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ADRIANO PROSPERI

Dar a alma
História de um inƒanticídio

Tmduçao
.cw

Federico Carotti

COMPÁNHIA DAS LETRAS


Copyright © 2005 Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino

Grafia atualizada segundo oAcordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Título original
Dare l'anima. Storia di un infanticidio
Capa
© Erich Lessing
Preparação
Camila Boldrini
Revisão
Valquíria Della Pozza
Daniela Medeiros

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Prosperi, Adriano
Dar a alma : história de um infanticídio I' Adriano Prosperi ;
tradução de Federico Carotti. - São Paulo : Companhia das
Letras, 2010.

Título original: Dare l'anima : storia di un infanticidio


issu 978-85-359-1624-9

1. Infanticídio - Bolonha (Itália) - História - Século 18 1. Título.


10-01420 (JDD-361960945

Índice para catálogo sistemático:


l. Bolonha : Itália : lnfanticídio : Século 18 : História 363960945

[2010]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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04532-002 _ São Paulo _ SP
Telefone (1 1) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Sumário

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7
Dar a alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . _ .
9

A HISTÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1. Sobre os autos do processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


2. O infanticídio como obsessao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
3. O infanticídio como prática social: de pecado a crime 57

Os AToREs: Pessoas E NÃo Pessoas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . _ . 97

A mãe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
1.“Uma jovem crescida, moça feita” . . . . . . . . . . . . . . . . 101
2. “Um padre jovem” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
3. “O Carnaval próximo passado” . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
4. “Tirou minha honra e me deflorou” . . . . . . . . . . . . . . 128
5. “Estive sempre sozinha” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
6. “Resolvi com a dita faca dar a morte ao dito meu filho
nascido vivo enfiando-lhe a ponta da dita
faca na garganta” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148

O filho, a semente e a alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

1. “Um menininho” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 153


2. “Bem formado em todas as suas partes” . . . . . . . . . ... 156
3. Uma “criatura” sem nome, ou quando um homem
não é um homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 164
4. Batismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 174
5. Morrer sem alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 2.03
6. A alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250

A JUSTIÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 341

1. A sentença: “Ut moriatur et anima ab eius corpore


separetur” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345
2. “Acolhida e consolada” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350
3. Arrependimento e perdão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 361

Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403
Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
Créditos das imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 485
Índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 487
Agradecimentos

Ao longo de vinte anos foram inúmeros os estudiosos e estudantes,


os bibliotecários e arquivistas, os amigos e leitores que responderam a
perguntas, deram indicações e forneceram auxílio bibliográfico e docu-
mental. Não me é possível lembrar todos. Aqui agradeço nominalmente
pelo menos a Carlo Ginzburg, leitor do projeto inicial, como sempre
partilhando generosamente seu tempo e sua inteligência, e a Michele
Olivari, que fez uma paciente leitura da redação final. Recebi conselho e
auxílio de muitas partes. Cito, entre outros, Emmanuel Betta, Giampaolo
Brizzi, Silvano Cavazza, Massimo Donattini, Vincenzo Lavenia, Chiara
Franceschini, Pierroberto Scaramella e Gabriella Zarri. Gostaria de elen-
car - mas não poderei -- todos os estudantes que, entre Bolonha e Pisa,
contribuíram de diversas maneiras com a pesquisa ou ouviram partes
dela. Na fase final, quando se aproximava o momento da publicação, tive
a sorte de poder contar mais uma vez com a preciosa e pacientíssima
ajuda de Mariagrazia Negro, a quem manifesto minha gratidão; e agrade-
ço também a Maria Virdis, pelo experiente cuidado que dedicou à parte
icon0gráfica.As várias sugestões e contribuições que consegui incorporar
certamente beneficiaram este trabalho. Uma tentativa de compreensão

7
histórica tem por meta superar os limites do olhar do observador isolado.
Caso ela consiga, o nome do autor pode permanecer como um mero res-
peito pelas convenções do direito de propriedade ou como único respon-
sável pelos erros que, estes sim, certamente lhe pertencem.

8
Dar a alma

Memento te actorem te esse fabulae... ad te enim pertinet


datam tibi personam bene agere; eligere, ad alium.
Epicteto, Erzchiridiou, cap. XXII, trad. Lorenzo Poliziano.

[Pois a ti cabe apenas representar bem qualquer pessoa


que te seja destinada; escolhê-la compete a outrem.]

9
A HISTÓRIA
1. Sobre os autos do processo

Bolonha, manhã de quinta-feira, 5 de dezembro de 1709. Do-


menico Prata, carregador de profissão, residente na via del Borgo
di San Pietro, apresenta-se ao escrivão do tribunal criminal chama-
do “del Torrone”(devido à grande torre que antes o sobranceava) e
declara o seguinte: Lucia Cremonini, “moça crescida, jovem feita”,
filha da viúva Caterina Cremonini, sua vizinha, “esta manhã deu à
luz um menino, pelo que entendi, e ele morreu, a dita jovem se
chama Lucia”. Domenico sabe que 0 recém-nascido morreu logo
após o parto, mas não comenta nada sobre as causas. Isso não lhe
cabe. Compete à autoridade. Sua preocupação é denunciar o fato:
“Não sabendo como dita criatura morreu logo ao nascer, por não
ter nenhuma pancada [baccolo] ou outro problema, vim dar a pre-
sente notícia à Iustiça, para que faça sua parte e identifique como
morreu a dita criatura”.1
A justiça fez sua parte. Enquanto o escrivão se dirigia ao local
para uma primeira investigação, o juiz criminal do Torrone, tão
logo foi informado, deu as determinações “necessárias e oportunas
para o bem da Iustiça”, como prescreve o rito de praxe. Era necessá-

13
rio, enquanto isso, que os peritos legistas do Torrone fossem inspe-
cionar imediatamente o corpo do recém-nascido e que Lucia fosse
submetida a exame. O exercício da medicina legal gozava de uma
sólida tradição em Bolonha, bem como em Pádua e outras cidades
universitárias? Difundira-se pela Europa graças também ao influ-
xo das eruditíssimas Quaestiones medico-legales do arquiatra pon-
tifical Paolo Zacchiafi
A primeira medida tomada após a denúncia foi a inspeção na
casa de Lucia, a cargo do escrivão Antonio Tombesi, que se fez
acompanhar por Domenico Prata. Na verdade, não era uma casa,
mas um quartinho alugado no segundo andar; ali, numa cama,
encontrava-se deitada Lucia. O escrivão ordenou que ela jurasse
dizer a verdade e depois a submeteu a um rápido interrogatório,
anotando as perguntas (em latim, como língua de ofício) e as res-
postas (no vernáculo, como foram dadas): r

-- Por que estava na cama?


- Estou assim na cama desde hoje de manhã, porque dei à luz um
rapazinho.
- Tinha marido?
-- Não tenho marido, nem nunca fui casada.
_- E então de onde vinha aquele menino?

Lucia narrou sua história. Começou declarando que era uma


“moça honrada” - uma premissa defensiva, uma chave funda-
mental para entender seu caso. Mas a honra de Lucia estava perdida.
O escrivão, no início do auto, chamou-a por engano de “Lucretia”.4
Talvez tenha se lembrado da história de violência e morte da heroína
romana.

Sendo eu moça honrada e de bem e morando com Cattarina, minha


mãe viúva, durante o Carnaval próximo passado fui à praça um dia

14
para não sei qual serviço, e estando sob os Portici de' Limonari, um
padre jovem que eu não conhecia [...] me fez entrar por uma porti-
nhola negra e pequena que fica entre um ourives e um merceeiro,
dali descendo por uma escadinha até um corredorzinho estreito e
escuro; e ali tirou minha honra e me deflorou.

Essa aventura de Carnaval terminara na “taverna de Morelli de


S. Bernardino, onde comemos mortadela, talharim e pão”. Cada
um pagou sua parte; Lucia fez questão de frisar: “Nem me deu mais
nada nem me pagou a dita refeição”.

Depois o padre a acompanhou até a casa dela. Era noite e a


porta estava fechada; então levou-a “até uma mulher em Fiacca il
Collo”, onde Lucia pernoitou. “E o padre foi embora.” Nunca mais
o vira. Não podia imaginar que tivesse engravidado.

_ Tivera relações sexuais (“rem carualem”) com outros homens


além do padre ?
_ Não tive relações carnais com nenhum outro senão o dito padre,
nem ninguém mais me tocou.

Assim chega-se, no relato de Lucia, ao momento do parto:

Nesta manhã tive a dita criatura aqui neste quarto onde estava sozi-
nha, pois minha mãe estava no campo trabalhando para uns cam-
poneses, e voltou hoje. E, estando na cama, quando senti que estava
para dar à luz, desci da cama e tive a dita criatura, que caiu no chão,
e ercebi` u e estava v`v
1 a ois
` solto u u m Va Ido
° um sinal
` a` mar em
destacava este ponto decisivo]. E depois, estando a dita criatura
morta, peguei e vi que era um menininho e o coloquei numa sacola
que está aqui atrás da cama, e depois voltei para esta cama onde estou

15
agora. E foi só isso 0 que aconteceu com minha gravidez e com o
parto supracitado.5

Mas não era só isso 0 que tinha acontecido. O oficial de


justiça do tribunal olhou atrás da cama e ali encontrou a sacola
com o recém-nascido. O corpinho foi colocado sobre um baú de
nogueira, 0 único outro móvel do quarto. O escrivão realizou
uma cuidadosa inspeção do corpo, que lavrou no auto. Eviden-
ciou-se que 0 bebê não morrera devido a uma queda. Virado e
revirado, o corpo revelou sinais de um profundo corte que ia da
boca até a garganta, “com incisão de veias, artérias e nervos com
sangue coagulado”. No auto, um segundo sinal à margem reme-
te ao anteriorf' Os dois sinais entrelaçam-se aos dois pontos
fundamentais do caso para o juiz: 0 menino nascera vivo, bem
formado e completo em todas as suas partes (“berIe et optime
orgauizatum im omnibus suispartibus”), e depois morrera devi-
do àqueles ferimentos.
Desse momento em diante, 0 escrivão passou a recolher
provas que não dessem ensejo a dúvidas. Tratava-se de um delito
“nefando”, pertencendo, portanto, à categoria dos crimes mais
graves, e fazia-se necessário documentar todos os detalhes ( “ut
magis magisqueconstetdenefarzdo sceleresupradicti irzƒarzticidii”) Í
Era preciso transpor para um testemunho escrito aquilo que os
olhos podiam ver. Os olhares dos especialistas e dos homens da lei
se concentraram no corpinho. Os primeiros a examiná-lo foram
Giuseppe Raimondi e Ignazio Salteri, legistas do tribunal, os
quais _ “virado e revirado, bem observado e considerado para
ver e reconhecer de que morte morrera a dita criatura” _ identi-
ficaram a causa da morte no ferimento feito a facaf* O relatório
deles foi confirmado por duas testemunhas do tribunal, Antonio
Monteventi e Andrea Santini, que olharam e descreveram com
precisão o corpo e as feridas. Eram do tamanho “de cerca de meio

16
ovo . Tal imagem foi sugerida pelo sangue coagulado (“gelato”)
dentro da ferida. Lucia também foi instada a olhá-lo e a descrever
0 que via.

_ Era capaz de reconhecer o menino que dera à luz?


_ Sim, podia reconhecê~lo _ respondeu Lucia _, tendo o visto e
observado depois de pari-lo, e quando o coloquei na dita sacola.

Agora o corpo estava estendido sobre um baú de nogueira.

_ Vejo [declarou Lucia] este menininho que Vossa Senhoria me


mostra sobre este baú de nogueira, bem formado em todas as suas
partes, e digo ser 0 menininho que tive e dei à luz esta manhã, e por
Í al e como tal 0 reconhe o muito bem.
_ Via também as feridas?
-Vejo muito bem este corte que tem a dita criatura na boca do lado
direito como tambem esta ferida que tem no pescoço do mesmo
1

lado, mas não fui eu que fiz, nem sei quem teria feito.

Foi advertida: ela havia declarado que estava sozinha. Era


verdade?

É verdade que quando dei à luz o dito menininho, e também de-


pois, estive sempre sozinha, e não esteve mais ninguém neste
quarto; mas digo por mim que não lhe fiz tais ferimentos, e se
pretendem que fui eu que fiz, digo que não é verdade, nem sei dizer-
-lhes mais nada?

E reforçou: “Digo por mim que não lhe fiz os ditos ferimentos,
e se pretendem que fui eu que fiz, digo que não é verdade, nem sei
dizer-lhes mais nada”.

17
Neste momento, o escrivão viu em um canto _ o que não
deveria ser difícil no quartinho vazio _ uma faca de cozinha (“ cul-
trum merisalem”) manchada de sangue.
Com isso encerrou-se o primeiro dia. O “delito nefando” estava
confirmado. Na noite daquela quinta-feira, mãe e filha foram condu-
zidas à prisão. Devido a suas condições, Lucia foi levada numa carroça
ao Ospedale della Morte, onde ficou até 29 de dezembro, quando foi
transferida para a prisão do Torrone para ser iiiterrogada novamente. 1°
A máquina da Iustiça operou metodicamente, colhendo de-
poimentos e realizando perícias de maneira bastante rápida, sem
arbítrios ou violências flagrantes. No sábado, dia 7 de dezembro,
duas obstetras do tribunal, Barbara Lucignani e Anna Maria Nata-
li, foram incumbidas de examinar o menino. Postas diante do pe-
queno corpo (que naquele ínterim havia sido transferido para a
sede do Torrone, na sala do arquivo), fizeram constar nos autos que
foi-lhes “mostrada sobre esta mesinha esta criatura masculina de
nascimento, para que a vejamos e observemos se nasceu viva em
seu devido tempo e por que morreu”. Assim, “bem-vista, conside-
rada e observada em todas as suas partes”, as obstetras atestaram ter
ela “nascido em seu devido tempo de nove meses, e viva, sendo bem
formada em todas as suas partes e membros, tendo seus cabelos na
cabeça e unhas nos dedos das mãos e pés, e ter morrido por dois
ferimentos que apresenta, um na boca do lado direito e outro no
pescoço do mesmo lado, com incisão de veias, artérias e nervos”.“
Na terça-feira, dia 10 de dezembro, foram interrogadas duas
vizinhas, ou melhor, duas inquilinas da mesma casa: Marta, mulher
de Lorenzo Billi, e Francesca, mulher de Giuseppe Pilati. Conhe-
ciam havia pouco tempo Lucia e sua mãe, que tinham se mudado
para o quarto na via del Borgo di San Pietro apenas em março da-
quele ano ( 1709). Quando lhes foi perguntado se haviam percebido
sinais de gravidez, ambas responderam mantendo uma cautelosa
distância da culpada.

18
Marta:

“Estava com barriga e gorda de corpo, mas ela dizia que era porque
não tinha tomado seus purgantes e porque estava com água, mas de
fato depois descobriu-se que estava grávida, pois deu à luz um meni-
no e depois a desgraçada o degolou e matou”.12

Francesca mencionou as mesmas coisas, e comentou: “Dizia


isso para encobrir sua gravidez, e de fato acreditava-se que estava
dizendo a verdade, mas depois descobriu-se exatamente o
contrário”.13

Na noite anterior ao parto, Lucia pedira-lhes ajuda. Ela estava


sozinha, passando mal, e a mãe se achava fora de Bolonha. “Sentia
muito frio.” Marta Billi, Francesca Pilati e outra vizinha, Domenica
Fratti, prepararam uma bolsa de água e colocaram-lhe sobre o
ventre; depois saíram e voltaram a dormir. Ao amanhecer, porém,
Marta quis ver como estava Lucia, pois talvez desconfiasse de algo.
Quiçá a solidariedade, e com certeza a curiosidade da “coinquilina”
(como ela mesmo se definiu) levaram-na a ver como estava passan-
do a moça e 0 que ocorria no mísero quartinho do sótão. Seu relato
impressionado deixa evidente o drama do espetáculo com 0 qual
se deparou: o olhar deslocou-se bruscamente do pequeno corpo na
sacola à mulher na cama, para fugir imediatamente do horror: “Fui
ver o que fazia, e estava morto numa sacola, mas não 0 observei e
nem nada mais”. Transtornada, perguntara a Lucia “o que havia
feito”. Mas “ela emudeceu e não respondeu coisa nenhuma”l“
Foi assim, muda e solitária entre as vizinhas que acorreram à
notícia, que a mãe, Caterina, encontrou sua filha ao retornar da jor-
nada de trabalho no campo. Presa por uma óbvia presunção de
cumplicidade, Caterina foi interrogada apenas em 23 de dezembro,
depois de passar vários dias no cárcere, e empenhou-se em afastar

19
qualquer suspeita de sua pessoa. Em suas palavras registradas nos
autos transparecem diversos sentimentos: ira, espanto, medo. Ela
não tinha nada a ver com “aquela desavergonhada Lucia Maria mi-
nha filha”, que fizera “a maior loucura de todas que se pode fazer”.*5
Era a ira da mãe diante da loucura de uma filha que se perdera por
iniciativa própria, enquanto ela [mãe] se encontrava fora de casa.
Caterina estava trabalhando para uma família camponesa de Ravo-
ne, logo na saída de Bolonha. Mas voltara à sua casa em tempo de
viver toda a tragédia, em meio à multidão que se reunira na porta da
habitação. Uma voz _ “Oh, pobrezinha, pode subir” _ permitiu-
-lhe entender que aquela gente toda estava ali por causa dela. Subiu
as escadas e entrou naquele quarto; havia outras mulheres ao redor
da cama da filha, como se alguém tivesse morrido. Mas a filha estava
viva e chamava por ela: “Oh, minha mãe”. E de repente “começou a
chorar”. E Caterina relembrou a dor que a deixara sem palavras, o
desespero diante da força terrível que havia devastado sua vida: “Fi-
quei amargurada, nem pude dizer mais nada e logo em seguida
chegou a Iustiça, e encontrou-se 0 menino”.
Como mãe, exigia-se agora que Caterina explicasse o que sa-
bia não só sobre o parto e o infanticídio, mas também sobre o que
acontecera antes: aquela gravidez da filha devia ter ficado evidente
para ela. Caterina negou: “Nunca percebi que a dita minha filha
estivesse grávida”. “Aceitara as explicações de Lucia,“que isso acon-
tecia porque tomava muita água devido à febre que quase sempre
tinha”, e por isso levou-a “para se benzer com 0 padre de Granarolo,
e ao hospital para tirar sangue”. Mas os exorcismos e as sangrias de
nada adiantaram. Agora não havia mais nada a fazer. Ao final do
interrogatório mostraram-lhe a faca manchada de sangue. Reco-
nheceu que era sua. Depois saiu da sala e do processo. Presa tempo-
rariamente, teve de ser posta em liberdade. De fato, não foi mais
ouvida e não há mais notícias a seu respeito.
O tribunal deu andamento rápido e escrupuloso aos procedi-

20
mentos de praxe. Lucia, transferida do Ospedale della Morte para
os cárceres do Torrone, foi visitada pelas obstetras do tribunal.
Barbara Lucignani e Ana Maria Natali, depois de terem-na “visita-
do, olhado e tocado” num exame de corpo detalhadamente descri-
to em seus relatórios, atestaram por “perícia e consciência” que ela
havia dado à luz recentemente. O menino nascera vivo ao cabo de
uma gestação normal e fora morto com uma faca. Estava-se diante
da prova incontestável de um crime de infanticídio.
A acusada compareceu novamente diante do juiz em 31 de
dezembro de 1709. Declarou-se “disposta a dizer a verdade”. O in-
terrogatório se concentrou na faca do crime. Lucia a descreveu: era
a faca de mesa, do pão de cada dia, “de lâmina comprida sem cabo”,
com manchas de ferrugem e de sangue coagulado. Mostraram-na
a Lucia e disseram que a empunhasse. Lucia viu o sangue; reconhe-
ceu a faca. Confessou. Descreveu com precisão de detalhes a mecâ-
nica do crime, em especial o movimento do gesto assassino; lem-
brou também que teve de pressionar a arma com todas as forças
para penetrar na garganta do menino.

Direi aV.Sa. por que razão a faca por mim acima descrita e reconheci-
da se encontra manchada de sangue; e é porque na mesma manhã em
que dei à luz o filho homem, como disse nos interrogatórios anterio-
res, estando sozinha em casa enquanto minha mãe estava no campo,
para que não se descobrisse que eu tinha dado à luz, resolvi com a dita
faca dar a morte ao dito meu filho nascido vivo enfiando-lhe a ponta
da dita faca na garganta, que fiz penetrar calcando bem até a parte de
trás do pescoço, pela qual ferida feita por mim o dito meu filho recebeu
a morte. E então o coloquei dentro de uma sacola debaixo de minha
cama para depois levá-lo às escondidas para enterrar sem que nin-
guém percebesse e, assim, sem que ninguém soubesse que eu tinha
dado à luz. E eis narrado o fato como aconteceu.”

21
Estava tudo ali: a intenção de matar, a arma do crime, a dinâ-
mica do assassinato, 0 reconhecimento de que “pela [...] ferida
feita por mim o dito meu filho recebeu a morte”. Quanto ao outro
ferimento na face, eis a explicação: logo depois de tê-lo matado,
disse Lucia, “joguei-0 de boca na lareira, que é de pedra, e 0 golpe
feriu 0 dito meu filho na boca do lado direito”.18
Quando indagada, Lucia confirmou: não contara a ninguém
sobre sua gravidez. “Eu nunca conversei com ninguém sobre estar
grávida, ou querer dar à luz, tampouco querer matar 0 dito meu
filho.”19
E havia premeditado o ocultamento do corpo:

“Minha intenção era enterrar 0 dito meu filho, morto por mim como
descrito acima, em minha casa ou talvez em algum lugar no campo,
onde não desse para ninguém perceber que eu tinha dado à luz”.2°

Era uma admissão plena e completa e, ao mesmo tempo, um


ato de total renúncia a qualquer resistência. A confissão era a prova
suprema. No entanto, o processo não se encerrou por aí. Por estra-
nho que possa parecer, foram os escrupulosos juízes bolonheses
que percorreram até o fim 0 caminho de diversas hipóteses capazes
de atenuar a posição de Lucia. Era absolutamente certo, por exem-
plo, que a morte ocorrera devido àquela facada e não por alguma
outra causa? O menino ainda estava vivo quando Lucia desferiu a
facada? Para avaliar as hipóteses em favor da acusada, foi determi-
nada uma inspeção no aposento do parto, com um relatório defi-
nitivo sobre a posição das pedras da lareira onde 0 recém-nascido
poderia ter batido a cabeça ao nascer e sobre as manchas de sangue
que se encontravam no quarto. Enquanto todos esses homens se
empenhavam em sua defesa, Lucia parecia desprovida de qualquer
resquício de vontade de resistência. Interrogada novamente em 19
de janeiro de 1710 sobre tais detalhes, ela deu uma resposta que não

22
deixa dúvida sobre sua disposição: “Eu não tenho mais nada a dizer
além do que disse e confessei ontem no outro interrogatório meu
sobre a morte que dei ao supracitado meu filho”.“
Começava agora a fase de defesa. Lucia foi defendida pelo
“advogado dos pobres”, uma figura prevista no sistema de caridade
típico das cidades italianas do Antigo Regime.” O advogado Gia-
como Arrighi desempenhou a tarefa com grande esmero e cons-
cienciosidade. No arquivo do processo encontra-se 0 texto de uma
dissertação sua, escrita em latim. Arrighi sustenta a tese de crime de
honra. Para ele, Lucia chegara a fazer 0 que havia feito não por
maldade inata ou por desprezo pelos laços naturais que unem mãe
e filho (“ impietas”); teria sido impelida, ao contrário, pela necessi-
dade de defender sua honra, um bem a ser protegido acima de
qualquer outra coisa (“proprius honor omnibus anteferendus”).
Lucia era tida pela opinião geral como “virgo honesta”. E a honra,
sobretudo para as classes que não podiam exibi-la como bem here-
ditário ligado ao nome, possuía um único ponto de referência: a
opinião da comunidade sobre seus membros. “A honra _ escreve-
ra um literato do século xvi _ não reside senão na estima entre os
homens.”23 Para as mulheres, a honra estava ligada ao sexo, e os
responsáveis por ela eram os homens: o pai, o marido. Lucia não
possuía nem um nem outro. Na sociedade italiana daquela época,
restava um último ponto de referência, 0 depositário das consciên-
cias e a autoridade capaz de atestar a honradez e a obediência às
regras: 0 pároco. A esse respeito, 0 advogado apresentou uma do-
cumentação exaustiva: além de dois atestados de sacerdotes (um
do pároco de Santa Maria della Mascarella, o outro do prior de San
Matteo delle Pescarie) , acrescentou também declarações das famí-
lias para as quais Lucia trabalhara como doméstica. Tendo como
base essa reputação de bons costumes, fora-lhe reservado um dos
dotes colocados à disposição das moças pobres para possibilitar-
-lhes 0 casamento. A “elemosina dotalis” era um prêmio e uma si-

23
nalização para a sociedade masculina em busca de mulheres hon-
radas. Arrighi fez constar dos autos a documentação daquela
reputação pública que constituía a própria essência da honra femi-
nina. Seu argumento fundamental era que Lucia agira em estado de
necessidade, para evitar a perda da honra, movida também por seu
parco entendimento das coisas (“simplicitas”).
Nessa fase foram ouvidos novamente os legistas que, como pe-
ritos do tribunal, já haviam entregado 0 laudo de exame do corpo.
Em 15 de janeiro, Giuseppe Raimondi e Ignazio Salteri confirmaram
as declarações entregues no decorrer da fase inquisitória anterior,
descrevendo mais umavez o recém-nascido como uma “criatura [...]
bem formada em todas as suas partes do corpo e em todos os mem-
bros, tendo seus cabelos na cabeça e unhas nos dedos das mãos e pés”.
Os legistas podiam afirmar que “a dita criatura” não só “era um parto
perfeito de nove meses”, mas também nascera viva e fora morta logo
após 0 nascimento _ e isso era provado pela contração dos mem-
bros, pelas feridas e pelo sangue, que o relatório descrevia minucio-
samente.24 Aqui se encerrava 0 trabalho do ouvidor do Torrone. Em
16 de janeiro, reuniu-se 0 conselho criminal, do qual faziam parte
_ além do ouvidor, 0 romano Marco Antonio Venturini _ o cardeal
legado e 0 vice-legado. A causa foi examinada e remetida ao ouvidor
do Tribunal do Torrone, a quem cabia proferir a sentença.

É essa a história de Lucia narrada pelos documentos do tribu-


nal. Inúmeras perguntas se multiplicam quando a lemos. Até agora,
simplesmente percorremos os documentos do processo, acompa-
nhando 0 trabalho do escrivão do Torrone, lendo depoimentos,
declarações e confissões ouvidas e registradas por ele. A realidade
que esses documentos fizeram renascer sob os nossos olhos foi
imobilizada para sempre num ponto do tempo, e é dotada daquela
verdade que pertence à realidade do passado: imutável, pois nada
poderá torná-la diferente daquilo que foi, mas sujeita a modifica-

24
ções no conhecimento que podemos ter a seu respeito. Nada deterá
aquela mão que empunhou a faca na manhã de 5 de dezembro de
1709, e nada poderá mudar o destino de Lucia, o qual os juízes es-
tavam a ponto de decidir. Mas algum documento negligenciado
poderia nos revelar alguma coisa, dentre tantas que não sabemos,
ou mudar a interpretação das coisas que lemos. Temos à nossa
frente palavras fixadas nos documentos do processo. Por meio
desses documentos entramos em contato com fatos, opiniões,
ambientes: reconstruímo-los dentro de nós até formarmos uma
ideia sobre eles, como se diante de nós em lugar das palavras esti-
vessem as pessoas. Através das palavras, pessoas mortas há séculos
movem-se, falam e agem como se estivessem vivas. É inevitável que
assim pareça. Mas cabe lembrar que assim não é.
Sobre um ponto não restam dúvidas: queremos entender
melhor se as coisas realmente ocorreram como dizem os documen-
tos, e por que ocorreram de tal maneira. Há muitos detalhes obscu-
ros ou decididamente incompreensíveis. Por que Caterina, a mãe,
foi tão dura com a filha _ justamente ela, a mãe _ a ponto de
chamá-la de “desavergonhada”? Nem sequer 0 juiz usou, em mo-
mento algum, um termo tão agressivo e hostil. Além do mais, há
todas aquelas pessoas se movendo ao redor da história: um padre
(pai incônscio e evanescente), as vizinhas, e muitos peritos que
atravessam a cena para examinar corpos e emitir pareceres. A má-
quina da Justiça envolve tudo e por tudo responde. Mas essa Iustiça
tão precisa e eficiente está próxima e, ao mesmo tempo, extrema-
mente distante do nosso presente. É preciso tentar entender melhor
0 sistema mental que a regulava.
No entanto, são perguntas que giram em torno do problema
principal, e a história que os documentos narram é tal que chega a
desafiar a nossa segurança e tranquilidade de seres humanos. O
gesto da mãe que mata o filho torna o episódio desconcertante e
ameaçador. Aconteceu, pode voltar a acontecer e, de fato, continua

25
a acontecer; e, a cada vez que acontece, 0 gesto sempre desperta
reações profundas porque rompe o sentido de continuidade da
vida e atinge a raiz da esperança como projeção da espécie no futu-
ro. Como outras trágicas realidades que integram a história das
sociedades humanas, podemos, em relação ao passado, relegá-las
para o rumor distante da história e, em relação ao presente, confiá-
-las a outras formas de conhecimento: a criminologia, a psicologia
social, a sociologia. Mas é difícil marcar a distinção entre passado e
presente: seria como estudar a crista instável de uma onda, sem
levar em conta que as gotas vêm do oceano e ao oceano retornam.
Podemos perguntar como e por que as coisas aconteceram de tal
maneira e em tal ocasião. Seria como esvaziar 0 oceano às colhera-
das. E talvez isso desperte certo incômodo em quem concebe a
história como uma forma de conhecimento suficientemente antiga
e segura a ponto de poder ignorar perguntas elementares como
essa. Contudo, também é preciso indagar o que significa estudar a
história _ não em geral, mas esta história. Trata-se, em primeiro
lugar, de entender 0 que realmente aconteceu. Isso significa, por
ora, que não podemos nos deter na narração do conteúdo puro e
simples do arquivo do processo. Tal arquivo surgiu para responder
a um outro tipo de questão, qual seja, 0 de documentar a correção
dos procedimentos segundo as normas então vigentes num deter-
minado local para determinadas categorias sociais e, assim, enqua-
drar uma ação no modelo predeterminado pelas leis, avaliando-a e
punindo-a. Aqui, 0 que interessa não é a tipologia do crime, e sim a
história do que fez, pensou e sentiu aquela pessoa naquele momen-
to de sua vida. A distância temporal torna 0 acontecimento irreme-
diável: éinútil tentar tocá-lo emodificá-lo,c0mo inútil imaginavam
os antigos ser o desejo de abraçar as sombras do Hades. Isso não
impede que, mesmo assim, queiramos abraçar as sombras: e 0 que
corresponde a esse abraço é a compreensão. A tentativa de com-
preender está na origem da historiografia como forma de conheci-

26
mento. Como sabemos, as respostas concretamente dadas à per-
gunta são sempre parciais, marcadas por sucessos restritos e, às
vezes, por insucessos penosos. Mas a única coisa que resta é repetir
mais uma vez a tentativa. Quem tenta sabe que, na condição limita-
da e imperfeita em que o coloca a distância intransponível, ao me-
nos pode contar com alguma ajuda desse mesmo tempo que o
afasta das coisas. No estudo dos documentos, de algum modo, o
tempo fugaz se detém. Aquilo que na vida em ação mostra-se por um
breve momento e logo deixa de existir aqui se coloca aos nossos
olhos sem outros limites a não ser a nossa vontade de entender e a
capacidade de resposta dos documentos. Capacidade, porém, limi-
tada, pois o documento é apenas uma pista, um indício, um sinal.
Interpretar os sinais é a tarefa que equipara o historiador aos médi-
cos. Tomamos a definição de “sinal” à página de um médico que,
por vias misteriosas, teve uma certa relação com o destino de Lucia
Cremonini: sinal é aquilo que, com sua manifestação visível, pode
nos levar ao conhecimento de algo que continua oculto. A natureza
do sinal é ser manifesto; a natureza do significado é ser oculto.”
Nesse caso, os sinais mais evidentes são os deixados pelos juí-
zes, pois até mesmo eles colocaram um problema de compreensão.
Mas o que eles escreveram nos autos é apenas uma parte daquilo
que sabiam e pensavam: o suficiente para respeitar os procedimen-
tos e chegar à decisão. Será necessário tentar entender também o
que ficou oculto nas entrelinhas dos autos, o que se sabia naquela
época e que hoje não se sabe mais. Osjuízes tinham diante de si uma
pessoa cujo aspecto se lhes tornou familiar ao longo do processo e
que provavelmente permaneceu na memória de muitos. O rosto de
uma pessoa, seu modo de falar e de reagir ao ambiente torna-se
parte integrante e insubstituível das relações que cada um cria com
os outros e da ideia que se forma a seu respeito. Aqui temos de re-
nunciar a isso. Mas quem era Lucia? E por que fez o que fez? Os
juízes bolonheses da época tentaram saber 0 que ela fizera: dirigi-

27
ram a atenção à figura do crime. Quanto às circunstâncias e aos
motivos de seu comportamento, as informações que colheram e
registraram foram selecionadas para responder à questão princi-
pal: como e quem determinou a morte do recém-nascido. Seu
conceito de verdade não se diferenciava muito daquele que, mais de
um século depois, o historiador prussiano Leopold von Ranke
proporia em seu modelo de narrativa histórica: dizer “como real-
mente ocorreram as coisas”. Com efeito, mesmo os historiadores de
fatos -- como o caso de Lucia _ geralmente limitam-se a recons-
truir, “debruçados por sobre os ombros dos juízes”,26 características
e circunstâncias dos acontecimentos. Mas esse conhecimento está
longe de parecer satisfatório. Diante do caso individual, da vicissi-
tude de uma mulher _ desta, e não de outra --, é inevitável per-
guntar: é possível ir além dessa crônica de fatos miúdos? O que
podemos realmente saber de Lucia, de sua vida, de seus sentimen-
tos, das forças que agiram nela e sobre ela? É uma pergunta que
acompanha com frequência cada vez maior, e sempre mais de per-
to, a curiosidade dos historiadores. Reconstruir a crônica dos fatos
já não é mais suficiente, sejam personagens célebres e grandes
acontecimentos ou, pelo contrário, seja aquela imensa maioria de
fatos e pessoas que permanecem na sombra. A pasta do processo
criminal, casualmente aberta num arquivo, faz-nos deparar com
uma mulher, Lucia, filha da viúva Caterina Cremonini, que num
certo período viveu uma história exclusivamente sua. Mas, desde o
início, a história de suas vicissitudes aparece-nos tecida com aque-
les dois tios distintos que se entrelaçam em proporções e formas
diferentes na trama de cada vida: o fio cinzento daquilo que se re-
pete a cada geração e que se expressa como “nada de novo debaixo
do sol”, e aquele outro fio que apresenta uma vez, e apenas uma
única vez, o tom inconfundível de uma cor destinada a nunca mais
reaparecer. Analogias, repetições, recorrências: falamos dos dados
históricos e culturais, sem ignorar, porém, que a trama de dados

28
hereditários e características individuais é a realidade unitária que
liga o conhecimento histórico às ciências da vida.
Diante da história de um crime, a primeira observação a ser
feita é a seguinte: a partir do momento em que um comportamen-
to é definido como crime e, enquanto tal, é proibido e punido,
torna-se possível estudar a repetição do próprio crime, as variações
das leis que lhe dizem respeito, as modificações na percepção social
e no juízo aplicado a ele. Matar outros seres humanos se enquadra
nessa regra. Nada mais recorrente na história da espécie do que
infligir a morte aos semelhantes. O que para outras espécies ani-
mais é um produto do instinto que irrompe por necessidades de-
terminadas (defender-se, alimentar-se), na espécie humana é um
fato cultural, altamente elaborado, regido e delimitado por normas
precisas. Tido como necessário e obrigatório em determinadas
circunstâncias, e por vezes como algo muito meritório (por exem-
plo, durante a guerra), o matar ocupa um lugar central na produção
de ritos e normas, de tipo religioso, político e jurídico, que nascem
justamente de sua presença histórica inexorável. O infanticídio não
foge à regra. A execração com que se tentou expulsá-lo dos limites
naturais da espécie humana, classificando-o como desumano, é
por si só, em sua imóvel repetição, uma prova de que se trata de um
evento relativamente habitual. Mas ao defini-lo, classificá-lo,
mensurá-lo, e quando se determinam sanções e intervenções so-
ciais, torna-se evidente a força da transformação histórica por trás
do aparente eterno retorno das coisas. Modificam-se as palavras
que indicam os crimes e, com elas, de certa forma, modificam-se
também os próprios crimes. Na época de Lucia Cremonini, o in-
fanticídio ainda podia ser definido genericamente como assassina-
to dos filhos cometido pelos pais. Numa cultura embebida de mitos
antigos, a saga dos Átridas ou a lenda de Saturno que devora os
próprios filhos ainda encontravam lugar ao lado da história de
Medeia, exprimindo a profunda ambiguidade do dom da vida que

29
traz consigo o dom da morte; mas, na linguagem dos criminalistas
de então, o termo infanticídio se aplicava quase exclusivamente à
morte de um recém-nascido causada pela mãe.” O tipo “mãe cruel”
tem uma longa permanência no direito penal: o pai que abandona-
va ou negligenciava o filho, causando-lhe indiretamente a morte,
gozava de toda a indulgência, ao passo que a mãe infanticida sofria
uma execração que foi crescendo progressivamente ao longo dos
séculos da época moderna e contemporânea; a crueldade das mães
humanas ultrapassava a cultura e a natureza, e qualquer compara-
ção que se fizesse com o instinto materno protetor das feras era
sempre em detrimento das mães humanas. Crime “atroz”,28 imper-
doável e incompreensível, de fato o infanticídio passa cada vez mais
a significar um crime atroz exclusivamente materno. Essa acepção
acabou por se tornar a única legítima.Assim é que, naViena do final
do século XIX, o doutor Sigmund Freud reagiu admirado ao relato
de um amigo que sonhara ter cometido um infanticídio: “Infanti-
cídio? Mas o senhor não sabe que esse crime só pode ser cometido
por uma mãe contra seu recém-nascido?”.
“Certamente”, respondeu o amigo. Como era “um inteligente
jurista”, não podia ignorar que o artigo 139 do Código Penal austría-
co não deixava dúvidas a respeito: “O sujeito desse tipo de crime
privilegiado pode ser apenas a mãe”.29
Nem sempre foi assim.

30
2. O infanticídio como obsessão

O infanticídio, entendido como eliminação dos recém-nasci-


dos indesejados, é um fato que acompanha a história da espécie
humana como um surdo rumor de fundo. Quem procurou traçar
um desenho geral do infanticídio inseriu a história das culturas que
o perseguiram como crime dentro do quadro de outras tradições,
também dotadas de estratégias seletivas de classificação dos nasci-
mentos que justificavam ou para os quais pelo menos se tolerava tal
prática.1 Mas, ao lado do fato em si, desenvolveu-se a história de uma
imagem cultivada obsessivamente: a de grupos humanos que fun-
dariam sua coesão sobre um rito cujo centro consistiria na morte de
uma criança. É uma história longa e complicada onde, vez por outra,
os acusados se tornam acusadores. Mas, nessa troca de acusações e
defesas, um fato surge com clareza: aquela imagem de reuniões se-
cretas de uma seita (os primeiros cristãos) ao redor da vítima igno-
rante, que ainda soltava um vagido e sorria ao assassino,2 exerceu
por muito tempo uma mescla de horror e fascínio e estabeleceu os
limites do inconcebível no mesmo momento em que, sob o signo da
execração, descrevia insistentemente seus mínimos detalhes.

31
A acusação infamante do rito fundado na morte de uma crian-
ça, uma vez posta em circulação, repercutiu de diversas maneiras
nas práticas religiosas dos indivíduos e de grupos sociais inteiros.
Os primeiros cristãos, como dissemos, foram vítimas célebres de
tal acusação. As primeiras representações hostis da nova religião
tomaram como tema o rito da Eucaristia praticado secretamente
pelos seguidores de Iesus de Nazaré na Roma pagã, para dizer que
eles se reuniam para comer uma criança? O boato difamante dis-
torcia um dado real: no pão e no vinho do rito, os cristãos afirma-
vam comer a carne e beber o sangue de seu Deus. E foi em torno da
Eucaristia que o mito do infanticídio ritualístico continuou a se
reproduzir mesmo após o triunfo do cristianismo, alterando com
o tempo protagonistas e vítimas. Difamaram-se sucessivamente
hebreus, hereges, bruxas. Os primeiros foram os hebreus: histórias
de crianças cristãs sangradas e mortas pelos hebreus constelam
todo um milênio de história da Europa cristã e assinalam datas de
sombria memória. O pequeno William de Norwich, considerado
vítima dos hebreus durante a Semana Santa de 1 144, foi o iniciador
de uma série que, com ingredientes variados, iria construir a “má-
quina mitológica” da acusação do sanguef* O estereótipo do hebreu
sequioso pelo sangue de crianças cristãs respondia à necessidade de
desprezo e ódio que, desde cedo, a Igreja sentiu pela Sinagoga. Mas
entre os inúmeros traços negativos do “povo deicida”, o do infanti-
cídio teve um desenvolvimento rápido e violento em tempos e
modos que acompanham de perto a história da Eucaristia. A dou-
trina da divindade do hebreu Iesus havia convertido a seita hebrai-
ca originária na raiz da nova religião, e continuava a ser o ponto de
conflito insolúvel entre hebreus e cristãos. A presença de Iesus,
carne e sangue, humanidade e divindade, sob a aparência do pão e
do vinho, evidentemente era negada pelos seguidores do judaísmo,
além de ser uma fonte de dúvidas e incertezas entre os cristãos. Para
responder a tais dúvidas, acorreram dois argumentos poderosos:

32
os milagres da hóstia e os crimes monstruosos atribuídos a uma
seita imaginária de inimigos. Assim, a força do maravilhoso se unia
à força do ódio. Entre os vários milagres da hóstia consagrada que
se sucediam para dissipar as dúvidas do clero e do povo cristão,
destacam-se os que tinham a finalidade de marcar o avanço da
fronteira na “reconquista” católica contra os muçulmanos na pe-
nínsula Ibérica? Muçulmanos e judeus representavam a fronteira
da negação e da descrença, com a diferença que os judeus viviam
entre os cristãos. Daí a especial tendência cristã ao ódio e à suspeita
de sacrilégio, sempre prontos a brotar ou a ressurgir em relação a
eles. O terreno para tais questões era muito fértil, como mostra a
extraordinária difusão do boato sobre um milagre especial que teve
como protagonista um hebreu. O núcleo do relato nos leva a Paris,
por volta de 1290: um hebreu usurário suborna uma mulher cristã
para que ela lhe traga uma hóstia consagrada (que, na igreja, a mu-
lher fingiu engolir e escondeu). Começa o sacrilégio: o hebreu põe
a hóstia para cozinhar. Mas eis o milagre: da hóstia brota sangue
vivo, que se espalha, sai do aposento, atrai a atenção de outros. O
judeu é preso e punido. A história foi divulgada pelos canais da
pregação, ocupou lugar nas crônicas da cidade, e assim, passando
de boca em boca, foi se enriquecendo e se transformando. O mila-
gre de Paris encontrou sua mais célebre representação no pincel de
um grande pintor italiano. Paolo Uccello pintou uma crônica em
imagens. Isso ocorreu em Urbino, naquele século xv que presen-
ciou também a difusão das Companhias do Santíssimo Sacramen-
to e dos Montes Pios.6 Pios eram os preceitos agressivamente anti-
judaicos difundidos pelos pregadores (sobretudo franciscanos),
que exortavam as multidões a recorrer aos Montes Pios com o ob-
jetivo de eliminar a presença dos bancos hebraicos e dos hebreus
em geral.
Naquele século descobriu-se um meio muito mais radical de
eliminar por completo os hebreus da sociedade cristã. Eles já ha-

33
viam sido acusados, em 1321 por Filipe, o Belo, de envenenar os
poços e de conspirar com os leprosos e os inimigos externos da
cristandade (os muçulmanos). Mas a acusação de tramar conspi-
rações secretas foi levada ao ponto de imaginar conciliábulos e ritos
demoníacos, nos quais os hebreus se entregavam ao sacrilégio e à
inversão derrisória dos ritos cristãos, em particular o da hóstia.
Dizia-se que raptavam crianças cristãs e sangravam-nas até a mor-
te para amalgamar com esse sangue o pão de sua Páscoa.
A imagem do sangue domina o centro da história narrada por
Paolo Uccello _ não o sangue do hebreu condenado à morte, mas
o que brotou da hóstia. Era o sinal tangível de que ali estava um ser
vivo, realmente presente, como estabelecerá definitivamente o
papa Inocêncio 111 no Concílio Lateranense Iv de 1245. Entre a pro-
clamação da doutrina da presença real (e a consequente propagação
do culto do Santíssimo Sacramento) e a lenda do hebreu deicida,
inimigo do sangue de Cristo e sedento de sangue cristão, há um
nexo evidente também em termos cronológicos. O massacre dos
hebreus em Fulda em 1236, os casos de Valréas, na França, em 1247,
de Saragoça em 1250, de Lincoln em 1255, de Pforzheim em 1261,
de Weissemburg em 1270, de Oberwessel em 1287, de Krems em
1293, marcam uma escalada impressionante do mesmo tema: o
rapto e o assassinato de um menino cristão pelos hebreus no cená-
rio dos rituais da Páscoa hebraica. No caso de Saragoça, o pequeno
Dominguito delVal_ segundo a Passio anônima da época e depois
editada nos Acta Sanctorum _ teria sido raptado por um tal Moisés
Albayuceto, que o teria entregado ao “Alijama” dos hebreus; e esses,
“renovando o martírio de Cristo, pregaram com extrema crueldade
o menino à parede com alguns pregos e perfuraram profundamen-
te seu lado com uma ponta de ferro”.7A ardente devoção da Espanha
barroca traduziu exatamente este texto numa imagem de um me-
nino crucificado, colocada na catedral com a função de alimentar
a fé na Eucaristia e o ódio contra os hebreus. Fora a definição da

34
doutrina da presença real do corpo e sangue de Cristo na Eucaristia
que colocara as premissas para tal. As dúvidas e incertezas dos cris-
tãos, perante a difícil tarefa de acreditar naquilo que não viam,
encontraram na execração dos hebreus, acusados de crimes rituais
e de práticas sacrílegas, o local adequado para ser exorcizadas.
Essas acusações nascidas em torno do Concílio Lateranense lv
permaneceram muito tempo como brasas sob as cinzas, sempre
prontas a se inflamar. Elaboradas e difundidas por quem tinha in-
teresse em suscitar ondas populares de ódio contra os hebreus, elas
produziram frutos envenenados. Foi por um desses caminhos que
veio a se implantar nos países ibéricos o instrumento para a elimi-
nação da negação hebraica: a Inquisição. Na Espanha dos Reis Ca-
tólicos, no final do século xv, o caso do “niño de la Guardia” lançou
as premissas de violência coletiva sobre as quais o novo tribunal
pôde nascer e se desenvolver. Naqueles anos multiplicaram-se em
toda a Europa histórias de crianças cristãs raptadas e mortas por
hebreus. Em terras italianas, no principado episcopal de Trento,
ocorreu o caso de Simonino, que se desenrolou segundo os padrões
costumeiros e deu origem a um novo santo menino na tradição do
Dominguito espanhol. A dinâmica é a usual: uma criança desapa-
rece de casa e é encontrada morta. O bispo da cidade, o ambicioso
e enérgico Hinderbach, aponta os hebreus como culpados. A vio-
lenta tortura, que os juristas da Cúria romana consideraram ilegal
por ter sido usada na ausência de provas, levou à confissão e, por-
tanto, à pena capital contra os “culpados”, além da expulsão da co-
munidade hebraica da cidade, enquanto o culto ao novo santo,
organizado com uma hábil publicidade, trouxe fama ao bispo e
valeu à sua cidade a inserção no circuito internacional das peregri-
nações e das indulgênciasf*
A partir daí, a acusação de infanticídio ritual passou a fazer
parte constante do antijudaismo cristão. Séculos após o milagre
parisiense, as gravuras de propaganda dos cristãos narravam o

35
“admirável e maravilhoso caso” de uma profanação da hóstia rea-
lizada por um grupo de judeus. A narrativa possuía os mesmos
ingredientes do ocorrido em Paris. O sangue que brota da hóstia
profanada agora desencadeia as forças naturais; do céu irrompem
raios atingindo a casa dos judeus. Sobre os três que escapam ao fogo
precipita-se a mão implacável da Iustiça: os judeus são “esfolados
com rigorosos tormentos, e depois, no terceiro dia, afiadíssimos
paus são enfiados em seus corpos”.9
Assim, entre a doutrina eucarística da presença real e a ima-
gem do judeu deicida e sacrílego havia um nexo obrigatório, cons-
tituído pela obsessão do infanticídio ritual hebraico. O sangue di-
vino que se imaginava brotar da hóstia profanada pelo judeu
provinha daquele sacramento cristão frequentemente representa-
do como o local onde uma criança se mostrava ao olhar dos fiéis.
Visões miraculosas, por vezes assustadoras, em que, por exemplo,
via-se o celebrante devorar uma criança em lugar da hóstia” _ e
geralmente de intensa devoção, sobretudo feminina, “pela eucarís-
tia entendida como sangue vivificante”.“ O sangue e a carne da
criança divina contemplados devotamente pelos cristãos se reen-
contram na obsessão pelo crime ritual da lenda antijudaica. Não
por acaso Chaucer, em Canterbury Tales [Contos da Cantuária] ,
atribui ao personagem da abadessa um fascínio especial pela histó-
ria do pequeno Hugh de Lincoln martirizado pelos judeus.” A
tradicional devoção cristã pela divina maternidade de Nossa Senho-
ra veio a se ligar a uma imagem das mães judias de traços extraor-
dinariamente ferozes: numa história popular utilizada nas escolas
católicas do século xix, encontramos a descrição de uma mãe he-
braica desnaturada que, durante o cerco romano de Jerusalém,
“pousando os olhos sobre uma inocente criança [...] degola-a, as-
sa-a, come a metade e esconde o resto”.” Na realidade da época,
eram as mães judias que choravam, e não as cristãs. Raquel erguia
seu pranto (Ier. 31,15) pelos filhos dos judeus arrancados às famí-

36
lias para serem cristianizados _ e com um impulso assimilacio-
nista que, ao longo dos séculos, marcou a atitude da Igreja católi-
ca perante as comunidades judaicas com episódios clamorosos,
mas também com uma substancial continuidade na postura de
fundo, que se revelou até mesmo diante das consequências da
Shoah.“ Na casuística sobre o sacramento do batismo, havia o
caso imaginário da judia grávida convertida ao cristianismo e
morta por vingança por seus pares: para o filho não nascido e não
batizado dessa hipotética mártir estava garantida a certeza do
Paraíso.” No clima de incentivo à assimilação religiosa marcado
por essas campanhas de conversão, um papa _ Prospero Lam-
bertini, o “iluminado” Bento xlv _ sancionou a fundamentação
histórica da acusação de infanticídio ritual com a bula Beatus
Andreas (22 de fevereiro de 1755), e o documento reafloraria à
memória da instituição na época do recrudescimento do antiju-
daismo e do antissemitismo no século xx.”

Além da figura do judeu, outras despertaram acusações e


fantasias de infanticídio: por exemplo, os hereges. Na literatura
polêmica, frequentemente apresentava-se a imagem do herege
como adorador de uma religião diabólica e misteriosa, capaz de
destruir todos os mais sagrados princípios e de se entregar em lo-
cais ocultos a todos os tipos de excessos. Partia dos gnósticos e va-
lentinianos e chegava até os huguenotes _ e um distante eco da
acusação emergiria ainda na libelística católica durante as guerras
de religião na França.” Mas foi sobretudo a figura da bruxa que
herdou a carga do crime infamante.
Sobre um personagem como a bruxa, que acompanhou de
diversas maneiras o mundo antigo e as sociedades primitivas, bem
como a sociedade europeia medieval e moderna, é difícil dizer algo
de novo. E a relação entre bruxas e crianças, principalmente recém-
-nascidas, também já foi tratada e descrita muitas vezes. Mas o en-

37
trelaçamento de verdade e de imaginação que caracteriza esse as-
pecto talvez ainda não tenha recebido uma atenção compatível
com sua inegável centralidade na história da bruxaria. Existem
numerosíssimos exemplos disso nos comentários sobre as mulhe-
res acusadas de bruxaria, assim como em seus próprios depoimen-
tos aos juízes.Vej amos alguns casos situados em contextos italianos
no início da idade moderna.
Elas entravam nas casas, pegavam “os miúdos” e sugavam-lhes
o sangue “do nariz, das orelhas, do umbigo, do nervo” até sangrá-
-los totalmente. Assim relatou Bellezze Ursini, na confissão escrita
de próprio punho e entregue ao tribunal criminal romano por
volta de 1527.18 Ela tinha enviuvado muito jovem (“quase criança”)
e, como meio de vida, exercia uma ciência pessoal que se confundia
com a medicina dos “segredos”. Recolhera muitos deles em “um
livrão”. Fora levada a isso por uma outra mulher, uma “mestra” da
arte. Com seus remédios, ajudava as mulheres que queriam “em-
prenhar”, isto é, ter filhos, e cuidava das crianças quando nasciam e
quando adoeciam. Muitas saravam, muitíssimas morriam. Era
impelida pelo demônio _ contou ela _ de fazê-las morrer, mas
salvava muitas. Eram sempre crianças pequenas, que ainda não
falavam. Em muitos casos nem pôde nomeá-las, pois haviam mor-
rido antes de receber um nome. Bellezze falou de preparados má-
gicos feitos com o sangue e o corpo das crianças. Ela as desenterra-
va e fazia unguentos com suas carnes. Contou que o ritual para se
tornar bruxa era o seguinte: havia uma iniciadora, a bruxa “mestra”,
que praticava um rito semelhante ao batismo (“cospe-lhe na boca
e unge”) e depois mandava a iniciante ir à pia batismal para abjurar
ritualmente das “leis e autoridades dadas por Deus e pela Igreja” e
entregar-se ao diabo como “amo e senhor”. A seguir, a bruxa mestra
celebrava sobre a neófita o sacramento do demônio: ungia-lhe as
têmporas e as palmas das mãos com um unguento feito com a car-
ne de crianças mortas sem batismo.

38
Nessa confissão, a bruxa é uma figura com prática em medici-
na que atende principalmente gestantes e recém-nascidos. Mata,
mas também cura. Matá-las-ia realmente? A pergunta também
pode ser formulada ao revés: curá-las-ia realmente? A resposta
afirmativa não é dada apenas pelo renome ou pela palavra dos
acusadores. São as próprias acusadas que o confessam, às vezes com
uma ponta de vaidade, um provável resquício indicando como
alimentavam a voz do povo e promoviam seu trabalho num setor
da medicina que, por definição, era tanto mais especializado quan-
to mais baixo o perfil social, e também por isso aberto às mulheres. 19
Qualquer que seja o núcleo de verdade desses relatos, o fato é que o
caso de Bellezze Ursini não é de forma alguma isolado. Ainda em
Roma, um século antes, fora queimada uma mulher, Funicella,
porque “diabolicamente matou muitas criaturas”, como escreveu o
cronista Stefano Infessura. Provavelmente era a seu caso que se re-
feria Bernardino de Siena quando, pregando em Siena em agosto
de 142 7, mencionou uma bruxa que “disse e confessou sem suplício
algum que matara xxx crianças sugando-lhes o sangue; e também
disse que havia libertado Lx”.2° O processo contra Funicella nascera
do alvoroço despertado pelas pregações romanas do mesmo Ber-
nardino, feitas entre maio e julho (1427), contra a nova seita “do
barrilete”, como era chamada, e que havia sido descoberta “no Pie-
monte”. Assim surgia entre Roma e Siena a notícia da nova seita
combatida pelo franciscano Ponce Fougeyron, inquisidor num
vasto território que englobavaAosta e Genebra: era, como lemos na
bula papal destinada a ele em 1409, uma seita de cristãos e de “pér-
fidos judeus” que praticava sortilégios, invocações de demônios e
muitas outras práticas e ritos proibidos e contrários à fé.” O nexo
entre a caça às bruxas e a demonização cristã do hebreu é evidente:
sua origem foi indicada com precisão no período entre a Peste
Negra de 1348 e os primeiros indícios de uma seita de bruxas e
bruxos por volta de 1375.22 Voltaremos ao tema apenas para seguir

39
o fio que nos interessa. Ora, não há dúvida de que, desde cedo, o
infanticídio entrou como elemento constitutivo na construção do
sabá da bruxaria, ao lado do canibalismo (de crianças).23 No rela-
tório do cronista Hans Fründ sobre os processos de 1428 contra
bruxas e bruxos do Vallese _ uma das fontes mais antigas do ima-
ginário do sabá _, o infanticídio aparece como ía ponta extrema de
uma série de sortilégios e malefícios referentes à concepção e ao
nascimento: esterilidade, abortos, partos prematuros. Alguns
membros da seita matavam seus filhos, assavam-nos e comiam-
-nos, e depois, em vez dos recém-nascidos, levavam bonecos à
igreja para o batismo e o funeral.” Ao rito cristão do nascimento
contrapunha-se um rito invertido e dominado pela morte e pelo
diabo. As bruxas _ segundo Iohannes Nider _ exercitavam seu
poder homicida de preferência sobre as crianças não batizadas ou
não protegidas por preces especiais; sufocavam-nas à noite (assim
a culpa recaía sobre os pais), depois desenterravam-nas e faziam
unguentos para as artes mágicas.” Nos “errores Gazariorum”, do-
cumento anônimo redigido perto de Lausanne por volta de 1437,
narram-se as práticas da seita dos “Gazari”, que montavam em ca-
bos de vassouras: dizia-se que os membros da seita matavam os
próprios filhos e os comiam em sua “sinagoga”. Agiam assim em
sinal de escárnio pela Eucaristia (“ in contumeliam eukaristie”).26
Portanto, o principal sacramento perseguido pelo demônio era a
Eucaristia. Aqui se cruzam e, em parte, sobrepõem-se os estereóti-
pos da bruxa e do judeu. A sangria descrita por Bellezze Ursini re-
mete ao medonho fantasma do infanticídio ritual hebraico, então
difundido também graças às novas técnicas da imagem e da propa-
ganda ilustrada. Quando o bispo de Trento, em 1475, desencadeou
a perseguição contra os judeus da cidade com a acusação de terem
matado o pequeno Simonino, as representações xilográficas do
menino rodeado pelos judeus a recolher seu sangue gozaram de
um extraordinário sucesso e rápida difusão.” E foi justamente no

40
caso de Trento que coube um papel fundamental ao dominicano
Heinrich Kramer, o mesmo que logo depois publicaria com Iacob
Sprenger o texto fundamental da moderna caça às bruxas, o Mal-
Zeus Maleflcarum. Foi-lhe confiada, em 1475, a tarefa de coligir atas
de sentenças em processos de infanticídios rituais na Alemanha,
entre a Brisgóvia e o lago de Constança, para defender a legitimi-
dade do trabalho do bispo Hinderbach contra as acusações que lhe
dirigira o comissário apostólico Battista de” Giudici.” Testemunha
da execução capital dos judeus tridentinos, Kramer logo daria uma
contribuição decisiva à obsessão pela ameaça anticristã represen-
tada pela seita da bruxaria. Assim, enquanto a acusação de infanti-
cídio ritual desencadeava pogroms e era usada para legitimar o
surgimento da Inquisição espanhola, acusações semelhantes da-
vam força à caça às bruxas. O Malleus Maleƒicarum dedicou um
grande espaço à tese de que por trás de cada parteira ocultava-se
uma bruxa em potencial.” Ao manual devemos acrescentar os
inúmeros processos que mostravam a tendência de sobreposição
entre bruxas e “comadres” ou parteiras, da qual tivemos uma amos-
tra nos casos de Funicella e de Bellezze Ursini. É uma história co-
nhecidíssima, mas que em certos aspectos não foi tratada com a
devida consideração. Qualquer pessoa que tenha lido autos de
processos de bruxaria sabe quão frequentemente a suspeita e a
acusação nasciam de episódios tendo crianças como protagonistas
_ crianças que, depois de um contato com a suposta bruxa, adoe-
ciam e morriam; crianças que eram levadas às curandeiras (ou
curandeiros) para lhes tirar o mau-olhado. Era na relação entre as
parteiras e seus clientes que o olhar desconfiado dos inquisidores
via o campo originário de ação das potências do mal. Aí se reuniam
fios mais antigos. Desde o Teeteto de Platão, a tradição que havia
desenhado os traços das parteiras movera-se naquela direção: uma
mulher velha, não mais capaz de conceber e dar à luz, conhecedora
de uma arte misteriosa que, com poções e encantamentos, aliviava

41
as dores, facilitava o parto e, quando necessário, providenciava o
aborto.” A Naturalis historia de Plínio o Velho, grande enciclopédia
na qual beberam as épocas posteriores, acrescentou a descrição dos
sortilégios que as parteiras preparavam com membros de crianças
abortadas e com o sangue menstrual (líquido poderoso e misterio-
so, longamente investigado pela medicina popular) no centro de
fantasias e temores sobre os prodígios e as monstruosidades da
geração humana.31 A magia e os portentos imaginados pelos anti-
gos tornaram-se, para os cristãos, o resultado das potências diabó-
licas. A parteira foi se aproximando da bruxa. Se havia um local
adequado para a prática da bruxaria, este era a cena do parto, onde
habitualmente vida e morte se encontravam, e as feições da bruxa
se adaptavam bem às da parteira. Difundiu-se a convicção de que o
parto era o palco onde se perpetravam mil artifícios diabólicos _
uma opinião que os historiadores talvez não tenham levado sufi-
cientemente a sério.” De fato, os processos penais relativos às par-
teiras acusadas de comercializar corpos de recém-nascidos mostram
claramente que a antiga tradição se mantinha viva, e que em torno
das parteiras persistiam as práticas de extrair da morte dos recém-
-nascidos poções para curar doenças especiais, como a lepra.” O
significado ambíguo do processo de nascimento como momento
originário de separação entre a morte e a vida revestia todos os
seus elementos integrantes. Por entre as névoas das crenças folcló-
ricas vislumbram-se as percepções de realidades importantes,
como as relativas aos poderes da placenta, a potente e misteriosa
parede que divide o reino da vida e o reino da morte.”
Como observaram Kramer e Sprenger, bastaria ler os proces-
sos para ver que a cena recorrente do crime de bruxaria tinha como
protagonista a parteira. O nascimento e seus elementos circundan-
tes compunham o contexto social originário, onde a acusação de
bruxaria se reproduzia como uma bactéria em seu caldo de cultura.
As razões eram múltiplas: sendo geralmente mulheres de condição

42
muito humilde e com prole numerosa, as parteiras exerciam sua
arte baseadas na experiência pessoal, enriquecida com esconjuros
e fórmulas de sabor mágico recolhidos à cultura oral. A extrema
pobreza de suas condições de vida era razão suficiente para levá-las
ao desespero e a um pacto com o demônio, nos termos descritos
pelos relatos dos pregadores ou pelas vidas dos santos. Era inevitá-
vel que as autoridades eclesiásticas olhassem com suspeita essas
figuras femininas, conhecendo bem sua situação de absoluta mar-
ginalidade. Assim se multiplicaram as injunções e proibições entre
os séculos xv e xvi, coincidindo com a intensificação da caça às
bruxas. E nem mesmo a criação de um modelo hagiográfico da
obstetrícia na figura de Margherita de Cortona seria suficiente para
protegê-las.” Mais eficaz se revelaria a obra de aculturação graças
à qual a figura da parteira se tornou uma aliada preciosa do sacer-
dote e do médico, ou melhor, um instrumento indispensável para
que entrassem na cena do parto. Entretanto, uma das primeiras
obras dedicadas à obstetrícia, publicada em 1513 por Eucharius
Rôsslin, vinha repleta de acusações contra toda a classe das partei-
ras.3'6 O que as tornava suspeitas ao mais alto grau era o ofício a que
se dedicavam e as circunstâncias em que o faziam. Em suas mãos
carregavam seres humanos privados da proteção divina. A partu-
riente, pela própria condição em que se encontrava, era um ser
impuro que não podia atravessar a soleira da igreja sem se submeter
previamente a um rito de purificação; e o recém-nascido ainda não
batizado era uma criatura do demônio que apenas os exorcismos
do rito eclesiástico libertariam dos espíritos imundos. A persistên-
cia de práticas como a bênção das mulheres após o parto nas igrejas
apartadas de Roma e a resistência em abolir os exorcismos, verifi-
cada no mundo da Reforma, indicam densas convicções que não
podiam ser ignoradas.” Aquele recém-nascido já era uma presa
dos maus espíritos: a parteira, se quisesse, poderia consagrá-lo ao
demônio em vez de batizá-lo, e aproveitar a ocasião para obter os

43
ingredientes naturais a que se atribuía um grande poder mágico:
a placenta materna, por exemplo, ou a gordura de um menino
não batizado. Esse tipo de unguento aparece entre os preparados
de bruxaria descritos por Martin del Rio, Girolamo Cardano,
Giovanni Battista della Porta e outros.” Naturalmente, resta de-
monstrar até que ponto as acusações e suspeitas correspondiam
a práticas efetivas. Mas é indiscutível que as mulheres processadas
por bruxaria eram, em sua maioria, parteiras. Daremos apenas
alguns exemplos.
Nos autos da Congregação da Inquisição romana, no verão de
1552, menciona-se o nome de uma certa Faustina Orsi, definida
ora como “bruxa”, ora como “obstetra”, conforme a menção se re-
ferisse ao crime ou à profissão.” Afora tais anotações, não sabemos
mais nada sobre ela. Sabemos, porém, que, depois de submetê-la a
um processo e provavelmente à tortura, a Inquisição romana liber-
tou-a sob caução, com uma única condição importante: que não
exercesse mais o ofício de obstetra e não se dedicasse mais a medicar
crianças.” Naqueles tempos, a Inquisição romana estava profun-
damente empenhada na caça aos suspeitos de heresia luterana e
não se dedicava muito aos casos de bruxaria. Nos cárceres do tribu-
nal, Faustina esteve na companhia de dois presos chamados Cesare
Flaminio e Camilo Regnoli, e certamente a Inquisição romana deu
a eles uma atenção muito mais vigilante do que a Faustina. Ainda
assim, esse testemunho tem o valor de mostrar como os prelados
da Congregação do Santo Ofício adotaram, num caso de bruxaria,
a mesma atitude cautelosa e relativamente branda que, mais tarde,
iria caracterizar seus métodos em tais questões. Para eles, a acusa-
ção de bruxaria estava ligada a uma função social: fazer partos e
curar as crianças doentes. Daí a solução: a bruxa não era condena-
da, tampouco absolvida, mas simplesmente impedida de se dedicar
ao parto ou ao tratamento das crianças.
Bruxas da cidade e bruxas do campo compartilhavam a fun-

44
_

ção social de parteiras. A documentação inédita sobre a Inquisição


de Siena, aberta recentemente aos estudiosos, conserva muitas
histórias de mulheres que, por sua prática de obstetras e especialis-
tas em doenças infantis, foram acusadas de bruxaria. Narraremos
alguns casos.
Em 19 de setembro de 1590, o inquisidor de Siena recebeu
uma denúncia de bruxaria contra Camilla di Bino, “acolhedora” de
Montalcino.““ Era uma mulher de idade avançada; ninguém, nem
mesmo ela, sabia sua verdadeira idade, mas calculou-se que tinha
cinquenta ou sessenta anos. Desde algum tempo exercia em Mon-
talcino o tal ofício de “acolhedora” (profissão feminina por defini-
ção, que se baseava exclusivamente na experiência). Era praticada
por mulheres de certa idade, de prole numerosa, que tinham apren-
dido a enfrentar as dificuldades da gestação e do parto, bem como
os problemas de criação dos filhos. Camilla tivera seis filhos nos
primeiros anos de casamento. Depois ficou viúva e assim se man-
teve. O marido morrera enquanto estavam em curso a guerra de
Siena e a longa resistência de Montalcino à conquista do exército
imperial sob Cosimo I. Tempos de guerra e de carestia, os mais di-
fíceis para uma viúva com seis filhos. Foram de fato momentos
duríssimos, e assim Camilla os rememorou perante o juiz: “eu não
tendo pão e encontrando-me viúva na época em que se perdeu
Foiano durante a guerra de Siena e estando com seis filhos peque-
nos e estando sem pão e tão pobre que não tinha como enterrar
meu marido que foi enterrado pelo amor de Deus, e estando
desesperada. . .”.42 O desespero a levou a dar um passo extremo. Não
era à toa que os teólogos definiam o desespero como o pecado con-
tra o Espírito, o único pecado imperdoável na religião do perdão.
“Encontrando-me desesperada, entreguei-me ao diabo. Sentei no
meu quarto e chamei o diabo dizendo: “Diabo, vem a mim que me
dou a ti em carne e osso, em espírito e em qualquer coisa'.”

45
O demônio lhe teria aparecido “em forma de homem vestido
de negro”, e Camilla dizia ter feito um pacto com ele. Era essa a
parte da história que importava a quem a ouvia e interrogava _
sobre as entidades diabólicas, as aparições e os poderes mágicos _,
e não aquela sobre sua miséria e desespero. Camilla fora presa sob
a acusação de ter provocado doenças e mortes. Os denunciantes
haviam mencionado recém-nascidos que, depois de serem tocados
por ela, tinham adoecido e morrido. Cenas da vida cotidiana: Ca-
milla vagueava pelas ruas da cidade, entrava nas casas, via crianças
em cueiros a chorar. Camilla cuidava delas, tirava-lhes os cueiros,
tocava-as. Cenas frequentes. Ela era a “acolhedora” e a ela cabiam
os cuidados naquela fase difícil da vida que se iniciava e tantas vezes
se interrompia. Corriam histórias assustadoras sobre ela: havia
quem fora tocado num ombro e depois se sentira acometido de
dores súbitas e violentas. Talvez aquele toque de Camilla, que aco-
lhia os recém-nascidos e lhes dava vida, também fosse capaz de
trazer a morte. As acusações chegaram ao inquisidor de Siena, onde
o tribunal não andava muito ocupado, após a longa caça aos here-
ges que durou até o final dos anos 1570. Agora podia voltar a se
dedicar às bruxas, velho tema apenas temporariamente posto de
lado. Nos anos dos embates com a Reforma e a heresia doutrinal, o
supremo inquisidor frei Michele Ghislieri disse que sempre haveria
tempo para elas. Agora era chegado o tempo. Camilla foi presa,
interrogada, torturada. Foram longas torturas, extremamente do-
lorosas: o pêndulo (estiramento com cordas) por até meia hora, a
terrível prensa. As dúvidas sobre o uso da tortura e os indícios com-
probatórios necessários para se passar a essa fase do processo, que
outrora os jurisconsultos haviam meticulosamente levantado, na
prática não importavam muito. A bruxaria, assim como a heresia,
era um crime de apostasia da verdadeira fé, um crime de lesa-ma-
jestade divina e humana. A ela não se aplicavam as regras normais,
era um “crimen exceptum”. Em Siena, nem sequer surgiram as dú-

46
vidas sobre a bruxaria que estavam se descortinando em Roma,
entre os membros do Santo Ofício. Muitos historiadores sustenta-
ram com bons argumentos que, no que tange à bruxaria, a Inquisi-
ção na Itália e na Espanha foi branda. Mas Camilla não foi agracia-
da com nenhuma clemência. Foi torturada várias vezes; queriam
uma confissão. E Camilla confessou: declarou ter-se entregado ao
demônio, recebendo dele poderes mortíferos, os quais ela empre-
gara. Mas essa sua verdade não satisfez o inquisidor. Ele esperava
mais. Sabia, por ciência teológica e policial, como eram as coisas
entre as bruxas e o demônio e queria de Camilla uma confissão
completa, cheia de detalhes, que coincidisse com o que lhe ensina-
vam os manuais: a homenagem ao demônio, a ofensa à cruz, os
unguentos mágicos, o voo noturno para o sabá, a cena do sabá, o
encontro com as demais bruxas. Queria os nomes das outras bru-
xas para prendê-las e destruir toda a seita. Camilla pareceu-lhe re-
ticente: contava, sim, mas a duras penas, quase gota a gota, dando a
suas perguntas respostas curtas e incertas. Perguntava-lhe “se ela
deixou Cristo e de que maneira o deixara”; e dava-se por satisfeito
quando Camilla descrevia a cena do crucifixo pisoteado. Pergunta-
va, enfim, a coisa mais importante: “se ela conhece em Montalcino
ou em outros lugares outras bruxas e diga quem são”. E aqui a res-
posta era insatisfatória. Camilla havia mencionado uma amiga sua,
uma certa Agnesa, admitindo terem ido juntas praticar bruxarias.
Mas não conhecia outras; “e não as conhecendo não estive em jogos
nem em nada mais”.43 Diante de tal resposta, que contrariava na
essência o paradigma do sabá das bruxas, Nicola Angelini de Civita
di Penne, inquisidor do Estado de Siena, declarou-se totalmente
insatisfeito. Segundo ele, Camilla “omitiu, e omite e oculta a
verdade”,”*'* isto é, a opinião do inquisidor sobre o que seria o sabá.
Era preciso, portanto, mantê-la na prisão; e na prisão Camilla mor-
reu, em 15 de agosto daquele ano _ talvez “de sua morte natural”,
embora pouco natural fosse o tratamento que lhe haviam infligido.

47
Foi o suficiente, em todo caso, para que se declarasse “terminado e
encerrado seu processo”.
Muitos outros processos daquela época apresentam os mes-
mos aspectos. Naqueles realizados nas áreas rurais toscanas, encon-
tramos mulheres semelhantes a Camilla, isto é, velhas, ou, em todo
caso, não mais férteis, pobres e obrigadas a viver de expedientes,
oferecendo-se às famílias da cidade como especialistas em “segre-
dos” naturais, a exemplo da medicina das ervas e decocções, além de
conhecimentos misteriosos sobre a eficácia de certos gestos e pala-
vras. No emaranhado de denúncias de clientes decepcionados e
opiniões de vizinhos, o que toma corpo sob nossos olhos é uma
profissão que, por sua própria natureza, pode ser considerada má-
gica, situada no limiar entre a vida e a morte: a profissão de parteira,
de especialista nas coisas do nascimento. Daí a imensa confiança
depositada no poder dessas mulheres; daí também a rapidez com
que a confiança se transformava em rancor e em vontade de vingan-
ça. Se a criança demorasse a nascer, ou se nascesse enfermiça, adoe-
cesse e acabasse por morrer, a culpa seria dela, da mulher que possuía
o poder e o utilizava com finalidades maléficas.
Uma outra mulher de Montalcino, um pouco mais jovem do
que Camilla, seguiu um caminho similar alguns anos depois.
Chamava-se Vittoria, viúva de Simone Ciani (ou Ciacci), e tinha
sessenta anos quando, em julho de 1619, um irado cidadão de
Montalcino apresentou-se diante do inquisidor de Siena.45 Ela
também havia nascido nos anos da guerra de Siena, mais precisa-
mente “no ano em que veio o acampamento a Monte Alcino”. Pobre
e precocemente viúva, sobrevivia de seu trabalho: fiar, “lavar roupa
e fazer algum serviço”. Havia trabalhado na casa de um notável da
cidade, serBernardino Costanti, mas foi despedida ao se casar. Para
viver, dedicava-se a “ser acolhedora e acolher os herdeiros”.45 Em
suma, era chamada para os partos. Mas não cuidara bem do parto
da esposa de seu antigo patrão. O menino estava em perigo de vida.

48
Ser Bernardino convencera-se de que Vittoria queria se vingar por
ter sido despedida. Espalhara na região o boato de que era bruxa e
que podia causar a morte das crianças. Por conta disso, Vittoria
havia perdido seus meios de sustento, que já eram escassos. A con-
fiança em suas capacidades convertera-se em medo. Certa vez, ser
Bernardino contraiu uma catarata e seu primeiro pensamento foi
um mau-olhado. Mandou chamarVittoria, prendeu-a e amarrou-a
em sua casa para obrigá-la a desfazer o malefício. Depois ele a de-
nunciou, alegando como prova um “meio alqueire” de coisas sus-
peitas encontradas na cama: ossos, sementes, agulhas, gordura
humana e até “dois olhos de morto”. Foi auxiliado e incentivado por
um franciscano, exorcista de um mosteiro nas proximidades. O
processo se prolongou por quase um ano. Nesses meses Vittoria
perdeu uma filha, que morreu “de pobreza e dificuldades”. Inutil-
mente declarou que, se tivesse poderes de bruxa, tê-los-ia usado
para proteger a filha. Mais eficientes foram suas declarações de
“viver em boa cristandade”. Ao final, foi libertada do cárcere sie-
nense da Inquisição. Mas foi determinado que continuasse à dispo-
sição do tribunal e, acima de tudo, que deixasse de exercer tarefas
de parteira e curandeira. Portanto, também nesse caso, a Inquisição
identificou a raiz da denúncia de bruxaria na prática de auxílio no
parto.
Encontramos casos semelhantes em outros anos e locais dife-
rentes, por exemplo, no sul da Alemanha no final do século xv11.Em
1671, uma mulher de 56 anos, Appolonia Glaitter, do vilarejo de
Windish-Bockenfeld, nos arredores de Rothenburg, foi acusada de
bruxaria. O tribunal da cidade havia julgado muitos processos do
mesmo tipo, mas proferiu apenas três sentenças capitais entre 1500
e 1750. Havia analogias com o tribunal de Siena e as bruxas de
Montalcino. Appolonia também ajudava as vizinhas durante o
parto e a criação dos filhos. Mas bastou que a filha de onze anos de
uma vizinha (que recebera sua assistência durante o parto) contraís-

49
se uma infecção, depois de tocar nas ervas de seu quintal, para que
se desencadeasse a acusação de bruxaria.”
Não acompanharemos aqui os inúmeros casos conhecidos
ou, pelo menos, documentados de mulheres acusadas de praticar
bruxaria e causar a morte de crianças enquanto se dedicavam a
serviços de assistência ao parto ou de amamentação. Ê evidente
que a profissão de “acolhedora” prestava-se particularmente bem
a tais desenlaces. Transpor o limiar do nascimento era um passo
arriscado e, em si, extremamente inquietante. Assim, as parteiras
se expunham com muita facilidade à suspeita e à acusação de abu-
sar de seus poderes e saberes em favor do demônio e não de Deus.
De fato, quando o surgimento de uma medicina douta passou a
afastar a maioria dessas práticas para o segundo plano, a condição
das parteiras não só se recobriu de suspeitas e acusações de bruxa-
ria, mas também sofreu uma profunda reorganização. Isso se re-
vela graças a um pequeno indício percebido no processo contra
Vittoria Ciacci de Montalcino, quando, caída por terra a denúncia
de causar a morte de crianças, por falta de provas, surgiram sus-
peitas sobre o tipo de batismo que a parteira ministrara aos recém-
-nascidos em risco. O que gerava a ansiedade dos pais e do clero era
a vida da alma, e não a do corpo _ uma mudança nada pequena,
que não podemos subestimar. A parteira se afastava do campo dos
saberes práticos de um mundo feminino suspeito, e se aproximava
do mundo eclesiástico que lhe confiava novas tarefas e responsa-
bilidades.
O clero pós-tridentino produziu aqui o maior esforço de in-
tervenção, com uma estratégia de controle de dupla vertente: de
um lado, a agressão inquisitorial antibruxaria; de outro, a acultu-
ração e a integração. A tarefa de educação das parteiras fez-se ne-
cessária devido a muitas circunstâncias. Depositárias de uma cul-
tura oral suspeita por princípio, essas mulheres de artes secretas
exerciam seus saberes nas delicadíssimas áreas do sexo, da gestação

SO
e do nascimento, e auxiliavam as mães na primeira infância dos
filhos. Sabia-se que rezavam orações secretas e ajudavam o parto
com encantamentos _ coisas que eram feitas “ocultamente”, escre-
vera Tommaso Garzoni, fora de alcance do controle masculino.”
Pouco bastava para se tornarem suspeitas de praticar intervenções
abortivas ou autênticos infanticídios. Por outro lado, sua colabora-
ção continuava a ser preciosa não só para os médicos, mas também
para o clero, que tinha necessidade cada vez maior de garantir a
administração do batismo em todos os casos em que a vida da
criança estava em risco. Essa urgência de uma pronta intervenção
sacramental no limiar do nascimento despertou uma grande aten-
ção aos conhecimentos das parteiras sobre o batismo. Entre as
medidas tomadas pelos bispos pós-tridentinos, o controle sobre a
competência e a ortodoxia das parteiras tornou-se um aspecto
obrigatório, e passou-se a elaborar uma série de instruções espe-
ciais para elas. Prova disso é a obra de Scipione Mercurio, que,
discípulo do anatomista bolonhês Cesare Aranzio, foi médico e
monge dominicano, e cuja produção bibliográfica se revelou fruto
da ciência médica e da vontade dominicana de extirpar o erro da
mente do povo. Seu manual para as obstetras _ A comadre ou
parteira _, publicado pela primeira vez em Veneza em 1596, teve
dezessete edições. Era um verdadeiro guia prático, com sucessivas
atualizações introduzidas pelos editores, enriquecido com exem-
plos ilustrativos e novas contribuições de caráter médico e teológi-
co.” Se a questão de impor uma disciplina cristã à vida conjugal
tem um papel central na Europa da Reforma, também em conse-
quência da abolição do celibato religioso, foi o mundo católico
italiano que se pôs decididamente na rota do controle cultural das
parteiras. O interesse pelos problemas do nascimento e da criação
dos filhos tornou-se um fenômeno geral e, assim, a cultura oficial
se apropriou de questões como a amamentação e os cuidados in-
fantis, que até então estavam totalmente fora do campo de visão do

S1
cristianismo medieval.” E foi a obra de Mercurio que, pela primei-
ra vez, expôs em vernáculo os mais diversos aspectos da gravidez e
do parto, para que os conhecimentos científicos e a doutrina teoló-
gica ficassem ao alcance das parteiras. A série de edições e atualiza-
ções reflete a ânsia com que a cultura escolástica encarava o proble-
ma de atualizar e dominar os conhecimentos e comportamentos
que cercavam o nascimento, assuntos outrora estranhos ou abor-
dados apenas sob o aspecto de pecados da carne. A distância entre
o texto do dominicano Mercurio e o de seu colega de ordem, frei
Vincenzo de Bolonha, sobre as condutas proibidas no matrimônio,
é muito maior do que os setenta anos que os separam.51 Aqui, o
olhar não é o do moralista obrigado a intervir e impor freios a um
assunto desagradável e perigoso como o matrimônio; ao contrário,
alastra-se uma curiosidade ilimitada sobre o que ocorre no corpo
da mulher a partir da concepção, assim como sobre os tempos e
modos da gestação e os cuidados que a mulher deve dedicar ao filho
antes, durante e depois do nascimento. A obra, em três livros sepa-
rados, aborda a preparação pré-natal, o parto e o pós-parto. A
vontade moralizadora está como que oculta por trás das inúmeras
noções médicas e instruções para interpretar e curar as mais varia-
das manifestações do corpo das mães e dos filhos: as dores, os in-
chaços, as menstruações, as febres, a presença ou ausência de leite,
o dever materno da amamentação, o sexo dos recém-nascidos e as
maneiras de determiná-lo, os partos difíceis, as imperfeições dos
nascituros, o nascimento de monstros, as doenças dos recém-nas-
cidos e os modos de tratá-las. Como é fácil imaginar, uma obra
desse gênero destinava-se acima de tudo às pessoas com responsa-
bilidade e oportunidade de cuidar das mães: em primeiro lugar as
parteiras, mas também os médicos e confessores. Após o Concílio
de Trento, os bispos, durante as visitas pastorais, começaram a
submeter as parteiras a exames específicos para verificar sua capa-
cidade de ministrar o batismo. Um resultado conclusivo dessa

S2
í ...__ _

orientação encontra-se no Ritual Romano publicado por vontade


do papa Paulo v em 1615, estabelecendo que os párocos tinham a
obrigação de reconhecer formalmente o batismo ministrado pelas
parteiras.” E a ordem foi colocada em prática: na Bolonha do sécu-
lo xvm, o cardeal Lambertini ainda determinava que as parteiras
fossem “bem instruídas na administração do batismo nos casos de
necessidade”.53 Mas a tarefa de divulgar os saberes sobre o nasci-
mento filtrados pela cultura eclesiástica impôs uma série de ajustes
e concessões; e não é por acaso que também se deve justamente a
Scipione Mercurio a primeira obra impressa em língua italiana
destinada a corrigir os “erros populares”. O ingresso no mundo da
cultura popular com tais premissas significou o levantamento e o
crivo ortodoxo de temas e atitudes com que a ciência oficial até
então convivia de diversas maneiras. Assim, Mercurio se deteve
sobre as ideias relativas ao parto numa cultura que acreditava, por
exemplo, nas forças mágicas do olhar carregado de maldições e de
morte, mas que também podia ser veículo de imagens capazes de
marcar, através dos olhos da gestante, o aspecto do filho em seu
ventre.” O olhar desconfiado do dominicano deteve-se sobretudo
nas práticas que cercavam o parto e que, a seu olfato de frade, res-
cendiam a bruxarias. Assim, por exemplo, ele sugeriu que se esco-
lhesse com muita atenção a “comadre” e que se descartasse catego-
ricamente aquelas mulheres que faziam estranhos comércios com
a bolsa amniótica (a “camisa”) das crianças.55
A obra de Scipione Mercurio não estava isolada. Ela se inseria
num quadro de estrita e atenta regulamentação da categoria das
parteiras, com vasta e difusa documentação nas atas das visitas
episcopais e nos sínodos diocesanos. Em seu manual para as “par-
teiras”, a desconfiança ou, antes, a forte suspeita de práticas de
bruxaria se alterna com o oferecimento de uma aliança com a Igre-
ja, tendo como base um honroso compromisso: nos casos de nas-
cimentos em que houvesse algum risco, as parteiras abandonariam

53
as fórmulas estranhas e misteriosas que proferiam em voz baixa e
as substituiriam pela fórmula simples, clara e invariável do batis-
mo. Deixariam de rivalizar com os sacerdotes e se tornariam aliadas
e agentes da Igreja na conquista das almas. Assim o armistício poria
termo a uma longa guerra entre práticas folclóricas e religião ofi-
cial. A suspeita permanecia, mas transferia-se para a capacidade
das parteiras de desempenhar seu papel a contento. Enquanto isso,
a acusação de bruxaria que levara tantas mulheres à tortura judi-
ciária e à fogueira era silenciosamente excluída das diretrizes da
Inquisição. Naturalmente, isso era muito diferente de eliminar o
preconceito contra a bruxaria, destinado a persistir. Permaneceu
viva por muito tempo a ideia de que, por trás da religião “verdadei-
ra”, com seus ritos e práticas à luz do sol, ocultava-se uma falsa reli-
gião afeita a horrendos rituais nas sombras. Pregadores populares
e teólogos doutos continuaram por longo tempo a discutir suas
convicções, divulgando-as e incitando as pessoas ao medo e ao
ódio contra as “mulheres maléficas”, que consagravam os recém-
-nascidos ao demônio e depois matavam-nos enfiando um longo
alfinete no crânio.56 Era _ dizia-se _ uma peste espalhada por
toda a Europa; duvidar disso era sinal de tolice e pouca fé. Mas a
razão do ódio pelas bruxas e a acusação de infanticídio agora esta-
vam ligadas ao contraste entre o batismo católico e o batismo má-
gico em nome do demônio.”
Não queremos propor uma enésima “explicação” da obsessão
antibruxaria que dominou as mentes no início da modernidade. A
construção da figura da bruxa respondeu a necessidades e obses-
sões de vários tipos; seus atributos variam no tempo e no espaço.
Mas certamente, mesmo antes que o desenho do sabá das bruxas e
do demônio adquirisse forma e desencadeasse a caça à bruxaria
mais violenta e sanguinária da história, a figura da bruxa havia es-
tabelecido íntimas relações com a vida e a morte dos recém-nasci-
dos. Desde suas origens pré-cristãs, frequentemente o personagem

54
da bruxa se sobrepõe ao da parteira. Encontramos esse caráter
originário na bruxaria da Europa cristã. Como já dissemos, a bru-
xaria e o infanticídio são crimes femininos por excelência, e, redu-
zida a perseguição àbruxaria, o infanticídio continuou a ser a
acusação predominante contra as mulheres.” Não se trata de uma
coincidência fortuita. Como jávimos, os dois crimes se aproximam
e amiúde se sobrepõem na figura social da parteira, herdeira de
uma tradição de aspectos variados. AbyWarburg chegou a observar
que, na pintura do Renascimento, a parteira é a sucessora da antiga
mênade.” O reflorescimento da cultura antiga pelos diversos ca-
minhos da mitologia, das ciências naturais e da medicina incidiu
significativamente sobre a imagem dessa figura. Naturalmente, a
função que lhe cabia contribuiu muito para isso. Confiavam-se à
sua experiência as vidas da mãe e do nascituro, numa passagem
cheia de perigos, já que a morte no parto era uma possibilidade
muito concreta. A melhor maneira de se preparar era fazer um
testamento,“sabendo”, como escreveu uma nobre veneziana, Laura
Michiel Venier, em outubro de 1692, “o perigo de vida que se corre
para dar à luz uma criança”.6° Mesmo nos casos de êxito, as condi-
ções da mãe e do filho continuavam precárias. Lucrécio, em alguns
admiráveis hexâmetros, havia descrito o recém-nascido como um
náufrago lançado à praia por ondas cruéis, nu e carente de tudo: era
uma imagem familiar à cultura humanista e médica no início da
modernidadeƒ” Quanto à condição e às possíveis reações da partu-
riente, o próprio caso de Lucia Cremonini exemplifica as tempes-
tades emocionais que se desencadeavam em tais circunstâncias.
Tudo isso era confiado à parteira. Geralmente era uma mulher
idosa _ e nisso seu estereótipo coincidia com o da bruxa.” Em
geral era uma viúva sozinha, pobre e que sobrevivia oferecendo às
gestantes e às mães uma experiência em partos e tratamentos de
doenças infantis, que aprendera com outras mulheres ou acumu-
lara ao longo dos anos. Nos raríssimos casos em que dispomos de

55
testemunhos diretos da vida real de uma parteira _ pense-se na-
quele “pequeno milagre” que é a redação e preservação das notas do
diário da parteira Martha Ballard, a serviço de Deus e dos vizinhos
na Nova Inglaterra entre 1785 e 1812 _, surge a imagem de uma
vida cotidiana totalmente permeada de nascimentos e mortes, o
lado oculto da “grande história” masculina.” Recorria-se à parteira
com confiança e com um certo temor reverente por seus poderes
em casos de partos difíceis, ou quando o choro e as doenças dos
recém-nascidos não se resolviam facilmente. A ela cabia a operação
mais misteriosa e emocional de todas: acolher as crianças no mun-
do. E era ela quem ensinava como colocar fraldas e cueiros, como
preparar chás medicinais, como acalmar os choros e as dores das
crianças, bem como as ânsias das mães. As preces que rezava e os
amuletos que colocava no pescoço de gestantes e recém-nascidos
confirmavam sua aliança com as forças misteriosas da natureza
(demonizadas pelo cristianismo). Portanto, quando seus remédios
não funcionavam e o parto malograva, quando a criança adoecia e
morria, a crença em seus poderes se transformava em suspeita e
acusação _ ainda mais se, nas relações variáveis de vizinhança,
entrassem motivos de hostilidades e brigas entre as famílias. Então,
todas as características que distinguiam socialmente a parteira _ a
idade, a pobreza, a solidão, o conhecimento de ervas e de poções
_ tornavam-se igualmente indícios de que ela pertencia à seita da
bruxaria que, em secretos rituais noturnos, celebrava a morte e
praticava o infanticídio.

Nas construções mentais do crime de sangue judeu e do sabá


das bruxas, vimos surgir a obsessão pelo infanticídio sob formas
variadas. É uma obsessão que revela uma espécie de sentimento
coletivo de culpa por um crime que, nesse momento, os dispositi-
vos penais vinham perseguindo com um rigor cada vez maior.

56
3. O infanticídio como prática social:
de pecado a crime

A definição do infanticídio como crime e a decorrente atua-


ção de juízes e tribunais se referem a uma realidade que, sob certos
aspectos, parece uma corrente subterrânea de comportamentos
dotados de necessidade própria. As raízes desses comportamen-
tos permanecem ocultas no subsolo, onde operam forças superio-
res às leis da sociedade e aos desejos dos indivíduos. E oportuno
lembrarmos a distinção entre o que aparece no palco dos tribunais
e das leis e o que permanece oculto, quando observamos o cenário
pelas frestas das fontes históricas. E o cenário é a eliminação dos
filhos indesejados como fato habitual ou pelo menos recorrente.
Quando um documento contábil da época carolíngia revela
que as famílias camponesas estabelecidas nas “quintas” apresen-
tam um índice de pessoas do sexo masculino oscilando entre 1 15%
e 125%, a realidade que aflora é a tendência de eliminação dos re-
cém-nascidos de sexo feminino.' A base estrutural do fenômeno
era _ e continuou a ser por muito tempo _ a relação entre unida-
de de terreno a ser cultivado e disponibilidade de força de trabalho
(masculina): nessas condições, o recurso ao infanticídio apresen-

57
tava-se como um sistema necessário para regular seletivamente os
nascimentos, quando a usual mortalidade infantil não era suficien-
te _ uma realidade que um estudioso de estatística apresentou,
não sem razões, como “um alívio para as famílias pobres”.2 A regu-
lação dos nascimentos em função da disponibilidade de recursos é
uma espécie de lei elementar das sociedades agrícolas, confirmada
experimentalmente pela leitura de dados demográficos e docu-
mentada macroscopicamente pela experiência contemporânea de
países como a Índia e a China. No que se refere ao passado europeu,
conforme os registros dos nascimentos e da composição popula-
cional tornam-se mais sistemáticos e constantes, avolumam-se as
confirmações. Os livros de batismo, que se difundiram a partir da
Baixa Idade Média como duplo resultado de preocupações religio-
sas e necessidades civis, constituem uma fonte preciosa. A Igreja,
impondo aos párocos o dever de registrar os batismos, deu efetivi-
dade à concepção cristã da alma imortal; e as sociedades urbanas
que precisavam de dados exatos por exigências de administração
da Iustiça contribuíram para o surgimento e conservação de um
grande patrimônio de dados anagráficosf O sistema disciplinar a
que foi submetido o clero no século xv1 estabeleceu e generalizou
os registros, em função de um controle que ganhou urgência devi-
do à Reforma protestante. Introduziu-se também o “liber anima-
rum”, que continha os recenseamentos periódicos das populações
e enumerava as pessoas em idade de confissão e comunhão. Desde
o início evidenciou-se a utilidade desses registros do ponto de vista
civil e político, o que levou as cidades medievais e os Estados terri-
toriais modernos a incentivar e generalizar a manutenção desses
dados. Nos locais onde tais documentos foram preservados, des-
cortina-se a possibilidade de fotografar o movimento demográfi-
co. Naturalmente não podemos extrair os dados dos efetivos nasci-
mentos: os recém-nascidos que eram eliminados no momento do
nascimento e, portanto, não recebiam batismo geralmente não en-

58
travam na contagem da paróquia. Mas podemos confirmar a inci-
dência do infanticídio seletivo, atingindo as meninas. Um caso sig-
nificativo surgiu na cidadezinha sienense de Montefollonico. Lá,
em meados do século xvu, não só os meninos normalmente eram
mais numerosos do que as meninas, em proporções variando de
cerca de 5% até 34%, dependendo das paróquias, como também a
reconstituição das pirâmides etárias mostra que, abaixo dos dez
anos, havia onze meninas para cada vinte meninos, e abaixo dos 25
anos a proporção diminuía ainda mais: seis moças para doze rapa-
zesƒ* Lendo esses dados sobre o pano de fundo do que sabemos des-
se período, a conclusão é clara: numa sociedade ligada à produção
agrícola, as recém-nascidas se tornaram especialmente indesejadas
nos anos de carestia por volta de 1648. As famílias se desfaziam de-
las talvez deixando-as no orfanato mais próximo (nesse caso espe-
cífico, o de Montepulciano) ou enviando-as para serem criadas em
outros lugares; mas, como foi observado, não é absolutamente de-
sarrazoado suspeitar que os pais eliminassem alguns dos próprios
filhos, em particular as meninas, durante os perídos de escassez?
Nas atas do tribunal criminal competente, porém, encontra-se
apenas um caso de infanticídio ao longo de um século. O caso é, sob
muitos aspectos, semelhante ao de Lucia Cremonini: uma j ovem de
dezoito anos, órfã de pai, pobre, com a esperança de um matrimô-
nio honrado, denunciada por uma vizinha? Assim, esse episódio
do pequeno povoado documenta com especial clareza a divergên-
cia entre uma prática familiar de regulação dos nascimentos, que
ocorria surdamente ao abrigo das paredes domésticas, e a reação
defensiva e dramática da mulher solteira perante o dilema entre
desonra e matrimônio.
E em relação a isso que o sistema de controle e repressão se
mostra particularmente eficiente, a ponto de sugerir que a máqui-
na judicial e policial foi montada para tal finalidade. Mas vejamos
o que se sabe a esse respeito.

59
Não é possível sintetizar a história do infanticídio como prá-
tica social ou crime a não ser por meio de esboços sumários e de
problemas. Apesar dos vários estudos dedicados ao tema, não é
muito que se sabe sobre ele; o próprio termo é de uso tardio e incer-
to, tal como outros sinais da chamada descoberta moderna da in-
fância.7 Mas nenhum outro crime foi tão estudado, analisado e nar-
rado quanto ele _ não só na recente especialização historiográfica,
a saber, a história da criminalidade, como também, de modo geral,
na cultura dos últimos séculos. Aqui, mais do que em outros casos,
os pressupostos dos estudiosos selecionaram e, por vezes, sujeita-
ram os dados históricos ao ponto de vista previamente escolhido.
A partir do século xvn, tiveram um peso determinante os grandes
problemas contemporâneos, tais como, em ordem cronológica, a
reforma do sistema criminal e penal, a condição social da mulher,
a concepção religiosa da vida e a defesa eclesiástica dos direitos de
vida do recém-nascido, a intervenção estatal para garantir o cresci-
mento demográfico e, por fim, as novas fronteiras da biologia e da
diagnose médica. É difícil até mesmo datar o momento em que o
infanticídio passa a ser considerado um crime na sociedade oci-
dental cristã. A acusação de praticar o infanticídio, dirigida contra
a sociedade romana pela primeira apologética cristã, tem sido fre-
quentemente invocada como argumento de que foi o cristianismo
a inaugurar a legislação em favor dos recém-nascidos e das crian-
ças.8 É legitimamente célebre a orgulhosa reivindicação de
Tertuliano quanto ao elemento diferencial do cristianismo: “Para
nós cristãos não só é proibido o homicídio, mas também não é líci-
to abortar o concebido ainda no ventre [...] Também é ser humano
aquele que está em vias de se formar; cada fruto já está contido na
semente”.9 A intenção apologética inspirou indiretamente a antiga
discussão sobre a questão do direito de vida e de morte do “pater-
-familias” romano: sua duradoura presença nos estudos sobre a
Antiguidade tem início no final do século xvi, quando Iustus Lipsius

6o
sustentou que o direito dos pais de matar ou enjeitar os recém-nas-
cidos teria sido exercido até a época do imperador Graciano. Ao
analisar as fontes usadas por Lipsius, um jurista holandês do sécu-
lo xvni assinalou que as acusações dos primeiros cristãos partiam
de pressupostos que os levavam a exagerá-las.'° Mas, na Europa
moderna, pode~se entrever por trás dessas discussões sobre o direi-
to familiar romano o acelerado avanço dos poderes estatais rumo
ao controle da gestação e do nascimento. Como veremos, foi preci-
samente naquela época que se estabeleceram medidas penais cada
vez mais drásticas contra o infanticídio. Quanto à diferença que a
cultura cristã reivindica diante do mundo pagão, as opiniões dos
estudiosos são muito divergentes. Observou-se que seria em vão
procurar nas fontes do mundo antigo uma valorização da vida em
gestação que se equiparasse, em intensidade, à cristã.” Quando
Ovídio critica a prática da interrupção da gravidez pelas mulheres
que queriam preservar sua beleza, abre-se uma fresta sobre a difu-
são de uma “vastíssima farmacopeia no campo tanto dos abortivos
quanto dos anticoncepcionais” no mundo antigo.” Mas uma pes-
quisa analítica das fontes antigas leva a conclusões muito mais ma-
tizadas, como, por exemplo, sobre uma religião que modelava o
comportamento dos deuses a partir do comportamento humano,
ou sobre um Estado que não se considerava prejudicado pelas prá-
ticas abortivas, deixando uma ampla margem a várias opiniões e
escolhas.” Ê certo que muitos aspectos da cultura antiga repercu-
tiram por muito tempo na visão medieval da vida em formação. A
ideia de que a vida é um dom de Deus aparece nos textos gregos
quinhentos anos antes da era cristã, e foi o mundo antigo que lan-
çou as bases científicas e filosóficas para o conhecimento da con-
cepção e da gestação. Durante séculos e séculos,Aristóteles e Galeno
foram tomados como as autoridades nos assuntos relativos à con-
cepção, à animação, ao desenvolvimento do feto e ao desenvolvi-
mento físico e mental do ser humano. E, além do mais, existem os

61
textos da grande literatura antiga que alimentam a nova sensibili-
dade cristã. Pode-se ilustrar as analogias e as diferenças observando
como os vagidos das crianças que o poeta antigo fez ressoar na en-
trada do Hades (Eneida, vl, 426-29) ressurgem nos suspiros do lim-
bo dantesco (Inƒerno, Iv, 28-30). E, naturalmente, cumpre lembrar
que por trás das fontes cristãs está a Bíblia hebraica, com o excelso
valor atribuído à fertilidade feminina e ao nascimento dos filhos
como sinal da bênção de Deus. Mas um exemplo do clima em que
foram absorvidas as fontes pagãs e hebraicas nos primeiros séculos
cristãos encontra-se no uso dado à única passagem da Bíblia he-
braica que mencionava o aborto: no Êxodo (21,22-25), estabele-
cia-se a pena por danos causados por quem tivesse agredido aci-
dentalmente uma mulher grávida. Na versão grega da Septuaginta,
havia a graduação da pena segundo o estágio de desenvolvimento
do feto. Quem provocava o aborto de um feto ainda não formado
pagava uma multa em dinheiro; no caso de um feto formado, po-
rém, acionava-se a pena de talião (“anirna pro anima”, isto é, a pena
capital). Na Vulgata, a tradução da passagem era mais fiel ao origi-
nal hebraico e propunha a pena de talião apenas para quem tivesse
matado também a mulher. Em suma, para a Bíblia, o aborto não
equivalia ao homicídio. Mas, na tradição cristã, o trecho foi sim-
plesmente ignorado ou adotou-se a tradução da Septuaginta, com
sua concepção gradualista da formação do feto.”
Tertuliano, mesmo incluindo o aborto sob a interdição do ho-
micídio, também fizera a distinção entre a semente e o fruto, entre
o embrião fecundado e o indivíduo formado. Mas foi com santo
Agostinho que se impôs a ideia da animação como fase posterior à
concepção. E foi no quadro das incertezas dessa tradição que as
pregações medievais definiram a praticante do aborto como “qua-
se homicida”. 15
Todavia, estabelecidos esses precedentes, é inegável que a cul-
tura cristã tratou o infanticídio materno com cores especialmente

62
dramáticas, mesmo que colocasse essa prática numa zona de me-
nor gravidade do que o homicídio normal. O fato é demonstrado
não só pelas fontes da cultura erudita, mas também e sobretudo
pelas tradições folclóricas, que mostram uma extraordinária ela-
boração e difusão de mitos sobre o infanticídio e a ameaçadora
imagem da criança morta no próprio limiar da existência.”
De fato, por muito tempo as normas da Igreja puniram o as-
sassinato acidental ou deliberado de uma criança como um crime
meramente culposo; só muito lentamente é que se firmou uma ou-
tra qualificação, submetendo-o às penas da lei como um crime do-
loso. O cristianismo europeu, desde o começo, classificou como
um pecado o aborto provocado. A culpa era dos pais, em especial
da mulher, que assim ingressou como penitente num campo que
lhe pertencia, mas onde viria a se encontrar cada vez mais isolada.
Os primeiros sinais de punição nesse sentido encontram-se no câ-
none 21 do Sínodo de Ancira (314 d.C.), que reduz para dez anos a
excomunhão, antes vitalícia, aplicada às mulheres que abortavam.
Nos penitenciais da Alta Idade Média, a partir do século vn, encon-
tram-se traços diferenciados de punições para a mulher que prati-
cava deliberadamente o aborto: se não tivessem se passado quaren-
ta dias de gestação, a pena era leve; se, pelo contrário, tivessem
decorrido mais de quarenta dias, a mulher era considerada culpada
de homicídio.” A distinção entre a criança morta com ou sem ba-
tismo foi fundamental e teve uma ampla repercussão. “E uma culpa
grave perder uma alma”, lia-se num antigo penitencial irlandês, em
que os pais responsáveis eram punidos com um ano de penitência
a pão e água e abstinência sexual.” Deixar morrer uma criança an-
tes do batismo é um dos pecados mencionados no Pontifical roma-
no-germânico do século X.”
No entanto, fontes rarefeitas e de difícil interpretação como
essas não permitem reconstruir as características da questão na-
quela época; como acontece com frequência, sobre elas incide a

63
dramaticidade com que o problema do infanticídio foi vivido nos
séculos posteriores. Coube às fontes devidamente selecionadas e,
às vezes, reescritas a função de provar a continuidade das orienta-
ções eclesiásticas sobre o tema. Tal é o caso do legado para a funda-
ção de um orfanato em Milão, que teria sido redigido já no ano de
787 por um arcipreste milanês chamado Dateo. Ludovico Antonio
Muratori teve em mãos uma cópia tardia, que publicou em suas
Antiquitates Italicae. Todavia, a linguagem do texto, suas violentas
acusações contra as mães assassinas, as descrições de como os fru-
tos de amores culpados eram jogados nos esgotos e a ênfase dramá-
tica sobre o risco do não batismo pareciam pertencer a uma época
muito posterior.” Ainda na metade do século xiii, o bispo domini-
cano de Lyon, Etienne de Bourbon, combatendo superstições e
sortilégios ligados ao culto do lebréu são Guinefort, localizou prá-
ticas infanticidas, mas não as puniu com rigor.”
A intervenção da lei penal, ao lado da lei eclesiástica, vem a se-
guir. Um capitular de Carlos Magno estabeleceu a equivalência en-
tre a morte de uma criança e o homicídio: evidentemente era difícil
atribuir gravidade à morte de quem ainda não era homem feito.”
E verdade que a prática de eliminar crianças indesejadas ainda era
amplamente admitida na Islândia, na Noruega, entre os anglo-sa-
xões e, de modo geral, às margens do mundo cristão. Os tribunais
seculares se ocupavam apenas dos casos mais clamorosos de infan-
ticídio, deixando que os eclesiásticos tratassem de todos os demais,
considerados, portanto, mais como culpa do que como dolo.” No
direito consuetudinário de Anjou e Maine, previa-se a pena de
morte na fogueira, mas apenas em caso de reincidência da mulher
no crime. A norma, elaborada precisamente por são Luís, vigorou
até o final do século xlv.-24
Perecebe-se a sensação de uma mudança de clima ao se obser-
var a crescente dramatização da gravidade do crime. Os discursos
de pregadores lamentavam amplamente a violência dos costumes,

64
mas também a facilidade e a liberdade das relações sexuais, que le-
vavam à gravidez indesejada e à prática do aborto. Olivier Maillard,
pregando em Nantes durante a Quaresma por volta de 1460-70,
falava dos gemidos de crianças afogadas em latrinas, charcos e rios,
lá atiradas por quem queria se livrar dos frutos indesejados.”
Naquela data, a imagem começava a se tornar um lugar-comum da
cultura eclesiástica.A acusação contra as adúlteras que eliminavam
os frutos do ventre para ocultar a culpa ao marido remontava aos
sínodos do século Iv, e fora retomada mais tarde pelo monge
Dionísio, o Pequeno.” Tal imagem ressurgiu numa singular pintu-
ra do final do século xv, de caráter soturnamente acusatório, que se
destaca entre as representações pictóricas da maternidade normal
então difundidas nos hospitais italianos.” Nas paredes do hospital
de Santo Spirito em Roma, nos últimos anos do século xv, foi pin-
tado um curioso afresco, onde o parto antecede um crime: a mãe
que vemos no segundo plano, deitada no leito e assistida por uma
criada que segura o recém-nascido nos braços, aparece numa cena
cronologicamente posterior, em primeiro plano, lançando o filho
ao rio enquanto a criada ergue as mãos em sinal de horror. Há uma
legenda que exorta a execração do comportamento da mãe repre-
sentada: ela é uma daquelas mulheres nefandas (“nefariae rnulie-
res”, “crudeles matres”), culpadas de relações sexuais secretas e
proibidas (“clandestinum stuprum”), que, para se livrar da vergo-
nha, lançam de noite o fruto do ventre ao rio. Uma terceira cena da
história mostra as redes dos pescadores recolhendo pequenos ca-
dáveres. O afresco foi encomendado pelo papa Sisto Iv. O hospital
fora fundado por Inocêncio 111, que o abrira também a crianças
abondonadas. Em seus escritos ascéticos sobre a miséria da condi-
ção humana ao então cardeal Lotario di Segui, ele havia manifesta-
do uma profunda compaixão pela condição dos recém-nascidos
herdeiros das culpas dos pais e, à falta de batismo, condenados;
como papa, ele providenciou um local para acolhê-los.” Na verda-

65
de, aquele manifesto pictórico tomava seus elementos, conforme se
demonstrou,” a uma tradição anterior, amadurecida à sombra da
obra de Inocêncio 111 para impor ao clero o celibato religioso e de-
finir os limites externos da Igreja e o sistema dos sacramentos. Por
um lado, esse programa impunha a obrigação do batismo aos re-
cém-nascidos como momento de ingresso na Igreja, assim agra-
vando as responsabilidades de quem negligenciasse a administra-
ção do sacramento; por outro lado, impunha aos eclesiásticos a
necessidade de ocultar as provas de suas relações com o sexo opos-
to, intensificando os motivos para o recurso ao aborto e ao infanti-
cídio. Assim, o hospital de Santo Spirito, ao abrir suas portas aos
recém-nascidos enjeitados, representava uma solução que o corpo
eclesiástico oferecia a um perigo que, justamente por culpa do cle-
ro, vinha se agravando de maneira imprevista. Com o passar do
tempo, a memória oficial registrada no afresco do hospital de Santo
Spirito colocou sob acusação apenas as mulheres, em coerência
com o antifeminismo tradicional da cultura eclesiástica, mas agora
com uma maior carga de rancor, ecoando tons e argumentos do
texto milanês do pseudo Dateo. Com efeito, esse tipo de documen-
tação mostra o surgimento do crime de infanticídio como fenôme-
no que suscita uma espécie de preocupação no mundo eclesiástico
tardomedieval _ uma preocupação que colocava no centro da
cena a mulher, suspeita de ocultar com o crime o fruto de sua culpa.
A imagem das mães cruéis que jogam nos rios e esgotos os filhos de
amores culpados passará das pregações dos padres para os autos
dos processos de infanticídio, e ressurgirá adiante como gesto de
acusação contra a devassidão tida pela cultura protestante como
típica dos conventos “papistas”.3°
Mas, por trás das polêmicas entre as diversas Igrejas, desenvol-
via-se uma nova realidade que se revelaria decisiva para o endure-
cimento das formas de repressão. Foram as autoridades políticas
que passaram a intervir cada vez mais no campo da moral pública

66
concernente à relação entre honra feminina e honra da cidade, en-
tre desordem das famílias e legitimidade do Estado _ enfim, um
aspecto daquelas ligações simbólicas entre corpo político e corpo
feminino que tiveram especial importância nas sociedades do
Antigo Regime.” Havia apenas uma solução: era preciso canalizar
a sexualidade para dentro da família. Por isso, de um lado, criaram-
-se instituições de controle das categorias perigosas ou expostas a
riscos: prostitutas e órfãos, jovens solteiras e mulheres viúvas. Por
outro lado, as relações fora do matrimônio foram condenadas:
mas, se para os homens se tratava apenas de uma culpa moral, de
um pecado facilmente perdoável, para as mulheres e os filhos havia
a sanção penal do crime e a pesada marca civil da desonra. Os filhos
até então definidos como naturais tornaram-se ilegítimos; às mu-
lheres desonradas, quando pobres, restava apenas a via da prosti-
tuição. Tais processos de exclusão social seguiam em paralelo com
uma punição cada vez mais severa do infanticídio.
Uma voz dissonante foi a do chanceler da Universidade de
Paris, Iean Gerson. Numa coletânea de textos redigidos por ocasião
do sínodo diocesano realizado em Reims em 1408, com a finalidade
de propor ao bispo e ao clero os ensinamentos necessários para rea-
lizar a cura das almas, Gerson abordou os problemas resultantes
da prática das penitências públicas.” Em seu apelo, tomamos co-
nhecimento de que os pais e as amas, e sobretudo as mães pobres
(“pauperes rnatres”) que haviam perdido filhos _ muitas vezes
não por sua culpa, mas por acidentes fortuitos _ eram condena-
dos a longuíssimas penitências públicas, de até sete anos, com je-
juns e aflições que se somavam à agudíssima dor (“ultra dolorem
acerbissirnum”) pela perda do filho. O quadro descrito por Gerson
mostra que a antiga prática da penitência pública ainda subsistia
em pleno século xv, apesar da criação do segredo da confissão e da
especialização das ordens mendicantes nesse ofício desde 1215. A
preocupação do chanceler de Paris era que não se multiplicassem

67
as dores e que se aconselhasse às autoridades eclesiásticas uma ati-
tude de respeito e compreensão pelas mulheres, para fortalecer as
ligações afetivas dentro da família. O projeto de imprimir uma
orientação pastoral ao poder eclesiástico encontraria seu lugar en-
tre os ideais de reforma que floresceram na cristandade ocidental
ente os séculos xv e xvi. Enquanto isso, Gerson propunha ao clero
que se incumbisse seriamente da tarefa de explicar aos pais as pre-
cauções necessárias para evitar a morte acidental das crianças antes
e após o parto, e que não se deviam espancar as mulheres grávidas
nem obrigá-las a trabalhos pesados. Após o parto, o principal peri-
go era o sufocamento dos pequenos recém-nascidos; portanto, eles
não deveriam ficar na cama dos pais. A longa série de sugestões
mostra a nova sensibilidade com que se abordava, por parte de um
homem da Igreja, a condição da mulher e os problemas de gestação
e criação dos filhos. Sua experiência encontraressonância no que
acontecia na diocese de Fiesole, por volta de 1500: ali, subitamente
multiplicaram-se os atos episcopais anulando a excomunhão dos
pais culpados de ter provocado a morte dos filhos. Eram condena-
dos à penitência de uma humilhação pública e ao pagamento de
uma quantia em dinheiro; na mesma época, um artesão florentino
inventou um dispositivo, o arcuccio [arquinho] , para impedir que
as cobertas sufocassem os recém-nascidos.” O cardeal Carlo
Borromeo avançou ainda mais nessa direção no final do século, ao
tentar restabelecer em sua arquidiocese a instituição da penitência
pública e ao dedicar grande atenção a medidas que impedissem a
asfixia das crianças. Os sinais mais visíveis dessa sua dedicação fo-
ram a imposição generalizada do “berço” (uma caminha para re-
cém-nascidos separada da cama dos pais) e a excomunhão “latae
sententiae” para as mães que não o utilizavam.” Decisões duras e
drásticas, próximas das intenções de Gerson, mas muito distantes
no método e no espírito.
Para quem quer compreender um pouco uma realidade tão

68
fugaz e, por sua própria natureza, tão secreta como o infanticídio,
esses são indícios de uma profunda mudança. Os casos citados por
Gerson e os abordados pelos bispos italianos, inclusive Borromeo,
permanecem indefinidos, podendo tratar-se de mortes acidentais
ou de eventos deliberadamente provocados. O fato de que os casos
de infanticídio tratados pelo bispo de Fiesole apresentem um per-
centual mais elevado de crianças do sexo feminino deixa entrever
uma possível seleção deliberada por trás da casualidade acidental.
Mas também é verdade que, enquanto as autoridades eclesiásticas
eram incentivadas por Gerson a adotar uma atitude pastoral, peda-
gógica e compreensiva, e enquanto a penitência pública pelas cul-
pas graves, com seus rigores humilhantes, cedia lugar à confissão
privada, dominada pela moral da intenção, o assunto do infanticí-
dio passava cada vez mais abertamente para a alçada da Iustiça pe-
nal do poder laico. Nessa transição, esta incorporou formas e ri-
tuais daquela (assim, na França, observou-se a semelhança entre a
penitência pública eclesiástica e a “amende honorable” da Iustiça
laica).” Como escreveu Richard Trexler, “a única coisa certa é que,
na Europa do final do século xv e no século xvl, o homicídio das
crianças começava a se tornar um crime distinto e sujeito às penas
da lei”.”
O processo de tipificação do infanticídio como crime laico,
desde seus primórdios, está documentado nos pedidos de indulto
submetidos ao rei da França entre os séculos XV e xvi. São documen-
tos extraordinários não só pela descrição dos crimes, mas também
pelas circunstâncias que os apelantes consideravam mais propen-
sas a despertar a clemência do rei. Entre os casos apresentados há
muitos infanticídios. O simples fato de que houvesse juristas e ad-
vogados dispostos a redigir a petição demonstra que havia possibi-
lidade de remissão da pena; e as “lettres de rernission”, isto é, os in-
dultos, realmente foram concedidas em alguns casos.” As coisas
mudariam paulatinamente. Na idade moderna, o perdão real con-

69
tinuou a ser uma parte substancial do poder soberano; mas, de
modo geral, foram excluídos os crimes “nefandos”, entre eles justa-
mente o infanticídio (embora houvesse exceções à regra).” Ain-
clusão do infanticídio na categoria de “nefando” provavelmente
derivou, por um lado, do surgimento da obsessão contra as bruxas
e as histórias de infanticídios rituais e, por outro lado, do avanço do
poder político na área de produção da vida humana.” Mas, en-
quanto foi considerado um crime ordinário e passível de obter a
graça do soberano, o infanticídio era descrito, narrado, tingido de
sentimentos nas petições dos advogados em nome dos suplicantes.
E, aparecendo à luz do dia não como coisa horrenda, bestial, indi-
zível, e sim como gesto exigido pelas coerções sociais e por profun-
dos temores, ele procurou sempre as mesmas justificativas: vexa-
me, vergonha, medo. Vexame público, vergonha pela desonra aos
olhos do mundo, medo das punições do marido, dos irmãos, dos
pais. Portanto, havia uma clara consciência das causas sociais que
levavam ao crime. Mas o processo de criminalização das infantici-
das caminharia a passos gigantescos, a par da simplificação e endu-
recimento da definição do crime. Nos estatutos medievais e nas
normas do direito comum ou canônico, a palavra indicava uma
gama mais ampla de comportamentos e, em parte, distinta da pura
e simples eliminação de um recém-nascido. Também era infanticí-
dio o aborto provocado (com coerções físicas ou preparados de
ervas), ou mesmo o simples desfazer-se do corpo de uma criança
natimorta. Era infanticídio, também, agredir uma grávida até pro-
vocar um aborto.” As histórias que afloram nos pedidos de graça
ao rei da França mostram cenas de uma vida social onde o crime
certamente estava difundido em suas várias formas. As circunstân-
cias eram as mais diversas: mulheres que traem os maridos distan-
tes e depois se desfazem do fruto da traição; padres que obrigam a
concubina a eliminar a prova de sua vergonha; jovens e adolescen-
tes, apavoradas pela ideia do que as espera, que eliminam os recém-

70
-nascidos afogando-os, estrangulando-os, degolando-os. Mas, no
final do século xv, os pedidos de indulto real desaparecem: o silên-
cio recobre as práticas de um crime que, se descoberto, não conhe-
ce perdão.”
Assim, o começo da modernidade aparece marcado por uma
maior vigilância sobre a vida sexual das mulheres e por uma pro-
gressiva transferência da disciplina dos comportamentos amoro-
sos, da família para a Igreja e o Estado. Impôs-se uma rígida cana-
lização da reprodução da espécie para o interior da família como
instituição, enquanto as relações não tuteladas pelo matrimônio
foram criminalizadas. Os projetos pastorais como o de Gerson en-
contraram uma possibilidade de aceitação e êxito nas exigências
de novas ordens políticas, destinadas a garantir e controlar a célu-
la conjugal. Essa direção foi igualmente tomada por diferentes cul-
turas e realidades políticas e religiosas, como, por exemplo, a rígi-
da moralidade protestante assumida pelo Estado confessional,
que funcionou como norma para intervir no controle da forma-
ção das famílias. E um processo semelhante levou a Igreja católica,
após o Concílio de Trento, a lutar contra a tradição que reconhecia
o consentimento mútuo do casal como base do matrimônio, e a
impor a celebração do sacramento na igreja e o registro paroquial
como a única via de acesso às relações entre os sexos e aos casa-
mentos legítimos.
Com essas considerações, passamos da história do infanticí-
dio como prática social e culposa perseguida pela Igreja à história
do crime submetido a leis. É uma passagem de difícil datação, mas
com resultados cruelmente evidentes.
Quando o crime ingressou no campo da prática judiciária, foi
no papel de uma protagonista única e isolada: a mulher como mãe
sem marido. Os séculos da Idade Moderna marcaram o auge de um
modelo de intervenção criminalizante e persecutória em relação às
mulheres _ mas não todas da mesma maneira. Como escreveu

71
Richard Trexler, “a lei e a consciência da Europa do século xvi
descarregavam sua força moral sobre mulheres idosas e mães
solteiras”.”
Desencadeou-se a mais feroz fantasia na escolha das punições.
Enterradas vivas, queimadas, obrigadas a carregar ao pescoço, no
caminho para o patíbulo, o corpinho ou uma reprodução do re-
cém-nascido morto, as infanticidas enfrentaram sofrimentos ter-
ríveis e foram exibidas às multidões no intuito de um terror didá-
tico. Tal foi o caso de Francesca de Pistoia, condenada em 1405. Ela
teve de percorrer o caminho da infâmia até o patíbulo montada de
costas num asno, com um saco amarrado ao pescoço contendo o
pequeno cadáver da criança morta.” Analogamente, uma mulher
condenada em Metz em 1495, antes de arder na fogueira, teve sua
mão amputada e foi obrigada a portar no pescoço um boneco de
madeira e um menino pintado.” Dos estatutos citadinos às leis im-
periais, a execração do crime reflete-se no caráter aterrorizante das
punições. Aumentando os processos, agravam-se as punições _ o
que não significa que aumentem os crimes. Como se observou,
“não existe uma correlação automática entre os processos e a inci-
dência dos crimes”.” A época das Reformas religiosas, com a ten-
dência geral para uma moralidade mais severa e um controle social
intenso e capilar, acentuou um processo que já estava em anda-
mento.” As leis imperiais colheram os resultados de uma vontade
punitiva que se concentrava especialmente contra as mulheres sem
marido, suspeitas de ocultar a gravidez com o infanticídio. Desde a
lei penal de Bamberg de 1507 até aquela emitida por Carlos v, a fa-
mosa Constitutio penalis Carolina de 1532, decreta-se para o crime
de infanticídio _ entendido como infligir a morte a uma criança
nascida “viva e com os membros formados” _ a pena de morte
agravada por suplícios e tormentos. A norma continuaria no hori-
zonte de trabalho dos tribunais do Império até as reformas do sé-
culo xvnl, fornecendo um ponto de referência fundamental para a

72
jurisprudência europeia. Na Carolina, previa-se também a investi-
gação para verificar eventuais infanticídios que permaneciam se-
cretos. Com isso, o corpo feminino tornou-se o campo dessa inves-
tigação e frequentemente o acusador mais temível, pois bastava a
presença de leite no seio ou, ainda mais, um crescimento e uma sú-
bita normalização do ventre para que tivesse início o inquérito e
fosse justificável o interrogatório com tortura.”
Assim, desde aquele momento, a inspeção do corpo feminino
tornou-se um procedimento ordinário para comprovar o eventual
crime (ou, até, para preveni-lo, como veremos). Uma vez compro-
vado, seguia-se uma punição extremamente severa. Enforcadas,
sepultadas vivas, queimadas, afogadas num saco ou empaladas, as
mulheres condenadas por infanticídio sóconheciam algum abran-
damento das penas devido à margem de arbítrio das sentenças: às
vezes poderia acontecer que se “usasse misericórdia” substituindo
a fogueira ou o sepultamento em vida pela decapitação.” A única
atenuante concedida era a presunção de loucura, ser “non cornpos
rnentis”. Mas a implacável marcha da lei contra as mães assassinas
nao teve descanso.
›-v

A partir da segunda metade do século xvi, a gravidez e o parto


tornaram-se matérias de crescente importância política. Depois da
fase das penas dissuasórias contra o infanticídio, iniciaram-se os
sistemas de controle preventivo, e todas as mulheres grávidas sem
marido tornaram-se pessoas a serem vigiadas pelos poderes públi-
cos como assassinas em potencial. Temos em Henrique 11, rei da
França, um verdadeiro modelo das intenções do poder estatal de
tomar para sia questão. A obrigatoriedade de comunicar a gravidez
(Déclaration de grossesse), imposta por ele em 1556, uniu de modo
exemplar a cobertura religiosa a uma medida de moral pública e
fortalecimento da instituição familiar. As próprias mulheres deve-
riam apresentar a autodenúncia: as grávidas e sem marido, que
“tendo ocultado a gravidez e o parto, deixam morrer a criança sem

73
que esta tenha recebido o batismo” seriam condenadas à pena ca-
pital. Não se tratava de um sinal isolado de vontade política; pelo
contrário. Nesse meio-tempo, o decreto foi renovado diversas ve-
zes: em 1586, Henrique 111 ordenou a leitura pública e solene do de-
creto nas igrejas a cada três meses, e os atos executivos documen-
tam sua prolongada eficiência.” Além do mais, o exemplo francês
foiseguido em todaaEuropa.Umaportaria do eleitor do Palatinado,
de 1587, retomou os mesmos termos, acrescentando que os filhos
ilegítimos que morressem, mesmo batizados, iriam para o infer-
no.5° Baseando-se nesses precedentes, Iaime 1 Stuart promulgou na
Inglaterra, em 1624, uma nova legislação sobre o infanticídio, e as
emendas propostas pelos puritanos na comissão da Câmara dos
Comuns, à qual a lei fora submetida, reforçaram sua firme vontade
moralizadora.” Foi prevista a pena capital para o crime e, sobretu-
do, introduziu-se uma distinção nítida entre infanticídio dentro da
família e infanticídio praticado por mulheres não casadas. Se para
as casadas valia o princípio da presunção de inocência, para as ou-
tras o nascimento e a posterior morte de um filho após uma gravi-
dez não previamente declarada implicavam presunção de culpa. O
objetivo, portanto, era o controle dos comportamentos sexuais.”
Afirmava-se um ideal de ordem social, em que o triunfo da família
legítima submetida ao poder de seu chefe caminhava passo a passo
com o triunfo da monarquia absoluta.” Normas semelhantes fo-
ram introduzidas na Suécia (1627) e na Dinamarca (1638). Com
tais leis, o poder soberano empenhava-se em defender a vida das
crianças e, acima de tudo, em controlar a sexualidade, colocando
sob vigilância mulheres do povo sem marido ou com marido au-
sente. Nasceu assim a figura do “fiador da segurança do parto”,
como foi definida a figura masculina que as mulheres grávidas sem
marido deviam indicar. Cabia a ele dar a fiança para a mulher, ga-
rantir que o parto ocorresse regularmente e que o filho fosse con-
fiado ao hospital, pagando o que fosse exigido. E uma figura que

74
encontramos presente nos mais diversos sistemas políticos, e nela
encarna-se a ideia da mulher como pessoa imperfeita, desprovida
de personalidade jurídica e incapacitada de agir publicamente por
si própria. O “fiador do parto” é objeto de normas precisas nas leis
do grão-duque da Toscana Cosimo III, verdadeiro modelo de tutor
da moral em seu Estado, seguindo os critérios da mais zelosa
Contrarreformaf” Em torno das mulheres estende-se uma rede de
vigilância de malhas cerradíssimas. Em Milão, as parteiras chama-
das para visitar ou ajudar as criadas grávidas eram obrigadas a de-
latar sigilosamente o fato aos parentes e aos patrões. Onde não era
possível vigiar indiretamente as grávidas, optou-se pelo controle
direto, nas formas mais brutais e invasivas. Nos vales alpinos da
Suíça, inventou-se a “visita ginecológica” [prevardazione]: era uma
inspeção periódica (às vezes chegando a ser trimestral) realizada
no corpo de “todas as mulheres livres ou cujos maridos estão au-
sentes”, para descobrir eventuais casos de gravidez ilícita ou de par-
tos ilegítimos.” Trata-se de uma medida que mostra até que ponto
o corpo da mulher era geralmente considerado um objeto perigo-
so, que não pertencia a ela e sim ao marido ou, na ausência ou falta
dele, às autoridades públicas. Em 1705, por exemplo, a ordem do
Landvocht aos cônsules do bailio de Lucarno impunha a “visita gi-
necológica, como sempre a todas as mulheres livres, ou que estejam
com os maridos ausentes, e encontrando alguma suspeita de gravi-
dez, ou de parto, ou se alguma estiver ausente, ou for desobediente,
devem imediatamente notificá-la”. Os cônsules entravam nas casas
acompanhados pelas parteiras e submetiam as mulheres ao exame,
sem nenhum respeito por sua intimidade.As petições que as comu-
nidades encaminharam aos cantões para abolir tal procedimento
obtiveram, a duras penas, que pelo menos os cônsules fossem ex-
cluídos da visita.
Certamente não faltava um consenso social em relação a essas
normas, e os comentários de cronistas ou testemunhas de casos de

75
infanticídio sempre foram extremamente severos. Apenas um
exemplo: o célebre anatomista Realdo Colombo relatou uma aula
prática de anatomia que ministrou na Universidade de Pisa, usan-
do o corpo de uma certa Santa, que havia asfixiado um casal de gê-
meos. Santa de nome, mas demoníaca de fato _ comentou Realdo
Colombo _, justamente condenada à mesma sorte que infligira
aos pobres filhos.”
A legislação rigorosa e a repressão impiedosa surtiram seus
efeitos, que se refletiram nas estatísticas com sequências impressio-
nantes durante pelo menos dois séculos. O Renascimento e a Idade
Moderna, esses rótulos enaltecedores da história europeia, corres-
pondem na história vivida pelas mulheres a uma época de perigos
iminentes e mortes lancinantes. Os números são eloquentes.
Quando se trata da história dos crimes, a linguagem quantitativa
acaba por parecer a mais adequada para expressar uma repetitivi-
dade sem história. Quantas mulheres foram acusadas de infanticí-
dio? Quando, onde e com quais resultados processuais? Todas essas
perguntas têm sido feitas aos documentos, principalmente depois
que mulheres historiadoras perceberam que era um crime especi-
ficamente feminino. Assim, a partir da segunda metade do século
xx, as pesquisas sobre o tema têm revelado uma memória sepulta-
da, qual seja, a dos processos contra as mulheres infanticidas. Das
sombras dos arquivos emerge uma multidão de mulheres, que se
apresentam nos livros dos historiadores; e uma multidão que cres-
ce a cada ano, com o avanço dos estudos. Em Genebra, entre 1595
e 1712, foram encontradas 31 mulheres acusadas de infanticídio,
25 delas condenadas à morte; no mesmo período, em 122 acusa-
ções de bruxaria, dezenove foram condenadas à pena capital.”
Também na Inglaterra, os casos de infanticídio punidos nos tribu-
nais a partir do final do século xvl apresentam uma curva ascenden-
te. Se até 1580 o crime quase não aparece na atividade dos tribunais
ingleses ou é tratado com uma relativa brandura, depois dessa data

76
há um repentino crescimento da quantidade dos casos e também
um maior rigor nas sentenças.” A perseguição à bruxaria diminui,
enquanto a perseguição às infanticidas aumenta desmesurada-
mente: entre 1580 e 1709, em Essex, 33 mulheres foram enforcadas
por infanticídio e onze por bruxaria.” No tribunal de Chester, em
Cheshire, o maior rigor se observou entre 1650 e 1699: registra-
ram-se 63 casos, sendo vinte mulheres condenadas à morte.6°A lei
de 1624 ofereceu um novo incentivo à ação dos tribunais, que pas-
saram a especificar entre as provas o fato de se tratar de gravidez
ilegítima.
São dados parciais, que podem dar apenas certa ideia da atua-
ção efetiva dos tribunais (e uma ideia ainda mais vaga da realidade
do fenômeno). Para as cidades alemãs, dispomos de estatísticas
exaustivas. Em Frankfurt, entre 1562 e 1696, foram 43 as acusadas
de infanticídio, das quais dezoito condenadas à morte. Em
Nuremberg, entre 1503 e 1743, foram mandadas ao patíbulo por
infanticídio 67 mulheres (sendo que, de 1384 a 1803, o total foi de
94). Em Danzig, 62 mulheres foram executadas entre 1558 e 1731.61
Em Württemberg, uma cuidadosa análise da casuística documen-
tada nos autos judiciais apresentou números e dados muito preci-
sos que seguem um ritmo semelhante. Ulinka Rublack mostrou
que, na multidão de mulheres julgadas pelos tribunais do arquidu-
cado protestante de Württemberg, a grande maioria respondia a
processos por infanticídio.” Ela extraiu desses dados uma descri-
ção dos conflitos entre as mulheres e a economia moral de uma so-
ciedade masculina, regulada com extrema severidade pelo Estado
luterano. A curva desenhada por esses dados mostra um aumento
da repressão nos primeiros anos do século XVIII. Na Borgonha do
início da modernidade, os dados também seguem um padrão se-
melhante: entre 1582 e 1730, o parlamento examinou 58 sentenças
capitais emitidas pelos tribunais de primeira instância e confirmou
47 delas.” A grande riqueza dos arquivos acumulados na Itália por

77
obra dos tribunais criminais ainda está longe de se esgotar. Mas, de
qualquer forma, existem pesquisas importantes para Veneza e in-
vestigações significativas para outros Estados italianos. Surgem
realidades que se diferenciam pelas tradições, pelas normas, pela
incidência da prevenção e da repressão. A República de Veneza é a
realidade mais exploradaf” Ali, as penas foram aparentemente
mais brandas: a condenação à morte entre os séculos xiv e xvi foi
depois substituída, com frequência cada vez maior, pela prisão per-
pétua. Em Pádua, o cárcere _ antes por 20 a 30 anos, e depois por
períodos mais curtos _ parece ter sido a sanção habitual no século
XVIII. A verdadeira condenação era cair na infâmia. Viúvas e criadas
eram as figuras dominantes no mundo da gravidez ilegítima sici-
liana.” Em Veneza, o tipo social da infanticida também foi descrito
com precisão: “mulher sozinha, sem pai ou genitores, que vive de
trabalhos avulsos prestados no campo. Uma jovem solteira que ge-
ralmente mora sozinha com a mãe”.'” Tal é o tipo humano que sur-
ge nitidamente de toda alonga temporada europeia de luta contra
a gravidez ilegítima: criadas nas casas da cidade, trabalhadoras hu-
mildes no campo, quase sempre solteiras. Assim reconhecemos os
contornos da silhueta que se personificou em Lucia Cremonini.
Mas, na realidade dos Estados italianos, os contornos gerais traça-
dos pela nova concepção do matrimônio, de base tridentina, con-
tinham formas de intervenções penais muito diferenciadas. No
Estado Pontifício, alguns dados esporádicos dão a impressão de
que houve um adensamento dos casos de mulheres enviadas ao pa-
tíbulo por infanticídio. Em Perugia, uma lista de condenados regis-
tra, entre outros, o nome de Pola da Bettona, enforcada em 5 de
abril de 1549, e depois de Lucia e seus filhos Clemenza e Vincenzo,
enviados à morte por terem asfixiado e enterrado uma criança pa-
rida por Clemenza; e também encontramos outras mulheres:
Mattea e Usepia, Polissena e sua filha.” Em Bolonha, uma lista de
condenados à morte no século XVII arrola, entre as pouquíssimas

78
mulheres, duas infanticidas enforcadas, uma em 1652 (Carolina
Zerbini, de Pianoro) e a outra (Pellegrina Bonetta de Crevalcore)
em 1655, ambas solteiras.” Entre as acusadas que escaparam ao su-
plício, encontrava-se Anna Maria Mazzini, empregada no vilarejo
deVeggio, nos Apeninos, também ela presa por causa do patrão; em
seu caso, bastou o argumento de que talvez a criança tivesse nascido
morta. Mas, se conseguiu escapar à forca, ela teve de enfrentar uma
vida de mendicância, degredada do território da Legação de
Bolonha.” Na vizinha legação pontifícia de Ravenna, entre meados
do século xvu e meados do século xvin, foram identificados diversos
casos de mulheres enviadas ao patíbulo ou excepcionalmente in-
dultadas; e aqui também são mulheres sozinhas, criadas da nobre-
za ou camponesas.” Poderíamos multiplicar os dados e tentar ex-
trair impressões de conjunto. Mas as estatísticas judiciárias são
insatisfatórias num caso que, segundo o consenso geral, tem uma
“cifra obscura” especialmente elevada; é mais simples considerar o
sistema normativo do ponto de vista da mulher pobre e sem mari-
do diante do nascimento de um filho. Como observou Lawrence
Stone,“dado o irresistível incentivo para a mãe ocultar o nascimen-
to, era fácil que o filho fosse morto durante as primeiras horas, ou
fosse abandonado nas ruas, onde poderia morrer, ou então poderia
ser deixado num orfanato, onde as perspectivas de sobrevivência
não eram muito melhores”.”
É tão fácil quanto inútil generalizar a partir dos dados pura-
mente quantitativos do trabalho dos tribunais criminais. Pouco
mais teríamos além da confirmação do conteúdo das leis penais ou
da orientação predominante dos tribunais num determinado tem-
po e lugar. Notou-se, por exemplo, um endurecimento dos proce-
dimentos na cidade protestantedewürttembergduranteaReforma
e a Guerra dos Trinta Anos; e um dos indícios consiste no gradual
desaparecimento da tradição que permitia à mulher infanticida
escapar à condenação se alguém se oferecesse para desposá-la.” A

79
severidade e a novidade da repressão se destacam ainda mais por-
que a tradição medieval dos enforcados, salvos da morte graças à
intercessão milagrosa da Virgem Maria, apresentava justamente
uma infanticida: a história do milagre narra que uma criada, em
1589, condenada por erro em lugar da patroa, teria pendido da for-
ca durante três dias sem morrer.” Outra criada era Anne Greene, a
mulher que, engravidada pelo patrão e tendo eliminado o filho, foi
enforcada em Oxfordshire em 1650, mas voltou à vida _ não por
intercessão da Virgem, e sim pelos cuidados dos quatro anatomis-
tas que receberam seu corpo para estudo e descobriram que ainda
estava viva. Aqui, como se disse, a ciência substituía o milagre.”
As pesquisas sobre núcleos compactos de casos documenta-
dos por séries contínuas de autos judiciais convidam a prestar aten-
ção à época e ao local. Lemos biografias, astúcias e tragédias de po-
bres mulheres que parecem se repetir com uma monotonia
exasperante. Quem reconstituí-las num desenho geral, utilizando
as vicissitudes pessoais como peças de um mosaico, pode chegar à
descrição da vida moral de comunidades inteiras.” A cor do tempo
oferece o pano de fundo e os contornos das histórias de infanticí-
dio. Assim, há a época dos campos friulanos entre os séculos xvl e
xvI1, com seus padres violentos e estupradores, e há a época do vila-
rejo francês do século XIX, com sua burocracia estatal e sua mesqui-
nha moral de vizinhança. Mas, acima das histórias particulares,
manifesta-se uma tendência geral da época, de alguma maneira
consolidada nas normas e escolhas dos poderes públicos. E vislum-
bra-se uma figura humana específica da infanticida, que emerge
lentamente do emaranhado de casos e das diversas formulações
jurídicas _ trata-se quase exclusivamente de uma figura feminina.
Na numerosa série de ações judiciais ocorridas em Surrey entre
1660 e o final do século xv1II, com a média de um processo a cada
dezoito meses, houve apenas um caso de um homem acusado, en-
cerrado com a absolvição. As mulheres processadas não eram as

8o
prostitutas oficialmente visadas pela lei, pois quem praticava tal
profissão, como observou Bernard de Mandeville, não se preocu-
pava minimamente com o risco de se desonrar com um parto fora
dos laços matrimoniais.” Eram, na maioria, mulheres jovens e
pobres, que trabalhavam como criadas na residência de outras
pessoas, frequentemente engravidadas pelos patrões. Para elas, o
nascimento de um filho significava a perda da honra e, consequen-
temente, do trabalho. Um dos inúmeros exemplos que podem ser
apresentados é o de Marguerite Mengant, condenada à morte por
infanticídio em León (Finistère) em 1722, aos 33 anos de idade. Ela
era uma mulher sozinha, que se sustentava trabalhando como dia-
rista. Fora estuprada pelo dono do moinho, em uma cena de vio-
lência muda _ o que era habitual nesses casos. Foi descoberta na
manhã do parto pela obstetra e pelo pároco do povoado, e a primei-
ra pergunta que lhe fizeram após a descoberta do crime foi “se havia
batizado o menino”.”
Num quadro geral como esse, o caso de Bolonha não fugia à
regra. Segundo as leis do Estado Pontifício, cidade e campo esta-
vam submetidos a um regime de controle estrito. Em 1613, tornou-
-se obrigatório na zona rural que os administradores fossem “de-
nunciar ao guardião do abrigo dos bastardinhos de Bolonha todas
as mulheres que se encontravam grávidas em suas cidades e vilas e
que não tivessem marido”.” Aqui aparece a iniciativa mais impor-
tante entre o conjunto de intervenções não puramente repressivas
para enfrentar o problema dos nascimentos fora do matrimônio: o
“Abrigo dos Bastardinhos” era uma das muitas instituições que, no
mundo urbano do Antigo Regime, haviam assumido a tarefa de
acolher e criar as crianças abandonadas. A caridade espontânea de
associações cristãs espalhara hospitais e asilos pelas cidades, os
quais, antes de modo geral e depois de maneira precisa e especiali-
zada, ofereciam uma solução para os recém-nascidos enjeitados
pelos pais. Era a face positiva e benevolente do problema do infan-

81
ticídio, em que se oferecia uma alternativa caridosa às mães tenta-
das a resolver seus problemas com a eliminação dos filhos: podiam
deixar os recém-nascidos para um abrigo. Ali, outras mulheres cui-
dariam deles; mãos caridosas protegeriam a vida dos recém-nasci-
dos indesejados. A presença dessas instituições, muitas vezes nasci-
das em séculos distantes, por iniciativa de particulares reunidos em
irmandades e associações devotas, compunha, ainda no século
xv1II, uma densa rede capaz de cumprir uma complexa função so-
cial. Mas, àquela data, a geografia e a finalidade dos abrigos para
enjeitados já haviam mudado profundamente em relação à época
de sua origem; agora, existindo quase que exclusivamente nos paí-
ses católicos,” eles exerciam funções de polícia sobre os nascimen-
tos irregulares, como mostra o decreto bolonhês supracitado.
Deixara de ser uma obra de caridade para se transformar em ins-
trumento da luta do Estado e da Igreja contra o infanticídio; e sua
presença acionara um complexo jogo de trocas e trapaças, ligado
aos subsídios financeiros destinados às amas de leite da instituição,
com a paradoxal consequência de acrescentar mais um provável
incentivo à eliminação dos filhos naturais.” À caridade irrestrita
que são Vicente de Paulo ainda tentava incutir em suas damas opu-
nha-se a moralidade arrogante de uma sociedade fundada na hon-
ra e regulamentada por leis repressivas.”
Continuemos em Bolonha e no “Abrigo dos Bastardinhos”,
para ver como se apresentaria aos olhos de Lucia Cremonini a pos-
sibilidade de uma alternativa à eliminação do filho. E aqui se apre-
senta uma dificuldade de grande monta: para ter acesso à entidade,
era preciso pagar uma contribuição e comprometer-se a depositá-
-la regularmente. Os problemas orçamentários dos abrigos, depois
que a iniciativa beneficente dos particulares cedera lugar à admi-
nistração pública, obrigavam, não apenas em Bolonha, a impor
esse tipo de condição para evitar que o recurso aos abrigos se trans-
formasse numa válvula de escape para as famílias pobres. Para ga-

82
rantir o pagamento, desativou-se o sistema da roda, que permitia
que as mães anônimas ali abandonassem os filhos. Assim se perde-
ra a garantia fundamental do anonimato, que assegurava a preser-
vação da honra feminina. Por isso também o controle imposto pe-
las autoridades civis e eclesiásticas passou a incluir a verificação
preventiva da existência de mulheres grávidas fora do matrimônio.
Ordens rigorosíssimas para denunciá-las imediatamente foram
dadas “a toda e qualquer obstetra, ou comadre de crianças, tanto da
cidade de Bolonha quanto da zona rural”; deveriam, portanto, de-
nunciar “todas as mulheres não honestas que não tenham marido,
que estejam grávidas ou que tenham dado à luz”.” Ainda em 25 de
janeiro de 1710, numa cidade com fresca memória do caso de Lucia,
o cardeal legado renovou a ordem, aumentando as punições pre-
vistas, que podiam chegar à pena capital; mas lê-se no texto que,
apesar de tudo, os recém-nascidos eram abandonados “nas estra-
das e vias públicas”§ com grandes perigos de “morrer de fraqueza,
ou de serem feridos e mortos por bestas e animais, como aconteceu
outras vezes”.” i

O sistema constituído por medidas policiais e formas assis-


tenciais, pelo discurso das Igrejas e pelas leis dos Estados, sugeria,
portanto, uma figura precisa de infanticida: mulher sozinha, po-
bre, sem proteção de marido ou de pai, dotada de um patrimônio
imaterial _ a honra _ que a gravidez e o parto punham em risco.
Era ela que, obrigada a recorrer ao crime devido a uma situação
sem saída, era mantida sob observação pelas autoridades e pela so-
ciedade. Não é a descoberta póstuma de um mistério que estaria
oculto aos contemporâneos. Pelo contrário: no decorrer do século
xvII1, a consciência de que o sistema de regras atingia pessoas frágeis
e indefesas veio à tona em diversos lugares. Em torno dos casos de
mulheres condenadas por infanticídio, nasceu e se desenvolveu ra-
pidamente ao longo do século uma discussão, aliás, um verdadeiro

33
movimento de ideias, que ocupou um lugar especial no campo da
sensibilidade europeia e da chamada cultura das Luzes. Era um dos
aspectos do sistema penal que então se afigurava cruel e ineficaz: as
punições assustadoras, o “esplendor dos suplícios” sobre o corpo
do criminoso (Michel Foucault) pareciam intoleráveis a um julga-
mento em nome da razão. Mas o caso da infanticida ocupou um es-
paço próprio por muitas e diversas razões; uma delas certamente era
uma nova atenção aos sentimentos e às paixões individuais como
realidades inclassificáveis segundo a moral da religião oficial.
Durante o século xv111, daquele mundo germânico que atingi-
ra as formas extremas de crueldade judiciária em relação às mães
infanticidas vieram as primeiras e decisivas manifestações de uma
atitude diferente diante delas. Um jurista luterano de grande cultu-
ra, Iohann Iakob Moser, ficou sensibilizado com a morte de uma
infanticida arrependida e cristianamente redimida. Em seu relato,
os últimos dias de Maria Salome Hausmannin, executada na cida-
de sueva de Nördlingen em 16 de agosto de 1715, eclipsaram o cri-
me e tornaram-se uma ocasião para exortar a uma meditação inte-
rior sobre o catecismo e a penitência: a mãe assassina estava sozinha
quando dera à luz e matara o filho, confessando que, ao executar
aquele ato “contra a natureza”, “mais cruel do que uma fera selva-
gem”, não pensara que Deus onipotente podia vê-la também den-
tro das paredes de casa. Essa experiência deu a Moser um impulso
decisivo para se converter ao pietismo. Deu-lhe também o estímu-
lo para redigir uma coletânea sistemática de casos de condenados
arrependidos, cujo núcleo fundamental consiste nas histórias de
infanticídio (todas elas são histórias de mães, salvo uma única
exceção).84 E uma indicação de que as consciências da época esta-
vam impressionadas com a frequência e a crueldade desses eventos.
Em nenhuma outra época o tema do infanticídio alcançou inten-
sidade e frequência comparáveis às registradas na cultura setecen-
tista. Temos uma amostra de extraordinária riqueza precisamente

34
na cultura alemã. Os literatos alemães do Sturrn und Drang_ de
Goethe a Schiller, de Müller a Klinger _ extraíram do tema argu-
mentos para peças, poemas e baladas.” Era o ponto de chegada e
amadurecimento de um problema que, depois de ter ocupado va-
riadamente o trabalho dos juízes e as propostas dos reformadores,
agora era confiado à imaginação e à sensibilidade dos escritores. O
próprio Goethe, antes de narrar a tragédia de Gretchen no Fausto,
havia indagado em sua defesa de doutorado, apresentada em
Estrasburgo em 6 de agosto de 1771, se a pena para a assassina do
filho recém-nascido deveria ser a morte.” À pergunta colocada
pela tese (a 554 a ser apresentada), Goethe limitou-se a responder
indiretamente, observando que se tratava de uma questão debatida
entre os doutos. O que, sem dúvida, era correto. A jurisprudência
estava diante de uma casuística cada vez mais volumosa, que para
alguns demonstrava a necessidade de aumentar progressivamente
as penalidades, enquanto para outros era a prova da falência do sis-
tema penal tradicional. Em todo caso, uma coisa era clara (tanto
que a própria definição jurídica do crime sofrera alteração): a par-
tir desse momento, por infanticídio entendia-se exclusivamente o
crime cometido pela mãe contra o filho recém-nascido.” As mais
diversas personalidades concordavam sobre as causas da recorrên-
cia do crime. Frederico, o Grande, tzar da Prússia, Cesare Beccaria
e Voltaire expressaram a mesma opinião. Certamente _ afirmou
Frederico, o Grande, em 1750 _ o crime dessas novas Medeias era
imperdoável; mas como não perceber que ele nascia da coerção a
que estava submetida a mulher, perante a alternativa entre a perda
da honra e a eliminação do fruto de um amor culpado?” Tal foi a
opinião consagrada numa célebre página de Beccaria:

O infanticídio é também o efeito de uma contradição inelutável em


que se encontra alguém que cedeu por fraqueza ou devido a uma
violência. Quem se encontrasse entre a infâmia e a morte de um ser

35
incapaz de lhe sentir os males, como não haveria de preferi-la à ine-
vitável miséria a que ela e o infeliz fruto seriam expostos? A melhor
maneira de prevenir esse crime seria proteger com leis eficientes a
fragilidade contra a tirania, a qual exagera os vícios que não podem
se encobrir com o manto da virtude.”

Esta página deixou uma marca profunda, também porque seus


leitores da época encontravam diariamente confirmações na crôni-
ca cotidiana. Voltaire iniciou seu Commen taire à obra de Beccaria
contando que, às fortes impressões que lhe causara a leitura acres-
centou-se o impacto de uma notícia que lhe chegara justamente na-
quela ocasião: o enforcamento de uma jovem de dezoito anos cul-
pada de ter abandonado uma criança que acabara de nascer.”
Assim, por trás das páginas dos reformadores e dos literatos
assomam os vultos de mulheres que, enquanto isso, continuam a
morrer pela mão do carrasco. Foi a morte de Susanna Margarethe
Brandt, que subiu ao patíbulo em Frankfurt em 1771, que deu a
Goethe o modelo da Gretchen do Fausto. O contraste entre a ima-
gem poética e as histórias reais vividas pelas infanticidas condena-
das à morte pode ser emblematicamente representado por um de-
talhe: na realidade empírica, a execução de Susanna Margarethe se
tornou memorável devido à lauta refeição preparada para o car-
rasco, os ajudantes e a condenada.” Nada mais distante da etérea
protagonista poética do Fausto, fruto de uma fantasia masculina
que pouca relação guardava com o cenário real da vida das infanti-
cidas. São os autos dos tribunais que nos põem em contato mais
direto com os contextos, pois neles afloram histórias de vidas vio-
lentas, ambientes sórdidos e famílias onde estupros e incestos eram
habituais.” Mas, para se comover perante tais vicissitudes, os nar-
radores e os leitores precisavam imaginar a infanticida como mo-
delo de uma feminilidade delicada e indefesa, exposta ao engano e
à dor, vítima das convenções sociais.

86
Mesmo Pestalozzi, ao criticar a hipocrisia de uma sociedade
que condenava inapelavelmente as infanticidas, considerando-as
prostitutas sórdidas, pintou-as, pelo contrário, como vítimas de
um gesto de amor, jovens culpadas apenas de ter respondido com
um sorriso à saudação de um rapaz. Segundo ele, era nesse tipo de
contexto que o infanticídio se oferecia como a única saída para a
mulher que, jovem e pobre, se encontrava diante das consequên-
cias de uma gravidez fora do matrimônio.” A nova sensibilidade
surgida no século xvm transformou as delinquentes dos séculos
anteriores em figuras de uma tragédia. A grande poesia sentimen-
tal dos séculos xvin e Xlx _ de Schiller a Goethe e Leopardi _ con-
verteu-as em vítimas inconscientes de um conflito insolúvel entre
a natureza e a lei, e rendeu-lhes o tributo da dor e da piedade. O
drama estava inscrito na “contradição inelutável”, assinalada por
Beccaria, entre a vida do recém-nascido e a “inevitável miséria” à
qual a nova criança teria condenado a mãe e a si mesma. Uma situa-
ção sem saída, trágica por si só: um bom tema para a poesia. Por
outro lado, a cultura dos juristas e as discussões sobre a justiça tive-
ram de enfrentar o insustentável rigor das penas herdadas dos sé-
culos anteriores e elaborar novas respostas, mais adequadas a uma
nova sensibilidade. Encontra-se um indício da ampla popularida-
de do problema num concurso alemão, realizado no final do sécu-
lo xvI1I, cujo tema era como tratar o problema da infanticida, que
recebeu cerca de quatrocentas respostas.”
Para além das soluções e das propostas, frequentemente aflora
na literatura setecentista esta imagem: a mulher indefesa, vítima de
um conflito entre a lei da natureza e as normas da sociedade entra-
nhadas de superstições e preconceitos. Mesmo antes que o célebre
opúsculo Dei delitti e dellepene [Dos delitos e das penas] , de Cesare
Beccaria em colaboração com Pietro Verri, abalasse as certezas dos
governantes quanto à inevitabilidade da pena capital, houve quem
chegasse a teorizar a justeza do infanticídio. Trata-se de Alberto

37
Radicati de Passerano, o nobre piemontês forçado ao exílio e des-
pojado de seus bens, favorável à radicalização das concessões ilu-
ministas. Em 1732, numa página de sua Dissertazionefilosoƒica sulla
morte [Dissertação filosófica sobre a morte] , Radicati tentou ima-
ginar ao vivo a cena do conflito inevitável entre maternidade e hon-
ra feminina.

Uma jovem prevenida sobre a excelência da virgindade desprezará


constantemente os doces remédios que a boa mãe, a Senhora Natu-
reza, lhe apresenta para o alívio de suas penas, apenas para levar uma
vida das mais infelizes sob o jugo cruel da educação... Uma outra
jovem, apesar dos fortes aguilhões da honra, foi moldada pela natu-
reza para entregar-se aos desejos de um amante fiel e em pouco
tempo ela recolherá o fruto de seus doces abraços. “Meu querido
menino, exclamará, amo-te ternamente porque és o fruto encanta-
dor, inocente, amável do meu amor! Mas é preciso que te trespasse o
coração para esconder com a morte minha vergonha e minha infâ-
mia que a tua vida divulgaria mau grado teu, se é que é razoável que
as ações mais justas e encantadoras portem o nome de coisas vergo-
nhosas e infames. Perdoa-me, pois, queridíssimo e amadíssimo pe-
nhor dos meus mais doces afetos, se te privo do ser que te dei, pois a
tua morte é a única maneira de conservar minha vida e minha hon-
ra. E tu, sagrada Natureza, que conheces o estado deplorável do gê-
nero humano, obrigado pela violência da tua mais cruel inimiga, a
educação, a realizar ações inteiramente contrárias à tua sabedoria e
à tua justiça, perdoa aqueles que, obrigados a te ofender, escolhem
sempre a ofensa menor, como faço eu, matando o meu querido
menino para conservar minha vida e minha honra.”

Documento de um espírito rebelde que sacrificara tudo em


prol de sua liberdade intelectual, esse texto tinha pouquíssimas
possibilidades de repercutir sobre a realidade de seu tempo. E, afi-

88
nal, é difícil imaginar que uma mulher nas circunstâncias de um
parto tão temido pudesse raciocinar com tanta frieza. Pelo contrá-
rio, pode-se dizer que estamos diante de um claro exemplo daque-
la distância entre as experiências das mulheres e as palavras dos
homens, especialmente marcada na história da maternidade. Um
fato é indiscutível: os homens podiam raciocinar assim. Houve um
homem que não só fez para si um discurso semelhante por ocasião
do nascimento de filhos indesejados, como também o redigiu e
apresentou-o aos outros como posição racionalmente defensável:
Iean-Jacques Rousseau. Em 1750, Rousseau venceu o prêmio da
Academia de Dijon com seu Discours sur Vinégalité [Discurso sobre
a desigualdade]. Este reconhecimento o deixou eufórico, fazendo
com que se sentisse “livre e virtuoso, acima da sorte e da opinião”,
capaz de ser autossuficiente e de seguir os ensinamentos ministra-
dos por seu pai, sua pátria e Plutarco. No exato momento em que
filosofava sobre os deveres do homem, o nascimento de um tercei-
ro filho lhe impôs que refletisse sobre suas obrigações pessoais. E
foi assim que, seguindo “as leis da natureza, da justiça e a razão”,
bem como as da religião cristã considerada em seus valores eternos,
independentemente de qualquer Igreja, Rousseau tomou uma de-
cisão de caráter ambíguo, do qual ele próprio tinha tanta consciên-
cia que encontrou dificuldade em expô-la, num parágrafo no final
de uma longa página repleta de rodeios tortuosos: aquele terceiro
filho foi abandonado aos enjeitados, como os dois primeiros e os
dois seguintes. Longe de experimentar algum sentimento de culpa,
Rousseau afirma ter se orgulhado tanto de sua decisão que chegou
ase vangloriar com Diderot, com Grimm,com as senhoras d°Epinay
e de Luxembourg. O sentimento de culpa amadureceria mais tarde,
mas não a ponto de impedir o autor das Confessions [Confissões]
de declarar que havia feito o que considerará o melhor para seus
filhos, o que teria desejado para si mesmo. Só depois de muitos
anos, durante um passeio pelas ruas de Clignancourt, quando um

39
menino se dirigiu a ele e abraçou-lhe os joelhos num gesto de gran-
de e grato carinho, ele sentiu uma imprevista emoção ao pensa-
mento de que talvez assim poderiam ter feito aqueles filhos que
enjeitara e quiçá condenara à morte. Rousseau contou que esteve
outras vezes naquele mesmo local, agitado por um sentimento ter-
no e triste ao mesmo tempo.” Tudo isso, escrito não para se justifi-
car, e sim para se conhecer e se dar a conhecer, oferece o testemunho
mais lúcido e a prova mais eloquente das diferenças que existem
entre um pai e uma mae.
rw

Na prática, todo o investimento de sentimentos e de ideias de


que foi capaz a cultura do século xviii resultou apenas num limita-
do abrandamento das leis, do qual temos um exemplo em Frede-
rico, o Grande. Num de seus primeiros atos como soberano, com
uma ordem do Gabinete de 31 de julho de 1740, ele substituiu os
terríveis sofrimentos da condenação imposta pela Carolina pela
simples decapitação.”
Quanto às mulheres, o retrato apresentado pela literatura es-
crita em sua defesa era um tanto nebuloso. O modelo contra o qual
muitos autores de cultura iluminista reagiram de forma mais ou
menos explícita foi o elaborado nos termos da cultura eclesiástica
dos séculos anteriores, com sua insistência sobre as virtudes da pa-
ciência e do sacrifício e a proposta de se alcançar um objetivo final
de santidade. De modo geral, chega-se à elaboração de uma ideia
nova e diferente da maternidade a partir dos valores difundidos do
amor e da bondade da natureza. Mas não se pode negligenciar o
fato de que, ao lado das considerações humanitárias e dos senti-
mentos de piedade pelas mães condenadas à morte, tanto Frederico
ii quanto Voltaire acrescentaram uma observação significativa:
com a morte do recém-nascido e a condenação capital da mãe, o
Estado perdia dois súditos, sem contar os outros filhos que a mãe,
permanecendo em vida, poderia vir a ter.” A mãe cristã chamada a
ter filhos para a Igreja terrena e para o Reino dos Céus era substituída

90
por uma outra figura, a da produtora de súditos e soldados para os
exércitos do soberano. Nem por isso a literatura eclesiástica renun-
ciava a cultivar o sentimento de culpa das mulheres pelas conse-
quências das maternidades interrompidas, voluntariamente ou
não. Eis um exemplo dos argumentos que, ainda no final do século
xviii, um sacerdote piemontês apresentava aos párocos, para alertar
as mulheres grávidas sobre as consequências da dança ou outros
entretenimentos:

Muito mais gravemente pecam as Mães grávidas, quando abortam


por sua culpa, ou por algum esforço; ou por dançar demais, ou por
diversão, ou por alguma outra razão, a qual tanto mais pecaminosa
seria se a intenção visasse a tal efeito. Tais mães são duplamente
culpadas de homicídio, tanto da vida temporal quanto da vida eter-
na dos filhos, pelo que clamam eternamente ao supremo luiz vin-
gança contra os genitores homicidas.”

Quase na mesma época, um ilustre médico inventor da“polícia


médica”, isto é, a ancestral direta do sistema moderno de saúde pú-
blica, apresentou o estado de gravidez à veneração da sociedade:

Merece toda a veneração e respeito a mulher que se encontra naque-


le estado por meio do qual, recompondo-se continuamente o nú-
mero dos cidadãos que vieram a faltar, permanece inalterada a
constituição do universo, reflorescem as repúblicas e perpetuam-se
as nossas famílias [...] É preciso, portanto, que ela [a “boa polícia”]
afaste com paternal cuidado todos os perigos que ameaçam a mãe
ou o feto ou ambos ao mesmo tempo, para que cada mulher, cujo
fecundo seio guarda um cidadão, alcance felizmente e com toda a
segurança possível aquela meta que lhe preestabeleceram a natureza
e a pátria.

91
A natureza e a pátria tinham uma referência política: o Estado.
E, portanto, mudava a condição da mulher grávida, cuja gravidez
se mantinha determinada pela condição de esposa, mas via avultar
por trás do marido uma presença nova e exclusiva: “a mulher grá-
vida não é mais simples esposa de um cidadão, mas de certa manei-
ra propriedade do Estado”.1°°

Após a Igreja, era o Estado que apresentava sua candidatura ao


controle da função reprodutiva da mulher.
Apesar de tudo isso, o aborto e o infanticídio como realidades
não desapareceram, nem naquela época nem mais tarde. Razões
sempre imperiosas _ limites naturais da disponibilidade de ali-
mentos, limites culturais estabelecidos pela lei da honra, modelos
familiares a atingir, relações sexuais proibidas a esconder, compli-
cações inerentes às regras do mercado matrimonial; mas também
toda a obscuridade que se oculta nas profundezas das pulsões de
agressividade e morte _ continuaram a gerar as condutas proibi-
das. Essas, porém, continuaram a recair quase exclusivamente so-
bre as responsabilidades da mãe. E difícil avaliar até que ponto esse
resultado derivou da dupla obrigação imposta às mulheres de se
sujeitarem a matrimônios indesejados e de prepararem e distribuí-
rem alimentos escassos. Nas histórias de santidade feminina apon-
tam-se os traços mais visíveis da rota de fuga que algumas mulheres
conseguiram tomar.““ Ao lado dos percursos santificados do asce-
tismo, as vias culpadas e criminalizadas do infanticídio também
expressavam, à sua maneira, o resultado de uma mesma condição
feminina. De fato, o infanticídio, que de prática social e familiar
converteu-se em ato proibido e realizado em segredo, transfor-
mou-se cada vez mais num crime quase exclusivamente feminino
e materno; por outro lado, na maneira de avaliá-lo e puni-lo, a sen-
sibilidade setecentista, de que vimos algumas expressões, deixou
como herança aos legisladores uma noção singularmente atenuada

92
do crime, como fruto de duas causas concomitantes _ a fragilida-
de feminina, de um lado, a defesa da honra, de outro _ que iriam,
ambas, mostrar-se capazes de despertar não só compaixão, mas
também sentimentos de uma ambígua solidariedade.” Nas esta-
tísticas criminais, encontramos o infanticídio como exemplo típi-
co _ talvez o mais exemplar _ da chamada “cifra obscura” dos
crimes, que nesse caso pode-se supor muito superior ao número
dos casos registrados. Obscura também porque está oculta nas
profundezas de uma história das mulheres, de onde emerge apenas
à força, sob a luz das crônicas judiciárias. A época que presenciou
um aumento de infanticídios documentados e uma crescente sus-
peita em relação aos comportamentos maternos foi a da mais dura
criminalização e do investimento policial na identificação das cul-
padas a serem punidas. Uma vez atenuada a criminalização das
mulheres, a prática refluiu ao segredo sem história, de onde emer-
gira apenas parcialmente. De lá ressurgiu marginalmente no de-
poimento autobiográfico como momento de confissão pública,
quando a legalização do aborto permitiu que as mulheres falassem
daquela escolha definida como “entre todas as escolhas humanas, a
mais privada, a mais anárquica, a mais solitária”, “escolha assusta-
dora”, mas que “pertence de direito à mãe, e somente a ela”.1°3
Poderíamos nos prolongar nesse exame das relações entre
nascimentos indesejados, práticas de eliminação da prole e siste-
mas normativos. Continuaremos a percorrer um longo período
histórico na Europa, desde a Baixa Idade Média até o final do sécu-
lo xviii, isto é, desde que as antigas proibições de caráter religioso
foram confiadas à intervenção de normas penais e estruturas re-
pressoras do Estado até o momento em que, recuando o sistema
compensatório do além cristão tradicional, a mulher passou a ser
vista como fornecedora necessária de súditos, com a gradual subs-
tituição dos mecanismos judiciários que levavam as mulheres in-
fanticidas ao cadafalso pelo controle suave e capilar dos comporta-

93
mentos. O nascimento de sistemas de prevenção médica estatal ou
de “polícia médica”- como definiu Johann Peter Frank -- lançou
as premissas do nosso presente. Nesta história, primeiro falam as
sanções eclesiásticas, e depois, amiúde com extremo rigor, as leis
penais; e a discussão sobre os delitos e sobre as penas que se desen-
volve a partir do século xvln reserva um espaço bastante amplo para
a questão do infanticídio. Por fim, foi a historiografia das últimas
décadas do século xx que, abordando a história das classes subalter-
nas, investigou a criminalidade, sobretudo a feminina, trazendo à
tona um grande volume de histórias enterradas nos arquivos cri-
minais. Aos poucos, a figura da mãe assassina veio a conquistar
uma posição de destaque na realidade dos tribunais, bem como nas
imagens elaboradas pela cultura de juristas, filósofos e reformado-
res sociais. As pesquisas dos historiadores traçaram várias vezes, no
conjunto e nos detalhes, o panorama dos casos de infanticídio na
história moderna europeia. No entanto, justamente pela difundida
obsessão com aquela imagem da mãe assassina, nem sempre é pos-
sível distinguir entre casos verídicos e relatos elaborados com a fi-
nalidade de incutir terror.1°4 E, perante a série de processos penais
e fórmulas jurídicas, perguntamo-nos se a unidade criada pelo cri-
me pode realmente ajudar a entender o problema ou se, pelo con-
trário, corre o risco de aglutinar em categorias abstratas o elemen-
to que distingue fatos e pessoas diferentes entre si. A mulher
infanticida permanece por trás da figura do crime que a envolve,
que a define e, no entanto, também a oculta, impondo a quem se
acerca dos documentos de uma vida individual o estereótipo do
crime e a membrana, o tecido conectivo, o filtro dos sentimentos
construídos ao longo dos séculos em torno de um tipo feminino, de
uma espécie de máscara. Desde os tempos de Goethe e Pestalozzi, a
nossa cultura sente profundamente o drama da mãe assassina, pro-
curando e amiúde acreditando compreendê-la. À Medeia antiga,
cruel feiticeira que se vinga do homem traidor tirando-lhe os filhos

94
para sempre, substituiu-se a excruciante imagem da Margarida do
Fausto: uma jovem abandonada que morre na solidão, arrependi-
da, em prantos, expiando uma culpa que não é apenas sua, e sim
fruto da diabólica presença do mal no mundo. E desde que, em
tempos recentes, os excluídos da história _- os vencidos, os crimi-
nosos, as mulheres - tornaram-se objeto de pesquisas históricas e
os arquivos dos tribunais criminais abriram-se a pesquisadores
fascinados e perplexos, o infanticídio surgiu como um objeto sóli-
do, permitindo definições exaustivas _ por exemplo, como um
fenômeno social que sempre existiu, mas também, ao mesmo tem-
po, um tema característico da opinião esclarecida do século XVIII,
ou mesmo um “paradigma” semelhante à bruxaria.1°5 Na verdade,
no longo percurso da história, os destinos dos dois seres unidos
pela necessidade da natureza - a mãe e o filho -- afastaram-se
cada vez mais até chegar a uma mútua contraposição. Enquanto se
adensava progressivamente uma aura de suspeita sobre a mãe
como assassina em potencial, registrava-se a promoção de institui-
ções assistenciais destinadas aos “expostos”, aos enjeitados, aos
“inocentes”.
Era a infância que, aos olhos dos benfeitores, apresentava-se
como a idade mais carente de auxílio; a críança“nem pode fazer por
si, nem com a fala explicar e pedir o que precisa” e por isso “merece
maior compaixão”.1°6 Quanto à mãe suspeita de abandonar ou,
pior, eliminar os filhos, seu crime foi visto como um ato que colo-
cava o agente fora da natureza não só humana, mas também ani-
mal; crime indizível (“nefando”), de tal forma que o perpetrador
era digno da execração mais profunda que se pudesse imaginar.

Resta o fato de que o texto das normas e a prática dos tribunais,


tal como funcionavam na sociedade em que viveu Lucia Cremonini,
desenhavam aquele tipo ideal de infanticida que vimos: uma mu-
lher pobre, não casada, que vivia de seu trabalho, sem o amparo do

95
poder nem da riqueza. Fora-lhe construída uma armadilha. E na
armadilha caiu -- entre outras -- Lucia Cremonini. Os contornos
da figura desenhada pela casuística são os de Lucia. Assim, era dela
que, mesmo antes de nascer, falava a letra da lei.

96
os ATORES:
PESSOAS E NÃO PESSOAS
A mae
À

Um fato é certo: terminado este exame sumário sobre a tipifi-


cação do infanticídio como crime de enorme gravidade e sobre as
formas como ele foi perseguido, não podemos afirmar que enten-
demos melhor a história de Lucia Cremonini. Temos a nossa frente
um quadro das definições jurídicas, dos procedimentos legais e das
construções intelectuais nascidas a seu redor. Concluímos que
Lucia Cremonini encontrava-se numa das fases mais difíceis da
luta contra o infanticídio, aquela que caracterizou o crime em
questão como algo exclusivamente relativo à mãe e que, mesmo
utilizando sistemas dissuasórios fundados no exemplo de penas
aterrorizantes, entreviu seus limites. Mas uma pergunta continuou
sem resposta: quem era Lucia Cremonini? Como foi sua vida, quais
foram seus sentimentos, quais as razões de seu gesto? Por ora, per-
dida na multidão das infanticidas, seus traços individuais perma-
necem vagos e incertos.

99
1. “Uma jovem crescida, moça feita”

O tempo apagou, com a vida de Lucia, a maioria das coisas que


ela fez, disse ou pensou. Se não tivesse cometido o crime de infan-
ticídio e não tivesse recebido a luz da Justiça criminal, sua vida teria
transcorrido sem deixar sinais. Mesmo assim, não é muito o que
sabemos.
Conhecemos seu nome. Podemos começar por ele. O nome é
o traço que une os sinais deixados por uma vida, o fio de Ariadne que
permite voltar sobre os passos dados no labirinto da existência.
Foi dito com justeza que para o nome convergem e do nome
partem muitas linhas até compor “uma espécie de teia de malhas
estreitas”, de onde o observador extrai uma espécie de desenho da
“rede das relações sociais em que o indivíduo está inserido”.1 Mas
uma rede de relações é suficiente para definir um indivíduo? A per-
gunta vai muito além dos limites do conhecimento histórico; e, ao
mesmo tempo, incide diretamente sobre ele, questiona Suas pre-
tensões, interroga sua prática. O nome é um bom ponto de partida
para procurar a resposta, e é aqui que nos deparamos desde o início
com aquela mescla entre repetitivo e original que caracteriza todo

101
indivíduo. Quem nasce é - pelo menos para nossa cultura - um
indivíduo inteiramente novo e inconfundível; os momentos do
nascimento e da morte pertencem a ele e a mais ninguém. Mas o
nome que lhe é dado não é apenas seu, e certamente não o era na
época em que nasceu Lucia.
Ela havia nascido em 29 de setembro de 1686 em Manzolino,
na planície entre Modena e Bolonha, e recebera não um, mas dois
nomes: Lucia Maria? Foram-lhe atribuídos no próprio dia de seu
nascimento no decorrer do rito cristão do batismo, na igreja paro-
quial de São Bartolomeu. Os nomes foram escolhidos provavel-
mente pelos genitores, pelo pai, Nicola, ou pela mãe, Caterina
Testoni (que foi a única, durante o processo, a usar ambos para falar
da filha); ou foram indicados talvez pelos padrinhos, Giuseppe
Maria Mantelli e Elena Mattioli. A mãe não esteve presente ao ba-
tismo, pois assim determinavam antigas regras. Tornando-se im-
pura com o parto, nenhuma mãe podia entrar na igreja antes de um
determinado prazo e de um rito tradicional de purificação. Era as-
sim que as regras folclóricas dos ritos de passagem haviam estreita-
do aliança com os sacramentos cristãos. E, se outras culturas euro-
peias tinham começado a desfazer tal aliança, ela ainda valia nos
ritos religiosos dos campos da Padânia? O pai podia acompanha-la,
e provavelmente o fez, mesmo que 0 nascimento de uma filha mu-
lher não fosse considerado motivo de festa. Era o pai, em todo caso,
que indicava o nome. Os escolhidos para ela não eram originais,
nem pretendiam sê-lo. A originalidade do signo, a posse tenden-
cialmente exclusiva de um nome próprio capaz de sugerir imedia-
tamente um indivíduo específico, não fazia parte daquela cultura.
A escolha era guiada por um critério completamente diferente, o de
renovar no nome alguém que já existira na terra. Assim, podia ser
a lembrança de um antepassado que, de certa maneira, revivia no
ser que trazia o mesmo nome. No entanto, era o gesto de lembran-
ça súplice e de pedido de proteção dirigido ao espírito de um santo

102
que poderia garantir o auxílio mais eficaz. Na cultura cristã, os san-
tos ocuparam quase totalmente o lugar que, em outras culturas,
cabia aos antepassados. Eram os nomes dos santos que se invoca-
vam nos momentos rituais, e não só diante das dificuldades da vida,
mas também no simples ato cotidiano de adormecer à noite. E, por
fim, eram lembrados quando se encomendavam as almas, quando
havia a redação de um testamento, ou nas orações pelos moribun-
dos. Na necessidade de encontrar padroeiros populares e conside-
rados poderosos, geralmente acabavam-se repetindo os mesmos
nomes. Nos países católicos, de regra, a mulher trazia o nome da
Virgem. Tal foi o nome dado à menina de Nicola Cremonini, com
o acréscimo do nome de uma santa de enorme popularidade -
protetora dos olhos, isto é, do sentido incomparavelmente mais
importante na percepção comum, 0 que bastava para dar-lhe des-
taque no panorama das padroeiras disponíveis para as recém-nas-
cidas (e Santa Lucia, em Bolonha, fora escolhida como padroeira
da igreja da poderosa ordem dos Iesuítas).
Escolhido segundo o critério da repetitividade, aquele nome
deveria acompanhar o ser humano ao longo da vida, até se tornar
parte essencial, indicação fundamental de sua existência, sinal para
os outros e para si mesmo, entidade dotada de uma vida simbólica
de importância potencialmente superior à própria vida material,
pois garantir uma vida longa e honrada ao próprio nome poderia
representar um valor mais elevado do que a própria vida do indiví-
duo que o portava. Tudo isso se refletia na organização e preserva-
ção das memórias. Muitos documentos do passado foram elimina-
dos, pois alguém assim quis apagar os rastros negativos deixados
por seu nome ou pela instituição e ideias a que estava ligado. Outros
foram escritos com objetivo contrário. A própria sobrevivência do
nome de Lucia Cremonini, inclusive a conservação dos documen-
tos do processo, deve-se à marca de infãmia que o crime lhe impri-
miu. Os processos criminais lotaram arquivos e mais arquivos, com

103
a única finalidade de documentar no tempo eventos execrados e
guardar a lembrança dos culpados. Por vezes, à lavratura de um
processo somava-se o recurso a meios que evocavam imediata-
mente crimes grandes e terríveis. Assim, retratos de condenados e
representações figuradas de seus crimes foram expostos nas pare-
des dos edifícios públicos, suas casas foram derrubadas e, no terre-
no destinado a permanecer baldio, ergueram-se as chamadas colu-
nas “infames”, instrumentos de uma pedagogia do terrorƒ*
Cidade universitária, que conferia um grande espaço ao cui-
dado com as memórias pátrias e à lembrança dos nomes dos cida-
dãos ilustres, Bolonha possuía historiadores e cronistas atentos aos
acontecimentos da cidade. No século xix, um cõnego bolonhês,
Antonio Francesco Ghiselli, dedicou grande parte de seu tempo a
escrever memórias extraídas de documentos e crônicas antigas. E
aqui também surge uma curta notícia sobre o obscuro nome da
empregada infanticida, eco da notoriedade que lhe dera o proces-
so.5 Se a nova criatura, ao nascer, havia recebido um nome já usado
e repetido infinitas vezes, escolhido para as recém-nascidas cristãs
para lhes conformar a vida pelas linhas de um único modelo, agora
aquele nome se depositava na memória da cidade com um conteú-
do individual exclusivo: uma história de infâmia.
De fato, o que sabemos sobre Lucia deriva das informações
recolhidas sobre ela durante o processo. Orfã de pai, mudara para
Bolonha com a mãe. Ali morava num quarto alugado na casa de um
certo Cesare Barbieri. A mãe, como vimos, trabalhava no campo
como diarista. A filha, uma vez crescida, também teve de ganhar a
vida como empregada doméstica. Trabalhara na casa de um certo
Benedetto Zanardi pouco mais de oito meses e, para um outro pa-
trão, Francesco Maria Gualandi, por cerca de seis meses. Os dois
patrões declararam que Lucia fora “honesta e de bem” (Gualandi) ,
“honesta como devia ser” (Zanardi), e que havia deixado o serviço
com os “devidos respeitos”, não por ter sido despedida (“se despe-

104
diu por si”). Foi seu advogado que recolheu esses atestados. Para a
estratégia de defesa, era conveniente que os patrões garantissem
sua “honestidade”. Tratava-se de provar que Lucia era uma jovem
de costumes sérios, antes do passo em falso que a arrastara para o
crime. A coisa não era nada clara. Uma jovem criada de vinte anos
estava exposta a toda sorte de tentações e agressões sexuais. A cria-
da morava na casa dos empregadores, sob o total controle deles. O
patrão e os filhos da família a consideravam como uma coisa sua.
Relações sexuais impostas com uma certa frequência pelos homens
da casa resultavam em filhos. Em épocas anteriores, eram chama-
dos de filhos “naturais” e podiam crescer na casa do pai. Nos tem-
pos de Lucia, eram definidos como “ilegítimos” e, enquanto tais,
eram destinados aos institutos dos enjeitados. A vigilância sobre os
costumes das criadas tornara-se mais cerrada, com a convergência
entre os interesses das famílias e a moralidade sexófoba da Igreja.
As famílias não queriam que nada ameaçasse a conservação do pa-
trimônio e sua transmissão por via direta aos descendentes “legíti-
mos” (geralmente o primogênito do sexo masculino). Seguindo
um percurso parcialmente convergente, a Igreja havia canalizado
toda forma de sexualidade legítima para o casamento sacramenta-
do. Mas a presença de criadinhas pobres fornecia ocasião e incen-
tivo para relações sexuais com os donos da casa. Os atestados de
bons serviços dados pelos patrões eram documentos necessários
para encontrar trabalho. Necessários, mas não suficientes, pois era
preciso ter certificados de boa conduta emitidos pelo clero das pa-
róquias. Dom Giovanni Francesco Manzini, prior da paróquia de
San Matteo delle Pescarie, à qual pertencia Gualandi, patrão de
Lucia, atestou que a jovem passara o ano de 1707 em sua paróquia,
e tinha “vivido no dito período cristianamente e frequentou os
Santíssimos Sacramentos, não tendo jamais a intenção de coisa al-
guma em contrário” (“aliás” -- acrescentou _ “sempre tive bons
relatos sobre isso”). O sacerdote queria dizer que Lucia havia se

105
confessado regularmente, como previam as normas da Igreja.
Como pároco, ele tinha como ouvir “relatos” sobre todos os mora-
dores de sua paróquia, fosse em conversas normais, fosse no caudal
de confidências íntimas que passava pelo confessionário. Pouco
escapava a seus ouvidos. Isso significa que não havia recebido ne-
nhuma denúncia de comportamentos censuráveis da criada da fa-
mília Gualandi. E é de levar em conta que, do ponto de vista eclesiás-
tico, as relações ilícitas entre empregada e patrão eram culpa da
empregada. Se um confessor constatasse a existência desse tipo de
relações, era opinião geral no mundo eclesiático que seu dever seria
intervir e mandar despedir a criada.

Portanto, aqueles atestados pouco se prestam a nos mostrar de


que forma Lucia realmente viveu suas jornadas de trabalho como
criada. Por ora, a cor do tempo é dominante, e o fio cinzento do
contexto não deixa espaço ao perfil individual. Mas o contexto in-
cluía outras pessoas que tiveram um peso decisivo sobre a vida de
Lucia. Estas, portanto, requerem atenção.

106
2. “Um padre jovem”

A mais misteriosa de todas é a figura do “padre jovem”. Dele só


conhecemos estes dois atributos: um homem jovem e um homem da
Igreja. Se de Lucia sabemos pouco, dele não sabemos nada. Podemos
apenas tecer considerações abstratas sobre as diferenças entre sua
condição e a de Lucia. Homem e sacerdote, por sexo e por posição
social movimentava-se em outros níveis e dispunha de outros meios
para legar uma memória: sua cultura, o fato de ser homem e, princi-
palmente, homem da Igreja. Foram as mesmas condições privilegia-
das quelhe permitiram não deixar traço algum no processo.Podemos
imaginar que o desconhecido e fugaz figurante do processo talvez
fosse - ou viesse a ser -- um personagem respeitável na cidade. O
processo por infanticídio não teve nenhum efeito sobre sua vida pú-
blica, e ele não fez nada para sair da sombra que o protegia. O histo-
riador deve ter consciência de que sua curiosidade não será saciada,
devido, em primeiro lugar, ao fosso que o tempo cavou entre ele e os
acontecimentos bolonheses de 1709 e, também, aos elementos que
então mantinham o padre fora do alcance daqueles juízes que, mes-
mo podendo investigar, não o fizeram.

107
O silêncio que, no fascículo do processo, envolve o pai do re-
cém-nascido morto é inusual, áque a figura paterna era o perso-
nagem dominante nas leis escritas e nos costumes da sociedade da
época. E havia normas que puniam severamente quem se tornasse
culpado de crime então denominado “estupro” -- isto é, a relação
sexual com uma mulher fora do matrimônio.
Mas a Justiça bolonhesa não fez nada para dar um rosto ao
“padre jovem” que, segundo o relato de Lucia, conduzira-a pelo
“corredorzinho estreito e escuro” durante o Carnaval de 1709. O
protagonista desse encontro - tão casual e superficial para ele,
mas tão determinante para a vida de Lucia - permanece anônimo
para nós, tal como, talvez, para ela. Nenhum juiz a interrogou sobre
ele; não se fez nenhuma tentativa para identificar e localizar o pa-
dre. E havia algumas pequenas pistas, pois Lucia havia dito que, na
noite de Carnaval, ao encontrar o portão de casa fechado, o padre a
levara para se hospedar na casa de uma certa mulher na via
Fiaccalcollo. Na omissão das investigações oculta-se algo que me-
rece ser entendido. A noção da igualdade perante a lei é uma pro-
funda divisória entre o presente e o passado, entre a época posterior
e a época anterior à Revolução Francesa. Mesmo assim, aquela ação
do padre era um crime que tinha lugar na normativa vigente na
época; portanto, ele poderia ter sido processado e punido. Sua pró-
pria presença nos locais do Carnaval constituía uma infração às
normas e deveres do clero. O Carnaval, por sua natureza, estava nos
antípodas da moral eclesiástica estabelecida ao longo dos Séculos e
por fim regulamentada pelo Concílio de Trento. As normas do di-
reito canônico, desde longa data, haviam traçado o modelo obriga-
tório de sacerdote, especificando rigidamente a conduta dos pa-
dres e a honra do corpo eclesiástico (“1/im et honestas”). Fazia
tempo que se multiplicavam as tentativas de vetar a participação do
clero nas liberdades carnavalescas. A tradição iniciada por são
Carlos Borromeo insistira muito sobre esses aspectos, encontran-

108
do receptividade e concordância entre muitos outros bispos _
mas também suscitando reações e polêmicas por parte do clero que
se julgava frequentemente lesado em seus privilégiosf
Mas era algo muito diferente que poderia levar o padre a julga-
mento. O que ele havia cometido era um estupro _ assim era defi-
nida pelas leis civis e canônicas da época toda e qualquer relação
sexual com uma mulher que não fosse a legítima esposa. Se a mulher
consentisse, o crime era menos grave, atenuando a pena do culpado
_ os estatutos de Bolonha, por exemplo, previam uma multa pecu-
niária? A condição da mulher, dos pontos de vista jurídico e da mo-
ral e mentalidade dominantes, era de nítida subordinação. Ainda
que o Concílio de Trento tivesse reavaliado e considerado decisivo
seu consentimento para o matrimônio, nem por isso podia-se dizer
que ela estivesse próxima de uma condição de igualdade, tampouco
de uma genuína liberdade de escolha pessoal. Como se disse com
justeza, “não é a mulher que escolhe o matrimônio, mas é o matri-
mônio que se impõe à mulher, a qual não pode não o querer”.3Assim,
qualquer relação sexual, mesmo de livre consentimento, era consi-
derada uma degradação que o culpado deveria ressarcir. A lei tute-
lava a virgindade feminina como um bem passível de ser alienado
apenas com o contrato matrimonial. Considerando a mulher um
ser frágil e naturalmente exposto às insídias dos sentidos e aos enga--
nos dos homens e do demônio, a lei lhe reconhecia o direito à repa-
ração por parte do estuprador. A principal forma de reparação era o
matrimônio. Se o homem aceitasse se casar, o crime se extinguia.
Mas, numa sociedade de desigualdade rigidamente codificada, era
preciso considerar as barreiras que se interpunham entre os diver-
sos estados em que os indivíduos se inseriam por nascimento. Típico
e socialmente frequente era o caso do nobre que abusava de uma
mulher do povo, prometendo desposá-la. O que fazer nesses casos?
As normas tridentinas sobre o matrimônio, elevando-o a sacra-
mento, passaram a atribuir um valor sobrenatural à promessa feita

109
entre homem e mulher. Assim _ diz-se _ a dignidade do matri-
mônio foi consagrada e o livre consentimento tornou-se a essência
daquilo que era sacramentado pela Igreja. Mas, na prática social, as
coisas seguiram outro rumo. Para enfrentar as situações concretas,
não se recorria às definições abstratas e sim à ciência casuística, ce-
diça e maleável como cera, capaz de adaptar as regras gerais às rela-
ções de força efetivas. Bem o sabiam os padres que tiveram de se
preparar para resolver as dúvidas de seus fiéis nas congregações so-
bre os casos de consciência. Em Bolonha, elas foram introduzidas
no século XVI pelo cardeal Gabriele Paleotti e mantidas regularmen-
te atéo século xvtn. Discutiam-se casos hipotéticos: quem conseguia
soluciona-los demonstrava-se apto a exercer o ofício, e quem errava
devia retornar aos estudos e passar por exames de recuperação. Por
exemplo, os párocos bolonheses discutiram em 1748 a seguinte
questão: o jovem Lelio, filho de um nobre rico, prometendo futuras
bodas, pôde fazer amor com Caia, filha de um lavrador de suas ter-
ras. O jovem Lelio estava obrigado a manter sua promessa? A res-
posta correta era: não, Lelio não estava obrigado a ressarcir Caia
com o matrimônio pelo estupro ocorrido. A não autorização do pai
de Lelio era suficiente para anular as juras. Não se podia autorizar
um ato que apenas aparentemente era justo, sendo na verdade fonte
de graves consequências negativas. Devido à diferença de condição
social, a família de Lelio seria atingida por uma enorme desonra e,
por conseguinte, resultariam danos ao Estado. A honra perdida de
uma camponesa era uma chaga que se curava facilmente com di-
nheiro: bastava dar aos pais de Caia um dote adequado para um ma-
trimônio com alguém de sua classe. E se os pais fizessem questão da
futura proteção da honra deles e da jovem, bastaria encerra-la num
convento ou num educandáriof* Uma férrea lógica do privilégio de
casta dominava, portanto, a direção eclesiástica das consciências,
mesmo sob o comando de um cardeal arcebispo como Prospero
Lambertini, futuro papa Bento xtv.

110
Se os nobres estavam assim protegidos do risco de serem cha-
mados a responder por seus atos, erguia-se uma cortina ainda
mais espessa para proteger a honra e os privilégios do clero. Em
vão procuraremos a hipótese de eclesiásticos estupradores nesses
exercícios de casuística. Não porque não existissem. De um lado, a
obrigação do celibato eclesiástico e, de outro, o impressionante
crescimento numérico do clero criavam condições para que sur-
gissem diariamente tais tipos de problemas. Na sociedade italiana
_ e Bolonha não fugia à regra _, não havia família que não pro-
curasse confiar à Igreja os filhos excedentes: se mulheres, freiras;
se homens, frades e principalmente padres. Era um sistema com
raízes profundas na história e na tradição dos países católicos, mas
que dava ensejo a problemas constantes. Ele tinha a seu favor o só-
lido conceito do celibato sagrado e da virgindade, que exprimia
profundas e antigas exigências religiosas do cristianismo, e a Igreja
romana dera a essas exigências a forma jurídica de proibição canô-
nica. Quem lidava com as coisas sagradas e se comunicava com
Deus não deveria ter nenhum envolvimento com o sexo e as mu-
lheres. A ideia de que as mãos do sacerdote ofertante no altar fos-
sem impuras, antes mesmo de infringir uma lei canônica, pertur-
bava profundamente os fiéis. A lei da Igreja teve de intervir para
garantir a validade da mediação sacerdotal, independentemente
das culpas individuais de um padre específico _ tanto que a opi-
nião corrente de que os poderes sagrados dependeriam das quali-
dades pessoais fora condenada como heresia. Por outro lado, a
obrigação que o Concílio de Niceia impusera aos bispos e padres
de não manterem mulheres em casa fora progressivamente refor-
çada e tornou-se mais rígida. O Concílio lateranense 11 de 1139
havia utilizado imagens sublimes para indicar a sagrada dignidade
do corpo eclesiástico: templo de Deus, vaso do Senhor, santuário
do Espírito Santo. Aos clérigos duramente postos à prova com tal
norma, os padres conciliares explicaram que Deus nunca permi-

111
tiria que sofressem tentações acima de suas forças.5 Em todo caso,
a dignidade do corpo eclesiástico ganhou a tutela de privilégios e
barreiras protetoras.
Era necessário. Enquanto as normas canônicas sobre o modo
de vida eclesiástico se tornavam cada vez mais rígidas, crescia a
pressão social para colocar os filhos e filhas sob o abrigo dos privi-
légios eclesiásticos. Quando a crítica humanista de Erasmo e a dura
batalha teológica de Lutero negaram que o celibato dos sacerdotes
teria fundamento nas Sagradas Escrituras, o Concílio de Trento
reagiu endurecendo definitivamente a norma: de um lado, os casa-
dos que quisessem tomar a batina teriam a garantia da dissolução
unilateral do vínculo matrimonial; de outro lado, quem defendes-
se a licitude do matrimônio para os padres seria excomungadof'
Enquanto isso, Lutero e, com ele, as diversas tendências da Reforma
quinhentista rejeitaram a ideia da separação entre clérigos e laicos:
todos igualmente pecadores, os homens também estavam todos
igualmente incluídos no povo santo de Deus, desde que fossem ba-
tizados e crentes. Uma avaliação impiedosamente realista da im-
possibilidade de classificar uma condição humana sujeita ao peca-
do em estágios de maior ou menor perfeição impôs uma solução
diametralmente oposta à católica. À obrigação do celibato, reafir-
mada e enrijecida pela Igreja de Roma, a Reforma respondeu com
a obrigação contrária: seguindo o exemplo de Lutero, os pastores,
se quisessem ocupar um lugar na estrutura da Igreja, deveriam to-
mar esposa. Compromissos sérios, de homens de fé, tanto o celiba-
to quanto o matrimônio. Por trás dos insultos recíprocos de um
mundo protestante acusando padres e frades de desbragadas baca-
nais e de um mundo católico escandalizado à ideia do pastor espo-
so da Igreja e marido de uma mulher, empreendiam-se sérias ten-
tativas de adequar a realidade humana a um ideal religioso. Mais do
que qualquer equanimidade abstrata, cabe aqui a ironia de um pas-
tor protestante e historiador extremamente sério do século xx, in-

112
dagando-se o que seria pior, o celibato obrigatório ou o casamento
obrigatóriof Mas, como se trata de entender por que um padre po-
dia atravessar e conturbar a vida de uma mulher sem nada temer,
deveremos ainda dedicar uma certa atenção à obrigação do celiba-
to eclesiástico no lado católico, com suas formas e consequências.
Enxertando-se no vigoroso tronco do anticlericalismo cor-
rente, a mensagem da Reforma dera novo impulso a uma crescente
aversão contra os privilégios do clero. No anticlericalismo do final
da Idade Média expressava-se a perda geral do senso de uma função
religiosa do corpo eclesiástico, desde o papa até o último dos pa-
dres. Foi preciso proceder a uma nova sacralização para restaurar
as paredes que Lutero golpeara com violência evangélica (e para
proteger o conjunto dos bens do clero que, na Europa não católica,
foram redistribuídos de diversas maneiras). Assim, na parte católi-
ca do mundo, o corpo eclesiástico se entrincheirou tornando-se,
nas palavras de Alessandro Manzoni, “uma classe reverenciada e
forte”. Contudo, uma classe relativamente aberta, na qual era pos-
sível ingressar ao preço de um aprendizado cultural e religioso. E se
os filhos das famílias nobres e ricas estavam destinados a funções
nos altos níveis da hierarquia, os benefícios eclesiásticos menores
eram suficientes, de qualquer maneira, para suprir as necessidades
e conferir os privilégios da ordem clerical, continuando aberta,
pelo menos teoricamente, a possibilidade de ascender a níveis mais
elevados. Numa sociedade inflexível que transmitia poderes e ri-
quezas de pai para filho, o clero havia permanecido como o único
corpo capaz de alimentar uma certa mobilidade social e de elevar
membros das classes populares a graus de poder e riqueza conside-
ráveis, ou pelo menos de lhes garantir uma vida ao abrigo das ne-
cessidades e das fadigas. Mas, para enfrentar as ondas de críticas e
satisfazer a profundas exigências religiosas correntes, fora preciso
também reforçar as normas sobre os costumes clericais. Assim, desde
o hábito e a tonsura até a linguagem e a cultura (e possivelmente até

113
os pensamentos e as devoções), tentou-se dar corpo ao modelo tri-
dentino do sacerdote de bom preparo e costumes ilibados.
A pressão das críticas (já não só internas) e a obra reformado-
ra dos bispos tridentinos aniquilaram definitivamente a esperança,
difundida entre o clero, de uma possível abolição do dever de celi-
bato. Lançou-se uma ofensiva moralizadora contra aquilo que o
direito canônico definia como concubinato, mas que na realidade
possuía amiúde a dignidade social de um verdadeiro matrimônio
_ assim era na Sardenha, onde tais uniões eram celebradas com
um rito especial; e assim era também no Friuli, onde as mulheres
dos padres eram chamadas de prei/idas E, mesmo durante a fase
aguda da ofensiva lançada pelas autoridades eclesiásticas, os hábi-
tos conjugais dos padres puderam contar com uma tolerância bas-
tante difundida, o que permite supor uma genuína “defasagem en-
tre a lei da Igreja pós-tridentina e o sentimento dos fiéis”.9 A
mudança foi difícil sobretudo para as mulheres: as esposas dos pa-
dres, que viviam num estado social digno e respeitado, viram-se
lançadas pela lei à desonra e à necessidade.” Refluindo cada vez
mais para a esfera da transgressão, as relações femininas dos padres
assumiram aspectos e características de autêntica criminalidade,
que afloraram com frequência perante os tribunais eclesiásticos e,
algumas vezes, também perante os tribunais laicos. Eram episódios
com a habitual violência e abuso, tendo como objeto mulheres sol-
teiras e casadas. Poucas proteções podiam desfrutar as mulheres
sozinhas, frequentemente ameaçadas pelo padre agressor, caso re-
sistissem, de ser denunciadas como meretrizes públicas.” A honra
maculada das mulheres acarretava sempre uma lesão à honra da
família, que se defendia como lhe era possível. Disso resultou uma
sucessão contínua de problemas para a conduta sexual de padres e
frades. Eles eram protegidos pelos privilégios de suas ordens e, em
particular, pelo privilégio jurídico de ir a julgamento num tribunal
eclesiástico. Lá afluíam as denúncias de jovens estupradas ou de

114
maridos ciumentos; e havia ainda as acusações dos paroquianos
quanto aos escândalos e distúrbios causados por seus párocos, ou
por algum dos inúmeros clérigos desocupados que perambulavam
pelas estradas. Quando os documentos dos processos do tribunal
eclesiástico diocesano estão conservados e inventariados, o colori-
do da vida cotidiana apresenta-se a nossos olhos como um desfile
contínuo de questões entre padres e mulheres _ histórias com des-
fechos muitas vezes sangrentos, com mulheres expulsas da casa ca-
nônica, obrigadas a se afastar carregando a fama de meretrizes e o
peso de uma gravidez suspeita.
De fato, a violenta ruptura da Reforma protestante trouxe
como consequência a condenação de toda e qualquer manifestação
de anticlericalismo, visto como forma mascarada de heresia lutera-
na _ tanto que as novelas de Boccacio foram submetidas a expur-
gos, eliminando a identidade clerical de inúmeros protagonistas de
aventuras de conteúdo sexual. Mas, se a censura emprestava casti-
dade às páginas, a vida dos padres continuava lasciva. O exemplo
de Leonardo Mirai, pároco nas montanhas friulanas entre os sécu-
los xvl e xv11, mostra como um padre da época pós-tridentina podia
manter seus antigos hábitos sem ser incomodado: ele teve mulhe-
res e filhos, desfrutou com violência e astúcia de todas as margens
de poder e prestígio que a sua categoria lhe conferia e, ainda, esca-
pou das consequências de denúncias e processos perante o tribunal
episcopal.” Também em outros casos referentes a padres que ha-
viam estuprado meninas e mulheres sozinhas, com brutalidades
que chegaram a levar as vítimas à morte, o tribunal episcopal se de-
monstrou “surpreendentemente indulgente”.13 Certamente os
tempos estavam mudando. Não se admitiam mais manifestações
tão explícitas de um exercício ilimitado do poder clerical sobre as
mulheres da paróquia. Em compensação, abriram-se ao corpo
eclesiástico novas ocasiões mais resguardadas para saciar fantasias
sexuais. O sacramento da confissão, cada vez mais concentrado nos

115
temas sexuais,ofereceu espaço e incentivo para relações com as
mulheres. Da violência aberta passou-se assim a violências ocultas,
que tinham como vítimas escolhidas as categorias mais frágeis e
indefesas _ as mulheres em primeiro lugar. Não que faltassem
proibições e sanções, até porque as penas previstas para o crime de
“sollicitatio ad turpia” eram gravíssimas. Mas o fato é que, numa
sequência ininterrupta de documentos oficiais condenatórios, co-
brindo os quatro séculos inteiros da era pós-tridentina, referentes
à gravidade do delito, a documentação dos processos efetivamente
transitados é extremamente reduzida. Quando ocorreram, foram
inquéritos realizados e encerrados sob o máximo sigilo, atingindo
apenas as práticas sexuais eclesiásticas nascidas no contexto da
confissão.
O silêncio e a sombra protetora do segredo resultaram de es-
colhas precisas das autoridades eclesiásticas. Era necessário escon-
der os desvios sexuais dos padres pelas mesmas razões pelas quais
o clero encorajava as famílias nobres a impedir os casamentos dos
filhos com as camponesas: se a honra dos nobres era matéria de
Estado, a honra dos padres estava indissociavelmente unida à hon-
ra da Igreja. A Igreja, portanto, evitava de bom grado processos cla-
morosos, a não ser que se visse obrigada por denúncias. Entre os
documentos do tribunal episcopal não faltam processos contra
eclesiásticos por problemas com mulheres; mas em todos os casos
a origem é uma denúncia movida por outros homens _ maridos
traídos, pais ofendidos. E, como há de se lembrar, Lucia não tinha
marido nem pai. Após a denúncia, iniciava-se o processo perante a
Cúria episcopal, porque os clérigos gozavam de foro privilegiado,
isto é, podiam ser processados apenas pelas autoridades eclesiásti-
cas. Mas não se efetuava uma verdadeira justiça, nem mesmo quan-
do as provas contra o padre denunciado eram graves e circunstan-
ciadas; e nem sequer quando era culpado de infanticídio. É o que
mostra um episódio ocorrido em 1593 num vilarejo da Carnia.

116
Maria Marcuz, infanticida confessa, acusou o padre Francesco
Thimeu de tê-la seduzido com violência e a levado ao caminho do
infanticídio, inclusive ensinando-a como proceder. Ele lhe dissera:
“Quando você der à luz, logo em seguida ponha a mão sobre a boca
da criatura”; e mostrara-lhe “com a mão como devia mantê-la, e no
espaço de uma hora tal criatura estaria morta”. Maria fez “tudo o
que este padre me havia mandado, pondo a mão na boca da criatura
assim que dei à luz”.“ Padre Francesco foi denunciado e processa-
do. A condenação consistiu na suspensão a divinis e no afastamen-
to da paróquia; mas ele logo retornou, sem maiores consequências.
Não sabemos quantos padres Francesco existiram. Mas, mesmo
admitindo-se o caráter extremo e excepcional do caso, ele nos for-
nece não só a prova da lentidão e da tendência corporativista dos
juízes eclesiásticos, mas também uma singular analogia entre a
condição do padre e a da mulher solteira. Se o padre estava excluído
de direito do mercado matrimonial, a mulher que tinha um filho
seu perdia a possibilidade de se casar. Mas há uma outra analogia
mais significativa: com o nascimento de um filho, ambos tinham a
temer a perda da honra, a lesão do status. Por isso, no rumor de fun-
do das infrações sexuais do clero que acompanha a história do ce-
libato eclesiástico, uma nota recorrente é dada pelos casos de cléri-
gos empenhados em esconder as provas da contravenção lançando
mão do infanticídio. A essencial solidariedade corporativa das au-
toridades eclesiásticas em relação a eles mostra-se na decisão do
papa Inocêncio 111 _ o papa que associou seu nome ao novo ideal
do celibato clerical _ de não suspender a divinis um monge que
havia provocado o aborto de sua mulher.”
A Igreja sempre foi muito decidida na defesa do foro privile-
giado. Há exemplos célebres na história europeia e especialmente
italiana. Lembremos apenas um, ao qual está relacionada a fama da
obra de um grande erudito, o frade servita Paolo Sarpi. Em 1606, a
decisão do Estado Veneziano de prender e processar em seus tribu-

117
nais dois padres culpados de violências, agressões a mulheres e cri-
mes variados desencadeou uma guerra de textos que por pouco
não se tornou uma guerra de armas. Mas a situação em Bolonha no
início do século xvln era muito diferente do contexto veneziano do
século anterior, pois a autoridade papal era exercida não só no pla-
no eclesiástico, mas também no plano estatal, incidindo no campo
espiritual e no campo temporal. As transgressões sexuais dos pa-
dres deviam ser eliminadas ou, pelo menos, ocultadas. A denúncia
da mãe de Lucia Grimaldi, uma menina de nove anos, violentada
por um Cônego bolonhês em 1625, foi apresentada ao tribunal ar-
quiepiscopal; mas o tribunal _ afirmou Lucia anos depois _“aba-
fou a causa”.“* Ela se tornou prostituta: decorrência inevitável da
violência do padre e da injustiça do tribunal.” Assim, não admira
que os documentos do tribunal episcopal de Bolonha não guardem
traços do “padre jovem” encontrado pela outra Lucia durante o
Carnaval de 1709. Mesmo porque ceder aos estímulos do sexo não
era crime, e sim pecado. Portanto, na hipótese provável, mas para
nós inverificável, de que aquele padre tivesse sentido a necessidade
de redimir sua culpa, bastar-lhe-ia, como para tantos outros cléri-
gos nas mesmas condições, apresentar-se ao tribunal secreto da
confissão. É verdade que alguns confessores extremistas considera-
vam admissível violar o segredo da confissão para denunciar e pôr
fim às práticas sexuais proibidas. Por isso, muitos padres não hesi-
tavam em celebrar a missa sem confessar seus pecados sexuais, por
temor às possíveis consequências.” Mas podiam contar com a opi-
nião geral de que o peso da culpa recairia sobre a mulher. A cultura
clerical havia elaborado durante séculos um modelo da mulher
como Eva, tentadora do homem, presa fácil dos enganos do demô-
nio, instrumento de perdição moral. A mulher era essencialmente
o corpo feminino. E, naquele corpo, segundo os moralistas e prega-
dores, não havia lugar em que o demônio não tivesse colocado
suas armadilhas. Tais argumentos, repetidos infinitas vezes, cons-

118
tituíam o cerne vivo da cultura elaborada e difundida pelo clero
_ cultura condenada a girar em torno do objeto de um desejo re-
primido, que se tornou intolerante e violenta devido à vontade de
eliminar as consequências das transgressões à norma. Dessas trans-
gressões faziam parte integrante os abortos e os infanticídios.

Procuramos um perfil individual e surgiu um tipo social. Os


traços do homem que encontrou Lucia desaparecem por trás da
figura do clérigo em busca de aventuras, encoberto pelo anonima-
to, protegido pela lei do silêncio das instituições de um Estado que
se dizia da Igreja, com eclesiásticos em cargos de governo. Não um
retrato, portanto. No máximo, um perfil desenhado pelas linhas de
sombra, como uma silhueta, que reduz uma pessoa a um contorno
estilizado, traçado pelo plano de fundo. Os traços fortemente indi-
vidualizados de um retrato, que permitiam aos espectadores da
Florença renascentista reconhecer imediatamente Lorenzo de
Médici e os homens de seu círculo nas pinturas de Ghirlandaio,
eram prerrogativa reservada a uma elite. Fontes iconográficas e
fontes escritas deixaram ao fundo as figuras menores, para as quais,
na reconstituição histórica, sobra apenas a alternativa da tipifica-
ção social, recorrendo-se à descrição do contexto e dos comporta-
mentos dominantes do ambiente. Se quisermos conhecer melhor
Lucia Cremonini, não resta senão este caminho.

119
3. “O Carnaval próximo passado”

Depois de umajuventude vivida à sombra, dois momentos da


existência de Lucia foram iluminados por uma intensa luz de aten-
ção pública: dois Carnavais bolonheses, o de 1709 e o de 1710. Das
diversões do primeiro, Lucia participou voluntariamente: houve o
encontro com o padre e a relação sexual que a engravidou. Das di-
versões do segundo, ela participou pela vontade de outros.
Vejamos, então, o primeiro Carnaval. E uma coisa logo se evi-
dencia: não foi por acaso que a gravidez de Lucia teve início no
Carnaval. O Carnaval era o momento anual das inversões das rela-
ções sociais, da suspensão das regras. As mascaradas, o tumulto da
multidão reunida nas praças e sob os pórticos, os aparatos públicos
convidavam a esquecer a penúria do cotidiano, a celebrar a abun-
dância da comidae os prazeres da carne_prazeres quea Quaresma
depois mortificaria. Uma sabedoria popular inscrita nos provér-
bios ligava o Carnaval ao aumento da gravidezf Entre as conheci-
das características da imagem de Bolonha, além da Universidade
(“Bolonha, a douta” ) , havia _ fundamental _ a do gozo dos sen-
tidos, do triunfo da gula e do sexo (“Bolonha, a gorda”). E o Car-

120
naval representava o momento culminante do triunfo da festa e
dos prazeres do corpo. Mas Bolonha era também a segunda cidade
do Estado Pontifício. O poder estatal estava nas mãos de um sobe-
rano especial, que era também chefe espiritual da Igreja universal
(“católica”). Suas duas “almas”, a espiritual e a temporal, manifes-
tavam-se nas formas e nos conteúdos do exercício do poder na ci-
dade. Ele devia prestar contas à antiga classe dirigente local, a casta
dos senadores, que garantira seu espaço de autonomia com os “ca-
pítulos” estipulados sob o papado de Nicolau v, objeto de contí-
nuas invocações e contestações. Mas o ingresso da Igreja no Estado
tivera consequências importantes sobre o governo da vida social
_ do sistema tributário à administração da Justiça, das redes de
poder às manifestações públicas de tipo sacro e profano, incluído
naturalmente o Carnaval. O poder nas sociedades do Antigo
Regime, justamente por ser delegado por Deus, tinha muitos deve-
res em relação ao povo, mais do que se poderia imaginar do ponto
de vista das sociedades modernas democráticas. Ele devia assegu-
rar o abastecimento, proteger a saúde contra as epidemias, regula-
mentar as águas, garantir a paz pública e muitas outras coisas mais;
e, entre elas, a organização das festas certamente não era a menos
importante. Somente no decorrer do século xvni uma nova ideia do
uso do tempo, ligada ao trabalho e à produtividade econômica, le-
varia também as autoridades do Estado Pontifício a um primeiro
corte nas festividades, o qual, mesmo tendo sido limitado, levantou
polêmicas e reações de todos os tipos? Nos anos que estamos exa-
minando, porém, a festa era um momento essencial da vida social.
Sua importância era tão grande que se desencadeavam as mais vio-
lentas polêmicas contra as tentativas periódicas de diminuir a du-
ração e as modalidades dos festejos. Somente a voz dos pregadores
da penitência, em especial dos missionários capuchinhos ou jesuí-
tas, insistia em reapresentar uma visão soturna da vida dominada
pela morte e pelo inferno. Mas mesmo essa versão moralista do

12.1
cristianismo, que conhecera um forte impulso em época anterior
por obra dos reformadores protestantes e católicos, acabava por
unir-se às explosões festivas que constituíam como que um com-
plemento necessário seu. Assim, houve um soberano especialmen-
te beato como o grão-duque da Toscana, Cosimo III, que organizava
e financiava festas e jogos (o futebol, por exemplo) durante o
Carnaval? E o tempo da transgressão também valia para o clero. O
padre toscano Vincenzio Benedetti comemorava de uma maneira
que talvez agradasse a seu anônimo confrade bolonhês, o de Lucia:
“mascarado de lombardo, com gibão e meias brancas e grande cha-
péu à moda antiga, armado de adaga ou florete, participava das vi-
gílias dos bailes com seu violino, brincando e agindo com familia-
ridade com as moças”.4 Era também um hábil improvisador de
serenatas e stomelli, e compôs para a Festa da Primavera (19 de
maio) de 1704 um belo canto de maio imitando o de Redi. Mas,
tendo trocado a missa do IQ de maio por outra alegre cantata pelas
ruas do vilarejo, teve de haver-se com o tribunal do bispo e foi afas-
tado da aldeia. Algum paroquiano escandalizado apresentou de-
núncia ao tribunal episcopal.
O jogo alternado da transgressão e da proibição fazia parte
dos hábitos. Em Bolonha, foram precisamente as autoridades ecle-
siásticas dirigentes da segunda cidade do Estado Pontifício que
criaram alternadamente as interdições e as concessões, a proibição
e a organização das festas. Nos livros de registros do Conselho dos
Anciãos, onde constavam as principais realizações públicas, esta-
vam representados os eventos carnavalescos mais significativos,
realizados no palco da Piazza Maggiore. Os titulares do poder pre-
senciavam e participavam dos aparatos festivos destinados a diver-
tir o povo, sem que se percebessem contradições no comportamen-
to das autoridades eclesiásticas que, de um lado, pregavam a luta
contra o Carnaval e, de outro, incumbiam-se de organizá-lo. Com
efeito, garantir ao povo as diversões e as evasões da festa carnava-

122
lesca, enquanto se lhe pregavam os méritos do ascetismo cristão,
era tido como prova de sabedoria política. O modelo de uma vida
social católica sóbria, isenta de imoralidades e heresias, era o que se
propunha e se impunha oficialmente em Bolonha, desde os tempos
da Reforma protestante e do Concílio de Trento. Sob bispos rigoro-
sos como Gabriele Paleotti, a Reforma tridentina assumira o aspec-
to de uma vitoriosa reação da Quaresma contra o Carnaval. E ainda
nos primeiros anos do século xvnl o Carnaval continuava sob acu-
sação. Em 10 de janeiro de 1702, um édito afixado “nos locais usuais”
determinava, sob pena de uma multa de quinhentos escudos e cin-
co anos de prisão, “que nenhuma pessoa de qualquer estado, grau e
condição [...] ousasse praticar ou permitir que se praticasse, em
público ou em particular, tanto nesta cidade de Bolonha como fora
dela, em qualquer lugar da Legação, em casa ou na casa de terceiros,
qualquer atividade carnavalesca, especialmente festas, bailes, más-
caras ou fantasias com roupas impróprias sem máscaras, comédias,
representações de qualquer tipo, e de modo geral toda e qualquer
outra atividade, diversão ou folguedo carnavalesco”. A intenção do
papa era que o povo cristão, “abandonada a prática dos divertimen-
tos profanos, aplique o espírito e a atenção maior a procurar evitar
qualquer ocasião de ofender ao Senhor Deus, para conseguir que se
convença a depor seu justo desdém, e com isso o flagelo com o qual
nos atinge”. Era preciso aplacar a ira divina que se manifestava nas
“presentes calamidades, que ainda grassam na Itália”.5 A opinião do
papa era que os divertimentos do Carnaval podiam desencadear a
ira de Deus, justamente porque ofereciam ocasião para “muitos es-
cândalos e faltas prejudiciais à boa disciplina da vida cristã e à ho-
nestidade dos costumes”.
A ideia de um Deus juiz que acompanha colérico as ações dos
seres humanos e manifesta sua ira por meio de flagelos _ terremo-
tos, epidemias, tempestades _ sustentava toda a argumentação
papal. Era um argumento que se pode dizer popular. Era usado pe-

123
los pregadores para induzir as pessoas à penitência por ocasião de
eventos naturais como terremotos, secas e enchentes, ou de tragé-
dias provocadas pelos homens _ em primeiro lugar, as guerras.
Naqueles anos, a ira de Deus ainda se manifestava sob a forma de
raios, e os homens ainda se recomendavam à proteção dos santos,
como fizera Martinho Lutero no caminho para Erfurt num dia de
julho de 1505, quando io medo de um raio o levou a fazer o voto
de se tornar monge. Se o raio decidira sua vida e a história poste-
rior da Europa, era porque a natureza não era senão um instru-
mento da grandeza e da bondade de Deus. Assim raciocinava um
teólogo luterano alemão em pleno século xvtnf
Portanto, não havia necessidade do édito de um papa. Toda a
tradição cristã estava constelada desses exemplos e advertências
ameaçadoras. As culpas dos homens desencadeavam a ira divina. E,
entre as culpas, uma em particular havia se avolumado ao longo
dos séculos em suas dimensões mentais, até ocupar uma posição
dominante e quase eclipsar as demais: era a que tinha em seu centro
os instintos sexuais. A domesticação dos sentidos era o objetivo que
os pregadores de penitências se empenhavam em propor. E princi-
palmente às mulheres, pois eram elas as mais suscetíveis de cair no
pecado. Não fora Eva que levara Adão ao pecado original, fonte de
todos os males? E aquele pecado não era talvez de natureza sexual,
como os exegetas vinham dizendo com insistência crescente? Por
outro lado, as mulheres estavam cada vez mais ocupadas em cuidar
da própria beleza, a gastar em roupas e joias, arruinando os pobres
homens com enormes despesas. Não havia estatuto citadino que
não dedicasse páginas e páginas à regulamentação do vestuário e
dos ornamentos das mulheresf Era daqui que devia partir a bata-
lha contra o pecado. “Por que _ perguntava-se um frade capuchi-
nho _ pretendem certas moças se adornar e tanto se enfeitar, se
não para serem vistas, amadas e mais respeitadas? O que direi da-
quelas que às vezes se mostram com o seio descoberto, estudando

124
uma pose favorável e que seja agradável à juventude?” Ver, ser vis-
tas: a visão _ a da mulher _ é o sentido que deve ser controlado e
punido. “O que se faz à janela? O que se faz à porta de casa? Olham-
-se as pessoas que passam; observa-se a gente que aparece; e quan-
tos objetos diversos podem apresentar-se a seus olhos?” Por isso
frequentam-se festas e bailes. A solução de não frequentar festas
não bastará se não se castigar a vista. E se o sumo exemplo é o da he-
roica santidade da jovem que, “tomando uma faca, arrancou seus
dois olhos”, em condições normais basta submeter o olhar a uma se-
vera disciplina: “Moderai os vossos olhares; mantende os vossos
olhos sempre baixos e modestos”.8 Os olhos baixos constituíam um
item obrigatório no léxico da devoção _ uma linguagem elabora-
da pela cultura clerical para educar as mulheres.” O regime devigi-
lância especial a que estavam submetidas demandava uma regula-
mentação estrita dos locais, tempos e hábitos do cortejar. A janela,
a porta de casa, a rua e a praça eram os degraus da desabalada car-
reira que levava à ruína. O Carnaval, com o baile e o uso de másca-
ras, era a máxima exposição possível à oportunidade do pecado. A
longa guerra contra o divertimento popular, que consistia na liber-
dade de comida e de sexo, empenhava os portadores da religião
oficial no combate à festa anual da subversão da ordem e das regras.
Do ponto de vista deles, o relato de Lucia Cremonini sobre seu
Carnaval de 1709 confirmava a exatidão do diagnóstico.
Mas a cultura religiosa oficial não se expressava apenas nos ser-
mões dos moralistas. Uma densa série de normas regulava os com-
portamentos legítimos nas formas permitidas e institucionalizadas
do encontro entre os dois sexos, isto é, noivado e matrimônio.
Tratava-se de impor normas jurídicas e legitimidade religiosa às re-
lações sexuais, corrigindo e suprimindo onde possível os ritos de
uma tradição inspirada na religião natural da fertilidade. O sexo só
deveria ser permitido no matrimônio e com a finalidade de procria-
ção. Portanto, as formas de amor estavam sujeitas a uma rígida fisca-

125
lização dos moralistas para averiguar o grau de prazer injustificado
que se introduzira. Os confessores tinham à disposição os manuais,
onde podiam encontrar descrições das relações sexuais ilícitas que
empregariam na pedagogia do diálogo com os penitentes. O matri-
mônio fora santificado como sacramento, mas ao preço de um rigo-
roso inventário dos usos legítimos e, sobretudo, ao alto e difícil preço
social de criar o vazio ao redor dele. As formas do cortejo ritualizadas
nos “sponsalia”, ou bodas de noivado, foram as primeiras a sofrer res-
trições. A promessa de futuro matrimônio, porém, continuava a ser
a forma mais resistente e perigosa (do ponto de vista eclesiástico) de
uma prática social da ligação amorosa, que permanecera vital e in-
tocada ao lado da moral sexófoba oficial do corpo eclesiástico e do
ascetismo monástico. Uma vez iniciado o percurso da conquista
cristã do mundo laico, o matrimônio se apresentará como a questão
decisiva. O ponto de vista eclesiástico se caracterizava, por um lado,
pelo conhecimento concreto e realista do que chegava aos ouvidos
dos confessores e, por outro, pela certeza da corrupção radical dos
instintos naturais devido ao pecado original. O que fora bom no
Jardim do Eden tornara-se, depois da queda de Adão e Eva, uma pe-
rigosa e irresistível causa de ruína do gênero humano. Os matrimô-
nios eram necessários para multiplicar a espécie, e sobretudo para
manter e ampliar a presença cristã no mundo. Mas o instinto sexual
era fonte de corrupção e ruína irremediável: subvertia as institui-
ções, dissolvia os vínculos sociais e iludia com uma possível felicida-
de diferente daquela do reino dos céus, única felicidade verdadeira
para os cristãos. Por isso a insistência, a persistência determinada,
paciente, inabalável com que as autoridades eclesiásticas reafirma-
vam periodicamente as mesmas instruções sobre o noivado (ou os
esponsais). Sendo proibido qualquer convívio fora de casa, mesmo
o que ocorria nas janelas da mulher, a questão era pôr-se em guarda
contra os usos ilícitos da promessa matrimonial. Era com essa arma-
dilha que os homens enganavam as mulheres e tiravam-lhes a vir-

126
gindade, largando-as depois diante da perspectiva de uma vida ar-
ruinada pela maternidade fora do matrimônio. Assim, era preciso
que a promessa de casamento se desse sob o controle da família. A
autoridade do pai de família, mesmo encerrada dentro de certos li-
mites pelas regras canônicas que regiam o princípio da exogamia,
continuava a ser a instância fundamental. Sem o consentimento de
quem detinha o pátrio poder, não havia matrimônio legítimo. A
aliança entre família e Igreja estabeleceu-se mais na prática do que
nos princípios, e foi uma aliança para a defesa das barreiras do con-
vívio social. “Não há nada na nossa vida civilizada que seja mais di-
fícil do que casar convenientemente as filhas”, escreveu lapidarmen-
te Francesco Guicciardini.” As normas da época pós-tridentina
fizeram do pároco um aliado valioso dos pais. Era ele que deveria
interrogar cuidadosamente os futuros noivos e certificar-se da serie-
dade de suas intenções e da autorização paterna. As normas da boa
moral católica estabeleciam que, uma vez constituído o vínculo da
promessa, os noivos poderiam se ver _ nunca a sós, nunca em local
isolado. Se há um homem sozinho com uma mulher sozinha em lo-
cal afastado, dizia o provérbio dos moralistas, ninguém vai imaginar
que estejam rezando o Pai-Nosso. Por isso a “conversa” dos noivos
_ no sentido antigo de estar juntos _ deveria ser canalizada aten-
tamente dentro de regras precisas. Cabia à família vigiar para que
não ocorresse nenhuma ocasião de liberdade que pudesse levar os
noivos a consumar o “estupro”, isto é, a relação sexual fora do matri-
mônio. Quem faltava a suas obrigações era atingido pela excomu-
nhão reservada ao bispo, por vezes acrescida de uma multa em
dinheiro.“ Quem infringia tais regras era ameaçado até de excomu-
nhão. Mas a facilidade com que se podia ser absolvido, mesmo com
uma simples confissão logo antes do matrimônio, abre uma fresta
sobre a realidade das coisas. E a resistência do Carnaval num regime
de rigoroso controle eclesiástico dos costumes, e na segunda cidade
do Estado da Igreja, há de significar alguma coisa.

127
4. “Tirou minha honra e me deflorou”

Lucia lembrava claramente o que havia comido na noite de


Carnaval com o padre: mortadela, talharim, pão e vinho, na taver-
na de' Morelli da San Bernardino. Já a lembrança do ato sexual era
sumária: “me deflorou e depois da primeira vez me conheceu car-
nalmente duas ou três outras vezes”. A refeição era mais importan-
te; e, de qualquer maneira, comida e sexo eram realidades concre-
tas, não suscetíveis de reelaboração fantasiosa ou de colorido
sentimental. Se geralmente é difícil reconstituir a vida afetiva do
passado, a das classes populares apresenta dificuldades ainda maio-
res. É como se os sentidos e os sentimentos não pudessem existir
simultaneamente. Ternura, afeto, paixão e tudo o que compõe
(para nós) a gama da afetividade não encontram expressão. Existia
o amor para Lucia? Quem se dedicou ao estudo dos amores cam-
poneses nas sociedades do Antigo Regime não soube responder à
pergunta, ou descreveu paisagens humanas devastadas pelo cansa-
ço e pela violência com relações difíceis entre mulheres e homens,
e mais ainda entre mulheres e mulheresf
Conhecer os sentimentos do passado é colocar um problema

128
insolúvel quando dispomos apenas das exíguas pistas de um pro-
cesso. E, nos documentos que folheamos, não se encontra nenhu-
ma expressão deles. Geralmente, as fontes que abordam os senti-
mentos são elaboradas por autoridades religiosas ou políticas, para
fins edificantes ou punitivos; e para as mulheres, em particular, são
textos de moral que ensinam a diferenciar entre o verdadeiro amor
_ reservado a Deus _ e as formas enganosas e culpáveis do amor
humano. Falta-nos a transcrição das palavras ditas e ouvidas, das
formas de cortejo. Quando existem, é porque as relações termina-
ram mal, isto é, sem matrimônio. Homens e mulheres compare-
ciam diante dos juízes se uma promessa matrimonial fosse rompi-
da ou, em todo caso, quando a ligação se desfazia ou entrava em
crise. Então a evocação das relações sexuais ocorridas assumia for-
çosamente o gélido tom da descrição de algo arrancado com o en-
gano e com posterior quebra de compromisso. Nos processos ma-
trimoniais por quebra de promessa, as descrições dos encontros
falam de relações rápidas e violentas, extorquidas pelo homem
com a promessa de casamento, mais sofridas do que consentidas
pela mulher?
Como dissemos, a lei definia como estupro qualquer relação
sexual com mulher não casada. Mas basta ler alguns autos dos pro-
cessos por estupro para inverter a definição, ou seja, as relações
eram estupros no sentido atual do termo, isto é, uma subjugação
rápida, violenta, sem palavras. Ê suficiente folhear algum fascículo
dos processos criminais dos anos de Lucia para ter uma ideia. Eis,
por exemplo, a denúncia de Camilla Franchini, registrada em
Bolonha em 13 de abril de 1723: “Arrancou-me a banqueta, e eu caí
no chão, e depois este Giacomo ergueu minha saia e tirou suas cal-
ças, e depois veio por cima de minha barriga”.3 A banqueta arran-
cada é o rude artifício que reaparece na denúncia de Maria Tonelli,
em 13 de março: “Encontrando-me eu sentada numa banqueta, o
mesmo Mazzanti me tomou e me jogou no chão, e depois se atirou

129
sobre mim, e depois me levantou a saia e a camisa da frente, e ele
tirou as calças”.4 Não é muito diferente a rápida cena de violência
descrita no depoimento de Isabella Amadori, de 18 de janeiro: “Ele
me pegou de repente de atravessado, e me levou ao dito fosso e de-
pois me jogou no chão com o rosto virado para cima e eu, por estar
com muito medo, não me atrevi a dizer nada, e depois levantando
as minhas roupas da frente e especialmente a camisa se jogou sobre
mim e abrindo suas calças tirou para fora seu pênis bem grosso e
duro e o apontou para minha natureza, na qual o fez entrar à força
com grande dor para mim pois eu era menina virgem”.5 Poderíamos
multiplicar os exemplos. Mas o esquema é repetitivo; e não por
causa de algum formulário de polícia. As denúncias são ricas de de-
talhes narrados numa linguagem que ignora eufemismos e rodeios.
Os juízes ouviam o tempo todo o relato de tais tipos de episódios.
O abuso masculino do estupro aparecia ainda sob outras formas
nos ritos da Justiça. As mulheres engravidadas à força eram condu-
zidas oficialmente perante o juiz e eram obrigadas a apresentar o
relato dos fatos. A submissão à violência era a parte que lhes cabia;
atinham-se a ela nos testemunhos, como que por uma divisão
natural das partes. Narravam cenas sem palavras. Se as mulheres
compareciam como figurantes passivas e silenciosas, os homens
também raramente falavam e, neste caso, apenas para pronun-
ciar palavras de desprezo. Em 12 de abril de 1723, Anna Maria
Giovagnoni, conduzida ao tribunal por ter dado à luz um filho do
patrão, assim narrou o começo do ato: “Ele me pegou e me jogou
na cama de costas [...] começou a me dizer que eu era serva, e que
por isso queria que obedecesse a ele, e depois de dizer isso ergueu as
minhas roupas”.6 O desprezo e o silêncio eram a regra na relação
entre patrão e empregada.Assim, em 18 de janeiro de 1723, Isabella
Amadori, tendo sido encontrada grávida, declarou que a responsa-
bilidade era do patrão. Ele a tomara à força e em silêncio, e “feito
isso ficou de pé dizendo “raça sem vergonha, faz tempo que te jurei”,

13o
mas nunca mais tinha me dito nada sobre isso, e depois foi
embora”.7
Poucas as palavras, ausente a linguagem dos sentimentos, a
mulher aparece nessas histórias como um objeto consciente de sê-
-lo, vítima passiva de violências mudas e bruscas, quase uma irrup-
ção de forças da natureza: tal é o papel que lhe é designado e que se
lhe oferece como a única forma de autorrepresentação perante o
juiz. Era assim mesmo que aconteciam as coisas? Os homens acu-
sados de estupro se defendiam quase sempre fazendo o papel de
vítimas de provocações femininas, acusando as mulheres de terem
tido parte ativa, de sedutoras experientes. Mas a luta era desigual, e
o que estava em jogo era muito diferente: para o homem, havia o
perigo de um matrimônio ou de um dote indenizatório; para a mu-
lher, a desonra e o inevitável recurso à profissão infamante de pros-
tituta. Assim, era forçoso que as mulheres se apresentassem como
objetos passivos da violência masculina, mesmo que as coisas tives-
sem se dado de outra maneira. Era a única forma de poder reivin-
dicar a proteção da lei.8
Não buscaremos nessas histórias a dimensão privada e livre de
uma relação a dois. Mesmo porque fica evidente nas palavras das
testemunhas que os olhares da sociedade ao redor eram capazes de
acompanhar praticamente todos os detalhes de cada ato e de cada
encontro. Tudo era público. Até a cama era um local normalmente
ocupado por mais pessoas, e o que lá ocorria era registrado e nar-
rado sem reticências. As palavras enunciadas sobre as relações en-
tre os dois sexos provinham do grupo dos homens, solidários e
vaidosos em comentar suas conquistas pessoais, enquanto o grupo
das jovens aparece mais fechado e submisso, pronto a espreitar, a
ser maledicente, a se dividir por ciúmes e invej as. Um fato é indis-
cutível: apesar da campanha das autoridades eclesiásticas da época
tridentina e dos poderes públicos para conduzir o matrimônio ao
interior do edifício sagrado e para regulamentar as formas das pre-

131
liminares amorosas, o cortejo, na realidade das classes populares,
continuou a ser por muito tempo uma demanda sexual do homem
em vista de um possível matrimônio, o qual, aliás, quando se reali-
zava, era celebrado depois do nascimento de um ou mais filhos.
Não faltavam as representações do amor como sentimento,
que iam se difundindo na cultura das classes populares por inter-
médio de uma literatura composta de poemas cavaleirescos e de
romances lidos nos serões. Aqui também as proibições da censura
eclesiástica e os sermões dos moralistas, em sua monótona cantile-
na, indicam antes a persistência das práticas criticadas do que uma
mudança dos costumes. A fome de histórias extraordinárias e co-
moventes se saciava de diversas maneiras. Histórias de amores in-
felizes circulavam na literatura dos casos judiciais. Em Bolonha,
houve uma grande repercussão em torno do caso dos “infelizes
amantes”_ conforme foi definido num opúsculo _, em que a no-
bre Ippolita Passarotti e Ludovico Lantinelli foram levados ao pa-
tíbulo em 1587 por terem envenenado o pai da moça? Eram histó-
rias de um outro nível social; um mundo que abria espaço aos
sentimentos e paixões. E difícil imaginar a sedução que podiam
exercer sobre a imaginação de um mundo popular, que olhava para
tais histórias preenchendo a distância social com a fantasia. O olhar
da criadagem penetrava no interior das casas senhoriais e construía
uma ideia própria sobre o modo de vida dessa outra classe, tão pró-
xima e ao mesmo tempo tão remota. E Lucia, como sabemos, pas-
sara por tais experiências. Havia também um outro local onde os
acontecimentos do dia e a vida das classes dominantes e das classes
populares eram objetos de comentários e julgamentos: a igreja.Ali,
os sermões dos párocos, dos bispos e principalmente dos missioná-
rios tentavam reconduzir os comportamentos à moral oficial, váli-
da para ricos e pobres. Evidentemente, o mundo eclesiástico man-
tinha sob especial observação as classes dominantes. A família
citada nas instruções do clero é sobretudo a da casta dos patrícios.

132
Temos um testemunho de uma missão realizada em Bolonha nos
primeiros anos do século xvnl por um dos mais célebres missioná-
rios da Companhia de Jesus, Fulvio Fontana. Os jesuítas foram os
primeiros a descobrir o povo das montanhas e dos campos; traça-
ram e empreenderam a conquista cultural com a palavra de ordem
das “Índias daqui”, retratando a ignorância e a bondade natural
com as cores exóticas dos selvagens da América. Mas agora Fulvio
Fontana pertencia a uma outra época, diferente dos tempos de
Francesco Saverio e das missões populares voltadas para os campo-
neses e pastores. Na missão bolonhesa, ele aplicou sua arte da ora-
tória justamente ao tema do amor e da família. O que o jesuíta ex-
pôs em suas pregações no centro e no norte da Itália e na Suíça foi
a ideia da familia como realidade afetiva e de mútuo auxílio entre
marido e mulher, entre pais e filhos. O modelo de família cristã por
ele apresentado contrapunha-se ao hedonismo das classes altas e à
busca burguesa do sucesso e da ascensão social por meio da cultura
e das profissões liberais. Um texto seu contra a moda dos acompa-
nhantes provocou uma tempestade entre a alta sociedade bolonhe-
sa, onde Lucia Cremonini desempenhava suas funções serviçais.1°
Fontana queria que suas palavras fossem um veículo da virtude,
capaz de penetrar como a luz do sol “tanto [...] nos palácios dos
grandes como nos casebres dos lavradores”.“ Mas seu olhar se con-
centrava mais nos palácios do que nos casebres, pois era lá que rei-
nava o amor. E convidava as nobres bolonhesas a meditar sobre a
expressão de uma anônima “Santa Dama [que] costumava dizer
que temia muito mais o amor do que o demônio, pois o amor é uma
paixão violentíssima”.“ “Viver na moda”, tal era a grave ameaça de-
tectada pelo olhar do missionário jesuíta. E a moda sob sua mira era
o jogo de amor com os acompanhantes, os encontros com os cava-
lheiros de companhia “nas carruagens, nas salas de jogos, nos quar-
tos, nos apartamentos mais secretos da própria casa”, onde os rece-
biam vestidas (ou melhor, despidas) “em trajes Sumários”. A moda

133
dos acompanhantes era “a invenção mais diabólica que poderia
existir”.”' As acusações do jesuíta encontraram grande repercussão
na cidade. Enquanto o opúsculo vendia a rodo, as famílias nobres
da cidade pediram ao inquisidor para proibi-lo (sem sucesso, ao
que parece).“ E o caso não se resumiu a palavras. O missionário
costumava se intrometer pessoalmente nos amores dos nobres. As
confidências e os escrúpulos morais que ouvia durante as confis-
sões levavam-no a intervir diretamente nas relações ilícitas, para
tentar converter os pecadores. A utilização dos segredos revelados
no confessionário era uma tentação irresistível que se insinuava
desde longa data, em especial na Companhia de Jesus. Um corpo de
especialistas na direção espiritual sentia-se, por sua própria natu-
reza, impelido ao intervencionismo moral. Um pouco mais tarde,
no mesmo século, coube precisamente a um pontífice de origem
bolonhesa, Prospero Lambertini, papa Bento xiv, condenar pe-
remptoriamente as pessoas que julgavam lícito esse tipo de inter-
venção, pois levava de roldão o próprio segredo da confissão _ ou,
como se dizia na época, o sigilo sacramental. 15 E, além do mais, me-
ter o nariz nas transgressões sexuais da boa sociedade tinha lá seus
riscos. Fulvio Fontana, certa feita, foi abordado por um nobre com
uma pistola na mão, arriscando-se a ver“o teatro das missões trans-
formar-se em teatro da tragédia”.“* Portanto, em Bolonha e no
mundo europeu mais amplo, a cultura cristã estava mais empe-
nhada do que nunca na antiga tarefa de erguer uma muralha contra
os prazeres do mundo. Com a crescente disponibilidade de meios
econômicos e bens de consumo, o prazer de viver se revigorava e
criavam-se novos códigos de comportamento que, uma vez mais,
confiavam à mulher _ como já ocorrera nas cortes renascentistas
_ a tarefa de ditar as regras do ogodo amor, com uma autonomia
mais ou menos fictícia no comando das regras da relação entre os
sexos. O consumo de bens e o amor sensual coincidiam em apre-
sentar a mulher como o centro ideal do prazer. Mas, aqui, a cultura

134
europeia se dividia seguindo profundas linhas de ruptura, marca-
das não só pela economia, como também pela formação religiosa.
Na Inglaterra, onde afluíam produtos exóticos e riquezas acumu-
ladas com as atividades mercantis, ao sabor da moda que convida-
va à liberdade, aos prazeres, a seguir a força natural das inclinações
da natureza, opunham-se as tradições calvinistas das classes domi-
nantes. Por isso, as novas regras sociais entre elas lançaram seus
fundamentos na respeitabilidade.” No mundo católico italiano, a
delegação dos cânones morais recaía sobre um clero alinhado na
defesa da tradição e preocupado com os riscos difundidos pelas
modas das classes dominantes entre as classes populares, em pri-
meiro lugar entre sua criadagem. Desenhando em suas pregações
um modelo positivo de família cristã, padre Fontana enfrentou
com desenvoltura o problema dos perigos a que estavam expostas
as criadas: “Pois se afinal o assédio vem do patrão e não sabeis como
vos defender, sois obrigadas a deixá-lo enquanto podeis, e a fazer
tudo o que vos ordenar o douto e prudente confessor, a quem de-
veis necessariamente contar tudo, para não errar”.“*
Não era um grande conselho. Como já vimos, as respostas que
os confessores bolonheses estavam treinados a dar em casos de re-
lações entre desiguais deviam proteger a honra nobiliárquica do
patrão Lelio e não a da camponesa Caia.” Na verdade, o amor con-
tinuava a ser coisa de senhores. As divisões estanques da sociedade
de Antigo Regime garantiam a separação entre a moral aristocráti-
ca e a moral popular.
Voltemos a Lucia. Talvez ela tivesse ouvido as pregações do pa-
dre Fontana; talvez tenha comentado modas e amores com as com-
panheiras durante os dias de festa. Mas não sabemos dizer nada ao
certo sobre os modos e os tempos de sua educação sentimental,
nem, em termos mais gerais, sobre a cultura e a instrução que havia
recebido. Não sabemos se sabia ler ou escrever, e não existem vestí-
gios escritos seus. Talvez tivesse, no máximo, uma educação religio-

135
sa, como outras jovens de sua condição. Nunca a Igreja havia se
preocupado tanto com a instrução dos fiéis. O ideal do “cristão ins-
truído” produzira, além do texto homônimo de Paolo Seneri, o
Jovem, uma vasta literatura e uma rede de instituições educacio-
nais. Mas o ensino ministrado pela paróquia, pelos pregadores ou
pelos zelosos propagadores da doutrina cristã, os quais, a exemplo
de Cesare Bianchetti em Bolonha, recolhiam as crianças pobres das
ruas, era de tipo oral, mnemônico e limitado a algumas poucas no-
ções: princípios de caráter religioso e moral, orações, rudimentos
indispensáveis para os sacramentos da confissão e da comunhão.
Na Bolonha da época, como também nas comunidades menores de
seu território, não faltavam outras escolas; mas o acesso à leitura e
à escrita era rigorosamente reservado aos meninos. Mesmo no sis-
tema citadino das escolas paroquiais religiosas, a hipótese de uma
presença feminina (e o caráter interclassista dessas instituições) já
havia criado problemas desde os primórdios pós-tridentinos. E,
ainda às vésperas da Revolução Francesa, o cardeal Gioannetti in-
sistia que os párocos prestassem atenção em separar os sexos nas
reuniões dominicais dedicadas ao catecismo.”
Quanto à educação dos sentidos e afetos de Lucia, não sabe-
mos se, antes daquele encontro com o padre na praça, existiram
outros homens em sua vida. A relação com o padre, rápida e casual,
não parece precedida por nenhuma forma de conhecimento ou de
convívio anterior. Não constam _ mas não significa que não te-
nham ocorrido _ encontros com outros homens, daqueles que
normalmente antecediam a promessa de casamento, isto é, o noi-
vado, os esponsais. O matrimônio estava presente no horizonte das
esperanças de Lucia, e prova disso é a expectativa do dote da paró-
quia. E o cortejo e as relações sexuais geralmente precediam o casa-
mento. A porcentagem de núpcias de mulheres grávidas ou com
filhos variou ao longo dos séculos, mas nunca desapareceu por
completo. Na Itália católica, as autoridades eclesiásticas e os pode-

136
res estatais combatiam de todas as maneiras a coabitação não rati-
ficada pelos rituais públicos na igreja e pelo registro oficial. Mas
ainda valia um antigo modo de entender a união legal como sanção
de um acordo já contraído e de uma fertilidade comprovada. O
mesmo decreto tridentino sobre a reforma do matrimônio limi-
tou-se a “exortar” os cônjuges a evitar a coabitação antes da bênção
eclesiástica.” O esforço de canalizar as escolhas juvenis para a úni-
ca alternativa entre o estado conjugal ou o eclesiástico (para as mu-
lheres: ou freira ou esposa) encontrava um obstáculo precisamente
nos esponsais. O matrimônio regulamentado pelos decretos tri-
dentinos em terras católicas era algo que deveria ocorrer antes das
relações sexuais. E isso porque não se admitia o nascimento de fi-
lhos fora do casamento, isto é, de um sistema de alianças cuidado-
samente regulado pela família, com o apoio determinante da Igreja.
Daí a abundância de interdições que atingiam as formas e circuns-
tâncias de convívio livre entre os jovens: bailes, festas, encontros
ocasionais nas ruas e praças da cidade.
Por outro lado, a única certeza é que Lucia sabia que se trata-
va de um padre. Portanto, aceitar uma relação _ mas terá acei-
tado ou simplesmente se submetido? _ era uma outra coisa,
comparada às relações amorosas e sexuais com um marido em
potencial. Conservar intacto o corpo e preservá-lo ao acesso mas-
culino era tarefa da mulher, e nisso consistia sua honra. Ao escrivão
que a interrogara, Lucia relatou uma história que trazia a justifica-
ção de seu comportamento no gerúndio inicial: “Sendo eu jovem
honrada e de bem [...] ”. Giacomo Arrighi -- o advogado dos pobres
que assumiu sua defesa _ também invocou o argumento da honra
e, secundariamente, o da “simplicidade” de sua cliente.
Umajovem humilde, despossuída, guiada em seus comporta-
mentos pelos mais grossos fios culturais daquela sociedade onde
ocupava os últimos degraus: tal é a impressão que nos passa Lucia
ao lermos os poucos traços de sua vida, deixados nos documentos

137
das instituições. Era realmente assim? Uma coisa é certa: a primeira
reação defensiva de alguém que, por ser mulher órfã e pobre, não
dispunha de nenhuma proteção só poderia ser o silêncio e o aban-
dono à piedade alheia. Aquelas instituições, aliás, até então haviam-
-lhe mostrado um semblante em certa medida protetor, seguin-
do-a e orientando-a durante seus 25 anos de vida.
Mas o que isso nos revela sobre os sentimentos de uma mulher
nas condições de Lucia? Sobre o estado de espírito em que viveu seu
parto naquela manhã de dezembro de 1709? Temos uma explica-
ção, formulada por Cesare Beccaria: toda mulher colocada “entre a
infâmia e a morte de um ser incapaz de lhe sentir os males” não po-
deria escolher senão a segunda alternativa. Essa explicação, porém,
não ajuda na compreensão. Beccaria fala de uma mulher que calcu-
la racionalmente o que mais lhe convém, coisa muito distante das
condições emocionais de Lucia, que acabara de viver _ em com-
pleta solidão _ a experiência desconcertante do parto.

138
5. “Estive sempre sozinha”

Esteve sempre sozinha, disse ela. Seria verdade? À primeira


vista, parece difícil de acreditar. As cenas documentadas da vida de
Lucia em Bolonha _ a multidão do dia de Carnaval, o aglomerado
de gente na manhã do parto, com a polícia e os vizinhos que se api-
nhavam ao redor da cama _ estão absolutamente distantes daqui-
lo que, de modo geral, entende-se por solidão. Mas a solidão da qual
falava Lucia era uma outra coisa. Vivera sozinha uma gravidez se-
creta. E difícil entender como realmente transcorreram os nove
meses de gestação. Podemos imaginar a incerteza ao interpretar os
sinais do corpo, os primeiros receios, as olhadelas e as perguntas
das vizinhas e da mãe; e, enfim, a última e mais impenetrável zona
de sombra, aquela da hora do parto, antes que aparecesse à porta o
rosto de uma vizinha curiosa. Uma gravidez secreta, em suma, sig-
nificava que não se podia recorrer aos conselhos e à experiência das
mulheres casadas e das viúvas. O que poderia saber uma jovem so-
bre a gravidez? Quem a ajudaria a interpretar sintomas difíceis de
entender mesmo para quem já tivera experiência em partos? A gra-
videz, para quem a vivia legitimamente no interior de um matri-

139
mônio, era muito diferente da gravidez de uma jovem solteira, que
ignorava os segredos da vida conjugal das outras mulheres. Na épo-
ca, como se disse, os segredos do corpo mais dividiam do que uniam
as mulheres?
E aqui a solidão mostrava sua verdadeira face; adquiria um
outro significado e um outro peso. Sozinha queria dizer sem mari-
do. E ter marido era o requisito fundamental para ter filhos. “Não
tenho marido, nem nunca fui casada.” Assim Lucia dera início ao
relato das circunstâncias do parto. Não ter marido era uma condi-
ção de séria fragilidade jurídica. A mulher estava sujeita à autorida-
de masculina. Pobre, órfã de pai e sem marido, Lucia encontrava-se
numa condição de isolamento e tinha consciência disso.
Havia a mãe, contudo. Mas, no momento do parto, a mãe es-
tava ausente. Lucia ressaltou: “Nesta manhã tive a dita criatura aqui
neste quarto onde estava sozinha, pois minha mãe estava no campo
trabalhando para uns camponeses, e voltou hoje”.
A mãe confirmou; ainda mais, repeliu com violência a ação
cometida pela filha _ ela não tinha nada a ver com “aquela desa-
vergonhada Lucia Maria minha filha”. Isso era de se duvidar. Afinal,
Lucia vivera toda sua gravidez, até o último momento, sob as vistas
da mãe e das vizinhas.
Perante o juiz, Lucia Cremonini permaneceu sozinha e total-
mente isolada, a única responsável pelo que cometera. Teria sido
assim, antes do momento do crime? A pergunta surge da compara-
ção com outras histórias, constantes nos documentos judiciais so-
bre o mundo subterrâneo da eliminação de filhos indesejados, em
que, muitas vezes, aparecem famílias inteiras unidas para cometer
o infanticídio. A responsabilidade, sem dúvida, tinha pesos dife-
rentes para os homens e as mulheres. Na França, em 1692, um cer-
to Claude Collet, que ajudara sua mulher a eliminar o filho nascido
de sua relação, foi condenado a acompanhá-la ao pé do patíbulo;
mas ela foi enforcada e ele se limitou ao papel de espectador? Muito

14o
diferente era a condição materna. Numa lista de condenados à
morte em Perugia, no final do século xvl, encontramos vários casos
de infanticídios perpetrados por grupos familiares, em especial por
duplas de mulheres, unidas no crime e na pena capital. Foi assim
com Mattea e Usepia (condenadas em 1552 ) ; Clemenza deVagnotto
com a mãe, Lucia, e o filho,Vincenzo (condenados em 1587); e com
Polissena di Valentino e sua filha (condenadas em 1590)? Histórias
similares também ocorreram no grão-ducado mediceu da Toscana
(onde, porém, eram tratados com muito menos rigor). Uma pes-
quisa casual nos registros do cárcere florentino de Stinche, no final
do século xvl, encontra, entre outras infanticidas, os nomes de
Camilla di Meo, de Razzuolo, que “segurara a mão de uma filha sua
para asfixiar o parto de uma criaturinha sua” ( 1587); de Cassandra
di Giovanni, de Neppio, e sua filha Maria, acusadas de“ter asfixiado
um parto” ( 1590); de Agnola di Pagolo e sua filha Camilla, de Bagno
di Romagna, encarceradas pela mesma razão? Mães solidárias com
as filhas, ligadas a elas por um vínculo mais forte do que o instinto
de preservação, elas foram atingidas pela mesma ruína e muitas ve-
zes enfrentaram-na sem opor nenhuma resistência, com manifes-
tações de afeto que comoviam os espectadores. Em 29 de novem-
bro de 1608, em Ravenna, Lívia e Maddalena da Linara, mãe e filha,
foram executadas. O religioso que as acompanhou nos últimos
momentos registrou imagens de uma ligação profunda e intensa-
mente carinhosa: quando separaram “a mãe da filha para exortá-
-las à Sagrada Confissão, abraçaram-se apertadamente e beijaram-
-se mais de trinta vezes, o que fez com que todos os presentes
interviessem”.5 No entanto, Caterina Cremonini saiu ilesa do pro-
cesso da filha. Devido ao labor no campo, estava ausente da cena
final do crime. Quem sabe o que ela teria feito se estivesse presente.
Os juízes não tentaram investigar sua posição. E, no entanto, pode-
riam tê-la considerado suspeita e incriminá-la por ter ocultado a
gravidez da filha. Poderiam ter feito o mesmo com as vizinhas.

141
Observando-se bem os depoimentos prestados no processo, en-
contram-se elementos suficientes para incriminar tanto a mãe
quanto as vizinhas. Que Lucia “estava com barriga porque estava
grávida”, isso as vizinhas perceberam. No depoimento de 10 de de-
zembro, admitiram ter falado com Lucia e perguntado por que “es-
tava com barriga”. Quem sabe quantas vezes comentaram o fato
entre si. “Ela dizia que era porque não tinha tomado seus purgantes
e porque estava com água.”6 Portanto, Lucia negava para as vizi-
nhas, assim como negou ao juiz, ter percebido a gravidez. O argu-
mento usado por Lucia e mencionado pelas outras mulheres lança
luz sobre seu comportamento durante a gestação. Em seu contato
com o mundo, Lucia se defendera da irrefutável evidência do pró-
prio corpo recorrendo a uma explicação que não era nova nem ori-
ginal. Muítos outros depoimentos, anteriores e posteriores ao seu,
próximos e distantes no espaço, remetem à mesma explicação
pseudocientífica do “mal de mãe” ou “madmzza” _ uma doença
cujos sintomas consistiam na interrupção do ciclo menstrual e no
inchaço do ventre. Ele ressurge sempre com as mesmas caracterís-
ticas, embora com nomes diferentes em tempos e locais distantes
entre si. Em 1634, Jeanne Archigny, uma doméstica na faixa dos
quarenta anos, de Mâcon, na Borgonha, falou em hidropisia. Assim,
ela escondera a gravidez, tratou-se com preparados e saiu em pere-
grinação, práticas que também foram consideradas formas de
ocultar a gravidez e eliminar a criança de alguma maneira? Como
Jeanne, Lucia também trabalhava como doméstica; como ela, cor-
ria o mesmo risco de perder o trabalho e a reputação. Assim, pelos
canais de uma cultura oral difundida entre as mulheres, Lucia pôde
tomar conhecimento dessas explicações para os sintomas da gravi-
dez. Terá acreditado na veracidade da explicação e extraído dela
razões para se tranquilizar? Ou a teria usado para ocultar aos ou-
tros sua verdadeira condição? Não sabemos. O “mal de mãe” era,
sem dúvida, uma invenção antiga que aflorava repetidamente nas

142
conversas de mulheres às voltas com uma gravidez indesejada. Sua
recorrência nas histórias de infanticídio demonstra a obstinada
tentativa de encontrar uma alternativa médica para a evidência na-
tural da gestação? Lucia tinha boas razões para não se crer vítima
de uma gravidez histérica; mas podia ter esperanças. O medo e as
tentativas em vão nos longos meses da gestação transparecem em
outros trechos do depoimento. E, aqui, a pessoa que mais deveria
saber, e mais se empenhou em negar, foi a mãe. A viúva Caterina,
forçada pelas necessidades a uma vida de penúria e de labuta pesa-
da nos campos, certamente não ignorava os fatos da vida. Mas de-
clarou ter aceitado a explicação do crescimento do ventre da filha,
“que isso acontecia porque tomava muita água devido à febre que
quase sempre tinha”; por isso, disse ela, levou-a“para se benzer com
o padre de Granarolo, ao hospital para tirar sangue”. O depoimen-
to da mãe, porém, remete uma vez mais ao contexto, pois o que ela
descreve _ sangria e peregrinação aos curandeiros _ eram os dois
sistemas mais difundidos na época para resolver o problema da
gravidez indesejada. A sangria era conhecida desde a antiguidade
como um dos métodos para abortar. Os médicos sabiam disso.
Tinha sido tema de discussão entre moralistas e teólogos. Como
veremos mais adiante, a questão havia se complicado com a inter-
venção da Igreja contra qualquer prática abortiva. As mulheres
também sabiam. Poucos anos antes do caso de Lucia, a doméstica
bretã Antoinette Marechale provocara um aborto no quinto mês
de gravidez com quatro sangrias sucessivas (mas que não a salva-
ram da condenação à morte por infanticídio)? Ou seja, a mãe ten-
tara resolver a gravidez da filha com um aborto.
Diante de discursos e comportamentos como esses, que retor-
nam inalterados por séculos nas biografias femininas, o caso de
Lucia apresenta-se ainda mais dramático, por não ser original. De
fato, não há nenhum detalhe no crime cometido por ela que possa
ser considerado inusual e insólito. É comum, por exemplo, no

143
modo como Lucia tentou, a princípio, explicar a morte do recém-
-nascido: um parto em pé, a criança que cai no chão sem proteções
e morre. Era uma explicação que as mães infanticidas costumavam
apresentar habitualmente aos juízes.” Da mesma forma, repetiam-
-se nessas histórias muitos detalhes de experiências onde os per-
cursos individuais se sobrepunham e se confundiam ao longo de
um traçado impessoal. As tesselas que compõem o mosaico do caso
parecem fruto de uma reutilização, como se alguém as tivesse to-
mado a outros desenhos. É difícil fugir à impressão de uma lei que
governa essas vidas femininas e impele seu curso como que por tri-
lhos constantes, num movimento guiado pela necessidade.
Tal necessidade, porém, não tem a face da inexorabilidade.
Possui raízes concretamente históricas, feitas de condicionamen-
tos sociais e relações de força. E, no fundo, é de notar que fora pre-
vista uma escapatória para quem estivesse diante do problema de
um parto indesej ado: havia os hospitais que se ofereciam para aco-
lher as mulheres nessa condição e fazer-lhes o parto; havia, em todo
caso, a possibilidade de confiar os recém-nascidos aos asilos de en-
jeitados. Em Bolonha, como vimos, havia o Abrigo dos Bastardi-
nhos. Por que Lucia não recorreu a eles?
Outras mulheres na Bolonha daqueles anos tiveram o mesmo
problema de Lucia.Vejamos como o enfrentaram. A viúva Sabatina
Bruni, em 1723, aos 46 anos, foi processada por ter afogado um fi-
lho recém-parido. Num primeiro momento, Sabatina declarou
que fora engravidada por um desconhecido, à noite, num lugar
perdido nos campos modenenses. O homem, segundo suas decla-
rações, “deitou-se perto de mim e com força me conheceu carnal-
mente uma vez só, por mais que eu gritasse e dissesse que não
queria”.“ A realidade era diferente: descobriu-se depois que encon-
traram por acaso algumas moedas entre as roupas da mulher.
Sabatina fora engravidada por um homem com o qual mantinha
relações habituais, um tal Felice Ghini. Fora ele que lhe dera aquele

144
dinheiro; e ela havia eliminado o recém-nascido “para não se pri-
var das quatro moedas que lhe havia entregado aquele homem,
que havia cometido a falta com ela, e que lhe havia recomendado
enviá-lo bem protegido ao local dos bastardinhos”. 1? A história de Sa-
batina Bruni guarda algumas analogias com a de Lucia Cremo-
nini: uma mulher sozinha, pobre, com um menino para nascer, e a
alternativa entre a vida da criança e uma certa quantidade de di-
nheiro. Mas Sabatina tinha sido casada, tivera outros filhos, sabia
reconhecer os sintomas de uma gravidez, calculava o custo do
abandono aos Bastardinhos e comparava-o à vantagem de guardar
o dinheiro para si. As “quatro moedas” entregues a Sabatina não se
comparam ao dote prometido a Lucia, que possuía um outro tipo
de valor, imaterial. Tampouco seria possível ver uma semelhança
entre sua situação e a solidão despossuída e indefesa de Lucia.
Vejamos um outro caso. Nos mesmos dias em que corria o
processo contra Lucia, uma outra mãe bolonhesa enfrentava tran-
quilamente o percurso institucional do abandono. Em 24 de se-
tembro de I709, uma jovem bolonhesa, talvez de família senatorial,
Arsilia Ringarda Caterina Guastavillani, foi denunciada por um
anônimo na medida em que, “grávida por volta de cinco ou seis
meses, duvida-se que possa eliminar a criatura, como se supõe ter
feito outras vezes”. O escrivão do tribunal, imediatamente enviado
a notificá-la das obrigações de seu estado, ouviu a resposta de uma
mulher acostumada mais a mandar do que a obedecer: “Sim, se-
nhor, estou grávida de cinco para seis meses, e por causa disso o que
Vossa Senhoria pretende de mim? Sou jovem e livre e posso fazer de
minha vida o que eu quiser”.13
Mulher segura e bem protegida, Arsilia Guastavillani não teve
dificuldade em conseguir o pronto comparecimento do homem
capaz de garantir a fiança. O escrivão emitiu a “certidão” escrita de-
terminando que ninguém a molestasse pela gravidez. O parto de-
correu regularmente em 30 de setembro, na casa da “comadre” pú-

145
blica Giacomina Foresti (que confirmouo fato), a“criatura”_ uma
menina _ foi levada aos Bastardinhos, e a taxa de 25 liras bolonhe-
sas foi paga de acordo com a praxe. Arsilia Guastavillani pôde con-
tinuar a viver livremente sua vida de mulher “jovem e livre”.
Para Arsilia, tudo transcorreu bem. No caso de Lucia, tudo
transcorreu mal. Ela não podia fazer o que quisesse de sua vida. Não
tinha homens que se oferecessem como fiadores; não tinha dinhei-
ro. Possuía apenas a honra, “moeda das mulheres que não se podia
desprezar”, como definiu um reformador modenense das institui-
ções de caridade. Para ela, tal moeda era a única possibilidade de
conseguir um dote e evitar cair no último degrau da escala social, o
das mendigas e prostitutas. Certamente não podia aspirar à prote-
ção de um educandário como o Baraccano, o instituto criado para
as jovens “para a preservação da honra”. Estava, portanto, total-
mente exposta à violência de um mecanismo não só econômico e
político, mas também cultural, que se atribuía _ como foi dito _
“o direito de administrar a integridade física da mulher e sua par-
ticipação no mundo institucional”.“ Pesava sobre sua existência a
aposta representada por aquele dote. Tê-lo-ia obtido se seu crime
não fosse descoberto? O que sabemos sobre a distribuição de tais
esmolas, a diligência dos controles e as astúcias para se esquivarem
à dotação legitima muitas dúvidas.”
Mas são reflexões que pecam pelo fato de se desenvolverem
em condições de segurança, muito distantes do torvelinho de emo-
ções que se desencadeou no quarto daquela casa bolonhesa ao
amanhecer do dia 5 de dezembro de 1709. A eliminação do recém-
-nascido não foi um ato racionalmente concebido e friamente rea-
lizado. Deu-se no contexto da solidão e do abandono. É impossível
reconstituir os sentimentos que o acompanharam. Das diversas
análises e definições elaboradas pela cultura masculina sobre a ex-
periência feminina do parto, podemos tomar de empréstimo a an-
tiga definição do recém-nascido como o sujeito que, um momento

146
antes, fazia parte das entranhas maternas. Negar-lhe a vida, matá-
-lo, era uma maneira de apagar o advento, lançando-o à condição
de objeto.” Depois a vida poderia recomeçar, deixando entre secre-
tos parênteses o episódio daquela manhã.
O que o impediu foi o sistema vigente de controle sobre a gra-
videz. O medo ao rigor das leis contribuiu para agravar a condição
solitária de Lucia. Era esse o motivo da pressa que levou o carrega-
dor Domenico Prata a apresentar a denúncia na manhã de 5 de de-
zembro de 1709, e era essa a raiz da desesperada negação da mãe
Caterina quanto a qualquer parcela de responsabilidade. Eram as
leis, era o sistema de suspeita generalizada em relação às mulheres
sem marido que haviam criado o vazio ao redor de Lucia, anulando
qualquer forma de participação social, qualquer laço de solidarie-
dade e afeto. Foi assim que, daquela comunidade de vizinhança
formada pela curiosidade e comentários cotidianos e da estreita
ligação com a mãe, surgiu perante o tribunal a figura de uma mu-
lher sozinha, que vivera como que absorta e ausente toda a história
da própria gravidez.

147
6. “Resolvi com a dita faca dar a
morte ao dito meu filho nascido
vivo enfiando-lhe a ponta da dita
faca na garganta”

Responsável única e exclusiva, a Lucia restava apenas confes-


sar. A culpa fora determinada para além de qualquer dúvida possí-
vel pelo escrivão e policiais, que tinham entrado sem dificuldade
naquele quarto alugado (seria outra coisa tentar entrar numa resi-
dência aristocrática). O processo havia esclarecido os detalhes e o
contexto. O desenho estava concluído, e a figura da delinquente to-
mara seu lugar numa casuística que dava ao gesto plena plausibili-
dade e transparência aos olhos dos juízes: uma mulher adulta (“fei-
ta”), empregada em casas da cidade, dotada de um conhecimento
das técnicas abortivas, ciosa em ocultar a gravidez como quem pre-
meditasse se desfazer o mais rápido possível da criança. Faltava
apenas a confissao.
na

De início, como vimos, Lucia negou tudo e diante da evidên-


cia das provas fechou-se em silêncio. Houve a prisão, e depois as
perícias, acareações e averiguações. Então, imprevista e sem razões
aparentes, chegara a rainha das provas: a confissão. O sistema penal
se fundava nas regras do processo inquisitório. O juiz agia oficial-
mente para averiguar a responsabilidade do crime e visava a obter

148
a confissão do réu. Mesmo quando a evidência dos fatos definia
com a máxima precisão a natureza do crime e a identidade do cul-
pado, o mecanismo processual seguia para a confissão como um
coroamento natural. Para obtê-la, quando os indícios o permitiam,
podia-se recorrer à tortura. No caso de Lucia, os indícios eram mais
do que suficientes; mas não foi necessária a tortura. Suas palavras
registradas nos autos aparecem em tom submisso e apagado. A per-
gunta acusadora dos juízes não encontra oposição. Pelo contrário.
A confissão parece quase antecipar e superar a acusação ao reco-
nhecer a culpa, ao descrever cruamente os detalhes:

Na mesma manhã em que dei à luz o menino [...] , estando sozinha


em casa enquanto minha mãe estava no campo, para que não se des-
cobrisse que eu tinha dado à luz, resolvi com a dita faca dar a morte
ao dito meu filho nascido vivo enfiando-lhe a ponta da dita faca na
garganta, que fiz penetrar calcando bem até a parte de trás do pesco-
ço, pela qual ferida feita por mim o dito meu filho recebeu a morte.

Essa confissão encerrava o processo. Lucia, assim, reconhecia


ter matado deliberadamente o filho e reconstituía os detalhes do
crime. Com isso, assumia conscientemente as características Subu-
manas que se atribuíam às mães infanticidas: ser bárbaro, bestial
ou, melhor, até inferior às feras, as quais eram dotadas de instinto
materno; autora de um crime nefando, ela se colocara fora da espé-
cie humana. No momento em que se precipitava fora da humani-
dade, Lucia parecia querer reconhecer tardiamente a humanidade
daquele filho _“o filho homem”, “meu filho nascido vivo [...] pela
qual ferida feita por mim meu filho recebeu a morte”. Cumpria as-
sim um gesto simbólico essencial: o reconhecimento da identidade
do morto. Aquele era seu filho, por ela viera à vida e por ela recebe-
ra a morte. Tal era para ela o menino morto. E hora de perguntar-
mos, nós também, quem era ele.

149
O filho, a semente e a alma

O homem foi criança, embrião, semente e sangue, pão, erva e


outras coisas.
(Tommaso Campanella, Del sommo bene metafisico, madrigal 3).

A vida da jovem bolonhesa recebeu o peso decisivo da vida


muito mais breve do filho. Sobre ele, aparentemente, não há histó-
ria possível. Pode a história se ocupar de quem não viveu? A finali-
dade da história, escreveu Heródoto, é conservar a memória de
“grandes e admiráveis obras” para que “os eventos dos homens não
desapareçam com 0 tempo”. A partir do século XIX, aos grandes ho-
mens acrescentou-se a multidão dos homens comuns. Antes, a par-
te masculina e a classe burguesa da humanidade: no século XIX,
Augustin Thierry escreveu a história de Iacques Bonhomme, um
nome coletivo para as multidões anônimas cuja importância fora
revelada pela Grande Revolução. No século seguinte, o lado das
mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais: Eileen Power,
herdeira e intérprete das lutas femininas pelos direitos civis e polí-
ticos das mulheres, escreveu a história do camponês Bodo e de sua
mulher Ermentrude. A história das crianças é a última a integrar o
lento percurso da espécie humana na busca de conhecimento do
próprio passado: história do sentimento da infância, da maneira de
concebé-la e modificá-la, do peso decisivo que as experiências in-
fantis exercem sobre avida adulta. Hoje, a importância crescente de
problemas sociais como o aborto ou as práticas sanitárias referen-
tes ao embrião obrigam a interrogar o passado dos conceitos e co-
\r|.

150
nhecimentos relativos à concepção e ao parto: é o que se vem reu-
nindo sob a rubrica da “história do não nascido”.1 O surgimento
desse novo termo é um sinal da necessidade de adaptar nosso voca-
bulário à transformação dos conhecimentos e dos problemas. No
século xvn, numa delicada fase da mudança de paradigma sobre a
natureza humana, o arquiatra romano Paolo Zacchia sentiu neces-
sidade de especificar que se podia falar de “infante” a partir do nas-
cimento, e não da concepção? Mas a possibilidade de escrever a
história de quem não nasceu, ou, se nasceu, não viveu, ainda per-
manece fora do nosso alcance. Aqui se trata de uma criança nascida
e logo em seguida morta, a quem, portanto, foi concedida apenas a
vida intrauterina e, depois do trauma do nascimento, o trauma ra-
dicalmente angustiante da morte violenta. Essas zonas da expe-
riência, em especial o trauma do nascimento e as relações entre
memória da vida uterina e primeira infância, foram abordadas
apenas por quem seguiu a trilha de Freud? Mas a luz retrospectiva
sobre aquela fase inicial da vida precisa dos traços que o indivíduo
conserva, dos sintomas que apresenta a exame, das palavras que
profere. O infante é, por definição, incapaz de palavras.
O historiador, à diferença de quem investiga a psique indivi-
dual, não precisa se deter diante da falta de depoimentos subjetivos.
O recém-nascido, a criança morta no limiar da existência, ou até
mesmo o não nascido, mesmo sem palavras, não está por isso au-
sente dos processos históricos. Basta refletir sobre o que nos ensi-
nam os historiadores do direito. No plano jurídico, a criança que
vem à luz integra e modifica a cadeia das sucessões hereditárias,
mesmo que tenha uma vida curtíssima. É-lhe reconhecida, portan-
to, uma personalidade jurídica. É suficiente para justificar uma
atenção especial a essa microscópica duração de vida. E mesmo os
não nascidos tiveram uma história. Seu silêncio pode ser uma arma
muito eficaz, e nunca faltaram as vozes que pretendiam falar em seu
nome. Na Londres setecentista, por exemplo, num debate entre

151
corporações de médicos, não se encontrou nenhum argumento
mais eficiente contra os obstetras hospitalares do que a imagem de
uma criança não nascidaf* Mas é sobretudo contra as mães que
continua a se erguer o dedo acusador das crianças mortas, como
dizem ter ocorrido no século xvl, num tribunal de Nuremberg?

Atenhamo-nos aos fatos. É inegável que o filho de Lucia, que


nasceu mas não viveu, imprimiu um sinal importante na história
dos outros e de sua época. Por ele mobilizaram-se sentimentos,
ideias e saberes profissionais; depois de sua morte, uma imponente
máquina judiciária foi posta em movimento. Cumpre, pois, inda-
gar quem foi, e o que se sabia ou se pensava sobre aquele recém-
-nascido que viu um átimo de luz em Bolonha, naquela quinta-
-feira de dezembro de 1709.
São poucas as informações diretamente relacionadas a ele.
Nasceu após o período normal de nove meses, era um menino, teve
tempo de soltar um vagido (“uno zigo”), e depois a mãe o matou.
Aqui também a tentativa de entender terá de seguir por vias indire-
tas, recorrendo não a ele, e sim ao que a sociedade da época sabia ou
julgava saber sobre seres como ele.

152
1. “Um menininho”

“Nenhuma mulher fica contente se estiver esperando uma


menina.” É assim que um ginecologista de origem somali se refere
atualmente às chinesas que moram em Florençaf A frase apela à
cumplicidade implícita do leitor médio italiano. Os valores de mer-
cado também são unânimes: um bebê menino vale muito mais do
que uma menina no mercado negro das adoções.2 Culturas extre-
mamente diferentes podem encontrar um ponto de convergência
na recusa do recém-nascido de sexo feminino. Na Itália de antiga-
mente, por muito tempo considerou-se o nascimento de uma me-
nina uma desgraça. Pesavam sobre as mães de meninas sentimen-
tos de culpa e riscos concretos de desprezo, hostilidade e abandono.
Por isso recorriam aos santos para pedir filhos de sexo masculino.
Um dos milagres do beato Gerardo Cagnoli foi o nascimento de um
filho de uma devota pisana, que lhe permitiu interromper em 1345
a sucessão negativa de nascimentos de meninas? Quando não ha-
via o auxílio do milagre, sempre era possível abandonar a menina
indesejada no asilo - as porcentagens dos registrados nos orfana-
tos são eloquentesf* O nascimento de uma menina foi por muito

153
tempo acompanhado de demonstrações públicas de desgosto. Na
Romagna, mais de um século depois do nascimento de Lucia, o rito
social ainda diferenciava nitidamente a alegria pelo menino e o pe-
sar pelo nascimento de uma menina: “se o infante é um menino, a
mulher que o leva ao batismo segue adornada com uma bela fita de
colorido vivo, que lhe desce pelos ombros; se é uma menina, não há
o adorno da fita, e o pai, em atitude melancólica, fica atrás da
portadora”.5 Ao menino cabiam uma dignidade diferente e uma
posição superior na hierarquia da espécie. Se na verdade os seres
humanos nascem de mulheres, na representação da árvore genea-
lógica as raízes, o tronco e os ramos principais são masculinos. Nas
concepções do real codificadas e ensinadas como verdades indiscu-
tíveis, atribui-se à mulher uma posição subordinada, de menor
dignidade e valor inferior. Mesmo onde a mulher tinha claramente
um papel decisivo _ a gestação e o nascimento de novas vidas -,
a teologia afirmava que era um papel apenas passivo: terreno frio e
escuro onde o homem plantava sua semente, veículo de sangue e de
vida.6 E verdade que a ideia cristã da redenção como salvação de
toda a humanidade também incluía a mulher; mas a promessa se
referia ao além. Neste mundo terreno, a obrigação de obediência e
submissão ao marido foi confirmada desde os textos paulinos fun-
damentais (Efésios 5,22).
Tanto na cultura popular quanto na cultura oficial, estava as-
segurada ao homem uma condição diferente e mais elevada por
natureza. Era dele, como se viu, que dependia a origem da vida. A
narrativa bíblica em que Eva nascia de uma costela de Adão fora
variadamente discutida e interpretada para se ajustar aos dados da
experiência. Mas as diversas tentativas de reconstruir a cena origi-
nal da criação não tiveram sucesso. Mesmo um teólogo dominica-
no de grande autoridade como Tommaso de Vio da Gaeta, alcu-
nhado Caietano, fora censurado e reescrito na época tridentina por
ter dado uma interpretação demasiado livre à narrativa bíblica.

154
A mulher dependia do homem. Assim não admira que o nascimen-
to de um menino fosse registrado como uma grande efeméride nos
livros de família, o que não ocorria no caso de uma menina. Os
tempos em que “filha ao nascer não era então temida” (Paraíso, xv,
103-4) desvaneciam-se na distância do mito, já na época do poeta
florentino. Não se tratava de questões derivadas do problema do
dote e das regras econômicas e jurídicas do matrimônio. Pelo con-
trário, eram essas regras que talvez derivassem da profunda raiz do
menor valor atribuído ao sexo feminino.
O filho parido por Lucia era do sexo masculino. Na opinião
corrente, essa circunstância agravava o crime. A lei não dizia, mas
estava na consciência comum.

155
2. “Bem formado em todas as suas
partes”

Era a primeira preocupação diante do recém-nascido: se for-


mado ou não em todas as suas partes. Era e continua a ser. Diante
do novo indivíduo nascido, o primeiro problema é verificar a for-
mação completa do organismo. Ao mudarem-se os tempos e mo-
dos da verificação, estes se antecipam cada vez mais e vêm cada vez
mais carregados de ansiedade, perante a crescente possibilidade de
intervenções corretivas sobre os dados da natureza. Diz-se “forma-
do” ou “perfeito” no sentido de um processo que chegou ao térmi-
no, tal como ainda hoje os zoólogos falam em “inseto perfeito” para
indicar o que se segue à fase larvar. Mas o tempo e os avanços nas
técnicas de exame pré-natal consignaram ao passado, se não a emo-
ção, pelo menos grande parte da surpresa à aparição do novo nas-
cido. Se hoje o processo do nascimento é acompanhado por meio
de um fluxo de imagens, quase um filme, outrora 0 mistério ocul-
tava as características do ser em gestação por trás da opacidade das
entranhas maternas. Desconheciam-se a organização de seus mem-
bros, a regularidade ou não das formas, o sexo, as condições de saú-
de. Ademais, é preciso tomar cuidado para não projetar no passado

156
as preocupações do presente. A formação completa de que estamos
falando é diferente da ausência de imperfeições hoje observada e
investigada obsessivamente desde 0 primeiro anúncio de gravidez.
Aqui, a questão que se colocava no campo médico-legal era se o
parto chegara ao termo natural ou se se tratava de um caso de par-
to prematuro ou aborto; e, se fosse aborto, cumpria averiguar se
havia sido espontâneo ou provocado. A definição das obstetras no
processo contra Lucia foi a seguinte: “Dizemos [a criatura] ter nas-
cido em seu devido tempo de nove meses, e viva, sendo bem forma-
da em todas as suas partes e membros, tendo seus cabelos na cabeça
e unhas nos dedos das mãos e pés”.1 Era uma avaliação da formação
completa do ser humano que permitia datar o momento do nasci-
mento e garantir que havia sido um parto em seu devido tempo, e
não uma expulsão prematura. A formação completa ou perfeição
não equivalia à “normalidade” que se tornou familiar à nossa épo-
ca. O corpo “perfeito” era o ponto de chegada de um processo de
maturação e de crescimento. Na avaliação se o ser era “formado em
todas as suas partes” espelhava-se uma ideia do corpo humano
como conjunto de membros regulados por uma forma.
Tendo como base a medicina antiga e em especial Galeno, a
cultura dos médicos e juristas estava habituada a discorrer sobre as
deformidades monstruosas que impunham a segregação ou mes-
mo a expulsão da cidade. A questão era antiga: no mundo romano,
a eliminação dos partos monstruosos era normal e teorizava-se
abertamente sobre ela.2 O que acontecia na prática das sociedades
cristãs continua obscuro. Discutia-se muito sobre as causas que le-
vavam a tais consequências. Há um exemplo no manual para os
relatórios de médicos-legistas que o protomédico de Messina,
Giovanni Filippo Ingrassia, elaborou por volta de 1570; com exce-
ção das provocadas por violência humana, as deformidades natu-
rais foram por ele atribuídas ao prazo e às vicissitudes da gestação
materna. E de notar que Ingrassia também se empenhou em atri-

157
buir a essa única causa a monstruosidade das chamadas espécies
plinianas, em que antes dos sete meses ou além de dez meses de ges-
tação nasciam respectivamente pigmeus ou gigantes? No que se
refere à existência de espécies humanas imaginárias, como as des-
critas por Plínio, o Velho em sua Naturalis Historia- homens que
andam com as mãos e mantêm os pés para cima, homens sem ca-
beça, com a boca e os olhos situados no peito, e assim por diante -,
os relatos de viagem de Cristóvão Colombo e dos demais que o se-
guiram nas rotas oceânicas mostram que se continuou a procurar
por muito tempo “homens com um olho só e outros com focinho
de cão”.4 Contudo, a enorme ampliação dos horizontes europeus
no início da modernidade trouxe o amadurecimento de um novo
conhecimento científico da natureza, onde a classificação sistemá-
tica do monstruoso e do maravilhoso também encontrou lugar?
Por algum tempo continuou-se ainda a falar daquelas raças plinia-
nas, na suposição de que existiriam em algum lugar remoto do
mundo. Mas a descoberta de que os seres humanos espalhados por
todo o globo possuíam os mesmos membros e o mesmo aspecto
revigorou o conceito da profunda unidade do gênero humano, ela-
borado sobre os fundamentos da cultura antiga. Por um lado, é sig-
nificativo que Pietro Pomponazzi, o filósofo da negação da imor-
talidade da alma individual, comentasse com os estudantes o que
extraíra do relato de Pigafetta sobre a expedição de Magalhães: não
havia sinal dos famosos antípodas tão discutidos. Por outro lado,
coube justamente aos frades dominicanos e franciscanos - tuto-
res da ortodoxia e na vanguarda da conquista missionária - a ta-
refa de afirmar a unidade da espécie humana, decretada solene-
mente por um documento oficial do papa Paulo 111.6 Não podia ser
de outra maneira, sob o risco de se desmoronarem os próprios ali-
cerces do cristianismo como religião universal e de retroceder a
uma religião do “povo eleito”. Os americanos descendiam de Adão;
não eram “animais que falavam”, como tentaram sustentar os inte-

158
ressados em colocá-los numa esfera de inferioridadef A pesquisa
do diferente e do estranho se desenvolveu sobretudo na direção das
plantas e animais, e as coleções dos naturalistas enriqueceram-se
de “coisas raras e refinadas daquele novo mundo”.8 No entanto,
houve resistências significativas em aceitar plenamente a noção de
unidade do gênero humano. O espanhol juan Ginés de Sepúlveda
sustentou em bases aristotélicas a possibilidade de que, por trás da
aparência humana, estivessem formas inferiores de humanidade, a
ele opondo-se, numa célebre controvérsia, a batalha apaixonada de
Bartolomé de las Casas emdefesa dos índios. As relações de força
reais se manifestaram na prática do escravismo e na convicção de
que os povos africanos eram destinados por natureza à servidão ou
que os ameríndios eram irremediavelmente ingênuos como crian-
ças. Mesmo reconhecendo-se que todos os seres humanos pos-
suíam alma, suas diferenças acabaram sendo fixadas numa escala
que relegava alguns a níveis mais baixos e confiava-os ao controle
dos europeus, tal como as crianças eram confiadas aos adultos.
Foram tais representações que alimentaram a ideia moderna das
diferenças naturais, com a subdivisão da humanidade una em raças
de maior ou menor dignidade. Desaparecendo as raças plinianas
com suas imensas, mas imaginárias, variedades de formas, a neces-
sidade de diferença incidiu sobre características secundárias ou so-
bre os atributos imaginários dos grupos humanos socialmente
constituídos como diferentes, tais como os escravos africanos e os
hebreus. Nasceu uma noção de “raça” que implicava a ideia da su-
perioridade e do domínio de um grupo humano sobre outro, devi-
do a um fato histórico (a conquista dos gauleses pelos francos, dos
anglos pelos saxões) ou a uma diferença natural e hereditária. Este
segundo desdobramento se anunciou na região ibérica com o re-
curso sistemático ao fator religioso, no intuito de uma unificação
estatal, e com a ênfase do antigo e enraizado preconceito cristão
contra os hebreus. A difundida hostilidade contra a minoria ibéri-

159
ca dos judeus batizados (“conversos”) encontrou vazão em acura-
díssimas pesquisas genealógicas para verificar se o sangue nas veias
de alguém estava contaminado por antepassados hebreus. Com
efeito, a espécie humana no mundo ia revelando' uma uniformida-
de física cada vez maior, na mesma medida em que se descobria e se
catalogava a enorme variedade das espécies vegetais e animais.
Assim, enquanto o conhecimento geográfico reduzia progressiva-
mente o espaço do insólito e do imaginário, a pesquisa dos limites
naturais da normalidade se voltava para o interior das extravagân-
cias e aberrações da espécie. E aqui encontrava a corrente profunda
dos temores e experiências do mundo feminino. Era a elas que de-
veria remeter uma cultura mágico-científica atraída pelas especu-
lações teológicas sobre as relações sexuais entre demônios e bruxas,
ou pelas possibilidades naturais de “como se podem produzir no-
vos e prodigiosos partos”.9 O corpo da mulher, considerado instru-
mento necessário para a reprodução, mas também como realidade
maléfica e ameaçadora, foi estudado por meio de seus frutos, apli-
cando aos seres por ela gerados as categorias de uma normalidade
cada vez mais exigente.” Mas, por trás das discussões e pesquisas
sobre a formação de monstros, vislumbra-se uma vontade de pe-
netrar nos mecanismos da origem da vida, que teria desenvolvi-
mentos importantes. Um tal interesse pela questão da barreira dis-
tintiva entre normalidade humana e monstros deveria encontrar
um local de aferição precisa nas regras elaboradas para confirmar
a humanidade dos seres que saíam do ventre materno e vinham à
luz. No momento do batismo, competia ao sacerdote verificar a hu-
manidade do recém-nascido. O princípio fundamental era que
monstros não poderiam ser batizados. Mas o que era um monstro?
As regras estabelecidas no rito romano exigiam uma grande caute-
la, com a consulta a bispos e especialistas; mas, em caso de perigo
de morte iminente, o ser monstruoso poderia ser batizado se tives-
se aparência humana (“humana species”). Depois a questão se tor-

16o
nava mais complicada e se articulava seguindo as várias possibili-
dades da organização física do corpo monstruoso. Por exemplo, se
o monstro tivesse duas cabeças e dois peitos, isso significaria que
eram dois seres humanos distintos, ambos providos de alma, e por-
tanto deveriam ser batizados separadamente, duas vezes.” Os ma-
nuais para os párocos entravam em detalhes adicionais de uma ma-
téria que se mostrava cada vez mais complexa; ao mesmo tempo,
não bastava a forma humana para garantir a humanidade. O caso
hipotético era o de um ser com aparência humana, mas filho de um
animal e de uma mulher. Visto que era a semente masculina que
determinava a identidade humana, num caso como esse o ser deve-
ria ser considerado animal e não humano. Se, pelo contrário, o re-
cém-nascido tinha uma aparência monstruosa _ por exemplo,
uma cabeça de animal _ mas era filho de um homem, ele deveria
ser batizado como ser humano; era pela semente masculina de
Adão que se transmitia o pecado original, herança inata da espécie.
Portanto, poderia _ e deveria _ haver o batismo.” A questão do
batismo era apenas um aspecto dos vários problemas colocados
pelo nascimento do monstro. Era preciso entender o significado da
mensagem trazida pelo nascimento monstruoso. O significado,
não as causas. Quanto a estas, havia uma concordância geral em
situá-las no excesso ou na carência da semente masculina, o sêmen
portador da forma de vida. Mas o nascituro trazia consigo um sinal
do mundo celeste: podia ser um sinal de paz e bênção divina, mas
podia também anunciar eventos terríveis. Os prodígios da nature-
za eram missivas enviadas por Deus aos homens, aos quais cabia a
tarefa de decifrá-las. “Se os monstros são erros da Natureza, é por-
que ela falha tal como um gramático erra ao falar. Notável, portan-
to, é que um mestre sapientíssimo erre”_ assim um opúsculo anô-
nimo comentava um parto de gêmeos unidos pelo púbis (um
monstro com quatro braços, quatro pernas e duas cabeças); mas o
anônimo acrescentava: “Porém deve-se considerar que sempre

161
houve o dedo de Deus”.“ Por isso, qualquer parto anormal ou
monstruoso oferecia motivo para interpretações, discussões, pro-
fecias. Foi assim que a simples curiosidade pelos prodígios da na-
tureza veio se somar a sensação de medo. O monstro acabou por
assumir o significado de uma irrupção do mal, uma presença de-
moníaca. As emoções e apreensões das mulheres haviam de ser tan-
to mais intensas quanto mais vasto e incerto era o horizonte dos
conhecimentos e das previsões.
Assim, erguiam-se imagens inquietantes ao redor dos frutos
da gestação feminina. A imaginação continuava a agir livremente
nas expectativas, e o esforço de interpretar os “sinais” inscritos nas
diferenças físicas fazia parte de uma propensão geral ao assombro
perante os fatos da natureza, e da convicção de que a natureza hu-
mana tinha margens muito amplas de variação. Na verdade, po-
rém, os seres anormais, excepcionais ou monstruosos, que por
muito tempo estiveram submetidos ao juízo inapelável das partei-
ras senhoras da vida e da morte, tinham de enfrentar exames cada
vez mais rigorosos de caráter religioso e civil. Se o ritual do batismo
tentava se adaptar às formas anormais dos corpos que, apesar disso,
podiam hospedar uma alma imortal, as normas da comunidade
política eram mais drásticas. Grotius escreveu explicitamente que
a lei da República dos Países Baixos regia os seres com corpos capa-
zes de hospedar uma alma racional; os demais eram asfixiados ao
nascer.” É difícil dizer quando se inicia a tendência de eliminar os
partos anormais; mas é um fato que a medicalização dos partos
monstruosos _ isto é, entregues exclusivamente à ciência médica
_ ocorreu simultaneamente ao medo em relação a qualquer sinal
inquietante surgido no corpo da mulher.
Não percamos de vista o ponto de onde partimos. A constata-
ção oficial de que o ser vindo â luz era “bem formado em todas as
suas partes” respondia à pergunta se o filho de Lucia nascera no
prazo normal da gestação, não sendo, portanto, resultado de um

162
aborto. O olhar do médico era chamado a constatar a normalidade
do filho de Lucia e a responder à pergunta se nascera após o tempo
certo de gestação, e com todos os membros bem formados. Esse
olhar era o ponto de chegada de um processo histórico que vira
erguer-se progressivamente a barreira da norma, dividindo o anor-
mal e o ser humano propriamente dito. Essa barreira se erguera
graças à intervenção cada vez mais decisiva da cultura médico-ju-
rídica em matéria de nascimentos humanos. Antes de admitir a
definição do recém-nascido como ser humano, era necessário um
exame médico, do qual decorria a possibilidade de inseri-lo, por
exemplo, na cadeia sucessória, consequentemente modificando a
transmissão dos bens.”
Tudo isso estava por trás do ato médico-judicial que se reali-
zou naquela ocasião em Bolonha. A linguagem formalizada da cul-
tura médica respondeu afirmativamente à pergunta se aquele ser
pertencia ou não, de modo pleno e inequívoco, â espécie humana.
O filho de Lucia tinha, portanto, todos os requisitos físicos para ser
ou, pelo menos, tornar-se um ser humano. Pois um fato é certo: a
formação completa dos membros e a vida que lhe foi tirada não
bastariam, por si sós, para defini-lo como um ser plenamente hu-
mano.

163
3. Uma “criatura” sem nome, ou
quando um homem não é um
homem

O que foi encontrado dentro da sacola atrás da cama de Lucia


foi definido como um “cadáver de criatura”.1 E a partir daí falou-se
sempre em “criatura”, sem nenhuma outra designação. Algumas
vezes Lucia empregou palavras diferentes, mais ternas: “menini-
nho”,“menininho homem”. A confissão foi, para ela, o momento do
reconhecimento pleno: “dito meu filho, nascido vivo”. Mas, na lin-
guagem oficial dos interrogatórios e das perícias médico-legais, a
identidade do recém-nascido morto ficou estabelecida numa pala-
vra: “criatura”. Esse termo era regularmente usado na linguagem
jurídica para os casos de aborto ou infanticídiof Como ser vivo, era
uma criatura; deixando de viver, era um cadáver de criatura. E uma
definição que pode parecer natural. Por trás de um ser humano ge-
rado e ainda não nascido _ ou não mais nascido _, vê-se apenas
a obra de quem o fez sair do nada, criando-o: a mãe, os genitores
_ e por trás deles a natureza, Deus. E talvez sobretudo no fato de
ser rejeitado por seu genitor que a inesgotável necessidade de dar
sentido à vida sugere a presença de um Criador divino. Assim tam-
bém parece natural a ausência de um nome próprio para quem não

164
teve tempo de viver. Para tais seres, sempre se recorreu a circunló-
quios ou a termos impessoais, oscilando entre uma aura religiosa
(como é o caso de “criatura”) e uma objetividade descritiva que re-
mete à dependência em relação à mãe que “carregou” o ser dentro
de si? Em suma, por mais que a ideia de que todo ser humano tem
direito a um nome esteja profundamente enraizada na nossa e em
todas as demais culturas, existe um outro mecanismo, também
profundamente entranhado, que faz com que se considere óbvia a
falta de nome para 0 ser que não viveu.
Tais explicações, porém, não nos permitem avançar muito.
Na verdade, nada disso é natural. A impressão de naturalidade é um
efeito ilusório de representações solidamente radicadas na cultura.
Aquele detalhe quase imperceptível, feito de um vazio _ a ausência
de um nome próprio _, não é casual, tampouco imediatamente
compreensível. Aquele menino era, sem dúvida, um ser humano.
Por incumbência do tribunal, homens e mulheres com as devidas
competências e saberes específicos constataram o fato e fizeram
relatórios precisos a respeito. Mas aquele pequeno ser humano
permaneceu privado de uma identidade individual para as pessoas
que se ocuparam dele naquela ocasião. E assim permanece também
para quem relata essa história depois de tanto tempo. Ora, existem
condições normalmente aceitas para se falar de um indivíduo e tra-
çar sua história. Geralmente ficam implícitas. Tentando torná-las
explícitas, podemos distinguir grosseiramente entre sujeitos e ob-
jetos da história e colocar o filho de Lucia na segunda categoria.
Com efeito, sabemos que o ser humano carrega atrás de si uma he-
rança biológica; sabemos também que tem experiências pré-natais
de relação com o contexto. Mas aguardamos até o momento em
que ele passa a interagir conscientemente com o ambiente, para
procurar conhecer o indivíduo em sua personalidade específica e
explicar as ações que viveu e praticou. Neste caso, portanto, falare-
mos de um ser humano que só pôde ser objeto de atos e decisões de

165
terceiros. Mas o problema persiste: como um ser humano que não
recebeu um nome pode ser objeto da história? Aquele menino
morreu, mas dele não restou nenhum nome que seja o sinal da lem-
brança, o ponto elementar de apoio sobre o qual se ergue a memó-
ria, ao redor do qual se reúnem as emoções. Mais ainda: não consta
que tenha sido sepultado. No entanto, desde suas próprias origens,
a espécie humana reconheceu a si mesma e a seus membros no se-
pultamento dos mortos. Algo, portanto, deteve a sociedade e a épo-
ca de Lucia Cremonini no limiar do reconhecimento de uma plena
identidade humana para a criança morta.
Partamos de um dado indiscutível, embora genérico: a esco-
lha do nome para um recém-nascido é um ato profundamente en-
raizado na cultura. O nome é, em sua aparente banalidade, o fio
mais resistente que a sociedade humana inventou para dar consis-
tência e durabilidade às relações entre seus membros. Dar e tirar o
nome, mudá-lo, lembrá-lo, eliminá-lo voluntária ou involuntária-
mente são atos e processos decisivos para designar e dar valor de
cultura aos fatos naturais do nascimento e da morte; assinalam
passagens importantes na vida individual e nas relações sociais.
Alterar o nome, ocultá-lo, assumir o de outra pessoa são operações
que modificam a percepção da individualidade para si e para os
outros. A mesma pessoa pode ter diversos nomes, tal como se tem
diversas roupas: um nome artístico ou religioso, um nome de seita,
de academia ou de outra organização, pública ou secreta. Mas é por
meio de seu nome que o indivíduo se identifica e é identificado,
como único e como membro de um grupo social. Defender a hon-
ra do nome e deixar um nome honrado têm, para inúmeras pes-
soas, um valor muito mais alto do que a própria existência. Tudo
isso valia na época de Lucia Cremonini como, em certa medida,
continua a valer na nossa, apesar das profundas mudanças que so-
freu o nome, por razões de moda e de morte. A moda anuncia o
irresistível avanço da imagem sobrepujando o nome e da mudança

166
sobrepuj ando a permanência. Assim, se ontem a mudança de iden-
tidade passava pela escolha de um outro nome, hoje passa pela mu-
dança do aspecto físico, especialmente do rosto _ como já se disse,
“a mudança do rosto é uma tentativa desesperada de parecer dife-
rente daquilo que se é”.4 Quanto à morte, os nossos tempos viveram
a eliminação da identidade de milhões de seres humanos antes de
sua eliminação física _ quando um número marcado na pele pas-
sou a substituir o nome, colocou-se a pergunta se ainda era possível
falar em seres humanos.
Voltemos, portanto, ao caso do menino morto sem nome. A
questão geral _ se é possível fazer história de quem não viveu _
surge aqui de forma específica: a ausência de nome é a forma mais
simples e segura de exclusão da história. Os nomes podem ser es-
quecidos, e então começa o trabalho de recuperação da memória.
Podem ser nomes de pessoas mas também de lugares. A erudição
dos humanistas, de Petrarca e Biondo Flavio em diante, aplicou-se
em recuperar os nomes antigos dos lugares, bem como em reme-
morar e celebrar os nomes dos homens ilustres. O cuidado com a
memória das personalidades mais importantes, que por séculos
ocupou o trabalho dos historiadores, pressupunha o abandono de
todos os demais ao esquecimento. Depois as grandes transforma-
ções coletivas da modernidade apresentaram a questão de como
lembrar os nomes das pessoas comuns. A multidão anônima do
passado na Itália era, para o católico Manzoni, “a turba dispersa que
nome não tem”, enquanto na França 0 povo protagonista da Grande
Revolução, para Michelet, aglomerava-se perante um tribunal ideal
da história para reivindicar o direito à memória, e Liev Tolstói ten-
tava narrar a campanha da Rússia do ponto de vista da massa inu-
merável dos soldados.
Mas aqui não se trata de um nome esquecido, e sim de um
nome ausente desde o início. E quem não o conferiu ao recém-nas-
cido não pensava no livro da história, e sim no livro divino “da

167
vida”, como diziam os Evangelhos. Pois um fato é inegável: a esco-
lha do nome para o recém-nascido era o momento simbólico de
sua inclusão numa rede de ligações e proteções, sendo a principal
delas a reservada ao ser que nasce do mundo divino. E não só para
as culturas cristãs. No mundo antigo, a escolha do nome para o
recém-nascido, como mostrou Hermann Usener, passava pela in-
venção de uma divindade do momentof O ato linguístico deveria
não só designar o recém-nascido, mas também colocá-lo sob uma
proteção divina. E assim o ato da denominação consistia em criar a
divindade necessária: para cada ser humano, um deus e um nome.
Podemos imaginar as consequências sobre um tal sistema onomás-
tico com a chegada do Deus hebraico e das religiões nascidas do
hebraísmo, isto é, o cristianismo e o islamismo. As raras sobrevi-
vências do sistema antigo às margens das grandes religiões mono-
teístas permitem ter uma ideia da ilimitada liberdade narrativa e
evocativa, outrora vinculada à escolha dos nomes. Como notou
um perspicaz observador dos fatos africanos contemporâneos, “o
advento do cristianismo e do islamismo reduziu este exuberante
mundo de poesia e de história a algumas dezenas de nomes extraí-
dos da Bíblia e do Corão”.6
O nome é atribuído no interior de um rito que reproduz e
consuma simbolicamente o processo do nascimento, transfor-
mando o dado de natureza num dado de cultura. Foi definido como
um “rito de passagem”. Devemos a definição a Robert Hertz, o qual,
em seu genial estudo sobre as representações da morte numa cul-
tura primitiva, detectou a ligação simbólica e ritual entre a morte e
0 nascimento e formulou-a nos seguintes termos:

O nascimento consuma para a consciência coletiva uma transfor-


mação semelhante à da morte, mas em sentido inverso: o indivíduo
abandona o mundo invisível e misterioso habitado por sua alma
para entrar na comunidade dos vivos. Essa transição de um grupo

168
a outro, real ou imaginário, pressupõe sempre uma renovação pro-
funda do indivíduo, renovação assinalada por cerimônias como a
imposição de um novo nome, a mudança das roupas ou do modo
de vida.7

E uma indicação preciosa: lembra-nos que a transformação


do nascimento era concebida em estreita ligação com a da morte. E
não poderia ser de outra maneira, pois a paisagem desconhecida
que se estende às costas do recém-nascido é a mesma onde se perde
o falecido. A organização imaginária das vidas obedece a um prin-
cípio de conservação que, em suas características gerais, apresenta-
-se com clareza nos testemunhos mais afastados do nosso presente,
com sua enganosa aparência de racionalidade. Se o viajante no
mundo dos mortos descrito na Eneida virgiliana podia assistir à
reencarnação das sombras dos mortos em novas existências, os via-
jantes e os estudiosos de outras culturas narram algo muito seme-
lhante. Graças a um ensaio escrito em 1920 pelo sinólogo Marcel
Granet, a hipótese de Hertz encontrou importantes confirmações
para uma cultura que certamente não pode ser considerada “pri-
mitiva”, a chinesa? A tradição chinesa continha o rito da deposição
do recém-nascido no solo (se menina) ou sobre a cama (se meni-
no), onde ficava por três dias; somente então, recolhida e reconhe-
cida, a criança recebia nome e acolhida na família. No outro extre-
mo da vida, era o velho que, completando setenta anos, dava início
a seu abandono ritual do mundo; quando chegava a morte, era sua
vez de ser deposto no solo. Granet viu aí uma analogia evidente
com o tratamento dado ao recém-nascido? Se o nascimento signi-
ficava passar de uma existência indistinta para uma vida pessoal
individualizada pelo nome, a morte comportava um processo igual
e inverso: para impedir ou retardar a dissolução da personalidade,
os parentes do finado invocavam seu nome. O morto não abando-
nava a família, mas entrava numa outra classe etária: a dos antepas-

169
sados. Uma tabuleta colocada no templo ancestral rememorava
sua presença.
Se transferirmos o olhar da China para as tradições europeias,
encontraremos analogias curiosas. A deposição do recém-nascido
no solo era uma prática confirmada pelos estudos da antiguidade
da Roma pagã. Os juristas discutiam seu significado, para saber se
era verdade ou não que o infanticídio constituía uma prática legal-
mente reconhecida antes do advento do cristianismo.*° Mas uma
curiosidade antropológica ante litteram incluiu-a algumas vezes
entre os “erros populares”. O médico e sacerdote Scipione Mercurio
assinalou que, em território veronês, era difundido o costume “de
colocar a criatura na terra nua logo após o nascimento”.“ Tratava-
-se, segundo ele, da sobrevivência de tradições pagãs que deveriam
ser extintas. Pois bem, exatamente naquele mesmo território, al-
gum tempo antes um bispo tinha apontado e proibido um rito se-
melhante de deposição dos moribundos sobre a terra. O corpo pos-
to na terra simbolizava a ligação com a natureza. A vida vinha da
terra e à terra voltaria; por isso, utilizava-se esse rito de deposição
no solo para os moribundos que tardavam a morrer. '2 Mas a cultu-
ra cristã oficial combatia tais representações e rituais, pois havia
substituído a natureza pela fé no cuidado com os seres humanos,
que teriam um Deus feito à sua imagem e semelhança.
Tudo isso pode ajudar a entender por que o nascimento, como
fato da natureza, não acarretava automaticamente a concessão de
um nome como reconhecimento cultural do ingresso na família e
na sociedade. Voltemos à sociedade cristã onde o filho de Lucia
Cremonini viu a luz por brevíssimo tempo. Não foi pela brevidade
da vida que se omitiu a individualização do nome. Crianças que
viviam apenas uma manhã recebiam regularmente seus nomes. E
isso acontecia com bastante frequência. Muitos filhos nasciam e
muitos morriam. Segundo um cálculo aproximado, baseado em
dados demográficos florentinos dos séculos xiv e xv, 30% dos nas-

17o
cidos morriam em tenra idade.” Veem-se belíssimas “mesas de
parto” nas imagens de parturientes em perigo de vida, convidadas
pelas prédicas de Savonarola a aprender a “arte de bem morrer”.“
Nas ruas da cidade, procissões fúnebres cruzavam-se com procis-
sões de recém-nascidos levados ao Batistério. Basta folhear as ano-
tações dos livros de família para observar quão próximas eram as
datas de nascimento e morte de seres que, mesmo assim, recebiam
um nome _ com 0 qual eram registrados nos livros de memória,
enquanto os corpos eram sepultados no jazigo da família.” Os re-
tratos de famílias do Antigo Regime frequentemente mostram vá-
rios filhos falecidos, alinhados junto aos pais. Os nomes se repetem
entre eles, sinal de uma vida que migrava rapidamente de um indi-
víduo a outro, antes de se deter mais demoradamente em alguém.
Quando 0 recém-nascido retomava 0 nome de um antepassado,
leem-se anotações emocionadas sobre o ser humano que, falecido,
agora parecia retornar à vida.”
Para dar 0 nome de um antepassado a um recém-nascido, era
preciso antes de mais nada que 0 pai 0 reconhecesse como filho e
assim 0 inserisse na transmissão legítima do conjunto de bens ma-
teriais e imateriais da família. Mas a esse poder paterno, amparado
por estruturas patriarcais e legitimado pelo direito romano, sobre-
pusera-se 0 mundo de valores do cristianismo. Acima do pai terre-
no, devia-se levar em conta uma outra paternidade. A imagem do
direito de vida e de morte, que no mundo pagão o pai exercera so-
bre os filhos, era evocada apenas para ser condenada.
Ora, é precisamente no terreno das práticas e concepções da
morte que a falta da atribuição de um nome revela sua importân-
cia. O nome era a caracterização de uma existência individual, que
se mostrava valiosa justamente na relação com a morte, então mui-
to mais dominante sobre todas as demais dimensões da existência.
Morrer sem nome era inaceitável. Por muitos séculos, a memória
dos nomes encontrou lugar nos registros das irmandades, em fun-

171
ção das orações de votos pelas almas; e nos antigos dípticos das
igrejas, 0 ato de inscrever ou eliminar os nomes possuía um valor
não apenas rememorativo, mas também significava imitar 0 ato
divino de inscrição ou eliminação do Livro da Vida.
Considerado sob esse ponto de vista, 0 fato de 0 filho de
Lucia não ter recebido nenhum nome não se mostra nada “natu-
ral”. Aquele menino não tinha preenchido as condições vigentes
para “completar a transição do mundo invisível habitado por sua
alma para entrar na comunidade dos vivos”. Nascer não bastava
para ter um nome; era necessário um segundo nascimento. Sem
ele, não se podia sequer morrer; ou melhor, não se podia entrar
no mundo dos mortos e gozar da paz a eles consentida. O recém-
-nascido morto em Bolonha não fugiu à regra: permaneceu sem
nome e sem sepultura. Muito provavelmente, 0 corpinho foi doa-
do à universidade como objeto de estudo para os alunos de ana-
tomia. Em tais casos, além disso, os estudantes podiam economi-
zar o oferecimento de missas pelas almas, moeda com que
pagavam os cadáveres subtraídos às famílias mais pobres.”
Faltava-lhe 0 segundo nascimento; faltava-lhe 0 nome; não pode-
ria ter a “segunda morte”.
Na cultura em que viveu Lucia Cremonini, 0 segundo nasci-
mento era um momento decisivo da existência e ocorria durante
um rito elaborado por séculos. Fora instituído em observância do
que se lia nos Evangelhos cristãos sobre 0 novo nascimento: “Em
verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver
0 Reino de Deus”. Disse-lhe Nicodemos: “Como pode um homem
nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de
sua mãe e nascer?”. Respondeu-lhe Iesus: “Em verdade, em verda-
de, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar
no Reino de Deus. [...]” (]oão 3,3-5).
E 0 mandamento de Iesus, confiado aos apóstolos, colocara 0
nascimento pela água e pelo espírito no centro da nova religião: ide

172
por todo 0 mundo, proclama 0 Evangelho a toda criatura. Aquele
que crer e for batizado será salvo; 0 que não crer será condenado
(Marcos 16,15-16).

173
4. Batismo

O batismo era 0 rito que ao nascimento como fato da nature-


za sobrepusera o nascimento pelo espírito, o renascimento da
alma. Era aqui que a cultura do cristianismo estabelecera o mo-
mento solene da atribuição do nome. Sem 0 rito batismal do re-
nascimento, não se entraria no reino dos céus, tampouco haveria
acolhida no mundo terreno. Pode-se entender, assim, como essa
passagem evangélica exerceu um peso extraordinário sobre a his-
tória subsequente das culturas cristãs, e como ocorreram em torno
dela alguns dos conflitos mais graves da história. Sem ela, 0 caso de
Lucia Cremonini seria incompreensível.
Unção espiritual, iluminação, veste de imortalidade: a termino-
logia dos ritos da iniciação cristã dos primeiros séculos ressalta e
acompanha uma série complexa de atos e comportamentos que in-
sistiam na importância da preparação ou catecumenato. Com a liber-
dade concedida por Constantino e os posteriores favores do poder, as
formas de recrutamento dos cristãos mudaram profundamente e
surgiram as condições para transformar 0 sacramento do renasci-
mento espiritual em sacramento do nascimento puro e simples.1

174
Como 0 renascimento pela água e pelo espírito era a condição
fundamental para a entrada no reino de Deus, desenvolveu-se ao
redor do batismo como sacramento a história da espera cristã da
ressurreição e da salvação eterna; por outro lado, 0 anúncio da sal-
vação tinha um caráter universal. Nesse aspecto, o batismo era dife-
rente da circuncisão hebraica, que dizia respeito apenas ao povo
eleito. “Quando completarem oito dias, todos os vossos machos se-
rão circuncidados, de geração em geração. [...] O incircunsiso, 0
macho cuja carne do prepúcio não tiver sido cortada, esta vida será
eliminada de sua parentela” (Gênesis 17,12-14). Na concepção cris-
tã do povo de Deus, 0 não batizado era excluído da vida eterna.
Na maneira de conceber 0 reino dos céus, reencontramos o
dualismo entre natureza e espírito, entre nascimento físico e renas-
cimento espiritual. A esperança de entrar no reino dos céus, essen-
cial para a religião cristã, responde ao desejo de libertar 0 corpo das
“garras do mundo animal”.2 A concepção cristã da imortalidade da
alma se estabeleceu sobre as bases de uma intensa reflexão sobre 0
corpo e trouxe a promessa de um resgate do sofrimento, da morte
e da dissolução à qual a natureza 0 destinara. Mas, para ter acesso à
condição de uma vida perfeita e sempiterna, era preciso que ao nas-
cimento normal, que era em si uma promessa de morte, sucedesse
o segundo nascimento. Era inevitável, portanto, que a imagem do
renascimento para a vida eterna se apresentasse nos primórdios
sob a forma de uma repetição do único nascimento do qual se tinha
experiência. Na primeira Epístola de são Paulo aos Coríntios, 0 tex-
to original e fundamental destinado a uma longuíssima história de
reflexões e interpretações, eis como se responde à ansiosa indaga-
ção sobre 0 destino eterno:

Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo


voltam? Insensatol O que semeias não readquire vida a não ser que
morra. E 0 que semeias não é 0 corpo da futura planta que deve

175
nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie.
A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele
dá o corpo que lhe é próprio. Nenhuma carne é igual às outras, mas
uma é a carne dos homens, outra a carne dos quadrúpedes, outra a
dos pássaros, outra a dos peixes. Há corpos celestes e o brilho dos
terrestres?

Assim, no mundo cristão, a transformação do corpo terreno


no corpo destinado à vida eterna evocava novamente, por analo-
gias e oposições, o único nascimento que se conhecia. No início,
havia a semente nua posta pelo homem. Ela devia morrer para se
consumar a metamorfose do nascimento e para Deus dar ao ser
vivo o corpo de carne a ele destinado. Mas se, como se observou, a
transformação da semente é a metáfora cristã mais antiga para a
ressurreição dos corpos,4 é porque não havia melhor maneira de
imaginar o renascimento a não ser olhando o processo do nasci-
mento natural. A metamorfose da semente em organismo comple-
to do ser vivo foi usada para sugerir as formas da análoga metamor-
fose do corpo terreno em corpo ressuscitado. Para que a carne e 0
sangue, nascidos do sêmen e sujeitos à corrupção, pudessem herdar
o reino dos céus, onde nada se corrompe, deve ocorrer uma trans-
formação. Qual seria ela, nem Paulo sabe dizer. Ê algo enunciado
como um mistério:

Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos,


mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar
de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os
mortos ressurigrão incorruptíveis, e nós seremos transformados.
(I Coríntios 15,51-52)

Todos os exegetas das Escrituras dos séculos seguintes tiveram


de se perguntar o que significaria a frase. O cuidado com o corpo e

176
a preocupação com seu destino marcaram a diferença da concep-
ção cristã da ressurreição diante das doutrinas filosóficas e religio-
sas que, na Antiguidade, haviam concebido a ideia da imortalidade
da alma. Era um ponto absolutamente fundamental, decisivo, se-
gundo Santo Agostinho, que insistiu reiteradamente na diferença
radical entre a fé cristã e a filosofia pagã.: poderia haver uma con-
cordância sobre a imortalidade da alma, mas não sobre a convicção
cristã de que os corpos humanos pudessem subir aos céus.5 Mas
quem e como empreenderia a passagem da ressurreição? Tal era o
problema e nele concentrou-se a ansiosa indagação dos exegetas. O
entrelaçamento entre a corrupção dos corpos e a sua metamorfose
ao som da trombeta divina e o anúncio de são Paulo de que “nem
todos morreremos” haviam de dar amplas margens às dúvidas e
tentativas de interpretação, à medida que o transcorrer dos séculos
frustrava a expectativa de um rápido retorno do Cristo juiz. De
fato, em primeiro lugar e por muito tempo a ressurreição foi enten-
dida em relação ao corpo. “Vermes nascidos para formar a angélica
borboleta”, mas mesmo assim ligados ao destino do corpo vivo, os
cristãos se interrogavam sobre o aspecto das almas temporaria-
mente separadas dos corpos, sobre o juízo individual após a morte,
sobre a alocação e a condição das almas no tempo intermediário
antes da ressurreição dos corpos, e sobre todas as demais perguntas
que nasceram quando o retorno de Cristo deixou de parecer muito
próximo. Perguntava-se quais e quantos seriam os recipientes des-
tinados a separar condenados e salvos, quais os sofrimentos que
afligiam os primeiros e quais as bem-aventuranças desfrutadas
pelas almas santasf' Uma inevitável ligação uniu estreitamente
nascimento espiritual e ressurreição: a universalidade da obriga-
ção do batismo foi a outra face da universalidade da ressurreição.
Encontra-se uma confirmação disso na vertente das doutrinas he-
réticas, em que a recusa à obrigação do batismo para todos os re-
cém-nascidos se desenvolveu concomitantemente com a doutrina

177
que reservava a sobrevivência da alma aos poucos eleitos regenera-
dos pela fé. Iunto com o sacramento do nascimento anulava-se a
garantia geral do renascimento para os bons e os maus.
Mas se o batismo era apresentado nas Escrituras como a porta
necessária para entrar no reino dos céus, com a vitória do cristia-
nismo no Império romano ele se tornou também a condição para
o ingresso no sistema da convivência civil e política. Nas cidades
medievais, o batistério era o local simbólico da pertença coletiva.
Era ali que se reuniam as pessoas nos momentos mais graves, como
mostra a convocatória de Dino Compagni aos concidadãos em no-
vembro de 1301, quando Florença foi ameaçada pela invasão ar-
mada de Carlos de Valois:

Caros e valentes cidadãos, que recebestes todos igualmente o sagra-


do batismo desta fonte, a razão vos impõe e obriga que vos ameis
como caros irmãos [...]. E sobre esta fonte sagrada, onde recebestes
o santo batismo, jurai entre vós boa e perfeita paz, para que o senhor
que está para chegar encontre todos os cidadãos unidosf

Dois séculos mais tarde, a crise do mundo urbano dos Países


Baixos e a afirmação do novo poder encontrou a sua passagem sim-
bólica no solene batismo de Carlos de Habsburgo em Gand.8
O batistério era o local que acolhia todos os membros da co-
munidade no momento do nascimento. Era também o local que
conservava a memória escrita dos nascidos. Os dados que nos
permitem conhecer os indivíduos do passado foram elaborados e
preservados justamente nas instituições e concepções de perten-
ça coletiva. A barreira entre o cristão batizado e todos os outros
permaneceu por muito tempo intransponível e apenas muito len-
tamente foi corroída, eliminada ou substituída nos últimos sé-
culos, variando o tempo e a maneira conforme o país. Era uma
barreira de natureza singular: quem estava do outro lado era insis-

178
tentemente convidado a entrar, com a persuasão e a força, com
ameaças e seduções. Quem se recusasse deveria sofrer consequên-
cias graves e pesadas. Na Europa, as principais vítimas, mais do que
quaisquer outros, foram os membros das comunidades hebraicas,
com uma torrente de episódios de cruéis violências desencadeadas
por ondas de fanatismo da salvação. A começar pelas crônicas das
primeiras cruzadas, que viram famílias inteiras de hebreus alemães
escolherem o suicídio para evitar o batismo forçado, até os pogroms
da Idade Moderna desencadeados geralmente pela pregação mo-
nacal, como foi o caso do terrível massacre de Lisboa em 1506, para
aflorar no presente, quando sobre os sedimentos do antijudaísmo
cristão desenvolveu-se o antissemitismo? Mesmo que, teorica-
mente, condene-se a imposição forçada do batismo, o sacramen-
to, uma vez administrado, é considerado válido, sendo suficiente o
gesto furtivo de uma ama cristã para ratificar a irremediável dife-
rença do filho de pais hebreus em relação à sua família e a obrigação
de subtraí-lo à família para educá-lo em institutos ou famílias cris-
tãs. Mas foi principalmente com a expansão da Europa no mundo
que a questão do batismo assumiu uma dimensão nunca antes co-
nhecida, pela quantidade de novos povos a serem cristianizados e
pela qualidade das reflexões sobre a própria natureza do sacramen-
to. Enquanto na América povos indígenas inteiros eram batizados
coletivamente, nos navios negreiros que partiam da África seguiam
religiosos que aspergiam água benta sobre a cabeça dos escravos e
lhes davam nomes cristãos. A obsessão com a salvação das almas
levou a tais excessos que as autoridades tiveram de intervir e regu-
lamentar a questão, ao passo que a reflexão das consciências mais
abertas levava a superar a materialidade do rito, antepondo o batis-
mo do coração ao batismo exterior da água e do sal.1° Mas uma coi-
sa sempre foi evidente: o rito sacramental era o meio por onde pas-
sava a essência de um vínculo que se estendia por toda a população
de um território.

179
Devido a essa excepcional importância do sacramento para a
definição de todo um sistema religioso e social, a reflexão sobre o
significado, modos e tempos de sua administração perpassou toda
a história do cristianismo.
É especialmente a questão do batismo das crianças que forne-
ce o fio capaz de unir as doutrinas teológicas sobre a alma, a explo-
ração científica da natureza humana e a administração política da
cidade cristã. A obrigação do batismo para os recém-nascidos
como segundo nascimento foi o ponto que permaneceu constante
na história do cristianismo ocidental. Sem ele não se pertencia à
Igreja e não se abria a porta da salvação eterna. Somente ele poderia
apagar a mancha do pecado original transmitida pela semente de
Adão. Daí a urgência do sacramento e sua progressiva aproximação
ao momento do nascimento natural.
A princípio, nascimento e renascimento eram duas coisas di-
ferentes e, de fato, permaneceram distintas por muito tempo. O
exemplo apresentado por Nicodemo fala no homem idoso e na im-
possibilidade de retornar ao ventre materno. Com efeito, os cris-
tãos dos primeiros séculos recorriam ao batismo não só quando
tinham plena consciência de sua escolha, mas também quando re-
tardavam ao máximo o momento de recebê-lo, na crença de que o
sacramento lhes lavaria todos os pecados. Santo Agostinho, batiza-
do em idade adulta por santo Ambrósio, foi o protagonista mais
célebre e também o crítico mais decidido dessa prática. Exemplo
ilustre da interpretação primitiva do batismo como fruto de uma
escolha individual consciente, Santo Agostinho viria a contribuir
decisivamente para a transformação do sacramento num rito des-
tinado, antes de mais nada, aos recém-nascidos. A imagem bíblica
do ser humano “gerado na culpa”, concebido pela mãe no pecado
(Salmos 51,50), destaca-se na concepção do recém-nascido expos-
ta na obra do bispo africano, em que ao abismo da culpa correspon-
dia a sublimidade da redenção gratuita. O homem não poderia se

180
salvar com os meios que lhe dava a natureza, como sustentavam os
seguidores de Pelágio. Era preciso dar as costas o mais rápido pos-
sível ao nascimento natural e recorrer à única possibilidade aberta
pelo renascimento “pela água e pelo espírito”.
Para entender como ocorreria o renascimento espiritual,
Santo Agostinho concentrou suas reflexões sobre o nascimento na-
tural. O sêmen e a geração humana estavam na origem da existên-
cia dos indivíduos e de toda a espécie humana. Foi daqui que ele
partiu, para convertê-lo no ponto de referência fundamental de
sua concepção da história, desenhando a cidade de Deus a partir
dos moldes da cidade terrena.
A queda de Roma no ano 410 foi um acontecimento crucial,
uma inversão dramática de todas as certezas que se alimentavam
da ordem imposta pelo Império Romano. A religião cristã, já he-
gemônica no Império Romano, foi posta sob a acusação de que
seus deuses não haviam protegido Roma como os deuses antigos
eram capazes de fazer. A resposta veio em De civitate Dei, de Santo
Agostinho, obra cujo poderoso fôlego sustentaria uma visão cristã
da história durante séculos. Mas, antes de mais nada, ela era a res-
posta de um homem à sua angústia perante a história _ uma his-
tória do mundo e de seus habitantes vista pela primeira vez, em seu
conjunto, pelos olhos de um cristão. Onde os historiadores antigos
tinham visto os fatos memoráveis de grandes figuras, os aconteci-
mentos políticos de seus povos e soberanos, as lendas, os fatos es-
tranhos e marcantes, o olhar do cristão via a massa inumerável dos
indivíduos e se interrogava sobre o destino de cada um, sentindo ao
mesmo tempo a necessidade de reconstruir todo o desenho da his-
tória da humanidade. Era uma revolução historiográfica cujos efei-
tos se fariam sentir por muito tempo. O cristianismo promoverá
todos os indivíduos à dignidade de filhos de Deus, sem diferença
entre escravos e homens livres, entre homens e mulheres, como es-
crevera são Paulo. Com Agostinho, o problema do significado e do

C 181
destino da vida de cada ser humano se colocava não de maneira
abstrata, mas à luz do processo histórico.
Aos olhos do bispo de Hipona, o gênero humano se decompu-
nha nas imperceptíveis partículas das vidas individuais, que via
emergir por um instante no ruidoso vórtice da correnteza, para de-
pois mergulhar “com a morte no desconhecido”. O grandioso cená-
rio proposto por Agostinho parece abrir-se ao final mais desespe-
rado. “Como uma chuva torrencial”, as gotas das vidas individuais
engrossam a correnteza da história, aparecem e desaparecem no
fluxo dos séculos que as arrasta“como uma massa de água rumo ao
precipício”.“ Precipício, “abismo profundo, imenso”. Muitos sécu-
los depois, totalmente corroída a visão cristã, Leopardi deteria os
olhos sobre a angústia da morte como fim individual do mundo.
Agostinho, entretanto, evocara o panorama desesperado da histó-
ria natural da espécie como critério de comparação para a alterna-
tiva da esperança cristã. Ao lado da cidade humana, havia uma ci-
dade de Deus. Ali havia um número de lugares - um número
limitado _ para os cidadãos destinados à salvação eterna. Quais
eram os sinais para reconhecê-los? Era preciso recapitular todo o
desenho da história humana, começando

[...] pelo momento em que, com aqueles dois primeiros [seres huma-
nos] , iniciou-se a geração até o momento em que os homens cessarão
de gerar. De fato, entre esses dois termos, com o desaparecimento de
quem morre e o surgimento de quem nasce, está contido todo o
decurso ou a era das duas cidades de que estamos tratando.”

Determina-se, assim, qual era a semente de que falava são


Paulo. Era a semente viril, o sêmen masculino. A ele cabia, mesmo
segundo a cultura médica e jurídica, 0 papel essencial na geração
humana. A contribuição da mulher era totalmente secundária: o
corpo feminino era definido como a terra que recebe a semente;

182
local necessário, mas totalmente passivo. A longa vida dessa repre-
sentação é o documento mais impressionante da extraordinária
persistência de um preconceito masculino que, ao se arrogar a fa-
culdade de continuação da espécie e de transmissão dos bens e dos
poderes (desde o rei até o último súdito, mesmo assim senhor ab-
soluto dentro de casa), permanecia obstinadamente surdo e cego
diante da experiência concreta da gestação e do nascimento. A nova
vida que tomava forma no ventre materno era considerada fruto
exclusivo do esperma, portador da calidez do sangue paterno ao
local frio e escuro oferecido pelo corpo feminino. No início das es-
peculações cristãs sobre o tema, Tertuliano expusera a tese de que
o sêmen masculino transmitia inclusive a alma, apresentando
como prova disso nada menos que a experiência masculina da re-
lação sexual, quando, além do sêmen, parece sair do corpo mascu-
lino uma parte da alma (“aliquid de am`ma”). Sua proposta de
transmissão de pai para filho (“ ex traduce”, e daí o termo “traducia-
nismo”) parece feita sob medida para granjear o consenso sobre
uma tradição cética ie materialista que não haveria de esquecê-la.”
É um exemplo entre muitos que podemos extrair de uma longa his-
tória. O sangue -- líquido vital e móvel, veículo espiritual nascido
da transformação do alimento material -- viria a ser um duradou-
ro tema de reflexão para os mais agudos e inquietos representantes
da cultura médica e filosófica. Mas, por trás dos pensamentos que
deixaram vestígios, não é difícil adivinhar muitos outros. A dou-
trina central do cristianismo, a encarnação, trazia na mesma for-
mulação um apelo à experiência comum da geração humana.
Extraordinário, mas mesmo assim humano, o nascimento do
Salvador era também a garantia do renascimento após a morte.
Tentar representar de alguma maneira a formação do corpo hu-
mano de Deus no corpo da Virgem Maria foi algo a que nenhum
cristão pôde escapar. O mistério da vida parecia se concentrar
exatamente aí, e nisso concordavam a alta cultura e as tradições

183
folclóricas. Tratava-se de inserir Deus no interior da fisiologia fe-
minina e da genealogia humana. Dois empreendimentos que ocu-
param um território imenso da cultura cristã. Não é preciso lem-
brar a importância da genealogia numa cultura que, em suas
origens, buscava a legitimação do presente e a antecipação do futu-
ro. Na tradição ocidental da representação da sucessão genealógica
logo se imporia a imagem da árvore: um poderoso carvalho intei-
ramente masculino, da raiz do progenitor acolhida na terra (femi-
nina) até os últimos ramos frondosos, cada vez mais vigorosamen-
te podada onde despontavam brotos femininos. Um célebre
exemplo é o comentário ao Apocalipse redigido no século viii pelo
Beato de Liebana, na península Ibérica. 14 Um destino especial cou-
be à elaboração da genealogia de Iesus. Os autores dos Evangelhos
canônicos tiveram o cuidado de inseri-lo numa genealogia total-
mente masculina que remontava do pai Iosé até Abraão (Mateus 1,
1,16), ou diretamente até Adão, filho de Deus (Lucas 3, 23,38). Mas
permanecia o fato de que o sangue de Iesus provinha não do sêmen
paterno, e sim do sangue materno; e isso foi utilizado pelos pole-
mistas pagãos, de Celso ao imperador Juliano. Eusébio de Cesareia
resolveu a questão inserindo Maria na tribo real de Judá.” Restava,
porém, a indelével presença de uma protagonista feminina no nas-
cimento mais importante de toda a história humana. No mundo
das representações e da devoção, era essa figura que haveria de as-
sumir uma importância crescente. A tradição genealógica patrili-
near do Messias cedia lugar aqui a uma dominância feminina, e há
quem tenha visto aí uma “feminilização do nascimento levada ao
ponto de eclipsar o pai”. 16 É inegável que essa condição de protago-
nismo feminino no ato fundamental da tradição cristã acarretaria
muitas consequências complexas e contraditórias para as condi-
ções usuais de vida das mulheres. No entanto, o aparente enalteci-
mento da figura materna encobria a realidade de um modelo de
mãe totalmente subordinada ao filho, pronta a reconhecer no filho

184
um valor supremo, até a própria negação de si mesma. O nasci-
mento de Cristo, além do mais, não era apenas um espelho poten-
cial de todos os nascimentos; era o evento milagroso ao qual se
devia a possibilidade do segundo e definitivo nascimento, aquele
que levava ao reino dos céus. Especulações doutas e representa-
ções populares giraram durante séculos em torno desse ponto, e
dele nasceram doutrinas que deram sustentação às Igrejas e às
mais radicais heresias. A esperança de vida após a morte, fundada
sobre aquele nascimento divino, ligava-se assim à esperança de
sobrevivência na continuidade das gerações que cada nascimento
humano traz em si.
Detenhamos nossa atenção sobre um ponto: a vida era trazida
pelo sangue; era o próprio sangue. No caso de Jesus, a exceção que
confirmava a regra era a origem daquele sangue: não do Pai divino,
mas da mãe terrena. Disso surgiram muitos problemas, que have-
riam de concentrar por séculos os pensamentos dos teólogos e dos
simples fiéis e as formulações elaboradas pelas autoridades eclesiás-
ticas. Um aspecto especialmente discutido foi a concepção da
Virgem Maria, pois se tratava de entender como, em seu caso, fora-
-lhe possível fecundar o sêmen de Adão sem herdar o pecado origi-
nal, para oferecer ao Filho divino um sangue e uma carne livres de
culpa. Mas, se a maternidade da Virgem Maria e a humanidade do
Filho permaneceram pontos constantes da fé cristã e do pensa-
mento teológico, o caráter único daquele evento impedia que a ati-
vidade reprodutiva normal da espécie se espelhasse nele. A reflexão
sobre o nascimento como fato comum e repetitivo concentrou-se
no sangue: era ele o veículo da vida. Prova disso era que o sangue,
ao deixar o corpo ou parar de circular pelos membros, abria cami-
nho à morte. E se o sangue humano era veículo de vida, mas tam-
bém de morte, o sangue de Cristo -- tema de viva devoção e pro-
fundo fascínio místico - era a garantia da vida eterna. Aqui se
distinguia a história da espécie.

185
Ao buscar o início e o fundamento da história, Agostinho os
encontrou no local em que se dava a reprodução natural da espécie:
“A união entre o homem e a mulher é, para a raça dos mortais, a
sementeira da cidade, se assim se pode dizer”.” As séries genealógi-
cas da Bíblia permitiam começar pelo primeiro casal e sua prole
para avançar gradualmente pela história posterior, tanto da cidade
terrena quanto da outra cidade. Duas histórias paralelas, mas radi-
calmente divergentes: Caim, que mata Abel, é também o primeiro
fundador da cidade e inicia uma história humana sob o signo da
guerra como luta contínua pelo poder _ uma guerra que tem
como meta a paz e ajustiça, mas está condenada a se desenrolar sob
o pesadelo da violência fratricida; Rômulo e Remo tecem a mes-
ma história; da geração natural nasce a cidade dos homens, con-
denada à imóvel repetição de um episódio de violência sem fim.
Paralelamente desenvolve-se a história da cidade de Deus. “Mas”,
prossegue Agostinho, “enquanto para a cidade terrena não é neces-
sário nada além da geração, a cidade celeste precisa também da re-
generação para escapar à culpa inscrita no nascimento.”18
A narrativa da culpa original de Adão e Eva (Gênesis 3), no
pensamento de Agostinho, unia-se à promessa de Deus a Abraão
(Gênesis 17), que se tornava promessa de redenção cristã e salva-
ção não só para o povo hebreu, mas também para o povo dos rege-
nerados. O sinal da aliança mudava: não mais a circuncisão, mas o
batismo.
“Quando completarem oito dias, todos os vossos machos se-
rão circuncidados, de geração em geração [...] O incircunciso, o
macho cuja carne do prepúcio não tiver sido cortada, esta vida será
eliminada de sua parentela” (Gênesis 1712- 14). E Agostinho tra-
duziu: “O homem que não for circuncidado na carne de seu prepú-
cio no oitavo dia, sua alma desaparecerá de sua estirpe, pois terá
rompido nosso pacto”. Respondendo a um certo Vicentius Victor
de Cesareia, da Mauritânia, que lhe perguntara no ano de 419 se o

186
batismo era necessário para a salvação, Agostinho redigiu o tratado
Sobre a natureza e a origem da alma, que remetia ao texto da Paixão
de Perpétua e Felicidade. Comentando a visão do pequeno Dinó-
crates, admitido no paraíso graças às orações da irmã, Agostinho
sustentara que as crianças não batizadas não podiam entrar no pa-
raíso nem gozar um repouso feliz em outro local intermediário entre
o paraíso e o inferno (como pensavam os pelagianos).19
Como podia a alma de quem ainda não vivera, e portanto não
cometera pecado, estar condenada para sempre? A explicação de
Santo Agostinho estava destinada alegar uma longa marca históri-
ca. Para expor seu pensamento contra os seguidores de Pelágio que
o acusavam de fatalismo, o bispo africano utilizou um exemplo ex-
tremo: de dois gêmeos nascidos de uma prostituta e que logo mor-
rem, um, que foi batizado, se salva, e o outro, que morre sem batis-
mo, é condenado à danação. É um resultado que se deve, segundo
Agostinho, não ao acaso impessoal e mecânico de um fato cego, e
sim à vontade de um Deus superior à compreensão humana, que
num dos casos salva misericordiosamente e no outro abandona o
membro da “ massaperditicmis” humana às justas consequências do
pecado herdado.” Pois o ponto é este: as crianças nascem pecado-
ras não por si, mas pelo pecado original cometido por Adão e Eva.
Com isso, toda a humanidade está condenada. Uma visão desespe-
rada da condição humana e da história como enredo de violência e
subjugação levava Santo Agostinho, entre reelaborações e contra-
dições, à proposta da doutrina da predestinação divina: Deus esco-
lhe quem salvará e quem condenará. A aparente crueldade do de-
creto divino foi exposta em toda a sua incompreensível dureza no
exemplo dos gêmeos, em que um é batizado e o outro morre antes
que seja possível batizá-lo. Por que um se salva e o outro é conde-
nado por toda a eternidade? A única resposta dada à pergunta é a
destinação natural da espécie humana ao inferno. Pelo sêmen de
Adão, todo indivíduo herda, se não a alma _ como sustentara

187
Tertuliano _, certamente o sangue paterno e, com ele, uma vida
marcada pelo pecado original; por conseguinte, por si só mereceria
a danação eterna. Apenas a gratuita misericórdia divina, pela mor-
te e ressurreição de Cristo, salva aquele que recebe o batismo, assim
lavando o pecado do nascimento com o renascimento espiritual.
Permanece, pois, o dever de todo cristão em obrar para escapar à
condenação no juízo final. Enquanto isso, durante a espera, as al-
mas devem permanecer encerradas em receptáculos adequados.”
O que era a alma, qual sua aparência, quais suas relações com
o corpo, eram problemas vivamente sentidos, e Agostinho recorreu
à experiência comum dos sonhos e das visões para chegar à conclu-
são de que a alma deveria ter alguma semelhança com o corpo.”
Mas a antropologia que se foi construindo em torno do nexo al-
ma-corpo previa também muitas outras faculdades. Para Santo
Agostinho, por exemplo, além da alma, que continuava a ser algo
muito ligado ao corpo, havia a mens, a parte intelectual do homem,
totalmente espiritual. A mera alusão à complicada série de termos
e de conceitos elaborados para atender à necessidade de distinguir
entre as faculdades intelectivas e as fisiológicas, segundo a tradição
do pensamento antigo herdada e apropriada pela cultura medieval,
demandaria muito tempo.
Nas análises do intelecto e das funções cognitivas revela-se em
toda a sua riqueza a contribuição do mundo antigo para a concep-
ção medieval do indivíduo e da alma. Certamente não é por acaso
que, na Divina Comédia, a exortação a refletir sobre o destino da
“semente” humana como algo ligado ao conhecimento seja confia-
da a um herói homérico.” As exaltações retóricas da dignidade do
homem _ um gênero que viria a ser praticado pela cultura huma-
nista _ apoiaram-se sobre a imortalidade da alma e, mais ainda,
sobre a capacidade humana de se elevar acima da condição natural
por meio do saber. Por outro lado, era inteiramente cristã a tenta-
tiva de narrar a história do percurso da alma desde a descida ao

188
ventre materno até a ascensão ao mundo celeste. A necessidade de
ver os dois momentos extremos desse episódio foi o que deu ori-
gem às célebres visões narradas pela mística Hildegarda de Bingen
(1098-1179), traduzidas em imagem pelas miniaturas que enri-
queceram seu texto. Ela relatou a visão milagrosa do ser humano
contido em um ventre de mulher (“integram formam homim`s”)
com a emoção de quem viu um mistério supremo se manifestar por
concessão divina. Aquela forma humana nascia do sangue coagu-
lado, como o queijo do leite, segundo uma imagem antiquíssima
(talvez de origem bíblica e certamente da experiência cotidiana). E,
assim como o queijo se torna mais ou menos consistente e compac-
to, da mesma maneira os seres humanos podiam ser mais sólidos
ou mais frágeis, mais ou menos capazes de se alçar às coisas espiri-
tuais. O ser ainda oculto assumia, pois, uma forma totalmente hu-
mana e herdava suas predisposições. Mas o momento decisivo era
quando a criança formada se mostrava viva com o primeiro movi-
mento autônomo _ este era, segundo Hildegarda, o sinal de que a
vida se infundira na forma. A alma enviada pelos céus para habitar
o ser humano já completo, mas ainda oculto, revelava, portanto,
sua presença graças ao primeiro movimento sentido pela mãe. Um
sentimento totalmente feminino da concepção e da gestação leva-
va-a a situar o momento da infusão da alma na vivida sensação da-
quele movimento autônomo (“motum vividae motionis”). Na vi-
são de Hildegarda, a alma era uma bola de fogo enviada por Deus,
que se apossava e dava vida à forma humana.”
O bispo africano e a visionária nórdica compartilhavam, em
tempos e maneiras diferentes, o mesmo problema fundamental da
origem da vida humana e de seu destino ultraterreno. A concepção
cristã do juízo divino e da ressurreição estava ligada a duas alterna-
tivas, oscilando permanentemente entre elas: de um lado, a doutri-
na do Deus justo, juiz dos méritos e das culpas; de outro lado, a
doutrina do Deus distante e incompreensível para uma massa hu-

189
mana destinada à danação eterna, cuja única exceção eram alguns
eleitos. Na realidade vivida pelo mundo cristão organizado numa
estrutura juridicamente regulamentada, aquilo que era em si um
conflito insolúvel sobre os grandes princípios teológicos encon-
trou uma solução de compromisso graças ao batismo. Apenas pas-
sando por esse sacramento o cristão gozaria de um ato gratuito da
graça divina, que lhe permitia entrar na área protegida dos filhos de
Deus, abrindo-se assim a porta da salvação. Certamente um infan-
te não poderia proferir as palavras da declaração de fé; mas era uma
dificuldade facilmente superável. Hildegarda de Bingen sugeria a
analogia inteiramente materna entre o alimento espiritual ofereci-
do pela Igreja e o alimento do corpo. Em ambos os casos, era preci-
so que alguém se incumbisse de mastigar o alimento para a criança
ainda sem dentes. Portanto, o batismo podia ser ministrado à crian-
ça desde que houvesse alguém a proferir por ele as palavras de fé.
Depois, ao crescer, ela praticaria boas ou más ações e o juiz divino
iria levá-las em conta no juízo final. Somente se se negasse valor ao
batismo é que se reabriria de fato a cisão entre as duas vias, a da pre-
destinação e a do livre-arbítrio. Mas a questão permaneceu mais ou
menos latente, e viria a ressurgir com plena força no século xvl, com
Lutero e Calvino.
Com efeito, desde o século vii, nos mais antigos penitenciais da
Igreja oriental e da ocidental, prescreviam-se penas severas aos pais
que, por negligência, deixavam os recém-nascidos morrer sem ba-
tismo. Em Bizâncio não houve, ao que parece, uma resposta clara
quanto ao destino eterno das crianças não batizadas. Segundo o ma-
nual Thesaaros do monge Theognostos, elas deviam ser excluídas
do Reino e também do local de punição.” Diversamente da tradição
agostiniana acolhida no Ocidente, a teologia oriental não aceitava a
ideia do pecado original transmitido de pai para filho pelo sêmen
masculino. Em compensação, sempre houve uma preocupação
muito viva em pressionar os pais para que não descuidassem daque-

19o
le sacramento. Por isso Theognostos narrava a história de um mila-
gre que remontava ao século vn: o de um menino que morreu em
Laodiceia antes que o sacerdote tivesse tempo de ministrar-lhe 0 ba-
tismo. Visto que ninguém era culpado de negligência (nem o pai
nem o sacerdote), ele invocou o anjo de Deus e pediu que restituísse
a vida ao pequeno por tempo suficiente para batizá-lo. E assim ocor-
reu. Na base da narrativa encontra-se a ideia da inocência do recém-
-nascido _ uma ideia que também viria a se impor lentamente no
Ocidente, em luta contra a doutrina agostiniana. Além do mais, jus-
tamente por ter que combater a tese de Pelágio sobre a bondade da
natureza humana, a Igreja do Ocidente foi levada a optar rapida-
mente pela via do batismo obrigatório das crianças, nisso se diferen-
ciando dos desenvolvimentos da Igreja do Oriente.
A Igrejabizantina também teve de indicar qual seria o prazo para
o ministério do batismo. Ela oscilou entre oito dias após 0 nascimen-
to, segundo o modelo hebraico da circuncisão, e os quarenta dias,
como término da impureza ritual contraída pela mãe com o parto.
Mas, por trás das medidas estabelecidas pelas autoridades, percebe-se
o peso de uma necessidade de segurança quanto ao destino do recém-
-nascido, que marcou as discussões dos teólogos, demandou inter-
venções das instituições e deixou traços na delicada zona dos mila-
gres. Se a discussão teórica sobre a alma ocupou por muito tempo os
exercícios teológicos escolásticos, a questão da salvação eterna ali-
mentava as preocupações dos pais. Os milagres da ressurreição dos
recém-nascidos mortos sem batismo, mesmo que raros, receberam
grande atenção na literatura hagiográfica e nas narrativas edificantes,
tanto no Oriente como no Ocidente. Mas o nó continuava a ser de so-
lução extremamente difícil, cingido entre a obrigatoriedade do batis-
mo para a salvação e a ameaça de um decreto incompreensível que
predestinava alguns à danação sem culpa alguma.
A grande construção do além-dantesco dá uma ideia das solu-
ções de compromisso apresentadas pela nova realidade das cidades

191
cristãs medievais. Segundo a concepção de São Tomás, as crianças
não batizadas estavam na condiação de “apartadas de Deus”, não
participantes da glória divina, mas em plena posse dos bens natu-
rais.26 Dante, ao descrever os bem-aventurados da “cândida rosa” do
Empíreo, baseando-se em Pietro Lombardo e em São Tomás, tam-
bém incluiu as almas das crianças mortas antes de ter conhecimen-
to do bem e do mal. Dividiu-as distinguindo as três épocas funda-
mentais da história da salvação: de Adão a Abraão, quando bastava
a fé dos pais para a salvação; de Abraão a Cristo (a circuncisão mas-
culina como forma imperfeita de batismo); e de Cristo em diante,
quando apenas o batismo traria a salvação (por isso, “sem batismo
perfeito de Cristo / tal inocência lá embaixo se manteve”, isto é, no
limbo dos “suspensos”). Dante acrescentou uma outra forma de
predestinação, em que Deus, no próprio ato da criação, teria dotado
os indivíduos de maior ou menor perfeição.”-Assim adquiria for-
ma, recorrendo à intervenção divina direta, uma explicação das di-
ferenças entre os indivíduos, bem como uma explicação para o fato
de o mesmo sêmen produzir dois filhos diferentes e diversamente
contemplados por Deus _ era o caso de Esaú e Jacó, desde então
emblemático para os partidários da predestinação divina. Mas na
origem de tudo estava sempre a semente masculina. No Convívio,
Dante descreveu como ela atuou desde que “caiu em seu receptácu-
lo, isto é, na matriz”. E, seguindo São Tomás e Pietro Lombardo, foi
ao sêmen que Dante atribuiu a função de veículo das potências da
alma do gerador, e dele extrairia a“virtude formativa” que “prepara
os órgãos para a virtude celestial, que da potência do semên produz
a alma em vida”. Adiante, precisando explicar as diferenças indivi-
duais, ele as atribui ao jogo casual de fatores diversos e mutáveis,
como a boa ou má “constituição do sêmen”, “a disposição do semea-
dor”, “a disposição do Céu” (isto é, o jogo das constelações do
Zodíaco). A história da espécie está sempre ligada à semente de
Adão e, secundariamente, à de seus descendentes de sexo masculi-

192
no. Ainda antes que se estabilizasse o recurso à figura da árvore para
reconstituir as genealogias _ e a árvore sempre teve uma raiz e um
tronco masculinos _, as imagens do edifício do parentesco o repre-
sentavam inscrito dentro dos contornos de uma figura viril, a de
Adão. Todos os seres humanos tinham a origem no sêmen paterno;
todos os homens nasciam de Adão e nele morriam.”
No percurso do sêmen ao indivíduo existiam, porém, diversas
etapas. A teologia precisara levar em consideração os conhecimen-
tos sobre os organismos vivos, que a cultura árabe herdara da me-
dicina antiga. Esses conhecimentos permitiam compor um tra-
çado do desenvolvimento do ser humano, desde o embrião até o
organismo completo. Mas, conciliando sabedoria antiga e teologia
cristã, São Tomás havia proposto uma distinção entre as potências
da alma como única forma essencial do homem. Assim, havia a po-
tência vegetativa, a sensitiva e a intelectiva.” O gradualismo de sua
concepção foi retomado nas mais recentes discussões sobre alega-
lização do aborto. A esse respeito, Ronald Dworkin escreveu:

São Tomás já entendia que um embrião não é uma criança em


dimensão reduzida, mas completamente formada, que simples-
mente cresce até nascer [...] e sim um organismo que se desenvolve
a partir de um estágio essencialmente vegetativo, ao qual se sucede
um estágio em que têm início as sensações, culminando por fim
num estágio em que possui intelecto e razão.”

Na construção tomista, porém, permanecia não discutido o


princípio de que o ser humano, no ato do nascimento, apresentava-
-se dotado de alma como substância imaterial capaz de sobreviver
ao corpo e, portanto, exposto ao risco de uma morte imprevista
sem a purificação batismal. E aqui, como mostrava a complexa
subdivisão de Dante, o destino eterno das crianças nascidas de pais
cristãos, mas não batizadas, representava um caso especial, capaz

193
por si só de interromper indefinidamente 0 processo da redenção
e o da acomodação das almas no reino eterno de Deus.
A introdução dos registros de batismo ocorreu nesse contexto
e guardou suas marcas. Foi a tais registros que coube a tarefa de do-
cumentar o cumprimento do dever batismal, segundo as determi-
nações da autoridade eclesiástica numa fase de grande intensifica-
ção do poder central do papa, a ponto de se chegar a falar numa
“revolução papal”. A guinada se deu no contexto de um decidido
avanço do corpo eclesiástico sobre o terreno da definição da identi-
dade humana, num mundo regido pela autoridade sagrada do papa.
Devemos ao século xin um documento fundamental a tal respeito.
O Concílio lateranense Iv de 1215 se abre com uma definição solene
da fé católica construída como narração de um nascimento divino,
dado como garantia do renascimento humano: o Pai não gerado
gera o Filho que, por obra da Trindade, encarna-se e é concebido por
Maria sempre Virgem, morre e desce com sua alma ao ínfero, ressur-
ge com o corpo e ascende ao céu, mostrando o percurso aos seres
humanos que poderão se salvar com o sacramento do Corpo e
Sangue de Cristo e com o do batismo. Mas a passagem do nascimen-
to divino ao renascimento humano é condicional: ela só pode se dar
dentro da Igreja e com os sacramentos que apenas a Igreja pode mi-
nistrar. A Igreja de Roma, não outras. Assim, prescrevia-se a exco-
munhão dos membros da Igreja grega que ministrassem o batismo
a quem já o recebera de sacerdotes de obediência romana. Nesse do-
cumento, o matrimônio também é atraído para a esfera eclesiástica
com a obrigação dos proclamas. E o mesmo acontece com a confis-
são, sacramento a ser cumprido anualmente e imposto em perigo de
morte, com a ameaça de sanções aos médicos que tratam doentes
sem confissão. A arquitetura da vida humana, regulada pelo sistema
dos ritos de passagem do nascimento à morte, recebe aqui uma es-
truturação unitária sob o governo do corpo eclesiástico e da autori-
dade papal, à sombra de uma história da geração do Filho e das pes-

194
soas divinas. Vigorosa construção que retomava séculos de
elaboração doutrinal, colocando-a sob o signo de um poder de sal-
vação exclusivo confiado ao corpo eclesiástico, este texto não se
manteve como simples afirmação teórica, mas assinalou o início de
uma vigorosa aceleração da prática sacramental regulamentada
pelo clero. Foi assim que a atribuição do nome saiu da casa e entrou
na igreja. Os estatutos sinodais de Angers, do século xni, determina-
ram que, em caso de batismo de emergência, os laicos não procedes-
sem à atribuição do nome. Assim, tornando-se obrigatório o en-
contro dos recém-nascidos com o sacerdote na igreja, o sinal por
excelência da identidade individual _ o nome _ ingressou na es-
fera de atuação da Igreja e tomou seu lugar entre as matérias contro-
versas da relação entre família e autoridade eclesiástica.” O resultado
das relações de força entre os dois adversários é frequentemente per-
ceptível na escolha dos nomes. Para determinadas zonas, por exem-
plo, é visível uma fase de transição, durante a qual o nome do santo
do dia batismal se acrescenta ao nome escolhido pelo pai ou pela
família.” Na Igreja etíope, o convívio do nome do dia de nascimen-
to com o nome de batismo se estendeu até o século xx.” Mas, de
modo geral, impôs-se o costume de dar à criança o nome do santo
do dia do batismo (e não do dia do nascimento). Um exemplo céle-
bre é o de Martinho Lutero, nascido na véspera da festa de são
Martinho.” Na era dos conflitos religiosos, inaugurada por Lutero,
a luta quanto aos nomes se transformou em conflito aberto. Como
o nome devia indicar a pertença a uma ou outra Igreja, houve, por
razões de controle e coerência doutrinal, uma posterior diminuição
dos nomes admitidos: nomes de santos no mundo católico, nomes
tirados da Bíblia no mundo protestante.
Quanto aos recém-nascidos que não viviam o suficiente para
receber o batismo, geralmente ficavam sem nome e não constavam
nos registros batismais. Mas, muito antes da instituição de tais re-
gistros, o apagamento dessas crianças no Livro da Vida era repre-

195
sentado sob a forma dolorosa e implacável de lhes recusar o sepul-
tamento ao lado dos demais membros da comunidade dos mortos.
A criança morta não entrava no “campo-santo” do cemitério cris-
tão. Julgou-se _ erroneamente _ que isso derivaria de uma for-
ma de indiferença, pois, como aquele pequeno ser mal parecia ter
entrado em vida, não se receava “que, após a morte, voltaria para
importunar os vivos”.35 Opinião totalmente equivocada. Um gesto
como a omissão do sepultamento não pode ser atribuído ao acaso
ou à distração; tampouco tem-se o direito de negar a força dos sen-
timentos do passado. O mundo antigo associara os mortos na in-
fância a todos os que perdiam a vida com violência, e imaginava-os
obsessivamente presentes nos locais onde deveriam ter vivido.36 O
folclore da Europa cristã oferece uma confirmação, com uma dife-
rença fundamental: eram os espíritos dos recém-nascidos mortos
sem batismo que nunca abandonavam totalmente os locais dos vi-
vos. Os testemunhos são unânimes em considerar o espírito da
criança prematuramente morta como uma presença inquietante,
ameaçadora, empenhada em prejudicar os vivos, irremovível. Mas
a razão da exclusão agora se definia pelo novo caráter do cemitério
cristão, local de reunião dos mortos à espera da ressurreição. Para
as crianças batizadas, ditaram-se regras especiais para um rito fes-
tivo e solene, com coroas de flores e cantos celebrando sua pureza
angelical, ao passo que as crianças sem batismo não tinham o direi-
to de entrar no espaço sagrado. Estas, sepultadas nos campos, nos
porões, sob a soleira das casas, alimentavam as fantasias de práticas
de bruxaria. Doutrinas teológicas e crenças folclóricas concorda-
vam sobre esse ponto, e não é fácil estabelecer relações de causa e
efeito entre elas. Apenas um exemplo: entre as tradições populares
inglesas, aparentemente existia o costume de sepultar o recém-nas-
cido colocando sobre ele um papel com seu nome escrito, como
“uma espécie de passaporte para o paraíso”.37 Estamos diante de
uma das inúmeras formas de contornar a antiga exclusão do não

196
batizado do reino dos céus; porém, na tradição inglesa,já não vigo-
rava a proibição do sepultamento nos cemitérios, a severa sentença
eclesiástica que era a tradução terrena da condenação eterna. Mas
restavam resquícios na preocupação de dar um nome ao não bati-
zado, quase um sucedâneo do sacramento não recebido.
Foi preciso aguardar os séculos da Idade Moderna para que os
rituais fúnebres das Igrejas reformadas adotassem o uso de dar
nome e sepultura também aos recém-nascidos. Em certas regiões
alemãs no século xvnl, existia a prática comprovada, mesmo entre
os católicos, de permitir o sepultamento fora do campo-santo, com
o devido registro nos livros paroquiais.” Em outras regiões católi-
cas _ a Itália, a Irlanda _, as coisas seguiam rumos diferentes: o
nascido podia deixar de viver, mas não podia ingressar ritualmente
na comunidade dos mortos. As autoridades diocesanas registra-
vam com preocupação o que ocorria no enterro daqueles corpi-
nhos longe dos cemitérios e do controle da Igreja, quando eram
sepultados à noite, nos campos, após uma passagem furtiva pela
igreja, e ficavam ao alcance de quem quisesse utilizá-los para fins
mágicos.” Isso mostra como tinham clara consciência dos riscos
em deixar tais brechas no tecido da proteção oferecida pelos ritos
da legítima sacralidade. Mas não havia nada a ser feito. No final do
século xvI11, o bispo de Novara ainda proibia o sepultamento pró-
ximo a tabernáculos campestres ou a imagens de santos, pois pare-
cia-lhe que era uma maneira de colocar Deus em tentação e forçá-
-Lo a restituir a vida àqueles seres que deviam ser batizados.”
O endurecimento das normas oficiais sobre a obrigatoriedade
do batismo para ingressar no paraíso não se devia a uma especial
crueldade dos teólogos insensíveis à angústia dos pais. Na verdade,
é a própria consolidação da prática de batizar os infantes que mostra
a existência de forças culturais profundas agindo em favor do rito
do segundo nascimento. A exigência de um segundo e verdadeiro
nascimento estava profundamente enraizada nas culturas pré-cris-

197
tãs e se manteve viva por muito tempo na sociedade europeia. Sem
ela, estava vedada a passagem do estado vivo para o estado defunto.
A exclusão das formas habituais dos rituais fúnebres, portanto, era
vivida como uma penosa necessidade. Sem o segundo nascimento
não poderia haver a segunda morte, isto é, a despedida definitiva
ritualmente ratificada que se seguia à morte como fato físico.
Coube aos teólogos o dever de encontrar uma solução para a
exigência de um além organizado, onde os defuntos pudessem ser
alocados de maneira estável. Não era coisa de pouca monta numa
sociedade que entendia a religião como um dever dos vivos a servi-
ço dos mortos. Mesmo nos séculos da recuperação europeia me-
dieval, numa época de reavaliação do valor do homem, de sua razão
e de suas obras, a herança legada pela doutrina agostiniana da pre-
destinação ao cristianismo continuou a desafiar a análise racional,
e o ponto de mais difícil aceitação continuava a ser a danação da
criança morta antes da idade da razão. A única saída consistia em
renunciar à obrigatoriedade do batismo, reconhecendo um valor
positivo do ser humano enquanto tal. Mas isso era impossível por
várias razões. Procurou-se dar uma resposta com a especificação de
múltiplos lugares na geografia do além, para as diversas categorias
excluídas da bem-aventurança; e especialmente controvertidas fo-
ram a natureza e a localização do espaço destinado aos mortos sem
batismo. Aos poucos, foi se elaborando um discurso sobre a alma
sem corpo, que acabou toldando cada vez mais a consciência da
unidade do ser vivo. Uma prova disso é o dramático início da dis-
cussão sobre o estado das almas dos santos antes do juízo final,
quando, no século xiv, o papa João xxn sustentou que a plena visão
beatífica do sumo bem (isto é, Deus) só poderia ser alcançada de-
pois da ressurreição dos corpos.As violentas reações de universida-
des, teólogos e cabeças coroadas obrigaram-no a abjurar à beira da
morte e só se acalmaram quando o inquisidor dominicano Jacques
Fournier, eleito papa Bento X11, definiu oficialmente a questão afir-

198
mando que as almas gozavam da visão beatífica de Deus mesmo an-
tes de reunir[em] -se ao corpo ressurreto. Sua constituição Benedictus
Deus, de 29 de janeiro de 1336, ratificou o que fora definido como o
“acentuado dualismo entre alma e corpo” já acolhido na cultura do-
minantef“ O que levava a tal dualismo era a força de um sentimento
atuando profundamente na história da relação entre vivos e mortos
_ o sentimento que sempre tornou intolerável conceber os mortos
em estado de espera e localização incerta. O sepultamento do corpo,
sancionado desde cedo como obra de misericórdia, devia ser acom-
panhado pela organização definitiva dos lugares no além (então já
alcançada com a tripartição entre bem-aventurados, almas no pur-
gatório e os condenados). Foi com tais pensamentos que um cronis-
ta de Todi comentou o documento papal:

E chegou em Todi um édito do papado em que as almas santas, quan-


do saíam do corpo, naquele átimo veem a face de Deus. E quem
acreditar o contrário, decretava herético, porque as almas santas não
precisam de purgação.”

Isso mostra que a doutrina estabelecida pelo papa cumpria


uma dupla tarefa: resolver as ambiguidades acerca da definição teo-
lógica do Purgatório e, sobretudo, responder à profunda e difundi-
da necessidade de regular permanentemente as relações com o
mundo dos mortos. Os espíritos dos defuntos eram uma presença
inquietante e ameaçadora, à qual se aplicam as observações feitas
sobre as culturas primitivas:

A sua permanência [da alma] entre os vivos tem algo de ilegítimo, de


clandestino; ela vive como que à margem dos dois mundos [...] . Não
tendo um local onde repousar, está condenada a vagar sem descan-
so... Não admira, pois, que durante esse período a alma seja conside-
rada um ser maléfico.”

199
A solução do problema ocupou a cultura cristã por séculos, e
as diversas respostas derivadas da rejeição do purgatório viriam a
indicar profundas diferenças entre as diversas culturas modernas
europeias. Na chamada Baixa Idade Média, tornou-se especialmen-
te intensa a exigência de garantir que todo defunto alcançasse uma
condição relativamente estável num local bem definido do conti-
nente do além. O purgatório, construído sobre sólidas bases teoló-
gicas e jurídicas, respondeu a essa necessidade permitindo tanto um
aperfeiçoamento da administração da Justiça após a morte, quanto
a organização de relações socialmente reguladas entre os vivos e o
grupo dos mortos, transformados em “antepassados venerados e
protetores”.44 Mas, se tal era a questão a ser resolvida, uma coisa é
evidente: a condição do recém-nascido morto sem batismo fugia
inexoravelmente às malhas da sistematização. Sua alma permanecia
numa condição de transitoriedade definitiva e irremediável. A alta
cultura cristã se revelava incapaz de resolver um problema muito
familiar às culturas folclóricas. Se a bem-aventurança era a condi-
ção dos santos que, após a morte, viam imediatamente a face de
Deus, o sistema das penas e das punições podia ser implacável, com
a ausência da visão beatífica. E, entre as almas que não podiam ver a
face de Deus, estavam as das crianças mortas sem batismo.
Diante das definições teológicas elaboradas em foro solene
por membros respeitáveis do corpo eclesiástico, o problema, como
sempre, é entender o que lhes corresponderia nas convicções dos
simples cristãos, na maioria iletrados, não habituados às sutilezas
da fraseologia escolástica. Como conceber que um recém-nascido,
mesmo antes de começar a viver, tinha herdado uma tamanha car-
ga de mal, a ponto de Deus condená-lo a uma eternidade de sofri-
mentos? A condição do infante não seria talvez a própria condição
da inocência?
Não a inocência, e sim os Inocentes ocupavam um amplo
espaço na vida social e nas tradições religiosas daquela época.

200
Segundo a narrativa evangélica, os meninos que tinham sido mor-
tos por ordem de Herodes haviam sido cultuados como santos. A
eles foi dedicado um importante hospital florentino que acolhia
recém-nascidos enjeitados _ e este é um indício não irrelevante de
que a infância abandonada era concebida também como uma in-
fância sem culpa. Nos martirológios dos Santos Inocentes, que se
difundiram junto com as relíquias trazidas das cruzadas na Pales-
tina (de uma delas nasceu o célebre cemitério dos Inocentes em
Paris), fazia-se uma distinção entre a vida sem culpa e a santidade
batismal obtida com o martírio.” Mesmo assim, na devoção aos
Inocentes expressava-se uma ideia do recém-nascido como ser to-
talmente novo e livre das dívidas dos antepassados, que entrava em
conflito com a concepção agostiniana da herança de pecado legada
por Adão. Descrevendo os pequenos mártires acolhidos festiva-
mente no limbo pelos santos pais, um cônego regular de Ferrara,
no século xvi, colocou em versos o lamento das mães:

Mas estes, que se aleitam nestes seios,


O que cometeram, na pura inocência?

E esse lamento retomava o núcleo da redenção, assim expresso


como declaração divina no começo do pequeno poema:

Nem quero que a primeira iniquidade


Pelos avós os netos tenham de pagar,
Mas quero, como já predisse o vate,
Seja cada alma a própria culpa a carregar
De modo que não sofra o pai pelofilho,
E este a culpa paterna não venha a depravarfó

Assim, na afirmação da inocência dos recém-nascidos adqui-


ria voz uma nova moralidade, voltada mais para o futuro do que

2.01
para o passado. Mas, na cultura cristã, a inocência prometida pelo
redentor não se acionava automaticamente com 0 nascimento
como fato natural. Isso ficava claro ao se examinar justamente a
condição das “criaturas” de vida potencial subitamente interrom-
pida, de existência brevíssima. Podiam ser considerados “inocen-
tes”, isto é, santos, como os pequenos hebreus trucidados pelos sol-
dados de Herodes? A resposta foi dada de uma vez por todas por são
Bernardino de Siena, numa pregação em Florença em 1425:

Os inocentes: não aqueles que são afogados em latrinas ou mortos


no corpo à força de remédios, que não têm alma; não se refere a eles,
e sim aos que têm alma pelo santo batismo; estes são os inocentes.”

Na linguagem direta e popular do pregador vemos um modo


de conceber o batismo totalmente novo e inesperado: não como
um ato que salva a alma, mas como momento de verdadeira cria-
ção. Para são Bernardino de Siena, aqueles seres que eram jogados
nos esgotos assim que nasciam, ou que as mães condenavam a não
nascer, isto é, os frutos de abortos e de infanticídios, “não têm alma”.
Entreabre-se uma fresta sobre uma maneira de pensar que, até ago-
ra, estivera na sombra. A evolução do indivíduo vivo era represen-
tada como um processo que incluía, num determinado momento,
a entrada da alma no corpo. Essa entrada resultava de uma inter-
venção do sumo poder divino sobre a nova existência no momento
do nascimento. Aqui se situa o batismo, o rito que concede a alma;
e aqui aparece a invenção do nome. “O nome”, observou Robert
Hertz, “não é senão uma das formas da alma.”48

2.02.
5. Morrer sem alma

DOUTRINAS DAS IGREJAS

Continuo auditae voces vagitus et ingens


inƒantumque animaeƒlentes.
Virgílio, Aeneidos [Eneida] , v1, 426-27

Segundo são Bernardino, portanto, os recém-nascidos mor-


tos sem batismo não possuíam alma. Outros indícios confirmam
que a expressão era de uso corrente na linguagem cotidiana para
indicar as crianças não batizadas. Apenas um exemplo: numa lista
de pessoas condenadas à morte em Perugia entre os séculos xvi e
xvn, está registrado o caso de uma mulher chamada Pola da Bettona,
que em 5 de abril de 1549 foi “enforcada no campo de batalha por
ter enterrado vivo um filhinho pequeno sem alma”.1 Assim, ao que
parece, era normal definir como sem alma uma criança morta logo
que nascida e sem batismo. É como se na voz do pregador se sobre-
pusessem duas línguas diferentes: a do mundo popular e a douta.
Tentemos ouvi-las.

203
A discussão sobre 0 destino das almas das crianças não batiza-
das percorre toda a história das fantasias sobre o além, tão abun-
dantes e coloridas na Idade Média, mas se entrelaça também com 0
fio mais denso da relação entre “nós” e “os outros”, com 0 senso de
identidade e limites que caracteriza a cultura cristã europeia nos
séculos de sua tomada de consciência e na fase de sua expansão no
mundo. Portanto, faremos referência a ela apenas em seus temas
principais, deixando de lado 0 quadro das curiosidades insaciáveis
sobre 0 “outro” mundo que se expressaram em visões, milagres e
narrativas fantásticas, reelaborando materiais hebraicos, muçul-
manos ou do folclore oriental e eslavo;2 mas não sem apontar pre-
viamente a violência que sustentou a discussão teológica pacífica,
dando-lhe inspiração e muitas vezes fazendo-se instrumento seu.
A questão do destino das crianças cristãs mortas sem batismo deli-
mita o ponto extremo e mais delicado onde a necessidade de pro-
teção e justiça, pela qual se recorria à intercessão religiosa e aos po-
deres divinos, colidia com a impotência do sagrado. Podiam-se
violar, com armas na mão, as casas dos hebreus para batizar seus
filhos durante as expedições das cruzadas; podia-se recorrer à vio-
lência mascarada por artifícios legais para batizar em massa os in-
dígenas da América, por obra dos missionários aliados aos con-
quistadores; podia-se até sair da casca protetora da própria cultura,
como os primeiros jesuítas na China disfarçados de mandarins, se
tal fosse 0 preço para conquistar e batizar alguns neófitos. Mas a
vontade cristã e europeia de salvar 0 mundo com 0 batismo regis-
traria a derrota mais dolorosa diante da morte dos próprios filhos,
quando não se conseguia ministrar-lhes a tempo 0 sacramento da
salvação. Tal derrota era inaceitável. Era uma batalha da vida contra
a morte _ não a morte do corpo, mas a da alma. A vontade de sal-
var as almas alimentava 0 heroísmo apostólico dos pregadores do
cristianismo, cuja máxima aspiração era a de morrer à mão dos ou-
tros _ os “infiéis”, os “pagãos” _ enquanto conquistavam almas

204
para 0 paraíso cristão. O fato de que, por trás ou ao lado deles, mar-
chassem outros tipos de conquistadores era tido como um aspecto
acidental, um preço desagradável mas necessário. E tampouco os
laços de sangue e de afeto entre pais e filhos poderiam ter algum
valor, já que as crianças batizadas deviam ser tiradas das famílias
onde corriam 0 risco de perder novamente a alma. No longuíssimo
período que se estende das Cruzadas até nossos dias, coube aos “di-
ferentes” mais próximos e mais empedernidamente inassimiláveis,
isto é, as minorias hebraicas em terra cristã, sofrer a experiência
mais pesada e duradoura _ aos batizadores armados que saquea-
vam os arrabaldes das cidades medievais sucederam-se as benévo-
las amas de leite cristãs da Idade Moderna e as instituições religio-
sas onde encontraram abrigo os órfãos hebreus da Shoah. Mas
todas as vezes erguia-se o muro do batismo apartando um povo dos
seus filhos. Se tal foi 0 valor histórico do sinal fundamental da iden-
tidade europeia, pode-se bem entender 0 agastamento teológico
acerca do problema da salvação dos filhos dos cristãos e a tentativa
de organizar missões capazes de ir ao encontro da alma no territó-
rio primordial do nascimento.
A condição posta pela palavra de Jesus _ crer e ser batizado
_ deixava, de um lado, a imensa maioria da humanidade fora do
reino dos céus e, de outro, voltava-se contra aquelas crianças que,
segundo os Evangelhos, eram tão caras a Jesus. Se 0 convite evan-
gélico inflamou os pregadores da religião cristã com energias mis-
sionárias, ele se afigurou amiúde quase inconciliável com a desti-
nação universal da mensagem da salvação. Mas a causa do longo
trabalho de reflexão religiosa em busca de uma solução não foi ape-
nas abstratamente teológica. Desde 0 início da história da Igreja
como instituição, cujos confins coincidiam com os do Império
Romano, 0 batismo se tornara a porta de entrada de uma grande
realidade política e social. Daí a longa busca para preencher os si-
lêncios das Escrituras: era preciso encontrar 0 lugar reservado à

205
humanidade imperfeita dos nascidos mortos sem batismo. Era 0
caso-limite em que 0 caráter voluntário e consciente da fé e a rei-
vindicação cristã e paulina da penitência como transformação in-
terior, contra os preceitos rituais hebraicos, entravam em contradi-
ção com 0 valor absoluto atribuído a um rito ministrado sobre um
ser insciente. A discussão, nunca totalmente ausente desde a pri-
meira sistematização no final da Antiguidade, acalorou-se pro-
gressivamente na Idade Média, revelando todo seu potencial ex-
plosivo na época da Reforma e da Contrarreforma, quando se
chegou pela primeira vez a negar nos fundamentos a exclusividade
do valor salvífico do sacramento.
Não se tratava apenas de construir uma geografia convincen-
te do além, mas de elaborar um sistema de Justiça capaz de estabe-
lecer um acordo entre a universalidade da redenção de Cristo e a
dura sentença de condenação dos não batizados, uma categoria
que se ampliava desmesuradamente e sem cessar. As característi-
cas iniciais predominantemente históricas acrescentaram-se as
geográficasz depois de Adão e dos patriarcas e profetas de Israel, e
depois dos grandes homens da Antiguidade pagã, foram as multi-
dões não europeias a colocar 0 problema da possibilidade de sal-
vação para os não batizados. Mas 0 aspecto mais dilacerante da
questão consistia no destino eterno das crianças nascidas e logo a
seguir mortas em terras cristãs. Seria possível que a porta da salva-
ção se fechasse justamente diante delas, que não tiveram tempo de
cometer nenhum pecado? A concepção agostiniana do pecado
original como corrupção radical da natureza humana e a conse-
quente tese da predestinação haviam aberto 0 terrível cenário da
condenação eterna e 0 abismo de uma justiça divina incompreen-
sível e totalmente arbitrária. Diante do abismo, a única escolha
possível era a da humiliter ignorare, como escrevera Anselmo de
Laon em suas Sententiae, ou seja, agradecer a um Deus que salvava
quem Ele quisesse e condenava à pena eterna os abortados, segun-

206
do a opinião sustentada, entre outros, por Elredo de Rievaulxf'
Com 0 avanço das dimensões citadinas da vida religiosa e de um
indócil protagonismo dos laicos, 0 Deus incompreensível da pre-
destinação, supremo poder residente a uma remota distância, pa-
recia destinado a deixar 0 palco, cedendo lugar a uma figura de
legislador sujeito às suas próprias leis, cuidadoso distribuidor de
prêmios e punições. A justiça na cidade assumira a face serena da
pazf* Mas a face do poder judiciário como função do Estado reto-
maria os traços solenes e misteriosos de um Deus que se dedicava,
sim, a “retribuir 0 bem e punir 0 mal”, como escrevera Giannozzo
Manetti na Florença do século xv, “mas a retribuição dá por graça
e a punição com misericórdia”.5 A condenação dos recém-nasci-
dos que ainda não poderiam ter praticado nenhum mal tornou-se
objeto de discussões tanto mais ásperas quanto mais viva era aten-
são a respeito dos ordenamentos mundanos. Assim, 0 destino
eterno das crianças mortas sem batismo aflorou nas doutrinas he-
réticas. O Concílio de Constança, em sua xv sessão (6 de julho de
1415), condenou uma série de artigos de John Wycliff, entre os
quais havia a acusação de stolidi etpraesumptuosi a quem negava a
salvação aos “parvulos ƒidelium sine baptismo decententes”.6 Era 0
primeiro prenúncio de uma tempestade que se avizinhava. O cres-
cente descrédito pelas coisas sagradas governadas por um clero
cada vez mais criticado ocorreu simultaneamente ao avanço de
uma teologia da predestinaçãof
Chegou-se por tal caminho à confirmação oficial das teses que
condenavam as crianças não batizadas ao inferno. Foi 0 que acon-
teceu em 1439, quando 0 Concílio de Florença definiu 0 que se de-
veria crer a respeito do destino dos recém-nascidos mortos sem
batismo. Foi a consequência imprevista e quase despercebida da
solução dada a um outro problema.8 O decreto da sessão V1, de 6 de
julho de 1439,“Laetentur caeli et exultet terra”, marcou 0 fim do cis-
ma e a união das Igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente. A0 definir

207
os pontos capitais da doutrina comum, ele reconheceu o batismo
como porta para a vida eterna. E aqui, endurecendo formulações
anteriores (entre elas uma declaração de fé proposta pelo papa
Clemente Iv em 1267), o Concílio afirmou que quem morria sem
batismo descia imediatamente para as profundezas do inferno
(“ mox in inƒem um descendere”). Era a vitória da concepção legalis-
ta da justiça divina típica da cristandade ocidental, fundada na
doutrina do pecado original.” O modelo do batismo de Cristo, fi-
xado então como pintura na obra-prima de Piero della Francesca,
deveria lembrar a todos qual era o sacramento da salvação - ainda
que a imagem de um rito ministrado num adulto consciente viesse
a alimentar incertezas e dúvidas na mente de quem o visse praticado
em crianças inscientes.1° De fato, daquela data em diante multipli-
caram-se as discussões, e não mais cessou a exortação eclesiástica a
batizar diligentemente os recém-nascidos, enquanto se generaliza-
va o registro escrito do batismo que o Concílio de Trento tornaria
obrigatório. O rigor do decreto, ponto de chegada de uma longa dis-
cussão teológica, exigiu, porém, uma série de ajustes e definições, e
uma insistente discussão foi se concentrando em torno das caracte-
rísticas do “quarto local” da paisagem do além cristão _ o “Limbus
puerorum”, destinado às crianças mortas sem batismo.
O caso do limbo é uma história oculta e aparentemente se-
cundária. Passou quase despercebida em comparação à do
Purgatório, pois não foi objeto de definições dogmáticas nem de
dilaceramentos religiosos. Foi sobre o Purgatório e o poder das
orações e esmolas dos vivos como forma de interceder pelos mor-
tos que se deflagraram os contrastes - primeiro entre a Igreja gre-
ga e a Igreja romana, depois entre Lutero e Roma. À fictícia unifi-
cação entre cristãos do Oriente e do Ocidente seguir-se-ia a
irremediável ruptura entre os cristãos do norte e os do sul da
Europa _ entre protestantes e católicos. Mas, no pano de fundo
desse conflito, antes e principalmente depois da Reforma, estava

208
também uma questão do limbo, como consequência da discussão
que envolveu o batismo.
Foi uma discussão que contou com a presença dominante da
ordem dominicana. Seus teólogos mais importantes se sentiram
chamados a fornecer uma explicação racional para a severidade de
uma sentença que, de outra maneira, só seria justificável com o ar-
gumento da imperscrutável predestinação divina. Pertencia à tra-
dição dominicana a convicção da autonomia da ordem natural, e
foi sobre o pano de fundo de uma natureza restaurada após o juízo
universal que se imaginaram destinados a viver para a eternidade
os recém-nascidos mortos sem batismo.
As marcas mais amiudadas do debate assim inaugurado con-
duzem à mesma cidade onde fora aprovado o decreto conciliar:
Florença. O piedoso dominicano Antonino Pierozzi, arcebispo da
cidade, e os humanistas Giannozzo Manetti e Donato Acciaiuoli
falaram e discutiram a esse respeito, assinalando percursos diferen-
tes em torno do tema fundamental, isto é, o que poderia ocorrer às
almas dos “pari/uli”mortos com a única mácula do pecado origi-
nal. Segundo o arcebispo, no dia do juízo final eles ressuscitariam
com os corpos que teriam aos 33 anos de idade para viver na terra
sem nenhum sofrimento, aliás gozando do pleno desenvolvimento
das potências naturais da alma e tornando-se, assim, mais sábios
do que qualquer filósofo. Na Summa Theologiae composta entre
1440 e 1454, portanto imediatamente após o decreto do Concílio
florentino,“ santo Antonino desenhou com precisão os locais das
almas: de um lado, o “ locus miseriae”, o inferno, no centro da terra
ou, em todo caso, debaixo da terra; do outro, o “locus gloriae”, o céu
empíreo. O lugar das almas dos “parvuli” era sim no Inferno; mas
era como se, numa casa em chamas, estivessem perto do telhado e
por isso nao sentissem os efeitos do fogo.”
nu

Devido ao caráter pastoral da obra de santo Antonino, é mui-


to provável que suas teses circulassem entre os humanistas floren-

209
tinos. A discussão em que vemos envolvidos em 1450 Donato
Acciaiuoli, Giannozzo Manetti e o livreiro florentino Vespasiano
da Bisticci permite vislumbrar um fundo de cultura teológica e
pregações eclesiásticas sobre o problema. '3 Foi justamente o huma-
nista Giannozzo Manetti que veio a sustentar a doutrina agostinia-
na da irremissível condenação dos recém-nascidos mortos sem ba-
tismo ao inferno. Donato Acciaiuoli reagiu protestando, pois, como
Deus era justiça e verdade, não se podia pensar que puniria quem
nunca cometera nenhum pecado.
Estava em jogo a justiça divina, ou, pelo menos, a possibilida-
de de se conciliar com a razão humana, e por isso os dominicanos
se empenharam em redefinir a doutrina do destino das almas no
limbo, mas sem nada retirar da severidade do decreto que dividia
os seres humanos desde o primeiro instante de vida. Em conformi-
dade com esse decreto, Savonarola escreveu que apenas “a alma de
uma criança pequena, que morre com a graça do batismo pela gló-
ria de Deus, vê sua face”.'4 Mas, adotando a proposta de Antonino
Pierozzi, assim tranquilizou seus leitores: “No limbo [...] não so-
frem nenhuma pena [...] Após a ressurreição [...] viverão sobre a
terra, a qual estará então purificada e glorif1cada”.15 Foram inúme-
ros os malabarismos da razão teológica a que os teólogos domini-
canos recorreram para conservar a obrigação do batismo dos re-
cém-nascidos sem cair no abismo da predestinação. Também aqui,
especialmente ousado foi Tommaso de Vio, o célebre Gaetano, que
introduziu um novo argumento capaz de limitar o alcance da con-
denação. No comentário à Summa de Tomás de Aquino, sustentou
que as preces dos pais poderiam valer como sucedâneo do batismo
quando fosse impossível ministrar o sacramento.”
Mas a condenação agostiniana das crianças não batizadas
continuou a parecer aos não teólogos uma grande injustiça.” As
opiniões dos doutos, laicos e eclesiásticos eram influenciadas pela
força de um sentimento difuso de preocupação pelo destino eterno

210
das almas das crianças; por isso a antiga prática do abandono das
crianças sofreu profundas modificações. Certamente não é por
acaso que algumas das instituições mais importantes surgiram ou
se aparelharam neste sentido justamente entre os séculos xlv e xv,
para acolher “benigna e graciosamente” os enjeitados e criá-los “às
expensas do dito Asilo”, como se lê nos estatutos de 1318 do asilo
sienense de Santa Maria della Scala.” Aqui, as novidades introdu-
zidas pela caridade cristã logo se caracterizaram pela preocupação
com o destino da alma.” Foi a partir desse impulso fundamental
que veio a se formar a imponente realidade das instituições assis-
tenciais para os enjeitados e os recém-nascidos abandonados pelos
pais. Assim que se tornavam filhos do Asilo, os pequenos não bati-
zados pesavam sobre as consciências dos administradores, que se
afligiam por eles da mesma maneira que os pais. A Crônica de frei
Salimbene menciona a alma condenada de um “dominus” de um
abrigo infantil, que foi punido porque, para fechar as contas da ins-
tituição, deixara morrer sem batismo as crianças a ele confiadas. A
questão dos limites econômicos da caridade tornou-se especial-
mente clara após a estatização da assistência hospitalar, quando a
iniciativa das associações voluntárias deu lugar a uma administra-
ção centralizada sob o controle do príncipe.” De fato, porém, os
pais dos enjeitados, ao abandoná-los, muitas vezes se preocupavam
em informar se já haviam sido batizados ou não. Esse sacramento
exercia sobre suas consciências um peso que também pode ser ava-
liado materialmente. Os arquivos do abrigo florentino de San Gallo
e do de San Gimignano ainda conservam os saquinhos de sal - o
ingrediente necessário para o batismo - que os pais, embora ge-
ralmente paupérrimos, adquiriam e colocavam no pescoço dos re-
cém-nascidos quando os abandonavam.” Não era, portanto, uma
obscura doutrina teológica que agitava as consciências; dir-se-ia,
mais que isso, que a voz dos teólogos era chamada a defender as ra-
zões da instituição e a regular racionalmente uma matéria que fu-

211
gia a qualquer sistematização racional. A morte de quem não vive-
ra abria uma passagem, que não era possível fechar, entre os locais
dos vivos e os dos mortos. Os vagidos das crianças que não viveram
e que ressoavam no Hades visitado por Eneas, no poema virgiliano,
continuavam a preencher também o além cristão. Na cultura dou-
ta e na cultura popular permanecia não resolvido o problema de
encontrar uma alocação estável no além para as almas que, à falta
de batismo, não encontravam lugar entre os redimidos, tampouco
entre os amaldiçoados. Dizia-se que essas almas continuavam va-
gando sobre a terra, entre os vivos. E por isso os teólogos, ao mesmo
tempo que procuravam dar contornos nítidos ao limbo como local
de acolhida, aceitavam favoravelmente a ideia de que, após o juízo
final, os “parvoli” não batizados continuariam a vagar sobre a terra,
como local a eles destinado.”
A definição dos locais do além até então traduzira na geografia
ultraterrena a nova ideia de justiça trazida pelo cristianismo, isto é,
quem acreditar e for batizado será salvo. Mas o problema se reapre-
sentava agora numa nova fase do mundo europeu e do cristianismo
ocidental. As discussões sobre os locais do além que ocuparam a cul-
tura teológica europeia a partir do século xv se reavivaram sobre o
pano de fundo da expansão europeia no mundo. Tratava-se de abrir
lugar para novos grupos humanos no sistema cristão -- os muçul-
manos da península Ibérica, os judeus, os habitantes do novo mun-
do descoberto por Cristóvão Colombo e por Américo Vespúcio.
Os conflitos entre os vivos reformularam o mundo dos mortos.
Sobre esse pano de fundo desenrolou-se a tentativa extrema da cul-
tura dominicana de abrir alguma fresta para os não batizados.
Mas, no século da Reforma e da expansão colonial europeia,
os espaços do além também foram influenciados pelas novas di-
mensões sociais e geográficas da realidade. Por isso, numa época
que presenciou acirrados conflitos religiosos e culturais, a doutrina
do batismo foi, se não a mais, pelo menos uma das mais controver-

212
tidas. A voz mais radical em sua sorridente ironia foi a de Erasmo
de Roterdam, o primeiro a colocar sob acusação o supersticioso ri-
tualismo do batismo e a severidade pouco evangélica da condena-
ção dos não batizados ao inferno. Comparativamente, frisou
Erasmo, os judeus tinham sido muito mais brandos, ao considerar
que a circuncisão podia ser adiada ou mesmo substituída pela sim-
ples vontade de praticá-la:

A circuncisão foi eliminada, mas o batismo a substituiu, em condi-


ções, diria eu, quase mais duras. A primeira era fixada para o oitavo
dia e, se por acaso a criança morresse, a intenção de circuncidá-la
valia como circuncisão. Iá nós pegamos as crianças que acabaram de
sair da proteção do ventre materno e o submergimos totalmente na
água fria (para não dizer apodrecida), como fica depois de estar por
muito tempo num recipiente de pedra. E se a criança morre no pri-
meiro dia, ou até durante o parto, sem que os pais ou os amigos
tenham culpa, a pobrezinha é entregue à danação eterna.”

As práticas religiosas, referidas a seu significado espiritual e


ao valor fundamental da fé, perdiam assim qualquer consistência.
Era a fé e não a água que validava o batismo; do contrário, escreveu
posteriormente um médico de ideias erasmianas, bastaria lavar a
cabeça para tirar os efeitos da água benta.” Mas, com a leveza da
ironia, essa crítica dos rituais que nascia de uma religião interiori-
zada inaugurara uma das batalhas mais aguerridas da história do
cristianismo. Não à toa um profundo estudioso da Reforma pro-
testante definiu Erasmo como “um dos pais espirituais do
anabatismo”.25 E isso permite entender por que a reação de Lutero
e da Igreja católica contra Erasmo foi tão violenta. Apenas a pru-
dência política da Cúria romana, ciente do prestígio intelectual de
que desfrutava o humanista, impediu que se chegasse em vida à
condenação que, depois, atingiria suas obras.

213
Mas as novas Igrejas nascidas da Reforma também tiveram
grande dificuldade em defender o batismo infantil. Foi o que se viu
quando, num prazo de poucos anos, as teses de Lutero ganharam
difusão ao lado das de Zwinglio e dos anabatistas, e o modelo cal-
vinista tomou corpo em Genebra. Coube a Lutero, agora no campo
da polêmica pública, dar voz ao rigorismo agostiniano sobre a ma-
téria com o sermão Do sagrado e venerável sacramento do Batismo
(1519). O reformador alemão conferiu ao sacramento o valor de
uma declaração de guerra contra o pecado, na medida em que era
capaz de “se estender por toda a vida até a morte, aliás, até o juízo
final”.2'5 O pecado devia ser afogado na água do batismo. Lutero
considerava o rito batismal como sinal de fé e início da vida do cris-
tão. Portanto, se essa vida devia se dar inteiramente sob o signo da
penitência, como já afirmara na primeira de suas teses sobre as in-
dulgências, o batismo era apenas o gesto inicial, e não o evento de-
finitivo. Era uma proposta nada revolucionária. Ao unir a água do
sacramento à fé, Lutero igualmente se afastava dos desdobramen-
tos em sentidos opostos da doutrina anabatista _ a fé como esco-
lha individual consciente posta como base do sacramento _ e da
concepção católica tridentina sobre o poder autônomo e objetivo
da água e das palavras batismais para transformar a condição do
catecúmeno (“ ex opere operato”).27 A tese de Lutero estava profun-
damente enraizada na tradição cristã do batismo, ao mesmo tempo
como sinal de vida e de morte.” Mas o apelo ao valor determinan-
te da fé, somando-se à corrosiva crítica erasmiana, conquistou ade-
sões que ultrapassavam largamente aquelas premissas. Poucos
anos se interpõem entre o Sermão de Lutero e a discussão explícita
sobre o batismo dos adultos na Zurique zwingliana, com as conse-
quências extremas da interpretação do rito como simples sinal de
uma autêntica transformação interior. Na discussão com os nega-
dores do batismo infantil, Zwinglio defendeu a prática tradicional
do sacramento contra quem, brandindo as Escrituras sagradas,

214
sustentava que os apóstolos jamais tinham batizado crianças.”
Diante das consequências radicais da tese que subordinava a salva-
ção à fé, Lutero se refugiou na defesa do batismo infantil com o ar-
gumento de que os pequenos não eram desprovidos de fé, mas ape-
nas da capacidade de responder. Eram “quasi in somno”, mas o
adulto que respondia às perguntas rituais do sacerdote em nome
do pequenino estava falando por ele e podia garantir que a criança
tinha fé, pois o próprio Deus a concedia no ato do sacramento.”
Inaugurava-se aqui uma longa história, que seria difícil re-
constituir em traços breves. De fato, naquele período, polêmicas
acerca da interpretação e ministério do batismo estiveram no cerne
não só de refinadas construções intelectuais ou de árduas tentativas
de definição teológica, mas também de fenômenos de grande im-
portância que viriam a determinar a ordem da Europa e as formas
da expansão no mundo. A expulsão dos hebreus da Espanha, a des-
coberta da América e a conquista religiosa dos autóctones, os con-
flitos ligados à Reforma protestante e o Concílio de Trento coloca-
ram em confronto interpretações contraditórias da relação entre
rito e fé e geraram experiências muito diversas sobre a maneira de
interpretar a obrigação cristã do primeiro sacramento.
A doutrina estabelecida pelo Concílio de Florença foi retoma-
da e explicitada no decreto de 17 de junho de 1546, com o qual o
Concílio de Trento determinou a posição oficial da Igreja católica
sobre a matéria. O decreto afirmava que o pecado de Adão atingira
todos os homens, e portanto também os recém-nascidos que não
tiveram tempo de cometer nenhum pecado. O pecado original se
transmitia pela geração natural, sem necessidade de atos conscien-
tes. Por isso era necessário que os recém-nascidos fossem batiza-
dos, e quem o negasse deveria ser excomungado (“Anatema sit”).31
A Igreja, ameaçada em suas bases, refugiava-se na tradição e, ao
confirmá-la, aumentava sua rigidez. Somente lá era possível en-
contrar bases firmes para manter em pé um edifício que, de outra

215
maneira, corria o risco de desmoronar. Mas continuava irresoluto
o problema fundamental: como conciliar o caráter da fé cristã fun-
dada sobre o consentimento individual livre e consciente com a
prática ritual do sacramento. Aliás, consolidando a tese que funda-
va a eficácia do sacramento na execução fiel de um rito (“ ex opere
opemto”) e prescindia da fé de quem o recebia, esse decreto abria
caminho para novas contradições ainda mais sérias. De fato, a ace-
leração doutrinária iniciada pelo decreto do Concílio de Florença,
já citado, correspondia, de um lado, a um descarte do consenti-
mento e, de outro, à construção de novas formas de agregação e de
poder em torno do vínculo de identidade religiosa. Entre o final do
século xv e o início do século xvi, houve um afastamento entre fé
subjetiva e valor objetivo do rito que chegou ao ponto de ruptura.
Contra a posição extrema dos que foram definidos como “anaba-
tistas”§ que vinculavam a validade do sacramento à fé de quem o
recebia, Lutero, Zwinglio e Calvino escolheram preservar o batis-
mo dos recém-nascidos, mas dando-lhe um aspecto comunitário e
não privado. Contra o literalismo evangélico dos definidos como
“catabatistas”, os quais citavam o exemplo dos apóstolos que não
haviam batizado crianças, Zwinglio ressaltou que os Evangelhos
tampouco mencionavam que Cristo tivesse batizado, mas que nem
por isso haveria de se renunciar ao sacramento.” Logo amadureceu
a ruptura radical em relação aos que consideravam que o batismo
devia ser recebido sob consentimento por adultos conscientes: os
“anabatistas” ou “catabatistas”, como lhes definiram polemica-
mente os adversários, foram implacavelmente perseguidos por to-
das as Igrejas e em muitos casos pagaram suas ideias com a vida. Era
a própria base da sociedade que estava em jogo. O Estado derivava
sua legitimidade do cristianismo; portanto, não se poderia admitir
a constituição de uma Igreja de perfeitos apartada ou mesmo hostil
ao poder político, acusado de não ser cristão. Mas, enquanto isso, a
crítica de Erasmo e a posição dos anabatistas estavam levando à

216
modificação de muitas coisas num cristianismo onde os rituais se
dobravam às doutrinas e as liturgias se curvavam aos saberes inte-
lectuais. Contra as tradições da Igreja “papista”, Zwinglio iniciou
uma série de reformas que modificaram substancialmente o signi-
ficado do rito. Calvino também enveredaria por esse caminho, ten-
tando introduzir na Igreja de Genebra uma concepção do batismo
como confissão de fé comunitária realizada também em nome das
crianças. Mas tal tipo de rito não tinha absolutamente nenhuma
pretensão de decidir sobre a salvação eterna, pois esta dependia ex-
clusivamente da predestinação divina. Era por isso que, segundo
ele, proferir juízos de condenação sobre as crianças mortas sem ba-
tismo era uma verdadeira insânia.” Para Calvino, lembrando as
lições de Erasmo, não se podia afirmar que houvesse uma diferença
substancial entre a circuncisão hebraica e o batismo cristão: ambos
eram apenas sinais, declarações, profissões de fé. Uma das conse-
quências da posição da Reforma, tanto na vertente calvinista como
na luterana, foi um lento e inexorável desbaste do rito. O caminho
fora indicado por Lutero, o qual, num manual de instruções para o
batismo publicado em 1523, reduziu o número dos exorcismos,
eliminou a advertência aos padrinhos e a recitação do Credo ein-
troduziu uma oração que insistia na imagem do dilúvio como pu-
rificação de Noé. Na revisão a que procedeu em 1526, Lutero sim-
plificou ainda mais o rito, para destacar claramente que o batismo
era feito pela água e pela Palavra.” Essa trilha foi seguida por outros
reformadores com determinação ainda maior. Em lugar da eficácia
mágica do sacramento e de seu valor de exclusividade como veícu-
lo para a salvação, foi-se introduzindo o valor da consciência e da
escolha deliberada da fé ou a confiança no decreto divino da pre-
destinação. Assim, no mundo da Reforma protestante, o batismo
dos recém-nascidos continuou a assinalar a porta de entrada na
sociedade cristã, mas perdeu 0 valor de transformação automática
dos indivíduos e assumiu o significado de um ato comunitário de

217
confissão de fé. De fato, a fissura mais acentuada com que se iniciou
a história moderna das Igrejas cristãs foi justamente a cisão entre a
Igreja católica, com sua rígida ratificação da obrigatoriedade do
batismo para a salvação, e a Igreja calvinista, que desvalorizava os
sinais visíveis em nome de uma imperscrutável sentença divina.
Boa parte da Europa, adotando as ideias da Reforma, manteve o
batismo infantil, mas atribuindo-lhe um valor de promessa e aus-
pício, com o compromisso da comunidade e da família em trans-
mitir a fé ao recém-nascido, a fim de fortalecer os laços entre as
gerações e a consciência de pertença aos eleitos. Como escreveu
Bayle, “Deus não pede (às crianças no momento incapazes de fé ou
de penitência) senão uma única condição: o nascimento dentro da
Igreja e de genitores que se encontrem pelo menos dentro da alian-
ça geral do cristianismo”.35 A eleição divina na tradição calvinista
assumiu assim as duras feições de um bem de família _ eram os
pais que transmitiam a graça aos filhos, como veio a escrever o pas-
tor Pierre Poiret.36 No mundo católico, por outro lado, o batismo
continuou a ser a única porta para o paraíso. Foi apenas no terreno
da conquista religiosa que missionários e inquisidores, pregadores
e párocos _ todos os que detinham o poder de abrir aquela porta
para os que estavam do lado de fora _ perceberam a necessidade
de elaborar formas de persuasão e doutrinamento, para preencher
o sacramento ministrado a hebreus e muçulmanos, a indígenas
americanos e escravos africanos, com um conteúdo, se não de uma
autêntica fé, pelo menos de conhecimento da doutrina.
Antes que a nova paisagem se delineasse segundo as linhas tra-
çadas pelas Igrejas institucionais, a batalha não se desenvolveu na
atmosfera rarefeita dos debates escolásticos, mas foi travada com
ideias e com armas, nas praças e nos tribunais. As questões discuti-
das equivaliam aos próprios fundamentos da sociedade cristã, e da
solução apresentada derivariam consequências de grande alcance,
sendo a primeira delas a definição dos limites e formas de ingresso

218
numa comunhão eclesial. Era isso que se discutia por toda parte.
Na Universidade de Pisa, um jovem estudante sardo de nome
Sigismondo Arquer defendeu a tese de que “as crianças podem se
salvar sem o batismo”. Objetaram-lhe que, “se alguém quiser sus-
tentar esse ponto, deve quase obrigatoriamente sustentar uma ou-
tra tese, a saber, o que propicia a salvação é a predestinação e não o
batismo”; e isso significava alinhar-se com os “hereges”.37 Arquer
pagaria com a vida a escolha implícita naquela frase, mas o episódio
demonstra que a resposta àquele único problema poderia resultar
em outras muitas coisas. E as mentes mais inquietas, remetendo ao
texto das Escrituras e analisando os significados das palavras com
uma meticulosa filologia, negavam ou ridicularizavam franca-
mente o automatismo do rito _ era o caso do herege italiano
Camillo Renato, que ironizou quem considerava o batismo válido
mesmo ministrado a um turco “louco e sem sentimento”.38
Não eram afirmações avulsas. Transcorridos poucos anos da
ratificação da validade do rito, também para os recém-nascidos na
assembleia eclesiástica de Trento, houve a realização secreta de um
concílio totalmente diferente em Veneza, o qual era composto de
expoentes de uma Igreja anabatista que tinha como doutrina fun-
damental a recusa do batismo das crianças “se antes não creem”.39
E foi partindo dessa premissa que a assembleia veneziana chegou a
negar a divindade de Iesus e a imortalidade das almas humanas, e
afirmou que a vida de todo indivíduo era fruto do sêmen humano,
tanto na carne quanto no espírito.”
Esse simples indício mostra a rapidez com que amadureceu
uma crise radical da ordem antiga, dentro do próprio coração da
Igreja de Roma, a respeito da questão do batismo. Era uma nova
concepção do indivíduo e da divindade que se afirmava. E compreen-
sível a violentíssima reação de defesa não só da Igreja de Roma, mas
também das novas Igrejas nascidas dos ensinamentos de Lutero,
Zwinglio e Calvino. Os anabatistas e os antitrinitários tornaram-se

219
objeto de uma caça impiedosa, enquanto a doutrina ortodoxa era
reelaborada com adaptações às novas exigências.
Para o mundo católico, é significativa a forma como um teó-
logo de uma certa originalidade, o dominicano sienense Ambrogio
Catarino Politi, enfrentou o problema. Segundo ele, a forma do juízo
final anunciado por Cristo, com a maldição para quem praticou o
mal e o paraíso para quem praticou o bem, permitia deduzir a exis-
tência do terceiro local. As crianças não são batizadas, logo não po-
dem entrar no paraíso; mas não cometeram nenhuma má ação, e
por isso não estarão incluídas entre os maledicti. Se Deus é justo,
não pode punir as crianças. O princípio fundamental da justiça
consiste em que ninguém pode ser defraudado naquilo que lhe
pertence por natureza. Portanto, a essas crianças sem batismo cabe
aquela felicidade que pertence naturalmente ao homem. Catarino
chegou a imaginar que não serão exiladas totalmente do reino de
Deus, mas receberão visitas e revelações, e terão, por conseguin-
te, relações com os que estão no céu, que lhes darão consolo.
Evidentemente, faltar-lhes-á a visão beatífica de Deus. E é muito
provável que seu lugar seja a terra, que é o lugar do homem. Pois se
o limbo deve se situar sob a terra, isso significa que, no momento
da ressurreição dos mortos, os habitantes do limbo também res-
suscitarão e virão à superfície, onde viverão no gozo de sua perfei-
ção natural. Catarino teve a cautela de apresentar tais opiniões
como apenas prováveis.'“ Mas seu objetivo era claro: tratava-se de
defender a imagem de um Deus justo, que retribui segundo os mé-
ritos, afastando o espectro da predestinação absoluta de cunho
agostiniano; e, além do mais, era preciso tranquilizar os parentes
ansiosos sobre o destino dos recém-nascidos mortos sem batismo.
Não foi à toa que Calvino teve de combater a tendência dos gene-
brinos em recorrer secretamente aos sacerdotes católicos mais pró-
ximos para ministrar aos filhos recém-nascidos o sacramento se-
gundo o rito tradicional. Ministrado o mais cedo possível, sem

2.20
aguardar o batismo público e simplificado da Igreja calvinista, o
rito lhes oferecia uma maior segurança perante o perigo sempre
iminente da morte dos pequenos.”
Podemos dizer sucintamente que, se a Igreja católica confir-
mou o valor do sacramento como porta exclusiva para a salvação,
as interpretações da Reforma protestante se afastaram dele ao in-
sistir em seu significado como sinal e no valor subjetivo da pro-
fissão de fé. Entrementes, o batismo tornava-se cada vez mais pa-
recido com uma fronteira entre Estados em guerra: a marca de
identidade religiosa dividia não só cristãos e hebreus ou muçulma-
nos, mas também cristãos e cristãos. Toda a originalidade das con-
trovérsias sobre a validade do batismo ministrado por hereges, em
comparação às polêmicas dos primeiros séculos da Igreja, como a
nascida com o cisma novaciano, consistia nesse valor de fronteira
entre os povos.” Continuando-se a reconhecer, em princípio, o ca-
ráter cristão do batismo praticado por outras Igrejas, o sentimento
de divisão e conflito religioso era tão intenso que os protestantes
convertidos ao catolicismo romano assediaram o Santo Ofício com
seus escrúpulos. Era, em particular, o caso daqueles que, tornando-
-se sacerdotes católicos depois de terem nascido (e recebido o ba-
tismo) em países calvinistas, perguntavam-se angustiados se os sa-
cramentos por eles ministrados não estariam desprovidos de
qualquer valor, devido àquela primeira entrada, talvez falaciosa, na
Igreja.” Havia também 0 caso dos cristãos que os turcos haviam “apri-
sionado na infância, e que nunca conheceram a fé cristã”. Foi sobre
eles que o inquisidor de Malta, por exemplo, escreveu em 20 de agos-
to de 1601, relatando que, para convencê-los a voltar à ortodoxia, ti-
vera de ameaçar “mandá-los para a fogueira” como apóstatas.45
Mas foi justamente no coração do Estado Pontifício, e em de-
corrência do trabalho das instituições para enjeitados, que se colo-
cou um problema delicadíssimo no século xvn: descobriu-se que
dois eclesiásticos de Perugia, criados entre os enjeitados no Hospital

221
de Santa Maria della Misericórdia, tinham se ordenado sem que
tivessem sido batizados no Asilo, nem mesmo “sub conditione”.
Abria-se uma fenda exatamente no próprio sistema das entidades
criadas para enfrentar aquilo que são Vicente de Paulo definira
como o cúmulo de todos os males: a morte sem batismo dos recém-
-nascidosƒlfi No caso dos prelados de Perugia, além da dúvida sobre
a salvação de suas almas, corria-se o risco de uma catástrofe sacra-
mental indireta, capaz de envolver um número imenso de pessoas,
e por isso tomou-se a decisão de repetir secretamente toda a série
dos sacramentos, do batismo à ordenação. Mas, para garantir a paz
das consciências dos fiéis, impôs-se que não devia “jamais transpi-
rar a quem quer que seja o menor indício, mesmo remoto, nem
nenhuma vaga suspeita”. Foi preciso que os dois preladosjustificas-
sem “a outro título” (isto é, com um pretexto inventado; portanto,
com uma mentira) a viagem de Perugia a Foligno, que tiveram de
fazer para tal fim.” Depois disso, para evitar tais casos, emitiu-se a
ordem de sempre proceder ao batismo “sub conditione” para os en-
jeitados. Era a solução que mais se utilizava na época, pois a rígida
definição das regras rituais, implementada de forma centralizada
pelo papado, autorizava todos os tipos de escrúpulos.
A necessidade de segurança dos fiéis transformava as incerte-
zas eclesiásticas em clara aversão a tudo o que não fosse totalmente
garantido. Foi por isso que, no século xvm, uma irlandesa internada
no hospital londrino para dar à luz recusou o batismo do rito an-
glicano.” O que contribuía para reforçar a desconfiança era o de-
senvolvimento das modernas realidades dos poderes estatais sob a
proteção das muralhas simbólicas oferecidas pela religião. Quanto
mais forte se revelava o vínculo religioso constituído por aquela
marca batismal, tanto mais se despertava o interesse do poder po-
lítico. Por isso foi a ele que, geralmente, coube cumprir a função na
sociedade cristã de registrar os recém-nascidos, mesmo com justi-
ficativas teológicas diferentes, pois o que importava era que o cor-

222
po da sociedade cristã permanecesse unido e que não houvesse
uma defecção dos “perfeitos” Quanto à eficácia propriamente reli-
giosa do sacramento, transformado de rito do renascimento espi-
ritual em ato de ingresso na comunidade, ela foi confiada à subse-
quente construção da consciência da pertença cristã _ uma
construção que começava imediatamente com o sermão do pastor,
o qual passou a adquirir um significado importante. Também no
mundo católico, a defesa da eficácia ex opere operato do batismo
ocorreu em simultâneo com a insistência na educação nos moldes
do catecismo que acompanharia os batizados ao longo de seu cres-
cimento. Os deveres do padrinho receberam destaque na literatuta
catequística, com manuais que ensinavam as noções a serem incu-
tidas nas crianças.” No entanto, muito mais importante foi a cons-
tituição de instituições diretamente controladas pelo corpo ecle-
siástico, das Companhias da Doutrina cristã para os filhos dos
batizados às Casas dos Catecúmenos destinadas aos convertidos,
atuantes sobretudo em relação aos hebreus. As convicções e a cons-
ciência do cristianismo adulto eram, portanto, complementos im-
portantes do batismo para todas as denominações cristãs.
Mas qualquer analogia desaparece no caso extremo do recém-
-nascido em perigo de morte. Aqui, a convicção de que a vida eter-
na da alma dependia absolutamente do contato da água batismal
com o corpo da criança levou o mundo católico rumo aos experi-
mentos mais arriscados para proceder a esse contato decisivo.
Parteiras e médicos tornaram-se aliados fundamentais do pároco
para ministrar o batismo de emergência. As primeiras, com muita
frequência acusadas de ignorância crassa, tiveram de aprender a
fórmula sacramental e se submeter a exames periódicos; os médi-
cos estudaram técnicas e instrumentos para alcançar a criança ain-
da no útero com a água santa. Nada disso ocorria na Igreja calvinis-
ta, enquanto a Igreja luterana admitia um moderado recurso ao
batismo de emergência. O padrão se complicava onde coexistiam

223
diversas concepções e rituais divergentes. Nas áreas alemãs de con-
vivência entre as principais denominações cristãs, os registros de
nascimento e morte apontam os comportamentos dos pais de fé
reformada que, em situações de perigo, recorriam à parteira ou ao
sacerdote católico para o batismo de emergência.”
Contra uma prática coletiva dominada pela busca da proteção
do rito, importantes minorias aprofundavam seu distanciamento
intelectual de uma religião que agora estava a cargo do poder esta-
tal. A violenta repressão ao anabatismo e os dispositivos de contro-
le e de repressão acionados pelos poderes públicos impediam a li-
vre expressão das dúvidas e críticas. Mas 0 que aflora é suficiente
para mostrar que a ruptura entre os ritos e as convicções, longe de
se fechar, aumentara. Um texto lucidamente radical como 0
Colloquium Heptaplomeres de Iean Bodin, escrito em 1593, preci-
sou aguardar até 1857 para vir à luz. Aqui, sob a forma de um diá-
logo ideal entre sete sábios de diversas religiões, o autor expressou
as críticas mais destemidas à construção do cristianismo histórico
que, através da noção de pecado original, justificava a necessidade
da encarnação da segunda pessoa da trindade, o sofrimento e a
morte de Cristo e a obrigatoriedade do batismo para a salvação
eterna. “A pessoa indica aquilo que existe individualmente”, obser-
va um dos interlocutores; e as culpas também são individuais, o que
significa que nenhum pecado foi transmitido por Adão; por isso, é
cruel a ideia de que um Deus tenha de se encarnar e morrer “para
libertar crianças inocentíssimas daquela desmedida culpa”.5* E di-
fícil dizer até que ponto Bodin partilhava pessoalmente dessas
ideias.” Mas o fato de terem sido formuladas e postas por escrito
mostra a indiscutível existência da chamada “teologia libertina” da
época; e, elaborada e transmitida secretamente, ela continuou a se
insinuar em ambientes restritos. Apenas uma pequena Igreja heré-
tica, ao cabo de uma intensa discussão, ratificou a recusa da dou-
trina trinitária e da necessidade do batismo infantil, lançando os

224
fundamentos de um cristianismo diferente: a Igreja unitarista cons-
tituída na Polônia que, graças à tolerância que caracterizava aquele
país, deu acolhida à reflexão teológica de dois nobres sienenses,
Lelio Sozzini e seu sobrinho Fausto. Seus escritos desfizeram o nó
que ligava a doutrina da trindade à obrigação do batismo das crian-
ças e à promessa de uma eternidade de prêmios ou castigos para as
almas humanas. Para eles, Cristo era apenas um homem, escolhido
por Deus para governar o povo de seus fiéis, e a profissão de fé cris-
tã consistia exclusivamente na imitação de Cristo. Assim, quem se
esforçasse para praticar as virtudes evangélicas, imitando Cristo
como homem pobre e sofredor, ganhava a imortalidade, ao passo
que os outros deviam se submeter à lei natural da morte. Quanto
ao batismo ministrado com água, deveria ser entendido como pro-
fissão pública de fé _ na verdade, um rito que toldava a remissão
dos pecados concedida apenas graças à fé e à penitência.” Esta, em
síntese, era a posição dos unitaristas _ um pequeno grupo que,
exilado da Polônia e refugiando-se na Holanda, exerceu uma pro-
funda influência na história da tolerância na Europa. A doutrina
do fundador Fausto Sozzini era, como já se disse, “uma religião da
atividade moral e da coerência intelectual”.54 Agora as Igrejas te-
riam de acertar contas com a redução da religião cristã a uma mo-
ral e com a convicção de que a salvação se devia não aos sacra-
mentos ministrados pela Igreja, e sim à seriedade e à coerência da
conduta individual.

Os poderes eclesiásticos e políticos travaram uma guerra sem


fronteiras contra opiniões e tendências como as dos socinianos e
dos inúmeros cristãos sem Igreja que a sociedade europeia conhe-
ceu após as guerras de religião. Mas mesmo as Igrejas cristãs mais
tradicionalistas continuaram sem ter uma resposta segura para a
questão do destino das almas das crianças não batizadas. O exercí-
cio de imaginação teológica foi intenso. Encontram-se indícios

225
disso em boa parte da bibliografia sobre a vida no além que Ezra
Abbot, o erudito bibliotecário de Harvard, arrolou em seu valioso
levantamento.” No exercício de exploração do além _ para espe-
cificar o local exato das crianças sem batismo, para definir sua con-
dição de felicidade natural e ausência da visão beatífica _, a polê-
mica entre jansenistas e jesuítas no mundo católico e entre
arminianos e gomaristas no mundo calvinista trouxe à cena antigas
soluções e novas perguntas, que reaparecerão ao longo dos séculos
Xvln e XIX. As perguntas se referiam às dimensões do reino celeste e
sua capacidade de hospedar, se não a totalidade, a maioria dos seres
humanos. Mas era a própria noção de justiça que estava mudando
de significado. Conforme a ideia de justiça alimentava movimen-
tos revolucionários e lutas políticas no mundo, a religião era cha-
mada a corroborar as respostas tradicionais à questão. E as portas
do céu se abriam ou se fechavam de acordo com o que, entremen-
tes, ocorria na terra.
Por outro lado, as soluções propostas pelas partes em conflito
deviam conferir seu grau de eficácia pela capacidade de responder
a um duplo desafio: de um lado, havia a difusa e dolorosíssima ex-
periência da morte dos recém-nascidos, constantemente apresen-
tando à religião oficial perguntas de difícil resposta; de outro lado,
avançavam os conhecimentos médicos sobre as origens da vida hu-
mana, colocando em crise a pretensão da teologia ao título de rai-
nha do saber. Por isso, enquanto na aparência as Igrejas cristãs se
alinhavam na defesa da tradição medieval ou propunham a
Reforma, isto é, o retorno à era das origens, inauguravam-se novas
alianças e novos paradigmas. Tratava-se, portanto, de escolher en-
tre as funções mágico-protetoras para a maioria dos fiéis ou a alian-
ça com os novos saberes científicos. Apenas ao se levar em conta
esse aspecto da questão é que será possível entender por que a inda-
gação sobre o destino das crianças não batizadas ressurgia cons-
tantemente, obrigando as autoridades e os teólogos a ajustes con-

226
tínuos e não superficiais. E esta dimensão profunda e, por assim
dizer, cotidiana do problema que agora devemos examinar.

1
A
O MILAGRE E A CIENCIA

Inserindo-se na relação entre a religião oficial e as tradições


folclóricas, o batismo desempenhou a função de rito de passagem
capaz de transformar o nascimento como fato de natureza em fato
de cultura. Ao nascimento do corpo devia se seguir o nascimento
da alma. E é justamente ao entrelaçamento de nascimento natural
e renascimento no espírito que nos remete o poder de “dar a alma”
atribuído ao batismo. Uma pista quanto aos modos de entender
sua eficácia são os usos mágicos dos veículos materiais do sacra-
mento. O crisma sagrado e a água benta foram instrumentos usuais
para operações de tipo mágico. Regras rígidas deviam resguardar o
acesso àquelas fontes de poderes extraordinários. Na noite de Natal,
quando se acendia o fogo nas igrejas e abençoava-se a água batis-
mal, tornou-se hábito abençoar também ervas e raízes e distribuir
a água benta aos presentes. Um édito episcopal dos Abruzzi, de
1575, descreveu a multidão de “inúmeras pessoas de ambos os se-
xos que ficavam esperando com vasilhas para receber a água do
santo batismo, para utilizá-la de forma semelhante em infinitas su-
perstições e diabólicos encantamentos”.56 As proibições pós-tri-
dentinas permitem vislumbrar as práticas tradicionais que agora se
chocavam com as novas preocupações de afastar a suspeita de ma-
gia da sacralidade oficial. Mas, nas práticas registradas por uma
Igreja preocupada em distinguir a religião da magia, ainda vemos
a presença atuante da ideia de que o batismo tinha o poder de con-
ferir a vida. Quem não o recebia parecia confinado a uma condição
incerta e num local indefinível, sem felicidade nem sofrimento.
Uma pintura encomendada ao pintor Enguerrand Quarton em

227
Avignon, em 1453, é um testemunho iconográfico da maneira
como era possível imaginar a condição das “crianças inocentes”.57
Ali, ao lado de um grupo de ressurretos que ascendem ao paraíso,
há um outro grupo de meninos obrigados a permanecer sob a terra
com os olhos fechados (porque não podem ver Deus), enquanto
todos os demais ressurgem rumo à luz. Em data pouco posterior ao
decreto do Concílio florentino, essa imagem incluída pelo pintor
(aliás, sem que o comitente a tivesse mencionado, embora tenha
sido extremamente preciso quanto ao restante) mostra a profunda
diferença entre essa categoria e a dos outros defuntos: sepultas sob
a terra, longe de qualquer possibilidade de algum dia chegar a ver a
luz, aquelas crianças comprimem a parede que não se abre pela for-
ça de um remorso sem redenção possível.
De fato, para além da política eclesiástica e das polêmicas teo-
lógicas, o problema dos recém-nascidos não batizados era, acima
de tudo, um drama das famílias. E um drama muito difundido.
Devido à alta mortalidade pré-natal e perinatal, a maioria das pes-
soas tinha experiência de crianças que não sobreviviam ao parto ou
morriam logo após o nascimento. Sua exclusão simbólica também
era assinalada na forma do sepultamento, que não podia se dar em
terra consagrada. Se ocorresse o enterro de uma criança não bati-
zada, o cemitério deveria ser reconsagrado. Para a Igreja, era a con-
dição de impureza que detinha à porta da igreja o recém-nascido a
ser batizado, tornando indispensáveis os ritos do exorcismo. Aqui
estamos diante de um resultado daquela dupla natureza da criança
na cultura medieval, que fora apontada por Iean-Claude Schmitt:
“positivamente, é o filho do milagre e da hagiografia. Negativa-
mente, é o filho do demônio, por vezes cúmplice e mais amiúde
presa das bruxas”.58 Os ritos pré-batismais dominados pelo exor-
cismo e a renúncia a Satanás durante o batismo propriamente dito
visavam a libertar o recém-nascido do domínio do diabo. Se isso
não ocorresse, era inevitável que os pequenos corpos fossem sepul-

228
tados nos campos como animais e que se imaginassem seus espíri-
tos como persistente presença maléfica, almas penadas destinadas
a vaguear sem descanso.” No caso deles, a morte não conseguia
separá-los definitivamente dos vivos. Daí as dificuldades dos teó-
logos que se refletiram nas elaborações da cultura folclórica. Aqui
as crianças mortas sem batismo eram vistas como integrantes da
“cavalgada selvagem” ou do “exército furioso” dos mortos prema-
turos, que vagavam pela terra continuando a obcecar e a agredir os
vivos. Na raiz dessa representação estava uma percepção da vida
humana como percurso dotado de um início e de um desenvolvi-
mento, mas também de uma conclusão natural, a qual não podia
ser antecipada pela violência sem alimentar um estado de pena do
morto e de aflição dos vivos. Quando a porção de vida destinada a
um indivíduo era reduzida ou suprimida antes do tempo, imagina-
va-se que o morto permaneceria nos locais onde deveria ter vivido
pelo tempo equivalente à vida que lhe fora tirada. Essa crença aflo-
ra na tradição folclórica conhecida como “caça selvagem” ou exér-
cito furioso, e é a partir do século xv que as crianças mortas sem
batismo aparecem entre as fileiras dos justiçados e suicidas.” Eram
as mesmas categorias de defuntos geralmente excluídas do sepulta-
mento ritual.61A ameaça de sobrevivência dos espíritos insaciados
e vingativos tornou-se ainda mais grave com o fortalecimento da
função protetora do batismo e especialmente dos exorcismos que
o precediam. Era inevitável que as crianças mortas antes desses ri-
tos aparecessem como presenças maléficas, tanto que o Decretum
de Burchard de Worms sugerira recorrer ao remédio de uma espé-
cie de segunda morte: cravando-se uma estaca de madeira nos cor-
pos dos pequenos mortos, os espíritos não mais obcecariam os vi-
vos.62 O peso dessas presenças negativas somou-se ao sentimento
de culpa nos casos dos infanticídios mais ou menos deliberados.
Temos indícios ocasionais. No sistema cristão, o local para obter o
perdão das culpas era a confissão que, por seu caráter oral e secreto,

229
não deixou outro vestígio além das normas estabelecidas nos câno-
nes penitenciais e nos manuais para confessores. Como vimos, no
sistema dos pecados estava previsto o infanticídio como culpa que
podia ser absolvida com penitências mais ou menos pesadasf” E,
contudo, ao lado do sacramento da penitência ministrado segundo
as normas canônicas, há vestígios de outras formas de administra-
ção do sentimento de culpa atuando em simultâneo com as insti-
tuições do sagrado legítimo. Na segunda metade do século Xvl, um
sistema capilar de controle impôs, perante o tribunal de foro exter-
no da Inquisição, a apresentação de muitas coisas que, até então,
eram reservadas ao ouvido do confessor. É assim que foram regis-
tradas nas atas da Inquisição algumas histórias singulares. Eram
protagonizadas por estranhas figuras de peregrinos que vagavam
pelos campos, batiam às portas e pediam caridade apresentando-se
em retorno de Santiago de Compostela. Teriam sido confundidos
com outras formas de mendicância da época sem chamar a atenção
da Inquisição, se não se vangloriassem de certos poderes especiais
_ diziam ver as almas dos mortos e os pecados ocultos dos vivos.
Diziam também ser capazes de libertar os vivos da presença amea-
çadora e agourenta dos mortos. Mas foi a pretensão de redimir as
culpas secretas que os tornou suspeitos de abuso dos sacramentos.
São encontrados no centro de diversos episódios, fragmentos resi-
duais de histórias da vida cotidiana daquela época. Permitem en-
trever contatos habituais entre peregrinos verdadeiros ou falsos e o
mundo dos habitantes rurais, com seus medos e remorsos. Esses
homens se apresentavam como intermediários do mundo invisível
dos mortos. Contavam histórias que podiam variar. No mundo
alemão, por exemplo, apresentavam-se como vindos de Venusberg
e capazes de desfazer feitiços e evocar as almas dos mortos prema-
turos, “uma mistura de crianças mortas antes de receber o batismo,
homens mortos em guerra e todos os “extáticos” _ isto é, aqueles
cujas almas abandonaram o corpo sem mais retornar”P“* No mundo

23o
da Itália padana, foi a Inquisição romana que perseguíu em 1608
um grupo de peregrinos originários dos arredores de Spoleto.
Alguns camponeses relataram a seus confessores e repetiram aos
inquisidores as histórias contadas pelos membros daquele grupo:
eram doze, como os Apóstolos, e se diziam nascidos na noite de são
Ioão “do sangue ou linhagem de nosso Salvador”. Punham-se a
conversar com os camponeses nos campos ou batiam às portas das
casas à noite e pediam hospitalidade e donativos. Diziam voltar da
peregrinação a Santiago de Campostela e afirmavam que possuíam
poderes extraordinários: “Afirmam adivinhar pecados ocultos e
pedem esmolas para fazê-los perdoar, e também para libertar as
almas do purgatório”.65 Uma vez acolhidos na casa, revelavam aos
anfitriões a presença de almas penadas nos telhados ou às portas
das casas. Eram frutos de pecados secretos e nunca confessados, e
traziam desgraça às famílias. Quem se convencia a lhes fazer dona-
tivos em dinheiro ou em espécie era porque reconhecia nas almas
errantes, que aqueles estranhos intermediários diziam ver, as “cria-
turas sem alma”, os frutos de abortos traumáticos ou provocados.
O que os pretensos peregrinos adivinhavam eram aqueles pecados
secretos nunca confessados aos sacerdotes. E talvez fossem mesmo
os pequenos corpos sepultados nos campos ou sob a soleira de casa
que alimentavam o medo e o remorso. Em nome daqueles espíritos
inquietos e portadores de desgraças, os peregrinos pediam doações
e se comprometiam a usar o dinheiro recebido para encomendar
missas ou acender velas. Por esse preço _ garantiam eles _, os pe-
cados seriam perdoados e os espíritos encontrariam paz, libertan-
do a casa da família de sua influência. Esses estranhos peregrinos
visionários e oniscientes conseguiam facilmente vencer a avareza
dos camponeses, e suas promessas encontravam um aliado poten-
cial no sentimento de culpa das pessoas. O trabalho da Inquisição
não foi suficiente para extirpar totalmente tais práticas, tão fortes
eram suas raízes. Um indício de sua tenaz sobrevivência foi recolhi-

231
do pelo inquisidor de Pisa em 1642: dois camponeses, Silvestro
Andrea da Collodi e Raffaele Giovanni Battista, descreveram a pas-
sagem de um peregrino que angariava esmolas oferecendo em tro-
ca o perdão pelos pecados não confessados. Por um pecado em es-
pecial: a morte dos filhos “sem alma”. Silvestro Andrea admitiu
perante o inquisidor que tivera um filho que morrera sem alma,
“porque não dava para entender se era homem ou mulher”.6Õ
Provavelmente eram formas arcaicas de eliminação das cul-
pas, que encontramos nesse período somente porque foram inter-
ceptadas pela nova disciplina eclesiástica. O nome de Santiago de
Compostela, o santuário onde as lendas medievais diziam termi-
nar o mundo e onde era possível enxergar as almas, traz à superfície
modelos antigos de mediação religiosa numa época em que julga-
ríamos não mais existirem. Mas aqueles improvisados especialistas
na remissão das culpas agora encontravam em seu caminho a pa-
róquia tridentina e o tribunal da Inquisição romana _ duas insti-
tuições que estavam aptas a perseguir os intermediários religiosos
não autorizados e a canalizar as culpas e os remorsos das famílias
para a confissão sacramental. E, contudo, a obsessão ameaçadora
dos espíritos insaciados e das presenças agourentas revela não só a
força dos sentimentos de culpa dos vivos, mas também a impotên-
cia do sagrado oficial, incapaz de oferecer aos que não tinham vivi-
do um rito de passagem até o local remoto dos mortos. A ameaça
persistiu por longo tempo, tanto nas culturas folclóricas quanto na
Europa reformada. A obsessão com os espíritos dos defuntos na
cultura da Europa protestante tem sugerido um possível nexo com
a extinção luterana do purgatório. Assim, abolida aquela área de
intercâmbio mútuo entre vivos e mortos, a memória dos defuntos
teria recaído sobre os vivos sem possibilidade de exorcizá-la.” Mas
nos países católicos o folclore também apresenta fenômenos seme-
lhantes, e talvez por razões análogas. O catolicismo tridentino, re-
gularizando e difundindo a imagem do mundo dos defuntos orde-

232
nada em continentes estáveis, deixou alguns sem residência fixa.
Em pleno século XX, Carlo Levi ainda registrou nos campos meri-
dionais da Itália aquele mesmo medo da permanência dos espíritos
das crianças mortas sem batismo entre os vivos que fora atestado
quase mil anos antes no Decretum de Burchard de Worms. Como
narra Levi, nos campos da Basilicata o batismo ainda era posterga-
do até a idade da razão e recorria-se a ele apenas sob a premência
do risco de morte; portanto, o sacramento tinha aqui a forma ar-
caica da preocupação pela morte e o sepultamento:

Quando me chamavam para atender algum menino, talvez de dez


ou doze anos, a primeira pergunta da mãe era: “Tem perigo de mor-
rer? Porque então vou chamar já o padre para batizá-lo. Ainda não
foi batizado, até agora: mas se for morrer, nunca se sabe”.68

Chamados com diversos nomes no sul da Itália _ monachic-


chi, munacielli, mazzumaurielli _, esses espíritos eram considera-
dos atrevidos e travessos. Para se defender, era preciso arrebatar-
-lhes o capuz vermelho que usavam na cabeça.” Seus ossos eram
ditos “ossos pagãos”, e as bruxas empreendiam buscas para encon-
trá-los.”
Numa sociedade em que a vida era assediada pela morte e os
locais dos vivos eram também o local dos mortos, o que se queria
não era a ressurreição, mas a consumação e encerramento de uma
vida dura e inexplicável. Ora, na experiência corrente das famílias,
a exclusão do paraíso mencionada pela cultura eclesiástica assumia
concretamente o aspecto de uma exclusão da terra consagrada do
cemitério cristão, áque a transposição da maldição no além para a
realidade cotidiana e a ameaça de espíritos obsessivamente presen-
tes ao redor da casa dos pais deveriam provocar sentimentos excru-
ciantes de dor e de vergonha. Sem isso, seria impossível compreen-
der o recurso constante e generalizado aos meios excepcionais do

233
milagre. E, diante do problema de ressarcir a vida não vivida ou de
abrir o caminho do além às crianças mortas sem batismo, inven-
tou-se um milagre especial. Foi definido pelos estudiosos como o
milagre do répit: um redespertar momentâneo da criança morta
pelo tempo necessário para um batismo de emergência. Era uma
solução que possuía o inestimável valor de permitir o sepultamen-
to em terra consagrada, com a esperança de salvação eterna e a con-
comitante promessa de converter o morto num espírito pacificado.
Por isso o milagre aflorou reiteradamente na religião medieval das
maravilhosas operações de Deus na terra; e, se tal era o preço neces-
sário para o ingresso no Reino dos céus, era preciso que se pagasse
por ele de alguma maneira. Toda vez que se afirmava a sentença de
exclusão dos não batizados, surgia a solução excepcional do mila-
gre. O próprio Santo Agostinho, responsável pela mais rígida for-
mulação da inescrutável predestinação divina, narrou nos seus
Sermões o episódio da ressurreição milagrosa de uma criança para
ser batizada e _ logo a seguir _ morrerfl Algo similar ocorreu em
relação à confissão, quando o Concílio lateranense lv, em 1215, es-
tabeleceu sua obrigatoriedade para todos e determinou as condi-
ções para a absolvição sacerdotal. Um milagre narrado por Iacques
de Vitry nos apresenta o pecador que, morrendo após uma confis-
são não válida, ganha uma breve ressurreição para fazê-la da devida
maneira a um verdadeiro sacerdote.” Não à toa a penitência era
considerada a “segunda tábua” de salvação a que a pessoa poderia
se agarrar se, após o batismo, naufragasse no pecado. Mas o caso do
batismo milagroso das crianças mortas permanece um fenômeno
especial de características inconfundíveis. E até mesmo para a pró-
pria época. Foi nos anos do Concílio de Florença e na época pós-
-tridentina que o répit deixou de ser o milagre ocasional que havia
sido nos séculos anteriores e se transformou em prática regular no
interior de santuários especializados. Os primeiros sinais dessa
prática aparecem na Provença em 1388.73 Mas é por volta de 1478

234
que se tem notícia de uma verdadeira peregrinação: a dos pais de
filhos mortos sem batismo que levavam os corpinhos a Neuchâtel,
onde funcionava um santuário especializado no milagre da ressur-
reição momentânea.” O fenômeno se difundiu rapidamente, ape-
sar das resistências e suspeitas. Cabe lembrar que, entre as acusa-
ções feitas a Ioana D'Arc durante o processo de Rouen, havia
também a de ter provocado um répit de um recém-nascido, para
que fosse enterrado em solo consagrado.” Como assinalou Iules
Corblet no século XIX, em sua douta obra sobre o batismo, a primei-
ra reação oficial foi a do sínodo diocesano de Langres de 1452, em
contrário. Nessa resposta do sínodo, dava-se uma descrição da for-
ma como ocorria o “milagre”: era o calor emitido pelas velas acesas
e pela multidão que produzia a ilusão de que voltara cor aos rostos
das crianças mortas.” Corblet enumerou as condenações do Santo
Ofício e de outros sínodos diocesanos dos séculos xvl e xvn, docu-
mentando assim a hostilidade de uma parte do clero diante de um
fenômeno difundido e dificilmente controlável, uma daquelas de-
voções que as autoridades eclesiásticas toleravam de má vontade e
tentavam erradicar. Faz tempo que a história desses santuários e
das peregrinações até eles tem sido objeto de pesquisas, as quais
mostram sua ampla difusão na Suíça, França, Bavária, no Tirol aus-
tríaco e nas áreas alpinas italianas." O jesuíta bávaro Wilhelm
Gumppenberg, em seu Atlas Muriunus publicado em Munique em
1657 e com várias reedições posteriores, elencou várias dezenas de
santuários especializados em répit, e os estudos históricos conti-
nuam a enriquecer esse dossiê. O estudioso que mais se dedicou ao
tema, Iacques Gélis, computava anos atrás cerca de 230 na França,
mais de cinquenta na Bélgica, cerca de trinta na Suiça, vinte na
Austria, o mesmo tanto na Itália e cerca de dez na Alemanha.” A
documentação até agora estudada refere-se principalmente aos
santuários situados no território da antiga Lotaríngia, e sobretudo
ao longo da faixa alpina, da Provença ao Piemonte, da Suíça ao

235
Tirol austríaco _ áreas historicamente marcadas também pela in-
cidência da caça às bruxas, um fenômeno que poderia encontrar na
obsessão com o infanticídio uma ligação com o florescimento do
milagre do répit. Novas pesquisas trazem constantemente à luz ou-
tros episódios de uma tendência que aparece com uma difusão
cada vez maior na realidade dos séculos da modernidade.”
Ao lado da geografia, a história (ou, pelo menos, uma indica-
ção cronológica sucinta): após as origens e a difusão inicial na se-
gunda metade do século xv, houve um florescimento posterior, res-
trito aos países católicos, que preencheu todo o período entre o
Concílio de Trento e o século xv111.Na história dos santuários de
Lausanne, Neuchâtel, Genebra e Oberbüren, os milagres se con-
centraram na segunda metade do século Xv. Foram autênticas con-
flagrações imprevistas. Em Neuchâtel, o milagre da ressurreição
temporária de um menino morto foi atestado com um registro em
cartório em 1474; em 1478, já afluíam para lá pais de crianças mor-
tas sem batismo, que vinham em peregrinação desde a Provença.
Em Genebra, no mosteiro dos agostinianos, o arquiduque Renato,
alcunhado o Bastardo de Saboia, fundou em 1498 uma capela de-
dicada à Virgem Mãe de Deus e mandou pintar uma imagem que
se transformou no polo de atração de uma peregrinação especiali-
zada na ressurreição de crianças a serem batizadas.” Contra esse
panorama em que era habitual o milagre do batismo ergueu-se a
contestação da Reforma protestante. Eram falsos milagres, segun-
do os reformadores protestantes. Em Genebra, Farel agrediu ver-
balmente os monges acusando-os de embuste e fraude. Os monges
replicaram que a morte de uma criança não batizada era uma tra-
gédia maior do que a ruína de duas cidades.81 Em 10 de maio de
1534, o conselho de Genebra proibiu qualquer peregrinação com
crianças mortas para batizar. Após uma fase tumultuada de discus-
sões com os monges, a questão se encerrou com a incineração da
imagem milagrosa da Virgem na sala do Conselho citadino, em 31

236
de outubro de 1535. Os outros santuários nos países que acolheram
a Reforma tiveram o mesmo destino. É especialmente interessante
o caso da capela de Oberbüren, nos arredores de Berna, o mais fre-
quentado, o mais bem documentado, o mais rapidamente elimina-
do. Aqui a tradição da peregrinação para batizar recém-nascidos
mortos é comprovada desde o final do século Xv; e tratava-se de um
fluxo de peregrinos tão intenso que o Concílio de Büren decidiu
transformar a capela numa nova igreja. O bispo, numa lamentosa
carta à Cúria romana (de 1486), cita 2 mil casos nos últimos dois
anos. Quanto à fabricação dos milagres, o método descrito pelo
bispo consistia em reaquecer com fogo os pequenos cadáveres
numa sala anexa à igreja, levando-os a seguir para a igreja sensivel-
mente mais fria. Uma pluma pousada sobre os lábios se levantaria
devido à diferença de temperatura, e era o que bastava para aclamar
o milagre. O sucesso foi tão grande que, em 1507, a cidade de Berna
encarregou o tesoureiro de controlar tal prática. Mas, com a adesão
à Reforma, em fevereiro de 1528 chegaram de Berna ordens taxati-
vas para fechar o santuário. Assim, proibidas as missas, fechadas as
portas da igreja e entregue às chamas a estátua milagrosa daVirgem,
a resistência da cidadezinha de Büren foi vencida sem dificuldade.
A igreja foi demolida em 1530, e o campanário em 1532. Mas ainda
em 1534 foi necessário recorrer a medidas policiais para interrom-
per as peregrinações. O impulso que levava os pais a pedir a media-
ção do milagre devia ser extremamente vigoroso. É o que mostram
as descobertas das escavações arqueológicas contemporâneas, rea-
lizadas entre 1992 e 1997, em que se encontraram esqueletos de
centenas de recém-nascidoseaté fetos de quatro meses.82AReforma
também eliminou em outros locais as práticas do batismo de ur-
gência e as devoções aos santuários à répit, além das peregrinações
e imagens milagrosas. Não houve mais batismos de emergência na
Genebra reformada. Os pais que, preocupados com a sobrevivên-
cia incerta dos recém-nascidos, apressavam-se em batizá-los por

237
obra das amas incorreram nos rigores dos tribunais (o primeiro
caso conhecido é de março de 1544); e o mesmo aconteceu com a
família que, em 1542, levou um recém-nascido morto a um san-
tuário próximo, onde se operava o milagre do répit.83
Mas, no exato momento em que a crítica dos milagres tomava
o ritmo sistemático e destruidor da Reforma protestante, os ho-
mens da Igreja mais próximos ao mundo popular, como os prega-
dores e os missionários, começaram a encarar favoravelmente a
força apologética daquele tipo de prática. Isso fica evidente nos am-
bientes mais devotos àVirgem, principalmente entre os jesuítas. De
fato, foram construídos novos santuários nas áreas católicas, onde
o milagre continuou a ocorrer sem que a Inquisição _ que tam-
bém recebeu denúncias e coletou informações a esse respeito _
tentasse seriamente pôr termo às coisas. Pelo contrário, o caráter
massivo do fenômeno foi se acentuando. O aumento dos dados re-
gistrados ao longo do tempo está documentado de modo indiscu-
tível. No mosteiro de Ursberg, contaram-se mais de 24 mil casos
desse tipo de ressurreição entre 1686 e 1720.84 O poder milagroso
das imagens da Virgem foi enaltecido por uma ampla literatura ha-
giográfica, que encontrou reação de vozes isoladas de alguns rigo-
ristas. Iá mencionamos o Atlas Marianas de Gumppenberg; agora
devemos acrescentar, por exemplo, a Relation des miracles de No[s]-
tre-Dame de l'Ozier, publicada em Lyon em 1659 por Pierre de
Brissat,85 ou La lucerna sopra il candelliere accesa, do capuchinho
Zaccaria de Saló, de 1679.86 Não faltaram protestos por parte do
clero fiel ao modelo tridentino de uma religião não supersticiosa; e
destacou-se especialmente a voz do abade Iean-Baptiste Thiers, em
seu esforço de uma cuidadosa documentação.” Mas, enquanto
isso, o registro batismal imposto pelo Concílio de Trento também
passou a incluir os batismos ministrados após ressurreições mila-
grosas. Um exemplo desse tipo de documento é o “livro dos nati-
mortos”, um registro mantido pelo pároco Félix entre 1640 e 1670

238
no santuário de Notre-Dame de Beauvoir, em Moustiers Sainte-
-Marie na Alta Provença.88 Encontramos casos de ressurreições le-
gítimas, explicáveis como nascimentos de bebês com apneia que
tiveram solução favorável, ao lado de narrativas pormenorizadas
das séries de acontecimentos que levavam os pais dos recém-nasci-
dos certamente mortos, e às vezes até já enterrados, a recorrer ao
santuário. São números significativos numa época em que a orto-
doxia teológica era definida em termos bastante amplos: em 1669,
temos nada menos que 123 episódios de répit. Com tais bases, é
possível estudar a geografia do fenômeno, seus usos apologéticos
(é indiscutível a frequência do milagre nas fronteiras com os países
protestantes), os entrelaçamentos com a bruxaria e com as práticas
folclóricas, e a longa duração _ os relatórios dos superiores paro-
quiais do início do século XIX mostram, como exemplo, que o rito
oficialmente proibido continuava a ser praticado. Os santuários
para onde afluía a demanda de proteção _ sobretudo os situados
nas saídas dos vales alpinos, que por sua própria localização eram
tradicionalmente consagrados às peregrinações _ respondiam a
uma necessidade muito difundida. As mães postas diante do dever
da maternidade, que as instituições de acolhida dos enjeitados e a
criminalização do infanticídio demonstram estar sob um descon-
fiado controle das autoridades eclesiásticas e dos poderes políticos,
oferecia-se a devoção àVirgem como Mãe divina, espelho e mode-
lo inacessível.
Com a difusão dos santuários à répit, teve-se uma reação à
teologia oficial com a criação _ como já se disse _ de “rituais cor-
retivos de um dogma impopular”.89 E certamente entre as premis-
sas do seu desenvolvimento estava a impiedosa condenação ao in-
ferno, que podemos imaginar ter sido difundida entre os laicos por
meio das pregações. Mas, na verdade, foi toda a concepção do ser
humano na passagem entre a não vida e a vida e, depois, entre avida
e a morte que se tornou objeto de redefinição tanto na cultura eru-

239
dita quanto nas práticas e ritos das classes populares.Veremos mais
adiante como a dinâmica da formação da vida humana foi explo-
rada por médicos e teólogos. Quanto às razões da renovada aliança
entre um clero realizador de milagres e as famílias que vivenciaram
a morte das crianças, pode-se ter uma ideia observando a cena com
os olhos dos protagonistas. Um pequeno fascículo elaborado entre
maio e junho de 1642 pelo inquisidor de Vicenza apresenta o de-
poimento de um pai que levara o recém-nascido morto à Virgem
de Terlago, na diocese de Trento. E um documento singular, que
vale a pena ler por descortinar o horizonte de uma vida cotidiana
entretecida de milagres:

Tendo minha mulher Catarina já há alguns dias dado à luz um filho


morto, disse-me Bernardino Carlassaro de Cornetto, que na Virgem
de Terlago, diocese de Trento, e a cinco milhas da cidade, faziam-se
milagres de ressuscitar as crianças mortas sem batismo; resolvi
desenterrar o meu, e levá-lo à dita Virgem [...] assim fez também
Bernardino supracitado com um filhinho seu, também morto nos
mesmos dias [...] Chegando lá, encontramos uma igreja, que cha-
mavam com o nome de santo André, fora da qual há uma pequena
capela. Lá encontramos um homem que podava as vinhas e, ouvin-
do-nos contar por que tínhamos ido até lá, disse que enquanto isso
fôssemos à taberna para nos refazer, e assim colocamos os caixõezi-
nhos em cima de uma mureta, e fomos à taberna e a taberneira nos
disse que viriam algumas mulheres para batizar as criancinhas na
pequena capela, mas que levássemos dentro mesmo dos caixõezi-
nhos; deram-se duas batidas no sino da igreja, e apareceram duas
mulheres, e meninos e meninas, que entraram na capelinha, ou
ficaram ali em volta. Eu, enquanto isso, com Bernardino supracita-
do, e com Francesco Zenzone, que tinha vindo conosco, fomos à
igreja para rezar, e depois saindo (mas eu um bom tempinho depois
dos meus companheiros) vimos que as crianças tinham sido tiradas

240
dos caixõezinhos, e postas no chão diante do altarzinho da pequena
capela, e tocavam o pulso, o nariz e a cabeça daqueles corpinhos e
diziam que davam sinais milagrosos, e que por isso podiam ser bati-
zados, pois o pulso e o cérebro estavam batendo, e diziam entre elas:
“toquem aqui, que o pulso está batendo”.9°

O pai que deu esse depoimento, Lorenzo della Pozza de


Corneto, era um homem de trinta anos e não parecia especialmente
angustiado com sua experiência, nem muito convencido de que o
milagre fosse autêntico. Indagado se vira sinais de vida, respondeu:

Eu em minha consciência não vi movimento de espécie alguma


naquelas criaturas, somente um pouco de sangue no nariz da cria-
tura do meu companheiro, onde as mulheres tinham apertado, e o
enxugavam com um paninho. Acrescentou: _ depois disso, as
supracitadas mulheres mandaram chamar o compadre e a comadre,
e com a água de uma galhetinha batizaram aquelas duas criaturas, e
depois um homem, que também tinham visto por ali, disse para
uma das mulheres ficar contando os sinais milagrosos para que ele
pudesse dar fé do batismo. E assim este homem deu fé a mim, e ao
meu companheiro Bernardino, do batismo dado às criaturas, e que
as mulheres tinham visto sinais de vida nas crianças [...] _ Subdens:
_ aquelas pessoas que estavam lá na igreja disseram que a Virgem
faz estes milagres, e muitos são trazidos, e os que vêm com boa-fé e
esperança na Virgem recebem a graça.

Acreditava, pois, no milagre? “Em sua consciência” não mui-


to, evidentemente (ou talvez estivesse intimidado pelo inquisidor
e tentasse manter distância do acontecido). Mas fizera tudo aqui-
lo que lhe fora sugerido: assistira ao rito e à lavratura do atestado
do milagre, pagara o preço (dar uma esmola pelo bem espiritual
recebido pertence à tradição mais arraigada da história dos sacra-

241
mentos) e finalmente obtivera o que desejava: o sepultamento
ritual. Narrou Francesco Zenzone (ou Zenzini), o amigo que
acompanhará os dois pais: “Depois de batizados foram sepulta-
dos naquele cemitério em nossa presença, tendo um homem da-
quele lugar cavado a fossa. Depois aquelas mulheres pediram
dinheiro”.91

O último ato do rito ilumina toda a cena anterior. O pai levou


o pequeno corpo ao local que lhe indicaram e acompanhou a cena
a distância. Quando o rito terminou e o certificado do batismo foi
redigido, fez-se finalmente o sepultamento. O pagamento final da
oferta conclui a cerimônia, semelhante em todos os aspectos à ce-
rimônia que teria se realizado no cemitério da paróquia se o recém-
-nascido tivesse recebido o sacramento antes de morrer. Não há a
tensão e a espera do milagre; não há esperança de vida; há apenas o
cumprimento de um rito necessário para que o corpinho possa ser
sepultado em solo consagrado. A pesquisa arqueológica documen-
tou o grande cuidado dedicado ao sepultamento. Os pequenos cor-
pos eram colocados em ordem, um ao lado do outro, no espaço
protegido da igreja, voltados para o Oriente, com as mãos unidas
em atitude de oração, como prova do batismo recebido e do conse-
quente direito de serem considerados plenamente cristãos.”
É preciso levar em consideração a importância do sepulta-
mento para compreender muitas histórias incluídas nos docu-
mentos compilados pelas autoridades eclesiásticas. Um aconteci-
mento, ocorrido poucos anos depois do episódio em Terlago,
mostra-nos a cena de um batismo ministrado a um menino morto
sem necessidade de nenhum milagre. Ocorreu em Pomposa, em
1651. Um recém-nascido tivera tempo de receber o batismo sumá-
rio da parteira e depois morrera. Fora levado à igreja para o sepul-
tamento. E aqui o vice-pároco quis

242
[...] prover a todos aqueles ritos, cerimoniais e preces que a Igreja
utiliza para os que sobrevivem em tais casos, designando-lhe padri-
nho e madrinha, que responderam a todas as perguntas que costu-
mam ser feitas a quem deve ser batizado solenemente; soprando-lhe
na face e dizendo-lhe aquelas palavras “Exi ab eo”; fazendo-lhe o
sinal da cruz na testa e no peito, dizendo “Accipe signurn Crucis”,
abençoando o sal e colocando-lhe um pouco na boca, e acrescentan-
do “Accipe salern” etc., tocando-lhe com saliva as orelhas e as narinas,
ungindo-o com o óleo dos catecúmenos, interrogando “Credis in
Deum” etc., “Vis baptizari” etc., ungindo-o com o crisma sagrado:
para dizer numa só palavra, usando todos aqueles ritos e cerimônias
que a Igreja usa em tal caso com os vivos.”

O denunciante pedia que o inquisidor se ocupasse da questão.


Mas ela não teve nenhum andamento na congregação do Santo
Ofício de 21 de junho de 1651. Era uma história sem milagres, e o
pequeno corpo, ademais, podia ser sepultado em terra consagrada
pois havia recebido o batismo da parteira. A pergunta é: por que o
padre de Pomposa quis cumprir o rito na forma solene? Não estava
em jogo a ressurreição, nem a do além, já garantida pelo batismo da
parteira, tampouco a da vida terrena, já irremediavelmente perdi-
da. O desfecho daquele rito de vida que tinha como objeto um
pequeno cadáver seria, de qualquer maneira, o sepultamento. É
evidente que se atribuía um valor especial àquele rito, algo que o
rito simplificado do batismo de emergência não possuía. Tratava-
-se de ter uma sepultura que propiciasse tranquilidade máxima
para os pais, que provavelmente pagaram para tal (assim insinuou
o denunciante). Ao que parece, também ocorriam coisas similares
na Genebra de Calvino, com os pais que, em lugar do rito público
reformado, preferiam o batismo secretamente ministrado por al-
gum padre católico das redondezas, pois era considerado mais efi-
caz.” O segredo da eficácia consistia nos exorcismos, rigorosamen-

243
te eliminados do rito reformado e, pelo contrário, parte essencial
do católico. A expulsão dos espíritos malignos guardava uma pro-
funda relação com o sentimento de impureza e dos perigos ligados
ao percurso do recém-nascido da não existência para a vida.
Ademais, o rito do batismo cristão sempre dedicara uma parte
substancial aos exorcismos.” Isso nos lembraque, para as culturas
folclóricas, o sepultamento em solo consagrado era a passagem
fundamental para transformar o espírito maléfico e insaciado do
morto em integrante da classe protetora e pacificada dos defuntos
de família.
De fato, portanto, se o rito batismal era aquele que podia “dar
a alma” aos recém-nascidos, cabia aos exorcismos a exclusão daque-
la ameaçadora sombra de impureza e morte que o novo ser, apresen-
tando-se à vida, trazia do território misterioso que havia atravessa-
do. Para isso, era necessário que uma proteção especial aliviasse esse
peso do nascimento, e uma imagem milagrosa de maternidade di-
vina, como a da Virgem, era a mais indicada. Uma vasta tradição
iconográfica identificará-a como o modelo perfeito da gestação e do
nascimento; e era em seio que se contemplaria a descida da alma in-
suflada por Deus no nascituro.% Mas podia ser também uma ima-
gem de Cristo crucificado, associada às relíquias de algum santo,
como aquela que, na abadia tirolesa de Ursberg, esteve no centro de
uma das últimas ondas de peregrinação e do milagre batismal.
Reconstruída em 1663 após as devastações da Guerra dos Trinta
Anos, em 1685 a abadia recebeu de Roma as relíquias dos santos
Próspero, Cândido e Caridade enviadas das catacumbas romanas. E
logo a seguir começou a funcionar a grande fábrica do milagre, con-
correndo com outros centros especializados no répit. Milhares de
pessoas acorreram ao local, vindas de distâncias consideráveis, le-
vando os corpinhos mortos para batizar. A meticulosa contabilida-
de mantida pelos monges nos permite contar mais de 24 mil casos
entre 1686 e 1720. Mas os tempos agora exigiam um exame racional

244
dos fenômenos miraculosos. E foi assim que um enviado papal,
Eusebius Amort, remetido à localidade em 1750 como inspetor do
bispo de Augusta, procedeu a um cuidadoso exame dos fatos e dos
locais, que expôs num douto e preciso relatório.”
Denúncias, investigações e condenações pelas autoridades
eclesiásticas anunciavam uma cultura científica e racionalista, que
também vinha se afirmando dentro do clero. Daí derivava o esforço
de reconduzir os supostos fatos milagrosos a causas naturais. No
mundo eclesiástico também se afirmara uma cultura que concebia
a passagem entre a vida e a morte apenas como um nítido corte.
Onde a massa dos fiéis via o milagre da ressurreição, o clero mais
esclarecido suspeitava de embustes de maliciosos exploradores da
superstição ou, no máximo, de casos de morte aparente _ uma
possibilidade que obcecava as mentes da época. Além do mais, já se
desgastara a noção medieval da criança como criatura ambígua, a
meio caminho entre Deus e o diabo. Em seu lugar, desenvolvera-se
uma nova avaliação da infância como idade portadora de uma ino-
cência natural, quando não de uma potencial pureza inata, associa-
da à devoção do Menino Iesus.” Quanto à criatura que se confiava
novamente ao criador logo após o nascimento, não se devia temer
o juízo de Deus. Este só podia ser justo, pois a justiça era o atributo
essencial de Deus. E, visto que _ como escreveu um devoto conde
das Marcas no século XIX _ era inconcebível que “Deus pudesse
odiar e punir aqueles que não praticaram o mal”,99 devia-se encon-
trar uma solução para as incontáveis almas de crianças sem batis-
mo _ por exemplo, uma suspensão especial do juízo nesse caso e
um batismo dado pelo próprio Deus. Tais hipóteses foram se
multiplicando, enquanto crescia a desconfiança em relação aos
santuários à répit.

Mas, onde os milagres não eram mais suficientes, era a ciência


médica que vinha oferecer seus préstimos. Eis uma cena de vida (e

245
morte) cotidiana, registrada nas lembranças de uma família roma-
na: o chefe da família, Giovanni Battista Sacchetti, registrou na data
de 29 de dezembro de 1597 uma intervenção cirúrgica na esposa
grávida que, tão logo morreu, foi “imediatamente aberta para ten-
tar dar a alma à criatura”.1°° Tratava-se de um recurso previsto e
aconselhado desde longa data. E difícil afirmar a frequência com
que era utilizado, mas as fontes eclesiásticas confirmam que era
uma medida aconselhável sempre que uma mulher morresse du-
rante o parto. Era preciso “dar a alma”. O depoimento mais explíci-
to deve-se ao grande pregador dominicano Giordano de Pisa, num
sermão de 23 de abril de 1305 dedicado justamente ao batismo:

E depois falou sobre aquelas que morrem no parto, e trazem a cria-


tura viva no ventre. Repreendeu muito as pessoas, que as enterram
assim, e disse que era um grande pecado; e falou de uma, que mora-
va em Pisa no local deles, que morreu no parto; e disse: Mandei
chamar quatro médicos e amas, e os paguei muito bem; e assim a
abrimos e tiramos o menino do ventre, e estava vivo, e o batizamos,
e teve a alma. Ora, não foi uma grande misericórdia? Muitos se per-
dem, e estão no limbo por vossa culpa; mandai abrir, e é grande
misericórdia.”

Esses precedentes ganharam atualidade no clima do rigor sa-


cramental pós-tridentino. Quando ocorreu o episódio da família
Sacchetti, fazia pouco tempo que Carlo Borromeo havia restaurado
a vigência da antiga prática.” Era a resposta antecipada às normas
que o ritual romano de Paulo v viria a estabelecer para ministrar o
batismo. Assim, se o sacramento, ministrado com o rito por asper-
são, era válido desde que a água benta entrasse em contato com o
corpo da criança vinda à luz, uma intervenção cirúrgica poderia
prevalecer sobre a natureza e impedir que o inferno tragasse o ser
que não tivera sequer tempo de viver. Mas não se tratava de uma

246
simples retomada da tradição. E aqui as hipóteses eram duas: alcan-
çar a criança que ainda não havia nascido e colocar sua cabeça em
contato com a água benta do batismo, ou trazer a criança à luz fa-
zendo uma incisão naquele ventre do qual tinha dificuldade em sair
por vias naturais. Os dois modos foram utilizados. Legaram expe-
riências e instrumentos que hoje são considerados momentos e do-
cumentos da história da obstetrícia, mas que, na verdade, perten-
cem à história da religião. De fato, também devido às incertezas
teológicas sobre a validade de um batismo no útero e às várias dúvi-
das que afluíram ao Santo Ofício com a descrição dos recém-nasci-
dos ainda no útero ou simplesmente recobertos pela bolsa
amniótica, *O3 foi a técnica da cesariana que obteve maior êxito. A isso
se somou o fato de que a plena humanidade jurídica do feto decorria
da definição de ser provido de alma; e assim, por mais distante que
estivesse o final de sua gestação, ele se inseria na categoria sucessória
modificando-a (“rumpit testamen tum”).l°4 Não existe um levanta-
mento dos casos em que os maridos precavidos conseguiam, com
tal técnica, impedir que os bens do dote da esposa moribunda retor-
nassem à família de origem; mas certamente ocorreram.1°5
Permanece o fato de que, antes de se tornar um técnica cirúr-
gica capaz de garantir a vida do nascituro e da mãe, a cesariana foi
o meio de “dar a alma à criatura”. Em pleno século xvIII, um eclesiás-
tico siciliano, Emanuele Cangiamila, conduziu uma campanha
pessoal para convencer as autoridades políticas da eficácia do mé-
todo, o único, segundo ele, capaz de salvar os cidadãos para o pa-
raíso. Naquela ocasião, os dados estatísticos sobre os resultados de
seu trabalho na Sicília pareceram convincentes a muitas personali-
dades respeitáveis. A intervenção do cirurgião junto ao abade per-
mitira extrair muitas “criaturas” do ventre materno e batizá-las
ainda a tempo. Evidentemente, as parturientes recebiam com pa-
vor aquelas visitas que lhes anunciavam a morte. Mas o eclesiástico
aconselhava a todos os que lhe quisessem seguir o exemplo que fos-

247
sem piamente inexoráveis, e cumpria lembrar àquelas mães que o
matrimônio tinha como justificativa a finalidade de dar filhos ao
Céu. Portanto, era dever delas aceitar prontamente e sem resistên-
cias o sacrifício da vida.*°6 Era uma doutrina fundada sobre uma
ideia da função materna que, à tradicional misoginia eclesiástica,
somava noções modernas sobre o desenvolvimento da vida intrau-
terina. A mescla resultante se revelaria fatal para as gestantes. No
parto cesáreo, único meio adequado de alcançar o corpinho para o
batismo, sacerdote e médico invertiam seus papéis, e ganhava-se a
vida da alma pagando-a com a morte física da gestante e do feto. A
proposta de Cangiamila obteve rápido e amplo sucesso em todo o
mundo católico, da Europa ao Peru, trazendo a promulgação de
disposições precisas a respeito e a criação de comissões encarrega-
das de controlar sua execução. Assim se alcançara a união entre teo-
logia e ciência médica sob a égide do Estado. Consolidada a noção
da vida como continuurn desde a concepção, a salvação da alma do
feto levava a uma intervenção no corpo da mulher grávida, que re-
cebia a adesão do Estado sob a ótica não só de uma política demo-
gráfica moderna, como também da unidade religiosa como base da
unidade política (não por acaso, desde 1680 a monarquia na França
impusera o controle exclusivo de obstetras católicas, mesmo para
parturientes de fé protestante) . '07 Em tal contexto, como sustenta-
ria Iohann Peter Frank, o fundador da moderna “polícia médica”
(isto é, aquela que se tornaria a colossal construção política da “saú-
de pública”), era o Estado que devia assumir a defesa dos “cidadãos
que ainda estão encerrados no útero materno”.
Tal foi a herança legada pelo século XVIII às fases posteriores
da questão, que viria a conhecer aspectos muito diferentes. No pla-
no estritamente sanitário, um resultado imprevisto e positivo foi
a elaboração de uma técnica cirúrgica _ a cesariana em vida _
capaz de resolver bem os partos difíceis e de salvar a vida terrena
das mulheres, ao passo que a relação entre as doutrinas teológicas

248
e as leis sobre o aborto iria periodicamente reacender perplexida-
des e conflitos.”
Detenhamo-nos no começo do século XVIII. As coisas haviam
mudado desde os tempos das prédicas de são Bernardino de Siena.
Se naquela época se aceitava a divisão entre os “inocentes” que
morriam batizados e as “criaturas” sem alma como um dado in-
contestável, agora era possível transpor esse limite. Os progressos
da medicina e da teologia possibilitaram um avanço inédito no
campo da construção do ser humano. Isso também modificara a
condição social das “criaturas” como o filho de Lucia, que se torna-
ram objeto de imenso interesse para saberes e poderes de toda es-
pécie, no exato momento em que se acionava um aparato especial
de vigilância sobre as mães sem marido. Tudo girava em torno de
uma palavra: alma.

249
6. A alma

Aqueles que mantêm tanta discussão


sobre a alma, por onde sai ou entra,
ou como no fruto o caroço está dentro,
invocam Aristóteles e Platão.
Luigi Pulci, Sonetos

ANIMAÇAO
pu-‹

Mas o que era a alma para Lucia e seus contemporâneos?


Como e quando -- segundo eles -- a alma entrava no corpo, como
saia dele, com qual destino? Tal é a pergunta que gostaríamos de
dirigir aos juízes e acusados. Naturalmente, para perguntas tão ge»
néricas a interlocutores que não podem responder e que, embora
tenham respirado o mesmo ar e vivido na mesma época não pen-
savam necessariamente da mesma maneira, não teremos respostas
senão indiretas e parciais. Ademais, poder-se-ia responder que, em
certo sentido, todos sabem o que é a alma: pelo menos todos aque-

250
i

les que utilizam _ sem forçosamente pensar muito a respeito _


uma terminologia nascida do pensamento antigo e assumida pelo
cristianismo europeu. Mas é precisamente por causa dessa difusão
e generalização da prática discursiva que a_pergunta se revela ine-
vitável. Para explicar melhor, pode-se dizer que se trata - para usar
uma célebre fórmula de Wittgenstein - de “reconduzir as palavras
de seu uso metafísico para seu uso cotidiano”. A razão é simples. O
pano de fundo metafísico paira na linguagem cotidiana e nas me-
táforas que cercam o nascimento e a morte; mas é uma constatação
trivial observar que se trata apenas de um eco distante, uma ima-
gem remota e irreconhecível. A vida e a morte na linguagem de uso
cotidiano, sem finalidade religiosa explícita, têm como única refe-
rência o organismo individual. O conjunto dos usos correntes é
dominado pelo vocabulário médico, com todos os tecnicismos do
jargão anatômico-patológico e com as difíceis divisões dos estados
intermediários entre vida e morte, incluído o ressurgimento sob
novas vestes do antigo conflito entre coração e cérebro como locais
defmitivos da vida. A alma, assim, voltou a ser fundamentalmente
um sinônimo de alento vital segundo a definição antiga: “anima est
qua vivimus”.
O horizonte mental dos tempos de Lucia se afigura totalmen-
te diverso. Para explorá-lo, cumpre remetermo-nos ao modo de
pensar de uma época em que a metafísica era considerada não só
objeto de ciência, mas também o campo de investigação supremo
e decisivo. A declaração de guerra de Kant “contra toda metafísica
futura que se apresente como ciência” ainda estava por vir. A teolo-
gia continuava a ocupar o ápice do sistema das ciências e permeava
todos os seus níveis. A natureza da alma humana era objeto de dis-
cussão e análise entre teólogos e filósofos. Mas, afirmar quais eram
e como se alteravam os usos da linguagem cotidiana é mais difícil.
Sem dúvida, falava-se muito sobre a alma, empregando-se esse ter-
mo antigo sobre o qual se somavam debates e interpretações. Ao

251

R
lado do corpo, ela formava a pessoa humana. Com a morte, a uni-
dade da pessoa se cindia, a alma se separava do corpo e seguia para
um destino próprio, diferente do que haveria de seguir o corpo.
Discutira-se e continuava-se a discutir a alma: não é difícil prever
que a discussão prosseguirá ainda por muito tempo. Portanto, a
história - como sói acontecer - não pode oferecer aqui nenhuma
resposta minimamente definitiva. Mas pode nos ajudar a entender
até certo ponto o modo de pensar que levou os juízes de Lucia a to-
marem sua decisão e Lucia a padecê-la.
O problema da alma fora considerado sob três diferentes pon-
tos de vista: como indagação perplexa sobre as origens da vida do
ser humano que antes não existia e, tão logo nasce, ocupa no mun-
do um lugar exclusivamente seu; como angústia pelo fim, sobre o
que acontece com a vida que abandona o ser que morre, por que o
indivíduo vivo se transforma súbita e irremediavelmente em uma
coisa; e, por último, como raciocínio analítico sobre as diversas
funções que distinguem o ser vivo (respiração, capacidade de
aprender, imaginação, lembranças, sentimentos e outras coisas
mais). Dependendo do ponto de vista, as ideias de alma eram pro-
fundamente diferentes entre si. E é fácil constatar que o segundo
ponto de vista foi o mais difundido. A alma, sinônimo de vida que
habita um corpo e pode deixá-lo, teve como principal campo de
observação a morte - a dos outros, naturalmente. Assim, a per-
gunta sobre o que ocorria quando o ser vivo deixava de viver não
nascia de uma exigência puramente cognoscitiva. Precisava res-
ponder a uma necessidade primária de comunicação entre os vivos
e os mortos.
Para rastrear a origem da alma, devemos recuar para além das
próprias origens da religião então dominante, isto é, do cristianis-
mo, o qual, aliás, apresentava sua verdade como revelação divina,
mas também como aquela capaz de herdar e completar as des-
cobertas da razão humana. Na antiga e célebre Universidade de

252
Bolonha, cuja existência e importância certamente eram do conhe-
cimento de Lucia, ensinava-se a investigar a alma partindo de tex-
tos de Aristóteles. Aristóteles e Platão haviam fornecido as bases
intelectuais para a compreensão do homem e do mundo. Sobre os
sólidos alicerces de suas construções conceituais o cristianismo
erigira sua teologia: um coroamento, uma espécie de plano supe-
rior ou cobertura, que não demolia as bases antigas, mas comple-
tava-as indicando o que pensar sobre a alma, sua origem e destino,
sobre Deus e sua relação com os seres humanos. A teologia era a
elaboração e o estudo de uma verdade superior revelada direta-
mente por Deus, transcrita nos livros das Sagradas Escrituras, in-
terpretada por quem tinha o poder para tanto.
Na Universidade de Bolonha, que se encontrava fisicamente
próxima a Lucia, mas a uma intransponível distância intelectual de
sua vida e de seus pensamentos, o professor de filosofia Carlo Sassi
ensinara por longo tempo (de 1657 a 1696) o que era a alma. Fazia-o
comentando o tratado de Aristóteles sobre a questão. Carlo Sassi
explicava aos estudantes que não existia uma única alma para todos
os homens, mas que cada homem possuía uma alma destinada a
permanecer individual e distinta das demais, mesmo após sua se-
paração do corpo.1 Assim, chegava às gerações que viviam em
Bolonha, governavam a cidade, administravam a Iustiça ou eram
submetidas a suas leis, uma ideia do mundo e da espécie humana
que recebera forma na Grécia antiga e que se fundava na noção de
indivíduo.
Chegava com uma aparência semelhante, mas escavada e tra-
balhada como um seixo pelas águas do mar, para adaptá-la às exi-
gências de um mundo que havia mudado. A mudança preservou
alguns aspectos originais, dos quais o principal era aindividuali-
dade como característica do homem.A alma era _ por assim dizer
_ a garantia da diferença inalienável entre um indivíduo e outro,
funcionando como a própria expressão, a mais forte e imediata, do

253
sentimento de individualidade. Transformara-se gradualmente
em argumento filosófico, em doutrina religiosa, em uma barreira
de proteção indiscutível e insuperável. Mas o que permanecia na
raiz era a questão da vida individual, a relação entre o corpo e a
vida que o habitava, o mistério das origens daquela vida e o misté-
rio da morte. Portanto, a noção do indivíduo como entidade sin-
gular e inconfundível bifurcava-se de imediato em um par de entes
distintos: o corpo e a alma. A associação entre eles podia ser tão
forte e necessária que a falta de um dos dois era encarada como a
desagregação do indivíduo, o seu fim. Aristóteles havia modelado
sua teoria da alma nesta chave: o corpo era a matéria, a alma, a for-
ma. Tal foi, por uma longa sucessão de séculos, o quadro conceitual
para pensar e definir toda vida individual. De um lado, o material
de construção que isola e marca uma entidade individual no espa-
ço e no tempo; de outro lado, o que dá um caráter específico à ma-
téria, por exemplo diferenciando o animal do ser humano. A alma
era a forma graças à qual o corpo vivia, crescia, enriquecia-se de
funções e de conhecimentos; distinção fundamental e duradoura,
cuja eficácia histórica encontrou força e alimento na evidência dos
processos naturais subsequentes ao término da vida: a desagrega-
ção física como perda visível da forma. A morte, ao dissolver os
laços entre forma e matéria, decretava a decomposição do corpo e
deixava em suspenso a dúvida sobre o destino posterior da alma.
Não para Platão, para quem o corpo (soma) é uma verdadeira
tumba (sema) para a alma, um limite a suas potencialidades e as-
pirações. Quando se rompe a ligação entre ambos, a alma retorna
ao mundo das puras ideias, eternas e incorruptíveis, de onde pro-
vém. Essa primeira distinção essencial foi base para inúmeras in-
terpretações, integrações, hipóteses. Ao retraçar em linhas gerais
as etapas desse longo trabalho ocidental sobre a alma, fica eviden-
te que a morte foi sempre o observatório fundamental para estu-
dar a composição do indivíduo. Com a morte, a unidade viva se

254
cinde, o destino do corpo está marcado. Mas o que ocorre com
aquela vida que lhe havia dado forma e agora o abandona? Se a
alma se separa do corpo, para onde ela vai? O problema era saber
se os seres humanos estavam sujeitos à mesma regra de todas as
outras realidades vivas ou se, pelo contrário, se eximiam dela. A
ideia de uma grande cadeia dos seres capaz de incluir também a
espécie humana viria a se estabelecer na cultura europeia setecen-
tista. Na época de Lucia, as mentes mais inquietas se referiam ao
processo de geração e corrupção descrito por Aristóteles, para ar-
gumentar que tudo o que tem um início deveria ter um fim, tanto
os seres humanos como todas as outras realidades mundanas, in-
clusive as religiões?
Aquele que se detiver na longa pré-história do conceito de
“alma” identificará um conjunto de termos e práticas que tinham
em comum a noção de um “duplo” _ uma figura de sonho, uma
sombra inapreensível, mas também uma imagem que podia ser
sumariamente esboçada em pedra (kolossôs).3 Imagens as mais
variadas, feitas com os mais diversos materiais, do bronze à cera,
exerceram a função de mediar a relação entre vivos e mortos, de
representar os mortos no sentido próprio do termo: tornar presen-
te aquilo que está irremediavelmente e para sempre ausente.
Quando dizemos “presenças”, deve-se pensar em uma imensa gama
de concepções e práticas, desde as máscaras dos antepassados ex-
postas nas residências patrícias romanas aos simulacros em cera
dos soberanos europeus da Idade Média, signos da realidade de um
poder que se funda na continuidade e coloca entre parênteses a
morte de seus representantes temporários. E é aqui que encontra-
mos os primeiros traços linguísticos de um conceito fundamental,
o de persona, entendido no mundo romano como “máscara”, papel,
identidade socialmente reconhecida; algo que implica uma digni-
dade e um significado jurídico que diferencia, por exemplo, o es-
cravo do homem livre (“seri/us non habet personam”).

255
Foi no terreno das representações _ máscara, figura, ima-
gem _ que a fragilidade e a incerteza da vida física do indivíduo
procuraram uma compensação. As representações antigas _ a
que Erwin Rhode dedicou sua fascinante reconstituição histórica
da ideia de alma no mundo grego _ giram em torno da visualiza-
ção da alma separada do corpo como uma sombra inconsistente,
que inutilmente tenta-se cingir. Sim, ela conserva a forma outrora
possuída pelo vivo, mas não passa de uma figura vazia. Pulvis et
umbra: a desalentada sabedoria horaciana foi um ponto de che-
gada do pensamento antigo. A sombra escapa ao contato com os
vivos, enquanto o corpo perde sua forma e se torna matéria, con-
fundindo-se com a substância amorfa da terra. Nasceu assim uma
definição do ser humano considerado sob a perspectiva da morte,
que se estabeleceu no binômio do corpo em dissolução e da ima-
gem evanescente do ser outrora vivo. Um binômio em oposição
dinâmica constante: a parte mais duradoura do corpo, o esqueleto
(der Tod, o morto), assumiu a função de representar a morte como
identidade geral abstrata nas danças macabras da Idade Média eu-
ropeia. No entanto, a protagonista do mundo de imagens que po-
voaram a lembrança dos mortos foi a sombra com o semblante do
vivo. Das sombras de Aquiles e Anquises às sombras do além-dan-
tesco e à tradição da pintura ocidental (com imagens de santos e
cenas do juízo final), usou-se constantemente a forma do corpo
para representar a alma: um outro tipo de corpo, um corpo, por
assim dizer, sem peso nem consistência, como os que se veem em
sonhos. A questão dos sonhos e seu significado não só apaixonou
a cultura antiga, mas foi um tema constante na relação entre os vivos
e os mortos. “Simulacra”, definiu-os Lucrécio, mas mesmo assim
realidades dotadas de um mínimo de consistência, leves membra-
nas que se desprendem dos corpos e volteiam no ar.4 Certamente
não foi por acaso que Tertuliano recorreu às visões oníricas para
fundamentar sua doutrina da alma. Cristianizando doutrinas pla-

256
tônicas e estoicas, ele sustentou que o sonho inspirado era um
meio utilizado por Deus para revelar Sua vontade e uma prova da
imortalidade da almaf'
Sonhos, visões, relações entre vivos e lembrança dos mortos,
evocação dos defuntos, viagem xamanista da alma fora do corpo:
basta enunciar esses temas para descortinar-se o vasto e complexo
mundo do encontro entre cristianismo antigo e mundo pagão, em
uma época marcada pela ansiedade, como escreveu Eric R. Doddsó
_ sobretudo por aquela ansiedade específica de quem perscruta
na escuridão além da morte e tenta definir as características e os
poderes da alma. Tamanho interesse pela alma derivava da inversão
dos termos da questão: a morte retira valor à vida humana a um tal
ponto que transforma em sombra a realidade de que fazemos par-
te e na qual vivemos, projetando a imorredoura substância da vida
no reino superior e longínquo de onde provém a alma e ao qual
deve retornar. Platão estabeleceu para os séculos futuros os termos
e conceitos que tornaram possível pensar a alma como entidade
superior ao corpo, habitante provisória do mundo das sombras
onde vagueiam os mortais e destinada à sobrevivência eterna no
mundo das ideias. E o fez a partir da reflexão que o moribundo per-
sonificado por Sócrates dedica à própria morte. Ao contrário da
alma, o corpo assumiu na tradição platônica e nas religiões de mis-
térios as características negativas de túmulo ou prisão da alma, ser-
vo incapaz, desobediente e rebelde. São traços de uma separação
radical. A cristandade primitiva se apropriou deles.7 No mundo do
final da Antiguidade, a alma foi representada como um hóspede
delicado, um habitante temporário do corpo, pronto a se separar
dele para retornar ao mundo superior. Os célebres versos do impe-
rador Adriano _“Animula vagula blandula / hospes comesque cor-
poris” _ são quase uma elegia sobre o fim próximo e irremediável
do império e o inevitável triunfo do cristianismo.

257
Entre a herança antiga e o novo mundo de ideias e práticas que
viria a marcar a vida e a morte de coletividades humanas inteiras
_ e, entre elas, a de Lucia Cremonini _ deu-se a revolução repre-
sentada pelo cristianismo e pela ideia de alma que ocupou o seu
centro. As definições e imagens da tradição antiga tiveram de acer-
tar contas com a fé cristã na ressurreição e apromessa evangélica
do reino dos céus.Avitória sobreamorte,conquistada pelo Messias
ressuscitado após o terceiro dia, e a promessa de um reino dos céus
para os seguidores foram os argumentos que deram base à nova
religião, revolucionando a própria tradição religiosa hebraica de
cujo tronco nascera como seita herética.
Originalmente, como assinalou Baruch Spinoza, não havia
uma promessa de vida após a morte no mundo religioso hebraico.
O movimento que levara a religião hebraica a uma concepção espi-
ritualizada da sobrevivência para além da morte tinha sido parcial-
mente autônomo e anterior à pregação de Jesus de Nazaré, e par-
cialmente derivado da influência cristã. Mas a descoberta de
Spinoza, mesmo que atingisse o cerne de uma religião que não por
acaso convivera longamente com o cristianismo, era incontestável.
A relação do povo hebraico com a pessoa de Deus, único e exclusi-
vo, baseava-se na fidelidade do povo eleito em nome da promessa
feita a Abraão. O laço exclusivo do povo com Deus tinha como ob-
jeto um futuro a ser realizado na terra. Cada qual devia agir e ser
julgado por suas ações, mas os prêmios e os castigos deviam ocorrer
na terra, no presente e nas gerações futuras. Sem dúvida a vida pro-
vém de Deus, é dada a cada indivíduo e é chamada de “alma”. O
Gênesis narra que Deus insuflou o sopro da vida no peito do pri-
meiro homem, de modo que o homem se tornou uma alma viva
(“ neƒesh chayah”, Gen. 2,7). E o Levítico define o morto como “uma
alma morta” (“neƒesl1 met”, Lev. 21,11).8 Mas o pacto de Deus com
Abraão, que funda a tradição do povo eleito, é uma promessa de
poder e prosperidade na terra para seus descendentes (Gen. 22,16-

258
-18). Algumas passagens da Bíblia serviram de inspiração para a
ideia cristã de sobrevivência após a morte. Inspirações controver-
sas. A morada dos mortos (“sheol”, Gen. 42,38) é mencionada em
termos figurados. Uma longa tradição cristã descreveu o desapare-
cimento de Enoque e Elias como ascensão direta aos céus. Sobre
Enoque, a Bíblia diz que “Deus o levou” (Gen. 5,54). Entre todas, a
passagem mais importante e mais controvesa é a referente à morte
de Abraão, pois foi de onde se originou a ideia de um lugar celestial
para os eleitos. O Gênesis diz queAbraão expirou e foi “unir-se a seu
povo” (Gen. 25,8). Sobre essas passagens e imagens, talvez ecos de
um culto arcaico dos antepassadosƒ' fundou-se a tradição cristã de
um reino do além, para onde Enoque teria sido levado sem morrer,
ao passo que Abraão _ sobre cuja morte a Bíblia não deixa dúvida
_ seria concebido no além como aquele que acolhe os justos em
seu seio. O que é certo é que a imortalidade da alma não encontra
espaço na Bíblia hebraica, onde se leem expressões claríssimas so-
bre a morte como término definitivo da vida e sobre a memória
como única forma de sobrevivência.”
Partindo de tais observações, Spinoza deduziu o equivalente
hebraico da excomunhão cristã: o cherem, a expulsão da comuni-
dade hebraica de Amsterdam. Mas seu pensamento marcaria pro-
fundamente os fundamentos cristãos da cultura europeia.
No cristianismo, a vida do além sempre foi o tema central; a
esperança _ às vezes a certeza _ de estar entre os eleitos no reino
de Deus é o ponto crucial desde os primórdios. E nos primórdios
encontramos a obra fundadora de são Paulo. Na primeira Epístola
aos Coríntios, são Paulo deteve-se longamente na ressurreição de
Cristo como fundamento da fé cristã, e dela extraiu consequências
e observações para a futura ressurreição dos seres humanos, com
frases que viriam a exercer enorme influência nos milênios seguin-
tes da história do cristianismo como religião e na experiência de
gerações e gerações humanas. “E, se Cristo não ressuscitou, vazia é

259
a nossa pregaçao e vazia também a vossa fe” (I Cor. 15,14): um “se”
HI' Í

mais categórico do que hipotético, uma dúvida latente que aflora


continuamente e é continuamente rechaçada na tradição cristã.
Não era fácil imaginar aquela ressurreição; todavia, era preciso fa-
zê-lo. Era preciso dar substância às coisas esperadas. Nesse empe-
nho didático e apologético em ilustrar a própria fé e transmiti-la
aos outros, multiplicam-se imagens, metáforas, visões e revelações.
Não poderia existir prova mais convincente do que aquele retorno
do morto ao mundo dos vivos; e, após a ressurreição de Iesus, repe-
tiram-se os milagres, as aparições, as visões que voltavam a falar do
outro mundo e a comprovar sua existência. Mas como ocorrera
aquela primeira passagem? Aos olhos de são Paulo, como vimos,“
o ciclo da vida e da morte se afigurava similar ao ciclo que a natu-
reza exibia no processo que conduzia a semente ao fruto. Por isso
ele utilizou a imagem sugestiva da semente, .extraindo-a do ciclo
vegetal e da experiência dos camponeses: se a semente não morre,
o trigo não pode nascer. Da mesma maneira, se o corpo terreno não
morre, o corpo celestial não pode nascer. Essa imagem simples e
misteriosa recebeu variantes que recorriam às metamorfoses do
mundo animal: a larva que se torna borboleta, a serpente que se
despe da velha pele, a crisálida e o inseto perfeito. Todas remetem
ao processo de uma transformação integral do ser humano, capaz
de torná-lo algo profundamente diferente, adaptado à realidade de
um reino divino. Mas o problema fascinante nascia justamente
aqui: como se daria a metamorfose? E, acima de tudo, quem a so-
freria, e quando? E os outros, os que permaneciam aquém da trans-
formação em substância celestial, o que seria deles? Pois uma coisa
era certa: nem todos estavam destinados a receber aquela misterio-
sa transformação. A interpretação da primeira epístola paulina aos
Coríntios, que foi o principal texto do Novo Testamento a colocar
temas e questões sobre a ideia cristã de ressurreição, deu origem a
infinitas controvérsias. Mas o interesse se concentrou especial-

260
mente na passagem que distingue as duas partes dos seres humanos
com vistas à futura ressurreição. Esta recebeu diversas interpreta-
ções e ocupou o centro de acaloradas discussões, também por cau-
sa das vicissitudes que marcaram a tradição do texto.” Iá na época
de são Ierônimo existiam diversas variantes a partir do texto grego.
Uma delas foi traduzida por ele como segue: “Todos dormiremos,
mas nem todos seremos transformados” (Omnes quidem dormie-
mus, non autem omnes immutabimur). A outra variante, porém,
dizia: “Nem todos dormiremos, mas todos seremos transforma-
dos” (Non omnes dormiemus, omnes autem immutabimur).As dife-
rentes leituras da frase assumiam, então, significados diversos de-
pendendo do sentido dado a “dormir”. Por exemplo, para alguns
“dormir” significava “cair em pecado”, “dormir na fé”. Entendendo-
-se “transformar” no sentido de passar da vida mortal à vida imor-
tal, seguia-se uma interpretação que abria o caminho da vida eter-
na para todos os seres humanos. Todos os seres humanos, mesmo
os que haviam cedido ao pecado, serão salvos e gozarão a bem-
-aventurança eterna.
Essa interpretação agradou a Orígenes, partidário da tese da
salvação final de todos, incluídos os pecadores e até os anjos rebel-
des. No entanto, se se entendesse “dormir” como uma expressão
figurada para “morrer”, a passagem era lida como anúncio de que,
no fim dos tempos, alguns serão surpreendidos ainda em vida pelo
juízo final. Uma simples constatação, que não criava maiores pro-
blemas teológicos e por isso foi a escolhida por são Ierônimo. Havia
ainda uma versão transmitida em códices latinos, que se afastava
das duas anteriores e dizia que “todos ressuscitaremos, mas nem
todos seremos transformados” (Omnes quidem resurgemus, non
omnes autem immutabimur). Recusada por são Ierônimo porque
não atestada pela tradição grega, ela franqueava a porta para a hi-
pótese que ressurgiu várias vezes na história das heresias cristãs, a
saber, que apenas alguns encontrariam aberta a porta da bem-

261
-aventurança eterna, ao passo que o juízo final decretaria o término
da existência de todos os demais. Entre as duas interpretações que,
de uma maneira ou outra, eliminavam a ansiedade quanto ao des-
tino individual após a morte, a Igreja iria preferir a de são Ierônimo,
que oferecia a todos a esperança do juízo final e a todos a perspec-
tiva da vida eterna.

Além dessa ideia da metamorfose (immutatio) do indivíduo


no reino dos céus, os textos de são Paulo deixaram como herança
ao cristianismo uma oposição radical entre corpo e alma, que só
podia se resolver pela dissolução do corpo. Ao falar de seu desejo de
“dissolvi et esse cum Christo” (Fil. 1,21), são Paulo expressara o sen-
timento de espera e esperança nascido da fé na ressurreição de Ie-
sus e em sua promessa de receber os seus no reino do Pai. O corpo,
no pensamento do apóstolo, era apenas um obstáculo na relação
com Deus, um exílio para a alma ansiosa de se unir ao Senhor
(“Dum summus in corporerperegrinamur a Domino”, II Cor. 5,6).A
partir daí a oposição entre vida do corpo e vida da alma tornou-se
o tema fundamental da cultura cristã. Podemos considerar emble-
mática a frase que o autor anônimo da Passio atribuiu ao mártir
Maximiliano, o qual, perante a ameaça do pró-consul Dião de
mandá-lo matar, respondeu: “Eu não morro: e, se saio do mundo,
minha alma vive com meu senhor Cristo”.”' A esperança da vida
eterna podia ser vivida comunitariamente como um destino que
aguardava os membros da Igreja.
Se os santos morriam de bom grado para viver a verdadeira
vida em Cristo, os outros cristãos se reuniam ao redor de seus tú-
mulos e buscavam proteção neles como poderosos padroeiros jun-
to ao Senhor. Foi assim também que aos poucos se desenvolveu de
maneira cada vez mais forte e penetrante um sistema de institui-
ções e de valores simbólicos centrado no destino individual após a
morte. A promessa cristã de vitória sobre a morte abria um espaço

262
imenso à esperança e, por conseguinte, à ansiedade e à vontade de
saber qual seria o destino após a morte para si e para os demais, e
que lugar lhes estaria reservado. Toda a história humana era a espe-
ra do juízo: a imagem do livro aberto pelo anjo do Apocalipse foi o
símbolo mais eloquente de uma civilização da memória.” O vín-
culo entre os vivos e os mortos traduziu-se no impulso que recebeu
a memória _ nos ritos, nos monumentos, na tradição escrita. Se
todos os nomes e todas as histórias humanas hão de encontrar lu-
gar na prestação final de contas, isso significa que não se apaga o
passado, que toda a história passada, presente e futura conserva
uma plenitude de vida. Deus, a justiça divina, é o espelho imóvel em
que todo ser humano encontra seu lugar.

Essa herança antiga sempre foi objeto de discussão. Mas o tom


das observações e intervenções que foram registradas por volta do
século xvi parece insolitamente dramático em comparação à tradi-
ção pregressa.
“Nós temos alma”, explicava um pregador no início do século,
“a qual é semelhante a Deus, porque Deus é imortal e a alma é imor-
tal para todos os santos profetas e para todos os doutores e com au-
toridade teologal e filosofante”; quem não acredita _ acrescentava
ele _ coloca-se “na condição imperfeita do boi e do asno”.15 Sem
dúvida, os mistérios daquela alma invisível eram grandes: era me-
lhor passar por eles sem tocá-los,“como passa o gato pelo fogo”. Mas
era preciso combater sem trégua os “hereges cristãos que dizem não
existir outra vida senão esta e que tudo acaba ao morrer o corpo”.
Em que hereges negadores o frade estava pensando é difícil
saber, mesmo porque, em seu fervor de neófito, ele se dirigia aos
iletrados, aos que não sabiam latim. Portanto, podia estar pensan-
do em formas de ceticismo ou materialismo popular que sempre
existiram e continuavam a existir. Mas, naquela época, a negação
da imortalidade conquistara direito de presença na alta cultura e o

263
conflito se desenrolava nas salas de aula das universidades. As or-
dens religiosas mendicantes estavam na linha de frente da batalha:
sinais de preocupação ressoavam nos textos e pregações de seus
maiores representantes.
Um momento fundamental dessa luta foi o decreto aprovado
em 1513 pelo Concílio lateranense v, que obrigou os filósofos a do-
brarem seus ensinamentos às exigências da apologética. Essa inter-
venção da Igreja no terreno da filosofia não só evidenciou a função
especial que o discurso sobre a alma exercia na legitimação da or-
dem da sociedade e da própria Igreja, como também marcou uma
mudança imprevista do cenário. Depois de séculos em que os dis-
cursos sobre a alma se desenvolveram por vários e diferentes cami-
nhos, em um clima de relativa liberdade de exame, esse documento
oficial mudou, de chofre, as regras. O decreto, promulgado sob a
forma de bula papal, ordenava aos filósofos-que, em suas aulas e
especulações sobre as hipóteses da eternidade do mundo e da mor-
talidade da alma individual, lembrassem de apresentar a seus ou-
vintes, com todos os meios possíveis, a verdade da religião cristã
_ o que significava obrigar os filósofos a executar tarefas que ca-
biam especificamente ao corpo eclesiástico, em particular aos fra-
des.” O mais diretamente atingido, a saber, o filósofo mantuano
Pietro Pomponazzi, reagiu com uma de suas coloridas expressões
populares: aquela mescla de filosofia e teologia era propriamente
um “miscere diversa brodia”, um prato típico da cozinha dos fra-
des.” Da mesma opinião era Leonardo da Vinci, que, denunciado
ao papa por seus estudos de embriologia e sendo-lhe “proibida a
anatomia”, concluiu irritado: “O resto da definição da alma deixo
na mente dos frades, pais de povos, os quais, por inspirada ação,
conhecem todos os segredos”.*8 Tinham razão na essência; com
efeito, a análise da alma como tema de investigação filosófica e
científica teve de prestar contas à teologia enquanto ciência domi-
nada pelas Ordens religiosas. Os resultados desse conflito são visí-

264
P

veis na nova estruturação dos estudos que viria a caracterizar a i

universidade por muito tempo. Na Bolonha onde Lucia Cremonini .=gz-¬-m. -.


E›!

vivera sua juventude, como vimos, o filósofo Carlo Sassi abordava !:

o tema lendo o De anima de Aristóteles e preocupando-se antes de 3*

tudo em negar a existência de uma alma universal.


A crise que levara à guinada e à intervenção da autoridade
eclesiástica nesse terreno tinha suas origens nas especulações e re-
flexões sobre a alma que haviam dominado a cultura italiana e eu-
ropeia entre o final do século Xv e o início do século XVI. O ressurgi-
mento da Antiguidade neste campo assumira o duplo aspecto do
retorno de Platão e da descoberta de Lucrécio. Surgira a Academia
platônica, reunida em Florença ao redor de Marsílio Ficino, e fora
publicada a edição grega e latina das obras de Platão aos cuidados
de Aldo Manuzio. O retorno de Platão tinha um significado preci-
so: era a sua obra que se devia “a inversão dos valores atribuídos ao
corpo e à alma”, tornando-se o corpo simples, aparência, e a alma
imortal, o ser real.” Partindo daí, a definição que dera Ficino para
o homem era nítida e clara: o homem é a alma racional, o corpo é
apenas seu instrumento.” E um leitor seu, do início do século xvi,
resume sua posição enfatizando: o homem é alma não animal.” No
centro das pregações de Ficino, não como sacerdote e reitor de igre-
ja e depois cônego da catedral, mas como guia intelectual de um
restrito círculo de amigos eruditos, estava justamente a doutrina
platônica da alma como entidade de origem não corpórea, tenden-
te, pois, a ascender ao céu tão logo se libertasse do fardo do corpo.”
Na Epístola algenere umano [Epístola ao gênero humano] , Marsílio
Ficino dirigiu um apelo apaixonado e grandiloquente a seus seme-
lhantes para que reconhecessem o ente divino que os habitava e se
empenhassem com todas as energias em separar a alma do corpo,
para poder contemplar o eterno raio de sol divino oculto e aviltado
pelo invólucro físico.” A ascensão da alma que ele descreve em De
Raptu Pauli é uma verdadeira exaltação da qualidade divina da

265
alma humana, imagem de Deus.” E Poliziano refutava um crítico
afirmando que, segundo Platão, “o homem não é senão uma alma
que participa da razão”.25 No mesmo decreto de 1513, é visível a in-
fluência de tendências neoplatônicasfó Elas encontraram lugar en-
tre as novas modas culturais difundidas nas cortes italianas, as
quais, movendo-se entre a cabala hebraica e a magia egípcia, com-
partilhavam a mesma tendência de enaltecer os dados mentais e de
pesquisar os poderes do espírito, reagindo ao realismo e às dimen-
sões subordinadas da cultura medieval. Mas, enquanto isso, com a
descoberta e a fama imediata do grande poema de Lucrécio, o ma-
terialismo antigo, negador dos deuses, assumira nas representa-
ções do mundo o lugar importante e profundamente sugestivo que
conservaria dali em diante. Após a primeira edição (Brescia, 1473),
Aldo Manuzio publicou a sua em dezembro de 1500, convidando
os leitores (na dedicatória aAlberto Pio de Capri) a distinguirem a
elegância do poema das doutrinas epicuristas que apregoava. Mas
a atração exercida por Lucrécio sobre os leitores foi tão imediata,
tão profunda e duradoura que colocou o problema que sempre
surge nos momentos mais altos e afortunados da história de um
grande clássico: o de enxergar por trás da presença específica de
um autor na cultura de uma época não só, e nem principalmen-
te, um simples efeito de irradiação automática do valor do texto, e
sim as inquietações e pensamentos dominantes da própria época.
Usando uma definição do inquisidor de Bolonha, Leandro Alberti,
pode-se dizer que, se a Idade Média cristã inventara um Virgílio
católico, os novos tempos se identificavam mais com o herege
Lucrécio. Assim, enquanto as consciências cristãs mais sensíveis e
intelectualmente corajosas, como a de Aldo Manuzio, foram leva-
das a acentuar por oposição os traços do espiritualismo paulino
latentes nos fundamentos da religião oficial, as autoridades eclesiás-
ticas reagiram com gestos de alarme e censura: a leitura do poema
de Lucrécio foi proibida nas escolas pelo decreto do Concílio pro-

266
vincial florentino em 1517 e, mesmo que nunca tenha sido incluído
no Index dos livros proibidos, foi considerado herético ou, pelo
menos, uma obra a ser tratada com circunspecção.” Os literatos
das cortes italianas selecionaram suas passagens eróticas, tendo o
cuidado de condenar-lhes o erro doutrinal. “Não duvidemos”, es-
creveu Mario Equicola, “que Lucrécio errou ao cantar que a alma
nasce com o corpo e com o corpo morre”.28 Nicolau Maquiavel, lei-
tor de Lucrécio, tomou um rumo totalmente diferente: colocou no
centro de sua peça Mandragola [A mandrágora] a história de uma
concepção humana como resultado do conflito entre forças natu-
rais e leis, fruto de sedução e astúcia, e, significativamente, coube ao
representante da religião (frei Timóteo) a tarefa de contribuir com
um embuste. Mas os nomes de Maquiavel e Pomponazzi remetem
a uma fase posterior de profunda crise das representações cristãs da
alma, que não derivou exclusivamente da descoberta do pensa-
mento antigo. Pensemos no que Pomponazzi escreveu no célebre
tratado De immortalitate animae, publicado em 1516: ali ele apre-
sentava a hipótese de que foram os políticos, verdadeiros médicos
das almas, que inventaram a imortalidade da alma para refrear uma
humanidade de natureza propensa ao mal, sem se preocupar com
a verdade, mas visando à probidade dos comportamentos (“non
curans de veritate, sed tantum de probitate”).29 Enquanto Pietro
Pomponazzi, demonstrando uma coragem admirável, publicava
tais reflexões, Maquiavel ilustrava a eficácia da religião como ins-
trumen tum regni em suas obras maiores de história e política (que
permaneceriam inéditas até sua morte), com uma casuística que ia
de Moisés a Numa Pompílio e a Fernando, o Católico. Dir-se-ia que
a transformação, agora sedimentada, do papado emprincipado
italiano autorizava aos observadores uma análise crítica dos funda-
mentos da religião cristã com uma radicalidade nunca antes alcan-
çada. Havia, é verdade, a proibição imposta pelo papado com a citada
bula do Concílio lateranense v; muitos salientaram a habilidade e a

267
coragem de Pomponazzi ao manter-se fiel ao próprio pensamento
sem concessões nem prejuízos. Contudo, a própria intervenção com
os endurecimentos doutrinais e medidas de polícia eclesiástica sobre
um tema tão delicado confirma que a discussão contemporânea so-
bre a alma parecia perigosa às autoridades da Igreja porque enfra-
quecia a disciplina, minava a obediência. Assim, pode-se dizer que os
dois lados falavam a mesma língua. O redespertar religioso do tema
viria de fora da Itália, como logo se fez evidente.
Eram cada vez mais numerosas as vozes de críticos e reforma-
dores em toda a Europa, a lembrar que o campo específico da Igreja
como instituição e poder era o das almas. Não se tratava de conhe-
cê-las do ponto de vista científico ou filosófico, e sim de considerá-
-las do ponto de vista “pastoral”: para governá-las neste mundo e
ajudá-las a alcançar a felicidade no outro. Todo esse movimento
tortuoso e amiúde conflitante em seu interior possuía como valor
de referência supremo o destino da alma individual após a morte.
O corpo permanecia em segundo plano. Parece cada vez mais re-
mota a preocupação com o destino do corpo que dominara a épo-
ca anterior. Restavam apenas ecos longínquos daquela inesgotável
curiosidade pelo aspecto físico do indivíduo ressurreto que ali-
mentara a tradição medieval, quando se multiplicaram as hipóte-
ses e descrições da recuperação sobrenatural de todas as mínimas
partículas de corpos desmembrados, apodrecidos, devorados pe-
los animais ou, em todo caso, fragmentados. Quando Erasmo de
Roterdam, forçado pelos ataques do teólogo carmelita Nicolas
Baechem de Lovanio, que o acusava de negar a ressurreição dos
mortos, teve de explicar sua tradução da passagem paulina sobre a
transformação do corpo terreno no corpo glorioso da eternidade,
limitou-se a apontamentos desatentos.” Naturalmente, sentia-se
ainda a necessidade de se imaginar a face e o aspecto físico que os
ressurretos apresentariam. Tertuliano, Orígenes, Agostinho e mui-
tos outros comentaram a fundamental passagem paulina sobre a

268
ressurreiçao como reconstituiçao e transformação instantânea dos
no A» .nv

corpos. Foram exploradas todas as mais complicadas hipóteses so-


bre a forma com que os corpos humanos, deteriorados pelos anos
e pelas doenças, destroçados pelos animais ou por seus semelhan-
tes, iriam se apresentar na cena do juízo final. Mas, quando a ques-
tão reapareceu no palco das novas preocupações da época da
Reforma, o problema se demonstrou racionalmente insolúvel. Será
possível, perguntou-se Lelio Sozzini, que os corpos ressurjam idên-
ticos a seu antigo aspecto, se pensarmos que suas carnes alimenta-
ram outros corpos, os quais desenvolveram seus membros com os
membros dos mortos?31 A tese paulina da transformação completa
(“ immutatio”) que o corpo sofreria para se apresentar à vida eterna
foi levada às últimas consequências pelos anabatistas. Para eles, ha-
via uma diferença radical entre o corpo natural e o corpo celestial
dos ressurretos, sendo o primeiro um resíduo animal a ser abando-
nado e o segundo uma realidade totalmente espiritual.” As tendên-
cias da ala radical da Reforma seguiam nessa direção, interpretan-
do e aprofundando uma orientação difundida principalmente nos
ambientes reformadores: contrapunha-se “carnal” a “espiritual”,
estigmatizava-se como resquício judaico qualquer prática e qual-
quer convicção que admitisse a materialidade de ritos e objetos.
Como era inevitável, foi sobre o corpo de Cristo que se concentrou
o conflito das interpretações. Aquele corpo, por definição ausente
da terra dos seres humanos, desde sempre constituíra o ponto de
convergência das especulações teológicas e das devoções no inte-
rior do mundo cristão. Corpo concreto e totalmente humano se-
gundo a doutrina elaborada e defendida pela Igreja, ele era isento
de pecado, mas em todos os demais aspectos era participe do co-
mum destino humano de sofrimento e de morte. E após a ressur-
reição tornara-se o divino corpo glorioso habitante dos céus, em
penhor do destino que aguardava os eleitos. A questão fundamen-
tal da sociedade cristã era como entrar em contato com aquele cor-

269
po. Inatingível em sua divina distância, era possível, porém, alcan-
çá-lo por intermédio de tudo o que estivera em contato com ele: os
fragmentos do lenho da Cruz, os espinhos da Paixão, o sudário
que o recobrira após a morte. A peregrinação para contemplar
o “verdadeiro ícone” _ confirma-o um belíssimo soneto de Pe-
trarca _ era um modo de preparar-se para a morte e de alimentar
a esperança da visão celestial. Mas isso não bastava para saciar a ne-
cessidade de um contato direto, tranquilizador e salvífico. E, visto
que não existia nada mais concretamente vital do que o sangue, en-
tre os objetos de culto que alguns santuários se orgulhavam de pos-
suir estava o sangue de sua agonia. Discutiu-se se aquele sangue
ainda preservava a essência da divindade. Não era um problema de
pouca monta. Essa relíquia podia se revelar um talismã de extraor-
dinário poder. Entende-se quão irrefletida poderia parecer a frase
do franciscano que, pregando em 1463 em Brescia, durante o ciclo
da Páscoa, ao tratar a questão do sangue derramado durante a
Paixão negou que pudesse ser objeto de devoção. O inquisidor do-
minicano acusou-o de heresia e o pontífice Pio ii Piccolomini teve
de ouvir opiniões contra e a favor, em uma disputa romana que se
prolongou por três dias. Não era uma questão irrelevante: o que
estava em jogo era a própria essência da união entre as duas natu-
rezas, a humana e a divina, na pessoa de Cristo. Apenas a proximi-
dade da Cruzada e a necessidade do trabalho dos franciscanos per-
mitiram que o hábil e inescrupuloso papa Piccolomini saísse da
situação sem condenações doutrinais.” Naquela época, porém, já
fazia muito tempo que o problema se tornara totalmente marginal,
pois o provimento do sangue divino encontrara o canal garantido
e protegido do sacramento eucarístico. Assim, estava afastado o
possível conflito entre as relíquias da Paixão e o outro sangue divi-
no que a Igreja oferecia aos cristãos no místico sacrifício da missa.
Podia-se tolerar e até encorajar a busca do sangue e das relíquias
como prova de devoção, como nível menor da fé.

270
De fato, a doutrina da transubstanciação deu o impulso deci-
sivo à desmaterialização do corpo dentre todos (e para todos) sal-
vífico. Apenas o sacerdote podia fazê-lo baixar sobre o altar do in-
cruento sacrifício da missa e oferecê-lo aos cristãos. Espiritualizado
no sacramento, o corpo sofredor e humano do Cristo da Paixão foi
confiado à obra dos pintores para ganhar visibilidade _ definiti-
vamente subtraído ao contato, situava-se assim em um espaço
mental. Nem por isso a pergunta sobre a realidade especial daquele
corpo perdeu intensidade. Era possível que Cristo se apresentasse
materialmente em carne e sangue nos altares? A controvérsia mais
áspera no interior do cristianismo europeu nasceu precisamente
em torno do problema da interpretação do hoc est corpus meum da
Eucaristia. O realismo da identificação entre pão e carne, vinho e
sangue foi o rochedo contra o qual naufragou uma possível aliança
entre Zwinglio e Lutero às vésperas da batalha de Kappel; e depois
foi somente a duras penas que se logrou o consenso entre Calvino
e Bullinger, interpretando-se “é” no sentido de “significa”. Mas,
pensando também no corpo de Cristo e na sua localização física no
espaço, registrava-se uma profunda crise no sistema dos espaços
celestiais organizado pela cosmologia medieval com um realismo
meticuloso. Onde estava aquele corpo? Dizia-se “nos céus”, e de lá
esperava-se que retornasse para o juízo final. Mas isso não signifi-
cava _ comentou Calvino -- colocar Cristo em um lugar determi-
nado e imaginá-lo lá no alto, sentado em uma cadeira a contar as
estrelas.” A divisão entre a miséria física e moral do corpo humano,
escravo do pecado e da morte, e a extrema espiritualização da ideia
de alma e de Deus, encontrou lugar nos comentários à narrativa
bíblica da criação. Só se poderia realmente acreditar que o homem
fora criado à imagem de Deus (Gen. 1,96) se se colocasse entre pa-
rênteses a realidade terrena do corpo. Aqui também foi Calvino
quem expressou com maior clareza a sensibilidade de toda uma
época. Para ele, aquelas palavras da Bíblia não podiam se referir ab-

271
solutamente ao corpo do homem, no qual não se via refulgir luz
alguma de origem divina.” _
As discussões teológicas reforçavam a tendência de reservar
aos homens da Igreja as questões relativas à alma. Tal fato não im-
pediu que se erguessem protestos contra o decreto de 1513, prove-
nientes daquele mundo dos médicos que mantinha com a alma
uma relação por assim dizer profissional. A leitura do tratado de
anatomia de Alessandro Benedetti, docente de anatomia em
Bolonha por volta de 1490, permite ter uma ideia do modo de pen-
sar de um cientista aberto a um entrelaçamento de diversas in-
fluências: o tema lucreciano dos vínculos entre mente e corpo, a
ideia platônica do corpo como veículo temporário da alma, a gran-
de enciclopédia Naturalis Historia de Plínio. Benedetti analisou as
relações entre mente, cérebro e alma estudando, entre outras coi-
sas, os reflexos das alterações orgânicas nas percepções sensoriais e
nos pensamentos, e localizando as causas dos distúrbios da memó-
ria nos danos ao cerebelo. A viva curiosidade sobre como a matéria
se transformaria em espírito no corpo humano levou-o a se ocupar
do sistema circulatório. Era no sangue que se podia encontrar o
spiritus, termo que indicava alternadamente a respiração, a vida e a
alma. A seguir, esse campo seria percorrido pela inquieta pesquisa
do médico espanhol Miguel Servet, antitrinitário perseguido pela
Inquisição católica e condenado à fogueira por Calvino na capital
do mundo reformado. Quanto a Benedetti, cabe dizer que se sentiu
compelido a afirmar explicitamente sua fé na imortalidade da alma
(provavelmente devido ao decreto contra os averroístas promulga-
do pelo bispo de Pádua e pelo inquisidor em 1489).*
Depois do decreto do Concílio lateranense v, foi justamente
no mundo dos anatomistas que surgiram reações de protesto.
Especialmente significativa foi a de Andrea Vesalio, o ilustre médi-
co que renovou profundamente a concepção e a prática da anato-
mia, impondo, contra as opiniões igualmente influentes dos anti-

272
gos, a superioridade da experiência. Em sua grande obra dedicada
à anatomia do corpo humano, ao tratar do coração, ele teve de en-
frentar a questão da sede e das funções da alma, que, segundo al-
guns, residia no coração, e segundo outros, no cérebro. Naquela
circunstância, ele declarou que preferia se abster de entrar no mé-
rito da alma, para não dar motivo aos inúmeros censores prontos a
acusar de heresia a quem quer que fosse. Mas sustentou que os mé-
dicos também deviam se ocupar daquele tipo de problema, se qui-
sessem exercer sua arte sem colocar os doentes em risco.”
A reação de Vesalio é importante. Ela mostra que, se era possí-
vel calar os filósofos, os médicos não estavam dispostos ao silêncio.
Tomava voz, assim, uma corporação em ascensão com a qual os
teólogos e a Igreja tiveram de entrar em acordo. O saber médico e o
saber teológico não podiam se permitir um conflito. O vínculo en-
tre corpo e alma era essencial no campo da pesquisa praticada por
eles, mas também, de modo mais geral, no plano dos valores sim-
bólicos que regiam a sociedade e o poder. Portanto, era inevitável
procurar um entendimento, não no plano do conhecimento do
corpo, deixado às técnicas anatômicas e à exploração fisiológica
dos órgãos, mas no campo que mais importava, o do conhecimen-
to e cura da alma. Era um deslocamento significativo que se refletia
em primeiro lugar no uso do termo. No vocabulário dos filósofos e
teólogos, até então havia sido natural falar de almas no plural, dis-
tinguindo as funções intelectuais das funções vitais, e sobretudo as
funções vitais da alma destinada à sobrevivência eterna. Agora, po-
rém, com o estabelecimento da dimensão “pastoral” como lei su-
prema da Igreja, a preocupação dominante do corpo eclesiástico
concentrou-se na salvação da alma como substância imortal do in-
divíduo. Assim, passou-se a falar cada vez mais em “alma” no sin-
gular, no que foram acompanhados pelos médicos. Permaneciam
diferenças importantes: nas exortações dos moralistas e ascetas e
na tradição teológica, a alma era considerada uma entidade autô-

273
noma hospedada no corpo, mas também prisioneira dele, pronta a
deixá-lo para ascender à verdadeira vida, enquanto para os médi-
cos, a alma se identificava com o corpo vivo. Mas a tendência per-
ceptível de simplificação da linguagem e aproximação da língua
falada era clara: pensava-se em uma alma que unia em si a vida na-
tural e a vida sobrenatural. E era justamente na direção das origens
da vida que a pesquisa anatômica parecia decidida a se aventurar.
Leonardo da Vinci deu um exemplo disso, quando, ao explorar a
anatomia dos fetos humanos, tomou um caminho diverso do per-
corrido tradicionalmente pelas especulações teológicas e filosófi-
cas, que confiavam a Deus e ao pai natural as funções dominantes
na criação da nova vida. Para Leonardo, a alma que organizava os
membros do feto era a da mãe. Era a alma “formadora deste corpo,
isto é, a alma da mãe que, antes, compõe na matriz a figura do ho-
mem e, no devido momento, desperta a alma daquele que deve ser
o morador”.38 A atenção especial que Leonardo dedicou à figura
materna o conduzia para um rumo insólito e perigoso. Não por
acaso, Giorgio Vasari, na primeira edição (1550) de suas Vite
[Vidas] , escreveu que Leonardo havia amadurecido “na mente um
conceito certamente herético que não se aproximava de qualquer
religião, julgando-se, talvez, bem mais filósofo do que cristão”.
Mas, mesmo refreada pelos decretos eclesiásticos, a investiga-
ção sobre a alma não se deteve. No mínimo tomava novos cami-
nhos, enquanto quem havia se aventurado nos temas da geração
humana _ como o prelado Ferdinando Pozzetti _ apressava-se a
pôr-se em segurança.” As raízes profundas da pergunta sobre o que
era o ser vivo sustentavam uma pesquisa em que a medicina e a fi-
losofia não estavam muito distantes das concepções de alma típicas
das culturas populares. Não à toa o termo “alma”, na linguagem
corrente, designava a parte interna e oculta das coisas: uma acepção
que se conservou por muito tempo no vocabulário da agricultura,
indicando “a semente das frutas, que está fechada dentro de um ca-

274
roço, e de onde nascem as plantas”.4° Não é de admirar, portanto,
que Vesalio, por exemplo, tenha se interessado pela história de um
infanticídio realizado em Veneza por três bruxas _ dizia-se _ com
o intuito de procurar o osso que sediava a alma: um ossinho minús-
culo em formato de grão-de-bico, incorruptível, que sepultado na
terra operaria como o semêm do homem, que dela renasceria no
dia do juízo. Tudo isso Vesalio deixava à discussão dos teólogos, vis-
to que queriam ser os únicos a se ocupar da alma:“ por seu lado, ele
oferecia a descrição dos menores ossos presentes no corpo humano
e expunha sua coleção desse tipo de ossos, recolhidos nos patíbulos,
graças à sessão de anatomia dos condenados à morte. Era o corpo
que devia desvendar os segredos do ser humano e explicar suas in-
clinações morais. Foi assim que um outro célebre anatomista do
século xvi, Realdo Colombo, ao estudar o corpo de uma infanticí-
da, deparou-se com características anormais, como o inchaço nas
veias do útero, que atribuiu à natureza “demoníaca” da mulher.”
Evidentemente, a investigação do corpo permitia uma certa
liberdade em uma época na qual as reflexões e os discursos sobre a
alma eram truncados pelo receio de colidirem contra os dispositi-
vos do controle eclesiástico. Agora, as ásperas e cortantes conside-
rações de Maquiavel e Pomponazzi haviam cedido lugar aos escrú-
pulos e tormentos de Torquato Tasso, que se encerravam com sua
autodenúncia final perante o inquisidor, por ter tido “dúvidas so-
bre a imortalidade da alma, a criação do mundo e algumas outras
coisas”.43 Não foi por acaso que o engenho de Tommaso Campanella
considerou como tarefa de máxima urgência elaborar uma nova
apologética baseada na religião natural e no consenso dos povos
(argumento ao qual recorriam também os jesuítas daépoca), que
enfrentasse abertamente o “ateísmo” de Maquiavel e de todos os
demais que faziam da religião um instrumento do poder e “uma
arte de viver encontrada entre os astuciosos”. No entanto, ele tam-
bém admitia que os argumentos filosóficos em favor da imortali-

275
dade da alma não o haviam convencido muito, pelo contrário, ha-
viam-no levado “a crer que a alma era mortal”; ele procurou as
provas da imortalidade cristianizando Galeno e fazendo da “mente
[...] enxertada no espírito animal corpóreo”, retomada ao médico
antigo, o equivalente da alma imortal infundida por Deus que, na
medida em que estava “envolvida” pelo corpo, sofria alterações.”
Mas basta a maneira como a questão da alma e sua respectiva termi-
nologia (“espírito”,“forma” etc.) aparecem nos escritos de Giordano
Bruno para mostrar quais poderiam ser as consequências de uma
especulação livre e transgressora, tendo como base o pensamento
renascentista e uma visão coperniciana da realidade.”
Se os filósofos e os teólogos procuravam conforto nos médi-
cos e discorriam sobre a alma por meio do corpo, era pensando na
alma que os médicos examinavam os corpos.
Entre os que se dedicaram à busca da alma estava o anatomis-
ta bolonhês Giulio Cesare Aranzio, especialista no estudo dos fetos
abortados. Em 1581, durante uma aula de anatomia pública que se
realizava em Bolonha durante o Carnaval, ele expôs o resultado de
suas pesquisas: descobrira _ assim declarou _ uma pequena ca-
vidade cerebral na qual julgava que se deveria estabelecer a sede da
alma.46 O fato em si de que a questão da alma ainda ressurgisse em
um tratado de anatomia não deve surpreender. O que merece con-
sideração é a atitude do médico quanto à questão da maternidade.
Aranzio obtivera a matéria-prima de sua pesquisa com a assistên-
cia prestada às parturientes. Quando ocorriam partos de risco, ele
se encontrava diante do dilema de intervir ou não, e em favor de
quem _ da criança ou da mãe. Escolha difícil, conta Aranzio. Se a
morte da mãe era considerada cruel e desumana, salvá-la significa-
va matar a criança, que não conseguiria vir à luz, e condenar-lhe a
alma para a eternidade. Decisão muito delicada para um médico,
tanto que ele pessoalmente se ativera à regra de abandonar a cena
do parto, deixando a decisão a terceiros: uma covardia a custo dis-

276
farçada pela citação horaciana (“honestam ƒugam capere”). Mas,
quanto ao mérito propriamente dito da questão, Aranzio não de-
monstrava nenhuma verdadeira perplexidade moral. Nos dois
pratos da balança estavam dois males; e um princípio moral muito
familiar ao mundo médico bolonhês proibia praticar o mal para
obter o bem.” Sobre a base desse princípio que se fundava na auto-
ridade de São Tomás, o manual eclesiástico publicado naqueles
anos sob os auspícios de um célebre teólogo dominicano vetou ca-
tegoricamente que se matasse a mulher para batizar o filho.” Mas,
para Giulio Cesare Aranzio, o dever de salvar a alma da criança era
mais alto do que proteger a vida da mãe. Essa inversão dos papéis
entre médico e teólogo anunciava novos tempos, e o primeiro pas-
so era discutir teoricamente se se podia matar a mãe para salvar a
alma do filho.
A figura do médico que se esboça a partir das observações de
Giulio Cesare Aranzio é a de um personagem que vê mudar o esta-
tuto de sua profissão devido a uma contraposição entre a cura dos
corpos e a cura das almas. O conflito entre o corpo e a alma era mui-
to concreto, enraizado como estava nas próprias entranhas da mu-
lher. O médico não podia se subtrair com uma“honesta fuga”, mes-
mo porque sua função era regulada por normas do poder
eclesiástico que lhe exigiam antepor a cura da alma à das afecções
do corpo. Obrigada a obedecer a “profissão de fé tridentina”, que
jurara antes de ser admitido aos graus acadêmicos, o médico vira-
-se compelido por uma bula papal (Supra gregem dominicum, de
Pio v) a interromper o tratamento do doente sem confissão. A
medida não era nova; como outras propostas do papado da Con-
trarreforma, ela retomava um decreto do Concílio lateranense iv,
dando-lhe um novo e decisivo vigor.
Mas a construção do modelo do médico cristão, que devia se
ocupar em primeiro lugar da alma mesmo em detrimento da saúde
do corpo, ultrapassara consideravelmente aquelas normas. O pon-

277
to fundamental de oposição entre vida terrena e vida eterna era
exatamente o relativo à condição da mulher grávida e ao possível
conflito entre a vida da mulher e a de seu rebento. O médico era a
figura que estava no centro, de um lado, do pedido de auxílio e me-
dicamentos das mulheres que queriam abortar e, de outro, das me-
didas de disciplina moral e religiosa da sociedade elaboradas pela
Igreja.
Em um texto publicado em 1589, o médico Gian Battista
Codronchi, de Imola, colaborando idealmente com um irmão sacer-
dote, expôs os deveres dos médicos cristãos através de uma série de
casos de consciência.” A casuística era a forma predileta da cultura
eclesiástica da Contrarreforma para preparar os confessores a forne-
cerem uma resposta às consciências perplexas dos fiéis, obrigados
pelas normas tridentinas a se confessar regularmente pelo menos
um vez ao ano. Também o médico, segundo Codronchi, devia rece-
ber preparo para reconhecer e evitar as ocasiões de pecado típicas de
sua profissão; além dos médicos, deviam ser instruídos em tais as-
suntos todos os que mantivessem relações com eles: os enfermeiros,
os doentes, e mesmo os sãos. Os casos examinados são uma expres-
são do catolicismo da Contrarreforma, e abarcam desde a obrigação
de confirmar a confissão do doente à proibição de associações com
médicos judeus. Mas a questão que teve a maior relevância foi a con-
cernente ao problema da maternidade e do nascimento. Podia o mé-
dico ajudar uma mulher grávida a abortar por razões de saúde ou
para evitar escândalos ou crimes contra a honra?
A questão não era de forma alguma nova. O fato de o médico
ser capaz de ajudar a mulher a interromper a gravidez era bem co-
nhecido desde a Antiguidade, e havia colocado um dilema moral e
profissional à medicina concebida como “scientia sanandi non
n0cendi”.5° Na cultura cristã, a passagem bíblica do Êxodo (21,22-
-25) oferecera _ como vimos _ a base escritural para enfrentar a
questão do aborto como subespécie do caso de homicídio (Ex. 20,

278
2-3) . Mesmo que a passagem fosse mais curta na Vulgata e não hou-
vesse a distinção entre feto formado e não formado, a tradição cris-
tã mantivera a distinção. Com uma clara consciência da corporei-
dade da vida, a presença da alma estava condicionada à “forma” do
corpo. A legislação canônica da Igreja medieval tinha extraído daí
uma graduação variada das penas espirituais a serem aplicadas nos
casos de aborto: constituíra jurisprudência o precedente já citado
do monge que havia provocado deliberadamente o aborto de uma
mulher que ele engravidara, e a quem Inocêncio iii, em 1211, per-
mitiu continuar a oficiar os ritos sagrados sem cair na irregularida-
de, por se tratar de um feto não ainda “ viviƒicatus”.51 A Penitenciária,
tribunal pontifício de alçada do papa, se ateve a essa norma, e para
lá passaram a afluir os pedidos de absolvição dos eclesiásticos cul-
pados de provocar o aborto.” Os juristas seguiam a mesma regra:
Alberico da Rosciate (c. 1290- 1360) ocupou-se exaustivamente das
normas do direito justiniano, dos conhecimentos médicos e até da
vida dos santos para responder se o aborto causado por agressões
masculinas deveria ser considerado homicídio, e concluiu que era
preciso distinguir entre a fase anterior e a posterior ao período mí-
nimo de quarenta dias a contar da concepção.”
Naturalmente é difícil avaliar a frequência das intervenções
abortivas na prática médica, mesmo porque a cena do parto era
dominada pela obstetra e não pelo médico. Uma cultura feminina
transmitida oralmente e que entrou parcialmente nos receituários
dos Libri di segreti [Livros de segredos] oferecia seus recursos para
as várias exigências da gestação e para os riscos e problemas não só
de saúde que cercavam a gravidez. Mas havia um fato novo: estava
avançando nesse campo uma culturajurídica e médica a serviço de
um controle estatal com pesadíssimas sanções. Como escrevera
Vincenzo Carrari, um jurista de Ravenna que Codronchi devia co-
nhecer, o aborto não era só um pecado mortal, mas um crime com-
parável ao homicídio, mesmo levando em conta os prazos tradicio-

279
nais de desenvolvimento dos fetos.” Medicina, direito e teologia
participavam simultaneamente da formação de dispositivos penais
e de estruturas de controle: não por acaso os decretos pós-tridenti-
nos lançados em Ravenna, seguindo o modelo de são Carlos
Borromeo, impunham estritas regras sobre a época do batismo e
sobre os deveres dos médicos.55 Tal era o panode fundo em que Gian
Battista Codronchi colocou o problema da intervenção médica para
provocar abortos terapêuticos. A questão era: “quando peca o mé-
dico ao aconselhar ou, melhor, determinar o aborto de uma mulher
grávida, e como não se pode provocar licitamente o aborto”.
Em epígrafe, Codronchi colocou a passagem do Êxodo (21,
22-25) na redação da Septuaginta e acrescentou um trecho relativo
a um tema muito diferente, mas de claro significado: o de Amós ( 1,
13-15), onde o profeta ameaça o povo de Amon com o mais impla-
cável castigo divino “porque abriram as entranhas das mulheres
grávidas”. As duas passagens, nessa interligação, adquirem um tom
dramático, de um castigo divino que recaía sobre o causador, mes-
mo involuntário, de um aborto.
Assim, Gian Battista Codronchi formulou _ e já no título so-
lucionou _ o problema que dominaria o horizonte da moderni-
dade na cultura católica. Mesmo assim, apesar da negativa no pla-
no geral já dada de antemão, os argumentos analiticamente
expostos, mesclando teologia e medicina, abriam a porta a práticas
abortivas sob controle direto do médico. Havia algumas razões que
levavam mulheres à presença do médico querendo abortar: a hon-
ra, o perigo de escândalos e de vinganças. A última delas era a pró-
pria saúde da mulher. O médico podia fazer o que lhe era solicitado,
contanto que tivesse razoável certeza de que o feto ainda não estava
animado:

O médico que prescreve remédios a uma mulher grávida, ou lhe faz


sangrias, ou lhe aconselha o aborto, ainda que o faça pela honra

280
daquela mulher, ou para evitar o escândalo ou homicídios que
poderiam ocorrer vindo à luz o parto, ou descobrindo-se a gravidez,
ou mesmo, estando a mulher enferma, faça-o para livrá-la da enfer-
midade ou morte, ou se convença a livrá-la, se tem certeza de que a
criatura está animada, e de alma intelectiva, ele comete homicídio, e
por conseguinte pecado mortal, e se torna irregular [...] porque é
causa da morte corporal e espiritual. Igualmente, se o médico está
em dúvida se a criatura está animada ou não, ao provocar o aborto
peca mortalmente, pois se expõe ao perigo do mortal, isto é, do
homicídio [...] Mas se crê provável não estar a alma ainda infundida
na criatura, ele poderá licitamente provocar o aborto para conservar
a vida da mãe porque, embora impeça a infusão da alma naquele
feto, não por isso será causa da morte de nenhum homem e poderá
livrar a mulher da morte, e por isso deve-se saber que o menino em
embrião se torna perfeito no período de quarenta dias, e a menina
em oitenta [...] e que isso é dito segundo a opinião de todos os dou-
tores e sumulistas.”

O médico que “livra” a mulher da enfermidade e da morte _


ou “se convença a livrá-la” _ e ajuda o aborto para salvar a honra e
evitar o escândalo é uma figura social fundamental na história das
maternidades indesejadas. O texto de Codronchi nos permite vis-
lumbrar seu perfil, no exato momento em que ele enfrenta o avan-
ço de uma nova figura ameaçadora: um poder eclesiástico e estatal
que o acusa de pecado mortal e de crime capital. Esse poder tinha
se pronunciado ao mesmo tempo que o texto de Codronchi era pu-
blicado. Em 29 de outubro de 1588, Sisto v, soberano do Estado da
Igreja (do qual Imola fazia parte) e chefe da Igreja católica, promul-
gou a bula Efiraenatarn, documento de uma disposição moraliza-
dora dos comportamentos, que exprimia em seu rigor toda a in-
transigência monástica e inquisitorial de seu autor. Previa-se a
pena da excomunhão maior, reservada ao papa, para uma série de

281
práticas. Eram atingidos em especial todos os que, de alguma ma-
neira, tornavam-se responsáveis por abortos: pessoalmente ou por
meio de terceiros, com poções, remédios ou venenos, com agres-
sões ou esforços excessivos impostos à gestante. Prevendo objeções
e distinções que poderiam criar obstáculos à eficácia da proibição,
a bula especificava que a excomunhão se aplicava a todos os casos,
quer o feto fosse considerado prematuro, não formado, inanimado
e assim por diante.”
O cardeal Santori, à frente da máquina da Inquisição romana,
isto é, a instituição que podia _ e talvez, nas intenções do papa in-
quisidor, devesse _ estender sua jurisdição aos crimes de aborto,
tentou inultilmente atenuar sua carga agressiva sugerindo cautelo-
sas distinções jurídicas. O papa quis até que a alguns casos “se im-
putasse a pena de morte, e se aplicasse o item“suplícios máximos””.58
Era uma novidade importante. A concentração da função pastoral
e da definição da doutrina ortodoxa nas mãos do papa somava-se
ao exercício da Justiça penal na forma mais extrema e arbitrária,
sem passar nem mesmo por aquela congregação da Inquisição que
unia as funções de ministério da verdade e da propaganda e de tri-
bunal criminal e eclešiástico, voltado tanto para o foro interno
quanto para o foro externo. Enquanto isso, o dicastério da censura
_ a congregação do Index _ não poupava sequer os mais respei-
táveis textos de pensamento e, enquanto bloqueava o avanço do
inconfiável platonismo, pai de todas as utopias, reescrevia o pró-
prio Aristóteles intervindo nos comentários ao fundamental De
anima. Aqui, como escreveu Alfonso Soto, incumbido de revisar
para a impressão os comentários de Iacopo Zabarella, foi preciso
inverter termos e argumentos do comentador e “de onde ele extrai
a mortalidade, eu extrai a imortalidade”.5°
A violenta ofensiva moralizante do papa pareceu excessiva
aos sucessores de Sisto v, que modificaram muitas de suas diretri-
zes, inclusive a referente ao aborto. Iá com o papa Gregório xiv

282
restabelece-se a distinção entre a fase anterior e a fase posterior à
animação do feto.'f'° Mas, enquanto isso, persistia o sinal de uma
guinada do papado, agora decidido a legislar com dureza no cam-
po da moral sexual e da prática médica: a excomunhão para os
procurantes abortum iria ressurgir e, passado algum tempo, afir-
mar-se-ia definitivamentefi* Essa retomada em outros tempos e
contextos seria facilitada pelo fato de que, segundo uma estratégia
usual, as autoridades eclesiásticas, mesmo abandonando os rigo-
res e a prevaricadora determinação agressiva do papa inquisidor,
não desmentiram formalmente o documento papal e, sobretudo,
não desistiram de avançar combate às práticas abortivas. Onde a
face ameaçadora da Inquisição era insustentável, havia sempre a
suave face da confissão. Os médicos que haviam praticado abortos
podiam ser benevolamente absolvidos, enquanto ao mesmo tem-
po ordenava-se aos confessores “que usem de toda a diligência, e
dediquem todos os seus estudos à extirpação de tão grave pecado”.62
A presença do poder da Igreja nesse campo já estava, porém, con-
finada a uma zona marginal, desde que o Estado se apoderara do
controle sobre o crime de infanticídio e sobre a geração humana.
O tipo de preparo que os confessores receberam para tratar as prá-
ticas abortivas é prova disso: na Bolonha setecentista, casos de
consciência examinaram repetidamente a questão. O que fazer
perante o caso hipotético de Berta que, sem saber, ingere uma po-
ção abortiva dada pelo amante e depois, alertada do fato, não re- I

corre aos médicos para impedir o aborto de um feto animado, que Í

ocorreu a seguir? E o que dizer de Fulano, que oferece uma poção


similar a uma viúva, provocando 0 aborto não do feto inanimado
Í

resultante da recente relação entre ambos, mas de um feto ani-


mado de quatro meses, fruto de uma relação anterior? Em ambos
os casos a resposta era: absolvição simples pelo confessor. Os teó- l

logos tinham em mente a Bula sistina na forma atenuada por


Gregório xiv, invocada para a solução dos casos; mas 0 que mais

283
1
i
1

I
importava para os confessores não era tanto a distinção entre ani-
mado e inanimado, e sim a dimensão interior da intenção, aplica-
da com sutil espírito casuístico. Como nos casos citados acima não
havia uma intenção deliberada de abortar um feto animado, não
se chegou ao extremo de destiná-los à autoridade do bispo ou do
papa.” Isso indica quanto, no campo do aborto e do infanticídio,
o poder de comando moral da autoridade eclesiástica havia re-
cuado perante a presença invasora do Estado: se em Bolonha os
dois poderes coincidiam nas pessoas de prelados e pontífices, este
é apenas um dos entrelaçamentos irracionais gerados pela história
(especialmente a italiana).
Na realidade italiana e católica, os pronunciamentos da auto-
ridade eclesiástica influíram na cultura científica. A Bula de Sisto v,
por exemplo, teve um efeito intimidador sobre os médicos.
Girolamo Mercuriale de Forlí, então célebre docente de medicina
na Universidade de Pisa, ao abordar o tema da geração humana em
um de seus tratados, deu provas de deferência pela ortodoxia citan-
do, com o devido respeito, a concepção milagrosa da Virgem e ex-
pressando toda sua reprovação aos hereges que dela duvidavam.
Quanto ao problema fundamental, isto é, se o feto era dotado de
alma racional e, por conseguinte, se o aborto devia ser considerado
homicídio, Mercuriale preferiu se manter nas generalidades, citan-
do argumentos em favor de ambas as teses e descrevendo o lento
processo de desenvolvimento que transformava aquele minúsculo
humor no útero em um ser vivo capaz de elevar os olhos, contem-
plar e possuir os céus para sempre. Mesmo assim, era preciso esco-
lher. Então, somando Aristóteles e Tertuliano, Mercuriale acabou
por conjecturar cautelosamente que, se a alma era uma só e devia
ser identificada com a própria vida do organismo, podia-se consi-
derar que fora infundida desde a formação dos órgãos.” É um
exemplo dos préstimos que o aristotelismo era capaz de oferecer à
ortodoxia pós-tridentina: a alma como sopro vital suplantava a

284
alma racional (ausente na vida uterina, segundo Mercuriale) e as-
sumia a identidade da alma cristã.
O caso de Codronchi é ainda mais singular. Autor de uma das
mais instigantes tentativas de expressar as novas exigências de con-
trole eclesiástico sobre o exercício da medicina, ele apoiou involun-
tariamente as razões da prática tradicional, no exato momento em
que o papa declarou a sua invalidade. E logo a seguir, enquanto o
pontífice subsequente atenuava os tons da investida, Codronchi
reelaborou seus Casi di conscientia [Casos de consciência] em um
texto muito mais amplo e ambicioso, onde se propõe apresentar a
nova deontologia médica em conformidade com as indicações da
Bula sistina. Em seu De Christiana ac tuta medendi ratione, citou a
bula Ejƒraenatam e disse com todas as letras que o aborto era de
qualquer modo proibido e que o embrião, enquanto dotado de
vida sensitiva e vegetativa (premissas necessárias da alma intelecti-
va), recaía sob aquele veto.65
A atenção ao exercício da prática sanitária permaneceu tanto
mais viva no mundo eclesiástico quanto mais foi crescendo aim-
portância dos médicos, entre os quais, neste ínterim, em um movi-
mento quase paralelo, veio se acentuando a tendência a entrar no
campo da teologia. Nesse sentido, parece exemplar o comporta-
mento de Codronchi, o qual, de um lado, oferecia aos sacerdotes,
em um texto em vernáculo, a análise da casuística moral da profis-
são médica e, de outro lado, ensinava aos médicos, em um tratado
em latim, a maneira cristã de tratar os doentes. No entanto, a pas-
sagem de sua obra citada acima evidencia claramente que a cultura
dos médicos, mesmo os que mais respeitavam as autoridades ecle-
siásticas e a disciplina tridentina, mantinha ainda uma firme dis-
tinção entre feto animado e não animado, o que permitia o recurso
a práticas abortivas. Quantas e quais foram, é impossível saber. Que
existiram, é inquestionável. Assim o demonstram os indícios que
afloram aqui e ali por entre as malhas da estrutura eclesiástica, para

285
onde convergiam os pedidos de absolvição de um delito que era
culpa moral, de um crime capital que era pecado mortal.°°
Por outro lado, o caso teórico ilustrado por Codronchi em sua
primeira versão oferece um testemunho de grande interesse sobre
o mundo oculto das mulheres que pediam aos médicos remédios
para abortar. O médico que realizava sangrias em uma grávida para
interromper a gestação é uma figura que, como vimos, comparece
nos autos do processo contra Lucia Cremonini: no depoimento de
23 de dezembro de 1709, a mãe de Lucia afirmou que levara a filha
a um médico para “extrair sangue”. Portanto, decorrido mais de um
século das proibições de Sisto v, os médicos do Estado da Igreja
continuavam a utilizar uma prática notoriamente abortiva para
ajudar mulheres em dificuldade. Evidentemente, as leis não bastam
para modificar a realidade. É também provável que aquela prática
fosse uma das poucas reservadas à intervenção médica, em um
mundo onde os segredos da gestação faziam parte de uma ciência
quase exclusivamente feminina. Mas permanecia o fato de que, no
prazo de poucos anos, a intervenção médica para interromper a
gravidez tinha passado do plano da prática corriqueira e defensável
para o âmbito das coisas que se fazem mas não se dizem. Era um
resultado da campanha conduzida pela Igreja contra o aborto e o
infanticídio: uma campanha sem tréguas nem fronteiras, na qual o
papel mais ativo coube aos confessores, muito além dos confins eu-
ropeus. Os manuais de confissão em uso nas missões americanas
sugeriam perguntas muito precisas e dirigidas às mulheres indíge-
nas: os missionários deviam perguntar-lhes se tinham bebido infu-
sões para continuar estéreis ou para abortar, se haviam pressionado
o ventre ou levantado objetos pesados. E suspeitava-se que as obs-
tetras indígenas conheciam segredos abortivosf”
Enquanto o aborto se precipitava na sombra e no silêncio, ou-
tras coisas mudavam ao longo daquele século e modificava-se
substancialmente a forma de considerar as “criaturas”.

286
A cultura médica e a teológica eram então herdeiras da antiga
distinção entre o início embrionário da existência do feto e a fase
de relativo amadurecimento da nova vida. Como vimos, nesse as-
pecto a ciência natural de origem aristotélica acolhida pela siste-
matização teológica tomista respondia à experiência corriqueira,
fornecendo uma explicação da passagem do ser humano desde o
embrião informe até o indivíduo completo. A elaboração teológica
de São Tomás, respeitando atentamente os dados conhecidos sobre
a evolução inicial do ser humano, fizera a distinção entre as diversas
almas chamadas a governar esse desenvolvimento. Mas, no decor-
rer dos séculos xvi e xvii, o problema do percurso oculto do ser hu-
mano revelou uma nova e extraordinária atualidade. Duas passa-
gens fundamentais nesse sentido foram, como vimos, a definição
dogmática da imortalidade da alma individual e a luta contra a
Reforma protestante para garantir e impor o batismo às crianças.
Assim, a Igreja católica, fiadora da existência da alma individual e
de sua sobrevivência à morte do corpo, defendia sua razão de ser
enquanto detentora exclusiva do poder de abrir às almas a porta da
vida eterna. Tudo isso contribuiu para instigar uma curiosidade
especial sobre o momento exato da entrada da alma no corpo hu-
mano. Foi tema de discussão entre médicos e filósofos, em um diá-
logo que teve na autoridade eclesiástica um terceiro e temido inter-
locutor, tal como se expressava nas congregações romanas, mais do
que nas cátedras dos teólogos. Quando Cesare Cremonini, do alto
de sua cátedra paduana de filosofia, experimentou comentar a opi-
nião de Aristóteles, prontamente veio do Santo Ofício romano a
acusação de ensinar a mortalidade da almafis Naqueles anos, seu
colega mais jovem, o já brilhante Fortunio Liceti, esquivava-se a
qualquer perigo, elaborando um douto tratado sobre a origem da
alma humana que conciliava a sabedoria antiga e a teologia moder-
na com o mais simples dos sistemas: coroando com a doutrina cris-
tã um edifício heterogêneo onde havia lugar para todos. Em sua

287
definição, havia algumas almas “irracionais”, como a vegetativa
(“ vegetalis”) e a sensitiva (“sensualis”). Estas eram transmitidas pe-
los pais _ principalmente pelo pai _ no instante do coito; a elas
cabia a tarefa de organizar os membros do corpo em formação.
Quarenta dias após a concepção, eis que se apresentava a alma ra-
cional, criada do nada por Deus onipotente, a qual tomava posse do
corpo formado e se instalava em um ponto dominante, subordi-
nando a si as demais almas. A curiosidade de Liceti vagueou por
muito tempo ao redor do teor “divino-moral” ou “divino-política”
_ como ele a definia _ da relação entre alma e corpo, sem, no en-
tanto, jamais se distanciar do sólido ancoradouro da autoridade
eclesiástica. Sobre tais fundamentos, uma vez determinado o mo-
mento das origens, ele se perguntou, por exemplo, como seria pos-
sível que a alma racional concentrada no êxtase abandonasse o
controle das almas vegetativa, sensitiva e motora, deixando o corpo
sem alimento (questão de grande atualidade nas experiências do
misticismo feminino da época); e ainda se a alma saída do corpo
podia se reencarnar. Mas a alma individual e imortal, criada por
Deus a partir do nada, quando o organismo alcançava quarenta
dias de idade, continuava a ocupar o centro de sua construção.”
É verdade que o direito de os médicos se ocuparem da alma,
reivindicado por Vesalio, encontrou quem o pusesse em prática.
Discutiu-se tanto a respeito que surgiu toda uma literatura paródi-
ca e até autênticos romances médico-teológicos. Se no século ante-
rior o humor satírico do exilado Francesco Negri se dedicou a ro-
mancear a controvérsia teológica sobre o livre-arbítrio, na Itália
seiscentista, enquanto irrompia a Guerra dos Trinta Anos pelo pre-
domínio no macrocosmo europeu, coube a Francesco Pona des-
crever a luta e a vitória do cérebro sobre o coração pelo poder ab-
soluto sobre o microcosmo individual (com o final burlesco da
revolta do “Podice”, isto é, do ânus) Í”
Mas a curiosidade teológica dos médicos se expressou basica-

288
×-. ¬‹_›=-na-›'¬\-W¬-r¬-~.-wa'

mente nos estudos da animação do feto humanofl A opinião tra-


E.:"'*-.»_<-~9'P:¬w‹~=1v-›wz,‹-N
dicional da vida fetal organizada em diversas fases entrou em crise.
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Ela foi substituída por uma resoluta vontade de conhecer a história
?
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da vida humana em sua primeira origem e em seu desenvolvimen-
to contínuo. Foi de onde nasceu a exploração anatômica dos órgãos
reprodutores. Mas a curiosidade de anatomistas como Aranzio so-
t
F bre a alma anuncia um novo tipo de interesse, ao mesmo tempo
i
5 religioso e científico. A alma aristotelicamente entendida como
E

i
forma do ser vivo tendia a se sobrepor a alma como entidade divina
i

e imortal hospedada provisoriamente pelo corpo: agora tornava-


-se premente saber como e quando essa entidade baixava pela pri-
meira vez para habitar os membros de cada indivíduo.
A opinião tradicional havia associado a infusão da alma à pre-
sença de um organismo humano completamente formado. E isso
impunha o cálculo de um intervalo de tempo a partir da concep-
ção: a ciência médica e a experiência comum estavam de acordo em
reconhecer que o novo ser se desenvolvia e se aperfeiçoava adqui-
rindo uma forma humana completa. Mas continuava-se a discutir
qual seria o momento em que aquela forma assumia vida autôno-
ma. A experiência das gestantes, à qual _ como vimos _ a mística
Hildegarda de Bingen soube dar voz, identificava-o com o momen-
to em que a criança se movia e fazia sentir sua presença dentro do
corpo da mãe. Era aquele primeiro movimento que dava o sinal de
que o organismo concebido estava dotado de vida. A experiência
vivida pelas mulheres atendia às necessidades de uma imaginação
à qual ainda não era permitido enxergar além da opacidade do cor-
po feminino.” Mas os homens da Igreja, vulgarizando as doutrinas
médicas e teológicas mais respeitáveis, também tinham aceitado e
divulgado a tese desse intervalo entre concepção e animação.
Podemos tomar como prova as prédicas do arcebispo pisano
Federico Visconti no século xiv, durante suas visitas patorais.
Segundo Visconti, a alma é infundida por Deus apenas quando o

289
corpo está formado, o que ocorre quarenta dias após a concepção
para os meninos e oitenta dias para as meninas. Para o arcebispo
era fundamental que os membros estivessem completos, e ele con-
siderava que o período de impureza feminina, geralmente associa-
do ao parto, deveria compreender todo o prazo entre a concepção
e o parto, pois a Deus desagradam as coisas informes (“quia infor-
mia displicentDeo”).73 Esse é apenas um pequeno exemplo de como
um douto eclesiástico via a relação entre corpo e alma no período
dominado pela grande sistematização teológica da Escolástica.
Essa sistematização havia deixado muitos vestígios na cultura
do início da modernidade. Persistia a noção da superioridade e im-
portância determinante da semente masculina, à qual _ segundo
o texto de Egidio Romano sobre a formação do corpo humano no
útero, que continuava a ser muito difundido _ atribuía-se a virtus
generativa, com a formação do coração do embrião, mas também
um spiritus informativas, derivado diretamente da alma paterna e
capaz de transmitir à matéria feminina a disposição para receber a
alma.” Na tradição dos anatomistas, o tratado do bolonhês
Mondino de” Liuzzi estabelecera conceitos análogos, todos deriva-
dos do esquema de passividade da mulher e da ação vivificadora e
criadora do esperma masculino. Mas persistia acima de tudo a
ideia de que, para se tornar um ser humano, não bastava ser conce-
bido, sendo necessário também um longo percurso. “Dar a alma”
por meio do batismo, como já vimos, era o último ato, que sobre-
vinha apenas quando o ser nascesse e se mostrasse inteiramente
humano. O grande médico português Amato Rodrigues, cogno-
minado Amato Lusitano, que ensinou e exerceu sua profissão em
Ferrara e depois em Ragusa, recorreu a Hipócrates para distinguir
os tempos de desenvolvimento do sêmen, desde o embrião até a
criança, estabelecendo o prazo de 45 dias a partir da concepção
para a formação completa dos membros dos meninos, e de noven-
ta dias para o início dos movimentos. Amato Lusitano considerava

290
este processo distinto do da infusão da alma, e lembrava que os teó-
logos em geral estabeleciam a animação em 45 dias, enquanto
Guilherme de Ockam dava um prazo de noventa dias para a infu-
são de uma alma racional, diferente da alma sensitiva e da alma
vegetativa. Mas dava a entender claramente que não julgava tal
questão de sua competência.”
Ainda transcorreria muito tempo antes que o microscópio
permitisse ver o óvulo feminino e fosse demonstrada a contribui-
ção da mulher na formação do indivíduofó E decorreriam séculos
antes que a capa de uma revista concorresse vitoriosamente contra
os desenhos anatômicos de Leonardo, pondo sob os olhos dos lei-
tores a fotografia de um feto flutuante dentro do espaço interno de
um corpo feminino, “como um astronauta em sua cápsula”." Mas
não foi no rastro das percepções sensoriais ou das conquistas cien-
tíficas que se consolidou uma nova e decisiva ideia de animação no
mundo católico. A mudança se deu graças a uma imaginação teo-
lógica capaz de reelaborar crenças populares e conhecimentos
científicos, no intuito de resolver os problemas abertos pelas con-
trovérsias internas do cristianismo sobre o tema do batismo e da
salvação.”
É nesse quadro que se insere a proposta de Thomas Fyens
( 1567- 163 1), professor de medicina e de filosofia na fortaleza cató-
lica de Louvain, apresentada no início do século xvii, em um texto
que viria a modificar as formulações tradicionais e determinar as
novas orientações teológicas no campo católico. O interesse de
Fyens pelas questões da gestação e do parto já despontara em um
tratado de 1608 sobre a força da imaginação. O texto aborda o pro-
blema das modificações que a “phantasia” das gestantes podia tra-
zer aos corpos dos filhos. Um dos temores das mulheres grávidas
era o risco que um susto imprevisto ou uma visão assustadora po-
deria acarretar à saúde mental e ao aspecto físico da criança: as ân-
sias e as alterações de humor, normalmente presentes na gravidez,

291
alimentavam-se de histórias de monstros gerados após encontros
desagradáveis, práticas sexuais excessivas ou irregulares, visões de
seres monstruosos.” Era um tema tradicional da cultura popular,
que encontrou lugar na sabedoria dos doutos: agora eram eles que
traziam sua contribuição para aumentar ainda mais as responsabi-
lidades das mulheres fábricas de filhos. Entender a natureza e o fun-
cionamento do mecanismo de transferência do olhar para o sangue
e dele para o corpo da criança foi um dos temas recorrentes nas re-
flexões sobre a força da imaginação e, de forma mais geral, do olhar.
Fyens mantinha a esse respeito o cuidado de um teólogo de convic-
ções simples e claras. Para ele, o que se ocultava por trás da imagina-
ção era simplesmente a força da alma. Era a alma dos santos que
curava os doentes, e não suas relíquias ou a imaginação dos fiéis, ao
contrário do que sustentava o “ímpio” Pomponazzi.” A alma era tão
independente do corpo que podia agir sobre ele. Prova disso era a
relação entre a alma da mãe e o corpo do filho. Havia a opinião geral
de que a imaginação da gestante podia modificar o corpo em forma-
ção da criança; a cultura popular atribuía às emoções e desejos das
mães determinados sinais físicos encontrados no corpo dos recém-
-nascidos. Por isso pensava-se que, durante a gravidez, era preciso
evitar a visão de objetos ou pessoas que, devido à sua feiura ou es-
tranheza, poderiam impressionar a imaginação e imprimir uma
marca duradoura na criança. Foram muitos os que tentaram deri-
var alguma lei natural das tradições folclóricas sobre aos “dese-
jos” maternos. No decorrer do século, por exemplo, Nicolas de
Malebranche afirmou que, de modo geral, era a força dos “desejos
da alma” que, graças a certos “espíritos animais”, podia modificar os
membros ainda não formados.*“ Mas a atenção de Fyens estava con-
centrada nas gestantes e nas gestações. Por isso levou a sério aquelas
opiniões dos ignorantes e das mulherzinhas: vox populi vox Dei.
Bastava ver um negro para ter um filho com a pele da mesma cor. E,
baseando-se em inúmeros exemplos reunidos pela experiência e pe-

292
las leituras, Fyens sustentou que a força da alma podia imprimir si-
nais sobre os corpos, mas apenas em determinadas condições: não
podia fazê-lo no próprio corpo nem em corpos externos ao seu. Era
eficaz apenas em relação a um corpo que estivesse no interior de seu
próprio corpo _ isto é, valia apenas para a relação entre gestante e
filho. Ele extraiu daí razões para ressaltar a grande responsabilidade
das gestantes pelas consequências que um olhar ou uma imagem
mental poderiam ter sobre a vida dos nascituros. Mais tarde, do ob-
servatório acadêmico de Louvain, o professor participou da discus-
são sobre o cometa que apareceu entre 1618 e 1619; tomando como
base a autoridade de Aristóteles e da Bíblia, ele reafirmou as convic-
ções tradicionais sobre a natureza dos céus e o universo ptolomaico,
sem se deixar impressionar pelas descobertas que vinham sendo
realizadas pelo telescópio de Galileuf” O nome de Galileu não apa-
rece por acaso. Em um curto texto escrito para a ocasião, acrescido
ao tratado sobre o cometa, Fyens tomou posição contra a teoria co-
perniciana. Em nome das razões da experiência sensível somadas à
autoridade de Ptolomeu e da Bíblia (em especial a célebre passagem
de Iosué 10, 12- 14), o médico de Louvain defendeu os fundamentos
da ortodoxia astronômica.”
Tal era o homem que, em 1620, publicou um tratado sobre a
questão da animação do feto. O livro anunciava, desde o título, uma
tese nova e radical: a infusão da alma racional no nascituro até o ter-
ceiro dia, não mais, a contar da concepção.” Era uma tese que con-
trariava a opinião comum dos médicos e filósofos, advertia Fyens; e
por isso pediu proteção ao arquiatro Francisco Paz na carta em de-
dicatória, declarando que a ciência só poderia avançar se antepuses-
se o respeito pela autoridade à busca racional da verdade.85
Tratava-se de responder à pergunta do que seria a “virtus con-
ƒormatrix” definida por Fyens, isto é, o princípio agente que permi-
tia ao feto crescer até alcançar a formação completa dos membros
e se tornar apto para uma vida própria. As opiniões difundidas des-

293
de a Antiguidade (e por autores como Platão,Aristóteteles, Galeno,
Averrois, Mercúrio Trismegisto e outros) colocavam em jogo o
próprio Deus, as inteligências celestes, a alma do mundo, a influên-
cia das estrelas, o sêmen do pai e o útero materno; e assim por dian-
te. Com argumentos lógico-dedutivos somados a considerações
experimentais, Fyens refutou todas as diversas hipóteses preexis-
tentes. Excluiu a tese de que a causa formadora do feto residia no
útero feminino com argumentos colhidos ao antigo repertório do
mais cego orgulho viril: a mulher é como a terra, e sozinha não é
capaz de produzir nada; e como explicar, de resto, as semelhanças
dos filhos com o pai? Mas a explicação contrária, que confiava tudo
ao sêmen masculino, também tinha suas dificuldades: o orgulho
masculino não podia se estender ilimitadamente. Se a virtude for-
madora era propriedade do sêmen viril _ observava Fyens _, a
consequência seria que a alma já estaria presente em qualquer sê-
men masculino, e, portanto, todo sêmen já seria um verdadeiro ser
humano, e toda polução significaria um massacre de seres huma-
nos.86 Fyens tomava ao pé da letra a noção aristotélica de alma
como forma, transferindo-a em massa para o terreno da teologia e
da transcendência cristã. A parte seguinte da argumentação foi jus-
tamente esta. Nós sabemos _ observou ele _ que a alma é dada
por Deus. Ao homem cabe apenas oferecer a matéria-prima _ o
sêmen masculino unido ao feminino forma o embrião. Tudo isso
podia parecer deprimente para o orgulho masculino, em compara-
ção à vigorosa tradição que lhe exaltava o poder, o calor natural, e
até _ segundo alguns _ a capacidade de transmitir a alma. Fyens
rendeu suas homenagens ao privilégio viril. Reconheceu no sêmen
masculino uma maior nobreza e o mérito de portar aquele calor
vital que o distinguia de uma contribuição feminina totalmente
passiva. A tese do calor próprio ao sêmen masculino fora apresen-
tada pelo célebre médico francês quinhentista Iean Fernel, que fa-
lara de um calor divino e celeste. Mas Fyens, mesmo reconhecendo

294
esse privilégio viril e se desculpando por ter dado à contribuição da
mulher na formação e crescimento da nova criatura um papel su-
perior ao masculino, tinha um objetivo diferente do de Fernel. O
médico francês partilhara da ideia tradicional que separava tempo-
ralmente os efeitos do sêmen masculino e da alma: para ele, a vir-
tude do calor viril animava a formação inicial do embrião, ao passo
que a alma infundida por Deus intervinha apenas em um segundo
momento, a partir do trigésimo dia após a concepção.” Fyens de-
fendia uma posição muito diferente, segundo a qual o agente único
e exclusivo da conformação do feto era a alma; uma vez ocorrida a
concepção, a virtude conformadora que entra em ação só pode de-
rivar da alma. Falta definir que espécie de alma é essa, que promove
a conformação do feto: será talvez a alma vegetativa? Era o que di-
ziam muitos médicos, entre eles o respeitável médico paduano
Fortunio Liceti, em um tratado publicado pouco tempo antes;88
afirmava-o São Tomás, e com ele os teólogos mais importantes.
Mas, segundo Fyens, as coisas não eram bem assim. Essa primeira
alma com a virtude de dar forma humana ao feto não é a vegetativa,
tampouco a sensitiva, que, segundo São Tomás, precederiam a alma
racional. Nisto o Doctor Angelicus errou. Remetendo-se ao princí-
pio de que não se deve multiplicar os entes sem necessidade, Fyens
incluiu todas as funções das diversas almas na única alma imortal
cristã. Sua concepção tinha como pressuposto uma diferença radi-
cal entre vegetais, animais e homem, decorrente da incomensurá-
vel superioridade da espécie humana sobre todas as demais. O ho-
mem de Fyens não tem nada em comum com formas de vida
inferiores. A ruptura com o paradigma antigo é aqui exposta de
modo amplo e consciente: a alma racional que diferencia o ho-
mem dos animais e das plantas, e que está destinada à vida eterna,
99 Çx U ica que possui a virtus adequada para conformar o feto, e
(Ux

não deve ser precedida pela vegetativa, adequada apenas às plan-


tas, nem pela sensitiva, que pertence aos animais.” Chega-se as-

295
sim à conclusão que estabelece o ponto fundamental: a alma ra-
cional é infundida por Deus até o terceiro dia após a concepção,
quando surgem as membranas e tem-se, portanto, a prova de ati-
vidade da virtude conformadora. Tão logo o sêmen, graças ao
calor uterino, se mescla e fermenta, dão-se as condições para que
se introduza a alma.
Era uma conclusão revolucionária quanto à ideia da natureza
humana elaborada pela tradição aristotélica e acolhida pelo cristia-
nismo medieval: a alma não precisa da forma humana, pelo con-
trário, precede-a e cria-a. Portanto, aquela primeira formação _ o
embrião, o feto _ é um ser humano. Se o termo homo é usado para
o ser humano já completo e perfeito, é apenas por mera convenção:
o feto já é “ essentialiter homo”.9° Mas será possível que a alma, prin-
cípio de organização formal dos membros, habite no informe em-
brião humano, tão logo é constituído? Teremos assim um homem
sem braços nem pernas, sem estômago, sem fígado, sem coração,
sem movimento nem sensibilidade.” Não há aí nenhuma dificul-
dade, respondeu o autor; é verdade que o termo “homem” designa
o ser adulto que alcançou sua configuração perfeita. O sêmen de
recente animação, por sua vez, chama-se embrião, feto, e assim por
diante. Mas aqui estamos diante de diversos nomes para aquilo
que, em sua essência, é a mesma coisa, como quando usamos os
termos vapor, neve, água, gelo.” Dito isso e afirmada a humanidade
plena do sêmen concebido, a presença da alma se torna a única con-
dição de existência do ser humano, totalmente autônoma em rela-
ção à existência do corpo. Assim, a alma deixa de ser a “forma” aris-
totélica do ser vivo e torna-se ela mesma o indivíduo humano: um
indivíduo sem forma, pronto para comandar a construção do cor-
po, mas também, chegado o momento, capaz de tomar o caminho
da vida eterna _ a do Paraíso, se batizado.
Dissemos que a conclusão de Fyens é revolucionária. Seria
mais apropriado dizer que ela marca uma viravolta que estava no

296
¿.ç.
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ar. Não era uma nova descoberta, mesmo porque o sólido vínculo
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de Fyens com a tradição antiga e a autoridade tornava-o inteira-
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f-.¬1‹w .‹Q~ _- _‹
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mente impermeável às novidades científicas que outros estudio-
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sos, naqueles mesmos anos, estavam extraindo da pesquisa experi-
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E mental ou da abstração matemática. Dentro da cidadela mais


i
n
avançada da ortodoxia católica, nas fronteiras do mundo protes-
tante e daquela Holanda onde as pesquisas científicas e as discus-
sões teológicas andavam juntas e o gênio solitário de Spinoza ela-
borava doutrinas profundamente inovadoras, ele empreendeu
decididamente o último passo de um percurso iniciado muito tem-
po antes: o de uma ideia da alma humana totalmente independen-
te do corpo não só após a morte, mas desde o momento do nasci-
mento. Isso demandava uma capacidade de abstração que, de certa
maneira, aproxima o médico louvainense a Descartes: ou talvez
seja mais correto dizer que tanto Fyens quanto Descartes partiram
de uma cultura cristã que, em suas elaborações, havia abandonado
de longa data aquele sentido da irremovível corporeidade do ser
humano que deu azo a se falar em um materialismo medieval. O
que teria favorecido esse processo é uma questão que abrange todo
o percurso do realismo ocidental. Um fato é indiscutível: no mo-
mento em que aquilo que fora definido como “o triunfo da anima-
lidade da criatura”” levou ao desenvolvimento de um sentido da
vida humana não mais caracterizado pela aflição e pela espera de
uma outra vida mais autêntica, a pesquisa sobre a relação entre
funções mentais e realidade material do corpo enveredou por um
outro rumo. Na sistematização teórica da questão da alma, então
elaborada pelo jesuíta Francisco Suarez e dotada de autoridade
eclesiástica, devotou-se uma atenção especial ao papel causal dos
anjos, entidades puramente espirituais, sobre as ações materiais de
corpos reduzidos a simples máquinas.” O florescimento da ciência
dos anjos e espíritos foi decorrência de um afastamento entre ma-
téria e espírito que chegou à total separação entre eles.

297
Diga-se, porém, que a proposta de Fyens podia ser lida de uma
outra maneira, como um passo decisivo e emancipador no cami-
nho da aceitação da continuidade da vida, sem colocar graus ou
barreiras entre o embrião e a vida que o animava. Concentrando
sua atenção no grumo inicial de matéria viva constitutiva do ser
humano, ele eliminou as antigas distinções e divisões cronológicas
entre formado e não formado, entre homem e mulher, abandonan-
do a busca do momento em que um Deus previsível e obediente
desempenharia sua função de provedor da alma. Havia em sua tese
uma admirável capacidade de se ater aos dados da experiência, uni-
da a uma robusta lógica argumentativa. E isso lhe granjeou a con-
cordância dos teólogos mais ortodoxos, e também a dos pensado-
res atraídos pelo materialismo antigo e pelas perspectivas abertas
para as ciências naturais com as descobertas de Galileu. Sua tese
fundamental de uma quase coincidência entre a animação e a con-
cepção podia ser interpretada como a afirmação de uma priorida-
de até cronológica da alma em relação à organização do corpo ou
como a identificação pura e simples entre a alma individual e o or-
ganismo vivo. Foi este segundo aspecto que atraiu o interesse de
Pierre Gassendi. Em uma longa carta de 6 de junho de 1629, o filó-
sofo francês cumprimentou Fyens em tom de genuíno entusiasmo
por ter enfrentado corajosamente, sem se curvar diante de nenhu-
ma autoridade filosófica, a questão que lhe parecia a mais impor-
tante e elevada: a busca da origem humana. Gassendi declarava seu
pleno acordo quanto ao absurdo das teses tradicionais, que preten-
diam estabelecer a animação em uma data fixa e mecanicamente
predeterminada do desenvolvimento do embrião: como era possí-
vel imaginar que o trigésimo dia acionasse para todos aquela per-
feição do organismo capaz de hospedar a alma, se era evidente que
certos indivíduos nem sequer a possuíam em momento algum da
vida? A tal tipo de desenvolvimento gradual, Gassendi contrapu-
nha sua imagem da vida como processo ininterrupto, como contí-

298
nua elaboração e maturação. A seus olhos, era insensato esperar
que o corpo estivesse completo para que se pudesse infundir a alma
racional: como frisou ele, o processo de evolução do organismo se
completava com o passar de anos, não de meses. Na origem, segun-
do Gassendi, havia a massa seminal constituída pelo sêmen mascu-
lino unido e amalgamado ao útero materno. Essa era a realidade do
organismo vivo dotado de alma. Os três dias fixados por Fyens pa-
reciam-lhe uma medida de prudência, mas não tinha nenhuma
objeção contra uma outra hipótese que antecipasse a animação
para o primeiro instante da concepção (“ adprim um usque momen-
tum”). No tom confidencial e próprio do estilo epistolar, Gassendi
chegou a expor suas ideias, cautelosamente indicadas como so-
nhos, como imagens nebulosas: deixando de lado a questão da
alma imortal infundida por Deus, à qual tributou uma descuidada
anuência de fachada, ele comparou a animação humana com a das
outras espécies naturais. Eis um exemplo de sua maneira de argu-
mentar: assim como a árvore dá ao fruto não apenas a nutrição ne-
cessária para que sobreviva, mas também uma parte da própria
alma vegetal para que ele se torne perfeito, da mesma maneira era
preciso pensar que era a alma da mãe, transmitida ao embrião atra-
vés da placenta e dos vasos sanguíneos uterinos, que animava o fi-
lho, fazendo-o crescer até dar-lhe o impulso para reivindicar uma
alma própria (“animulum suam sibi paulatim vindicare”) e a se se-
parar do ventre materno. Aquela “animula” do feto derivaria das
dos pais, e ele comparava a condição do feto à do filho de família
que, antes da emancipação, é apenas uma parte da família paterna.
Além disso, observava, na natureza os animais irracionais também
mostram claramente a semelhança que liga o filho aos pais. So-
nhos, repetia Gassendi, porque a fé cristã _ alertava _ ensina que
a alma racional é individual e imaterial, produzida do nada por
obra de Deus. Portanto cumpria ater-se a isso, mas ele se delongava
em uma tentativa extrema de conciliar o ditado da fé com aquele

299
tipo de representação da alma proposto pela física antiga, distin-
guindo entre a alma sensitiva ou vegetativa, difundida em todos os
membros, e a alma racional, mente, intelecto ou razão, que é como
a flor ou a alma da alma (“quaseflorem, seu animae quase animam”)
e que para alguns reside no coração e para outros no cérebro. A
adaptação da representação antiga à doutrina da fé exigia, natural-
mente, que se considerasse a alma não como a forma extrema e mais
refinada da matéria, a alma da alma, justamente, e sim como uma
realidade externa criada por Deus e infundida no corpo.95 É com-
preensível que a liberdade intelectual de Fyens diante da tradição
despertasse a admiração de Gassendi, e que na teoria da simultanei-
dade entre a infusão da alma e a formação do embrião humano o
filósofo francês vislumbrasse uma possível teoria das origens mate-
riais da alma humana, isto é, algo que o tocava de perto. Mas no âm-
bito teórico tributou-lhe um reconhecimento bastante cauteloso.9°
Os tempos impunham prudência e autocensura, e Gassendi
bem o sabia: sua carta de solidariedade a Galileu após a condenação
da Inquisição é um modelo de comunicação nas entrelinhas. E no
entanto as opiniões de Fyens, à diferença das de Gassendi, seguiam
a lógica dominante também por considerar as mulheres como ter-
reno sem valor, predeterminado para a vida das sementes deposi-
tadas pelos homens e animadas por Deus. Os fundamentos teoló-
gicos da repressão do infanticídio ganhavam reforço com sua
teoria. O aborto, à luz de suas deduções, se qualifica como um as-
sassinato, qualquer que seja a idade do feto. Foi sobre esse ponto
que Fyens se deteve no final da obra, enfrentando a exegese da ár-
dua passagem bíblica de Êxodo 21. Embora citasse as duas versões
do texto, ele se recusou a aceitar a da Septuaginta, que, com sua dis-
tinção entre fetos formados e não formados, demoliria sua tese. O
Livro Sagrado era útil na medida em que podia falar “por intermé-
dio dele” coisas que, de outra maneira, não ousaria dizer “por con-
ta própria”. Iustificou-se recorrendo ao dever de obediência à auto-

300
ridade eclesiástica: pois, visto que para os católicos o que valia era
a Vulgata, ele também se atinha àquela versão do trecho. Na Bíblia
havia também outras passagens que comprometiam a ideia de hu-
manidade concentrada apenas no princípio espiritual da alma. No
fundo, a criação do primeiro homem narrada pela Bíblia colocava
em primeiro lugar a formação do corpo de Adão: só depois de dar
forma ao corpo é que Deus lhe insuflara a alma. Fyens se limitou a
dizer que o caso excepcional do primeiro homem não seria uma
regra para a geração normal. A partir dessas observações tornava-
-se evidente uma inversão das posições tradicionais relativas à
questão do aborto, com sua distinção entre fetos formados e não
formados: se a alma preexistia e comandava a formação do corpo,
então qualquer aborto constituía um homicídio. Eram evidentes as
consequências penais, ainda que não explicitadas por Fyens: quem
provocava um aborto era um assassino e, como tal, merecia a pena
capital.” A questão da animação do feto possuía, portanto, um as-
pecto penal nada negligenciável.
A obra de Fyens acendeu uma polêmica imediata. Médicos e
teólogos católicos tradicionalistas sustentavam a doutrina tradi-
cional, segundo a qual a formação do corpo do feto e a organização
dos membros eram consideradas anteriores à animação. Foi um
filósofo espanhol, António Ponce de Santa Cruz, que em 1622, em
obra dedicada ao conde-duque de Olivares, abordou a questão da
aplicação da pena capital nos casos de aborto. O objetivo do autor
era traduzir em termos teológicos as opiniões e afirmações dos mé-
dicos.” Tinha como ponto de referência o texto de Fyens. Santa
Cruz se remetia à passagem de Êxodo 21 para sustentar que a Bíblia
diferenciava vários níveis de gravidade para o crime deaborto pro-
vocado, exatamente porque só se podia falar de homicídio quando
o aborto atingia a alma imortal: e ela não se instalava imediatamen-
te no organismo, mas apenas quando o feto já estivesse plenamen-
te formado. Para ele, era fundamental a distinção entre fetos for-

301
mados e não formados, em nome do princípio de que a organização
dos membros deve ser anterior à infusão da alma racional. Aquilo
que poderíamos definir como o cristianismo aristotélico, com sua
sólida consciência da unidade do ser vivo, havia se esforçado lon-
gamente em imaginar como o corpo e a alma se reuniriam após a
separação da morte. Agora ele devia enfrentar uma tese que sus-
pendia totalmente o corpo, desde o início da vida e não mais apenas
no final. Era inevitável que surgissem reações polêmicas nos am-
bientes mais conservadores. Foi uma polêmica dinâmica, mas se
manteve basicamente no interior do mundo católico.” O proble-
ma da geração estava no centro dos interesses científicos da época
em toda a Europa cristã. Quem se aventurava nos percursos iniciais
da vida humana fazia-o amiúde com sentimentos de viva emoção,
que beiravam o êxtase místico: era como acompanhar a obra divina
da criação em seu local mais precioso. Se não se levar esse fato em
consideração, torna-se incompreensível por que William Harvey, o
médico que se celebrizou pela descoberta da circulação sanguínea,
chegou a explicar a geração humana não por causas naturais, mas
confiando tudo ao mesmo poder divino que fazia moverem-se os
astros.1°° No campo católico, porém, a importância da questão
consistia no papel dominante que a Igreja reservava a si para a de-
finição das verdades teológicas, defendendo-o encarniçadamente
e, portanto, colocando sob suspeita qualquer aventura das ciências
naturais nos territórios da Bíblia. Como salientou o filósofo espa-
nhol António Ponce de Santa Cruz, a questão era relevante não só
para o conhecimento filosófico da geração humana, mas também
i para os teólogos e para os médicos: o que estava em jogo era a pos-
sibilidade e licitude de recorrer ao aborto como medida terapêu-
tica para a salvação da mãe. Em uma Espanha percorrida por
grandes ondas de devoção coletiva à Imaculada Conceição, era in-
concebível a defesa do aborto: o filósofo espanhol reafirmou a obri-
gação cristã de proteger toda vida humana enquanto criatura de

302
Deus e refutou categoricamente tanto a opinião aristotélica de que
o aborto era lícito no caso de famílias muito numerosas, quanto a
platônica, para a qual se devia eliminar os recém-nascidos defeituo-
sos. Mesmo o manco, mesmo o cego _ escrevia António de Santa
Cruz _ são feitos à imagem de Deus, e a lei natural proíbe somar
sofrimento ao sofrimento. 1°* Mas persistia uma diferença entre sua
defesa das noções tradicionais sobre o tema da animação e as sus-
tentadas por Fyens: para este, todo aborto era qualificável como
homicídio, pois destruía a vida de um ser dotado de alma. Santa
Cruz, por seu lado, deixava uma margem de licitude, mesmo que
ínfima, para a interrupção da gravidez.
O paradigma da animação estava em rápida transformação
durante aqueles anos, também em decorrência dos argumentos
apresentados por Fyens. O tratamento que Paolo Zacchia deu ao
problema é uma eloquente demonstração disso. Pelas funções
exercidas (arquiatro pontifício sob o papa Inocêncio x e protomé-
dico do Estado da Igreja) e pela grande importância de suas
Questiones medico-legales _ uma obra que consagrou definitiva-
mente a medicina legal como ciência _, as opiniões de Zacchia
sobre a questão da gravidez e do aborto foram um ponto de refe-
rência obrigatório para além do mundo católico, e oferecem um
bom exemplo das complexidades e incertezas que reinavam em um
campo aberto às incursões do direito, da teologia e da medicina.
Estabelecer se o feto expulso devido ao aborto ou extraído das en-
tranhas da mãe à morte era um ser humano de direito revestia-se
de importância fundamental para estabelecer, por exemplo, a
quem caberia a herança do dote materno. E nesse âmbito o parecer
do médico tinha um peso jurídico determinante. Ora, .Zacchia ra-
ciocinou longamente sobre sua experiência na questão da gravidez
e do parto. Comparou, por exemplo, os partos humanos aos das
outras espécies animais, revelando uma notável familiaridade com
o poema de Lucrécio. No longo período das edições (o primeiro

303
livro saiu em 1621, o último quarenta anos mais tarde), o autor mo-
dificou profundamente suas ideias sobre o tema da animação do
feto: tendo partido de uma concepção tradicional por ocasião da
primeira edição, ancorou-se ao final em uma tese que ultrapassava
até mesmo as afirmações de Thomas Fyens: para Zacchia, era tam-
bém a alma que constituía o princípio formador e organizador do
corpo. Portanto, traduzindo uma filosofia vitalista nos termos da
teologia cristã, isso significava que a alma estava presente no feto
humano desde o primeiro momento da fecundação. Quanto ao
problema do batismo, o conselho de Zacchia era que sempre se ba-
tizasse o feto quando houvesse sinais de vida, mesmo antes dos
quarenta dias a contar da concepção, estabelecidos pela doutrina
tradicional.1°2
Que um arquiatro papal, amigo de Gabriel Nudé e leitor de
Lucrécio, aderisse à ideia da presença imediata da alma imortal no
momento da concepção é algo que, para além de seus resultados prá-
ticos e teóricos, mostra como se dava a estreita aliança entre teologia
e medicina no mundo católico seiscentista. As descobertas médicas
sobre a vida pré-natal abriam à conquista missionária de novas al-
mas um território novo, uma Índia até então inexplorada. Quem
seguisse aquele rumo tinha a seu lado o reconforto da alta cultura.
Com efeito, tais reflexões se desenvolviam em um clima cien-
tífico e teológico onde a pesquisa sobre as origens da vida ocupava
o centro de um interesse cada vez maior. As chamadas “ciências da
vida”'°3 concentram-se no momento do nascimento e no percurso
secreto do ser humano no ventre da mãe. As pesquisas e discussões
abordaram a relação entre o sêmen e o indivíduo, tentando respon-
der à pergunta fundamental que desde muito tempo dividia as opi-
niões: isto é, se o ser humano preexistia já formado no sêmen (pré-
-formismo) ou se sua origem era um resultado imprevisível da
concepção humana (epigênese). Enquanto Fyens e seus interlocu-
tores católicos discutiam o momento de infusão da alma, outros

304
entregavam-se a pesquisas experimentais para reconstruir os mo-
dos de formação do ser humano. Alguns concentraram as lentes
das descobertas galilaicas, tão pouco apreciadas por Fyens, justa-
mente sobre aquele sêmen masculino do qual se falava por tanto
tempo e sobre cuja natureza se faziam tantas ilações. As trocas de
correspondência entre os cientistas e as comunicações às Acade-
mias puseram em circulação um grande volume de novas informa-
ções, desde que teve início o uso do microscópio. A utilização desse
instrumento desvendou a existência de um “novo mundo” (segun-
do a expressão do holandês Constantijn Huygens), abrindo novos
horizontes à pesquisa. *O4 Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723) foi
um construtor muito habilidoso de microscópios em Amsterdam,
trabalhou para Huygens e para Ian Swammerdam, entomólogo e
estudioso do aparelho reprodutor feminino. Usando seus instru-
mentos de alta precisão, Leeuwenhoek identificou em 1677 os es-
permatozoides como inúmeras criaturas minúsculas (“ lütgen
dierkens”), seres vivos representados em um desenho seu como
homúnculos.l°5 Assim teve-se a demonstração da existência no es-
perma masculino daquelas sementes de vida humana das quais se
falava fazia tanto tempo. A vida, portanto, já estava pré-formada e
pronta para se desenvolver no terreno do corpo feminino. Outros,
por sua vez, investigavam precisamente aquele terreno tido como
frio e neutro nas representações tradicionais, simples abrigo do sê-
men masculino. Nas discussões em torno das aulas do teatro ana-
tômico de Delft, deu-se a descoberta do óvulo feminino, realizada
por Reinier de Graaf ( 1641-73), e desenvolveu-se a pesquisa de Ian
Swammerdam sobre o aparelho reprodutor feminino. Ambos pu-
blicaram os resultados de seus estudos em 1672: a obra de Graaf,
intitulada De muliebrum organis, reproduziu em suas gravuras
uma nítida imagem do órgão sexual feminino.1°6 E outras imagens
foram mostradas no livro de Swammerdam, ao lado do relatório de
suas pesquisas. O espírito com que eram trilhados tais caminhos se

305
faz perceptível na emoção de Iohann Swammerdam ao descrever o
“milagre da natureza”, isto é, o aparelho reprodutor feminino.”
Desmoronava-se a antiga representação que relegava a contribui-
ção feminina para a reprodução da espécie a uma dimensão de in-
ferioridade e de total passividade: anunciava-se uma revolução se-
melhante à copernicana, mas mais difícil de aceitar. Podia-se tirar
a Terra do centro do universo, mas destronar o homem de seu lugar
central na história natural da espécie era mais difícil.
Compreender as origens da vida humana foi o desafio aceito
por uma cultura saturada de representações religiosas. Todas essas
pesquisas sofriam o peso de vários gravames ideológicos confli-
tuosos. Se no mundo católico era premente a questão de antecipar
a data do batismo para aproximá-la ao instante da infusão da alma,
na cultura cristã europeia em geral persistia a noção do pecado ori-
ginal. E a ideia agostiniana de sua transmissão por meio do sêmen
paterno era um estímulo para investigar as vias fisiológicas da re-
produção humana. Às vezes os próprios cientistas indicavam expli-
citamente o horizonte teológico das diversas tendências científicas:
assim, se toda espécie humana estava presente nos ovários de Eva
ou nos espermatozóides de Adão, isso significava que a culpa origi-
nal tinha como protagonista toda a humanidade e a predestinação
encontrava uma raiz e uma explicação biológica; além do mais,
podia-se projetar para fora do tempo humano não só a sobrevivên-
cia das almas, mas também sua preexistência, cristianizando a de-
finição platônica. Mas, para além das doutrinas teológicas que
constituíam seus pressupostos mais ou menos explícitos, a pesqui-
sa tinha um fascínio autônomo próprio para uma cultura impreg-
nada de Bíblia, pois tratava-se de explorar os mistérios da criação e
repercorrer com outros olhos as primeiras páginas do Gênesis. No
início do indivíduo refletia-se o início da espécie.”
Naturalmente, no pano de fundo das pesquisas sobre a vida
humana, permanecia a questão da presença da alma e de seu desti-

306
no eterno. Mas o caminho das explorações anatômicas com a utili-
zação do microscópio foi diferente do rumo tomado pela discussão
teológica sobre o momento da infusão da alma no embrião. As pes-
quisas de Swammerdam, Leeuwenhoek e Graaf, mesmo chegando
a conclusões diferentes sobre a contribuição feminina para a for-
mação das novas vidas, levaram as investigações para o campo da
observação científica. Nesse âmbito, o interesse pela gravidez como
condição feminina se entrelaçou com a retomada pictórica do tema
da gestante em termos realistas e cotidianos, tema este que a pin-
tura anterior havia concentrado na imagem de Maria grávida
(agora abandonada pela pintura devota católica, por considerá-
-la irreverente).1°9 Era um começo promissor para discutir o pre-
conceito de um papel central do sêmen viril _ um preconceito
que viria a se revelar mais persistente do que a concepção ptolo-
maica do mundo. O antropocentrismo astronômico, aliás, era
parente próximo da centralidade masculina na transmissão da
vida (com a diferença de que, neste segundo caso, o preconceito
se chocava abertamente com a experiência).
Mas o verdadeiro protagonista de toda essa história foi justa-
mente a “criatura” abrigada no ventre materno no momento da
concepção. Quem era, de onde vinha, como deveria ser considera-
da: tais foram as perguntas mais insistentes. E a questão não dizia
respeito apenas à cultura dos cientistas e dos teólogos.
Alguns indícios mostram que certas inquietações se difun-
diam também entre a cultura das classes populares: é difícil saber
se eram novas ou, pelo contrário, se novo era o sistema de vigilância
e direção pastoral que as detectava e registrava. Mas é inegável que
a cultura popular, desde sempre propensa a especular sobre a trans-
missão da vida, parecia agora especialmente curiosa quanto à vida
intrauterina do ser humano. Talvez também por causa de uma
doutrinação centrada no pecado e na culpa difundia-se um modo
de imaginar a existência embrionária e fetal como uma fase da vida

307
em que o novo indivíduo já era responsável por escolhas morais e
também podia se macular com suas próprias culpas. Uma em espe-
cial: 0 sofrimento da mãe.
Em 1612, a congregação romana do Santo Ofício recebeu uma
carta alarmada do inquisidor de Asti sobre uma opinião, qualifica-
da como supersticiosa, acerca do destino ultraterreno das crianças.
A questão, tal como foi exposta pelo inquisidor, surgira no vicaria-
to de Cherasco: difundira-se a convicção de que as crianças mortas
logo após o nascimento, mesmo que batizadas, deveriam passar
por um período de sofrimento e purificação no fogo do purgatório,
para expiar a culpa de ter causado nove meses de sofrimento à mãe.
Para fazer frente ao boato, 0 bispo de Asti, de comum acordo com
o inquisidor, decidiu organizar uma campanha de propaganda dis-
creta, mas eficaz, para extirpar tais crenças:

Tomou-se a providência de explicar aos párocos daquele vicariato


privadamente, sem publicar édito, que em seus arrazoados diante do
Altar de vez em quando discorram sobre a grandeza e eficácia do
santíssimo batismo, e digam ser de tamanha eficácia que livra e
apaga todo e qualquer tipo de pecado, original, mortal e venial, de
tal modo que todos os que morrem logo depois de batizados, sem
sofrer pena alguma, nem de Purgatório, nem outra, vão para o
paraíso; e que estão em imenso erro as mulheres e outros que acre-
ditam que os filhos morrendo logo após o batismo, antes de entrar
no paraíso, sentem as penas do Purgatório pelas dores que deram à
mãe, ao carregá-los por nove meses no ventre.”

Tais documentos permitem apenas vislumbrar um longo pro-


cesso de elaboração de comportamentos e crenças, em que as re-
presentações folclóricas se mesclavam a uma pedagogia eclesiásti-
ca de diversas tendências. O franciscano Giovanni Maria Piola,
pregando em Vercelli em 1659, afirmou sua convicção de “que as

308
almas das crianças batizadas, morrendo, não podiam ir para o pa-
raíso sem passar pelas penas do Purgatório”.“1 Essa informação
fora rapidamente divulgada pela cidade, onde havia “dado ocasião
a vários discursos e muitas bisbilhotices”, tanto que o inquisidor
local decidiu abrir um fascículo onde recolheu diversos depoimen-
tos de testemunhas.” Pelo visto, não era a primeira vez que se fa-
ziam tais discursos nas igrejas das cidades padanas.“3 Mas o que
preocupava as autoridades eclesiásticas era, mais do que as opiniões
dos pregadores, a repercussão que elas tinham. Como ocorrera fre-
quentemente na história da pregação monacal, os pregadores aco-
lhiam as representações correntes sobre o destino ultraterreno das
almas das crianças e amplificavam-nas com seus discursos. Por
isso, as opiniões expressas no púlpito podiam alimentar preocupa-
ções e temores que já existiam e aguardavam apenas um mínimo de
incentivo para aflorar.
Se nem mesmo o batismo protegia das penas do Purgatório,
é fácil imaginar a enxurrada de questões que podiam brotar da fal-
ta ou falha na sua correta ministração. À clara confirmação dou-
trinal católica da necessidade do batismo das crianças seguira-se a
imposição de um ritual único, que deveria estabelecer as condi-
ções de validade e eficácia do sacramento para todos. Considerara-
-se possível escapar aos labirintos da dúvida subjetiva com a recusa
da vinculação da validade do sacramento à fé individual e a garan-
tia de sua eficácia automática sob a única condição de obedecer a
uma sequência exata de ritos. Mas foi precisamente daí que nasce-
ram os escrúpulos, dúvidas e problemas intermináveis que das
mais remotas localidades iam ricochetear em Roma. A congrega-
ção do Santo Ofício como fiadora da ortodoxia teve de responder
a perguntas como: um batismo de emergência era válido se a par-
teira banhasse apenas a bolsa amniótica do recém-nascido?“4 Ou
se errasse alguma palavra da fórmula ritual? E como agir com os
povos nômades das florestas americanas ou os povos do Extremo

309
` Oriente, em cujas línguas a fórmula sacramental assumia estra-
nhos significados? E o que responder a quem era subitamente as-
saltado pela dúvida de não ter recebido um batismo válido e tre-
mia pela própria salvação, ou, se fosse sacerdote, por todas as
pessoas às quais havia ministrado sacramentos que talvez não fos-
sem válidos? Esses e infinitos outros problemas se atropelavam
diante dos prelados romanos e de especialistas nas periferias da
Itália e do mundo. A segurança que se julgava garantida, ao se dis-
sociar o valor do sacramento da disposição interior do fiel e atrelá-
-lo às formalidades exteriores de um rígido ritual, transformava-
-se em seu contrário: insegurança, escrúpulos, multiplicação da
casuística, recurso sistemático à repetição do sacramento com
uma cláusula dubitativa (“Se não és batizado...”).
O mundo católico, fechado em torno da definição oficial da
eficácia do sacramento, via no batismo a condição necessária
para uma plena identidade humana e, portanto, para uma siste-
matização ordenada do corpo e da alma após a morte. A Igreja da
Inglaterra, em comparação, mostra uma atitude muito diferente;
lá, a polêmica contra a doutrina “papista” encorajava opiniões de
espécie bem diversa: as crianças não batizadas eram, de todo modo,
sepultadas no adro das igrejas, com a única diferença de não rece-
berem um funeral solene, e os pais eram incentivados a ter esperan-
ça na salvação eterna para os filhos.“5 No mundo católico, pelo
contrário, somando-se a ratificada condenação eterna das crianças
não batizadas às teses sobre a animação imediata do embrião, sur-
giram propostas extremas, como, por exemplo, proceder ao batis-
mo obrigatório de todos os fetos abortados. Essa sugestão foi apre-
sentada tendo como base uma simples constatação: se as entranhas
maternas hospedavam seres humanos dotados de alma imortal,
mesmo que minúsculos e informes, não se deveria fazer o possível
para abrir o caminho da felicidade eterna para aquelas almas, sub-
traindo-as ao destino de uma eterna privação de Deus? Quem teve

31o
essa ideia foi um sacerdote de Lucca, Girolamo Fiorentini (1602-
-78), que em 1658 publicou em Lyon uma proposta explícita desde
o título: Disputatio de ministrando Baptismo humanisƒoetibus abor-
tivorum.“6 Proposta modesta, pelo menos na aparência, mas cuja
ambição, porém, era o reconhecimento da originalidade e da ime-
diata utilidade pastoral: não fora discutida por nenhum teólogo,
embora fosse de grande importância para os párocos e para os mé-
dicos. O autor pertencia à Congregação dos regulares da Mãe de
Deus, fundada em Lucca por Giovanni Leonardi. O fundador tive-
ra um papel de primeiro plano nas batalhas da Contrarreforma,
antes em Lucca (onde combatera de diversas maneiras as infiltra-
ções calvinistas na sociedade local) e depois em Roma, onde proje-
tara o grande plano do governo centralizado das missões no mun-
do, isto é, o primeiro desenho da congregação de Propaganda flde.
O nome escolhido para sua congregação indicava uma atenção es-
pecial aos problemas da maternidade e da família: a Mãe de Deus
fora invocada como protagonista para representar um ideal de mu-
lher, inalcançável por definição, mas nem por isso menos impor-
tante, como veremos. Por ora sigamos o conteúdo e os resultados
da proposta de Fiorentini.
A dedicatória com a qual se abria o livro do clérigo de Lucca
retomava a antiga imagem da semente. Tal como a semente oculta
sob a terra espera a chuva para se transformar e crescer, da mesma
forma a semente humana encerrada na escuridão das entranhas
maternas aguardava ansiosa a única chuva capaz de doar a verda-
deira vida: o batismo. Era uma imagem fortemente sugestiva.
Quem especulava sobre os mistérios da predestinação e da graça
_ e naquele momento a questão readquirira atualidade na cultura
religiosa europeia -- recorria amiúde ao exemplo da chuva natural
para representar a aleatoriedade e a aparente injustiça da distribui-
ção da graça divina. Alguns anos mais tarde, no contexto das polê-
micas com os jansenistas, ela também foi evocada por Nicolas de

311
Malebranche: por que _ perguntou-se ele _ uma criança, justa-
mente aquela e não outra, não recebe o batismo?1 17 Mas Girolamo
Fiorentini não era homem de se deter em especulações, e sua cul-
tura não ia além do território da devoção tradicional e da teologia
das escolas. O aspecto foi notado pelos jesuítas, que foram seus lei-
tores mais entusiásticos. Em uma longa carta, os padres jesuítas
Giovanni Barbiano e Richard Lynch, docentes em Salamanca, ex-
puseram as razões de sua concordância com a obra de Fiorentini e
lhe transmitiram as opiniões de Pierre Gassendi sobre a animação
do feto, que, segundo lhes parecia, poderiam lhe revigorar as forças
no caminho que estava seguindo.” O autor lhes ficou grato e re-
produziu conscienciosamente a carta na nova edição do livro: não
tinha nada a partilhar com os interesses e as opiniões do filósofo
francês, mas se interessava por quem era capaz de conciliar a física
dos átomos com a imortalidade da alma. Seu objetivo era moder-
nizar as práticas sacramentais, adaptando-as aos novos conheci-
mentos disponíveis. O espírito missionário e o ativismo católico
que o moviam encontraram alimento nas descobertas científicas.
Tal como o uso do microscópio estava desvendando aos cientistas
um novo mundo extremamente minúsculo, muito próximo mas
invisível, da mesma forma a imaginação teológica, incentivada pe-
los desenvolvimentos cognitivos da medicina, conseguia enxergar
uma população infindável, invisível a olho nu, mas realmente exis-
tente e sequiosa pela água da vida. Assim Fiorentini revivia e adap-
tava à sensibilidade da época o tema originário que levara Giovanni
Leonardi e tantos outros homens e mulheres daqueles tempos para
o caminho do trabalho missionário. Não havia apenas os povos sel-
vagens da América, aquela infância da humanidade na espera an-
siosa do batismo. Os fetos humanos também eram almas a ser sal-
vas. As grandes dimensões de continentes e povos que despertaram
pensamentos e fantasias de tantos novos apóstolos do século de
Colombo acrescentavam-se agora _ ou, melhor, substituíam-se

312
_ novas terras de missão, novas Índias: quantidades imensas de
minúsculos seres humanos, semelhantes aos demais pela alma
imortal, mas invisíveis e indefesos, confiados a mães física e moral-
mente inadequadas. Era preciso batizar os fetos abortados, qual-
quer que fosse o estágio de sua formação, mesmo antes do primei-
ro mês de gestação: tal era a essência da proposta. E a distinção
aristotélica entre formados e não formados não era válida porque
_ afirmava Fiorentini _ o Ritual romano não determinava ne-
nhum limite taxativo nesse aspecto, e as informações prestadas pe-
los médicos estabeleciam que o feto, mesmo não perfeitamente
formado, devia ser considerado animado. Portanto, devia-se sem-
pre batizar o feto, sem exceções, naturalmente recorrendo à forma
dubitativa (“Se estás animado, eu te batizo”). O nascimento encon-
trava um paralelo na morte: com os moribundos, ao se ministrar o
sacramento da Extrema-Unção, também se recorria à fórmula du-
bitativa sem levar em conta suas condições e sem se deixar deter
pela dúvida se estavam vivos ou não. O sagrado dever dos sacerdo-
tes e médicos era abrir as portas do paraíso e esvaziar o limbo de
seus candidatos naturais. Uma coisa era evidente para o fanático
salvador de almas recém-nascidas: a questão não era fácil de resol-
ver, pois entre a água salvadora do batismo e os recém-nascidos
estava o obstáculo da mãe. Por isso ele acrescentou às suas exorta-
ções uma mensagem para elas: que se lembrassem que a salvação
eterna dos filhos estava em suas mãos e que deviam estar prontas a
morrer por tal recompensa. Nos casos de partos difíceis, os médi-
cos não deveriam se incomodar por lhes acelerar a agonia, se neces-
sário, para batizar o feto.
Além das mães, era preciso ainda considerar a família: proble-
ma antigo para a Igreja, que lhe dedicara uma atenção especial no
decorrer do último século. A normativa tridentina sobre o matri-
mônio assinalara um importante êxito no longo trabalho dos ecle-
siásticos para disciplinar a matéria e garantir que a procriação dos

313
filhos se desse de maneira claramente regulamentada. A finalidade
era reconduzir a sexualidade para o matrimônio: para tanto, teólo-
gos e pregadores empregaram muitas energias intelectuais, entra-
ram com seus instrumentos no leito conjugal, ditaram tempos e
formas do ato sexual, justificando-o exclusivamente como meio
para realizar o imperativo de Deus criador, conforme o livro do
Gênesis: “Crescei e multiplicai-vos”. Com a obrigação tridentina
dos proclamas e da bênção eclesiástica, o matrimônio se tornara
uma instituição bastante controlada. Faltava concluir a obra ensi-
nando os pais a cumprir seus deveres em relação aos filhos: batizá-
-los, sem dúvida, mas não só. Para torná-los verdadeiros cristãos,
era necessária uma pedagogia complexa, que devia contar com a
cooperação da Igreja e da família. Tal era a convicção com que o
beato Giovanni Leonardi fundara a Congregação da Mãe de Deus.
Girolamo Fiorentini, que era membro da referida ordem, estava
bastante determinado a dar lições de responsabilidade aos pais. No
ano seguinte à edição de suas propostas, ele publicou uma instru-
ção aos confessores e párocos de Lucca cujo tema era a questão das
maldições dos pais contra os filhos: que os pais refletissem bem so-
bre as consequências de suas maldições, pois Deus dava ouvidos à
voz dos genitores e podia levar a efeito o que fora proferido em um
momento de raiva.” A ideia de família que se cultivava nos am-
bientes da congregação de Lucca era, em essência, a de um ente com
grande peso e sérias responsabilidades em relação aos filhos e em
relação a Deus.
A proposta de batizar os fetos apresentada pelo clérigo de
Lucca não era tão arrojada quanto o autor parecia acreditar. Era
antes a consequência lógica de uma série de passos anteriores em
um percurso onde os conhecimentos médicos sobre o desenvolvi-
mento natural do embrião humano eram prontamente dobrados
a deduções teológicas. Mas, por mais que essas ideias estivessem no
ar, por assim dizer, algo lhes impedia o sucesso imediato: fosse a

314
prudência romana, fosse _ como escreveu Girolamo Fiorentini
_ por“obra de pessoa pouco afeita ao autor”,“° um decreto da con-
gregação do Índex proibiu a Disputatio na edição lionesa.
Determinou-se uma reedição (em Lucca, em 1666) com o acrésci-
mo de uma cláusula ressaltando o caráter hipotético da tese do li-
vro. O autor não se rendeu, e em 1671 encaminhou uma petição
pessoal ao papa, solicitando que a obra fosse examinada por uma
comissão de cardeais e prelados. Sua insistência se devia _ expli-
cou Fiorentini _ às aprovações e concordâncias que recebera da
parte de “muitas academias católicas e de um grande número de
teólogos”.m De fato, as “censuras” de respeitáveis universidades
reunidas por Fiorentini compunham um documento notável so-
bre a acolhida favorável de suas ideias não só nas faculdades teoló-
gicas (de Sorbonne às universidades de Praga e de Viena), mas tam-
bém nas médicas (novamente Viena e Praga), para não falar das
concordâncias pessoais: em particular a de Caramuel, longamente
discorrendo em tom entusiástico sobre o mérito da obra. 122 São do-
cumentos notáveis pelo tom e pelos argumentos: a faculdade de
Medicina da Universidade de Viena, em um documento com a data
simbólica da véspera do Natal de 1662, enaltecia o valor da propos-
ta de Fiorentini e sua utilidade para incentivar párocos, pais e obs-
tetras à salvação das almas; quanto ao tema da animação, notava
apreciativamente a citação das teses de Thomas Fyens. A Sorbonne,
por sua vez, emitiu um documento que, além de demonstrar con-
cordância com a obra, expressava a severíssima condenação dos
frívolos argumentos de mães indignas (“perditissimae”), que prati-
cavam homicídios a pretexto de salvar a própria honra.” No hos-
pital madrilenho da Paixão, naquela época praticava-se regular-
mente o parto cesáreo para extrair e batizar o feto; o médico Diego
Mateo Zapata, que o declara em uma dissertação que ele mesmo
definiu significativamente como “médico-teológica”, mostra a de-
dicação com que os médicos discutiam sobre os instrumentos mais

315
adequados para extrair o feto e alcançá-lo com a água batismal sem
precisar esperar que saísse totalmente do corpo materno.”
Com o texto de Fiorentini, o Santo Ofício se encontrou diante
da tarefa de legitimar esses procedimentos. Não o fez. Não sabemos
muito sobre os trabalhos da comissão romana, mas ela foi nomea-
da na congregação do Santo Ofício em 12 de agosto de 1671. Em
todo caso, a presença, além de respeitados cardeais (Brancaccio,
Borromeo, Albizzi) e outros prelados, teólogos e médicos, de um
homem como Caramuel, certamente entusiasta da proposta de
Fiorentini, permite entrever o contexto não hostil em que se reali-
zou o exame.”
Entre as cartas do cardeal Brancaccio conserva-se o parecer
redigido pelo jesuíta Alberto Alberti, que mostra como a casuística
da Companhia associada ao principio fundamental da Igreja tri-
dentina _ a salvação das almas _ levou a que se abraçasse com
grande simpatia a ideia de batizar sistematicamente os fetos abor-
tados. Para o jesuíta, não era necessária a certeza científica da ani-
mação imediata do feto, e bastava a probabilidade de tal opinião
para deduzir a obrigatoriedade do recurso ao batismo. O silêncio
foi o argumento usado para transpor a dificuldade fundamental,
que consistia no fato de que o Ritual romano de Paulo v havia de-
terminado taxativamente o momento do nascimento como o pon-
to a partir do qual se poderia ministrar o batismo. Com um proce-
dimento indireto, porém, o jesuíta recorreu àquele mesmo ritual
para apresentar um argumento em favor do batismo dos fetos
abortados. Se era válida a confissão dos moribundos que não po-
diam mais falar _ conforme previa o ritual _, da mesma forma
era válido 0 batismo sub-conditione do aborto de poucos dias.
Portanto, nada impedia que o papa Alexandre vu modificasse as
normas do ritual para atender a esse aspecto. 12° Em suma, mais uma
vez a conexão entre o nascimento e a morte se mostrava capaz de
vibrar uma corda muito sensível na religião da época.

316
O parecer da comissão não deve ter sido negativo: prova-o o
fato de que Girolamo Fiorentini, pouco tempo depois, publicou
uma nova edição ampliada de seu tratado, com um título que subs-
tituía a expressão “fetos abortados” por “homines dubii”. A dúvida
se referia, em suma, à própria identidade humana, buscada na zona
de incerteza que dividia o humano e o não humano (incluídos os
monstros).'27 Enfrentava-se assim a questão das chamadas “gesta-
ções molares”, tradicionalmente associadas ao batismo. O ritual
romano dera instruções sumárias para decidir se o que saíra do
ventre da gestante pertencia ou não à espécie humana e se devia ser
batizado ou não. A medicina legal elaborara propostas baseadas no
aspecto visível do ser que viera à luz e em sua maior ou menor se-
melhança com o corpo humano: por exemplo, o número de cabe-
ças determinava o número dos indivíduos. Mas agora o problema
ressurgia em outras condições, à luz da teoria da animação preven-
tiva. Se a forma humana do corpo fora tratada tradicionalmente
como prova da presença da alma, uma vez invertida a sequência
corpo-alma e estabelecida a prioridade da alma em relação a qual-
quer estágio formal do corpo, a natureza humana ou não humana
do ser vindo à luz teria de ser estabelecida sem mais se referir à for-
ma. Revigorou-se o debate sobre a humanidade dos monstros e a
conveniência do batismo. Paolo Zacchia trouxe ao tema os frutos
de uma rica experiência e de uma grande curiosidade intelectual,
certamente não voltada para os resultados missionários pretendi-
dos por Girolamo Fiorentini: para este, o objetivo continuava a ser
uma campanha sacramental sistemática em favor de um batismo
que se aplicasse a todas as ocasiões possíveis, na disposição de em-
preender uma guerra contra o limbo e para lotar o paraíso. Os tem-
pos pareciam propícios. Era o que dava a crer o recente favor papal
a uma devoção antiga, ligada a uma concepção totalmente excep-
cional: a doutrina da Imaculada Conceição, segundo a qual a
Virgem, desde o momento da concepção, ficara isenta da transmis-

317
são do pecado original. Mais uma vez, discutiam-se em torno da
figura da Mãe de Deus questões teológicas que acarretavam conse-
quências importantes quanto ao modo de tratar a maternidade e a
gestação dos seres humanos: era o que a Virgem representava, não
como mãe _ pois, aliás, a imagem de Maria grávida agora caíra em
desuso, e a obra-prima de Piero della Francesca passara a ocupar
um lugar totalmente marginal na iconografia sacram _, e sim a
Virgem como filha, ou melhor, embrião. A doutrina teológica da
Imaculada Conceição como evento milagroso referente a um úni-
co ser humano guardava uma estreita relação com a doutrina da
animação imediata no momento da concepção de todo e qualquer
indivíduo da espécie. Após séculos de conflitos teológicos sobre a
questão, a devoção à Imaculada dera um grande salto no início do
século xvn, quando a monarquia habsbúrgica a escolheu como
símbolo de uma versão espanhola da realeza sagrada e como forma
unificadora da identidade nacional. E era precisamente na Espanha
que estava o homem que prontamente agarrou a oportunidade
oferecida pela tese de Fyens, para resolver em bases médicas os pro-
blemas colocados pela doutrina da Imaculada Conceição. Em um
tratado do jesuíta Iuan Bautista Poza, a tese de uma santificação
imediata da Virgem, que os jesuítas então sustentavam com grande
empenho propagandístico, foi apresentada em alicerces por assim
dizer científicos: se a alma racional era infundida no momento da
concepção e, de qualquer maneira, nunca após o terceiro dia, não
havia necessidade de uma violência miraculosa contra a natureza
para sustentar que a Virgem recebera o dom da isenção do pecado
original no momento em que fora concebida.” Era no campo da
doutrina teológica da Imaculada Conceição que se travava a bata-
lha para estabelecer se todo ser humano recebia a alma no momen-
to da concepção ou logo a seguir. Caramuel, entre outros, tinha
entendido isso, e na carta de concordância enviada a Fiorentini
lembrou que as opiniões de São Tomás podiam ser discutidas quan-

318
do não estavam corretas: por exemplo, no caso da Imaculada
Conceição, a opinião sustentada por São Tomás não era pia. Esse
argumento foi retomado por Fiorentini na segunda edição de seu
livro, quando ele recorreu à posição adotada pelo papa Alexandre
vu, que em 1661, ao proibir com a bula Sollicitudo omnium eccle-
siaerum a manifestação de opiniões contrárias à doutrina da
Imaculada, expressara uma posição oficial favorável mesmo sem
dar o último passo para a ratificação definitiva de uma nova ver-
dade de fé. Fiorentini declarou que tinha sido justamente sua tese
da animação imediata que exercera uma influência decisiva para
tais rumos: segundo seu relato, os adversários dessa devoção ten-
taram transferir a festa da Imaculada do dia 8 de dezembro para
uma outra data no final de fevereiro. Mas um cálculo cuidadoso
dos dias entre a festa da natividade da Virgem (8 de setembro) e a
da concepção mostrava que a tradição litúrgica havia preservado
a memória exata das coisas e pretendera justamente celebrar a
concepção sem mácula da Virgem como a data em que a alma fora
infundida no embriao.13°
rw

A doutrina da Imaculada Conceição, portanto, caminhava si-


multaneamente ao avanço dos teólogos aliados aos médicos no ter-
reno da concepção e da gestação. Contudo, a autoridade eclesiásti-
ca parecia pouco disposta a enrijecer e formalizar doutrinalmente
as questões tão vivamente discutidas pelas diversas ciências. O
Santo Ofício da Inquisição, autêntico ministério encarregado da
definição das doutrinas de fé, preferia seguir uma política de cau-
tela. Não só censurou o livro de Fiorentini, exigindo e obtendo uma
edição modificada, como também se manteve irredutível quando
a proposta do clérigo de Lucca encontrou outros defensores de
maior autoridade. Foi o grão-duque da Toscana Cosimo 111, espe-
cialmente preocupado em impor controle às gestações ilegítimas,
que sugeriu o procedimento sistemático de batizar os fetos aborta-
dos, a fim de salvar as almas eventualmente presentes nos que ainda

319
não haviam morrido. Era preciso prover à “eterna saúde daquelas
almas”, declarou o porta-voz do grão-duque no documento que foi
submetido ao Santo Ofício; observava ainda que, por mais que a
medida fosse providencial e também amplamente praticada, “mui-
tos se abstêm porque supõem que a Santa Sé proibiu batizar feto
que, nos meninos, não tenha pelo menos trinta dias, e nas meninas
pelo menos quarenta, tomando-o como antes disso certamente
não animado”.*3* Era um modo indireto e insinuante de desfazer as
ambiguidades e avançar com segurança no caminho que já se per-
corria sob o governo daquele exemplar príncipe cristão. Mas
Giovanni Damasceno, consultor do Santo Ofício, respondeu lem-
brando a censurajá imposta ao livro de Fiorentini e mostrando que
a prudência da Santa Sé sobre a questão se devia ao fato de que es-
tava em curso uma viva discussão sobre o tema da animação, envol-
vendo cientistas e teólogos:

A Santa Sé até agora, e os Cânones Sagrados consideraram não


entrar nesta questão pelas graves dificuldades que se encontram
para defini-la, ou para estabelecer regra certa sobre o batismo dos
fetos abortados, dependendo de saber quando o feto está animado
pela alma racional, o que também está em disputa entre os filósofos,
embora a sentença mais comum dos teólogos seja que, nos meninos,
isso ocorre após trinta ou quarenta, e nas meninas setenta ou oiten-
ta dias após a concepção, como se pode ver nos teólogos, ou canonis-
tas, que tratam daqueles que provocam os abortos, e se procede de
uma maneira para os que provocam aborto do feto animado, e de
outra maneira para os que o provocam ainda não estando animado,
conforme sabem os teólogos e canonistas da Sagrada Penitenciária.

Era indiscutível o “santo zelo” do príncipe pela salvação das


almas, mas por ora não restava outra coisa a fazer senão confiar nas
decisões caso a caso. Mesmo assim, quem estivesse perante um feto

320
abortado e nutrisse uma dúvida razoável de que estava animado
poderia proceder ao batismo sub conditioneffl Prudência, portan-
to: pelo menos por ora, enquanto se aguardava um consenso entre
os teólogos e os “filósofos” Enquanto isso, o impulso salvífico po-
dia se exercer sem aspirar a um pleno respaldo do Papado. Mas
nada daquilo cairia no esquecimento. O futuro reservava às teses de
Fiorentini e aos projetos de Cosimo iu não poucas satisfações: no
século xix, em uma outra fase da relação entre magistério eclesiás-
tico e medicina, os problemas colocados pela Irlanda católica iriam
conferir nova atualidade a suas propostas.”
Por ora, a escolha foi se abster de truncar autoritariamente
questões teológico-científicas: mesmo porque o Papado, nesse
campo, sofria a concorrência de poderes políticos prontos a apro-
veitar qualquer oportunidade de ganhar legitimação. O desafio da
monarquia sagrada ameaçava diretamente o poder papal, o único
que podia ostentar “um corpo e duas almas”.*34 No decorrer do sé-
culo xvu, ocorrera na Espanha a ofensiva devota dos jesuítas para
afirmar com grande sucesso a doutrina da Imaculada Conceição: a
monarquia espanhola apoiara decididamente essa campanha de-
vota, a ponto de reivindicar uma espécie de direito de prioridade na
devoção da Virgem “puríssima” e até ameaçando romper com
Roma, o que lhe fazia temer a repetição do cisma inglês.“5 Ora,
nada do que se referia à Virgem era destituído de reflexos sobre as
mulheres cristãs. As maternidades santas projetavam sua luz sobre
as maternidades terrenas e as passagens evangélicas ofereciam ins-
pirações às doutrinas médico-teológicas. Mesmo que Roberto
Bellarmino tivesse sugerido cautelosamente que não se extraíssem
regras gerais do episódio de Ioão Batista, que ainda no útero mater-
no exultava com a proximidade de Jesus, era normal recorrer aos
eventos das natividades sacras narradas pelas Escrituras e deduzir
consequências para os nascimentos comuns dos seres humanos. E
isso não só, nem principalmente nas escolas teológicas das Igrejas

321
maiores, mas também no interior dos grupos mais inquietos e ra-
dicais. Lembremos apenas o debate em Amsterdam que, por volta
de 1670, contrapôs duas importantes figuras do ambiente socinia-
no, Christoph Sandius e Daniel Zwicker: o tema de discussão era a
preexistência de Iesus Cristo antes da encarnação, e chamaram em
questão a doutrina platônica da preexistência de todas as almas hu-
manas. Sandius lamentava que a Igreja católica não tivesse incor-
porado a doutrina platônica, pois assim a fé na divindade de Iesus
teria se fortalecido indiretamente.136 A apologética católica, no en-
tanto, seguiu a regra geral indicada por Bellarmino e esforçou-se
em colocar os fatos da concepção da Virgem Maria e de Iesus Cristo
a uma remota distância dos acontecimentos da humanidade co-
mum. A questão da Imaculada Conceição ofereceu uma boa oca-
sião para isso.
Para além de seu significado na história do patrimônio dou-
trinal da Igreja, a questão ocupou um lugar de relevo na história das
gestações terrenas e no modo de considerá-las e tratá-las. Nesse
campo, a feroz coerção dos sistemas de controle sobre as mulheres
não casadas colocava inúmeros problemas aos moralistas, aos quais
competia resolver dúvidas e dificuldades dos fiéis no plano espiri-
tual da confissão. Iustamente com as confissões femininas que ou-
viam durante suas missões, os especialistas da penitência tiveram a
possibilidade de presenciar de perto a condição desesperada das
mulheres que engravidavam fora do matrimônio. De todos esses
falatórios e transes de pessoas se debatendo em emaranhados de
situações sem saída, aflorou algo que veio a tomar corpo em propo-
sições teóricas de caráter geral, que foram examinadas e julgadas
pelo Santo Ofício da Inquisição. Foi na sessão de 4 de março de
1679 que o papa Inocêncio xt condenou uma série de proposições
que também se referiam à questão da maternidade e do aborto. O
resultado dessa congregação tem sido considerado, de modo geral,
um recrudescimento do rigorismo moral e um acerto de contas

322
com as doutrinas probabilísticas professadas sobretudo pela
Companhia de Jesus. O papa condenou os defensores da licitude do
aborto provocado antes da animação do feto para salvar a honra ou
mesmo a vida da mãe; e condenou a hipótese de que o feto, enquan-
to estava no útero da mãe, estivesse desprovido da alma racional,
daí decorrendo que o aborto não poderia ser considerado um ho-
micídio.” Evidentemente os dois pontos estavam interligados. A
questão do aborto terapêutico se cruzava com a questão do res-
guardo da honra feminina: tema de grande atualidade, discutido
principalmente no interior da Companhia de Jesus, a grande or-
dem que investira enorme parcela de suas energias no exercício da
direção espiritual e na elaboração da casuística moral. A grande
“samma” do jesuíta Thomas Sanchez sobre o matrimônio apresen-
tara a tese de que o feto, como parte do organismo materno (“pars
viscerum matris”), podia se comportar como um agressor interno
e ameaçar a saúde e a vida da mulher: configurava-se a situação de
uma guerra de defesa, guerra por definição justa, e portanto a agre-
dida estava no direito de se defender, desde que o feto ainda não esti-
vesse animado. Não eram especulações abstratas. Encontramos a
prova das profundas raízes dessas teses nos sofrimentos de figuras
femininas concretas em um memorial do dominicano espanhol
Diego Collado, redigido em Madri em 26 de novembro de 1633. Ele
expunha doze dúvidas ou perplexidades morais, escolhidas entre
as mais frequentes na colônia cristã do Japão. A sexta dúvida apre-
sentava dois casos que pareciam permitir moralmente o aborto: o
primeiro era o de uma jovem grávida em risco de perder a possibi-
lidade de um matrimônio já previsto e até de ser morta pelos pa-
rentes por motivos dehonra; o segundo se referia à condição da-
quelas famílias que, tendo muitos filhos, não podiam se dar ao luxo
de ter outras bocas a alimentar. Em ambos os casos, perguntava-se
se seria admissível o aborto no período anterior à animação do fe-
to. 138 A questão havia despertado a atenção dos jesuítas que manti-

323
nham uma atividade missionária importante no Japão, e registra-
vam ciosamente em seus arquivos o número de batizados naquelas
ilhas.” Com a abertura de horizontes missionários no Extremo
Oriente, onde o infanticídio e o aborto eram amplamente pratica-
dos, tornava-se inevitável a colocação do problema. Mas é muito
provável que tais questões também fossem frequentes em terras
cristãs europeias e que, com a solução de tais dúvidas, os confessio-
nários, onde as mulheres iam expor suas culpas e seus dramas, vol-
tassem a ser uma promessa de conforto. Se as coisas houvessem
seguido outro rumo, talvez Lucia tivesse encontrado um confessor
ao qual pudesse revelar sua condição.
Mas a decisão romana vedara qualquer brecha. O que talvez
tenha contribuído para tal encaminhamento foi também a neces-
sidade de conter a presença constante dos médicos na esfera da gra-
videz e do parto. Desde os tempos do tratado de Codronchi, o pro-
blema de controlar o uso da medicina na gravidez e nos abortos só
se agravara. Era preciso impedir que coubesse ao médico decidir
sobre a interrupção da gravidez na fase inicial por razões de mora-
lidade pública, como a preservação da honra da mãe. Daí a decisão
de colocar uma barreira teológica absoluta, considerando o feto
sempre dotado de alma.
Em um plano geral, isso levava a uma conclusão contraditó-
ria, pelo menos na aparência: para a Igreja, o filho morto por Lucia
Cremonini estava dotado de uma alma racional, enquanto na lin-
guagem popular em que se exprimira são Bernardino podia-se de-
fini-lo sem alma, pois não havia recebido o batismo.
Era um problema de palavras, o que não significa que não fos-
se um problema importante. Há uma palavra que pode dar a me-
dida do que estava em jogo: pessoa. Os canonistas medievais ha-
viam estabelecido que apenas com o batismo _ isto é, após o
nascimento _ o ser humano se tornava uma pessoa. 14° Ora, a proi-
bição do aborto em qualquer estágio da gestação tinha como fun-

324
damento a tese médico-teológica da animação imediata do em-
brião. Com a decisão tomada pelo Santo Ofício sob Inocêncio xi, o
concebido deveria ser considerado pessoa desde o primeiro mo-
mento.
Evidentemente, algo mudara no tempo transcorrido entre as
duas definições.

PESSOA

O queƒazemos é reconduzir as palavras de seu uso metafísico ao


seu uso cotidiano.
Ludwig Wittgenstein

Abortar significa suprimir não umapessoa, mas o desenho pálido


e remoto de uma pessoa.
Natalia Ginzburg

No verso de um retrato pintado por Domenico Bigordi, dito o


Ghirlandaio, hoje no museu Uffizi, lê-se: “sua cuique persona”.1 A
frase significa basicamente que a cada qual cabe uma máscara, um
personagem a ser representado no teatro da vida? E a máscara de
cada um, diferente para cada indivíduo, é a que trazemos no alto de
nosso corpo: o rosto. O retrato é sua reprodução.
Máscara enganadora ou retrato da alma? Esse é o problema
que se coloca ao semblante. Por trás de um rosto pouco atraente ou
decididamente feio, pode-se ocultar uma grande beleza interior. E
um contraste que Erasmo de Roterdam analisou em um de seus
célebres Adagia, intitulado Os silenos deAlcebíades. As estatuetas de
Sileno eram figurinhas de madeira entalhadas que se abriam e,
abertas, mostravam uma imagem divina. Erasmo observa: tome-

325
mos Sócrates e julguemo-lo pelo aspecto físico: “Quem avaliasse
Sócrates [...] pela superfície, pelo rosto (“cute”), não daria um tos-
tão por ele. Tinha cara de camponês, ar bovino, o nariz achatado e
ranhento [...] Mas, abrindo este ridiculíssimo Sileno, certamente
descobririas um ser mais divino do que humano, um grande
ânimo”.3 Os pintores, ligados à visualidade, deviam retratar o rosto,
mas ao fazê-lo expressavam de diversas maneiras a consciência da
relação entre aspecto exterior e realidade autêntica do indivíduo.
Sobre o retrato de Giovanna degli Albizzi Tornabuoni, obra de
Ghirlandaio, há uma menção de Marcial (provavelmente sugerida
por Poliziano):

Ars utinam mares animunque efiingere posset


Pulchior in terris nulla tabellaforet.

A bela Giovanna seria ainda mais bela se a arte pudesse pintar


a alma. Leve-se em conta que, no ano de 1488 registrado no quadro,
a bela Giovanna morrera no parto na flor da idade. De fato, o pintor
resolveu o hipotético contraste entre o rosto e a alma representan-
do o rosto como via de acesso à realidade profunda do indivíduo e
como meio de lhe manter viva a memória.
O contraste entre a aparência enganadora e a verdade ocul-
ta do indivíduo foi estudado com especial intensidade e vários
resultados em uma cultura fortemente marcada por ele, e que
por isso atraiu seu maior historiador, Jacob Burckhardt. Uma
característica especial assinalou seu momento mais alto e cria-
tivo: a busca da alma como um itinerário que inevitavelmente
se depararia e se chocaria com os dados do corpo. Leonardo da
Vinci, ao estudar as característicasindividuais expressas no ros-
to humano, atribuiu-as à relação entre a estrutura óssea como
arquitetura do corpo e as formas variáveis do revestimento dos
tecidos. Seus rostos de velhos desdentados, com a pele encarqui-

326
lhada sobre o traçado dos ossos, ao lado de jovens e crianças,
mostram que o que muda com o tempo é a parte como que es-
cultórica do tecido mole, enquanto emerge gradualmente a es-
trutura arquitetônica constituída pelo que há de mais duradou-
ro no corpo humano: o esqueleto, o crâniof* Mas a atenção que
os artistas dedicaram aos traços do rosto reflete um problema
maior que ocupou então os pensamentos dos humanistas.
Vejamos novamente o texto que se lê no retrato pintado por
Ridolfo del Ghirlandaio: “sua cuique persona”. A fonte douta re-
mete à mediação de um filólogo experiente, a saber, aquele mes-
mo Poliziano que sabidamente mantinha relações com o ateliê
de Ghirlandaio. E a Poliziano que se deve a tradução para o la-
tim de um texto grego fundamental para a nova cultura arcai-
zante, totalmente voltada para a descoberta da moral pré-cristã:
o Enchiridion de Epicteto. Manual destinado a determinar as re-
gras fundamentais do código de comportamento do sábio, o
texto de Epicteto propunha uma moral totalmente individual e
interiorizada, independente de qualquer legitimação externa ao
recusar, indiferente às convenções sociais, qualquer ligação com
as crenças religiosas. Sendo os deuses distantes e imperscrutá-
veis, cabia ao homem manter total liberdade e tranquilidade pe-
rante os acontecimentos da vida, afastando as paixões e inquie-
tações que assediam aquele que não consegue se afastar das
relações e das coisas externas. Os deuses existem e devem ser
cultuados; mas não se deve importuná-los com queixas e pedi-
dos. E preciso aceitar o que se recebeu e desempenhar sua parte
aceitando o papel designado:

“Lembra-te que não és aqui senão um ator de um drama, o qual será


breve ou longo, segundo a vontade do poeta. E se a ele aprouver que
representes a pessoa de um médico, cuida de representá-la digna-
mente. O mesmo se te for designada a pessoa de um manco, de um

327
magistrado, de um homem comum. Pois a ti cabe apenas representar
bem qualquer pessoa que te seja destinada: escolhê-la compete a
outrem.”5

Assim, surgiram em pleno Ocidente cristão termos e imagens


que remontavam a uma concepção totalmente diferente do indiví-
duo e da moral. No início do século xx, em uma velha obra ainda
fundamental, o estudioso alemão Siegmund Schlossmann expôs a
história do termo grego prosopon e do latino persona? Uma histó-
ria realmente original, pois, como mostrou Schlossmann, à som-
bra dessas palavras uniram-se os dois significados de “máscara” e
“homem, ser humano”: duas acepções na aparência tão discordan-
tes, mas extraordinariamente capazes de se sobrepor e se entrelaçar
no decorrer da história. O ritual romano documentado por
Suetônio, quando em determinadas ocasiõessolenes usava-se a
máscara de cera de um antepassado (“persona”, “ imago”), deixa en-
trever o jogo de trocas entre memória, máscara e sobrevivência ri-
tual dos defuntosf No centro está o rosto do ser humano, isto é, a
parte do indivíduo que resume e concentra o sentido de sua iden-
tidade. E um jesuíta não desprovido de engenho observou que, “tal
como a máscara tem a aparência exterior de um rosto humano, mas
mesmo assim é totalmente desprovida de sentido, da mesma forma
os cadáveres dos defuntos abandonados pela alma nada conservam
do homem a não ser a figura exterior”.8 Aqui se inaugura um per-
curso que vai longe: “cobrir o rosto dos mortos parece, mas não é,
um gesto natural”, escreveu Carlo Ginzburg, apontando “a associa-
ção quase universal entre máscaras e espíritos dos mortos”.9As bru-
xas, como aquelas que têm comunicação com o mundo dos mor-
tos, também receberam o nome de “ masca” 'O E na concepção cristã
da sobrevivência eterna da alma individual que se encontra a raiz
de uma profunda mudança da noção de “pessoa” [persona]: o de-
funto, o ausente do mundo dos vivos, não é apenas uma imagem,

328
uma máscara, mas é uma realidade viva. E com tanto mais razão no
caso de Cristo, como Deus-homem. Quando são Bernardo escreve
que o papa representa a pessoa de Cristo, ele propõe “uma imagem
corpórea” muito intensa, fala de uma relação pela qual o papa se
torna “ossos de seus ossos e carne de sua [de Cristo] carne”.“ Na
cultura da Patrística cristã, como foi observado, “toda redução, de-
formação e variação no conceber a pessoa e a natureza humana de
Cristo (arianismo, apolinarismo, nestorianismo, monofisismo) se
reflete inevitavelmente sobre a pessoa e a natureza do homem,
marcada pelo sinete da imagem divina”.*2
Contudo, não faltou ao mundo cristão a prática de represen-
tar os defuntos por meio de máscaras, que assumiram, porém, um
novo tipo de significado ritual e religioso. No que se refere à presen-
ça do indivíduo defunto por meio de sua imagem, Schlossmann
não conhecia o estudo publicado poucos anos antes por Aby
Warburg sobre a arte do retrato na Florença quatrocentista, mas
certamente teria ficado impressionado com uma das histórias rela-
tadas pelo estudiosode Hamburgo: a das figuras votivas da igreja
florentina da Santíssima Annunziata, uma prática que Francesco
Sacchetti rotulara como idolatria pagã, mas que iluminava o am-
biente onde a retratística, como representação realista do indiví-
duo, atingiria seu ponto culminante. O retrato do Renascimento
_ escreveu John Pope-Hennessy _ possuía uma função come-
morativa: dirigia-se a um futuro em que o vivo não existiria mais. 13
Como fixação da memória da fisionomia real e inconfundível do
indivíduo, era também uma máscara que pretendia ao mesmo
tempo representar sua qualidade moral, mergulhando em seu ca-
ráter e sugerindo os traços de sua personalidade. Ademais, a me-
mória de um rosto, daquele rosto específico, podia ser transmitida
por uma verdadeira máscara: a máscara de cera modelada sobre o
rosto da pessoa morta. Naquela época, a produção de máscaras fú-
nebres em gesso e estuque era uma atividade comum nos ateliês

329
dos artistas como Verrocchio ou Ghirlandaio: algum tempo de-
pois, Giorgio Vasari comentaria a exposição das imagens dos ante-
passados nas casas florentinas como fato corriqueiro.”
Schlossmann, seguindo a evolução do valor semântico do ter-
mo, apontou o direito e a doutrina cristã como os campos funda-
mentais para acompanhar a passagem da noção de máscara à de
indivíduo. O vocabulário da lógica aristotélica, com sua distinção
entre “substância” e “acidente”, oferecera o instrumental que per-
mitia, por assim dizer, reificar a noção de “pessoa”, fazendo-a coin-
cidir com a alma: mais precisamente, com uma das diversas almas
ou propriedades que o mundo antigo especificara no ser humano,
desde a vegetal e a animal até a última, exclusiva do homem: a ra-
cional. É na alma racional como substância individual de todo ho-
mem que consiste o ser “pessoa”: essa definição formulada por
Boécio passou à teologia cristã medieval. '5 Mas a definição nasceu
não de uma reflexão filosófica sobre a natureza do homem, e sim da
necessidade de definir a natureza de Deus.
Foi ao discutir a natureza divina de Jesus que os cristãos ela-
boraram a noção de “pessoa”. O homem Jesus havia se declarado
filho de Deus; mas quais eram as relações entre o Filho e o Pai? A
tradição religiosa hebraica afirmara e defendera categoricamente a
ideia de um Deus único, invisível, eterno, imperscrutável e onipo-
tente. Por outro lado, segundo a Bíblia hebraica, esse Deus criara o
homem à sua imagem e semelhança, como se lia na passagem mais
célebre do Gênesis. Partindo dessas bases e modificando-as pro-
fundamente, o cristianismo definiu a natureza divina: mas com
isso, na medida em que agora o evento essencial era constituído
pelo Deus que se fez homem na Encarnação, fora preciso redefinir
as noções sobre a natureza humana. Foi assim que se elaborou uma
teoria da essência do homem. Destarte, toda e qualquer operação
no campo das representações religiosas do mundo sobre-humano
implicava e reelaborava a autoconsciência da espécie humana: e

330
isso de maneira muito mais direta e rigorosa do que ocorre nor-
malmente em qualquer representação religiosa. Foi desse modo
que veio a se definir a noção cristã de “pessoa” na doutrina da
Trindade. Olhando Deus, o homem via a si mesmo ou, melhor,
via uma qualidade sua mais elevada, um modelo divino oculto
por trás do ser natural que cresce e se multiplica: o olhar de Dante
peregrino celestial, fitando a Trindade, viu-a “dentro de si, e na
sua própria cor/ de nossa efígia mostrava a figura,/ que prendeu
meu olhar indagador” (Paraíso xxxlu, 130-31). O procedimento
podia ser invertido: quem tentava representar visualmente as três
pessoas da Trindade acabava por representá-las como um corpo
com três faces, três máscaras idênticas.” A elaboração da doutri-
na cristã da Trindade deu corpo a uma definição daquilo que, no
ser humano, se afigurava como a qualidade essencial do homem,
o próprio traço da divindade. A longa discussão sobre a Trindade,
presa entre dois perigos contrários, a recaída no politeísmo anti-
go e a negação da natureza divina de Jesus, levou no mundo latino
à noção das três “pessoas” em um só Deus, por meio de uma in-
terpretação e definição teológica do termo que destacou um dado
sobre os demais: a “substantia rationalis”. Conferia-se assim a
uma entidade divina totalmente espiritual um atributo que até
então se referia aos seres humanos, resultando que o valor meta-
físico e a suprema nobreza daquele atributo retornavam em rico-
chete para a humanidade. Reelaborando o significado do termo
em relação aos seres humanos, a noção de “pessoa” passou a ser
entendida não como adstrita genericamente ao indivíduo, e sim
a seu componente mais elevado e espiritual, a alma racional.
Esse dado originário, portanto, foi o ponto de partida da his-
tória do termo no mundo cristão europeu. As pesquisas de um es-
tudioso das línguas românicas trouxeram confirmações significa-
tivas, mostrando, entre outras coisas, que o uso teológico do termo
latino persona para as três pessoas da Trindade e sua divulgação nas

331
prédicas e sermões levaram à popularização do termo, que se di-
fundiu entre os séculos xv e xvu.”
Coube à filologia humanista de Lorenzo Valla assinalar o pon-
to de conversão em que o termo adquiriu sua acepção moderna.
“Pessoa” _ segundo Valla _ não indica substância, mas qualidade
ou característica, e como tal ela designa as diferenças entre seres da
mesma espécie, valendo para animais, seres humanos, divindades;
as qualidades que definem um indivíduo como medroso, irascível,
generoso etc. são as que o diferenciam dos demais. Apenas um uso
bárbaro da língua poderia transformar as qualidades em substân-
cia.” Era uma simples observação linguística, mas de consequên-
cias importantes. O texto de Valla, que por isso foi incluído no
Índex dos livros proibidos, deflagaria a crítica da doutrina da
Trindade de Lelio Sozzini e dos antitrinitaristas do século xvi italia-
no. Naquela observação está presente in nuce a guinada moderna,
com a qual o eu individual iria aparecer cada vez mais como um
termo invocado para abranger uma pluralidade de pessoas. Há
pessoas e pessoas no mesmo indivíduo: a autorreflexão de Michel
de Montaigne revelou o caráter mutável dos sentimentos, estados
de espírito, convicções e disposições _ em uma palavra, das pes-
soas _ que se ocultava por trás de sujeito individual. Assim, mes-
mo que as palavras com que descrevemos a realidade ainda sejam
aquelas antigas, entre a definição medieval da pessoa como subs-
tância e nossa definição atual interpôs-se uma tomada de cons-
ciência e uma outra calibração do instrumental linguístico.
E não só dele: a antiga moral estoica do indivíduo que aceita
sem reclamações a máscara que lhe fora destinada e representa seu
papel no teatro do mundo iria se converter na moral severa do
homem moderno, por intermédio da resposta de Erasmo de
Roterdam ao manual de Epicteto. Seu Enchiridion militis christia-
ni [Punhal do cristão militante, 1504] propõe uma religião purifi-
cada, livre das práticas cerimoniais e da relação de troca entre o

332
homem-cliente e o Deus-patrono. Em lugar dela, remetendo-se à
noção cristã da alma imortal, Erasmo fez coincidir a moral supe-
rior do sábio com a parte espiritual do homem em luta com o cor-
po: a finitude da vida humana que a moral de Epicteto assumia
como medida do valor autêntico e confirmação do desvalor dos
bens materiais tornava-se aqui o ponto de partida de um direcio-
namento da vida terrena para a união final da alma individual com
Deus. A alma era o que importava no homem. Se Bartolomeo Scala
acusara Epicteto de ser demasiado obscuro e objetara à sua filoso-
fia “que em nós há também o corpo”, Poliziano _ chamado em
questão por ter sido o primeiro atraduzir para o latim o Enchiridion
do filósofo grego _ respondera citando Platão: “o homem não é
senão a alma participe da razão”, o homem se serve do corpo tal
como o sapateiro da sovela.” Assim a filosofia de Platão e a moral
estoica haviam estreitado suas relações no ambiente da cultura
humanista florentina.
Como já vimos, foi em torno da natureza e do destino da alma,
em um contexto profundamente impregnado de teologia, que se
concentrou a discussão nos anos seguintes. Mas os termos do pro-
blema se estabeleceram basicamente no breve período decorrido
entre a introdução do manual de Epicteto e a resposta erasmiana.
A rígida moral de quem se despe de toda pulsão egoísta em relação
aos bens do mundo, anulando os limites entre o monge e o cristão
comum, marcou o nascimento da versão moderna do cristianismo
com a qual as Igrejas oficiais tiveram de medir forças. Um elemen-
to que contribuiu para o desfecho foi o processo de afirmação dos
valores individuais, emblemático da época: a convicção, hoje fre-
quentemente reiterada, de que a vida “vem do futuro, é o futuro a
abrir caminho”2° _ como escreveu uma filósofa de nossa época _
pode ser tomada como critério para avaliar a distância que nos se-
para de uma cultura onde o peso do passado era esmagador, tanto
no plano jurídico quanto no simbólico: basta pensar na doutrina

333
do pecado original (cujos resultados já vimos) ou na comunidade
de vivos e mortos em que se inseria o indivíduo.”
Desse momento de crise partem muitas linhas, e seria difícil
segui-las mesmo sumariamente. Há quem tenha reconstruído as
origens da doutrina dos direitos naturais mostrando como ela se
enxerta no conceito cristão de “pessoa” e derivando do componen-
te espiritual do ser humano os deveres do indivíduo e a atitude da
sociedade em relação a eles. E um percurso que provém da literatu-
ra teológica medieval _ que isolava seu componente espiritual e
racional como um dado comum ao Deus-pessoa e ao homem _
até a guinada moderna, que definiu o indivíduo como ente moral
dotado de liberdade e levou às solenes definições setecentistas dos
direitos naturais, que depois entraram no uso corrente.” Foi preci-
samente na cultura iluminista que a atenção às palavras, inaugura-
da pelos humanistas, iria conhecer uma etapa decisiva: foi quando
se difundiu a acepção de “pessoa” como o fio da consciência que
liga a identidade individual nos vários tempos e lugares. O impulso
decisivo dado por John Locke ao abandono da noção medieval de
substância, substituída por uma ideia de identidade, não por acaso
se deparou com a franca repulsa por parte dos censores da congre-
gação romana do Índex. Um primeiro sinal de atenção, registrado
nas atas da congregação datado de 18 de novembro de 1709, foi o
prenúncio da condenação que ocorreria anos mais tarde.” E difícil
dizer o que essas mudanças na consciência comum da identidade
pessoal davam a perceber naquela Bolonha onde Lucia Cremonini
aguardava seu destino no cárcere. Foi de lá, porém, que lentamente
se iniciaria no decurso do século uma reflexão que também atingiu
o sistema dos direitos individuais e das penalidades, inclusive a ma-
neira de enxergar a condição feminina.

A importância dessa guinada setecentista na concepção dos


direitos humanos é incontestável. E no entanto a origem teológica

334
e o fundamento metafísico ainda transparecem na persistência da
diferença impalpável, mas nítida, entre “direitos do indivíduo” e
“direitos da pessoa”: poderia ser definida, ao pé da letra, como uma
diferença de substância. Tampouco se deve esquecer como os juris-
tas tentaram diferenciar o simples indivíduo humano da “pessoa”
3.
como homem na posse de uma determinada condição ou estado
ii

f.
x
civil.” A herança da antiga noção de “pessoa” como máscara a ser
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'r'

usada ou como instituição (personalidade urídica)se encontra no


decorrer da Idade Média na expressão “gererepersonarn alicius” (no
sentido de representar alguém, vestir a máscara). Assim o pontífice
podia apresentar-se como aquele que representa Cristo (“gerere
personam Christi”).25 E, quanto à importância da representação, a
pesquisa magistral de Ernst Kantorowicz mostrou que, nas exé-
quias dos soberanos, a efígie (a máscara) do rei morto exibida pu-
blicamente era garantidora da continuidade da monarquia.26
Portanto, o entrelaçamento interno do conceito e do uso de
“pessoa” _ de um lado “substância”, de outro “máscara”, de um
lado a individualidade inconfundível e única, de outro a intercam-
bialidade de um atributo transmissível a terceiros _ operou de
maneira profunda na história da civilização europeia até data re-
cente. No plano de fundo, garantindo sua inesgotável vitalidade,
permanece uma questão real de grande envergadura: a da consis-
tência e dignidade que o indivíduo pode opor às ameaças das gran-
des forças que pretendem conformá-lo e usá-lo como instrumento,
quando não até destruí-lo. A tentativa de tomar a natureza como
base de direitos fundamentais e determinados, a ser garantidos
para todos os seres humanos, imprimiu sua marca na história das
declarações solenes que se sucedem desde o século xvni até os dias
de hoje. Mas, quando as condições reais se tornaram especialmen-
te ameaçadoras, recobrou atualidade o fundamento metafísico es-
pecificado pelo cristianismo como a posse individual de uma alma
enquanto substância criada por Deus e destinada à vida eterna. As

335
datas falam por si: foi em 1938 que Marcel Mauss, em um breve e
denso ensaio sobre a noção de “pessoa”, chamou a atenção para as
implicações religiosas em sentido cristão e a densidade teológica
do termo. “Foram os cristãos que transformaram a pessoa moral
em uma entidade metafísica.”27 Traçando sumariamente o dese-
nho histórico da noção de “pessoa”, como ideiaque os homens ado-
taram para a categoria do eu, o sociólogo francês ressaltava que a
passagem decisiva para a concepção moderna tinha se dado com a
doutrina cristã da imortalidade da alma individual e com a conde-
nação (em 1513, no Concílio lateranense v) das doutrinas filosófi-
cas que a negavam. “A fé cristã na imortalidade da alma individual
colocara o fundamento da ideia moderna de 'pessoa°.”2¿" Era sobre
os fundamentos dessa concepção _ observou Mauss _ que Kant
e Fitche haviam construído a categoria do “eu”. Portanto, pode-se
dizer que “nossa noção de pessoa humana é ainda fundamental-
mente a noção cristã”.
A conclusão sumária e simplificada de Mauss assinalava im-
plicitamente uma verdadeira inversão dos pressupostos sobre os
quais seu mestre Emile Durkheim construíra a nova e revolucioná-
ria disciplina comum, a sociologia. A possibilidade de elaborar
uma ciência dos comportamentos sociais com leis próprias residia
basicamente no caráter coletivo das representações mentais, ou _
como Durkheim afirmou textualmente _ do princípio espiritual
propriamente dito, a alma. Para Durkheim, o princípio de indivi-
duação residia no corpo, enquanto a alma constituía um princípio
de identidade coletiva: “a noção de pessoa é o produto de dois tipos
de fatores. O primeiro é essencialmente impessoal: é o princípio
espiritual que funciona como alma da coletividade. E ele que cons-
titui a própria substância das almas individuais, mas não pertence
a ninguém em particular, faz parte do patrimônio coletivo”.29
Justamente o caráter coletivo e impessoal do “princípio espiritual”
garantia, por um lado, a possibilidade de estudar suas leis e, por ou-

336
tro, de controlar e dirigir seus desenvolvimentos. A resposta dos
historiadores, mesmo dos mais dispostos a reconhecer o valor da
renovação trazida pelas ideias de Durkheim, fora a enérgica reafir-
mação da unidade e do desenvolvimento interno do eu individual,
recusando-se a dissolvê-lo nas representações coletivas.” Mas o
inesperado retorno de Marcel Mauss aos fundamentos cristãos da
noção de “pessoa” é compreensível em vista do contexto, onde as-
sume um valor profético. O perigo iminente no horizonte europeu
em 1938 era a negação mais radical jamais vista do caráter sagrado
da pessoa humana. A Shoah viria a reapresentar a todos a necessi-
dade urgente de uma nova elaboração do passado, mas também de
uma renovada pergunta sobre o que constitui aquele valor agre-
gado da identidade individual que se condensa no termo “pessoa”.
Certamente não foi por acaso que o preâmbulo da Carta da oNU, em
1945, reforçou a profissão de “fé nos direitos fundamentais do ho-
mem”, com o acréscimo “na dignidade e no valor da pessoa huma-
na”. E desde então o termo passou a ter presença ritual nas declara-
ções solenes de autoridades internacionais. Incontestavelmente,
para além das analogias de conteúdo, há uma diversidade de tons e
nuances entre os que falam dos direitos do homem e os que prefe-
rem falar dos direitos da pessoa. Uma certa solenidade sagrada, ci-
vil ou explicitamente religiosa, é de modo geral o contexto onde
aparece o termo “pessoa” Uma rica literatura histórica, jurídica e
filosófica tem acompanhado as profissões de fé e as declarações so-
lenes. Os historiadores que se ocupam da questão têm trabalhado
com pesquisas analíticas sobre os desenvolvimentos teológicos e
jurídicos ocorridos no mundo cristão europeu entre os séculos xi-
-x11. Há também contribuições de estudiosos de diversas discipli-
nas, surgidas independentemente do ensaio de Mauss, sobre os
problemas da identidade e sacralidade da pessoa, sobre a elabora-
ção de tais valores na história da cultura e sobre o significado que
podem ter no presente.” Não se trata de um simples retorno aos va-

337
lores do cristianismo tradicional e à metafísica da alma: a religião
de nosso tempo toma a vida humana como um valor sagrado a ser
protegido, não aquela vida que no passado era projetada no Reino
dos Céus, e sim a vida terrena. Recentemente, a contribuição da en-
genharia genética para a demolição das categorias tradicionais da
identidade tem seguido também nessa direção. Se é preciso defen-
der o direito de todo ser humano à vida, cumpre esclarecer qual é o
momento em que se pode falar da existência de tal ser e como seus
direitos podem se acordar com os direitos dos outros. Os progressos
das ciências “da vida” fazem recuar o início da existência do ser hu-
mano até o momento da concepção e a primeira formação do em-
brião. E aqui se recoloca o problema da relação entre a mulher que
concebe e hospeda o novo ser humano e aquilo que está vivendo
dentro dela. A noção de “pessoa” e sua aplicabilidade ao embrião
tem sido discutida e elaborada de diversos pontos de vista.” Levanta-
se a questão dos direitos do embrião humano, e a noção de “pessoa”
é novamente submetida a exame, repercorrendo o que Habermas
definiu como “a disputa entre a filosofia e a religião pela herança”.33

Há muitas diferenças entre nosso presente e a época de Lucia


Cremonini: diferenças nos conhecimentos técnicos, nas relações
sociais, na cultura. A começar pela morte: ninguém mais pede a
certidão de batismo à entrada do cemitério. Mas, para quem não
nasceu, continua difícil morrer. Conseguiu-se regulamentar o en-
terro dos fetos com menos de 180 dias e dos natimortos: é, de todo
modo, um avanço em relação ao destino da criatura morta pela jo-
vem bolonhesa, que não foi sepultada e seu destino se confundiu
com o das almas penadas do folclore. E um progresso também em
relação aos problemas que, no Estado Pontifício oitocentista, im-
pediam o sepultamento de um recém-nascido batizado com fór-
mulas imprecisas.” Mas, para alcançar esse sucesso, mesmo que
restrito, foi preciso diferenciar entre “personalidade jurídica” e

333
., . . ¬.~-
\
Í

“pessoa”.35 O ainda não nascido que morre não é titular de direitos,


mas seu corpo não é redutível ao estatuto de coisa. Portanto é pre-
ciso distinguir: não pessoa, não coisa, mas sempre um ser humano.
Para chegar a tal conclusão, tem-se recorrido ao precedente histó-
rico do comércio dos escravos africanos, vendidos como coisas,
mas ainda assim seres humanos. É um dos inúmeros exemplos do
árduo e claudicante processo histórico de adequação entre relações
de força e regras sociais, entre concepções da natureza humana e
modos de tratar os seres humanos em sua concretude.
A condição do filho de Lucia Cremonini era, como vimos, a de
uma “criatura” sem nome, uma não pessoa. Isso devido à falta do
batismo. Assim, em seu caso, não operava aquela revolução trazida
pelo cristianismo, que consistia (segundo Marcel Mauss) justa-
mente em atribuir a todo ser humano a dignidade de pessoa como
possuídora de uma alma imortal. Se os juristas atuais se encontram
em dificuldades perante o problema de especificar a justa medida
entre os direitos da mãe e os direitos do filho, a Justiça do Antigo
Regime também teve seus embaraços. A teologia cristã se revelara
incapaz de resolver o problema fundamental, a saber, encontrar
para a alma dos recém-nascidos mortos sem batismo um local no
além que fosse ao mesmo tempo justo e definitivo. Era um ser sem
nome, um corpo privado da paz do campo-santo cristão, um espí-
rito destinado a vaguear desassossegado pelo mundo dos vivos.
Nenhuma Justiça, nenhum ressarcimento possível em seu caso.
Faltava julgar a mãe assassina.

339
A JUSTIÇA
Pois, e é este o terrível privilégio da nossa geração e do meu povo,
ninguém jamais pôde captar melhor do que nós a natureza irre-
mediável da ofensa, que se espalha como um contágio. É tolice
pensar que ajustiça humana a extingua.
Primo Levi, A trégua.

Deixou-nos esplêndidas metáforas e uma doutrina do perdão


que pode anular o passado.
Iorge L. Borges, Cristo na cruz.

O filho fora privado da vida na terra sem possibilidade de re»


compensa no além. Para ele, a justiça de Deus _ medida angular
da Iustiça humana _ apresentava como único recurso 0 limbo, um
não lugar, uma não vida. Esse destino, que a muitos se afigurava
cruel e inexplicável, tinha como base teológica, no mundo católico,
a necessidade de justificar a obrigação de se ministrar o batismo às
crianças. Mas, por trás dos argumentos dos teólogos, ocultava-se
um desconforto cultural de profundas raízes diante do problema

343
de situar na classe dos mortos quem não vivera. Esse desconforto se
expressava em muitos detalhes, sobretudo na impossibilidade de
dar nome e sepultura a um ser que perdera a vida logo ao nascer.
Definitivamente não lhe era reconhecido o direito de uma identi-
dade individual.
Ora, a Iustiça precisava proferir o julgamento da mãe infan-
ticida.
Quanto a ela, as fontes nos ofereceram até agora um retrato
impreciso, que pode se somar ao de inúmeras outras mulheres que,
antes e depois, foram processadas pelo mesmo crime. De início
confinada ao silêncio pelo crime indizível que cometera, depois
empenhada em mentir para se salvar, por fim abandonada e inde-
fesa na confissão como numa rendição incondicional: nunca en-
contramos um traço individual seu, o sinal de uma pessoa não con-
fundível com outra.

344
1. A sentença: “ Ut moriatur et anima
ab eius corpore separetur”

Em 16 de janeiro de 1710, como vimos, reuniu-se o conselho


criminal: entre outros, apresentou-se ao cardeal legado, ao vice-
-legado, ao ouvidor do Torrone e demais membros daquele órgão
incumbido das ações penais o processo de Lucia, que, agora, havia
chegado ao fim. Pelas regras de praxe, a redação e a execução da
sentença ficaram a cargo do ouvidor do Torrone.
Na terça-feira seguinte, dia 21 de janeiro, o ouvidor mandou
lavrar a citação de Lucia para o primeiro dia útil imediatamente
seguinte _ portanto, dia 22 _ para a leitura e execução da senten-
ça. A citação lhe foi entregue pelo oficial de justiça do tribunal,
chamado Carlo Zucchini. A sentença estava vazada em um latim
floreado, solene, repleta de fórmulas retóricas e reiterações _
“Dicimus, pronunciamus, decernimus, declaramus et difiinitive sen-
tentiamus” _ que espelhavam uma decisão grave e inexorável; a
própria sonoridade devia ser aterradora e talvez nem tenha sido
preciso que alguém se encarregasse de traduzi-la para Lucia ou
mesmo de lhe explicar o sentido. Antepondo e repetindo a invoca-
ção do nome de Deus e de Cristo, o doutor Marco Venturini, roma-

345
no, ouvidor do Torrone de Bolonha em nome do Santíssimo Padre
em Cristo papa Clemente xl, incumbido de conhecer e decidir os
processos tratados em sua presença, resumiu a história de Lucia até
o parto e o infanticídio, destacando-lhe a natureza de ato delibera-
do com a intenção de esconder a gravidez ocorrida; lembrou que
aquela gravidez já fora percebida por várias pessoas; descreveu com
detalhes mencionados no processo o momento e os movimentos
da morte do recém-nascido e as intenções de se desfazer do peque-
no corpo; por fim, condenou Lucia Cremonini, filha do quondam
Nicola da Manzolino, à pena do suplício máximo, a ser aplicada
mediante a forca. As amplas volutas da caligrafia notarial, de ele-
gância serena, ornavam um texto que à imaginação nada deixava
sobre os terríveis momentos da execução: a condenação devia ser
realizada o mais rápido possível no local costumeiro da Iustiça e lá,
sob as altas traves erguidas a tempo pelo ministrador da Justiça,
Lucia devia ser pendurada pela corda, de modo a morrer e ter a
alma separada do corpo (“ita ut moriatur et anima ab eius corpore
separetur”). O ouvidor assinava com sua letra o extremo a que po-
dia chegar sua autoridade. Quanto a Lucia, devia ser convocada ao
amanhecer do dia seguinte para ouvir a leitura da sentença (“ad
audiendam sententiam”) e sofrer imediatamente a execução. A
pena capital era infligida para punir um crime capital e dar exem-
plo a todos (“ut ei sit condigna poena delicti et in aliorum transeat
exemplum”). Não estavam previstos agravamentos de pena, como
os indicados pela constituição imperial de Carlos v, a terrível
“Carolina”. O auto correspondente foi lavrado em 22 de janeiro.
Depois foram afixados nas esquinas da Piazza Maggiore pequenos
cartazes (“polizzini”) que anunciavam: “Esta manhã enforca-se
Lucia Cremonini da Comuna de Manzolino, habitante de Bolonha,
na Vila de S. Pietro, por infanticídio cometido com faca na pessoa
do próprio filho então nascido vivo. Em fé etc. Neste dia de 22 de
nl
janeiro de 1710 .

346
Lucia Cremonini foi enforcada. Seu corpo não foi sepultado,
e sim entregue às aulas de anatomia pública, um grande espetáculo
para 0 povo que lotava a praça durante o Carnaval bolonhêsf
No espaço de um ano Lucia passara do carnaval da festa para
o da forca. A multidão da Piazza Maggiore, que ela engrossara no
Carnaval de 1709, teve como espetáculo especial no ano seguinte a
oportunidade de assistir às incisões em seu corpo de mulher.
O fascículo se encerra com o registro de uma última prática
judiciária: o capitão Giovan Francesco Brunetti, alcaide de Bolo-
nha, entrou com uma petição escrita solicitando que lhe fosse ou-
torgado o prêmio habitual para quem capturava em flagrante um
culpado de crime capital, isto é, a possibilidade de libertar um ou-'
tro “bandido capital por crime semelhante ou menor”: foi-lhe con-
cedida. Certamente foi um bom negócio para uma classe de esbir-
ros notória por sua corrupçãofi A morte de Lucia foi a passagem de
volta de algum assassino ou salteador qualquer para a vida civil bo-
lonhesa. Ignoramos o seu nome.

Esse é o resumo simples dos acontecimentos que constam nos


autos. Mas a história da morte de Lucia não se encerra por aqui. A
preparação e a execução de um homicídio como ato de justiça sem-
pre foram muito diferentes do assassinato privado. A esse respeito
cabem as considerações de um grande estudioso sobre a pena de
morte na Grécia antiga: “Se a condenação à morte fosse uma solu-
ção puramente material do problema da responsabilidade, e não
apenas a manifestação brutal de uma paixão quase instintiva, um
passeio pelo jardim dos suplícios teria como único interesse a
curiosidade: mas não é assim”.4

E que assim não é demonstra-0 a extraordinária atenção que


sempre se dedicou à descrição e à análise das condenações capi-
tais: histórias de condenados, de seus crimes e castigos, descrições

347
de ritos e máquinas punitivas; e depois, em escola crescente, pes-
quisas sobre os sistemas judiciários e as estruturas do poder para
entender, por meio e para além dos casos individuais, as relações
de força e as dinâmicas sociais da Justiça. No entanto, ainda é di-
fícil compreender o significado da execução pública nas socieda-
des do Antigo Regime, se nos detivermos diante dos aspectos mais
imediatos e evidentes do teatro público do horror, do espetáculo
do sofrimento, baseado na exibição daquilo que Michel Foucault
definiu como “o esplendor dos suplícios”. Entre nós e a Justiça pe-
nal que condenou Lucia Cremonini interpõe-se uma transfor-
mação de grande importância: a batalha de todos os que, na
Ilustração _ Cesare Beccaria e Pietro Verri em primeiro lugar _,
combateram seu uso e discutiram sua legitimidade com argu-
mentos que levaram os governos esclarecidos a aboli-la, e que
ainda hoje travam novos combates reformadores. A pena de mor-
te e as práticas da Justiça penal se afiguravam àqueles críticos
como um sofrimento injustificado, inútil, improfícuo. Mesmo
assim, é preciso entender o que sustentou sua prática nos séculos
de história daquela cultura cristã que tanto investira na explora-
ção da natureza humana. A construção erigida pela cultura sobre
a privação legal da vida era um edifício de arcadas imponentes,
para o qual contribuíram o céu e a terra. Ao avaliar retrospectiva-
mente suas antigas formas, corremos o risco de não perceber mais
sua força de persuasão e sua capacidade de sustentar as estruturas
profundas da vida coletiva. Isso não significa cair no extremo
oposto daqueles que extraíram dos aspectos rituais e do conteúdo
religioso das execuções uma teoria geral da cultura, fundada na
decifração de um hipotético segredo oculto no assassinato como
sacrifício humano? Robert Hertz escreveu que a morte de cada
indivíduo “assume para a consciência social um significado pre-
ciso, torna-se objeto de uma representação coletiva em que os
elementos são tão complexos e mutáveis que demandam meticu-

343
losas análises e pesquisas sobre sua origem”.6 Isso se aplica espe-
cialmente à morte decretada pela Justiça: é, por definição, uma
morte desde o início subtraída à natureza, fruto exclusivo da cul-
tura. A ideia de Justiça que unificava aquela sociedade era assim
chamada a uma prova decisiva.

349
2. “Acolhida e consolada”

Depois de detida, Lucia ficou encerrada nos cárceres do tribu-


nal criminal do Torrone. Saiu de lá apenas para ser submetida aos
interrogatórios. As portas da prisão se lhe abriram pela última vez
no final da tarde de 21 de janeiro, quando recebeu a notícia da sen-
tença. Assim soube que lhe restava apenas uma última noite e que
seria conduzida ao patíbulo no amanhecer do dia seguinte.
Mas, logo após a decisão do tribunal, outras vozes e presenças
preencheram o espaço do cárcere, particularmente de três homens.
Sabemos seus nomes: Antonio Francesco Codrone Argeli, Carlo
Antonio Bedori e dom Nicolõ Maria Bernardi. Chegaram à prisão
vindos de não muito longe, do palácio do senador Pietramellara.
Trajavam os mantos da Irmandade de Santa Maria da Morte: o
Cavaleiro Codrone Argeli era o prior da irmandade, Carlo Antonio
Bedori possuía o título de “mestre” e dom Nicolõ Maria Bernardi,
o de “discípulo”. O “discípulo” trazia nas mãos uma folha onde re-
gistrou nos devidos lugares tudo o que aconteceuf A ficha era or-
ganizada em forma de questionário impresso e prestava-se às refle-
xões dos irmãos, com o propósito de tornar o trabalho deles mais

350
eficiente. As perguntas do questionário seguiam a sucessão estrita
das horas da última noite, compreendida entre a leitura da senten-
ça e a execução: noites funestas, noites melancólicas, como as defi-
niram os membros daquela Escola.-2 Os mais tristes pensamentos
assaltavam o condenado e eram transmitidos aos que haviam esco-
lhido ficar a seu lado. Na linguagem dos consoladores, aliás, não se
falava em condenado, mas em “aflito” ou“paciente”. Na ficha usada
para a “paciente” Lucia pode-se acompanhar hora a hora o que lhe
aconteceu naquela última noite entre a tarde de terça-feira, 21 de
janeiro de 1710, e a manhã seguinte. E, como os consoladores de-
viam interrogá-la sobre seus sentimentos e prepará-la para enfren-
tar a morte, são principalmente os indícios e expressões de seu es-
tado de espírito que se encontram registrados.
Diante da pequena procissão solene dos irmãos laicos, vesti-
dos com o manto que os distinguia nas mais importantes manifes-
tações sacras da cidade, as grades da prisão se abriram e a prisionei-
ra foi confiada a seus cuidados. Os tornozelos de Lucia estavam
desagrilhoados, sem correntes nem algemas; caso inusitado, pois
normalmente, para evitar acessos de desespero ou tentativas de
fuga do condenado, os grilhões eram considerados indispensáveis.
Eram retirados apenas a uma certa altura da noite, quando o pen-
samento da morte já ganhara formas devocionais e o condenado
deixara de ser perigoso, tornando-se vítima resignada. Certamente
Lucia deve ter dado provas suficientes dessa resignação. Libertada
dos grilhões, pode-se imaginar que ela, como Sócrates tantos sécu-
los antes, também sentiu aquela efêmera felicidade que brota da
cessação da dor. Não ficaram no cárcere, como usualmente aconte-
cia, a empreender a obra de consolação que era prerrogativa da
Irmandade. O pequeno cortejo se dirigiu novamente ao palácio do
senador Pietramellara. Procedeu-se assim, relata Carlo Antonio
Bedori, para evitar o “tumulto que ocorreu outras vezes em casos
semelhantes de mulher condenada”. A convocação dos irmãos na

351
igreja da Morte, a uma pequena distância do cárcere, a saída em
procissão para a entrega do condenado, provocavam a curiosidade
de multidões ruidosas, ainda mais propensas a se emocionar no
caso _ raro _ da condenação de uma mulher.
Assim sendo, foi um palácio da aristocracia senatorial de
Bolonha que hospedou a condenada em sua última noite. No alto
da escadaria, Lucia foi “recebida e acolhida com toda a caridade e
compaixão”. “Ajoelhou-se aos meus pés”, relata Bedori, “rogando a
Deus perdão por seus pecados. Erguida, lacrimejante, introduzi-a
na residência ( o que foi comentado várias vezes por estar malvesti-
da) .” Em torno da jovem malvestida e em prantos, naquela grande
sala aquecida pela lareira acesa, reuniram-se pessoas importantes,
membros ilustres das instituições da cidade: os magistrados do go-
verno, os doutores da universidade.
A humilde mulher em prantos não parecia, contudo, apavora-
da com seu destino. A principal pergunta a que os consoladores
deviam responder referia-se justamente ao estado de espírito do
condenado: o consolador devia descrever “suas maiores tentações”.
Podiam ser muitas: o desespero diante da morte iminente, a vergo-
nha pela multidão que assistiria ao escárnio do corpo, o pesar pelos
entes queridos, 0 desejo de vingança contra quem havia colabora-
do para a sua captura e condenação. Eram sentimentos de enorme
intensidade: os irmãos tinham uma longa experiência a esse respei-
to e dispunham de enorme documentação sobre o assunto? Todo
o empenho deles consistia em afastar o ânimo do condenado desses
pensamentos, mostrando-os como tentações diabólicas para im-
pedir a salvação da alma. Mas, mesmo em sua cultura teológica,
começava a se firmar a ideia de serem aqueles sentimentos naturais,
tormentas do espírito totalmente previsíveis, sem necessidade de
intervenções do demônio: pouco tempo depois, mandaram impri-
mir nas fichas o termo “paixões” em lugar de “tentações”. Restava a
realidade de uma passagem dificílima de operar. Tamanho era o

352
pavor pela prova extrema à espera do condenado ao alvorecer que
não eram raros os casos de suicídio. No entanto, Lucia “não teve
tentação alguma, mas totalmente resignada com a vontade de Deus
ouvia com atenção o que lhe era sugerido para a salvação de sua
alma”. Um sinal de seu estado de espírito foi a presteza com que se
confessou e comungou. O diálogo com o consolador havia come-
çado a apenas uma hora quando ela se confessou pela primeira vez;
depois seguiram-se novos diálogos com 0 confessor e novos mo-
mentos de penitência sacramental. Depois veio a comunhão, que
ela recebeu “com grande ternura de devoção”.
Uma mulher se ocupou constantemente de Lucia e de suas ne-
cessidades; nesse gesto de confiar a condenada aos cuidados de
quem podia se aproximar dela sem a barreira das diferenças de
sexo, reconhecemos não tanto uma excepcional delicadeza, e sim a
eficácia daquela barreira em determinar automaticamente os mo-
dos de funcionamento das instituições. O ambiente acolhedor e
hospitaleiro não se limitava a tais aspectos, tampouco sua principal
oferta eram os confortos físicos. Lucia foi confortada espiritual-
mente. Os dois membros da associação bolonhesa, Carlo Antonio
Bedori e dom Nicolõ Maria Bernardi, permaneceram o tempo in-
teiro a seu lado. O primeiro _ o mestre _ lhe sugeriu que se pre-
parasse para a morte como passagem para a verdadeira vida. Lucia
não apenas “resignou-se à vontade de Deus”, mas “de vontade pró-
pria se recomendou caridade dos circunstantes”. O pedido sussur-
rado por Lucia foi transmitido “em voz alta” pelo consolador aos
presentes. O episódio posterior permite compreender o que se en-
tendia por caridade: caixinhas para esmolas circularam e as doa-
ções em dinheiro foram imediatamente registradas em moeda de
valor espiritual, isto é, missas a serem celebradas em sufrágio da
alma. Era o sinal tangível de uma ligação que os vivos se empenha-
vam em manter com Lucia após sua morte. A privação da vida pas-
sava, assim, para um segundo plano, simples forma de salvar a ver-

353
dadeira vida: a condenação perdia o significado de exclusão da
comunidade humana.
Dessa maneira, todo o sofrimento presente se tornava a ga-
rantia de um aumento da felicidade futura. Lucia mostrou ter plena
consciência dessa inversão cristã dos valores e grande disponibili-
dade para sofrer. Um exemplo: estava com sede, mas decidiu aguen-
tá-la, “com entusiasmo para suportar ou negar a própria vontade”.
Depois da sede, a fome: o repasto do condenado era um compro-
misso fundamental nos ritos da Justiça. Geralmente era lauto, com
abundância de alimentos e bebidas. Lucia, no entanto, preferiu
passar sede e a duras penas aceitou a sua última refeição. Tratou-se
de um repasto leve, pelo que dá a entender o termo usado (“reƒet-
tione”). Foi nesse momento que Bedori decidiu abordar o tema da
execução e explicar delicadamente a ela “o que deveria acontecer”.
Lucia recebeu a informação “com coragem”. Perguntou à mulher
que ficara ao seu lado a noite toda “se o Aringo (o sino da sede da
prefeitura) soava para as mulheres”. A mulher respondeu que acha-
va que sim. Lucia, “ [...] toda alegre, disse que quando executaram
Malcontenti, ao ouvir o sino, ela rezou por ele alguns Pai-Nossos, e
por isso ela queria rezá-los também para si”.

Benedetto Malcontenti fora executado em 7 de maio de 1707,


quando Lucia tinha vinte anos: morrera mostrando-se “paciente e
constante”, mesmo quando foi torturado no banquinho e seguiu
para a morte mantendo cravados os olhos na imagem de um cruci-
fixo, manifestando sentimentos de inquietação apenas por “suas
criaturas que deixava necessitadas e desprovidas de assistência para
serem sustentadas e guiadas no santo temor de Deus”.4 Talvez tenha
sido precisamente por causa desses sentimentos de um pai que dei-
xavaiórfãos desassistidos que a lembrança daquela execução per-
manecera especialmente gravada na memória de Lucia. Depois de
Malcontenti e antes de Lucia, as atas da Irmandade da Morte regis-

354
Í
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-:J¡\

tram outros três casos com as mesmas características de compor- J,521


«E
tamento exemplarmente edificante e devoto. Mas Lucia só se lem- ã
l
brava de Malcontenti. Tinha se comovido e fizera para o condenado i
ll

algo que agora desejava para si mesma.


Era chegada a hora. Ouviu-se o badalar do sino. Era a manhã \.

de 22 de janeiro. Todos os presentes rezaram uma oração. Lucia ¡'I


Í.
il

“ouviu destemida, embora com ternura, a hora de ir para o patí- lí

bulo”. Comoveu-se, portanto. Mas deu prova de coragem no per-


curso do palácio Pietramellara até a Piazza di San Petronio.
“Totalmente resignada com avontade de Deus”, ouvia o que o con-
solador lhe dizia “para a salvação de sua alma”. Tinha se confessa-
-zt -_.¬z .=-u› z=_|¬¿«‹._¡-

do, recebera a comunhão. Indagaram-na sobre os assuntos da fé e


se demonstrara “bem informada sobre 0 necessário para a confis-
são e outras coisas concernentes à saúde das almas, como clara-
Í
mente se expressou ao responder às indagações feitas a esse respei- I

to”. As palavras exatas do diálogo não sobreviveram. E talvez as


palavras fossem secundárias. A ficha do irmão encarregado da ta-
refa, tal como foi redigida pelo discípulo que o ajudou, não con-
serva os discursos proferidos, mas descreve as passagens de um
ritual preciso, feito de orações, sacramentos, estados de espírito.
Fato é que a candidata que se oferecia à inspeção dos instrumentos
de consolação estava bem preparada e colaborava integralmente.
Assim, demonstrava familiaridade e apreço pelo que lhe era ofe-
recido. O consolador alimentou essas disposições espontâneas
“com atos de fé, esperança, caridade e amor a Deus, exposições de
Escrituras sagradas, Evangelho, vidas dos santos mártires”. Um lu-
gar especial foi reservado à santa do dia, Inês, a mártir heroica do
cristianismo na Roma pagã: seu modelo foi apresentado à infanti-
cida enviada à morte pelas autoridades do papa da Roma católica.
Lucia revelou uma insuspeitada experiência nos assuntos da devo-
ção ao rezar o terço, e acrescentou uma devoção especial: sete Pai-
-Nossos e sete Ave-Marias para as dores da santa Maria Virgem e de

355
são José. Descobriu-se que estava inscrita nas ordens do Carmo e
do Rosário. A mãe assassina escolheu a Virgem como “sua
Advogada” e invocou ainda são José e santo Antonio de Pádua
como advogados no tribunal divino. Instruída desde pequena nos
ritos da Igreja, conhecia bem suas orações e seus sacramentos; ins-
crevera-se nas ordens reservadas à sua idade e à sua condição.
Conhecia a existência dos protetores celestes: aVirgem, os santos.
Invocou alguns pelos quais tinha especial devoção.
Tudo isso foi ouvido e registrado pelos dois consoladores que
estiveram a seu lado no caminho até o patíbulo, que fora erguido
naquela mesma noite. Nas laterais da Piazza Maggiore foram afixa-
dos a tempo os cartazes impressos com a notícia da execução e o
convite para 0 comparecimento da população. O sino do Arengo,
com sua mensagem, alcançara todos os cidadãos. As autoridades
queriam, como de costume, que a execução lograsse seu efeito edu-
cativo e assustador, e por isso estimulavam de todas as maneiras a
afluência em massa à grande praça, dominada pela basílica de são
Petrônio e pelos palácios do poder. Mas não foram necessários os
convites especiais. A execução de uma mulher já era um evento ex-
cepcional. Assim, Lucia seguiu seu trajeto abrindo caminho entre
uma enorme multidão, sem se deixar distrair. Inteiramente con-
centrada em suas devoções, talvez ela tenha conseguido não ver o
cenário da praça e fitar apenas as imagens dos mártires que os con-
soladores carregavam nessas ocasiões. Chegou assim à banqueta,
onde o carrasco foi a seu encontro, pediu-lhe perdão pelo que ia
fazer e amarrou suas mãos: Lucia “estendeu voluntariamente as
mãos às cordas, perdoou o executor e seguiu sempre a minha
voz” _ registrou o consolador _“com grande espírito, mantendo
sempre os olhos na tabuleta, como me prometera ao entregar a
Deus os sentimentos do corpo”.
Aqui começa a última etapa da viagem. Lucia a percorreu ou-
vindo as orações e recomendações do consolador e respondendo

356
“com o espírito habitual”. Aos pés do patíbulo “reconciliou-se”, úl- ii

-1
J!
timo ato de penitência ministrado pelo sacerdote. Galgou a escada í
~l
i
L

até o primeiro patamar, onde pendiam as cordas para o enforca- .

mento. Dali dirigiu-se espontaneamente ao povo na praça. Não


sabemos exatamente o que disse. O consolador registrou que ela “se «-=ni-_Y._ ;.I\ n¢zfl"¿"l
'r

entregou por vontade própria ao povo”. Na tradição italiana, não se Ê

previa um verdadeiro discurso do condenado, coisa que em outros É


5

locais (na Inglaterra da época, por exemplo) era uma etapa obriga- ',_'.,¬,_,'. _-
5

tória das execuções capitais. O fato é que Lucia sentiu necessidade


de fazê-lo e, também nisso, demonstrou aquele “grande espírito” 1

que a animava.
Depois de subir no patíbulo, estendeu a cabeça para as duas
cordas que formavam o laço para o enforcamento. Nesse momento
ocorreu um acidente: o carrasco, que, pelo visto, fora bastante lo-
quaz ao pedir perdão, aproximou-se dela desembainhando um
cutelo. Depois se soube que ele pretendia cortar a fita de um cruci-
fixo que Lucia trazia ao pescoço. Mas um grande murmúrio atra-
vessou a multidão que acompanhava a cena com intensa emoção.
Não era incomum o carrasco degolar pessoalmente o condenado,
caso o enforcamento não funcionasse. E tal foi o temor de Lucia
que, segundo o relato de uma crônica, “vendo a faca amedrontou-
-se e começou a tremer e gritar: 'pobre de mim, quer me degolar, oh
Deus, oh Deus°”.5 Mais elaborada foi a interpretação do consolador,
segundo a qual o povo receou que Lucia, ao ver a faca, relembrasse
a faca de cozinha com a qual matara seu filho. Era, na verdade, uma
apreensão dele: todo o trabalho empregado para apartar a conde-
nada das lembranças da vida corria o risco de se perder. Mas, na-
quele momento, o burburinho da multidão demonstrava comoção
e piedade pela vítima. O rito do perdão mútuo eliminara a execra-
ção da delinquente. Naquela altura, bastaria um daqueles aciden-
tes, que às vezes interrompiam uma execução e apareciam como o
sinal milagroso de uma misericórdia divina superior, para que a

357
emoção coletiva se traduzisse numa vontade de salvar a vida da
condenada.
Não foi assim. Entre os gritos da multidão e os lamentos da
condenada, o carrasco fez seu trabalho. Realizou-o de maneira es-
pecialmente desastrada:

O carnífice a assassinou mantendo seu tormento por um bom tem-


po, tirando-lhe do pescoço um crucifixo que se costumava colocar
no pescoço dos moribundos para a indulgência plenária in articolo
mortis. Quando viu a faca, soltou um grande grito, entregando-se,
contudo, a Deus; por fim abateu-a sob a grita do povo e depois não
conseguiu topá-la com os pés, de modo que a fez sofrer. Por isso ele
foi levado à prisão.

Assim foi, portanto, a cena dos últimos instantes de vida de


Lucia: um carrasco com um cutelo, empoleirado nos ombros da
vítima, em uma praça abarrotada de gente aos berros. Em meio ao
clamor, houve, segundo o consolador, uma ilha de intensa devoção:
Lucia morreu com uma última palavra nos lábios _ “Jesus”.

Ao final da leitura desse relatório, uma constatação se impõe


com toda a evidência: essa Lucia não se parecia em nada com a
protagonista do processo por infanticídio. Não é a mesma pessoa
que encontramos nos autos. Sobreveio algo que transformou a
assassina encerrada no silêncio numa doce e destemida candida-
ta ao autossacrifício. Lucia mudara. Os membros da irmandade
dispunham de um antigo termo para designar tal mudança: con-
versão. Era isso o que procuravam obter. Com Lucia, houve pleno
sucesso.
Era possível aprender a morrer na forca, e Lucia aprendera,
assim como aprendera a rezar à Virgem e a santo Antonio nas ir-
mandades a que pertencia, e da mesma forma como aprendera seus

358
deveres de “moça honrada” na paróquia de Santa Maria della
Mascarella. Uma vez reconhecida a função que lhe era designada,
palavras e comportamentos medravam espontaneamente; não
restava mais nada daquelajovem assassina, “simples”, à beira da es-
tultícia em seu silêncio e nos fragmentos de explicações obviamen-
te inverossímeis apresentados ao escrivão do tribunal. Agora que
não se tratava mais de conseguir um dote e um matrimônio, na-
quele estágio impossíveis, mas de aceitar morrer daquela maneira
“para a salvação de sua alma”, tudo parecia ter se tornado mais fácil:
de súbito afloravam a“coragem”, o“sentimento de suportar”,“gran-
de espírito”; e ela se mostrava “bem informada sobre o necesssário”,
“destemida”, capaz de tomar iniciativas e de falar com eloquência,
como quando “de vontade própria entregou-se à compaixão dos
presentes”. Uma metamorfose extraordinária: a Lucia que, com os
olhos cravados na“tabuleta” (isto é, a imagem de Cristo crucificado
carregada pelo consolador), se encaminha para o patíbulo para
oferecer um exemplo de morte cristã não é mais uma infanticida
condenada e execrada. É uma mulher corajosa que manifesta seu
arrependimento e aceita a própria morte. E o faz de maneira tão
profundamente convicta a ponto de aparecer aos olhos dos irmãos
“consoladores” como uma santa que se prepara para o martírio,
vinculada à comunidade dos fiéis pelas orações em comum e pron-
ta para enfrentar a viagem rumo ao paraíso.
Se Lucia aparece transformada, os outros tampouco parecem
os mesmos. A jovem órfã e pobre, quando foi encarcerada e proces-
sada por infanticídio, viu-se objeto de uma atenção institucional
eficiente e impassível, quase um objeto negligenciável aos olhos de
um tribunal que devia realizar seu trabalho e que o concluiu no
prazo mais curto possível. Uma vez proferida a sentença, tudo mu-
dou: ela foi tratada com o maior cuidado pelos membros impor-
tantes da sociedade, suas palavras foram ouvidas e registradas com
uma devoção diligente, seus atos receberam a atenção de uma mul-

359
tidão comovida. A execração que havia pronunciado palavras de
condenação até mesmo da própria mãe agora era substituída por
uma atitude compassiva e solidária.A execução que devia ser o mo-
mento culminante do percurso punitivo, a morte que devia com-
pensar o crime nefando se transformaram no ritual coletivo de um
perdão reciprocamente pedido e concedido por todos. Se no palá-
cio Pietramellara os confrades de Santa Maria della Morte haviam
demonstrado dedicação afetuosa e compartilharam os sofrimen-
tos da jovem mulher que estava para encontrar a morte, na apinha-
da Piazza Maggiore da cidade é a multidão inteira que participa do
rito da morte e estabelece com a condenada um vínculo de frater-
nidade baseado no perdão recíproco. A pena é o preço a ser pago
pela graça, a morte do corpo se torna a oferenda necessária para a
salvação eterna da alma. O perdão é a outra face da punição. No fi-
nal do rito da Justiça, Lucia Cremonini não é mais a infanticida re-
negada pela sociedade humana por ser culpada de um crime nefan-
do, digna de ser rejeitada pela humanidade: com ela, arrependida e
pronta para morrer, a multidão se reconciliou. Quem a envia para
a morte pede-lhe perdão e proteção do além, como se fosse uma
santa ainda em vida. E ela, condenada pelo crime mas absolvida do
pecado, enfrenta a morte acompanhada pelo arrependimento e
pelo perdão da cidade.

360
3. Arrependimento e perdão

Mas rogai a Deus que perdoe a todos nós.


François Villon.

eu teperdoo perdoa
tu também, não ao corpo que nada teme,
esim a alma
Torquato Tasso, Jerusalém libertada, xn, 66.

“Arrependimento e perdão”, escreveu Natalia Ginzburg, “são


sentimentos humanos. Como todos os sentimentos humanos, nas-
cem entre conflitos interiores, e como todos os sentimentos huma-
nos, mudam e se transformam a cada instante.”1 Mudam _ com
maior razão _ de uma época para outra. A cena que vimos não
pertence à história dos sentimentos de nossa época, consciente da
fugacidade dos indivíduos e empenhada em igual medida em con-
solidar as defesas da coerência individual. Na época de que estamos
falando, o arrependimento e o perdão eram muito mais do que um

361
sentimento individual: assemelhavam-se mais a princípios consti-
tucionais que deviam inspirar o funcionamento das instituições. O
arrependimento estava também na base de um sacramento funda-
mental no mundo católico, que devia ser acatado segundo as nor-
mas determinadas pelo Concílio lateranense Iv e reafirmadas pelo
Concílio de Trento: a confissão anual dos pecados. Com o tempo,
as obrigações determinadas pelas normas passaram a ser cada vez
mais suplantadas pelos comportamentos espontâneos de uma po-
pulação que se dirigia de vontade própria à purificação periódica
dos pecados cometidos, aproveitando ao máximo a oferta eclesiás-
tica da remissão das culpas. O perdão a ser pedido e concedido,
aliás, estava no centro da oração que cada qual devia obrigatoria-
mente saber rezar para ser admitido aos sacramentos, o Pai-Nosso;
e se nem todos ousavam rezá-lo integralmente, era porque, sentin-
do-se incapazes de perdoar aos outros, temiam pronunciar com as
palavras da oração a condenação divina de si mesmos. Mas 0 senti-
mento de culpa e injustiça pessoal e o desejo de obter a paz tranqui-
lizadora do perdão divino eram amiúde tão fortes a ponto de gerar
a doença mortal dos escrúpulos, a angústia de não conseguir ser
perdoado. Arrepender-se verdadeiramente era difícil; e por isso
também aumentava a aglomeração diante dos confessionários, o
local que garantia o perdão sacramental mesmo no caso de um ar-
rependimento falho. Assim, o sacerdote se tornava o ouvido de
Deus e podia agir como juiz e médico ao mesmo tempo, perdoar as
culpas e curar os males da alma.
A culpa de Lucia fora revelada, julgada e punida por um siste-
ma judiciário encarregado do controle e repressão dos crimes, e
não pelo confessor. O fato de que o poder de arbitragem fosse com-
posto por eclesiásticos não anulava a diferença entre o sistema reli-
gioso das culpas e 0 sistema mundano da punição em nome de um
poder terreno. A distinção entre culpa moral e crime era funda-
mental no sistema das relações entre religião e política; mas os li-

362
mites se modificavam com o tempo, como vimos no caso do infan-
ticídio. Na época do processo de Lucia, a divisão dos campos já
estava definida: mesmo no Estado Pontificio, onde os dois poderes
estavam reunidos na mesma pessoa e um eclesiástico decidia os as-
suntos criminais, as infanticidas podiam ser absolvidas pelo con-
fessor com a imposição de penitências mais ou menos pesadas, mas
eram punidas com a morte pela lei do Estado? O confessor depois
comparecia ao rito de justiça como encarregado da salvação da
alma do condenado, e devia ter uma grande precaução em não ali-
mentar esperanças de graça terrena. Na execução da sentença que
separaria a alma do corpo de Lucia, a confissão sacramental foi
uma passagem indispensável. Lucia se confessou logo após ser re-
cebida no palácio Pietramellara. E, a partir daí, criou-se o clima de
simpatia e calorosa solidariedade que devia marcar todo o rito. O
confessor, pronto a acolher e abolir um remorso tardio, uma culpa
esquecida, manteve presença discreta e constante a seu lado duran-
te a noite de vigília e o percurso público até o patíbulo. Logo antes
de ser levada à forca, a condenada “ficou em paz”, pedindo e obten-
do o perdão de seus pecados. Alcançou assim o estado de paz com
Deus e, por meio dele, com a cidade ofendida por seu ato. Naquela
paz composta de arrependimento e perdão residia o sentido pro-
fundo de um antigo modo de conceber e buscar justiça. Pelos ele-
mentos que conservava desse modo antigo, o sistema penal que
enviou Lucia à morte não era apenas uma máquina para atingir os
criminosos.
O rito da justiça nos países católicos e protestantes realizava-
-se com diferenças substanciais. Nos países protestantes, o ato de
arrependimento e o pedido de perdão desapareceram em parte ou
por completo, ao passo que no mundo católico ainda constituíam
o cerne do rito. Aqui se alcançara uma complementaridade simbó-
lica total entre a punição do corpo e a salvação da alma, entre o car-
rasco e os consoladores, entre a justiça humana e a justiça divina,

363
entre a morte terrena e a vida celestial? E escusado lembrar que a
necessidade de justiça era a raiz profunda da religião, tanto a cristã
como todas as demais religiões dominadas pela figura do Deus juiz.
Na sociedade cristã europeia, múltiplos vínculos de tipo teórico
foram elaborados, principalmente jurídicos e teológicos, entre a
Justiça como sistema público de crimes e castigos e a justiça como
extirpação privada do pecado e da culpaf* A ruptura da unidade do
cristianismo ocidental na época da Reforma protestante e da
Contrarreforma católica fora consumada em torno da seguinte
questão: como o homem poderia se afigurar justo diante de Deus?
Mas, para as Igrejas cristãs, mesmo que divididas entre doutrinas
teológicas conflitantes sobre a justificação do pecador, continuava
firme e inconteste o postulado que sustentava a um só tempo o céu
e a terra, sistemas teológicos e formas de convivência política: a en-
trega do destino da alma imortal ao juízo de Deus, última e impers-
crutável instância onde buscava refúgio a necessidade humana de
uma justiça fundada no conhecimento pleno de toda e qualquer
vida humana, e justamente por isso capaz de uma piedade absoluta.
Na longa tradição dos tratados dedicados à alma humana e à fé em
sua sobrevivência no além, encontra-se frequentemente, de ma-
neira mais ou menos explícita, o tema da exigência de justiça. A
própria experiência cotidiana das injustiças do mundo, a violência
dos prepotentes, a inocência oprimida serviam de argumento para
a esperança de que deveria haver uma reparação. Um reformador
de cultura humanista, Filippo Melantone, havia deixado isso espe-
cialmente claro em um tratado sobre a alma em 1553: “Nesta vida
vemos muitos homens honestos mortos por ladrões e tiranos que
continuam impunes”. Era necessário, portanto, admitir a existên-
cia de uma outra vida onde haveria um acerto final de contas _ lá
Deus retribuiria segundo os méritos e ressarciria quem sofreu in-
justiças. Se assim não fosse, seria de se concluir que “a melhor parte
da espécie humana foi criada para a clesgraça”.5 Era um argumento

364
utilizado desde longa data, e que continuou a ser empregado sem
distinção de barreiras confessionais; sabia-se que era o ingrediente
fundamental para dar substância sólida àquela fé em coisas espera-
das, a saber, a esperança de justiça e de misericórdia. Uma confir-
mação disso se encontra na leitura apologética dos missionários
às voltas com interlocutores difíceis de convencer, como eram os
ateus no mundo europeu e os seguidores das religiões orientais que
ignoravam a noção de um Deus pessoal e de uma alma individual.
Em tais casos recorria-se exatamente a este raciocínio: deve existir
um juiz supremo para garantir recompensas para os bons e castigos
para os maus. Assim escreveu o jesuíta Martino Martini em um tex-
to destinado aos chineses; e foi também por esse caminho que en-
veredou outro jesuíta, Daniello Bartoli, o qual não encontrou uma
maneira melhor de repelir o desafio do ateísmo de sua época como
proposta de uma vida sem redenção no além:

Ora, se a alma morre junto com o corpo, onde os celerados desco-


nhecidos e tantos outros que se subtraem à justiça humana resistin-
do, fugindo, enganando, encontrarão o castigo que merecem? E
como não estarão em pior condição os melhores, e o vício não será
mais afortunado do que a virtudeió

De um lado, a amargura pelos sofrimentos impunes dos ho-


nestos, de outro, o desdém por quem se esquiva às punições, sendo
distinta a ênfase dada pelo luterano e pelo jesuíta. Mas a ordem do
universo que resultava forçosamente da necessidade de justiça era
a mesma para ambos, aquela que a teoria coperniciana vinha ero-
dindo. Foi o que o jesuíta escreveu com toda a clareza: a condição
do homem no universo era a prova mais evidente da providência
de Deus, que colocou “o céu em cima, o inferno em baixo e nós no
meio, entre a misericórdia que nos eleva e a justiça que nos
afunda”.7 Seria preciso se afastar radicalmente das opiniões tradi-

365
cionais para que um leitor de Lucrécio e Newton tivesse a ideia de
situar o inferno não nas profundezas da terra, e sim, de uma vez
por todas, no sol.8
Tradicionalmente, consideravam-se tarefas fundamentais do
cristão preparar-se para a morte, prevê-la, não se deixar colher
inesperadamente. A sabedoria antiga tinhareservado um lugar
central ao convite de pensar a própria mortalidade. “Conhece a ti
mesmo”, diz a frase em grego sob a imagem de um esqueleto hu-
mano num mosaico do Museu Nacional romano. Não temer a
morte era sinal da superioridade do sábio e a demonstração do
nobre desprezo do herói pela vida. Na cultura cristã, a morte mu-
dou de figura, deixando de ser um fato dado e inalterável e tornan-
do-se um fim a ser almejado, como passagem da existência terrena
à vida eterna, único caminho verdadeiro. Mas um ponto funda-
mental permaneceu o mesmo: podia-se aprender a morrer. A pas-
sagem final da vida era ato a ser adequadamente encenado após
longa reflexão a respeito. Também para a cultura cristã, o pensa-
mento da morte devia operar relativizando a experiência imedia-
ta e projetando-a sobre a tela da eternidade. Era preciso combater
a si mesmo para dominar os sentidos. Era uma luta da alma contra
o corpo. E o combate devia durar até o fim. Ora, é verdade que
quem testemunharia essa batalha não seriam os outros, a comuni-
dade, e sim o próprio Deus, juiz que era impossível enganar.
Contudo, para impedir uma possível sobreposição entre o ideal
estoico do sábio e o do cristão santo, preservou-se não só a espe-
rança da sobrevivência oferecida pela religião, mas também o ca-
ráter comunitário da sociedade dos fiéis, da Igreja. Devia-se apren-
der a morrer também para legar ao outro um modelo exemplar de
morte cristã, a morte do santo. A comunidade garantia a tutela e a
intercessão protetora. A todo momento invocava-se a esperança
para dominar o medo da morte, sentimento universal e original
que se exprimia na oração devota mais difundida: a prece de en-

366
trega da alma antes de dormir aquele sono noturno que era um
parente distante da morte. Na oração da noite, escreveu padre
Giovanni Pozzi, “os estados de espírito daquele que ora [...] são o
medo e a incerteza da sobrevivência”.9
A morte cristã podia representar a verdade da vida de duas
maneiras opostas, a revelação e a revolução: revelação de um dado
profundo, marcado desde o início por um imutável decreto de pre-
destinação, revolução como mudança possível até o último instan-
te. A ideia da conversão do pecador inseria a descontinuidade na
antiga noção da verdade da vida como coerência constante dos
comportamentos. Um traço distintivo que permaneceu no fundo
de todas as diferenças históricas e sociais da maneira cristã de mor-
rer foi a noção da verdade final como algo capaz de contrariar toda
a vida pregressa. Mesmo como reação à ideia da inabalável predes-
tinação agostiniana, a expectativa da reviravolta imprevista e salví-
fica se estendeu ao derradeiro momento, ao último movimento, à
extrema “lagrimazinha” (Purgatório, V, 107). Para o cristão, até o
final havia a possibilidade de escolher o caminho certo, de se con-
fiar a Deus e gozar os frutos da redenção. E, mesmo para os que
acreditavam na predestinação divina como decreto original e imu-
tável, continuou inalterado o dever de se empenhar na pregação do
Evangelho e no exercício da conversão dos pecadores, com a única
finalidade de exaltar a glória de Deus. Eis por que o momento da
morte se tornou o momento da verdade, em sentido completa-
mente diferente do da sabedoria antiga. Foi assim que a preparação
para a morte passou a ocupar espaços cada vez maiores da expe-
riência. A tradição religiosa cristã, com sua distinção fundamental
entre alma (a ser salva) e corpo (a ser punido), deu aos rituais da
execução capital características que se mantêm idênticas durante
séculos, em contextos tão radicalmente diferentes como as praças
das cidades medievais europeias e a morte tecnológica executada
numa prisao norte americana moderna.”

367
Mas, por trás do mesmo quadro teológico e da semelhança
entre os ritos, identificam-se mudanças profundas nas funções da
consolação cristã aos condenados. Os consoladores de Lucia se re-
feriam à antiguidade das origens de sua irmandade como argu-
mento para celebrar a nobreza da instituição. Em sua sede, locali-
zada no centro da cidade, conservam-se ainda memórias seculares
e uma rica biblioteca de textos dedicados ao estudo da melhor ma-
neira de desempenhar aquele papel que foi definido por antono-
másia como “a função”: a consolação dos “aflitos”. A menção às
origens fazia parte integrante da consciência dos membros da ir-
mandade sobre o trabalho que realizavam. Os estatutos dos conso-
ladores começavam lembrando que a tarefa de socorrer as almas
“mais aflitas e tristes” era exercida pela irmandade fazia “já trezen-
tos anos”. “ Naquele início do século XVIII, o vice-chanceler da insti-
tuição, Carlo Antonio Macchiavelli, aproveitou-se do cargo para
inventar títulos de nobreza para si, com falsificações canhestras. Ao
reorganizar os manuscritos e gravuras da biblioteca dos consola-
dores, colocou nos frontispícios das cópias de um manuscrito do
século xv o nome de um antepassado fantasmagórico, Luigi di
Leonardo di Antonio Macchiavelli.” E um exemplo daquela ten-
dência à invenção da tradição que os historiadores conhecem bem,
e que no plano individual consistia na invenção da genealogia. Mas
é também prova da importância e reverência prestada àquela insti-
tuição, que podia por si só conferir uma espécie de nobreza retros-
pectiva. Quanto aos méritos da obra exercida pelos consoladores,
os inúmeros manuais e tratados reunidos na rica biblioteca da ir-
mandade ilustravam a sua serventia nos dois sentidos, tanto para
quem recebia quanto para quem prestava: a “do útil bem que se re-
cebe do socorro e ajuda àqueles que salvamos [...] coisa tão clara
que não necessita de prova alguma”, escrevera o capuchinho Carlo
Verri de Cremona, no final do século xvn. Bastava refletir sobre o
valor das almas salvas aos olhos de Deus e, mais ainda, sobre a efi-

368
cácia das “orações das almas que com nossa ajuda voam aos Céus,
onde intercedem pelas nossas necessidades”. Mais próximas a Deus,
não encontrariam dificuldade em obter justa mercê para quem as
ajudara a se converter e, portanto, a se salvar. O mínimo que se po-
dia esperar, para os consoladores, era a garantia de uma “passagem
feliz nas últimas horas de nossa vida”.”' Mas havia também razões
concretas que sustentavam e garantiam a importância da irmanda-
de na sociedade citadina: consolidavam-se na função desenvolvida
por seus membros visando a apoiar e integrar as ordens políticas e
sociais existentes, tendo como efeito a legitimação dos poderes pú-
blicos. Nem sempre tinha sido assim. Na imensa linha de continui-
dade de uma prática fundada no código cristão da caridade, entre-
cruzaram-se duas maneiras distintas de conceber e representar a
relação entre a religião e o poder, entre a justiça de Deus e a Justiça
dos homens. Esses dois modos se inscreveram na história da insti-
tuição de que faziam parte os consoladores de Lucia. Podemos es-
quematizá-los assim: de um lado, havia a religião daqueles que se
sentiam chamados a consolar e ressarcir as vítimas de injustiças e
violências; de outro, havia uma religião que legitimava em nome de
Deus o uso da força e do poder contra os infratores da lei.

Não é difícil acompanhar o fio da história da instituição; são


evidentes os traços deixados ao longo dos séculos, proporcionais
ao reconhecimento cada vez maior da importância da irmandade
na vida da cidade. O núcleo dos consoladores, como grupo regido
por estatutos próprios, datava de meados do século xvi; cerca de
um século antes, em 1436, fora criada uma capela de Santa Maria
della Morte para os que quisessem “submeter-se ao suave jugo de
Jesus Cristo”, isto é, tentar alcançar um nível de perfeição superior
“com orações e outras obras espirituais”.“ Recuando ainda mais
no tempo, encontramos uma confraria laica, a “societas battuto-
rum de morte et misericordia”. Sua presença na cidade fora marca-

369
da pela administração de um hospital, para assistência aos pobres,
doentes e peregrinos, e por uma outra espécie de atividade bene-
ficente que lhe deu sua característica específica: ir “ad iustitiam”,
“associare liomines ad iustitiam”. Isto é, acompanhar os condena-
dos ao suplício.
Os vestígios mais distantes são vagos e incertos, sinal de que o
percurso de jusante a montante está chegando ao fim. Já não há es-
tatutos formais nem claras escriturações contábeis; algumas doa-
ções testamentárias _ de um escrivão em 1365, de um mercador
em 1348, de uma mulher em 1347 _, o nome de um prior da socie-
tas que comprova sua existência em 1340 e, por fim, o trecho de um
testamento de 1338 que aponta como sendo sua marca distintiva
justamente a prática de “ir à justiça”. '5
As origens da irmandade se associam a um daqueles movi-
mentos coletivos liderados por pregadores improvisados e chefes
espirituais que, naquela época, davam voz a inquietudes e ansieda-
des generalizadas. O caminho havia sido aberto pelos Flagelantes
do século anterior; em Bolonha e em outras cidades formaram-se
irmandades cujos traços distintivos eram a “disciplina” _ isto é, o
hábito de fustigar-se em sinal de penitência _ e o exercício das vir-
tudes caridosas em relação ao “próximo”. A fundação do hospital
de Santa Maria della Vita havia sido a realização mais significativa
da “devoção” do século x111 na cidade de Bolonha. A Irmandade da
Morte, como vimos, também mantinha um hospital e o uso da fla-
gelação caracterizava igualmente a vontade penitencial de seus
membros, mas seu traço distintivo era a prática de acompanhar os
condenados ao patíbulo. Para entender por que o cadafalso foi to-
mado como um problema específico e importante entre tantos ou-
tros da sociedade da época, talvez possamos contar com o auxílio
do iniciador desse movimento devocional. Foi um frade dominica-
no, Venturino de Bergamo, protagonista naqueles anos 1330 de
uma ousada pregação. 16

370
FreiVenturino estava com cerca de trinta anos quando passou
a ser conhecido como pregador; já trazia em sua bagagem uma ten-
tativa inicial de embarcar em Veneza rumo ao Oriente para evan-
gelizar os muçulmanos. A ideia da cruzada dominou toda sua bre-
ve e irrequieta existência, que chegou ao fim em Esmirna em 1346.
Mas sua cruzada foi muito especial. Antes de ir para o Oriente, ele
atravessou a Itália, de Bergamo a Roma, à frente de um séquito
sempre crescente, “mais de dez mil lombardos”, relatou Giovanni
Villani, que os descreve vestidos em hábitos brancos como os dos
dominicanos,~“com manto azul-celeste ou marrom-escuro” e so-
bre o manto “uma pomba branca gravada com três folhas de olivei-
ra no bico”.” Este movimento da pomba foi mencionado em diver-
sas cidades da Itália centro-setentrional por volta de 1335. Dizia-se
na época que, quando Venturino pregava, as pessoas viam uma
pomba descer dos céus. O frei admitiu mais tarde ter percebido vá-
rias vezes que o povo o olhava com espanto e murmúrios durante
a pregação, porque, como lhe disseram depois, viam uma pomba
descer dos céus com o bico flamejante. Em todo caso, tal era o sím-
bolo do movimento: simbolizava o Espírito Santo, que falava pela
boca de Venturino, mas significava também uma mensagem de
paz, como sugeria o raminho de oliveira. De fato, como relata ainda
Villani, seus seguidores “vinham pelas cidades da Lombardia e da
Toscana em grupos de vinte ou trinta, e cada brigada com sua cruz
à frente, gritando 'paz e misericórdia”.
Naqueles anos, clamar pela paz era coisa habitual nas cidades
italianas percorridas por Venturino. Tão habitual que Ambrogio
Lorenzetti pensou em erigir, como coroamento de seu “bom gover-
no”, uma célebre imagem feminina da paz, trajando uma túnica
alva e segurando um ramo de oliveira _ e isso apenas três anos de-
pois da passagem de frei Venturino por Siena. Essa imagem de uma
vida citadina ordenada e tranquila era um ideal tão mais almejado
na medida em que a crônica cotidiana era perpassada por violentos

371
ódios recíprocos e cenas de vinganças sanguinárias. Os cronistas da
época legaram um amplo e comovido testemunho das violências e
vinganças, mas, acima de tudo, transmitiram o assombro que tais
acontecimentos despertavam naqueles que queriam entender o
sentido e encontrar uma solução para aquilo. A pregação itineran-
te de frei Venturino de Bergamo também foimarcada por aquela
descoberta da violência. No entanto, ao contrário dos que pediam
um endurecimento das penalidades, lamentado-se que “o mal com
lei não se pune” (como escreveu Dino Compagni),18 ele se conven-
ceu de ter uma solução de eficácia rápida e definitiva. A solução era
a cruzada.
Venturino narrou a seus juízes de Avignon a inspiração que
recebera após três semanas de meditação e de silêncio. Passara todo
o tempo refletindo sobre o problema da conversão dos pecadores:
“bomicidas, sacrilegos, incendiarios et incestuosos”.19 E todos os de-
mais que tanto dificultavam as condições de vida nas cidades cris-
tãs. Não era difícil convertê-los, pensava Venturino, difícil era tor-
ná-los perseverantes e impedir que voltassem a praticar o mal.
Diariamente, no sucesso de suas prédicas, ele via como era fácil
chamar os pecadores à penitência:“iu1/enes lascivi et pomposi, alii-
quepeccatores horrendi”, após as desconfianças das primeiras abor-
dagens, eles acorriam e se declaravam arrependidos e prontos para
a expiação. Então frei Venturino teve a ideia de organizar uma gran-
de peregrinação a Roma, acolhendo todos aqueles pecadores arre-
pendidos. A escolha de Roma se justificava, conforme depôs peran-
te os juízes avignoneses, por ser um local de peregrinação, tal como
Santiago de Compostela. Mas a essa razão somava-se outra, mais
confusa, referente à presença da sede papal e à possibilidade de en-
contrar ali tribunais eclesiásticos com a competência de perdoar
crimes especialmente graves. A sede papal, na verdade, tinha sido
transferida para Avignon, mas Roma, naturalmente, conservava
um fascínio especial para quem, como frei Venturino, sonhava com

372
uma espécie de renovaçao geral da Itália sob a égide da paz (“ totius
zu.,

Italie pacis reƒormationem”). Assim iniciou sua peregrinação.


Como insígnias, frei Venturino deu aos seguidores o hábito de pe-
regrino, uma cruz branca e vermelha para segurarem, e o emblema
da pomba com o ramo de oliveira em sinal de misericórdia e de paz;
além disso, o chapéu do peregrino trazia aquela cruz em forma da
letra tau que fazia mais de um século ressurgira nos movimentos
coletivos de peregrinos e cruzados como “sinal de eleição, mas ain-
da mais de proteção”.2° No entanto, essa peregrinação coletiva foi
acolhida com desconfiança; as cidades fechavam suas portas dian-
te do movimento da pomba, “propter timorem”. Venturino foi obri-
gado a renunciar ao projeto de levar, unidos, aqueles milhares de
seguidores a Roma. Portanto, dividiu-os em grupos de doze, per-
manecendo ele à frente de um grupo mais numeroso. Mesmo as-
sim, muitas cidades se recusaram a acolhê-los: Milão, Mântua,
Ferrara, entre outras, não quiseram receber os peregrinos. Em al-
guns casos, o pregador conseguiu entrar com estratagemas, lo-
grando depois êxitos tão espetaculares que, segundo ele, teve de se
esconder e sair da cidade “ de nocte per muras cum scalis”. Eram pre-
gações, pelo que relata Giovanni Villani, “não [...] de sutis sermões
nem de profunda ciência, mas [...] muito eficazes e com uma boa
eloquência e santas palavras”. As palavras do movimento eram três:
“penitência, paz e misericórdia”. A penitência não era palavra nova,
enquanto a paz e a misericórdia _ aspirações tradicionais do mun-
do cristão medieval _ assumiam um novo sabor ao se referirem
especificamente à realidade dos marginais e perturbadores da vida
civil. Foi a esse problema que frei Venturino dedicou suas reflexões
antes da peregrinação a Roma. Não bastava buscar a pacificação
dos conflitos ferozes no interior das comunidades, com o arrepen-
dimento temporário dos impetuosos, se depois eles recaíam nas
mesmas inclinações condenáveis. E eis que surgiu a ideia da cruza-
da: eram os anos em que tudo o que não ia bem parecia se resolver

373
a esse preço. Levar a agressão para o exterior, remover de um só
golpe o inimigo da fé que pressionava as fronteiras da Europa
cristã e os inimigos internos, violentos e malfeitores, transforma-
dos em cruzados; restaurar o modelo da santidade baseado no
martírio, lavar com o sangue as próprias culpas e destruir com a
espada abençoada por Deus o inimigo da fé. Venturino aprimo-
rou a ideia: a sua seria a cruzada dos criminosos. Era possível reu-
nir uma expedição de cinquenta mil homens “ de peioribus totius
Italie”, que frei Venturino julgava fácil arregimentar, e levá-los à
Terra Santa para morrer por Cristo. Assim, removidos os respon-
sáveis pelos distúrbios e pela criminalidade, a vida das cidades
italianas recuperaria a tranquilidade.
À tradição do “despertar” devoto que animara e comovera as
cidades italianas nos séculos xln e xlv, frei Venturino contribuía,
como vimos, com um projeto pessoal de cruzada às avessas, por as-
sim dizer, organizada não para deter o avanço dos infiéis, e sim para
eliminar do corpo da cristandade os infiéis internos, isto é, aqueles
que não aceitavam se adaptar ao projeto de uma paz cristã. A ideia
de arrastar para fora da Itália cinquenta mil criminosos era fruto de
uma preocupação constante com os problemas de ordem pública,
somada ao anseio de salvar a alma daqueles mesmos criminosos.
Ele apresentava as penas sofridas na terra como um possível
ressarcimento das culpas daqueles que haviam se maculado peran-
te a justiça divina. Essa anulação das penas e esse intercâmbio entre
méritos e culpas foram possíveis graças ao eixo em torno do qual
girava todo o sistema teológico mais geral: a humanidade de Cristo,
ou melhor, a encarnação e a paixão do filho de Deus. A teologia que
Santo Anselmo expusera em seu Cur Deus homo dera voz àquele
tipo de concepção das relações entre homem e Deus que também
servia de modelo para as relações internas da sociedade humana, a
saber, a ofensa que maculara Adão quando do pecado original fora
herdada por toda a família humana, tal como ocorria normalmen-

374
te na relação entre linhagens familiares em conflito nas cidades me-
dievais. Membro da parentela humana, Cristo podia ser a vítima
necessária para a vingança divina; o sangue derramado por ele pa-
recia uma oferenda muito convincente para quem via um derra-
mamento diário de sangue em vingança de antigas ofensas e divi-
sões entre as partes.21 Tal como Cristo, pondo-se no lugar de Cristo,
o condenado à morte via-lhe oferecida a transformação de sua
morte vergonhosa e dolorosa em um sacrifício voluntário para si e
para os outros.
Dissemos: “tal como Cristo, pondo-se no lugar de Cristo”. O
convite para lembrar a paixão de Cristo, que frei Venturino dirigia
aos condenados, apoiava-se na sólida base de um dado fundamen-
tal e constitutivo do cristianismo, a memória de uma execução ca-
pital: a crucificação. O deus dos cristãos tinha sido um condenado
à morte; os ritos da religião não deixavam de repisar constante-
mente esse dado original. Ao lado de Cristo, os mártires do cristia-
nismo compunham uma galeria imensa de condenados à morte
por vontade do Estado e pela mão dos homens. O caráter histórico
da religião cristã remetia continuamente a momentos, aspectos,
instrumentos de sangrentas execuções. O exemplo de Cristo, por-
tanto, era um modelo que podia se adaptar ao caso dos justiçados.
Mas, para isso, era preciso desconsiderar que a sentença de morte
na Europa cristã emanava de um poder também cristão e que re-
metia àquela crucificação como fundamento de sua legitimidade.
Daí a necessidade de designar as devoções das irmandades de jus-
tiça com o nome de personagens intercessores, que poderiam
abrandar a justiça com o exercício da misericórdia: a Virgem, são
João Batista (são João Decapitado). Mas a ideia de que o sangue do
condenado guardava alguma relação com o sangue de Cristo pai-
rava sobre o rito da justiça. O sangue de Cristo havia gerado a Igreja
e a regenerava diariamente por meio do rito da missa, repetição real
dos episódios do Calvário. Ao “sacrossanto mistério do altar” cabia,

375 5
segundo Inocêncio 111, restaurar a paz entre Deus e os homens, mas
também pacificar os homens entre si. Isso significava que se devia
recorrer a ele não só para abrir as portas do reino celeste aos ho-
mens, mas também para lhes permitir viver pacificamente nas ci-
dades. Aos poderes do sangue de Cristo, entendidos como poderes
atribuídos ao sacramento da Eucaristia, devia ser aplicado, multi-
plicado por cem, aquilo que se revelara a respeito do sangue huma-
no dos mártires: no bem e no mal, nada se igualava a eles. Assim se
entende o esforço sem precedente, no mesmo momento em que
toda a legislação eclesiástica impunha aquele sacramento na práti-
ca social, para controlar rigorosamente a custódia mais zelosa não
só da hóstia, mas também das formas rituais da consagração; o se-
gredo e o monopólio exclusivo do clero sobre todos os usos e co-
nhecimentos nesse âmbito protegiam um conjunto de poderes
cuja extensão não dava margens a muitas dúvidas. Eram poderes de
vida e de morte, não só nas versões difundidas na magia popular e
na necromancia, como também nos usos legítimos da missa.
Rezavam-se missas não apenas como autoproteção, mas para pro-
teger os amigos e os parentes vivos ou defuntos, e também para
golpear os inimigos, para lhes trazer ruína e morte.” Os poderes do
sangue de Cristo ocupavam todo esse vasto território que ia da de-
voção legítima e das práticas de culto à magia e à heresia, do ano
litúrgico à vida dos indivíduos e à história do mundo.
Aquela paz que o sacerdote invocava antes de proceder ao
“fractio panis” durante a missa tinha um inimigo no condenado à
morte: a condenação o expulsara da comunidade, o sangue que ele
estava para derramar era o preço visível daquele rompimento da
comunhão e da paz, que deviam se recompor ao preço de sua vida.
Portanto, entre o sangue de Cristo e o do condenado havia uma as-
sociação possível ao menos por contraste; não admira que, desde o
início, tenha-se pretendido sanar esse contraste e resolver radical-
mente essa ruptura da unidade e da paz que a condenação, por si só,

376
simplesmente sancionava. Converter o condenado e proporcio-
nar-lhe uma morte cristã, exemplar, santa, era a única maneira de
eliminar a oposição entre o sangue humano derramado no patíbu-
lo e o sangue pacificador e salvífico de Cristo, transformando-se a
execução da vingança em ritual de concórdia e de perdão.
Tais pensamentos provavelmente animavam os primeiros
membros da irmandade bolonhesa; e com certeza animaram uma
mulher cujos pensamentos se tornaram exemplares na Itália tre-
centista e em toda a cristandade ocidental: santa Catarina de Siena.
Como Venturino de Bergamo, santa Catarina também procurou
resolver o problema das dilacerações políticas e sociais da Itália de
sua época com a receita da cruzada. Seu pai espiritual e biógrafo,
frei Raimundo de Cápua, diz ter estado presente no encontro entre
a mística sienense e o papa Gregório xl, quando trataram precisa-
mente da cruzada. Os argumentos que Catarina teria usado então
eram muito semelhantes aos de Venturino _ a cruzada como meio
para lograr a paz entre os cristãos e a salvação das almas daqueles
violentos que, à beira da danação, sacrificassem a própria vida.”
Derramar o sangue na cruzada podia solucionar o problema da
violência humana. O sangue amaldiçoado dos violentos possuía
uma força intrínseca que poderia torná-lo sangue abençoado; a
violência era apenas uma faceta da energia humana capaz de des-
truir, mas também de criar. Derramar o sangue destruía a paz _ a
paz era o bem supremo da comunidade; mas aquele mesmo sangue
podia salvar a comunidade e devolver-lhe a paz. E um conjunto de
intuições e pensamentos que giravam em torno da ideia da
Eucaristia como sangue divino derramado ritualmente e associado
ao rito da promessa de paz recíproca. Aplicado aos problemas da
sociedade e à presença da violência como mal cometido pelos ho-
mens, esse pensamento se convertia em um projeto que vinculava
a salvação das almas dos maus à paz da comunidade, como objeti-
vos exequíveis por meio de uma morte cristã dos maus; por outro

377
lado, a cruzada dos delinquentes se configurava como uma espécie
de condenação à morte coletiva, que incluía o perdão de todos os
pecados. Assim, a condenação à morte perdia o caráter de vingança
para assumir o de uma ocasião excepcional oferecida ao pecador
para obter um perdão total das culpas. Entende-se por que o recur-
so a uma medida em oposição tão flagrante ao mandamento cris-
tão “não matarás” levantava tão raras objeções nas consciências da-
quela época _ à exceção de pequenos grupos heréticos como os
valdenses e sua intransigente defesa do literalismo evangélico, não
se encontra praticamente nenhuma outra contestação da legitimi-
dade da pena de morte durante todo o período examinado.”
Deve-se a Catarina de Siena a proposta de uma outra maneira
de interpretar a condição do condenado à morte. Sua contribuição
para o nascimento de uma devoção dos condenados trouxe a mar-
ca especial de um misticismo feminino feito de uma intensa parti-
cipação pessoal no drama da vítima da justiça. Aos homens cabia
julgar e organizar as cruzadas, às mulheres restava o poder da prece
e da assistência aos moribundos. Entre seus milagres, Raimundo de
Cápua destaca em especial a conversão de dois condenados à mor-
te: Catarina estava na casa de uma filha espiritual quando os viu na
carroça do verdugo, percorrendo a cidade. Os dois se obstinavam
em não se arrepender, recusando-se a confessar, e davam um péssi-
mo exemplo ao povo que tinha acorrido para vê-los. Os algozes os
torturavam com ganchos e tenazes ardentes, mas o que mais trans-
tornou Catarina não foram os sofrimentos físicos dos dois conde-
nados, mas a ideia de sua danação eterna e a visão de uma horda de
demônios ao redor deles. Sua prece, relatada pelo biógrafo, é cons-
truída em torno do personagem evangélico do bom ladrão: e, como
o bom ladrão, os dois condenados sienenses foram levados ao arre-
pendimento ao verem as chagas e o sangue de Cristo. Admitiram
publicamente a culpa, declararam-se merecedores de penas ainda
maiores e morreram louvando e agradecendo a Deus por ter-lhes

373
dado a oportunidade de se arrependerem. Enfim, como o bom la-
drão, os dois _ graças à intercessão de Catarina _ passaram dos
tormentos terrenos para a glória do paraíso, da condição de delin-
quentes execrados à de espíritos beatos. E uma metamorfose que
ressurgiria amiúde nas relações entre a cultura cristã e o patíbulo:
é como se, vindo a faltar os mártires da fé, fossem fabricados inces-
santemente novos mártires com os materiais disponíveis, mesmo
que não fossem de primeira qualidade. A vítima conduzida à mor-
te era apresentada à possibilidade de passar, num átimo, da lama ao
altar, do desprezo e da execração à glória do paraíso. Com isso, a
temida morte real terminava ficando de lado para trazer ao primei-
ro plano o risco da morte da alma.
Mas é na célebre carta de Catarina sobre o caso de Niccolõ di
Toldo que se encontra o sinal mais profundo que ela imprimiu em
toda a história da consolação cristã dos condenados.” Ao jovem
nobre de Perugia condenado à morte em Siena por razões políticas,
Catarina levou “conforto e consolação”. Graças a ela, o desespero do
condenado cedeu lugar a uma “grande mansidão”. Niccolô, por
amor a Catarina, chegou “alegre e forte” ao local da execução, como
se fosse um casamento:

Vendo-me, começou a rir e quis que eu lhe fizesse o sinal da cruz; e,


recebido o sinal, disse eu: Ajoelha-te para as núpcias, meu doce
irmão, pois então estarás na vida duradoura! Ajoelhou-se com gran-
de mansidão, e eu lhe ergui a face, inclinei-me e lhe recordei o sangue
do cordeiro: sua boca não dizia senão “Jesus” e “Catarina”, e assim
dizendo acolhi sua cabeça em minhas mãos, detendo o olhar na
divina bondade, dizendo: Eu quero! V
Então via-se Deus e Homem, como se visse a claridade do sol, e
estava aberto e recebia sangue em seu sangue: um fogo de desejo
santo, dado e oculto em sua alma pela graça, recebia o fogo de sua
divina caridade. Depois que recebeu o sangue e seu desejo, e recebeu

379
sua alma e a colocou na bodega aberta de seu lado, pleno de miseri-
córdia, manifestando a primeira verdade que somente pela graça e
misericórdia ele recebia, e não por nenhuma outra operação [...]
Entregue ele, minha alma repousou em paz e quietude, em tanto
odor de sangue que não pude me impedir de limpar seu sangue que
caíra sobre mim.” 2

Essa página extraordinária não é apenas o documento de uma


experiência mística isolada e excepcional _ os traços ordinários de
um aspecto da vida social da Europa cristã oferecem uma chave
para sua compreensão. E preciso levar em conta, antes de mais
nada, o fato de que Niccolõ de Toldo, provavelmente condenado
por razões políticas, era o bode expiatório de uma situação tensa na
cidade. Tratava-se, portanto, de uma condenação injusta, vivida
com uma recusa total: antes que a intervenção de Catarina o trans-
formasse em um “anjo” manso, Niccolö fora um “leão” na sua recu-
sa desesperada de uma morte oprobriosa. É provável ainda que
aquela atitude de desespero e revolta tivesse feito malograr as ten-
tativas de consolo da irmandade sienense, a qual se constituíra na
cidade poucos anos após a passagem de frei Venturino, e que se in-
cumbia de tais questões. A intervenção de Catarina fora de outra
espécie. Não há sinais de que o condenado tenha aceitado a senten-
ça, pelo contrário, há uma ousada identificação entre o sangue do
justiçado e o sangue de Cristo, condenado inocente por definição.
O sangue de Niccolõ e o sangue de Cristo não mais se diferenciam,
e é por isso que Niccolõ aceita morrer, pois naquele momento en-
carna a pessoa de Cristo, torna-se Cristo. O ritual de amor e morte
consuma-se numa atmosfera de apaixonada concentração e sacra-
lidade rarefeita: “estando a multidão do povo, eu não conseguia
enxergar ninguém”. Consequentemente, a vítima é o próprio
Cristo: “banhado em seu sangue, que valia pelo sangue do Filho de
Deus”. Seu sangue difunde a paz e elimina o opróbrio do patíbulo.

380
Para Catarina, “paz” e “quietude” se seguem à execução, como efei-
to dela. Quanto ao local, aos instrumentos, a tudo que se relaciona-
va com a execução das sentenças capitais _ ofício que ocupava o
último degrau entre os mais infamantes no sistema medieval da
honra _, aquele sangue produz uma total inversão dos valores (“o
local santo da justiça”).
Na exaltação mística da transformação do condenado na figu-
ra de Cristo estava presente o risco de uma inversão cristã da reali-
dade mundana. O poder político não podia tolerar uma ameaça
desse gênero. Já a própria contraposição potencial entre condena-
ção jurídica e absolvição sacramental despertava resistências. É cé-
lebre o caso do rei Carlos v1 da França, que negou aos condenados
a permissão de confessar os pecados a um sacerdote. Lei dura e in-
justa, segundo o chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson,
que lembrou o caráter sacramental da confissão eclesiástica como
um batismo renovado e denunciou a crueldade de transformá-la
em uma confissão judiciária (o condenado podia fazer no último
momento uma declaração de culpas e crimes até então não reve-
lados).27 Aquele dispositivo encerrava duas questões fundamen-
tais da relação entre poder e justiça. O problema de reconhecer qual
poder possuía o direito de conhecer os segredos do coração se mes-
clava com o temor de que a absolvição sacramental se afigurasse
como uma negação da sentença do soberano. A justiça do rei exigia
a sanção da justiça de Deus. Quanto ao conhecimento dos segre-
dos, era um objetivo fundamental do poder para garantir o acesso
aos conhecimentos e pensamentos mais recônditos: não foi à toa
que a santificação de João Nepomuceno, morto por não querer
desvendar os segredos da confissão sacramental, foi celebrada com
especial fervor em Turim pela Irmandade da Misericórdia, que cui-
dava dos condenados à morte.” Tais questões acompanhariam as
formas de caridade praticadas no mundo dos cárceres e dos patí-
bulos ao longo de todo o seu atormentado desenvolvimento. As

381
irmandades de consolação dos condenados conseguiram se man-
ter vivas apenas nas formas religiosas cívicas radicadas nas realida-
des urbanas italianas, apoiando-se na presença tenaz e consolidada
do poder sacro do Papado.” Mas persistiu latente o conflito entre
os dois poderes e suas respectivas exigências contrárias, que leva-
vam, de um lado, à execração do condenado e, de outro, à sua re-
denção espiritual e promoção a potencial mártir e santo. Disso
resultou uma fissura duradoura que também atravessou os respec-
tivos saberes, com divisões internas no mundo dos criminalistas e
dos teólogos. Se os primeiros concebiam a função puramente pu-
nitiva ou de reabilitação do sistema penal, os segundos discutiram
longamente se seria realmente possível obter a salvação na hora da
morte, quando já não era mais possível praticar nenhuma ação me-
ritória. A doutrina da justificação apenas pela fé, defendida pela
Reforma protestante, ajudou a alimentar as dúvidas de teólogos
católicos a tal respeito. De fato, ficou claro que a divisão dos poderes
e sua colaboração mútua passavam pela dicotomia alma-corpo. A
confissão e 0 arrependimento do condenado podiam permitir que
se reconhecesse “uma virtude expiatória e merecedora de graça”,
como escrevera um reacionário apologético oitocentista. Mas essa
graça, no regime penal moderno, agora se referia exclusivamente à
vida eterna da alma, não à terrena.”
Além disso, praticava-se a consolação para compartilhar dos
méritos daquela “virtude expiadora” ou, melhor, para aproveitar
uma ocasião importante para aperfeiçoar o próprio preparo para a
morte. Esse é um dado manifesto na nova sensibilidade em relação
ao problema da morte que se percebe após a grande Peste Negra e,
de modo geral, no decorrer do “outono da Idade Média”, como o
definiu Johan Huizinga. Daí brota a transformação das irmanda-
des “amplas”, de tipo popular, compostas por homens e mulheres,
em “escolas” ou entidades “restritas”, pequenas associações dedica-
das ao exercício da caridade em relação aos moribundos, e em es-

382
pecial aos condenados, como obra de elevação espiritual e aprimo-
ramento místico. Não por acaso, por trás do exemplo de santa
Catarina de Siena, outras mulheres animavam tais entidades, mes-
mo que de forma mais ou menos isolada.
Na sociedade citadina, cabiam às mulheres os cuidados com
os mortos no plano privado, devido àquela especialização no aten-
dimento ao corpo _ nascimento, alimentação, doença e morte _,
que era uma prerrogativa delas. No plano público, tiveram presen-
ça ritual como figurantes silenciosas. Os estatutos das cidades
medievais restringiram até mesmo as lamentações fúnebres femi-
ninas, determinando que não perturbassem a compostura dos ri-
tos numa cidade bem regulamentada.” Para as mulheres, a salva-
ção da alma dos condenados à morte se estabeleceu como um tipo
exemplar de milagre, que também podia ser realizado em segredo,
no recesso de um convento, como fruto exclusivo de uma ardente
caridade. No século xv, enquanto a assistência aos condenados se
tornava a prática favorita de aprimoramento dos membros do
Oratório da cidade, sóror Catarina de”Vigri realizou um desses mi-
lagres no convento bolonhês do Corpus Domini. Eis o relato apre-
sentado pela irmã sóror Illuminata: havia um homem que “devia
ser justiçado e queimado o qual por nenhuma consolação de ho-
mem humano aceitava se render à confissão, mas em sua ajuda cha-
mava o diabo”. Catarina “se sentiu repleta de incalculável dor” por
aquela “alma posta em desespero”, passou dia e noite em oração,
chorando “com os braços cruzados diante do sacramento” e pedin-
do como dádiva a alma do condenado, até que ouviu “a voz de
Cristo sair do sacramento e dizer: “A ti não mais posso negar, quero
que ela te seja dada e por ti salva°”.” Naquele instante um mensagei-
ro chegou e disse “que aquele malvado exigia entregar-se grande-
mente a suas orações, e se reduzira a grande penitência e pedia a
graça de lhe enviarem nosso confessor”. Levado à morte em igno-
mínia, montado em um asno, e depois queimado vivo, o condena-

333
do “foi ouvido muitas vezes a gritar e chamar 0 nome de Jesus”,
como a santa lhe havia sugerido por carta.”
Como mostram tais episódios, 0 que se procurava era a expe-
riência do efeito pacificador da morte cristã do condenado. Com 0
correr do tempo, tudo ficou mais estudado, previsto, organizado,
por obra de grupos masculinos (sempre menor o número de mu-
lheres), reunidos espontaneamente para praticar uma religião da
caridade que encontrou no ambiente urbano seu lugar por exce-
lência. As ordens laicas, às quais a religião oficial reservava um pa-
pel secundário e uma zona falha e imperfeita para a legitimação
sacra das diferenças sociais, reivindicavam agora uma nova liber-
dade de ascensão também religiosa. A mediação de novos corpos
intermediários constituídos em ordens religiosas laicas serviu para
difundir e controlar os impulsos de um protagonismo indócil e crí-
tico em relação ao corpo eclesiástico oficial. A irmandade que esta-
va no centro da religião ideal da caridade transformou-se em insti-
tuição: os membros das ordens terceiras passaram a ser chamados
de irmãos [ƒratelli] e irmãs [sorelle], a exemplo dos frades [frati] e
freiras [suore] . Em suas igrejas, sob a direção de alguns deles, a prá-
tica da caridade se consolidou em instituições que estimularam o
corpo social e deram vazão às energias dos voluntários das novas
devoções. O mercador das cidades italianas, especialista na arte do
comprar e vender, sentiu-se impelido a se tornar “mercador do
céu”.34 Ganhar almas, por amor a Deus, era o negócio mais impor-
tante e lucrativo.
Uma outra Catarina, em Gênova, estimulava naquela época a
caridade secreta de Ettore Vernazza, 0 fundador e propagador das
Companhias do Divino Amor, cuja obra dava atenção especial à
assistência aos condenados à morte.” O amor em questão era um
sentimento que pretendia reproduzir na relação fraterna entre os
homens 0 amor de Deus pelos homens. O Deus de que falam os
textos das irmandades é um ser

334
repleto de tanta caridade, tanta bondade, tanto amor e afeição, de
tanta doçura e suavidade, de tanta clemência e piedade, que nunca,
digo nunca, nunca despreza nem recusa nem repele qualquer
pecador que seja, mesmo celeradíssimo e manchado de todas as
iniquidadesfó

Assim, a religião do perdão virava totalmente as costas às for-


mas de controle dos comportamentos por meio de sanções canô-
nicas no exato momento em que a Justiça como instrumento do
poder estatal avançava naquele campo. De fato, o modelo de ir-
mandade de assistência aos condenados teve de recortar para si um
espaço no quadro da Justiça como repressão estatal da criminali-
dade. Tal modelo foi copiado, exportado, reproduzido. Recebeu
variantes locais e individuais. A Irmandade de São João dos
Florentinos é um exemplo célebre, que encontrou em Roma o ter-
reno propício para uma extraordinária expansão. Assim o rito se
curvou às exigências e à cultura dos tempos em constante transfor-
mação. Mas ele não se confiou ao acaso nem à capacidade espontâ-
nea de imaginar e perceber. Era preciso controlar as consequências
do grande rito, cujas metas fundamentais eram a retribuição do
crime, 0 arrependimento do culpado e a reconciliação: três objeti-
vos que se encontram em diversas combinações na história mais
geral da cultura cristã da justiça.” A paz que a comunidade busca-
va, eliminando o elemento que a perturbara, devia ser completada
com a reconciliação do membro rebelde. Tendo isso em vista, 0
problema passou a ser a relação entre a justiça terrena e a justiça
celeste. Apesar dos esforços em manter a separação entre o ofício
do consolador e 0 ofício dos juízes e carrascos, os inevitáveis cruza-
mentos entre eles expunham os irmãos terceiros ao risco constante
de se tornarem fiadores da Justiça das sentenças, executadas com a
sua colaboração. Disso resultou uma legitimação dos mecanismos
mundanos da Justiça, graças ao nexo dentre este mundo, lugar da

335
imperfeição e do erro, com 0 outro mundo governado por Deus
juiz. O vínculo entre justiça e graça, que desde 0 início da reflexão
cristã ocupou 0 centro das especulações teológicas, encontrou sua
verificação e validação no exercício da caridade como vontade fra-
terna de perdão e ajuda entre os homens. Os mortos eram as teste-
munhas e garantes da relação entre as duas ordens da vida humana.
A invenção do purgatório projetou no além a estrutura do cárcere
como local de correção e regeneração: a utopia punitiva da cultura
das Luzes haveria de trazê-lo de volta para a terra. Mas, enquanto
isso, a ideia e a prática da troca de préstimos fraternos e caridosos
entre os vivos e os mortos se davam por intermédio dos seres hu-
manos à beira da morte. Entre eles, foi a categoria especial dos con-
denados _ seres humanos em pleno vigor da vida cuja iminente
hora da morte se conhecia _ a que mais atraiu as experiências. O
objetivo de uma nova forma de exercício da caridade foi transfor-
mar o criminoso condenado em um santo: 0 ser humano detestado
a quem se tirava a vida devia se tornar um cordeiro disposto a verter
seu sangue pela salvação da própria alma e para 0 bem da comuni-
dade. Tudo isso resultava no fortalecimento da ordem citadina e no
aumento do prestígio de suas instituições.” As antigas e profundas
raízes do vínculo entre 0 santo e 0 criminoso favoreciam 0 fortale-
cimento daquela devoção.”
Se foi esse 0 modelo que se enraizou vigorosamente nas cida-
des italianas, uma parcela importante da Europa cristã enveredou
por um caminho muito diferente. É possível determinar com pre-
cisão 0 momento em que se deu a guinada. Em 1521, em Nurem-
berg, um jurista foi chamado a dar um parecer sobre as punições a
serem aplicadas ao cadáver de um suicida, e ele escreveu que, em
sua opinião, com a morte cessava todo e qualquer poder e 0 homem
deveria enfrentar sozinho 0 juízo de Deus.” Para fundamentar
sua opinião, citava Lutero. E Lutero, numa de suas 95 teses, havia se
expressado com muita clareza sobre 0 ponto que interessava ao ju-

386
rista de Nuremberg: ele escrevera que, com a morte, 0 homem se
libertava das leis canônicas e tinha 0 direito de não ser perseguido
com base nelas. Dessa tese 0 jurista derivou a conclusão de que a
justiça humana e a justiça divina se separariam com a morte. As
consequências de uma tese do gênero logo foram descobertas: não
na punição dos suicidas, que, aliás, tornou-se mais severa, e sim na
organização das sepulturas. O corpo abandonado pela alma devia
ser sepultado sem nenhuma cerimôniajfl A alma ia em direção a
um destino imprevisível e irrevogável, confiado apenas ao juízo de
Deus: um destino fora do alcance de qualquer possibilidade huma-
na de intervenção. Com a morte, 0 indivíduo desfazia definitiva-
mente os laços com a sociedade. Por isso 0 destino do corpo deixou
de dizer respeito à comunidade: a participação dos homens da
Igreja nos enterros foi proibida. Em Genebra, 0 próprio Calvino
quis ser sepultado sem honras nem distinções.
Mas isso era 0 que se passava numa parte da sociedade cristã
europeia. Na outra parte que se identificava com 0 sistema católico
romano, a exaltação barroca da memória dos mortos invadiu as
igrejas, as doações para as missas em sufrágio pelos defuntos torna-
ram-se regra, as almas do purgatório dominaram a vida cotidiana,
as entidades intercessoras cresceram até envolver toda a sociedade
como uma densa rede. O culto das relíquias retornou com grande
vigor, coordenado e alimentado por Roma, onde a descoberta dos
cemitérios paleocristãos deu vida a novas devoções e intensificou
os fluxos das peregrinações. O cuidado católico com os sepulta-
mentos se desenvolveu na direção oposta à dos protestantes: a per-
manência da memória, reativada continuamente pelos ritos de su-
frágio, deu um novo ímpeto aos sepultamentos nasigrejas e no
interior das cidades. Se as famílias aristocráticas e as dinastias rei-
nantes fizeram da tumba mortuária 0 instrumento para projetar
na eternidade do além-mundo as hierarquias sociais e 0 poder des-
frutado neste mundo, 0 culto da memória dos defuntos como mo-

387
mento de vida coletiva veio a se associar, em geral, a uma preocu-
pação com a salvação pessoal, alimentada por uma pregação que
reforçava o medo da morte e do juízo divino. A reflexão sobre as
penas do inferno e do purgatório foi traduzida em imagens obses-
sivas, enquanto cresciam as formas de associação espiritual para
gozar coletivamente as indulgências distribuídas pela Igreja. Foi
algo profícuo para a sociabilidade difundida pelo senso de respon-
sabilidade em relação a todas as almas, e não só as dos familiares: e
aqui é difícil distinguir os elementos tradicionais da vida social do
mundo mediterrâneo dos objetivos pretendidos pelas autoridades
eclesiásticas e políticas. Talvez, como se supôs, isso tenha servido
para aliviar a angústia e o sentimento de culpa dos vivos em relação
aos mortos. Os vínculos continuavam firmes mesmo transposto o
limiar da morte, e era possível fazer pela alma o que não se fizera
pelo indivíduo em vida. E talvez, nos países de cultura protestante,
a memória insaciada tenha reforçado a consciência sucessória, im-
pondo aos herdeiros linhas de conduta específicas para manter e
dar continuidade a um legado de memórias e deveres que recaía
apenas sobre eles.”
Trata-se, em todo caso, de mudanças profundas, diferentes
conforme o contexto e apenas parcialmente perceptíveis nas fon-
tes, que não pouparam as áreas aparentemente mais firmes na de-
fesa da tradição. A memória dos mortos como parte essencial da
comunidade tinha sido, durante séculos, o próprio fundamento da
vida social. E isso caracterizara a sociedade medieval sem distinção
de fronteiras religiosas: um célebre exemplo é a lembrança como
essência da fé que manteve a união do povo hebreu na Diáspora. Se
“memória” é o termo que identifica o caráter fundamental da cris-
tandade europeia, seu correspondente hebraico “zakhor” oferece o
vigoroso fio unificador para quem pretende captar a natureza do
hebraísmo medieval. E assim se manteve, até o momento em que o
lugar central da memória passou a ser ocupado por algo profunda-

388
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mente diferente: a história como certificação do verdadeiro. A crise
provocada pelo advento da historiografia na transmissão da iden-
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tidade hebraica foi ilustrada em um famoso ensaio, misto - escre-
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veu o autor -- de “história, confissão pessoal e declaração de fé”. Foi
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o necessário para se tomar conhecimento da relação entre o surgi-
mento de uma historiografia hebraica moderna e o declínio da me-
mória coletiva.” Ainda que nenhum historiador de matriz cristã
tenha procurado investigar a questão, certamente ocorreu algo se-
-1-_vçf-wz‹ .,_.»_-H.zfi‹¬-f›=v_r¬‹-\_¬«v-w
`›
L.
1.
melhante nas relações entre memória e história no campo mais
E vasto da cultura europeia. Aqui, para dar o exemplo mais conheci-
do, a irrupção de formas antigas do pathos na arte figurativa se re-
velou como a própria essência daquilo que definimos como
Renascimento. E sabemos disso graças às pesquisas do judeu ham-
burguês Aby Warburg. Mas os processos de deslocamento e con-
trole da memória na época do ressurgimento da historiografia an-
tiga e da ideia clássica da fama reservada aos homens ilustres
atingiram profundamente a ordem dos poderes e a legitimação de
seus fundamentos: temos um indício significativo disso na meta-
morfose da noção de “santo”. A lembrança dos santos conservada
pela comunidade e transmitida por via litúrgica foi submetida à
crítica dos humanistas e dos reformadores protestantes, que con-
testaram sua verdade histórica, e apenas aquelas memórias hagio-
gráficas que passaram pelo crivo da verificação documental pu-
deram ser acolhidas e ratificadas no novo calendário católico,
construção exemplar de uma memória coletiva, garantida pelo alto
graças ao empenho do trabalho em equipe dos bolandistas. O ca-
lendário litúrgico, assim, proporcionou a estrutura antiga onde
podia ser vertido um conteúdo moderno.44 Poderíamos dizer,
usando uma frase famosa, que foi preciso mudar tudo para tudo
continuar como era. Sob a superfície da religião antiga, permeada
pela memória, a filologia ocupou, de forma discreta, o seu lugar: a
pesquisa sobre os indícios incertos dos documentos substituiu as

389
vivas certezas do povo cristão. A cisão entre o mito e a história foi
ocultada pelo empenho de uma estrutura poderosa, a da Igreja ca-
tólica, amparada pelo direito e decidida a alimentar o sentido de
continuidade ininterrupta do qual derivava sua própria identida-
de. Mas o passado que a historiografia moderna reconstrói é muito
diferente do passado da memória coletiva. Como observou
Yerushalmi, “trata-se certamente de um passado perdido, mas não
aquele passado que cada qual sente ter perdido”.45
A memória indelével, para o cristianismo tradicional, era a
divina: dela se esperava o ressarcimento para os injustiçados e a pu-
nição para os maus. Mas um traço fundamental que se transmite
da Bíblia hebraica para a tradição cristã é também a solicitação a
Deus para que esqueça os pecados do homem. O perdão como anu-
lação da memória é o pedido insistente que perpassa os textos sa-
grados do hebraísmo e do cristianismofó .
No rito da execução consolada buscou-se um encontro simi-
lar entre justiça e misericórdia: a garantia do perdão divino conce-
dido à alma do delinquente justiçado oferecia à comunidade a pos-
sibilidade de sepultar-lhe o corpo ritualmente e de cooperar com a
salvação da alma. Assim se extinguia o sentimento de medo que
cercava a figura do condenado, devido à ameaça representada por
seu espírito vingativo. A mediação oferecida pela oração coletiva
garantia o perdão divino e permitia que a sombra do justiçado dei-
xasse de perseguir os vivos, com o ódio insaciado da vida violenta-
mente interrompida.
Para chegar a tal resultado, era preciso converter o condena-
do. É a palavra que se repete sem cessar: converter, transformar
num outro homem. Se nos fixarmos nesse ponto, torna-se clara a
infinita série de argumentos, percepções, conselhos que foram se
articulando na literatura da consolação, desde os primeiros ma-
nuscritos de simples devotos à produção cada vez mais elaborada
de teólogos e doutores. Era preciso evitar qualquer referência ao

390
passado, impedir o contato com parentes e familiares, substituir o
confessor usual por um novo, impedi-lo de ver ou ouvir coisas ou
pessoas que pudessem reconduzi-lo à sua identidade anterior.
Projetado rumo ao futuro da vida no além, o condenado devia se
ver como mártir _ se injustamente punido -- ou como o afortu-
nado pecador a quem Deus oferecia a ocasião de sofrer por seus
pecados para obter perdão. O condenado que resistia à conversão
era “duro”: era preciso explicar a ele que sua resistência era uma
tentação do demônio e que sua morte só se tornaria meritória se
ele se afastasse das tentações. A tentação mais recorrente e difícil
de vencer era o apego à vida e a revolta contra a sentença, ou por
ser injusta e falsamente motivada, ou por ser iníqua, acusando um
e absolvendo outro igualmente culpado, ou, seja como for, por ser
contrária ao mandamento divino de não matar. Nas associações
dos laicos devotos do final da Idade Média, prevalecia a compai-
xão pelo condenado e os argumentos de consolação eram extraídos
dos Evangelhos. Como Cristo continuava a ser o modelo do inj us-
tamente condenado, apresentava-se aos “aflitos” a moral do “ser-
mão da montanha” e em especial a beatitude que caberia aos per-
seguidos “propter iustitiam”.47 De fato, a obra dos consoladores, na
grande maioria dos casos, conseguia transformar o ódio recíproco
entre os condenados e a sociedade em uma absolvição mútua e re-
confortadora ou, pelo menos, em um compromisso de mútuos
serviços: os vivos ofereciam as missas em sufrágio das almas e, em
troca, esperavam que os mortos substituíssem o desejo de vingan-
ça pela proteção. Apagava-se o passado, eliminava-se o crime.
Como o sangue derramado pelos mártires tivera para eles a função
de batismo, o sangue derramado no patíbulo abria as portas do
paraíso. Enquanto o corpo encontrava proteção natumba da ir-
mandade, a devoção coletiva, estimulada pelos ritos do sufrágio,
acolhia sua memória naquele culto dos santos “decapitados”, que
deixaram traços importantes na Itália.”

391
Naturalmente, tudo isso exigia que o significado da função
fosse compartilhado pelo outro lado. O comportamento do conde-
nado era decisivo para a impressão que seria deixada à multidão
que lotava a praça. Era o que almejavam as autoridades, cientes
dos fins de legitimação confiados ao rito público da Iustiça penal.
Mas podia ocorrer que o condenado não sedeixasse “converter”.
Podemos ver as consequências em um desses raros casos. Em 3 de
janeiro de 1495, um certo Piero de Codigoro, condenado à morte
por furto e assassinato, foi enforcado sob as janelas do palácio mu-
nicipal de Ferrara. Ele se recusou a confessar e respondeu aos sacer-
dotes que o incitavam a fazê-lo: “O que querem que eu diga? Não
pequei”. Depois “ceou muito bem” (a inspiração ascética das ir-
mandades desaconselhava as ceias lautas dos condenados) e dor-
miu ou fingiu dormir toda a noite, sem dar atenção aos consolado-
res. Estava, em suma, “nas forças do diabo”. E por isso, depois de ser
enforcado, “seu corpo foi atirado ao rio Pó como isca de animais,
como ele merecia”.**"°
O episódio nos mostra com evidência o núcleo originário da
obra dos consoladores, o que constituía a essência da oferenda ca-
ridosa: o enterro dos corpos dos condenados em solo consagrado.
Se a morte na forca era infamante, o modo de manifestar a infâmia
era a exposição do corpo, seu desmembramento, a falta de sepultu-
ra.5° A ameaça de tal vergonha era motivo de grande ansiedade.
Temos de imaginar a piedade pelo próprio corpo dependurado na
forca, que Fançois Villon expressou em sua Ballade des pendus
[Balada dos enforcados] , como o complemento necessário das me-
ticulosas normas sobre os modos e locais de sepultamento, que
ocupam grande parte dos testamentos. A paz do sepulcro tinha seu
reverso no medo da ,desassossegada perambulação do espírito nas
cercanias do corpo insepulto. A necessidade de tranquilidade a tal
respeito era de tal monta que o cânone das obras de misericórdia
foi modificado. Ainda ausente no Speculum Ecclesiae, de Honório

392
d'Autun _ observou Ariès -, a ação de sepultar os mortos estava
tão presente para os homens do século xiv, que Giotto a incluiu nos
baixo-relevos do campanário florentino.51 Daí surgiu o espírito as-
sociativo dos grupos laicos que se organizaram para garantir um
sepultamento adequado. Na Itália, a elaboração do ritual do sepul-
tamento envolveu energias e recursos cada vez mais grandiosos.
Seguir “em grupo com as vestes negras e com a vela na mão e com
os círios da confraria”,52 acompanhando o irmão defunto em sua
última viagem, era um dever estabelecido com rigorosas sanções
nos estatutos das irmandades.
Se o batismo era o rito inicial de passagem do qual dependia o
acolhimento na sociedade das “pessoas” dotadas de alma e destina-
das à vida eterna, o sepultamento em solo consagrado sob as asas
protetoras da Igreja era o rito finale definitivo da existência. Daqui
emerge com clareza o caráter terrivelmente punitivo de um aspec-
to tradicional da condenação à morte: a falta de sepultura.
Foi aí que se inseriu a oferenda caridosa das irmandades a to-
dos os pobres que corriam o risco de não receber um funeral cris-
tão; e a oferenda foi estendida ao limite extremo, aos mortos pela
Iustiça. O condenado que aceitava a morte com sentimentos de
perdão cristão associava-se à irmandade e tinha a garantia de ser
tirado da forca e sepultado sob a proteção da cruz. Esse foi o traço
comum das associações de caridade que atuavam nas cidades e
pequenos centros de muitas partes da Europa.” E essa consolação
do condenado, bem como a vontade de providenciar o imediato
sepultamento de seu corpo, não deixou de entrar em atrito e opo-
sição com os diferentes desígnios do poder. Assim, ressurgia na
Europa cristã o conflito simbolizado pelo trágico personagem de
Antígona.
Todavia, com o desenvolvimento dos aparatos estatais e ains-
titucionalização das irmandades de consolação aos justiçados, a
oposição entre o mandamento bíblico e evangélico e a práxis do

393
poder estatal se tornou intolerável, assumindo laivos de heresia. A
justiça do príncipe pediu e obteve o reconhecimento da sanção re-
ligiosa: a sentença dos juízes terrenos era justa porque Deus assim
tinha previso e desejado. Aos condenados que protestavam porque
se consideravam inocentes, tornou-se habitual responder que a
justiça do príncipe era comandada diretamente pela justiça de
Deus. Assim se realizava uma torção profunda na inspiração origi-
nal das irmandades. Aqui - como foi dito sobre o plano mais geral
da chamada“ideologia da morte”_“a doutrina cristã da liberdade
e igualdade entre os homens se cala e se une às instituições da não
liberdade e da injustiça”.54
Os resultados dessa mudança também se refletiram naquela
que permanecia sendo a oferenda fundamental das irmandades: o
sepultamento sem infâmia dos corpos dilacerados, que do contrá-
rio penderiam por muito tempo nas forcas ou ficariam expostos
em estacas nas praças e portas das cidades. Não tinha sido fácil pre-
servar essa tradição. Os ritos do sepultamento cristão travaram
uma longa batalha contra usos do corpo que não respeitavam a
integridade necessária para o descanso do sepulcro à espera da
ressurreição. De início, houve apenas o embate com as culturas
folclóricas, em que a crença nos poderes extraordinários e poten-
cialidades mágicas dos corpos violentamente arrancados à vida de-
dicou uma especial atenção aos cadáveres dos condenados e a todos
os instrumentos das execuções e criou em torno dos restos huma-
nos do patíbulo uma florescente farmacopeia de tipo mágico.55
Mas bem mais decisivo foi o embate com as exigências do poder de
uma justiça terrificante, baseada no “esplendor dos suplícios”. As
vésperas das rápidas execuções da justiça jacobina, Goethe ainda
pôde ver as cabeças dos condenados expostas nas portas da cidade
de Frankfurt. A questão é que ainda restava um conflito entre a con-
denação terrena e a salvação cristã, o qual se manifestava justamen-
te no modo de tratar o corpo do condenado. No rito preparado por

394
um dominicano toscano do século XVII, reconhecia-se que os conde-
nados mortos cristianamente eram dignos de sepultura eclesiástica,
mas sugeria-se pedir permissão ao príncipe para retirar o cadáver da
forca; e acrescentava-se também que era lícito oferecer os corpos aos
médicos para estudos anatômicos. A tradição caritativa medieval se
esvaziava totalmente sob o abraço com o poder político.56
O caso de Lucia Cremonini comprova o esgotamento quase
completo da eficácia do pacto da morte consolada. De sua parte,
houve uma adequação pronta e espontânea ao modelo do perdão
e da esperança cristã, mas seu corpo, como o da criança que ela ma-
tara, sofreu a vergonha da falta de sepultura, gesto extremo de não
reconhecimento de seu ser “pessoa”. O destino dos corpos entre-
gues à anatomia era ficarem expostos à curiosidade sádica do olhar
coletivo, atraído especialmente pelos corpos femininos. Os mem-
bros e órgãos eram transformados em objetos fungíveis para os
mais diversos usos, enquanto o esqueleto podia permanecer entre
os objetos de estudo dos docentes.” A Escola dos Consoladores já
não era aquela antiga confraria do povo: as mulheres estavam ex-
cluídas, e acolhiam-se aristocratas da cidade e professores da uni-
versidade. Predominavam questões de precedência e ambições de
prestígio.” Logo, as exigências do poder político e as demandas do
poder acadêmico, cada vez mais dominado pelos médicos, desco-
briram ali uma contribuição certa e imediata. Os médicos precisa-
vam dos cadáveres para os estudos de anatomia, e em Bolonha po-
diam se abastecer gratuitamente com o aval eclesiástico: seus
fornecedores eram os pobres, que morriam nas esquinas das ruas
ou em suas casas. Dois episódios daquela época podem dar uma
ideia do que normalmente ocorria. Em 1697, o pároco de San
Michele conseguiu a duras penas que lhe devolvessem o cadáver de
um mendigo que morrera nos degraus da igreja, depois de ter se
ferido gravemente ao tentar fugir do asilo dos mendigos. Os estu-
dantes da universidade se apoderaram do corpo para estudar ana-

395
tomia, e apenas a ordem do pároco para que o devolvessem permi-
tiu que ele tivesse sepultura na igreja.” Poucos anos mais tarde,
mais precisamente em 22 de janeiro de 1712, em uma mísera habi-
tação na via Castiglione, em Bolonha, deu-se este diálogo entre
Caterina, viúva de Carlo Antonio Pini, e um grupo de sete ou oito
estudantes que tinham mandado alguns carregadores levarem o
corpo do marido recém-falecido, a fim de “fazer sua anatomia”:
“Perguntando-lhes eu o que queriam fazer e quem eram, eles me
responderam que eram estudantes, e que tinham vindo porque
queriam o cadáver de meu marido, pois queriam usá-lo para fazer
a anatomia, e que mandariam falar bem dele”.

Uma missa e pronto: esse era o pagamento para o corpo. Em


vão a viúva se opôs: “os mesmos estudantes mandaram os ditos car-
regadores que pegassem o dito cadáver e o levassem embora, e as-
sim fizeram [...] mesmo que eu não quisesse e começasse a chorar”.°°
Como mostram esses exemplos, os ritos da morte já estavam redu-
zidos ao mínimo e o sepultamento ritual fora eliminado pelas exi-
gências de tornar o corpo mais funcional para o poder da ciência e
a ciência do poder. Isso cabia aos corpos dos pobres, incluídos os
mortos na forca (os nobres estavam excluídos). Assim, no que tan-
ge ao corpo, a sorte de Lucia acabou sendo a mesma do filho que
matara. A sorte de ambos, ademais, mostra que os sacramentos do
nascimento e da morte deixaram de ser processos culturais modu-
lados por ritos de passagem e se transformaram em atos pontuais,
medidos pela divisão imediata de um tempo dominado pela exi-
gência de precisão. Se o sufrágio pelas almas eximia os verdugos e
os anatomistas de qualquer dever de solidariedade cristã para com
a pessoa à frente deles, o batismo se transformará em uma frontei-
ra político-social que determinava o usufruto dos direitos civis.*“ A
mesma memória coligida pelos consoladores e de lá transferida
para os anais da cidade foi escolhida para legitimar os poderes que

396
haviam dominado sua vida e decretado sua morte. E aqui o histo-
riador deve reconhecer nas fontes herdadas o risco de uma cumpli-
cidade sua com os juízes, ao perpetuar a lembrança de um nome
que fora, na época, selecionado para uma memória infamante.

Resta-nos perguntar se, partindo do “tipo” da infanticida ela-


borado por todo um sistema jurídico e religioso, chegamos a co-
nhecer a face autêntica de uma pessoa. Uma coisa é certa: o com-
portamento de Lucia nos momentos finais de sua vida estava entre
as possibilidades mais cuidadosamente preparadas e elaboradas
pela sociedade da época. Ali se expressava uma ideia de justiça que
associava ao rigor da punição à promessa de salvação eterna e ofe-
recia um rito de arrependimento e perdão capaz de apagar a me-
mória do crime e de sanar a laceração que causara. Lucia o acolheu
com especial convicção e espontaneidade, conformando-se a um
modelo de identidade individual que tinha profundas raízes em
sua formação e na sociedade em que vivia. Esse modelo se apossou
dela e a transformou; não foi preciso insistir, sugestioná-la, intimi-
dá-la. Bastou oferecer-lhe um espaço amigável, uma presença fra-
terna. O restante ela mesma fez, acatando sem resistência as suges-
tões que o consolador lhe dava a cada momento. Pois é inegável que
por trás de cada frase devota, por trás de cada gesto de Lucia, havia
uma voz a ditar. Os manuais estudados pela irmandade concentra-
vam-se justamente nos métodos e formas de sugestão de conduta.
Os argumentos usados com Lucia estão resumidos no relató-
rio do consolador da seguinte maneira: “Com o mais vivo do meu
espírito mostrei-lhe ser tal caminho necessário e conhecido por
Deus para a salvação de sua alma”. Portanto, tudo o que ocorria ti-
nha sido fruto da providência divina. A condenação do juiz terreno
assumia o valor de uma benévola intervenção de Deus, que não en-
contrara outro caminho para lhe salvar a alma. Agora essa salvação
estava ao alcance de sua mão: bastava se arrepender e reconhecer na

397
mão do carrasco que se ergueria sobre ela a ocasião criada por Deus
para lhe abrir a porta da vida eterna. A morte não era o fim defini-
tivo da vida, e sim uma simples passagem de uma condição de in-
tolerável miséria e sofrimento para uma indizível felicidade eterna.
Lucia era culpada de um crime, a Iustiça humana a punira por ele.
Mas por trás da Iustiça humana estava a vontade de um Deus pater-
nal e previdente que, com a condenação à morte, oferecia à pecado-
ra a oportunidade de transformar a morte em verdadeira vida. O
que se pedia era pouco: arrepender-se, aceitar a sentença, oferecer-
-se para sofrer voluntariamente as penas e a morte no patíbulo em
troca do perdão divino. No prato da balança onde a justiça perfeita
e infalível de Deus pesaria suas culpas, o sangue vertido e as dores
sofridas serviriam de compensação e permitiriam à alma de Lucia
alcançar imediatamente os céus da glória eterna.
Eram argumentos habituais para os consoladores. Aprendiam
em laboriosos exercícios durante suas reuniões. Treinavam para pre-
ver as reações dos condenados, para recorrer a todos os meios ao en-
frentar as crises de desespero do condenado que ouvia o anúncio da
morte iminente. Na sede da “Escola dos Consoladores” dispunham
de uma biblioteca bem fornida, com uma centena de obras dedicadas
exclusivamente ao que era definido como sua “função” por antono-
másia. Para Lucia, não precisaram de argumentos especiais. O diálo-
go com ela se desenrolou próximo à lareira: fazia frio e _ como vi-
mos _ Lucia estava vestindo roupas muito leves. Tiveram de reavivar
o fogo várias vezes para que se aquecesse. Mas não foi necessário
aterrorizá-la nem induzi-la ao arrependimento sob a ameaça do
fogo do inferno, como às vezes faziam com os mais obstinados. Suas
reações mostraram aquela mesma dócil disposição de fazer o que se
esperava dela, já manifestada durante o interrogatório no cárcere. E
a arte dos consoladores consistia justamente em sugerir no momen-
to certo as palavras e os comportamentos apropriados. Podemos
imaginar as sugestoes sussurradas mesmo entre a multidao, na fase
nv .-‹

393
mais dramática do rito. São apresentadas de modo taxativo na litera-
tura com que se preparavam.
Quando “o ministrador da justiça lhe pede perdão, amarra-
-ih e as maos
~ e poe
~ -ih e a cora a no pescoço”, o consolador deve su-
gerir o seguinte:

_ Este vosso irmão pratica convosco esta ação de humildade


pedindo-vos perdão [...] Deveis responder de bom coração, como
verdadeiramente entregue à majestade divina: “Como, irmão? É
coisa razoável que eu vos perdoe, querendo que o Senhor Deus per-
doe a mim [...] e rezai por mim pecador”.

Ao colocar-lhe a corda no pescoço:

Agora é hora de voltar a empregar vossa alma na consideração da


presteza com que o Filho de Deus tomou sobre suas costas aflitíssi-
mas o lenho de sua Cruz e de renovar o propósito de imitá-lo.

Uma vez “chegados ao local da Justiça”, o consolador sugere que


diga com o coração e, se possível, com os lábios a seguinte frase:

Perdoai, Senhor, a todos os que de algum modo me ofenderam, ou


tiveram parte ou culpa nesta minha morte e que foram julgados pelo
mundo como inimigos meus, porém não conheço outros inimigos
além do demônio e do pecado.

E, chegados ao fim, o consolador sugere esta invocação:


Domine Iesu Christe, ƒili Dei vivi, Sancta Maria Mater Christi, mise-
remmz mei.“2

O rito da execução tem uma teatralidade obrigatória. O que a


multidão vê e ouve como ação espontânea tem por trás uma dire-

399
ção, as frases do protagonista são sopradas previamente. Assim, o
diálogo se encerra, e o que parecia um movimento espontâneo de
Lucia se revela fruto de uma falta de resistência, de uma dócil e
mansa obediência às sugestões.
Isso em nada diminui o grande sucesso que seu caso represen-
tou para a irmandade. A culpada de um crime atroz se transforma-
ra num reconfortante modelo de arrependimento e perdão, que
aceitava expiar o crime com seu sangue. Aquele sangue derramado
no patíbulo com a correta disposição interior tinha um valor que o
aproximava da água do batismo. Por isso a mãe infanticida pôde
obter o reconhecimento de uma humanidade plena e exemplar que
não foi possível atribuir ao filho não batizado. Uma instituição que
administrava um cabedal de conhecimentos e atitudes elaborados
durante séculos investiu todo esse patrimônio para operar nela o
que a tradição religiosa chamava de conversão: alcançar a verdadei-
ra finalidade da vida por meio da autotransformação. A irmandade
estava acostumada a tais êxitos: são raríssimos os registros de casos
malogrados nas fichas de trabalho dos consoladores. E, depois de
Lucia, alcançou-se o mesmo sucesso com Sabatina Bruni, a infan-
ticida confessa executada em 18 de junho de 1723: à diferença de
Lucia, Sabatina se sentiu a princípio retida pelo pensamento dos
filhos que ficariam sem ela e sob o peso da memória de uma mãe
assassina. Mas, quando lhe garantiram “que seus filhos seriam as-
sistidos”, acalmou-se e se mostrou “resignada” e “obediente°Í “mos-
trando morrer de boa vontade dando, com sua morte, um exemplo
às outras mulheres _ como disse ela _, para evitar semelhantes
crimes”F3 Também nesse caso, portanto, a salvação da alma estava
em consonância com o exemplo aterrador exigido pela justiça e
com a necessidade de recompor a ruptura provocada pelo crime: a
irmandade podia se orgulhar de seus sucessos.
Mas, sem dúvida, Lucia também teve um grande sucesso.
Nascida na zona de sombra da sociedade, estava destinada no má-

4oo
ximo a uma vida obscura e a uma morte para a qual não estava pre-
visto o privilégio da “morte escrita”.64 O crime cometido em um
momento de terror e loucura a lançara além dos limites da noção
de humanidade determinados pela cultura. Agora, diante da mor-
te, podia se sentir totalmente perdida. As crônicas dos consoladores
profissionais estavam repletas de casos de desorientação e apatia.
Com o anúncio da condenação, quando de súbito o futuro lhes fu-
gia do horizonte, muitos condenados davam aos circunstantes um
espetáculo de total perda de si. Era emblemático o caso do rapaz
bolonhês de dezenove anos, enforcado em 1677 por um “levíssimo
furto”, o qual “sofria de uma sonolência gravíssima que o fazia pa-
recer insensível desde o início a qualquer discurso, aos quais não
dava resposta alguma”.°5 A desordem caótica que tomava conta da
realidade para quem não tinha mais lugar nela traduzia-se na desa-
gregação antecipada da lucidez mental e das funções corporais. Era
a experiência indizível do fim do mundofió Os consoladores lhe
contrapunham como remédio o oferecimento da alma, a esperan-
ça na sobrevivência além do suplício. Quem perdera tudo podia
reconquistar a si mesmo, salvar-se aceitando morrer. Essa morte
podia dar a alma: exatamente como o batismo. Era um oferecimen-
to antigo, que naquele ínterim vinha se debilitando cada vez mais
na cultura europeia diante de outros modos de conferir sentido à
própria morte _ por exemplo, a experiência da morte máscula e
heroica pela pátria. Lucia era uma mulher, tivera uma educação re-
ligiosa. O anúncio da morte não a encontrou despreparada. Bastou
o convite dos consoladores e a oferta de um diálogo. O restante ela
fez por si mesma, com uma tal espontaneidade que fez pairar uma
aura de liberdade em seu comportamento. Lucia se libertou sozi-
nha da angústia e do sentimento de culpa e descobriu uma inespe-
rada capacidade de se oferecer como um modelo amado e digno de
imitação: por um dia ela conseguiu transformar a máscara escolhi-
da por outros em sua própria substância.

401
A pergunta que fizemos aos documentos de sua vida e morte
retorna ao final de nosso percurso. E uma pergunta que cada um de
nós poderia fazer a si mesmo, ao considerar o entrelaçamento inex-
tricável entre ocasiões e respostas, coerções e liberdades de que é
feita a própria vida. Entre a criatura informe e a pessoa coloca-se a
obra do tempo e do contexto. E apenas assim talvez se resolva a con-
tradição entre a absoluta singularidade da vida de cada pessoa, por
definição inconfundível com qualquer outra, e a adaptabilidade
extrema dos indivíduos ao jogo de conformação e resistência às
ocasiões de sua época e de seu ambiente.

402
Posfácio

Passaram-se mais de vinte anos desde que me deparei por aca-


so com o documento que ocupa o centro deste livro. Fiquei imedia-
tamente impressionado. Naquela época eu estava reunindo indis-
criminadamente material para uma história do consolo cristão aos
condenados à morte. A história das concepções e dos rituais elabo-
rados para conciliar o preceito bíblico “não matarás” com a prática
patibular deixou enormes traços na história europeia e sobretudo
italiana da Idade Média e da Idade Moderna. As fontes históricas
descrevem uma realidade de extraordinária riqueza, ainda em lar-
ga medida inexplorada, um rito sacrificial com vítimas de carne e
osso, onde as emoções da morte ministrada em nome da Iustiça
eram sabiamente dirigidas e controladas para um desfecho obriga-
tório. Aquela históriaficou no rascunho. O contato com os arqui-
vos da repressão acabou, ao final, fazendo emergir o problema tal-
vez inevitável do grau limitado em que podemos conhecer
realmente não quem condena, mas o condenado. Trata-se de duas
categorias em que as diferenças de poder e as respectivas capacida-
des de deixar traços na história atingem seu máximo distancia-

403
mento. Os delinquentes _ no sentido de condenados em nome da
lei que transgrediram _ podem ser considerados, na maioria dos
casos, uma vanguarda especial das classes subalternas, quase um
reflexo especular invertido daqueles homens ilustres cujas biogra-
fias alimentam por séculos a memória comemorativa dos progres-
sos humanos. Perguntamo-nos se esses obscuros habitantes dos
arquivos criminais podem ser verdadeiramente conhecidos em sua
realidade concreta: um problema raramente resolvido com suces-
so. No caso deles, o desejo de conhecer vidas e histórias, que inspira
o explorador de memórias do passado, é quase sempre frustrado:
no violento contraste entre a densa sombra de uma vida comum e
o ofuscante feixe de luz projetado pelo crime e pelo castigo, o que
se perde são justamente os traços das pessoas envolvidas. Em lugar
das fisionomias reais dos indivíduos apresentam-se máscaras
monstruosas ou pálidas tipologias sociais.
Em minha pesquisa, também senti um desejo cada vez mais
manifesto de conhecer melhor não os roteiristas e diretores da tra-
gédia, mas uma de suas vítimas: uma mulher, a mulher que está no
centro deste livro. Reli inúmeras vezes os documentos de seu pro-
cesso. Inúmeras vezes também pedi aos estudantes que frequentam
meus cursos que os lessem. E todas as vezes percebi um forte envol-
vimento emocional por parte deles. Ao captar no destino de um ser
humano _ um só _ a convergência de forças históricas rumo a
um determinado desfecho, tomamos consciência, ao mesmo tem-
po, da necessidade de compreender e dos limites de nossa com-
preensão diante de indivíduos que, por razões temporais, estão
numa posição de alteridade máxima em relação a nós, embora,
pelo destino de uma vida terminada, despertam sentimentos de
piedade humana. Mas havia outros elementos nas reações dos lei-
tores: de fato, esta história coloca um problema moralmente in-
quietante, a tal ponto que o leitor não tira absolutamente nenhum
proveito da distância temporal como alguém que, seguro, na mar-

404
gem, olha, ao longe, um naufrágio. A vida de uma mulher se entre-
mescla com a do filho concebido, parido e morto. A vida e a morte
do filho derivam dela e sobre ela repercutem num vínculo indisso-
lúvel, do qual fazem parte a violência cometida e sofrida. A pergun-
ta, portanto, não pode se limitar a um único sujeito, e deve consi-
derar mãe e filho a um só tempo: a mãe gestante e o filho que não
viveu, a entidade una e dupla da mãe e do filho.
Não se trata apenas de adaptar a pergunta à realidade: se a rea-
lidade fosse capaz de se impor sozinha ao estudioso, os percursos
do conhecimento não seriam aquilo que são. E, de fato, tais pergun-
tas têm se apresentado com uma frequência cada vez maior no ga-
binete dos historiadores, como que sorrateiramente, em virtude
das pesquisas e descobertas de outras ciências, solicitadas por nos-
so tempo a propor meios de intervenção e soluções aos problemas
da mais variada natureza, todos referentes, porém, à administração
dos saberes que permitem controlar a produção e a reprodução da
vida humana. Ora, o vínculo biológico da maternidade é o ponto
originário de unidade e de separação, de solidariedade e de conflito
entre os seres humanos. Deu azo, por muito tempo, a inúmeros mi-
tos e representações, à vontade de saber e ao desejo de dominar a
natureza. Controlar a produção pura e simples da vida tornou-se
cada vez mais o objetivo e a medida do poder _ religioso, político
e científico _ e o local de conflito entre os poderes e a liberdade,
não somente a dos indivíduos capazes de procriar, como também,
de modo progressivo, a dos indivíduos ainda não nascidos. Hoje,
entrados na era da reprodutibilidade técnica da vida, pela primeira
vez temos diante de nós a questão dos limites a serem colocados na
intervenção sobre a vida por nascer. Nos pontos extremos da exis-
tência, onde a cultura se deteve por muito tempo diante das colu-
nas de Hércules da natureza, não só a ministração da morte, mas
também, a essas alturas, a ministração da vida se submetem docil-
mente à intervenção técnica. “A engenharia genética solapa silen-

405
ciosamente nossa identidade como seres de uma espécie” e estra-
nhas intenções se apoderam “da história de vida das pessoas
programadas”.1
Daí as incertezas e discussões sobre a natureza humana, a nova
atualidade de antigas definições da “pessoa”, a necessidade geral de
parar e olhar a experiência do passado _ como sempre, quando o
vento da história nos afasta do horizonte habitual com imprevistas
acelerações. É nos momentos de extremo perigo, como sugestiva-
mente observou Walter Benjamin, que o anjo da história volta o
olhar para a paisagem que tem às costas. A definição da identidade
de um ser humano é parte especial do horizonte de uma sociedade
como a nossa, em que a capacidade de modificação tendencial-
mente ilimitada do indivíduo é acompanhada pela celebração do
individualismo como valor supremo, a autenticidade irrepetível
do singular se transforma continuamente no jogo de máscaras da
vida como representação, e a eliminação das diferenças individuais
até o sonho da reprodução em série e da clonagem se choca com o
sentido do valor da vida pessoal e com a defesa das diferenças indi-
viduais como condição e essência do existir. Tampouco podemos
esquecer que o antecedente da nossa modernidade é o planejamen-
to e a parcial execução de um projeto de alucinada racionalidade,
visando à eliminação sistemática de sociedades e grupos humanos
inteiros. No momento em que esse projeto assumiu nos lagernazis-
tas sua forma mais nítida, o passo inicial foi a destruição preliminar
da consciência dos indivíduos e da pertença à espécie humana. “É
isto um homem?”: a pergunta de Primo Levi ainda está diante de
nós em uma época que transpõe fronteiras científicas inimaginá-
veis e ruma para a desmontagem e remontagem científica dos seres
vivos com as operações sobre o DNA. O que é e o que distingue um
ser humanoi: pergunta que reaparece sempre igual, mas que recebe
respostas sempre diferentes. É, portanto, uma questão que diz res-
peito ao conhecimento histórico. Narrar histórias de seres huma-

406
nos _ excepcionais ou normais, poderosos ou vítimas do poder de
outros, mas sempre caracterizados por sua irrepetível individuali-
dade _ é o mínimo denominador comum que une todas as histó-
rias, verídicas ou fictícias. E são também os historiadores que, al-
çando os olhos para panoramas mais vastos, amiúde disseminam
nos séculos passados as datas de nascimento do individualismo
como conceito e como valor. Aqui procuramos seguir um outro
percurso: não o caminho principal, mas uma trilha levemente es-
boçada, em torno da qual reluz levemente a paisagem. Analisamos
um fato do passado, procurando extrair das fontes históricas algu-
ma resposta a perguntas como: o que havia de original e o que havia
de repetitivo nos indivíduos, em suas experiências históricas, nos
dados de natureza e nos dados de cultura? Que limiares tiveram de
ser transpostos para se chegar à definição de pertencimento à espé-
cie e para receber permissão para ingressar no corpo social? Como
se resolveu o problema da identidade pessoal? Até que ponto a con-
duta individual foi determinada pelas regras impostas ou sobre-
postas externamente? Tais eram as perguntas que eu tinha em men-
te quando retomei a pasta contendo o processo de Lucia Cremonini.
O problema era entender: e, para tentar entender as vicissitudes da
mãe infanticida, foi necessário remontar à maneira como uma so-
ciedade do passado concebeu a natureza humana.
Os documentos legados de um processo e que serviram para
um ulgamentoforam utilizados em uma tentativa de compreen-
são. São perguntas dirigidas a um momento determinado da expe-
riência, cujas respostas só poderiam ser parciais e indiretas. Mas
apenas assim nos é concedido proceder a “uma ciência do homem
no tempo”, como foi definida por Marc Bloch.

407
Notas

A HISTÓRIA

1. soBRE os Auros Do Pnocnsso [pp. 13-30]

1. Archivio di Stato di Bologna [doravante ASB] , Archivio del Torrone, Registro


7663/3, fase. 56 (Città, 1709, Infanticidii, Tombesius Notarius, Pro carla Turroni
Bononiae contra Luciam q rn Nicolai Cremoniní, doravante Processo Cremonini), c.
1 rv. “Baccolo” talvez remeta ao lat. “baculum”, pancada.
2. Sobre as origens medievais, cf. G. Ortalli, “La perizia medica a Bologna nei
secoli Xin e xlv. Normativa e pratica di un istituto giudiziario”, in Am' e memorie
della depatazione di storía patria per le province di Romagna, xvn-Xfx (1969), pp.
223-59. Na Idade Moderna ampliam-se as funções do médico legista; além dele,
nos casos de aborto e infanticídio, a Constitutio penalis Carolina prevê o recurso
ao laudo de um obstetra (cf. A. Pastore, Il medico in tribunale. La perizia medica
nella procedura penale d'antíco regime (secoli xvr-xvm), Bellinzona, 1998, p. 51).
3. O decreto de Luís xiv. em 1692, determinando a instituição do ofício de ci-
rurgião juramentado em todas as cidades do reino, derivou da “impulsion du livre
de Zacchia” [cf. A. Corre e P. Aubry, Documents de crirninologie rétrospective
(Bretagne,xvH** etxvm” siècles), Lyon-Paris, 1895, p. 61].
4. Processo Crernonini, c. 2r.
5. Idem, cc. 2r-4 r.
6. Idem, c. 6r.

409
7. Idem, c. 11v.
8. Salteri substituía o médico Domenico Martelli, que estava doente e que,
acompanhado de Giuseppe Raimondi, já realizara perícias semelhantes para o
Tribunal do Torrone, por exemplo num caso de infanticídio em Venezzano, na
planície bolonhesa, em 1696. Cf. A. Pastore, op. cit., p. 141.
9. Processo Cremonini, c. 11r.
1o. Idem, c. 24r (declaração de Antonio Pasqualino, guarda dos cárceres “se-
cretos” do Torrone, na data de 30 de dezembro de 1709).
11. Idem, cc. 111/-13v.
12. Depoimento de Marta, 7 de dezembro, idem cc. 16r-18r, ver c. 17v.
13. Ídem, c. 20r.
14. Idem, c. 18r.
15. ..dem, c. 21r.
16. Idem, c. 221/.
17. Idem, c. 29 rv.
18. Idem, c. 30 r.
19. Idem, c. 30v-31r.
2o. Idem, c. 30v.
21. Idem, c. 31v.
22. Em Bolonha atuava a Compagnia della carita de' poveri carcerati que, em
seus estatutos impressos (Bolonha, 1635, p. 16), previa a intercessão em favor dos
prisioneiros pobres “que lhe pedirem ajuda”. Sobre as origens dessas iniciativas
assistenciais, cf. M. D°Amelia, Il buon diritto, ovvero dell 'acesso alla giustizia per i
poveri. Prime riflessioni su un problema rimosso, inV. Zamagni (org.), Povertà ein-
novazioni istitazionali in Italia. Dal Medioevo ad oggi, Bolonha, 2001, pp. 335-54.
23. O texto, extraído do diálogo de A. Piccolomini, La Rafiaella, Veneza, 1539,
é citado no cap. vnl do belo livro de O. Niccoli, Storie di ogni giorno in un città del
Seicen to, Roma-Bari, 2000, p. 171.
24. Processo Cremonini, cc. 33r-35r.
25. “Signum est, quicquid manifestus existens potest nos ducere in cognitio-
nem illius, quod est occultius: de ratione signi est quod sit manifestum; de ratione
signati seu illius quod significatur est quod sit occultum” (Th. Fyens, Siniotice sive
de signis medicis, sumptibus lo. Antonii Huguetan, Lugduni, 1664, p. 1).
26. A imagem é de Carlo Ginzburg, “Uinquisitore come antropologo”, in Stu-
di in onore a Armando Saitta dei suoi allievi pisani, R. Pozzi e A. Prosperi (orgs.),
Pisa, 1989, p. 25.
27. “Homicidium... quatenus id in descendentes committitur, infanticidium
in sensu generali dicitur. Infanticidium, in sensu stricto et proprio, est homici-
dium, quod a matre in infantes recens natos committitur” (G. I. F. Meister, Princi-

41o
pia, cit. in W. Wãchters-Hãuser, Das Verbrechen des Kindesmordes im Zeitalter der
Auƒklara ng. Eine rech tsgeschich tliche Untersuchung der dogmatischen, prozessualen
and rechtssoziologischen Aspekte, Berlim, 1973, p. 7). Na linguagem corrente, a
distinção foi se esfumando; por isso M. Iackson, New-Born Child Murder: Women,
Illegitimacy and the Courts in Eighteenth-Centiir;/England, Manchester, 1996, pre-
feriu designar a morte do recém-nascido com um termo específico, para diferen-
ciã-lo do caso mais geral de assassinato (de novo, ver o comentário que fiz acima
sobre isso) de um filho.
28. Registrado como “Inter atrociora homicidia” pelo criminalista G. Carmig-
nani, Iuris criminalis elementa, vol.11, Pisa, 1819, pp. 112- 13.
29. Sigmund Freud, Die Traumdeutung [trad. it. Uinterpretazione dei sogni,
Turim, 1966, p. 149]. Sobre este caso, ver o excelente estudo de I. Walter, “Un in-
fanticidio immaginario nella Vienna fin de siècle”, Quaderni storici, XXII, dezem-
bro de 1987, n. 66, pp. 879-899; id., ibid., p. 887, a indicação do texto do Código
Penal austríaco.

2. o 1N1=ANT1cíD1o coMo oBsEssAo [pp. 31 56]


nv
_

1. Cf. K. Wrightson,“Infanticide in European History”, in Criminal Iastice His-


tory, nl (1982), pp. 1-20, que lembra, entre outras coisas, a prática chinesa da eli-
minação das recém-nascidas, a exposição dos filhos excedentes na Grécia Antiga
e o infanticídio praticado no Japão para modelar a família pelo sexo e número
desejado de filhos.
2. “Infans... qui adhuc vagit, necessarius, qui immoletur, e panis aliquantum,
qui in sanguine infringitur” (Tertuliano, Ad nationes I.7.23); e ainda Tertuliano:
“Infans adhuc tener, qui nesciat mortem, qui sub cultro tuo rideat” (Apologeti-
cam vn1.7); sobre estes textos e temas é fundamental o ensaio de F. I. Dölger, “Sa-
cramentum Inƒanticidii'Í Die Schlachtung eines Kindes and der Genuss seines Fleis-
ches and Blutes als vermeintlicher Einweiungsalct im ältesten Christentum, in
“Antike und Christentum”, Iv (1934), pp. 188-228; ver p. 188, nota.
3. Além do ensaio citado por F. I. Dölger, basta remeter ao antigo estudo de N.
Cohn, Europesís innerDemons.An Inqiiirylnspired by the GreatWitch Hant( 1975),
ed. revista, Nova York, 1993, onde discute uma rica casuística de dados de C. Ginz-
burg, Storia notturna, Uma deciƒraziorie del sabba, Turim, 1989, Introdução e cap.
1, pp. 48-50.
4. A definição é de F. Iesi, L'accusa del sangue. Mitologie dell ”antisemitismo,
Brescia, 1993. S. Levi della Torre, Mosaico. Attualità e inattualità degli ebrei, Turim,
1994, pp. 105-134, fala de “delito eucarístico”. Encontra-se uma reconstrução

411
abrangente em R. Taradel, L'accusa delsangue. Storia politica di un mito antisemita,
Roma, 2002. Sobre o caso de William de Norwich e as transformações históricas
do estereótipo até nossos dias, ver as precisas análises de T. Caliõ, Il “puera Iudaeis
necatus”Í Il ruolo del racconto agiograƒico nella dijffusione dello stereo tipo dell°omicidio
rituale, in Le Inq uisizioni cristiane e gli ebrei (Atti dei convegni lincei, 191), Roma,
2003, pp. 470-501.
5. Em Daroca, na Espanha, estão expostas na catedral seis hóstias ensanguen-
tadas, que teriam sido consagradas para os combatentes cristãos contra os mouros
em 23 de fevereiro de 1239.
6. A difusão da história do milagre e a conexão entre o nascimento da Com-
panhia do Santíssimo Sacramento de Urbino, os quadros de Paolo Uccello e a
fundação do Monte Pio foram reconstruídas por M. Aronberg [Lavin] Levi, “The
Altar of Corpus Domini in Urbino. Paolo Uccello, Ioos van Ghent, Piero della
Francesca”, in The Art Bulletin, xux, n. 1, março de 1967, pp. 1-24.
7. “Renovantes Christi sanguinem”: é o que, segundo o autor, faz a “hostilis et
impia gens Iudaeorum”; Passio auctore anonymo, in Acta Sanctorum, Augusti,
tomo v1, p. 782. A tradução do trecho é de R. Taradel, op. cit., p. 41 e nota.
8. Cf. A. Esposito e D. Quaglioni, Processi contro gli ebrei di Trento (1475-1478),
1: Iprocessi del 1475, Pádua, 1990. Para uma reconstrução do caso de Simonino, cf.
R. Po-Chia Shia, Trent 1475. Stories oƒA Ritual Murder Trial, New Haven-Londres,
1992.
9. Stupendo e maraviglioso caso seguito in Presburgo in Ungheria dove s'in tende
dal medesimo, come un Ebreoƒatto cristiano rubbô tre Ostie del Santiss. Sacramento
e del stupendissimo rniracolo che ne successe, por Antonio Capponi, editor episco-
pal, com licença dos superiores, Praga, Ferrara, Ancona, Treviso e Modena, 1727.
1o. “... Viderat eum devorasse infantem in capella super altare, et timuit ne
faceret sibi similiter”: a visão, relatada nos meados do século xlv por Thomas
[Tommaso] de Eccleston, é mencionada por M. Rubin, Corp us Christi. The Bucha-
rist in Late Medieval Culture, Cambridge, 1991, pp. 118- 19.
11. Cf. Walker Bynum, Holy Feast and Holy Fast, Berkeley-Los Angeles, 1987
(cit. cf. trad. it. Sacro convivio sacro digiuno. Il signiƒicato religioso del cibo per le
donne del Medioevo, Milão, 2001, p. 161).
12. Cf. M. Rubin, op. cit., p. 344.
13. Storia sacra per uso delle scuole e specialmente delle classi elementari..., do
sacerdote Giovanni Bosco, Turim, tipografia Salesiana s.a., pp. 205, 207. Damos a
referência devido à ênfase atribuída ao relato de Flávio Iosefo (Giuseppe Flavio].
14. A imagem bíblica de Raquel foi evocada na época por teólogos e juristas.
Pletus Rachelplorantisƒilios suose Rachelploransƒilios suos consoletur são os títulos
de ilustrações publicadas para o caso de Ester, viúva de Salomone Belforte de Li-

412
vorno, de quem tiraram, após a morte do marido (1696), uma menina ainda
lactante e dois meninos de três e cinco anos, porque foram “oferecidos à religião”
por um tio paterno convertido ao catolicismo. O opúsculo, impresso em Roma
nas tipografias da Rev. Camera Apostolica, foi conservado entre os papéis da
Inquisição florentina em Bruxelas (111.24, Decreta contra hebraeos, cc. 43rss.). Há
menção a um exemplar na Biblioteca Labronica de Livorno in R. Toaff, La na-
zione ebrea a Livorno e a Pisa (1591-1700), Florença, 1990, p. 192, nota. Cf. meu
Ebrei a Pisa. Dalle carte dell'Inquisizione Romana, in Gli ebrei di Pisa (secoli1x-
-xx). Atti del convegno internazionale, Pisa, 1998, pp. 117-57. Sobre o famoso
caso do pequeno Mortara, cf. D. Kertzer, Kidnapping oƒEdgardo Mortara, Nova
York, 1998. Quando à Shoah, referimo-nos à diretriz do Santo Ofício de setem-
bro de 1946, sobre a restituição das crianças hebreias acolhidas em instituições
católicas às suas famílias, publicada por Alberto Melloni em “Corriere della Sera”,
28 de dezembro de 2004.
15. Cf. o manual para a ministração dos sacramentos em uso em Pádua no
século xvm (De sacramentis in genere ac de sacramentalibus... decisiones auctore
Ioanne Clericato praeposito Patavino, Poleti, Veneza, 1725, pp. 151-53).
16. Foi a este documento que se remeteu a Congregação do Santo Ofício em
julho de 1900, para indeferir a petição de um desmentido definitivo da “suposta
prática do homicídio ritual” (M. Caftiero, Battesimiƒorzati. Storie di ebrei, cristia-
ni e convertiti nella Roma dei papi, Roma, 2004, p. 19). O documento do Santo
Ofício fora apontado por G. Miccoli, em C. Vivanti (org.), Santa Sede, questione
ebraica e antisemitismo ƒra Otto e Novecento, in Gli ebrei in Italia, vol. 11, Turim,
1997, pp. 1367-1574; Ver p. 1541.
17. Cf. L. Racaut, Accusation ofInƒanticide on the Eve ofthe French Wars ofReli-
gion, in M. Iackson (org.), Inƒanticide. Historical Perspectives on Child Murder and
Concealment, 1550-2000, Aldershot, 2002, pp. 18-34.
18. Cf. P. Trifone, “La confessione di Bellezze Ursini °strega° nella campagna
romana del Cinquecento”, in Contributi di ƒilologia dell'Italia mediana, 11 (1988),
pp. 79-224; ver pp. 150-224. O processo contra Bellezze Ursini (sem o texto da
confissão) fora apontado por A. Bertolotti, Streghe, sortiere e maliardi nel secolo xvr
in Roma, Florença, 1883.
19. Sobre a especialização como sinal de baixo nível social, cf. N. G. Siraisi,
Medieval and Early Renaissance Medicine. An Introduction to Knowledge and Pra-
tice, Chicago-Londres, 1990, p. 38.
2o. Cf. Carlo Ginzburg, Storia notturna, p. 278.
21. Cf. I. Hansen, Quellen und Unterschungen zur Geschichte des Hexenwahns
und des Hexenverfolgung im Mittelalter, Bonn, 1901, reimpressão Hildeshein,
1963, pp. 16-17. Ver C. Ginzburg, Storia notturna, p. 42 e nota.

413
22. Id., ibid., pp. 36-46.
23. “Uinfanticide et le cannibalisme d'enfants sont entrés dans les mentalités
comme un élément constitutifdu sabbat” (M. Ostorero, in Uimaginaire du Sabba t.
Êdition critique des textes les plus anciens (1430c. -1440c. ), M. Ostorero, A. Paravi-
cini Bagliani et al. (orgs.), in “Cahiers Lausannois d°histoire médiévale”, n. 26,
Lausanne, 1999, p. 320).
24. Cf. I. Hansen, op. cit.; mas ver agora a edição crítica em Uimaginaire du
Sabbat, pp. 23-97; ver pp. 36-39. Id., ibid., p. 57, nota, no comentário ao texto de
H. Fründ, K. Utz Tremp supõe que a cerimônia na igreja destinava-se ao batismo
ou ao sepultamento, mas as duas coisas estavam necessariamente unidas e uma se
seguia à outra.
25. I. Nider, Formicarius, in Uimaginaire du Sabbat, p. 155. E cf. Id., Errores
gazariorum, seu illorum qui scopam seu baculum equitareprobantur, edição crítica
revista por K. Utz Tremp e M. Ostorero, in Eimaginaire du Sabbat, cit., pp. 269-
-353; ver p. 287.
zé. cf. id., ibid., pp. 280-s1,2s7.
27. Cf. D. Rigaux, L'immagine di Simone di Trento nell'arco alpino lungo il seco-
lo xv: un tipo iconografico, in I. Roger e M. Bellabarba (orgs.), Il principe vescovo
Johannes Hinderbach (1465-1486) fra tardo medioevo e Umanesimo, Bolonha,
1992, pp. 485-96 (e ver 0 encarte iconográfico). Sobre a circulação impressa do
caso de Simonino, cf. P. O. Kristeller, The Alleged Ritual Murder ofSimon of Trent
(1475) and its literary Repercussions. A Bibliographical Study, in Proceedings of the
American AcademyforJewish Research, vol. ux, 1993, pp. 103-35.
28. Cf. R. Po-Chia Hsia, Witchcraƒt, Magic, and the Iews in Late Medieval and
EarlyModern Germany, in From Witness to Witchcraƒt. Iews and Iudaism in Medie-
val Christian Thought, ed. I. Cohen (Wolfenbütteler Mittelalter-Studien, vol. 11),
Wiesbaden, 1996, pp. 419-33; ver pp. 420-22.
29. É ressaltado por C. Pancino, Il bambino e llacqua sporca. Storia dell ”assistenza
al parto dalle mammane alle ostetriche (secoli xvi-xlx), Milão, 1984, p. 28. Mas ver
em esp. os estudos de Th. R. Forbes citados mais adiante (nota 32).
3o. A história desta tradição foi reconstituída por M. Bettini, Nascere. Sto rie di
donne, donnole, madri e eroi, Turim, 1998. Cf. em esp. pp. 289-301.
31. Cf. O. Niccoli, “Menstruurn quase monstruum”: parti mostruosi e tabu mes-
truali nel '500, in “Quaderni storici” xv (1980), fasc. 44, pp. 402-28. Nas últimas
décadas aumentou muito a bibliografia histórica sobre o tema mais geral da his-
tória do parto. Ver M. Laget, Naissances. Uaccouchement avant l'âge de la clinique,
Paris, 1982; e I. Gélis, L'arbre et leƒruit. La naissance dans l'Occident moderne, xvi-
-xix siècles, Paris, 1984. Para a Itália, ver em esp. o número 44 (1980) de “Q uaderni
storici”: Parto e maternita: momenti della au tobiografla femminile, ed. L. Accati,V.

414
Maher e G. Pomata; e cf. Madri. Storia di um ruolo sociale, ed. G. Fiume, Veneza,
1995. Também sobre a figura e os saberes da parteira já existe uma vasta bibliogra-
fia, da qual indicamos I. Gélis, La sagefemme ou le médecin. Une nouvelle concep-
tion de la vie, Paris, 1988; e para a cultura anglo-saxã, I. Donnison, Midwives and
Medical Men. A History ofIn terproƒessional Rivalries and Women's Rights, Londres,
1977.
32. Com a exceção de M. Murray, cuja tese sobre a realidade da bruxaria apre-
sentada em The Witch-cult in Western Europe, Oxford, 1921, fora prefigurada
numa nota dedicada ao infanticídio na feitiçaria: Child-sacriƒice among European
Witches, in “Man”, 1918, n. 18, pp. 60-62. À sua tese se remete 0 denso ensaio de Th.
R. Forbes, “Midwifery and Witchcraft”, in Iournal of the History ofMedicine and
Allied Sciences, vol. xvn, n. 2, abril de 1962, pp. 264-83, retomado e ampliado com
novas fontes em The Midvvife and the Witch, New Haven-Londres, 1966.
33. Em 1408, a parteira Pierrette, de Paris, foi processada por ter participado
de um tráfico de corpos de recém-nascidos para curar um nobre com lepra. Cf. Th.
R. Forbes, op. cit., pp. 133-38.
34. Segundo uma crença difundida, a mãe que pousa os olhos sobre a placen-
ta recém-expelida morre (cf. Handwörterbuch des deutschen Aberglaubens, Ber-
lim, 1935, vol. vt, p. 761). A indicação se encontra ao lado de muitas outras no
ensaio de I. d°Yvoire (ensaio rico em sugestões, mas insatisfatório), Laplacen ta: un
oggetto dallo statuto epistemologico problematico, in C. Pancino (org.), Corpi. Sto-
ria, metafore, rappresentazioni fra Medioevo ed eta contemporanea, Veneza, 2000,
pp. 83- 1 0 1 .
35. A. Benvenuti Papi (“Il culto degli Innocenti nelfimmaginario medievale”,
in Inƒanzie. Funzioni di un gruppo lirninale dal mondo classico all'età moderna, ed.
O. Niccoli, Florença, 1993, pp. 113-43; Ver pp. 123-24) aponta o caso de Marghe-
rita de Cortona e o “desenvolvimento de uma tipologia evangélica da parteira” nos
evangelhos apócrifos como os caminhos tomados pelo cristianismo medieval
para exorcizar a aura negativa e inquietante da parteira.
36. Der swangern Frawe und hebamme roszgarte, Henricus Gram, Hagenau,
1513. Entre as várias pesquisas existentes sobre a profissão das obstetras, não tive
ocasião de ver I. Murphy-Lawless, Reading Birth and Death. A History ofObstetric
Thinking, Cork, 1998.
37. Após a fundamental reconstituição de K. Thomas, Religion and the Decline
ofMagic, Nova York, 1971, aprofundou-se o estudo dos rituais batismais do ponto
de vista das teologias reformadas (cf. B. Nischan,“The Exorcism Controversy and
Baptism in the Late Reformation”, Sixteen th Century Journal, X1/111 [1987] , n. 1, pp.
31-51) e da bênção das parturientes como tema de história social (cf. D. Cressy,

415
“Purification, Thanksgiving and the Churching of Women in Post-Reformation
England”, in Past and Present, n. 141, novembro de 1993, pp. 106-46).
38. Cf. Th. R. Forbes, op. cit., pp. 268-69.
39. Em 24 de junho de 1552 ordena-se o comparecimento de “Faustinam stri-
gam obstetricem” perante a Congregação (Congregação vaticana para a doutrina
da fé, Arquivo do Santo Ofício [doravante ASO], Setor histórico, Decreta 1548-
1558, c. 68 r.). Em 30 de junho foram estabelecidos cinco dias para apresentar suas
defesas (idem, c. 72v). Em 12 de julho ordena-se a “repetitio testium” (c. 74v) e
em 16 de agosto dão-se as disposições sobre os bens que lhe foram confiscados
(c. 77 r). Em 3 de novembro dispõe-se que se proceda com ela recorrendo à tortu-
ra, se necessário (c. 83v). Agradeço o arquivista da congregação, monsenhor Ale-
jandro Cifres, pelo auxílio prestado no decorrer destas pesquisas.
40. “Faustina de Ursis relaxetur data cautione... Interdicta sibi quod de caete-
ro non faciat officium obstetricis neque curet pueros” (idem, c. 86v).
41. ASO [ASU no original] , Fondo senese, vol. 11, cc. 225r ss.
42. Idem, c. 299 r.
43. Cost. Cf. 26 de janeiro de 1591; idem, c. 3081/.
44. Ata de 22 de fevereiro de 1591; idem, c. 3141/.
45. ASO IASU, no original], Fondo senese, vol. xxvn, Processos 1617-19, cc.
609 r-7231/. A grafia do sobrenome oscila entre “Ciani” nas primeiras atas do pro-
cesso e “Ciacci” nos interrogatórios finais.
46. 22 de agosto de 1619; idem, 676v.
47. A. Rowlands, “Witchcraft and Old Women in Early Modern Germany”, in
Past and Present, n. 173, novembro de 2001, pp. 50-89, ver p. 55.
48. T. Garzoni, La piazza universale di tutte leproƒessioni del mondo, ed. P. Cher-
chi e B. Collina, Turim, 1996, p. 1340 (cf. C. Pancino, Il bambino e l'acqua sporca,
cit., pp. 30-31).
49. Claudia Pancino dedicou diversos estudos a este texto e ao autor numa
pesquisa sobre a exploração da história do parto. Em Il bambino e l”acqua sporca,
cit., pp. 59 ss., C. Pancino apresenta uma revisão bibliográfica mostrando a mul-
tiplicação das obras com instruções para as parteiras, de Scipione Mercurio ( 1596)
a Antonio Bigeschi (1819). A edição de Gio. Francesco Valvasense, Veneza, 1686,
apresenta-se, por exemplo, “acrescida de dois tratados”, um do médico Pietro di
Castro, “o outro de um ilustríssimo autor, em que se esclarecem algumas dúvidas
importantes sobre o Batismo das crianças e se dão alguns conselhos espirituais
muito oportunos para as parturientes”. Uma série de gravuras ilustra a conforma-
ção do aparelho reprodutor feminino e as diversas maneiras em que se apresenta
a criança ao nascer.
5o. Cf. The Church and Childhood, ed. D. Wood (Studies in Church History, vol.

416
31),Oxford-Cambridge (Mass.), 1994. Sobre as discussões na Inglaterra dos sécu-
los xvn e xvm, é sempre fundamental L. Stone, The Family, Sex and Marriage in
England 1500-1800, Londres, 1977.
51. V. de Bolonha, Praeclara operetta dello ornato delle donne, Bolonha,
( 152 52') .
52. “... Curare debet parochus, ut fideles, praesertim obstetrices, rectum bap-
tizandi ritum probe teneant et servent” (Rituale Romanum Pauli VPont. Max.
iussu editum, Veneza, 1615, p. 10).
53. Notificação de 30 de setembro de 1732, citada por C. Pancino, La levatriceƒra
delazione e segretezza, in “Sanità scienza e storia” Il (1989), pp. 1 17-25; ver p. 1 19.
54. Scipione Mercurio, De gli errori popolari d'Italia libri sette, impr. Gio. Bat-
tista Ciotti de Siena,Veneza, 1603. O ensaio de H. W. Roodenburg, “The Maternal
Imagination: The Fears of Pregnant Women in Seventeenth-Century Holland”,
Journal of Social History, xxi (1988), pp. 701- 16, estuda a difusão de tais concep-
ções (principalmente na cultura médica dos Países Baixos).
55. Assim, por exemplo, era suspeito “pegar as secundinas, ou camisas, das
crianças, mandar benzê-las e rezar missa por elas, para vendê-las a seguir, sugerin-
do aos ignorantes que, enquanto vestissem tais camisas, nunca poderiam ser mor-
tos nem feridos” (S. Mercurio, De gli errori popolari, cit., 206 rv).
56. O teólogo Iean Filesac, de Paris, falava das bruxas como “sagae illae et ma-
leficae mulieres, quae infantes ex uteris puerperarum exceptos diabolo sacriñcare
et offerre, atque eidem execrabili quadam verborum forma baptizare, ac nonnun-
quam acu, vel re simili, capiti infixa, necare solent” (Ioannis Filesaci Theologi
Parisiensis, De idolatria magica dissertatio, ex officina Iacobi Godofredi Seyler,
Frankfurt, 1670, c. 65 r). Filesac sustenta que se trata de uma “pestis” difundida de
alto a baixo por toda a França ou, melhor, por toda a Europa, e que duvidar da
realidade de fenómenos como o voo noturno é sinal de pessoa não só pouco cris-
tã, mas também “verum etiam iudicii rationisque parum compos” (c. lv).
57. Filesac fala “de Baptismo, ut ita loquar, magico” (idem, c. 65 r) e cita, ao lado
de cânones e antigos concílios, o testemunho de Pedro Mártir de Anghiera sobre
os “Cempoalanos barbaros” (c. 66). 4
58. O ensaio preciso e muito bem documentado de R. Van Dülmen, Frauen vor
Gericht. Kindsmord in derƒrtihen Neuzeit, Frankfurt, 1991, apresenta um quadro
estatístico a este respeito (p. 59). E, em geral, ver agora os dados elaborados por R.
I. Evans, Rituals of Retribution. Capital Punishment in Germany 1600-1987,
Oxford, 1996.
59. “A mênade atribuiu-se a função de parteira” (A. Warburg, Grundbegrifie,
notas inéditas, cit. E. H. Gombrich, Aby Warburg. Eine intellektuelle Biograƒie,
Hamburgo, 1970).

417
6o. Cf. V. Hünecke, Venedig am Ende der Republik 1646-1797. Demographie,
Familie, Haushalt, Tübingen, 1995, p. 97.
61. Sobre a imagem lucreciana do recém-nascido e de seu destino, o estudo um
tanto superficial de B. Rochette, “`Nudus infans...'. A propos de Lucrêce”, v, 222-
-27, in Les études classiques, Lx (1992), pp. 63-73, assinala em especial Lactãncio e
Leopardi. Sobre os problemas do parto no mundo antigo, cf. M. Grmek, Diseases
of the Ancient Greek World, Baltimore-Londres, 1989. Uma imagem de mulher à
morte no parto é analisada por A. Stewart e C. Gray, Confronting the Other: Child-
birth, Aging, and Death on the Attic Tombstone at Harvard, in Not the Classical
Ideal. Athens and the Constrution of the Other in Greek Art, ed. B. Cohen, Leiden-
-Boston-Colônia, 2000, pp. 248-74.
62. Sobre as razões do predomínio de mulheres idosas nos casos de bruxaria,
há muitas opiniões no quadro mais geral da relação entre bruxaria e condição fe-
minina. A hipótese de um nexo entre bruxaria e menopausa, defendida por R.
Briggs, Witches and Neighbours, Londres, 1996, é um exemplo dos resultados desse
debate. Baseando-se em novos dados documentais referentes ao sul da Alemanha
no século xvn, A. Rowlands, op. cit., reabriu a discussão propondo dissolver a rigi-
dez da tese geral numa análise micro-histórica dos contextos específicos (e remete
a um livro de sua autoria que não tive ocasião de consultar: Narratives ofWitchcraft
in Early Modern Germany: Fabrication, Feud and Fantasy, Manchester, 2002).
63. O diário de Martha Ballard foi parcialmente publicado e pontualmente
analisado por L. Thatcher Ulrich, A Midwife* Tale. The Life ofMartha Balla rd based
on Her Diary, Nova York, 1990. O “pequeno milagre” (id., ibid., p. 383) da conser-
vação da fonte permitiu que a estudiosa relesse de outra maneira a história ame-
ricana daqueles anos.

3. o1NFANT1cíD1o coMo PRÁTICA soc1AL: DE PECADO


A CRIME [pp. 57-96]

1. E. R. Coleman,“L'infanticide dans le haut Moyen Age”, in An nales ESC, 1974,


11. 2, pp. 315-35; cf. p. 318.
2. G. Toaldo, Tavole di vitalità, Pádua, 1787, p. 20 (reproduzi a indicação do
ensaio de C. Povolo, in La valle del Chiampo, ed. P. Preto, Vicenza, 1982, 1, p. 167).
3. Iá H. Iedin, “Le origini dei registri parrocchiali e il Concilio di Trento”, in Il
Concilio di Trento, 11, n. 4, outubro de 1943, pp. 323-36, ver pp. 331-32, ressaltava
as “razões sociais e civis” da instituição dos registros. Um levantamento das fontes
em C. A. Corsini, Nascite e matrimoni, in Lefonti della demografia storica in Italia,
Roma, 1974, vol.11, pp. 647-70.

418
4. Cf. G. Hanlon, “L'infanticidio in Toscana nella prima età moderna”, in Qua-
derni storici, xxxvnl (2003), n. 113, pp. 453-98; ver p. 460.
5. Id., ibid.
6. O caso é assinalado em id., ibid., pp. 458-59.
7. Na iconografia fúnebre “a criança aparece muito tarde, no século XVI” (Ph.
Ariès, Llenfant et la vie familiale sous l'ancien régime, Paris, 1973, p. 29). Sobre a
amplitude da faixa etária definida como “infância”, cf. O. Niccoli, Il seme della
violenza. Putti, ƒanciulli e mammoli nell'Italia tra Cinque e Seicento, Roma-Bari,
1995, pp. xl-xII1. R. C. Trexler, “Infanticide in Florence: New Sources and First Re-
sults”, in History of Childhood Quarterly,1 (1973), pp. 98-116 [trad it. Famiglia e
potere a Firenze nel Rinascimento, Istituto dell”I-Enciclopedia italiana, Roma, 1990,
pp. 9-36; ver p. 19] , observa que o termo “infanticídio” não aparece antes do final
do século xvI.
8. Cf. por último H. Lutterbach, “Der zivilisationgeschichtliche Beitrag der
frühmittelalterlichen Bussbücher zum christlichen Kinderschutz”, Historiches
Iahrbuch, cxxm (2003), pp. 3-25.
9. “Nobis vero homicídio semel interdicto etiam conceptum in utero, dum
adhuc sanguis in hominem delibatur, dissolvere non licet... Homo est et qui est
futurus; etiam fructus omnis iam in semine est” (Apologeticum 1x.8). Numa re-
constituição cuidadosa e pontual da atitude cristã sobre o aborto, há uma detida
passagem sobre Tertuliano e Minucio Felice em P. Sardi, L'aborto ieri e oggi, Bres-
cia, 1975, pp. 68-70. Agora há um perfil histórico abrangente da questão apresen-
tado por G. Galeotti, Storia dell'aborto, Bolonha, 2003.
1o. “Sed ego... dixero, veteres christianos, de bona fide saepe parum solicitos,
Gentilibus, adversariis suis, plurima exprobrasse” (C. van Bijnkershoeck, Curae
secundae, III: De iu re occiden ti, vendendi et exponendi liberos apud veteres Romanos,
apud Ioannem van der Lindem juniorem, Lugduni Batavorum, 1719, pp. 141-232;
ver pp. 224-2 5; cópia de referência Institute for Advanced Legal Studies, Londres).
11. Cf. A. Assmann, “Werden was wir waren. Anmerkungen zur Geschichte der
Kindheitsidee”, in Antike und Abendland, xxlv (1978), pp. 98- 124.
12. M. Bettini, op. cit., p. 297. Sobre a questão do aborto no mundo antigo,
depois dos excelentes estudos de história do direito de E. Nardi (ver em esp. Pro-
curato aborto nel mondo greco-romano, Milão, 1971), a obra de referência é o re-
cente livro de K. A. Kapparis, Abortion in the Ancient World, Londres, 2002.
13. Assim conclui Kapparis, ibid., pp. 195-99. Id., ibid., p. 169: a referência a
Antifonte para a concepção da vida como dom de Deus.
14. Para o comentário histórico-filológico da passagem, cf. C. Houtman, Exo-
dus, in Historical Commentary on the Old Testament, vol III, caps. 20-40, Leuven,
2000, pp. 160-71 (agradeço a Pier Cesare Bori pela indicação).

419
15. “Quasi homicidae” foi a definição do arcebispo de Pisa, em meados do sé-
culo xIII, para as mulheres que praticavam o aborto (Les sermons et la visite pasto-
rale de Federico Visconti archevêque de Pise (1253-1277), ed. N. Beriou, Roma,
2001 , p. 477 (a fonte a que remete o editor é Raymundus de Pennaforti, Summa de
paenitentia, Livro II, tit. 1, De homicídio, cap. VI, ed. I. Ochoa e L. Diez, Roma, 1976,
p. 448).
16. Cf. A. O'Connor, Child Murderess and Dead Child Traditions. A Compara-
tive Study, Helsinque, 1991 (agradeço a Silvano Cavazza pela indicação).
17. Uma exposição sumária das fontes é apresentada por H. Lutterbach, op. cit.,
pp. 1 3- 1 5.
18. “Magnum est crimen animam perdere” (Penitentialis Vinniani, in The Irish
Penitentials, ed. L. Bieler, Dublin, 1963, pp. 74 ss., c. 47, p. 92). Para essas fontes,
remeto a uma contribuição de Francesco Mores (no prelo) nas atas de um semi-
nário sobre o batismo realizado na Scuola Normale Superiore de Pisa.
19. “Si infans per neglegentiam moritur ante Baptismum” (C. Vogel e R. Elze,
Le Pontifical romano-germanique du dixième siècle, Cidade do Vaticano, 1963-72,
vol. II, p. 239).
2o. “Quia frequenter... concipientes ex adultério, ne prodantur in publico,
fetos teneros necant, et absque baptismatis lavacro parvulos ad tartara mittunt,
quia nullum reperiunt locum, in quo servare vivos valeant, et celare possint adul-
terii stuprum; sed per cloacas et sterquilinia, fluminaque proiciunt...” (L. A. Mu-
ratori, Dissertatio trigesima septima, in Antiquitates Italicae Medii Aevi, vol. 111, pp.
587-89); o documento é citado sem observações por G. Albini, L'infanzia a Milano
nel Quattrocento: note sulle registrazioni delle nascite e sugli esposti all”Ospedale
Maggiore, in “Nuova Rivista storica” Lxvn (1983), pp. 144-59, e por V. Hünecke, I
trova telli di Milano. Bambini esposti efamiglie espositrici dal xvn al xrx secolo, Bolo-
nha, 1989. No século XI, segundo a Historia Mediolanensis de Landolfo Iuniore (cit.
ibid., p. 71), havia em Milão um hospital para os “infantulos qui ante ecclesiae
ianuas a parentibus qui eos nutrire ac fovere minime valebant nimia paupertate
attenuati, mittebantur”. Aqui o tom é completamente diferente e coloca em pri-
meiro plano a questão da pobreza dos pais. (Agradeço a Francesco Mores por suas
observações e indicações).
21. Cf. I.-C. Schmitt, Le Saint-Lévrier, guérisseur d'enfants depuis le xuf siècle,
Paris, 1979 [trad. it. Il santo levriero. Guinefortguaritore di bam bini, Turim, 1982,
p. 49].
22. “Si quis infantem necaverit ut homicida teneatur”, I. D. Mansi, Sacrorum
Conciliorum nova et amplissima collectio, 53 vols., Paris, 1901-27, to. 17, parte II, p.
1060; cf. Y.-B. Brissaud, “L'infanticide à la fin du Moyen-âge, ses motivations

42o
psychologiques et sa répression”, Revue historique du droitfrançais et étranger, s. Iv,
L (1972), pp. 229-56; ver p. 246.
23. Notado por C. Heywood, A History of Childhood, Cambridge, 2001, pp.
74-5. Segundo L. Stone, The Family, Sex and Marriage in England 1500-1800, cit.
[trad. it. cit., p. 524] : “na Inglaterra medieval, o infanticídio não era considerado
um homicídio, da alçada dos tribunais seculares, mas crime menos grave, a cargo
dos tribunais eclesiásticos”. Mas provavelmente não se tratava de uma maior ou
menor percepção da gravidade do fato, e sim dos limites então existentes entre
pecado e crime.
24. Y.-B. Brissaud, op. cit., pp. 246-47.
25. Id., ibid (que remete a A. Samouillan, Olivier Maillard, sa prédication et son
temps, tese, Paris, 1891, p. 316).
26. O conteúdo do cânone do Sínodo de Ancira, na Ásia Menor, e de Elvira, na
Espanha, no início do século Iv, foi resumido no século VI pelo monge Dionísio, o
Pequeno, que fala das mulheres “quae fornicantur et partus suos necant”; o Sí-
nodo de Ancira referira-se ao caso da mulher que“per adulterium absente marito
suo conceperit, idque post facinus occiderit” (ver a reconstituição precisa de I.
Walter, “Die Sage der Gründung von Santo Spirito in Rom und das Problem des
Kindesmordes”, in Mélanges de l'École Française de Rome, Moyen Âge - Temps
Modernes, to. xcvn, 1985, pp. 819-79; ver pp. 844-45.
27. Não cheguei a consultar o estudo deV. Lehmann, Die Geburt in der Kunst,
Braunschweig, 1978.
28. Estes aspectos foram destacados no ensaio de M. Bolton, “Received in His
Name”: Rome's Busy Baby Box, in The Church and the Childhood, cit., pp. 153-67.
29. Sobre o afresco de Santo Spirito, ver o estudo fundamental de I. Walter, Die
Sage der Gründung von Santo Spirito in Rom, cit., pp. 819-79.
3o. “Aqueles contínuos abortos e assassinatos de crianças em seus mosteiros”
(R. Burton, The Anatomy ofMelancholy, ed. H. Iackson, Nova York, 2001, Primei-
ra parte, seção II, 11, subs. 4, p. 4191). O caso de Virginia de Leyva, estudado por
Manzoni, mostra que não eram boatos infundados.
31. Há uma reconstituição de aspectos significativos em G. Zarri, Recinti. Don-
-rw-‹,¬._.-¬.

ne, clausura e matrimonio nella prima eta moderna, Bolonha, 2000; ver em esp. cap.
r
I
I, par. 2, “L'onore della città”, pp. 70-81; e cap. Iv, “Nozze mistiche e nozze sacre tra
I
Medioevo ed età moderna”, pp. 251 ss.
É
lF. 32. Este texto foi publicado num estudo de grande fôlego e perspicácia de C.
í

L
Gauvard e G. Ouy, Gerson et l'infanticide: défense desfem mes et critique de la péni-
tence publique (ms London, BL Add. 29279, 19v-20v), in “Rien ne mlestsúr que la
l chose incertaine” Études sur I*art d'écrire au Moyen Âge ojfertes à Eric Hicks par ses

421
élèves, collègues, amies et amis, ed. I.-C. Mühlethaler e D. Billotte, Genebra, 2001,
pp. 45-66. Agradeço a Carlo Ginzburg pela indicação.
33. R. C . Trexler, op. cit. [trad. it. cit., pp. 17-26]. Mas todo o ensaio é funda-
mental.
34. Cf. W. de Boer, The Conquest ofthe Soul, Leiden, 2001 [trad. it. La conquis-
ta dell'anima. Fede, disciplina e ordine pubblico nella Milano della Controriforma,
Turim, 2004, pp. 234-41.1.
35. Cf. C. Gauvard e G. Ouy, Gerson et Vinfanticide, cit., p. 66, que se referem ao
amplo estudo de C. Gauvard, “De grace especial” Crime, Etat et société en France a
la fin du Moyen Âge, Paris, 1991.
36. R. C. Trexler, op. cit. Itrad. it. cit., p. 19].
37. Ainda que em percentual muito baixo. De 1366 cartas entregues aos habi-
tantes de Poitou entre 1302 e 1502, há apenas onze casos de infanticídio indulta-
dos (Y.-B. Brissaud, op. cit., p. 251, nota).
38. Em 1686, por exemplo, a irmandade milanesa de San Giovanni obteve a
graça para uma infanticida. Cf. C. Cantu, Beccaria e il diritto penale, Florença,
1só2,p.s22.
39. E significativo que o infanticídio ainda não faça parte da categoria do “ne-
fando” nos séculos da baixa Idade Média estudados por I. Chiffoleau, “Dire
l'indicible. Remarques sur la catégorie du“Nefandum” du xII° au XV* siècle”, Annales
ESC, xLv (1990), pp. 289-324.
4o. No direito consuetudinário francês este crime é chamado “encis”; cf. Y.-B.
Brissaud, op. cit., pp. 229-56, ver p. 230 e nota. A norma era geralmente válida;
encontramo-la aplicada na Alemanha seiscentista. Cf. U. Rublack, “Pregnancy,
Childbirth and the Female Body in Early Modern Germany”, Past and Present, n.
150, fevereiro de 1996, pp. 84- 1 10; ver p. 103.
41. A última graça por um crime de infanticídio em Poitou foi em 1478-79,
ressalta N. Zemon Davis, Fiction in theArchives. Pardon Tales and their Tellers in the
Sixteenth-Century France, Stanford, 1987 [trad. it. Storie d'arquivio. Racconti di
omicidio e domande di grazia nella Francia del Cinquecento, Turim, 1992, p. 169,
nota 33].
42. R. C. Trexler, op. cit. [trad. it. cit., p. 19] .
43. Esta história foi desvendada por um lúcido ensaio de I. Walter, “Infantici-
dio a Ponte Bocci: 2 marzo 1406. Elementi di un processo”, Studi storici, 1986, n. 3,
pp. 637-48.
44. Y.-B. Brissaud, op. cit., p. 249.
45. R. C. Trexler, op. cit [trad. it. cit., p. 19].
46. Segundo Richard van Dülmen, influiu no processo de criminalização das

422
mulheres “das moralische Bewsstsein nach der Reformation” (R. van Dülmen,
Frauen vor Gericht, cit., p. 29).
47. Cf. a edição org. por G. Radbruch, Die peinliche Gerichtsordnung Kaiser
Karls v. von 1532 (Carolina), Leipzig, 1967, pp. 84-85. G. Alessi, Il processo penale.
Proƒilo storico, Roma-Bari, 2001, apresenta uma boa identificação do contexto.
Sobre os antecedentes da “Carolina” e as disposições penais posteriores a ela e nela
inspiradas (francesa, 1566; lituana, 1588; inglesa, 1623/24; e até russa), cf. R. C.
Trexler, op. cit. [trad. it. cit., p. 33, nota 40]. Sobre a prática efetiva de inspeções
feitas por parteiras no seio de mulheres suspeitas, cf. R. van Dülmen, Frauen vor
Gericht, cit., p. 36.
48. A expressão “usar misericórdia” se lê na sentença de uma mulher de
Novazzano nos territórios italianos da Suíça, que em maio de 1579 foi decapitada
em vez de ser sepultada viva; também em 1637, uma sentença de morte na foguei-
ra por infanticídio foi alterada para a decapitação (cf. D. Baratti, Giustizia e crimi-
nalita, in Storia della Svizzera italiana del Cinquecento al Settecento, ed. R. Ceschi,
Bellinzona, 2000, pp. 353 -76; em esp. p. 375). Sobre a difusão do infanticídio como
crime nesta região, cf. F. Mena, “Pratiche delfinfanticidio nel Mendrisiotto fra
Antico Regime e primo Novecento”, in Arquivio storico ticinese, 1999, n. 125, pp.
23-38. Mas, sobre a história do controle da gravidez na região de Mendrisio, ver
agora a importante pesquisa de I. Spinelli, “ Grossesses illégitimes” devant la justice
criminelle du bailiage de Mendrisio sous l”Ancien Regime, tese orientada pelo pro-
fessor Michel Porret, Universidade de Genebra, 2001, que pude ler graças à genti-
leza da autora; por ora foi publicada uma parte com o título “Relazioni illegittime
in una comunità cisalpina. Processi a donne nel baliaggio di Mendrisio”, in Arqui-
vio storico ticinese, n. 131, junho de 2002, pp. 3-32. A doutora Spinelli explorou
uma rica documentação a respeito da gravidez ilegítima entre os séculos xvI e xvln
no “baliaggio” de Mendrisio, demonstrando entre outras coisas como os procedi-
mentos da Iustiça se inseriam nas dinâmicas das comunidades e como prevalecia
a luta contra as relações fora do matrimônio.
49. Cf. M. -C. Phan,“Les déclarations de grossesse en France (xvI*-xvIII° siècles).
Essai institutionnel”, Revue d 'histoire moderne et contemporaine, 1975, pp. 61-88.
I. R. Farr examinou 3024 “arrêts” entre 1582 e 1730 (Authority and Sexuality in
Early Modern Burgundy (1550-1730), Nova York-Oxford, 1995, p. 127).
' 5o. Cf. I. F. Harrington, ReorderingMarriage and Society in Reformation Ger-
many, Cambridge, 1995, pp. 250-51.
51. Cf. P. C. Hoffer e N. E. H. Hull, Murdering Mothers: Infanticide in England
and New England 1558-1803, Nova York-Londres, 1981, p. 22.
52. Segundo I. M. Beattie, Crime and the Courts in England 1660-1800, Oxford,
1986, p. 113: “a lei pretendia atingir tanto a imoralidade quanto o infanticídio”.

423
Sobre a interpretação da norma no século xvI1I, Beattie remete a sir L. Radzinowicz,
History ofEnglish Criminal Law andItsAdministrationfrom 1750, I, Londres, 1948,
pp. 430-36.
53. É uma observação de M.-H. Renaut num ensaio de perfil generalizante
(“Le droit et l'enfant adultérin de l'époque romaine à aujourd'hui: ou l'histoire
d'un exclu accédant à la vie juridique”, Revue historique, n. 602, abril-junho de
1997, pp. 369-408; ver p. 381).
54. Após a carta de 9 de outubro de 1691, dedicada à repressão dos “amores
desonestos”, que se lê na Legislazione toscana raccolta e illustrata dal dottor Lorenzo
Cantini, to. xx, Florença, 1805, p. 242, Cosimo III enviou aos juízes do grão-ducado
uma nova circular de 25 de julho de 1701, na qual impunha a obrigação para as
mulheres grávidas sem marido de indicar um fiador para garantir o parto, justifi-
cando a medida com o fato que “de algum tempo para cá são muito frequentes os
abortos e os infanticídios” (id., ibid., to. xxi, pp. 129-30). Sobre a questão, cf. F.
Scaduto, Sta to e Ch iesa sotto Leopoldo I Granduca di Toscana (1765-1790), Floren-
ça, 1885, p. 169. Sobre a política de proteção ao feto na Toscana, devo à gentileza
do doutor Andrea Zanotto a oportunidade de ter lido uma pesquisa sua ainda no
prelo. Sobre as propostas dos juristas no mérito, ver G. Alessi, Le gravidanze illegit-
time e il disagio dei giuristi (sec. xvu-xrx), in Madri. Storia di un ruolo sociale, ed. G.
Fiume,Veneza, 1995, pp. 221-45.
55. R. Ceschi, resenha de A. Pastore, “Il medico in tribunale”, Nuova rivista
storica, I.xxxIII, setembro-dezembro de 1999, fasc. 3, pp. 625 ss. E ver a pesquisa de
Isabella Spinelli, op. cit. acima, nota 48.
56. “Pisis accidit, dum mulierem... in publico theatro secarem... Sanctae no-
mem erat, quae cum ante mensem geminos peperisset, eosque míseros vix in lu-
cem proditos luce privasset, ac suffocasset, eam iusti iudices suffocandam iusse-
runt... Sancta nomine, revera autem daemoniaca potius, et venefica” (Realdi
Columbi De re anatomica libri xv, Veneza, 1559, pp. 173-74; apud Andream We-
chelium, Paris, 1572, p. 318).
57. M. E. Wiesner, Women and Gender in Early Modern Europe, Cambridge
University Press, 1993 [trad. it. Le donne nell'Europa moderna 1500-1750, Turim,
2003, p. 66]. .
58. Cf. P. C. Hoffer e N. E. H. Hull, op. cit., p. 7.
59. Cf. I. A. Sharpe, Crime in Earl;/Modern England, 1550-1750, Londres-Nova
York, 1984, p. 136.
6o. I. R. Dickinson e I. A. Sharpe, “Infanticide in Early Modern England: the
Court of Great Sessions at Chester, 1650- 1800”, in M. Iackson (org.), Infanticide.
Historical Perspectives on Child Murder and Concealment, 1550-2000, cit., pp. 35-
-51; ver p. 38.

424
61. Cf. R. van Dülmen, op. cit., pp. 58-75.
62. U. Rublack, Magd, Metz'oderMörderin. Frauen vorƒrühneuzeitlichen Geri-
chten, Frankfurt, 1998.
63. Cf. I. R. Farr, op. cit., p. 132.
64. Por mérito especialmente de C. Povolo, “Note per uno studio dell'infanti-
cidio nella Repubblica di Venezia nei secoli xv-xvn1”,Atti dell'Istituto veneto di
scienze, lettere e arti, cxxxvn (1978-79), pp. 116-31; Considerazioni (id., ibid., pp.
479-98); id., Aspetti sociali e penali del reato d'inƒanticidio. Il caso di una contadina
padovana nel 700, vol. cxxxvin (1979-80), pp. 415-32.
65. Cf. os casos indicados no livro Onore estoria nelle società rnediterranee, ed. G.
Fiume, Palermo, 1989 (ver em esp. P. Catalanotto, Sulla soglia del disonore. Gravidan-
ze illegittime e inƒanzia abbandonata nella Sicília del Sette- Ottocen to, pp. 155-64).
66. C. Povolo, “Dal versante delfillegittimità”, in Crirnine, giustizia e società ve-
neta in eta moderna, ed. L. Berlinguer e F. Colao, Milão, 1989, pp. 89- 163; ver p. 145.
67. Cf. Arquivio di Satato di Perugia [de agora em diante ASP], Conƒraternita
dei ss. Andrea e Bernardino della Giustizia, 3: Giustiziati ed Oblati alla Croce 1525-
-1826, cc. 61/, 23v, 26re passim.
68. ASB, Arquivo do Torrone, Vacchetta dei giustiziati, Rubrica, cc. n.n. Mas os
casos de infanticídio atestados nas atas do tribunal do Torrone são muito mais
numerosos, constituindo uma das mais volumosas categorias de crime no decor-
rer de toda a Idade Moderna.
69. Cf. O. Niccoli, op. cit., p. 61.
7o. Cf. D. Bolognesi, “Le vicende demografiche”, in Storia di Ravenna, vol. Iv,
ed. L. Gambi, Veneza, 1994, pp. 637-53; ver pp. 650-51.
71. L. Stone, op. cit. [trad. it., pp. 714-715] . Quanto aos dados estatísticos,Alain
Corbin reconheceu francamente que mesmo na França pós-revolucionária fazia-
-se um uso sistemático deles, “les statistiques judiciaires... ne disent pas le vrai”
(Prefácio de A. Tillier, Des crirninelles aa village. Femmes inƒanticides en Bretagne
1825-1865, Rennes, 2001, p. 1).
72. U. Rublack, “Pregnancy, Childbirth and the Female Body”, cit., pp. 96-8.
73. O caso foi estudado por R. Chartier, La pendue miracnleusement saavée.
Étude d*un occasionnel, in id., Les usages de l 'imprimé, Paris, 1987 [trad. it., La rap-
presentazione del sociale. Saggi di storia culturale, Turim, 1989, pp. 126-27].
74. De“substitution dela religion par la science” fala C. Milanesi (La réanirna-
tion d °an condamné à Montpellier en 1745, in Uexécution capitale: une mort donnée
en spectacle XVI”-xxf siècle, ed. R. Bertrand e A. Carol, Aix-en Provence, 2003, pp.
33-81; ver pp. 37-40). A reanimação de Anne Greene foi objeto de estudo de I.
Trevor Hugues in “British medical Iournal” de dezembro de 1982, que não tive
ocasiao de ver.
1-..‹

425
75. O caso do estudo de A. Tillier, Des crirninelles au village, cit., é exemplar
neste sentido.
76. Cf. I. M. Beattie, Crime and the Courts in England, cit., pp. 113-24 (idem a
referência a B. de Mandeville, The Fable ofthe Bees [trad. it. Favola delle api, Turim,
1961]).
77. O documento é mencionado por I.-L. Flandrin, Les arnours paysannes xvf-
-Xrxf' siècles, Paris, 1975, pp. 200-3. “
78. O Édito, conservado no Archivio storico della Provincia di Bologna Ospe-
dale degli Esposti, Istrumenti, b. 39, fasc. 17, foi apontado por A. Bianchi, Figli ille-
gittimi e assistenzapubblica a Bologna nell'età moderna. L”ospedale degli esposti, tese
de doutorado na Scuola Superiore di Studi storici di San Marino, sob orientação
do professor Rosario Villari, p. 93.
79. A observação surge do panorama geral desenhado por V. Hünecke, Gli
abbandoni dal Xv al XIX secolo, in Enƒance abandonnée et société en Europe xrvf-xx*`
siècle, Actes du colloque, 30 e 31 de janeiro de 1987, Roma, 1991, pp. 27-72.
80. Uma relação de 1654 a respeito do hospital genovês de Pammatone ilustra
as formas de troca e de enganos graças aos quais se confiavam os próprios filhos
aos expostos para depois retomá-los e aleitá-los em troca de um pagamento (cf. C.
Gatti, Madri efigli in una cornunità rurale del “700, Milão, 1983, pp. 94-99. O estudo
de Gatti apresenta dados analíticos muito ricos sobre o andamento demográfico
de uma pequena comunidade, mas não permite extrair conclusões positivas sobre
a “nítida dimimuição” do infanticídio que derivaria da intensificação da vigilância
da Igreja e do Estado; ver ibid., p. 12).
81. Cf. Ph. Aragon, Saint Vicent de Paul et l”abandon, in Enƒance abandonnée et
société en Europe xrv-xrx siècle, cit., pp. 151-65.
82. O édito impresso, emanado pelo cardeal Carlo Carafa- legado de Bolonha
- em 22 de março de 1666, está reproduzido no interior do ensaio de A. Bianchi,
La “Famiglia” dell 'Ospedale tra xvr e xvm secolo, in I Bastardini. Patrimonio e me-
moria di um ospedale bolognese, editado pela Amministrazione provinciale di Bo-
logna, Bolonha, 1990, pp. 39-60; ver p. 41.
83. O édito está reproduzido em id., ibid., p. 23.
84. A obra de Moser foi editada em Tubingen em 1730 sob um pseudônimo
(Ch. G. Erdmann, Erbauliche Todesstunden), e reimpressa em 1767 (Io. I. Moser,
Lezte Stunden ein und dreyssig durch die Hand des Scharƒrichters unterschiedener
Verbrechen wegen hingerichteter Personen oder zuverlässige Nachrichten von der
Bekehrung und seel. Ende dieser vor Gott, in dem Blut Iesu gerechtƒerttig- und ab-
gewaschener, oder doch gnadenhungeriger Seelen, Stuttgart, in der Erhardischen
Buchdruckerey; o caso de Maria Salome é o primeiro da primeira seção, dedicada
a histórias de infanticídios, e está exposto nas pp. 29-50). Devo à gentileza do

426
doutor Reimer Eck, curador do fundo de livros raros da Staatsbibliothek de Mu-
nique, e do doutor Uwe Gleitsmann da Niedersächsische Staats- und Universi-
tãtsbibliothek de Gottingen, além da ajuda do amigo Mauro Guerrini, poder ter
consultado a obra em microfilme. Além de uma menção em R. I. Evans, Rituais of
Retribution, cit., e na literatura, embora rica, sobre a importante figura de Moser
(Stuttgart, 1701-85) e sobre sua vastíssima produção falta um estudo adequado
sobre este ponto. A recente coletânea de ensaios organizada por A. Gestrich e R.
Lächele, Iohann Jacob Moserpolitiker, pietist, publizist, Stuttgart, 2002, não abran-
ge esses aspectos. Agradeço o doutor Raffaele Giampietro, da Biblioteca della
Scuola Normale, pela ajuda oferecida nessas buscas.
85. Uma lista completa em I. M. Rameckers, Der Kindesrnord in der Literatur
der Sturm und Drang-Periode, Ein Beitrag zur Kultur- und Literaturgeschichte des
18. Iahrhunderts, Roterdã, 1927.
86. Cf. W. Wãchtershäuser, Das Verbrechen des Kindesrnordes, cit., p. 339.
87. Como vimos, essa era a opinião aceita no início do século xvni e formulada
pelo criminalista Georg Iac. Friedrich Meister com estas palavras: “Infanticidium,
in sensu stricto et proprio, est homicidium, quod a matre in infantes recens natos
committitur”.
88. W. Wächtershäuser, op. cit., p. 29.
89. C. Beccaria, Dei delitti e delle pene, Turim, 1970, p. 78.
90. O texto do Commentaire sur le Traitè des délits et des peines, de 1766, está
reproduzido no apêndice de C. Beccaria, op. cit., pp. 371-79; ver pp. 371-72.
91. R. van Dülmen, op. cit., p. 67.
92. Ver o caso relatado por W. Wächtershãuser, op. cit., pp. 77-78, de uma jo-
vem de 29 anos, filha de um moleiro, condenada à morte em 1777 com uma sen-
tença para a qual a Faculdade de Iurisprudência de Gottingen propôs a comutação
para prisão perpétua.
93. Cf. I. H. Pestalozzi, Sulfinƒanticidio, trad. it. de G. di Belli, Florença, 1999,
pp. 18-19.
94. R. I. Evans, op. cit., pp. 138-39. O concurso foi proposto por Adrian von
Lamezan da corte de Mannheim.
95. A. Radicati, Dissertazioneƒilosoƒica sulla morte, ed. e trad. T. Cavallo, Pisa,
2003,pp.121-23. -
96. I.-I. Rousseau, Les conƒessions. Rêveries du promeneur solitaire, ed. L. Mar-
tin-Chauffier, Paris, 1951, pp. 349-51. Cf. Rêveries (Neuvième prornenade) [trad it.
cit., pp. 742-43].
97. W. Wãchtershãuser, op. cit., p. 70.
98. “E não priva talvez a dureza do juiz dois cidadãos ao Estado num só golpe
[...] com o fruto abortado também a mãe, que poderia ressarcir o dano através de

427
gravidezes no interior do matrimônio?” (W. Wãchtershãuser, op. cit., p. 29). E
Voltaire: “a lei [...] priva a sociedade de uma cidadã que poderia dar súditos ao
Estado” (C. Beccaria, op. cit., pp. 372-73).
99. Gio. Antonio Borgovini, Piemontese, La Legge di Dio e della Chiesa dal
Sacerdote della Dottrina cristiana Gio. Antonio Borgovini Piemontese in rx tomi
spiegata, impr. Domenico Sangiacomo, em Nápoles, 1791, to. v, p. 129.
1oo. I. P. Frank, System einer vollständigen medizinischen Polizei, Mannheim,
1779-88 [trad. it. Sistema completo di polizia medica, Milão, 1779-1819, to. 11, pp.
108-9] . A passagem é justamente ressaltada no amplo e importante estudo de N.
M. Filippini, La nascita straordinaria. Tm madre e ƒiglio la rivoluzione del taglio
cesareo (sec. xvnr-Xfx), Milão, 1995, pp. 136-37.
101. C. Walker Bynum, Holy Feast and Holy Fast: The Religious Signiƒicance of
Food to Medieval Women, cit. [trad. it. cit.].
102. L. Godefroy, “Infanticide”, in Dictionnaire de théologie catholique, to. vn/2,
1923, cols. 1717-26. De uma pesquisa sobre fontes criminais bolonhesas do sécu-
lo xxx, M. P. Casarini, “Maternità e infanticídio a Bologna: fonti e linee di ricerca”,
Quaderni storici, 1982, n. 49, pp. 275-84, destacou uma “atitude tolerante” das
autoridades e uma “relativa clemência” dos juízes, que acolheram como atenuan-
tes a pobreza e a tutela da própria honra e, perante um aumento dos infanticídios,
reforçaram os controles sobre os assuntos das gravidezes ilegítimas. Sobre 0 “me-
nor grau de culpabilidade pessoal” do crime na vigente normativa penal italiana
e sobre a desvalorização tendencial da vida humana em favor da tutela da honra
das famílias, cf. as lúcidas observações de T. Padovani, “I delitti nelle relazioni
private”, in Storia d'Italia. Annali, 12: La criminalità, ed. L. Violante, Turim, 1997,
pp. 219-44; ver p. 244.
103. N. Ginzburg, “Dell°aborto”, in Corriere della Sera, 7 de fevereiro de 1975,
agora in Non possiamo saperlo. Saggi 1973-1990, ed. D. Scarpa, Turim, 2001, pp. 26-
-30. Um exemplo especialmente significativo das pesquisas daquele momento sobre
a experiência da gestação e do aborto está reunido em Sesso amaro. Trentamila don-
ne rispondono su maternità, sessualità, aborto, ed. F. Cecchini et al., Roma, 1977.
104. Apenas um exemplo: o amplo e rico levantamento de fontes e estudos
organizado por G. da Molin e P. Stella, “Famiglia e infanticídio nell”Europa prein-
dustriale”, in “Quaderni” do Istituto di scienze storico politiche, Bari, 1983/84, n.
3, pp. 69-97, aproxima a documentação dos arquivos criminais às páginas de mo-
ralistas e eclesiásticos como Ludovico Maria Sinistrari, Bartolomeo Piazza e Fran-
cesco Cangiamila, literalmente obcecados pela imagem das mães infanticidas.
105. A proposta é de Richard van Dülmen, que retomou em seus estudos uma
tradição de interesse pelo argumento bem arraigada na cultura alemã (R. van
Dülmen, op. cit., pp. 7-8).

428
106. G. G. Gilino, La relatione ai deputati dell'Ospedale Grande di Milano, ed.
S. Spinelli, Milão, 1932-35, cap. xxm: De li expositi et cura qual se ha de loro (apud
G. Albini, op. cit., p. 159).

OS ATORESI PESSOAS E NÃO PESSOAS

A MAE [pp. 99 100]


A..

1. “UMA Jovi-3-.M cREsc1DA, Moçzx FEITA” [pp.1o1-6]

1. C. Ginzburg e C. Poni, “Il nome e il come: scambio ineguale e mercato sto-


riografivo”, Quaderni storic, 1979, n. 40, pp. 181-90; ver p. 186.
2. Assim añrmou o arcipreste da igreja de Manzolino, tomando os dados do
registro dos batizados: Processo Cremonini, fascículo de cc. n.n. incluído nas cc.
32 v-33 r.
3. Cf. o ensaio de D. Cressy, Puriƒication, op. cit.
4. Lembramos a Storia della colonna infame de Alessandro Manzoni; e ver de
G. Ortalli, “Pingatur in Palatio”. La pittura infamante nei secoli xnr-xvr, Roma,
1979.
5. Uma rápida notícia do processo, retomada pela Cronaca ms de A. F. Ghiselli,
lê-se num livro de L. Fratti, Il Settecento a Bologna, Bolonha, 1923, p. 27 (devo re-
cordar com gratidão Antonia Cirigliano e Italo Bernabei, então meus alunos na
Facoltà di Magistero dell'Università di Bologna, que me indicaram a passagem
num relatório escrito de um seminário de junho de 1984).

2. “UM PADREJovr‹;1v1” [pp.1o7-19]

1. Um episódio indicativo em tal sentido foi a reação cheia de admiração do


cardeal legado Aldobrandini, em Ferrara, em 1598, diante da proibição feita aos
clérigos pelo bispo Giovanni Fontana de ir à rua da Giovecca durante a mascarada
do Carnaval e de usar máscaras (cf. L. Paliotto, Giovanni Fonatan vescovo di Ferra-
ra (1590-1611), Ferrara, 2002, p. 233 e nota).
2. “Si vero in volentem, puniatur pecunialiter” (Ph. C. Saccus, Statuta civilia et
criminalia, seção [rubrica] ux, to. 1, Bononiae, 1735, p. 487).
3. G. Cazzetta, “Praesumitur seducta” Onestà e consenso ƒemminile nella cultu-
ra giuridica moderna, Milão, 1999, p. 1 16. Cf. a resenha de D. Lombardi em “Rivis-
ta storica italiana”, cxlv (2002), pp. 654-61.

429
4. “Laelium in casu nedum posse, verum etiam debere ab hisce nuptiis absti-
nere... alia via debet deflorator satisfacere puellae et parentibus eius, nempe ei
dando tantam dotem, quantam puellae sufficiat ad aeque bene nubendum pro sua
conditione, perinde ac si deflorata non fuisset; siquidem excessu dotis, maxime
inter villicos, de facili sanat istam plagam” (Casas conscientiae Bononiensis Dioe-
cesis presbyteris olim de mandato [...] Prosperi Lambertini mox Benidicti xrv [...]
deinde vero iussu [...] Vincentii Malvetii [...], to. i, Bolonha, 1767, pp. 291-92).
5. “Cum Deus [...] non [...] patiatur, nos, supra id, quod possumus, tentari”,
Conciliorum oecumenicorum decreta, ed. Istituto per le scienze religiose, Bolonha,
1973, p. 198, cols. 1-5 (cânone 6).
6. Seção xxlv, “De matrimonio”, “canones de sacramento matrimonii”, idem,
pp. 754-55.
7. R. H. Bainton, Roly. Chronicle of a Stubborn Non-Conƒormist, ed. R. C. L.
Gritsch, New Haven, 1988, p. 31.
8. “Todos os padres são casados [...] casam-se publicamente [...] convivem
cada um com a mulher e todos as tratam como legítimas esposas, aliás, como
primeira mulher da cidade”, escrevia um jesuíta em 1568 na Sardenha (cit. por A.
Marongiu, Unioni e convivenze “more uxorio in Sardegna prima e dopo il Conci-
lio Tridentino”, Rivista storica del diritto italiano, Lu [( 1982)] , n. 1, p. 7). No Friuli,
em 1570, o visitante Bartolomeo da Porcia registrou não apenas um difundido
concubinato sacerdotal, mas também “vozes insistentes de que os padres chega-
vam a formalizar com o matrimônio as próprias uniões” (G. Paolin, “La visita
apostolica di Bartolomeo da Porcia nel goriziano nel 1570”, in Katholische Reƒorm
und Gegenreƒormation in Innerösterreich 1564-1628, Atas do congresso interna-
cional, ed. F. M. Dolinar, M. Liebmann et al., Graz-Ljubjana-Viena, 1994, pp. 133-
-42; ver p. 137).
9. Cf. O di Simplício, Storia di un Anticristo. Avidità, amore e morte nella Tos-
cana medicea (Montorgiali, Maremma, 1609-45), Siena, 1996, p. 92.
1o. Um testemunho significativo é apresentado por uma carta escrita por Orsola,
mulher de um padre da diocese de Feltre, em 19 de maio de 1552, publicada em A.
Prosperi (org. ), La storia moderna attraverso i documenti, Bolonha, 1974, pp. 204-5.
11. Assim um padre de Foligno defendeu-se da acusação de ter entrado à força
e à noite na casa de um viúva em 1567; cf. G. e L. Metelli, Crirninalità a Foligno nella
seconda meta del xvr secolo, Ancona, 1995 (Quaderni onografici de “Proposte e
ricerche”, n. 18), pp. 159-60.
12. Cf. A. Comuzzi, Susanna e il parroco Mirai. Storia di un curato della mon-
tagnaƒriulana nelfavanzare della Controriƒorma, Verona, 2002.
13. Cf. G. e L. Metelli, op. cit., p. 160.
14. A. Comuzzi, '“Fu nel mese di Ravdor...'. Indagine intorno ad alcuni casi

430
d°infanticidio nella Carnia tra xvl e xv1isecolo”,Rivista della Societa Filologica Friu-
lana, 1995, pp. 35-63; ver p. 41.
15. Inocêncio 111 concedeu-lhes celebrar no caso em que o concebido não fosse
também “vivificatus” (Corpus Iuris Canonici, ed.Aemilius Friedberg, Leipzig, 1879,
Leipzig, 1959, vol. H, col. 802). Trata-se de um caso célebre na literatura histórica e
teológica sobre o aborto: segundo I. T. Noonan, Contraception. A History of Its
Treatment by the Catholic Theologians and Canonists, Cambridge (Mass. ) , 1966, pp.
232-33, a carta de Inocêncio ln - cânone 20 dos Decretali - permite corrigir a
ideia de uma atitude constante de condenação pela Igreja de toda prática anticon-
cepcional como homicídio. Ao mesmo caso se refere (com alguma imprecisão) B.
Duden, Der Frauenlieb als Ójfentlicher Ort. Vom Missbrauch des Begriffls Leben,
Hamburgo-Zurique, 1991 [trad. it. Il corpo della donna come luogo pubblico.
Sull'abuso del concetto di vita, Turim, 1994 (cit. pela rist. 2004, p. 67)). V. Lavenia,
“Uanimalƒante” Teologia, medicina legale e identità umana. Secc. xvr-xvn, no prelo,
nas atas do seminário sobre o batismo ocorrido em Pisa, na Scuola Normale Supe-
riore, ressalta um outro caso tratado por Martin de Azpilcueta, o doutor Navarro,
que como adepto à penitência de Carlo Borromeo teve que resolver o caso de um
sacerdote culpado de ter induzido ao aborto a mulher que engravidara.
16. Sobre o episódio, cf. A. Pastore, Crimine e giustizia in tempo di peste
nell'Europa moderna, Roma-Bari, 1991, pp. 112-14.
17. Assim aponta O. Niccoli, op. cit., pp. 184-86.
18. Segundo o que denunciou ao Santo Ofício em 8 de fevereiro de 1746 o
padre Iosé de Oliveira, professor de teologia na Universidade de Coimbra, muitos
padres celebravam missa sem se confessar e adiavam a confissão até que não en-
contrassem um confessor cuja discrição podiam contar (“Nonnulli sacerdotes
violatae castitatis rei diu non praemissa confessione sacramentali, ex qua revela-
tionis periculum timebant, celebraverint” e procuravam “satis fidum sibique pro-
batum confessarium quem aliquando perquirebant quanvis longo itinere”; ASO,
St. st. D 3-k, fasc. P II D).

3. “o CARNAVAL PRÓXIMO PASSADO” [pp.12o-27]

1. Isso, porém, não se confirma por um exame dos dados demográficos de uma
comunidade camponesa do Piemonte entre o início do século xtx e o século xx (cf.
P. Grimaldi, Il calendario rituale contadino. Il tempo della festa e del lavoro fra tra-
dizione e complessità sociale, Milão, 1994, pp. 109- 10).
2. Cf. F. Venturi, Settecento riformatore, 1: Da Muratori a Beccaria. 1 730-64,
Turim, 1969, pp. 136-41.

431
3. Cf. A. Addobbati, Lafesta e il gioco nella Toscana del Settecen to, Pisa, 2002, p.
36. Sobre a nova ideia da “rentabilidade econômica” do tempo que se impôs no
século xviu, cf. id., bid., p. 76.
4. L. Tognetti, Processi informativi ed atti criminali dal 1622 al 1707. Repertorio
del tribunale ecclesiastico diocesano di San Miniato, San Miniato, 1994, pp. 25-6.
5. O édito está reproduzido in Il magnifico appara to. Pubblichefunzioni, feste e
giuochi bolognesi del Settecen to (catálogo da exposição), Bolonha, 1982, p. 45.
6. Peter Ahlwardt, autor de uma “Bronto-Theologie” (1745), apud H. D. Kitts-
teiner, Die Entstehung des modernem Gewissen, Frankfurt am Main-Leipzig, 1995,
pp.34-35.
7. Iniciou-se uma coletânea sistemática articulada por regiões com o livro La
legislazione suntuaria. Secoli Xin-xvi. Emilia Romagna, ed. M. G. Muzzarelli, Pub-
blicazioni degli Archivi di Stato, Fonti xu, Roma, 2002.
8. Dottrina cristiana ad uso delle missioni solite afarsi da “PR Cappuccini in luoghi
alpestri e contadineschi spianate colla piu piana e acconcia erudizione dal R Giuseppe
Maria da Crescentino esprovinciale cappuccino consultore del S. Ofiizio, in Vercelli,
1771, pp. 196-304 (devo seu conhecimento à gentileza de Walter Barberis).
9. Sobre o topos ascético-literário da modéstia cristã, cf. G. Pozzi, “Occhi bas-
si”, in Thematologie des Kleines - Petits thèmes littéraires, ed. E. Marsch e G. Pozzi,
Freiburg S., 1986, pp. 161-211, agora em id., Alternatim, Milão, 1996, pp. 93- 142.
Mas a questão do olhar como sentido a ser domesticado ou exaltado ainda espera
um estudo adequado.
1o. F. Guicciardini, Ricordo 106, in Opere, ed. V. de Caprariis, Milão-Nápoles,
19ó1,p.119.
11. Nos estatutos sinodais de 1788 do cardeal de Bolonha, Andrea Giovanetti,
a multa acrescida à excomunhão era de dez moedas de ouro (“decem aureorum”:
Synodus diocesana Bononiensis ab eminentissimo etReverendissimo Domino D. An-
drea Iovannetto SRE Cardinali et Bononiensi Ecclesiae Archiepiscopo..., apud Lon-
ghi et Lelium a Vulpe, Bolonha, 1788, p. 144. Mas ver todo o cap. xi do Livro 11, De
Matrimonii Sacramento, pp. 139-53).

4. “1¬1RoU MINHA HoNRA E ME DE1=LoRoU” [pp.128-38]

1. “L'amour existe-t-il”? (I.-L. Flandrin, op. cit. ), p. 79. E para a afetividade nos
campos bolonheses do século xvli, ver O. Niccoli, op. cit., cap. 1, pp. 3 e ss.: Amarsi
“al tempo che si sgarbiva la fava”.
2. “Mais sofrida do que aceita” a relação sexual que deixou grávida Caterina
Armani, de Agrone (Brescia), em 1658, segundo as atas do processo estudadas por

432
L. Faoro, “Neƒandum dogma” Seduzione epromessa di matrimonio in una compar-
sa trentina del xvn secolo, in Ma trimoni in dubbio. Unioni controverse e nozze clan-
destine in Italia dalxrv al xvm secolo, ed. S. Seidel Menchi e D. Quaglioni, Bolonha,
2001, pp. 431-528; ver p. 433.
3. ASB, Fondo criminale del Torrone, pasta 7846/3, fasc. 21, cc. n.n.
4. Idem, fasc. 23.
5. Idem, fasc. 29.
6. Idem, fasc. 30.
7. Idem, fasc. 29.
8. A coisa surge com clareza pela comparação entre as narrações dos próprios
casos perante os diversos tribunais, como demonstrou muito bem D. Lombardi,
Il reato di stupro tra foro ecclesiastico e foro secolare, in Trasgressioni. Seduzione,
concubinato, adulterio, bigamia xrv-xi/111 secolo, ed. S. Seidel Menchi e D. Quaglioni,
Bolonha, 2004, pp. 351-415; ver pp. 360-65.
9. G. C. Croce, Caso compassionevole, et lacrimoso lamento de' duoi inƒelici
amanti, condannati alla giustizia in Bologna, alli 3 di genaro 1587, impresso em
Modena, s.d. Sobre a repercussão do caso em outras obras posteriores, cf. A.
Natale, La piazza della crudelta e delle meraviglie. Giulio Cesare Croce e la lettera-
tura del “sensazionale” e del “prodigioso”, in La festa del mondo rovesciato. Giulio
Cesare Croce e il carnevalesco, ed. E. Casali e B. Capaci, Bolonha, 2002, pp. 177-
-95; ver pp. 191-92.
10. O livro de Fontana se chamava Lo specchio proposto alle dame nella vita
d'una gran dama descritta dallo Spirito Santo... operetta... a maggior vantaggio del-
le sante Missioni, per Ferdinando Pisarri, in Pano et in Bologna 1706, e lhe custou
uma denúncia de um grupo de nobres junto ao tribunal da Inquisição (agradeço
Giampaolo Brizzi por ter me fornecido a reprodução da cópia pertencente à Bi-
blioteca Comunale dell'Archiginnasio). Cf. Raccolta d'alcune lettere spettanti alle
missioni, fatte in Italia e Germania dalpadre Fulvio Fontana, impresso por Andrea
Poleti, em Veneza, 1720, carta XXIV, pp. 112- 1 5.
11. F. Fontana, Sei instruzioni cristiane direttive d 'un intera ƒamiglia, por Gio.
Gaetano Tartini e Santi Franchi, em Florença, s.d., introdução, p.v11.
12. Id., Lo specchio proposto alle dame, cit., p. 32.
13. Id., ibid., pp. 25-31. `
14. Os acontecimentos são narrados pelo sobrinho de A. Fontana, Raccolta
d ”alcune lettere spettanti alle missioni, fatte in Italia e Germania dal Padre Fulvio
Fontana della Compagnia di Gesu..., impresso por Andrea Poleti,Veneza, 1720, pp.
1 12-16.
15. Sobre a condenação do “sigilismo”, cf. do autor L'Inquisizione Romana.
Letture e ricerche, Roma, 2003, pp. 413-34.

433
16. A. Fontana, op. cit., p. 21.
17. Assim sugere W. D. Smith, Consumption and Respectability 1600-1800,
Nova York, 2002, pp. 69-81.
18. F. Fontana, op. cit., p. 252. Sobre as insídias dos outros empregados, ver p. 238.
19.Verp.111.
20. Sobre a organização das escolas na região da Emilia Romagna no século
xv111,ver a ampla série d_e estudos organizada por G. P. Brizzi, Il catechismo e la
grammatica, Bolonha, 1986 (vols. 1 e 11). Nas Synodus Dioecesana Bononiensis ab
eminentissimo et Reverendissimo Domino D. Andrea Ioannetto... celebrata, Bolo-
nha, 1788, pp. 22-28, lembramos a obra desenvolvida no século anterior por Ce-
sare Bianchetti, ao ensinar pelas estradas a doutrina cristã à “ínfima plebécula”. É
de se notar que para a Arquiconfraria romana da Doutrina cristã a frequência fe-
minina à aula de catecismo era uma condição para a concessão dos dotes (cf. M.
Catto, Un panopticon catechistico. Uarciconfraternita della dottrina cristiana a
Roma in eta moderna, Roma, 2003, p. 181).
21. Segundo o jesuíta T. Sánchez em seu fundamental tratado Disputationum
de sancto ma trimonii sacramento, Antuérpia, 1607, o concílio não proibia a coabi-
tação, sinal de que não a considerava pecado mortal (cf. I.-L. Flandrin, op. cit., p.
180). Sobre as fontes demográficas para o estudo do matrimônio, cf. G. da Molin,
Famiglia e matrimonio nell'Italia del Seicento, Bari, 2000.

5. “ESTIVE SEMPRE soz1NHA” [pp.139-47]

1. “Para mulheres não casadas, a condição de grávidas era uma daquelas em


que outras mulheres... não eram companheiras mas ameaças” (L. Gowing, “Secret
Births and Infanticide in Seventeenth-Century England”, Past and Present, n. 156,
agosto de 1997, pp. 87-1 15; ver p. 87. Mas todo o ensaio é valioso).
2. Cf. I. R. Farr, op. cit., p. 132.
3. ASP, ex-irmandade de caridade, Confraternita dei ss. Andrea e Bernardino
della Giustizia, 3, Giustiziati ed Oblati alla Croce 1525-1826, cc. 6v, 23v, 26 r.
4. Archivio di Stato di Firenze, Stinche, f. 176, cc. 10r,217r, 254 r. Outras infan-
ticidas são apontadas: idem, cc. 5r, 234v.
5. Cf. Successo della morte di Livia eMadalena da Linara giustiziate in Ravenna
sotto li 29 novembre 1608... descritto da Bernardino Sacchi, confratello della Com-
pagnia della Morte d'essa città di Ravenna, e gia conƒessore della Compagnia della
Misericordia di Roma (Biblioteca Comunale di Forlí, Collezioni Piancastelli, ms
v/60, p. 42). O documento foi apontado por E. Casali, Religione e “intruzione”
cristiana, in Storia di Ravenna,vol. Iv, cit., pp. 417-60; ver p. 450 e nota 333. Não se

434
encontrou traço nem do processo nem da sentença; é apenas uma hipótese que se
tratava de um infanticídio.
6. Cost. de Francesca Pilati, 7 de dezembro de 1709, Processo Cremonini, c.
20 r.
7. Cf. I. R. Farr, op. cit., pp. 130-31.
8. Também a seguir se recorrerá a esta explicação: as acusadas nos processos
por infanticídio ocorridos em Bolonha no período entre 1816 e 1823 sustenta-
ram “de ter confundido os sinais físicos da gestação com os de uma doença, que
elas chamavam de amenorreia. A cessação do fluxo menstual e o inchaço do
ventre são seus sintomas“ (M. P. Casarini, op. cit., pp. 275-84; ver p.28 1 ). Assim
também fizera Francesca, condenada por infanticídio em Pistoia em 1406 (ver
I. Walter, Infanticidio a Ponte Bocci: 2 marzo 1406. Elementi di un processo, cit.,
pp. 637-48).
9. Este caso também é relatado por). R. Farr, op. cit., p. 131.
1o. Cf. U. Rublack, Magd, Metz”oder Mörderin, cit., p. 237.
11. ASB, Archivio criminale del Torrone, 7846, n,fasc. 13, c. 4rv. Cost. 28 de maio
de 1723. Agradeço o amigo Massimo Donattini e a doutora Diana Tura do Archi-
vio di Stato di Bologna pela ajuda na pesquisa do fascículo.
12. Carta de don Gaspar de Robles, pároco dos Celestinos, ao ouvidor do Tor-
rone, de 18 de junho de 1723 (idem, fascículo de cc. n.n. inserido entre as cc. 10v e
1 1 rdo fascículo).
13. ASB, Archivio criminale del Torrone, 7663/3, f. 40 (Cidade, 1709, Tombesius
Notarius, “Superpregnantia D. Arsiliae Ringardae Ca tt. Guastavillani etƒideiussio-
ne petita de tutoƒetu”, cc. n.n.).
14. L. Ciammitti, La dote come rendita. Note sull'assitenza a Bologna nei secoli ‹

xvr-xvn, in Forme e soggetti dell'intervento assistenziale in una città di antico regime,


atti del 44 colloquio, Bologna, 1984; vol. 11, Bolonha, 1986, pp. 111-32; ver p. 129. Id.,
ibid., p. 128, apontada a passagem de L. Ricci, Riƒorma degli Istituti Pii della città dt a

Modena, Modena, 1787, pp. 112-14.


15. A pesquisa de M. d'Amelia, La conquista di una dote. Regole delgioco e scam-
bi ƒemminili alla Confraternita dell'Annunziata (secc. xvn-xvrn), in Ragnatele di
rapporti. Patronage e reti di relazioni nella storia delle donne, ed. L. Ferrante, M.
Palazzi e G. Pomata, Turim, 1988, pp. 305-43, mostra quanto eram complicadas e
incertas as vias para obter um dote para as mulheres pobres não tuteladas pelas
instituições reservadas às famílias abastadas.
16. Assim, desenvolvendo sugestões de Iulia Kristeva, observa L. Gowing, op.
cit., p. 107.

435
o 1=1LHo, A SEMENTE E A ALMA [pp.15o-52]

1. O título promissor de um ensaio de B. Duden (I non-nati. Sul tramon to della


nascita nel dopoguerra, in C. Pacino (org.), op. cit., pp. 121-36) corresponde na
verdade a uma reflexão sobre a passagem da gravidez doméstica à medicalização
do parto na segunda metade do século xx. As atas de um congresso de estudos
organizado pela própriaestudiosa ampliaram o tema ao entrelaçamento entre
representações religiosas e práticas sanitárias relativas ao nascimento principal-
mente no período entre os séculos xviu e xx. Cf. Geschichte des Ungeborenem. Zur
Erfahrungs- und Wissenschaftsgeschichte der Schwangerschaft, ed. B. Duden, I.
Schlumbohm e P. Veit (Max-Planck-Institut für Geschichte, B. 170), Gõttingen,
2002. Sou grato a Silvana Seidel Menchi e ao professor Iürgen Schlumbohm por
ter tido a possibilidade de ler esta obra importante enquanto este trabalho estava
para ir ao prelo.
2. “Inƒantia a die nativitatis, non a conceptionis” (Pauli Zacchiae Romani, to-
tius stati ecclesiastici proto-medici generalis, Quaestionum medico-legalium, tomi
tres, Lyon, 1674, p. 4). Mas especificou: “Apud ipsos medicos ƒoetus iam in utero
perƒectus, et om nibus membris absolutus, infans vocatur”.
3. Retiro-me a S. Freud, Hemmung, Symptom und Angst, Leipzig-Viena-Zuri-
que, 1926 [trad. it. Inibizione, sin tomo e angoscia, in Isteria e angoscia, Turim, 1974;
depois em id., Opere, vol. X, Turim, 1978]; Opere, vol. x, cit. pp. 289, 305 e ss., a
discussão de Freud sobre a proposta de Otto Rank de localizar no trauma do nas-
cimento a causa original das neuroses (Das Trauma der Geburt und seine Bedeu-
tungğr die Psychoanalyse, Viena, 1924).
4. Figura na página de rosto da Petition of the Unborn Babes, publicada em
1751 contra os obstetras hospitalares (cf. L. Forman Cody, “Living and Dying in
Georgian London's Lying-In Hospitais”, Bulletin ofthe History ofMedicine, Lxxvlu,
n. 2, verão de 2004, pp. 309-48).
5. Em Nuremberg, em 1549, uma mulher invocou como testemunha a criança
morta; o corpinho levantou uma mão e apontou para ela como assassina (cf. M. E.
Wiesner, Working Women in Reinassance Germany, Brunswick (N.]. ), 1986, p. 71).

1. “UM MENININI-Io” [pp.153-55]

1. Entrevista em La Reppublica, 7 de dezembro de 2002, crônicas de Florença.


2. Por um menino paga-se até 17 mil euros, e para uma menina não se chega a
10 mil. A notícia é relatada pelos jornais de 18 de agosto de 2004.
3. Cf. P. -A. Sigal, La grossesse, Faccouchement et l”a ttitude envers l 'enfant mort-

436
né à lafin du Moyen Âge d'après les récits de miracles, in Santé, médecine et assistan-
ce au Moyen Âge (Actes du 1 108 Congrès national des sociétés savan tes), Paris, 1987,
pp. 23-41; ver em esp. p. 25.
4. No hospital florentino de San Gallo, na primeira metade do século xv, a
porcentagem de meninas oscila entre 61% e 66% (cf. R. C. Trexler, op. cit. [trad. it.
cit., pp. 51-52] ).
5. G. Tassoni, Arti e tradizioni popolari. Le inchieste napoleoniche sui costumi e
le tradizioni nel Regno Italico, Bellinzona, 1973, p. 291.
6. “Femina non potest esse principium generationis activum sed passivum
tantum”, escrevera Tomás de Aquino, Summa totius theologiae, apud Iuntas,Vene-
za, 1588, to. 11, c. 213r.

2. “BEM FoRMADo EM ToDAs As suas PARrEs” [pp.156-63]

1. Depoimento de Barbara Lucignani, obstetra pública de Bolonha, sábado, 7


de dezembro de 1709 (Processo Cremonini, cc. 11v-13v).
2. “. .. Portentosos fetus exstinguimus, liberos quoque, si debiles monstrosique
editi sunt, mergimus, nec ira, sed ratio, est a sanis inutilia secernere” (Sêneca, De
ira, 1.15.2; Santo Agostinho não deixou de opor a este o diferente ponto de vista
cristão, como lembra E. Nardi, Aborto e omicidio nella civilta classica, in Aufitieg
und Niedergang der römischen Welt, ed. H. Temporin e W. Haase, vol. xnt, Berlim-
-Nova York, 1980, pp. 366-85; ver p. 370, nota).
3. A obra de Ingrassia permaneceu manuscrita e foi editada apenas no século
passado a partir de uma cópia do século xvn. Sobre ele, ver M. Zaggia, Tra Manto-
va e la Sicilia nel Cinquecento, Florença, 2003, pp. 176-77 ss. Para a relação entre
monstruosidade e tempos de gestação, cf. I. Ph. Ingrassia, Methodus dandi relatio-
nes, Catania, 1938, com prefácio de G. C. Perrando, pp. 241-43.
4. Cristóvão Colombo, Il giornale di bordo, ed. P. E. Taviani e C. Varela, Roma,
19ss, p. 94.
5. As pesquisas de G. Olmi, Uinventario del mondo. Catalogazione della pittura
e luoghi del sapere nella prima eta moderna, Bolonha, 1992, ampliaram e enriquece-
ram neste sentido o levantamento das curiosidades da cultura do século xv1. Cf. I.
Céard, La nature et les prodiges. Ifinsolite au xvrf siècle, en France, Genebra, 1977.
6. Cf. L. Hanke,“Pope Paul III and theAmerican Indians, Harvard Theological
Review”, xxx (1937), pp. 65-102.
7. Apesar de uma certa rigidez ideológica, a obra fundamental sobre a violên-
cia da ideia da unidade em Adão contra as hipóteses poligenéticas permanece a de

437
G. Gliozzi, Adamo e il Nuovo Mondo. La nascita dell'antropologia come ideologia
coloniale: dalle genealogie biblique alle teorie razziali (1500-1700), Florença, 1976.
8. De uma carta do jesuíta Athanasius Kircher ao cardeal Flavio Chigi em 1666,
apud G. Olmi, op. cit., p. 251, nota.
9. Assim o médico napolitano G. della Porta, Della magia naturale, livro II,
cap. xvn, pp. 69 ss., Nápoles, 1577 (Milão, 1970). Todo o livro 11 “ensina a misturar
entre si os animais, para que produzam novos, e úteis animais” (id., ibid., p. 37).
Quanto às discussões sobre os partos monstruosos gerados pelos demônios, os
tratados dos teólogos e dos exorcistas sobre a bruxaria estão repletos.
10. Cf. O. Niccoli, Il corpo ƒemminile nei trattati del Cinquecento, in G. Bock e
G. Nobili (orgs.), Il corpo delle donne, Bolonha, 1988, pp. 23-43.
11. As regras nos casos de nascimentos monstruosos estão expostas no Rituale
Romanum Pauli vPont. Max. iussu editum,Veneza, 1615, De Sacramento Baptis-
mi rite administrando, pp. 5-6, e retomadas no manual contemporâneo para o
clero De ojjficio curati, ada praxim, praecipue circa repentina, et generaliora, Ve-
neza, 1618.
12. Id., ibid., pp. 90-91. Para o Rituale Romanun, além das duas cabeças estão
apontados também os dois corações, sede tradicional da alma; mas o manual de
Possevino se refere apenas à cabeça.
13. Retomando a citação do ensaio de G. Rizzi, “Uischiopago cinquecentesco
del ghetto di Venezia”, Rivista d'ostetricia e ginecologia pratica, n. 6, junho de 1930,
pp. 2-8. Agradeço a doutora Alessandra Baduel pela indicação.
14. H. de Grotius, Inleidinge tot de Hollandsche Rechts-geleerdheid, ed. F. Do-
vring et al., Leiden, 1965, p. 1 1; a passagem é citada por H. W. Roodenburg, op. cit.,
p. 704.
15. Sobre a questão, é fundamental o curso ocorrido em 1974-75 no Collège de
France por M. Foucault (Les anormaux, Paris, 1999 [trad. it. Gli anomali. Corso al
College de France (1974-1975), ed. V. Marchetti e A. Salomoni, Milão, 2000] ).

3. UMA “CRIATURA” SEM NoME, oU QUANDO UM HoMEM NAo E UM .-

HoMEM [pp.164-73]

1. Do auto de inspeção de 5 de dezembro de 1709 (Processo Cremonini, c. 7r).


2. Como me fez notar Vincenzo Lavenia, P. Sardi, op. cit., p. 155, assinala que
o uso do termo era habitual nos estatutos municipais italianos.
3. Assim, Giacomo Leopardi na poesia de juventude: “Na morte de uma mu-
lher com sua carga, trucidada a mando do corruptor por mão e obra de cirurgião”
(ver G. Leopardi, Tutte le opere, ed. W. Binni, Florença, 1969, pp. 323-24).

438
4. A observação é de E. Borgna, Le intermittenze del cuore, Milão, 2003, p. 134,
em meio a outras observações e reflexões sobre as experiências de crise de identi-
dade após transplantes de órgãos.
5. Götternamen. Versuch einer Lehre von der religiösen Begrijfsbildung, Bonn,
1895 (Bonn 19292). Sobre Usener, cf. o ensaio de Arnaldo Momigliano e os estudos
reunidos em Aspetti di Hermann Usenerƒilologo della religione, ed. G. Arrighetti, R.
Bodei et al., Pisa, 1982. O ensaio de Usener foi resenhado com interesse por Marcel
Mauss em “L'Année sociologique” (agora em M. Mauss, OEuvres, Paris, 1969,11,
pp. 290-97).
6. R. Kapušcinski, Heban, Varsóvia, 1998 [trad. it. Ebano, Milão, 2000, p. 65].
7. R. Hertz, Contribution à une étude sur la representation collective dela mort,
1907 [trad. it. Sulla rappresentazione collettiva della morte, in id., La preminenza
della destra e altri saggi, Turim, 1994, p. 99] .
8. M. Granet, Le dépôt de l'enfant sur le sol. Rites anciens et ordalies mythiques,
in id., Êtudes sociologiques sur la Chine, Paris, 1953, 1990, pp. 159-202. O nome de
Hertz não é mencionado por Granet.
9. “O moribundo, como a criança recém-nascida, écolocado no solo” (M. Granet,
op. cit., p. 192).
10. Ver p. 62.
11. “E grave este erro, que antes de agora foi praticado pelos pagãos com uma
superstição, e hoje vi usar na região de Verona: de colocar a criança no chão nua
logo após o nascimento sem cuidado com a fragilidade de seus membros” (S.
Mercurio, op. cit., c. 263 v).
12. Segundo o bispo de Verona, em sua diocese praticava-se o costume de co-
locar “o doente no solo, para que morra mais depressa” (Breve ricordo di quello
hanno dafare i chierici, massimamente curati,ƒatto secondo la instruttione, etdeter-
minatione del Reverendissimo Signor, il S. loan Matth. Giberto vescovo di Verona, ed.
Maestro Stephano Nicolini et li fratelli da Sabio,Verona, 1530, c. 3r).
13. Cf. L. Hass, The Renaissance Man and his Children. Childbirth and Early
Childhood in Florence 1300- 1600, Houndmills-Londres, 1998, p. 163. Mas ver todo
0 cap. vn: “Mori subito. The Demographic Agonies of Childhood in Premodern
Florence”.
14. Cf. a gravura da Predica dell'arte di ben morire editada por Savonarola em
1496 e reproduzida no livro de C. Dãubler-Hauschke, Geburt und Memoria. Zum
italienischen Bildtyp der “deschi da parto”, Munique-Berlim, 2003, p. 30.
15. Nos livros de família, as crianças, mesmo que tivessem vivido pouco tem-
po, são lembradas pelo nome. Alguns exemplos: Giovanni di Pagolo Morelli
registra em suas anotações o caso da irmã Bartolommea, que “morreu em pou-
cos dias” (Ricordi, ed. V. Branca, Florença, 1969, pp. 191-92); e o dos próprios

439
filhos, Antoniotto, nascido de sete meses (“acreditando que não sobrevivesse o
fez batizar no mesmo dia em Santo Giovanni”; id., ibid., p. 361), e Lionello, ele
também morto logo após o nascimento (id., ibid., pp. 367-68). Nas lembranças
do veronês Bernardino Fracastoro estão registrados os nascimentos de Benedet-
ta Bartolomea (10 de outubro de 1488), Tomio Bartolomè (13 de agosto de
1489), Agnolo Alessandro (7 de novembro de 1491), Margherita ( 13 de julho de
1494), Gentile Margherita (4 de abril de 1499), Carlo Paolo (24 de janeiro de
1502), Margherita Gentile (18 de agosto de 1505). Margherita morreu com seis
anos em 1500; Gentile Margherita morreu com quatro anos em 14 de agosto de
1504; Carlo com dois anos e poucos meses de idade em 18 de agosto de 1504; e a
segunda Margherita Gentile com quatro meses em 23 de janeiro de 1505 (Fami-
ly Memoirs from Verona and Vicenza (I5th-16th Centuries), ed. I. S. Grubb,
Roma, 2002, pp. 38-39).
16. Assim Bonaventura de' Bovi anotou a circunstância de que a uma sua so-
brinha fora dado o nome de Isabetta Elena, que fora o nome de sua mulher: “Vivit
ergo Isabeta in perpetua vita triumphans et in ista caduca iterum militans” (nota
de 21 de março de 1475, ibid., pp. 31-32).
17. De um caso bolonhês de 1712, revelador de quanto eram normais essas
práticas, e que será comentado mais adiante.

4. BAT1sMo [pp. 174-202]

1. Da imensa literatura sobre 0 argumento assinalamos apenas o rápido mas


eficaz ensaio de síntese de V. Saxer, “L'initiation chrétienne du 11€ au V1* siècle: es-
quisse historique des rites et de leur signification, in Segni e riti nella Chiesa alto-
medievale occidentale”, Settimane di studio del centro italiano di studi sull'alto
Medioevo, xxxm, Spoleto, 1987, pp. 173-205.
2. P. Brown, The Body and Society. Men, Women, and Sexual Renunciation in
Early Christianity, Nova York, 1988 [trad. it. Il corpo e la società. Uomini, donne e
astinenza sessuale nei primi secoli cristiani, Turim, 1922, p. 26].
3. I Coríntios, 15,35-40. Cf. H.-I Marron, “Le dogme de la résurrection des
corps”, Revue des études augustiniennes, X11 (1966), pp. 111-36 (reunido em id.,
Patristique et Humanisme, Paris, 1976, pp. 492 ss.).
4. “The seed is the oldest Christian metaphor for the resurrection ofthe body”
(C. Walker Bynum, The Resurrection ofthe Body in Western Christianity, 200-1336,
Nova York, 1995, p. 3).
5. “In nulla ergo re tam vehementer, tam pertinaciter, tam obnixe et conten-
tiose contradicitur fidei christianae, sicut de carnis resurrectione. Nam de animae

440
immortalitate multi etiam philosophi gentium multa disputaverunt... cum ven-
tum fuerit ad resurrectionem carnis, non titubant, sed apertissime contradicunt...
ut dicant fieri non posse ut caro ista terrena possit in caelum ascendere” (Enarra-
tiones in Psalmos, Lxxxv111.11.5, Corpus Christianorum, 39, p. 1237). E ver também
De civitate Dei, xx11.4; xx11.1 1. Segundo P. von Moos (“Le sens commun au Moyen
Age: sixième sens et sens social. Aspects épistémologiques, ecclésiologiques et es-
chatologiques”, Studi medievali,s.11i, xuu [(2002)], pp. 1-58; ver pp. 37-42), a re-
cusa do intelectualismo típico de Agostinho que o levou a opor-se também à tese
de Orígines sobre a transformação do corpo em realidade impalpável devia se
reforçar ainda até o século XII.
6. Cf. L'anima dell 'uomo. Trattati sull'anima del Val rx secolo, intr. trad. e notas
de I. Tolomio, Milão, 1979.
7. Dino Compagni, Cronica, ed. G. Luzzatto, Turim, 1978, p. 77.
8. Cf. R. Strom-Olsen, “Dynastic Ritual and Politics in Early Modern Burgun-
dy: the Baptism of Charles v”, Past and Present, n. 175, maio de 2002, pp. 34-64.
9. Os eventos das perseguições sofridas em 1096 pelos hebreus de Spira,
Worms e Magonza são narrados na Cronica de Rabbi Salomon (cf. N. Falbel, Ki-
dush Hashem: Crônicas hebraicas sobre as Cruzadas, São Paulo, 2001, prefácio de
H. Beinart, pp. 73 ss.). Sobre o massacre de Lisboa, revolta popular desencadeada
pelos dominicanos, cf. Y. H. Yerushalmi, The Lisbon Massacre of1 506 and the Royal
Image in the “Shebet Yehudah, Cincinnati, 1976, trad. fr. in id., Sefardica, Paris,
1998, pp. 35-173.
1o. A opinião pela qual “Baptismus cordis Baptismus est, qui spiritu constat,
non externo opere” foi sustentada por um herege italiano, Celio Secondo Curione,
no texto De amplitudine Bea ti Regni Dei, de 1553 (cf. D. Cantimori, Eretici italiani
del Cinquecen to e altri studi, Turim, 1992, p. 191 ). A cena do religioso que batiza os
escravos foi descrita no início do século xvu pelo jesuíta Alonso de Sandoval, Un
tratado sobre la esclavidud (De Instauranda Aethiopum salute), ed. E. Vila Vilar,
Madri, 1987, pp. 384-ss.
11. Enarrationes in Psalmos, 109-20, apud C. Carena, Introdução a Agostinho,
La città di Dio, Turim, 1992, pp. xxiv-xxv.
12. Id., ibid., Livro 15,_cap. 1 [trad. it. cit.,p. 6331.
13. A passagem de Tertuliano foi ressaltada por P. Gassendi, Physicae liber 1.11,
De anima, Opera om nia, sumptibus LaurentiiAnisson etIo. Baptistae Devenet, Lug-
duni, 1658, to. 11, p. 280). Mas já Fortunio Liceti dera uma versão atenuada da
mesma tese sustentando que o que o pai transmite ao embrião “in coitu” é apenas
uma parte de sua alma racional (De ortu animae humanae libri tres, in aedibus
Iosephi Pavonii, Gênova, 1602, p. 386).

441
14. Cf Ch. Klapisch-Zuber, Liombre des ancëtres. Essai sur Vimaginaire médiéval
de la paren té, Paris, 2000, cap. 111 (pp. 61-84). Mas toda a obra é de grande interesse.
15. Sobre isto,ver R. Bizzocchi, Genealogieincredibili. Scritti di storia nell'Europa
moderna, Bolonha, 1995, pp. 1 18-26; e C. Ginzburg, Occhiacci di legno. Nove rifles-
sioni sulla dista nza, Milano, 1998, pp. 100- 1 7. Uma vasta e ambiciosa pesquisa das
teorias medievais da procriação foi realizada por M. van der Luft, Le ver, le demon
et la vierge. Les théories rnédiévales de la génération extraordinaire. Une étude sur les
rapports entre théologie, philosophie naturelle et médécine, Paris, 2004, que, publi-
cada quando este trabalho estava em rascunho, não pôde ser levado em conside-
ração. Mas é certo que, como escreve a autora, nas teorias medievais da geração, a
centralidade de “paradoxos assombrosos” (“paradoxes stupéfiants”, p. 369) como
a Virgem Mãe e o Deus encarnado guiou a reflexão médica e embriológica dos
teólogos e as opiniões teológicas dos médicos.
16. I. Baschet, Le sein du père. Abraham et la paternité dans l'Occident médiéval,
Paris, 2000, p. 323.
17. La città di Dio, Livro 15, cap.xv1 [trad. cit., p. 664] .
18. Id., ibid.
19. J. Le Goff, La naissance du Purgatoire, Paris, 1981 [trad. it. La nascita del
Purgatorio, Turim, 1982, p. 84.]
2o. Augustinus, Contra duas epistulas Pelagianorum, 11.5-7 (este tema no pen-
samento do Agostinho antipelagiano é ressaltado por G. Lettieri, l'altro Agostino.
Ermeneutica e retorica della grazia dalla crisi alla metamorfosi del “De doctrina
christiana”, Brescia, 2001, pp. 405-8).
21. Agostinho, Enchiridion, 28.109: “Tempus autem quod inter hominis mor-
tem et ultimam resurrectionem interpositum est animas abditis receptaculis con-
tinet, sicut unaquaeque digna est vel aerumna pro quod sortita est in carne cum
viveret”.
22. “Animam... habere posse similitudinem corporis et corporalium omnino
membrorum quisquis negat potest negare animam esse, quae in somnis videt vel
se ambulare vel sedere... quod sine quadam similitudine corporis non fit” (De
Genesi ad litteram, x11.xxx111.62, ed. Bibliothèque Augustinienne, to. xux, ed. P. Agaesse
e A. Solignac, Paris, 1972, p. 442).
23. Inferno, xxvt. 118-20.
24. “Et ecce vidi in terra homines in vasis suis lac portantes et inde caseos
fascientes... Et ita vidi quase mulierem velut integram formam hominis in utero
habentem. Et ecce per secretam dispositionem superni conditoris eadem forma
motum vividae motionis dedit, ita quo velut ignea sphaera nulla lineamenta hu-
mani corporis habens cor eiusdem formae possedit, et cerebrum eius tetigit et se
per omnia membra ipsius transfudit” (Hildegardis Scivias, ed. A. Führkõtter O.S.B.

442
e A. Carlevaris O.S.B. [ ( Corpus Ch ristianorum Continuatio Medievalis, xL111)] ,Tur-
nholti, 1978, pp. 61, 77-78). Do homem criado por Deus como o queijo do leite
coalhado lê-se na Bíblia (Jó, 10,10). Mas ver C. Ginzburg, Ilformaggio e i vermi. Il
cosmo di un mugnaio del °500, Turim, 1975, pp. 67-69.
25. Cf. I. Baun, The Fate ofBabies dying before Baptism in Byzantium, in The
Church and Childhood, cit., pp. 115-25.
26. A passagem de Dante (Purgatorio, v11.31-36) “De todo infante, é lá esse o
lamento pelas garras da morte antes colhido...” expressa este tipo de tradição.
27. Paraiso, xxxn, 40-84. Segundo B. Nardi (I bambini nella candida rosa dei
beati, apareceu na primeira edição do vol. xx dos “Studi danteschi” e reunido em
id., Nel mondo di Dante, Roma, 1944, pp. 317-34), entre as fontes de Dante, deve-se
incluir também Pietro d'Abano, devido à sua atenção pela influência dos astros
para determinar a diversidade natural dos indivíduos (“per participationem na-
turalium bonorum”).
28. Cf. Ch. Klapisch-Zuber, L”ombre des ancêtres, cit., p. 40.
29. Para uma exposição sintética, é ainda útil E. Gilson, Le Thomisme. Intro-
duction à la philosophie de Saint Thomas d”Aquin, Paris, 1989, pp. 241-80. Sobre a
elaboração de uma teoria do ser humano após a irrupção de Platão, Aristóteles e
comentários árabes na cultura da época, é fundamental É.-H. Weber, La personne
humaine aux xnf siècle, Paris, 1991.
30. R. Dworkin, Life's Dominion: An Argument About Abortion, Euthanasia,
and Individual Freedom, Nova York, 1993, [trad. it. Il dominio della vita. Aborto,
eutanasia e liberta individuale, Milão, 1994, pp. 56-57].
31. Segundo os estatutos de Angers, “a atribuição do nome deve ocorrer num
local sacro, sob o controle do padre” (D. Lett, Uenfant des miracles. Enfance et société
au Moyen Age, xtf-xnf siècle, Paris, 1997, p. 209). Sobre 0 momento em que se escre-
ve o nome, cf. C. Vogel e R. Elze, Le Pontiƒical romano-germanique, cit., 1, p. 24.
32. Por exemplo, nos livros de família florentinos do século xtv, cf. Ch. Klapisch-
-Zuber, Constitution et variations temporelles des stocks de prénoms, in Le prénom.
Mode et histoire, Paris, 1984, pp. 42 ss. Também da mesma autora, “Le choix de
prénom dans la Florence dela Reinassance, in I sistemi di denominazione nelle
società europee e i ceti di sviluppo familiare”, Atas do primeiro seminário dos
encontros mediterrãneosde etnologia, Siena, 25-26 de fevereiro de 1982, Siena,
1983. Sobre a história dos nomes, ver M. Mitterauer, Ahnen und Heilige. Namen-
gebung in der europaischen Geschichte, Munique, 1993 [trad. it. Antenati e santi.
Uimposizione dei nomi nella storia europea, Turim, 2001, p. 397].
33. M. Mitterauer, op. cit. [trad. it., pp. 160-61].
34. Id., ibid., pp. 361-62.
35. Ph. Ariès, op. cit., p. 30.

443
36. Nisto, observa F. Cumont (Luxperpetua, Paris, 1949, cap. v11: L'astrologie et
les morts prematures, pp. 303-42 e p. 444), as crianças mortas prematuramente
encontram-se reunidas com condenados à morte.
37. “Passport to Heaven” (Ch. Hole, Enciclopedia of Superstitions, Londres,
1961, p. 346; retomando a citação, que não pude verificar, da vasta pesquisa de
A. O'Connor, op. cit., p. 35. O estudo de O'Connor é útil principalmente para o
folclore irlandês. Para o alemão, deve-se assinalar o ensaio de H. Schauerte,
Volkskundliches zur Taufe, in Festschriftfur Bruno Schiers, Gõttingen, 1967, pp.
41-63). No Ritual romano de Paulo v, o Ordo sepeliendi parvulos determina a
obrigação de uma “corona de floribus” ou de ervas aromáticas como símbolo da
virgindade do corpo, contanto que se trate de um “infans, vel puer baptizatus”
(Rituale Romanum, apud Bartholomaei Martin, Lyon, 1619, pp. 191-201). Na
questão dos sepultamentos, a tradição eclesiástica medieval é clara ao excluir os
recém-nascidos não batizados do cemitério; cf. D. Lett, Llenfantdes miracles, cit.,
pp. 21 1-13. Sobre o tema dos fantasmas, continuam fundamentais os estudos de
Iean-Claude Schmitt, em esp. Les revenants. Les vivants et les morts dans la societe
medievale, Paris, 1994.
38. Cf. E. Labouvie, Geburt und Tod in der Frühen Neuzeit. Letzter Dienst und
der Umgang mit besonderen Verstorbenen, in I. Schlumbohm et al., Rituale der Ge-
burt. Eine Kulturgeschichte, Munique, 1998, pp. 289-306.
39. Assim se lê nos decretos sinodais de Arezzo de 1597 (cf. C. Corrain e P.
Zampini, “Documenti etnografici e folkloristici nei Sinodi Diocesani della Tosca-
na”Ê, La palestra del clero, xuv, n. 12, Rovigo, 1965, pp. 646-54; ver p. 653).
40. “Infans sine baptismo vita functus ad sacella campestria, vel Sanctorum
imagines, aut relíquias defferri ne sinant, neque ob eam causa benedictiones usur-
pari permittant, ut quasi tentato Deo mortui revocentur ad vitam” (dos decretos
sinodais de 1778, cit. por id., “Documenti etnografici e folkloristici nei Sinodi
Diocesani del Piemonte e della Liguria”, in La palestra del clero, xiv, n. 15-16, Ro-
vigo, 1966, pp. 1-51;ver p. 3).
41. A definição é de M. Bertolani, Petrarca tra epistolografia e teologia dei poeti,
in Scrittura religiosa. Forme letterarie del Trecento al Quinquecen to, ed. C. Delcorno
e M. L. Doglio, Bolonha, 2003, pp. 79-104; ver p. 88. Sobre a controvérsia, ver C.
Trottmann, La vision beatiƒique. Des disputes scolastiques a sa definition par Beniot
xn, Roma, 1995.
42. Crônica de loan Fabrizio degli Atti, in Le cronache di Todi (secolixrn-xi/1)
ed. G. Italiani et al., Florença, 1979, p. 170.
43. H. Hertz, op. cit. [trad. it. cit., p. 61].
44. Id., ibid. [trad. it. cit., p. 79].
45. Assim na Legenda Au rea de Iacopo da Varazze [Legenda Aurea, trad. Hilário

444
Franco Ir. São Paulo: Companhia das Letras, 2003], como observa A. Benvenuti
Papi, Il culto degli Innocenti nelfimmaginario medievale, in Infanzie. Funzioni di
um gruppo liminale dal mondo classico all'etta moderna, cit., pp. 113-43.
46. Opera in titolata ilfascicolo della mirrhata, reden trice, et salu tifera humani-
tà di Ch risto per D. Cherubino Tolomeo detto degliAssassini di Ferrara, can. reg. lat.,
del 1538, col. Impressa em Ferrara na gráfica de Francesco Rosso de Valenza, em
1538, cc. B Ir, 1 lvv. (cópia de referência: Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze,
fondo Guicciardini).
47. Bernardino da Siena, Le prediche volgari, Florença, 1941-58, p. 412. A pas-
sagem é citada também por R. Texler, Public Life in Renaissance Florence, Ithaca-
-Londres, 1991, p. 369, nota.
48. R. Hertz, Contribution à une étude sur la representation collective de la mort,
op. cit. [trad. cit., p. 130, nota 285.]

5. MORRER sEM ALMA [pp. 203-49]

1. ASP, ex-Irmandade de caridade, Confraternita dei ss. Andrea e Bernardino


della Giustizia, 3: Giustiziati ed Oblati alla Croce 1525-1826, c. 6r.
2. Pesquisa exemplar realizada por M. Bloch, “La vie d'outre-tombe du roi
Salomon”, Revue belge dephilologie etd'histoire,1v, nn. 2-3, abril-setembro de 1925,
agora em Histoire et historiens, Paris, 1995 [trad. it. La vita d'oltretomba del re Sa-
lomone, in id., Storici e storia, Turim, 1997, pp. 185-209].
3. Sobre Anselmo de Laon, cf. R. Weberberger, “Limbus puerorum” Zur Ents-
tehung eines theologischen Begriffes, Recherches de théologie ancien ne et medievale,
xxxv (1968), pp. 83- 133, 241-59; ver p. 92. Sobre Elredo [Aelred] de Rievaulx e a
sua concepção da infância, cf. D. Bouquet, “De Fenfant-Dieu à l'homme-enfant:
regards sur l'enfance et la psychologie de l'adulte chez Aelred de Rievaulx (1110-
-67) 'Í Medievales, xxxvl, primavera de 1999, pp. 129-43; ver p. 132. Devo esta indi-
cação à gentileza de Peter von Moos.
4. Sobre isto, ver também o útil ensaio de L. Zdekauer, “lustitiaz immagine e
idea”, Bullettino senese di storia patria, xx (1913), pp. 384-425.
5. A justiça, escrevia Manetti, “não é outra coisa senão retribuir o bem e punir
0 mal; a qual coisa faz o nosso senhor Deus, mas a retribuição dá por graça e a
punição faz com misericórdia” (de uma “advertência” inédita citada por R. M.
Dessí, La giustizia in alcuneforme di comunicazione medievale. Intorno ai protesti
di Giannozzo Manetti e alleprediche di Bernardino da Siena, in Letteratura informa
di parole. I rapporti tra predicazione e letteratura nei secoli x111-xv1, ed. G. Auzzas, G.
Baffetti e C. Delcorno, Florença, 2003, pp. 201 -32).

445
6. Conciliorum Oecumenicorum decreta, Bolonha, 1973, p. 422.
7. Sobre 0 progressivo avanço do agostinismo entre a Idade Média e a primei-
ra Idade Moderna, também em relação às teses de L. Kolakovski, Dieu ne nous doit
rien, Paris, 199 7, cf. P. von Moos, “Das Geheimnis der Prãdestination im Mittelal-
ter”, Internationale ZeitschriftfiirPhilosophie, 2004, n. 2, pp. 158-92.
8. As discussões conciliares entre Ferrara e Florença abordaram principal-
mente a questão do Purgatório. CL I. Gill, The Council of Florence, Cambridge,
1961 [trad. it. Il Concilio di Firenze, Florença, 1967, pp. 368 e ss.].
9. Sobre a diferente perspectiva da Igreja grega insiste I. Meyendorff, Byzanti-
ne Theology, Oxford, 1975 [trad. it. La teologia bizantina. Sviluppi storici e temi
dottrinali, Casale Monferrato, 1984, pp. 267-68].
10. Talvez por isso, numa pia batismal toscana, os Della Robbia associaram à
iconografia do sacramento determinada por Piero a imagem do nascimento de
Ioão Batista e a do pai Zaccaria que escreveu seu nome, assim completando a re-
presentação do rito canônico. A pia dos Della Robbia, datável aproximadamente
de 151 1, encontra-se na Pieve de San Leonardo, em Cerro Guidi (Florença).
11. Cf. P. F. Howard, Beyond the Written Word. Preaching and Theology in the
Florence ofArchbishop Antoninus 1427-1459, Florença, 1995, p. 31.
12. Sant°Antonino, Summa maior, Lazarus de Soardis, Veneza, 1503, Prima
Pars,tit.v111, cap. 1 (sobre 0 pecado original).
13. Cf. G. M. Cagni, Vespasiano da Bisticci e il suo epistolario, Roma, 1969, pp.
125-28. Sobre a carta de Donato Acciaiuoli a Giannozzo Manetti, de 20 de setem-
bro de 1450, cf. E. Garin, “La giovinezza di Donato Acciaiuoli”, Rinascimento, 1
(1950), pp. 68-70. Faltava, na verdade, um estudo exaustivo sobre 0 contexto e
sobre o conteúdo das cartas, que foi elaborado pela doutora Chiara Franceschini
num ensaio no prelo na coleção dos Seminari della Scuola Normale Superiore
(Una discussione sul peccato originale e sul destino dei bambini morti prima del
battesimo tra Vespasiano da Bisticci, Donato Acciaiuoli e Giannozzo Manetti) que,
além disso, traz em apêndice as três cartas conservadas desta discussão. Agradeço
à autora que me permitiu ler seu estudo ainda inédito.
14. Girolamo Savonarola, Prediche sopra i Salmi, ed. V. Romano, vol. 1, Roma,
1969, p. 129.
15. Id., Triumphus Crucis, ed. M. Ferrara, Roma, 1961, Livro 111, cap. 1x.
16. Apassagem (p. 3,qu.68,art. 2) foi censurada apartir da ed. romana de 1570
do comentário de Tommaso de Vio à Summa de Tomás de Aquino (as censuras a
Caietano in ASO, Indice, Protocolli 1; cc. 224r-3541; ver em esp. cc. 236r-242r).
Sobre os aspectos doutrinais da questão, cf. 0 verbete “Baptême (sort des enfans
morts sans)” de I. Bellamy, in Dictionnaire de théologie catholique, 11, Paris, 1905,
cols. 364-78.

445
17. “Esta me parecia uma grande injustiça e certamente eu não posso acredi-
tar”: assim o médico de Ferrara Antonio “Musa” Brasavola coloca como objeção
por Eleonora D`Este, escolhida como interlocutora no diálogo em vulgar inédito
Vita de Iesu Christo, redigido por volta de 1540, a propósito da condenação das
crianças não batizadas (ms 1862 da Biblioteca Universitaria de Bolonha, c. 28).
18. Sobre o hospital de Siena, cf. G. Piccinni, Linee di storia dell *Ospedale di
Santa Maria della Scala e dell'area circostante, in Santa Maria della Scala
dall'Ospedale al Museo, Siena, 1995. Ver também L. Sandri, L'ospedale di S. Maria
della Scala e di S. Gimignano nel Quattrocento. Contributo alla storia dell'infanzia
abbandonata, Società storica della Valdelsa, 1981; Ph. Gavitt, Charity and Chilren
in Renaissance Florence. The Ospedale degl'Innocenti 1410-1536, Michigan, 1990,
e o amplo ensaio introdutório do livro de V. Hünecke, I trova telli di Milano. Bam-
bini esposti e famiglie espositrici dal xvn al xtx secolo, cit. Uma adequação das pes-
quisas nas atas do congresso “Benedetto chi ti porta, maledetto chi ti manda”
L'infanzia abbandonata, ed. C. Grandi, Treviso, 1997.
19. “Havia uma verdadeira obsessão pelo que dizia respeito ao batismo das
crianças”, observa I. Boswell, The Kindness ofStrangers, Nova York, 1988 [trad. it.
L°abbandono dei bambini in Europa occidentale, Milão, 1991, p. 180], que remete
aos cânones penitenciais.
20. A alma do “domin us” teria aparecido ao dominicano frei Leone de Milão e
teria-lhe dito ser punida “quod pueros ex occulto concubitu genitos et ad hospi-
tale proiectos ex quadam indignatione sine baptismo mori permiserit, quia vide-
bat hospitale ex tali expositione in labores et expensas incurrere” (frei Salimbene
de Adam, Cronica, ed. G. Scalia, Bari, 1966, 1, p. 105; cf. I. Boswell, op. cit. [trad. it.
cit., pp. 225, 477-78] ).
21. Segundo Lucia Sandri, em San Gallo “os saquinhos... abundam singular-
mente de sal” em relação aos do hospital de Santa Maria della Scala de San Gimig-
nano (Gli esposti di San Gallo di Firenze nella prima metà del xv secolo, in Enfance
abandonnee et societe en Europe xrv-xx siècle, cit., pp. 993-1015; ver p. 1008).
22. O dominicano I. Viguier (Intitutiones ad christianarn theologiam, apud
herdeiros de Melchioris Sessae, Veneza, 1584, pp. 594-95, De Lymbo puerorum; a
primeira edição saiu em 1549) assinalou esta opinião justificando-a com razões
de espaço: as crianças depois da ressurreição geral poderiam sair do Limbo e mo-
ver-se livremente sobre a terra para deixar lugar aos corpos dos danados.
23. “Sublata est circuncisio, sed successit baptismus, duriore prope dixerim
conditione. Illa differebatur in octavum diem, et si quis interim casus intercepisset
puerum, votum circuncisionis pro circuncisione imputabatur. Nos pueros vix
dum e latebris uteri materni egressos in frigidam aquam, quaeque diu in alveo saxo
constitit, non enim dicam computruit, totos immergimus; et si vel primo die atque

447
in ipso partus ostio perierit, nulla parentum aut amicorum culpa, deditur miser
aeternae damnationi” (L.-H. Halkin, F. Bierlaire e R. Hoven (orgs.), Opera omnia
Desiderii Erasmi Roterodami I/3: Colloquia, Amsterdam, 1972, p. 503. A tradução
italiana é de C. Asso (Erasmo da Rotterdam, Colloquia, Turim, 2002, p. 835).
24. I. Wier, De praestigiis daemonum, in Opera omnia, Amsterdam, 1659, p.
171. M. Valente, Iohann Wier. Agli albori della critica razionale dell'occulto e del
demoniaco nell'Europa del Cinquecento, Florença, 2003, pp. 199-200. Ressalta a
passagem (id., ibid., pp. 225-47) uma análise do caráter erasmiano do pensamen-
to de Wier.
25. A definição é de Walter Kõhler e é lembrada por). Huizinga, Erasmus, 1924
[trad. it. Erasmo, Turim, 2002, p. 220] .
26. Martinho Lutero, Von der heiligen und hochwitrdigen Sacrament der Taufe,
Werke, Weimarer Ausgabe, 2, pp. 727-37. Cito a partir da trad. italiana: Martinho
Lutero, Scritti religiosi, org. V. Vinay, Turim, 1967, p. 209. (Retomam-se aqui algu-
mas considerações já expressas no ensaio do autor Battesimo e identità tra Medio
evo eprima età moderna, in P. von Moos (org.), Unverweschselbarkheit. Persönliche
Identität und Identiƒikation in der vormodernen Gesellschaft, Colônia-Weimar-
-Viena, 2004, pp. 325-53.)
27. Isto é bem especificado por I. D. Trigg, Baptism in the Theology ofMartin
Luther, Leiden-Nova York-Colônia, 1994.
28. Como escreveu Ladner, o batismo “era e é visto como morte e ressurreição
ao mesmo tempo. É a nova fonte da vida” (G. Ladner, Images and Ideas in the Middle
Ages, Roma, 1983, I, p. 260). '
29. H. Zwinglio, In catabaptistarum strophas elenchus, 31 de julho de 1527, in
id., Samtliche Werke, Corpus Reƒormatorum, vol.xc111, Leipzig, 1936, p. 52.
30. “Item dicunt infantes non credere, quis hoc eis dixit? quare non loquuntur
ipsi, cum in somno sint. Ego faciam quod Christus iubet, nempe ut ducatur puer
ad baptismum. Ipse dabit iterim fidem, non operatur Deus secundum tuum som-
nium” (Pregação de 1524, in Martinho Lutero, Werke, Weimarer Ausgabe, 15, p.
670, rr. 6-15; sobre passagens deste tipo funda-se a tese ecumênica de um Lutero
tradicionalista e conservador; cf. E. Huovinen, Fides Infantium. Martin Luthers
Lehre vom Kinderglauben, Mainz, 1997, p. 83).
31. Conciliorum Oecumenicorum decreta, cit., p. 666.
32. “Christus non baptizavit; ergo secundum vos non erit baptizandum?” (H.
Zwinglio, op. cit., p. 52).
33. João Calvino, Institutio christianae religionis, Livro Iv, cap. xv (cito a trad.
it. ed. G. Tourn, Turim, 1983, p. 1537).
34. Cf. S. Karant-Nunn, Reformation ofRitual. An In terpretation ofEarly Mo-
dern Germany, Nova York, 1997, p. 51.

443
35. “Dans les enfants qui ne sont capables ni de foy, ni de repentance actuelles,
Dieu ne requiert qu'une condition, c'est la naissance dans l'Église et de personnes
qui soient au moins dans l'al1iance generale du Christianisme” ([Bayle], Seconde
Apologie pour M. Iurieu, Roterdam, 1692, p. 45, ed. in P. Bayle, OEu1/res diverses,
Hildesheim-Nova York, 1982, V/2, pp. 535 ss.).
36. “... Eos qui resipuerunt et gratiam Dei sunt vere amplexi, suntque adeo in
salvationis statu progeniem producere in qua divina gratia... extendat sese. .. unde
est quod infantes denascentes parentibus in statu salutifero constituti, salvi revera
sint” (P. Poiret, Cogita tion um rationalium deDeo, anima, et malo libri quator,Ams-
terdam, 1715, pp. 149-150, rep. in P. Bayle, OEu1/res diverses, volumes suplementa-
res, vol. lu, Hildesheim-Nova York, 1990. A obra de Poiret foi escrita nos anos
1672-76, quando ainda era pastor calvinista em Anweiler, antes de se converter
seguindo a mística Antoniette Bourignon). Sobre a intensa ligação entre pais e
filhos no mundo calvinista há algumas agudas observações de N. Zemon Davis,
“Ghosts, Kin, and Progeny: Some Features ofFamily Life in Early Modern France”,
Daedalus, primavera de 1977, pp. 87-114.
37. O episódio é narrado por R. Ristori, “Benedetto Accolti. A proposito di un
riformatore toscano del Cinquecento”, Rinascimento, n.s., 11 (1962), pp. 268-69;
sobre Arquer, cf. M. Firpo, “Alcune considerazioni sull°esperienza religiosa di Si-
gismondo Arquer”, Rivista Storica Italiana, cv (1993), pp. 413-75.
38. Camillo Renato, Trattato del Battesimo e della Santa Cena (1547?), in Ope-
re, documenti e testimonianze, ed. A. Rotondo, Florença-Chicago, 1968, p. 102.
39. Assim da confissão feita por don Pietro Manelfi ao inquisidor Leandro
Alberti em Bolonha, em 17 de outubro de 1551 (C. Ginzburg, I costitutt' di dort
Pietro Manelƒi, Florença-Chicago, 1970, p. 33).
40. Id., ibid., pp. 34-35. O concílio anabatista reunira-se em Veneza em setem-
bro de 1550.
41. Ambrosius Catharinus Politus, De statusfuturo puerorum sine sacramen to
decedentium, in Opuscula, apud Mathiam Bonhomme, Lyon, 1542, pp. 150-68.
42. Cf. K. E. Spierling, “Dating Insolence toward God? The Perpetuation of
Catholic Baptismal Traditions in Sixteenth-Century Geneva”, Arch1`vƒürReƒorma-
tiongeschich te, xcni (2002), pp. 97- 125. Cf. uma menção sumária à documentação
relativa aos batismos na Igreja reformada francesa em Ch. Grosse et al., “Anthro-
pologie historique: le rituels réformés (xv1°-xvue siècles)”, Bulletin de la société
d'histoire du Protestantismeƒrançaís, cxrvnl (2002), pp. 979-1009.
43. Cf. o verbete de R. I. de Simone, em Dictionnaire encyclopédique du christia-
nísme ancien, dirigido por A. di Berardino, ed. F. Vial, Paris, 1990, vol. 1, pp. 33 7-38.
44. Assim foi o caso do capuchinho frei Angelo “de Raconis”, nascido na Fran-
ça de pais huguenotes que, em dúvida sobre a validade do batismo recebido, sub-

449
meteu o problema em 1618 ao Santo Ofício romano que, por sua vez, envolveu a
nunciatura de Colônia e a Sorbonne (ASO, St. st. M 6, n-r, Dubia de Sacramentis,
vol.1,1618-98,fasc.1).
45. ASO, St. st., Dubia varia 1570-1668, fasc. 111.
46. “O pior de todos os males é que muitos morriam sem ser batizados” (con-
ferência de são Vicente com as Damas da Caridade, cerca de 1640, citada por Ph.
Aragon, Saint Vicent de Paul et l'abandon, in Enfance abandonnée et société en Eu-
rope XIV-XX siècle, cit., pp. 151-165; ver p. 159).
47. A história, complicada e aventurosa, teve como protagonistas Vincenzo
Moretti e Mattia Paghi, expostos respectivamente em 1710 e 1724. A descisão do
Santo Ofício de proceder ao rebatismo foi tomada em 11 de fevereiro de 1762
(ASO, St. st. M 3-f, Dubia de Sacramentis).
48. Cf. L. Forman Cody, op. cit., p. 325.
49. Ver, por exemplo, a obra do agostiniano bolonhês Cherubino Ghirardacci,
Nuovo, espirituale nascimento dell,huorno christiano, nel quale ilpadrino, over corn-
pare, ragiona del Battesimo, e de” suoi divini, et alti misteri: et amrnaestra l 'infante
in tutto quello, che per lui al sacro fonte havea prornesso, publicado por Gabriel
Giolito de' Ferrari, em Veneza, 1582.
50. É o que resulta do estudo de E. Labouvie, Geburt und Tod in der Frühen
Neuzeit. Letzter Dienst und der Umgang mit besonderen Verstorbenen, cit., que foi
efetuado sobre os registros de nascimento de Lorena, Kurtrier, condado de Nas-
sau-Saabrücken e outros pequenos principados alemães.
51. I. Bodin, Colloquiurn Heptaplomeres (1857), Genebra, 1984, livro vi (cito a
tradução italiana de C. Pero, Città di Castello, 2003, pp. 516, 552-54). Agradeço
Michele Ciliberto por ter me apontado a passagem.
52. “Pouco importa [...] a atitude pessoal do culto magistrado diante do pro-
blema religioso”, observou H. Busson (Le rationalisme dans la littéra turefrançaise
de la Renaissance (1553-1601), Paris, 1957, pp. 559-60), que define Colloquirn “a
suma da teologia libertina do Renascimento”.
53. Para a história dos unitarianos e para o pensamento de Fausto Sozzini, ver F.
Socini, Opera ornnia in duos tornos distincta, ed. e com introdução de E. Scribano,
Siena, 2004 (rep. da ed. Amsterdam, 1668). ld., ibid., vol. 1, pp. 709-48, o texto An
Christiano Hornini baptismo aquae carere liceat, editado pela primeira vez em 1613.
54. D. Cantimori, op. cit., p. 352.
55. Não apenas, portanto, a coletânea na seção Future State ofInfants (E. Abbot,
Literature of the Doctrine of a Future Life or, a Catalogue of Works relating to the
Nature, Origin, and Destiny of the Soul, in W. R. Alger, The Destiny of the Soul: a
critical History oftheDoctrine ofafuturre Life, Boston, 1880, pp. 860-63, nn. 4510-
-83). Agradeço Pierroberto Scaramella por ter me providenciado uma cópia.

450
56. Cf.A. Tanturri, Episcopato, clero e società a Chieti in eta moderna, Lanciano,
2004, p. 23.
57. O comitente se chamava Iean de Montagne. Devo a indicação da pintura
de Enguerrand Quarton à doutora Chiara Franceschini. Uma interessante difusão
da imagem do Limbo no século xv é documentada por I. Baschet, Les justices de
l'au-de-là. Les représentations de l 'Enfer en France et en Italie (xrf-xi/2 siècle), Roma,
1993 (ver, por exemplo, as pp. 655-59) e por G. Comino, “Bambini nati morti e
santuari del ritorno alla vita. Due esempi della diocesi di Mondoví”, in Rivista di
storia e letteratura religiosa, XL (2004), pp. 317-32.
58. I.-C. Schmitt, Le SaintLe'vrier, cit., p. 126 [trad. it. cit., pp. 118-19].
59. Sobre “les enfants-revenants”, agudas observações no fundamental estudo
de D. Lett, Uenƒant des miracles, cit., pp. 213- 14.
60. A opinião popular está citada em Renward Cysat, Collectanea cronico-
-historica e reportada em Martin Crusius, Annales Suevici, ambos impressos em
Frankfurt em 1596, onde se fala de um “exercitum furiosum, in quo essent om-
nes infanti non baptizati” (o texto está entre as fontes reunidas por K. Meisen,
Die Sagen von wütenden Heer und wilden Iäger, Münster im Westfalen, 1935, pp.
121-22 [trad. it. La leggenda del cacciatore furioso e della caccia selvaggia, ed. S.
M. Barillari, Alessandria, 200 1] ). Cf. I. Grimm, Deutsche Mythologie, Frankfurt-
-Berlim-Viena, 1981,11, p. 767; ver para mais dados folclóricos de âmbito francês
]. Gélis, L”arbre et le fruit, cit., pp. 490-94. Sobre a transformação do tema em
relação às origens apocalípticas, cf. A. Fiore, “Caccia selvaggia e schiera furiosa
nel Medioevo: una discussione e qualche prospettiva”, in Quaderni storici, 2004, n.
116, pp. 559-75.
61. Também na Inglaterra do século xvm, onde a descriminalização do suicí-
dio já se cumprira, o sepultamento diferenciado desta categoria ainda estava em
uso. Cf. M. MacDonald e T. R. Murphy, Sleepless Souls. Suicide in Early Modern
England, Oxford, 1990, pp. 212-13.
62. Cf. Burchardus Wormacensis, Decretorum libri 1/iginti, PL cxL, pp. 974-75.
63. Cf. R. C. Trexler, Infanticide in Florence, cit. [trad. it. cit.].
64. C. Ginzburg, I benandanti. Ricerche sulla stregoneria e sui culti agrari tra
Cinquecento e Seicento, Turim, 1966, p. 63. [Os andarilhos do bem. Trad. Iônatas
Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.] I
65. As atas do processo estão conservadas no Archivio di Stato di Modena e me
foram indicadas pelo saudoso amigo Albano Biondi. Um relatório do autor e um
ensaio de leitura de Laura Roveri foram editados numa coletânea de estudos de-
dicados à sua memória. Cf. Il piacere del testo. Saggi e studi perAlbano Biondi, ed.
A. Prosperi, Roma, 2001, com os respectivos títulos: Croci nei campi, anime alla
porta. Religionepopolare e disciplina tridentina nelle campagnepadane del “500, pp.

451
83-118, e Gli stregoni erranti. La cultura popolare nelle carte di un processo
dell'Inquisizione modenese, pp. 119-39.
66. No Arquivio arcivescovile di Pisa, fondo Inquisizione, série n. 14 ( 1642-44,
cc. 708 r- 709 v), os “desaparecimentos espontãneos”dos dois camponeses, de 17 de
abril de 1642 (Silvestro Andrea) e de 25 de abril do mesmo ano (Raffaele Giovan-
ni Battista). Para uma descrição analítica, cf. S. C. Casella, Inven tariazione delfon-
do del tribunale dell'Inquisizione pisana (anni 1643-44, 1672-74), monografia de
fim de curso, Facoltà di Lettere e Ffilosofia, Università di Pisa, orient. L. Carratori,
a.a. 2002-2003, pp. 85-86.
67. A hipótese foi apresentada por N. Zemon Davis, Ghosts, Kin, and Progeny, cit.
68. C. Levi, Cristo si èƒermato a Eboli, Turim, 1950, p. 142. Os “monachicchi”
de que fala Levi são aqueles espíritos de crianças mortas antes do tempo sem ba-
tismo acerca das quais, como vimos, Burchard registra a prática de fincar uma
estaca de madeira em seus corpos para o exorcismo (cf. Burchardus Wormacensis,
Decretorum libri viginti, cit.). Numerosas analogias nos dados recolhidos por A.
O”Connor, Child Murderess and Dead Child Traditions. A Comparative Study, cit.
69. Talvez uma referência à prática de tocar o capuz do batizado para tornar-se
padrinho do recém-nascido e compadre dos seus pais (confirmado pelos decretos
sinodais de Amalfi de 1594; cf. C. Corrain e P. Zampini, “Documenti etnografici e
folkloristici nei Sinodi Diocesani dell'Italia meridionale”, Lapalestra del Clero, xtv,
Rovigo, 1966, n. 3-5, pp. 1-57; ver pp. 28-29; mas os autores relembram que cap-
turar o capuz do espírito para obrigá-lo a revelar tesouros escondidos já foi docu-
mentado no Satyricon de Petrônio).
70. Cf. C. Peruzzi, “Un processo di stregoneria a Todi nel “400”, Lares, xxl
(1955), p. 9.
71. “... Baptizatus est, sanctificatus est, unctus est, imposita este ei manus, com-
pletis omnibus sacramentis assumptus est”: ela madre lo seppellí com letizia (Ser-
mo 324, De Sancto Stefano, in SanctiAureliiAugustini Opera omnia, a cargo de I.-P.
Migne, to. v, 1, 1863, cós. 1446-47).
72. A narração encontra-se na Historia Orientalis e é apontada por A. Iodis-
chky, Crusader Penance and Reconciliation, in K. Cooper e I. Gregory (orgs.), Re-
tribution, Repentance and Reconciliation (Studies in Church History, 40), Woobri-
ge-Rochester, 2004, pp. 74-83; ver p. 86.
73. Segundo I. Gélis (“Les sanctuaires “à répit' des Alpes françaises et du Val
d”Aoeste: espace, chronologie, comportements pélerins”, Archivio storico ticine-
se, xxx [(1993)], pp. 183-222; ver p.182), os primeiros casos ocorreram em Avig-
non em 1388, ao redor do túmulo de Pierre de Luxembourg.
74. Cf. O Vasella, “Uber die Taufe totgeborener Kinder in der Schweiz”, Zeits-
chriftfiir Schweizerische Kirchengeschichte, Lx ( 1966), pp. 1-75; ver p. 5.

452
75. Cf. G. e A. Duby, Le procès de Ieanne d'Arc, Paris, 1973, p. 79 (agradeço a
Peter von Moos pela indicação).
76. I. Corbelet, Histoire dogmatique, liturgique et archéologique du sacrament
du baptéme, Paris-Bruxelas-Genebra, 1881-82, to. 1, pp. 421-23.
77. A história dos estudos sobre o argumento tem origens arraigadas na histó-
ria do folclore e da devoção. Se não se pode datar o início por P. Saint-Yves (pseud.
de E. Nourry), “Les résurrections d'enfants morts-nés et les sanctuaires à répit”,
Revue d”ethnographie et de sociologia, 11 (1911), pp. 65-74, retomado em id., En
marge de la Légende dorée. Songes, miracles et survivances. Essai sur la formation
dequelques thèrnes agiographiques, Paris, 1931, pp. 167-92. Uma resenha bibliográ-
fica de C. Santschi, “Les sanctuaires à répit dans les Alpes occidentales”, Zeitschrift
für Schweizerische Kirchengeschichte, Lxxix (1985), pp. 119- 143, centrou-se sobre
as pesquisas após o fundamental ensaio de O. Vasella, op. cit., pp. 1-75, e as pesqui-
sas de I. Müller, “Zur Taufe totgeborener Kinder im Bündnerland”, Schweizerisches
Archivfiir Volkskunde, Liv ( 1958), pp. 15-27; id., Die churrätische Walfahrt im Mit-
telalter. Ein Úberblick (Schriften der Schweizerischen Gesellschaƒtƒür Volkskunde,
vol. 43), Basileia, 1964 (ver em esp. pp. 75-78 sobre a Virgem de Tirano, sobre a
qual se deve ver também A. Giussani, Il Santuario della Madonna di Tirano nella
storia e nell'arte, Como, 1926) . Ver também P. Paravy, Angoisse collective et miracles
au seuil de la mort: résurrection et baptêmes d'enfants mort-né, en Dauphiné au xve
siècle, in La mort au Moyen Âge, Estrasburgo, 1977, pp. 87-102. Depois que as
pesquisas fundamentais de Silvano Cavazza ampliaram a área de estudo e dese-
nharam um paradigma interpretativo fundado no ensaio de R. Hertz (cf. em esp.
“La doppia morte: resurrezione e battesimo in un rito del Seicento”, Quaderni
storici, 1982, n. 50, pp. 551-82, que não leva em consideração o denso livro de I.
Gélis, L'arbre et lefruit, cit. ) , o assunto foi tratado ainda numa coletânea de estudos
do próprio Gélis e de E. Renzetti, ed. e intr. R. Ceschi (“Risvegli. Resurrezioni
temporane salvezza delle anime”, Archivio storico ticinese, xxx [(1993)], pp. 181-
-246). Para uma útil análise, cf. S. Seidel Menchi, Les pèle[g]rinages des enfants
morts-nés. Des rituels correctifs pour un dogme impopulaire?, in Ph. Boutry et al.
(org.), Rendre ses voeux. Les identités pèlerines dans l”Europe modern (xvf-xvrrf
siècle), Paris, 2000, pp. 139- 158. (Agradeço pelas informações e os serviços biblio-
gráficos a doutora Brigitte Schwarz e a“Società svizzera per le tradizioni popolari”,
de Basileia.)
78. Les santuaires “a répit”, cit., 183. Mas este balanço foi superado também
graças às pesquisas do próprio Gélis (por exemplo, na coletânea de ensaios de I.
Schlumbohm et al. (org.), Rituale der Geburt, cit.
79. Aos fugazes indícios apontados por M. Sensi, San tuari delperdono esantua-
ri eremitici “à répit” Esempi umbro-marchigiani, in A.Vauchez (org.), Lieux sacrés,

453
lieux de culte, sanctuaires, Roma, 2000, pp. 215-39, acrescenta-se agora o estudo
dos casos piemonteses de Boves e de Vico (G. Comino, Bambini nati morti e san-
tuari del ritorno alla vita, cit.).
8o. Cf. O. Vasella, op. cit., pp. 5-6.
81. Id., ibid., pp. 8-9.
82. Cf. a ficha de Daniel Gutscher em Iconoclasme. Vie et mort de l'image médié-
val, catálogo da exposição, dirigida por C. Dupreux, P. Iezler e I. Wirth, Musée
d”histoire de Berne, 2001, p. 253 (que remete a D. Gutscher, S. Ulrich-Bochsler e K.
Utz Tremp, “Hieƒindt man gesundheit des libes und der sele” - Die Walfahrt im 15.
Iah rbundert am Beispiel der wundertätingen Maria von Oberbiiren, in Berns grosse
Zeit. Das 15. Iahrhundert nen entdeckt, ed. I. Beer Ellen, Berna, 1999, pp. 380-91,
que não pude ver). Agradeço o amigo Enrico Castelnuovo por ter me colocado à
disposição o livro.
83. K. E. Spierling, op. cit., pp. 104, 110.
84. A. Pfleger, “Zur Taufe toter Kinder. Ein Beitrag zur religiösen Volkskunde”,
ArchivfiirElsässische Kirchengeschichte, L (1941 -42), pp. 21 1-26; ver em esp. p. 214
(agradeço a Silvano Cavazza por ter me colocado à disposição este ensaio).
85. Apontado por I. Gélis, Les sanctuaires “a répit”, cit., p. 185, nota.
86. Cf. S. Cavazza, “Da Maria Luggau a Trava, origini di una credenza carnica
del Seicento”, Sot la nape. Rivista della società filologica friulana, xLvI (1994), n. 4,
pp. 31-39.
87. I.-B. Thiers, Traite' des superstitions selon l 'écriture sainte, les decrets des con-
ciles et les sen timen ts des saints Peres et des théologiens, Paris, 1679.
88. Este também foi apontado e estudado por I. Gélis, op. cit., pp. 185 e ss.
89. Cf. S. Seidel Menchi, op. cit.
90. ASO, St. st. M. 6-n, Dubia de Sacramentis, fasc. lx, cc. n.n. Trata-se de um
depoimento prestado na forma jurídica da spontanea comparitio, pois os represen-
tantes laicos na Inquisição não permitiram a abertura de um verdadeiro processo.
Ver do autor “Scienza e immaginazione teológica nel Seicento: il battesimo e le ori-
gini dell'individuo”, Quaderni storici, 1999, n. 100, pp. 173-98; ver p. 186 e nota 44.
91. Spontanea comparitio de Francesco Zenzini, 16 de maio de 1542, ASO, St.
st. M. 6-n, cc. n.n.
92. Cf. S. Ulrich-Bochsler e D. Gutscher, Wiedererweckung von Totgeborenem.
Ein Schweizer Wallfahrtszentrum im Blick von Archäeologie und Anthropologie, in
I. Schlumbohm et al. (org.), Rituale der Geburt, cit., pp. 244-68; ver em esp. pp.
25 7-58.
93. ASO, Dubia varia, 1571-1668, fasc. xix.
94. “Pensavam que o método católico era mais eficaz” (K. Spierling, op. cit., p. 98).

454
95. Não me foi possível consultar o livro de H. Ansgar Kelly, The Devil at Bap-
tism. Ritual, Theology and Drama, Ithaca-Londres, 1985.
96. Algumas representações francesas do final do século xv da descida da alma
no recém-nascido, refletidas em especial na Anunciação e na concepção milagro-
sa de Maria, foram estudadas por I. Baschet (La parénté partagée. Engendrement
chanel et infusion de Fame (a prpos d 'une rniniature de lafin du xvf siècle), in Anima
e corpo nella cultura medievale, ed. C. Casagrande e s.Vecchio, pp. 123-37).
97. Cf. I. Gélis, Lebenszeichen Todeszeichen: Die Wundertaufe totgeborener Kin-
der im Deutschland der Auflclârung, in I. Schlumbohm et al. (org.), Rituale der
Geburt, cit., pp. 269-88.
98. Cf. P. Scaramella, I santolilli. Culti delllinfanzia e santita infantile a Napoli
alla fine del xvn secolo, Roma, 1997.
99. [Monaldo Leopardi], Considerazioni sullo stato dei bambini morti senza
Battesimo, Lugano, 1839, pp. 7-8.
1oo. O documento é citado por I. Fosi, All'ombra dei Barberini. Fedelta e servi-
zio nella Roma harocca, Roma, 1997, p. 38, nota.
101. Racconti esemplari dipredicatori delDuee Trecento, ed. G.Varanini e G. Baldas-
sari, 3 vols., to. 11: Esempi di Giordano da Pisa, Lo Specchio di vera penitenza di Iacopo
Passavanti, Roma, 1993, pp. 347-48. Cf. Giordano da Pisa, Quaresimale ƒiorentino
1305-1306, edição crítica a cargo de C. Delcorno, Florença, 1974, p. 3 16. A opinião de
São Tomás deAquino fora cuidadosamente favorável à cesariana de uma mulher mor-
ta (“Non sunt facienda mala ut eveniant bona... Si tamen mater mortua fuerit vivente
prole in utero, debet aperiri, ut puer baptizetur”; Summa Theol. III, q. 68, art. xi).
102. Uma reconstituição pontual da tradição teológica e acanonística a respei-
to encontra-se na obra de N. M. Filippini, op. cit., pp. 36-43, a ser acrescentada às
fontes hagiográficas indicadas por P. A. Sigal, op. cit.
103. Em 1794 um pai florentino foi tomado pela dúvida de que o filho, então
com 29 anos, não tivesse sido apropriadamente batizado, pois a parteira, no
momento do nascimento, temendo que “pudesse morrer a criança sem batis-
mo”, batizara-o “abrindo com uma mão os lábios interiores da vagina, ajudada
nisto pelo pai, e com a outra derramando a água sobre os cabelos” e “pela situa-
ção perpendicular em que se encontrava a parturiente sobre a cadeira, jogando
a água com um copo não podia penetrar a pele da cabeça devido à quantidade
dos cabelos, mas escorrer escapulindo dos mesmos, como observou com os pró-
prios olhos o pai da criança, o qual, todavia, ainda não conhecia as supracitadas
doutrinas”. Fora, de fato, a posterior leitura de um tratado de casos de consciên-
cia que fizera nascer a dúvida paterna (ASO, St. st. M. 6-p, Dubia de Sacramentis,
fasc. 8). Quanto ao caso do recém-nascido envolvido na placenta, ver adiante, p.
469, nota 114.

455
104. I. Ph. Ingrassia, op. cit., p. 302.
1o5. Foi assinalado pelo amigo Alberto Malvolti, extraído das Memorie di Casa
Galleni, arquivo particular Galleni, Fucecchio. Ei-lo: “No dia 31 de dezembro des-
te ano (1620) morreu Ortenzia, irmã de Valério, mulher de Berto Guidotti, grá-
vida de oito meses... Não deixando ela filhos em virtude do estatuto de Focecchio,
deveria restituir o dote ao dito Valerio seu irmão, portanto, após a sua morte, o
marido a fez abrir para ver se conseguiria tirar o feto ainda vivo... e tendo o marido
dela para convalidar a sua razão mandou batizá-lo assim que saiu do útero, ainda
que morto, como foi dito, e como por verdade recusou o pároco a sepultá-lo em
terreno consagrado. Sobre um tal fato insurgiu-se uma cruenta briga...”.
106. A obra de F. E. Cangiamila, Embriologia sacra, ovvero dell”ufiizio dei sacer-
do ti, medici e superiori, circa l'eterna salute dei bambini racchiusi nell'u tero, Paler-
mo, 1745, alcançou um notável sucesso: após a primeira edição em Palermo, foi
reimpressa diversas vezes e traduzida em várias línguas, com importantes de-
monstrações de grande consenso. Sobre este texto concentraram-se as pesquisas
de N. M. Filippini, de La nascita straordinaria, cit., pp. 50 e ss. (na p. 63 uma lista
das edições), ao recente ensaio “Die erste Geburt. Eine neue Vorstellung vom Fötus
'und vom Mutterleib (Italien, 18. Iahrundert)”, Geschichte des Ungeborenen, cit.,
pp. 99- 1 27. A edição de 1751 da Embriologia sacra traz uma dedicatória “aos San-
tíssimos Anjos da guarda”, onde se coloca muito seriamente o problema se um
anjo da guarda é escolhido “quando (o ser humano) nasce no útero materno com
a infusão da alma ou quando começa a respirar estes ares”. Andrea da Pozzo nos
seus Sermoni, lã ed., Nápoles, 1692, não tinha dúvida a respeito: o Anjo da guarda
“nos protege e guia por aquelas vias subterrâneas do ventre materno”; e apresen-
tou como prova o milagre do filho da Infanta Uraca extraído vivo do ventre aber-
to da mãe morta e assim escapando do Limbo (o texto é reapresentado agora como
documento de “uma história removida” de C. Ossola, Gli angeli custodi. Storie e
figure dell” “amico vero”, Turim, 2004, pp. 319 e 280).
107. I. Gélis, op. cit., pp. 495-96.
108. Como demonstrou um trabalho ainda inédito de E. Betta (Animare la
vita. Disciplina della nascita tra medicina e morale nell'Ottocento; agradeço o au-
tor por ter me permitido sua leitura), as ideias de Cangiamila e o próprio concei-
to de “embriologia sacra” encontram crédito no século xix entre teólogos e médi-
cos. Foi assim que se chegou à excomunhão de quem provocava o aborto de um
feto, formado ou não (constituição “Apostolicae Sedis” emanada por Pio ix em
1869), renovando a condenação indiscriminada contida na Bula “Effraenatam”
de Sisto v.

456
6. A ALMA [pp. 250-324]

1. “Anima non est eadem em umero in omnibus hominibus, quia omnium


homiem um unicus non est intellectus ex Arist [...] , sed em umeratur ad homiem
um em umerationem [.. .] eandemque retinet individuationem post sui separatio-
nem a corpore, cum adhuc retineat tale esse terminatum acquisitum in corpore”
(cf. G.Vernazza,“La crisi barocca nei programmi didattici dello studio bolognese”,
Studi e memorie per la storia dell'Università di Bologna, nova série, vol. 11, Bolonha,
1961, pp. 95-177; ver pp. 128-9).
2. Sobre o recurso à teoria da “perfeição do universo” para a qual tudo que tem
um início deve também ter um fim, cf. T. Gregory “Theophrastus redivivus” Eru-
dizione e ateísmo nel Seicen to, Nápoles, 1979, p. 144. Um quadro da difusão da ideia
da mortalidade da alma na história da cultura do final do século xvn foi desenhado
por G. Ricuperati, Il problema della corporeità deIl'anima dai libertini ai deisti, in Il
libertinismo in Europa, ed. S. Bertelli, Nápoles, 1980, pp. 369-415. Sobre a ideia da
cadeia dos seres, cf. G. Gusdorf, Dieu, la nature, Phomme au siècle des Lumières,
Paris, 1972 (ver em esp. p. 283, sobre a noção de “histoire naturelle”, in Leibniz, op.
cit. ). Quanto às tendências críticas mais inovadoras na cultura italiana e europeia,
propõe um quadro analítico I. I. Israel, Radical Enlightenmen t. Philosophy and the
Making ofModernity 1650-1750, Oxford, 2001.
3. Cf. I.-P.Vernant, Figura tion de l'invisible etcatégoriepsychologique du double:
le colossos, in id., Mythe etpensée chez les Grecs. Êtudes de psycologie historique, Pa-
ris, 1965 [trad. it. Figurazione dell'invisibile e categoria psicológica del 'doppio': il
'kolossôsfl in Mito e pensiero presso i Greci. Studi di psicologia storica, Turim, 1970,
pp. 343-58].
4. “Simulacra... quae, quasi membranae summo de corpore rerum I dereptae,
volitant ultroque citroque per auras” (4.35-36).
5. Segundo I. Amat (Songes et visions. L'au-dela dans la littéra ture latine tardive,
Êtudes augustiniennes, Paris, 1985, cap. 1: Oniromancie et révélation à la fin du 1°
siécle: d”Apulée a Tertullien, pp. 25-50). O ponto de vista de Tertuliano é decidida-
mente estoico e sua fonte principal é o De Divinatione de Cícero.
6. Pagans and Christians in an Age ofAnxiety, Cambridge, 1965.
7. Cf. P. Brown, op. cit. [trad. it. cit] .
8. Cf. S. Nadler, Spinoza's Heresy. Immortality and the Jewish Mind, Oxford,
2002, p. 44 [trad. it. L'eresia di Spinosa. Uimmortalita elo spirito ebraico, Turim,
2005, p. 59] . Mas todo o livro é de fundamental importância.
9. A hipótese está em id., ibid., p. 45 [trad. it. cit., p. 59].
1o. Cf. Ió, 7,21; Ecclesiasticus 44,14: “Corpora ipsorum in pace sepulta sunt I

457 '
et nomen eorum vivit in generationem et generationem”. Sobre a tradição cristã
do “Seio de Abraão”, cf. I. Baschet, Le sein du père, cit.
11. Ver acima, p. 175.
12. Cf. sobre isto a clara sistematização de Cecilia Asso em sua edição de Eras-
mo, Apologia de loco “Om nes quidem resurgemus'Í in “Archivio italiano per la storia
della pietà”, xv (2002), pp. 165-201.
13. “Ego non pereo; et si de saeculo exiero, vivit anima cum Christo Domino
meo” (Passio S. Maximiliani, editado em apêndice em P. Siniscalco, Massimiliano:
un obiettore di coscienza del Tardo Impero. Studi sulla “Passio S. Maximiliani”, Tu-
rim, 1974, p. 1960).
14. Cf. M. Lauwers, La mémoire des ancêtres. Le souci des morts. Morts, rites et
société au Moyen Âge, Paris, 1997.
15. Operetta nova spirituale per el venerabile et ca tholico doctore Maestro Giero-
nimo da Bologna ispirato da Dio et venuto alla sancta fede catholica (col. stampato
in Venetia adí xxn de marzo nel 1515, c. Ir). O texto apresenta-se como obra de um
hebreu convertido; a cópia de referência faz parte de uma coletânea de opúsculos
apologéticos do início do século xvi, dirigidos aos hebreus (Biblioteca Apostólica
Vaticana, Racc. 1, v. 1763, c. b iv).
16. A Bula de 19 de dezembro de 1513 dispunha que os filósofos, tratando “de
animae mortalitate aut unitate et mundi aeternitate... teneantur eisdem (audito-
ribus suis) veritatem religionis christianae omni conatu manifestam facere” (Isti-
tutto per le Scienze Religiose (org.), Conciliorum Oecumenicorum decreta, cit., pp.
605-6). F. Gilbert, Cristianesimo, umanesimo e la bolla Apostolici Regiminis, in “Ri-
vista storica italiana”, vol. Lxxlv, 1967, pp. 976-90 (ver p. 978), notou que a questão
diz respeito à relação entre cristianismo, filosofia e poesia: “não era permitido aos
padres dedicarem-se ao estudo da filosofia e da poesia se contemporaneamente
não estudassem teologia e direito canônico”. Era, portanto, das “tendências laici-
zantes” dos estudos humanistas que nascia a preocupação.
17. Mesclar filosofia e teologia é definido por Pomponazzi “fratizare, idest mis-
cere diversa brodia” (P. Nardi, Studi su Pietro Pomponazzi, Florença, 1965, p. 27).
18. Folha W. 19115r, citada no agudo ensaio de D. Laurenza, Leonardo nella
Roma di Leonex (c. 1513-16). Gli studi anatomici, la vita, l 'arte, xml Lettura vincia-
na, Florença, 2004, p. 18. A alusão a quem lhe tinha “impedido a anatomia do [col]
papa” é tratada pelo esboço de carta a Giuliano de' Medici de 1515 (Codice Atlan-
tico, f. 500r) e se refere, segundo Laurenza, a Giovanni degli Specchi, concorrente
ciumento nos [degli] anos romanos.
19. I.-P. Vernant, “Psychè”: simulacro del corpo o immagine del divino? in La
maschera, il doppio e il ritratto, ed. M. Bettini, Roma-Bari, 1991, pp. 3-1 1; ver p. 7.
20. “Homo est anima rationalis, mentis particeps, corpore utens” (Marsilius

458
,É Ficinus, Argumentum in Alcibiadem primum, in Plato ex re. Ficini (Hain, 13063),
i
z
1
F f. 10v.
if 21. “Non animal, sed anima” (Beato Paolo Giustiniani, Tra ttati, lettere efram-
menti, ed. E. Massa, II: Iprimi trattati dell 'amor di Dio, Roma, 1974, p. 188).
22. Editadas na coletânea da Basileia (Marsili Ficini Florentini, Opera, ex Offi-
cina Henricpetrina, Basileia, 1576, pp. 473-93), foram objeto de muitos estudos;
ver o ensaio dedicado a elas por C. Vasoli, Le Praedicationes di Marsilio Ficino, in
Letteratura in forma di sermone. I rapporti tra predicazione e letteratura nei secoli
Xin-xvi, cit., pp. 9-27.
23. “Cognosce te ipsum, diviem um genus mortali veste indutum, nuda, quaeso,
te ipsum, segrega quantum potes, potes autem quantum conaris, segrega, inquam,
a corpore animam, a sensuum affectibus rationem, videbis protinus purum, se-
gregatis terrae sordibus, aurum... vereberis tunc, crede mihi, te ipsum, tanquam
divini Solis radium sempiterem um...” (Marsili Ficini Florentini Opera, cit., pp.
659-60).
24. O texto com a versão em língua vulgar feita pelo próprio Ficino está reu-
nido in Prosatori latini del Quattrocento, ed. E. Garin, Milão-Nápoles, s.d., pp.
932-69.
25. Carta de 19 de agosto de 1479, ibid., p. 915.
26. Entre os defensores do decreto de 1513 destacam-se os nomes do cardeal
Egidio de Viterbo, hostil à Escolástica e atraído por Platão e pelas tendências mís-
ticas do hebraísmo, e de Gian Francesco Pico della Mirandola, que estava presen-
te na oitava sessão do Lateranense e assistiu à proclamação do decreto. Cf. G. di
Napoli, L”im mortalita dell*anima nel Rinascimen to, Turim, 1963; e F. Gilbert, Cris-
tianesimo umanesimo ela bolla Apostolici Regiminis, cit.
27. “Nullus de caetero ludi magister audeat in scolis suis exponere adolescen-
tibus poemata, aut quaecumque alia opera lasciva et impia: quale est Lucretii poe-
ma” (I. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima collectio, cit., vol.xxx11,
col. 270). Uma definição que opunha “o herege Lucrécio ao católico Virgílio” é
atribuída ao dominicano Leandro Alberti em Giovanni Philotheo Achillini, An-
notationi della volgar língua, porV. Bonardo e G.A. de Carpi, Bolonha, 1536, c. 19r.
Mas, sobre o extraordinário e até agora subestimado destino de Lucrécio na cul-
tura do século xvi, ver V. Prosperi, “Di soavi licor gli orli del vaso” La fortuna di
Lucrezio dall”Umanesimo alla Controriforma, Turim, 2004.
28. Libro de natura de amore, ed. L. Ricci, Roma, 1999, p. 290r; retomando a
indicação de V. Prosperi, “Di soavi licor gli orli del vaso”, cit., p. 166.
¡.
29. Petrus Pomponatius, Tractatus de immortalitate animae, Bolonha, 1516:
cito o texto latino da edição com trad. alemã à frente organizada por Burkhard
Mojsisch, Hamburgo, 1990, p. 198. Para a versão italiana utilizo a organizada e
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com introdução de V. Perrone Compagni (Pietro Pomponazzi, Tra tta to
sulfimmortalità dell'anima, Florença, 1999, p. 100).
30. Em sua edição crítica da Apologia de Erasmo, Cecilia Asso notou escolhas
filologicamente discutíveis e pouca clareza, junto a uma inegável simpatia pelas
teses de Orígines (Erasmus 'Apologia de eo loco 'Omnes quidem resurgemus', cit.).
31. Cf. o texto de Lelio Sozzini, De resurrectione, in id., Opere, ed. crítica org.
por A. Rotondo, Florença, 1986, pp. 77 ss. Sobre 0 contexto e a inspiração do texto
ver a exaustiva nota crítica, pp. 314-40.
32. Assim foi definida por um grupo de anabatistas da Valtellina segundo 0
compêndio exposto por Agostino Mainardi em 1547 (cf. ibid., p. 322 nota).
33. Cf. Pn 11 Commentarii rerum memorabilium que temporibus suis conti-
gerunt, edidit A. van Heck, Cidade do Vaticano, 1984, vol. 11, pp. 645-73. Para
repercussão que teve a discussão vale o testemunho de Leandro Alberti, Des-
crittione di tu tta Italia, Bolonha, 1550; cito da ed. Veneza, 1568, Bergamo,
2003, c. 140r).
34. “... Quum dicitur Christum in coelo esse, non sic accipere debemus quasi
resideat inter sphaeras, ut stellas em umeret” (Commentarius in epistulam ad
Ephesios, de 1548, Opera Calvini, LI.195). “... Temerarium ac stultum foret, ultra
coelos conscendere, et stationem in hac vel illa regione, aut sedile, aut ambulatio-
nem assignare Christo” (Commentarius in epistulam ad Philippenses, ibid., 56;
retomo a indicação ao estudo de F. D. Tosto, Calvino punto di convergenza. Simbo-
lismo e presenza reale nella santa cena, Nápoles, 2003, p. 126; o livro reproduz no
apêndice o Consensus Tigurinus, de 1549).
35. “Ces paroles ne peuvent nullement être entendues du corps: auquel, com-
bien qu”une oeuvre admirable de Dieu apparaisse par dessus tous autres corps
créés, toutefois on n'y voit point reluire aucune image de Dieu” (Opera Calvini,
V. 1 80. A passagem é de 1534).
36. “Immortalem anima esse non dubitamus, quae nihil cum corporali actio-
ne mistum habere diiudicatur” (cf. Alessandro Benedetti, Anatomice sive historia
corporis humani, Veneza, 1502, org. G. Ferrari, Florença, 1998, pp. 235-7; a relação
com o decreto paduano é ressaltada por G. Ferrari, p. 28, nota 73). Quanto a Plínio,
como se mostra no livro de Ferrari, Benedetti organizou uma edição da Naturalis
historia (Veneza, 1507). Sobre a questão da imortalidade da alma, é também útil
G. di Napoli, Uimmortalità dell'anima nel Rinascimento, cit.
37. Após ter exposto a opinião de Galeno para 0 qual 0 cérebro é a sede da alma
racional, o fígado da concupiscente e o coração da irascível,Vesálio conclui: “Por-
ro ne hic forsitan... nescio in quem haeresis censorem impingam, ab hac de animae
speciebus earundemque sedibus disceptatione prorsus abstinebo, quum tot ho-
die, ac potissimum apud nostrates sanctissimae verissimaeque religionis censores

460
reperias qui si aliquem aut de Platonis, aut Aristotelis, suorumve interpretum, aut
Galeni de anima sententiis... mussitare audiverunt, ilico illum de fide ambigere, ac
nescio quid de animarum immortalitate haesitare astruunt, non perpendentes
necesse esse medicis (si modo non temere ad artem accedere, neque inopportune
aegrotanti membro rimedia applicare voluerint) de iis quae nos gubernant facul-
tatibus considerare... et... quae animae substantia essentiave sit” (Andreas Vessa-
lius, De umani corporisfabrica libri septem, Turim-Paris, 2001, rest. anastática da
ed. Oporino, Basileia, 1543, c. 594).
38. Sobre a importância destas anotações de Leonardo (W. 191 l5r), dirigir-se
ao ensaio de D. Laurenza, Leonardo nella Roma di Leone X, cit., pp. 19-20, onde
cita-se a passagem de Vasari acima referida, depois prudentemente suprimida na
edição de 1568.
39. No Libellus de origine animae, Roma, 1521, onde D. Laurenza, Leonardo
nella Roma di Leone X, cit., p. 17, registra justamente uma preocupação em evitar
acusações de ambiguidade sobre a questão da imortalidade da alma, temores jus-
tificados pelo fato de que Ponzetti tratara 0 problema da natureza da alma em sua
Tertia pars philosophiae naturalis de 1515. É emblemático do empenho apologéti-
co ao qual se sentiram impelidos os literatos italianos um texto já indicado por
Benedetoo Croce e presente em sua biblioteca, o Breve discorso di Giovan Frances-
co Brancaleone de la immortalità de l'anima con una stupenda visione sopra di cio a
lui apparsa, Mattia Cancer, Nápoles, 1542, que recorre ao argumento antigo e
sempre eficaz do testemunho dos mortos. Brancaleone narra de um amigo da
Romanha que, mantendo o empenho assumido quando vivo, depois de morto
apareceu-lhe declarando: “Mas sim que [a alma] é imortal”.
40. E. Canevazzi, Vocabolario di agricoltura, Bolonha, 1871-92,1, p. 251.
41. “Dogma autem, quo ex eiusmodi ossiculo hominem, cuius nunc immensa
narramus fabricam, propagandum contendunt, theologis disceptandum relin-
quemus, qui sibi solis liberam de resurrectione animarumque immortalitate al-
tercationem et sententiam vendicant...” (Vesalius, De umani corporis fabrica libri
septem, cit., c. 126). Do processo veneziano por infanticídio por bruxaria não en-
contrei outras informações.
42. Na mulher, Colombo detectara veias “insignes... et nigerrimae” (Realdi
Columbi, op. cit., p. 318).
43. Carta de T. Tasso a Giacomo Boncompagni de 17 de maio de 1580 (Le let-
tere di Torquato Tasso, ed. Cesare Guasti, Florença, 1852-55,11, 133, p. 83; a questão
da religião de Tasso está no centro de um agudo ensaio de A. Corsaro, Percorsi
dell'incredulita Religione, amore, natura nelprimo Tasso, Roma, 2003).
44. É graças às pesquisas de Germana Ernst que podemos ler, em uma edição
cuidadosa, a redação original em língua vulgar de 1607 do L'Ateismo trionfato

461
overo riconoscimentofilosoƒico della religione universale contra Pantichristianesmo
macchiavellesco, Pisa, 2004 (além da ampla “1ntrodução”, ver p. 74 e passim).
45. Sobre o termo “alma” e sobre a linguagem de Giordano Bruno, cf. M. Cili-
berto, Lessico di Giordano Bruno, to. 1, Roma, 1979, pp. 47-55 e as observações do
curador (ver em esp. a relativa ao termo “espírito”, p. XLI). No decorrer do processo,
Giordano Bruno, interrogado sobre suas opiniões em relação à“criação das almas
e a geração dos homens”, alude à teoria da geração espontânea como “opinião de
Lucrécio”; ver L. Firpo, Ilprocesso di Giodano Bruno, ed. D. Quaglioni, Roma, 1998,
p.187. -
46. Cf. Iulii Caesaris Arantii Bononiensis De humano foetu liber, apud Iaco-
bum Brechtaem um, Veneza 1587(3), p. 47. Sobre ele, ver o verbete de F. Mondella,
in Dizionario Biográfico degli Italiani, vol. 111, Roma, 1961, pp. 720-1.
47. “Mala nunquam facienda sint, ut bona eveniant” (Arantii De humano foe-
tu liber, cit., pp. 106-7).
48. Matar a parturiente “nullo modo licet, non enim sunt facienda mala ut
eveniant bona” (Summa Sacramentorum Ecclesiae ex doctrina R. R Fr. Francisci a
Vitoria ordinis praedicatorurn, apud Io. Baptistam Somaschum, Veneza, 1574, c.
12v). Deve-se notar que o manual dava uma resposta muito clara à questão do
destino eterno das almas não batizadas: “Nullo modo est dubitandum quod pue-
ri si non baptizantur, damnantur” (ibid., c. 17v).
49. Casi di conscienza, pertinenti a mediciprincipalmente, et anco a infermi, in-
fermieri, e sani, descritti per Battista Codronco dell'arti, e medicina dottore (escritos
por convite do vigário de Imola monsenhor Fabio Tempestivo e editados pelo ir-
mão dom Tibério Codronchi, sacerdote em Imola, no interior de suas Viaggi spiri-
tuali dell 'huomo christiano al cielo. Opera co°l divino aiuto composta e raccolta da
gravi, pii et catholici autori, por Gio. Battista Somasco, Veneza, 1589, pp. 395-515).
50. Cf. E. Nardi, Procurato aborto nel mondo greco-romano, Milão, 1971; M.
Riddle, Contraception and Abortion from the Ancient World to the Renaissance,
Cambridge (Mass.), 1992. Mas sobre 0 dilema do médico antigo ver K. A. Kappa-
ris, Abortion in the Ancient World, cit., cap. 111, The Doctor's Dilemma, pp. 53-89. A
atitude das autoridades eclesiásticas quanto à questão é dedicado o livro I. T. Noo-
nan (org.) The Morality ofAbortion. Legal and Historical Perspective, Cambridge
(Mass.), 1970 (e em esp. o ensaio de id., An almost absolute value in History, pp.
1-59. A análise da tradição doutrinal do catolicismo sobre o aborto foi realizada
por id., Contraception. A History ofhis treatment by the Catholic Theologians and
Canonists, Cambridge (Mass.), 1966. Quanto à discussão que se desenvolveu so-
bre o argumento do século xni em diante ver E. Betta, Animare la vita, cit.
51. Ver nota 15.
52. Um sacerdote polonês, na petição apresentada em 10 de setembro de 1461,

462
especificou que o aborto de sua criada Elena por ele involuntariamente praticado
havia sido em um “fetum iam vivificatum” (Repertorium Poenitentiariae Germa-
nicum, iv: Verzeichnis der in den Supplikenregistern der Pönitentiarie Pius' ii.
vorkommenden Personen, Kirchen und Orte des Deutschen Reiches 1458-1464, ed.
L. Schmugge, em colaboração com P. Hersperger e B. Wiggenhauser, Tübingen,
1996, n. 1803, pp. 146-7). Deve-se notar que a criada fora aprisionada pelo aborto
provocado pela briga com o padre.
53. Cf. M. Conetti, Quando inizia la vita. Diritto, teologia efilosofia naturale in
una “quaestio” di Alberico da Rosciate in tema di aborto, in Parva Naturalia. Saperi
medievali, natura e vita. Atti dell'xi convegno della societá italiana per lo studio del
pensiero medievale, ed. C. Crisciani, R. Lambertini e R. Martorelli Vico, Pisa-Ro-
ma, 2004, pp. 397-420.
54. “Ultra peccatum mortale, et irregularitatem quam incurrit, tenetur de ho-
micídio, quia masculus in hembryone quadaginta dierum curriculo, faemina au-
tem octoginta perficitur” (Vicentii Carrarii Ravennatis I. C. De medico et illius erga
aegros officio opusculum [] omnibus praecipue in foro versantibus utile et perne-
cessariu m, apud Andream Miseroccum, Ravenna, 1581, p. 199).
55. Cf. Decreta provincialis Synodi Ravennatis [] Iulio Feltrio de Ruvere, apud
haeredes Antonii Bladii, Roma, 1569, cc. 33r, 36r (sobre as épocas obrigatórias do
batismo dos recém-nascidos e sobre o dever de cuidar somente dos doentes que
estivessem em ordem com os sacramentos católicos).
56. Casi di conscienza, cit., pp. 464-5.
57. A Bula foi publicada em 16 de novembro. Cf. Bullarium sive nova collectio
plurimarum constitutionum apostolicarum diversorum romanorum pontiƒicum a
Pio Quarto usque ad Innocentium Nonum, to. ii, Roma, 1617, pp. 643-44.
58. Vita del card. GiulioAntonio Santori detto il card. di Santa Severina compos-
ta e scritta da lui medesimo, ed. G. Cugnoni, “Archivio della R. Società Romana di
Storia Pátria”, vol. xiii, 1890, pp. 15 1-205; ver p. 174. Sobre Giulio Antonio Santori,
cf. S. Ricci, Il sommo inquisitore. Giulio Antonio Santori tra autobiografia e storia
(1532-1602), Roma, 2002.
59. Carta de A. Soto ao card. Agostino Valier de 25 de agosto de 1601, cit. por
G. Fragnito, “In questo vasto mare de libriprohibiti et sospesi tra tanti scogli di varie-
ta et controversie” La censura ecclesiastica tra la fine del Cinquecento e i primi del
Seicento, in C. Stango (org.), Censura ecclesiastica e cultura politica in Italia tra
Cinquecento e Seicento, Florença, 2001, p. 26.
6o. Constituição Sedis Apostolicae, 1591 (cf. P. Sardi, op. cit., pp. 180 ss., a que
remete também E. Betta, Animare la vita, cit., que indica o menos informado I. T.
Noonan, An almost absolute value in History, cit.).
61. A excomunhão sem distinção para todos os “procurantes abortum effectu

463
sequuto” foi retomada por Pio ix em 12 de outubro de 1869, Apostolicae Sedis, e
assim permaneceu no código de direito canônico de 1917, can. 2350 (cf. E. Betta,
Animare la vita, cit.).
62. Assim uma instrução do Santo Ofício romano de 18 de junho 1591 ao ar-
cebispo de Trani, citada por V. Lavenia, op. cit.
63. Casus conscientiae Bononiensis Diocesis Prebyteris olim de mandato emi-
nentiss. et reverendiss. Domini Card. Prosperi Lambertini mox Benedicti xiv Ponti-
ƒicis Maximi... propositi, to. i ab anno 1732 ad annum 1753, Bolonha, 1767, pp.
62-63, 142-43.
64. “Ex uma parte non videtur esse anima rationalis in utero, quia nullus ibi
eius usus esse potest. Ex altera parte cum motrix facultas sit veluti gérmen animae
rationalis, videtur consentaneum cum hac reperiri facultatem rationalem. Ad haec
ut dicebat Tertullianus, procurare ne foetus nascatur non solum habetur pro ho-
micidio,verum etiam pro homicidii properatione. Accedit quod cum anima sit una
et quemadmodum scribit Aristoteles sit actus corporis physici organici, creden-
dum est ipsam ingredi corpus statim ac genita sunt organa” (Girolamo Mercuriale
da Forlí, De Hominis generatione, tratado reunido com as Pisanae preaelectiones...
non minus utiles philosophis et medicis quam iucundae, apud Iuntas, Veneza, 1597,
cap. xxvi, p. 33: “Utrum anima rationalis acquiratur ab infante in utero, an extra”,
id., ibid., p. 21, a alusão a Butzer e aos outros “hereges” negadores da concepção
virginal de Maria).A mesma prudência demonstrou o português Rodrigo de Cas-
tro que, enfrentando a questão “quo tempore rationalis anima corpori infundatur”
no tratado De universa muliebrium morborum medicina, Hamburgo, 1628, iii ed.,
pp. 164-67, conclui: “Theologis discutienda relinquamus”.
65. De christiana ac tu ta medendi ratione libri duo varia doctrina referti... Opus
piis medicis praecipue itemque aegrotis, et ministris, atque etiam sacerdotibus ad
conƒitendum admissis utilissimum, auctore Baptista Codronchio philosopho, ac me-
dico Imolensi, apud Benedictum Mammarellum, Ferrara, 1591, pp. 69-71.
66. Documentos das confissões de abortos provocados foram recentemente
apontados entre as cartas da Congregação dos bispos e regulares, de V. Lavenia,
op. cit.
67. Segundo M. Azoulai, Les péchés du Nouveau Monde. Les manuels pour la
confession des Indiens xi/1°'-xvif siècle, Paris, 1993, pp. 1 15-16, a campanha eclesiás-
tica não eliminou uma prática do aborto e do infanticídio ainda hoje bastante
difundida.
68. Cf. L. A. Kennedy, “Cesare Cremonini and the Immortality of the Human
Soul”, Vivarium, xviii (1980), pp. 143-58 (e ver o verbete de C. B. Schmitt em Di-
zionario Biograƒico degli Italiani, Roma, vol. xxx, Roma, 1984, pp. 618-22).
69. Cf. F. Liceti, De ortu animae humanae libri tres, in aedibus Iosephi Pavonii,

464
Gênova, 1602, p. 338 (para a criação “ex nihilo” da alma racional no quadragésimo
dia desde a concepção, reafirmada no tratado De his qui diu vivunt sine alimento
libri quattuor, apud Petrum Bertellum, Pádua, 1612, to. ii, liv. iv, p. 132); sobre a
questão do êxtase, Liceti deteve-se no texto De rationalis animae varia propensione
ad corpus, Pádua, 1634, p. 7.
7o. Cf. F. Pona, La maschera iatro-politica, overo cervello, etcuoreprencipi riva-
li aspiranti alla monarchia del microcosmo. Giuoco-serio di Eureta Misoscolo, por
Marco Gianammi, Veneza, 1630.
71. Cf. o verbete de A. Chollet, “Animation”, in Dictionnaire de Théologie Ca-
tholique, 1/2, cols 1310-12. Indicações úteis também em I. T. Noonan Ir., Contra-
ception et mariage. Evolution ou contradiction dans la pensée chrétienne, trad. fr.,
Paris, 1969. Para uma história do perfil teológico da questão reconstituída de um
ponto de vista tomista, cf. A. Lanza, La questione del momento in cui l'anima razio-
nale è infusa nel corpo, Roma, 1939.
72. B. Duden, Der Frauenleib als Oƒfentlicher Ort, cit. [trad it. cit., p. 31], ressal-
ta a importância da “experiência vivida do corpo” contra a abstração teológica de
quem convida “a ver como pessoa na fotografia do zigote um “ser humano”.
73. “Est dicendum quod masculus in quadraginta diebus formatur et femina
in octoginta, ut dicunt physici... Et tunc creatur a Deo anima de novo et infunditur
illi corpori formato” (Les sermons et la visitepastorale de Federico Visconti archevê-
que de Pise (1253-1277), cit., pp. 510-11).
74. O texto de Egidio Romano, Deformatione corporis humani in utero (escri-
to entre 1285 e 1290), teve inúmeras edições entre os séculos xvi e xviii. Cf. o ver-
bete a cargo de F. Del Punta, S. Donati e C. Luna, in Dizionario Biograƒico degli
Italiani, vol. xiii, Roma, 1993, pp. 3 19-41; é um estudo específico o de R. Martorelli
Vico, “Il De formatione corporis humani in utero di Egidio Romano. Indagine in-
torno alla metodologia scientifica”, Medioevo xiv (1988), pp. 291-314. Também
para o célebre médico florentino Dino del Garbo, outra autoridade medieval de
grande êxito no assunto, é a alma do pai que através do esperma age sobre a for-
mação do embrião (cf. Dinus de Florentia, Supra librum Ypocratis de naturafetus,
por B. Locatellum,Veneza, 1502).
75. “Sed haec minime huic conveniunt negotio”, Amati medici Lusitani Praes-
tantissimi Curationum medicinalium tomus secundus continens centurias tres,
quintam videlicet, sextam ac septimam, apud Vincentium Valgrisium, Veneza,
1546, pp. 300-1 (0 parecer é o número 96 da sexta centúria e foi escrito para Selim,
filho de Solimão, sultão dos turcos). Agradeço o doutor Marco Cavarzere pelo
cotejo da citação na cópia da Biblioteca Nazionale centrale de Florença (cols.
Magl. 4.4.43). A prudência de Amato Lusitano valeu-lhe uma reimpressão vene-
ziana não censurada em 1653, por Francesco Storti, pp. 268-70.

465
76. Os antecedentes da descoberta do óvulo por Karl Ernst von Baer em 1827 são
reconstituídos por M. Cline Horowitz, The “Science” ofEmbriology. Before the Dis-
covery ofthe Ovum, in Connecting Spheres. Women in the Western World, 1500 to the
Present, org. M. I. Boxer e H. H. Quataert, Nova York-Oxford, 1987, pp. 86-94.
77. B. Duden, Der Frauenleib als Offentlicher Ort, cit. [trad. it. cit., p. 201,
aponta na possibilidade científica de “ver” o embrião a causa da “instrução” de
1987 da Congregação para a Doutrina da fé sobre 0 “respeito pela vida humana
nascente”.
78. É uma ligação cuja importância foi vigorosamente sustentada do lado da
ciência na obra magistral de A. Funkenstein, Theology and the Scien tiƒic Imagina-
tion from the Middle Ages to the Seventeenth Century, Princeton, 1986 [trad. it.
Teologia e immaginazione scientiƒica dal Medioevo al Seicento, Turim, 1966] .
79. Cf. H. W. Roodenburg, op. cit., pp. 701-16.
80. De viribus imaginationis tractatus authore Thoma Fieno Antverpiano...,
editio postrema, ex officina Elseviriana, Leyden, 1635, p. 375. O tratado fora pu-
blicado em primeira edíção em Leuven em 1608 com dedicatória ao arcebispo de
Colônia. Foi reimpresso em 1658 em Amsterdam, apud Ioannem Ianssonium.
81. Nicolas de Malebranche, Traité de la nature et de la grace, in Oeuvres com-
plètes, to. v, ed. G. Dreyfus, Paris, 1976, pp. 73-74 (a primeira edição foi em Ams-
terdam em 1680). O recente livro de U. Curi, Laforza dello sguardo, Turim, 2004,
não traz indicações úteis sobre a questão.
82. Que os planetas podem ser mais de sete -- escreveu Fyens _ demons-
trou-o no nosso século “Galilaeus Galilaeius, qui beneficio dioptrae Batavicae,
adhuc tres parvos, ac novos Planetas adinvenit” (De cometa anni 1618 dissertatio-
nes Thomae Fieni in Academia Lovaniensi medicinae et Liberti Fromondi philoso-
phiae professorum..., apud Gulielmum a Tongris sub signo Gryphi, Antuérpia,
1619, p. 40.
83. Thomae Fieni, Disputatio an coelum moveatur et terra quiescat, ibid., pp.
141-53.
84. De formatrice foetus liber, in quo ostenditur animam rationalem infundi
tertia die, Authore Thoma Fieno Belgi et Bavariae ducum medico cubiculario, et
in Academia Lovaniensi professore primario, apud Gulielmum a Tongris sub sig-
no Gryphi, Antuérpia, 1620.
85. A dedicatória está assim datada: Leuven, 15 de janeiro de 1620.
86. Id., ibid., p. 62.
87. Iean Fernel (Fernelius), Universa medicina, apud Claudium Morillon,
Lyon, 1615,11: De abditis rerum causis libri duo, p. 52.
88. Cf. Fortunius Liceti, De animarum coextensione corpori libri duo, apud
Petrum Bertellium, Pádua, 1616, p. 55. Segundo Liceti, que seguia a opinião pre-

466
dominante nesta época, as almas vegetativa e sensitiva derivam dos pais e a racio-
nal era acrescentada por Deus.
89. Deformatricefoetus, cit., pp. 161-99.
90. Id., ibid., p. 157.
91. A objeção dos adversários (“... Daretur homo fluidus et liquidus; homo, in
quo neque esset cor, neque cerebrum, neque hepar, neque stomachus, neque ma-
nus, neque pedes, neque ossa, neque caro... hoc videtur ridiculum et aenigmati-
cum”: Deformatricefoetus, cit., p. 141) Fyens refuta: “Dari autem talem hominem
qui adhuc mollis sit et fluidus, nec brachia, nec crura, nec sthomachum, nec hepar
habeat... nihil est absurdi...” (id., ibid., p. 157).
92. Id., ibid.
93. E. Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Li-
teratur, Berna, 1946 [trad. it. Mimesis. Il realismo nella letteratura occidentale, Tu-
rim, 1956, vol.11, p. 17] [Mimesis -A representação da realidade na literatura oci-
dental, 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998] .
94. O vínculo entre a angeologia de Suarez e o pensamento de Descartes sobre
a alma foi posto em evidência por R. Specht, Commercium men tis et corporis. Úber
Ka usalvorstellu ngen im Cartesianismus, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1966, cap. 1.
95. Gassendi, Opera omnia, cit., vol. vi, pp. 15-17. A importância da carta de
1629 de Gassendi a Fyens foi assinalada por T. Gregory, Scetticismo ed empirismo.
Studio su Gassendi, Bari, 1961, p. 51; sobre a concepção da alma de Gassendi cf.
ibid., p. 183.
96. Gassendi cita Fyens no livro iii, De generatione animalium de sua Física,
como um dos pouquíssimos (“perpauci”) que colocam a animação antes do séti-
mo dia desde a concepção, data preferida pelo filósofo francês (P. Gassendi, Opera
Omnia, cit., to. ii, p. 281).
97. Deformatricefoetus, cit., pp. 210-6.
98. Antionio Ponce de Santa Cruz, Philosophia I-Iippocratica, Matriti apud
Thomas Iuntam Typographum regium 1622 (como volume anexado ao comen-
tário In Avicennam primum primi).
99. V. Lavenia, “D'anirnalfante”, cit., aprofundou este aspecto, assinalando em
esp. as intervenções do médico paracelsiano Daniel Sennert e do médico de Praga
Iohannes Marcus Marci (Ian Marek Marku).
100. Guilielmus Harveus, Exercitationes de generatione animalium, Amster-
dam, 1651, pp. 190-95. Ressalta isto justamente em um livro por outros aspectos
bastante superficial, P. Darmon, Le mythe dela procéation a l'âge baroque, Paris,
1977, pp. 54-57.
101. “Claudum et caecum fecit Dominus, Exod 4, ad imaginem Dei facti sunt
omnes mortales, Gen 1. Si autem non alimus imbecilles, illos occidimus et adde-

467
remus afflictionem afflicto: quod tanquam iniquum detestatur lex naturalis” (A.
Ponce de Santa Cruz, Philosophia Hippocratica, cit., p. 95).
102. Pauli Zacchiae Romani, totius stati ecclesiastici proto-medici generalis,
Quaestioem um medico-legalium, tomi tres, cit., Livro 1, pp. 1 ss., e, principalmente,
Livro lx, título I: Defoetus humani animatione, pp. 685-707. Em id, ibid., pp. 709-
-16, examina-se a questão do parto cesáreo como meio para alcançar e batizar a
criança. Cf., sobre a mudança de opinião de Zacchia, o ensaio de A. Lanza, op. cit.,
pp. 155~59.
103. A definição entrou em uso com I. Roger, Les sciences de la vie dans la pensée
française au xvnf siècle, Paris, 1963 (e Paris, 1993). Sobre as doutrinas filosóficas
ligadas às descobertas neste campo é fundamental o estudo de W. Bernardi, Le
rnetafisiche dell'embrione Scienze della vita e filosofia da Malpighi a Spallanzani
(1672-1793), Florença, 1986.
104. Cf. S. Alpers, The Art of Describing. Dutch Art in Seventeenth Century,
Chicago, 1983 [trad. it. Arte del descrivere. Scienza e pittura del Seicento olandese,
Turim, 1984, p. 25] [Arte de descrever, A Arte Holandesa no Século xvn. São Paulo:
Edusp, 1999] .
105. Karin Leonhard, em um estudo sugestivo sobre as relações entre Vermeer
e Leeuwenhoek (que foi o executor testamentário de Vermeer), reproduz o dese-
nho dos “homunculi” que Leeuwenhoek enviou à Royal Academy em 1678 (K.
Leonhard, Vermeer's Pregnant Women. On Human Generation and Pictorial Repre-
sentation, in “Art History”, n. 25, junho de 2002, pp. 293-318; ver p. 299).
106. Esta também está reproduzida em id., ibid., p. 302.
107. Iohannis SwammerdamiAmstelodamensis Miraculum Naturae sive Uteri
muliebrisƒabrica notis in D. Ioh. van Home prodromum illustrata, et tabulis, apud
Theodorum Haak et Samuelem Luchtmans, Leiden, 1729 (a primeira edição foi
em Amsterdam em 1672 e a dedicatória está datada 19 de maio de 1672).
108. Cf. E. G. Ruestow, Piety and the deƒense ofnatu ral order: Swamrnerdarn on
generation, in Religion, Science, and Worldview. Essays in Honor ofRichard S. Westƒall,
ed. M. I. Osler e P. L. Farber, Cambridge, 1985, pp. 216-41. Um bom quadro do
entrelaçamento de teologia e ciência está no ensaio de M. T. Monti, Origine delle
ƒorrne e generazione dei corpi. Scienze della vitafra Sei e Settecen to, in La conoscenza
di sé. Aspetti e rnornen ti di storia delfantropologia, ed. C. Tugnoli, Trento, 1996, pp.
91-105. Devo seu conhecimento a Renato Mazzolini, junto a outras sugestões e
indicações de que sou grato.
109. Sobre este nexo o ensaio de K. Leonhard, Vermeer's Pregnant Women, cit.,
apresenta indicações concretas.
110. Carta do Inquisidor de Asti, Girolamo Porcelli, 29 de janeiro de 1612: a
decisão fora tomada após ter “tratado do assunto com Mons. R.mo Bispo”

468
(ASO[270] , St. st. E 2-e, cc. 288 r-293V; 0 documento foi-me indicado por Vincen-
zo Lavenia, a quem agradeço).
111. ASO, 0.1-e: Censura: “propositiones in diversas materias”: cópia do de-
poimento de don Fabrizio Fecia de 31 de agosto de 1659.
112. Da carta de envio do processo pelo Inquisidor de Vercelli, id.
113. A difusão da mesma opinião é confirmada por carta de 11 de outubro de
1646 (id.) do sacerdote Luca Grillenzoni arcipreste de Carpaneto, na diocese de
Piacenza.
114. O Inquisidor de Bergamo em 1628 colocou este problema que fora levan-
tado pelo sacerdote Guido Lanzi, autor a seu dizer de um tratado “de infantibus in
útero baptizandis”, que fora condenado pelo Santo Ofício, e que não pude encon-
trar.
115. Estes foram os termos da instrução endereçada a seu clero pelo bispo de
Durham, Richard Barnes: cf. D. Cressy, Birth, Marriage, and death, Ritual, Reli-
gion, and the Life-Cycle in Tudor and Stuart England, Oxford, 1997, p. 114. Mas
deve-se ver para a rica casuística mencionada em todo o cap. v, Baptism as Sacra-
ment and Drama, pp. 97-123.
116. Disputatio de ministrando Baptismo humanisƒoetibus abortivorum. A Pa-
tre Hieronymo Florentino, Congregationis Matris Dei clerico regulari, nuncprimum
his novissimis temporibus, nec antea a theologia, tam Scholasticis quam moralibus
discussa. Parochis, medicis, omnibusque apprime necessaria, apud Claudium Chan-
cey, Lyon, 1658. A dedicatória ao cardeal Bonvisi bispo de Lucca está datada de 19
de agosto de 1658. O texto de Fiorentini tornou-se um ponto de referência obri-
gatório nas polêmicas entorno da posição católica sobre ortema do aborto: cf. P.
Sardi, L'aborto ieri e oggi, pp. 197 ss., e A. Lanza, op. cit., pp. 149-55.
117. “Il y a bien de difficultés àjustifier la conduite de Dieu dans la manière dont
il distribuë la pluye de la Grace, aussi bien que dans celle dont il répand la pluye
ordinaire [...] Pourquoi tel enfant ne reçoit-il pas le Baptême? Ou pourquoi y a-t-
-il tant de nations qui ne connaissent point Jesus-Christ?” (N. de Malebranche,
Traité de la nature etde la grace, cit., p. 76; e ver pp. 195-96. Sobre 0 modo como foi
julgada a obra de Malebranche pelo Santo Ofício, cf. a ampla pesquisa de G. Costa,
Malebranche e Roma. Documenti dall'/lrchivio della Congregazioneper la Dottrina
della Fede, Florença, 2003).
118. Foram citadas amplas passagens na sua carta que Fiorentini publicou com
outros testemunhos favoráveis a ele (De hominibus dubiis baptizandis pia prothe-
sis, ex officina Anissonia, Lyon, 1675, c. ++r). Sobre os dois jesuítas, cf. C. Sommer-
vogel, Bibliothèque des ecrivains de la Compagnie de Iésus, Paris, 1890-1960, 12
vols.,1, pp. 882-83; v, pp. 218-19.
119. Avvertimento et instru ttione alli curati e conƒessori della diocesi di Lucca. Ad

469
efietto di emendarei I gravíssimo peccato della maledizione contro li propriƒigli, Luc-
ca, 1659.
12o. Da petição citada na nota seguinte.
121. Da petição, de 1671, conservada com toda a documentação do caso in
ASO, St. st. M 6 n, Dubia de Sacramentis, 1, fasc. xv, cc. 377r-381 v.
122. Um extrato dos textos publicados na edição de Lucca em 1666 foi enviado
por Fiorentini anexado à sua súlica petição e se encontra em ASO, index xlx, Mis-
cellanea rerum and Congregationem spectantium,1, cc. 207 r-2141/.
123. “In procurando aborto perpetrant perditissimae illae mulieres, falsa qua-
dam servandi honoris specie...” O documento está datado de 7 de dezembro de
1663 e está assinado por Êttienne Le Boulenger, Iean du Moulin e Iean Hamel.
124. Cf. a rica e sugestiva biografia de I. Pardo Tomás, El médico en la palestra.
Diego Mateo Zapata (1664-1745) y la ciencia moderna en España, Iunta de Castilla
y León 2004, em esp. pp. 239-45, 271-75. O testemunho de Zapata se lê na sua
Disertación médico-teológica, Madri, 1733.
125. Os nomes dos médicos são: Salvatori, médico do papa, Naldi, Rita. Casa-
nate era o secretário da comissão.
126. O parecer não datado está assinado “Albertus de Albertis Soc. Iesu” e inti-
tula-se “Utrum opinio censens Baptismum abortivis administrandum esse sub
conditione sit legitime probabilis, vel e contrario reijcienda et notanda velut sal-
tem improbabilis videatur” (Biblioteca Nazionale di Napoli, ms Brancacciano I E
8, cc. 9r-30v; agradeço a Pierroberto Scaramella por ajudar a localizar e reproduzir
o documento).
127. De hominibus dubiis baptizandi pia prothesis, cit.
128. Sobre a história da Virgem de Monterchi e os episódios de devoção à
Virgem protetora do parto, cf. I. Walter, Piero della Francesca. Madonna del Parto.
Ein Kunstwerk zwischen Politik und Devotion, Frankfurt, 1992 [trad. it. Piero della
Francesca. La Madonna del Parto, Modena, 1996].
129. Ioannes Baptista Poza, Elucidarium Deiparae [], ex officina Rovilliana,
sumptibus Andreae et Iacobi Prost, Lyon, 1627, Livro 111. Devo a Vincenzo Lavenia
a indicação deste texto. Sobre as candentes polêmicas espanholas a respeito da
Imaculada, cf. L. Cortés Pena, Andalucía y la Immaculada Concepción en el siglo
xvn, in Religión y politica durante el Antigua Régimen, Biblioteca del Bolsillo, Uni-
versidad de Granada, Granada, 2001, pp. 103-48.
130. De hominibus dubiis, cit., pp. 156-62.
131. ASO, St. st. M 6-o, Dubia de Sacramentis, vol.11, fasc.x1v, cc. 267r-273v°, ver
c. 268 r. O documento não traz data; os consultores aos quais foi solicitado subme-
teram as suas considerações ao Santo Ofício em 3 de abril de 1713. Sobre o episó-
dio ver do autor Scienza e immaginazione teologica nel Seicento, cit.

470
132. Ibid., ff. 269r-270r. O parecer (“votum”) está assinado por frei Giovanni
Damasceno, consultor do Santo Ofício, ao qual a questão fora submetida. A deci-
são do Santo Ofício foi tomada em 5 de abril e consistiu na sugestão que, onde
persistisse a razoável dúvida de que o feto estivesse animado, podia-se proceder ao
batismo, mas para decidi-lo era necessário consultar vez a vez “medici et theologi
in facti contingentia”.
133. Cf. E. Betta, “Anime salve e feti abortiviu. L'Irlanda ottocentesca terreno di
missione”, Quaderni storici, 2000, n. 106, pp. 767-801.
134. P. Prodi, Il sovrano ponteƒice. Um corpo e due anime: la monarchia papale
nella prima eta moderna, Bolonha, 1982.
135. Sobre o “voto de sangre” renovado em Sevilha em 1615, cf. por fim os
ensaios reunidos no livro Inrnaculada. 150 años de la Proclamación del dogma,
Córdoba, 2004.
136. Esta foi a preocupação exposta por Sandius em seu Tractatus de origine
animae de 1671, escrito em polêmica com os socianianos (cf. P. G. Bietenholz,
Daniel Zweicker 1612-1678. Peace, Tolerance and God the one and only, Florença,
1997, pp. 48, 177). Quanto à opinião de Bellarmino sobre são Ioão Batista, cf.
Disputationum Roberti Bellarmini Politiani S. I. de controversiis christianae fidei
adversas huius ternporis haereticos, to. 111, Nápoles, 1858, p. 182.
137. Prop. 34: “Licet procurare abortum ante animationem foetus, ne puella
deprehensa gravida occidatur, aut infametur”. Prop. 35: “Videtur probabile om-
nem foetum, quandiu in utero est, carere anima rationali, et tunc primum incipe-
re eandem habere, cum paritur, ac consequenter dicendum erit, in nullo abortu
homicidium committi” (da lista das“propositiones damnatae” do papa Inocêncio
xl na congreg. de 2 de março de 1679; estão citadas entre outros pelo Bullarium
Romanum seu novíssima et accuratissima collectio apostolicarum constitutionum,
to. \/111, Roma, 1734, pp. 80-82; e por Lucius Ferraris, Prompta Bibliotheca, to. VII,
apud Gasparem Storti, Veneza, 1782, p. 217). Sobre o contexto da condenação, cf.
L. von Pastor, Storia dei Papi dallafine del Medioevo, vol. xiv, parte 1, trad. it. Roma,
1932; e o amplo verbete dedicado a Inocêncio xr por Antonio Menniti Ippolito, in
Enciclopedia dei Papi, Roma, 2000, pp. 268-89.
138. “Copia delli primi dodici dubbi del Giappone”, in Archivium Romanum
Societatis Iesu, Iap.-Sin., 18-1, cc. 162 r-1641/.
139. Cf. I. F. Schutte, Introductio ad historiarn Societatis Iesu in Iaponia 1549-
-1650, Roma, 1968.
140. “Baptismate homo constituitur in ecclesia Christi persona” (cânone 87
cit. por G. Le Bras, La personne dans le droit classique de l'Eglise, in Problèmes de la
personne, colóquio do Centre de recherches de psychologie comparative, ed. 1.
Meyerson, Paris-Haia, 1973,pp. 189-201; ver p. 193).

471
Pessoa [pp. 325-4o]

1. Verso do Ritrattoƒemminile ('La Monaca'), Galleria degli Uffizi, Florença.


2. Tratando-se de uma frase de tipo proverbial adotada na linguagem corren-
te, a fonte não é significativa. Em todo caso, eis a passagem de Quintiliano, Inst.
5.12.13, que me foi apontada por Gian Biaggio Conte e Rodolfo Ferri: “Illae fir-
miores ex sua cuique persona probationes quae credibilem rationem subiectam
habent”. E por Sêneca, Ben. 2.7.13: “Adspicienda ergo non minus sua cuique per-
sona est quam eius, de quo iuvando quis cogitat”.
3. Erasmo de Roterdam, Adagia, SileniAlcibiadis, ed. S. Seidel Menchi, Turim,
1980, pp. 62-63.
4. D. Laurenza, Deefigura umana. Fisiognomica, anatomia e arte in Leonardo,
Florença, 2001.
5. Epitteto, Man uale, trad. it. Giacomo Leopardi e Latina de Agnolo Poliziano,
apresentação e notas de G. de Ruggiero, Milão, 1971, pp. 37, 79. Leopardi retoma
o termo “persona” com o qual Poliziano traduz o original prosopon: “Memento te
actorem te esse fabulae... ad te enim pertinet datam tibi personam bene agere,
eligere, ad alium”. Sobre a petição de 1671, conservada com toda a documentação
do caso em ASO, St. st. M 6 n, Dubia de Sacramentis, I, fasc.xv, cc. 377r-38 1 v.
6. S. Schlossmann, Persona und rcpócramov im Recht und im christlichen Dog-
ma (Festschrift der Universität Kiel zum Geburtstage S.M. des Kaisers), Kiel,
1906 (nova ed., 1968). Schlossmann tem como objetivo polêmico o Lehbuch der
Dogmengeschich te de Adolf von Harnack e a sua tese que atribui à cultura jurí-
dica de Tertuliano a introdução da noção de “pessoa”.
7. Documentada por Suetõnio (id., ibid., p.31).
8. Gio. Stefano Menochio da Companhia de Iesus, Stuore... tessute di varie
eruditioni sacre, morali e profane, nova impressão, Veneza, 1724, to. 111, p. 238.
Como fonte de sua interpretação, Menochio remete aos Annales Ecclesiatici de
Baronio.
9. C. Ginzburg, Storia notturna, cit., pp. 248-49.
10. São fundamentais as páginas de K. Meuli, Die deu tschen Masken, in Gesam-
melte Schriƒten, ed. T. Gelzer, 1, Basileia-Stuttgart, 1975, pp. 69- 162 (indicadas por
Carlo Ginzburg, Storia notturna, cit.). Remete para Meuli R. Caprini, “La strega
mascherata”, Llimmagine riflessa, n.s. 1x (2000), pp. 59-73. Ver também I.-C.
Schmidt, Le maschere, il diavolo, i morti nell'Occidente medievale, in Religione,
ƒolklore e società nell'Occiden te medievale, Bari, 1988, pp. 206-38.
11. “Uma imagem corpórea de grande densidade cristológica”, define-a A.
Paravicini Bagliani, Il corpo del Papa, Turim, 1994, p. 83. Como aponta Paravi-
cini Bagliani, o papa Inocêncio 111 forçou ainda mais a imagem de são Bernardo

472
para definir 0 papa como aquele que “leva” ou “representa” (“gerit”) a pessoa
de Cristo.
12. P. Siniscalco, I diritti umani nella storia della cultura. Il pensiero dei Padri
antichi e medievali, in Convegno in occasione del cinquantenario della Convenzione
del Consiglio d'Europa per la protezione dei diritti umani e delle liberta ƒondamen-
tali in onore di Paolo Barile (Roma, 16-17 de novembro de 2000), Atti dei Conveg-
ni lincei, 174, Roma, 2001, pp. 91-109 (ver em esp. pp. 99-102).
13. “The role of Renaissance portraits was commemorative: it was conscious-
ly direct to a future where the living would no longer be alive” (I. Pope-Hennessy,
The Portrait in the Renaissance, Princeton, 1979, pp. 7-8).
14. O ensaio Arte del ritratto e borghesiaƒiorentina, de 1902, está reunido em A.
Warburg, La rinascita del paganesimo antico. Contributi alla storia della cultura
raccolti da Gertrud Bing, Florença, 1966, pp. 109-46 (seleção de ensaios extraídos
de id., Gesammelle Schriƒten. Die Erneuerung der heidnischen Antike. Kulturwis-
senschaƒtliche Beiträge zur Geschichte der europäischen Renaissance, ed. G. Bing
[ 1932]; nova edição a cargo de H. Bredekamp, M. Diers, Akademie Verlag, Berlim,
1998). Sobre as estátuas votivas de cera da SS.ma Anunciada, ver id., ibid., pp. 137-
-41. Sobre a difusão do retrato em cera em Florença, após os estudos de Warburg
e de Julius, ver agora Ê. Pommier, Théories du portrait. De La Renaissance aux Lu-
mières, Paris, 1998 [trad. it. Il ritratto. Storie teorie dal Rinascimento all'eta dei
Lumi, Turim, 2003, pp. 80-83] .
15. A célebre definição de Boécio: “Persona est naturae rationalis individua
substantia” (De persona et duabus naturis, PL 64, col. 1343) e a semelhante de
Cassiodoro: “Persona vero hominis est substantia rationalis individua” (In Psalte-
rium expositio, PL 70.66) são apontadas também por Schlossmann (in ibid., p.
111). Também segundo I-I. Rheinfelder, Das Wort Persona. Geschichte seiner Be-
deu tu ng mit besonderer Beriicksichtigungdes Französischen und Italiaenischen Mit-
telalters (Beihefte zur Zeischrift für Romanische Philologie, n. 77), Halle, 1928, pp.
169-170, Boécio deve ser considerado o primeiro a dar um significado filosófico
ao termo e o introduziu na linguagem dos teólogos e filósofos.
16. Eliminadas na época da Reforma e do Concílio de Trento, por ser conside-
radas superstições ou capazes de encorajar o politeísmo, essas imagens sobrevive-
ram em poucos exemplares: cf., por exemplo, Iconoclasme. Vie et mort de l'image
médiévale, catálogo da exposição, p. 28.
17. Rheinfelder, op. cit. , pp. 180-81.
18. “Persona... non est in Deo magis quam in bruto, sicut humanitas, sicut alia
plura.” No homem a persona indica a qualidade “qua alius ab alio differimus... vel
uti in me est persona humani, liberalis, timidi, iracundi”. Em todo indivíduo há
uma “multiplex persona, ac diversa”, mas uma só substância... “in Deo triplex est

473
qualitas” (Elegantiarum Latinae Linguae libri sex, Lyon, Livro vt, cap.xxx111, pp.
420-22). A passagem na interpretação que lhe deu Lelio Sozzini é assinalada por
D. Cantimori, op. cit., pp. 240-41; id; a indicação da condenação nos índices a
partir do espanhol de 1538 até o Índice de Bento xiv, com a indicação “donec
corrigatur”.
19. Angeli Politianipro Epicteto epistola, 19 de agosto de 1479, trad. de E. Garin,
Prosatori la tini Del Quattrocento, ed. E. Garin, Milão-Nápoles, s.d., pp. 912-25;ver
p. 912).
20. M. Zambrano, Persona y democracia, Departamento de Instrucción Públi-
ca, San Iuan de Puerto Rico 1958 [trad. it. Persona e democrazia. La storia sacrifi-
cale, Milão, 2000, p. 134].
21. Sobre este aspecto insistem K. Schmidt e I. Wollasch, “Die Gemeinschaft
der Lebenden und Verstorbenen in Zeugnissen des Mittelalters”, Friihmittelalter-
liche Studien, 1967, n. 1, pp. 365-405.
22. Cf. B. Tierney, “Origins of Natural Rights Language: Texts and Contents,
1150-1250”, History ofPolitical Thought, x (1989), pp. 615-46. Ê dedicado ao de-
senvolvimento das doutrinas teológicas e filosóficas relativas à noção de pessoa
como sujeito moral e à “metafísica da liberdade” o livro de Th. Kobusch, Die Ent-
deckung ofPerson. Metaphysik der Freiheit und modernes Menschenbild, 1997 (IA
ed. Herder, 1993).
23. Os documentos foram analisados lucidamente por G. Costa, “La Santa
Sede di fronte a Locke”, Nouvelles de la République des Lettres, 2003, pp. 37-122. A
definição de “pessoa” foi dada por Locke em An Essay Concerning Human Unders-
tanding, Livro 11, cap.xxv11 [trad. it. Saggio sulfintelligenza umana, Roma-Bari,
1988, pp. 362-87] . Agradeço ao doutor Pasqualino Masciarelli pela ajuda que me
deu nesta e em outras divagações sobre terrenos que lhe são familiares.
24. “Persona est homo statu quodam veluti indutus” (a definição de Heinec-
cius é mencionada por S. Schlossmann, Person, cit., p. 4, nota).
25. Ver nota 11.
26. E. H. Kantorowicz, The King's Two Bodies. A Study in Medieval Political
Theologie, Princeton, 1957 [trad. it. I due corpi del re. Liidea di regalità nella teologia
politica occiden tale, Turim, 1989] .
27. M. Mauss, “Une catégorie de l”esprit humain: La notion de personne, celle
de “moi'”, Journal of the Royal Anthropological Institute, Lxvm (1938), pp. 263-81
[trad. it. Una categoria dello spirito umano: la nozione di persona, quella di “io”, in
id., Teoria generale della magia e altri saggi, Turim, 1991,pp.351-81]. Um aprofun-
damento e verificação da proposta de Mauss por meio de uma comparação entre
a concepção cristã da pessoa e as de outras religiões e culturas é o objetivo da tra-

474
dução inglesa de seu ensaio: The Category ofthe Person. Anthropology, Philosophy,
History, ed. M. Carrithers, S. Collins e S. Lukes, Cambridge, 1985.
28. M. Mauss, op. cit., p. 376.
29. Ê. Durkheim, Lesƒormes élémentaires dela vie religieuse( 1913), Paris, 1990,
p. 386 [trad. it. Le ƒorme elementari della vita religiosa, Edizioni di Comunità, Mi-
lão, 1971]. Mas ver todo 0 cap. VIII, La nozione d'anima
30. E significativa a posição de Marc Bloch que, em sua última obra, quis lem-
brar “a unidade fundamental do eu e os constantes entrelaçamentos recíprocos de
suas diversas atitudes”, mesmo reconhecendo que “as consciências têm seus com-
partimentos internos” (M. Bloch, Apologie pour Phistoire ou métier d'historien, Pa-
ris, 1949 [trad. it. Apologia della storia o mestiere di storico, Turim, 1998, p. 113]
[Apologia da História ou 0 ofício de historiador. Rio de Ianeiro: Iorge Zahar, 2002] ).
31. Ver, por exemplo, 0 recente livro de Th. Kobush, Die En tdeckung der Person.
Metaphysik der Freiheit und modernes Menschen bild, cit. (cuja bibliografia, embo-
ra riquíssima, não menciona o ensaio de Mauss).
32. Assinala-se entre os mais recentes a ampla tese de A. Bertrand-Mirkovic, La
notion depersonne, Étude visanta clarifier le statusjuridique de Fenƒant à naitre, Aix-
-en-Provence, 2003: mesmo conduzida do ponto de vista da legislação francesa so-
bre o aborto, ela oferece um panorama exaustivo sobre 0 estado da questão. Sobre a
bioética, lembra-se aqui a “declaração universal sobre o genoma humano e os direi-
tos do homem”, aprovada em 1997 pela Unesco, discutida nos autos de um recente
congresso: Academia dei Lincei, Bioetica e tutela della persona, Roma, 2000.
33. I. Habermas, Die Zukunƒt der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer
liberalen Eugenik, Frankfurt am Main, 2001 [trad. it. Ilƒuturo della natura umana.
I rischi di uma genetica liberale, Turim, 2002, p. 109].
34. Casos deste tipo foram apresentados ao Santo Ofício entre 1853 e 1856 em
Viterbo e Bagnorea: cf. ASO, St. st. M 6, n-r, Dubia de Sacramentis, 1853-1856,
fasc. 3 e 7.
35. A. Bertrand-Mirkovic, op. cit., pp. 376 ss.

A JUSTIÇA [pp. 341-44]

1. A SENTENÇA: “ Ut moriatur et anima ah eius corpore separetur”


IPI» 345-491
1. Um exemplar está conservado na Biblioteca Arcivescovile di Bologna, Fon-
do Scuola de'Confortatori, Polizzottti deflcondannatti a morte in Bologna dall*an no
1642 al 1714... raccolta... fatta da Carlo Antonio Macchiavelli.

475
2. “Lucia Cremonini da Manzolino... fu impiccata per infanticídio comesso
com cortello nella persona del proprio figlio allora nato e poi fu dato il cadevere
alla Pubblica Anatomia” (Biblioteca Comunale Dell'Archiginnasio, Libro dei gius-
tiziati di Bologna, Fondo Ospedali, ms 66, vol. II, 1674-1796, cc. n.n.). Sobre a
anatomia pública, cf. G. Ferrari, “Public Anatomy Lessons and the Carnival: the
Anatomy Theater of Bologna”, Past and Present, cxvn (1987), pp. 50- 106.
3. Assim decorre dos dados reunidos por S. Hughes, “Fear and Loathing in
Bologna and Rome. The Papal Police in Perspective”, Iournal of Social History,
outono de 1987, pp. 97-1 16.
4. L. Gernet, Sull'esecuzione capitale, in Antropologia della Grecia antica, Milão,
1983, pp. 270-1.
5. Ver, por um lado, a teoria exposta por R. Girard, La violence et le sacré, Paris,
1972 [trad. it. La violenza e Il sacro, Milano, 1980] , e em diversos ensaios posterio-
res, e, por outro, a vasta literatura histórica dedicada aos ritos da justiça pré-ilu-
minista, entre os quais assinalamos P. Spierenburg, The Spectacle ofSujfering. Exe-
cutions and the Evolution of Repression: from a preindustrial metropolis to the
European Experience, Cambridge, 1984; e R. van Dülmen, Theater des Schreckens.
Gerich tspraxis und Straƒrituale in derƒrühen Neuzeit. Munique, 1988. Para os ritu-
ais remetemos desde o título à ampla monografia de R. I. Evans, Rituais ofRetri-
bution, cit.
6. R. Hertz, op. cit. [trad it. cit., p. 53] .

2. “ACOLHIDA E coNsoLADA” [pp. 350-60]

1. A ficha relativa ao caso de Lucia Cremonini está conservada no Archivio


arcivescovile di Bologna, fundo Scuola dei confortatori, b. 8, fasc. 12; foi indicada
pelo autor em um antigo trabalho (Esecuzioni capitali e controllo sociale nella pri-
ma eta moderna, in La pena di morte nel mondo, Congresso internacional organi-
zado por Pier Cesare Bori, Casale Monferrato, 1983, pp. 89- 104; ver p. 100). Apre-
sentei os resultados de um levantamento das fichas em Il Controllo della paura di
morire: Bologna 1675-1796, in L. Guidi, M. R. Pelizzari e L. Valenzi, Storia e paure.
Immaginario collettivo, riti e rappresentazioni della paura in eta moderna, Milão,
1992, pp. sos- Is.
2. Cf. G. Manara, Notti malinconiche, nelle quali con occasione di assistere a
condan nati a morte sipropongono varie dijjficolta spettanti a simile materia, Ferroni,
Bolonha, 1658.
3. Ver do autor Il sangue e l'anima. Ricerche sulle compagnie digiustizia in Italia,
reunido em America e apocalisse e altri saggi, Pisa-Roma, 1999, pp. 155-85.

47Õ
4. Assim se lê na ficha relativa a ele (Archivio arcivescovile di Bologna, fondo
Scuola dei confortatori, b. 8, fasc. 12, cc. n.n.).
5. Biblioteca Comunale dell'Archiginnasio, MS Gozzadini 10, Giustiziati in
Bologna (1540-1791), c. n.n.

3.ARREPEND11v1ENTo E PERDAQ [pp. 361 402]


.nz

1. N. Ginzburg, “Il pentimento e il perdono”, L' Unita, 30 de dezembro de 1988


(agora em Non possiamo saperlo, pp. 122-5, ver p. 123).
2. Em Foligno, no ano 1560, duas mulheres culpadas por infanticídio recebe-
ram uma penitência que consistia no jejum a pão e água (cf. G. e L. Metelli, Crimi-
nalita a Foligno nella seconda meta del secolo XVI, cit, p. 132).
3. Um rápido resumo comparativo em P. Spierenburg, The Spectacle ofSufie-
ring, cit., pp. 44-5. Sobre a Inglaterra, cf. P. Linebaugh, The Tyburn Riot against the
Surgeons, in D. Hay et al., Albion's Fatal Tree: Crime and Society in Eightheenth-
-Century England, Nova York, 1975.
4. Ver a respeito P. Prodi, Una storia della giustizia, Bolonha, 1999. O tema da
justiça divina como fundamento e postulado da imortalidade da alma ressurge
com frequência nas fontes: além das aqui indicadas, ver S. Vanni Rovighi,
Uimmortalita dell'anima nei maestrifrancescani del secolo XIII, Milão, 1936, pp.
l 5- 16.
5. “Videmus in hac vita multos honestos homines iniuste a latronibus et tyran-
nis interfici et saepe in hac vita latrones et tyrannos non puniri. Cum igitur sit
providentia necesse est sequi aliam vitam... Impossibile est enim optimam generis
humani parten tantum et exitium esse conditam” (Liber de anima, in Melanchton,
Werke in Auswahl, ed. R. Stupperich, vol. III, Mohn, 1961, p. 369).
6. L'huomo al punto cioè l'huomo in punto di morte considerato dal Padre Da-
niello Bartoli, aos cuidados Gio. Recaldini, Bologna, 1668, pp. 423-4. Padre Marti-
no Martini (1614-1661) foi o autor de um tratado intitulado Divintatis et animae
rationalis demonstratio, conservado no Archivio romano della Compagnia di
Gesúe, cujo conteúdo foi resumido assim: “Ele sustenta que deve haver um sobe-
rano no mundo, deve haver recompensas para o bom e castigos para o mau” (A.
Chan S. I., Chinese Books and Documents in the]esuitArchives in Rom. A Descripti-
ve Catalogue, I, Londres-Nova York, 2002, pp. 151-2, n. 100).
7. D. Bartoli, L'huomo al punto, cit., p. 391.
8. Assim N. Swinden, Recherches sur la nature duƒeu de l'enfer et du lieu ou il est
situé, Amsterdam, 1728.

477
9. G. Pozzi, Comepregava La gente, in “Archivio storico ticinese” xcl (1982 ), pp.
197-268; ver p. 225.
10. Cf. os estarrecedores testemunhos reunidos no “braço da morte” da irmã
H. Préjean, Dead Man Walking, Nova York, 1993 [trad. it. Dead Man Walking,
Condannato a morte, Milão, 1996] . Note-se que a autora parece ignorar os antece-
dentes históricos europeus de sua obra de consolo aos condenados.
11. Constitutioni della congregatione o scuola de” conƒortatori della citta di Bo-
logna, pelo herdeiro de Vittorio Benacci, Bolonha, 1640, p. 3 (na edição posterior
de 1667, a data está corretamente atualizada: “são mais de trezentos anos”).
12. Sobre Macchiavelli, os dados fornecidos por G. Fantuzzi, Notizie degli scrit-
tori bolognesi, vol. v, Bolonha, 1786, pp. 95-101, devem ser completados com as
pesquisas de M. Fanti, “La confraternita di S. Maria della morte e La Conforteria
dei condannati in Bologna nei secoli xiv e xv”, Quaderni del Centro di ricerca di
studio sul movimento dei Disciplinati, n. 20, Perugia, 1978, pp. 61-5. Como nota
Fanti, Macchiavelli consumou a falsificação quando publicou seu (mesmo assim)
utilíssimo Catalogo delli autori e delle materie spettanti alla Conforteria, Lelio dalla
Volpe, Bolonha, 1729, onde incluiu 0 texto atribuído ao fictício antepassado.
13. F. Carlo Verri da Cremona, Ricordi per essercitar il carita tivo oƒficio d'aiu tar
a christianamente morire quei meschini che sono dalla giustitia condannati a morte,
Milão, 1672, p. ó.
14. Proemio sopra le ordinationi dell'Oratorio di S. Maria della Morte, antepos-
to às Ordinationi manuscritos de 1613 (ASB, Archivio dell'Ospedale Maggiore,
309/4). Mas, ver a redação corrigida em 1526, ms Gozz. 213 da Biblioteca comu-
nale dell”Archiginnasio, cc. 122-173, apontada por M. Fanti, La co nƒraternita di S.
Maria della Morte, cit., p. 50, nota.
15. Id., ibid., pp. 30-2.
16. Além da monografia de B. Altaner, Venturino von Bergamo (1304-1346),
Breslau, 191 1, ver 0 rápido resumo de G. G. Meersseman, Ordofraternitatis. Con-
fraternite e pieta dei laici nel Medioevo, Roma, 1977, pp. 603 e ss. e passim.
17. GiovanniVillani, Istoriefiorentine, Livro X1, cap. XXIII: “Come frate Venturi-
no commosse molti Lombardi e Toscani a penitenza”.
18. D. Compagni, Cronica, cit., Livro III, cap. xul.
19. Cita-se daqui em diante a Legenda, que é a principal fonte para a história
da pregação de frei Venturino e que traz também 0 texto das perguntas feitas a
Venturino de Bergamo durante 0 processo de Avignon e as respectivas respostas;
a Lenda traz uma data de redação ( 1347) que, segundo Altaner, corresponde a uma
primeira versão, depois foi substancialmente reelaborada por volta de 1374. Se-
gundo P. A. Grion, que publicou também o texto da Legenda segundo 0 manuscri-

473
to mais antigo, a data 1347 é confiável (La “Legenda” Del b. Venturino da Bergamo
secondo Il texto inedito del codice di Cividale, in Bergomum, L (1956), pp. 11-110).
20. G. Miccoli, “La “crociata dei fanciulli' del 1212”, Studi medievali, s. 3, 11
( 1961), n. 2, pp. 407-43; ver p. 423.
21. Cf. I. Bossy, Christianity in the West 1400-1700, Oxford, 1985, pp. 3 ss. [trad.
it. L'Occiden te cristiano, 1400-1 700, Turim, 1990] .
22. Cf. id., “Essai de sociographie de La Messe”, 1200- 1 700, Annales. ESC, xxxvt
(1981), pp. 44-70 [trad. it. La messa come istituizione sociale, 1200-1700, in Dalla
comunita all'individuo. Per una storia sociale dei sacramenti dell'Europa moderna,
Turim, 1998, pp. 143-90; ver em esp. pp. 158-67].
23. Apud G. Tinagli, Siena, 1952, par. 291 (0 texto latino está em Acta Sancto-
rum, Aprilis, to. III, pp. 910-1 1).
24. No tratado de Alain de Lille, Defide catholica contra haereticus sui temporis,
praesertim Albigenses et Waldenses libri quatuor, Antuérpia, 1653, pp. 271 ss., são
expostos e contestados os argumentos dos valdenses contra a condenação à mor-
te. E no recente livro de C. Papini, Valdo di Lione e i “poveri nello spirito”. Il primo
secolo del movimento valdese (1170-1270), Turim, 2001, p. 187, sustenta-se com
bons argumentos que “a primazia temporal neste tema deve ser atribuída aos
valdenses”.
25. Sobre 0 episódio há uma bibliografia imensa, para a qual remetemos à
sistematização de A. I. Galletti, “Uno capo nelle mani mie”: Niccolõ di Toldo, peru-
gino (Accademia Senese degli lntronati, Atti Del simposio in ternazionale caterinia-
no-bernardiniano, Siena, 17-20 de abril de 1980, orgs. D. Maffei e P. Nardi, Siena,
1982, pp. 121-27). Contra as dúvidas levantadas por R. Fawtier a propósito da
autenticidade da carta de Catarina (Sainte Catherine de Sienne. Essai de critique des
sources, I, Paris, 1921, pp. 169-71), A. Dondaine trouxe argumentos convincentes
(“Sainte Catherine de Sienne et Niccolo Toldo”, Archivum Fratrum Praedica toru m,
xlx (1949), pp. 168-207) recebidos pelo editor das cartas, E. Dupré Theseider (“La
duplice esperienza di Santa Caterina da Siena”, Rivista storica italiana, Lxn ( 1950),
pp. 533-74).
26. Epistolario di santa Caterina da Siena, ed. E. Dupré Theseider, Roma, 1940,
pp. 130- 1.
27. Cf. M. Vincent-Cassis, La confession des condamnés a mort: l'exception
française du xrvf siècle, in Vita religiosa e identita politiche. Universalita e partico-
larismi nell'Europa del tardo medioevo, ed. S. Gensini, San Miniato (Pisa), 1998,
pp. 383-401.
28. Giacomo Brachet Contol o assinala em sua contribuição ao livro compó-
sito Artepieta e morte nella Confraternita della Misericordia di Torino, Turim, 1978,
pp. 11-38; ver p. 25.

479
29. Sobre “religião cívica”, no caso das irmandades bolonhesas, trata N. Terps-
tra, Lay Confraternities and Civic Religion in Renaisance Bologna, Cambridge,
1996.
30. “Quando da confidência passamos à confissão, quando a culpa é revelada
à autoridade, então a consciência universal reconhece nesta confissão espontânea
uma virtude expiatória e merecedora de graça... Não raramente culpado, premido
pela consciência, chega a recusar a impunidade que lhe é assegurada pelo silêncio;
e não sei que instinto misterioso, mais poderoso do que o da consciência, leva-o a
buscar a pena quando poderia evitá-la” (I. de Maistre, Du Pape, 1819 [trad. it. Sul
papa, s.d., pp. 349 ss.] ).
31. Cf. V. Fumagalli, “Luoghi d”incontro tra i morti e i vivi sulla terra nel Me-
dioevo”, Quaderni storici, n. 50, agosto de 1982, pp. 41 1-25; ver p. 421.
32. Cito 0 texto de sóror Illuminata como referido em G. Belvederi, La vita
della 'Santa illustrata da Giulio Morina (secolo XVI), Bolonha, 1912, pp. 26-7;
ibid., p. 28. A gravura de Giulio Morina mostrando a execução do condenado
está reproduzida.
33. Questa è la regula et modo etforma de quello che deno usare a consolare et
confortare le persone che sono iudicate a morte, ms séc. xv, ms 157 da Biblioteca
Universitaria di Bologna, c. 122v. Sobre este texto, copiado na época por outras
irmandades (conservam-se exemplares em Ferrara, Ravena, Pádua e na Pierpont
Morgan Library de Nova York), ver M. Fanti, La confraternita di S. Maria della
Morte, cit., pp. 55-101.
34. Sobre a irradiação do grupo genovês na Itália e os temas da devoção que
propagou, ver a pesquisa fundamental de D. Solfaroli Camillocci, I devoti della ca-
rita. Le conƒraternite del Divino Amore nell'Italia del Cinquecen to, Nápoles, 2002.
35. Libro devotissimo della rnisericordia de Dio, Bolonha, 1521, c. 2r.
36. O vol. xt de “Studies in Church History” (Retribution, Repentance and
Reconciliation, eds. K. Cooper e I. Gregory, Woodbridge, 2004) propõe unificar
sob este mesmo tema uma ampla variedade de assuntos, desde os primórdios do
cristianismo ao problema da reconciliação na África do Sul contemporânea.
37. Na já vasta literatura sobre este argumento, ver em esp. 0 estudo dedicado
à Irmandade romana de são Ioão Degolado, também chamada Irmandade dos
Florentinos, in V. Paglia, La Morte confortata: riti della paura e mentalita religiosa
a Roma nell'eta moderna, Roma, 1982.
38. Há uma lúcida sistematização do tema em K. Park, “The Criminal and the
Saintly Body: Autopsy and Dissection in Renaissance Italy”, Renaissance Quarter-
ly, 1990, pp. 1-33.
39. “... Nach dem Tod der Mensch von aller menschen Gewallt erledigt sei, und
allein im Gottes Urtel steet” (o documento, publicado por I. Dieselhorst, “Die

480
Bestrafung der Selbstmõrder im Territorium der Reichsstadt Nürnberg”, Mittei-
lung des Vereinsfiir Geschichte der Stadt Nürnberg, xuv (1955), p. 125, é citado por
C. M. Koslofsky, The Reformation of the Dead. Death and Ritual in Early Modern
Germany, 1450-1700, Basingstoke (Hampshire), 2000, pp. 38, 174). Segundo M.
MacDonald e T. R. Murphy, Sleepless Souls, cit., na Inglaterra, após um endureci-
mento inicial das normas contra os suicídios, chegou-se à sua substancial descri-
minalização.
40. Segundo o First Book ofDiscipline de Iohn Knox (1560), 0 cadáver deveria
ser sepultado “without any ceremony”, e uma disposição semelhante foi decretada
na Inglaterra em 1644 (cf. C. Gittings, Death, Burial and the Individual in Early
Modern England, Londres-Sydney, 1984, ibid., pp. 72-4, sobre as sepulturas infa-
mantes para os suicidas).
41. Segundo a já lembrada hipótese apresentada por N. Zemon Davies, Ghosts,
Kin, and Progeny, cit.
42. “The cutting of the Catholic connection with the dead freed energies and
resources for uses for the living and the unborn” (N. Zemon Davis, Some Tasks and
Themes in the Study ofPopular Religion, in C. Trinkhaus e H. Oberman (orgs.) , The
Pursuit of Holiness in late medieval and Renaissance Religion, Leiden, 1974, pp.
326-36; ver p. 329).
43. Y. H. Yerushalmi, Zakhor: Iewish History and Iewish Memory, Seattle, 1982
[trad. it. Zakhor. Storia ebraica e memoria ebraica, Parma, 1983] .
44. Cf. F. Maiello, Storia del calendario. La misurazione del tempo, 1450-1800,
Turim, 1994; sobre a reforma dos processos de canonização, ver M. Gotor, I beati
del papa. Santita, Inquisizione e obbedienza in eta moderna, Florença, 2002.
45. Y. H. Yerushalmi, Réflexions sur l'oubli, in Y. H. Yerushalmi et al., Usages
de l”oubli, Paris, 1985 [trad. it. id., Riƒlessioni sull'oblio, in Usi dell'oblio, Parma,
1990, p. 201.
46. “Os verbos nasae sakah, que significam “esquecer', nas passagens examina-
das, têm o sentido de “perdoarí O mesmo significado tem zakar quando precedido
por uma negação” (F. Luciani,“`Dimenticare° = “perdonare' nell'Antico Testamen-
to ebraico, in Amnistia perdono e vendetta nel mondo antico”, ed. M. Sordi, Con-
tributi dell'Istituto di storia antica, vol. xxln, Milão, 1997, pp. 19-28; ver p. 28).
47. “... Stiano forti alla iustitia. Beati qui persecutiones patiuntur propter ius-
titiam” (estatutos da compagnia della Pietà di Viterbo, Testi viterbesi dei secoli XIV,
Xv e XVI, ed. P. Sgrilli, posfácio de A. Stussi, Viterbo, 2003, p. 171).
48. Sobre a devoção pelas “almas dos corpos decapitados”, estudada na Sicília
pelo grande folclorista Giuseppe Pitrè, ver M. Carroll, Veiled Threats. The Logic of
Popular Catholicism in Italy, Baltimore-Londres, 1996, pp. 142-6; cf. do autor, Le
fonti: osservazioni preliminari, in Cultura d'élite e cultura popolare nell'arco alpino

481
fra Cinque e Seicento, eds. O. Besomi e C. Caruso, Basileia-Boston-Berlim, 1995,
pp. 3-34.
49. Libro dei giustitiati dal 1441 al 1577, Ferrara, ms CL. I, 404, c. 13r.
50. Sobre isso insiste com razão Filippo Fineschi em sua cuidadosa pesquisa
Cristo e Giuda. Rituali di giustizia a Firenze in eta moderna, Florença, 1995, pp.
178-80. Um levantamento curioso das formas históricas de morte infamante e de
vilipêndio do corpo foi realizado por P.-H. Stahl, Histoire de la décapita tion, Paris,
1986, pp. 85 ss.
51. Ph. Ariès, L”homme devantla mort, Paris, 1977, p. 184.
52. Estatutos da compagnia della Pietà, de 1479 ( Testi viterbesi dei secoli Xiv, Xv
eXvI, cit., p. 157).
53. Cf. no caso da Espanha M. Flynn, Sacred Charity. Confraternities and Social
Welfare in Spain, 1400-1700, Londres, 1989, p. 66. Em Florença, 0 terreno para
sepultar os justiçados concedido à Compagnia di Santa Maria della Croce al Tem-
pio, em 1361, foi “o primeiro reconhecimento explícito do papel público que rea-
lizou” (F. Fineschi, “La rappresentazione della morte sul patibolo nella liturgia
fiorentina della Congregazione dei Neri”, Archivio storico italiano, cl. (1992), pp.
805-46; ver p. 808).
54. H. Marcuse, The Ideology ofDeath, H. Feifel (org. ), The Meaning ofDeath,
NovaY0rk, 1965, pp. 64-76 (cito a trad. alemã, Die Ideologie des Todes, in H. Ebeling
(org.), Der Tod in der Moderne, Kõnigstein/Ts., 1979, pp. 106 ss).
55. Cf. a respeito F. Cumont, Lux perpetua, cit., pp. 335 e passim. As punições
para quem se apropriava dos corpos dos condenados “ad magicos usus” foi dedi-
cada uma tese defendida na universidade de Iena (Ioh. Ernestus Landsberg, Dis-
putatio iu ridica, de cadaveribus punitorum, I. C. Hendelii, Jenae, 1720, pp. 22-23).
Cf. do autor, Lefonti: osservazioni preliminari, cit., pp. 3-34. Falta um estudo ade-
quado sobre as práticas do sepultamento: para Roma, sabemos, por exemplo, que
os condenados impenitentes eram sepultados junto com os hereges (menções em
W. Krogel, The Protestant Cemetery in Rome. The “Parte An tica”, Roma, 1989; e A.
Menniti Ippolito e P. Vian, All'ombra della piramide. Storia e interpretazione del
cimitero accatolico di Roma, Roma, 1995).
56. “Suspensi furca, vel alio modo mortui ob sua scelera, si impenitentes de-
cesserint, carent sepultura; si vero hi suspensi, vel alias, iussu iudicis necati, si ante
mortem sacramenta susceperint, vel fuerint confessi, humandi sunt in sepultura
ecclesiastica, cum aolemnitate Missae, et aliorum... Praefati suspensi mortui con-
triti, minime gentium in patibulo teneri debent... Horum autem corpora, abseque
Principis venia, minime sunt accipienda de cuius iussu suspensa reperinuntur...
Suspensi cadaver, cum Principis licentia, licite dari potest medicis pro anatomia”
(R. P! E Francisci Mariae Samuellii... Praxis nova observanda, in ecclesiasticis sepul-

482
turis, Christifidelibus catholicis tradendis, apud Pellegrinum Bidellium, Lucca,
1650, pp. 340-1).
57. O cadáver da infanticida pisana dissecada no início do século xvI por Real-
do Colombo, depois de ter revelado seus segredos, foi doado a um colaborador
(Realdi Columbi, De re anatomica libri Xv, cit., p. 11 1).
58. A procissão de San Luca era um momento crucial dos conflitos e de aferição
de prestígio: cf. E. Grottanelli, I viaggi della Madonna di San Luca, Bolonha, 1976.
59. Biblioteca Universitaria di Bologna, ms. 1071, xxI1I, n. 34: De cadaveribus
pro anatome inservien tibus.
60. ASB, Tribunale del Torrone, 7679, 11 (17125, fasc. 40: “contra scolares artis-
tas”). Indiquei o documento no prefácio a A. Carlino, Lafabbrica del corpo, Turim,
1994, pp. xv111-xIx.
61. Cf. o importante ensaio de E. Brambilla, “Battesimo e diritti civili dalla
Riforma protestante al giuseppinismo”, Rivista storica italiana, clx ( 1997), pp.
602-27.
62. I. D. Mansi, Documenti per confortare i condannati a morte, Turim, 1690,
pp. 355-õ. 379, 387.
63. Archivio arcivescovile di Bologna, fundo Scuola dei confortatori, b. 8, faz.
12, C. 144.
64. A. Petrucci, Le scritture ultime, Turim, 1995, p. 144.
65. Ver do autor, Il controllo della paura di morire: Bologna 1675-1796, in L.
Guidi, M. R. Pelizzari e L. Valenzi, Storia epaure, cit., pp. 308-18.
66. Sobre o problema da “presença”, ver os estudos de Ernesto de Martino e a
casuística reunida por ele in La fine del mondo. Contributo all'analisi delle apoca-
lissi culturali, ed. C. Gallini, Turim, 1977 e 2003.

Pos1=Ác1o [pp. 403-7]

1. I. Habermas, Die Zukunft der menschichen Natur cit. [trad. it. cit. p. 73].

433
Créditos das imagens

1. Digione, Archives hospitalières.


2. Istituzione Biblioteca Classense Ravenna, Italy.
3. Foto SCALA, Florence.
4. © The Art Archive/ Corbis/ LatinStock.
5. © Erich Lessing/ Album Art/ LatinStock.
6. Arquivos Alinari, Florence.
7. Foto scA1.A, Florence.
8. © Album/ AI<o-images/ LatinStock.
9. Zofingen, Historisches Museum.
10. Photo SCALA, Florence.
1 1. Photo SCALA, Florence.
12. © Bettmann/ Corbis/ LatinStock.
13. © Album/ A1<o-images/ LatinStock.
14. © Erich Lessing.
Índice onomástico

Abbot, Ezra, 226, 450 Albizzi, Francesco, 316


Abel, 186 Aldobrandini, Pietro, 429
Abraão, 184, 186, 192, 258, 458 Alessi, Giorgia, 423, 424
Accati, Luisa, 414 Alexandre vn (Fabio Chigi),papa ( 1655-
Acciaiuoli, Donato, 209, 210, 446 -1667), 316, 319
Accolti, Benedetto, 449 Alighieri, Dante, 192, 193, 331, 443
Achillini, Giovanni Philotheo, 459 Alger, William Rounseville, 450
Addobbati, Andrea, 432 Alpers, Svetlana, 468
Adriano, Públio Elio, imperador, 257 Altaner, Berthold, 478
Agaesse, Paul, 442 Amadori, Isabella, 130
Agostinho de Hipona, santo, 62, 177, Amat, Jacqueline, 457
180, 181, 182, 186, 187, 188, 234, Ambrósio, santo, 180
268, 437, 441, 442 Amort, Eusebiust, 245
Ahlwardt, Peter, 432 Amos, 280
Albayuceto, Moisés, 34 Angelini, Nicola, 47
Albérico da Rosciate, 279, 463 Angelo “de Raconis”, 449
Alberti, Alberto, 3 16 Anghiera, Pedro Mártir de, 417
Aflberti, Leandro, 266, 449, 459, 460 Anisson, Laurentius, 441
Albertus de Albertis, 470 Anselmo d”Aosta, santo, 374
Abini, Giuliana, 420, 429 Ansgar Kelly, Henry, 455
Albizzi Tornabuoni, Giovanni degli, Antifonte, 419
326 Antonio “Musa”, Brasavola, 447

487
Antonio de Pádua, santo, 356, 358 Bartholomaeus, Martin, impressor,
Antonio Pierozzi, santo, 209 444
Aragon, Philippe, 426, 450 Bartoli, Daniello, 365,477
Aranzio, Giulio Cesare, 51, 276, 277, Baschet, Jérôme, 442, 451, 455, 458
289 Baun, Jane, 443
Archigny, Jeanne, 142 Bayle, Pierre, 218, 449
Ariès, Philippe, 393, 419, 443, 482 Beattie, John M., '423, 424, 426
Aristóteles, 61, 250, 253, 254, 265, 282, Beccaria, Cesare, 85, 86, 87, 138, 348,
284, 287, 293, 443 422, 427, 428, 431
Armani, Caterina, 432 Bedori, Carlo Antonio, 350, 351, 352,
Aronberg Lavin, Marilyn, 412 353, 354
Arquer, Sigismond, 219, 449 Beer Ellen, Judith, 454
Arrighetti, Graziano, 439 Beinart, Haim, 441
Arrighi, Giacomo, 23, 24, 137 Belforte, Ester, 412
Assmann, 4 1 9 Belforte, Salomone, 412
Asso, Cecília, 448, 458, 460 Bellabarba, Marco, 414
Atti, Joan Fabrizio degli, 444 Bellamy, Joyce, 446
Auerbach, Erich, 409 BeÍli, Giulia di, 427

Auzzas, Ginetta, 445 Belvederi, Giulio, 480


Averróes (Abu `l-Walid Muhammad Benacci, Vittorio, impressor, 478
Benedetti, Alessandro, 272, 460
ibn Rushd), 294
Benedetti, Vincenzio, 122
Azpilcueta, Martin de, ver Navarro,
Benjamin, Walter, 406
doutor, 431
Bento xll (Jacques Fournier), papa
(1334-42), 198
Baduel, Alessandra, 438
Bento xiv (Prospero Lambertini), papa,
Baechem, Nicolas, 268
(1740-58), 37, 110,134, 430, 464
Baer, Karl Ernst von, 466
Benvenuti Papi, Anna, 415, 445
Baffetti, Giovanni, 445
Bérgamo, Venturino de, 370, 371, 372,
Bainton, Roland H., 430
373, 374, 375, 377, 380, 478, 479
Baldassari, Guido, 455 Beriou, Nicole, 420
Ballard, Martha, 56, 418 Berlinguer, Luigi, 425
Baratti, Danilo, 423 Bernabei, Italo, 429
Barberis, Walter, 432 Bernardi, Nicolo Maria, 350
Barbiano, Giovanni, 312 Bernardi, Walter, 468
Barbieri, Cesare, 104 Bernardino de Siena, santo, 39, 202,
Barillari, Sonia Maura, 451 249, 425
Barnes, Richard, 469 Bertelli, Sergio, 457
Baronio, Cesare, 472 Bertello, Pietro, 465, 466

488
Bertini, Maurizio, 414, 419, 458 Boer, Wieste de, 422
Bertolani, Maria Cecilia, 444 Bolognesi, Dante, 425
Bertolotti, 413 Bolonha, Gieronimo de, 458
Bertrand, Régis, 425 Bolonha, Vincenzo de, 52
Bertrand-Mirkovic, Aude, 475 Bolton, Brenda M., 421
Besomi, Ottavio, 482 i Bonardo, Vincenzo, impressor, 459
Betta, Emmanuel, 7, 456, 462, 463 Boncompagni, Giacomo, 461
464, 471 Bondone, Giotto di, 393
Bettona, Pola da, 78, 203 Bonetta, Pellegrina, 79
Bianchetti, Cesare, 136, 434 i Bonhomme, Mathia, impressor, 449
Bianchi, Adanella, 426 Bonvisi, cardeal, bispo de Lucca, 469
Bieler, Ludwig, 420 Borges, Jorge L., 343
Bierlaire, Franz, 448 Borgna, Eugenio, 439
Bietenholz, Peter G., 471 Borgovini, Giovanni Antonio, 428
Bigeschi, Antonio, 416 Borio, Pier Cesare, 419, 476
Bigordi, Domenico, ver Ghirlandaio Bossy, John, 479
Bigordi, Ridolfo, 325, 327 Boswell, John, 447
Bijnkershoeck, Cornelis van, 419 Bouquet, Damien, 445
Billi, Lorenzo, 18 Bourbon, Etienne de, 64
Billi, Marta, 18 Bourignon, Antoniette, 449
Billotte, Denis, 422 Boutry, Philippe, 453
Bing, Gertrud, 473 Bovi, Bonaventura de”, 440
Binni, Walter, 438 Bovi, Isabetta Elena de”, 440
Biondi, Albano, 451 Boxer, Marilyn J., 466
Biondo, Flavio, 167 Brachet Contol, Giacomo, 479
Bingen, Hildegarda de (I-Iildegard von Brambilla, Elena, 483
Bingen), 189, 190, 289 Branc, Vittore, 439
Bino, Camilla di, 45 Brancaccio, Francesco Maria, 316
Bistici, Vespasiano da, 210,446 Brancaleone, Giovan Francesco, 461
Bizzocchi, Roberto, 442 Brandt, Susanna Margarethe, 86
Bladio, Antonio (Antonius Bladius), Brechtanus, Jacobus, impressor, 462
impressor, 463 Bredekamp, Horst, 473
Bloch, Marc, 407, 445, 475 Briggs, Robin, 418
Boccaccio, Giovanni, 1 15 Brissaud, Yves-Bernard, 420, 421, 422
Bock, Gisela, 438 Brissat, Pierre de, 238
Bodei, Remo, 439 Brizzi, Giampaolo, 7, 433, 434
Bodin, Jean, 224, 450 Brown, Peter, 440, 457
Boécio, Anicio Mânlio Torquato Seve- Brunetti, Giovan Francesco, 347
rino, 330, 473 Bruni, Sabatina, 144, 145, 400

489
Bruno, Giordano, 276, 462 Carlino, Andrea, 483
Bullinger, Heinrich, 271 Carlos Borromeo, santo, 108, 280
Burckhardt, Jacob, 326 Carlos de Valois (Sem-terra), conde de
Burton, Robert, 421 Alençon e Chartres, 178
Busson, Henri, 450 Carlos Magno, rei dos Francos (de
Butzer, Martin, 464 Neustria), imperador do Sacro
Império Romano (800-813), 64
Caffiero, Marina, 413 Carlos v de Habsburgo, imperador do
Cagni, Giuseppe M., 446 Sacro Império Romano (1519-58),
Cagnoli, Gerardo, 153 [ou Carlos I, como rei da Espanha
Caia, filha de camponês, 1 10, 135 (1516-56)], 72,178, 346
Caim, 186 Carlos v1 de Valois, rei da França (1380-
Calio, Tommaso, 412 - 1422), 381
Calvino, João (Jean Calvin), 190, 216, Carmignani, Giovanni, 41 1
217,219, 220, 243, 271, 272, 387, Carol, Anne, 425
448, 460 Carpi, G. A. de, impressor, 459
Campanella, Tommaso, 150, 275 Carrari,Vincenzo, 279
Cancer, Mattia, 461 Carratori, Luigina, 452
Candido, são, 244 Carrithers, Michael, 475
Canevazzi, Eugenio, 461 Carrol, Michael, 481
Cangiamilla, Francesco Emanuele, 247, Cartesio ver Descartes, René
248, 428, 456 Caruso, Carlo, 482
Cantimori, Delio, 441, 450, 474 Casagrande, Carla, 455
Cantini, Lorenzo, 424 Casali, Elide, 433, 434
Cantú, Cesare, 422 Casanate, Girolamo, 470
Capaci, Bruno, 433 Casarini, Maria Pia, 428, 435
Capponi, Antonio, impressor, 412 Casas, Bartolomé de las (Bartolomeu),
Caprariis, Vittorio de, 432 159
Capri, Alberto Pio de, 266 Casella, Silvia Concetta, 452
Caprini, Rita, 472 Cassiodoro, Flávio Magno Aurélio,
Carafa, Carlo, 426 473
Caramuel Lobkowitz, Juan de, 315, Castelnuovo, Enrico, 454
316, 318 Castro, Pietro di, 416
Cardano, Girolamo, 44 Castro, Rodrigo de, 464
Carena, Carlo, 441 Catalanotto, Pina, 425
Caridade, santa, 244 Catarina de Siena, santa, 377, 378, 383,
Carlassaro da Corneto, Bernardino, 384
240 Catarina de'Vigri, sóror, 383
Carlevaris, Angela, 443 Catto, Michela, 434

490
Cavallo, Tommaso, 427 Cohen, Jeremy, 414
Cavarzere, Marco, 465 Cohn, Norman, 41 1
Cavazza, Silvano, 7, 420, 453, 454 Colao, Floriana, 425
Cazzetta, Giovanni, 429 Coleman, Emily R., 418
Céard, Jean, 437 Collado, Diego, 323
Cecchini, Fausta, 428 Cofilet, Claude, 140
Celso, filósofo, 184 Collina, Beatrice, 416
Cesareia, Eusébio de, 184 Collins, Steven, 475
Cesareia, Vicentius Victor de, 186 Collodi, Silvestro Andrea da, campo-
Ceschi, Rafaello, 423, 424, 453 nês, 232
Chan, Albert, 477 Colombo, Cristóvão, 158, 212, 437
Chancey, Claudius, impressor, 469 Comino, Giancarlo, 451, 454
Chartier, Roger, 425 Compagni, Dino, 178, 372, 441
Chaucer, Geoffrey, 36 Comuzzi, Annalisa, 430
Cherchi, Paolo, 416 Conetti, Mario, 463
Chiffoleau, Jacques, 422 Constantino 1, FlávioValério, o Grande,
Chigi, Flavio, 438 imperador (306-37), 174
Chollet, Arthur, 465 Conte, Gian Biaggio, 472
Ciammitti, Luisa, 435 Cooper, Kate, 452, 480
Ciani (ou Ciacci), Simone, 48 Corbin, Alain, 425
Ciani (ou Ciacci),Vittoria, 50 Corblet, Jules, 235
Cícero, Marco Túlio, 457 Corrain, Cleto, 444, 452
Cifres, Alejandro, 416 Corre, Armand, 409
Ciliberto, Michele, 450, 462 Corsaro, Antonio, 461
Ciotti, Giovanni Battista, impressor, Corsini, Carlo A., 418
417 Cortés Peña, Luis, 470
Cirigliano, Antonia, 429 Cortona, Margherita da, 43, 415
Clemente Iv (Gui Folques), papa ( 1265- Cosimo 1 de Médici, 0 Grande, duque
-1268),208 de Florença (1537), depois grão-
Clemente xi (Giovan Francesco Alba- -duque da Toscana ( 1569-74), 45
ni),papa (1700-1721), 346 Cosimo 111 de Médici, grão-duque da
Cline Horowitz, Maryanne, 466 Toscana (1670-1723), 75, 122, 319,
Codigoro, Piero da, 392 321, 424
Codronchi, Gian Battista, 278, 279, Costa, Gustavo, 469, 474
280, 281, 285, 286 Costanti, Bernardino, 48
Codronchi, Tiberio, 462 Cremonini da Manzolino, Lucia (Lucia
Codrone Argeli, Antonio Francesco, Maria), 13, 27, 29, 55, 59, 78, 82, 95,
350 99,103,119,125,133,140,145,166,
Cohen, Beth, 418 170, 172, 174, 258, 265, 286, 324,

491
334, 338, 339, 346, 347, 348, 360, Dodds, Eric R., 257
395, 407, 476 Doglio, Maria Luisa, 444
Cremonini da Manzolino, Nicola, 103, Dölger, Franz Joseph, 41 1
409 Dolinar, F. M., 430
Cremonini, Caterina, 13, 28, 141 Dominguito del Val, 34
Cremonini, Cesare, 287, 464 Donati, S., 465
Crescentino, Giuseppe Maria da, 432 Donattini, Massimo, 7, 435
Cressy, David, 415, 429, 469 Dondaine, Antoine, 479
Crisciani, Chiara, 463 Donnison, Jean, 415
Croce, Benedetto, 461 Dovring, Folke, 438
Croce, Giulio Cesare, 433, 434 Dreyfus, Ginette, 466
Crusius, Martin, 451 Duby, Andrée, 453
Cugnoni, Giuseppe, 463 Duby, Georges, 453
Cumont, Franz, 444, 482 Duden, Barbara, 431, 436, 465,466
Curi, Umberto, 466 Dülmen, Richard van, 417, 422, 423,
Curione, Celio Secondo, 441 425, 42 7, 476
Cysat, Renward, 451 Dupré Theseider, Eugenio, 479
Dupreux, Cécile, 454
d'Albano, Pietro, 443 Durkheim, Émile, 336, 337,475
D'Amelia, Marina, 410 Dworkin, Ronald, 193, 443
d”Autun, Honório, 393
D'Este, Eleonora, 447 Ebeling, Hans, 482
Darmon, Pierre, 467 Eccleston, Thomas de, 412
Dateo, arcipreste rnilanês, 64 Eck, Reimer, 427
Däubler-Hauschke, Claudia, 439 Elias, 259
Del Punta, Francesco, 465 Elze, Reinhard, 420, 443
Delcorno, Carlo, 444, 445, 455 Enoque, 259
Descartes, René, 297, 467 Epicteto, 9, 327, 332, 333, 474
Dessí, Rosa Maria, 445 Epinay, Louise Tardieu d°Esclavelles,
Devenet, Joannis Baptista, 441 89
Dião, pró-cônsul, 262 Equicola, Mario, 267
Dickinson, J. R., 424 Erdmann, Christ. Gottl., 426
Diderot, Denis, 89 Ernst, Germana, 461
Diers, Michael, 473 Esaú, 192
Dieselhorst, Jürgen, 480 Esposito, Anna, 412
Diez, Luis, 420 Evans, Richard J., 417, 427, 476
Dinus de Florentia, ver Garbo, Dino del
Dionisio, o Pequeno (Dionysius Exi- Falbel, Nachman, 441
guus), 65 Fanti, Mario, 478, 480

492
Fantuzzi, Giovanni, 478 Fontana, Giovanni, 429
Faoro, Luca, 433 Forbes, Thomas R., 414, 415, 416
Farber, Paul Lawrence, 468 Foresti, Giacomina, 146
Farel, Guillaume, 236 Forman Cody, Lisa, 436, 450
Farr, James R., 423, 425, 434, 435 Fosi, Irene, 455
Fawtier, Robert, 479 Foucault, Michel, 84, 348, 438
Fecia, Fabrizio, 469 Fougeyron, Ponce, 39
Feifel, Herman, 482 Fracastoro, Agnolo Alessandro, 440
Félix, cura de Notre-Dame de Beau- Fracastoro, Benedetta Bartolomea, 440
voir, 238 Fracastoro, Bernardino, 440
Fernando 11, 0 Católico, rei de Aragão, Fracastoro, Carlo Paolo, 440
267 Fracastoro, Margherita, 440
Fernel, Jean (Fernelius), 294, 466 Fracastoro, Tomio Bartolomé, 440
Ferrante, Lucia, 435 Fragnito, Gigliola, 463
Ferrara, Mario, 201, 290,373, 392, 412, Francesca, mulher de Pistoia, 72, 208
429, 445, 446, 447,464, 480, 482 Francesca, Piero della, 208, 318, 412,
Ferrari, Giovanna, 460, 476 470
Ferraris, Lucius, 471 Franceschini, Chiara, 7, 446, 451
Ferri, Rolando, 472 Franchi, Santi, impressor, 433
Ficino, Marsilio (Marsilius Ficinus), Franchini, Camilla, 129
265, 459 Frank, Johan Peter, 94, 248, 428
Filesac, Jean (Ioannes Filesacus), 417 Frati, Ludovico, 429
Filipe Iv, o Belo, rei da França (1285- Fratti, Domenica, 19
- 1314), 34 Frederico 11 de Hohenzollern, o Grande,
Filippini, Nadia Maria, 428, 455, 456 rei da Prússia, 90
Fineschi, Filippo, 482 Freud, Sigmund, 30, 151, 41 1, 436
Fiore, Alessio, 451 Friedberg, Aemilius, 431
Fiorentini, Girolamo, 311, 312, 313, Froimond, Libert, 466
314, 315, 316, 317, 318, 319, 320, Fründ, Hans, 40, 414
321, 469, 470 Führkötter, Adelgundis, 442
Firpo, Luigi, 462 Fumagalli, Vito, 480
Firpo, Massimo, 449 Funicella, 39
Fiume, Giovanna, 415, 424, 425 Funkenstein, Amos, 466
Flamínio, César, 44 Fyens, Thomas (Fienus), 291, 292, 293,
Flandrin, Jean-Louis, 426, 432, 434 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301,
Florentino, Hieronymo, 469 303, 304, 305, 315, 318, 410, 466, 467
Flynn, Maureen, 482
Fontana, Aldigherio, 433, 434 Gaeta, Tommaso de Vio da (Caietano
Fontana, Fulvio, 133, 134, 433 ou Gaetano), 154

493
Galeno, Cláudio, 61, 157, 276, 294, 460 Girard, René, 476
Galeotti, Giulia, 419 Gittings, Clare, 48 1
Galilei, Galileu, 293, 298, 300 Giudici, Battista de”, 41
Galleni, Valerio, 456 Giussani, Antonio, 453
Gallini, Clara, 483 Giustiniani, Paulo, beato, 459
Gambi, Lucio, 425 ' Glaitter, Appolonia, 49
Garbo, Dino del, 465 Gleitsmann, Uwe, 427
Garin, Eugenio, 446, 459, 474 Gliozzi, Giuliano, 438
Garzoni, Tommaso, 51, 416 Godefroy, Louis, 428
Gassendi, Pierre, 298, 299, 300, 312, Goethe, Johann Wolfgang, 85, 86, 87,
441,467 94, 394
Gatti, Carlo, 426 Gombrich, Ernst H., 417
Gauvard, Claude, 421, 422 Gotor, Miguel, 481
Gavitt, Philip, 447 Gowing, Laura, 434, 435
Gélis, Jacques, 235, 414, 415, 451, 452, Graaf, Reinier de, 305, 307
453, 454,455, 456 Graciano, Flávio, imperador romano
Gelzer, Thomas, 472 do Ocidente (375-383), 61
Gensini, Sergio, 479 Gram, Henricus, 415
Gernet, Louis, 476 Grandi, Casimira, 447
Gerson, Jean, 67,68, 69, 71, 381, 421, Granet, Marcel, 169, 439
422 - Gray, Celina, 418
Gestrich, Andreas, 427 Greene, Anne, 80, 425
Ghini, Felice, 144 Gregório xl (Pierre Roger de Beaufort) ,
Ghirardacci, Cherubino, 450 papa (1370-1378), 377
Ghirlandaio, 119, 326, 327, 330 Gregório xiv (Niccolo Sfondrati), papa
Ghiselli, Antonio Francesco, 104, 429 (1590-1591), 282, 283 1
Ghislieri, Michele, 46 Gregory, Jeremy, 452, 480
Giampietro, Raffaele, 427 Gregory, Tullio, 457, 467
Gilbert, Felix, 458, 459 Grillenzoni, Luca, 469
Gilino, Gian Giacomo, 429 Grimaldi, Lucia, 1 18
Gill, Joseph, 446 Grimaldi, Piercarlo, 431
Gilson, Etienne, 443 Grimm, Jakob, 89
Ginzburg, Carlo, 7, 328, 410, 411, 413, Grion, P. A., 478
422, 429, 442,443, 449, 451, 472 Gritsch, Ruth C. L., 430
Ginzburg, Natalia, 325, 361, 428, 477 Grmek, Mirko, 418
Gioanetti, Andrea, 432 Groot, Hugo de (Grotius), 162, 438
Giolito de” Ferrari, Gabriel, impressor, Grosse, Christian, 449
450 Grottanelli, Elena, 483
Giovagnoni, Anna Maria, 130 Grubb, James S., 440

494
Gualandi, Francesco Maria, 104, 105, Hertz, Robert, 168, 169, 202, 348, 439,
106 453, 476
Guastavillani, Arsilia Ringarda Cate- Heywood, Colin, 421
tina, 145, 146, 435 Hicks, Eric, 421
Guasti, Cesare, 461 Hinderbach, Johannes, 35, 41, 414
Guerrini, Mauro, 427 Hipócrates, 290
Guicciardini, Francesco, 127, 432, 445 Hoffer, Peter C., 423, 424
Guidi, Laura, 476, 483 Hole, Christina, 444
Guidotti, Berto, 456 Horne, D. Joh. van, 468
Guidotti, Ortenzia, 456 Houtman, Cornelis, 419
Guinefort, são, 64, 420 V Hoven, René, 448
Gumppenberg, Wilhelm, 235, 238 Howard, Peter Francis, 446
Gusdorf, Georges, 457 Hünecke, Volker, 418, 420, 426, 447
Gutscher, Daniel, 454 Huguetan, Jo. Antonius, 410
Huizinga, Johann, 382, 448
Haak, Theodorus, impressor, 468 Hull, N. E. H., 423, 424
Haase, Wolfgang, 437 Huovinen, Eero, 448
Habermas, Jürgen, 338, 475, 483 Huygens, Constantijn, 305
Halkin, Leon-H., 448
Hamel, Jean, 470 Illuminata, sóror, 383, 480
Hanke, Lewis, 437 Inês, santa, 355
Hanlon, Gregory, 419 Infessura, Stefano, 39
Hansen, Joseph, 413, 414 Ingrassia, Giovanni Filippo, 157, 437,
Harnack, Adolf von, 472 456
Harrington, Joel F., 423 Inocêncio 111 (Lotario dei conti di Segni),
Harvey, William (Guilielmus Har- papa (1198-1216), 34, 65, 66, 117,
Veus), 302, 467 279, 376, 431, 472
Hay, Douglas,477 Inocêncio x (Giovanni Battista Pam-
Heineccius (Johann Gottlieb Heine- phili), papa (1644-1655), 303
cke), 474 Inocêncio xr (Benedetto Odescalchi),
Henrique II de Valois, duque de Or- papa (1676-1689),322, 325,471
léans, rei da França (1547-59), 73 Israel, Jonathan I., 457
Henrique III de Valois, duque d'Anjou, Italiani, Giuliana, 444
rei da Polônia ( 1573-75), rei da Iuniore, Landolfo, 420
França (1574-89), 74
Herodes 0 Grande (c. 73 a.C.-4 a.C.), Jackson, Holbrook,421
201, 202 Jackson, Mark, 411,413, 424
Heródoto, 150 Jacó, 192
Hersperger, Patrick, 463 Jaime I Stuart, rei da Inglaterra (1567-

495
-1625 ) vicomo rei' da E scocia
" '
2adner,Gerhart B.,448
(1567), 74 Laget, Mireille, 414
Íanssonium, Joannis, impressor, 466 Lambertini, Prospero ver Bento xlv
Íedin, Hubert, 418 Lambertini, Roberto, 463
ferõnimo, são, 261, 262 Lamezan, Adrian von, 427
Íesi, Furio, 41 1 Landsberg, Joh. Ernestus, 482
fezler, Peter, 454 Lantinelli, Ludovico, 132
Íoana d”Arc, santa, 235 Lanza, Antonio, 465, 468, 469
Íoão Batista, santo, 321, 375, 446, 471 Lanzi, Guido, 469
Íoão Bosco, são, 412 Laon, Anselmo de, 206,445
Íoão Nepomuceno, são, 381 Laurenza, Domenico, 458, 461, 472
Íodischky, A., 452 Lauwers, Michel, 458
fosé, são, 356 Lavenia, Vincenzo, 7, 431, 438, 464,
fosefo, Flávio, 412 467, 469, 470
, udas, patriarca de Israel, 482 Le Boulenger, Etienne, 470
Le Bras, Gabriel, 471
Kant, Immanuel, 251, 336 Le Goff, Jacques, 442
Kantorowicz, Ernst H., 335,474 Leão X (Giovanni de Médici), papa (c.
Kapparis, Konstantinos A., 419, 462 1513-1521), 458, 461
Kapuscinski, Ryszard, 439 Lehmann, V., 421
Karant-Nunn, Susan, 448 Leibniz, Gottfried Wilhelm von, 457
Kennedy, L. A., 464 Lelio, filho de um nobre bolonhês, 1 10,
Kertzer, David, 413 135
Kircher, Athanasius, 438 Leonardi, João, beato, 31 1, 312, 314
Kittsteiner, Heinz D., 432 Leonhard, Karin, 468
Klapisch-Zuber, Christiane, 442, 443 Leopardi, Giacomo, 9, 87, 182, 418,
Klinger, Friedrich Maximilian, 85 438, 472
Knox, John, 481 Leopardi, Monaldo, 455
Kobusch, Theo, 474 Leopoldo 1, grão-duque da Toscana
Köhler, Walter, 448 (1765-1790), 424
Kolakovski, Leszek, 446 Lett, Didier, 443, 444, 451
Koslofsky, Craig M., 481 Lettieri, Gaetano, 442
Kramer, Heinrich, 41, 42 Levi della Torre, Stefano, 41 1
Kristeller, Paul Oskar, 414 Levi, Carlo, 233,452
Kristeva, Julia, 435 Levi, Primo, 343, 406
Krogel, Wolfgang, 482 Leyva, Virginia de, 421
Licetti, Fortunio (Fortunius Liceti),
Labouvie, Eva, 444, 450 466
Lâchele, Rainer, 427 Liébana, beato de 184

496
Liebmann, Maximilian, 430 Macchiavelli, Carlo Antonio, 368, 475,
Lille, Alain de, 479 478
Linara, Livia da, 434 Macchiavelli, Luigi di Leonardo di
Linara, Madalena da, 141 Antonio (antepassado fictício de
Lincoln, Hugh de, 36 Carlo Antonio) , 368
Linebaugh, Peter, 477 Maffei, Domenico, 479
Liuzzi, Mondino de' (ou de Luzzi), 290 Magalhães, Fernão de, 158
Locke, John, 334,474 Maher, Vanessa, 415
Lombardi, Daniela, 429, 433 Maiello, Francesco, 481
Lombardo, Pietro (Píer), 192 Maistre, Joseph de, 480
Lomezan, Adrian von, 427 Maillard, Olivier, 65, 421
Longhi, impressor, 432 Mainardi, Agostino, 460
Lorenzetti, Ambrogio, 371 Malcontenti, Benedetto, 354, 355

Lourenço de Médici, 0 Magnífico, Malebranche, Nicolas de, 292, 312,466,


469
senhor de Florença (1469-1492),
Malpighi, Marcello, 468
119
Malvolti, Alberto, 456
Luchtmans, Samuele, impressor, 468
Manara, Giacinto, 476
Luciani, Ferdinando, 481
Mandeville, Bernard de, 81,426
Lucignani, Barbara, 18, 21, 437
Manelfi, Pietro, 449
Lucrécio, Caro Tito, 55, 256, 265, 266,
Manetti, Gianozzo, 207, 209, 210, 445,
267, 303,304, 366, 459, 462
446
Luft, Maaike van der, 442
Mansi, Joannes Dorninicus, 420, 459,
Leeuwenhoek, Antoni van, 305
483
Lukes, Steven, 475
Mantelli, Giuseppe Maria, 102
Luna, Concetta, 465
Manuzio, Aldo, 265, 266
Lusitano, Amato, 290, 465
Manzini, Giovanni Francesco, 105
Lutero, Martinho (Martin Luther),
Manzoni, Alessandro, 113, 167, 421,
112, 113,124,190, 195, 208, 213, 429
214, 215, 216, 217, 219, 271, 386, Maquiavel, Nicolau, 267, 275
448 Marchetti, Valerio, 438
Lutterbach, Hubertus, 419, 420 Marcial, Marco Valério, 326
Luxembourg, madame de, 89 Marcuse, Herbert, 482
Luxembourg, Pierre de, 452 Marcuz, Maria, 117
Luzia, santa, 103 Marechale, Antoinette, 143
Luzzatto, Gino, 441 Marek Marku, Jan (Johannes Marcus
Lynch, Richard, 312 Marci), 467
Lyon,Valdo de, 479 Marongiu, Antonio, 430
Marrou, Henri-Irénée, 440

497
Marsch, Edgar, 432 Milanesi, Claudio, 425
Martelli, Domenico, 410 Milão, Leone de, 447
Martin-Chauffier, Louis, 427 Minucio Felice, Marco, 419
Martini, Martino, 365, 477 Mirai, Leonardo, 1 15, 430
Martino, Ernesto de, 483 Mitterauer, Michael, 443
Mart0re1liVico, Romana, 463, 465 Moisés, 267
Masciarelli, Pasqualino, 474 Mojsisch, Burkhard, 459
Massa, Eugenio, 459 Molin, Giovanna da, 42 8, 434
Matelli, Gabriele, 430, 477 Momigliano, Arnaldo, 439
Matelli, Luisiana, 430, 477 Montaigne, Michel Eyquem de, 332
Mattea, mulher de Perugia, 78, 141 Monteventi, Antonio, 16
Mattioli, Elena, 102 Monti, Maria Teresa, 468
Mauss, Marcel, 336, 337, 339, 439, 474, Moos, Peter von, 441, 445, 446, 448
475 453
Maximiliano, santo e mártir, 262 Morelli, Antoniotto, 440
Mazzanti, 129 Morelli, Bartolommea, 439
Mazzini, Anna Maria, 79 Morelli, Giovanni di Pagolo, 439
Mazzolini, Renato, 468 Morelli, Lionello, 440
McDonald, Michel, 451 Mores, Francesco, 420
Meersseman, Gilles Gerard, 478 Moretti, Vincenzo, 450
Meisen, Konrad, 451 Morillon, Claudius, impressor, 466
Meister, Georg Jac. Friedrich, 410,427 Morina, Giulio, 480
Melloni, Alberto, 413 Mortara, Edgardo, 413
Mena, F., 423 Moser, Johann Jacob, 84, 426, 427
Mengant, Margherite, 81 Moulin, Jean du, 470
Menitti Ippolito, Antonio, 471, 482 Mühlethaler, Jean-Claude, 422
Menochio, Giovanni Stefano, 472 Müller, Friedrich, 85
Meo, Camilla di, 141 Müller, Isso, 453
Mercuriale, Girolamo, 284, 285,464 Muratori, Ludovico Antonio, 64, 420
Mercúrio Trismegisto, 294 431
Mercurio, Scipione, 51, 52, 53,170,416 Murphy, Terence R., 45 1, 481
417, 439 Murphy-Lawless, J., 415
Meuli, Karl, 472 Murray, Margaret, 415
Meyendorff, John, 446 Muzzarelli, Maria Giuseppina, 432
Meyerson, Ignace, 471
Miccoli, Giovanni, 413, 479 Nadler, Steven, 457
Michelet, Jules, 167 Naldi, Rita, 470
Michiel Venier, Laura, 55 Nardi, Bruno, 443
Migne, Jacques-Paul, 452 Nardi, Enzo, 419, 437,462

493
Nardi, Pietro, 458, 479 Padovani, Tullio, 428
Natale, Alberto, 433 Paghi, Mattia, 450
Natali, Anna Maria, 18, 21 Paglia,Vincenzo, 480
Navarro, doutor, 431 Pagolo, Agnola di, 141
Nazaré, Maria de, 80, 183, 185, 194, 236, Pagolo, Camilla di, 141
238,239,322 Palazzi, Maura, 435
Negri, Francesco, 288 Paleotti, Gabriele, 1 10, 123
Neppio, Cassandra di Giovanni da Paliotto, Lorenzo, 429
141 Pancino, Claudia, 414, 415, 416, 417
Newton, Isaac, 366 Paolin, Giovanna, 430
Niccoli, Ottavia, 410, 414, 415, 419 Papini, Carlo, 479
425,431,432,438 Paravicini Bagliani, Agostino, 414
Nicodemo, são, 180 Paravy, Pierette, 453
Nicolau v (Tommaso Parentucelli) Pardo Tomás, Iosé, 470
papa(1447-1455), 121 Park, Katharine, 480
Nicolini, Stephano, impressor, 439 Pasqualino, Antonio, 410
Nider, Iohannes, 40, 414 Passarotti, Ippolita, 132
Nischan, Bodo, 415 Pastor, Ludwig von, 471
Nobili, Giuliana, 438 Pastore, Alessandro, 409, 410, 424, 431
Noonan, Iohn T. Ir., 431, 462,463, 465 Paulo, são, 177, 262
Norwich, William de, 32, 412 Paulo 111 (Alessandro Farnese), papa
Numa Pompílio, rei de Roma, 267 (1464-1671?),158
Paulo v (Camillo Borghese), papa
O'Connor, Anne, 420, 444, 452 (1604-1621), 53, 246, 316, 444
Ockham, Guilherme de, 291 Paulo, Vicente de (ou Vicent de Paul),
Oberman, Heiko Augustinus, 481 são, 82, 222
Ochoa, Iavier, 420 Paz, Francisco, 293
Olivares, Gaspar de Guzman, 301 Pelágio, monge irlandês, 181, 187, 191
Olivari, Michele, 7 Pelizzari, Maria Rosaria, 476, 483
Oliveira, Iosé de, 431 Pero, Cesare, 450
Olmi, Giuseppe, 437 Perrando, Gian Giacomo, 437
Orígines, 441 Perrone Compagni, Vittoria, 460
Orsi, Faustina (Faustina de Ursis), 44 Peruzzi, Candida, 452
Orsola, mulher de um padre, 430 Pestalozzi, Iohann Heinrich, 87, 94,
Ortalli, Gherardo, 409 427
Osler, Margaret I., 468 Petrarca, Francesco, 167, 270, 444
Ossola, Carlo, 456 Petrônio, são, 356, 452
Ouy, Gilbert, 421 Petrucci, Armando, 483
Pfleger, Alfred, 454

499
Phan, M.-C., 423 Pomponazzi, Pietro (Petrus Pompona-
Piazza, Bartolomeo, 122, 346, 347, 355, tius), 158, 264, 267, 268, 275 292
356, 360, 428 458, 460
Piccolomini, Alessandro, 270, 410 Pona, Francesco, 288, 465
Pico della Mirandola, Gian Francesco, Ponce de Santa Cruz, António, 301
459 ' 302, 467,468
Pierrette, parteira, 415 Poni, Carlo, 429 '
Pietramellara, Pietro, 350, 351, 355, Ponzetti, Ferdinando, 461
360, 363 Pope-Hennessy, Iohn, 329, 473
Pigafetta, Antonio, 158 Porcelli, Girolamo, 468
Pilati, Francesca, 435 Porcia, Bartolomeo da, 430
Pilati, Giuseppe, 18 Porret, Michel, 423
Pini, Carlo Antonio, 396 Porta, Giovanni Battista della, 438
Pio 11 (Enea Silvio Piccolomini), papa Possevino, Antonio, 438
(1458-1464), 270 Povolo, Cláudio, 418, 425
Pio lx (Giovanni Mastai Ferretti), papa Power, Eileen, 150
(1846-1878), 456,464 Poza, Ioannes Baptista (Iuan Bautista
Pio v (Michele Ghislieri), papa (1556- Poza), 318, 470
- 1572), 277 Pozza da Cornetto, Lorenzo della, 241
Piola, Giovanni Maria, 308 Pozzi, Giovanni, 367, 432, 478
Pisa, Giordano de, 246 Pozzi, Regina, 410
Pisari, Ferdinando, impressor, 433 Pozzo, Andrea da, 456
Pitré, Giuseppe, 432 Prata, Domenico, 13, 14, 147
Platão, 41, 250, 253, 254, 257, 265, 294, Préjean, Helen, 478
333, 443, 459 Preto, Paolo, 418
Plínio, Segundo Gaio (Plínio, o Velho), Prodi, Paolo, 471, 477
42, 158, 272, 460 Prosperi, Adriano, 410, 430, 451
Plutarco, 89 Prosperi, Valentina, 459
Po-Chia Shia, Ronnie, 412 Prost, Jacobus, impressor, 470
Poiret, Pierre, 218, 449 Pseudo-Dateo, 66
Poleti, Andrea, impressor, 413, 433
Polissena di Valentino, 141 Quaglioni, Diego, 412, 433, 462
Politi, Ambrogio Catarino (Ambrosius Quarton, Enguerrand, 227, 451
Catharinus Politus), 220 Quataert, Hean H., 466
Poliziano, Agnolo Ambrogini, 266, Quintiliano, Marco Fábio, 472
326, 327, 333,472
Poliziano, Lorenzo, 9 Racaut, Luc, 413
Pomata, Gianna, 415, 435 Radbruch, Gustav, 423
Pomrnier, Édouard, 473 Radicati di Passerano, Alberto, 88

500
Radzinowicz, Leon, 424 Rosso da Valenza, Francesco, impres-
Raffaele, Giovanni Battista, camponês, sor, 445
232, 452 Roterdã, Erasmo de, 213, 472
Raimondi, Giuseppe, 16, 24, 410 Rotondö, Antonio, 449, 460
Rameckers, Ian Mathias, 427 Rousseau, Iean-Iacques, 89, 90, 427
Rank, Otto, 436 Roveri, Laura, 451
Ranke, Leopold von, 28 Rowlands, Alison, 416, 418
Raquel, 36, 412 Rubin, Miri, 412
Realdo, Colombo, 76, 275, 483 Rublack, Ulinka, 77, 422, 425, 435
Recaldini, Giovanni, impressor, 477 Ruestow, Edward G., 468
Redi, Francesco, 122 Ruggiero, Guido de, 472
Regnoli, Camillo, 44
Remo, 186 Sabio, impressores, 439
Renato, Camillo, 219, 449 Saboia, Renato (o Bastardo), 236
Renaut, Marie-Hélène, 424 Sacchetti, família, 329; Giovanni Bat-
Renzetti, E., 453 tista, 246
Rheinfelder, Hans, 473 Sacchi, Bernardino, 434
Rhode, Erwin, 256 Saint-Yves, Pierre, pseudônimo de E.
Ricci, Laura, 435 Nourry, 453
Ricci, Ludovico, 459 Salimbene de Adam, 447
Ricci, Saverio, 463 Saló, Zaccaria de, 238
Ricuperati, Giuseppe, 457 Salome Hausmannin, Maria, 84
Riddle, Iohn M, 462 Salomon, rabino, 441
Rievaulx, Elredo de, 207, 445 Salomoni, Antonella, 438
Rigaux, Dominique, 414 Salteri, Ignazio, 16, 24, 410
Rio, Martin del, 44 Salvatori, médico do Papa, 470
Ristori, Renzo, 449 Samouillan, Alexandre, 421
Rizzi, Guido, 438 Sánchez, Tomás, 434
Roberto Belarmino, são, 321, 322, 471 Sandius, Christoph, 322,471
Robles, Gaspar de, 435 Sandoval, Alonso de, 441
Rochette, Bruno, 418 Sandri, Lucia, 447
Roger, Ignio, 414 Sangiacomo, Domenico, impressor,
Roger, Jacques, 468 428
Romano, Egidio, 290, 465 Santa, 76
Romano, Vincenzo, 446 Santini, Andrea, 16
Rômulo, rei de Roma, 186 Santori, Giulio Antonio, 463
Roodenburg, Herman W., 417, 438, Santschi, Catherine, 453
466 Sardi, Paolo, 419, 438, 463, 469
Rösslin, Eucharius, 43 Sarpi, Paolo, 1 17

501
Sassi, Carlo, 253, 265 Sharpe, I. A., 424
Savonarola, Girolamo, 171, 210, 439, Sigal, Pierre-André, 436, 455
446 Simone, R. I. de, 449
Saxer, Victor, 440 Simonino, 35,40, 412, 414
Scaduto, Francesco, 424 Simplício, Oscar di, 430
Scala, Bartolomeo, 333 Siniscalco, Paolo, 458, 473
Scalia, Gianni, 447 Sinistrari, Ludovico Maria, 428
Scaramella, Pierroberto, 7, 450, 455, Siraisi, Nancy G., 413
470 Sisto Iv (Francesco della Rovere), papa
Scarpa, Domenico, 428 (1471-1484), 65
Schauerte, H, 444 Sisto v (Felice Peretti), papa (1585-
Schiller, Friedrich von, 85, 87 -1590), 281, 282, 284, 286,456
Schlossmann,Siegmund,328,329,330, Smith, Woodruff D., 434
472, 473, 474 Soardis, Lazarus de, impressor, 446
Schlumbohm, Iürgen, 436, 444, 453, Socini, F. ver Fausto Sozzini
454, 455 Sócrates, 257, 326, 351
Schmidt, Karl, 474 Solfaroli Camillocci, Daniela, 480
Schmitt, C. B., 464 Solignac, Aime, 442
Schmitt, Iean-Claude, 228, 420, 444, Somasco, Giovanni Battista, impres-
45 1 sor, 462
Schmugge, Ludwig, 463 Sommervogel, Carlos, 469
Schutte, Joseph Franz, 471 Sordi, Marta, 481
Schwarz, Brigitte, 453 _ Soto, Alfonso, 282, 463
Scribano, Emanuela, 450 Sozzini, Fausto, 225, 450
Segni, Lotario dei conti di, ver Inocên- Sozzini, Lelio, 225, 269, 332, 460, 474
cio III Spallanzani, Lazzaro, 468
Seidel Menchi, Silvana, 433, 436, 453, Specchi, Giovanni degli, 458
454, 472 Specht, Rainer, 467
Selim Ill, sultão otomano, 465 Spierenburg, Peter, 476, 477
Sêneca, Lúcio Anneo, 43 7, 472 Spierling, Karen E., 449, 454
Sennert, Daniel, 467 Spinelli, Isabella, 423, 424
Sensi, Mario, 453 Spinelli, Salvatore, 429
Sepúlveda, Iuan Ginés de, 159 Spinoza, Baruch, 258, 259, 297, 457
Servet, Miguel (Michele Villanovano), Sprenger, Jacob, 41 , 42
272 Stahl, Paul-Henry, 482
Sessa, Melchiore, impressor, 447 Stango, Cristina, 463
Seyler, Iacobus Godofredus, impressor, Stella, Pietro, 428
417 Stewart, Andrew, 418
Sgrilli, Paola, 481 Stone, Lawrence, 79, 417, 421, 425

502
Storti, Francesco, 465 Tolomio, Ilario, 441
Storti, Gaspare, impressor, 471 Tomás de Aquino, 210, 43 7, 446, 455
Strom-Olsen, Rolf, 441 Tombesi, Antonio (Tomesius, nota-
Stupperich, Robert, 477 rius), 14
Stussi, Alfredo, 481 Tonelli, Maria, 129
Suarez, Francisco, 297, 467 Tongris, Gulielmus a, 466
Suetônio, Tranquilo Gaio, 328, 472 Tosto, Francesco Diego, 460
Swammerdam, Ian, 305, 306, 307, 468 Tourn, Giorgio, 448
Swiden, Nicolas, 477 Trevor Hugues, I., 425 '
Trexler, Richard C., 69, 72, 419, 422,
Tanturri, Alberto, 451 423, 43 7, 451
Taradel, Ruggero, 412 Trifone, Pietro, 413
Tartini, Giovanni Gaetano, impressor, Trigg, Ionathan D., 448
433 Trinkhauss, Charles, 481
Tasso, Torquato, 275, 361, 461 Trottmann, Christian, 444
Tassoni, Giovanni, 437 Tugnoli, Cláudio, 468
Taviani, Paolo Emilio, 437 Tura, Diana, 435
Tempestivo, Fabio, 462
Temporin, Hildegard, 437 Uccello, Paolo (Paolo di Dono), 33, 34,
Terpstra, Nicholas, 480 412
Tertuliano, Quinto Setimio Florêncio, Ulrich-Bochsler, Susi, 454
60, 62, 183, 188,256, 268, 284, 411, Ursini, Bellezze, 38, 39, 40, 41, 413
419, 441, 457,472 Usener, Hermann, 168,439
Testoni, Caterina, 102 Usepia, 78, 141
Thatcher Ulrich, Laurel, 418 Utz Tremp, Kathrin, 414, 454
Theognostos, monge bizantino, 190,
191 Valente, Michaela, 448
Thierry, Augustin, 150 Valenza, Francesco, impressor, 445
Thiers, Iean-Baptiste, 238, 454 Valenzi, Lucia, 476, 483
Thimeu, Francesco, 1 17 Valgrisi, Vincenzo, impressor, 465
Thomas, Keith, 415 Valier, Agostino, 463
Tierney, Basil, 474 Valla, Lorenzo, 332
Tillier, Annick, 425, 426 Valvassene, Giovanni Francesco, im-
Tinagli, Giuseppe, 479 pressor, 416
Toaff, Renzo, 413 Vanni Rovighi, Sofia, 477
Toaldo, Giuseppe, 418 Varanini, Giorgio, 455
Tognetti, Livio, 432 Varazze, Iacopo da, 455
Toldo, Niccolo di, 379, 380, 479 Varela, Consuelo, 437
Tolomeo, Cherubino, 445 Vasari, Giorgio, 274, 330, 461

503
Vasella, Oskar, 452, 453, 454 Voltaire (François-Marie Arouet), 85,
Vasoli, Cesare, 459 86, 90, 428
Vauchez, André, 453
Vecchio, Silvana, 455 Wächtershäuser, Wilhelm, 42 7, 428
Veit, Patrice, 436 Walker Bynum, Caroline, 412, 428,
Venturi, Franco, 431
440
Venturini, Marco Antonio, 24, 345 Walter, Ingeborg, 411, 421, 422, 435,
Vermeer, Jan, 468
470
Vernant, Jean-Pierre, 45 7, 458
Warburg, Aby, 55, 329, 389, 417, 473
Vernazza, Ettore, 384
Weber, Edouard Henri, 443
Vernazza, Guido, 457
Wechel, André, impressor, 424
Verri de Cremona, Carlo, 368, 478
Westfall, Richard S., 468
Verri, Pietro, 87, 348
Wier, Johann, 448
Verrocchio, Andrea di Francesco di
Wiesner, Merry E., 424, 436
Cione, 330
Wiggenha user, Beatrice, 463
Vesalio, Andrea (Andreas Vesalius),
Wirth, Jean, 454
272
Wittgenstein, Ludwig, 251, 325
Vespúcio, Américo, 212
Wollash, Joachim, 474
Vial, Francisque, 449
Vian, Paolo, 482 Wood, Diana, 416
Vignotto, Clemenza di, 78, 141 Worms, Burchard de (Burchardus
Viguier, Jean, 447 Wormacensis), 451, 452
Vila Vilar, E., 441 Wrightson, Keith, 41 1
Villani, Giovanni, 371, 373, 478 Wycliff, John, 207
Villari, Rosario, 426
Villon, François, 361, 392 Yerushalmi, Yosef Hayim, 390, 441,
Vilonate, Luciano, 428 481
Vinay, Valdo, 448 Yvoire, Jean d”, 415
Vincent-Cassis, Mireille, 479
Vincenzo, filho de Lucia di Vagnotto, Zabarella, Iacopo, 282
78, 141 Zacchia, Paolo, 14, 151, 303, 304, 317,
Vinci, Leonardo da, 264, 274, 326 409, 468
Virgílio, Públio Virgílio Marrão, 203, Zaggia, Massimo, 437
266, 459 Zamagni, Vera, 410
Visconti, Federico, 289, 420, 465 Zambrano, Maria, 474
Viterbo, Egidio de, 459 Zampini, Pierluigi, 444, 452
Vivanti, Corrado, 413 Zanardi, Benedetto, 104
Vogel, Cyrille, 420, 443 Zanotto, Andrea, 424
Volpe, Lelio dalla, impressor, 478 Zapata, Diego Matteo, 315,470

504
Zarri, Gabriella, 7, 421 Zerbini, Carolina, 79
Zdekauer, Lodovico, 445 Zucchini, Carlo, 345
Zemon Davis, Natalie, 422, 449, 452, Zwicker,Daniel, 322
481 Zwingli, Huldrych (Huldreich, Ulrico
Zenzone (ou Zenzini), Francesco, 240, Zwinglio), 214, 216, 217, 219, 271 3

242 448

505
l

ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA SPRESS EM ELECTRA E IMPRESSA EM OFSETE


PELA RR DONNELLEY SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA SUZANO PAPEL E CELULOSE
PARA A EDITORA SCHWARCZ EM MARÇO DE 2010
Numa quinta-feira, 5 de dezembro
de 1709, Lucia Cremonini, moça po-
bre e solteira, matou com uma faca
de cozinha o filho recém-nascido e
o colocou numa sacola atrás da ca-
ma, no quartinho onde morava em
Bolonha. Foi presa, condenada e en-
forcada em praça pública.
Quem era Lucia? Quais os moti-
vos que a levaram a matar o filho
momentos após dar à luz? O que
significou esse ato? Como foi visto
pela sociedade da época?
Dar a alma: história de um infan-
ticídio trata de encaminhar as respostas
possíveis a essas pergtmtas, deixando
claro que o historiador deve ultrapas-
sar os fatos miúdos para desembaraçar
os dois fios distintos que tecem a
história de cada pessoa: “o fio cinzento
daquilo que se repete a cada geraçãdl
como se não fosse possível qualquer
novidade, “e aquele outro fio que apre-
senta uma vez, e apenas tuna única
vez, o tom inconfundível de Luna cor
destinada a nunca mais reaparecer'Í
Para tanto, não basta examinar o
processo por meio do qual o crime
de Lucia chegou até nós, guardado
num arquivo: a mera narrativa não
levaria o historiador a compreender
o que realmente aconteceu, pois se-
gue normas estabelecidas. Com uma
erudição vertiginosa, bem caracte-
rística da tradição historiográfica
italiana, Adriano Prosperi vai além,
perscrutando significados ocultos e
traçando um painel fascinante da
Europa entre o Renascimento e a Re-
volução Francesa. Mundo no qual o
infanticídio, prática antiquíssima, ha-
via se tornado crime grave, em parte
devido à importância crescente que
o batismo assumira para o catolicis-
mo - era preciso salvar o maior nú-
mero possível de almas -, em parte
porque, melhor tolerado em socie-
dades arcaicas, seu significado se al-
terara radicalmente ao mesmo tem-
po que se alteravam as concepções
acerca da natureza da alma humana.
Dar a alma leva o leitor a perceber
as relações entre a fragilidade femini-
na, a coesão das elites, o crime, a here-
sia, o medo da morte, e a geografia im-
perfeita de mn além no qual as ahnas
das crianças mortas sem batismo erra-
vam a esmo. Voa no tempo, mostrando
que ontem, como hoje, o que está em
jogo é a tentativa de compreender as
origens da vida e as possibilidades hu-
manas de interferir no seu curso.
Laura de Mello e Souza

Adriano Prosperi (1939) é docente de


história moderna na Universidade de
Pisa. Da sua vasta produção histo-
riográfica, destacam-se Il Concilio di
Trento: una introduzione storica (2001)
e L'Inquisizione romana. Letture e ri-
cerche (2003). Dar a alma é seu pri-
meiro livro publicado no Brasil.

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Neste relato l1ist('›rico com lluôncia (le romance, /\(lriano


l)rosperi, um (los mais importantes l1istoria(tores europeus
(la atual:i(.la(le, conta o (trama (te Lucia Llremonini, moça
polire e solteira que mat(›u com uma liaca (le co'/.inlia o tillio
recem-nasci(to, logo após (lar a luz, sozinlia, no quartinlio
on(le morava na liolonlia (to seculo z\/\/lll.
Í)ar (1 (1/nm realiza, a contento, uma (tas mais (lilíceis
tarefas (la escrita (la liistória: al›or(lar, a partir (le um caso
particular, questões estruturais, especillicamente as grandes
polêmicas (lo pensamento cientítico e teol('›gico, e também as
complexas teias sociais (la ltália (t(›s setecentos. /\nalisa com
)

TO. :\ C í
O a a origem (lo taliu (to infanticídio e (to aborto, e as
Qiscussões em torno (la (telinição (lo início (la vi(la e (la encar-
:;..
nação (ta alma, revelan(lo o quão llui(los se mostram, no (levir
(lo tempo, nossos conceitos (la (lesumani(la(.le e (lo mal.
l)e lato, muito mais que um estu(l(› (le caso, Í)ar a (1/ma
Õ um exemplo (le liistória total. l')ouquíssinios sao os liisto~
riattores, como Prosperi, que a praticam com sucesso.

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