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O Mundo Particular de

Marturinhas
Marta Oliveira
Sobre a autora

Marturinhas escolheu ser matemática, quando as histórias daqueles ma-


temáticos e suas descobertas encantaram-na suficientemente, tentando
ela, assim, a viver aquele mundo encantado. Mas ela não escolheu ter o
dom da criação ou imaginação. O dom que a escolheu.
Ela se lembra em cenas borradas das primeiras "invenções noveleiras",
um tanto sem sentido; das primeiras músicas aos oito ou nove anos;
do seu grande amor, responsável por lhe dar tantas ideias e romances,
criados para suprir aquele sentimento condena do a ser eternamente
platônico.
Ela se lembra de quando esse seu dom a enlouqueceu: foram três,
quase quatro vezes. Ela não conseguiu ser a personagem que tanto so-
nhou. Ela precisava colocar seus personagens para fora, mas não ser
necessariamente eles...
Ela se recorda também, quando, fugindo da razão começou a escrever
a mais difícil de todas as ideias que tivera (vide Sol em Virgem). E essa
ideia ressuscitou-a como escritora e lhe deu o dom da composição de
volta.
Ser escritora para Marturinhas não é uma escolha e sim uma missão.
Sobre o livro

Este é um aglomerado de Marturinhas, a menina que em seus sonhos


devaneava. Aqui tem alguns desabafos, duas peças e duas outras estórias
curtas (um conto e uma crônica, talvez). Espero que gostem e se não
gostarem, me perdoem. Este é um pequeno reflexo da minha imperfeição.
Fico agradecida por poder melhorar.
Marta de Fátima Severiano de Oliveira, a Marturinhas.
Sumário

Sobre a autora i

Sobre o livro ii

1 Vítimas do Destino 1
1.1 Parte I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.2 Parte II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1.3 Parte III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.4 PARTE IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
1.5 PARTE V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.6 PARTE VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
1.7 PARTE VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1.8 PARTE VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.9 PARTE IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.10 PARTE X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
1.11 PARTE FINAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

2 O Segredo de Richard 26

3 Por um Triz 32

4 Um Minuto para o Novo Mundo 38

5 Contando de Mim 45
5.1 Lista de Quadrigêmeos Fraternos . . . . . . . . . . . 45
O Mundo Particular de Marturinhas

5.2 Contando de Mim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47


5.3 Carta ao meu eu de 63 anos . . . . . . . . . . . . . . 47
5.4 Descrição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
5.5 No ritmo de Pequena Eva . . . . . . . . . . . . . . . 52
5.6 Um pseudônimo chamado Giovanna Vasconcelos . . . 52
5.7 O amor de um pseudônimo . . . . . . . . . . . . . . 53
5.8 O custo de se assumir autista . . . . . . . . . . . . . 53
5.9 Visão espiritualista . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
5.10 Cabelos e unhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
5.11 Redação do Enem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
5.12 Tom de voz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
5.13 Sobre empatia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
5.14 Feliz dia 02 de abril . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
5.15 Ao dia das mães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
5.16 Pra dentro! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
5.17 Sobre entender . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
5.18 Traços de infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
5.19 Mensagem para 2020 . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
5.20 Ser salvo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
5.21 Comparação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
5.22 Sobre a terceira temporada de Atypical . . . . . . . . 62
5.23 Chocolate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
5.24 Medo de Amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
5.25 Cansaço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
5.26 Decreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
5.27 Feliz dia do sexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
5.28 Um filme, uma história, uma paixão . . . . . . . . . . 66
5.29 Uma parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
5.30 Percy Jackson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
5.31 Paralimpíadas de Tokyo . . . . . . . . . . . . . . . . 68
5.32 Experiências de uma fã . . . . . . . . . . . . . . . . 69
5.33 Partida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
5.34 Síndrome de Cassandra . . . . . . . . . . . . . . . . 70
5.35 Burrice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

iv
Sumário

5.36 Esoterismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
5.37 Para Gabriel Bandeira . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
5.38 Sociedade Digital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
5.39 Subdiagnóstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
5.40 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
5.41 Legião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
5.42 Eu TRANScendo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
5.43 436- Memórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
5.44 Gênero Neutro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5.45 Pais e Filhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5.46 Os 2/3 (ou 2/4) restantes da Legião Urbana . . . . . . . 80
5.47 De nome de santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
5.48 Alice Casimiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
5.49 Dezoito em 2013 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
5.50 Falo demais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
5.51 Motivações desnorteadas . . . . . . . . . . . . . . . 84
5.52 Momentos de Luto . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
5.53 A grande depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
5.54 É um mistério, sou menina, mas devia ser moleque . . 86
5.55 Catarina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
5.56 Ecolia Musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
5.57 Minhas Orações (feitas para Sol em Virgem) . . . . . . 88
5.58 2022’s Lessons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

v
1
Vítimas do Destino

1.1 Parte I
Quarto silencioso. Dentro dele só havia Rafaela com uma fone de ouvido
escutando música. Olhar vidrado para cômoda. Lembra-se de um CD
que gostava muito de ouvir. Procura ele, não acha. Nesse momento per-
gunta à sua madrasta, Henriquieta, sobre a empregada, que geralmente
arrumava as coisas.

RAFAELA: Henriquieta, cadê a Mônica (gaguejando)?

HENRIQUIETA: Ela foi despedida pelo seu pai. Ele não tem condi-
ções de pagá-la, agora sou eu que estou fazendo tudo aqui...(pausa). Eu
já falei pra você não me dirigir a palavra com essa sua voz horrível, irri-
tante. Dá estresse escutá-la. Com uma voz dessa era melhor ficar muda
de vez. Iria desestressar menos seus ouvintes. Certo, Maria Gagagá?

A moça corre para o quarto, se tranca e começa a chorar. Aquela não


era a primeira vez que Henriquieta tratava-a mal. Durante anos e anos
as músicas eram sua única companhia, as únicas que nunca lhe insultava
e nem lhe pedia uma voz melhor para dialogarem. Seu diálogo com a
1.2

música era quase perfeito. Quem ouvisse Rafaela cantando, jamais ima-
ginaria seu problema. Aos poucos agarrada com uma fotografia de sua
mãe adormece. Porém as lembranças dos insultos de Henriquieta e de
muitos outros que já ouvira, são tão fortes, que lhe tira o sono. E lá se vai
mais uma noite, como muitas anteriores, mal dormida.

No outro dia no café da manhã Vicente Netto, pai de Rafaela, não


consegue disfarçar a aflição para a esposa, que lhe pergunta:

HENRIQUIETA: Por que você está assim, Vicente?

VICENTE: As dívidas não paravam de crescer... (para Henriquieta).


Por que você não tá comendo, minha filha (para Rafaela)?

RAFAELA: Estou sem fome, pai (gaguejando)!

VICENTE: Todo dia você tá sem fome!

(Rafaela volta para o quarto)

HENRIQUIETA: Continua...

VICENTE: E tive que fazer sociedade com uma senhora, Nicole Bar-
retos. Seu advogado já organizou as papeladas e assinei o contrato. Nos
conheceremos amanhã às 8:00 h.

1.2 Parte II
Do outro lado da história se encontra Nicole, na sua velha companheira,
a cadeira-de-rodas. Muito feliz com o acordo que acabara de fazer fala
com sua irmã Norma sobre seus projetos.

2
Vítimas do Destino

NICOLE: Norma acabei de assinar a sociedade de um cinema. Vou


reconstruir a minha história.

NORMA: Espero que reconstrua... Ainda não consigo engolir aquela


loucura que você ia fazer.

NICOLE: Mana, eu já te disse, que não estava me sentindo bem com


os comentários dos meus colegas de trabalho, que me chamavam de
aleijada, incapaz... Tentei suicídio, mas vou prosseguir, agora, na mais
intensa felicidade, já que vou trabalhar com que sempre amei, a arte.

1.3 Parte III


Mais um dia passa. É chegada a hora do encontro de Vicente Netto e
Nicole Barretos. Nicole estende a mão pra cumprimentar o sócio, este
rejeita. Curiosa, Nicole pergunta o porque de tal rejeição.

NICOLE: Por que você não me cumprimentou?

VICENTE: Porque não! Porque você é uma inválida e jamais fará algo
de bom para o cinema. Como o nome já diz, inválida, não vale para meu
negócio, nem para sociedade.

NICOLE: Eu sou sua sócia. Os papéis comprovam isso.

VICENTE: Você não tem a capacidade de cumprir as exigências que


um cinema deste tipo pede. Sabe o que você é ótima de fazer? Ficar na
cama. Seria menos cansativo para você e para quem tem que aguentar
suas dependências.

NICOLE: Pois terá que aceitar!(Uma funcionária do cinema se apro-


xima).

3
1.4

CECÍLIA: Vocês querem alguma coisa?

VICENTE: Tire essa aleijada daqui.

NICOLE: O Várias Expressões também é meu e ninguém poderá me


tirar dele.

1.4 PARTE IV
As horas passam. Vicente continua rejeitando Nicole. Cecília, a moça que
falara com ambos, é amiga de Rafaela, ao fim do expediente vai visitá-la
e tenta convence-la de fazer uma terapia para que volte a falar normal,
porém seu esforço vai em vão:

CECÍLIA: Amiga saia um pouco, se distraia. Você não vai aguentar


ficar trancada sempre.

RAFAELA: Eu não consigo. Toda vez que falo alguma coisa riem de
mim. Não suporto isso. Não consigo nem dormir pensando nisso (ga-
guejando).

CECÍLIA: Mas porque não faz uma terapia? Tenta, vai. Já te falei que
isso vai te ajudar.

RAFAELA: Se eu for pra rua e for falar algo vão rirem (gaguejando).

CECÍLIA: E teu sonho de ser cantora e expressar o que sente através


da música?

RAFAELA: Foi trancafiado pelo medo (gaguejando).

(Henriquieta entra em cena e briga com Rafaela)

4
Vítimas do Destino

HENRIQUIETA: Não acredito sua Maria Gagagá que você urinou na


cama de novo. Além de contribuir para a poluição sonora com essa sua
voz, ainda me dá trabalho!

RAFAELA: Estou com saudade da mamãe. Não ’tou’ aguentando


mais viver (gaguejando).

HENRIQUIETA: Era bom que morresse logo mesmo! Só assim eu


viveria em paz.

CECÍLIA: A senhora fala assim com sua enteada?

HENRIQUIETA: Falo, porque só eu sei o que é viver ouvindo zum


zum zum zum zum zum.

E Henriquieta sai da sala.

1.5 PARTE V
O tempo passa. Nicole tenta conviver com Vicente, o que é uma tarefa
quase impossível. Ele não perde a oportunidade de insultá-la.

VICENTE: Por acaso meia-mulher tem alguma ideia para atrair o


público?

NICOLE: Bem, poderíamos lançar alguns filmes novos. Por exemplo,


eu faço histórias, podemos lançar como filme uma delas.

VICENTE: Meia mulher, meio filme. Você acha que tem condições
físicas para fazer um bom filme?

Críticas repetitivas cercavam a relação dos dois. As coisas se torna-


ram mais duras para Nicole quando ela encontrava alguma dificuldade

5
1.6

de passar em alguns trechos do cinema e via alguns funcionários rindo


de tudo aquilo. Talvez o fato da moça não poder olhar nos olhos de cada
um deles e impor sua autoridade de facilitava o desrespeito. Tudo que
Vicente lhe dissera voltava a sua mente. Sentia-se realmente incapaz e
inferior aos outros. Seu problema no trabalho estendeu-se até a casa: a
moça não sentia vontade de comer, nem dormir e muitas vezes nem ia
ao cinema.

1.6 PARTE VI
Até que houve um dia de um grande lançamento em Várias Expressões,
o filme A aventura do pianista perdido e Nicole se rejeitava a prestigiar o
evento. Sua irmã insistira e a jovem decide ir em sua companhia:

NORMA: E aí ansiosa para a grande estreia de A aventura do pianista


perdido?

NICOLE: Nem tanto! Não estou com vontade de sair.

NORMA: Mas hoje é um dia especial para seu negócio...(pausa). Tudo


bem! Concorda em irmos juntas pelo menos?

NICOLE: Tá certo! Eu vou com você.

Temendo que o antigo problema de sua irmã ressurja Norma con-


voca um psicólogo que trabalha no mesmo hospital que ele para o filme.
Precisava saber de um especialista o que estava acontecendo com Nicole.

As irmãs chegam juntas ao local. Elias, o psicólogo, chega um pouco


depois e finge que encontra-as casualmente.

(Estão comprando pipoca e Cecília vende-as)

6
Vítimas do Destino

ELIAS: Norma, que coincidência!

NORMA: Elias (para Elias). Lembra Nicole daquele amigo psicólogo


que eu te falava. É ele mesmo, o grande Elias (para Nicole).

CECÍLIA: Me desculpa me intrometer na conversa. O senhor é psicó-


logo?

ELIAS: Sou sim. Por quê?

CECÍLIA: Porque tenho uma amiga que precisa de auxílio psicológico.


Pode me dá seu contato?

ELIAS: Claro!

(E Elias dá o telefone dele)

CECÍLIA: Obrigada!

ELIAS: Por nada.

NORMA: Porque você tá triste, Nicole?

NICOLE: Por nada não. Problemas de trabalho.

NORMA: Posso saber quais?

NICOLE: Eles não te importam! Ah, desculpa, me deu um pouco de


nervoso.

ELIAS: O filme já vai começar, vamos (olhando para o relógio)!

E os três se dirigiram para a sala de filmes. Durante todo A aventura


do pianista perdido, Nicole teve mudanças de humor repentinas, o que

7
1.7

intrigou Elias. Num instante, o psicólogo fingiu que iria ao banheiro e


chamou secretamente Norma, que logo após o acompanhou. Preocu-
pado, pergunta à colega um pouco mais sobre a vida de sua irmã:

ELIAS: Norma, você sabe o que acontece no trabalho da Nicole?

NORMA: Não sei. Ela não me conta nada. Por quê?

ELIAS: É que essa agressividade repentina dela, essa tristeza per-


manente e esse isolamento não são sintomas estranhos para mim. Você
pode tentar convencê-la a ter uma consulta comigo?

NORMA: Vou tentar, mas não sei se vou conseguir.

ELIAS: Certo, mas tente.

Enquanto estivera sozinha na sala de filmes, Nicole recebera duas


mensagens chocantes que assim diziam:

"Em qualquer ladeira, em qualquer escada, alguém poderá te empurrar e você


sem defesas, cairá morta kkkk."

"Um dia qualquer acordará em seu quarto. Não verá sua cadeira-de-rodas.
Sairá água do teto e do chão. Ela te afogará. Não terás mais vida Kkkk."

Estas não foram as primeiras, nem as únicas mensagens monstruo-


sas que recebera. Foram dezenas delas com conteúdos horríveis. Nesse
momento ver Norma voltando com Elias e esconde o celular em sua bolsa.
A irmã percebe o pânico em que Nicole ficara e raciocina que isso pode
ser relacionado ao celular.

O filme acaba. Cada pessoa volta para sua respectiva casa. Nicole ao
chegar na dela rapidamente vai para o quarto, pega um caderno recheado
de histórias, como muitos outros, e começa a escrever.

8
Vítimas do Destino

1.7 PARTE VII


O mundo da escrita e da invenção era seu companheiro. Era nele que ela
deixava todas as suas tristezas e desamores. Precisava mais do que nunca
se abrir com os papeis e tentar recomeçar uma história para si mesmo,
porém tudo que sofria era tão forte que nunca deixara completamente
suas mágoas.

(Norma abre a porta e entra no quarto)

NORMA: Mais uma história! Está na hora de publicar uma delas.

NICOLE: Quem sabe.

NORMA: Quantas são?

NICOLE: Muitas e muitas. Já tenho 37 cadernos delas. Este é o 38◦ .


E os cadernos são grandes, muito grandes.

NORMA: Você escreve a noite?

NICOLE: Sim.

NORMA: Você não fica com sono?

NICOLE: Não me dá sono!

NORMA: Não?

NICOLE: Não!

9
1.7

NORMA: Por que não?

NICOLE: Por nada. Isso não é da sua conta.


Norma observa que a bolsa de Nicole não está no quarto. Sai de lá,
ainda assustada com a agressividade da irmã. Encontra-a na sala, retira
o celular dela e vai para a caixa de entrada. Mais outro susto: aquelas
mensagens eram simplesmente arrasadoras. Não informou que sabia
delas para Nicole, pois poderia levar outra má-resposta.

Guarda o celular em sua bolsa para mostrar as mensagens para Elias.

ELIAS: Você sabe se ela recebeu mais mensagens como essas?

NORMA: Não, eu não sei!

ELIAS: Pois se já recebeu várias dessas, isso é cyberbullying.

NORMA: Me explique bem o que isso.

ELIAS: Cyberbullying é quando alguém usa tecnologias de informa-


ção ou comunicação, como internet, celular, para prejudicar alguém.

(Elias continua explicando)

Enquanto isso, um dos empregados de Nicole, do cinema, manda


mais uma de suas ofensas. Pegara o número dela secretamente e fazia
tais críticas simplesmente por não suportar o fato de alguém paraplégico
mandar nele. Acredita que as pessoas ou são superiores ou inferiores, e
que Nicole era inferior à ele e não devia lhe dar ordens.

NORMA: Mais uma mensagem, o número é confidencial.

ELIAS: Leia.

10
Vítimas do Destino

NORMA:"Alguém assaltará sua casa. Estará sozinha. Não poderá correr


para a rua. Esse alguém te empurrará da janela e cairá em meio a milhares de car-
ros. Será definitivamente nada, inlevantável, irrecuperável e esmagada."Apago?
ELIAS: Apague. Bem, temos que ajudar a Nicole. Uma coisa que
poderíamos fazer era incluí-la num projeto, que faço com meu amigo
músico, Marcelo, que é recuperar pessoas que vivem na depressão através
da música.

NORMA: Belo projeto! A Nicole precisa realmente de ajuda.

1.8 PARTE VIII


Enquanto isso as coisas não vão muito bem na casa de Rafaela. Muitas
vezes Henriquieta tenta intimidá-la para que a jovem faça algumas coisas
ao seu favor.

HENRIQUIETA: Maria Gagagá saia já desse quarto e venha me aju-


dar nas tarefas. Você é mimada mesmo, quer tudo nas mãos. Agora fique
caladinha! Não abra sua boca para me irritar. Sua voz parece mais um
CD arranhado.

RAFAELA: Eu vou contar tudo isso pro meu pai e ele vai te dá umas
broncas (gaguejando).

HENRIQUIETA: Conte! Ele não vai acreditar. Vai pensar que só é


mimo seu e inveja porque ele dá mais atenção a mim, que sou linda e
sadia, do que você com uma voz monstruosa e arrepiante. Você é um
estofo. Nunca vai conseguir ninguém que te ame. Nunca!

RAFAELA: Não fale isso, não fale (pausa)! Eu vou contar pro meu pai
de qualquer jeito. Eu vou...

11
1.8

HENRIQUIETA: Conte! Aí depois eu vou fazer uma coisa tão legal


contigo que ficará muda de vez! Vai, fale. Assim eu resolvo todos os meus
problemas.

Rafaela pega uma louça e joga em Henriquieta. Esta, inconformada,


parte para cima da garota e lhe dá uns tapas. Vicente escuta o barulho na
cozinha e procura saber o que aconteceu:

VICENTE: O que ’tá’ acontecendo?

HENRIQUIETA: Eu pedi na maior gentileza, para Rafinha me fazer


companhia aqui na cozinha, pois eu me sentia tão sozinha e ela veio com
ignorância para cima de mim(chorando).

RAFAELA: Mentira pai! Ela me insultou(gaguejando).

VICENTE: Calma Henriquieta (para Henriquieta)! Vai pro quarto


Rafaela (para Rafaela). Ela é assim mesmo! Ficou desse jeito depois que
a mãe dela morreu. Está inconformada.

Rafaela vai para o quarto. Desesperada liga para Cecília, que ainda
não está em seu expediente de trabalho. Cecília vai para a casa da menina
e juntas saem para a lanchonete.(As duas tomam sorvete)

CECÍLIA: Horrível o que ela fez contigo! A sua madrasta é uma sínica.
Porque você tá olhando para trás?

RAFAELA: Alguém está me seguindo. Alguém ’tá’ rindo da minha


voz (gaguejando).

CECÍLIA: Minha amiga você tá precisando de ajuda! Ninguém ’tá’ te


seguindo. Eu posso marcar um psicólogo pra você?

12
Vítimas do Destino

RAFAELA: Não! E se ele rir de mim (gaguejando)?

CECÍLIA: Não, ele não vai rir de você. Tenho certeza que ele vai te
convencer a fazer uma terapia.

RAFAELA: Marque(gaguejando)!

Cecília marca um horário para Rafaela se consultar com Elias para o


mês seguinte.

CECÍLIA: Marquei a consulta pro mês que vem.

RAFAELA: Mas, se rirem de mim?

CECÍLIA: Eu vou com você! Fique calma.

1.9 PARTE IX
No mesmo dia Norma convence Nicole a se consultar com Elias. No outro
dia psicólogo e paciente se encontram e têm uma conversa esclarecedora.

ELIAS: Bem, Nicole eu quero que você se desenhe e desenhe seu am-
biente de trabalho.

(Nicole desenha paisagens desesperadoras)

ELIAS: Você não parece bem no desenho, trancada no quarto em cima


da cama e seu ambiente de trabalho também parece desesperador(pausa).
Eu gostaria de saber como você anda dormindo.

NICOLE: Mal. Não tenho sono.

13
1.9

ELIAS: E sua alimentação?

NICOLE: Não sinto fome.

ELIAS: Se sente bem com sua aparência?

NICOLE: Não. Não tenho vontade de me arrumar.

ELIAS: Amigos, tem muitos? Sente vontade de sair?

NICOLE: Poucos! Não gosto de sair.

A entrevista continua e Nicole em seus desenhos e palavras se mostra


com medo. Elias em uma conversa particular com Norma fala sobre o
diagnóstico.

ELIAS: O ambiente de trabalho é um lugar de terror. Ela não se sente


bem lá e mostrou isso nos desenhos. Não tem fome, nem sono! Amigos,
poucos! Não quer sair. Muda de comportamento frequentemente, se
torna agressiva. Se isola do mundo. Não tem autoestima. Pelas mensa-
gens que ouvi e por alguns casos que já vi, ela tá sofrendo bullying e não
é só o virtual, mas também o real. Isso tudo pode levar ao...

NORMA: Suicídio... A Nicole pode tentar se matar?

ELIAS: Pode(pausa)! Torceremos para que não consiga. O Marcelo,


eu convocarei ele para tirarmos sua irmã desse poço de angústia. Em que
filme eu e Marcelo podemos ir assistir na certeza de encontrá-la lá?

NORMA: Amanhã a noite terá um filme que Nicole comentou comigo:


"Meia noite e as estrelas". Ela ficou responsável por arrumar o técnico em
iluminação e me pareceu animada com ele.

14
Vítimas do Destino

ELIAS: E se ela não quiser ir?

NORMA: Eu a convenço.

1.10 PARTE X
Tudo preparado para a estreia de "Meia noite e as estrelas". Comparecerem
Vicente, Henriquieta, Norma, Nicole, Elias e Marcelo, entre outros. Elias
não perde a chance de apresentar o amigo para Nicole.

ELIAS: Oi garotas! Esse daqui é meu amigo, Marcelo, ele é músico.

NICOLE: Músico, que legal!

MARCELO: Prazer em conhecer vocês. Poderíamos nos encontrar lá


no "Cada Nota", meu local de trabalho.

NORMA: Ótimo! Nicole dava para você ir conhecer "Cada Nota"!

NICOLE: Eu não sei se dará para eu ir... Eu preciso ficar um pouco


em casa...

NORMA: Vamos!

NICOLE: Vou pensar... O filme já vai começar.

Norma, Elias e Marcelo se sentam na arquibancada. Nicole vai para


o camarote e fica ao lado de Henriquieta e Vicente que lhe olham estra-
nhamente para a garota. O clima entre os sócios é insuportável.

Ocorre, repentinamente, um apagão no cinema. Vicente não perde


tempo de acusar Nicole sobre o acontecido.

15
1.10

VICENTE: Apagão! Apagão! Por que isso agora? Vou perder minha
clientela, que vai achar que aqui não é um lugar seguro... Ah! Tudo culpa
dessa aleijadinha da Nicole... Dela não que é uma pobre coitada, sim da
sociedade, que insiste no mais singular erro que uma sem futuro daquela
pode ser incluída nela. E ilude sua cabeça.

HENRIQUIETA: Cada erro que a sociedade comete!

Nicole abre a bolsa e retira uma faca que estava dentro dela. Há dias
andara com ela: quando sentisse a necessidade de matar a angústia a
usaria. Não suportava mais aquelas lembranças que lhe vinham a cabeça,
não suportava mais se achar um estofo para quem estava ao seu redor...
Precisava matar tal angústia e só achara uma forma disso ser feito: colo-
cou a faca contra o peito. Sangue saia do seu coração, tudo no seu corpo
se desligava e caiu da cadeira-de-rodas de tanta dor. Uma lágrima de
alívio escorrida de seus olhos era se último ato.

A energia voltou dez minutos após o apagão. A figura de uma mulher


morta assustou as pessoas que estava no camarote, que saíram gritando:
"Vi uma morta". Norma e seus amigos, preocupados vão saber quem é.

Ao entrar no camarote a surpresa foi chocante. Norma tira a faca do


peito da irmã, abaixa a cabeça, mede o pulso. A realidade é dura: sua
irmã não tem mais vida. Com uma voz de choro relata aos amigos:

NORMA: Ela está morta!

(Cecília entra no meio da conversa)

CECÍLIA: Meu Deus(pausa)! Quem deve ter adorado isso é o Seu


Vicente. Ele só vivia implicando com ela! A xingava de aleijada, incapaz...

ELIAS: Confirmado! Ela sofria bullying no trabalho.

16
Vítimas do Destino

NORMA: Agora não tem mais nada a fazer!

MARCELO: Tem sim! Você pode entrar em nossa luta com a gente.
Tiremos da tristeza e do desespero pessoas que sofrem bullying e depres-
são através da música.

NORMA: Eu aceito a sua proposta! Pela Nicole! Além disso eu pro-


meto que vou publicar as histórias dela. Ela era tão criativa e acabou-se
de uma forma tão trágica. Os dias passam e Norma se surpreende com
cada escrito de sua irmã, que falava sobre o que sofria em vários trechos
de sua obra. Henriquieta e Vicente se mudaram para outra cidade. A
notícia de um suicídio no cinema fizera a clientela se reduzir bastante.
Rafaela preferiu morar com a amiga e encontrou em vários lugares o
mesmo tipo de preconceito de Henriquieta. Chegara o dia da consulta.
Foi inevitável a cara de surpresa do psicólogo e de sua paciente, que já
eram velhos conhecidos.

RAFAELA: Você (gaguejando)!

ELIAS: Rafaela!

CECÍLIA: Vocês se conhecem? De onde?

ELIAS: Nos conhecemos numa festa de minha faculdade, numa ci-


dade distante daqui. A Rafaela veio acompanhada de uma prima, que
também era universitária. Sem querer se esbarrou na minha roupa com
um copo de suco e me molhou.

RAFAELA: Aí o Elias começou a brigar comigo. Fomos ao banheiro


limpar a roupa e nossa briga virou um diálogo tão interessante que co-
mecemos a namorar (gaguejando).

ELIAS: E troquemos cartas e mais carta, meses, anos...

17
1.10

RAFAELA: Até que um dia vieram assaltar lá em casa, atiraram em


mim e no meu pai e... mataram minha mãe. Isso me traumatizou tanto
que custou a saúde da minha voz. Quando passei pela faculdade de
música na mesma universidade do Elias e tive a oportunidade de me
reencontrar com ele já estava gaga, porém ele não sabia nada antes disso
(gaguejando).

ELIAS: Quando eu andava com ela, meus amigos riam de mim. Ela e
eu éramos motivos de deboche. Passaram a insultá-la frequentemente
nos corredores. Na hora que eu ia apresentar meus trabalhos, debocha-
vam de mim, falando que eu namorava uma gaga. Isso me fez com notas
vermelhas e perdi muitas conquistas.

RAFAELA: Ele descontou toda sua raiva em mim, passou a me in-


sultar também e eu desisti da faculdade, dos meus sonhos, dele e do
mundo(gaguejando).

ELIAS: Te peço perdão...

RAFAELA: Perdão? Depois de tudo...

Rafaela sai correndo, paga o primeiro táxi que passa. Cecilia, deses-
perada, segue a moça em outro táxi que pegara. O congestionamento
atrapalha e Cecília não consegue acompanhar Rafaela, que retorna à casa
dela. Entra em seu caderno, abre um potinho com veneno e toma seu
conteúdo. Sua amiga ao chegar no local encontra a garota desmaiada
no chão. Cecília, aflita, chama uma ambulância. Era desesperador ver
a amiga saindo naquela maca, entre a vida e a morte, voltando para o
mesmo hospital do qual saíra.

Elias, informado, logo após do acontecido chora de remorso e pro-


mete que ajudará a antiga amada.

ELIAS: Bem, eu e amigo temos um projeto de recuperar pessoas em

18
Vítimas do Destino

depressão através da música. Ideal para ela, né?

CECÍLIA: Eu estou dentro...

ELIAS: Além disso estamos pensando em expandir nosso projeto


para escolas. Pretendemos buscar almas por lá.

Aos poucos Rafaela melhora seu quadro clínico e lá no hospital mesmo


recebe a visita de Marcelo.

MARCELO: Oi! Como você está?

RAFAELA: Quem é você (gaguejando)?

MARCELO: Sou um simples músico chamado Marcelo. Fiquei sa-


bendo de seu sonho de cantar pela noitada a fora e vim te ajudar a realizá-
lo. Aceita?

RAFAELA: Aceito (gaguejando)!

1.11 PARTE FINAL


Rafaela é convencida também a fazer terapia para recuperar a saúde de
sua voz. Aos poucos com a ajuda de seus amigos vai perdendo o medo do
mundo. Elias tenta se reaproximar da garota e depois de vária tentativas
sem sucesso consegue o carinho dela. Sua voz muda completamente: a
gagueira some. Seus sonhos parecem cada vez mais perto.

Enquanto isso Vicente e Henriquieta moravam numa cidade vizinha.


Conseguiram sociedade com a dona de uma lojinha. Frios não perdem a
chance de humilhar e insultar mais e mais pessoas.

19
1.11

GAROTO (gordo): Seu Vicente a mamãe falou que remarcou a reunião


de vocês para as 10:00 h.

HENRIQUIETA: O seu Baleia fala pra tua mamãe que não podemos
ir lá às 10:00 h.

VICENTE: Entendeu bujãozinho, rolha de poço?

GAROTO: Eu vou contar pra minha mãe o que vocês estão falando
comigo.

VICENTE: Conte, que depois você ver o que acontece contigo.

(O garoto sai chorando)

HENRIQUIETA: Essa gente que não se olha no espelho e não se reco-


nhece como realmente é.

VICENTE: Essa gente!

Cecília e Rafaela aderiram juntamente com Norma, Elias e Marcelo,


entre outras pessoas, ao projeto. Andaram em várias escolas de sua ci-
dade e de cidades circunvizinhas alertando sobre o bullying e buscando
trazer para um novo quem sofrera dele.

ELIAS: Bullying são agressões físicas ou verbais realizadas repetiti-


vamente com uma mesma pessoa.

MARCELO: Ele pode acontecer no trabalho, na vizinhança, na escola


e até em casa.

RAFAELA: A pessoa que sofre disso passa a ter medo constantemente,


perde a autoestima, tem insônia, muitas vezes nem come direito, chega
urinar na cama, muda de comportamento rapidamente e pode tentar

20
Vítimas do Destino

suicídio.

ALUNO: E se eu presenciar alguém sofrendo bullying na escola, o


que posso fazer?

CECÍLIA: Você pode informar aos diretores para que o agressor ou


os agressores sejam devidamente punidos. Além disso pode dizer para
os pais de quem estiver sendo a vítima.

NORMA: Temos um projeto para retirar pessoas da mais intensa


solidão causada pelo bullying, seu nome é "Reconstruindo Histórias". Sua
culminância será amanhã no espaço "Abelardo Dias"às 10:00 h da noite.
Haverá show da Rafaela, que se superou graças a ele. Seu objetivo é res-
gata vítimas do destino através da música. Passará, também, um filme
de minha irmã Nicole, e seu nome cai muito bem na situação, "Vítimas do
Destino". Amanhã fará 1,5 ano que ela faleceu por suicídio. Lá ela conta
sua terrível experiência com o bullying.

MARCELO: Convidamos vocês a trazerem amigos ou conhecidos que


sofrem desse mal para o nosso projeto.

RAFAELA: Esperamos com isso reconstruir vidas, como a minha foi


reconstruída.

(Os alunos batem palmas)

Uma multidão, no outro dia, espera ansiosamente pelo filme "Vítimas


do Destino". Elias procura Rafaela em seu camarim, para ter uma conversa
definitiva com ela.
ELIAS: Rafa!

RAFAELA: Oi, Elias!

21
1.11

ELIAS: Eu gostaria de ter um diálogo contigo, se não for te incomo-


dar.

RAFAELA: O que será? ... Pode falar!

ELIAS: Eu sei que já passemos altos e baixos, que já nos amemos, nos
odiemos, nos reconciliemos e recuperemos o carinho que sentíamos um
pelo outro. Agora, pelo menos de minha parte, percebi o erro que cometi
indo pela cabeça dos outros, pois realmente vejo a pessoa maravilhosa
que tu és. Quero lhe pedir uma chance para recomeçarmos.

RAFAELA: Nesse tempo convivendo juntos percebi que suas qualida-


des excedem seus defeitos e... Também quero recomeçar... O filme já vai
ser exibido, vamos!

Foram 54 minutos de mais puro silêncio. Haviam 2748 bocas caladas


e 5496 olhos abertos para refletir sobre a história de Nicole, uma menina
sonhadora e criativa, mais uma vítima do destino, mais uma vítima do
medo e do preconceito. Seu fim não fora mais intenso que sua trajetória:
seus 58 livros escritos desde seus 12 anos foram publicados, levando paz,
amor, alegria e reflexão para seus leitores. Seu brilho não fora apagado,
embora não estivesse presente para ser admirado. Deixou para o mundo
mais uma prova do que o bullying é capaz de fazer, motivou multidões
para lutar contra ele através de suas histórias. Enfim a existência de Ni-
cole não foi inútil, nem a própria foi inútil, como quem tinha preconceito
dela a chamava. Ela foi uma luz para iluminar o caminho perturbado de
quem passa pelo o que ela passou. Quando o filme acabou 5496 mãos
bateram palmas.

Elias soube fazer de sua profissão mais digna desembaraçando a


cabeça de tantas outras vítimas do destino. Marcelo usou sua arte, a
música, para retirar do buraco tais pessoas. Cecília, soube ser corajosa
o suficiente para ajudar sua amiga a se supera. Henriquieta e Vicente
continuaram praticando o mal que destruía tantas pessoas. Norma soube

22
Vítimas do Destino

fazer de sua dor uma motivação para não deixar outras famílias passar
pelo o que ela passou. Rafaela encontrou em seus sonhos a porta de saída
para a superação. Por fim, Nicole soube fazer de sua história uma lição de
vida, para que através de seu exemplo outras pessoas tivessem outro final.

(Rafaela canta MAIS UM SER HUMANO)

MAIS UM SER HUMANO


O que na verdade eu sou?
Sou o que mostro
O que sinto
Sou ódio
Sou amor
Sou mais um sonhador
Com pensamentos distintos

Repito o que sou


Dentro de mim uma pessoa oculta
Com um poder surpreendente
De expressar o que sente
Através da música

Arrancarei coragem
E força de vontade
Para conseguir lutar
Aparência é embalagem
Obstáculos são dificuldades
Que preciso superar

Enfim eu decidi
Que hoje eu vou ouvir
A voz do meu coração
Fazer da vida uma conquista

23
1.11

Iluminar as outras vidas


E revelar quem sou então

Sou mais um ser humano


Cheia de medo de viver
Cheia de medo de tropeçar
De não conseguir me levantar
Temendo que um dia venha a sofrer

Sou mais um ser humano


Exclusiva, inimitável e nada mais
Estou aqui para aprender
E finalmente entender
As surpresas que a vida me traz

O que na verdade eu sou?


Não sou apenas o meu corpo
Sou ideias, sentimentos
Sou momentos, pensamentos
Sou um sonho louco

Sou uma máquina com defeitos


Visíveis e invisíveis
Sou mais uma peça do destino
E o mundo está me induzindo
A provar que a esperança existe

Sou o sorriso, sou a tristeza


Sou a dúvida e a certeza
Eu sou a imperfeição
Erro, choro e não nego:
Sou o futuro, o pretérito
Sou minha imaginação

24
Vítimas do Destino

Sou caracteres, sou um mito


Sou um livro que está sendo escrito
Uma história inédita
Sou mais que um rosto, que uma forma
Sou a emoção que brota
Sou a poesia e o poeta

Sou mais um ser humano


Cheia de medo de me decepcionar
Cheia de medo de encontrar
Um caminho que não possa trilhar
E de me envergonhar
Com minha performance

Sou mais um ser humano


Com questões não respondidas
Dos meus medos sou uma vitima
E procuro nessa vida
Minha amiga sorte

25
2
O Segredo de Richard

Richard dá uma saidinha de casa, vai andando de leve com uma chave na
mãe, e tenta abrir seu salão tão misterioso. Mirelli, sua paquera, segue-o,
querendo descobre de qualquer forma seu segredo. Esperto, Richard
olha para trás e vê a garota.

RICHARD: O que você quer de mim?

MIRELLI: Quero saber que segredo guarda no salão, cuja chave está
na sua mão!

RICHARD: Nenhum! E não estou com chave alguma!

MIRELLI: Me mostra a chave!

RICHARD: Não!

MIRELLI: Me mostra, me mostra!

RICHARD: Não!
O Segredo de Richard

Mirelli pega a chave. Richard tenta tomá-la. Um corre atrás do outro,


guerreando pela chave. Nisso, vão parar em uma feira de artesanato.
Nesse chove e não molha, perdem a chave. Cansado, Richard decide
entregar o jogo.

RICHARD: Cadê a chave? Vou dizer a verdade. Mas temos que abrir
o salão juntos. Não contarei nada antes disso.

MIRELLI: Deixa eu procurar... Não achei.

RICHARD: Não achou? Você não está mentindo para mim?

MIRELLI: Juro Richard. Perdemos a chave na feira de artesanato.

RICHARD: Temos que procurar por lá. Para isso temos que fingir
que estamos comprando alguma coisa. Façamos assim: Você distrai e eu
procuro.

Preocupados, correm para a feira. Encontram de cara um velhinho,


que era vendedor de colchas.

MIRELLI: Bom dia senhor! Gostaria de olhar suas colchas. Elas são
lindas! Você mesmo é quem faz?

VELHINHO: Não, quem faz é a minha esposa.

MIRELLI: Ela aprendeu com quem?

VELHINHO: Com minha sogra que já partiu a muito tempo. Minha


filha também observa minha esposa e já sabe fazer bem. As colchas são a
tradição da família.

Enquanto isso, Richard vai em busca da chave. Porém o velhinho per-


cebe o jovem mexendo na arte e, para sua infelicidade, chama a delegada

27
2.0

Heloísa.

VELHINHO: Dona delegada, esse rapazinho tá querendo roubar a


arte da minha mulher. Arte essa que vai para São Paulo e algumas cidades
vizinhas como Limoeiro e Taquarana. É o nosso ganha-pão! Elas são tão
boas, que até na casa da vizinha as colchas da mulher está. Colchas tão
famosas que já foi até pra "capitá".

HELOÍSA: Então o pivete tá roubando esse velhinho, pobre coitadi-


nho que vende tão bela arte. Me explique que coisa é essa, pois minha
irmã faz bonecas, para ganhar um trocadinho, e eu não vou deixar o
rapazinho roubar esse artesanato, porque um dia também pode roubar
minha irmã, levando seu trabalho tão suado.

RICHARD: Dona delegada só procuro uma chave!

HELOÍSA: Deve ser a chave da cadeia. Essa senhorita é sua cúmplice?

MIRELLI: Cúmplice e namorada. Prazer em conhecer, Mirelli. A


gente só quer uma chave.

HELOÍSA: Venham seus dois pilantras. Vão encontrar agorinha


mesmo a chave da cadeia!

A delegada leva o casal para o xadrez e depois fala com ar de riso:

HELOÍSA: Olhem a chave! Trancafiou vocês!

MIRELLI: A culpa é toda sua, Richard. Você não sabe disfarçar nada.

ANA: Fizeram o quê?

MIRELLI: Estávamos procurando uma chave na feira de artesanato e


pensaram que estávamos roubando.E a senhora porque está aqui?

28
O Segredo de Richard

ANA: Estou aqui por roubo. Sou artesã. Faço crochê, bordado e algu-
mas costuras, como cortinas, tapetes, jogos de banheiro e de almofada.
Às vezes eu fazia essas coisas para pessoas que me trapacearam. Fiquei
sem lucro. Roubei, então, alguns materiais necessários para o meu tra-
balho: linha norma, crea e princesinha, bico de casso, acrilon e bastidor.
Mas, enfim, me pegaram e eu estou aqui. Por que essa chave é tão im-
portante assim?

MIRELLI: Porque ela me revelará o que tem no salão onde é guardado


a segunda identidade do meu namorado, né Richard?

RICHARD: Não vem não, que não sou nada disso do que está pen-
sando.

MIRELLI: Vai dizer que não se veste de mulher? Já te viram!

ANA: Quer dizer que você é "mulherzinha"do bairro?

RICHARD: Não, eu não sou travesti. Tudo é mentira!

MIRELLI: Meu amor gosta das duas frutas, sabe?

RICHARD: Não!

As horas vão passando e protagonista sempre esconder seu segredo.

MIRELLI: Richard, não vai custar nada você me adiantar o segredo!

Nesse momento, a delegada chega com uma chave na mão.

HELOÍSA: Achei essa chave na feira. Antes de entregar ao casal pes-


quisei sobre suas vidas. A moça se chama Mirelli e é apaixonada por
Richard, que tem um tal misterioso segredo a ser desvendado. Dizem

29
2.0

que o mistério de Richard está no salão de seu tio e só uma chave abre o
salão. Só darei então, a chave se abrirem o salão na minha presença.

RICHARD: Não aceitarei tal proposta! Minha intimidade só pertence


a mim e a quem eu revelar.

MIRELLI: Pois eu aceito dona delegada!


HELOÍSA: Que bom, já chamei até os pais do garoto! Agora iremos
ver seu guarda-roupa feminino...

A delegada tira os dois do presídio. O protagonista faz cara feia. Uma


multidão os acompanha. A tão querida chave é dada ao enigmático moço.
A porta do salão é aberta. Em cima da mesa havia croquis, peças desco-
nhecidas pela multidão. Ao redor deles havia alguns manequins vestidos
maravilhosamente. Os pais dos jovens sentam-se. Seu pai, Carlos, per-
gunta ao filho:

CARLOS: Eram essas roupas que você vestia? Você é homossexual?

O garoto, nervosíssimo, responde:

RICHARD: Eu vestia essas roupas sim, mas não sou gay. Eu gosto de
moças, eu gosto de Mirelli.

ISABELLY: Então se você não é gay, porque vestia essas roupas?

RICHARD: Elas são minhas. Eu que as fiz. Não vou mentir: usava-as
em shows, em casas noturnas, para conseguir dinheiro para fazer meus
modelos. Eu era travesti, mas não gay. Tinha medo do preconceito por
isso nada contei antes. Eu morria de medo de todos vocês me olharem
como olham agora.

O jovem começou a chorar.

30
O Segredo de Richard

CARLOS: Filho, não acredito!

ISADORA: Não chore, artista! Suas obras são lindas. E, eu, como
empresária de peças artesanais e de modelos inovadores, como este, te
contrato. Ao vir aqui para comprar na feira artesanal, nunca pensei em
encontrar tamanho talento! Gostaria de pedir aos pais do rapaz a autori-
zação para produzirmos a carreira do jovem!

CARLOS: Eu não posso aceitar. Isso me dá vergonha...

MIRELLI: Aceita, seu Carlos! Estou muito orgulhosa de namorar um


jovem tão especial. Aliás, o senhor não pode ter vergonha de um filho que
vestirá as multidões. Igualmente não dá para ter vergonha dos artesões
que embelezam nossas casas com sua arte manual. Seu filho irá construir
um futuro para vocês e tenho certeza que me fará muito feliz.

ISADORA: E aí?

CARLOS: Só por causa da Mirelli, que é uma boa menina... Concordo!

ISABELLY: Meu filho está em suas mãos!

RICHARD: Obrigado, pais! Obrigado Mirelli!

A multidão ali presente aplaudiu o jovem, que mais tarde se tornou


uma grande estilista. A empresária Isadora, juntamente a Mirelli, fize-
ram muito bem a publicidade do rapaz e conseguiram vender as roupas
como pipoca. Ana, a presidiária, foi solta pois Richard pagou a fiança.
A jovem senhora passou a trabalhar com ele e sua equipe. Os pais de-
les se mudaram para Maceió e foram morar no belo apartamento que
compraram, em frente a praia. Enquanto isso, o artesanato local ganhou
destaque, pois nosso herói fez várias lojas patrocinando a cultura. Seu
município conheceu então a prosperidade.

31
3
Por um Triz

Talvez ela fosse louca mesmo. Não era a primeira vez que Tris tinha
"pressentimentos"religiosos equivocados. Uma vez se pegou falando
com a própria Lilith. Coisas de sua cabeça. Mas, uma coisa tinha que
ser deixada clara: uma coisa era seus surtos, outras suas histórias. Suas
histórias nunca foram atestado de loucura. Era só um atestado que ela
vivia em outro mundo mesmo, um mundo entre o mundo das fantasias
e o real.

– Oi. – Disse Derick, seu colega da pós-graduação em ciências lin-


guísticas.

Triscilla estava no 5◦ período (leia oitavo) da sua graduação e decidiu


entrar pro mestrado contra tudo e contra todos. Havia reprovado nove
vezes- nove malditas vezes que baixaram seu coeficiente para 7,88 (nota
horrível, notas bonitas são acima de 8,00). Malditos surtos.

– Leu os livros que o professor Kleber mandou? – Perguntou Deck


(apelido de Derick). – Eu senti dificuldades em entender o Inferno de
Dante. Fui ler alguns quadrinhos japoneses, como é que se diz, animes.
Por um Triz

Mais interessantes. – Tris tinha certeza que ele era autista.

– Eu fui ler sobre Perséfone e Hades, Lilith e Lúcifer versus Adão e


Eva. Qual melhor maneira de entender o inferno do que entrando nele?

***

Deck mexia com as pernas, olhava para os lados, depois voltava com
exatamente aquilo que o professor estava se batendo para explicar aos
demais alunos. Deck era um gênio.

O professor Kleber era orientador de ambos. Ela queria Lúcio, mes-


tre dos magos, único professor especialista na Grécia Antiga. Os outros
eram em autores italianos, como Dante e etc.

– Escrevam para vocês qual seria o verdadeiro significado de inferno.


Para segunda. Dez páginas. E não adianta dizer que domingo é final da
Copa América.

***

Triscilla releu trechos do inferno de Dante, a mitológica relação in-


cestuosa entre os senhores gregos dos mortos e principalmente Gênesis.
A ideia que o mundo acabaria até dia 20 de julho a deixava nervosa. Li-
lith não podia orquestrar tamanha maldita para os bastardos terrenos e
mandar etês de diversas raças para enganar os seres mais hipócritas do
universo. Já era 7 de julho e Tris tinha as provas da graduação e o texto
básico de 10 páginas sobre o inferno.

– Inferno, inferno pra mim? Inferno, inferno, inferno... Inferno


interior: o pior dos infernos.

33
3.0

O jogo Brasil x Peru já ia começar. Teria que fazer aquele texto assis-
tindo aquela final. Com todas suas forças.

– O Peru não pode ir pra cima! Não pode. – Gritou Tris, relembrando
o seu maior inferno.

– Que tal pegar um microfone? Assim, o prédio todo escuta.– Disse


a mãe de Tris, a Priscilla, a que teve a magnífica ideia de colocar esse
nome nela.

Inferno interior: o pior dos infernos. O pior inferno de todos está dentro de si
mesmo. Ele certamente é incomparável com o inferno cristão ou com o grego, pois é
bem pior. Eu nunca fui para nenhum desses infernos, nem tenho certeza se eles
existem, mas o inferno interior é o pior de todos. A sensação de não se conhecer ou
de se conhecer até demais...

FLASHBACK

– Triscilla Raimundo Constantino, o que está fazendo aí? – Gritou


Priscilla.

Triscilla estava fazendo a coisa mais magnífica de todas: entrar no


seu mundo. Mas não podia dizer isso para sua mãe ou irmãos, que nunca
entenderiam como é divertido correr nas capoeiras atrás de casa, batendo
em tudo com força e agressividade, coisas que não eram características
de Tris. Assim as ideias vinham mais rápido.

– É insolente uma garota de 15 anos correr como um bebê.

– É para ficar com o porte mais atlético.

***

34
Por um Triz

– Gooooooooool do Brasil. – Gritou Lorenzo, seu vizinho.

– Gol de quem? Quem? – Perguntou Tris correndo com o pão semia-


berto e saindo de seu mundinho.

– Do Cebolinha.

– Ah, não. Perdi o gol.

A sensação de se conhecer melhor do que ninguém é frustrante quando você


tem certeza que ninguém vai acreditar que você é aquilo. Um grito de socorro seria
o ideal, mas você decide não fazer isso até passar cinco dias sem dormir.

FLASHBACK

– Eu invento histórias, elas saem de minha cabeça. – Disse Tris à


psiquiatra.

– Poderia contá-las?

– Deixa minha mãe sair.

– Você não olha nos olhos, tem um jeito desconfiado e contou histó-
rias difíceis de acreditar. Você é esquizofrênica ...

***

Aquele não era meu diagnóstico. Não podia ser. Assim eu chorei na cama,
porque na minha ganância de ser a maior escritora do mundo e eu afirmei a um
dos meus amigos que aceitaria ficar louca em troca da glória eterna.

– Isso não foi pênalti. Estão roubando o Brasil e ainda Lionel Messi
disse que ele é quem foi roubado. Não foi e não vou defendê-lo mesmo
que ele seja tão introvertido quanto eu.

35
3.0

O autismo não é como a maioria das pessoas imaginam: uma pessoa autista
não era só aquela reservada lá no canto da sala, aquela muda ou surda, o completo
retardado mental. Havia boatos que Lionel Messi era autista. Não era bem assim.
A família negava e nem sempre o autismo é associado à genialidade.

– Gooollllllll de Gabriel Jesus. Só Jesus salva!!! – Gritou Lorenzo,


pouco tempo depois acabando o primeiro tempo.

Talvez uma pessoa autista viva o maior dos infernos ou a maior das glórias...
Querer provar o que eu era foi, de certeza, o meu pior inferno. Querer provar que
eu seria uma pessoa importante (que eu era), que eu tinha genialidade fora do
comum (pra criar histórias), que eu não era tão infantil assim, que eu não era tão
culpada, que o mundo não era tão ruim.

– Juiz ladrão. Não era cartão vermelho pro Jesus. – Disse Tris, vendo
o choro do jovem de 22 anos e relembrando como chorou ao descobrir que
seria impossível realizar seus sonhos, ainda mais com as notas péssimas
que havia tirado.

A história de Gênesis estava muito mal contada, eu sei. Mas com certeza tive
um surto ao ouvir aquela menina falando como se fosse Lilith, a primeira mulher
de Adão, a cobra do paraíso, que dirigiria o Homem ao inferno. Eu era feminista,
mas a primeira feminista não me representava, pois ela tirara Eva do paraíso,
sendo que Eva não fez nada contra ela. Adão, Lilith e Eva tiveram o acesso ao
paraíso, algo que foi tirado do primeiro casal bíblico. Agora, só os santos teriam o
Paraíso de Deus. E os autistas, os autistas de alto nível (os aspies) transitavam en-
tre céu e inferno (pode colocar os bipolares aí também). O céu que sua genialidade
trazia, o inferno de ter um meltdown...

FLASHBACK

"Consciência aberta, somas das forças externas é zero, por isso que o
céu é tão perto do inferno ...

36
Por um Triz

"
– Cantava Triscilla tentando sair do fundo do poço da depressão.

***

– Agora, é só relacionar essas baboseiras que escrevi com o Inferno


de Dante, que infelizmente tenho que ler sério. – Comentou Triscilla
com pessoas que não entendiam nada de seu trabalho. – Foi pênalti sim,
não vai ver o VAR, juiz de merda.

– Foi ombro no ombro. – Gritou Lorenzo.

– Foi pênalti sim, seu peruano de merda.

– Gooool do pombo. É campeão, é campeão!!!!!!!!!!

***

Brasil campeão da Copa América. Manipulado? Triscilla achava que


não. Sua vida era a manipulação de um Deus? Triscilla achava que mais
ou menos.

O inferno interior de se viver uma depressão, ou um remorso, era a


maior que está atrás das grades de uma prisão...

Brasil campeão da Copa América. Triscilla indo bem mesmo indo


mal nos estudos, pois sua superação era maior que qualquer nota D. Uma
semana para estudar para suas provas. Um texto quase perfeito (Sol em
Virgem é foda). O mundo podia acabar dia 20 ou antes. Triscilla nunca
fora tão feliz como era agora, mesmo com todos seus problemas. Estava
escrevendo seu primeiro livro sério, em breve terminaria a graduação e
conquistaria Derick. Era questão de tempo realizar o maior de todos os
seus sonhos: provar que era autista e poder andar com uma tiara da cor
de todos os espectros pendurada em seus cabelos ruivos.

37
4
Um Minuto para o Novo Mundo

Eu não sabia o que esperar para depois do dia 20 de julho de 2019, mas
definitivamente estava esperando por algo. Me tornei obcecadamente
focada no tema "Apocalipse"nos meados de 2019 e poderia dizer que a
culpa desse meu hiperfoco adveio das pesquisas para "Sol em Virgem".
Poderia dizer, mas estaria me igualando em hipocrisia à humanidade
que tanto critico. Os esforços, milagrosamente, não foram vãos: uma
parte ínfima do que aprendi sobre a temática foi colocada no meu pri-
meiro livro oficial, outro infinitésimo se converteu em música e a grande
maioria está sendo aplicada às técnicas de sobrevivência para 2020. Con-
tinuava encantada pelo tema quando soube das primeiras notícias do
vírus na China. Isso só fez minha cabeça guiada pelo realismo fantástico
achar que o próprio Apocalipse estava se concretizando. Veja bem, eu
tinha meus motivos: Irã e Estados Unidos estavam em conflito e isto
poderia ser o estopim de uma Terceira Guerra Mundial. Felizmente, nos
próximos dias em que se seguiram, fui obrigada a me concentrar em
outra coisa além do meu hiperfoco favorito.

O meu trabalho de conclusão de curso era mais que uma conquista


acadêmica. Vejam, seria o primeiro trabalho que levaria meu nome na
bibliografia; seria a vitória sobre três psicoses e uma pesquisa forjada ao
Um Minuto para o Novo Mundo

hiato; o fim de um ciclo que impôs feições dramáticas à utopia de me tor-


nar uma grande matemática. Não me culpem. Quem não se encantaria
com aqueles heróis tão reais, eternizados pelas descobertas na Rainha
das Ciências? Mesmo com a expectativa latente, que tinha como aliada a
nova aprovação para o mestrado em Matemática, não pude deixar de me
questionar se aquele era o melhor caminho para mim. E se eu simples-
mente devesse esquecer os devaneios daqueles seis anos e me entregasse
ao amor pela escrita, movedor de toda e qualquer montanha de minha
alma?

Seguiram-se os dias e seus acontecimentos. Foi e ainda é impossível


de esquecer os dias anteriores à Quarentena. Todas as minhas geniali-
dades e loucuras mais íntimas haviam se manifestado naquele período
de graduação. A partir do nono dia de março seguiu-se o choro, a luta,
o alívio e o aborrecimento. O meu mestrado, a pesquisadora em que
sonhei ser, estava prestes a se tornar uma realidade, em menos de duas
semanas. Porém era notável a sincronia dos acontecimentos, o atraso
das notas e do diploma. Como eu me dedicaria ao mestrado sem algum
dia de folga? Vejam bem: apesar de eu ter uma certa consciência sobre o
que estava acontecendo no mundo, não imaginava que aquilo tudo me
atingiria tão rápido. Eu só queria trilhar minha independência e carregar
o diploma como um troféu. Sim, em meio a todo aquele caos e mesmo
com casos do novo coronavírus em meu estado, eu flertava com a ideia
de receber minha recompensa no fim do mês. Ledo engano.

No dia 16 de março começara oficialmente o período 2020.1 na Uni-


versidade Federal de Alagoas. Dali, em uma semana, começaria o meu
novo caminho. Vi a universidade, que também era minha casa, ser inva-
dida por cerca de 30 mil pessoas, banhadas de sonhos e expectativas para
o futuro. Muitos tinham aquele como o primeiro dia como universitário.
Lembrei-me de minha versão de 16 anos e rezei, silenciosamente, para
que a academia não destruísse o sonhador que cada jovem ali era. Em
poucas horas, as minhas expectativas e de milhares de jovens foram que-
bradas: as aulas foram encerradas, sem estimativa de retorno, na noite

39
4.0

daquela segunda de março.

Na primeira semana de quarentena, até me diverti com as "férias for-


çadas", assistindo filmes e me livrando do estresse dos últimos meses de
monografia. O êxodo começaria em 20 de março, entregando todos resi-
dentes da UFAL a um misto de incertezas e medo. Pipocavam conhecidos
de uma pessoa ou outra que haviam se contaminado com o Coronavírus.
Os superiores da universidade enlouqueciam de frente a uma realidade
utópica. A ordem era esvaziar a residência até, no máximo, dia 25 e devol-
ver todos os estudantes às suas casas. Hoje compreendo que aquela era
a melhor opção dos dirigentes, mas na época, onde não se sabia quase
nada sobre o vírus, e meus planos foram cortados abruptamente, me vi
obrigada a ficar ao lado dos rebeldes.

Reuniões aconteciam com os universitários restantes de duas a três


vezes por dia. Eu tinha o privilégio de morar no mesmo estado que estu-
dava, boa parte não. Ali, naqueles encontros, confirmei minha suspeita
que estava participando de algo grande, algo único na história recente da
humanidade. Minha mãe era inclinada a favor dos rebeldes, mas voltaria
para casa se asseguram-se que nós duas não já estivéssemos infectadas
com o novo vírus. Boatos diziam que uma estudante partira chorando
com suspeita de COVID-19. A dúvida também pairava pela aglomeração
de pessoas de todas regiões que entraram na UFAL. Ah, vocês devem estar
se perguntando o que minha mãe fazia entre universitários. Respondo
brevemente: minha saúde mental era a principal responsável por isso.

Não fui santa nem fui louca no início de meu exílio voluntário: fui um
pouco de ambas. Presa, literalmente, aos últimos seis anos de minha vida
reuni-me virtualmente aos conspiracionistas católicos do Apocalipse. Fui
feliz enquanto minhas pesquisas duraram: o tema foi o inspirador que
mais senti na pele em todos os sentidos, dando-me músicas maravilhosas
e respostas temporárias para meus inquietantes questionamentos teoló-
gicos. Tornei-me como um espírito serelepe da natureza, agradecendo
por todo dia vivido, louvando com sinais católicos a cada lua brilhante

40
Um Minuto para o Novo Mundo

no céu. Em abril, a paz restauradora advinda pelos capítulos decisivos


concluídos em Sol em Virgem encontrou companhia à confirmação de
minha matrícula no mestrado e respectiva bolsa recebida. Pelo menos
naquele mês a esperança que a humanidade refletisse sobre suas igno-
râncias, fraquezas e forma maquinal de levar a vida eram latentes em
mim. Eu estava liberta e com tempo indeterminado para agradecer a um
grande Deus Andrógino pelas realizações que me pareciam impossíveis
em alguns trechos da estrada. Estava disposta a venerar a vida, represen-
tada naquele mês pelo nascimento de mais cinco gatinhos na Residência
Universitária Alagoana.

No início de maio, alguns males afrontaram minha paz de espírito


interior. Não, não vou citar aqui a óbvia impaciência por não ter uma
data marcada para o início do novo mestrado. Destaco, porém, o sumiço
dos filhos da gata Cidinha e minha humanidade questionada em meio
à explosão de casos de Coronavírus no Brasil. Lembrava da profecia de
Padre Cícero Romão sobre as pessoas não poderem ficar em suas casas
e viverem em "currais de gado". Questionei-me, também, se o "País do
Evangelho", profetizado por Chico Xavier, seria um dos protagonistas de
uma calamidade mundial. Era o primeiro decanato de maio e o Brasil já
atingira mais de 10 mil mortes pelo novo vírus. A dor, por ver meu país
ser um dos protagonistas de uma tragédia apocalíptica, era intensificada
pela negação de seus habitantes. Eu ainda não imaginava que a situação
pioraria tanto que, hoje, me alegraria se as mortes parassem apenas na-
quelas 10 mil. Os segundo e terceiro decanatos de maio foram marcados
pelo início virtual do meu mestrado. Estaria eu preparada para enfrentar
os monstros que me assombraram nos seis anos de graduação? Seria
eu humilde o suficiente para ver que minhas ideias escritas e cantadas
sempre foram muito mais importantes para mim do que um título de
mestra, conferido pelos trabalhadores de uma Matrix limitante? Aos
poucos, eu largava as Teorias de Conspirações cristãs, que condenavam a
maioria dos humanos ao Inferno, e me apegava ao significado grego da
palavra: revelação.

41
4.0

Notei, em junho, avanços nos meus aprendizados matemáticos. Apro-


veitei o período de revisão e decidi nivelar os meus capítulos iniciais aos
últimos. Desculpe-me o pessimismo, mas eu não podia esperar que nin-
guém entendesse, como eu, a grandiosidade de minha história com uma
narração tão fraca. Mesmo assim era necessário celebrar minha força
de vontade: no dia 06 de junho completava 01 ano que comecei "Sol em
Virgem". Decidi, enfim, matar um grande personagem e dá feições de re-
viravolta à trama. E a minha vida, também teria direito a uma reviravolta?

A alegria de ter finalmente achado os filhotes da gata Cidinha foi


substituída pela agonia do despejo iminente de todos os gatos. Vejam:
os residentes restantes não suportavam a bagunça dos gatos, mas era
extremamente cruel abandoná-los em meio a um mundo paralisado. A
partir das brigas de minha mãe com o grupo dominante da residência,
a resolução plausível foi levar a gata Jade e seus filhos para um bloco
abandonado e interceder por Cidinha, que escondera as crias em um dos
quartos desocupados da residência por uma pequena janela.

Quando cessaria meu martírio? Era eu digna de receber 1500 reais


enquanto me preocupava com filosofias inúteis no olhar dos doutores
acadêmicos? Por que não usei parte desse dinheiro para consultar-me
com a especialista em autismo que já tinha descoberto? O medo falaria
mais alto mais uma vez e usurparia para si o poder de minhas escolhas?

Antes de contá-lhes o que aconteceu, acalmou-os com uma boa notí-


cia: a gata Jade e seus filhotes voltaram. Destaque para um gato cinza
chamado Jake e o filho mais velho da gata, cinza mais claro que o pri-
meiro, Luppi. Luppi é o xodó meu e de minha mãe e parecia trazer a
sorte que sua cor ditava.

Finalmente era chegado Agosto e com ele todas as angústias atingiam


seu clímax: seria ou não aprovada nas minhas disciplinas de mestrado? E
se eu fosse aprovada, era aquilo mesmo que eu queria? Comemoraria, em
setembro, meu aniversário de 23 anos feliz por ter a garantia estendida

42
Um Minuto para o Novo Mundo

de ter 1500 na minha conta ou por estar livre para escrever as palavras que
engrandeciam minha alma? Não me julguem, apenas tentem entender a
transformação que se iniciara em meu ser humano. Não foi em 2020 que
comecei a notar que nossa realidade era constituída de uma Matrix. Sim,
nascemos em uma sociedade com valores pré-definidos, com cartilhas
de sucesso e felicidade distribuídas por "pessoas de bem"ou altamente
religiosas. Como não me questionar que a realidade poderia ser bem
diferente do que é hoje? Eu sou escritora e manipulo os sentimentos
e destino de meus personagens de acordo com meus propósitos. Não
seríamos nós, também, personagens de uma realidade construída por
nossos ancestrais e fortalecida pelos que se acham donos do poder neste
planeta? Aquele Agosto, astrologicamente o Inferno Astral para a vir-
giniana que sou, foi necessário para romper com aqueles sonhos que
eu achara serem definitivos. Eu não sonhava em ser cantora e escritora
quando criança, então porque desisti tão fácil? Suportaria os mandos e
desmandos de mestres e doutores em busca de um conhecimento ilimi-
tado e, de uma certa forma, limitante? Eu amo Matemática e tudo que há
de poético nela. Eu amo a vida e a beleza que há nela e que os humanos
não conseguem enxergar. Foi preciso coragem e desprendimento para
encarar aqueles outros 2D no mestrado em Matemática. A dor de não
saber o caminho a seguir fora atenuada pelo meu propósito de ser bem
sucedida com minhas ideias. Eu seria uma boa jornalista científica? Uma
boa astrônoma ou quem sabe astrofísica? Deveria ser apenas professora
de Matemática do ensino básico e conseguir os conhecimentos pedagó-
gicos? Eram milhões de estradas. Senti-me culpada por brincar daquela
forma com meus personagens, mesmo sabendo que não eram reais. O
destino estava brincando comigo, rasgando o derradeiro véu de ilusão
que me fora imposto.

Escrevo estas linhas em Outubro de 2020 e não poderia estar mais


feliz do que agora. A felicidade é algo interior, não necessitando das
conquistas que o mundo oferece. Hoje, acredito em reencarnação e em
vidas em outros planetas. Hoje, estou prestes a começar duas disciplinas
como aluna especial no mestrado de Informática da UFAL. Hoje, assim

43
4.0

como eu era quando criança, sinto o amor incondicional ao olhar para o


Céu e me sentir parte deste universo imenso. A vida é uma experiência;
a morte, encontrada tão facilmente esse ano, é apenas uma desculpa e
uma fase que devo passar, de novo. Não espero mais o Apocalipse trágico
que aprendi a gostar, mas sim pelo fim de um mundo cruel, egoísta e
individualista. Não devemos combater a pessoas más e sim a maldade
que há nelas. Pretendo ser humana até o dia em que me for permitido.

Eu sou livre, enfim.

44
5
Contando de Mim

5.1 Lista de Quadrigêmeos Fraternos


11 13 17 19

101 103 107 109

191 193 197 199

821 823 827 829

1481 1483 1487 1489

2081 2083 2087 2089

3461 3463 3467 3469

5651 5653 5657 5659

13001 13003 13007 13009


5.1.0.0.0

15731 15733 15737 15739

16601 16603 16607 16609

18041 18043 18047 18409

21011 21013 21017 21019

31721 31723 31727 31729

55331 55333 55337 55339

62981 62983 62987 62989

62981 62983 62987 62989

67211 67213 67217 67219

72221 72223 72227 72229

77261 77263 77267 77269

81041 81043 81047 81049

97841 97843 97847 97849

109841 109843 109847 109849

122201 122203 122207 122209

166841 166843 166847 166849

240041 240043 240047 240049

46
Contando de Mim

Quadrigêmeos fraternos são números primos que estão na mesma


dezena.

5.2 Contando de Mim


Vocês poderão achar que eu, essa garota que se apelida de Marturinhas,
não tenho criatividade para criar nomes de contos ou músicas e, para
economizar energia, estou repetindo um. Bem, eu faço isso às vezes,
mas não por falta de energia ou criatividade... Eu tenho tanta que isso
não pode me causar sérios problemas.
"Contando de Mim"é uma das centenas de músicas que fiz quando
era adolescente. Ela se inicia assim: "Demorou tanto pra a gente ter essa
conversa e, hoje, estou contando de mim pra você...". Pois é isto que estou
fazendo: contando de mim depois de tantas enrolações. Se já sei traduzir
frases em idiomas estrangeiros, por que não conseguiria traduzir meus
sentimentos em uma folha de papel? Minha mente não é tão difícil de
entender, pelo menos pra mim, que habito esse corpo há quase 25 anos.
Com louvor ao divino que habita em ti,
Marturinhas.

5.3 Carta ao meu eu de 63 anos


Querida Marta de 2060,
Não sei se você se tornou professora universitária. Acredito que não.
Os seus olhos vermelhos, primos-irmãos dos seus cabelos, provavelmente
não te deixaram. Você se lembra de todos os sonhos que sonhou e de todos
que deram errado? Você nem tinha 25 anos e já achava que estava atrasada
em tudo. Você não queria ser uma acadêmica, mas, mesmo assim, fez um
curso sobre docência no ensino superior. Quanto insensatez pensar que
o caminho que seu coração lhe ditava precisava saber como ser docente
do ensino superior... Mas, olhando bem, você não prefere chamar isso
de sabedoria? Defendia, naquela época consigo, a necessidade de ser
mestre de nós mesmos e alunos uns dos outros. Viu, como é difícil, mas
também gratificante? Deve ter 63 anos e ainda deve estar aprendendo e

47
5.3

estudando muita coisa. Deve amar ainda mais o fato de ser diferente e
daquelas aulas, em anos pandêmicos e apocalípticos, terem confirmado
que a sua intuição estava certa.
Chateei-me e xinguei horrores em um dia de maio de 2022, lembra?
Um dos professores daquelas videoaulas defendia que os alunos deveriam
chegar na hora certa da aula, estudarem o conteúdo antes das reuniões
e esquecerem do mundo quando entrassem em sala. Será que aquele
professor nunca conhecera um ser humano atípico, cuja a capacidade de
atenção lhe foge com qualquer barulho ou som? Ou nunca ouviu falar dos
pilares de suas famílias, que estudam e trabalham ao mesmo tempo? Ou
sobre as lotações que se atrasam ou das fortes chuvas que não permitiam
que os estudantes chegassem no horário combinado? Chateei-me, mas,
no dia seguinte, segui o seu conselho sobre o direito de estar presente.
Choquei minha orientadora ao dizer que queria desistir de meu mestrado.
Eu nunca estive presente (em corpo) lá e não deveria atrapalhar quem
estava. Eu deveria estar presente para mim, aquela mulher de 24 anos
que era também uma garotinha ferida.
Como deve se lembrar, você se permitiu desabar. Você tinha mais
motivos para sorrir do que para chorar, mas desabastes com a quebra de
suas expectativas. Não era aquelas aulas que tivestes online o modelo
britânico de universidade, aquele que você no fundo cultuava? Sua re-
clamação sobre disciplinas da UFAL não amadurecerem suas exigências
artísticas, culturais e filosóficas não foram finalmente findas? Você não
via a universidade como uma instituição profissionalizante, mas como
um meio de potencializar sua inteligência e intelectualidade. Defen-
sora interna da multidisciplinaridade você confirmou que sua alma era
grande demais para se especializar apenas em algoritmos e teoremas.
Bem, você ainda deve achar que todas as almas são pequenas demais
para passarem oito horas ou mais de suas vidas em trabalhos maquinais
e você deve estar muito feliz de contribuir para que isso não seja mais
uma realidade aí em 2060.
Falando em mudanças, com quais dessas você vibrou mais nos últi-
mos 38 anos? As escolas entenderam que o método antigo de ensino se
fazia precário e decidiu adotar a aprendizagem através da criatividade e

48
Contando de Mim

da coletividade. Atualmente os alunos não se preocupam com notas ver-


melhas e nem temem mais as avaliações, já que estas apontam seus erros
sem julgamento. Os professores, agora valorizados com seus devidos
louros, trabalham com sorrisos estampados e não se preocupam mais
com a Síndrome de Burnot. As pessoas têm tempo, as pessoas têm graça,
as pessoas têm esperança. O sistema de cotas, tão criticado e tão defen-
dido aí em 2022, agora não vigora mais. Todas as pessoas têm direito a
entrar na universidade. Os estudantes raramente desistem de seus cur-
sos, e, quando o fazem, não é por desespero. De fato, as pessoas podem
trabalhar e estudar sem muito estresse, pois a carga horária média de
trabalho varia de quatro a seis horas. Além disso, todo aluno com déficit
em assuntos de "anos escolares anteriores"é prontamente abraçado por
seus professores em turmas de reforço. Também não existem mais "anos
escolares", pois o conhecimento do aluno em cada disciplina é medido
por área de conhecimento e é permitido avançar ao próximo nível em
qualquer época do ano.
Sim, de certo você só citou tudo isso para rememorar alguns avanços,
mas é claro que você vibrou mais com inclusão às pessoas neurodiver-
sas. Inclusive, foi pelo estudo dos seus cérebros, que as adaptações no
ensino básico e superior foram feitas. Foi descoberta que a maneira com
que autistas, hiperativos, disléxicos, entre outros, aprendiam com mais
facilidade era uma forma de toda a raça humana aprender com mais
facilidade.
Agora, voltemos a 2022 e suas consequências. Você sentia, desde de
2019, que anos transformadores viriam pela frente e os três primeiros
após estes foram sofridos e singulares. Lá em 2022 você desistiu da
USP, pediu transferência para a UFAL e começou a tornar-se a mulher
forte que você é hoje. Você agradeceu, após a tempestade, o fato de ser
uma menina que tinha acabado o ensino superior, passado três vezes o
mestrado, aprendiz de línguas no Duolingo, escritora enciclopédica e
perfeccionista, compositora devota e descontrolada... Nos anos 90 (anos
que ama musicalmente, também década de seu nascimento) apenas
22% dos alunos que começavam o ensino fundamental terminavam a
oitava séria. Isso batia com as histórias contadas por sua mãe, leitora

49
5.3

assídua e feroz de romances de época, que só aprendeu a escrever com


cerca de doze anos e nem acabara a quarta séria. Ela tinha o brilho nos
olhos quando pegava uma fotonovela e se debatia a ler e viver àquelas
aventuras, mas também era responsável pela roça, pelos irmãos mais
novos e desconstruções dos sonhos que nunca pode realizar. Sentiu-se
ingrata, não foi, pois reclamava de não ter seus devaneios poéticos e
literários, enquanto aquela que te pariu e te criou nem sequer teve os
anseios estudantis mínimos cumpridos? Na década de 2000, a faculdade,
joia destinada apenas aos ricos e despreocupados bateu em sua casa
através de seu irmão mais velho... E aí, como se sentiu em ser a única de
teu sangue, naquela época, a ter chegado a quase um ano de mestrado em
uma das maiores universidades do Brasil? Quanto peso nas costas! E por
que desistiu? Desististes porque precisava se encontrar e se encontrar
significava abraçar àquela oportunidade de conseguir uma neurologista...
Uma neurologista que visse cada centímetro de espectro autista que
tinha em sua pele. E, encontrando-se, você se prometeu que nunca mais
deixaria ninguém passar pelo que você passou...
Era metade do ano de 2015 quando seu chão e sua rotina rigorosa de
estudos foram lhe tirados... Entendo, hoje, o quão egoísta foi ser contra
aquela greve por ela quebrar teus planos e te perdoo mais do que nunca.
Para que cobrar tanta perfeição sua, só porque você não se encaixava em
nenhum grupo, não tinha nenhuma paixão ao teu lado? Era necessário
querer-se tornar, tão jovem, um ícone da Matemática para compensar
tudo o que não tivestes? Você era a rainha dos devaneios e nele caiu e
nele enlouqueceu pela primeira vez. Enlouqueceu, mesmo sabendo que
sua diferença tinha nome. E, louca, prometeu que não ficaria em casa
e estaria na universidade por direito e... Bebeste cerveja duas vezes e
enlouqueceu pela segunda vez. Dois surtos em dois meses, de dezembro
de 2015 a fevereiro de 2016. Seguistes sem sonhos, apenas com o desejo de
não voltar mais ao inferno em vida. Não tinha vontade nem te tirar notas
perfeitas, sua característica de outrora Só queria acordar sem loucura...
Até que em 2017 a ansiedade e tristeza tomou conta de ti novamente
e entrastes na terceira loucura, a pior de todas. Desacreditada do que
realmente era, uma garota autista passando por uma adolescência difícil,

50
Contando de Mim

fostes rotuladas como esquizofrênica e bipolar. Não, ser esquizofrênico e


bipolar não é nada indigno ou inferior, porém ninguém queria ver o que
teus olhos e coração sabiam tão bem. E a vida e estudos foram seguindo
com reprovações. Os professores te reprovaram mesmo sabendo que
você não tinha condições de estudar e nada entrava em sua cabeça. Claro,
que a reprovação dos outros não era maior que a tua. Você era apenas
uma sombra da sonhadora ardente que tinha sido na infância e início da
adolescência. Passastes, com o resto de luz que tinha, para o mestrado e
ganhastes 2D e dessas reprovações veio tua vontade de fazer algo que só
dependesse de ti. Começou a escrever seu amado primeiro livro completo,
Sol em Virgem, e procurastes um orientador para o tema que estudastes
sozinha lá em 2017, no ápice da tua loucura. Os 2Ds de 2019 não foram
suficientes e conseguistes mais dois em 2020, em meio à aula virtual e
transformação espiritual. Eu estava renascendo das cinzas mais uma vez.
A partir daí tentei cursos como aluna especial na Informática da UFAL,
tornei-me aluna da USP (sem nunca ter pisado os pés lá) e descobri os
coletivos autistas e fundei, de penetra, o coletivo autista da UFAL e... O
resto é história, história ainda que a Marta de junho de 2022 viverá.
Muito obrigada por ter desistido na hora certa. Daquela garota de 24
anos e nove meses,
Marta Oliveira, a Marturinhas.

5.4 Descrição
Não. Não espere que eu entenda algo pela descrição que você achar
mais fácil. A minha cabeça funciona de uma maneira diferente, logo
ela localizará os objetos no espaço de uma maneira distinta. Algo pode
ser mais óbvio para você do que para mim e vice-versa. Um exemplo
neurotípico: na Copa do Brasil do ano passado, quando meu time foi
eliminado, podiam me indicar: "Torcerá para o time rubro-negro?". E eu
responderia sim. Não, não seria o Flamengo e sim o Atlhetico Paranaense.
Tá vendo que nem sempre é óbvio? Você precisaria de uma descrição
a mais para identificar o time que eu torceria com sucesso. Assim sou

51
5.6

eu no meu dia-a-dia. Às vezes preciso de uma descrição a mais para


identificar uma situação ou objeto.

5.5 No ritmo de Pequena Eva


"É o final da Odisseia Terrestre. Agora somos Sistema Solar...". Status: À espera
da última astronave.
Nos últimos anos estamos a humanidade, como um todo, questio-
nando os padrões que foram nos impostos por séculos. Questiona-se a
soberania de uma etnia, a falta de sentido de um classificação sexual e de
gênero binária. Questiona-se também as cartilhas ideológicas políticas e
o porquê que a sociedade insiste em separar o que não é homogêneo.
Questionava-me, desde pequena, sobre o funcionamento do meu HD
interno. Sim, a diferença era visível pelo menos para os meus olhos. En-
tão, porque tem que a ver um padrão de comportamento? Imagine a des-
coberta de uma civilização extraterrestre. Ele, provavelmente, não teriam
cultura e padrões de comportamento parecidos com o da nossa humani-
dade. Pode-se ser que os fotos estranhos aqui da Terra se relacionam-se
bem mais amigavelmente com os seres do outro mundo e tivessem o
pensamento bem mais parecido.
A humanidade é bela (justamente) pela sua complexidade. Ciência
Exata só Matemática.

5.6 Um pseudônimo chamado Giovanna Vasconcelos


Eu não queria ter falhas. Eu queria ser perfeita, pegar tudo de letra , não
errar jamais... pra quando todos vissem minha bibliografia estivessem
certos que eu estava destinada o tempo todo a me tornar uma grande
matemática. Mas tudo que eu vejo em mim são erros, atitudes de uma
menina boba, de uma garota qualquer. Grandes matemáticos já tira-
ram as notas péssimas que você tirou, Giovanna? Grandes matemáticos
perdem seu tempo criando historinhas de criança, Giovanna? Grandes
matemáticos choram por não conseguir resolver um probleminha e se
sentem incapazes? Até que ponto será que eu fantasiei que eu vou tornar

52
Contando de Mim

uma grande matemática pra não conseguir enxergar que eu PRECISO


me esforçar mais. Se eu me tornar uma grande matemática isso não vai
ser do dia pra noite, eu tenho que me lembrar. Mas será que o destino
não consegue entender que eu preciso das pequenas vitórias? Que vai
ser isso que vai me fazer seguir em frente? Até quando você, Giovanna
Vasconcelos, vai errar coisas inúteis? Até quando?

5.7 O amor de um pseudônimo


Você tome cuidado com certos tipos de pessoas, pois quando eles senti-
rem que não podem "mamar"de você e aproveitar das suas boas ações, vão
querer te ver pra baixo, vão ser seus piores inimigos. Vão apontar seus
defeitos, vão querer destruir os seus sonhos, e sempre vão procurar algo
que você fez errado, mesmo que eles tenham errado mais do que você.
E o seu pior crime, meu amigo, vai ser se destacar entre eles. Eles não
vão entender que VOCÊ é assim porque você é um garoto esforçado. Eles
não vão querer ser como você, um exemplo a ser seguido, uma pessoa a
ser notada. Eles vão querer que você seja como eles ou pior: vão querer
te ver no fundo do poço.
Eles justificam seus êxitos porque supõe que você é mais inteligente
que eles. Dessa mesma forma eles justificam seus fracassos. Não vou
negar, eu sou superdotada, sou mais inteligente que muitos. Isso é bom
e é ruim ao mesmo tempo. É muito difícil pra mim. Às vezes, eu sinto
a loucura invadir minha cabeça e não querer mais sair. Mais nunca. É
como se ela fosse uma parte minha e eu uma parte dela, duas coisas que
não podem se separar.

5.8 O custo de se assumir autista


Andei procurando profissionais capacitados em autismo para ajudar em
meu diagnóstico definitivo. Fiquei feliz ao receber a confirmação de uma,
pensando que ela deixaria eu responder suas perguntas escrevendo e
precisaria, por enquanto, de uma única sessão de R$120,00. Para mim,
meu autismo é óbvio, mas preciso de profissionais ao meu lado para

53
5.9

poder, enfim, conversar normalmente sobre as coisas que sinto e vivo com
família e amigos. Fiquei espantada com a falta de flexibilidade e custo
proposta a mim. Ela não flexibilizou a forma de atendimento, mesmo eu
afirmando que mandaria áudios e fotos se assim fosse necessário. Minha
família não aceita minha suspeita e eu já disse isso pra ela. Além disso,
foi-me proposto R$600,00 por mês. Sim, eu tenho como desembolsar
esse dinheiro, mas não posso sumir com uma quantia dessas. Eu ganhava
R$1500,00 quando fazia mestrado, e se eu ainda estivesse nele, teria que
gastar esses R$600,00 mensais, fora o dinheiro de remédios, aluguel,
feira para a casa. Mas, eu não estou mais no mestrado e o dinheiro que
acumulei também serve para as necessidades da minha família.
Quanto será que custa a paz de espírito de uma pessoa, o tão aguar-
dado diagnóstico libertador? Todos os profissionais realmente se impor-
tam comigo ou com o lucro que posso lhe dar? Ficam os questionamentos.

5.9 Visão espiritualista


Não, não quero romantizar o autismo. Nasci com dificuldades mínimas
e só desci ao inferno na adolescência, quando soube, de alguma forma,
que eu estava aqui para fazer algo gigantesco. Tentei-me apegar ao maior
problema matemático da atualidade e pensei que minha falta de sorte
no amor e outros relacionamentos só seriam superadas se eu fosse a
MULHER que conseguisse resolver aquele problema, me pondo acima
de um montante de homens fracassados. E isso me levou diretamente
a loucura. Ou será que a loucura estava no fato de descobrir quem eu
realmente era e que minha família não iria aceitar? Na verdade, foi uma
união de ambos.
Eu queria ser uma "Mestra", uma mulher notável, reconhecida por
chegar nesse planeta e fazer algo único. Só que errei , e feio, a direção.
Consigo enxergar a humanidade indo docemente de encontro aos seus
infernos. Eles acham que este é o propósito de sua vida, mas não é. O
propósito é muito maior do que o sucesso pedido pelos poderosos.
Quantas vezes você, independente de ser neurotipico ou neurodi-
verso, já chegou a conclusão que a Terra seria um paraíso se as pessoas

54
Contando de Mim

se amassem, respeitassem, compreendessem o diferente? É possível


fazer isso, nem que seja preciso povoar esta esfera azul com pessoas que
não vão se adaptar às regras impostas, ensinar que nem tudo pode ser
concluído pelo o que os olhos veem... Ensinar que os seres humanos
estão perdendo seu tempo acumulando bens e ódio no coração.
Ainda não sei se vim pra cá com esse objetivo, mas todas as veias
do meu coração parecem confirmar. Somos mestres de nós mesmos,
mestres uns dos outros, amigos eternos em um complexo jogo de xadrez.

5.10 Cabelos e unhas


Poderia ser mais fácil pra mim.
Sim, eu não importo com o frizz em meu cabelo, minhas unhas sujas
ou minhas pernas cabeludas. Não há nada especial para que eu sinta von-
tade de melhorar minha aparência. Sim, já cheguei ter o cabelo cortado
por passar muitos dias sem pentear, mas aí é até plausível pela estado
de depressão que eu estava. "Ah, você tem o cabelo tão bonito", dizem.
"Nunca irá arranjar um namorado se continuar assim", repetem. "Você
se comporta com uma criança de 14 anos."Eu tenho nove anos biológicos
a mais. "Você é diferente, estranha."
Ficaria bem mais fácil de explicar o porquê dessas limitações e mos-
trar que faço isso automaticamente, se aceitassem minha suspeita de
autismo. Eu poderia me arrumar melhor, cuidar melhor de uma casa
e muito mais, se entendessem que minha inércia é um reflexo de um
transtorno que eu tenho, mas não querem aceitar.
Tudo seria bem mais fácil...

5.11 Redação do Enem


Não vou me fingir de santa. Ainda não alcancei a iluminação que tanto
admiro nos maiores mestres da humanidade. Senti o estigma social, ou
porque não falar, o preconceito bater em mim com a possibilidade da
bipolaridade ou esquizofrenia. Bem, eu sabia que eu era autista e que as
psiquiatras que fui não conseguiram enxergar aquilo que para mim já era

55
5.12

óbvio. Porém eu tentava me atentar a uma coisa: se eu tivesse qualquer


um dos transtorno acima não seria menos humana. Busco o diagnóstico
de autismo não aceitado por 99% das pessoas ao meu redor, mas isso não
me tiraria a possibilidade de também ter outros.
Lembrei-me ao ver tal tema, também, de uma conversa super franca
que tive com minha mãe. Ela sabe que eu sou diferente, todos sabem,
mas têm medo do termo "autista"; medo até mais do que a possibilidade
de outros transtornos. "As vizinhas lhe chamavam de maluca porque
corria nos terreiros", foi a desculpa. Ela sabia que eu não era o padrão de
adolescente cultuado, porém preferiu não procurar psicólogo/psiquiatra
por medo do preconceito. Tive que ir para alguns quando já não aguen-
tava mais: as comorbidades depressão e ansiedade haviam vencido a
batalha contra minha mim.
Até hoje o estigma colocado no termo "autista"me impede de ser com-
pletamente feliz, de poder explicar meus comportamentos estranhos, de
dizer pro garoto que eu amava porque eu não estava preparada para tro-
car beijos com ele na juventude; de compartilhar, sem receios, postagens
sobre autismo nas redes sociais.
A todos autistas descobertos já adolescentes e adultos e que a famí-
lia aceita o diagnóstico: vocês são privilegiados. Espero, um dia, que
todos nós tenhamos oportunidade de falarmos que somos autistas sem
nenhum estigma.
A sociedade, então, será bem melhor.

Sobre a redação "O estigma associado às doenças mentais na socie-


dade brasileira", do Enem 2020.

5.12 Tom de voz


"Gritar, se foi um erro, quero errar sempre assim". Me permitam parafrasear
Capital Inicial. Eu preciso falar sobre o meu tom de voz. Sim, também
tenho dificuldade de saber o que falar e como falar, mas isso eu posso
deixar para depois.

56
Contando de Mim

Sempre tive meus problemas com minha voz ríspida e cantorias "mo-
norritmicas". Sim, era assim que eu chamava minhas músicas já que eu
as gravava no mesmo tom de voz.
Sei falar baixo, principalmente quando entendo do assunto (ou quando
tenho tempo a pessoa e isso é válido também para olhar nos olhos). Mas
não me peguem na empolgação ou na surpresa. Eu grito. Grito e falo
com velocidade de 360 km/h. Já falo naturalmente alto, imagina na hora
de soltar da cuca minhas palavras. Minhas conexões cerebrais são dema-
siadamente ligeiras e meu corpo nem sempre é capaz de acompanhar.
Sim, exagero no tom em horas impróprias, o que é angustiante para
uma pessoa que passou a fase mais pura de sua vida querendo ser cantora.
Faço isso, não nego, mas não é por mal. Simplesmente sai. Entendo a
revolta, aliás sou bem grandinha e "cabeçuda"para saber como me portar.
Entendo, mas peço que entendam que não faço por mal.

5.13 Sobre empatia


Talvez eu não tenha empatia mesmo... Ou não consiga processar o
que as pessoas querem sem que elas me digam que precisam daquilo.
Junte isso com a minha dificuldade de sentir cheiro, raramente olhar
nos olhos, constantes mãos nos ouvidos, a impaciência ao receber várias
informações ao mesmo tempo, a dificuldade de organizar meu horário,
não amarrar sapatos, a aparente inocência em relação a alguns temas da
vida, a facilidade de ter ansiedade ou depressão e outras coisas.
Mas daí você teria que assumir que eu sou autista, mesmo que eu
precise de pouco suporte. Você sabe que eu sou estranha, mas não quer
admitir a possibilidade de eu ser autista. Além disso, toda vez que você
fala sobre uma coisa que é autista ou possa ser, se refere a ela como
problemática, agressiva ou alguém difícil de cuidar. Não é porque você
leu textos sobre autismo, que eu mesma selecionei e ocultei a antiga
"Síndrome de Asperger", que você saiba mais de autismo do que eu, que
nasci autista.
Não, nem todos psiquiatras vão identificar minhas características
e associar ao TEA. Eles estudaram muito, mas certamente ainda têm

57
5.14

ideias errôneas do TEA. Eu, posso dizer sem me gabar, sou a única pessoa
que pode me conhecer por completo e a partir do momento que eu ouvi
relatos sobre, liguei os pontos e me descobri.
Pode gritar que eu sou irresponsável. Pode gritar que eu não faço
nada para ser uma pessoa multifacetada. Eu não sou como você era com
23 anos, né? Ninguém é obrigado a ser. Eu não tenho emprego algum,
né? Eu não cuido de uma casa inteira ou tenho filhos...
Então por que você opina tanto quando eu decido fazer ou me inscre-
ver no mestrado? Diz que uma pessoa que não consegue ler um livro não
é capaz de fazer um mestrado? Você está me limitando a uma disfunção
executiva que você nem sabe que existe? Essas minhas atitudes, facul-
dade terminada, procurar saber mais a fundo sobre espiritualidade, falar
sobre atração sexual genética em um livro (quase ninguém sabe disso)
não são sinais que eu sou e estou me tornando responsável, mas a meu
modo?
Eu tenho empatia sim. Eu tenho sentimentos. Infelizmente não
esqueci de quando você convenceu aos psicólogos que minhas caracte-
rísticas eram por causa do extremo cuidado da minha mãe. Sei lá, se
você tivesse menos ciúmes de mim, talvez eu já tivesse conseguido o
diagnóstico de autismo. Ou se você achasse, pelo menos, minha opinião
válida.

5.14 Feliz dia 02 de abril


Médicos, psiquiatras e psicólogos: não adianta colocar filtro na foto de
perfil no dia 02 de abril se vocês não param para escutar um adulto com
suspeita de autismo. "Não vejo autismo em você". Tudo bem. Eu demorei
15 anos para ver o autismo em mim e mais dois para levar a possibilidade
a sério. E ao longo desses anos de suspeita encontrei pessoas, que como
você, não acreditaram em mim. Isso doeu profundamente, sabe?
O incrível é ver que a percepção vem de uma pessoa que a gente menos
espera. No meu caso foi uma fonoaudióloga que notou o autismo em
mim, pelo desvio no olhar, problemas no olfato e problemas na audição
em um ouvido completamente normal. Foi ela que explicou para minha

58
Contando de Mim

mãe, que aceitou e confirmou que sentia que eu era diferente dos outros
três irmãos.
A maldição, porém, vem de quem a gente menos espera também.
Então, queridos psiquiatras não achem que vocês sabem sobre todos os
transtornos psiquiátricos. Mais respeito e empatia, por favor.
Ah, mas pra muitos de vocês quem não tem empatia são autistas né?
Feliz dia 02 de abril.

5.15 Ao dia das mães


Dos planos inexplicáveis de Deus, a maternidade, de longe, foi o mais
bonito.
"Você sentirá as dores do parto", deveria ser a punição para a mulher
pelo pecado original.
Não foi uma punição, não foi um castigo, foi uma recompensa e um
exemplo para ser seguido por todas as gerações.
Sabe por quê? Porque a única forma de amor que me faz pensar em
como deve ser o amor D’ ele é o amor que uma mãe é capaz de sentir.
Ele sabia que teríamos séculos e séculos de uma sociedade patriarcal,
onde a mulher seria menosprezada pelo simples fato de ser mulher e
pior: às vezes só reconhecida pelo dom de carregar no ventre a vida.
Ele sabia. Ele sabia que o sexo que levaria o nome de "sexo frágil"seria
irreconhecivelmente forte na luta pelos seus descendentes e iguais.
Ele sabia e colocou na figura da Mãe, uma fração de seu infinito amor.
Não poderia ter feito escolha mais sábia.

5.16 Pra dentro!


O que é visível aos olhos dos outros nunca deve ser mais forte ou determi-
nante do que as coisas que fazem você ser quem é, que te fazem levantar
da cama e está pronto para a batalha mais uma vez.
Lembre-se: você é o único ser humano com que você pode ter um
contato interior completo.
Por isso: pra dentro!

59
5.18

5.17 Sobre entender


É preciso entender quando alguém não te entende.
Parece difícil e de fato é. Mas lembre-se que, para você, as algumas
coisas são óbvias porque você é o único ser humano da Terra que tem um
contato interno tão profundo consigo mesmo. E isso também vale para
os outros. É fácil julgar a partir de nossas perspectivas. O outro carrega
em si uma bagagem totalmente diferente, a qual só podemos supor e
nunca entender por completo. Tudo que supomos do outro é um reflexo
de nós. Por isso aquele defeito que você aponta em outrem, pode, um dia
ter sido o seu defeito.
Parece impossível no mundo de hoje em dia, onde frases e posicio-
namentos já fugiram como sentenças finais. Lembre-se que você nem
sempre foi capaz de se entender. Lembre-se que a sua separação do outro
é uma mera ilusão. Tudo está dentro de você. Tudo está dentro dele.
Somos como um enorme quebra-cabeça vivendo experiência diferentes
e, por mais que doa, é preciso entender quando alguém não te entende.
O mundo precisa de professores e não de juízes.

5.18 Traços de infância


Mantive e recuperei algumas das características mais marcantes da mi-
nha infância. É tão bom ser você mesma de novo. Claro, agora sou
acompanhada de cicatrizes profundas: obsessões que me levaram ao
fundo do poço várias vezes, a tentativa cruel de me encaixar na história
da humanidade como alguém importante.
Como eu fui tola em tentar em seguir um caminho e esconder os
meus sentimentos mais nobres! As cicatrizes pararam de doer assim
que flertei com a essência de minha alma. Olhar as estrelas continua
fascinante! Criar estórias e aprender com eles sempre foi e sempre será
meu hiperfoco favorito. Organizar dados inventados de meus persona-
gens. Correr livremente e entrar na dimensão da minha imaginação...
Por que me expus a uma dor tão grande para descobrir que as respostas

60
Contando de Mim

já estavam comigo, naquela criança com medo de contar o teor de suas


fantasias?
Escolhi, ainda fora dessa carne, que precisaria passar por essas dores
e desilusões. Eu precisava de coragem. As respostas sempre estiveram
dentro.

5.19 Mensagem para 2020


Ah, ano apocalíptico! Só por me fazer olhar para a vida com outros olhos,
já valesse a pena. Aos que se foram, que encontrem um bom lugar. Aos
que ficam, escolham o melhor caminho.
A vida não é feita só de bater metas. Reparou bem no pôr-do-sol esse
ano, para as árvores, estrelas e tudo ao seu redor? Já sentiu a gratidão
de estar vivo e com a chance de fazer uma pequena parte do mundo
melhor? Uma pequena parte do mundo estar aí, dentro de você, e você
pode muda-a imediatamente. Não espere milagre dos outros: o milagre
se faz em ti! Cocrie com pensamentos e ações o seu ano-novo ideal. Todos
nós somos muito poderosos. Amemos juntos, oremos juntos, porque
batalhas baseadas no ego já fazemos constantemente.
2020, obrigada! No início aprendi pela dor, mas já sou capaz de
aprender pelo Amor. E que ele se manifeste!

5.20 Ser salvo


Todos têm Cristo como Salvador. Sim, escolher nascer em um planeta
cheio de pessoas egocêntricas e que não querem mudar, é um grande ato
de coragem e de amor.
Mas Jesus não salva quem não quer ser salvo.
Na crença espírita, as pessoas acreditam na chance de ter várias vidas.
E tá aí: as almas têm várias segundas chances, várias oportunidades.
Enfim, uma hora chega a oportunidade de um planeta todo ascender
e mudar, porém sempre existem as almas que correm contra o fluxo da
evolução. Daí não adianta chorar, rezar, mandar sinal no Céu para elas.

61
5.22

Elas não querem uma Nova Terra e continuam achando que essa, que a
gente tá, é a única.
Assim, nem Jesus para salvar quem não se permite ser salvo. Eles
terão outra chance, pois nosso Deus é de infinita misericórdia e bondade.
Mas agora não.
Eles têm seu livre-arbítrio e cabe ao Mestre e a nós respeitá-lo.

5.21 Comparação
Por que custa acreditar que o que digo é a minha verdade, a minha es-
sência liberta e mostrada orgulhosamente ao mundo? Posso me rotular
como autista, índigo, cristal, porque assim sinto que eu sou e me en-
caixo nas características apresentadas. Sou o exemplo de um teorema e
o meu autismo é apenas um corolário da minha definição. Não sou eu
por completo, sabe? Mas é uma parte importante de mim.
É lógico que você aceita que meus jeitos e gestos não são comuns.
E para tudo isso que é tão diferente na minha pessoa tem um nome: é
autismo. Não é o mesmo da criança que ainda não fala ou da criança que
tem crises sensoriais diante o público, mas também é.
Ninguém é igual. Sou um ser das estrelas passando um tempo na
Terra e os nomes acima me definem, consolam e me fazem sentir humana
e parte de algo maior.
Não sou comum e não falo sobre o que sou para me sentir mais espe-
cial ou me gabar. Me assumir é apenas um reflexo da minha consciência
em libertação.

5.22 Sobre a terceira temporada de Atypical


Sobre a terceira temporada de Atypical
É Sam, hoje sou 1/5. Sim, eu me lembro quando você disse que quatro
entre cinco não conseguiriam se formar na faculdade. Sou, depois de
cicatrizes mentais indescritíveis, parte desses 20%.
Também tentei ser a melhor universitária possível e também não
percebia quando muitos só queriam debochar da minha cara em vez

62
Contando de Mim

de serem meus amigos. Sim, eu exagerei nas cobranças e na falta de


socialização. Não, eu não tinha outra saída em meio a barulhos, cores e
pessoas tão diversas no meio da cidade.
Olhem bem, não foi um simples jogo "Marturinhas vai passear". Se
fosse, teria sido um jogo de terror misturado com fantasia, no caso, as
minhas fantasias. Foi um desligamento de minhas rotinas e escapes, a
visão de um mundo bem mais cruel do que eu imaginava, a ganância
corroendo os meus superiores e a mim mesma.
No fim, Sam, não tive tanta sorte quanto você. Tive que passar pelo
inferno algumas vezes para ter parte dos meus direitos serem cumpridos.
Sim, eu sei que não tive a coragem de buscar um diagnóstico oficial, mas
isso foi mais por medo do que por cansaço: até hoje, os meus, duvidam
da possibilidade de eu ser uma menina autista.
É, Sam. Um diagnóstico muda tudo, inclusive a chance de ser parte
dos 20%. Por enquanto, eu não o tenho oficialmente. Portanto preciso
ser, por mais um tempo, incansável.

5.23 Chocolate
Minha mãe deve ter autismo ou o Fenótipo Ampliado do Autismo. Ela não
é boa com interpretações de alguns termos que ela não tem conhecimento
prévio.
Por exemplo, quando uma amiga fez uma sátira nos stories referente
ao chocolate Diamante Negro, que já foi alvo de escândalo por conter
cacos de vidro em sua produção, ela questionou se a moça seria capaz de
dizer aos seus alunos. Os stories da moça dizia que "Chocolate e vidro
seria ideal numa refeição". Claro que ela sabe que o diamante é cortante,
é óbvio, mas ela não sabia o porquê daquilo ser algo interessante de se
colocar em um storie.
Bem, isso gerou uma confusão com meu irmão, quando eu em defesa
de minha mãe disse que nem todo mundo entende as coisas em seu sen-
tido conotativo... Ele se "defendeu"dizendo que eu não queria conselhos
(ele não fala com minha mãe por motivos fúteis).

63
5.25

O capacitismo é grande. A ignorância faz de muitos donos da razão


que nunca tiveram...
Sim, eu não pareço autista, como bem outra irmã debochou com um
amigo dela que eu quis fazer contato (para dar dicas de perfis neurodiver-
sos interessantes). Não pareço, mas sou. Assim, boa parte das conversas
eu e minha mãe continuaremos entendendo no sentido literal e não será
o preconceito e ignorância de ninguém que irá mudar isso.

5.24 Medo de Amar


Quando um livro é feito para você ler, não importa se você tem Dom
Quixote, O Amor em Tempos de Cólera, Vidas Secas, Hamlet... Ele está
ali, na sua frente, mostrando que você precisa aprender primeiro com ele
para aprender com os outros. Não, e não existe preguiça na hora de ler...
Você ler o prólogo e os dois primeiros capítulos e vai lá saber o resumo
da história com o olhar.
No fundo você sabia que ali estava uma verdade que você já conhece e,
às vezes, ignora. Ele que, de forma simbólica e sincrônica, estava lá para
dizer: "Sim, é isso mesmo. Siga seus rumos sem muitos planejamentos
ou paranoias. Sim, o amor é a única verdade eterna. Ame incondicional-
mente. Só existem finais felizes assim."

Sobre o livro Medo de Amar do espírito Marco Aurélio, psicografado


por Marcelo Cézar.

5.25 Cansaço
Cansada de pedir por silêncio e não ser compreendida. Sabe o que eu
preciso quando sinto "choque nos ouvidos ou na cabeça"? Silêncio.
Cansada de explicar que eu não consigo dormir com a luz acesa.
Cansada de ouvir, também, que eu preciso de um exame na cabeça, sendo
que eu sei que tudo isso é fruto da TPS (Transtorno do Processamento
Sensorial).

64
Contando de Mim

Cansada de explicar o porquê sou autista. Sabe? Pra mim isso se


tornou tão óbvio. Não é necessário que ninguém deboche da minha
suspeita para seus amigos. Se for pra explicar o que eu tenho e me dá
um aliado, sim, pode dizer, mas eu não preciso deais gente duvidando
de algo que eu lutei tanto pra saber.
Eu sou autista e a discordância de quem não me conhece por completo
e/ou não conhece sobre o autismo não vai transmutar automaticamente
meus genes neurodiversos para genes neurotípicos.

5.26 Decreto
Sim, pessoas deficientes precisam de adaptação na educação. Aliás, a
educação, como um todo, precisa de uma significativa mudança (mas
não venhamos ao caso). Qualquer criança, adolescente ou adulto com
deficiência DEVE tê-la. Mas o dever não está sendo cumprido; o dever,
sobretudo, está sendo ignorado.
"Joguem no lixo tudo aquilo que me dará um pouco de trabalho e
dedicação", dizem os engravatados. "Separe-os. Se eles ficarem juntos
por muito tempo perderemos nosso poder e conforto. Eles não podem
perceber e contar aos outros que não estamos nem aí para a educação,
saúde e o bem-estar deles", repetem os que querem ser deuses.
Eles querem começar pelos deficientes, para depois segregar os ne-
gros, os lgbts, os de espiritualidade livre e os pobres. Eles querem nos
separar e nos tornar marionetes. Eles querem, mas não vão conseguir.

Sobre o decreto 10.502.

5.27 Feliz dia do sexo


"Espero que toda vez que você venha falar de Anjo Azul comigo, que seja
sobre a música de Marquinhos Moura (ou sobre a banda de foró)."

Adoro anjos. Adoro extraterrestres azuis (os arcturianos). Azul é a


minha cor preferida. Mas, a partir do momento, que um irmão autista

65
5.28

se sinta ofendido com o termo, eu tenho que parar e ouvir o que ele tem
a falar.
Não que eu não acredite que não tenhamos missões. Todos nós, nas-
cidos humanos, temos e a maior delas é ser feliz. Não somos "anjos"por
sermos autistas, somos se formos pessoas extremamente humanitárias.
Aí sim o termo anjo cai bem.
Somos neurodiversos e temos vontade de amar. Boa parte de nós
também quer formar uma família. Queremos alguém que nos apoie, nos
entenda e não tente nos moldar. Queremos fazer sexo, experimentar do
orgasmo... E não ter medo de dizer que somos autistas, tão humanos e
complexos como qualquer um.
Feliz dia do sexo!

5.28 Um filme, uma história, uma paixão


Srinivasa Ramanujan foi um gênio autodidata indiano. Mas, dizer ape-
nas que ele foi um gênio e que foi autodidata nada diz sobre sua contribui-
ção para a Matemática e sua história. Para termos uma ideia da dimensão
de sua obra basta contar que Bruce Berndet passou 22 anos tentando pro-
var os 3.254 teoremas contidos em três cadernos de Ramanujan, reunidos
por sua viúva Janaki. Sobre este episódio, Berndet destacou: "algumas
das matemáticas de Ramanujan são simplesmente surpreendentes. Se
ele não os tivesse descoberto, ninguém jamais os teria".
Além de bela, a história do indiano fora trágica: morto aos 32 anos,
devido a uma severa tuberculose, mal teve tempo de conviver com sua
esposa. Também é importante citar que o prodígio matemático não
obteve reconhecimento fácil. Um exemplo disso é que, tentando entrar
na Universidade de Madras, ficara tão absorto em Matemática ao ponto
de ignorar as demais disciplinas e, consequentemente, não conseguindo
passar no exame de seleção.
A virada na vida de Ramanujan se deu através da descoberta do li-
vro Orders of infinity, de G.H. Hardy. Conseguindo o contato do reno-
mado professor da Trinity College, em Cambridge, o prodígio lhe enviara
uma carta com suas descobertas matemáticas. O ano era 1913. Hardy

66
Contando de Mim

surpreendeu-se com o conteúdo lhe exposto, chegando a acreditar que


fora uma pegadinha de seu fiel amigo Littlewood. Passada essa suspeita,
Hardy respondera a Ramanujan e destacou que ali haviam resultados de
três tipos: conhecidos ou facilmente obtidos, curiosos e ideias novas e
interessantes. Ramanujan agradeceu pela compreensão e considerou,
imediatamente, o inglês como um amigo seu.
Convidado por Hardy, Ramanujan chegou em Cambridge em 14 de
abril de 2014 e só retornara para sua terra natal após quase cinco anos, em
27 de fevereiro de 1919. Lá o gênio indiano passou por diversos contratem-
pos, entre eles, a frágil formação matemática, o fato de ser vegetariano e
não pode se alimentar das refeições servidas na Trinity e o agravamento
dos problemas de saúde com o deslocamento para a Inglaterra.
Uma das suas contribuições mais importantes foi a descoberta da
função partição p(n), que associa cada número natural com "o número de
modo que podemos representá-los como soma de outros naturais". Além
disso, como o próprio Littlewood do filme destaca, Ramanujan tinha uma
relação íntima com cada número inteiro. Um fato curioso, e que reforça
isso, se refere ao Número Taxicab. Conta-se que em uma visita a Ramnujan,
Hardy fora indagado sobre o número do táxi que viera. Hardy respondera
que era 1729 e era um "número sem importância". Ramanujan contrapôs
"Não, Hardy, esse é um belo número. Ele é o menor inteiro formado
pela soma de dois outros inteiros elevados ao cubo! As duas formas são
1729 = 103 + 93 = 13 + 123 ".
O amigo leitor, assim como Hardy, poderia perguntar de onde vem
tamanhas intuição e inspiração e, como o inglês, não confiar na sabedoria
oriental e sim em Ramanujan. "De Lakshmi, deusa protetora de minha
família", respondeu o prodígio. Ressalta-se que a Lamashmi ou a intuição
de Ramanujan nem sempre lhe davam o caminho correto. Um exemplo
disto foi a tentativa do indiano em encontrar uma fórmula para encontrar
raízes de quinto grau, em vão, já que Abel já havia provado que tal fórmula
não existe.
Finalizo esse texto, destacado a frase de Bertrand Russel, figura pre-
sente na história de Ramanujan e do filme: "A Matemática, quando vista
corretamente, não possui apenas verdade, mas também suprema beleza".

67
5.31

Resenha e comentários sobre a palestra "Um filme, uma história,


uma paixão"do professor Wagner Vieira Leite Nunes, e sobre o filme "O
homem que viu o infinito".

5.29 Uma parte


O autismo não é um bicho de sete cabeças... Bichos de 49 cabeças são o
capacitismo, as comorbidades decorrentes de uma socialização ruim e
do não entendimento do eu interior.
Aí quando eu abraço uma árvore e sinto o vento bater em minha cara,
sinto que o autismo é um velho amigo, amigo desse com quem briguei
muito, mas a gente já tá se entendendo.
Assim, agradeço todo dia por ter nascido com uma forma tão peculiar
de olhar o mundo... Faz parte do que eu sou, faz parte da minha história.

5.30 Percy Jackson


Algumas coisas são muito engraçadas... Quando eu era adolescente,
descobrir através dos livros um rapaz chamado Percy Jackson. Percy era
um garoto "problemático", que não parava em escola alguma. Percy tinha
TDAH... E era um semideus do Oceano.
Quantos "semideuses"teríamos escondidos através de diagnósticos
de neurodiversidade? Quantos garotos e garotas que não se dão bem na
escola têm um talento inato para alguma área? Quantos seres humanos
incríveis estamos deixando para trás por causa do grande preconceito
ainda vigente em nossa sociedade?
Como Percy Jackson precisou derrotar Cronos, precisamos derrotar
o Capacitismo. A batalha só começou...

5.31 Paralimpíadas de Tokyo


As Paralimpíadas de Tokyo 2020+1 fizeram um bem enorme para a mi-
nha humanidade. Não, não é aquela humanidade que é substantivo, mas

68
Contando de Mim

sim adjetivo. Eu, que já era adepta em pensar que é normal que os cé-
rebros funcionem em sistemas operacionais diferentes (neurodiversos
x neurotípicos), me vi tendo que confessar o meu antigo ego e própria
ignorância.
Sabe, a teoria das múltiplas inteligências? É mais uma que acredito
imensamente. Como explicar que atletas com Deficiência Intelectual
sejam tão bons (ou por que não dizer geniais) nos seus respectivos espor-
tes? Talvez seja claro: não é a dificuldade de aprender um conteúdo na
escola quem ditará quem você pode ser.
Eu, por exemplo, era uma ótima aluna na escola, provavelmente com
a inteligência superior em Matemática (e em criar/inventar estórias) .
E de que isso me adiantou quando me faltou a inteligência emocional?
Pouca coisa. Eu era mais uma menina frágil assustada com um mundo
horrendo. Eu era mais uma menina que teve que se prender em seus
devaneios para sobreviver por alguns meses.
Então, fica a dica: as inteligências são múltiplas, não-únicas. Cuide
bem de suas crianças sejam elas muito boas, medianas ou ruins na escola.
Elas estão dentro de uma ostra, sabe? E das ostras nascem pérolas.

5.32 Experiências de uma fã


Eu tenho 24 anos, 1.49 m e preciso aprender a crescer. Não, não é na
idade ou no tamanho. É na maneira de me colocar no lugar do outro de
forma prática.
Graças a um post de uma ativista, a Carol Souza, eu percebi que
estava pecando com uma das pessoas que mais admiro nesses últimos
tempos. Não, não vou botar a culpa na minha ansiedade.
Se o Bill (Gabriel Bandeira) não te responde na hora não é por mal, é
por dificuldade de socialização. Se o Bill não entende as metáforas que
tu fala, é porque elas são difíceis de entender mesmo.
Nem todo mundo vai aprender a mascarar as coisas como você. Nin-
guém é obrigado a se tornar tagarela nas redes sociais. Tu já passou por
isso pessoalmente e tu sabe, né, que não é com todo mundo que você tem

69
5.34

a confiança de falar. E o montão de mensagens no e-mail ou no chat? Tu


sabe que isso dá "choque", né?
É, você precisa crescer. OBS: Eu ficaria satisfeita com mais 7 ou 8
centímetros.

5.33 Partida
Quando o mundo carece de bons exemplos, de pessoas que sejam mais
lembradas por suas virtudes do que pelos seus defeitos, ele mesmo nos
tira as pessoas que, por si próprios, decidiram agir e ser os bons exemplos.
Ninguém nasce mau: todos nós nascemos com o potencial de despertar
a bondade nos outros, e se isso não é feito é por puro egoísmo nosso,
mesmo inconsciente.

5.34 Síndrome de Cassandra


Sou obrigada, mais uma vez, a tentar achar o caminho do meio entre duas
áreas que me competem afeto. Há poucos dias, uma mãe de um garoto
autista me mostrou indignação com a divulgação de um livro espírita
sobre o tema. O livro era "Autismo: a escolha de Nicolas". Acontece que
eu sou espírita e ativista autista.
.
Entendo a posição da mãe: muitas pessoas da linha esotérica pregam
que as pessoas que nascem autistas ou foram assassinos ou não queriam
encarnar nesta vida. Sou contra esse raciocínio. Procurando do que se
tratava o livro, fiquei aliviada: o Nicolas em questão tinha sido volun-
tário e não um assassino. Tentei explicar para o Instagram divulgador
que o correto era deixar claro que sobre o voluntariado do personagem
em questão. Resultado: fui criticada por tal usuário e ainda não recebi
respostas da mãe.
.
Não sei se Natalia Pasternak tentou fazer suas críticas de forma que
pessoas esotéricas e/ou de religiões orientais não se sentissem ofendidas.
Aliás, ela é judia, trabalha com esclarecimentos científicos e ganha por

70
Contando de Mim

isso. Sua tentativa deveria ser direcionada em separar os verdadeiros


charlatões das pessoas de boa fé. Ninguém é obrigado a ser 100% racional.
.
Deixando minhas críticas agridoces de lado, vou resumir alguns
pontos citados pela microbiologista.
.
Natalia cita, primeiramente, uma propaganda de shampoo que pro-
metia substituir o DNA perdido dos cabelos por DNA vegetal. O segundo
sarcasmo é referente à "banana com fator de necrose natural". Nessas e
em outras situações, geralmente advindas de notícias mal-interpretadas
ou de pseudociências, Natalia afirma que os cientistas não defenderam
suas posições adequadamente. Cita, também, que acha um absurdo que
terapias alternativas, como acupuntura, homeopatia, terapia de cristais
e reiki, sejam financiadas pelo SUS. Nessa passagem, eu concordei em
partes com ela: nem todas as pessoas acreditam e/ou utilizam de terapias
alternativas; o financiamento deveria ser direcionado para áreas em que
90% ou mais da população pudesse utilizar. Os meus contras, nesse caso,
são referidos a uma enfermeira que conheci na UFAL e utilizava terapia
alternativa em seus estudos e em sua vida. Ela não é menos competente
ou lógica que Natalia. Vejo essas terapias alternativas como um subtipo
de psicoterapia ou algo parecido. Ter algo que praticar e se dedicar faz
bem para saúde mental. E, claro, sobre o poder da imposição de mãos no
reiki: isso advém da crença espírita (lá é conhecido como "passe"). Assim,
concluo: são práticas que não deveriam ter um investimento demasiado
do SUS, mas que contribuem de alguma forma para quem faz. Só acres-
centaria o fato do cliente se atentar ao preço das consultas e observar as
promessas feitas pelo ofertante. Sim, ele precisa ganhar pelo seu traba-
lho (não deixa de ser), mas tudo que parecer milagre certamente não é
verdade.
.
Gostaria de comentar também sobre a invasão do Instituto Royal.
Atitudes como essa descredibilizam a luta vegana. Sim, foi necessário
que mil ratos morressem para que tivéssemos nossos remédios ou um
milhão de bois ou galinhas morressem para que pudéssemos comer. Sim.

71
5.35

Eu creio tanto na inteligência do homem que sinto que os cientistas têm


como descobrir um jeito de testarem seus remédios sem um grande sa-
crifício animal. Sim, Natalia. Aqui no Brasil cachorro e gato são sagrados.
Na Índia é a vaca. Em algum lugar do mundo pode ser o rato.
.
Ainda sobre o movimento antivacinação (que, inclusive, acontece
muito atualmente) senti falta de uma maior descrição da bióloga sobre o
assunto. Mesmo assim, eu conto qual é a fake relacionada a esse assunto:
vacinas não causam autismo; pessoas nascem autistas e isso certamente
envolve questões genéticas. E só para complementar: MMS não cura o
autismo, assim como o comprimido citado no vídeo não cura o câncer.
.
E, antes de terminar essa resenha, gostaria de dizer que cientistas
não são os possuidores da verdade. Sim, a Ciência é o que temos para
próxima dela, mas ela não é irrefutável ou dogmática. Só cito que um
médico, Hans Asperger, se livrou dos autistas "menos funcionais"que
encontrou. Ou, porque não citar, os psiquiatras da época de minha
conterrânea Nise da Silveira. Eram cientistas, tinham uma parcela da
verdade em mãos e não souberam usá-las.
.
É, Natalia. É trágico que, como Cassandra, alguns cientistas bem-
intencionados tivessem previsto as tragédias ou tentado manter um
equilíbrio entre o senso comum e a academia. Mas, como esotérica que
sou, não acredito que todos brasileiros vão abandonar a pátria e fazer
avanço em terras estrangeiras. Sim, essa é uma previsão, mas as previ-
sões são feitas para serem evitadas e não concretizadas.

Sobre o vídeo "A Ciência Brasileira e a Síndrome de Cassandra".

5.35 Burrice
Eu pensei que não iria escrever nenhum textão hoje. Ledo engano. Então,
qual é o tema, Marturinhas? O poder da ofensa em chamar alguém de
burro.

72
Contando de Mim

Me considero uma baita escritora e compositora e entendo algumas


coisas de Matemática Avançada, estudo (quando posso) espiritualidade,
teologia. Como veem, não sou burra. Mas, sempre existe aquele parente
que vai te chamar assim se você não entender o comando dele ou fazer um
favor exatamente como ele quer. Aí vão te chamar de burra e te comparar
com alguma criança que tenha dificuldade de aprender. E se a referida
criança tiver deficiência intelectual? Vocês acham que é encorajador
chamar alguém de burro, assim, por nada?
Sim. Eu sei que não sou perfeita. Há muito pouco tempo que aprendi
mais sobre DI e ainda tenho muito a aprender. Mas dói, sabe? Dói
principalmente quando você quer falar que tem provavelmente TEA e
TDAH e não são capazes nem de entender isso.

5.36 Esoterismo
Existe um lado do esoterismo que é bonito, bonito mesmo. Existe algo
sagrado no brilho da lua, na posição das estrelas, na gentileza das plantas
e animais. Existe algo divino no ar que respiro, na terra que piso, no
barulho da água serena que escuto escoar, no fogo que transmuta esta-
dos.... É, existe luz, mas também existem sombras. Infelizmente nós,
como humanidade, não aprendemos a controlá-las e isso inclui, claro,
quem se diz esotérico e sabe que em tudo que há e em qualquer pessoa
há uma fagulha de Deus.
Faço esse relato como uma pessoa que se tornou espírita, que não
acredita mais em inferno, que crê em reencarnação. Está sendo doloroso,
mas estou conseguindo encaixar e selecionar os ensinamentos/relatos
que procuro como o que meu coração diz. E sabe o que meu coração diz?
Que ser autista não é uma maldição. Sabe, se eu pudesse escolher entre
ser ou não ser autista de agora em diante, escolheria continuar sendo.
Eu me conheço assim e não há como voltar atrás quando você sabe o que
outros autistas podem passar e deseja, do fundo da sua alma, que o que
aconteceu com você nunca aconteça com eles.
Assim, da minha visão esotérica (que ainda está sendo moldada),
compreendo que minhas principais características (ser ruiva, ter a mãe

73
5.37

que tenho, ser autista, gostar de compor/escrever) foi um gentil consenso


entre eu e meus guias espirituais.
No verdadeiro esoterismo não há imposições ou maldições. Tudo que
há é livre-arbítrio e aprendizados/ensinamentos em todas experiências
humanas. Estamos aqui para construir uma humanidade melhor para
nossos filhos, netos, alunos, fãs e nós mesmos (nessa e em outras vidas).
O divino trabalha com a evolução, não com castigo. O criador trabalha
com amor e não com vingança.
Assim, queridos esotéricos, trabalhem também com o amor, o res-
peito, a gentileza. Vocês têm o potencial de saber e dizer coisas lindas
pros demais. Então, não usem o limitado conhecimento que tens para
gerar dinheiro em cima das emoções negativas de ninguém. Lembre que
seu cliente é uma fagulha da Fonte em manifestação, assim como você. O
autista ali não foi ou é melhor nem pior que você em outra vida. Ele é você
em outra forma, vivendo outra história, reunindo novas experiências
para essa enorme mônada chamada humanidade.
Inclua-o como a ti mesmo. Respeite-o como a ti mesmo. Apoie-o
como a ti mesmo. Ame-o como a ti mesmo.

5.37 Para Gabriel Bandeira


Era um garoto que não se contentava com nenhuma cor de cabelo (ou
com o cabelo). Também, nascido com 70% de água no corpo, não se
conformava em ter que viver em solo. Seu lugar era a água, ele sabia. "Só
ela é capaz de conquistar minha atenção, que parece não manter-se em
mais nada", certamente pensou. Não fazia sentido para o garoto de nome
de anjo nascer no planeta conhecido como "Planeta Água"e ignorá-la.
Não, realmente não faz sentido nenhum. Tu tá certo, Gabriel.
Como seu mais famoso xará, aquele que anunciou o nascimento de
Cristo, o Gabriel de Indaiatuba também era portador da luz. A luz tem
a velocidade mais rápida do Universo e isso explica bem a velocidade
do rapaz na piscina. É, justamente como um portador da luz, capaz
de quebrar incontáveis limites, sua vida teve que ser difícil. Não sei
da totalidade da dificuldade, mas tenho a dimensão. Normal. Seria

74
Contando de Mim

injusto com os outros viventes da Terra que esse Gabriel, apelidado de


Bill, começasse sua jornada ganhando tudo.
"Aos 21 anos completos, deixaremos parte de sua luz ser liberta", dis-
seram os anjos em consenso. E assim foi. Vieram seis reluzentes em
Madeira, Portuga. Depois quatro pódios em Tokyo, sendo o primeiro
campeão de uma nação tão vitimada e tão dividida.
É... Como o arcanjo, esse Gabriel também tem um anúncio a fazer:
"Escolha um objetivo e não pare até alcançá-lo".
****
Mensagem cafona feita quatro dias antes dos 22 do @flag.bill. Daqui
pra lá sai mais.

5.38 Sociedade Digital


Desafios de uma sociedade digital
Teorias Conspiratórias não deveriam ser consideradas tão absurdas.
Não, não estou defendendo o espalhamento de Fake News. Não. Vejam
só: muitas delas se inspiram em fatos reais ou configuram uma metáfora
(possuindo por vezes elementos ou personagens absurdos).
Caros cientistas, escutem o mito da dominação reptiliana, troquem
"reptilianos"por "monopolistas das redes de comunicação"e alguns outros
detalhes. O que era uma aparente teoria conspiratória de mau gosto se
torna assustadoramente real. Tais monopolistas possuem os dados de
bilhões de pessoas e prevêem nossos gostos e opiniões. Faltando-lhes a
ética fica fácil nos fazer de marionetes. É real. É assustador.
Cabe a nós, como possuidores de um pouco maior que a maioria da
população, refletir sobre os paradigmas e paradoxos da sociedade digital.
Queremos tecnologia e avanços, mas também queremos liberdade e
privacidade. Esta última não temos mais.
A revolução digital é, tal como as revoluções cognitiva, agrícola e
científica, um marco nos costumes e modo de viver da humanidade. O
computador está a serviço do homem e da sociedade. O computador está
a serviço, também, da maldade e bondade do homem. "Rico sou, e estou
enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado e

75
5.40

miserável, e pobre, e cego, e nu", disse o Apóstolos João em seu atualís-


simo Apocalipse. A humanidade tem o conforto que nunca teve antes, é
rica; porém não percebe que suas informações estão nas mãos de cinco
ou seis pessoas: está nua, cega e pobre de discernimento.
Aos poucos que percebem estas coisas cabe iniciar uma revolução, não
uma outra revolução digital ou uma possível revolução eletromagnética.
Não. Não nos cabe cobrar ética dos algoritmos, que tudo sabem, mas
sim de seus donos e desenvolvedores. É um começo, para que não haja o
fim da dignidade humana.

5.39 Subdiagnóstico
É muito duro você saber que é autista e saber também que ninguém
vai acreditar em você. Ao mesmo tempo você se culpa pela sua falta de
socialização, hiperfocos fora de controle, devaneios excessivos, falta de
cuidado consigo...
Nem depois de três surtos psicóticos, planos idos ao chão e um recons-
trução profunda de si, o diagnóstico oficial saiu. Só uma fonaudióloga
notou que você é muito sensível ao sons e que "infelizmente"você é autista
adulta.
Infelizmente? Poder ser você e ter esse direito sem que ninguém te
questione ou invalide não é motivo para tristeza.
Eu não sou tão mentirosa apesar de criar tantos personagens de mim
ou de minhas estórias. Eu nunca mentiria em algo tão sério como isso...
Eu quero apenas manifestar o que já sou aqui dentro, mas as mura-
lhas são duras e o mundo dos homens é a invenção mais macabra deles
próprios.

5.40 Introdução
Eu tinha 15 anos quando peguei o "Introdução à história da Matemática",
do Howard Eves, na biblioteca da escola e comecei a ler um trecho ou
outro dele. É um calhamaço de mais de 800 páginas. É um livro bonito,
da capa bonita, com histórias bonitas.

76
Contando de Mim

Para quem gosta de Matemática ou de História (ou dos dois) vale


a pena. Não precisa ler todo. Cada grande período da Matemática é
precedido por uma introdução histórica.
Nem sequer cheguei perto de lê-lo por completo, mas andava com
ele dentro da mochila como se fosse uma relíquia. E é. Uma introdução
de 849 páginas...
Quantas páginas as passagens importantes da sua vida daria? Você o
consideraria uma relíquia? Espero que considere, um dia.

5.41 Legião
A incrível história da garota que se sente viva com as músicas de uma
banda "morta"há 25 anos.
Ontem eu escutei Clarisse completa mais uma vez. E não doeu. Não
deu vontade de morrer. Escutar "Clarisse"sem sofrer é a prova da minha
cura (não do Autismo, óbvio). Eu sou uma pessoa forte. Eu sou uma
pessoa incrível. E não estou mais trancada no banheiro chorando.
Sabe? Eu não consigo achar A Via Láctea triste. Não mais. Cada
estrela, se não for um sorriso, é uma lágrima de esperança, de gratidão.
Além disso, todo vento que sinto na cara, me faz lembrar que viver
pode ser bom e surpreendente. Sinto uma paixão insana por "Vento no
Litoral". Coloquei parte do meu coração nela e nas outras.
Hoje arranco os traumas do meu peito com as mãos inquietas. Não
dói mais. E é por isso que gosto tanto de Legião Urbana.
Clarisse tinha só 14 anos. Eu, 17. Uma Outra Estação, disco onde saiu
a gigante Clarisse, saiu em julho de 97. Eu nasci em setembro. Não há
coincidências.

5.42 Eu TRANScendo
Eu TRANScendo. Sim, não sou exatamente o oposto que designaram
quando eu nasci. Não, eu até gosto do meu corpo de menina, da minha
genitália, dos meus seios... Mas nunca, nunca mesmo, me encaixei na
caixinha de "mulher feminina".

77
5.43

Eu não sou completamente mulher, mas também não sou comple-


tamente o oposto. Eu tenho, às vezes, a alma de menino ou a de um ser
andrógino ou a de um ser das estrelas ou a de uma menina mesmo.
Eu não me encaixo em suas caixas, humanidade. Eu danço livremente
pelo espectro do que é sagrado, do meu sagrado feminino e do meu
sagrado masculino. Diria a Astrologia que sou 51% yin e 49% yang. E sou.
Prazer, sou Marturinhas, uma mulher não - binárie. Eu sou a minha
maior paixão.

5.43 436- Memórias


Se não me falha a memória, esse capítulo, "Memórias"saiu no começo de
dezembro de 2015 em alguma páginas de fãs da Fairy Tail. Não, não tem
como falhar a memória. Foi próximo a esse ou ao 400 que eu tive o meu
primeiro surto psicótico.
Sim, eu estava louca pela revelação que Zeref e Natsu eram irmãos.
Eu gosto de personagens sombrios, sabe? Não que eu ache eles o ideal de
humanos, não. É que eles são os mais complexos.
O engraçado é que me também viciei em Obito, de Naruto. Foi logo
antes do meu terceiro surto psicótico.
Bem, continuando, eu estava muito ansiosa pelos próximas cenas
do mangá, mas não foi só isso que me tirou do chão. Foram os meses
de quebra de rotina (a universidade havia entrado em greve e voltado
num passe de mágica), eu não conseguia mais estudar e corria o risco de
reprovar nas matérias que havia me esforçado tanto no começo de 2015.
A depressão? Ah, eu estava achando petróleo de tão fundo que era meu
poço...
Una isso com a quase completa falta de socialização, o questiona-
mento sobre mim mesmo (eu seria uma pessoa boa ou má?), os meus
stims e devaneios que estavam saindo dos limites e... E a descoberta
que eu era autista. Eu sabia que era autista desde de junho de 2015, mas
estava tentando me aceitar primeiro antes de contar para alguém.
Não deu. Enlouqueci primeiro. E a loucura foi tão forte que quando
gritei "que era uma pássaro e precisava voar (parodiando Clarisse, Legião)

78
Contando de Mim

e que era autista"ninguém acreditou. Até hoje quase ninguém acredita.


Ainda bem que minha mãe acredita.
Ah, sobre personagens: eu sou uma anti-heroína, uma complexa e
contraditória anti-heroína.

Sobre o capítulo "Memórias"do mangá "Fairy Tail".

5.44 Gênero Neutro


Não sou uma menine não-binárie em cima do muro. Ou uma menina
não-binária, se preferir. Eu sei da maioria das regras do português, mas
também estou tentando aprender outros idiomas. É, esse é um dos meus
hiperfocos mais fascinantes. Fascinante, também, foi como tentando
entender a "língua do Vale"que descobri que transcendo o "gênero femi-
nino"e que gosto de meninos e meninas. Melhor: eu gosto de pessoas.
Eu sei que é muito mais fácil e intuitivo continuar falando os pronomes
binários da língua portuguesa. Eu sei. Mas não custa nada respeitar o
pronome neutro do coleguinha LGBTQ+.
Como dizia Paulo e foi repetido por Renato e milhares de legionários
: "Ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos,
sem amor eu nada seria". Não adianta eu repudiar o pronome neutro em
justificativa de um suposto português perfeito. Estamos carne. Nossos
gêneros não são permanentes. E é só o Amor que conhece o que é verdade.
Eu escolho falar a língua do meu coração.

5.45 Pais e Filhos


Estou pegando uma briga com outro legionário no Letras de Músicas
por causa do seguinte comentário: "Senhor Manfredini, sinto-lhe dizer
que essa música não é sobre suicídio. Essa música é um hino, um hino
de amor". O cara me perguntou o que "ela se jogou da janela do quinto
andar"tem haver com amor. Tudo. Falta de amor próprio, falta de amor
da família, falta de amor pela vida.

79
5.46

É um hino de amor que fala de tragédia, certo? Mas, vocês meus


queridos, falariam que Romeu e Julieta é um livro de amor ou de suicídio?
O mesmo se aplica a Pais e Filhos. A frase marcante (que eu evito cantar)
não vale mais que a música inteira, que a sensação que os fãs e não fãs
sentem ao ouvi-la? Será que as pessoas pensam em morrer? Não, elas
pensam em amar quem está ao seu lado e que o amor, por fim, vença as
diferenças.
"Tu errou a mão, Júnior", eu diria com orgulho. Como sempre, ele
quis falar de uma coisa e passou outra muito melhor. É que um cara, que
em essência foi Amor, não pode falar de tragédia uma música inteira,
mesmo que ela seja inspirada por uma.

5.46 Os 2/3 (ou 2/4) restantes da Legião Urbana


Hoje eu estou inspirada para escrever ... Sobre polêmicas, óbvio. Gostaria
de explicar o por quê de gostar tanto do Dado e do Bonfas (especialmente
do Dado).
Okay. Se Renato fosse um pouco menos tímido (leia-se perfeccio-
nista), ele teria conquistado até a audiência do planeta Marte. Okay.
Existem e existiram músicos melhores que Dado e Bonfas. Sim. Mas é
importante lembrar que quando o Renato era o maluco de um trovador
solitário foram Bonfas e Dado que aceitaram as maluquices dele e for-
maram uma banda. Sim, o Negrete também tem seu mérito gigante. Foi
outro que acreditou naquele que todo mundo sabia que era um gênio,
mas ninguém dava a chance ou a parceria.
Foram esses carinhas que aguentaram as crises de chatice do Renato.
Esses carinhas que davam o suor no estúdio que agradasse o "senhor
Perfeição". E foram eles também que tiveram que enxugar as lágrimas e
anunciar o fim da banda dias depois da morte do amigo.
"Ah, mas eles não estouraram ou fizeram sucesso depois do fim da
Legião". Certo. Mas você aí, legionário, teria coragem de subir num palco
e não ver seu chato preferido lhe liderando?

80
Contando de Mim

E o sucesso também traz o desassossego, sabe? Eu, como composi-


tora em série, às vezes penso seriamente em ignorar minhas músicas e ir
levando minha vida de sossego até quando der. Então foi isso que Dado e
Bonfas preferiram: sossego. Sossego para chorar suas lágrimas em paz.

5.47 De nome de santo


Um Mercúrio Retrógrado em Gêmeos faz uma virginiana legionária falar
pelos cotovelos. Bem, eu vou tentar entender a cabeça do menino de
nome de santo (sim, é o Giuliano mesmo). Não, eu não vou dá lição de
moral, porque não cabe a um ser minúsculo de 1,50m fazer isso com um
marmanjo de 32 ou 33 anos.
Eu também cresci sem pai, mas o meu estava vivo. Meu pai era/é
dependente de bebidas alcoólicas. Isso gerou um luto gigante na minha
infância, adolescência e começo da vida adulta. Hoje eu não preciso do
meu pai, mas Giuliano, se pudesse, iria querer ter o seu de volta.
Ninguém aqui é ingênuo. Sabemos que as drogas contribuíram e
muito para que Renato partisse antes do tempo. A mágoa de ver, talvez,
Dado e Bonfá bens de saúde grite mais alto. "Eles poderiam ter evitado,
trancado ele num quarto e pedido por socorro", pode já ter pensado
Reúna isso ao fato de muitos legionários desdenharem de Dado e
Bonfá (vá para um vídeo da Legião no YouTube). Muitos dizem que Re-
nato carregava sozinho aquela banda nas costas. Deve ser isso que o
herdeiro também pense. Mas, Giu é um caso a parte. Imaginem quan-
tas pessoas só falaram com ele para dizer que seu pai era um gênio ou
um grande homem? Ou para reforçar o "quanta falta sentem"? Certa-
mente, Giu teve muita vontade de viver e trocar experiências com esse
ser humano incrível.
Todos nós, legionários, sentimos saudades do nosso ídolo (mesmo
tendo nascido após sua morte). Imagina o menino que teve a honra de
receber o nome de "filho"dele? Ele sente, e muito, até hoje. É uma dor que
provavelmente nenhuma música da Legião é capaz de descrever sozinha.

81
5.49

5.48 Alice Casimiro


A Alice uma das primeiras influenciadoras autistas que conheci, graças
às redes sociais. E Alice trouxe, para aquela época sombria e pesada que
eu passava, um dos maiores presentes da minha vida: a certeza de que
sou autista. Claro, eu ainda não tenho o diagnóstico e muito menos o
estereótipo de pessoa autista, mas eu tenho o meu coração. E ele, quase
sempre tão tolo, me diz: "Você é autista, você nunca esteve errada".
Assisti, depois de muita enrolação, metade do documentário "Stima-
dos Autistas". Lá estava Alice e outros influenciadores (os quais conheci
na minha pesquisa de autoconhecimento). A incrível menina neurodi-
versa contou que havia tentado se matar várias vezes e um dos gatilhos
foi a pressão na universidade. Diante desse relato lembrei de mim, com
recém-completos 18 anos, e a vontade que tinha de morrer mas sem co-
ragem (ainda bem) de me matar. E eu esperei, assim como Alice, que
alguém visse que eu precisava de ajuda. Infelizmente (ou felizmente)
a ajuda só veio quando entrei em surto psicótico e daí todas as minhas
suspeitas de estar no espectro foram ignoradas.
Alice, graças aos bons guardiões da humanidade, está viva e concluiu
seu curso de Letras na UFRJ. Ela será escritora de livros infantis. Quanto
a mim , não sei bem onde irei usar a minha formação em Matemática,
só sei que quero viver das minhas ideias...

5.49 Dezoito em 2013


Eu não sabia do meu processamento sensorial atípico, mas claramente
sofria as consequências. Odiava os barulhos feitos por meus colegas
de classe e colocava meus dedos tampando os buracos do ouvido. Eu
odiava, sério, eu me lembro, e tudo isto piorava quando era época de
primeira fase da OBMEP na escola. A maioria dos alunos só estavam
pela pontuação extra em Matemática e eu... Bem, de início só lutei com
afinco naquela prova por causa da paixão que sentia pelo filho caçula do
professor de Matemática... Depois, óbvio, agreguei outros motivos e fui
relativamente longe.

82
Contando de Mim

O ano de 2013 seria o meu último no ensino médio e, consequente-


mente, minha última chance de levar o ouro na OBMEP. A primeira fase,
naquele ano, fora à noite e, como sempre, o barulho dos meus colegas
desmotivados me incomodou. Ganhei, como aluna destaque, o direito
de ficar quanto tempo quisesse para concluir a prova... Claro, você e eu
podemos pensar que isto é desonesto, mas diante dos arranjos do destino
estava usufruindo de um direito meu: o tempo extra em prova/exames
concedido às pessoas autistas. Ninguém sabia que eu estava no espectro
naquela época (nem eu). Pontuei 18 das 20 questões e consegui a prata na
segunda fase. O ouro, tão sonhado, só veio na OAM e, com isto, decretou
parte do meu destino: a escolha de Matemática Bacharelado como curso
universitário.
Talvez eu não tivesse que me arrepender tanto do meu passado. Fui
a garota apaixonada (por Matemática) que deveria ser. O que viria de-
pois seria o produto de um mundo cruel e desigual, não só das minhas
escolhas. Devo guardar essas memórias como capítulos de uma história
épica que irei construir... Ah, eu juro que vou!

5.50 Falo demais


Eu falo demais, penso demais e, às vezes, sou inocente até demais. Não,
não quero que as pessoas aceitem de cabeça baixa minha matraquice,
não... Eu quero que entendam que certas coisas que faço não é por mal.
Eu sei que ultrapasso os limites do bom senso e me animo com meus
projetos. Falo, falo, falo quanto eu quero e ninguém é obrigado a passar
tanto tempo me ouvindo. Sempre foi assim, sabe? A maioria das minhas
amizades foram estabelecidas através da baita ajuda que eu poderia dar.
Agora, eu me pergunto se estas estavam realmente me escutando ou
fingindo estar.
Perdoam-me. Eu devia ser boa em sintetizar pensamentos, mas não
sou. Isso é um desafio para mim: ou eu faço completo e quase perfeito
ou não faço nada. Deve ser a alma, que é grande demais para este corpo
e este mundo. Espero que sim.

83
5.52

5.51 Motivações desnorteadas


Os anos passaram e não teve como uma adolescente universitária escon-
der seus modos infantis ou aguentar viver sem espaços para devaneios ou
sem seus brinquedos para agarrar. A mudança foi aguardada, planejada
e aplaudida, mas, no fim das contas, foi dolorosa e trágica. Tive que me
esquecer, por alguns instantes, a sonhadora encantada e inventar a razão
por estar passando por tudo aquilo. Quisesse eu ter a imaginação menos
fértil e não ter sido tão bem sucedida com essa criação. Achava eu que,
se aos 16 não tinha sido beijada e era estranha, haveria algo supremo
destinado a mim e que recompensasse por tanto sofrimento. Cismei com
a música dos números primos, nomeei meu alter ego como Giovanna Vas-
concelos e quis a todo custo tornar-me minha invenção. Cansei-me e isto
é óbvio, pois não dava para ser aquela matemática perfeita. Sentei-me
sozinha nas refeições, mantinha uma rotina dura de estudos e desabei...
Desabei porque o tempo era preciso parar e eu precisava reencontrar a
mim mesma. Desabei, enlouqueci três vezes e ainda estou me encon-
trando. Descobri que a Marta Oliveira (ou a Marturinhas) era bem mais
incrível que Giovanna. Marturinhas não precisa ganhar o nobel da Mate-
mática ou passar tantos anos sem viver o amor verdadeiro... Marturinhas
precisa arregaçar as mangas e colocar para fora tudo aquilo que ela já é...
E ela é uma inventora incrível.

5.52 Momentos de Luto


Meu luto pelos animais que morrem é muito maior do que pelos humanos;
talvez por que com os animais eu possa ser eu mesma, enquanto com
humanos enfrento julgamentos pela minha autenticidade.
Meu último luto não está sendo tão intenso quanto o penúltimo. Eu
esperava que Lua se fosse, mesmo com alguns resquícios de esperança,
mas não esperava pela partida de Noah. Lua tinha quatro meses, estava
com gripe e fastio; Noah estava oito meses conosco, também tinha gripe,
mas morrera, provavelmente, pisado. Lua eu vi nascer, Noah não. Lua
foi aguardada, Noah não. Acontece, que quando Noah partiu, eu ansiava

84
Contando de Mim

pela vida... Pela vida de Lua e de seus dois irmãos. Ser "presenteada"com
a morte quando se espera a vida é chocante.
Já perdi vários gatos e ainda perderei outros. Espero, desta vez, não
perder tão cedo e que, quando for a hora, eu lembre que a vida é uma
ilusão e a morte é uma farsa.

5.53 A grande depressão


Não, não iremos falar da crise que afetou os Estados Unidos em 1929.
Não. Vamos falar dos momentos sombrios que Marturinhas passou em
2015. Já foi dito que criei um personagem (extremamente trágico) para
compensar todas as "coisas normais"de adolescente que eu não havia
vivido. Tal personagem era baseado no estereótipo de gênio maluco. E foi
esse gênio maluco que busquei (conseguindo apenas o maluco). Logica-
mente, a minha capacidade de hiperfocar ajudou e muito na construção
desse personagem (que, graças a Deus, não foi muito adiante). E eu de-
vorava livros de Matemática (e esquecia de mim). E eu fazia tempestade
por qualquer erro. E eu fui conquistando a antipatia (por merecer) das
pessoas ao meu redor. Eu era (e sou) uma pessoa romântica. Romantizei
a loucura e a solidão pela meta irrealista de atingir um topo inalcançável.
Peguei-me irada quando percebi que o mundo não obedecia às minhas re-
gras. Irada e vazia. A menina que sonhava em impactar o mundo queria
fazer isso sozinha. E, ao ver-se tirada do seu "sonho"perfeito enxergou (e
exagerou) a sua face escura: o egoísmo era meu dono, a simpatia minha
inimiga, a falta de senso o meu guia. Deixei de acreditar em Deus. Não
via mais sentido em nada. Torcia para que um tiroteio acontecesse e
eu fosse a única morta. A minha única virtude, quem diria, foi o medo.
Eu tive medo de concretizar meus sentimentos negativos e medo das
pessoas que me amava (e eu amava também) caírem em desalento.
Sobrevivi, não sei como, ao "monstro da minha própria criação*".
Pior: eu estava me tornando um. Ainda me sinto mal com as músicas
que fiz naquela época. Tento transmutá-las e dá um outro sentido. Estou
conseguindo... E, também, estou conseguindo o por quê das minhas
quedas: era necessário. A loucura era minha luz dizendo para mim que

85
5.55

aquele não era o caminho. Agradeço por ter tanta luz assim para ver,
superar e abraçar minhas sombras.
Com amor, da Martinha de quase 25, para os próximos "eus"de todas
outras vidas...
* Referência à música "Será?"da Legião Urbana.

5.54 É um mistério, sou menina, mas devia ser


moleque
Ontem (14 de julho de 2022) foi dia do orgulho não -binárie. E eu lembrei
que "é um mistério, eu sou menina, mas devia ser moleque". Não obs-
tante, gosto do meu corpo do jeito que é, mas prefiro cabelo com coque e
pernas peludas. Prefiro olhar pro espelho e ver que, aqui dentro, existe
um ser humano incrível. "Te definiram pela tua genitália, contaram essa
conversa errada pra você": 51% yin, 49% yang; menina não-binária que
pensou só gostar de meninos por boa parte da vida. Sentimentos dife-
rentes, claro. Por menino, tesão e loucura, por menina, afeto e carinho.
Já tá na hora, também, de eu tirar esse "bi"e colocar uma "pan". Eu não
me encaixo nessas caixas. E tudo ótimo. De binário mesmo só o sistema
solar quando Júpiter se tornar seu Segundo Sol. Ah, e eu não quero vida
íntima agora não, mas "a ideia com elas parece menos invasiva". Ademais,
vou colocar minhas roupas no varal, porque armário já não tenho.

5.55 Catarina
Eu não sabia, ainda, porque eu colocava os dedos em meus ouvidos diante
uma sala numerosa. Não sabia também porque me incomodava com
qualquer ruído quando estudava na biblioteca ou sala de ruídos.
Hoje sei que ainda estou com os ouvidos zumbindo por causa de um
carro de som de política, por causa da minha hipersensibilidade auditiva.
O incrível é que na questão olfativa é justamente o contrário: rara-
mente sinto cheiro. Nesse caso, acredito ser hiposensível. Tais caracte-
rísticas reforçam minha suspeita de ter Transtorno do Processamento
Sensorial .
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Contando de Mim

E foi por essa e por outras que ontem, dia 18 de julho de 2022, fui
pela primeira vez a uma neurologista. Claro, eu estava enganosamente
esperando o diagnóstico imediato de autismo e não tive. É óbvio que isso
seria injusto com tantos outros tantos autistas adultos que demoraram
tanto pra ter sua carta de libertação. Ontem comecei o meu caminho
para liberdade, liberdade de não ter medo de dizer que sou autista.
Dia ótimo tive(com alguns estresses), mas o melhor não foi a consulta
com a neurologista. A grande alegria se fez em forma de uma criança
pequena: Catarina. Catarina me viu, conversou e pediu para ver o meu
rosto. "Gostei do seu rosto", disse. No final me deu um abraço. Eu gosto
de abraços. Abraços em árvores e em pessoas como Catarina.

5.56 Ecolia Musical


Dizem que se aprende uma nova língua com repetição e eu aprendi a
mais bela (e mais antiga que a linguagem formal) justamente usando
da ecolalia própria. Não, me desculpem o erro. Reaprendi. A música,
o grande das minhas vidas, é algo que ecoa de dentro de minha alma e
obviamente não vem só dessa existência.
Continuando a linha de raciocínio inicial, eu falava de ecolalia mu-
sical. Sim, como uma criança apreciando seu novo brinquedo, eu só
modificava as palavras finais das frases. Em ’Verniz’: "Eu sei que aí den-
tro existe alguém que ama, eu sei que aí dentro o coração reclama, eu
sei que aí existe alguém que quer amar, mas em mim existe alguém que
quer chorar."Ou em ’Eu vou te amar’ : "Pare de dizer que eu não sou feita
pra você, pare de dizer que nunca vai me querer...". E esse foi um padrão
muito frequente em minhas canções primeiras. Uma ecolalia musical.
Uma forma de dizer, em segunda pessoa, o que eu precisava ouvir de
alguém. Eu, de certa forma, sempre senti um amor forte em meu peito
(pela música e pelo mundo das ideias), mas escondia-as do mundo e usei
tantos vernizes para me ser o que eu não era.
E o que é o verniz senão o mesmo que o mascaramento que eu e tantas
meninas autistas usamos? No fundo, eu já sabia de tudo. Só precisava
me ouvir.

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5.58

5.57 Minhas Orações (feitas para Sol em Virgem)


"Que o Pó da Sujeira, disseminado no Pecado Original, não nos afaste
do Pó das Estrelas, ideia prima da Deusa Mãe. Que nossa Lilith interior
seja sempre a guerreira, não a cobra rasteira cobiçadora do poder e da
dominação. Nos afaste das fogueiras, grande Deusa, e dai-nos união e
determinação para honrar a majestosa Irmã Natureza e sermos luz no
Tempo da Escuridão."
"Ó Virgem do Sul, concebida humana sem a mancha do Pecado Origi-
nal. Tudo para pôr o Deus, teu filho, entre humanos e nos dá novamente
uma segunda chance. Ó minha Deusa protetora, rainha dos céus. Para
sempre digníssima mãe, libertai-nos de nossas amarras espirituais e
guiai-nos ao caminho da luz. Aconchegai-nos nos braços da perfeita
criação. Amém."

5.58 2022’s Lessons


01. Não planeje e nem se desespere por algo que tem que dar errado: vai
dar errado e agradeça a Deus pelo desvio de caminho.
02. Não espere que os outros te digam que você é um diamante
puro: você é quem tem que perceber isso e ficar de boas se mais ninguém
perceber.
03. Quem acredita sempre alcança: alguém também vai enxergar o
que sempre foi óbvio para você e tá tudo bem. Abrace a sua versão que
teve que acreditar sozinha e celebre por ela.

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Contando de Mim

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