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Javert Lacerda
Calidoscópio
Memórias de Javert Lacerda Santos - 1993
1ª edição
Brasília - DF
Edição: Javert Lacerda Santos Jr.
2012
2
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
por escrito do Editor
Conteúdo
Conteúdo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
3
4 CONTEÚDO
3 Bica de Água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
3.1 O nascimento de meus irmãos menores . . . . . . . . . . . . . . . 24
4 A ‘Trincheira’ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
4.1 O sítio do vovô que eu conheci. Meu avô, sua família, sua vida . 25
7 Os Tios Maternos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
7.1 O sítio do vovô denominado ‘Belo Horizonte’ (sua 2ª morada) . 64
7.2 A balsa (Barca) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
7.3 Uma grande enchente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
7.4 Bodas de ouro do Vovô (1933) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
7.5 ‘Cataguases Centenária’, 1977 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
8 Tiro de Guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
8.1 O Escotismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
8.2 Presidente Antônio Carlos de Andrade e Silva . . . . . . . . . . . 85
8.3 O Parque de diversões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
8.4 O Ginásio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
8.5 Meu colega ‘Pirila’ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
8.6 O Centro Espírita ‘Paz, Luz e Amor’ . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
8.7 Escotismo (ainda) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
8.8 Os vinte mil réis que roubei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
8.9 O Bazar Renê . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
8.10 Casamento do Sr Raul Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
8.11 Casamento do Sr Fonseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
8.12 O médium Benjamim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
8.13 Rogério Teixeira - o maestro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
8.14 A Revolução Constitucionalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
8.15 A crise do café . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
8.16 O Carnaval em Cataguases . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
8.17 As paródias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
8.18 Os irmãos Cunha (a estada dos primos em nossa casa) . . . . . . 101
8.19 Regresso dos primos a Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
E STE relato não partiu de uma idéia preconcebida. Foi fruto de con-
seqüências. Desde jovem venho tentando fazer a ‘árvore genealógica’
da família, mas os dados que tinha eram poucos e vagos.
... Anos se passaram, e um dia recebi do irmão Jocer um ensaio biográfico
do nosso bisavô JOÃO PEDRO DE SOUZA.
Li, e reli anos mais tarde esse trabalho e recentemente deu-me vontade
de ordenar os dados, colocando a descendência em seqüência: pais, filhos,
netos, bisnetos, tetranetos etc.
Mas fiz este trabalho em folhas soltas, de carta. Achei melhor refazer em
um caderno por ser mais fácil de guardar e ler. Esses dados estão no 3º vo-
lume.
No que eu terminei o registro, veiu-me a vontade de relatar a história de
minha vida.
Ato contínuo, no mesmo caderno fui ‘buscando’ os fatos, os casos que me
foram contados; e os fatos fluíam em meu pensamento com uma facilidade
impressionante.
Eu ia escrevendo e achando graça, e até mesmo dando risadas sozinho;
como se eu estivesse vendo tudo ali na minha frente.
Desse momento em diante não queria outra coisa mais do que escrever,
escrever, escrever.
Isto teve início em outubro de 1992.
Mas como os relatos foram surgindo de inopino, nem sempre em seqüên-
cia de datas cronológicas, achei melhor reescrever, desenvolvendo melhor as
narrativas e dando títulos, destacando os fatos mais em evidência.
Aqui estão relatados fatos desde o surgimento do cel. da Guarda Imperial
JOÃO PEDRO DE SOUZA, meu bisavô, até o ano do meu casamento, em 1950.
No 2º volume darei continuidade a esses relatos.
Brasília, DEZ-1993
JAVERT
7
8 CONTEÚDO
Pequeno relato do que vi, do que ouvi, do que vivi, e que ficou guardado em
minha memória; partindo do cidadão JOÃO PEDRO DE SOUZA, meu bisavô.
9
10 CAPÍTULO 1. BUSCANDO AS ORIGENS E REVENDO O PASSADO
tiveram dez filhos: RITA, FRANCISCA, AUGUSTA, ANA, JOÃO PEDRO, MA-
NOEL, ANTÔNIO, ARMINDA, ROZENDO e REZENDE.
TEODORA
JOÃO
AUGUSTA
PEDRO x
DE SOUZA LA-
DE SOUZA
CERDA
JOSÉ JOA-
RITA DE JOÃO PEDRO LEONOR
x QUIM DE LA- x
SOUZA DE SOUZA RI-
CERDA SAN-
LACERDA LACERDA BEIRO
TOS
JOÃO PEDRO
(JOTA)
x OLGA LACERDA
DE LA-
CERDA SANTOS
Destes filhos, também, sei pouco de seus destinos. Mas foi deste segundo
casamento que nasceram meus genitores.
Da primogênita RITA (1852), descende meu pai; e do quinto filho, JOÃO
PEDRO, descende minha mãe, visto que são primos de 1º.grau.
Vovó RITA casou-se com JOSÉ JOAQUIM DE LACERDA SANTOS e foram
residir no município de Cambuci - RJ. Tiveram onze filhos, que por lá se cria-
ram e viveram e morreram.
Meu pai era o sexto descendente, nascido em 1881 e por volta de 1893
desgarrou-se de' sua família e foi residir em Cataguases, inicialmente com $
seu tio Rosendo. Depois empregando-se na firma Henriques Felipe e Cia, e
freqüentava a casa de seu tio no sítio ‘Trincheira’, nos arredores da cidade,
onde veiu a conhecer sua prima Olga, com quem se casaria em 1910. Deste
casamento nasceriam nove filhos.
OLCER nasceu em 1911, lá na Trincheira, na casa do vovô (casado com
LEONOR RIBEIRO). Vovô JOÃO PEDRO DE SOUZA deve ter herdado de seus
ancestrais o sítio onde morava e onde eu os conheci nos primeiros anos de
minha vida. Quando os conheci, todos os seus quatorze filhos já haviam nas-
cido. Sendo minha mãe a primogênita.
Em 1911, já nascido
&o OLCER, papai muda-se para a cidade de Ubá, onde %
foi tentar estabelecer-se. Não foi feliz. Fecha a loja, paga os credores e volta
para Cataguases, agora com o segundo filho, JOSÉ, nascido em 1912.
12 CAPÍTULO 1. BUSCANDO AS ORIGENS E REVENDO O PASSADO
Figura 1.1: Leonor Ribeiro e João Pedro de Sousa Lacerda (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
Tudo faz crer que papai retorna à firma em que trabalhava. Mamãe conti-
nuava morando na casa paterna. Em 1913 nasce o JOCER e em 1915, o JOF-
FRE.
1.1. A CASINHA ONDE NASCI 13
Figura 1.2: A casa do Cambuci (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Mamãe contava que foi uma batalha dura e quase impossível de se vencer.
Mas Papai saiu em campo disposto a vencer. Descalço, de enxada na mão
começou a luta. Levaram mantimentos, sementes e boa vontade para vencer.
Acomodada a família, iniciaram a grande transformação, que viria mais tarde
aborrecer sua vida.
Plantou árvores frutíferas, fez uma horta, construiu um galinheiro, com-
prou uma vaca leiteira e limpo o terreno,começou o plantio.
Papai ia abrindo as covas com o enxadão e o Olcer vinha atrás com a cesta
de sementes, ou olhaduras de mandioca ou de cana, colocando nas covas, e o
José e Jocer iam tampando as covas com os pés...
14 CAPÍTULO 1. BUSCANDO AS ORIGENS E REVENDO O PASSADO
bro dos quatro buracos enormes que o ‘construtor’ Eduardo fez para fincar as
colunas de madeira que sustentariam a construção da casa.
Nesta casa ficamos até o ano de 1923. Nela nasceram a JULITA, em 12 de
janeiro de 1919, o RUBENS em 30 de junho de 1921 e o MAURÍCIO, em 22 de
setembro de 1922.
Papai retornou à Casa Felipe, e residia no sobrado da própria loja, onde
também residiam o Sr. Fonseca e Sr. Raul, solteiros e sócios da firma. Embora
a distância da cidade até o sítio fosse de poucos quilômetros, tinha que con-
siderar que não havia estrada a não ser carroçável. Muito acidentada,sinuosa
e dentro da mata.
A casinha era de pau-a-pique, mas o Papai mandou rebocar e caiar. Eram
dois quartos, uma sala com alpendre, uma cozinha. Eram peças de tamanho
regular. Um quarto era de Mamãe e do bebê, no outro quarto e na sala eram
acomodadas as crianças.
Capítulo 2
17
18 CAPÍTULO 2. NOSSA VIDA NA CASINHA DA TRINCHEIRA
nhia dos tios (o tio Celso, o caçula do vovô, tinha a idade do José) até uma
escola rural que funcionava na fazenda dos Louros.
Para dar ocupação aos filhos, ou mantê-los sob seus olhos e até mesmo
para ajudá-la nos afazeres da casa, Mamãe arranjava tarefas. Na cozinha, en-
quanto ela preparava os legumes, o Jocer ou o Joffre, trepados num banco,
mexiam as panelas, no fogão à lenha, sob sua orientação, como refogar o ar-
roz ou mexer uma farofa.
Imagino o trabalho e a preocupação de Mamãe em olhar e cuidar de tantas
crianças, cuidar da casa, da cozinha, do quintal etc.
A água que supria a casa vinha de uma bica colocada nos fundos da casa.
Até parecia uma creche... Do lado direito e nos fundos da casa havia um
morro, que era pasto do gado, mas que vovô mantinha limpo de mato. Uma
das brincadeiras que muito nos divertia era escorregar pelo morro abaixo sen-
tado numa folha seca de coqueiro. Dois ou treis sentados numa só folha de
coqueiro. Era uma delícia...
Aos domingos o Papai passava a tarde conosco, e ele era uma outra cri-
ança, tudo fazendo para nos alegrar. Atrás da casa, numa encosta de morro,
haviam muitas árvores altas. Papai amarrava uma corda lá no alto e uma tá-
boa na ponta de baixo. Estava feito o balanço, ou melhor, a gangorra. A gente
sentava na táboa e ele nos empurrava. Parecia que a gente ia até o céu. Como
era divertido. Cada vez que ele empurrava a gente ia mais alto ainda.
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Uma vez ele fez um papagaio de papel e aplumou com barbante. O pa-
pagaio foi subindo, foi subindo, até ficar bem pequenininho. Depois ele fez
um ‘telegrama’, enfiou no barbante e o vento foi empurrando até ele chegar
ao papagaio. Era o máximo. A gente ficava hipnotizado, olhando o papagaio
lá em cima.
Nesse tempo Papai fumava e ele juntava todas as carteiras vazias para
mim. O sucesso foi tanto que ele acabou arranjando com o vendedor de ci-
garros, carteiras ainda desarmadas, e com elas nós fazíamos casinhas, torres
etc. Algumas das marcas ainda recordo os nomes: ‘Petit Londrino’, ‘Liberté’,
‘Sônia’ etc.
A gente brincava com aquilo que o meio oferecia. Com a casca do melão
e da melancia, fazíamos o carro de bois; os bois eram feitos com sabugo de
milho. Os melõezinhos, também eram os bois. Com a taquara aprendemos a
fazer viola de treis cordas - e dava som. Com o talo da folha de mamoeiro e
com bambu fino, fazíamos flauta. O sabugo também servia para outra coisa...
Com o mamão verde a gente fazia caveira.
Papai trazia muitas coisas da loja, que eram jogadas fora. Os rolos de pa-
pel de embrulho quando terminavam, deixavam dois carretéis, de calço; Com
eles Papai fazia bibloquê para nós. O barbante vinha num carretel grande.
Com ele fazíamos as rodas de carrinho. Papai era um mágico aos nossos olhos.
Ele fazia tanta coisa para nos agradar. Era uma festa a sua presença.
Mamãe ficava muito feliz com isto, pois ficava temporariamente aliviada
da carga. Também pudera, nove crianças para cuidar...
Papai era um bom marceneiro. Muitas peças de móveis da casa eram con-
feccionadas por ele. Também, como não podia faltar, ele fez um carrinho para
nós. Além de nos divertirmos com ele, também era útil para transportar coi-
sas. Ainda me recordo quando a casa estava sendo construída, eu ajudava o
Sr. Eduardo, carregando terra...
20 CAPÍTULO 2. NOSSA VIDA NA CASINHA DA TRINCHEIRA
Figura 2.2: Olga de Souza Lacerda (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
21
Figura 2.3: Jota Lacerda (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Capítulo 3
Bica de Água
23
24 CAPÍTULO 3. BICA DE ÁGUA
O padeiro vinha da cidade com dois grandes sacos cheios de pães para
vender. Mamãe comprava pães e pagava com ovos de galinha. Coitado do
padeiro, trazia pães e voltava com a cesta cheia de ovos. Isto porque era tempo
de vacas gordas...
Mamãe colocava os pães numa sacola de pano e pendurava atrás da porta
da cozinha, e nós todos, os pequeninos, ficávamos debaixo da sacola hau-
rindo o aroma gostoso dos pães.
Naquele tempo o pão era feito com farinha de trigo pura (importada).
Mamãe fazia bolos de fubá, muito gostosos, mas o pão de trigo era outro
paladar.
A ‘Trincheira’
O SÍTIO nessa época ainda era uma mata pouco explorada. O caminho
que adentrava o sítio, vindo da fazenda dos Louros, era uma estrada
para cavaleiros, gado e carro de bois, feita com enxada, pois ainda não exis-
tiam máquinas.
A casa, ou melhor o casarão, fazia jus às descrições das construções de
seus antepassados. Não sei se vovô a construiu ou herdou. O fato é que co-
nheci a casa. Era bem grande. Como as construções da época, sempre apro-
veitando a inclinação do terreno, de forma que a frente da casa tinha os altos e
baixo; e os fundos ao rés do chão. Tinha um alpendre com escada, deviam ser
cinco ou seis quartos, sala de entrada, corredor, sala de refeições, uma cozi-
nha típica de fazenda. Grande, com enorme fogão à lenha. Depois da cozinha
uma varanda com o forno de barro. Era um forno como das padarias anti-
gas, onde as minhas tias faziam suas quitandas, seus bolos, e onde assavam
as carnes.
As escadas da casa davam para o curral onde o gado permanecia às noi-
tes, para juntar adubo. Do outro lado estava o paiol e depósito dos arreios,
descascador de milho e a coberta do carro de bois. Um pouco acima tinha o
terreiro de secar o café e a tulha onde guardava o café. Uma ala da casa dava
para um terreno inclinado que ia até a curva do ribeirão, onde foi construído
o moinho de fubá. Nesse terreno estava o pomar. O cafezal era no morro.
Debaixo do paiol ficava o chiqueiro e a ceva.
O sítio era pequeno mas tinha tudo para se suprir. Ficava a poucos quilô-
metros da cidade, a cujo município pertencia, e creio que era herança de seus
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26 CAPÍTULO 4. A ‘TRINCHEIRA’
Figura 4.1: Retrato da ‘Trincheira’ (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
O sítio da Trincheira deveria ser uma herança de família, onde meus avós
JOÃO PEDRO DE SOUZA LACERDA e LEONOR RIBEIRO LACERDA, criaram
toda a sua numerosa prole, e vivia como um pequeno, mas bem sucedido
sitiante, até que a grande crise do café empobreceu os plantadores de café, e
o Vovô.
Os filhos em número de quatorze, ali nasceram, se criaram e por ali mesmo
foram ficando. Instrução que é bom, que eu saiba, poucos tiveram. Os ho-
mens cuidavam da lavoura, do rebanho de gado, dos porcos, da ordenha, do
4.1. O SÍTIO DO VOVÔ QUE EU CONHECI. MEU AVÔ, SUA FAMÍLIA, SUA
VIDA 27
31
32 CAPÍTULO 5. UMA ARANHA ENGENHOSA
homem que ficava em baixo ficava coberto da serragem que saía da madeira.
Era réco réco horas e horas.
O sítio era pequeno mas produzia muita coisa. A rapadura era trocada
pela cana, lá naquele Engenho que me referí atrás. Mas eu ainda vi os cafezais
no morro, já secos e abandonados. A crise do café foi um desastre, princi-
palmente para os pequenos sitiantes. Também minha última lembrança do
terreiro de café e da tulha, onde em anos atrás o movimento do café era a
riqueza dos homens do campo, acabou.
Muitas passagens e acontecimentos se perderam da memória. Mas eu me
recordo de uma coisa. A sala de visitas da fazenda era um cômodo pouco
usado, pois o trânsito era todo pela varanda dos fundos. Criança nem entrava
naquele recinto. Uma vês eu fui à sala e tinha um copo de água na janela. Não
sei como, eu esbarrei e ele caiu lá fora. Corri para apanhá-lo e tive uma de-
cepção. O copo era de cristal e eu só encontrei pedacinhos espalhados sobre
a pedra, onde ele caiu.
A saída do vovô da Trincheira se deu pouco depois da crise econômica (do
café). Ele tinha uma carga, ou melhor, um encargo muito grande, com uma
família numerosa e poucas atividades para tantos braços e muitas bocas para
alimentar. Como eu era muito pequeno e não era consultado, os fatos fica-
ram sem resposta. Mas se papai saiu do sítio na mesma época que o vovô se
mudou, então eu creio mesmo que foi a crise do café que motivou a mudança.
Assim, com o pouco que lhe restou ou talvez um empréstimo no banco,
ele comprou um outro sítio, as margens do rio Pomba, bem distante de Cata-
guases, e que deu o nome de ‘Belo Horizonte’.
Hoje, 70 anos depois desse ocorrido, quando se passa na nova estrada as-
faltada que liga Cataguases a Leopoldina, de onde se pode descortinar de um
lance de olhos, visto que não há mais as matas que cobriam toda aquela re-
gião, todo aquele sítio que outrora existia na exuberante Trincheira, não cabe
mais sequer uma casa de colono, tal o estado a que ficou reduzido, abando-
nado pelo homem, que destruiu toda a vegetação, auxiliado pela erosão, pelas
chuvas, pelo tempo que não volta mais.
Nem aquele ribeirão que supria de água os sitiantes, que fazia girar a roda
de moinho de fubá existe mais.
Assim é a vida. Ficaram as lembranças, mas mesmo estas estão findando
com o desaparecimento de seus personagens. O destino é implacável. A vida
passa. A renovação é uma constante.
‘Águas passadas não tocam moinhos’
Aqui termina a primeira fase de minha vida, toda ela passada no campo.
Papai alugou e depois comprou uma casa na cidade. Na rua ‘do Pomba’, nú-
mero 128.
Capítulo 6
A C asa que passamos a ocupar na cidade ficava na rua Major Vieira, 128.
Era originalmente um casarão bem antigo, ainda de pau-a-pique, que
foi posteriormente dividido ao meio, e que papai alugou e depois comprou do
Sr. João Carroceiro; e que seria nossa residência até a debandada de cada um,
no decorrer dos anos.
Comparada com a casinha que deixamos lá na Trincheira, era um palácio
(veja o desenho abaixo).
A parede divisória ainda conservava os portais e uma janela que, obvia-
mente, estavam emparedadas, e que serviam de comunicação interna. As pa-
redes estavam mal conservadas e tinham até buracos. No decorrer do tempo
papai foi consertando, melhorando sucessivamente.
A casa tinha uma saleta de espera e na entrada um portãozinho de ferro.
A porta depois de fechada, tinha uma travessa de ferro que dava uma se-
gurança total. (Havia) uma sala de visitas com duas portas para um quarto.
Era o quarto da sala. Ali foram acomodados o Olcer, o José, o Jocer e o Joffre;
um pequeno ‘hall’ onde ficava um cabide grande, e a seguir a sala de jantar.
Da sala tinha uma porta para um pequeno quarto onde a Julita se aco-
modava, e mais para dentro um quarto maior, de nossos pais. Outra porta
na sala, dava para outro quarto, onde se acomodavam o Joubert, o Rubens, o
Maurício e eu.
Havia uma porta e uma janela para o jardim. Adentrando a casa tinha um
corredor, com uma porta para o quarto de hóspedes e dava na copa.
Nesta saleta tinha duas portas: Uma para um quartinho da empregada
e outra para a despensa; seguindo dava na cozinha que dava acesso ao ba-
nheiro.
Após a cozinha tinha a área do tanque e uma varanda.
No jardim havia uma árvore grande que dava uma flor grande e perfu-
33
34 CAPÍTULO 6. NOSSA VIDA NOVA NA CIDADE
Figura 6.1: Divisão da casa da Rua Major Vieira, 128 (desenho de Javert Lacerda
Santos)
35
Figura 6.2: Só uma imagem, não existe mais... (foto de Javert Jr.)
mosa. Era a magnólia. Dava flores todos os anos. Mais tarde Papai plantou
no tronco dessa árvore, diversas mudas de catléas (parasitas). Papai ia buscar
água no rio Pomba, que passava no fundo do quintal, para molhar as parasi-
tas.
Havia também no jardim um pé de jaboticabas, que carregava até nas raí-
zes e dava frutos duas vezes por ano.
Depois da casa o quintal era um barranco até o rio. Mas ali no barranco
havia quatro pés de jaboticabas gigantes, laranjeiras, mangueiras e dois pés
de abio.
Do lado direito da casa, separado por um beco de acesso à rua, morava a
Dr. Cardoso, médico já idoso.
Do lado esquerdo, a meia casa geminada com a nossa, morava um enge-
nheiro inglês, que trabalhava na Estrada de Ferro Leopoldina (inglesa). Eu me
lembro que ele fumava cachimbo e tinha uma tartaruga no quintal, que volta
e meia passava para nosso quintal.
Defronte a casa, morava o Sr. Adolfo Teixeira. Aos poucos fomos conhe-
cendo outros vizinhos e entrosando com as outras crianças. E como tinha
crianças naquela rua... Já imaginou o impacto que tivemos, saindo de uma
36 CAPÍTULO 6. NOSSA VIDA NOVA NA CIDADE
Logo que nos acomodamos Papai nos matriculou no Grupo Escolar Cel.
Vieira, que ficava na avenida Astolfo Dutra.
Naquele tempo, em que a moeda era estável e o foi por muitos anos, o
poder aquisitivo era constante. A moeda era o mil réis. A menor fração era o
100 réis, ou 1 tostão. Com um tostão comprava-se um pão. Na escola, na hora
do recreio distribuíam pão às crianças. Para as escolas, as padarias faziam o
mini pão, mas vendiam dois pãezinhos por um tostão.
A nota do mil réis mais alta era 1.000$000 (um conto de réis). Ninguém
possuía essa nota. Era só para transação bancária. O dinheiro tinha valor
constante.
Uma moeda de 1$000 (um mil réis) pagava a entrada do cinema. Um ca-
fezinho custava $100 (cem réis). Com $400 se comprava 5 pães.
O dinheiro era valorizado. Ninguém tinha muito dinheiro. Naquele tempo,
os donos de padaria passavam a vida toda trabalhando para viver. Nenhum
dono de padaria ficava rico. Assim também os donos de farmácia, de venda
(venda é sinônimo de mercado). Conheci donos de farmácia, padarias, venda,
lojas, cafés, que trabalharam anos e anos a fio e não se via nenhuma ostenta-
ção de riqueza. Era assim a vida quando chegamos à cidade.
O Vovô já estava instalado lá no sítio ‘Belo Horizonte’ e constantemente ele
vinha à cidade a cavalo, e o animal ficava no beco da nossa casa. Também os
tios Joel, Ito, Sizenando, tio Nico, volta e meia vinham à cidade e deixavam
os animais lá em casa. Depois eles arranjaram um pasto onde os animais
ficavam.
Vovô era Juiz de Paz. Por isto ele vinha seguidamente à cidade. eu me
lembro do livro de casamentos que ele rubricava todas as folhas; ele ficava
horas lá em casa, na sala, rubricando folha por folha. De tanto rubricar ele
perdia o significado do que grafava, e então perguntava para a Mamãe: ‘Olga,
como é mesmo o meu nome?’... Era eu quem levava o livro até o fórum para
ele. Era um livro grande e pesado.
Também lá do sítio o Vovô mandava o carro de bois à cidade, cheio de
laranjas, rapadura, doces diversos, frangos, frutas, enfim, tudo que excedia ao
suprimento da casa, para ser vendido.
As laranjas eram vendidas aos centos, os doces de goiaba, mamão e outras
frutas vinham em formato de rapadura, quero dizer, os doces eram feitos nas
formas de rapadura.
Eu, o Joubert e o Joffre, saíamos para a rua a vender tudo que vinha do sítio.
Vender os doces, as frutas, as laranjas, não trazia maiores conseqüências. É
38 CAPÍTULO 6. NOSSA VIDA NOVA NA CIDADE
bem verdade que às vezes eu voltava sem nada vender. No outro dia, depois
da escola, lá ia eu e os manos para a rua. O Joffre era mais arredio para esse
serviço. Era eu e o Joubert que arcávamos com essas tarefas. Mais tarde o
Rubens também entrou na dança.
Mas chato mesmo era vender frangos. Treis a quatro frangos em cada
braço, pendurados, lá íamos de casa em casa oferecendo. De vez em quando
eles batiam asas (e) espirrava cocô. Era uma nojeira.
Naquele tempo era difícil vender as coisas. Os fregueses espiculavam muito,
apalpavam as mercadorias e comprar mesmo, nada.
A cidade era um universo imenso para as nossas peraltices. O Olcer fazia
‘pés-de-moleque’ e eu ia pra rua vender. À noite eu ia vender na porta do
cinema. Eu aprendi a fazer ‘suspiros’ e vendia-os na rua. Nosso fogão era
de ferro, a lenha, e tinha um ótimo forno. Num instante os suspiros ficavam
prontos.
Mais tarde Papai colocou uma caixa d’água, que era aquecida pela ‘ser-
pentina’ que foi colocada no fogão. Assim, passamos a desfrutar de banho
morno. No fogão tinha uma caldeira com torneira, onde se tirava água quente
para usos diversos.
No quintal nós construímos uma barra fixa para exercícios físicos, e nos
tornamos hábeis atletas. Uma corda e uma vara de bambu amarradas numa
mangueira, era bastante para bancar o ‘Tarzan’, subindo e descendo na corda
e no bambu, sem apoio dos pés. O Joffre era o mais musculoso. Subia até o
alto só com os braços e rapidamente. A barra fixa era a mais preferida. Ali nos
reuníamos como uma disputa. Às vezes até o Papai e a Mamãe assistiam as
nossas proezas, agilidade e destreza. Na barra eu era melhor. Exercitei tanto
que até já podia trabalhar num circo...
Por falar em circo, até que nós os manos e outros garotos da vizinhança
brincávamos de circo. Papai arranjou uns sacos de juta e fizemos um grande
tapete e ali era o nosso picadeiro. As jaboticabeiras do barranco, no quintal,
eram árvores grandes, com galhos fortes e compridos, entrelaçando uma nas
outras, de forma que destramente, passávamos de uma para as outras como
macacos... Usando cordas grossas, amarradas lá no alto, fazíamos balanços de
arrepiar os cabelos. Também serviam para passar de uma para outra árvore.
Todos os anos estas jabuticabeiras davam frutos em abundância e às vezes
carregavam tanto e até nas raízes. Na colheita, Papai esticava uns sacos de
ninhagem na vertical e debaixo outro saco para recolher os frutos. A gente ia
colhendo as jabuticabas e jogava de encontro ao lençol esticado e as frutas
deslizavam até o saco colhedor, até encher. Aí saíamos à rua para vendê-las
aos litros.
Como a produção era grande e após a primeira colheita para consumo in-
terno e venda, Papai chamava as crianças da vizinhança para chupar as frutas.
39
Era aquela alegria. Mas Papai ficava presente para evitar estragar.
Havia também na beira do rio, dois pés de manga espada; eles carregavam
que dava gosto. Muitas mangas caíam no quintal do vizinho ou no rio. É a
mais gostosa das mangas.
Havia também dois pés de abio e carregavam bem. O abio é uma fruta
gostosa mas deixa uma nódoa na boca. Só sai com gordura. Tinha um pé de
laranja, mas dava poucos frutos. As bananeiras davam cacho todos os anos.
O rio Pomba todos os anos transbordava e inundava o fundo do quintal,
onde estavam as fruteiras.
Ali na margem, quase dentro d’água tinha uma goiabeira, mas sem pos-
sibilidade de colher as goiabas. Ali, debaixo dela, sempre jogávamos comida
para os peixes e às vezes pegávamos algum para o almoço.
O Olcer, o José e o Jocer tinham um barco que eles usavam para atravessar
o rio e ir ao Clube do Remo, na outra margem, em frente ao nosso quintal;
e também para passear. O rio era largo e caudaloso, mas devido às enchen-
40 CAPÍTULO 6. NOSSA VIDA NOVA NA CIDADE
tes e às erosões, ele ficava raso ou fundo. Normalmente era fundo e cauda-
loso, principalmente no meio do rio. Mas sempre dava para nadar. A princí-
pio a gente nadava na margem, beirando os quintais dos vizinhos, sempre rio
acima, contra a correnteza. Assim íamos exercitando e adquirindo confiança.
Mais acima passava a ponte metálica com seus dois pares de tubulões de
sustentação. Com o tempo e coragem a gente nadava até a ponte e aventu-
rava alcançar os primeiros tubulões, depois desses tubulões nadávamos até
a outra margem, mas levado pela correnteza até mais em baixo. Com o pas-
sar do tempo e o adestramento, a gente ia progredindo, ia crescendo, adqui-
ria mais força, mais coragem; até que atravessar o rio já não era tão difícil.
Aprendemos a nadar contra a correnteza e de lado, de forma que a gente atra-
vessava o rio quase que em linha reta. Alguns garotos, meus irmãos e eu,
começamos a pular da ponte e isto passou a ser rotina.
Na margem oposta uns rapazes pioneiros, entre eles Xico Mauro, Péter-
son, o Olcer, o José, Armando e Edson, construíram uma balsa e um barracão.
Era o início do que é hoje o clube de remos, onde os rapazes começaram o
41
Figura 6.6: O Paço Municipal (Prefeitura) (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
1
aqui há um lapso, pois na verdade a praça a que se refere agora é a Rui Barbosa (nota do
Jr.)
45
de seus filhos também eram músicos. Nesse tempo o cinema era mudo e o
Sr.Rogério sua esposa e outros músicos, animavam as sessões de cinema.
Em frente ao cinema, na praça, havia duas palmeiras bem altas. Também
havia na praça diversas árvores muito altas e que davam sombra nas tardes de
sol quente.
O cine-teatro Recreio era a apoteose das crianças nos sábados. Os filmes
eram preto e branco e mudo, mas o que entusiasmava a garotada e até mesmo
os adultos eram os seriados. Todos os sábados passavam um filme e depois
um capítulo da série. Era a coqueluche da garotada. Eram filmes de ‘Tom Mix’,
‘Rolô’, ‘Buck Jones’ e etc. A gente saía do cinema e ficava o resto da semana
comentando o episódio, e torcendo para chegar o sábado seguinte. O cinema
era a principal diversão naquele tempo.
Uma vez passou um filme de longa metragem sobre a 1ª guerra mundial.
O filme era: ‘Um dia sem novidade no front’2 . Iam passar duas sessões. O inte-
rior do cinema tinha a platéia, os camarotes e mais em cima a geral (torrinha).
(Uma vez,) ao término da 1ª sessão, todo mundo saiu por uma passagem la-
teral, pois a entrada estava apinhada de gente. Aconteceu que uns rapazes
ficaram escondidos na geral, para asistir a 2ª sessão (sem pagar). O prepo-
tente Rubens Cunha, filho do dono, pôs essas pessoas para fora, a tapas...
O prédio era de construção antiga, e feito numa época em que a cidade
era pouco habitada. No sobrado funcionava o clube social, onde a elite dan-
2
Oscar de 1930, baseado no livro de Erich Maria Remarque
46 CAPÍTULO 6. NOSSA VIDA NOVA NA CIDADE
Figura 6.9: Frente do Teatro Recreio Cataguasense (foto do Arquivo Joaquim Branco)
çava. Por ocasião do carnaval, o excesso de gente a dançar e pular, fazia o piso
balançar. Por isso mais tarde derrubaram o prédio e construíram outro, de
concreto armado.
O Bar Elite se chamava Bar Londres. Funcionava num prédio da C.F.L.C.L.
3
Mais tarde a Cia. pediu o salão e assim encerrou na cidade o ponto chic de
encontro das pessoas.
Em torno da praça haviam casas residenciais. Lá moravam o Sr. Fonseca,
a D. Iá Rocha, os Knaips, e outros.
Qualquer pessoa que chegasse à cidade ia logo passear na Praça Rui Bar-
bosa.
Era alí que o povo se confraternizava. Era ali naquela praça que se dava
3
Cia. Força e Luz Cataguazes-Leopoldina
47
nida. Ela moía a cana e fazia açúcar cristal e açúcar preto. Na época da moa-
gem era um tal de entrar carroções e mais carroções, caminhões, carroças, en-
fim, todo meio de transporte servia. Eles vinham de todos os lados da cidade,
mas o pesado vinha das plantações da própria usina, do outro lado do rio.
Os carroções puxados por animais vinham de longe, atravessavam a ponte,
passavam pela praça Santa Rita, pela avenida, até a usina. A cidade ficava
toda suja de folhas de cana. Aquilo era dia e noite até acabar as canas (sa-
fra). A agência Chevrolet, quando recebia os chassis para caminhão (o Brasil
importava os chassis e a carroceria era feita no local), os revendedores pu-
nham umas táboas no chassi, enchiam o caminhão de garotos e percorriam a
cidade, cantando a propaganda.
O trem expresso chegava às 9:00 hs e só parava o tempo de carregar e des-
carregar, apanhar outro vagão de carga ou de passageiros. Os passageiros ti-
nham 20 minutos para almoçar. O Hotel Villas ficava em frente a estação. Se
o passageiro fosse esperto, dispensava a sopa quente e pedia logo as iguarias.
Se não, pagava só para soprar a sopa...
Figura 6.12: Pça. da Estação - Hotel Villas (foto de Marcus B.L. Santos)
O prédio era uma construção antiga e trabalhada. Ele era grande na frente,
voltada para a avenida, um pavilhão tinha uma sala de aula em cada extre-
midade e um salão nobre no centro, do lado esquerdo e direito, quatro salas
cada um, e nos fundos uma sala de estar das professoras e serventes e sani-
tário masculino e feminino. De forma que ficava no centro um grande pátio,
onde os alunos entravam em forma antes de seguirem para as salas de aula.
No centro do pátio tinha um mastro onde era hasteada a bandeira nacio-
nal. Ali no pátio, antes das aulas, as crianças com as professoras e a diretora,
cantavam o hino Nacional, o hino à Bandeira à Independência e muitos ou-
tros hinos. inha até hinário. Era ali no pátio o recreio e era ali as aulas de
ginástica.
4
Cardiff
51
Figura 6.14: Grupo Escolar Cel. Vieira (foto de Marcus B.L. Santos)
terminou bem.
De vez em quando D. Clélia promovia um baile, lá no salão nobre. Eu até
já estava dançando e guardo boas recordações das garotas. Eram quatro horas
de aula, incluindo os cantos pátrios. A gente aprendia a cantar todos os hinos;
da Independência, da Proclamação da República, o hino Nacional e o hino à
Bandeira.
E ainda se cantava uma série de hinos, cujos nomes não recordo bem; tra-
balhos manuais, como já falei atrás; aulas de ginástica, e aulas de moral e
cívica.
Como sempre e em todo lugar, os alunos chegavam bem antes do início
das aulas. Uns iam formar uma ‘pelada’, e até meninas entravam em campo,
outro grupo ia sentar nos bancos da avenida e outros iam correr dentro do
canal ‘lava-pés’.
53
Os Tios Maternos
1
Estrada de Ferro Leopoldina
55
56 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Figura 7.1: O tio Cadmo, irmão da vovó Olga (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
jardim, mesmo assim sujei a calça. E agora? Fui até o riacho, lavei a roupa sem
sabão, esperei que secasse, voltei em casa e despedi-me. Uma vergonha!...
Outra vez lá fui com o Joubert e a gente tomava banho num açude onde
diziam que tinha jacaré. O tio Cadmo zangou-se conosco, por essa impru-
dência. À noite nós reuníamos na cozinha, em volta das barricas de milho e
enquanto conversávamos, íamos debulhando as espigas de milho. Uma vez,
anos mais tarde, eu já tinha sido licenciado do serviço militar, e fui visitar o
tio Cadmo e os primos.
Estava lá, passeando, o tio Levi.
Depois do almoço nos despedimos e fomos tomar o ‘misto’ - trem car-
gueiro, que passava a poucos quilômetros do sitio. Como já estávamos um
pouco em cima da hora do trem, tio Levi me propôs: ‘Como você não está
treinado a andar, vai na frente e dê o máximo que puder. Eu acompanharei’.
Quando chegamos à estação tio Levi estava com a língua de fora...
Tio Levi casou-se com uma parenta e foi morar nas terras do sogro, lá no
Inhapim, perto de Caratinga. Por lá ele criou oito filhos e por lá ele morreu.
Lá eu nunca fui. Meu irmão Jocer ia sempre visitar esses parentes e acabou
casando-se com uma sobrinha da tia Alaíde, (casada com tio Levi), de nome
Juraci.
57
Figura 7.2: O que restou da ponte arrastada pela enchente (foto do acervo pessoal
de Javert Lacerda Santos)
Figura 7.3: O tio Nhozinho (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
veio a falecer.
O feto extraído não teve as atenções do médico ou dos presentes, que ti-
nham suas atenções para a mãe.
Depois do fato consumado, tia Nôla e outras pessoas notaram que o feto
estava com vida e trataram de salvá-lo.
Todos ficaram admirados como podia um ser tão miúdo, tão pequenino,
sobreviver quando ali só estavam preocupados em salvar a mulher.
O fato é que, consumada a morte da mãe, as atenções se voltaram para o
que restou. Assim sobreviveu o último dos irmãos.
Para alimentar o garotinho, diversas mulheres deram seu leite e a tia Nôla,
solteira, tomou a seus cuidados aquela criança.
Papai nos contou que o primeiro banho dessa criança foi num prato fundo,
59
Figura 7.4: Tia Nola (Leonor) (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
num prato de sopa e que a aliança dele entrava pelo bracinho até o ombro.
Pouco tempo depois do tio ficar viúvo, eles alugaram uma casinha na rua
do Pomba, perto da nossa casa, e para lá se mudaram.
Seus dois filhos Helge e Levi foram trabalhar no Rio de Janeiro e a Alva
empregou-se como telefonista. O caçulinha, que recebeu o nome de José
Ubaldino, passou a ser criado sob os cuidados e a guarda da tia Nôla.
Com a criação e a educação no ambiente espírita, e sendo sua família
muito católica, houve rejeição dos irmãos.
Ele cresceu, se empregou e respeitou sua tia Leonor como segunda mãe.
Mais tarde ele casou-se e se aposentou. Assistia a tia Nôla, que com o passar
do tempo ficou cega e surda. Ele cuidou dela até que Deus a levou. Ele conti-
nua residindo em Cataguases e mantém constante ligação conosco e também
com seus irmãos.
Mas voltando aos passeios que fazíamos à casa do tio Nhôzinho e à fa-
zenda do primo Chiquinho Xavier. A água que tocava a roda d’água do en-
genho de cana, corria para um açude, onde nós brincávamos. Era o Helge, o
Levi, o Hugo, o Joubert, eu e outro irmão que participávamos dessa brinca-
deira.
Consistia em mergulhar no açude levando um pneu e escondê-lo no fundo.
O açude não era transparente. Não se via o fundo.
Cada um, de cada vez, tinha que encontrar o pneu, num mergulho só. Esta
60 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Figura 7.5: Tia Maria e Tia Nola (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Figura 7.6: José Ubaldino (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
ainda longe da casa. De repente deu um clarão e uma descarga elétrica que
me fez estremecer. Ao mesmo tempo ali perto de onde eu estava, mas lá em
baixo na grota, um barulho de árvore caindo. Cheguei em casa ensopado.
Deram-me roupa para trocar, um café quente e fui dormir. No dia seguinte,
tudo havia voltado ao normal. De regresso, vi uma enorme árvore rachada de
cima em baixo...
Tia Maria casou-se com o João Webster e foram morar em Belo Horizonte,
a capital mineira, onde ficou viúva com um casal de filhos. Voltou para Ca-
taguases onde criou os filhos até ver seu bisneto. Tia Maria conta que viu o
Cometa Haley passar. Viveu até 90 anos. Apagou como um passarinho.
Tio Lili(Lisses) casou-se com uma sobrinha da vovó, de nome Dalila. Tive-
ram seis filhos. Ele morou lá no sítio do vovô muitos anos. Depois mudou-se
para a cidade. Mais tarde, tendo falecido tia Dalila, mudou-se para São Paulo
e eu perdi o contato com eles.
Tio Sizenando (Nanando) casou-se lá em Cambuci, com uma irmã de Pa-
pai, de nome Elpídia, e por lá ficou alguns anos, voltando para o sítio do vovô.
62 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Figura 7.7: Tio Lili e família (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
se com uma filha de alemães, chamada Gladys. Tiveram treis filhos. Ele fale-
ceu lá.
Figura 7.8: Tio Celso (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Tia Leonor (Nôla) e Tio Ito, mudaram para a nossa casa, onde viveram
muitos anos, mesmo depois da morte de meus pais. Com a morte da tia Nôla,
desocupamos a velha casa de nossos pais e internamos o Ito no asilo, onde
faleceu.
Tio Sadi também mudou-se para nossa casa, trabalhou no comércio e so-
freu muito de asma, até procurar recursos de alívio à dor, que não suportando,
mesmo com morfina, se matou.
64 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Figura 7.9: Casa do Vovô no ‘Belo Horizonte’ (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
66 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Figura 7.10: Tio Sizenando (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Figura 7.11: Olga, Nhozinho, Amazilis e Sizenando; Ito, Leonor, Cadmo, Lysses,
Levy, Sadi, Maria e Joel; Celso e Lélia de Souza Lacerda (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
\ [
bater nas ramas. Bater sem parar. Depois de surrar bem, reviravam as ramas
e tome varas. Finda essa função, pegam as ramas, sacode bem e faz outro
monte mais afastado. Aí colhem todo o feijão debulhado a varadas. Batem
novamente no monte para cair os últimos grãos. A rama restante fica alguns
dias lá no terreiro. E é nesse monte de rama de feijão que a gente brincava.
Ia furando túnel de um lado e de outro e abria um sabão no meio. Só que a
gente saía dali com o corpo coçando.
O arroz sofria o mesmo sistema de debulho. Era batendo e batendo forte,
com varas longas e finas. O arroz ao contrário do feijão não era só debulhado.
Precisava ser descascado. E isto era feito no pilão. Só que mais tarde o Joel
levava o arroz para ser descascado na máquina, lá na cidade, onde vendia o
excesso.
As laranjas davam para encher o carro de bois e eram levadas lá para a
nossa casa. Vendíamos aos centos.
Muitos doces, também eram levados a nossa casa para serem vendidos.
Nós dávamos um duro para vender tudo aquilo. E era o ano todo e todos os
anos. Mas como eu disse, detestava era vender frangos.
Lá no sítio havia muita distração, muita ocupação durante o dia, mas à
noite pouco tinha que fazer. Era a hora que não deixava saudade. Aquela
escuridão, lamparina pra cá, lampião pra lá. Não, não deixou saudades!
De noite era um tal de lavar os pés para dormir. Era muita gente. Quase to-
dos, como as crianças, andávamos descalços. Os banhos eram lá no rio. Tinha
um lugar mais raso onde se podia tomar banho e nadar, sem perigo. Eu ainda
não sabia nadar e o tio Celso me levou para lugar que não dava pé. Tio Ito
quando viu a imprudência dele, quis bater nele com um bambu. Celso para
se proteger me largou e eu fui para o fundo. Sorte é que agarrei nas pernas
dele e subi à tona. Eram assim os banhos. Uma farra...
Na sala tinha um gramofone e muitos discos. Os discos eram grandes e
pesados. Eram feitos com cêra de carnaúba. A maior parte dos discos eram
importados e eles eram menores e mais leves. Meus tios tinham bom gosto.
As músicas eram eruditas: ‘Tosca’, ‘La Traviata’. Os cantores eram Caruzo, Da-
niel Lara, Tito Schipa, etc. Tinham também discos de paródia, cantores di-
versos. Para cada disco tinha que dar corda no gramofone e para cada disco
uma agulha nova. A maioria dos discos eram importados e o rótulo era ver-
melho. No Rio de Janeiro a Casa Edson foi a pioneira na fabricação de discos.
As gravações começavam assim: ‘disco da Casa Edson, Rio de Janeiro’. Tará
tantan... Tio Nanando dançava muito bem. Deve ter sido um ‘pé de valsa’ exí-
mio no meio das moças. Ele ensinou-me a dançar o xote, o ritmo quente do
seu tempo de jovem.
As refeições, de manhã era: café com leite, queijo, broa de fubá, mandioca,
etc. O almoço às 10 horas era muito variado: legume, raízes, inhame, mandi-
70 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
oca, beterraba, chuchu, abóbora, arroz, feijão preto, couve, taioba, tomate,
angu, etc, carne de porco. A sobremesa era: banana, laranja, mixirica, ma-
mão, abacate, melão, manga, etc. Eram as frutas da época. jantar era às cinco
horas. Às 19:00 horas Vovô tomava um prato de leite com inhame. Para a cri-
ançada, tia Nôla fazia uma mistura de leite, café, cereais, que a gente batizava
de ‘lavagem’, bolo, angu-doce. Depois era o lava-pés e calçar os chinelos.
De manhã a gente ia lá para o paiol rodar o debulhador de milho e ti-
nha também uma máquina de cortar capim para o gado. Tinha um chiqueiro
grande onde os porcos fuçavam sem parar em busca do que comer. Para eles
não faltava alimento.
Tudo que sobrava da cozinha ia para eles. Também tinha abóbora, frutas
caídas, mandioca e até bananeira que já deu cacho. Tinha também uma ceva
para engorda dos porcos castrados. Certa vez houve lá na ceva um fato inusi-
tado. Primeiro eles, um dia, encontraram os capados soltos. Juntaram e pren-
deram. No dia seguinte estavam soltos e a porta do cercado aberta. Ninguém
foi, ninguém viu nada. Tornaram a prender e desta vez amararam a porta.
Dias depois, novamente, todos soltos. O tio Álvaro, marido da tia Amazile, um
bom marceneiro, fez uma fechadura de madeira, de segurança, de segredo,
nada adiantou. Então puseram um homem vigiando a ceva, esperando pegar
o brincalhão de mau jeito. Era mesmo (um) espírito brincalhão. Pouco tempo
depois tudo voltou ao normal e os animais dormiam tranqüilos e seus donos
também.
\ [
Figura 7.12: O Sítio Belo Horizonte (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
2
Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são! (Mário de Andrade in ‘Macunaíma’,
1926)
72 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
\ [
Era um sistema tão simples que até uma criança podia manobrá-la. Na
balsa atravessava até cavalos, bois e material. Quando alguém chegava à mar-
gem do rio e queria atravessar, gritava: ‘Oh! barqueiro’. E lá ia quem estivesse
disponível. O Vovô e os tios sempre que iam à cidade, atravessavam o rio de
balsa. Quando voltavam gritavam ‘Oh barqueiro’. Isto era uma rotina. Sempre
que eu ia ao sítio, gostava de bancar o barqueiro.
Quando a enchente do rio chegava ao cabo de aço que prendia a barca, ela
não podia funcionar. Com o passar dos anos e o uso constante, as canoas que
formavam a balsa já estavam remendadas e algumas peças podres, tendo que
sofrer reparos. Mas os remendos não davam a segurança necessária e também
não compensava. Melhor seria fazer uma nova. Esta tarefa coube ao exímio
marceneiro que era o tio Álvaro. Até então, que eu saiba, esse tio não fazia
nada lá no sítio. Às vezes, e isto era constante, alguém gritava: ‘Oh barqueiro’,
e ele não atendia. Os homens disponíveis estavam na lavoura ou ocupados
em outros trabalhos e ele era o único disponível. Às vezes eram os próprios
filhos que vinham da escola e ele nem assim atendia. Com a necessidade de se
fazer uma barca nova, sendo ele um profissional em marcenaria, gritou mais
forte dentro dele os brios feridos.
Compraram as madeiras e as ferramentas necessárias e mãos à obra. Va-
garosamente começou a ser delineada as peças que cuidadosamente iam sendo
empilhadas na proporção que ficavam prontas. Ao ver as peças já prontas,
cortadas, aplainadas, lixadas, já se podia esperar uma obra de mestre. E as-
sim foi. Creio que tio Álvaro levou seis meses para completar a tarefa. Mas
compensou. Finalmente ficou pronta.
Eram duas canoas medindo oito metros de comprimento por um metro
e vinte de largura e sessenta centímetros de profundidade e a grossura da
madeira era de cinco centímetros. Fixadas as canoas com caibros, separa-
das uma da outra de igual largura das canoas, foram finalmente assoalhadas
e colocada a grade de proteção, dos lados, e bancos para os passageiros. Pre-
sas as ferragens de engate das correntes, estava tudo pronto para a travessia
de inauguração. Foi um grande acontecimento e o tio Álvaro ficou famoso
na redondeza. Daí para frente tornou rotina, não fosse um desastre ocorrido
pouco tempo depois. Narrarei mais adiante o desastre.
Com a parada da balsa antiga e até que se fizesse a outra, houve um trans-
torno para a travessia das pessoas, principalmente as crianças que estudavam
numa escola do outro lado do rio. Tinha uma canoa e era o que usavam até
a nova balsa ficar pronta. Como o rio era largo e forte a correnteza no meio
do rio, o canoeiro remava rio acima, na margem, uns cem metros e então co-
meçava a remar para a outra margem, chegando lá mais embaixo. Deixava os
passageiros e regressava, na mesma estratégia. Essa situação perdurou muito
tempo, trazendo preocupações constantes. Eu mesmo, muitas vezes fazia a
74 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
travessia de passageiros. Não era só gente de casa, também pessoas que mo-
ravam perto ou (que) precisavam continuar sua caminhada.
85 anos.
O Vovô era um sitiante compenetrado. Era dinâmico. Até já de idade avan-
çada, dava o exemplo. De sol a sol, lá estava ele fazendo alguma coisa. Era
muito cuidadoso e exigente no trabalho. As lavouras eram fartas. Os pastos
eram limpos de mato. O gado era pouco mas bem tratado. Eu me lembro
quando se levava sal para o coxo, onde o gado come sua ração, independente
do capim jaraguá, e outros. Era só bater no coxo com um pedaço de pau e sair
de perto. O gado vinha em disparada ao coxo.
Como já disse, plantava arroz, feijão, café, cana e frutas. Criava gado, por-
cos e galinhas.
O café era colhido correndo a mão nos galhos e derrubando as folhas e fru-
tos no chão. Depois vinham os homens com os balaios e peneiras. Faziam ali
a primeira limpa. Depois enchiam os balaios e punham no carro de bois que
levava até o poço de água. A terra ia para o fundo e o café flutuava. Recolhiam
o café e levavam para o terreiro, onde ia sendo espalhado com um rodo. Iam
empurrando o café até o fim do terreiro. De hora em hora passavam o rodo.
Às vezes cruzavam as passagens. À tardinha o café era empilhado e protegido
contra o sereno. Se ameaçava chover, era recolhido para a tulha. No dia se-
guinte, caso tivesse sol e o terreiro seco, começavam a secagem até ficar bem
seco. Parte do café ficava para o consumo e o mais era vendido. Como no
sítio não tinha máquina, o descaroçamento era feito no pilão e era torrado na
panela de ferro.
Na hora de fazer o café, o grão era levado ao moinho e feito o pó de café. O
café era coado no saco de pano (coador) e adoçado com rapadura. (E levado
para o Vovô, quentinho...) O café do Vovô era aquele primeiro que saía do co-
ador, quente e forte. Outra coisa que não esqueço é a mamona. É uma planta
valiosa que nasce à toa. Vovô colhia e botava pra secar no sol lá no terreiro.
Quando ela está bem seca se soltava dos cachos como pipoca. Espalhava por
toda parte. O Vovô gritava: ‘Vai catar mamona’. O Jocer ficava bravo porque o
Vovô só lembrava o nome dele. Uma vez seca era só esmagar para fazer óleo,
que fazia as vezes de graxa.
O feijão era arrancado pela raiz. Suas ramas subiam pelos pés de milho,
depois de colhidos (os milhos). Essas ramas davam algum trabalho. Levadas
para o terreiro, lá, depois de secas eram surradas para soltar as favas que eram
recolhidas ao paiol, para o consumo e para venda.
O milho era colhido quando as espigas estavam secas. Os colhedores iam
colhendo as espigas e quebrando os pés, acima das espigas. Depois da co-
lheita do milho é que se plantava o feijão junto aos pés de milho. Recolhia-se
as espigas de milho ao paiol. Para o consumo, descascavam as espigas e de-
bulhavam na máquina própria. O milho era levado ao moinho que ficava na
divisa do sítio, muito longe. Nunca fui lá. Ali fazia-se o fubá para o consumo.
76 CAPÍTULO 7. OS TIOS MATERNOS
Também dava-se milho aos porcos e aos cavalos. Os bois comiam com casca e
tudo. O arroz era beneficiado nas máquinas lá na cidade e não mais no pilão.
A cana era transformada em rapadura, lá mesmo, para o consumo e venda. As
frutas que excediam o consumo eram mandadas para vender, na cidade.
Nos fundos da casa, depois da cozinha, havia uma varanda onde sobres-
saía um grande forno de tijolos, aquecido à lenha. Alí era assado o porco, o
peru, o bolo, os pães e muitas coisas mais. O serviço sanitário era precarís-
simo. Era na base do urinol. Mais tarde fizeram uma privada, lá fora. Os
adultos, até mesmo as meninas, tomavam banho lá no rio.
Quando chovia muito, formava uma lagoa lá no pasto, que era quase pe-
rene. Muitos pássaros aquáticos, mergulhões, apareciam por lá. Nós fazíamos
jangadas com tronco de bananeiras e camuflados, tentávamos pegar os mer-
gulhões, mas nada. Uma vez eu estava atravessando o curral do gado, quando
escutei um estrondo. O céu começou a escurecer e um barulho forte vinha da
mata do outro lado do rio. O barulho mais parecia o crepitar de fogo soprado
pelo vento. O barulho era tão forte, constante e progressivo. Ficou escuro
logo. Não deu outra. Era uma tempestade daquelas de causar pavor. Tudo
isto se passou em questão de segundos. Mal tive tempo de correr para a co-
berta do curral e a água desabou que mais parecia um dilúvio. O barulho era
a chuva caindo na mata. Ali no curral dos bezerros fiquei por mais de uma
hora, até que a chuva parou. Ficou tudo encharcado e poças d’água por todos
os lados.
7.4. BODAS DE OURO DO VOVÔ (1933) 77
\ [
Figura 7.13: Casa Felippe (foto de Levy Simões da Costa in ‘Cataguases Centenária’, 1977)
principal, Sr. Jovelino Santos, do Sr. Fonseca (Antonio Henriques Felippe Fon-
seca – era sobrinho do fundador e dono por muitos anos) e do Sr. Raul Pessôa.
Papai e o Sr. Serafim Diniz eram sócios por comandita. O Sr. Raul, macaco ve-
lho, sempre desconfiava dos empregados que moravam no sobrado, porque
ele, segundo nos contava nosso Pai, quando também ele morou lá, tudo que
consumia, retirado da loja, não era debitado em sua conta. Então ele costu-
mava subir a escada e olhar os quartos dos empregados. Nessa época mora-
vam lá, o Armando, o Edson, o Olcer e o José. E o que lá ele via, lata de doce,
vinho, álcool, essas bobageiras, ia logo perguntando se aquelas coisas tinham
sido debitadas em suas contas.
Figura 7.14: Olcer e Edson da Casa Felipe (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
Papai era muito humanitário, muito caridoso. Ora! qualquer pessoa que
morria, lá ia o Papai acompanhar o enterro e ajudar a carregar o caixão. Na-
quele tempo não tinha rabecão nem carrinho para transportar o caixão, era
no muque mesmo. Ele dizia que era triste ver pessoas fortes acompanhando o
enterro, sem se lembrar que os que carregavam o caixão, precisavam ser subs-
tituídos em forma de rodízio. Dizia ele que quando desencarnasse, se faltasse
7.5. ‘CATAGUASES CENTENÁRIA’, 1977 81
alguém para pegar na alça do caixão, não seria por falta de sua parcela nesse
esforço. A sua parte estava sendo feita.
Mamãe, ainda mais do que o Papai, por estar mais perto e mais tempo
com os filhos, moldou o caráter e a personalidade de cada um de nós. Não fez
nenhum santo, mas evitaram que tomássemos caminhos errados. Ela herdou
do Vovô o dote humanista, aprendeu a manipular bem as gotas dos vidrinhos
de homeopatia. Raro era o dia que não batiam a nossa porta pedindo remédio
para seus doentes. Mamãe, pacientemente, lavava os vidros e fazia as dosa-
gem que ela aprendeu nos livros de homeopatia, de acordo com a descrição
da doença. Ela tinha uma botica com as homeopatias de base. Às vezes as
pessoas nem vidro traziam, e mamãe arranjava para atendê-los. Nunca co-
brou por esses serviços humanitários.
A luta de mamãe não era diferente das outras donas de casa, mas não era
fácil cuidar de tantos filhos e hóspedes (parentes que moravam conosco, por
uma temporada, por estar estudando, passeando, etc). Por isto mesmo ela
distribuía tarefas para cada um de nós, não só para ajudá-la, mas principal-
mente para manter-nos ocupados em coisa útil.
Todos os sábados era dia de lavar a casa. Cada semana era um. Joffre, Jou-
bert e eu. Na semana do Joffre era aquela choradeira. Reclamava de fazer dó.
Decididamente ele não aceitava aquela tarefa. Eu ficava observando a calma
de Mamãe, incentivando o mano à tarefa. Ela me dizia que ficava mais can-
sada do que se fizesse a tarefa. O Joubert e eu, gostávamos de lavar a casa. Na
minha semana Mamãe nem se preocupava. Eu lavava a casa desde a frente até
os fundos, sem problemas. Terminava lavando e ariando o banheiro. Mamãe
nem olhava. Ela confiava.
Capítulo 8
Tiro de Guerra
83
84 CAPÍTULO 8. TIRO DE GUERRA
O Olcer, José, Jocer, Rubens, Maurício, tio Ito e Celso, fizeram o ‘tiro de
guerra’ lá na cidade. Só eu e Joubert preferimos servir às Forças Armadas, na
arma de aviação.
8.1 O Escotismo
Mais ou menos em 1928, o Sargento Cleto fundou um grupo de Escoteiros.
Foi uma festa para a garotada. Lá em casa fomos os quatro: Jocer, Joffre, eu e
o Joubert. Os garotos de nosso tempo: Raul Queirós, Licínio Garcia, Amauri
Fonseca, Jarbas de Souza, Fajardo, e muitos garotos cujos nomes esqueci. Te-
nho uma foto de todo o grupo, no álbum de solteiro.
Figura 8.1: Rataplan do arrebol / Escoteiros vede a luz... (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
O entusiasmo contagiou até nossos pais. Ora! era uma ocupação sadia
para os garotos. A Casa Felipe encomendou todos os apetrechos de escoteiro:
chapéu, cinto, lenço, cantil, bastão, meias, apito, mochila, machadinha, pá
(estas duas peças tenho até hoje). Todos mandaram fazer seus uniformes. A
Prefeitura nos doou um terreno que foi vendido e com o dinheiro o Sargento
comprou um ‘tarol’, uma ‘caixa’ e um ‘surdo’. Eu tocava a caixa, o Fajardo
tocava o taról e o Almeida, o surdo.
8.2. PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE ANDRADE E SILVA 85
Quando desfilávamos pela cidade era um orgulho só. O Jayme Bastos Filho
também entrou para o escotismo. Quando o desfile era na rua da estação, o
eco dos tambores e o bater dos pés, cadenciados, enchia de alegria nossos
corações2 . Pouco tempo depois fazíamos excursões pelas estradas, pic-nic.
Nas excursões o Sargento ia à frente com dois escoteiros escondendo objetos
para que nós achássemos.
Ele nunca perdeu um só desses objetos. Pouco tempo depois o Sargento
criou um grupo de Bandeirantes, para as garotas.
\ [
calma e sem problemas econômicos. Não precisava mais madrugar para en-
frentar a Casa Felipe.
Levantava a hora que bem queria, montou seu escritório alí mesmo em
casa. Fazia ele mesmo sua correspondência para a matriz da Sul América,
movimentava contas bancárias e até muita gente achava que ele ficara rico.
Até o Sr. Jovelino dos Santos uma vez mandou um seu irmão, solteiro, procu-
rar emprego com o Papai... As contas bancárias que Papai movimentava era
dinheiro da venda de seguros da Sul América, e suas comissões.
Uma vez fizemos um encontro lá no Rio, na casa da tia Lélia e nós fomos
juntos no mesmo ônibus, Papai pagou todas as despesas.
Depois de quarenta anos de um trabalho quase escravo, papai desfrutou
o conforto de trabalhar sem horário, sem pressão. E assim foi até seu desen-
carne. Mamãe continuou pagando até a última promissória, apesar da firma
querer dispensar o restante.
\ [
a primeira vez que me trajava à caipira. Anos mais tarde repito esta façanha.
Direi depois.
\ [
Havia também na cidade algumas figuras típicas, que faziam parte de cidade.
Um era um mendigo que vivia todo ‘molhado’, chamavam-no o ‘Calchu-
vas’, uma corruptela de Carlos-chuva, porque vivia mijado. Era um coitado
digno de dó.
Um outro mendigo , este mais alegre, chamavam-no: ‘Chinelinho’. Era
namorador. As moças davam ‘corda’ e ele fazia declarações de amor. Uma
figura. Todo mundo gostava dele.
90 CAPÍTULO 8. TIRO DE GUERRA
Na minha rua morava uma moça paralítica das pernas. Andava num car-
rinho e o pai empurrava. Era muito vaidosa e andava bem vestida, modes-
tamente, e toda empetecada. Lábios e unhas pintados, cabelos arrumados.
Cumprimentava todo mundo. Era muito alegre. De repente a vimos sendo
empurrada por um rapaz, pintor, que nós conhecíamos... Haviam se casado...
Havia o Sr. Nogueira, vendedor de bilhetes de loteria, que também em-
purrava num carrinho um seu fiho. Havia o ‘Titilo’, um garoto excepcional,
que só andava de camisola e gostava de conversar com as moças e... O Sr.
Arnô, sapateiro, que vivia às voltas com a política. Era outro figura. Os irmãos
‘Magre’, alfaiates. Um era músico e tocava na banda do Sr. Rogério Teixeira. O
Peterson, alfaiate, que cultuava a musculatura, etc. Ficou um molambo...
8.4 O Ginásio
Havia no alto de uma colina , um casarão, que era uma chácara , mas que
o professor Antônio Amaro ampliou e alí fundou o Ginásio de Cataguases.
Nesse tempo que me reporto, o ginásio já devia ter muitos anos, porque mui-
tos professores estudaram lá. Eu só estudei lá um ano. Não quis mais estudar.
Durante o tempo que lá estudei, ví e viví muita farra dos estudantes.
Uma vez um sorveteiro que usava uma carrocinha cheia de sorvetes, em
forma de navio, foi assediado pelos estudantes que queriam comprar sorvete,
todos ao mesmo tempo, acabaram jogando a carrocinha morro a baixo. Uma
loucura. O sorveteiro era apenas um vendedor.
Tinha um aluno lá no Ginásio, um verdadeiro gigante. Um rapaz tão gordo
e grande que calçava o número 44 ou mais. Uma vez o Jefinho, filho do pro-
fessor Antônio Amaro, levou a bota desse aluno para consertar e ele calçado,
calçou a referida bota... Nunca tinha visto calçado igual. O pouco tempo que
frequentei o Ginásio pude observar muita coisa.
\ [
Depois que saí de Cataguases e por onde andei, também não tive namo-
rada. Fazia amizades ‘seletivas’, para uma futura ‘colheita’, mas no final, na
hora do ‘vamos ver’, eu é que fui ‘colhido’. Por quem nunca antes havia pen-
sado. Por estas e outras acredito que meu destino estava traçado.
Figura 8.3: Centro Espírita Paz, Luz e Amor (foto de Marcus B.L. Santos)
\ [
Figura 8.4: Filho do Amaury, Cabo Coelho e Javert, 1929 (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
8.8. OS VINTE MIL RÉIS QUE ROUBEI 95
moça respondeu certo. Assim muitas coisas que ele via e perguntava, a moça
respondia. Achei aquilo fantástico.
Com o passar dos anos tomei conhecimento que o exercício faculta essa
transmissão, afora o dom que nasce com a pessoa.
\ [
A padaria Cabral era uma entre as poucas que existia na cidade. Naquele
tempo os donos de padaria mal faziam para sustentar a empresa e a família.
Não é como hoje, que as padarias proliferam como botequim, enriquecendo
seus donos. Mas a padaria Cabral é que supria nossa casa. Todos os dias pas-
sava uma carrocinha de pão e Mamãe comprava os pães para o dia. Eu pro-
curava agradar o padeiro, empurrando o carrinho até o outro lado da ponte
só para ganhar um pão doce.
Muitos anos ele já morava na cidade e ninguém conhecia sua esposa. Ela es-
tava paralítica. Com a visita do Sr Benjamim, ele disse ao marido a realidade.
Sr. Oliveira era católico, ignorava esses assuntos, mas muito amigo de Papai,
confiou. Reuniões de desobsessão realizadas lá no Centro Espírita, dirigido
pelo Papai, afastou a entidade. Pouco tempo depois. o Sr. Oliveira era visto
passeando na Praça com sua esposa, de braços dados.
Devem ter havido outros casos que Papai, talvez, não tivesse revelado, a
não ser o caso seguinte: Tudo se passou numa noite de carnaval, alí na Praça
Rui Barbosa. O carnaval estava animadíssimo. Os carros (naquele tempo os
carros eram abertos) cheios de alegres foliões, trançando serpentina de um
carro para o outro, cantando:
e outras cantigas. Tudo era festa, era alegria. Nas calçadas, defronte às resi-
dências, os moradores e amigos, sentados, apreciavam a folia enquanto con-
versavam.
O Sr. Fonseca e Dona Iracema moravam alí, quase na esquina, e estavam
ambos sentados em poltronas de vime, de tal forma que não se notava que ela
estava grávida. Amigo de Papai desde os tempos de solteiro (eu tenho uma
foto dos dois brincando no carnaval), ele revelou ao Papai particularidades
sobre o nascimento do filho que esperavam. Papai passeando, digo passando
com o Sr. Benjamim, apresentou-o ao Sr. Fonseca e à Dona Iracema. Esta não
se levantou, cumprimentou-o e desculpou-se. Então Dona Iracema pergun-
tou ao Papai se queriam entrar para melhor conversar. Papai disse-lhe não ser
preciso, que ela ‘pensasse’ o que queria saber. E o Sr. Benjamim respondeu a
viva voz:
‘A senhora vai ter um filho, homem e vai nascer dia tal’. Ela disse que pelos
seus cálculos o nascimento se daria mais tarde. Conversa vai e o Sr. Fonseca
disse estar preocupado com a falta de notícias dos pais, lá em Portugal. O Sr
Benjamim pediu que ele pensasse em seus pais. Tudo isto se passou ali na
calçada da praça, em pleno carnaval. O Sr. Benjamim descreveu a casa, uma
árvore onde os pais dele estavam assentados. O Sr. Fonseca disse que a tal
árvore havia sido plantada por ele. Despediram-se e o Sr. Benjamim falou
para o Papai que avisasse o Sr. Fonseca para levar Dona Iracema para um
centro de maiores recursos visto que o parto seria cesariana.
D. Iracema foi para Belo Horizonte e no dia que o Sr. Benjamim predisse,
o Sr. Fonseca recebeu o seguinte telegrama:
‘Nasceu filho homem, cesariana’.
98 CAPÍTULO 8. TIRO DE GUERRA
Figura 8.5: Jota Lacerda e Seu Fonseca (com lança-perfumes!) (foto do acervo
pessoal de Javert Lacerda Santos)
xaram por menos. As notícias diziam que os paulistas haviam feito um ‘trem
blindado’, ‘matracas’ para imitar metralhadora, etc. Então fizeram esta mar-
chinha:
Figura 8.6: Bloco de carnaval, Cataguazes, 1934 (foto do acervo pessoal de Javert
Lacerda Santos)
8.17. AS PARÓDIAS 101
8.17 As paródias
Por falar em Casa Felipe, lembrei-me de uns fatos ocorridos. Eu fazia a en-
trega das mercadorias na casa dos fregueses e estava sempre ali no balcão
esperando serviço. O Sadi Mendonça gostava muito de ouvir paródias; então
ele punha o disco na vitrola e ficava de ouvido colado, ouvindo. E repetia, tor-
nava a repetir. Desta forma, eu de tanto ouvir acabava decorando. Algumas
delas:
Outra:
Outra:
nos contado que certa vez o Sr Jovelino Santos lhe dissera ‘andar com a casa
muito cheia’. E papai respondeu: ‘meus familiares não são só minha mulher e
meus filhos’...
Pois é, esses parentes ficaram em nossa casa quatro meses. Guioma e Ruth
eram moças de cidade grande, à beira mar, filhos órfãos de pai e mãe há al-
guns anos; levavam vida mais livre; desinibidas para uma cidade do interior,
puseram os rapazes em polvorosa.
Gabó era afeminado, bonito e dançava bem, causou euforia nas moças.
Emilce, a menor, deveria ter uns doze anos, magrinha e doentinha, era
mais retraída e nem acompanhava os irmãos.
Como ela ficava mais tempo em casa, a tia Maria, que morava conosco e
dormiam no mesmo quarto, desconfiou e levou a garota ao medico. Confir-
mou. Ela estava tuberculosa.
Mas antes de constatar a doença da menina, os três foram passar uns dias
lá no sítio do Vovô. O que a Ruth e a Guiomar arranjaram não sei. O que por lá
fizeram foi bandalheira. Foi de arrepiar os cabelos. E tudo alí na casa do vovô.
Eu sei que durante os dias que elas lá estavam, o Olcer, José e Jocer, Celso, Joel
e até o Ito (este repeliu) ficaram alvoroçados. As moças eram muito pra frente.
Anos mais tarde, de um lado e de outro fiquei sabendo muita coisa.
O Gabô era um ‘astro’. Nos bailes ele se isolava e fazia pose para as moças.
Ele dançava bem, era muito educado e observador. Gostava das companhias
femininas (o que seria normal) mas era a participação nas conversas, nos as-
suntos. Era um guapo rapaz.
Uma vez quando eles estavam lá no sítio, fomos andar a cavalo, ou me-
lhor, numa égua, eu montado e ele na garupa. Quando passamos num pasto,
um garanhão, distante, relinchou e galopou em nossa direção. O garanhão
ensaiou trepar na égua, conosco montados. A sorte foi uma porteira, onde ra-
pidamente passamos. As patas do garanhão chegaram a roçar no Gabô. Cruz
credo.
8.19. REGRESSO DOS PRIMOS A SANTOS 103
Viagem à Santos
F OI a primeira vez que eu saia de casa para lugar tão longe.E nem passou
pela minha cabeça que iria passar alguns anos sem ver minha família.
Resolvida a viagem, preparei minhas roupas (que para onde iria, eram
pobres). Papai fez suas recomendações, supriu-me com algum dinheiro e
Mamãe ao nos despedirmos, beijou-me e deu-me, com dedicatória um Ca-
tecismo espírita, que conservo até hoje.
Tudo pronto, partimos.
Tomamos o Expresso da Leopoldina, que seguia para o Rio de Janeiro.
Chegando a Entre-Rios (hoje Três Rios) descemos e aguardamos na estação, a
passagem do rápido da Central do Brasil. Embarcamos, agora num trem mais
confortável. Enquanto a bitola da Leopoldina era de um metro, a da Central
era de um metro e sessenta. Chegando a Barra Mansa, saltamos e aguardamos
o rápido que vinha do Rio para São Paulo. Daí para diante a viagem transcor-
reu à noite. Pela manhã chegamos à capital paulista, na estação do Norte, no
bairro do Brás.
Desembarcamos e aguardamos ali mesmo o trem da Cia. inglesa São Paulo
à Santos. Enquanto aguardávamos o vagão que nos levaria até Santos, eu fi-
quei assombrado com o movimento do trânsito de ônibus, caminhões, car-
roças, automóveis, os bondes enormes que via pela primeira vez, a estação
apinhada de gente, uns embarcando outros desembarcando. Um deslumbra-
mento para mim. A Estação do Norte era o ponto final da Central do Brasil,
mas havia o tráfego mútuo com a rêde inglesa. O que mais me chamou a aten-
ção, naquele trânsito louco era o cruzamento na avenida Rangel Pestana, dos
trilhos da ‘Inglesa’. Quando o trem se aproximava para cruzar a avenida, duas
enormes porteiras fechavam a avenida. Acendia as luzes vermelhas, a cam-
105
106 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
Figura 9.1: Estação do Norte, no Brás (Estação Roosevelt, após 1945) (foto do
acervo da A.B.P.F.-SP)
composição desce a outra sobe. Este mesmo processo vai se repetindo nas
três secções, de forma que um trem desce para Santos e outro trem retorna
para São Paulo.
Como vê, é um processo engenhoso mas seguro e requer um sincronismo
‘inglês’. Essa engenharia ferroviária usada na serra do mar, usando cabos de
aço para segurar a composição que descia e puxar a que subia, era diferente
da que, eles mesmos, os ingleses, usavam para descer e subir a serra de Petró-
polis. Lá, em vez de cabo de aço, as composições, sempre dois vagões de cada
vez, desciam e ou subiam presas a uma máquina especial. A máquina tinha
as rodas da frente menores do que as de traz, e debaixo da máquina, entre as
rodas maiores, no mesmo eixo, havia uma roda ‘dentada’ que a proporção que
a máquina rodava essa roda dentada ia deslizando numa cremalheira fixada
nos dormentes entre os trilhos. A outra diferença é que as composições eram
independentes umas das outras. Na vez de descer, cada máquina engatava
dois vagões e começava a descer; em seguida outra e outra, até levar todo o
trem até a raiz da serra. Para subir era o mesmo processo.
Recomposto o trem que saiu da Estação do Norte, via Estação da Luz e
Alto da Serra, finalmente prosseguimos, chegando à Santos ao meio dia. A
Estação de Santos é terminal ou inicial, da ferrovia ‘São Paulo à Santos’. Dali
108 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
não prosseguia. Depois vim a saber que uma vez, uma composição chegou à
Estação sem conseguir frear e o trem se destruiu e foi parar lá na rua.
Figura 9.3: Rua Adolfo Assis, Vila Belmiro, 1944 (foto de Ary O. Cellio)
Figura 9.4: O funicular de Mont Serrat em Santos, 1927 (autor não identificado)
Fomos conhecer o ‘Mont-Serrat’1 , uma elevação cujo acesso era feito por
dois bondinhos que deslizavam na encosta sobre trilhos e puxados por cabos
de aço, semelhante a descida e subida da serra. Quando um bondinho subia
o outro descia. Eles apelidaram os dois bondinhos de ‘upa’ e ‘cupa’. Quando
o ‘upa’ sobe, o ‘cupa’ desce...
Um dia o Gabó me levou à casa de sua irmã, casada, a Aidê, que morava
perto do cais do porto. Fomos até lá. É o maior cais da América do Sul. Era
um entra e sai de navios que encantava a minha vista. Fiquei lá horas e horas
vendo aquele movimento que não tinha fim. Outras vezes eu ia só até a casa
da Aidê, até o cais e aos poucos fiquei conhecendo toda a cidade.
Figura 9.5: Vista do canal de Bertioga em Santos, 1934 (foto do acervo de Francisco
Carballa)
\ [
bonde, de letra ‘R’, que saia do centro e ia até a Praia Grande. Ele só levava
passageiros para o destino. No percurso ele só diminuia a velocidade, nos
pontos, para os passageiros saltar ou embarcar.
\ [
Minha maior surpresa foi conhecer o mar. O Renato me levou, pela primeira
vez, à praia do Gonzaga, para tomar banho de mar. A proporção que me apro-
ximava do mar, eu ouvia, de longe, o barulho das ondas. Quando vislumbrei
o mar fiquei extasiado. Finalmente chegamos.
A praia do Gonzaga era linda mesmo. Nas calçadas dos bares, dos hotéis,
dos restaurantes, eram cheias de cadeiras.
Na arêia da praia estava cheia de barraquinhas de aluguel, para banhistas.
Comprei um maiô daqueles de 1934, com alça nos hombros e cinto e fui tomar
Figura 9.6: O maiô com alças nos hombros... (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
banho. As águas eram bem limpas, transparentes. A praia era raza até bôa
distância da areia. De forma que não tive medo algum. Adorei a água.
\ [
Mais interessante era o último bonde, que saia da Praça Rui Barbosa, no
centro da cidade, à meia noite. O bonde parava em todos os lugares onde o
condutor sabia estarem os retardatários. O motorneiro pisava no sino, cha-
mando o pessoal. As vezes o condutor subia aos salões de bilhar para chamar
os moços.
Eram como uma família. Eu achava aquilo um fato inusitado.
112 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
Nessa época os jogos de bilhar estavam na moda. Havia salões pra todo
lado. O Edson e o Renato gostavam de jogar.
O condutor do bonde parecia conhecer os rapazes. Uma vez ele perguntou
por fulano. Ele estava no banheiro. Eu vi que ninguém ficava para trás.
Eu saia à noite com esses primos, não posso negar que eles eram muito
atenciosos comigo. Eles frequentavam de preferência os bares onde tinha si-
nuca. Eram salões enormes com dez ou mais mesas. E sempre muito movi-
mentado.
\ [
Uma vez surgiu na praça uma bala que dava prêmios. O álbum para cole-
cionar as figurinhas era fornecido de graça. As figurinhas vinham enroladas
9.2. CYCLISTA INFELIZ 113
Figura 9.8: Tribuna de Santos, dezembro de 1934 (recorte de jornal do acervo pessoal
de Javert Lacerda Santos)
114 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
Chegando lá, a Ruth deu um grito quando me viu, amarelo e com ‘duas bo-
cas’. O queixo abrira com a queda. Levaram-me ao hospital onde ‘costuraram’
o queixo.
No dia seguinte, saiu no jornal, na coluna policial o título ‘Ciclista infeliz’
e o relato do fato. Até hoje eu tenho a cicatriz no queixo. A arêia que senti na
boca eram cacos de dentes que se quebraram com a queda. Perdi uns trêis
molares e outro se rachou. Até hoje tenho dois dentes na frente, com a ponta
quebrada. Este dente quebrou um ‘pivô’ superior.
O recorte do jornal ‘Tribuna de Santos’ eu tenho guardado até hoje.
\ [
\ [
Emprego mesmo, nada. E não era por falta de procurar. Por duas vezes ar-
ranjei emprego. Um foi numa loja de calçados. Entrei e comecei logo abrindo
116 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
Figura 9.10: Cine Cassino com teto basculante, circa 1920 (foto de Laire José Giraud)
caixa por caixa e limpando os calçados, todos mofados. Era a melhor maneira
de conhecer o estoque e saber onde encontrar o calçado solicitado pelo fre-
guês. No fim de alguns dias fui despedido.
O gerente queria um ‘vendedor’ e não um ‘limpador de sapatos’.
O outro emprego, era uma loja de tecidos. Não me lembro o motivo por
que fui despedido, mas concluí que foi por eu ser ‘mineiro’. Evidente que em
conversa este assunto se destacou.
Os paulistanos ainda não haviam perdoado os mineiros, que lutaram con-
tra os paulistas na revolução constitucionalista. Os paulistas, especialmente
os santistas eram bairristas de mais. Nos palacetes dos ricaços havia um mas-
tro que desfraudava(sic) a bandeira paulista 2 e não a verde-e-amarela.
Figura 9.12: Gabriel, o ‘Gabó’, e Ruth Cunha em Santos (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
Lourdes. Mas durou pouco. Logo o rapaz virou os olhos para a Ruth. O ambi-
ente ficou tenso, mas aos poucos foi sendo absolvido, por ser o rapaz amigo
do Edson.
Uma vez esse rapaz convidou a Ruth, o Ângelo e eu, para um passeio à
ilha do Guarujá. Na hora do almoço ele nos levou ao Grande Hotel. Deveria
120 CAPÍTULO 9. VIAGEM À SANTOS
ser um cinco estrelas, de hoje. O almoço foi servido à francesa. Veio a entrada.
O garçon trouxe um prato com batata e carne, levou os pratos; serviu vitelo e
pimentão, trocava os pratos. E assim foi até o fim. Finalmente veiu o cafe-
zinho para encerrar. Assim eu contei, da ‘entrada’ ao cafezinho, onze pratos.
Imagino que esse rapaz deve ter pago uma nota...
A ilha do Guarujá nessa época era deserta. Tinham poucas casas e esse
Hotel era o chic. Era como Buzios, hoje. Fazia-se a travessia de barco. Assim
eles levavam a vida. Os mais velhos, que trabalhavam, eram quem sustenta-
vam as irmãs. Lourdes tinha uma pensão do marido. As solteiras me pareceu
que tinham uma pensão do pai. O fato é que o ‘feijão’ não faltava na mesa,
graças a Deus. As vezes elas guardavam o almoço do Edson e se ele não vinha,
eu mandava. As 10 horas da noite eu ia até uma padaria próxima de casa,
comprar um pão especial que eles faziam e nós comíamos esse pãozão todo.
Figura 9.14: José, Emilce Cunha e Javert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda San-
tos)
para seu destino e com eles os primos, é que segui para a capital paulista.
Apesar de ter residido pouco tempo em Santos, menos de seis meses, eu
‘amadureci’ bastante. Quando saí de Cataguases, eu era um ‘matuto’, um ado-
lescente que tinha como universo uma pequena cidade do interior. Acrescente-
se ainda que eu era de pouca leitura e de pouca instrução.
As roupas que usava e levei era incompatível num centro grande. Creio
até que não consegui emprego porque não tinha ‘apresentação’. Esta situa-
ção melhorou quando o Olcer rmeteu-me 100$000(cem mil réis) e eu comprei
meu primeiro terno de casemira, azul.
Esse terno melhorou até o meu astral. Mais tarde, já em São Paulo, ele era
meu traje de baile. Aos pouco percebi a malícia da vida e cuidei de absorvê-la.
Em São Paulo
125
126 CAPÍTULO 10. EM SÃO PAULO
Figura 10.1: Henny e Hyada Lacerda Werneck, filhas do Bráulio (foto do acervo
pessoal de Javert Lacerda Santos)
Tudo era novidade. Tudo me encantava. O bonde era grande, estava cheio,
tinha gente em pé no estribo, dificultando a vida do cobrador. O bonde corria
que mais parecia trem. De instante a instante ele cruzava com outro, outro e
mais outro bonde, até chegar ao destino.
A Praça da Sé era uma verdadeira estação de bondes. Dali saia e chegava
bondes e ônibus para todos os recantos da cidade. Tudo era novidade. Os
prédios altos, os bancos, os bares, as casas lotéricas do Fazanelo. O mundo da
gente se locomovendo para todos os lados. Os bares cheios de comes e bebes.
O barulho, o trânsito de carros, ônibus. As lojas comerciais abarrotadas de
gente.
De todas as construções ali existentes, chamou-me a atenção a Catedral
que estavam construindo, toda em blocos de pedra. O Bráulio me levou lá
dentro dela. E o que eu vi? Escultores, homens já de idade, todos trabalhando
os blocos, fazendo as esculturas nos próprios blocos que formaria(m) as pare-
des, as colunas. Disse-me o primo que há mais de trinta anos estavam cons-
truindo. Nessa época, 1935, a parte do sub-solo estava construída e por fora
estava começando a levantar as colunas.
Havia uma linha de bonde que levava material de construção até lá den-
10.1. CHEGADA A SÃO PAULO 127
Figura 10.2: Catedral da Sé, em São Paulo (Esboço do projeto original por Maximillian
Hehl)
tro. Esta Catedral levaria mais quarenta anos para ficar pronta. Hoje ela é o
orgulho dos paulistanos. Daquela Praça da Sé, saía as famosas ruas ‘Direita’,
que por sinal é torta, duas calçadas, como a rua do ‘Ouvidor’, lá no Rio de
Janeiro, eram lisas de tanta gente passas por ela. A rua ‘São Bento’ cheia de
estabelecimentos bancários.
Bráulio me levou a muitos lugares. Conheci o largo de São Bento com o
viaduto Santa Efigênia, a matriz com seu relógio. Conheci o viaduto do chá1 ,
que mais tarde vi ser demolido (era de ferro) e construído outro de concreto
armado. Conheci o famoso prédio ‘Martinelli’, com seus 24 andares2 . O pri-
1
A região onde o viaduto foi construído era uma área de cultivo de chá. O Morro do Chá
ficava em terrenos onde se encontram o Teatro Municipal e prédios adjacentes. O viaduto foi
planejado por Jules Martin em 1879.
2
na realidade, 30 andares
128 CAPÍTULO 10. EM SÃO PAULO
Figura 10.3: Viaduto do Chá, no Vale do Anhangabaú, 1930 (foto obtida na web,
sem crédito)
Assim, continuei ali até que o Papai, por intermédio do Dr. Domingos
Tostes, enviou-me uma carta de apresentação para o Dr. Tostes (irmão do
Dr. Domingos Tostes), que era dono da firma Santa Basilissa, que fabricava,
comprava e vendia tecidos.
Mas enquanto eu trabalhei e residi no Brás, disfrutei do que ali tinha. Bons
cinemas, festinhas familiares, passeios e cafezinhos. Note-se que não falo:
bons restaurantes, bôas lanchonetes, bares, boates, clubes; porque quem só
tem 20$000 para passar o mês, não pode se dar ao luxo de ‘olhar alto’.
Ali ao lado da loja onde trabalhava funcionava o maior cinema do Brasil.
O cine ‘Babilônia’. O nome já está dizendo tudo. Tinha capacidade para cinco
mil pessôas. Seu salão de projeção era imenso.
Normalmente as platéias tem um a dois corredores entre as poltronas,
mas o Babilônia tinha cinco.
Os sanitários masculinos eram maiores do que os da estação da Central
do Brasil, lá no Rio de Janeiro. Aos domingos, as matinês eram das crianças.
Quando começava a projeção, fechavam as portas. Não tinha mais um só
lugar vago. Só na próxima sessão. Nunca vi tanta criança reunida num só
cinema.
Eu continuava visitando a casa do Bráulio. Às vezes almoçava lá. Saia com
os primos para passear. Depois eles se mudaram para o bairro do Belém, mais
perto do centro e do Brás.
Quando eu estive hospedado na casa do Bráulio, lá na Penha; e quando ia
com ele à cidade, e às vezes o bonde já estava lotado, eu ia em pé no estribo,
com a mão direita agarrada ao balaústre e a esquerda no bolso. O frio era tanto
que ao chegar à Praça da Sé, onde saltava, tinha que usar a mão esquerda para
abrir os dedos da mão direita, quase congelada. Ainda não tinha luvas.
Outra vez, quando eu já morava na cidade, fui visitar o Bráulio e ele me
serviu um licôr de jabuticaba, que ele mesmo fizera. Estava tão gostoso que
acabei abusando na dose. Quando tomei o bonde de regressso à cidade, aca-
bei dormindo e só fui acordado, pelo trocador do bonde, quando cheguei à
Praça da Sé.
Depois de morar na pensão, no Brás, eu fui morar numa casa de família,
na rua Piratininga. Paralela a esta rua, havia a rua ‘Caetano Pinto’, onde só
morava a italianada calabreza. De dia e de noite a rua ficava cheia de gente.
Diziam que as famílias se revezavam nas casas. Enquanto uma família
dormia, a outra família ficava acordada, na calçada. Era uma algazarra só, à
macaroni...
O bairro do Brás era reduto dos italianos.
Também, mais para o lado da estação do Norte, a colônia espanhola era
grande. Quando aparecia por lá cantores ou conjuntos espanhóis, o teatro
ficava lotado de conterrâneos.
10.3. CASA SANTA BASILISSA 133
Figura 10.4: Javert (à direita) e colegas sob o ‘lampeão de gás’ (foto do acervo pessoal
de Javert Lacerda Santos)
Só que ali frequentava a alta sociedade. Não era caro, visto tratar-se de
promoção, mas era snob.
Os bondes de São Paulo eram grande e velozes. Alguns puxavam um rebo-
que de carga, outros eram duplos e havia os camarões. Eram bondes fechados
e pintados de vermelho. Havia bonde para todos os bairros da cidade, havia
os circulares. Era o transporte preferido do povo. A passagem custava $200
(duzentos réis). A Light vendia uma cartela com vinte passagens. A cartela
era picotada e os passes, do tamanho de um sêlo de correio. Apesar de ser eu
Figura 10.6: Andando pelas ruas do centro... (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
fui admitido como ‘boy’ e auxiliava os funcionários no que podia. Meu princi-
pal serviço era fazer cadastramento dos compradores, junto aos bancos, e as
firmas exportadoras.
Havia lá, também, um senhor que tinha poucas tarefas a fazer, mas entrão,
sem desconfiômetro e gostava de brincar com as moças. Ele tinha a falange do
indicador da destra, como que fosse quebrada, torto para a direita. Não sei se
era de nascença ou causado por acidente. O fato é que ele contava casos de
pessoas, que na rua lhe pedia indicar a rua que procurava. Ele indicava com
aquele dedo torto. Então a pessoa ficava sem saber exatamente, para onde ele
apontava. Era um gozador.
Eu notei e as moças me disseram que ele tinha ciúmes de mim, desde que
fui admitido. Eu acho que ele fazia o serviço que me deram. Depois as moças
gostavam da minha companhia. As moças eram mais velhas do que eu, mas
nos dávamos muito bem. Elas se chamavam: Carmem, Maria Dini, Ondina
e o rapaz Edson. Vou transcrever abaixo os sonetos que elas gravaram pelos
meus 21 anos:
Raul Machado
‘Contraste’
Figura 10.7: Promessa cumprida (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
‘Santa’
\ [
Às 10 e às 16:00 horas, tinha um lanche, café e pão com manteiga. Era prepa-
rado e servido num cômodo à parte pelas funcionárias, em revesamento. Era
ali, na hora do lanche que havia o bate-papo, porque na hora do trabalho ha-
via muito o que fazer. O faturista, aquele que datilografa as faturas e as passa
para o livro copiador se chamava Edson e era descrente nas mulheres. Vivia
em deboche com as moças; mas tudo dentro do respeito e cavalheirismo. Era
paulista de Bragança. Trocava, no pronunciar, as letras l e r. Falava polta, etc.
em vez de porta. Uma vez ele convidou-me para ir até Bragança Paulista, sua
cidade natal, para um baile, e hospedou-me em sua casa. Foi uma grande
noite. Lá encontrei um ‘pezinho de valsa’ e eu não me interessei mais por
outra dama. Dançamos até tango. Gostei muito dessa cidade.
Havia no escritório um outro empregado, ele era o despachante das mer-
cadorias. O meu convívio naquele escritório e os contatos que fazia com os
bancos e nas firmas atacadistas, sempre lidando com pessoas instruídas, deu-
me um desembaraço e uma melhor maneira no falar, no expressar. Quando
regressei a Cataguases, Papai notou meu desembaraço e me disse:
‘– Vejo que seu local de trabalho foi-lhe benéfico.’
O escritório da ‘Santa Basilissa’ ficava na rua Florêncio de Abreu, no cen-
tro. Eu tenho no meu álbum de fotografia, um retrato tirado na porta do es-
critório, ao lado da Ondina e do Edson, num flagrante para recordação.
\ [
10.4. O ESCRITÓRIO DA CASA SANTA BASILISSA 143
Figura 10.8: Ondina, Edson e Javert na Casa Sta. Basilissa, 1936 (foto do acervo
pessoal de Javert Lacerda Santos)
baú, corria a céu aberto até o viaduto do chá. Depois foi canalizado e o vale
passou a ser uma grande avenida.
\ [
Uma das minhas diversões, aliás, de todo paulistano, era ir ao cinema. Como
eu disse, o clima favorecia diversões em recintos fechados. Eu assisti toda a
série de filmes de Carlos Gardel. Era uma das coqueluches. Do mesmo geito
que não perdia os filmes da Greta Garbo, Deanna Durbin, Raul Roulien, Judy
Garland, José Mojica5 , Marisol com as músicas flamengas, etc. Por falar em
filmes, em cinema, São Paulo tinha uma infinidade de cinemas, construiam
cada vez mais sofisticados. Salas amplas, poltronas inclináveis. Um conforto.
No largo do Paissandu, a U.F.A (União de Filmes Alemães) construiu um ci-
nema, moderno, confortável e inusitado, para exibir filmes alemães: Marta
Eggert6 , Jean Kiepura 7 , etc. Antes do início da sessão, o palco se elevava e uma
orquestra já vinha subindo, executando partituras clássicas. O som era im-
pressionante, tal a alta fidelidade. Foi um acontecimento. O cine Odeon tinha
treis salas, exibindo filmes diferentes. Hoje isto é comum. O Park Shopping
de Brasília tem nove salas. Havia filmes com os famosos tenores, barítonos,
etc.: Caruzo, Tito Schipa, Beniamino Gigli, Daniel Lessa, Tito Guízar.8 Sem fa-
lar nos filmes nacionais: Carmem Miranda(seus últimos filmes foram rodados
nos EEUU), Mazaroppi, Grande Otelo, Oscarito, Virgínia Lane, e outras chan-
chadas.
\ [
O trabalho que fazia na Santa Basilissa, em contato com funcionários dos ban-
cos e das empresas; a convivência com uma série de serviços e o transar pela
cidade, abriu-me um horizonte novo, um raciocínio aberto e fez de mim, um
recém moço do interior, um homem amadurecido. Essa minha primeira es-
tada na capital paulista, foram meus anos dourados da mocidade. Deixou
saudades...
Saí da cidade de Cataguases(onde vivi de 1924 à 1934)em março de 1934,
logo depois do carnaval, acompanhando os irmãos Cunha, e só voltei em
agosto de 1937, assim mesmo porque ao completar 21 anos, fui chamado para
5
ex:
Zíngaro – ‘Já raiou o sol, o dia nasceu, põe-te de pé que a noite já passou.
Tens que prosseguir, teu destino Zíngaro é cantar...’
6
de origem húngara
7
de origem polonesa
8
Federico Arturo Guízar Tolentino
10.4. O ESCRITÓRIO DA CASA SANTA BASILISSA 145
Figura 10.9: Hircio e Javert, 1936 (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
A Vida na Caserna
P APAI escreveu-me informando ter sido, eu, chamado para prestar o ser-
viço militar . Não fiquei triste, pois foi opção que fiz, deixando de fazer
o ‘Tiro de Guerra’. Eu queria servir às Forças Armadas. Eu imaginava que seria
uma grande experiência, e foi. Todos os meus irmãos, com excessão minha e
do Joubert, fizeram o T. de Guerra.
Papai insistiu comigo, mas eu já havia decidido, e ele se conformou.
Chegando em Cataguases, passei uns dias em casa e depois fui fazer um
estágio de dureza, no sítio do vovô.
Eu achava ser necessário exercitar os músculos e o corpo, de um modo
geral. Assim, fui para a roça, pegar no cabo do arado e mesmo na enxada. Foi
nessa época, nos poucos dias que fiquei na roça, junto aos trabalhadores, que
eu levava as marmitas, inclusive para mim e para o Joel e Ito.
Precisavam ver o ‘cardápio’!
Meia marmita com angú, feijão, arroz, carne de porco, couve, abóbora,
xuxú ou vagem, e ainda outras iguarias(alternadamente), inhame, cará, man-
dioca, etc.
Os trabalhadores comiam o mesmo que ia para os tios Joel e Ito. Era isto!
Comia-se bem. Mas o trabalho na roça é dureza. É de sól a sól.
147
148 CAPÍTULO 11. A VIDA NA CASERNA
Figura 11.1: Recruta Javert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
11.2. INCORPORAÇÃO AO EXÉRCITO 149
\ [
\ [
Como eu já sabia montar, pois isto era comum na roça, não tive proble-
mas na aprendizagem. Agora, cavalo civil é uma coisa e cavalo, trotão, militar,
era bem diferente. Enquanto os primeiros era fácil de montar e cavalgar, os
segundos eram máus e tinham andadura diferente.
Inicialmente o recruta aprende a colocar o freio e os bridões, depois como
segurar o animal, à pé, depois aprende a montar e segurar as rédias(sic) do
freio e as rédias do bridão.
O primeiro cavalgar era sem os estribos(onde se apóia os pés). Era horrí-
vel! O animal trotava sem parar e haja bumbum para aguentar...
Tem que aprender o galêio do trote, e isso se consegue apertando os joe-
lhos na sela e flexionando as pernas para cima e para baixo, amortecendo o
trote. O primeiro dia dessa aprendizagem, ninguém conseguiu sentar...
O sóca sóca chegou a ferir o trazeiro.
Mas depois de aprender, cavalgar sem estribo faz pouca diferença.
O instrutor era um rapaz, também novo, recém saído da escola de ofici-
ais. Ele não devia ter mais que 22 anos. Praticamente da nosa idade, mas era
muito competente, enérgico e sabia dar a instrução.
A instrução era dada dentro do Quartel. Era ‘volteio’, marcha lenta e a
marcha dupla. Um volteio era num sentido e o outro ao contrário. Era um tal
de esbarrar uns nos outros que a gente acabava caindo. Aí o instrutor gritava:
‘– Quem foi que mandou você apear? Monte!’
Além disso ainda tinha as manhas dos animais.
Uma vez estavamos fazendo volteios num campo de futebol. e o cavalo
disparou comigo e passou, de galope, por baixo da trave do gôl. Não fosse a
minha presença de espírito, saltando logo, teria perdido a cabeça.
Outra vez montei um cavalo muito alto e fui para a instrução. De repente
o animal disparou comigo e só parou nas baias. Não ganhei pelo susto.
Nos volteios a gente caía do cavalo, porque cavalgávamos sem estibo.
Depois de estarmos bem treinados e familiarizados com os animais, o ins-
trutor saia para uma excursão fora do Quartel. Íamos longe, subíamos morro,
passávamos numa mata, a galope ou marcha lenta. Este foi o melhor exer-
cício que tivemos. Eu me tornei um bom cavaleiro, só perdi para um colega,
capichaba, que cavalgava na sua fazenda, desde menino.
\ [
Entre os vários serviços que cabia aos recrutas e mesmo aos soldados já
‘prontos’, tinha o ‘plantão’ na cavalariça. Consistia em lavar os animais, reco-
lher os dejetos, lavar as baias e a estrebaria.
11.2. INCORPORAÇÃO AO EXÉRCITO 151
Figura 11.2: Exercício de tiro (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Uma vez eu fui escalado para esse serviço e fui me apresentar ao Cabo da
faxina. Era um preto, homenzarrão e seu apelido era ‘Pantera’. Quando ele me
viu disse assim:
‘– Aqui não é seu lugar, recruta, seu lugar é lá na Casa das Ordens’
E não deixou que eu fosse fazer aquele serviço. Eu insisti com ele, e disse
que não queria nenhum privilégio e que eu não era diferente dos outros sol-
dados.
Não adiantou o meu protesto. Ele mandou-me de volta e então o Sargento
da Casa das Ordens, que faz a escala de serviços me chamou para uma entre-
vista.
Sabendo que eu era alfabetizado e que também era datilógrafo, tomou-me
como seu auxiliar na confecção do Boletim diário do Quartel.
Assim, como recruta, fazendo o curso de Cabo, eu passei às atividades ad-
ministrativas da Corporação; sem prejuízo das aulas e instruções.
\ [
A instrução de ‘ordem unida’ era dada por um oficial. Então a gente mar-
chava para lá, dava meia volta, retornava, dava ‘direita, volver’, ‘esquerda, vol-
ver’, ‘em frente, marche’. Era assim durante horas.
152 CAPÍTULO 11. A VIDA NA CASERNA
Um dia, havia chovido muito e o terreno estava num lamaçal. Nós pensa-
mos que naquele dia não haveria instrução. Lêdo engano. Lá vinha o tenente.
Comandou formatura, e como se nada tivesse acontecido, deu a instrução em
cima da lama. Quando terminou ele disse:
‘– Soldado é superior ao tempo.’
Dispensados, fomos para o alojamento, tomar banho, lavar a roupa e lim-
par as botinas.
Naquele tempo não havia ‘lavanderia’. Cada um lavava sua roupa, passava
e pregava os botões que caíssem.
Lavar a roupa era um drama, não pelo fato de ter que lavar; é que ao pô-
la ao sol para secar, precisava ficar ali vigiando, pois havia os aproveitadores.
O recurso era combinar com um colega para olhar enquanto eu ia almoçar.
Colocava o nome dele para o 2º rancho. Assim, eu voltava do almoço e tomava
conta das nossas roupas. Uma vez sêcas, guardava no armário até a hora de
passar à ferro. Este era aquecido à carvão de lenha.
É, naquele tempo não havia sôpa não. O soldado fazia todo serviço pes-
soal.
No dormitório a minha cama era a que aparentava mais bem arrumada(modéstia
à parte). O plantão do alojamento dava o modelo da arrumação da manta. To-
dos tinham que seguir.
A disciplina impera dentro do Quartel. Tocou ‘alvorada’, todos pulam, se
lavam, veste o uniforme, entra em forma e marcha para o rancho. Entram
no rancho e vão ocupando as mesas, sempre completando-as. Terminado o
desjejum, entra em forma e segue para a instrução. Assim é na hora do almoço
e do jantar. Após o término do expediente, quem não estiver escalado para os
vários serviços, querendo, pode sair do Quartel, menos os recrutas. Estes só
depois de passar a ‘pronto’.
A boia não era lá grande coisa, mas ali não tinha escolha. O sôldo do re-
cruta era 21$000. Para mim que não tinha despesas extas, dava para pequenas
despesas, supérfluas.
Figura 11.3: Cabo Javert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
\ [
Figura 11.5: A estação Central do Brasil após 1936 (selo comemorativo dos Correios)
Para melhor compreensão do relato que vou fazer, preciso recuar um pouco
no tempo, para fixar alguns acontecimentos.
É bem verdade que estes fatos só vieram ao meu conhecimento alguns
anos mais tarde. Eu já tinha dado baixa do Exército.
Em 1935 houve um levante comunista no 3º Regimento de Infantaria e
simultaneamente tomaram de assalto, na calada da noite, o 1º Regimento de
Aviação, localizado no Campo dos Afonsos 2 , em Marechal Hermes, havendo
em ambos locaes muitas mortes.
Nesse tempo o tio Celso3 estava servindo nesse Regimento de Aviação,
mas morava numa república, em Marechal Hermes.
Determina o Regulamento Disciplinar do Exército que, qualquer ocorrên-
cia grave, calamidade pública, ou acontecimento político havido num Quar-
tel, impedindo que os militares, residentes fora, retornem ao seu Quartel; ele
deve se apresentar em qualquer outra Corporação mais próxima de sua resi-
dência.
Desta forma os militares que se encontravam fora do Quartel do 1º Regi-
2
O Campo dos Afonsos é o berço da Aviação Brasileira, onde em 1911 começou a funcio-
nar o Aeroclube do Brasil, cujo presidente honorário era Alberto Santos Dumont.
Na década de 1930 havia uma linha comercial de Zeppelin entre o Rio e Frankfurt.
O próprio Villa-Lobos embarcou aí no tristemente famoso Hindenburg em 1936.
3
irmão da tia Lélia
158 CAPÍTULO 11. A VIDA NA CASERNA
estava à par de tudo e deve ter avisado por telefone aos treis militares que
‘foram acordados porque houve um levante’
Por via das dúvidas, eu me coloquei em posição estratégica de defesa, com
a arma 45mm pronta para atirar caso houvessse movimento pondo em risco
minha vida.
Pouco depois começou a chegar Oficiais e o Comandante. Pegaram cadei-
ras e assentaram ali junto do portão, como se fosse uma noite de São João!...
Em voz alta, como quem está aguardando a vitória do seu time, eles se
vangloriavam: ‘Já tomamos o Ministério da Marinha’. ‘Muitas Unidades do
Exército estão conosco...’
Eu ali do lado fiquei apavorado. Pois sentia-me só no meio de uma con-
tenda impatriótica.
E eu ainda era apenas um recruta.
Vejam só! como é que o Sargento sabia o que o General ia me perguntar num
inquérito!
Não era estranho?
Apresentei-me ao General e ele foi logo me perguntando se eu sabia existir
algum militar integralista, ali no Quartel!?
Ora que pergunta! Se a pergunta fosse ao contrário. Se eu sabia de alguém
que NÃO fosse integralista. Diria:
11.6. UM RECRUTA IMPORTANTE 161
‘– Eu!’
‘– É! vai almoçar, mas depois volte aqui, porque eu acho que você
não está dizendo a verdade.’
Fui almoçar e depois procurei sondar e ninguém, a não ser eu, fôra cha-
mado pelo General.
O Sargento veio dizer-me que o General já tinha ido embora.
Pois é! disse eu para meus botões: Esse General deveria ser Integralista e
informado pelo Sargento, também integralista, veio aqui sondar minhas rea-
ções.
E se eu dissesse ou denunciasse algum ‘verde’, certamente me acusariam
de comunista. Pois não foi assim que eles agiram em 1935?
Esse episódio em minha vida veio confirmar a assistência espiritual que
Deus me deu. E ainda me dá.
Aquele assunto morreu.
Após a minha graduação a 2º. Cabo, o curso continuou para 1º. Cabo e eu
o concluí com aprovação.
Ali naquele Quartel aprendi muita coisa e exercitei muito as atividades
profissionais.
Todas as noites saia uma patrulha com seis soldados para Cascadura e Ma-
dureira. Era das 18 às 24 e das 24 às 6 horas. Função: evitar envolvimento de
militares em atritos e evitar desordem pública, como já disse atraz.
162 CAPÍTULO 11. A VIDA NA CASERNA
Como o 1º Grupo de Artilharia de Dôrso não tinha vaga para 1º. Cabo, e eu
queria essa promoção, a solução seria procurar outra Unidade com vaga para
essa graduação.
Assim, pedi transferência para o 1º Regimento de Artilharia Montada, lo-
calizado em Deodoro, onde havia vaga, mudando-me para lá em 01.08.1938,
prestes a completar 22 anos.
Figura 11.6: De uniforme engomado, no 1º. R.A.M. (foto do acervo pessoal de Javert
Lacerda Santos)
Figura 11.7: Javert e o Krupp, 1938 (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
\ [
Figura 11.8: ‘Chope duplo’ conquistou os cariocas em 1928 (foto do acervo da Light)
\ [
Figura 11.9: Joubert Lacerda (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
169
170 CAPÍTULO 12. 1939 – RETORNO A CATAGUASES
Figura 12.1: Paquetá, 1946 (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
de construção.
Mamãe, embora com os filhos fora ainda tinha a casa cheia. Morava lá a
tia Maria e algumas primas.
Papai havia sido dispensado da Casa Felipe, juntamente com o Sr. Sera-
fim Diniz. Soube que foi depois da Lei Trabalhista que previa a aposentadoria.
Como a Lei era nova e desconhecida, eu imaginei que a firma supunha que o
ônus da aposentadoria seria dela e assim preferiram alterar a Sociedade, dis-
pensando os sócios por comandita.
Só sei que Papai ficou desempregado e com uma dívida de dez contos de
réis, podendo pagar cem mil réis por mês.
O que o Sr. Jovelino, Fonseca e Raul fizeram com Papai e Sr. Serafim, ficou
sem qualificação. Ele trabalhou mais de quarenta anos na Casa Felipe. Mas
Papai era homem honrado e de bons princípios. Não quiz que os filhos ficas-
sem agastados com os ex-sócios. De forma que todas as vezes que um filho
ausente fôsse à Cataguases, ele nos levava até a firma para cumprimentar o
Sr. Raul e o Sr. Fonseca, já que o Sr. Jovelino morava no Rio de Janeiro.
Era uma situaçào constrangedora, mas denro dos ensinos evangélicos,
que Papai cultuava.
O Joubert éra mais arredio e sempre fugiu a esse constrangimento.
De fato aqueles ex-sócios agiram mal com um companheiro da primeira
hora.
Mas não se podia esperar bôa coisa daqueles homens, ingratos.
171
Teve uma época que Papai viajava constantemente para a firma. Mas não
era de trem, era no lombo de burro. A firma tinha duas fazendas de gado, uma
na ‘Serra da Onça’, e a outra na ‘Pedra Branca’.
Numa dessas fazendas, havia um acôrdo ara compensar o desgaste físico
de Papai, nessas andanças, montado na sela das mulas.
Tôda cria que nascesse pertenceria ao Papai. Durante alguns anos, todas
as vacas davam cria, e Papai andava animado com bôas perspectivas.
Um dia ele foi procurado por um fazendeiro, seu conhecido, que queria
saber pormenores sobre a fazenda que ele havia comprado com ‘porteira fe-
chada’, da firma.
Aquele dia eu vi a reação do Papai.
Ele não conversou. Foi na fazenda e vendeu todos os bezerros que lhe
pertenciam. Disse-me ele que ninguém contestou sua atitude...
De forma que ao voltar do serviço militar, para casa, Papai já estava na sua
nova lide e liberto da ‘escravidão’ que passou na firma: Henrique Felipe & Cia.
Figura 12.2: O Trio Calafrio da Casa Felipe: Raul, Fonseca & Jovelino (foto do
acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Ele montou seu escritório lá em casa. O quarto onde eu dormia, ele dividiu
ao meio com uma meia parede, ficando com a parte da frente; e na outra parte
havia duas camas. Numa delas o vovô ocupava, desde que desfez do sítio ‘Belo
Horizonte’.
Vovô já andava doente e alguns anos mais tarde constatou que ele tinha
câncer na próstata. Vovô sofreu muito. Eu então passei a ocupar a outra cama
e servia-lhe de ‘enfermeiro’. Eu nunca havia presenciado tanto sofrimento e
tanta resignação.
172 CAPÍTULO 12. 1939 – RETORNO A CATAGUASES
Apesar do seu estado grave, no intervalo das dôres, se é que assim poderia
dizer, ele pedia um parceiro para jogarbaralho com ele. Era a Mamãe, ou eu,
ou o Joel, ou qualquer outro que estivesse disponível.
Mamãe e eu jogávamos seguidamente e embora fosse difícil ganhar dele,
não se podia ganhar. Vovô ficava fulo de raiva e aí as dores pioravam. Mas
quando ele ganhava era aquela alegria de criança. Afinal o jogo era sua distra-
ção para as dôres.
Às vezes o tio Nanando aparecia por lá para jogar, mas sabia das regras...
O tio Joel é que éra o problema. Não se conformava em perder para agra-
dar o pai. Mamãe tinha que olhar feio para ele aceitar.
Cada noite que eu passava ao lado de vovô, acreditava que ele não iria
longe. Vovô me dizia que as dôres eram como se fossem fogo por baixo. Ele
não conseguia dormir estendido na cama, era ajoelhado sobre almofadas no
chão e debruçado na cama.
Com a divisão do quarto-escritório, por uma meia parede, Papai traba-
lhava e ficava de sentido no sôgro.
Pois o Vovô ainda viveu alguns anos mais, vindo a falecer em 25.12.45.(85
anos)
Quando eu voltei para o lar, Papai já tinha superado a crise, e levava uma
vida calma e tranquuila, economicamente também. Sua carteira dda Sul Amé-
rica crescia a cada ano, dando-lhe ganho razoável. Papai agora era ‘senhor de
seu nariz’. Levantava à hora que queria e seu trabalho era ali mesmo. Tran-
quilo e rendoso. Como os seguros eram renovados todos os anos e sempre
vendia mais, o movimento de dinheiro nos Bancos era grande, dando a im-
pressão que Papai era rico. Mas o dinheiro que ele movimentava nos Bancos
era da Sul-América.
Até o Sr. Jovelino Santos, seu ex-patrão, achava que Papai tinha ficado rico.
O Sr. Jovelino morava numa casa enorme, ali na avenida Astolfo Dutra,
com diversos quartos e a parte térrea nem era usada. Morava só com a esposa,
pois as filhas viviam no Rio.
Pois bem. Um dia apareceu lá seu sogro, doente, era tuberculoso, pensa
que ele hospedou o pai de sua esposa lá na residência? Nada disso, alugou
uma casa, pôs lá uns móveis e sabe quem cuidou do velho até sua morte?
Papai!
Papai providenciou o caixão, vestiu o cadáver e providenciou todo o se-
pultamento e acompanhou o entêrro até o cemitério.
Na hora de vestir o cadáver, na presença do Sr. Jovelino , Papai encontrou
um bôlo de dinheiro do velho e colocou sobre a estante.
Depois do funeral o Sr. Jovelino disse para o Papai:
A única coisa que Papai aceitou foi a escrivaninha de madeira. Mas o di-
nheiro que ele deixou e que Papai pôs sobre a mesa tinha ‘evaporado’...
Papai quando nos contou o caso, ainda brincou:
Figura 12.3: Olga na Leopoldina (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Capítulo 13
175
176 CAPÍTULO 13. RETORNO À VIDA MILITAR
Para fazer o café da manhã, por exemplo, foi calculado dois quilos de pó
de café. Feito o café, todos tomaram. Na hora do almoço, mais dois quilos
de pó de café, pois os arranchados eram os mesmos. Mas a bôrra do café
da manhã não foi jogada fora, e ainda menos o coador foi lavado. O Taifeiro
coloca um quilo de pó de café em cima da bôrra que ficou no quador, despeja
água fervendo e pronto! O café foi servido. Um quilo de pó de café que ele
não usou é escamoteado e à noite o Taifeiro levava para sua casa, ou vendia.
A farinha não era consumida mas o Taifeiro retirou a cota do dia. Para
onde ia?... A mandioca, o repolho, a couve, a abóbora, o xuxú, eram retirados
em ‘jacás’2 do almoxarifado. Assim por diante. O teórico nem sempre é o
prático.
As sobras das bandejas, consequência proposital de terem sido mal cozi-
dos, para não serem consumidos; com os legumes, que nem foram usados,
mas retirados do almoxarifado, iam ‘engrossar’ os tambores de ‘restos’ que
saíam à noite. Tudo legal? Éh!
Aqueles ‘restos’ de comida iam engordar os porcos de algum chacareiro e
os bolsos de outro alguém. Uma ladroeira disfarçada.
Tudo isto ainda era ‘café pequeno’ para outras coisas que sumiam do al-
moxarifado. Uma vez um oficial de serviço resolveu mandar examinar os tam-
bores de ‘restos’ e encontrou bandejas, talheres e pratos...
Mas, felizmente ainda existem valôres.
Durante o tempo que trabalhei na administração do almoxarifado de ma-
terial e não do de gêneros, conviví com um oficial intendente3 , à quem cabia
efetuar todas as compras de material para aviões, máquinas, aparelhos, etc.
Ali eu vi como é difícil ser correto, ser honesto. Os vendedores ofereciam
brindes de toda espécie para o oficial, mas eu nunca vi ou soube que ele ti-
vesse aceitado um presente, siquer. Coisa rara.
Durante o tempo que servia lá, paralelamente me preparei para o curso de
Sargento, sendo julgado apto.
Figura 13.1: Situação de Mal.Hermes e Campo dos Afonsos (obtido na web de Goo-
gle maps)
Era uma casa com treis quartos, banheiro e cozinha. Num quarto morava
o Celso e um civil, no outro o Joubert e eu, e no outro dois irmãos amazonen-
ses. Eles eram os donos da ‘república’. Seus ‘rob´(hobbies): criar cachorro de caça
e galos de briga. Um era Sargento instrutor de educação física, o outro era
Cabo. A cama deles foi forrada com cobertor, ‘no dia que alugaram a casa’, e
nunca mais foi arrumada. Devido o calôr do Rio de Janeiro, ninguém se co-
bria.
Nosso quarto era arrumado diariamente e aos sábados eu e o Joubert la-
vávamos a casa tôda. Menos o quarto deles. Não deixavam. O quarto era um
chiqueiro de assoalho. De manhã quando eles iam para o Parque de Aviação
deixavam a cadela com as crias nas camas deles...
178 CAPÍTULO 13. RETORNO À VIDA MILITAR
Um sábado que eles sairam para uma passeio, nós aproveitamos para la-
var, também, o quarto deles e dar uma arrumação. Ao levantar a manta que
forrava a cama do Sargento, o colchão estava preto de percevejos e pulgas.
Um nôjo. Mas enquanto eu morei lá a casa era varrida diariamente e lavada
aos sábados. O Joubert era bom numa faxina.
O civil que morava lá ficou ‘de mau’ com o Joubert porque ele vivia elogi-
ando sua noiva, que era uma prenda de moça. Ela mal deixava ele pegar sua
mão. Ele achava-a uma santa; e aí, certo dia o Joubert viu a dita ‘prendada’
namorando outro rapaz. Ficaram sem falar entre si, muito tempo, até que o
Joubert, um domingo, voltando para casa disse ao rapaz:
‘–Fulano, ele se chama Gualter, você que acha sua noiva muito
prendada, vai agora lá atrás do campo de bola e você vai encontrá-
la pendurada no pescoço de um rapaz...’
\ [
\ [
Respondeu-me:
eles estavam os motoristas que dirigiram as carretas com material do cáis para
o Depósito do Cajú, quando eu era o encarregado.
Nunca fui incomodado por isso. Graças a Deus.
\ [
Figura 13.2: Olcer, Elizabeth, Edith e Julita (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
Figura 13.3: Idalina, a ´Maninha’ (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
* * *
Ela gostava éra do Rubens. Mas o primo Levi, paciente, aguardou, até que
Maninha compreendeu a inoportunidade de alimentar esperanças com o Ru-
bens e acabou aceitando o cortejar do Levi, casando-se com ele. E o Rubens,
mais tarde casa-se com uma moça de Macaé, onde ele trabalhava no Banco
Predial.
Como eu disse, os casamentos entre primos sempre existiu, desde os pri-
mórdios da humanidade. Não era nada mais e nada menos, a consequência
do convívio em família.
5
vide Capítulo I
186 CAPÍTULO 13. RETORNO À VIDA MILITAR
Figura 13.4: O tio José, pai de Edith (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Creio que foi devido ao bom conceito que eu desfrutava que acabou conven-
cendo meu Comandante a nos dar a dispensa.
13.7. CASAMENTO DE OLCER-EDITH 22.01.43 187
Figura 13.5: Casamento de Olcer e Edith, Cambuci, 1943 (foto do acervo pessoal de
Javert Lacerda Santos)
Depois do almoço, cada um foi fazer sua sesta, para descançar do almoço.
O alvoroço que causou em Cambuci, com a chegada de oito guapos rapa-
zes, foi a nota máxima que se observou durante o dia todo.
Pela tardinha os convidados começaram a chegar à cidade. A festa ia con-
tinuar e o ponto alto seria o baile.
A cidade não tinha salão de baile mas tinha um armazém de café, vazio.
O chão de táboas corridas tinha muitas gretas. Procuraram calafetar o que
pode, e na hora do baile despejaram fubá pelo chão e no dançar as frestas iam
sendo calafetadas. No fim do baile o chão parecia encerado.
Na hora do baile as moças davam preferência aos filhos do Sr. Jota e os
rapazes da cidade faziam tudo para se mostrarem.
Eu dancei com uma garota fêia chamada Anóca e ela me contou que os
rapazes da cidade estavam disputando quem dançava melhor.
188 CAPÍTULO 13. RETORNO À VIDA MILITAR
Ah! Mas foi uma festa e tanto. O Jocer, o Rubens e eu, dançávamos muito
bem, e isto causou disputa. Foi fabuloso...
Essa moça não largava do meu pé. Onde eu ia, ela ia atraz. Aluguei uma
bicicleta para rodar na cidade, e acabei tendo que carregá-la no quadro. Era
uma sarna. Fui dormir na casa de um primo chamado Nonote, em Pureza,
outra cidade ali perto. Pois não é que ela foi lá e acabou dormindo num quarto
que era passagem para o (quarto) em que eu dormi!
Entrei pro quarto e fechei a porta. A parede divisória era sem fôrro, aí ela
jogava a almofada para o meu quarto e eu devolvia para o dela.
Eu tive medo de assédio e encostei um móvel na porta, pois a mesma não
tinha tranca...
\ [
Figura 13.6: Dona Olga e seus 8 filhos (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Figura 13.7: Escola Técnica de Aviação (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
18:00 e lanche às 21:00 horas. Só de pão o consumo era: 48.000 por dia. A
alimentação era farta e variável.
A modalidade do ensino era audiovisual. Os alunos recebiam todo o ma-
terial necessário. Em cada matéria que o aluno iniciava, recebia um caderno,
um lápis, uma borracha, etc. Era uma fartura em tudo. Esta escola consumia
mais verbas que todo o Ministério da Aeronáutica, a quem estava subordi-
nada.
Os professores, homens e mulheres, eram todos norte-americanos. Fala-
vam razoavelmente o português, mas sabiam escrever corretamente. Os ins-
trutores militares eram oficiais infantes da reserva, convocados. Todos os De-
partamentos tinham material suficiente para ministrar aulas simultâneas, a
mais de quinze alunos.
No departamento de instrumentação de avião, especialidade que escolhi,
tinha tantos aparelhos de testes quanto eram os alunos. No básico deste De-
partamento, onde os alunos aprendiam a fazer eixo de relógio, tinha um torno
de relojoeiro para cada aluno. Assim era em todos os departamentos.
Cada sala de aula tinha seu projetor, que lançava na tela, em detalhes as
matérias ensinadas. Tudo em desenho animado. O Professor desenhava uma
peça a ser confeccionada, com as dimensões e os alunos, a partir de uma
chapa ou vergalhão, moldava a peça.
O aluno munido da sua serra(cada aluno tinha suas ferramentas)cortava
um pedaço de ferro e transformava na peça solicitada.
13.9. ESCOLA TÉCNICA DE AVIAÇÃO 191
Figura 13.8: Simulador de Vôo (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Joubert, que não queria nada com estudo, e chamei-o para a escola. Ele veio
e se formou especialista em avião.
Figura 13.9: Sargento Javert e Cabo Joubert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
Figura 13.10: Formatura da E.T.A. (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Uma coisa, também que chamou a minha atenção era o serviço de saúde.
Todos os alunos e estagiários tinham sua saúde sob contrôle da enfermaria.
Quando eu saí do Parque dos Afonsos para a Escola, eu já havia passado por
um exame de sangue e constatara sífilis. Logo que cheguei à Escola, como
todos, fui ao exame de sangue que se confirmou. Dali por diante e durante
todo o tratamento, que durou 6 meses, o Boletim diário da Escola, publicava:
‘–A sua produção é muito pequena e você ainda vem pedir uma
dispensa?’
Aí eu retruquei:
Ele respondeu:
195
196 CAPÍTULO 14. REGRESSO AO RIO DE JANEIRO
Ele desconversou. No dia seguinte ele passou a mandar testar todos os apare-
lhos dados como bons. Muita coisa mudou.
Figura 14.1: Reparo de instrumentos (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Pouco tempo depois eu já estava tão prático nas revisões(eu usei a estra-
tégia de só reparar o mesmo tipo de instrumento até esgotar seu estoque no
depósito. Com esta prática eu conseguia reparar até quatro por dia. E nunca
soube que instrumento reparado por mim, voltasse com defeito de conserto).
14.1. PROMOÇÃO À 2º. SARGENTO 197
Figura 14.4: José e Hilda (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
\ [
passava a tarde e a noite na janela, ‘pescando’ as mulheres que por ali passa-
vam.2
Quando morei lá no Engenho de Dentro, eu andava mal de saúde. Tinha
uma canseira inexplicável. Às vezes para caminhar algumas quadras até à
estação do trem, que me levaria até o Parque dos Afonsos, eu me sentia tão
fraco, que esperava o bonde, sentado no meio-fio, para me levar à estação da
Central, que era ali perto.
Procurei os médicos da Unidade e eles não encontraram nada que justifi-
casse o cansaço. Os médicos só faltavam dizer que eu estava blefando. Diante
dessa situação pedi uma junta médica para me examinar. Em 31.01.47, a junta
opinou pela minha baixa ao Hospital Central da Aeronáutica.
Durante 50 dias fiquei no Hospital. Extraíram minhas amigdalas(sem ne-
cessidade); o médico cirurgião, bravo, falou-me que se tivesse outros pacien-
tes como eu, deixaria de operar. Ele levou 4 horas para operar-me, quando
normalmente gasta apenas 20 minutos. Como eu disse: não tinha nada na
garganta. As amigdalas não eram salientes e nem estavam inflamadas.
Depois acharam de operar o nariz, dizendo que havia desvio de septo.
Nem sabia o que era isso. Enfim, fizeram de mim uma cobaia. Não encon-
traram nada que justificasse, aparentemente, o meu cansaço. Saí do Hospital
com menos peso e na mesma situação.
Durante o tempo que fiquei no hospital, li muito, por exemplo: ‘O Corpo
Humano’(2 volumes) e ‘Nossa Vida Sexual’, ambos do Dr. Fritz Kan, alguns
romances e livros espíritas, jornais diários e revistas. As enfermeiras não que-
riam que eu lêsse. Ora essa é bôa!...
Apareceram por lá umas alunas da Escola de Enfermagem Ana Neri, e en-
tre as alunas estava uma concidadina, a senhorita Nely Bastos. Veja só, uma
conterrânea. Ela não quis muita conversa comigo. Só trabalho. Era compene-
trada das suas atribuições. No dia seguinte à minha operação elas apareceram
lá na enfermaria e disseram que iam me dar um ‘banho de cama’. O quê? Sái
dessa! Quando elas apareceram eu já tinha entrado no chuveiro e tomado o
‘banho em pé’!...Foi aquela incriminação...
Na enfermaria tinha um Soldado que há seis meses sofria de úlcera no
estômago e não apresentava melhoras. Então eu disse a ele que sabia de uma
receita, espírita(quer dizer, ditada por um espírito de médico). Consistia no
seguinte:
Ele pediu alta do Hospital e disse que iria pensar na receita. Anos mais tarde
encontrei-o e ele disse que ficou curado, com aquela receita.
No dia 21.03.47, tive alta do Hospital, ‘curado’. Que vergonha. Como po-
dem mentir profissionalmente... No dia 25.03.47, entrei de férias e fui para
Cataguases. Não há como a nossa cidadezinha e a nossa casa, para revigorar
as energias.
Mamãe continuava sua vida com mais repouso, já que não tinha mais fi-
lhos para cuidar e o companheiro para alegrar a vida. Ela aproveitava para
visitar os filhos, ora em Macaé, ora em Três Rios, ora no Rio, em casa da tia Lé-
lia, onde nós nos reuníamos. Algumas vezes eu ia encontrá-la em Macaé, na
casa do Olcer, onde ela procurava animar o filho. Desde que o banco fechou e
não o indenizou, de acôrdo com o tempo que lá trabalhou e que tinha direito,
degostou-se e se entregou à bebida.
Rubens e Maurício procuraram ajudá-lo, chegaram a montar um negócio
para ele ocupar o tempo; mas tudo foi em vão. Ele acabou desencarnando
pelo efeito da cirrose. Alguns anos depois a Edith, também, mudou-se para a
‘morada’ de lá...
\ [
Mamãe foi para o Rio e hospedou-se em casa de tia Lélia. E lá todos nós tinha-
mos mais facilidade em visitá-la e algumas vezes levá-la a passeios na cidade.
Uma vez levei-a até o ‘Cristo Redentor’. Foi uma caminhada penosa para ela,
subir aquela escadaria toda. Mas compensou. A vista era maravilhosa.
Uma vez levei-a para assistir a parada militar de sete de setembro. Fo-
mos cedo. Ficamos no alto das arquibancadas e só descemos quando o povo
já tinha se mandado. Visitamos o primo Hircio, lá na Urca e assim procurei
proporcionar a ela alguns outros passeios bons.
Mas agora ela estava em sua casa, descontraída, tranquila, frequentando
as reuniões espíritas e deixando o tempo correr ao Deus dará.
Durante o dia eu fazia alguma coisa em casa e à noite eu saia para passear
na Praça Rui Barbosa ou ir ao cinema ou ao clube social. Os rapazes do meu
tempo já eram escassos, de forma que o futingue em torno dos jardins, na
Praça Rui Barbosa era a melhor opção. Na antevéspera de regressar ao Rio,
aconteceu uma coisa maravilhosa que modificaria minha vida futura.
14.2. DESENCARNE DE PAPAI, 1946 203
Figura 14.6: A enfermeira Nely Bastos (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
14.2. DESENCARNE DE PAPAI, 1946 205
Figura 14.7: Olga no Pão de Assucar (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Capítulo 15
207
208 CAPÍTULO 15. NASCE UMA ESTRELA
Mas tudo foi superado e passamos a trabalhar de acôrdo com o que aprende-
mos e os serviços ficaram mais fáceis e confiáveis.
\ [
Toda manhã apos o café tinha educação física, finalizando com uma cor-
rida até à cabeceira da pista(2 quilômetros). Quem disse que eu conseguia?
O instrutor falava mas as minhas forças não ajudavam. Aliás, minha ida para
São Paulo foi exatamente por causa dessa fraqueza.
Então fui procurar um médico que conheci na Escola Técnica, quando lá
me formei. E ele, depois de minucioso exame, concluiu que eu estava com o
sistema nervoso abalado. Receitou-me e disse que em pouco tempo eu estaria
em forma. E foi o que aconteceu. Em pouco tempo eu já podia acompanhar
a turma na corrida.
\ [
210 CAPÍTULO 15. NASCE UMA ESTRELA
\ [
\ [
Num vôo que tomei parte, até o Rio, deu-se um acontecimento sério.
Eu viajava na sub-fuselagem do avião A-20(na barriga do avião) e um arti-
lheiro no nariz do avião e o piloto na cabine.
No regresso para São Paulo, poucos momentos depois da decolagem, ouvi
pelo interfone um aviso:
212 CAPÍTULO 15. NASCE UMA ESTRELA
Figura 15.2: Base Aérea de Santa Cruz (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
O calôr dentro do avião era muito e eu havia retirado a camisa, mais que
depressa coloquei o paraquedas, abri o alçapão e fiquei esperando qualquer
instrução. Nada.
Olhando para baixo, fui identificando os lugares por onde voávamos. O
avião estava voando alto, mas quando atingimos o planalto, a altitud relativa
era baixa, e eu reconheci a represa Bylling(sic) e em seguida as cidades se su-
cediam. Como já passava mais de quinze minutos e nada ocorrera, fiquei mais
calmo e em poucos minutos sobrevoamos a capital paulista e logo pousamos
em Cumbica.
Logo que desci do avião, perguntei ao piloto se na viagem ele havia se co-
municado com o tripulante da sub-fuselagem.
Respondeu-me que não. Então contei o que houve. Ele chamou o arti-
lheiro e indagou. Ele disse que quiz me dar um trote. O Sargento foi repreen-
dido.
Figura 15.3: 1º Sargento Javert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
À 03.09.49, fiz parte de uma equipe designada para trazer do Rio para São
Paulo, voando, cinco aviões que estavam na Base Aérea do Galeão, enferru-
jando.
O Chefe dos mecânicos, um Sub-Oficial, quando viu o estado em que se
encontravam os aviões, quase desertou. Era só ferrugem nos motores. O Capi-
tão Faria Lima, querendo salvar a pele do irmão oficial, também, responsável
pelo abandono dos aviões à beira mar, disse ao Sub-Oficial que queria ver os
aviões funcionando logo. Então foi um tal de jogar querosene nos motores e
girar as hélices para tirar a ferrugem.
Levou uns dez dias para que os aviões ficassem em condições de funcio-
214 CAPÍTULO 15. NASCE UMA ESTRELA
\ [
Quando fui transferido para São Paulo, hospedei-me numa pensão fami-
liar no Brás, à rua Piratininga, perto da Estação do Norte, onde se tomava o
trem até o povoado (uma parada, ainda nem era Estação, hoje é cidade) Er-
melindo Matarazzo. Dali tomava-se caminhões até a Base.
Nessa rua Piratininga, morava um cidadão italiano com outro irmão e
uma irmã. Eram alfaiates de profissão e espíritas de devoção.
Durante todo o tempo que ali morei frequentava as reuniões mediúnicas
ali realizadas. Tenho até um livro que o Sr. Anito Dal Prá me ofereceu por
ocasião do meu aniversário: ‘À Caminho da Luz’. Este livro está na minha
estante.
Em companhia do tio Celso, eu assisti diversas reuniões. Mas uma delas
me impressionou bem, pois eu conheci e assisti trabalhos com um médium
de raro dom mediúnico.
Era um rapaz de uns 15 a 16 anos. Os Espíritos se manifestavam atra-
vés de sua mediunidade com a própria voz, gestos e linguajar. Por exem-
plo: manifestou-se o espírito de uma ex-prostituta, banguela e analfabeta.
Era perfeito o personagem(sic). Xingamentos, zombaria, deboches, etc.
Depois um outro Espírito se manifestou por ele. Era como se eu estivesse
assistindo uma espanhola cantar e sapatear, dedilhando castanholas. Tive
que abrir os olhos para ver que não estava sendo iludido. Incrível. Só conhecia
este fenômeno na literatura espírita.
Acontecimentos outros, também, que só conhecia pelas obras da codifi-
cação, eu vi com meus olhos, abertos.
Eu frequentava a Federação Espírita do Estado de São Paulo, desde a ou-
tra vez que lá morei. Assistia as palestras dominicais de Vinicio(Pedro de Ca-
margo), todos os domingos. Lá também havia diversas atividades, inclusive
uma reunião mediúnica, de efeitos físicos: materializações luminosas, trans-
porte de flores, de objetos.
Numa sala de regular tamanho, com acomodação para 40 pessoas. As por-
tas e janelas eram fechadas e cortinas pretas para evitar qualquer luminosi-
dade. Antes do início da reunião, qualquer dos presentes poderia examinar
tudo. Numa cabine fechada, ficava o médium, amarrado a uma poltrona, pe-
sada. Entre o público e a cabine havia uma mesa com objetos pintados com
tinta fosforecente(para serem vistos no escuro). De um lado uma pequena
mesa com uma vitrola e diversos discos e uma cadeira para o dirigente da
reunião. Apagava-se as luzes e era proferida a prece inicial. Depois era só
silêncio e aguardar o fenômeno.
15.2. PROMOÇÃO À 1º SARGENTO 215
Nas três ou quatro vezes que participei dessas reuniões, vi e ouvi fatos
que já havia tomado conhecimento pela literatura espírita, principalmente
na obra de William Crookes, sábio de renome internacional, que por intermé-
dio do médium Florence Cook, obteve em seu laboratório, à plena luz do dia,
a materialização do Espírito ‘Katie King’, podendo com ela passear pelo labo-
ratório, na presença de ilustres convidados, medir a sua pulsação, auscultar o
coração, cortar uma mecha do seu cabêlo e de seu vestido, vendo em seguida
a sua reconstituição, etc. Tudo isto está no livro ‘Fatos Espíritas’.
Mas de corpo presente, assistir e vêr os fenômenos é outra coisa.
Este trabalho só se obtém com a colaboração de Espíritos imperfeitos, mas
simpáticos e voluntários. Depende da vontade deles.
Os fenômenos são realizados na completa escuridão. Quando a demons-
tração se conclui o Espírito dá um sinal, e aí é acesa a luz. Vou contar como
assisti:
Acomodados os participantes, foram apagadas as luzes, logo se escuta a
colocação de um disco na vitrola – é o próprio Espírito que escolhe o disco.
O dirigente da reunião que há anos vem dirigindo este tipo de manifestação
mediúnica, comunica aos presentes que pela música ele sabia qual Espírito
estava presente. Isto não era tão importante. Objetos flutuavam pela sala
sobre nossas cabeças.
O médium que se encontrava preso à poltrona, na cabine, foi transportado
para cima de outra cabine a uns quatro metros de distância.
De outra vez, o médium foi transportado para dentro de uma cabine de
ferro, com a porta fechada a cadeado e corrente. Quando acenderam a luz, lá
estava o médium, em sono profundo, preso na cabine de ferro. Ninguém ou-
viu barulho de correntes no ferro. Sempre no final desses trabalhos os Espíri-
tos deixam uma lembrança. Jogam perfume sobre as pessoas e ramalhetes de
flores frescas do orvalho, como se colhidas naquele instante. Até me ardia(m)
os olhos com o perfume.
Tudo isto num recinto fechado, por mais de duas horas, com 40 pessoas
ali, todos se abanando de tanto calor. No entanto quando era espargido o
perfume, todos aspiravam o perfume e já não sentiam mais calor.
Também era comum no final dos ‘trabalhos’, os Espíritos deixarem sobre a
mesa castiçais surrupiados da igreja próxima, dando trabalho ao dirigente da
reunião, devolvê-los no dia seguinte. Essa devolução já era tão constante que
o padre até achava graça.
\ [
quem gostava de dançar não tinha melhor lugar. As orquestras eram excelen-
tes, as dançarinas eram inigualáveis. Era realmente um prazer dançar com
aquelas mulheres. Só que não dava para ir sempre. Era muito caro.
As orquestras não paravam, de vez em quando uma parava e a outra to-
cava. Ao entrar no dancing, a gente recebia um carnê picotado em quadri-
nhos.
Ao entrar na pista de dança as luzes iam piscando e as dançarinas iam
anotando. Quando a gente parava ela pegava o carnê, levava para o fiscal
picotar quantas vezes ela dissesse que a luz piscara enquanto dançávamos.
Na saída pagava-se, no caixa.
Mas os Sargentos eram tão constantes lá no dancing, que para ‘facilitar’ o
adiantamento de dinhairo para a noitada, havia um ‘caixa’. Um colega, agiota,
que bancava ali, na hora, o que cada um precisasse, a 20% no fim do mês. No
dia do pagamento o agiota estava lá na porta, com a lista na mão recolhendo
o seu lucro. Por isto é que eu ia lá poucas vezes. Como eu disse, era caro.
As orquestras eram outra atração. Valia a pena ficar ali na mesa, consu-
mindo água mineral, só para ouvir as orquestras.
Figura 15.4: Baile caipira (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Figura 15.6: Ao querido Javert, afetuosamente, dedico. Sua noiva. 1-2-49 (foto
do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
220 CAPÍTULO 15. NASCE UMA ESTRELA
Figura 15.7: Nilcéia e Mirtes (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda Santos)
Mais tarde, já no ginásio tive um colega com quem afinei, e uma vez ele
chamou-me para ir estudar com ele em sua casa. Fui. Lá fiquei conhecendo
sua família. Eram de Miraí. Sr. Álvaro Rezende, D. Amália, Nilcéia, Mirtes,
Dirceu e o colega Nilson.
Simpatizei-me com a Nilcéia, uma garota de 11 anos. Eu tinha 15. Não
disse nada, não falei nada, mas volta e meia ia ‘procurar’ o colega. Acabei
ficando amigo da família. O pai era farmacêutico e fabricava um remédio que
era ‘embalado’ em casa. E eu ajudava a colocar os rótulos.
Em 1934, seguiria para Santos e então fui despedir-me da família.
Em São Paulo, visitando uma família conhecída, de Cataguases, vi o re-
trato da garota. Ela era namorada do Jefinho.
Reencontrei essa família seis anos depois, morando em Niterói e eu no Rio.
Voltei a frequentar a casa deles. O Sr. Álvaro e o Dirceu faleceram, a Mirtes
15.6. PREPARATIVOS PARA A UNIÃO CONJUGAL 221
casou-se e tem um filho. A Nilcéia casou-se e teve dois filhos. D. Amália ainda
vive e mora com a Nilcéia.
Ainda me lembro de uma vez que fui almoçar lá, elas ainda eram solteiras,
e a Mirtes me perguntou:
Depois que saí de Cataguases, e por onde andei, também não tive namo-
rada. Fazia as amizades ‘seletivas’ para a futura ‘colheita’, mas no final, na hora
do vamos ver, eu é que fui ‘colhido’, por quem nunca antes havia pensado.
Figura 15.8: Casamento de Nilza e Javert (foto do acervo pessoal de Javert Lacerda
Santos)
\ FIM [
Figura 15.9: Cartão anunciando o casamento (cartão do acervo pessoal de Javert La-
cerda)
223
224 Lista de Figuras
Lista de Figuras