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LIVRO GRATUITO

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Sammis Reachers

Renato Cascão &


Sammy Maluco
Uma dupla do balacobaco

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Copyright ©2021 Sammis Reachers

Ilustrações de Franciliudo G. Freitas – Studio Lin Ilustra

ISBN: 978-65-00-32330-6

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“É melhor escrever sobre o riso do que sobre a
lágrima. Porque o riso é próprio do homem.”
Rabelais

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Sumário
Apresentação.....................................................................07
Capítulo 1: Situando os quiprocós ...................................10
Capítulo 2: Um assalto à horta do hospício ...................14
Capítulo 3: Sexto Sentido ..................................................18
Capítulo 4: Sobre paus, pedras e sopapos ....................21
Capítulo 5: A fundação do MMA numa comuna
gonçalense .........................................................................24
Capítulo 6: Meganha, raça do cão ................................28
Capítulo 7: Papita e o atoleiro .........................................31
Capítulo 8: Ri por último quem ri de bolso cheio ..........36
Capítulo 9: O sítio mal-assombrado de Seu Pedro .......39
Capítulo 10: As doces mangas – e o muro – do velho
Lauro ....................................................................................45
Capítulo 11: A rapina bananal .........................................49
Capítulo 12: Jamelões!......................................................54
Capítulo 13: De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude .........................57
Capítulo 14: Sobre nossos apelidos.................................60
Capítulo 15: O Triciclo dos Alucinados ...........................62
Capítulo 16: Renato e seu cachorro Bugui .....................65
Capítulo 17: Volnei Peito-de-Aço ....................................67
Capítulo 18: Os caronistas ................................................73
Capítulo 19: Vamos falar sobre etnia ..............................78
Capítulo 20: Casemiro, O Profeta ....................................82
Capítulo 21: O Pau-de-Sebo ............................................87
Capítulo 22: Gambá e o Gran Cassino Palha Seca ......93
Capítulo 23: O Tempero Colombiano .............................99
Capítulo 24: Epílogo.........................................................107
Sobre o autor ....................................................................112

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Introdução

Este pequeno volume reúne algumas memórias de


minha infância, transcorrida entre meados da década de
80 e inícios da década de 90 do século passado. Não faz
assim tanto tempo, mas ainda era numa época em que as
crianças, então não feridas pelas virtualidades da web ou
enjauladas pelo risco da violência lá fora, brincavam de
fato e de direito. E era um brincar na acepção plena do
termo, na configuração máxima das 24 horas do dia, onde
os pequerruchos exploravam o seu geralmente vasto
espaço vital à exaustão.
Claro, nem tudo eram flores; a pobreza exercia o seu
duro reinado, e aprendendo a driblá-la levávamos a vida –
uma vida sofrida, transida de malandragem e inocência,
mas, atropelando os pesares, profundamente feliz. Afinal,
o chão da memória é apagar o grosso das sofrências, ou
romantizar pela nublagem o rude dos amargos momentos.
Há um texto anônimo de grande beleza, e que acredito
sirva de excelente introdução às pequenas e divertidas
narrativas que aqui vão rascunhadas:

O QUE É UM MENINO?
Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores
sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em
baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo,
correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os
detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os
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adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a
verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado,
a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a
digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a
curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a
imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia
da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos
em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os
doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira
os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do
vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do
papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das
bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a
escola, os livros sem figuras, as lições de música, as
gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos
e a hora de dormir.
Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das
refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete
enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de
barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um
estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um
objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura
mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de
ferramentas, mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo
do seu escritório, mas não do seu pensamento. Toda a sua
importância e a sua autoridade se desmoronam diante
dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um
despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você
volta para casa, à noite, de esperanças e ambições

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despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as
suas palavrinhas mágicas: "OH! — MAMÃE!".

É de se imaginar que as travessuras aqui narradas


tenham como personagens principais esses dois aí do
título: Meu amigo de infância, Renato “Cascão”, e o
Sammy “Maluco”, este pacato alucinado que vos escreve.
Mas não apenas eles ou nós: Outros atores desta ópera-
bufa que é a vida numa periferia se fazem presentes,
emprestando suas histórias para, queira Deus, trazer um
pouco de alegria e diversão a você, amigo leitor.

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Capítulo 1
Situando os quiprocós

Toponímia é aquela área de estudo que se ocupa dos


nomes próprios de lugares. Iniciemos este relato
esclarecendo alguns embaraços toponímicos, sem os quais
o leitor talvez não consiga se situar no teatro dos eventos.
A região aqui em geral referida pertence “legalmente”
ao bairro de Tribobó; sim, o bairro com um dos nomes mais
divertidos – ou ridículos – do Brasil. Situado no município
fluminense de São Gonçalo, o extenso Tribobó é composto
pelo que se chama de sub-bairros, que, oficiais ou não, são
pequenas repartições ou regionalizações adotadas
principalmente pelos moradores desses lugares.
Ao trecho de Tribobó em que fui criado chamamos de
Jardim Nazaré, também grafado Jardim Nazareth, ou o
termo que hoje o faz, não com justiça, conhecido alhures:
Palha Seca.
Evito em geral o termo Palha Seca pois ele hoje refere
uma ampla área, que, tendo visto nascer nos últimos trinta
anos algumas favelas em seu corpo, agora recebe até a
designação de complexo, o “Complexo do Palha Seca”.
Assim, com Jardim Nazaré busco definir uma área
delimitada dentro disso que se chama Palha Seca; sim, um
pequeno trecho composto por três ruas principais e mais
umas quatro paralelas.
Levantado nosso cercadinho, vamos fundamentar os
relatos.
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Boa parte de minha infância e primeira adolescência foi
passada na favelinha Beira do Rio ou Beira Rio, pequeno
bocado de chão do já pequeno Jardim Nazaré. Ela recebe
esse nome, você já pode imaginar, por margear trecho de
um rio – neste caso, o Rio Alcântara, que nasce no
município niteroiense de Pendotiba, alguns quilômetros
acima de nosso ponto, e percorre quase meia São Gonçalo
(mudando de quando em quando ou de trecho em trecho
de nome, como um fugitivo) em sua peregrinação soturna
em busca da Baía de Guanabara.
Morando numa rua de acesso à movimentada Beira Rio,
sua influência, como um ímã, não poderia me deixar
escapar, estando eu a tão poucos metros de sua fervura.
Muitas aventuras foram vividas ali – ou não exatamente
nela, mas em andanças a partir dela – andanças em que eu
e os companheiros de ocasião percorríamos quilômetros
que, hoje, me defenestrariam as pernas, caso eu tentasse
encará-los.
Um desses companheiros de ocasião era na verdade um
companheiro de muitas ocasiões, um amigo, na medida
em que este termo se aplicava às relações sempre algo
hostis que eram mantidas naqueles tempos, naquele lugar.
Seu nome era Renato. Renato Batista dos Santos. Irmão de
quatro irmãos, paupérrimos – moravam todos quase
amontoados num barraco de um único cômodo.
Minha situação era bem mais favorável, embora eu
fosse, claro, perfeitamente pobre. Devo a Renato muito de
minhas iniciações no mundo real, iniciações que, a duras
penas, conseguiram romper o perfeito inapto ou inocente

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que eu era. As lições de “malandragem” eram aplicadas
diariamente, sem muita cerimônia.
Uma de nossas maiores ocupações era, quase que
todos os dias, catar ferro-velho – reciclagem, cobre,
alumínio, garrafas e até ferro, ferro depois abandonado
pois o lucro não compensava o sacrifício de, franzinos
moleques que éramos, carregar todo aquele peso.
Ocupados em nosso ofício – cujo objetivo era conseguir
dinheiro para comprar picolés e sorvetes da Kibom, pão
com mortadela, refrigerantes, doces, jogar fliperamas e,
ao menos no meu caso, comprar figurinhas variadas –
como dito, andávamos quilômetros, a cada dia traçando
uma rota.
Na época não havia coleta de lixo na região, lixo que era
então despejado em “pequenos” lixões (terrenos baldios)
que abundavam em cada bairro e sub-bairro. Renato me
ensinava nessas andanças a primeira lição da vida ou
daquela vida – cada um por si, nada de catar em conjunto.
E ele, claro!, sempre conseguia mais materiais de valor que
eu. O bicho enxergava como uma águia! Com o tempo, fui
melhorando.
Outra lição – essa vergonhosa e perfeitamente
dispensável – que Renato me ensinou foi a roubar. Mas
calma lá, leitor, que não lhe quero escandalizar logo neste
início de livrete: Não eram furtos dignos do risco ou talvez
da fama, eram apenas surrupios de pequenos pedaços de
cobre, que jaziam amarrando canos e cercas; garrafas de
cerveja e garrafões de vinho largados em algum depósito
de fundo de quintal; panelas velhas que eram utilizadas
como vasos de planta – ah, quantas plantas eu deitei fora,
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eu que depois aprendi a amá-las! Quando podia, removia
cautelosamente a planta e sua touceira de terra da panela,
depositando a touceira gentilmente a um canto. Quem
sabe a madame não conseguisse um outro vaso para
reacondicioná-la?
Esses pequenos furtos também foram uma severa
escola – em geral, nos quintais mais “arriscados”, eu, mais
lerdo e ainda por cima mais “visível” pela minha pele
amarelona, ficava de vigia, enquanto Renato lá ia tentar
aliviar... LIXO, mas era roubo pois o “lixo” tinha dono, e
trazia na corcunda seu risco.
Há quem diga que éramos pueris ecovisionários
promovendo ou ao menos “adiantando” a reciclagem de
materiais que, largados como estavam na “natureza”,
levariam séculos e oh!, quiçá milênios para se
decomporem, comprometendo ecossistemas locais e
globais. Para esses, fomos paladinos da sustentabilidade,
arautos de um futuro eco-responsável (particularmente,
gosto bastante desta versão).
A mesma tática utilizávamos para afanar frutas, ciência
esta universal, e atividade que exercíamos com alguma
perícia e grande prazer. Embora antes pedíssemos ao
dono, humildemente, para nos deixar arrancar algumas
frutas – mangas, goiabas e quetais. Em caso de negativa,
bem...

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Capítulo 2
Um assalto à horta do hospício

Iniciemos nosso controverso elenco de encrencas pelo


surrupio de gêneros alimentícios, pois quem tem fome tem
pressa, asseverava o grande benemérito Betinho.
Próximo de nossas casas havia um Hospital Psiquiátrico,
de caráter particular, que fazia as vezes de asilo. Era um
estabelecimento assentado sobre um imenso terreno, que
tinha entre seus domínios, além das instalações principais,
uma sinistra casa abandonada digna de filmes de terror,
uma pequena capela para velar os mortos do hospital, e
um pequeno, mas belo e denso trecho de Mata Atlântica
onde coletávamos os deliciosos (tinham gosto de jaca!)
coquinhos-catarro, que em outras plagas são conhecidos
como jerivá, baba-de-boi e até coquinho-meleca, dentre
outros nomes mais ou menos nauseantes.
Mas o que fortuitamente passou a interessar-nos, a
mim e a Renato, foi uma horta de grande tamanho que eles
iniciaram certa vez. Não que fôssemos grandes comedores
de hortaliças, mas eram muitas e dava gosto de ver uma
roça daquela, tão cuidada e sortida, luminosa como uma
aquarela. Tentação feita, nossas almas foram vencidas. E
certa manhã de sol retumbante foi a escolhida para nossa
incursão.
No assalto a tal horta, seguimos o já cansado script de
sempre: Renato avançava enquanto eu ficava de vigia,
acocorado sob uma moita. Era quase impossível ver aquele
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moleque destemido que rastejava qual um perfeito milico,
como se tivesse recebido algum treinamento militar. E, de
mais a mais, apenas os pacientes – todos doentes mentais
acometidos das mais diferentes patologias – ficavam
tomando sol num dos calçadões da parte do hospital que
dava para a horta. Não teriam mente, olhos, interesse ou
consciência para nos notar. Bem, assim pensávamos.
Quando o moleque esperto estava já na borda da horta,
arrancando pés de alface e couve que estavam à mão, não
é que um dos “loucos” – que de louco devia ter muito
pouco – deu o alarme? E os demais que com ele estavam
principiaram a berrar, num coro alucinado: “Pega ladrão!
“Per-rega ladrão! Perrr-rega ladrão!”
E daí, poderia ser dizer. A horta ficava num ponto
exterior ao asilo/hospício, que dava justamente para a
região de onde viéramos, e para onde nos bastava fugir.
Mas o problema era que o hospital tinha um “zelador”: Seu
Ciro, que estava sempre a postos com sua espingarda de
sal grosso nas mãos, e os dois cachorros vira-latas que, se
sozinhos eram apenas observadores passivos e
desinteressados, quando estavam com ele se tornavam
verdadeiros dogues de caça.
E eles prontamente se apresentaram, os perdigueiros e
seu senhor: O bruto do seu Ciro parecia um lorde inglês, já
com cabelos brancos, mas correndo feito um adolescente,
com aquela espingarda fazendo fogo e atiçando aqueles
cachorros de dúplice proceder...
Foi uma corrida infernal, mato adentro, ignorando
trilhas e abrindo novas no peito, até chegarmos ao rio – o
rio Alcântara, que corta quase que meio município de São
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Gonçalo – e que separava a “nossa área” da micro região
que chamávamos apenas de “morro” – na verdade um
enorme trecho composto por um encadeado de montes,
onde a mata de cerrado e chaparral se intercalava com
bolsões de Mata Atlântica, micro região no meio da qual
estava justamente o tal Hospital.
Corremos como desvairados, mas o tinhoso do Renato,
ou Nato para os íntimos, não largou nenhum dos muitos
pés de alface que confiscara... Era um signatário da velha
máxima brasileira: “Vergonha é roubar e não conseguir
carregar”.
E aplicou mais uma vez uma lição a que eu tive que me
submeter infindas vezes: Ele corria mais do que eu, não
olhava para trás e muito menos para mim. Nem um “corre,
mané”, ele soltava. Apenas corria, firme em sua ideologia
do “cada um por si” e ai de mim se não percebesse a fuga
– fosse lá do que fosse – e não partisse em sua traseira...

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Capítulo 3
Sexto Sentido

Isso me leva a recordar de outros episódios, agora


divertidos, pelos quais passei. Eu ainda não relatei, mas
Renato possuía algo que perturbava minha mente que,
embora infantil, era leitora de enciclopédias e já
manifestava a tendência racional-científica que fundou a
frio nosso mundo tecno-científico e a tudo manieta,
retifica e constrange. Esse algo era o que se costuma
chamar de “sexto sentido”. Sim, aquele rapazinho que
jamais entrara numa escola (não havia lei, ou a lei não
tinha força que obrigasse a mãe dele, Bebete, a matriculá-
lo), possuía um sinistro sexto sentido que o avisava,
geralmente com apenas alguns segundos de vantagem, de
que algo de ruim estava prestes a acontecer; que a jangada
pirata iria naufragar, a aventura do momento estava em
vias de dar errado.
Relato uma das mais prosaicas e inofensivas destas
vezes em que tal sentido do malandrim nato se
manifestou. Certa noite, ele me chamou para “darmos
uma espiada” em frente da casa de uma certa menina,
uma linda negrinha, que estava há pouco tempo no bairro.
Nato estava enamorado...
Acontece que a tal menina morava numa casa, a de sua
avó, em que infelizmente (isso sempre é uma infelicidade
quando acontece com a mulher de quem você gosta)

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moravam muitos homens – eram os tios dela, todos
solteiros e ainda albergados em roda da saia da matrona.
Pois bem, lá estávamos nós, acocorados no mato em
frente daquela casinha de telhas francesas e sem cercas. A
rua estava deserta, pois o bairro naqueles tempos era
menos povoado e a hora já ia avançando noite adentro;
podíamos divisar, dentro da casa de janelas de madeira
abertas, o trânsito dos moradores, inclusive da princesinha
de ébano. Eu olhava para a rua de quando em quando, pois
nossa atitude, embora de intenções inocentes, era
também suspeita. Foi quando Renato, fulminado por seja
lá que tição do céu ou do inferno, entregou o oráculo: “Tô
com a sensação de que vai acontecer alguma merda...”.
“Que nada, a rua tá deserta e nós não estamos fazendo
nada”, respondi. Um breve momento de indefinição foi
suspenso pela aparição, ex nihilo, sim, direto do nada, de
um dos tios da menina, bem na nossa frente. Como aquilo
se deu? E era justamente Elias, o mais “brabo” dos
moradores da casa. Renato foi apanhado pelo braço, e
tomou uma salva de cascudos. Eu também levei o meu e
me dei por satisfeito – bem, em geral eu ficava para trás e
arcava com as consequências sozinho. As explicações
sobre os puros sentimentos do jovem Romeu, ao invés de
tocarem o coração de Elias, tiveram o resultado oposto,
enfurecendo ainda mais o valentão. Se tivéssemos corrido
quando o oráculo deu o alarme...
Carimbados de cascudões e devidamente jurados em
caso de reincidência em tal “crime” – simplesmente
observar o evolar de uma virginal donzela, veja você –

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partimos para nossas casas, contrariados por mais uma
injustiça da vida.
Renato jurava “vingança” quando crescesse. Quanto a
mim, bem, em boa parte de minha infância, receber um
cascudo era como receber um bom dia.

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Capítulo 4
Sobre paus, pedras e sopapos

Parte do lecionário dos meninos, numa comunidade


pequena mas algo hostil como aquela, assim como
acontece e aconteceu em quase todo o mundo e ao longo
de toda a divertida história humana, era dedicado ao
combate corpo a corpo.
Em minha nascente biografia, esse foi um problema que
demorou para ser remediado – eu era bem mais bobo que
a maioria dos moleques da rua. Ao menos dos moleques
daquele trecho do bairro, um pouco mais barra-pesada ou,
termo melhor, pragmatista, mas foi ali que resolvi fincar os
paus de minha mal-armada barraca.
Não tive irmãos homens, apenas irmãs; pior: não tive
primos próximos, apenas primas, muitas primas. Meu pai,
bom homem, arauto da pacatitude, nunca foi de briga.
Meus três tios que moravam no bairro eram muito
ocupados, e dois deles tinham deficiência numa das pernas
– resquícios de poliomielite, sofrida na infância ainda nas
Minas Gerais. Mesmo se quisessem, a vida cedo os
impedira de fazer carreira de sucesso no rude mundo da
trocação de chutes e socos. Ou seja: Eu nem tinha quem
me defendesse, nem tinha quem me ensinasse o ofício.
Para casos assim especiais, a vida tem uma solução
terminal: tentativa e erro, ou: aprender a bater por
osmose, depois de muito apanhar. Ou nunca aprender.
Bem, eu custei, mas aprendi.
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Desses meus doutrinadores de rua, novamente Renato
foi o primeiro e o maior deles: vez por outra eu era
espancado, para recalibrar meu entendimento da
hierarquia que rege o cosmos. Brigávamos num dia e, no
dia seguinte, lá estava ele no portão de minha casa,
gritando: “Ô Sâmi! Sâââ-mêêê!!! Ô Sâââmiii!!! Bora catar
ferro-velho!” E lá ia eu, despudorado, mais perdoador que
o futuro cristão que eu haveria de ser.
Mas nem tudo eram murros colecionados. Enquanto
não aprendia a utilizar os punhos, desenvolvi um
mecanismo de defesa, dissuasão ou vingança que acabou
se tornando “lendário” nas cercanias: virei franco-atirador.
Funcionava mais ou menos assim: Você, mais forte do que
eu, me aplicava uma pancada, me constrangia com alguma
ameaça, ou mesmo me lançava alguns desaforos e
impropérios numa dose acima do que eu estava disposto a
metabolizar. Ato contínuo eu, sempre num sinistro e
sintomático silêncio, me recolhia à minha insignificância
pugilista e existencial, dava vinte passos, sempre lentos,
quase tristes. Cabeça baixa, expressão contrita, era só um
garotinho fracote recolhendo-se à convalescença
aconchegante no lar.
Em seguida, cumpridos os passos cerimoniais, garantia
de segurança em caso de fuga, num movimento rápido e
contínuo, eu apanhava uma pedra do chão e me virava
atirando-a. Era um agachar-apanhar-atirar sem pausa,
manobra tinhosa, um giro rápido e perfeito. E enquanto
aquela pedra, aquela Nêmesis de minha vingança cruzava
os ares, outra já estava sendo recolhida e disparada. Antes
das armas de fogo, a metralha já pipocava na favela...
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Foram tantas as pedras despachadas (eram tempos
conflagrados!) que adquiri alguma especialização, e aquilo
passou a ser temido na rua.
Eu sou um tipo esquisito ou incompleto de ambidestro:
escrevo com a direita, mas uso a mão esquerda para atirar
objetos. Lenda reza que minha mãe, a melhor mãe do
mundo mas acabrunhada pela educação de roça das
profundas Minas Gerais, ao perceber minha tendência
inicial para a canhotice, vendo que eu rabiscava com a pata
sinistra ao invés da destra, forçou a barra para que eu me
corrigisse, que aquilo de escrever com a esquerda era coisa
do capiroto. Ah, Minas Gerais, misto de poesia e
sensaboria, que tantas fábulas pariu!!!
Mas voltemos ou avancemos até à idade da pedra: Se
no futebol, que àquelas alturas detestava, eu era ninguém,
e minhas duas pernas eram cegas, no tiro ao alvo eu era o
canhotinha de ouro, artilheiro isolado por quatro, cinco
anos. Magoei algumas carnes, rachei uma ou duas cabeças
– com duras consequências. Parte da fama do Sammy
Maluco foi alicerçada no melhor da alvenaria: pedras de
brita e lascas de tijolo.
Mas a rua tinha uma máxima, um provérbio cruento, de
cuja verdade nem toda a perícia balística me safaria: Nem
só com paus e pedras se defenderá o homem: O punho será
sua bandeira.

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Capítulo 5
A fundação do MMA numa
comuna gonçalense

Demorou bastante para que eu aprendesse a devolver


com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui
ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim,
se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes
Marciais Mistas), naquelas alturas ou profundezas da
década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem
em criar esta modalidade.
E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar
em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES.
Mas, como era isso?
Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns
dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos,
muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do
rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte
parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez
me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio
em troca de... tomar banho numa grande piscina, num
casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim,
também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e
nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o
moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para
almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de
desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo,
vadiando até o anoitecer.
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Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não
apenas a areia era o recurso natural explorado pela
comunidade. A areola, com sua fina textura marrom,
utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e
também como terra para plantas, era outro recurso
lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios.
Acontece que um empreendedor, um inovador
desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar
dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou
enxadada que seja.
Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a
escavar areola, que era prontamente vendida. Quanto ao
espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o
usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era
facilitado pela diminuição do patamar da margem, já
escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros”
num mesmo local.
O inusitado foi que, numa feliz ação do destino
guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio –
que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho.
Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou,
presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado”
escavado às margens do rio fora ocupado completamente
por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta
que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma
areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo,
atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que,
com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a
que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas

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do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas
barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.
Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de
futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já
contava com um campinho mais acima do morro. E as
areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O
areal passou a ser campo de honra – não, não um
cemitério – mas campo onde as honras entravam em
disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram
a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem
contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao
menos da ação dos pais.
Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à
brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até
battle royale (todos contra todos) foi experimentada em
nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala,
qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela
pequena e mambembe escolinha de gladiadores
gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!
Aquilo se tornara também um campo de sadismo para
alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam
aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles
estimulavam os combates, impediam a fuga dos
desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos
pelos membros e balançando-nos como fardos que, após
ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como
fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.
Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais
mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já

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formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia –
seus campeões.

28
Capítulo 6
Meganha, raça do cão

Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito


divertido – que passei em minha vida de coletor de
reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado
dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106
um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro
Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho
ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel.
Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados
fora, sem marca nem dono.
Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos
de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto
– talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não
conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até
a altura do asfalto, pois eram quase três metros de
pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30
centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso.
Foi já com um plano em mente que Renato chegou na
Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos
carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e
nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha
disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois
primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos
acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda,
sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em
marcha de quase três quilômetros até o tal valão.
29
Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo
desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande
eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo
aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto
nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato
empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se
vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair
de seu cemitério pacífico.
Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força
na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após
a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele
pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós.
A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos
metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja
de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro
daquele estabelecimento decorativamente burguês, um
indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem
aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando
aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho.
Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez
arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em
seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de
mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos
aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um
carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos
que ele estava “jogado fora” dento de um valão ali perto,
talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora
como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria
confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos
tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.
30
O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que
não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato
que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários,
Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que
seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em
suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até
eu tenha chorado...
Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a
serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro
roubado e que todas as peças possuem um registro
numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma
vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o
riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio
e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos
observava, de frente à loja – que, passados quase trinta
anos, ainda existe.
Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e
todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita
corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elucubrador de
ideias...
Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a
classe policial? Quem sabe.

31
Capítulo 7
Papita e o atoleiro

Se o assunto é ferro-velho, vamos falar de outra


aventura, uma aventura não feérica (fantasiosa), mas
ferrada de apertos e perrengues.
Preciso informar, por cortesia ao entendimento do
leitor, que Renato sempre tinha um argumento para me
convidar a ir até tal ou qual lugar, em geral longínquo, em
busca de ferro-velho: “Passei por lá e há muita coisa, muita
coisa!”. O canalha não havia passado por lugar algum, mas
eu sempre caía na conversa. Deve ter sido meu primeiro
contato direto com um discurso político!
De certa feita, convidou-me a dar um rolê pelo sub-
bairro conhecido como Tribobó City (não confundir com
Tribobó, bairro de fato e direito, do qual o tal Tribobó City
era apenas um dos pedaços de chão).
Sabe-se lá por que cargas d’água ou de cobres, Renato
convidou para a peneira um outro catador esporádico,
Papita, a quem chamávamos também e simplesmente de
Mudinho, em virtude dele ser (quase totalmente) surdo-
mudo. Papita era um desses personagens folclóricos: Você
precisava de tempo de convivência para passar a entender
os grunhidos que ele soltava. Era maior do que nós, e a vida
na favelinha já havia nos ensinado que estar com um maior
é estar submetido, estado péssimo para livres-andarilhos
e anarco-presepeiros como nós.

32
Amigo leitor, deixe-me abrir um parêntesis: Já terá sua
distinta pessoa se servido, em seus momentos de
intimidade, dos papéis higiênicos e toalhas de papel
Cotton, Deluxe, Klass, Coquetel? Que tal as fraldas
descartáveis Looney Tunes? Eles e muitos outros bons
produtos são fabricados pela empresa Carta Fabril, que até
pouco tempo atrás era localizada aqui, em Tribobó City, na
em sonhos linda São Gonçalo. Foi pelos matagais e
terrenos baldios circunvizinhos dela que fomos nos
aventurar, em busca de alumínio e cobre. Afinal, Renato
passara por ali e os vira...
Amigos, outro parêntesis, pois precisamos aproveitar a
Literatura para isso: Naqueles tempos, num córrego que
cruzava dos fundilhos desta tal empresa, era descarregado
um líquido colorido, por vezes azul, por vezes verde, que
se dirigia diretamente para o já citado rio Alcântara.
Poluição pura, sem filtros nem firulas. Pior: Sem saber
direito do que se tratava, e acostumado àquela vida de
“bravuras”, certa vez entrei no trecho do rio Alcântara que
recebia aquela química toda, venenosidade que lhe
mudava a cor daquele ponto em diante. Graças a Deus não
me aconteceu nada. Bem, sabe-se lá.
Feita a denúncia, voltemos à aventura. Nossas andanças
por Tribobó City (parece nome de cidadezinha de filme de
Faroeste, hum?) redundaram em NADA, coisa que por
vezes acontecia quando eu seguia as projeções de Renato.
Mas havia um outro problema, esse sim, novo: Papita, que
não vira nada de “curpiu” – assim ele chamava o alumínio,
em sua diferenciada língua de mudo. O bruto murmurava,
e pode o leitor imaginar o que seria um mudo “falante”,
33
irritado até os infernos, bradando e gesticulando como
uma matrona italiana?! Papita ameaçava nos aplicar fartas
cargas de cascudos, caso nada encontrássemos. Afinal, o
fizéramos desabalar-se de sua paz para nos seguir na
peneira em terras longínquas e inóspitas.
Meus queridos, tudo que é ruim pode piorar, e aquele
dia estava funestamente atípico. Realmente não havia
NADA nos lixões dos terrenos baldios. Era como se algum
outro catador houvesse passado por ali, momentos antes.
Bem, resolvemos então nos aventurar pela parte de trás
da tal empresa de papéis. Era um misto de matagal e
aterro. Havia chovido bem no dia anterior, e eu temi entrar
num lugar novo para mim, justamente quando ele
aparentava formar tanta lama. Mas avançamos, sempre
sem nada encontrar, com um olho nos caminhos e outro
no furioso Papita, sempre prestes a explodir.
Chegamos então a uma pequena ribanceira, da qual não
poderíamos descer sem nos sujarmos todos de barro. Era
preciso pular lá para baixo, para continuarmos nosso
avanço. Olhamos para a terra desnuda, molhada pela
chuva, e nos pareceu fácil, coisa de dois metros de altura,
para nós que pulávamos de até cinco, sem quebrar as
perninhas.
Eu e Renato cometemos então o principal erro do dia:
Pulamos ao mesmo tempo, cada qual numa direção. O
resultado foi surpreendente: Aquele amontoado de terra
era na verdade um lamaçal de aterro encharcado, um
amontoado tão fofo que, já no impacto, afundamos até a
cintura na lama.

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35
Pare um pouco para imaginar: crianças de onze anos,
corpos fracos, num lugar desconhecido, presas até a
cintura em lama movediça. Sem forças para sair, e pelo
contrário: Quanto mais força fazíamos, parecia que mais
afundávamos... Bateu a brisa do desespero, logo transfeita
em vendaval. Chorei, confesso que chorei.
Papita, do alto do barranco, apenas observava a cena.
Por isso chorei: Pensando naquela velocidade hipersônica
do medo, imaginei que ele, furioso, nos abandonaria ali,
longe das vistas de qualquer pessoa, para morrermos
como num maldito filme de meu herói, o também catador
e ladrão de ferro-velho Indiana Jones.
Mas Papita pulou – E pulou, estranhamente, num lugar
onde quase não afundou. Em seguida, aproximando-se
devagar, puxou as mãos de Renato, que a muito custo
conseguiu desprender-se da lama pegajosa. Após, foi a
minha vez. Consegui sair com grande penúria, mas um de
meus chinelos ficara preso lá no fundo da lama, numa
fundura que meus braços não alcançariam. O
inesperadamente generoso Papita, adiantando-se, enfiou
seus longos braços no lamaçal e retirou minha sandália.
Conseguimos por fim contornar aquele matagal, e sair
daquele lugar miasmático. Já na pista, totalmente sujos,
sem sequer uma grama de cobre ou alumínio nas mãos,
Papita cobrou o seu preço: Cada um de nós tomou uma
sequência de dez ou mais cascudos em cascata.
Bem, ficou barato: sempre está barato quando se
escapa andando sobre as próprias pernas. Estávamos até
agradecidos. E nunca mais chamamos Papita para nada...

36
Capítulo 8
Ri por último quem ri de bolso cheio

As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso


sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira”
entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros
bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey
Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro
e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda.
Era muito chão!
Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era
armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia:
Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os
de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...
Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa
feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões,
ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na
intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as
NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente
interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões
incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais
fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que,
em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com
sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda
era um péssimo ou inútil boxeur de rua, colocamos a viola
no saco e ficamos quietinhos...
Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-
bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece
37
que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas
coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário,
instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa
dessas andanças naquelas paragens que acabamos
descobrindo em que casa moravam os tais Romeus
valentões?
Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da
casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela,
coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas
e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de
algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal
terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas,
percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús
de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a
falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam,
do lado DE FORA de seu quintal, um depósito de
reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo
e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado,
fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de
mel.
Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou.
Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta
daquele sorriso!, eu entendi o que faríamos.
Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles
canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-
e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena
“carga” das mercadorias, para que as vítimas não
sentissem o impacto.
A marra daqueles garotões, que depois acabaram
“expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a
38
consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes
da Kibom, nossos preferidos...
O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e
amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado
trabalho – e nossa justa & vingativa rapina!

39
Capítulo 9
O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro

Alguns dos melhores dias da infância aqui no Jardim


Nazareth foram passados no Sítio do seu Pedro. O sítio era
na verdade de um japonês misterioso – do qual seu Pedro
era o caseiro. Ou semidono, pois o tal japonês quase nunca
aparecia.
No grande sítio, tomei o primeiro contato – não numa
gôndola de supermercado, não numa sacola de compras
de meu pai, mas pegando nas mãos, no próprio pé – com
diversas frutas como jambo, carambola, jabuticaba. Até
um pé de caqui havia, e curiosidades como uma árvore de
cortiça. Mas a principal “lavoura” ali eram as mangas:
Dezenas de pés, um carnaval, um tsunami, um apocalipse-
ragnarok-mahapralaya de tanta manga.
O sítio também possuía um equipamento esportivo
misterioso para todos nós àquela época: Uma quadra de
tênis, em saibro, e isso mais de década antes de Gustavo
Kuerten popularizar nos meios de informação o que era o
tênis, e, claro, o que era uma quadra de saibro.
Seu Pedro e sua família eram em geral simpáticos e
tolerantes – deixavam, a quem pedia com educação,
entrar no sítio. Havia regras básicas: Não podia quebrar
galhos das árvores, e nem arrancar frutas e deixar no chão
(pois limpar aquela imensidão era uma tortura, e
desperdiçar comida, como hoje, já era duro pecado
naquela época). O acesso livre dependia também da época
40
do ano e de que temporada/ano era aquele. Tinha
momentos em que não havia ainda mangas maduras, ou
sequer manga alguma, nos pés. Mas, nos melhores anos e
na alta temporada, já vi aquele velho senhor negro e
franzino, de fala mansa e pausada, abrir covas profundas
de uns quase dois metros de profundidade por dois de
largura e bem uns quatro de extensão – ou seja, suficiente
para sepultar quase um elefante! – apenas para jogar
mangas podres (uma tonelada? Duas? Três!?), pois não
havia o que fazer com tanta manga. Nem a população do
bairro dava conta.
Bem, independentemente de haver mangas e outras
frutas ali ou não, a molecada amava entrar no sítio e tentar
peneirar alguma coisa. Por vezes a solicitação de entrada
era negada, e então os mais afoitos não se faziam de
rogados, adentrando no sítio por um dos muitos pontos de
acesso “encobertos”.
Foi numa dessas abordagens ou penetrações não-
autorizadas que me vi, em companhia de Renato e mais
uns quase quinze garotos, dentro do sítio, onde entramos
lá pela extremidade oposta à daquela em que ficava a casa
de seu Pedro.
Ah, como o tal “seu” Ciro do “hospital dos malucos”
citado em capítulo anterior, seu Pedro também tinha sua
espingarda de sal, e miseravelmente um cachorro que, de
manso virava perdigueiro quando atiçado por seu dono.
Sinistro e opressor padrão!!! Assim, era preciso entrar no
sítio bem “na encolha”, e estar atento.
Ali estávamos todos embaixo de um pé de manga
espada que, temporão, tinha já suas frutas. A árvore ficava
41
em linha direta com a parte mais sinistra do sítio – Um
pequeno casebre abandonado, construído ao lado da tal
quadra de tênis. A casa era habitável, e não entendíamos
por que ficava vazia, até que um dia um dos moleques ali
daquela área – sim, a cada rua, poucos metros de distância,
havia uma “galera” mais ou menos independente e,
quando queria, hostil – nos informou que aquela casinha
era mal assombrada. Para uma criança, aquela informação
de mau agouro caía nas costas como uma jaca de
inquestionável certeza e medo...
A hora era quase a do almoço, por volta das 11 da
manhã, com o sol a pino. Foi quando o sexto sentido de
Renato se manifestou, com garbo e brilhantismo. Me
cutucando e a alguns outros moleques, ele apontava para
um enorme pé de tamarindo, que fazia sombra sobre parte
da quadra de saibro. É ridículo relatar isso e, acredite, foi
ridículo naquele próprio momento: O que vimos foi uma
sombra – sim, um ente perfeitamente translúcido –
segurando uma vara de bambu e cutucando a árvore,
como quem tranquilamente arrancasse tamarindos para
chupar.
Não é piada, nem invenção. Eu VI – foi a única vez em
minha vida que vi alguma manifestação do sobrenatural –
e olha que hoje e há muito tempo sou um crente
pentecostal, e alguns de nós veem com certa rotina coisas
do arco da velha... Mas não eu.
Aquela visão inacreditável, surpreendente, inoportuna,
cozida e fervida em nonsense foi apontada a um por um
dos moleques ali presentes. Todos viram. A sombra,

42
impassível, continuava a lentamente mover aquele
bambu.
Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar
divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se
seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que
o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas!
Todos voamos na direção contrária à sombra, de
encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação
que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento
entre os fios de arame que permitia a uma criança ou
jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de
um a um, claro. Mas naquele momento, moleques
jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou
torpedos, pouco se importando com os resultados. No
empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis,
gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo
tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca.
Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei
fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles
arames...
Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um
fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois
como entender um diabo que, dentre o universo de coisas
passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar
tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei
novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo
acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e
aquele pé de tamarindo como o cramunhão evita a cruz!
Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O
comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz
43
Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de
complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de
fim de semana e fazendo festas para seus amigos.
Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte
do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos
serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o
espaço foi novamente vendido, e agora um enorme
condomínio de apartamentos populares se ergue naquele
lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores
provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu
naquele terreno em que habitam...
*** *** *** ***
Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele
lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de
conhecimento corrente de boa parte da população do
local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente
ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública
não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia
outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um
bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um
lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e
do outro, um inoportunamente longo e frio muro.
Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio
ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante!
Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa
época em que não havia muita coisa pra se fazer, um
indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o
Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que
margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda

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escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a
cada alma desafortunada que por ali passasse.
Muita coragem embolada com muita safadeza do então
jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão
ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!

45
Capítulo 10
As doces mangas – e o muro –
do velho Lauro

Como eu disse, uma das mais doces atividades da idade,


figurada e literalmente, era apanhar frutas – dentro ou
fora da legalidade, pois à época a fronteira entre tais
picuinhas era muito sutil.
Em linhas paralelas, nosso pequeno sub-bairro era
formado por apenas quatro longas ruas. A primeira,
margeando o rio Alcântara, era a Manoel Bandeira, nosso
terno e frágil poeta. Em seguida vinha a central e principal,
honrando o grande Pastor Martin Luther King, e para cima
as outras duas.
Me lembro de certa feita em que eu e Renato fomos em
missão sigilosa até a última rua, que era pouco
movimentada. Havia um terreno desocupado, protegido
apenas por uma cerca de arame (ou seja: protegido pelo
vento...) e, dentro dele, jazia solitária e imensa uma
mangueira de manga espada. Ao lado do terreno ficava a
casa do proprietário, essa medievalmente murada: Era o
irmão Lauro, por sinal pai de uma menininha que foi minha
primeira paixão platônica.
Assim, vendo que o tempo era propício e as mangas
convidativas, lá fomos nós naquela manhã surrupiar
algumas delas. Eu e Renato já tínhamos certo know-how
na área: Na casa ao lado costumávamos roubar cajás... Rua
deserta e silenciosa, penetramos no minifúndio e
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principiamos a tacar paus e pedras naquelas alturas,
tentando derrubar algum favo daquele mel alaranjado,
rainha das frutas vinda da Índia.
Em meio da faina naquela dura lavoura, nem
percebemos quando o Lauro, um moreno com cabelos
lisos como um índio, adentrando o clube dos obesos,
“brotou” já dentro da cerca. O sexto sentido de Nato
falhara, e nossa captura era iminente!
– Moleques safados, vou pegar vocês, vem cá! – e o
brutamontes avançava, senhor de seu direito, afinal não
pedíramos para colher os frutos.
Geralmente Renato percebia a presença hostil e
imediatamente desabalava a correr em silêncio: Jamais
dizia sequer um “corre, Sammis”. Jamais! Eu que me
virasse. Ou ficasse de boi pras piranhas. Mas neste dia
ambos fomos pegos em perfeita surpresa, e corremos
juntos para a única escapatória: O muro em tijolos nus que
separava o terreno de Lauro da casa ao lado. Tal casa não
possuía portão e o melhor, por seu quintal podiam ser
acessadas duas ruas. Não era apenas a melhor rota de
fuga, mas a perfeita, criada por Deus para isso.
Corremos em direção ao muro e pulamos – juntos,
como símios habilitados em parkour, bem antes do
parkour ser “fundado” em França.
Éramos magricelas, mas o pedreiro que erguera aquele
muro falhara em algo: Assim que tocamos nossas mãos no
alto do muro, de forma perfeitamente síncrona, algo
divertidíssimo – ou triste no momento, mas hoje
divertidíssimo – aconteceu: O muro começou a tombar
com o nosso peso. Sim, nos agarramos no muro e ele
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48
“quebrou” quase ao meio. A sincronicidade dos moleques
do balacobaco naquele dia foi elevada a nível olímpico,
como de uma dupla de salto ornamental: Ainda no ar,
caindo para trás com o muro, entendemos imediatamente
que seríamos esmagados – nada que matasse, mas alguns
ossos poderiam se quebrar e a fuga seria frustrada. Assim,
em pleno ar, demos impulso com o pé de apoio no muro
que caía, para que nos livrássemos de seu raio de impacto.
Amigos, cai em pé no chão, seguido pelo esboroar-se do
muro, a coisa de apenas uns cinco centímetros de esmagar
meus pés. E os de Renato, que caíra à mesma distância.
Pronto, subíramos de nível e já éramos Ninjas da
Presepada.
Mas não era caso de comemorar o feito. Sem olhar para
trás, pulamos por sobre os tijolos e o cotôco de muro que
restara, enquanto o bom Lauro – poderia ter sido meu
sogro! – multiplicava seu ódio ao perceber o prejuízo com
o muro – muro que talvez ele mesmo tivesse erguido...
Aquela aventura não teve maiores consequências, pois
o tal Lauro, ainda que conhecesse meus pais,
aparentemente não me conhecia ou reconhecera, e nem a
Renato, senão a notícia teria chegado lá em casa, como
tantas chegaram, para alegria da vara de goiabeira e da
sandália Havaianas de minha mãe, minhas inimigas
figadais.

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Capítulo 11
A rapina bananal

Uma fruta de apelo universal estava entre as mais


cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira
Rio: A banana.
A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes,
portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo,
dava com alguma abundância ao longo das margens do rio,
compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela
crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o
Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra!
E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o
pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas
estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos
cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à
bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada –
não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para
segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se
cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e
deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o
barulho da queda daqueles reservatórios de potássio
sempre despertava os donos.
Desgraça pouca, reza o cliché, é sempre bobagem.
Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram
mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa
altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos.
Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era
marinheiro.

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A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da
maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa,
dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo,
claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem
de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável
para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde
seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou
vadiando à esmo.
Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo
era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao
tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado
barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem
íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas
– fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de
chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos
oitenta!
Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico
era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar
a molecada.
Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar
de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu
(aprendido nos filmes da franquia American Ninja que
lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o
máximo de silêncio possível.
Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as
bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado
popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”?
Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um
anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em
nossa favelinha, quem iria nos impedir.

51
Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da
chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma
solução foi encontrada.
A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a
marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um
facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e,
sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos
maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante
golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a
sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do
tronco, de preferência apenas um terço de sua
circunferência.
Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para
outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas
margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os
poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era
infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho,
aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia
o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de
bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre
com grande estrondo.
O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele
colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres.
O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os
disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não
vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira
tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.
A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra
dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos.
Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar
o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo
aquele butim e, segurando um de cada lado daquele
52
pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos
daquele campo minado.
Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas
para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O
Pedágio de Dona Maria.
Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses
grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era
para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro
de perceberem o que transportávamos. E, por cima,
colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas.
Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que
transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos
então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim
dividíamos o fruto da rapina.
Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo
pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde
devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma
idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um
lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao
candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na
infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela
esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco
da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno,
sempre que eu era repreendido pelos palavrões que
vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”,
me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não
posso xingar?”
Além de brava e amedrontadora, dona Maria
costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor,
fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com
alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a
atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho,
53
esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara
rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o
lado dela...
Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha
que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com
aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos,
nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:
“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar
um saco de lata...”
Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família
de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram
seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava
mole pra ninguém!

54
Capítulo 12
Jamelões!

Nem só de frutas surrupiadas viviam os sobreviventes


da Beira Rio. Havia, no espaço entorno, alguns frutos “ao
ar livre”, em terrenos baldios ou na mata.
Mas era coisa misérrima, de abalar uma infância.
Recordo dois pés de ingá, dos quais o mais próximo dava
frutos do mais insosso dos sabores: low carb, sugar free,
zero açúcar. Hoje, faria sucesso, mas naqueles idos... O
outro, situado numa pequena ravina e ao lado de uma
nascente, esse sim dava doces bagas; mas eram sempre
poucas, para muitos esfaimados que circulavam por ali.
Outro signo da miséria com que a natura nos solapava
era o araçá. Eita arbustiva sofrida! Enquanto sua prima, a
goiabeira, é famosa por dar frutos às toneladas, os
mirrados pés de araçá espalhados pelos morros do
entorno davam de quando em vez (uma vez ao ano?)
alguns frutinhos. Dois, três num pé. Sim, ao menos eram
deliciosos.
Apenas uma frutinha tínhamos em abundância e livre
de latifundiários, despida de cercas, não vigiada por
cachorros ou espingardas de sal grosso: Os jamelões.
Ao contrário dos nativos ingá e araçá, o jamelão é
originário do sul/sudeste asiático, mais especificamente da
Índia, a mesma pátria ou mundo (pois a Índia é um mundo
à parte) que nos deu a manga. O jamelão, se você não
conhece, é fruta que dá em pencas, e também em pencas
55
ela possui nomes. Abra o peito e apare, segure a rajada
nomenclatural: Jambolão, jamborão, baguaçu, jalão, joão-
bolão, topin, manjelão, azeitona-preta, ameixa roxa, baga-
de-freira, oliveira, azeitona-roxa, brinco-de-viúva e ainda
guapê. E sabe-se lá quais nomes mais.
Aqui tínhamos uma ampla e plana área – por sinal
vizinha ao já citado sítio do seu Pedro, a que chamávamos
de “Sek” – sabe-se lá por quê. Bem, a Sek abrigava o campo
do Nazaré, famoso campo de peladas regional. Mas, de
futebol só fui gostar após os quatorze anos. Naquela
altura, eram os quase trinta (valei-me Deus!) pés de
jamelão que me solicitavam todas as mesuras. As maiores
daquelas árvores chegavam a mais de dez metros, e
impunham-se na paisagem, como gigantes – de quem nos
aproximávamos com um misto de amor e temor, como se
fossem totens.
Ah, quantas tardes dediquei a empoleirar-me com
Renato, Wilson e outros amigos por aqueles galhos, e
passar horas e horas colhendo o arroxeado pomo, e
papeando – jogando conversa fora com a repetitiva e
ampla frequência com que cuspíamos os caroços.
A cada ano, aguardávamos com sofreguidão a estação
da frutinha, e a comíamos até sofrer de prisão de ventre.
Sim, a fartura tinha um efeito colateral severo.
“Pelávamos” um pé até exauri-lo, como gafanhotos;
enquanto isso, outro chegava “no ponto” de colheita. Não
era fruta que se prestasse a comércio e armazenamento:
Guardada, rapidamente mudava de sabor, o que era
tolerado por muito poucos. Era fruta esculpida pelo Deus
dos moleques para ser comida no pé.
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Até hoje, quando vejo um pé de jamelão à beira duma
estrada – e há deles em beiras de estradas por todo o
estado do Rio de Janeiro, e todo o Brasil – sinto uma
melancolia feliz, e uma tristeza por não poder achegar-me.
De mais a mais, já não tenho preparo para escalar rudes
troncos, nem peso para arriscar a sorte sobre finos galhos.
Hoje, toda a região da Sek, que fica na rua Dalva Raposo,
foi ocupada por um condomínio, de estranho nome:
Atenas. A pátria da democracia nomeia uma usurpação
latifundiária que nos roubou nosso campo de anarquia,
nossa livre-lavoura de prazer e sustância.

57
Capítulo 13
De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude

Confesso uma vergonha: Nunca fui bom com atividades


ou brincadeiras manuais, e mesmo com esportes. Não me
interessava por soltar papagaio (que aqui chamamos de
cafifa); nunca aprendi direito a jogar bolinha de gude,
rodar pião, sequer jogar um bilboquê! De tal desacerto
nem eu sei o motivo. Talvez fosse, além de uma inabilidade
nata, preguiça em aprender.
De toda forma, a bola de gude era uma febre difícil de
ser vencida. Eu queria estar na rua, queria companhia, e
assim, mesmo sem ser um jogador, eu me dispunha
acompanhar outros jogadores em suas disputas, na falta
de ter algo melhor para fazer.
Renato era um grande “fominha” das bolinhas de vidro,
e um formidável jogador. A coisa nestas paragens era tão
evoluída que por vezes os melhores jogadores do bairro
agiam como no velho oeste: Um desafiava o outro, e
marcava hora e tudo para a troca de tiros, perdão, de
boladas de gude.
Foi numa noite húmida de verão que Renato me
chamou para acompanhá-lo até a casa de um elemento
que eu conhecia apenas de vista, até porque ele era mais
velho que nós, um mal encarado a quem chamavam de
Lobão – sim, como o cantor de rock, popular naqueles fins
da década de oitenta.
58
Chegados em frente da casa do bruto, começamos a
chamar. Chama que chama e o tal Lobão, que de lobo
parecia não ter nada pois pelo visto era quase surdo, não
respondia. Continuamos a chamança, a chamação, o
chamado, a chamadeira ou que seja, e nada do lupino
pilantra dar as caras. Eu já queria ir embora, mas Renato,
fominha, queria jogo, queria duelo, queria aumentar sua
colença daquelas inúteis bolas de vidro.
Lobão morava num quintal de duas casinhas, quintal
cuja frente era protegida por um murete, coisa de um
metro, metro e vinte de altura, tijolos assentados sem
chapisco nem reboco.
Ninguém dava sinal de dentro da casinha, embora
pudéssemos ouvir até a TV ligada, e resolvemos nos
achegar à mureta para berrar com mais gosto. O que se
seguiu foi um processo contínuo e fulminante: Apenas
encostamos na mureta, para melhor chamar o tal lobo
surdo, e a maldita veio abaixo, desmontando-se como se
feita de pecinhas de Lego, como se o cimento na junção
dos tijolos fosse barro...
No mesmo instante, como se sacado de uma cartola de
Mandrake, o lobo pulou para fora da toca, furioso como
um diabo, xingando nossas mães, avós e irmãs.
Dessa vez não deu pra fugir, e olha que de minha parte
cheguei a fazer menção de disparar para casa. Ele sabia
onde morávamos e iria com certeza aparecer por lá.
E agora? Chora daqui, se desculpa dali, e a solução
imposta pelo grandão foi que reerguêssemos o muro: Ali
mesmo, naquele impropício momento, no escuro abafado
duma noite de verão.
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Nas praticamente duas horas seguintes, eu e Renato
fomos feitos de pedreiros, trôpegos, confusos, aloprados –
montando tijolos uns sobre os outros, sem massa nem
nada, apenas “no encaixe” como num jogo de Lego mesmo
– sob o olhar furioso do Lobo mau.
Mais uma vez, o prejuízo da trupe ficou barato: Se meus
pais fossem acionados, eu levaria mais uma coça. Não teve
jogatina naquela noite: Após concluirmos a cansativa
montagem, fomos honrados com um belo cascudo cada
um, e voltamos para casa em silêncio.
Amanhã é sempre um outro dia...

60
Capítulo 14
Sobre nossos apelidos

Amigo leitor, percebo que até aqui eu não dei nota


sobre a origem de nossos apelidos. Vamos, pois, a isso.
Renato Cascão vem, claramente, do famoso
personagem de Maurício de Souza, membro da Turma da
Mônica e cuja marca distintiva era... a ojeriza por água, ou
melhor, por tomar banho. Mas a alcunha, como a maioria
delas, tinha muito de lenda e de maledicência: Renato
evitava o tal banho “quase” como qualquer moleque da
idade, mas eu o via tomar banho algumas vezes. Espere,
dirá você, como isso? Como afirmei anteriormente, a
família dele sobrevivia em grande carestia. Não havendo
banheiro no humilde barraco (a latrina ficava num cubículo
à parte), os banhos eram tomados no quintal, apanhando-
se a água de um galão que, dia e noite, transbordava
alimentado pelas águas “gratuitas” da Cedae, nossa
companhia estadual de águas e esgotos. Era banho de
canecão mesmo, na água gelada e ali, do lado de fora!
Assim, fica fácil para qualquer moleque descuidar do
asseio...
As muitas e diárias andanças numa terra que jamais vira
asfalto tinham seu efeito colateral: As pernas do pretinho
estavam sempre ruças, brancas de poeira, quando não de
frio nos momentos de invernia. E estava assim pintado o
quadro, ou melhor, o personagem de quadrinhos...

61
Já o meu apelido, esse sim era bem merecido. O
“maluco” era devido a meus esporádicos ataques de fúria
– sim, segundo os psicólogos do tempo, causados por um
problema de disritmia. Nesses ataques eu quebrava coisas,
fazia pirraça, feria pessoas: ficava mesmo possesso como
um pequeno javali. Você pode imaginar que causei muitos
dissabores para meus pais, em alguns episódios – dos
poucos que me lembro – de que até hoje me envergonho.
É comum todo morador antigo que teve convívio
comigo ter alguma história para contar, e eu mesmo quase
que duvido quando as ouço. Por Deus, admiro meu pai por
não ter me desintegrado na pancada!!! Lamento pelo
leitor de pundonores, talvez pelos psicólogos, mas apanhei
bastante, e hoje julgo que foi até bem pouco, pelo volume
de encrencas que eu deflagrei.
Meu quadro melhorou na primeira adolescência, com
as gotinhas “amansa-leão” que a minha mãe me dava
depois do almoço, jogando-as no suco de maracujá (suco
que, por anos depois, evitei). E principalmente por visitas
regulares a um psicólogo da APAE. Aquelas conversas,
somadas ao tempo, panaceia de tudo, me mudaram.
Mas, na infância, minha fama de “maluco”, embora
sempre exagerada, era corrente. O preconceito que sofria
aqui e ali, mesmo e covardemente por parte de adultos, foi
algo que me marcou, mas cujo relato, nestas memórias de
tom humorístico, é melhor evitar, amigo leitor.
Feitas as apresentações, embora quase já em meados
do livro, bem se entende que a vida unisse tais párias – o
“mais pobre” da rua e o “maluco” da rua – na celebração
de algumas peripécias...
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Capítulo 15
O Triciclo dos Alucinados

Bem no início de nossa estranha amizade, me lembro


de que o avô de Renato ainda era vivo.
O quintal onde moravam era composto pela casinha
desse avô, seu Cândio (provavelmente “Cândido”), e sua
esposa, dona Conceição, e aos fundos ficava o barraco da
família de Renato.
Na frente, havia uma pequena birosca – Uma barraca,
como chamamos aqui, que é na verdade uma minúscula
venda dedicada fundamentalmente ao comércio de
destilados (cachaça). No tempo eu era bem pequeno, mas
uma memória que guardo era do coco em conserva:
Pedaços de coco curtidos numa espécie de salmoura, que
eram vendidos a alguns centavos cada porção. Eram
gostosos!
Foi ali naquela birosca, ainda na infância, que Renato
iniciou suas aventuras em algo que, anos depois, se
tornaria um vício e lhe custaria a vida: O consumo de
bebidas alcóolicas.
Mas deixemos de lado as rudezas da vida, e vamos ao
pitoresco.
Esse seu Cândio, homem negro com traços que
lembravam de muito longe o ator Grande Otelo, era
cadeirante, em decorrência das pernas amputadas. O
velho possuía uma estranhíssima cadeira de rodas: Era na
verdade um tipo de triciclo, com uma manivela ligada a um
63
eixo de pedais como de uma bicicleta, adaptada para ser
movida com as mãos. Assim, forçando aquela manivela, o
velho podia mover a cadeira-triciclo, ganhando alguma
autonomia.
No objetivo de comprar mercadorias para sua venda, e
também apanhar algumas doações que os comerciantes
do CEASA lhe forneciam, seu Cândio costumava ir até o
CEASA de São Gonçalo, que ficava a coisa de uns cinco
quilômetros de nosso bairro. De ônibus são apenas dez
minutos. Mas, na força da canela, era duríssima a
caminhada! Pois o velhote ia naquele triciclo, sendo quase
sempre empurrado ou por Volnei, irmão mais velho de
Renato, ou pelo próprio. Numa dessas idas ao CEASA (que
eu não tinha a menor ideia do que e onde era), fui
convidado a juntar-me à expedição. Quem sabe não foi aí
que surgiu ou sedimentou-se nossa dupla expedicionária
canelar? Confesso que não me lembro.
E lá fomos nós, para uma distância que eu jamais havia
percorrido a pé, avançando pela perigosa beira da pista ou
estrada.
Na volta, já exaurido, participei de algo que era normal
de ocorrer, segundo Renato, quando ele saía assim com o
avô: Tendo chegado na altura do que hoje é a Honda
Motos, naquela pequena ladeira que vai dar onde
atualmente é o Instituto Médico Legal e o posto da Polícia
Rodoviária de Tribobó, Renato, no que o segui, pendurou-
se na parte de trás do triciclo (sim, havia um pedestal
aparentemente para isso!), e lá fomos nós, descendo a
toda numa única cadeira de rodas, três pessoas: Duas
crianças e um senhor de quase setenta anos!
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Imagine a cena, amigo leitor: Você, pacato citadino
passando de automóvel ou ônibus, avançando
sorumbático para seu trabalho ou estudo, refém de mil
horários e sistemas, e vendo do livre lado de fora uma
sinistra cadeira de rodas descendo a grande, insana
velocidade asfalto abaixo, com um velhinho amputado
como “piloto” e duas crianças de carona!!! Era a vida loka
ainda no seu modo 1.0...
Pouco tempo depois, seu Cândio infelizmente veio a
falecer, e a vendinha foi fechada.

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Capítulo 16
Renato e seu cachorro Bugui

Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato


possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo
mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali
era diferenciado, lotado de singularidades.
Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por
quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando
ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros
diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava
atrás de nós. Ou melhor, de Renato.
Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera
do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por
quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono?
Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer,
não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto,
chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em
minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar
sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso
notávamos.
Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas
no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas
agruras da vida, não latia em momento algum. Também
não era afável; a relação deles não envolvia carinho
baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre
um animal e seu dono.

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Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não
entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado
abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma
relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-
lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou
contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse,
sofresse o que fosse. Que tipo de relação estóica era
aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos
cardos e abrolhos da vida, que jamais davam
demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro –
como se atraíam naquele nível sobrenatural?
Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo
telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que
qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu
repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.
Para que você tenha uma perfeita ideia, quando
brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de
Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em
segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de
Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e
possivelmente de mais alguém naquele ponto...
Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara –
pois ele não era desses, ele não era do comum dos
cachorros – senti um baque que não podia entender. O
estranhamento de alguma forma nos vinculara.

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Capítulo 17
Volnei Peito-de-Aço

Como relatei, Renato tinha quatro irmãos. O mais velho


deles era o Volnei. Lembro de Volnei pelo peitoral largo –
provavelmente pela atividade de tirar, no poder da pá,
areia do rio para vender, atividade por sinal praticada por
muitos moradores do local, como já relatei. E na qual até
eu me aventurei, embora meus músculos imediatamente
dessem alerta de que não podiam com aquilo.
O rosto afilado, como se achatado dos lados. Sempre de
poucas palavras, trabalhador, pacífico. Vou contar um
causo envolvendo o “bruto”.
Como relatei no início, nossa região é marcada pela
presença do rio: do lado de cá as casas, do lado de lá era
apenas o “mato”, por um imenso trecho, sendo a presença
humana mais próxima do lado de lá, o tal hospital
psiquiátrico.
Nas décadas de 80 e 90, o balonismo, o triste e perigoso
balonismo, corria solto, pois ainda não era (e agora, é?)
combatido pelas autoridades. Assim, eram muitos os
festivais de balões, inclusive um aqui próximo, o Festival
do Saldanha.
Muitos balões, principalmente nos finais de semana ou
na segunda feira pela manhã, caíam no nosso morro, uma
área então inacessível por carros e mesmo motos. Assim,
as levas de vadios que ainda hoje saem em carreata e
motociata atrás dos balões, para recuperá-los e reutilizá-
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los – ou apenas pelo prazer da “caça” – tinham grande
dificuldade de apanhar os balões que aqui caíam.
Dificuldade essa que não nos afligia: O terreno era nosso
conhecido, e os balões, ah, nós mesmos os apanhávamos
e relançávamos ao ar, em ocasião oportuna.
Não tínhamos dinheiro para comprar (ou desperdiçar
em) sequer parafina para as buchas dos balões. E sabe
como resolvíamos o problema? De forma sustentável, e
aqui também há pioneirismo: Íamos a um trecho do rio
chamado de “Ponte Caída” – outro dos lugares fortes do
bairro, lugar de mortes e histórias – e raspávamos a sobra
das muitas e muitas velas que os adeptos da macumbaria,
religiões de matriz afro e wicca que fossem, deixavam
queimar para suas entidades. Que horror, você dirá.
Sortilégio! Sim, era com temor que o fazíamos, em geral
arrastados pelo exemplo de algum moleque mais ousado.
Raspávamos e ensacávamos ecumenicamente toda aquela
parafina que fora destinada sabe-se lá para qual força, seja
anjo, Gaia, deus ou demônio, e lá íamos fazer o nosso
próprio “festival”: Em geral três ou quatro balões de
tamanho pequeno a médio, cujo lançamento reunia gente,
principalmente a molecada, como se fosse inauguração de
creche pública.
Bem, acontece que, numa dessas capturas de balão no
morro, os moleques da área pegaram um imenso, com
bandeira e tudo. Após dobrá-lo cuidadosamente, vieram
descendo do morro, para atravessar o rio em direção a
nossa favelinha. Perceberam então alguns homens – sim,
todos adultos – estranhos observando sua aproximação,
colocados bem no ponto onde se dava nossa travessia.
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Além daquele trecho, não havia muita opção de atravessar
o rio sem ter que se molhar. E, de mais a mais, a área era
nossa, o que temeríamos?
Ao chegarmos, os cidadãos de bem simplesmente
disseram que aquele balão era deles. Retrucamos: “Não
levem a mal não, mas fomos nós que pegamos. Ele agora
é nosso”.
Sem muita cerimônia, e sem vontade de prosseguir nos
debates, um dos homens simplesmente levantou a camisa
e mostrou uma arma, no que foi seguido por um outro
daquele bando. Com a força matadora de tal argumento,
fomos filosoficamente vencidos na contenda e
entregamos o balão aos pilantras, que entraram em seus
dois carros e partiram com nosso butim.
Amigos, as forças do mal trabalham de forma
misteriosa, e obedecendo a algum sinistro ciclo. Quinze
dias depois, num outro final de semana de céu repleto de
balões, eis que outro dos bitelos caiu em nosso caldeirão,
em “nosso” morro. A molecada, composta de alguns de
minha idade como Renato, e da geração dois a quatro anos
mais velha, como Volnei, avançou célere para impedir que
o balãozão em queda, ao pousar e tombar sobre si mesmo,
pegasse fogo.
A muito custo e pagando o tributo de muita pele
arranhada nas lânguidas lâminas de mato – um trecho do
morro era famoso por sua “lavoura” do perigoso capim-
navalha – o balão foi apanhado, e cuidadosamente
dobrado. Aquele sim iria para o depósito comunitário!
Descendo do morro em direção ao ponto de travessia,
eis que alguém soltou, no meio da patota:
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– Ei ei, olha aquele carro lá, aquele Passat branco! São
os caras que tomaram nosso balão no outro dia!
A percepção de que os mesmos calhordas estavam ali,
no mesmo ponto, comodamente esperando que lhes
trouxéssemos, já dobrado e desmontado, o balão, encheu
a todos de fúria. Um dos rapazes, não me lembro se Tonho,
teve uma ideia, que prontamente comunicou aos demais.
Os moleques continuaram sua aproximação, até certo
ponto. Depois estacaram. Os caça-balões (gente, tanta
mulher no mundo e aqueles homens barbados caçando
balões!), percebendo o impasse, gritaram:
- Ei moleques! Tragam o nosso balão! Bora!
Era aquilo que Tonho queria ouvir. Apanhando o grande
embrulho ou trouxa que era o balão dobrado, gritou de
volta:
– Esse balão aqui? Esse balão é de vocês também?
– Sim, é nosso sim, nós que o soltamos! Pode trazer!
– Se esse balão não é nosso, esse balão não é de
ninguém, seus otários!
Em seguida Tonho, cheio de cerimônia, como se fosse
um xamã realizando um ritual, ergueu o grande embrulho
sobre a cabeça e despedaçou todo o balão, com uma fúria
teatral, enquanto a galera, zoadora que era, urrava num
delírio animalesco!
A reação daqueles adultos foi a menos adulta possível.
Pior, foi desumana, diabólica: Sacando suas armas, fizeram
fogo, fogo contra crianças e adolescentes, fogo por causa
de um amontoado de papel colado.
Como disse, boa parte do morro, inclusive aquela onde
os moleques estavam, era coberta por vegetação de
71
cerrado, capim de baixo e médio porte e alguns arbustos.
Assim, era “campo aberto” para aqueles diabos treinarem
tiro-ao-alvo.
A debandada foi geral, cada um vazou para um lado! E
toma pipoco, toma tiro cantando no chão. Foi então que o
sobrenatural de almeida se manifestou: Volnei,
desesperado, desceu por uma ravina correndo como um
cavalo ou um gambá em telhado de zinco quente, cabeça
baixa como se para protegê-la ou concentrar forças na
corrida. Não dava mesmo tempo de olhar pra nada!
Só que, camuflada pelo capim alto, havia uma cerca –
uma cerca de arame farpado. Amigos, Volnei, já em vias de
bater o recorde dos 200 metros rasos, chocou-se com todo
aquele peitoral contra a cerca... E seguiu em frente,
desabalado em seu desespero, aparentemente sem
sequer perceber que acabara de arrebentar ou fazer soltar
de suas presilhas três fios de arame farpado, como se fosse
um mamute.
Nem todos vocês terão a dimensão de um feito desses.
Deixe-me ajudar a esclarecer: Por três vezes eu também já
me choquei com cercas de arame “sem ver”. E sem
ultrapassá-las, claro. Em todas eu também estava
correndo. Numa delas, eu descia de uma íngreme
ribanceira, onde subira para fotografar paisagens – uma já
perdida paixão de adolescência. Passara agachado pela tal
cerca, mas na volta, esquecido do embaraço aramado e
temeroso de descer devagar e vir a quebrar minha
preciosa maquininha Zenit “semiprofissional”, resolvi
descer a ribanceira correndo, pois por incrível que pareça

72
a velocidade acaba favorecendo a aderência ao terreno. Só
faltou mesmo foi acertar o plano com a dona cerca...
E nela bati com toda a força, sendo imediatamente
jogado para trás, com furos numa das mãos e na barriga.
Não consegui romper nem um fio do arame, e Volnei levou
três...
Mas fique tranquilo: Graças a Deus ninguém ficou ferido
por aqueles disparos.
Deixe-me finalizar com outra de Volnei. Ainda hoje
temos as garrafas (cascos) de vidro da Coca-Cola.
Antigamente – e por um longo antigamente – só havia o
tradicional casco de um litro. Os mais velhos irão se
lembrar que aquela garrafa possuía o vidro mais grosso do
mercado: No fundo chegava a um centímetro de puro
vidro.
Pois, numa das andanças pela beira do rio, margeando
o fundo das casas e barracos, Volnei – que só andava
descalço, o bruto, assim como Renato costumava fazer –
pisou sem querer bem no meio de uma garrafa de Coca-
Cola. A garrafa foi esmigalhada e Volnei, incólume como
um Aquiles, seguiu sua marcha.
Qualquer outro teria levado trinta pontos e deixado as
partidas de pelada no campinho do morro para sempre...

73
Capítulo 18
Os caronistas

Um dos grandes prazeres de minha infância de


diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era
o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro,
na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas
de chão e terra socada, era um convite, um chamariz
tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que
éramos.
A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de
pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia
de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão
tinha para-choques e poleiros como que feitos
especialmente para que alguém neles se pendurasse.
Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou
não. Bem, o importante era a diversão.
E quando um caminhão vinha em nossa direção,
enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao
passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques
pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta
dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos
convidar. E lá íamos nós também.
Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos
das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados
em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão,
continuávamos em frente, jamais observando-o
diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns
74
passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro
da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”,
centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis
aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia-
volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar
nas ferragens.
Outra carona muito praticada era a realizada nas portas
dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um
balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado DE
FORA das portas – o que nos modelos posteriores foi
sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das
mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se
abrem.
Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus
eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os
pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó
Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o
ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento
nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada
naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem
ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior,
aceleravam à toda, sacolejando a sulapa de ferro e lata
para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo
tremelique do navio pirata.
O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da
empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os
bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha
existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas
dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro,

75
de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses
comentários venenosos para os maledicentes.
Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos
ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis
praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de
ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje
proscrito pelo duro julgamento da lei.
Bem, certa feita as coisas não saíram como o
corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que
eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista
acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes
bairro adento, para descarregar passageiros, isso apenas
até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali
em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda
por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que
ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já
na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de
ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma
poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos,
em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.
A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao
menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai
que ninguém descesse nas seguintes?
Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa
democrática condução, notamos que o motorista já
iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um
ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no
terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a
campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos
preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o
76
ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável
acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo
que ninguém iria descer, que o carroção tremia em
solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em
Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre,
nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de
esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto
avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver
o bitelão se levantando da lama, todo “cagado”. Mesmo
em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar,
caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a
fama de “Cascão”!
Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha
vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o
mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto
ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só
fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia
mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas
chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante
cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de
desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.
Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem
bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão
como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo,
devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por
conta e divertimento da lei da gravidade...
Acordei com algumas pessoas sobre mim, me
abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu
imediatamente pata avisar meus pais – o que me fez tentar
levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois
77
eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se
comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá
vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou
Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x
rotineiro. Nada quebrara, por sorte.
Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara
na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno,
dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e
“apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.
E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de
presepadas...

78
Capítulo 19
Vamos falar sobre etnia

Filho de um paranaense de Arapongas com uma mineira


de Itanhomi que, um a trabalho e outra a passeio, no Rio
de Janeiro se encontraram e, fulminados pelo terrorista
Cupido, num insosso e depauperado subúrbio gonçalense
resolveram fundar família, fui um menino branco criado
fundamentalmente entre negros.
Meus pais, pela graça de Deus, assustadoramente não
demonstravam traços perceptíveis do racismo deslavado
ou sequer do quase onipresente racismo estrutural que,
como um verme, trafega nos intestinos de nossa
sociedade. Essa indiferenciação de pessoas, fosse qual
fosse sua pele, foi imediatamente passada a mim e a
minhas irmãs. Meus amigos, colegas, seus pais, até meus
desafetos, negros em sua grande maioria, me fizeram
quem sou, definiram meu modo de ser, e nem posso
imaginar ter sido criado numa realidade diferente. Tenho
um imenso orgulho de tudo o que vivi, de todos eles, e este
livro é um dos braços ou frutos desse orgulho.
Se sofri o chamado “racismo reverso” (que por sinal não
existe, mas isso é uma outra conversa), ou melhor, se fui
acossado por ser “branco”? Sim, boas vezes. E devolvi
racismo com racismo, invertendo os impropérios: A cada
“branco vela”, ou “vela de macumba” eu lançava um
“picolé de carvão” ou coisa parecida. Sim, hoje tudo muito
feio, enquadrado no código penal. Mas aquelas ofensas
79
entre moleques (e meninas), aqueles tapas verbais
terminavam como as ofensas baseadas em tapas físicos:
No dia seguinte, ou tardar numa semana, tudo havia
passado.
Antes que eu pudesse compreender todas as vantagens
indevidas que a minha cor, que não escolhi, me concedia e
concederia enquanto eu vivesse – às custas do sangue, do
suor e das oportunidades roubadas de meus irmãos negros
– sim, aqueles negros por cuja amizade eu optei e a cujo
círculo eu chorei para dele pertencer, para ser entre eles
aceito – uma outra e divertida “vantagem”, essa mais
condizente com este livro de humor, foi muito explorada
pela malandragem beirarriense. Notadamente, claro, por
meu mestre-de-ofícios, o Renato.
O caso era que, em nossa Beira Rio, havia já àquela
altura dos anos oitenta algumas famílias de nordestinos.
Os nordestinos, gente humilde e trabalhadora, fosse por
inadequação, temor ou timidez, não era de se misturar
com os demais comunitários. Viviam suas vidas entre o
trabalho e o lar, e reuniam-se apenas entre eles mesmos.
Algumas dessas reuniões corriqueiras transcorriam
durante os aniversários, principalmente os infantis. Bem,
se não conheciam ou tinham desenvolvido amizade ainda
com quase ninguém do bairro, era comum que suas festas
reunissem apenas outros nordestinos: tanto próximos
quanto distantes, os ao mesmo tempo humildes mas
festivos nordestinos celebravam seus bons momentos com
fartura em comes e bebes.
Comes e bebes: Pode haver, para moleques de rua,
expressão mais atratora? Mas, como entrar numa festa em
80
que não se fora convidado? Tentávamos como podíamos,
como joões-sem-braço, na base do cerca-lourenço,
devagar e sempre, ou mesmo na marra, entrando de
bonde. Não importava o método, o resultado era o
mesmo: Todos aqueles “pretinhos” eram imediatamente
identificados, claro, como penetras, como bicões naquelas
festas de nordestinos brancos.
O ocorrido numa ocasião em que entráramos numa das
festinhas despertou a atenção do malicioso Renato: Dos
cinco bicões que se intrometeram naquele festim, quatro
foram expulsos; mas eu, branco, fui deixado incólume. Não
era racismo: Eu simplesmente fora confundido com o filho
de um deles.
Chamado ao portão, fui instado (bem, talvez ameaçado)
por Renato e demais a apanhar guloseimas e salgadinhos
dentro da festa e trazer para fora, para a partilha do pão
com meus irmãos de destino. Funcionou.
E assim, doravante, eu me tornei o agente infiltrado
oficial da Beira Rio: O falso nordestino que era arroz-de-
festa, sempre presente em todas. “Você é filho de quem
mesmo?” “Da Francisca, da Francisca”, eu dizia, mesmo
sem conhecer Francisca alguma.
Um dia o engodo caiu por terra: Eu fora finalmente
identificado como o “filho de dona Lia, uma que mora ali,
assim, assim”; como não-nordestino e principalmente,
como não-convidado, as portas, não sem justiça passaram
a se fechar, para decepção de meia rua...
E de mais a mais eu, sempre muito tímido, já estava
mesmo farto daquele constrangimento, e daquele peso

81
de, ainda tão jovem, ser o responsável, o arrimo, pela
alimentação de tantas bocas!

82
Capítulo 20
Casemiro, O Profeta

Impossível coordenar no mesmo período os termos


Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro
elemento que completa a equação: Profeta.
Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um
ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro.
Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam
que tivera esposa, que aparentemente abandonara o
coitado.
Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a
vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de
suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre
desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes
completavam o arquétipo do eremita: Shortões ou calças
puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de
costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido.
Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande,
mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.
Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo
bem que poderia ser confundido com um elemento
antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para
isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no
agreste do país.
Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério
que, ao menos para as crianças da época, o envolvia:
Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de
83
Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador
profundo, e dizia:
– Você não ia entender, garoto...
– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.
– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança.
Sabe, eu vejo mundos...
– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.
– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para
entender. São mistérios...
Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas
boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo.
E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu
feijão mágico em minhas terras férteis.
Pois bem, as primeiras experiências de mercar
reciclagem de todos os moleques do bairro começaram
com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para
ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação
pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos
feministas de igualdade laboral, até meninas se
apresentavam naquele entreposto para vender ferragens
e garrafas!
Recordo de que era comum na época catarmos ferro e
latas principalmente. Essas hodiernas embalagens
plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de
papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido
na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa
quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E,
como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos
despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia
havia um lixãozinho a céu aberto.
84
Chegando diante do ferro-velho do Profeta, um ritual se
estabelecia: Apanhávamos alguns soquetes bem pesados,
feitos de barras de ferro, e nos púnhamos a amassar todas
aquelas latas, uma barulheira infernal. Como o produto era
pouco, pouquíssimo valorizado, e nossa carestia era
grande, recorríamos a um subterfúgio que, acredito,
sempre foi e ainda é praticado em todo o grande mundo:
Colocar pedras dentro das latas para que, depois de
amassadas, seu peso aumentasse. Ah, doce esporte!
Mas tal subterfúgio nem sempre redundava em logro:
Se Profeta, apanhando uma das latas a esmo e a
balançando, percebesse o engodo, mandava recolher todo
o conteúdo que já estava em sua balança e “ir vender em
outro lugar”. Era preciso apuro para amassar bem
amassadas as latas com pedras, e não colocar pedras em
todas, é claro.
Certa feita, a engenhosidade maléfica de Renato teve
uma inspiração, um insight criativo, o qual ele comunicou
a uns cinco ou seis moleques da rua. Acontece que a casa
de Profeta era protegida não por um muro de alvenaria,
mas por um emaranhado de chapas de lata, arames e paus
entrelaçados. Um quiprocó dos carambas, que lembrava
até algumas obras de arte modernas que eu viria a
conhecer. Mas, dentre aquele emaranhado muito bem
urdido, Renato percebera uma lacuna. Sim, uma chapa de
lata que, se corretamente forçada, daria entrada naquele
quintal, ainda que fosse pelo menos a uma criança menor
que nós.
O que se seguiu foi vergonhoso, mas julgávamos apenas
estar empatando o jogo, pois as balanças de Profeta eram
85
algo suspeitas de sempre “roubar para a casa”, ou a banca,
outra prática de universal valência...
Toda noite, íamos até aquele ponto da cerca e, forçando
silenciosamente a lataria, embutíamos um dos pequenos
para dentro – em geral um dos irmãos menores de Renato,
Aguinaldo (“Guinaldo”) ou Ricardo (“Cado” ou “Cadim”).
Os pequenos safardanas então surrupiavam o que podiam
– garrafas e garrafões, pedaços de alumínio que
porventura Profeta houvesse esquecido “do lado de fora”,
já que os materiais de mais valor eram guardados dentro
de casa, e até ímãs.
E, no dia seguinte, lá íamos nós... revender as peças
para ele mesmo, Profeta.
Lembro que nos regozijávamos com aquilo, acreditando
sermos os maiores malandros de todo o orbe terrestre.
Dinheiro fácil e justiça, a desejada justiça, feita contra
aquelas balanças viciadas em infidelidade!!!!
Mas a alegria durou pouco. O velho, mesmo com todo
aquele traquejo de lelé da cabeça ou doidivanas, certo dia
nos disparou, na lata:
– Ei, esse ímã aqui não é meu, não?
Antes que pudéssemos negar, o raciocínio daquele
misantropo correu rápido como numa visão, e ele
imediatamente associou todas as nossas vendas dos dias
anteriores a desfalques – agora ele entendia – em sua
própria firma.
O resultado: Além de perdermos a carga que fôramos
levar naquele dia, ficamos proibidos de ali comerciar por
um bom tempo. E o buraco na cerca, ah, o velho encontrou
e tapou no mesmo dia!
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Com o tempo, o pobre do Profeta foi diminuindo as
atividades, e por fim vendeu a parte da frente de seu
terreno para um indivíduo que lá construiu sua casa.
Ficando ainda mais isolado, pois sua casa agora ficava
“escondida” no terreno dos fundos, ali Profeta faleceu,
sozinho e misterioso como sozinho e misteriosamente
vivera boa parte de sua vida.
Saudades de Profeta, de suas broncas, seu jeito
irritadiço, e das muitas risadas que pude dar com aquele
simpático, sim, simpático velhinho ranzinza. Velhinho que,
além de me ensinar sem querer a exercitar a imaginação,
me dera os rudimentos práticos do ofício de catador: saber
diferenciar “metal” de cobre, antimônio de “bloco”, ferro
de aço e por aí vai...

87
Capítulo 21
O Pau-de-Sebo

As novas gerações e mesmo as mais maduras, porém


criadas em ambiente urbano, talvez não saibam o que seja
um pau-de-sebo – ou imaginem, de pronto e
maldosamente, que ele seja algo muito diverso do que é
na realidade.
Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar
logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de
festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à
semelhança de um poste desses de eletricidade,
completamente lambuzado, lubrificado, empapado com
sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o
objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia
noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas
do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?
O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa,
sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas
hoje já tão raras.
Instalada a grande tora em ponto central da festa, já
devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros
presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou
um cheque representando um valor algo considerável –
Digamos, em valores de agora, 300, 500 reais. Pois bem:
Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal
poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro,
ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve
88
dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio
desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como
era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois
o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando
boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e
bermudas... Alguns, já quase chegando ao topo, cansados
e de repente tocando área de banha ainda “virgem”,
repentinamente despencavam – e o sebo restante na
enorme envergadura daquele pau fazia as vezes de
poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de
São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.
Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui
na comunidade do Jardim Nazaré, e bem em frente à
minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado
dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram
palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado
a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas;
bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o
tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem
simpático, eterno candidato a vereador (eterno não,
depois cansou-se), o William. William era também cana,
meganha, magarefe: Soldado porra-louca como era o
normal dos policiais militares cariocas daquele tempo.
Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também
cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis
numa batalha.
Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos heróis de
birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e
nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se
daquela quantia, a essa altura já mítica.
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Eu e Renato, junto a outros peraltas, bem que tentamos
dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada
logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o
legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o
Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de
abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir
QUALQUER remédio que achasse no lixo durante as
expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais
manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de
tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão
daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.
A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas,
num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que
se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi
formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia
na área. Iluminados ou apertados pela desesperança,
elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a
fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor
de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns
seis bravios canabravas...
E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais
leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser
o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou
a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando
aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a
pontinha do cheque.
Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos
todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um
daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto

90
que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som
um burro faz quando avoa!
Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento
Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos
escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens
nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do
mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor
era nenhum: O cheque estava em branco.
O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se
iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como
o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.
O impasse entre xerife William e aqueles homens agora
furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em
desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal
era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.
Naquele vai-não-vai que sempre impede o cidadão de
bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi
para o segundo-em-comando da festa: O DJ, eletricista,
técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor
Pardal da comuna, o Paulo.
E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a
pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê,
entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram
arrancados, caniços de bambu se tornaram varas
justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e
valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus
alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em
estouro.
O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa,
parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão
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92
e, contrafeito, observava de por cima do muro. Era cada
um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa
encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e
sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas
e nos magoados.
Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca
foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o
valor imaginado, custavam aquelas caixas de som que
foram despedaçadas naquela festa de São João, um São
João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na
cara, e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de
Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal
festim!
(No camarote das santidades, imagino que o bom São
Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e,
desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia,
soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma
festa, meu padrinho...”

93
Capítulo 22
Gambá e o Gran Cassino Palha Seca

Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu


fabulário.
O nosso Jardim Nazaré ou Palha Seca não foge à regra.
Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na
internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá,
nos estertores finais da década de oitenta. Que o leitor me
permita relatar aqui esta resenha na qual nosso Renato é
tão somente um reles coadjuvante...
Em frente à minha casa morava com sua família cidadão
de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a
uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso
troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma
carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um
dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão
capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa
acepção do termo, ia sobrevivendo.
Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos
(um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã),
o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma
“barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles
pequenos comércios de bairro.
Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense,
desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de
salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu
iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família,
uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem
das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno

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Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do
nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados
jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-
um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica
purrinha, jogos que eram praticados à exaustão, indo por
vezes madrugada adentro, e sempre valendo dinheiro.
Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver
gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga,
sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois
apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de
cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua
casa... Nosso anti-herói Renato foi um dos tais a escapulir-
se – ou ser ejetado para a sarjeta da rua – liso, tesado e
como veio ao mundo...
Bem, toda essa confraternização era regada à muita
cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos.
Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a
renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do
tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra
um caldo ou mocotó.
Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do
Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se
iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer
uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má)
sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho
para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada:
Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O
benemérito dissera ter matado três das galinhas do
quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já
que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe
pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.

95
Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza,
bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do
amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a
conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua
própria sala – também se serviram a gosto.
Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir,
na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas
variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali,
um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os
ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos
naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém,
sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes
fornira com tão saboroso e farto repasto:
– Ô Gambá, você não vai comer não?
Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de
Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo
alegou:
– Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava
cozinhando. Tô legal...
– Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você
chegou não comeu nada, e sempre come bem...
– Que nada meu cumpadre, comi bastante em casa
mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu,
bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.
Ao longo de todo o seu período de permanência ali no
“estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto,
um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo)
era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um
palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela
iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o
Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.

96
Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o
embriagado Gambá, que passara da conta habitual
valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida,
emendou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém
pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com
aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria
com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de
porco...
Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande
e encardida panela, estando todos já afogados nos
humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o
argumento de Ciço:
– Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem
um pedaço...
Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim
resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva
eu diria, brincadeira:
– Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne
que preparei para vocês não era bem das galinhas da
mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que
matei ali na Ponte Caída.
E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença
pudessem manifestar suas máscaras características na
audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel
entregou a sordidez de alguns detalhes:
– Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na
panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na
panela de pressão! – completou, explodindo numa
gargalhada carnavalesca.
Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte
que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo.
Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor
97
alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos
levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma
grande brincadeira.
Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a
única porta do casebre...
O que se seguiu foi uma prolongada sessão –
desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel,
medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do
bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e
golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns
alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo
apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais.
Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou
forças para o linchamento; talvez do próprio Satã.
Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o
corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na
rua de chão.
Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que
se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais
deveria passar pela rua principal do Palha Seca –
justamente o único caminho que ele tinha para ir
trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o
ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em
Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente
despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão
dura – mas saborosa, alguns depois o confessaram –
carne.
Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e
anos andando não dois, mas (agora na direção contrária)
coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula,
onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.

98
Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em
seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma,
nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de
humor de seus antigos companheiros de jogatina...

99
Capítulo 23
O Tempero Colombiano

A nossa breve narrativa corre para seu fim, afoita como


um molecote em saída de escola. Mas deixe-me abrir aqui
um parêntesis para inserir uma história de meu pai – e de
como, hilariamente como, ele veio a parar neste Jardim
Nazaré gonçalense. Afinal, se este parece ser um livro de
memórias, minha ideia foi sempre fazer um livrinho de
humor. Que esta narrativa patriarcal, algo veraz, algo
fictícia – pois a literatura não tem como safar-se de tais
miscigenações, para terror dos puristas da raça historial –
me ajude a não ver o tiro sair pela culatra! Se o tom se
emboneca, se a escrita aqui ganha firulas, é que tal texto
foi (assim como o anterior, sobre outro anti-herói, o
Gambá) publicado em forma de crônica independente no
Jornal Daki, noticiário gonçalense mantido pelo combativo
Helcio Albano.
* * *
Nos ribombares da pandemônica década de 60, meu
pai, Mário Pedro da Silva, chegou ao estado do Rio, vindo
da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior do
Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator.
Ou cantar no rádio. Ou uma ponte que o levasse à
Hollywood. Ou você pensou que a parte carnavalesca de
meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de
uma inspiração superior? Talvez descendente de
abnegados missionários ingleses, ou colonos alemães
avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de
100
Herbert Richers, o falido e antes onipresente empresário
da dublagem televisa (“Versão brasileira: Herbert Richers”,
lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos filmes
que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já
citada Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a
bacia das almas.
Bem, após alguns meses desavisadamente fustigantes
na efervescência da capital, a inadequação de nosso herói
mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele
foi convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da
baía”. Atravessando as águas turvazuis da Guanabara, o
jovem paranaense teve uma iluminação ao conhecer a
cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da
Niterói ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma
forma o Paraná pacatizado, pacativante, e a paixão
assomou aos olhos do aspirante a James Dean.
Em pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de
sino alugando quarto de pensão em Icaraí, naquela época
o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor consórcio
de aprazibilidade e centralidade.
Estabelecido, meu pai logo conseguiu emprego na
cidade sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão
em que se instalara, havia os mais diferentes tipos.
A tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao
menos era) de praxe em tais repúblicas. Nada de mulheres;
nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos? No
máximo entre dois homens.
A dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela
mesma uma figura da mais relevante singularidade.
Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia,
ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos
por aqui. A suspeita que liderava as pesquisas era que a
101
agora velha Consuelo, jovem ainda havia se apaixonado
por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens
braileñas, e aqui a abandonara à própria e mala sorte.
Era ela, a querida de todos na pensão, que
proporcionava o momento mágico da vida daqueles
senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o
jantar (a pensão servia apenas café da manhã, simplório, e
jantar. O almoço cada um tinha que filar ou comprar em
outras paragens). A comida, sempre exuberantemente
saborosa, mesmo nos dias de maior frugalidade,
entorpecia os ânimos e estômagos de todos aqueles que,
felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada
como convém de segredos (era terminantemente proibido
que enxeridos penetrassem na casa de dona Consuelo
durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de
exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até
estar aberta ao público, e mais, a um público mais seleto
do que àquela coletânea de solteiros que se refastelava
nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era
sorver aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o
privilégio que era morar naquele lugar, se por mais nada,
ao menos pela comida fulminante. Contrariados, evitavam
estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo
inevitáveis: temiam que a boa senhora abrisse um
restaurante, caso em que certamente faria imediata
fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fossem
surrupiadas a estalagem e a boa comida...
Após o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as
conversas se expandiam. Tímidos passavam a palrar como
canários; os já faladores eram então insuflados a
animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de
torneios, de “Festivais da Canção” onde duelavam-se
102
sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele
ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia
socializadora ou destimidizadora parecia explodir.
Certa feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista,
e que normalmente mal despachava um “bom dia, boa
noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a rodopiar em
dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu
bailar, aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora
da república – e lá foi o Abelardo, antes tímido que só ele,
dançarolando pela calçada, ao som de algum
acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia
música a tocar), para espanto dos poucos transeuntes
daquele trecho.
E o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da
empáfia e da arrogância militaresca, que, sempre que
tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se a
pedir perdão aos companheiros por seu comportamento
usualmente arrogante? Certa feita receitou, de improviso,
um belo poemeto em honra da amizade, declamação que
o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.
Mas o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-
banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano cabo da
Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua
elevada posição (cabo, como disse) na hierarquia militar.
O brincalhão e pretensamente galanteador marujo, negro
de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de
um castanho claro que ele alegava serem os terrores do
mulheril, quando de barriga cheia e engolfado pelo clima
descontraído que se sucedia àqueles jantares, ganhava um
brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se
alongava; em seguida suas gesticulações passavam a
ganhar mais vida, mais curvas; a marcialidade de seus
103
movimentos cambiava para uma leveza quase... quase
feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas,
traquejando com inesperada malemolência, o Rui, agora
levantado de sua cadeira, passava então a apertar e
massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de
um aqui, ajeitando a gola de outro ali... O que no princípio
inevitavelmente descambou em algumas confusões, mas
rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela
geleia geral daquele festim diário de pós-expedientes.
O desenlace de nossa historieta teve seu início com o
aperto e a correspondente esperteza de meu pai:
conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem
paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem
carioca, resolveu transgredir a lei em nome da economia:
conseguindo um pequeno fogareiro de um bocal, movido
à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas
porções de macarrão ou outras basicalidades dentro do
quarto; para isso, todos os dias na hora do almoço voltava
para a pensão a título de descansar justamente o “almoço”
que alegara já ter consumido no centro de Niterói...
Em pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha
quanto um cego, passou a ressentir-se de ter que comer
seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado
pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar;
“mal” acostumado que ali fora a uma cozinha dos deuses,
amargava cada colherada de sua própria comida como um
condenado.
Um dia o estudante autodidata de inglês, que ainda
sonhava em conhecer Hollywood, teve um insight: e se ele
conseguisse dar uma expiada na dona Consuelo enquanto
ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele
poderia bolar algum tipo de burla para conferir como
104
aquela maga temperava suas comidas. Não deveria ser tão
difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava a
tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e
ambrosias...
Um belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do
trabalho (nesta época já trabalhava como contínuo na
Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali,
esgueirou-se pela parte detrás daquele conjunto de
quartos, já com um tamborete nas mãos, para dar altura à
pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se
espichou ele para observar qual o segredo dos temperos
da dona Consuelo. Observou por um tempo considerável
enquanto a velha picava carne para um ensopadinho,
cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um
feijão que estranhamente não levava alho, mas ficava
sempre delicioso. A atenção do malandrete estava
concentrada no momento das temperanças, pois ali ele
esperava descobrir ao menos algo que pudesse replicar,
ainda que porcamente, a fim de mitigar o gosto já
intragável de sua comida.
Pendurado e atento em seu tamborete, o jovem viu a
idosa estrangeira sacar de dentro de um armário uma
chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem
finas algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde
reconhecer cebolinha, aipo e talvez cardamomo. Mas
então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um
grande pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha
espremeu algumas das estranhas folhas nos dedos, e
pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois
pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e
jogar dentro de todas as panelas que tremelicavam no
fogão.
105
O ex-matuto de roça e aprendiz de haute coisine já
havia visto aquela erva fina, mas não fora nas pequenas
roças de fundo de quintal naquela terra roxa e fértil do
Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta
lhe mandava ir até lá comprar este ou aquele item; quem
lhe mostrara aquele tipo de tempero fora Fernando, o
policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de
sua corporação imagens daquela exótica planta, tão em
moda naqueles idos da década de 60. O desconcerto da
informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar,
derrubou meu jovem pai estatelado no chão.
Enquanto caia de sua banqueta, num daqueles
fenômenos de slow motion que gostam de acontecer nos
momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo
paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa
alegria pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e
traquejos e a felicidade quase mágicas que assomavam a
todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O
motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto
pranchava suas costelas contra alguns pedregulhos do
chão.
Sabe-se lá por que cargas d’água (e a que custo, meu
Deus, a que custo!), dona Consuelo temperava todos os
seus pratos com frescas folhas de maconha...

* * * * * *

Deglutidos os embaraços, o jovem migrante


paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu seus
vinténs e avançou ainda mais mato adentro: Comprou uma
caxanguinha em nossa São Gonçalo, longe dos exóticos

106
temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas
essa história todos conhecemos...

107
Capítulo 24
Epílogo

Esse nosso núcleo comunitário da Beira Rio foi


desagregado, em inícios da década de noventa, por uma
pequena tragédia: Uma cheia catastrófica do Rio
Alcântara. Graças a Deus, vidas não foram ceifadas, mas
casas inteiras se perderam, ou partes delas, ficando neste
caso a estrutura restante em geral comprometida.
O Estado, essa enxertia ou quimera de lobo com
tartaruga, finalmente resolveu intervir. A solução
encontrada foi doar terrenos, junto com uma pequena
indenização, para todos aqueles moradores que moravam
nas margens do tal rio – ou ao menos aqui, em nosso
trecho de rio.
Os lotes foram distribuídos na Rua Dalva Raposo e nos
morros a ela fronteiriços, que eram relativamente
próximos de nosso lugar. Essa praticamente é a origem de
toda a grande comunidade favelizada que hoje se ergue no
local, múltipla e setorizada, cujos setores levam nomes
como Cabrita e Mangueirinha, e até o nome geral
“condomínio de barro”, expressão pejorativa que alguns
daqui, igualmente pobres tal como os de lá (na verdade,
logo ali), costumam referir. Trata-se enfim de uma
extensão de espaço abarcando alguns quilômetros de
moradias e abrigando milhares de moradores: O tal
“Complexo da Palha Seca”, assim nomeado até no Google
Maps.
108
Sim, tudo começou com menos de três dúzias de
famílias, realocadas da Rua Manoel Bandeira, a “Beira
Rio”, para lá. Se hoje aquilo tudo e tudo aqui é chamado
de Complexo da Palha Seca, antes, para nós do Jardim
Nazaré aquele trecho era chamado simplesmente de
Estrada Velha ou mesmo Areal, em virtude da usina de
areia que, por muitos anos, esteve em frente à entrada do
bairro, lá quase no início da RJ 106.
Como dito, não havia tanta gente aqui na Beira do Rio
para povoar aquelas imensidões de terra: Após esses
primeiros moradores, outros terrenos continuaram a ser
doados a pessoas de baixa renda não diretamente
afetadas pelo rio, e depois até mesmo comercializados por
grileiros, os onipresentes vampiros de chão. Assim,
pessoas de muitos outros lugares de grande parte da
região metropolitana fluminense – São Gonçalo, Niterói e
até Itaboraí (recordo que minha própria mãe conseguiu
por lá um terreno para ajudar uma família que havia sido
“expulsa” de Itaboraí) foram ocupando aquele lugar, antes
apenas uma sequência de montes e morros recobertos
pela característica vegetação de cerrado, com muito
pequenos pontos de Mata Atlântica aqui e ali.
Assim, a maioria de meus companheiros de brincadeira,
inclusive Renato e sua família, foi realojada – e as relações
se pulverizaram, pela distância, que nem era tão grande,
mas principalmente pelas lides da vida, os transtornos e
transformações que vinham na garupa da adolescência e
vida adulta.
Outros companheiros ainda na infância se haviam
apresentado, a foi ao lado deles, amigos na acepção mais
109
rica do termo, que me transcorreu a adolescência – meu
até hoje melhor amigo, Wilson, com quem vivi também um
bom número de aventuras; os irmãos Ronaldo e Ronilson,
idem; e Ademilton “Bolotinha”, meu companheiro de
jogatinas no Nintendo 8 bits...
Minha relação com Renato, que então morava na Dalva
Raposo, passou a ser a dessa camaradagem esporádica
entre antigos amigos e conhecidos, baseada num “e aí,
qual é?” “Fala aí, como você tá?”, quando nos cruzávamos,
e um ou outro raro momento de rememoração de
presepadas.
Infelizmente a vida de Renato foi ceifada muitas
décadas antes da hora. Tendo iniciado seu contato com a
cachaça ainda na infância, na adolescência Renato voltou
a beber, e em determinado momento aquilo se tornou um
vício, cujo crescente acabou lançando-o numa precoce
cirrose hepática e numa internação, onde ficou entre a
vida e a morte. Recuperando-se, teve uma nova chance na
qual deveria, sob risco de vida, manter-se para sempre
longe do álcool. Mas infelizmente nosso amigo não teve
forças suficientes, e, recaindo no vício, veio a óbito com
apenas vinte e quatro anos.
Negro, pobre, analfabeto, de vida roubada: Que este
humilde opúsculo lhe sirva de homenagem, lhe resguarde
um pouco, e espero que o melhor e o mais feliz, de sua
memória.

*** *** *** *** ***

110
A aventura de todo escritor, a aventura que é escrever,
começa sempre no mesmo lugar: Na leitura.
Quanto a mim, aprendi a ler praticamente na Bíblia. Ou
nela exercitei a prática da leitura. Não por instrução dos
pais, que eram católicos nominais assim não muito
preocupados com essas coisas, mas por conta própria, mix
de temor e curiosidade.
A história do Nazareno, que um dia me haveria de
resgatar, já se me apresentava maravilhosa e
perturbadora. Que estranho herói, que dava a outra face e
oferecia-se à morte! Sempre que podia, eu pegava uma
antiga edição popular do Novo Testamento, chamada de O
Mais Importante É o Amor, impressa em papel jornal e que
era distribuída gratuitamente em muitos lugares àquela
época. Me lembro de que lia do evangelho de Mateus até
o livro de Atos apenas, isso porque depois dos cinco livros
iniciais vinha o livro ou a carta de Romanos, que é pura e
densa teologia, seguido por outros na mesma linha,
elucubrações de que uma criança de primeiras letras não
entendia lhufas. Assim, após concluir a leitura dos “livros
de ação” (Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos), retomava
de Mateus.
Em termos escolares, quem me ensinou as primeiras
letras foi a tia Sônia, que por sinal foi professora de oito
em cada dez jardim-nazarenos, e ainda está na ativa, sendo
hoje minha amiga. Outro dia mesmo ela, desfazendo-se de
parte de sua biblioteca, lembrou-se generosamente de
mim e me confiou diversos tomos, de Shakespeare a
Monteiro Lobato.

111
Sua escola ficava aqui bem próximo de minha casa e,
após mudar de lugar diversas vezes, hoje retornou ao
mesmo ponto inicial. Depois dela, caí na tarrafa dum tal
Ursinho Branco – colégio escolhido por minha mãe pelo
fato simples de que seus muros eram altos demais para
permitir minha fuga. Sim, pois eu que hoje sou professor
era arredio aos ordenamentos e firulas da escola, que
sempre tolerei sem, dura confissão!, jamais amar. O tal
Ursinho era situado no já referido e malfadado Buraco
Quente.
Essa profissão de fé ou todo esse cerca-lourenço é para
falar que, da Bíblia, sempre me intrigou e maravilhou o
trecho final do evangelho de João (capítulo 21, versículo
25): “E ainda muitas outras coisas há que Jesus fez; as
quais, se fossem escritas uma por uma, creio que nem
ainda no mundo inteiro caberiam os livros que se
escrevessem.”
Assim, se todas as aventuras, causos, presepadas e
dramas acontecidos aqui, NUM ÚNICO BAIRRO E APENAS
EM MINHA GERAÇÃO, fossem relatados, este livretinho
seria inflado a vários tomos de densas narrativas. Mas
espero que estas poucas linhas, escritas primeiramente
para mim mesmo, possam dar alguma conta deste breve
trecho da grande meta-narrativa chamada Humanidade,
na qual cumprimos nossa missão, que é viver e buscar a
felicidade e o bem, e o Doador de ambos – com o máximo
de bom humor possível nesse processo.

112
Sobre o autor

Nascido em 1978 em Niterói, mas desde sempre morador de


São Gonçalo, ambos municípios fluminenses, Sammis
Reachers é poeta, escritor, antologista e editor. Autor de dez
livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de
mais de quarenta antologias e professor de Geografia no
tempo que lhe resta – ou vice-versa.

Como autor, publicou:

POESIA
• São Gonçalo de Todos os Santos (1999).
• Uma Abertura na Noite (2006).
• A Blindagem Azul (2007).
• CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012).
• Poemas da Guerra de Inverno (2012, 2014, 2021).
• Deus Amanhecer (2013).
• PULSÁTIL – Poemas canhestros & prosas ambidestras
(2014).
• GRÃNADAS (2015).
• Poemas de Amor em Trânsito (2018).
• Cartas & Retornos (2021).

CONTOS / CRÔNICAS
• O Pequeno Livro dos Mortos (2015).
• RODORISOS – Histórias hilariantes do dia-a-dia dos
Rodoviários (2017, 2021).
• Renato Cascão e Sammy Maluco – Uma dupla do
balacobaco (2021).

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Leia mais de meus textos em alguns de meus blogs:
www.marocidental.blogspot.com
www.azulcaudal.blogspot.com
www.opoemasemfim.blogspot.com
www.jornaldaki.com.br/blog/categories/sammis-reachers

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