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Sammis Reachers
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Copyright ©2021 Sammis Reachers
ISBN: 978-65-00-32330-6
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“É melhor escrever sobre o riso do que sobre a
lágrima. Porque o riso é próprio do homem.”
Rabelais
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Sumário
Apresentação.....................................................................07
Capítulo 1: Situando os quiprocós ...................................10
Capítulo 2: Um assalto à horta do hospício ...................14
Capítulo 3: Sexto Sentido ..................................................18
Capítulo 4: Sobre paus, pedras e sopapos ....................21
Capítulo 5: A fundação do MMA numa comuna
gonçalense .........................................................................24
Capítulo 6: Meganha, raça do cão ................................28
Capítulo 7: Papita e o atoleiro .........................................31
Capítulo 8: Ri por último quem ri de bolso cheio ..........36
Capítulo 9: O sítio mal-assombrado de Seu Pedro .......39
Capítulo 10: As doces mangas – e o muro – do velho
Lauro ....................................................................................45
Capítulo 11: A rapina bananal .........................................49
Capítulo 12: Jamelões!......................................................54
Capítulo 13: De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude .........................57
Capítulo 14: Sobre nossos apelidos.................................60
Capítulo 15: O Triciclo dos Alucinados ...........................62
Capítulo 16: Renato e seu cachorro Bugui .....................65
Capítulo 17: Volnei Peito-de-Aço ....................................67
Capítulo 18: Os caronistas ................................................73
Capítulo 19: Vamos falar sobre etnia ..............................78
Capítulo 20: Casemiro, O Profeta ....................................82
Capítulo 21: O Pau-de-Sebo ............................................87
Capítulo 22: Gambá e o Gran Cassino Palha Seca ......93
Capítulo 23: O Tempero Colombiano .............................99
Capítulo 24: Epílogo.........................................................107
Sobre o autor ....................................................................112
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Introdução
O QUE É UM MENINO?
Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores
sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em
baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo,
correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os
detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os
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adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a
verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado,
a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a
digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a
curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a
imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia
da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos
em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os
doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira
os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do
vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do
papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das
bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a
escola, os livros sem figuras, as lições de música, as
gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos
e a hora de dormir.
Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das
refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete
enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de
barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um
estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um
objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura
mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de
ferramentas, mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo
do seu escritório, mas não do seu pensamento. Toda a sua
importância e a sua autoridade se desmoronam diante
dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um
despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você
volta para casa, à noite, de esperanças e ambições
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despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as
suas palavrinhas mágicas: "OH! — MAMÃE!".
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Capítulo 1
Situando os quiprocós
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que eu era. As lições de “malandragem” eram aplicadas
diariamente, sem muita cerimônia.
Uma de nossas maiores ocupações era, quase que
todos os dias, catar ferro-velho – reciclagem, cobre,
alumínio, garrafas e até ferro, ferro depois abandonado
pois o lucro não compensava o sacrifício de, franzinos
moleques que éramos, carregar todo aquele peso.
Ocupados em nosso ofício – cujo objetivo era conseguir
dinheiro para comprar picolés e sorvetes da Kibom, pão
com mortadela, refrigerantes, doces, jogar fliperamas e,
ao menos no meu caso, comprar figurinhas variadas –
como dito, andávamos quilômetros, a cada dia traçando
uma rota.
Na época não havia coleta de lixo na região, lixo que era
então despejado em “pequenos” lixões (terrenos baldios)
que abundavam em cada bairro e sub-bairro. Renato me
ensinava nessas andanças a primeira lição da vida ou
daquela vida – cada um por si, nada de catar em conjunto.
E ele, claro!, sempre conseguia mais materiais de valor que
eu. O bicho enxergava como uma águia! Com o tempo, fui
melhorando.
Outra lição – essa vergonhosa e perfeitamente
dispensável – que Renato me ensinou foi a roubar. Mas
calma lá, leitor, que não lhe quero escandalizar logo neste
início de livrete: Não eram furtos dignos do risco ou talvez
da fama, eram apenas surrupios de pequenos pedaços de
cobre, que jaziam amarrando canos e cercas; garrafas de
cerveja e garrafões de vinho largados em algum depósito
de fundo de quintal; panelas velhas que eram utilizadas
como vasos de planta – ah, quantas plantas eu deitei fora,
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eu que depois aprendi a amá-las! Quando podia, removia
cautelosamente a planta e sua touceira de terra da panela,
depositando a touceira gentilmente a um canto. Quem
sabe a madame não conseguisse um outro vaso para
reacondicioná-la?
Esses pequenos furtos também foram uma severa
escola – em geral, nos quintais mais “arriscados”, eu, mais
lerdo e ainda por cima mais “visível” pela minha pele
amarelona, ficava de vigia, enquanto Renato lá ia tentar
aliviar... LIXO, mas era roubo pois o “lixo” tinha dono, e
trazia na corcunda seu risco.
Há quem diga que éramos pueris ecovisionários
promovendo ou ao menos “adiantando” a reciclagem de
materiais que, largados como estavam na “natureza”,
levariam séculos e oh!, quiçá milênios para se
decomporem, comprometendo ecossistemas locais e
globais. Para esses, fomos paladinos da sustentabilidade,
arautos de um futuro eco-responsável (particularmente,
gosto bastante desta versão).
A mesma tática utilizávamos para afanar frutas, ciência
esta universal, e atividade que exercíamos com alguma
perícia e grande prazer. Embora antes pedíssemos ao
dono, humildemente, para nos deixar arrancar algumas
frutas – mangas, goiabas e quetais. Em caso de negativa,
bem...
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Capítulo 2
Um assalto à horta do hospício
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Capítulo 3
Sexto Sentido
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moravam muitos homens – eram os tios dela, todos
solteiros e ainda albergados em roda da saia da matrona.
Pois bem, lá estávamos nós, acocorados no mato em
frente daquela casinha de telhas francesas e sem cercas. A
rua estava deserta, pois o bairro naqueles tempos era
menos povoado e a hora já ia avançando noite adentro;
podíamos divisar, dentro da casa de janelas de madeira
abertas, o trânsito dos moradores, inclusive da princesinha
de ébano. Eu olhava para a rua de quando em quando, pois
nossa atitude, embora de intenções inocentes, era
também suspeita. Foi quando Renato, fulminado por seja
lá que tição do céu ou do inferno, entregou o oráculo: “Tô
com a sensação de que vai acontecer alguma merda...”.
“Que nada, a rua tá deserta e nós não estamos fazendo
nada”, respondi. Um breve momento de indefinição foi
suspenso pela aparição, ex nihilo, sim, direto do nada, de
um dos tios da menina, bem na nossa frente. Como aquilo
se deu? E era justamente Elias, o mais “brabo” dos
moradores da casa. Renato foi apanhado pelo braço, e
tomou uma salva de cascudos. Eu também levei o meu e
me dei por satisfeito – bem, em geral eu ficava para trás e
arcava com as consequências sozinho. As explicações
sobre os puros sentimentos do jovem Romeu, ao invés de
tocarem o coração de Elias, tiveram o resultado oposto,
enfurecendo ainda mais o valentão. Se tivéssemos corrido
quando o oráculo deu o alarme...
Carimbados de cascudões e devidamente jurados em
caso de reincidência em tal “crime” – simplesmente
observar o evolar de uma virginal donzela, veja você –
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partimos para nossas casas, contrariados por mais uma
injustiça da vida.
Renato jurava “vingança” quando crescesse. Quanto a
mim, bem, em boa parte de minha infância, receber um
cascudo era como receber um bom dia.
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Capítulo 4
Sobre paus, pedras e sopapos
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Capítulo 5
A fundação do MMA numa
comuna gonçalense
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do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas
barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.
Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de
futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já
contava com um campinho mais acima do morro. E as
areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O
areal passou a ser campo de honra – não, não um
cemitério – mas campo onde as honras entravam em
disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram
a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem
contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao
menos da ação dos pais.
Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à
brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até
battle royale (todos contra todos) foi experimentada em
nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala,
qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela
pequena e mambembe escolinha de gladiadores
gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!
Aquilo se tornara também um campo de sadismo para
alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam
aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles
estimulavam os combates, impediam a fuga dos
desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos
pelos membros e balançando-nos como fardos que, após
ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como
fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.
Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais
mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já
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formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia –
seus campeões.
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Capítulo 6
Meganha, raça do cão
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Capítulo 7
Papita e o atoleiro
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Amigo leitor, deixe-me abrir um parêntesis: Já terá sua
distinta pessoa se servido, em seus momentos de
intimidade, dos papéis higiênicos e toalhas de papel
Cotton, Deluxe, Klass, Coquetel? Que tal as fraldas
descartáveis Looney Tunes? Eles e muitos outros bons
produtos são fabricados pela empresa Carta Fabril, que até
pouco tempo atrás era localizada aqui, em Tribobó City, na
em sonhos linda São Gonçalo. Foi pelos matagais e
terrenos baldios circunvizinhos dela que fomos nos
aventurar, em busca de alumínio e cobre. Afinal, Renato
passara por ali e os vira...
Amigos, outro parêntesis, pois precisamos aproveitar a
Literatura para isso: Naqueles tempos, num córrego que
cruzava dos fundilhos desta tal empresa, era descarregado
um líquido colorido, por vezes azul, por vezes verde, que
se dirigia diretamente para o já citado rio Alcântara.
Poluição pura, sem filtros nem firulas. Pior: Sem saber
direito do que se tratava, e acostumado àquela vida de
“bravuras”, certa vez entrei no trecho do rio Alcântara que
recebia aquela química toda, venenosidade que lhe
mudava a cor daquele ponto em diante. Graças a Deus não
me aconteceu nada. Bem, sabe-se lá.
Feita a denúncia, voltemos à aventura. Nossas andanças
por Tribobó City (parece nome de cidadezinha de filme de
Faroeste, hum?) redundaram em NADA, coisa que por
vezes acontecia quando eu seguia as projeções de Renato.
Mas havia um outro problema, esse sim, novo: Papita, que
não vira nada de “curpiu” – assim ele chamava o alumínio,
em sua diferenciada língua de mudo. O bruto murmurava,
e pode o leitor imaginar o que seria um mudo “falante”,
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irritado até os infernos, bradando e gesticulando como
uma matrona italiana?! Papita ameaçava nos aplicar fartas
cargas de cascudos, caso nada encontrássemos. Afinal, o
fizéramos desabalar-se de sua paz para nos seguir na
peneira em terras longínquas e inóspitas.
Meus queridos, tudo que é ruim pode piorar, e aquele
dia estava funestamente atípico. Realmente não havia
NADA nos lixões dos terrenos baldios. Era como se algum
outro catador houvesse passado por ali, momentos antes.
Bem, resolvemos então nos aventurar pela parte de trás
da tal empresa de papéis. Era um misto de matagal e
aterro. Havia chovido bem no dia anterior, e eu temi entrar
num lugar novo para mim, justamente quando ele
aparentava formar tanta lama. Mas avançamos, sempre
sem nada encontrar, com um olho nos caminhos e outro
no furioso Papita, sempre prestes a explodir.
Chegamos então a uma pequena ribanceira, da qual não
poderíamos descer sem nos sujarmos todos de barro. Era
preciso pular lá para baixo, para continuarmos nosso
avanço. Olhamos para a terra desnuda, molhada pela
chuva, e nos pareceu fácil, coisa de dois metros de altura,
para nós que pulávamos de até cinco, sem quebrar as
perninhas.
Eu e Renato cometemos então o principal erro do dia:
Pulamos ao mesmo tempo, cada qual numa direção. O
resultado foi surpreendente: Aquele amontoado de terra
era na verdade um lamaçal de aterro encharcado, um
amontoado tão fofo que, já no impacto, afundamos até a
cintura na lama.
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Pare um pouco para imaginar: crianças de onze anos,
corpos fracos, num lugar desconhecido, presas até a
cintura em lama movediça. Sem forças para sair, e pelo
contrário: Quanto mais força fazíamos, parecia que mais
afundávamos... Bateu a brisa do desespero, logo transfeita
em vendaval. Chorei, confesso que chorei.
Papita, do alto do barranco, apenas observava a cena.
Por isso chorei: Pensando naquela velocidade hipersônica
do medo, imaginei que ele, furioso, nos abandonaria ali,
longe das vistas de qualquer pessoa, para morrermos
como num maldito filme de meu herói, o também catador
e ladrão de ferro-velho Indiana Jones.
Mas Papita pulou – E pulou, estranhamente, num lugar
onde quase não afundou. Em seguida, aproximando-se
devagar, puxou as mãos de Renato, que a muito custo
conseguiu desprender-se da lama pegajosa. Após, foi a
minha vez. Consegui sair com grande penúria, mas um de
meus chinelos ficara preso lá no fundo da lama, numa
fundura que meus braços não alcançariam. O
inesperadamente generoso Papita, adiantando-se, enfiou
seus longos braços no lamaçal e retirou minha sandália.
Conseguimos por fim contornar aquele matagal, e sair
daquele lugar miasmático. Já na pista, totalmente sujos,
sem sequer uma grama de cobre ou alumínio nas mãos,
Papita cobrou o seu preço: Cada um de nós tomou uma
sequência de dez ou mais cascudos em cascata.
Bem, ficou barato: sempre está barato quando se
escapa andando sobre as próprias pernas. Estávamos até
agradecidos. E nunca mais chamamos Papita para nada...
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Capítulo 8
Ri por último quem ri de bolso cheio
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Capítulo 9
O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro
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impassível, continuava a lentamente mover aquele
bambu.
Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar
divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se
seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que
o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas!
Todos voamos na direção contrária à sombra, de
encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação
que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento
entre os fios de arame que permitia a uma criança ou
jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de
um a um, claro. Mas naquele momento, moleques
jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou
torpedos, pouco se importando com os resultados. No
empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis,
gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo
tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca.
Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei
fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles
arames...
Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um
fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois
como entender um diabo que, dentre o universo de coisas
passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar
tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei
novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo
acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e
aquele pé de tamarindo como o cramunhão evita a cruz!
Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O
comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz
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Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de
complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de
fim de semana e fazendo festas para seus amigos.
Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte
do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos
serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o
espaço foi novamente vendido, e agora um enorme
condomínio de apartamentos populares se ergue naquele
lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores
provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu
naquele terreno em que habitam...
*** *** *** ***
Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele
lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de
conhecimento corrente de boa parte da população do
local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente
ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública
não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia
outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um
bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um
lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e
do outro, um inoportunamente longo e frio muro.
Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio
ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante!
Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa
época em que não havia muita coisa pra se fazer, um
indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o
Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que
margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda
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escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a
cada alma desafortunada que por ali passasse.
Muita coragem embolada com muita safadeza do então
jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão
ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!
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Capítulo 10
As doces mangas – e o muro –
do velho Lauro
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Capítulo 11
A rapina bananal
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A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da
maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa,
dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo,
claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem
de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável
para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde
seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou
vadiando à esmo.
Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo
era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao
tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado
barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem
íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas
– fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de
chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos
oitenta!
Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico
era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar
a molecada.
Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar
de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu
(aprendido nos filmes da franquia American Ninja que
lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o
máximo de silêncio possível.
Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as
bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado
popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”?
Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um
anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em
nossa favelinha, quem iria nos impedir.
51
Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da
chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma
solução foi encontrada.
A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a
marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um
facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e,
sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos
maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante
golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a
sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do
tronco, de preferência apenas um terço de sua
circunferência.
Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para
outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas
margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os
poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era
infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho,
aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia
o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de
bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre
com grande estrondo.
O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele
colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres.
O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os
disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não
vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira
tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.
A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra
dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos.
Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar
o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo
aquele butim e, segurando um de cada lado daquele
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pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos
daquele campo minado.
Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas
para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O
Pedágio de Dona Maria.
Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses
grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era
para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro
de perceberem o que transportávamos. E, por cima,
colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas.
Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que
transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos
então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim
dividíamos o fruto da rapina.
Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo
pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde
devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma
idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um
lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao
candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na
infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela
esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco
da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno,
sempre que eu era repreendido pelos palavrões que
vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”,
me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não
posso xingar?”
Além de brava e amedrontadora, dona Maria
costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor,
fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com
alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a
atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho,
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esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara
rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o
lado dela...
Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha
que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com
aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos,
nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:
“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar
um saco de lata...”
Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família
de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram
seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava
mole pra ninguém!
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Capítulo 12
Jamelões!
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Capítulo 13
De quando fomos desafiar o famigerado
Lobão para um jogo de bolas de gude
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Capítulo 14
Sobre nossos apelidos
61
Já o meu apelido, esse sim era bem merecido. O
“maluco” era devido a meus esporádicos ataques de fúria
– sim, segundo os psicólogos do tempo, causados por um
problema de disritmia. Nesses ataques eu quebrava coisas,
fazia pirraça, feria pessoas: ficava mesmo possesso como
um pequeno javali. Você pode imaginar que causei muitos
dissabores para meus pais, em alguns episódios – dos
poucos que me lembro – de que até hoje me envergonho.
É comum todo morador antigo que teve convívio
comigo ter alguma história para contar, e eu mesmo quase
que duvido quando as ouço. Por Deus, admiro meu pai por
não ter me desintegrado na pancada!!! Lamento pelo
leitor de pundonores, talvez pelos psicólogos, mas apanhei
bastante, e hoje julgo que foi até bem pouco, pelo volume
de encrencas que eu deflagrei.
Meu quadro melhorou na primeira adolescência, com
as gotinhas “amansa-leão” que a minha mãe me dava
depois do almoço, jogando-as no suco de maracujá (suco
que, por anos depois, evitei). E principalmente por visitas
regulares a um psicólogo da APAE. Aquelas conversas,
somadas ao tempo, panaceia de tudo, me mudaram.
Mas, na infância, minha fama de “maluco”, embora
sempre exagerada, era corrente. O preconceito que sofria
aqui e ali, mesmo e covardemente por parte de adultos, foi
algo que me marcou, mas cujo relato, nestas memórias de
tom humorístico, é melhor evitar, amigo leitor.
Feitas as apresentações, embora quase já em meados
do livro, bem se entende que a vida unisse tais párias – o
“mais pobre” da rua e o “maluco” da rua – na celebração
de algumas peripécias...
62
Capítulo 15
O Triciclo dos Alucinados
65
Capítulo 16
Renato e seu cachorro Bugui
66
Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não
entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado
abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma
relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-
lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou
contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse,
sofresse o que fosse. Que tipo de relação estóica era
aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos
cardos e abrolhos da vida, que jamais davam
demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro –
como se atraíam naquele nível sobrenatural?
Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo
telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que
qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu
repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.
Para que você tenha uma perfeita ideia, quando
brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de
Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em
segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de
Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e
possivelmente de mais alguém naquele ponto...
Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara –
pois ele não era desses, ele não era do comum dos
cachorros – senti um baque que não podia entender. O
estranhamento de alguma forma nos vinculara.
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Capítulo 17
Volnei Peito-de-Aço
72
a velocidade acaba favorecendo a aderência ao terreno. Só
faltou mesmo foi acertar o plano com a dona cerca...
E nela bati com toda a força, sendo imediatamente
jogado para trás, com furos numa das mãos e na barriga.
Não consegui romper nem um fio do arame, e Volnei levou
três...
Mas fique tranquilo: Graças a Deus ninguém ficou ferido
por aqueles disparos.
Deixe-me finalizar com outra de Volnei. Ainda hoje
temos as garrafas (cascos) de vidro da Coca-Cola.
Antigamente – e por um longo antigamente – só havia o
tradicional casco de um litro. Os mais velhos irão se
lembrar que aquela garrafa possuía o vidro mais grosso do
mercado: No fundo chegava a um centímetro de puro
vidro.
Pois, numa das andanças pela beira do rio, margeando
o fundo das casas e barracos, Volnei – que só andava
descalço, o bruto, assim como Renato costumava fazer –
pisou sem querer bem no meio de uma garrafa de Coca-
Cola. A garrafa foi esmigalhada e Volnei, incólume como
um Aquiles, seguiu sua marcha.
Qualquer outro teria levado trinta pontos e deixado as
partidas de pelada no campinho do morro para sempre...
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Capítulo 18
Os caronistas
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de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses
comentários venenosos para os maledicentes.
Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos
ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis
praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de
ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje
proscrito pelo duro julgamento da lei.
Bem, certa feita as coisas não saíram como o
corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que
eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista
acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes
bairro adento, para descarregar passageiros, isso apenas
até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali
em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda
por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que
ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já
na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de
ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma
poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos,
em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.
A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao
menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai
que ninguém descesse nas seguintes?
Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa
democrática condução, notamos que o motorista já
iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um
ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no
terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a
campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos
preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o
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ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável
acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo
que ninguém iria descer, que o carroção tremia em
solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em
Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre,
nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de
esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto
avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver
o bitelão se levantando da lama, todo “cagado”. Mesmo
em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar,
caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a
fama de “Cascão”!
Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha
vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o
mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto
ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só
fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia
mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas
chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante
cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de
desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.
Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem
bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão
como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo,
devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por
conta e divertimento da lei da gravidade...
Acordei com algumas pessoas sobre mim, me
abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu
imediatamente pata avisar meus pais – o que me fez tentar
levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois
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eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se
comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá
vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou
Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x
rotineiro. Nada quebrara, por sorte.
Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara
na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno,
dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e
“apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.
E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de
presepadas...
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Capítulo 19
Vamos falar sobre etnia
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de, ainda tão jovem, ser o responsável, o arrimo, pela
alimentação de tantas bocas!
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Capítulo 20
Casemiro, O Profeta
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Capítulo 21
O Pau-de-Sebo
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que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som
um burro faz quando avoa!
Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento
Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos
escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens
nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do
mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor
era nenhum: O cheque estava em branco.
O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se
iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como
o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.
O impasse entre xerife William e aqueles homens agora
furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em
desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal
era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.
Naquele vai-não-vai que sempre impede o cidadão de
bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi
para o segundo-em-comando da festa: O DJ, eletricista,
técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor
Pardal da comuna, o Paulo.
E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a
pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê,
entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram
arrancados, caniços de bambu se tornaram varas
justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e
valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus
alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em
estouro.
O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa,
parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão
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92
e, contrafeito, observava de por cima do muro. Era cada
um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa
encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e
sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas
e nos magoados.
Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca
foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o
valor imaginado, custavam aquelas caixas de som que
foram despedaçadas naquela festa de São João, um São
João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na
cara, e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de
Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal
festim!
(No camarote das santidades, imagino que o bom São
Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e,
desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia,
soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma
festa, meu padrinho...”
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Capítulo 22
Gambá e o Gran Cassino Palha Seca
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Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do
nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados
jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-
um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica
purrinha, jogos que eram praticados à exaustão, indo por
vezes madrugada adentro, e sempre valendo dinheiro.
Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver
gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga,
sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois
apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de
cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua
casa... Nosso anti-herói Renato foi um dos tais a escapulir-
se – ou ser ejetado para a sarjeta da rua – liso, tesado e
como veio ao mundo...
Bem, toda essa confraternização era regada à muita
cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos.
Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a
renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do
tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra
um caldo ou mocotó.
Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do
Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se
iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer
uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má)
sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho
para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada:
Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O
benemérito dissera ter matado três das galinhas do
quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já
que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe
pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.
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Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza,
bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do
amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a
conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua
própria sala – também se serviram a gosto.
Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir,
na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas
variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali,
um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os
ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos
naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém,
sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes
fornira com tão saboroso e farto repasto:
– Ô Gambá, você não vai comer não?
Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de
Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo
alegou:
– Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava
cozinhando. Tô legal...
– Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você
chegou não comeu nada, e sempre come bem...
– Que nada meu cumpadre, comi bastante em casa
mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu,
bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.
Ao longo de todo o seu período de permanência ali no
“estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto,
um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo)
era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um
palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela
iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o
Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.
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Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o
embriagado Gambá, que passara da conta habitual
valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida,
emendou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém
pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com
aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria
com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de
porco...
Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande
e encardida panela, estando todos já afogados nos
humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o
argumento de Ciço:
– Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem
um pedaço...
Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim
resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva
eu diria, brincadeira:
– Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne
que preparei para vocês não era bem das galinhas da
mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que
matei ali na Ponte Caída.
E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença
pudessem manifestar suas máscaras características na
audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel
entregou a sordidez de alguns detalhes:
– Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na
panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na
panela de pressão! – completou, explodindo numa
gargalhada carnavalesca.
Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte
que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo.
Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor
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alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos
levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma
grande brincadeira.
Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a
única porta do casebre...
O que se seguiu foi uma prolongada sessão –
desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel,
medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do
bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e
golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns
alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo
apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais.
Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou
forças para o linchamento; talvez do próprio Satã.
Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o
corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na
rua de chão.
Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que
se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais
deveria passar pela rua principal do Palha Seca –
justamente o único caminho que ele tinha para ir
trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o
ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em
Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente
despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão
dura – mas saborosa, alguns depois o confessaram –
carne.
Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e
anos andando não dois, mas (agora na direção contrária)
coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula,
onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.
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Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em
seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma,
nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de
humor de seus antigos companheiros de jogatina...
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Capítulo 23
O Tempero Colombiano
* * * * * *
106
temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas
essa história todos conhecemos...
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Capítulo 24
Epílogo
110
A aventura de todo escritor, a aventura que é escrever,
começa sempre no mesmo lugar: Na leitura.
Quanto a mim, aprendi a ler praticamente na Bíblia. Ou
nela exercitei a prática da leitura. Não por instrução dos
pais, que eram católicos nominais assim não muito
preocupados com essas coisas, mas por conta própria, mix
de temor e curiosidade.
A história do Nazareno, que um dia me haveria de
resgatar, já se me apresentava maravilhosa e
perturbadora. Que estranho herói, que dava a outra face e
oferecia-se à morte! Sempre que podia, eu pegava uma
antiga edição popular do Novo Testamento, chamada de O
Mais Importante É o Amor, impressa em papel jornal e que
era distribuída gratuitamente em muitos lugares àquela
época. Me lembro de que lia do evangelho de Mateus até
o livro de Atos apenas, isso porque depois dos cinco livros
iniciais vinha o livro ou a carta de Romanos, que é pura e
densa teologia, seguido por outros na mesma linha,
elucubrações de que uma criança de primeiras letras não
entendia lhufas. Assim, após concluir a leitura dos “livros
de ação” (Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos), retomava
de Mateus.
Em termos escolares, quem me ensinou as primeiras
letras foi a tia Sônia, que por sinal foi professora de oito
em cada dez jardim-nazarenos, e ainda está na ativa, sendo
hoje minha amiga. Outro dia mesmo ela, desfazendo-se de
parte de sua biblioteca, lembrou-se generosamente de
mim e me confiou diversos tomos, de Shakespeare a
Monteiro Lobato.
111
Sua escola ficava aqui bem próximo de minha casa e,
após mudar de lugar diversas vezes, hoje retornou ao
mesmo ponto inicial. Depois dela, caí na tarrafa dum tal
Ursinho Branco – colégio escolhido por minha mãe pelo
fato simples de que seus muros eram altos demais para
permitir minha fuga. Sim, pois eu que hoje sou professor
era arredio aos ordenamentos e firulas da escola, que
sempre tolerei sem, dura confissão!, jamais amar. O tal
Ursinho era situado no já referido e malfadado Buraco
Quente.
Essa profissão de fé ou todo esse cerca-lourenço é para
falar que, da Bíblia, sempre me intrigou e maravilhou o
trecho final do evangelho de João (capítulo 21, versículo
25): “E ainda muitas outras coisas há que Jesus fez; as
quais, se fossem escritas uma por uma, creio que nem
ainda no mundo inteiro caberiam os livros que se
escrevessem.”
Assim, se todas as aventuras, causos, presepadas e
dramas acontecidos aqui, NUM ÚNICO BAIRRO E APENAS
EM MINHA GERAÇÃO, fossem relatados, este livretinho
seria inflado a vários tomos de densas narrativas. Mas
espero que estas poucas linhas, escritas primeiramente
para mim mesmo, possam dar alguma conta deste breve
trecho da grande meta-narrativa chamada Humanidade,
na qual cumprimos nossa missão, que é viver e buscar a
felicidade e o bem, e o Doador de ambos – com o máximo
de bom humor possível nesse processo.
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Sobre o autor
POESIA
• São Gonçalo de Todos os Santos (1999).
• Uma Abertura na Noite (2006).
• A Blindagem Azul (2007).
• CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012).
• Poemas da Guerra de Inverno (2012, 2014, 2021).
• Deus Amanhecer (2013).
• PULSÁTIL – Poemas canhestros & prosas ambidestras
(2014).
• GRÃNADAS (2015).
• Poemas de Amor em Trânsito (2018).
• Cartas & Retornos (2021).
CONTOS / CRÔNICAS
• O Pequeno Livro dos Mortos (2015).
• RODORISOS – Histórias hilariantes do dia-a-dia dos
Rodoviários (2017, 2021).
• Renato Cascão e Sammy Maluco – Uma dupla do
balacobaco (2021).
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Leia mais de meus textos em alguns de meus blogs:
www.marocidental.blogspot.com
www.azulcaudal.blogspot.com
www.opoemasemfim.blogspot.com
www.jornaldaki.com.br/blog/categories/sammis-reachers
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