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MADRAS
0*9 íiostro
O Grande ÇAÇestre do Oc^íto
Estudo Histórico e Crítico sobre a Alta Magia
Cog iiostro
O Grande (Mestre do Ocuito
Estudo Histórico e Crítico
sobre a Alta Magia
Tradução:
Julia Vidili
MADRAS
Traduzido originalmente do francês sob o título Le Maitre Inconnu Cagliostro
Direitos de tradução para todos os países de língua portuguesa
© 2005, Madras Editora Ltda.
Editor:
Wagner Veneziani Costa
Produção e Capa:
Equipe Técnica Madras
Tradução:
Julia Vidili
Revisão:
Wilson Ryoji
Augusto do Nascimento
Neuza Alves
Sandra Cerald Carrasco
Os direitos de tradução desta obra pertencem à Madras Editora assim como a sua
adaptação e coordenação. Fica, portanto, proibida a reprodução total ou parcial desta
obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por
meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão
expressa da Madras Editora, na pessoa de seu editor (Lei n? 9.610, de 19.2.98).
Introdução ............................................................................................................ 11
Capítulo I
Primeiras Viagens — O Aventureiro............................................................ 19
Capítulo II
Retrato — O Impostor..................................................................................... 23
Capítulo III
Londres — Primeira Estada — O Escroque................................................ 37
Capítulo IV
A Rússia — O Feiticeiro................................................................................. 51
Capítulo V
Estrasburgo — O Empírico............................................................................. 89
Capítulo VI
Lyon — O Charlatão...................................................................................... 118
Capítulo VII
Paris —■ O Falso Profeta................................................................................. 147
Capítulo VIII
Londres — Segunda Estada — O Explorador da Credulidade Pública ..182
Capítulo IX
A Suíça e Roma — O Profanador do Único Culto Verdadeiro............ 201
A Suíça — Bâle e Bienne....................................................................... 201
Rovoredo-Trento ....................................................................................... 211
Roma........................................................................................................... 215
Capítulo X
Observações acerca da Vida e da Morte de Cagliostro —
O Espírito das Trevas.................................................................................... 232
Capítulo XI
Joseph Balsamo e o Conde de Cagliostro.................................................. 234
Epílogo
O Mestre Desconhecido................................................................................ 243
Apêndice
Primeira Parte.................................................................................................. 247
I — Assinaturas de Cagliostro............................................................. 247
II — Certidão de Batismo..................................................................... 250
III — Cetidão de Casamento................................................................ 251
IV — Cetidão de Óbito...............................................................................
V — Notas referentes às Famílias Balsamo, Bracconieri,
Cagliostro................................................................................................... 252
Segunda Parte.................................................................................................. 254
I — Algumas Fórmulas e Preparações Medicamentosas de
Cagliostro em Estrasburgo (1781)....................................................... 254
II —Uma Carta do Cardeal de Rohan a respeito de Cagliostro... 255
III — Carta de Barbier de Tinan, Comissário das Guerras,
ao Editor da Correspodência Secreta de Neuwied.............................. 257
IV — Patente da Loja-Mãe do Rito Egípcio Fundedo em
Lyon pelo G. Copta.................................................................................. 258
V — Mapa das Viagens de Cagliostro............................................... 259
1. “Vere enigma estiste, de quo non licetjudicare". Liber memorialis de Caieostro. Venitiis.
S. S. in-8?, p. 36 (Trad, franc. Dr. M. Haven. L’evangile de Cagliostro. Paris, 1910, in-16,
p.86) Cf. e: Carta de Blessig, in: Weisstein. Cagliostro à Strasbourg.
2. Breteuil, Meiner pensavam assim: “... eines Mannes..., den ich genie der ganzen Welt
verdcichtig machen mõchte. ” Meiner. Briefe Uber die Schweiz. Il parte; in: Mirabeau.
Lettre surMM. De Cagliostro... Berlin, 1786, in-8?, p. 14.
3. E quase a expressão textual do Joseph Prud'homme, inglês a quem chamamos Carlyle.
Frasers Magazine. Julho, 1833, p. 19 a 28, e ibidem agosto de 1833, p. 132 a 155.
Cagliostro
Busto por Houdon, perfil — Museu de Aix-en-Provence
fazer recair sobre a ordem inteira o descrédito lançado sobre o Grão-Mes-
tre da Maçonaria egípcia.
A Vie de J. Balsamo, publicada pelo Santo Ofício como uma apolo
gia de sua ação inquisitorial, é uma obra-prima de ódio e de hipocrisia; os
libelos dos senhores Sachi e Morande, de Madame de la Motte empalideciam
ao lado desse requisitório4; porém, esses três personagens não haviam ma
nejado Cagliostro.
Mas, aperfeiçoada pelo Santo Ofício, a obra toma outra amplitude:
tudo o que se poderia compilar de mais difamatório entre os autores cita
dos foi juntado ao que a Inquisição pôde arrancar de comprometedor a
Cagliostro e a sua mulher, com promessas ou torturas5.
Que se junte a isso tudo o que, em 1791, a imaginação de sacerdotes
italianos, assustados com a Revolução Francesa, podia inventar contra a
Maçonaria em geral e contra o fundador de um Rito místico em particular,
e teremos uma idéia da violência desse libelo. A habilidade com a qual o
autor, brincando com as palavras, confunde à vontade religião e Catolicis
mo, ateísmo e heterodoxia, liberalismo e ceticismo, faz com que o leitor,
insensivelmente, seja levado a segui-lo, a adotar suas conclusões, se ele
não se observar e descobrir a artimanha.
Não apenas o livro é um requisitório odioso, não apenas está coalhado
de erros naquilo que é verificável6 e de invenções nos trechos impossíveis de
investigação, mas ainda, no desenvolvimento de sua tese, o autor cai em
tais contradições que elas saltam aos olhos e que o tradutor francês da
obra, hostil porém a Cagliostro, tendo apenas desprezo e ironia por ele,
não pôde deixar, em alguns lugares, de assinalar essas contradições, que
revoltam a justiça e mesmo o bom senso7.
Portanto, quase nada se aproveita na Vie de J. Balsamo, não mais que
nos panfletos anteriores; e se temos de citá-los, só devemos fazê-lo com
14. De Gleichen. Souvenirs. Paris 1868, in-16, p. 125-126. Lord Glower, que é o autor
confirmado da acusação precedente, talvez não a tenha inventado especialmente para
Cagliostro, pois, na Chronique de 1’Oeil de Boeuf referente às cortes de Luís XIV e Luiz
XV (cap. XXII), encontramos a mesma história atribuída ao conde de Saint-Germain. A
anedota do rejuvenescimento exagerado também vem de Saint-Germain: a do crucifixo
está na Magie de Cagliostro, 1789, p.18.
15. Cf. Gazette de Leyde, n? 72, de 9 de setembro de 1785. — Ma Correspondance, n? 73,
2 de setembro de 1785 eEssai sur lasecte des Illumines. S.L., 1789, pet. In-8?, p. 129-134.
“Ao fim de cada mês, diziam, ele se trancava durante quarenta e oito horas e, ao sair
desse isolamento, mandava vender na Loja de um ourives um lingote de ouro que era
sempre mais fino do que o dos Luises. ” Souvenirs du due de Levis, citados in: Chaix
d’Est-Ange, p. 6.
16. Seus amigos e seus defensores lhe causaram tanto mal quanto seus inimigos; tagarelas
pouco inteligentesfizeram Cagliostro suportar o novo ridículo da estupidez deles mesmos.
17. Ainda se deve levar em conta, no exame desses textos, a prevenção que devia se elevar
em todos os espíritos sérios, em todos os personagens oficiais, contra um indivíduo que se
apresentava com uma aparência tão extraordinária, cujas palavras perturbadoras e atos
estranhos feriam com freqiiência o bom tom do século XVIII. Muitos vêem nele o saltim
banco; saltimbanco, se quiserem, mas saltimbanco como o do livro de Thoth: divertido
encantador para as crianças, cujos gestos simbólicos relembram ao mesmo tempo, aos
sábios, as verdades eternas.
2? — As peças conservadas por ocasião dos interrogatórios oficiais;
esses últimos documentos poderão nos fornecer datas e textos muito pre
ciosos18.
3? — As correspondências pessoais, cartas públicas, petições e factions
diversos escritos por Cagliostro, ou sob seu controle direto19, e que foram
sistematicamente negligenciados. Seu relatório contra o procurador-geral,
em particular, foi ridicularizado e incompreendido; o público letrado o olhou
como um romance oco e o desdenhou. Porém, se os críticos, mais esclare
cidos, houvessem-se esforçado para penetrar no sentido desses escritos,
separar os fatos e os símbolos, teriam visto que Cagliostro se revelava, ali,
tão claramente quanto em seus atos, e que suas páginas tão depreciadas
esclareciam singularmente muitos lados obscuros de seu herói.
Textos oficiais, referências de contemporâneos imparciais, cartas e
petições escritas por Cagliostro, eis portanto as únicas fontes, pouco abun
dantes, mas claras e sãs, em que deva beber um crítico escrupuloso, desejo
so de restabelecer em sua forma e sua luz verdadeiras a figura tão interessante
do profeta da Revolução, do curador dos incuráveis, do amigo de Lavater, do
mestre do cardeal de Rohan.
Tal não foi, infelizmente, o comportamento dos historiadores; eles se
ativeram aos panfletos, tão numerosos, tão ricos em crônicas escandalosas,
tão divertidos de citar. Isso lhes bastou; eles não procuraram mais além; e
se alguns deles por vezes interrogaram as defesas de Cagliostro ou as lem
branças de observadores contemporâneos, foi de má vontade e já com a
opinião formada20.
Além disso, nem as biografias, cheias dos mesmos erros, das mesmas
calúnias, nem as notas superficiais inseridas aqui e ali, nem mesmo as pá
ginas consagradas por espíritos mais esclarecidos a Cagliostro não dão
Primeiras Viagens —
O Aventureiro
23. “As informações vindas de Malta confirmam a chegada a essa ilha, por volta de 1756,
de um padre siciliano acompanhado de um jovem de 10 a 12 anos, cuja descrição corres
ponde à de Cagliostro, e que viajou em seguida com o cavaleiro d’Aquino. ” Ma
Correspondence, rí? 59, 22 de julho de 1786. — Cf. Borowski, Cagliostro..., etc., p. 31. O
padre condecorado com a ordem de Malta, que teria viajado muito pelo Oriente, chamar-
se-ia Puzzo, e a criança, Michael.
24. Relatório do conde de Cagliostro. Paris, 1786, in-16, p. 18 e 19. Cagliostro fez em
1783 uma viagem a Nápoles para dar assistência ao cavaleiro d'Aquino, moribundo.
25. Relatório do conde de Cagliostro, p. 22. Don Luis de Lima Vasconcellos, grande prior
de Maiorca, irmão de Don Jaime de Majonès de Lima de Sotomajor, embaixador da Espa
nha (1747-1764), era discípulo de Cagliostro. Souvenirs de la marquise de Créqui. Paris,
1834, 3 volumes, in-8?, t. Ill, p. 223.
Capítulo II
Retrato — O Impostor
26. Cinco pés e uma polegada (!) disse o policial Bernard no Courrier de 1’Europe n° 29,
1787. Evangile de Cagliostro, Paris, 1910, p. 85 — Ein paar Trõpflein aus dem Brünnen...
1781, p. 2. — De Gleichen, Souvenirs, p. 135.
27. Cf. Langmesser. Jacob Sarrasin. Zurich, 1899, p. 54. Observação feita por Schmidt.
28. Podemos constatá-lo no retrato de Chapuis e no busto de Houdon, ambos reproduzi
dos neste livro.
29. Gedike e Biester. Berliner Monatschrift, t. IV, julho-dezembro de 1784. Le pseudo
comte Cagliostro. —Cagliostro desmasqué à Varsovie, 1786, in-16, p. 32.
30. Em Rovoredo, em 1787, essa vivacidade espantou o autor do Liber Memorialis, como
já espantara os homens do Norte em 1778. Cf. Evangile de Cagliostro, p. 85 e Langmesser.
Op. cit.., p. 55.
31. Berliner Monaschrift. 1784, número de dezembro. Observations d’un voyageur.
Cagliostro tinha os olhos negros, expressivos e brilhantes de vida32.
Se eles se fixassem sobre alguém para examiná-lo, não se podia sustentar
esse olhar. Quando ele falava acaloradamente de algum assunto elevado,
suas pupilas se dilatavam, sua pálpebra se elevava sob a alta arcada de
sobrancelhas, ao mesmo tempo que a força de sua voz aumentava: seus
gestos se acentuavam: ele andava sacudindo sua cabeleira como uma cri
na; todo o seu corpo vibrava no compasso de seu pensamento. Um sangue
vermelho circulava sob sua pele e dava à testa uma espécie de luminosida
de radiante33. Por vezes, essa cabeça leonina de profeta se abaixava, perdia
sua majestade terrível para se abrandar e refletir algum sentimento de pie
dade ou de ternura; era de se perguntar se esse novo ser, de voz suave, de
olhar acariciante, tão bondoso, era o mesmo que aterrorizava havia pouco
os corpos e as almas com o estrondo de sua voz, o brilho de seus olhos, a
grandeza de suas palavras.
A expressão de sua fisionomia mudava sem parar, mas era sempre
viva, atraente; os contemporâneos que falaram dele são unânimes a esse
respeito34.
Sua figura, seu olhar, antes mesmo que ele falasse, revelavam um ser
inteligente, enérgico e simpático e, quando em seguida começava a falar, o
timbre de sua voz, seus gestos, seus discursos vinham confirmar esse pri
meiro julgamento. Além disso, experimentava-se uma impressão de auto
ridade, de poder, à qual a maior parte cedia com prazer, sem pensar nisso,
em um impulso de simpatia espontânea, contra o qual alguns se revolta
vam e se irritavam.
Com as privações sofridas na Bastilha, as torturas sofridas em Roma
haviam alterado seus traços e alquebrado seu corpo robusto; na véspera de
sua morte, Cagliostro sem dúvida não conservava mais essa aparência
de jovem herói. Uma mudança aparece já no retrato em Londres35. Recen
temente, um médium bem conhecido por seus trabalhos com o professor
Flopurnoy e pelos quadros religiosos, que ele executou desde então sob a
impulsão de visões precisas, viu se traçar sob seu pincel um retrato de
32. Carta de Burkli in Funk: Cagliostro à Strasbourg, p. 14. “Seu olhar penetrante de
falcão.” Langmesser, op. cit.,p. 54: “Seu olhar é fascinante (verschlingend) ”.
33. “Quando ele falava, com uma voz simpática, com gestos muito expressivos, os olhos
erguidos ao céu, ele era semelhante aos inspirados, embriagados com o espírito do alto. ”
Evangile de Cagliostro, p. 86. — Cf. Lettres sur la Suisse (De Laborde). — Langmesser,
Jacob Sarrasin, Zurich, 1899, p. 54. Ibid. Testemunho de Schmid, p. 55. — Notice de
1788, in-4?, p. 3.
34. “Ele tinha um rosto bastante belo, poderia ter servido de modelo para representar
as linhas de um poeta inspirado. ” De Gleichen. Souvenirs, p. 136. "Com sua ousadia,
ele tinha uma figura muito aprazível. ” Casanova. Mémoires. — “Cagliostro tinha uma
fisionomia muito agradável. ” Evangile de Cagliostro, p. 85.
35. Pintura de Bartolozzi em 1787, gravada por Macquart, reproduzida neste livro.
Cagliostro em seus últimos dias, talvez mesmo em seus últimos momentos,
em nada se parecendo, salvo pela forma óssea da figura e pelo olhar, aos
retratos correntes de nosso personagem36. O que chama a atenção acima de
tudo nesse retrato é, parece, a expressão de sofrimento impressa sobre esse
rosto abatido, contrastando com o brilho inteligente dos grandes olhos aber
tos, com a energia que revela o conjunto da figura. Embora essa pintura
não apresente nenhum valor sob o ponto de vista documental para os críti
cos, ela é para nós muito interessante e instrutiva. A evocação de uma
imagem do passado não é um fenômeno inadmissível e que choque a ra
zão: talvez amanhã seja um procedimento de investigação aceito e de uso
corrente37.
Lamentamos que a Sf! Smith tenha se recusado a nos comunicar e
deixar reproduzir essa imagem dolorosa que, difundida, teria feito talvez
refletir alguns espíritos observadores; em todos os casos, teria feito des
pertar em muitas pessoas sentimentos justos de compaixão pelo mártir de
San Leo.
Cagliostro, o que quer que diga a lenda, vestia-se de maneira sim
ples38. Essa afirmação, sem dúvida, surpreenderá muitos leitores. Habi
tuou-se, por causa dos romancistas, a se representar um Cagliostro agaloado
em todas as costuras, todo bordado com diamantes, empetecado como um
general, chamando a atenção dos passantes com seu traje de feira39. Puse
ram-lhe sobre as costas todas as jóias que Chesnon encontrou em sua gave
ta, todos os trajes prestigiosos de Saint-Germain, acrescentando mesmo
alguns detalhes que faltavam para fazer dele um ridículo saltimbanco — e
foi assim que o apresentaram ao público.
Aqui, como em qualquer outro lugar, desde que estudamos um detalhe
das opiniões aceitas a respeito de Cagliostro, percebemos que a verdade se
40. Réponse pour la comtesse de Valois Lamotte. Paris, Cellot, 1786, in-4?, p. 26 e 37. O
“tesouro oculto” de Cagliostro estava assinalado à desconfiança pública em seu primei
ro relatório. Cf. Relatório para Cagliostro, in-16, 1786, p. 61.
41. Ein paar Trõpflein, p. 3.
42. Cartas de Burkli in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p. 19.
43. P. 86.
44. Ein paar Trõpflein, p. 2. “Ele é bastante negligente com o corte de seus cabelos e de
suas roupas, mas sem nada de inconveniente", diz ao contrário Borowsky. Cagliostro...,
p. 137.
ficado bastante aborrecidos. Para nós é, pelo contrário, a confirmação de
nossa tese; Cagliostro estava acima de todas as convenções mundanas;
pensava em algo bem diferente de seu modo de vestir e, quando o procura
vam em seu laboratório, o que é o caso de nosso autor, ou quando, surpreen
dendo-o em seu quarto após uma noite de labor, vinham-no solicitar ao
imprevisto para ver um doente em perigo, Cagliostro podia aparecer em
traje de trabalho, sem pó nem fitas, a gola entreaberta45 e as mangas arrega
çadas, cabelos ao vento, tal como estava, pronto para chocar o pequeno
marquês ou o pastor engravatado de branco que vinha visitá-lo. Suas ves
tes não lhe interessavam; estavam em geral limpas46, mas que ele estives
se vestido ou não, que estivesse bem ou mal, se seu coração ou seu dever
o chamassem a sair, ele se levantava e saía. De Gleichen o viu certo dia
“correr em meio a uma tempestade, com uma vestimenta muito bela, em
socorro de um moribundo, sem se dar o tempo de apanhar um guarda-
chuva47.”
Sim, eis o verdadeiro Cagliostro, tal como devia ser, tal como foi. Esse
desprezo pelo mundano não era afetado. Vinha dos acontecimentos, da preo
cupação de seu pensamento por assuntos mais graves que o tempo ou a hora.
Não era uma atitude pensada, provocativa; quando saía para o mundo, usava
vestimentas de sua classe e de sua época, um traje suficiente para se apresen
tar em toda parte e que em nada atraía os olhares. Foi esse traje de cidade,
simples e conveniente, que descreveram os autores que citamos. Seu retrato
de Versalhes48 o representa assim vestido, enquanto as gravuras de Basset o
mostram em traje íntimo ou de trabalho49.
Quando se travavam relações com ele, o que não era nada fácil, pois
ele se mostrava em princípio rude com os curiosos, os espíritos fortes e os
pretensiosos, era atingido pela soberba de suas maneiras. Ele jamais se
inclinava para fazer “o menor esforço para conseguir o favor dos gran
des50.” Chegava a rejeitar seus avanços se sentia segundas intenções ou se
percebia, em seu procedimento, a menor nuança de impertinência, sobre-
45. Ver seu retrato na p. 134 e a Carta de Burkli in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p.
19.
46. Testemunho do observador de Rovoredo, Evangile de Cagliostro, p. 86. Sem dúvida
porque sua mulher cuidava disso.
47. De Gleichen. Souvenirs, p. 135-136
48. Retrato reproduzido na Introdução de nosso livro.
49. O Sr. Lenôtre, sem referências, diz que ele trazia a Paris, muito adiantado na esta
ção, um casaco de pele, trazido, sem dúvida, se o fato for autêntico, de sua estada na
Rússia. Cf. Lenôtre, Vieilles Maisons, p. 163. O Sr. Lenôtre apanhou esse detalhe em
Souvenirs de la marquise de Créqui, memórias apócrifas, sabe-se, atribuídas ao conde
de Courchamps.
50. Georgel. Mémoires, p. 52; e em outro trecho: “Ele não fazia a corte a ninguém".
Sua atividade era extraordinária: ele estava sempre em movimento e
jamais parecia cansado. Em casa, nunca ficava parado: saía de manhã, vi
sitava os doentes, voltava para receber outros, recebia visitas, depois con
versava com seus íntimos. Retirava-se às nove horas para seu quarto ou
seu laboratório para repousar, segundo dizia; na verdade, continuava a tra
balhar com afinco até a noite66 e com freqüência não se deitava; dormia
algumas horas em uma poltrona67 e na manhã seguinte reaparecia disposto,
pronto para um novo dia. Mas reservava sempre essas horas noturnas para
passá-las sozinho, no recolhimento, e era apenas excepcionalmente que
ele velava com alguns discípulos para conversar e trabalhar com eles68.
Sua bondade é conhecida: ele dava não apenas seus conselhos, seu
tempo, seu socorro, sua força àqueles que os reclamavam, mas ainda, sabe-
se, medicamentos que preparava ou comprava, socorros, dinheiro aos indi
gentes, pagando moradias e dívidas daqueles a quem a miséria esmagava69.
Dos ricos, ele recusava tudo e era preciso lutar, usar de subterfúgios para
fazer com que a condessa aceitasse para ele, ou com que ele, diretamente o
menor testemunho de reconhecimento, a mais insignificante lembrança70.
Ele ainda se arranjava com freqüência para devolver alguns dias após àquele
que acreditava lhe ter feito um rico presente, um objeto de valor dez vezes
superior, que ninguém ousava recusar quando vinha dele. O fato está bem
estabelecido71. E de resto, aceitava-se por vezes alguma coisa de doadores
obstinados, o que significava isso ao lado do que ele distribuía a cada dia
aos indigentes?
Rodeado de pessoas, festejado, adorado tanto pelas mulheres como
pelos homens, ele passava em meio a eles, inapreensível, atraindo-os, mas
sem sofrer a influência de ninguém. Um enxame de mulheres de todos os
tipos, ricas, belas, inteligentes, poderosas72, volteava em torno dele; ne
nhuma jamais o perturbou. De São Petersburgo a Roma, nesses dez anos
85. “Pretende-se que o Sr. de Cagliostro compôs ele mesmo esse relatório em italiano e o
Sr. Thilorier apenas o traduziu. Isso é bastante verossímil. O Sr. de Cagliostro tem espíri
to suficiente e, como dizem seus amigos, candor o bastante para ter traçado a história de
sua vida com tanta ingenuidade e interesse, sem ter necessidade da ajuda de um advoga
do. ’’ Ma Correspondance, 24 de fevereiro de 1786, n? 18.
86. Que se julgue por esse exemplo retirado da Demière pièce du Collier. P. I. “Ele partiu,
esse grande Cagliostro, e, ao fugir, despeja atrás de si o elixir do empirismo destilado na
fornalha da calúnia... ” O autor dessa obra-prima não teria feito mal em tratar de litera
tura de feira o Relatório de Cagliostro, em que se podem ler páginas como esta: “Escrevi
o que basta à lei, o que basta a qualquer outro sentimento além daquele de uma vã curio
sidade. Vocês dirão que não é o bastante? Insistirão ainda para conhecer mais particu
larmente o nome, os motivos, os recursos desse desconhecido? O que isso lhes importa,
franceses? Minha pátria é, para vocês, o primeiro lugar de seu império onde me submetí
com respeito a suas leis; meu nome é aquele que fiz honrar entre vocês; meu motivo é
Deus; meus recursos, meu segredo. Quando para aliviar o enfermo ou para alimentar o
indigente eu pedir para ser admitido ou em seus corpos de medicina, ou em suas socieda
des de beneficência, então vocês me interrogarão; mas fazer, em nome de Deus, todo o
bem que posso fazer é um direito que não exige nem nome, nem pátria, nem provas, nem
caução". Relatório do conde de Cagliostro acusado, 1786, in-16, p. 74.
Seria isso galimatias?
87. Interrogatório de Roma. Vie de Joseph Balsamo, p. 117 e 127.
88. Seus detratores o acusavam disso falsamente: “Sua arte é nada dizer à razão; a
imaginação dos auditores interpreta". Vie de Balsamo, p. 39, nota.
89. “Sua conversa cotidiana é agradável e instrutiva. ” De Gleichen, Souvenirs. Paris
1868, p. 135. Cf. Carta de Burkli in: Funk: Cagliostro à Strasbourg 1905, p. 15. Julga
mentos de Pfeffel, Schlosser, Iselin, Lavater in: Langmesser, Jacob Sarrasin, p. 1, 38, 51,
68. Carta de Burkli in: Spach. Oeuvres, t. V p. 76.
Aqueles que o ouviam com freqüência e meditavam a respeito de
suas palavras, compreendiam-nas cada vez melhor; as contradições apa
rentes se apagavam e esse elo que, no início, parecia faltar entre os diferen
tes assuntos que ele abordava aparecia à sua reflexão; sua vida se mostrava
em harmonia com suas palavras; sua doutrina explicava seus poderes; seus
atos demonstravam a verdade de suas teorias. Quer estivesse no laborató
rio, na casa de um doente ou no mundo, Cagliostro se tornava, para eles,
cada vez mais compreensível, maior, mais atraente. Ele encorajava seus
esforços, revelando a esses homens de boa vontade sob uma luz que os
outros não suspeitavam. No fundo de seus discursos, em meio a suas di
gressões, em seus atos, eles chegavam a distinguir alguns princípios, sem
pre os mesmos, a encontrar algumas leis morais que deviam dirigir seu
comportamento; eles adivinhavam a rota iniciática de que falava Caglios
tro, essa rota que leva à imortalidade e ao poder absoluto. Sempre cavou-
car, sempre semear e deixar que os outros recolhessem a colheita, marchar
sem cessar para cada vez mais longe, aceitar todas as tarefas que os outros
rejeitam90, certo de que a natureza nada esconderá, que o céu dará tudo
àquele que é incapaz de usá-la para si mesmo; conquistar sua alma pela
paciência, eis a doutrina que ensinava Cagliostro.
Seria mesmo uma doutrina? A palavra é imprópria: era uma escola de
energia, de abnegação, de firme confiança no futuro. Seus discípulos se sen
tiam mais fortes e melhores junto a ele; eles partiam cheios de ardor, esfor
çavam-se para viver assim por alguns instantes, depois voltavam, esgota
dos, para beber novamente e com mais ardor na fonte de vida. Cada luta os
deixava aptos a receber mais, cada nova iluminação aumentava a força de
sua alma; eles o sentiam, verificavam-no; sua fé crescia com as provas.
Junto a um mestre cujos atos eram maravilhosos, não menos que a
doutrina, ao lado do qual cada um deles sentia uma dívida de gratidão
impossível de pagar, adivinhamos qual devia ser a emulação geral. Nos
pequenos cenáculos de discípulos, cabia a quem trouxesse uma palavra
inédita, sobretudo um novo feito, uma nova prova dos poderes miraculosos
de Cagliostro. E, com a ajuda da imaginação e a mistura da vaidade, lendas
e exageros se infiltravam em meio aos entusiastas. Daí, por uma necessidade
de proselitismo desajeitado, eles difundiam-se para o exterior, ampliavam-
se, desfiguravam-se tanto que, longe do pequeno círculo dos discípulos, no
mundo, uma vasta zona perturbada, agitada, existia onde, entre pessoas
que não conheciam Cagliostro ou mal o conheciam de vista, mas que de
segunda mão tinham informações “seguras”, entrechocavam as informa
ções mais opostas, as asserções mais inverossímeis e mais descombinadas
acerca daqueles de que tanto se falava, de sua religião, seus mistérios e sua
90. Era o aforismo dos mestres em hermetismo: “Busque a matéria-prima entre as mais
vis, entre os dejetos que os homens espezinham a cada dia ”.
pessoa. Para alguns, era um simples fanfarrão; para outros, o próprio Diabo:
era um rosa-cruz italiano, um maometano, um judeu português; cada um
tinha certeza de sua opinião: tinha provas. Para este, não havia dúvida que
ele era o famoso Cosmopolite, ou Peregrini, ressuscitado e de volta da
Áustria; para aquele, Cagliostro e o conde de Saint-Germain eram um só: o
próprio Cagliostro o dissera. Mas a questão mais grave era saber se, real
mente, ele assistira às Bodas de Canaã, como se dizia, se ele era Simão, o
Mago, ou mesmo um dos apóstolos de Cristo91.
Todos esses rumores chegavam aos ouvidos dos discípulos; eles se
inquietavam; a questão de saber se Cagliostro já vivera, se ele era a reen-
carnação de tal ou qual personagem do passado, coincidindo com alguns
de seus próprios pensamentos, perturbava-os, suscitava entre eles graves
discussões e os levava, por mais audacioso que isso pudesse parecer, a
solicitar uma resposta do próprio Cagliostro.
Ora, segundo a pergunta e o perguntador, a resposta não era a mesma.
Se o interrogavam, se lhe diziam: “Mestre, há cinco ou vinte e cinco sécu
los, o senhor já estava na Terra e chamava-se fulano de tal, não é mesmo?”
ele respondia de maneira evasiva e, às vezes, contava um fato desconheci
do daquela época92 que, sem nada assegurar, confirmava os ouvintes em
suas convicções. Ele não dizia categoricamente que era assim, mas tam
bém não protestava violentamente contra essa crença que ele sentia ser
profunda em seu interlocutor. Não estava ele agindo sabiamente? Apenas
aquele que conhece o mistério do espírito pode falar da revolução das al
mas, e para ele apenas as palavras “fui ou não fui fulano ou sicrano” tem
um sentido real. Ora, aqueles que interrogavam Cagliostro tudo ignora
vam do mundo do espírito. Portanto, nenhuma resposta lhes podia ser
dada senão aquela que, sem ferir a verdade, encorajava-os a buscar ainda
mais longe.
Mas se lhe perguntavam: “Mestre, quem é o senhor?”, ele respondia
apenas: “Eu sou aquele que sou”93 e não escondia a ninguém que o nome
de Cagliostro, que ele escolhera, seu título de conde, o Grau de coronel que
se deixou atribuir em alguns lugares94, eram apenas designações fictícias,
atributos convencionais que ele mudara muitas vezes, e que só havia uma
91. Cf. Liber memorialis, trad, franc., p. 25. — Gazette de Leyde, n? 72 de 9 de setembro
de 1785. — Tableau mouvant, t. II, p. 307: “É um silfo benfeitor, é o homem de 1400 anos,
o Judeu errante, o anti-Cristo”. — Relatórios para Cagliostro, /u-16, 1786, p. 55.
92. Carta de Burkli, in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p. 5.
93. Ritual da Maç.: Egípcia. P. 71.
94. Relatório do conde de Cagliostro, In-16, 1786, p. 23. — De Recke. Nachricht Von des
berüchtigten... in-8?, p. 112. — Lettre au peuple anglais, in-4?, p. 56-57. — Carta de
Blessig à Sd de Recke: “Esse título de conde não diz respeito a seu nascimento, explicou
ele claramente a alguém, mas a seus conhecimentos ocultos". Weisstein. Cagliostro à
Strasbourg, p. 7.
dignidade da qual ele se orgulhava e de que fazia questão: a de ser amigo
de Deus, ouvido por Ele e Seu fiel soldado.
Depois, sacudindo a cabeça com um gesto que era ao mesmo tempo
um sorriso e um adeus, ele cortava a entrevista, deixando seu interrogador;
e o discípulo, sonhador, observava-o afastar-se, com um passo nobre e
leve, e se perder na multidão, esse homem misterioso, todo-poderoso, de
olhar insondável, de atos maravilhosos, perguntando-se perturbado que ser
acabara de lhe falar, que luz acabava de banhar sua alma, para que ela se
sentisse repentinamente tão fraca, tão feliz e tão profundamente em segu
rança junto do conde de Cagliostro.
Capítulo III
Londres — Primeira
Estada — O Escroque
95. Courrier de 1’Europe, abril de 1787, e n?s seguintes. — Vie de Joseph Balsamo, p. 35
— D’Alméras, Cagliostro, p. 65.
de benefícios. Chegou rico e partiu pobre, deixando sua fortuna nas mãos de
patifes e juizes ingleses que combinaram muito bem entre si para dividi-la.
Contaremos, quase dia a dia, os fatos ocorridos. Os pormenores pare
cerão talvez um pouco longos; mas, como todos os adversários de Caglios
tro se serviram desses desentendimentos reais do conde com a justiça para
lançar sobre ele um descrédito que em seguida autorizava todas as suposi
ções maldosas, e como essas insinuações desleais, transmitidas pela histó
ria, jamais foram refutadas, é importante abalar desde a base todo esse
amontoado de calúnias.
Cagliostro, honrado na Curlândia. na Rússia, em Estrasburgo, triun
fante em Lyon, festejado e oficialmente declarado inocente em Paris, foi,
em todas as fases de sua vida, invulnerável para seus inimigos. Apenas o
fato de ter sofrido julgamentos em Londres em 1777 oferecia uma isca à
crítica: bastava mostrá-lo comprometido nessa época em casos de patifaria
para que uma sombra viesse manchar instantaneamente seus méritos e suas
glórias. Morande o compreendeu e o fez: a versão mentirosa da vida de
Cagliostro em Londres em 1777, tal como a citamos mais acima, foi admi
tida por todos; nem mesmo se pensou em colocá-la em dúvida, apesar dos
protestos do interessado.
Ora, eis o relato exato dos fatos. Leiam e julguem. Chegado a Londres,
em julho de 177696, sem recomendação, trazendo consigo, em jóias e em
dinheiro, mais de 3 mil libras esterlinas, Cagliostro desceu com sua mulher
para a casa da Sri Juliet, Whircomb Street n? 4, onde alugou um aparta
mento.
A proprietária, vendo locatários ricos e caridosos, recomendou-lhes
logo a dama de Blévary. portuguesa arruinada e doente97 que morava no
mesmo imóvel, e um italiano. Vitellini. antigo professor, amador em quí
mica, reduzido também à miséria pelo jogo. O conde e sua mulher se inte
ressaram por eles, vestiram-nos e alimentaram-nos98, tomando um como
96.“Pela primeira vez em sua vida", diz Cagliostro. Extraímos todos esses documentos
do Journal de Vitellini, personagem que representou nesta história um dos papéis mais
importantes e que, a ponto de morrer, tomado de remorsos, legou esses documentos ao Sr.
O’Reilly, cavalheiro irlandês. Este os comunicou a Cagliostro; esse Journal serviu à reda
ção da "Lettre au peuple anglais A.A.S.L. " in-4?, 78 páginas (P. Lottin, 1787), que é a
última e peremptória resposta que Cagliostro deu às calúnias de Morande. E a essa obra
e a essa edição que se relacionarão, salvo indicações em contrário, todas as referências
deste capítulo.
A obra inglesa anônima Life of the Count Cagliostro, Londres, 1787, in-8?, dá a respeito
dos acontecimentos de 1776-1777 informações que concordam muito exatamente com as do
Journal de Vitellini.
97. Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 5.
98. Cagliostro acolhia largamente aqueles que se dirigiam a ele, Cf. Lettre au peuple
anglais, p. 7 e 8.
secretário para ele, a outra como dama de companhia para a condessa.
Embora Cagliostro saísse pouco, trabalhando por prazer, em casa, com
experiências químicas", por indiscrição de Vitellini que tagarelava nos
100 e pelas bisbilhotices da Sra de Blévary, espalhou-se bem rápido no
cafés99
bairro que chegara um homem extraordinário, um verdadeiro adepto, imen
samente rico, dando generosamente seus segredos e seu dinheiro àqueles
que necessitassem.
O resultado não tardou: os solicitantes afluíram. Receberam alguns;
eles voltaram mais numerosos, mais exigentes. Cagliostro apertou os cor
dões de sua bolsa e trancou a porta. Logo que não lhes deram mais nada ou
não o suficiente, os pedinchões se transformaram em inimigos101. Caglios
tro, tanto para vir em ajuda dos infelizes102 quanto para experimentar um
sistema de cálculos que o interessava103104 , havia muitas vezes indicado nú
meros ganhadores nas tiragens de loteria da Inglaterra10* — e todos, com
súplicas, presentes, repreensões, tentavam obter mais ainda e o perseguiam
com visitas interesseiras.
“Scott e sua mulher me obsedaram em vão; resisti a suas importuni
dades; Scott quis então tentar o caminho dos presentes: fez à minha mulher
99. Lettre, p. 8.
100. Lettre, p. 6 e p. 13.
101. Um certo Pergolezzi, mais audacioso que os outros, foi o primeiro a tentar a chanta
gem; inventou e publicou sobre o conde de Cagliostro uma história de que o procurador
Aylett e Morande, após ele, serviram-se, um para arrancar 80 guinéus ao conde, o outro
para difamá-lo. Lettre, p. 6.
102. E aqui que entram definitivamente em cena dois cavaleiros de indústria que já ha
viam extorquido mais de 200 libras a Cagliostro com a narrativa de seus infortúnios: um,
chamado Scott, que se fazia chamar milord Scott e uma senhorita Mary Fry, que se dizia
lady Scott; esses dois personagens haviam sido levados a ele pela Sdde Blévary. Lettre p.
8, 9 e 10.
103. “A força de atenção, de trabalho e de estudos, ele conseguira reduzir em certeza os
cálculos astrológicos feitos sobre a tiragem das loterias", diz Cagliostro em suas consi
derações referentes ao pedido em restituição feito contra Fry e Scott. Ele consignara suas
notas em um cademinho que guardava preciosamente em seu quarto. Esse manuscrito,
que tentou muitas pessoas, estava escrito ou em linguagem secreta, ou com interpolações
propositais, que tornavam seu uso impossível para qualquer um além de Cagliostro. Cf.
Lettre, p. 9.
104. “A tiragem da Loteria da Inglaterra começou no dia 14; eu indiquei, por brincadei
ra, o primeiro número: ninguém da sociedade quis apostar nele e o acaso quis que o
número realmente saísse. Indiquei para dia 16 o número 20; Scott arriscou um pouco de
dinheiro e ganhou. Indiquei para dia 17 o número 25; o 25 saiu e deu 100 luíses a Scott.
Indiquei, para o dia 18, os números 55 e 57 que saíram ambos. Os proveitos desse dia
foram divididos entre Scott, Vitellini e a pretensa milady Scott. ” Cagliostro, tendo assim
verificado a exatidão de seus cálculos, tomou desde então, por discrição, a decisão de não
mais usar desse procedimento. Lettre, p. 9.
o presente de um casaco de pele, de valor de quatro a cinco guinéus. Não
quis humilhá-lo com uma recusa. Mas, no mesmo dia, fiz-lhe presente de
uma caixa de ouro de 25 guinéus. E para não ser mais atormentado, consig
nei à minha porta o marido e a mulher. Alguns dias depois, a pretensa
milady Scott encontrou um meio de falar à condessa Cagliostro: disse-lhe
chorando que estava novamente arruinada, que Scott era um cavaleiro da
artimanha, que se apoderara de todos os lucros da loteria e que acabava
de abandoná-la com os três filhos que ela tivera dele. A condessa de Ca
gliostro, menos enfurecida pela patifaria que lhe haviam feito que tocada
pela sorte dessa criatura, teve a generosidade de me falar em seu favor. Eu
lhe enviei um guinéu e lhe indiquei o número oito para 7 de dezembro. A
dama reuniu tudo o que pôde em dinheiro e apostou no número 8, que saiu
na roda da fortuna.
Nesse ponto, todos os detalhes do Journal de Vitellini se tornam inte
ressantes. Ele estava em casa da senhorita Fry {milady Scott) quando ela
voltou com o produto de sua aposta. Ele contou 421 guinéus e 460 libras
esterlinas em notas. A senhorita Fry fez presente a Vitellini de 20 guinéus
e veio, no primeiro momento de sua embriaguez, fazer-me homenagem de
toda a sua fortuna. A resposta que lhe dei está escrita no Journal de Vitellini:
ei-la, palavra a palavra: “Nada quero; retome tudo isso; eu lhe aconselho,
minha boa mulher, ir viver no campo com seus filhos; fique com tudo,
digo-lhe eu; a graça que lhe peço é de não pôr mais os pés em minha casa”.
Vitellini assegura que Scott ganhou 700 guinéus no mesmo número
que eu dera à senhorita Fry, o que anuncia que sua pretensa briga não pas
sava de uma farsa ou ao menos que ela não havia sido de longa duração. O
certo é que, desde essa época, eles sempre agiram de acordo.
A avidez da senhorita Fry, não estando satisfeita, ela se ocupou com
meios de obter novos números. Imaginando, sem dúvida, que o melhor
seria fazer aceitar um presente à condessa de Cagliostro, ela lhe ofereceu
uma pequena caixa de palitos de dentes em marfim, na qual havia notas de
dinheiro. Tendo a condessa de Cagliostro declarado formalmente que não
aceitaria nenhum presente, ela foi tramar com Vitellini a maneira de fazer
com que ela não pudesse recusar. Foram ambos à casa de M. P., mercador
em Princes-Street, e ali a senhorita Fry comprou um colar de brilhantes
que lhe custou 94 libras esterlinas e uma tabaqueira de ouro com duas
tampas que lhe custou 20 libras esterlinas. Pôs o colar de brilhantes em um
dos lados da caixa e encheu o outro com um pó de ervas, semelhantes ao
tabaco e bom para defluxões, doença de que a condessa de Cagliostro esta
va atacada na época.
A senhorita Fry, tendo escolhido o momento em que a condessa de
Cagliostro estava sozinha, veio vê-la, sob o pretexto de lhe agradecer. Du
rante a conversa, ela puxou sua caixa sem afetação e ofereceu à condessa
uma pitada de seu tabaco. Como esta última, que não conhecia aquela espécie
de tabaco, teria lhe gabado o odor, a senhorita Fry lhe ofereceu a caixa que
o continha; Vitellini estava presente. A condessa recusou muitas vezes. A
senhorita Fry, vendo que suas instâncias eram inúteis, atirou-se chorando
aos joelhos da condessa que, para não a desapontar, consentiu enfim em
ficar com a caixinha.
Foi apenas no dia seguinte a essa cena que minha mulher percebeu
que a caixinha de fundo duplo continha um colar de brilhantes. Minha
mulher me contou então o que se passara na véspera. Não lhe disfarcei o
descontentamento que experimentei e teria naquele mesmo momento en
viado à senhorita Fry a caixa e o colar se não houvesse temido afligi-la e
humilhá-la com essa restituição tardia105.
Mudei de moradia no início de janeiro de 1777106 e aluguei o primei
ro andar de uma casa situada em Suffort Street. Vitellini prevenira a senho
rita Fry e ela se apressou para alugar o segundo andar, de modo que, por
mais que isso me desgostasse, foi-me impossível não a ver. Ela fingiu que
aplicara seu dinheiro e que estava novamente em dificuldades; falou de
uma viagem ao campo para a qual ela precisaria de 100 guinéus e mandou
me implorar que eu lhe desse números para a loteria da França. Respondi
que esse pedido era uma verdadeira loucura. Mas, para me livrar da senho
rita Fry, mandei que minha mulher lhe desse catorze portuguesas que va
liam 50 libras e 8 xelins e pedi ao dono da casa que não pusesse nenhum
obstáculo à sua partida e que me trouxesse o recibo de tudo quanto ela
estivesse devendo quando partisse.
Na manhã seguinte, 6 de fevereiro, mandei-lhe perguntar se estava en
fim decidida a partir; ela me respondeu que a soma que eu lhe havia dado era
muito módica e que iria à cidade ver se conseguia cobrar uma soma de 400
libras que ela dizia que lhe deviam. Ela veio, à noite, chorando, encontrar
minha mulher; disse-lhe que estava sem dinheiro e implorou-lhe ainda uma
vez que tentasse me fazer dar os números. Como essa última tentativa se
mostrou inútil, ela resolveu efetuar já na manhã seguinte um projeto que
concebera havia muito.
É bom saber que a senhorita Fry tinha outro apartamento na cidade
que dividia com Scott; Vitellini via a ambos com freqüência, mas no maior
dos segredos; ele cometera a indiscrição de lhes falar das experiências de
química das quais eu o fizera testemunha; e, como era naturalmente pre
sunçoso, assegurara-lhes que, se pudesse ter entre as mãos um certo pó de
que eu me servia em experiências107, ele poderia, em pouquíssimo tempo,
fazer sua fortuna e a de seus amigos. Quanto aos números de loteria, ele
705. O que também teria criado para a condessa uma situação muito falsa.
106. Para fugir das pessoas e suas emboscadas.
107. Provavelmente, o pó rosa, dito consolidante, que Cagliostro também fazia figurar na
composição de certos medicamentos. Cf. Estrasburgo, p. 103-104 e 106-107 deste livro.
dissera igualmente que, se o manuscrito que eu possuía lhe pertencesse,
. O senhor Scott e a senhorita
ele os prediria com tanta certeza quanto eu108109
Fry haviam tomado bastante domínio no espírito de Vitellini para conse
guir dele que lhes indicasse o armário onde deixava trancados a caixa de
ouro que continha o pó, o manuscrito de que acabo de falar e meus papéis
mais preciosos.
Desde esse momento, o senhor Scott e a senhorita Fry haviam conce
bido o projeto de me roubar tudo aquilo e me obrigar, à força de maus-
tratos, a lhes comunicar os conhecimentos que supunham que eu tivesse.
Para esse fim, eles se haviam associado a um procurador, a vergonha
de sua profissão, que sofreu algum tempo depois o suplício infame do
pelourinho por patifaria e perjúrio. O senhor Raynolse (é o nome desse
procurador) se colocara à testa da empresa. Era preciso uma testemunha
disposta a afirmar tudo o que quisessem. Haviam escolhido o senhor Broad,
que vivia com a senhorita Fry e que passava por seu doméstico. Necessita
vam, para qualquer caso, de um corpo de reserva. O senhor Raynolse
indicara outro procurador com a mesma têmpera que, por dinheiro, esta
va disposto a jurar tantas vezes quanto se desejasse; era o senhor Aylett,
que acaba de sofrer o mesmo suplício que seu confrade, igualmente por
crime de perjúrio.
Estando as coisas assim dispostas, fora decidido que a senhorita Fry
lançaria um Writm contra mim e que Scott, Raynolse e Broad entrariam
furtivamente com os embargadores e aproveitariam o tumulto para aplicar
o golpe que planejavam.
Eu estava em casa com minha mulher e Vitellini quando, em 7 de feve
reiro, às dez horas da noite, vi entrar um embargador, acompanhado de cinco
ou seis esbirros, que declararam que eu estava preso por ter 190 libras de
dívida com a senhorita Fry.
Por pior que fosse a opinião que eu tinha a respeito dessa moça, não
esperava tanta impudência e negrume. Passado o primeiro momento de
surpresa, dispus-me a seguir o embargador, quando ouvi barulho no quarto
vizinho110. Eram Raynolse e Scott que quebravam meu armário. Raynolse
se impôs dizendo que era o xerife de Londres111 e que tinha o direito de
fazer aquilo. Os embargadores, que estavam metidos no plano, deixaram
108. É dessa pretensão e do barulho feito em torno do manuscrito que nasceram todos os
livros que, de 1790 a nossos dias, sob o nome de Gros Cagliostro, Vrai Cagliostro, da
Cabale de Cagliostro surgiram, dando, para a adivinhação dos números de loteria, os
mais fantasiosos procedimentos.
109. Permissão para mandar aprisionar que se concede na Inglaterra a qualquer credor
real ou simulado, por um simples juramento verdadeiro ou falso.
110. Que tinha uma entrada independente. Cf. Lettre, p. 15.
111. O chefe tinha, com efeito, um delegado chamado Raynolse, mas era um homônimo do
procurador.
Scott carregar o manuscrito, a caixa de ouro de que falei e diversos pa
péis, entre os quais o recibo de 200 libras assinado por Scott e a senhorita
Fry.
Segui o embargador à sua casa, onde passei a noite. Não tendo cau
ções a fornecer, coloquei entre as mãos de Saunders (era o nome do
embargador) o valor de 1.000 libras, mais ou menos, tanto em jóias como
em portuguesas. Entre as jóias havia uma bengala, em cujo punho havia
um relógio rodeado de brilhantes, assim como a caixa e o colar que a se
nhorita Fry dera de presente a minha mulher.
Saí da casa do senhor Saunders em 8 de fevereiro, à noite. Na manhã
seguinte, à meia-noite, um condestável se apresentou em minha casa, acom
panhado de sua escolta e declarou a minha mulher e a mim que ele nos
prendería em razão de um Warrant112 lançado contra nós a pedido da se
nhorita Fry. Perguntei de que crime eu fora acusado; o condestável me
respondeu que seria preso como mago (Conjuror) e minha mulher como
feiticeira (Witch) e nos levou a ambos para uma Watchhouse (Corpo de
Guarda) para esperar que acordasse o juiz de paz que decretara o Warrant.
A noite estava fria: consegui, com a ajuda de alguns guinéus, fazer o
condestável compreender que ele podia, sem faltar a seu dever, deixar-nos
voltar a nossa casa até que o juiz de paz acordasse, o que ele fez.
“Na manhã seguinte, sozinho em meu apartamento, vi chegar
Raynolse, que me fez os maiores cumprimentos sobre minha pretensa ciência
e me pediu, com toda a suavidade possível, que o ensinasse, assim como a
Scott, a maneira de fazer uso do manuscrito e do pó. Ele me disse, para me
determinar a isso, que podia facilmente arranjar tudo e me fazer devolver
os bens. Scott que, escondido atrás da porta, escutava a conversa, vendo
que o tom meloso de Raynolse não fazia efeito sobre mim, entrou precipi
tadamente e, tirando uma pistola do bolso, apertou-a contra meu peito,
ameaçando me matar se eu não lhe ensinasse a maneira de se servir dos
objetos que ele me roubara. Nada respondi. Raynolse o desarmou e os dois
recomeçaram a me implorar. Respondi-lhes então que o que eles me pediam
era impossível, que os objetos que tinham entre as mãos lhes seriam sem
pre inúteis e que podiam servir somente a mim”3. ‘Devolvam-nos a mim’,
eu lhes disse, ‘e eu lhes deixarei não apenas o recibo de 200 libras que
vocês me tomaram, mas ainda a totalidade dos objetos depositados nas
mãos de Saunders’114.
Scott e Raynolse aceitaram, retiraram-se, foram encontrar Saunders
e depois se arrependeram, sem dúvida, por ter aceito, pois nada trouxeram,
727. É o termo que se empregava correntemente, embora a cabala não tivesse nada a ver
com isso.
128. As loterias, naquela época, eram análogas às que ainda existem e são
hebdomadárias na Itália, sob o controle do governo: cinco números são sorteados entre
os 90primeiros números e, segundo sua ordem ou sua associação, se eles os indicarem,
os jogadores podem ganhar dez, cem ou mil vezes sua aposta.
129. Lettre, p. 9, 10 e 11.
dali a três dias, a erupção que recobrirá todo seu corpo, não está fazendo
uma verdadeira predição?
Porém, como o químico ou o médico poderão dar a um iniciado, se
gundo as teorias em voga e na linguagem de sua arte, a explicação das
razões que o fizeram concluir da aparição do fenômeno consecutivo, não
devemos, aqui, falar de predição, de profecia; precisamos empregar a pala
vra previsão e, logo, nosso espírito, satisfeito, vê apenas coisas muitos
naturais naquilo que se passou. Mas se o médico, e isso acontece com
freqüência, não possuísse, para fazer seu diagnóstico, os dados caracterís
ticos, nítidos, fornecidos pelo exame da garganta ou pela temperatura do
doente; se, entretanto, por uma dessas intuições especiais que iluminam o
espírito, ele houvesse dado o mesmo prognóstico, não teria podido forne
cer a um confrade qualquer razão plausível de sua predição, todavia exata.
A palavra previsão seria ainda aplicável nesse caso ou saímos do domínio
científico para flutuar no mundo da profecia?
Um sentimento o dirigiu; uma convicção, impossível de justificar,
fez-se nele. Que sentimento é esse? De onde nasce essa convicção? Não é
a percepção confusa de algumas sensações vagas, vindas desse mundo de
forças que nos rodeia e do qual a maior parte escapa a nossa pobre cons
ciência? Sem critério para classificá-las, sem linguagem para traduzi-las, o
médico teve delas, porém, uma sensação suficiente para que se determi
nasse nele uma convicção. A intuição dos “videntes”130 não seria da mesma
ordem? Eles também não podem explicar nem justificar sua convicção;
mas a sentem profundamente; eles afirmam e com freqüência, sabemos,
suas predições se verificam.
Expulsemos então de nossa imaginação essa ilusão de que há antítese
entre predição e previsão; essas palavras, sinônimas, exprimem ambas a
aplicação do saber, qualquer que seja a forma desse saber, na determinação
da sucessão dos fatos. Para que a previsão seja possível, é preciso que
existam relações constantes unindo um estado A de um sistema de forças a
outro estado ulterior B, C ou D do mesmo sistema; e basta que conheçamos
exatamente: l.° o estado A; 2.° a lei que une o estado A ao estado B, C ou
D. Nos casos simples, cujo cálculo das funções em matemática, ou a expe
riência em física131, é exemplo, a previsão é fácil; é o que chamamos deter
minação científica.
Se o fato se complica, a resolução da equação se toma mais difícil;
mas permanece sempre possível se tivermos dados suficientemente preci-
A Rússia — O Feiticeiro
Mitau
Não seguiremos Cagliostro em seu percurso pela Europa; essa via
gem, de Loja em Loja, quando foi recebido, escutado, honrado por maçons
de todos os Ritos, quando encontrou pesquisadores sinceros e muitos ambi
ciosos desonestos, quando ocorreu, por sua influência, uma transformação
das idéias maçônicas, relaciona-se mais com sua ação social; teremos oca
sião de estudar isso em detalhes no capítulo dedicado à Maçonaria egípcia137.
Sua viagem terminou em Mitau, na Curlândia138. Chegou no fim de feve
reiro de 1779139 vindo de Konigsberg140; permaneceu ali muitos meses.
Havíamo-lo deixado isolado, quase desconhecido na Inglaterra, travando
pequenas batalhas com um grupo de pessoas de pouca superfície; vamos
reencontrá-lo em meio ao grande mundo curlandês, sob um novo aspecto:
o de taumaturgo.
O conde de Cagliostro apareceu ali realmente, pela primeira vez, pos
suidor de poderes estranhos, mestre de forças desconhecidas; era rodeado
de discípulos cultos que dominava com todo o seu misterioso saber e que
encantava com sua força de atração poderosa.
141. Ele viajara sob o nome de Conde Fênix, de Conde Harat; apresentou-se ali sob o
nome de Cagliostro. “E direito de todo viajante", diz ele, “manter o incógnito”. Cf.
Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, in-16, p. 23, e Lettre au peuple
anglais, S.L.S.A., in-4?, p. 57.
142. Cagliostro démasqué à Varsovie. S.L. 1786. in-16. — Ein Paar Trõpflein aus dem
Brunnen der Wahrheit. Im Vorgebirge, 1781 (na realidade, 1786), in-16 — Le charlatan
démasqué. Paris, 1786, in-16
Esses panfletos foram recolhidos e reproduzidos com complementos pelo autor da Vie de
Joseph Balsamo. Paris, 1791, in-8°.
143. De Recke. Op. cit., p. 26, 107 e 148.
144. Ver mais adiante, p. 60-61
Nessa época, e nessas regiões, o perigo que corriam os espíritos era
grande: o iluminismo, um misticismo vago feito de preguiça, orgulho e
incredulidade, estava na moda; só se falava de visões celestes, comércio
com os anjos, revelações, conjurações e evocações. A inteligência tendia a
se perder na ilusão com Swedenborg; a vontade podia perverter-se na su
perstição com os Scieffort, os Weishaupt e consortes. A Alemanha estava
embebida de suas seitas secretas145.
Mesmo em Mitau, o Dr. Stark, professor de Filosofia, chefe de uma
sociedade de iluminados muito fechada, ensinava a seus adeptos uma ma
gia cerimonial da qual só se falava com medo146.
A Sri de Recke147, que representará um papel importante nessa histó
ria, toda mergulhada nesses estudos misteriosos, assombrada pelo desejo
de “se comunicar com a alma” de seu irmão148, alicerçara com as idéias de
Swedenborg e de Lavater um sistema místico pelo qual era completamente
aficionada e do qual se orgulhava muito. Era autoridade em seu meio149.
145. De Recke. Op. cit., p. 155-156 — Luchet. Essai sur la secte des Illuminés, p. 99,
102, 117.
146. De Recke. Op. cit., p. 50. A SE de Recke cita o Anti-Saint-Nikãse, que exprime sobre
Stark a mesma opinião.
147. Anne-Charlotte de Medem, nascida a 3 defevereiro de 1761, em Mesothen (Curlândia),
morta em 20 de agosto de 1821, em Loebrechhan, filha do conde de Medem e de Elise Von
der Recke, poetisa cheia de espirito e escritora ascética, sua mulher pelo terceiro casa
mento. A condessa A. Charlotte de Recke desposou, em 1779, Pierre de Biren. Era muito
bela, de inteligência viva e esteve em meio a muitas intrigas políticas durante a vida e
após a morte de seu marido.
148. Seu irmão mais velho, o conde de Medem, unido a sua irmã pelas mesmas idéias
místicas, morrera em Estrasburgo em 1778. A SE de Recke, persuadida de que a alma de
seu irmão deveria aparecer-lhe, passava noites a evocá-lo nos cemitérios. De Recke. Op.
cit., p. 5 e p. 167. “A senhora não ama a magia por ela mesma, dizia-lhe Cagliostro, que
lia em seu coração não a procura para avançar e adquirir o poder de ajudar milhões de
homens, sem distinção, mas porque a morte lhe arrebatou aquilo a que sua alma era mais
ligada e que a senhora quer recuperar. " Ibid., p. 52. E mais adiante: “Se a senhora não
quer se libertar de tudo, se permanecer ligada a um ser ou mesmo a um saber especial
mente, estreitamente, não poderá adquirir o desenvolvimento completo e a liberdade.
Nesse caso, a senhora pode obter em uma arte ou uma ciência o mais alto Grau, e eu a
ajudarei, mas renunciará à magia. Eu lhe deixo a escolha”. Ibid, p. 103.
149. Quando Cagliostro veio a ela, esta o tratou de igual para igual, aconselhando-o,
repreendendo-o, persuadida de que podería esconder-lhe alguns de seus pensamentos. (De
Recke. Op. cit, p. 62-63). De caráter altivo, discordante sobre certos pontos de seu sistema,
abalada em algumas de suas crenças pelas palavras de Cagliostro, ela estava sem cessar
em evolução quanto ao taumaturgo: um dia ela estava convencida e completamente dedica
da a ele; na manhã seguinte, recusava-se a escutá-lo mais (De Recke. Op. cit, p. 136,167).
E, como ela dirigia sua companhia, foi em tomo dessas hesitações e meias-voltas que se
desenrolou a maior parte dos incidentes da estada de Cagliostro na Curlândia.
As Lojas, apaixonadas por essas pesquisas, penetradas por essas in
fluências, abandonavam seu papel social, tomavam-se grupos de sectários
inúteis à humanidade, perigosos para os que os rodeavam. Um homem
superficial e autoritário se teria contentado, se tivesse tido esse poder, em
reagir violentamente passando ao extremo oposto, destruindo nos sonha
dores qualquer crença, qualquer vida espiritual, para levá-los ao sensualismo
mais estreito e mais positivo150.
Cagliostro não fez nada disso; soube ao mesmo tempo alimentar o
que havia de vivo neles, dando-lhes uma alimentação sadia, apropriada a
suas faculdades de assimilação, e orientar suas buscas no sentido em que
elas pudessem levá-los a conhecimentos verdadeiros das leis da natureza.
Era preciso ensinar, demonstrar aos pesquisadores que tateavam o
caminho, que nosso conhecimento do mundo é relativo, muito errôneo,
e que nossos sentidos dão apenas, dos fenômenos, noções subjetivas
todas convencionais; que, além do mais, essas noções são incompletas
porque nossas percepções são limitadas ao que nos revelam o tato, a
audição, a visão e o olfato. Ora, há outros sentidos, ainda embrionários,
que, desenvolvidos em condições excepcionais, podem nos colocar em
relação com uma série de forças desconhecidas, abrir-nos um mundo de
fenômenos despercebidos pela maior parte dos seres e fazer recuar as
sim os limites do cognoscível. Era preciso acima de tudo ser provado;
era necessário fazer perceber a realidade e o valor desses fenômenos aos
observadores.
Foi o que tentou Cagliostro ao se rodear de todas as condições acessó
rias que podiam parecer indispensáveis a seus alunos, adeptos, na maioria,
de sistemas especiais, e fixar sua atenção. Ele tratava com ocultistas: alguns,
ferventes alquimistas151, só pensavam na transmutação, no elixir, no pó de
projeção, esperando apenas uma palavra que lhes desse a chave dos enigmas
herméticos e o poder com que sonhavam; os outros, sem rejeitar a alquimia,
consideravam-na apenas como dependência da magia e procuravam primei
ro os Ritos que deviam submeter os espíritos à sua vontade152.
E a partir desses dados, levando em conta essas disposições, que
Cagliostro teve de lhes falar. Cada um deles tinha um objetivo prático,
muito pessoal; todos se fixavam nele e, apesar de suas declarações de
150. Isso lhe teria sido mais fácil, já que uma corrente de reação racionalista já se esbo
çava diante desses excessos e que, no próprio meio da família de Medem, um tal reformador
encontrara ativos auxiliares: o conselheiro áulico Schwander, diretor intelectual da Sdde
Recke; o notário Hinz, familiar da casa. De Recke. Op. cit., p. 8, 9, 26, 28, 77.
151. Os MM de Medem e de Howen haviam trabalhado com os hermetistas Muller, de
Mitau; Schmidt, de lena, e Freund, de Estrasburgo. De Recke. Op. cit, p. 3.
152. “Nossas almas estavam mais desejosas de se comunicar com os espíritos do que de
ver transmutações.” De Recke. Op. cit., p. 10.
desprendimento, não saíam, em suas ambições, do terreno do egoísmo e
da matéria153.
Ele teve de pegá-los no ponto em que estavam154, falar-lhes sua lín
gua, fazer brilhar ante seus olhos, no início, a realização possível de seus
sonhos estreitos, para poder em seguida, pouco a pouco, levá-los de lá para
horizontes mais vastos. Nesse período preliminar de educação, enquanto
ele os interessava na busca do tesouro mágico de Wilzen155, da criação de
ouro, do elixir da imortalidade, apanágio do terceiro círculo dos Iniciados,
Cagliostro soube lhes falar com uma tão pura linguagem simbólica que
suas palavras, atingindo os ouvidos abertos, teriam sido, para aqueles que as
houvesse compreendido, profundamente reveladoras. Cagliostro fora en
caminhado ao marechal da nobreza, o Sr. von Meden; este lhe apresentou
seu irmão, o conde von Medem, a Oberburggraf e ao camareiro von Howen,
os três maçons156. Cagliostro lhes mostrou seus títulos na ordem e seu obje
tivo, que era fundar uma Loja mista, em que poderia revelar-lhes muitos
dos segredos que eles buscavam. Seus hospedeiros estavam interessados,
mas desconfiados; para vencer suas hesitações, Cagliostro fez, em sua pre
sença, uma operação alquímica que os entusiasmou e, imediatamente após,
uma experiência mágica que os impressionou ainda mais.157
153. A SE de Recke não mais que os outros. Ela, que professava o maior dos desprendi-
mentos dos bens da Terra (De Recke. Op. cit., p. 11), solicitou-lhe muitas vezes que ele lhe
conseguisse, por meio hermético, uma soma de dinheiro de que necessitava sem que sua
família soubesse, não para alguma obra de caridade, mas para ela mesma. Cagliostro se
recusou, alegando primeiro dificuldades materiais e dizendo-lhe enfim: “Para poder cres
cer, para que o céu lhe confie tesouros mais vastos, aqueles que você deseja tanto, é
preciso primeiro que você saiba resistir à tentação das riquezas desse mundo, como Cristo. ”
De Recke. Op. cit., p. 12-13 e também p. 52. Mas a St? de Recke teimava em pedir, nem
mesmo percebendo a própria contradição.
154. Schlosser compreendeu isso e, em seu artigo acerca de Cagliostro, sustenta a mesma
tese que nós, a saber, que Cagliostro, querendo libertar seus alunos das ilusões nas quais
ele os via mergulhados, teve, primeiro, de lhes falar em sua língua, ocupar-se com eles de
questões de magia, descer ao inferno com eles, para levá-los consigo quando subisse
novamente. Cf. Borowski, Cagliostro, einer der Abentheuer..., 1790, in-16, p. 149. — De
Recke. Op. cit., p. 112
155. De Recke. Op. cit., p. 32.
156. Iniciados em Halle, em 1741. De Recke. Op. cit, p. 3 e 7.
157. A experiência mágica foi a seguinte: Cagliostro consagrara, por alguns Ritos, o
filho de M. de Howen, de 6 anos, e lhe disse para olhar em sua mão. “Sem que a criança
percebesse, Cagliostro perguntou a meu tio que aparição ele desejava. Ele desejou, para
não assustar seu filho, que ele pudesse ver sua mãe e sua irmã que estavam em casa. Dez
minutos depois, a criança declarou ver sua mãe e sua irmã. À pergunta de Cagliostro: ‘Que
faz tua irmã?’, a criança respondeu: ‘Tem a mão sobre o coração como se sofresse’. Em
seguida, o pequeno exclamou: ‘Agora ela abraça meu irmão que acabou de voltar para
casa’. Ora, quando esses senhores partiram de casa para a sessão, esse irmão de minha
Desde então, eles se apressaram para seguir as indicações de Cagliostro:
uma Loja mista foi fundada158. Eis ordinariamente seus trabalhos:
Em uma câmara, ornada de símbolos, em dia e hora fixos, os mem
bros da Loja, devidamente Iniciados maçons egípcios, preparados segundo
as instruções do Grão-Mestre, sem espada e sem metais com eles, reuniam-
se. Essa câmara se comunicava por uma porta com outro local, menor, em
que se pusera uma mesa coberta com um tecido branco, uma cadeira e,
sobre a mesa, diversas luzes em triângulo, rodeando uma garrafa de vidro
branco, cheia de água. Diante da garrafa, um papel recoberto de caracteres
bizarros159.
O Grão-Mestre, em traje maçônico, espada à mão, introduzia uma
e, tendo-a consagrado diante de todos pela imposição das mãos,
criancinha160161
com unções com um óleo que chamava óleo da sabedoria10' e com algumas
palavras pela obra que queria realizar, ele a fazia sentar diante da garrafa, na
pequena câmara, saía, fechava a porta atrás de si e se colocava de pé diante
dessa porta, no mesmo local que os assistentes. A criança ficava sozinha em
seu tabemáculo. Os assistentes e o Grão-Mestre, após ter recitado algum
salmo de Davi, recolhiam-se, orando em silêncio.162
Ao fim de um instante, Cagliostro perguntava à colomba se via algo
na garrafa: “Vejo um anjo... anjos...” respondia com freqüência163. Daí,
prima não estava na cidade, e nem mesmo o esperávamos nesse dia, visto que acreditavamos
que estivesse a mais de 7 milhas dali. E, na hora da experiência, meu primo voltara
subitamente, de maneira inesperada, e minha prima tivera antes batimentos de coração
tão fortes que chegou a passar mal. ” De Recke. Op. cit, p. 28, 30-31.
158. A 29 de março de 1779. Cf. De Recke. Op. cit, p. 33 e Cagliostro, einer der Abentheuer,
p. 57.
159. De Recke. Op. cit, p. 63-65. Ritual da Maç.: egípcia: p. 58. Não podemos deixar de
citar aqui uma passagem de Eliphas Levi acerca dessas experiências de Cagliostro, das
quais ele nada entendeu. “Cagliostro”, escreveu, “praticava a hidromancia, porque sa
bia que a água é ao mesmo tempo um excelente condutor, um poderoso refletor e um meio
bastante refringente para a luz astral, como o provam as miragens do mar e das monta
nhas. ” Histoire de la Magie, 1892, p. 217. Tais frases pomposas e vazias de qualquer senti
do infelizmente não são raras nas obras dos ocultistas e de Eliphas Levi em particular.
160. Esses pacientes, meninas ou meninos chamados colombas (pombas) ou pupilos tinham
de ser muito jovens e da mais perfeita inocência; sua ignorância e ingenuidade eram as
condições necessárias, dizia Cagliostro, à manifestação de um puro espírito. Eles deviam
ser revestidos de um traje branco, símbolo de pureza aos olhos dos assistentes. Ritual da
maç.: egípcia: p. 63.
A primeira colomba foi o sobrinho do conde de Medem, menininho de seis anos, mas sem
nenhuma instrução: nem mesmo conhecia as letras. De Recke. Op. cit, p. 40, 66.
161. De Recke. Op. cit, p. 30.
162. Vie de Joseph Balsamo, p. 100, 122, 177. — Ein paar Trõpflein, p. 7. De Recke. Op.
cit., p. 66, 70, 72. Cagliostro recomendava o maior dos recolhimentos e a imobilidade, o
afastamento de qualquer distração. Por vezes queimavam perfumes na primeira câmara.
Ritual da maç.: egípcia. Abertura dos trabalhos do Grau de mestre, p. 58.
163. Op. cit., p. 69-70. — Vie de Joseph Balsamo, p. 122-179. — Cagliostro démasqué à
Varsovie, 1789, in-16, p. 3.
após haver agradecido a seus visitantes espirituais, o Grão-Mestre anunciava
que se podiam fazer todas as questões desejadas; os assistentes interroga
vam. Cagliostro transmitia as questões; os anjos respondiam, seja com si
nais ou com palavras percebidas apenas pela criança, seja mostrando um
quadro mutável que a criança descrevia164.
Um grande número dessas respostas nos foi conservado em relatórios
da época, freqüentemente pelos próprios interrogadores. Na Rússia, em
Estrasburgo, em Lyon, esses mesmos fatos se reproduziram e todos os his
toriadores de Cagliostro os citaram. Eis alguns exemplos, tomados aqui e
ali em autores contemporâneos.
Uma dama perguntou o que fazia sua mãe, que estava em Paris. A
resposta foi que ela estava num espetáculo entre dois velhinhos. Outra es
tendeu uma armadilha ao taumaturgo: queria saber qual era a idade de seu
marido. Não obteve resposta, o que ergueu grandes gritos de entusiasmo,
pois essa dama não tinha marido, e a falha dessa tentativa de arapuca fez com
que não se tentasse estender outra165.
Algumas vezes, a questão foi feita secretamente; um bilhete fechado
era entregue ao jovem pupilo — era um menino. Ele não o abriu, mas leu
imediatamente na garrafa essas palavras: “Você não o obterá”. Abriu-se o
bilhete, que perguntava se o regimento que a dama solicitava para seu filho
lhe seria concedido. Essa justeza de resposta aumentava a admiração166.
As respostas, ao que vemos, podiam dizer respeito a fatos por vir e
não se relacionavam apenas ao conhecimento de acontecimentos presentes.
164. “Cagliostro nos explica que nem sempre era a criança que falava por si mesma, mas
que um espirito mágico (inspiração, força mântica, mediunidade, diriamos) lhe ditava as
respostas que ela repetia, com freqüência inconscientemente e sem nada ver. Também igno
rava às vezes o que dissera. ’’ De Recke. Op. cit, p. 67. E por isso que ele proibia formal
mente interrogar a colomba após as experiências. A Sr.° de Recke, que tudo ignorava a
respeito dos fenômenos psíquicos, viu nessa proibição uma hábil precaução tomada por
Cagliostro para que suas representações não fossem descobertas. Hoje, mais bem informa
dos, encontramos nessa recomendação severa apenas uma prova de saber; questionar o
paciente fora das sessões é abrir a porta ao erro, é educar o médium para levá-lo a trapa
cear. Sabemos há muito tempo: “Se a alma foi anteriormente perturbada... perturba-se a
harmonia divina, as predições se tomam confusas e mentirosas e o entusiasmo deixa de ser
verídico e autenticamente divino ”. Jâmblico. Le livre sur les mystères, III, 7, trad. Quillard,
Paris, 1895, p. 82. Agora achamos ridícula a explicação pela prestidigitação dada pela Sr.”
de Recke acerca de todos os pontos em que a experiência dos fatos chegou a nós; mas temos
uma tendência a aceitar essa mesma interpretação para aqueles que a ciência ainda não
penetrou. Não é absurdo? A razão não deveria, ao constatar os erros da Sr.ade Recke, fazer-
nos reservar nosso julgamento e admitir a probabilidade de outras interpretações além da
de patifaria para os fatos surpreendentes ainda não explicados?
165. Isso ocorreu em Estrasburgo; foi um contemporâneo que nos relatou o fato, Cf.
Figuier, Histoire du merveilleux. Paris, Hachette, 1861, t. II, p. 16.
166. Figuier. Ibid., p. 16.
A famosa profecia da revolução e da morte de Luís XVI foi assim feita por
intermédio de uma criança167.
Os anjos que apareciam manifestavam às vezes sua presença de um
modo mais tangível ainda para a colomba: sua materialidade era tão nítida
que a criança podia tocá-los168,beijar suas mãos, entregar-lhes ou receber
deles objetos materiais. Uma das sessões mágicas mais impressionantes
cuja narrativa chegou a nós é a de Varsóvia, em que ele fizera queimar um
papel sobre o qual os assistentes haviam aposto sua assinatura; logo após,
a colomba viu cair a seus pés um envelope, com um sinete de cera, que
entregou a Cagliostro; abriram-no e cada um reconheceu sua assinatura169.
Uma vez os fenômenos produzidos, constatados por seus discípu
los, quando após experiências reiteradas eles puderam compreender o
alcance que tinham, tanto para o bem da humanidade quanto para a aqui
sição de um saber mais vasto, era preciso levá-los a conceber, apesar de
seu espanto religioso, que esses fenômenos ignorados não eram de or
dem antinatural nem mesmo sobrenatural, mas vinham do funcionamen
to de faculdades que poderiam tornar-se propriedade dos seres decididos
a adquiri-las.
Foi o que ele fez ao modificar suas experiências, mudando um pouco
aqui, um pouco ali, as condições acessórias ou a natureza das manifesta
ções para conseguir, no final, demonstrar por fatos que a percepção dos
fenômenos espirituais e a ação direta da vontade humana sobre eles eram o
apanágio natural do homem regenerado. Ele reduziu, depois suprimiu o ceri
monial, as tapeçarias, os cenários e as fórmulas misteriosas170. O círculo
mágico, de onde os assistentes não deveríam sair, foi omitido ou liberado
algumas vezes. A Srf de Recke, fina observadora, fez-lhe a observação:
“Não julgue”, respondeu ele; “se você tivesse o poder de comandar os espí
ritos, compreendería o círculo mágico. Tenho o direito de mudar as regras
que lhes dou, de modificar meu comportamento, de agir diferentemente se
gundo as pessoas; mas sou responsável se abuso desses poderes171.”
Mas, apesar dessa resposta tão clara, tão conforme ao plano que
Cagliostro seguia em suas demonstrações, a Sf de Recke só via aí infra
ções incompreensíveis ao ritual e, mais tarde, apoiando-se nessa pretensa
contradição, ela a apresentou como um argumento que comprovava, dizia
ela, que todas essas operações não passavam de charlatanismo.
As luzes também não eram mais necessárias; Cagliostro fazia sim
plesmente sentar a criança diante de uma garrafa; em outras ocasiões, “ele
172. De Recke. Op. cit., p. 88 e Vie de Joseph Balsamo, p. 134. Durante a experiência
feita com o paciente Henry em presença do príncipe Joseph e do príncipe de Lamballe
para o duque de Orléans (Cf. Cap. IV), a visão ocorreu em um espelho “de cerca de 9
centímetros quadrados ” e não em uma garrafa. Foi também em um espelho que Cagliostro
mostrou ao duque de Richelieu, que se apresentava incógnito, quem ele era e quem seria.
173. Vie de Joseph Balsamo, p. 148. E virão falar de hidromancia e em dar, como Eliphas
Levi (Cf. p. 54, nota I), uma pretensa explicação física!
174. Vie de Joseph Balsamo, p. 147, 148.
175. Vie de Joseph Balsamo, p. 134-135.
176. Em Varsóvia, um de seus pacientes foi uma menina de 16 anos. Cagliostro démasqué
à Varsovie,/7S6, p. 6. Um de seus pacientes de Paris, que tinha 10 anos quando o
duque de Orléans o levou a Cagliostro, ainda estava vivo em 1843. Era inspetor de
salubridade, chamava-se M. Henry e morava no Marché des Innocents, n.° 24. Cf.
Initiation, março de 1906. Trabalhos de Cagliostro, p. 257.
provar que seu poder sobre aqueles que empregava não dependia unica
mente de uma disposição especial e anormal do paciente177.
As qualidades necessárias a fazer um paciente, as faculdades de luci
dez existiam portanto em potência em quase todos os seres e não apenas
em algumas pessoas de exceção; essa conclusão se impunha. Uma prova
convincente foi dada: assistentes, além do paciente, percebiam repentina
mente as manifestações178, ou mesmo as percebiam na ausência do pupilo
(de qualquer médium, diríam os modernos), apenas pela vontade do Grão-
Mestre.
Em Versalhes, diante de grandes senhores, Cagliostro fez aparecer
não somente a imagem de pessoas ausentes ou mortas que lhe designavam
e visíveis apenas para o paciente, mas elas mesmas, fantasmas animados e
moventes, visíveis a todos os assistentes179.
O cardeal de Rohan assistiu, em Estrasburgo, a uma dessas operações
feita para ele, em que apareceu a imagem de uma mulher que lhe era cara180.
“Em Lyon, Cagliostro mostrou a toda uma sala de maçons estupefatos a
sombra de seu irmão, o venerável Prost de Royer, magistrado eminente,
que acabara de morrer181.”
Vemos quanto esses fenômenos ganham em generalidade, em exten
são, à medida que são produzidos. Não se trata mais de um pequeno caso
177. Vie de Joseph Balsamo, p. 138. — “A força mântica dos deuses (conhecimento)
está... em toda parte integralmente presente naqueles que podem recebê-la, escreve
Jâmblico;... não há nenhum ser vivo e nenhuma natureza à qual ela não se comunique,
dando a todos, mais ou menos, uma parte do conhecimento do futuro. Todavia, os seres
simples e jovens, sobretudo, são mais próprios à adivinhação. ” Le livre des mystères.
Trad. Quillard, p. 91 e 111 (III, 12 e IV, 24).
178. Um juiz que duvidava enviou secretamente seu filho para casa para saber o que fazia
sua mulher nesse momento; depois de ele ter saído, o pai dirigiu essa questão ao grande
Copta. A garrafa nada disse, mas uma voz ouvida por todos anunciou que a dama jogava
cartas com as duas vizinhas. Essa voz misteriosa, que não fora produzida por nenhum
órgão visível, lançou o terror em uma parte da assembléia e, quando o filho do magistra
do veio confirmar a exatidão do oráculo, diversas damas se retiraram.
Na Curlândia, a Sé de Recke testemunha que os beijos que os anjos davam à criança,
em sinal de paz e união com ele, no início e no fim das sessões, eram com frequência
ouvidos pelos assistentes tão nitidamente quanto os dados pela criança. De Recke. Op.
cit., p. 85 e 108.
179. Figuier. Histoire du merveilleux. Paris, 1861, t. IV, p. 28. O autor das Mémoires
authentiques se serviu dessas narrativas e de outras análogas, das indiscrições que filtra
vam sobre essas evocações teúrgicas para construir com todas as peças o conto humorístico
do jantar dos Treze. E lamentável que o espírito satírico tenha vindo, com uma fantasia
desse gênero, ridicularizar e desnaturar a lembrança dessas maravilhas; mas isso não
poderia atentar contra os próprios documentos.
180. Mémoires de Robertson.
181. Péricaud. Cagliostro à Lyon, broch. In-8?, p. 2.
isolado de hidromancia ou de cristalomancia produzido inconscientemente
em um ser anormal. Trata-se da eclosão, da realização de uma faculdade
nova, revelada aos homens pela aplicação apenas do poder de Cagliostro.
O mestre comanda e o olho espiritual do discípulo, e mesmo do indiferen
te, abre-se, assim como sua mão agiría se o mestre lhe houvesse ordenado
que o fizesse. Poder assustador e que fazia cair muitos a seus pés!
Cagliostro não quis, porém, que a admiração excessiva de seus discí
pulos se transformasse em uma espécie de devoção fetichista em relação a
ele ou aos poderes que eles entreviam: seu objetivo era desenvolver almas,
fazer refletir. Explicou a seus discípulos que esse poder, que eles admira
vam com terror, não era estritamente limitado a ele próprio e que ele podia
transmiti-lo, em alguns casos, a certos seres, desde que fossem puros, de
boa vontade e que Deus lhes concedesse essa graça. Não era esse o objeti
vo da Maçonaria egípcia?
Em sua presença, a princípio, ele fez consagrar e interrogar o paciente
por um terceiro182: o experimentador escolhido e os assistentes constata
ram assim que os poderes de Cagliostro se haviam transmitido a seu re
presentante e os fenômenos se cumpriam perfeitamente. Fez ainda mais:
tendo escolhido alguns discípulos instruídos, seguros e cujos esforços
eram orientados para o bem e para a verdade, transmitiu-lhes os poderes
não temporariamente, em sua presença, mas definitivamente, mesmo em
sua ausência183.
Sua mulher, pressionada e interrogada diante do Tribunal do Santo
Ofício em Roma, testemunhou que ele outorgara muitas vezes todo ou par
te de seus poderes a seus discípulos e que ela própria havia recebido o
direito de trabalhar “pelo poder que ela recebera do grande copta”, mas
para certos discípulos apenas184. E esse poder, assim adquirido por alguns,
tanto era sua propriedade espiritual que eles próprios puderam delegar seu
emprego e o transmitir por sua vez a substitutos ou a sucessores, segundo
as ordens e os preceitos do mestre185.
Enfim, sobre a própria forma das revelações, das manifestações, sobre
a natureza dos conhecimentos assim obtidos, Cagliostro ministrou por meio
da ação — e com que sabedoria! — ensinamentos que passaram desperce
bidos de muitos de seus discípulos, sem dúvida, que os críticos também
182. Vie de Joseph Balsamo, p. 147, 148, 153. — De Recke. Op. cit., p. 89.
183. Vie de Joseph Balsamo, p. 138, 151, 179.
184. Vie de Joseph Balsamo, p. 178.
185. Saint-Martin certifica essa transmissão eficaz de poderes na Loja egípcia de Lyon.
Correspondência de Saint-Martin e Kirchberger. 73° carta, p. 205. A Carta de M. Brice de
Beauregard, que reproduzimos mais adiante, é uma outra prova. Vie de Joseph Balsamo,
p. 134, 198 cita provas autênticas.
não observaram, já que a atração do bizarro, do fantástico tomava a frente
de todo o resto na maioria dos homens, mas que nós temos o dever de fazer
notar.
O saber não é a erudição: o verdadeiro conhecimento é de ordem
pessoal e não necessita da intervenção de um outro espírito humano, ele
mentar ou angélico186, e menos ainda de um desdobramento qualquer de
procedimentos e rituais. Cagliostro encontrava em si esse conhecimento
direto, demonstrava a sua realidade através de sua clarividência e suas
profecias; poucas pessoas o compreenderam; talvez mesmo não tenha
havido ninguém. Ainda se busca alguma fórmula misteriosa, silfo, diabo
ou anjo que explique Cagliostro. Não se pode admiti-lo sem um espírito
familiar.
E, todavia, esses fatos de clarividência direta foram numerosos; os
contemporâneos nos falaram deles; a Sr3 de Recke anotou alguns187.
O anúncio da morte de Maria Teresa feito em Estrasburgo, no mo
mento em que ela ocorria em Budapeste, é uma anedota bem conhecida188.
O Sr. de Laborde, coletor geral, conta, em suas Lettres sur la Suisse,
uma história ainda mais impressionante acerca das revelações e das predi-
ções que ele fez em Varsóvia a uma jovem dama da corte189.
Tais são os fatos; o discípulo, que seguira Cagliostro em suas pro
gressivas demonstrações, era então forçado a concluir da realidade dos
fenômenos, da possibilidade de conhecimentos que ultrapassam em muito
o domínio da ciência oficial. Além disso, ele era logicamente levado a
rejeitar as formas exteriores como inúteis, a constatar que tudo dependia
unicamente da presença espiritual e da vontade de Cagliostro, em quem se
afirmavam um saber e um poder ilimitados. Ora, o mestre declarava: “Todo
ser que queira seguir a estrada com energia e paciência obterá os mesmos
poderes; pois Deus tudo deu ao homem190”. Ele portanto não tinha mais de
procurar outros caminhos.
186. “Há, no Egito, respondeu Cagliostro ao maçom Satzmann que o interrogava, Lojas
em que se trabalha com espíritos e outras em que há apenas homens. ” Carta de Saltzmann
a Willermoz, de 31 de dezembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut.
187. Cagliostro indicou com exatidão os sintomas que a SE de Recke, ausente, sentia, o
trabalho que fazia e mesmo a posição em que estaria quando entrassem em seu quarto.
(Op. cit., p. 71). Em outra ocasião, ele lhe revelou os pensamentos secretos que ela tinha
no momento em que falava de outra coisa. (Ibid, p. 78). Anunciou numa noite que M. N.
N. cairia doente na noite seguinte, sofreria de tais e tais sintomas, chamaria tal médico, o
que se mostrou absolutamente exato (Ibid, p. 87). Traçou, diante de M. de Medem, o mapa
de uma floresta situada em Wilzen, em que jamais havia estado, mas bem conhecida de
M. de Medem, indicando-lhe as trilhas e até a forma de certas árvores. (Ibid., p. 58).
188. D’Oberkirch. Mémoires. T, I e cão. VII.
189. A narrativa detalhada está mais adiante.
190. De Recke. Op. cit., p. 117, 120, 131.
E o que opor a isso? Certo, mesmo no tempo de Cagliostro não falta
vam céticos: velhacaria, hipocrisia, ilusão, acaso, tudo isso foi dado como
explicação191.
Mas que se observe e reflita e será fácil ver que essas interpretações
não merecem ser discutidas. A multiplicidade dos fatos, sua autenticidade,
as condições especiais em que eles se produziram e sobretudo a veracidade
das revelações, com freqüência proféticas, afastam qualquer idéia de ilu
são. A prestidigitação pode imitar qualquer fato natural, deslocar uma mesa,
iluminar um quarto; jamais iluminará um cérebro. Diante de quase todos
os fatos novos da ciência, não se alegou a patifaria? Quando se apresen
tou o fonógrafo à Academia das Ciências, um dos sábios mais eminentes
não o acusou de ventríloquo? Um acaso sempre exato, uma ilusão sempre
verdadeira, não se chamam mais acaso nem ilusão. A clarividência de
Cagliostro e a transmissão que ele fez de alguns dos poderes aos discípulos
são fatos indiscutíveis.
Magnetismo — disseram e dizem ainda certos críticos. Cagliostro
não fazia magnetismo192: um discípulo de Cagliostro, que ainda vivia em
1850, escreveu, assunto uma carta muito interessante a respeito do pouco
conhecida, que fazemos questão de reproduzir aqui, pois confirma absolu
tamente a verdade da tese que sustentamos.
191. A Stf de Recke, em seus comentários, desenvolve todas essas falsas interpretações:
a hipótese de uma comédia representada pela criança não se sustenta, como já demons
tramos. Cagliostro tomava quem ele queria, na hora, como tema. A Sr. “de Recke pre
tende, em outro trecho, que Cagliostro escrevia sobre o pergaminho talismânico as
respostas que a criança deveria dar, esquecendo que ela mesma reconhece (p. 80) que a
criança não sabia ler e que as questões eram feitas pelos assistentes, depois de a colomba
ser fechada no tabemáculo. De resto, essa clarividência, esse desenvolvimento de um
olho mágico, como o chama Gichtel (Theosophia practica, IV, 10, 18, 28) conhecida em
todos os tempos (Atos dos Apóstolos, XXI, 9: XVI: 16. Mateus, VI: 22) foi negada
apenas nas primeiras horas da crise positivista que grassou até o meio do século XIX e,
em nossos dias, em que a ciência é menos presunçosa por ser um pouco mais bem
informada, os casos de telepatia, de psicometria, de lucidez, são fatos correntes cuja
existência não é mais discutida. As suspeitas de patifaria, para explicar o desconheci
do, parecem-nos infantis; e o livro da Si? de Recke, inteiramente composto de coisas tão
vãs, teria sido tão insignificante quanto o libelo do conde M. ou do Sr. Motus, se não
contivesse, muito felizmente, o texto primitivo de seu diário.
192. Cagliostro estava em Bordeaux em 1783 no momento em que o padre Hervier
propagava pela palavra e pela ação a ciência do magnetismo, pregando em plena
catedral essa doutrina nova. O padre Hervier, esse magnetizador reputado, tendo
querido travar uma luta de poderes com Cagliostro para demonstrar que a ação do
taumaturgo era puramente magnética e se incluía na categoria dos fatos que ele pra
ticava, foi publicamente derrotado e recebeu nessa ocasião, de toda a sociedade
mesmeriana, a repreensão merecida por sua imprudência. Figuier. Histoire du
merveilleux, t. IV, p. 26.
Cahagnet, tendo citado em seu jornal, Le magnétiseur spiritualistem,
o Sr. Brice de Beauregard, um amigo, diz ele, que se servia de espelhos
mágicos compostos de um globo de água clarificada que ele influenciava e
fazia influenciar por espíritos, que em seguida vêm escrever a resposta aos
videntes, e tendo-o comparado aos outros magnetizadores (Morin, etc.) e
aos cristalomantes antigos, recebeu a seguinte resposta193194:
“Senhor,
Li com interesse em seu excelente jornal um artigo relacionado aos
espelhos mágicos, em que encontrei meu nome junto ao do Sr. Morin.
Da leitura atenta de seu artigo resulta, se não me engano, que as pes
soas seriam levadas a crer que, como consequência dos sucessos obtidos em
gastromancia (sic?) por Cagliostro, o conde de Laborde e o barão Dupotet,
eu comecei a trabalhar em um caminho diferente. A verdade está longe de
ser esta.
Em setembro de 1827, fui iniciado nos mistérios de Cagliostro por
um de seus discípulos que o conhecera e que recebera a iniciação do pró
prio Grão-Mestre. Desde aquela época, eu fiz e faço ainda, todos os dias, o
que o próprio Cagliostro fazia.
Eu penso que, na Europa, apenas eu possuo seu segredo acerca desse
assunto, pois todos os discípulos estão mortos e o levaram consigo à tumba.
Desde 1827, não encontrei nem um só homem que o soubesse: encontrei,
às centenas, homens cuja imaginação se dispersa ao emitir novas teorias,
mas nem um único praticante da antiga escola.
Que o Sr. du Potet não venha dizer que descobriu a magia: muito
tempo antes dele, em 1827, eu sabia muitas coisas referente a essa ciência
e produzia fatos que ele ignora e que talvez sempre ignorará.
O Sr. Morin simplificou bastante essa experiência, o senhor diz. Eu
nego isso. O Sr. Morin, que não tenho a honra de conhecer nem pessoal, nem
nominativamente, não podería simplificar algo que ele não conhece ou que
só conhece imperfeitamente por intermédio do relato de intrigantes que lhe
falaram de mim, gabando-se de saber tudo sobre meu segredo.
Não confundamos as coisas, senhor gerente: a vidência não é o sonam-
bulismo e o teurgo não é o magnetizador; o senhor o diz e concorda com isso
de boa-fé. Mas eu faço magnetismo que chamo de angélico, o que é bem
diferente. Aqui, refuto a comparação com o Sr. Morin e declaro formalmente
que nada há de comum entre nós; não professamos a mesma arte nem a
mesma doutrina.
Nisso posso ser acreditado. Há trinta anos que sou recebido na Socie
dade de Magnetismo de Paris, fundada pelo marquês de Puységur, há trinta
anos que faço magnetismo no interesse da humanidade...; é-me permitido
ter uma opinião e dizer: isso é magnetismo ou não é.
195. É o nome empregado pelo próprio Cagliostro; foi o que ele disse a seus juizes em
Roma. Ver Vie de Joseph Balsamo, p. 190-191.
196. Figuier. Histoire du merveilleux. Paris, 1861, t. IV, p. 119.
maravilhas que o homem podia perceber, se tivéssemos diante de nós os
próprios anjos, os sete grandes anjos que estão diante da face de Deus,
“não tínhamos de adorá-los, mas de dizer-lhes para adorar com os irmãos197”;
que, no mundo dos espíritos, o homem deve, ou não penetrar, ou falar como
mestre, mas jamais suplicar ou se abaixar, “pois foi feito à imagem e seme
lhança de Deus; é a mais perfeita de Suas obras; Ele lhe confiou o direito
de comandar e dominar as criaturas imediatamente abaixo dele198” e que,
para tudo isso, não havia enfim necessidade nem de luminárias, nem de
hieróglifos, nem de fórmulas mágicas, que bastava “um coração puro e
uma alma forte, amar, fazer o bem e esperar199.
Essas são as belas e grandes lições que Cagliostro deu na Curlândia,
e concebemos o entusiasmo que ele deve ter erguido em tomo de si: sua
autoridade era tão grande que, se ele quisesse empregá-la para conquistar
um reino, a Curlândia seria dele. O autor da Vie de Joseph Balsamo preten
de que lhe tenham oferecido secretamente o trono e que, se ele recusou, foi
apenas por medo das consequências200.
Essa frase, escrita para os príncipes e destinada a justificar ante seus
olhos a condenação de um aventureiro temível, jamais foi pronunciada por
Cagliostro; ele afirmou sem dúvida que, se tivesse querido tomar-se rei,
isso só dizia respeito a ele próprio; mas acrescentou também que rejeitara
essa idéia porque esse não era seu caminho e que era preciso respeitar a
ordem estabelecida e o soberano de cada país201.
O autor da Vie de Joseph Balsamo, podemos ver, mais uma vez desfi
gurou as palavras e os atos de Cagliostro, e o tradutor de sua obra, por mais
hostil que seja, não se pôde impedir de protestar contra essa insinuação.
E verdade que ele adquirira a veneração de um grande número de
curlandeses e que toda a nobreza viera a ele202.
197. Ritual da maç.’. egípcia,/?. 40 — Vie de Joseph Balsamo, p. 186. Frase que Gichtel
teria compreendido, mas que escandalizou Lavater: “Preste atenção, meu caro, no que
diz respeito aos sete espíritos de Deus. Se o último dos últimos dos servos do último dos
anjos me houvesse dirigido uma palavra, que homem eu não seria! A pretensão é enorme,
como se quiséssemos trazer o sol no bolso como a um relógio". Carta a Sarrasin.
Langmesser. J. Sarrasin. Zurique, 1899, p. 41.
198. Ritual da maç.-. egípcia, p. 40
199. Ritual da maç.’. egípcia, p. 40. “Entre nós, disse a SE de Recke, Cagliostro une com
muita exatidão a religião à magia e à Maçonaria. " Op. cit., p. 14 e Ibid., p. 31, 35, 119.
200. Vie de Joseph Balsamo, p. 46. “Ele próprio o reconheceu ”, diz o autor.
201. Foi o que ele declarou e ensinou sempre: Relatório do conde de Cagliostro contra o
procurador-geral, 1786, in-16, p. 6. — Ritual da maç.’. egípcia. Catecismo de mestre, p.
30, 44, 75. — Relatório contra Chesnon, in-4?, 1786, p. 37.
202. “Ele virara todas as cabeças na Curlândia. " Heyking. Le comte Cagliostro parmi les
Russes. Initiation. Agosto de 1898, p. 129.
A Loja, porém, permaneceu constituída como o fora no início. Fun
dada pela Sf de Recke, a Sf de Kayserling, sua tia, e a Sr! de Grotthaus,
sua prima, ela compreendia o Sr. de Medem e seu irmão, o marechal, que
foi venerável; o Sr. de Medem de Tittelmunde, filho do precedente; o con
selheiro áulico Schwander e o Dr. Lieb, o notário Hinz; o Sr. de Howen; o
major von Korff e, mais tarde, a sogra da Sf de Recke203. Os outros alunos
viam Cagliostro, ouviam-no falar em público, mas não assistiam aos traba
lhos da Loja, que permaneciam secretos.
Durante as últimas semanas de sua estada, Cagliostro morou na casa
do Sr. de Madem204, consagrando todo o tempo à instrução de seus discípu
los, sem praticar a medicina205.
Havia reuniões todas as noites, nas quais Cagliostro operava e falava.
A Sr! de Recke publicou em sua obra algumas páginas de notas tomadas
nesses cursos, notas confusas, com freqüência mal interpretadas, mas inte
ressantes de se comparar com o Ritual da Maç:. Egípcia e os outros ensina
mentos de Cagliostro. Em seu discurso de adeus, pediu-lhes insistentemente
que pensassem sempre nele, permanecessem fiéis, trabalhassem com ardor e
guardassem silêncio. Esta última recomendação foi feita mais especial
mente à Si! de Recke: ele a renovou em particular206.
Sabemos como ela a seguiu.
Ao partir da Rússia, a Si! de Recke escreveu a Cagliostro “uma carta
que ele ainda guarda, diz ele, mas que só mostrará se a condessa o autorizar
e na qual ela lhe assegura não apenas de sua afeição, mas de seu respeito207.”
Esses sentimentos, que eram os mesmos de todos os discípulos na
Curlândia, sobreviveram à sua partida; eles lhe escreveram, e ele lhes res
pondeu em diversas cartas208.
Mais de um ano depois, eles ainda defendiam Cagliostro contra os
maledicentes209; todos, sobretudo a Si! de Recke, esperavam-no em sua
volta de São Petersburgo210, na esperança de que ele se fixaria em Mitau,
onde conquistara simpatias respeitosas. Mas depois que a Sf? de Recke
São Petersburgo
Foi em pleno sucesso que Cagliostro deixou Mitau: sua Loja funcio
nava bem; pessoas no melhor nível disputavam a honra de ser seus discípu
los. Esse entusiasmo dos curlandeses, longe de lhe fazer prolongar sua
estada em Mitau, foi, ao contrário, a causa ocasional de sua partida222.
A Corte brilhante de Catarina II, a potência nascente do império rus
so atraíam os nobres da Polônia e da Curlândia. Mitau não era São
Petersburgo: ali apenas, na capital, as ambições tinham a chance de se
realizar. E que sucesso maior se podia esperar senão levar à imperatriz um
ser poderoso, conselheiro sem igual, protetor no visível e no invisível? Isso
não seria garantir ao mesmo tempo o reconhecimento da grande Catarina e
o do grande Cagliostro? Aquele que tivesse essa vantagem podia certifi-
car-se da fortuna terrestre e das graças do Céu.
A imperatriz se interessava pela Maçonaria: “Que pensem o que
quiserem de Catarina II sob o ponto de vista da moralidade e do senti
mento, escreveu um historiador223, que a julguem severamente sobre es
ses dois pontos, ela não deixará de ter o espírito de um homem de Estado
e uma grande superioridade intelectual. A França tinha o monopólio da
cultura, personificada em homens como Montesquieu, Voltaire, Rousseau,
Diderot, d’Alembert, Grimm. Será que podemos nos espantar de que
Catarina estudasse suas obras com paixão? Mas seu espírito esclarecido
reconheceu imediatamente a impossibilidade de utilizar de forma prática
para seu povo as idéias sugeridas por suas obras. O materialismo, o ateís
mo, as tendências democráticas subversivas que surgiam nessa filosofia
só podiam ser perigosos para um povo tão imaturo quanto o russo. Para a
educação deste último, ela necessitava de apoios seguros e estes se apre
sentaram no momento exato em que ela os buscava em torno de si: eram
234. Foi o barão Heyking quem lhe suscitou alguns inimigos na corte, entre outros o
conde de Goertz, enviado do rei da Prússia, “personagem altivo que não se dignava a
falar com ninguém’’. Mémoires de la margrave d’Anspach. P. Bertrand. 1826, 2 volumes
in-8?, t. I. p. 232.
235. Marc-Daniel Bourrée, cavaleiro de Corbéron em 1775, barão em 1781, nascido em
15 de julho de 1748 em Paris, representou um papel muito importante em 1779 nas difí
ceis rixas com a Turquia. Muito estimado como diplomata, ele era além disso temido por
seu espírito cáustico e seu caráter intratável. Recebido maçom em Paris, Iniciado do
sétimo e último Grau do Rito de Mélissino, era um espírito vivo, curioso, um coração leal,
uma alma sensível, mas sujeita a todas as paixões mundanas. Ele amava Cagliostro,
protegeu-o abertamente na Rússia, permaneceu muito ligado a ele. Suas crenças, sua fiel
amizade por Cagliostro fizeram com que a imperatriz lhe chamasse determinado observa
dor de espíritos. A influência de Cagliostro, em voltar seus pensamentos para temas mais
elevados, metamorfoseou-o. Seu historiador, o Sr. Labande, notou o fato sem perceber a
causa: citou acerca do assunto uma carta de Corbéron que se ressente com essa transfor
mação inciática:“O barão de Corbéron aceita sua desgraça (1784) com uma resignação
que sua fervente juventude não teria conhecido”. “Durante a duração de meus fracos
serviços, escreveu ele, se eu tive zelo, lealdade e desprendimento, o amor pela glória
disfarçava em mim um sentimento de orgulho que eu tomava por grandeza de alma, e,
longe de cumprir as funções de que eu era encarregado apenas no espírito de fazer o bem,
tenho de me censurar por ter tido como objetivo minha reputação e de ter tirado vaidade
de meus sucessos, esquecendo de me humilhar diante do Senhor, o único a quem devemos
nossas qualidades e nossas virtudes. Esse juiz terrível, mas igualitário, esse pai severo,
mas bom, e mil vezes mais ainda, castigou-me mas muito docemente. Ele me puniu em
meu orgulho, em meu amor-próprio... Oh meu Pai, abençoa-o por mim e comigo. ” Journal
de Corbéron, prefácio, p. LXIII. O barão de Corbéron se casou em 1781 em Estrasburgo;
preso no Brumário ano III, escapou miraculosamente à guilhotina e morreu em Paris em
31 de dezembro de 1810. Cf; L.H. Labande. De Corbéron. Plon, 1901, 2 volumes, in-8?.
236. Carta de Saltzmann de 22 de novembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut. Alexandre
Potemkine, nascido em 1736 em Smolensk, general-chefe, primeiro-ministro e favorito
titular da imperatriz desde 1774, conquistou a Criméia e fundou Sebastopol. Morreu em
1791.
Outros, filósofos herméticos, descobrem em Cagliostro o adepto tão
longamente esperado, o único capaz de dirigi-los em meio às contradições
de todos os autores, de confortá-los sobre suas dúvidas. Ela não cita Le
Trévisan ou Geber; não, o conde de Cagliostro não repete as lições dos
alquimistas antigos: ele olha no laboratório da natureza e responde a quem
o interroga: “Eis como deve se fazer o que você procura; eis o que faltava
a seu trabalho237”.
Quando não queria responder ele mesmo, fazia interrogar uma crian
ça em sua presença, como na Curlândia. Fosse hieroglífico, hermetismo,
busca no passado, previsão do futuro, conselho para o presente, seres espi
rituais apareciam ao paciente e respondiam à interrogação feita.
Mas, mais ainda que os sofrimentos espirituais, que as curiosidades
intelectuais, são as doenças físicas que perturbam os homens e os fazem
buscar avidamente o socorro e a cura. Se Cagliostro não houvesse pensado
em exercer a medicina, teriam-no forçado a isso. Seu saber, seu poder
não eram imensos? A experiência cotidiana o provava: havia mais servi
dores no mundo dos espíritos238 do que a imperatriz tinha súditos em todas
as Rússias: de que médico se podia esperar tanto, senão dele?
Os doentes acorriam: ele consolava, curava pobres e ricos com o
mesmo desinteresse. “Em São Petersburgo, começou a curar os pobres e
lhes dar dinheiro; nessa classe de infortunados, fornecer alimentos é curar,
porque é a fome que inicia a doença. Um homem, de classe remediada,
consultou o novo doutor: foi salvo; quis pagar, mas lhe devolveram seu
dinheiro239.”
Cagliostro, cada vez mais solicitado, ocupou-se, pela primeira vez,
de medicina sem interrupção. Porém, era apenas uma ocupação secundá
ria: os trabalhos de laboratório, como ele os praticava, absorviam-no antes
de qualquer coisa.
As curas espantavam mais por se cumprirem freqüentemente em ca
sos desesperados e sem a aplicação dos procedimentos médicos habituais.
237. Bode, em seu panfleto anônimo, confirma-nos que Cagliostro, em São Petersburgo,
ocupou-se de alquimia especialmente com o general G... (Gelacin), que trabalhava com a
água régia e com espiriteira, e com o príncipe Potemkine. De Corbéron declarou ao
autor, em 1781, que estava convencido do poder de Cagliostro, que ele o afirmava — o
que parece comprovar que ele tinha provas —, o que não impede o autor do libelo de
zombar disso sem qualquer outra discussão. Cf: Ein paar Trõpflein, p. 10.
238. Cf. Liber Memorialis. Trad, franç., p. 78.
239. Mémoires Authentiques, nova edição. Paris, 1786, in-8?, p. 12. "Não faltam charlatães
que operam gratuitamentel”, diz o autor do panfleto Ein paar Trõpflein, p. 8. Nessa mal
dade, ao menos há a admissão de que o desprendimento de Cagliostro não entrava em
discussão mesmo entre seus inimigos mais encarniçados. Meiners disse a mesma coisa de
suas curas. "Curar não prova nada; todos os charlatães curam os doentes. ” Briefe über
Schweiz, t. III, p. 424.
Cagliostro curou um assessor de nome Ivan Isleniew, atingido por um cân
cer aberto na região cervical, devido ao qual se havia perdido qualquer
esperança; ele traz o certificado dessa cura240. “Cagliostro curou em
Petersburgo o barão de Strogonof, que teve acessos de loucura provenien
tes dos nervos, Guélaguine, a Srí Boutourmline, etc241.”
Ele usava poucos medicamentos, normalmente nenhum. Contenta
va-se em pedir a cura ao Céu, interrogar as colombas em relação aos
casos que se apresentavam: às vezes ele mandava e o mal desaparecia.
Sugestão, diríam os espíritos superficiais; não conheço em toda a sua vida
médica um caso em que se possa supor que ele usou de sugestão; dou um
exemplo, que se passou justamente em São Petersburgo. “Na cidade de
Pedro, dito o Grande, um dos ministros da rainha dos russos tinha um ir
mão que perdera a razão e se acreditava maior que Deus. Ninguém podia
resistir à violência de seu furor; ele gritava em altos brados, ameaçando
toda a terra e blasfemando o nome do Senhor. Estava em observação. E
esse ministro me suplicava que o curasse242.
Quando cheguei junto a ele, colocou-se imediatamente em furor e,
olhando-me com ferocidade, retorcendo os braços, pois estava amarrado
com correntes, parecia querer se lançar sobre mim. E berrava: ‘Que se
precipite no mais profundo dos abismos aquele que ousa aparecer assim
na presença do grande Deus, daquele que domina todos os deuses e os
expulsa para longe de seu rosto’. Mas eu, reprimindo qualquer emoção,
aproximei-me com confiança e lhe disse: ‘Vais calar-te, espírito mentiro
so? Não me conheces, eu que sou Deus acima de todos os deuses e me
chamo Marte? E vê este braço no qual está toda a força para agir a partir do
alto dos céus até as profundezas da Terra. Vinha a ti para te tomar em
piedade e te fazer bem, e eis como me recebes, sem considerar que tenho o
poder de reparar, mas também o de reduzir a pó’ — e imediatamente lhe
dei tal bofetada que ele caiu no chão, de costas. Quando seus guardiães o
ergueram e ele se acalmou um pouco, ordenei que me trouxessem uma
refeição e comecei a jantar, proibindo-lhe que comesse comigo. E quando
vi que ele estava humilhado, eu lhe disse: ‘Tua salvação está na humildade,
estar desprovido de qualquer força diante de mim; aproxima-te e come. E,
depois de ele ter comido um pouco, subimos ambos em um carro e saímos
da cidade, às margens do Neva, onde os guardiães haviam preparado, sob
243. Liber Memorialis. Trad, franç., sob o título L’Evangile de Cagliostro pelo Dr. Marc
Haven. Paris, 1910, in-16, p. 67.
244. O Sr. D’Almeras, que pretende o contrário sem provas, contentou-se em reproduzir
os sarcasmos de alguns panfletários e negligencia inteiramente as atestações positivas e
dignas de crédito que relatamos pouco antes. Cf: D'Almeras, Cagliostro, p. 163.
245. E não Rugenson ou Rogerson como escreveram autores mal informados (Vie de
Joseph Balsamo, p. 48). Cf. Journal de Corbéron, t. II, p. 372.
246. Narrativa feita por Cagliostro e publicada em: Liber Memorialis, trad, franc., p. 77.
A Gazette de Santé publicou a mesma história, resumida, em 1786. Cf. Figuier, Histoire
du Merveilleux, 1861, t. IV, p. 10.
eles vos atirarão pela janela; se me provocais enquanto médico, eu vos darei
satisfação como médico’. Assustado, ele respondeu: ‘É ao médico que pro
voco’ . E com efeito eu tinha sob minhas ordens grande quantidade de servi
dores. Então eu lhe disse: ‘Pois bem, não nos batamos com espadas, tomemos
as armas dos médicos. Engolireis duas pílulas de arsênico que vos darei e
eu engolirei o veneno que me derdes, qualquer que seja ele. Aquele dentre
nós que morrer será considerado pelos homens como um porco247.”
O médico inglês se recusou; a imperatriz acalmou Cagliostro, afastou
Roggerson; o duelo de venenos não ocorreu248.
Enquanto o favor da imperatriz lhe esteve garantido, enquanto Ca
tarina, interessada em propagar a Maçonaria, estendeu sua proteção so
bre Cagliostro, ninguém se mexeu; mas ele era espionado e quando, por
uma reviravolta de espírito hábil e não caprichosa, a imperatriz se desli
gou das Lojas249, os inimigos de Cagliostro viram o momento propício.
Na ocasião de uma cura fantástica que ele operara sobre uma criança de
dois anos, moribunda, e tão transformada por seus cuidados, em alguns
dias, que sua mãe mal a reconhecia, os interessados insinuaram que tal
vez tivesse havido substituição da criança250.
247. Era o termo de que Cagliostro se servia ao se referir àqueles que ele desprezava.
248. Criticou-se o procedimento de Cagliostro como pouco cavalheiresco e deslocado.
Eu encontro aí, pelo contrário, certa nobreza. O duelo médico é o único que seria inteli
gível. O Dr. Jacquet, escritor de talento ao mesmo tempo que sábio inconteste, discutindo
indefinidamente com o P. Hallopeau a respeito da transmissibilidade da calvície, ofere
ceu-lhe recentemente (Quinzaine thérapeutique, 1909, p. 152): primeiro, uma experiência
contraditória, cuidando ele dos doentes à sua maneira e M. Hallopeau à dele; segundo,
uma experiência pessoal: ele se oferecia para se fazer in ocular a pretensa doença conta
giosa por seu contraditar prevendo que ela não o atingiría; tudo isso com uma ironia que,
por ser menos dramática que a de Cagliostro, não deixa de vir do mesmo espírito de
sinceridade científica que animava Cagliostro ao provocar Roggerson. Exemplos análo
gos existem na história médica e não foram julgados ridículos.
249. A Maçonaria, ao multiplicar seus Ritos, enfraquecia-se na confusão e nas rivalida
des: “O que importava agora a Catarina, mulher de firme vontade, uma sociedade dividi
da contra si mesma, flutuando de um sistema a outro, composta de pessoas sem valor,
uma associação de cocheiros e de domésticos, segundo a expressão forte de Bergmann.
Catarina os rejeita, chega a lançar seus antigos aliados em ridículo e escreveu contra os
rnaçons três comédias: L’Enchanteur sibérien (O encantador siberiano), Le Trompeur (o
enganador), L’Aveugle (o cego), tomando Cagliostro como protagonista”. Friedrichs. La
Franc-Maçonnerie en Russie, Berna, 1908, in-16, p. 42. Nicolai publicou traduções des
sas peças em alemão em 1778, em Berlim, sob o título: Lustspiele wider Schwarmerey.:
Von J.K.m.d.K.v.R.
250. O Cagliostro démasqué à Varsovie retoma essa história muito mais tarde; mas mes
mo esse panfleto só reproduz a acusação sob forma de hipótese (p. 62). Madame de la
Motte e Morande a repetiram; a calúnia tomou corpo; reencontramo-la aqui e ali. apre
sentada como um fato positivo.
Os russos, muito mutáveis, facilmente entusiastas, mais facilmente ainda
esquecidos, desinteressaram-se do taumaturgo; rumores maledicentes circu
laram a respeito de Cagliostro, que, dizia-se, recebia dinheiro secretamente
da condessa, que misturaram habilmente a intrigas mundanas251.
Falou-se de complô político; na Rússia, o poder dessa palavra é má
gico. Os amigos de Cagliostro, temendo esses sintomas de perseguições
prováveis, chamaram-no junto deles em Varsóvia252. Para lá foi ele.
Muito mais tarde, em 1786, misturaram-se todas essas histórias e,
bordando sobre elas as fantasias mais maldosas e mais ousadas, disseram
que ele havia sido expulso de São Petersburgo por ordem da imperatriz,
sob um pedido do Sr. de Normandez, encarregado dos negócios do rei da
Espanha253.
Essa lenda, como tantas outras, permaneceu; é preciso destruí-la.
O barão Heyking, que não tinha portanto Cagliostro em conta de san
to, relatou o fato Normandez com mais imparcialidade e o apresentou em
suas devidas proporções: o caso ocorreu, devemos notar, no início de sua
estada em São Petersburgo, no dia seguinte a sua chegada254; limitou-se a
uma intervenção do encarregado de negócios que quis vê-lo, a verificar
seus títulos e lhe proibiu, parece, de se dizer coronel a serviço da Espa
nha255. Mas após essa entrevista, Cagliostro permaneceu muitos meses em
São Petersburgo, gozando da proteção da imperatriz, da simpatia dos gran
des, do respeito da população256.
257. Theodore Mundt escreveu acerca desses dados uma nota intitulada Cagliostro à Saint-
Petersburg. Leipzig, 1858, in-12, pura obra de imaginação, escapando por consequência
à crítica, mas que, como todos os romances análogos, comete o erro de contribuir para
desfigurar o caráter de Cagliostro.
252. Roggerson dirigia esses movimentos. “O ciúme do primeiro médico da corte o obri
ga a deixar a Rússia. ” Cf. Ein paar Trõpflein, p. 12 (nota 3, seguinte) e Ephemeriden der
Freymaurerey in Deutschland. Anno 5785, p. 112.
253. Mirabeau. Lettre sur MM Cagliostro et Lavater. Berlim, 1786, in-8?, p. 9. “É uma
velha calúnia retirada das memórias de madame. de la Motte e que já foi desmentida pelo
Sr. de Corbéron”, escreve Cagliostro em sua Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 64.
254. Heyking. Op. cit.., p. 131.
255. De Normandez teria feito inserir na Gazette de Saint-Pétersbourg que não existia
nenhum coronel espanhol com o nome de Cagliostro. Note-se que De Goertz, represen
tante do rei da Prússia; Harris, ministro plenipotenciário inglês; e de Normandez eram
adversários políticos de Corbéron, amigo e protetor de Cagliostro. Ver Journal de Corbéron.
256. O rei da Suécia, Gustavo III, enviou-lhe o coronel Toll para interrogá-lo e convidá-
lo a vir ter com ele. Podemos ler na obra de M. Geoffroy: Gustave III et la cour de France.
Paris, 187, t. II, p. 258, as belas palavras e a emocionante conversa de Cagliostro com o
embaixador do rei da Suécia. “O príncipe da Prússia viu Cagliostro em São Petersburgo;
Ele prestava homenagem a seus conhecimentos." Journal de Corbéron, t. II. P. 196. O
autor do panfleto: Ein paar Trõpflein... que relata muito bem a estada em São Petersburgo,
não assinala nenhum fato que tenha forçado Cagliostro a partir e detalha mesmo que foi
de sua plena vontade “que ele julgou bom levar para outros lugares as suas luzes ”, p. 12.
Se tivesse ocorrido algum escândalo, ele teria feito questão de dizer.
Vemos que a intervenção Normandez não teve grande alcance; e, de
fato, pouco importavam os títulos do conde de Cagliostro; seus atos, seu
poder, bastavam para impô-lo e conquistar os sufrágios. Quando de sua par
tida, longe de ser expulso, ele recebeu de todos os mais marcantes testemu
nhos de gratidão257. Calorosas recomendações para Varsóvia, um passaporte
em ordem lhe foi concedido sob seu pedido e Cagliostro se oferecia ainda
para mostrar esse documento a quem o quisesse ver, em 1787258.
Conservou bons amigos em São Petersburgo; quando do caso do Colar,
fez apelo ao testemunho do barão de Corbéron, então ministro plenipoten-
ciário junto ao duque des Deux-Ponts, para que ele declarasse qual havia
sido sua vida em São Petersburgo, qual lembrança ele deixara e em que
condições honrosas ele deixara a cidade.
Varsóvia
Em abril de 1780, ante a insistência do príncipe Poninski259, Cagliostro
foi a Varsóvia. O príncipe Adam Poninski, fundador da Loja templária de
Varsóvia, dita Charles dos três capacetes260, era apaixonado por alquimia.
Conhecera Cagliostro através de seus amigos de São Petersburgo e deseja
va muito tê-lo junto a si e a seus colaboradores para dirigir seus trabalhos.
Era rodeado de alquimistas de todas as espécies, pois o hermetismo estava
em grande voga na Polônia261 e nada é mais rico em variedades que a espé
cie alquimista.
Na parte de baixo da escala, está o soprador, quase sempre ignorante,
supersticioso às vezes, sempre muito materialista, que ama a química por
instinto, o forno por ele mesmo, espantando-se a cada passo com fatos
muito conhecidos pelos outros, mas novos para ele, queimando seu carvão
e passando a vida ao deus-dará, esperando tudo de imprevisto. Os sopradores
formam uma legião; se vieram deles algumas descobertas, o número foi
bem pequeno.
257. A imperatriz, em sua partida, fez-lhe presente de uma importante soma de dinheiro.
Le charlatan démasqué. Frankfurt, 1780, p. 62.
258. Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 64.
259. Saltzmann. Carta a Willermoz de 22 de novembro de 1780. Arquivos de M. Bréghot
du Lut e: Ein paar Trõpflein, p. 12.
260. Instalada em 1745. Poninski foi também um dos fundadores da Loja do Grande
Oriente da Varsóvia em 1780.
261. A Polônia, onde os rabinos cabalistas são numerosos até hoje, era no século
XVIII um celeiro de ciências ocultas. Jean de Thoux de Salverte, fundador, em 1750, da
Loja “Ao Bom Pastor’’, de Varsóvia, passou cinco anos de sua vida estudando a cabala
e a alquimia, para poder trazer suas luzes a sua Loja. Cf. Friedrichs. La Maçonnerie
en Rússia, Berna, p. 55, e L’occultisme en Pologne, in: Initiation, 1904. Artigo de M.
Erny.
O alquimista místico é bem diferente: seu laboratório é menos atu
lhado; apenas os símbolos e o sonho o ocupam; o fogo que arde em seu
laboratório é o de lâmpada regular e suave. O místico busca a grande obra
em si; seu atanor é o ser humano. A essa classe pode se juntar a do alqui
mista social, reformador, que esconde suas audácias sob o véu do símbolo
químico, o mais temido, na Idade Média, do clero e dos príncipes. De medo
de deixar escapar algum desses, a Inquisição compreendeu todos os outros
em suas implacáveis perseguições.
No mais alto Grau de cultura se encontra o filósofo hermético, que
observa a natureza, busca penetrar seus segredos e suas leis, opera com seu
concurso. É o sábio que, tendo observado os fatos, eleva-se à concepção de
uma hipótese geral, depois a verifica experimentalmente antes de erigi-la
em lei. A esses filósofos herméticos devemos a maior parte das descober
tas químicas que constituem nossa riqueza científica atual.
Pesquisadores de todas as categorias, sem falar dos simples curiosos,
formavam a corte de Poninski, dissertando e animando-se com ele, dese
jando todos a vinda de Cagliostro que os intrigava e que devia ser um
grande adepto. Cagliostro, claro, não se dizia discípulo de Hermes262, mas
já se falava de seu Elixir263, de sua Pedra Luminosa264, de seus segredos
para fazer crescer os diamantes265, para amolecer o mármore e o âmbar,
trabalhá-lo e devolver-lhes em seguida sua dureza, para dar ao algodão e
262. A química é uma infantilidade para quem possui a alquimia e a alquimia nada é para
um homem que comanda os espíritos, dizia ele a Heyking. Cagliostro era o mestre do fogo
porque ele conhecia os seres do fogo, assim como era o mestre da doença porque conhecia
os seres humanos; não tinha que tatear, nem que verificar; Tinha apenas de comandar.
263. À base de ouro potável, se acreditarmos nos Souvenirs de la marquise de Créqui. t.
Ill, p. 272. Sua medicina universal se apresentava sob diversas formas: gotas amarelas,
vinho do Egito, Barba Jovis, bálsamo ou pílulas egípcias; em uma ou outra preparação
semprefigurava o princípio vivificador que provocava a atividade. Cf. De Recke. Nachricht
Von berüchtigen... p. 56. — Gazette d’Utrecht, 2 de agosto de 1787 (Borowski). Cagliostro,
einer des Abentheuer... Konigsberg, 1790, p. 138. — Ma correspondance, n? 73, 1785, 5
de setembro.
264. “Ele me falou de uma espécie de pedra... para cuja confecção só lhe eram precisos
cinco dias e que tem a qualidade de iluminar ao ser esfregada na obscuridade com um
pouco de catarro, de modo que podemos usá-la para acender uma vela e a apagamos
enxugando-a com um lenço." Carta de Saltzmann à Willermoz de 13 de dezembro de
1780. Coleção Bréghot du Lut.
265. A Sé“ d'Oberkirch conta acerca do assunto uma interessante anedota: o cardeal de
Rohan lhe mostrou um dia um grande solitário que trazia no dedinho e sobre o qual
estavam gravadas as armas da casa de Rohan e lhe perguntou o que ela achava. — E uma
bela pedra, Monsenhor, eu já a havia admirado. — Pois bem! Foi ele que a fez, está
ouvindo? Ele a criou a partir de nada: eu vi; eu estava lá, com os olhos fixos no cadinho
e assisti à operação. Isso é ciência? O que a senhora acha, senhora baronesa? Não se
pode dizer que ele me enganou, que me explorou; o joalheiro e o gravador estimaram o
brilhante em 25 mil libras. A senhora há de convir que é um trapaceiro estranho, para
fazer semelhantes presentes. Eu fiquei estupefato, admiti. — E isso não é tudo: ele faz
ouro; ele fabricou diante de mim o correspondente a 5 ou 6 mil libras, no sótão do palácio.
ao cânhamo a fineza da seda e seu lustro266 e provas que ele havia dado de
seu poder sobre a matéria. Esperavam muito dele; sabiam que ele podia
buscar em boa fonte, no mundo espiritual, todas as informações úteis à arte
hermética; sopradores, místicos e sábios contavam igualmente com ele para
atingir suas finalidades diversas.
Poninski, sobretudo, era atraído por Cagliostro; de natureza ardente,
ele desejava o poder oculto267; por outro lado Cagliostro se interessava
pelo príncipe; ele sabia, apesar de suas paixões, que era de alma generosa
e, se era capaz de violências, era também suscetível a nobres sentimentos.
Ele foi então a Varsóvia e se hospedou na casa do príncipe. Poninski
fez transformar em laboratório, para ele, sua casa de campo em Vola. Nada
foi economizado e Cagliostro, “que-recusava qualquer dinheiro, dava em
troca todas as indicações para um arranjo perfeito do laboratório268.”
Enquanto sua casa se transformava em gabinete de química, Caglios
tro espantava seus hospedeiros com sua conversa e seus prodígios. Mostra
va-se diferente de como o fazia em Mitau e em São Petersburgo, mais
impressionante. Sem dúvida, as verdades que ele encarnava e ensinava
permaneciam as mesmas: a matéria, a natureza e suas leis, as do espírito,
não haviam mudado; mas ele se encontrava agora rodeado de pessoas para
as quais a busca da pedra era a maravilha única, a grande preocupação.
Parece que, nesse meio mais pesado, mais material, menos tinto de filoso
fia do que a Rússia, Cagliostro tenha feito tudo para trazer um germe de
desenvolvimento espiritual. Diante dos olhos dos boêmios, diante do sorri
so dos céticos, ele lança fenômenos perturbadores; aos sopradores, ele fala
de uma filosofia hermética que não se encontra nos livros; a todos, ele
ensina algo de surpreendente; ele não bajula ninguém, não leva em conta
269. O homem que o perseguiu com seu ódio no Cagliostro démasqué à Varsovie foi
forçado a reconhecer essa franqueza de atitude, essa independência de caráter, que se
encaixam tão mal com as manobras de um intrigante e não sabe como explicá-las: “A
maior parte dos impostores, diz ele, é sutil e busca fazer amigos; este parece tomar cuida
do em parecer arrogante e afazer de todos seus inimigos. Os outros charlatões conser
vam cuidadosamente as ligações com todos os que servem para executar suas patifarias;
este briga com eles por um nada ”. Cagliostro démasqué , p. 50, 51.
270. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 50.
271. Stanislas-Auguste Poniatowski, o último dos reis da Polônia, membro da Loja Charles
dos três Capacetes e que foi um predestinado; no dia de seu nascimento, um astrólogo
misterioso predisse sua elevação e suas infelicidades. Cf.; Initiation, 1904. Erny.
L’occultisme en Pologne. Na época em que Cagliostro o viu, ele ainda estava no período
feliz de sua vida.
A
Rússia — O Feiticeiro
Casa habitada por Cagliostro durante sua estada em Estrasburgo. Era chamada casa da Virgem,
atualmente Kalbsgasse r? 1.
oo
que lhe dou: enquanto a senhora o conservar, poderá evitá-los; mas se não
puderem impedi-la de doar o seu bem no contrato de casamento, a senhora
perderá imediatamente o talismã e, no momento em que não o tiver mais,
ele estará em meu bolso, em qualquer lugar em que eu esteja’.
Ignoro o Grau de confiança que o rei e a dama deram a essas predições,
mesmo o que pensaram, à medida que elas se efetuaram, mas sei que todas
tiveram sua execução; o Sr. Cagliostro me mostrou o talismã que encontrara
em seu bolso, no dia em que se constatou ser aquele em que ela assinara o
contrato de casamento através do qual ela dava todos os seus bens a seu
marido272.”
A famosa sessão mágica em que o pergaminho queimado foi
rematerializado e restituído aos assistentes273 também foi feita em Varsó-
via nesse momento. Cagliostro reunia com freqüência uma Loja egípcia
com aqueles que quiseram ser seus alunos. Dava cursos que tratavam a
princípio de operações químicas, depois de medicina hermética274. Assim
ele os preparava à prática que se seguiría.
Logo que o laboratório ficou pronto, os trabalhos começaram: o pri
meiro foi a transmutação de uma libra de mercúrio em prata fina, feita em
uma sessão, ante os olhos dos espectadores275; nessa ocasião, ele prometeu
a seus discípulos dar-lhes mais adiante a fórmula de pó vermelho que lhe
servira para essa transmutação; em troca, ele exigia o zelo, o respeito, a
elevação de espírito de seus alunos; punha energicamente em seu lugar os
zombeteiros e os espíritos fortes276.
Infelizmente não temos muitas informações sobre a seqüência dessas
operações interessantes e sobre os trabalhos alquímicos de Cagliostro em
Varsóvia; além disso, eles estão desfigurados pela malevolência. Em 1786,
no momento da campanha da imprensa contra Cagliostro, foi publicado,
sem nome de editor ou autor, um libelo intitulado Cagliostro démasqué à
Varsovie (Cagliostro desmascarado em Varsóvia)277.
272. Lettres sur la Suisse adressées à Madame M*** par un voyageur français (de Laborde)
em 1781. Genebra, 1783, in-8?, 1.1, p. 13.
273. Cf. pouco antes, mesmo capítulo: Curlândia, p. 57.
274. “Ele ditava uma quantidade de segredos ou absolutamente falsos, ou conhecidos
em química. ” Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 7. O que significa que ele ensinava
verdades, ou já conhecidas pelo conde Moszinski — e ele as desprezava —, ou desco
nhecidas dele — e ele as rejeitava. O autor critica da mesma maneira admirável seu
curso de medicina.
275. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 8 — Ein paar Trõpflein, p. 13. Prestidigitação,
diz o autor.
276. Ein paar Trõpflein, p. 13.
277. Publicação à qual, sem dúvida, Morande não foi estranho: o editor o cita, com
efeito, em Carta a Mirabeau, a Réponse de madame. de la Motte e faz alusão às acusações
feitas por Morande no Courrier de 1’Europe contra J. Balsamo.
O autor, o conde M. Moszinski278, que tinha o posto de ajudante de
Cagliostro em Vola, conta algumas histórias destinadas, segundo ele, “a
desmascarar o impostor que já abusou por muito tempo da credulidade
pública279”, ou seja, destinadas a corroborar o ataque de seus adversários, a
tentar fazê-lo passar por um ridículo e cínico charlatão. Embora as triviali-
dades e as besteiras abundem nesse panfleto, ele é, todavia, mais interes
sante que os outros por nos fazer assistir a algumas cenas da vida de Ca
gliostro em seu laboratório.
O conde M. conta que assistiu a uma transmutação; ele o reconhece,
mas diz que seus olhos devem tê-lo enganado, que Cagliostro deve ter usa
do algum subterfúgio. Cagliostro derramou mercúrio em um cadinho e acres
centou a ele uma pitada de pó vermelho, fez betumar o cadinho e colocá-lo
no fogo; retiraram-no ao fim de alguns instantes; quebraram-no; ele conti
nha um lingote de prata com um pouco de ouro. Eis o que ele viu, o que foi
feito diante de todos, executado por um terceiro personagem em presença
de Cagliostro. O conde M. viu, mas não admite e busca explicar os fatos
com as seguintes fantasias: Cagliostro deve ter acrescentado ouro ao mer
cúrio. Ele deve ter escamoteado o cadinho, substituindo-o por outro, ou ele
devia ter preparado antes o lingote de prata. Sua mulher, de combinação
com ele, deve ter feito desaparecer o velho cadinho. Enfim, seu pó verme
lho, inútil nessa interpretação dos fatos, devia ser apenas carmim.
Tais são, em face do fato obtido em boas condições de experiência, a
série das suposições completamente gratuitas do conde M. Poderiamos
examiná-las uma após a outra e mostrarmos sua inanidade; isso seria
demasiado longo. Notemos somente que há apenas hipóteses maldosas,
nenhuma das quais foi provada, nem mesmo fundamentada, das quais al
gumas se contradizem280, para tentar explicar apenas pela velhacaria um
fato indiscutível e muito embaraçoso.
Um inimigo que se esconde no anonimato constatou uma transmuta
ção e supõe, sem provas, a patifaria; o cardeal de Rohan assistiu a diversas
experiências e afirma sua realidade281. Por que adotaríamos a hipótese duvi
dosa do primeiro rejeitando os testemunhos múltiplos e límpidos do segundo?
Não deveriamos, ao contrário, considerar suspeitas todas as asserções de
um homem que se esforçava, ao mesmo tempo que fingia ajudar Caglios
tro, em lançar a perturbação em seus trabalhos282? Ele estava decidido e
entre Cagliostro e o conde M... Ibid., p. 36, etc. A atitude do conde por vezes obsequio-
sa, por vezes hostil, era sempre irônica; ele lançava em ridículo o recolhimento que
Cagliostro exigia dos assistentes, “não podendo suportar essas palhaçadas". Ibid., p.
24, 29 e 31.
283. Chamamos passagens, em hermetismo, as transformações de cor e de estado que
sofre a matéria em evolução no ovo alquímico.
284. O conde Moszinski, apesar de suas pretensões científicas, não lera portanto os anti
gos autores herméticos nem o Journal de Philaléthe cuja obra durou mais de um ano?
285. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 20. Mas não era carmirn?
286. Cf. p. 38 desse livro.
287. “Cagliostro foi grosseiro. ” Ein paar Trõpflein, p. 6. Cf: Cagliostro démasqué à
Varsovie, p. 49.
288. Em 26 de junho de 1780. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 16. Cagliostro confiou
um dia à SC de Recke que ele devia por vezes favorecer a dúvida em relação a sua obra
quando se tratava de cegos a quem a luz só poderia incomodar e que os mergulharia
ainda mais no erro. “Em Varsóvia, ele não quis proceder a nenhuma transmutação im
pressionante e arranjou tudo de modo a que as aparências estivessem contra ele, porque
seus discípulos ingratos não mereciam melhor recompensa, e ele não quis deixá-los adi
vinhar nada de sua grandeza. ” De Recke. Nachricht Von berüchtigen... p. 128. Aquele
que trazia a luz podia admitir a contradição, a luta aberta, leal, mas não podia suportar
em torno de si a falsidade e a traição. Os atos teúrgicos, a realização de seus poderes
podiam fazer-se diante de ignorantes, de pobres de espíritos, de revoltados mesmo, desde
que fossem sinceros; mas ele não deveria profanar os dons do céu prodigando-os a
seres que riam da palavra divina, encerravam-se em sua superioridade e não interroga
vam o enviado de Deus senão para lhe estender armadilhas.
Os espíritos fortes, muito fortes, como o conde Moszinski e seus par
tidários, não tinham nenhuma necessidade dele; ele partiu, deixando-os
com seus sarcasmos e a fácil satisfação de seu aparente triunfo.
De junho a setembro de 1780, em que o encontramos em Estrasbur
go, Cagliostro, entristecido sem dúvida, desejoso de esquecer, retirou-se
para a casa de uma de suas discípulas, a condessa de H., da qual ele foi o
médico particular e da qual continuou sendo mestre espiritual289.
Poderiamos talvez nos perguntar por que Cagliostro, em seus traba
lhos alquímicos, não fez esforços para impor suas convicções. Enquanto
os fatos de clarividência, de adivinhação, de visão provocada, de curas
extraordinárias, numerosas, indiscutíveis, foram registrados em sua conta
em quase todos os lugares, encontramos apenas raros testemunhos de suas
realizações alquímicas. Os poderes de Cagliostro seriam limitados ou as dou
trinas herméticas acerca da vida da matéria seriam errôneas?
Não; Cagliostro tinha um poder e uma liberdade sem limites, e a ação
do espírito sobre a matéria é uma verdade tão positiva quanto a ação da
vontade de um hipnotizador sobre o cérebro de seu paciente, embora ela
ainda não tenha entrado, como a outra, no domínio científico oficial. Mas
enquanto, pelas experiências psíquicas, Cagliostro iniciava a humanidade
no emprego de faculdades a que a evolução trazia o desenvolvimento natu
ral e geral, nos estudos de laboratório referentes à vida da matéria e a suas
transformações, ele ultrapassava de muito a hora marcada pelo destino,
penetrava mais profundamente no santuário da natureza e punha em movi
mento forças que nem os homens de seu tempo, nem muitas gerações que
estavam por vir deveriam ainda conhecer e empregar. Ele podia apenas
indicar os princípios, fazer entrever algumas luzes sobre o caminho cujos
acessos ele desobstruía.
Quem eram seus alunos? O que pediam? Como todos os buscadores
da pedra filosofal, eles queriam ver em algumas horas ou alguns dias trans-
mutar, ante seus olhos, um metal vulgar em ouro puro, adquirir a fórmula
dessa operação para poder, em seguida, graças a esse segredo, realizar sua
ambição de riqueza e fazer admirar seu saber excepcional. Seus olhos se
haviam fixado sobre esse ponto; o resto lhes era indiferente.
Seria esse o objetivo buscado por Cagliostro? Esse estado de espírito
podería permitir-lhe cumprir para eles milagres prematuros? Enquanto nas
experiências com a criança, nas sessões teúrgicas da Curlândia, os assistentes
289. Esse fato bastaria para reduzir a pó as histórias forjadas muito tempo após a respei
to de sua pretensa desgraça. Se ele houvesse sido "desmascarado ”, "pego em flagrante ”,
“vergonhosamente expulso ” pelas pessoas de Varsóvia como os gazeteiros não têm ver
gonha de escrever, teria sido tão bem-tratado por uma dama dessa mesma sociedade?
Desde que examinemos a fundo, sem opinião formada, qualquer das acusações formula
das contra Cagliostro, vemos que nada resta; lamentamo-lo, respeitamo-lo um pouco
mais; é a única impressão que permanece.
desinteressados, respeitosos, recebiam sem segundas intenções aquilo que
lhes era revelado, nos trabalhos de laboratório, em Vola, os experimenta-
dores queriam uma coisa: ouro; só reclamavam isso, ofuscavam-se com a
insistência usada por Cagliostro em lhes fazer observar os fenômenos que
eles consideravam desprovidos de interesse, em lhes fazer seguir métodos
longos e afastados. E porém era apenas sobre esses estados intermediários
e instáveis da matéria que Cagliostro teria podido instruí-los, fazendo-os
constatar alguns fenômenos novos cujo conhecimento teria sido revelador
para eles e cuja realização era possível para a ciência da época290.
Entre o corpo humano, o mais evoluído sobre nossa terra, e o corpo
mineral mais atrasado, há os do reino animal e os do reino vegetal. Ne
nhum interrogador pediu a Cagliostro que agisse sobre um animal ou que
fizesse evoluir, modificar uma planta291; essa obra, puramente científica,
desinteressada, tão satisfatória para o observador, teria sido talvez realizada
com mais prazer por Cagliostro.
Se o desenvolvimento dos poderes espirituais do homem começa a
se dar — e as revelações de Cagliostro, como as experiências recentes, o
provam —, a esfera de ação desses poderes se estenderá além do reino
humano, primeiro ao reino animal, depois aos vegetais e só em seu limite
extremo atingirá, se é que chegará a tocá-lo, o reino mineral. A ordem da
natureza assim o exige; o cumprimento das leis da evolução o necessita;
é a salvaguarda do progresso. E se concebemos, por um desenvolvimento
lógico de pensamento, a possibilidade de uma ação do espírito sobre a
matéria dita inorgânica, não devemos considerá-la como um limite ainda
indeterminado para nós, embora assistamos hoje à eclosão desse poder
no reino humano, limite do qual os contemporâneos de Cagliostro estavam
ainda bem afastados. Então, mesmo se não houvesse em seu coração obs
táculos que se opunham à satisfação de seu desejo, nenhuma razão superior
poderia obrigar Cagliostro a realizar diante dos olhos dos discípulos múl
tiplas, prodigiosas transmutações, apesar da facilidade que ele tinha em
fazê-lo.
290. A pedra luminosa, a evolução das gemas, eram desse gênero; as experimentações
modernas assinalaram esses estados intermediários da matéria, essas formas de passa
gem em que os processos de evolução da matéria se tornam mensuráveis e que permitem
conceber algumas de suas condições. (Metaelementos de Crookes, transformação do Hélio,
radioatividade). Deve-se notar que a primeira edição deste livro foi lançada há 50 anos e
que, desde então, a ciência, e em particular a da desintegração do átomo, progrediu a
passos gigantes.
291. Uma biografia contemporânea de Cagliostro contém esta frase que parece indicar que
ele deu algumas demonstrações desse gênero: "Ouvi homens de boa-fé, bem antes que se
falasse da cena tão famosa no processo da aparição da rainha diante de madame de la
Motte (Madame de La Tour), sustentar que ele lhes havia mostrado a Palingenesia... ” infe
lizmente não pudemos identificar esse documento anônimo: 2 p. In-4?, cerca 1800...
Capítulo V
Estrasburgo — O Empírico
292. No início, porém, durante as poucas semanas que ele passou no hotel, Cagliostro
não deu mostras de seus conhecimentos médicos. Cf. Blessig. Carta p. 7, in: Cagliostro à
Strasbourg. Artigo de G. Weisstein em Elsass Lothringische Zeitung, 4? ano, n? 37.
Estrasburgo, 1882. (Laurent Blessig, filósofo e teólogo, era professor da Universidade
desde 1778); e: H. Funk. Cagliostro à Strasbourg. Contém trechos de cartas de J. Burkli,
poeta e chefe de corporação de Zurich, escritas a seu amigo Bodmer durantre uma estada
em Estrasburgo, em janeiro de 1782, para conhecer Cagliostro.
293. “Não teria Deus escolhido os pobres deste mundo para ser ricos na fé e herdeiros do
reino que ele prometeu àqueles que ele ama?" Epístola de Tiago, II; 5.
294. Cf. p. 25 deste livro.
295. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit.., p. 14. E ainda melhor que o traço de caridade
bem conhecido de Louis-Cl. de Saint-Martin.
296. “No início de sua estada, Cagliostro fez libertar, pagando por ele, um prisioneiro
por dívidas. " Gorge. Carta de 10 de junho de 1781. Variétés haut-rhinoises. Bâle, 1781,
art.VIII, p. 120.
leve ou grave, o doente rico ou pobre, ele não se importava e não mudava
por isso de costume ou de maneira de agir297.
Referente aos fatos particulares desse primeiro período de sua vida
médica, às curas que ele operou no povo, poucos documentos chegaram a
nós. De Gleichen nos conta porém o seguinte fato: uma mulher em trabalho
de parto havia sido condenada pelos parteiros a uma morte certa, sem prome
ter que eles salvariam a criança; mandaram chamar Cagliostro, que anunciou
que a salvaria com o sucesso mais completo e manteve sua palavra298.
Spach conheceu e interrogou um velho de Estrasburgo que afirmava
ter sido curado de uma grave doença de peito, pela qual havia sido atingido
com a idade de vinte anos e que, provavelmente, o teria levado, sem a
intervenção de Cagliostro299. Isso é bem pouco, entre os milhares de trata
dos e curados: seu carro passava na cidade e nos arredores, da manhã —■
seis horas no inverno, cinco horas no verão — até as nove ou dez horas da
noite300.
“Ele era rodeado de estropiados, de pobres diabos, de gotosos, de sur
dos que ele curava; ele os recebia com doçura, dava-lhes essências, elixires e
dinheiro também; ele os curava... Sua escada e seu vestíbulo são cheios de
doentes301.” Mas todos esses doentes, pessoas do povo, sem notoriedade,
não deixaram memórias; os pobres, se morrem ignorados, também se cu
ram sem ruído; suas observações médicas, a importância e a quantidade
das curas efetuadas por Cagliostro nos permanecerão sempre desconheci
das. Apenas sua reputação, que crescia então dia a dia, testemunha que
elas foram surpreendentes e numerosas. O alto público, pouco a pouco,
veio a ele. Desde então, os sucessos obtidos foram divulgados e a lembran
ça deles se conservou mais precisamente.
Uma de suas primeiras curas foi a de um oficial de dragões, decla
rado incurável, roído por uma doença má302 e reduzido ao estado de “ca
dáver hediondo”; “esse oficial”, diz o barão de Gleichen, foi-me aponta
do por seu capitão: ele estava gordo e saudável, perfeitamente restabele
cido por Cagliostro303.
Um dos secretários do comandante304 caiu doente; seu médico o de
clarou perdido e só lhe deu vinte e quatro horas de vida. Ante as instâncias
297. Weisstein. Op. cit, p. 7. Funk, Op. cit., p. 7 e 12. Meiners. Briefe über Schweiz, II?
parte, citada nap. 19 da Lettre de Mirabeau sur Cagliostro. Berlim, 1786, in-8?, p. 19.
298. De Gleichen. Souvenirs, p. 136. Ver mais adiante os detalhes desse caso que causou
grande rumor.
299. Spach, Oeuvres, t. V, p. 72, 73.
300. Funk, Op. cit., p. 7.
301. Funk, Op. cit., p. 7 — Weisstein. Op. cit., p. 7. — Georgel. Mémoires, p. 52.
302. Madame d’Oberkirch. Mémoires, p. 8.
303. De Gleichen. Souvenirs, p. 136.
304. O comandante da província, o marquês de la Salle. Burkli. Carta, in: Funk, Op. cit.,
p. 5.
do comandante, Cagliostro começou a tratá-lo e o restabeleceu, pode-se
dizer completamente, para grande espanto de todo mundo305.
“Verifiquei essa cura maravilhosa”, diz outro contemporâneo; “o se
cretário morria de gangrena na perna e tinha sido abandonado por todos os
médicos306.”
O sucesso inconteste levou ao cúmulo o renome de Cagliostro. A Sr?
Sarrasin, mulher de um banqueiro de Bâle, extinguia-se lentamente após
oito meses de febre intermitente com icterícia crônica: o sono se tornara
impossível; imobilizada no leito, tiritando sob as cobertas, ela perecia dia a
dia; os melhores médicos da Europa, consultados, declaravam-na perdida.
Cagliostro a curou; além disso, apesar da idade, pouco tempo após, ela
teve uma gravidez que se concluiu muito felizmente, em 4 de abril de 1782,
com o nascimento de um filho a quem chamaram Alexandre, em honra de
seu salvador. A SP Sarrasin contava com emoção como Cagliostro “a ar
rancara das garras da morte307308
.”
Sarrasin, em seu Journal™, conta-nos também a cura de um de seus
filhos, Félix, atingido por uma “doença gotosa dos nervos” que nenhum
médico pudera aliviar e que desapareceu após uma única visita a Ca
gliostro.
Burkli, após haver zombado da cura de uma velha senhora surda des
de os sete anos309 reconhece que sua mulher, em má saúde quando chegou
a São Petersburgo, recebeu de Cagliostro cuidados que melhoraram consi
deravelmente do estado geral e curaram sua doença de estômago310.
Labarthe escreveu a Séguier quase na mesma época: “Madame a Sr?
Augeard, jovem e muito bela mulher de Paris, que conheço muito, muito
rica pelo emprego de seu marido, coletor-geraí, atacada de uma doença
incurável, foi encontrá-lo. Recebeu de presente dele um elixir que fez
desaparecer todas as suas dores e soube pelo seu irmão que ela goza
agora da mais brilhante saúde311”.
O cavaleiro de Langlois, capitão de dragões no regimento de Mont-
mercy, moribundo, salvo por Cagliostro, guardou-lhe um profundo reco-
312. Ela foi traduzida nas Ephemeriden der Freymaurerei, mas permanece quase desco
nhecida.
313. Carta de Langlois à Thilorier. Arquivos Sarrasin em Bâle. Vol. XXXIII. Cota 13, f? I, v?
314. Tesoureiro da República de Bâle.
315. Carta de Wielandt datada de Saarwer in: Supplement au n? 27 du Journal de Paris,
segunda-feira, 27 de janeiro de 1783. Tanto quanto a carta de Sarrasin a Straub é conhe
cida, esta é ignorada.
316. Cf: Burkli, Carta, in: Funk. Op. cit., p. 17
317. “Que testemunhava em toda parte as maravilhas que Cagliostro operara e se ofere
cia a si próprio como prova, como curado miraculosamente de não sei quantas doenças
cujo simples nome já o fazia tremer. ” Beugnot. Mémoires.
toda a parte. Todavia, esta última cura, tão limpa, tão rápida, merece uma
menção especial.
O príncipe de Soubise tinha uma escarlatina violenta: os médicos
haviam perdido a esperança de salvá-lo; o cardeal de Rohan, em Saverna,
falou a Cagliostro de seu primo; Cagliostro consentiu em se ocupar dele e
partiu imediatamente para Paris a toda pressa, com o cardeal. Ao chegar,
o cardeal foi à casa do príncipe, primeiro sozinho, e trouxe a notícia de que o
doente vai melhor, que o prognóstico dos médicos mudara um pouco e que
eles têm esperanças. Cagliostro pediu então para voltar a Saverna; nada
tinha a fazer com um doente curado. O cardeal, muito aborrecido, hesitou
em partir. Mas na manhã seguinte, mudança total: o príncipe está muito
pior; sem nenhuma dúvida, dessa vez, ele estava perdido, diziam os médi
cos e o séquito318. Dessa vez, Cagliostro podia agir:
“Cagliostro subiu na carruagem de Sua Eminência e foi com ela ao
hotel de Soubise. O cardeal anunciou um médico sem dar seu nome. A
família o deixou entrar; apenas alguns domésticos estavam no apartamento
do príncipe. Cagliostro pediu para ficar sozinho no quarto do moribundo.
Deixaram-no. Uma hora depois, ele chamou o Sr. cardeal de Rohan e lhe
disse, mostrando-lhe o doente:
‘“Em dois dias, se seguirem minhas prescrições, o Sr. príncipe de
Soubise deixará esse leito e andará pelo quarto. Em oito dias ele sairá
de carruagem. Em três semanas irá fazer sua corte em Versalhes.’
O cardeal nada respondeu. Seguiu Cagliostro e, naquele mesmo dia,
voltou com ele à casa do príncipe de Soubise. Dessa vez, Cagliostro trazia
uma garrafinha da qual deu dez gotas ao doente.
“Amanhã”, disse ele ao cardeal, “daremos ao príncipe cinco gotas a
menos. Depois de amanhã, ele só tomará duas gotas deste elixir e se levan
tará à noite. “Os acontecimentos justificaram sua predição. Dois dias após
essa primeira visita, o príncipe de Soubise estava bem o bastante para rece
ber todos os seus amigos; à noite, pediu para se levantar e o viram, sem
febre alguma, dar a volta em seu quarto, conversar muito alegremente,
sentar-se em uma poltrona e pedir uma asa de frango que não lhe deram,
porque o médico trazido pelo Sr. cardeal se pronunciara formalmente quanto
à dieta.
O terceiro dia se passou às maravilhas. No quarto dia, o príncipe con
valescia. Na noite do quinto dia, o Sr. de Soubise comeu sua asa de frango319.
318. É bom prestar atenção na melhora que surgiu depois que o cardeal recomendou seu
doente a Cagliostro, a agravação quando Cagliostro declarou que não se ocupava mais
disso e queria ir embora. Cf. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral,
1786, in-16, p. 31.
319. De Saint-Félix. Aventures de Cagliostro. Paris, 1875, in-16, p. 99 (segundo a
Correspondance de Grimm).
Vista e plantas do estado atual (1912) para a restauração do pavilhão
construído em Riehen, em 1781, na propriedade de Sarrasin, sob as
indicações de Cagliostro.
O cardeal e Cagliostro voltaram logo para Savema; sua estada em
Paris só durara treze dias320. Essa cura teve grande notoriedade e, de Paris,
uma onda de pessoas do mundo, “damas de qualidade e duas atrizes”, diz
a St? d’Oberkirch, muito chocada com essa mistura321, seguiram-no a
Estrasburgo para não interromper seu tratamento. A realidade dessas curas
maravilhosas322, a notoriedade daqueles que se haviam beneficiado delas,
o desinteresse de Cagliostro, tudo isso era novo, demasiado atraente para
que, do Norte e do Sul, sábios, teólogos, curiosos acorressem para o semi
deus a implorar-lhe a saúde, solicitar algumas migalhas desse saber, algum
átomo desse poder que ele manifestava tão generosamente.
Com efeito, vinham: Estrasburgo borbulhava de estrangeiros que vi
nham para vê-lo: corriam a sua casa323, entravam, e depois de haver atra
vessado o corredor, o pequeno pátio interno, subido alguns degraus da escada
grande estátua que ornava o seu ângulo. Atualmente uma padaria, com a insígnia da Santa
Virgem, ocupa o andar térreo. Essa casa, em que viveu Cagliostro, forma o n? 1 da nte des
Veaux (Kalbsgasse); ela constituía, em 1782, o n? 6 da rue des Ecrivains
(Schreiberstubgasse). Também se disse que Cagliostro teve, fora da cidade, uma casa de
campo chamada Cagliostrano; o fato é duvidoso e não encontramos indícios disso. Devia
ser a villa de um de seus discípulos, assim designada em honra ao mestre; o nome teria
dado origem à confusão. Cf. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit.,/?. 7—Spach. Strasbourg
Historique, p. 69. —Ad. Seyboth. Der alte Strassburg, in-4?, Ed. Heitz, Estrasburgo. S. A.,
p. 236, 1.
324. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 8. Carta de Burkli, in Funk. Op. cit., p. 9.
325. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 10. Madame d’Oberkirch, o abade Georgel,
Lavater, de Gleiche etc. nos deixaram todos retratos análogos.
326. Ou Deslort. Carta de 1’Anmeister Lemp ao Pretor Real. Cf. Manuscritos da Bíblia de
Estrasburgo. LoteAA, 2110 e: Hermann. Notices historiques sur Strasbourg. Estrasburgo,
1819, 2 volumes in-8?.
327. O intendente de Chaumont de la Galaizière.
328. Cf. madame d'Oberkirch. Mémoires, 1.1, cap. VII, p. 8. — Weisstein. Carta de Blessig,
Op. cit. p. 8 e 11. — Carta de Burkli, in Funk. Op. cit., p. 5.
329. É o que o suíço Burkli relata nesses termos, no mínimo, deslocados: “A SE Sarrasin
representava o papel principal nessa farsa. ” Op. cit., p. 9-10.
A Sri1 de Cagliostro, forçada a receber cotidianamente por causa da
afluência dos visitantes330, a oferecer quase todos os dias a mesa aberta para
os hóspedes de passagem que lhe trazia seu marido, não reconhecia a pró
pria casa quando os visitantes partiam. Ainda restavam os favorecidos: os
Sarrasin viviam com os Cagliostro, na maior das intimidades, “jantando
em família todos os dias da vida, habitando com eles como os primeiros
cristãos331.” A casa, sempre cheia, era mais uma hotelaria do que a morada
da condessa.
A Sf? de Cagliostro, recebida na casa do cardeal, era rodeada de mui
tas homenagens com as quais sua simplicidade e sua timidez se acomoda
vam bastante mal; alguns habituados, sabendo que as menores atenções
para com a condessa tocavam muito Cagliostro332, por vezes paravam no
pequeno salão para se juntar à conversa das damas; mas os recém-chega
dos, inteiros dedicados a Cagliostro, permaneciam, logo que apresentados,
junto a ele, no grande salão.
Ali, interrogava-se, escutava-se, observava-se o misterioso taumaturgo.
Segundo as pessoas, o acolhimento era diferente: “Bom e afetuoso com
uns, brutal com outros, ele manifestava, desde o primeiro minuto de suas
conversas e suas consultas, simpatias ou antipatias pronunciadas333.”
Esses caprichos eram apenas aparentes: como Siegfried, iluminado
pelo sangue do dragão, ele ouvia falar os corações apesar das palavras que
pronunciavam os lábios; ele olhava a alma, indiferente às caretas do corpo334
e ele respondia segundo esse pensamento interior, com uma bondade tema
e penetrante com alguns, com uma frieza desconcertante com outros.
335. Cagliostro falava quase sempre de si na terceira pessoa. Spach. Op. cit., p. 75.
336. Lettre d’un Suisse de 27 de outubro de 1781, in: Spach. Op. cit., p. 75
337. Cf. Spach. Oeuvres, t. V, p. 75. O teólogo Blessig lhe censurava por prometer com
demasiada certeza; mas como suas promessas jamais eram vãs, a crítica não cabe. O Dr.
Martius cita um belo exemplo: “A um suboficial que o consultava, ele deu um medica
mento e lhe assegurou que ele estaria curado em quinze dias e o convidou a jantar para
festejar essa cura; o que aconteceu exatamente”. Cf. Dr. Martius, Erinnerungen aus
meinem... Leipzig, 1847, p. 74.
338. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit. p. 7, cita essa frase sem a compreender.
339. Ele o dizia às vezes, brutalmente até, a alguns, como o fez ao cardeal de Rohan e a
Lavater. Cf. Spach. Op. cit. P. 71 e Mainers. Lettre, in: Lettre de Mirabeau sur Cagliostro.
Berlim, 1786, in-8?, p. 17.
340. Madame d’Oberkirch. Mémoires, t. 1, cap. VII, p. 2. "Era ao mesmo tempo gelo e
chama. ”
uma só receita —, ele lhe batia no ombro e lhe dizia: “Meu amigo de
Flachsland,” ou: “meu amigo de la Salle,” ou: “meu amigo de Rohan, es
creva o que vou lhe ditar.” Eles escreviam e Cagliostro endossava seus
escritos341, acrescentando às vezes algumas explicações.
Quando se podiam evitar as questões puramente médicas, os espíri
tos curiosos, como o cardeal, Salzmann ou Ramond de Carbonnières, es
forçavam para interrogar Cagliostro acerca de seus poderes, das ciências
secretas; tentavam fazê-lo falar, o que nem sempre era fácil. Com a mesma
espontaneidade desconcertante, ou ele discorria com abundância, ou não
se lhe podia arrancar nem uma palavra. Quando lhe fosse conveniente fa
lar, fosse dele, do livro da natureza ou dos segredos do espírito, todos,
mesmo os mais difíceis, eram cativados342.
Ele criticava severamente os médicos, homens superficiais na maio
ria, que acreditam haver examinado um doente após lhe haverem tateado o
pulso. Na escola em que ele se formara343, haviam-lhe ensinado que nada
era isolado na natureza, que todo ser tinha elos que se uniam intimamente
no centro; que, como a série dos fatos forma uma cadeia ininterrupta344,
todo ato deve se cumprir primeiro no mundo espiritual antes de se realizar
na matéria. O que está no alto é como o que está embaixo. O verdadeiro
conhecedor da natureza deve portanto olhar em cima e embaixo, penetrar o
mundo do espírito assim como o da matéria. Toda a medicina, a química,
por suas “dissoluções” e suas “composições”345, devem apoiar-se sobre
esse conhecimento da vida. A ciência dá todo o poder; mas, para possuí-la,
e antes mesmo de possuí-la, para ser julgado digno dela, é preciso estar
regenerado física e moralmente. Cagliostro deixava já compreender, as
sim, que testes, uma iniciação graduada, deveríam preparar o homem àquele
Grau de evolução que ele deveria atingir; essa deveria ser a obra da Maço-
naria e ela assim seria se seguisse o Rito puro e primitivo346.
347. “Cagliostro mandou imprimir cartazes pelos quais ele instruiu o público de seus dias de
audiência. ’’ 1? de junho de 1781. Carta de Saltzman à Willermoz, Coleção Bréghot du Lut.
348. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 7.
349. Um homem de nome Jaquaut, antigo funcionário no hotel das vendas, foi o primeiro;
ele teve muitos, a quem pagava bem, cujos nomes permaneceram desconhecidos. Sachi
(ver p. 111 deste livro) também fez esse papel. Cf. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 12
350. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit.,p. 12
351. Cf. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 15.
inesgotável. Mais feliz em dar do que em receber, sua alegria se manifesta
por sua sensibilidade. Esses infelizes, cheios de reconhecimento, de amor
e de respeito, prostemam-se a seus pés, beijam seus joelhos, chamam-no
salvador, pai, deus... o bom homem se enternece, as lágrimas correm de
seus olhos; ele gostaria de escondê-las, mas não tem forças para isso; ele
chora e a assembléia se desmancha em lágrimas...
Lágrimas deliciosas, que são o regozijo do coração e cujos encantos
não se pode conceber, quando nunca se foi feliz o bastante para derramá-
las como tais!
Eis um esboço muito fraco do espetáculo encantador de que acabo de
gozar e que se renova três vezes por semana352.”
Falou-se muito de suas drogas secretas; os médicos, não podendo
negar os resultados, e não querendo atribuí-los senão a ações do domínio
de sua arte, pretenderam que todas essas maravilhas só se deviam ao em
prego de medicamentos bem conhecidos, diziam alguns; secretos, afirma
vam outros, mas que, entre as mãos de qualquer outro, teriam agido da
mesma maneira; venenos violentos e “incendiários”353, de que ele usava
sem medida, escreviam certos autores; preparações anódinas, sem outra vir
tude além da de deixar agir a natureza, declaram outros práticos. Ou seja,
as mais ridículas, as mais contraditórias afirmações354.
De fato, Cagliostro não se utilizava de uma terapêutica única; variava
seus procedimentos ao infinito, guiando-se menos pela doença do que pelo
estado de alma do doente e daqueles que o rodeavam, antevendo o resultado
— escândalo necessário ou encorajamento útil — que seu gesto determinaria.
Ora, como o faria qualquer médico esclarecido, ele empregava medi
camentos comuns: extrato de Saturno355, aloés, tisanas refrescantes, for
mulando segundo os hábitos da época uma receita que o farmacêutico
executava356; ora ele se chocava com os costumes em voga; eram o seu pó
352. (Laborde) Lettres sur la Suisse. Genebra, I783, 2 vol. In-8? Nas cartas de recomendação
do Sr. de Vergennes, do cardeal de Rohan para Cagliostro, encontramos os mesmos elogios e
os mesmos testemunhos do número enorme de doentes que passaram pela sala e foram cura
dos por ele. Cf. Lettre à Madame de Créqui, Brevet de De Vergennes, in: d’Alméras. Op. cit.,
p. 200-201. Carta ao Pretor Real, in: Manuscritos de Estrasburgo. Lote AA. 2110 peça VII.
353. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 19-20. Dr. Ostertag. Mémoire, p. 49. Biblioteca
de Estrasburgo. Lote AA. 2110. Oberrheinische Mannigfaltigkeiten, 1781, 1? trimetre, p.
114. Carta de Gorge.
354. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 16, 17. D ’Oberkirch. Mémoire, 1.1, cap. VII, p.
1. Madame de la Motte, em sua Resposta ao Relatório do Conde de Cagliostro. Paris
1786, in-4°, p. 21, repetiu tudo isso.
355. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit. p. 9. Spach. Oeuvres, t. V, p. 70.
356. O Dr. E. W. Martius, antigo farmacêutico da corte e da Universidade em Erlangen,
deixou, em seus Souvenirs, notas interessantes sobre esse assunto. “Cagliostro”, diz ele,
“entregara muitas de suas fórmulas na farmácia em que eu trabalhava (Farmácia Hecht) e
eu tinha de prepará-las. Esses medicamentos, aos quais o conde dera nomes muito sonoros,
rosa357, seu bálsamo ou vinho do Egito358 que operavam maravilhas; e se o
médico oficial ordenara uma dieta de água, Cagliostro fazia o doente co
mer e lhe administrava um copo de vinho tinto.
Seu conhecimento profundo da alma humana lhe abria também por
tas ocultas dos médicos comuns: ele sabia medicar os ferimentos do cora
ção, devolver a energia e a felicidade aos pobres seres desencorajados,
esmagados pela tristeza. O emprego de forças especiais, negadas em seu
tempo, mas admitidas no nosso, apesar de seu rótulo de magnetismo, de
hipnose, de sugestão, era-lhe familiar. Se ele não as chamava por esses
nomes especiais, conhecia suas leis, o que valia mais, e as aplicava segun
do as necessidades, raramente, é verdade359, em comparação com os outros
medicamentos. Se julgava bom provar a seus discípulos, a qualquer cético,
a existência dessas forças, ele recorria a elas, não que isso fosse indispen
sável ao doente, mas porque era útil às testemunhas.
Enfim, por trás de todos esses procedimentos exteriores, em cada um
desses tratamentos, havia a verdadeira, a única ação que lhe era própria, que
em nada se confundia com nenhum deles, não mais com o magnetismo do
que com a farmacoterapia, ação também inteiramente desconhecida tanto em
nossos dias quanto nos seus: estou falando da ação espiritual. Em Estrasburgo,
como em Lyon, como em Paris, quando Cagliostro dizia: “O Céu lhe conce
da seu pedido”, fossem em audiência pública, no gabinete do cardeal ou na
Loja egípcia, o mundo espiritual obedecia a sua voz e o ato material se pro
duzia imediatamente. Esse poder, ele o usava à vontade, mas com discrição,
e quando ele queria aplicá-lo à medicina dos corpos, a doença, fosse mortal,
desaparecia com ou sem extrato de Saturno, com ou sem gotas amarelas360.
361. “E o golpe de mestre, o segredo que eu guardo em meu coração ”, dizia um dia a uma
dama que ele estimava sinceramente e a quem ele acabava de explicar muitas coisas...
mas não essa. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 5.
362. Ritual da Maç.-. Egípcia. Entrada do recipiendário, p. 28.
363.Weisstein. Carta de Blessig, op. cit.,p. 7.
364. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 8. A clientela no mundo dos oficiais foi muito
grande, em seguida a algumas curas espantosas. Dr. Martins, op. cit., p. 74.
365. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit. p. 14. — Lettre de Labarthe à Séguier in: Funck-
Brentano. Affaire du collier, p. 90. — d’Oberkirch. Mémoires, t. 1, cap. VII, p. 2.
366. De Gleichen. Souvenirs. Paris, 1868, in-16, p. 136.
367. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 7.
368. Blessig. Carta, in: Wisstein, op. cit., p. 7 e 9.
Tão grande era a afluência que, apesar dos poucos instantes concedidos
a cada um e da discrição de seus amigos, as recepções se prolongavam até
tarde da noite, de modo que o conde dormia tão pouco e tão mal quanto
comia369.
Ele era o homem do momento, o orgulho dos estrasburgueses; ele
fazia a fortuna dos hoteleiros; a felicidade dos doentes, a edificação de
todas as almas. Para prendê-lo a Estrasburgo, todos entraram de acordo;
amigos, com seu assentimento, manobraram para lhe obter do rei uma au
torização regular para exercer a medicina e fabricar seus medicamentos
em Estrasburgo. Essa patente teria oficialmente consagrado seu sucesso370.
Tal renome deixava furiosos os médicos371: a tempestade ameaçava
no templo de Esculápio; ela estourou na seguinte ocasião:
Em 23 de maio de 1781, uma pobre mulher de Leimengoessel,
Catherine Groebel, mulher de um pedreiro, estava muito mal. Uma gravi
dez, quase a termo, causava nela sintomas alarmantes. A Sfl de la Fage,
que se interessava pela família, pediu ao Dr. Ostertag, um dos parteiros
mais reputados de Estrasburgo, que viesse visitá-la. Este julgou o caso
muito perigoso: descreveu muito longamente e com pouca clareza em seu
relatório372 o estado da doente: Fácies peritoneal, estado infeccioso, crises
eclâmpticas, útero voltado para a direita, pescoço muito alto, aplicado à es
querda, entreaberto, mas não dilatado; síncopes freqüentes; eis o que se adi
vinha através dos termos imprecisos e antiquados que ele emprega; a criança
sem dúvida morta. Dois outros médicos, MM. Wittel e Schnabé, estavam lá
com a parteira, Magdelaine Leidnerin. O caso, podemos ver, era grave.
Ostertag confortou um pouco a parteira para o momento, mas disse que a
situação poderia agravar-se, que seria talvez forçado a recorrer a uma inter
venção, que ela não deixasse a mulher e mandasse buscá-lo em caso de
urgência373.
Em todos os dias que se seguiram, ele voltou: a doente sofria ainda,
com crises, mas seu estado não parecia piorar. No dia 28, às 4 horas da
369. Com freqüência ele dormitava, algumas horas apenas, sobre uma poltrona. Cf. p. 28
370. O pedido, apoiado por uma carta do cardeal de Rohan, datada de 17 de julho de
1781, encontra-se na Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110.
371. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 8.
372. Mémoires pour le sieur d’Ostertag..., 56 páginas in-8?. Levrault, impressor,
Estrasburgo, 1781 (ad finem/ Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, I.
E desse relatório, escrito contra Cagliostro, que extraímos o resumo desse caso.
373. Ostertag deu uma prescrição ou não? Ele o afirma com insistência, explicando que,
por falta de tinta e papel, ela fora feita verbalmente: ele teria prescrito 1-2 escrópulos de
nitro em caldo de vitela. O tratamento médico não era evidentemente de nenhum interes
se, mas a afirmação de Ostertag é bem inverossímil: parece muito extraordinário que,
após a consulta com três médicos, nenhuma receita tenha sido redigida e que uma pres
crição de dose de 1-2 escrópulos tenha sido feita somente de viva voz.
tarde, chamaram-no; agravação súbita: a doente teve uma síncope. Ele apa
receu às 7 horas da noite; apressado, sem dúvida, para voltar, ele não exa
minou a doente, apenas conversou com a parteira, disse que o viesse pro
curar se ocorresse algum acidente. A noite passou; na manhã seguinte, 29,
por volta das 11 horas da manhã, ele voltou e, ao abrir a porta, viu junto da
doente Cagliostro e o cura da paróquia, o Sr. Zaegelins. Voltou a fechar a
porta, mandou chamar a parteira e lhe perguntou se fora ela quem man
dara chamar Cagliostro. — Não, foi o Sr. cura quem o trouxe; de resto, o
Sr. conde não tocara a doente, acrescentou ela; ele nada lhe receitara, mas
lhe dera um escudo de seis francos. Ostertag, furioso, retirou-se e, desde
então, não voltou mais.
Após ter visto a doente, Cagliostro lhe enviou, por intermédio do Sr.
Zaegelins, um pó vermelho que ele recomendou dar a ela naquele mesmo
dia, às 5 horas da tarde, misturado em vinho tinto: ele autorizava a doente
a tomar vinho e café com pão se ela tivesse fome, o que ocorreu com
efeito às 8 horas da noite. As 10 horas, a doente, estando em pé, a bolsa
d’água se rompeu; em cerca de meia hora ela deu à luz, com apenas duas
contrações expulsivas; parto espontâneo, muito rápido, quase imediato.
Na manhã seguinte, Cagliostro lhe fez uma visita: é fácil imaginar o
reconhecimento com que foi recebido; ele tirou do bolso um frasco e der
ramou algumas gotas do bálsamo que ele continha em uma colher de água,
que deu de beber a sua doente. Pouco tempo após, a mãe se erguera e a
criança foi batizada na paróquia de Saint-Pierre-le-Vieux, em presença de
Cagliostro. Essa bela cura causou um grande rumor: a doente reconhecida
e tagarela, o bom cura, protetor da família, testemunha dos fatos, todo feliz
por ter levado o salvador no momento do perigo, contavam com alegria o
fato na paróquia. Cagliostro, de seu lado, não deve ter poupado o médico.
Os amigos de Ostertag, verdadeiros ou falsos, vinham à casa dele, com
rostos desolados, trazer-lhe seus consolos, dar-lhe conselhos374.
Ostertag, cada vez mais irritado, fez chamar a parteira, mandou-a fa
zer uma declaração que tendia a provar que jamais houvera perigo; que o
caso fora simples, que ele não falara de operação cesariana, nem pensara
que a criança estava morta, que Cagliostro só fizera mal. Era uma vergo
nha, dizia ele, desacreditar um homem de sua arte e de sua importância.
Ou Cagliostro ficou revoltado com essa má-fé do professor e com o
falso testemunho imposto à parteira, ou foi levado a isso por seus amigos;
não poderiamos dizer. Em todo caso, ele não ficou em silêncio. Essa cura
fora surpreendente, ela deveria fazer refletir certos espíritos. Para restabe
lecer a verdade, ele fez apelo ao testemunho do cura Zaegelins, que assis
tira a todo o drama, do início ao fim, como a parteira, e que, além disso,
recebera as confidências de Ostertag à cabeceira da moribunda.
Eis, em sua versão integral, o certificado que ele deu:
Zaegelins, cura375.”
Esse atestado de um homem conhecido por sua bondade e cuja palavra
era respeitada foi um golpe de clava para Ostertag. Em vão, ele tentou,
com seu longo relatório376, diminuir o valor dos testemunhos do cura,
provar que ele não podia ter-se enganado, que Cagliostro só fizera reco
lher o fruto dos cuidados que ele ministrara, que os medicamentos do
conde eram sem valor; que a ordem dos fatos relatados por Zaegelins era
inexata, ele se debate contra a evidência, contradiz-se, evoca em vão a
autoridade da faculdade, acumula inutilmente termos sábios sobre cita
ções fora de contexto377.
375.0 relato do cura difere em alguns detalhes, muito interessantes, do relato de Ostertag;
mas a base permanece a mesma e os papéis de Ostertag e de Cagliostro são restabeleci
dos segundo a verdade.
376. O relatório de 56 páginas apareceu nesse momento.
377. Retiramos ao acaso no relatório do professor estas frases monumentais: “A doente não
tinha mais febre porque as dores uterinas haviam cessado e porque a febre tinha unicamente
Seu relatório não foi aprovado pela Câmara dos Quinze378, que man
dou chamar Ostertag e lhe declarou que a alocução dirigida por ele em sua
obra ao Conselho dos Quinze era indecente, de natureza a comprometer
essa Câmara, e que ele teria de suprimi-la379.
A permissão de imprimir dada a Ostertag pelos magistrados havia
sido considerada por muitos, e por Cagliostro, como uma aprovação dada
ao libelo do parteiro pelo pretor real; a retificação precedente pedida pelo
cardeal380 e obtida do Conselho dos Quinze mostrava a todos que o relató
rio do senhor Ostertag não passava da exposição de uma querela pessoal e
não era o enunciado de um protesto geral, de ordem científica, emanado da
Faculdade381. Ostertag, humilhado, exasperado por seu insucesso e pela
declaração pouco honrosa do Conselho dos Quinze, não se deu por venci
do; resolveu vingar-se e encontrou aliados.
A rude franqueza de Cagliostro, sua atitude livre, que não admitia
constrangimento e não se freava com as convenções mundanas382 já haviam
magoado muitos desses personagens vaidosos que correm os salões; entre
outros, um oficial de cavalaria, o Sr. de Narbonne. O visconde de Narbonne,
coronel no regimento da rainha, jantava, uma noite de agosto de 1781,
relação com as contrações dolorosas da gravidez” (p. 31); “A criança não estava morta,
pois não havia nem fetidez, nem hemorragia e a mulher não sentia movimentos fora do
normal em seu ventre ” (p. 32); “O parto é uma operação mecânica que sempre se faz com
uma bacia normal, se a apresentação é pela cabeça, e que jamais se faz sem acompanha
mento, se a apresentação for diferente ” (p. 38 e 39); e esta para terminar: ‘‘Se o conde de
Cagliostro crê que um medicamento possa provocar as contrações uterinas, ele não hon
ra os seus conhecimentos médicos”, (p. 36). Cagliostro certamente acreditava nisso, pois
é uma verdade; ele talvez se tenha servido disso; em todo caso, Ostertag o ignorava e,
além disso, qualquer médico concordará, ele cumpriu muito mal o seu dever junto à
ciência e aos deveres de sua profissão. Eis sem dúvida por que Cagliostro, habitualmente
muito indiferente aos ataques de seus detratores, mostrou-se em relação a ele tão enérgi
co e severo.
378. Funfzehnmeister; uma das três assembléias consultativas da cidade: esta Câmara
velava pela manutenção da Constituição. Cf. E. Muller. Le magistral de la ville de
Strasbourg. Estrasburgo, Salomon, 1882, in-8°.
379. Sessão de segunda-feira, 16 de julho de 1781. Um relato dessa desaprovação oficial
foi inserido, pelos cuidados de um amigo, nas Variétés Haut-Rhinoises, p. 196, na data de
27 de julho de 1781.
380. Carta do cardeal de Rohan ao pretor real, de 17 de julho de 1781. Biblioteca de
Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, II.
381. O pretor real escreveu, além disso, uma carta ao Sr. Barbier de Tinan em que confir
ma oficialmente que ‘‘todos os membros do Magistrado (é assim que se chamava a Câma
ra dos XV) estão bem longe de adotar as impressões que o escrito em questão buscava
divulgar à custa do Sr. de Cagliostro”. De 27 de julho de 1781. Biblioteca de Estrasburgo:
Manuscritos, lote AA, 2110, 71 peça.
382. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 4. — Ein paar Trõpflein..., p. 2.
em mui brilhante companhia, na casa do cardeal383, com o conde e a con
dessa.
Nessa época já se discutia Cagliostro e se lançavam sobre a condessa
algumas pequenas maldades, muito mais porque dela se dizia, por outro
lado, muito bem e que era encantadora. O Sr. de Narbone se fez eco des
sas fofocas; seu amor-próprio havia sido ferido anteriormente pelo con
de, de forma que ele olhava Cagliostro sob um ponto de vista muito ruim e
sempre buscava uma ocasião de manifestar sua animosidade384.
Não a vendo vir, ele a provocou: durante o jantar, virou uma molheira
sobre o vestido da Sf de Cagliostro385.
Agitação geral: todos correram para ela. de Narbone, fingindo des
culpar-se, acentuou sua impolidez para forçar Cagliostro a intervir.
— E barulho demais por um vestido, exclamou ele, eu o pagarei.
— Eu lhe havia dito para não se sentar ao lado deste homem, respon
deu Cagliostro muito calmo, dirigindo-se a sua mulher.
— O senhor é um insolente, senhor, e me prestará contas disso —
com a espada na mão, gritou o visconde.
— Eu não sou um esgrimista: bater-se é a sua profissão, e não a
minha.
— Pois bem! Tomaremos a pistola!
— Também não aceito: minha profissão é curar e não matar.
O visconde se ergueu e lhe atirou um prato ao rosto, gritando pela
sala: “Eis o que acontece quando somos forçados a jantar com condes e
condessas feitos às pressas, caindo como bombas, não se sabe de onde386.”
Todos se levantaram; o jantar se interrompeu: o cardeal, seu grão-
vigário o abade de Aymar, o marechal de Contades, intervieram, suplican
do à direita, ameaçando à esquerda, tentando parar de Narbone. Pedem
desculpas à condessa e, dessa maneira, para melhor ou para pior, a noite
terminou.
O caso fez grande rumor em Estrasburgo: o ódio do Sr. de Narbone,
anterior a essa história, que cresceu mais ainda depois dessa noite, conti
nuou a perseguir Cagliostro. Foi o primeiro aliado, e não o menos, de
Osterstag na campanha que eles fizeram em 1781 contra o conde387.
O Conde Cagliostro
Charlatão em Malta, tendo ali chegado
Em traje turco, charlatão em Toulouse e em Rennes,
Velhaco e impostor na Rússia, mentiroso e aventureiro
em Estrasburgo, impertinente e João f... em Saverna.
Será visto em todo lugar da mesma maneira.
5 de agosto de 1781.
Um segundo se seguiu, afixado à porta dos albergues:
Flaschland, o velhaco, protege Cagliostro, o tratante.
7 de agosto de 1781.
Depois um terceiro, em que a St1.'de Cagliostro e a SE de Terche eram odiosamente insul
tadas.
Era obra do Sr. de Narbonne: a polícia tinha quase certeza; para satisfazer o marechal,
indignado, a polícia fingiu buscar os culpados, sem nada encontrar, e se contentou em
rasgar os cartazes e abafar os rumores. Lettres de Lemp ao pretor real, da data de 16 de
agosto de 1781, mesmo lote, peça XII, p. 2. — Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 9
também fala desses cartazes.
388. Carta de Barbier de Tinan, comissário das guerras ao Pretor real, 18 de janeiro de
1782. Biblioteca de Estrasburgo, lote AA, 2110, III.
389. Spach. Ibid., Lettre d’un Suisse, p. 78, de 25 de fevereiro de 1782. Carta de Barbier
de Tinan, p. 2.
390. Carta de Barbier de Tinan, p. 5.
cências, arriscava alusões acerca de seu passado, que ele conhecia bem;
por fim, fingindo entregar-se a confidências, derramava no ouvido dos as
sistentes todas as infâmias que reencontramos mais tarde, reeditadas por
seus inimigos: “Em Valença”, dizia ele, “eu o mediquei, ele, o malandro,
por uma medonha doença venérea, que ele apanhara, e a pequena condessa
também, percorrendo os maus lugares391. E eis o seu grande homem! Todas
as suas fórmulas não valem quatro liards392; todas as suas caretas, eu pode-
ria fazê-las se eu não fosse um homem honesto. Com muita freqüência
tenho vontade de lhe lançar tudo isso ao rosto quando o ouço me tratar de
rapazinho e tratar os médicos de asnos.
— E por que você não o faz? Diziam os ingênuos, imediatamente
abalados em sua simpatia, já aliados a Sachi.
— Por quê? Porque ele me mataria, como já fez com outros; que me
dêem seis granadeiros para me defender e eu lhe direi tudo em público.”
Quando ele contava tudo isso, em 2 de janeiro de 1781, em um café
de Estrasburgo393, encontrava-se entre os ouvintes um doente de Caglios
tro, reconhecido, mas muito confuso com essas palavras, que correu para
contar tudo ao mestre, suplicando-lhe que o tirasse da perturbação em que
aquele homem acabara de o mergulhar.
Cagliostro mandou chamar Sachi, repreendeu-o e despediu; Sachi, des
concertado, retirou-se, mas, apenas saíra, correu, louco de cólera, à casa do
delator, brandindo uma pistola, pronto a matá-lo394. O caso chegou ao
Sr. de la Salle que, após um inquérito, pronunciou contra Sachi a expulsão
de Estrasburgo, tanto por suas ameaças à vida de um cidadão quanto por suas
calúnias contra um homem de bem universalmente respeitado; Sachi em vão
tentou renovar suas desculpas, declarar que se enganara, que falava de outra
pessoa, que o conde fora seu benfeitor, que estaria sempre feliz em servi-
lo395, o decreto foi mantido: Sachi teve de se retirar para Kehl. Ali, tirando a
máscara, uniu imediatamente seus ataques aos de seu bando, reclamando de
Cagliostro, por cartas abertas, por meio de jornais e cartazes, 125 luíses
de ouro por seus bons serviços, citando-o por isso diante dos tribunais396.
Cento e vinte e cinco luíses por seis dias de serviço, durante os quais
ele talvez extorquira outro tanto dos infelizes e feito tanto mal quanto
391. Sachi repetiu essas histórias repugnantes e falsas em seu Libelo: encontramo-nas
novamente na Resposta de Madame de la Motte ao conde de Cagliostro. Paris, 1786, in-
4?, p. 6.
392. N. do T: Moeda de cobre, de pouco valor.
393. Carta de Barbier de Tinan, p. 2. — Spach. Lettre d’un Suisse, de 21 de janeiro de
1782, p. 78. Um redator da Berliner Monatschrift (dezembro de 1784) também repetiu as
insolências e ameaças de Sachi.
394. Carta de Barbier de Tinan, p. 3.
395. Carta de Barbier de Tinan, p. 4.
396. Carta de Barbier de Tinan, p. 4. Cartaz de 12 de janeiro de 1782, in: Biblioteca de
Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, IV? peça.
possível àquele que o alimentava, era um pouco demais! Os juizes não o
escutaram; mas o público, sempre mau, tomava gosto nesses debates.
Ostertag e Narbonne alimentavam a algazarra: os apaixonados dispensa
dos pela bela condessa, as mulheres com ciúmes dela, os médicos hostis39',
os inimigos numerosos de Rohan, os invejosos, uniram-se a eles; um parti
do se formou contra o homem de bem, respeitado por tempo demais, e as
más línguas proliferaram.
O que se admirava outrora se depreciava agora: suas benfeitorias,
mesmo suas virtudes, eram voltadas contra ele; encontravam nelas indícios
reveladores do negrume de sua alma397 398. Sua simplicidade de existência,
sua frugalidade? Era uma comédia para dar asas à imaginação do popula
cho399; uma prova de avareza, diziam os outros. Se ele se vestia de maneira
simples, sem seguir a moda, divulgava-se a sem-cerimônia: “Receber as
pessoas, e pessoas do mundo penteado assim, com os cabelos ao vento,
que impertinência!400”
Se ele saía ricamente vestido, acompanhado de sua mulher, era osten
tação, “luxo revoltante, escandaloso”401, diziam.
Sua ligação com o cardeal era suspeita: por que ele busca os grandes
senhores, uma vez que pretende não necessitar deles? Se suas manobras se
cretas não eram subversivas, ele não se cercaria de protetores, diziam aqueles
que teriam gostado muito de fazê-lo perder essas preciosas amizades.
Seus sucessos médicos, mesmo, não escaparam à crítica: ele se ocupa
va de um caso leve: ele só cuida de dodóis402, de mulheres com vapores —
exclamava-se —, que gracinha! Tratava-se de alguma doença incurável, aban
donada? Também ali o dente dos críticos encontrava onde morder. “Creio
poder afirmar que a ambição substitui nele o egoísmo”, escreve tolamente e
de maneira pesada Burkli, “pois ele só presta cuidados aos doentes abando
nados pelos médicos, incuráveis, enquanto deixa de lado indignamente
397. "A inveja dos médicos, encarniçados entre eles tanto quanto os padres quando se
perseguem, perseguiu-o sem descanso em toda parte: o ódio que tinham ao cardeal de
Rohan, com quem ele era intimamente ligado, também recaiu fortemente sobre ele. Que
se junte à calúnia de tantos inimigos positivos a maldade dos homens que amam em
geral acreditar e repetir antes o mal que o bem, e veremos que é ao menos possível que
um desconhecido, excitando a inveja em vez da piedade, haja sido oprimido pela male
dicência." De Gleichen. Souvenirs, p. 137.
398. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 2.
399. “Sua virtude não passava de um vício disfarçado. ” Burkli. Carta in: Funk. Op. cit.,
p. 13.
400. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 19.
401. Madame de la Motte. Resposta ao relatório do Conde de Cagliostro. Paris 1786, in-
4?, p. 27 e 37 — Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 18.
402. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 1. — Carta de Gorge, in: Oberrheinische
Mannigfafaltigkeiten, 1781, p. 10.
aqueles que têm doenças ordinárias dos nervos, do estômago ou que so
frem de febre403.”
Vocês me citam 50 curas de doentes desenganados, mas a questão
não é essa: minha mulher ainda está com dor de dentes e o Sr. de Cambis
morreu404.
Isso não chega a ser divertido de tão absurdo? Falta de religião e
jesuitismo; avareza e prodigalidade, todas as acusações, mesmo claramen
te contraditórias, eram boas para seus inimigos405. Atacavam até seus cos
tumes, censuravam-no por freqüentar o mundo, ele que nem saía! Por ter a
mesa aberta, por jogar406.
As insinuações maldosas atingiam até sua mulher: “Ela se dá muito
bem com o visconde; ela recebe presentes principescos; deve estar coberta
de dívidas407, mas o visconde é rico e Cagliostro sabe tão bem fechar os
olhos sobre o que não deve ver!”
Insistimos talvez um pouco demais nesse movimento de opinião ha
bilmente criado em Estrasburgo contra Cagliostro por seus três inimigos
encarniçados; é de lá que veio toda a campanha de chantagem e de ódio
que o perseguiu em Paris, em Londres e terminou em Roma com sua mor
te. Do estado de suposições maldosas, de puras brincadeiras, de calúnias
403. Leia-se: ele ignora a SC Burkli. Era a grande queixa. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit.,
p. 17.
404. Só se contam, em face de centenas de curas notáveis, dois doentes abandonados
pelos médicos e mortos apesar dos cuidados que lhes dedicou Cagliostro. “Duas pessoas
morreram entre suas mãos; embora ele não tenha garantido sua cura. Os médicos muito
aproveitaram dessa ocasião para engrossar seus ataques. ” Carta de Saltzman a Willermoz,
em 1° de junho de 1781. Coleção Bréghot du Lut. Uma dessas pessoas era o Sr. de Cambis:
“em março de 1782, um tenente-geral, o Sr. de Cambis, estava moribundo em Estrasburgo,
abandonado por seu médico, e com razão, pois fora ele que o pusera em tão mau estado.
Cagliostro viu o doente e ele morreu assim mesmo. Depois disso houve violentos ataques
do médico regular e, devo dizê-lo para honra de Cagliostro, grande mansidão deste últi
mo, que poderia terfeito revelações bombástica a respeito do médico, mas que se contentou
em enviar certa soma de dinheiro a ele para recompensá-lo por seus generosos procedi
mentos". (Lettre d’un Suisse in: Spach. Oeuvres, t. V., p. 79.) Além disso, não é impossível
que a maldade de seus inimigos tenha ajudado nesses acontecimentos. Carta de Gorge,
in: Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten, 1781, p. 113.
405. Spach acusa Cagliostro “de acumular dinheiro, exceto quando gasta mais do que
recebe”. Op. cit., p. 68. Singular avareza e singular estilo!
406. E verdade que ele jogava às vezes com as damas, mas perdia quase continuamente.
Borowski, Cagliostro...; p. 102 e: Meiner’s, Lettre in: Mirabeau, Lettre surM. de Caglios
tro et Lavaler, 1786, p. 20.
407. “A mulher que dizem ser a dele faz dívidas e recebe presentes; foi somente não eu
quem pôde verificar a coisa. ” Carta de Gorge, in: Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten,
1781, p. 113. “Sua mulher, ou sua amante, apenas Deus sabe!” Burkli. Carta in: Funk.
Op. cit., p. 4.
discretas, através de panfletos e requisitórios pouco escrupulosos, isso se
transformou em lenda bem estabelecida e as crônicas modernas fizeram
delas a base de suas pretensas histórias de Cagliostro. E o que houve na
origem? Nada além de fofocas de comadres alsacianas ou insultos de pati
fes desprezíveis. Era necessário demonstrá-lo: esperamos tê-lo conseguido.
Estrasburgo, portanto, estava dividida: discutia-se; começavam a du
vidar de Cagliostro. Esse resultado não bastava ao trio dos mentores; era
preciso que Cagliostro caísse; estenderam-lhe armadilhas.
Nas Mémoires d’un octogénaire (pelo barão de Lamothe Langon),
lemos a divertida história de uma visita feita a Cagliostro por dois estudantes
de medicina para mistificá-lo e desconsiderá-lo. Cagliostro os recebeu, os
escutou e gravemente disse ao acompanhante, designando o pseudo-doen-
te: “Fico com seu amigo em minha casa, em dieta absoluta, por quinze
dias; é necessário para sua cura”.
Pavor do infeliz que se recusou energicamente e solicitou apenas um
diagnóstico.
— Nada mais simples — respondeu Cagliostro, e escreveu em um
papel: “Superabundância de bile entre senhores da Faculdade”; depois o
estendeu a seus solicitantes.
“Os estudantes desconcertados balbuciaram, desculparam-se como
puderam. Cagliostro, um bom homem, pô-los à vontade, convidou-os para
almoçar e desde então eles estiveram entre seus mais ardentes admirado
res408.”
Suscitou-se, por denúncias caluniosas, e obteve-se, fazendo agir for
tes proteções409, um inquérito da polícia secreta de Paris. Mais uma vez,
decepção: Desbrunières, agente da polícia, que viera incógnito e como ini
migo, partiu respeitoso, quase convertido.
Sachi tentou a concorrência; durante seu curto serviço junto ao conde,
em relação com seu droguista, carregando receitas, tendo podido subtrair
medicamentos ou fórmulas, ele reunira algumas informações a respeito da
composição provável do bálsamo (vinho do Egito) que curava tantos doen
tes. Fez uma falsificação que vendia caro e facilmente sob o nome de Go
tas amarelas ou Bálsamo do Conde de Cagliostro410.
Cagliostro teria atravessado o descrédito que isso poderia lançar so
bre ele; mas o perigo corrido pelos doentes não poderia deixá-lo indiferen
te; fez afixar na cidade a seguinte nota:
417. O autor cita aqui diversos nomes que já indicamos. O pastor J. F. Oberlin, do Ban de
la Roche, recebeu também Cagliostro em sua casa por alguns dias. Revue Alsac. Ilustrée,
1910, II, p. 55. Artigo da Si5 Witz.
(...) “Parece-me que tal homem pode gastar seu dinheiro como bem
entende, dizer seu nome ou não dizê-lo, indicar de onde vem ou não, e só
falar árabe, se tiver vontade, com um professor qualquer que veio vê-lo por
curiosidade.
Se mesmo esse homem não fizesse o bem, quem teria o direito de exi
gir que ele o fizesse? Quem podería forçá-lo a frequentar médicos, se não é
amador nem de medicina, nem da medicina européia? Ele diz ter conheci
mentos asiáticos; mas ninguém é forçado a acreditar nisso contra a vontade.
Aqui não é o lugar conveniente para fazer a apologia do conde; sem
isso, seria com alegria e do fundo do coração que eu contaria tudo o que
vejo de elevado, de nobre e de bom feito por ele diariamente. Mas temería
ferir a modéstia desse grande homem e de atentar contra sua dignidade,
dizendo tudo o que eu penso dele, a propósito de um vulgar amontoado de
calúnias, escritas por um homem mergulhado em trevas418.”
Cagliostro, tocado pelo zelo e pela afeição que seus discípulos lhe
testemunhavam, decidiu-se a permanecer em Estrasburgo. Mas a partir dessa
época, ele limitou o número de suas audiências419, não recebeu mais além
de seus fiéis e antigos doentes, cujo número ainda era considerável, e se
consagrou quase inteiramente a seus amigos: aos Sarrasin, que acompa
nhou diversas vezes a Bâle; ao cardeal, em cuja casa passava quinze dias
por mês; aos Straub; aos De Barbier420. Os homens do mundo o abandona
ram, retornando a suas fúteis distrações, e os médicos se regozijaram.
Duas circunstâncias, vindas a seu tempo, fizeram decidir-se Cagliostro
por deixar Estrasburgo; primeiro a partida do cardeal para Paris e, pouco
tempo após, em agosto de 1783, a grave doença de seu amigo e antigo
protetor, o cavaleiro de Aquino que, muito mal, fê-lo chamar a Nápoles,
junto a si. Cagliostro se serviu desses dois argumentos para explicar àqueles
que o retinham sua resolução de deixá-los e para moderar assim a dor que
lhes deveria causar essa triste novidade. Na realidade, ele partia porque
sua obra, nesse lugar, parecia-lhe cumprida; ele arara e semeara o campo
421. “Poderiamos supor que este homem tem um plano muito extenso para o qual
Estrasburgo é um teatro bem pequenininho.” Blessig. Carta in Weisstein. Op. cit., p. 10.
Capítulo VI
Lyon — O Charlatão
438. Vie de Joseph Balsamo, p. 52. Cagliostro contou essa visão a muitos de seus discípu
los; ele o reconheceu e repetiu o relato em seus interrogatórios de Roma.
439. Nas Mémoires de M. Ie prince de Montharey. Paris, 1827, 3 v. in-83, encontramos (t.
Ill, p. 94 a 97) um quadro chocante, um dos melhores que conheço, do estado dos espíri
tos no fim do século XVIII.
440. Fundado por Pernéty, 1766.
441. Fundado em 1773.
“Que se imagine... 700 oficinas, dispersas sobre o solo da França, nas quais
os homens mais ousados ou mais ilustres daquele tempo repetiam a cada
dia as lições de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de tolerância reli
giosa, em uma época em que o governo era uma monarquia absoluta, em
que o Estado estava dividido em classes bem distintas, em que os preconcei
tos de nascimento começavam a ser menos poderosos nos costumes, mesmo
sendo consagrados pelas leis, em que a desigualdade das condições, dos
cargos, faziam parte do pacto social, em que o fanatismo dos sacerdotes
dispunha de armas do poder secular, e compreenderemos o quanto a Maço
naria, ao permanecer nas teorias, deve ter ajudado no movimento que se
preparava, no grande abalo de que já se sentiam as primeiras oscilações442.”
Em Paris, filósofos da nova escola, literatos, artistas, homens políticos se
encontravam no templo e condenava seus esforços: a Encyclopédie, prepa
rada desde 1740, quando o duque de Antin era Grão-Mestre443, fora publi
cada em 28 volumes in-folio, aos quais se vieram juntar cinco volumes de
suplementos, obra colossal na qual colaboraram, sob a direção de Diderot,
toda uma plêiade de sábios.
Os centros mais notáveis, além de Paris, eram Bordeaux, em que a
primeira Loja, fundada em 1723, havia rapidamente enxameado: as duas
principais Oficinas, em 1783, eram a Loja Francesa e A Amizade, que
foram visitadas, em 1776, pelo Grão-Mestre, o duque de Chartres, futuro
duque de Orléans e presididas por ele. Martinèz de Pasqually* e Saint
Martin haviam também deixado em Bordeaux lembranças e adeptos; Lyon
onde, sob a influência de Willermoz e graças a seu zelo, Oficinas e Capítu
los estavam em plena atividade; Estrasburgo, posto avançado na rota para
o leste, cidade intelectual, em relação, desde 1742, com todos os centros
maçônicos da Europa. Marselha, Dunkerque, Arras tinham também suas
Oficinas, mas de menor importância. Na Rússia, na Curlândia, já indica
mos a existência das Lojas e seus trabalhos444. Na Polônia, a ordem, tolera
da a princípio e mais tarde proibida por Augusto II, existia secreta, mas
ativamente, e reapareceu à luz do dia em 1780, quando um Grande Oriente
foi fundado em Varsóvia445; na Áustria, onde o próprio Joseph II, “esse
soberano inovador e ousado”, se fizera receber maçom pelo barão de Born;
na Holanda, onde a Grande Loja, dirigida pelo Sr. de Boetzelner desde
454. Discours sur le magnétisme animal lu dans une assemblée du Collège des médécins:
résultat des observations faites à Lyon por J.-E. Gilibert. Lyon, in-8?, 1784. — Détail des
cures opérées à Lyon pelo Sr. Orelut. Lyon, Faucheux, 1784, in-8° — Mémoire de Petetin
sur les phénomènes de la catalepsie et du somnambulisme, in-8°, 52páginas. —Expérience
faite le 9 aoüt 1784 à l’école vétérinaire sous les yeux du comte de Monspey, du comte
d’Oels (príncipe Henri da Prtíssia), du Chevalier Barerin, de M. Millanois, sur un cheval.
Diagnóstico por um paciente sonâmbulo, In-4°, II ff.
455. Vie de Joseph Balsamo, p. 137. — Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 2.
456. Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 1.
457. A Sabedoria, fundada em 1725, tinha sede na Maison Puylats, Chemin neuf n? 33.
Tinha como venerável Willermoz, o velho. Seu selo era o que reproduzimos acima segun
do as Efemérides das Lojas Maç.: Lionesas. P. 21.
oficina sob a denominação de A Sabedoria Triunfante. No início, seu obje
tivo era apenas poder falar em particular àqueles que ele escolhera e ter um
local discreto, reservado, onde pudesse desenvolver suas faculdades, dar
provas da realidade e da amplidão de seus poderes. Mas. mal formada a
Loja, nesse meio ardente, as maravilhas se sucederam.
Novas curas, ensinamentos referentes a todos os assuntos, sobretu
do às ciências divinas458, experiências com os pupilos, constituíam os
trabalhos teóricos e práticos de todas as linhas; por vezes, os fenômenos se
tornavam mais gerais, mais intensos, e os próprios assistentes os percebiam
diretamente e não mais por intermédio dos pacientes. A lembrança des
ses fatos ficou por muito tempo na memória dos lioneses459. O valor das
revelações, sua clareza, era notável: cita-se o fato do duque de Richelieu,
que se apresentou, incógnito e disfarçado, e a quem Cagliostro fez ver
em um espelho “tudo o que era e tudo o que seria460.” Outra profecia de
Cagliostro causou grande rumor por sua pronta realização. “Eu lhes pre
disse”, disse ele em Roma, “que, assim como entre os 12 apóstolos houve
um que traiu Jesus Cristo, haveria também um dentre eles que trairia a
sociedade; eles declararam que isso não podia acontecer; mas eu lhes
repeti duas vezes a mesma predição, acrescentando que esse traidor seria
punido pela mão de Deus461.”
Mas o que levou o entusiasmo ao cúmulo foi o seguinte fato maravi
lhoso: o Sr. Prost de Royer, antigo almotacé de Lyon, venerável da Loja A
Benfeitoria, morrera em 21 de setembro de 1784. A Loja A Benfeitoria
mandara celebrar um serviço “pelo repouso de sua alma”, na quarta, 24 de
novembro de 1784, na igreja dos RR. PP. Récollets. Sua lembrança ainda
estava viva no coração de um grande número de pessoas, em particular no
dos maçons que compunham a Sabedoria Triunfante. Cagliostro, conver
sando com seus discípulos, ensinara-lhes com freqüência que a luz conserva
o reflexo de todos os seres que passaram; que o espírito pode, excepcional
mente e com a graça de Deus, perceber essas imagens. E o que a tradição
sempre ensinou, o que certos seres afirmaram e que a ciência moderna
Maçonaria Egípcia
Os trabalhos maçônicos são inteiramente espirituais e não têm outro
objetivo senão o de merecer ser admitido no templo de Deus.
O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é a mais perfeita
de suas obras; enquanto conservou sua inocência, ele comandava todos os
seres vivos, mesmo os anjos, forças inteligentes, ministros de Deus, inter
mediários entre as criaturas e o Criador. Mas, após a queda467, a harmonia
468. “Nascer novamente (palingenesia), eis o que requer o Salvador daqueles que que
rem participar de Seu reino, judeus e pagãos" João, II: 23; III: 21. Os rabinos designa
vam também a mudança de natureza que deveria cumprir-se nos prosélitos com as palavras
Win JTT2. Jesus diz que esse novo nascimento devia ser duplo: primeiro, de espírito: em
seguida, de água. (Espírito eprincípio vital). H. Olshausen, Commentaire à 1’Evangile de
saint Jean. Neuchatel, 1844, in-8?, p. 100.
469. Ritual, p. 40.
470. “Redobrem seus esforços para se purificar, não com privações ou penitências ex
teriores; não se trata de mortificar o corpo e fazer sofrer; são a alma e o coração que
precisamos tornar bons e puros. ” Ritual, p. 54. Foi aqui que alguns se apoiaram, des
figurando as palavras, para dizer que Cagliostro ensinava o epicurismo e incitava à
depravação!
471. P. 28.
quais muito se zombou, e que sempre se apresentou aos leitores como o
único segredo do Grão-Mestre. Vemos, ao contrário, que isso não passa de
uma parte mínima, a última da obra472.
Essa descrição das frases da regeneração física, destinada a abalar a
imaginação, contém, além disso, o resumo simbólico de toda a renovação
do ser. Tomando-a ao pé da letra, sem fazer notar que foi extraída de um
ritual maçônico, temos muito material para ridicularizar seus detalhes. Esse
procedimento daria o mesmo resultado aplicado a todos os sacramentos ou
ritos de um culto qualquer473.
Quando o homem, triplamente regenerado, possui uma alma sadia
em um corpo sadio, Deus consagra nele a mestria pelo influxo de Sua gra
ça474. Ele se torna então um mestre, um eleito; ele goza dos conhecimentos,
de todo o poder que Deus, em princípio, havia concedido ao homem, e os
conserva enquanto se conforma escrupulosamente às leis de seu novo car
go. Ele não mais precisa de proteção nem da ajuda de nenhum mortal, e
podemos reconhecê-lo por suas obras475. Ele possui o poder da visão
472. O catecismo do mestre diz que ela segue e deve seguir a regeneração moral; ela se
faz com um retiro de quarenta dias, sob a vigilância de um amigo e com a ajuda de alguns
medicamentos purificadores, depois revitalizantes. Cagliostro os preparava, sob forma
de pós (ditos refrescantes) e líquidos fortificante (gotas brancas, bálsamo do Grão-Mes
tre). Notas referentes aos trabalhos de Cagliostro em Lyon. Initiation, 1906, p. 261.
473. Se refletirmos acerca de todas as teorias e práticas médicas, sem opinião formada;
se pensarmos que as células do intestino se renovam em quarenta e oito horas, as ou
tras, menos rápido, mas bastante regularmente para que possamos admitir que em sete
anos nada mais subsiste em um organismo daquilo que o constituía materialmente sete
anos antes; que, em certas doenças, as destruições as e regenerações orgânicas se fa
zem em massa, em alguns dias; que o jejum sempre foi empregado em medicina e em
religião como o mais poderoso método purificador, concluiremos sem dúvida que o
“charlatanismo" de Cagliostro dá menos razão para rir do que a ignorância de seus
críticos. Podemos ler uma comunicação do Dr. Guelpa, feita em 7 de janeiro de 1909 à
Sociedade de Neurologia de Paris, em que o autor declara que a renovação dos tecidos
e o rejuvenescimento das funções podem e devem ser feitos sistematicamente com um
jejum absoluto e prolongado, e que, se esse meio que ele empregou com sucesso ainda
não tem o lugar que merece em terapêutica, é porque é necessário acrescentar a ele a
purgação repetida para assegurar a evacuação dos dejetos orgânicos (Gazette des
Hopitaux, 2, 1909). E exatamente o que ensinava Cagliostro; ele vivificava em seguida
seu doente, o que era ainda melhor. Os membros da Sociedade de Neurologia teriam
acolhido essa comunicação com uma gargalhada geral?
474. “A graça se obtém sobretudo por meio de atos; viver da vida de todos, na sociedade
em que o Céu o colocou, respeitando as leis e sobretudo se consagrar à felicidade e ao
alívio de seu próximo, eis o primeiro dever de um filósofo e a obra agradável a Deus. ”
Ritual de Mestre, p. 31.
475. “Reconhecemo-lo por sua paciência, por seu candor, pela realidade de seus feitos, por
seu sucesso e sua maneira de operar que deve ser apenas a de implorar ao grande Deus
beatífica e da evolução dos espíritos superiores. (Esses são só dois modos,
ativo e passivo, de uma mesma faculdade, aquela que conhece o mundo
espiritual.)
Assim como o homem comum, que vive no mundo material, pode
perceber e agir, alguém regenerado pode perceber e agir no mundo espiritual
em que vive. Que a percepção se produza por intermédio de um paciente,
com ou sem aparato, ou diretamente ao espírito do Eleito, que seja tomada
perceptível a muitos, simultânea ou sucessivamente, provocada em outros,
tudo isso são apenas diferenças de procedimento, de ação ou de detalhes.
Um astrônomo pode mandar um empregado do laboratório observar as fa
ses de um fenômeno celeste, fazê-o descrevê-las, ou observá-las ele pró
prio com o olho ao telescópio, e pintar a seus auditores o que vê; ele pode,
ainda, tirar uma fotografia daquilo que registra seu aparelho, projetar o
clichê sobre uma tela visível a todos e, de uma só vez, fazer com que a sala
inteira veja a imagem que ele viu; o astrônomo fará assim, para o mundo
sideral, o que o Eleito pode fazer, o que Cagliostro fazia para o mundo espi
ritual.
Mas a analogia pode ir mais longe: o astrônomo poderia ensinar a seu
empregado, a um aluno, como, em sua ausência, amanhã, na mesma hora,
ou no ano seguinte na mesma época, eles poderão, com tais ou tais precau
ções, seguindo tal ou tal método, encontrar-se nas condições em que o
fenômeno se produzirá e como sua observação, bem feita, poderá dar-lhes
as mesmas noções, e outras ainda, talvez mais precisas, a respeito do astro
ou do estado do céu examinado. Se se trata de um empregado de laborató
rio, ignorante, o trabalho, apesar de toda a boa vontade que ele terá, será
bom em alguns pontos; em outros, inútil ou absurdo476. Se o método e o
aparelho foram confiados a um colega, o sábio terá podido transmitir seus
poderes quase integralmente e as operações ulteriores equivalerão às do
“mestre agente primitivo.”
Essa transmissão de poderes se efetua da mesma maneira no mundo
espiritual para o Eleito de Deus; o símbolo permanecerá nas formas e Ritos
de instalação de certas Lojas, no cerimonial de transmissão de certas dig-
nidades eclesiásticas ou nobiliárias; mas, ao passo que, ali, era apenas letra
477. ... “Eu descobri por seus discursos que seu mestre, apesar da objeção de seu estado
moral (I), operara através da palavra e chegara a transmitir a seus discípulos o conheci
mento para operar da mesma maneira durante sua ausência. ” Saint-Martin, 73". carta a
Kirchberger. Correspondance, p. 205. Saint-Martin julgava o estado moral de Cagliostro
pela Vie de Joseph Balsamo, que pensava ser um livro digno de confiança.
478. Pentágono próprio a cada indivíduo, colocando-o em relações com o único anjo
correspondente a esse pentágono. Ritual, p. 73. “Pela regeneração, o homem não recebe
um caráter oposto a sua natureza, mas ela transforma e glorifica nossa natureza pessoal;
ela nos eleva a uma potência de vida e de existência mais alta. ” — H. Olshausen,
Commentaire à 1’Evangile de saint Jean. Neuchatel, 1844, in-8?, p. 100.
479. Eis as verdadeiras chaves do Templo, as senhas, as câmaras ou apartamentos, onde
apenas o iniciado pode penetrar “sem bengala e sem chapéu ” (Disciplina para os mes
tres, p. 60, Catequismo de Companheiro. VII mandamento, p. 54), e dos quais ele nada
pode revelar. As religiões, a Maçonaria deixaram que tudo isso caísse no esquecimento
por ignorância, em ridículo com suas indiscrições; mas os filhos de Deus conservam o
espírito e a realidade das iniciações; elas são imperecíveis, e Deus suscitaria seres
para manter acesa a lâmpada do santuário se não houvesse, em cada geração, alguém
que por si só tomasse para si essa tarefa misteriosa de conservar a vida através da qual
o mundo subsiste.
480. Ele só pode comunicar-se com o anjo cujo selo e número existem em seu pentágono;
ele só recebe seu poder de seu mestre. Cf. Abertura dos Trabalhos no Grau de Mestre, p.
73; e página precedente: nota 1.
481. Cagliostro insistiu muito nesses perigos e nos meios de evitá-los. Catecismo de Apren
diz, p. 45.
humanos quanto nos destinos ocultos das nações. Cagliostro mostrou com
tanta freqüência a realidade desses poderes, que seus mais severos histo
riadores, seus inimigos, mesmo seus juizes eclesiásticos, não puderam negá-
los. Ele dava provas de tudo o que dizia; com que direito, então, queriam
negar as noções espirituais segundo as quais ele explicava seu poder?
Essas teorias e sua prática foram conservadas no Ritual e nos Cate
cismos da Maçonaria Egípcia^1. E daí que tomamos os dados e citamos
tão textualmente quanto possível; mas, nesses rituais, a doutrina se encontra
envolvida em símbolos, ornada de alegorias, disseminada em discursos de
recepção ou fórmulas de iniciação, tendendo a tomar os cadernos dessa
Ordem tão análogos quanto possível, exteriormente, àqueles que estuda
vam habitualmente os maçons, aos quais eles eram destinados; tivemos de
desatravancar, coordenar e resumir. O resto é interessante de ler, todavia: a
história abreviada e simbólica da Maçonaria, a escolha de nomes, signos
e números revelam ao observador a simplicidade da doutrina, sua antiga e
tradicional verdade. Nas orações que acompanham a abertura dos traba
lhos, nos discursos de recepção, passa um ar profundamente religioso e
sincero, que não encontramos nos rituais das outras Ordens.
Eis, como exemplo, uma passagem do discurso de recepção ao Grau
de Mestre:
“Meu Deus, tenha piedade do homem N. segundo a grandeza de Vos
sa misericórdia e apague sua iniqüidade segundo a imensidão de Suas bon-
dades; lave-o cada vez mais de seu pecado e purifique-o por sua ofensa,
pois ele reconhece sua iniqüidade e seu crime é sempre contra ele mesmo;
ele pecou apenas diante de Você, cometeu o mal em Sua presença, a fim de
482. O manuscrito original é um in-4?, marcado no início e no fim com o emblema, núme
ro ou selo de Cagliostro, em cera verde, a saber: uma serpente atravessada por uma
flecha e tendo uma maçã na boca. E ilustrado com desenhos coloridos que representam os
trajes simbólicos dos diferentes Graus. Esse manuscrito foi perdido; fora dado por Ca
gliostro a A Sabedoria Triunfante. O Sr. Romand, de Lyon, teve esse manuscrito entre as
mãos e copiou algumas passagens dele. Duas outras cópias primitivas foram feitas e
doadas: a primeira, ao primeiro Venerável Assistente (Alexandre II). O Sr. Dubreuil, mem
bro de Sabedoria Triunfante, era possuidor dele e o deixou em testamento a uma pessoa,
X... que o legou ao Ir.-. Bacot, Venerável da Loja do Perfeito Silêncio, em 1844; este o
legou ao Orador dessa Loja. O sábio M. Morison copiou esse exemplar; o Sr. Guillemet
(Porta-Estandarte do Perfeito Silêncio em 1845) copiou o exemplar Morison; é essa có
pia que tivemos entre as mãos e estudamos: alguns fragmentos desse manuscrito aparece
ram na Initiation (1906-1908), mas o texto está muito incorreto. A terceira cópia original,
dada ao 2? Venerável Assistente (Alexandre III), desapareceu igualmente. Cf. Notas nas
primeiras páginas do Sr. Guillemet. Essa edição não foi realizada por Papus e Marc
Haven, mas foi a partir do trabalho que eles haviam preparado que foi publicado o Ritual
da Maçonaria Egípcia, ao qual se refere a presente obra, que foi publicada nos Cahiers
Astrologiques, Nice, 1947.
que Você seja justificado em Suas palavras e vitorioso quando o julgar.
Meu Deus, crie um coração puro nele e renove o espírito de justiça em suas
entranhas, não o afaste diante de Seu rosto, devolva-lhe a alegria de Sua
assistência salutar e fortifique-o com um espírito que o faça agir volunta
riamente. Ela ensinará Seus caminhos aos injustos, e os ímpios se conver
terão a Você. Oh, Deus! Oh, Deus de nossa salvação, liberte-o das ações
sanguinárias, e sua língua cantará com alegria Sua justiça, Senhor! Abra
seus lábios, e sua boca anunciará Seu louvor. Se Você pedisse um sacrifí
cio, ele Lho oferecería. Os holocaustos não Lhe são agradáveis. O sacrifício
que Deus pede é um espírito aflito. Oh, Deus, Você não desprezará um
coração contrito e humilhado. Senhor, em Sua bondade, espalhe Seus bens
e Suas graças sobre Sião, a fim de que as muralhas de Jerusalém sejam
construídas. Você concederá então o sacrifício de justiça, as oferendas e os
holocaustos...” (Ritual p. 65).
Será possível encontrar, com uma doutrina mais elevada, com uma
iniciação mais real, um pensamento mais respeitosamente religioso do que
este?
Foi essa Maçonaria que ele levou a Lyon e que ensinou na Loja da
Sabedoria.
Ele contava, entre seus discípulos, pessoas estimadas na cidade: o
banqueiro Saint-Costar, presidente da Grande Loja provincial, em 1779,
antigo Venerável da Sabedoria; Aubergenois, Alquier, negociantes e altos
dignitários; Finguerlin, Philippon, Morin, Journet, Colonge, os dois
Magneval, Terrasson de Sénevas, antigo oficial, todos devotados, de corpo
e alma, a seu iniciador. Saint-Martin, que encontrou Gabriel Magneval, em
1795, conta483 do respeito que ele professava por seu Mestre e como ele
conservava, ainda nessa época, relações contínuas com os discípulos suí
ços de Cagliostro. Péricaud484 conta também que foi em Lyon que Cagliostro
conheceu Antoine Rétaux de la Vilette, filho do diretor das concessões,
vítima, mais tarde, das intrigas de Madame de la Motte no Caso do Colar.
As subscrições desses adeptos, as dos doentes reconhecidos, haviam
coberto facilmente a soma necessária à instalação da Loja-Mãe do Rito
Egípcio, e o Templo foi construído com muita magnificência485. Nesse meio
tempo, os trabalhos maçônicos continuavam no local antigo; a autoridade
e a reputação de Cagliostro aumentavam; os maçons egípcios foram procu
rados na mesma medida em que anteriormente haviam sido deixados de
lado. Muito tempo após o Caso do Colar, mesmo após a prisão de Cagliostro,
491. “O conde de Cagliostro deveria chegarem Lyon dia 19 (agosto) com De Luxembourg
e oito a dez outros grandes personagens com os quais ele deveria fazer, no sábado, 20, a
grande pompa de consagração dé Sabedoria Triunfante, que o esperava com um belo
uniforme de casaca verde com cordão de ouro, que era a casaca de campo de seu Grão-
Mestre; mas o projeto fracassou. Cagliostro foi preso e encerrado na Bastilha no dia 24. ”
Carta inédita de Willermoz ao cavaleiro de Savaron de 30 de agosto de 1785. Coleção de
Bréghot du Lut.
492. Sem dúvida, Rigollet, antigo membro da Sabedoria. Efemérides das Lojas maçônicas
de Lyon, p. 8.
493. Sem dúvida, De Vismes, Grande Secretário do Rito Egípcio.
Supremo cumulou aqueles que ele adotou e que ama; armem-se de força,
de vigor e de sabedoria.
A Força prova o poder do verdadeiro maçom egípcio que, tendo ele
vado em seu coração um santuário digno do Eterno, adquiriu a coragem
necessária para sustentar e defender com firmeza os preceitos e as leis
prescritas pelo Grande Fundador.
O Vigor, para empreender com coragem uma rota nova e desconheci
da ao restante dos mortais, para poder enfrentar toda espécie de perigos,
enfim, para suportar com paciência a felicidade ou a infelicidade que re
sulta dos diferentes acontecimentos da vida.
A Sabedoria, para chegar a adquirir os conhecimentos da alta, subli
me e verdadeira filosofia hermética, a fim de merecer um dia poder operar
o casamento do sol e da lua, felicidade completa, a maior recompensa con
cedida por Deus ao homem, verdadeira perfeição física e moral que o toma
seu Eleito e possuidor da matéria primeira e universal.
Amem e adorem o Eterno com todo o seu coração, impeçam o mal e
jamais o pratiquem, amem e sirvam seu próximo fazendo-lhe todo o bem
de que vocês são capazes, consultem sua consciência em todas as suas
ações, mas fujam e expulsem todos os escrúpulos, pois o escrúpulo faz o
crime, o crime faz o pecado e o pecado, a maldição de Deus494.”
495. P. 198-199.
496. Correspondance de Saint-Martin com Kirchberger, p. 67.
497. Patente de A Sabedoria Triunfante. Apêndice.
no Templo consagrado por tais prodígios. O resultado de tais trabalhos era
transmitido a seu mestre, que permanecia em comunicação direta com eles498.
Todavia, como em toda a parte, após o desaparecimentos do funda
dor, sobreveio a divisão: superstições, interpretações diversas separaram
os espíritos. O interesse acrescentou seu germe de discórdia: alguns subscri
tores, após a partida de Cagliostro, não quiseram mais pagar e iniciaram-se
processos499.
Os dias terríveis da Revolução, do cerco de Lyon, sobrevieram: A
Sabedoria Triunfante entrou em letargia e, quando do renascimento da
Maçonaria, os sobreviventes dos discípulos de Cagliostro, dispersos, não
se reuniram mais em Loja500. Essa decadência do Rito Egípcio em Lyon
começou somente em 1788: até então, A Sabedoria Triunfante contribuiu
da melhor maneira que pôde para dar assistência ao Mestre em sua ação
maçônica em Paris; esses acontecimentos se ligam muito imediatamente
aos precedentes para que possamos deixar de estudá-los aqui. Cagliostro
encontrou, ao chegar à capital, a mesma agitação de espíritos, a mesma
situação confusa que ele encontrara em Lyon; o teatro era mais vasto; ele
chegava com uma autoridade bem maior, é verdade, mas as pessoas esta
vam bem mais afastadas dele e eram menos sinceras.
A convenção dos Filaletos, que reuniu membros dos mais diversos
Ritos, destinada a unificar a Maçonaria ao fixar seu objetivo, princípios e
trabalhos, tivera sua primeira assembléia A 13 de novembro de 1784501.
Em 23 de novembro, o presidente, Savalette de Langes, propôs que
se chamasse à convenção o conde de Cagliostro, de que tantas maravilhas se
contavam, assim como Mesmer, esperando que esses irmãos, com suas
498. Carta de Cagliostro no momento do Congresso dos Filaletos. Cf. p. 146 deste livro,
e Vie de Joseph Balsamo, p. 199-200.
499. Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 3
500.0s arquivos de A Sabedoria Triunfante, confiados em 1821 à Loja de Memphis (Rito
de Misraím) pelo Venerável, Dubreuil, passaram para o Perfeito Silêncio quando de sua
morte; o Orador dessa Loja, em 1845, foi seu último depositário. Atualmente, não encon
tramos mais traço dos arquivos do Rito Egípcio senão nos raros papéis que conservam as
Lojas lionesas. O Templo, que se encontrava à direita da alameda dos Brotteaux (atual
rua Morand), um pouco acima da praça du Bassin (atual praça Saint-Pothin), ocupado
em certo momento pelo Perfeito Silêncio (1824), foi abandonado. Em 1843, a casa servi
ría de local aos irmãos das escolas cristãs.
501. Cf. Acta Latomorum. Paris, 1815. t. II, p. 92 c L’Initiation, 1904, n?s 1 a7, reprodu
ziu parcialmente esses documentos. Encontramos também um bom estudo a respeito da
convenção dos Filaletos no prefácio de Enseignements secrets de Martinèz de Pasqually.
Paris, 1900; p. 40 a 151 (ver também Os Ensinamentos Secretos — Precedidos de Infor
mação a Respeito do Martinesismo e do Matínismo, Franz von Baader, publicado pela
Madras Editora).
* N. do E.: Sugerimos a leitura A Antiga Franco-Maçonaria — Cerimônia e Rituais dos
Ritos de Memphis e Misraím, de Robert Ambelain, publicado pela Madras Editora.
luzes, pudessem dissipar as trevas em que se debatiam os membros da
assembléia. Para Cagliostro, houve discussão; muitos maçons temeram
comprometer-se. Hesitou-se e, finalmente, apenas Mesmer, personagem
menos inquietante, foi convidado. A maioria nunca se engana; ela sempre
sabe escolher as mediocridades.
Mas após três meses de estudos, a convenção nada avançara. Nova
mente, em 10 de fevereiro de 1785, Savalette de Langes propôs convidar
Cagliostro e a sugestão foi aceita. O conde acabara de chegar a Paris502; ele
respondeu imediatamente que de boa vontade comparecería e que aceitava
em princípio dar a luz aos Filaletos, com a condição de que eles o recebes
sem, a alguns dos seus e, em particular, ao Sr. de L503.
Ao receber essa resposta, alguns membros da convenção ergueram
novas objeções de forma: o Sr. de L. não era 12.°.-., e outras dificuldades de
mesma importância. A vaidade e o excesso de rigor burocrático se elevaram
assim contra a boa vontade de Cagliostro, ou antes algumas personalidades
hostis ao Grão-Mestre se serviram desses pretextos para tentar afastá-lo.
Essa hesitação, renovando o acolhimento desconfiado que recebera a
primeira proposta de recebê-lo, mostrou a Cagliostro o pouco de impulso
que tinham os Filaletos pela busca da verdade. Ele se mostrou a partir daí
tanto mais exigente quanto mais diplomáticos e fugidios se mostrassem os
maçons. Em 10 de março de 1785, a convenção recebeu uma carta504 em
que Cagliostro declarava que, já que eles mostravam tão pouco ardor pela
verdade, que eles se recusavam a dar um passo em direção àqueles que
vinham a eles em nome de Deus, ele pediría ainda mais coisas como preço
por seu concurso. Eis quais foram suas condições:
1? Os Filaletos queimarão seus arquivos e farão tábula rasa de um
passado mentiroso;
2? Todos se farão receber maçons egípcios.
Então, em plena Loja, as provas que eles desejavam seriam dadas505.
“A glória de Deus
Em nome do Grão-Mestre da Ordem, e pelo poder
A Loja A Sabedoria Triunfante, Loja-Mãe do Rito Egípcio, com sede
no O.-. de Lyon.
A R.-.L.-. dos Amigos reunidos no O. de Paris,
Saúde, força e felicidade.
MM.’. CC.-. Ir.-.
Eles existem, esses maçons, que nenhum lugar da terra ainda ofere
cera a seus olhos; sua voz fraterna ousa dizer-lhes: não procurem mais.
Nós vimos a imutável verdade sentar-se em meio a nós sobre os destroços
da dúvida e dos sistemas. Vocês a verão, mui caros irmãos, descer em sua
oficina no instante em que vocês abandonarem — insensato, só, construído
515. ActaLatomorum. Paris, 1815. t. II, p. 126. —A profecia, verdadeira para os Filaletos,
que se separaram após três meses de sessões, sem ter feito nada; que recomeçaram, mais
tarde, com sucesso ainda menor, era além disso de alcance geral: Cagliostro se dirigia a
todos os maçons ao falar à convenção; sua predição se estendia também a toda a obra
maçônica.
Capítulo VII
520. Lenôtre. Ibid., p. 166. “Seu apartamento permaneceu fechado enquanto durou a
Revolução: apenas em 1805 abriram-se as portas, fechadas havia 18 anos, e o proprietá
rio mandou vender os móveis que haviam servido por 18 meses a Cagliostro (o Sr. Lenôtre,
que cita esse fato, sem referência, sem dúvida foi induzido ao erro pela venda dos móveis
de Cagliostro feita em Londres em 1787). Desde então, a calma casa da rua Saint-Claude
não teve mais história. Engano-me: por volta de 1855, como haviam feito algumas refor
mas, trocaram os batentes da antiga porta de carros; os batentes de marcenaria que os
substituíram provinham das demolições do prédio do Templo: eles ainda estão lá com
seus grandes ferrolhos e suas enormes fechaduras. A porta da prisão de Luís XVIfechan
do a casa de Cagliostro... estranhos acasos!” Lenôtre, p. 171.
521. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 102, segundo as Mémoires de madame de la
Motte, t. I, 39-40.
522. Cf. Cap. II, Retrato, p. 26 deste livro, e S. Laroche, Tagebuch einerReise... Offenbach,
1788, p. 314.
sais sem avisar e, não querendo que Cagliostro arcasse com todas as despe
sas dessas recepções forçadas, nem desobrigar a condessa, mandava vir
um prato ou dois de sua casa523.
No salão, após o jantar, acotovelava-se uma multidão de grandes se
nhores. Amigos do cardeal, cortesãos do príncipe de Soubise, que se decla
ravam reconhecidos ao conde de Cagliostro524, curiosos atraídos pelo renome
do Grande Copta, pesquisadores em busca de ciências misteriosas e tam
bém doentes em busca de cura. Embora ele não quisesse praticar a medici
na525, desejoso unicamente de viver em meio a amigos seletos e de instruí-
los como quisesse, não lhe deram essa liberdade.
Toda Paris falava da cura do príncipe de Soubise, do caso da Sd Augeard.
As gazetas contavam seus sucessos no estrangeiro, na província, os testemu
nhos de estima que ele recebera dos maiores personagens: O próprio Sr. de
Vergennes, o guarda dos Selos, o Sr. de Miromesnil, não haviam intervido
oficialmente em seu favor em Estrasburgo e em Bordeaux?526 E a onda dos
doentes de alta linhagem, de solicitantes, aumentava.
Cagliostro, porém, nada fazia para atraí-los: ele se mostrava o mesmo
que em Lyon, que em Estrasburgo, que na Rússia; muito reservado, inde
pendente, brusco de modos, sem fazer nem um gesto, nem um passo para
bajular as pessoas. Conhecemos sua orgulhosa resposta aos primeiros avan
ços do cardeal em Estrasburgo527; em Paris, ele fez ainda melhor: o conde
de Artois, irmão do rei, o duque de Chartres, convidaram-no para jantar:
ele recusou!528
E não se tratava de timidez de sua parte; pois, em meio a esse mesmo
mundo, ele se mostrava mais grande senhor do que todos eles, muito à
vontade, dominando seus convidados da altura de uma nobreza inata, de
uma elevação de alma indiscutíveis, irresistíveis:529 quando ele respondia
523. Interrogatório na Bastilha, Arq. Nac., X? 2676 — Campardon. Op. cit. p. 341.
524. M. d’Hannibal.
525. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, 1786, in-16, p. 37
526. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, 1786, in-16, p. 33 a 35.
527. “Se o Sr. cardeal está doente”, respondeu Cagliostro a um pedido de audiência
apresentado por seu grande venerador, o barão de Millinens, que ele venha, e eu o cura
rei; se ele está bem, não precisa de mim, e nem eu dele. ” Cagliostro explica, em seu
Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral (1786, in-16, p. 30), que ele
não queria satisfazer um puro desejo de curiosidade, mas que, no dia em que soube que o
cardeal sofria um acesso de asma, apressou-se para ir para perto dele.
528. Funck-Brentano. Affaire du Collier, p. 102. O convite fora feito de má vontade ou
Cagliostro estimou que deveria estar muito infeliz de alma ou de corpo para ir desperdi
çar em vão suas noites junto aos príncipe? A verdade é que ele declinou dessa honra.
529. Madame d’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. XII — "O cardeal se sentiu, em sua pre
sença, penetrado por um religioso arrebatamento e o respeito comandou suas primeiras
palavras. ” Georgel. Mémoires, t. II, p. 49.
com uma voz grave aos grandes personagens que lhe garantiam sua bondade,
ofereciam-lhe sua proteção, que ele ficava muito honrado e que, em troca,
“do outro lado”, em seu reino, ele os tomava sob sua proteção; não se tinha
vontade de sorrir nem de discutir; uma emoção respeitosa os penetrava e
teriam caído de joelhos se ele não os houvesse lembrado, com uma palavra
brusca, com uma brincadeira, daquilo a que chamamos, habitualmente, a
realidade.
As noites eram passadas a interrogá-lo, a tentar fazê-lo falar. O que
lhe perguntavam acima de tudo, e o que o tornava atraente, eram os se
gredos de sua clarividência, de seu maravilhoso conhecimento das almas
e das coisas. Em conversas particulares, com efeito, ele dizia às pessoas,
com os mais precisos detalhes, aquilo que elas acreditavam ser as únicas
a saber530, e isso perturbava, agitava todos os cérebros. Em companhia
mais numerosa, em meio a um círculo atento, ele falava de tudo, na cor
rente da conversa, sem ordem aparente, sem pedantismo, saltando de um
assunto a outro; ele seguia o ritmo de seus ouvintes, sabendo bem que
não podia pedir a essas cabeças levianas um esforço contínuo, uma serie
dade de que nenhum deles era capaz; mas cada uma de suas digressões
tocava, porém, no coração da questão, trazendo de volta o espírito a algu
ma questão de ordem geral531.
A maioria, homens do mundo, como Beugnot, não o compreendia e
declarava, ao sair, que era puro galimatias; outros, os maçons em particu
lar, apanhavam algumas luzes e lamentavam que elas estivessem perdidas
em meio a uma onda de obscuridades, de palavras ociosas. (Tudo o que
eles não haviam compreendido formava, naturalmente, essa última catego
ria.) Por fim, alguns, cujos nomes não poderiamos citar, sendo sempre os
mais humildes e menos conhecidos, escutavam com todo o seu ser, adivi
nhavam as relações ocultas do espírito das respostas com o das questões
feitas e se calavam, não mais encontrando neles mesmos, ao lado dele, nem
perguntas a fazer, nem palavras a dizer, não tendo mais qualquer desejo
548. Esse conto, extraído das Mémoires authentiques (de Luchet), retrata as reuniões
egípcias de mulheres como vergonhosas orgias: Cagliostro representa ali um papel ridí
culo e obsceno. As gazetas difundiam essa história, sobretudo no estrangeiro (Das Graue
Ungebeuer. 1787, n? 15, p. 331-345). — Gerard de Nerval, em seus Illuminés, Paris,
1868, e J. de Saint-Félix, em suas Aventures de Cagliostro. Paris, 1855, p. 104, reprodu-
ziram-na Referente à dignidade da vida de Cagliostro, já sabemos em que nos basear; a
respeito da moralidade irrepreensível da ordem egípcia, recomendamos ao leitor que leia
o Ritual da Maçonaria egípcia e especialmente o Ritual da Loja de adoção. Eles verão as
precauções escrupulosas tomadas para as reuniões mistas, o juramento exigido (p. 106);
os sete pontos; os símbolos (luvas, traje talar), p. 108; as recomendações aos iniciados;
seus deveres, p. 136. Thory. Histoire de laFondation du Grand Prient, p. 213, fez, acerca
da Maçonaria de adoção de Cagliostro, um estudo imparcial e sério que não interrom
peu, como vemos, a difusão das calúnias.
549. Essa segundafantasia, da mesma origem, que põe na boca de espíritosfrases espirituosas
acerbas contra as pessoas e as coisas do século XVUI, é uma sátira sem interesse, mas ao
menos sem obscenidades e por vezes espirituosa. Como a precedente e como o relato da
pseudo-iniciação de Cagliostro pelo conde de Saint-Germain, reencontramo-la, tomada ao
pé da letra e citada pelos cronistas, junto com outros fatos da vida de Cagliostro.
550. Ma correspondance, 1785, n? 73.
redator da Gazette de Leyde assegurava que, “dois dias antes de ser preso,
o cardeal havia sido persuadido por Cagliostro de que ele jantara com
Henrique IV551.”
Exageros ridículos, supersticiosas lendas que serviam para fazer mal,
que fizeram mal a Cagliostro e que teriam podido inebriá-lo com um orgu
lho fatal, se ele não possuísse o antídoto para todos os venenos, como ele
disse algumas vezes552, mas testemunhos irrefutáveis do misterioso poder
de Cagliostro, da devoção sem limites, do sucesso triunfal que ele obteve
em alguns meses em Paris.
Recebido, rodeado pela elite da sociedade parisiense, Cagliostro se
encontrava por isso mesmo em meio a um mundo de intrigas e cabalas553.
O caso mais retumbante do século XVIII, o processo do Colar, desenrolou-
se em torno dele; ele teve de se defender contra uma intrigante perigosa
entre todas, de audácia sem igual; contra madame de la Motte.
Filha de um pai bêbado e de uma mãe prostituta, Jeanne de Saint-
Rémy554 teve uma juventude penosa e moralmente perigosa. Foi pastora de
vacas, mendiga profissional, encerrada em um convento de onde fugiu,
recolhida em seguida por boas pessoas às quais aplicou os piores golpes555;
depois, tendo novamente caído na pobreza e na vagabundagem, foi reco
lhida pela marquesa de Boulainvilliers, que se interessou por ela por causa
de sua miséria e de sua origem nobre.
O Sr. Funck-Bretano, que consagrou à madame de la Motte muitos
capítulos de seu excelente livro a respeito do Caso do Colar, dá-nos o se
guinte retrato556: “Madame de la Motte era uma criaturinha fina e leve, de
uma graça ondeante e alerta. Cabelos castanhos, olhos azuis, uma boca um
pouco grande mas cujo sorriso ‘chegava ao coração’”, diz Beugnot, que
fala por experiência própria. Seu pescoço teria sido a contento se ela pos
suísse um pouco mais; mas como observa ainda Beugnot, “a natureza para-
ra no meio da obra e essa metade fazia lamentar a outra.” Enfim, era a voz
doce, insinuante, de timbre agradável, que acariciava. Com pouca instrução,
tinha o espírito pronto e natural; ela se enunciava corretamente, com gran
de facilidade. “A natureza”, diz Bette d’Etienville, “prodigara-lhe o dom
perigoso de persuadir”.557 — “Um ar de boa-fé em suas histórias punha a
573. Em 10 de abril, ele estava na Inglaterra para isso; em maio, ele vendeu e trocou uma
parte de seus diamantes. Ratnond de Carbonnières, que fez, por afeição ao cardeal, um
inquérito privado em Londres, em outubro de 1785, descobriu e esclareceu todo o papel
de madame de la Motte na desmontagem do colar. Target, advogado do cardeal, publicou
os resultados de seu inquérito e as atas oficiais relacionadas na brochura intitulada:
Pièces justificatives pour le Cardinal de Rohan. Paris, Flon, 1787, in-8?.
574. No fim de 1781, quando madame de la Motte se instala em Paris e começa suas patifa
rias, Cagliostro está em Estrasburgo. Em março de 1784, quando ela representa a seu
protetor a comédia do bosque de Vênus, durante todo o caso de Oliva e do roubo de 150 mil
libras ao cardeal, Cagliostro estava em Bordeaux, muito longe do cardeal e de toda essa
intriga.
575. Beugnot, Mémoires, t. I, p. 46.
O cardeal estava feliz; entre madame de la Motte, que lhe consegui
ría, acreditava ele, as boas graças da rainha, e Cagliostro, que lhe abriria a
porta dos mistérios celestes, o que mais ele podia desejar? Parecia a ele
que a mais franca das cordialidades reinava entre seus convidados; que
madame de la Motte agradava a Cagliostro, que ela o compreendia e admi
rava. Ele não sentia, na bonomia agradável, despreocupada, com a qual
Cagliostro deixava bruscamente os temas graves, as altitudes, para falar
afetado com essa “princesa”, a indicação oculta que ela encerrava. Ca
gliostro tratava madame de la Motte como uma pessoa muito refinada,
muito pessoal, divertida, como protegida do cardeal; ele não lhe manifes
tava qualquer hostilidade, certamente, mas também nenhum respeito. Ele
não era um aliado; ficava fora de seus segredos, assim como a deixava de
fora de seus ensinamentos. Uma só vez ele interveio: foi em 1784 (caso
de Oliva), quando o cardeal, inteiramente subjugado, entregava-se às mais
cegas imprudências; Cagliostro tentou, com alguns conselhos, moderá-lo,
impedi-lo de deixar ainda uma pata ou as asas nas teias de aranha.
Madame de la Motte percebeu, viu que se enganara quanto ao saltim
banco, que ele via claro e jamais seria um instrumento entre suas mãos. Como
não se podia comprá-lo, era preciso aniquilar sua influência; ela se empe
nhou nisso: “Madame. de la Motte não achava consideráveis o bastante as
boas ações que ela arrancava do cardeal de Rohan. Ela presumia que elas
teriam sido maiores se Cagliostro não houvesse aconselhado ao príncipe
que pusesse limites em sua generosidade para com ela. Ela fez o impossível
para perdê-lo no espírito do cardeal; mas, não tendo obtido sucesso, encer
rou e alimentou em seu coração projetos de vingança, esperando a ocasião576.”
Essa animosidade surda de madame de la Motte, a tentativa de intervenção
de Cagliostro que desagradara ao cardeal foram as causas que modificaram
as relações do discípulo com seu mestre. O cardeal, por fraqueza de espírito,
temeu incorrer em censuras e ver Cagliostro se contrapor à admirável tática
de madame de la Motte. Ele começou a lhe esconder seus projetos comuns,
seguindo nisso os conselhos da condessa, escutando atentamente suas acusa
ções contra Cagliostro, suas bajulações, abandonando-se às brilhantes espe
ranças com as quais ela o embriagava. Cagliostro, preocupado com outras
coisas, nada fez para combater esse afastamento progressivo. Em novembro
de 1784, o caso do colar se organizou577; Cagliostro estava em Lyon,
dedicado à sua obra maçônica; em janeiro de 1785, ele foi concluído; a cada
dia, o cardeal, Boehmer e madame de la Motte tinha entrevistas; Cagliostro
ainda estava longe. A condessa pressionava o cardeal para terminar; apressa-
ram-se, precipitaram-se acontecimentos, como se temessem a chegada de
581. O fato de haver, para aceder aos desejos do cardeal, feito essa experiência com
madame. de la Motte e sua mãe comprometeu, porém, Cagliostro; madame de la Motte
soube servir-se perigosamente dessa arma mais tarde, sustentando que o mago, com en
cantamentos, seduzira o cardeal e o levara à compra do colar. (Relatório de madame. de la
Motte, e: Resposta ao Relatório de Cagliostro. 1786, in-4?, p. 29). As confissões da srta. de
la Tour vieram felizmente destruir essa calúnia; ela prestou juramento de que nem antes,
nem depois dessa cena mágica, em que ela própria só falara por brincadeira, houvera, de
qualquer maneira, combinação com Cagliostro (Interrogatório da srta. de la Tour). E eis
como o próprio Cagliostro conta o fato em seu interrogatório (Arq. Nac., X2 B. 1417): Ante
o pedido do cardeal, para tentar confortar uma pessoa que lhe era cara, ele aceitou fazer a
experiência que solicitava madame. de la Motte; mas ele a preveniu nos seguintes termos:
‘‘Senhora, meus conhecimentos são em física medicinal e, embora eu não acredite muito no
magnetismo, imagino que ele possa ter muito mais efeito nas crianças; assim, podemos,
talvez, descobrir algo provocando a catalepsia ”, Notemos que essa linguagem de Caglios
tro é diferente daquela que ele usava habitualmente: ele não fala de visão beatífica ou
angélica, nem de graça divina, como quando ele agia com colombas, mas simplesmente de
magnetismo, e com muita reserva. E que, ao tratar com duas mulheres que queriam sua
perdição, com o cardeal que cometia a infantilidade de procurar enganá-lo, Cagliostro não
devia servir-se para eles de seus poderes divinos. Usavam-no como um homem fácil de
iludir; foi como magnetizador, e como magnetizador pouco convicto, que ele operou. As
respostas de seu paciente foram aquelas de sempre nesses casos: uma mistura de influên
cias, de sugestões, de erros e de fantasia. A lembrança cética conservada pela srta. de la
Tour é mais uma prova da verdade de nossa interpretação.
por não ver a jóia sobre os ombros da rainha, suspeitoso, pressionava o
cardeal com questões. Este respondia com segurança; mas as inquietações
de Boehmer o invadiam pouco a pouco. Enfim, em julho, não agüentando
mais, o cardeal e Boehmer fizeram, sem contar um ao outro, uma tentativa
para se informar. Boehmer fez chegar à rainha uma carta de agradecimento;
ela passou os olhos pelo papel, sem compreender o que aquilo significava, e
o jogou no lixo. Boehmer interpretou seu silêncio como um aquiescimento
e ficou um pouco mais confortado. O cardeal, superando sua falsa vergo
nha, decide-se enfim por falar com Cagliostro, contando-lhe tudo, mos
trando-lhe pela primeira vez as cartas, o tratado com o joalheiro endossado
pela rainha, e lhe pede conselho e proteção. Dessa vez, Cagliostro foi cate
górico; havia pouco tempo, Boehmer escrevera. Se o cardeal ainda o
ignorava, Cagliostro o sabia; era preciso agir e o caso podería então ser
concluído secretamente entre o rei, a rainha e o cardeal: “Enganaram-no
odiosamente”, disse-lhe ele; “o único partido a tomar é ir se lançar aos pés
do rei e lhe contar o que aconteceu”. O cardeal, assustado, recusou-se —
“um de seus amigos irá por você”, disse Cagliostro582.
O cardeal recusou ainda mais veementemente; o medo e o orgulho de
seu nome o retiveram. Era porém a única maneira de evitar o escândalo
terrível que se preparava583.
O cardeal, aterrorizado, nada fez. Madame de la Motte, imediatamente
prevenida da atitude de Boehmer e das declarações de Cagliostro, sentiu-se
perdida: o cardeal confessaria ou seria preso; nos dois casos, ele a denuncia
ria; apenas restava-lhe uma chance de salvação: incriminar Cagliostro. Um
mago misterioso, que distribui dinheiro em tomo de si, sem recursos conhe
cidos, íntimo do cardeal, seu diretor de consciência. Um personagem que ela
própria comprometera bastante habilmente no caso para que ele pudesse negar
certo conhecimento dos acontecimentos; era o homem certo para acusar.
“Além disso”, pensava ela, “esse italiano é ridículo, sem modos, aborrecido;
logo ele angariará as antipatias de juizes, testemunhas e público.”
Algo confortada por essa idéia, ela enfrentou o perigo imediato, da
parcela do 1? de agosto; mandou levar à casa do cardeal uma nova carta falsa
da rainha, dizendo que as 400 mil libras prometidas só poderíam ser pagas
em 1? de outubro; que arranjasse tudo com Boehmer: nessa data ela paga
ria 700 mil libras. Enquanto isso, ela mandava 30.000 libras pelos juros
(Era o dinheiro emprestados sobre alguns diamantes do colar.584
582. Era oferecer a si mesmo como embaixador; nenhum intercessor, apesar das aparên
cias, teria valido mais.
583. Interrogatório de Cagliostro, in: Campardon. Op. cit., p. 373. O conselho dado por
Cagliostro de admitir tudo, explicar tudo ao rei, é uma prova evidente da absoluta ino
cência de Cagliostro. Se ele houvesse participado, por pouco que fosse, dessa tenebrosa
intriga, será que teria incitado o cardeal a revelar tudo'!
584. Empréstimo feito por madame de la Motte ao notário Minguet em 27 de julho. Funck-
Brentano. Affaire du collier, p. 222.
O cardeal ficou mais aliviado; Segundo ele, madame de la Motte não
podería ter reunido tamanha soma senão junto à rainha. Nesse caso, a rainha
tinha o colar; tudo era verdade. Correu à Loja de Boehmer, que se irritou,
recusou os juros e só ficou com o dinheiro como parte da soma devida, que
exigiu. Boehmer não parou por aí; em 3 de agosto, encontrou a Sd de
Campan, leitora da rainha, e ela lhe diz que a rainha jamais recebeu o
colar: fora um golpe. Ele foi à casa do cardeal que, de boa-fé, afirmou-lhe
que estava certo de que a rainha tem o colar e que ela pagaria o capital,
assim como pagara os juros. De resto, sua garantia estava ali585.
Madame. de la Motte percebeu que tudo terminara: mandou Rétaux,
única testemunha perigosa, à Itália e, no mesmo dia, vai à casa do cardeal
com seu marido para lhe pedir hospitalidade por 48 horas: “Estão espa
lhando boatos a meu respeito; vigiam-me, perseguem-me; só estou com
prometida pelo senhor, só agi sob suas ordens. Quero fugir para a provín
cia, fazer-me esquecer; mas, daqui até lá, cabe ao senhor me proteger”.
Com essa última manobra, segundo Funck-Brentano 586, madame de la Motte
acreditava ligar definitivamente sua sorte à do príncipe de Rohan, estabe
lecendo sua inocência. Se ela não houvesse agido de boa-fé, será que teria
vindo entregar-se ao príncipe?
O cardeal aceitou hospedá-la em sua casa587; ela ficou até 6 de agosto
e partiu então para Bar-sur-Aube com o dinheiro e o que restara do colar.
Mal ela partira, em 9 de agosto, os joalheiros, chamados ao Trianon, emi
tiram um relatório explicativo à rainha. O rei foi prevenido; um conselho
privado dos ministros foi reunido em sua casa; Breteuil, radiante, demons
trou toda a sua animosidade contra o cardeal, pedindo sua prisão imediata.
O rei ainda hesitava. No dia da grande festa de 15 de agosto, em pleno
salão, ele interrogou o cardeal e, imediatamente, diante de toda a corte,
mandou-o prender. Em 18 de agosto, madame de la Motte foi apanhada em
Bar-sur-Aube e levada a Paris. Em 21 de agosto, o marquês de Breteuil
assina a ordem de prisão de Cagliostro588, com o sinete real.
Em 23 de agosto, às sete horas da manhã, Chesnon, comissário no
Châtelet, acompanhado de oito ou dez esbirros, entre os quais um chamado
Desbruginères589, forçam a porta de sua casa. Em sua presença, apesar de
muito trabalho para tirá-la de lá... por fim apanharam-na por uma perna e a puxaram de
debaixo da cama; colocaram-na em um cobertor para levá-la; ao chegar no local, diante
do cardeal, ela o cobriu de injúrias. ” Carta do Cavaleiro de Pujol de 7 de abril de 1786,
in: P. Audibert.. L’Affaire du Collier. Rouen, 1901, in-16, 31 pág. No mesmo dia, após sua
confrontação, "ela mordeu até arrancar sangue o porta-chaves encarregado de levá-la
de volta. ” Ma Correspondance, n.° 31 de 9 de abril de 1786.
600. “O colar fora comprado por conselho de Cagliostro. Foi entregue a ela em presença
de Cagliostro, por ordem de Cagliostro, pelo cardeal, para ser vendido em proveito do
conde. A Stf de Cagliostro era a pessoa que se gabava de ter suas entradas secretas junto
à rainha e que transmitia suas ordens. Foi ela que recebeu do cardeal os mais belos
diamantes do colar... etc... ” Interrogatório de Madame. de la Motte. Arq. Nac. X2 2576.
Relatório de Madame. de la Motte, passim.
601. Muitos desses libelos, condenados pelo parlamento, foram suprimidos como
caluniadores e injuriosos. Cf. Courrier de 1’Europe, n? 48 de 1787, p. 42, 1? coluna.
602. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 268.
seus juizes. Continua a ser na Bastilha o mesmo que era na casa de Estras
burgo ou entre seus filhos, em A Sabedoria Triunfante. A verdade, a luz, a
força estão nele e nada das coisas humanas poderia sufocá-las. Sua calma
não se desmente — e voluntariamente — senão uma única vez: foi quando,
após oito meses de cela, de luta, oito meses de separação de sua mulher, de
angústias em relação a ela, oito meses durante os quais sua obra fora aban
donada, seus discípulos e seus doentes forçosamente largados603, ele se
encontrou enfim face a face com madame de la Motte, com aquela que era
a causa de tudo aquilo e que continuava, por meio de uma campanha odio
sa, a arrastar na lama o cardeal, a condessa e ele próprio; Cagliostro deu
então livre curso à sua indignação604.
No dia seguinte, foi a vez do cardeal: “Amanhã ficarei de frente com a
celerada”, escreveu a Target; “ela teve hoje uma cena com o conde de Ca
gliostro; ela lhe lançou um castiçal que bateu na barriga do conde, mas foi
punida imediatamente, pois uma das velas a atingiu no olho605.” Mas tudo já
terminara: Rétaux, graças a Cagliostro, havia confessado; madame de la Motte,
em uma pavorosa crise de nervos, deixara também escaparem confissões. O
cardeal só teve de recolher os frutos da devoção e da sabedoria de Caglios
tro: ele o reconheceu.
De resto, desde o dia de sua prisão, o cardeal não cessara de testemu
nhar um real interesse, um respeito marcado por Cagliostro; seria realmen
te remorso de consciência ou será que, mais provavelmente, nesses dias de
provação, tinha esperança somente nele? Em todo caso, sua correspondên
cia secreta o mostra preocupado com o estado do conde, desejoso que seus
advogados e que todas as pessoas lhe testemunhassem todo o respeito pos
sível, prestassem-lhe todos os serviços que estivessem a seu alcance606.
A 30 de maio, após o encerramento da instrução, o Parlamento se
reuniu: os acusados foram interrogados publicamente607.0 cardeal foi dig
no, mas estava abatido. Cagliostro apareceu firme, quase dominador.
603. “Desde a prisão de Cagliostro, todos os seus amigos estão desolados, desesperados.
Mais nada existe para eles; tiraram-lhes o que tinham de mais caro no mundo. ” Ma
Correspondance, 5 de dezembro de 1785, n? 101.
604. “Madame de la Motte só soube lhe responder tratando-o de impostor vendido. ”
Mémoires de Georgel. T. II, p. 186. Suas violências contra os outros acusados e contra os
guardas crescia à medida que a instrução seguia seu curso. Gazette de Leyde, 14 de abril
de 1786. Journal de Hardy. Bibl. Nac. Mss. Francês 6685, p. 316.
605. Carta do cardeal a Target. Dossier Target. Biblioteca da cidade de Paris. Manuscrito
na Reserva.
606. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 102 e 275, segundo a correspondência
Target. Quando o cardeal ficou gravemente doente na Bastilha, recorreu, para se cura, e
antes de ver qualquer médico, aos pós de Cagliostro que ele sempre trazia consigo. Foi
apenas por insistência dos seus que ele mandou vir em seguida o Dr. Portail. Gazette de
Leyde, 13 de dezembro de 1785, n? 99.
607.Cagliostro foi transferido para a sala do zelador, em uma cela do pátio dos homens,
e o cardeal, ao gabinete do Escrivão-chefe. Mémoires de Bachaumont, 2 vol. In-81. Paris,
1808, t. II, p. 268.
“Quem é você?” perguntou o juiz.
“Um nobre viajante”, respondeu ele com uma voz forte, brilhante,
que contrasta fortemente com os balbucios, os choramingos dos acusados
precedentes608.
Depois, sem esperar nova questão, a cabeça alta, ele começou a falar
a plena voz, de plena alma, de sua vida, do mistério que o rodeia, de seus
poderes, de suas provações, de Deus, de quem ele é soldado e que o prote
ge, de tudo o que o Espírito soprava nele609, improvisando, sem ter prepa
rado suas respostas, meio sorridente, meio terrível, divertido e impressio
nante. Sua alegria, seu gesto forte, sua autoridade de palavra, embalaram o
público. Quando terminou, o presidente só faltou felicitá-lo; a sala aplau
diu de pé. Por volta das seis horas, os acusados foram levados de volta à
Bastilha; foram forçados a tirar os carros pelo pátio Lamoignon. Os nomes
do cardeal e de Cagliostro encheram os ares com aclamações entusiastas e
votos por sua liberdade. Cagliostro respondeu a todos, saudou, agradeceu,
ergueu os braços, jogou o chapéu, “que mil mãos disputaram”, escreve o
Sr. Funck-Brentano610. Talvez seja verdade: Cagliostro sabia falar à multi
dão como a cada indivíduo, em sua própria linguagem.
Em 31 de maio de 1786, às 9 horas da noite, o julgamento foi dado,
proclamando o cardeal e Cagliostro inocentes, dando-lhes a quitação hon
rosa, ordenando sua libertação com a impressão e afixação do decreto e a
destruição dos panfletos escritos contra eles. O atroz pesadelo do cardeal
terminara: ele saía do inferno com seu libertador; o rei não deveria tentar
fazê-lo esquecer esses dolorosos momentos? E, sobretudo, ele não deveria
reservar a Cagliostro compensações pelas perseguições sofridas, testemu
nhos de sua bondade para reparar os abusos de poder, exercidos em seu
nome referente a um assunto inocente, a um homem cuja vida se passava
em praticar a beneficência? Será que outra coisa deveria permanecer no
público além de piedade pelo cardeal, admiração por Cagliostro?
Veremos, infelizmente, que não aconteceu nada disso: o rei nem quis
mais pensar nisso; a rainha se lembrou de Cagliostro, o salvador do car
deal, mas foi para atingi-lo mais uma vez; o público se entregou a novos
divertimentos. E, rapidamente, esquecendo sua inocência absoluta, sua
coragem na adversidade, sua nobre conduta, apesar das provas estabelecidas,
as confissões, o julgamento dado, logo que os historiadores têm de falar de
Cagliostro eles recomeçarão a deixar pairar em torno de seu nome uma
atmosfera de suspeita611; suas insinuações agradáveis, seus termos vagos,
lançado uma luz sinistra sobre sua precedente carreira, mesmo que ela houvesse sido
irrepreensível. ” Biographies alsaciennes. Oeuvres, t. V, p. 61.
612. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 97. Mas ele testemunhara ao cardeal que o
estimava especialmente, “ele jamais lhe dissera que o faria ter sucesso em tudo o que dese
jasse.” (Declaração de Cagliostro em seu interrogatório. Cf. Campardon. Op. cit., p. 349.
Pelo contrário, ele sempre aconselhou ao cardeal que “ficasse em suas terras, longe da
corte, que vivesse isolado em Saverna.” Ibid., p. 18). Cagliostro podia dizer, pois era a
verdade, que seus poderes eram ilimitados, mas ele não podia empregá-los para fazer uns
se saírem bem à custa de outros.
Rockhalt, casa de campo de Cagliostro, em Bienne.
613. Quando chegou o momento terrível em que toda a intriga foi descoberta, o cardeal,
enlouquecido, correu à casa de Cagliostro, que foi o único a encontrar palavras para
confortar e fortalecer seu coração. Ele saiu dessa conversa transformado, diz o abade
Georgel, “e talvez nunca mais o cardeal tenha tido mais dignidade e coragem do que nos
momentos que se seguiram. ’’ Mémoires de Georgel. T. I, p. 99.
614. Cf. Lettre au peuple anglais, p. 74.
615. A Lettre au peuple français não contém o anúncio profético da supressão das cartas
de sinete, da queda da Bastilha, da convocação dos Estados-Gerais?
616. Goethe. Mirabeau, o conde de Lamarck, etc. — A Gazette de Leyde, em 1786 (n° 2),
faz notar que o processo ergue a questão da lesa-majestade e por isso o público se apai
xona, e as brochuras se multiplicam.
No 1? de junho, às llh30m da noite, a fim de cansar, se possível, a
paciência do público que esperava Cagliostro para lhe fazer uma ovação617,
De Launay abriu as portas da Bastilha a seu prisioneiro. Apesar do avança
do da hora, a manifestação foi grandiosa: 8 a 10 mil pessoas rodeavam sua
casa618; gritos de alegria, batidas de tambores619, iluminações ofuscavam;
era quase uma revolução em germe. “Haviam forçado minha porta. O pátio,
as escadas, os apartamentos, tudo estava cheio: fui levado aos braços de
minha mulher; meu coração não me pôde bastar a todos os sentimentos que
lutavam lá dentro. Meus joelhos falharam, caí sobre o assoalho sem cons
ciência. Minha mulher deu um grito agudo e desmaiou.” Alarme, corre
ría... eles voltaram a si, desmancharam-se em lágrimas e a alegria de todos
festejou “esse primeiro instante de felicidade após dez meses de suplí
cio620.” Na manhã seguinte, a multidão ainda estava diante de sua porta e
da casa do cardeal, que apareceu no terraço e a saudou621. Essas manifesta
ções foram muito comentadas na corte622.
A alegria de Cagliostro seria de curta duração: como recompensa por
seus serviços, como compensação pelos sofrimentos imerecidos, oferece
ram-lhe o exílio! O ódio de Breteuil623 perseguia sua vítima. O orgulho
ferido da rainha se vingava e era novamente por um ato arbitrário. Doze
horas após sua libertação, o mesmo Desbrugnières, em nome do rei, levou-
lhe uma ordem de partida; ele deveria deixar Paris dentro de 24 horas e o
reino em três semanas, com proibição de retornar sob qualquer pretexto.
Ele obedeceu sem reclamar624. Em 3 de junho de manhã, deixando em
Paris sua mulher a recolher os destroços de seus bens que escaparam à
pilhagem, ele partiu para Passy, acompanhado por amigos devotados, e
passou nove dias lá625.
617. Uma ordem de Breteuil a De Launay (Bibl. do Ars. Mss 12457, j? 99) fixa essa hora
tardia de saída e define a vontade do rei de que Cagliostro e o cardeal ficassem em casa
e só recebessem seus parentes e homens de negócios.
618. Hardy. Journal, na data de 1? de junho de 1786; e Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 261.
619. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 16.
620. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 16. Vie de Joseph Balsamo,
p. 63-64.
621. Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 271. A casa do cardeal, contígua à de Soubise (Arq.
Nac. Atuais), tinha sua entrada na rue Vieille-du-Temple; foi durante muito tempo ocupa
da pela Imprimerie Nationale.
622. Os jornais, em particular a Gazette de Leyde, faziam coro com o público e ofereciam
ruidosamente suas felicitações aos acusados libertados.
623. Manuscritos da Bastilha. Bibl. Do Arsenal. N? 12457, f? 69.
624.. “Impaciente em provar minha obediência às vontades de um soberano que me per
mitiu, seis anos inteiros, fazer o bem em seu reino, apressei-me em obedecer... etc. ” Rela
tório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 18.
625. De lá ele se transportou, em 12 de junho, a Saint-Denis, no Auberge de 1’Epée, onde
sua mulher veio encontrá-lo (Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 274). A Gazette de Leyde
(n? XLIX), de 20 de junho de 1786, diz que ele foi a Essone e que foi lá que a condessa o
O furor dos homens de Versalhes, aumentados pelos testemunhos de
simpatia popular que lhe haviam sido dados, foi tal que seus amigos teme
ram por sua vida; ele estava em risco; vivia em seu quarto626. Seus amigos,
dois em dois, a espada em punho, guardavam a porta dia e noite, em turnos.
Um grande número de discípulos, homens e mulheres, veio se juntar a seu
mestre. Thilorier, seu advogado devotado, entrou com uma ação por perdas e
danos; com efeito, toda a sua fortuna não havia sido devastada por culpa
dessa aventura em que ele injustamente fora metido? No momento de sua
prisão súbita, uma horda de saqueadores havia passado a mão em seus obje
tos mais preciosos. Chesnon, fuçando em seus papéis, apanhara títulos, valo
res, documentos, sem inventário627; Desbrugnières pusera sub-repticiamente
no bolso elixires e bálsamos raros628; após sua prisão, a casa estando sem
guardiões, aberta a todos os escroques, policiais e outros; a fim de impedi-lo
de tomar a menor precaução para a garantia de seus interesses, o falso jura
mento feito, duas vezes (21 e 26 de agosto) de que sua mulher ficara em casa;
a comédia das cartas e dos pacotes; na volta da condessa, o abuso de confian
ça com o qual lhe fizeram dar quitação de todos os seus objetos preciosos,
sendo que nunca os devolveram; quando de sua própria liberação, a mesma
patifaria tentada, contra a qual ele teve de se defender629, os maus-tratos
sofridos, as falsidades suportadas durante sua detenção; todos esses abu
sos de poder, todas essas exações, contrárias ao espírito da lei, senão ao
próprio texto, não seria até mais que o necessário para justificar o protesto de
Cagliostro, para lhe fazer reclamar a punição dos culpados e, no futuro, a
vigilância necessária para que tais fatos nunca mais pudessem se reproduzir?
Em um relatório apresentado por Thilorier, Cagliostro pede a restitui
ção de 100 mil libras, soma a que ele estimava, aproximadamente, seus bens
e valores roubados630, e 50 mil libras por perdas e danos por documentos e
encontrou: é sem dúvida um engano, pois os outros jornais, e o próprio Cagliostro, desig
nam Passy e Saint-Denis como únicas etapas dessa curta viagem. Cf. Relatório de Ca
gliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 18.
626. “Ele não queria, saindo e amotinando a multidão, provocar novamente a cólera do
governo. ” Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 18.
627. “Se eu tivesse podido prever que seria preso, escreve Cagliostro, eu teria julgado útil
essa precaução (de mandar fazer um inventário de seus bens por meio de um bedel) inútil e
injuriosa para a nação que me oferecia a hospitalidade. ” Relatório de Cagliostro contra
Chesnon, 1786, in-41, p. 23.
628. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 23
629. “Um pobre prisioneiro demasiado feliz, demasiado contente em se retirar não espe
ra que lhe peçam para assinar tudo o que quiserem, seja a conta justa ou não... e os
'dogues' da Bastilha conseguem bem barato o direito de se apropriar dos despojas. ”
Remarques historiques sur la Bastille. Londres, 1789, in-8?, p. 78.
630. “Minha fortuna é o patrimônio dos infelizes, e quando faço meus esforços para
conservá-la, são seus direitos que defendo. ” Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786,
in-42, p. 4. — O rico, ensinava ele, é o banqueiro do pobre: “Essas riquezas passageiras
(que o saber e os poderes adquiridos podem um dia lhe trazer) só lhe servirão para o
papéis inestimáveis631, desaparecidos durante as perquirições; e, empenhan
do-se em provar que não se tratava de uma especulação, mas de uma ques
tão de princípio, ele deixava claro que as 50 mil libras seriam “aplicadas
para melhorar a alimentação dos pobres prisioneiros do Châtelet632633.”
Os procedimentos do comissário Chesnon e o comportamento do go
vernador da Bastilha foram evidentemente atos semelhantes aos que sofria
a maioria das pessoas presas. Chesnon talvez não fosse obrigado62,3 a for
necer um inventário nem de apor os selos judiciais, uma vez que, sendo a
ordem de prisão com o sinete real acima da lei, nenhuma legislação era
aplicável àquele caso. Mas é justamente contra isso que se erguia Caglios
tro; é a legalidade, a justiça para todos, o respeito pela pessoa humana e a
supressão de tudo o que está “acima da lei” que ele reclamava. Ele se fazia
advogado dos desafortunados, defensor dos fracos, papel que manteve em
todas as circunstâncias de sua vida. Seu relatório contra Chesnon tem a
importância de uma obra social; não é uma simples reivindicação pessoal,
mas um discurso de defesa dos direitos do homem634. Ele respeitava a
autoridade, não se revoltava contra nenhuma lei, já o vimos; suportou
todos os rigores da lei sem se queixar ou protestar; mas, onde a lei é falha,
onde o bel-prazer reina, a iniqüidade se insinua. É contra os abusos da
polícia, contra a desordem e os poderes discricionários de um de Launay,
carcereiro-chefe da Bastilha, contra os procedimentos ilegais e desleais de
que se usava contra prisioneiros635 que ele eleva a voz. Acima de tudo, há a
justiça em espírito. Esta, Cagliostro a conhecia e não podia permitir que
alívio de seus semelhantes; pois você só é depositário dela e deve dividi-la com os indi
gentes. ” Ritual da Maç.’. Egípcia, p. 134.
631. “Tudo o que posso dizer é que esses papéis são para mim de valor inestimável.
Razões particulares me impedem, neste momento, de falar positivamente acerca da natu
reza desses papéis, mas sua importância é tal que eu daria tudo o que possuo no mundo
para reavê-los e que... apenas a Providência pode me consolar por tê-los perdido...’’
Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 34.
632. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 34. Durante sua estada na
Bastilha, com seu próprio dinheiro, Cagliostro prestou com frequência socorro aos pri
sioneiros, seus companheiros de miséria.
633. Foi o que ele disse por sua defesa.
634. “A idéia sagrada do direito, esquecida ou ignorada durante quinze séculos, afirma-
se na face do mundo (em 1789) e apõe um abismo intransponível entre a noite de ontem e
a aurora de hoje... A Assembléia destruiu o que se chamava de abusos de autoridade real;
ela aboliu as cartas de sinete que haviam feito exilar ou aprisionar sem julgamento 150
mil pessoas sob o último reino, e 14 mil desde então.” L. Ménard. Lettres d’un more
Paris, in-16, p. 74-75.
635. A perda da liberdade, a incerteza de seu destino, a visão contínua de objetos medo
nhos e os maus-tratos múltiplos de seres ferozes, que como em um jogo bárbaro se diver
tem em agravar os sofrimentos dos infelizes..., são os menores dos males sofridos na
Bastilha. O desprezo por todas as leis humanas está instalado ali. À detenção mais severa,
fosse lesada impunemente. Além disso, a partir dessa época, em seu relató
rio636, ele deixava entrever o que escrevería com todas as letras pouco tem
po após637: que viria um tempo em que veria toda a supressão das ordens de
prisão com o sinete do rei e o fim das torturas escondidas por trás dos
muros da Bastilha.
Esse relatório foi levado em consideração638; era impossível que
fosse de outra forma; mas foi tudo. Apesar de uma segunda Petição em
execução de prisão639, o caso não teve prosseguimento; os culpados guar
daram seu lugar e o dinheiro espoliado. De Launay e Chesnon se defende
ram como puderam em relatórios pouco claros640 e que não respondem às
641. O rei evocou o caso em seu conselho e o classificou em um Pedido não assinado
(peça O' 589 C dos Arquivos Nacionais) mas que emana de de Launay, efoi o fim desse
processo. Sarrasin, após as reclamações de Cagliostro, tentou em vão incomodar mais
tarde o Sr. d’Epremesnil para lhe perguntar que julgamento ele havia dado; não obteve
resposta, e com razão.
642. Cf. Nota no alto do Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4't,ft I, v?
643. O Sr. Duval d’Epremesnil, conselheiro do Parlamento, ocupara-se de magnetismo;
ele se aproximou de Cagliostro, estudou-o, sem dúvida não adivinhou sua grandeza, mas
reconheceu que ele era um homem honesto e uma vítima; empregou todos os seus esforços
em protegê-lo contra a ignorância e a maldade daqueles que o perseguiam. Isso lhe valeu
a honra de ser vítima dos panfletários pagos por madame de la Motte e de Launay. Ramond
de Carbonnières “se multiplicou durante o processo para desvendar as maquinações de
madame de la Motte. Fez até, na Inglaterra, um inquérito pessoal e conseguiu descobrir
os cúmplices de madame de la Motte, os receptadores de diamantes ”. Mémoires de Ceorgel.
T. II, p. 176.
644. Vieram até de Lyon; “Milhares de pessoas foram a Boulogne ”, diz um jornal da época.
palavras: “Franceses, nação verdadeiramente generosa, verdadeiramente
hospitaleira, não esquecerei jamais nem o interesse comovente que vocês
tiveram por meu destino, nem as doces lágrimas que seus transportes me
fizeram derramar... Um só dia de glória e de felicidade me descarregou
de meus grandes sofrimentos... Habitantes dessa feliz região, povo amá
vel e sensível, recebam os adeuses de um desafortunado, digno talvez de
sua estima e de suas saudades. Ele partiu, acostumado a se submeter sem
reclamar às vontades dos reis. Ele partiu, mas seu coração ficou entre vo
cês. Em qualquer região que ele habite, creiam que ele se mostrará cons
tantemente amigo do nome francês645.”
Essas demonstrações comoventes não foram exageradas por Caglios
tro pela ênfase literária: pelo contrário o quadro permanece, sem dúvida
abaixo da realidade; a veneração que todos mostravam por seu mestre é
inacreditável.
Cagliostro tinha também em outros lugares discípulos fervorosos;
aqueles que, afastados, não podiam combater a seu lado, ansiavam por lhe
ser úteis e faziam o melhor que podiam.
Barbier de Tinan, de Estrasburgo, enviara à Correspondance secrete
de Neuwied uma carta de retificação em que testemunhava grandemente
sua afeição, sua devoção por Cagliostro646.
O cavaleiro de Langlois escrevia a Thilorier na mesma época: “Como
eu seria feliz se pudesse dar-lhe provas dessa ligação terna e respeitosa
de que me sinto penetrado, dessa afeição da alma que não sei demonstrar
e que sinto tão vivamente. Minha existência física e moral lhe pertence;
que ele disponha dela como o mais legítimo dos apanágios... minha mu
lher, meus irmãos, meus parentes, me. du Picquet e sua família, que também
têm grandes obrigações para com ele, querem... que o Sr. conde de Cagliostro
fique convencido de que somos afetados além da expressão por tudo o que
os acontecimentos imprevistos o fizeram passar e que nossa ambição e nossa
glória estariam satisfeitas se pudéssemos encontrar ocasiões para servi-lo de
forma útil; é a homenagem simples e ingênua de nossos corações.
“O Chr. de Langlois, capitão de Dragões no Regimennto de Montmo
rency647.”
Sarrasin confiava os sentimentos de que seu coração estava cheio em
relação a seu mestre àquele que ele mais amava e respeitava depois dele,
Lavater. “Ajude-me a agradecer a Deus e seu servidor tão mal-interpreta
do, Cagliostro, por todo o bem que recebeu. Parece-me que esses dezessete
meses tão agitados não passaram de um belo e esplêndido sonho que, se
Deus quiser, deve me tornar melhor pelo resto de minha vida; conto levar
dele alguma coisa ao despertar do outro lado. Cagliostro jamais me pareceu
“Meu Mestre eterno, meu todo, parecia que o mar se opunha à separa
ção que fui forçado a suportar; estivemos dezoito horas no mar e chegamos
no dia 11 de manhã. Meu filho sofreu muito. Mas, Mestre, tive a felicidade
de vê-lo esta noite. O Eterno realizou a bênção que recebi ontem: Ah! Meu
Mestre, após Deus, o senhor faz minha felicidade. Os jovens... e... se reco
mendam sempre à sua bondade; são jovens honestos e, por meio de seu
poder, eles serão um dia dignos de ser seus filhos.
Ah! Mestre, quanto desejo estar no mês de setembro, quanto estarei
feliz ao poder vê-lo, ouvi-lo e certificar-lhe de minha felicidade e de meu
respeito. Nós partimos amanhã; que prazer terão nossos irmãos!...
Será possível que eu não mais encontre em Paris aquele que fazia
minha felicidade! Mas eu me resigno e me humilho diante de Deus e diante
do senhor.
Escrevi ao Sr... como o senhor me ordenou. Ah! Meu Mestre, como é
duro para mim não mais poder assegurá-lo, senão pelas cartas, de todos os
meus sentimentos!
O mês de setembro virá; momento feliz em que poderei, a seus pés e
aos da Mestra, assegurar-lhes a submissão, o respeito e a obediência que
animarão sempre aquele que ousa se dizer, de seu Mestre e de seu tudo, o
mais humilde e o mais indigno dos filhos...
Ousaria eu lhe rogar, ó Mestre, atirar-me aos pés da Mestra?
648. Cartas in Arquivos Sarrasin, de Bale. Segundo Langmesser. Jacob Sarrasin, p. 41-50.
A última carta é datada de 1° de março de 1786.
649. Elas chegaram a nós graças ao medo que produziram no Tribunal da Inquisição. Um
homem capaz de provocar sentimentos tão intensos, de suscitar tais devoções, era temível, podia
fazer qualquer coisa. O historiador de Roma publicou essas cartas como uma prova do fanatis
mo perigoso que Cagliostro trazia em tomo de si: isso, ao menos, permitiu-nos conhecê-lo.
pés, dar-lhe meu coração e rogar-lhe que me ajude a elevar meu espírito para
o Eterno. Não lhe falarei, ó meu Mestre, da dor que senti no momento em
que as vagas do Oceano afastaram da França o melhor dos Mestres e o mais
poderoso dos mortais: o senhor a conhece melhor que eu.
Minha alma e meu coração devem lhe estar abertos; apenas sua moral
e suas bondades têm o direito de preenchê-los para sempre. Digne-se, ó
meu soberano mestre, lembrar-se de mim, lembrar-se de que permaneço
isolado em meio a meus amigos, pois o perdi, e o único desejo de meu cora
ção é me reunir ao mestre tão bom, todo-poderoso, o único que pode comu
nicar a meu coração essa força, essa persuasão e essa energia que me tomarão
capazes de executar sua vontade.
Digne-se somente, ó meu Mestre, a não me abandonar, a conceder-
me sua bênção e me envolver em seu espírito; então sinto que serei tudo o
que o senhor quiser que eu seja.
Minha pluma se recusa a todas as impulsões de minha alma; mas meu
coração está repleto dos mais respeitosos sentimentos. Ordene, pois, da
minha sorte; não me deixe demasiado tempo enlanguescer longe do se
nhor. A felicidade de minha vida é a que lhe peço; o senhor fez nascer em
mim essa necessidade, ó meu Mestre, e apenas o senhor pode satisfazê-la.
Com todos os sentimentos de um coração resignado e submisso, eu
me prosterno a seus pés e aos de nossa Mestra. Eu sou, com o mais profun
do respeito, Senhor e Mestre..., etc.
650. Vie de Joseph Balsamo, p. 194-195. Ver também a carta de um maçom lionês, na p.
142 deste livro.
Capítulo VIII
656. A carta está datada de 20 de junho; deve ter passado de mãos em mãos em
estado de manuscrito e só foi impressa mais tarde. Encontramo-la quase inteira nas
Mémoires de Bachaumont, datada de 10 de agosto de 1786, t. II, p. 279.
657. Bibl. do Arsenal. Mss. 12457. F 21. 3 páginas e Vzpeq. In-fólio. — Carta conhecida
pelo nome de Lettre au peuple français (Carta ao povo francês).
voz, como eu fiz, para fazê-lo conhecer, ele, seus princípios, seus agen
tes, suas criaturas, aos tribunais franceses, à nação, ao rei. a toda a
Europa. Admito que meu comportamento deve tê-lo espantado; mas,
enfim, tomei o tom que me cabia tomar. Estou bem persuadido de que
esse homem, na Bastilha, não tomaria o mesmo. De resto, meu amigo,
ajude-me a sanar uma dúvida. O rei me expulsou de seu reino, mas não
me ouviu. E assim que se expedem na França todos esses documentos
com o sinete real? Se assim é, eu lamento pelos seus concidadãos, so
bretudo pelo tempo em que o barão de Breteuil possuir esse perigoso
departamento. Como, meu amigo! Suas pessoas, seus bens estão à mercê
apenas desse homem? Ele pode impunemente enganar o rei? Ele pode,
a partir de depoimentos caluniosos, e jamais contraditos, surpreender,
expedir e fazer executar, por intermédio de homens que se assemelham
a ele, ou se oferecer ao medonho prazer de executar ele próprio ordens
rigorosas, que mergulham o inocente em uma cela e entregam sua casa
à pilhagem? Ouso dizer que esse abuso lamentável merece toda a aten
ção do rei. Estarei enganado? E o bom-senso dos franceses que tanto
amo é diferente daquele de outros homens? Esqueçamos minha pró
pria causa, falemos de modo geral. Quando o rei assina uma carta de
exílio ou de prisão, ele julga o infeliz sobre o qual recairá seu rigor
onipotente. Mas baseado em que ele julgou? No relato de seu ministro;
e em que se baseou seu ministro? Em queixas desconhecidas, informa
ções tenebrosas, que jamais são comunicadas; às vezes mesmo em sim
ples rumores, em barulhos caluniosos, semeados pelo ódio e recolhidos
pela inveja.
A vítima é atingida sem saber de onde partiu o golpe: feliz, se o mi
nistro que a imola não é seu inimigo! Eu pergunto, são esses os ca
racteres de um julgamento? E, se suas cartas de sinete real não são ao
menos julgamentos privados, o que elas são então? Creio que essas
reflexões, apresentadas ao rei, comovê-lo-iam.
O que aconteceria se ele entrasse no detalhe dos males que seu rigor
ocasiona? Todas as prisões do Estado se parecem à Bastilha? Vccê
não tem idéia dos horrores de lá: a cínica impudência, a odiosa men
tira, a falsa piedade, a ironia amarga, a crueldade a frio, a injustiça e
a morte têm ali seu império; um silêncio bárbaro é o menor dos cri
mes que ali se cometem. Eu estava, havia seis meses, a quinze pés de
minha mulher e o ignorava; outros estão sepultados ali há trinta anos,
dados como mortos, infelizes por não o estar, sem ter, como os con
denados de Milton, luz em seu abismo, senão a que lhes é necessária
para perceber a impenetrável espessura das trevas que os envolvem;
eles estariam sozinhos no Universo se o Eterno não existisse, esse
Deus bom e realmente Todo-Poderoso, que lhes fará justiça, um dia,
na falta dos homens. Sim, meu amigo, eu o disse cativo e livre o
repito, não há crime que não seja expiado por seis meses de Bastilha.
Pretende-se que ali não faltam nem questionários, nem carrascos; não
me é difícil acreditar nisso. Alguém me perguntou se eu voltaria à
França, no caso em que as proibições que me afastaram fossem
erguidas. Certamente, respondí eu, desde que a Bastilha tenha-se tor
nado um passeio público. Queira-o Deus! Vocês têm todo o necessá
rio para serem felizes, franceses: solo fecundo, clima ameno, bom
coração, alegria encantadora, gênio e graças próprios a tudo, sem igual
na arte de agradar, sem mestre nas outras; não lhes falta, meus bons
amigos, senão um pequeno ponto, que é ter certeza de se deitarem em
suas camas quando são irrepreensíveis. Mas a honra! Mas as famí
lias! As ordens com sinete real são um mal necessário... Como vocês
são simples! Embalam-nos com contos. Pessoas instruídas me asse
guraram de que a reclamação de uma família era com freqüência me
nos eficaz para obter uma ordem que o ódio de um encarregado ou o
crédito de uma mulher infiel. A honra das famílias! Como! Vocês
acham que uma família inteira é desonrada pelo suplício de um de
seus membros! Que piedade! Meus novos hospedeiros pensam um
pouco diferente; mudem de opinião, enfim, e mereçam a liberdade
pela razão.
E digno de seus Parlamentos trabalhar nessa bem-sucedida Revolu
ção. Ela só é difícil para as almas fracas. Que ela seja bem preparada,
eis todo o segredo: que eles não sejam precipitados; eles têm consigo
o interesse, sem dúvida, dos povos, do rei, de sua casa; que tenham
também o Tempo, o Tempo, primeiro-ministro da verdade; o Tempo,
através do qual se estendem e se firmam as raízes do bem, assim
como as do mal; a coragem, a paciência, a força do leão, a prudência
do elefante, a simplicidade da colomba e essa revolução, se necessá
ria, será pacífica, condição sem a qual não se deve pensar nela. As
sim, vocês deverão a seus magistrados a suma felicidade não gozada
por qualquer povo conhecido, a de recuperar sua liberdade sem des
ferir golpe, obtendo-a da mão de seus reis.
Sim, meu amigo, eu o anuncio, reinará sobre vocês um príncipe que
terá sua glória na abolição dos decretos reais acima da lei, na convo
cação de seus Estados-Gerais e, sobretudo, no restabelecimento da
verdadeira religião. Ele sentirá, esse príncipe amado pelo céu, que o
abuso de poder é destrutivo, a longo prazo, do próprio poder: ele não
se contentará em ser o primeiro de seus ministros, ele vai querer tor
nar-se o primeiro dos franceses. Bem-aventurado o rei que trouxer
esse édito memorável! Bem-aventurado o chanceler que o assinar!
Bem-aventurado o Parlamento que o verificar! O que digo, meu ami
go, o tempo talvez tenha chegado: é certo, ao menos, que seu sobera
no é próprio a essa grande obra. Eu sei que ele trabalharia nela, se
escutasse apenas seu coração: seu rigor, no que me diz respeito, não
me cega sobre suas virtudes.
Adeus, meu amigo; o que dizem do Relatório? A última leitura que
Thilorier me fez dele em Saint-Denis me causou bastante prazer; ele
soube dos detalhes de Boulogne a tempo de escrever um artigo acer
ca disso? Esse relatório é público? Deve sê-lo. Boa-noite! Fale de nós
a todos os nossos amigos; diga-lhes que estaremos presentes em toda
parte; pergunte a Epremesnil se ele me esqueceu, afinal, não tenho
nenhuma notícia dele.
Adeus, adeus, meu bom amigo, meus bons e verdadeiros amigos: é a
vocês que me dirijo, pensem em nós; que esta carta lhes seja comum;
nós os amamos a todos de todo nosso coração.
Essa carta, profetizando a convocação dos Estados-Gerais, a supres
são das cartas de sinete real e a demolição da Bastilha, denunciando fran
camente, e de maneira mordaz, os abusos do todo-poderoso Breteuil, levou
a cólera da rainha e o ódio do barão ao cúmulo. Cagliostro se tomava um
perigo público: todos os adversários se agruparam para agir; reuniram
um conselho.
Em Londres, Cagliostro parecia invulnerável; não haviam podido fazê-
lo voltar; pensaram em raptá-lo65S, mas isso teria causado muito escândalo
e sobretudo Cagliostro tomou suas precauções. Acharam algo melhor: lan
çaram sobre ele o “bravo literato ao qual se recorria nos casos embaraçosos
e que se prestava a todas as necessidades, desde que não se fosse mesqui
nho com os preços658659.” Ou seja, Morande. Um parente de de Launay, o Sr.
de Saint-Hilaire, capitão de Dragões, foi a Londres, com o Sr. de J..., anti
go mosqueteiro, tratar com o jornalista660. Morande teve um primeiro gesto
que pareceu belo: ele recusou; o tempo de ir ver Cagliostro, de se assegu
rar, em algumas palavras definitivas, que Cagliostro não lhe daria mais, não
lhe daria mesmo nada661, e ele voltou para junto de seus clientes.
658. “Mal essa carta foi lançada, percebí no senhor Swinton um redobramento de assi-
duidades e de carícias. Ele queria absolutamente me mostrar os arredores de Londres.
'Um passeio de barco pelo Tâmisa era’, dizia ele, 'um prazer delicioso do qual eu não
podia fazer idéia. ’ Sou naturalmente sedentário e pensador. Esse furor do senhor Swinton
em querer absolutamente que eu fosse passear na água... fez me conceber algumas sus
peitas. Tomei informações um pouco tardias, é verdade, a respeito de meu guia. Fiquei
sempre em guarda. ” Lettre au peuple anglais, 1787, in-4°, p. 34. A idéia não é nova; já
haviam pensado nisso a respeito de Morande em 1773. Robiquet. Théveneau de Morande.
Paris, Quantin, 1887, in-85, p. 39.
659. Robiquet. Op. cit., p. 198.
660. E o próprio Morande quem o reconhece e escreve a respeito em seu diário, na data
de 27 de fevereiro de 1787.
661. A entrevista se passou em casa de Swinton: “O senhor Morande quisera sondar o
terreno: em consequência, ele viera à casa do senhor Swinton um dia em que eu estava lá.
Sua figura não me transmitiu boas impressões; eu achei suas questões deslocadas, seu
tom indecente e suas ameaças ridículas. Eu lhe dissera com franqueza e acrescentara que
me perturbava muito pouco com o que quer que ele pudesse escrever a meu respeito. ”
Lettre au peuple anglais, p. 32.
Quanto a seu segundo gesto, menos belo, mas mais prático, foi de
aceitar as ofertas feitas662: ele se tornou o porta-voz dos inimigos de Ca
gliostro, o organizador dessa caça ao homem663 que acabaria nas celas de
Roma. Morande fora bem escolhido para a tarefa664. Charles Théveneau,
que nunca foi nem Morande, nem de la Morande, nem cavaleiro, filho de
um notário de Amay-le-Duc que ele fez morrer de tristeza, fez suas primei
ras armas nas casas de tolerância de Paris, explorando homens e mulheres,
“jogador desonesto, detestável sujeito. Escroque perigoso, alcoviteiro dos
ricos senhores que as frequentavam, muito suspeito de servir de paciente a
esses vilões665.” Preso por roubo e ameaças de assassinato, aprisionado em
Fort-l’Evêque em 1768, ele se apressou, desde sua libertação, em se refu
giar na Inglaterra; continuou ali, com sucesso, seu comércio de chantagem,
ameaçando todos aqueles que podiam pagar, vendendo sua pluma ao que
oferecesse mais. Sua audácia não se interrompeu diante do rei: seus ata
ques contra Luís XV e Du Barry foram terríveis. Após a publicação do
Gazetier cuirassé666, puseram sua cabeça a prêmio. De Sartines e seus
policiais se declararam impotentes; tiveram de transigir, tratar com o au
tor. Para comprar seu silêncio pelo melhor preço possível, enviaram-lhe
Beaumarchais; Morande se divertiu com isso667. Sua reputação estava
estabelecida: desprezavam-no a tal ponto que seu nome se tornou uma
668. “É preciso tratar seu nome como a justiça trataria suas cinzas ", escreve Linguet, em
seus Annales. — “Beaumarchais se tornou abominável e odioso aos olhos da srta. d'Eon
porque ele teve a baixeza de tomar como confidente, de se dar como substituto junto a ela,
um homem mais vil, mais corrompido, o autor do Gazetier cuirassé, para tudo dizer em uma
palavra: Morande. ” Observateur Anglais, t. IX, p. 14. — Mirabeau o julgava da mesma
maneira (Cf. Robiquet, p. 263), e Voltaire dizia dele: “Esse foragido de Bicêtre abusa de
mais do desprezo que temos por ele”. Questions sur 1’Encyclopédie, ed. 7772, t. IX, p.
261.
669. Robiquet. Op. cit., p. 88.
670. Robiquet. Op. cit., p. 61.
671. Em março de 1774. (Robiquet. Op. cit.,p. 90) O “Gazeteiro couraçado foi metamor-
foseado em mosca”, como disse um panfleto daqiuela época.
672. Goezman (o barão de Thume), Robert de Paradès, Bouchardat (Belson), mesmo
Meaupou, antigo membro do Parlamento, que cumpriam em Londres a função de poli
ciais patenteados, eram interessados no Courrier de 1’Europe (Robiquet. Op. cit., p. 63).
Uma prova irrefutável de que o Courrier fora comprado pela polícia é que era o único dos
impressos vindos da Inglaterra que não eram submetidos a censura. De resto, não era
segredo para ninguém: o jornal servia de órgão de represálias contra todos os persona
gens hostis ao ministério. O continuador das Mémoires Secrètes (na data de 3 de abril de
1785) o diz expressamente. Três anos depois, ainda era a mesma coisa: “O Courrier de
1’Europe, gazeta vendida nos Lenoir, nos Beaumarchais, nos Albert e a todos os patifes
da França... Graças à vigilância do conde de Montmorin (ministro do Exterior em 1788,
em substituição ao Sr. de Vergennes), é nesse papel público que periodicamente se esfar
rapa a reputação dos mais respeitáveis personagens”. Lettre à M. De Beaumarchais,
écrite d’Aix en 1788, in-8°
estava precisamente na situação pecuniária menos brilhante. “Sem dinhei
ro, sem crédito, coberto de dívidas, rodeado de decretos, ele não ousava
sair de casa senão no domingo. De repente, viram-no pagar suas dívidas,
comprar, à vista, trajes e móveis, mostrar com ostentação uma carteira
recheada de notas673.”
Morande abriu fogo em 23 de agosto ao publicar no Courrier um
relato, inexato e hostil a Cagliostro, de sua entrevista com os srs. Barthélemy
e d’Aragon; depois da publicação desse primeiro artigo, foi cinicamente
encontrar Cagliostro e lhe propôs um tratado.
Cagliostro não ignorava quão terrível era o adversário que se apre
sentava a ele. Quando de sua chegada a Londres, ele fora apresentado a um
certo Swinton, co-proprietário do Courrier, amigo íntimo de Morande674.
Por meio dele, Cagliostro conhecia Morande; haviam-lhe contado os re
cursos e a força desse homem “que fizera tremer o rei da França, pusera em
suas mãos os mais hábeis agentes da polícia secreta, caçoara de Beaumar
chais, cuja reputação de homem de espírito era bem estabelecida, e levara
a transigir a favorita de Luís XV, a todo-poderosa Du Barry, e o próprio
rei675676
.”
O próprio Morande lhe dissera que ele podia temer se fosse seu ini
migo — e o que era preciso para adquirir sua amizade. Cagliostro não
julgou a propósito fazer caso desses conselhos. Porém, tendo já sofrido
ataques de panfletários e desaforos de policiais, ele sabia o que deviam ser,
reunidos em um mesmo personagem como Morande, o poder da imprensa
e o da polícia! Sem dúvida agradou-lhe entrar em luta com esse poder
recém-nascido, já temível como Hércules no berço, e que deveria, um sé
culo após, sob o nome de jornalismo, crescer colossalmente sobre as ruínas
de todos os outros.
Sem a menor hesitação, Cagliostro aceitou a batalha, recusou qual
quer compromisso com o mestre cantor e enviou ao Public advertiser616
uma nota retificando os erros do Courrier del’Europe e assinalando a má-
fé do redator. Morande, enfrentado, soltou nova rajada: em 1? de setembro
saiu uma crônica de diversas colunas, recheada de todas as coisas vãs, de
todos os contos escandalosos, de todas as acusações ridículas de que se
compunham as memórias de madame. de la Motte677.
De 3 DE SETEMBRO DE 1786.
“Não conheço o bastante, senhor, as finezas da língua francesa para
lhe fazer todos os cumprimentos que merecem as excelentes brincadeiras
contidas nos números 16, 17 e 18 do Courrier de 1’Europe, mas, como
todos aqueles que me falaram delas me asseguraram que elas uniam a gra
ça à fineza e a decência de tom à elegância do estilo, julguei que o senhor
era um homem de boa companhia e, por esse motivo, concebi o mais vivo
desejo de travar conhecimento com o senhor. Eu vi, com muita satisfação,
que tudo o que se dissera a seu respeito era pura maledicência, que o senhor
Seu..., etc.”
Morande respondeu com uma carta um tanto pesada em que recusa as
provas pelo fato; ele se retranca por trás de seu caráter de homem de letras;
ele não quer culpar sua consciência pela morte de um homem. Se Cagliostro
quiser fazer a experiência em um gato ou um cão, ele aceitará; mas sua
vida é demasiado preciona para colocá-la na balança com a de um Cagliostro.
No dia seguinte, nova carta de Cagliostro que, dessa vez, coloca definitiva
mente os gozadores de seu lado:
685. Sachi foi o instrumento da desgraça de Cagliostro; sua cupidez, sua inveja persegui
ram Cagliostro a Estrasburgo, aniquilando os efeitos do reconhecimento de toda uma
cidade; Sachi foi a Bordeaux para impedir Cagliostro de gozar de seu sucesso; quando
do processo do Colar, ele foi o apoio, o fornecedor de documentos a madame de la Motte;
em Londres, Morande se serviu dele novamente; a Inquisição, em Roma, reeditou suas
calúnias. Adversário de todos os dias, renascendo sempre, roendo sem cessar o terreno
em torno de Cagliostro, ele foi o caluniador de voz baixa, o inimigo doméstico. Morande
chegou apenas no final para representar o papel de acusador público, preparando o
processo de Roma. Poder-se-ia dizer que, sem esse homem, Cagliostro, amado em
Estrasburgo, glorioso em Bordeaux e Lyon, inatacável em Paris, teria sido tão bem-suce
dido quanto foi perseguido. Mas ele apareceu sobre o caminho de Cagliostro; foi cumulado
com sua generosidade: dinheiro, ciência, empregos, receitas, ele tudo recebeu: Caglios
tro, longe de se vingar, não chegou mesmo a se proteger contra o zelo de seus amigos que
se ofereciam para livrá-lo dele?
686. Pridle adicionou à reclamação de Sachi uma reclamação pessoal.
687. Lettre au peuple anglais, p. 48.
688. “O público achava a prosa de Morande impregnada de máximas ministeriais. ”
Mémoires Secrets, 9 de outubro de 1786.
nome de Ricciarelli, Pergolezzi, Sachi, Jakton e outros, para esclarecer a
opinião pública acerca dos processos que lhe intentaram Sachi e Pridle,
Cagliostro escreveu sua Lettre au peuple anglais6*9.
Essa carta, muito documentada, muito digna, muito avassaladora
para seus inimigos e cujas principais passagens citamos à medida que
contamos esses acontecimentos, terminam com essas palavras dirigidas a
Morande:
“Nem meus amigos, nem eu aceitaremos jamais uma carta de desafio
do senhor Morande689 690, por uma razão muito simples e que o leitor aprova
rá. O senhor Morande a conhece perfeitamente e é precisamente a certeza
da recusa que lhe dá a coragem de propor.”
O conde de Cagliostro lembra aqui o comportamento indigno de
Morande em relação ao conde de Lauraguais, como ele tentou comprometê-
lo fazendo-o passar por autor de um de seus mais odiosos panfletos691;
como ele o insultou e difamou em seguida; como, esbordoado pelo conde
de Lauraguais em plena rua, citado em juízo no proclama da rainha, ele
mandou sua mulher e seus filhos suplicar ao conde, veio ele próprio se
arrastar de joelhos, teve de inserir em um jornal público692 uma retratação,
em que se reconhecia falsário e caluniador; e como, enfim, quando toda a
perseguição terminara, ele se declarara pronto a recomeçar.
“Eis o homem que nossos inimigos tomaram a seu soldo. Eis o digno
defensor que eles escolheram: e esse homem tem a audácia de chamar em
duelo meus amigos e eu! E nos dá insolentemente a escolha das armas, sem
pensar que há apenas uma de que se possa servir honestamente contra ele.
Abandono à sua própria torpeza um escritor desonroso que a França
rejeitou, que a Inglaterra desaconselha, que toda a Europa aprecia há muito
tempo; ele pode livremente continuar a me injuriar. Não o citarei diante do
Tribunal das Leis; esse infeliz tem uma mulher; é pai de seis filhos; sua
ruína inevitável, se eu o atacasse, traria a de sua numerosa família. Entrego
minha vingança às mãos Daquele que não pune nos filhos o crime do pai693.”
694. O sucesso de Morande diminuiu a partir desse dia: forçado a deixar Londres e o
Courrier em 1791, ele voltou a Paris para tentar tirar proveito da situação, muito contur
bada naquele momento, e fundou o Argus Patriotique, “destinado a defender o patriotis
mo, os costumes e a realeza”, ousava ele escrever no cabeçalho desse jornal. O Argus
mudou de cor muitas vezes, embora só tenha vivido alguns meses: Morande o abandonou
no momento do perigo, fugiu para Arnay-le-Duc, escapando à guilhotina, mas destinado
a morrer muito miserável e ignorado nessa aldeia em julho de 1805.
695. Cf. Mémoires Secrets, citadas por Robiquet. Op. cit., p. 204.
696. O Courrier de 1’Europe cita, entre os amigos e defensores de Cagliostro em Londres,
M. Cr... f... d., M. do T..., Lord G... (Gordon) M. Mi... re M. Ag... sis. (Courrier, 1787, p.
152).
697. Lettre au peuple anglais, p. 74.
698. Monist, 1903. Essa caricatura, que o autor pretende rara e preciosamente conserva
da na biblioteca do Rito Escocês, em Washington, é uma gravura muito conhecida e da
qual encontramos frequentemente exemplares à venda. Cagliostro desmente essa calúnia
em sua Lettre au peuple anglais, p. 70.
realidade espiritual. Eis um manifesto publicado, senão por ele, pois não
está assinado, ao menos em seu nome e sob sua inspiração699, no Morning
Herald, na data de 2 de novembro de 1786.
A todos os maçons verdadeiros em nome de 9, 5, 8, 14,20, 1.8, — 9,
5, 18,20, 18700.
Chegou o tempo em que deve começar a construção do novo templo
ou a nova 3, 8, 20, 17, 8701 de Jerusalém. Este aviso é um convite a
todos os verdadeiros maçons para vir a Londres, reunir-se em nome de
9, 5, 18, 20, 18702, o único em que há uma divina 19, 17, 9, 13, 9, 19,
237O3, e encontrar-se amanhã à noite, dia 3 do presente 1786 ou 5790, às
nove horas na tavema de Reilly704, Great Queen street, para formar o
plano e pousar a pedra fundamental da verdadeira 3, 8, 20, 17, 8705,
neste mundo visível que é o templo material da espiritual 9, 5, 17, 20,
18, 1, 11, 5, 12706. Um maçom é membro da nova 3, 8, 20, 17, 8707.
Ele desejava, com este apelo, reunir não uma convenção de altos Graus,
mas uma assembléia geral de todos os maçons desejosos de se instruir e,
nesse excelente terreno, semear a boa palavra, renovar os antigos Ritos,
revivificar as vontades adormecidas. Ele se chocou, na Inglaterra, ainda
mais que na França, com as pequenas rivalidades e com a indiferença geral.
Sentindo que seus esforços eram inúteis, cedendo às instâncias de Sarrasin,
que não cessara de sentir sua falta e de conservar em relação a ele uma
profunda devoção708, ele deixou a Inglaterra em 30 de março de 1787. Ca
gliostro partiu só; a condessa ficou em Londres sob os cuidados de sua
amiga, srta. Howard; ele lhe deixou a tarefa de terminar os preparativos
para a partida e, em particular, de vender o mobiliário que eles não pode
ríam levar em sua longa viagem. Essa venda ocorreu em 13 de abril, no
Pall Mall, sob os cuidados de Christie, avaliador.
Ao saber dessa partida, Morande reergueu-se violentamente e, dessa
vez, por sua própria conta, sua campanha de insultos no Courrier de
699. Foi Bonneville que, na Berliner Monatschrift de março de 1786, assinalou Caglios
tro como autor desse manifesto anônimo.
700. Jeová-Jesus.
701. Churh (para Church): Igreja.
702. Jesus.
703. Trinity (Trindade).
704. Hotel dos Maçons.
705. Churh (para Church): Igreja.
706. Jerusalém.
707. Idem.
708. Cagliostro, antes de sua partida definitiva, passou algumas semanas no campo, em
casa de Loutherbourg, pintor do rei (nascido em 1740 em Estrasburgo, morto em 1812
em Chiswick), grande entusiasta de alquimia, para trabalhar com ele em seu laboratório.
Foi mesmo Loutherbourg, com sua mulher, quem recebeu e hospedou a SP de Cagliostro
após a partida de seu marido, quando ela se mudara de sua casa de Knights-Bridge,
Sloane Street, n° 4.
1’Europe', foi, a princípio, uma fanfarra de triunfo, já que o gazeteiro se
atribuía a glória de haver posto em fuga seu inimigo; em seguida uma re
pentina comiseração pela condessa, essa mulher infeliz, abandonada por
seu marido fugitivo, que nem mesmo pagara seu criado, levando suas jóias,
abandonando-a para sempre após lhe haver feito sofrer uma existência das
mais dolorosas. A negociação em leilão se tomou, sob sua pluma, uma ven
da de objetos confiscados; detalhou os objetos, acrescentando, para tomar o
quadro mais atraente, atanores, cadinhos e sobretudo mil exemplares da Lettre
au peuple anglais, vendidos, segundo ele, pelo peso do papel.
Em muitos números consecutivos ele publicou a descrição detalhada
de Cagliostro, a fim de que ele pudesse ser reconhecido e de que lhe de
nunciassem imediatamente a presença de sua vítima em qualquer lugar que
aparecesse.
Agora que apresentamos Morande, seria quase inútil refutar essas
mentiras e esse último esforço do policial. Mesmo assim, essas calúnias de
última hora, que ficaram sem resposta, tiveram seu efeito. Historiadores709
deram a elas alguma importância e infelizmente as ecoaram. Uma única
observação bastará para estabelecer toda a sua falsidade: Cagliostro, após
uma viagem rápida, tendo parado apenas alguns dias na Bélgica para visitar
algumas Lojas que solicitavam sua presença, mal se instalara em Bâle, em
meio a seus antigos amigos, mandou imediatamente chamar a Sri de Ca
gliostro, que terminara os últimos negócios que ainda a retinham em
Londres. Podemos ver com que impudência, com que desenvoltura Morande
caçoava da verdade e de seu público; mas devemos notar também a levian
dade dos críticos, que acolhem as mais fantasiosas histórias quando elas
apresentam um caráter escandaloso. A acusação erguida contra Cagliostro
de haver despojado, abandonado sua mulher; a lenda que os representa,
ele, como um marido brutal, a condessa como uma vítima aterrorizada,
foram retomadas, odiosamente ampliadas na famosa Vie de Joseph Balsamo
pelo anônimo secretário do Santo Ofício. Foi assim que Morande preparou
a obra de Roma.
709. Mesmo o Sr. Robiquet, todavia muito imparcial e bem edificado acerca do valor das
asserções de Morande. Cf. Vie de Théneau de Morande, nota 2, p. 205.
Capítulo IX
A Suíça e Roma —
O Profanador do Único
CultoVerdadeiro
Henri.
Berlim, 15 de março de 1784716.”
Era amável, mas muito reservado; Sarrasin compreendeu que a corte
da Prússia, se não punha obstáculos ao estabelecimento de Cagliostro em
712. Schmidt. Reise Journal. Biogr. Blatter. B.I., p. 217. - Cf. E: Ma Correspondance, nl 55,
de 30 de junho de 1786. Antes da partida de Cagliostro para Londres, Sarrasin deu ordem
a um banqueiro inglês para que pusesse à sua disposição todas as somas que ele pedisse.
713. “A condessa não se cansava, também, de me interrogar, falando com amor de seus
amigos de Bâle. ” S. Laroche, Op. cit., p. 296.
714. Em Langmesser. Jacob Sarrasin, der Freund Lavaters. Zurique, 1899, p. 53.
715. Journal de Sarrasin. Arquivos Sarrasin, Bâle; na data de 21 de julho de 1784.
716.. Langmesser. Op. cit., p. 53.
Neuchâtel, nada faria para protegê-lo. Abandonou seu primeiro projeto e se
dirigiu ao banneret1'1 Sigismund Wildermett, de Bienne, a quem ele fora
apresentado por seu amigo comum Pfeffel717 718. Wildermett se empenhou se
riamente em atendê-lo; tendo-se assegurado de que o cônsul francês em
Berna719 não faria nenhuma objeção à instalação de Cagliostro em Bienne,
fez uma propaganda ativa junto às autoridades locais e aos cidadãos da
cidade em favor de Cagliostro. No mês de março de 1787, Sarrasin foi ele
próprio a Bienne buscar no Conseil a permissão de estada do conde e alu
gar em seu nome uma bela propriedade chamada Rockhalt720.
Quando tudo estava pronto, ele avisou Cagliostro, que partiu imedia
tamente e chegou a Bâle em 5 de abril de 1787. Sarrasin se apressou em
levá-lo a visitar sua nova morada721 e o apresentou aos notáveis de Bienne;
depois, eles voltaram a Bâle. Todos estavam felizes em revê-lo; ele reen
controu ali, além da família Sarrasin, os Hazenbach, o pastor francês
Touchon722, Haas, o professor Breitinger, de Gingin, Burckhardt723, todos
pessoas sérias, liberais, respeitosamente devotadas a Cagliostro. Na pri
meira viagem que havia feito a Bâle, em outubro de 1781, Cagliostro os
conhecera e se afeiçoara a eles; com todos, examinara os planos do pavi
lhão destinado aos trabalhos secretos de seu Rito, de cuja construção
Sarrasin cuidou724. Desde então, seus discípulos suíços conservavam sua
doutrina, cultivavam sua lembrança. O meio estava pronto para receber
novos ensinamentos de Cagliostro, que estava bem disposto a dar-lhes o
que queriam. Em seguida a sua estada em Paris, onde ele vira agitar-se
infrutiferamente convenções maçônicas, depois das discussões com os
Filaletos, de suas decepções com os maçons ingleses, Cagliostro rejeitara
todo projeto de regenerar o corpo maçônico infundindo-lhe, através do
Rito Egípcio, um sangue realmente puro. Ele contava mais com a criação de
homens novos do que com a transformação de espíritos já impregnados
de tradições errôneas e, se até então manejara com o maior dos cuidados os
717. Antigo título nobiliárquico, desaparecido na França, mas que se conservou na Suíça.
718. Cunhado de Goethe que tomou a defesa de Cagliostro em 1787.
719. Biel vinha de Berna.
720. Rocaille, de que os suíços fizeram Rockhall e Rockhalt: no inicio da Pasquart-
Promenade, nas portas de Bienne. Cf. Langmesser. Op. cit., p. 54. Essa casa existe ainda.
Ver a gravura anexa 9página 176 deste livro) segundo uma fotografia tirada em 1911.
721. A SP Sarrasin os acompanhou. Langmesser. Op. cit., p. 54
722. Doente que ele curara em Estrasburgo.
723. Cf. H Funck. Die Wander jahre der Frau von Branconi, in: Westermann’s Deutsche
Monatschrift, 1896, p. 172 e: Carta de Bürkli.in: Funk. Op. cit., p. 20.
724. Esse pavilhão, construído em Riebhen, a 6 km de Bâle, ainda existe; é atualmente
propriedade do Sr. Fritz Lindemeier. Fornecemos anexos o mapa e a vista dele (página 96
deste livro) em seu estado atual. Ainda o chamam "Cagliostro" e a lenda diz que ele
contém o monumento funerário de Cagliostro.
costumes e o simbolismo habituais dos Ritos aceitos para facilitar o caminho
aos adeptos do Escocismo ou do Grande Oriente, ele agora não via mais
interesse nisso, desde o momento em que a desconfiança e a ignorância pre
sunçosa dos maçons haviam rejeitado todas as suas tentativas. Foi nesse
sentido que ele falou a seus amigos de Bâle, a Lavater725, levando-os a uma
concepção mais simples, mais puramente religiosa do Rito Egípcio que deveria
substituir com todas as peças, e não mais aperfeiçoar, os Ritos maçônicos726.
Uma “Loja-Mãe dos países Helvéticos”, que reunia pela primeira vez,
em sessão regular, os adeptos iniciados isoladamente em 1781, abriu seus
trabalhos, na casa de Sarrasin, em 2 de maio de 1787727. Ela fora instalada
de acordo com o modelo da Loja de Lyon, mas de maneira mais simples:
viam-se poucos ornamentos, quase nenhum símbolo; no meio da peça estava
o busto de Cagliostro, em mármore728. Era mais uma sala de reunião, um
oratório místico, que uma oficina maçônica. Sobre a patente e sobre os
diplomas, nenhum símbolo; um simples arabesco enquadrava as folhas, no
alto das quais apenas o nome de Deus estava gravado729.
Fora do templo, as noites íntimas reuniam aqueles que não eram ini
ciados do Rito. Em honra de Cagliostro, Sarrasin recebia muito: o pastor
Schmidt730, que jantou com ele, um general francês e algumas damas, em 8
de maio, na casa de Sarrasin, contou sua noite em um jornal731. Ele o ouvira,
naquela noite, falar, com veemência, contra o caráter inglês e a sociedade
725. Lavater, definitivamente conquistado por essa mudança, tornou-se seu ativo cola
borador. O Mercure de France (1787) anuncia a reunião de Cagliostro e de Lavater
“trabalhando juntos em Bâle e com a Loja dos Amigos reunidos em Estrasburgo, em
Mannheim e em Brême, na fundação da Jerusalém celeste. ” Borowski, que conta o fato,
diz que essa ação comum, toda impregnada de misticismo católico e de superstição, foi
muito desorganizadora para os espíritos (Borowski). Cagliostro einer der merkwurdigs-
ten..., p. 130.
726. “Ele havia concebido muitas dúvidas em relação à Maçonaria, diz ele em seu inter
rogatório, desde sua estada em Londres, e não queria mais ouvir falar nela. ” Vie de
Joseph Balsamo, p. 188. Foi o que permitiu ao autor pretender, jogando com essas pala
vras, que o próprio Cagliostro renegava seu Rito Egípcio.
727. Langmesser. Op. cit., p. 55.
728. Busto de Houdon do qual damos duas fotografias, p. 11 e 171 deste livro, e que
atualmente se encontra no museu de Aix.
729. Vie de Joseph Balsamo, p. 151-152.
730. Christian Gottlieb Schmidt, autor do Reise Journal eines sachsischen Geistlicher
(Diário de um eclesiástico saxão).
731. Relato análogo àqueles que já conhecemos; como Beugnot, o comensal de Caglios
tro ficou surpreso pela originalidade de suas maneiras, pela oposição de seu mutismo, em
certos momentos, com sua exuberância de linguagem em outros instantes. "Seu olhar o
domina, aniquila-o ”, escreve ele, “e escapa a você; é o tipo ideal do mago. Já a estrutura de
seu crânio indica um homem extraordinário... mas ele faz muitas palhaçadas, muitas
brincadeiras; falta-lhe gravidade. ” E um pastor que fala. Langmesser. Op. cit., p. 55.
francesa. Tais recepções e trabalhos tomavam todo o seu tempo; ele não
mais se ocupava com a medicina como quando de sua primeira passagem
(1781), em que a casa de Sarrasin não bastava para receber todos os seus
doentes732.
No fim de maio, quando da 27? reunião anual da Sociedade Helvética,
Sarrasin o levou consigo a Olten para assistir a essa assembléia; Cagliostro
causou, ali, grande impressão. Matthéi733, que estava lá e que contou o
fato, apressou-se em assinalar essa notícia sensacional a sua amante e ami
ga, a marquesa de Branconi734 que, encantada em saber que Cagliostro es
tava na Suíça, impressionada pelo relato de Matthéi, escreveu imediata
mente a Sarrasin a carta seguinte:
“Neuchâtel, 9 de junho de 1787.
Eu lhe peço, senhor, que queira testemunhar ao Sr. conde de Caglios
tro o prazer que eu tenho em sabê-lo meu vizinho735 e o quanto eu
ficaria satisfeita em renovar conhecimento com ele; sou ao mesmo
tempo sensível à sua delicada atenção por me haver enviado a peque
na brochura, que lerei com tanta indignação quanto li tudo o que pre
tendeu atacar sua bondade muito conhecida e que os mais mal-inten
cionados jamais poderão anular. Felicitei os habitantes de Bienne e
das redondezas pela estada que o conde teve ali e, sem buscar fazer
sua apologia, disse o que penso, em toda parte por onde mo pergunta
ram, em meu caminho de Berne a Soleure, que concluí sem proble
mas ontem à noite736.”
Era, com efeito, uma antiga conhecida de Cagliostro; ela o encontra
ra em Estrasburgo, na casa dos Sarrasin, levara-lhe Lavater737 e fizera mui
tos avanços a Cagliostro, que lhe agradava: “Tenho simpatia pelo conde; é
732. Langmesser. Op. cit., p. 55; e: Frankfurter Zeitung, Staat und Ristretto, 1783. Trecho
encontrado nos Arquivos Sarrasin, vol. XXX III, cota 12. “Durante sua estada em Bâle,
ele ditou à SP Sarrasin e à sua mãe um grande número de fórmulas para todos os doentes
que vinham vê-lo, pois ele jamais escreve suas receitas. ”
733. Literato alemão, amigo de Goethe, nascido em Nurembergue.
734. A SP de Branconi, nascida de Elsner, viúva aos 15 anos de Pessoni de Branconi,
amante do príncipe herdeiro Charles-Guillaume-Ferdinand de Brunswick, do qual ela
teve um filho, o conde de Fürstenberg, em 1767, elevada à nobreza por Joseph II em 1774,
era uma mulher de beleza e inteligência excepcionais. Após sua ruptura com o príncipe,
em 1776, ela viajou e seduziu todos os homens eminentes que conheceu: Lessing e Goethe
a admiravam; suas relações íntimas com Lavater são conhecidas. Cf. Zenker. La marquise
de Branconi, in: Allgemeine Zeitung. N? 199 de 20 de julho de 1889, e: Heinrich Funk.
Die Wanderjahre der Frau von Branconi, in: Westermann’s Illustrirte Deutsche Monatschrift.
Vol. LXXIX, outubro de 1895, p. 172.
735. A Sr? de Branconi morava em Chanet, perto de Neuchâtel.
736. Arquivos Sarrasin. Bâle. Carta escrita em francês.
737. Funk. Die Wandrejahre, p. 5 e 7. A SP de Recke já escrevera a Lavater, em 1779, a
respeito de Cagliostro. Von der Recke. Nachricht von des beriichtigten., p. 115.
preciso que ele seja meu amigo”, escrevia ela738 a Sarrasin e, segundo ele,
ela “se atirou imprudentemente para cima dele.” Essa técnica poderia ter
funcionado com outros, com Lavater, com Goethe, que se sentia fraco diante
dessa “sereia”739. Cagliostro não foi subjugado. Essa mulher sedutora, irre
sistível, adulada, não admitia que um homem não caísse a seus pés se ela
lhe deixasse entrever alguma simpatia: sentiu-se ultrajada e se tornou brus
camente inimiga declarada de Cagliostro740. Escandalizou os Sarrasin, ten
tou afastá-los de Cagliostro. “Seu Cagliostro não existe; é menos que nada,
gritava ela à Sri Sarrasin, a seus amigos741”, a todos que ela via. Sarrasin
não se deixou impressionar por esse rancor, mas se queixou dele a Lavater:
“Essa bonita boneca pode pensar e dizer o que quiser; que vá embora, se
lhe agradar; eu daria mil Branconi por um Cagliostro”.742 Mas outras pes
soas sofreram-lhe a influência. Lavater se perturbou; hesitou entre sua bela
amiga e Cagliostro, chegou mesmo a sacrificar este último; em uma de
suas cartas à Sri Sarrasin, buscou afastá-la, também, de seu salvador e mes
tre743.
Tal fora a confusão; mas alguns anos haviam se passado e, de volta a
Chanet, a marquesa de Branconi nem pensava mais nisso: estava feliz em
reencontrar o homem extraordinário, único, que a interessara tão vivamen
te em Estrasburgo.
Sarrasin fez parte do pedido a Cagliostro, que não recusou, exigindo
apenas que a entrevista tivesse lugar na casa de terceiros. Alguns dias de
pois, a Sri de Cagliostro chegava a Bâle744 e, em 29 de junho, acompanhados
745. Assim como a SP Von der Lippe, em cuja presença Cagliostro recebeu a marquesa de
Branconi. H. Funk. Die Wandrejahre, p. 11.
746. Langmesser. Op. cit., p. 55.
747. Essa nova aventura, a ultima de sua vida, concluiu-se em 1789. A SP de Branconi
desapareceu, viajou e voltou, pouco depois, com umfilhinho que ela, segundo dizia, ado
tara e que criou. Doente, foi tratar-se em Albano, onde morreu, em 7 de julho de 1793.
Matthéi, fiel até após sua morte, escrevia a Lavater: "Tudo é vazio para mim, agora. ” H.
Funk. Die Wandrejahre, p. 184.
748. “Encontro-me neste momento aqui, escreve Sarrasin, por ter acompanhado o Sr. con
de e a SP condessa de Cagliostro a seu novo domicílio, onde eles parecem muito se agradar
e onde foram festejados como merecem. Fazendo tranqüilamente o bem e vingando-se de
seus invejosos, não lhes deixando senão a boa causa a ironizar, o Sr. conde espera enfim
encontrar aqui a paz que procurou alhures. ” Carta de Sarrasin a M. D’Epremesnil, Bienne,
datada de 5 de julho de 1787. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. XXIII, cota 18. Ft I, v°
749. “Loutherbourg nos enganou a todos com sua fisionomia honesta. Eu acreditava que
ele fosse um homem galante, mas o modo como agiu com o conde anuncia e prova o
contrário: ele só deseja a sua ruína e para isso poderia mesmo encontrar a dele. ” Carta
de Gingin a seu cunhado Sarrasin, datada de Bienne, janeiro de 1788. — Arquivos Sarrasin.
Bâle, vol. Ill (1788), cota 20, f 3.
750. Raths-Karthabel. 1787.
751. Esse fato pode ser relacionado com o desaparecimento, nos Arquivos do Vaticano, de
todos os documentos que dizem respeito ao processo Cagliostro em Roma. Cf. p. 231
deste livro.
assunto; mas, a respeito do motivo da discussão, das causas da ruptura
entre Cagliostro e Loutherbourg, silêncio absoluto ou expressões demasia
do vagas752 para que se possa concluir qualquer coisa.
Segundo todas as probabilidades, o caso Loutherbourg é a conseqüên-
cia das manobras tentadas em Londres anteriormente, quando a condessa
ficara sozinha em casa dos Loutherbourg, para tentar obter dela algumas
confidências, algumas secretas revelações relativas a seu marido, suas aven
turas ou seus mistérios; fizeram-se tentativas de afastá-la de seu marido. O
que esperavam dessa separação? Quem tinha interesse em provocá-la?
Mistério; parece que o próprio Thilorier estava em meio ao complô. Uma
carta indignada de Sarrasin ao Sr. d’Epremesnil, escrita de Bienne em 5 de
julho de 1787, contém, com efeito, a passagem seguinte: “Em vão, as pes
soas com as quais o Sr. Thilorier concorre, segundo ele próprio admite,
gabam-se de tirar partido das insinuações que fizeram à Sr? condessa. Tudo
foi descoberto, provado originalmente e consignado em uma declaração
legal e voluntária sob as melhores formas753.”
“Queira, por favor, instruir incessantemente o Sr. conde do sucesso
de seu processo e fazer compreender ao Sr. seu parente, Thilorier, que não
cabe nem ao Sr. Rey de Morande, nem ao Sr. de Vismes, nem ao Sr. de
Lansègre, mas ao Sr. conde de Cagliostro, cuja causa ele tem que defender
e cuidar, e que não cabe ao advogado do marido convidar sua mulher a
separar os interesses dela dos seus754.”
752."Esse caso infame, segundo as leis." Vol. Ill, cota 20, f 1. — "Essa maldita histó
ria. ” Vol. Ill, cota 20. F? 3. O Dr. Turler (Neues Berner Taschenbuch, 1901, Berna. IVv.v.
1900, in-16, p. 110-118) publicou, segundo os arquivos da família Heilmann de Bienne,
um relato humorístico dessa querela. Nessa narrativa não datada, e muito mal escrita, o
autor, Nikolaus Heilmann, faz Cagliostro falar em um dialeto meio negro, meio alemão,
que de forma alguma era a linguagem de Cagliostro; ele mostra o banneret Wildermett
dirigindo-se a Cagliostro chamando-o: Signor Joseph Balsamo... ”, coisa que esse perso
nagem não teria pensado em fazer, em 1788, uma vez que o taumaturgo era ainda, para
todos, o conde de Cagliostro, e muito menos porque o banneret, amigo de Sarrasin, era
protetor de Cagliostro. Esse texto, embora antigo (cerca de 1790?...), não é, portanto, um
documento histórico: é uma obra de fantasia, e o Dr. Turler, aliás, nunca disse o contrário
(Cf.: Ibid., p. 110).
753. A Sd de Cagliostro, com efeito, deu, diante dos magistrados de Bienne, um depoi
mento em favor de seu marido, aniquilando as imputações injuriosas de Loutherbourg.
Foi esse depoimento voluntário que a Vie de Joseph Balsamo assinalou, sempre com a
mesma falsidade, nos seguintes termos: "Cagliostro forçou sua mulher afazer uma de
claração em seu favor em que ela retratava as confidências que fizera em Londres, em sua
ausência..., declarando, em particular, que, ao contrário daquilo que ela admitira, Ca
gliostro sempre fora um homem honesto e bom católico. ” Vie de Joseph Balsamo, p. 70.
Podemos julgar, por mais esse exemplo, da veracidade histórica do padre Marcello.
754. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. XXXIII, cota 18, f? 3 v?.
Loutherbourg e sua mulher haviam agido no mesmo sentido que
Thilorier; de repente, a intriga foi revelada. Cagliostro mudou de atitude
em relação ao pintor e este não escondeu seu jogo; a animosidade cresceu.
Dois partidos se formaram: de um lado, os Loutherbourg e o prefeito de
Bienne, seu íntimo, sobre o qual a Sf Loutherbourg tinha grande influên
cia755, os filhos do prefeito, jovens desmiolados, unidos aos Loutherbourg
por uma questão de interesse não definido756; de outro, Cagliostro e a con
dessa, de Gingin, Sarrasin e, com eles, o burgomestre e o banneret. Eis os
dois campos; as situações ficavam cada vez mais tensas757. As hostilidades
começaram. Em 11 de dezembro de 1787, na sessão do conselho, o conde
de Cagliostro apresentou uma queixa contra Loutherbourg, expondo que,
na véspera, Abraham Ritter, doméstico do dito Loutherbourg, havia, sob
ordens de seu mestre, comprado, com um armeiro, pólvora e balas para
carregar suas pistolas, a fim, segundo dizia, de matar o conde de Caglios
tro758. Em conseqüência, o conde solicitava a proteção dos magistrados e a
expulsão de Loutherbourg e dos seus.
Em seguida, grande barulho em Bienne; inquérito que confirmava o
fato; mas hesitações, incertezas, do prefeito; o partido adversário replicou,
acusou, mobilizou os bedéis759.0 caso se envenenava; um grande escânda
lo reinava na cidadezinha habitualmente tão tranqüila e ecoava mesmo
fora760. Sarrasin se apressou em vir “arrancar Cagliostro das garras de seus
761. Langmesser, op. cit., p. 57, segundo uma carta de Sarrasin a Lavater, de 19 de
janeiro de 1788. Todavia, essa nova intervenção, necessária, deve lhe ter sido custosa;
após tantos esforços para conseguir a paz a Cagliostro, tantas diligências para dispor os
espíritos em seu favor, esse novo escândalo deve tê-lo afetado muito.
762. Em 12 de janeiro de 1788.
763. O prefeito, embora aliado de Loutherbourg, começava a se cansar, diz Sarrasin: era
excelente para o caso; mas, por outro lado, ele tremia de medo de desagradar à senhora,
e, além disso, tinha o grande defeito de ser um imbecil: isso fez com que o caso se arras
tasse. Loutherbourg, mais negociante, estava pronto a um acordo.
764. Ele não pôde escrever, segundo diz, quais foram seus processos oratórios irresistí
veis, mas os dirá de viva voz a seu correspondente: “O conde ganhou toda a honra e
perdeu um pouco na questão das despesas. Acreditei, diz o bom Sarrasin, que certamente
pagou de seu bolso a diferença, que um valia bem o outro. ” Arquivos Sarrasin. Bâle.
Rapport de Sarrasin sur ses négotiations a Bienne, vol. XXXIII, cota 2O.fl3e 4.
765. Se Cagliostro mostrou algum descontentamento, as dificuldades desses últimos dias
não fizeram porém nenhuma diferença no afetuoso respeito de Sarrasin e de seus amigos
por seu mestre. Em 1790, enquanto a Inquisição se atirava contra Cagliostro, Sarrasin
escreveu a Lavater: “Os sofrimentos do conde me doem; mas sinto que, se as coisas são
assim, é porque ele o quis; o mundo não entende nada disso; eu conheço por experiência
seu valor interior... ” (Langmesser, op. cit., p. 57.) — De Gingin escreve também: “Espero
que a detenção do conde não seja longa e que ele saia dela tão bem quanto da Bastilha. ”
(Arquivos Sarrasin, vol. Ill, cota 38, fi 3) E, em 1793, depois que todos os acontecimentos
haviam distorcido Cagliostro, quando sua própria memória fora difamada, Sarrasin es
creve ainda a Lavater: “Nós forjamos um ideal e em seguida nos irritamos se o bem e o
belo são diferentes do que havíamos concebido. Marist, o fisionomista, não reconhecería
Cristo se passeasse com ele!... ’’ (Langmesser, op. cit., p. 68). Essas palavras revelam o
trabalho interior que Sarrasin deve ter feito para chegar a explicar para si o fim de
Cagliostro e as circunstâncias que o rodearam. Mas sua fé não havia enfraquecido, não
mais que a de Lavater. Cf. cap. VII, Paris, p. 211.
à 28? sessão anual da Sociedade Helvética, em Olten, em junho. Sarrasin o
levou de volta a Rockhalt e se despediu dele em 19 de julho766. Não o veria
mais; em 23 de julho, Cagliostro deixou Rockhalt.
Rovoredo-Trento
Após ter passado em Aix-les-Bains,767 uma estação necessária à saúde
da condessa, Cagliostro passou por Turim sem quase se interromper768 e
chegou, em 24 de setembro de 1788, em Rovoredo. Sua vida nessa cidade,
nos teria permanecido tão desconhecida quanto foi em Turim ou em Trento,
se ele não houvesse encontrado ali, pela primeira vez no curso de sua exis
tência, um observador imparcial. Crítico desinteressado, nem discípulo,
nem inimigo, esse protótipo do “repórter” tomou como missão controlar
dia a dia, e anotar tudo o que podia ver, ouvir ou aprender de Cagliostro
durante as poucas semanas que ele passou naquela cidade. Com as notas
tomadas, ele escreveu um livro e, como era de bom-tom no século XVIII
misturar o sagrado ao profano e gracejar sobre o que teria podido ser sério,
ele as publicou em latim com o seguinte título: “Liber memorialis de
Caleostro cum esset Roboreti” em um estilo parodiado de Evangelho.
Esse livro ficou conhecido sob o nome de Evangelho de Cagliostro-, é
o documento mais precioso que temos a respeito de sua pessoa, o que nos
permite reviver um pouco em seu tempo, junto a ele, imaginar como ele
era, o que dizia, o que puderam pensar dele aqueles que se aproximaram.
Não é apenas por esse ponto de vista que o diário da passagem por Rovoredo
possui um valor inestimável; é também porque todos os exemplares dessa
obra, reunidos aos papéis de Cagliostro, foram queimados pelo Santo Ofi
cio no Auto-de-fé que seguiu sua condenação pelo papa e que foi executa
do em Roma, em 4 de maio de 1791, sobre a praça da Minerva. Alguns
766. Esses documentos precisos, tirados do Journal de Sarrasin, fazem-nos rejeitar como
inexata a narrativa de uma estada de Cagliostro em Viena (Austria) que teria ocorrido,
segundo Borowski, em junho de 1788. Borowski cita como referências os Archiv für der
Scwhãrmerey, fol. II, parte II, p. 79, e conta que, após haver obtido grandes sucessos,
trazendo um morto de volta à vida, diziam, ele fugira porque Marie-Thérèse (morta em
1780) queria constrangê-lo, pela força, a vender-lhe seu segredo de imortalidade. Os
detalhes parecem fantasistas, as datas, em todo caso, são falsas e tudo isso deve ser
ignorado.
767. Casanova encontrou-se com ele ali. Casanova. Mémoires, t. VIII, p. 13.
768. A Vie de Joseph Balsamo, p. 153, diz que ele ficou também em Genebra e em
Verona, sem dar provas dessa asserção. Entre sua partida de Aix, que ocorreu nos pri
meiros dias de agosto, e sua chegada a Rovoredo, em 24 de setembro, o lapso de tempo
é tão curto que, se ainda suprimirmos a estada em Turim, as paradas em Genebra e
Verona, se forem exatas, só podem ter sido paragens de caminho, sem interesse para a
história de Cagliostro.
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volumes, já entre as mãos de particulares, escaparam à pira; desde então,
eles desapareceram, foram destruídos ou perdidos. Não os encontramos
em bibliotecas públicas, não os vemos nas vendas de livros raros e apenas
o título da obra fora transmitido por contemporâneos. Tivemos a felicidade
de encontrar um exemplar na Itália. Nessa obra, cuja tradução exata e com
pleta publicamos769, vemos que, em Rovoredo, assim como em Estrasburgo,
como em Paris, sua casa era assediada por doentes770; sua caridade e seus
sucessos médicos conquistaram o reconhecimento entusiasta do povo; mui
tos notáveis se tornaram seus amigos771.
Durante seis semanas, com uma bondade incansável, ele recebeu in
felizes, ensinou, falando mais livremente, mais abertamente do que nunca,
de sua missão e de seus atos772; mas mesmo então, as cabalas dos médicos,
a animosidade dos homens da igreja lhe tomaram a vida impossível773; ele
partiu, em 10 de novembro, para Trento, onde um de seus doentes agrade
cidos o instava muito a ir e onde ele o apresentou774. Borowski fornece,
para essa partida, a data de 22 de outubro, sem referência; o número do
Liber Memorialis nos parece ser de mais autoridade. O mesmo autor fala
de uma estada de Cagliostro em Veneza, onde, reduzido à miséria, ele teria
sido obrigado a empenhar suas jóias; seu belo relógio, rodeado de diaman
tes, teria sido comprado por um joalheiro de Mayence, chamado Chardon.
Mas, não podemos esquecer, são informações tiradas do Courrier de
l’Europe\ Sabemos, por outro lado, que, pouco tempo após, Cagliostro ti
nha à sua disposição uma caixa de dinheiro e uma letra de câmbio de 10
mil thalers. Isso ocorreu em Trento, em 3 de abril de 1789775. A história da
penúria de Cagliostro em Veneza não é, portanto, admissível. E verossímil
769. L’Evangile de Cagliostro, rétrouvé, traduit par la première fois du latin et publié avec
une introduction do Dr. Marc Haven. Paris, Libr. Des Sciences Hermétiques, 1910, I vol.
in-16 com retrato e selo de Cagliostro. Estando essa obra esgotada, nós a reproduzimos
em apêndice. O leitor encontrará ali, segundo a própria expressão de Marc Haven, uma
série de instantâneos, tirados em todas a horas de sua vida, e que dão, melhor que todo o
resto, a visão daquilo que ele foi.
770. L’Evangile de Cagliostro, p. 276, 278, 282, 283.
771. “A voz do povo se elevava por ele e trovejava na Assembléia.” L’Evangile de
Cagliostro, p. 279. — O testemunho do autor imparcial reduz a nada as calúnias publi
cadas nessa mesma época por um anônimo no Journal von und für Deutschland, dezem
bro de 1788, p. 516-520, acerca do pretenso malogro de Cagliostro em Rovoredo.
772. L’Evangile de Cagliostro, p. 275, 283.
773. L’Evangile de Cagliostro, p. 284, 279. Joseph II, cedendo a petições vindas de médi
cos e pessoas hostis, proibiu-lhe o exercício da medicina. L’Evangile de Cagliostro, p.
290, e Vie de Joseph Balsamo, p. 70.
774. “Festus, cujo apartamento ele alugara em Rovoredo, era originário de Trento e per
manecia ali com freqüência. Tendo ficado doente em Trento, mandou chamar Cagliostro. ”
L’Evangile de Cagliostro, p. 286.
775. Borowski, op. cit., p. 133.
que em Trento as coisas tenham-se passado da mesma maneira que em
Rovoredo ou qualquer outro lugar: simpatia no início, ciúmes e hostilidades
no fim; era a sucessão habitual dos sentimentos daqueles que recebiam de
Cagliostro cuidados materiais e benefícios espirituais. Suas excelentes re
lações com o príncipe-bispo o teriam incitado a permanecer mais tempo
nessa cidade, se o ódio de seus inimigos não o houvesse perseguido no
novo retiro. Eles obtiveram de Joseph II uma carta cominatória ao bispo de
Trento em que o imperador lhe manifestava seu desprazer em vê-lo hospe
dar um iluminado perigoso, um Grão-Mestre de um Rito proscrito; para
reconfortar seu protetor, Cagliostro teve de deixar seus Estados. Quando
de sua partida, o príncipe-bispo lhe deu, para os cardeais Albani Colona e
Buoncompagni, em Roma, calorosas cartas de recomendação, o que prova
a solidez das boas relações que uniam Cagliostro ao bispo de Trento776777 .
Está escrito, na Vie de Joseph Balsamo711, que foi por instância de sua
mulher, desejosa de retomar à sua família e se reaproximar da religião778,
que Cagliostro veio morar em Roma. Já vimos um dos motivos de sua
partida; os sentimentos de sua mulher talvez também tenham influenciado
na decisão. Por outro lado, cada vez mais afastado da Maçonaria ordinária,
mais desejoso de propagar na frente dela seu Rito verdadeiro, religioso e
cristão, Cagliostro concebeu a esperança de fazê-lo aprovar pelo papa e sus
tentar pela Ordem de Malta, e lhe dar então uma extensão universal. A
vinda a Roma era, portanto, a conseqüência natural de seus trabalhos. Mas
há um motivo mais real, mais irresistível que os desejos de sua mulher ou
os projetos maçônicos, que empurrava Cagliostro para o Vaticano. Uma
776. 1st Cagliostro Chef... Gotha, 1790, p. 216. Essa estima recíproca e essas relações
amáveis não impediam as discussões corteses; Cagliostro com freqüência conversava
acerca de Maçonaria e teologia com o bispo ou com seu círculo e é dessa estada em
Trento que trata a história seguinte, citada desajeitadamente por sua mulher e da qual
fizeram uma arma contra ele: um dia, ao voltar de uma entrevista particular com um
teólogo, Cagliostro disse a sua mulher, ao chegar em casa: “Ah! Peguei esse padre. ” Vie
de Joseph Balsamo, p. 74. Isso foi dito em italiano, sem dúvida; qual foi a palavra empre
gada? Estaria a tradução exata? Não o sabemos. Essa frase, interpretada pejorativamen
te pelo autor, significaria, segundo ele, que Cagliostro, com uma fingida religiosidade,
representou uma comédia para o padre e o enganou, embora essa mesma frase possa
significar também, e melhor ainda: “Nós conversamos; ele quis me dominar com seus
argumentos teológicos, mas eu o coloquei em seu lugar; eu o derrotei em seu próprio
terreno e ele ficou muito aturdido. ” Como esse fato foi muito usado para demonstrar a
hipocrisia de Cagliostro, pareceu-nos necessário, embora fosse apenas um detalhe, refu
tar mais essa calúnia.
777. p. 73.
778. É verdade que, já em Rovoredo (L’Evangile de Cagliostro, p. 290), e em seguida em
Trento, na corte do bispo, padres rodearam a condessa, vendo-a frágil e tímida, e se
esforçaram para trazê-la de volta às crenças e sobretudo às práticas da religião católica,
na qual ela fora educada.
voz interior o chamava até lá; quando atravessou as portas de Roma, cum
pria a última etapa de seu calvário; marchava para o martírio.
Roma
Em maio de 1789, Cagliostro e sua mulher desembarcaram na
Scalinata, albergue na praça da Espanha, em Roma779. Ele chegava com
recomendações novas em uma terra já conhecida, ainda habitada por muitas
de suas antigas relações de 1773; reencontrava, em particular, o bailio Le
Tonnelier de Breteuil, embaixador da religião, ou seja, da Ordem de Malta,
em Roma. Muito rapidamente, ele foi recebido e procurado no mundo, a
que suas aventuras e seus poderes interessavam, e teve de mudar sua pri
meira residência para um belo apartamento na praça Famese780.
O abade Luca Antonio Benedetti, advogado na Cúria, citou, em suas
Mémoires, o nome de muitos personagens que receberam Cagliostro e se
ligaram a ele. Ele os enumera na narrativa de uma sessão de magia feita por
Cagliostro em Roma, à qual assistia uma assembléia numerosa de grandes
senhores italianos e franceses. Eis, textualmente, esse documento; nós o
discutiremos mais adiante.
“Tive de assistir a uma reunião presidida por Cagliostro na villa Mal
ta781, pois não pude resistir aos pedidos da marquesa M. P. que queria abso
lutamente a mim como seu ‘Cavaliere’.
Chegamos por volta das duas da manhã. Um lacaio de libré, após ter
recebido nossos cartões, introduziu-nos em uma sala magnificamente ilu
minada, cujas paredes eram cobertas de desenhos e emblemas: o triângulo,
a perpendicular, o nível e outros símbolos. Havia também estátuas de ído
los assírios, egípcios e chineses. Na parede do fundo, e em grandes ca
racteres:
Sum quidquid fuit, est et erit
Nemoque mortalium mihi adhuc
Velum detraxit.
A sala estava cheia de pessoas distintas e personagens de alto escalão.
Imaginem minha estupefação quando reconheci em meio à assem
bléia o Eminentíssimo Bemis, embaixador do rei T. C. e, a seu lado, a
princesa Santa Croce. Um pouco mais adiante estavam sentados o príncipe
Frederico Cesi, o abade Quirino Visconti, o barão de Breteuil, embaixador
de Malta, e uma infinidade de outros personagens e grandes damas, nota-
damente a princesa Rizzonico delia Torre com seu primo, a condessa
Soderini, o marquês Vivaldi, com seu secretário, o padre Tanganelli (notus
779. Gagnière. Cagliostro et les Francs-Maçons, p. 25. Art. In: Nouvelle Revue, p. 25-56.
780. Gagnière. Op. cit., p. 28.
781. A Villa Malta, porta Pinciana, era a residência de verão dos embaixadores de Malta.
lippis et tonsoribus, para todas as espécies de patifaria), o bailio de Malta
Antinori, o marquês Massini e um capuchinho francês.
No fundo da sala, sobre um altar, viam-se, arrumados em fileiras,
cabeças de mortos, macacos empalhados, serpentes vivas fechadas em
aquários de vidro, corujas que reviravam olhos fosforescentes782, perga
minhos, cadinhos, balões de vidro, amuletos, pacotes de pólvora e outras
diabragens783.”
Cagliostro, estando sentado sobre uma trípode, começou um longo
discurso. Falou de si, de sua ciência784, de seus mistérios, dizendo-se imor
tal, “antediluviano”, todo-poderoso. Para mostrar seus poderes, levou para
sobre o tablado uma criança a quem ordenou que olhasse em uma garrafa
de cristal cheia de água. A “pupila’,, tendo-se inclinado, disse que via,
sobre uma estrada que conduzia de uma grande cidade a uma cidade vizi
nha, uma multidão imensa de homens e, sobretudo, mulheres, que marcha
vam gritando: “Abaixo o rei!” Cagliostro perguntara à criança de que país
eles eram e a criança disse que ouvia o povo gritar: “A Versalhes!” e que
percebia, no comando, um grande senhor.
“Minha pupila diz a verdade”, exclamou Cagliostro. “Pouco tempo
passará antes que Luís XVI seja atacado pelo povo em seu palácio de
Versalhes. Um duque conduzirá a multidão... A monarquia será derruba
da... A Bastilha arrasada... A liberdade sucederá à tirania785.
— Oh! — exclamou o conde de Bernis — que tristes presságios em
relação a meu rei!
— Eu lamento, mas eles se realizarão — respondeu Cagliostro com
uma voz grave.
—■ Não sei de nada... veremos... continuou com um tom nervoso o
Eminentíssimo voltando a se sentar786.”
Mas isso não foi tudo, segundo o abade: Cagliostro multiplicou os mi
lagres, realizando naquela noite tudo o que se contou dele em diversos luga
res: transformou água pura em vinho d’Orvieto, fez crescer um diamante
ante os olhos dos espectadores, rejuvenesceu instantaneamente alguns velhi
nhos fazendo-os beber algumas gotas de seu elixir da vida, etc.
782. Em plena luz, eis um fenômeno que só se produz, sem dúvida, na Itália!
783. Mémoires de Benedetti, da data de 15 de setembro de 1789. Cf.: Gagnière. Op. cit.,
p. 33.
784. Um de seus convidados lhe perguntara em que consistia essa ciência e ele teria
respondido: "O sábio Lavater veio expressamente de Bâle a Paris para me interrogar e
eu lhe respondí com essas palavras, textualmente: In herbis et in verbis ”. Gagnière. Op.
cit., p. 36.
785. Fato ocorrido em 5 de outubro seguinte, quando o povo, conduzido pelo duque
d’Aiguillon, marchou sobre Versalhes. A primeira festa da Liberdade foi celebrada em 15
de abril de 1792 e, em 21 de maio, a Bastilha era arrasada.
786. Id. Ibid., in: Gagnière. Op. cit., p. 34-35.
Entusiasmados por esses fatos impressionantes, dois dos assistentes
se levantaram e exigiram sua iniciação no Rito Egípcio. Eram, diz o autor,
o capuchinho francês San Maurizio e o marquês Vivaldi. Após um interro
gatório maçônico sumário, Cagliostro os recebeu ali mesmo, publicamen
te, como maçons egípcios787. Qualquer que tenha sido o valor moral do
, não podemos porém aceitar como exatos todos os detalhes des
escritor788789
sa interessante narração; o autor, para encorpar seu relato, contou, ao lado
de lembranças pessoais, histórias já bem conhecidas, descrições fantasiosas,
que provam, em nossa opinião, que essas páginas só foram escritas mais
tarde, após o processo de Cagliostro. Como explicar, sem isso, que ele
tenha notado nessa elegante assembléia a presença de um obscuro
capuchinho francês ao lado da do cardeal de Bemis? Cagliostro sentado
sobre uma trípode, como as sibilas, os macacos empalhados, os ídolos
egípcios e assírios, os frascos, os cadinhos, as serpentes ornando a sala,
tudo isso são notas emprestadas da Vie de Joseph Balsamo1'^. O rejuvenes
cimento, o aumento dos diamantes, operação longa e delicada de que Ca
gliostro se ocupou apenas em Estrasburgo para o cardeal de Rohan, a his
tória de Cristo nas bodas de Canaã, o Ego sum qui sum são anedotas vindas
de outras fontes790 e reunidas para dar uma impressão de conjunto. Como
admitir que, em meio a uma noite oficial desse gênero, dois assistentes, os
mesmos que mais tarde foram suspeitos de pertencer à Maçonaria Egípcia,
e apenas eles, tenham-se levantado para pedir sua iniciação? O que foi
feito no meio da sessão, em público? Há nisso uma inverossimilhança que
salta aos olhos para quem conhece alguma coisa dos costumes maçônicos
e, em particular, o ritual Egípcio. As idéias, o estilo emprestado a Caglios
tro em nada se parecem com o que sabemos dele, e o autor, por ignorância,
põe em sua boca erros de fatos791 que sublinham a invenção e mostram o
quanto essa história é fantasiosa. Portanto, não aceitamos os detalhes se
não com reservas: deve haver qualquer coisa de verdadeiro; o autor, sem
dúvida, assistiu à noite em que foi feita a famosa profecia da queda de Luís
XVI; a emoção do cardeal de Bemis, a perturbação dos assistentes ante
essas palavras audaciosas, eis, sem dúvida alguma, verdade, algo de origi
nal; o resto é banal e vem de segunda mão.
O mesmo autor nos assegura que outras reuniões, “segundo o Rito
Egípcio”, tiveram lugar no mesmo local; é verossímil que o barão de Breteuil
tenha recebido Cagliostro e seus amigos muitas vezes792; mas, novo erro de
793. “Sem sucesso ”, diz a Vie de Joseph Balsamo, p. 75. Isso foi, nesse caso, particular a
Roma, como a fosforescência dos olhos das corujas em plena luz.
794. Gagnière. Op. cit., p. 27, 32.
795. Uma primeira vez, depois uma segunda, amigos lhe preveniram do perigo que ele
corria. Ele lhes agradeceu, mas não se interrompeu. (Vie de Joseph Balsamo, p. 77) “Eu
seria muito levado a crer", escreve de Gingin a Sarrasin, ao saber da notícia da prisão de
Cagliostro, “que é uma consequência das intrigas da França, estando no meio os Polignac
e companhia. ” Arquivos Sarrasin, vol. IV, cota 38, f? 3.
796. p. 65.
797. Vie de Joseph Balsamo, p. 77
798. Vie de Joseph Balsamo, p. 155. O ministro da Sardenha em Roma escreveu nessa
data a um de seus correspondentes: “Nesses últimos dias, o SMazin (agente secreto de
Maria Carolina), que pode, não sei como, interceptar cartas que chegam de Nápoles, subtraiu
deferências e se declarava seu discípulo: era um capuchinho francês,
Francesco de San Maurizio, que foi, dizem, ativo colaborador e gozou de
sua confiança durante o ano de 1789. Qual foi o papel desse homem? O
fato de seu zelo só ter conseguido comprometer Cagliostro, provocar a
reunião do Santo Ofício que decretou sua prisão; o fato de que o dito monge,
única testemunha de acusação cujas confissões permitiram estabelecer que
Cagliostro iniciara um maçom em seu Rito em Roma (Cartas de Donato),
ter-se beneficiado de um favor especial, ter sido condenado apenas a dez
anos de reclusão na prisão de Aracoeli, tudo isso permite muitas suposi
ções. A mais natural é pensar que era um agente secreto da Inquisição que
cumpriu muito bem sua tarefa.
Com um homem tão confiante, tão simplesmente audacioso quanto
Cagliostro, a polícia da Inquisição tinha a partida ganha: um último relató
rio foi entregue e, na manhã de domingo, 27 de dezembro de 1789, a Con
gregação dos quatro cardeais do Santo Ofício799 se reuniu nos apartamentos
do cardeal Zelada. “A congregação se compunha do secretário de Estado,
Zelada, vice-gerente do cardeal Vicário, dos cardeais Campanella, Antonelli
e Pallotta; além disso, Sua Santidade quis intervir em pessoa, o que é iné
dito há anos800.” E, na mesma noite, Cagliostro foi preso, assim como sua
mulher e o capuchinho San Maurizio: seu apartamento foi vasculhado e
todos os seus bens, confiscados801.
O medo foi extremo, quando a notícia se espalhou, entre aqueles que
conheciam Cagliostro e o haviam freqüentado: Vivaldi e Tanganelli fugi
ram imediatamente802. A marquesa Vivaldi, que estava na casa de Caglios
tro na mesma noite da prisão, conseguiu, disfarçada em oficial de hussardos
húngaros, partir alguns dias após pelo correio de Veneza. De Loras, ma
çom e amigo de Cagliostro, membro importante da Ordem de Malta, soli
citou apoios, viu fecharem-se todas as portas e voltou precipitadamente a
Malta, sem nada fazer por Cagliostro. Lubel, pintor da Academia da França,
uma dirigida por uma dama a Cagliostro. Essa desconhecida escreve em um estilo de
fanática admiração e de obediência cega a esse homem; ela se dirige a ele como a seu pai
espiritual, concluindo com as seguintes palavras: “A comissão foi feita... tudo está pron
to... Os eleitos foram testados... São pessoas que gozam de toda minha confiança, prontos
a tudo realizar. ” Gagnière, op. cit., p. 42.
799.“A mais importante de todas as congregações e a única que foi presidida nominal
mente pelo papa era a Sacra Romanae Universale Inquisizione contra os heréticos, que
fazia tremer os mais altos. Ela só era composta de quatro cardeais, vindo o papa a inter
vir apenas nos casos excepcionalmente graves. ” Gagnière. Op. cit, p. 39, nota.
800. Carta do cavaleiro Damiano de Priocca, ministro da Sardenha à corte de Roma.
Gagnière. Op. cit., p. 38.
801. Em sua casa, encontraram-se trajes ricos, variados, pouco dinheiro, jóias. Borowski,
Cagliostro einer der Merkwuüdigsten..., p. 134.
802. Gagnière. Op. cit., p. 44.
membro de uma Loja maçônica francesa803, acusado de cumplicidade com
Cagliostro por causa de suas relações com de Loras, defendeu-se como pôde,
acusando Cagliostro de ser “um aventureiro”, diz ele, “que jamais foi rece
bido em Loja francesa”. O cardeal de Bernis em nada interveio; apressou-
se, ao contrário, em aprovar oficialmente as perseguições dirigidas contra
os maçons e contra Cagliostro804.
Mas o temor não foi menor do lado do Vaticano: o papa e os cardeais
enlouqueceram e se acreditaram rodeados por uma rede de conspirações
secretas; viam em toda parte complôs e a mão dos Iluminados805. “Encerra
do em sua cela, Cagliostro aparece ao papa e ao governador de Saint-Ange
como ainda muito temível, e a entrada do castelo é proibida a qualquer pes
soa que não esteja munida de uma permissão especial. Muitos franceses ron
davam em torno da prisão e tentavam conversar com ele pela janela em
uma língua desconhecida806.
“Eu lhes asseguro”, escreve Astorri807 “que Roma se encontra, neste
momento, sob o golpe da mais atroz das inquisições e que retira qualquer
confiança nas pessoas. Não ousamos confiar em ninguém”. “As prisões
prosseguem, e sempre no maior dos mistérios, parece-me estar no país das
fadas”, escreve por seu lado o agente da Toscana808. Diariamente se anun
ciavam novos complôs: o pânico se apoderava até dos que nada tinham a
temer; estavam sem cessar sob a ameaça de uma denúncia. “Um édito do
governo de Roma proibiu as iluminações e as festas que se tinha o hábito
de fazer durante a última noite da Terça-Feira Gorda*, medida que foi aco
lhida pelas maldições de todo um povo enlouquecido pelos prazeres do
camaval809.” O povo, sabendo que essas interdições, esse terror policial, eram
devidos a Cagliostro, juntou sua cólera às perseguições da polícia e se
atirou furiosamente contra tudo o que era francês. Esse enlouquecimento
não se limitou a Roma. A rainha de Nápoles, consultada pelo papa, mandou-
803. Aquela a respeito da qual a Vie de Joseph Balsamo discorre longamente, cap. IV,
tentando fazê-la confundir, no espírito de seus leitores, com o Rito Egípcio.
804. Deve-se notar que esse abandono de Cagliostro, quando ele intervinha em favor de
Lubel, não trouxe ventura ao cardeal. Poucos meses depois, o cardeal perdeu toda sua
fortuna e seu posto: a princesa, cuja afeição fiel e certa deveria consolá-lo, deixou-o
imediatamente e suas decepções sucessivas minaram a saúde do cardeal, que sobreviveu
muito pouco a essas duas desgraças. Gagnière. Op. cit., p. 38.
805. Das politische Journal, 1789, vol. I, p. III. — Borowski. Op. cit., p. 134.
806. Borowski. Op. cit., p. 134.
807. Despacho do ministro Astorri ao governo de Siena.
808. Corrispondenze di Diplomatici delia Republica et del Regno d’Italia, citada in:
Gagnière. Op. cit., p. 46.
* N. do E.: Recebe este nome por ser o último do calendário cristão em que é planitido
comer carne antes do início da Quaresma.
809. Gagnière. Op. cit., p. 45.
lhe responder por seu ministro, Acton, que ela mandara vigiar Cagliostro
pessoalmente por causa da correspondência que ele mantinha na casa dela
com personagens importantes e que era necessário reprimir energicamente
as manobras desses inovadores perigosos810. Ela própria agiu com rigor:
“Eu soube, escreve o ministro da Sardenha, que encerraram em Saint-Elme
o duque de San Demetrio em razão das inteligências que ele teve com
Cagliostro. O margrave de Anspach deixou Nápoles precipitadamente.
Afirma-se que o caso de Cagliostro não lhe era estranho811.” Podemos ver a
superexcitação que agitava os espíritos e a importância significativa que
tinha a prisão do Grão-Mestre da Maçonaria Egípcia.
Cagliostro foi encerrado primeiro no castelo de Saint-Ange e posto
estritamente em segredo812 em um medonho reduto que dava para a escada
que une o alto da rampa central com o pátio dos Palie813, e foi lá que ele
permaneceu durante toda a duração do processo, à disposição dos inquisi
dores. Em 21 de abril de 1791, por ordem do cardeal Francesco Saderio
Zelada, ele foi transferido para a fortaleza de San Leo814, sob o acompa
nhamento do ajudante-de-ordens Sempronio Semproni. Mas, de maneira
geral, podemos dizer que Cagliostro sofreu atrozmente em sua prisão;
submetido à vigilância contínua de guardas galerianos, plantados em posto
fixo em sua própria cela, de medo que, com o suicídio, ele quisesse escapar
ao sofrimento, nem mesmo o consideravam como um dos outros prisionei
ros da fortaleza; tudo era causa de suspeita em relação a ele. Estava calmo?
Dissimulava. Manifestava sentimentos religiosos? Era representação.
Vivia de pão e água, jejuava por três dias na semana? Era por higiene, pois
comia demasiado nos outros dias, diz o diário. Se de repente gritos lancinantes,
uivos815 se estendiam a ponto de abalar a fortaleza, acalmavam-se as pessoas:
818. “Quando o Filho do amor veio em pessoa nos anunciar, ensinando-nos o caminho
da vida eterna, nós o compreendemos ainda menos por ele falar uma linguagem estranha
a nosso domínio; ele falava amor e ê por isso mesmo que o condenamos à morte; mas por
um mistério desconhecido no tempo, nós realizamos sua obra." Triomphe de 1’Amour.
Paris, 1828, t. Ill, p. 118.
819. Vie de Joseph Balsamo, p. 165 e 167.
820. Vie de Joseph Balsamo, p. 117.
821. Vie de Joseph Balsamo, p. 177.
822. Vie de Joseph Balsamo, p. 174 e 190.
823. Vie de Joseph Balsamo, p. 177.
824. Ritual, p. 30; e Vie de Joseph Balsamo, p. 198.
825. Vie de Joseph Balsamo, p. 192.
826. Vie de Joseph Balsamo, p. 209 — Jacques de Malay também acreditava na sabedo
ria, na inspiração divina do papa, e pediu para ser ouvido diretamente por ele.
Assim falava ele franca e eloqüentemente82,7 diante dos juizes que
lhe deixavam conceber todas as esperanças e o encorajavam com sua apro
vação; depois, quando ele fez, sem a menor prudência, a admissão de suas
realizações sociais, de suas obras teúrgicas, declarações que escribas re
gistravam, quando os inquisidores sentiram que ele não tinha mais nada a
dizer de si mesmo, o decoro e a linguagem dos atores mudaram. Não
mais doçura, não mais promessas, não mais estima fingida; os conselhei
ros bondosos se tornaram inquisidores impiedosos; o interrogatório827 828 co
meçava.
Um interrogatório pode ser conduzido segundo a vontade dos juizes;
os do Santo Ofício sabiam fazê-lo bem829. Questões entremeadas bastante
habilmente para que a resposta referente a um ponto pudesse ser atribuída
a outro;830 trocadilhos, armadilhas, duplicidade831, tudo foi aplicado para
perdê-lo; às vezes, sob o pretexto de lhe dar a ocasião de provar que ele era
cristão, ordenavam-lhe que recitasse tal ou tal oração do ritual católico832;
833. “Será possível crer que, ao ser interrogado a respeito das virtudes cardeais, ele
respondeu serem as mesmas que as virtudes teologais! — e que o sacramento de confir
mação era a confirmação do batismo! — que ele não sabia quantos eram os pecados
capitais!", escreve com indignação o padre jesuíta, autor da Vie de Joseph Balsamo.
Evidentemente isso merecia a tortura e a morte exemplar.
834. Vie de Joseph Balsamo, p. 173. Eliphas Levi. Homem de imaginação, que, com fre
quência, falava no lugar daqueles que supostamente citava, conta a respeito desse assunto
a anedota seguinte cujo espírito é exato, exceto o texto: “Os juizes se irritaram, pergun
taram-lhe bruscamente o nome de sete pecados capitais; ele nomeia a luxúria, a inveja, a
avareza, a gula e a preguiça. ‘O senhor esquece o orgulho e a cólera’, disseram-lhe.
’Perdoem-me’, retomou o acusado, ’eu não os esquecí, mas não queria dizer seu nome
por respeito e medo de ofender os senhores.’ ”
835. Cf. Duas páginas adiante.
836. Vie de Joseph Balsamo, p. 216. — Gagnière. Op. cit., p. 49-40.
837. Vie de Joseph Balsamo, p. 178.
838. Ibid., p. 176, 177.
839. “Prove-nos que seu marido é um ignorante, que só devia seus sucessos oratórios à
excitação artificial do álcool, o sucesso de suas operações a representações, e a senhora
o salvará do crime de magia. Não temos por que perseguir um charlatão, isso não nos
preocupa nem nos diz respeito ", diziam-lhe. E outro dia: “Se tivéssemos realmente pro
vas de seu saber, fatos reais, indiscutíveis da proteção de Deus sobre ele e suas obras, se
de sua mulher, sofria a dor atroz de saber que ela havia justamente deposto
em sentido contrário a suas declarações.
Quase sempre, com esses diferentes procedimentos, o Santo Ofício
obtinha os elementos necessários à redação de seu ato. Mas quando, apesar
de tudo, Cagliostro não queria fornecê-los, se se recusava a admitir um
crime de que era inocente, a assinar a folha em que se haviam escrito as
confissões fictícias ou as blasfêmias*840 que diziam que ele pronunciara,
restava um último meio especial à Inquisição: a tortura. Usaram-na841.
A força física tem limites; a coragem, a tenacidade se tornam revol
tas, desarrazoadas, cansativas ilusões, quando se chocam com o impossí
vel. Cagliostro viu a inutilidade de seus esforços, a falsidade, a opinião
imutável de seus juizes. Cansado de ser manipulado e torturado, renun
ciou à luta, abandonou-se, entregou-se a tudo o que exigiram os inquisi
dores, certo do resultado final, buscando então apenas evitar, para seus
carrascos, assim como para si mesmo, um mal maior ainda. Os inquisido
res, mestres da situação, tendo em mãos todas as armas necessárias para
esmagar Cagliostro, acusado do fato de heresia, passaram ao segundo ato
de sua obra destrutiva.
Não bastava que Cagliostro desaparecesse, era preciso desconsiderá-
lo junto aos discípulos, perdê-lo na opinião dos homens. Para que sua obra
degringolasse, para aniquilar sua seita e abalar a Maçonaria com sua queda,
era indispensável mostrar a todos um Cagliostro esmagado, arrependido,
de volta ao regaço da Igreja Católica, renegando sua obra, abjurando seus
erros. Pelos mesmos procedimentos, com a privação, os sofrimentos, a vio
lência, fizeram com que Cagliostro aceitasse confessor após confessor,
capuchinho após jesuíta. Esses diretores de consciência entravam em sua
suas predições, suas operações fossem notáveis e verdadeiras, seria matéria de exame e
isso relevaria da mística divina, não da magia negra. Seu marido seria um santo.” — E a
pobre prisioneira, sem guia, isoladamente interrogada, fazia tudo para salvar seu marido,
para salvar a si própria, e tudo era conduzido para que suas respostas o destruíssem ainda
mais.
840. Vie de Joseph Balsamo, p. 214.
841. Não foi o doce autor da Vie de Joseph Balsamo quem nos revelou isso, embora
algumasfrases de seu livro e certos atos de Cagliostro se esclareçam imediatamente quando
pensamos a respeito. Mas as cartas de Semproni (Cf. p. 252) estão lá para provar. Os
costumes da Inquisição são conhecidos e não se modificaram: “As formas judiciárias da
Inquisição não admitiam nenhuma discussão: não era um processo que se debatia entre
o acusador e o acusado. 0 procedimento era sempre secreto efeito a partir de peças que
o acusado nunca via. Nenhum defensor era admitido. As denúncias eram aceitas como
depoimentos que o acusado não podia discutir. Pagavam-se delatores. Enfim, o acusado
devia acusar a si mesmo se queria merecer a indulgência dos juizes. Proibia-se o compa-
recimento definitivo à justiça dos acusados como Cagliostro, do qual se esperavam tirar
novas confissões, e mesmo, se sua memória hesitasse, uma curta visita à sala de tortura
desatava prontamente a língua dos mais obstinados. ’’ Gagnière. Op. cit., p. 50.
cela acompanhados e só saíam com uma retratação nova, uma confissão
geral, uma súplica humilde arrancada do prisioneiro842.
Aliás, era algo bem fácil; Cagliostro resistia cada vez menos843844, esgo
tado e sem ilusões. Enviaram-lhe tais livros, tais monges, que ele foi leva
do mesmo a pedir outros; era o que queriam. Contavam em seguida —
pois, para essa obra pia, o Santo Padre havia “dignado dispensar da lei do
segredo absoluto que acompanha sempre, com tanta justiça quanto pru
dência, os procedimentos da Santa Inquisição644” — com que confusão,
com que baixeza ele reconhecia sua heresia, com que peso no coração pedia
perdão à Igreja; sua resignação era representada como covardia, sua submis
são às exigências cruéis de Roma, como uma abjeta hipocrisia845. Juntavam-
se a isso, sobre seus hábitos e sua vida, todas as calúnias emprestadas às
delações, aos falsos testemunhos dos interesseiros. Publicadas na imprensa,
divulgadas em panfletos e brochuras, difundidas em todas as conversas e
correspondências, essas notícias chegavam rápido aos ouvidos de seus discí
pulos, de seus amigos e perturbavam sua alma846.
Para obter uma abjuração oficial, mandaram-lhe, com a desculpa de
aconselhá-lo, não um advogado847, o que era já contrário aos usos da Inqui
sição848, mas dois advogados, o Sr. conde Gaetano Bernardini e msr. Charles-
Louis Constantini, advogado dos pobres, que empregaram sua eloqüência
em demonstrar que seu caso era claro, que a fogueira o esperava, senão
mais849; que um único meio se oferecia para que ele escapasse dessa morte
atroz: era assinar uma abjuração solene, cujo texto lhe traziam; isso o salvaria
842. Vie de Joseph Balsamo, p. 204, 206, 217. — Gagnière. Op. cit, p. 54, 55. — Lettres
de Semproni, p. 262 deste livro.
843. Algumas revoltas logo contidas ainda lhe escapavam, mas cada vez mais raramente.
Vie de Joseph Balsamo, p. 215.
844. Vie de Joseph Balsamo, prefácio, XXIII
845. E triste ver autores, mesmo liberais e esclarecidos como o Sr. Gagnière, engolir
essas opiniões e não compreender os dramas que se passaram na vida de Cagliostro.
846. Vimos o quanto Sarrasin e Lavaterforam afetados. O Testament de mort, as Confessions,
a Vie de Joseph Balsamo, traduzidas em todas as línguas, datam dessa época.
847. Advogado religioso, é bom notar: um monsenhor da cúria.
848. Nenhum defensor era admitido, como dissemos antes, p. 229.
849. Cagliostro, ao ser reconhecido formalmente herético, “recaía em todas as penas e
censuras que pedem a morte exemplar" (Texto da sentença). Ora, os Bandi generali dis-
tinguiam dois tipos de morte: a pena della vita, enforcamento ou decapitação; a morte
exemplare, ou seja, a fogueira, a roda, o esquartejamento, o arrancamento das entranhas
etc. ( Gagnière. Op. cit., p. 51). “A heresia, diz o Manual dos Inquisidores, é o maior dos
crimes: a morte não o extingue; é preciso persegui-la até no túmulo. A morte é solidária
com os atos e pensamentos do vivo; se por acaso ele houver sido inumado, arrancá-lo-
emos da terra protetora, arrastá-lo-emos miseravelmente pelas ruas; atirá-lo-emos no
depósito de lixo e isso será um terrível exemplo para o povo. ” Os advogados da cúria não
exageravam, portanto, as penas com que ameaçavam Cagliostro.
— “a garantia é segura e formal850” — de novas torturas. Eles a obtiveram
e, desde então, todos os procedimentos foram encerrados.
Em 7 de abril de 1791, Cagliostro compareceu diante da Congregação
na presença do papa851 para ouvir, de joelhos, com a cabeça coberta de um
véu negro, a leitura da sentença seguinte: “Joseph Balsamo, atingido e acu
sado por diversos delitos e por ter incorrido nas censuras e penas pronuncia
das contra os heréticos formais, os heresiarcas, os mestres e discípulos da
magia supersticiosa, censuras e penas estabelecidas tanto pelas leis apostóli
cas de Clemente XII e de Benedito XIV852 contra aqueles que, de qualquer
maneira, favorecem e formam sociedades e conventículos de maçons e pelo
Edito do Conselho de Estado, erguido contra aqueles que forem culpados
desse crime em Roma ou em qualquer outro lugar de dominação pontificai.
Porém, a título de graça especial, a pena que entrega o culpado ao braço
secular (ou seja, a morte exemplar) é comutada em prisão perpétua em uma
fortaleza, onde ele será estreitamente guardado, sem esperança de graça, e,
depois de ter feito a abjuração, como herético formal no lugar atual de sua
detenção, ele será absolvido das censuras e lhe prescreverão penitências sa
lutares às quais ele deverá se submeter.853854
” Essa sentença, “igualmente ab
surda e cruel”, diz a Feuille Villageoisei54, ergueu a indignação de todos os
espíritos racionais da Europa. O tradutor da Vie de Joseph Balsamo, embora
muito hostil a Cagliostro, não pôde evitar juntar a sua voz ao concerto de
reprovação que se elevou contra o ato da Inquisição855.
Treze dias depois, em 20 de junho, ocorreu a odiosa cerimônia de
abjuração pública e o auto-de-fé. “O Santo Ofício queria oferecer o taumaturgo
em espetáculo à população, mostrar, em sua abjeção de arrependido, esse
maçom herético. Cagliostro, em traje de penitente, pés nus, um círio na
860. O Sr. Gagnière acha que Cagliostro foi bem tratado! “Nem mesmo lhe puseram
ferros aos pés ”, diz ele. Op. cit., p. 43. Seria, após tudo o que dissemos acerca dos proce
dimentos do Santo Ofício, um argumento insuficiente, mesmo se fosse verdadeiro. Mas
não o é. Cagliostro foi acorrentado em sua cela. Cf..- Borowski. Op. cit., p. 134.
861. Nós o demonstramos: Cagliostro foi preso por suas convicções, pelo papel que ele
representara na Europa e não por um ato ilegal como teria sido o de fundar uma Loja em
território romano: os próprios inquiridores do Santo Ofício foram obrigados a reconhecer
isso. “Aí causas de sua prisão são incertas ”, escreve um contemporâneo: “acusam-no
de ser um mau católico, que não pratica nem a missa, nem o jejum da sexta-feira. ”
Borowski. Op. cit., p. 134.
862. Vide Apêndice, p. 264. A notícia foi divulgada pelo Kracas, jomal semi-oficial do
Vaticano.
863. Lavater, informado disso por Hirt, anunciou essa notícia a Sarrasin com uma carta
que está nos Arquivos Sarrasin, vol. Vil, cota 39, e a confirmou em seguida, após haver
conversado com Hirt quando este voltou de Roma. Mesmos arquivos, vol. Vil, cota 40. Hirt
repetiu-lhe que sua execução não foi pública, mas que era fato seguro e notório e que ele o
soubera de fonte muito segura. Foi o que serviu de pretexto aos amantes do maravilhoso,
que não podiam admitir a morte de um homem como Cagliostro para contar que ele fugira
com os trajes de seu confessor e que em sua cela só haviam encontrado um cadáver desfigu
rado (o do padre), vestido com os trajes de Cagliostro. Esse Cagliostro assim fugido se
tomava imortal: desde então, ele foi visto, aqui e ali, segundo as necessidades de tais ou
tais interessados. Eliphas Levi propagou tolamente essa lenda desrespeitosa.
864. Mas nada nos prova a veracidade dessas informações além do ato dos registros
pontificais. As cartas de Lavater dão uma data mais recente para a morte de Cagliostro.
O fato, aliás, é secundário: o que é importante é a admissão do assassinato do prisionei
ro, coroando seu martírio.
865. Vide Apêndice, p. 264.
para resistir por mais de quatro anos aos sofrimentos de sua prisão866. O Sr.
Sommi Picenardi deveria ter aprofundado essa frase: “Não se viviam dez
anos em uma cela da Inquisição; a morte, mais clemente que o papa, vinha
libertá-lo”, disse o Sr. Gagnière em seu estudo tão consciencioso a respeito
da Inquisição em Roma no final do séc. XVIII867. Ele também compreendeu
e fez observar que os últimos momentos de Cagliostro, desse homem de
energia tão viva, devem ter sido atrozes868.
Os batalhões franceses chegaram em 19 de fevereiro de 1797 às por
tas de Roma. Imediatamente, os oficiais pediram informações acerca de
Cagliostro: disseram-lhe que ele estava morto. O general Dobrowski, que
ocupou Saint-Leo, mandou libertar de suas celas todos os prisioneiros da
Inquisição. “Amigos”, dizia o general em sua proclamação aos prisionei
ros, “amigos, vocês estão livres. A República Cisalpina, ao destruir uma
das Bastilhas do governo pontificai, devolveu-lhes todos os seus direitos.”
Depois ele mandou explodir a fortaleza de Saint-Leo869.
A Sr? de Cagliostro havia, também, desaparecido. Em princípio encer
rada no convento de Santa-Appolonia do Transtevere870, não estava mais lá
em 1799. Havia sido transferida secretamente para outro lugar? Havia mor
rido de tristeza poucos meses após seu marido, como declararam as religio
sas aos amigos que buscavam seu traço871, ou morrera por maus-tratos? Não
se sabe. A verdade é que a salvação veio tarde demais para ela, assim como
para Cagliostro.
Cagliostro, fiel à sua tarefa, desprezando os sofrimentos e a sua vida,
levara a luz até o pé do Vaticano, que a rejeitou e extinguiu com o sangue
do apóstolo: também ali a taça das iniqüidades estava cheia. Esses foram os
últimos atos e os últimos dias da Inquisição872 e, para Roma, o início da
derrota. Saint-Leo foi derrubada em 1796. Napoleão trouxe, em 1797873, o
golpe fatal à autoridade papal; vemos desmoronar há um século, com uma
velocidade progressiva, o colosso dos pés de argila que durante quinze
séculos esmagou as inteligências e aterrorizou as almas.
877. Liber Memorialis. Trad, francesa. Paris, 1910, p. 45 —Abade Georgel. Mémoires.
Paris, 1817, t. II, p. 45. Relatório contra o procurador-geral. Paris, 1786, in-16, p. 6 e 75.
Ritual da Maçonaria Egípcia, p. 30, 40, 75, etc.
878. O ministro de Sardenha, em Roma, Donato, conta que o motivo da prisão de Ca
gliostro foi, ou que ele era maçom, “ou que ele impedira sua mulher de se confessar”. Ver
também Borowski. Op. cit., p. 134.
879. Ritual da Maçonaria egípcia, p. 75. “Ele não acusava nenhum culto: queria mesmo
que se respeitasse o culto dominante. A Divindade, dizia ele, prefere o culto simples e
puro da religião natural; mas ela não se ofende com o que os homens acrescentaram em
diferentes tempos, segundo as circunstâncias e os climas, para adorar o Criador e expri
mir suas ações de graças.” Georgel. Mémoires. Paris, 1817, in-8?, t. II, p. 46.
880. Atos dos Apóstolos, XXIV: 5-6.
Capítulo XI
Joseph Balsamo e o
Conde de Cagliostro
881. A tática foi muito hábil: Morande escreveu primeiro no Courrier de 1’Europe (27 de
fevereiro de 1787), sem provas, a respeito de confidências feitas a ele, dizia, de que o
conde de Cagliostro com freqüência se apresentara como Balsamo, em particular em
Londres, onde ele já morara em 1771. Foi apenas então que o comissário Fontaine decla
rou, como confirmação surpreendente das revelações de Morande, que, com efeito, o cha
mado Balsamo, cuja mulher se chamava Feliciani, também tivera entreveros com a polí
cia de Paris em 1773.
882. No Courrier de Londres (fevereiro a junho de 1787), na Gazette de Leyde, nas Notizie
dei Mondo, de Florença (n? 83 de 1786).
883. Em 21 de novembro de 1786, a Loja “Antiquity" do Rito Escocês recebeu Caglios
tro. Uma caricatura foi publicada sobre essa reunião. (Cagliostro unmasked, etc.) repro
duzida in: The Monist, julho de 1903.
vida do dito Balsamo; exumaram-se os relatórios da polícia, receberam car
tas referente a ele que o pintavam sob as cores mais negras; contos, acusa
ções, fantasias,884 tudo se acumulava ainda mais facilmente porque não ha
via nenhum Balsamo para protestar e Cagliostro não tinha nenhuma razão
para tomar a defesa de um Balsamo. Contentou-se em declarar, na ocasião885,
que ele não se chamava Balsamo, assim como não se chamava Tischio ou
Baltimore. Goethe interveio nesse debate, em 1787, e, pomposamente, pu
blicou uma árvore genealógica do chamado J. Balsamo886, personagem mui
to autêntico sem dúvida, mas cuja genealogia, por mais exata que seja, nada
prova em relação a Cagliostro. Goethe acreditou, porém, com essa nota, ter
contribuído grandemente para esclarecer a humanidade; ele escreveu e seus
leitores repetiram. Seu papel, de fato, foi insignificante. Goethe estava de
passagem por Palermo; mostraram-lhe o dossiê Balsamo e a árvore
genealógica; ele foi ver a família; deu à mãe e aos filhos algumas falsas
esperanças887, fez papel de generoso com o dinheiro de um amigo e eis toda
a sua obra. Não acrescentou nenhum documento ao dossiê já organizado
pelo advogado que o conduzia e cujo nome ele nem forneceu. Por intermé
dio desses testemunhos, pelas pesquisas feitas na Itália, estabeleceu-se um
fato: que um certo Joseph Balsamo nasceu em Palermo, em 2 de junho de
1743, deixou a região muito jovem, casou-se em Roma, em 1768, com uma
certa Lorenza Feliciani, filha de um ourives, desapareceu em seguida até
1771, quando foi visto em Londres888; que em Paris, em 1773, teve de ajustar
contas com um rico depravado que fez a corte a sua mulher e que ele teve de
recorrer à justiça para lhe tomar de volta a conquista; que, em seguida, per
deu-se seu traço.
Eis os fatos Balsamo claros, completos, tais como estão nas peças
oficiais889. Eles parecem exatos e estabelecem indiscutivelmente a existên
cia, a genealogia e as aventuras de alguém chamado G. Balsamo890.
897. Courrier de 1’Europe, 1787, p. 393, col. I. As palavras da carta de Bernard: "O
senhor dissera, etc. ” indicam que ele realmente respondia a um pedido de informação.
898. Comparar o depoimento de Bracconieri in: Courrier de 1’Europe, n.° 48, p. 401.
899. Devemos notar que os próprios documentos Balsamo não são muito precisos: há ma
téria para discussão; assim, a versão do Santo Ofício define como certidão de nascimento 8
de junho, em lugar de 2; como lugar de celebração de seu casamento, Saint-Sauveur-aux-
Champs, em lugar de Santa-Maria-in-Monticelli, esta última registrada na certidão. (Cf.:
Apêndice, p. 263); que o nome da esposa de Balsamo é ou apenas Lorenza (Bracconieri), ou
Feliciana (Sartines), ou ainda Feliciani (certidão); que Bracconieri encontra Balsamo em
Nápoles em 1773, o mesmo ano em que o dossiê Fontaine afirma que ele está em Paris.
— A semelhança do sobrenome das duas mulheres,
— A existência do nome Cagliostro em um ramo da família Balsamo.
E pouco; além disso, nada em comum; características físicas sem re
lação, detalhes diferentes, negação de Cagliostro, afirmação formal de Sachi
em um sentido oposto ao de Bracconieri; ausência de qualquer documento
oficial (atas, cartas, testemunhos) que apoiem a hipótese. Nos papéis de
Cagliostro que foram confiscados duas vezes ao imprevisto, em Paris, em
1784, e em Roma, em 1789, nenhum traço de Balsamo900. Essas constatações
são em maior número e importância que as objeções precedentes e pode
ríam fazer considerar como fortuitas as três semelhanças assinaladas.
Haveria um meio de esclarecer para sempre a questão: confrontar
Cagliostro com seu pretenso tio, com sua pretensa mãe, que viviam em 1787,
e de que tanto se falava; e se Palermo era demasiado longe, confrontá-lo com
Duplessis, com Buhot901, sobretudo com o comissário Fontaine, cuja profis
são era reconhecer as pessoas. Ora, nem o comissário Fontaine, em 1787,
nem o Santo Ofício, em 1791, fizeram-no. Por quê? A resposta é simples: a
história era tão duvidosa que temiam ver tudo desmoronar diante de um fato
brutal; um pouco de obscuridade valia mais.
A obscuridade permaneceu. Hoje, os atores não existem mais; é-nos
impossível retomar a questão. Erguemos apenas objeções, e não fornece
mos uma refutação decisiva da teoria da identidade, isso é verdade; mas há
que se concordar que a teoria adversa repousa sobre argumentos bem espe
ciosos e bem vagos. Que o fato seja possível, verossímil mesmo, em rigor,
nós o reconhecemos. Mas não podemos, a nenhum título, não devemos
dizer em total sinceridade histórica — e se conseguimos prová-lo, nosso
objetivo foi atingido — que uma demonstração da identidade de Balsamo
e Cagliostro já tenha sido fornecida por um indício qualquer.
Pois bem, sob essas reservas, admitamos a hipótese: aceitemos que o
conde de Cagliostro tenha nascido Joseph Balsamo. Em que isso atenta a
sua honradez, em que deve isso modificar o julgamento que a posteridade
pode fazer a respeito dos atos ulteriores de sua vida?
Que tenha sido o filho de um procurador, de um guarda ou de um
lavrador, o que nos importa? Se os homens do século XVIII podiam inquie
tar-se com isso, esse escrúpulo não podería nos deter hoje. Epicteto era
escravo, nascido de escravo; seu nome e sua moral sofreriam uma deprecia
ção por esse fato? Que Cagliostro tenha tido uma infância caprichosa, um
caráter independente, que suas fugas tenham escandalizado os seus, seu tio
900. E sabemos que ele tinha papéis muito importantes, “insubstituíveis ”, que os exami
naram muito bem, que não os devolveram em Paris e que, em Roma, embora avisado, ele
não destruiu nenhum documento, nem escondeu nada de seus arquivos.
901. De resto, Buhot e Fontaine devem ter visto Cagliostro com bastante freqüência em
Paris, em 1784, e não tiveram nenhuma idéia de encontrar Balsamo ali.
em particular, que não podia fazer dele um perfeito contador, como ele902;
que tinha viajado pouco ou muito; que tenha desposado a filha de um ouri
ves, “homem de bem”, aliás903, mas pobre, em lugar de uma rica herdeira,
esses são fatos sem importância para a humanidade. O que interessa ao
historiador é o que ele fez, quando, penetrando na arena dos combates
sociais, ele se misturou às paixões, às lutas, aos sofrimentos de seus ir
mãos.
Nós não aceitamos por isso, de olhos fechados, todas as acusações
com que as pessoas tanto se agradaram em sujar o período obscuro de sua
juventude; não temos de levar em conta calúnias fantasiosas, imputações
odiosas e gratuitas, invenções de panfletários, fabricadas dia a dia, conta
das sem quaisquer aparências de provas, com freqüência contraditórias,
histórias de patifaria, relatos obscenos, suscetíveis de regozijar os assinantes
do Courrier de I’Europe ou de agitar os piedosos leitores da Vie de J.
Balsamo904. Todas essas histórias escandalosas, contadas sem provas, não
merecem ser discutidas. Sachi pode contar de Dom Tischio, em Barcelona, o
que quiser; a vida de J. Balsamo pode aplicar-se a Cagliostro; um panfletário
pode representar Balsamo como um bandido, um falsário, um proxeneta;
se não nos der como garantia nada, além de sua própria palavra, e é o caso,
ou a autoridade de outro panfletário anônimo905, temos apenas que passar
902. Antoine Bracconieri era contador da casa Aubert e Cia. de Palermo. Pierre Balsamo
morreu alguns meses após o nascimento de seu filho, Joseph Balsamo; a criança foi entre
gue a J. Bracconieri, seu tio-avô, e em seguida, quando da morte deste, a A. Bracconieri. Os
tios se livraram da criança colocando-a primeiro no seminário de Saint-Roch de Palermo,
de onde ele fugiu, em 1755, para voltar para casa; colocaram-no em seguida num reforma-
tório, nos Bonfratelli de São Benedito, perto de Cartagirona (1756). Ele também não
ficou lá e, abandonando o hábito, rejeitado pelos seus, começou, aos 14 anos, sua vida
independente. Outra versão de sua infância diz que, em 1754, ele já era interno em
Cartgirona; que em seguida ele foi posto em penitência, ainda interno, em Georgenti,
com os Capuchinhos, em 1755, e que foi de lá que ele fugiu, retomando definitivamente a
liberdade. Lettre écrite d’Aix-les-Bains à M. De Beaumarchais, in-8?, 1788, p. 9.
903. Testemunho de A. Bracconieri. Cf. Courrier de 1’Europe de 15 de junho de 1787.
904. A Vie de J. Balsamo, publicada por último, acumula essas narrativas e se estende
com alegria sobre essas torpezas; o autor evita, aliás, citar referências; para isso, teria
sido preciso invocar a autoridade de Morande, de Sachi, de madame de la Motte ou dos
delatores pagos do Santo Ofício, e as mentiras não mais teriam tido verossimilhança.
Apesar dessa precaução, a razão com freqüência se revolta à leitura dessa misturada. O
jovem Balsamo aparece ora dotado de um poder diabólico extraordinário (Vie, p. 5), ora
como um charlatão, especulando acerca da credulidade supersticiosa dos ingênuos
palermitanos e representando, com seus comparsas, cenas fantasmagóricas. Ator, escroque
em um caso, feiticeiro verídico em outro, ao autor pouco importa a contradição, basta-
lhe acumular acusações. Seria preciso um pouco de coerência.
905. A Vie de Joseph Balsamo transborda desses empréstimosfeitos às Mémoires authentiques,
à Confession de Cagliostro, à Ma Correspondance et la Suite, etc. sem indicar a origem.
por cima disso. A mãe de J. Balsamo conservava dele a mais terna das
lembranças, desejava vê-lo voltar e tomá-lo nos braços antes de morrer906,
enviava-lhe sua bênção e lhe pedia a dele. Bracconieri não pintava seu
sobrinho como um vadio: só conta dele suas fugas dos seminários, onde o
haviam encerrado, e seu caso com Marano, em busca de um tesouro, sim
plesmente, sem detalhes romanescos. Em Nápoles, mesmo em Palermo,
em Roma, Balsamo gozou da estima e da amizade de altos personagens e
não aparece como um homem desonesto. Esses são testemunhos positivos
em seu favor.
Em tudo o que se produziu contra Balsamo, apenas um caso parece
importante, um só documento existe; uma única acusação domina tudo e
merece ser examinada907. E o caso Duplessis-Balsamo, a ação intentada em
Paris por Joseph Balsamo contra o sedutor de sua mulher. Admitamos, sem
discussão, também neste ponto, que o documento seja verdadeiro908.
O que vemos? Uma aventura banal; um rico e brilhante sedutor, fa
zendo-se protetor de um estrangeiro, de um inventor, cuja mulher, muito
agradável, atrai-o; um marido absorto, freqüentemente ausente, uma mu
lher coquete e ingênua; um momento de fraqueza após uma longa resistência,
909. Ele não teria podido acrescentar Belmonte, nem Pellegrini, etc. “Eu me apresento
como conde de Cagliostro por ordem superior, disse à SP de Recke, embora este não seja
meu nome verdadeiro. Minha verdadeira qualidade pode ser superior ou inferior àquelas
que me concedi, eis o que o público talvez fique sabendo algum dia." Cagliostro teria
declarado também que ele “já servia o mesmo espírito superior, o grande Copta, outrora
sob o nome de Frédéric Gualdo”, declaração que, se exata, é muito facilmente explicável.
Mas as palavras de Cagliostro são provavelmente muito mal transcritas. Encontramos
essa história em Borowski. Cagliostro, einer der merkwurdigsten... 1790, in-16, p. 67
(segundo o livro da SP de Recke).
910. Escolha bem natural na hipótese Balsamo. Ver: Apêndice, p. 266. O panfleto Lettre
écrite d’Aix, 1788, p. 13, explica, com gravidade, que esse pseudônimo foi formado por
Balsamo de dois radicais italianos Cagliare e ostro que significa: “Eu quero, eu desejo a
púrpura!” E fácil ver o amontoado de bobagens e de falsidades em que somos obrigados
a patinhar para conseguir encontrar algumas migalhas de verdade referentes a Cagliostro.
acerca desse ponto. Mesmo admitindo essa assimilação dos dois perso
nagens, mesmo considerando o dossiê Fontaine referente ao caso
Duplessis-Balsamo como autêntico, não encontramos, na vida pouco co
nhecida de Balsamo, nenhum fato positivo criminoso ou simplesmente cul-
pável, nenhum ato irreconciliável com o caráter e as virtudes excepcionais
daquele que admiramos sob o nome de Cagliostro em sua existência públi
ca911. Se ele se apresentava sob um nome fictício, lançou-se sobre sua origem
um véu que ainda permanece, foi menos por ele do que pelos outros. Criança
indomável, à qual nenhuma disciplina poderia convir, já dotado de qualida
des que atraíam a atenção e chocavam as pessoas, ele sacudia o jugo que lhe
queriam impor; aquele que falava aos maiores do mundo, aos príncipes da
ciência, com tanta soberba, livre independência, poderia inclinar-se sob a
férula dos monges ignorantes e brutos? Abandonado pelos seus, ele esque
ceu seu nome para poder perdoá-los; enganado por aquela que ele escolhe
ra, ele a salvou, soube esconder sua culpa e rodeá-la de mais atenções, pois
se mostrara muito frágil. Não seria o comportamento natural daqueles que
vimos, perseguido, devolver o bem pelo mal, espalhar a bondade e a luz
sobre os mesmos que o lançavam em derrisão? Nós havíamos dito ao come
çar este capítulo: a questão da vida desconhecida de Cagliostro não tem im
portância: nós a repetimos ao terminar, esperando tê-lo demonstrado; mes
mo admitindo sem provas, com seus adversários, a identidade de Balsamo e
Cagliostro, não encontramos, nessa hipótese, nada que possa manchar a no
breza ou a beleza da vida de Cagliostro.
911. A aceitação da identidade dos dois personagens traz, em troca, a justificativa, mes
mo sob o ponto de vista social, por alguns títulos e pelo nome sob o qual Cagliostro se
apresentou ao mundo. Suas relações com a Ordem de Malta se encontrariam também, ao
mesmo tempo, singularmente esclarecidas. Ver: Títulos de nobreza, armas das famílias
Balsamo e Cagliostro. Apêndice, p. 266-267.
Epílogo
O Mestre Desconhecido
972. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral. S.L. (Paris), 1786, in-
16, p. 12.
meu país é aquele em que fixo momentaneamente meus passos. Datem-se
de ontem se vocês quiserem, realçando os anos vividos por seus ancestrais,
que lhes foram estranhos; ou de amanhã, pelo orgulho ilusório de uma
grandeza que talvez jamais seja a sua; eu sou aquele que é.
Tenho apenas um pai: diferentes circunstâncias de minha vida me
fizeram suspeitar, a esse respeito, de diferentes e comoventes verdades;
mas os mistérios dessa origem e as relações que me unem a esse pai desco
nhecido são e permanecem meus segredos; que aqueles que forem chamados
a adivinhá-los, a entrevê-los, como eu o fiz, compreendam-me e aprovem.
Quanto ao lugar, à hora, em que meu corpo material, há cerca de quarenta
anos, formou-se sobre esta terra; quanto à família que escolhi para isso,
quero ignorá-lo; não quero me lembrar do passado para não aumentar as
responsabilidades já pesadas daqueles que me conheceram, pois está escri
to: Não farás tombar o cego. Não nasci da carne, nem da vontade do ho
mem: nasci do espírito. Meu nome, aquele que é meu e de mim, aquele que
escolhi para me apresentar entre vocês, eis o que exijo. Aquele com o
qual me chamaram em meu nascimento, aquele que me deram em minha
juventude, aqueles sob os quais, em outros tempos e lugares, eu fui conhe
cido, eu os larguei, como eu teria largado vestimentas fora de moda e agora
inúteis.
Eis-me aqui: sou nobre e viajante; eu falo, e sua alma treme ao reco
nhecer antigas palavras; uma voz, que está em vocês e que se calara há
muito tempo, responde ao apelo da minha; eu ajo e a paz volta a seus
corações; a saúde, a seus corpos; a esperança e a coragem, a suas almas.
Todos os homens são meus irmãos; todos os países me são caros; eu os
percorro para que, em toda a parte, o Espírito possa descer e encontrar um
caminho para vocês. Só peço aos reis, cujo poder respeito, a hospitalidade
em suas terras e, quando ela me é concedida, eu passo, fazendo em torno
de mim o maior bem possível; mas eu apenas passo. Seria eu um nobre
viajante? ‘Como o vento do Sul913, como a brilhante luz do Sul que caracte
riza o pleno conhecimento das coisas e a comunhão ativa com Deus, eu
vou para o Norte, para a bruma e o frio, abandonando em meu caminho
algumas parcelas de mim mesmo, diminuindo a cada estação, mas deixan
do-lhes um pouco de claridade, um pouco de calor, um pouco de força, até
que eu tenha enfim parado e fixe definitivamente o termo de minha carrei
ra, na hora em que a rosa florescer sobre a cruz. Eu sou Cagliostro.
Por que vocês precisam de algo mais? Se vocês fossem filhos de Deus,
se sua alma não fosse tão vã e curiosa, vocês já teriam compreendido!
Mas vocês precisam de detalhes, signos e parábolas: ora, escutem!
Voltemos bem longe no passado, já que vocês querem assim.
913. Cagliostro, a partir de duas raízes italianas, pode ser interpretado como: o vento do
sul, que se fixa, amorna-se e tempera.
Toda luz vem do Oriente; toda iniciação, do Egito. Tive três anos
como vocês, depois sete anos, depois a idade de homem e, a partir dessa
idade, não contei mais. Três setenários de anos fazem 21 anos e realizam a
plenitude do desenvolvimento humano. Em minha primeira infância, sob
a lei do rigor e da justiça914, sofri no exílio, como Israel entre as nações
estrangeiras. Mas como Israel tinha consigo a presença de Deus, como um
Metatron a guardava em seus caminhos, da mesma maneira um anjo pode
roso velava sobre mim, dirigia meus atos, iluminava minha alma, desen
volvendo as forças latentes em mim915. Ele era meu mestre e meu guia.
Minha razão se formava e se definia; eu me interrogava, eu me estu
dava e tomava consciência de tudo o que me rodeava; fiz viagens, muitas
viagens, tanto em torno da câmara de minhas reflexões quanto nos templos
e nas quatro partes do mundo; mas quando eu queria penetrar a origem de
meu ser e subir em direção a Deus em um impulso de minha alma, então
minha razão impotente se calava e me deixava entregue a minhas conjectu
ras.
Um amor que me atraía em direção a toda criatura de uma maneira
impulsiva, uma ambição irresistível, um sentimento profundo de meus di
reitos a todas as coisas da terra ao céu me impulsionavam e me lançavam
em direção à vida, e a experiência progressiva de minhas forças, de sua
esfera de ação, de seu jogo e de seus limites foi a luta que tive de sustentar
contra as potências do mundo916; fui abandonado e tentado no deserto; lu
tei com o anjo, como Jacó, aprendi os segredos que dizem respeito ao im
pério das trevas para que eu jamais possa me perder em alguma das rotas
de onde não se volta.
Um dia — após tantas viagens e anos! — o Céu recompensou meus
esforços: ele se lembrou de seu servidor e, revestido de hábitos nupciais,
tive a graça de ser admitido, como Moisés, diante do Eterno917. Desde en
tão, recebi, com um nome novo, uma missão única. Livre e mestre da vida,
só pensava em empregá-la para a obra de Deus. Eu sabia que Ele confirma
ria meus atos e minhas palavras, como eu confirmaria Seu nome e Seu
reino sobre a terra. Há seres que não têm mais anjos da guarda918; eu fui um
deles.
Eis minha infância, minha juventude, tal qual seu espírito inquieto e
desejoso de palavras a reclama. Mas que tenha durado mais ou menos anos,
que tenha transcorrido no país de seus pais ou em outras regiões, o que
importa a vocês? Eu não sou um homem livre? Julguem minhas maneiras,
Primeira Parte
Documentos particulares referentes à origem e à pessoa
de Cagliostro
I — Assinaturas de CagEostro
As assinaturas de Cagliostro são raras: ele escrevia pouco e assinava
suas cartas seja com seu prenome919, seja com seu selo: a serpente atravessa
da por uma flecha, aposta sobre cera verde. Esse
sinete, cujo motivo reproduzimos aqui, selava o ma
nuscrito do Ritual da Maç Egípcia920.
O monograma cursivo pelo qual Cagliostro o
representava e que constituía sua assinatura mística
se encontra no final de uma carta em italiano escrita
por Cagliostro à Si? de Recke, em 1779.
Eis essa peça:
In questa potrete imaginarvi, se ho delia stima
per voi; mai ho scritto a donne, e per questo e ilpri- Cara figlia e sorella
mo vincolo che rompo in voi perche vi stimo e ilfutu
ro sara che vi dara prove dei mio operare. Ed intanto cara, non vi
dimenticate i miei consigli et l’amore fraternale. II silenzio e quello che
vi indura alia vera strata dei Sabbini et vi fara unire alia gloria celeste
et sarete satesfatta dai trovagli che fatto avete.
Sicche sapiate, cara sorella, che io sono il medisimo sempre per
voi, e avro tutta la cura possibile perfarvi contenta; ma il silenzio ritomo
arreplicarvi. Ed intanto v’incarico imbasciatrice per me e specialmente
il vostro caro Padre et Madre e Sorella alli qualifarete tutto quella che il
919. Carta a sua mulher, assinada “Il tuo Alessandro ” (Coleção do Sr. visconde Morei de
Vindé; um exemplar data do de 4 de fevereiro de 1788?). O Sr. Charavay diz, no Amateur
d’autographes de 13 de fevereiro de 1900, p. 33, que ele viu algumas assinaturas análo
gas mas que as assinaturas Cagliostro são quase impossíveis de encontrar.
920. Cf. p. 137 deste livro.
vostro cuore vi dirá e direte che spero in breve tempo di abbracciarli di
presenzza. Ma nel tempo istesso v’incarico di pregare ao Grande Iddio
per me, perche mi ritrovo circondato d’inemici e pieno di amarezzi, in
unione di mia moglie vostra cara sorella; ma bisogna sofrire con pasienzza
e battere I’ingnioranzza profanesca.
Per adesso non posso dirvi di piu, ma fra poco vi diro di piu. E com
questo finisco com darvi i saluti di mia moglie, come il consimile osserva
com tutti i E: e S.: E per non piu dilungarmi, mi resto con abbraviarvi de
cuore, come osservo con tutti i E: et S.: e non vi dimentichiate de me ut
Deus.
927. Von der Recke. Nachricht von des berüchtigten, in-8?, p. 147, 148. A St?de Recke dá
em seguida a essa carta uma tradução em alemão.
922. Arquivos Sarrasin, Bâle. Carta datada de Estrasburgo, 2 de abril de 1783.
923. O sábio e mui amável diretor dos Arquivos, Sr. Dêjean, autorizou-nos de boa vonta
de a reproduzi-la e nos facilitou essa tarefa: pedimos-lhe que queira aceitar todos os
nossos agradecimentos.
II — Certidão de Batismo
Certidão constatando que Joseph Balsamo, filho de Pierre Balsamo e
de Felicia Bracconeri (szc), foi batizado em 8 de junho de 1743 na igreja
metropolitana de Palermo na presença de Jean-Baptiste Barone, padrinho,
e de Vincentia Cagliostro, madrinha, substituída por Josèphe Basile, que
tinha uma procuração para isso.
Arquivos da Igreja Metropolitana de Palermo — Cópia legalizada
(coleção do autor).
MAGISTER CAPELLANUS
A.tíjiie Si Si- Sacrament! Rector
AUALIUM SOCLEElAfiUM : AQUAE CURSARUM - AOUAs SANCTAS— ARSNELLA-
COMITIS FRIQ=HICI - FALSIMSLLI8 - PALLAVICINI - RCCC5LLAE - VILLAORATIAE
VIRGINIS MARIAE, IMMACULATAE CONCEPTION IS. VULGO PGRCELLI
3- ANTCSINI ET S. FRANClSCI Q: PAULA CURAM ASENS
Fideru íacia ae testor in una librorinn ptíedictae Metropolitan®, Ecclcsí®,
in que adnotantn* nomina et cognomina baptizatorncn, coniugatorum, et mor-
luormu, inveniri notara tenons «quentis:
Anno Domini luillesinio e^tiHgenlesitíM»
Die V/// _ _ Menais
f
í
In quorum Fid. etc.
Tradução
927. Havia duas famílias Cagliostro em Messina, em 1788. Cf. Courrier de 1’Europe,
1788, n.° de 15 de junho, p. 393, col. 2. Carta de Bracconieri.
928. Alexandra Scala. Op. cit... p. 603.
Apêndice
Segunda Parte
Documentos gerais — Cartas e referências
930. Note-se que todas as pílulas de Cagliostro tinham o peso de cinco grãos e eram
cuidadosamente douradas.
931. Encontramos no Dispensatorium Wurtemburgicum de 1771 (p. 105) um procedimen
to análogo para a preparação do Oleum myrrhae per deliquium.
932. Carta ao Pretor Real. Save rua, 17 de julho de 1781. Manuscritos da Biblioteca de
Estrasburgo, lote AA, 2110. Peça 2. — Lettre à la marquise de Créqui em 1781; relatada em
suas Mémoires e muitas vezes reproduzida. Cf.: D’Alméras. Cagliostro. Paris, 1904, p. 200
e outras.
esta carta tão pouco conhecida, cujo teor é quase o mesmo que a das
Mémoires de Sd de Créqui, podería muito bem ser a peça autêntica, origi
nal933, da qual a carta à marquesa de Créqui seria apenas uma imitação adap
tada de 1781; enfim, segundo a data e o texto, é provável que esta carta tenha
sido escrita ao arcebispo de Lyon no momento em que o conde de Cagliostro
se preparava para voltar à França, acreditando no sucesso de sua Petição aos
Estados-Gerais, esperando que o decreto arbitrário que lhe proibia a entrada
na França seria anulado. Cagliostro queria voltar a Lyon e o cardeal de Rohan
lhe facilitava os meios. Eis sua recomendação:
“O senhor com freqüência me ouviu, monsenhor, falar do conde de
Cagliostro e o senhor sabe como sempre falei de suas excelentes qualida
des, de seu amor por fazer o bem e de suas virtudes que lhe valeram e
cativaram a estima das mais distintas pessoas da Alsácia e minha afeição
em particular. Ora, atualmente sei que ele está em Lyon sob o nome de
conde Phoenix e o recomendo com a mais viva instância; se o senhor se
dignar a fazê-lo, ele atrairá as atenções gerais. Eu lhe peço também que pre
vina o Sr. Caze. Estou persuadido de que o senhor tomará por esse ser ben
feitor os sentimentos que lhe exprimo. É com veneração que reconhecí sua
inclinação constante para tudo o que ele acredita ser bem feito e justo. Eu
disse tudo o que foi feito para incitar o senhor a lhe testemunhar atenção e
amizade particulares, mas ainda não disse todo o bem que penso dele.
O abade Maury gostaria muito que fôssemos a Paris934. Eu espero e
desejo que ele tenha sucesso, mas nós não o teríamos atrapalhado. Escrevi
ao Sr. Séguier e ao cardeal de Luynes em seu favor. O senhor acha que a
Alsácia já ecoa o barulho da guerra, eu poderia apostar que haverá guerra e
estou intimamente persuadido que que ela não ocorrerá.
Adeus, monsenhor, eu lhe sou afeiçoado há muito tempo e para sem
pre de todo meu coração.
933. Essa carta faz parte das coleções de M. Alfred Sensier que autorizou sua reprodução
na Revue des documents historiques:/oi de lá que a tiramos.
934. O cardeal fora eleito deputado dos Estados-Gerais', é provável que sua presença
nessa assembléia tenha estimulado Cagliostro a dirigir sua Petição aos Estados-Gerais.
III — Carta de Barbier de Titian, Comissário das
Guerras, ao Editor da Correspondêcia Secreta
de Neuwied
Estrasburgo, 21 de dezembro de 1786
Muito me espanta, senhor, que um homem de letras que dá todos os
dias provas dos recursos que tem para completar de maneira interessante
a obra periódica que empreendeu se abaixe a querer alimentar a maligni-
dade do público à custa de um homem que não conhece. Eu não o acredi
tava feito para ser o eco do autor do Courrier de 1’Europe e para acres
centar ao veneno que sua pluma destilou tão falsa quanto maldosamente
acerca do Sr. conde de Cagliostro. Tenha a certeza de que aquilo que lhe
escrevem de Londres, referente ao pretenso desprezo que lhe atraiu esses
vãos ataques, não tem fundamento; tenho certeza do contrário e, quando
se vê de um lado o Sr. d’Epréménil, cuja reputação está bem acima de
certos ataques, e outras pessoas distintas dar-lhe provas da mais alta esti
ma e da mais constante afeição, isso me parece o bastante para contraba
lançar o senhor Morande e fazê-lo ao menos suspender seu julgamento,
em lugar de condená-lo com antecedência à sorte dos Schoepfer e dos
Zanovich935.
Não tema por ele, senhor, como uma conseqüência da perda dos re
cursos jornalísticos que o senhor supõe que ele tenha. Essa idéia lhe foi
imposta; mas eu, que muito conheço o Sr. conde de Cagliostro, que o amo
muito e disso me vanglorio, desafio a que me mostrem uma só pessoa que
diga haver fornecido direta ou indiretamente à despesa que ele fez desde
que entrou na França. Não é de hoje que a maldade o ataca e que diferentes
pessoas foram citadas por tê-lo feito936 à custa de sua própria fortuna, mas
não há nenhuma que não esteja em estado de afirmar da mais solene ma
neira que nada é mais falso que essa imputação.
Não tentarei, senhor, dizer-lhe tudo o que penso a respeito do Sr.
conde de Cagliostro; o senhor me parece muito prevenido contra ele para
que eu possa crer que apenas meu testemunho o faria passar do maior dos
afastamentos a toda a estima que ele merece. Gostaria apenas de poder
incitá-lo a ter mais moderação a seu respeito, tanto pelo temor de fazer
dele um julgamento precipitado quanto por algum respeito por muitas
935. Diziam-se entre outras bobagens que Cagliostro era irmão de Stephan Zanowich,
impostor e aventureiro, pseudopríncipe da Albânia, que por muito tempo enganou os
grandes senhores da Polônia, depois se suicidou. (Borowski) Cagliostro einer der merkwur-
digsten..., p. 29.
936. Apoiado
pessoas dignas de estima e de consideração que, há muito tempo, profes
sam por ele uma afeição pública e que seria difícil acusar de cegueira.
Tenho a honra de ser, etc.
Barrier de Tinan
Comissário das Guerras937.
Introdução
945. René Hélot. Un contrat entre Mesmer et Rouelle. Rouen in-8?, 1904.
946. Ainda devemos guardar nossas reservas acerca do assunto, pois o magnetismo de
Mesmer e o hipnotismo em nossos dias são termos vagos que englobam uma porção de fatos
disparatados e que não têm, na verdade, nenhum sentido preciso.
Nenhum ramo das ciências humanas o deixava indiferente, pois via nele a
parte de verdade que exprimia, mas não fazia comércio disso nem se
ligava a ele exclusivamente. Em cada uma das cidades em que morou, sua
atividade foi empregada de maneira diferente. Mesmer enriqueceu com
seu magnetismo; Cagliostro dava seu tempo, seus remédios e seu dinheiro
aos doentes que se apresentavam e passava a outros trabalhos.
Queriam vê-lo como um místico curador como foi madame de la Croix,
amiga de Claude St.Martin, personalidade atraente, de moralidade e abne
gação indiscutíveis, de bondade sem limites? Novamente, um pouco de aten
ção mostraria que esse caminho era errado. Madame de la Croix andava com
os olhos vendados, firme em suas crenças estreitas; ela nada sabia daquilo
que fazia nem do que não fosse seu mundo de visões; ela atacava qualquer
sofrimento, físico ou moral, rezava, persuadia, conjurava, exorcizava, gri
tava, batia até que o diabo — ela o via em toda a parte — fosse enfim
desalojado. Assim que partia, com freqüência o diabo voltava. A vida
ascética de madame de la Croix, suas intervenções caridosas relevavam
uma crença pouco esclarecida; a guerra que ela fazia aos demônios com a
água benta e as relíquias era uma missão recebida que ela executava pon
tualmente, sem a compreender, e que chegava mesmo a inquietá-la947.
Cagliostro falava com autoridade, sem violência; vivia como todo mun
do, sobriamente, mas sem privações; ele cuidava das pessoas sem fórmulas,
sem exorcismos948, simplesmente, segundo suas doenças, e com toda espé
cie de métodos (censuraram-lhe mesmo por só os ter curado com remédios
anódinos, ao alcance de qualquer médico). Ele sabia o que fazia; às vezes o
explicava. Sua teologia se limitava a preceitos muito simples, inteligíveis a
todos949. Por fim, sua vida ativa, suas relações, suas viagens, seus outros
estudos, suas obras sociais ocupavam uma parte muito grande de seu tem
po para que se possa limitar seu papel ao de um curador.
Se ele se ocupou com alquimia na Polônia, se fez disso o tema de
conversas com admiradores dessa ciência, não se poderia porém assimilá-
lo a um Duchanteau, a um Lascaris, cuja preocupação contínua era saber
se o atanor tinha três andares e se o sangue era a matéria-prima, ao menos
947. “Vós que me conhecestes tão ciosa de minha reputação e de minha superioridade,
que sabeis que me privo de todo o supérfluo para dá-lo aos pobres, que vedes que o
ofício que realizo só me traz vergonha e desprezo... não compreendeis que a tarefa que
cumpro me foi imposta por uma Potência Superior? Dizei-me francamente se achais
que meu espírito enfraqueceu e que perdi a razão?" Souvenirs du Baron de Gleichen. 1
vol. in-16. Paris, 1868. p. 175.
948. “Jamais incluí o diabo em meus trabalhos e jamais fiz uso de coisas que recorrem à
superstição. ” Procès de J. Balsamo. Paris, 1791, in-8?, p. 189 e 192.
949. “Ame e adore o Eterno com todo o seu coração, ame e sirva o seu próximo fazendo-
lhe todo o bem de que você é capaz, consulte sua consciência em todas as suas ações.
Patente da Sabedoria Triunfante e Interrogatoire in: Vie de J. Balsamo, p. 173 e 209.
que fosse a urina. Cagliostro mostrava diamantes aumentados com a arte
hermética, afirmava a existência da transmutação metálica, mas era para
ele a expressão de uma verdade ainda ignorada pelas ciências naturais950.
Ele não falava de outra maneira da direção dos balões, das regiões desco
nhecidas da Terra ou da vida secreta dos vegetais. E como ele vivia confor
tavelmente com seus recursos, nada pedindo, dando muito, como não se
pôde determinar nem a origem de sua fortuna, nem o objetivo pessoal de
sua atividade maçônica, como os próprios maçons não puderam arregimentá-
lo ou empregá-lo, preferiram romper com ele, como foi impossível
comprometê-lo em uma intriga política ou em uma patifaria como o Caso
do Colar, do qual ele saiu imune, muito honradamente, como ele não obte
ve nem bens, nem cargos, nem dignidades dos grandes que eram admitidos
junto a ele, era impossível dizer dele que era um agitador político como o
barão de Hund ou um intrigante ambicioso como o cardeal Dubois “em
quem todos os vícios combatiam para ver quem mandava951” e que, de
pequeno abade, tornou-se ministro, porque não podia mais se tomar rei.
Ora, nada é mais irritante para um espírito medíocre que um homem
sobre o qual não se pode pôr um rótulo; nada mais digno de interesse para
um espírito esclarecido. Estudar o misterioso conde de Cagliostro era en
tão um problema cativante para um psicólogo. Quase sempre, Cagliostro
só teve a seu redor inimigos em grande número: médicos com ciúmes de
seus sucessos, personagens oficiais hostis a qualquer originalidade, ambi
ciosos inquietos com seu renome, patifes descobertos por sua clarividência,
polemistas comprados; ou amigos, em número muito pequeno, discípulos
devotados, com freqüência desajeitados em seu zelo excessivo, mais pró
prios para atrapalhá-lo que para fazê-lo estimado.
Quando ele chegou à Itália, em 1787, após sua brilhante absolvição,
sua luta com Morande, sua Carta ao povo francês e sua estada em Bâle,
onde a municipalidade reconhecida lhe concedera o título de cidadão da
cidade, mais em evidência que nunca, sempre igualmente impenetrável,
ele encontrou por fim em Rovoredo um observador imparcial. Crítico de
sinteressado, nem discípulo, nem inimigo, esse protótipo de “repórter” com
prometeu-se em controlar dia a dia, anotar tudo o que ele podería ver, ouvir
ou aprender de Cagliostro durante as poucas semanas que ele passou na
quela cidade. Tomadas as notas, ele fez delas um livro e, como era de bom-
tom no século XVIII misturar o sagrado ao profano e brincar com tudo o
que pudesse ser sério, ele as publicou em latim sob o título Liber Memorialis
de Caleostro cum esset Roboreti em um estilo copiado dos Evangelhos.
950. Av revistas científicas de nossos dias estão cheias de comunicações acerca dos trans
formações do urânio em rádio, da emanação radiante em hélio e do hélio em chumbo; a
transmutação é coisa atualmente admitida e provada, mesmo para outras séries que não
a do urânio. Que homenagem aos antigos alquimistas!
951. E o julgamento que Saint-Simon faz dele em suas Memórias.
Esse livro ficou conhecido pelo nome de Evangile de Cagliostro
(Evangelho de Cagliostro); é o documento mais precioso que temos a
respeito de sua pessoa, o que nos permite reviver um pouco seu tempo,
junto a ele, imaginar como ele era, o que dizia, o que puderam pensar
dele aqueles que se aproximaram. Não é apenas por esse ponto de vista
que o diário da passagem por Rovoredo possui um valor inestimável; é
também porque todos os exemplares dessa obra, reunidos aos papéis de
Cagliostro, foram queimados pelo Santo Oficio no Auto-de-Fé que seguiu
sua condenação pelo papa e que foi executado em Roma em 4 de maio de
1791 sobre a praça da Minerva.
Alguns volumes, já entre as mãos de particulares, escaparam à pira;
desde então, eles desapareceram, foram destruídos ou perdidos. Não os en
contramos em bibliotecas públicas, não os vemos nas vendas de livros raros
e apenas o título da obra fora transmitido por contemporâneos. Tivemos a
felicidade de encontrar um exemplar na Itália. Esse documento precioso,
do qual publicamos hoje uma escrupulosa tradução, ajudou-nos muito a
reconstituir a vida de Cagliostro, a restabelecer tão exatamente quanto pos
sível o caráter, a natureza e o papel desse maravilhoso personagem, devol
vendo assim à verdade uma lenda, reabilitando um ser que a calúnia esma
gara. Esse estudo completo acerca de Cagliostro, do qual o presente livro
não passa de uma espécie de introdução, está pronto, e esperamos publicá-
lo em breve.
Todos os que respeitam a verdade, que buscam o caminho, cuja alma
tem sede de viver, encontrarão nele com que satisfazer seus justos desejos.
Nos tesouros da humanidade há diamantes que o próprio fogo das piras
não poderia alterar. Há palavras que não envelhecem.
O Evangelho de Cagliostro
954. “Et Ego vincam universum ” — o sentido exato das palavras de Cagliostro traduzidas
assim pelo autor devia ser: “Pois eu tenho o universo sob minhas ordens; tudo me pertence”.
voltando à casa de Baptiste, irmão de Nicolas, ele conversava com os mé
dicos, dizendo-lhes: “Toda doença vem de uma ou outra destas duas cau
sas: ou o espessamento da linfa, ou a corrupção dos humores em nosso
corpo955. E ele não reconhecia outro princípio nas doenças.
E ele dizia também: “Os balões, esses globos voadores956 que um
homem audacioso inventou, quem os dirigirá para onde quer? Saibam que
os balões não poderão ser dirigidos, senão se lhes tirarem, em primeiro
lugar, sua forma esférica, e ninguém nem pensa nisso.” Ora, ele falava
italiano e francês e também uma língua entre esses dois idiomas957.
E havia um grande poder em suas palavras. E algumas mulheres muito
ligadas a ele, e que lhe falavam de suas doenças, suplicavam-lhe, pressio
navam-no, para que jamais se fosse ao estrangeiro. Pois ninguém sabia
quanto tempo ele deveria ficar conosco. Ora, havia na cidade uma jovem
lunática que berrava, com espuma nos lábios e os dentes cerrados, e se
jogava sobre aqueles que se aproximavam em sua cólera e seu furor. Que
riam levá-la até ele, mas não podiam. Assim, ele próprio veio vê-la para
expulsar o espírito de sua doença; e jamais, até então, ele agira dessa manei
ra com qualquer outro doente. E muitos entre os mais altos da nobreza acre
ditavam nele e conservavam todas as suas palavras com cuidado.
VI. — E a cada dia uma grande multidão sitiava a porta de Festus,
tentando ver Cagliostro, e das cidades e castelos, de toda a região, traziam-
lhe doentes, de carro, de cadeira, de padiola, a tal ponto que a praça estava
lotada e a multidão, empurrando-se, esmagava-se diante da casa. E Emest,
que era o decano dos médicos da cidade, vendo a perturbação e o desvario da
opinião pública, pediu aos magistrados que lhe proibissem cuidar dos doen
tes, fazendo valer o argumento que, segundo a lei, o exercício da medicina é
proibido a qualquer homem que não tenha sido examinado e diplomado
pelas autoridades médicas que o Imperador estabeleceu, escolhidas para
isso, e que aquele que não observa a lei é adversário do Imperador e, con
sequentemente, culpado. E tendo-se reunido os magistrados, proibiram-
lhe que se ocupasse daí em diante de medicina e o ameaçaram. Mas ele,
resistindo-lhes, protestava e dizia: “Jamais receitei nada a nenhum doente
senão em presença e com a aprovação de seu médico. E aqueles aos quais
receitei qualquer coisa, vós o sabeis, estão melhor. Além disso, jamais dei
um medicamento sem especificar com antecedência qual seria sua ação.
Eis que jamais convidei nem convido ninguém a vir me encontrar; mas
955. Como o nascimento e a morte são os dois termos da vida, a concentração e a difusão
são duas ações extremas da força vital; ê o Solve et Coagula dos alquimistas.
956. O nome de globo voador era aquele sob o qual se designavam na época os balões e
especialmente os aerostatos. Ver as brochuras da época referentes às experiências feitas
no Campo de Marte em 27 de agosto de 1783 por Charles e Robert.
957. Provençal, piemontês ou língua franca do Oriente.
quando a mim vêm pessoas espontaneamente, por que eu não lhes respon
dería? E todos me são também testemunhas de que, até este dia, nada soli
citei de ninguém e nada aceitei do menor ao maior, mas, ao contrário, vim
em ajuda dos pobres, fornecendo-lhes o que lhes seria útil no tratamento
de seus males.” E a voz do povo se elevava a seu favor e crescia na Assem
bléia. Os magistrados, ouvindo isso, acharam que seria bom poupá-lo e o
deixaram cuidar dos doentes. Mas ele, indignado, desejava escapar a seu
poder e resolveu se transportar para além do rio Athésis958, no burgo de
Lagarinum, que chamavam Villa959. E lá as autoridades o receberam com
alegria e queriam fazer uma festa em sua honra, mas ele recusou. E foi na
noite de domingo, por volta das três horas. E um certo Joseph, pai de Joseph,
o padre, que sofria de violentas febres, tentava penetrar junto a ele; e um
jovem obteve de Cagliostro, em nome da esposa de um dos cônsules da
cidade, que ele lhe permitisse vir. E o nome desse jovem era Clément. E
Joseph foi recebido secretamente com seu fdho mais jovem.
VII. — Ora, havia, sentados na casa do cônsul Gaspard, homens de
nobre nascimento e mulheres, e Cagliostro estava de pé no meio deles, e
falava, e havia uma grande multidão no vestíbulo. Tendo tomado pelo braço
o homem que já há muito sofria de febre e de vertigem, e tendo levado tam
bém seu filho, ele entrou em uma pequena câmara e, vendo que o homem
vacilava sobre suas pernas, mandou-o sentar. E logo que reconheceu sua
doença, ele respondeu aos que o interrogavam: “São os vermes que o fazem
sofrer”, e ninguém o compreendeu ainda. Mas eles se espantaram e se cala
ram. E voltando-se para Joseph, ele disse: “Tem coragem, eu te curarei em
oito dias. Tem apenas confiança em Deus e em mim e faze o que eu te orde
nar.” E o doente admitiu que era cristão e não dissimulou sua crença. E após
isso, tendo dispersado a multidão, ele atravessou e voltou à cidade onde
havia um jovem, soldado da guarda, doente (ele já o havia visitado e ele
passava melhor) e onde estava também a jovem alienada, que parecia aos
poucos se acalmar: havia ali um grande número de pessoas que prestavam
testemunho por eles próprios a respeito de suas obras de caridade e que o
abençoavam.
VIII. — E todos se maravilhavam a respeito do jovem soldado, pois
logo ele se ergueu, sendo que já havia cinco meses que ele estava deitado
imóvel, como que morto, com uma inchação nas coxas e dores articulares.
E a origem dessa doença era aquela peste que fora trazida do outro lado do
mundo pela intemperança para punir a obra da carne. E Cagliostro, vendo o
número enorme de pessoas que vinha a ele a cada dia, vítimas dessa doen
ça má, perturbava-se e dizia: “Dificilmente encontrei tantos doentes desse
tipo em Paris e em Constantinopla. Desgraça a vós, pois vossa luxúria
960. Esse homem caçoa de nós; ele não respeita nosso bom-senso; ele abusa de nossa
credulidade.
961. Jornalistas.
962. N. do T: Metoposcopia é a interpretação das rugas faciais, especialmente da testa,
para determinar o caráter de uma pessoa.
XL — De resto, o dia não passava sem que uma nova onda de doentes
viesse encontrá-lo, chegando de suas cidades para se mostrar a ele. E aque
les que não podiam vir enviavam seus médicos para ouvir as palavras de
sua boca. E veio também uma criança, filha de um certo Pompeu, que fora
juiz na cidade: ela caía com freqüência, agredia-se nas crises e espumava:
seu nome era Elisabeth. Ele lhe ordenou que tomasse emético e a despediu.
Ordenou o mesmo tratamento a outras mulheres nobres, vindas da Alema
nha por recomendação de sua aia963, que era sua amiga. Pois essa muher
contara a sua patroa as proezas de Cagliostro em Estrasburgo; como seu
pai, a quem os médicos queriam cortar o braço por uma gangrena, fora
curado subitamente e como uma mulher em trabalho de parto, a quem pre
paravam para fazer uma operação cesariana, pois estava morrendo, foi sal
va, assim como seu filho, ao tomar das mãos de Cagliostro algumas gotas
de elixir. Por isso e por muitos atos meritórios, os estrasburgueses manda
ram gravar seu retrato tendo, abaixo, alguns versos em língua francesa
prestando testemunho a seus méritos964. Ora, um dia em que uma princesa
alemã veio vê-lo, extraordinariamente bela e virtuosa, Cagliostro se er
gueu e lhe deu um exemplar de seu retrato que havia sido feito em
Estrasburgo, dizendo: “Eis que estarei sempre e em toda a parte contigo.”
E ele nunca agira assim com ninguém. Nesse dia, a multidão murmurava e
dizia: “Contam-nos grandes coisas feitas longe as quais não vimos com
nossos olhos e onde não estávamos. Que ele faça aqui alguma maravilha!”
Mas ele não o pôde. Eles diziam isso sabendo que Cagliostro havia dado a
um certo médico surdo que o consultara uma poção energética, que ele
soprara em seus ouvidos, prometendo-lhe que em seis dias seus ouvidos se
abriríam e que ele ouviría nitidamente um sopro como aquele. E após tudo
isso, o médico continuava sem ouvir nada, e ainda era necessário falar-lhe
por gestos. Quanto ao velhinho que sofria de cálculos, que seus amigos
incitavam a percorrer a cidade a cavalo e a se mostrar em público para
prestar testemunho de sua cura por Cagliostro, ele lhes respondia: “Ide
embora, caçoais de mim, estou na verdade pior do que antes e se houvesse
me tratado dessa maneira outras vezes já repousaria junto a meus antepas
sados há muito tempo. Outros falavam da mesma maneira e começavam a
desprezar seus conselhos. Outros espalhavam o rumor de que os médicos e
farmacêuticos, por ciúmes, traíam-no e falsificavam suas receitas, ou o calu
niavam a fim de que não se pudesse conhecê-lo de verdade. Mas aumentava
o número daqueles que diziam:” As palavras de mentira são aquelas ditas
para encontrar desculpas a suas besteiras. E saibam que essa mulher com
963. Ancilla é escrito com uma maiuscula no texto; apesar disso, não consideramos essa
palavra como nome próprio, já que as falhas tipográficas eram comuns nessa obra.
964. Retrato gravado por Guérin, em 1781, e que reproduzimos no início deste volume.
quem ele está não é sua mulher (ela era romana e de nome Séraphim963), é
apenas uma ajudante para suas representações: ela não vai comungar nos
dias de festas porque fica guardando suas maravilhosas jóias em casa por
medo dos ladrões. E ele também não se aproxima da santa mesa, pois sua
alma não pode encontrar a paz em pensar nas coisas de Deus e ele diz ter
obtido a dispensa do príncipe dos padres. Desgraça ao homem que não crê
e coloca as obras do século antes das obras do céu! Hoje ele despediu seu
doméstico, servo em sua casa há quinze anos, bom e zeloso, porque ele
aceitara dinheiro de seus visitantes. Mas ele nada tem a temer e em algum
lugar ele vai esperá-lo e, ali, ele o retomará a seu serviço.” Todas essas
maledicências se repetiam na multidão e erguiam dissensões muito gran
des. E Cagliostro, levado pelo espírito de corpo, foi um dia jantar em casa
de um homem, que se dizia fazer parte da Maçonaria, e sua mulher também
fazia. E ele próprio era um dos chefes dessa Sociedade, mestre dessa seita
dita dos Iluminados, e ele tinha alguns discípulos que queriam ser inicia
dos e mesmo seguir esse mesmo caminho. E entre outros, um senhor da
vizinhança pedira sua admissão e versara uma soma de 300 peças de ouro,
e estava com ele dia e noite, e com um outro irmão, vindo da beira do mar,
mas Cagliostro lhe respondeu: “E preciso que três mestres se encontrem
reunidos para poder fazer a recepção de um neófito nessa seita.” Eles es
creveram então a um certo discípulo que morava muito longe daquela cidade
para rogar-lhe que viesse o mais rápido possível, e ele partiu imediatamente.
E os outros, cheios de zelo, velavam e esperavam. E numerosos pensamen
tos agitavam seus corações, e eles eram como os dos mistérios que o tirso
havia atingido, ou que fazia ressoar os símbolos sobre o monte Díndimo965 966.
Quando ele chegou, tomando com eles um outro discípulo, Caglios
tro recebeu o neófito e, tendo-o ativamente instruído dos elementos de sua
doutrina, ele o recebeu nas Eleutérias967 e lhe permitiu ter assento em meio
aos irmãos e conhecer os segredos de sua comunhão dos desertos da Cítia
até o rio da Etiópia; arrumou-se na casa de Cagliostro uma grande mesa de
festa e tomaram seus lugares. Havia uma imensa quantidade de lustres e
sua mulher comia com eles. Como eles jantavam ainda bem tarde da noite,
isso superexcitava a curiosidade das pessoas, e pelas portas e janelas tenta
vam dar uma olhada e penetrar seus mistérios. E alguns contavam que
haviam visto uma coisa, outros outra coisa, sangue que bebiam, tochas em
cruz, espadas nuas, e enlouquecia-se o povo com fábulas968. Cagliostro pas
sava por afiliado nos Ritos dos egípcios e nas Tesmoforias dos Mistérios
965. Sic.
966. Os mistérios de Cibele se celebravam sobre o monte Díndimo, na Frigia.
967. Festa da liberdade.
968. Uma campanha ativa era feita contra os símbolos maçônicos e contra Cagliostro em
particular na Itália; ela se concluiu em Roma com sua prisão.
de Elêusis*. E quando eles se ergueram da mesa, o neófito ficou com eles, e
o outro iniciado, que era estrangeiro, voltou rapidamente para sua terra. Mas
o criado que o despedira, que dormia em um estábulo, disse a si mesmo: que
a paz de Deus não mais se faça em mim até que eu realize as mesmas mara
vilhas “Que meu mestre. E ele começou a vender ceratos e beberagens: mas
o fazia em segredo por medo de seu mestre.” Mas Cagliostro não ia a parte
alguma, ocupando-se unicamente de Festus, que chegara doente de Trento e
de quem ele cuidava.
XII. — E um dia, ele perguntou a alguém se ele também queria se
afiliar àqueles aos quais se chamavam Iluminados. E o homem recusou
dizendo que ele preferia ficar semi-imerso em trevas em que não se via
quase nada do que ficar completamente cego em tal luz. E ele dava outras
razões cheias do sal da sabedoria. Algumas pessoas, ouvindo essas conver
sas, diziam entre si: “Ele pertence certamente à confratemidade dos Ir
mãos maçons (à qual se chama franco-maçons) e talvez tenha sido enviado
por eles para curar os doentes que estão no mundo e suas generosidades
venham dos cofres deles e de seu tesouro, pois dizem que eles têm como
primeiro preceito fazer o bem a todo mundo”. Mas outros respondiam: “Se
é verdade que tal caridade os anima, não seria a ele que enviariam, mas um
ser que não enganaria os homens com uma vã confiança”. E novamente se
dizia: “Esse velhaco matreiro, é verdade, faz algumas esmolas e não rece
be pagamento da massa, mas é para esperar de tempos em tempos um homem
rico e ganhar cem vezes mais dele. Quando ele chega em uma cidade, fica
ali durante o tempo em que a opinião pública o incensa, e quando o efeito
de suas medicações de longo prazo pára de se produzir, revelando o vazio de
suas promessas, ele parte, e passa assim de cidade em cidade, e a patifaria
não tem fim. Seu procedimento, e o ápice de sua ambição, é que o vejam
como o instrumento do grande poder que vem do alto, e assim ele percorre
as terras e os mares e posa como médico universal. Mas, vejamos: se real
mente ele retirasse todo o mal, será que os governadores, os príncipes da
terra já não o teriam forçado há muito tempo a permanecer em meio aos
ministros, em seus penates?” Mas muitos, mais justos, resistiam a esses
discursos. Chegavam mesmo a se irritar contra aquele que tomava nota de
suas palavras, pensando que ele escrevia para caçoar dele, mas aquele que
escrevia não o desprezava de forma alguma, mas contava fielmente o que se
passava em Rovoredo, prestando testemunho com um simples relato. E seu
relato foi feito segundo o hábito dos orientais, como vemos nos textos
gregos que os latinos traduziram palavra por palavra. E aconteceu, como
um padre veio ter com Cagliostro, que lhe disse: “Tenho tal e tal doença”.
“Diga-me o que devo fazer para melhorar.” E ele o disse! Mas novamente
972. Elimas ou BarJesu, mago judeu, adversário de São Paulo em Pafos. (Ato dos Após
tolos, XIII. 8) Mambrés (ou mais exatamente Tambrés), nome citado pelo parafrasta Ben
Uziel e também por Plínio (Hist. Natural, XXX. cap. 1), como um dos dois egípcios que
lutaram com Aarão (Êxodo, VII: 12).
com devoção. Além disso, outro padre, homem de bem, conversava fre-
qüentemente com ela a respeito do reino de Deus e da Igreja, fora da qual
não há salvação; e ele lhe deu para ler os Atos dos Apóstolos e as obras dos
profetas. E ele se regozijava em ver a fé e as boas palavras dessa mulher.
Pois, no fervor de seu espírito, ela se irritava contra o mal semeado pela
pretensa filosofia que florescia na França e rejeitava as obras científicas
modernas meditando atentamente sobe as escrituras. Além disso, ela di
zia973: “Eis que cumprimos nossa tarefa aqui curando os doentes, e minha
alma queima para ir a outras cidades, para não deixar lugar em que nossa
caridade não se manifeste nos filhos de Deus”. E ela dizia ainda muitas
outras coisas conforme aos projetos de seu marido. E o criado demitido,
que vendia pomadas, era visto como estando de acordo com seu mestre
para essa comédia, e diziam que ele lhe entregaria o dinheiro da venda.
Além disso, alguns daqueles que haviam acreditado nele batiam o pé, in
dignavam-se por um filho de cocheiro tê-los enganado e brincado com sua
esperança. Pois o rumor público dizia que Cagliostro era filho de um co
cheiro; outros diziam um pintor; outros, que ele era de nobre fonte, criado
como rei na Arábia, mas que fugia e se escondia das honras. E àqueles que
todavia faziam valer sua celebridade além dos mares e das montanhas,
respondia-se: “Se não houvesse ocorrido em Paris o Caso do Colar, não o
conheceriamos nem de nome. Sua celebridade saiu de uma horrível cela e
sua grandeza veio dos ferros que ele arrastou nos pés.”
XV. — E pouco tempo antes que lhe houvessem proibido o exercí
cio da medicina, ele queria vender a um farmacêutico seu remédio especí
fico contra a epilepsia e combinara um preço muito elevado; pois, dizia,
ele necessitava de um repouso das preocupações, dos sofrimentos e das
perseguições que sofrerá em Paris em ferros. Mas algumas pessoas impe
diram isso, refletindo que assim ele lançava longe sua rede para apanhar
muitas vítimas novas. E um corcunda veio a ele, suplicando-lhe: “Senhor,
tu que podes, dizem, acabar com todos os males, tira-me esse peso.” Ca
gliostro, olhando-o profundamente, disse-lhe: Coloca sobre tua corcunda
uma lâmina de ferro de quatro libras e a cada dia deita-te sobre ela durante
seis horas; o nono dia não raiará sem que tua corcunda tenha desapareci
do”. Havia um médico presente e Cagliostro, ao dizer isso, inclinou a cabe
ça em sua direção, sorrindo. Mas, após a interdição do Imperador, ele só se
ocupava em receber seus amigos e distribuir a riqueza de seu saber. Ele
lhes dizia: “Se alguém teve sífilis e não foi bem curado, eu a trago de volta
ao estado agudo, sem para isso precisar de um novo contato para a
recontaminação, e, em seguida, rapidamente, eu a curo radicalmente974.
973. O texto, aqui, é anfibológico; pode-se traduzir também: Cagliostro dizia..., etc.
974. Naquela época, sífilis e blenorragia eram confundidas; podemos notar que há um
método conhecido para o tratamento da blenorragia crônica.
Então, saí e diverti-vos, se é que não temeis por vossas almas, e se não
temeis apenas por vossos corpos. E enquanto os outros médicos cuidam da
sífilis com o mercúrio, eu não quero tratar um veneno com outro veneno,
de medo que, ao expulsar a primeira doença, o tratamento determine com o
tempo uma mais grave que a primeira.” Ora, aqueles que haviam analisado e
testado seus ungüentos afirmam que ele mentia e que em todos entrava o
mercúrio. Ele se gabava também de que não era possível formar-se na be
xiga um cálculo tão grande ou tão duro que ele não pudesse fazer dissolver
na urina com seus remédios. E um daqueles que escutavam lhe disse: “Como
esse remédio pode ser ativo o bastante para dissolver assim um enorme
cálculo sem fazer mal aos órgãos por onde ele passa e sem os dissolver?”
Cagliostro lhe disse: “Esse é meu segredo e eu o escondo aos profanos975”.
Além disso, ele se gabava das virtudes de um certo antídoto de sua inven
ção dizendo: “Muitas vezes tomei veneno diante de meus íntimos e de
meus amigos em doses que causavam a síncope e quase a morte, e já me
lamentavam quando eu tomava meu antídoto e logo estavam sobre meus
pés.” E ele acrescentava: “Eu lhes contarei o que aconteceu em São
Petersburgo. O médico da imperatriz da Rússia me detestava, porque eu
havia demonstrado sua ignorância, e ele veio à minha casa gritando: ‘Sai
amos e vinde vos bater comigo.’ Eu lhe respondi: ‘Se vindes me provocar
enquanto Cagliostro, chamo meus servidores e eles vos atirarão pela jane
la; se me provocais enquanto médico, eu vos darei satisfação como médi
co’ . Assustado, ele respondeu: ‘E ao médico que provoco’. E com efeito eu
tinha sob minhas ordens uma grande quantidade de servidores976. Então,
eu lhe disse: ‘Pois bem, não nos batamos com espadas, tomemos as armas
dos médicos. Engolireis duas pílulas de arsênico que vos darei e eu engoli
rei o veneno que me derdes, qualquer seja ele. Aquele dentre nós que mor
rer será considerado pelos homens como um porco.’ (Era o termo que Ca
gliostro utilizava para definir aqueles que desprezava.) Contaram o fato à
imperatriz, que mandou me chamar. E quando compareci diante dela, eu
lhe disse com firmeza: ‘Que Vossa Majestade me permita falar sincera
mente: vosso médico, embora vós o tenhais feito capitão, é um porco.’
Então ela me aconselhou que não combatesse com um homem que não
valia a pena e desde esse dia ela o afastou de sua presença”. Além do mais,
ele falava abundantemente dos arcanos alquímicos, como ele podia trans-
mutar os metais, deixar o ouro líquido como o mercúrio e novamente
consolidá-lo. E, falando um dia diante de Baptiste, irmão de Nicolas, e
diante de alguns outros, ele lhes disse: “Estando na Suíça, em Berna (os
habitantes lhe haviam sido admitidos, encantados por suas palavras), eu
975. A questão era absurda: a resposta de Cagliostro era bem adaptada à questão, se
gundo a regra de Beaumarchais.
976. Os servos de Cagliostro não apenas estavam dentro da casa, como também fora.
me vi dizendo aos homens do lugar: ‘Suíços, considerando vossas monta
nhas, sempre recobertas de um gelo eterno, refleti a respeito da grande
quantidade de ouro, prata e de cristal rocha que estaria enterrada em suas
entranhas. Se quisésseis me autorizar a empregar dez anos de rendas, eu
dissolvería o gelo e traria à luz essas riquezas, por minha conta e risco’”.
Eles responderam a isso: Não, não queremos que percais nessa empresa
tempo e dinheiro”. “Um dos assistentes lhe disse: “Como dissolverieis o
gelo?” Cagliostro respondeu: “Com vinagre977”. Baptiste respondeu àquele
que havia interrogado: “Como Aníbal para os Alpes quando veio à Itália”.
E, voltando-se novamente para Cagliostro, disse-lhe: “Senhor, desculpai-
me se emito uma dúvida. Talvez os suíços tenham temido que, pela fusão
súbita dos gelos, as águas descessem e em suas torrentes inundassem suas
cidades”. Após um momento de silêncio, Cagliostro respondeu: “Há mui
tos lagos na Suíça, poderiamos ter dirigido para eles toda as massa das
águas”. Para divertir aqueles que o escutavam, ele passava também a ou
tros temas de conversa e dizia: “Um dia eu precisei de uma mulher que não
fosse nem uma cortesã nem uma virgem e que não fosse casada (pois um
médico se encontra, em sua carreira, diante das mais variadas circunstân
cias). Ao encontrar uma jovem e bela mulher, eu lhe disse: ‘Escutai, posso
fazer-vos ganhar muito dinheiro se fordes virgem.’ Ela me respondeu:
‘Eu sou, com efeito, senhor, o que desejais de mim?’ Então até logo,
exclamei, pois não procuro uma virgem, mas, pelo contrário, uma mulher
que tenha conhecido um homem. Ante essas palavras, ela corou e disse:
Eu vos menti, senhor, pois em verdade conheci um jovem, consegui-me,
eu vos rogo, esse posto vantajoso de que me faláveis. E eu o fiz”. E toda
a assembléia ria dessa história. Como ele recebia muitas cartas, com fre
quência as lia em silêncio e exclamava: O que venho a saber: o Senhor
abate meus inimigos, e ele apóia e eleva meus amigos. E ele anunciava o
fato o quanto antes a sua mulher que, cabelos desatados e caindo sobre o
pescoço, corria pela casa e a enchia com sua voz alegre. Seu coração com
efeito era vivo como uma chama. As palavras jorravam em ondas de sua
boca e sua beleza, em sua juventude, ofuscava a de todas as outras mu
lheres.
Eis as coisas que de início nos pareceram dignas de ser relatadas
acerca de Cagliostro. Aquele que as escreveu jamais falou com ele. Ele
escreveu aquilo que lhe disseram, sem ódio, nem amor, nada retirando,
nada acrescentando, mas esforçando-se apenas para conservar à história
tudo o que se dizia na cidade a respeito desse homem célebre, deixando
aos outros o trabalho de julgar. Alguém censurou ao jovem escritor o se
guinte: “Não profanais o Evangelho ao escrever dessa maneira?” Mas o
977. Acetum pode significar qualquer ácido, qualquer mordente, sobretudo na boca de
um homem que, comfreqüência, falava de alquimia.
jovem respondeu: “De forma alguma, pois não abuso daquilo que se disse de
Deus, de seu Filho, Nosso Senhor, não cito versículos, escrituras, não desfi
guro os textos de verdade do dogma, aos quais estou pronto a me devotar,
mas sirvo-me da linguagem corrente e continuo a ser eu mesmo. Todo modo
de discurso em que nos servimos de palavras usuais é geral, quer se trate de
coisas profanas ou sagradas; a diferença jaz no assunto. É assim que com
as mesmas pedras podemos construir uma casa ou um templo, e com o
mesmo ouro fazer uma caneca ou um cálice. Pois os próprios evangelistas
não escrevem da mesma maneira que Deus, que Simão, o Mago, e que
Théodat? O que me censurais então?” Seu crítico lhe respondeu: “Mas por
que escolhestes justamente esse gênero de narração?” O jovem respondeu:
“Porque nenhum gênero é mais próprio a expor breve e expressamente
cada fato e porque convinha àquilo que se pensava do personagem; pois
muitas pessoas dizem: ‘É o asno vestido com a pele de leão.’ Mas para que
saibais que esse gênero de estilo não é especial aos Evangelhos, vede a
tradução de Esopo, em latim, e também o que Planudes, o Bizantino, escre
veu referente Esopo, e Planudes foi padre e da igreja dos santos978. Ouvin
do isso, o outro se retirou dizendo: Como realmente é difícil julgar segundo
a verdade.
XVI. — Ora, Cagliostro atravessou o Pó e veio ver os chefes dessas
províncias e, após dar consulta a muitas pessoas acerca de seus males (reu
niam-se ali, com efeito, para não violar a interdição do imperador), ele lhes
disse adeus e, de volta à cidade, ele reuniu rapidamente suas bagagens e
dois dias após partiu para Trento com sua esposa, em onze das calendas de
Novembro, segundo o calendário romano979.
Quarenta e sete dias após sua chegada: era uma quinta-feira por
volta das 9 horas. E como ele subia ao carro, viu correr a ele um homem;
e era o criado que ele havia demitido. Ele vinha desejar-lhe boa viagem, mas
Cagliostro estendeu a mão e o despediu dizendo: “Retira-te de minha
presença, tu, o pior dos domésticos.” E, voltando-se àqueles que por aca
so estavam por ali, falou-lhes dele dessa forma: “Dizei aos cidadãos de
Rovoredo que perdoem a seu servidor, se ele não pôde dar-lhes toda satis
fação. Em verdade, toda a sua boa vontade lhes foi conquistada, e seu cora
ção esteve sem astúcia diante deles. E ele falava ainda quando a trombeta
soou, os cavalos se moveram e o carro desapareceu diante de seus olhos.
Cagliostro tinha uma fisionomia muito agradável, era de porte mé
dio, com a cabeça forte e muito gordo. E, embora gordo, andava com agili
dade, volteando de cá para lá em um recinto sem querer permanecer no
978. Planudes, chamado Grande Planudes (século XIV), monge grego que vivia em Cons-
tantinopla, escreveu realmente uma vida de Esopo (Leipzig, 1747, in-4?) efábulas de Esopo
muitas vezes reeditadas desde a edição princeps de suas obras (Florença, 1494, in-4?)
979. 11 de novembro de 1787.
mesmo lugar. Sua pele era fresca, seus cabelos negros, os olhos profundos e
brilhantes de vida. Quando falava com uma voz simpática, com gestos muito
expressivos, os olhos erguidos ao céu, era semelhante aos inspirados,
inebriados com o espírito do alto. Suas roupas eram limpas, sem luxo, e
sua conversa muito agradável. E após ele ter partido, um poeta publicou
sobre ele uma peça descrevendo-o como iniciador dos maçons a suas dou
trinas, segundo a opinião do povo. Espalhou-se o rumor de que ele fora
recebido com as maiores honras em Trento. Mas as pessoas sensatas e os
homens leais que estavam em Rovoredo, conversando entre si acerca do
que se passara e refletindo, chegaram enfim à seguinte conclusão: Há gran
de espaço para dúvida: tudo isso é muito contraditório; este homem é um
verdadeiro enigma e não podemos fazer julgamento dele até que o fim de
sua vida tenha revelado quem ele era.
Bibliografia
Bibliografia e Iconografia
dos Documentos
Concernentes a Cagliostro
980. Referente aos debates do Caso do Colar, podem-se consultar com proveito, entre os
diferentes relatórios dos diversos acusados, os seguintes:
Pièce importante dans 1’affaire du Collier pour de Launay, 1789, in-41 (Peça importante
no Caso do Colar por de Launay).
Sommaire pour la comtesse de Valois-Lamotte. 1786, in-4°. (Sumário para a Condessa de
Valois-Lamotte).
Réponse de madame. de La Motte au mémoire de Cagliostro. 1786, in-81, in-41, in-16.
(Resposta de madame. de La Motte ao relatório de Cagliostro).
Mémoires justificatifs de madame de La Motte. 1789, Londres, in-81
Vie de Jeanne de Saint-Remy de Valois. 1793, 2 vol. in-81
Paris, Librairie hermétique, 1910, in-16, 86 p.
29. Anônimo (Manuel L.-P.) Lettre d’un garde du roi pour servir de
suite aux mémoires sur Cagliostro.
S.L., 1786, in-8°
Londres, 1786, in-16, 1 + 34 p. (4® edição)
Cf la Magie de Cagliostro.
30. Anônimo. Lettre écrite de Aix-les-Bains en Savoie à M. de Beau
marchais, par M. Cagliostro contenant des faits intéressants...
(apócrifo).
Kell, 1788, zn-8?, 16 p.
BIBL. NAC., Ln 27 1318.
31. Anônimo (Morande). Ma correspondance avec le comte de Ca
gliostro.
Milan (Paris), S.S. in-4?, 38 p. 1? edição.
Milan (Paris), 1786, in-4?, 38 p. 2? edição.
32. Suite de ma correspondance avec le comte de Cagliostro par lequel
il est prouvé que le comte est le sieur Balsamo, etc.
Milan (Paris), 1786, in-4?, 16 p. — financiado pela Sociedade
Cagliostriana. — Hamburgo, 1786, in-8?, 96 p. Contém Ma Correspondance
e La Suite reunidas.
33. Anônimo. La magie de Cagliostro dévoilée par lui-même, ou
révélation des intrigues mises en usage dans I’Affaire du Collier.
Londres (Paris, 1789, in-8?, 49 p.
BIBL. NAC. Lb391101.
Reedição, sob outro título, da Lettre d’un garde du Roi.
34. Anônimo. Mémoire pour servir à I ’histoire du comte de Cagliostro
au sujet de Vaffaire du Cardinal de Rohan, évêque et prince de Strasbourg.
Strasburg, 1786, in-8?, 40 p.
Reedição, sob outro título, das Mémoires authentiques.
35. Anônimo. (De Lucher). Mémoires authentiques pour servir à
I’histoire du comte de Cagliostro faisant suite au Mémoire de la Comtesse
de la Motte-Valois.
S.L., 1785, in-12 (Paris), 1? edição.
Londres, 1785, in-8? (Paris, 1? edição).
2! edição: S.L., 1786, in-8? (Paris), 36 p.
Nova edição, S.L., 1786, in-16, 66 p.
Estrasburgo, 1786, in-8?.
Hamburgo, Fauche, 1786, in-8?, 95 p.
Sobre o autor (De Luchet) ver Grimm: Corresp. littéraire, Paris, 1813,
in-8?, t. Ill, p. 248 e 424.
36. Motus (P. J. J. N.) Réfléxions sur le mémoire ou roman qui a paru
enfévrier 1780 pour le comte de Cagliostro.
Medina (Paris), 1786, izz-8?, 48 p.
37. Anônimo. Procès comique et instructif pendant entre le fameux
Cagliostro et le sieur de Morande.
1? parte (única lançada).
Londres, 1787.
38. Anônimo. Procès de Joseph Balsamo surnommé le comte de Ca
gliostro, commencé devant le Tribunal de la Sainte-Inquisition en décembre
1790 et jugé définitivement le 7 avril 1791.
Liège, Tutot, 1791, izz-12, 295 p.
(E, sob outro título, a Vie de Joseph Balsamo).
39. Anônimo. Les prodiges de Cagliostro (J. Balsamo) à Strasbourg,
Bordeaux, Paris. S.L., S.A. in-12.
40. Anônimo. Les prophéties de saint Cagliostro et son arrivée à
Paris.
S.A. (por volta de 1786), in-12.
Citado in: Catalogue Astier, Paris, 1856, in-8?, p. 18, n? 135.
41. Sachy (Carlo). Mémoire sur le comte de Cagliostro.
Citado por madame. de La Motte, parcialmente em seu Sumário e sua
Resposta. — Redigido pelo advogado Rocheboume.
Estrasburgo, in-16, 1782.
42. Spach. Cagliostro à Strasbourg (conversa de 9 de novembro de
1889).
Oeuvres, Paris e Estrasburgo, Berger-Levrault, 1871, izz-8? t. V.
Biographies Alsaciennes, p. 61 a 80.
43. Anônimo. Testament de mort et déclarations faites par Caglios
tro de la secte des illuminés et se disant chef de la Loge égyptienne...
Paris, 1791, izz-8?, 44 p.
BIBL. NAC. K. 10192 bis.
44. Anônimo. Traduction d’une lettre du comte de Cagliostro à M.
M... trouvée dans les décombres de la Bastille.
Paris, impr. de Lormel, S.A., izz-8?, 7 p.
BIBL. NAC. Lb.39,7384.
E a Lettre au peuple français.
45. Anônimo (P. Marcello, jesuíta). Vie de Joseph Balsamo, connu
sous le nom de comte de Cagliostro, extraite de laprocédure instruite contre
lui à Rome en 1790, imprime à la Chambre apostolique.
Paris, Onfroy e Estrasburgo, Treuttel et Wurtz.
1“ edição: 1791, izz-8?, 1 f., retrato, XXVI-239 p.
2? edição. Ibid. eod. anno.
Há traduções em italiano e alemão.
OBRAS EM LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
46. Anônimo. Gli Arcani svelati o sia il Cagliostrismo smascherato
dove si dimostrano ifonti dell’impieta della pretesa scienza occulta...
Venezia, a spese dell’autore, 1791, in-8?, 180 p.
47. Anônimo. (Ludw. E. Borowski). Cagliostro, einer der merkwur-
digsten Abentheurer unsres lahrhunderts. Seine Geschichte, nebst
Raisonnement...
Konigsberg, 1790, G,-L., Hartung, peq. in-16, retrato, título, VI-190
p. 2? edição, Ibid. eod. Anno.
48. Anônimo (J.-F. Bertuch). Cagliostro in Warschau oderTagebuch...
aus dem franzôsichen ubersetzt (Cagliostro démasqué à Varsovie).
Konigsberg, 1785, in-8?.
S.L., 1786, in-8?.
49. Cagliostro (Madame). Auch noch etwasfür ordens undnichtordens
Leute durch das Rosensystem numehro bey-Gedrley eschlechte.
Estrasburgo, 1786, in-8?, (n? 27 de Hayn) II ff. 44 p.
50. Anônimo (P. Marcello, jesuíta). Compêndio della vita et delle
geste di Giuseppe Balsamo, denominato il conte Cagliostro che siè estratta
dal processos contra di lui formato in Roma l’anno 1790.
Filadélfia, 178... (sic), in-8? em 2 partes, I, VII-272 e 11-302 p.
Roma, Stamperia della rev. Camera apostolica, 1791, in-8?, 216 p.
Encontramos também o mesmo livro: Ibid., eod. anno, sob o título
Vita de Giuseppe Balsamo.
Id. Veneza, 1791, in-8?, 216 p.
O livro foi traduzido em francês, alemão e espanhol.
51. Anônimo, Compêndio de la vida y hechos de Jos. Balsamo hamado
el conde Calliostro.
Sevilha, 1791, in-8?.
Trad, do precedente.
52. Anônimo. Corrispondenza segreta sulla vita publica e privata
dei conte di Cagliostro con le sue aventure e viaggi in diverse parti del
mondo.
Veneza, 1791, in-12.
S.L. (Veneza), 1791, in-8? A spese dell’autore (Retrato e grav.)
53. Anônimo (Bode). Ein Paar Trõpflein aus dem Brunnen der
Wahrheit ausgegossen vor dem neuen Thaumaturgen Cagliostro.
An Vorgebirge, 1781, in-8?, 46 p. (Frankfurt — Brõnner, editor).
54. Anônimo. Der Entlarvte Charlatan.
Frankfurt, 1787, in-8?, 87 p.
Trad, do Charlatan démasqué.
55. Funck-Brentano. Cagliostro and Company. (Trechos do Affaire
du Collier).
Traduzido por O. Maidment.
Londres, 1902, peq. in-16, 10 gravuras.
56. Hildebrandt (L.) Merkwurdige Abenteuer des Grafen Alex. von
Cagliostro.
Quedlinburg, S.A. (1839), ín-8°, 224 p.
57. Hugo Hayn. Vier neue Curiositaten Bibliographien.
lena, 1905. Schmidts in-8?, 88 p.
Contém in: IIP parte, p. 25 a 55, uma bibliografia sobre o Processo do
Colar e sobre Cagliostro.
BIBL. Nac., 8? Q 3395.
58. Anônimo. Kurzer Begriff von dem Lebe und den Thaten des J.
Balsamo.
Roma (Zurich-Orell), 1791, in-8?, 231 p.
Graz, S.A. (1792), in-8?
Trad, da Vie de Joseph Balsamo.
59. Anônimo. Kurzgefasste Beschreibung des Lebens Josesph
Balsamo... aus dem lateinischen (sic) ubersetzt.
Augsburg, 1791, in=8?, 112 + 120 p.
Ibid., eod. anno, in-8?, bey J. Nepom. Stage, aus dem italianischen
Ubersetzt.
Ibid., eod. anno, in-8?, 2“ edição.
Trad, da Vie de Joseph Balsamo.
60. Anônimo. 1st Kagliostro chef der Illuminaten? oder das Buch...
Gotha, Ettinger, 1790, in-16, XVI-228 p.
Trad, com anot. de J.J. Bode da obra: Essai sur la secte des Illuminés
de Luchet.
61. Anônimo. Istoria critica della vita del Conte de Cagliostro e della
contessa sua Moglie prigionieri... alia Bastiglia.
S.L., 1786, in-12.
62. Anônimo. Lebensheschichte Geganfennehmung undgerichtliches
Verhor des Grafen Cagliostro von ihm selbst geschrieben.
Viena, 1786, in-8°.
Trad, da obra francesa: Mémoires authentiques.
63. Anônimo. Leben und Thaten des Joseph Balsamo sogenannten
Grafen Cagliostro; nebs einigen Nachrichten uber die Beschajfenheit und
den Zustand des Freymaurersekten...
Trad, do italiano por C.J.J. (Chr. J. Jagermann). Frankenthal, 1791,
in-8?, XII-17 Ip.
Id. — Zurique, 1791, ín-8?, XII-171 p.
Id. — Weimar, por Hoffmann, 1791, in-8?, em 2 partes.
Id. —Augsburg e Viena, 1791 (Cf. Tschink)
Id. —Mannheim, Loffer, 1814, zn-8?.
64. Anônimo. (Clementi Vannetti). Liber Memorialis de Caleostro
cum esset Roboreti (Evangile de Cagliostro).
(Ad finem: Mori, impr. por Steph Teodolini, 1789). peq. izz-8?, 31 pá
ginas.
Id. — Veneza, SA. (1791), por J. Sfort, in-?>°, 36 p. Retrato.
BIBL. NAC.: Recusado.
Uma tradução francesa do Dr. Marc Haven foi publicada em Paris,
1910, izz-16.
65. Anônimo (Lucia?) The Life of the Count Cagliostro (1776-1787)
dedicated to Si? la comtesse de Cagliostro.
Londres, T. Hookham, 1787, in-8°, VIII-XII-127 p.
Rara defesa de Cagliostro devida provavelmente a O’Reilly ou a um
de seus amigos.
66. Anônimo (Cagliostro). Manifesto aos maçons (em inglês e lingua
cifrada) in: Morning Herald, Londres, 1786, n? de 2 de novembro.
67. Anônimo. Manifesto de Giuseppo Balsamo denominate il conte
Cagliostro o sue difese contro il di lui processoformate dalla S. Inquisizione
di Roma.
Trad, do francês.
S.L., 1790, in-8?, 33 p.
BIBL. NAC. K. 15148.
68. Anônimo. Memoiren von Cagliostro.
Herausg. Von Paul Bernstein.
Leipzig e Berlim, S.A., izz-8?.
69. Anônimo. Memorie del conte di Cagliostro prigionnero alia
Bastiglia e supposto implicate nel processo del cardinale di Rohano.
S.L., 1786, izz-12.
S.L., 1786, izz-8?, 100 p.
70. Anônimo. Nachrichten aechte von dem Grafen Cagliostro aus
der Handschrift seines entflohenen Kammerdieners.
Berlim, 1786, izz-8?, 2 grav. s. Cobre.
71. Anônimo. Nachrichten glaubwiirdige zur Geschichte des Grafen
Cagliostro.
Trad, das Mémoires authentiques.
S.L., 1786, izz-8?.
72. Anônimo. Saggio Storico del conte di Cagliostro e della contessa
sua moglie.
Cosmopoli, 1791, izz-8?, 56 p., dois maus retratos.
73. E. Tsinck (Cajetan). Unparteyische Prüfung des zu Rom erschienen
kurzen Inbegriffs von dem Leben und Thaten Joseph Balsamo’s.
Viena, Kaiserer, 1791, izz-8?
Tradução da Vie de Joseph Balsamo.
74. Anônimo. Vertheidigungschriftfürden Grafen Alexander von Ca
gliostro.
S.L. (Basel) 1786, zn-81?
Trad, em alemão do Relatório do conde de Cagliostro contra o pro
curador e geral... Os outros relatórios e petições do processo também fo
ram traduzidos para o alemão.
Id — Frankfurt, 1786, in-8?.
75. Von der Recke. Nachricht von des berüchtigen Cagliostro’s
Aufenthalte in Mitau im Jahre 1779 und von dessen magischen Operationen.
Berlim e Stettin, bey Friedrich Nicolai, 1787. Pet. zn-8.°, XXXII-
168 p.
76. Geschiedverhaal van het verblijf. van dem besuchter Graaf von
Cagliostro...
Amst. P. Boddaert... 1791.
Zn-8?, LXII p. 221, retrato gravado p. Tokke.
Trad, em holandês do precedente.
Manuscritos
162. Bibliothèque Privée du Dr. Papus. Ritual da Maçonaria Egípcia
por Cagliostro. O original zn-4? foi perdido. A cópia da Bibi. Papus é in-
fólio, mas paginada segundo o original. E a que tivemos às mãos graças à
generosidade de nosso amigo Papus. O Sr. René Philipon possuiu outra
cópia.
Alguns fragmentos foram publicados na Initiation de agosto de 1906
a abril de 1908.
163. Arquivos Nacionais. Interrogatórios de Cagliostro na Bastilha.
X2 B 1417 (antigos F7 4445 B e 4450).
Documentos Fontaine sobre o caso J. Balsamo Y 13125.
Outros documentos sobre o processo do Colar a respeito de Cagliostro.
O11598.
164. Biblioteca do Arsenal. Manuscritos da Bastilha.
Classificação: 1785 B.
i. Mss 12457. Cinco peças sobre a detenção de Cagliostro e da con
dessa na Bastilha.
ii. Mss 12458. 12459. Catálogo dos libelos, brochuras, relatórios e
panfletos relativos a Cagliostro e ao processo do Colar, encontrados na
Biblioteca do Arsenal.
iii. Mss. 12517. Nota relativa à doença da condessa na Bastilha, f?
126. (Classificação: 1786. B.)
165. Biblioteca Nacional. Mss. francês, 6685. Diário do livreiro Hardy.
166. Biblioteca da Cidade de Paris. Manuscritos. Processo Target.
Na reserva.
167. Biblioteca da Cidade de Bâle. Archives Sarrasin. Compreendem
o Diário de Sarrasin e sua correspondência. Esses arquivos, antigamente
conservados pela família, foram doados à cidade. Encontramos ali cartas
de Sarrasin e, sobretudo, cartas dirigidas a ele por Lavater, Matheí, de
Gingin, etc., esclarecendo notavelmente a vida e a ação de Cagliostro; uma
carta de Cagliostro, uma carta de sua mulher, retratos e documentos.
168. Biblioteca da cidade de Estrasburgo. Manuscritos. Lote AA2110.
Documentos, cartas e relatórios referentes ao caso Ostertag e ao caso Sachi;
carta do cardeal de Rohan, de Barbier de Tinan e outros personagens ofi
ciais de Cagliostro.
169. Biblioteca Naz. Vittorio Emmanuele em Roma. Cod. Mss.
Scritture circa il processo di Giuseppe Balsamo.
Indicação tirada da obra de Rodocanachi acerca do castelo Saint-Ange.
170. Biblioteca Particular do Sr. Bréghot du Lut (em Confolens,
Drôme). Cartas de Saltzmann a Willermoz a respeito de sua visita a Ca
gliostro em 1780.
Retratos de Cagliostro
171. Busto por Houdon. Encontra-se atualmente no museu de Aix-
en-Provence: n? 776. Uma moldagem em gesso fora doada ao Sr. Thilorier;
ela fazia parte das coleções do Sr. Storelli, em Blois, em 1902.
172. Retrato — desenhado do natural por Guérin, gravado por Devère
em Paris, publicado pelo autor, rua dos Grands-Degrés n? 17, e pela srta. le
Beau, mercadora no Palais Royal.
(Anunciado como novidade no Mercure de France de 18 de março de
1786). Com os seguintes versos:
L’homme dans chaque siècle a connu les prestiges;
Ce docteur que tu vois a profité des siens:
II étudia l ’homme et, grand magicien
Sur I’ignorance humaine il fonda ses prodiges.
In-4°
(O homem, em cada século, conheceu os sortilégios
Este doutor que vês aproveitou dos seus:
Estudou o homem e, grande mago
Sobre a ignorância humana, ele fundou seus prodígios.)
173. O mesmo, desenhado por Guérin, gravado por Thoenert.
In-8°
174. O mesmo, desenhado por Guérin, gravado por Duhamel. Em
Paris, publicado por Esnault e Rapilly.
In-4°
175. Retrato — II. Retrato gravado: O conde de Cagliostro. Vendido
em Augsburgo. Zn-12.
175 bis. id. — II. Bis. Retrato gravado, in-8°. Legenda: “Para saber o
que ele é seria preciso ser ele próprio.”
176. Retrato. — III. Retrato gravado, realçado com cores à mão com
as armas de Cagliostro.
177. Retrato. — IV. Retrato gravado em azul por Pariset segundo
uma pintura de Boudeville.
Zn-16.
“Dedicado a madame Seraphia Felichiani” com os seguintes versos:
Do conde de Cagliostro revelemos o mistério
Ele quer, é para o bem; ele pode, é para fazê-lo.
BIBL. NAC., Estampas. Col. Hennin. 138.
178. Retrato. — V. Retrato gravado por Vinsac segundo um retrato
feito ao natural por Pujos (1786).
Retrato em Maneira Negra. Cagliostro usa um manto de pele.
178 bis id. — V. Bis. O mesmo S? W? Evans, escultor. A. Loosjes. P.
Z., exct. Retrato gravado.
179. Retrato — VI. Retrato gravado por Bonneville. Em Paris, rua do
Théâtre Français.
/n-8?
180. Retrato. — VIL Retrato em maneira negra tendo abaixo a inscri
ção “O Conde de Cagliostro” e os seguintes versos:
“Do amigo dos humanos reconhecei os traços.
Todos os seus dias são marcados por novas bondades
Ele prolonga a vida, ele socorre a indigência,
O prazer de ser útil é sua única recompensa.”
Gravado por J.-B. Chapuy. Brion de la Tour. Encontra-se com Basset,
rua Saint-Jacques.
M-4°.
181. Retrato. — VIII. Retrato no fisionotraço (?) silhueta negra.
182. Retrato. — IX. Retrato litografado por Wittmann.
O mesmo litografado pelo impressor Aubert (Gabinete de leitura)
183. Retrato. — X. Retrato gravado por Bollinger, quadro octogonal.
E Zwickau, em Gabr. Schumann.
184. Retrato. — XI. Retrato gravado por Leclère a partir de um qua
dro. Coleção da galeria histórica de Versalhes, in-f?.
Retrato em traje de cidade, cabeça baixa.
185. Retrato. — XII. Retrato gravado por R.-S. Marcuard, segundo
uma pintura de F. Bartolozzi, 1786.
ín-fólio, existe em negro.
BIBL. NAC., col. Caffarelli Calamy.
186. — id em bistre.
187. — id. em cores.
Abaixo 4 versos em inglês, assim traduzidos em português:
“Eis o homem espantoso, cujo talento sublime
Da morte, a cada dia, engana a avidez,
E que nenhum interesse anima
Senão o da humanidade.”
188. Retrato. — XIII. Retrato em pé: gravado por Sasso, desenhado
por Bosio.
Zn-4°.
Retratos da Condessa
189. Retrato— I. Retrato, m-4? oval, meio corpo em bistre.
Paris, por Alibert.
190. Retrato — II. Retrato em maneira negra.
Zn-8?
191. Retrato— III. Retrato gravado realçado com cores à mão.
TEMAS DIVERSOS
192. Desenho. Cagliostro mostra a Maria Antonieta (?) e a seu séqui
to uma aparição em uma garrafa: sem legenda.
Desenho da época a bico-de-pena, medindo 56-79 mm.
Catai. Rosenthal.
Caricaturas
19 3.1. Novo ídolo que representa o conde de Callimasse. Zn-f?, 30-40
cm, rodeado por um fio negro. Gravura formada por uma vintena de peque
nos temas distintos, cada um com sua legenda.
Abaixo, a legenda: “Retrato simbólico do Sr. conde de Callimasse”.
(cerca de 1786).
194. II. Making a Free mason. The Celebrated Dr. Comte de Caglios
tro and his assistant making the necessary preparat. for admission in-to the
anc. Order of Egyptian Free Masonry.
hi-4°, 2 páginas coloridas.
(coleção Astier. Catai, p. 41. n? 343).
195. III. Anedocte maçonnique arrivée à Londres le 1°novembre 1786
auf: Balsamo, soi-disant prince de Trébizonde.
Londres, 1786.
Zn-fólio, colorido, descrição em inglês e em francês (34 versos ingleses)
(Coleção Astier. Catai, p. 42. n? 344).
196. IV. Frontispício de: Nachrichten achte... (Mémoires authentiques).
Berlim, 1786. Cagliostro, em meio a um público feminino, nu, senta
do sobre uma esfera, com uma serpente na mão, a cabeça rodeada por uma
auréola.
Obras de Fantasia sobre Cagliostro
197. Anicet Dumanoir. La Fiole de Cagliostro. Vaudeville, 1835,
in-4?.
198. Antony Béraud et Léopold. Cagliostro, melodrama, in-8°.
199. Bell (Georges). Le miroir de Cagliostro. Paris. 1860, in-12.
200. Breval (Jean). “Cagliostro. Conte du lundi”. Journal d’Alsace-
Lorraine, 14 de março de 1910.
201. Anônimo. Cagliostro ou 1’Intrigant. Paris, 1834, 2 v. z'n-8?.
202. Anônimo. Cagliostro und die Hexe. Comédia.
Kehl, 1874, in-8?.
203. Catarina II da Rússia. Der Betruger. Der Verblendte. Der
Sibirische Schamon, comédias.
Riga, 1787, e Berlim, 1788, in-8?
204. De Créqui (Marquesa) (apócrifo: conde de Courchamps). Le
paradis sur terre. Trecho das memórias inéditas de Cagliostro.
Im Souvenirs, Paris, 1834, 3 v. in-8?.
T. Ill, 323-359.
Conto fantástico.
205. Dumas (Alexandre). Memoires d’un médecin. Joseph Balsamo
(3 vol). Le Collier de la Reine (5 vol.)
206. Dumas (Alex.) filho. Joseph Balsamo, drama em 5 atos. 1878.
207. Dupaty e de Reveroni. Cagliostro ou les llluminés, ópera-cômica.
Paris, 1810, in-8?.
208. Gérard de Nerval. Les llluminés. Paris, Lévy, 1868, in-18.
209. Goethe. Le Grand Cophte, comédia, in: t. I das Oeuvres
dramatiques.
Paris, 1825, em Santelet.
A edição original em alemão do Grande Copta é de 1792.
210. Giseke (R.). Die beiden Cagliostro, drama. Leipzig, 1858, in-8°.
211. Griesinger (Th). Cagliostriana. Novela. Stuttg., 1844.
212. Anônimo. (Natale Roviglio), 11 Cagliostro, comédia em 5 atos.
S.L., 1791, in-8, 71 p. Com 2 retratos.
213. Mendès e Lesclide. La divine aventure. Paris, 1881, in-12.
214. Mundt (Th). Cagliostro in Peterburg. Novela. Praga, 1858, in-8?.
215. Scribe. Cagliostro, ópera-cômica, 1844.
Mas o doméstico, com
uma profunda
reverência:
— Não, senhor. O Senhor
bem sabe que só estou a
serviço há 1.500 anos!”
Esse é um exemplo das
muitas histórias, como a
do rejuvenescimento de
uma criada que voltou a
ser garotinha ou a do
banquete das sombras,
que circulavam na época
de Cagliostro. Muitas
histórias foram
inventadas por farsantes:
uns, conscientes,
buscavam acabar com o
prestígio que rodeava
esse homem de poderes
especiais; outros
confundiam de boa-fé as
histórias e, uma vez que
Cagliostro era curador e
alquimista, atribuíam-ihe
façanhas inimagináveis.
Assim foi construída a
imagem deste mestre do
oculto, revelada nas
páginas deste livro.
Biografia/Alquimia/Hermetismo
CagliostrO
O GRANDE MESTRE DO OCULTO
esde a sua época, as pessoas que viam Cagliostro agir, que o
D
observavam e o interrogavam admitiam ser impossível julgá-
lo. Uns o reverenciavam como um verdadeiro deus, outros o
odiavam. Certamente, nenhuma personalidade permaneceu
mais enigmática ao longo da História do que este homem. Mas, a
quem foi Cagliostro?
Acerca de sua vida, lendas e calúnias se acumularam. Desde que estava
vivo até depois da sua morte, histórias a seu respeito se espalharam e ódios
religiosos o perseguiram. Por não encontrarem nada que explicasse seus
atos, os historiadores logo o deixaram de lado e a literatura tomou para si
o papel de torná-lo um personagem clássico.
Das lendas, exageros e imperícias de seus discípulos e admiradores cons
truiu-se a imagem do mago Cagliostro: um homem rico, dono de uma
fortuna que ninguém sabia de onde provinha, dotado de um poder espe
cial para a cura e realizador de milagres que enciumavam os médicos e
poderosos de sua época. Um homem que ajudava a todos, que inclusive
dava abrigo e dinheiro aos pobres fiéis que trilhavam longas viagens em
busca de uma possível cura. Uma personalidade que despertava ódio e
amor e da qual, no entanto, temos apenas uma idéia aproximada.
Cagliostro — O Grande Mestre do Oculto é uma obra biográfica que,
baseada em textos oficiais, referências de contemporâneos imparciais e
cartas e petições escritas pelo próprio Cagliostro, busca iluminar mais um
pouco o caráter de um homem tão cercado de mistérios e suas relações
com o Hermetismo, a Alquimia e a Maçonaria.
MA OR AS