma mensagem política incómoda ou revolucionária, que encontrarão na maioria dos
for o método habitual de difusão para as revistas de poesia, ou de a colocar publica- casos, mesmo que o artista nunca tenha tido essa intenção.
ções em quiosques de jornais. Pode proibir a exposição de determinadas pinturas nos Queria dar um exemplo. Passei o Outono de 1976 no Brasil. Morava em Ipanema,
museus e nas galerias, a representação de certas peças nos teatros e a interpretação de um bairro chique do Rio de Janeiro cujos habitantes têm o hábito de passar o domingo
certas partituras nas salas de concertos. Os artistas mais resolutos encontram lugares na praia. Eu tinha por hábito encontrar-me com alguns amigos num café e também
alternativos onde as suas actividades não são (por enquanto) acusadas de ilegalidade. íamos sempre até à beira do mar. Um certo domingo, ao dirigirmo-nos para a praia,
Podem criar «clubes» muito restritos que servem como locais protegidos para repre- reparámos que os taipais dos inúmeros edificios em construção tinham sido escritos
sentações de peças ou projecções de filmes proibidos nas salas públicas. Geralmente, os a spray com poesia. Pensámos que se tratava de grafitis políticos. À primeira vista,
censores oficiais aceitam esses subterfúgios na medida em que se cingem ao resultado pareciam poemas de amor perfeitamente inocentes, mas também sabíamos que, sob
pretendido, ou seja, impedir a comunicação ao grande público de obras que poderiam regimes autoritários, a linguagem do amor serve frequentemente para encobrir um
inspirar ameaças subversivas. Mesmo os governos muito repressivos podem fechar os pensamento político. Os intelectuais brasileiros estavam habituados a decifrar o
olhos às actividades de artistas que se destinam a uma pequena elite cultivada. Não se conteúdo político de canções e de poemas populares, pois pensavam com razão que
inquietam senão a partir do momento em que esses artistas atingem um público mais era essa a intenção dos autores (Sant' Anna, 1978). O país encontrava-se então em
vasto (e o sistema dos samizhdat na ex-União Soviética alcançou precisamente esse vésperas de um escrutínio eleitoral. O resultado das eleições não se punha em questão
resultado). Isto é um claro sinal de que o Estado está preocupado sobretudo com o - sabia-se que o Governo nunca aceitaria uma vitória da oposição, mas isso suscitava
modo como as artes contribuem para sensibilizar a população para as «boas» causas, um grande interesse e podia mesmo ter inspirado aquele poema. E depois, se não era
e proscreve aquelas obras que podem ter uma influência perniciosa sobre as massas. político, porquê pintá-lo sobre aquelas paredes em vez de usar um dos habituais canais
A censura demonstra que quase todos os governos estão convictos de que os temas de difusão? Portanto tínhamos boas razões para suspeitarmos da existência de uma
ou formas que os possam visar ofendem a moral pública. Regra geral, os censores con- mensagem política. E lemos as intermináveis estrofes que se estendiam por uma rua
sideram a evocação de certas actividades como obscena ou sacrílega e, portanto, imoral. inteira. Finalmente, até os nossos amigos mais fortemente politizados não conseguiram
Pensam que essa evocação pode chocar um grande número de pessoas e desencadear propor qualquer interpretação política. O que nos obrigou a concluir que se tratava
um conflito público. Ela ameaça desviar os cidadãos inculcando-lhes tentações, o que apenas de um poeta que não conseguira ser publicado. Num país onde a censura era
abalaria a força moral da nação e destruiria a sua capacidade de congregação em torno uma realidade quotidiana, o recurso a um modo de difusão normalmente reservado
de objectivos comuns. O perigo parece ainda maior para as crianças, porque mais vulne- à contestação política dava a esse poema um possível sentido político. (Aliás, repre-
ráveis, dado que as suas capacidades de juízo moral ainda não estão completamente for- sentantes do Governo descobriram possivelmente naquelas frases a mensagem que os
madas. As sociedades podem por vezes criar uma convergência em torno das aspirações nossos amigos não conseguiram decifrar.)
das famílias e dos objectivos nacionais, quando os pais aspiram a que os seus filhos se Os artistas elaboram os seus projectos tendo em conta as possíveis intervenções
tornem aquele tipo de cidadãos - ambiciosos e trabalhadores, ou obedientes e passivos do Estado. Para dar outro exemplo brasileiro, aquando da minha estada, a censura
- que garantem aos dirigentes políticos a manutenção do progresso e da estabilidade. era omnipresente. Os discos, os filmes ou as peças de teatro tinham de obter um visto
Quando os objectivos individuais, familiares e nacionais coincidem deste modo (Velho, prévio a qualquer distribuição. Mesmo que os serviços de censura aprovassem uma
1976, 1979), a censura destinada a proteger a integridade moral das crianças torna-se versão preliminar, ainda podiam impedir indefinidamente a versão acabada da obra.

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Mundos da Arte A Arte e o Estado

Várias peças eram censuradas na noite de estreia. Um certo domingo na praia, alguém enquadramento legal da propriedade artística, e é nesse âmbito que os artistas obtêm
perguntou a um cenógrafo que nos acompanhava como é que estavam a decorrer as um apoio financeiro e criam a sua reputação. O Estado limita a margem de manobra
suas actividades do momento. Ele referiu um determinado número de projectos, entre dos artistas quando protege os cidadãos contra as actividades e as obras artísticas que
os quais um trabalho interessante que achava que nunca iria levar a cabo. Porquê? podem atentar contra os seus direitos. O Estado concede um apoio oficial a determi-
Porque já corriam rumores de que os serviços de censura não o iriam autorizar. Por- nadas formas de arte quando elas parecem servir os objectivos da nação. Recorre às
que haveria de perder o seu tempo com um projecto que nunca iria ver a luz do dia? suas prerrogativas sempre que precisa de proibir as obras susceptíveis de induzirem os
As pessoas presentes começaram a discutir os mais recentes acontecimentos para cidadãos em actividades desaprovadas ou que os desviem das boas causas.
tentar perceber se os censores não estariam de facto a ficar menos restritivos. Alguém Portanto, o Estado age como os outros participantes nos mundos da arte; facilita
lembrou que o novo disco do cantor Chico Buarque, proibido há vários meses pelos a realização de obras de arte apoiando directa ou indirectamente as actividades que
serviços de censura dado o carácter político de algumas das suas letras, tinha sido aprova. Constrange outras, sempre que recusa às obras tidas como criticáveis o aces-
finalmente posto à venda. Outra pessoa concordou, mas fez notar que, após a saída so a determinados meios normalmente postos à disposição de todos os participantes.
desse disco, a polícia tinha entrado nas lojas e apreendera todos os exemplares. Eu O Estado pode, por exemplo, impedir a difusão das obras (o modo de intervenção mais
disse a essa pessoa que ela devia estar enganada, pois eu acabara de comprar dois. corrente) ou a sua conservação. Pode fazer pairar e consumar a ameaça da pena de
Alguém sugeriu que talvez a polícia não interviesse senão em determinados bairros. morte, da prisão ou de qualquer outra sanção sobre os autores de obras indesejáveis.
O cenógrafo ouvia com atenção, pois havia ali tantas indicações sobre a maior ou menor Neste sentido, todos os artistas dependem do Estado, e as suas obras são um testemu-
severidade dos serviços de censura, que isso influenciava as suas opções relativamente nho dessa dependência.
aos seus projectos de trabalho.
A ameaça da censura tem um peso muito importante na avaliação que o artista faz
das consequências da sua participação num determinado projecto. A amplitude do risco
varia segundo o momento e o lugar, de tal modo que as informações sobre as acções
mais recentes do Governo podem orientar essas escolhas. Os censores que pretendem
dissuadir as pessoas de participarem em actividades artísticas contestatárias podem,
por isso, contentar-se com algumas acções pontuais, sabendo que terão um grande
peso sobre as decisões dos artistas.
Quer a censura praticada numa dada sociedade seja abertamente política, ou quer
utilize o álibi do bom gosto ou da protecção dos menores, ela acaba sempre por cons-
tituir um constrangimento que a maioria das pessoas acaba por interiorizar, tal como
todas as outras convenções do mundo da arte, a ponto de deixarem de se aperceber do
seu carácter limitador. Chico Buarque, o cantor brasileiro já citado, que teve bastantes
problemas com a censura, comentou esses efeitos de um modo muito realista:

[Os censores] mutilam o espírito de uma época. Os jovens que hoje em dia começam a fazer
música. É capaz de imaginar? Se, à partida, tudo é proibido, isso conduz a uma terrível auto-
censura que é fatal para qualquer actividade criativa. É uma geração inteira que cresceu no seio
desse sistema de censura, para quem o visto do censor é uma coisa tão normal e necessária como
o bilhete de identidade. Para mim, para a minha geração, que pôde criar fora dos limites da
censura, é escandaloso ter de submeter os seus textos (... ) a um funcionário que os vai examinar,
que irá dizer se os podemos ou não divulgar. Com os jovens de agora, acontece o mesmo. E é por
isso que tantas pessoas escrevem as suas canções em inglês, porque passam mais facilmente. «Da
próxima vez farei as coisas como deve ser, já que parece que fiz algo de errado.» Isto é aquilo que
um jovem que está a começar e que é alvo da censura pode pensar. (Chrysôstomo, 1976, p. 4)

Resumindo, o Estado participa na rede de cooperação, ou mundo da arte, que


produz as obras características de uma disciplina num dado momento. Estabelece o

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A Obra e a sua Versão Definitiva

O poeta Robinson Jeffers manteve uma longa e estreita colaboração com Saxe
Commins, que trabalhava para a editora Random House, e as suas alterações (mais
sob a forma de sugestões do que alterações) modificaram bastante o estilo e o con-
teúdo de muitas das obras de Jeffers. O seu longo poema The Double Axe continha
originalmente violentos ataques contra Roosevelt e Truman. Commins considerou-os
injuriosos e susceptíveis de desagradar aos leitores. Aconselhou então Jeffers a rever
as passagens mais agressivas. Quando recebeu a versão revista, escreveu a Jeffers
exprimindo-lhe algumas reservas:

É claro, reparei nas alterações que fizeste, e são quase sempre grandes melhorias. Mas existem
duas que, apesar de tudo, não me convenceram. Estou a referir-me à página 25, onde trocaste:
7 Para alimentar a vaidade de um paralítico e realizar fortunas duvidosas

AOBRAEASUA VERSÃO DEFINITIVA por

Para alimentar os apetites de poder de um homem paralisado e realizar fortunas duvidosas.

Isto não altera grande coisa. Será que estarias de acordo em fazer outra alteração para:
Quando a viúva de T. S. Eliot publicou um fac-símile do manuscrito de A Terra
Devastada, o mundo literário descobriu tudo o que a versão definitiva do céle- Para alimentar os apetites de poder e realizar fortunas duvidosas.
bre poema devia à primeira mulher de Eliot, Vivian, e ao seu amigo Ezra Pound. (Carta deCommins para Jeffers, 12 de Fevereiro de 1948)
A ambos se deveu a radical transformação do poema. As modificações que fizeram
acentuavam consideravelmente o lado moderno e alguns dos aspectos mais inovadores Jeffers respondeu:
dessa obra que suscitou uma enorme influência.
A quarta parte do poema, «Morte pela Água», continha originalmente mais de noventa Se tu insistes, acho que deve ficar: «Para alimentar os apetites de poder de um político» em vez
de «homem paralisado.» E espero que protestes cada vez que encontrares uma alusão à epilepsia
versos num estilo clássico. Pound, que não a considerava boa, cortou-a até não restarem de César. Ou à de Dostoievsky- ainda que ela tenha marcado o seu génio, tal como a paralisia
senão os dez últimos versos. Assim, essa passagem que começava abruptamente por: de Roosevelt marcou o seu carácter e, em certa medida, até o poderia desculpar. É por isso que
«Phlebas, o Fenício, morto há duas semanas (... )»,tomava-se mais difícil de apreender, e eu a referi. (Carta de 19 de Fevereiro de 1948)
o seu tom eminentemente moderno exigia uma maior participação do leitor. Valerie Eliot
explica o que aconteceu, reportando-se à correspondência entre T. S. Eliot e Pound:
Na mesma ordem de ideias, Jeffers aceitou trocar um «pequeno Truman» por «Harry
Abalado com a reacção de Pound, Eliot escreveu: «Talvez seja melhor suprimir também Truman». (Commins, 1978, pp. 125-29).
Phlebas???». Ao que Pound respondeu: «Sobretudo, aconselho-te a manter Phlebas. Melhor (... ) Maxwell Perkins, editor da Scribners, construiu os romances que tornaram célebre
ele é ab-so-lu-ta-mente indispensável no lugar onde está. Tem de ficar.» (Eliot, 1971, p. 129) Thomas Wolfe. O escritor entregava-lhe caixas com os primeiros rascunhos, e Perkins
cortava e rearranjava o texto antes da publicação.
E Phlebas ficou. Todos estes exemplos-ilustram o trabalho de construção de uma obra num domínio
A revisão deste texto não se limitou a cortes e retoques superficiais. A segunda onde ele é particularmente evidente, ou seja, o trabalho de edição de um texto. Um
parte, «Uma Partida de Xadrez», contém um diálogo onde uma mulher de trinta e um editor, um revisor, os amigos, os familiares ou os colegas do autor tomam decisões
anos se queixa de ter mais filhos do que desejaria, «porque Albert não a deixa em paz». ou dão conselhos que confinam a versão definitiva da obra. Acrescentam de um lado,
Numa primeira versão, Eliot escrevera uma frase que explicava a situação deste modo: cortam de outro, modificam uma formulação, reestruturam passagens inteiras. Todas
«Tu querias mantê-lo em casa, suponho». Vivian Eliot substituiu-a por: «Por que é estas alterações acabam por dar à obra o seu aspecto definitivo. Mas a edição não é o
que te casaste se não queres ter filhos?» Eliot suprimiu a palavra «tern, mas manteve a único domínio onde terceiros contribuem para determinar o carácter da obra tal como
frase escrita pela sua mulher, que alterava completamente o sabor da passagem (Eliot, será apresentada ao público. Todos os participantes da rede de cooperação que produz
1971, pp. 14-15, 20, 21 e 139). a obra desempenham um papel análogo. Se generalizarmos este esquema tendo em

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Mundos da Arte

conta todas as pessoas que intervêm em diferentes etapas da elaboração de uma obra,
podemos compreender como é que os mundos da arte influem sobre o aspecto final das
obras dos seus membros. Na verdade, apercebemo-nos de que não é excessivo afirmar
que é mais o mundo da arte do que o próprio artista que realiza a obra.

AS ESCOLHAS

Pensamos que as coisas se clarificam se partirmos da ideia de que uma obra de


arte deve a sua forma definitiva às sucessivas escolhas, importantes e mínimas, que
o artista e outros efectuam até ao último momento. Devo premir imediatamente o
botão da minha máquina fotográfica ou esperar mais um pouco? Devo suspender a
próxima nota ou ligá-la? Devo aplicar aqui uma pincelada de azul, ou verde, ou não
fazer qualquer alteração? A obra vai tomando forma à medida que se operam essas
escolhas. Suponhamos que fazemos uma reportagem fotográfica sobre o modo de vida
e a cultura da comunidade italiana de São Francisco. Tal como a maioria dos fotógrafos
contemporâneos que preparam um trabalho documental ou fazem uma pesquisa mais
abstracta, iremos acumular uma grande quantidade de imagens. Para cada disparo,
temos de escolher entre múltiplas possibilidades. Podemos decidir centrar a reportagem
sobre retratos de pessoas idosas, se acharmos por exemplo que os grandes planos das
caras expressam a essência da sua cultura. Ou podemos decidir fotografar manifesta-
ções tradicionais como o desfile do 12 de Outubro (data do aniversário da descoberta
da América por Colombo) ou a bênção da frota de pesca (ver Becker, 1974, e figura
20). Podemos ainda preferir as instituições locais como os cafés, os restaurantes, as
mercearias e as igrejas do bairro italiano. Em qualquer uma das situações, teremos de
escolher as objectivas, as películas, os eventuais acessórios e a hora do dia, bem como
as pessoas e os locais a fotografar. Após isto, fazemos várias fotografias de cada um
dos temas escolhidos, insistindo sobre aqueles que parecem ser os mais característicos
desse bairro. Variar as perspectivas de tomada das imagens e os seus enquadramentos,
na esperança de que uma alteração fugidia da expressão dos modelos, da sua atitude
ou da atmosfera geral possa produzir um efeito interessante.
Assim, podemos utilizar uma vintena de rolos de trinta e seis fotografias em apenas um
dia de trabalho intensivo. Podemos consagrar um dia, três meses, um ano ou mais a esse pro-
jecto. Mas antes de apresentarmos o trabalho sob o formato de um livro, de uma reportagem
numa revista ou de uma exposição,já teremos eliminado muitas imagens. Mesmo que con-
sigamos obter trinta mil fotografias utilizáveis, não conservaremos senão trinta a quarenta
para uma exposição e talvez uma centena para um livro. Faremos as provas de contacto
que nos permitirão examinar todas as imagens, procedendo depois a uma primeira triagem.
FIGURA 20. Howard S. Becker, The Blessing of the Fishing Fleet in San Francisco, fotografia·
Depois tentamos organizar as imagens em sequências, após termos eliminado e prova de contacto. A edição consiste numa escolha entre as várias possibilidades daquilo que será
ou seleccionado segundo o nosso critério. Talvez tenhamos de modificar as escolhas apresentado ao público. Ao decidir incluir estes jovens (a) na minha representação fotográfica de
se conhecermos as condições exactas da exposição ou o formato do livro. (Eugene um ritual religioso de um bairro, ainda tive de fazer a escolha desta imagem em detrimento de (b)
Smith publicou uma reportagem sobre uma aldeia de pescadores japoneses vítimas muitas outras possibilidades, constituindo estas um corpo alternativo a uma ainda maior selecção de
da poluição industrial, Minamata, numa revista em 1974, e sob a forma de um álbum possibilidades (ver Becker, 1974).

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

em 1975. Este exemplo permite comparar as escolhas do artista para esses dois tipos sociedades nas quais estes se inscrevem) só costumam atribuir o título honorífico de
de apresentação.) artista a alguns dos seus participantes: aqueles cujas escolhas são verdadeiramente
Ainda não mencionámos senão algumas das escolhas operadas no quadro deste decisivas, cujas acções revelam um talento particular e cuja reputação depende da
projecto. Ainda assim, isto permite mostrar como é que uma obra acabada (neste caso, recepção reservada às obras. Este ponto de vista justifica-se na medida em que os ar-
uma exposição de fotografias ou um livro) é, na realidade, fruto de um leque de possi- tistas fazem habitualmente a maioria das escolhas e, sabendo que serão felicitados ou
bilidades muito mais considerável. Algumas destas possibilidades não se concretizam criticados pelo resultado obtido, fazem-nas mais cuidadosamente do que os participantes
·porque o artista as pôs de lado logo à partida. Outras ficam-se pelo negativo ou pela anónimos. Posto isto, podemos começar a examinar o modo como os mundos da arte
prova de contacto. E entre aquelas que são objecto de uma tiragem sobre papel, a maioria condicionam as escolhas dos participantes (e, portanto, a orientação geral das obras),
será ainda eliminada no decorrer de sucessivas triagens. Mas todas estas possibilidades bem como o trabalho dos artistas. Veremos então que esses condicionalismos são uma
existiam à partida, e algumas subsistem sob a forma de negativos ou de provas que o consequência da aceitação dos constrangimentos do mundo da arte. Centremos essa
fotógrafo poderá eventualmente utilizar numa outra ócasião. descrição forçosamente hipotética sobre os verdadeiros momentos das escolhas, a que
Encontramos um processo semelhante em todas as formas de arte. Os artistas chamaremos os momentos das escolhas decisivas na realização das obras.
realizam as suas escolhas a partir de uma multiplicidade de temas, de materiais, de Imaginemos que cada detalhe de uma obra acabada é o resultado das escolhas pen-
formatos, de estilos, etc. Podem optar por uma possibilidade que não contemplaram sadas de uma única e mesma pessoa, em princípio o artista, e esqueçamos as escolhas
numa versão anterior da mesma obra. Ou executar uma obra de uma determinada efectuadas por aqueles que não agem na qualidade de artistas. Esqueçamos também
maneira e adaptar outro procedimento na vez seguinte. Algumas escolhas tornam-se o facto de que os artistas não pensam em cada uma das suas escolhas. Se os músicos
automáticas. Algumas concretizam-se em objectos duráveis, outras traduzem-se em tivessem de pensar em todas as escalas e em todos os instrumentos possíveis antes de
obras efémeras que cederão o lugar a novas variantes. compor uma obra, não lhes sobrava tempo nem energia para produzirem obras, pelo
Mas ao apresentar deste modo a sucessão de escolhas que conduzem à obra de menos em tão grande quantidade como quando fazem a maior parte das escolhas de
arte, simplificou-se excessivamente as coisas. É evidente que o artista não é a única modo inconsciente.
entidade envolvida neste processo. Como já demonstrámos, o número de pessoas que Quando fazemos uma análise aprofundada da evolução de uma obra através das suas
participa nessa divisão do trabalho que abarca a noção de mundo da arte é muito maior. diferentes etapas ou esboços, como por vezes o fazem os críticos e os historiadores de
As escolhas dessas pessoas, em cada etapa de elaboração da obra, e aquilo que o artista arte, exploramos o domínio das escolhas conscientes do artista, das possibilidades que ele
sabe sobre elas (os seus critérios e as suas prováveis preferências), constituem o meio anteviu mais ou menos conscientemente. Essa evolução da obra põe em evidência uma
pelo qual a participação num mundo da arte influencia as actividades do artista e as infinidade de escolhas passíveis de examinar uma a uma; a obra é o resultado dessas esco-
características das suas obras. lhas. Os artistas tomam as suas decisões tendo como referência a organização no seio da
Também simplifiquei um outro aspecto da questão, ao evocar apenas as escolhas qual trabalham; essa é, pero menos, a hipótese que está na base da nossa análise; Isto não
feitas durante o intervalo de tempo que separa a ideia do projecto e a apresentação do é fácil de demonstrar porque os artistas têm dificuldade em enunciar os princípios gerais
produto acabado (aquele que o artista está pronto a considerar como «digno do seu que guiam as suas escolhas, ou mesmo de as justificar minimamente. Eles satisfazem-se
génio», para usar a expressão empregue pelo juiz no caso Rouault-Vollard) aos agentes frequentemente com declarações tão pouco claras como «isto soa melhor que aquilo»,
do sistema de distribuição. Na realidade, e como veremos mais pormenorizadamente no ou «acho que está bem» ou ainda «isso funciona».
seguimento deste capítulo, intervêm escolhas «secundárias» sobre uma duração mais Essa incapacidade de se explicarem é desencorajadora para os investigadores.
longa. Os mundos da arte exercem, de maneira indirecta por parte de todos os outros Portanto, todos aqueles que praticam uma arte utilizam palavras das quais não conse-
participantes, uma influência sobre as obras que não acaba com a morte do artista. guem explicar o sentido exacto, mas que todas as pessoas do seu mundo compreendem.
Todas essas escolhas, feitas por um tão elevado número de participantes durante Os músicos de jazz dizem que uma música tem <<swing»; as pessoas do teatro dizem que
a duração da existência da obra, permitem afirmar que as obras se devem mais aos uma cena «funciona». Uns e outros seriam provavelmente incapazes de explicar com
mundos da arte do que aos artistas que as fazem. precisão a um observador exterior o significado desses termos, mas todos aqueles que
os utilizam fazem-no de uma màneira muito segura e consensual.
Consideremos a possibilidade de o autor fazer a maioria das suas escolhas decisi-
O MOMENTO DA ESCOLHA DECISIVA vas fundamentando-se sobre critérios tão vagos e contudo infalíveis como «isto tem
swing>> ou «isto funciona». O facto de os artistas poderem cooperar por intermédio de
Fizemos notar no primeiro capítulo que, embora haja uma grande quantidade de critérios e de princípios estéticos tão fluidos parece indicar que não se guiam apenas
pessoas que cooperam na realização das obras de arte, os mundos da arte (e as por regras e definições formais. Eles imaginam o modo como os outros poderão reagir

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

e agem em confonnidade; isto é fruto das suas experiências onde repetidamente se Esta diligência é evidente quando o artista escolhe os materiais. Suponha que é
deparam com o facto de as pessoas aplicarem critérios vagos a detenninadas obras e compositor. Para que instrumentos é que vai compor? Em princípio, pode escolher
em situações precisas. Um músico toca; as pessoas dizem-lhe se a sua interpretação qualquer combinação de instrumentos, quatro berimbaus e uma chapa metálica
tem swing ou não. Ele ouve urna música, arrisca-se a dar a sua opinião, dizendo por ondulada ou um tradicional quarteto de cordas, um dueto ou uma orquestra de cem
exemplo que ela tem swing, e constata que os outros partilham a sua opinião (ou não a músicos e coristas. Pode escrever uma sonata para um único instrumento: existem
partilham). Ao acumular experiências deste género, acaba por apreender o significado sonatas para qualquer instrumento, a solo ou acompanhados. Quando se compõe uma
daquele critério e aprende a utilizá-lo do mesmo modo que os outros. sonata, existe a forte possibilidade de ela ser executada, sobretudo se se destinar a um
Para compreender como é que os artistas cooperam sobre bases tão fluidas, podemo- instrumento com pouco repertório a solo. Os trombonistas e os contrabaixistas adoram
-nos reportar à análise proposta por George Herbert Mead e ao que ele chamava «pôr- ver enriquecido o seu reduzido repertório a solo, e os intérpretes mais célebres destes
-se no lugar do outro» (Mead, 1934; Blumer, 1966). Mead refutava o simplismo do instrumentos encomendam frequentemente novas obras aos compositores. Quando
esquema psicológico estímulo-resposta, segundo o qual, e perante um dado estímulo, tomam as suas decisões, os compositores sabem que, por exemplo, as obras para dois
cada indivíduo adaptaria o comportamento para que teria sido condicionado. Para violinos, viola e violoncelo (o quarteto de cordas clássico) têm fortes hipóteses de
ele, os indivíduos não se limitam a um papel passivo face ao seu meio ambiente. Eles serem interpretadas, porque já existem muitos quartetos constituídos para tocarem
procuram o objecto que vai dirigir a sua actividade. Quando o encontram (e o outro essas partituras. Pelo contrário, se os compositores escreverem uma peça para
faz parte desse conjunto de objectos), apreendem imediatamente o seu significado e clarinete e harmónica, ou para um órgão, timbales e um saxofone alto, sabem que
atribuem-lhe um leque de t.endências ou hipóteses de respostas para as acções que os instrumentistas terão de se reunir especialmente para essa ocasião e que alguns
poderão adaptar. Assim, as pessoas modelam pouco a pouco a sua linha de conduta mal-entendidos entre eles poderão comprometer a carreira da obra (será sem dúvida
não apenas segundo os seus impulsos, mas também tendo em consideração as hipoté- mais fácil executar essas peças num conservatório, onde não é tão difícil reunir os
ticas respostas dos outros às suas acções. Pouco importa que essas previsões estejam músicos que podem fonnar um conjunto tão pouco habitual). Retorquir-me-ão que
correctas ou não; aliás, é muito frequente as pessoas enganarem-se acerca disso. o mundo da música necessita de quartetos para cordas e que pode passar muito
O que conta é que, no seu conjunto, os indivíduos agem tendo em conta as reacções bem sem obras escritas para conjuntos de instrumentos tão heteróclitos, a menos
que antecipam nos outros. que, bem entendido, alguém encomende essas obras. Mas nesse caso, quem fez a
Isto quer dizer que os artistas criam a sua obra, pelo menos em certa medida, encomenda certamente j~ terá adaptado todas as medidas necessárias.
prevendo as respostas emocionais e cognitivas dos outros face ao seu trabalho. Desse Quando completam uma obra dessas, os artistas têm em conta as reacções dos
modo, podem moldar as suas realizações em função das inclinações do público, ou, outros; prevêem-nas graças à experiência adquirida num mundo da arte. Como é que
ao contrário, de modo a preparar esse público para algo de novo. Os fotógrafos, por eles sabem quando é que uma obra está pronta, que devem parar de escrever ou de
exemplo, devem aprender a reagir perante as suas fotografias da mesma maneira pintar? A decisão baseia-se frequentemente naquilo que antevêem relativamente à
que um observador exterior, para poderem detenninar conscientemente as prováveis opinião dos outros membros do mundo da arte. Quando interrogamos os artistas, eles
reacções dos outros. Isto pennite-lhes elaborar imagens que desencadeiam emoções são quase sempre incapazes de explicar por que é que sabem que a obra está pronta.
cuidadosamente calculadas. De facto, eles não sabem dizer quando é que uma obra está pronta, mas quando é que
Por conseguinte, no momento da criação, todos estes componentes do mundo ela deverá estar. E não se trata de uma necessidade inerente à sua disciplina ou ao seu
da arte estão presentes no espírito da pessoa que faz a escolha; ela prevê todas as modo de expressão, mas sobretudo de uma obrigação imposta pelo mundo da arte.
possibilidades de reacções à obra em curso e decide-se em consonância. Existe um Se a estreia de uma peça de teatro é anunciada para o dia 3 de Janeiro, ela
número considerável de decisões que são tomadas num pennanente diálogo com deverá estar em cena nessa data - se tal não acontecer, o dinheiro dos bilhetes
a rede de cooperação onde a obra de arte é elaborada. Os artistas questionam-se: terá de ser reembolsado e será necessário avisar os críticos para não aparecerem.
«Se a realizo deste modo, qual vai ser a impressão produzida? Sobre mim? Sobre O encenador perderá uma parte do seu público, verá reduzidas as hipóteses de poder
os outros?». Também se questionam sobre a hipótese de encontrarem os meios montar outras peças, perderá a confiança dos actores e dos directores dos teatros.
necessários à solução pretendida; será que as pessoas de que necessitam irão de Os sistemas de produção e de distribuição da maioria dos mundos da arte impõem prazos
facto cooperar, será que o Estado vai intervir, etc. Dito de outro modo, eles põem- incontornáveis. Eu sei que tenho de entregar quinze litografias numa detenninada data
-se no lugar de cada uma das pessoas envolvidas na rede de laços cooperativos onde porque a minha galeria já anunciou a inauguração, os críticos estarão presentes, e se
a obra é realizada. Modificam o seu projecto de modo a adaptar-se mais ou menos não puderem ver as minhas obras não falarão delas. Quase todos os mundos da arte
ao estado de espírito dos outros, ou não alteram nada, antevendo também as conse- estabelecem calendários irrevogáveis ou criam os meios para os fixar. Ao trabalhar
quências. sobre a pedra litográfica, o artista sabe quando é que as quinze gravuras têm de estar

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

prontas. Suponhamos que o nosso filme deverá estrear no dia de Natal. Além de sa- Como são simultaneamente fruto da criação e da reflexão, da inovação e da rotina
bermos quando é que tudo tem de estar terminado, também podemos estabelecer um repetitiva, as escolhas decisivas são momentos em que o artista se encontra perante
cronograma para todas as etapas do trabalho. Saberemos em que data é que a música tem um dilema singular. Para produzir obras de arte notáveis que interessarão ao público,
de estar gravada e, portanto, quando é que tem de estar composta; portanto, saberemos os artistas devem desaprender uma parte das convenções que assimilaram. Uma peça
quando é que tal ou tal cena tem de estar pronta para ser sincronizada, etc., etc. de teatro completamente convencional é enfadonha para toda a gente e traz poucas
Saxe Commins escreveu um livro em nome de um autor que não tinha entregue o gratificações ao seu autor. Para os artistas, o sucesso passa pela transgressão de normas
manuscrito de uma biografia de Lillian Russell. A sua publicação devia coincidir com mais ou menos profundamente interiorizadas.
a estreia de um filme que lhe era consagrado. Algumas semanas antes da publicação Se, na maior parte das vezes, os artistas têm em consideração as reacções que anteci-
(que fora anunciada na imprensa), o autor ainda não tinha redigido uma única página. pam nos outros membros do mundo da arte, também aprendem a negligenciá-las quando
Commins instalou-se comodamente em casa e organizou os documentos e as notas isso é necessário. Aprendem também a ignorar as reacções daqueles que não pertencem
recolhidas pelo autor (Commins, 1978, pp. 153-69). ao mundo da arte. Isto é dificil, pois a maioria dos membros dos mundos da arte (ex-
Poucas pessoas reagem perante as obras de modo tão reflectido como os artistas ceptuando os poucos que nasceram no seu seio) eram inicialmente estranhos a esses
experimentados. A maioria sabe que um determinado trecho de música as toma tristes, mundos e aprenderam tudo aquilo em que os leigos ainda acreditam e conhecem. Mas os
mas ignora quais os procedimentos melódicos e harmónicos que produzem esse efeito. artistas têm de fazer muitas coisas que as pessoas de um modo geral não fazem. Assim,
Os artistas para quem esses procedimentos são perfeitamente familiares enganam- existem vários exercícios para actores que consistem em treiná-los para adoptarem em
-se com menos frequência do que os outros sobre os efeitos previsíveis. Antecipam público comportamentos que as pessoas comuns reservam apenas para a esfera privada.
correctamente as prováveis reacções dos outros e obtêm mais ou menos o resultado É frequente terem de tocar em pessoas que não conhecem, envolver-se em manifesta-
pretendido. ções sentimentais explosivas, despirem-se, ou seja, fazer coisas que as pessoas comuns
Os artistas conseguem ser muito exactos nas suas previsões porque o processo nunca ousariam fazer em público. Outras artes obrigam a sujar as mãos, por exemplo,
artístico obedece a convenções. Dado que o modo menor está convencionalmente com tinta, barro ou outros materiais. Dado que somos ensinados desde pequenos a não
associado à tristeza ou à melancolia, os compositores podem guiar-se pelas suas pró- nos sujarmos, não é fácil abandonar esse hábito. Há alguns anos, a minha mulher leccio-
prias reacções: «Se eu escrever esta passagem em modo menor, as pessoas terão uma nou um curso noctumo de cerâmica. Na primeira aula entraram no ateliê duas senhoras
impressão de tristeza pois é o que eu experimento e, assim, eu suscitarei a emoção elegantes, olharam para o monte de argila húmida e perguntaram horrorizadas: «O quê,
pretendida». Este tipo de raciocínio permite aos artistas preverem com bastante precisão vamos fazer isto com as mãos?» Quando lhes responderam que sim, que tinham de pôr
as reacções dos outros. ali as mãos, deram meia volta e foram pedir o reembolso da inscrição no curso:
Certas convenções tomam-se tão interiorizadas nos gestos do dia-a-dia que estes Os artistas também têm de ultrapassar a sua repugnância pelo desperdício.
acabam por se traduzir numa série de automatismos, ainda que os artistas pressin- O Tactile Art Group, ao qual já nos referimos no capítulo 3, queria inventar uma nova
tam no seu íntimo aquilo que devem ou não devem fazer. O modo como Sudnow forma de arte para fazer um exercício de simulação em sociologia da arte. Escolhemos
(1978) aprendeu a tocar piano mostra como é que as convenções se insinuam na o modo táctil porque pensávamos que oferecia possibilidades muito pouco exploradas
experiência fisica do artista para formar uma segunda natureza e põe em evidência até então. Durante várias semanas tentámos criar obras baseadas no sentido do tacto.
a relação indissolúvel entre o acto fisico e o trabalho mental que está em jogo na Entre as obras produzidas no decorrer das experiências, gostámos bastante de Cookie,
actividade artística. De facto tão indissolúvel que a distinção não é possível. A om- uma pe,formance em que o artista entornava diversos tipos de alimentos, entre os quais
nipresença das convenções é evidentemente um obstáculo à mudança nas práticas um ovo cru, sobre as mãos de um espectador (ver figura 21). Estávamos um pouco
artísticas. O seu conhecimento confere aos artistas meios de acção ao nível mais incomodados por desperdiçar esse ovo. Quase ouvíamos as nossas mães apavoradas
visceral. Enraíza-se tão profundamente neles que podem pensar e agir segundo as a perguntar-nos quantos ovos é que ainda íamos gastar com a nossa brincadeira e se
convenções sem hesitar nem mesmo reflectir. Nessas circunstâncias, as escolhas sabíamos que estávamos a estragar comida, quando existe tanta gente a morrer à fome
decisivas são vividas essencialmente como actos em vez de escolhas propriamente por esse mundo fora:. Este exemplo parece fútil, mas a verdade é que foram muitos os
ditas. Aquilo que a descrição pitoresca de Sudnow demonstra é que ele aprendeu que tiveram escrúpulos em desperdiçar alimentos. Como continuámos a útilizar ali-
tanto a tocar as notas, os acordes e as oitavas no piano como a analisar o modo mentos entre os principais materiais das nossas obras tácteis, acabámos por ultrapassar
como essas notas podem ser combinadas numa melodia. Podíamos acrescentar que aquelas reticências. Às vezes, não é o desperdício de alimentos ou de produtos com
nesses momentos em que o gesto e o pensamento se confundem, a reflexão consiste uma grande carga afectiva que inquieta os principiantes, mas sobretudo a perda de
num diálogo constante com o mundo da arte relativo às escolhas feitas. O momento tempo e de dinheiro. Os fotógrafos descobriram que, contrariamente ao que pensam os
da escolha e o momento criativo fundem-se num diálogo com um mundo da arte. amadores, não podemos guardar todas as imagens captadas. Os profissionais passam

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A Obra e a sua Versão Definitiva

muito tempo a ensinar aos estudantes que não devem esperar atingir a perfeição em
todas as fotografias, que é preciso saber gastar película para obter, com um pouco de
sorte, uma boa fotografia.
De igual modo, os escritores apercebem-se frequentemente de que os domínios
onde se· encontram mais à vontade, os temas dos quais sabem explorar melhor os
recursos, obrigam-nos a trair a confiança e a violar a intimidade dos seus amigos,
colegas, vizinhos ou da família. Uma pessoa convenientemente socializada não trairia
relações de confiança tão fundamentais e, contudo, os artistas sentem-se frequente-
mente impelidos a fazê-lo. A sua qualidade de artistas talvez não os proteja contra o
furor das pessoas de quem se aproveitam sem o seu consentimento, mas o público
que não conhece as pessoas envolvidas mostra-se mais indulgente, sobretudo se os
factos remontam há algum tempo. Os romances onde Truman Capote punha em cena
personalidades da ex-União Soviética revelaram ao grande público os bastidores de
vários escândalos mais ou menos conhecidos que ele tinha descoberto ao estabelecer
amizade com as pessoas envolvidas. No seu livro intitulado Tu Isa (1971 ), Larry Clark
publicou imagens de indivíduos drogados que eram seus amigos de infância e que
não esperavam ver-se publicados num livro. A obra teve de ser retirada do mercado
na sequência de uma acção judicial. Capote .e Clark, como muitos outros escritores
e fotógrafos, tinham aprendido a produzir uma obra inovadora excluindo alguns dos
seus potenciais interlocutores do diálogo interior que subentende as inúmeras escolhas
decisivas constitutivas da obra.
Por vezes os artistas não conseguem encontrar uma forma de contornar os protestos
que provêm da parte do público leigo e abandonam obras que, contudo, têm muito
interesse em completar. Também acontece frequentemente um artista legar, em caso
de morte, um conjunto de obras das quais apenas alguns amigos mais íntimos tinham
conhecimento. Mark Twain manteve secretos os seus escritos pornográficos a pedido da
mulher; E. M. Forsterpôs de lado um romance de temática homossexual reservando-o
para uma publicação póstuma; Toulouse-Lautrec escondeu cuidadosamente as suas
representações mais explícitas de cenas de bordéis. Seria interessante comparar as obras
que vários artistas, em diferentes épocas, destruíram e aquelas que conservaram sem
as mostrarem a ninguém (por motivos que reflectem os constrangimentos sociais do
meio onde viviam), com as obras que divulgaram e das quais reivindicaram a autoria,
aquelas sobre as quais estavam prontos a investir a sua reputação e a sua carreira.
O artista deve aprender a associar outros membros da rede cooperativa a esse diálogo
interior que preside à realização da obra. Os alunos das escolas de arte confrontam-se
frequentemente com dificuldades nos seus trabalhos porque não associaram as pessoas
pretendidas e não conseguem desde logo encontrar soluções simples e eficazes para
problemas banais. Avalia-se melhor a importância do diálogo com o mundo da arte
que subjaz às acções quase automáticas dos artistas experientes quando se observa
aqueles para quem essas acções não são de modo algum automáticas porque ainda
FI?URA 21. A pe,formance Cookie pelos membros do Tactile Art Group. À semelhança de muitos têm muito que aprender.
artist~s qu~ ~abalh~'.° em n~vos géneros, o grupo não tinha materiais nem instrumentos especiais à Chandra Mukerji (1977) explica que, em determinadas escolas de cinema, os alunos
sua d1spos1çao e utilizava alimentos e utensílios domésticos vulgares. exercitam-se estudando as reacções dos outros relativamente às suas decisões graças a

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

exercícios de simulação baseados nas convenções cinematográficas. Esses exercícios optar por outra solução na próxima vez. Isto contrasta com a facilidade que é trabalhar
servem como trabalho prático porque os alunos não dispõem de equipamentos suficientes recorrendo a formas mais estabelecidas e com o facto daí decorrente de as pessoas
para tentarem materializar todas as suas ideias. Eles explicam aquilo que fariam se estives- se poderem aconselhar umas às outras, já que se toma mais fácil o aconselhamento
sem realmente a realizar um filme. Os seus colegas imaginam os efeitos produzidos e as mútuo quando se pratica uma forma de arte para a qual existe um sistema de conven-
dificuldades levantadas por tal ou tal ideia, examinando as prováveis reacções de outros ções e de práticas. Uma das maiores dificuldades com que se deparou o Tactile Art
membros do mundo do cinema. Group provinha precisamente da incapacidade de os seus membros determinarem se
faziam um trabalho com mérito ou se estavam a perder o seu tempo. Quando alguns
Como as regras que os alunos utilizam nos seus exercícios são convenções de realização cine- dos membros abandonaram o grupo, reprovaram os outros por estarem a fazer obras
matográfica, ao confrontarem-se com elas exercitam-se a usarem essas convenções. Os alunos
falam de uma ideia concebida na sua imaginação e explicam como é que ela podia originar um que não eram arte. E mesmo aqueles que gostavam muito das suas obras não tinham
filme. (Mukerji, 1977, p. 25) qualquer argumento crítico ou estético para refutarem essas acusações.

Chandra Mukerji cita o testemunho de um aluno: AS INTERVENÇÕES DOS OUTROS

Com efeito, esta ideia surgiu-me quando eu estava lá (num leilão) e pensava que ia ser fácil. De um modo geral, os artistas, a quem se atribui o mérito ou a responsabilidade
Queria mostrar os três tipos de pessoas que se vêem nesses leilões e o seu comportamento. Queria
obter imagens das pessoas que fazem bicha lá fora, da família no interior inspeccionando os
das obras de arte, realizam a maioria das escolhas que determinam o carácter definitivo
seus bens, de ar desamparado, e dos homens que realizam o leilão. Para a banda sonora, ouvir- dessas obras. Os outros participantes do mundo da arte influem sobre o resultado ao
-se-iam estes três tipos de pessoas cada uma por seu turno, alternando com a sua imagem. Eu desempenharem um papel no diálogo interior que precede e acompanha as escolhas
pensava que bastaria ir a um desses leilões e filmar estes elementos sempre presentes: a bicha feitas pelo artista. Mas existem ainda outros participantes cuja intervenção é mais directa
à porta da casa, os leiloeiros a trabalhar, a família a olhar estupefacta e a casa num autêntico e que operam escolhas pessoais que também contribuem para ~eterminar o aspecto
rebuliço. Ora, sinceramente, eu não percebo por que é que ele pensa que isto seria tão compli-
cado. (Mukerji, 1977, pp. 25-26) definitivo da obra. Por vezes, os artistas estão preparados para essas eventualidades e
pensam nisso durante a execução do trabalho; mas muitas vezes não estão preparados
para tal e, assim, não podem prever em que medida é que aquilo que os outros fazem
E continuou: pode afectar a sua obra e, portanto, não se conseguem adaptar antecipadamente. Estas
inevitáveis intervenções estão presentes durante toda a vida da obra, muitas vezes até
Ele disse que bastariam duas ou três câmaras para realizar o filme. Na verdade, quando esse após a morte do artista; os seus efeitos poderão ter um carácter passageiro ou perma-
estudante de cinema propôs a sua ideia numa reunião de grupo, responderam-lhe que o seu
projecto não se prestava sequer a uma simulação. Um aluno mais experiente que apontou a ideia
nente e irreversível.
como tecnicamente muito dificil advertiu-o de que, para filmar um leilão, seriam necessárias Os fabricantes e os distribuidores exercem uma intervenção determinante sobre
mais câmaras do que aquelas que existiam naquela escola. (Mukerji, 1977, pp. 26 e 28) as escolhas quando deixam de fornecer um determinado material ou equipamento.
Quando isso acontece, inviabilizam certas escolhas do artista, ou obrigam-no a des-
perdiçar o seu tempo e energia se quiser realmente utilizar esse material e não outro
(Ver Rosenblum e Karen, 1980, que expuseram o ponto de vista dos profissionais qualquer. Quando os principais fornecedores reduzem o leque de oferta das películas
acerca destas actividades.) ou dos papéis fotossensíveis, o fotógrafo é obrigado a excluir do seu trabalho aquilo
A importância do diálogo interior com o mundo da arte para a tomada de decisões que podia realizar com o material agora ausente. Os artistas sentem esses constran-
torna-se bastante manifesta quando alguém tenta criar uma nova forma de arte. Esse gimentos quando desaparece do mercado um material ao qual estão ligados, por
empreendimento é tão dificil, precisamente porque as questões que habitualmente exemplo, quando já não podem comprar mais papel Agfa Record Rapid. Mas estão
resolvemos ao imaginarmos as reacções dos outros membros da rede de cooperação sempre sujeitos a constrangimentos dessa ordem, excepto no caso de equipamentos que
ficam sem resposta. A rede de cooperação ainda não existe, ou então ainda só está no nunca foram fabricados, por motivos técnicos ou comerciais. Por outro lado, quando
seu estado embrionário. Nenhum dos métodos habituais de projecção permite predi- um fabricante lança um novo produto no mercado, ele possibilita um maior leque de
zer as prováveis reacções daqueles que serão chamados a constituir o nosso público. escolhas ao artista. O sistema Polaroid de fotografias a cores instantâneas criou novas
A ausência de convenções traduz-se por uma incapacidade flagrante de operar as possibilidades para os artistas.
escolhas decisivas ou de avaliar as suas consequências. Quando não se sabe se uma Muitas obras de arte apresentam-se sob a forma de indicações que permitem a
determinada decisão foi boa ou funcionou, não se pode determinar se se deve ou não outras pessoas dar-lhes uma existência concreta em determinadas circunstâncias.

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

Pode tratar-se de uma partitura musical, de um texto para uma peça de teatro, de um Max Brod não respeitou a vontade do seu amigo Kafka que lhe tinha pedido para destruir
manuscrito para imprimir, de planos para uma construção. Como essas indicações não os seus manuscritos inéditos após a sua morte. Os críticos e os leitores regozijam-se,
podem conter todos os pormenores das acções a desempenhar, aqueles que as inter- mas foi Max Brod quem tomou a decisão de publicar, não Kafka.
pretam fazem forçosamente escolhas independentes da vontade expressa do artista, Brod revelou ao público a totalidade da obra de Kafka. Outros executantes tes-
ainda que se esforcem por serem tão «fiéis» quanto possível. Alguns artistas receiam tamentários mostram-se mais selectivos e exercem, portanto, uma influência mais
dar indicações muito precisas ou que possam limitar as escolhas dos executantes. considerável sobre o conjunto das obras que, aos olhos do público, representam um
Uma partitura contemporânea pode indicar ao percussionista a quantos centímetros da artista. Tomemos o exemplo de Atget. Jean Eugene Atget era actor teatral e rondava
margem dos tímpanos é que ele deve tocar. Durante o Renascimento, os compositores os quarenta anos de idade quando optou pela prática da fotografia. Comprou uma
remetiam-se muito mais para os modelos de interpretação da época e podiam mesmo máquina fotográfica de grande formato e começou a registar vários aspectos da Paris
chegar a deixar a escolha das notas aos músicos (Dart, 1967). Mais recentemente, John de princípios do século XX. Dia após dia, fotografava edificios, monumentos, montras,
Cage introduziu elementos aleatórios nas suas composições, obrigando desse modo pessoas anónimas nas ruas, jardins, mercados, etc. Acumulou milhares de fotografias
os músicos a ultrapassarem a vontade de não tocarem senão aquilo que dominam na durante um período de mais de trinta anos. Poucas pessoas conheciam o seu trabalho,
perfeição. Os arquitectos inovadores tentam supervisionar os trabalhos de construção nomeadamente os pintores que eram os seus principais clientes. Quando a jovem fotó-
para evitarem que os operários sabotem os seus projectos ao adaptarem procedimentos grafa Berenice Abbott conheceu o velho Atget em 1927, considerou-o um fotógrafo de
convencionais. génio cuja obra deveria ser conservada e mostrada. Pediu-lhe para posar para ela, mas
As obras musicais e dramáticas cujos autores já morreram há muito são mais quando lhe quis mostrar as fotografias que tinha feito, Atget tinha morrido. Berenice
facilmente objecto de uma interpretação mais livre. Vários encenadores mutilaram Abbott conseguiu reunir as placas e as provas deixadas por Atget, protegendo-as de
peças de Shakespeare ou apresentaram-nas recorrendo a um guarda-roupa moderno uma quase certa destruição. As obras que decidiu dar a conhecer garantiram o renome
para pôr em evidência as analogias com a época actual. Outros serviram-se de peças do fotógrafo, primeiro nos Estados Unidos e depois em França. Durante muito tempo,
escritas há muitos séculos para ilustrar teses políticas ou filosóficas contemporâneas. a sua reputação assentou sobre a selecção feita por Berenice Abbott (1964). Algum
Os dirigentes de orquestras e os músicos executam frequentemente as obras barrocas tempo mais tarde, outras pessoas fizeram escolhas completamente diferentes a partir do
em instrumentos que não existiam naquela época, eliminam as repetições de temas e mesmo material em bruto. Podemos citar outros exemplos. John Szarkowski e Richard
reinterpretam os floreados. Avedon escolheram imagens entre a obra fotográfica que o pintor Henri Lartigue tinha
Acontece frequentemente as pessoas entregarem-se a interpretações pessoais no constituído como amador, para montar uma importante exposição e publicar um livro.
cumprimento de tarefas que são aparentemente exclusivamente técnicas, modificando Nancy Newhall deu a conhecer Ansel Adams como «o» fotógrafo do Yosemite Valley
o aspecto final da obra. Barbara Hardy explica que: e do Oeste americano ao escolher as fotografias reunidas para o seu primeiro livro.
Embora Lartigue e Adams ainda fossem vivos, os profissionais fizeram um trabalho
A pontuação de George Eliot é muito leve, livre, «moderna». Por exemplo, todos os pontos selectivo idêntico ao de Abbott, com o mesmo resultado: o artista era representado por
e vírgulas desta passagem [a epígrafe ao capítulo 70 de Daniel Deronda] eram vírgulas no um corpo de trabalho que reflectia a sensibilidade e o gosto de outra pessoa.
manuscrito. O impressor formalizou a pontuação e, portanto, é um pouco precipitado falar-se
do «peso» do seu estilo quando se ignora que esse peso provém, pelo menos em parte, de um Os difusores de obras de arte também fazem escolhas decisivas quando re-
estilo de pontuação imposto. (Eliot, 1967, p. 903) cusam divulgar determinadas obras, quando exigem modificações à partida, ou
quando (intervenção muito mais subtil) criam uma infra-estrutura e instauram
procedimentos que levam os artistas envolvidos a realizarem obras adaptadas a
Na sequência de um caso semelhante com um impressor local, Emily Dickinson esse sistema. Quando a indústria discográfica normalizou o 78 rotações, os músi-
desistiu pura e simplesmente de publicar o seu trabalho. cos de jazz passaram a gravar as peças compatíveis com a duração desses discos.
Os artistas não mostram ao público a totalidade da sua produção. Guardam para si A difusão de obras mais longas era demasiado dificil ou pouco rendível. As músicas
trabalhos incompletos, como os rascunhos, os esquissos ou as obras com as quais não tocadas ao vivo eram mais longas porque os intérpretes improvisavam sobre o tema,
estão satisfeitos e que poderiam beliscar a sua reputação. Embora os artistas escolham mas a composição propriamente dita respondia às normas do 78 rotações. Com o
frequentemente eles próprios as obras que querem divulgar, por vezes os amigos ou aparecimento dos discos de longa duração tomou-se possível, em certa medida, ultra-
os editores profissionais também o fazem em seu nome, e após a sua morte a decisão passar este constrangimento. Contudo, a maioria dos discos continuou a manter um
é da competência dos executantes testamentários. As escolhas de todas essas pessoas número de faixas com uma duração aproximada daquela que tinha sido ditada pelo
não correspondem forçosamente à vontade do artista, e um artista morto já não pode que era possível conter nos primeiros 78 rotações. Os compositores de jazz levaram
impedir que uma obra seja apresentada sob uma forma com a qual nunca concordou. muitos anos at~ tirarem partido daquilo que os discos de longa duração possibilitavam

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

(por exemplo, Focus de Eddie Sauter, composto para o saxofonista Stan Getz e uma Os sonetos foram caracterizados, por homens cultivados e capazes de discernimento, como ineptos,
obscuros, amaneirados, plenos de «confusões deliberadas e_de disformidades calculadas», escritos
orquestra de cordas, com a duração de 48 minutos). Os responsáveis pelos museus, recorrendo a uma versificação «incompatível com a língua inglesa», com um estilo permeável
os editores, os directores de orquestras, os encenadores de teatro e os realizadores de «às incoerências obscuras, às divagações tagarelas e consternadoras». Poderíamos citar, em
cinema intervêm quando criam e exploram canais de distribuição mais ou menos bem particular, Henry Hallam, para quem «é impossível não nos lamentarmos que Shakespeare
adaptados a determinadas obras e completamente inadaptados a outras. Desse modo, os tenha escrito», e cuja opinião e desgosto foram partilhados num momento ou noutro, com
seleccionam, ou levam os autores das obras de arte a seleccionar, as fórmulas compa- algumas cambiantes, por Coleridge, Wordsworth e Hazlitt.
Lamentar que Shakespeare os tenha escrito? Meu Deus! Seríamos tentados a vociferar-lhes
tíveis com o sistema em vigor. no abismo dos tempos: Será que os leram verdadeiramente? Oh! Hallam leu-os certamente,
A participação do público consumidor nos mundos de arte é, sem dúvida, das mais bem como Johnson, Coleridge, Wordsworth, Hazlitt e Byron (aos quais recorri para as citações
fugidias, pois consagram às obras menos tempo do que a maioria dos profissionais, precedentes). Quanto a saber se leram exactamente os poemas que nós lemos actualmente, eis
mas é ele quem contribui de forma mais directa para a vida e carreira das obras no uma outra questão. «O valor altera-se quando se depara com a mudança.» Os textos eram os
seu dia-a-dia. Optar por assistir a tal ou tal manifestação, interessar-se mais por um mesmos, mas parece evidente que num certo sentido, os poemas, esses, não eram os mesmos.
determinado objecto do que por outro, manter uma atitude crítica fáce às obras e aos (Smith, 1979, p. 10)
espectáculos frequentados, é garantir de modo selectivo a existência das obras.
Não esqueçamos que o objecto da nossa análise não é a obra de arte enquanto reali- Não irei citar senão alguns dos aspectos do soneto 116 que retiveram a atenção de
dade isolada (objecto ou manifestação), mas o conjunto das etapas da sua criação e Barbara Smith, ainda que correndo o risco de cometer uma injustiça face a uma análise
da sua recriação à medida que as pessoas a descobrem e apreciam. Daí a importância de uma subtileza notável:
singular do papel desempenhado pelo público. Sob esta perspectiva, uma obra possui
apenas as características que os seus espectadores ou leitores assinalam em tal ou tal Sendo uma jovem snobe e atenta, tinha a tendência para atribuir aos poemas um valor
inversamente proporcional à sua frequência de ocorrência nas antologias. Por outro lado,
ocasião. Apesar da sua realidade material, essas características não existem para as ouvira ler muitas vezes aquele poema nos casamentos dos meus amigos. A simples leitura
pessoas que as desconhecem ou não lhes querem prestar atenção. Aparecem e desa- do primeiro verso tomara-se-me penosa, e era um suplício recordar o seguimento da estrofe.
parecem em virtude do grau de percepção que o público possa (ou não) ter (Bourdieu, Para coroar o conjunto, um professor cujas opiniões eu tinha na mais elevada consideração
1968). É o grau de envolvimento e de conhecimento do público que faz a obra, nem demonstrara-nos com grande brio que a substância do 116 era tão fútil, como duvidosa a sua
que seja temporariamente. Por esse motivo, aquilo a que o público reage afecta tanto sintaxe e as suas imagens indecisas. [Há dez anos] descobri um 116 completamente diferente.
Contrariamente àquilo em que acreditava, não era o lado Polonius do poeta que ali se exprimia,
a obra como as opções dos artistas e do pessoal de apoio.
salmodiando aforismos sentimentais sobre o valor das virtudes abstractas, mas sobretudo o lado
Malraux, Eliot e outros críticos fizeram notar que o aparecimento de uma nova obra Troilus, Hamlet ou Lear do poeta, que tentava, com o furor do desespero, sustentar à força de
de arte modificava o carácter de todas aquelas que a haviam precedido. A análise de afirmações a existência de qualquer coisa que tudo desmentia na sua própria experiência. Por
Danto (1964, pp. 582-84) propõe uma explicação para esse fenómeno: a nova obra isso, eu podia ter dito naquela altura, para garantir que os argumentos eram inconsistentes e os
atrai a atenção para uma propriedade comum a todas as obras precedentes, mas que sentimentos artificiais, mas, apesar de tudo, este é um soneto cheio de força porque, entre outras
não foi notada porque, precisamente, não variou de obra para obra. Por conseguinte, coisas, essa inconsistência e essa artificialidade, em si mesmas, exprimem algo de profundo e de
autêntico, o saber aspirar a não saber, a não reconhecer, a não «admitir» aquilo que se conhece
podemos dizer que as obras conceptuais permitiram ao público compreender que e que se desejaria diferente.
a realidade física do objecto não era uma componente decisiva das artes plásticas; Uma interpretação sedutora do poema, penso ... quando acredito nisso. Tem a vantagem de,
para certas obras (por exemplo, as de Haacke [1976]), o objecto físico não representa a meus olhos, resgatar o valor de um soneto, de me permitir achar bom aquilo que seria mau
senão um modo entre outros de concretizar uma determinada ideia. O artista contribui noutras circunstâncias. Na economia global do universo, é certamente um beneficio. Mas quanto
com a ideia, não com o objecto. Um público que aceita este princípio tem um olhar a avaliar o soneto, sou completamente incapaz. Não só o seu valor depende da escolha que
faço entre duas interpreta_ções inconciliáveis (e igualmente possíveis para mim), mas também
diferente sobre as obras anteriores. Deixa de as considerar apenas como objectos
sei que às vezes aprecio esse soneto quando lhe dou uma interpretação desfavorável, e que
belos, mas descobre nelas também a concretização de certas ideias, conferindo-lhes às vezes aprecio certos aspectos quando lhe atribuo qualquer interpretação. Assim, às vezes
uma dimensão que talvez não possuíssem antes. O público desloca o campo da sua tenho prazer em sentir de novo as simetrias quase abstractas da sintaxe ou da sonoridade, essas
atenção, e a obra revela essa modificação. frases declamatórias e o seu equilíbrio: Lave is not lave/ Which alters when it alterationfinds /
Barbara Herrnstein Smith (1979) evoca os diversos aspectos de um soneto de / Or bends with the remover to remove ... que prazer em pronunciá-las! Às vezes, à semelhança
Shakespeare (o soneto 116) que retiveram a sua atenção ao longo dos anos. Ela faz do professor B., aprecio a grandiloquência, e posso desfrutar os excessos em si mesmos. Num
ambiente quotidiano onde reina um rigor profissional minucioso, onde se ouve os colegas
um apanhado das várias flutuações da recepção crítica aos sonetos, desde a época de afirmarem coisas do género: «Parece-me que talvez fosse possível, sob certas condições, que
Shakespeare: manifestações daquilo a que chamamos vulgarmente "amor" poss~m durar relativamente muito

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1 Mundos da Arte

tempo», faz mesmo bem ouvir algumas boas afirmações categóricas:


«Oh, no, it is an ever-fixéd mark
A Obra e a sua Versão Definitiva

monumentos religiosos na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, sublinha o papel desem-
penhado pela «ruína pitoresca» na pintura e na poesia inglesa do romantismo tardio.
that looks on tempests and is never shaken. ( ... ) Segundo o autor, esses vestígios mostravam a «destruição do conjunto da instituição
Love alters not. (... )
But bears it out evento the edge of doam.» da Igreja medieval em Inglaterra» (Phillips, 1973, p. X). Ele mostra como é que as
Não é senão um aspecto entre outros do poema, e, às vezes, atinge o alvo. Mas a verdade deteriorações voluntárias associadas à mais pura negligência conduziram a essas ruínas,
é que nada atinge o alvo todas as vezes, porque o alvo é sempre diferente. (Smith, 1979, e o seu propósito esclarece o modo como as obras de arte morrem:
pp. 12-14)
A orgulhosa abadia de Glastonbury foi extinta em 1539 e entregue à pilhagem e à destruição em
nome da Reforma. Quando Somerset, que se tornara Lord Protecto1; tomou posse dela, mandou
A atenção do público recai sobre coisas diferentes consoante o momento e o lugar. destruir os tectos e convidou um grupo de cerca de duzentos tecelões para ocuparem o espaço
De uma maneira geral, as reacções do público regem-se por convenções tal como as então libertado. Restauraram-se seis casas, mas deixou-se o resto em estado de ruína. No reinado
dos outros participantes dos mundos da arte, mesmo que variem à medida que nos de Maria Tudor, os tecelões abandonaram o país e apesar de haver alguma esperança em ver a
afastamos do núcleo dos profissionais. Atendendo a este facto, todos os membros de abadia restaurada, pouco foi feito por Glastonbury.
um mesmo segmento do público têm reacções mais ou menos idênticas e fazem mais Nos inícios do século XVII, a abadia começou a ser despojada dos seus materiais de construção,
tendo-se utilizado, à falta de melhor, pólvora seca para precipitar a sua demolição. A pedra de
ou menos as mesmas escolhas entre as diversas possibilidades oferecidas por uma obra.
talha da abadia, a alvenaria de sustentação das paredes e as grandes pedras das suas fundações
Como vimos no capítulo 2, o público pode tornar-se sensível a novas componentes de eram materiais tentadores para os construtores da região. É possível que as pedras que susten-
uma obra e ser insensível a outras mais antigas: afinal não é certo que perdemos desse tam as robustas fundações nos terrenos pantanosos da estrada de Wells sejam provenientes de
modo a capacidade de reagir espontaneamente aos elementos religiosos e geométricos Glastonbury.
presentes na pintura italiana do século XV (Baxandall, 1972)? Consta que nos inícios do século XVIII, a abadia pertencia a um presbiterano que aí fez grandes
Dado que as escolhas do público e do pessoal de apoio podem reavivar as estragos. Cada semana, vendia um pilar, um contraforte, uma travessa de janela ou uma pedra
cuidadosamente cortada. As delapidações que continuaram até ao século XIX reduziram con-
obras de maneira tão radical, somos obrigados a considerar que as obras de arte sideravelmente o que ainda restava do edifício. Actualmente, as fundações de Glastonbury já
não possuem um carácter imutável. Mesmo quando a sua forma material é imutá- quase desapareceram por completo. Contudo, aqueles estranhos pilares abandonados ainda são
vel, e conserva as características escolhidas pelo artista, elas revestem-se de uma capazes de nos emocionar profundamente ( ... ). (Phillips, 1973, p. IX)
aparência variável na percepção que as pessoas têm delas. Não é apenas o valor
que lhes é atribuído que é variável. Certos aspectos diferentes aparecem e desapa-
recem à medida que as pessoas encaram as obras sob uma perspectiva diferente. Os assassinos de obras de arte têm uma grande dificuldade em aniquilá-las definiti-
A obra completa de um artista vê o seu carácter ainda mais mudado quando alguém vamente, sobretudo quando elas existem em muitos exemplares (os livros, ao contrário
intervém acrescentando ou suprimindo elementos ao seu conjunto. das pinturas) ou quando a obra não se define pelo seu carácter único (um espectáculo,
ao contrário de um objecto). A obra continua a existir enquanto subsistirem as ideias que
ela veicula. Assim, uma poesia proibida, que os editores já não publicam, pode sobrevi-
MORTE E CONSERVAÇÃO DAS OBRAS ver na memória das pessoas. Mesmo os objectos destruídos podem sobreviver graças a
reproduções, fotografias, desenhos ou outro tipo de documento que perpetue a sua recor-
Certas escolhas decisivas podem chegar a ter efeitos mais profundos e transformar dação. As obras conceptuais furtam-se a qualquer tentativa de destruição material pois
o próprio objecto material. Os seus efeitos são duráveis, enquanto os efeitos das :flutu- basta que subsista a ideia. No limite, uma obra pode reduzir-se ao seu nome.
ações de interesse de Barbara Smith por tal ou tal aspecto do soneto 116 deixam a obra Os especialistas atribuem cento e onze peças a Sófocles, mas já não possuímos senão os
intacta para os outros leitores. Certas obras de arte sofrem mutilações, outras morrem, textos de sete tragédias e alguns fragmentos de um drama satírico. Ésquilo escreveu uma
poderíamos dizer. Ainda que as obras sejam recriadas cada vez que alguém as descobre, trilogia de Prometeu, mas apenas Prometeu Agrilhoado chegou até nós, tendo Prometeu
morrem quando já ninguém se interessa por elas, nem mesmo que de modo indirecto, Portador de Fogo e Prometeu Libertado desaparecido. (Hooper, 1967, pp. 267 e 190)
através de uma descrição feita por outrem. Sabendo que as obras de arte podem morrer, Todavia, há obras que podem morrer. Se uma obra foi realmente assassinada, é
os artistas preocupados em legar um marco histórico com o seu nome fazem as suas evidente que não a podemos conhecer; a morte não é efectiva senão a partir do mo-
escolhas sabendo que determinadas soluções são menos perecíveis que outras. mento em que até a recordação dela se perdeu. De facto, as tentativas de determinados
As obras de arte morrem porque são assassinadas (tal como as destruições por regimes políticos para assassinar obras de arte e, por vezes, os seus criadores podem
motivos ideológicos já evocadas) ou porque ninguém se preocupa com a sua salva- falhar precisamente porque os únicos objectos e ideias que é preciso suprimir são os
guarda. John Phillips (1973), que se debruçou sobre as destruições de esculturas e de que já se encontram muito divulgados junto do público. Quando um governo as tenta

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

assassinar está de facto a estimular um interesse por elas e multiplica o número de nem sempre tiveram direito de cidadania nos museus de outrora e que, hoje em dia,
cópias existentes, tanto fisicas como na mente das pessoas. podemos encontrar facilmente: cavalos de madeira, colchas, cata-ventos ou tabuletas
A morte das obras de arte é por vezes uma consequência mais ou menos in- de albergues, por exemplo. Essas colecções, essencialmente limitadas à arte popular
voluntária de uma outra destruição. Os conflitos armados provocam o desapare- das treze primeiras colónias americanas, não se abriram senão aos poucos às tradições
cimento de inúmeras obras de arte nas regiões mais duramente flageladas, como das posteriores vagas de emigrantes. É sem dúvida o reflexo de uma evolução das
aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e durante a guerra do Vietname. mentalidades: em vez de celebrar o passado essencialmente britânico dos Estados
É mais frequente elas morrerem em virtude da negligência do que da destruição Unidos, engloba-se democraticamente a arte de certos grupos cuja cultura primitiva
intencional. A entropia física e social também provoca a perda de muitas obras. era pouco considerada, sem valor artístico e «não americana», nomeadamente a das
Para sobreviverem fisicamente, as obras devem ser protegidas e conservadas. Para comunidades negra e hispânica.
sobreviverem num mundo da arte, devem não apenas ser preservadas da destruição, De modo idêntico, as obras dos artistas naifs, que trabalham à margem das dis-
mas estarem facilmente acessíveis a um público potencial. Os museus, as bibliote- ciplinas reconhecidas e dos mundos da arte organizados, escapam frequentemente à
cas, os arquivos e outras instituições protegem as obras de arte e impedem que elas conservação, como veremos no próximo capítulo. Dado que essas obras não estão
desapareçam. A maioria dos museus e das bibliotecas abrigam colecções das quais integradas em qualquer sistema de criação e de difusão, não são protegidas contra as
uma parte é facilmente acessível ao público, enquanto outra, guardada nos depósitos, degradações naturais, a vingança das sensibilidades revoltadas da vizinhança, a acção
apenas é acessível mediante determinadas condições. Existem, portanto, objectos dos departamentos de urbanismo municipal ou regional e o vandalismo dos jovens
bem vivos, pendurados em molduras ou nas prateleiras das livrarias, e outros que do bairro. Poucas são as obras que conseguem sobreviver a todas essas agressões, a
dormem nos depósitos a que apenas os especialistas ou aqueles que sabem da sua menos que os artistas, os marchands e os coleccionadores lhes dêem a devida atenção
existência têm acesso. Tanto num caso como no outro, as obras continuam a ocupar (o que por vezes acontece) e encontrem nelas qualidades até aí insondáveis. Em con-
um lugar na vida de um mundo da arte. O mesmo não se poderá dizer daquelas que junto, podem conseguir que o mundo da arte acolha a obra de arte no seu sistema de
estão dispersas por sótãos, lojas de artigos em segunda mão ou pequenas igrejas. conservação, garantindo-lhe a salvaguarda.
Os interessados não podem encontrar essas obras através dos métodos habituais porque Os mundos da arte constituídos organizam-se, portanto, para preservar algumas
elas não estão inventariadas nos catálogos das bibliotecas, nem nos catalogues raiso- das obras realizadas no seu seio. Tudo aquilo a que o sistema estético desse mundo
nées dos artistas conhecidos, nem nos ficheiros dos museus. As pessoas que poderiam reconhece uma importância artística ou histórica será acolhido em lugares de depósito
ter necessidade de as examinar para um trabalho de pesquisa, ou por qualquer outro apropriados e mantido vivo (ou pelo menos em estado de hibernação). Certas escolhas
motivo, não sabem que elas existem. estéticas vaticinam a vida ou a morte das obras. Melhor, elas decidem a vida ou a morte
Como é que os museus e outras instituições de conservação decidem entre aquilo que de géneros inteiros de obras. As obras realizadas numa determinada técnica ou num
merece ou não entrar nas suas colecções? Regra geral, eles assumem como missão a preser- estilo que não provenha oficialmente da arte possuem uma esperança de vida muito
vação do património cultural de um país ou da humanidade. Mas isto não nos revela grande mais reduzida. Nenhum imperativo organizacional pode incitar quem quer que seja a
coisa sobre a sua estratégia. Seria dificil partir desse princípio para explicar como é que se fazer o esforço de as salvaguardar.
constituem as colecções de todas essas instituições. Os museus abrigam obras escolhidas Ninguém sabe que proporção de obras de arte realizadas num dado momento
poruma rede de conservadores, conselhos de administração, mecenas, marchands, críticos sobrevive de uma ou de outra das maneiras anteriormente evocadas, nem que tipo
e estetas. Acolhem obras que respondem aos critérios estéticos de determinadas pessoas e de obras sobrevive graças aos diferentes sistemas de colecções e depósitos. Quando
que reflectem em si os imperativos de instituições como os museus. as obras dos amadores (não atribuo qualquer conotação pejorativa a esta palavra,
Quando a estética vigente não lhes reconhece oficialmente a qualidade de obras que designa apenas as pessoas cujas actividades não correspondem aos critérios
de arte, os objectos permanecem em colecções e depósitos tão anónimos como os de profissionalismo de um -mundo da arte) sobrevivem, é frequentemente porque
sótãos ou as lojas de artigos em segunda mão. Uma obra não pode entrar num museu, perpetuam a recordação do seu criador no seio da sua família. Elas desaparecem a
e ficar desse modo acessível a um amplo público, enquanto o juízo estético de uma partir do momento em que a família se dispersa. As colecções de fotografias de fa-
pessoa dotada dos meios necessários à sua conservação não lhe atribuir a etiqueta mília dão-nos um exemplo evidente (ainda que, por razões estéticas ou documentais,
de obra de arte. Mas esses meios estão quase sempre nas mãos de personalidades suscitem actualmente um crescente interesse e sejam mais bem preservadas [ver,
excêntricas e individualistas, dos milionários, de reis ou dos burocratas. Várias por exemplo, Talbot, 1976, e Seiberling, s.d.). Uma obra pode ser conservada num
pessoas ricas fundaram pequenos museus para acolherem obras que lhes pareciam centro de documentação científica ou nos arquivos de um fotógrafo comercial e vir
interessantes e que as instituições não consideravam dignas de integrarem as suas a ser considerada interessante em termos estéticos por gerações posteriores (como os
colecções. Em Nova Iorque, o Museum of American Fblk Art abriga objectos que arquivos do estúdio Caulfield e Shook, em Louisville, descobertos por Lesy [1976]).

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Mundos da Arte A Obra e a sua Versão Definitiva

Talvez seja mais fácil detenninar quais são os tipos de obras de profissionais que as suas virtudes: a fé, a sabedoria, a caridade, a esperança. Chegaram-se a esculpir nos jazigos
sobrevivem. É possível inventariar toda a produção profissional de uma dada disciplina todo o tipo de ornamentos simbólicos. Os índios, as caveiras, as gadanhas, as umas, os queru-
bins transportando tochas em chama substituíram os símbolos cristãos tradicionais que eram
circunscrita a uma detenninada época (como Harrison e Cynthia White [1965] pro- quotidianamente destruídos. Estas alterações na representação não indicavam uma passagem
curaram fazer para os pintores franceses do século XIX). O estudo de uma amostra sobre da iconografia religiosa para uma iconografia laica. Na realidade, as imagens católicas tradi-
um período mais longo pennitiria precisar a duração da vida das obras e os momentos cionais cediam o lugar a novas imagens religiosas despidas de qualquer significado tradicional
críticos da sua existência. e, portanto, sem risco. (Phillips, 1973, pp. 118-19)
Uma obra cuja sobrevivência material esteja garantida pode ser alvo de uma re-
descoberta e passar, desse modo, a fazer parte do percurso histórico de uma arte (ver Algumas das escolhas mais determinantes para a obra de arte implicam, portanto,
Griswold, 1980, no que diz respeito à retoma das peças de teatro inglesas do Renasci- a sua destruição ou a sua salvaguarda. As pessoas que fazem essas escolhas vão desde
mento). Passa então a fazer parte das referências e da cultura dos artistas em actividade os conservadores dos museus e das bibliotecas até aos vândalos e aos censores polí-
e do público que aborda o trabalho desses artistas. Vimos como é que os historiadores ticos. Tudo aquilo que sobrevive a essas escolhas constitui o conjunto das obras pelas
reescrevem capítulos inteiros da História da arte ao redescobrirem mestres esquecidos quais se conhece um artista, um género ou uma disciplina. Aquilo que se perde não
da pintura, da literatura ou da música. Esse fenómeno é particulannente flagrante nos exerce qualquer influência sobre as reputações. Centrámos a nossa análise sobre as
domínios onde o valor artístico é recentemente reconhecido. Assim, os historiadores artes plásticas porque é um domínio onde as obras são, geralmente, objectos únicos,
da fotografia reconstituíram a história dessa disciplina ao descobrirem, descreverem mas seria fácil estendê-la às artes do espectáculo e às obras reproduzidas em múltiplos
e comentarem (nomeadamente nas novas revistas especializadas) as obras obscuras exemplares (livros, discos, etc.).
resgatadas para a categoria «conhecida e catalogada» do mundo da fotografia. Tal Estas escolhas, com incidência directa sobre a existência de uma obra, são repre-
diligência limi~a-se apenas a obedecer às exigências de um sistema estético elaborado sentativas do enonne número de escolhas que agem sobre o carácter definitivo
colectiva e gradualmente, que constrói o passado e a genealogia da disciplina. da obra e que são operadas por outras pessoas que não o artista. Os artistas, é bom
Dado que as obras podem morrer, alguns artistas fazem o que podem para pre- repeti-lo, tomam a maioria das decisões importantes, mas não todas. Outras pessoas
servarem as suas realizações. Por vezes, alguns segmentos importantes do mundo da exercem uma influência sobre a obra ao participarem no diálogo interior do artista
arte associam-se a esses esforços. Considere-se o problema da degradação material. ou intervindo directamente (às vezes até mesmo após a morte do artista). Quando se
Nas artes plásticas, as obras são particularmente vulneráveis aos efeitos do clima, das fala da obra de Ticiano, Mozart ou Rabelais, admite-se por convenção que as obras
mudanças da temperatura e da poluição química. As superficies das pinturas estalam. que lhes são atribuídas constituem a totalidade da sua produção e que as realizaram
As esculturas partem-se ou desmoronam-se. As fotografias desaparecem. Os fotógra- sozinhos. Ora, nem um nem outro destes postulados são na generalidade verdadeiros.
fos e os conservadores especializados elaboraram conjuntamente procedimentos de Por esse motivo, a atribuição e a avaliação das reputações artísticas apresenta um lado
arquivo destinados a prevenir esse risco, indicando o modo de eliminar os produtos bastante paradoxal. Louvamos ou criticamos pessoas por coisas que não realizaram
químicos mais nocivos das impressões fotográficas. Muitos fotógrafos hesitam em rea- na sua totalidade, sem ter em consideração muitas outras coisas que verdadeiramente
lizar fotografias a cores e os museus hesitam em incluí-las nas suas colecções porque realizaram. De igual modo, fundamos a reputação de um género, de um estilo, de um
são quimicamente mais instáveis que as fotografias a preto e branco. Vários pintores período ou de um país sobre escolhas de obras operadas por todo o tipo de pessoas
e sobretudo certos museus, é o caso em cidades como Veneza e Florença, tentam lutar das quais ignoramos tudo ou quase tudo, sem ter em consideração todas as obras das
contra a crescente ameaça que a poluição industrial e automóvel representa para as obras quais nada sabemos porque foram alvo de uma destruição voluntária, ou porque não
de arte plásticas. Em poucos anos a poluição deteriorou obras que tinham atravessado foram conservadas (e é esse o destino da grande maioria da produção). Regressaremos
vários séculos sem mazelas aparentes. a esta questão no último capítulo.
Os artistas também podem tomar precauções para evitar a eliminação social ou
política das suas obras, camuflando os conteúdos subversivos e evitando os temas
mais polémicos. Phillips explica como é que os escultores ingleses que decoravam os
jazigos contornavam esse perigo após o cisma com a Igreja Romana:

Os sentimentos religiosos dos ricos já não se podiam expressar na construção ou na decoração


das igrejas, e os seus jazigos deixaram de poder reflectir a sua piedade através das imagens da
Virgem ou dos santos. Os jazigos dos finais do século XVI eram esplêndidos e faustosos testemu-
nhos do nível social do defunto, e eram ornados com elementos abstractos que personificavam

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Profissionais Integrados, Mavericks,Artistas Populares eNa'ijs

Se tomarmos o conjunto das pessoas que trabalham numa dada disciplina,


independentemente da etiqueta que lhe é atribuída pelo mundo da arte, deparamo-
-nos com um leque de situações que vai da dependência total face ao mundo da arte e
aos seus mecanismos, até à marginalidade dos sujeitos cujas obras não correspondem
aos trâmites habituais. Certas pessoas realizam obras que parecem arte, pelo menos aos
olhos de alguns observadores, mas produzem-nas num mundo completamente distinto
do da arte, por exemplo, no mundo do artesanato ou das actividades domésticas. Outras
realizam o seu trabalho no mais completo isolamento, sem o apoio de um mundo da
arte nem de qualquer outro sector organizado da actividade social.
Se compararmos esses modos de trabalho, as particularidades dos procedimentos
atípicos revelam-nos, por contraste, como é que as coisas se passam quando seguem
8 a via normal. Para facilitar a nossa análise, suponhamos que a maneira normal de
realizar obras de arte consiste em fazê-las no seio de um mundo da arte. A hipótese tem
PROFISSIONAIS INTEGRADOS, MAVERICKS, sobretudo a vantagem de concordar com a concepção corrente que, quase sempre, nos
ARTISTAS POPULARES E NAiFS impede de apreender o normal funcionamento dos mundos da arte assumindo-o como
conhecido de todos e, portanto, sem interesse. A comparação revela-nos que coisas
aparentemente normais para os profissionais da arte poderiam, de facto, passar-se de
outra maneira e conduzir a resultados diferentes. Para ver como é que os elos com os
mundos da arte determinam aquilo que as pessoas fazem, vamos portanto observar as
Igor Stravinsky não tinha dificuldade em encontrar intérpretes para as suas condutas das pessoas que não conhecem as vantagens nem os constrangimentos de
inovadoras obras, mas o compositor americano Charles Ives, qtie foi seu con- uma participação no mundo da arte.
temporâneo, escreveu obras que nunca foram executadas durante a sua vida. O trabalho efectuado varia segundo as modalidades de participação num dado
Os jardins americanos estão cheios de estátuas de homens célebres (quase sempre mundo da arte. Mas isso não significa que a natureza da participação se reflecte directa-
realizadas por escultores pouco célebres), mas, tal como Calvin Trillin (1965, mente na obra. Iremos distinguir os profissionais integrados, os mavericks, os artistas
p. 75) sublinhou a propósito das famosas torres de Watts construídas em Los Angeles populares e os naifs. Estes termos não caracterizam tanto as pessoas, mas sobretudo
por Simon Rodia e ameaçadas de destruição, «os responsáveis municipais pelo os tipos de relações que elas tecem com um mundo da arte organizado. Do mesmo
urbanismo, que estariam propensos a respeitar a maioria das obras de arte, senão modo, a obra não é testemunha dessas relações com um mundo da arte, a não ser que
a defendê-las verdadeiramente, têm tendência a comparar as obras monumentais seja confrontada com a produção de outros mundos da arte contemporânea. Porque
e inclassificáveis aos edifícios de escritórios, às casas ou, mais grave ainda, às essa própria obra, comparada com aquilo que é feito num outro momento num dado
construções que não se enquadram em qualquer categoria». Certos museus de arte mundo da arte, poderá muito bem apresentar inúmeras semelhanças e ver dissipada
contemporânea acolheram obras em tecido realizadas por praticantes da escultura a sua diferença.
leve, mas as mulheres do campo que fazem colchas apresentam os seus trabalhos Insisto no valor estritamente relacional dos termos aqui usados, porque os artistas
nas feiras regionais. sobre os quais nos iremos debruçar são frequentemente qualificados como excêntricos,
Onde quer que exista um mundo da arte, é ele que delimita as fronteiras admis- loucos ou ingénuos. É possível que o sejam, mas não é isso que realça a singularidade
síveis da arte. Admite no seu seio os autores das obras de arte reconhecidas enquanto das suas obras: afinal, muitos artistas profissionais também são excêntricos e loucos,
tais e rejeita áqueles cujas criações não consegue avaliar. Basta olhar à nossa volta ainda que poucos sejam ingénuos. É certamente difícil não reparar na dimensão invulgar
para reparar que essas escolhas decisivas, operadas em grande escala pelas insti- de algumas destas personalidades, mas isso não é o que importa aqui.
tuições de um mundo da arte, excluem de facto pessoas cujas obras se assemelham
bastante às produções artísticas reconhecidas. Também nos apercebemos de que
os mundos da arte acabam frequentemente por aceitar obras que haviam rejeitado OS PROFISSIONAIS INTEGRADOS
num primeiro momento. De onde se pode deduzir que a diferença não reside nas
obras em si, mas sobretudo na capacidade que um mundo da arte tem de acolher Imaginemos, para um dado mundo da arte, uma obra de arte canónica, que esteja
as obras e os seus autores. exactamente em conformidade com as convenções vigentes nesse mundo. Uma obra

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs

de arte canónica seria aquela para a qual todos os materiais, instrumentos e estruturas já se encontram na posse dos impressores, mas essas correcções são, nesse momento,
de organização teriam sido concebidos, que corresponderia perfeitamente à formação economicamente incomportáveis para o editor.
recebida por todas as pessoas que cooperam na sua realização: os executantes, os De igual modo, as condições de trabalho podem revelar-se dificeis e constrangedoras
fornecedores, todo o tipo de pessoal de apoio e, sobretudo, o público. Como todas para os profissionais, por mais bem integrados que estes sejam. Uma vedeta de uma peça
as pessoas envolvidas saberiam exactamente aquilo que deveriam fazer, a realização de teatro de sucesso pode estar condenada a desempenhar o mesmo papel oito vezes
da obra implicaria um mínimo de dificuldade. Os fornecedores disponibilizariam por semana durante dois anos seguidos. Pode-se pedir a um compositor que trabalhe
o material adequado, os executantes interpretariam correctamente as indicações suge- para filmes, para criar no espaço de seis semanas oitenta a noventa minutos de música
ridas, os museus facultariam o tipo de espaço e de iluminação mais apropriados e o que seja capaz de ultrapassar constrangimentos técnicos muito precisos e de criar um
público apresentar-se-ia imediatamente receptivo. Uma obra assim poderia muito bem ambiente muito particular. Quanto mais um mundo da arte se encontra organizado,
aborrecer toda a gente. Por definição, ela não apresentaria nada de novo, de único ou mais é susceptível de implicar normas que exigem as competências de um profissional
de surpreendente. Nada que pudesse abalar ou emocionar. Os quadros pendurados nas confirmado. O próprio facto de ser um profissional integrado, perfeitamente adaptado
paredes dos hotéis correspondem, de facto, a essa definição de obra canónica. a um mundo da arte, não lhe garante uma vida fácil nem agradável.
Imaginemos agora um artista canónico, completamente preparado para produzir Os -profissionais integrados inscrevem a sua actividade numa tradição comum de
obras canónicas e perfeitamente capaz de as produzir. Estaria completamente integrado problemas e de soluções (Kubler, 1962). Abordam os problemas da sua arte sob um
no mundo da arte. Não traria qualquer tipo de incómodos às pessoas chamadas a co- mesmo ângulo e criam consensos em tomo dos critérios de validação das soluções.
operar consigo, e as suas obras teriam um público tão vasto quanto favorável. Digamos Conhecem as diversas tentativas de resposta aos problemas postos, ou pelo menos a
que esse artista seria um profissional integrado. alguns de entre eles, e os novos problemas que estes, por sua vez, suscitam. Conhecem
Os profissionais integrados dominam os conhecimentos e os procedimentos a história do género que praticam, bem como o seu pessoal de apoio e o seu público,
técnicos, as condutas sociais e a bagagem intelectual necessárias para que seja fa- de modo que todos possam compreender aquilo que pretenderam fazer e em que me-
cilitada a realização das obras de arte. Como conhecem, compreendem e utilizam dida é que esses objectivos foram atingidos. Tudo isto facilita a actividade colectiva
correntemente as convenções que regem o seu mundo da arte, adaptam-se com fa- necessária à criação das obras de arte.
cilidade às suas actividades comuns. Se forem compositores, escrevem uma música Apoiando-se nessa tradição comum de problemas e de soluções, os profissionais
que os executantes sabem decifrar e podem tocar com os instrumentos existentes. integrados podem produzir obras fáceis de reconhecer e de compreender, mas não a
Se forem pintores, utilizam o material existente para produzirem obras que, dado o ponto de se tomarem isentas de interesse. Podem suscitar, mesmo a um público bem
seu formato, concepção, linhas, cores, formas e conteúdo, encontram naturalmente o seu informado, algumas incertezas quanto às suas intenções, pois o seu trabalho não se reduz
espaço nos locais de exposição existentes e correspondem às capacidades de reacção obrigatoriamente à repetição de gestos rituais. Conhecem várias formas de manipular
do público. Estes artistas correspondem àquilo que o público potencial e o Estado os materiais correntes para criarem efeitos artísticos e despertarem emoções.
consideram como conveniente. Ao utilizarem e respeitarem as convenções inscritas Uma grande proporção das pessoas que trabalham num mundo da arte é, por defi-
nos materiais, nas formas, nos conteúdos, nos modos de representação, nas dimen- nição, um profissional integrado. Um mundo da arte deixaria de existir se não pudesse
sões, nos volumes, na duração e nas modalidades de financiamento, os profissionais dispor permanentemente de pessoas capazes de fabricar os seus produtos característicos.
integrados tomam possível uma realização fácil e racional das obras de arte. Deste As redes de distribuição que os mundos da arte instauram (galerias, salas de concerto,
modo, uma grande quantidade de pessoas pode coordenar as suas actividades sem teatros, editoras de livros) devem ser alimentadas por uma criação contínua. Quando
desperdício de tempo ou de esforço, graças à simples identificação das convenções essas instituições interrompem a sua actividade, o volume de produção normalmente
que cada um deve observar. exigido pode diminuir. Mas enquanto funcionarem, continuam a exigir a continuidade
Embora sublinhemos a relativa facilidade com a qual os profissionais integrados da produção de obras, e todos os que aspiram a tomar-se ou a manter-se como pro-
realizam as suas obras, não afirmaremos contudo que nunca se deparam com dificul- fissionais integrados estarão presentes para alimentar essa procura. Por outro lado, o
dades ou problemas. Os participantes de um mundo da arte partilham um interesse sistema estético vigente num mundo da arte homólogo certifica aproximadamente a
comum para que as coisas se concretizem, mas também nutrem interesses pessoais quantidade de obras necessárias para alimentar os circuitos de difusão.
que podem constituir fontes de diferendos. Um bom número dos conflitos que opõem Resulta daí que os mundos da arte parecem tratar os profissionais integrados e as
as diferentes categorias de participantes é crónico e tradicional. Os dramaturgos e suas obras como se fossem intercambiáveis, como se tudo aquilo que os diferencia
os compositores gostariam que os intérpretes respeitassem o espírito das suas obras, não impedisse, portanto, a sua recíproca substituição sem grandes inconvenientes.
mas os actores e os instrumentistas desejam sobretudo evidenciar as suas capacidades Eu não posso organizar uma exposição de Picasso no meu museu? Então, poderei
próprias. Os escritores gostariam de continuar a rever os seus romances quando estes certamente montar uma exposição de Matisse e será igualmente boa, apesar de não

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs

ser a mesma coisa. Horowitz não está disponível para tocar com a nossa orquestra? dos investimentos) para os autores dramáticos durante a época de ouro da Broadway.
Rubenstein é perfeitamente capaz de o substituir. E o mesmo se passa em todos os As obras daqueles que a opinião contemporânea considera como fruto de um talento
patamares da notoriedade. Uma pessoa que queira expor «vinte fotógrafos americanos excepcional (as vedetas que se afastam da massa dos tarefeiros e de outros assalariados
contemporâneos» ou publicar «vinte poetas ingleses contemporâneos» encontrará da arte), e desde que sejam alvo de uma grande unanimidade, têm mais hipóteses de
sempre alguém para preencher possíveis lacunas. perdurar e de se confrontarem com o julgamento crítico da posteridade. Devem-no às
Mas ao evocarmos o carácter intercambiável dos artistas e das suas obras, atentamos bibliotecas, aos museus e a outras estruturas de conservação que escolhem automati-
contra o dogma dos mundos da arte que proíbe o desconhecimento das diferenças entre camente as obras eleitas pela opinião contemporânea. Os dispositivos de conservação,
os artistas e as suas obras e, em particular, as diferenças de qualidade. Um verdadeiro que são pouco selectivos, garantem de facto a sobrevivência de uma muito maior
conhecedor sabe sempre distinguir, entre os artistas e as obras num dado domínio, quantidade de obras.
aquilo que merece atenção daquilo que não merece. Na prática, porém, os participan- Os profissionais integrados ocupam, por força das coisas, um lugar preponderante
tes de um mundo da arte consideram muitos artistas dignos de atenção, e não apenas neste livro. É a eles que devemos o essencial daquilo que se realiza em nome da arte
os melhores, já que é necessário dar oportunidade a muitas pessoas para que possam numa dada sociedade. No seguimento deste capítulo, iremos examinar outros modos
surgir os verdadeiros talentos. E depois, como é que se pode saber se alguém que não de produção da arte, porque clarificam a situação dos profissionais integrados e porque
seja actualmente alvo de atenção não se revelará absolutamente importante no futuro? algumas das obras produzidas segundo esses diferentes modos são frequentemente alvo
Se nos interessássemos apenas pelos melhores, as galerias permaneceriam encerradas de reavaliações e acabam por ser integradas na tradição de um mundo da arte.
onze meses por ano, as salas de concerto não funcionariam senão de tempos a tempos
e os editores de livros publicariam infinitamente menos. Em breve não haveria nada
que pudesse acolher novos talentos, pois não é possível manter o funcionamento destas MAVERICKS
organizações sob os condicionalismos de uma actividade tão intermitente.
Os mundos da arte ultrapassam a contradição entre um elitismo de princípio e Cada mundo da arte tem os seus mavericks, artistas que em tempos pertenceram
as suas exigências práticas ao estabelecerem uma diferença entre os grandes artistas ao mundo oficial da sua disciplina mas que o consideraram inaceitavelmente cons-
(designados das mais diversas formas) e os artistas competentes. Regra geral, os cri- trangedor. As suas obras representam inovações que o mundo da arte não pode aceitar
térios em vigor permitem fazer facilmente essa distinção. Mas os critérios mudam, e porque saem do quadro da sua produção habitual. Outros participantes desse mundo,
os juízos de um mundo da arte raramente concordam com aquilo que será tido como o entre os quais o público, o pessoal de apoio, os mecenas e os distribuidores recusam-
«veredicto da História», ou seja, os juízos emitidos posteriormente por outros membros -se a cooperar com essas inovações. Em vez de renunciarem aos seus projectos e
do mesmo mundo da arte. regressarem a estilos e técnicas mais fáceis de aceitar, os mavericks prosseguem o seu
Para ilustrar as coisas de um modo menos neutro e menos benevolente, poderíamos trabalho sem o apoio do mundo da arte. Enquanto os profissionais integrados admitem
dizer que em qualquer mundo da arte, a maioria dos praticantes passa por meros tarefei- sem reservas as convenções do seu mundo, os mavericks não adaptam senão relações
ros aos olhos dos seus pares: trabalhadores competentes mas sem valor, que fornecem bastante distantes com esse mundo, porque deixaram de participar directamente nas
o volume de obras necessárias ao funcionamento do mundo da arte. Só um mundo da suas actividades.
arte organizado que produza profissionais integrados pode ter os seus tarefeiros. Se os Normalmente, os mavericks iniciam a carreira de um modo absolutamente con-
diversos organismos não tivessem uma constante necessidade de obras para difundir, vencional. Aprendem as mesmas coisas que os demais iniciados no seu mundo da
e se não existisse uma tradição capaz de tomar inteligível e mesmo interessantes as arte. Charles Ives (ver figura 22), um maverick arquétipo por excelência, estudou em
obras banais, não existiriam tarefeiros da arte. Apenas um contexto destes pode levar Yale sob a tutela de Horatio Parker, um compositor convencional cuja pedagogia de
a que se tomem como sérias tantas obras e a oferecer aos seus autores os meios que ensino seguia a tradição alemã que era preponderante nesses tempos. Ives aprendeu
lhes garantam perseguirem uma carreira de artistas. as regras da harmonia e do contraponto e estudou as formas musicais consagradas,
Os profissionais integrados que garantem o bom funcionamento de um mundo da atingindo um apurado domínio de todas essas técnicas clássicas através da realização
arte têm uma produção abundante. Harrison e Cynthia White (1965) avaliam que, nos de muitos exercícios escolares. Iniciara-se nessa formação com o seu pai, músico em
anos 1860, a «máquina artística» da pintura francesa mobilizava aproximadamente Danbury (no Connecticut). Menos reputado que Parker, mas mais audacioso, o pai de
cinco mil pintores, que produziam todos os anos cerca de vinte mil quadros de boa Ives também lhe impregnou o gosto pela experimentação, nomeadamente no domínio
qualidade. Caso existissem, os números das estatísticas não seriam muito diferentes da politonalidade. Ives também compunha músicas que o seu professor considerava
para os escritores de contos americanos, numa época em que .eram muito publicados inaceitáveis, prefigurando assim as reacções do mundo da música profissional de Nova
em várias revistas, ou (salvaguardadas as devidas proporções, tendo em conta o peso Iorque quando mais tarde ali tentou a sua sorte (Rossiter; 1975, pp. 54-64).

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de que «quando se come algo de indigesto, é sempre possível livrarmo-nos disso» mas
que ele não conseguia «tirar aqueles sons horríveis dos seus ouvidos». (Rossiter, 1975,
pp. 150-51)

A música de Ives não foi tocada em público durante mais de vinte anos, e nem os
músicos profissionais nem os amadores mais informados se interessaram por ela.
Os mavericks deparam-se todos com as mesmas dificuldades quando preten-
dem que alguém execute as suas obras ou, no caso de disciplinas como a literatura
onde é sobretudo a difusão que levanta problemas, quando pretendem transmitir
as suas obras ao público e aos críticos. Quando ultrapassam essas dificuldades, é
porque conseguiram contornar as necessidades das instituições do mundo da arte.
Podem, por exemplo, criar organismos paralelos para substituir aqueles que se
recusam a cooperar com eles. Os escritores publicam e distribuem os seus próprios
trabalhos. Os dramaturgos e os encenadores criam companhias através do recru-
tamento de actores que trabalham à margem do mundo do teatro profissional.
Os artistas plásticos criam os seus próprios espaços de exposição. Outros realizam
obras que não foram concebidas para serem expostas em museus ou galerias (land art
FIGURA 22. Charles lves é o arquétipo de um maverick musical. Quando os músicos profissionais ou outras obras conceptuais), contornando desse modo aquilo a que chamam a tirania
lhe disseram que era impossível executar a sua música, Ives deixou de tentar escrever música que eles
estética dos directores dos museus, dos conservadores e dos mecenas. Os actores que
pudessem tocar. (Fotografia de Frank Gerratana, cedida pela Yale University Music Library.)
se convertem ao teatro de rua utilizam todo o tipo de espaços públicos. Em geral, os
mavericks recrutam os seus discípulos, simpatizantes e assistentes junto de amadores
Não é de surpreender que os mavericks suscitem uma reacção bastante hos- que não receberam formação especializada. Desse modo, criam novas redes de coope-
til quando apresentam as suas inovações aos outros membros do seu mundo da ração e, nomeadamente, novos públicos.
arte. Uma obra que viola ostensivamente algumas das convenções do mundo A reacção mais radical de um artista ao ostracismo do mundo da arte consiste em
da arte pressagia as dificuldades de cooperação que o seu autor terá de enfrentar. interromper a realização da obra, ou seja, deixá-Ia em estado de projecto. Aparente-
Ela manifesta um tal desprezo pelos procedimentos vigentes que o artista é acusado mente, lves ficara convencido de que a sua música nunca seria tocada e aceitou essa
de ignorar os princípios mais elementares, ou de os ridicularizar abertamente ideia. Melhor, chegou mesmo a considerar qualquer eventual interpretação da sua
(idêntico raciocínio leva certas pessoas a terem reacções desproporcionadas face música como uma espécie de ingerência nas suas composições:
a condutas consideradas desviantes noutros domínios [Becker, 1963]). Aos olhos
dos músicos das orquestras nova-iorquinas, era com um propósito deliberado que Meu Deus, o que é que o som tem a ver com a música! (... ). Por que é que a música não se
Ives escrevia uma música cheia de erros e crua, repleta de dissonâncias, informe pode manifestar tal como chega às pessoas, sem ter de lutar contra uma barreira de sons, de
caixas torácicas, de cordas de tripa e de aço, de madeiras e metais? (... ) A música não tem
e de mau gosto, inspirada no repertório popular e religioso da América profunda.
necessariamente de ser ouvida. Ela talvez não seja o que os nossos ouvidos percebem. (Citado
Os seus arquivos pessoais revelam-nos que alguns dos seus amigos pessoais se iam por Rossiter, 1975, p. 58)
embora incomodados quando ele lhes tocava certas obras da sua autoria. Recorrendo
à biografia de Ives e segundo os registos das suas memórias pessoais, Rossiter deixa-
-nos o relato de um encontro do compositor com um célebre violinista daquela época; Qualquer compositor que tenha vivido uma experiência infeliz com os executantes
as citações são da obra Memos (Ives, 1972): da sua obra poderá partilhar estes pensamentos. Mas as pessoas que ganham a vida
no mundo da música e com uma atitude mais prática sabem que aqueles sentimentos
Em 1914, imaginando que «seria uma boa ideia pedir a um dos supostos grandes instru- são impossíveis de pôr em prática. Ora, Ives levou-os à letra, demonstrando com isso
mentistas» que abordasse a sua música, Ives convidou um tal Franz Milcke, que a sua a independência que caracteriza os mavericks.
mulher conhecera em Hartford, para o visitar em West Redding. «Este violinista presun-
çoso, inepto, afectado e vaidoso que tinha adquirido a sua reputação porque chegara ao Porém, os mavericks não se encontram completamente desligados do mundo
nosso país como primeiro violinista de Anton Deidl» recusou liminarmente a música de da sua arte. Mantêm-se informados sobre aquilo que aí se faz,· mesino que não
Ives. «Abandonou a pequena sala de música com as mãos nas orelhas», queixando-se participem pessoalmente nesse mundo. Ouvem discos, assistem a filmes e lêem a

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imprensa especializada. Mas a sua informação encontra-se limitada aos acontecimen- George Roberts, um copista que ajudou Ives a preparar algumas partituras para
tos anunciados pelos grandes meios de comunicação. Ignoram as modificações que publicação, recorda-se que ele se mostrava completamente indiferente aos imperativos
quotidianamente se vão operando nas convenções que regem as actividades de rotina. da rotina da edição:
Os compositores, por exemplo, não acompanham a evolução da prática instrumental
e das convenções que os intérpretes seguem quando traduzem notas escritas em sons. Eu fiz uma parte da Concord Sonata. Cada vez que ia ter com Ives, encontrava uma versão
Ainda que possam acompanhar as grandes correntes de evolução do seu mundo da nova. Os impressores estavam constantemente furiosos e desesperados com ele. Isso divertia-
-o. Gozava com isso. Ele não estava com pressa e tinha sempre algo de novo a acrescentar.
arte, já não participam nelas plenamente. (Perlis, 1974, p. 186)
Por isso, os mavericks renunciam às vantagens de que usufruem quase automati-
camente os profissionais integrados. Mas também se libertam dos constrangimentos Os compositores convencionais utilizam uma notação que qualquer instrumentista
implicados nessas vantagens. A participação num mundo da arte facilita a produção sabe decifrar. Uma notação musical não é válida senão na condição de ser imediata-
das obras, mas restringe o seu campo de possibilidades. O isolamento de Ives face ao mente compreensível pelos músicos, ou de não exigir senão breves explicações, já que
mundo da criação musical comum é um óptimo exemplo para compreendermos o grau o compositor a utiliza para dar a conhec·er aquilo que pretende. Ora, Ives utilizava um
de liberdade permitida a um maverick. Como acabou por abandonar a esperança de sistema de notação que desconcertava os músicos de orquestra. (Se referirmos um por-
fazer executar as suas obras, o seu trabalho mostrou-nos o que pode ser a composição menor técnico, sabe-se que um mesmo som pode ser representado por notas diferentes.
musical uma vez liberta das considerações práticas do mundo da arte. Por exemplo, Ives Para a maioria dos instrumentos, um «lá sustenido» pode escrever-se «si bemol» e um
não era obrigado a concluir as suas obras, já que também não eram feitas para serem «lá» também se pode escrever «si bemol duplo». O emprego de uma ou de outra destas
tocadas. Segundo John Kirkpatrick, o pianista que realizou a primeira interpretação notações é feito segundo regras de uso comum.) Neste caso, a escrita de lves parecia
pública da Concord Sonata: muitas vezes bizarra à primeira vista. Nicholas Slonimsky, que foi uma das primeiras
pessoas a dirigir obras de Ives, explica que essas bizarrias não eram gratuitas:
Algumas peças, como a Concord, nunca eram tocadas por Ives duas vezes da mesma maneira,
e ele quase sempre se ressentia com a ideia de as ter de escrever e dar como prontas de uma vez Por exemplo, lembro-me de uma passagem muito estranha na parte da viola [de Three Places in
por todas, porque adorava improvisar. (Perlis, 1974, p. 220) New EnglandJ: passávamos de um lá sustenido para um si bemol. Eu não encontrava qualquer
motivo para se usar um lá sustenido, e queria substituí-lo por um si bemol para não confundir
o intérprete. Mas Ives recusou categoricamente essa alteração. Explicou que o bemol formava
Poderíamos dizer que em qualquer obra de arte existe uma ideia que é preciso ex- uma espécie de intervalo cromático incompleto com o lá, que poderia ter ido até ao si, mas que,
plorar; esse trabalho concorre para uma forma definitiva que é ditada pelas convenções precisamente, não o tinha feito. Consequentemente, era um erro pôr um si bemol no seu lugar.
do mundo contemporâneo ao qual se destina. Sob essa forma definitiva, a obra pode (Perlis, 1974, p. 150)
ser apresentada a pessoas que estarão dispostas a prestar-lhe atenção ao saberem que
está concluída. Ao conferir à obra uma forma apresentável, o artista assinala, através O chefe de orquestra Gunther Schuller expôs as consequências práticas de alguns
de meios convencionais, que deseja que ela seja considerada para a sua reputação dos procedimentos empregues por lves:
(contrariamente às «obras em curso»). Para um compositor, essa forma apresentável
traduz-se numa partitura terminada, ou, pelo menos, era assim na época de Charles Ives. Alguns dos ritmos são praticamente ilegíveis. É preciso reencontrar a ideia e traduzi-la com
Aqueles que, mais tarde, lutaram pela execução das obras de Ives depararam-se com clareza, o que implica um trabalho de reescrita considerável. Depois, é preciso verificar como
é que resulta para fazermos as correcções que forem necessárias, mas isto ainda não é tudo.
enormes dificuldades, dada a ausência de partituras concluídas. O amor que tinham pela É preciso voltar à ideia original por uma tradução em sentido inverso. Isso demora muito tem-
música de Ives mal conseguia ocultar a irritação perante aqueles métodos de diletante. po, e às vezes quatro ensaios não são suficientes. Por vezes, conseguimos alcançar aquilo que
O compositor e chefe de orquestra Bernard Herrmann, que foi um dos primeiros a perseguíamos ao fim de cinco concertos; outras vezes, com determinados músicos, nunca o
dirigir obras sinfónicas de Ives, disse: atingimos. Isto coloca enormes problemas. (Hitchcock e Pedis, 1977, p. 121)

Penso que a única coisa que lhe interessava era escrever as suas peças. É por isso que todas as Ives não pertencia a um mundo da arte organizado onde teria necessariamente uma
obras se encontram num estado medonho. Ele não se preocupava em revê-las( ... ). No início, reputação a defender. Também não tinha vontade de tomar as habituais precauções no
era terrivelmente complicado executar as obras do Ives (... ). As partes de orquestra não eram
copiadas, verificadas, nem revistas. Era sempre muito difícil( ... ). No fundo, Ives era absoluta-
que à conservação das suas obras dizia respeito. Reescrevia sobre as mesmas partitu-
mente irrealista quando se tratava da interpretação da sua música. Não sendo um profissional, ras até elas se tornarem indecifráveis. A partitura original de Chromatimelodtune, por
pois não necessitava da música para sobreviver, trabalhava no abstracto. E essa música, composta exemplo, contém partes sucessivas de orquestra escritas umas sobre as outras a lápis
no abstracto, ignorava todos os problemas práticos. (Pedis, 1974, pp. 159-60) e a caneta; o simples facto de nos limitarmos a copiá-la obriga-nos a tomar decisões

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composicionais fundamentais. Algumas partituras de Ives chegaram mesmo a desa- (... ) Ele era um músico de fim-de-semana (... ) um músico livre, livre para perseguir a sua
parecer, sendo encontradas, alguns anos depois, nos lugares mais improváveis. Nada utopia sonora como quisesse, independentemente de todo o tipo de considerações práticas ou
económicas.
de espantoso, se o avaliarmos à luz do testemunho de Jerome Moross, que ajudou (... ) Ao trabalhar essencialmente de modo isolado, sem contacto (ou quase) com o mundo
Herrmann a preparar a execução da Quarta Sinfonia: musical profissional do seu tempo, indiferente às modas correntes e pouco desejoso de fazer
executar as suas obras, Ives corria menos riscos do que os compositores profissionais sempre
Ele deu-nos uma fotocópia inacreditável de um manuscrito e ficámos logo desanimados. Andámos que se decidia a consagrar a experiências «perigosas» e deixava o seu pensamento ultrapassar
várias semanas de um lado para o outro, íamos ter com ele para trabalhar a pauta, voltávamos os limites do exequível. (Hitchcock e Perlis, 1977, p. 251)
para casa para verificar tudo novamente( ... ). Não conseguíamos decifrar o manuscrito e Ives
teve de tomar as decisões finais relativamente ao nosso trabalho. Entretanto faltava um movi-
mento [quarto] que Ives não sabia onde estava. Completamente espalhados por todo o lado no Como os mavericks podem ignorar os constrangimentos que dificultam o trabalho
seu gabinete, os manuscritos encontravam-se num autêntico caos. (Perlis, 1974, p. 165) dos profissionais integrados, e como não participam nas interacções quotidianas do
mundo da arte, as suas motivações não se assemelham às dos profissionais integrados.
Os compositores respeitadores das convenções são mais cuidadosos porque podem As motivações dos profissionais são indissociáveis das estruturas do mundo da arte.
precisar dos seus manuscritos a qualquer momento. Quando se estabeleceu na Améri- Uma pessoa que não participe nesse mundo não pode alegar os mesmos motivos. Para
ca, Stravinsky reorquestrou várias das suas obras, em parte para salvaguardar os seus dar um exemplo mais preciso, a partir do momento em que Ives se deixou de preocu-
direitos de autor. lves não tinha qualquer ambição profissional desse tipo. Reescrevia par com o facto de as suas obras serem executadas ou não (por despeito, indiferença
as obras porque não tinha a necessidade profissional de as dar por acabadas. ou resignação), deixou de ter qualquer motivo para realizar algumas das coisas que
lves regozijava-se por não ter de utilizar os vários procedimentos convencio- facilitariam a exequibilidade das suas obras. Quando as pessoas agem de um modo não
nais para fixar o aspecto definitivo da obra. Outros compositores resignam-se a convencional num dado mundo, são encaradas (pelos membros activos desse mundo)
esse facto porque é o preço a pagar para que as suas obras se possam ouvir. Na como insociáveis e perturbadas. Sabemos que estamos perante um indivíduo que inspira
opinião de Herrmann e de outros músicos, esses procedimentos não representam confiança ou que é sociável quando compreendemos imediatamente os motivos do
constrangimentos arbitrários, mas regras de conduta bastante razoáveis que os seu comportamento (Mills, 1940). lves justificava o seu trabalho com considerações
compositores aceitam no seu próprio interesse. Ives não tinha de se preocupar eminentemente pessoais, ora políticas, ora sentimentais. Explicava frequentemente
com esses imperativos, o que lhe permitia consagrar mais tempo à única activi- que tal ou tal efeito particularmente insólito e dissonante destinava-se a recriar, por
dade que realmente contava para ele, a concepção da obra. Podia libertar-se das exemplo, o ambiente sonoro das liturgias revivalistas onde quinhentas pessoas juntas
contingências materiais que impediam outros compositores de escrever, ou até entoariam um cântico, muitas delas desafinadamente, algumas talvez até a canção
de conceberem ideias musicais comparáveis às suas. A menos que receba uma errada. Estamos longe das justificações técnicas invocadas por um Stravinsky ou um
encomenda nesse sentido, nenhum compositor sensato escreveria uma sinfonia que, Schõnberg para as suas inovações musicais (cf. Rossiter, 1975, p. 94 passim).
como a Quarta de lves, exige três orquestras diferentes dirigidas em simultâneo por Dado que os mavericks fornecem justificações insondáveis para o seu trabalho, quan-
três chefes de orquestra. Mesmo os compositores que talvez se lançassem numa tal do finalmente são aceites por um mundo da arte organizado, como por vezes acontece,
empresa certamente não iriam perder o seu tempo a compor uma obra que exige, as suas obras suscitam opiniões divergentes junto dos profissionais. Actualmente, os
como é o caso de Universe Symphony de lves, e apenas para uma das suas partes, profissionais ainda se questionam se lves sabia realmente o que estava a fazer. Para o
entre cinco a catorze orquestras e coros distribuídos por montanhas e vales (Rossiter, chefe de orquestra Lehman Engel (Hitchcock e Pedis, 1977, p. 115), Ives:
1975, p. 109). (Embora na actual era pós-Woodstock isto já não pareça tão extraor-
dinário como então.) Livre dos constrangimentos das práticas do seu tempo, Ives raramente ouvia aquilo que escrevia (... ) ele não tinha um contacto directo com a música (... ) apa-
podia escrever tudo o que imaginava, e ele imaginava coisas que eram inconcebíveis rentemente, tudo o que escreveu parece traduzir sentimentos que nada têm que ver com música.
para qualquer profissional.
O compositor Betsy Joias defendia a mesma teoria de Ives: O maestro Gregg Smith, ao contrário, pensa que a escrita de Ives era muito rigorosa
e que representava precisamente aquilo que ele desejava:
Por que não admiti-lo? lves era indiscutivelmente um amador. Evidentemente, não no sentido
de alguém sem conhecimentos (em Yale, recebeu uma formação completamente tradicional por quase todas as anotações que inicialmente se apresentavam misteriosas ou pareciam estranhas
parte do entediante Horatio Parker, com quem estudou também harmonia, contraponto e fuga), acabavam por se revelar excelentes soluções (... ).Em Psa/111 90, existe uma frase para sino cons-
mas no seu sentido mais nobre, porque ele amava a música (... ) a ponto de se recusar (... ) tituída numa figura rítmica de 9'semínimas sob um compasso quaternário. Bom, o que se passa
a fazer dela a sua profissão. é que existe uma verdadeira liberdade de utilização da frase, apesar de ela atrasar uma colcheia

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no início de cada compasso( ... ). Ives não era um amador. Era um génio fantástico que sabia o habituais (orquestra sinfónica, quarteto de cordas e coro), e em formas musicais fami-
que estava a escrever. Compete-nos agora entendê-lo. (Hitchcock e Perlis, 1977, p. 118)
liares (sinfonia, sonata, canto). Outros compositores foram bastante mais longe. John
Cage pediu aos intérpretes para modificarem os seus instrumentos, «preparou» os pianos
Alguns profissionais pensam que, e contrariamente ao que parecia, Ives devia nutrir colocando elementos de metal, vidro ou madeira entre os martelos e as cordas, ou utilizou
motivações semelhantes às suas. O célebre compositor americano Elliott Carterprocurou apenas a embocadura dos instrumentos de sopro. Em algumas das suas obras, os intér-
saber se lves seria o verdadeiro autor de todas as inovações que lhe eram atribuídas, pretes escrevem as suas próprias partes desenvolvendo, através de processos aleatórios,
dado o seu hábito de rever incessantemente as partituras. Para um profissional do mundo esquemas fornecidos pelo compositor. Nunca existem propriamente duas partituras iguais
da arte, a questão do pioneirismo tem muito peso sobre as reputações. Estaria lves a nem duas interpretações idênticas da mesma obra. Os músicos não podem aprender as
tentar manipular a sua reputação ao reescrever constantemente as suas obras? músicas de Cage como acontece com as obras de Schõnberg ou de Ives.
As composições de Harry Partch também fazem poucas concessões às práticas
Penso que estava então a trabalhar sobre Three Places in New England; estava a preparar a consagradas. Cortou com a convenção da escala cromática, sobre a qual se baseia a
partitura para o concerto. Ele criava uma nova partitura a partir da anterior, completando-a e música ocidental, para introduzir escalas de quarenta e dois tons (em vez de doze). Como
modificando-a. Substituía oitavas por sétimas ou nonas e acrescentava algumas dissonâncias.
Depois, tentei saber qual fora a última vez que tinha dado uma injecção de dissonâncias e de vimos no primeiro capítulo, esta inovação implicou outras alterações, na concepção
polirritrnias à música que escrevera até então. Dessa vez, mostrou-me com toda a simplicidade dos instrumentos, na formação dos músicos e no sistema de notação. Contudo, tanto
como é que melhorava as partituras. Fiquei com a impressão de que tinha alterado frequente- Harry Partch como John Cage mantiveram-se fiéis a inúmeras convenções do mundo
mente o grau de dissonância de algumas das suas obras, e isto à medida que o·seu gosto se ia da música. A duração das suas obras permite que sejam inseridas nos programas de
alterando. Esta questão já não parece ter tanta importância, mas é lícito perguntarmo-nos em concertos normais. Ambos deram a conhecer os seus trabalhos através de concertos
que medida é que ele também foi um percursor da música «moderna», como tantos defendem.
(Perlis, 1974, p. 138) ou de gravações. O seu público compra bilhetes, faz fila frente à sala antes do começo
do concerto e senta-se em silêncio para ouvir os músicos.
As actividades dos mavericks mantêm-se, portanto, direccionadas para o mundo da
Como os mavericks aprenderam as tradições e os procedimentos do mundo da arte convencional. Alteram algumas convenções e aceitam outras de maneira mais ou
arte correspondentes à sua actividade, e como mantêm algumas relações com esse menos inconsciente. A obra destes inovadores é frequentemente incorporada no patri-
mundo, este pode acolher as suas obras, desde que os seus participantes cheguem a mónio histórico do mundo da arte estabelecido onde finalmente lhe são reconhecidos
um certo consenso. Os mavericks transgridem as convenções do mundo da arte, mas os méritos por resgatar a arte das suas rotinas. Por força do hábito, as suas inovações
apenas nalguns pontos, e respeitam de facto a maioria delas. Embora James Joyce acabam por nos parecer mais aceitáveis. Se forem fáceis de assimilar, é porque se
tenho rompido com as formas literárias e até linguísticas da sua época, a sua obra mais enquadram em todas as outras convenções. Os mavericks recorrem aos mesmos forne-
inovadora era, apesar de tudo, um livro acabado. Por exemplo, ele não escreveu uma cedores que os artistas mais convencionais, mas exigem-lhes coisas novas, bem como
obra como a História do Mundo de Joe Gould, que estará eternamente inacabada e da ao pessoal de apoio. Procuram a aceitação do público ao qual também se dirigem os
qual apenas uma pequena parte foi redigida (Mitchell, 1965). Também não inventou artistas mais convencionais, embora a novidade das suas invulgares obras exija um
uma forma literária que teríamos de recitar em vez de imprimir, nem compôs uma obra maior esforço de atenção.
onde a caligrafia ocupasse um lugar preponderante. Escreveu um livro absolutamente Todos estes pontos em comum entre o trabalho dos mavericks e o dos artistas de
semelhante a todos os livros da tradição europeia. Do mesmo modo, os praticantes tipo convencional mostram-nos que aquilo que caracteriza o maverick não se deve
da land art não deixam de ser escultores. Os materiais, as dimensões e o espaço de tanto à natureza da sua obra, mas sobretudo às relações que estabelece com o mundo
representação das suas obras infringem as convenções da escultura, mas eles trabalham da arte convencional. O maverick opta por produzir obras tão difíceis de assimilar que
sobre as formas e os volumes à maneira dos escultores mais convencionais. Noutros o mundo da arte rejeita o desafio. E se o mundo da arte se adapta, o artista em questão
termos, os mavericks libertam-se ligeiramente da via balizada pelas tradicionais sé- deixa de ser um maverick, porque o sistema de convenções passa a englobar todos os
ries de problemas e de respostas de um mundo da arte. Mas os profissionais podem aspectos do seu trabalho. Devido ao facto de o maverick acabar por ser assimilado, e
convergir para caminhos onde entre ambos existiam divergências e incorporar, desse não apenas porque a realidade nos oferece um amplo leque de situações intermediárias,
modo, as inovações dos mavericks na tradição comum. é que se toma difícil traçar uma fronteira precisa que demarque o artista maverick do
Essa assimilação pode ser mais ou menos difícil. As obras de Ives parecem hoje profissional integrado que inova.
praticamente inócuas face ao que foi composto desde então. Embora utilizasse uma Nem todas as obras dos profissionais integrados são tidas em grande estima. Identi-
notação invulgar, inventasse sonoridades estranhas e exigisse orquestras de dimensões camente, são poucos os mavericks que obtêm o respeito do mundo da arte com o qual
extravagantes, não deixou de escrever para os instrumentos comuns e para as formações salvaguardam as devidas distâncias. A bem dizer, geralmente o mundo da arte ignora a

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existência da maioria dos mavericks. Estes mantêm-se como personalidades singulares AARTE POPULAR
cujas obras podem, de tempos a tempos, ser exumadas por qualquer especialista ou an-
tiquário interessado, ou que podem estimuiar a imaginação de profissionais inovadores. Quando alguém faz anos e chega o momento de entoarmos o «Parabéns a Você»,
É esse o caso com Conlon Nancarrow (1979), que criou músicas para piano mecânico não é necessário recorrermos a músicos profissionais. Desde que a participação seja
trabalhando directamente sobre rolos perfurados (ver figura 23 ). Este método permitiu- geral, pouco importa se os convivas cantam desafinadamente. Qualquer indivíduo que
-lhe produzir efeitos impossíveis de obter com um piano, nomeadamente os glissandos, tenha crescido no seio de uma cultura comum saberá desenvencilhar-se porque conhece
e serve para criar uma música que alguns entendidos consideram como extremamente esta canção e não se fazem grandes exigências quanto à sua interpretação.
sedutora. Mas o trabalho inovador de Nancarrow exige modificações consideráveis O «Parabéns a Você» corresponde àquilo que eu entendo por arte popular. Não
nas relações entre os intérpretes e os compositores, e não pode portanto adaptar-se à será certamente a concepção mais corrente (ver Glassie, 1972), mas não se trata aqui
tradicional organização das actividades musicais. Assim, a sua música não conheceu de nos limitarmos a vestígios de costumes outrora muito difundidos ou a objectos
senão um vago sucesso de aceitação. Os músicos convencionais que não ignoram rústicos. Pretendo sobretudo evocar os trabalhos efectuados completamente à mar-
completamente a sua obra consideram-na uma curiosidade sem qualquer relevância gem dos mundos da arte profissional por pessoas comuns, no decurso das suas vidas
prática, ainda que outros mavericks a considerem extremamente importante. comuns. Estas obras raramente são tomadas como arte por aqueles que as produzem
Se, para clarificar a situação dos mavericks, fomos buscar exemplos à área da ou por aqueles que a elas recorrem. O seu valor artístico é-lhes atribuído por pessoas
música, é porque a complexidade dos modos de cooperação assume aqui um relevo estranhas à comunidade onde foi produzida.
muito particular na dinâmica deste fenómeno. Mas encontraríamos o mesmo tipo de Encarada desta maneira, a arte popular é aquela que se inscreve nas práticas
relação ambivalente entre os mavericks e o mundo da arte convencional em qualquer correntes de todos os membros de uma comunidade, ou pelo menos de alguns dos
outra área. De um modo geral, a maior parte da obra dos mavericks não é assimilada seus segmentos, definidos segundo a sua faixa etária e sexo. As pessoas sabem que
pelos cânones de um mundo da arte; eles mantêm-se desconhecidos, e o seu trabalho algumas de entre elas obtêm melhores resultados do que outras, mas não atribuem
não é preservado e desaparece conjuntamente com o nome dos seus autores. grande relevo a esse facto. Basta que as obras se prestem à finalidade prevista.
Quando uma cozinheira faz o seu trabalho, é preferível que a sua comida seja de-
liciosa, mas é sobretudo mais importante que esteja pronta a horas e seja suficien-
temente nutritiva de modo a permitir que cada qual se dedique às suas ocupações
- pelo menos nas famílias tradicionais. A maioria dos jovens aprende as danças
que estão na moda. Alguns executam verdadeiras proezas, outros desenvencilham-
-se bastante mal, mas o que conta é dançar minimamente bem para participar nas acti-
vidades sociais do grupo. (O artesanato também é praticado à margem dos mundos da
arte e iremos abordá-lo no próximo capítulo.)
Nas análises que se vão seguir, vamo-nos apoiar essencialmente no exemplo do
fabrico de colchas. Em diferentes épocas e nas mais diversas regiões da América
do Norte, as mulheres confeccionaram mantas de retalhos para servirem de cobertura
às camas. Essas colchas serviam sobretudo para proteger do frio, ainda que muitas
mulheres se empenhassem num resultado de grande efeito decorativo. Ora, essas
mantas de retalhos caracterizam-se frequentemente por composições e harmonias
de cores tão elaboradas que actualmente se tornou possível compará-las a certas
tendências da pintura contemporânea. Jonathan Holstein apontou uma série de
convergências:

- O trabalho sobre as formas geométricas, característico da obra de muitos pintores após a


emergência do abstraccionismo.
- Os efeitos ópticos das colchas do tipo Baby Bloclcs e o trabalho de Vasarely e de outros
FIGURA 23. Conlon Nancarrow e a instrumentária para criar as suas composições para piano. Nancarrow
cria música ao perfurar directamente um rolo para piano, obtendo desse modo efeitos impossíveis de pintores que exploraram diferentes tipos de estímulos retinianos através dos efeitos das
alcançar através da execução humana. (Fotografia cedida por 1750 Arch Street Records.) formas e das cores, das ilusões de óptica e dos efeitos gráficos.

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Narft

- A repetição de imagens inspiradas no ambiente quotidiano, nas colchas de tipo Coffee Cups Portanto, as pessoas confeccionavam colchas porque precisavam delas. Esta res-
e nas séries repetitivas de artistas como Andy Warhol. ponsabilidade cabia tradicionalmente às mulheres. Como se tratava de uma actividade
- As repetições de formas geométricas simplificadas ao extremo que encontramos no mini- colectiva, a sua aprendizagem efectuava-se através da normal participação na vida da
malismo. comunidade. Uma mulher de oitenta e três anos conta como é que aprendeu a técnica
- As variações cromáticas sobre um mesmo tema nas colchas dos Amish e em obras como a da confecção de colchas:
série Homage to the Square de Josef Albers.
- Os efeitos baseados na interacção da cor com esquemas geométricos simples presentes nas A minha mãe tinha uma habilidade extraordinária. Fazia as colchas mais bonitas da região.
colchas de tipo Rainbow e em pinturas como as de Kenneth Noland. (Holstein, 1973, p. 113) Todas as pessoas o sabiam( ... ). Eu sempre sonhara trabalhar com ela e posso dizer-vos
que nunca esquecerei o dia em que ela me disse: «Sarah, se quiseres podes vir comigo.»
Eu era muito pequena e, se me sentasse, não conseguia segurar o tecido. Então, fiquei de
O artista popular e o artista profissional têm um ponto em comum: ambos pro- pé ao seu lado. Eu enfiava a agulha, tirava-a do outro lado e voltava a enfiá-la para voltar
duzem as suas obras no seio da comunidade muito estruturada à qual pertencem. a passá-la para o outro lado. Fazia pontos de cerca de dez centímetros. Entretanto, o meu
As mulheres que confeccionam as colchas não pertencem a uma comunidade de tra- pai apareceu e disse: «Florence, essa criança está a estragar a tua colcha. Logo à noite vais
balho com vocação artística, muito pelo contrário, a sua comunidade local é consti- ter de recomeçar o trabalho.» A minha mãe sorriu para mim e respondeu: «Esses pontos
tuída por unidades domésticas. Realizam as suas obras de arte enquanto membros de ainda estarão no seu lugar quando a colcha for usada.» E entretanto, comecei a fazer
pontos mais pequenos. (p. 52)
uma família, de um bairro ou de uma localidade. O seu trabalho reflecte os constran-
gimentos e as possibilidades inerentes a essa comunidade e não a um mundo da arte.
De modo idêntico, a dança praticada pelos jovens pertence ao mundo social da ado- Embora a maioria das mulheres tenha aprendido, desta forma tão simples, a fazer
lescência e reflecte os seus constrangimentos e as suas possibilidades. As mulheres colchas com as respectivas mães, outras começaram mais tarde junto de mulheres da
confeccionam as colchas porque as suas famílias não podem dormir ao frio. Segundo mesma idade e que se mostravam menos indulgentes:
Holstein:
Lembro-me de uma jovem rapariga. Ela acabara de se casar e tinha um bebé. Inscreveu-se no
outrora, existiam colchas dessas em quase todos os lares americanos, bem como cobertas feitas nosso clube. Era a primeira vez que fazia colchas e penso que nunca tinha visto ninguém a
em casa, quando não se contentavam com as peles de animais para cobrir as suas camas. É pro- realizar aquele trabalho. Haviam decorrido talvez duas ou três semanas, ou um mês, desde que
vável que, durante muito tempo, quase todas as americanas tenham confeccionado colchas. Em entrara para o clube quando se apercebeu de que atravessávamos todas as espessuras com a
muitas regiões, a tradição exigia que as jovens raparigas executassem treze mantas de retalhos agulha. Sabe o que é que ela fazia? Só enfiava a agulha na parte de baixo. Sim, só cosia uma das
antes de se casarem, doze delas eram puramente utilitárias e feitas com retalhos, e uma maior, espessuras. É preciso ser-se muito estúpida! Era uma excelente rapariga, mas não tinha jeito para
para o leito conjugal, também com retalhos mas mais ornamentada. Após o matrimónio, elas aquilo. «Eu não sabia que era preciso coser a toda a espessura», disse. Ficámos boquiabertas.
forravam e revestiam as mantas de retalhos e faziam das colchas um componente essencial do Eu ri-me, e as outras também. (pp. 102-3)
enxoval. (Holstein, 1973, p. 81)
A aprendizagem, mais ou menos penosa segundo o caso, vai a par da pertença a
As mulheres que não confeccionavam colchas para si faziam-no para outras pes- uma família ou uma organização comunitária. Embora a confecção de colchas seja
soas, a título caritativo. (Citarei aqui os testemunhos recolhidos por Patricia Cooper uma actividade tradicionalmente feminina, por vezes os homens também participavam
e Norma Buferd [1977]* na sua obra dedicada à tradição das colchas no Sudoeste dos nela:
Estados Unidos. As citações utilizadas no seguimento deste capítulo são retiradas
dessas entrevistas.) O meu marido recorda-se da altura em que apanhou sarampo. A mãe pô-lo a fazer uma colcha.
Cosia pontos vermelho~ a intervalos regulares. Costuma dizer que aquela é a colcha do sarampo.
Certa vez fizemos uma colcha para uma viúva que tinha poucos recursos e vivia sozinha. Sempre Não iria ficar nada contente se soubesse que eu lhe estou a contar isto. Mas muitas vezes, à
que aparecia alguém de novo na nossa comunidade em busca de integração, as mulheres da noite, quando faz mais frio e eu me encontro junto à lareira a coser, ele vai buscar uma cadeira
comunidade confeccionavam-lhe uma colcha da amizade. (p. 105) e ajuda-me a cortar alguns bocados de tecido. Por vezes chega mesmo a costurar um pouco.
Aquilo só visto, um velho homem de pernas esticadas e com os pés voltados para dentro para
conseguir segurar o caixilho. (p. 39)

Os iniciados aprendem simultaneamente a dominar a técnica e a conhecer os critérios


* Excertos de The Quilters: Women and Domestic Art, de Patricia Cooper e Norma Bradley Buferd. de qualidade. Alguns desses critérios (critérios de mestria artesanais) são conhecidos
© 1977 Patricia Coopere Norma Buferd. Utilizados com a autorização de Doubleday & Company, Inc. e partilhados por todos:

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A minha mãe era muito minuciosa em tudo o que fazia. Guardo dela essa recordação. Era muito
organizada e quando terminava uma colcha, era como no resto, não deixava passar nada. Os ângulos
tinham de estar perfeitos, como quando fazemos a cama, e as bainhas impecáveis. Sabe, não era
dificil coser correctamente e era uma grande satisfação deixar as coisas bem feitas. (p. 97)
a b

Outros critérios de apreciação das colchas não são forçosamente unânimes.


As costureiras de colchas e as suas famílias têm preferências próprias. Um marido
disse a Cooper e a Buferd:

~stou contente por Molly vos ter mostrado essa colcha, mas não quero que ela a venda.
E a peça mais bonita que alguma vez tivemos nesta casa. É a obra de arte dela. Pusemo-la
imediatamente sobre a nossa cama e mais tarde pedi-lhe que a guardasse num local seguro.
Os triângulos dourados estavam a começar a perder a cor. (p. 20)

E outra mulher disse:


e d
Eu só tiro as minhas colchas da arca para as grandes ocasiões, ou então para as admirar. Volto a
colocá-las sobre as camas de tempos a tempos. Certamente, irei passá-las aos miúdos. (p. 108) FIGURA 24. Padrões de colchas. Estes padrões resultam muitas vezes de um único módulo que pode
ser reordenado, originando novos padrões, especialmente quando os valores cromáticos e as texturas
dos tecidos são variados. O «Drunkard's Path» pode ser feito (a) com um quarto de círculo escuro e o
As costureiras de colchas raramente justificam os princípios estéticos que regem os espaço complementar claro, ou (b) com esses valores invertidos. Se se usar a unidade (b ), é possível
seus juízos ou as suas escolhas. Afinal, não são artistas profissionais, nem críticos de arte. criar (e) o padrão clássico do «Drunkard's Path». A combinação de (a) e (b) permite-nos criar o um
Mas se observarmos as colchas com a sensibilidade de alguém que conhece a pintura padrão mais complexo (d), o «Millwheel.» (Desenhos de Nan Becker.)
moderna (tal como fez Holstein), apercebemo-nos imediatamente das correspondências
que é possível estabelecer com as experiências dos pintores contemporâneos. Ao evocarem
os seus métodos de trabalho a Patricia Coopere Norma Buferd, algumas mulheres dão a Tal como os artistas, cujo trabalho se encontra inscrito na tradição de um dado
indicação de se criarem uma série de problemas e de soluções específicas (como aquelas mundo da arte, as costureiras de colchas utilizam os recursos da sua tradição das
de que George Kubler fala) no quadro dos motivos tradicionais das colchas. mais variadas maneiras. Desse modo, obtêm resultados que, longe de se limitarem
As colchas apresentam realmente motivos tradicionais que, ainda que codificados, à reprodução de modelos, são tão personalizados e originais como os das obras
permitem a expressão do gosto e da mestria pessoal na escolha das variantes dos seus realizadas nas disciplinas artísticas consagradas. Para compreender como é que
padrões. Muitas colchas são constituídas por módulos quadrados passíveis das mais essas mulheres o conseguem é necessário saber, antes de mais, de onde provêm
diversas combinações, originando motivos completamente diferentes. O «Drunkard's os materiais utilizados para as mantas de retalhos. Essa origem está intimamente
Patlm associa módulos quadrados que, dispostos de outro modo, originam o «Millwheel» ligada ao carácter familiar e comunitário daquela actividade: na maioria das vezes,
(ver figura 24). Os módulos «Log Cabin», de raios concêntricos em torno de um as costureiras de colchas utilizam pedaços de tecido recuperados de outros trabalhos
quadrado central, com um contraste de cores claras e escuras de um lado e de outro de costura:
da diagonal, também permitem compor uin motivo regular onde alternam as listras
oblíquas claras e escuras (o «Straight Furrow»), ou uma infinidade de outras variantes. A minha mãe guardava todas as sobras de tecido sempre que me fazia um vestido. Quando cresci,
ela deu-mas para fazer uma colcha. No seu tempo, as mantas de retalhos eram exclusivamente
Alguns motivos são predominantemente tradicionais, outros não. Se acrescentarmos feitas com restos de tecidos, e utilizavam-se frequentemente cobertas velhas ou colchas usadas
a todas estas possibilidades as múltiplas variações de cores, torna-se evidente que as para fazer o forro. Nunca se deitava fora nenhum pedaço de tecido( ... ). Eles eram utilizados
costureiras de colchas têm uma grande margem de escolha. Basta dar uma vista de olhos e reutilizados até desaparecerem por completo. Como se costuma dizer, no poupar é que está
pelas ilustrações dos livros que acabei de citar para ver que muitas vezes as costureiras o ganho. (p. 100)
sabem tirar partido desses recursos para realizarem obras que se assemelham bastante
a algumas pinturas modernas. Ora, pode-se dizer que essas mulheres recusariam tomar Essas sobras são cuidadosamente classificadas e não são utilizadas de qualquer
essas pinturas como verdadeira arte. maneira:

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naffe

Tenho um pequeno quarto nas traseiras onde arrumo todos os materiais. É ali que guardo os se deslocavam pelo país traziam consigo novas ideias que se difundiram através do
meus tecidos. Ponho dentro de sacos todos os bocados de tecido que a qualquer momento jogo da imitação. Ou seja, a comunicação utilizou os canais já existentes no seio das
me poderão ser úteis. Quando já tenho uma quantidade considerável, começo a classificá-los.
Depois, separo-os por diversas caixas, tal como se se tratasse de um arquivo( ... ). Colo uma famílias, e entre estas e as comunidades. É deste modo que os não-profissionais podem
etiqueta em cada uma delas e anoto a cor dos tecidos, ou então escrevo: quadrados, listras ou encontrar a matéria da sua criação sem fazerem intervir os dispositivos dos mundos da
a forma dos motivos, quando os pedaços já foram cortados (... ). Estas aqui são para as partes arte aos quais recorrem os artistas profissionais. Holstein afirma que:
sombreadas e para as partes mais claras do «Log Cabin». Neste momento, quase não tenho
cores claras. Mas tenho muitas cores escuras. Tenho de estar atenta e arranjar mais cores claras. As feiras e outras reuniões comunitárias garantiram a transmissão dos modelos de colchas. Um
Sei sempre aquilo de que preciso para fazer o que me vai na cabeça. Nunca compro tecidos para padrão novo ou particularmente sedutor, inventado por uma mulher ou espalhado por uma deter-
fazer as minhas colchas e não gosto de os pedir emprestados. Gosto de pensar que sou capaz minada região, chamava a atenção. As mulher!!S observavam-no cuidadosamente e transmitiam-
de fazer tudo sozinha (p. 100). -no à sua família e para fora dessa região. Dizia-se que elas memorizavam os padrões e, uma
vez de volta a casa, desenhavam uma amostra que guardavam como esboço para uma posterior
reprodução. (Holstein, 1973, p. 85)
Ao ouvinnos as costureiras de colchas, dificilmente imaginaríamos a complexidade
dos resultados que obtêm. Ficamos com a impressão de que elas dominam perfeitamente
os efeitos estéticos das cores e dos padrões. Segundo parece, apercebem-se muito bem A confecção de colchas, que resultava directamente da participação na vida familiar
das diferenças de padrões de qualidade do trabalho, mas não conseguem analisá-las e comunitária, encontrava aí a sua justificação: as mulheres realizavam colchas para
à falta de conceitos adequados. Conseguem descrever a maneira como classificam os manterem os membros da família aquecidos, para as oferecerem aos filhos quando
pedaços de tecido. Evocam os efeitos visuais («este aqui parece um puzzle») ou como se casavam ou mudavam de casa, para ajudarem as pessoas mais necessitadas, para
é possível criá-los («se pusermos triângulos escuros ao lado destes losangos, eles se manterem ocupadas nos tempos mais difíceis ou quando atingiam uma idade mais
destacam-se do fundo»). Também reconhecem a originalidade e dão-lhe um enorme avançada:
valor («gosto de experimentar misturar cores nunca usadas»). Mas para falarem entre
si acerca do seu trabalho, não dispõem de uma linguagem que permita a abstracção e Antigamente tínhamos de fazer colchas bem espessas. Sabe, à noite as correntes de ar eram tão
a generalização, como acontece com as formulações estéticas e críticas que facilitam fortes nos nossos velhos casebres que precisávamos de nos tapar muito bem para não morrermos
de frio. (p. 45)
o diálogo entre artistas profissionais para além do tempo e do espaço. (Note-se que os Agora, todas as minhas colchas foram para os meus cinco filhos e para os meus netos. E os seus
mavericks, embora contestem as normas do mundo da arte, não deixam de usar o seu filhos também já querem ter as suas próprias colchas. (p. 140)
vocabulário crítico e estético, o que lhes permite comunicar entre si, bem como com Fiz várias colchas para pessoas que sofreram incêndios e que perderam quase tudo.
os membros desse mundo da arte.) O nosso clube faz colchas para as pessoas que têm mais dificuldades. (p. 142)
Quando não existe uma linguagem comum para formular juízos, os critérios À noite, quando ele regressa a casa, liga a televisão e instala-se no sofá a ver filmes. Então, ponho-
-me a coser a minha colcha. Isto não é nada de especial, mas sinto-me menos só. (p. 130)
acabam forçosamente por ter uma aplicação limitada no tempo e no espaço. Uma
determinada série de critérios pode fundamentar as decisões de um júri numa
feira, mas trata-se de um simples veredicto pontual, e não da aplicação ponderada Geralmente, as mulheres faziam uma parte do trabalho (o revestimento acolchoado
de princípios claramente enunciados. Isto não permite assegurar a coesão de um e o forro) em comum e apreciavam muito esse aspecto convivia! da sua actividade:
mundo que aspire a uma maior envergadura. Como foi possível, então, inventar e
difundir tão amplamente os complexos padrões da arte das colchas? Holstein (1973, No Verão trazíamos a armação (para fazer as colchas) para o terraço, e quando finalmente ficava
pp. 55-56) considera o papel desempenhado pelas revistas femininas absolutamente montada, a mamã dizia: «Bom, vamos lá a isto.» Sentávamo-nos à volta da armação e quem
aparecesse fazia o mesmo, ainda que não soubesse coser lá muito bem. Claro que, se estivessem
negligenciável. Consultou a Godey s Lady s Book e pôde constatar que, em sessenta muito maus, depois desfazíamos os pontos que elas tinham feito. Mas era essencialmente para
e oito anos, esta revista não publicou senão cinco modelos de colchas. Quanto aos estarmos ali na conversa e a conviver que íamos buscar a armação para coser colchas em pleno
periódicos de difusão mais rural, não publicaram nenhum. Holstein supõe que as Verão. As pessoas saíam à noite depois do jantar e de lavar a louça, e isto espalhava-se rapida-
mulheres, «e talvez os seus maridos, possuíam noções práticas de desenho que eram mente. Era preciso ter uns mosquiteiros no terraço porque podíamos ficar a coser e a conversar
usadas neste trabalho quotidiano» (o que nos faz lembrar a maneira como os mercadores até às tantas à luz de lamparinas, com os mosquitos a bater contra as redes. (p. 76)
florentinos utilizavam os seus conhecimentos práticos para apreciarem as pinturas do
Renascimento [Baxandall, 1972]). Dada a ausência de organização a grande escala e Como todos os participantes sabem mais ou menos a mesma coisa acerca da activi-
de meios de comunicação de massa, podemos presumir que a transmissão dos padrões dade que desempenham, e como todos são capazes de realizar qualquer uma das tarefas
se realizou no seio das famílias e através das relações de vizinhança. As pessoas que necessárias, a cooper~ção não levanta qualquer dificuldade, à excepção das habituais

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naif.s

fricções inerentes a qualquer relação humana. Para dar outro exemplo, Bruce Jackson notáveis, de as comprar e de as conservar para serem apresentadas ao público ou para
(1972) explica como é que, no Texas, os prisioneiros negros condenados aos trabalhos serem estudadas. As colchas não eram obras de arte porque não eram tratadas como tal.
forçados coordenam os seus esforços graças à cadência dos cânticos; por exemplo, Embora constituíssem a expressão tangível de uma tradição familiar ou comunitária
para o trabalho de abate de árvores (ver figura 25). Uns conduzem melhor o canto do ainda assim isso não parecia justificar a sua conservação. Não sendo conservadas '
que os outros, e é a esses que todos preferem confiar esse papel. No entanto, até mes- não podiam ser apreciadas pelas suas eventuais qualidades artísticas. Na medida e~
mo um mau cantor pode cumprir esta tarefa, desde que consiga manter a cadência e que apenas a conservação das obras de arte lhes pode permitir alcançar um lugar na
sobrepor a voz ao barulho circundante. Qualquer um é capaz de dar voz de cadência, produção artística reconhecida e apreciada por uma sociedade, as colchas não tinham
porque todos conhecem a canção. A principal função daquele que dá a voz é reforçar qualquer hipótese de aceder a essa dignidade.
as quadras da canção que todos irão entoar. Essas quadras são escolhidas de entre um Entretanto as coisas mudaram, tanto para as colchas como para muitos outros
vasto repertório de estrofes que todos sabem que pertence à canção. Todos conhecem produtos da indústria familiar ou comunitária, quando certos museus começaram a
a totalidade das estrofes e as suas múltiplas combinações possíveis. conservar objectos de artesanato ou a destacar as suas qualidades artísticas. Muitos
Voltando às colchas, como se trata de uma produção familiar e comunitária e não museus de arte passaram desde então a possuir (em alguns casos já há bastante tempo)
de obras vindas de um mundo da arte, a sua conservação era, até a uma época recente, um departamento de artes populares (ou decorativas, ou aplicadas, conforme o caso) e
feita pelas famílias. Eram transmitidas pelos pais aos filhos e aos netos. O seu valor adaptaram para as colchas, bem como para outros objectos análogos, medidas que até
residia em certa medida na sua beleza, mas, acima de tudo, na sua utilidade prolongada então não contemplavam. As possibilidades estéticas oferecidas pela arte das colchas
e na sua carga afectiva, como símbolos de perenidade dos laços familiares. Não tinham não deixaram de atrair as atenções de certos artistas contemporâneos, sobretudo dado
qualquer valor artístico. Não eram obras atribuídas a um criador cuja reputação teria o facto de a sua especificidade feminina lhes conferir um interesse muito particular.
crescido graças a um juízo crítico favorável. Com efeito, as colchas raramente eram Embora tenhamos centrado a nossa análise da arte popular no mundo da confecção
assinadas. A sua atribuição não se baseava senão nas recordações e na tradição oral de colchas, poderíamos ter recorrido a outros exemplos análogos na América dessa
da família. Eram usadas até ao desgaste total, ainda que por vezes algum membro da época: a marcenaria, uma actividade masculina que desempenhava um papel utilitário
família as preservasse no melhor estado possível, porque as considerava particular- muito comparável nos centros rurais, os jogos infantis ou os bailes de adolescentes.
mente belas. Não existia qualquer instituição com a tarefa de descobrir as obras mais As actividades femininas e infantis são provavelmente mais permeáveis a esta forma,
pois a maioria das actividades masculinas funda-se nos mundos do trabalho e, por-
tanto, é essencialmente fruto de uma cultura de ofício, ou mesmo de uma verdadeira
arte profissional.

OS ARTISTAS NAlFS

Existe ainda uma última categoria de artistas à qual chamamos ingénuos, naifs ou
artistas da terra. Anna Mary Robertson, conhecida como Grandma Moses, é considerada
como o arquétipo americano desse tipo de artistas, embora o mundo da arte a tenha
acabado por descobrir e admitir no seio dos seus membros (como por vezes acontece).
Em geral, esses artistas não têm, à partida, qualquer relação com os mundos da arte.
Não conhecem os membros do mundo da arte onde são produzidas obras análogas às
suas (caso existam). Ignoram quase tudo aquilo que diz respeito à disciplina artística
que praticam, a sua história, as suas convenções e o género de obras que habitualmente
a caracterizam. Não conhecem a linguagem convencional que lhes permitiria explicar
aquilo que fazem. Trabalham isoladamente, pois, dado que a comunicação é pratica-
mente impossível, ninguém sabe como ajudá-los ou proporcionar-lhes a cooperação
de que necessitam. Quando recebem ajuda, é porque criaram a sua própria rede de
FIGURA 25. Reclusos cantando. A arte popular surge em parte como resultado da actividade diária dos
membros da comunidade. No Texas, os reclusos coordenam os seus esforços ao abaterem as árvores
cooperação: recrutaram, formaram e reuniram em seu tomo um determinado número
ao som da cadência de cânticos. (Fotografia de Bruce Jackson.) de pessoas que aos poucos aprendem a desempenhar as tarefas consideradas necessárias.

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs

Na maior parte das vezes, o máximo que conseguem é recrutar algumas pessoas para seria enganador. São umas torres em cimento armado com uma estrutura completa-
desempenharem o papel do público. mente exposta, onde a mais alta ultrapassa os trinta metros (ver a figura 26). Rodia
Do que precede, poderíamos deduzir que a arte naif se apresenta como relativa- decorou-as com materiais tão banais como vidro de garrafa e pedaços de desperdício
mente convencional, na medida em que o seu alinhamento corresponde a categorias recolhidos em depósitos de ferro-velho. Moldou no cimento as formas de vários uten-
clássicas como é o caso da pintura. De facto, existem muitos pintores naifs. Grandma sílios de cozinha e de ferra mentas de artesãos. Utilizou os seus conhecimentos como
Moses não é senão um exemplo, e o mais célebre é sem dúvida o de Henri Rousseau. pedreiro na construção civil, e um repertório iconográfico absolutamente pessoal. No
Estes pintores conhecem e respeitam as convenções da pintura de cavalete. Pintam início, alguns julgaram ver naquelas torres a expressão de um sentimento religioso,
sobre telas ou sobre superfícies de dimensões habituais e utilizam materiais mais ou mas quando Rodia reapareceu no Norte da Califórnia, após ter estado incontactável
menos tradicionais. Como não possuem qualquer formação profissional, a sua obra durante vários anos, não escondeu as suas posições violentamente anti-religiosas. Dito
assume o aspecto tipicamente naif, no sentido literal do termo, um aspecto infantil ou isto, ele não forneceu qualquer explicação para as marcas ou para os símbolos que
ingénuo. Faz lembrar os desenhos das crianças que ainda não aprenderam as técnicas ornamentavam as suas torres.
da representação pictórica (ou daqueles que deixaram de desenhar). Otto Bihalji-Merin
( 1971) recenseou mais de duzentos pintores naifs, que não representam evidentemente
senão uma pequena fracção desse universo: a fracção obtida por alguém que procurava
obras dotadas de um valor estético segundo os critérios do mundo da arte. (Ver também
Lipman e Armstrong, 1980.)
As obras naifs, numa disciplina tão convencional como a pintura, são relativa-
mente fáceis de compreender. Os pintores naifs, como todos os ocidentais plenamente
socializados, sabem o que é um quadro e como é que ele é feito. Não têm quaisquer
dificuldades em encontrar os materiais de que necessitam. Qualquer indivíduo, ainda
que com escassos conhecimentos de desenho, pode dedicar-se à pintura, apoiando-se
no repertório tradicional, nos estereótipos ou no seu imaginário pessoal. O trabalho
dos pintores naifs difere muito pouco do trabalho dos pintores amadores. Tanto uns
como os outros mantêm-se alheios ao mundo da pintura profissional, ainda que os
amadores se possam inscrever em cursos de pintura, aderir a associações ou participar
num mundo de pintores de fim-de-semana. (Ver McCall, 1977 e 1978, e também, no
que diz respeito ao mundo da pintura sobre porcelana, Cincinnati Art Museum, 1976,
e California State University, Fullerton, 1977, pp. 113-53.)
Dadas as semelhanças com a pintura convencional, a pintura naif é facilmente
assimilada pelo público. Portanto, apresenta menos interesse para a nossa análise, FIGURA 26. Simon Radia, as Torres Watts, Los Angeles (construídas entre 192 I e 1954). Os artistas
comparativamente a outros tipos de obras naifs mais difíceis de descrever, precisamente naif.s trabalham à margem de qualquer mundo da arte, realizando os seus trabalhos sem o apoio de outras
porque é impossível reportá-las a critérios em vigor fora do mundo estritamente pessoal pessoas. Rodia explicava a sua obra aos outros, quando se dava ao trabalho de o fazer, limitando-se a
do seu autor. Este trabalha sozinho. Furta-se aos constrangimentos da cooperação dizer que a tinha feito «completamente sozinho». (Fotografia de Seymour Rosen.)
que recaem sobre os participantes dos mundos da arte. Tem a liberdade de ignorar
as habituais classificações, encontra-se livre de fazer coisas que não correspondam a James Hampton, oficial de diligências em Washington, também realizou uma obra
nenhum género inventariado e que não sejam representativas de nenhuma categoria. completamente inclassificável chamada Throne of the Third Heaven of the National
As obras existem, e é tudo. A única forma de as descrever consiste em enumerar as suas Millenium GeneralAssembly (ver figura 27), que consistia numa garagem repleta de
particularidades. Cada qual constitui uma categoria por si, pois foi realizada à margem altares, púlpitos, relicários e outros objectos religiosos envoltos em folhas de ouro e
de qualquer referência e não serviu de referência a qualquer outra. de alumínio (o catálogo do Walker Art Center, 1974, contém descrições e reproduções
Tomemos como exemplo as célebres torres Watts, construídas por Simon Rodia desta e de várias outras obras que citarei neste capítulo). Clarence Schmidt construiu
em Los Angeles entre 1921 e 1954 (Trillin, 1965). Este conjunto de gigantescas cons- vários edifícios, depois decorou as árvores e a paisagem envolvente com folhas
truções, grandes de mais para serem classificadas como esculturas, também não pode de aluminio, bonecas cor-de-rosa e outros objectos heteróclitos, abarcando uma área de
ser classificado, propriamente, como arquitectura, e considerá-lo como um monumento mais de dois hectares perto de Woodstock, Nova Iorque. Em Santa Susana na Califórnia,

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs

Tressa Prisbrey, mais conhecida por Grandma Prisbey, cobriu um vasto terreno com casa com dois andares, coberta de portas e de janelas à maneira de Clarence Schmidt.
pequenas construções em cimento e garrafas, que encheu com bonecas, lápis de cor e O autor encontrava-se presente e estava a acrescentar algo numa parede. O meu amigo
outros objectos comuns. Sobre o restante terreno, criou uma paisagem com potes de saudou-o e depois explicou-me que a construção era um projecto para o exame de fim
flores cheios de objectos encontrados, tais como faróis de automóveis. Jesse Howard, de ano da licenciatura em artes plásticas.
o «Fora-da-Lei», plantou na sua propriedade em Fulton no Missouri uma floresta de Os artistas na'ifs começam quase sempre as suas obras de modo fortuito, ou, me-
painéis indicadores sobre os quais pintou à mão mensagens políticas e religiosas. lhor, a sua iniciativa não tem nada de um empreendimento concertado tal como seria
Durante muitos anos, foi possível ver um outro <~ardim de painéis» numa extremidade de esperar no seio de um mundo profissional. No início do século XX, um carteiro
da Stanyan Street em São Francisco. de uma localidade rural, Ferdinand Cheval, passou mais de trinta anos a construir
Para o mundo das artes plásticas contemporâneas, estas obras já não se apresentam um conjunto de edifícios e de esculturas a que chamou: Palais ldéal. Quando alguns
tão insólitas como outrora. São passíveis de entrar na categoria dos ambientes e instala- anos mais tarde descreveu aquilo que tinha feito, explicou que, certa vez, enquanto
ções onde já figuram as minuciosas reconstituições de cafés, quartos de dormir e outros distribuía o correio, sonhara com um «castelo de fadas, rodeado de jardins, museus,
espaços de utilização quotidiana realizados por escultores como Edward Kienholtz ou esculturas e enormes labirintos (... ) com uma arquitectura dos tempos remotos e
George Segai. Muito provavelmente, essa categoria emergiu nas artes plásticas, em das terras longínquas (... ) combinada (... ) numa estrutura ímpar tão bela e pitoresca
parte, porque alguns participantes dos mundos da arte descobriram e imitaram mais ou que aquela imagem lhe ficara gravada no pensamento durante mais de dez anos».
menos essas obras inclassificáveis. Há alguns anos, dei uma conferência numa univer- Então:
sidade de província onde falei, entre outros, de Simon Rodia e de Clarence Schmidt
e onde também projectei alguns diapositivos acerca das suas obras. Um amigo que Certo dia tropecei numa pedra. Depois de ter olhado para ela com mais atenção, fiquei intrigado
morava nessa cidade disse-me então que existia uma construção do mesmo género com a sua forma e trouxe-a para casa. No dia seguinte voltei ao mesmo local e encontrei pedras
com formas ainda mais belas. Comecei a coleccioná-las com entusiasmo.
perto dali. Não fiquei muito surpreendido, pois essas originais empresas são bastante '
Tomei aquela coincidência como um presságio. Se a própria natureza criava esculturas, então
frequentes nas pequenas cidades. Fomos ver a obra em questão: era uma espécie de também eu poderia tomar-me um arquitecto ou um pedreiro! ...
E assim, durante mais de 25 anos, recolhi pedras. (Cheval, 1968, p. 9)

Herman Rusch, um agricultor de Cochrane no Wisconsin, começou a cons-


truir o museu-jardim Prairie Moon, um conjunto de pilares, torres e arcadas que
ocupava mais de um hectare. A sua intenção era «vestir aquele espaço» (Hoos, 1974,
p. 71). Grandma Prisbey começara a sua obra porque a caravana onde vivia era de-
masiado pequena para a sua família e para a sua colecção de dois mil lápis. Quando
a obra é premeditada, como acontece por vezes (por exemplo o Jardim do Éden de
S. P. Dinsmoor, uma arquitectura-escultura de temática político-religiosa, realizada em
Lucas, no Kansas ), as motivações são pessoais e nem sempre claras para os outros.
Mas voltaremos a este assunto.
Estas obras, que não se inscrevem em nenhuma tradição de questões e de soluções
artísticas, parecem surgir do nada. Ninguém sabe como reagir na sua presença. O públi-
co (ou sobretudo as pessoas que descobrem essas obras por acaso) fica completamente
desconcertado e os seus autores não sabem tirar partido de qualquer rede cooperativa
para as construir. Tràbalham sozinhos. Simon Rodia explicou:

Fi-la completamente sozinho. Nunca tive qualquer ajuda. Antes de mais, não tinha dinheiro para
FIGURA 27. James Hampton, Throne of lhe Third Heaven of lhe Nalional Mil/enium General contratar fosse quem fosse para me ajudar. Nem um cêntimo. Mas ainda que tivesse contratado
Assembly. Dado que trabalham à margem dos mundos da arte, o trabalho dos artistas na'ift apresenta alguém, essa pessoa não saberia o que fazer. Quantas vezes nem eu próprio sei aquilo que vou
um aspecto idiossincrático. Hampton construiu esta obra numa garagem entre 1950 e 1964 cobrindo fazer. Passo noites inteiras em branco, porque foi uma ideia só minha. (Trillin, 1965, p. 72)
os objectos com folhas de ouro e alumínio. (Fotografia cedida pela National Collection ofFine Arts,
Smithsonian lnstitution.)

222 223
Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mm ericks, Artistas Populares e Naifs
1

(De um ponto de vista estritamente técnico, nada os impede de recorrer a assis- À excepção do betão, das vigas e do papel de alcatrão, Grandma Prisbey encontrou
tentes. O arquitecto catalão Antoni Gaudí construiu obras que sob vários aspectos se todos os seus materiais na lixeira municipal: cerca de um milhão de garrafas, faróis
assemelham às de Rodia e às de outros artistas naifs. Mas como era um arquitecto pro- de automóvel, tubos catódicos, bonecas, peças de máquinas, provetas, lápis, armações
fissional bastante reconhecido, apesar das suas extravagâncias, tinha clientes abastados de óculos e cápsulas de garrafas de cerveja (McCoy, 1974, p. 82). James Hampton
e, portanto, meios para construir e formar operários que realizavam os seus projectos encontrou os seus materiais nos cestos de papéis que estava encarregue de despejar.
[Collins, 1960, e Bergós, 1954].) «Pagava aos mendigos das redondezas para recolherem chapas de metal, mas tam-
Os artistas naifs elaboram um estilo eminentemente pessoal e criam formas e géneros bém percorreu as ruas com um grande saco de serapilheira que enchia com despojos»
inéditos, porque não adquiriram os hábitos de pensamento que os artistas profissio- (Roscoe, 1974, p. 15).
nais interiorizaram automaticamente durante a sua formação. Um maverick tem de Os artistas naif,s, sem qualquer formação profissional e alheios ao mundo da arte,
ultrapassar os hábitos adquiridos durante a sua aprendizagem profissional. Um artista não aprendem o vocabulário convencional utilizado para explicar e justificar as suas
naif não tem nenhum desses hábitos. Muitos dos artistas que realizaram construções obras. Como não podem usar a terminologia da arte para explicar aquilo que fazem,
comparáveis às torres Watts adquiriram as suas competências do mesmo modo que e como o seu trabalho é difícil de apreender numa perspectiva alheia à da arte, ficam
Rodia, exercendo um oficio ligado à construção civil. Outros eram agricultores ou do frequentemente embaraçados perante os pedidos de esclarecimento. Ora, obras como
tipo factótum. De uma maneira geral, a sociedade ensina a muitas pessoas as técnicas as torres Watts, o Palais Jdéal e centenas de outras, entretanto descobertas pelos
que podem ter uma aplicação artística, mas ensina-as num contexto não artístico e críticos, exigem uma explicação porque são impossíveis de enquadrar nas categorias
com fins utilitários. As pessoas que aprenderam essas técnicas podem então lançar-se convencionais ou de legitimar através de relações reconhecidas pelos mundos da arte.
numa empresa artística completamente pessoal sem nunca entrarem em relação com o A maioria destes artistas não fornece qualquer tipo de explicação. Acham que aquilo
mundo da arte convencional. (Talvez seja por isso que é tão difícil encontrar exemplos que fazem não interessa aos outros, ou que é um assunto entre eles e Deus, dado que
no campo da música, porque os conhecimentos musicais são demasiado especializados muitas obras naifs possuem uma acentuada dimensão religiosa. Quando apresentam
para terem uma utilidade nas actividades não artísticas.) algumas explicações, estas são tão incompatíveis com as motivações mais habituais
Os artistas naifs, completamente independentes das estruturas de trabalho instau- que parecem extremamente bizarras. Eis alguns exemplos:
radas pelos mundos da arte, não têm acesso aos circuitos regulares de abastecimento
de material profissional. São suficientemente engenhosos para se desenvencilharem [M. Tracy, que construiu uma casa com garrafas em Wellington no Texas, disse:] «Vi uma casa
feita com garrafas na Califórnia, mas só tinham usado um único tipo de garrafas. Decidi fazer
com aquilo que têm à mão. Rodia usava o cimento armado como um dos materiais
uma casa melhor e usei vários tipos de garrafas.» (Blasdell, 1968, p. 32)
tradicionais para a construção das suas torres, mas decorava-as com telhas, louça,
garrafas, conchas e marcas de utensílios domésticos ou ferramentas. Como sublinha [Herman Ruschjustificava o trabalho atrás descrito, sublinhando:] «Como se costuma dizer, meu
Trillin, a sua obra reflecte os limites dos seus recursos materiais: caro senhor, um homem deve deixar marcas por onde passa e não apenas cheques de caridade
sem cobertura.» (Blasdell, 1968, p. 41)
Toma-se evidente o facto de a forma das torres ter sido determinada, em certa medida, pela
falta de material. Por exemplo, como não tinha andaimes, teve de fabricar uns à medida que ia [S. P. D. Dinsmoor natural de Lucas no Kansas, dizia:] «Se o Jardim do Éden não está bem feito,
avançando no seu trabalho. Esses andaimes adquiriram a forma de barras e de anéis horizontais o culpado é Moisés. Foi ele quem o idealizou e construiu.» (Blasdell, 1968, p. 30)
que envolviam as flechas verticais, e o efeito de teia de aranha muito apertada provém do facto
de o espaço entre os dois anéis ter de permitir a passagem de um homem pequeno de um para [Fred S~ith, dizia:] «Tenho 166 anos e estarei melhor aos 175. Isto é algo que nasce com uma
o outro. (Trillin, 1965, p. 80) pessoa. E preciso ser uma pessoa abençoada para fazer aquilo que eu fiz.» (Blasdell, 1968,
p.33)
Louis C. Wippich, que criou em Sauk Rapids no Minnesota um gigantesco jardim
de pedras chamado Molehill (a torre mais alta mede cerca de 15 metros), soube tirar Não é de surpreender que aqueles que criam obras como estas, e as justificam
proveito das indústrias locais: deste modo, sejam frequentemente considerados como indivíduos loucos. É a
própria natureza das suas obras que constitui um problema. Obras sem utilidade
Durante os vinte e quatro anos consagrados à construção do seu jardim, recuperou inúmeros plausível não podem ser justificadas pelo seu uso (espaço de habitação ou de
blocos de pedra inutilizados, lápides destruídas e artigos de segunda escolha nas pedreiras e nos arrumação, por exemplo). E como classificá-las se não servem para nada?
marmoristas da sua área. Nas oficinas da Great Northem Railroad, encontrou carris, cabos de Poderiam passar por obras de arte, só que não são encaradas como tal pelos outros,
aço e placas de madeira provenientes das carruagens de transporte de mercadorias que já não
eram utilizadas. Essa madeira serviu para construir as duas casas que cercam o jardim. Utilizou e os seus criadores também não reivindicam o estatuto de artistas. São meros
os carris para segurar as pontes e as plataformas em betão. (Sherarts e Sherarts, 1974, p. 90) concidadãos, provavelmente munidos de uma sólida reputação de rabugice e

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Mundos da Arte Profissionais Integrados, Mavericks, Artistas Populares e Naifs

excentricidade. O criador toma-se objecto da ridicularização, dos vexames e da.in- Mesmo quando são conservadas graças a uma intervenção dos participantes nos
quietação por parte da administração ou da população local. O carteiro Cheval ( 1968, mundos da arte, as obras dos artistas naifs não encontram facilmente um lugar nesses
p. 11) descreveu a reacção das pessoas à sua recolha de pedras, preparatória da cons- , mundos. Elas infringem muito mais normas do que as obras dos mavericks e fazem-no
trução do Palais ldéal: de um modo mais radical. Na maioria das vezes não se conseguem sequer transportar.
Impossibilitadas de fazerem parte de qualquer forma de arte catalogada, têm poucas
Passado algum tempo, começaram a circular piadas a meu respeito e a opinião geral sedimentou-
-se: «Olhem o pobre idiota a encher o seu jardim com calhaus!» As pessoas pensavam que eu
hipóteses de ocupar um lugar importante na história de uma arte. Essas obras são, e
era doente mental. Algumas riam-se de mim; outras reprovavam-me ou criticavam-me. Mas, continuarão a ser, meras curiosidades.
como passado algum tempo perceberam que este tipo de loucura não era perigosa nem conta- O lado ingénuo da arte naif, tal como a singularidade da arte do maverick, prende-
giosa, deixaram de me aconselhar a ir ao psiquiatra. A certa altura deixei de me importar com -se com a situação desses artistas relativamente ao i:nundo da arte convencional. Não
o escárnio de que era alvo. Sabe, apercebi-me de que as pessoas desde sempre ridicularizaram é o carácter da obra que constitui a particularidade da arte naif, mas a sua indepen-
e perseguiram aqueles que não compreendiam.
dência face às convenções do momento. Esta constatação permite-nos dar resposta
a uma questão aparentemente insolúvel: a obra de Grandma Moses permanece naif
Durante a Segunda Guerra Mundial, as crianças da vizinhança, para quem um ex- uma vez descoberta, exposta em museus e galerias e aplaudida pela crítica? Na me-
cêntrico como Simon Rodia representava um sonhador atormentado, imaginaram que dida em que o autor de uma obra naif oficialmente descoberta continue a ignorar os
ele estava a usar as torres Watts para enviar mensagens via rádio para os submarinos constrangimentos do mundo que a reabilitou, continuará a manter o seu estatuto naif.
italianos. Enfureceram-se e começaram a destruir a obra. Em 1954, Rodia não parecia Quando o artista começa a ter em consideração os comentários dos seus novos pares
continuar interessado nas suas torres nem naquilo em que se poderiam tomar. Cedeu o e as condições necessárias para obter a sua cooperação, torna-se um profissional
terreno a um vizinho e desapareceu. Em 1959, o município de Los Angeles decidiu-se integrado, mesmo que esteja integrado num mundo que pouco tenha evoluído para
pela demolição das torres como medida de segurança. integrar essa obra diferente.
Isto leva-nos à questão da conservação destas obras e da sua protecção contra este
tipo de ofensivas. Os dispositivos de salvaguarda postos à disposição para as obras de
arte reconhecidas não contemplam estes casos. Como Tressa Prisbey tinha um filho que CONCLUSÃO
trabalhava num departamento de fiscalização de imóveis, tornou-se alvo de inúmeras
intrigas. A obra de Wippich teria provavelmente desaparecido se um parente afastado As dificuldades com que os mavericks e os artistas naifs se deparam para realiza-
não a tivesse comprado com a intenção de a conservar. Por vezes, certos comerciantes rem e difundirem as suas obras, as dificuldades com o público e com as autoridades,
decidem preservar uma obra que parece apresentar algum interesse turístico. Mas nunca mostram-nos os problemas aos quais os profissionais integrados se furtam ao partici-
saberemos quantas obras análogas se perdem irremediavelmente para a posterioridade. parem em mundos da arte reconhecidos como componentes legítimos da sociedade.
A melhor garantia de conservação dessas obras radica no interesse que lhes é Os artistas populares mostram-nos, através do seu exemplo, como é que certas obras
atribuído (de facto, muito raramente) pelos membros de um mundo da arte, quando consideradas arte sob todos os aspectos, excepto o da sua nomeação enquanto tal,
fazem uma ligação entre as soluções encontradas pelo artista naife os problemas que podem ser realizadas sob outros auspícios e o que daí resulta.
os preocupam nesse preciso momento no seio do seu mundo profissional. Foi isso que As diferenças entre as obras dos profissionais integrados, dos mavericks, dos artistas
salvou as torres Watts. Alguns artistas e representantes dos museus de Los Angeles populares e dos artistas naifs não reside no seu aspecto exterior, mas na sua relação
redescobriram as torres (que entretanto se tinham transformado num local turístico com as obras de pessoas mais ou menos ligadas a um mundo da arte. As obras dos
quando uma linha interurbana de comboios começou a passar por aquele local) e cons- artistas naifs nem sempre parecem pueris, mas todas se distinguem das obras similares
tituíram uma comissão de defesa para impedir a sua demolição. Trillin (1965) relata dessa disciplina e mantêm uma relação diferente com o mundo da arte. O trabalho
os inúmeros contratempos daquela operação. O departamento de obras e imóveis do de um maverick é relativamente livre dos constrangimentos impostos pelos laços de
município de Los Angeles tentou derrubar uma das torres, tendo previamente acorda- cooperação, como era o caso de Charles lves. Contudo não deixa de ser entravado
do que, se a sua resistência fosse muito grande, abandonaria a iniciativa poupando o pela ausência de cooperação (Ives deve ter ficado incomodado com a impossibilidade
conjunto da obra. Num autêntico final de contornos folhetinescos, a torre mostrou-se de ouvir o que compunha). A arte popular, fortemente enraizada numa comunidade,
tão sólida que o braço de um guindaste se soltou devido à resistência exercida. Mesmo padece da insuficiência do tempo e dos recursos materiais que a comunidade lhe pode
assim, as torres foram muito danificadas pelos actos de vandalismo cometidos pelos dispensar; também não beneficia de todos os apoios normalmente concedidos aos par-
locais. O Throne de Hampton teve mais sorte porque era transportável: encontrou um ticipantes num mundo da arte reconhecido. A arte naifé essencialmente idiossincrática
local de asilo na National Collection ofFineArts de Washington. e impermeável à opinião ou ao exemplo dos pares da sua disciplina.

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Mundos da Arte

Resumindo, os mundos da arte ajudam os seus participantes a produzirem obras


que obterão o apoio material de outrem e suscitarão a sua atenção. Ajudam os artistas
a inserirem as suas obras numa tradição onde adquirem sentido. Pennitem a disponi-
. bilização do tempo e dos recursos necessários à actividade artística.
As diferenças que separam todos estes tipos de arte não são de qualidade; encontra-
mos obras mais e menos interessantes em todas as categorias. Contudo, consideramos
sempre as obras heterodoxas (aquelas que não são realizadas sob os auspícios de um
mundo da arte) segundo uma estética emanada de um mundo, provavelmente um mun-
do da arte, no qual participamos. É essa estética que nos pennite fazer uma selecção
entre a enonne produção de todas as pessoas que não são profissionais integrados,
reconhecer que algumas obras são dignas de interesse e que, portanto, merecem sair da
marginalidade. Num outro momento, os membros de outro mundo da arte farão uma 9
selecção diferente, se os mecanismos de conservação tiverem garantido a sobrevivência
das obras a seleccionar. (Ver Moulin, 1978, pp. 244-47.) ARTE E ARTESANATO

De um modo geral, os membros de um mundo da arte estabelecem uma clara distinção


entre arte e artesanato. Reconhecem que a arte exige detenninadas competências técni-
cas semelhantes às do artesanato, contudo insistem em sublinhar que o artista contribui
com algo que ultrapassa a mera mestria da produção artesanal, algo relacionado com
as suas faculdades criativas e que confere a cada objecto ou manifestação um carácter
expressivo absolutamente singular. Os artesãos possuem competências que podem ser
postas ao serviço do artista. O seu trabalho é, por definição, artesanato e não arte. Uma
mesma actividade, que ponha em jogo os mesmos materiais e as mesmas competências
de modo semelhante, pode tomar um ou o outro nome. A história de cada forma de arte
comporta fases características de mutação: uma actividade concebida e definida como
artesanato pelos seus praticantes e pelo público pode ser redefinida como arte e vice-
-versa. No primeiro c~so, os participantes de um mundo da arte contribuem para um
mundo do artesanato ou anexam-no completamente. No segundo, um mundo da arte que
tenha uma longa história começa a apresentar alguns traços característicos dos mundos
do artesanato. A organização muda em simultâneo com a reputação. A análise das com-
plexas relações entre arte e artesanato e os mecanismos de transfonnação de ambos, tal
como vimos na análise comparativa proposta no capítulo anterior, ajuda-nos a clarificar
o funcionamento dos mundos da arte. Nesse capítulo, o estudo das práticas heterodoxas
(independentes dos mundos da arte organizados) pressupunha uma certa imutabilidade
dos mundos da arte. O presente capítulo faz uma correcção a esse respeito ao abordar
alguns mecanismos de mudança. O próximo capítulo irá ainda mais longe, já que se
debruçará inteiramente sobre a questão da mudança nos mundos da arte.
(Na linguagem corrente, os tennos «arte» e «artesanato» remetem para agre-
gados de traços estilísticos e organizacionais de algum modo ambíguos. Não
podemos portanto usá-los com o mesmo rigor com que usamos os conceitos científicos
ou estéticos. Contudo, como iremos falar de arte e de artesanato, de organizações e

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Mundos da Arte Arte e Artesanato

de estilos de obras, deverá ficar bem sublinhado que, ao proceder deste modo, estare- a eles cabe avaliar o resultado final. O artesão pode até conhecer uma melhor forma
mos a referir-nos a um ou a outro aspecto das definições mais correntes. Evocaremos de proceder, desconhecida daqueles que são alheios ao seu oficio, mas reconhece ao
:frequentemente organizações que não estão longe de realizar as combinações ideais empregador o direito à palavra final. Ambos admitem à partida que se tratará de rea-
implicadas nas definições correntes dos termos. E mesmo que fiquem aquém do ideal, lizar algo do qual o empregador poderá dispor como bem entender. Mesmo quando o
isso não terá muita importância para a nossa análise.) artesão trabalha para si mesmo, ele produz sempre objectos destinados a satisfazer as
necessidades de outrem.
Se o objecto é feito para satisfazer necessidades de ordem prática, a sua função,
QUANDO O ARTESANATO SE TORNAARTE por definição extrínseca, toma-se um parâmetro ideológico e estético importante. Se
o objecto não tem utilidade prática evidente ou previsível, ou se for completamente
Quando considerado como uma ideologia, uma estética e uma forma de organização inadaptado ao seu uso presumido, o artesão que o realizou (e que supostamente aderiu
do trabalho, o artesanato pode e deve ser entendido de forma independente dos mundos à ideologia do artesanato) expõe-se a severas críticas dos seus pares. Daremos alguns
da arte, dos seus membros e das suas concepções. Na sua definição mais corrente, exemplos mais à frente.
o artesanato abrange um conjunto de conhecimentos e de técnicas que podem ser Complementar à função, os artesãos seguem um segundo critério estético: o vir-
utilizados para a produção de objectos de carácter utilitário: pratos para servir refei- tuosismo. Para a maioria dos artesãos, a mestria manual e a disciplina mental de um
ções, cadeiras para nos sentarmos, tecidos para fazer roupa, torneiras que cumprem excelente praticante não se adquirem senão ao fim de vários anos. Um especialista
a sua finalidade e instalações eléctricas que distribuem a corrente. Considerado sob com um bom domínio técnico consegue trabalhar os materiais relativos ao seu oficio
uma perspectiva um pouco diferente, o termo designa um «oficio», enfatizando-se o como deseja. Faz deles o que quer, trabalha com segurança e rapidez e cumpre sem
significado associado à habilidade, à capacidade de se executar utilmente uma tarefa: qualquer dificuldade as tarefas mais dificeis, ou impossíveis, aos olhos dos artesãos
tocar música que possa ser dançada com facilidade, confeccionar uma refeição que menos experientes. Assim, um oleiro pode ser capaz de moldar peças de uma espessura
satisfaça os convivas, prender um criminoso com a necessária discrição e eficácia ou tão fina, de tal modo que os outros oleiros seriam mesmo incapazes de lhes dar uma
limpar um apartamento tal como o pretendem os seus locatários. forma regular. Ou ao contrário, pode trabalhar na roda quantidades tais de argila que os
A noção de utilidade pressupõe a existência de alguém cujos objectivos determi- outros seriam incapazes de a manipular correctamente. O virtuosismo tem diferentes
nam os fins para os quais os objectos ou as actividades serão úteis. Esses objectivos aplicações, conforme as áreas em questão, mas corresponde sempre a uma capacidade
emergem em qualquer mundo de acção colectiva e contribuem para o caracterizar. excepcional de domínio das técnicas e dos materiais. Muitas vezes, o virtuosismo im-
A preparação de uma refeição que satisfaça os comensais pode fazer parte do mundo plica o domínio de uma série de técnicas diferentes. Não se trata já da capacidade de
da restauração profissional, onde o objectivo consiste em fidelizar uma clientela e obter fazer melhor as coisas, mas também da capacidade de fazer mais coisas. Os artesãos
lucros. Também pode fazer parte de um mundo doméstico, onde o objectivo consiste virtuosos orgulham-se da sua mestria e esta garante-lhes um grande reconhecimento
em responder às necessidades nutritivas e ao desejo de convívio dos familiares ou por parte dos pares da sua profissão e às vezes também por parte daqueles que lhe
dos amigos. Em ambos os casos, a utilidade mede-se segundo um critério exterior ao são alheios.
mundo que se pode constituir em tomo da actividade considerada. É por isso que existe Nada nos impede de considerar como belo um objecto útil cuja realização exigiu
um mundo da gastronomia onde apreciar a boa comida num determinado ambiente um enorme virtuosismo técnico. Certas tradições artesanais geram um sentimento
constitui um fim em si mesmo. Aqui, a utilidade mede-se segundo critérios elaborados do belo instaurador de princípios estéticos e normas do gosto. Tanto os fabricantes
e adaptados pelos participantes desse mundo. (Iremos encontrar constantemente essa como os utilizadores sabem estabelecer uma clara diferença entre os móveis que, além
distinção entre as utilidades procedentes do mundo constituído em tomo da actividade de úteis, também são belos. Poucas pessoas se entregam a fazer esse tipo de subtis
considerada e aquelas que se medem segundo critérios provenientes de outros mundos. distinções relativamente aos objectos domésticos. Aqueles que lhes dão importância
Falaremos de utilidades intrínsecas e de utilidades extrínsecas ou práticas.) (os Japoneses, por exemplo) fazem da beleza um terceiro critério de juízo, a par da
Se se designar por artesanato o conjunto dos conhecimentos e das competências que utilidade e do virtuosismo, que está sempre presente nas suas actividades quotidianas.
dão origem a.actividades produtivas e a objectos úteis, isso pressupõe uma estética, Para os verdadeiros conhecedores, a beleza toma-se uma exigência suplementar que
critérios de avaliação dessa produção e uma forma de organização onde os critérios certos artesãos se esforçam por satisfazer.
encontram a sua origem e justificação lógicas. Sob um tal esquema de organização, o Ao admitirem a beleza como um dos critérios da actividade artesanal, os par-
agente produtor trabalha para outro indivíduo qualquer (cliente ou empregador), que ticipantes têm em consideração uma característica da definição popular da arte.
estabelece a natureza do trabalho e as exigências quanto ao resultado. Os empregadores Esta concepção pressupõe simultaneamente que a beleza se encontra encarnada
admitem que é o artesão quem possui especiais competências, mas consideram que só na tradição de uma dada arte, que as tradições e as prioridades do próprio mundo

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Mundos da Arte Arte e Artesanato

da arte constituem um fundamento do valor artístico, que a obra é a expressão de belos objectos de artesanato, como se atribuem gratificações substanciais àqueles que
ideias e de sentimentos pessoais e que o trabalho do artista é relativamente alheio fabricam objectos mais belos segundo as nonnas do trabalho artesanal.
às influências exteriores. (No que respeita a este último ponto, a concepção cor- Os artesãos de arte têm ambições maiores do que os artesãos vulgares. Embora
rente da arte admite, implicitamente, que outros participantes do mundo da arte se possam dirigir ao mesmo público, depender das mesmas instituições e receber as
- mecenas, marchands, conservadores e críticos, por exemplo - restringem conside- mesmas recompensas que os artesãos vulgares, sentem-se porém mais próximos dos
ravelmente a liberdade de expressão do artista.) representantes das belas-artes. Conhecem bem a fronteira que separa aquilo que eles e os
A partir do momento em que detenninados artesãos aceitam o critério da beleza, artistas fazem, e partilham o ideal de beleza destes últimos, ainda que estejam conscientes
a organização dos mundos do arte~anato toma-se muito mais complexa e especiali- dos limites que o seu campo de actividade cria à sua busca do belo. As controvérsias
zada. Nonnalmente, a cisão faz-se entre os artesãos que procuram apenas cumprir costumam exacerbar-se quando se trata de definir a beleza, mas é certamente um dos
correctamente o seu trabalho e ganhar a vida, e os artesãos de arte que perseguem três principais critérios que entram em linha de conta na avaliação das suas obras e na
objectivos e ideais mais ambiciosos. Geralmente, os primeiros respeitam os segundos, orientação das suas actividades.
encarando-os como promotores de inovações e de soluções originais. Os artesãos e Poderíamos propor um cenário-tipo para a diferenciação entre artesãos e artesãos
os artesãos de arte não se diferenciam apenas pela maneira de exercerem o seu oficio; de arte. No seio de um mundo do artesanato onde a estética enfatiza a utilidade e a
eles constituem dois grupos distintos: qualquer praticante tende a identificar-se com habilidade manual, e onde a produção se confonna com as exigências dos clientes ou
um ou com outro destes grupos e a adoptar as respectivas fonnas de actividade de dos empregados que operam em mundos diferentes, constitui-se lentamente um novo
modo quase exclusivo. segmento (Bucher, 1962; Bucher e Strauss, 1961 ). Os membros desse novo segmento
O artesão vulgar não dá senão uma importância muito relativa ao critério da beleza. inflectem a antiga estética no sentido do belo e põem de pé as estruturas suplementa-
Muito preocupado em satisfazer as exigências dos vários clientes e em cumprir os pro- res que lhes proporcionam uma maior liberdade face aos empregadores. Organiza-se
cedimentos do oficio, contenta-se em garantir que a água circule bem na canalização uma espécie de mundo da arte em tomo das suas actividades, um mundo das artes
que montou, que as prateleiras que construiu sejam sólidas e estejam bem integradas «menores». Esse mundo possui quase todos os atributos das artes «maiores». Tem as
no espaço que vieram ocupar ou que as refeições sejam bem servidas. É evidente que suas exposições, prémios, mercado de coleccionadores, funções de ensino, etc. Nem
foi ao acaso que se escolheram exemplos relativos a ofícios onde a ideia de beleza todos os mundos do artesanato dão origem a este tipo de segmentos artísticos (por
raramente é tida em consideração, pelo menos no seu sentido mais habitual, quando exemplo, o mundo dos canalizadores). Mas quando um segmento artístico emerge,
em comparação com as artes nobres como a pintura e a escultura. coexiste amigavelmente com os segmentos mais estritamente utilitários.
Alguns artesãos (oleiros, tecelões, vidreiros ou marceneiros, para citar apenas O processo é diferente quando alguns membros de um mundo já reconhecido como
alguns dos exemplos mais evidentes) consideram-se a si próprios como artesãos de artístico, pessoas que adoptaram as actividades e uma ideologia característica dos
arte (Sinha, 1979). Esta distinção tem a sua importância nos mundos do artesanato. mundos da arte contemporânea, invadem (e a metáfora militar é correcta) um mundo
O American Crafts Council assume-se como o legítimo porta-voz dos artesãos de arte do artesanato, e mais particulannente o seu segmento artístico. Tudo começa quando
americanos. Outrora publicava uma revista muito prestigiada, Craft Horizons, onde se os praticantes das belas-artes procuram novos meios que pennitam alargar o campo da
concedia um grande destaque às questões estéticas e de valor artístico, contrariamente sua liberdade expressiva. Descobrem então um artesanato cujos materiais e técnicas
às revistas mais técnicas e profissionais (como, por exemplo, a Ceramics Monthly) que lhes parece proporcionar novas possibilidades artísticas. Descobrem ali um meio de
existem para quase todos os tipos de práticas artesanais. fazer algo que interessará ao mundo da arte a que estão ligados. São indiferentes aos
Ao ser reconhecida como artística pelos guardiões da arte convencional (colec- critérios de utilidade efectiva; de um modo geral, a sua noção de beleza é muito dife-
cionadores, conservadores, directores de galerias), a produção artesanal estabelece rente da do artesanato que invadiram, concretamente muito mais avançada, e também
novos sistemas de organização que libertam parcialmente o artesão de arte dos cons- não se interessam pelas mesmas técnicas e competências.
trangimentos característicos da relação com o empregador no artesanato tradicional. Esta nova estirpe de artistas do artesanato elabora critérios absolutamente novos e
Algumas produções notáveis de artesanato de arte são expostas em museus e galerias intransigentemente antiutilitaristas. As únicas fonnas de utilidade que lhes interessam
a título de «artes decorativas» ou de «artes aplicadas». São distinguidas com prémios são as que o seu mundo da arte define como tais. É, por exemplo, a utilidade de uma
pela sua beleza, contribuem para a reputação dos seus criadores, são reproduzidas e obra enquanto objecto de contemplação estética, de colecção e de exposição ou ainda
comentadas nas publicações especializadas, servem como exemplos em cursos de como investimento financeiro, e nunca a utilidade prática correspondente às finalidades
iniciação às técnicas do artesanato e chegam mesmo a justificar a elaboração de pro- ou aos princípios de organização de outros mundos. Os artistas que invadem um arte-
gramas curriculares e a atribuição de empregos na área do ensino. Dito de outro modo, sanato querem ter a garantia de que os objectos que criam não terão o destino habitual.
não só algumas pessoas se preocupam em fazer a distinção entre objectos vulgares e Robert Ameson, um dos chefes de fila do movimento que lutou para elevar a olaria

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Mundos da Arte

ao patamar das belas-artes (Zack, 1970), fabricou uma série de pratos tecnicamente
irrepreensíveis, mas perfeitamente inutilizáveis porque continham tijolos que neles se
iam afundando progressivamente (ver figura 28). Na mesma ordem de ideias, existe o
caso daquele grupo de artistas que tomou o controlo do departamento de cerâmica de
uma escola de arte. O novo director decretou que, dali em diante, aquele departamento
deixaria de fazer cerâmica a altas temperaturas. Isto significava que nunca mais se
iriam fabricar peças de cerâmica com fins utilitários, pois só a cerâmica feita a altas
temperaturas é estanque e se presta, portanto, para usos domésticos (objectos como as
taças, os jarros, os pratos, etc.). A partir de então, o departamento de cerâmica passou
a dedicar-se a uma variante da escultura contemporânea. No caso de os interessados
terem compreendido mal, o director precisava: «Não vamos fabricar louça».
A partir do momento em que o critério da utilidade é desvalorizado, o mesmo se
passa com a habilidade técnica. Aquilo em que um artesão de uma geração anterior
investiu durante toda a sua vida toma-se de repente irrisório. Outros passaram a rea-
lizar aquele trabalho com a maior das displicências e são tidos como superiores por
esse motivo.
Em vez de adaptarem os critérios do artesanato convencional, que assume eviden-
temente uma forma bastante diferente, os artistas que invadem a área do artesanato
propõem e accionam critérios característicos dos mundos da arte erudita. Na perspectiva
artística de qualquer uma destas disciplinas, aquilo que estabelece o valor da obra é o
seu carácter único. Os artistas e o seu público pensam que um artista não deve produzir
duas obras idênticas. Mas uma ideia dessas nem sequer aflora aos bons artesãos. Pelo
contrário, um artesão demonstra a sua mestria quando consegue reproduzir com a mais
absoluta fidelidade um dado modelo. Quem quer que tenha pago 200 euros por um vaso
magnificamente executado não fica com a sensação de ter sido enganado mesmo que
descubra a existência de outro vaso mais ou menos idêntico. O objecto comprado denota
um virtuosismo técnico que justifica o seu preço. Por outro lado, ficaria completamente
desiludido quem tivesse comprado esse mesmo vaso, tendo porém acreditado adquirir
uma obra de arte única. Os artistas que trabalham nesses diferentes sectores vendem a
concepção e a execução de uma obra, tendo todo o cuidado em evidenciar aquilo que
a diferencia de todas as outras. As pessoas gostam de comprar cópias realizadas por
artesãos, mas esperam outra coisa de um artista.
Os novos critérios elaborados pelos artistas garantem que a obra não terá outro
destino senão o ,estritamente artístico: ser admirada, apreciada e vivida. Os artistas
revoltam-se contra o virtuosismo técnico dos artesãos da velha escola. Descobrem
e estabelecem um laço directo com as obras produzidas noutros domínios da arte,
nomeadamente nos domínios tradicionais da pintura e da escultura. Afirmam a sua
FIGURA 28. Robert Ameson, Sinking Brick Plates. Quando os artistas invadem os domínios de um
autonomia relativamente às expectativas dos outros e recusam categoricamente todo meio artesanal, realizam deliberadamente obras não funcionais com o intuito de demonstrar que aqueles
o tipo de submissão aos imperativos utilitários. Regra geral, os seus trabalhos exigem trabalhos são arte. Cerâmica, 1969. (Fotografia cedida pela Hansen Fuller Goldeen Gallery.)
uma grande habilidade, mas esta não é da mesma ordem que aquela adaptada por um
artesão vulgar ou um artesão de arte. E muitas vezes, isso não é imediatamente visível.
Marilyn Levine é muito conhecida pelas suas esculturas em cerâmica. Elas imitam de
modo tão fiel sapatos, botas e outros objectos em couro que é preciso tocar-lhes para

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nos convencermos de que são realmente feitas com argila (ver figura 29). Essas obras exercendo o comprador o seu poder no fim da cadeia. Qualquer que seja a forma de
demonstram perfeitamente a sua enorme habilidade, mas não aquela que a maioria dos organização das actividades, os compradores e os intermediários são (sempre segundo a
ceramistas aprecia. A recusa do virtuosismo artesanal convencional é assumida como concepção corrente de arte) levados a dar tanta importância quanto o artista às utilidades
uma qualidade que confere a alguns artistas a liberdade de criar objectos informes definidas pelo mundo da arte, e, portanto, a problemas e temas determinados no seu
(o que por vezes exige um grande virtuosismo, embora este seja absolutamente diferente seio mais do que vindos do exterior. Esses postulados são muitas vezes contraditos,
do virtuosismo do artesão), seja pela provocação, seja para manifestar a sua liberdade mas é o modelo que serve de guia aos artistas.
face aos tradicionais constrangimentos do artesanato em questão. Contrariamente aos fotógrafos de moda, de publicidade ou de imprensa, onde a prá-
Ao definirem o seu trabalho como arte, os artistas que se servem dos materiais e tica assume uma vertente essencialmente artesanal, os fotógrafos de arte alcançam uma
das técnicas de um artesanato põem em jogo uma organização social completamente produção mais diversificada e menos submissa aos imperativos das organizações onde
diferente. O artesão depende de um cliente ou de um empregador que reclama o trabalho trabalham (Rosenblum, 1978). Tal como no seio de um mesmo sector do artesanato,
e o faz executar segundo os seus próprios objectivos. Ora, o artista, tal como é hoje os artistas têm, relativamente aos artesãos de arte, uma maior liberdade de diversificar
em dia considerado, deixou de ser alguém que trabalha para outra pessoa. Ele procura a sua produção e de justificarem com extravagância os seus trabalhos sem se exporem a
resolver através das suas obras problemas inerentes à evolução da sua disciplina e que ofensas. Ao falarem dos seus objectos, sublinham todas as semelhanças com aquilo que
ele escolheu livremente. Do ponto de vista da organização das suas actividades, o artista de mais actual se faz na pintura e na escultura, mas sem se preocuparem (pelo menos
não tem evidentemente nada do herói individualista: está submetido a um conjunto de aparentemente) com explicações claras ou lógicas. Isto revela a indiferença que muitos
constrangimentos institucionais que variam segundo a época e o lugar. Como vimos no artistas contemporâneos manifestam face ao acolhimento do público.
capítulo 4, os artistas que recorriam ao mecenato religioso ou real julgavam oportuno Eis alguns exemplos. RobertArneson realizou várias obras em cerâmica que são de
ter em consideração os gostos e os desejos dos seus mecenas a ponto de, por vezes, facto esculturas: uma máquina de escrever com os contornos um pouco deformados,
podermos falar de uma verdadeira colaboração por parte daquele que encomendava onde as teclas são dedos com as unhas pintadas de vermelho (ver Zack, 1970, para
a obra. Os artistas contemporâneos, enredados num mundo de coleccionadores, de outros exemplos, e ver figura 30); uma série de auto-retratos onde fuma um cigarro
galerias e de museus, trabalham sem pensarem num comprador preciso. Contam com ou com o crânio aberto mostrando conteúdos diversos; uma enorme mesa repleta de
a rede tradicional de marchands e dos museus para comercializarem as suas obras,

FIGURA 30. Robert Ameson, Typewrite,: Os artistas que adaptam um meio artesanal enfatizam a
FIGURA 29. Marilyn Levine, Brown Satchel. Os artistas que adaptam um meio artesanal cultivam continuidade do seu trabalho recorrendo aos meios convencionais. Esta obra reflecte as abordagens
competências diferentes das dos artesãos, por exemplo, a capacidade de imitar o aspecto do couro. da escultura da Arte Pop. Cerâmica, 15 x 29 x 32 cm, 1965; colecção do University Art Museum,
Cerâmica, 15 x 23 x 34 cm, 1976. (Fotografia cedida pela Hansen Fuller Goldeen Gallery.) University of California, Berkeley; oferta do artista.

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pratos com alimentos colocada à frente de um retrato em tamanho real do artista com Arneson ridiculariza a noção de arte e o tipo de discurso a que certos artistas «con-
um chapéu de cozinheiro, tudo coberto com um verniz branco. Para quem conhece temporâneos» habitualmente recorrem para falarem das suas obras. Não é o único.
as convenções das duas disciplinas, estas obras parecem mais próximas da cerâmica Roger Lang explicava do seguinte modo uma escultura que representava um prato
que da escultura. São objectos acentuadamente não-utilitários, mas que no entanto com uma fatia de tarte:
são apresentados como olaria, com a modelagem grosseira da sua matéria e um ver-
niz pouco discreto. O artista joga completamente com estas ambiguidades. Outras Aquilo que inicialmente me interessou na tarte foi o seu lado nutritivo. Depois descobri as co-
obras são objectos utilitários, mas na realidade nem sempre utilizáveis, por exemplo, notações geodésicas, matemáticas e sexuais da forma triangular quando utilizei a fatia de tarte
um bule com o bico em forma de pénis: podemos utilizá-lo, mas não para servir chá como tema decorativo nos pratos. Mais tarde, pensamentos etéreos sobre tartes de frango, tartes
numa ocasião qualquer (ver figura 31 ). Quanto às explicações, Arneson formulou-as de maçã, de cereja entre outras, levaram-me para uma abordagem a três dimensões. Afinal, a
tarte de frutas é um doce tipicamente americano. As coisas foram-se acumulando lentamente e a
do seguinte modo:
tarte surgiu como um suporte de associação de ideias, de coisas que se apresentam simplesmente
assim, livremente. Há que contar ainda com as modificações plásticas que imponho, e ainda
As minhas recentes OBRAS DE ARTE EM PORCELANA, VIDRADAS NA ABSOLUTA FRIE- nem sequer comecei as minhas explorações em tomo da tarte sem cobertura. Resumindo, é um
ZA DO ESVERDEADO, são tal como um oleiro chinês da dinastia Sung, do século IX, que tema com inúmeras possibilidades. (Citado por Rose Slivka, 1971, p. 43)
explicava a VERDADE da arte, da não-arte e da antiarte, num estilo precioso e distan-
ciado, com as notas e comentários provenientes de pessoas como Steve Kaltenfront, da
Duncan Mold Company e do meu signo astrológico de artista nascido sob o signo de Poderíamos encontrar exemplos semelhantes, escritos ou orais, na área da tecelagem,
Virgem que pensava que o seu ascendente era Escorpião até ao dia em que, surgindo das pro- da vidraria, da marcenaria ou da moda.
fundezas, a luz do seu astro lhe revelou a verdade. Como o fogo já há muito se extinguira e o
Falei de artistas que invadem um mundo do artesanato e que introduzem no-
forno arrefecera, entrevi à luz da evidência apresentada, e dependendo do lugar onde estivesse,
que já não fazia grande diferença - apenas uma série de obras em Iama branca que se fazem vos critérios, normas e estilos numa actividade até então dominada por artesãos
passar por arte. (Citado por Rose Slivka, 1971, p. 42) e artesãos de arte. Ora, todos os artesanatos têm as suas exposições, organizadas
normalmente em galerias especializadas, centros culturais, pequenos museus
(a maior exposição de cerâmica nos Estados Unidos decorre todos os anos no Everson
Museum de Syracuse, no estado de Nova Iorque), ou numa qualquer sala secundária
de um museu importante. Os artesãos de arte esforçam-se por aceder a espaços de
exposição mais reputados e congratulam-se quando «um dos nossos» é acolhido por
um museu mais prestigiado (ver Christopherson, 1974a). Os museus parecem parti-
cularmente sensíveis aos aspectos ideológicos e estéticos, o que os leva, por vezes, a
convidarem esses invasores a integrarem as comissões de selecção e os júris das expo-
sições de artesanato. Esses convidados escolhem as obras em função dos seus próprios
critérios. Os trabalhos mais recentes e com uma orientação explicitamente artística são
expostos com maior rapidez, contemplados com prémios, comentados pela imprensa
especializada e, por vezes, chegam mesmo a ser vendidos. (Vendem-se quando o seu
novo estilo se consegue impor no mercado do artesanato já existente e não graças à
criação de um novo mercado ou a um investimento de capital que, normalmente, seria
canalizado para outras formas de. arte contemporânea.) Os artesãos da velha escola
ficam indignados com esta situação e muitas vezes acabam por ser financeiramente
lesados. Os novos artesãos suplantam-nos no ensino da disciplina, de tal modo que
uma geração inteira de estudantes e de potenciais consumidores de artesanato adopta
os novos critérios, tanto de produção como de aquisição de obras.
Assistimos portanto a um grupo de jovens artistas que afasta pura e simplesmente
FIGURA 31. Robert Arneson, A Tremendous Teapot. Os artistas podem realizar obras social e tecni- o grupo de artesãos de arte mais idosos, originando conflitos. Os artesãos sentem que
camente não-funcionais. Este bule pode ser usado para servir chá, mas não a qualquer pessoa. Faiança uma horda de bárbaros açambarca aquilo que não lhes pertence; os artistas sentem
castanho-avermelhada, altura de 20 cm, incluindo a base, 1969. (Fotografia cedida pela Hansen Fuller que têm de se desembaraçar de uma série de velhos jarretas que entravam a evolu-
Goldeen Gallery.) ção do progresso artístico. Dois excertos da revista Craft Horizons clarificam o tom

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emocional e a carga ideológica desse conflito. Em 1960, Mary Buskirk, uma famosa segmentos ou procurar estar simultaneamente no centro de vários deles. A maioria
tecelã tradicional, disse: das vertentes de orientação, de modos de acção e de carreiras que eram oferecidas no
mundo do artesanato continuam a existir, mas a escolha ampliou-se com uma série de
Muitas vezes um objecto dissimula o uso a que se destina. Por exemplo, as tapeçarias destina- novas alternativas.
das a servir de fundo deviam limitar-se a essa função - estabelecer um segundo plano que cria
uma unidade entre todos os objectos presentes numa sala. Quanto aos tapetes, deviam suscitar
o desejo de andarmos sobre eles. É frequente vermos pessoas que os contornam, e nesse caso
podemos afirmar com segurança que se perdeu de vista a sua função. Isto não significa que se QUANDO AARTE SE TORNA ARTESANATO
deva evitar a utilização abusiva de determinadas cores ou padrões. Significa que é preciso usar
esses elementos para criar algo que suscite o desejo de andarmos por cima desses motivos. Com o passar do tempo e uma vez consolidados, estes mundos tomam-se estáveis
(Citado por Halverstadt, 1960, p. 10) e começam a segmentar-se, a diferenciar-se e finalmente a cindir-se. Um mundo
já desenvolvido, unanimemente definido como um mundo da arte tanto pelos seus
Passados dez anos, a mesma revista colocava a seguinte questão: «Quando é que membros como por aqueles que lhe são externos, com as suas próprias ideologias,
a tecelagem se irá tornar uma forma de arte?». Virginia Hoffman respondeu em nome estética e formas de organização social, acaba frequentemente (numa sequência que
dos artistas. A sua declaração reflecte a transformação de ideias que se operou a partir poderíamos considerar como clássica) por tomar a direcção oposta. As obras de arte e
do momento em que um novo grupo invadiu a cena e o modo como esse movimento os estilos que eram na sua génese essencialmente expressivos tornam-se cada vez mais
se tornou uma referência: organizados, convencionais e formalizados; as formas de organização colocam cada vez
mais os artistas sob o controlo de influências externas; e as suas actividades começam
A controvérsia em torno do reconhecimento da tecelagem como forma de arte, as tentativas para a ficar muito semelhantes às do artesanato convencional. É nessa perspectiva que se
justificar a sua introdução no seio das disciplinas consagradas, as classificações como o bordado, pode afirmar que uma arte se torna artesanato. Há dois tipos de evolução possíveis.
o ornato, o macramé, o entrelaçado, o não-entrançado, o desentrançado, os trabalhos executados
sem tear, com remetedeira, etc., etc., podem indiciar que ainda não se verificou uma verdadeira
O primeiro leva àquilo a que normalmente chamamos uma arte «académica», o segundo
evolução das mentalidades. (... ) parecia que tínhamos regressado à época em que os ceramistas a uma arte a que chamamos «comercial».
procuravam justificar a criação de peças isentas de qualquer funcionalidade( ... ).
Se se admitir como indispensável a existência de uma detalhada classificação das técnicas e
dos procedimentos, como é que se pode falar das diferentes maneiras de concretizar uma ideia? A ARTE ACADÉMICA
A Génese de Ron Goodman, apresentada na exposição «Jovens Americanos 1969» indicava uma
categoria evidente: a escultura suave. Logicamente, poderíamos incluir numa categoria tão vasta
como esta qualquer forma a três dimensões realizada com junções flexíveis, materiais têxteis, O academismo caracteriza-se por uma crescente preocupação com o modo de fazer
séries de módulos sem princípio nem fim determinados, materiais suaves tornados rígidos e as coisas, com a habilidade demonstrada pelo artista ou o executante em detrimento
vice-versa. Uma solidez criada através de tensões fruto de um jogo de contrapesos, de espaça- das obras propriamente ditas, das ideias que possam veicular e dos sentimentos que
mento ou de formas produzidas por forças invisíveis como o suplantar da gravidade. Pensamos possam exprimir. Como todas as artes exigem uma certa habilidade, o academismo
nas esculturas feitas com tubos e fios metálicos de Kenneth Snelson, em certas obras de Naum representa evidentemente uma fase intermédia e ambígua de uma tendência que encontra
Gabo, em projectos arquitectónicos como o Palácio dos Desportos na Cidade do México ou nas
cúpulas geodésicas de Fuller, nas obras de Eva Hesse, Alan Saret, Robert Morris, Alice Adams
a sua plena expressão na arte comercial. Em qualquer mundo da arte, a maioria dos
e de um número cada vez maior de artistas. (Hoffinan, 1970, p. 19) participantes não procuram verdadeiramente ser expressivos ou criativos. Contentam-se
em trabalhar segundo os esquemas que se tornaram convencionais. Mas, tal como os
mecenas ou os clientes que os sustentam, continuam a considerar a expressividade e
Estas declarações são também o testemunho de uma vontade de renovar as normas a criatividade como duas qualidades primordiais das obras de arte.
do artesanato, ou seja, de mudar o seu nome e de estabelecer uma ligação com obras A arte académica é a arte que se produz num mundo onde os artistas e os outros se
de artistas significativos de outras áreas artísticas. desviam dos aspectos relativos à expressividade ou à criatividade e se preocupam mais
Mas esta mudança não significa necessariamente a substituição de um grupo por com o virtuosismo. Esta preocupação é idêntica à importância que é dada à competência
outro. Os artistas não substituem completamente os artesãos, que continuam a existir, no artesanato. Ela indica um distanciamento relativamente às normas provenientes da
a produzir, a vender, a adquirir uma reputação, a fazer uma carreira e, assim, a garantir história da disciplina e simultaneamente uma evolução no sentido das normas caracte-
a sobrevivência de um mundo na área do artesanato. De facto, assiste-se à constitui- rísticas do artesanato. Mas essa evolução fica incompleta, porque os fins que a obra visa
ção de um outro mundo mais complexo, onde coexistem segmentos do artesanato, são sempre os do mundo da arte: a fruição, a exposição e a colecção. A gravura do século
do artesanato de arte e da arte. É possível trabalhar dentro dos limites de um desses XVI dá-nos um bom exemplo da arte académica:

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Mundos da Arte Arte e Artesanato

Existiam no mundo da gravura executantes que se especializavam na representação de superficies evidente~ente_ frustrado e con~iderou que ~travinsky não tinha cumprido a sua obrigação.
vidradas, dos brilhos dos metais, das sedas e das jóias, das folhagens ou dos bigodes dos gatos. A decepçao foi enorme, e o mais vexante foi o facto de não existir algo que pudesse justificar
Temos de admitir que mesmo um artista tão importante como Dürer não terá sido insensível a um tal tumulto. (Citado por White, 1966, pp. 59-60)
esse género de virtuosismo. Os gravadores virtuosos não escolhiam a imagem que .iam representar
pelas suas qualidades, mas pelas suas capacidades de execução e de especial talento. Os traçados O fotógrafo americano Edward Weston também foi alvo de uma enorme reprovação
em crescendo ou muito finos, os jogos de cruzamento de linhas, os losangos mosqueados, a por se ter furtado aos princípios estéticos e técnicos que faziam parte integrante do seu
representação de linhas paralelas ou em cornucópia e outras tantas habilidades (um gravador
tomou-se muito reputado pela sua maneira de imitar o pêlo dos gatos, outro desenhou uma cabeça
trabalho precedente. Aqueles que admiravam as naturezas-mortas e as paisagens de
de Cristo que ficou célebre, totalmente composta com uma única linha que partia do nariz e Weston ficaram atónitos quando ele apresentou uma série de imagens de uma crueza
evoluía em múltiplas circunvoluções até desaparecer numa das margens) tomaram-se para estes pouco habitual sobre a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente Civilian Defense, que
acrobatas não tanto um meio de exprimir algo interessante ou importante, mas uma maneira mostrava uma mulher nua estendida num sofá envergando uma máscara de gás. Face
de se exibirem em público. Naturalmente, os grandes especialistas deste espectáculo serviram de aos comentários de um amigo que desaprovava aquelas fotografias, Weston respondeu:
modelo a executantes menos dotados, mas também eles levados por esta absurda engrenagem,
pois todas estas demonstrações de virtuosismo eram mais fruto de um procedimento laborioso A tua reacção obedece a um esquema ao qual eu já devia estar habituado. Sempre que ~ario
do que de uma rigorosa observação ou da arte do desenho. (Ivins, 1953, pp. 69-70) de tema ou de ponto de vista, arrelio alguns dos admiradores de Weston. Por exemplo, no livro de
E. W: [Weyhe] existe uma reprodução de Shell and Rock-A,rangement. O meu melhor amigo,
O ballet clássico e o virtuosismo dos instrumentistas fornecem-nos outros bons Ram1el, nunca me perdoou a publicação dessa fotografia porque «aquilo não era um Weston».
exemplos. Durante muito tempo, os críticos de dança e de música empenharam-se Outr? :xemp~o: qua?~º enviei algumas das minhas últimas fotografias de conchas e legumes para
sobretudo em apontar os erros técnicos, em determinar se tal ou tal intérprete era mais o Mex1co, Diego R1v1era perguntou se o «Edward não estaria doente». Para finalizar (poderia
encher várias páginas), quando deixei de fotografar conchas, pimentões, rochas e outras formas
rápido ou seguro que os outros, entre outras questões do oficio. abstractas, Merle Armitage baptizou o meu novo trabalho como a série «corações e flores».
O estilo convencional que marca a passagem da arte ao artesanato corresponde Portanto, não fico muito surpreendido com a tua desaprovação (... ) de um trabalho que irá entrar
precisamente àquilo que se designa por «arte académica» (Pevsner, 1940). O facto para a História. (Citado por Maddow, 1973, p. 269)
de ser académica, não implica necessariamente que não possa ser bela ou expressiva,
mas essas qualidades são mais difíceis de alcançar, porque a conformidade a toda uma
série de regras, tanto no que diz respeito à forma como ao método, é muito rigorosa. A ARTE COMERCIAL
Todas as grandes artes manifestam essa tendência num momento ou noutro. Assim, em
certas épocas os poetas tinham de conhecer um repertório de formas poéticas, muitas A submissão dos artistas às exigências do público e dos empregadores assume
delas bastante rigorosas e convencionais como, por exemplo, o soneto, tal como os um carácter mais constrangedor e total nas artes que se tornam «comerciais» (ver
compositores de certos períodos tinham de dominar formas musicais tão constrange- Becker, 1963, pp. 79-119; Griff, 1960; Sanders, 1974; Lyon, 1975). O empregador
doras como a fuga ou o cânone. No limite, existe uma maneira correcta de fazer seja o estabelece os objectivos, tal como acontece nos mundos do artesanato, e o artista usa
que for: desenhar uma árvore, harmonizar uma peça musical ou interpretar o papel da as suas competências para satisfazer o cliente. Um artista que se interesse mais pela
personagem do Rei Lear, por exemplo. O tema da obra passa a ter uma função de menor demonstração do seu virtuosismo do que pela expressão de ideias ou de sentimentos
importância face à mestria do artista e a obra passa a dirigir-se exclusivamente a um pessoais é mais vulnerável à sugestão, à influência ou à coerção e está mais preparado
público que conhece tão bem as convenções, as regras e as técnicas como o artista. para aceitar voluntariamente os mais diversos trabalhos de encomenda. A preocupação
As inovações são rapidamente assimiladas pelo vocabulário convencional da utilitária que caracteriza a atitude dos artesãos também se torna patente, mas sob uma
arte e, por vezes, motivam os críticos leigos a insurgirem-se contra os promotores forma diferente: o artista orgulha-se de conseguir efectuar todos os tipos de trabalhos
dessas inovações. Foi o que aconteceu com Stravinsky quando realizou a primei- ~ncomendados. Assim, um actor «comercial» pode orgulhar-se da sua capacidade para
ra apresentação da sua ópera bufa Mavra. Neste caso ele utilizou uma lingua- mterpretar uma grande variedade de papéis-personagens de diferentes idades, classes
gem musical muito mais simples do que para Petruchka ou para a Sagração da sociais, nacionalidades e papéis-tipo. Um músico «comercial» atinge o cume da glória
Primavera, duas importantes obras que o tinham celebrizado. O seu filho, que assistia ao demonstrar a sua capacidade para interpretar igualmente bem canções folclóricas
à estreia de Mavra, analisou deste modo a reacção do público: ou peças de jazz, sinfonias clássicas ou composições de vanguarda, ou ainda, músicas
que exijam a utilização de instrumentos exóticos. Essa capacidade de adaptação dos
O carácter modesto e intimista de Mavra, o elemento melódico também, integrando simulta- artistas é procurada por muitos empregadores.
neamente algo do romance cigano e do bel canto italiano, não podiam senão desconcertar um Os artistas que possuem essas competências técnicas adoptam na maioria dos
público há muito habituado a considerar Stravinsky um revolucionário e de quem não se podia casos uma linguagem e um comportamento semelhantes aos dos artesãos: tomam-se
(nem se queria) esperar, com cada nova obra, senão uma nova «sensação». Esse público sentiu-se sobretudo mais orgulhosos da sua mestria e das suas competências polivalentes do

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Mundos da Arte Arte e Artesanato

que do conteúdo artístico das obras que acontece produzirem. O comportamento dos Tocamos intensamente durante duas horas, tal como aconteceu a semana passada, até ficarmos
instrumentistas que gravam músicas para cinema ou televisão resume bem esse tipo com os lábios roxos, e depois disso mudamos completamente e temos de tocar uma música
suave num estilo grandioso, ou um pouco de jazz, ou então exigem-nos uma passagem de grande
de atitude (Faulkner, 1971). O trabalho é bem pago e exige aptidões bastante consi- rigor técnico. São poucos aqueles que conseguem fazer tudo isto bem feito (... ). (Faulkner,
deráveis. De um modo geral, eles tocam sobretudo músicas fáceis de executar, mas 1971, p. 140)
devem também estar preparados para interpretar prontamente trechos particularmente
difíceis. Faulkner relata o testemunho de um violoncelista: A este tipo de trabalho que se verifica tanto nas artes plásticas, como na música ou no
teatro costuma chamar-se «comercial». As artes comerciais mobilizam mais ou menos as
A terça parte do tempo é meramente preenchida com um trabalho de rotina. Mas às vezes somos mesmas técnicas e os mesmos materiais normalmente usados nas artes nobres, mas utilizam-
obrigados a fazer coisas muito dificeis (... ). Imagine, amanhã de manhã, tenho um encontro às
nove horas. Não sei para quem é que vou trabalhar, nem do que se trata, nem se haverá uma
-nos para fins que as pessoas não consideram como artísticos, fins que adquirem sentido e
grande orquestra com outros instrumentos de cordas. Poderá ser no estúdio A, B ou C (... ) às nove justificação num mundo organizado em torno de actividades que são alheias à arte. Quan-
da manhã em ponto. De repente, podemos muito bem ser confrontados com uma adaptação de um do certos artistas plásticos executam desenhos para um anúncio publicitário ou para um
concerto para violoncelo que Leonard Rose ou Pablo Casais nunca ensaiariam durante menos de guia prático, os objectivos a alcançar são ditados pelo comércio ou pela indústria, tal como
dois meses antes de darem um concerto. Mas para nós, o trabalho tem de ser feito imediatamente acontece com os músicos quando gravam anúncios ou jingles para a televisão. Os músicos
(... ) duas passagens e estamos a gravar ( ... ). É por isso que me pagam mais e que sou conhecido submetem-se às tradições culturais e satisfazem a ambição social de urna família quando
como solista. É também por isso que sou constantemente solicitado. É melhor não recusar. Por- tocam num casamento. Tanto os produtores como os consumidores avaliam o produto
tanto, esse tipo de prestações representam, digamos, dois por cento do total da minha actividade
(... ). São situações raras, só acontecem de vez em quando (... ) meia dúzia de semanas onde somos
segundo critérios de utilidade determinados por um mundo diverso do da arte e relaciona-
obrigados a dar o máximo de nós próprios, a usar todo o nosso talento, os truques e tudo aquilo do com outras formas de acção colectiva. Certas escolas de arte (Pevsner, 1940) fornecem
que fomos aprendendo com a experiência e o passardos anos. (Faulkner, 1971, p. 120) a bagagem técnica necessária para dar resposta a essas solicitações.
É evidente que nem todos os mundos da arte adaptam essas orientações. Em geral,
Não só a música que estes homens têm de tocar é difícil, como têm de tocá-la sob um determinado segmento começa a comprometer-se cada vez mais, os seus membros
condições extremamente adversas, sem qualquer preparação prévia e adaptando-se ao começam a consagrar-se essencialmente a trabalhos de artesanato comercial sem, no
que já existe gravado, sem ensaiar mais do que duas vezes antes do registo definitivo entanto, renunciarem completamente à criação puramente artística. Os músicos que
e tudo isto devido a constrangimentos de ordem financeira. Estes músicos possuem responderam às perguntas de Faulkner forneciam simultaneamente os seus serviços
grandes competências técnicas. Eles sabem-no e orgulham-se disso. Faulkner cita um para concertos de vanguarda e grupos de jazz quando não estavam a trabalhar para o
profissional muito experiente: cinema ou para a televisão.

Penso que é necessário tocar música comercial, mesmo que seja má, mal escrita, mesmo que
a banda sonora do filme seja completamente indigente. Acho que para acalentar algum amor A REVOLTA
próprio, ela merece que eu dê o melhor de mim mesmo. Não faço qualquer tipo de concessões
a esse respeito. (Faulkner, 1971, p. 129) Quanto mais convencional se torna uma arte, mais rígidas se tomam as suas nor-
mas. A maioria dos artistas aceita submeter-se e contenta-se com as possibilidades
Alguns músicos fazem alarde da sua versatilidade: de expressão das formas em vigor. São os profissionais integrados, comparáveis aos
investigadores que trabalham para uma «ciência normal» nos períodos não revolu-
Muitas vezes, os músicos que tocam instrumentos de sopro não conseguem adaptar-se, são
pouco flexíveis. Muitos não conseguem atingir uma boa sonoridade em estúdio ou recusam-
cionários (Kuhn, 1962). Mas outros acham esse quadro normativo constrangedor e
-se a tocar de forma diferente. Um determinado compositor pretende um som leve do oboé, à sufocante. Consideram que passam demasiado tempo a aprender técnicas convencionais
francesa, enquanto outro exige um som vigoroso, à alemã. O músico precisa de ter uma grande com a finalidade de demonstrarem as suas competências e que deixam de ter tempo
capacidade de adaptação para cumprir todas estas exigências. para produzir a arte que lhes interessa. Por vezes, ficam com a sensação de que nunca
conseguirão afastar-se das tradicionais técnicas e procedimentos utilizados por aqueles
Não sei se os músicos das orquestras estão tão bem preparados como nós, se têm a experiência que são mais aclamados.
que adquirimos à força de aprendermos todos os estilos e de desempenharmos tantas tarefas
diferentes (... ). Temos de ter humor, de ser cómicos, de ser sérios, de tocar jazz, de tocar todos
Ainda por cima, acham que as inovações que fazem são constantemente criticadas
os tipos de música e de ultrapassar todas as dificuldades. Temos de improvisar e, às vezes, o por estarem aquém dos padrões de competência em vigor. Quando um artista não de-
compositor chega a pedir-nos para fazermos aquilo que quisermos( ... ). monstra que sabe fazer correctamente as coisas, é tido, aos olhos da crítica, do público
e dos outros artistas, por um indivíduo incapaz ou um diletante, ainda que invoque a

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Mundos da Arte

sua deliberada recusa das normas vigentes. Encontramos esta ditadura dos modelos
de trabalho em todos os domínios artísticos. Os fotógrafos que utilizam processos
antiquados para criar efeitos suaves são criticados pela sua incapacidade de obten-
ção de uma imagem focada. Muitos músicos de jazz e de música de dança pensaram
que os Beatles não eram capazes de compor e de interpretar canções conformes aos
esquemas habituais da música popular com as suas frases de oito compassos. Nunca
imaginaram que era de forma absolutamente consciente que compositores como John
Lenon e Paul McCartney utilizavam frases com nove compassos (e cito um exemplo
bastante doloroso, porque eu fazia parte desses reaccionários que acusavam os Beatles
de só saberem contar até oito).
Os críticos, os mecenas e os artistas que consideram insuportáveis os constrangi-
mentos impostos pelas convenções reagem com uma atitude de desprezo pelos outros.
Qualificam como académicas as obras que se vergam a esses constrangimentos, falam
da «banalidade» do virtuosismo técnico, de «mero» ofício.
Assim, o culminar da transformação de uma arte num ofício artesanal traduz-
-se no aparecimento de jovens artistas rebeldes que recusam as regras do jogo, trans-
gridem as convenções vigentes e propõem novas soluções para as situações onde o
saber e a técnica em vigor já não têm cabimento. Apresentam ou descobrem novos
modelos, novas grandes obras que estabelecem novos critérios de beleza e de exce-
lência, obras que exigem outras competências e uma nova sensibilidade. Resumindo,
operam uma revolução.
A fotografia conheceu várias revoluções deste tipo no decurso da sua breve
história (ver Com, 1972; Newhall, 1964; Taft, 1938). Num determinado momento,
era preciso obter imagens claras e precisas de qualquer assunto que fosse foto-
grafado. Provavelmente, naquele tempo a fotografia era exclusivamente encarada
como uma actividade artesanal ao serviço daqueles que necessitavam de docu-
mentos visuais. Mais tarde, os fotógrafos com tendências mais artísticas come-
çaram a praticar uma fotografia romântica, próxima da pintura, como é o caso
de Edward Steichen, Alvin Coburn ou Clarence White. Depois foram substituídos
por um movimento mais centrado sobre a precisão das imagens e a limpidez da luz
que veio, por sua vez, a ser suplantado por uma nova escola do olhar, representada
por Cartier-Bresson e Robert Frank, mais empenhados em captar imagens com
pendor realista. Entretanto, Robert Frank começou a explorar a dimensão simbólica
dos factos da vida real, ainda que a sua obra fizesse eco das tendências pictóricas
dos primeiros «tonalistas» (ver figura 32). O movimento de avanços e de recuos
entre a consolidação das normas técnicas e a revolta contra essas mesmas normas (a)
ainda não terminou.
FIGURA 32. Dois momentos da história da fotografia americana. (a) Gertrude Kasebier, fotografia .
Ao evocar essa luta entre a normalização e a afirmação de novas propostas, não sem título nem data, goma bicromática. Fotografia do início do século XX, de teor romântico e com
queria deixar transparecer a ideia de isolamento de alguns génios inventivos em aceso evidentes influências pictóricas, representativa da Photo-Secession. (Cedida pelo Art Institute ofChi-
combate contra o status artístico (embora isso também aconteça). Esse movimento cago.) (b) Robert Frank, Covered Ca,; Long Beach, Califórnia. Fotografia a preto e branco, sem data.
de vaivém entre arte e artesanato não é fruto de acções isoladas. Essas mutações só A obra de Robert Frank regressou, em certa medida, às tendências pictóricas simbolistas, mas adop-
tando uma temática e uma linguagem mais modernas. Estas fotografias ilustram o contínuo processo
acontecem efectivamente na medida em que aqueles que nelas participam são em
de solidificação dos padrões técnicos e de rebelião contra eles. (The Americans, 1959; reproduzido
número suficiente para haver um controlo do mundo da arte estabelecido, ou para que com a autorização do Art Institute of Chicago.)

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Mundos da Arte

10
AMUDANÇANOSMUNDOSDAARTE

Nos primeiros capítulos, procurámos sobretudo pôr em evidência a articulação


existente entre as diversas actividades no seio de um mundo da arte e o modo como
as pessoas cooperam, tendo em vista as produções características desse mundo.
se crie um novo. A maioria das pessoas que participam nessas mudanças vivem-nas A discussão em tomo dos mavericks trouxe à luz a capacidade de resistência que um
como uma escolha de uma outra estrutura institucional e de outros companheiros de mundo da arte possui face à mudança, a sua faculdade de manter à parte, onde não
trabalho e não tanto como uma aventura criadora e inventiva. incomodem, os inovadores cujas ideias obrigariam os outros participantes a renovar as
práticas mais convencionais. Do que foi dito, talvez se tenha deduzido que queríamos
dar uma imagem de um sistema em equilíbrio, absolutamente insensível à mudança
ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS ou que reage automaticamente a todas as alterações vindas do exterior de modo a
limitar os seus efeitos.
A maior parte das actuais manifestações artísticas provêm na sua génese, prova- Longe de nós tal ideia. Os mundos da arte vivem transformações incessantes, por
velmente, de alguma forma de oficio artesanal (ver Baxandall, 1972; Harris, 1966; vezes graduais, e outras decididamente brutais. À medida que novos mundos vão
Martindale, 1972). A composição e a execução da música erudita na Europa obede- surgindo, outros envelhecem e desaparecem. Nenhum mundo é capaz de se proteger
ciam originalmente às necessidades da Igreja (por exemplo, para as missas e para o durante muito tempo ou completamente contra as forças de mudança, quer exteriores
cantochão), às solicitações dos mecenas reais e das suas cortes (para as músicas de quer provenientes de tensões internas.
diversão e de dança) ou às necessidades de um grupo social como forma de lazer. Mas gostaríamos de sublinhar o papel determinante das organizações na mudança
As belas-artes, tal como as conhecemos actualmente, têm talvez uma origem análoga artística. O exemplo dos mavericks mostra-nos o que acontece aos inovadores quando
e uma história feita de mudanças comparáveis às que analisámos para os domínios da não desenvolvem as bases de um sistema organizacional apropriado. Podem certamente
tecelagem e da cerâmica. realizar obras de arte, mas não atraem um público nem discípulos. Não criam movi-
Neste tipo de evolução, como naquela que iremos examinar no próximo capítulo, as mentos artísticos nem tradições. Se, por algum motivo extraordinário, entram para a
mudanças têm pouca importância em si mesmas. Para os artistas, o público, o pessoal História da sua disciplina, nunca terão grande destaque. No essencial, a História relata os
de apoio e para os exegetas da arte, o importante é a maneira como provocam mudanças feitos dos vencedores. E a História da arte relata as inovações que suscitaram vitórias
de organização que acabam, por seu turno, por desencadear novos factores de evolução. institucionais, as que conseguiram criar em seu tomo todo o aparato de um mundo da
A partir do momento em que estes agentes modificam as bases convencionais das arte, que mobilizaram pessoas em número suficiente para cooperar regularmente e que
suas interacções, produz-se uma mudança real e duradoura na área e no mundo em lograram promover novas ideias. As mudanças que não conseguem conquistar uma
questão. rede de cooperação existente ou criar uma outra não têm futuro.

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

É nessa perspectiva que iremos aqui abordar a mudança artística, tentando analisar sucessivas. No início, aborreceu-se muito, como teria acontecido a qualquer espectador.
como é que os mundos da arte se transformam, nascem e morrem. Iremos interessar- Mas, com o passar do tempo, foi-se apercebendo de que cada nova representação era
-nos, em particular, pelo modo como as mudanças perduram ao encontrarem uma base diferente da anterior. Quando os actores estavam no auge da sua forma, o espectáculo
organizacional. A duração, sublinhemos, é precisamente aquilo que leva as pessoas a tornava-se apaixonante. Às vezes, cometiam erros que modificavam a atmosfera e o
reconhecer a grande arte enquanto tal. No último capítulo, iremos ver em que medida próprio sentido da peça. Noutras ocasiões, seguiam o impulso do momento e intro-
é que a reputação (neste caso a «grandiosidade» da obra e do artista) está ligada à duziam variantes mais ou menos felizes. Quando a peça saiu de cartaz, Newman teve
organização. pena do fim daquela aventura que, todas as noites, lhe possibilitava a redescoberta
daquele espectáculo.
Tal como aconteceu com Newman, a maioria das pessoas não nota imediatamente
MUDANÇAS CONTÍNUAS E REVOLUÇÕES as modificações, voluntárias ou não, que se produzem à medida que se fazem e re-
fazem as obras. Se um bailarino executa um passo incorrecto ao aprender uma nova
As obras que os mundos da arte produzem, as actividades cooperativas que desen- dança, o coreógrafo vai com certeza pedir-lhe para recomeçar até aquele movimento
cadeiam e as convenções que permitem coordenar essas actividades são todas alvo ficar correcto. O facto de se ignorarem as mudanças não significa que elas não per-
de modificações mais ou menos contínuas. As práticas e as produções modificam-se sistam. A linguagem evolui desse modo, à força de pequenas mudanças que se vão
permanentemente, porque ninguém consegue fazer exactamente a mesma coisa duas insinuando na pronúncia e no uso. Ninguém decide conscientemente que a partir de
vezes, porque os materiais e o ambiente nunca são exactamente iguais e porque as determinado momento vai passar a dizer «cinema» em vez de «cinematógrafo», por
pessoas com as quais se coopera executam as coisas de modo sempre diferente. exemplo. Algumas pessoas experimentam-no, outras imitam-nas e essas alterações
Os artistas e os exegetas da arte insistem frequentemente nesse carácter único das passam a ser correntemente usadas. Deste modo, uma língua transforma-se por
obras de arte: sendo o reflexo do estado de espírito do artista num dado momento, ele uma acumulação de desvios imperceptíveis, para os quais a ideia de «tendência» é
varia, forçosamente, de obra para obra. Segundo eles, é isso que distingue as obras de bastante apropriada.
arte das produções não artísticas, da indústria, do artesanato e das artes populares, em Algumas dessas tendências são mais intencionais do que parecem. Se considerarmos
que (sempre segundo esta perspectiva) uma manifestação ou um objecto pode ser uma tradição artística como uma cadeia de soluções para um determinado problema
reproduzido indefinidamente sem grandes alterações. Mas as obras produzidas nesses comum (Kubler, 1962), apercebemo-nos de que tanto as soluções como o problema se
mundos também apresentam variações, só que ninguém lhes presta atenção, porque vão também transformando progressivamente. Cada solução conscientemente adaptada
apenas se interessam pelas semelhanças. As diferenças e as alterações não são notadas. altera de algum modo o problema em questão, nem que seja por modificar o leque de
Se os objectos da indústria fossem realmente idênticos, as fábricas não precisavam possibilidades da sua resolução. Ao fim de algum tempo, tanto as soluções como os
controlo de qualidade e os condutores não teriam más surpresas ao comprar um auto- problemas mudaram substancialmente, ainda que as pessoas envolvidas no processo
móvel novo. Por outro lado, os indivíduos conhecedores do artesanato e das artes as tomem como desenvolvimentos lógicos operados no seio dessa tradição. As práticas
populares não têm dificuldade em distinguir as diferentes versões de um mesmo ob- e as produções artísticas transformam-se sem que ninguém se aperceba especialmente
jecto, sejam elas devidas a uma única pessoa, ou a mais pessoas pertencentes à mesma disso. Um coreógrafo que depara com um bailarino que parece hesitar pode decidir
tradição. (Henry Glassie, 1972, fornece vários exemplos). As colchas de tipo «Log ampliar a linguagem expressiva da dança, introduzindo-lhe passos em falso (como
Cabin» parecem todas idênticas, mas só se não as analisarmos com mais atenção. fez Paul Taylor, e outros no seu seguimento). Mudanças desta natureza, que podem
Do mesmo modo, podemos notar ou ignorar as diferenças entre obras de arte seme- surpreender tanto os executantes como os espectadores, integram-se muito rapidamente
lhantes, e este «nós» designa simultaneamente o público e os críticos, os historiadores nas práticas convencionais. Rosenblum e Karen (1980) descrevem algumas séries de
de arte e os autores das obras em questão. Algumas diferenças, que até podem antecipar mudanças análogas nas técnicas da montagem cinematográfica.
futuras inovações importantes, podem passar despercebidas, podem ser interpretadas Leonard Meyer (1956, p. 66) dá-nos um excelente exemplo de uma tendência quando
como erros ou inabilidades que terão de ser rectificadas na versão definitiva, ou podem descreve a utilização do vibrato nos instrumentos de cordas. Em tempos, os músicos
ser, ainda, atribuídas à intervenção do acaso. K. O. Newman (1943r faz um relato da não utilizavam esse procedimento e só raramente o introduziam como forma de se
sua experiência como espectador de todas as representações de uma peça de teatro, libertarem um pouco das convenções. Essa raridade provocava um aumento da tensão
desempenhadas por um amigo, e das suas reacções a essas cerca de oitenta sessões cujas implicações são evidentes na reacção emocional dos ouvintes. Para obterem esse
efeito, os músicos foram levados a utilizar cada vez mais o vibrato. Esse procedimento
tornou-se tão dominante que, entretanto, era a sua ausência que acabava por criar o
* Foi Philip Ennis quem me chamou a atenção para este livro. efeito de outrora, como muito bem o compreenderam Bartok e outros músicos. Este

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

exemplo de Meyer é elucidativo do modo como os efeitos de determinados desvios às e a música serial provocaram mudanças fundamentais porque, para poderem desempe-
normas acabam por se tomar convenções comummente aceites. nhar os seus papéis na acção colectiva, os artistas tiveram de aprender a dominar téc-
Os mundos da arte não consideram essas tendências como verdadeiras mudanças, nicas e materiais de que ignoravam tudo. O público tinha de aprender a ser sensível
porque não exigem qualquer reorganização profunda das actividades cooperativas. a linguagens que lhe eram completamente desconhecidas e tinha de compreendê-Ias
As pessoas que insistem em funcionar de modo diferente não incomodam os outros. esteticamente.
O pessoal de apoio não é obrigado a fabricar um novo material, nem a renovar comple- Qualquer convenção pressupõe uma estética que transforma cânones convencio-
tamente nenhum tipo de procedimentos. O público não passa a pagar mais, não tem de nais em critérios de beleza e de eficácia artísticas. Uma peça de teatro que viole a
assistir a espectáculos mais longos ou a ter de fazer grandes esforços para apreciar uma regra clássica das três unidades não é apenas diferente. Aqueles para quem essa regra
obra. Ninguém perde qualquer parcela da sua notoriedade ou poder. Nenhum emprego representa um critério imutável do valor da qualidade dramática considerarão a peça
é ameaçado. As pessoas que cooperam na produção de obras mantêm a prática dos seus indigna e execrável. Um ataque às convenções implica um ataque à estética que lhe
procedimentos habituais, ainda que as obras produzidas já não sejam as mesmas. está subjacente. Como as convenções estéticas parecem sempre naturais, justas e mo-
Outras inovações obrigam alguns participantes a aprender e a fazer coisas dife- rais, um ataque a uma convenção ou à sua estética implica um ataque à moralidade.
rentes, situação que os perturba e que pode constituir uma ameaça aos seus interesses. A regularidade com que o público acolhe negativamente as grandes mudanças nas
Os membros de um segmento do mundo da arte que não se tenham adaptado a es- convenções (dramáticas, musicais ou plásticas) é um índice da estreita relação existente
tas tendências e mudanças imperceptíveis podem acabar por ficar desactualizados entre a estética e as convicções morais (Kubler, 1962).
e descobrir que já não estão aptos para cumprirem os seus papéis. Certos músicos Qualquer ataque às convenções e à estética nelas implícita representa, finalmente,
apercebem-se disso quando descobrem que não conseguem interpretar partituras que um ataque ao sistema de estratificação vigente. Hughes (s. d.) argumenta, no seguimento
os seus pares mais jovens tocam sem o menor esforço. Quando os segmentos de um de William G. Sumner (1906), que os usos e costumes contribuem para instaurar os
mundo da arte que se deixam distanciar desse modo atingem uma grande dimensão, estratos sociais. Os grupos religiosos, políticos ou artísticos entram em conflito aberto
produz-se um reajustamento dos esquemas da actividade cooperativa. Geralmente, este com os costumes. Ora, uma contestação dos costumes (as convenções, para o caso que
tipo de mudança é encarado como normal e previsível por todas as pessoas envolvidas nos ocupa) representa de facto uma contestação à estruturfi social vigente (entenda-se:
(excepto por aquelas que não acompanharam o movimento). a organização de um mundo da arte). Nos mundos da arte, estes grupos e os inovadores
Certas inovações subvertem os modos de cooperação habituais e dão azo àquilo entram, portanto, em conflito aberto com o sistema hierárquico que os rege e lutam
a que, alargando um pouco a acepção empregue por Thomas Kuhn (1962), se pode pela sua substituição.
chamar uma «revolução». As pessoas já não podem cooperar como anteriormente, já Não esqueçamos que, em qualquer arte, os modos de trabalho convencional
não podem produzir as obras como o faziam habitualmente. Quando essas inovações fundam-se numa rede de cooperação existente que beneficia todos os que utili-
revolucionárias acontecem, envolvendo transformações na linguagem convencional da zam as convenções em conformidade com a estética vigente. Tomemos como
arte, as pessoas que agem em conjunto já não são as mesmas e já não fazem as mesmas exemplo um mundo da dança organizado em tomo das convenções e das técni-
coisas. Os membros do mundo da arte compreendem que essas mudanças modificam cas do bailado clássico. Ao aprender essas convenções e técnicas, um bailarino
as redes de cooperação e que o futuro as irá consolidar. Sob este aspecto, as revoluções pode alimentar a expectativa de vir a ser recrutado pelas melhores companhias de
diferem absolutamente dos graduais desvios de interesse, atenção e convenções. Assiste- dança. Os coreógrafos mais reputados vão criar bailados perfeitamente adaptados às
-se então a uma dupla ofensiva contra o normal funcionamento do respectivo mundo da suas competências pessoais e que lhe darão a oportunidade de brilhar. Os maiores
arte. Na sua vertente ideológica, ela toma a forma de manifestos, de textos críticos, do compositores do momento irão escrever músicas em sua atenção. Os directores das
questionamento das estéticas e das filosofias e de uma reescrita da história da disciplina salas de espectáculos abrir-lhe-ão as portas. Ele ganhará tanto dinheiro quanto é possí-
que derruba os antigos modelos e ídolos, para saudar a obra nova como a expressão dos vel a um bailarino de alto gabarito. O público venerá-lo-á. E finalmente, será célebre.
valores estéticos universais. Na sua vertente organizacional, a ofensiva visa a conquista Qualquer pessoa que consiga promover uma nova convenção que exija competências
das fontes de financiamento, dos públicos e dos sistemas de distribuição. que ele não possua (a arte de tropeçar com sabedoria, por exemplo) não vem apenas
As revoluções artísticas modificam profundamente o carácter das obras e as con- contrariar as suas convenções estéticas, mas comprometerá igualmente a sua situação
venções empregues. O impressionismo e o cubismo transformaram a linguagem visual no mundo da dança. Ele irá opor-se à novidade porque ela contraria as suas opiniões
vigente, a maneira de trabalhar a cor sobre a tela de modo a ser interpretada como a estéticas, ofendendo desse modo a sua moral, mas também porque terá a perder se essa
representação de algo. Ao instaurarem o dodecafonismo, Schõnberg, Berg e Webem novidade suplantar as práticas mais antigas.
alteraram de modo radical a lógica das relações entre os sons musicais. A intensidade Além do artista, existem outras pessoas que podem ver o seu statu quo ameaça-
dessas mudanças depende das capacidades de assimilação do mundo da arte. O cubismo do no caso de se verificarem alterações na aceitação das convenções. Tomemos o

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A Mudança nos Mundos da Arte
Mundos da Arte

A natureza da mudança não permite, por si só, estabelecer uma distinção entre
exemplo da land art, e de um artista que realize uma obra que consista na movimen-
evoluções progressivas e revoluções. As mudanças nos materiais sonoros utilizados
tação de um hectare de terra por um bulldozer. Este tipo de obra nunca entrará em
pelos compositores ou nas convenções da representação pictórica só são revolucioná-
nenhuma colecção particular (mesmo sendo financiada por um mecenas que receba
rias quando a sua assimilação pelos mundos da arte implica a perda de notoriedade de
em troca a exclusividade dos planos assinados pelo artista), nem num museu (mes-
alguns dos seus membros mais importantes. Por outro lado, uma mudança pode ser
mo que seja possível expor os documentos relativos ao projecto). Suponhamos que
revolucionária para certas pessoas ligadas ao sistema em vigor, mas não para outras.
a land art se torna uma forma de arte absolutamente importante e, portanto, incon-
Não é possível fixar um patamar a partir do qual a soma das mudanças implique uma
tornável. Os responsáveis pelos museus, cujas avaliações tiveram uma considerável
revolução. Aliás, isso não teria um grande interesse. O que importa compreender é o
influência sobre as carreiras e os movimentos artísticos, perderão o poder de desig-
modo corno os participantes ignoram, assimilam ou combatem a mudança, pois essas
nar as obras a apresentar ao público. Ninguém necessita desses museus para expor
reacções são elucidativas da medida exacta dessa mudança e permitem dizer se se trata
as suas obras. Todos os que se ocupam com uma arte de pendor essencialmente
de uma revolução ou de um fenómeno menos radical.
museológico (coleccionadores, conservadores, galerias, marchands e artistas) perdem
As mudanças revolucionárias conseguem impor-se quando os seus instigadores con-
algo com estas mudanças. Dado que cada mundo da arte estabelece o valor das obras
seguem convencer alguns membros, ou todos os membros, do mundo da arte em ques-
na base de um acordo tácito entre todos os seus membros (Moulin, 1967; Levine,
tão a cooperar nas actividades requeridas pela nova concepção da disciplina. Quando
1972; Christopherson, 1974a), quando alguém consegue instaurar um novo mundo
certos actores representam de modo inabitual (por exemplo, nus) para os encenadores,
da arte, no qual o valor das obras assenta sobre a observação de convenções dife-
quando os pianistas tocam directamente nas cordas do instrumento sob indicação de um
rentes, os participantes do mundo antigo que não conseguirem conquistar um lugar
compositor, quando os impressores e os editores fabricam livros num formato inusitado
no novo mundo sairão perdedores.
resumindo, quando os inovadores conseguem assegurar o concurso de um determina~
As revoluções não mudam todos os modos de actividade cooperativa mediados
do número de participantes, modificam as próprias condições da cooperação no seu
por convenções: se a mudança fosse total,já não se tratava de uma revolução, mas da
mundo da arte. Daí em diante, os participantes devem estender as suas competências
formação de um mundo completamente novo. Tal como acontece com as revoluções
às novas convenções instauradas pelos inovadores. Se esses participantes consegui-
políticas, as revoluções artísticas deixam muitas coisas intactas, qualquer que seja a
rem esquecer simultaneamente uma par.te dos seus antigos procedimentos, entretanto
importância da mudança alcançada (vimos isso ao examinar a situação dos mavericks).
tornados inúteis, poderemos dizer que a inovação suplantou as práticas anteriores.
Os compositores podem utilizar sistemas de sons e de notação absolutamente novos,
Mas na maioria dos casos, ela adapta-se ao conjunto dos conhecimentos exigidos aos
os músicos podem tocar os seus instrumentos de forma inusitada ou utilizar novos
participantes. Um violonista que aprenda uma nova técnica, porque a sua orquestra
equipamentos. Contudo, os compositores continuam a produzir partituras que, por
está a preparar a apresentação de uma obra de John Cage, não tem necessariamente de
mais que transgridam as convenções, funcionam como instruções que os executantes
esquecer as técnicas indispensáveis para tocar Bach, Mozart ou Copland.
lêem e usam como guia para as suas interpretações; estes instrumentistas executam
Embora a mudança apanhe de surpresa alguns participantes que se revelarão
em público concertos ou recitais que duram, em conformidade com as convenções,
incapazes de dominar as novas condições de actividade, também surgem muitos ino-
cerca de duas horas. Os espectadores chegam pontualmente ao local do espectáculo,
vadores que abandonam o essencial daquilo que o mundo da arte exigia e que se vão
sentam-se e escutam em silêncio. A maioria comprou bilhete após a leitura de um
consagrar exclusivamente às possibilidades abertas por uma inovação. Um marchand
anúncio ou de uma crítica ao evento em questão. Portanto, compositores, instrumen-
pode especializar-se em arte conceptual, um editor em poesia vanguardista, um pianista
tistas, público, organizadores de espectáculos, vendedores de bilhetes, publicitários
em música aleatória. Ainda assim, é necessário congregar um número suficiente de
e jornalistas continuam a cooperar na produção cjestas manifestações, ainda que a
participantes para sustentar urna nova actividade. Os bailarinos que se especializam
sua natureza tenha sido alvo de transformações. A mudança constitui uma revolução
em dança contemporânea não actuam senão durante quatro a seis semanas por ano, em
quando um grupo importante de participantes, ou mais, sofre as consequências dessa
vez dos habituais seis a oito meses. A procura de espectáculos de dança contemporâ-
alteração, sem que se verifiquem forçosamente outras modificações assinaláveis. Por
nea por parte do público não ultrapassa essa oferta e são raros os directores das salas
exemplo, a land art opera uma revolução quando ameaça a posição dos marchands
de espectáculos que podem assumir uma tal especialização. Um músico que trabalha
e dos conservadores de obras de arte, que até então detinham um grande poder de
em Nova Iorque ou em Paris pode especializar-se em música barroca, mas, se quiser
decisão sobre as exposições públicas das obras. A land art representa uma ameaça
ganhar a vida no Kansas, terá de aceitar interpretar qualquer tipo de música clássica,
para os críticos e membros do público que não revêem as suas concepções estéticas
e até de trabalhar à noite em orquestras de dança.
e permanecem insensíveis às novas obras. Mas para os participantes que se adaptam
Os inovadores que conseguem a cooperação de todos os participantes necessários
e, desse modo, preservam a sua situação na rede cooperativa, a mudança não atinge
ao seu empreendimento obtêm um mundo da arte à sua disposição, seja anexando as
a amplitude de urna revolução.

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

instituições existentes e assegurando o seu controlo (ou partilhando essa utilização com propor interessantes inovações que conduzem a impasses, não porque as suas ideias
outros), seja criando uma nova rede. Os músicos de rock and roll fornecem-nos em sejam estéreis e inexploráveis, mas porque não conseguiram congregar um número
bom exemplo. Eles suplantaram as tradicionais orquestras de dança para certos tipos suficiente de pessoas para o seu desenvolvimento. Aquilo que poderia vir a ser um
de utilização e detêm um quase completo monopólio das danças para adolescentes. mundo da arte acaba por se tomar uma via inexplorada. O mesmo acaba por suceder
Monopolizaram uma parte da indústria discográfica e erigiram um novo sistema de com a maioria das inovações importantes quando os seus promotores vêem goradas
concertos em salas ou ao ar livre ou em clubes de rock and roll. Apesar de utilizarem as expectativas de convencerem outras pessoas a participarem nelas. Para explicar o
alguns instrumentos clássicos, assistiu-se ao desenvolvimento de uma indústria comple- nascimento de um mundo da arte, temos de compreender não a génese das inovações,
tamente nova em tomo dos instrumentos e dos acessórios por eles utilizados. A maioria mas a forma como um inovador consegue recrutar participantes para uma actividade
das mudanças mais notórias operadas nos mundos da arte tem esse carácter ambivalente. cooperativa regular. ·
Resumindo, as mudanças na arte passam por mudanças no mundo da arte. Podem-se desenvolver novos mundos da arte em tomo de práticas até aí mais ou me-
As inovações impõem-se com maior durabilidade quando alguns participantes as nos alheias aos artistas. Como cada mundo da arte integra todo um conjunto de práticas
tomam a base sobre a qual se fundam novos modos de cooperação, ou quando intro- características, que vão desde os métodos convencionais de produção até às formas de
duzem modificações nas suas actividades de rotina. As mudanças podem acontecer exposição, passando pela escolha das técnicas e dos materiais, a transformação radical
aos poucos, quase imperceptivelmente, ou podem desencadear graves conflitos de qualquer uma dessas práticas pode desencadear a génese de um novo mundo.
entre aqueles que delas tiram proveito para a sua notoriedade e aqueles que serão Alguns mundos da arte emergem graças à invenção e à difusão de uma tecnologia
lesados. As inovações emergem e continuam a alimentar-se das mudanças operadas que permita novas formas de produção artística. Esses progressos técnicos provêm
numa dada concepção da arte, mas não se impõem senão na medida em que os seus frequentemente de áreas absolutamente exteriores à arte, pois os inventores raramente
proponentes conseguirem assegurar a mobilização de outros participantes. As ideias dão a devida importância à arte ou se debruçam sobre os seus problemas. Os aprendizes
são evidentemente importantes, mas o seu sucesso e a sua durabilidade dependem abundam, mas poucos dispõem do tempo e dos recursos necessários para pôr de pé
de factos de organização e não do seu valor intrínseco. uma nova técnica. As invenções e os progressos que deram origem à fotografia e ao
cinema não foram estimulados por objectivos artísticos, mas pelo interesse que as
suas aplicações científicas, comerciais e de lazer suscitaram. De modo semelhante,
O NASCIMENTO E A MORTE DOS MUNDOS DA ARTE há muito, muito tempo, inventaram-se novos modos de trabalhar o metal que, sem
terem essa intenção primordial, vieram a permitir o desenvolvimento da escultura e
De tempos a tempos, novos mundos da arte nascem, crescem e difundem-se até da ourivesaria de arte (ver Smith, 1970).
atingirem a estabilidade que lhes permite atravessarem as fases de mudança anterior- Esses progressos técnicos intervêm sobretudo na arte contemporânea, onde criam
mente evocadas. Um mundo da arte emerge quando reúne pessoas que nunca tinham uma situação tão confusa que já não sabemos se estamos a assistir ao nascimento de
cooperado anteriormente, e que vão produzir uma arte baseada em convenções até novos mundos da arte ou apenas à segmentação de mundos mais antigos. A invenção
então desconhecidas ou não utilizadas, tendo em vista novas finalidades. Um mundo da do gravador áudio e de outros aparelhos electrónicos (dos osciladores aos sintetiza-
arte entra em decadência e morre quando já ninguém coopera segundo as modalidades dores) proporcionou um meio de se produzir música sem a necessidade de recorrer
próprias para produzir uma arte baseada no seu sistema de convenções. É difícil esta- a instrumentistas. Apesar de tudo, o essencial da música electroacústica é produzido
belecer uma distinção entre os novos mundos da arte e aqueles que se transformaram por compositores de formação clássica que, em concerto, associam essa tecnologia e
radicalmente sob o efeito de uma revolução artística. Também não é fácil determinar a presença de músicos. De um modo geral, o seu público foi sensibilizado para este
se um mundo da arte está morto ou se passou simplesmente a ser dominado por tipo de música, assistindo a concertos clássicos, e os críticos que comentam esses
pessoas diferentes. Não precisamos, neste momento, de dar uma forma definitiva a trabalhos aplicam-lhe os mesmos critérios de avaliação usados para as outras compo-
estas diferenças; aquilo que aqui nos interessa é a expansão e o declínio das formas sições. O que parece indicar que nenhum mundo da arte se constituiu em torno dessas
de acção colectiva, e não a elaboração de uma tipologia. Nesse sentido, iremos tentar invenções técnicas.
identificar os mecanismos que facilitam o funcionamento dos mundos da arte e cujo Entretanto, outros criadores de música electroacústica provêm exclusivamente do
desaparecimento interfere na sua actividade. mundo da informática e das matemáticas. Como se interessaram pelos computadores
Será necessário, antes de mais, precavermo-nos de confundir inovação e constitui- antes de se dedicarem à música, começaram a fazer música com as suas máquinas, sem
ção de um mundo da arte. É verdade que surgem novos mundos devido às inovações recorrerem a instrumentistas. A sua música é diferente sob vários aspectos, utilizando,
(isto é, devido a mudanças nas técnicas, nas concepções e nas formas de organização), por exemplo, ruídos aleatórios ou sons puros produzidos pelas máquinas. Por outro
mas isto não acontece com a maioria das inovações. Vimos como os mavericks podem lado, esses compositores não se preocupam de modo algum em atingir um público e

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Mundos da Arte
A Mudança nos Mundos da Arte

contentam-se em trocar trabalhos entre si, ou em escutá-los entre amigos. Como não novo público, o que permitiu sustentar a produção deste género de romances realis-
adquiriram o hábito de considerar o concerto público como a única forma apropriada tas. Com o incremento da instrução na Inglaterra do século XVIII, verificou-se um
de escuta e as suas gravações como meros documentos, encaram-nas da mesma ma- aumento do número dos leitores, recrutados numa nova classe social que rejeitava a
neira que os escritores encaram os livros: para eles, esses objectos representam toda a antiga concepção aristocrática da «boa» literatura. Este novo público, alargado pelos
obra e todos os exemplares são equivalentes. Não vêem o que é que uma apresentação membros da burguesia comerciante e industrial (em muitos casos, também pelos seus
pública possa acrescentar à sua obra, tal como a qualidade de uma obra literária não aprendizes e empregados domésticos), não recebera a necessária instrução clássica
reside no efeito que produz quando o seu autor a narra em voz alta. Este tipo de música para apreciar o estilo mais apurado e alusivo que outrora caracteriz~va a literatura de
electrónica parece mais propícia ao aparecimento de um novo mundo da arte. ficção. Este público não procurava no romance uma mensagem edificante, mas uma
Alguns mundos da arte emergem graças a uma nova ideia, a uma nova maneira evasão fácil. As novas obras, destinadas a um novo público, eram distribuídas através
de apreender as coisas e cujas possibilidades se prestam a uma exploração de carácter de novos meios de difusão: as revistas e um sistema de edição em que os impressores
meramente técnico. Ian Watt explica que o desenvolvimento do romance procede em faziam as escolhas anteriormente realizadas pelos editores.
certa medida da nova ideia do «realismo formal» como modo narrativo apropriado De um modo geral, as inovações desta ordem, que podem servir como ponto de
à literatura de ficção. Os inventores do romance inglês, como Defoe, Richardson e partida para a construção de novos mundos da arte, emergem simultaneamente em lu-
Fielding, substituíram as intrigas e as personagens estilizadas da literatura de ficção gares diversos. Exceptuando os artistas mais isolados como os naifs, que agem s~~ndo
anterior por uma restituição fiel dos detalhes da vida comum. Daí a originalidade das métodos e ideias muito pessoais, os instauradores de novos mundos da arte part1c1pam
intrigas e do seu realismo tão rebuscado - que não foram totalmente determinados à nas grandes correntes intelectuais e culturais que se alimentam das tradições e das prá-
partida-, um maior cuidado em individualizar personagens e cenários e uma linguagem ticas existentes. Os músicos e as organizações que contribuíram para o aparecimento
simples, próxima da oralidade (Watt, 1957, pp. 13-30). Uma história contada desse do rock and rol/ nos Estados Unidos conhecem bem as músicas populares dos brancos
modo difere em inúmeros detalhes da narrativa heróica com as suas intrigas artificiais, e dos negros americanos, de cuja síntese resultou o rock. As pessoas interessadas pelas
as suas personagens imbuídas de valores de tipo universal (Gargântua é um bom possibilidades das invenções técnicas na fotografia também partilham certamente outros
exemplo dessa prática) e os seus diálogos sem relação com a língua usada no dia-a-dia. centros de interesse, como, por exemplo, a prática da documentação geográfica ou do
As diferenças prendem-se com uma nova concepção da literatura de ficção e com os retrato comercial. Quando as pessoas partilham tradições e têm interesses comuns, a
seus objectivos. É em torno desta nova concepção que, lentamente, se foi constituindo forma como exploram as inovações varia dentro de limites relativamente estreitos.
um novo mundo de escritores e de leitores. Uma nova técnica, uma nova ideia ou um novo público sugerem novas possibi-
Alguns mundos da arte desenvolvem-se em torno da emergência de um novo lidades, mas ainda não as delineiam com precisão. Os primeiros curiosos começam
público. As obras produzidas talvez não sejam muito diferentes das obras ante- por tactear; procuram saber como conseguir alcançar os melhores resultados e o que
riores da mesma disciplina, mas atingem um outro público ao utilizarem outros é possível fazer. Aquilo que as pessoas tiram efectivamente de uma inova~ã~ dep_ende
canais de distribuição. A «nova» música rock dos anos sessenta assemelhava-se das perspectivas que se poderão abrir, da sua interpretação pessoal das trad1çoes v1ge~-
à que a precedera. Era uma versão «branca» dos blues e do rock and rali dos ne- tes, dos seus centros de interesses, das pessoas e dos recursos que esperam consegmr
gros, cruzada com música counhy. Porém, recorria a novos modos de difusão com envolver. Dado o potencial de possibilidades que suscitam, é frequente as inovações
o objectivo de atingir as camadas mais jovens: o concerto em espaços exterio- difundirem-se com muita rapidez. Aqueles que inicialmente as experimentam demoram
res (Peterson, 1973) que podia estender-se por vários dias, como em Woodstock, onde mais tempo a estabelecer contacto entre si e a comunicar. Uma nova tecnologia, por
o convívio popular, abandonado pelos maiores de trinta anos, voltou a ser repescado. exemplo, pode surgir em muitos lugares simultaveamente. As pessoas podem comprar
Em vez de recrutar clientes entre os públicos já constituídos, o rock endereçava-se a material e equipamento através de catálogos e aprenderem sozinhas a utilizá-los sem
uma faixa etária que não tinha por hábito frequentar concertos nem consumia música saberem o que fazem os outros clientes do mesmo fornecedor. Cada um desenvolve
gravada. Vários sectores importantes da rádio e da indústria discográfica começaram os seus próprios procedimentos tendo em vista a obtenção de resultados considerados
também, e desde cedo, a difundir essa música (Denisoff, 1975), não se assistindo satisfatórios. Esses resultados tornam-se tão diversos quanto a inovação o permitir.
propriamente, portanto, à instauração de um novo conjunto de instituições. Contudo, Os experimentadores trabalham sozinhos ou no seio de pequenos grupo~ de amadores
os novos grupos e os tipos de indivíduos que cooperavam tanto na produção como no ou de profissionais. Em qualquer dos casos, criam aquilo a que se podena chamar um
consumo do rock eram em número tão elevado que é permitido afirmar que um novo mundo da arte local, cujo círculo de cooperação não vai para além do quadro das trocas
mundo acabara de emergir. feitas numa pequena comunidade.
Watt (1957) faz uma constatação análoga a respeito do romance inglês. À medida Detenhamo-nos ~m momento e tomemos o exemplo da estereoscopia e do jazz.
que essa nova concepção de ficção se ia afirmando, assistia-se à constituição de um A estereoscopia, ou fotografia em relevo, deu lugar a um mundo da arte fecundo mas

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

de curta duração. Quanto ao jazz americano, conheceu um sucesso tal que acabou por 3. O fotógrafo de estúdio que juntava às suas actividades normais a produção ocasional de
se implantar no mundo inteiro. retratos, de interiores de igrejas ou de edifícios públicos em estereoscopia, e ainda uma
Os princípios e a técnica da estereoscopia apareceram mais ou menos em simul- pequena série de vistas da sua localidade.
tâneo com a criação de uma grande expectativa relativamente ao futuro da fotografia 4. O oportunista, que realizava algumas fotografias sempre que um acontecimento extraor-
clássica. Podemos, portanto, considerá-las como dois meios concorrentes de produção dinário - inundações, incêndios, acidentes ferroviários, paradas - criava um mercado
de imagens, que poderiam cada qual criar um mundo da arte durável. Mas a fotografia passageiro de lembranças de ocasião. (Darrah, 1977, p. 44)
clássica sobrepôs-se à sua rival.
No início, o efeito estereoscópico era obtido com imagens desenhadas à mão. Depois Observou-se uma outra variante nas comunidades religiosas Shaker, que mantinham
começou-se a utilizar o daguerreótipo e outras variantes do procedimento negativo- uma actividade comercial muito intensa com o mundo exterior, vendendo não apenas
-positivo. O método era simples, e todos os que conseguiam dominar aquele material móveis e produtos agrícolas, mas também estereogramas cuja temática incidia sobre
incómodo e aquela complicada técnica fotográfica, ainda a ensaiar os seus primeiros a sua vida comunitária:
passos, conseguiam realizar estereogramas. Mas, inicialmente, essa técnica não permitia
a produção de grandes quantidades de imagens. Daí o motivo da sua limitada difusão, Uma das principais distracções dos turistas nos locais da moda, como o Lebanon Springs, perto
com um alcance essencialmente local e direccionada para um público interessado da comunidade Shaker de Mount Lebanon, e o Poland Springs, perto da vila de Sabbathday
Lake, consistia em dar uma volta pelas lojas Shaker para comprar lembranças de viagem.
pelos acontecimentos, lugares e habitantes da sua região de origem. Os estereogramas Os Shakers dessas regiões, tendo constatado que havia uma grande procura de artigos interessantes
eram feitos por pessoas da região e limitavam-se a retratos, paisagens e imagens de e instrutivos, vendiam várias séries de estereogramas sobre a sua comunidade. Também propu-
catástrofes locais, destinados sobretudo a uma difusão também local. seram essas imagens a outras comunidades Shaker a preço de retalho. (Rubin, 1978, pp. 56-57)
Pouco se sabe acerca do trabalho destes primeiros fabricantes de estereogramas.
Por exemplo, será que tinham uma produção reduzida, feita para ser difundida essen-
cialmente na comunidade local? É para isso que parecem apontar alguns documentos, Por seu lado, o público tinha de aprender a ver os estereogramas. As pessoas que
como esta carta enviada ao Photographic Times (1871) por um fotógrafo do Ilinóis nunca tinham tido a oportunidade de descobrir aquelas imagens apercebiam-se de
que tinha comprado um estereoscópio da marca «Philadelphia Wilsonian» equipado como era difícil (no início e às vezes durante muito tempo) fazer coincidir as duas
com duas objectivas «Ross»: fotografias de modo a obter o efeito de relevo. Aprende-se depressa, mas é necessário
adquirir esse reflexo. Vários artigos dessa época (Oliver Wendell Holmes foi um dos
Apercebi-me da grande procura de fotografias estereoscópicas. A perda de algumas encomendas primeiros) propunham exercícios para treinar a visão estereoscópica e salientavam
interessantes fez-me compreender que seria bom dar alguma atenção a este novo ramo da nossa o prazer desta nova prática. Seria interessante saber como é que as pessoas aprendiam a
arte( ... ). Não tenho a sorte de ser continuamente solicitado por clientes no meu estúdio, o que
me deixa algum tempo livre. Sempre que tinha algumas horas livres, ia fotografar algumas das
ver aquelas imagens, quais as dificuldades com que se deparavam e saber se algumas
mais belas casas dos arredores. Uma vez, ao regressar a casa, deparei com uma luz extraordinária delas desistiam. Um artigo particularmente severo publicado em 1892 deixa entrever
sobre o edifício do novo banco e fiz várias fotografias. Realizei algumas boas provas e mostrei-as essa eventualidade:
a potenciais interessados. Estes não sabiam da existência de um aparelho tão fabuloso na nossa
localidade, e essa informação rendeu0 me quarenta dólares em troca de uns negativos feitos em O sucesso limitado da estereoscopia parece dever-se a várias razões. A primeira é, sem dúvida,
apenas uma manhã. Essas fotografias proporcionaram-me mais encomendas que irei satisfazer a abundância de imagens e de estereogramas de péssima qualidade que é oferecida aos com-
durante as minhas próximas horas livres. Aqui, as pessoas dizem que sempre desejaram ter pradores. Elas não podem senão fazer-lhes mal aos olhos e desencorajar aqueles que procuram
imagens das suas casas parecidas com estas. Vocês não imaginam a emoção que a introdução utilizá-las. (Luders, 1892, p. 227)
do vosso aparelho 20xl2 suscitou entre os três mil habitantes da nossa pacata localidade. Espero
que isto não faça subir o preço dos estereoscópios. («Southem Illinois», 1871, p. 91)
Para além dessa iniciação técnica, era preciso aprender a desfrutar dos prazeres da
William Culp Darrah distinguiu quatro tipos diferentes de profissionais da este- estereoscopia. Os primeiros artigos favoráveis insistiam na ilusão do relevo, na sensação
reoscopia: de sermos transportados fisicamente para a cena representada. Algumas característi-
cas estilísticas dos estereogramas visavam acentuar a ilusão da tridimensionalidade.
1. O_ fotógrafo especializado n~ produção de estereogramas, mas que se limitava aos temas de À semelhança do que acontece nos filmes 3-D, onde surge um trapezista que se atira
interesse local. para cima dos espectadores ou um avião que lhes rasa as cabeças, os estereogram~s
2. O fotógrafo turístico (eram às centenas nas cataratas do Niagara, em Saratoga, nas White Moun- recorriam a determinados procedimentos para incrementarem a sensação de profundi-
tains, nos montes Catskill, etc.) que limitavam praticamente o seu trabalho à clientela turística. dade. (De resto, talvez esses procedimentos também caracterizassem a composição das

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

dupla origem euro-americana e afro-americana e uma acentuada orientação para a interpretação ao


fotografias clássicas daquela época. Descobrimos frequentemente nos estereogramas
vivo. O desenvolvimento desses estilos estava associado a situações concretas, e cada tendência
uma longa linha de fuga oblíqua que se dirige para o infinito ou um objecto em grande possuía a sua própria dose de elementos distintos. No Sudoeste dos Estados Unidos, eram os
plano que acentua o contraste com o segundo plano [ver figura 33].) Até as imagens blues e o ragtime que exerciam uma considerável influência. No Centro e no Sudeste, a tradição
cómicas ou as fotografias de funerais recorriam a esses artifícios para acentuar o efeito das fanfarras dos circos e dos espectáculos de tenda originou uma forma de ragtime instrumental.
de profundidade. (Por exemplo, a imagem do defunto era rodeada de coroas de flores que Em Chicago e Nova Iorque, as comunidades negras aí implantadas procuraram conquistar uma
saltavam em grande destaque). Os autores dessas imagens talvez se quisessem precaver certa legitimidade através de um estilo com uma forte componente euro-americana. No Noroeste
e na costa oeste, a ausência de uma tradição negra traduziu-se num estilo musical pouco defi-
das reclamações dos clientes decepcionados por terem comprado estereogramas que nido, muito semelhante ao da tradição das fanfarras e da música de dança. Em Nova Orleães,
não proporcionavam a sensação tridimensional. Por isso, o crítico citado referia-se à duas tradições muito fortes, a) a tradição crioula de influência clássica e b) a tradição da música
escolha das imagens como « (... ) temas pouco apropriados, ou nada apropriados (... ) religiosa e dos blues dos bairros chiques, reforçaram-se entre si e acabaram por se fundir.
qualquer tema composto essencialmente com linhas a direito não é muito diferente de Por outro lado, cada região tinha as suas próprias condicionantes para o exercício da mú-
uma fotografia normal.» (Luders, 1892, p. 227). sica ao vivo: os espectáculos itinerantes para as comunidades negras dispersas pelo Centro
e pelo Sudeste; os bailes rurais e os honl,,J,fonks no Sudoeste; as salas de espectáculos e os
Thomas Hennessey (1973) analisou em termos semelhantes o fenómeno da expansão
clubes noctumos em Chicago; os clubes e os cabarés em Nova Iorque; as paradas, as casas
do jazz nos Estados Unidos entre 1917 e 1935. Ele nota que, em todos os sítios onde o de prostituição, os concertos ao ar livre e os serões dançantes em Nova Orleães. Contudo,
jazz apareceu, associava elementos afro-americanos e euro-americanos numa música existia um tipo de situação que era recorrente em todo o país. Era a fanfarra local, muitas
que era feita para ser tocada ao vivo e não para ser cantada nos locais de trabalho ou vezes reforçada por uma orquestra de jovens músicos. Embora não tocassem jazz pro-
produzida num quadro comunitário. A sua análise revela, nos diversos berços do jazz, priamente dito, estes grupos contribuíram bastante para a evolução do estilo e foi neles
as relações entre as tradições musicais exploradas, as condições de interpretação, os que muitos dos futuros músicos de jazz começaram as suas carreiras. (Hennessey, 1973,
pp. 470-71).
locais de difusão pública e as categorias dos músicos recrutados. De facto, ela merece
ser extensamente citada: Antes de 1917, a maioria dos músicos eram amadores, mas essa situação não se
prolongou por muito tempo. Alguns músicos profissionais negros com uma formação
Originalmente, ojazz não era uma tradição musical singular, nascida em Nova Orleães ou nou- mais sólida (sobretudo em Chicago e em Nova Iorque) tocavam uma música onde as
tro sítio qualquer. A realidade dos seus primeiros tempos está associada a uma emergência, em influências europeias eram dominantes. Esta predominância justificava-se pela procura,
várias regiões do país, de estilos musicais populares independentes, mas que partilhavam uma por parte dos músicos negros, de maiores oportunidades junto das assistências de brancos
em festas de sociedade, cabarés, espectáculos de variedades ou de teatro. Assim, em 1917,
a música negra predominante em Nova Iorque era um «estilo orquestral a meio caminho
entre a música de baile tradicional e o ragtime instrumental. Estávamos muito longe do
estilo contrapontística introduzido em Nova Iorque pelos músicos brancos das Original
Dixieland Jazz Bands» (Hennessey, 1973, p. 473). Em Chicago ocorreu um confronto
semelhante entre, por um lado, «o jazz desenvolto e improvisado dos cabarés de negros
(... ),muito influenciado pelos pioneiros vindos de Nova Orleães como King Oliver,
Jerry Roll Morton, Kid Ory ou Johnny e Baby Dodds (... ), os pequenos quintetos que
improvisavam em conjunto sobre esquemas fixos estreitamente ligados à tradição negra»
e, por outro, «o estilo orquestral de influência clássica parecido com o de Nova Iorque»,
representado, entre outros, pela orquestra de Erskine Tate. (Hennessey, 1973, p. 473).
Hennessey salienta que essa música tinha muito sucesso nos locais onde havia uma
forte presença da burguesia negra:

[Essa música] era muito elaborada e marcada pela herança clássica. Não era estranha aos ouvi-
dos dos brancos e podia ser avaliada segundo os parâmetros clássicos. As evidentes qualidades
musicais pareciam elevá-la acima do «barulho roufenho» dos músicos de Nova Orleães. Os seus
adeptos eram músicos experientes e pessoas socialmente bem comportadas, contrariamente aos
FIGURA 33. James M. Davis, The Railroad, 'Tis Like Life. Os estereogramas enfatizavam a tridi- «ases» bêbedos e depravados da escola de Nova Orleães. (Hennessey, 1973, pp. 473-74)
mensionalidade da imagem através da convergência das linhas diagonais para um ponto longínquo.
(Estereograma cedido pelo Visual Studies Workshop.)

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

As cidades onde a burguesia negra era menos importante favoreciam as variantes Mas o público local, reunido em torno dos sistemas de difusão existentes, mesmo que
locais, e, portanto, mais rudes, da amálgama afro-europeia. rudimentares, apoia a nova arte. As suas reacções, sem qualquer carácter oficial, e às
Em ambos os exemplos aqui considerados, nota-se que certos grupos locais de vezes limitadas a algumas críticas na imprensa regional, contribuem para a elaboração
dimensões variáveis (pequenos para a estereoscopia, mais importantes para o jazz) de uma estética apropriada às obras.
elaboram versões locais das novas possibilidades. Alguns grupos de experimentadores Certos mundos da arte desenvolvem-se para além das suas fronteiras lo-
assemelham-se entre si porque estabelecem predominantemente um contacto face a cais. Aos poucos surgem cada vez mais participantes para desempenharem as
face e à escala local, ouvindo e observando o trabalho uns dos outros. Isto limita o raio diversas funções, e o recrutamento é feito num perímetro cada vez mais vasto.
de acção das trocas entre os pares da vizinhança mais próxima, a não ser que alguns Esses participantes constituem uma ampla rede de cooperação que se pode con-
pioneiros dispersos se venham a conhecer através de outros meios de comunicação. siderar como um mundo da arte completo; onde cada um utiliza as convenções
Além de experimentarem as novas hipóteses, os pioneiros começam a criar as bases provenientes de segmentos locais diferentes, mas que são conhecidas e compreen-
de um mundo da arte: as redes de fornecedores, os sistemas de difusão e os grupos de didas no território nacional ou até noutros países. Este resultado é fruto da conju-
pares com quem é possível discutir questões estéticas, propor novos critérios e avaliar gação de vários mecanismos, mas as coisas nem sempre acontecem desse modo.
obras. Os fornecedores mais prósperos ultrapassam rapidamente a escala local e di- A maioria das inovações feitas à escala local nunca ultrapassa esse estádio. Podem
fundem os seus produtos noutros sítios onde podem desencadear prospecções locais. perdurar na sua região, mas nunca atingem uma envergadura nacional e muito menos
Os instrumentos de música, as máquinas fotográficas e outros tipos de equipamento internacional.
são mais fáceis de transportar de um lado para o outro, comparativamente a outros
elementos de um mundo da arte. Quando o sistema económico o permite, os fabricantes
não tardam a explorar mercados maiores. George Eastrnan, o fundador da Eastman A PRODUÇÃO
Kodak, e alguns outros fabricantes detinham já mercados de envergadura nacional
muito antes de o mundo da fotografia americana se ter estendido a todo o país, e o À medida que uma forma de arte se torna conhecida num perímetro mais vasto, a
fenómeno repetiu-se quando a fotografia conheceu uma expansão internacional (Taft, sua produção aumenta; geralmente, isso deve-se ao aumento do número de produtores
1938; Jenkins, 1975). ou à introdução de métodos de produção industriais. A expansão do jazz aumentou
As relações entre parceiros parecem manter-se limitadas à escala local durante a partir do momento em que o fabrico e a difusão industrial de discos permitiu aos
mais tempo. Podem desenvolver-se em tomo dos locais onde se encontra o material. músicos ouvirem e imitarem aquilo que se fazia noutros sítios.
Por exemplo, os compositores de música electroacústica encontram-se perto dos A industrialização dos estereogramas aconteceu muito rapidamente. Para que a
estúdios de produção, das estações de rádio ou dos centros de pesquisa musical mais nova arte da estereoscopia se pudesse impor no mercado nacional, era necessário
bem equipados. Podem entrar directamente em contacto entre si ou por intermédio produzir em quantidade suficiente para dar resposta à procura (ver figura 34).
dos fornecedores, que acabam por estabelecer um ponto de ligação entre todos. Os métodos artesanais utilizados pelos primeiros produtores tomaram-se obsoletos:
Os praticantes de uma nova arte agrupam-se frequentemente por afinidades no seio de
pequenos organismos. Desde os inícios da fotografia, muitos clubes reuniam pioneiros A fabricação de um estereograma realizava-se em cinco etapas:
que utilizavam o mesmo material, organizavam exposições e trocavam ideias sobre os 1. a tiragem de provas positivas a partir dos negativos, incluindo a lavagem e a secagem
seus trabalhos (Taft, 1938, p. 376; Newhall, 1964, pp. l 03-4; Tice, 1977). Actualmente (geralmente realizadas durante a noite);
existem muitos clubes análogos que funcionam em áreas tidas como marginais à arte, 2. o corte das fotografias com tesoura ou guilhotina;
como a pintura sobre porcelana. 3. a colagem das fotografias sobre cartão;
O público visado também se mantém local durante muito tempo. Os obstáculos à 4. a secagem sobre pressão;
comunicação que impedem o alargamento geográfico das relações entre pares limitam 5. a aplicação das etiquetas e a impressão do texto.
o interesse do público à produção local. As pessoas não podem apreciar uma música
desconhecida que vem de longe e que não é difundida através dos media. A distância O conjunto das operações demorava três dias e duas noites, mesmo para as grandes casas que
não é exclusivamente geográfica, também pode assumir um carácter social. Durante os conseguiam acelerar o processo com fornos especiais ou grandes superficies apropriadas para a
secagem. Um trabalhador experiente podia produzir cerca de 50 a 60 estereogramas por dia, ou
anos vinte, muitos americanos brancos não puderam aprender a apreciar jazz porque
seja, um máximo de 350 por semana. Com os métodos de divisão de tarefas, cinco trabalhadores
essa música era tocada em locais que eles não frequentavam. De modo semelhante, conseguiam produzir mais de 3000 estereogramas por semana. (Darrah, 1977, p. 7)
os adultos também demoraram muito tempo até se interessarem pela música rock
porque não frequentavam os locais nem conheciam as rádios onde ela era difundida.

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

A industrialização deste processo teve início na década de 1860, e as técnicas de


trabalho em cadeia aumentaram consideravelmente a produção (ver figura 35). Darrah
descreve uma das várias operações, do seguinte modo:

FIGURA 35. Armazéns da Underwood & Underwood, cerca de 1905. No pico da popularidade dos
estereogramas, os fabricantes publicavam vários milhões de cartões por ano. (Fotografia cedida pela
Hastings Gallery.)

FIGURA 34. Fabrico de estereoscópios na Underwood & Underwood, cerca de 1910. O enorme necessário à correcta exposição luminosa e depois arrancava outra vez para um novo conjunto
crescimento do mercado conduziu à industrialização dos processos de produção. (Fotografia cedida de fotografias. Estas máquinas já eram usadas desde 1866. Mas na fábrica White também se
pela Hastings Gallery.) utilizavam máquinas para a revelação, fixação e lavagem. Elas permitiam manter um nível
de qualidade constante. As fotografias eram cortadas por umas guilhotinas muito rápidas.
Os textos eram impressos automaticamente, a um ritmo de l O000 por hora. Em dez horas, três
Os irmãos Kilbum (Littleton, New Hampshire) construíram uma fábrica de três andares máquinas lavavam 15 000 fotografias. Os fomos automáticos conseguiam secar cerca de 15 000
com salas especiais para revelação, impressão, lavagem, secagem e montagem. A divisão fotografias por dia. Para as séries de luxo, existia uma máquina especial que pintava os textos
de tarefas era em tudo idêntica à prática usualmente estabelecida. Obteve-se um incre- a dourado. (Darrah, 1977, p. 51)
mento do rendimento graças a uma maior eficácia no encadeamento das várias tarefas.
A única operação mecanizada consistia na utilização de um tapete rolante para a revelação A DISTRIBUIÇÃO
dos negativos, e que, ao eliminar as intervenções manuais, duplicava o ritmo de produção das
provas. Os Kilbum Brothers, que empregavam 52 pessoas, incluindo a equipa de manutenção
e o pessoal de escritório, produziam em média cerca de 3000 estereogramas por dia. Ou seja, Os novos dispositivos de venda e de difusão permitem ao jovem mundo da arte
podiam facilmente produzir um milhão de estereogramas por ano. (Darrah, 1977, p. 45) estender-se por um território mais vasto. Garantem a comercialização dos objectos
produzidos, ou, no caso dos espectáculos, a estabilidade das condições necessárias à
Cerca de quarenta anos mais tarde, uma mecanização mais sofisticada aumentou sua apresentação.
ainda mais a produção e culminou na total industrialização de todas as fases implica- O pequeno comércio dos pioneiros dos estereogramas raramente ultrapassava os
das no fabrico de estereogramas. Eis a descrição da H. C. White Company de North limites da sua comunidade. As trocas regionais realizavam-se através de «clubes de
Bennington no Vermont, feita por Darrah: trocas», onde se podiam vender e comprar obras com regularidade. Os estereogramas
também viajavam nas malas dos turistas. Mas a difusão em grande escala começou
Em 1907, White mandou construir um prédio de três andares que foi durante algum tempo a com a criação de redes de comercialização muito organizadas, destinadas a escoar a
fábrica de estereogramas mais importante e mecanizada do mundo. As operações de revelação e produção industrial.
de impressão estavam automatizadas. Os negativos eram pendurados em frente a uma lâmpada No início, os fotógrafos vendiam as imagens directamente nos seus estúdios, ou
sob a qual corria um tapete com o papel sensível. O tapete parava durante o tempo considerado então junto de comerciantes como os oculistas ou as casas de molduras, e também

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Mundos da Arte

por correspondência. Os grandes produtores que os vieram substituir criaram equipas


de vendedores itinerantes. No início do século XX, o presidente da Keystone View
Company apresentava as técnicas de venda deste modo:

A maioria dos vendedores eram recrutados nas universidades. Esses estudantes trabalhavam apenas
durante os três meses de férias de Verão e chegavam muitas vezes a ganhar dinheiro suficiente
para pagarem as propinas durante um ano inteiro. A empresa Underwood & Underwood afirmava
empregar, todos os anos, cerca de 3000 estudantes durante os meses de Verão. Se a este número
adicionarmos os das outras grandes empresas, que recrutavam para cima de 1000 estudantes, toma-se
fácil compreender por que é que durante aqueles meses as nossas localidades eram invadidas por
tantos vendedores de estereogramas! (... ).O método de venda era de uma eficácia excepcional. Na
primeira visita, o vendedor tentava apenas garantir a encomenda de um estereoscópio e de «algumas
vistas» ou, pelo menos, de «uma vista», para o caso daqueles clientes que já tinham um estereoscópio.
Estas encomendas demoravam aproximadamente três semanas, e a entrega demorava outras três. No
momento da entrega, o vendedor trazia novamente consigo uma grande variedade de outros estereo-
gramas. Depois de convencer o cliente a espreitar pelo estereoscópio, obrigava-o a ver, umas atrás das 100 Colored Vlews oi Am ea and EIU'O~ l8e
outras, um grande conjunto de novas imagens. De vez em quando o cliente parava e dizia: «Quero Very latest collection, representing 75 best American
ficar com esta.» O objectivo consistia em persuadir o cliente a comprar o maior número possível de
views of. historical spots, sce11es, interesting sights,
etc., and 25 oest Euro~an views. American Curios,.
estereogramas escolhidos durante a demonstração. (Hamilton, 1949, pp. 17-18) Golden West, Niagara· Falls, Great Northwest, Wash-
ington, ali are represented. All beautifully colored.
Interesting, educational and instructive. Shipping
Também se vendiam muitos estereogramas por correspondência. Os catálogos dos weig_ht, 2 pounds.
69K6860-Per box of 100 views......... C
98
principais fornecedores apresentavam milhares de imagens panorâmicas, históricas, Beautlfully Colored Views-25 Packed in Box. Ship-
didácticas, artísticas e cómicas. Alguns clubes de venda por correspondência também pinl( _weight. 8 ounces.
89K686S-Life of Cbrist.................... C
29
ofereciam uma escolha muito vasta nos seus catálogos (ver figura 36). Em 1908, o
69K686 1-Assorted Views of r'oreign Countries.29c
catálogo da Sears apresentava séries de cem imagens sobre temas como «O Cerco de 69K6882-'l'he Great Northwest and California.29c
Port Arthurn durante a guerra entre a Rússia e o Japão, «A Beleza do Japão», «A Terra 69K6863-Historical Spots and Scenes of
Santa», «A Feira Internacional de St. Louis», ou «A Caça, a Pesca, os Acampamentos America ...................................... 29c
69K6864-Tour of America's Jlig Cities ........ gpc
e a Vida dos Índios». A Underwood & Underwood, um dos maiores fornecedores, Qaallty Stereoscope
vendia o seu «Sistema de Viagens», que consistia numa série de estereogramas, com Decome
acqua i n ted
mapas e guias de locais como o Egipto, a Dinamarca ou o Grand Canyon.
Hennessey descreve uma evolução análoga no modo como os músicos negros de
jazz se organizaram para atingir uma audiência a nível nacional. No início, tanto nas
8c with the
world a n d
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formações que funcionavam em moldes associativos, como nas que eram dirigidas Helps ch1l-
por um leader, dren in their
studies and
broad·e n s
um dos membros do grupo contactava o gerente de um salão de baile, clube, cabaré ou um pro-
Hardwood their knowledge of the o u t s i d e
motor de eventos e negociava um espectáculo. Normalmente, os contratos eram absolutamente frame a n d world. Aluminum hood with plush
informais e flexíveis. O sindicato dos músicos reclamava aos conjuntos de músicos negros, foldinr han- bound edges ; good size lenses, se-
curely fastened in aluminum frame.
e em vão, o respeito pelo cumprimento das normas sindicais relativamente aos contratos.
Estes acordos informais limitavam-se geralmente a um compromisso de longa duração num
dle. ali ·wal•
nut finfah. Shipping ·wt., l¼ lbs.
69K68 I O................ C
98
determinado local ou a uma digressão local. (Hennessey, 1973, p. 484)
FIGURA 36. Anúncio de estereogramas no catálogo da cadeia de lojas Sears-Roebuck. Esta empresa
anunciava milhares de estereogramas e distribuía-os por todo o país. (Documento cedido pelo Visual
Este tipo de contrato informal obrigava os conjuntos de músicos negros a restringirem- Studies Workshop.)
-se a um determinado local, onde acabavam por conhecer pessoalmente as pessoas com
quem lidavam.

268 269
Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

Entre 1929 e 1935, uma mudança de estratégia comercial e a evolução dos meios musicais, e encontravam-se por todo o lado. Havia Duke Ellington em Washington,
de transporte e de comunicação (que analisaremos mais à frente) proporcionaram aos Count Basie e Andy Kirk em Kansas City, e outros em Chicago, Nova Iorque e nou-
músicos negros o aumento da sua reputação e o início do estabelecimento de contratos tras cidades.
à escala nacional. · Regra geral, nenhum centro de criação, mesmo tratando-se de uma metrópole,
podia assegurar sozinho uma quantidade de produção suficiente, quer em quali-
A partir de um centro de operação local, as orquestras criaram uma reputação nacional graças
aos discos e à difusão radiofónica. Tiraram daí vantagens financeiras, realizando digressões por
dade quer em diversidade, para alimentar um mercado nacional ou internacional.
todo o país, que as levavam aos salões de dança, aos hotéis, às salas de espectáculos e a todos os É por isso que podemos supor que o que se passou com o jazz e com a estereoscopia
locais onde um público que aprendera a apreciar o seu estilo graças aos media estava disposto corresponde a um fenómeno comum: os organismos de distribuição das obras come-
a pagar bem para as ver actuar. (Hennessey, 1973, p. 487) çaram a procurar material um pouco por todo o lado e, desse modo, abriram brechas
nos muros que cercavam os pequenos mundos da arte local.

Deste modo, as mudanças, quer devido aos métodos de fabricação e de venda ou


ao modo de organização de espectáculos, permitiram uma maior difusão dos estilos A COMUNICAÇÃO
locais. O volume da produção é suficiente, e os distribuidores passam a estar preparados
para cooperarem com os artistas e para darem a conhecer o seu trabalho tanto a Dado o aumento da comunicação entre os diferentes mundos das artes locais,
públicos como a praticantes de outras regiões. Um centro de criação pode alcançar esses muros, que outrora isolavam os artistas locais das influências externas dos
a supremacia, e nesse caso os outros mundos da arte locais modelam-se ao seu exemplo, seus pares ocupados em elaborar outras variantes das inovações, encontram-
ou então os estilos característicos de diversos centros tornam-se simultaneamente -se já abalados. A comunicação pode aumentar devido aos progressos técnicos ou, mais
exportáveis. prosaicamente, devido à mobilidade dos artistas e do público.
Os métodos de fabrico e de venda dos estereogramas já evocados engendraram Os grandes mecenas do Renascimento contratavam artistas do estrangeiro; os pinto-
uma grande procura de imagens tridimensionais. Era impossível a qualquer fotógrafo res também viajavam para irem ver as obras de que tinham ouvido falar (Haskell, 1963).
ou grupo de fotógrafos que só operasse a uma escala local conseguir fornecer uma De modo semelhante, alguns compositores e músicos percorriam a Europa para servirem
oferta que correspondesse à procura suscitada. Para alimentar o mercado, os grandes a Igreja ou um mecenas abastado ou nobre (Reese, 1959). Essas viagens constituíam
editores utilizavam imagens de todas as proveniências. Compravam negativos a fotó- uma excelente oportunidade para troca de informações sobre as actividades artísticas
grafos locais, realizavam cópias a partir de outras imagens (muitas vezes sem pagar que aconteciam nas mais diversas cidades. As viagens também permitiam ao público
os respectivos direitos), produziam séries temáticas e enviavam as suas equipas de o contacto com obras diferentes e a oportunidade de aprender a apreciá-las.
fotógrafos em missão de reportagem. Mais modestamente, certos pioneiros de uma nova forma de arte podem deslocar-
-se para entrarem em contacto com outros inovadores que tenham obtido resultados
Pedia-se aos fotógrafos mais experientes para fazerem excelentes imagens dos lugares, dos
diferentes, e trocarem com eles os frutos das suas pesquisas. Tudo aquilo que facilita as
monumentos e dos locais historicamente mais célebres. Não se negligenciava a América mais
profunda e pitoresca, desde Bar Harbor e o seu parque nacional no Maine, até à Golden Gate de viagens (abertura política das fronteiras, melhoria dos meios de transporte, criação de
São Francisco. Fotografavam-se as grandes exposições, como o centenário da Constituição em grandes centros marítimos, terrestres ou aéreos, subida do nível de vida, aparecimento
Filadélfia, a Exposição Universal de Chicago e a Feira Internacional de St. Louis. A exclusivi- de uma mentalidade cosmopolita) favorece essas trocas. O incremento das vias férreas,
dade dos direitos era muito bem paga mas nem sempre honrada devido à concorrência entre os a instalação de linhas telefónicas, a baixa das tarifas aéreas e o crescimento económico
fotógrafos. Em todo o caso, levava-se a cultura até aos centros rurais da América mais profunda constituem outros tantos factores favoráveis à comunicação.
(... ). Os editores pediam aos seus fotógrafos para procurarem todos os temas de valor pedagó-
gico. Fotografavam-se fábricas, laboratórios e locais de interesse histórico. Entre as fotografias Os progressos técnicos têm idênticas consequências. A partir do momento em
que registaram as primeiras imagens dos voos experimentais dos irmãos Wright e que legaram que as técnicas de impressão permitiram a obtenção de «reproduções exactas» (Ivins,
para a posterioridade inestimáveis documentos sobre as primeiras máquinas voadoras, muitas 1953), os artistas (e o público) passaram a poder ver, sem se deslocarem, obras das
são estereogramas. (Hamilton, 1949, pp. 19-21) quais apenas tinham ouvido falar. Evidentemente, o procedimento não era válido senão
para as gravuras a preto e branco. Quando se usavam essas técnicas para reproduzir
Quanto às grandes orquestras de jazz, aquelas que alcançaram notoriedade a ní- uma pintura ou um desenho, o trabalho original era filtrado através de-um conjunto
vel nacional, também conquistaram uma posição dominante nos mundos da música de traduções convencionais - do óleo ou do carvão para a textura e tinta tipográfica
locais. Mas no mundo do jazz em expansão, os clubes, os discos, os espectáculos de - e o resultado estava longe de corresponder ao original, tal como acontece com as
variedades, os salões de dança e as rádios eram grandes consumidores de produtos fotografias (que actualmente desempenham essa função nos mundos da arte) (Ivins,

270 271
Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

1953). Mas ainda assim, a reprodução dava uma ideia bastante fidedigna do original das gravações como substitutos das partituras. A dependência dos discos é tal que a
a pessoas que até então se tinham de limitar aos relatos orais para descobrirem aquilo maioria dos jovens músicos nunca aprende a decifrar uma partitura. Mas as gravações
que os artistas faziam noutros sítios. Esta técnica contribuiu para difundir a informação mantêm esses jovens em contacto com o que foi feito e com aquilo que é possível
por territórios mais vastos. fazer nesse campo.
Os discos desempenharam o mesmo papel na expansão do jazz:

O jazz, sendo uma música improvisada, não se deixava facilmente fixar por escrito e era por- O PESSOAL INTERCAMBIÁVEL
tanto difícil de difundir sob a forma de uma partitura. Os discos proporcionaram o registo e a
conservação desse estilo de criação efémera e facilitaram a sua aprendizagem. Por outro lado,
era possível aprendê-lo sem contactar pessoalmente com os seus intérpretes. A influência de um
Como resultado de todas estas mudanças, os participantes de um mundo da arte
estilo regional, ou do estilo do músico, pôde alargar-se consideravelmente graças a este novo partilham um conhecimento das principais convenções. A obra· daqueles que experi-
suporte. (Hennessey, 1973, p. 477) mentam uma inovação tem uma ressonância tão limitada que as pessoas exteriores
àquela localidade de origem não podem cooperar para a sua produção ou no seu
A rádio permitiu aos amadores de jazz, e nomeadamente àqueles que não tinham consumo. À medida que as vias de comunicação vão melhorando, obras cada vez
recursos para comprar muitos discos, conhecerem um leque de interpretações muito mais diversas vão sendo trazidas ao conhecimento das pessoas interessadas, e alguns
mais amplo. A partir de finais dos anos vinte, as rádios locais começaram a programar praticantes de uma nova arte proveniente de regiões diferentes demonstram menos
todas as noites emissões de espectáculos realizados em clubes nocturnos e salões de dificuldades em colaborar, desde que tenham visto ou ouvido essas respectivas obras.
dança da região, entre os quais grandes orquestras de jazz e formações integradas por O público também já não tem de pertencer a uma determinada região para compre-
músicos de jazz célebres. A altas horas da noite, quando as pequenas estações fechavam ender aquilo que se faz. Tem acesso a uma maior diversidade de obras e pode interessar-
as suas emissões, era contudo possível captar as mais fortes, a milhares de quilómetros -se por qualquer uma das variantes locais de uma nova arte.
de distância. Nessa altura, era eu adolescente, queria ser músico de jazz. Como era Uma vez que as competências indispensáveis para participar numa determinada
muito novo e portanto não tinha dinheiro para pagar a entrada ou mesmo ser admitido actividade importante de um novo mundo da arte se difundem para além das fronteiras
nos locais onde se tocava jazz, conseguia, apesar de tudo, ouvir os concertos de todas locais, esse mundo pode reproduzir-se indefinidamente e recrutar pessoal um pouco
as orquestras e as interpretações de todos os solistas de renome através do meu rádio. por todo o lado, em vez de continuar dependente das hipóteses do acaso e da ameaça
À força de tanto ouvir as mesmas músicas noite após noite, sabia distinguir e analisar dos prejuízos daí decorrentes. A partir desse momento, o mundo adquire uma semi-
as diferenças entre as várias improvisações sobre um mesmo tema. Muitos dos actuais -autonomia. O que não puder ser feito aqui, poderá ser feito noutro local. Quando os
músicos, que nos anos trinta e quarenta eram adolescentes, adquiriram uma boa parte participantes mudam de sítio, sabem que vão encontrar noutro local pessoas igualmente
dos seus conhecimentos graças à rádio. Contrariamente aos discos, ela permitia medir competentes para cooperar no funcionamento do seu mundo da arte.
a liberdade que era deixada aos executantes. Em vez de aprender nota a nota um solo Hennessey nota que a extensão do mundo do jazz a todo o país permitia que os
gravado, descobríamos que tipo de solos é que eram possíveis. músicos vindos das mais diversas regiões tocassem num mesmo agrupamento sem
A Segunda Guerra Mundial esteve na origem de um caso interessante de internacio- qualquer tipo de dificuldades (ver figuras 37 e 38). Todos conheciam vários estilos di-
nalização de um mundo da arte. Os contingentes de soldados americanos, que contavam ferentes, nomeadamente aqueles que recorriam a arranjos escritos e obrigavam portanto
nas suas fileiras com inúmeros músicos de jazz, passaram longos períodos na Europa os intérpretes a saberem decifrar partituras. Quando um conjunto se tornava maior:
e na Ásia. Os músicos locais puderam desse modo ver e ouvir músicos americanos a
tocar, e tocar com eles, contacto que até então estivera limitado aos discos. Esses ame- os músicos extra formavam uma secção melódica e rítmica que se destinava a apoiar os solistas,
ricanos não tinham de demonstrar um talento excepcional, e a maioria deles era de um mas raramente tocavam as partes harmónicas e contrapontísticas a solo. O seu principal trunfo não
era a capacidade de improvisação mas, principalmente, as competências técnicas e a seriedade
nível médio. Contudo, eram «homens do jazz» autênticos e transmitiam aos Europeus (... ). Durante os aqos vinte, os estilos locais começaram a fundir-se porque os meios de comu-
a tradição do jazz tal qual era verdadeiramente praticada. O seu ensino transformou nicação permitiam aos músicos iniciarem-se em estilos de jazz que estavam para além das suas
completamente essa situação. Quando ouvimos gravações europeias do período anterior fronteiras regionais. Desde os inícios dos anos trinta, apenas o Sudoeste e, em menor medida, o
à guerra, adivinhamos imediatamente a sua proveniência. Depois da guerra tornou-se Sudeste, mantinham ainda estilos radicalmente diferentes dos das orquestras nacionais de Nova
impossível distinguir os discos de jazz americanos, europeus e japoneses. Iorque. Por outro lado, as orquestras nacionais e os seus músicos vindos dos quatro cantos do
país eram frequentemente capazes de debitar qualquer tema local a partir do zero, para instigar
Os discos e a rádio ainda desempenham um papel considerável na difusão de
o orgulho regional por onde quer que passassem. (Hennessey, 1973, pp. 486-89)
novos mundos da música. O estudo de Bennett (1980) sobre os modos de aprendiza-
gem do rock e da formação dos grupos nos Estados Unidos sublinha a importância

272 273
A Mudança nos Mundos da Arte

Doravante, os músicos de jazz e o seu público partilhavam um conjunto de con-


venções e práticas através das quais podiam cooperar para produzirem as obras ca-
racterísticas dos mundos do jazz. A partilha desses conhecimentos permitiu a difusão
desses padrões de actividade cooperativa.
Uma das principais componentes desse saber é a retórica ou o repertório icono-
gráfico utilizado pela nova forma de arte. Como pudemos ver, as obras de arte põem
em jogo materiais expressivos mais ou menos conhecidos do público: alguns são
familiares à maioria das pessoas, outros são conhecidos por aqueles que receberam
uma certa formação, outros ainda exigem uma aprendizagem específica, indispensá-
vel para apreciar as obras em questão. Quando um mundo da arte atinge dimensões
nacionais ou internacionais, é grande a quantidade de público que tem de se iniciar
nas novas convenções e nas novas formas de emoção estética fundadas sobre dados
visuais, auditivos e intelectuais nada habituais. A rápida propagação dos estereogramas
exigia a iniciação e a sensibilização de um vasto público a uma iconografia que, até
aí, interessava a muito poucas pessoas. De facto, grande parte dessa iconografia só
~~:-;,: tinha um interesse local.
.. . •'~ .-_-,··::' Relativamente a este exemplo, as iniciativas comerciais que difundiram os es-
FIGURA 37. A Buddy Petit Jazz Band de Nova Orleães. Os primeiros grupos de jazz eram essencial- tereogramas por todos os Estados Unidos tiveram de criar uma homogeneização
mente locais e reflectiam o carácter da população negra dessa localidade e o tipo de ocasiões em que do gosto nacional, levando a que tudo o que era originalmente particularidades
actuavam. Muito provavalmente, este grupo tocou em paradas de rua, espectáculos ao ar livre e em locais passasse a fazer parte do conjunto das convenções que tanto produtores
locais semelhantes. (Fotografia cedida pelo Institute of Jazz Studies, Rutgers University.) como público conheciam. Imagine-se que, à medida que esse modo de produção
de imagens se ia tomando mais corrente e normalizado, os produtores desenvol-
viam um sistema de notação rápida para indicar as imagens e os temas que queriam
dos seus fotógrafos. Essas indicações, se tivéssemos acesso a elas, provavelmente
seriam parecidas, sem serem tão detalhadas nem tão sistemáticas, com as «sinopses de
reportagens» que Roy Stryker preparou para os seus fotógrafos da Farm Security Admi-
nistration (Hurley, 1972, pp. 56, 58). Elas mostrar-nos-iam como é que as convenções
codificadas, ao tomarem-se directivas sucintas, constituem constrangimentos para os
fotógrafos. O repertório iconográfico ampliou-se com o crescimento da industrialização
da estereoscopia, embora isso não tenha sido demonstrado (ver Earle, 1979, e Darrah,
1977). Tudo leva a supor que os estilos pessoais se foram tomando cada vez mais raros
à medida que se difundiam as convenções elaboradas pelos fabricantes; e contudo, a
produção dos grandes editores apresentava uma diversidade sem dúvida maior do que
a de qualquer fotógrafo ou grupo de fotógrafos locais.
Face a uma enorme e muito variada produção industrial, o gosto dos consumidores
alargou-se: inicialmente apenas receptivo aos temas regionais, o público tomou-se tão
cosmopolita nas suas escolhas como os fabricantes. Os agricultores mais crentes apren-
deram a apreciar as paisagens da Terra Santa, o que não tem nada de extraordinário,
mas também as imagens do mausoléu do sultão El-Bartouk no Cairo (anunciadas no
catálogo da L. M. Melander & Brothers de Chicago, cerca de 1880). O público ameri-
FIGURA 38. A Jimmie Lunceford Orchestra, cerca de 1936. À medida que o mundo das Big Bands cano começou (graças aos estereogramas, mas também às revistas, aos cartazes e aos
de jazz ia ganhando uma dimensão nacional, os músicos começavam a apresentar uma formação espectáculos de lanterna mágica) a interessar-se por temas que não tinham qualquer
musical mais apurada, vestiam-se com mais cuidado e eram mais disciplinados. (Fotografia cedida
pelo Institute of Jazz Studies, Rutgers University.)
relação com a sua vida quotidiana, por antiguidades egípcias, mas também pelas outras

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

regiões do seu país. Era possível comprar vistas de Hurley (no Wisconsin), bem como
fotografias do Capitólio de Atlanta.
Embora seja razoável defender que os fornecedores de estereogramas pudessem
ter levado o público a gostar de qualquer tipo de imagens, era provavelmente mais
fácil, na América dos finais do século XIX, levar as pessoas a interessarem-se mais por
certos tópicos do que por outros. As zombarias acerca dos negros e de outros grupos
étnicos encontraram provavelmente um público fácil junto dos anglo-saxões que viam
o seu país e a sua cultura invadidos por vagas de emigrantes e por minorias étnicas.
Quanto às imagens um pouco mais levianas, elas respeitavam as conveniências da
época (ver figura 39). A grande ideia americana do domínio da Natureza pelo Homem
traduzia-se numa predilecção pelas paisagens mais sumptuosas. Quando finalmente
o caminho-de-ferro e o telégrafo uniram todo o país, as pessoas tomaram-se mais
sensíveis aos acontecimentos vindos de longe. Demonstravam o mesmo interesse pelo
grande incêndio de Chicago ou pelo tremor de terra de São Francisco (até mesmo, a
nível internacional, pelo cerco de Port Arthur), como pelos desastres ocorridos nas
suas localidades.
Por outro lado, era provavelmente mais fácil aprender a gostar dos estereogramas
FIGURA 39. Anónimo. A Dewy Morning- The Farmer :S S111prise. As imagens de certo modo atre-
porque essa actividade ia ao encontro de certas tendências tradicionais dos americanos.
vidas - mostrando um pouco das pernas - adaptavam-se ao gosto dominante. (Fotografia cedida pelo
Era uma forma de divertimento em família ou entre amigos (hoje em dia, as projec- Visual Studies Workshop.)
ções de diapositivos ou de filmes sobre as férias desempenham a mesma função).
Os estereogramas eram também símbolos de um consumo ostensivo, tanto pela posse
material como pelo nível de refinamento e de cultura que lhe estavam associados. manifestamente provenientes da arte, omitindo os antecedentes indesejáveis. É um
Não é indiferente o facto de essas imagens terem servido como instrumentos peda- esquema que a história da fotografia nos Estados Unidos põe em evidência (Taft,
gógicos (ver figura 40) numa época em que a instrução se tornara um importante meio 1938; Newhall, 1964).
de ascensão social. (Assim, na publicidade para o seu «Sistema de Viagens», a firma Pouco tempo depois de Daguerre ter tomado público o seu método para fixar imagens
Underwood & Underwood enumerava os estabelecimentos escolares e universitários fotográficas sobre placas metálicas, os Estados Unidos tornaram-se um dos países com
que os utilizavam, e citava os testemunhos aprovadores de alguns dos mais reputados a mais intensa actividade nessa área. Os profissionais ofereciam os seus serviços, vendiam
professores.) imagens de paisagens, retratos e tudo aquilo que os clientes estavam dispostos a comprar.
Quando o daguerreótipo foi substituído pela ferrotipia e depois, sucessivamente, pelas
diversas variantes do processo negativo-positivo, as pessoas multiplicaram as utilizações
AS INSTITUIÇÕES DO MUNDO DA ARTE dadas à fotografia. Entre elas, houve quem tivesse a ideia de a utilizar com fins artísticos.
Desde então, os fotógrafos de arte não deixaram de lutar pelo seu reconhecimento en-
Quando uma inovação dá origem a uma rede de cooperação de envergadura quanto artistas. Reuniam algumas das condições exigidas por um mundo da arte mas,
nacional, ou mesmo internacional, tudo o que é necessário para criar um verdadeiro até uma data bastante recente, ainda não eram reconhecidos; assim, tiveram de lutar com
mundo da arte consiste em persuadir os outros membros de que aquilo que essa rede perseverança no sentido da criação dos elementos organizacionais que pudessem garantir-
produz é arte e que, portanto, tem direito a todos os privilégios associados a esse -lhes oficialmente a qualidade de artistas. O facto de produzirem artefactos visuais era
estatuto. Num dado momento e numa dada sociedade, certos modos de apresen- uma justificação mais do que suficiente para reivindicarem a sua inclusão no domínio
tar as obras conotam-nas com a «arte» e outros não. Um trabalho que aspire a ser das artes. Esta reivindicação, que à partida justificava a natureza da sua produção, feita
reconhecido como arte tem de apresentar um sistema estético coerente que permita de objectos a serem contemplados, estava entretanto comprometida pelos debates ideo-
a sua análise e o debate crítico. Finalmente, aqueles que aspiram ao reconhecimento lógicos sobre o tema: «É possível fazer arte com máquinas?» (Christopherson, 1974a e
como artistas devem dissociar essa actividade das práticas artesanais e comerciais 1974b), e ainda por cima ameaçada pela presença da fotografia nas actividades alheias
conexas. Por outro lado, têm de forjar uma continuidade histórica que ligue a produção à arte. A fotografia deu origem a um mundo da arte de envergadura nacional e interna-
do seu mundo a formas de arte já consagradas e sublinhar os aspectos desse passado .cional, graças ao esforço de alguns pioneiros que a conseguiram isolar dessas situações

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A Mudança nos Mundos da Arte

equívocas enquanto, simultaneamente, estabeleciam as instituições necessárias à criacão


de um mundo da arte. ·
A fotografia de arte teve de começar por romper os laços com a fotografia comercial.
Depois, havia outra coisa que desqualificava os fotógrafos aos olhos dos artistas mais
respeitados que eles tentavam convencer: era a multidão de amadores agrupados em
clubes de fotógrafos locais. Estes clubes participavam em Salões organizados «para
a grande quantidade de fotógrafos que não tinham outras ocasiões para mostrarem as
suas obras» (Doty, 1978, p. 36) e encorajavam a rivalidade, como fica demonstrado
pelo testemunho de um participante desses mundos (citado por George Tice, 1977):

Todos os meses realizava-se um concurso de fotografias a preto e branco. Ganhar o prémio da


«Fotografia do Mês» constituía sempre um grande desafio e, sobretudo, no final do ano - ga-
nhar o troféu. Foi devido a essas iniciativas que me mantive durante tanto tempo urn praticante
entusiasta ( ... ). Obtinha sempre bons resultados nos Salões; pelo menos erarn melhores que
nos concursos do clube. Eu pertencia ao primeiro nível e tentava alcançar o segundo quando,
finalmente, abandonei esta actividade. Ao firn de urnas quantas selecções para os concursos
dos Salões internacionais, obtínhamos urn grau da Photographic Society of America. Podíamos
ascender até ao quinto grau, que era o nível rnais elevado. (Tice, 1977, pp. 41, 50)

Esta situação, reforçada pelas críticas em circuito· fechado nos clubes locais,
impunha sérios limites à liberdade de expressão, uma condição cuja garantia é uma
componente fundamental para a maioria dos artistas:

Não faço as minhas fotografias por puro prazer. Faço-as para satisfazer as expectativas dos
rnernbros do júri. O problema é que ultimamente elas já nern sequer têrn correspondido àquilo
que eu fazia. Cada vez que lhes entrego algumas provas, ouço-os a falar entre si ern surdina:
«Agora o Artie anda a tentar regressar.» Deixei de rne interessar pelos concursos do clube.
(Tice, 1977, p. 47)

Alfred Stieglitz (Norman, 1973), um dos pioneiros da fotografia americana, foi um


dos principais responsáveis pelas transformações que permitiram pôr fim à amálgama
entre fotografia de arte e as actividades dos clubes amadores. Nessa época, a fotografia
publicitária ensaiava os seus primeiros passos, e a ligação entre fotografia e jornalismo
ainda não estava consolidada. Mas os Salões, os concursos e os clubes de fotógrafos
amadores eram muitos e estavam em franca expansão, tanto a nível nacional como inter-
nacional. Stieglitz, sempre muito activo graças às suas exposições, às suas funções
de chefe de redacção da American Amateur Photographer e de vice-presidente do clube
FIGURA 40. Estereoscópios na sala de aula. Uma das causas da grande popularidade dos estereogra- de fotografia de Nóva Iorque, preconizava uma atitude mais artística e exigente. As suas
mas deveu-se à sua boa adaptabilidade aos esquemas das actividades americanas. Por exemplo, eram primeiras fotografias inscreviam-se dentro da tradição dos amadores, mas cedo tomou
muito usados para propósitos educativos quando se deu a rápida expansão das inovações educacionais. as devidas distâncias face aos clubes, porque as suas concepções pessoais eram dema-
(Fotografia cedida pelo Visual Studies Workshop.) siado avançadas (Doty, 1978, p. 26), e porque não suportava as intromissões dos ama-
dores, por mais bem intencionadas que se apresentassem. Após ter rompido com as
práticas dos clubes, fundou a Photo-Secession (1902), começou a publicar a Camera
Work (1903) e fundou uma galeria onde as fotografias eram apresentadas como obras de

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Mundos da Arte

arte (1905). Tinham passado já dez anos desde que começara a fazer as fotografias de
edifícios, de máquinas e de habitantes de Nova Iorque que o iriam tomar célebre.
Em pouco tempo, Stieglitz criou (embora numa escala modesta) a maioria dos dis-
positivos institucionais que permitiam justificar a fotografia como uma forma de arte:
uma galeria onde as obras podiam ser expostas, um jornal que publicava reproduções
e textos de alta qualidade e que contribuía para a difusão de ideias e para a promoção
da fotografia, um grupo de pares que se apoiavam mutuamente e uma selecção de
temas e de um estilo que se demarcava das imitações da pintura em voga nessa época
(ver figura 41 ). Stieglitz, que tinha uma personalidade difícil, entrou rapidamente em
conflito com os seus pares da Photo-Secession. Isto conduziu a outro grande passo
para a consolidação do estatuto artístico da fotografia, ao cimentar os laços entre os
fotógrafos e a comunidade dos pintores e dos escultores. Edward Steichen, que já
tinha fotografado Rodin no seu ateliê, serviu de intermediário para o contacto com
este último, depois com Matisse, Cézanne, Picasso e outros grandes artistas franceses
que enviaram obras a Stieglitz para as exposições na sua galeria, situada no número
291 da Quinta Avenida, em Nova Iorque. Foi Steichen quem persuadiu Stieglitz a
expor John Marin, pondo-o em contacto com os futuros grandes nomes da pintura
americana como Marsden Hartley e Arthur Dove. Em vez de se consagrar exclusi-
vamente à fotografia, a galeria 291 começou a abrir-se cada vez mais à pintura, à
escultura e ao desenho modernos. Stieglitz proporcionou e incentivou esse encontro
entre pintores e fotógrafos. Ensinou-os a apreciarem-se mutuamente, sem nunca en-
corajar o mimetismo, presente na fotografia dita pictórica, mas insistindo sobretudo
na complementaridade das duas disciplinas. Essa aproximação, simbolizada pelo
casamento de Stieglitz com Georgia O'Keeffe, foi a conduta que sempre assumiu
até ao fim da sua longa carreira.
Stieglitz não conseguiu resolver uma das questões mais espinhosas que se colocam
a um mundo da arte: como organizar o trabalho artístico de modo a permitir que as
pessoas vivam dele? Os seus contemporâneos e os seus sucessores tinham de encontrar
uma solução se queriam fazer fotografia a tempo inteiro ou deixarem de ser apenas
amadores reunidos em clubes. Stieglitz, que estava bem posicionado, não conseguia
ganhar a vida a vender fotografias nas mesmas condições que a pintura. Os fotógrafos
eram obrigados a realizar obras que as pessoas gostavam de comprar, trabalhos de
qualidade, mas que não visavam exprimir ideias ou emoções por meio da fotografia.
Steichen (1963), por exemplo, aprendeu desde cedo a fazer retratos comerciais. Depois,
fez fotografia de moda para a revista Vogue e retratos de vedetas do mundo do espectá-
culo, antes de trabalhar para o Governo (Sekula, 197 5). Em todas estas actividades, ele
tinha de se conformar a critérios que não tinham qualquer relação com a recente tradição
histórica da sua arte: fazer retratos que favoreciam a imagem do modelo, fazer boas FIGURA 41. Alfred Stieglitz, The City ofAmbition. Stieglitz desenvolveu uma postura completamente
fotografias de vestidos, enaltecer determinadas acções de burocratas ou de militares. diferente para os problemas técnicos e simbólicos da fotografia de cidades. Fotografia a preto e branco,
1910. (Fotografia cedida pelo Art Institute ofChicago.)
Certos fotógrafos, a começar por Steichen, souberam vergar-se a essas exigências. Mas
esses constrangimentos funcionais só relegaram a fotografia para o patamar das artes
menores, obrigando os fotógrafos a pôr o seu oficio ao serviço de outras pessoas para
poderem sobreviver. Nessa época como hoje, os fotógrafos de arte (Rosenblum, 1978)

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Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

mantinham um equilíbrio precário entre os trabalhos de encomenda e as obras pessoais 1972). Os constrangimentos deviam-se à fórmula imutável adaptada para as cap:ipanhas
(hoje em dia, alguns ganham a vida como professores [Adler, 1978]). . de publicidade oficiais: dossiê de imprensa, reportagens de campanha e fotografias que
Para muitos fotógrafos, o retrato era o trabalho remunerado que menos alienava a sua elogiavam o trabalho feito pela administração. Stryker, que tinha um grande interesse
liberdade de expressão. Embora contrariado, Edward Weston (Maddow, 1973) encontrou pelas ciências sociais e beneficiava da protecção de Rex Tugwell, baniu as interferências
nessa prática uma fonte regular de rendimentos, aceitando produzir imagens exclusiva- burocráticas que pesavam sobre os seus fotógrafos, deixando-os explorar os temas em
mente destinadas a agradar ao cliente (e não a si próprio). Eram constrangimentos do profundidade, sem as interferências e sem o servilismo de um ponto de vista considerado
ofício dos quais se queria libertar, impostos pela organização flutuante do trabalho pro- como «correcto». Simultaneamente, levava-os a realizarem uma reflexão sociológica sobre
fissional de encomenda. Weston fez duas ou três coisas para melhorar o funcionamento os temas a ilustrar, o que os dis-sua~ia de reproduzirem os estereótipos artísticos, políticos
do seu mundo da arte e para permitir aos fotógrafos de arte ganharem a vida, mas as suas ou publicitários, e favorecia a eclosão do estilo documental característico desse serviço.
iniciativas foram menos espectaculares do que as de Stieglitz. Fundou o grupo f64 em Embora o trabalho feito para a Farm Security Administration tivesse uma missão
São Francisco, dedicado ao ideal da precisão e da clareza na fotografia, em oposição a política, científica ou documental, Walker Evans e outros fotógrafos também alimen-
uma postura de suavidade artística. A sua vontade de promover a fotografia de arte, bem tavam ambições artísticas. Evans conhecia muitos artistas ligados às mais variadas
como as suas ambições estéticas, posicionam-no na linha de Stieglitz. Foi o primeiro áreas, como o pintor Ben Shahn (que trabalhou durante algum tempo como fotógrafo
fotógrafo americano a receber uma bolsa Guggenheim, uma forma de ajuda material que nessa equipa), o poeta Hart Crane e o escritor James Agee (com quem colaborou em
talvez nunca tenha garantido a carreira a nenhum fotógrafo, mas que permitiu que muitos Let Us Now Praise Famous Men), entre outros. A sua inteligência, perspicácia e exi-
deles realizassem importantes projectos. Exerceu uma enorme influência na costa oeste gência no trabalho eram um reflexo da sua pertença a essa comunidade artística. Como
e noutros locais, por intermédio dos seus amigos, filhos, alunos e epígonos. recusava em absoluto vergar-se à disciplina que Stryker tentava impor, não permaneceu
Tal como Stieglitz, Weston favoreceu a aproximação entre o mundo emergente da durante muito tempo na equipa. Porém, essa experiência influenciou profundamente a
fotografia de arte e o mundo estabelecido da pintura; mais concretamente, com o mundo sua obra pessoal e conduziu-o a um estilo que fez com que os pintores e outros artistas
dos muralistas mexicanos. Em 1923, abandona a Califórnia, onde deixa a família, para passassem a valorizar a fotografia documental (ver figura 42).
se instalar no México com a fotógrafa Tina Modotti. A comunidade artística mexicana Finalmente, um mundo da arte dota-se de uma história tendente a demonstrar que,
acolhe-o como um irmão. Foi amigo íntimo de Diego Rivera, e as suas exposições e desde o início, sempre produziu obras de valor e que a sua fisionomia actual é fruto
alcançaram sempre boas vendas e críticas elogiosas. de uma evolução lógica que o coloca, sem contestação, no patamar da grande arte. Não
Graças ao exemplo e à influência dos muralistas, ou simplesmente porque não tinha esqueçamos que nos começos de qualquer mundo da arte existe uma enorme variedade
de satisfazer a vaidade dos modelos que posavam para a sua objectiva, Weston libertou- de obras produzidas por uma grande quantidade de pioneiros que trabalham à escala
-se das convenções da fotografia de retrato para realizar uma série de retratos revolucio- local. Os historiadores podem fazer uma selecção entre o que resta dessa enorme acu-
nários pela sua espontaneidade (nomeadamente os de Diego Rivera e de José Clemente mulação, para escreverem uma história que caucione a situação actual. (Kuhn [1962]
Orozco). Ao ignorar outras tantas convenções, deu um novo fôlego à natureza morta, à descreve um fenómeno análogo na história das ciências.) Esses historiadores entram em
paisagem e às cenas da vida quotidiana. Em qualquer um dos casos, Weston trabalhava cena num determinado estádio de desenvolvimento de um mundo da arte e começam a
para si próprio e não para um cliente ou para os editores, e as suas fotografias sobre temas elaborar uma versão mais ou menos oficial da história da disciplina em questão. Deixam
aparentemente pouco considerados suscitaram o interesse de artistas de renome. Como de lado a maioria das obras produzidas e só retêm algumas criações e criadores repre-
rejeitava os critérios estabelecidos do ofício em proveito de exigências mais próximas sentativos da estética supostamente conveniente à disciplina. A fotografia americana
das do mundo das artes plásticas, criou um estilo que aliava um realismo austero aos encontrou o seu historiador na pessoa de Beaumont Newhall, que foi o conservador
efeitos simbólicos do preto e branco. Durante toda a sua vida fotografou amigos, aman- responsável pelo departamento de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
tes, dunas, rochas, momentos da vida quotidiana e até legumes, de um modo que lhe A sua versão da história desta disciplina (Newhall, 1964) fez entrar no panteão alguns
granjeou o respeito das personalidades e das instituições ligadas às artes plásticas. raros eleitos entre os milhares de pioneiros já evocados. (E é interessante comparar as
Os especialistas em fotografia documental tiveram de lutar contra os constrangimentos escolhas de Newhall com o panorama muito mais ecléctico proposto pelo farmacêutico
de trabalho impostos pelos clientes, as organizações políticas mais à esquerda, ou Robert Taft [1938] na sua história da fotografia.)
organismos governamentais, por vezes progressistas, mas na maioria dos casos mais As artes que passam do estádio da inovação experimental à plena expansão de um
preocupados com a sua imagem pública (neste aspecto, diferiam pouco das agências de mundo da arte conhecem as mesmas transformações. Após criarem as condições favorá-
publicidade para as quais trabalhavam outros fotógrafos). Existem casos onde esses cons- veis ao aparecimento de uma produção abundante e independente da cultura local, onde
trangimentos foram ultrapassados: o mais interessante é o do serviço fotográfico que Roy a inovação teve lugar, os participantes de um novo mundo da arte criam a organização e
Stryker criou para a Farm Security Adrninistration de Rex Tugwell nos anos trinta (Hurley, as instituições que designam a sua actividade como arte e nada mais. A partir de então,

282 283
Mundos da Arte A Mudança nos Mundos da Arte

podem cooperar nele. Se um filme apresentar situações ou personagens características


de um determinado país, os espectadores estrangeiros não compreenderão as alusões e
as subtilezas, mesmo sendo o filme legendado, e talvez não sejam capazes de acompa-
nhar a narrativa. O público americano, por exemplo, tem dificuldade em compreender
os filmes indianos, porque eles pressupõem o conhecimento de um sistema social e
de problemas sociais e individuais para os quais ele não está sensibilizado e, portanto,
dos quais nada sabe. O cinema brasileiro contém propositadamente alusões à magia
e à possessão espiritual que escapam completamente aos espectadores estrangeiros,
fazendo com que alguns aspectos da intriga lhes sejam totalmente incompreensíveis.
A diferenciação da sociedade em subgrupos (segundo critérios de idade, raça, sexo
ou de classe social, pelo menos) tende a privar cada grupo de uma parte dos conheci-
mentos convencionais necessários para compreender as obras de arte destinadas a outro
grupo. (Esta questão foi objecto de uma profunda análise: ver Ganz, 1974, Bourdieu
et ai., 1965, Bourdieu e Dorbell, 1966, DiMaggio e Useem, 1978.) Quando certos
grupos relativamente importantes ignoram as convenções que sustentam uma obra, a
difusão da mesma torna-se forçosamente limitada (Bourdieu, 1968), e isso entrava o
crescimento do mundo que a produz.
As diferenças culturais entre as nações ou grupos sociais limitam a difusão das obras,
FIGURA 42. Walker Evans, Ho11Ses and Billboards, Atlanta, Georgia, 1936. Walker Evans, trabalhando mas têm muito menos efeitos sobre a sua produção. O saber profissional partilhado
sob os constrangimentos de uma agência governamental, criou um estilo que fez com que os pintores pelos participantes de um mundo da arte permite-lhes comunicarem entre si, para lá
e outros artistas levassem a sério a fotografia documental. Fotografia a preto e branco. (Reprodução
dessas barreiras, na linguagem vernácula do seu oficio. Desse modo, torna-se possível
cedida pela Library ofCongress.)
para os músicos e os cantores vindos dos quatro cantos do mundo cooperarem na
estão em condições de convencer os membros de outros mundos da arte de que aquilo produção de uma ópera, tal corno acontece com os actores e os técnicos de diversas
que fazem também é arte, e todo o aparelho constituído desse modo poderá encontrar nacionalidades quando realizam um filme em conjunto.
um lugar no seio daquilo que a sociedade reconhece como arte. Os mundos da arte entram em declínio quando determinados grupos deixam cair
no esquecimento as convenções que conheciam e utilizavam para produzirem as suas
obras características, ou quando se torna impossível recrutar novos participantes. Foi
LIMITES AO CRESCIMENTO E DECLÍNIO desse modo que assistimos ao declínio do mundo da estereoscopia. Embora ainda
se encontrassem estereograrnas e estereoscópios nalguns lares americanos até aos
Os mundos da arte acabam por atingir os seus limites quando atingem um máximo anos cinquenta, a estereoscopia tinha-se tornado, nessa época, um anacronismo para
na acumulação de recursos e de pessoas interessadas em participar neles. Certos mundos a maioria das pessoas. Já em 1927, a Sears deixara de consagrar páginas inteiras do
atingem esse pico e mantêm-se aí durante muito tempo. Parecem tão sólidos quanto seu catálogo a esse tipo de produtos, optando por pequenos anúncios onde se reuniam
nos parecem hoje em dia os mundos do romance, do cinema ou da dança clássica. Mas disfarces e máscaras, objectos de decoração, brinquedos e «surpreendentes máquinas
nada é eterno, e os mundos da arte não são uma excepção. Muitos vão-se transformando miniatura a vapor».
de maneira gradual. Outros atingem tal grau de declínio que quase podemos afirmar O que aconteceu? O gosto do público pelas imagens não havia certamente esmo-
que estão mortos, ainda que poucos desapareçam por completo (como vimos, certas recido. Foi nessa época que os periódicos ilustrados, o cinema e depois a televisão
instituições asseguram a sobrevivência de uma grande quantidade de obras de arte para se tornaram os principais suportes da comunicação de massas. As novas formas de
as quais já não existem produtores nem público). satisfazer esse gosto não tinham, necessariamente, de erradicar as anteriores. Se os
Como o crescimento dos mundos da arte passa pela difusão dos seus modos de periódicos ilustrados, o cinema e a televisão coexistiam, por que é que a estereoscopia
organização e das suas convenções, qualquer obstáculo a essa difusão representa um ficava de fora? A repentina desafectação do público também não correspondia a urna
limite ao crescimento. Assim, as diferenças sociais, étnicas, sexuais ou geográficas perda de interesse pelas imagens tridimensionais. As imagens ocupam um lugar cada
nas práticas culturais restringem o público potencial das obras de um mundo da arte. vez mais importante nas actividades pedagógicas, como o testemunha a crescente
As pessoas que ignoram as convenções fundamentais de um trabalho artístico não afirmação dos meios audiovisuais e a abundância de fotografias nos manuais escolares.

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Mundos da Arte

Utilizamos sempre imagens para nos informarmos sobre aquilo que se passa no mundo
e para nos divertirmos em casa (onde as projecções de diapositivos substituíram o
álbum de família).
Então, como explicar o declínio da estereoscopia? Na minha perspectiva, isso
aconteceu porque ela não soube modificar, de modo suficientemente rápido, nem
a sua iconografia nem as suas técnicas a fim de evitar tomar-se obsoleta, o que
não é perdoável numa sociedade tão ávida de modernidade. Esta falha de adap-
tação desencadeou uma cadeia de outros fenómenos destrutivos, e as instituições
do mundo da estereoscopia sucumbiram a uma reacção em cadeia perfeitamente
simétrica à que tinha presidido ao seu crescimento. Quanto mais diminuía o
volume de vendas, menos os fabricantes se sentiam incitados a investir na produção ou
em modernizar o seu material. Estavam menos dispostos a encomendar novas séries de 11
imagens aos fotógrafos e tinham todos os motivos para explorar ao máximo o mate-
rial existente. Os fotógrafos desviaram-se desse mercado moribundo e começaram a A REPUTAÇÃO
interessar-se por soluções mais prometedoras. Os clientes também se afastaram dessa
actividade decididamente antiquada.
O declínio raramente conduz a uma morte absoluta. Certos coleccionadores possuem
ainda estereogramas e estereoscópios, a música perpetua-se sob a forma de partituras e Centrámos a nossa análise sobre os mundos da arte, tratando-os como produtores de
de gravações, e a dança (a mais efémera de todas as artes) subsiste na memória ou nas obras de arte, debruçámo-nos sobre as suas carreiras, as suas actividades e realizações
novas coreografias. Igualmente importante, muitas artes ou géneros em declínio mantêm em vez de nos de~ruçarmos sobre os artistas. Esta perspectiva é contrária àquela que é
os seus adeptos entre aqueles que outrora foram aficionados incondicionais. Nos Estados normalmente aceite ~elo senso comum e até à da opinião mais esclarecida, para quem
Unidos, os tipos de música popular mudam e sucedem-se a um ritmo incessante. Por as o~ras de arte constituem produções exclusivamente pessoais dos artistas. Quando se
exemplo, passámos do dixieland ao jazz clássico, depois das grandes bandas de swing decide adoptar uma perspectiva desta ordem, não é por ela ser a única a permitir uma ·
ao rock. Mas cada um destes estilos manteve os seus aficionados no seio das gerações c?rr~cta apreensão do te~na, m~s porque faz aparecer certas coisas que ficariam invi-
que cresceram com eles. Cada vaga de inovações deposita uma camada de sedimentos siveis sob outra perspectiva. F01 portanto para explorar essa vantagem que insistimos
onde se reencontram todos os praticantes e todos os amadores que não podem, ou não talvez excessivamente, na dimensão colectiva da produção e do consumo artístico. '
querem, reconverter-se e acompanhar a última onda de novidades. Neste último capítulo, levaremos ainda mais longe este aspecto examinando a
Portanto, os mundos da arte nascem, crescem, transformam-se e morrem. Os artistas qu~stão, central tanto para os leigos como para os profissionais, da reputação pessoal dos
que neles participam deparam-se com problemas diferentes, dependendo da situação ~rtistas; O~ mun?os_ d~ arte ~on~troem sistematicamente reputações, porque conferem
em que o seu mundo se encontra. Os tipos de obras que podem realizar também mu- importancia aos mdividuos, aqmlo que eles fizeram e ao que são capazes de fazer. Dado
dam, bem como as expectativas reservadas a essas obras. Um trabalho artístico dura que_cada aspecto ~as actividade~ ~ da organização de um mundo da arte desempenha
se se apoiar numa organização que o preserve e proteja. Tanto o senso comum como aqm ~m papel p~~1cular, uma a~alise da reputação como processo social permitir-nos-á
as teorias estéticas instauram a duração como um critério determinante da excelência recapitular os vanos desenvolvimentos propostos no decorrer deste livro.
artística, ou seja, da reputação. No último capítulo, as análises precedentes servirão para ~e:á também a oca~ião ~e evocar determinadas questões estéticas que ocupam
clarificar a questão da reputação e para reperspectivar determinadas teorias correntes trad1c10nalmente a soc10log1a da arte. Como se afirmou no prefácio, não subesti-
sobre a arte e a sociedade. ma~os essas q~es:õ~s, mas quisemos apenas abordar a arte sob um ângulo mais
estnta1:1ente soc10log1co e centrar a atenção sobre a organização social dos agentes
~nvolv1do~ ~o pro~es~o. de criação artística e respectivos públicos. Não se quis uti-
lizar a analise soc10log1ca para resolver problemas de comparação dos valores na
arte nem para avaliar em que medida é que a própria forma das obras é determinada
pela acçã? dos diver~?s factores sociais, o que conduziria a transformar a sociologia
numa vanante da cntJca de arte. Mas as interrogações, as respostas e as diligências
propostas até aqui não surgem evidentemente isentas de uma estreita relação com

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Mundos da Arte A Reputação

tais problemáticas (como o demonstra, por exemplo, o capítulo consagrado aos A nossa teoria da arte concede demasiada importância à personalidade dos artistas
estetas e aos críticos). É essa relação que examinaremos neste capítulo, centrando- para os deixar num tal anonimato. Entretanto, mesmo nas sociedades ocidentais, essa
-nos nas obras que «duram», e onde veremos como a nossa concepção da perenidade singularidade do artista nem sempre lhe foi reconhecida:
das obras (que interpretaremos como uma questão de reputação) influencia a compre-
ensão que temos das questões de crítica e de estética já evocadas. A definição contestada, mas dominante, que a nossa sociedade atribui à arte e ao artista é fruto de
um processo de dif~renciação das actividades humanas cuja origem poderíamos situar na época
do Renascimento. E sobretudo em Itália, em finais do século xv, que as actividades do pintor,
do escultor e do arquitecto, tomadas como radicalmente distintas dos oficias manuais, acedem
A REPUTAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL à dignidade de artes «liberais». O artista deixa de ser um artesão e passa a ser considerado um
criador, uma espécie de alter deus subtraído às normas comuns; a representação carismática do
Os mundos da arte, sob a intervenção dos mais variados tipos de actividades artista conjuga-se com uma imagem aristocrática da obra de arte, única e insubstituível. Estamos
solidárias, fazem e desfazem constantemente reputações - das obras, dos artis- perante o começo das ideias modernas sobre o criador e o objecto da criação.
A segunda etapa coincide com a primeira revolução industrial, no século XVIII. Apartir de então, o
tas, dos movimentos, dos géneros e das disciplinas. Destacam algumas criações produto artístico tende a definir-se por oposição ao produto industrial. A mão do homem opõe-se
e alguns criadores de mérito de entre as múltiplas obras mais ou menos parecidas à máquina, o trabalho indiviso ao parcelar, a singularidade do objecto único à produção em série
e cujos autores são mais ou menos intercambiáveis. Recompensam esse mérito através de objectos iguais. O facto industrial que se traduz, em termos de moral humanista, pela condição
de marcas de estima e frequentemente, embora nem sempre, através de gratificações de alienação no seio da cadeia de produção conduz, em termos de economia, à negação da uni-
materiais. Depois de consagradas as reputações, recorrem a elas para organizar outras cidade, fundamento da raridade. Para salientarem a especificidade do seu produto relativamente
ao produto artesanal e simultaneamente ao produto industrial, os artistas procuraram abolir da
actividades, tratando de maneira diferente as coisas e as pessoas mais reputadas. sua prática o factor comum aos outros dois, ou seja, o projecto utilitarista: a teoria filosófica
da arte como finalidade sem fim justificava a sua sobrevivência. Ao reclamarem para si o mono-
pólio da produção da sublime gratuitidade e da diferença essencial (por oposição à semelhança
A TEORIA DA REPUTAÇÃO dos objectos provenientes das séries industriais ou à pequena diferença que permite distinguir
entre si os objectos de uma mesma série artesanal), os artistas do século XIX salvaguardaram a
Seria inútil consagrar tempo e esforço para estabelecer e dar a conhecer as reputa- raridade e, por ela, a possibilidade de valorização social e económica dos bens simbólicos que
produziam. (Moulin, 1978, pp. 241-42)
ções se não subscrevêssemos uma teoria precisa, estritamente individualista, da arte
e da criação artística. Essa teoria pode ser formulada do seguinte modo: (1) pessoas
especialmente dotadas (2) criam obras de uma profundidade e beleza excepcionais Portanto, a teoria da arte que motiva a criação de reputações não é intemporal.
que (3) exprimem emoções e valores culturais essenciais. (4) As qualidades da obra Ela surge nas sociedades onde prevalecem as doutrinas que valorizam o individual
atestam os dons particulares do seu autor, e os dons particulares pelos quais esse autor em detrimento do colectivo, e apenas sob determinadas condições sociais. Uma vez
é conhecido garantem a qualidade da obra. (5) Como as obras revelam as qualidades estabelecida, essa teoria pode ser adoptada por sociedades que até então não tinham
essenciais e o mérito do seu autor, é a totalidade da produção de um artista, e apenas esse género de preocupação.
esta, que deve ser considerada para a sua reputação. O primeiro postulado da teoria da reputação defende o carácter excepcional dos
Esta teoria, note-se, não é válida para todos os tempos nem para todas as culturas. dons do artista. Isto leva-nos à definição do artista enunciada por uma personagem de
Muitas sociedades nunca tiveram uma teoria como esta (e por isso nada sabemos Stoppard, que citámos no primeiro capítulo: «Um artista é alguém suficientemente
acerca dos seus artistas): dotado para fazer mais ou menos bem aquilo que outros, que não possuem tais do-
tes, não conseguem de modo algum realizar ou que fazem mal.» (Stoppard, 1975,
Na Idade Média, o artista é um indivíduo incógnito sob a fachada da Igreja ou da sua corporação. p. 38). A ênfase recai sobre aquilo que distingue os autores de obras notáveis. Essas
Os historiadores gregos, romanos e chineses foram os únicos, na Antiguidade, a relatar alguns obras não são fruto do acaso. Nem todos conseguem realizar grandes obras, mesmo
detalhes sobre as condições de vida de alguns dos seus artistas. No que respeita aos artistas sob o efeito de uma feliz inspiração, e se algumas obras têm valor é apenas porque
do Antigo Egipto, não possuímos senão alguns nomes e pequenos relatos. Os documentos das
outras civilizações da Antiguidade, da América, de África e da Índia, nada nos dizem sobre a são realizadas por pessoas fora do comum, e cujo número é muito reduzido. Se essas
vida dos artistas. Contudo, os trabalhos dos arqueólogos mostraram-nos por diversas vezes pessoas fazem um trabalho importante, resta-nos saber quem são para as ajudarmos,
a existência de sistemas de produção manufactureira em constante e rápida evolução nos gran- para lhes oferecermos condições de trabalho favoráveis e não as incomodarmos du-
des centros urbanos, que provam a presença de pessoas que podemos qualificar como artistas. rante as suas actividades. Raymonde Moulin (1978) e muitos outros autores defendem
(Kubler, 1962, p. 92) · que, a partir de Marcel Duchamp, o artista se sobrepõe cada vez mais à obra nas artes
plásticas, já que tudo o que um artista faz é automaticamente arte.

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Mundos da Arte A Reputação

Esta assimilação automática é um princípio recusado pela maioria dos que subs- emoções raras e revelam os talentos fora do comum desses criadores. Mas não esque-
crevem a teoria da reputação. Ao contrário, eles pensam que os artistas criam obras çamos a experiência de Trollope, que citei no primeiro capítulo: chegado ao topo da
(objectos ou manifestações) particularmente belas ou profundas, que se distin~em da carreira, empreende a publicação de romances sob um outro nome e apercebe-se de que
massa das obras aparentemente similares. A teoria admite que, ao serem respeitadas as o nome Trollope engendrava qualidades literárias aparentemente indiscerníveis na sua
regras que regem a produção artística, muitas pessoas podem criar ~úsicas aceitáveis, ausência. Abstenhamo-nos aqui de qualquer fácil ironia. Quando sabemos que aquele
romances legíveis e pinturas não completamente desinteressantes. E sempre possível que realizou a obra é um criador de talento confirmado, concedemos-lhe uma maior
escrever uma tragédia apoiando-se nos princípios da Poética de Aristóteles. O res- atenção e discernimos aquilo que teria escapado a um olhar mais superficial dado a
peito pelas convenções permite ao produtor passar por competente, mas não garante uma obra da qual não esperamos nada de especial. Também nós «conhecemos a obra de
a importância da obra produzida. Contudo, segundo a teoria que nos ocupa, as obras artesão», onde os talentos concedem às obras uma caução que, de outro modo, nunca
não são simplesmente credíveis, mas realmente extraordinárias quando aqueles que teriam. (É mais complicado do que isto. A importância de certas obras pode advir da
utilizam as convenções, e que, segundo as necessidades, as modificam ou inventam comparação com os trabalhos anteriores do autor: apreciamos mais a boa construção
outras, possuem dons particulares. Essas obras destacam-se da massa bruta como os dos últimos romances de Dickens por contraste com as suas primeiras obras.)
romances de Dickens se destacam dos milhares de obras mais ou menos comparáveis Dado que aferimos o talento de um artista pela observação da sua obra, e dado que
produzidas em Inglaterra no século XIX, como as gravações de Louis Armstrong se essa capacidade constitui uma condição essencial para qualquer participante de um
destacam dos milhares de interpretações dos primeiros trompetistas de jazz. Elas pos- mundo da arte, ela terá de ser feita com algumas precauções. Temos nomeadamente de
suem mais, muito mais, «beleza» ou «profundidade». nos apoiar em dados seguros, o que pode conduzir a diversos tipos de investigações.
Quanto a saber qual a origem dessa «beleza» ou «profundidade», é um velho debate Tentamos estabelecer o completo inventário das obras autênticas do artista para dis-
que divide os estetas, o público e os outros participantes de um mundo da arte. Para pormos de todos os elementos necessários para uma correcta avaliação. Procuramos
uns ' as obras de arte devem ser fiéis à realidade.
.
Devem, sem a tomar irreconhecível, reconhecer os plágios para evitar falsas atribuições. O que levanta o duplo problema
mostrá-la a uma nova luz e sensibilizar-nos absolutamente para problemas filosóficos da atribuição e da autenticidade.
essenciais, como o sentido da existência humana e os ideais da vida colectiva. O romance Os artistas, por seu lado, ao perceberem como é que os mundos da arte levam em
e a pintura realistas, o teatro e o cinema que tratam problemas morais, psicológicos ou linha de conta as suas obras para determinarem a sua reputação, procedem à triagem
sociais (por exemplo, a fotografia documental), satisfazem essa primeira exigência. da sua produção. Destroem as obras que não querem que sejam consideradas, ou
Para outros, o maior interesse das obras reside na estrutura interna, na sua nova forma, consideram-nas inacabadas. Em determinados países (em França, por exemplo), a lei
insólita ou estimulante de abordar os problemas que dizem respeito à tradição da sua permite-lhes recorrer à justiça para proibirem a divulgação das obras que não desejam
disciplina. A pintura, que explora os modos de representação da luz e do volume sobre que lhes sejam oficialmente atribuídas. Distinguem várias categorias nas suas obras.
a superfície da tela, a fotografia, que joga com os paradoxos da percepção visual, o Assim, por vezes, os fotógrafos separam o seu trabalho «comercial» (que deve ser
romance, que tira partido das rigorosas construções formais, e mais ainda a música, omitido para efeitos de avaliação da sua arte) do seu trabalho «pessoal» (o único a
onde se toma patente o facto de a aplicação de regras estritas a um conjunto limitado ser tido em consideração), no qual preferem investir. Retocam certas obras anteriores
de materiais sonoros permitir a construção de obras de uma lógica impecável. quando isso é possível, tal como o faziam Stravinsky ou Henry James.
Muitos praticantes amadores de uma arte, senão todos, podem encontrar esses dois É sobre este conjunto de cinco postulados que os mundos da arte se fundamentam
tipos de qualidades nas obras que admiram. Apreciam os retratos do Renascimento tanto invariavelmente para fazer, manter e desfazer as reputações.
pela penetrante observância dos traços humanos intemporais, como pelas pesquisas
sobre a luz e a perspectiva. Admiram Dickens pela análise social, a indignação moral
e pelas suas inesquecíveis personagens, mas também pela construção formal da sua OS NÍVEIS DE REPUTAÇÃO
arte. Outros, mais rigorosos, não reparam senão num destes dois tipos de qualidades.
Aquilo que faz a excelência artística varia evidentemente segundo as épocas e os Os artistas não são os únicos a terem uma reputação: as obras também a possuem.
lugares. Mas poderíamos afirmar que, de um modo geral, esperamos que uma obra «O melhor romance dos últimos dez anos», <<A mais extraordinária obra de ficção latino-
excepcional realizada por um artista de talento excepcional toque profundamente o -americana», «Uma das dez mais importantes pinturas do século XX» ... Os membros de
seu público e que o faça (o que talvez seja menos evidente) apoiando-se em emoções um mundo da arte fazem constantemente juízos deste género. Não se trata de aprecia-
e valores humanos fundamentais (e talvez universais). ções sobre os autores, mas sobre o modo como as suas obras resolveram determinadas
As criações e os criadores estão ligados por relações recíprocas. O que é que nos questões, equacionaram possibilidades e ultrapassaram constrangimentos próprios ao
demonstra que certos artistas possuem dons excepcionais? As suas obras, que suscitam que George Kubler (1962) chamou «classes de formas». Comparam-se obras que se

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Mundos da Arte A Reputação

assemelham entre si, sem grandes preocupações relativamente à sua autoria. Ao con- pessoais (como por exemplo, a construção das torres Watts) não têm uma denominação
trário do que afirma a teoria da reputação, um artista medíocre pode ter um rasgo de e ainda menos uma reputação. Para todos os casos, a reputação da disciplina reflecte
génio e produzir uma grande obra ao longo da sua carreira. Nesse caso, a reputação da um juízo dado à importância relativa das obras que podem vir à luz do dia.
obra eclipsa a reputação do artista. E a verdade é que existem grandes obras de autores Nos mundos da arte, as reputações de todos os níveis baseiam-se num consenso e,
anónimos, ou dos quais já nada se sabe. Kubler nota que esse é um fenómeno comum portanto, estão sujeitas a variações. Certas disciplinas subalternas são enobrecidas,. a
à maioria das grandes tradições culturais. maior obra do século XX é destronada por uma nova revelação (tal como as maiores
Os movimentos artísticos também têm reputações em parte construídas sobre obras dos séculos anteriores podem ser eclipsadas por redescobertas), certos géneros
as reputações de vários artistas e das suas obras. A reputação (controversa) que caem em descrédito e determinados artistas que eram tomados como de segundo plano
possuem, por exemplo, a música serial ou o teatro «psicotécnico» de Stanislavsky são elevados aos píncaros, enquanto os ídolos perdem a sua notoriedade.
baseia-se sobre as obras e os criadores em questão, mas sem se confundir com elas.
Um movimento é reputado se a utilização das convenções que lhe são próprias
puder, consoante a avaliação do mundo da arte, conduzir a criações importantes. REPUTAÇÃO E MUNDO DA ARTE
É possível compor uma música expressiva quando se é obrigado a observar as com-
plicadas regras da série de doze tons? Será possível a total manifestação do talento A teoria afirma que as reputações se baseiam nas obras. Mas, na realidade, as re-
e da sensibilidade individual numa composição musical que implique a intervenção putações dos artistas, das obras, dos géneros e das disciplinas decorrem da actividade
do acaso, num nível que condicione a iniciativa pessoal dos intérpretes em cada nova colectiva dos mundos da arte. Se examinarmos as principais actividades dos mundos
execução? Os membros de um mundo da arte que respondem pela negativa determi- da arte sob esta perspectiva, veremos em que é que todas elas concorrem para formar
nam simultaneamente a reputação de todos os artistas e de todas as obras ligadas a e influenciar as reputações.
esses movimentos. Para que as reputações se imponham duradouramente, os críticos e os estetas de-
Os géneros artísticos também adquirem reputações segundo a importância das obras vem estabelecer teorias da arte e critérios que permitam reconhecer a arte, a arte de
que os mundos da arte delas exigem. Em França, a Academia Real de Pintura e de qualidade e a grande arte. Sem tais critérios, ninguém poderia formular juízos acerca
Escultura tinha estabelecido uma hierarquia dos géneros que White e White resumiam das obras, dos géneros e das disciplinas que, por sua vez, determinam os juízos acerca
do seguinte modo: dos artistas. Recordemos o que Danto afirmava:

1. Os temas clássicos e cristãos são os únicos temas legítimos. Para considerar uma coisa como arte, é necessário algo que o olhar não consegue discernir, um
2. Apenas as fonnas mais «perfeitas» (tais como as presentes na escultura clássica e na pintura ambiente de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte. (Danto,
1964,p.580)
de Rafael) deverão ser consideradas para representar tais temas.
3. Apenas um conjunto restrito de «nobres» gestos e posições expressivas (de proveniência
clássica ou renascentista) são próprias para a representação da figura humana. Do mesmo modo, os historiadores e os especialistas devem estabelecer a lista
4. A figura humana é a mais elevada fonna e expressa a mais perfeita e «absoluta» beleza. completa das obras autenticadas do artista, para nos permitirem basear os nossos juízos
5. A composição pictórica deverá preservar a hannonia, a unidade e o equilíbrio clássicos; não sobre dados seguros. O sistema de distribuição serve-se desses juízos autorizados para
deverão existir elementos discordantes seja de fonna ou de expressão. decidir aquilo que irá difundir (e a que preço):
6. O desenho constitui a integridade da arte. (White e White, 1965, pp. 6-7)
Os dois principais factores que introduzem, ao nível da oferta (da pintura antiga), garantias
Nesta perspectiva, temas como as naturezas-mortas e as cenas da vida quotidiana de raridade e de qualidade são· os seguintes. Cada obra posta à venda é única e insubstituível: é
parecem impróprias para expressarem os sentimentos nobres, que são os únicos pas- o produto único do trabalho singular de um criador único. A autenticidade e a originalidade, bem
síveis de suscitar verdadeiras emoções artísticas no espectador. como a qualidade das obras, são garantidas por um corpo de especialistas, os historiadores de arte.
Por último, também as disciplinas artísticas têm as suas reputações. Algumas, como (Moulin, 1978, pp. 242-43)
a pintura de cavalete, detêm a maior consideração possível: é arte, e ninguém o põe
em dúvida. A outras disciplinas, como a tecelagem ou a vidraria, cabe-lhes a reputa- Os intervenientes no sistema de distribuição influem sobre a forma das obras ao
ção menos gloriosa no conjunto das artes decorativas ou menores. Outras ainda, têm fixarem as normas daquilo que é «distribuível»: as esculturas não podem ser dema-
a reputação de artes tradicionais, como as colchas e a talha em madeira, ou de artes siado pesadas para as estruturas dos museus, e as obras musicais não devem exceder
populares, como a música rock e as telenovelas. Certas formas de expressão muito uma determinada duração para não desmotivar o público dos concertos. Alguns destes

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Mundos da Arte A Reputação

às novas técnicas. Os realizadores de cinema, de rádio e de televisão transformaram des-


intervenientes chegam a tomar uma parte activa na concepção da obra, como acontecia se modo o nosso mundo actual ( ... ). No primeiro caso, é toda uma sociedade que, após
com os mecenas dos pintores do Renascimento. O Estado garante aos artistas o direito grandes transformações, se reorganizou seguindo novas linhas de força, e será necessário
sobre a divulgação ou a distribuição das suas obras, dando-lhes deste modo garantias um século ou dois para dominar toda a complexidade dessas mudanças. (Kubler, 1962,
sobre o conteúdo daquilo que será considerado como a sua obra completa. pp. 87-88)
Embora as reputações procedam da actividade cooperativa dos membros de
um mundo da arte, não deixam de se basear nas obras produzidas pelos artistas.
Consequentemente, tudo aquilo que concorre para a realização das obras tem uma Ao criar as condições favoráveis a um ou outro tipo de carreira e de desempenho,
influência directa ou indirecta sobre as reputações. Certos artistas de uma mesma os participantes de um mundo da arte (aqui alargado a toda a sociedade) determinam
escola forjam uma tradição, uma determinada linguagem, com as suas convenções, os meios passíveis de construção de uma reputação.
um conjunto de modelos a imitar, a consultar ou a combater, e todo um domínio Resumindo, o conjunto das actividades cooperativas que desembocam na produção
artístico onde cada obra criada adquire significado: das obras também contribui para construir as reputações das obras, dos criadores e dos
movimentos, géneros e disciplinas artísticas. Essas reputações indicam simultanea-
Toda a obra de arte importante pode ser simultaneamente considerada como um acontecimento mente o nível de qualidade da obra na sua categoria, o nível de talento do artista, a
histórico e como a resolução de um problema dificil (... ). Qualquer solução indica a existência fecundidade do movimento a que pertence e a natureza artística ou não do género e da
de um problema para o qual já se apresentaram outras soluções (... ) e existem fortes hipóteses de disciplina.
se imaginarem novas soluções a partir daí. À medida que as soluções se acumulam, o problema Como já vimos, os mundos da arte possuem dimensões muito variáveis, que vão
transforma-se. (Kubler, 1962, p. 33)
do pequeno grupo local e hermético até à vasta rede internacional. As reputações
Muitas outras pessoas ajudam o artista a fazer inúmeras escolhas que determinam não podem ser da mesma ordem em organizações tão diferentes, e nalgumas delas
a forma definitiva da obra, ou efectuam elas próprias algumas dessas escolhas sem é difícil pôr em prática a teoria da reputação. Pense-se nas dificuldades levantadas
consultarem o artista. Ora, quando se trata de avaliar a produção do artista e de lhe pelas características de determinados sistemas de distribuição. A teoria pressupõe
forjar uma reputação, os mundos da arte procedem por comparação com aquilo que qualquer coisa de semelhante à condição de informação perfeita implicada na defi-
outros fizeram no mesmo domínio, e conformam-se à teoria individualista da repu- nição da concorrência económica perfeita: todos aqueles cuja opinião pesa sobre as
tação: ignoram sistematicamente tudo o que essa produção deve à acção de outros reputações têm supostamente acesso a todas as obras a considerar, antes de se formar
participantes. um juízo. Supostamente ouviram todas as peças de música, leram todos os romances
Quanto ao público, ao reconhecer a mestria com que são utilizados os meios con- ou poemas, viram todas as peças de teatro ou todos os filmes. Alguns mundos da arte
vencionais e ao viver as emoções e a profundidade daí resultantes, põe a teoria em internacionais, os da grande ópera e do cinema de longa-metragem, não estão longe
prática: aceita as interferências e as conclusões sugeridas por aquilo que já conhece desse ideal. Aqueles que verdadeiramente se interessam, viram ou ouviram todas as
da obra para avaliar o autor. obras importantes (nem que tenha sido sob a forma de transmissão televisiva ou de
A intervenção de todos estes participantes cria o contexto no qual o artista define gravação), acompanharam a carreira de todos os artistas e podem realmente fazer as
os seus problemas e encontra as soluções que lhe dão ou subtraem reputação. Kubler suas avaliações com um total conhecimento de causa.
sublinha que o estádio de evolução de um problema artístico e a organização da Mas em muitos mundos da arte, os mecanismos de selecção, que permitem aos
sociedade determinam em conjunto o leque de hipóteses que se apresentam ao artista. mais esclarecidos ocuparem-se apenas com aquilo que é realmente importante, não
Ele evoca: funcionam muito bem. Existe um extensíssimo material, demasiadas obras e demasiada
gente para ser tida em consideração. O postulado da informação perfeita não faz
os artistas pacientes e perseverantes como Claude Lorrain e Paul Cézanne, que consagraram a sentido. Num estudo sobre as revistas literárias americanas, Michael Anania (1978,
sua vida a um único e verdadeiro problema. Ambos se dedicaram à paisagem (... ). Estes artistas pp. 8-9) contou, pelo menos, mil e quinhentas destas revistas (com inéditos de ficção,
não encontram um clima favorável senão em períodos muito especiais onde o prestígio de de- poesia e crítica) só para o ano de 1978. Entre elas, «apenas duas ou três têm uma
terminados oficios dá às pessoas de temperamento meditativo o tempo suficiente para atingirem tiragem de cerca de dez mil exemplares (... ). A maioria publica menos de dois mil e
os seus exigentes ideais de excelência. (Kubler, 1962, p. 87)
muitas não atingem uma centena de leitores». Ninguém consegue ler todas essas
Por outro lado, outras conjunturas são favoráveis às: publi-cações. Ninguém o faz. Os autores contemporâneos publicados pelas pequenas
revistas não podem, portanto, basear a sua reputação sobre o consenso de um grande
personalidades versáteis. Vemo-las surgirem em conjunturas de renovação social ou técnica mundo da arte, apesar de a literatura e a poesia serem indiscutivelmente artes com um
(... ). No segundo caso, é toda a experiência humana que tem de se adaptar repentinamente verdadeiro alcance internacional. Não que a produção destes autores seja desprovida

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Mundos da Arte A Reputação

de valor, consoante aos critérios estéticos em vigor, mas o funcionamento do sistema O QUE PERDURA?
de distribuição não permite conhecer tudo o que seria necessário para se fazerem
comparações e juízos seguros. Isto origina um cruel dilema para os escritores: a pro- A maioria das teorias estéticas e as correntes mais tradicionais da sociologia da
liferação de revistas multiplica as suas hipóteses de publicação, mas sem lhes dar a arte insistem sobre a possibilidade, e a necessidade, de se fazerem juízos qualitativos
esperança de adquirirem uma grande notoriedade, mesmo se a pequena reputação que sobre as obras de arte. Explicam como é que se distinguem as obras excepcionais das
as pequenas revistas pode criar seja melhor do que nada. vulgares, e sublinham que essa distinção deve ser a pedra angular de qualquer análise
A distribuição coloca ainda um outro problema, o da língua. Se as linguagens séria ou racional da arte enquanto actividade humana. Se a arte exprime valores cul-
da música e das artes plásticas são, num certo sentido, internacionais, a literatura, turais e emoções humanas fundamentais, determinadas manifestações artísticas fazem-
confronta-se com a barreira das línguas. De facto, apenas algumas línguas indo- -no melhor do que outras, e são essas que é necessário examinar para se compreender
-europeias estão suficientemente espalhadas para que as suas literaturas tenham verdadeiramente o fenómeno da arte. Uma análise deste tipo podia, à semelhança da
algumas hipóteses de aceder ao renome internacional. Um romancista que escreva Poética de Aristóteles, conter os melhores exemplos de um género e procurar discer-
em francês ou em espanhol dirige-se a um público mais vasto e tem maiores hipó- nir aquilo que têm em comum. Na sociologia da arte tradicional (ver, por exemplo,
teses de adquirir uma reputação internacional do que um romancista de língua Lowenthal, 1957, Lukács, 1975, Goldmann, 1964, 1967), admite-se geralmente que
portuguesa, e a fortiori de língua hindu, tamil ou suaíli. Milhões de pessoas falam para analisar «as íntimas relações entre a criação literária e a realidade social e histó-
estas três línguas, mas não aqueles que fazem as reputações literárias internacionais. rica (... ), é possível estudar os pontos mais altos da criação literária bem como a
De vez em quando, os académicos suecos atribuem o prémio Nobel a um escritor produção média, e a escolha desta é particularmente conveniente» (Goldmann, 1967,
que utiliza uma língua menor e que não beneficia da vasta difusão assegurada pelas p. 495).
traduções em línguas internacionais. Nada disso faz evoluir a situação: se o prémio Mas quais são as melhores obras? Como reconhecê-las? A maneira mais corrente
Nobel distinguir um autor islandês, por exemplo, é certo que a maioria do público de resolver o problema consiste em invocar o bom senso e a experiência colectiva,
mundial não sabe nem nunca saberá islandês, e nesse sentido o prémio constitui aquilo que «cada um sabe». Ora, aquilo que cada um sabe (é diariamente constatado)
um gesto sem consequências para o mundo da literatura. Quando se pertence a é que determinadas obras perduraram anos, séculos ou mesmo milénios. Resta saber
uma comunidade linguística restrita, não se pode possuir uma grande reputação no o que se entende exactamente por «perdurarn. Não se trata apenas de uma sobrevivên-
mundo da literatura. cia material, mas sobretudo da manutenção do apreço testemunhado por muitas pes-
As reputações repousam, já o afirmámos, sobre as qualidades das obras tal soas. Portanto não é absurdo considerar que o facto de uma obra perdurar seja uma
como delas se apercebem os participantes dos diversos mundos da arte. Mas não questão de reputação. Mais exactamente, uma obra que perdura é uma obra que man-
as reflectem automaticamente, porque para isso seria necessário que os mundos da tém durante muito tempo a sua boa reputação.
arte detectassem essas qualidades de modo infalível, sem nunca cometerem erros Adoptando a perduração como critério de identificação da grande arte, exclui-se
nem omitirem obras de valor. Ora, abundam provas de que isso não se passa assim, todo o relativismo face à avaliação das obras de arte. Recorrer ao critério da perdu-
e muitas questões abordadas nos capítulos anteriores mostraram-nos isso. De modo ração é admitir, em conformidade com a teoria aqui examinada, que as reputações
semelhante, as observações aqui feitas, ainda que resumidas, demonstram bem que perduram quando procedem de um consenso e que este surge através de um processo
determinados elementos fundamentais da teoria da reputação contradizem os factos, histórico.
nomeadamente os que atribuem o mérito ou a responsabilidade do resultado exclu- A teoria que explica a perenidade das grandes obras é uma teoria de universais.
sivamente ao artista e ignoram os contributos de todos os outros participantes aos Os estetas e os exegetas da arte procuram frequentemente universais culturais: modos
quais já nos referimos prolongadamente. Os nossos elogios vão para Picasso e não de reacção à arte que transcendem os particularismos culturais e formas de arte que
para o Sr. Tuttin, que imprimiu as suas litografias «impossíveis», vão para Trollope, suscitam idênticas reacções através dos tempos e em todos os lugares. Segundo este
e não para o seu velho criado que o acordava todos os dias às cinco e meia. Isto argumento, se Shakespeare é admirado em todos os países onde se representam as suas
parece-nos perfeitamente lógico. Ao participarmos, a um título ou a outro, em todos peças, isso dever-se-á ao facto de as suas obras tocarem em algo de tão profundo face à
esses mundos da arte, partilhamos as crenças que fundam a acção colectiva. Ora, experiência humana que ninguém lhe é insensível. Certas obras de arte adquirem uma
analisando-as, compreendemos que as crenças adoptadas não são as únicas possíveis, reputação duradoura porque, apesar de todos os imponderáveis dos mundos da arte e
e que a validade dessas escolhas se deve à adesão dos membros dos mundos da arte de todos os caprichos do renome, acabam sempre por se impor pela sua excelência.
aos princípios em que se baseiam. Os mecanismos geradores de reputações intervêm, mas conduzem sempre ao mesmo
resultado em qualquer lugar. Como explicar uma tal convergência, a não ser vendo aí
o efeito do encontro entre determinados caracteres intrínsecos da obra e algum aspecto

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A Reputação
Mundos da Arte

fundamental da psicologia e da experiência humana à parte da cultura? Então, a reputa- reputação. A obra de um artista naif pode evidenciar um dom excepcional, mas é na
ção está ligada, segundo a perspectiva estética, às obras de real valor, enquanto, para a maioria dos casos demasiado pessoal para chamar a atenção de um público mais vasto.
tradicional sociologia da arte, ela distingue as qualidades excepcionais de observação A obra de um artista popular dirige-se à grande maioria, mas é demasiado vulgar e,
e de análise das realidades sociais e históricas. portanto, não apresenta nada de especial.
Não podemos afirmar que esta teoria seja incorrecta e facilmente refutável, mas . ~ssim, a ~el~cção que permite aos mundos da arte funcionar e construir reputações
também não podemos dizer que seja verificável. Muitos dos elementos de reflexão até ehmma a marona das obras que outros modos de definição e de selecção levariam a
aqui apresentados impedem-nos de estabelecer uma base de análise segura. Quanto assimilar à arte, à arte de qualidade e à grande arte. As reavaliações que acontecem
àqueles que se vão seguir, colocam-nas em dúvida sem as infirmarem completamente. noutras épocas, ou devido à iniciativa de pessoas provenientes doutros locais, mostram
Para aqueles que admitem que a teoria é certa até prova em contrário, ela manter-se-á que o conteúdo da categoria «arte» é na realidade contingente. Não tanto devido aos
válida aos seus olhos. Se a considerarem falsa devido às dúvidas que suscita, serão altos e baixos de que poderá ter sido alvo a reputação de um Shakespear~, mas sobre-
obrigados a rejeitá-la. Para nós, não se trata de entrar num debate estético, mas sobre- tudo porque os Ferdinand Cheval e os Simon Rodia, os Conlon Nancarrow e outros
tudo de examinar as contribuições das análises sociológicas que, ao conceberem a arte compositores desconhecidos, as manufactureiras de colchas e os pintores das pequenas
como expressão de valores e de preocupações fundamentais de uma cultura, preten- localidades são excluídos. Por cada artista que acaba por aceder à notoriedade, quantos
dem revelar, a partir das obras, a cultura de onde procedem e o que os seus caracteres não ficam de fora?
essenciais devem à acção da sociedade em sentido lato. As teorias que discernem os valores e as preocupações culturais de uma sociedade
Esta teoria levanta algumas dúvidas porque certas obras de arte podem perdurar por relativamente à sua arte não se baseiam senão na arte que sobrevive aos complexos
motivos diversos dos de uma apreciação universal. Muitas obras devem a persistência mecanismos, variáveis no tempo, de selecção e de formação de reputações. Chegariam
da sua reputação não à aceitação de um vasto público, mas sobretudo à sua importância a resultados idênticos se tivessem em consideração a totalidade da produção artística
histórica. Bakhtin sublinha que «de todos os grandes escritores da literatura mundial, de uma sociedade? Talvez. Mas isso tem de ser ponderadamente analisado em vez de
Rabelais é, no nosso país, o menos popular, o menos estudado, o menos compreendido ser aceite sem mais.
e apreciado» (Bakhtin, 1968, p. 1). Se não existe prazer na sua leitura, é porque não
se compreende que a sua obra critica as relações de dominação da sociedade feudal
AARTE E A SOCIEDADE
recorrendo a uma linguagem não oficial do humor e da gíria para dizer aquilo que era
impensável exprimir de outro modo. O leitor só conseguiria apreciar uma obra tão
estranha à sua experiência pessoal se percebesse o seu alcance. De modo semelhante, Podemos encarar sob outra perspectiva as relações entre arte e sociedade. Aquilo
Raymonde Moulin nota que muitas obras de mestres da pintura antiga não devem a que aqui se afirmou acerca dos mundos da arte procede de um enquadramento teórico
sua actual reputação às admiráveis qualidades que as pessoas lhes possam reconhecer mais geral da sociedade, e pode contribuir para o seu desenvolvimento. O que se afirmou
(de facto, as reviravoltas da análise crítica implicam uma revisão periódica dessas acerca dos mundos da arte pode ser extensivo a qualquer mundo social: falar de arte é
reputações), mas ao seu «valor histórico», independente das flutuações do gosto. uma forma particular de falar da sociedade e dos mecanismos sociais em geral. É isso
A História mantêm-se como autoridade soberana. (Moulin, 1967, pp. 431-32). que pretendemos pôr em evidência na conclusão.
Também é necessário questionarmo-nos, de modo mais geral, sobre aquilo que Quando centramos a nossa análise sobre uma dada obra, o mundo de organização
os mecanismos da reputação excluem. Como vimos, os mundos da arte realizam social que nos ocupa é o de uma rede de pessoas que cooperam para produzir essa obra.
permanentemente um trabalho de selecção. Retêm algumas das múltiplas possibi- Reparamos que são as mesmas pessoas que cooperam de forma repetida, e até rotineira,
. !idades que se oferecem e rejeitam certas obras e artistas. Mas estas mudanças nas para produzirem obras parecidas e de modo parecido. Elas organizam a sua cooperação
reputações dizem sobretudo respeito à produção corrente de um mundo da arte. por referência às convenções em vigor no mundo onde tais obras são produzidas e
A selecção assume consequências muito mais graves quando os mundos da arte não consumidas. Se não forem verdadeiramente os mesmos participantes a agirem con-
estão atentos senão às obras criadas pelos profissionais integrados. Os mavericks juntamente de cada vez, aqueles que os substituírem conhecem suficientemente essas
estão suficientemente próximos das práticas do mundo da arte, e suficientemente convenções para que a cooperação prossiga sem sobressaltos. As convenções facilitam
preocupados em chamar a atenção para o seu trabalho, para que os mundos da arte os a acção colectiva e permitem economizar tempo, esforços e recursos. Contudo, não é
integrem. Mas os mundos da arte raramente integram no seu seio os artistas na'ifa e os impossível trabalhar à margem das convenções. É apenas mais difícil e oneroso. Podem
artistas populares. A sua produção é, na forma e concepção, muito distante das nor- acontecer mudanças, nomeadamente quando alguém imagina uma nova maneira de
mas. Ela é estigmatizada pelo seu carácter excêntrico ou bizarro, ou porque está muito obter os recursos mais importantes. Os modos de cooperação convencionais não são
ligada à vida vulgar das pessoas comuns para que satisfaça os critérios da teoria da forçosamente perpétuos, pois existem sempre pessoas que inventam novos modos de

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Mundos da Arte A Reputação

acção colectiva e descobrem maneiras de acederem aos recursos necessários à sua impõem à acção colectiva, e as mudanças que podem provocar novas condições de
consecução. mobilização de recursos necessários. (Encontramos outras exposições destas ideias nos
Esta análise não tem pejo em afirmar que a arte é um fenómeno social, ou em es- escritos de Sirnmel [1898], Park [1950, 1952, 1955], Blumer [1966] e Hughes [1971,
tabelecer uma correspondência entre as formas de organização social e determinados sobretudo pp. 5-13 e 52-64], para só citar alguns.)
estilos ou temas artísticos. Ela mostra que a arte é social no sentido em que é criada De modo semelhante, os quatro tipos de relações dos artistas com um mundo da
por redes de pessoas que agem em conjunto e propõe um enquadramento analítico arte (as de profissional integrado, de maverick, de artista popular ou de artista naif)
para o estudo dos diferentes modos de acção colectiva mediados pelas convenções sugerem um modelo geral de interpretação aplicável a qualquer mundo social. A partir
consagradas, emergentes ou novas. Ela reequaciona certas questões tradicionalmente do momento em que a prática das actividades características de um mundo obedeça
debatidas num contexto onde as semelhanças com outras formas de acção colectiva a esquemas convencionais e de rotina, todo o participante capaz de executar correc-
podem alimentar um trabalho teórico comparativo. tamente as tarefas comummente requeridas pode tomar-se um membro por inteiro.
O estudo da arte como acção colectiva é uma abordagem típica da análise da Num mundo desses, a maioria das actividades serão de facto cumpridas por esse tipo
organização social. Podemos examinar qualquer acontecimento (um termo genérico de participantes: são os homólogos, no plano geral, dos profissionais integrados. Se
que abrange o caso particular da produção de uma obra de arte) e tentar abarcar a rede a actividade considerada é de facto de todos os membros da sociedade, ou de uma
·de pessoas, grande ou pequena, cuja acção colectiva permitiu que se produzisse sob grande parte deles, a aproximação com a arte popular será mais pertinente. Alguns
essa forma. Podemos voltar a pesquisar as redes cuja cooperação se tomou regular ou também podem escolher agir a despeito das convenções, com todas as previsíveis
rotineira e precisar as convenções que permitem aos seus diversos membros coordenar dificuldades inerentes. Algumas das inovações que propõem talvez sejam adoptadas
as respectivas actividades. pelo mundo do qual se 11fastaram, e farão deles inovadores respeitados (pelo menos
Os termos «organização social» ou «estrutura social» podem ser-nos úteis para com o passar do tempo), e já não uns meros excêntricos. Por último, existem aqueles
designar metaforicamente essas redes regulares e as suas actividades. Entretanto, não que ignoram a existência do mundo em questão ou que não se interessam por ele, e
esqueçamos que são metáforas, e não tiremos delas elementos que só um trabalho de que inventam tudo por si próprios: são os homólogos dos artistas naifs.
pesquisa permitirá estabelecer. Quando alguns sociólogos falam de estrutura social ou Nesta perspectiva, podemos afirmar (com maior legitimidade do que habitualmente)
de sistemas sociais, o uso da metáfora pressupõe (sem que a hipótese seja sustentada) que o mundo da arte reflecte a sociedade no seu conjunto.
que a acção colectiva considerada ocorre regularmente, ou frequentemente (não se sabe
bem), e que as diversas pessoas agem em conjunto para produzirem uma grande varie-
dade de eventos. Mas deveríamos saber, como nos obrigam os dados empíricos para a
análise das artes, que só a pesquisa pode mostrar se o grau de regularidade observado
na acção colectiva legitima essa descrição. Certas formas de acção colectiva repetem-
-se frequentemente, outras ocasionalmente e muitas raramente. De modo semelhante,
as pessoas que cooperam para a produção de uma obra ou de um tipo de evento não
se encontram forçosamente presentes para outros projectos ou outras obras. Também
nesse caso, é a pesquisa empírica que permitirá estabelecê-lo.
As acções colectivas e os seus resultados constituem a unidade elementar da inves-
tigação sociológica. A organização social representa o caso particular onde as mesmas
pessoas agem em conjunto para produzirem um leque de resultados diferentes de modo
regular. A organização social e as noções aparentadas não são, portanto, simplesmen-
te conceitos, mas constituem também descobertas empíricas. Quer se fale da acção
colectiva de algumas pessoas (família ou grupo de amigos) ou da acção de um grupo
bastante maior (uma categoria profissional ou social), será sempre necessário procurar
saber quem age em conjunto para produzir o quê. Se generalizarmos a teoria cons-
truída para a análise das actividades artísticas, podemos estudar organiz~ções sociais
de todos os tipos, identificando as suas redes específicas de produção, as intersecções
entre essas redes, discernindo o papel desempenhado pelas convenções na coordenação
das actividades dos participantes, mas também os limites que as convenções em vigor

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Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

muito importante, que a sociologia e as ciências sociais não eram levadas a sério,
excepto para serem encaradas como tendências perigosas a serem suprimidas. A so-
ciologia, em particular, era vista por Sartre e pelos seus seguidores como demasiado
americana, demasiado positivista, demasiado oposta ao mito dominante do intelectual
solitário que alcançava as grandes coisas pelo, como um amigo meu costumava dizer,
«pensamento e só pelo pensamento».
Ele faz esta descrição recorrendo à noção de «campo». Vou tentar resumir a
imagem que ele usa. Antes de mais, a ideia parece muito metafórica, com a metáfora
vindo talvez da fisica. Existe um espaço definido e restrito, que é um campo, no qual
existe uma quantidade limitada de lugares, de tal modo que o que quer que aconteça
12 nesse campo se traduz num jogo de soma nula. Se eu possuo alguma coisa, outro não
a pode ter. Assim, naturalmente, as pessoas combatem e lutam num espaço limitado.
EPÍLOGO À EpIÇÃO CO~MORATIVA As pessoas que controlam o espaço limitado procuram mantê-lo só para elas e para os
DO 25.º ANIVERSARIO: UM DIALOGO ACERCA seus aliados e impedem a sua apropriação por aqueles que chegam de novo.
DAS NOÇÕES DE «MUNDO» E DE «CAMPO» O «espaço» é uma metáfora para tudo o que as pessoas querem e que existe em
quantidade limitada. Para Bourdieu, é muitas vezes estima ou reconhecimento, mas
também pode ser coisas mais materiais como dinheiro ou vias de acesso a publicações,
coisas desse tipo, coisas «reais», digamos assim.
Com Alain Pessin O campo organiza-se em «forças» de vários tipos, e uma das grandes forças é o po-
der, que parece ser uma questão de controlo de recursos: no caso do champ universitaire,
Alain Pessin: Howard Becker, a noção de «mundo», que explorou aprofundada- estas seriam coisas como, e já o referi, postes (lugares permanentes) nas faculdades
mente em Mundos da Arte (1982), suscitou um grande interesse entre os sodólogos e em centros de investigação, dinheiro para financiar investigação, vias de acesso à
da arte, em França bem como no resto do mundo. Surge em muitos trabalhos, porém publicação, e de um modo geral, estima, honra, reconhecimento e por aí fora.
fica-se com a sensação de que a sua utilização nem sempre é muito clara nem lhe faz As pessoas com poder emitem juízos sobre os recém-chegados, decidindo se
justiça. É muitas vezes minimizada, reduzida no seu alcance e significado à mera podem ser admitidos no círculo dos poderosos, talvez primeiro assumindo um papel
virtude positiva da cooperação. Por vezes vê-se pura e simplesmente negada na sua subalterno, ou se devem ser rejeitados. Ele diz que estas determinações fundamentam-
especificidade quando é vista como uma variante mais optimista daquilo a que Pierre -se não apenas sobre o trabalho que as pessoas executam mas também sobre critérios
Bourdieu chamou «campo». Portanto, muitos autores, tanto profissionais como dou- mais pessoais: o seu comportamento, o modo como se vestem, o seu sotaque, as suas
torados, consideram que as noções de campo e mundo são simplesmente duas noções ideias políticas, os seus amigos, os seus amores. (Ele não diz exactamente que estes
intercambiáveis igualmente úteis no mesmo projecto de investigação, uma enfatizando últimos critérios são legítimos, talvez o refira algures, mas torna-se evidente que pre-
o conflito, a outra a complementaridade dos actores e das acções. Nesta perspectiva, tende que o entendam desse modo.) Ainda que o âmbito da ideia seja completamente
polvilhar um pouco de Becker sobre Bourdieu produziria boa sociologia, nem que geral, os exemplos (naturalmente, dado que é uma autobiografia) provêm do sistema
fosse por parecer tornar o mundo um lugar um pouco menos desesperado. Parece-me universitário francês dos anos 50.
que isto é um uso simplista e pouco rigoroso da noção de mundo. É por isso que penso
que está na altura de clarificar esta noção, e de ver, consigo, em que é que difere e se Alain Pessin: A noção de campo pode ser generalizada a todas as áreas da vida
opõe à noção de campo. social, incluindo aquela que nos interessa directamente, a actividade artística. Tendo
Vamos começar por esta última. O que é que a noção de ca~po evoca para si? proposto, com a noção de mundo, uma perspectiva muito diferente, que ponto, em seu
entender, é que o separa mais claramente da perspectiva de Bourdieu?
Howard S. Becker: Acabei de ler a autobiografia de Pierre Bourdieu (Bourdieu
2004), editada após a sua morte, e por isso tive a oportunidade de ver como é que ele Howard S. Becker: A ideia de campo parece-me muito mais uma metáfora do que
usa a noção na prática. O livro começa com uma descrição do champ universitaire um simples termo descritivo. Bourdieu descreveu as organizações sociais nas quais se
tal como existia quando ele entrou nele nos finais dos anos 50. Ele descreve-o como faz a arte - aquilo a que chama um campo - mais como se fosse um campo de forças
dominado por Sartre e pelos seus seguidores. Diz que a filosofia era uma disciplina como na física, do que um conjunto de pessoas a fazer algo colectivamente. As principais

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Mundos da Arte Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

entidades num campo são forças, espaços, relações e actores (caracterizados pelo seu irão fazer de modo a que convenha ao que os outros fizeram ou provavelmente irão
poder relativo) que desenvolvem estratégias usando os variáveis recursos de poder de fazer. Sobretudo, a metáfora não é espacial. A análise centra-se sobre uma actividade
que dispõem. colectiva qualquer, algo que as pessoas façam em conjunto. Quem quer que contribua
As pessoas que agem num campo não são pessoas de carne e osso, com toda a de algum modo para essa actividade e para os seus resultados faz parte desse mundo.
complexidade que isso implica, são, ao invés, caricaturas ao estilo do homo economicus A linha que se traça para separar o mundo de tudo o que não faz parte dele é uma co-
dos economistas, dotadas das capacidades mínimas que lhes são requeridas a fim de modidade analítica, não é algo que exista na natureza, algo que possa ser descoberto
agirem de acordo com o que a teoria sugere. As suas relações parecem ser exclusiva- pela investigação científica.
mente relações de domínio, baseadas na competição e no conflito. Sempre que tento Portanto o mundo não é urna unidade fechada. Por vezes, claro, existe realmente
imaginar esse campo vejo um diagrama: um quadrado a delimitar um espaço com setas uma zona delimitada de actividade, tal como o mundo universitário, onde um deter-
a ligar unidades, criando estruturas invisíveis. Ou, pior ainda, imagino uma grande minado conjunto de organizações e de pessoas monopolizam a actividade em questão.
caixa em plástico com todo o tipo de raios a andar em todas as direcções, como num Algumas formas de ac.tividade colectiva têm paredes em seu redor, não só as institui-
filme de ficção científica. ções totais descritas por Goffinan mas também as empresas onde temos de usar um
A repetição da metáfora da física é muito intrigante em As Regras da Arte. Por exem- dístico de identificação para transpormos a zona de recepção e, nos casos sobre os
plo, na secção do princípio do livro onde ele trata da «questão da herança», diz: quais Bourdieu se debruçou, aqueles lugares onde o acesso físico não é limitado mas
o acesso a actividades e posições é.
«Depois de instalar assim os dois pólos do campo do poder, verdadeiro meio no sentido newto- Nesses casos, pode-se afirmar, o campo, limitado como é por regras e práticas que
niano, onde se exercem forças sociais, atracções ou repulsões, que encontram a sua manifestação mantém os intrusos de fora, impossibilita que se faça parte de qualquer actividade
fenomenal sob a forma de motivações psicológicas como o amor ou a ambição, Flaubert instaura
as condições de uma espécie de experimentação sociológica: cinco adolescentes - entre os quais
colectiva a não ser que se seja escolhido pelas pessoas que já fazem parte dele. Não se
se conta o herói, Frédéric -, provisoriamente unidos pela sua comum posição de estudantes, pode fazer sociologia ou um trabalho intelectual se nos é negado o acesso aos lugares
serão lançados nesse espaço, como partículas num campo de forças, e as suas trajectórias serão onde as pessoas exercem esse tipo de actividade em conjunto. Portanto não se pode
determinadas pela relação entre as forças do campo e a inércia própria de cada um deles. Esta ser um sociólogo a menos que se tenha um emprego num departamento de sociologia
inércia inscreve-se, por um lado, nas disposições que os adolescentes devem às suas origens e às ou num centro de investigação e possamos publicar o nosso trabalho nos lugares re-
suas trajectórias, e que implicam uma tendência a perseverar numa maneira de ser, ou portanto conhecidos onde a sociologia é publicada.
uma trajectória provável, e, por outro, no capital que herdaram, e que contribui para definir as
possibilidades e as impossibilidades que o campo lhes atribui.»* Dizê-lo desta forma levanta problemas óbvios. Mesmo naqueles casos, o mono-
pólio quase nunca é total e certamente não é permanente. Assim, no mundo descrito
por Bourdieu e que configurava o início da sua carreira, fazer sociologia não estava
Alain Pessin: Aquilo que, de certo modo, estas imagens evocam é a «compressão» confinado aos locais sobre os quais parece que mais se interessou. Não era apenas na
do social. A virulência das posições é inevitável devido à escassez fundamental do Sorbonne ou no College de France que se fazia o trabalho de sociologia. Ele nunca
espaço e, consequentemente, à escassez de posições que qualquer um possa ocupar. menciona, por exemplo, Georges Friedmann, que foi amigo do meu mentor, Everett
A noção de mundo coloca-nos num espaço extensível e aberto onde, além disso, é Hughes, e que estudou fábricas, o mundo industrial.
difícil estabelecer limites até onde a metáfora espacial se lhe possa aplicar. Eu suponho que um bourdieusiano possa dizer que, bem, claro, podia-se fazer algo
que se assemelhava a sociologia e que talvez, sob determinada perspectiva (talvez,
Howard S. Becker: A ideia de mundo, tal como a concebo, é muito diferente. Claro como no caso de Friedmann, na perspectiva de um sociólogo da indústria, americano e
que também é uma metáfora. Mas a metáfora de mundo - e que não me parece verdade em visita), fosse sociologia, mas, sejamos francos, não era verdadeiramente sociologia
para a metáfora de campo - contém pessoas, todo o tipo de pessoas, que estão a fazer porque as pessoas detentoras da chancela não o reconheceriam como fazendo verdadeira
alguma actividade que lhes exige que prestem atenção umas às outras, que tenham sociologia. «Parabéns, Friedmann, parece uma matéria interessante; mas é uma pena
em consideração a existência dos outros e que ajam tendo em conta o que os outros ninguém o conhecer ou interessar-se por si.» Aqui, o termo equívoco é «ninguém»,
fazem. Num mundo assim, as pessoas não respondem automaticamente a misteriosas porque é claro que as pessoas conheciam Friedmann, mas aquelas que contavam, na
forças externas que os cercam. Em vez disso, desenvolvem as suas linhas de activida- perspectiva de Bourdieu, não o aceitavam.
de gradualmente, vendo como os outros respondem ao que fazem e ajustando o que Aqui coloca-se, como gostamos de dizer, uma questão empírica: é verdade que
alguém possa éontrolar o acesso a tudo o que é importante desta maneira? Será que ao
ignorarem as vossas ideias heterodoxas as «pessoas importantes» podem impedir que
* Pierre Bourdieu, As Regras da Arte, pp. 28-29, Editorial Presença, Lisboa, 1996. elas cheguem a um determinado público? Isso depende. Eu penso que provavelmente

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Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário
Mundos da Arte

isso não é muito frequente, apesar de ser frequente as pessoas sentirem que é o que proibira~ a sociologia académica, as pessoas organizaram institutos de investigação
lhes acontece a elas e às suas ideias. - com aJudas externas, claro - e começaram a fazer «antropologia urbana», que não
Chegados a este ponto penso que seria útil ter em consideração as diferenças quanto era proibido. (Evidentemente, há casos extremos onde é impossível escapar ao poder
à organização da vida académica e intelectual entre os Estados Unidos e a França, e dos líderes de um campo, mas penso que, empiricamente, isso não é muito frequente,
até de arriscar uma especulação sobre as causas dessas diferenças. Há muito tempo e certamente não é de modo algum o caso das actividades artísticas nas sociedades
que eu digo às pessoas em França que para compreender a sociologia americana têm contemporâneas.)
primeiro de compreender que existe qualquer coisa como 20 000 sociólogos nos Portanto a ideia de um mundo de pessoas que colaboram para produzir este ou
Estados Unidos e qualquer coisa como 2000 departamentos de sociologia (e muitos aquele resultado, um mundo no qual as pessoas podem encontrar outras com quem
sociólogos trabalham noutras áreas - educação, trabalho social, assistência social, etc. colaborar, ainda que haja pessoas mais poderosas na sua disciplina que não aprovem
- aumentando assim ainda mais o seu número). É, pelo menos, dez vezes o número de ou reconheçam aquilo que fazem, um mundo onde o poder para definir o que é impor-
pessoas e de departamentos existentes em França e, provavelmente, será mais próximo tante ou aceitável não permaneça sempre nas mãos de um determinado conjunto de
de vinte vezes. actores - neste tipo de situação, a ideia de mundo faz sentido e é analiticamente útil
Uma das consequências disto é que se toma relativamente fácil apoiar uma grande porque tem em consideração tudo o que existe para ser descoberto, bem como todo~
variedade de actividades sociológicas. Não há ideias suficientemente loucas ou ina- os factos a esclarecer.
ceitáveis para que se vejam impedidas de encontrar um local de acolhimento. Basta Em contraste com a noção de «campo», a noção de «mundo» parece-me mais
propô-la e haverá, algures, um departamento ou uma secção de um departamento que bem fundamentada empiricamente. Fala de coisas que podemos observar- pessoas a
se dedicará a propagar essa ideia ou perspectiva. Será sempre possível encontrar outras fazer coisas, em vez de «forças», «trajectórias», «inércia», que não são observáveis
pessoas que acham que essa ideia, inaceitável para «os líderes desse campo», quem quer na vida social, se tomarmos estes termos no sentido técnico que lhes é dado na tisica.
que sejam, é muito boa e estão disponíveis para lutar por essa bandeira. Se se encontrar Não podemos observar estas coisas de modo perfeito, claro, mas suficientemente bem
duzentas ou trezentas pessoas dessas (não é muito fácil, mas não é impossível quando para as podermos discutir, e os procedimentos da ciência empírica podem fornecer-nos
existem 20 000 pessoas onde recrutar) podem organizar-se numa secção da ASA- a respostas provisórias, do género das que a ciência dá.
Associação Americana de Sociologia. Se se conseguir esse número pode criar-se uma
organização própria (p. ex. a Associação Internacional de Sociologia Visual), publicar Alain Pessin: Um «mundo» é, portanto, um conjunto de pessoas que fazem algo
uma revista própria, eleger um presidente próprio e atribuir prémios próprios. em conjunto. A acção de cada uma não é determinada por algo como a «estrutura
É neste tipo de contexto que a ideia de «mundo» surge como uma forma «natural» global» do mundo em questão, mas pelas motivações específicas de cada um dos par-
de pensar sobre a actividade organizada. ticipantes, podendo cada qual «fazer as coisas de outro modo», criar novas respostas
para novas situações. Nestas condições, aquilo que fazem em conjunto é resultado de
Alain Pessin: Podíamos resumir tudo isto numa das suas ideias preferidas: «Pode- organizações, sobre as quais o mínimo que se poderá dizer é que nunca são comple-
mos sempre fazer as coisas de outro modo.» Mas esta ideia tem de ter uma aplicação tamente previsíveis.
geral; não é só nos Estados Unidos que se podem fazer as coisas de outro modo. Uma
fórmula destas, quando aplicada a qualquer situação da vida social, abre caminho a uma Howard S. Becker: Um «mundo», tal como o entendo - e se aquilo que possa ter
sociologia do possível; estabelece-se em oposição à ideia das possibilidades limitadas afirmado noutro lugar o não esclarecem, então não consegui ser claro -, consiste em
de acção e o aspecto fechado dos sistemas sociais. Quando não somos aceites num pessoas reais que tentam levar a cabo tarefas, em grande medida juntando-se a outras
lugar, podemos sempre ir para outro e fazer aí o que queremos. pessoas que fazem outras coisas que serão úteis para os seus projectos. Dado que todas
as pessoas têm um projecto, e o resultado das negociações entre elas é aquele sobre o
Howard S. Becker: Alguém está a monopolizar o campo onde quer trabalhar? qual finalmente estão de acordo, qualquer dos envolvidos numa dada actividade terá
Vá para outro lugar e crie o seu próprio campo. Nem sequer vai ter de competir com de considerar o modo como os outros irão responder às suas acções. O dramaturgo
outras pessoas. Poderá criticá-las perante aqueles que o seguem ou ignorá-las, mas David Mamet disse certa vez, agora não me recordo onde, que, numa cena de uma
elas não são suficientemente poderosas e o seu monopólio não chega para vos impedir peça de teatro, cada um obtém algo que deseja. Se não quisessem algo, não estariam
de fazer algo. ali, estariam noutro lugar onde pudessem aceder a algo que desejassem. A cena é o
Lembre-se de que mesmo nos regimes totalitários existiram quase sempre movi- resultado daquilo que cada um procura obter, e o resultado da actividade colectiva é
mentos intelectuais dissidentes que faziam coisas proibidas por aqueles que dominavam algo que talvez ninguém desejou, mas é o melhor que cada um conseguiu obter desta
o campo legítimo para esse tipo de actividades. Quando as juntas militares brasileiras situação e, portanto, aquilo sobre o qual todos, de facto, estão de acordo.

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Mundos da Arte Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

Isto significa que embora as pessoas sejam livres de tentar procurar outras possibi- se confrontarem com situações colectivas, passarem por etapas e que, em cada uma
lidades, essas possibilidades são limitadas por aquilo que elas podem impor e persuadir delas, os actores têm de fazer escolhas. Portanto, nada está definitivamente garantido
os outros a fazer. a ninguém. Não funciona pensar em termos de processo usando a noção de campo.
Talvez esta perspectiva apresente uma vida social mais aberta à mudança contínua Parece já tudo dado de antemão. A luta está predefinida como quadro normal da activi-
e à acção espontânea do que na verdade é. A vida social exibe, apesar de tudo, uma dade. E o peso do habitus toma o comportamento daqueles que por ele são afectados,
regularidade substancial. As pessoas não fazem tudo o que lhes vem à cabeça e sem- no essencial, previsível.
pre que querem. Pelo contrário, na maioria das vezes fazem as coisas tal e qual como
sempre as fizeram. Num modelo que enfatiza a abertura e o possível, essa regularidade Howard S. Becker: Os acontecimentos e os seus resultados não são determinados
pede uma explicação. desse modo. A história das tentativas dos investigadores em ciências sociais para predi-
Eu encontro essa explicação sobretudo na noção de «convenção». É frequente, zerem aquilo que vai acontecer num ou noutro caso devia ser suficiente para nos fazer
embora nem sempre, as pessoas saberem como é que as coisas se fizeram no passado, desistir desse sonho. Não se trata apenas de um problema de insuficiência de dados ou
como é que se fazem habitualmente, e sabem que os outros também sabem todas estas de urna falta de poder de cálculo informático. Pode ser que - mas lembrem-se de que
coisas. Assim, se eu faço as coisas tal como sei que todos sabem como costumam ser é apenas urna hipótese da teoria do caos, não é algo demonstrado - uma borboleta que
feitas e estão preparados para tal, posso estar confiante de que as minhas acções serão bata as asas na América do Sul produza um furacão algures no outro lado do planeta.
adequadas às deles e que estaremos aptos para realizar aquilo a que nos propusemos Mas nada disso foi alguma vez demonstrado na vida social, e não creio que seja um
com um mínimo de dificuldade e de equívoco. Isto não quer dizer que não haja, ou que resultado pelo qual possamos esperar.
nunca houve, conflito, mas sobretudo que na maioria dos casos o conflito foi resolvido, Imagine que sabíamos o suficiente para predizer um resultado, tendo por base o
de uma maneira ou de outra, e os participantes na actividade acordaram realizá-la desse habitus ou algo mais claro e mais específico, uma «variável» do género daquelas com
modo em vez de qualquer outro dos diversos modos que poderiam ter adoptado. que os sociólogos quantitativistas gostam de trabalhar, que o Sr. Jones irá ter um aci-
Isto é muito abstracto, portanto vou dar um exemplo, vindo do domínio que prefiro, dente de automóvel amanhã. Ele estará embriagado, os travões estarão em mau estado e
a música. Os músicos e os compositores por vezes entram em desacordo acerca do também choverá. Tudo coisas que tomam provável um acidente deste tipo. Mas também
número de notas a incluir entre as duas notas de uma oitava. Deus não decretou que será necessário que o Sr. Smith (ou o Sr. Seja-quem-for) coopere para que o acidente
deviam ser as doze notas da escala cromática ocidental. Noutras tradições, os músicos aconteça. Isto significa que o Sr. Smith terá de estar no local exacto para que o Sr. Jones
fizeram frequentemente outras escolhas sobre as quais se fundaram grandes tradições embriagado o atinja, e a possibilidade de predizer esses dois acontecimentos é propor-
musicais. Mas os músicos ocidentais, durante um período muito longo, aceitaram a cionalmente menos provável. Quando se multiplicam as probabilidades elas diminuem.
escala cromática de doze tons como a base da sua música. Agora os instrumentos que E o acidente envolverá não apenas o Sr. Jones e o Sr. Smith, mas também centenas
tocamos são construídos segundo essa escala, a notação que usamos para escrever de outras pessoas. Assim, a possibilidade prática de predizer qualquer acontecimento,
música a fim de ser reproduzida e tudo o resto relacionado com a musica ocidental considerando os vários acontecimentos específicos e a diminuição das probabilidades
assenta sobre esse facto, dado por adquirido, fundado sobre conhecimentos conven- cruzadas, aproxima-se de zero. Isto inclui previsões acerca daquilo que as pessoas
cionais partilhados, que todos tocarão música escrita naquela forma em instrumentos farão baseadas no habitus e em características individuais semelhantes. Coisas corno
construídos para tocar essas notas. Portanto é sempre mais fácil tocar música baseada estas não são insignificantes, mas são apenas uma entre centenas de coisas relevantes
nessa convenção do que música criada noutro sistema qualquer. O custo em tempo no que respeita ao que as pessoas e as organizações fazem.
e em energia é sempre muito mais elevado quando não se aceitam estas convenções. Assinalou outra coisa importante na sua pergunta. As coisas não acontecem, os
Assim - e aqui receio ter de recorrer a uma metáfora da física! - uma espécie de inércia acontecimentos não se produzem, as pessoas não escolhem, tudo em simultâneo. Pelo
dispõe as pessoas a fazer as coisas tal como sempre se fizeram no passado, e isso pesa contrário, estas coisas ocorrem por etapas, por patamares, e isso significa que cada
em grande medida sobre a regularidade da vida social. etapa oferece a possibilidade de ir em mais do que urna direcção - existe mais do que
Entre os conhecimentos convencionais que produzem essas regularidades iremos uma possibilidade em cada conjuntura. Isto significa que as possíveis consequências
encontrar muitas vezes, evidentemente, elementos de coerção e de força, visíveis ou são sempre numerosas e variadas, e que não se deixam captar facilmente numa fórmula.
disfarçados, que produzirão desigualdades e que poderemos sentir como injustiças. É fre-
quente as pessoas aceitarem coisas que são injustas, à falta de uma alternativa melhor. Alain Pessin: Chegou o momento para, de uma vez por todas, acabar com os mal-
-entendidos ligados à noção de cooperação. Às vezes ouvimos dizer que Howard S. Becker
Alain Pessin: As noções de carreira e processo, que são essenciais para compreender é o sociólogo que se esqueceu do conflito. Mas procurar fazer algo em conjunto não
o funcionamento de um mundo, remetem para o facto de as trajectórias pessoais, ao implica de modo algum uma concepção absolutamente pacificada das relações sociais.

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Mundos da Arte
Epílogo à Edição Comemorativa do 25.º Aniversário

Howard S. Becker: Penso que quem não procure compreender com exactidão a Alain Pessin: Os leitores destas duas perspectivas vêem-se por vezes tentados a
minha perspectiva pode caracterizá-la como uma simples focalização sobre a «coope- dizer que é um problema de fotografia. Bourdieu usa uma lente grande-angular en-
ração». Mas isso não é correcto. Poderia ser verdade apenas se se tomasse a «coopera- quanto Becker se concentra nas microrrelações; um adopta uma perspectiva global e
ção» numa acepção muito alargada, englobando qualquer coisa que as pessoas façam abrangente, o outro realiza estudos de caso. E depois as pessoas começam a dizer que,
em conjunto na qual agem e respondem ao que as outras pessoas implicadas fazem. claro, os estudos de caso são inevitavelmente parciais, que não conseguem atingir o
Aacção colectiva-duas ou mais (habitualmente muito mais) pessoas a fazerem algo em que é realmente determinante na vida social. As respostas que já deu mostram que a
conjunto - não é o mesmo que a cooperação no sentido mais convencional, na acepção perspectiva global e abrangente é que é redutora, porque ignora sistematicamente certos
minimal do termo, onde há dinâmicas de pacifismo, de bom-entendimento e de boa- aspectos e certos actores que contudo são absolutamente essenciais e determinantes
-vontade. Pelo contrário, as pessoas envolvidas numa acção colectiva podem combater para o resultado de certas organi~ações sociais:
ou conspirar umas contra as outras ou fazer uma ou outra das coisas que surgem de
modo tão proeminente na descrição dos campos sociais feita por Bourdieu. Howard S. Becker: Falar em termos de «mundo» impele-nos para uma noção
Mas também podem trabalhar em conjunto para fazer algo (ensaiar para um con- inclusiva quanto à questão de saber que actores devem estar implicados numa análise
certo que irão dar nessa noite), ou podem estar indirectamente ligadas, uma fazendo dos mundos da arte, e obriga-nos a reconhecer que quem quer que contribua de algum
algo necessário ao que outra faz, ainda que possam nem sequer conhecer-se (como modo para que a obra se torne no que eventualmente é participa de certo modo na
no caso do reparador de instrumentos que conserta um saxofone avariado necessário sua realização. Isto é tautológico: quem quer que participe na realização de uma obra
para o músico actuar nessa noite). Podem ter congregado forças para uma ocasião participa na sua realização. A vantagem desta tautologia é que ela nos mostra como
específica, como os compositores que noutras circunstâncias entram em competição incorporar na nossa concepção do que é fazer arte as pessoas que convencionalmente
por encomendas ou empregos raros, e cooperam para realizar um concerto de música são deixadas fora desta análise: os técnicos, os patrocinadores, todas as pessoas às quais
contemporânea (ver Gilmore, 1987). Ou podem trabalhar em conjunto de forma roti- chamei «pessoal de apoio». A sua participação na realização da obra surge por si própria
neira sobre o objecto particular que os reuniu, como acontece com os músicos de uma através de um pequeno exercício de reflexão. Retire-se qualquer uma dessas pessoas
orquestra durante o período de uma dada temporada. da acção (mentalmente, porque ninguém o permitiria na vida real) e observe-se o que
A natureza destas relações entre as pessoas não é dada a priori, não é algo que se acontece. Se os fornecedores não fazem chegar a comida para as pessoas da equipa
possa estabelecer por definição. É algo que se descobre observando-as em acção, vendo de cinema - bem, elas têm de comer, não têm? Se não puderem comer ali mesmo, no
o que é que fazem. Se estiverem em conflito, veremos isso. Se estiverem a trabalhar estúdio ou no local das filmagens, deslocar-se-ão a outro lugar e demorarão mais, e
em conjunto num projecto, veremos isso. E se forem ambas as situações - conflito e os custos de produção irão aumentar. Isto significa que será necessário angariar mais
trabalho em conjunto num projecto, também veremos isso. dinheiro ou que qualquer outra coisa não será paga, com sérias consequências para a
forma final do filme.
Alain Pessin: Então podemos facilmente integrar o conflito na noção de mundo, na A pergunta de base de uma análise centrada num «mundo» é: quem faz o quê, com
condição de o integrar como situação e não como sobredeterminação a priori. Nesta quem, que afecte o resultado do trabalho artístico? A pergunta de base de uma análise
perspectiva, as situações são absolutamente irredutíveis a uma dinâmica que as ultra- centrada sobre o campo parece-me ser: quem domina quem, com que estratégias e
passe. A noção de campo caracteriza-se, por outro lado, não apenas pela omnipresença recursos, com que resultados? Estas perguntas podem ser, e são frequentemente (são
do conflito, mas pela existência do conflitos dos conflitos, o conflito das classes sociais, muitas vezes em Mundos da Arte), levantadas numa análise baseada sobre a ideia de
que sobredetermina todas as outras relações sociais. Conflito é, nesta concepção, um mundo, enquanto subconjunto de um conjunto muito mais vasto de perguntas que se
princípio gerador da vida social. Parece que não partilha este ponto de vista, a começar podem colocar. Mas esse conjunto mais vasto de perguntas não poderá ser facilmente
pela própria ideia da existência de um princípio gerador da vida social. levantado com uma análise centrada na noção de campo de Bourdieu. Muitas delas,
parece-me, são postas de parte a priori e tomadas como triviais em comparação com
Howard S. Becker: É verdade. Não acredito que exista qualquer princípio gerador. as «grandes perguntas» acerca da dominação e das forças.
É mais provável que muitos princípios funcionem em conjunto num sentido ou noutro para Se tudo isto for verdade, então a ideia convencional segundo a qual podemos
produzir a desordem da vida quotidiana. Mas não é apenas uma questão de gosto pessoal. misturar Bourdieu e Becker nas proporções que desejarmos de acordo com, digamos,
Também é verdade, estou certo disso, que esta maneira de olhar para as coisas é um guia o nosso gosto pela tolerância ou pelo conflito, não é correcta. De facto, estas duas
mais produtivo para a investigação, porque é mais aberto a possibilidades em que nunca perspectivas colocam perguntas diferentes, procuram respostas diferentes e não são
pensámos, que nos podem ser sugeridas por uma atenção cuidadosa aos detalhes da vida redutíveis uma à outra.
social. É melhor não decidir quais são «as coisas importantes» antes de começar.

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Mundos da Arte

Alain Pessin: Elas partem de duas intenções diferentes, o que é bem visível no
facto de urna ter de se extrair do saber comum e ter de se opor ao senso comum para
construir, em teoria, a verdade do social, enquanto a sua tem de emergir das práticas
vividas, observando e levando muito a sério os procedimentos que os actores sociais
constroem, aquilo a que chama «entendimentos partilhados», que são as únicas ver-
dades que o mundo social pode produzir, aquelas que criam elos simbólicos entre
pessoas reais.

Howard S. Becker: É uma diferença importante. Muitas teorias do social baseiam-


-se na premissa de que a realidade é algo que está escondido para o comum dos mortais
e de que é necessária uma competência especial, talvez até um dom mágico, para se ser
capaz de ver através desses obstáculos e descobrir A Verdade. Eu nunca acreditei nisso. BIBLIOGRAFIA
Citando novamente Hughes, o meu mentor, ele dizia frequentemente que os sociólogos
não sabiam nada que as pessoas não soubessem. O que quer que fosse que os sociólo-
gos soubessem da vida social, tinham-no aprendido de alguém que fazia parte e estava
ABBOTT, Berenice. The World of Atget. Nova Iorque: Horizon Press, 1964.
plenamente envolvido nessa área da vida. Mas então, como Simrnel mostrou claramente
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no seu ensaio sobre o sigilo (1950), o sabernão se encontra igualmente distribuído, nem ADLER, Judith. Artísts in Offices. New Brunswick, N.J.: Transaction, Inc., 1978.
toda a gente sabe tudo. Não porque as pessoas sejam cegas à realidade pelas ilusões, mas ANANIA, Michael. «Of Living Belfry and Rampart: On American Literary Magazines since 1950»
porque as coisas lhes foram tomadas inacessíveis por sistemas institucionais (que podem TriQuarterly 43 (Outono 1978): 6-23.
ter ou não ter aparecido com essa finalidade). Os sociólogos indagam o que este sabe e o ARNOLD, Bill, e CARLSON, Kate. «The Bus Show». The Massachusetts Review 19 (Inverno
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numa compreensão mais completa. A ideia de «falsa consciência» é um exemplo clássico
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parece-me, mostra muito claramente que a noção de mundo não é de modo algum uma -. e WALTON, John, «Social Science and the Work ofHans Haacke». Framing and Being Framed,
«versão ligeira» da teoria do campo. Podíamos, aliás, acrescentar que procede da obser- de Hans Haacke, pp. 145-52. Nova Iorque: New York University Press, 1976.
vação e que tem uma atitude de forte suspeita face à teoria. Isto não são duas versões BENNETT, H. Stith. On Becominga RockMusician. Amherst: UniversityofMassachusetts Press,
ligeiramente diferentes de uma abordagem que se refere essencialmente às mesmas 1980.
coisas. São duas formas de pensar que são opostas nas suas intenções e, necessaria- BERGÓS, Joan. Antoni Gaudí: J.:home i l'obra. Barcelona: Ariel, 1954.
BIHALJI-MERIN, Otto. Masters of Naive Art. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1971.
mente, nos seus resultados: a abordagem filosófico-sociológica em busca da essência
BLASDELL, Gregg N. «The Grass-Roots Artist». Art and America 56 (Setembro-Outubro 1968):
do social, que conduz à teoria do campo, e a abordagem sociológico-etnográfica que 25-41.
procura tomar explícitas as circunstâncias em que as situações sociais criam elos entre BLIVEN, Bruce, Jr. «Profile: George Fabian Scheer». The New Yorker (12 de Novembro, 1973):
os actores, a noção de mundo. 51-56.
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as duas abordagens: aquela que abre múltiplas possibilidades, descobertas no curso Journal of Sociology 71(1966): 535-44.
de uma imersão na vida social; a outra empenhada em provar, tendo como base consi- BOLLINGER, Dwight L. «Rime, Assonance, and Morpheme Analysis». Word 6 (Agosto 1950):
derações a priori, a verdade de uma posição filosófica abstracta já estabelecida. Não 117-36.
tenho nada a acrescentar. BORGES, Jorge Luis. «Pierre Menard, Author ofDon Quixote». Ficciones, pp. 45-55. Nova Iorque:
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-como actividade colectiva, 27-38, 42, 54, 57,
129,149, 197-201, 293 B
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320 321
Mundos da Arte Índice Remissivo

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D
Berenson, Bernard, 116 161-62, 164-65, 183, 184, 188, 244-45, 251, Dança, 15, 50, 51, 56, 59, 60, 65, 68, 71, 73, Estética, 10, 22, 47, 86, 103, 107-108, 115, 127-51,
Berg, Alban, 252 257,284-85,290,295,311 78, 82, 88, 89-90, 107,108,120,154,211, 153, 159, 192-93, 203,216,219,228,230, 232-
Bergós, Joan, 224 Clark, Larry, 183 212,242,246,248,251,253,255,256,263, -33, 241, 252-53, 264-65, 282-83, 286-88, 298
Bernini, Gian Lorenzo, 105, 106 Clark, Priscilla P., 166 270,271,272,284,286 - como actividade, 127-32
Bernstein, Leonard, 53 Cohurn,Alvin, 246 Daniel Deronda, 186 - como guia para a prática, 129
Bihalji-Merin, Otto, 220 Cohen, Ted, 141,144 Danto, Arthur C., 37, 44, 52, 138, 140, 141, - teoria institucional da, 137-51
Blake, William, 35 Colchas, 29, 56, 128, 193, 196, 211-219, 250, 147,188,293 Evans, Walker, 283-84
Blasdell, Gregg N., 225 292,299 Darrah, William Culp, 26, 260, 261, 265, 266, Everson Museum, 239
Bleak House, 124 Coleccionadores, 14, 37, 45, 108, 114-7, 129, 267,275
Bliven, Bruce Jr., 124 135, 148, 155, 157, 193, 232, 233, 236, Dart, Thurston, 42, 51, 186 F
Blizek, William, 26, 141-42, 148 254,286 Debussy, Claude, 78 Fahrenheit 451, 167
Blumer, Herbert, 11, 21, 178, 301 Coleman, James, 69 Defoe, Daniel, 258
Faulkner, Robert, 11, 14, 18, 19, 26, 32, 46, 89,
Bollinger, Dwight L., 62 Coleman, Randolph, 74 DeKooning, Willem, 97, 159
91,92,93,94,98,244,245
Borges, Jorge Luís, 44 Collins, George R., 224 Denisoff,R.Serge, 156,157,162,169,258
Feira das Vaidades (A), 124, 125
Bourdieu, Pierre, 19, 188, 285, 302-305, 310, Collins, Wilkie,46 Desperdício, ·181, 198, 221
Feiticeiro de Oz (O), 15, 42
311 Commins, Dorothy, 173, 180 Destruição das obras de arte, 159, 167, 187,
Fielding, Henry, 258
Bradbury,Ray, 167 Commins, Saxe, 173,180 191, 192, 195, 196
Fonte, 144, 145
Brecht, Bertolt, 95 Composição musical, 204, 292 Diaghilev, Serge, 35
Forbes, Elliot, 130, 131
Brickrnan, Philip, 26, 82 Connell, Evan S. Jr., 115 Dickens, Charles, 16, 78, 124, 290, 291
Dickie, George, 138, 141-42, 144, 147 Forster, E. M., 183
Brief, Henry, 122 Conservação das obras de arte, 168, 171, 190, Foster, Stephen, 46
Brod, Max, 187 Dickinson, Emily, 31, 37, 186
192-93, 201, 205, 218-9, 226, 228, 272 Fotografia, 53, 65, 68, 72, 76-78, 84-85, 125,
DiMaggio, Paul, 285
Buarque, Chico, 170 Contratos, 38-39, 92, 95, 117, 124, 125, 156, 133-34, 174-76, 187, 243, 246-47, 276-
Dinsmoor, S. P. D., 223, 225
Bucher, Rue, 233 158,268,270 -84
Distribuição (sistemas de), 99-126, 176, 179,
Buchman,Sydney,96 Convenções, 14, 15, 32, 48-54, 58-79 Francesca, Piero della, 39
188, 199,252,258,267,271,293-96
Buferd, Norma Bradley, 26, 212, 214 - como constrangimentos, 52-54, 201-4, Frank, Robert, 65, 76-78, 114, 246, 247
- capacidade, 47-49, 133-37
Bulwer-Lytton, Edward, 125 206-7 Freidson, Eliot, 26, 38, 42
-efeito sobre a obra de arte, 31, 100-101, 125-
Buskirk, Mary, 240 - definições, 70 Friedlander, Lee, 65
-26, 187-88
«[The] Bus Show» (exposição), 132-37 - e cultura leiga, 58-61 Fulcher, Jane, 26, 164
- e reputação, 295-96
- e cultura profissional, 70-72 Divisão do trabalho, 31-38, 41, 46-47, 116, 176 Funcionalismo, 31
e - e estética, 253 Dom Quixote, 44
Cage,John,42,97, 186,209,255 - e segmentos culturais, 62-64 Donow, Kenneth, 26, 57, 138 G
California State University, Fullerton, 220 - tornam possível a arte, 49-51, 180-81 Doty, Robert, 279-80 Galerias e marchands, 110-119, 135
Comera Work, 279 Cookie, 181-82 DoubleAxe, The, 173 Gans, Herbert, 137
Canções populares, 35, 59, 73 Cooper, Grosvenor, 50 Dove, Arthur, 280 Gaudí, Antonio, 224
Cânticos de trabalho, 218 Cooper, Patrícia, 26, 212, 214 Duchamp, Marcel, 42-43, 97, 107, 138, 139, Getz, Stan, 188
Capote, Truman, 183 Copland, Aaron, 255 144-45, 158, 289 Ghirlandaio, Domenico, 38
Carlson, Kate, 132 Corn, Wanda M., 246 Duranty, Edmond, 114 Gilot, Françoise, 26, 80, 81
Carré, Louis, 117 Cowboy Artists of America, 148 Duveen, Joseph, 116 Gioconda, A, 42, 43, 97, 158
Carter, Elliott, 208 Cowell, Henry, 53 Glass, Philip, 35, 65
Cartier-Bresson, Henri, 35, 246 Cowell, Sidney, 53 E Glassie, Henry, 211, 250
Censura, 149,151,153,163, 166-70 Craft Horizons, 232, 239 Earle, Edward E., 25, 26, 275 Gold.farb, Jeffrey C., 166
Cerâmica, 181, 234-39, 248 Craig, Ethelbelle e Clayton B., 148-49 Eastman,George, 84,264 Goldmann, Lucien, 297
Ceramics Monthly, 232 Crane, Hart, 283 Eisenhower, Dwight, 114 Gornbrich, E. H., 14, 50
Cervantes, Miguel de, 44 Créditos, 15, 17, 32-33, 95, 105, 165 Eliot, George, 46, 186 Gould, Joe, 208
Cézanne,Paul, 280,294 Críticos, 28, 37, 50, 91, 92, 98, 105, 111-116, Eliot, T. S., 101, 172, 188 Gosto, 106-107
Cheval, Ferdinand, 223, 226, 299 127 e ss., 177, 179, 187, 188, 192, 203, Eliot, Valerie, 35, 172 Graham, Bill, 120
Christian, Charlie, 146 214, 225, 232, 242, 246, 250, 254, 257, Embrafilm, 165 Greenberg, Clement, 158
Christopherson, Richard, 55, 239, 254, 277 288,293, Engel, Lehman, 207 Griff, Mason, 243
Chrysóstomo, Antônio, 170 Crosby, Bing, 157 Ennis, Philip, 26, 250 Griswold, Wendy, 155, 194
Cincinnati Art Museum, 220 Cummings, E. E., 47-48 Escolas, 72, 89, 245 Group, The, 95-96

322 323
Mundos da Arte Índice Remissivo

H /azz,9,19,21,35,44,73,128-30,144,146,177,187, M - local, 259-60, 262-64


Haacke, Hans, 26, 68, 104, 108-109, 114, 118, 243-46, 259, 262-65, 268, 270-75, 286, 290 McCall, Michal M., 102, 103, 149, 220 - mudanças, 250-56
143,188 Jeffers, Robinson, 173 McCarthy, Mary, 95, 96 - nacional e internacional, 265-84
Haber, Ira Joel, 117 Jenkins, Reese V., 84, 264 McCoy, Esther, 225 - nascimento do, 256-59
Halverstadt, Hal, 240 Johnson, Thomas, 31, 189 Maddow,Ben,243,282 - políticas do, 239-41
Hamilton, George E., 268, 270 Jolas, Betsy, 206 Malraux,André, 108,188 - revolução interna, 252-55
Hampton, James, 221, 222, 225, 226 Joyce.James, 208 Martindale, Andrew, 248 - submundos, 75
Hardy, Barbara, 186 Júlio César, 159, 160 Materiais, 37-39, 82-86, 181-83, 191-92, 194- Museu de Arte Moderna (Nova Iorque), 283
Harmetz, Aljean, 15, 42 -95, 257 Museum of Arnerican Folk Art, 192
Barris, Neil, 248 K Matisse, Henri, 199, 280 Museus, 37, 45-48, 107-109, 118-19, 130-36,
Haskell, Francis, 105-108, 111, 271 Kael, Pauline, 95-96 Mavericks, 17, 86, 102, 196, 197, 201-10, 216, 142-43, 148-49, 157, 164, 168, 188, 192-96,
Hennessey, Thomas, 262-63, 268, 270, 272, Kafka, Franz, 187 224,227,249,254,256,298 198-203, 219, 223, 226-27, 232, 236, 239,
273 Karen, Robert, 97, 184, 251 Mavra, 242 254,293
Henry Esmond, 124, 125 Karlsson, Lars, 32, 33 Mayer, Louis B., 92 Myhrman, Dan, 32, 33
Hentschel, Gerhard, 32, 33 Kase, Thelma, 47 Mead, George Herbert, 178
Herrmann, Bernard, 204, 206 Katz, Elihu, 69 Mecenato, 104-110 N
Hibel, Edna, 148-49 Kealy, Edward R., 26, 40-41 - das empresas, 108 Nancarrow, Conlon, 210, 299
Hibel Museum of Art, 148-49 Keystone View Company, 268 - do Estado, 110, 163-67 Newhall, Baumont, 246, 264, 277, 283
Hirsch, E. D., Jr., 42 Kienholz, Edward, 222 Menard, Pierre, 44 Newhall, Nancy, 187
Hirsch, Paul M., 91, 100, 111, 121-22, 124 Kilburn Brothers, 266 Menzel, Herbert, 69 Newman, Charles, 123, 126, 136
Hirshhorn, Joseph, 108 Kingsley, Robert, 109 Mercury Theater, 159-60 Newman, K. O., 250-51
História da arte, 112, 115, 140, 141, 194, 249, Kirkpatrick, John, 53, 2.04 Meyer, Leonard B., 13, 26, 50, 59, 251-52 Norman, Charles, 47
293 Kj0rup, S0ren, 128 Mills, C. Wright, 207 Norman, Dorothy, 279
Hitchcock, H. Wiley, 205, 207, 208 Kubler, George, 37, 113, 132, 199, 214, 251, Minamata, 174 Nykvist, Sven, 32, 33
Hoffman, Theodore, 68 253, 288, 291-92, 294-95 Mitchell, Joseph, 208
Hoffman, Virginia, 240 Kuhn, Thomas, 18, 245, 252, 283 Mitias, M. H., 141 o
Holmes, Oliver Wendell, 261 Modotti, Tina, 282 Oferta global de recursos, 81-82, 87-90
Holstein, Jonathan, 211-212, 214, 216-17 L Moholy-Nagy, Lazslo, 21 O'Keeffe, Georgia, 280
Hooper, Finley, 191 Lachman, Edward, 32, 33 Monet, Claude, 138 Oliphant, Mrs., 122
Hoos, Judith, 223 Lake, Carlton, 26, 80, 81 Moral pública, 168 Orfeão, 164
Horowitz, Irving Louis, 26, 167, Lang, Roger, 239 Moross,Jerome, 206 Orquestras sinfónicas, 28, 34, 48, 82, 89, 90,
Horowitz, Vladimir, 200 Lartigue, Jacques Henri, 187 Moses, Grandma, 219-20, 227 91,120,128,130,209
Howard, Jesse, 222 Lazarsfeld, Paul, 69 Moulin, Raymonde, 19, 26, 100, 108, 112, 115-
Hughes, Everett C., 9, 10, 15, 21, 26, 32, 37, Lerner, Robert, 75 -117, 129, 135-36, 156-58, 228, 254, 289, p
253,301 Lesy, Michael, 193 293,298 Paderewski, Ignace, 34
Hume, David, 64, 144 Levine, Edward M., 99, 254 Mozart, Wolfgang Amadeus, 22, 76, 131, 255 Falais Idéal, 223, 225, 226
Hurley, E Jack, 275, 282 Levine, Marilyn, 234, 236 Mudie, C. E., 125 Park, Robert E., 301
Hurok, Sol, 120 Lewis, David K., 70 Mukerji, Chandra, 26, 183, 184 Parker, Charlie, 76
Hurricane, 32, 33 Lichtenstein, Grace, 148 Mundo da arte, Parker, Horatio, 201, 206
Huston, John, 92, 93, 95 Lipman, Jean, 220 - artesanato comercial, 245 Partch, Harry, 52, 85, 86, 209
Literatura e poesia, 13, 16, 35-37, 41, 45-50, ausência de, 184-85, 103-110, 219-27 Perkins, Maxwell, 173
I 61,62-64,68,73,75,78,81, 101,110,122, - cadeias de cooperação, 46-49, 81 Perlis, Vivian, 26, 204-8
Indústrias culturais, 111,121 e ss. 141,147,166, 168-69, 191,194,203,255, - crescimento (limites ao). 284-86 Pessoal, 87-98, 185-86
Inovação, 68, 180, 209, 255-56, 259, 273, 258-59, 295-96, 298 - declínio do, 284-86 - intercambiável, 87-90, 200, 273-76
276,283 Litografia, 46-47, 80-81, 87, 90, 179, 296 - definições, 53-57 Peterson, Richard A., 26, 258
Ives, Charles, 26, 53, 196, 201, 202-9, 227 Lorrain, Claude, 294 -e comunicação, 271-72 Petruchka, 242
Ivins, William Jr., 13, 23, 50, 242, 271 Lowenthal, Leo, 297 - e mundo do artesanato, 224-25 Pevsner, Nicholas, 39, 89, 242, 245
Luders, Theodore H., 261, 262 - e reputação, 293-96 Phillips, John, 190, 191, 194-95
J Lukács, Georg, 297 - fronteiras do, 54-55, 196-97 Photographic Times, 260
Jackson, Bruce, 26, 37,218 Lumet, Sydney, 96 - hierarquia interna, 142-43 Photo-Secession, 247, 279, 280
James, Henry, 159, 291 Lyon,Eleano~ 26, 74, 81, 86,96, 120,243 - instituições do, 276-84 Picasso, Pablo, 80, 81, 199, 280, 296

324 325
Mundos da Arte Índice Remissivo

Rubenstein, Arthur, 200 Stravinsk.-y, Igor, 34, 159, 196, 206, 207, 242- V
Pintura e escultura, 23, 28-29, 37-40, 44-52,
-43, 291 Velho, Gilberto, 26, 168
63, 66-67, 76, 83, 99, 101-108, 111-119; Rubin, Cynthia Elyce, 261
Stravinsky, Soulima, 34 Villon, Jacques, 117
132, 135, 138, 143, 147-48, 154-59, 168, Rusch, Herman, 223, 225
Stryker, Roy, 275, 282, 283 Vinci, Leonardo da, 42,
190-91, 194, 196, 200, 208, 211, 212-214, Russell, Charles, 148
Sudnow, David, 71, 88, 180 Virtuosismo, 34, 41, 81, 89, 231, 234, 236,
216,220,223,232, 234,237-40,246,257,
Sullivan, Louis, 21
264,272,280,282, 290-93, 298 s Sumner, William G., 253
241-43, 246
Política fiscal, 157 Sagração da Primavera, A, 242 Vollard, Ambroise, 158, 176
Sutherland, J. A., 14, 16, 17, 122-25
Pound, Ezra, 172 Samizhdat, 166, 168
Szarkowski, John, 114, 187 w
Prisbrey, Tressa «Grandma», 222, 223, 225 Sanders, Clintoµ, 26, 243
Produtores de espectáculos, 119-21 Sant'Anna, Affonso Romano de, 169 Wachsmann,Klaus,23, 26
T Walker Art Center, 221
Profissionais integrados, 196-201 Sauter, Eddie, 188
Tactile Art Group, 82, 181, 182, 185 Walton, John, 143
Público, 51-52, 59-66, 69, 110-111, 113, 120-21, Schary, Dore, 92
Taft, Robert, 246, 264, 277, 283 Warhol, Andy, 140, 212
1~3, 188-90, 258-59, 261-62, 264-65, 275-76 Schenck, Nicholas, 92
Talbot, George, 193 Waring, Fred, 157
Schmidt, Clarence, 221, 222, 223
Taylor, Paul, 65, 251 Watt, Ian, 258
R Schõnberg,Arnold, 207,209,252
Teatro, 9, 29, 37, 48, 49, 62-68, 73, 74, 81, Watts (torres], 17, 196, 220, 221, 224, 225,
Rabelais, François, 63-64, 66, 195, 298 Schõnberg, Harold C., 88
87, 89-90, 96, 100, 107, 120-21, 141, 144, 226,293
Rachmaninoff, Sergei, 34 Schuller, Gunther, 205
147-50, 154, Í66-70, 177-81, 186, 188, Way,Brenda, 26, 65
Rainha Africana, A, 92-93 Sclafani, Richard J., 141 194, 199, 245, 250, 253, 263, 290, 292, Webern, Anton, 78, 252
Rauschenberg, Robert, 97, 159 Sears, Roebuck, & Co., 268, 269, 285 295,307 Welles, Orson, 159, 160
Recrutamento e ensino, 35, 40-41, 59-60, 63- Seeger, Charles, 23 Thackeray, William Makepeace, 16, 124, 125 Weston, Edward, 35, 243, 282
-65, 87-89, 183-85,201, 213-14, 223 Segal, George, 222 Thompson, Peter Hunt, 85 White, Clarence, 246
Reese, Gustave, 42, 271 Seiberling, Grace, 26, 193 Throne of the Third Heaven of the National White, Cynthia e Harrison, 23, 111-114, 194,
Rehfeldt, Philip, 75 Sekula,Allen, 280 Millenium Geral Assembly, 221, 222 200,292
Reinhardt, Gottfried, 92 Shahn,Ben,293 Tice, George, 264, 279 White, Eric Walter, 35
Reitlinger, Gerald, 157 Shakespeare, William, 44, 159-60, 186, 188- Ticiano, 22, 45, 46, 116, 195 White Company, H. C., 266
Religião, 151, 153 -89, 297, 299 Toulouse-Lautrec, Henri, 183 Wilder, Alec, 71
Remington, Frederick, 148 Sherarts, Ted e Sharon, 224 Tracy, M., 225 Williams, William Carlos, 101
Reputação, 22, 45-46, 78, 90-94, 101, 106, 115-
Silvers, Anita, 141 Travesties, 38
-9, 129, 136-37, 152-53, 158-60, 164, 171, Winogrand, Gary, 65
Sinunel, Georg, 301, 312 Trillin, Calvin, 196, 220, 223, 224, 226
177, 183, 186-87, 195, 204-5, 208, 218, Wippich, Louis C., 224, 226
Sinha, Anita, 232 Trollope, Anthony, 26, 27-28, 41, 45-46, 124, Wolfe, Thomas, 173
225,229,232,240,250,270,286,287-301
Slivka, Rose, 238, 239 125,291,296 Wollheim, Richard, 45
- níveis de, 291-93
Slonimsky, Nicholas, 205 Tugwell, Rexford, 282, 283 Wõrmer, Karl H., 42
- produzida pelos mundos da arte, 293-96
Smith, Barbara Herrnstein, 13, 26, 50, 62, 188, Tulsa, 183
- teoria da, 288-91
189,190 Tuttin, M., 80-81, 296 z
Richardson, Samuel, 258
Smith, Cyril Stanley, 257 Twain, Mark, 183 Zack, David, 234, 237 'l
Riley, Terry, 65
Smith, David, 158 Zaidee, 122
Rivera, Diego, 282
Roberts, George, 204
Smith, Fred, 225 u Zolberg, Vera, 118, 121
Smith, Gregg, 207 Últimos Dias de Pompeia, Os, 125
Rock, 22, 35, 40, 56, 88, 156, 162, 256, 258,
Smith, W. Eugene, 174 Underwood & Underwood, 266,267,268,276
259,264,272,286,292
Sob a Bandeira da Coragem, 92, 93, 95, 98 Useem, Michael, 285
Rockefeller, John D. III, 119
Sociologia da arte, 11, 17, 19, 22, 57, 151, 181,
Rockefeller, Nelson, 109
Radia, Simon, 196, 220-24, 226,299 287,297,298
Roscoe,Lynda, 225 Sófocles, 191
Rosenblum, Barbara, 26, 53, 125, 237, 280 Stanton, Frank, 109
Rosenblum, Ralph, 97, 98, 184, 251 Steichen, Edward, 246, 280
Ross, Lillian, 92 Stevens, Wallace, 101
Rossiter, Frank R., 201, 202-3, 206, 207 Stieglitz, Alfred, 279-82
Rota, Nino, 32, 33 Stockhausen, Karlheinz, 42
Rouault, Georges, 158, 176 Stoppard, Tom, 38, 289
Rousseau, Henri, 220 Strauss, Anselm, 26, 233

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