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CagliostrO

O GRANDE MESTRE DO OCULTO

Dr. Mun Haven MADRAS


“Caghostro parou com
um grito de surpresa
diante de um crucifixo de
madeira esculpida: não
podia compreender como
o artista, que certamente
não vira Cristo, pudera
atingir uma semelhança
tão perfeita.
— O Senhor então
conheceu Cristo?
— Nós éramos como
carne e unha. Quantas
vezes não passeamos
juntos sobre a areia
molhada, às margens do
lago de Tiberíades. Sua
voz era de doçura
infinita... Mas ele não
quis acreditar em mim:
percorreu as margens do
mar, ajuntou um bando
de pobretões, de
pescadores, de
esfarrapados: ele pregou
— e aconteceu-lhe o pior!
E voltando-se para seu
criado:
— Você se lembra da
noite em Jerusalém em
que sacrificaram Jesus?

MADRAS
0*9 íiostro
O Grande ÇAÇestre do Oc^íto
Estudo Histórico e Crítico sobre a Alta Magia

Obra Complementada com Dezoito Gravuras, Retratos, Paisagens


ou Fac-Símiles de Documentos.
Cag liostro
O Grande ÇMestre do Oculto
Estudo Histórico e Crítico sobre a Alta Magia

Obra Complementada com Dezoito Gravuras, Retratos, Paisagens


ou Fac-Símiles de Documentos.
Dr. Metre Haven

Cog iiostro
O Grande (Mestre do Ocuito
Estudo Histórico e Crítico
sobre a Alta Magia

Obra Complementada com Dezoito Gravuras, Retratos, Paisagens


ou Fac-Símiles de Documentos.

Tradução:
Julia Vidili

MADRAS
Traduzido originalmente do francês sob o título Le Maitre Inconnu Cagliostro
Direitos de tradução para todos os países de língua portuguesa
© 2005, Madras Editora Ltda.
Editor:
Wagner Veneziani Costa
Produção e Capa:
Equipe Técnica Madras
Tradução:
Julia Vidili
Revisão:
Wilson Ryoji
Augusto do Nascimento
Neuza Alves
Sandra Cerald Carrasco

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Haven, Marc, 1868-1926.


Cagliostro: o grande mestre do oculto: estudo histórico e crítico sobre a alta magia/ Dr. Marc
Haven; tradução Julia Vidili. — São Paulo:
Madras, 2005.
Título original: Le maitre inconnu, Cagliostro “Obra complementada com dezoito gravuras,
retratos, paisagens ou fac-símiles de documentos”
Bibliografia.
ISBN 85-7374-857-5
1. Alquimia 2. Cogliostro, Alessandro, Conte di, 1743-1795 3. Hermetismo 4. Magia 5. Ocultismo
I. Título.
04-4459 CDD-135.45092
índices para catálogo sistemático:
1. Mestres herméticos : Ciências ocultas :
Biografia 135.45092

Os direitos de tradução desta obra pertencem à Madras Editora assim como a sua
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“Matastes o Príncipe da vida: mas Deus
o ressuscitou dos mortos; disso somos testemunhas.”
Atos dos Apóstolos, III: 15
/ #
Indice

Introdução ............................................................................................................ 11
Capítulo I
Primeiras Viagens — O Aventureiro............................................................ 19
Capítulo II
Retrato — O Impostor..................................................................................... 23
Capítulo III
Londres — Primeira Estada — O Escroque................................................ 37
Capítulo IV
A Rússia — O Feiticeiro................................................................................. 51
Capítulo V
Estrasburgo — O Empírico............................................................................. 89
Capítulo VI
Lyon — O Charlatão...................................................................................... 118
Capítulo VII
Paris —■ O Falso Profeta................................................................................. 147
Capítulo VIII
Londres — Segunda Estada — O Explorador da Credulidade Pública ..182
Capítulo IX
A Suíça e Roma — O Profanador do Único Culto Verdadeiro............ 201
A Suíça — Bâle e Bienne....................................................................... 201
Rovoredo-Trento ....................................................................................... 211
Roma........................................................................................................... 215
Capítulo X
Observações acerca da Vida e da Morte de Cagliostro —
O Espírito das Trevas.................................................................................... 232
Capítulo XI
Joseph Balsamo e o Conde de Cagliostro.................................................. 234
Epílogo
O Mestre Desconhecido................................................................................ 243
Apêndice
Primeira Parte.................................................................................................. 247
I — Assinaturas de Cagliostro............................................................. 247
II — Certidão de Batismo..................................................................... 250
III — Cetidão de Casamento................................................................ 251
IV — Cetidão de Óbito...............................................................................
V — Notas referentes às Famílias Balsamo, Bracconieri,
Cagliostro................................................................................................... 252
Segunda Parte.................................................................................................. 254
I — Algumas Fórmulas e Preparações Medicamentosas de
Cagliostro em Estrasburgo (1781)....................................................... 254
II —Uma Carta do Cardeal de Rohan a respeito de Cagliostro... 255
III — Carta de Barbier de Tinan, Comissário das Guerras,
ao Editor da Correspodência Secreta de Neuwied.............................. 257
IV — Patente da Loja-Mãe do Rito Egípcio Fundedo em
Lyon pelo G. Copta.................................................................................. 258
V — Mapa das Viagens de Cagliostro............................................... 259

O Evangelho de Cagliostro........................................................................... 260


Introdução......................................................................................................... 260
O Evangelho de Cagliostro........................................................................... 266
Bibliografia
Bibliografia e Iconografia dos Domentos Concernentes a Cagliostro....... 285
I — Obras de e a respeito Cagliostro em Francês.............................285
II — Esudos Parciais — Referências — Artigos de Jornais......... 293
índice das Gravuras

Cagliostro. Retrato por Leclère..................................................................... 10


— Busto por Houdon, perfil................................................................. 13
Casa habitada por Cagliostro, em Estrasburgo............................................83
Selo da Loja “A Sabedoria”, de Lyon......................................................... 126
— Retrato por J.-B. Chapwy............................................................... 117
— Retrato por Bollinger...................................................................... 146
— Busto por Houdon, face por Bartolozzi........................................ 171
Rockhalt Casa de campo de Cagliostro, em Bienne................................. 171
Carta com sinete real ordenando a prisão de Cagliostro.......................... 194
Assinaturas de Cagliostro.............................................................................. 247
Certidão de Batismo de Balsamo.................................................................249
Certidão de Casamento de Balsamo............................................................ 250
Armas de Cagliostro....................................................................................... 252
Árvore Genealógica de Joseph Balsamo Cagliostro, perfil.................... 253
Mapa das Viagens de Cagliostro.................................................................. 259
Cagliostro
Retrato da galeria histórica do Museu de Versailles
gravada por Leclère
Introdução

Sempre me lembro de um artigo de jornal publicado no século XX e


que fornecia a biografia de um contemporâneo, complementada por sua
fotografia. Será que alguém que, ao estudar o personagem em questão,
encontrasse daqui a cem anos esse jornal podería deixar de classificar aquele
estudo entre os mais importantes de seus documentos? Ora, o clichê era de
um desconhecido, que nem mesmo se parecia com o herói da história, e a
biografia fazia nascer em Constantinopla, num harém, aquele que vira o
dia como filho de simples agricultores, em uma aldeia da França. Feliz­
mente, esqueci o resto.
Essa lembrança me perseguia enquanto eu estudava Cagliostro; se
tais erros podem ser impressos em nossos dias e se difundir com tanta
facilidade, se vivemos em meio aos acontecimentos contemporâneos sem
poder apreciar-lhes o caráter, com frequência até sem tomar conhecimento
deles, em que bruma de ilusões, em que mundo de fantasia devemos estar
mergulhados em relação ao passado?
Quando tratamos de um homem que representou na história um papel
algo importante, encontramo-nos em presença de dificuldades bem gran­
des provenientes da distância, da parcialidade, das opiniões comumente
aceitas. A parcialidade dos contemporâneos torna-se ainda mais importan­
te por o tempo, ao correr, tomar o controle mais impossível; uma opinião
geral, com muita freqüência a do livro mais atraente ou mais divulgado,
estabelece-se e, desde então, todo escritor levado a falar do fato histórico
ou do homem que deixou seu nome se manterá nesse julgamento, definiti­
vo em sua opinião, porque a massa pouco a pouco o sancionou com sua
preguiça e sua credulidade.
Foi o que ocorreu com Cagliostro, mais do que com qualquer outro;
pois, já em seu tempo, aqueles que o viam agir, que o observavam e inter­
rogavam, quando eram espíritos ponderados e filosóficos, admitiam que
era impossível fazer dele um julgamento1; alguns o reverenciavam como
um deus; outros o odiavam como o pior inimigo da humanidade2. Ninguém
suscitou mais devoção, ninguém provocou mais furores e nenhuma perso­
nalidade permaneceu mais enigmática, mesmo para seus íntimos, mesmo
para os magistrados aos quais coube a pesada tarefa de julgá-lo.
Além disso, sobre ele, mais do que sobre qualquer outro, as calúnias
se acumularam, as lendas correram. Mesmo quando estava vivo, elas eram
espalhadas; após sua morte, os ódios religiosos, que são os mais tenazes e
sobrevivem ao túmulo, perseguiram-no. Os historiadores foram golpeados
pela brusca aparição desse homem às vésperas da Revolução; mas. sem
encontrar nenhum resultado evidente e imediato em seus atos, nada que
explicasse seu papel, renunciando a compreendê-lo, logo o deixaram de
lado como um personagem episódico sem importância; a literatura tomou
posse dele e, finalmente, impôs-se uma opinião, hoje ainda encontrada em
todos os livros, que se tornou clássica à força de ser reproduzida. Roubado
à história por se ter tornado um tipo legendário, meio feiticeiro e meio
prestidigitador, escroque brilhante e bufão, o conde de Cagliostro é um
personagem que se classifica entre Robert Macaire e Polichinelo no museu
dos fantoches3.
Muitos espíritos continuam assim: basta-lhes conhecer o Cagliostro
charmoso de Gérard de Nerval ou o mago impressionante de Alexandre
Dumas; mas aqueles que ouviram por vezes palavras de vida, que sentiram
— nem que por uma hora — um mundo de mistérios a rodeá-los, não podem
se contentar com essa noção superficial; eles pedirão mais. Para reencon­
trar, se é que isso é possível, o verdadeiro Cagliostro, para adquirir um
conhecimento mais adequado de seu espírito, o que podíamos fazer?
Antes de tudo, dirigimo-nos a melhores fontes. O que existe sobre
Cagliostro? Em primeiro lugar, e em grande número, panfletos — lançados
ou por seus adversários, no processo que ele teve de sofrer e, em particular,
quando do Caso do Colar; ou pelos inimigos pessoais que ele fizera com
sua grande liberdade de expressão, com a originalidade de seus atos; ou
por fim pelo Santo Ofício que, quando de sua captura, sabendo encontrar
nele um dos chefes patentes ou os segredos da Maçonaria, quis dar um duplo
golpe: por um lado, sujar para sempre a memória desse representante das
idéias liberais que borbulhavam então em muitos cérebros; por outro,

1. “Vere enigma estiste, de quo non licetjudicare". Liber memorialis de Caieostro. Venitiis.
S. S. in-8?, p. 36 (Trad, franc. Dr. M. Haven. L’evangile de Cagliostro. Paris, 1910, in-16,
p.86) Cf. e: Carta de Blessig, in: Weisstein. Cagliostro à Strasbourg.
2. Breteuil, Meiner pensavam assim: “... eines Mannes..., den ich genie der ganzen Welt
verdcichtig machen mõchte. ” Meiner. Briefe Uber die Schweiz. Il parte; in: Mirabeau.
Lettre surMM. De Cagliostro... Berlin, 1786, in-8?, p. 14.
3. E quase a expressão textual do Joseph Prud'homme, inglês a quem chamamos Carlyle.
Frasers Magazine. Julho, 1833, p. 19 a 28, e ibidem agosto de 1833, p. 132 a 155.
Cagliostro
Busto por Houdon, perfil — Museu de Aix-en-Provence
fazer recair sobre a ordem inteira o descrédito lançado sobre o Grão-Mes-
tre da Maçonaria egípcia.
A Vie de J. Balsamo, publicada pelo Santo Ofício como uma apolo­
gia de sua ação inquisitorial, é uma obra-prima de ódio e de hipocrisia; os
libelos dos senhores Sachi e Morande, de Madame de la Motte empalideciam
ao lado desse requisitório4; porém, esses três personagens não haviam ma­
nejado Cagliostro.
Mas, aperfeiçoada pelo Santo Ofício, a obra toma outra amplitude:
tudo o que se poderia compilar de mais difamatório entre os autores cita­
dos foi juntado ao que a Inquisição pôde arrancar de comprometedor a
Cagliostro e a sua mulher, com promessas ou torturas5.
Que se junte a isso tudo o que, em 1791, a imaginação de sacerdotes
italianos, assustados com a Revolução Francesa, podia inventar contra a
Maçonaria em geral e contra o fundador de um Rito místico em particular,
e teremos uma idéia da violência desse libelo. A habilidade com a qual o
autor, brincando com as palavras, confunde à vontade religião e Catolicis­
mo, ateísmo e heterodoxia, liberalismo e ceticismo, faz com que o leitor,
insensivelmente, seja levado a segui-lo, a adotar suas conclusões, se ele
não se observar e descobrir a artimanha.
Não apenas o livro é um requisitório odioso, não apenas está coalhado
de erros naquilo que é verificável6 e de invenções nos trechos impossíveis de
investigação, mas ainda, no desenvolvimento de sua tese, o autor cai em
tais contradições que elas saltam aos olhos e que o tradutor francês da
obra, hostil porém a Cagliostro, tendo apenas desprezo e ironia por ele,
não pôde deixar, em alguns lugares, de assinalar essas contradições, que
revoltam a justiça e mesmo o bom senso7.
Portanto, quase nada se aproveita na Vie de J. Balsamo, não mais que
nos panfletos anteriores; e se temos de citá-los, só devemos fazê-lo com

4. Falamos de Sachi e de suas altercações com Cagliostro em nosso cap. V: Estrasburgo,


p. 87. Estudaremos Morande em nosso cap. VIII: Londres, p. 181, e madame de la Motte,
no Caso do Colar, cap. VII, p. 145, embora a história tenha suficientemente desmascara­
do e difamado esses dois últimos personagens para que nós pudéssemos mesmo nos dis­
pensar de refutar suas asserções interesseiras.
5. Cf. Roma, p. 211
6. Apenas nas questões de fato a respeito dos períodos da vida de Cagliostro sobre os quais
temos documentos oficiais — cerca de dez. anos — pude relevar mais de 30 erros de datas,
nomes ou acontecimentos. Vemos por aí a confiança que devemos conceder às narrativas da
juventude de Cagliostro nas quais o autor deu ainda mais livre curso à sua imaginação,
sendo qualquer retificação impossível para esse período desconhecido.
7. Na advertência, p. IV e V, ele acreditou ter de se desculpar por traduzir a sentença que
condenava Cagliostro, qualquer que fosse ela, à morte; ele admite que sua razão se revolta
diante dos juizes do Santo-Ofício, diante dos gritos dos inquisidores, reclamando ainda, em
1791, sangue para a proteção da Santa Igreja Católica e Romana. Cf. Notas: p. 76, 80, 87.
muitas precauções. Diriamos outro tanto das outras biografias, isoladas ou
intercaladas em obras gerais8 que, na parte documental, apóiam-se todas
nesse pequeno livro, tecido com mentiras e bobagens, que a Câmara apos­
tólica mandou imprimir em Roma. A publicação dos documentos Fontaine
pelo erudito Sr. Campardon9 incitou alguns escritores a se ocupar de Ca­
gliostro. O Sr. Funck-Bretano foi o primeiro, e com imparcialidade. Um
autor moderno10 retomou o assunto; mas seu livro, ao contrário do prece­
dente e à imitação dos panfletos antigos, está todo impregnado do mesmo
espírito de ódio que ditou a Vie de J. Balsamo ao padre jesuíta Marcello.
Por outro lado, temos de eliminar, para chegar a um Cagliostro verda­
deiro, os trajes e cenários com que os romancistas sobrecarregaram o per­
sonagem. Alexandre Dumas, Gerard de Nerval, J. de Saint-Félix11, para
desenvolver um tipo já maravilhoso por si mesmo, acrescentaram à sua
vida e às tradições correntes sobre ele traços pertencentes a outros perso­
nagens da história ou da lenda. Já no tempo de Cagliostro os cronistas
acumulavam à vontade o inverossímil sobre o maravilhoso. Foi assim que,
em diversos panfletos da época, encontramos a seguinte narrativa:
“Cagliostro parou com um grito de surpresa diante de um crucifixo
de madeira esculpida: não podia compreender como o artista, que certa­
mente não vira Cristo, pudera atingir uma semelhança tão perfeita.
— O senhor então conheceu Cristo?
— Nós éramos como carne e unha. Quantas vezes não passeamos
juntos sobre a areia molhada, às margens do lago de Tiberíades. Sua voz
era de doçura infinita... Mas ele não quis acreditar em mim: percorreu as
margens do mar; ajuntou um bando de pobretões, de pescadores, de esfar­
rapados: ele pregou — e aconteceu-lhe o pior!
E voltando-se para seu criado:
— Você se lembra da noite em Jerusalém em que crucificaram Jesus?
Mas o doméstico, com uma profunda reverência:
— Não, senhor. O senhor bem sabe que só estou a seu serviço há
1500 anos!”12
Essas histórias, como a do rejuvenescimento de uma criada que vol­
tou a ser uma garotinha ou a do banquete das sombras13, circulavam em seu
tempo. De Gleichen, muito honesto, explica que essas eram acusações

8. Christian. Histoire de la Magie. P. Fume, gr. In-8?, p. 170 — Figuier. Histoire du


Merveilleux. Paris, 1861, in-16, t. IV, p. I
9. Campardon. Marie-Antoinette et le Procès du Collier, Paris, Plon, 1863, p. 410
10. D’Alméras. Cagliostro. Paris, 1904, in-16
11. J. de Saint-Félix. Aventures de Cagliostro. Paris, Hachette, 1855, in-16.
12. Funck-Brentano. L’Affaire du Collier. Paris, Hachette, 1902, p. 89.
13. Mémoires authentiques. Paris, 1686, in-8?, p.ç 18 — Gazette d’Utreytch, de 2 de
agosto de 1787.
inventadas por farsantes14: uns, muito conscientes, buscavam matar pelo
ridículo o prestígio que rodeava o homem de poderes excepcionais; outros
confundiam de boa-fé as histórias e, uma vez que Cagliostro era alquimista
ou curador, isso bastava para que lhe atribuíssem as transmutações de um
cavaleiro Borri, as obras de um Gualdo ou os terríveis mistérios do espírito
Gablidone15.
Enfim, seus próprios discípulos, seus admiradores, nos quais a credu­
lidade suprimia qualquer julgamento, aceitavam com entusiasmo todas as
novas histórias e as passavam adiante, deformando-as cada vez mais16.
De todas essas lendas, esses exageros e imperícias se construiu pou­
co a pouco o personagem mítico do mago Cagliostro: os literatos, que o
receberam bastante desfigurado, alteraram-no ainda mais — temos de le­
var isso em conta. Não que tenhamos de procurar documentos com os ro­
mancistas, mas porque não é com a imagem preconcebida de seu Cagliostro
de fantasia diante dos olhos que devemos abordar nosso estudo, e também
porque não se deve esquecer que, já nas narrativas dos contemporâneos,
essa deformação do personagem começa a se produzir.
Acabamos de ver tudo o que devemos rejeitar como coalhado de er­
ros, calúnias e lendas e que, infelizmente, inspiraram a maior parte dos
escritores; ficamos em presença:
1? — Das informações dadas, das apreciações fornecidas por teste­
munhas competentes, pessoas que viveram em sua intimidade ou viajantes
de passagem, que anotaram à noite suas impressões da visita a Cagliostro17;

14. De Gleichen. Souvenirs. Paris 1868, in-16, p. 125-126. Lord Glower, que é o autor
confirmado da acusação precedente, talvez não a tenha inventado especialmente para
Cagliostro, pois, na Chronique de 1’Oeil de Boeuf referente às cortes de Luís XIV e Luiz
XV (cap. XXII), encontramos a mesma história atribuída ao conde de Saint-Germain. A
anedota do rejuvenescimento exagerado também vem de Saint-Germain: a do crucifixo
está na Magie de Cagliostro, 1789, p.18.
15. Cf. Gazette de Leyde, n? 72, de 9 de setembro de 1785. — Ma Correspondance, n? 73,
2 de setembro de 1785 eEssai sur lasecte des Illumines. S.L., 1789, pet. In-8?, p. 129-134.
“Ao fim de cada mês, diziam, ele se trancava durante quarenta e oito horas e, ao sair
desse isolamento, mandava vender na Loja de um ourives um lingote de ouro que era
sempre mais fino do que o dos Luises. ” Souvenirs du due de Levis, citados in: Chaix
d’Est-Ange, p. 6.
16. Seus amigos e seus defensores lhe causaram tanto mal quanto seus inimigos; tagarelas
pouco inteligentesfizeram Cagliostro suportar o novo ridículo da estupidez deles mesmos.
17. Ainda se deve levar em conta, no exame desses textos, a prevenção que devia se elevar
em todos os espíritos sérios, em todos os personagens oficiais, contra um indivíduo que se
apresentava com uma aparência tão extraordinária, cujas palavras perturbadoras e atos
estranhos feriam com freqiiência o bom tom do século XVIII. Muitos vêem nele o saltim­
banco; saltimbanco, se quiserem, mas saltimbanco como o do livro de Thoth: divertido
encantador para as crianças, cujos gestos simbólicos relembram ao mesmo tempo, aos
sábios, as verdades eternas.
2? — As peças conservadas por ocasião dos interrogatórios oficiais;
esses últimos documentos poderão nos fornecer datas e textos muito pre­
ciosos18.
3? — As correspondências pessoais, cartas públicas, petições e factions
diversos escritos por Cagliostro, ou sob seu controle direto19, e que foram
sistematicamente negligenciados. Seu relatório contra o procurador-geral,
em particular, foi ridicularizado e incompreendido; o público letrado o olhou
como um romance oco e o desdenhou. Porém, se os críticos, mais esclare­
cidos, houvessem-se esforçado para penetrar no sentido desses escritos,
separar os fatos e os símbolos, teriam visto que Cagliostro se revelava, ali,
tão claramente quanto em seus atos, e que suas páginas tão depreciadas
esclareciam singularmente muitos lados obscuros de seu herói.
Textos oficiais, referências de contemporâneos imparciais, cartas e
petições escritas por Cagliostro, eis portanto as únicas fontes, pouco abun­
dantes, mas claras e sãs, em que deva beber um crítico escrupuloso, desejo­
so de restabelecer em sua forma e sua luz verdadeiras a figura tão interessante
do profeta da Revolução, do curador dos incuráveis, do amigo de Lavater, do
mestre do cardeal de Rohan.
Tal não foi, infelizmente, o comportamento dos historiadores; eles se
ativeram aos panfletos, tão numerosos, tão ricos em crônicas escandalosas,
tão divertidos de citar. Isso lhes bastou; eles não procuraram mais além; e
se alguns deles por vezes interrogaram as defesas de Cagliostro ou as lem­
branças de observadores contemporâneos, foi de má vontade e já com a
opinião formada20.
Além disso, nem as biografias, cheias dos mesmos erros, das mesmas
calúnias, nem as notas superficiais inseridas aqui e ali, nem mesmo as pá­
ginas consagradas por espíritos mais esclarecidos a Cagliostro não dão

18. Referimo-nos aos atos seguintes: Interrogatório na Bastilha. Cartas Ministeriais, de


1783. Debates do Processo do Colar e Veredicto, de 31 de maio de 1786, peças conserva­
das nos Arquivos e na Biblioteca do Arsenal. (Cf. Bibliografia, no fim deste livro).
19. Diversos relatórios, redigidos por Me. Thilorier, foram inspirados, e mesmo, dizem,
escritos parcialmente em italiano por Cagliostro. Cf. Gazette de Leyde, n? 18 de 3 de
março de 1786. — Borowski. Cagliostro, einer der merkwüdirgsten Abentheur...
Konigsberg, 1790, in-16, p. 5.
20. Um excelente autor, o Sr. Funck-Brentano, em seu livro a respeito do Affaire du Collier,
deve ter se ocupado de Cagliostro; mas só fala dele incidentalmente, de alguns meses de
sua vida e referente a um fato com o qual Cagliostro só teve muito pouco a ver; por outro
lado, seguindo nisso sua opinião banal, ele viu em Cagliostro o personagem original,
divertido, de seu estudo e não teve receio de acentuar nele os traços, atribuindo-lhe epi­
sódios duvidosos. Em uma palavra, ele não penetrou mais profundamente na alma de seu
personagem — é verdade que não tinha obrigação de fazê-lo — e, consequentemente,
não foi levado a buscar esclarecer pontos duvidosos nem a destruir calúnias que em nada
modificavam seu assunto. Além dessas reservas, é certamente o que já foi escrito de me­
lhor, de mais imparcial acerca de Cagliostro.
dele senão uma idéia aproximativa. Odioso escroque, ingênuo ilumina­
do, delicado manejador de almas, grosseirão, apresentam-nos, para Ca­
gliostro, cem personagens diversos, pouco relacionados com seus atos, dos
quais nenhum satisfaz o espírito; mais que isso, o mesmo autor, a algumas
linhas de distância, não teme pintá-lo a nós sob traços absolutamente con­
traditórios! O bom senso se revolta ao ler essas bobagens.
Tudo deve ser, portanto, refeito, e uma vida de Cagliostro, concebida
de outra maneira, impõe sua necessidade histórica. É ao tentar estudar esse
personagem para criar uma opinião que vi a necessidade de pesquisas no­
vas e, devo declará-lo, penetrando mais de perto os acontecimentos da vida
e o caráter desse homem, eu o vi crescer e se iluminar diante de meus
olhos; senti-me, desde então, levado a falar dele por um sentimento dife­
rente de um simples interesse de curiosidade: acreditei-me no dever de
fazê-lo.
Capítulo I

Primeiras Viagens —
O Aventureiro

A narrativa alegórica de sua infância feita por Cagliostro, o que ele


dizia de suas viagens, não foi tomada ao pé da letra nem aceita tal como
por ninguém sem dúvida; quase todos consideraram essa história como um
modo pretensioso de se elevar na opinião dos homens; seus inimigos logo
se esforçaram para buscar uma origem mais natural para Cagliostro, deta­
lhes mais terra-a-terra acerca de sua juventude, desejosos de apanhá-lo em
flagrante delito de invenção e anular assim com seus protestos a impressão
grandiosa que produziam sua bondade e suas maravilhas.
Sachi foi o primeiro a anunciar que ele se chamava Thiscio, que nas­
cera em Nápoles, filho de um cocheiro; que fora cabeleireiro, exercera em
seguida, aqui e ali, as mais desprezíveis profissões. Outros diziam que ele
era judeu português; Madame de la Motte retomou e reeditou essas narra­
tivas. Mais tarde, Morande e o comissário Chesnon descobriram nele Joseph
Balsamo; publicaram aventuras de juventude atribuídas a ele, suficientes
para desconsiderá-lo para todo o sempre. Outra história, mesmas tendên­
cias, mesma riqueza de detalhes, documentos igualmente certos em apa­
rência. Essa segunda versão teve ainda mais sucesso que a primeira e se
espalhou rapidamente graças ao Courrier de I’Europe. Encontramo-na em
quase todos os historiadores.
O objetivo desses romances, dessas publicações, era o mesmo: trata­
va-se de perfurar o incógnito sob o qual Cagliostro se apresentava, sobre­
tudo de lançar bastante desconfiança, bastantes opróbrios sobre a porção
desconhecida de sua vida para que sua reputação atual fosse atingida; ad­
mitida a história, tudo se tomava matéria para suspeita nele, mesmo a vir­
tude mais indiscutível.
Nada resiste, com efeito, a esse procedimento destruidor: a calúnia,
mesmo a mais fantasista, faz nascer a dúvida, e a dúvida é um solvente
universal mais forte que o dos alquimistas. Os fatos difamatórios podem
19
destruir um ao outro, as suposições podem repousar sobre o vazio, as fan­
tasias tomam livre curso: o leitor, por curiosidade, por indiferença, não se
detém nas evidentes desonestidades; ele absorve o alimento agradável que
lhe oferecem e a obra nefasta é cumprida: a desconfiança entrou; o herói
tomba e nada poderia reerguê-lo, nem em seu tempo, nem nos séculos por
vir.
Foi o que fizeram por Cagliostro: enegreceram de calúnias sua juven­
tude ignorada por todos; povoaram os primeiros anos de sua vida, que ele
queria deixar envoltos em mistério, de histórias escandalosas, intrigas cri­
minais, sem medida, sem provas, sem escrúpulo, e é com essa espécie de
prefácio que começam todas as biografias de Cagliostro. Não os seguire­
mos nesse caminho; claro, estudaremos também as diferentes hipóteses
oferecidas referentes ao nascimento e à vida desconhecida de Cagliostro,
mas o faremos no lugar que for conveniente a esse exame, ou seja, após
haver seguido passo a passo sua existência, desde o momento em que sua
vida é historicamente conhecida21 até seu último dia. Teremos, assim, ao
contrário dos panfletários interesseiros ou dos críticos irrefletidos, um tipo
positivo de homem, um ser verdadeiro para comparar com as imagens de
fantasia que se apresentaram ao público para preencher o vazio desse pe­
ríodo desconhecido, em lugar de partir, como eles, de suposições, de fatos
mal estabelecidos para criar um personagem de romance, cujo reflexo en­
ganador lançaria em seguida, sobre o homem que veriamos falar e agir,
uma sombra de desconfiança injustificada.
Passando assim do conhecido ao desconhecido, acreditamos proceder
de maneira mais científica e mais justa; evitamos também superfluidades e
repetições; pois, para julgar o valor das diferentes hipóteses apresentadas,
é importante conhecer aqueles que as emitiram, e é seguindo Cagliostro
em seus trabalhos, em suas lutas, a Estr,asburgo, a Paris, a Londres, que
teremos o que falar daqueles que, primeiro, quiseram estender a mão para
o véu misterioso com que ele se envolvia.
Sem nos tardar para buscar desde já se, efetivamente, Cagliostro visi­
tou o Egito, se ele passou por Rodes antes de ir a Malta, se ele nasceu em
Messina ou em qualquer outro lugar, se ficou apenas uma vez em Nápoles,
todas coisas bem secundárias em nossa opinião, uma vez que em nenhum
desses lugares Cagliostro se manifestou realmente, e porque, por outro
lado, consideramos a maior parte de suas declarações como enunciados
simbólicos22, começaremos nosso estudo com a aparição de Cagliostro em
Londres, em 1777, porque é a partir dessa data apenas que tivemos docu­
mentos, vindos dele ou de seus adversários, mas precisos e indiscutíveis.

21. Na Inglaterra, em 1777, com cerca de 33 anos.


22. Dizemos a maior parte pois nem tudo é puramente simbólico, como explicaremos
mais adiante.
Antes de sua estada em Londres, há alguns acontecimentos da vida de Ca­
gliostro que já pertencem à história e parecem estabelecidos: sua estada
em Malta23, seus trabalhos com o Grão-Mestre Pinto, amador de ciência
hermética, seu casamento em Roma, sua amizade com o cavaleiro de
Aquino24, uma viagem que fez à Espanha25 são fatos reconhecidos por ele e
aceitos por seus adversários que os confirmaram, embora tenham desnatu-
rado os detalhes. Devemos portanto admiti-los e indicá-los. A juventude
de Cagliostro foi movimentada; viajou muito cedo pela Europa Ocidental;
mas, como nenhum testemunho palpável nos resta de seus trabalhos, ne­
nhuma referência nítida daqueles que o conheceram naquela época chegou
até nós, e como em nenhum daqueles lugares ele realizou obras análogas
àquelas que o tornaram conhecido mais tarde, não podemos, se não quiser­
mos recair no mesmo defeito que censuramos nos outros, senão citar as
poucas indicações gerais admitidas a justo título pelos autores, sem nos
atermos mais a elas. Essas viagens, que duraram muitos anos, levaram-no
por fim a Londres, em 1777, o verdadeiro início de sua carreira.

23. “As informações vindas de Malta confirmam a chegada a essa ilha, por volta de 1756,
de um padre siciliano acompanhado de um jovem de 10 a 12 anos, cuja descrição corres­
ponde à de Cagliostro, e que viajou em seguida com o cavaleiro d’Aquino. ” Ma
Correspondence, rí? 59, 22 de julho de 1786. — Cf. Borowski, Cagliostro..., etc., p. 31. O
padre condecorado com a ordem de Malta, que teria viajado muito pelo Oriente, chamar-
se-ia Puzzo, e a criança, Michael.
24. Relatório do conde de Cagliostro. Paris, 1786, in-16, p. 18 e 19. Cagliostro fez em
1783 uma viagem a Nápoles para dar assistência ao cavaleiro d'Aquino, moribundo.
25. Relatório do conde de Cagliostro, p. 22. Don Luis de Lima Vasconcellos, grande prior
de Maiorca, irmão de Don Jaime de Majonès de Lima de Sotomajor, embaixador da Espa­
nha (1747-1764), era discípulo de Cagliostro. Souvenirs de la marquise de Créqui. Paris,
1834, 3 volumes, in-8?, t. Ill, p. 223.
Capítulo II

Retrato — O Impostor

O conde de Cagliostro, assim como ficou conhecido na Europa de


1777 a 1787, era um homem de estatura pouco elevada, abaixo da média26,
de ombros quadrados, peito largo e estufado, dando a impressão de vigor e
saúde; a cabeça poderosa era coberta por cabelos negros ondulados, rebel­
des e penteados para trás27; ele a trazia alta, chegando mesmo a erguer o
queixo, o que deixava ver as linhas de um pescoço redondo, musculoso,
notavelmente gracioso28. Em contraste com a amplidão do peito, as mãos
e os pés eram pequenos, os ligamentos finos29. Uma obesidade nascente,
que se acentuou apenas nos últimos anos de sua vida, nada lhe tirava de
sua vivacidade; seu andar era alerta, volteante30, e revelava uma riqueza
de vida, uma energia muscular sempre prontas a serem esbanjadas. O rosto
era cheio, a pele fresca, a testa aberta, elevada. Muito largo no nível das
maçãs do rosto, a figura afinava embaixo, onde o maxilar inferior oferecia
um pequenino desenvolvimento. Os traços nada tinham de assimétrico,
nem de ofensivo: o nariz redondo, a orelha fina e bem desenhada31, o lábio
superior predominava sobre o inferior, e a boca, quase sempre entreaberta,
descobria dentes sólidos e soberbos. O queixo se arredondava, com uma
covinha no meio.

26. Cinco pés e uma polegada (!) disse o policial Bernard no Courrier de 1’Europe n° 29,
1787. Evangile de Cagliostro, Paris, 1910, p. 85 — Ein paar Trõpflein aus dem Brünnen...
1781, p. 2. — De Gleichen, Souvenirs, p. 135.
27. Cf. Langmesser. Jacob Sarrasin. Zurich, 1899, p. 54. Observação feita por Schmidt.
28. Podemos constatá-lo no retrato de Chapuis e no busto de Houdon, ambos reproduzi­
dos neste livro.
29. Gedike e Biester. Berliner Monatschrift, t. IV, julho-dezembro de 1784. Le pseudo
comte Cagliostro. —Cagliostro desmasqué à Varsovie, 1786, in-16, p. 32.
30. Em Rovoredo, em 1787, essa vivacidade espantou o autor do Liber Memorialis, como
já espantara os homens do Norte em 1778. Cf. Evangile de Cagliostro, p. 85 e Langmesser.
Op. cit.., p. 55.
31. Berliner Monaschrift. 1784, número de dezembro. Observations d’un voyageur.
Cagliostro tinha os olhos negros, expressivos e brilhantes de vida32.
Se eles se fixassem sobre alguém para examiná-lo, não se podia sustentar
esse olhar. Quando ele falava acaloradamente de algum assunto elevado,
suas pupilas se dilatavam, sua pálpebra se elevava sob a alta arcada de
sobrancelhas, ao mesmo tempo que a força de sua voz aumentava: seus
gestos se acentuavam: ele andava sacudindo sua cabeleira como uma cri­
na; todo o seu corpo vibrava no compasso de seu pensamento. Um sangue
vermelho circulava sob sua pele e dava à testa uma espécie de luminosida­
de radiante33. Por vezes, essa cabeça leonina de profeta se abaixava, perdia
sua majestade terrível para se abrandar e refletir algum sentimento de pie­
dade ou de ternura; era de se perguntar se esse novo ser, de voz suave, de
olhar acariciante, tão bondoso, era o mesmo que aterrorizava havia pouco
os corpos e as almas com o estrondo de sua voz, o brilho de seus olhos, a
grandeza de suas palavras.
A expressão de sua fisionomia mudava sem parar, mas era sempre
viva, atraente; os contemporâneos que falaram dele são unânimes a esse
respeito34.
Sua figura, seu olhar, antes mesmo que ele falasse, revelavam um ser
inteligente, enérgico e simpático e, quando em seguida começava a falar, o
timbre de sua voz, seus gestos, seus discursos vinham confirmar esse pri­
meiro julgamento. Além disso, experimentava-se uma impressão de auto­
ridade, de poder, à qual a maior parte cedia com prazer, sem pensar nisso,
em um impulso de simpatia espontânea, contra o qual alguns se revolta­
vam e se irritavam.
Com as privações sofridas na Bastilha, as torturas sofridas em Roma
haviam alterado seus traços e alquebrado seu corpo robusto; na véspera de
sua morte, Cagliostro sem dúvida não conservava mais essa aparência
de jovem herói. Uma mudança aparece já no retrato em Londres35. Recen­
temente, um médium bem conhecido por seus trabalhos com o professor
Flopurnoy e pelos quadros religiosos, que ele executou desde então sob a
impulsão de visões precisas, viu se traçar sob seu pincel um retrato de

32. Carta de Burkli in Funk: Cagliostro à Strasbourg, p. 14. “Seu olhar penetrante de
falcão.” Langmesser, op. cit.,p. 54: “Seu olhar é fascinante (verschlingend) ”.
33. “Quando ele falava, com uma voz simpática, com gestos muito expressivos, os olhos
erguidos ao céu, ele era semelhante aos inspirados, embriagados com o espírito do alto. ”
Evangile de Cagliostro, p. 86. — Cf. Lettres sur la Suisse (De Laborde). — Langmesser,
Jacob Sarrasin, Zurich, 1899, p. 54. Ibid. Testemunho de Schmid, p. 55. — Notice de
1788, in-4?, p. 3.
34. “Ele tinha um rosto bastante belo, poderia ter servido de modelo para representar
as linhas de um poeta inspirado. ” De Gleichen. Souvenirs, p. 136. "Com sua ousadia,
ele tinha uma figura muito aprazível. ” Casanova. Mémoires. — “Cagliostro tinha uma
fisionomia muito agradável. ” Evangile de Cagliostro, p. 85.
35. Pintura de Bartolozzi em 1787, gravada por Macquart, reproduzida neste livro.
Cagliostro em seus últimos dias, talvez mesmo em seus últimos momentos,
em nada se parecendo, salvo pela forma óssea da figura e pelo olhar, aos
retratos correntes de nosso personagem36. O que chama a atenção acima de
tudo nesse retrato é, parece, a expressão de sofrimento impressa sobre esse
rosto abatido, contrastando com o brilho inteligente dos grandes olhos aber­
tos, com a energia que revela o conjunto da figura. Embora essa pintura
não apresente nenhum valor sob o ponto de vista documental para os críti­
cos, ela é para nós muito interessante e instrutiva. A evocação de uma
imagem do passado não é um fenômeno inadmissível e que choque a ra­
zão: talvez amanhã seja um procedimento de investigação aceito e de uso
corrente37.
Lamentamos que a Sf! Smith tenha se recusado a nos comunicar e
deixar reproduzir essa imagem dolorosa que, difundida, teria feito talvez
refletir alguns espíritos observadores; em todos os casos, teria feito des­
pertar em muitas pessoas sentimentos justos de compaixão pelo mártir de
San Leo.
Cagliostro, o que quer que diga a lenda, vestia-se de maneira sim­
ples38. Essa afirmação, sem dúvida, surpreenderá muitos leitores. Habi­
tuou-se, por causa dos romancistas, a se representar um Cagliostro agaloado
em todas as costuras, todo bordado com diamantes, empetecado como um
general, chamando a atenção dos passantes com seu traje de feira39. Puse­
ram-lhe sobre as costas todas as jóias que Chesnon encontrou em sua gave­
ta, todos os trajes prestigiosos de Saint-Germain, acrescentando mesmo
alguns detalhes que faltavam para fazer dele um ridículo saltimbanco — e
foi assim que o apresentaram ao público.
Aqui, como em qualquer outro lugar, desde que estudamos um detalhe
das opiniões aceitas a respeito de Cagliostro, percebemos que a verdade se

36. Retrato executado em 13 semanas, de 23 de novembro a 13 de abril de 1908. Initiation,


1908, p. 208.
37. A psicometria é uma ciência experimental bastante curiosa e rica em fatos novos.
Muitos acasos espantosos de adivinhação podem ser creditados a essa percepção acidental
dos vestígios do passado: o erudito M. Campardon me contou um dia, de maneira encan­
tadora, como um dos mais sábios e positivos arqueólogos modernos, cansado de buscar
sem parar e sem qualquer sucesso um documento precioso para a história de Marat,
acabou por ir, movido por algum capricho, consultar uma sonâmbula para perguntar-lhe
onde estava esse papel inencontrável. A vidente lhe descreveu uma cidade de província,
uma praça, uma fonte, uma casa defronte à prefeitura, um celeiro... “E Amiens! Excla­
mou o arquivista!... ” Correu para lá, fez com que lhe abrissem à força um velho celeiro e
descobriu ali o famoso documento. Fatos análogos não são raros; cada família tem os
seus próprios (telepatia ou psicometria). Seria prematuro propor uma explicação, mas
atribuí-los ao acaso seria insensato.
38. Evang. de Cagliostro, p. 86.
39. Lenôtre o pintou assim.
encontra na asserção exatamente contrária. É preciso, se possível, destruir
tudo, fazer tábula rasa das invenções; senão, ao menos, tentar dar uma
interpretação menos fantasista dos fatos.
O que há de mais estabelecido na aparência que o fasto ridículo e de
mau gosto de Cagliostro? Ora, de onde vem essa lenda?
De sua generosidade ou seu desprendimento, em primeiro lugar: viam-
no atirar dinheiro aos infelizes, nada pedir a ninguém, era o bastante para
despertar a crítica. Além disso, ele falava de alquimia e conhecia segredos
herméticos referentes ao ouro e aos diamantes. Que “tesouro oculto’’ deve­
ria ele esconder em seus cofres, pensavam os invejosos! Que valor devia
ter a menor das pedras de seus berloques! Quando ele se envolveu, muito
injustamente, no Caso do Colar, em que milhões estavam em jogo, Madame
de la Motte apressou-se em se apoiar sobre essa corda e foi ela que, primei­
ro40, falou dos trajes de Cagliostro, do luxo escandaloso de sua mulher, de
seus diamantes e de seu mau gosto. Isso foi repetido sem exame, admitido,
ampliado — e não mais encontramos entre os modernos senão longas des­
crições dos suntuosos trajes do charlatão.
A verdade, porém, é completamente diferente; e os historiadores, se
não estivessem de má-fé, teriam podido encontrá-la facilmente. Na Rússia,
o conde M. (Moszinsky), que todavia não perdia uma ocasião de atacar sua
“besta negra”, conta-nos que Cagliostro afetava uma simplicidade “extraor­
dinária” em suas vestes41. Em Estrasburgo, um suíço muito observador,
mas hostil, que lhe censurava, entre outras coisas, por ver grandes senho­
res em vez de se consagrar unicamente às pessoas do povo (e sobretudo ao
cidadão da livre Helvécia que lhe fazia a honrâ de o vir encontrar — esta
era a queixa), nota que ele tinha muita simplicidade e naturalidade em sua
toilette42. No Evangile de Cagliostro43 encontramos a mesma declaração;
eis testemunhos variados, trazidos por muitos anos de distância, em luga­
res diferentes, por pessoas pouco suspeitas de boa vontade. De todos esses
testemunhos, ninguém quis levar nenhum em conta. E dizer que foi assim
com todos os fatos da vida de Cagliostro!
Não apenas ele se vestia com simplicidade, mas chegava a afetar, diz
um de seus inimigos, “uma negligência que chegava a se aproximar do
cinismo44.” Nossos ditos historiadores, diante desse documento, devem ter

40. Réponse pour la comtesse de Valois Lamotte. Paris, Cellot, 1786, in-4?, p. 26 e 37. O
“tesouro oculto” de Cagliostro estava assinalado à desconfiança pública em seu primei­
ro relatório. Cf. Relatório para Cagliostro, in-16, 1786, p. 61.
41. Ein paar Trõpflein, p. 3.
42. Cartas de Burkli in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p. 19.
43. P. 86.
44. Ein paar Trõpflein, p. 2. “Ele é bastante negligente com o corte de seus cabelos e de
suas roupas, mas sem nada de inconveniente", diz ao contrário Borowsky. Cagliostro...,
p. 137.
ficado bastante aborrecidos. Para nós é, pelo contrário, a confirmação de
nossa tese; Cagliostro estava acima de todas as convenções mundanas;
pensava em algo bem diferente de seu modo de vestir e, quando o procura­
vam em seu laboratório, o que é o caso de nosso autor, ou quando, surpreen­
dendo-o em seu quarto após uma noite de labor, vinham-no solicitar ao
imprevisto para ver um doente em perigo, Cagliostro podia aparecer em
traje de trabalho, sem pó nem fitas, a gola entreaberta45 e as mangas arrega­
çadas, cabelos ao vento, tal como estava, pronto para chocar o pequeno
marquês ou o pastor engravatado de branco que vinha visitá-lo. Suas ves­
tes não lhe interessavam; estavam em geral limpas46, mas que ele estives­
se vestido ou não, que estivesse bem ou mal, se seu coração ou seu dever
o chamassem a sair, ele se levantava e saía. De Gleichen o viu certo dia
“correr em meio a uma tempestade, com uma vestimenta muito bela, em
socorro de um moribundo, sem se dar o tempo de apanhar um guarda-
chuva47.”
Sim, eis o verdadeiro Cagliostro, tal como devia ser, tal como foi. Esse
desprezo pelo mundano não era afetado. Vinha dos acontecimentos, da preo­
cupação de seu pensamento por assuntos mais graves que o tempo ou a hora.
Não era uma atitude pensada, provocativa; quando saía para o mundo, usava
vestimentas de sua classe e de sua época, um traje suficiente para se apresen­
tar em toda parte e que em nada atraía os olhares. Foi esse traje de cidade,
simples e conveniente, que descreveram os autores que citamos. Seu retrato
de Versalhes48 o representa assim vestido, enquanto as gravuras de Basset o
mostram em traje íntimo ou de trabalho49.
Quando se travavam relações com ele, o que não era nada fácil, pois
ele se mostrava em princípio rude com os curiosos, os espíritos fortes e os
pretensiosos, era atingido pela soberba de suas maneiras. Ele jamais se
inclinava para fazer “o menor esforço para conseguir o favor dos gran­
des50.” Chegava a rejeitar seus avanços se sentia segundas intenções ou se
percebia, em seu procedimento, a menor nuança de impertinência, sobre-

45. Ver seu retrato na p. 134 e a Carta de Burkli in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p.
19.
46. Testemunho do observador de Rovoredo, Evangile de Cagliostro, p. 86. Sem dúvida
porque sua mulher cuidava disso.
47. De Gleichen. Souvenirs, p. 135-136
48. Retrato reproduzido na Introdução de nosso livro.
49. O Sr. Lenôtre, sem referências, diz que ele trazia a Paris, muito adiantado na esta­
ção, um casaco de pele, trazido, sem dúvida, se o fato for autêntico, de sua estada na
Rússia. Cf. Lenôtre, Vieilles Maisons, p. 163. O Sr. Lenôtre apanhou esse detalhe em
Souvenirs de la marquise de Créqui, memórias apócrifas, sabe-se, atribuídas ao conde
de Courchamps.
50. Georgel. Mémoires, p. 52; e em outro trecho: “Ele não fazia a corte a ninguém".
Sua atividade era extraordinária: ele estava sempre em movimento e
jamais parecia cansado. Em casa, nunca ficava parado: saía de manhã, vi­
sitava os doentes, voltava para receber outros, recebia visitas, depois con­
versava com seus íntimos. Retirava-se às nove horas para seu quarto ou
seu laboratório para repousar, segundo dizia; na verdade, continuava a tra­
balhar com afinco até a noite66 e com freqüência não se deitava; dormia
algumas horas em uma poltrona67 e na manhã seguinte reaparecia disposto,
pronto para um novo dia. Mas reservava sempre essas horas noturnas para
passá-las sozinho, no recolhimento, e era apenas excepcionalmente que
ele velava com alguns discípulos para conversar e trabalhar com eles68.
Sua bondade é conhecida: ele dava não apenas seus conselhos, seu
tempo, seu socorro, sua força àqueles que os reclamavam, mas ainda, sabe-
se, medicamentos que preparava ou comprava, socorros, dinheiro aos indi­
gentes, pagando moradias e dívidas daqueles a quem a miséria esmagava69.
Dos ricos, ele recusava tudo e era preciso lutar, usar de subterfúgios para
fazer com que a condessa aceitasse para ele, ou com que ele, diretamente o
menor testemunho de reconhecimento, a mais insignificante lembrança70.
Ele ainda se arranjava com freqüência para devolver alguns dias após àquele
que acreditava lhe ter feito um rico presente, um objeto de valor dez vezes
superior, que ninguém ousava recusar quando vinha dele. O fato está bem
estabelecido71. E de resto, aceitava-se por vezes alguma coisa de doadores
obstinados, o que significava isso ao lado do que ele distribuía a cada dia
aos indigentes?
Rodeado de pessoas, festejado, adorado tanto pelas mulheres como
pelos homens, ele passava em meio a eles, inapreensível, atraindo-os, mas
sem sofrer a influência de ninguém. Um enxame de mulheres de todos os
tipos, ricas, belas, inteligentes, poderosas72, volteava em torno dele; ne­
nhuma jamais o perturbou. De São Petersburgo a Roma, nesses dez anos

66. Cagliostro démasqué, p. 11.


67. Carta de Burkli, in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p. 24.
68. Em Estrasburgo, ele e Sarrasin cuidavam de preparar medicamentos; em Paris, ele
e o cardeal de Rohan; em Rovoredo, ele e seus hospedeiros. Cf: Evangile de Cagliostro,
p. 26.
69. Vide Carta de Gorge in: Oberrheinische Mannigfaltigkeiten. Primeiro trim. De 1781,
p. 113 e Lettre au peuple anglais, p. 5 a 9.
70.Isaac iselin. Ephemerides. Novembro de 1781. — Langmesser. J. Sarrasin, p. 38. —
Carta de Langlois, Arquivos Sarrasin, vol. XXXIII, cota 13, J? VI; e; cap. III. Londres,
Primeira Estadia, p. 35
71. Cf. cap. III. Londres, Primeira Estadia, p. 35. O duque de Choiseul queria fazer
Cagliostro aceitar uma tabaqueira cravejada de diamantes e não obteve sucesso senão
aceitando em troca uma caixa de preço mais elevado. Spach. Cagliostro à Estrasburgo.
Obras, t. V, p. 75.
72. Cf. Paris, cap. VII. La Maçonnerie des femmes, p. 150.
em que sua vida privada era seguida hora a hora, cujos menores detalhes
foram revolvidos, ninguém jamais encontrou o traço de uma aventura. “Nin­
guém tem modos mais puros”, escreveu Labarthe a Séguier73; e ninguém,
podemos acrescentar, conhecia melhor o coração do homem, o espírito da
mulher e seus perigos. Ele era amável, brincava com freqüência; tinha às
vezes uma ternura delicada com almas de elite74, dando-lhes, em alguns
minutos de abandono espiritual, mais amor verdadeiro do que teria podido
encontrar em uma vida inteira de afeição humana; mas ele sabia, por outro
lado, defender-se contra as personalidades perigosas: o Mestre, impenetrá­
vel e severo, reaparecia logo75. Nem os intrigantes, como a pequena con­
dessa de la Motte, nem as belas mundanas, como a Branconi76, que por
muito tempo lhe guardou rancor, conseguiram conquistá-lo. Seu desejo era
demasiado vasto, seu espírito demasiado claro para que ele pudesse parar
no caminho a sonhar em vez de agir.
Cagliostro se exprimia fluentemente em francês; estrangeiros que lhe
falaram em italiano testemunharam que ele dominava muito bem essa lín­
gua e que certamente devia ser sua língua materna77. Bode, que conversou
com ele em português, certifica que este é o idioma que ele falava me­
lhor78. Em todo caso, é do francês que ele se servia com mais freqüência e
com muita facilidade: seus depoimentos em Paris, no caso do Colar, e suas
cartas o provam, assim como o testemunho geral de todos aqueles que o
freqüentaram. Os franceses na França, assim como os italianos, em seu
país, notavam apenas que tanto em uma como em outra língua ele tinha um
sotaque estrangeiro que não podiam caracterizar. Ele se servia também,
algumas vezes, de um dialeto que não foi identificado e que ficava no meio
do caminho, disse um contemporâneo79, entre o francês e o italiano80. Ele

73. Carta datada de 1787. Cf: Funck-Brentano. Affaire du Collier, p. 99.


74. Liber memorialis de Caleostro. Trad, franc. Dr. M. Haven. Paris, 1910, p. 53 e de
Recke. Nachricht Von des berüchtigten... 1787, p. 80.
75. Uma grande dama, na Itália, tentou juntar a suas seduções pessoais a de sua fortuna;
tudo o que conseguiu foi nunca mais rever Cagliostro. “Ela então não me conhece",
exclamou ele violentamente, “nem a mim nem a minhas palavras? Ela não verá meu rosto
até que a venda que cobre seus olhos tenha caído. ” Liber memorialis, trad, franc., p. 45.
76. Cf. Bale, cap. IX.
77. Carta de Blessig, in: Weisstein. Cagliostro à Strasbourg — Elsass Lothringische Zeitung.
1882, n? 37. — Heyking. Cagliostro parmi les Russes, in: Initiation. Agosto 1898, p. 129.
A St? de Recke publicou uma carta de Cagliostro dirigida a ela em 1779 e que está escrita
em italiano.
78. Ein paar Trõpflein, p. 2. O autor vê nisso a prova de que ele era português.
79. Liber memorialis, trad, franc., p. 7
80. Seria essa língua franca de que Cagliostro diz que é indispensável a qualquer viajante
que visita as costas africanas do mediterrâneo, ou um dialeto provençal? Não temos um
espécime que permita julgá-lo.
conhecia o latim: seus interrogatórios de Roma o provam81, e citava às
vezes em árabe, no dizer de Laborde82.
Em qualquer língua que se exprimisse, fazia-o com vivacidade; as
imagens afluíam: ele falava com abundância de todas as coisas, tratava de
mil assuntos, religião, ciências, moral, sem ligação aparente, mas sempre
com originalidade, elevando-se a opiniões muito sérias, jamais permane­
cendo no quadro banal das conversações, jamais caindo no arrastamento
do sermão. Ele combatia os dogmas científicos, as portas cerradas das teo-
logias, as fachadas da moral mundana, abalando todas as prisões da verda­
de. O que ele dizia era vivo, pessoal: se ele parecia, em um ponto, aderir
a qualquer sistema, víamo-no de repente se destacar nitidamente por um
outro lado. Do céu e suas casas, ele passava à química; da gangrena, ao
amor pelo próximo; do sol, às intrigas de seus inimigos. Aqueles que o
ouviam pela primeira vez, ao sair de seu regimento, ao retirar as botas após
a caça, na volta do Bois ou da casa de Nicolet, saíam de lá com o espírito
perturbado, a cabeça quebrada, e voltavam para contar a seus amigos que
nenhum “galimatias”83 igualava-se ao de Cagliostro84. Um galimatias! Con­
denação fácil; espíritos graves chamaram toda metafísica de tripla
galimatias; para um camponês da Bretanha, as matemáticas são um galimatias
aborrecido; no julgamento sem apelo dos Tribulat Bonhomet, os versos de
Mallarmé e as páginas de Boehme também são galimatias.
Todos os historiadores falam com escárnio do estilo pomposo, pre­
tensioso e vazio de Cagliostro. Ora, quando se compilam as citações dele
deixadas por seus contemporâneos, quando lemos suas Memórias, encon­
tramos coisas muito belas, mesmo grandiosas; quando se estudam suas
Petições, suas Cartas, encontramos uma argumentação firme, chegando a
ser seca em alguns pontos. Por fim, se há passagens em que a frase toma
um porte periódico, em que transparecem artifícios de retórica, é preciso
pensar que essas páginas são de uma época em que a literatura se ornava de
artefatos, hoje fora de moda, que Cagliostro dava ao Sr. Thilorier a idéia

87. Vie de Joseph de Balsamo, p. 190.


82. Ele possuía manuscritos árabes entre seus papéis; mas, diz Bode, que relata o fato
(Ein paar Trõpflein, p. 3), que ele sem dúvida não sabia ler nem a primeira linha. O
julgamento é, no mínimo, singular. O fato de que ele não tenha querido responder a
Norbert, Carta de Blessig, p. 23, que lhe fala em árabe, prova apenas que lhe desagradou
ser posto à prova como um personagem suspeito, sob um verniz de polidez. O testemunho
imparcial de Rovoredo nos diz, ao contrário, que ele se retirava com frequência em seu
quarto para escrever em árabe. Liber memorialis, trad, franc., p. 16.
83. N. do T: discurso embrulhado e confuso, aranzel.
84. “Se o galimatias pode ser sublime, ninguém é mais sublime que Cagliostro. ” Vie de
Joseph Balsamo, p. 171, nota. Beugnot, em sua primeira entrevista, ficou, segundo ele,
atordoado. Mémoires de Beugnot, p. 46. Ed. In-8?, 1889.
geral de suas defesas85 e que esse as punha em prática. O advogado do
século XVIII, por mais meritório que fosse, podia ter pequenos delitos
literários. Que se comparem os outros relatórios a respeito do caso do Co­
lar: se há uma diferença, é toda em favor dos de Cagliostro86.
Há palavras, volteios de frases, santos transportes que têm o dom de
exasperar os homens posudos e sérios. Nem todo mundo, porém, pode ser
frio como um notário regulando o destino da bolsa de alguém. Quando um
enviado de Deus fala de sua pátria, da vida, do amor que o espírito emana,
ele não é mais de uma só época, e sua voz, eco do Verbo eterno, pode vibrar
às vezes com estranhas sonoridades. Cagliostro falava e agia de cima para
baixo, em nome do poder que lhe havia sido dado por Deus, dizia ele87, e,
de seus ensinamentos, cada um podia compreender mais ou menos. Ca­
gliostro não se dirigia à imaginação, mas ao espírito; não é a razão que ele
repudiava88, mas os argumentadores orgulhosos e ignorantes cujos ouvidos
são sistematicamente fechados a tudo o que ainda não ouviram. Apenas
eles, aliás, declararam-no o ininteligível. Os espíritos mais abertos, impar­
ciais, mesmo quando não eram seus discípulos, apreciavam seu saber e
somente encontravam encantos em sua conversa89.

85. “Pretende-se que o Sr. de Cagliostro compôs ele mesmo esse relatório em italiano e o
Sr. Thilorier apenas o traduziu. Isso é bastante verossímil. O Sr. de Cagliostro tem espíri­
to suficiente e, como dizem seus amigos, candor o bastante para ter traçado a história de
sua vida com tanta ingenuidade e interesse, sem ter necessidade da ajuda de um advoga­
do. ’’ Ma Correspondance, 24 de fevereiro de 1786, n? 18.
86. Que se julgue por esse exemplo retirado da Demière pièce du Collier. P. I. “Ele partiu,
esse grande Cagliostro, e, ao fugir, despeja atrás de si o elixir do empirismo destilado na
fornalha da calúnia... ” O autor dessa obra-prima não teria feito mal em tratar de litera­
tura de feira o Relatório de Cagliostro, em que se podem ler páginas como esta: “Escrevi
o que basta à lei, o que basta a qualquer outro sentimento além daquele de uma vã curio­
sidade. Vocês dirão que não é o bastante? Insistirão ainda para conhecer mais particu­
larmente o nome, os motivos, os recursos desse desconhecido? O que isso lhes importa,
franceses? Minha pátria é, para vocês, o primeiro lugar de seu império onde me submetí
com respeito a suas leis; meu nome é aquele que fiz honrar entre vocês; meu motivo é
Deus; meus recursos, meu segredo. Quando para aliviar o enfermo ou para alimentar o
indigente eu pedir para ser admitido ou em seus corpos de medicina, ou em suas socieda­
des de beneficência, então vocês me interrogarão; mas fazer, em nome de Deus, todo o
bem que posso fazer é um direito que não exige nem nome, nem pátria, nem provas, nem
caução". Relatório do conde de Cagliostro acusado, 1786, in-16, p. 74.
Seria isso galimatias?
87. Interrogatório de Roma. Vie de Joseph Balsamo, p. 117 e 127.
88. Seus detratores o acusavam disso falsamente: “Sua arte é nada dizer à razão; a
imaginação dos auditores interpreta". Vie de Balsamo, p. 39, nota.
89. “Sua conversa cotidiana é agradável e instrutiva. ” De Gleichen, Souvenirs. Paris
1868, p. 135. Cf. Carta de Burkli in: Funk: Cagliostro à Strasbourg 1905, p. 15. Julga­
mentos de Pfeffel, Schlosser, Iselin, Lavater in: Langmesser, Jacob Sarrasin, p. 1, 38, 51,
68. Carta de Burkli in: Spach. Oeuvres, t. V p. 76.
Aqueles que o ouviam com freqüência e meditavam a respeito de
suas palavras, compreendiam-nas cada vez melhor; as contradições apa­
rentes se apagavam e esse elo que, no início, parecia faltar entre os diferen­
tes assuntos que ele abordava aparecia à sua reflexão; sua vida se mostrava
em harmonia com suas palavras; sua doutrina explicava seus poderes; seus
atos demonstravam a verdade de suas teorias. Quer estivesse no laborató­
rio, na casa de um doente ou no mundo, Cagliostro se tornava, para eles,
cada vez mais compreensível, maior, mais atraente. Ele encorajava seus
esforços, revelando a esses homens de boa vontade sob uma luz que os
outros não suspeitavam. No fundo de seus discursos, em meio a suas di­
gressões, em seus atos, eles chegavam a distinguir alguns princípios, sem­
pre os mesmos, a encontrar algumas leis morais que deviam dirigir seu
comportamento; eles adivinhavam a rota iniciática de que falava Caglios­
tro, essa rota que leva à imortalidade e ao poder absoluto. Sempre cavou-
car, sempre semear e deixar que os outros recolhessem a colheita, marchar
sem cessar para cada vez mais longe, aceitar todas as tarefas que os outros
rejeitam90, certo de que a natureza nada esconderá, que o céu dará tudo
àquele que é incapaz de usá-la para si mesmo; conquistar sua alma pela
paciência, eis a doutrina que ensinava Cagliostro.
Seria mesmo uma doutrina? A palavra é imprópria: era uma escola de
energia, de abnegação, de firme confiança no futuro. Seus discípulos se sen­
tiam mais fortes e melhores junto a ele; eles partiam cheios de ardor, esfor­
çavam-se para viver assim por alguns instantes, depois voltavam, esgota­
dos, para beber novamente e com mais ardor na fonte de vida. Cada luta os
deixava aptos a receber mais, cada nova iluminação aumentava a força de
sua alma; eles o sentiam, verificavam-no; sua fé crescia com as provas.
Junto a um mestre cujos atos eram maravilhosos, não menos que a
doutrina, ao lado do qual cada um deles sentia uma dívida de gratidão
impossível de pagar, adivinhamos qual devia ser a emulação geral. Nos
pequenos cenáculos de discípulos, cabia a quem trouxesse uma palavra
inédita, sobretudo um novo feito, uma nova prova dos poderes miraculosos
de Cagliostro. E, com a ajuda da imaginação e a mistura da vaidade, lendas
e exageros se infiltravam em meio aos entusiastas. Daí, por uma necessidade
de proselitismo desajeitado, eles difundiam-se para o exterior, ampliavam-
se, desfiguravam-se tanto que, longe do pequeno círculo dos discípulos, no
mundo, uma vasta zona perturbada, agitada, existia onde, entre pessoas
que não conheciam Cagliostro ou mal o conheciam de vista, mas que de
segunda mão tinham informações “seguras”, entrechocavam as informa­
ções mais opostas, as asserções mais inverossímeis e mais descombinadas
acerca daqueles de que tanto se falava, de sua religião, seus mistérios e sua

90. Era o aforismo dos mestres em hermetismo: “Busque a matéria-prima entre as mais
vis, entre os dejetos que os homens espezinham a cada dia ”.
pessoa. Para alguns, era um simples fanfarrão; para outros, o próprio Diabo:
era um rosa-cruz italiano, um maometano, um judeu português; cada um
tinha certeza de sua opinião: tinha provas. Para este, não havia dúvida que
ele era o famoso Cosmopolite, ou Peregrini, ressuscitado e de volta da
Áustria; para aquele, Cagliostro e o conde de Saint-Germain eram um só: o
próprio Cagliostro o dissera. Mas a questão mais grave era saber se, real­
mente, ele assistira às Bodas de Canaã, como se dizia, se ele era Simão, o
Mago, ou mesmo um dos apóstolos de Cristo91.
Todos esses rumores chegavam aos ouvidos dos discípulos; eles se
inquietavam; a questão de saber se Cagliostro já vivera, se ele era a reen-
carnação de tal ou qual personagem do passado, coincidindo com alguns
de seus próprios pensamentos, perturbava-os, suscitava entre eles graves
discussões e os levava, por mais audacioso que isso pudesse parecer, a
solicitar uma resposta do próprio Cagliostro.
Ora, segundo a pergunta e o perguntador, a resposta não era a mesma.
Se o interrogavam, se lhe diziam: “Mestre, há cinco ou vinte e cinco sécu­
los, o senhor já estava na Terra e chamava-se fulano de tal, não é mesmo?”
ele respondia de maneira evasiva e, às vezes, contava um fato desconheci­
do daquela época92 que, sem nada assegurar, confirmava os ouvintes em
suas convicções. Ele não dizia categoricamente que era assim, mas tam­
bém não protestava violentamente contra essa crença que ele sentia ser
profunda em seu interlocutor. Não estava ele agindo sabiamente? Apenas
aquele que conhece o mistério do espírito pode falar da revolução das al­
mas, e para ele apenas as palavras “fui ou não fui fulano ou sicrano” tem
um sentido real. Ora, aqueles que interrogavam Cagliostro tudo ignora­
vam do mundo do espírito. Portanto, nenhuma resposta lhes podia ser
dada senão aquela que, sem ferir a verdade, encorajava-os a buscar ainda
mais longe.
Mas se lhe perguntavam: “Mestre, quem é o senhor?”, ele respondia
apenas: “Eu sou aquele que sou”93 e não escondia a ninguém que o nome
de Cagliostro, que ele escolhera, seu título de conde, o Grau de coronel que
se deixou atribuir em alguns lugares94, eram apenas designações fictícias,
atributos convencionais que ele mudara muitas vezes, e que só havia uma

91. Cf. Liber memorialis, trad, franc., p. 25. — Gazette de Leyde, n? 72 de 9 de setembro
de 1785. — Tableau mouvant, t. II, p. 307: “É um silfo benfeitor, é o homem de 1400 anos,
o Judeu errante, o anti-Cristo”. — Relatórios para Cagliostro, /u-16, 1786, p. 55.
92. Carta de Burkli, in: Funk. Cagliostro à Strasbourg, p. 5.
93. Ritual da Maç.: Egípcia. P. 71.
94. Relatório do conde de Cagliostro, In-16, 1786, p. 23. — De Recke. Nachricht Von des
berüchtigten... in-8?, p. 112. — Lettre au peuple anglais, in-4?, p. 56-57. — Carta de
Blessig à Sd de Recke: “Esse título de conde não diz respeito a seu nascimento, explicou
ele claramente a alguém, mas a seus conhecimentos ocultos". Weisstein. Cagliostro à
Strasbourg, p. 7.
dignidade da qual ele se orgulhava e de que fazia questão: a de ser amigo
de Deus, ouvido por Ele e Seu fiel soldado.
Depois, sacudindo a cabeça com um gesto que era ao mesmo tempo
um sorriso e um adeus, ele cortava a entrevista, deixando seu interrogador;
e o discípulo, sonhador, observava-o afastar-se, com um passo nobre e
leve, e se perder na multidão, esse homem misterioso, todo-poderoso, de
olhar insondável, de atos maravilhosos, perguntando-se perturbado que ser
acabara de lhe falar, que luz acabava de banhar sua alma, para que ela se
sentisse repentinamente tão fraca, tão feliz e tão profundamente em segu­
rança junto do conde de Cagliostro.
Capítulo III

Londres — Primeira
Estada — O Escroque

“Em Londres, Cagliostro viveu explorando a ingenuidade de jogado­


res, aos quais ele fizera crer que possuía a ciência de predizer os números
e fazer ouro. Por esses meios, extorquia-lhes belas somas. Porém, como
nenhum deles via cumpridos seus desejos, descobriram enfim a impostura,
denunciaram o escroque e o fizeram aprisionar diversas vezes: Balsamo
resolveu prestar um falso juramento para se livrar do caso. Jurou e mandou
sua mulher jurar que eles nada haviam recebido, e escaparam assim das
mãos da justiça.”
Essa história, composta por Morande, é a que se encontra na Vie
de Joseph Balsamo & nos outros panfletos, romances ou histórias de
Cagliostro95.
A narração da estada de Cagliostro em Londres não passa, então, de
uma história de contos-do-vigário, um desfile de ingênuos explorados, pes­
soas arruinadas e patifes comprando juizes para mandar aprisionar inocen­
tes? Infelizmente, é isso mesmo, e nesse ponto estamos de acordo com
Morande e seus copistas, mas há uma leve nuança a confirmar e temos
outra opinião acerca de um único ponto: o inocente oprimido foi Caglios­
tro; os escroques foram suas ditas vítimas. E o leitor, se tem coragem de
nos seguir em meio a esse mundo de velhacos, de ladrões e de esbirros, do
gabinete do juiz ao do procurador, de tribunais a prisões, verá aquele que
se acusa de patifaria lançar dinheiro a mancheias, enriquecer os outros,
nada guardar para si; ele constatará que em nenhum lugar Cagliostro foi
mais engenhoso, mais confiante e mais paciente; que em nenhum outro
país ele foi mais perseguido, sobretudo por aqueles que ele mais cumulara

95. Courrier de 1’Europe, abril de 1787, e n?s seguintes. — Vie de Joseph Balsamo, p. 35
— D’Alméras, Cagliostro, p. 65.
de benefícios. Chegou rico e partiu pobre, deixando sua fortuna nas mãos de
patifes e juizes ingleses que combinaram muito bem entre si para dividi-la.
Contaremos, quase dia a dia, os fatos ocorridos. Os pormenores pare­
cerão talvez um pouco longos; mas, como todos os adversários de Caglios­
tro se serviram desses desentendimentos reais do conde com a justiça para
lançar sobre ele um descrédito que em seguida autorizava todas as suposi­
ções maldosas, e como essas insinuações desleais, transmitidas pela histó­
ria, jamais foram refutadas, é importante abalar desde a base todo esse
amontoado de calúnias.
Cagliostro, honrado na Curlândia. na Rússia, em Estrasburgo, triun­
fante em Lyon, festejado e oficialmente declarado inocente em Paris, foi,
em todas as fases de sua vida, invulnerável para seus inimigos. Apenas o
fato de ter sofrido julgamentos em Londres em 1777 oferecia uma isca à
crítica: bastava mostrá-lo comprometido nessa época em casos de patifaria
para que uma sombra viesse manchar instantaneamente seus méritos e suas
glórias. Morande o compreendeu e o fez: a versão mentirosa da vida de
Cagliostro em Londres em 1777, tal como a citamos mais acima, foi admi­
tida por todos; nem mesmo se pensou em colocá-la em dúvida, apesar dos
protestos do interessado.
Ora, eis o relato exato dos fatos. Leiam e julguem. Chegado a Londres,
em julho de 177696, sem recomendação, trazendo consigo, em jóias e em
dinheiro, mais de 3 mil libras esterlinas, Cagliostro desceu com sua mulher
para a casa da Sri Juliet, Whircomb Street n? 4, onde alugou um aparta­
mento.
A proprietária, vendo locatários ricos e caridosos, recomendou-lhes
logo a dama de Blévary. portuguesa arruinada e doente97 que morava no
mesmo imóvel, e um italiano. Vitellini. antigo professor, amador em quí­
mica, reduzido também à miséria pelo jogo. O conde e sua mulher se inte­
ressaram por eles, vestiram-nos e alimentaram-nos98, tomando um como

96.“Pela primeira vez em sua vida", diz Cagliostro. Extraímos todos esses documentos
do Journal de Vitellini, personagem que representou nesta história um dos papéis mais
importantes e que, a ponto de morrer, tomado de remorsos, legou esses documentos ao Sr.
O’Reilly, cavalheiro irlandês. Este os comunicou a Cagliostro; esse Journal serviu à reda­
ção da "Lettre au peuple anglais A.A.S.L. " in-4?, 78 páginas (P. Lottin, 1787), que é a
última e peremptória resposta que Cagliostro deu às calúnias de Morande. E a essa obra
e a essa edição que se relacionarão, salvo indicações em contrário, todas as referências
deste capítulo.
A obra inglesa anônima Life of the Count Cagliostro, Londres, 1787, in-8?, dá a respeito
dos acontecimentos de 1776-1777 informações que concordam muito exatamente com as do
Journal de Vitellini.
97. Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 5.
98. Cagliostro acolhia largamente aqueles que se dirigiam a ele, Cf. Lettre au peuple
anglais, p. 7 e 8.
secretário para ele, a outra como dama de companhia para a condessa.
Embora Cagliostro saísse pouco, trabalhando por prazer, em casa, com
experiências químicas", por indiscrição de Vitellini que tagarelava nos
100 e pelas bisbilhotices da Sra de Blévary, espalhou-se bem rápido no
cafés99
bairro que chegara um homem extraordinário, um verdadeiro adepto, imen­
samente rico, dando generosamente seus segredos e seu dinheiro àqueles
que necessitassem.
O resultado não tardou: os solicitantes afluíram. Receberam alguns;
eles voltaram mais numerosos, mais exigentes. Cagliostro apertou os cor­
dões de sua bolsa e trancou a porta. Logo que não lhes deram mais nada ou
não o suficiente, os pedinchões se transformaram em inimigos101. Caglios­
tro, tanto para vir em ajuda dos infelizes102 quanto para experimentar um
sistema de cálculos que o interessava103104 , havia muitas vezes indicado nú­
meros ganhadores nas tiragens de loteria da Inglaterra10* — e todos, com
súplicas, presentes, repreensões, tentavam obter mais ainda e o perseguiam
com visitas interesseiras.
“Scott e sua mulher me obsedaram em vão; resisti a suas importuni­
dades; Scott quis então tentar o caminho dos presentes: fez à minha mulher

99. Lettre, p. 8.
100. Lettre, p. 6 e p. 13.
101. Um certo Pergolezzi, mais audacioso que os outros, foi o primeiro a tentar a chanta­
gem; inventou e publicou sobre o conde de Cagliostro uma história de que o procurador
Aylett e Morande, após ele, serviram-se, um para arrancar 80 guinéus ao conde, o outro
para difamá-lo. Lettre, p. 6.
102. E aqui que entram definitivamente em cena dois cavaleiros de indústria que já ha­
viam extorquido mais de 200 libras a Cagliostro com a narrativa de seus infortúnios: um,
chamado Scott, que se fazia chamar milord Scott e uma senhorita Mary Fry, que se dizia
lady Scott; esses dois personagens haviam sido levados a ele pela Sdde Blévary. Lettre p.
8, 9 e 10.
103. “A força de atenção, de trabalho e de estudos, ele conseguira reduzir em certeza os
cálculos astrológicos feitos sobre a tiragem das loterias", diz Cagliostro em suas consi­
derações referentes ao pedido em restituição feito contra Fry e Scott. Ele consignara suas
notas em um cademinho que guardava preciosamente em seu quarto. Esse manuscrito,
que tentou muitas pessoas, estava escrito ou em linguagem secreta, ou com interpolações
propositais, que tornavam seu uso impossível para qualquer um além de Cagliostro. Cf.
Lettre, p. 9.
104. “A tiragem da Loteria da Inglaterra começou no dia 14; eu indiquei, por brincadei­
ra, o primeiro número: ninguém da sociedade quis apostar nele e o acaso quis que o
número realmente saísse. Indiquei para dia 16 o número 20; Scott arriscou um pouco de
dinheiro e ganhou. Indiquei para dia 17 o número 25; o 25 saiu e deu 100 luíses a Scott.
Indiquei, para o dia 18, os números 55 e 57 que saíram ambos. Os proveitos desse dia
foram divididos entre Scott, Vitellini e a pretensa milady Scott. ” Cagliostro, tendo assim
verificado a exatidão de seus cálculos, tomou desde então, por discrição, a decisão de não
mais usar desse procedimento. Lettre, p. 9.
o presente de um casaco de pele, de valor de quatro a cinco guinéus. Não
quis humilhá-lo com uma recusa. Mas, no mesmo dia, fiz-lhe presente de
uma caixa de ouro de 25 guinéus. E para não ser mais atormentado, consig­
nei à minha porta o marido e a mulher. Alguns dias depois, a pretensa
milady Scott encontrou um meio de falar à condessa Cagliostro: disse-lhe
chorando que estava novamente arruinada, que Scott era um cavaleiro da
artimanha, que se apoderara de todos os lucros da loteria e que acabava
de abandoná-la com os três filhos que ela tivera dele. A condessa de Ca­
gliostro, menos enfurecida pela patifaria que lhe haviam feito que tocada
pela sorte dessa criatura, teve a generosidade de me falar em seu favor. Eu
lhe enviei um guinéu e lhe indiquei o número oito para 7 de dezembro. A
dama reuniu tudo o que pôde em dinheiro e apostou no número 8, que saiu
na roda da fortuna.
Nesse ponto, todos os detalhes do Journal de Vitellini se tornam inte­
ressantes. Ele estava em casa da senhorita Fry {milady Scott) quando ela
voltou com o produto de sua aposta. Ele contou 421 guinéus e 460 libras
esterlinas em notas. A senhorita Fry fez presente a Vitellini de 20 guinéus
e veio, no primeiro momento de sua embriaguez, fazer-me homenagem de
toda a sua fortuna. A resposta que lhe dei está escrita no Journal de Vitellini:
ei-la, palavra a palavra: “Nada quero; retome tudo isso; eu lhe aconselho,
minha boa mulher, ir viver no campo com seus filhos; fique com tudo,
digo-lhe eu; a graça que lhe peço é de não pôr mais os pés em minha casa”.
Vitellini assegura que Scott ganhou 700 guinéus no mesmo número
que eu dera à senhorita Fry, o que anuncia que sua pretensa briga não pas­
sava de uma farsa ou ao menos que ela não havia sido de longa duração. O
certo é que, desde essa época, eles sempre agiram de acordo.
A avidez da senhorita Fry, não estando satisfeita, ela se ocupou com
meios de obter novos números. Imaginando, sem dúvida, que o melhor
seria fazer aceitar um presente à condessa de Cagliostro, ela lhe ofereceu
uma pequena caixa de palitos de dentes em marfim, na qual havia notas de
dinheiro. Tendo a condessa de Cagliostro declarado formalmente que não
aceitaria nenhum presente, ela foi tramar com Vitellini a maneira de fazer
com que ela não pudesse recusar. Foram ambos à casa de M. P., mercador
em Princes-Street, e ali a senhorita Fry comprou um colar de brilhantes
que lhe custou 94 libras esterlinas e uma tabaqueira de ouro com duas
tampas que lhe custou 20 libras esterlinas. Pôs o colar de brilhantes em um
dos lados da caixa e encheu o outro com um pó de ervas, semelhantes ao
tabaco e bom para defluxões, doença de que a condessa de Cagliostro esta­
va atacada na época.
A senhorita Fry, tendo escolhido o momento em que a condessa de
Cagliostro estava sozinha, veio vê-la, sob o pretexto de lhe agradecer. Du­
rante a conversa, ela puxou sua caixa sem afetação e ofereceu à condessa
uma pitada de seu tabaco. Como esta última, que não conhecia aquela espécie
de tabaco, teria lhe gabado o odor, a senhorita Fry lhe ofereceu a caixa que
o continha; Vitellini estava presente. A condessa recusou muitas vezes. A
senhorita Fry, vendo que suas instâncias eram inúteis, atirou-se chorando
aos joelhos da condessa que, para não a desapontar, consentiu enfim em
ficar com a caixinha.
Foi apenas no dia seguinte a essa cena que minha mulher percebeu
que a caixinha de fundo duplo continha um colar de brilhantes. Minha
mulher me contou então o que se passara na véspera. Não lhe disfarcei o
descontentamento que experimentei e teria naquele mesmo momento en­
viado à senhorita Fry a caixa e o colar se não houvesse temido afligi-la e
humilhá-la com essa restituição tardia105.
Mudei de moradia no início de janeiro de 1777106 e aluguei o primei­
ro andar de uma casa situada em Suffort Street. Vitellini prevenira a senho­
rita Fry e ela se apressou para alugar o segundo andar, de modo que, por
mais que isso me desgostasse, foi-me impossível não a ver. Ela fingiu que
aplicara seu dinheiro e que estava novamente em dificuldades; falou de
uma viagem ao campo para a qual ela precisaria de 100 guinéus e mandou
me implorar que eu lhe desse números para a loteria da França. Respondi
que esse pedido era uma verdadeira loucura. Mas, para me livrar da senho­
rita Fry, mandei que minha mulher lhe desse catorze portuguesas que va­
liam 50 libras e 8 xelins e pedi ao dono da casa que não pusesse nenhum
obstáculo à sua partida e que me trouxesse o recibo de tudo quanto ela
estivesse devendo quando partisse.
Na manhã seguinte, 6 de fevereiro, mandei-lhe perguntar se estava en­
fim decidida a partir; ela me respondeu que a soma que eu lhe havia dado era
muito módica e que iria à cidade ver se conseguia cobrar uma soma de 400
libras que ela dizia que lhe deviam. Ela veio, à noite, chorando, encontrar
minha mulher; disse-lhe que estava sem dinheiro e implorou-lhe ainda uma
vez que tentasse me fazer dar os números. Como essa última tentativa se
mostrou inútil, ela resolveu efetuar já na manhã seguinte um projeto que
concebera havia muito.
É bom saber que a senhorita Fry tinha outro apartamento na cidade
que dividia com Scott; Vitellini via a ambos com freqüência, mas no maior
dos segredos; ele cometera a indiscrição de lhes falar das experiências de
química das quais eu o fizera testemunha; e, como era naturalmente pre­
sunçoso, assegurara-lhes que, se pudesse ter entre as mãos um certo pó de
que eu me servia em experiências107, ele poderia, em pouquíssimo tempo,
fazer sua fortuna e a de seus amigos. Quanto aos números de loteria, ele

705. O que também teria criado para a condessa uma situação muito falsa.
106. Para fugir das pessoas e suas emboscadas.
107. Provavelmente, o pó rosa, dito consolidante, que Cagliostro também fazia figurar na
composição de certos medicamentos. Cf. Estrasburgo, p. 103-104 e 106-107 deste livro.
dissera igualmente que, se o manuscrito que eu possuía lhe pertencesse,
. O senhor Scott e a senhorita
ele os prediria com tanta certeza quanto eu108109
Fry haviam tomado bastante domínio no espírito de Vitellini para conse­
guir dele que lhes indicasse o armário onde deixava trancados a caixa de
ouro que continha o pó, o manuscrito de que acabo de falar e meus papéis
mais preciosos.
Desde esse momento, o senhor Scott e a senhorita Fry haviam conce­
bido o projeto de me roubar tudo aquilo e me obrigar, à força de maus-
tratos, a lhes comunicar os conhecimentos que supunham que eu tivesse.
Para esse fim, eles se haviam associado a um procurador, a vergonha
de sua profissão, que sofreu algum tempo depois o suplício infame do
pelourinho por patifaria e perjúrio. O senhor Raynolse (é o nome desse
procurador) se colocara à testa da empresa. Era preciso uma testemunha
disposta a afirmar tudo o que quisessem. Haviam escolhido o senhor Broad,
que vivia com a senhorita Fry e que passava por seu doméstico. Necessita­
vam, para qualquer caso, de um corpo de reserva. O senhor Raynolse
indicara outro procurador com a mesma têmpera que, por dinheiro, esta­
va disposto a jurar tantas vezes quanto se desejasse; era o senhor Aylett,
que acaba de sofrer o mesmo suplício que seu confrade, igualmente por
crime de perjúrio.
Estando as coisas assim dispostas, fora decidido que a senhorita Fry
lançaria um Writm contra mim e que Scott, Raynolse e Broad entrariam
furtivamente com os embargadores e aproveitariam o tumulto para aplicar
o golpe que planejavam.
Eu estava em casa com minha mulher e Vitellini quando, em 7 de feve­
reiro, às dez horas da noite, vi entrar um embargador, acompanhado de cinco
ou seis esbirros, que declararam que eu estava preso por ter 190 libras de
dívida com a senhorita Fry.
Por pior que fosse a opinião que eu tinha a respeito dessa moça, não
esperava tanta impudência e negrume. Passado o primeiro momento de
surpresa, dispus-me a seguir o embargador, quando ouvi barulho no quarto
vizinho110. Eram Raynolse e Scott que quebravam meu armário. Raynolse
se impôs dizendo que era o xerife de Londres111 e que tinha o direito de
fazer aquilo. Os embargadores, que estavam metidos no plano, deixaram

108. É dessa pretensão e do barulho feito em torno do manuscrito que nasceram todos os
livros que, de 1790 a nossos dias, sob o nome de Gros Cagliostro, Vrai Cagliostro, da
Cabale de Cagliostro surgiram, dando, para a adivinhação dos números de loteria, os
mais fantasiosos procedimentos.
109. Permissão para mandar aprisionar que se concede na Inglaterra a qualquer credor
real ou simulado, por um simples juramento verdadeiro ou falso.
110. Que tinha uma entrada independente. Cf. Lettre, p. 15.
111. O chefe tinha, com efeito, um delegado chamado Raynolse, mas era um homônimo do
procurador.
Scott carregar o manuscrito, a caixa de ouro de que falei e diversos pa­
péis, entre os quais o recibo de 200 libras assinado por Scott e a senhorita
Fry.
Segui o embargador à sua casa, onde passei a noite. Não tendo cau­
ções a fornecer, coloquei entre as mãos de Saunders (era o nome do
embargador) o valor de 1.000 libras, mais ou menos, tanto em jóias como
em portuguesas. Entre as jóias havia uma bengala, em cujo punho havia
um relógio rodeado de brilhantes, assim como a caixa e o colar que a se­
nhorita Fry dera de presente a minha mulher.
Saí da casa do senhor Saunders em 8 de fevereiro, à noite. Na manhã
seguinte, à meia-noite, um condestável se apresentou em minha casa, acom­
panhado de sua escolta e declarou a minha mulher e a mim que ele nos
prendería em razão de um Warrant112 lançado contra nós a pedido da se­
nhorita Fry. Perguntei de que crime eu fora acusado; o condestável me
respondeu que seria preso como mago (Conjuror) e minha mulher como
feiticeira (Witch) e nos levou a ambos para uma Watchhouse (Corpo de
Guarda) para esperar que acordasse o juiz de paz que decretara o Warrant.
A noite estava fria: consegui, com a ajuda de alguns guinéus, fazer o
condestável compreender que ele podia, sem faltar a seu dever, deixar-nos
voltar a nossa casa até que o juiz de paz acordasse, o que ele fez.
“Na manhã seguinte, sozinho em meu apartamento, vi chegar
Raynolse, que me fez os maiores cumprimentos sobre minha pretensa ciência
e me pediu, com toda a suavidade possível, que o ensinasse, assim como a
Scott, a maneira de fazer uso do manuscrito e do pó. Ele me disse, para me
determinar a isso, que podia facilmente arranjar tudo e me fazer devolver
os bens. Scott que, escondido atrás da porta, escutava a conversa, vendo
que o tom meloso de Raynolse não fazia efeito sobre mim, entrou precipi­
tadamente e, tirando uma pistola do bolso, apertou-a contra meu peito,
ameaçando me matar se eu não lhe ensinasse a maneira de se servir dos
objetos que ele me roubara. Nada respondi. Raynolse o desarmou e os dois
recomeçaram a me implorar. Respondi-lhes então que o que eles me pediam
era impossível, que os objetos que tinham entre as mãos lhes seriam sem­
pre inúteis e que podiam servir somente a mim”3. ‘Devolvam-nos a mim’,
eu lhes disse, ‘e eu lhes deixarei não apenas o recibo de 200 libras que
vocês me tomaram, mas ainda a totalidade dos objetos depositados nas
mãos de Saunders’114.
Scott e Raynolse aceitaram, retiraram-se, foram encontrar Saunders
e depois se arrependeram, sem dúvida, por ter aceito, pois nada trouxeram,

112. Mandado de prisão.


113. Ver nota 7, p. 44 do mesmo capítulo.
114. Que se note que esses objetos valiam 1.000 libras e que incluíam a caixa e o colar
que o acusavam de ter roubado e mesmo vendido!
e não ouvi mais falar deles. Quanto a mim, após ter comparecido diante do
juiz de paz, apelei do Warrant na corte de Kings-Bench e, por meio de duas
cauções que dei, parei de temer a visita dos condestáveis115.”
Cagliostro esperava ter tranqüilidade; que pena! Era apenas o início
de suas desgraças. A datar desse dia, 10 de fevereiro de 1777, começava
uma luta, renovada sem cessar, em que Cagliostro é esmagado todos os
dias por ameaças, petições, novas penhoras, por um pretexto ou por outro,
e a cada vez há garantias a fornecer, somas a gastar116.
Cansado de ser preso sem parar, encurralado, por conselho do pró­
prio Saunders, ele toma uma decisão enérgica e vai morar na casa do
embargador, de modo que, constituindo-se assim prisioneiro voluntário em
permanência, evitava para si e para sua mulher a invasão contínua dos
policiais e dos esbirros117.
Enquanto ele morou lá. em junho e julho de 1777, conheceu o procu­
rador Pridle, amigo de Saunders, que declarou querer tomar sua defesa e
lhe fez intentar um processo contra seus acusadores para tentar tomar de
volta a posse de seus bens: o processo seria levado ajuizo em 27 de junho
diante de milord Mansfield, grande juiz do Kings-Bench; mas os advoga­
dos se entenderam; um árbitro, o senhor Howarth, é nomeado em 4 de
julho e a causa chega diante dele.
Daí, nova traição: o procurador que tratava do caso se esquiva e Ca­
gliostro, sem saber uma palavra de inglês, é obrigado, sem ensaiar, a defender
sozinho sua causa, tomando Vitellini como intérprete, contra a senhorita
Fry, assistida por um procurador tão perigoso quanto Raynolse. Resulta
disso que a causa de Cagliostro, que estaria ganha com antecedência se
tivesse tido um defensor de profissão, atrapalha-se, graças às astúcias de
Raynolse, de forma que o árbitro deu uma sentença insuficiente, vaga, ab­
surda mesmo. Não se pronunciou nem sobre o Writ de 7 de fevereiro (pri­
são por uma suposta dívida de 190 libras), nem sobre o Warrant de 9 de
fevereiro (prisão por crime de magia e feitiçaria), nem sobre o Writ de 24
de maio (prisão por roubo de 200 libras esterlinas em sequins), embora tudo
isso tenha sido submetido à sua arbitragem, discutido e reduzido a nada
diante dele; e, sem dar como quitados, pronuncia apenas que Cagliostro
deverá entregar à srta. Fry uma caixa de ouro e um colar de brilhantes que

775. Lettre, p. 17.


116. Lettre, p. 18.
117. “Através desse meio ”, disse ele, “minha pessoa se tornava sagrada, e eu tinha certeza
de dormir em minha cama. Eu ocupava o mais belo apartamento de sua casa; tinha a
mesa sempre posta, libertava os prisioneiros que ali estavam; cheguei mesmo a pagar as
dívidas de muitos entre eles, que deveram a mim sua liberdade. Minha despesa ordinária
era de 7 a 8 guinéus por dia e, todas as noites, fazia as contas regularmente com meu
hospedeiro. ” Lettre, p. 20. Compreendemos que Saunders não gostou de sua partida e
que se tenha apressado em voltar a prendê-lo assim que pôde.
ele tinha em sua possessão e pagar as despesas, sem mesmo notar que
Cagliostro já os havia entregue bem antes do processo, e que durante o
mesmo ele declarara que “ sabia perfeitamente ter o direito de ficar com a
caixa e o colar, seja porque eles haviam sido dados à condessa, seja porque
a senhorita Fry lhe devia, pelo dinheiro emprestado, o dobro e o triplo do
valor desses dois objetos; mas que não queria usufruir do direito que tinha
de guardá-los e que consentia em devolvê-los assim como sempre se ofere­
cera para fazer”.
Já se viu julgamento mais iníquo na essência, mais vicioso na forma?
Ainda por cima, a sentença só foi confirmada e definitivamente pronuncia­
da alguns meses mais tarde, em novembro118, e até lá Cagliostro teve de
viver nessa situação de acusado, ficar em permanente estado de alerta, con­
servar suas cauções que essa moratória inquietava. Um dos homens que
aceitaram prestar-lhe esse serviço, Badioli, arrependeu-se por ter se com­
prometido com isso e quis sub-repticiamente se livrar da obrigação. Veio
de carro à casa da Cagliostro, em 9 de agosto, e lhe propôs sair com ele;
Cagliostro aceitou sem desconfiar; o carro parou diante de uma casa des­
conhecida, Badioli desceu, Cagliostro o seguiu; a porta se abriu, Badioli
pediu-lhe para entrar primeiro, a porta se fechou às suas costas e lhe anun­
ciaram que estava na prisão do Kings-Bench e que suas cauções haviam
sido descontadas119.
Ficou ali um mês e novos Writs recaíram sobre ele; um jovem advo­
gado, Sheridon, levado por O’Reilly, veio em seu socorro, obteve-lhe no­
vas cauções, fez aceitar um depósito em garantia ao marechal da prisão e o
fez por fim colocar em liberdade: tudo isso lhe custara 3.500 guinéus.
Enfim, em novembro de 1777, a sentença Howarth foi publicada;
essa injustiça definitiva veio juntar-se às perseguições contínuas que ele
sofrerá na esperança de um julgamento reparador; isso o repugnou a tal
ponto que ele se recusou a continuar qualquer processo, pagou tudo, mal­
disse a Inglaterra120 e se decidiu por partir, deixando apenas a seu amigo
O’Reilly a procuração para que, com a ajuda do advogado Slindon, eles
tentassem, por decreto da justiça ou transação, reconquistar a caixa de pó e
o manuscrito roubados. E não tendo mais, de toda a sua fortuna, senão 50
guinéus121 e algumas jóias, partiu para Bruxelas, onde, segundo ele, a Pro­
vidência lhe permitiu reerguer um pouco o edifício de sua fortuna122.

118. Lettre, p. 26; haviam chegado as férias dos tribunais.


119. Assim é a lei inglesa.
120. “Resolvi deixar para sempre um país em que passavam por cima dos direitos da
justiça, do reconhecimento e da hospitalidade. ” Lettre, p. 28.
121. Lettre, p. 29.
122. Em dezembro de 1777, segundo as memórias da Sd de Recke, foi purificando ou
aumentando diamantes que Cagliostro reparou, em Bruxelas, as brechas feitas pelos tri­
bunais e os ladrões de Londres a seu haver. De Recke, Nachricht Von des berüchtigten
Cagliostro, 1787, in-8?, p. 11.
O processo iniciado após sua partida por O’Reilly contra Scott termi­
nou durante suas viagens; foi em Estrasburgo (1780) que ele soube um dia
que Scott estava na prisão, reconhecido culpado por roubo com invasão e
ameaçado de enforcamento se o julgamento prosseguisse. Cagliostro inter­
veio “por não querer ser a causa da morte de um homem” e retirou sua
queixa123.
Scott pagou as despesas e desapareceu sem devolver o manuscrito
nem a caixa pelos quais Cagliostro oferecera 500 guinéus.
Quanto àqueles que o haviam perseguido durante esse ano de estada
na Inglaterra, seu fim é bastante interessante. Eis o que, menos de dez anos
após, Cagliostro escreveu e entregou à meditação do senhor Morande124:
“Sempre vi a justiça de Deus manifestar-se cedo ou tarde e os maus
terminarem miseravelmente. Se o senhor Morande pudesse duvidar um só
instante dessa verdade, terrível para eles, mas consoladora para as pessoas
de bem, que reflita a respeito da sorte daqueles cuja causa ele defendeu e
cujos horrores ignorou.
A dama Blévary, como preço por meus benefícios, entregou-me entre
as mãos de dois celerados. Ela está morta.
A senhorita Fry, minha implacável inimiga, não gozou da fortuna que
me devia; após tê-la empregado toda em subornar testemunhas e a corrom­
per oficiais de justiça, caiu na mais total das misérias', está morta.
O senhor Broad era amigo, espião, testemunha da senhorita Fry; está
morto.
A dama Gaudicheau, irmã da senhorita Fry, era sua cúmplice e de
Scott; ela está morta.
O senhor Dunning, advogado da senhorita Fry, fora escolhido para
fazer triunfar uma causa manifestamente injusta: ele está morto.
O senhor Howarth lançara contra mim uma sentença indigna, que
condenava a inocência e deixava o perjúrio impune. Ele está morto (afoga­
do ao atravessar o Tâmisa).
O juiz de paz de Hammersmith fizera prender minha mulher e eu por
um crime imaginário: ele foi expulso ignominiosamente; está morto.
O senhor Crisp, marechal da prisão de Kings-Bench, ludibriara-me,
com Aylett, por 50 guinéus de prata. Ele perdeu seu posto; reduzido à men­
dicância, retirou-se para um hospital de caridade: ele está morto.

123. Lettre, p. 29. Notaremos quanto o comportamento de Cagliostro devia desconcertar


seus amigos e afastar-lhe as boas vontades; eis um homem que batalha por seus interesses
durante três anos, obtém enfim ganho de causa e, no último momento, Cagliostro anula
os resultados penosamente alcançados retirando sua queixa. O'Reilly, que não parece
estranho à redação de The Life of the Count Cagliostro, deixou escapar em certos trechos
algumas queixas a respeito dos procedimentos incompreensíveis de Cagliostro.
124. Nós o oferecemos por nossa vez como tema de reflexão a seus modernos sucessores.
Vitellini traíra minha confiança; sua culpada indiscrição o tornara
cúmplice de um roubo do qual acreditava poder um dia retirar frutos; foi
encerrado em uma prisão para vagabundos; morreu ali.
As dez pessoas que acabo de nomear, com exceção da dama de Blévary,
estavam na flor da idade e da saúde. Quatro anos após minha partida, res­
tava apenas uma delas. ‘De todos os meus perseguidores de então, restam
hoje somente quatro indivíduos, cuja existência é tal que a morte seria um
benefício para eles.’ Raynolse, o procurador da senhorita Fry e cúmplice
do roubo que Scott cometera contra mim, sofreu o suplício infame do
pelourinho por perjúrio.
O procurador Aylett, que me extorquira 80 guinéus sob pretexto de
minha pretensa identidade com o Bálsamo de Londres, acaba de sofrer o
mesmo suplício por um crime semelhante.
O embargador Saunders mergulhara no complô formado contra mim:
sua fortuna foi dissipada em pouco tempo: ele foi aprisionado por prevari­
cação há muitos anos.
Scott, se não me enganaram, vive nesse momento só, sem parentes,
sem amigos, no fundo da Escócia. É lá que, presa de seus remorsos e expe­
rimentando ao mesmo tempo as inquietações da riqueza e as angústias da
pobreza, ele se atormenta para gozar de um bem que lhe escapa sem cessar,
até que por fim ele pereça de inanição junto ao objeto de sua cupidez,
tomado instrumento de seu suplício.
Tal foi o destino dos 14 indivíduos que se reuniram contra mim e que
violaram em minha pessoa os direitos sagrados da hospitalidade: uma par­
te de meus leitores somente verá, nessa série de acontecimentos, uma com­
binação do acaso; quanto a mim, reconheço aí essa divina Providência, que
algumas vezes permitiu que eu fosse alvo dos maus, mas que sempre quebrou
os instrumentos de que se serviu para me testar125.”
Devemos nos perguntar como, de tantas verdades simples, Morande
pôde fabricar a história revoltante que relatamos mais acima. A coisa foi
fácil: contando os processos em que o próprio Cagliostro não pôde conse­
guir um resultado justo, era fácil apresentar os debates confundidos sob
uma luz desfavorável: alguns falsos testemunhos, bem pagos126, permiti­
ram, nos casos difíceis, incriminar o acusado.
Além disso, a partida estava bem preparada para um jornalista satírico!
De que se tratava, com efeito? De um caderno que continha cálculos

125. Lettre, p. 74.


126. Morande recebeu dinheiro da França para isso: vimo-lo, com o senhor Dubourg,
notário da embaixada francesa, percorrer barracos e tavernas em busca desses figuran­
tes. Dubourg ganhou 50 guinéus por esse nobre trabalho. Pridle e Saunders se interessa­
ram pelo caso (Lettre, p. 19); Morande ofereceu cem guinéus ao senhor O'Reilly, proprie­
tário do hotel dos maçons, para declarar apenas que Cagliostro partira de sua casa sem
pagá-lo (Lettre, p. 47). Este recusou e denunciou o fato.
cabalísticos127 e um pó vermelho, o famoso pó de projeção, sem dúvida,
muito precioso para as operações químicas. Que soberba matéria para o es­
cárnio! E quem reclamava esses tesouros? Um pretenso curador, um miserá­
vel iluminado, vindo não se sabe de onde, saído da prisão para voltar a ela!
Com que facilidade um escritor cáustico, como Morande, podia transformar
o sábio em vulgar charlatão, o homem de bem em presa da justiça! Os líderes
da campanha pagavam bem, o público se divertia, o Courrier de I 'Europe
vendia; Morande se saía bem demais nessa tarefa. Nada temos a dizer quanto
a seus procedimentos; deixamos ao leitor, agora esclarecido, o cuidado de
apreciar onde está a verdade e o que se deve pensar daqueles que assim a
disfarçaram por tais meios; mas há um pontoacerca do qual é útil insistir.
Muitas pessoas podem ainda sorrir diante das brincadeiras de Morande
ou erguer os ombros ao ler que Cagliostro predizia na véspera os números
que sairiam na manhã seguinte na roda da loteria128.
Pretensão absurda, exclamar-se-á! Mas o fato está lá. Puro acaso,
responderão os céticos; e, além da má impressão que sempre produz sobre
um espírito sério a idéia do jogo, poderia permanecer no leitor uma dúvida
referente à boa-fé de Cagliostro. Não queremos que assim seja; julgamen­
tos tão categóricos não devem ser tomados levianamente. Aos que negam,
oponho o fato brutal129: que eles o expliquem. Àqueles que podem refletir,
submeto as observações seguintes:
O uso estabelece entre as palavras “previsão” e “predição” uma dis­
tinção, aliás pouco conforme à sua etimologia; previsão suscita em nós a
idéia de uma dedução lógica de causa-efeito; predição evoca, ao contrário,
o pensamento de uma misteriosa coincidência entre uma afirmação
desarrazoada e um fato cuja causa nos escapa. Mas seriam legítimas essas
associações de idéias? Haveria realmente contradição entre os termos?
Achamos que não.
Quando Cristóvão Colombo, a ponto de ser morto pelos índios, anun­
ciou-lhes um eclipse e conquistou assim seu respeito, predissera o futuro
àqueles que o ameaçavam. Quando um químico prediz que, ao misturar
dois líquidos incolores, um sólido vermelho vai-se precipitar no fundo do
tubo de ensaio, não é, para um ignorante, a real profecia de um milagre?
Tomemos um caso mais complexo: quando um médico, ao examinar um
doente que lhe mostra sua garganta, adivinha a escarlatina e anuncia, para

727. É o termo que se empregava correntemente, embora a cabala não tivesse nada a ver
com isso.
128. As loterias, naquela época, eram análogas às que ainda existem e são
hebdomadárias na Itália, sob o controle do governo: cinco números são sorteados entre
os 90primeiros números e, segundo sua ordem ou sua associação, se eles os indicarem,
os jogadores podem ganhar dez, cem ou mil vezes sua aposta.
129. Lettre, p. 9, 10 e 11.
dali a três dias, a erupção que recobrirá todo seu corpo, não está fazendo
uma verdadeira predição?
Porém, como o químico ou o médico poderão dar a um iniciado, se­
gundo as teorias em voga e na linguagem de sua arte, a explicação das
razões que o fizeram concluir da aparição do fenômeno consecutivo, não
devemos, aqui, falar de predição, de profecia; precisamos empregar a pala­
vra previsão e, logo, nosso espírito, satisfeito, vê apenas coisas muitos
naturais naquilo que se passou. Mas se o médico, e isso acontece com
freqüência, não possuísse, para fazer seu diagnóstico, os dados caracterís­
ticos, nítidos, fornecidos pelo exame da garganta ou pela temperatura do
doente; se, entretanto, por uma dessas intuições especiais que iluminam o
espírito, ele houvesse dado o mesmo prognóstico, não teria podido forne­
cer a um confrade qualquer razão plausível de sua predição, todavia exata.
A palavra previsão seria ainda aplicável nesse caso ou saímos do domínio
científico para flutuar no mundo da profecia?
Um sentimento o dirigiu; uma convicção, impossível de justificar,
fez-se nele. Que sentimento é esse? De onde nasce essa convicção? Não é
a percepção confusa de algumas sensações vagas, vindas desse mundo de
forças que nos rodeia e do qual a maior parte escapa a nossa pobre cons­
ciência? Sem critério para classificá-las, sem linguagem para traduzi-las, o
médico teve delas, porém, uma sensação suficiente para que se determi­
nasse nele uma convicção. A intuição dos “videntes”130 não seria da mesma
ordem? Eles também não podem explicar nem justificar sua convicção;
mas a sentem profundamente; eles afirmam e com freqüência, sabemos,
suas predições se verificam.
Expulsemos então de nossa imaginação essa ilusão de que há antítese
entre predição e previsão; essas palavras, sinônimas, exprimem ambas a
aplicação do saber, qualquer que seja a forma desse saber, na determinação
da sucessão dos fatos. Para que a previsão seja possível, é preciso que
existam relações constantes unindo um estado A de um sistema de forças a
outro estado ulterior B, C ou D do mesmo sistema; e basta que conheçamos
exatamente: l.° o estado A; 2.° a lei que une o estado A ao estado B, C ou
D. Nos casos simples, cujo cálculo das funções em matemática, ou a expe­
riência em física131, é exemplo, a previsão é fácil; é o que chamamos deter­
minação científica.
Se o fato se complica, a resolução da equação se toma mais difícil;
mas permanece sempre possível se tivermos dados suficientemente preci-

130. Empregamos essa palavra, muito imprecisa porém, de preferência a místicos ou


iluminados, mais vagas ainda e que designam, segundo os autores, os mais diferentes
estados espirituais.
131. Na experiência, reduz-se o estado secundário a seu máximo de simplicidade, elimi­
nando as variáveis acessórias (pressão, temperatura, etc., supostas constantes); análise
dos corpos orgânicos, das misturas, em química.
sos e numerosos para modificar os acessórios desconhecidos em quantida­
des conhecidas e transformar progressivamente o problema em um tipo
mais simples132.
Para os fatos biológicos133, a complicação se toma tão grande que os
problemas são considerados, com grande frequência, insolúveis; as rela­
ções entre dados muito numerosos, mais ou menos claramente percebidas,
exprimíveis, escapam-nos e não podemos mais chegar a uma conclusão.
Todavia, concebemos que o problema é apenas muito complexo, não com­
portando insolubilidade de ordem lógica. Se nossa faculdade de previsão
falta neste caso, não é devido à aparição de uma espontaneidade que des­
mente a lei de causalidade geral, por uma solução de continuidade invencí­
vel entre os fatos; é unicamente pela pobreza, pela insuficiência de nosso
saber inicial a respeito dos dados do problema. Pois as leis que encadeiam
os fatos em uma série contínua de causa-efeito, as relações constantes en­
tre as coisas, manifestam-se em toda a parte em que quisermos procurá-las.
O Universo é um todo; a estreita solidariedade dos seres, sua partici­
pação em uma mesma vida universal em que toda individualidade, princípio
sintético de um grupo de unidades inferiores, é elemento constitutivo em
relação à unidade superior, cria entre eles um laço tal que nenhuma ação é
isolada, nada ocorre por acaso134. Um ser, por mais ínfimo que seja, não
pode sofrer uma modificação sem que o mundo inteiro sinta o contragolpe,
da mesma maneira que toda ação geral tem sua repercussão sobre as meno­
res partes do Universo. O homem não escolhe seu lugar com mais liberda­
de que o rochedo; sua vida está ligada à de seu meio. Um homem atrai
certos acontecimentos em tomo de si como uma crise social evoca o ho­
mem necessário para sua solução; um país determina sua flora e sua fauna;
pois o meio não modifica os seres que o habitam até o ponto de determinar
suas formas e suas cores135?
O conhecimento dessas relações, que vão do mineral ao homem, da
matéria ao pensamento, constitui o saber. As ciências, tais como as possuí­
mos, são apenas classificações parciais, compilações empíricas de fatos. A
previsão que dá o saber transpõe a previsão científica tanto quanto o próprio
saber ultrapassa uma ciência particular, a botânica ou a lingüística, por
exemplo. Para sabê-lo, a aparição de um herói, a extinção de um sol, a
tempestade que devasta uma região, a descoberta de uma força nova não
são acidentes particulares; são a conseqüência de outros fatos, muito dis-

132. Equações descohecidas para muitos, problemas de dinâmica em matemática; análi­


se dos corpos orgânicos, das misturas em química.
133. Individuais ou sociais.
134. Qualificamos de fortuita a coincidência de dois fatos cujas causas nos escapam: desde
que a relação nos é conhecida, o acaso desaparece; a aproximação supersticiosa de que as
pessoas se riam se torna uma previsão que se respeita.
135. A adaptação, o mimetismo são observações banais em biologia.
tantes em aparência; sua realização é necessariamente marcada por tal época
do tempo e por tal meio. Não há fato isolado sem filiação com os que o
precederam, sem relação com o conjunto; nenhuma palavra cai de uma
boca, nenhuma pedra rola na torrente sem que haja causas para lhe deter­
minar a queda; aquele que percebe suas causas pode também predizer o
acontecimento.
Mas seria dado ao homem atingir esse total conhecimento da vida, to­
mar consciência de todas essas relações? Sim, respondia Cagliostro com os
sábios de todos os tempos; o desenvolvimento de suas faculdades é ilimita­
do; o homem-microcosmos pode encontrar em si os céus e seus habitantes, a
terra e suas forças. Ele deve chegar a conhecer tudo, a prever tudo.
E Cagliostro, não contente em afirmar essa verdade, dava provas dela:
esse saber, ele o possuía; se ele adivinhava as doenças mais secretas, as
penas morais ocultas; se ele anunciava os acontecimentos a cem léguas de
distância, no momento em que eles se produziam; se ele pôde prever, anos
antes, a carreira de um homem ou o destino de uma sociedade, foi porque
esses fatos não eram isolados para ele e sua realização se apresentava como
a consequência necessária de estados presentes cujas múltiplas relações
seu espírito abraçava; e, se ele escolheu em Londres, para fazer disso um
tema de estudos, a determinação das séries numéricas nas tiragens de lote­
ria, foi para oferecer um exemplo de que é possível ao espírito136 a resolu­
ção de um desses problemas complexos, inapreensíveis, que a inteligência
se renuncia a analisar e que o homem, por impotência, relega ao domínio
vago do acaso, gabinete de libertação de nossas ciências, armário dos “não-
classificados” no repertório enciclopédico de nossos conhecimentos.
Ao chegar à precisão nessa ordem de fatos, Cagliostro demonstrava
ao mesmo tempo a insensatez da palavra acaso, o encadeamento lógico e
perfeito dos fenômenos em aparência menos determinados e a possibilidade
de um saber em relação ao qual nossos conhecimentos técnicos e métodos
científicos não passam de pobres esboços. Cagliostro, às voltas com esses
problemas transcendentes, seguindo a vida e seu desenvolvimento até as
esferas para nós invisíveis — nós, cheios de frias abstrações, em que só
remexemos em fórmulas mortas —, aparece-nos tão grande ou talvez mais
do que quando comanda a doença, transmuta a matéria ou dirige os ho­
mens, e os sarcasmos de alguns espíritos fúteis caem lamentáveis diante
dessa sabedoria triunfante como blasfêmias de crianças más vêm morrer
ao pé do Deus, cujo amor as faz viver e as chama, da mesma forma, para Si.

136. Cagliostro queria apenas demonstrar uma verdade positivamente, indiscutivelmente


pelos fatos; jamais tirou partido para si mesmo e nunca se permitiu abusar em favor dos
outros de seus conhecimentos. Teria podido ganhar indefmidamente das caixas da loteria
(ou seja, do bolso dos perdedores) o dinheiro necessário a sua generosidade; mas não o
fez. ‘“Qualquer que fosse a causa dessa esquisitice', disse ele ironicamente ao falar de
seus prognósticos, ‘acredito, por delicadeza, que devo abster-me de fornecer qualquer
número no futuro.’” Lettre, p. 9.
Capítulo IV

A Rússia — O Feiticeiro

Mitau
Não seguiremos Cagliostro em seu percurso pela Europa; essa via­
gem, de Loja em Loja, quando foi recebido, escutado, honrado por maçons
de todos os Ritos, quando encontrou pesquisadores sinceros e muitos ambi­
ciosos desonestos, quando ocorreu, por sua influência, uma transformação
das idéias maçônicas, relaciona-se mais com sua ação social; teremos oca­
sião de estudar isso em detalhes no capítulo dedicado à Maçonaria egípcia137.
Sua viagem terminou em Mitau, na Curlândia138. Chegou no fim de feve­
reiro de 1779139 vindo de Konigsberg140; permaneceu ali muitos meses.
Havíamo-lo deixado isolado, quase desconhecido na Inglaterra, travando
pequenas batalhas com um grupo de pessoas de pouca superfície; vamos
reencontrá-lo em meio ao grande mundo curlandês, sob um novo aspecto:
o de taumaturgo.
O conde de Cagliostro apareceu ali realmente, pela primeira vez, pos­
suidor de poderes estranhos, mestre de forças desconhecidas; era rodeado
de discípulos cultos que dominava com todo o seu misterioso saber e que
encantava com sua força de atração poderosa.

137 Cf. Cap. VI, Lyon.


138. Nesse momento, estado independente sob o protetorado da Prússia.
139. C. E. K. Von der Recke. Nachricht Von des beruchtigten Cagliostro Aufenthalte in
Mitau, Berlim, 1787, in-8?, p. 6.
140. Em Konigsberg, Cagliostro passou uma curta temporada: tendo chegado em 25 de
fevereiro de 1779, desceu ao albergue Schenken na Kehrwiedergasse. Foi recebido, com
certa desconfiança, em algumas boas famílias; mas o ministro e chanceler Von Korff, que
abominava os jesuítas, acreditou adivinhar em Cagliostro um emissário dessa ordem e pre­
veniu todo mundo contra ele. Cagliostro, de seu lado, nada fez para desmentir o fato e
conquistar essa cidade. Deixou logo a região em que, segundo ele, não poderia fazer
nenhuma obra impressionante por causa da má-vontade das pessoas. Borowski. Caglios­
tro einer der Abentheuer... 1790, p. 52-53. Von Korff voltou atrás em sua opinião e, em
Mitau, demonstrou bastante simpatia a Cagliostro. De Recke. Op. cit, p. 6.
É quando ele muda a maneira de agir; o que há de espantoso em que
ele se apresente sob um nome novo141?
Nessa primeira estação de seu caminho, é mais difícil reconstituir sua
vida e desvendar o emprego de seu tempo que nas seguintes; os documen­
tos, principalmente os de valor, faltam e não temos nada a consultar além
das narrativas satíricas, desfiguradas pela ignorância e pelo ódio, fabricadas
mesmo em todas as peças e publicadas muito tempo após, quando do pro­
cesso do Colar142.
Devemos fazer uma exceção para o livro da Sf de Recke, Nachricht
Von des berüchtigen Cagliostro, etc. (1787), que, embora se inclua pela
data e pelo objetivo na categoria de livros hostis tardiamente lançados,
contém, porém, um relatório antigo em que a autora, sob a impressão dos
fatos reais, quase dia a dia, anotava os acontecimentos e recolhia da me­
lhor maneira possível as palavras de Cagliostro que a haviam tocado. Ao
publicar essas lembranças, a Sr3 de Recke as acompanhou de um comentário
mais volumoso que o texto, destinado a destruir sua importância, a explicar
racionalmente como prestidigitação e fraude todos os atos maravilhosos do
taumaturgo. Cagliostro, segundo sua nova opinião, não era mais que um há­
bil emissário dos Jesuítas143, cuja doutrina perniciosa, virtudes simuladas e
poderes enganadores haviam seduzido sua ingênua confiança.
Veremos que se essa retratação, devida a influências estranhas144, pôde
servir aos adversários de Cagliostro e perturbar muitos leitores, não resiste à
crítica, e que o relatório primitivo de 1779 permanece em sua integridade
como um documento de grande interesse na história imparcial de Cagliostro.
Nós o citaremos bastante.
Além disso, nas confissões involuntárias escapadas aos panfletários,
em suas contradições, podemos também descobrir algumas migalhas de
verdade. Cagliostro não limitara suas ações taumatúrgicas à Rússia; en­
contramos também em Estrasburgo, em Lyon e em Paris testemunhos im­
portantes que nos permitem melhor apreciar o que foram seus trabalhos e
sua vida na Curlândia.

141. Ele viajara sob o nome de Conde Fênix, de Conde Harat; apresentou-se ali sob o
nome de Cagliostro. “E direito de todo viajante", diz ele, “manter o incógnito”. Cf.
Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, in-16, p. 23, e Lettre au peuple
anglais, S.L.S.A., in-4?, p. 57.
142. Cagliostro démasqué à Varsovie. S.L. 1786. in-16. — Ein Paar Trõpflein aus dem
Brunnen der Wahrheit. Im Vorgebirge, 1781 (na realidade, 1786), in-16 — Le charlatan
démasqué. Paris, 1786, in-16
Esses panfletos foram recolhidos e reproduzidos com complementos pelo autor da Vie de
Joseph Balsamo. Paris, 1791, in-8°.
143. De Recke. Op. cit., p. 26, 107 e 148.
144. Ver mais adiante, p. 60-61
Nessa época, e nessas regiões, o perigo que corriam os espíritos era
grande: o iluminismo, um misticismo vago feito de preguiça, orgulho e
incredulidade, estava na moda; só se falava de visões celestes, comércio
com os anjos, revelações, conjurações e evocações. A inteligência tendia a
se perder na ilusão com Swedenborg; a vontade podia perverter-se na su­
perstição com os Scieffort, os Weishaupt e consortes. A Alemanha estava
embebida de suas seitas secretas145.
Mesmo em Mitau, o Dr. Stark, professor de Filosofia, chefe de uma
sociedade de iluminados muito fechada, ensinava a seus adeptos uma ma­
gia cerimonial da qual só se falava com medo146.
A Sri de Recke147, que representará um papel importante nessa histó­
ria, toda mergulhada nesses estudos misteriosos, assombrada pelo desejo
de “se comunicar com a alma” de seu irmão148, alicerçara com as idéias de
Swedenborg e de Lavater um sistema místico pelo qual era completamente
aficionada e do qual se orgulhava muito. Era autoridade em seu meio149.

145. De Recke. Op. cit., p. 155-156 — Luchet. Essai sur la secte des Illuminés, p. 99,
102, 117.
146. De Recke. Op. cit., p. 50. A SE de Recke cita o Anti-Saint-Nikãse, que exprime sobre
Stark a mesma opinião.
147. Anne-Charlotte de Medem, nascida a 3 defevereiro de 1761, em Mesothen (Curlândia),
morta em 20 de agosto de 1821, em Loebrechhan, filha do conde de Medem e de Elise Von
der Recke, poetisa cheia de espirito e escritora ascética, sua mulher pelo terceiro casa­
mento. A condessa A. Charlotte de Recke desposou, em 1779, Pierre de Biren. Era muito
bela, de inteligência viva e esteve em meio a muitas intrigas políticas durante a vida e
após a morte de seu marido.
148. Seu irmão mais velho, o conde de Medem, unido a sua irmã pelas mesmas idéias
místicas, morrera em Estrasburgo em 1778. A SE de Recke, persuadida de que a alma de
seu irmão deveria aparecer-lhe, passava noites a evocá-lo nos cemitérios. De Recke. Op.
cit., p. 5 e p. 167. “A senhora não ama a magia por ela mesma, dizia-lhe Cagliostro, que
lia em seu coração não a procura para avançar e adquirir o poder de ajudar milhões de
homens, sem distinção, mas porque a morte lhe arrebatou aquilo a que sua alma era mais
ligada e que a senhora quer recuperar. " Ibid., p. 52. E mais adiante: “Se a senhora não
quer se libertar de tudo, se permanecer ligada a um ser ou mesmo a um saber especial­
mente, estreitamente, não poderá adquirir o desenvolvimento completo e a liberdade.
Nesse caso, a senhora pode obter em uma arte ou uma ciência o mais alto Grau, e eu a
ajudarei, mas renunciará à magia. Eu lhe deixo a escolha”. Ibid, p. 103.
149. Quando Cagliostro veio a ela, esta o tratou de igual para igual, aconselhando-o,
repreendendo-o, persuadida de que podería esconder-lhe alguns de seus pensamentos. (De
Recke. Op. cit, p. 62-63). De caráter altivo, discordante sobre certos pontos de seu sistema,
abalada em algumas de suas crenças pelas palavras de Cagliostro, ela estava sem cessar
em evolução quanto ao taumaturgo: um dia ela estava convencida e completamente dedica­
da a ele; na manhã seguinte, recusava-se a escutá-lo mais (De Recke. Op. cit, p. 136,167).
E, como ela dirigia sua companhia, foi em tomo dessas hesitações e meias-voltas que se
desenrolou a maior parte dos incidentes da estada de Cagliostro na Curlândia.
As Lojas, apaixonadas por essas pesquisas, penetradas por essas in­
fluências, abandonavam seu papel social, tomavam-se grupos de sectários
inúteis à humanidade, perigosos para os que os rodeavam. Um homem
superficial e autoritário se teria contentado, se tivesse tido esse poder, em
reagir violentamente passando ao extremo oposto, destruindo nos sonha­
dores qualquer crença, qualquer vida espiritual, para levá-los ao sensualismo
mais estreito e mais positivo150.
Cagliostro não fez nada disso; soube ao mesmo tempo alimentar o
que havia de vivo neles, dando-lhes uma alimentação sadia, apropriada a
suas faculdades de assimilação, e orientar suas buscas no sentido em que
elas pudessem levá-los a conhecimentos verdadeiros das leis da natureza.
Era preciso ensinar, demonstrar aos pesquisadores que tateavam o
caminho, que nosso conhecimento do mundo é relativo, muito errôneo,
e que nossos sentidos dão apenas, dos fenômenos, noções subjetivas
todas convencionais; que, além do mais, essas noções são incompletas
porque nossas percepções são limitadas ao que nos revelam o tato, a
audição, a visão e o olfato. Ora, há outros sentidos, ainda embrionários,
que, desenvolvidos em condições excepcionais, podem nos colocar em
relação com uma série de forças desconhecidas, abrir-nos um mundo de
fenômenos despercebidos pela maior parte dos seres e fazer recuar as­
sim os limites do cognoscível. Era preciso acima de tudo ser provado;
era necessário fazer perceber a realidade e o valor desses fenômenos aos
observadores.
Foi o que tentou Cagliostro ao se rodear de todas as condições acessó­
rias que podiam parecer indispensáveis a seus alunos, adeptos, na maioria,
de sistemas especiais, e fixar sua atenção. Ele tratava com ocultistas: alguns,
ferventes alquimistas151, só pensavam na transmutação, no elixir, no pó de
projeção, esperando apenas uma palavra que lhes desse a chave dos enigmas
herméticos e o poder com que sonhavam; os outros, sem rejeitar a alquimia,
consideravam-na apenas como dependência da magia e procuravam primei­
ro os Ritos que deviam submeter os espíritos à sua vontade152.
E a partir desses dados, levando em conta essas disposições, que
Cagliostro teve de lhes falar. Cada um deles tinha um objetivo prático,
muito pessoal; todos se fixavam nele e, apesar de suas declarações de

150. Isso lhe teria sido mais fácil, já que uma corrente de reação racionalista já se esbo­
çava diante desses excessos e que, no próprio meio da família de Medem, um tal reformador
encontrara ativos auxiliares: o conselheiro áulico Schwander, diretor intelectual da Sdde
Recke; o notário Hinz, familiar da casa. De Recke. Op. cit., p. 8, 9, 26, 28, 77.
151. Os MM de Medem e de Howen haviam trabalhado com os hermetistas Muller, de
Mitau; Schmidt, de lena, e Freund, de Estrasburgo. De Recke. Op. cit, p. 3.
152. “Nossas almas estavam mais desejosas de se comunicar com os espíritos do que de
ver transmutações.” De Recke. Op. cit., p. 10.
desprendimento, não saíam, em suas ambições, do terreno do egoísmo e
da matéria153.
Ele teve de pegá-los no ponto em que estavam154, falar-lhes sua lín­
gua, fazer brilhar ante seus olhos, no início, a realização possível de seus
sonhos estreitos, para poder em seguida, pouco a pouco, levá-los de lá para
horizontes mais vastos. Nesse período preliminar de educação, enquanto
ele os interessava na busca do tesouro mágico de Wilzen155, da criação de
ouro, do elixir da imortalidade, apanágio do terceiro círculo dos Iniciados,
Cagliostro soube lhes falar com uma tão pura linguagem simbólica que
suas palavras, atingindo os ouvidos abertos, teriam sido, para aqueles que as
houvesse compreendido, profundamente reveladoras. Cagliostro fora en­
caminhado ao marechal da nobreza, o Sr. von Meden; este lhe apresentou
seu irmão, o conde von Medem, a Oberburggraf e ao camareiro von Howen,
os três maçons156. Cagliostro lhes mostrou seus títulos na ordem e seu obje­
tivo, que era fundar uma Loja mista, em que poderia revelar-lhes muitos
dos segredos que eles buscavam. Seus hospedeiros estavam interessados,
mas desconfiados; para vencer suas hesitações, Cagliostro fez, em sua pre­
sença, uma operação alquímica que os entusiasmou e, imediatamente após,
uma experiência mágica que os impressionou ainda mais.157

153. A SE de Recke não mais que os outros. Ela, que professava o maior dos desprendi-
mentos dos bens da Terra (De Recke. Op. cit., p. 11), solicitou-lhe muitas vezes que ele lhe
conseguisse, por meio hermético, uma soma de dinheiro de que necessitava sem que sua
família soubesse, não para alguma obra de caridade, mas para ela mesma. Cagliostro se
recusou, alegando primeiro dificuldades materiais e dizendo-lhe enfim: “Para poder cres­
cer, para que o céu lhe confie tesouros mais vastos, aqueles que você deseja tanto, é
preciso primeiro que você saiba resistir à tentação das riquezas desse mundo, como Cristo. ”
De Recke. Op. cit., p. 12-13 e também p. 52. Mas a St? de Recke teimava em pedir, nem
mesmo percebendo a própria contradição.
154. Schlosser compreendeu isso e, em seu artigo acerca de Cagliostro, sustenta a mesma
tese que nós, a saber, que Cagliostro, querendo libertar seus alunos das ilusões nas quais
ele os via mergulhados, teve, primeiro, de lhes falar em sua língua, ocupar-se com eles de
questões de magia, descer ao inferno com eles, para levá-los consigo quando subisse
novamente. Cf. Borowski, Cagliostro, einer der Abentheuer..., 1790, in-16, p. 149. — De
Recke. Op. cit., p. 112
155. De Recke. Op. cit., p. 32.
156. Iniciados em Halle, em 1741. De Recke. Op. cit, p. 3 e 7.
157. A experiência mágica foi a seguinte: Cagliostro consagrara, por alguns Ritos, o
filho de M. de Howen, de 6 anos, e lhe disse para olhar em sua mão. “Sem que a criança
percebesse, Cagliostro perguntou a meu tio que aparição ele desejava. Ele desejou, para
não assustar seu filho, que ele pudesse ver sua mãe e sua irmã que estavam em casa. Dez
minutos depois, a criança declarou ver sua mãe e sua irmã. À pergunta de Cagliostro: ‘Que
faz tua irmã?’, a criança respondeu: ‘Tem a mão sobre o coração como se sofresse’. Em
seguida, o pequeno exclamou: ‘Agora ela abraça meu irmão que acabou de voltar para
casa’. Ora, quando esses senhores partiram de casa para a sessão, esse irmão de minha
Desde então, eles se apressaram para seguir as indicações de Cagliostro:
uma Loja mista foi fundada158. Eis ordinariamente seus trabalhos:
Em uma câmara, ornada de símbolos, em dia e hora fixos, os mem­
bros da Loja, devidamente Iniciados maçons egípcios, preparados segundo
as instruções do Grão-Mestre, sem espada e sem metais com eles, reuniam-
se. Essa câmara se comunicava por uma porta com outro local, menor, em
que se pusera uma mesa coberta com um tecido branco, uma cadeira e,
sobre a mesa, diversas luzes em triângulo, rodeando uma garrafa de vidro
branco, cheia de água. Diante da garrafa, um papel recoberto de caracteres
bizarros159.
O Grão-Mestre, em traje maçônico, espada à mão, introduzia uma
e, tendo-a consagrado diante de todos pela imposição das mãos,
criancinha160161
com unções com um óleo que chamava óleo da sabedoria10' e com algumas
palavras pela obra que queria realizar, ele a fazia sentar diante da garrafa, na
pequena câmara, saía, fechava a porta atrás de si e se colocava de pé diante
dessa porta, no mesmo local que os assistentes. A criança ficava sozinha em
seu tabemáculo. Os assistentes e o Grão-Mestre, após ter recitado algum
salmo de Davi, recolhiam-se, orando em silêncio.162
Ao fim de um instante, Cagliostro perguntava à colomba se via algo
na garrafa: “Vejo um anjo... anjos...” respondia com freqüência163. Daí,

prima não estava na cidade, e nem mesmo o esperávamos nesse dia, visto que acreditavamos
que estivesse a mais de 7 milhas dali. E, na hora da experiência, meu primo voltara
subitamente, de maneira inesperada, e minha prima tivera antes batimentos de coração
tão fortes que chegou a passar mal. ” De Recke. Op. cit, p. 28, 30-31.
158. A 29 de março de 1779. Cf. De Recke. Op. cit, p. 33 e Cagliostro, einer der Abentheuer,
p. 57.
159. De Recke. Op. cit, p. 63-65. Ritual da Maç.: egípcia: p. 58. Não podemos deixar de
citar aqui uma passagem de Eliphas Levi acerca dessas experiências de Cagliostro, das
quais ele nada entendeu. “Cagliostro”, escreveu, “praticava a hidromancia, porque sa­
bia que a água é ao mesmo tempo um excelente condutor, um poderoso refletor e um meio
bastante refringente para a luz astral, como o provam as miragens do mar e das monta­
nhas. ” Histoire de la Magie, 1892, p. 217. Tais frases pomposas e vazias de qualquer senti­
do infelizmente não são raras nas obras dos ocultistas e de Eliphas Levi em particular.
160. Esses pacientes, meninas ou meninos chamados colombas (pombas) ou pupilos tinham
de ser muito jovens e da mais perfeita inocência; sua ignorância e ingenuidade eram as
condições necessárias, dizia Cagliostro, à manifestação de um puro espírito. Eles deviam
ser revestidos de um traje branco, símbolo de pureza aos olhos dos assistentes. Ritual da
maç.: egípcia: p. 63.
A primeira colomba foi o sobrinho do conde de Medem, menininho de seis anos, mas sem
nenhuma instrução: nem mesmo conhecia as letras. De Recke. Op. cit, p. 40, 66.
161. De Recke. Op. cit, p. 30.
162. Vie de Joseph Balsamo, p. 100, 122, 177. — Ein paar Trõpflein, p. 7. De Recke. Op.
cit., p. 66, 70, 72. Cagliostro recomendava o maior dos recolhimentos e a imobilidade, o
afastamento de qualquer distração. Por vezes queimavam perfumes na primeira câmara.
Ritual da maç.: egípcia. Abertura dos trabalhos do Grau de mestre, p. 58.
163. Op. cit., p. 69-70. — Vie de Joseph Balsamo, p. 122-179. — Cagliostro démasqué à
Varsovie, 1789, in-16, p. 3.
após haver agradecido a seus visitantes espirituais, o Grão-Mestre anunciava
que se podiam fazer todas as questões desejadas; os assistentes interroga­
vam. Cagliostro transmitia as questões; os anjos respondiam, seja com si­
nais ou com palavras percebidas apenas pela criança, seja mostrando um
quadro mutável que a criança descrevia164.
Um grande número dessas respostas nos foi conservado em relatórios
da época, freqüentemente pelos próprios interrogadores. Na Rússia, em
Estrasburgo, em Lyon, esses mesmos fatos se reproduziram e todos os his­
toriadores de Cagliostro os citaram. Eis alguns exemplos, tomados aqui e
ali em autores contemporâneos.
Uma dama perguntou o que fazia sua mãe, que estava em Paris. A
resposta foi que ela estava num espetáculo entre dois velhinhos. Outra es­
tendeu uma armadilha ao taumaturgo: queria saber qual era a idade de seu
marido. Não obteve resposta, o que ergueu grandes gritos de entusiasmo,
pois essa dama não tinha marido, e a falha dessa tentativa de arapuca fez com
que não se tentasse estender outra165.
Algumas vezes, a questão foi feita secretamente; um bilhete fechado
era entregue ao jovem pupilo — era um menino. Ele não o abriu, mas leu
imediatamente na garrafa essas palavras: “Você não o obterá”. Abriu-se o
bilhete, que perguntava se o regimento que a dama solicitava para seu filho
lhe seria concedido. Essa justeza de resposta aumentava a admiração166.
As respostas, ao que vemos, podiam dizer respeito a fatos por vir e
não se relacionavam apenas ao conhecimento de acontecimentos presentes.

164. “Cagliostro nos explica que nem sempre era a criança que falava por si mesma, mas
que um espirito mágico (inspiração, força mântica, mediunidade, diriamos) lhe ditava as
respostas que ela repetia, com freqüência inconscientemente e sem nada ver. Também igno­
rava às vezes o que dissera. ’’ De Recke. Op. cit, p. 67. E por isso que ele proibia formal­
mente interrogar a colomba após as experiências. A Sr.° de Recke, que tudo ignorava a
respeito dos fenômenos psíquicos, viu nessa proibição uma hábil precaução tomada por
Cagliostro para que suas representações não fossem descobertas. Hoje, mais bem informa­
dos, encontramos nessa recomendação severa apenas uma prova de saber; questionar o
paciente fora das sessões é abrir a porta ao erro, é educar o médium para levá-lo a trapa­
cear. Sabemos há muito tempo: “Se a alma foi anteriormente perturbada... perturba-se a
harmonia divina, as predições se tomam confusas e mentirosas e o entusiasmo deixa de ser
verídico e autenticamente divino ”. Jâmblico. Le livre sur les mystères, III, 7, trad. Quillard,
Paris, 1895, p. 82. Agora achamos ridícula a explicação pela prestidigitação dada pela Sr.”
de Recke acerca de todos os pontos em que a experiência dos fatos chegou a nós; mas temos
uma tendência a aceitar essa mesma interpretação para aqueles que a ciência ainda não
penetrou. Não é absurdo? A razão não deveria, ao constatar os erros da Sr.ade Recke, fazer-
nos reservar nosso julgamento e admitir a probabilidade de outras interpretações além da
de patifaria para os fatos surpreendentes ainda não explicados?
165. Isso ocorreu em Estrasburgo; foi um contemporâneo que nos relatou o fato, Cf.
Figuier, Histoire du merveilleux. Paris, Hachette, 1861, t. II, p. 16.
166. Figuier. Ibid., p. 16.
A famosa profecia da revolução e da morte de Luís XVI foi assim feita por
intermédio de uma criança167.
Os anjos que apareciam manifestavam às vezes sua presença de um
modo mais tangível ainda para a colomba: sua materialidade era tão nítida
que a criança podia tocá-los168,beijar suas mãos, entregar-lhes ou receber
deles objetos materiais. Uma das sessões mágicas mais impressionantes
cuja narrativa chegou a nós é a de Varsóvia, em que ele fizera queimar um
papel sobre o qual os assistentes haviam aposto sua assinatura; logo após,
a colomba viu cair a seus pés um envelope, com um sinete de cera, que
entregou a Cagliostro; abriram-no e cada um reconheceu sua assinatura169.
Uma vez os fenômenos produzidos, constatados por seus discípu­
los, quando após experiências reiteradas eles puderam compreender o
alcance que tinham, tanto para o bem da humanidade quanto para a aqui­
sição de um saber mais vasto, era preciso levá-los a conceber, apesar de
seu espanto religioso, que esses fenômenos ignorados não eram de or­
dem antinatural nem mesmo sobrenatural, mas vinham do funcionamen­
to de faculdades que poderiam tornar-se propriedade dos seres decididos
a adquiri-las.
Foi o que ele fez ao modificar suas experiências, mudando um pouco
aqui, um pouco ali, as condições acessórias ou a natureza das manifesta­
ções para conseguir, no final, demonstrar por fatos que a percepção dos
fenômenos espirituais e a ação direta da vontade humana sobre eles eram o
apanágio natural do homem regenerado. Ele reduziu, depois suprimiu o ceri­
monial, as tapeçarias, os cenários e as fórmulas misteriosas170. O círculo
mágico, de onde os assistentes não deveríam sair, foi omitido ou liberado
algumas vezes. A Srf de Recke, fina observadora, fez-lhe a observação:
“Não julgue”, respondeu ele; “se você tivesse o poder de comandar os espí­
ritos, compreendería o círculo mágico. Tenho o direito de mudar as regras
que lhes dou, de modificar meu comportamento, de agir diferentemente se­
gundo as pessoas; mas sou responsável se abuso desses poderes171.”
Mas, apesar dessa resposta tão clara, tão conforme ao plano que
Cagliostro seguia em suas demonstrações, a Sf de Recke só via aí infra­
ções incompreensíveis ao ritual e, mais tarde, apoiando-se nessa pretensa
contradição, ela a apresentou como um argumento que comprovava, dizia
ela, que todas essas operações não passavam de charlatanismo.
As luzes também não eram mais necessárias; Cagliostro fazia sim­
plesmente sentar a criança diante de uma garrafa; em outras ocasiões, “ele

167. Cf. Roma, cap. IX deste livro.


168. Vie de Joseph Balsamo, p. 136.
169. Cagliostro démasqué à Varsovie, 1786, p. 4. O autor vê nisso uma simples manobra
de prestidigitação, inútil dizê-lo.
170. Ein paar Trõpflein, p. 6.
171. De Recke. Op. cit., p. 79, p. 33 Nota V e p. 98.
fez as experiências sem a garrafa, colocando apenas o pupilo atrás de um
biombo que representava uma espécie de pequeno templo172.”
Eis outro exemplo dessas simplificações: trata-se de uma experiên­
cia em que o pupilo acabara de ver, em uma garrafa, a casa da pessoa que
a interrogava. “Tiraram a garrafa; a criança disse que continuava a ver a
casa e a mesma pessoa, que estava então em tal quarto. Esse senhor mal
acabou de ouvir o que haviam acabado de dizer; correu no mesmo instante
para sua casa e reconheceu a verdade de tudo o que a criança havia anun­
ciado173.
O paciente, como havíamos dito, deveria ser no início uma criança
em toda a inocência da primeira idade, preparada ao menos desde a véspe­
ra para a cerimônia; pouco a pouco, Cagliostro diminuiu o número das
condições requeridas; pegava, sem preparação e empregava imediatamente
qualquer criança que se lhe apresentasse174. “Alguém suspeitava a princí­
pio que, nesses trabalhos, havia algum trato entre o pupilo e Cagliostro e
fez-lhe notar o desejo de lhe trazer uma criança totalmente nova e que lhe
fosse desconhecida para trabalhar com ele. Cagliostro consentiu imediata­
mente em satisfazê-lo, acrescentando que tudo o que ele operava não pas­
sava de um efeito da graça divina. Trouxeram então o pupilo; os trabalhos
ocorreram com muito sucesso175.”
Cagliostro, tomando da colomba que lhe traziam, sem tê-la visto, e
transformando-a imediatamente em vidente; a operação dando tão certo
tanto com esse paciente quanto com os outros, eis que não havia mais lugar
para qualquer suspeita de conivência e que se destruiu toda a infantil hipó­
tese de comédia combinada entre Cagliostro e seu paciente, hipótese sobre
a qual a Sri de Recke apoiou todo o seu sistema de difamação contra Ca­
gliostro: sua triste apostasia nem mesmo tem a desculpa de um motivo
plausível de dúvida.
Em Paris, ele se servia com freqüência de jovens de mais idade176.
Ofereceu-se mesmo para operar sobre 50 meninas ao mesmo tempo, para

172. De Recke. Op. cit., p. 88 e Vie de Joseph Balsamo, p. 134. Durante a experiência
feita com o paciente Henry em presença do príncipe Joseph e do príncipe de Lamballe
para o duque de Orléans (Cf. Cap. IV), a visão ocorreu em um espelho “de cerca de 9
centímetros quadrados ” e não em uma garrafa. Foi também em um espelho que Cagliostro
mostrou ao duque de Richelieu, que se apresentava incógnito, quem ele era e quem seria.
173. Vie de Joseph Balsamo, p. 148. E virão falar de hidromancia e em dar, como Eliphas
Levi (Cf. p. 54, nota I), uma pretensa explicação física!
174. Vie de Joseph Balsamo, p. 147, 148.
175. Vie de Joseph Balsamo, p. 134-135.
176. Em Varsóvia, um de seus pacientes foi uma menina de 16 anos. Cagliostro démasqué
à Varsovie,/7S6, p. 6. Um de seus pacientes de Paris, que tinha 10 anos quando o
duque de Orléans o levou a Cagliostro, ainda estava vivo em 1843. Era inspetor de
salubridade, chamava-se M. Henry e morava no Marché des Innocents, n.° 24. Cf.
Initiation, março de 1906. Trabalhos de Cagliostro, p. 257.
provar que seu poder sobre aqueles que empregava não dependia unica­
mente de uma disposição especial e anormal do paciente177.
As qualidades necessárias a fazer um paciente, as faculdades de luci­
dez existiam portanto em potência em quase todos os seres e não apenas
em algumas pessoas de exceção; essa conclusão se impunha. Uma prova
convincente foi dada: assistentes, além do paciente, percebiam repentina­
mente as manifestações178, ou mesmo as percebiam na ausência do pupilo
(de qualquer médium, diríam os modernos), apenas pela vontade do Grão-
Mestre.
Em Versalhes, diante de grandes senhores, Cagliostro fez aparecer
não somente a imagem de pessoas ausentes ou mortas que lhe designavam
e visíveis apenas para o paciente, mas elas mesmas, fantasmas animados e
moventes, visíveis a todos os assistentes179.
O cardeal de Rohan assistiu, em Estrasburgo, a uma dessas operações
feita para ele, em que apareceu a imagem de uma mulher que lhe era cara180.
“Em Lyon, Cagliostro mostrou a toda uma sala de maçons estupefatos a
sombra de seu irmão, o venerável Prost de Royer, magistrado eminente,
que acabara de morrer181.”
Vemos quanto esses fenômenos ganham em generalidade, em exten­
são, à medida que são produzidos. Não se trata mais de um pequeno caso

177. Vie de Joseph Balsamo, p. 138. — “A força mântica dos deuses (conhecimento)
está... em toda parte integralmente presente naqueles que podem recebê-la, escreve
Jâmblico;... não há nenhum ser vivo e nenhuma natureza à qual ela não se comunique,
dando a todos, mais ou menos, uma parte do conhecimento do futuro. Todavia, os seres
simples e jovens, sobretudo, são mais próprios à adivinhação. ” Le livre des mystères.
Trad. Quillard, p. 91 e 111 (III, 12 e IV, 24).
178. Um juiz que duvidava enviou secretamente seu filho para casa para saber o que fazia
sua mulher nesse momento; depois de ele ter saído, o pai dirigiu essa questão ao grande
Copta. A garrafa nada disse, mas uma voz ouvida por todos anunciou que a dama jogava
cartas com as duas vizinhas. Essa voz misteriosa, que não fora produzida por nenhum
órgão visível, lançou o terror em uma parte da assembléia e, quando o filho do magistra­
do veio confirmar a exatidão do oráculo, diversas damas se retiraram.
Na Curlândia, a Sé de Recke testemunha que os beijos que os anjos davam à criança,
em sinal de paz e união com ele, no início e no fim das sessões, eram com frequência
ouvidos pelos assistentes tão nitidamente quanto os dados pela criança. De Recke. Op.
cit., p. 85 e 108.
179. Figuier. Histoire du merveilleux. Paris, 1861, t. IV, p. 28. O autor das Mémoires
authentiques se serviu dessas narrativas e de outras análogas, das indiscrições que filtra­
vam sobre essas evocações teúrgicas para construir com todas as peças o conto humorístico
do jantar dos Treze. E lamentável que o espírito satírico tenha vindo, com uma fantasia
desse gênero, ridicularizar e desnaturar a lembrança dessas maravilhas; mas isso não
poderia atentar contra os próprios documentos.
180. Mémoires de Robertson.
181. Péricaud. Cagliostro à Lyon, broch. In-8?, p. 2.
isolado de hidromancia ou de cristalomancia produzido inconscientemente
em um ser anormal. Trata-se da eclosão, da realização de uma faculdade
nova, revelada aos homens pela aplicação apenas do poder de Cagliostro.
O mestre comanda e o olho espiritual do discípulo, e mesmo do indiferen­
te, abre-se, assim como sua mão agiría se o mestre lhe houvesse ordenado
que o fizesse. Poder assustador e que fazia cair muitos a seus pés!
Cagliostro não quis, porém, que a admiração excessiva de seus discí­
pulos se transformasse em uma espécie de devoção fetichista em relação a
ele ou aos poderes que eles entreviam: seu objetivo era desenvolver almas,
fazer refletir. Explicou a seus discípulos que esse poder, que eles admira­
vam com terror, não era estritamente limitado a ele próprio e que ele podia
transmiti-lo, em alguns casos, a certos seres, desde que fossem puros, de
boa vontade e que Deus lhes concedesse essa graça. Não era esse o objeti­
vo da Maçonaria egípcia?
Em sua presença, a princípio, ele fez consagrar e interrogar o paciente
por um terceiro182: o experimentador escolhido e os assistentes constata­
ram assim que os poderes de Cagliostro se haviam transmitido a seu re­
presentante e os fenômenos se cumpriam perfeitamente. Fez ainda mais:
tendo escolhido alguns discípulos instruídos, seguros e cujos esforços
eram orientados para o bem e para a verdade, transmitiu-lhes os poderes
não temporariamente, em sua presença, mas definitivamente, mesmo em
sua ausência183.
Sua mulher, pressionada e interrogada diante do Tribunal do Santo
Ofício em Roma, testemunhou que ele outorgara muitas vezes todo ou par­
te de seus poderes a seus discípulos e que ela própria havia recebido o
direito de trabalhar “pelo poder que ela recebera do grande copta”, mas
para certos discípulos apenas184. E esse poder, assim adquirido por alguns,
tanto era sua propriedade espiritual que eles próprios puderam delegar seu
emprego e o transmitir por sua vez a substitutos ou a sucessores, segundo
as ordens e os preceitos do mestre185.
Enfim, sobre a própria forma das revelações, das manifestações, sobre
a natureza dos conhecimentos assim obtidos, Cagliostro ministrou por meio
da ação — e com que sabedoria! — ensinamentos que passaram desperce­
bidos de muitos de seus discípulos, sem dúvida, que os críticos também

182. Vie de Joseph Balsamo, p. 147, 148, 153. — De Recke. Op. cit., p. 89.
183. Vie de Joseph Balsamo, p. 138, 151, 179.
184. Vie de Joseph Balsamo, p. 178.
185. Saint-Martin certifica essa transmissão eficaz de poderes na Loja egípcia de Lyon.
Correspondência de Saint-Martin e Kirchberger. 73° carta, p. 205. A Carta de M. Brice de
Beauregard, que reproduzimos mais adiante, é uma outra prova. Vie de Joseph Balsamo,
p. 134, 198 cita provas autênticas.
não observaram, já que a atração do bizarro, do fantástico tomava a frente
de todo o resto na maioria dos homens, mas que nós temos o dever de fazer
notar.
O saber não é a erudição: o verdadeiro conhecimento é de ordem
pessoal e não necessita da intervenção de um outro espírito humano, ele­
mentar ou angélico186, e menos ainda de um desdobramento qualquer de
procedimentos e rituais. Cagliostro encontrava em si esse conhecimento
direto, demonstrava a sua realidade através de sua clarividência e suas
profecias; poucas pessoas o compreenderam; talvez mesmo não tenha
havido ninguém. Ainda se busca alguma fórmula misteriosa, silfo, diabo
ou anjo que explique Cagliostro. Não se pode admiti-lo sem um espírito
familiar.
E, todavia, esses fatos de clarividência direta foram numerosos; os
contemporâneos nos falaram deles; a Sr3 de Recke anotou alguns187.
O anúncio da morte de Maria Teresa feito em Estrasburgo, no mo­
mento em que ela ocorria em Budapeste, é uma anedota bem conhecida188.
O Sr. de Laborde, coletor geral, conta, em suas Lettres sur la Suisse,
uma história ainda mais impressionante acerca das revelações e das predi-
ções que ele fez em Varsóvia a uma jovem dama da corte189.
Tais são os fatos; o discípulo, que seguira Cagliostro em suas pro­
gressivas demonstrações, era então forçado a concluir da realidade dos
fenômenos, da possibilidade de conhecimentos que ultrapassam em muito
o domínio da ciência oficial. Além disso, ele era logicamente levado a
rejeitar as formas exteriores como inúteis, a constatar que tudo dependia
unicamente da presença espiritual e da vontade de Cagliostro, em quem se
afirmavam um saber e um poder ilimitados. Ora, o mestre declarava: “Todo
ser que queira seguir a estrada com energia e paciência obterá os mesmos
poderes; pois Deus tudo deu ao homem190”. Ele portanto não tinha mais de
procurar outros caminhos.

186. “Há, no Egito, respondeu Cagliostro ao maçom Satzmann que o interrogava, Lojas
em que se trabalha com espíritos e outras em que há apenas homens. ” Carta de Saltzmann
a Willermoz, de 31 de dezembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut.
187. Cagliostro indicou com exatidão os sintomas que a SE de Recke, ausente, sentia, o
trabalho que fazia e mesmo a posição em que estaria quando entrassem em seu quarto.
(Op. cit., p. 71). Em outra ocasião, ele lhe revelou os pensamentos secretos que ela tinha
no momento em que falava de outra coisa. (Ibid, p. 78). Anunciou numa noite que M. N.
N. cairia doente na noite seguinte, sofreria de tais e tais sintomas, chamaria tal médico, o
que se mostrou absolutamente exato (Ibid, p. 87). Traçou, diante de M. de Medem, o mapa
de uma floresta situada em Wilzen, em que jamais havia estado, mas bem conhecida de
M. de Medem, indicando-lhe as trilhas e até a forma de certas árvores. (Ibid., p. 58).
188. D’Oberkirch. Mémoires. T, I e cão. VII.
189. A narrativa detalhada está mais adiante.
190. De Recke. Op. cit., p. 117, 120, 131.
E o que opor a isso? Certo, mesmo no tempo de Cagliostro não falta­
vam céticos: velhacaria, hipocrisia, ilusão, acaso, tudo isso foi dado como
explicação191.
Mas que se observe e reflita e será fácil ver que essas interpretações
não merecem ser discutidas. A multiplicidade dos fatos, sua autenticidade,
as condições especiais em que eles se produziram e sobretudo a veracidade
das revelações, com freqüência proféticas, afastam qualquer idéia de ilu­
são. A prestidigitação pode imitar qualquer fato natural, deslocar uma mesa,
iluminar um quarto; jamais iluminará um cérebro. Diante de quase todos
os fatos novos da ciência, não se alegou a patifaria? Quando se apresen­
tou o fonógrafo à Academia das Ciências, um dos sábios mais eminentes
não o acusou de ventríloquo? Um acaso sempre exato, uma ilusão sempre
verdadeira, não se chamam mais acaso nem ilusão. A clarividência de
Cagliostro e a transmissão que ele fez de alguns dos poderes aos discípulos
são fatos indiscutíveis.
Magnetismo — disseram e dizem ainda certos críticos. Cagliostro
não fazia magnetismo192: um discípulo de Cagliostro, que ainda vivia em
1850, escreveu, assunto uma carta muito interessante a respeito do pouco
conhecida, que fazemos questão de reproduzir aqui, pois confirma absolu­
tamente a verdade da tese que sustentamos.

191. A Stf de Recke, em seus comentários, desenvolve todas essas falsas interpretações:
a hipótese de uma comédia representada pela criança não se sustenta, como já demons­
tramos. Cagliostro tomava quem ele queria, na hora, como tema. A Sr. “de Recke pre­
tende, em outro trecho, que Cagliostro escrevia sobre o pergaminho talismânico as
respostas que a criança deveria dar, esquecendo que ela mesma reconhece (p. 80) que a
criança não sabia ler e que as questões eram feitas pelos assistentes, depois de a colomba
ser fechada no tabemáculo. De resto, essa clarividência, esse desenvolvimento de um
olho mágico, como o chama Gichtel (Theosophia practica, IV, 10, 18, 28) conhecida em
todos os tempos (Atos dos Apóstolos, XXI, 9: XVI: 16. Mateus, VI: 22) foi negada
apenas nas primeiras horas da crise positivista que grassou até o meio do século XIX e,
em nossos dias, em que a ciência é menos presunçosa por ser um pouco mais bem
informada, os casos de telepatia, de psicometria, de lucidez, são fatos correntes cuja
existência não é mais discutida. As suspeitas de patifaria, para explicar o desconheci­
do, parecem-nos infantis; e o livro da Si? de Recke, inteiramente composto de coisas tão
vãs, teria sido tão insignificante quanto o libelo do conde M. ou do Sr. Motus, se não
contivesse, muito felizmente, o texto primitivo de seu diário.
192. Cagliostro estava em Bordeaux em 1783 no momento em que o padre Hervier
propagava pela palavra e pela ação a ciência do magnetismo, pregando em plena
catedral essa doutrina nova. O padre Hervier, esse magnetizador reputado, tendo
querido travar uma luta de poderes com Cagliostro para demonstrar que a ação do
taumaturgo era puramente magnética e se incluía na categoria dos fatos que ele pra­
ticava, foi publicamente derrotado e recebeu nessa ocasião, de toda a sociedade
mesmeriana, a repreensão merecida por sua imprudência. Figuier. Histoire du
merveilleux, t. IV, p. 26.
Cahagnet, tendo citado em seu jornal, Le magnétiseur spiritualistem,
o Sr. Brice de Beauregard, um amigo, diz ele, que se servia de espelhos
mágicos compostos de um globo de água clarificada que ele influenciava e
fazia influenciar por espíritos, que em seguida vêm escrever a resposta aos
videntes, e tendo-o comparado aos outros magnetizadores (Morin, etc.) e
aos cristalomantes antigos, recebeu a seguinte resposta193194:
“Senhor,
Li com interesse em seu excelente jornal um artigo relacionado aos
espelhos mágicos, em que encontrei meu nome junto ao do Sr. Morin.
Da leitura atenta de seu artigo resulta, se não me engano, que as pes­
soas seriam levadas a crer que, como consequência dos sucessos obtidos em
gastromancia (sic?) por Cagliostro, o conde de Laborde e o barão Dupotet,
eu comecei a trabalhar em um caminho diferente. A verdade está longe de
ser esta.
Em setembro de 1827, fui iniciado nos mistérios de Cagliostro por
um de seus discípulos que o conhecera e que recebera a iniciação do pró­
prio Grão-Mestre. Desde aquela época, eu fiz e faço ainda, todos os dias, o
que o próprio Cagliostro fazia.
Eu penso que, na Europa, apenas eu possuo seu segredo acerca desse
assunto, pois todos os discípulos estão mortos e o levaram consigo à tumba.
Desde 1827, não encontrei nem um só homem que o soubesse: encontrei,
às centenas, homens cuja imaginação se dispersa ao emitir novas teorias,
mas nem um único praticante da antiga escola.
Que o Sr. du Potet não venha dizer que descobriu a magia: muito
tempo antes dele, em 1827, eu sabia muitas coisas referente a essa ciência
e produzia fatos que ele ignora e que talvez sempre ignorará.
O Sr. Morin simplificou bastante essa experiência, o senhor diz. Eu
nego isso. O Sr. Morin, que não tenho a honra de conhecer nem pessoal, nem
nominativamente, não podería simplificar algo que ele não conhece ou que
só conhece imperfeitamente por intermédio do relato de intrigantes que lhe
falaram de mim, gabando-se de saber tudo sobre meu segredo.
Não confundamos as coisas, senhor gerente: a vidência não é o sonam-
bulismo e o teurgo não é o magnetizador; o senhor o diz e concorda com isso
de boa-fé. Mas eu faço magnetismo que chamo de angélico, o que é bem
diferente. Aqui, refuto a comparação com o Sr. Morin e declaro formalmente
que nada há de comum entre nós; não professamos a mesma arte nem a
mesma doutrina.
Nisso posso ser acreditado. Há trinta anos que sou recebido na Socie­
dade de Magnetismo de Paris, fundada pelo marquês de Puységur, há trinta
anos que faço magnetismo no interesse da humanidade...; é-me permitido
ter uma opinião e dizer: isso é magnetismo ou não é.

193. Segundo ano, 1850, n.° 8, p. 204.


194. Publicada no mesmo jornal, mesmo ano, p. 342.
Mas voltemos a M. Morin. Tudo o que ele faz é magnetismo vulgar e
o que fazia Cagliostro era vidência, o que o senhor chama magnetismo
espiritual por falta de conhecer a palavra apropriada. Gostaria de ouvir a
opinião de M. Morin a respeito visão beatífica195.
Queira aceitar...

Conde Brice de Beauregard,


Secretário-Geral da Sociedade de Magnetismo de Paris.
Belleville, 25 de junho de 1850”
Figuier notou muito bem: Cagliostro reúne em si os prodígios de to­
dos os seres excepcionais: taumaturgos, curadores, alquimistas, sem per­
tencer a nenhuma dessas classes em particular. Não fala de nenhum fluido,
não proclama jamais sua arte, mas também não a disfarça sob nenhum
aparato e se contenta em produzir resultados que somos ainda mais força­
dos a admirar porque a causa deles permanece desconhecida196.
Essa potência que dominava os espíritos, comandava a vida e curva­
va a matéria sob suas leis, esse saber para o qual tudo estava presente, que
se os chamem pelo nome que se quiser; desde que ele seja novo, consinto
nisso. Mas que não lhes dêem uma etiqueta que já sirva a alguma casa mal
definida de uma classificação artificial das ciências humanas.
Seduzimo-nos com freqüência por palavras vazias: acreditávamos ter
dito alguma coisa, em 1830, quando falávamos de lucidez sonambúlica ou
de magnetismo animal. Hoje nossos sábios críticos explicariam Cagliostro
como hipnose, sugestão, exteriorização da motricidade e se declarariam
satisfeitos. Que vã e vazia logomaquia! Mudamos de linguagem; é tudo; o
segredo do espírito nos permanece assim oculto. A menor profecia, a me­
nor das curas de Cagliostro continua igualmente pouco explicável em nos­
sos dias, mesmo pelo polígono do Sr. Grasset, quanto era em sua época
pelo fluido mesmeriano ou cinqüenta anos após pela mediunidade dos es­
píritos.
Que se note bem: não havia, nas obras de Cagliostro, nem superstição,
nem prática estrita relevando de um magnetismo, de um espiritismo ante­
cipado, de uma magia cerimonial errônea e degradante para o espírito hu­
mano. Nada que não fosse seguro, total, indefinidamente extensível. Par­
tindo das idéias em voga, com a linguagem da época e do meio em que ele
operava, ele levava pouco a pouco os espíritos a pensar apenas na regene­
ração do homem, a só concentrar seus esforços sobre o aumento de poder e
de dignidade de sua alma, ensinando-lhes que, por maiores que sejam as

195. É o nome empregado pelo próprio Cagliostro; foi o que ele disse a seus juizes em
Roma. Ver Vie de Joseph Balsamo, p. 190-191.
196. Figuier. Histoire du merveilleux. Paris, 1861, t. IV, p. 119.
maravilhas que o homem podia perceber, se tivéssemos diante de nós os
próprios anjos, os sete grandes anjos que estão diante da face de Deus,
“não tínhamos de adorá-los, mas de dizer-lhes para adorar com os irmãos197”;
que, no mundo dos espíritos, o homem deve, ou não penetrar, ou falar como
mestre, mas jamais suplicar ou se abaixar, “pois foi feito à imagem e seme­
lhança de Deus; é a mais perfeita de Suas obras; Ele lhe confiou o direito
de comandar e dominar as criaturas imediatamente abaixo dele198” e que,
para tudo isso, não havia enfim necessidade nem de luminárias, nem de
hieróglifos, nem de fórmulas mágicas, que bastava “um coração puro e
uma alma forte, amar, fazer o bem e esperar199.
Essas são as belas e grandes lições que Cagliostro deu na Curlândia,
e concebemos o entusiasmo que ele deve ter erguido em tomo de si: sua
autoridade era tão grande que, se ele quisesse empregá-la para conquistar
um reino, a Curlândia seria dele. O autor da Vie de Joseph Balsamo preten­
de que lhe tenham oferecido secretamente o trono e que, se ele recusou, foi
apenas por medo das consequências200.
Essa frase, escrita para os príncipes e destinada a justificar ante seus
olhos a condenação de um aventureiro temível, jamais foi pronunciada por
Cagliostro; ele afirmou sem dúvida que, se tivesse querido tomar-se rei,
isso só dizia respeito a ele próprio; mas acrescentou também que rejeitara
essa idéia porque esse não era seu caminho e que era preciso respeitar a
ordem estabelecida e o soberano de cada país201.
O autor da Vie de Joseph Balsamo, podemos ver, mais uma vez desfi­
gurou as palavras e os atos de Cagliostro, e o tradutor de sua obra, por mais
hostil que seja, não se pôde impedir de protestar contra essa insinuação.
E verdade que ele adquirira a veneração de um grande número de
curlandeses e que toda a nobreza viera a ele202.

197. Ritual da maç.’. egípcia,/?. 40 — Vie de Joseph Balsamo, p. 186. Frase que Gichtel
teria compreendido, mas que escandalizou Lavater: “Preste atenção, meu caro, no que
diz respeito aos sete espíritos de Deus. Se o último dos últimos dos servos do último dos
anjos me houvesse dirigido uma palavra, que homem eu não seria! A pretensão é enorme,
como se quiséssemos trazer o sol no bolso como a um relógio". Carta a Sarrasin.
Langmesser. J. Sarrasin. Zurique, 1899, p. 41.
198. Ritual da maç.-. egípcia, p. 40
199. Ritual da maç.’. egípcia, p. 40. “Entre nós, disse a SE de Recke, Cagliostro une com
muita exatidão a religião à magia e à Maçonaria. " Op. cit., p. 14 e Ibid., p. 31, 35, 119.
200. Vie de Joseph Balsamo, p. 46. “Ele próprio o reconheceu ”, diz o autor.
201. Foi o que ele declarou e ensinou sempre: Relatório do conde de Cagliostro contra o
procurador-geral, 1786, in-16, p. 6. — Ritual da maç.’. egípcia. Catecismo de mestre, p.
30, 44, 75. — Relatório contra Chesnon, in-4?, 1786, p. 37.
202. “Ele virara todas as cabeças na Curlândia. " Heyking. Le comte Cagliostro parmi les
Russes. Initiation. Agosto de 1898, p. 129.
A Loja, porém, permaneceu constituída como o fora no início. Fun­
dada pela Sf de Recke, a Sf de Kayserling, sua tia, e a Sr! de Grotthaus,
sua prima, ela compreendia o Sr. de Medem e seu irmão, o marechal, que
foi venerável; o Sr. de Medem de Tittelmunde, filho do precedente; o con­
selheiro áulico Schwander e o Dr. Lieb, o notário Hinz; o Sr. de Howen; o
major von Korff e, mais tarde, a sogra da Sf de Recke203. Os outros alunos
viam Cagliostro, ouviam-no falar em público, mas não assistiam aos traba­
lhos da Loja, que permaneciam secretos.
Durante as últimas semanas de sua estada, Cagliostro morou na casa
do Sr. de Madem204, consagrando todo o tempo à instrução de seus discípu­
los, sem praticar a medicina205.
Havia reuniões todas as noites, nas quais Cagliostro operava e falava.
A Sr! de Recke publicou em sua obra algumas páginas de notas tomadas
nesses cursos, notas confusas, com freqüência mal interpretadas, mas inte­
ressantes de se comparar com o Ritual da Maç:. Egípcia e os outros ensina­
mentos de Cagliostro. Em seu discurso de adeus, pediu-lhes insistentemente
que pensassem sempre nele, permanecessem fiéis, trabalhassem com ardor e
guardassem silêncio. Esta última recomendação foi feita mais especial­
mente à Si! de Recke: ele a renovou em particular206.
Sabemos como ela a seguiu.
Ao partir da Rússia, a Si! de Recke escreveu a Cagliostro “uma carta
que ele ainda guarda, diz ele, mas que só mostrará se a condessa o autorizar
e na qual ela lhe assegura não apenas de sua afeição, mas de seu respeito207.”
Esses sentimentos, que eram os mesmos de todos os discípulos na
Curlândia, sobreviveram à sua partida; eles lhe escreveram, e ele lhes res­
pondeu em diversas cartas208.
Mais de um ano depois, eles ainda defendiam Cagliostro contra os
maledicentes209; todos, sobretudo a Si! de Recke, esperavam-no em sua
volta de São Petersburgo210, na esperança de que ele se fixaria em Mitau,
onde conquistara simpatias respeitosas. Mas depois que a Sf? de Recke

203. De Recke. Op. cit, p. 7-8-25, 105 e note V, p. 35.


204. De Recke. Op. cit., p. 92.
205. De Recke. Op. cit., p. 105. Em 10 de abril de 1779, a Loja recebeu de Cagliostro o
último Grau iniciático que ele devia lhes dar. Ibid., p. 33. Nota V.
206. De Recke. Op. cit., p. 105-112.
207. Lettre au peuple anglais, in-4?, p. 65. Isso foi escrito em 1787 para responder ao
alvoroço feito por Morande sobre um artigo hostil a Cagliostro, publicado pela Sd de
Recke na Berliner Monastschrift (maio de 1786, p. 395). Mas Cagliostro fazia em vão
apelo à fidelidade da Sr? de Recke; ela já traíra suas antigas promessas.
208. De Recke. Op. cit, p. 146.
209. De Recke. Op. cit., p. 177-180. Eles haviam sido ridicularizados mesmo em Mitau e
tiveram de sustentar alguns ataques em seu próprio mundo. Op. cit, p. 33.
210. Como ele lhes havia feito esperar. De Recke. Op. cit., p. 142.
mudou de sentimentos, todos a imitaram. Eis em quais circunstâncias ocor­
reu essa reviravolta brusca e total:
Em 1782, a Sd de Recke, já decepcionada nas esperanças que forma­
ra em uma assombrosa revelação de Cagliostro em São Petersburgo211, já
magoada por haver visto Cagliostro ir a Varsóvia em lugar de voltar à
Curlândia, encontrou em São Petersburgo o príncipe Poninski. Ele acabara
de hospedar Cagliostro por um mês e, muito encolerizado contra seu hós­
pede, disse à Sd de Recke as piores coisas referente a seu “homem dos
milagres”. Para ele, suas transmutações eram apenas patifaria; suas evoca­
ções, comédias; sua profecias, conhecimentos secretos, mas muito natu­
rais, dos homens e das coisas. Embora Poninski tivesse má reputação212,
essas declarações perturbaram a Sr! de Recke. De volta a Mitau, ela come­
çou a repassar suas lembranças, buscando em cada fato uma explicação
“científica”213, material.
Pouco a pouco, suas convicções antigas se esfacelaram; os céticos
Hinz, Schwander, ajudaram-na ativamente nisso. Interrogaram a criança
que, inconsciente de seu estado segundo214, facilmente sugestionável sob a
influência de seu ambiente, por medo e por interesse, deu respostas que
confirmavam as dúvidas de seus interrogadores. No final, a opinião de
Poninski tornou-se o sentimento geral: eles haviam sido enganados! A lei­
tura do Cagliostro demasqué à Varsovie, que o autor enviou à Sf! de Recke
em 1786215 com outros panfletos análogos216, aumentou seu ceticismo. Ela
escreveu a Estrasburgo, onde Cagliostro se encontrava, querendo saber o
que ele fazia e o que pensavam disso. O homem que lhe forneceu essas
informações, o teólogo Laurent Blessig, contou-lhe todos os rumores que
corriam, sobretudo os maus, e foi esses que ela registrou de preferência.
Porém ela ainda hesitava; vira muitas coisas; não encontrava em si nem em
torno de si razões suficientes para tudo rejeitar nem meios para tudo expli­
car217.
A influência de Nicolai, que conheceu durante uma viagem posterior
à Alemanha218, triunfou sobre seus últimos escrúpulos: ele soube transformar

211. De Recke. Op. cit., p. 10.


212. Carta de Saltzmann a Willermoz de 22 de novembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut.
213. “A buscar o porquê do porquê”, segundo as palavras de Cagliostro, que queria
preservá-la dos perigos dessa falsa rota. De Recke. Op. cit., p. 45
214. Cagliostro os prevenira. Ver mais anteriormente. Cf: De Recke. Op. cit., p. 102
215. De Recke. Op. cit, p. 10
216. Les Mémoires authentiques, entre outros. A SE de Recke reconheceu aí as falsidades
naquilo que ela sabia, mas aceitou as calúnias naquilo que ignorava. De Recke. Op. cit,
p. 20.
217. “Ele nada nos prometeu que não tenha cumprido em aparência ". De Recke. Op. cit.,
p. 10.
218. De Recke. Op. cit., p. 9, 156. A SE de Recke se rodeou então de racionalistas ale­
mães, de “filósofos” franceses de espírito novo, inimigos de toda religiosidade e mesmo
de toda metafísica. Seu livro foi editado e prefaciado por Nicolai.
seus remorsos em rancor e seu afastamento em ódio. Foi então, sete anos
após os acontecimentos, 1776, que Nicolai e seus amigos convenceram a
condessa a publicar contra o Grão-Mestre da Maçonaria egípcia. Primeiro,
uma nota hostil que foi publicada no Berliner Monatschrift, em maio de
1776; depois, uma obra em que, perseguindo Cagliostro com suas difama­
ções, ela o acusava de patifaria e de ignorância e o denunciava a todos
como um perigoso emissário dos jesuítas.
Podemos ver que não era sua impressão pessoal o resultado das ob­
servações que ela publicava (essas notas, em louvor a Cagliostro, consti­
tuíam o texto primitivo de seu diário em 1779), era uma declaração violenta,
uma dissertação cheia de suposições maldosas, interpretações desfavorá­
veis, reunindo os escárnios de um polonês gozador, a opinião de um teólo­
go de Estrasburgo, as críticas acerbas de publicistas alemães contra tudo o
que cheirava a misticismo.
Tal é a gênese desse livrinho em que a Sr? de Recke renega seu mestre
e amigo.
O conde de Cagliostro não ignorava, quando estava em Mitau, que a
Sit de Recke teria de sofrer os ataques da dúvida e mesmo, talvez, previa
que ela sucumbiría. Uma primeira vez ele lhe disse: “Tome cuidado, quan­
do eu não estiver mais aqui, em querer buscar sempre o porquê do porquê.
A curiosidade, a vaidade e o espírito de dominação podem ter como conse-
qüência a infelicidade até a milésima geração... Se não é apenas o desejo
de fazer o bem que a leva ao misticismo, eu lhe peço, não vá mais longe219.”
Uma segunda vez, na véspera de sua partida, em Altauz, ele a preve­
niu novamente e de modo magistral: durante a última cerimônia realizada,
Cagliostro repentinamente mandou a Si? de Recke sair de seu lugar e a
levou ao círculo em que ele estava, olhando-a gravemente; depois pergun­
tou à criança o que via em seu tabernáculo.
“O pequeno respondeu que eu estava de joelhos diante de Cagliostro
com um relógio na mão (era exato); depois um espírito com uma longa
veste branca, uma coroa de ouro na cabeça e uma cruz vermelha sobre o
peito apareceu a ele. Cagliostro pediu à criança que lhe perguntasse seu
nome. A criança o fez; o espírito se calou.
Após um momento, Cagliostro disse: e então? O espírito não lhe dis­
se seu nome?
A criança: não.
Cagliostro: por quê?
A criança: Porque ele esqueceu220.
Cagliostro pareceu emocionado. Fez alguns gestos, encolheu-se, pro­
nunciou algumas palavras que a Si? de Recke não compreendeu, depois a
sessão continuou. Quando terminou, Cagliostro disse a seus discípulos:

219. De Recke. Op. cit, p. 46, 47, 48.


220. De Recke. Op. cit, p. 106.
“Um de vocês será para mim um Judas que me trairá e tentará me
fazer mal; descobri esse triste acontecimento no momento em que o espíri­
to se calou e nos ocultou seu nome. Não lhes direi o quanto meu coração
sofre com essa descoberta e não temo por mim, mas pelo infeliz que será
meu traidor... Lamentarei e chorarei sua queda, mas não poderei intervir
em seu favor. Mas vocês todos orem comigo, orem por ele, orem igualmen­
te por mim221...”
Mas esses avisos tão claros, tão precisos, foram, como seus ensina­
mentos, incompreendidos pela Sd de Recke.

São Petersburgo
Foi em pleno sucesso que Cagliostro deixou Mitau: sua Loja funcio­
nava bem; pessoas no melhor nível disputavam a honra de ser seus discípu­
los. Esse entusiasmo dos curlandeses, longe de lhe fazer prolongar sua
estada em Mitau, foi, ao contrário, a causa ocasional de sua partida222.
A Corte brilhante de Catarina II, a potência nascente do império rus­
so atraíam os nobres da Polônia e da Curlândia. Mitau não era São
Petersburgo: ali apenas, na capital, as ambições tinham a chance de se
realizar. E que sucesso maior se podia esperar senão levar à imperatriz um
ser poderoso, conselheiro sem igual, protetor no visível e no invisível? Isso
não seria garantir ao mesmo tempo o reconhecimento da grande Catarina e
o do grande Cagliostro? Aquele que tivesse essa vantagem podia certifi-
car-se da fortuna terrestre e das graças do Céu.
A imperatriz se interessava pela Maçonaria: “Que pensem o que
quiserem de Catarina II sob o ponto de vista da moralidade e do senti­
mento, escreveu um historiador223, que a julguem severamente sobre es­
ses dois pontos, ela não deixará de ter o espírito de um homem de Estado
e uma grande superioridade intelectual. A França tinha o monopólio da
cultura, personificada em homens como Montesquieu, Voltaire, Rousseau,
Diderot, d’Alembert, Grimm. Será que podemos nos espantar de que
Catarina estudasse suas obras com paixão? Mas seu espírito esclarecido
reconheceu imediatamente a impossibilidade de utilizar de forma prática
para seu povo as idéias sugeridas por suas obras. O materialismo, o ateís­
mo, as tendências democráticas subversivas que surgiam nessa filosofia
só podiam ser perigosos para um povo tão imaturo quanto o russo. Para a
educação deste último, ela necessitava de apoios seguros e estes se apre­
sentaram no momento exato em que ela os buscava em torno de si: eram

227. De Recke. Op. cit., p. 777.


222. Cagliostro partiu no fim de maio de 1779 para São Petersburgo; em 13 de maio
ainda estava em Mitau. De Recke. Op. cit., p. 146. Cf. Ibid., p. 25.
223. O Dr. Friedrichs, professor no Corps des Cadets, em seu interessantíssimo livro La
franc-Maçonnerie en Russie et en Pologne. Paris, Dorbon-Ainê, 1908, in-16, p. 32.
os maçons. Os maçons que acabavam de se estabelecer na Rússia faziam
em suas Lojas uma guerra encarniçada contra o ateísmo e a imoralidade
pregada pela filosofia francesa, substituindo-os por uma fé pura na Di­
vindade, fé não cerceada pelos dogmas; exigiam, além disso, de seus
partidários, o reconhecimento direto e fiel às autoridades superiores do
Estado. Cultura das artes e das ciências, melhora da educação popular e
da saúde pública: era o programa de Catarina e o ideal da Maçonaria.
Então eles não lhe deveriam ser simpáticos? Foi assim que ela concedeu
a proteção que eles pediam”224.
Nenhum homem podería ajudar mais efetivamente na extensão da
Maçonaria do que o grande Copta; sem dúvida ele seria um auxiliar pre­
cioso para a imperatriz, e ela o apreciaria. Convenceram Cagliostro a par­
tir; isso não foi difícil: nada mais o retinha naquele lugar. O conde de Ca­
gliostro aparecera: ele penetrava no mundo dos espíritos, dava ordens ali,
recebia homenagens de lá: Grão-Mestre da Maçonaria verdadeira, socorria
sobre a terra todas as misérias, almas inquietas, corações dolentes, corpos
presos do mal físico. Foi assim que o anunciaram em São Petersburgo.
Ele foi encaminhado ao barão de Heyking225: apesar da calorosa
carta de recomendação que trazia do Sr. de Howen, Heyking o recebeu
com o desdém de um homem de alto nível por um “homem do povo sem
qualquer verniz de literatura226.”
Fora prevenido contra ele: Heyking, alemão de raça e de tendências,
representava na Maçonaria o partido autocrático da grande Landes-Loge
de Berlim227, já rival das Lojas inglesas e do sistema sueco que se desen­
volviam na Rússia; não apenas ele não gostaria de Cagliostro como ho­
mem, mas ainda temia nele um adversário político perigoso. Cagliostro
veio a ele fratemalmente e não escondeu, desde o início, ter percebido sua
desconfiança e sua hostilidade.
“Eu lhe perdoo, disse-lhe, sua incredulidade e sua ignorância, pois
você não passa de um novato na Ordem, apesar de todos os seus títulos
maçônicos. Se eu quisesse, fa-lo-ia tremer.
— Sim, se você me der febre, replicou Heyking.
— Eh! O que é a febre, para o conde de Cagliostro que comanda os
espíritos?228”

224. Em 1763, Catarina se declarou protetora da Ordem.


225. Henri-Charles, barão de Heyking, nascido na Curlândia em 1751, morto em 1809,
fez seus estudos na Alemanha e se alistou a serviço da Prússia. De volta à Rússia, em
1779, era major dos couraceiros da guarda. Desgraçado mais tarde, sob Alexandre I,
teve de se aposentar em Mitau.
226. Heyking. Mémoires; fragmento citado na Initiation, agosto de 1898, p. 129.
227. Cf: Os Ensinamentos Secretos — Precedidos de Informação a respeito do martinesismo
e do martinismo, de Franz von Baader, Madras Editora.
228. Heyking. Op. cit.., p. 131.
A conversa prosseguiu, Heyking sempre malicioso, Cagliostro sem­
pre paciente. Como todo belo espírito dessa cidade que copiava Paris, o
barão se gabava de “sadios” conhecimentos científicos229 e de ceticismo
elegante: duas causas que impediam qualquer contato com Cagliostro.
Da Maçonaria passaram à química: Heyking esbanjava sua sabedo­
ria, querendo dominar também nesse tópico seu interlocutor. Eis a conver­
sa, segundo as lembranças de Heyking:
“A química é uma besteira230 para aquele que possui a alquimia, e a
alquimia nada é para um homem que comanda os espíritos. Para mim, te­
nho ouro (batendo nos ducados que tinha no bolso), tenho diamantes (mos­
trando um anel de diamantes negros e mal engastados)231, mas desprezo
tudo isso e ponho minha felicidade no império que exerço sobre os seres
que formam a classe acima dos homens.”
Não pude deixar de sorrir. “Não me irrito”, disse ele, “com sua in­
credulidade; pois você não é o primeiro espírito forte que subjuguei e pul­
verizei232. Qual de seus parentes mortos você quer ver?
— Meu tio, mas com uma condição.
— Qual?
— Dar um tiro de pistola no lugar em que ele aparecer. Como não
passa de um espírito, não posso lhe fazer nenhum mal233.
— Não! Você é um monstro! Jamais lhe mostrarei nada; você não é
digno disso!”
Cagliostro se ergueu da mesa de supetão e saiu bruscamente, como
indignado. A condessa tremia, pois conhecia o poder de Cagliostro: ela
mensurava o quão temerária fora a insolência do barão. Mas ela ignorava
uma coisa, sendo mulher de Cagliostro; era que, nele, as cóleras não eram
daquelas que advêm ao sabor dos acontecimentos, dominam a alma, pos­
suem o indivíduo; Cagliostro só se enfurecia quando tinha vontade; Caglios­
tro não se vingava.
Ele voltou, alguns instantes após, sorridente, amável, como se nada
houvesse acontecido, e disse simplesmente: “Vejo que você é corajoso:
isso é bom. O tempo o fará conhecer o conde de Cagliostro e seu poder.” E

229. Heyking. Op. cit.., p. 131. As sadias noções químicas da época!


230. Uma infantilidade. É preciso levar em conta, nesta narrativa, que o diálogo foi
em italiano e que foi um curlandês que o traduziu e publicou. Cf: Heyking. Op. cit..,
p. 131, 132.
231. Isso não é muito verossímil após tudo o que se disse acerca dass jóias esplendorosas
de Cagliostro.
232. “Che ho soggiocato e sminuzzato. ” Estesforam os termos de Cagliostro; Heyking disse
ter escrito imediatamente esta conversa ao voltar da casa de Cagliostro. Heyking. Op. cit.,
p. 132.
233. Heyking se apressava em justificar, com sua tolice, o julgamento de Cagliostro de
que ele não passava de um menino ignorante.
a partir daí não falou mais do mundo espiritual ao Sr. de Heyking, a quem
reviu muito poucas vezes234235
.
Cagliostro encontrou melhor acolhimento junto a outros personagens:
o cavaleiro de Corbéron, encarregado dos negócios da França na Rússia233,
pressentindo nele um mestre, conquistado desde a primeira visita, o apre­
sentou à Corte. O tenente-geral Mélissino, hermetista e divulgador de um
Rito maçônico que leva seu nome, o general Gelacin, o príncipe Potemkine236
se tomaram seus adeptos, rodearam-no e não mais o deixaram. Alguns,
como Mélissino, interrogavam-no a respeito da Maçonaria. Eles entreviam,
em sua escola, a verdadeira base e o objetivo dessa associação: os traba­
lhos, em vez de serem fúteis cerimônias, pequenas festas mundanas, se
revelavam de repente em sua realidade teúrgica: a regeneração do homem,
tal é o objetivo; a ajuda espiritual, tal é o meio maravilhoso.

234. Foi o barão Heyking quem lhe suscitou alguns inimigos na corte, entre outros o
conde de Goertz, enviado do rei da Prússia, “personagem altivo que não se dignava a
falar com ninguém’’. Mémoires de la margrave d’Anspach. P. Bertrand. 1826, 2 volumes
in-8?, t. I. p. 232.
235. Marc-Daniel Bourrée, cavaleiro de Corbéron em 1775, barão em 1781, nascido em
15 de julho de 1748 em Paris, representou um papel muito importante em 1779 nas difí­
ceis rixas com a Turquia. Muito estimado como diplomata, ele era além disso temido por
seu espírito cáustico e seu caráter intratável. Recebido maçom em Paris, Iniciado do
sétimo e último Grau do Rito de Mélissino, era um espírito vivo, curioso, um coração leal,
uma alma sensível, mas sujeita a todas as paixões mundanas. Ele amava Cagliostro,
protegeu-o abertamente na Rússia, permaneceu muito ligado a ele. Suas crenças, sua fiel
amizade por Cagliostro fizeram com que a imperatriz lhe chamasse determinado observa­
dor de espíritos. A influência de Cagliostro, em voltar seus pensamentos para temas mais
elevados, metamorfoseou-o. Seu historiador, o Sr. Labande, notou o fato sem perceber a
causa: citou acerca do assunto uma carta de Corbéron que se ressente com essa transfor­
mação inciática:“O barão de Corbéron aceita sua desgraça (1784) com uma resignação
que sua fervente juventude não teria conhecido”. “Durante a duração de meus fracos
serviços, escreveu ele, se eu tive zelo, lealdade e desprendimento, o amor pela glória
disfarçava em mim um sentimento de orgulho que eu tomava por grandeza de alma, e,
longe de cumprir as funções de que eu era encarregado apenas no espírito de fazer o bem,
tenho de me censurar por ter tido como objetivo minha reputação e de ter tirado vaidade
de meus sucessos, esquecendo de me humilhar diante do Senhor, o único a quem devemos
nossas qualidades e nossas virtudes. Esse juiz terrível, mas igualitário, esse pai severo,
mas bom, e mil vezes mais ainda, castigou-me mas muito docemente. Ele me puniu em
meu orgulho, em meu amor-próprio... Oh meu Pai, abençoa-o por mim e comigo. ” Journal
de Corbéron, prefácio, p. LXIII. O barão de Corbéron se casou em 1781 em Estrasburgo;
preso no Brumário ano III, escapou miraculosamente à guilhotina e morreu em Paris em
31 de dezembro de 1810. Cf; L.H. Labande. De Corbéron. Plon, 1901, 2 volumes, in-8?.
236. Carta de Saltzmann de 22 de novembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut. Alexandre
Potemkine, nascido em 1736 em Smolensk, general-chefe, primeiro-ministro e favorito
titular da imperatriz desde 1774, conquistou a Criméia e fundou Sebastopol. Morreu em
1791.
Outros, filósofos herméticos, descobrem em Cagliostro o adepto tão
longamente esperado, o único capaz de dirigi-los em meio às contradições
de todos os autores, de confortá-los sobre suas dúvidas. Ela não cita Le
Trévisan ou Geber; não, o conde de Cagliostro não repete as lições dos
alquimistas antigos: ele olha no laboratório da natureza e responde a quem
o interroga: “Eis como deve se fazer o que você procura; eis o que faltava
a seu trabalho237”.
Quando não queria responder ele mesmo, fazia interrogar uma crian­
ça em sua presença, como na Curlândia. Fosse hieroglífico, hermetismo,
busca no passado, previsão do futuro, conselho para o presente, seres espi­
rituais apareciam ao paciente e respondiam à interrogação feita.
Mas, mais ainda que os sofrimentos espirituais, que as curiosidades
intelectuais, são as doenças físicas que perturbam os homens e os fazem
buscar avidamente o socorro e a cura. Se Cagliostro não houvesse pensado
em exercer a medicina, teriam-no forçado a isso. Seu saber, seu poder
não eram imensos? A experiência cotidiana o provava: havia mais servi­
dores no mundo dos espíritos238 do que a imperatriz tinha súditos em todas
as Rússias: de que médico se podia esperar tanto, senão dele?
Os doentes acorriam: ele consolava, curava pobres e ricos com o
mesmo desinteresse. “Em São Petersburgo, começou a curar os pobres e
lhes dar dinheiro; nessa classe de infortunados, fornecer alimentos é curar,
porque é a fome que inicia a doença. Um homem, de classe remediada,
consultou o novo doutor: foi salvo; quis pagar, mas lhe devolveram seu
dinheiro239.”
Cagliostro, cada vez mais solicitado, ocupou-se, pela primeira vez,
de medicina sem interrupção. Porém, era apenas uma ocupação secundá­
ria: os trabalhos de laboratório, como ele os praticava, absorviam-no antes
de qualquer coisa.
As curas espantavam mais por se cumprirem freqüentemente em ca­
sos desesperados e sem a aplicação dos procedimentos médicos habituais.

237. Bode, em seu panfleto anônimo, confirma-nos que Cagliostro, em São Petersburgo,
ocupou-se de alquimia especialmente com o general G... (Gelacin), que trabalhava com a
água régia e com espiriteira, e com o príncipe Potemkine. De Corbéron declarou ao
autor, em 1781, que estava convencido do poder de Cagliostro, que ele o afirmava — o
que parece comprovar que ele tinha provas —, o que não impede o autor do libelo de
zombar disso sem qualquer outra discussão. Cf: Ein paar Trõpflein, p. 10.
238. Cf. Liber Memorialis. Trad, franç., p. 78.
239. Mémoires Authentiques, nova edição. Paris, 1786, in-8?, p. 12. "Não faltam charlatães
que operam gratuitamentel”, diz o autor do panfleto Ein paar Trõpflein, p. 8. Nessa mal­
dade, ao menos há a admissão de que o desprendimento de Cagliostro não entrava em
discussão mesmo entre seus inimigos mais encarniçados. Meiners disse a mesma coisa de
suas curas. "Curar não prova nada; todos os charlatães curam os doentes. ” Briefe über
Schweiz, t. III, p. 424.
Cagliostro curou um assessor de nome Ivan Isleniew, atingido por um cân­
cer aberto na região cervical, devido ao qual se havia perdido qualquer
esperança; ele traz o certificado dessa cura240. “Cagliostro curou em
Petersburgo o barão de Strogonof, que teve acessos de loucura provenien­
tes dos nervos, Guélaguine, a Srí Boutourmline, etc241.”
Ele usava poucos medicamentos, normalmente nenhum. Contenta­
va-se em pedir a cura ao Céu, interrogar as colombas em relação aos
casos que se apresentavam: às vezes ele mandava e o mal desaparecia.
Sugestão, diríam os espíritos superficiais; não conheço em toda a sua vida
médica um caso em que se possa supor que ele usou de sugestão; dou um
exemplo, que se passou justamente em São Petersburgo. “Na cidade de
Pedro, dito o Grande, um dos ministros da rainha dos russos tinha um ir­
mão que perdera a razão e se acreditava maior que Deus. Ninguém podia
resistir à violência de seu furor; ele gritava em altos brados, ameaçando
toda a terra e blasfemando o nome do Senhor. Estava em observação. E
esse ministro me suplicava que o curasse242.
Quando cheguei junto a ele, colocou-se imediatamente em furor e,
olhando-me com ferocidade, retorcendo os braços, pois estava amarrado
com correntes, parecia querer se lançar sobre mim. E berrava: ‘Que se
precipite no mais profundo dos abismos aquele que ousa aparecer assim
na presença do grande Deus, daquele que domina todos os deuses e os
expulsa para longe de seu rosto’. Mas eu, reprimindo qualquer emoção,
aproximei-me com confiança e lhe disse: ‘Vais calar-te, espírito mentiro­
so? Não me conheces, eu que sou Deus acima de todos os deuses e me
chamo Marte? E vê este braço no qual está toda a força para agir a partir do
alto dos céus até as profundezas da Terra. Vinha a ti para te tomar em
piedade e te fazer bem, e eis como me recebes, sem considerar que tenho o
poder de reparar, mas também o de reduzir a pó’ — e imediatamente lhe
dei tal bofetada que ele caiu no chão, de costas. Quando seus guardiães o
ergueram e ele se acalmou um pouco, ordenei que me trouxessem uma
refeição e comecei a jantar, proibindo-lhe que comesse comigo. E quando
vi que ele estava humilhado, eu lhe disse: ‘Tua salvação está na humildade,
estar desprovido de qualquer força diante de mim; aproxima-te e come. E,
depois de ele ter comido um pouco, subimos ambos em um carro e saímos
da cidade, às margens do Neva, onde os guardiães haviam preparado, sob

240. Ein paar Trõpflein, p. 12.


241. Journal de Corbéron de 2 de julho de 1781, t. II, p. 396. “Ele não cura todo mundo,
disse, aliás, Corbéron, mas a maioria ”. Manuscrito 3059 da Biblioteca de Avignon, p. 146.
242. É Cagliostro quem conta a história; deixemos de lado o estilo parodiado dos Evan­
gelhos no qual o autor do Liber Memorialis o faz falar e consideremos apenas o caso
médico de que se trata.
minhas ordens, um barco, e os quais estavam sentados na margem. Depois
de embarcarmos, começaram a remar e o barco avançou. Então, querendo
jogá-lo no rio, para que o terror brusco trouxesse a cura (havia pessoas
prontas para socorrê-lo), eu o segurei; mas ele me segurou com força e
caímos ambos na água, ele se esforçando para me segurar no fundo e eu,
acima dele, esmagando-o com meu peso; após uma luta que não foi nada
curta, consegui me soltar e saí da água a nado; ele, retirado pelos guardiães,
foi posto numa liteira. E após voltarmos e nos trocarmos, ele me disse: ‘Na
verdade, reconheço que és Marte e que não há força igual à tua, e serei
submisso a ti em todas as coisas’. Eu lhe respondí dizendo: ‘Nem tu és um
rival para o Eterno, nem eu sou Marte, mas sou um homem como tu. Tens
o demônio do orgulho e isso te enlouquece; eu vim arrancar-te esse espírito
do mal e, se quiseres te submeter a mim em todas as coisas, deves agir
como os mortais comuns. E desde então ele começou a se deixar tratar’ e
assim voltou a si aquele cuja razão se perdia em idéias delirantes243.”
Admitamos, aí, o uso da sugestão. Mas quando Cagliostro curou um
canceroso abandonado como Isleniew, ou quando se tratava de um doente
em plena febre, delirando em um leito de hospital, e que, de sua poltrona,
na casa de Potemkine, Cagliostro disse: “Neste mesmo instante, ordena­
mos que a febre ceda”, e uma hora depois, em uma visita ao doente, cons­
tatou-se que ele estava certo, penso que empregar para esses casos a pala­
vra sugestão seria extrapolar o sentido dos termos e dissimular, com má-fé,
sob uma aparente explicação, um fato profundamente perturbador.
O sucesso de Cagliostro em São Petersburgo foi muito grande244, isso
é indiscutível; mesmo seus detratores, que o acusam de mil infâmias em
Mitau e Varsóvia, nada encontraram para dizer contra ele na Rússia. O
ciúme dos médicos, prova de sua notoriedade, a cólera do médico inglês da
Corte, o Dr. Roggerson245, em particular, avançaram contra ele. E o que
prova esta história:
Um dia, o Dr. Roggerson, cego de fúria, veio à casa de Cagliostro
insultá-lo e provocá-lo: “‘Eu lhe respondí’, conta calmamente Cagliostro246:
‘Se viestes me provocar enquanto Cagliostro, chamo meus servidores e

243. Liber Memorialis. Trad, franç., sob o título L’Evangile de Cagliostro pelo Dr. Marc
Haven. Paris, 1910, in-16, p. 67.
244. O Sr. D’Almeras, que pretende o contrário sem provas, contentou-se em reproduzir
os sarcasmos de alguns panfletários e negligencia inteiramente as atestações positivas e
dignas de crédito que relatamos pouco antes. Cf: D'Almeras, Cagliostro, p. 163.
245. E não Rugenson ou Rogerson como escreveram autores mal informados (Vie de
Joseph Balsamo, p. 48). Cf. Journal de Corbéron, t. II, p. 372.
246. Narrativa feita por Cagliostro e publicada em: Liber Memorialis, trad, franc., p. 77.
A Gazette de Santé publicou a mesma história, resumida, em 1786. Cf. Figuier, Histoire
du Merveilleux, 1861, t. IV, p. 10.
eles vos atirarão pela janela; se me provocais enquanto médico, eu vos darei
satisfação como médico’. Assustado, ele respondeu: ‘É ao médico que pro­
voco’ . E com efeito eu tinha sob minhas ordens grande quantidade de servi­
dores. Então eu lhe disse: ‘Pois bem, não nos batamos com espadas, tomemos
as armas dos médicos. Engolireis duas pílulas de arsênico que vos darei e
eu engolirei o veneno que me derdes, qualquer que seja ele. Aquele dentre
nós que morrer será considerado pelos homens como um porco247.”
O médico inglês se recusou; a imperatriz acalmou Cagliostro, afastou
Roggerson; o duelo de venenos não ocorreu248.
Enquanto o favor da imperatriz lhe esteve garantido, enquanto Ca­
tarina, interessada em propagar a Maçonaria, estendeu sua proteção so­
bre Cagliostro, ninguém se mexeu; mas ele era espionado e quando, por
uma reviravolta de espírito hábil e não caprichosa, a imperatriz se desli­
gou das Lojas249, os inimigos de Cagliostro viram o momento propício.
Na ocasião de uma cura fantástica que ele operara sobre uma criança de
dois anos, moribunda, e tão transformada por seus cuidados, em alguns
dias, que sua mãe mal a reconhecia, os interessados insinuaram que tal­
vez tivesse havido substituição da criança250.

247. Era o termo de que Cagliostro se servia ao se referir àqueles que ele desprezava.
248. Criticou-se o procedimento de Cagliostro como pouco cavalheiresco e deslocado.
Eu encontro aí, pelo contrário, certa nobreza. O duelo médico é o único que seria inteli­
gível. O Dr. Jacquet, escritor de talento ao mesmo tempo que sábio inconteste, discutindo
indefinidamente com o P. Hallopeau a respeito da transmissibilidade da calvície, ofere­
ceu-lhe recentemente (Quinzaine thérapeutique, 1909, p. 152): primeiro, uma experiência
contraditória, cuidando ele dos doentes à sua maneira e M. Hallopeau à dele; segundo,
uma experiência pessoal: ele se oferecia para se fazer in ocular a pretensa doença conta­
giosa por seu contraditar prevendo que ela não o atingiría; tudo isso com uma ironia que,
por ser menos dramática que a de Cagliostro, não deixa de vir do mesmo espírito de
sinceridade científica que animava Cagliostro ao provocar Roggerson. Exemplos análo­
gos existem na história médica e não foram julgados ridículos.
249. A Maçonaria, ao multiplicar seus Ritos, enfraquecia-se na confusão e nas rivalida­
des: “O que importava agora a Catarina, mulher de firme vontade, uma sociedade dividi­
da contra si mesma, flutuando de um sistema a outro, composta de pessoas sem valor,
uma associação de cocheiros e de domésticos, segundo a expressão forte de Bergmann.
Catarina os rejeita, chega a lançar seus antigos aliados em ridículo e escreveu contra os
rnaçons três comédias: L’Enchanteur sibérien (O encantador siberiano), Le Trompeur (o
enganador), L’Aveugle (o cego), tomando Cagliostro como protagonista”. Friedrichs. La
Franc-Maçonnerie en Russie, Berna, 1908, in-16, p. 42. Nicolai publicou traduções des­
sas peças em alemão em 1778, em Berlim, sob o título: Lustspiele wider Schwarmerey.:
Von J.K.m.d.K.v.R.
250. O Cagliostro démasqué à Varsovie retoma essa história muito mais tarde; mas mes­
mo esse panfleto só reproduz a acusação sob forma de hipótese (p. 62). Madame de la
Motte e Morande a repetiram; a calúnia tomou corpo; reencontramo-la aqui e ali. apre­
sentada como um fato positivo.
Os russos, muito mutáveis, facilmente entusiastas, mais facilmente ainda
esquecidos, desinteressaram-se do taumaturgo; rumores maledicentes circu­
laram a respeito de Cagliostro, que, dizia-se, recebia dinheiro secretamente
da condessa, que misturaram habilmente a intrigas mundanas251.
Falou-se de complô político; na Rússia, o poder dessa palavra é má­
gico. Os amigos de Cagliostro, temendo esses sintomas de perseguições
prováveis, chamaram-no junto deles em Varsóvia252. Para lá foi ele.
Muito mais tarde, em 1786, misturaram-se todas essas histórias e,
bordando sobre elas as fantasias mais maldosas e mais ousadas, disseram
que ele havia sido expulso de São Petersburgo por ordem da imperatriz,
sob um pedido do Sr. de Normandez, encarregado dos negócios do rei da
Espanha253.
Essa lenda, como tantas outras, permaneceu; é preciso destruí-la.
O barão Heyking, que não tinha portanto Cagliostro em conta de san­
to, relatou o fato Normandez com mais imparcialidade e o apresentou em
suas devidas proporções: o caso ocorreu, devemos notar, no início de sua
estada em São Petersburgo, no dia seguinte a sua chegada254; limitou-se a
uma intervenção do encarregado de negócios que quis vê-lo, a verificar
seus títulos e lhe proibiu, parece, de se dizer coronel a serviço da Espa­
nha255. Mas após essa entrevista, Cagliostro permaneceu muitos meses em
São Petersburgo, gozando da proteção da imperatriz, da simpatia dos gran­
des, do respeito da população256.

257. Theodore Mundt escreveu acerca desses dados uma nota intitulada Cagliostro à Saint-
Petersburg. Leipzig, 1858, in-12, pura obra de imaginação, escapando por consequência
à crítica, mas que, como todos os romances análogos, comete o erro de contribuir para
desfigurar o caráter de Cagliostro.
252. Roggerson dirigia esses movimentos. “O ciúme do primeiro médico da corte o obri­
ga a deixar a Rússia. ” Cf. Ein paar Trõpflein, p. 12 (nota 3, seguinte) e Ephemeriden der
Freymaurerey in Deutschland. Anno 5785, p. 112.
253. Mirabeau. Lettre sur MM Cagliostro et Lavater. Berlim, 1786, in-8?, p. 9. “É uma
velha calúnia retirada das memórias de madame. de la Motte e que já foi desmentida pelo
Sr. de Corbéron”, escreve Cagliostro em sua Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 64.
254. Heyking. Op. cit.., p. 131.
255. De Normandez teria feito inserir na Gazette de Saint-Pétersbourg que não existia
nenhum coronel espanhol com o nome de Cagliostro. Note-se que De Goertz, represen­
tante do rei da Prússia; Harris, ministro plenipotenciário inglês; e de Normandez eram
adversários políticos de Corbéron, amigo e protetor de Cagliostro. Ver Journal de Corbéron.
256. O rei da Suécia, Gustavo III, enviou-lhe o coronel Toll para interrogá-lo e convidá-
lo a vir ter com ele. Podemos ler na obra de M. Geoffroy: Gustave III et la cour de France.
Paris, 187, t. II, p. 258, as belas palavras e a emocionante conversa de Cagliostro com o
embaixador do rei da Suécia. “O príncipe da Prússia viu Cagliostro em São Petersburgo;
Ele prestava homenagem a seus conhecimentos." Journal de Corbéron, t. II. P. 196. O
autor do panfleto: Ein paar Trõpflein... que relata muito bem a estada em São Petersburgo,
não assinala nenhum fato que tenha forçado Cagliostro a partir e detalha mesmo que foi
de sua plena vontade “que ele julgou bom levar para outros lugares as suas luzes ”, p. 12.
Se tivesse ocorrido algum escândalo, ele teria feito questão de dizer.
Vemos que a intervenção Normandez não teve grande alcance; e, de
fato, pouco importavam os títulos do conde de Cagliostro; seus atos, seu
poder, bastavam para impô-lo e conquistar os sufrágios. Quando de sua par­
tida, longe de ser expulso, ele recebeu de todos os mais marcantes testemu­
nhos de gratidão257. Calorosas recomendações para Varsóvia, um passaporte
em ordem lhe foi concedido sob seu pedido e Cagliostro se oferecia ainda
para mostrar esse documento a quem o quisesse ver, em 1787258.
Conservou bons amigos em São Petersburgo; quando do caso do Colar,
fez apelo ao testemunho do barão de Corbéron, então ministro plenipoten-
ciário junto ao duque des Deux-Ponts, para que ele declarasse qual havia
sido sua vida em São Petersburgo, qual lembrança ele deixara e em que
condições honrosas ele deixara a cidade.

Varsóvia
Em abril de 1780, ante a insistência do príncipe Poninski259, Cagliostro
foi a Varsóvia. O príncipe Adam Poninski, fundador da Loja templária de
Varsóvia, dita Charles dos três capacetes260, era apaixonado por alquimia.
Conhecera Cagliostro através de seus amigos de São Petersburgo e deseja­
va muito tê-lo junto a si e a seus colaboradores para dirigir seus trabalhos.
Era rodeado de alquimistas de todas as espécies, pois o hermetismo estava
em grande voga na Polônia261 e nada é mais rico em variedades que a espé­
cie alquimista.
Na parte de baixo da escala, está o soprador, quase sempre ignorante,
supersticioso às vezes, sempre muito materialista, que ama a química por
instinto, o forno por ele mesmo, espantando-se a cada passo com fatos
muito conhecidos pelos outros, mas novos para ele, queimando seu carvão
e passando a vida ao deus-dará, esperando tudo de imprevisto. Os sopradores
formam uma legião; se vieram deles algumas descobertas, o número foi
bem pequeno.

257. A imperatriz, em sua partida, fez-lhe presente de uma importante soma de dinheiro.
Le charlatan démasqué. Frankfurt, 1780, p. 62.
258. Lettre au peuple anglais, 1787, in-4?, p. 64.
259. Saltzmann. Carta a Willermoz de 22 de novembro de 1780. Arquivos de M. Bréghot
du Lut e: Ein paar Trõpflein, p. 12.
260. Instalada em 1745. Poninski foi também um dos fundadores da Loja do Grande
Oriente da Varsóvia em 1780.
261. A Polônia, onde os rabinos cabalistas são numerosos até hoje, era no século
XVIII um celeiro de ciências ocultas. Jean de Thoux de Salverte, fundador, em 1750, da
Loja “Ao Bom Pastor’’, de Varsóvia, passou cinco anos de sua vida estudando a cabala
e a alquimia, para poder trazer suas luzes a sua Loja. Cf. Friedrichs. La Maçonnerie
en Rússia, Berna, p. 55, e L’occultisme en Pologne, in: Initiation, 1904. Artigo de M.
Erny.
O alquimista místico é bem diferente: seu laboratório é menos atu­
lhado; apenas os símbolos e o sonho o ocupam; o fogo que arde em seu
laboratório é o de lâmpada regular e suave. O místico busca a grande obra
em si; seu atanor é o ser humano. A essa classe pode se juntar a do alqui­
mista social, reformador, que esconde suas audácias sob o véu do símbolo
químico, o mais temido, na Idade Média, do clero e dos príncipes. De medo
de deixar escapar algum desses, a Inquisição compreendeu todos os outros
em suas implacáveis perseguições.
No mais alto Grau de cultura se encontra o filósofo hermético, que
observa a natureza, busca penetrar seus segredos e suas leis, opera com seu
concurso. É o sábio que, tendo observado os fatos, eleva-se à concepção de
uma hipótese geral, depois a verifica experimentalmente antes de erigi-la
em lei. A esses filósofos herméticos devemos a maior parte das descober­
tas químicas que constituem nossa riqueza científica atual.
Pesquisadores de todas as categorias, sem falar dos simples curiosos,
formavam a corte de Poninski, dissertando e animando-se com ele, dese­
jando todos a vinda de Cagliostro que os intrigava e que devia ser um
grande adepto. Cagliostro, claro, não se dizia discípulo de Hermes262, mas
já se falava de seu Elixir263, de sua Pedra Luminosa264, de seus segredos
para fazer crescer os diamantes265, para amolecer o mármore e o âmbar,
trabalhá-lo e devolver-lhes em seguida sua dureza, para dar ao algodão e

262. A química é uma infantilidade para quem possui a alquimia e a alquimia nada é para
um homem que comanda os espíritos, dizia ele a Heyking. Cagliostro era o mestre do fogo
porque ele conhecia os seres do fogo, assim como era o mestre da doença porque conhecia
os seres humanos; não tinha que tatear, nem que verificar; Tinha apenas de comandar.
263. À base de ouro potável, se acreditarmos nos Souvenirs de la marquise de Créqui. t.
Ill, p. 272. Sua medicina universal se apresentava sob diversas formas: gotas amarelas,
vinho do Egito, Barba Jovis, bálsamo ou pílulas egípcias; em uma ou outra preparação
semprefigurava o princípio vivificador que provocava a atividade. Cf. De Recke. Nachricht
Von berüchtigen... p. 56. — Gazette d’Utrecht, 2 de agosto de 1787 (Borowski). Cagliostro,
einer des Abentheuer... Konigsberg, 1790, p. 138. — Ma correspondance, n? 73, 1785, 5
de setembro.
264. “Ele me falou de uma espécie de pedra... para cuja confecção só lhe eram precisos
cinco dias e que tem a qualidade de iluminar ao ser esfregada na obscuridade com um
pouco de catarro, de modo que podemos usá-la para acender uma vela e a apagamos
enxugando-a com um lenço." Carta de Saltzmann à Willermoz de 13 de dezembro de
1780. Coleção Bréghot du Lut.
265. A Sé“ d'Oberkirch conta acerca do assunto uma interessante anedota: o cardeal de
Rohan lhe mostrou um dia um grande solitário que trazia no dedinho e sobre o qual
estavam gravadas as armas da casa de Rohan e lhe perguntou o que ela achava. — E uma
bela pedra, Monsenhor, eu já a havia admirado. — Pois bem! Foi ele que a fez, está
ouvindo? Ele a criou a partir de nada: eu vi; eu estava lá, com os olhos fixos no cadinho
e assisti à operação. Isso é ciência? O que a senhora acha, senhora baronesa? Não se
pode dizer que ele me enganou, que me explorou; o joalheiro e o gravador estimaram o
brilhante em 25 mil libras. A senhora há de convir que é um trapaceiro estranho, para
fazer semelhantes presentes. Eu fiquei estupefato, admiti. — E isso não é tudo: ele faz
ouro; ele fabricou diante de mim o correspondente a 5 ou 6 mil libras, no sótão do palácio.
ao cânhamo a fineza da seda e seu lustro266 e provas que ele havia dado de
seu poder sobre a matéria. Esperavam muito dele; sabiam que ele podia
buscar em boa fonte, no mundo espiritual, todas as informações úteis à arte
hermética; sopradores, místicos e sábios contavam igualmente com ele para
atingir suas finalidades diversas.
Poninski, sobretudo, era atraído por Cagliostro; de natureza ardente,
ele desejava o poder oculto267; por outro lado Cagliostro se interessava
pelo príncipe; ele sabia, apesar de suas paixões, que era de alma generosa
e, se era capaz de violências, era também suscetível a nobres sentimentos.
Ele foi então a Varsóvia e se hospedou na casa do príncipe. Poninski
fez transformar em laboratório, para ele, sua casa de campo em Vola. Nada
foi economizado e Cagliostro, “que-recusava qualquer dinheiro, dava em
troca todas as indicações para um arranjo perfeito do laboratório268.”
Enquanto sua casa se transformava em gabinete de química, Caglios­
tro espantava seus hospedeiros com sua conversa e seus prodígios. Mostra­
va-se diferente de como o fazia em Mitau e em São Petersburgo, mais
impressionante. Sem dúvida, as verdades que ele encarnava e ensinava
permaneciam as mesmas: a matéria, a natureza e suas leis, as do espírito,
não haviam mudado; mas ele se encontrava agora rodeado de pessoas para
as quais a busca da pedra era a maravilha única, a grande preocupação.
Parece que, nesse meio mais pesado, mais material, menos tinto de filoso­
fia do que a Rússia, Cagliostro tenha feito tudo para trazer um germe de
desenvolvimento espiritual. Diante dos olhos dos boêmios, diante do sorri­
so dos céticos, ele lança fenômenos perturbadores; aos sopradores, ele fala
de uma filosofia hermética que não se encontra nos livros; a todos, ele
ensina algo de surpreendente; ele não bajula ninguém, não leva em conta

D'Oberkirch. Mémoires. T. /, cap. VII. Cf. e: De Recke. NachrichtVonberüchtigen...p. 11


A obra adamantina foi tentada a frio, por meio úmido e a quente; antes dos trabalhos de
Moissan no forno elétrico, Albert Poisson se ocupou disso por muito tempo com um de seus
amigos. O Dr. Papus indica o seguinte método: o carbono se dissolve em um vinagre de
madeira em alta temperatura, sob pressão. E na solução de carbono assim obtida que o
diamante aumenta. Seria essa a maneira como procedia Cagliostro? Achamos que não;
o cardeal indicou um detalhe de seu procedimento: ele enterrava os diamantes que lhe
confiavam para fazer crescer. (Vie de Joseph Balsamo, p. 36). Isso corresponde melhor à
sua técnica habitual.
266. De Recke. Nachricht Von berüchtigen... p. 10, 95. — Ma correspondance... 1786, p.
3, 22, 84.
267. De um modo muito egoísta, é verdade, e pouco honroso. Figuier conta que ele pri­
meiro pediu a Cagliostro um espírito familiar para servi-lo e que, não podendo obter dele
o que queria, ficou profundamente irritado; reclamou então o sucesso nas empresas junto
à bela Kepinska. Mais uma vez, Cagliostro se contentou em fazê-lo ver no espelho a
pessoa que ocupava seus pensamentos; mas isso não satisfez o príncipe. Figuier, Histoire
du Merveilleux, t. IV, p. 108.
268. Ein paar Trõpflein, p. 12. O príncipe lhe deu, para assisti-lo naquela instalação, o
conde Moszinski, químico amador, do qual falaremos mais adiante.
nenhuma autoridade e fala, como age, na mais completa independência,
sem mesmo se preocupar em se aliar a uns ou a outros269.
Teve no mundo um grande sucesso; celebrou-se o aniversário de nas­
cimento de sua mulher com uma festa esplêndida270.
Foi também recebido pelo rei271.
“O Sr. de Cagliostro estava em Varsóvia havia algum tempo”, escreve
um contemporâneo, “e teve a honra de ver diversas vezes o rei, que o estima­
va e prestava homenagem a seu espírito, a seus talentos e a seus conhecimen­
tos. Uma jovem dama da corte, cética, que ouvia um dia o rei fazer tais
declarações, pôs-se a rir e afirmou que não podia passar de um charlatão e
que ela o desafiava a lhe dizer certas coisas que lhe haviam acontecido.
Na manhã seguinte, o rei fez saber desse desafio ao conde, que lhe
respondeu friamente que, se essa dama quisesse encontrá-lo no gabinete e
em presença de Sua Majestade, ele lhe causaria a maior das surpresas que
ela já tivera na vida. A proposta foi aceita e, no momento combinado, o
conde disse à dama tudo o que ela acreditava que ele jamais lhe poderia
dizer, o que, pela surpresa causada, fê-la passar tão subitamente da incre­
dulidade à admiração que o desejo ardente de saber o que deveria aconte­
cer em seguida a fez conjurar ao conde que Iho dissesse. No início, ele se
recusou a fazê-lo; mas, vencido pelas súplicas reiteradas da dama e talvez
pela curiosidade do rei, ele lhe disse: ‘A senhora logo vai partir para uma
grande viagem; seu carro quebrará a alguns postos de Varsóvia; enquanto o
consertam, a maneira como a senhora estará vestida e penteada excitará
tais risos que lhe atirarão maçãs. De lá a senhora irá a águas célebres, onde
encontrará um homem de alta linhagem que lhe agradará a tal ponto que a
senhora se casará com ele pouco tempo após, e por mais esforço que se
faça para trazê-la de volta à razão, a senhora será tentada a cometer a lou­
cura de lhe dar todos os seus bens. A senhora virá casar-se em uma cidade
em que estarei e, apesar dos esforços que fará para me ver, não o consegui­
rá. A senhora está ameaçada por grandes infortúnios, mas eis um talismã

269. O homem que o perseguiu com seu ódio no Cagliostro démasqué à Varsovie foi
forçado a reconhecer essa franqueza de atitude, essa independência de caráter, que se
encaixam tão mal com as manobras de um intrigante e não sabe como explicá-las: “A
maior parte dos impostores, diz ele, é sutil e busca fazer amigos; este parece tomar cuida­
do em parecer arrogante e afazer de todos seus inimigos. Os outros charlatões conser­
vam cuidadosamente as ligações com todos os que servem para executar suas patifarias;
este briga com eles por um nada ”. Cagliostro démasqué , p. 50, 51.
270. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 50.
271. Stanislas-Auguste Poniatowski, o último dos reis da Polônia, membro da Loja Charles
dos três Capacetes e que foi um predestinado; no dia de seu nascimento, um astrólogo
misterioso predisse sua elevação e suas infelicidades. Cf.; Initiation, 1904. Erny.
L’occultisme en Pologne. Na época em que Cagliostro o viu, ele ainda estava no período
feliz de sua vida.
A
Rússia — O Feiticeiro
Casa habitada por Cagliostro durante sua estada em Estrasburgo. Era chamada casa da Virgem,
atualmente Kalbsgasse r? 1.
oo
que lhe dou: enquanto a senhora o conservar, poderá evitá-los; mas se não
puderem impedi-la de doar o seu bem no contrato de casamento, a senhora
perderá imediatamente o talismã e, no momento em que não o tiver mais,
ele estará em meu bolso, em qualquer lugar em que eu esteja’.
Ignoro o Grau de confiança que o rei e a dama deram a essas predições,
mesmo o que pensaram, à medida que elas se efetuaram, mas sei que todas
tiveram sua execução; o Sr. Cagliostro me mostrou o talismã que encontrara
em seu bolso, no dia em que se constatou ser aquele em que ela assinara o
contrato de casamento através do qual ela dava todos os seus bens a seu
marido272.”
A famosa sessão mágica em que o pergaminho queimado foi
rematerializado e restituído aos assistentes273 também foi feita em Varsó-
via nesse momento. Cagliostro reunia com freqüência uma Loja egípcia
com aqueles que quiseram ser seus alunos. Dava cursos que tratavam a
princípio de operações químicas, depois de medicina hermética274. Assim
ele os preparava à prática que se seguiría.
Logo que o laboratório ficou pronto, os trabalhos começaram: o pri­
meiro foi a transmutação de uma libra de mercúrio em prata fina, feita em
uma sessão, ante os olhos dos espectadores275; nessa ocasião, ele prometeu
a seus discípulos dar-lhes mais adiante a fórmula de pó vermelho que lhe
servira para essa transmutação; em troca, ele exigia o zelo, o respeito, a
elevação de espírito de seus alunos; punha energicamente em seu lugar os
zombeteiros e os espíritos fortes276.
Infelizmente não temos muitas informações sobre a seqüência dessas
operações interessantes e sobre os trabalhos alquímicos de Cagliostro em
Varsóvia; além disso, eles estão desfigurados pela malevolência. Em 1786,
no momento da campanha da imprensa contra Cagliostro, foi publicado,
sem nome de editor ou autor, um libelo intitulado Cagliostro démasqué à
Varsovie (Cagliostro desmascarado em Varsóvia)277.

272. Lettres sur la Suisse adressées à Madame M*** par un voyageur français (de Laborde)
em 1781. Genebra, 1783, in-8?, 1.1, p. 13.
273. Cf. pouco antes, mesmo capítulo: Curlândia, p. 57.
274. “Ele ditava uma quantidade de segredos ou absolutamente falsos, ou conhecidos
em química. ” Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 7. O que significa que ele ensinava
verdades, ou já conhecidas pelo conde Moszinski — e ele as desprezava —, ou desco­
nhecidas dele — e ele as rejeitava. O autor critica da mesma maneira admirável seu
curso de medicina.
275. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 8 — Ein paar Trõpflein, p. 13. Prestidigitação,
diz o autor.
276. Ein paar Trõpflein, p. 13.
277. Publicação à qual, sem dúvida, Morande não foi estranho: o editor o cita, com
efeito, em Carta a Mirabeau, a Réponse de madame. de la Motte e faz alusão às acusações
feitas por Morande no Courrier de 1’Europe contra J. Balsamo.
O autor, o conde M. Moszinski278, que tinha o posto de ajudante de
Cagliostro em Vola, conta algumas histórias destinadas, segundo ele, “a
desmascarar o impostor que já abusou por muito tempo da credulidade
pública279”, ou seja, destinadas a corroborar o ataque de seus adversários, a
tentar fazê-lo passar por um ridículo e cínico charlatão. Embora as triviali-
dades e as besteiras abundem nesse panfleto, ele é, todavia, mais interes­
sante que os outros por nos fazer assistir a algumas cenas da vida de Ca­
gliostro em seu laboratório.
O conde M. conta que assistiu a uma transmutação; ele o reconhece,
mas diz que seus olhos devem tê-lo enganado, que Cagliostro deve ter usa­
do algum subterfúgio. Cagliostro derramou mercúrio em um cadinho e acres­
centou a ele uma pitada de pó vermelho, fez betumar o cadinho e colocá-lo
no fogo; retiraram-no ao fim de alguns instantes; quebraram-no; ele conti­
nha um lingote de prata com um pouco de ouro. Eis o que ele viu, o que foi
feito diante de todos, executado por um terceiro personagem em presença
de Cagliostro. O conde M. viu, mas não admite e busca explicar os fatos
com as seguintes fantasias: Cagliostro deve ter acrescentado ouro ao mer­
cúrio. Ele deve ter escamoteado o cadinho, substituindo-o por outro, ou ele
devia ter preparado antes o lingote de prata. Sua mulher, de combinação
com ele, deve ter feito desaparecer o velho cadinho. Enfim, seu pó verme­
lho, inútil nessa interpretação dos fatos, devia ser apenas carmim.
Tais são, em face do fato obtido em boas condições de experiência, a
série das suposições completamente gratuitas do conde M. Poderiamos
examiná-las uma após a outra e mostrarmos sua inanidade; isso seria
demasiado longo. Notemos somente que há apenas hipóteses maldosas,
nenhuma das quais foi provada, nem mesmo fundamentada, das quais al­
gumas se contradizem280, para tentar explicar apenas pela velhacaria um
fato indiscutível e muito embaraçoso.
Um inimigo que se esconde no anonimato constatou uma transmuta­
ção e supõe, sem provas, a patifaria; o cardeal de Rohan assistiu a diversas
experiências e afirma sua realidade281. Por que adotaríamos a hipótese duvi­
dosa do primeiro rejeitando os testemunhos múltiplos e límpidos do segundo?
Não deveriamos, ao contrário, considerar suspeitas todas as asserções de
um homem que se esforçava, ao mesmo tempo que fingia ajudar Caglios­
tro, em lançar a perturbação em seus trabalhos282? Ele estava decidido e

278. A 87 de Recke nos revelou a personalidade desse anônimo e Borowski a confirmou.


Cf. Cagliostro, einer der Merkwürdigsten Abentheuer... 1790, in-16, p. 142 e: Düntzewr.
Neue Goethestudien, Nurembergue, 1851, p. 138.
279. Prefácio, p. 1.
280. Exemplo: 1? o ouro acrescentado ao mercúrio; 2? a substituição dos cadinhos.
281. Cf. pág. 81 desse livro.
282. Ele engana os pacientes. Cagliostro démasqué, p. 6. A lâmpada confiada a seus
cuidados foi encontrada apagada em 24 de junho. Ibid., p. 38. Eis uma operação singu­
larmente conduzida! Houve troca de frasco feita pelo conde M... que provocou uma cena
interessado em derrubar Cagliostro no espírito de seu protetor, o príncipe
Poninski, e para isso se empenhou com todos os seus meios.
Em suas críticas, mostra uma má-fé igual: que uma operação se faça
instantaneamente, é uma prova e que é falsa; se Cagliostro pede semanas
para uma passagem* 283 é, segundo Moszinski, um pretexto para ganhar tem­
po e esticar a duração de uma experiência que não daria certo284.
Em outra passagem de seu libelo, ele conta que o pó de projeção, que
Cagliostro possuía “e que ele conseguira, sem dúvida, de algum alquimis-
ta285”, lhe havia sido roubado por “uma de suas amantes” em Londres, quan­
do, diante dela, ele realizava uma transmutação. Ora, elucidamos o caso
Scott e Fry em seu lugar286 e vemos assim a confiança que podemos conce­
der a um escritor que mascara dessa forma a verdade.
Compreendemos o que se passou: quando a animosidade de Moszinski
se afirmou mais violentamente, quando estendeu armadilhas a Cagliostro,
difamando a própria condessa, esforçando-se para afastar o príncipe de seu
mestre, Cagliostro quis acabar com esse traidor que representava diante
dele a comédia da deferência. Houve uma discussão violenta287 e, vendo
que a calúnia havia dado frutos, que seus discípulos estavam abalados, ele
deixou príncipe, senhores poloneses e laboratório288.

entre Cagliostro e o conde M... Ibid., p. 36, etc. A atitude do conde por vezes obsequio-
sa, por vezes hostil, era sempre irônica; ele lançava em ridículo o recolhimento que
Cagliostro exigia dos assistentes, “não podendo suportar essas palhaçadas". Ibid., p.
24, 29 e 31.
283. Chamamos passagens, em hermetismo, as transformações de cor e de estado que
sofre a matéria em evolução no ovo alquímico.
284. O conde Moszinski, apesar de suas pretensões científicas, não lera portanto os anti­
gos autores herméticos nem o Journal de Philaléthe cuja obra durou mais de um ano?
285. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 20. Mas não era carmirn?
286. Cf. p. 38 desse livro.
287. “Cagliostro foi grosseiro. ” Ein paar Trõpflein, p. 6. Cf: Cagliostro démasqué à
Varsovie, p. 49.
288. Em 26 de junho de 1780. Cagliostro démasqué à Varsovie, p. 16. Cagliostro confiou
um dia à SC de Recke que ele devia por vezes favorecer a dúvida em relação a sua obra
quando se tratava de cegos a quem a luz só poderia incomodar e que os mergulharia
ainda mais no erro. “Em Varsóvia, ele não quis proceder a nenhuma transmutação im­
pressionante e arranjou tudo de modo a que as aparências estivessem contra ele, porque
seus discípulos ingratos não mereciam melhor recompensa, e ele não quis deixá-los adi­
vinhar nada de sua grandeza. ” De Recke. Nachricht Von berüchtigen... p. 128. Aquele
que trazia a luz podia admitir a contradição, a luta aberta, leal, mas não podia suportar
em torno de si a falsidade e a traição. Os atos teúrgicos, a realização de seus poderes
podiam fazer-se diante de ignorantes, de pobres de espíritos, de revoltados mesmo, desde
que fossem sinceros; mas ele não deveria profanar os dons do céu prodigando-os a
seres que riam da palavra divina, encerravam-se em sua superioridade e não interroga­
vam o enviado de Deus senão para lhe estender armadilhas.
Os espíritos fortes, muito fortes, como o conde Moszinski e seus par­
tidários, não tinham nenhuma necessidade dele; ele partiu, deixando-os
com seus sarcasmos e a fácil satisfação de seu aparente triunfo.
De junho a setembro de 1780, em que o encontramos em Estrasbur­
go, Cagliostro, entristecido sem dúvida, desejoso de esquecer, retirou-se
para a casa de uma de suas discípulas, a condessa de H., da qual ele foi o
médico particular e da qual continuou sendo mestre espiritual289.
Poderiamos talvez nos perguntar por que Cagliostro, em seus traba­
lhos alquímicos, não fez esforços para impor suas convicções. Enquanto
os fatos de clarividência, de adivinhação, de visão provocada, de curas
extraordinárias, numerosas, indiscutíveis, foram registrados em sua conta
em quase todos os lugares, encontramos apenas raros testemunhos de suas
realizações alquímicas. Os poderes de Cagliostro seriam limitados ou as dou­
trinas herméticas acerca da vida da matéria seriam errôneas?
Não; Cagliostro tinha um poder e uma liberdade sem limites, e a ação
do espírito sobre a matéria é uma verdade tão positiva quanto a ação da
vontade de um hipnotizador sobre o cérebro de seu paciente, embora ela
ainda não tenha entrado, como a outra, no domínio científico oficial. Mas
enquanto, pelas experiências psíquicas, Cagliostro iniciava a humanidade
no emprego de faculdades a que a evolução trazia o desenvolvimento natu­
ral e geral, nos estudos de laboratório referentes à vida da matéria e a suas
transformações, ele ultrapassava de muito a hora marcada pelo destino,
penetrava mais profundamente no santuário da natureza e punha em movi­
mento forças que nem os homens de seu tempo, nem muitas gerações que
estavam por vir deveriam ainda conhecer e empregar. Ele podia apenas
indicar os princípios, fazer entrever algumas luzes sobre o caminho cujos
acessos ele desobstruía.
Quem eram seus alunos? O que pediam? Como todos os buscadores
da pedra filosofal, eles queriam ver em algumas horas ou alguns dias trans-
mutar, ante seus olhos, um metal vulgar em ouro puro, adquirir a fórmula
dessa operação para poder, em seguida, graças a esse segredo, realizar sua
ambição de riqueza e fazer admirar seu saber excepcional. Seus olhos se
haviam fixado sobre esse ponto; o resto lhes era indiferente.
Seria esse o objetivo buscado por Cagliostro? Esse estado de espírito
podería permitir-lhe cumprir para eles milagres prematuros? Enquanto nas
experiências com a criança, nas sessões teúrgicas da Curlândia, os assistentes

289. Esse fato bastaria para reduzir a pó as histórias forjadas muito tempo após a respei­
to de sua pretensa desgraça. Se ele houvesse sido "desmascarado ”, "pego em flagrante ”,
“vergonhosamente expulso ” pelas pessoas de Varsóvia como os gazeteiros não têm ver­
gonha de escrever, teria sido tão bem-tratado por uma dama dessa mesma sociedade?
Desde que examinemos a fundo, sem opinião formada, qualquer das acusações formula­
das contra Cagliostro, vemos que nada resta; lamentamo-lo, respeitamo-lo um pouco
mais; é a única impressão que permanece.
desinteressados, respeitosos, recebiam sem segundas intenções aquilo que
lhes era revelado, nos trabalhos de laboratório, em Vola, os experimenta-
dores queriam uma coisa: ouro; só reclamavam isso, ofuscavam-se com a
insistência usada por Cagliostro em lhes fazer observar os fenômenos que
eles consideravam desprovidos de interesse, em lhes fazer seguir métodos
longos e afastados. E porém era apenas sobre esses estados intermediários
e instáveis da matéria que Cagliostro teria podido instruí-los, fazendo-os
constatar alguns fenômenos novos cujo conhecimento teria sido revelador
para eles e cuja realização era possível para a ciência da época290.
Entre o corpo humano, o mais evoluído sobre nossa terra, e o corpo
mineral mais atrasado, há os do reino animal e os do reino vegetal. Ne­
nhum interrogador pediu a Cagliostro que agisse sobre um animal ou que
fizesse evoluir, modificar uma planta291; essa obra, puramente científica,
desinteressada, tão satisfatória para o observador, teria sido talvez realizada
com mais prazer por Cagliostro.
Se o desenvolvimento dos poderes espirituais do homem começa a
se dar — e as revelações de Cagliostro, como as experiências recentes, o
provam —, a esfera de ação desses poderes se estenderá além do reino
humano, primeiro ao reino animal, depois aos vegetais e só em seu limite
extremo atingirá, se é que chegará a tocá-lo, o reino mineral. A ordem da
natureza assim o exige; o cumprimento das leis da evolução o necessita;
é a salvaguarda do progresso. E se concebemos, por um desenvolvimento
lógico de pensamento, a possibilidade de uma ação do espírito sobre a
matéria dita inorgânica, não devemos considerá-la como um limite ainda
indeterminado para nós, embora assistamos hoje à eclosão desse poder
no reino humano, limite do qual os contemporâneos de Cagliostro estavam
ainda bem afastados. Então, mesmo se não houvesse em seu coração obs­
táculos que se opunham à satisfação de seu desejo, nenhuma razão superior
poderia obrigar Cagliostro a realizar diante dos olhos dos discípulos múl­
tiplas, prodigiosas transmutações, apesar da facilidade que ele tinha em
fazê-lo.

290. A pedra luminosa, a evolução das gemas, eram desse gênero; as experimentações
modernas assinalaram esses estados intermediários da matéria, essas formas de passa­
gem em que os processos de evolução da matéria se tornam mensuráveis e que permitem
conceber algumas de suas condições. (Metaelementos de Crookes, transformação do Hélio,
radioatividade). Deve-se notar que a primeira edição deste livro foi lançada há 50 anos e
que, desde então, a ciência, e em particular a da desintegração do átomo, progrediu a
passos gigantes.
291. Uma biografia contemporânea de Cagliostro contém esta frase que parece indicar que
ele deu algumas demonstrações desse gênero: "Ouvi homens de boa-fé, bem antes que se
falasse da cena tão famosa no processo da aparição da rainha diante de madame de la
Motte (Madame de La Tour), sustentar que ele lhes havia mostrado a Palingenesia... ” infe­
lizmente não pudemos identificar esse documento anônimo: 2 p. In-4?, cerca 1800...
Capítulo V

Estrasburgo — O Empírico

Quando Cagliostro chegou a Estrasburgo, dedicou-se muito rapida­


mente292 e quase exclusivamente à prática da medicina, curando sem dis­
tinção de classe e de estado todos os que vinham a ele. Diz-se que ele se
dirigiu primeiro às pessoas do povo, buscando em sua cura apenas um
meio para conquistar a confiança e a clientela da aristocracia. E verdade
que seus primeiros doentes eram pobres: mas isso não é natural? Os
deserdados da sorte não têm mais sofrimentos, menos falsa vergonha que os
afortunados? Não são eles mais dignos de interesse, mais prontos a vir a
quem lhes estende a mão293? Os que estavam ao redor de Cagliostro, vendo­
o disposto a socorrê-los, apressaram-se a consultá-lo; aqueles que a doença
prendia ao leito receberam suas visitas. De Gleichen contou seu devotamento
em tratá-los294 e o suíço Burkli testemunha que ele se privava de todos os
passeios, jamais ia ao teatro, de medo que um infeliz, que viesse em sua
ausência, fosse forçado a ir embora sem tê-lo encontrado295.
Os abandonados, os indigentes, encontraram junto a ele ajuda mate­
rial e, o que vale ainda mais, a simpatia tão preciosa às misérias morais296.
Ele ia para todos os lugares em que o sofrimento o chamava; fosse a doença

292. No início, porém, durante as poucas semanas que ele passou no hotel, Cagliostro
não deu mostras de seus conhecimentos médicos. Cf. Blessig. Carta p. 7, in: Cagliostro à
Strasbourg. Artigo de G. Weisstein em Elsass Lothringische Zeitung, 4? ano, n? 37.
Estrasburgo, 1882. (Laurent Blessig, filósofo e teólogo, era professor da Universidade
desde 1778); e: H. Funk. Cagliostro à Strasbourg. Contém trechos de cartas de J. Burkli,
poeta e chefe de corporação de Zurich, escritas a seu amigo Bodmer durantre uma estada
em Estrasburgo, em janeiro de 1782, para conhecer Cagliostro.
293. “Não teria Deus escolhido os pobres deste mundo para ser ricos na fé e herdeiros do
reino que ele prometeu àqueles que ele ama?" Epístola de Tiago, II; 5.
294. Cf. p. 25 deste livro.
295. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit.., p. 14. E ainda melhor que o traço de caridade
bem conhecido de Louis-Cl. de Saint-Martin.
296. “No início de sua estada, Cagliostro fez libertar, pagando por ele, um prisioneiro
por dívidas. " Gorge. Carta de 10 de junho de 1781. Variétés haut-rhinoises. Bâle, 1781,
art.VIII, p. 120.
leve ou grave, o doente rico ou pobre, ele não se importava e não mudava
por isso de costume ou de maneira de agir297.
Referente aos fatos particulares desse primeiro período de sua vida
médica, às curas que ele operou no povo, poucos documentos chegaram a
nós. De Gleichen nos conta porém o seguinte fato: uma mulher em trabalho
de parto havia sido condenada pelos parteiros a uma morte certa, sem prome­
ter que eles salvariam a criança; mandaram chamar Cagliostro, que anunciou
que a salvaria com o sucesso mais completo e manteve sua palavra298.
Spach conheceu e interrogou um velho de Estrasburgo que afirmava
ter sido curado de uma grave doença de peito, pela qual havia sido atingido
com a idade de vinte anos e que, provavelmente, o teria levado, sem a
intervenção de Cagliostro299. Isso é bem pouco, entre os milhares de trata­
dos e curados: seu carro passava na cidade e nos arredores, da manhã —■
seis horas no inverno, cinco horas no verão — até as nove ou dez horas da
noite300.
“Ele era rodeado de estropiados, de pobres diabos, de gotosos, de sur­
dos que ele curava; ele os recebia com doçura, dava-lhes essências, elixires e
dinheiro também; ele os curava... Sua escada e seu vestíbulo são cheios de
doentes301.” Mas todos esses doentes, pessoas do povo, sem notoriedade,
não deixaram memórias; os pobres, se morrem ignorados, também se cu­
ram sem ruído; suas observações médicas, a importância e a quantidade
das curas efetuadas por Cagliostro nos permanecerão sempre desconheci­
das. Apenas sua reputação, que crescia então dia a dia, testemunha que
elas foram surpreendentes e numerosas. O alto público, pouco a pouco,
veio a ele. Desde então, os sucessos obtidos foram divulgados e a lembran­
ça deles se conservou mais precisamente.
Uma de suas primeiras curas foi a de um oficial de dragões, decla­
rado incurável, roído por uma doença má302 e reduzido ao estado de “ca­
dáver hediondo”; “esse oficial”, diz o barão de Gleichen, foi-me aponta­
do por seu capitão: ele estava gordo e saudável, perfeitamente restabele­
cido por Cagliostro303.
Um dos secretários do comandante304 caiu doente; seu médico o de­
clarou perdido e só lhe deu vinte e quatro horas de vida. Ante as instâncias

297. Weisstein. Op. cit, p. 7. Funk, Op. cit., p. 7 e 12. Meiners. Briefe über Schweiz, II?
parte, citada nap. 19 da Lettre de Mirabeau sur Cagliostro. Berlim, 1786, in-8?, p. 19.
298. De Gleichen. Souvenirs, p. 136. Ver mais adiante os detalhes desse caso que causou
grande rumor.
299. Spach, Oeuvres, t. V, p. 72, 73.
300. Funk, Op. cit., p. 7.
301. Funk, Op. cit., p. 7 — Weisstein. Op. cit., p. 7. — Georgel. Mémoires, p. 52.
302. Madame d’Oberkirch. Mémoires, p. 8.
303. De Gleichen. Souvenirs, p. 136.
304. O comandante da província, o marquês de la Salle. Burkli. Carta, in: Funk, Op. cit.,
p. 5.
do comandante, Cagliostro começou a tratá-lo e o restabeleceu, pode-se
dizer completamente, para grande espanto de todo mundo305.
“Verifiquei essa cura maravilhosa”, diz outro contemporâneo; “o se­
cretário morria de gangrena na perna e tinha sido abandonado por todos os
médicos306.”
O sucesso inconteste levou ao cúmulo o renome de Cagliostro. A Sr?
Sarrasin, mulher de um banqueiro de Bâle, extinguia-se lentamente após
oito meses de febre intermitente com icterícia crônica: o sono se tornara
impossível; imobilizada no leito, tiritando sob as cobertas, ela perecia dia a
dia; os melhores médicos da Europa, consultados, declaravam-na perdida.
Cagliostro a curou; além disso, apesar da idade, pouco tempo após, ela
teve uma gravidez que se concluiu muito felizmente, em 4 de abril de 1782,
com o nascimento de um filho a quem chamaram Alexandre, em honra de
seu salvador. A SP Sarrasin contava com emoção como Cagliostro “a ar­
rancara das garras da morte307308
.”
Sarrasin, em seu Journal™, conta-nos também a cura de um de seus
filhos, Félix, atingido por uma “doença gotosa dos nervos” que nenhum
médico pudera aliviar e que desapareceu após uma única visita a Ca­
gliostro.
Burkli, após haver zombado da cura de uma velha senhora surda des­
de os sete anos309 reconhece que sua mulher, em má saúde quando chegou
a São Petersburgo, recebeu de Cagliostro cuidados que melhoraram consi­
deravelmente do estado geral e curaram sua doença de estômago310.
Labarthe escreveu a Séguier quase na mesma época: “Madame a Sr?
Augeard, jovem e muito bela mulher de Paris, que conheço muito, muito
rica pelo emprego de seu marido, coletor-geraí, atacada de uma doença
incurável, foi encontrá-lo. Recebeu de presente dele um elixir que fez
desaparecer todas as suas dores e soube pelo seu irmão que ela goza
agora da mais brilhante saúde311”.
O cavaleiro de Langlois, capitão de dragões no regimento de Mont-
mercy, moribundo, salvo por Cagliostro, guardou-lhe um profundo reco-

305. Weisstein. Carta de Blessig, p. 8, in: Cagliostro à Estrasburgo.


306. De Gleichen. Souvenirs, p. 136.
307. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 10 e 20. Cf. mais adiante: Carta de Sarrasin.
Schlosser, cunhado de Goethe, amigo dos Sarrasin, indignado com as mentiras que se
publicavam em 1787 referente a esse caso — diziam que Cagliostro matara madame
Sarrasin — escreveu ao Deutsches Museum uma carta notável de protesto. Ele testemu­
nha que, desde a intervenção do conde, a saúde da Sr? Sarrasin esteve perfeita e que,
ainda nesse ano (1787), tendo-a voltado a ver, ela lhe pareceu mais jovem e mais alegre
que nunca, n? 13, p. 388.
308. A 21 de maio de 1781. Archives Sarrasin. Bâle.
309. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 10.
310. Ibid., p. 15.
311. Carta à 1’archéologue Séguier in: Funck-Brentano. Aff. Du Collier, p. 91.
nhecimento e o provou escrevendo uma carta comovente em que descreve
as benfeitorias que recebeu de seu salvador. “Sim, senhor, devo tudo ao Sr.
conde de Cagliostro; a carta anexa, que escrevi na época aos srs. autores do
jornal de Paris e que foi impressa312, contar-lhe-á que ele é meu salvador.
Minha existência estava ameaçada havia oito anos, sem que eu experimen­
tasse o menor alívio com os remédios que me foram administrados pelos
médicos mais confiáveis. Em meu estado, uma morte próxima era a pers­
pectiva menos assustadora para mim e para minha família; eu percebia a
degradação total de minhas faculdades intelectuais; o conde me devolveu,
portanto, a vida, a saúde, a razão e a felicidade; não tive nem a menor
recaída dos sofrimentos e dos acessos violentos que me atormentavam;
enfim, minha cura foi perfeita e radical, assim como um número enorme de
outros que o conde operou ante meus olhos e que eu podería citar, tendo
sido testemunha, se o senhor julgar a propósito, etc.313.”
O Sr. Wielandt314 contou, também, em uma carta aberta, a cura maravi­
lhosa de sua filha de 29 anos, reduzida a um estado de emagrecimento
desesperador por causa de uma gastrite crônica ulcerosa. Nenhuma alimen­
tação era possível: algumas colheradas de leite a sustentavam e isso durava
havia dez anos; ela se extinguia em sofrimentos contínuos. “Até o início do
ano de 1782, ela ia sempre de mal a pior, apesar dos cuidados dos médicos
mais experimentados de nossa cidade. Foi por volta dessa época que o Sr.
conde Cagliostro veio ter uma estada em Bâle e, por intermédio de um ami­
go, esse homem admirável e benfeitor veio vê-la. Ele lhe receitou primeiro
alguns remédios, que mandou vir de Estrasburgo; imediatamente ela melho­
rou e, no mês de agosto, ficou bem o bastante para ir a Estrasburgo encontrar
seu salvador; lá, ele a curou inteiramente em algumas semanas. Julgue de
nosso reconhecimento, escreveu Wielandt, para com esse homem único, sem­
pre ocupado em estender uma mão caridosa às pessoas afligidas por doenças
que se crê incuráveis, que todavia cedem por fim a sua arte sublime, e cujo
grande coração não quer outra recompensa senão aquela das almas
realmente grandes: o prazer inefável de ter feito pessoas felizes315.”
Seria fastidioso continuar: as curas da baronesa de Dietrich316, do
cavaleiro de Montbruel317, do príncipe de Soubise são fatos relatados em

312. Ela foi traduzida nas Ephemeriden der Freymaurerei, mas permanece quase desco­
nhecida.
313. Carta de Langlois à Thilorier. Arquivos Sarrasin em Bâle. Vol. XXXIII. Cota 13, f? I, v?
314. Tesoureiro da República de Bâle.
315. Carta de Wielandt datada de Saarwer in: Supplement au n? 27 du Journal de Paris,
segunda-feira, 27 de janeiro de 1783. Tanto quanto a carta de Sarrasin a Straub é conhe­
cida, esta é ignorada.
316. Cf: Burkli, Carta, in: Funk. Op. cit., p. 17
317. “Que testemunhava em toda parte as maravilhas que Cagliostro operara e se ofere­
cia a si próprio como prova, como curado miraculosamente de não sei quantas doenças
cujo simples nome já o fazia tremer. ” Beugnot. Mémoires.
toda a parte. Todavia, esta última cura, tão limpa, tão rápida, merece uma
menção especial.
O príncipe de Soubise tinha uma escarlatina violenta: os médicos
haviam perdido a esperança de salvá-lo; o cardeal de Rohan, em Saverna,
falou a Cagliostro de seu primo; Cagliostro consentiu em se ocupar dele e
partiu imediatamente para Paris a toda pressa, com o cardeal. Ao chegar,
o cardeal foi à casa do príncipe, primeiro sozinho, e trouxe a notícia de que o
doente vai melhor, que o prognóstico dos médicos mudara um pouco e que
eles têm esperanças. Cagliostro pediu então para voltar a Saverna; nada
tinha a fazer com um doente curado. O cardeal, muito aborrecido, hesitou
em partir. Mas na manhã seguinte, mudança total: o príncipe está muito
pior; sem nenhuma dúvida, dessa vez, ele estava perdido, diziam os médi­
cos e o séquito318. Dessa vez, Cagliostro podia agir:
“Cagliostro subiu na carruagem de Sua Eminência e foi com ela ao
hotel de Soubise. O cardeal anunciou um médico sem dar seu nome. A
família o deixou entrar; apenas alguns domésticos estavam no apartamento
do príncipe. Cagliostro pediu para ficar sozinho no quarto do moribundo.
Deixaram-no. Uma hora depois, ele chamou o Sr. cardeal de Rohan e lhe
disse, mostrando-lhe o doente:
‘“Em dois dias, se seguirem minhas prescrições, o Sr. príncipe de
Soubise deixará esse leito e andará pelo quarto. Em oito dias ele sairá
de carruagem. Em três semanas irá fazer sua corte em Versalhes.’
O cardeal nada respondeu. Seguiu Cagliostro e, naquele mesmo dia,
voltou com ele à casa do príncipe de Soubise. Dessa vez, Cagliostro trazia
uma garrafinha da qual deu dez gotas ao doente.
“Amanhã”, disse ele ao cardeal, “daremos ao príncipe cinco gotas a
menos. Depois de amanhã, ele só tomará duas gotas deste elixir e se levan­
tará à noite. “Os acontecimentos justificaram sua predição. Dois dias após
essa primeira visita, o príncipe de Soubise estava bem o bastante para rece­
ber todos os seus amigos; à noite, pediu para se levantar e o viram, sem
febre alguma, dar a volta em seu quarto, conversar muito alegremente,
sentar-se em uma poltrona e pedir uma asa de frango que não lhe deram,
porque o médico trazido pelo Sr. cardeal se pronunciara formalmente quanto
à dieta.
O terceiro dia se passou às maravilhas. No quarto dia, o príncipe con­
valescia. Na noite do quinto dia, o Sr. de Soubise comeu sua asa de frango319.

318. É bom prestar atenção na melhora que surgiu depois que o cardeal recomendou seu
doente a Cagliostro, a agravação quando Cagliostro declarou que não se ocupava mais
disso e queria ir embora. Cf. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral,
1786, in-16, p. 31.
319. De Saint-Félix. Aventures de Cagliostro. Paris, 1875, in-16, p. 99 (segundo a
Correspondance de Grimm).
Vista e plantas do estado atual (1912) para a restauração do pavilhão
construído em Riehen, em 1781, na propriedade de Sarrasin, sob as
indicações de Cagliostro.
O cardeal e Cagliostro voltaram logo para Savema; sua estada em
Paris só durara treze dias320. Essa cura teve grande notoriedade e, de Paris,
uma onda de pessoas do mundo, “damas de qualidade e duas atrizes”, diz
a St? d’Oberkirch, muito chocada com essa mistura321, seguiram-no a
Estrasburgo para não interromper seu tratamento. A realidade dessas curas
maravilhosas322, a notoriedade daqueles que se haviam beneficiado delas,
o desinteresse de Cagliostro, tudo isso era novo, demasiado atraente para
que, do Norte e do Sul, sábios, teólogos, curiosos acorressem para o semi
deus a implorar-lhe a saúde, solicitar algumas migalhas desse saber, algum
átomo desse poder que ele manifestava tão generosamente.
Com efeito, vinham: Estrasburgo borbulhava de estrangeiros que vi­
nham para vê-lo: corriam a sua casa323, entravam, e depois de haver atra­
vessado o corredor, o pequeno pátio interno, subido alguns degraus da escada

320. Lettre au Peuple Anglais, 1787, in-4?, p. 62.


321. Mémoires de madame d’Oberkirch, t. I, cap. VII, p. 9.
322. Note-se bem: nós citamos apenas textos autênticos, testemunhos de contemporâneos,
freqüentemente hostis, mas forçados a constatar esses fatos. “Nenhum homem razoável e
imparcial, tendo passado três meses em Estrasburgo, pode negar os profundos conhecimen­
tos de Cagliostro, qualquer que seja seu desejo de não lhe reconhecer qualidades extraordi­
nárias além de sua arte. ” Carta de Burkli. Op. cit., p. 8. “Curas súbitas de doenças julgadas
mortais e incuráveis, operadas na Suíça e em Estrasburgo, traziam o nome de Cagliostro
de boca em boca. ” Georgel. Memories, p. 46. “Cagliostro está aqui; ele diz possuir a
medicina universal; ele faz belíssimas curas e não cobra nada, dizendo-se muito rico. ” 22
de novembro de 1780. Carta de Saltzman a Willermoz. Coleção Bréghot du Lut. O P.
Stark, seu inimigo pessoal e que o trata muito duramente em seu Krypto-Catholicon, p.
337, é forçado a reconhecer que ele ultrapassava todos os outros “cavaleiros de indús­
tria ” com seus notáveis conhecimentos de psicologia, de medicina e de química. E que
não se fale de uma admiração especial pelos estrasburgueses. Essas curas extraordiná­
rias, Cagliostro as fazia quando queria, tanto em Londres como em Paris: a cura de Ivan
Isleniew em São Petersburgo e a do americano em Lyon se tomaram célebres. Em Bor­
deaux, seu sucesso foi tão grande que a polícia teve de defender sua casa contra a inva­
são dos doentes agradecidos.
323. Tendo chegado em setembro de 1780 (dia 19 ou 27, segundo Sarrasin, d'Oberkirch,
Saltzmann), Cagliostro se estabeleceu alguns dias na hospedaria de TEsprit, quai Saint-
Thomas, n? 7. Nessa casa ainda se encontra uma placa com a seguinte inscrição: “Aqui se
encontraram Herder e Goethe em setembro de 1770”. Podemos ver que era um hotel com
fama de antigo (datava de 1306) e até 1785 muitas sociedades particulares, inclusive os
maçons, sem dúvida, reuniram-se em suas vastas salas. Em seguida, ele morou por algumas
semanas em um alojamento que o conde de Medem, irmão da SP de Recke, ocupara em
casa do Sr. Vogt, na pequena rua do Marché-aux-Vins (Alte Winmarkstrasse) no número
86 (n.° 25 desde 1785). Essa casa, vizinha à igreja, pertencia à serva do clérigo de
Saint-Pierre-le-Vieux, e já, nesse pequeno alojamento, a multidão assediava sua porta.
(Spach. Oeuvres, t. V p. 69). Forçado por isso a mudar, ele alugou um grande aparta­
mento perto da praça d’Armes (atualmente praça Kleber). Era uma casa de janelas
altas, longos balcões, que por muito tempo se chamou casa da Santa Virgem por causa da
e penetrado em uma grande câmara, meio salão e meio vestíbulo324, encon­
travam, encostado na lareira, um homem de estatura média, vivo, de cabe­
los negros penteados para trás, que os acolhia sem arrogância nem timidez
e que mantinha com todos a sua atitude livre e sua fala franca. Seu olhar
penetrante, cheio de vida, espantava todos os visitantes.
“E um homem muito inteligente e muito simpático, alegre, sóbrio,
ativo, sentindo-se alguém, afirmando-se e conversando, por essa razão,
com os grandes e com os príncipes como um homem que lhes pode fazer
bem e que nada espera deles325.”
Cagliostro recebia das cinco às sete horas; os homens ficavam com
ele: encontravam-se ali, ao lado de amigos íntimos como Sarrasin, Straub,
diretor da manufatura de armas, Barbier de Tinan, comissário das guerras,
os maiores personagens da cidade: o pretor-geral, o Sr. de Gerard; o car­
deal de Rohan; o marechal de Contades, governador da Alsácia; o Sr. de
1’Ort326, lugar-tenente do rei; a baronesa de Reich; M. de la Galaizière327;
sábios: o professor Ehrmann; Mathieu Béguin, conselheiro do rei; membros
da nobreza: o conde de Lutzelburgo; o barão de Dampierre, de Zucmantel;
padres: o cura de Saint-Pierre-le-Vieux em particular; às vezes visitantes
estrangeiros como Lavater, Breitinger, Touchon, Ullmann, Saltzmann ou gran­
des personagens vindos de Paris ou da Rússia328.
Em uma pequena peça, ao fundo, as damas rodeavam a Sr? de Caglios­
tro que tinha seu lugar de honra ao lado do fogo; junto a ela estava sua
grande amiga, a Sí Sarrasin, de mais idade, mais mundana329 e presidente
indicada desse pequeno cenáculo.

grande estátua que ornava o seu ângulo. Atualmente uma padaria, com a insígnia da Santa
Virgem, ocupa o andar térreo. Essa casa, em que viveu Cagliostro, forma o n? 1 da nte des
Veaux (Kalbsgasse); ela constituía, em 1782, o n? 6 da rue des Ecrivains
(Schreiberstubgasse). Também se disse que Cagliostro teve, fora da cidade, uma casa de
campo chamada Cagliostrano; o fato é duvidoso e não encontramos indícios disso. Devia
ser a villa de um de seus discípulos, assim designada em honra ao mestre; o nome teria
dado origem à confusão. Cf. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit.,/?. 7—Spach. Strasbourg
Historique, p. 69. —Ad. Seyboth. Der alte Strassburg, in-4?, Ed. Heitz, Estrasburgo. S. A.,
p. 236, 1.
324. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 8. Carta de Burkli, in Funk. Op. cit., p. 9.
325. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 10. Madame d’Oberkirch, o abade Georgel,
Lavater, de Gleiche etc. nos deixaram todos retratos análogos.
326. Ou Deslort. Carta de 1’Anmeister Lemp ao Pretor Real. Cf. Manuscritos da Bíblia de
Estrasburgo. LoteAA, 2110 e: Hermann. Notices historiques sur Strasbourg. Estrasburgo,
1819, 2 volumes in-8?.
327. O intendente de Chaumont de la Galaizière.
328. Cf. madame d'Oberkirch. Mémoires, 1.1, cap. VII, p. 8. — Weisstein. Carta de Blessig,
Op. cit. p. 8 e 11. — Carta de Burkli, in Funk. Op. cit., p. 5.
329. É o que o suíço Burkli relata nesses termos, no mínimo, deslocados: “A SE Sarrasin
representava o papel principal nessa farsa. ” Op. cit., p. 9-10.
A Sri1 de Cagliostro, forçada a receber cotidianamente por causa da
afluência dos visitantes330, a oferecer quase todos os dias a mesa aberta para
os hóspedes de passagem que lhe trazia seu marido, não reconhecia a pró­
pria casa quando os visitantes partiam. Ainda restavam os favorecidos: os
Sarrasin viviam com os Cagliostro, na maior das intimidades, “jantando
em família todos os dias da vida, habitando com eles como os primeiros
cristãos331.” A casa, sempre cheia, era mais uma hotelaria do que a morada
da condessa.
A Sf? de Cagliostro, recebida na casa do cardeal, era rodeada de mui­
tas homenagens com as quais sua simplicidade e sua timidez se acomoda­
vam bastante mal; alguns habituados, sabendo que as menores atenções
para com a condessa tocavam muito Cagliostro332, por vezes paravam no
pequeno salão para se juntar à conversa das damas; mas os recém-chega­
dos, inteiros dedicados a Cagliostro, permaneciam, logo que apresentados,
junto a ele, no grande salão.
Ali, interrogava-se, escutava-se, observava-se o misterioso taumaturgo.
Segundo as pessoas, o acolhimento era diferente: “Bom e afetuoso com
uns, brutal com outros, ele manifestava, desde o primeiro minuto de suas
conversas e suas consultas, simpatias ou antipatias pronunciadas333.”
Esses caprichos eram apenas aparentes: como Siegfried, iluminado
pelo sangue do dragão, ele ouvia falar os corações apesar das palavras que
pronunciavam os lábios; ele olhava a alma, indiferente às caretas do corpo334
e ele respondia segundo esse pensamento interior, com uma bondade tema
e penetrante com alguns, com uma frieza desconcertante com outros.

330. Censuravam-no! Burkli (Op. cit., p. 9) escreve: “A SE de la Salle, a SE de la Galaizière


só recebem duas vezes por semana; ela, todos os dias. Em casa dos outros, as pessoas
ficam uma meia hora; em casa dela, das 5 às 8 horas da noite! ” Pobre mulher! Em lugar
de lamentá-la, de admirar esse sacrifício feito de seu interior à obra de seu marido,
representam essa abnegação como uma marca de vaidade. Havia ainda outra diferença
que Burkli esqueceu em sua comparação. Nas recepções dessas damas, como em todo
salão mundano, conversava-se apenas a respeito de escândalos, lançavam-se maldades
elegantes, faziam-se intrigas; no salão da condessa, falava-se somente de sofrimentos a
aliviar, de benfeitorias, de caridades reais.
331. Carta d’un Suisse in: Spach. Oeuvres, V, p. 80. Carta datada de 1? de abril de 1782.
332. Em Estrasburgo, como em Paris, como em toda a parte, Cagliostro testemunhava
muita ternura a sua mulher e a rodeava de pequenos cuidados. Ele exigia sempre que
sua mulherfosse recebida com ele nas casas se o convidassem e, na atitude das pessoas,
em seus ataques contra ele, foram as impertinências, os subentendidos em relação à con­
dessa que suscitaram suas mais vivas cóleras.
333. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit. p. 10. O autor observa o quanto isso contribuía
para trazer sobre ele julgamentos variados, opostos e falsos por aqueles que o haviam
visto apenas por um único desses aspectos. Cf..- Ibid, p. 5.
334. “Ele não gostava de ateus e apenas sua presença, sem que eles falassem, provocava
nele tremores especiais”, dizia ele exotericamente àqueles que lhe pediam explicações.
Da Lettre de Mirabeau sur Cagliostro. Berlim, 1786, in-8?, p. 17.
Sua maneira de falar aos doentes, também, era muito variada; com
maior freqüência, muito reservado, muito simples, ele se oferecia apenas
para reunir suas orações às do doente, encorajando-o a ter esperança. Al­
guns acham Cagliostro de uma modéstia extrema: ele disse francamente a
uma dama que o consultava: “Senhora, o conde não conhece absolutamente
nada para seu mal;335 mas há um Deus no céu que, da erva mais insignifi­
cante, pode retirar um sumo que lhe devolverá a saúde; o conde de Ca­
gliostro se prosternará diante Dele para solicitar-lhe336”.
Em outras vezes, e não sem razão, ele falava com uma segurança,
com uma autoridade que deviam revoltar médicos e filósofos. A um doente
que se lançou à sua cabeça, ele disse firmemente: “Senhor, o senhor está
tão mal quanto é possível; mas lhe respondo que o conde Cagliostro o
curará337”.
Se fosse cabível (se era preciso desculpar a reflexão secreta de um
amigo presente, por exemplo), o conde acrescentava sorrindo: “Talvez eu
seja um pouco leviano ao prometer a cura: pois muitas curas não funciona­
ram, sobretudo nos surdos e cegos, mas o Céu não deixará de fazer algo
por nós”338.
Em geral, achavam-no orgulhoso, tendo sempre o ar de dizer às pes­
soas, grandes ou pequenas: “Posso ser-lhes útil e nada tenho a esperar de
vocês339”.
A conversa versava a respeito de diversos assuntos, com mais fre­
qüência médicos: solicitavam a própria cura, recomendava-se um amigo
doente. Cagliostro, sempre bondoso, não rejeitava nenhum pedido; ele escu­
tava, observava; sua figura se tornava recolhida; seu olho com freqüência
tomava uma expressão estranha340, como se a vida interior absorvesse nes­
se momento o brilho habitual de seus olhos; ele respondia, prometendo
gravemente sua intervenção. Depois, sua figura voltava a ser sorridente e,
dirigindo-se a um dos grandes personagens presentes, que não deixavam
de representar o papel de secretários — pois Cagliostro não escrevia nem

335. Cagliostro falava quase sempre de si na terceira pessoa. Spach. Op. cit., p. 75.
336. Lettre d’un Suisse de 27 de outubro de 1781, in: Spach. Op. cit., p. 75
337. Cf. Spach. Oeuvres, t. V, p. 75. O teólogo Blessig lhe censurava por prometer com
demasiada certeza; mas como suas promessas jamais eram vãs, a crítica não cabe. O Dr.
Martius cita um belo exemplo: “A um suboficial que o consultava, ele deu um medica­
mento e lhe assegurou que ele estaria curado em quinze dias e o convidou a jantar para
festejar essa cura; o que aconteceu exatamente”. Cf. Dr. Martius, Erinnerungen aus
meinem... Leipzig, 1847, p. 74.
338. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit. p. 7, cita essa frase sem a compreender.
339. Ele o dizia às vezes, brutalmente até, a alguns, como o fez ao cardeal de Rohan e a
Lavater. Cf. Spach. Op. cit. P. 71 e Mainers. Lettre, in: Lettre de Mirabeau sur Cagliostro.
Berlim, 1786, in-8?, p. 17.
340. Madame d’Oberkirch. Mémoires, t. 1, cap. VII, p. 2. "Era ao mesmo tempo gelo e
chama. ”
uma só receita —, ele lhe batia no ombro e lhe dizia: “Meu amigo de
Flachsland,” ou: “meu amigo de la Salle,” ou: “meu amigo de Rohan, es­
creva o que vou lhe ditar.” Eles escreviam e Cagliostro endossava seus
escritos341, acrescentando às vezes algumas explicações.
Quando se podiam evitar as questões puramente médicas, os espíri­
tos curiosos, como o cardeal, Salzmann ou Ramond de Carbonnières, es­
forçavam para interrogar Cagliostro acerca de seus poderes, das ciências
secretas; tentavam fazê-lo falar, o que nem sempre era fácil. Com a mesma
espontaneidade desconcertante, ou ele discorria com abundância, ou não
se lhe podia arrancar nem uma palavra. Quando lhe fosse conveniente fa­
lar, fosse dele, do livro da natureza ou dos segredos do espírito, todos,
mesmo os mais difíceis, eram cativados342.
Ele criticava severamente os médicos, homens superficiais na maio­
ria, que acreditam haver examinado um doente após lhe haverem tateado o
pulso. Na escola em que ele se formara343, haviam-lhe ensinado que nada
era isolado na natureza, que todo ser tinha elos que se uniam intimamente
no centro; que, como a série dos fatos forma uma cadeia ininterrupta344,
todo ato deve se cumprir primeiro no mundo espiritual antes de se realizar
na matéria. O que está no alto é como o que está embaixo. O verdadeiro
conhecedor da natureza deve portanto olhar em cima e embaixo, penetrar o
mundo do espírito assim como o da matéria. Toda a medicina, a química,
por suas “dissoluções” e suas “composições”345, devem apoiar-se sobre
esse conhecimento da vida. A ciência dá todo o poder; mas, para possuí-la,
e antes mesmo de possuí-la, para ser julgado digno dela, é preciso estar
regenerado física e moralmente. Cagliostro deixava já compreender, as­
sim, que testes, uma iniciação graduada, deveríam preparar o homem àquele
Grau de evolução que ele deveria atingir; essa deveria ser a obra da Maço-
naria e ela assim seria se seguisse o Rito puro e primitivo346.

341. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 11.


342. “Eu me espantei com suas respostas, diz um visitante muito desconfiado dele, e encon­
trei nele não apenas um médico esclarecido, mas um filósofo observador, um verdadeiro
conhecedor dos homens, um fino fisionomista... ” Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 15.
343. Foi em Medina, dizia ele, em uma escola em que há poucos alunos; de lá ele atraves­
sara o mar Vermelho e o Egito para vir até aqui; ele fizera o juramento, como todos os da
sociedade, de viajar pelo bem da humanidade e de distribuir gratuitamente o que recebe­
ra da mesma maneira. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit. p. 6. A declaração parecerá
clara àqueles que estudaram um pouco o simbolismo; o próprio nome de Medina é signi­
ficativo. Essas declarações lembram as dos Rosa-Cruzes.
344. Cf. Spach. Oeuvres, t. V, p. 70.
345. É o “Solve et Coagula” dos alquimistas. Cf. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit. p. 5, 6.
346. “Cagliostro diz: Um maçom que necessita de médico quando está doente não é um
maçom: ele pretende que a ciência (maçônica} está intimamente ligada à arte de curar. ”
Carta de Saltzman a Willermoz., em 1? de junho de 1781, após uma visita feita a Caglios­
tro. Coleção Bréghot du Lut.
O médico preparava assim a obra do iniciador: o objetivo da Maço-
naria egípcia era formar tais homens, livres, tendo recobrado, como ele
próprio, e ele dava provas disso, seus poderes originais. Entre aqueles que
escutavam, muitos, sem dúvida, deixaram a boa palavra se perder, mas
alguns a puseram em ação e trabalharam segundo seus conselhos.
Se chegassem na hora de suas “audiências”347, ou seja, no momento
em que ele recebia em comum, em sua grande sala, todos os doentes da
cidade e dos arredores, assistia-se a uma confusão indescritível em que
apenas o respeito pelo Mestre e o desejo de ouvi-lo mantinham um pouco
de silêncio e de ordem. O vestibule, a escada, o pátio e mesmo a calçada
diante da porta se enchiam de pessoas que se comprimiam348. Ele passava
em meio a eles, sozinho ou acompanhado de seu ajudante349, falava a to­
dos: um olhar, uma palavra, um nome lhe bastavam para ver, socorrer e por
vezes curar para sempre o doente. Seu ajudante anotava endereços e, de­
pois de a audiência terminada, corria para levar cá e lá medicamentos,
receitas e socorrer ou saber as novidades dos doentes presos ao leito350.
As vezes, Cagliostro parava por mais tempo junto a um doente, falando-
lhe diante de todos ou em particular, descrevendo-lhe sintomas de sua doença
ou chagas secretas de seu coração, que o consultante acreditava serem co­
nhecidos apenas por ele próprio. E, endireitando os tortos da alma, ele
curava também o corpo351. Outras vezes, por ocasião de uma palavra que
lhe diziam, ele elevava a voz e falava a todos. Era então com autoridade, de
muito alto, e das coisas eternas.
“Eu saio de sua audiência”, escreve um contemporâneo... “imagine,
madame, uma sala imensa, repleta dessas criaturas infelizes, quase todas
privadas de recursos, e estendendo para o céu suas mãos desfalecentes,
que quase não conseguiam erguer, para implorar a caridade do conde.
Ele os escuta um após o outro, não esquece nenhuma de suas pala­
vras, sai por alguns instantes, volta logo, carregado com uma porção de
remédios que dispensa a cada um desses infortunados, repetindo-lhes o
que eles lhe disseram de suas doenças, assegurando-lhes que logo estarão
curados, se quiserem executar fielmente suas recomendações. Mas apenas
os remédios seriam insuficientes; eles precisam de sopa, para adquirir a
força para suportá-los; poucos desses infortunados têm os meios para con­
segui-la: a bolsa do sensível conde é repartida entre eles; ela parece ser

347. “Cagliostro mandou imprimir cartazes pelos quais ele instruiu o público de seus dias de
audiência. ’’ 1? de junho de 1781. Carta de Saltzman à Willermoz, Coleção Bréghot du Lut.
348. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 7.
349. Um homem de nome Jaquaut, antigo funcionário no hotel das vendas, foi o primeiro;
ele teve muitos, a quem pagava bem, cujos nomes permaneceram desconhecidos. Sachi
(ver p. 111 deste livro) também fez esse papel. Cf. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 12
350. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit.,p. 12
351. Cf. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 15.
inesgotável. Mais feliz em dar do que em receber, sua alegria se manifesta
por sua sensibilidade. Esses infelizes, cheios de reconhecimento, de amor
e de respeito, prostemam-se a seus pés, beijam seus joelhos, chamam-no
salvador, pai, deus... o bom homem se enternece, as lágrimas correm de
seus olhos; ele gostaria de escondê-las, mas não tem forças para isso; ele
chora e a assembléia se desmancha em lágrimas...
Lágrimas deliciosas, que são o regozijo do coração e cujos encantos
não se pode conceber, quando nunca se foi feliz o bastante para derramá-
las como tais!
Eis um esboço muito fraco do espetáculo encantador de que acabo de
gozar e que se renova três vezes por semana352.”
Falou-se muito de suas drogas secretas; os médicos, não podendo
negar os resultados, e não querendo atribuí-los senão a ações do domínio
de sua arte, pretenderam que todas essas maravilhas só se deviam ao em­
prego de medicamentos bem conhecidos, diziam alguns; secretos, afirma­
vam outros, mas que, entre as mãos de qualquer outro, teriam agido da
mesma maneira; venenos violentos e “incendiários”353, de que ele usava
sem medida, escreviam certos autores; preparações anódinas, sem outra vir­
tude além da de deixar agir a natureza, declaram outros práticos. Ou seja,
as mais ridículas, as mais contraditórias afirmações354.
De fato, Cagliostro não se utilizava de uma terapêutica única; variava
seus procedimentos ao infinito, guiando-se menos pela doença do que pelo
estado de alma do doente e daqueles que o rodeavam, antevendo o resultado
— escândalo necessário ou encorajamento útil — que seu gesto determinaria.
Ora, como o faria qualquer médico esclarecido, ele empregava medi­
camentos comuns: extrato de Saturno355, aloés, tisanas refrescantes, for­
mulando segundo os hábitos da época uma receita que o farmacêutico
executava356; ora ele se chocava com os costumes em voga; eram o seu pó

352. (Laborde) Lettres sur la Suisse. Genebra, I783, 2 vol. In-8? Nas cartas de recomendação
do Sr. de Vergennes, do cardeal de Rohan para Cagliostro, encontramos os mesmos elogios e
os mesmos testemunhos do número enorme de doentes que passaram pela sala e foram cura­
dos por ele. Cf. Lettre à Madame de Créqui, Brevet de De Vergennes, in: d’Alméras. Op. cit.,
p. 200-201. Carta ao Pretor Real, in: Manuscritos de Estrasburgo. Lote AA. 2110 peça VII.
353. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 19-20. Dr. Ostertag. Mémoire, p. 49. Biblioteca
de Estrasburgo. Lote AA. 2110. Oberrheinische Mannigfaltigkeiten, 1781, 1? trimetre, p.
114. Carta de Gorge.
354. Carta de Burkli in: Funk. Op. cit., p. 16, 17. D ’Oberkirch. Mémoire, 1.1, cap. VII, p.
1. Madame de la Motte, em sua Resposta ao Relatório do Conde de Cagliostro. Paris
1786, in-4°, p. 21, repetiu tudo isso.
355. Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit. p. 9. Spach. Oeuvres, t. V, p. 70.
356. O Dr. E. W. Martius, antigo farmacêutico da corte e da Universidade em Erlangen,
deixou, em seus Souvenirs, notas interessantes sobre esse assunto. “Cagliostro”, diz ele,
“entregara muitas de suas fórmulas na farmácia em que eu trabalhava (Farmácia Hecht) e
eu tinha de prepará-las. Esses medicamentos, aos quais o conde dera nomes muito sonoros,
rosa357, seu bálsamo ou vinho do Egito358 que operavam maravilhas; e se o
médico oficial ordenara uma dieta de água, Cagliostro fazia o doente co­
mer e lhe administrava um copo de vinho tinto.
Seu conhecimento profundo da alma humana lhe abria também por­
tas ocultas dos médicos comuns: ele sabia medicar os ferimentos do cora­
ção, devolver a energia e a felicidade aos pobres seres desencorajados,
esmagados pela tristeza. O emprego de forças especiais, negadas em seu
tempo, mas admitidas no nosso, apesar de seu rótulo de magnetismo, de
hipnose, de sugestão, era-lhe familiar. Se ele não as chamava por esses
nomes especiais, conhecia suas leis, o que valia mais, e as aplicava segun­
do as necessidades, raramente, é verdade359, em comparação com os outros
medicamentos. Se julgava bom provar a seus discípulos, a qualquer cético,
a existência dessas forças, ele recorria a elas, não que isso fosse indispen­
sável ao doente, mas porque era útil às testemunhas.
Enfim, por trás de todos esses procedimentos exteriores, em cada um
desses tratamentos, havia a verdadeira, a única ação que lhe era própria, que
em nada se confundia com nenhum deles, não mais com o magnetismo do
que com a farmacoterapia, ação também inteiramente desconhecida tanto em
nossos dias quanto nos seus: estou falando da ação espiritual. Em Estrasburgo,
como em Lyon, como em Paris, quando Cagliostro dizia: “O Céu lhe conce­
da seu pedido”, fossem em audiência pública, no gabinete do cardeal ou na
Loja egípcia, o mundo espiritual obedecia a sua voz e o ato material se pro­
duzia imediatamente. Esse poder, ele o usava à vontade, mas com discrição,
e quando ele queria aplicá-lo à medicina dos corpos, a doença, fosse mortal,
desaparecia com ou sem extrato de Saturno, com ou sem gotas amarelas360.

expressivos (sehr viel versprechende), vinham da fannacopéia geral (tisanas de plantas


purgativas, pílulas purgativas, estomáquicas, electuârio peitoral, pomada para o rosto). ”
A fórmula mais original é a de seu Oléo-sacchari ('.s/c) que se aproxima das preparações
herméticas. Encontramos essas receitas no Apêndice na p. 269 deste livro. O Dr. Martius,
como muitos homens da época, testemunha em duas outras passagens grandes conheci­
mentos científicos, químicos em particular, que possuía o conde (Dr. E. W. Martius:
Erinnerungen aus meinem neunzigjahringen Leben. Leipzig, Voss, 1847, in-8i, p. 74). O
Dr. Ostertag, em sua Mémoire, dá a fórmula complexa de um pó fortificante de Caglios­
tro, de ação especial sobre o útero, que ele conseguiu, segundo ele, de uma pessoa de
confiança, mas cuja origem é menos certa. Cf. Apêndice, p. 269.
357. Consolidante. Cf. cap. Ill, p. 39, nota 13.
358. Ostertag. Mémoires, p. 49. “O vinho do Egito ou Bálsamo do conde de Cagliostro
cura tudo. ” Era ministrado em gotas. Laborde, em suas Lettres de Suisse, fala dele com
entusiasmo. Cf. (Manuel). Lettre d’un garde du roi, in-16, p. 21.
359. Cf. p. 61 e 73. Indicamos que Cagliostro só se serviu deles excepcionalmente; em
Estrasburgo, ele jamais praticou o magnetismo. O Dr. Martius, conhecedor da matéria
por seguir as experiências de Puységur, e que estava em Estrasburgo, declarou que Ca­
gliostro não se ocupava de magnetismo animal. Dr. Martius, op. cit., p. 74.
360. A última frase de seu Aviso ao Público é bem explícita para quem a sabe ler: o conde
desaconselha “as gotas amarelas fabricadas por Sachi, em imitação das ciências, assim
como todas as que pudessem ser administradas por qualquer um além dele”. Cf. p. 56.
Esse poder, esse direito de comandar, era sua propriedade e permanece
seu segredo361. Mal providos de documentos, limitados por nossa inteli­
gência, podemos apenas assinalar alguns casos em que sua maravilhosa
ação terapêutica se manifestou, mas não podemos pensar em analisá-la.
Para compreender Cagliostro, dizia um contemporâneo, seria preciso ser
ele próprio. Querer explicá-lo, falar de procedimentos, seria ainda mais
absurdo; contentemo-nos, como fizeram os discípulos fiéis, em respeitar
seu nome, admirar suas obras e alimentar em nós essa esperança que ele
nos deixou “de esperar um dia, por esforços contínuos e com a graça de
Deus, o domínio moral362”.
Adivinhamos o fervor que o rodeava: as pessoas mais delicadas da
alta sociedade se acotovelavam em suas audiências, sem se inquietar se
esbarravam em lojistas, em doentes contagiosos ou miseráveis em farra­
pos; virou moda ir à casa dele363.
Como ele morava perto da praça de Armas, grande parte da guarni­
ção vinha vê-lo por volta de meio-dia; outros, das cinco às oito; outros, no
momento das audiências. “Iam em assembléia à casa de Cagliostro364.”
No intervalo das recepções, a casa não se esvaziava; cortesãos dese­
josos de agradar ao cardeal, esperando encontrar ali algum grande perso­
nagem, amigo do mestre, apareciam a toda hora. Cagliostro mal tinha o
tempo de comer; com freqüência tomava sua refeição, pão e queijo, água e
café, de pé, correndo365.
Da manhã ao meio-dia, ele corria para ver seus doentes, a pé ou de
carroça, não importava o tempo que fizesse366.
Era reconhecido na rua, paravam-no, lançavam-se a seus joelhos;
velhas senhoras desfiavam rosários ou se persignavam à sua passagem em
sinal de veneração367.
Ele voltava e encontrava sua casa cheia de solicitantes estrasburgueses,
discípulos antigos, recém-chegados que lhe apresentavam, estrangeiros
vindos de longe para consultá-lo, e que esperaram por longas horas, às
vezes mesmo por dias, antes de poder encontrá-lo368.

361. “E o golpe de mestre, o segredo que eu guardo em meu coração ”, dizia um dia a uma
dama que ele estimava sinceramente e a quem ele acabava de explicar muitas coisas...
mas não essa. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 5.
362. Ritual da Maç.-. Egípcia. Entrada do recipiendário, p. 28.
363.Weisstein. Carta de Blessig, op. cit.,p. 7.
364. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit., p. 8. A clientela no mundo dos oficiais foi muito
grande, em seguida a algumas curas espantosas. Dr. Martins, op. cit., p. 74.
365. Weisstein. Carta de Blessig, op. cit. p. 14. — Lettre de Labarthe à Séguier in: Funck-
Brentano. Affaire du collier, p. 90. — d’Oberkirch. Mémoires, t. 1, cap. VII, p. 2.
366. De Gleichen. Souvenirs. Paris, 1868, in-16, p. 136.
367. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 7.
368. Blessig. Carta, in: Wisstein, op. cit., p. 7 e 9.
Tão grande era a afluência que, apesar dos poucos instantes concedidos
a cada um e da discrição de seus amigos, as recepções se prolongavam até
tarde da noite, de modo que o conde dormia tão pouco e tão mal quanto
comia369.
Ele era o homem do momento, o orgulho dos estrasburgueses; ele
fazia a fortuna dos hoteleiros; a felicidade dos doentes, a edificação de
todas as almas. Para prendê-lo a Estrasburgo, todos entraram de acordo;
amigos, com seu assentimento, manobraram para lhe obter do rei uma au­
torização regular para exercer a medicina e fabricar seus medicamentos
em Estrasburgo. Essa patente teria oficialmente consagrado seu sucesso370.
Tal renome deixava furiosos os médicos371: a tempestade ameaçava
no templo de Esculápio; ela estourou na seguinte ocasião:
Em 23 de maio de 1781, uma pobre mulher de Leimengoessel,
Catherine Groebel, mulher de um pedreiro, estava muito mal. Uma gravi­
dez, quase a termo, causava nela sintomas alarmantes. A Sfl de la Fage,
que se interessava pela família, pediu ao Dr. Ostertag, um dos parteiros
mais reputados de Estrasburgo, que viesse visitá-la. Este julgou o caso
muito perigoso: descreveu muito longamente e com pouca clareza em seu
relatório372 o estado da doente: Fácies peritoneal, estado infeccioso, crises
eclâmpticas, útero voltado para a direita, pescoço muito alto, aplicado à es­
querda, entreaberto, mas não dilatado; síncopes freqüentes; eis o que se adi­
vinha através dos termos imprecisos e antiquados que ele emprega; a criança
sem dúvida morta. Dois outros médicos, MM. Wittel e Schnabé, estavam lá
com a parteira, Magdelaine Leidnerin. O caso, podemos ver, era grave.
Ostertag confortou um pouco a parteira para o momento, mas disse que a
situação poderia agravar-se, que seria talvez forçado a recorrer a uma inter­
venção, que ela não deixasse a mulher e mandasse buscá-lo em caso de
urgência373.
Em todos os dias que se seguiram, ele voltou: a doente sofria ainda,
com crises, mas seu estado não parecia piorar. No dia 28, às 4 horas da

369. Com freqüência ele dormitava, algumas horas apenas, sobre uma poltrona. Cf. p. 28
370. O pedido, apoiado por uma carta do cardeal de Rohan, datada de 17 de julho de
1781, encontra-se na Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110.
371. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 8.
372. Mémoires pour le sieur d’Ostertag..., 56 páginas in-8?. Levrault, impressor,
Estrasburgo, 1781 (ad finem/ Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, I.
E desse relatório, escrito contra Cagliostro, que extraímos o resumo desse caso.
373. Ostertag deu uma prescrição ou não? Ele o afirma com insistência, explicando que,
por falta de tinta e papel, ela fora feita verbalmente: ele teria prescrito 1-2 escrópulos de
nitro em caldo de vitela. O tratamento médico não era evidentemente de nenhum interes­
se, mas a afirmação de Ostertag é bem inverossímil: parece muito extraordinário que,
após a consulta com três médicos, nenhuma receita tenha sido redigida e que uma pres­
crição de dose de 1-2 escrópulos tenha sido feita somente de viva voz.
tarde, chamaram-no; agravação súbita: a doente teve uma síncope. Ele apa­
receu às 7 horas da noite; apressado, sem dúvida, para voltar, ele não exa­
minou a doente, apenas conversou com a parteira, disse que o viesse pro­
curar se ocorresse algum acidente. A noite passou; na manhã seguinte, 29,
por volta das 11 horas da manhã, ele voltou e, ao abrir a porta, viu junto da
doente Cagliostro e o cura da paróquia, o Sr. Zaegelins. Voltou a fechar a
porta, mandou chamar a parteira e lhe perguntou se fora ela quem man­
dara chamar Cagliostro. — Não, foi o Sr. cura quem o trouxe; de resto, o
Sr. conde não tocara a doente, acrescentou ela; ele nada lhe receitara, mas
lhe dera um escudo de seis francos. Ostertag, furioso, retirou-se e, desde
então, não voltou mais.
Após ter visto a doente, Cagliostro lhe enviou, por intermédio do Sr.
Zaegelins, um pó vermelho que ele recomendou dar a ela naquele mesmo
dia, às 5 horas da tarde, misturado em vinho tinto: ele autorizava a doente
a tomar vinho e café com pão se ela tivesse fome, o que ocorreu com
efeito às 8 horas da noite. As 10 horas, a doente, estando em pé, a bolsa
d’água se rompeu; em cerca de meia hora ela deu à luz, com apenas duas
contrações expulsivas; parto espontâneo, muito rápido, quase imediato.
Na manhã seguinte, Cagliostro lhe fez uma visita: é fácil imaginar o
reconhecimento com que foi recebido; ele tirou do bolso um frasco e der­
ramou algumas gotas do bálsamo que ele continha em uma colher de água,
que deu de beber a sua doente. Pouco tempo após, a mãe se erguera e a
criança foi batizada na paróquia de Saint-Pierre-le-Vieux, em presença de
Cagliostro. Essa bela cura causou um grande rumor: a doente reconhecida
e tagarela, o bom cura, protetor da família, testemunha dos fatos, todo feliz
por ter levado o salvador no momento do perigo, contavam com alegria o
fato na paróquia. Cagliostro, de seu lado, não deve ter poupado o médico.
Os amigos de Ostertag, verdadeiros ou falsos, vinham à casa dele, com
rostos desolados, trazer-lhe seus consolos, dar-lhe conselhos374.
Ostertag, cada vez mais irritado, fez chamar a parteira, mandou-a fa­
zer uma declaração que tendia a provar que jamais houvera perigo; que o
caso fora simples, que ele não falara de operação cesariana, nem pensara
que a criança estava morta, que Cagliostro só fizera mal. Era uma vergo­
nha, dizia ele, desacreditar um homem de sua arte e de sua importância.
Ou Cagliostro ficou revoltado com essa má-fé do professor e com o
falso testemunho imposto à parteira, ou foi levado a isso por seus amigos;
não poderiamos dizer. Em todo caso, ele não ficou em silêncio. Essa cura
fora surpreendente, ela deveria fazer refletir certos espíritos. Para restabe­
lecer a verdade, ele fez apelo ao testemunho do cura Zaegelins, que assis­
tira a todo o drama, do início ao fim, como a parteira, e que, além disso,
recebera as confidências de Ostertag à cabeceira da moribunda.
Eis, em sua versão integral, o certificado que ele deu:

374. Mémoire d’Ostertag, p. 25.


“Eu, abaixo assinado, cura da paróquia de Saint-Pierre-Ie-Vieux, cer­
tifico que fui chamado por Catherine Noirot, esposa de Nicolas Groebel,
burguês e mestre-pedreiro desta cidade, em 24 de maio último, para rece­
ber sua confissão e lhe dar, se necessário, a santa comunhão, precaução
que lhe havia aconselhado a tomar o Sr. Ostertag, doutor em medicina e
parteiro da cidade, achando, assim como a parteira, que a doente podería ter
um parto malsucedido, assim como podería ser seu último, pois estava em
um estado de febre contínua com dores incessantes; a parteira dizia mesmo
que o Sr. parteiro, assim como ela, temia que seu fruto não estivesse mais
vivo; levado por sentimentos de compaixão, falei disso ao Sr. Milliaut, em
forma de conversa, que não acreditou poder prescrever nenhum remédio,
pois não havia visto a doente. Dirigi-me ao Sr. conde de Cagliostro, cuja
sensibilidade de alma me era conhecida, assim como sua generosidade e o
socorro que ele já prestara em minha paróquia, desde que veio morar nesta
cidade; este último me prometeu logo aliviá-la, deu-me um remédio que,
mal a grávida tomou, as dores da criança vieram. Tendo vindo o Sr. parteiro,
encontrou o estado da doente mudado o bastante para abandonar o parto à
parteira, dizendo que a criança se apresentaria naturalmente. Na manhã
seguinte, o Sr. conde administrou outro remédio e as dores logo voltaram,
mas sem efeito. Por fim, em 30 de maio, ele lhe administrou novamente o
primeiro remédio; ela deu à luz muito facilmente um menino com tão boa
saúde que ela lhe conferiu o batismo, concedido na igreja às 4 horas da
tarde.
Em fé de que dei o presente certificado, assinado por minha mão e
munido do selo paroquial.

Zaegelins, cura375.”
Esse atestado de um homem conhecido por sua bondade e cuja palavra
era respeitada foi um golpe de clava para Ostertag. Em vão, ele tentou,
com seu longo relatório376, diminuir o valor dos testemunhos do cura,
provar que ele não podia ter-se enganado, que Cagliostro só fizera reco­
lher o fruto dos cuidados que ele ministrara, que os medicamentos do
conde eram sem valor; que a ordem dos fatos relatados por Zaegelins era
inexata, ele se debate contra a evidência, contradiz-se, evoca em vão a
autoridade da faculdade, acumula inutilmente termos sábios sobre cita­
ções fora de contexto377.

375.0 relato do cura difere em alguns detalhes, muito interessantes, do relato de Ostertag;
mas a base permanece a mesma e os papéis de Ostertag e de Cagliostro são restabeleci­
dos segundo a verdade.
376. O relatório de 56 páginas apareceu nesse momento.
377. Retiramos ao acaso no relatório do professor estas frases monumentais: “A doente não
tinha mais febre porque as dores uterinas haviam cessado e porque a febre tinha unicamente
Seu relatório não foi aprovado pela Câmara dos Quinze378, que man­
dou chamar Ostertag e lhe declarou que a alocução dirigida por ele em sua
obra ao Conselho dos Quinze era indecente, de natureza a comprometer
essa Câmara, e que ele teria de suprimi-la379.
A permissão de imprimir dada a Ostertag pelos magistrados havia
sido considerada por muitos, e por Cagliostro, como uma aprovação dada
ao libelo do parteiro pelo pretor real; a retificação precedente pedida pelo
cardeal380 e obtida do Conselho dos Quinze mostrava a todos que o relató­
rio do senhor Ostertag não passava da exposição de uma querela pessoal e
não era o enunciado de um protesto geral, de ordem científica, emanado da
Faculdade381. Ostertag, humilhado, exasperado por seu insucesso e pela
declaração pouco honrosa do Conselho dos Quinze, não se deu por venci­
do; resolveu vingar-se e encontrou aliados.
A rude franqueza de Cagliostro, sua atitude livre, que não admitia
constrangimento e não se freava com as convenções mundanas382 já haviam
magoado muitos desses personagens vaidosos que correm os salões; entre
outros, um oficial de cavalaria, o Sr. de Narbonne. O visconde de Narbonne,
coronel no regimento da rainha, jantava, uma noite de agosto de 1781,

relação com as contrações dolorosas da gravidez” (p. 31); “A criança não estava morta,
pois não havia nem fetidez, nem hemorragia e a mulher não sentia movimentos fora do
normal em seu ventre ” (p. 32); “O parto é uma operação mecânica que sempre se faz com
uma bacia normal, se a apresentação é pela cabeça, e que jamais se faz sem acompanha­
mento, se a apresentação for diferente ” (p. 38 e 39); e esta para terminar: ‘‘Se o conde de
Cagliostro crê que um medicamento possa provocar as contrações uterinas, ele não hon­
ra os seus conhecimentos médicos”, (p. 36). Cagliostro certamente acreditava nisso, pois
é uma verdade; ele talvez se tenha servido disso; em todo caso, Ostertag o ignorava e,
além disso, qualquer médico concordará, ele cumpriu muito mal o seu dever junto à
ciência e aos deveres de sua profissão. Eis sem dúvida por que Cagliostro, habitualmente
muito indiferente aos ataques de seus detratores, mostrou-se em relação a ele tão enérgi­
co e severo.
378. Funfzehnmeister; uma das três assembléias consultativas da cidade: esta Câmara
velava pela manutenção da Constituição. Cf. E. Muller. Le magistral de la ville de
Strasbourg. Estrasburgo, Salomon, 1882, in-8°.
379. Sessão de segunda-feira, 16 de julho de 1781. Um relato dessa desaprovação oficial
foi inserido, pelos cuidados de um amigo, nas Variétés Haut-Rhinoises, p. 196, na data de
27 de julho de 1781.
380. Carta do cardeal de Rohan ao pretor real, de 17 de julho de 1781. Biblioteca de
Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, II.
381. O pretor real escreveu, além disso, uma carta ao Sr. Barbier de Tinan em que confir­
ma oficialmente que ‘‘todos os membros do Magistrado (é assim que se chamava a Câma­
ra dos XV) estão bem longe de adotar as impressões que o escrito em questão buscava
divulgar à custa do Sr. de Cagliostro”. De 27 de julho de 1781. Biblioteca de Estrasburgo:
Manuscritos, lote AA, 2110, 71 peça.
382. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 4. — Ein paar Trõpflein..., p. 2.
em mui brilhante companhia, na casa do cardeal383, com o conde e a con­
dessa.
Nessa época já se discutia Cagliostro e se lançavam sobre a condessa
algumas pequenas maldades, muito mais porque dela se dizia, por outro
lado, muito bem e que era encantadora. O Sr. de Narbone se fez eco des­
sas fofocas; seu amor-próprio havia sido ferido anteriormente pelo con­
de, de forma que ele olhava Cagliostro sob um ponto de vista muito ruim e
sempre buscava uma ocasião de manifestar sua animosidade384.
Não a vendo vir, ele a provocou: durante o jantar, virou uma molheira
sobre o vestido da Sf de Cagliostro385.
Agitação geral: todos correram para ela. de Narbone, fingindo des­
culpar-se, acentuou sua impolidez para forçar Cagliostro a intervir.
— E barulho demais por um vestido, exclamou ele, eu o pagarei.
— Eu lhe havia dito para não se sentar ao lado deste homem, respon­
deu Cagliostro muito calmo, dirigindo-se a sua mulher.
— O senhor é um insolente, senhor, e me prestará contas disso —
com a espada na mão, gritou o visconde.
— Eu não sou um esgrimista: bater-se é a sua profissão, e não a
minha.
— Pois bem! Tomaremos a pistola!
— Também não aceito: minha profissão é curar e não matar.
O visconde se ergueu e lhe atirou um prato ao rosto, gritando pela
sala: “Eis o que acontece quando somos forçados a jantar com condes e
condessas feitos às pressas, caindo como bombas, não se sabe de onde386.”
Todos se levantaram; o jantar se interrompeu: o cardeal, seu grão-
vigário o abade de Aymar, o marechal de Contades, intervieram, suplican­
do à direita, ameaçando à esquerda, tentando parar de Narbone. Pedem
desculpas à condessa e, dessa maneira, para melhor ou para pior, a noite
terminou.
O caso fez grande rumor em Estrasburgo: o ódio do Sr. de Narbone,
anterior a essa história, que cresceu mais ainda depois dessa noite, conti­
nuou a perseguir Cagliostro. Foi o primeiro aliado, e não o menos, de
Osterstag na campanha que eles fizeram em 1781 contra o conde387.

383. Carta de Anmeister Lemp ao pretor real, de 7 de agosto de 1781, Biblioteca de


Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, XI? peça, p. 1. — A palavra Anmeister é
intraduzível: designava uma função de vigilância e de direção sem análogo entre nós. Cf.
E. Muller. Le magistral de la ville de Strasbourg. Estrasburgo, Salomon, 1882, in-8l.
384. Talvez fosse mesmo um fanfarrão contratado para procurar uma briga com Cagliostro
e acabar com ele: o que lhe disse Cagliostro naquela mesma noite parece prová-lo.
385. Lemp. Carta citada, f? 1 1?. — Lettre d'un Suisse in: Spach. Oeuvres, t. V., p. 76.
386. Spach. Ibid., Lettre d’un Suisse, de 27 de outubro de 1781, p. 76.
387. Uma noite, o grosseiro cartaz que reproduzimos aqui foi afixado em todos os bairros
da cidade, nos lugares mais freqiientados:
Um segundo acólito veio juntar-se a eles alguns meses após: um anti­
go servente de hospital, que se fazia passar por dentista, chegou da Espa­
nha em Estrasburgo em novembro, em meio à luta. Ostertag tinha poucas
informações: os servidores de Cagliostro eram fiéis; ele precisava de um
espião in loco; Carlo Sachi tinha necessidades o bastante para aceitar esse
papel e todas as qualidades desejadas para cumpri-lo388.
Cagliostro contava ter estado em Valença por volta de 1771; isso bas­
tou para introduzir o assunto. Sachi se apresentou ao conde, afirmou tê-lo
conhecido na Espanha, lembrar-se de sua bondade e querer consagrar sua
vida a seu serviço por reconhecimento. Cagliostro estava de partida para
Saverna; prometeu lembrar-se dele e na volta, dia 27 de dezembro, ele
tomou Sachi a seu serviço como “moço de recados”389 para realizar incum­
bências junto aos doentes.
Sachi não perdeu tempo: devia levar medicamentos e entregá-los gra­
tuitamente; fazia-os pagar bem caro sem que seu mestre soubesse, arrancava
o dinheiro dos pobres e apresentava ao conde as notas do boticário a pagar.
Cagliostro passava assim por um hábil mercador de drogas, perdia a estima
de seus doentes e oferecia assunto à crítica. Isso fazia cumprir o plano de
Ostertag e também o de Sachi, que enchia os bolsos390.
Sachi se manifestava, tagarelava nas casas, nos cafés, nas praças
públicas; faziam-se rodinhas em tomo do ajudante-cirurgião do Sr. Cagliostro.
Ele falava de seu mestre com importância a princípio, depois misturava reti­

O Conde Cagliostro
Charlatão em Malta, tendo ali chegado
Em traje turco, charlatão em Toulouse e em Rennes,
Velhaco e impostor na Rússia, mentiroso e aventureiro
em Estrasburgo, impertinente e João f... em Saverna.
Será visto em todo lugar da mesma maneira.
5 de agosto de 1781.
Um segundo se seguiu, afixado à porta dos albergues:
Flaschland, o velhaco, protege Cagliostro, o tratante.
7 de agosto de 1781.
Depois um terceiro, em que a St1.'de Cagliostro e a SE de Terche eram odiosamente insul­
tadas.
Era obra do Sr. de Narbonne: a polícia tinha quase certeza; para satisfazer o marechal,
indignado, a polícia fingiu buscar os culpados, sem nada encontrar, e se contentou em
rasgar os cartazes e abafar os rumores. Lettres de Lemp ao pretor real, da data de 16 de
agosto de 1781, mesmo lote, peça XII, p. 2. — Weisstein. Carta de Blessig, Op. cit., p. 9
também fala desses cartazes.
388. Carta de Barbier de Tinan, comissário das guerras ao Pretor real, 18 de janeiro de
1782. Biblioteca de Estrasburgo, lote AA, 2110, III.
389. Spach. Ibid., Lettre d’un Suisse, p. 78, de 25 de fevereiro de 1782. Carta de Barbier
de Tinan, p. 2.
390. Carta de Barbier de Tinan, p. 5.
cências, arriscava alusões acerca de seu passado, que ele conhecia bem;
por fim, fingindo entregar-se a confidências, derramava no ouvido dos as­
sistentes todas as infâmias que reencontramos mais tarde, reeditadas por
seus inimigos: “Em Valença”, dizia ele, “eu o mediquei, ele, o malandro,
por uma medonha doença venérea, que ele apanhara, e a pequena condessa
também, percorrendo os maus lugares391. E eis o seu grande homem! Todas
as suas fórmulas não valem quatro liards392; todas as suas caretas, eu pode-
ria fazê-las se eu não fosse um homem honesto. Com muita freqüência
tenho vontade de lhe lançar tudo isso ao rosto quando o ouço me tratar de
rapazinho e tratar os médicos de asnos.
— E por que você não o faz? Diziam os ingênuos, imediatamente
abalados em sua simpatia, já aliados a Sachi.
— Por quê? Porque ele me mataria, como já fez com outros; que me
dêem seis granadeiros para me defender e eu lhe direi tudo em público.”
Quando ele contava tudo isso, em 2 de janeiro de 1781, em um café
de Estrasburgo393, encontrava-se entre os ouvintes um doente de Caglios­
tro, reconhecido, mas muito confuso com essas palavras, que correu para
contar tudo ao mestre, suplicando-lhe que o tirasse da perturbação em que
aquele homem acabara de o mergulhar.
Cagliostro mandou chamar Sachi, repreendeu-o e despediu; Sachi, des­
concertado, retirou-se, mas, apenas saíra, correu, louco de cólera, à casa do
delator, brandindo uma pistola, pronto a matá-lo394. O caso chegou ao
Sr. de la Salle que, após um inquérito, pronunciou contra Sachi a expulsão
de Estrasburgo, tanto por suas ameaças à vida de um cidadão quanto por suas
calúnias contra um homem de bem universalmente respeitado; Sachi em vão
tentou renovar suas desculpas, declarar que se enganara, que falava de outra
pessoa, que o conde fora seu benfeitor, que estaria sempre feliz em servi-
lo395, o decreto foi mantido: Sachi teve de se retirar para Kehl. Ali, tirando a
máscara, uniu imediatamente seus ataques aos de seu bando, reclamando de
Cagliostro, por cartas abertas, por meio de jornais e cartazes, 125 luíses
de ouro por seus bons serviços, citando-o por isso diante dos tribunais396.
Cento e vinte e cinco luíses por seis dias de serviço, durante os quais
ele talvez extorquira outro tanto dos infelizes e feito tanto mal quanto

391. Sachi repetiu essas histórias repugnantes e falsas em seu Libelo: encontramo-nas
novamente na Resposta de Madame de la Motte ao conde de Cagliostro. Paris, 1786, in-
4?, p. 6.
392. N. do T: Moeda de cobre, de pouco valor.
393. Carta de Barbier de Tinan, p. 2. — Spach. Lettre d’un Suisse, de 21 de janeiro de
1782, p. 78. Um redator da Berliner Monatschrift (dezembro de 1784) também repetiu as
insolências e ameaças de Sachi.
394. Carta de Barbier de Tinan, p. 3.
395. Carta de Barbier de Tinan, p. 4.
396. Carta de Barbier de Tinan, p. 4. Cartaz de 12 de janeiro de 1782, in: Biblioteca de
Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, IV? peça.
possível àquele que o alimentava, era um pouco demais! Os juizes não o
escutaram; mas o público, sempre mau, tomava gosto nesses debates.
Ostertag e Narbonne alimentavam a algazarra: os apaixonados dispensa­
dos pela bela condessa, as mulheres com ciúmes dela, os médicos hostis39',
os inimigos numerosos de Rohan, os invejosos, uniram-se a eles; um parti­
do se formou contra o homem de bem, respeitado por tempo demais, e as
más línguas proliferaram.
O que se admirava outrora se depreciava agora: suas benfeitorias,
mesmo suas virtudes, eram voltadas contra ele; encontravam nelas indícios
reveladores do negrume de sua alma397 398. Sua simplicidade de existência,
sua frugalidade? Era uma comédia para dar asas à imaginação do popula­
cho399; uma prova de avareza, diziam os outros. Se ele se vestia de maneira
simples, sem seguir a moda, divulgava-se a sem-cerimônia: “Receber as
pessoas, e pessoas do mundo penteado assim, com os cabelos ao vento,
que impertinência!400”
Se ele saía ricamente vestido, acompanhado de sua mulher, era osten­
tação, “luxo revoltante, escandaloso”401, diziam.
Sua ligação com o cardeal era suspeita: por que ele busca os grandes
senhores, uma vez que pretende não necessitar deles? Se suas manobras se­
cretas não eram subversivas, ele não se cercaria de protetores, diziam aqueles
que teriam gostado muito de fazê-lo perder essas preciosas amizades.
Seus sucessos médicos, mesmo, não escaparam à crítica: ele se ocupa­
va de um caso leve: ele só cuida de dodóis402, de mulheres com vapores —
exclamava-se —, que gracinha! Tratava-se de alguma doença incurável, aban­
donada? Também ali o dente dos críticos encontrava onde morder. “Creio
poder afirmar que a ambição substitui nele o egoísmo”, escreve tolamente e
de maneira pesada Burkli, “pois ele só presta cuidados aos doentes abando­
nados pelos médicos, incuráveis, enquanto deixa de lado indignamente

397. "A inveja dos médicos, encarniçados entre eles tanto quanto os padres quando se
perseguem, perseguiu-o sem descanso em toda parte: o ódio que tinham ao cardeal de
Rohan, com quem ele era intimamente ligado, também recaiu fortemente sobre ele. Que
se junte à calúnia de tantos inimigos positivos a maldade dos homens que amam em
geral acreditar e repetir antes o mal que o bem, e veremos que é ao menos possível que
um desconhecido, excitando a inveja em vez da piedade, haja sido oprimido pela male­
dicência." De Gleichen. Souvenirs, p. 137.
398. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 2.
399. “Sua virtude não passava de um vício disfarçado. ” Burkli. Carta in: Funk. Op. cit.,
p. 13.
400. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 19.
401. Madame de la Motte. Resposta ao relatório do Conde de Cagliostro. Paris 1786, in-
4?, p. 27 e 37 — Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 18.
402. D’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. VII, p. 1. — Carta de Gorge, in: Oberrheinische
Mannigfafaltigkeiten, 1781, p. 10.
aqueles que têm doenças ordinárias dos nervos, do estômago ou que so­
frem de febre403.”
Vocês me citam 50 curas de doentes desenganados, mas a questão
não é essa: minha mulher ainda está com dor de dentes e o Sr. de Cambis
morreu404.
Isso não chega a ser divertido de tão absurdo? Falta de religião e
jesuitismo; avareza e prodigalidade, todas as acusações, mesmo claramen­
te contraditórias, eram boas para seus inimigos405. Atacavam até seus cos­
tumes, censuravam-no por freqüentar o mundo, ele que nem saía! Por ter a
mesa aberta, por jogar406.
As insinuações maldosas atingiam até sua mulher: “Ela se dá muito
bem com o visconde; ela recebe presentes principescos; deve estar coberta
de dívidas407, mas o visconde é rico e Cagliostro sabe tão bem fechar os
olhos sobre o que não deve ver!”
Insistimos talvez um pouco demais nesse movimento de opinião ha­
bilmente criado em Estrasburgo contra Cagliostro por seus três inimigos
encarniçados; é de lá que veio toda a campanha de chantagem e de ódio
que o perseguiu em Paris, em Londres e terminou em Roma com sua mor­
te. Do estado de suposições maldosas, de puras brincadeiras, de calúnias

403. Leia-se: ele ignora a SC Burkli. Era a grande queixa. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit.,
p. 17.
404. Só se contam, em face de centenas de curas notáveis, dois doentes abandonados
pelos médicos e mortos apesar dos cuidados que lhes dedicou Cagliostro. “Duas pessoas
morreram entre suas mãos; embora ele não tenha garantido sua cura. Os médicos muito
aproveitaram dessa ocasião para engrossar seus ataques. ” Carta de Saltzman a Willermoz,
em 1° de junho de 1781. Coleção Bréghot du Lut. Uma dessas pessoas era o Sr. de Cambis:
“em março de 1782, um tenente-geral, o Sr. de Cambis, estava moribundo em Estrasburgo,
abandonado por seu médico, e com razão, pois fora ele que o pusera em tão mau estado.
Cagliostro viu o doente e ele morreu assim mesmo. Depois disso houve violentos ataques
do médico regular e, devo dizê-lo para honra de Cagliostro, grande mansidão deste últi­
mo, que poderia terfeito revelações bombástica a respeito do médico, mas que se contentou
em enviar certa soma de dinheiro a ele para recompensá-lo por seus generosos procedi­
mentos". (Lettre d’un Suisse in: Spach. Oeuvres, t. V., p. 79.) Além disso, não é impossível
que a maldade de seus inimigos tenha ajudado nesses acontecimentos. Carta de Gorge,
in: Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten, 1781, p. 113.
405. Spach acusa Cagliostro “de acumular dinheiro, exceto quando gasta mais do que
recebe”. Op. cit., p. 68. Singular avareza e singular estilo!
406. E verdade que ele jogava às vezes com as damas, mas perdia quase continuamente.
Borowski, Cagliostro...; p. 102 e: Meiner’s, Lettre in: Mirabeau, Lettre surM. de Caglios­
tro et Lavaler, 1786, p. 20.
407. “A mulher que dizem ser a dele faz dívidas e recebe presentes; foi somente não eu
quem pôde verificar a coisa. ” Carta de Gorge, in: Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten,
1781, p. 113. “Sua mulher, ou sua amante, apenas Deus sabe!” Burkli. Carta in: Funk.
Op. cit., p. 4.
discretas, através de panfletos e requisitórios pouco escrupulosos, isso se
transformou em lenda bem estabelecida e as crônicas modernas fizeram
delas a base de suas pretensas histórias de Cagliostro. E o que houve na
origem? Nada além de fofocas de comadres alsacianas ou insultos de pati­
fes desprezíveis. Era necessário demonstrá-lo: esperamos tê-lo conseguido.
Estrasburgo, portanto, estava dividida: discutia-se; começavam a du­
vidar de Cagliostro. Esse resultado não bastava ao trio dos mentores; era
preciso que Cagliostro caísse; estenderam-lhe armadilhas.
Nas Mémoires d’un octogénaire (pelo barão de Lamothe Langon),
lemos a divertida história de uma visita feita a Cagliostro por dois estudantes
de medicina para mistificá-lo e desconsiderá-lo. Cagliostro os recebeu, os
escutou e gravemente disse ao acompanhante, designando o pseudo-doen-
te: “Fico com seu amigo em minha casa, em dieta absoluta, por quinze
dias; é necessário para sua cura”.
Pavor do infeliz que se recusou energicamente e solicitou apenas um
diagnóstico.
— Nada mais simples — respondeu Cagliostro, e escreveu em um
papel: “Superabundância de bile entre senhores da Faculdade”; depois o
estendeu a seus solicitantes.
“Os estudantes desconcertados balbuciaram, desculparam-se como
puderam. Cagliostro, um bom homem, pô-los à vontade, convidou-os para
almoçar e desde então eles estiveram entre seus mais ardentes admirado­
res408.”
Suscitou-se, por denúncias caluniosas, e obteve-se, fazendo agir for­
tes proteções409, um inquérito da polícia secreta de Paris. Mais uma vez,
decepção: Desbrunières, agente da polícia, que viera incógnito e como ini­
migo, partiu respeitoso, quase convertido.
Sachi tentou a concorrência; durante seu curto serviço junto ao conde,
em relação com seu droguista, carregando receitas, tendo podido subtrair
medicamentos ou fórmulas, ele reunira algumas informações a respeito da
composição provável do bálsamo (vinho do Egito) que curava tantos doen­
tes. Fez uma falsificação que vendia caro e facilmente sob o nome de Go­
tas amarelas ou Bálsamo do Conde de Cagliostro410.
Cagliostro teria atravessado o descrédito que isso poderia lançar so­
bre ele; mas o perigo corrido pelos doentes não poderia deixá-lo indiferen­
te; fez afixar na cidade a seguinte nota:

408. Citado em D’Alméras. Cagliostro, p. 223.


409. Blessig. “A polícia tinha os olhos nele; ela o espiava de muito perto, mas ele afetava
enfrentá-la. " D’Oberkirch. Mémoires, 1.I, cap. VII, p. I. — Lettre au people anglais, 1787,
in-41, p. 61-62.
410. Lettre au peuple anglais, 1787, in-41, p. 52.
“Advertência
Tendo o Sr. conde de Cagliostro sabido que se debitavam ao público,
a peso de prata, gotas que se intitulam Gotas do Conde de Cagliostro, acre­
dita-se ele obrigado a declarar que as pessoas que as oferecem não podem
ter a verdadeira composição de suas gotas e que ele não pode ser responsá­
vel pelos maus efeitos que podería produzir um remédio assim falsificado
e não as recomenda, em consequência, assim como a todas aquelas que
possam ser administradas por quaisquer outras pessoas além dele411.”

Foi em fevereiro e março de 1782, após a demissão de Sachi, que a


campanha foi mais violenta: já surgiam artigos412. O relatório de Sachi e
um novo panfleto anônimo vieram juntar-se a eles413. Cagliostro não se
perturbou; não respondeu aos insultos414, não solicitou nenhuma interven­
ção; suportou sem cólera essa onda de ódio erguida contra ele; mas, pro­
fundamente repugnado, pensou em deixar uma cidade que se mostrava tão
estúpida, tão ingrata, após tantas provas de sua bondade, tantas maravilhas
realizadas. Seus verdadeiros amigos, seus discípulos, suplicaram-lhe que
ficasse, redobrando os esforços para defender seu mestre e amigo. Enquanto
durou essa odiosa campanha, eles não haviam deixado de agir; apesar do
desprezo despreocupado que mostrava Cagliostro, eles sofriam por vê-lo ser
insultado. Lutavam nos salões, na cidade, contra os progressos do mal.
Quando se afixaram os panfletos injuriosos, o cardeal de Rohan, o mare­
chal de Contades e o Sr. de 1’Ort intervieram energicamente415.
Após a Mémoire d’Ostertag, Sarrasin escrevera uma carta aberta a
Straub, testemunhando da cura maravilhosa de sua esposa e da respeitosa
ligação que tinha com o conde416.

411. Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110.


412. Carta de Hans Gorge de Colmar in: Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten, 16 de
julho de 1781, p. 113.
413. Ein paar Trõpflein aus dem Brünnen... Am Vorgebiirge (may) 1781 (por J.-J. Bode).
414. E todavia, em troca dessas tolas calúnias, quantas terríveis verdades ele não teria
podido revelar graças à clarividência que possuía! Já assinalamos a generosidade de que
ele fez prova em relação ao médico do Sr. de Cambis, p. 126, 127
415. Lettres do Anmeister Lemp ao pretor real Sr. de Gerard, de 7 e 16 de agosto de 1781,
in: Biblioteca de Estrasburgo: Manuscritos, lote AA, 2110, peças V e VI.
416. Essa carta foi publicada no Journal de Paris. Ali se liam, além dos detalhes técnicos
da cura da St? Sarrasin: “Detalhar, senhor, todos os cuidados e todas as atenções do Sr.
conde de Cagliostro seria uma coisa supérflua: o senhor foi a testemunha ocular, como
eu, de todos os males que esse ilustre amigo da humanidade se presta para o alívio dos
sofredores, e o senhor sabe, como eu, que o incenso pelo qual tantos homens são ávidos não
tem atrativos para ele: fazer o bem pelo bem é seu princípio e seu coração busca a recom­
pensa em suas próprias virtudes. Exprimir meu reconhecimento seria algo demasiado
difícil: as palavras me faltam para definir os sentimentos de meu coração... ” Suplemento
ao nl 365 do Journal de Paris, segunda-feira, 31 de dezembro de 1781.
Em resposta aos panfletos Sachi, aos libelos anônimos, ao artigo de
Gorge em Variétés Haut-Rhinoises (16 de julho de 1781). outro discípulo
de Cagliostro enviou a esse jornal, com ordem formal de publicar, a bela
resposta cuja tradução inédita fornecemos aqui:

“Ao editor das Variétés Haut-Rhinoises,


Eu pensava que seu jornal era destinado a divertir os leitores enquanto
os instruía, e não a atacar a honra e a consideração de pessoas que, não
apenas jamais lhe fizeram mal, mas que, por seu amor ao próximo e sua
eqüidade, merecem ainda o respeito de todo homem honesto.
Foi porém o que o senhor fez em seu 8? artigo (de 16 de julho) em
que mestre Gorge, em um estilo disfarçado de operário, ataca maldosa e
falsamente o nobre filantropo Cagliostro...
... Seria fácil refutar ponto a ponto todas as calúnias contidas nesse
escrito, mas não quero me comprometer ao reproduzir diante do público
todos os sarcasmos que apenas o ciúme poderia ditar. Traçarei simples­
mente um retrato oposto àquele, para que todos possam ver a coisa sob
uma luz verdadeira.
Certamente, o conde de Cagliostro deve ser uma singular novidade
para aquele que ouve falar dele pela primeira vez. É algo muito extraordinário
em nossos dias ver pessoas que só fazem o bem por fazê-lo, sem egoísmo
nem segundas intenções; pessoas que não se deixam desviar nem pela in­
veja, nem pelas maledicências e que seguem seu próprio caminho, porque
sentem a força em si. Este é, justamente, o caso do Sr. de Cagliostro.
Esse nobre estrangeiro veio a Estrasburgo como viajante de passa­
gem. Viveu bem tranquilamente sem buscar, mas sem dela fugir, a ocasião
de travar conhecimentos. O acaso ou, para falar com mais exatidão, a Pro­
vidência revelou sua filantropia: algumas curas bem-sucedidas lhe atraíram
uma voga que, certamente, ele não buscara. As pessoas mais consideradas
da cidade tiveram o desejo de conhecer um homem que agia de maneira tão
nobre, e logo sua casa se tornou o lugar de reunião das pessoas mais distin­
tas. Rodeado por esse círculo de pessoas, nosso conde não deixou de agir
em total independência. Cada doente, a qualquer classe a que pertencesse,
tinha direito a sua ajuda e a sua atividade. Não apenas ele jamais aceitou a
sombra de uma retribuição, nem dos ricos nem dos pobres, e sob nenhum
pretexto, mas ainda, muito discretamente, distribuiu de seu bolso benfeito­
rias às centenas em tomo de si.
Esses atos e, além disso, sua maneira de pensar e seus conhecimentos
lhe atraíram a amizade das pessoas mais distintas, em particular na alta
nobreza. Essas amizades, ele as conservou até hoje, e há nove meses ele
está aqui417.”

417. O autor cita aqui diversos nomes que já indicamos. O pastor J. F. Oberlin, do Ban de
la Roche, recebeu também Cagliostro em sua casa por alguns dias. Revue Alsac. Ilustrée,
1910, II, p. 55. Artigo da Si5 Witz.
(...) “Parece-me que tal homem pode gastar seu dinheiro como bem
entende, dizer seu nome ou não dizê-lo, indicar de onde vem ou não, e só
falar árabe, se tiver vontade, com um professor qualquer que veio vê-lo por
curiosidade.
Se mesmo esse homem não fizesse o bem, quem teria o direito de exi­
gir que ele o fizesse? Quem podería forçá-lo a frequentar médicos, se não é
amador nem de medicina, nem da medicina européia? Ele diz ter conheci­
mentos asiáticos; mas ninguém é forçado a acreditar nisso contra a vontade.
Aqui não é o lugar conveniente para fazer a apologia do conde; sem
isso, seria com alegria e do fundo do coração que eu contaria tudo o que
vejo de elevado, de nobre e de bom feito por ele diariamente. Mas temería
ferir a modéstia desse grande homem e de atentar contra sua dignidade,
dizendo tudo o que eu penso dele, a propósito de um vulgar amontoado de
calúnias, escritas por um homem mergulhado em trevas418.”

Cagliostro, tocado pelo zelo e pela afeição que seus discípulos lhe
testemunhavam, decidiu-se a permanecer em Estrasburgo. Mas a partir dessa
época, ele limitou o número de suas audiências419, não recebeu mais além
de seus fiéis e antigos doentes, cujo número ainda era considerável, e se
consagrou quase inteiramente a seus amigos: aos Sarrasin, que acompa­
nhou diversas vezes a Bâle; ao cardeal, em cuja casa passava quinze dias
por mês; aos Straub; aos De Barbier420. Os homens do mundo o abandona­
ram, retornando a suas fúteis distrações, e os médicos se regozijaram.
Duas circunstâncias, vindas a seu tempo, fizeram decidir-se Cagliostro
por deixar Estrasburgo; primeiro a partida do cardeal para Paris e, pouco
tempo após, em agosto de 1783, a grave doença de seu amigo e antigo
protetor, o cavaleiro de Aquino que, muito mal, fê-lo chamar a Nápoles,
junto a si. Cagliostro se serviu desses dois argumentos para explicar àqueles
que o retinham sua resolução de deixá-los e para moderar assim a dor que
lhes deveria causar essa triste novidade. Na realidade, ele partia porque
sua obra, nesse lugar, parecia-lhe cumprida; ele arara e semeara o campo

418. Oberrheinische Mannigfafaltigkeiten, 16 de agosto de 1781, XIfascículo do I trimes­


tre. Bâle, Turneisen fils, 1 vol. In-8!, p. 161. Esse texto, assim como muitos outros docu­
mentos preciosos acerca de Cagliostro em Estrasburgo, foi obtido por nosso amigo, o Sr.
Alfred Haehl, a quem fazemos questão de exprimir publicamente todo o nosso reconheci­
mento pela ajuda considerável que ele nos trouxe em nossas pesquisas.
419. “Elas ocorriam apenas três vezes por semana (sendo um dia, a sexta-feira, para os
indigentes), em horas precisas. Ele chegou mesmo a receber alguns estrangeiros. "Blessig.
Carta in Weisstein. Op. cit., p. 9. Também não deixaram de lhe censurar essa mudança.
420. Cf. Burkli. Carta in: Funk. Op. cit., p. 11-12. “Vivemos, além disso, muito simples­
mente aqui, escreve a Sr! Sarrasin à Sr! Burckardt em 19 de junho de 1782; a sociedade do
conde e de seus amigos é quase a única que vemos e em que encontramos muito encanto. ”
Archives Sarrasin, Bâle, vol. I, cota 105, j! 2.
médico, mostrara que pesado véu de preconceitos, de orgulho e de egoísmo
esconde aos médicos a natureza e suas leis; ele exercera, em meio ao mal
físico, o ministério do homem-espírito; demonstrara sua realidade; fizera
o bastante para despertar nas almas os desejos regeneradores; sua missão o
chamava para outros trabalhos421.
Apesar das manobras de seus inimigos, a maior parte da população
estrasburguesa lhe permanecera fiel: uma multidão considerável, simpáti­
ca, desolada, acompanhou até fora da cidade o carro que o levava; chora­
vam: “É o Bom Deus que se vai!”, diziam as pobres pessoas.

Retrato feito porJ.- B. Chapwy, próximo a Brion de la Tour.

421. “Poderiamos supor que este homem tem um plano muito extenso para o qual
Estrasburgo é um teatro bem pequenininho.” Blessig. Carta in Weisstein. Op. cit., p. 10.
Capítulo VI

Lyon — O Charlatão

O conde Cagliostro chegou em Lyon em 20 de outubro de 1784422 e


desceu no hotel da Rainha423. Esse hotel era então mantido pelas damas Forest;
foi-nos apresentado por Alquier, comerciante de Lyon, cujo nome reencon­
tramos sobre os quadros das Lojas da época424.0 hotel recebia muitos ma-
çons estrangeiros; esses fatos nos indicam sob quais auspícios Cagliostro
chegava a Lyon. Iniciado em 1777, no Rito Inglês em Londres, na Loja A
Esperança, ele havia encontrado, declarou, pessoas ótimas425; ficou plena­
mente satisfeito com o que encontrara e com a recepção cordial que lhe
haviam feito. Após ter vivido em meio a esses amigos, passara pela Holanda
(1779) e, ali, fora recebido com grande honra na Grande Loja426.
Em Liège, ele suscitou tanto interesse na Loja A Perfeita Igualdade
que essa oficina se ligou ao Rito Egípcio logo que este foi conhecido. Na
Alemanha, ele visitou Lojas de todos os Ritos427. Em viagem, ele era por
vezes reconhecido por maçons e lhes falava com tanta ciência e autoridade
que eles supunham nele o grande mestre desconhecido da Maçonaria428. Em

422. Relatório contra o procurador-geral. Paris, 1786, in-16, p. 37.


423. Ou Hotel do Parque; este hotel ocupava o lugar da atual casa da esquina da rue
d'Algerie e da rue Sainte-Catherine Cf. Péricaud. Cagliostro à Lyon, brochura in-81 de 8
páginas. —Pièce justificative adfinem: Petição a anexar, 1786, in-4?, p. 10.
424. Venerável da A Sabedoria desde 1763. Archives de maçonnerie lyonnaise (Coleção
particular do autor).
425. Lettre au peuple anglais, 1787, in-4‘‘, p. 70. Notemos que não foi em uma Loja aris­
tocrática, como tantas havia em Londres, que ele penetrou, mas em uma Loja do povo
miúdo, formada pelo terceiro-estado francês, que logo seria o todo (Loja n° 369 na Royale
Taverne; Cf. Monist. July, 1903, p. 528).
426. Vie de Joseph Balsamo, p. 117. Não hesitamos em nos servir aqui de muitas referên­
cias dessa obra; o autor, ao revelar tudo o que pudera saber das relações de Cagliostro
com a Maçonaria, buscava fazê-lo tão completamente quanto possível para comprometê-
lo; nesse ponto, ele foi bom historiador, mesmo sem perceber.
427. Vie de Joseph Balsamo, p. 124, 126, 149.
428.Nie de Joseph Balsamo, p. 118.
outras vezes, na Loja, na Polônia, na Curlândia, em Nurembergue, ele se
elevou, com a energia que o caracterizava, contra os erros das seitas supers­
ticiosas que praticavam a baixa magia ou ensinavam o ateísmo. Ele o decla­
rou quando o interrogaram em Roma429 e isso é perfeitamente exato; as
narrativas da Sr? de Recke o provam. Ele citou como chefes desses revolu­
cionários que, sob a tintura da filantropia, perseguiam um objetivo político
secreto, um certo Ximenes ou Chimenes, português, e um certo Falck.
Chimenes, não pudemos identificá-lo; mas esse Falck não passa de Falck-
Scheck, grande rabino que vivia na Inglaterra, mágico de renome. O ba­
rão de Gleichen430, Saint-Martin e a Sr.a de la Croix o conheceram bem. A
Sr? de la Croix chegou mesmo a declarar, a respeito dele, que foi ela que,
pelo poder da oração, pôde, em plena sessão da Convenção, quebrar sobre
o peito do duque de Orléans o talismã que Falck lhe dera, e que fora então
que o duque empalidecera e desmaiara, o que causara tantos rumores.
Cagliostro encontrou também Scieffort, assistiu a seus trabalhos em
Leipzig. Em Frankfurt, foi recebido em uma reunião de irmãos da Estrita
Observância431. Foram todas essas entrevistas, essas recepções solenes, em
que cada oficina se aprontava para conceder ao ilustre e poderoso viajante
honras e dignidades, que deram nascimento ao conto da iniciação de Ca­
gliostro pelo adepto Saint-Germain na Alemanha432. Todos os panfletários,
os romancistas se apoderaram desse motivo para bordar sobre ele, de tanto
que o esboço era sedutor, narrativas em que a obscenidade luta com o ridí­
culo para ver quem ganha. Que o conde de Saint-Germain tenha vivido ou
não naquela época, que tenha ou não encontrado o conde de Cagliostro,
ninguém jamais pôde prová-lo e isso pouco nos importa. O que dissemos
de Cagliostro até agora mostra bem o que pensamos; o encontro desses
dois homens não teria sido, sem dúvida, uma iniciação para nenhum de­
les; em todo caso, ela não teria mudado Cagliostro mais que sua recepção
na Loja A Esperança ou na convenção dos Bonfratelli de Palermo. Mas
Saint-Germain já era personagem legendário: consideravam-no um fei­
ticeiro, o Grande Mestre de todas as fraternidades ocultas em que a
Alemanha abundava, e sabia-se que Cagliostro percorrera todos os cír­
culos maçônicos da Europa Central. Isso bastou para forjar a história;
cada um, maledicente ou simples contador, arranjou à em seguida como
bem entendeu.
Em Estrasburgo, ao voltar, Cagliostro foi acolhido por maçons433; ele
lhes expôs alguns princípios de seu ensinamento maçônico e partiu, dei-

429. Vie de Joseph Balsamo, p. 119


430. Souvenirs du Baron de Gleichen. Paris, 868, in-16, p. 176.
431. Vie de Joseph Balsamo, p. 130.
432. Mémoires authentiques. Paris, 1786, in-8", p. 6.
433. Burkli. Carta, in: Funk. Op. cit., p. 4 — Carta de Saltzman à Willermoz, de 22 de
setembro de 1780. Coleção Bréghot du Lut.
xando-os muito ligados a ele e a sua lembrança. Quando em seguida o Rito
Egípcio se difundiu, seus discípulos, em cada cidade, fizeram remontar a
data de sua Loja a sua iniciação pessoal, quando da passagem de Caglios­
tro, e foi assim que se pôde falar da Loja egípcia instalada em Estrasburgo
em 8 de outubro de 1779434.
De lá, passando por Nápoles, onde foi recebido na Perfeita União, foi
a Bordeaux. Chegando em 8 de novembro de 1783435, ficou ali onze meses
e se ocupou cada vez mais de Maçonaria. Deve-se notar que, até sua inicia­
ção maçônica em Londres, ele falava, impunha-se como terapeuta, sobre­
tudo; a partir do momento em que ele penetrou nas Lojas, mostrou-se sob
uma nova luz. Espantados, como todos, pelo poder do curador, mas mais
curiosos, de espírito mais aberto, os maçons não se detiveram apenas nessa
aparência que apresentava o ser misterioso. Eles o interrogaram, pressio­
naram-no, tiraram pouco a pouco o adepto do segredo em que ele se encer­
rava. Em Bordeaux, tudo nele facilitava os exercícios da medicina436, o
rodearam, convidaram-no, solicitaram suas luzes nas Lojas mais importan­
tes da cidade437. Cagliostro se abriu cada vez mais a esses homens de boa
vontade, corajosos e sem opinião formada, que buscavam a verdade, nem
que fosse através de provas, desajeitadamente talvez, mas com todas as
suas forças.
Uma visão que teve em Bordeaux lhe confirmou em seus esforços
para desenvolver a Maç Egípcia. Ele se viu apanhado pela gola por duas
pessoas, empurrado e transportado para um profundo subterrâneo. Ali,
abriu-se uma porta, e ele foi transportado para um lugar delicioso que com­
parava a um grande salão real, magnificamente iluminado. Celebrava-se
uma grande festa. Todos os assistentes estavam vestidos em trajes brancos
que lhes desciam até os calcanhares e, entre eles, ele reconheceu, disse
aos maçons que o rodeavam, muitos de seus filhos em Maçonaria, que
estavam mortos. Ele acreditou então ter se livrado dos males deste mundo
e ter chegado ao paraíso. Apresentaram-lhe um longo manto e uma espa­
da, semelhante à que se põe nas mãos do anjo exterminador. Ele avançou
e, ofuscado por uma grande luz, prosternou-se e deu graças ao Ser Supre­
mo por tê-lo feito chegar à felicidade; mas ele ouviu uma voz desconhecida

434. Acta Latomorum. Paris, 1815. t. 1, p. 141.


435. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral. Paris, 1786, in-16, p.
36-37.
436. Seus sucessos foram tão grandes que sua casa teve de ser protegida contra a onda de
doentes. Sachi viera persegui-lo, nesta cidade, com sua campanha de calúnias; os jura­
dos propuseram a Cagliostro que o mandasse prender, efoi o patife Cagliostro, o imenso
canalha Cagliostro (são os termos usados pelo ridículo Carlyle) que se recusou e mandou
deixar Sachi em liberdade.
437. Cf. Kaufmann e Cherpin, Histoire de la franc-maçonnerie. Lyon, 1851, in-8?, p. 125
e mais adiante, p. 140 de nosso livro.
lhe responder: “Eis qual será tua recompensa; mas é preciso trabalhar mais”.
E esse foi o fim da visão438.
Através de todas as suas viagens, vivendo nos mais diversos meios,
seja na corte dos reis, entre príncipes, nas mais cultas sociedades, com
sábios, místicos, literatos, seja no próprio povo, no fundo das tavernas, nas
mansardas dos pobres, assolado em casa por visitantes estrangeiros, confi­
dente de muitas misérias ocultas, conselheiro secreto de mais de um grande
personagem, Cagliostro conhecera, em alguns anos, certamente o estado
das nações européias melhor que um diplomata ou um filósofo poderia
fazer. Todas as engrenagens enferrujadas desse organismo haviam rangido
diante dele; ele vira o quão gasta, o quão pronta a se romper era essa
pobre máquina, por mais brilhante que fosse por fora. Refizeram muitas
vezes o quadro da sociedade francesa às vésperas da Revolução para que
haja necessidade de relembrar aqui o estado de decadência e de aviltamen­
to em que se encontravam então a nobreza, o clero e a alta burguesia; a
literatura e as artes sofriam o contragolpe: Paris borbulhava de panfletários,
chantagistas, homens de negócios e, longe disso tudo, arrastava-se um povo
ignorante e esfaimado; tudo era velho, sem fé, sem energia, moribundo de
indiferença e egoísmo439.
Por outro lado, ao percorrer essas cidades adormecidas, já marcadas
por um terrível despertar, tanto em Paris como em São Petersburgo, Ca­
gliostro encontrara, em toda a parte, Lojas maçônicas, apesar da falta de
nitidez na visão de um objetivo a atingir, com um mesmo desejo de verdade,
de saber e de justiça, uma mesma juventude de aspirações, que faziam da
Maçonaria o único organismo vivo da época.
A Maçonaria, pouco conhecida e recém-nascida de 1717 a 1740, ha­
via tomado, de 1773 a 1775, uma extensão e uma influência enormes na
Europa. Na França, a Grande Loja inglesa tinha a direção de quase todas as
oficinas; o Grande Oriente, fundado em 1775 pela fusão da Loja Lacorne,
dissidente do Rito Inglês, com os cavaleiros do Oriente (Capítulo de
Clermont) governava as outras, e essa rivalidade de poderes provocara a
eclosão de Ritos isolados, como o dos Iluminados de Avignon440, dos
Filaletos441, dos Eleitos-Cohens, etc. Contavam-se, em 1776, 300 Lojas
francesas; havia 629 em 1789. Em todas essas Lojas em que se encontravam
nobres, sacerdotes e pequeno-burgueses, apesar das rivalidades de prece­
dência, das divisões de tendências ou de formas, trabalhava-se ativamente.

438. Vie de Joseph Balsamo, p. 52. Cagliostro contou essa visão a muitos de seus discípu­
los; ele o reconheceu e repetiu o relato em seus interrogatórios de Roma.
439. Nas Mémoires de M. Ie prince de Montharey. Paris, 1827, 3 v. in-83, encontramos (t.
Ill, p. 94 a 97) um quadro chocante, um dos melhores que conheço, do estado dos espíri­
tos no fim do século XVIII.
440. Fundado por Pernéty, 1766.
441. Fundado em 1773.
“Que se imagine... 700 oficinas, dispersas sobre o solo da França, nas quais
os homens mais ousados ou mais ilustres daquele tempo repetiam a cada
dia as lições de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de tolerância reli­
giosa, em uma época em que o governo era uma monarquia absoluta, em
que o Estado estava dividido em classes bem distintas, em que os preconcei­
tos de nascimento começavam a ser menos poderosos nos costumes, mesmo
sendo consagrados pelas leis, em que a desigualdade das condições, dos
cargos, faziam parte do pacto social, em que o fanatismo dos sacerdotes
dispunha de armas do poder secular, e compreenderemos o quanto a Maço­
naria, ao permanecer nas teorias, deve ter ajudado no movimento que se
preparava, no grande abalo de que já se sentiam as primeiras oscilações442.”
Em Paris, filósofos da nova escola, literatos, artistas, homens políticos se
encontravam no templo e condenava seus esforços: a Encyclopédie, prepa­
rada desde 1740, quando o duque de Antin era Grão-Mestre443, fora publi­
cada em 28 volumes in-folio, aos quais se vieram juntar cinco volumes de
suplementos, obra colossal na qual colaboraram, sob a direção de Diderot,
toda uma plêiade de sábios.
Os centros mais notáveis, além de Paris, eram Bordeaux, em que a
primeira Loja, fundada em 1723, havia rapidamente enxameado: as duas
principais Oficinas, em 1783, eram a Loja Francesa e A Amizade, que
foram visitadas, em 1776, pelo Grão-Mestre, o duque de Chartres, futuro
duque de Orléans e presididas por ele. Martinèz de Pasqually* e Saint­
Martin haviam também deixado em Bordeaux lembranças e adeptos; Lyon
onde, sob a influência de Willermoz e graças a seu zelo, Oficinas e Capítu­
los estavam em plena atividade; Estrasburgo, posto avançado na rota para
o leste, cidade intelectual, em relação, desde 1742, com todos os centros
maçônicos da Europa. Marselha, Dunkerque, Arras tinham também suas
Oficinas, mas de menor importância. Na Rússia, na Curlândia, já indica­
mos a existência das Lojas e seus trabalhos444. Na Polônia, a ordem, tolera­
da a princípio e mais tarde proibida por Augusto II, existia secreta, mas
ativamente, e reapareceu à luz do dia em 1780, quando um Grande Oriente
foi fundado em Varsóvia445; na Áustria, onde o próprio Joseph II, “esse
soberano inovador e ousado”, se fizera receber maçom pelo barão de Born;
na Holanda, onde a Grande Loja, dirigida pelo Sr. de Boetzelner desde

442. Kaufmann e Cherpin, Histoire de la franc-maçonnerie. Lyon, 1851, in-81, p. 280 “O


prelúdio da Revolução Francesa se fazia sentir nos filósofos, na Maçonaria. " Mémoires
de M. Ie prince de Montharey. Paris, 1827, p. 64.
443. Cf.' Papus. Martinisme et Franc-Maçonnerie. Paris, 1899, in-16, p. 64.
*. N. do E.: Sugestão de leitura: Os Ensinamentos Secretos — Precedidos de Informação
do martinesismo no e do martinísmo, de Franz von Baader, Madras Editora.
444. Ver acima, p. 55 e 70 de nosso livro. Cf. Friedrich. La Franc-Maçonnerie en Russie,
Paris, Dorbon-Ainé, 1908, in-16.
445. Kaufmann e Cherpin. Op. cit., p. 269.
1757, tratava amigavelmente, de igual para igual, com o GO da França;
na Bélgica, onde se contavam 29 oficinas, entre as quais A Constância, de
Maéstrich, fundada em 1761; na Suíça, enfim, onde, exceto em Berna, a
liberdade reinava; em toda a parte, a idéia maçônica surgia.
Protegida na Prússia por um rei filósofo, que foia iniciado em
Brunswick pelo major Biefeld446, a Maçonaria se instalara em Berlim e os
trabalhos de uma de suas Lojas eram realizados alternadamente em francês
e em alemão: existiam grupos em todas as cidades, em Hamburgo, em Pra­
ga. O príncipe soberano de Bayreuth abrira seu palácio às reuniões maçô-
nicas; Dresde tinha um Rito especial. O barão de Hund fundara uma ofici­
na em Kittliz para seu sistema templário reformado; os príncipes de Gotha
davam asilo a Weisshaupt; Auguste de Saxe, o príncipe de Nieuved, o pró­
prio coadjutor dos principados eclesiásticos das margens do Reno, desta­
cava-se por seu ardor pelas doutrinas misteriosas da Maçonaria. Em alguns
pontos, no Palatinado, na Baviera, havia perseguições, o partido reacioná­
rio tentava interromper o impulso dos espíritos; mas era apenas um exci­
tante a mais para o movimento geral. Surgiam Ritos novos, místicos ou
políticos, obras de ambiciosos ou de sectários. A Alemanha era a “pátria
natural do Iluminismo447.”
Nessa época, principalmente, vimos nascer Ordens novas, socieda­
des de altos Graus, vindas não se sabia de onde, trazendo ignorava-se o
quê. Os Aufklarer de Nicolai, os Iluminados de Pernéty448, os Ritos de
Schõpfer, de Schroder, de Hund, de Marschall, de Weisshaupt, de Scieffort,
de Zinnendor449, etc., apareciam, lançavam a perturbação, despertavam co­
biças. As pessoas de boa-fé se perguntavam onde estava a verdade, de que
escola sairíam uma moral e uma ciência novas, de que homem viria a luz
tão esperada.
Tal era a irradiação da Maçonaria; as estatísticas oficiais, publicadas
já no início do século XIX, indicam nessa época um total de 137.675 Lojas
ativas em todo o Universo, compreendendo vinte e um milhões e trezentos
mil maçons. Concebemos que o desenvolvimento da Ordem havia sido
demasiado rápido para poder ser dirigido, regido por um poder central, e
que numerosos cismas devem ter se formado; mas, se por vezes questões
fúteis de forma ocupavam inutilmente as Lojas, que se agitavam para
resolvê-las, um mesmo sentimento de fraternidade unia no fundo todos
esses homens. Só faltava uma coisa: uma direção espiritual; a Maçonaria
ignorava, com efeito, suas origens, assim como seu objetivo. Puxada à
esquerda pelo G O , que queria realizar reformas intelectuais e políticas,
à direita pelas intrigas dos Jesuítas, não sabendo, em geral, o que encerravam

446. Lamartine. Histoire des Girondins, /2" edição, in-81, t. I, p. 251.


447. Caro. Essai sur la vie er la doctrine de Saint-Martin. Paris, 1861, p. 355.
448. Nascido em Berlim.
449.C1. Bulau. Personnages énigmatiques. Paris, 1861, t. I, p. 355.
seus arquivos, o que significavam seus símbolos, que pedra bruta se devia
trabalhar450, a Maçonaria agitava braços poderosos, mas ao acaso, e apenas
pela necessidade de gastar as energias que borbulhavam em seu organismo.
Em meio a essas rivalidades e incertezas, homens desejosos de conci­
liação organizavam, com muitas dificuldades, convenções para tentar
agrupar e unificar seitas com tendências tão diversas, chegar a saber que
homens ou que princípios dirigiam a Maçonaria, e se nada existia em tudo
isso, que homens disso seriam dignos, que ideal deveria ser o símbolo de fé
dessa sociedade universal451.
Mas esses esforços permaneciam estéreis apesar da boa vontade da­
queles que os travavam e a Maçonaria, após cada convenção, permanecia
tão desorientada, tão incerta quanto antes.
Infundir o espírito cristão, o espírito de sabedoria e de verdade nesse
organismo jovem, ativo e que realizaria grandes coisas na vida do mundo,
esse foi o objetivo de Cagliostro. Para isso, era preciso que ele pudesse
dirigir a Maçonaria inteira, arrancá-la às intrigas humanas, orientá-la para
a luz. Sem dúvida, pensou nisso muitas vezes antes de ir a Lyon; sua reso­
lução de se fazer maçom, ele, tão independente, tão individual, e o cuidado
que empregou em continuar suas relações com as Lojas em suas viagens,
mostram que ele preparava lentamente a realização de seu projeto; mas foi
em Lyon que sua obra maçônica se definiu.
Todas as circunstâncias o levavam a isso: nenhuma cidade da França
convinha melhor. O espírito lionês é uma mistura singular: um misticismo
muito profundo, que sobreviveu a todas as revoluções, esconde-se em to­
das as suas velhas casas de portas pouco acolhedoras, de corredores som­
brios, de janelas estreitas. A vida interior parece se desenvolver mais nas
cidades em que o céu brumoso e desagradável afasta o homem da praça
pública e o incita e se encerrar junto ao fogo para ler, meditar ou orar. Essa
vida permanece muito secreta. Por prudência, por timidez, por respeito à
sua crença ou à sua ciência, o lionês esconde seu interior psíquico assim
como guarda seu lar; um estrangeiro só é admitido ali após um longo exa­
me e, mesmo entre compatriotas, um amigo não revelará seus trabalhos

450. Circulaire préparatoire au convent des Gaules. 1778, in-85.


451. Nas Notas a submeter à Convenção de Wilhemsbad (1782) víamos as questões
seguintes:
“A Maçonaria tem superiores desconhecidos? Quem são eles?"
“E possível ter documentos autênticos a respeito dos chefes ou mestres que pretenderam
possuir a verdadeira ciência, como Mart, Pasqualis, Kukumus (sic., para Gugomus), de
Jonston, de Hunt, de Weeles, de Sroepher (sic, para Achrõpfer). ”
"Nos casos em que a verdadeira ciência maçônica permanecesse ignorada apesar dos
esforços da convenção, será possível acreditar que seja exequível a reformar da Maçona­
ria para chegar a isso um dia?”
Este último artigo (art. X) era, certamente, o mais prudente.
secretos ou seus sentimentos íntimos àquele que ele vê todos os dias como
um camarada senão após muitos anos de reserva e de dissimulação. É ver­
dade que, em seguida, a amizade toma um caráter de devoção e a conversa,
uma gravidade sincera que logo faz esquecer a frieza do início. O místico,
por si mesmo, já tem tendência a conservar piedosamente suas revelações
e suas graças; em Lyon, mais que em qualquer outro lugar, somos levados
a isso e, quando se penetrou lentamente em alguns meios sociais dessa
cidade, espantamos-nos, ainda em nossos dias, em descobrir em tal arte­
são, em tal funcionário, de atitudes tão simples, tão apagadas quanto possí­
vel, que jamais haviam aberto a boca senão para vender carvão ou entregar
o recibo do aluguel, um místico prodigioso ou um sábio extraordinário.
Nele, a prudência é hereditária; se ele é místico por temperamento, é
positivo pela raça. Não quer mais ser enganado em suas especulações
metafísicas do que em seus negócios comerciais, e isso constitui a caracte­
rística de seu misticismo. Ele não se entusiasma levianamente. Precisa de
provas, fatos. Um sistema, um homem, serão observados, julgados segun­
do suas tendências; mas somente serão seguidos se trouxerem, material­
mente, benefícios. Nenhum entusiasmo pela idéia, nenhum movimento de
primeira impressão; ao contrário, desconfiança. Mas se, à direita, depois à
esquerda, hoje, como na semana passada, a teoria moral ou o personagem
novo trouxerem alguma melhora positiva para o observador, na alegria de
sua família, na paz de seu coração, em sua saúde ou seus negócios, então
ele se torna discípulo, entrega-se inteiramente. Nem discussões, nem zom­
barias abalarão sua fidelidade; seu entusiasmo, que espíritos levianos po­
deríam ter no início para perdê-lo em seguida, produz-se, ao contrário, no
lionês, progressiva e tardiamente.
O conde de Cagliostro chegava a essa população, ao mesmo tempo
mística e prática, com todo o renome dos milagres realizados em Estras­
burgo452, com a reputação de um homem que os maiores personagens
recebiam e respeitavam, com o prestígio de um grande mestre em Maço-
naria.
Em Lyon, a Maçonaria estava, como em todos os lugares, em agitação453.
Discutiam-se os altos Graus; mas as disputas de precedência apaixonavam

452. As relações maçônicas de Lyon com Estrasburgo (por Saltzmann, em particular) e


com a Rússia eram contínuas. Foi um lionês, Mioche, do "Perfeito Silêncio ”, quem fun­
dou em 1765 uma das Lojas de Varsóvia, e nos quadros de Lojas lionesas, de 1775 e 1785,
encontramos ainda sinais de amizade na Rússia e na Polônia (Arq. Pessoais/
453. Surgida em 1725, ela só se desenvolveu realmente a partir de 1755: contava-se, em
1781, 12 Lojas, das quais as mais importantes eram: O Perfeito Silêncio, A Benfeitoria, A
Amizade e A Sabedoria; capítulos; a Grande Loja dos Mestres de Lyon (1750); o capítulo
dos Cavaleiros da Águia Negra (1765), onde Willermoz e Sellnofprepararam as grandes
convenções. Uma Loja de Eleitos Cohens funcionava desde 1765. Essas Lojas tinham
relações com as de Saint-Etienne, de Bourg, de Grenoble e de Avignon. Cf. Efemérides
das Lojas Maç/. lionesas. Lyon, 1875, in-8°, e Arq. Pessoais.
menos que os problemas de teurgia. O Martinezismo, de que Willermoz
era adepto, o Mesmerismo, o Swedenborguismo dividiam os espíritos. Foi
o momento em que L.-Cl. de Saint-Martin e o abade Fournié trabalharam
em Lyon, onde se editavam as obras do Filósofo Desconhecido. Encontra­
mos, nas Efemérides lionesas, de Péricaud, o anúncio dos livros publica­
dos naquela época, em Lyon, e o número das obras à respeito do magnetis­
mo é bem considerável454.
Esses estudos apaixonavam principalmente os maçons. Quando Ca­
gliostro, anunciado pelas Lojas de Bordeaux e Estrasburgo, desceu até o
hotel da Rainha, houve uma corrida até ele. Ele foi visitado, recebido na
Loja; organizaram-se festas em sua honra; sua mulher foi coberta de presen­
tes455. Interrogavam-no; escutavam seus ensinamentos; observavam, sem
se entregar. Todavia, as hesitações duraram pouco, embora ele se recusasse a
cuidar de doentes. Querendo, em Lyon, fazer obra social mais que exercer
a medicina, acabou sendo forçado a isso. Um rico proprietário, o Sr. J.-B.
Delorme, apelidado de “americana”, fora atingido por uma doença incurá­
vel; Seu médico, o Dr. De la Bruyère, sem esperança de salvá-lo, estimulou
sua família a confiá-lo a Cagliostro. Graças a algum pó secreto, diz
Péricaud456, o empírico o curou. Outras curas se seguiram: depois foram os
prodígios da clarividência; Cagliostro lia nos corações: crianças, acordadas,
conscientes, tornavam-se, sob seu comando, pa­
cientes lúcidos: elas viam seres de que falava Ca­
gliostro; testemunhavam do respeito que esses es­
píritos tinham pelo Mestre; os doentes curados, os
conselhos úteis recebidos, os segredos revelados
eram conhecidos. Os fatos estavam ali; não resta­
va nenhuma dúvida; Lyon fora conquistada.
Suplicaram-lhe que continuasse, que for­
masse discípulos; ele aceitou e, com 12 maçons,
recrutados entre os mais conhecidos dos membros
de O Perfeito Silêncio e de A Sabedoria, ele fundou,
no próprio local dessa antiga Loja457, uma nova

454. Discours sur le magnétisme animal lu dans une assemblée du Collège des médécins:
résultat des observations faites à Lyon por J.-E. Gilibert. Lyon, in-8?, 1784. — Détail des
cures opérées à Lyon pelo Sr. Orelut. Lyon, Faucheux, 1784, in-8° — Mémoire de Petetin
sur les phénomènes de la catalepsie et du somnambulisme, in-8°, 52páginas. —Expérience
faite le 9 aoüt 1784 à l’école vétérinaire sous les yeux du comte de Monspey, du comte
d’Oels (príncipe Henri da Prtíssia), du Chevalier Barerin, de M. Millanois, sur un cheval.
Diagnóstico por um paciente sonâmbulo, In-4°, II ff.
455. Vie de Joseph Balsamo, p. 137. — Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 2.
456. Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 1.
457. A Sabedoria, fundada em 1725, tinha sede na Maison Puylats, Chemin neuf n? 33.
Tinha como venerável Willermoz, o velho. Seu selo era o que reproduzimos acima segun­
do as Efemérides das Lojas Maç.: Lionesas. P. 21.
oficina sob a denominação de A Sabedoria Triunfante. No início, seu obje­
tivo era apenas poder falar em particular àqueles que ele escolhera e ter um
local discreto, reservado, onde pudesse desenvolver suas faculdades, dar
provas da realidade e da amplidão de seus poderes. Mas. mal formada a
Loja, nesse meio ardente, as maravilhas se sucederam.
Novas curas, ensinamentos referentes a todos os assuntos, sobretu­
do às ciências divinas458, experiências com os pupilos, constituíam os
trabalhos teóricos e práticos de todas as linhas; por vezes, os fenômenos se
tornavam mais gerais, mais intensos, e os próprios assistentes os percebiam
diretamente e não mais por intermédio dos pacientes. A lembrança des­
ses fatos ficou por muito tempo na memória dos lioneses459. O valor das
revelações, sua clareza, era notável: cita-se o fato do duque de Richelieu,
que se apresentou, incógnito e disfarçado, e a quem Cagliostro fez ver
em um espelho “tudo o que era e tudo o que seria460.” Outra profecia de
Cagliostro causou grande rumor por sua pronta realização. “Eu lhes pre­
disse”, disse ele em Roma, “que, assim como entre os 12 apóstolos houve
um que traiu Jesus Cristo, haveria também um dentre eles que trairia a
sociedade; eles declararam que isso não podia acontecer; mas eu lhes
repeti duas vezes a mesma predição, acrescentando que esse traidor seria
punido pela mão de Deus461.”
Mas o que levou o entusiasmo ao cúmulo foi o seguinte fato maravi­
lhoso: o Sr. Prost de Royer, antigo almotacé de Lyon, venerável da Loja A
Benfeitoria, morrera em 21 de setembro de 1784. A Loja A Benfeitoria
mandara celebrar um serviço “pelo repouso de sua alma”, na quarta, 24 de
novembro de 1784, na igreja dos RR. PP. Récollets. Sua lembrança ainda
estava viva no coração de um grande número de pessoas, em particular no
dos maçons que compunham a Sabedoria Triunfante. Cagliostro, conver­
sando com seus discípulos, ensinara-lhes com freqüência que a luz conserva
o reflexo de todos os seres que passaram; que o espírito pode, excepcional­
mente e com a graça de Deus, perceber essas imagens. E o que a tradição
sempre ensinou, o que certos seres afirmaram e que a ciência moderna

458. Vie de Joseph Balsamo, p. 137.


459. Péricaud, loc. cit., p. 2. Eis, por outro lado, o que escreveu um de seus discípulos:
"Não posso acrescentar nada mais, senão lhe desejar tantas satisfações quanto eu pró­
prio experimentei, assim como irmãos testemunham como eu desses prodígios. Eu lhe
juro pelo nome do Grande Deus que tudo o que acabo de lhe comunicar é a maior das
verdades ”.
460. Notas acerca dos trabalhos de Cagliostro em Lyon in: Initiation, março de 1906, p. 256.
461. Vie de Joseph Balsamo, p. 138. Tratava-se do Sr. Finguerlin, negociante, que, com
efeito, traiu seus juramentos, abandonou Cagliostro e o atacou, e que, em 30 de dezembro
de 1785, muito após a partida de Cagliostro, foi inteiramente despojado de sua fortuna:
um certo Thevénet o roubou, uma noite, 403.653 libras, e Finguerlin foi reduzido à misé­
ria. Journal de Lyon, 4 de janeiro de 1786.
começa a estudar462. Com frequência solicitado a dar provas, Cagliostro
acedeu ao desejo de seus discípulos e, um dia, em uma sessão secreta de
sua Loja, a “sombra” de Prost de Royer apareceu, nitidamente reconhecí­
vel aos olhos de seus antigos amigos. Esse fato é indiscutível; foi conheci­
do e certificado por um grande número de homens dignos de fé. Péricaud,
que o conta463 entre alguns outros, soube-o de contemporâneos, testemu­
nhas dessas maravilhas. Conhecemos também as aparições ofuscantes e
incríveis que se produziram na consagração do templo dos Brotteaux464.
Entre essas duas épocas — instalação da Loja no Chemin Neuf e
consagração do templo dos Brotteaux — mais de um ano se passou e ne­
nhum dia, provavelmente, passou-se sem que alguma nova manifestação
do poder de Cagliostro viesse aumentar sua celebridade e avivar o zelo de
seus discípulos. Infelizmente, nenhuma ata de sessões chegou a nós, ne­
nhuma correspondência nos contou esses prodigiosos trabalhos465.
Podemos imaginar o quanto os discípulos de Cagliostro deviam desejar
ardentemente prendê-lo definitivamente a eles e a sua cidade. Cagliostro era
exatamente aquele que eles procuravam, que eles não ousavam esperar en­
contrar; apenas dele podería vir uma doutrina perfeita, apenas dele, a regene­
ração da Maçonaria, a salvação, a renovação do mundo. Suplicaram-lhe que
codificasse seu ensinamento, que desse a todos aqueles que ele julgasse dignos
de recebê-los um dogma, um ritual e um templo para poder pensar, orar, agir
cada vez mais junto com ele, sob sua direção. As reuniões realizadas em sua
presença, em um local comum com outras Lojas tão diferentes da dele, pare­
ciam desrespeitosas. Cagliostro aceitou e agradeceu; prometeu que o templo
teria uma consagração sem igual, que ele lhe daria o título e os poderes da
Loja-Mãe do Rito Egípcio e que confiaria a seus “queridos filhos”, em um
ritual, a explicação da única e pura doutrina maçônica.
Organizou-se uma subscrição; muitos doaram, todos se engajaram para
reunir fundos e, quando a soma necessária foi atingida, começaram, no pla­
no material, os primeiros trabalhos de construção. O lugar escolhido foi
um espaço afastado, quase no campo, no bairro dos Brotteaux, que acabara
de ser ligado a Lyon pela ponte Morand.
Ao mesmo tempo, Cagliostro apresentava a algumas pessoas os pri­
meiros cadernos de seu ritual: A Maçonaria Egípcia, de que tanto se falou
a torto e a direito. O procedimento do Santo Ofício, que teve esse livro ante
os olhos, difundiu a lenda de que seu ritual não passava de uma cópia de
manuscritos comprados por ele, na Inglaterra, de alguém chamado Cofton

462. Phantasms of the living — Exteriorização da motricidade. — Materialização. —


Psicometria.
463. Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 2. Prost de Royer deu sua fortuna e sua vida generosa­
mente àqueles que o rodeavam e morreu abandonado por todos, na mais profunda miséria.
464. Ver mais adiante, p. 142.
465. Talvez, se é que houve atas, elas tenham desaparecido com os papéis de Cagliostro,
no auto-de-fé feito em Roma em 20 de junho de 1791.
ou Coston, e que haviam encontrado o original assinado G. Coston, em seus
papéis, quando de sua prisão. Essa acusação não repousa sobre nenhuma
prova. Da mesma maneira, escreveu-se que, em seus baús, haviam descoberto
objetos de magia: estatueta de Isis, bois Apis, talismãs, etc., e o panfleto dos
inquisidores insiste nisso para mostrar o negrume de suas obras, a abomina-
ção de seu Rito. Será que essas estátuas provam que Cagliostro era egípcio,
ou que adorava Hermanúbis? Todo esse aparato, se é que existiu, devia pro­
vir de generosidades desajeitadas; sabemos que, se ele dava muito, mas tam­
bém recebia presentes; seus baús podiam estar entulhados de uma porção de
bibelôs desse gênero, conservados como lembranças, e alguns livros ou ma­
nuscritos, encontrados entre eles, bastaram para edificar essa lenda.
De qualquer maneira, que o Ritual da Maçonaria Egípcia tenha uma
origem antiga e que foi apenas modernizado por Cagliostro, ou que seja
inteiramente novo, ditado por ele a secretários, ou que seja obra comum
dele e de alguns de seus discípulos versados em ciência maçônica466, basta
estudar a obra para constatar a elevação do sentimento religioso que a ins­
pirou, a identidade das idéias principais com tudo o que ensinava e pratica­
va Cagliostro, e para reduzir a pó todas as calúnias reunidas contra esse
Rito pelo ódio do Santo Ofício.
É o que faremos ao resumir, tão brevemente quanto possível, as noções
teóricas acerca de Deus, do mundo e do homem, das práticas concernentes à
dupla regeneração, direções morais dadas ao Iniciado, que encontramos dis­
seminadas aqui e ali nos cadernos dos três Graus da Maçonaria egípcia.

Maçonaria Egípcia
Os trabalhos maçônicos são inteiramente espirituais e não têm outro
objetivo senão o de merecer ser admitido no templo de Deus.
O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é a mais perfeita
de suas obras; enquanto conservou sua inocência, ele comandava todos os
seres vivos, mesmo os anjos, forças inteligentes, ministros de Deus, inter­
mediários entre as criaturas e o Criador. Mas, após a queda467, a harmonia

466. Acerca desse assunto, assinalamos a seguinte hipótese: Saint-Costar, discípulo de


Cagliostro, venerável da Sabedoria Triunfante, deve ter sido um dos redatores — um dos
copistas, em todo caso — do Ritual. Ora, a assinatura: S. COSTAR, em cursiva do século
XVIII f.&fa.., pode, se as letras forem malformadas, ser lido G. Gofton ou G. Coston,
assim como S. Costar. Não teria sido simplesmente um exemplar do Ritual, assinado pelo
venerável, que provocou o erro e permitiu a calúnia? G. Coston é, aliás, um nome desco­
nhecido em Hermetismo e Maçonaria. sobre Hermetismo, sugerimos Reagardie, Israel,
Magia Hermética — A árvore da vida, um Estudo sobre a magia e Westcott, VE Wynn,
coletânea Hermética — uma introdução ao universo da magia da Cabala, da dequimia e do
ocultismo, ambos publicados pela Madras Editora.
467. “O homem, tendo degenerado pelo abuso que fez. desse grande poder, foi privado por
Deus dessa superioridade, tornado mortal e até a comunicação com os seres espirituais
lhe foi tirada.” Ritual, p. 40.
do Universo foi corrompida e o homem, mergulhado na matéria. Seu traba­
lho, para reencontrar a pureza original e o poder que eram seu apanágio,
tornou-se assim considerável, e o objetivo da Iniciação é trazer o homem
decaído à reconquista de sua dignidade perdida.
Essa regeneração deve ser dupla: moral e física468. Para que um pro­
fano volte a ser filho de Deus, é preciso primeiro que esse desejo desperte
nele, que ele comece a orientar sua vida nesse sentido, que reforme os
erros dela. Se ele for sincero em seus esforços, Deus suscita sobre sua rota
um de seus eleitos para socorrê-lo469.
Ele aprende desse mestre que o trabalho consiste em glorificar Deus
(regeneração espiritual), a se fazer apóstolo e sacrificador de sua onipotên­
cia, a penetrar no santuário da natureza (regeneração intelectual) e a puri­
ficar os elementos em si (regeneração social e física).
Glorificar Deus em si é reformar o seu interior, mortificar-se, não
com austeridades exteriores470, mas com lutas interiores. A obra é longa e a
paciência, necessária; não se chega a isso sem muito trabalho, diz o ritual
do aprendiz471. Praticar a caridade, vivificar em si a fé pura, sem deixar as
supertções se desenvolverem, eis duas virtudes fundamentais.
Penetrar no santuário da natureza é adquirir o conhecimento, não o
das ciências humanas, mas a noção direta dos seres, a plena possessão dos
pacientes, o que anda de mãos dadas com a prática da caridade.
Por fim, a transformação do velho homem em novo homem só se
pode dar com um comportamento inteiramente oposto ao que se tinha até
então: é preciso viver impenetrável e oculto, chegar a ser livre sem ligar
para preconceitos e para os bens do mundo; é preciso chegar a poder dizer
a senha dos companheiros: Sum qui sum. A regeneração física do corpo se
segue a essas preparações; ela se destina a fornecer ao espírito uma força
vital isenta das taras, hereditárias ou adquiridas, que a má higiene, os hábitos,
as paixões, a influência do meio imprimem profundamente em cada ser.
Cagliostro deu, para essa cura psicológica, detalhes precisos, acerca dos

468. “Nascer novamente (palingenesia), eis o que requer o Salvador daqueles que que­
rem participar de Seu reino, judeus e pagãos" João, II: 23; III: 21. Os rabinos designa­
vam também a mudança de natureza que deveria cumprir-se nos prosélitos com as palavras
Win JTT2. Jesus diz que esse novo nascimento devia ser duplo: primeiro, de espírito: em
seguida, de água. (Espírito eprincípio vital). H. Olshausen, Commentaire à 1’Evangile de
saint Jean. Neuchatel, 1844, in-8?, p. 100.
469. Ritual, p. 40.
470. “Redobrem seus esforços para se purificar, não com privações ou penitências ex­
teriores; não se trata de mortificar o corpo e fazer sofrer; são a alma e o coração que
precisamos tornar bons e puros. ” Ritual, p. 54. Foi aqui que alguns se apoiaram, des­
figurando as palavras, para dizer que Cagliostro ensinava o epicurismo e incitava à
depravação!
471. P. 28.
quais muito se zombou, e que sempre se apresentou aos leitores como o
único segredo do Grão-Mestre. Vemos, ao contrário, que isso não passa de
uma parte mínima, a última da obra472.
Essa descrição das frases da regeneração física, destinada a abalar a
imaginação, contém, além disso, o resumo simbólico de toda a renovação
do ser. Tomando-a ao pé da letra, sem fazer notar que foi extraída de um
ritual maçônico, temos muito material para ridicularizar seus detalhes. Esse
procedimento daria o mesmo resultado aplicado a todos os sacramentos ou
ritos de um culto qualquer473.
Quando o homem, triplamente regenerado, possui uma alma sadia
em um corpo sadio, Deus consagra nele a mestria pelo influxo de Sua gra­
ça474. Ele se torna então um mestre, um eleito; ele goza dos conhecimentos,
de todo o poder que Deus, em princípio, havia concedido ao homem, e os
conserva enquanto se conforma escrupulosamente às leis de seu novo car­
go. Ele não mais precisa de proteção nem da ajuda de nenhum mortal, e
podemos reconhecê-lo por suas obras475. Ele possui o poder da visão

472. O catecismo do mestre diz que ela segue e deve seguir a regeneração moral; ela se
faz com um retiro de quarenta dias, sob a vigilância de um amigo e com a ajuda de alguns
medicamentos purificadores, depois revitalizantes. Cagliostro os preparava, sob forma
de pós (ditos refrescantes) e líquidos fortificante (gotas brancas, bálsamo do Grão-Mes­
tre). Notas referentes aos trabalhos de Cagliostro em Lyon. Initiation, 1906, p. 261.
473. Se refletirmos acerca de todas as teorias e práticas médicas, sem opinião formada;
se pensarmos que as células do intestino se renovam em quarenta e oito horas, as ou­
tras, menos rápido, mas bastante regularmente para que possamos admitir que em sete
anos nada mais subsiste em um organismo daquilo que o constituía materialmente sete
anos antes; que, em certas doenças, as destruições as e regenerações orgânicas se fa­
zem em massa, em alguns dias; que o jejum sempre foi empregado em medicina e em
religião como o mais poderoso método purificador, concluiremos sem dúvida que o
“charlatanismo" de Cagliostro dá menos razão para rir do que a ignorância de seus
críticos. Podemos ler uma comunicação do Dr. Guelpa, feita em 7 de janeiro de 1909 à
Sociedade de Neurologia de Paris, em que o autor declara que a renovação dos tecidos
e o rejuvenescimento das funções podem e devem ser feitos sistematicamente com um
jejum absoluto e prolongado, e que, se esse meio que ele empregou com sucesso ainda
não tem o lugar que merece em terapêutica, é porque é necessário acrescentar a ele a
purgação repetida para assegurar a evacuação dos dejetos orgânicos (Gazette des
Hopitaux, 2, 1909). E exatamente o que ensinava Cagliostro; ele vivificava em seguida
seu doente, o que era ainda melhor. Os membros da Sociedade de Neurologia teriam
acolhido essa comunicação com uma gargalhada geral?
474. “A graça se obtém sobretudo por meio de atos; viver da vida de todos, na sociedade
em que o Céu o colocou, respeitando as leis e sobretudo se consagrar à felicidade e ao
alívio de seu próximo, eis o primeiro dever de um filósofo e a obra agradável a Deus. ”
Ritual de Mestre, p. 31.
475. “Reconhecemo-lo por sua paciência, por seu candor, pela realidade de seus feitos, por
seu sucesso e sua maneira de operar que deve ser apenas a de implorar ao grande Deus
beatífica e da evolução dos espíritos superiores. (Esses são só dois modos,
ativo e passivo, de uma mesma faculdade, aquela que conhece o mundo
espiritual.)
Assim como o homem comum, que vive no mundo material, pode
perceber e agir, alguém regenerado pode perceber e agir no mundo espiritual
em que vive. Que a percepção se produza por intermédio de um paciente,
com ou sem aparato, ou diretamente ao espírito do Eleito, que seja tomada
perceptível a muitos, simultânea ou sucessivamente, provocada em outros,
tudo isso são apenas diferenças de procedimento, de ação ou de detalhes.
Um astrônomo pode mandar um empregado do laboratório observar as fa­
ses de um fenômeno celeste, fazê-o descrevê-las, ou observá-las ele pró­
prio com o olho ao telescópio, e pintar a seus auditores o que vê; ele pode,
ainda, tirar uma fotografia daquilo que registra seu aparelho, projetar o
clichê sobre uma tela visível a todos e, de uma só vez, fazer com que a sala
inteira veja a imagem que ele viu; o astrônomo fará assim, para o mundo
sideral, o que o Eleito pode fazer, o que Cagliostro fazia para o mundo espi­
ritual.
Mas a analogia pode ir mais longe: o astrônomo poderia ensinar a seu
empregado, a um aluno, como, em sua ausência, amanhã, na mesma hora,
ou no ano seguinte na mesma época, eles poderão, com tais ou tais precau­
ções, seguindo tal ou tal método, encontrar-se nas condições em que o
fenômeno se produzirá e como sua observação, bem feita, poderá dar-lhes
as mesmas noções, e outras ainda, talvez mais precisas, a respeito do astro
ou do estado do céu examinado. Se se trata de um empregado de laborató­
rio, ignorante, o trabalho, apesar de toda a boa vontade que ele terá, será
bom em alguns pontos; em outros, inútil ou absurdo476. Se o método e o
aparelho foram confiados a um colega, o sábio terá podido transmitir seus
poderes quase integralmente e as operações ulteriores equivalerão às do
“mestre agente primitivo.”
Essa transmissão de poderes se efetua da mesma maneira no mundo
espiritual para o Eleito de Deus; o símbolo permanecerá nas formas e Ritos
de instalação de certas Lojas, no cerimonial de transmissão de certas dig-
nidades eclesiásticas ou nobiliárias; mas, ao passo que, ali, era apenas letra

e comandar os sete anjos primitivos, sem jamais recorrer a um caminho supersticioso ou


idólatra. ” Ritual, p. 43. — Vemos que a iniciação descrita e oferecida por Cagliostro se
diferencia de todas as outras: nemfraqueza, nem superstição; ele proclama a alta dignidade
do homem, seu direito de comandar; nem orgulho, nem temeridade, por outro lado, pois
ele ensina a seus discípulos que a conservação dos poderes recebidos está intimamente
ligada ao exercício contínuo da santidade.
476. Cf. Vie de Joseph Balsamo, p. 151. Trabalhos de alunos tiveram certo dia como
resultado, segundo consta, a aparição de macacos no lugar de anjos. Saint-Martin repe­
tiu essa anedota; porém não encontramos confirmação autêntica em lugar nenhum.
morta ou lembrança estéril, Cagliostro, na Maçonaria Egípcia, transmitia
efetivamente esses poderes, e seus eleitos puderam transmiti-los também477.
Da mesma maneira que os mestres primitivos escolheram seus adeptos
segundo seu caráter e as faculdades que dormitavam neles478, para desen­
volver essas personalidades latentes ao máximo de seu poder, o eleito es­
colhe e desenvolve um iniciado e lhe transmite, quando sua evolução atinge
o Grau necessário, os conhecimentos e os poderes que lhe abrem um mun­
do novo479.
Todavia, é preciso notar que o iniciado formado por um Eleito de
Deus não tem, segundo o ritual de Cagliostro, senão um poder limitado a
sua individualidade espiritual; ele não é adepto480. Ele tem grandes esco­
lhos a evitar481 e pode mesmo alterar essas faculdades e voltar a perder
esses poderes, como explicamos anteriormente. Apenas o primeiro escalão
foi atingido; mas é entre os iniciados de Grau inferior que, “pela Graça de
Deus” e segundo seu progresso, poderão revelar-se os eleitos suscetíveis a
atingir a mestria absoluta.
Aquele que vive no mundo espiritual, que vê, ouve, age, tem, por ali
mesmo, sobre o mundo material, um poder incompreensível aos profanos e
que se pode aplicar tanto à cura dos homens doentes quanto à dos metais
imperfeitos; ele pode penetrar tão facilmente nos segredos dos cérebros

477. ... “Eu descobri por seus discursos que seu mestre, apesar da objeção de seu estado
moral (I), operara através da palavra e chegara a transmitir a seus discípulos o conheci­
mento para operar da mesma maneira durante sua ausência. ” Saint-Martin, 73". carta a
Kirchberger. Correspondance, p. 205. Saint-Martin julgava o estado moral de Cagliostro
pela Vie de Joseph Balsamo, que pensava ser um livro digno de confiança.
478. Pentágono próprio a cada indivíduo, colocando-o em relações com o único anjo
correspondente a esse pentágono. Ritual, p. 73. “Pela regeneração, o homem não recebe
um caráter oposto a sua natureza, mas ela transforma e glorifica nossa natureza pessoal;
ela nos eleva a uma potência de vida e de existência mais alta. ” — H. Olshausen,
Commentaire à 1’Evangile de saint Jean. Neuchatel, 1844, in-8?, p. 100.
479. Eis as verdadeiras chaves do Templo, as senhas, as câmaras ou apartamentos, onde
apenas o iniciado pode penetrar “sem bengala e sem chapéu ” (Disciplina para os mes­
tres, p. 60, Catequismo de Companheiro. VII mandamento, p. 54), e dos quais ele nada
pode revelar. As religiões, a Maçonaria deixaram que tudo isso caísse no esquecimento
por ignorância, em ridículo com suas indiscrições; mas os filhos de Deus conservam o
espírito e a realidade das iniciações; elas são imperecíveis, e Deus suscitaria seres
para manter acesa a lâmpada do santuário se não houvesse, em cada geração, alguém
que por si só tomasse para si essa tarefa misteriosa de conservar a vida através da qual
o mundo subsiste.
480. Ele só pode comunicar-se com o anjo cujo selo e número existem em seu pentágono;
ele só recebe seu poder de seu mestre. Cf. Abertura dos Trabalhos no Grau de Mestre, p.
73; e página precedente: nota 1.
481. Cagliostro insistiu muito nesses perigos e nos meios de evitá-los. Catecismo de Apren­
diz, p. 45.
humanos quanto nos destinos ocultos das nações. Cagliostro mostrou com
tanta freqüência a realidade desses poderes, que seus mais severos histo­
riadores, seus inimigos, mesmo seus juizes eclesiásticos, não puderam negá-
los. Ele dava provas de tudo o que dizia; com que direito, então, queriam
negar as noções espirituais segundo as quais ele explicava seu poder?
Essas teorias e sua prática foram conservadas no Ritual e nos Cate­
cismos da Maçonaria Egípcia^1. E daí que tomamos os dados e citamos
tão textualmente quanto possível; mas, nesses rituais, a doutrina se encontra
envolvida em símbolos, ornada de alegorias, disseminada em discursos de
recepção ou fórmulas de iniciação, tendendo a tomar os cadernos dessa
Ordem tão análogos quanto possível, exteriormente, àqueles que estuda­
vam habitualmente os maçons, aos quais eles eram destinados; tivemos de
desatravancar, coordenar e resumir. O resto é interessante de ler, todavia: a
história abreviada e simbólica da Maçonaria, a escolha de nomes, signos
e números revelam ao observador a simplicidade da doutrina, sua antiga e
tradicional verdade. Nas orações que acompanham a abertura dos traba­
lhos, nos discursos de recepção, passa um ar profundamente religioso e
sincero, que não encontramos nos rituais das outras Ordens.
Eis, como exemplo, uma passagem do discurso de recepção ao Grau
de Mestre:
“Meu Deus, tenha piedade do homem N. segundo a grandeza de Vos­
sa misericórdia e apague sua iniqüidade segundo a imensidão de Suas bon-
dades; lave-o cada vez mais de seu pecado e purifique-o por sua ofensa,
pois ele reconhece sua iniqüidade e seu crime é sempre contra ele mesmo;
ele pecou apenas diante de Você, cometeu o mal em Sua presença, a fim de

482. O manuscrito original é um in-4?, marcado no início e no fim com o emblema, núme­
ro ou selo de Cagliostro, em cera verde, a saber: uma serpente atravessada por uma
flecha e tendo uma maçã na boca. E ilustrado com desenhos coloridos que representam os
trajes simbólicos dos diferentes Graus. Esse manuscrito foi perdido; fora dado por Ca­
gliostro a A Sabedoria Triunfante. O Sr. Romand, de Lyon, teve esse manuscrito entre as
mãos e copiou algumas passagens dele. Duas outras cópias primitivas foram feitas e
doadas: a primeira, ao primeiro Venerável Assistente (Alexandre II). O Sr. Dubreuil, mem­
bro de Sabedoria Triunfante, era possuidor dele e o deixou em testamento a uma pessoa,
X... que o legou ao Ir.-. Bacot, Venerável da Loja do Perfeito Silêncio, em 1844; este o
legou ao Orador dessa Loja. O sábio M. Morison copiou esse exemplar; o Sr. Guillemet
(Porta-Estandarte do Perfeito Silêncio em 1845) copiou o exemplar Morison; é essa có­
pia que tivemos entre as mãos e estudamos: alguns fragmentos desse manuscrito aparece­
ram na Initiation (1906-1908), mas o texto está muito incorreto. A terceira cópia original,
dada ao 2? Venerável Assistente (Alexandre III), desapareceu igualmente. Cf. Notas nas
primeiras páginas do Sr. Guillemet. Essa edição não foi realizada por Papus e Marc
Haven, mas foi a partir do trabalho que eles haviam preparado que foi publicado o Ritual
da Maçonaria Egípcia, ao qual se refere a presente obra, que foi publicada nos Cahiers
Astrologiques, Nice, 1947.
que Você seja justificado em Suas palavras e vitorioso quando o julgar.
Meu Deus, crie um coração puro nele e renove o espírito de justiça em suas
entranhas, não o afaste diante de Seu rosto, devolva-lhe a alegria de Sua
assistência salutar e fortifique-o com um espírito que o faça agir volunta­
riamente. Ela ensinará Seus caminhos aos injustos, e os ímpios se conver­
terão a Você. Oh, Deus! Oh, Deus de nossa salvação, liberte-o das ações
sanguinárias, e sua língua cantará com alegria Sua justiça, Senhor! Abra
seus lábios, e sua boca anunciará Seu louvor. Se Você pedisse um sacrifí­
cio, ele Lho oferecería. Os holocaustos não Lhe são agradáveis. O sacrifício
que Deus pede é um espírito aflito. Oh, Deus, Você não desprezará um
coração contrito e humilhado. Senhor, em Sua bondade, espalhe Seus bens
e Suas graças sobre Sião, a fim de que as muralhas de Jerusalém sejam
construídas. Você concederá então o sacrifício de justiça, as oferendas e os
holocaustos...” (Ritual p. 65).
Será possível encontrar, com uma doutrina mais elevada, com uma
iniciação mais real, um pensamento mais respeitosamente religioso do que
este?
Foi essa Maçonaria que ele levou a Lyon e que ensinou na Loja da
Sabedoria.
Ele contava, entre seus discípulos, pessoas estimadas na cidade: o
banqueiro Saint-Costar, presidente da Grande Loja provincial, em 1779,
antigo Venerável da Sabedoria; Aubergenois, Alquier, negociantes e altos
dignitários; Finguerlin, Philippon, Morin, Journet, Colonge, os dois
Magneval, Terrasson de Sénevas, antigo oficial, todos devotados, de corpo
e alma, a seu iniciador. Saint-Martin, que encontrou Gabriel Magneval, em
1795, conta483 do respeito que ele professava por seu Mestre e como ele
conservava, ainda nessa época, relações contínuas com os discípulos suí­
ços de Cagliostro. Péricaud484 conta também que foi em Lyon que Cagliostro
conheceu Antoine Rétaux de la Vilette, filho do diretor das concessões,
vítima, mais tarde, das intrigas de Madame de la Motte no Caso do Colar.
As subscrições desses adeptos, as dos doentes reconhecidos, haviam
coberto facilmente a soma necessária à instalação da Loja-Mãe do Rito
Egípcio, e o Templo foi construído com muita magnificência485. Nesse meio
tempo, os trabalhos maçônicos continuavam no local antigo; a autoridade
e a reputação de Cagliostro aumentavam; os maçons egípcios foram procu­
rados na mesma medida em que anteriormente haviam sido deixados de
lado. Muito tempo após o Caso do Colar, mesmo após a prisão de Cagliostro,

483. Correspondance de Saint-Martin com Kirchberger, p. 305.


484. Brochura citada, p. 2.
485. Vie de Joseph Balsamo, p. 139. — Havia três câmaras principais: uma à esquerda
para os Aprendizes; uma à direita para os Companheiros; a do meio, para os Mestres,
ornada com o busto de Cagliostro no centro.
em Roma, vemos ainda Saint-Costar, venerável da Sabedoria Triunfante,
fiel amigo do Grão-Mestre, enviado como deputado à Grande Loja provin­
cial, e Alquier, promovido à dignidade de Guarda dos Selos nessa mesma
assembléia486.
Em 1785, Cagliostro estava rodeado, adorado por aqueles que ele
escolhera e dirigira pouco a pouco no caminho da luz, como poucos mes­
tres haviam estado. Via-se nele tal grandeza, ele parecia tão bom e pode­
roso que os corações se entregavam a ele com todo o abandono da raça
lionesa. Apesar de seus sucessos em Estrasburgo, seu triunfo em Paris,
estimo que esses foram os melhores dias de sua vida e o mais radioso
brilho de sua luz espiritual.
E de repente, no meio dessas satisfações, quando tudo marchava como
desejado, que a Loja nova se abriría para conquistar, com ele à testa, a
Maçonaria da Europa, Cagliostro desapareceu! Quando vêem o adepto dis­
cutido, atacado, deixar São Petersburgo ou Londres, seus historiadores se
apressavam em assinalar sua partida como uma fuga487. Não seria essa,
diziam, uma prova de sua falsidade, o testemunho de suas patifarias, essa
partida brusca? O charlatão percebe seu público agitado, o terreno estre­
mecido; ele faz as malas e escapa; o procedimento não é evidente? Ora,
aqui, em plena glória, em pleno sucesso, rodeado de devoções que lhe as­
segurava a felicidade, para ele e para sua mulher, até o fim de seus dias,
mais bruscamente ainda, Cagliostro parte. Silêncio dos historiadores: nin­
guém notou ou não quis notar o fato, todavia muito significativo488.
Em 27 de janeiro de 1785, Cagliostro deixou Lyon489; sua partida
causou uma consternação geral; todavia ele permanecia em relações com
os seus: deixava-lhes chefes formados por ele, aos quais ele transmitira,
durante esses poucos meses, seus ensinamentos e alguns poderes; ele lhes
fazia, em seu Ritual, recomendações secretas490 e prometia voltar um dia a
eles. O amor e o respeito que tinham por ele eram tão grandes que sua
vontade, apesar da incompreensão em que estavam das razões de sua partida,
foi respeitada e todos se inclinaram. A abertura dos trabalhos de A Sabedoria

486. Efemérides das Lojas maçônicas de Lyon, p. 98. Em 1790.


487. Carlyle deu esse nome a cada um dos deslocamentos de Cagliostro.
488. Se há seres que a felicidade assusta e que se crêem abandonados por Deus quando o
destino lhes sorri, esses seres, feitos para viver na tempestade, capazes de provocá-la às
vezes se ela demora a rugir, compreenderão o ato de Cagliostro e o reconhecerão como
um dos seus.
489. Peça justificativa, ad finem: Petição a anexar. Paris, 1785, in-4?, p. 10.
490. “Se vocês praticam o que contêm os estatutos e regulamentos que eu lhes dou, vocês
chegarão a conhecer a verdade, meu espírito não os abandonará e o grande Deus estará
sempre com vocês. ” Se vocês não observarem esse regulamento, em verdade lhes digo: a
confusão, a discórdia e a infelicidade se introduzirão em meio a vocês. ” Ritual, p. 78.
Triunfante ocorreu sem ele no sábado, 20 de agosto de 1785491, e, mais
tarde, na consagração do Templo, em 25 de julho de 1786, o primeiro co­
missário R.492, representante do Grão-Mestre ausente, pronunciou este belo
discurso, que refletia os sentimentos de todos:
DISCURSO DE PH. R., PRIMEIRO COMISSÁRIO E GRANDE
INSPETOR, PRONUNCIADO NA LOJA-MÃE NA CERIMÔNIA DE
CONSAGRAÇÃO, NA TERÇA-FEIRA, 25 DE JULHO DE 1786.

“Meus irmãos. E com o coração consternado e cheio de amargura que


fomos encarregados, o irmão de V.493 e eu, de lhes fazer os adeuses do
Grande Copta, nosso fundador; ele deixou para sempre a França e habita
neste momento em um novo reino; seus lamentos e sua dor referente a esse
triste acontecimento devem ser ainda mais vivos, pois, tendo-os previsto,
ele compartilhou deles e, até o último instante em que ele esteve em sua
pátria, ocupou-se principalmente de seus filhos de Lyon e de sua felicida­
de. Vocês não ignoravam quantas vezes ele fez o projeto de vir ele próprio
consagrar e inaugurar este Templo, esta nova Jerusalém tão cara a seu co­
ração e à qual está destinada no futuro uma glória tão extensa e tão brilhan­
te. Os decretos da Providência constantemente opuseram obstáculos a isso.
Homens incrédulos e sem fé poderíam murmurar, mas seres privilegiados,
tal como nós, devem saber que nossa fraqueza nos impede de conceber,
como de penetrar, os segredos do Ser Supremo; devemos resignar-nos e
nos submeter. Abraão consentiu outrora em sacrificar seu filho; cabe a nós,
hoje, fazer aquele de nosso pai. Não julguemos nem nos atormentemos acer­
ca dos efeitos futuros de uma causa que nos é desconhecida, e digamos como
Jó: Deus nos dera e nos tirou. Que o exemplo desses dois eleitos, favoritos
do Eterno, sirvam-nos de modelo e de consolação, pois se eles foram feli­
zes durante sua vida, ainda são bem mais hoje, e se sua confiança no Eter­
no se iguala à que tenho e que desejo inspirar-lhes, vocês serão igualmente
recompensados por ela.
“Até agora, cegos e indecisos, vocês só puderam chegar a formar
conjecturas, mas a realidade substituirá a dúvida; vocês se tomarão homens
e conhecerão uma parte dos favores infinitos e sobrenaturais de que o Ser

491. “O conde de Cagliostro deveria chegarem Lyon dia 19 (agosto) com De Luxembourg
e oito a dez outros grandes personagens com os quais ele deveria fazer, no sábado, 20, a
grande pompa de consagração dé Sabedoria Triunfante, que o esperava com um belo
uniforme de casaca verde com cordão de ouro, que era a casaca de campo de seu Grão-
Mestre; mas o projeto fracassou. Cagliostro foi preso e encerrado na Bastilha no dia 24. ”
Carta inédita de Willermoz ao cavaleiro de Savaron de 30 de agosto de 1785. Coleção de
Bréghot du Lut.
492. Sem dúvida, Rigollet, antigo membro da Sabedoria. Efemérides das Lojas maçônicas
de Lyon, p. 8.
493. Sem dúvida, De Vismes, Grande Secretário do Rito Egípcio.
Supremo cumulou aqueles que ele adotou e que ama; armem-se de força,
de vigor e de sabedoria.
A Força prova o poder do verdadeiro maçom egípcio que, tendo ele­
vado em seu coração um santuário digno do Eterno, adquiriu a coragem
necessária para sustentar e defender com firmeza os preceitos e as leis
prescritas pelo Grande Fundador.
O Vigor, para empreender com coragem uma rota nova e desconheci­
da ao restante dos mortais, para poder enfrentar toda espécie de perigos,
enfim, para suportar com paciência a felicidade ou a infelicidade que re­
sulta dos diferentes acontecimentos da vida.
A Sabedoria, para chegar a adquirir os conhecimentos da alta, subli­
me e verdadeira filosofia hermética, a fim de merecer um dia poder operar
o casamento do sol e da lua, felicidade completa, a maior recompensa con­
cedida por Deus ao homem, verdadeira perfeição física e moral que o toma
seu Eleito e possuidor da matéria primeira e universal.
Amem e adorem o Eterno com todo o seu coração, impeçam o mal e
jamais o pratiquem, amem e sirvam seu próximo fazendo-lhe todo o bem
de que vocês são capazes, consultem sua consciência em todas as suas
ações, mas fujam e expulsem todos os escrúpulos, pois o escrúpulo faz o
crime, o crime faz o pecado e o pecado, a maldição de Deus494.”

Em seguida, ele fez com que todos prestassem o juramento de discri­


ção, Companheiros e Aprendizes que, nessa cerimônia de consagração,
deviam aprender alguns dos segredos dos Mestres.
As cerimônias de purificação, de consagração, ordenadas pelo ritual
do Grão-Mestre e controladas pelo Mestre agente, segundo os poderes trans­
mitidos, foram executadas.
O resultado ultrapassou as esperanças de seus discípulos: eis a prova,
trazida em uma carta autêntica, emanada do Venerável de A Sabedoria
Triunfante e dirigida a Cagliostro como prestação de contas e ação de graças:

“Senhor e Mestre. Nada pode igualar sua bondade senão a felicidade


que ela nos proporciona. Seus representantes se serviram das chaves que o
senhor lhes confiou; eles abriram a porta do grande Templo e nos deram a
força necessária para fazer brilhar seu grande poder.
A Europa jamais viu uma cerimônia mais augusta e mais santa; mas
ousamos dizê-lo, Senhor, ela não podería ter testemunhas mais penetradas da
grandeza do Deus dos deuses, mais reconhecidos por suas supremas bondades.
Seus mestres desenvolveram seu zelo ordinário e esse respeito reli­
gioso que eles trazem todas as semanas aos trabalhos interiores de nossa
Loja. Nossos companheiros mostraram um fervor, uma piedade nobre e
fundamentada e fizeram a edificação dos dois Irmãos que tiveram a honra
de representar o senhor. A adoração e os trabalhos duraram três dias e, por
um concurso notável de circunstâncias, estávamos reunidos em número de
27 e houve 54 horas de adoração.
Hoje, nosso desejo é de pôr a seus pés a demasiado fraca expressão
de nosso reconhecimento. Não tentaremos fazer-lhe a narrativa da cerimô­
nia divina de que o senhor se dignou tomar-nos o instrumento; temos a
esperança de fazer-lhe chegar logo esse detalhe por intermédio de um de
nossos irmãos, que o apresentará pessoalmente. Nós lhe diremos, porém,
que no momento em que havíamos pedido ao Eterno um sinal que nos faria
saber se nossos votos e nosso Templo lhe eram agradáveis, enquanto que
nosso Mestre estava em meio ao ar, apareceu, sem ser chamado, o primeiro
filósofo do Novo Testamento. Ele nos abençoou, após se ter prosternado
diante da bruma azul cuja aparição havíamos obtido, e se elevou sobre essa
bruma cujo esplendor nossa jovem colomba não pôde sustentar, desde o
instante em que ela desceu sobre a Terra.
Os dois grandes profetas e o legislador de Israel nos deram sinais
sensíveis de sua bondade e de sua obediência às ordens do senhor: tudo
concorreu para fazer a operação completa e perfeita, tanto quanto pode
julgar nossa fraqueza.
Seus filhos ficarão felizes se o senhor se dignar a protegê-los sempre
e cobri-los com suas asas; eles ainda estão penetrados pelas palavras que o
senhor dirigiu do alto do ar à colomba que lhe implorava para ela e para
nós: "Diga-lhes que eu os amo e os amarei sempre'.
Eles lhe juram um respeito, um amor, um reconhecimento eternos, e
se unem a nós para lhe pedir sua bênção; que ela coroe os votos de seus
mui submissos, mui respeitosos filhos e discípulos. O irmão mais velho
Alexandre Ter...
Em 1? de agosto de 5556.”
Esta carta, encontrada pelo Santo Ofício, foi publicada na Vie de
Joseph Balsamo**. Foi de lá que a extraímos. Louis-Claude de Saint-Martin
deu um relato abreviado em sua 2lí'carta a Kirchberger495496. Com frequência
esse texto é citado; mas como não é um testemunho pessoal, pois sua infor­
mação é baseada precisamente nessa Vie de Joseph Balsamo, preferimos
nos apoiar no documento original.
As promessas de Cagliostro relativas à majestosa manifestação que
deveria acompanhar a consagração do Templo da Loja-Mãe haviam então
sido cumpridas, e até além das expectativas. Os discípulos não haviam
duvidado disso, mas sua alegria foi grande; os dois Veneráveis que ele
fizera instalar e os 12 Mestres confirmados em seu Grau em 25 de setembro
de 1786, pelos Comissários delegados497, continuaram a trabalhar com fervor

495. P. 198-199.
496. Correspondance de Saint-Martin com Kirchberger, p. 67.
497. Patente de A Sabedoria Triunfante. Apêndice.
no Templo consagrado por tais prodígios. O resultado de tais trabalhos era
transmitido a seu mestre, que permanecia em comunicação direta com eles498.
Todavia, como em toda a parte, após o desaparecimentos do funda­
dor, sobreveio a divisão: superstições, interpretações diversas separaram
os espíritos. O interesse acrescentou seu germe de discórdia: alguns subscri­
tores, após a partida de Cagliostro, não quiseram mais pagar e iniciaram-se
processos499.
Os dias terríveis da Revolução, do cerco de Lyon, sobrevieram: A
Sabedoria Triunfante entrou em letargia e, quando do renascimento da
Maçonaria, os sobreviventes dos discípulos de Cagliostro, dispersos, não
se reuniram mais em Loja500. Essa decadência do Rito Egípcio em Lyon
começou somente em 1788: até então, A Sabedoria Triunfante contribuiu
da melhor maneira que pôde para dar assistência ao Mestre em sua ação
maçônica em Paris; esses acontecimentos se ligam muito imediatamente
aos precedentes para que possamos deixar de estudá-los aqui. Cagliostro
encontrou, ao chegar à capital, a mesma agitação de espíritos, a mesma
situação confusa que ele encontrara em Lyon; o teatro era mais vasto; ele
chegava com uma autoridade bem maior, é verdade, mas as pessoas esta­
vam bem mais afastadas dele e eram menos sinceras.
A convenção dos Filaletos, que reuniu membros dos mais diversos
Ritos, destinada a unificar a Maçonaria ao fixar seu objetivo, princípios e
trabalhos, tivera sua primeira assembléia A 13 de novembro de 1784501.
Em 23 de novembro, o presidente, Savalette de Langes, propôs que
se chamasse à convenção o conde de Cagliostro, de que tantas maravilhas se
contavam, assim como Mesmer, esperando que esses irmãos, com suas

498. Carta de Cagliostro no momento do Congresso dos Filaletos. Cf. p. 146 deste livro,
e Vie de Joseph Balsamo, p. 199-200.
499. Péricaud. Cagliostro à Lyon, p. 3
500.0s arquivos de A Sabedoria Triunfante, confiados em 1821 à Loja de Memphis (Rito
de Misraím) pelo Venerável, Dubreuil, passaram para o Perfeito Silêncio quando de sua
morte; o Orador dessa Loja, em 1845, foi seu último depositário. Atualmente, não encon­
tramos mais traço dos arquivos do Rito Egípcio senão nos raros papéis que conservam as
Lojas lionesas. O Templo, que se encontrava à direita da alameda dos Brotteaux (atual
rua Morand), um pouco acima da praça du Bassin (atual praça Saint-Pothin), ocupado
em certo momento pelo Perfeito Silêncio (1824), foi abandonado. Em 1843, a casa servi­
ría de local aos irmãos das escolas cristãs.
501. Cf. Acta Latomorum. Paris, 1815. t. II, p. 92 c L’Initiation, 1904, n?s 1 a7, reprodu­
ziu parcialmente esses documentos. Encontramos também um bom estudo a respeito da
convenção dos Filaletos no prefácio de Enseignements secrets de Martinèz de Pasqually.
Paris, 1900; p. 40 a 151 (ver também Os Ensinamentos Secretos — Precedidos de Infor­
mação a Respeito do Martinesismo e do Matínismo, Franz von Baader, publicado pela
Madras Editora).
* N. do E.: Sugerimos a leitura A Antiga Franco-Maçonaria — Cerimônia e Rituais dos
Ritos de Memphis e Misraím, de Robert Ambelain, publicado pela Madras Editora.
luzes, pudessem dissipar as trevas em que se debatiam os membros da
assembléia. Para Cagliostro, houve discussão; muitos maçons temeram
comprometer-se. Hesitou-se e, finalmente, apenas Mesmer, personagem
menos inquietante, foi convidado. A maioria nunca se engana; ela sempre
sabe escolher as mediocridades.
Mas após três meses de estudos, a convenção nada avançara. Nova­
mente, em 10 de fevereiro de 1785, Savalette de Langes propôs convidar
Cagliostro e a sugestão foi aceita. O conde acabara de chegar a Paris502; ele
respondeu imediatamente que de boa vontade comparecería e que aceitava
em princípio dar a luz aos Filaletos, com a condição de que eles o recebes­
sem, a alguns dos seus e, em particular, ao Sr. de L503.
Ao receber essa resposta, alguns membros da convenção ergueram
novas objeções de forma: o Sr. de L. não era 12.°.-., e outras dificuldades de
mesma importância. A vaidade e o excesso de rigor burocrático se elevaram
assim contra a boa vontade de Cagliostro, ou antes algumas personalidades
hostis ao Grão-Mestre se serviram desses pretextos para tentar afastá-lo.
Essa hesitação, renovando o acolhimento desconfiado que recebera a
primeira proposta de recebê-lo, mostrou a Cagliostro o pouco de impulso
que tinham os Filaletos pela busca da verdade. Ele se mostrou a partir daí
tanto mais exigente quanto mais diplomáticos e fugidios se mostrassem os
maçons. Em 10 de março de 1785, a convenção recebeu uma carta504 em
que Cagliostro declarava que, já que eles mostravam tão pouco ardor pela
verdade, que eles se recusavam a dar um passo em direção àqueles que
vinham a eles em nome de Deus, ele pediría ainda mais coisas como preço
por seu concurso. Eis quais foram suas condições:
1? Os Filaletos queimarão seus arquivos e farão tábula rasa de um
passado mentiroso;
2? Todos se farão receber maçons egípcios.
Então, em plena Loja, as provas que eles desejavam seriam dadas505.

502. Em 30 de janeiro de 1785.


503. De Laborde, sem dúvida.
504. Carta datada de 1/1/5555.
505. O poder de Cagliostro era incomparável, indiscutível; aqueles que quiseram segui-
lo chegavam em pouco tempo ao objetivo que buscavam e haviam visto todas as promes­
sas de seu mestre se realizar. Os discípulos de Martinèz de Pasqually, de Schrõpfer, os
Filaletos, os Iluminados, os discípulos de Mesmer poderíam dizer o mesmo? Quando
Cagliostro exigiu dos maçons a destruição de seus arquivos, a adesão pura e simples a
seu Rito, não estava tentando recolocá-los no caminho da verdade? Não era uma obra de
caridade, esse ato que se tomou, em seu tempo e no nosso, como um gesto de fanfarronice?
Os arquivos maçônicos só contêm fantasias e erros, mentiras históricas, até preciosamen­
te acreditadas se acreditarmos nas polêmicas recentes. (Vide os artigos e brochuras de
Teder acerca das origens e das irregularidades da Maçonaria). Além disso, veremos mais
adiante, Cagliostro nem mesmo exigiu o sacrifício material dessa papelada e consentiu
mais tarde em que os Filaletos conservassem seus arquivos.
A convenção, ao receber essa carta, ficou perplexa: a enérgica seguran­
ça de Cagliostro começava a impressionar esses homens que flutuavam sem
cessar, até esse dia, na incerteza; discutiram e, fmalmente, enviaram a ele
dois irmãos: o marquês Chefdebien, secretário-geral da convenção, e o barão
de Gleichen, para lhe pedir que voltasse atrás em uma decisão tão severa,
que quisesse considerar que a convenção, convocada pelos Filaletos, não era
a Loja dos Filaletos506 e, consequentemente, embora ele pedisse, ele, o con­
vento, as luzes do conde, não havia porém arquivos a queimar e não podia
nem mesmo se comprometer ao que quer que fosse pelos Filaletos. Percebe-
se o hábil procedimento; desejosos de receber sem nada dar, sem se compro­
meter, a convenção fingia não compreender que, para semear um campo, era
preciso primeiro limpar o terreno; que, para fazer uma obra verdadeira, não
se devia pôr na balança um amontoado de pergaminhos, alguns gestos exte­
riores e rotineiros, com a oferta de uma luz celeste e de poderes espirituais507.
Em 17 de março de 1785, de Gleichen prestou contas à convenção de
sua missão; Cagliostro consentia em que os arquivos não fossem destruí­
dos, mas exigia que uma deputação de três Filaletos fosse a Lyon, em nome
do Rito, solicitar a Iniciação egípcia; ele recomendava aos Filaletos, além
disso, que escrevessem uma carta “honesta” à Loja-Mãe do Rito, com sede
em Lyon508.
Para facilitar essa aproximação, a Sabedoria Triunfante escreveu por
si mesma à convenção a seguinte carta:

“A glória de Deus
Em nome do Grão-Mestre da Ordem, e pelo poder
A Loja A Sabedoria Triunfante, Loja-Mãe do Rito Egípcio, com sede
no O.-. de Lyon.
A R.-.L.-. dos Amigos reunidos no O. de Paris,
Saúde, força e felicidade.
MM.’. CC.-. Ir.-.
Eles existem, esses maçons, que nenhum lugar da terra ainda ofere­
cera a seus olhos; sua voz fraterna ousa dizer-lhes: não procurem mais.
Nós vimos a imutável verdade sentar-se em meio a nós sobre os destroços
da dúvida e dos sistemas. Vocês a verão, mui caros irmãos, descer em sua
oficina no instante em que vocês abandonarem — insensato, só, construído

506. Os Amigos Reunidos, no Oriente de Paris.


507. Ante o comando de Paulo, em Efeso, queimaram-se livros mais preciosos que Rituais
da Maçonaria Adonhramita ou Canções Maçônicas. A palavra do Cristo levou a melhor.
Atos dos Apóstolos, X: 19.
508. As concessões feitas por Cagliostro e o entendimento quase obtido se devem ao
embaixador escolhido: o barão de Gleichen era um homem muito instruído e bem acima de
seus colegas de convenção por sua cultura espiritual.
sobre a areia — esses muitos materiais que só têm de útil o motivo que os
levou a juntá-los.
Sim, MMCCIr :.., queiram conformar-se às regras que nos pres­
creveu o chefe conhecido da Maçonaria verdadeira; enviem-nos deputados
revestidos de poderes de uma extensão conveniente e nós nos apressare­
mos para cumprir a vontade de nosso Mestre dando-lhes as instruções que
lhes faltam, apoiadas em provas reais e sensíveis que ele se digna a oferecer.
Possamos nós vê-los logo em nossos braços fraternos que lhes estão
abertos! Sentiremos ainda mais vivamente nossa felicidade se tivermos a
oportunidade de compartilhá-la consigo.
Tais são os sentimentos e os votos, MM.-. CC.-. Ir.-.., de seus afeiço­
ados Ir.-. ”
S. Costar, ven. etc509.
Em 12 de abril, a convenção, em vez de aceitar claramente, estabele­
ceu novamente a distinção prudente entre a Loja dos Filaletos e ela pró­
pria, convenção, e encarregou Beyerlé (em substituição ao secretário-geral
ausente) de escrever a Cagliostro para lhe renovar as reservas que ele devia
fazer face a suas ofertas; chegou mesmo a exigir que o ato de iniciação de
seus deputados fosse considerado puramente Individual.
Em 13 de abril, Cagliostro respondeu com a carta indignada que se
segue;

Em nome e pela Glória do Eterno,


Nós lhes oferecemos a verdade e vocês a desdenharam.
Nós a oferecemos por amor a ela e vocês a recusaram por amor às
formas.
O que são as formas quando não há fundo? Vocês só se elevam a
Deus e ao conhecimento de si mesmos com a ajuda de um secretário e de
uma convenção? Um secretário é negligente e os dias passam, quando os
corações estão inflamados por um desejo vivo e puro?
Não se justifiquem; não estamos ofendidos. Considerem que se,
para elevá-los, nós lhes enviamos diante de nossas colombas', se vocês
não se elevassem, como chegariam a nós?
Nós demos, e vocês quiseram nos prescrever como e a quem deveria­
mos dar; vocês quiseram governar nossa marcha em uma carreira em que
vocês não deram nem o primeiro passo.
E vejam quanto os seus esforços estão confusos!
Vocês demoram seis semanas a responder à simplicidade de nossas ofer­
tas e nós não demoramos nem um dia a responder à obra de seis semanas.
Nós retiramos, portanto, nossas ofertas; e assim caem todos os escrúpu­
los, todas as incertezas que lhes inspiravam suas formas. Reflitam a respeito
desse crepúsculo de luz que vocês entreviram e que o Grande Deus, em
Cujo nome trabalhamos, retifique os seus esforços e presida a suas delibe­
rações.
Ditado no Oriente de Paris, a... (aqui vem a assinatura hieroglífica de
Cagliostro510 seguida pelas de Montmorency, príncipe de Luxemburgo,
Grão-Mestre Protetor, de Laborde, Grande Inspetor, Saint-James e De
Vismes, Secretário)5".”
A convenção ficou aborrecida; após a visita dos deputados, espera­
vam ter ganho terreno e eis que Cagliostro retomava toda a sua distância e
a altura de sua posição. Tudo deveria ser recomeçado; uma nova delegação
foi selecionada e a ele dirigida. Ela se compunha dos irmãos de Paul (de
Marselha), de Mamezia (de Franche-Comté) e Ramons (de Besançon). O
abade de Laffrey, de Paris, designado a princípio, não estava disponível no
dia combinado. A entrevista ocorreu nos dias 15 e 16, e os delegados pres­
taram contas dela à convenção da seguinte maneira:
“Resulta de sua comunicação que o conde recebeu os deputados com
a maior das considerações; que ele prometeu satisfazer o desejo dos Ir­
mãos, que entrou com eles em alguns detalhes acerca de sua doutrina, a
qual os deputados olharam como sublime e pura... os deputados fornece­
ram a ata por escrito e ela foi arquivada nas Atas com a cota C., peça 4.
O irmão de Paul entrou em muitos detalhes dessa deputação e foi
convidado a expressar por escrito essa relação interessante, o que ele pro­
meteu fazer.” (Ata da sessão conventual do sábado, 16 de abril de 1785512).
Vemos a alta impressão que Cagliostro produzia em todos; eis ma-
çons, informados, já orgulhosos de suas pretensas dignidades, não mais se
espantando diante de fórmulas e símbolos, encarregados de examinar, qua­
se desmascarar, um homem que não lhes poderia lançar pó aos olhos, já
habituados aos ofuscamentos do pó de licopódio e aos encantamentos dos
discursos alegóricos, que voltam de sua entrevista metamorfoseados. En­
contraram um homem simples, um acolhimento afável, um detentor de se­
gredos inverossímeis, realizador de maravilhas sobre as quais eles jamais
haviam pensado senão sorrindo; eles encontraram — estavam prontos a
dizê-lo — o divino Cagliostro, e seu coração se transformara.
Sua impressão foi tão viva que se transmitiu à convenção; uma carta
foi dirigida a A Sabedoria Triunfante513 e, dessa vez, o estilo era completa­
mente diferente; ele ainda soa um pouco falso, mas é por inabilidade; os
Filaletos, perturbados, querem, por um excesso de pesadas bajulações, apa­
gar a lembrança de suas desconfianças antigas. Todavia, eles não se com-

510. Cf. Apêndice, p. 258.


577. Acta Latomorum. Paris, 1815. t. II, p. 104, 105
512. Cf Acta Latomorum. Paris, 1815. t. II, p. 108, 109.
513. Acta Latomorum. Paris, 1815. t. II, p. 115.
prometem a nada, não respondem a nenhuma das exigências de Cagliostro
e se contentam em reclamar as revelações prometidas, seja da Loja-Mãe,
seja do Grão-Mestre.
Na manhã seguinte, 28 de abril, Cagliostro respondeu simples e cla­
ramente que ele mantinha suas ofertas, mas também todas as suas exigências;
a carta empolada da convenção não o havia seduzido, como teria podido
fazê-lo se ele fosse um vaidoso intrigante. Ele não quer entrar nessas dis­
cussões de Lojas, de comitês, de pessoas. “Saibam”, diz-lhes ele, “que não
trabalhamos para um homem, mas para a humanidade. Saibam que nós
queremos destruir o erro, não de um só, mas de todos. Saibam que essa liga
é dirigida não contra uma falsidade isolada, mas contra todo o arsenal das
mentiras514”.
Os membros de A Sabedoria Triunfante, que seguiam esse debate
com o duplo interesse de ver novos adeptos engrossar o Rito Egípcio e de
sentir uma nova homenagem prestada a seu Mestre, apoiaram, em nova
carta, as palavras de Cagliostro.
“A Providência realizara o desejo de alguns dentre vocês”, dizia essa
carta, “fazendo com que ressoasse até vocês a voz da verdade; mas vocês
não deram sequer um passo para subir até ela. Vocês pedem tudo. Se lhes
oferecem tudo, vocês fazem questões preliminares! Vocês preferem pala­
vras às coisas, a vaga das discussões à certeza dos fatos.
A verdade, dando-nos o poder de iluminar com sua chama aquele que
a busca e a toma, não nos permite fazê-la brilhar aos olhos daquele que a
negligencia ou desdenha!” (Carta da Loja A Sabedoria Triunfante à con­
venção de Paris, 29 de abril de 1785).
Os Filaletos, que acreditavam dessa vez ter conseguido, por seus tes­
temunhos exteriores de deferência, ganhar sua causa junto a Cagliostro,
perceberam que, ao contrário, haviam perdido terreno, e enviaram-lhe às
pressas uma nova deputação.
Essas demoras, essas manobras, essas hipocrisias, cansaram por fim
a boa vontade de Cagliostro que, em 30 de abril de 1785, respondeu defini­
tivamente com essas palavras:
“Pela Glória de Deus!
Por que a mentira sempre está sobre os lábios de seus deputados e a
dúvida constantemente em seus corações? Não se desculpem; pois eu já lhes
escrevi, vocês não me ofenderam. Apenas Deus pode decidir entre vocês e eu.
Vocês dizem que buscam a verdade; eu a apresentei e vocês a despre­
zaram. Como você preferem um amontoado de livros e de escritos pueris à
felicidade que eu lhes destinava e que vocês deveríam compartilhar com os
eleitos; já que vocês não têm fé nas promessas do Grande Deus ou de seu
ministro sobre a Terra, eu os abandono a vocês mesmos e lhes digo, em
verdade: minha missão não mais é a de instruí-los. Infelizes Filaletos, vocês
semeiam em vão, vocês só colhem joio515.” E desde então, o Grão-Mestre
não mais se ocupou de seu Rito, reservando os ensinamentos para suas
Lojas egípcias, desinteressando-se inteiramente da Maçonaria e não es­
condendo a pouca estima que tinha por ela.
Cagliostro levava de volta ao Templo a palavra perdida cuja própria
existência a humanidade, indiferente, esquecera e que a Maçonaria, apenas,
ainda buscava, a torto e a direito; ele dava provas maravilhosas, não apenas
de seu poder pessoal, mas ainda do poder que ele tinha de transmiti-lo a seus
discípulos; ele só pedia uma coisa: que o homem consentisse em erguer a
cabeça, a marchar com ele, os olhos fixos no céu. Os pretensos iniciados o
desdenharam, abandonaram-no, chegaram a renegá-lo; erros irreparáveis, que
pesam e pesarão muito sobre a Maçonaria até seu último dia. não por vingan­
ça de alguma divindade cruel, mas por causa daquele que. um dia, virou
voluntariamente as costas à luz, entrando cada vez mais nas trevas à medida
que anda e que o tempo passa.

Cagliostro — retrato feito por Bollinger, editado por Shumann em Zwickau.

515. ActaLatomorum. Paris, 1815. t. II, p. 126. —A profecia, verdadeira para os Filaletos,
que se separaram após três meses de sessões, sem ter feito nada; que recomeçaram, mais
tarde, com sucesso ainda menor, era além disso de alcance geral: Cagliostro se dirigia a
todos os maçons ao falar à convenção; sua predição se estendia também a toda a obra
maçônica.
Capítulo VII

Paris — O Falso Profeta

Ao chegar a Paris, em 30 de janeiro de 1785, Cagliostro se instalara


no Palais-Royal, em um dos melhores hotéis, a 15 luíses por mês.516
Ele aparecia, portanto, na cena parisiense como um rico viajante e
não como um necessitado. Era-lhe preciso, aliás, escolher uma moradia
razoável, pois, desde sua chegada, o cardeal de Rohan e muitos de seus
amigos, felizes em reencontrá-lo, apressaram-se para lhe fazer uma visita.
Não quiseram deixá-lo no albergue: o número crescente de visitas que ele
recebia exigia outra instalação; todos o incitavam a alugar uma casa priva­
da em um bairro tranqüilo. Correr as ruas a visitar mil lugares não era para
Cagliostro: ele encarregou o jovem Ramond de Carbonnières,517 amigo e
protegido do cardeal, e de Planta, seu procurador, de lhe encontrar um
alojamento. A escolha recaiu na casa da marquesa de Orvillers; Cagliostro
lhes adiantou todas as somas necessárias, sinal, preço do mobiliário, mes­
mo as despesas de transporte518 e, ao fim de alguns dias, ele pôde deixar o
hotel para ir morar na rua Saint-Claude, 30, no Marais, em sua bela casa.
“Ela existe ainda, escreve Lenôtre,519 e imaginamos sem esforço o
efeito que ela devia causar à noite àqueles que passavam na região deserta
com seus pavilhões de ângulo, então dissimulados com velhas árvores,
seus pátios profundos, seus largos terraços, quando as luzes vivas dos

516. O que correspondería ao cêntuplo, ao menos, em nossos dias. Interrogatório na


Bastilha, Arq. Nac., X? 2676 — Campardon. Marie-Antoinette et le Procès du Collier.
Paris: Plon, 1863, p. 340.
517. Nascido em Estrasburgo, em 1753, conhecido sobretudo como literato e naturalista,
teve mais tarde uma carreira política; morreu em 1829.
518. Interrogatório na Bastilha, Arq. Nac., X? 2676 — Campardon. Op. cit., p. 341. Se
insistimos nesses detalhes e no fato de que em sua chegada Cagliostro vivia regiamente e
não contava, ê porque já se disse que ele chegara pobre a Paris para apoiar a calúnia
segundo a qual ele teria enriquecido graças a somas extorquidas do cardeal.
519. Vieilles maisons, vieux papiers. 1°. série. Paris, Perrin, 1910, in-8?, p. 161.
cadinhos do alquimista filtravam pelas altas persianas. A casa, que guarda
nobres linhas sob as construções parasitas erguidas durante este século,
conserva algo de barroco e inquietante. A porta de carros se abre para a rua
Saint-Claude, na esquina do Boulevard Beaumarchais: o pátio apertado
entre as construções é de aspecto moroso e solene; no fundo, sob um pórti­
co lajeado, sai a escada de pedra que o tempo deixou e que conserva seu
antigo corrimão de ferro. Uma escada oculta, hoje emparedada, de degraus
grandes, subia até o segundo andar, onde ainda encontramos seu traço:
uma terceira escada, estreita e tortuosa, subsiste ainda na outra extremidade
do imóvel, do lado do bulevar; ela se enrola em plena parede na mais es­
pessa escuridão e serve os antigos salões — hoje cortados de tabiques —
cujas porta-janelas se abriam para um terraço que manteve seus balcões de
ferro. Abaixo se encontram, com suas portas cheias de cupim, a cocheira e
as cavalariças.”
Onde era o laboratório, de que todos falavam na época, ninguém,
exceto o cardeal, podia dizer; sabia-se apenas que os apartamentos eram
decorados com grande luxo e que “na antecâmara estava gravado sobre um
mármore negro, em caracteres de ouro, a oração universal de Pope: “Pai do
Universo, suprema inteligência, etc.” cuja paráfrase Paris cantaria, dez anos
mais tarde, à maneira de hino, ao Ser Supremo520.”
De um dia para o outro, a casa se animou com um barulho alegre,
com uma vida fervente. Da manhã até a noite, era um vaivém batucado de
pessoas de todos os níveis: o pátio cheio de carruagens laqueadas, os cava­
los bufando, os cocheiros gritando e mulherzinhas elegantes subindo e des­
cendo a escada de pedra, sujando suas luvas na rampa de ferro forjado, o
nariz empinado, o olhar vivo, emocionadas, apressadas, temerosas521.
Cagliostro recebia largamente; ele tinha convidados, e sua mesa era
ricamente servida522. O cardeal vinha de três a quatro vezes por semana
sem cerimônia; seu prato estava sempre posto; às vezes ele trazia comen-

520. Lenôtre. Ibid., p. 166. “Seu apartamento permaneceu fechado enquanto durou a
Revolução: apenas em 1805 abriram-se as portas, fechadas havia 18 anos, e o proprietá­
rio mandou vender os móveis que haviam servido por 18 meses a Cagliostro (o Sr. Lenôtre,
que cita esse fato, sem referência, sem dúvida foi induzido ao erro pela venda dos móveis
de Cagliostro feita em Londres em 1787). Desde então, a calma casa da rua Saint-Claude
não teve mais história. Engano-me: por volta de 1855, como haviam feito algumas refor­
mas, trocaram os batentes da antiga porta de carros; os batentes de marcenaria que os
substituíram provinham das demolições do prédio do Templo: eles ainda estão lá com
seus grandes ferrolhos e suas enormes fechaduras. A porta da prisão de Luís XVIfechan­
do a casa de Cagliostro... estranhos acasos!” Lenôtre, p. 171.
521. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 102, segundo as Mémoires de madame de la
Motte, t. I, 39-40.
522. Cf. Cap. II, Retrato, p. 26 deste livro, e S. Laroche, Tagebuch einerReise... Offenbach,
1788, p. 314.
sais sem avisar e, não querendo que Cagliostro arcasse com todas as despe­
sas dessas recepções forçadas, nem desobrigar a condessa, mandava vir
um prato ou dois de sua casa523.
No salão, após o jantar, acotovelava-se uma multidão de grandes se­
nhores. Amigos do cardeal, cortesãos do príncipe de Soubise, que se decla­
ravam reconhecidos ao conde de Cagliostro524, curiosos atraídos pelo renome
do Grande Copta, pesquisadores em busca de ciências misteriosas e tam­
bém doentes em busca de cura. Embora ele não quisesse praticar a medici­
na525, desejoso unicamente de viver em meio a amigos seletos e de instruí-
los como quisesse, não lhe deram essa liberdade.
Toda Paris falava da cura do príncipe de Soubise, do caso da Sd Augeard.
As gazetas contavam seus sucessos no estrangeiro, na província, os testemu­
nhos de estima que ele recebera dos maiores personagens: O próprio Sr. de
Vergennes, o guarda dos Selos, o Sr. de Miromesnil, não haviam intervido
oficialmente em seu favor em Estrasburgo e em Bordeaux?526 E a onda dos
doentes de alta linhagem, de solicitantes, aumentava.
Cagliostro, porém, nada fazia para atraí-los: ele se mostrava o mesmo
que em Lyon, que em Estrasburgo, que na Rússia; muito reservado, inde­
pendente, brusco de modos, sem fazer nem um gesto, nem um passo para
bajular as pessoas. Conhecemos sua orgulhosa resposta aos primeiros avan­
ços do cardeal em Estrasburgo527; em Paris, ele fez ainda melhor: o conde
de Artois, irmão do rei, o duque de Chartres, convidaram-no para jantar:
ele recusou!528
E não se tratava de timidez de sua parte; pois, em meio a esse mesmo
mundo, ele se mostrava mais grande senhor do que todos eles, muito à
vontade, dominando seus convidados da altura de uma nobreza inata, de
uma elevação de alma indiscutíveis, irresistíveis:529 quando ele respondia

523. Interrogatório na Bastilha, Arq. Nac., X? 2676 — Campardon. Op. cit. p. 341.
524. M. d’Hannibal.
525. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, 1786, in-16, p. 37
526. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral, 1786, in-16, p. 33 a 35.
527. “Se o Sr. cardeal está doente”, respondeu Cagliostro a um pedido de audiência
apresentado por seu grande venerador, o barão de Millinens, que ele venha, e eu o cura­
rei; se ele está bem, não precisa de mim, e nem eu dele. ” Cagliostro explica, em seu
Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral (1786, in-16, p. 30), que ele
não queria satisfazer um puro desejo de curiosidade, mas que, no dia em que soube que o
cardeal sofria um acesso de asma, apressou-se para ir para perto dele.
528. Funck-Brentano. Affaire du Collier, p. 102. O convite fora feito de má vontade ou
Cagliostro estimou que deveria estar muito infeliz de alma ou de corpo para ir desperdi­
çar em vão suas noites junto aos príncipe? A verdade é que ele declinou dessa honra.
529. Madame d’Oberkirch. Mémoires, t. I, cap. XII — "O cardeal se sentiu, em sua pre­
sença, penetrado por um religioso arrebatamento e o respeito comandou suas primeiras
palavras. ” Georgel. Mémoires, t. II, p. 49.
com uma voz grave aos grandes personagens que lhe garantiam sua bondade,
ofereciam-lhe sua proteção, que ele ficava muito honrado e que, em troca,
“do outro lado”, em seu reino, ele os tomava sob sua proteção; não se tinha
vontade de sorrir nem de discutir; uma emoção respeitosa os penetrava e
teriam caído de joelhos se ele não os houvesse lembrado, com uma palavra
brusca, com uma brincadeira, daquilo a que chamamos, habitualmente, a
realidade.
As noites eram passadas a interrogá-lo, a tentar fazê-lo falar. O que
lhe perguntavam acima de tudo, e o que o tornava atraente, eram os se­
gredos de sua clarividência, de seu maravilhoso conhecimento das almas
e das coisas. Em conversas particulares, com efeito, ele dizia às pessoas,
com os mais precisos detalhes, aquilo que elas acreditavam ser as únicas
a saber530, e isso perturbava, agitava todos os cérebros. Em companhia
mais numerosa, em meio a um círculo atento, ele falava de tudo, na cor­
rente da conversa, sem ordem aparente, sem pedantismo, saltando de um
assunto a outro; ele seguia o ritmo de seus ouvintes, sabendo bem que
não podia pedir a essas cabeças levianas um esforço contínuo, uma serie­
dade de que nenhum deles era capaz; mas cada uma de suas digressões
tocava, porém, no coração da questão, trazendo de volta o espírito a algu­
ma questão de ordem geral531.
A maioria, homens do mundo, como Beugnot, não o compreendia e
declarava, ao sair, que era puro galimatias; outros, os maçons em particu­
lar, apanhavam algumas luzes e lamentavam que elas estivessem perdidas
em meio a uma onda de obscuridades, de palavras ociosas. (Tudo o que
eles não haviam compreendido formava, naturalmente, essa última catego­
ria.) Por fim, alguns, cujos nomes não poderiamos citar, sendo sempre os
mais humildes e menos conhecidos, escutavam com todo o seu ser, adivi­
nhavam as relações ocultas do espírito das respostas com o das questões
feitas e se calavam, não mais encontrando neles mesmos, ao lado dele, nem
perguntas a fazer, nem palavras a dizer, não tendo mais qualquer desejo

530. De Recke. Nachricht Von berüchtigen... 1787, p. 87.


531. “Ele falava uma algaravia, meio francês, meio italiano, que entremeava de citações
que dizia serem árabe. Ele falava sozinho e teve tempo de percorrer 20 assuntos, porque
só lhes dava a extensão de desenvolvimento que lhe convinha. Não deixava de perguntar
a cada instante se estava sendo entendido. E todos em volta se inclinavam para dizer que
sim. Quando ele entrava em um assunto, parecia transportado e o tomava pelo alto com o
gesto e a voz. Mas, repentinamente, ele descia deles para fazer à dona da casa cumpri­
mentos muito temos e gentilezas cômicas. A mesma manobra durava durante todo o-
jantar. Não recolhi nada mais, senão que o herói falara do cêu, dos astros, do grande
arcano, de Memphis, do hierofante, de química transcendente, de gigantes, de animais
imensos, de uma cidade no interior da Africa, dez vezes maior que Paris, onde ele tinha
correspondentes; da ignorância em que estávamos de todas as belas coisas que ele sabia
na ponta da língua... ” Beugnot. Mémoires, Paris, 1889, in-8?, p. 46.
senão o de continuar a gozar de sua presença532, absorvidos na irradiação
desse sol que os aquecia e ofuscava ao mesmo tempo.
Esses eram bem raros, sem dúvida, e, para três quartos de seus
visitantes, suas revelações continuavam a ser letra morta. Mas os indife­
rentes, mesmo os céticos, não podiam escapar à impressão que deixavam
suas palavras quando, adiante do tempo, profeta sempre verdadeiro e rara­
mente ouvido, ele deixava entrever a algum interrogador os acontecimen­
tos do dia seguinte ou, erguendo ainda mais os véus do futuro, descobria os
grandes horizontes do porvir para um homem, para um povo ou para a
humanidade inteira533.
Tudo isso se passava sem aparato, na simples conversa de jantares,
de recepções íntimas, nessas noites das quais se saía muito tarde534 e mais
emocionado do que se gostaria de parecer. A alma, revigorada no sopro de
seu espírito, sentia em si uma atividade que fazia parecer acessíveis os
mais altos cumes, fáceis os mais duros caminhos para atingi-los. Teriam
gostado de correr para a provação, para o próprio martírio, para chegar
mais rápido a esse saber, a essa liberdade todo-poderosa que transbordava
no mestre e cuja conquista ele prometia a todos que quisessem segui-lo.
Também todos os rodeavam, assolando-o com perguntas, com súpli­
cas cotidianas para que ele os dirigisse sem cessar, para que ele ativasse
seus progressos. Cagliostro não podia fechar as portas que ele havia entre­
aberto diante deles e recusar aos homens de boa vontade de Paris o que ele
havia concedido aos de Lyon; abriu uma Loja egípcia em sua casa535 e,
nesse Templo, ministrou-lhes os ensinamentos de seu Rito. Já conhecemos
a natureza deles536. Vimos que gravidade religiosa reinava nessas reuniões;
vimos a série de trabalhos e de meditações pela qual ele levava os maçons
egípcios a conceber e a realizar progressivamente o despojamento do ho­
mem antigo, a regeneração de seu ser. Experiências, fatos extraordinários,
análogos àqueles que haviam entusiasmado o cardeal em Estrasburgo e
seus discípulos em Lyon, realizavam-se no maior e mais religioso segredo
na Loja egípcia, em Paris, e homens de grande valor, de alto nascimento, já
tendo, na maioria, percorrido muitas Lojas, estudado diversos sistemas,
eram as testemunhas maravilhadas; sua convicção se tomava inabalável537.

532. Carta de um discípulo a Cagliostro, in: Vie de Joseph Balsamo, p. 196.


533. Vie de Joseph Balsamo, p. 68, 120, 123, 124, 128, 137 a 139, 147, 216. A predição
referente à Bastilha, em particular, havia sido feita, e mesmo escrita, muito tempo antes
de ser impressa.
534. Lenôtre. Op. cit., p. 163.
535. Loja sob a obediência da Loja-Mãe de Lyon.
536. Cf. Cap. VI, Lyon, p. 129.
537. O Rito Egípcio se desenvolveu em Paris; um Supremo Conselho foi estabelecido; o
duque de Montmorency foi Grão-Mestre protetor do Rito; De Laborde, coletor geral,
Grande Inspetor; Baudard de Saint-James, riquíssimo banqueiro, grande chanceler; De
Viemes, secretário. Foi esse Supremo Conselho que teve de sustentar com os Filaletos a
luta de que falamos, p. 140.
Se, com sessões regulares de sua Loja, Cagliostro iniciava privilegia­
dos na verdadeira Maçonaria, em suas recepções mundanas, como vimos,
ele falava a todos, dirigindo-se tanto às mulheres como aos homens. O públi­
co feminino era mais numeroso, mais seleto que o que ele tivera até então;
em Estrasburgo, em Lyon, eram pequeno-burguesas, mulheres de coração,
sem dúvida, mas sem instrução, de espírito pouco aberto às concepções cien­
tíficas ou filosóficas. Em Paris, em 1785, pelo contrário, ele encontrava uma
multidão de mulheres muito cultas, desejosas de saber, de agir538, mas de que
ninguém fazia caso. A mulher ainda era deixada de fora da maior parte das
questões sérias. Mesmo em Maçonaria, seita que porém representava as idéias
mais igualitárias e mais liberais daquela época, só se considerava as mulhe­
res como um ornamento, um atrativo nas festas da Ordem539. Os rituais e os
cânticos destinados às reuniões brancas e às Lojas mistas mostram como
esse desdém polido pela mulher estava difundido na Maçonaria. Cagliostro
quis reagir contra essa iniqüidade social, contra essa falsa e repugnante
galanteria que, sob aparência de delicadeza e de respeito, mascarava um
brutal desprezo do homem pela mulher, procedimento hipócrita para impor
mais facilmente sua dominação540.
A mulher, dizia ele, não deveria também se elevar à concepção do
verdadeiro e do bem, participar na obra da regeneração?541 Não seria ela a
primeira que devia pôr o pé sobre a cabeça da serpente?542 Não era no claro
espelho de sua alma que se deviam refletir, primeiro, os raios iniciais da
Sabedoria?543

538. As obras filantrópicas, as discussões sérias referente a assuntos sociais ou morais


estavam na moda em Paris, nos salões, sobretudo entre as mulheres.
539. “Há, disse-me ele, em todas as Lojas, festas particulares em que as damas são per­
mitidas. Há valsas e concertos encantadores, seguidos de banquetes que não são de se
jogar fora. ” Memórias inéditas do conde de la Motte. Paris, Pouler-Malassis, 1858, in-
12, p. 382. — “As mulheres, admitidas nas festas, eram afastadas dos ensinamentos e dos
conhecimentos secretos. ” Príncipe de Montbarey. Mémoires. Paris, 1827, 3 vol. In-8?, t.
II, p. 100.
540. “Essa servidão das mulheres é cuidadosamente velada sob um culto aparente que é
uma das leis da cavalaria. Ao lado dessa hipócrita devoção que é a mentira da piedade,
as nações modernas têm a galanteria que é a mentira do amor. Rodeada de uma corte
empenhada que a lisonjeia e a despreza, a mulher prodigaliza a todos os seus sorrisos,
exceto àquele que ela jurou amar... Amante despótica e escrava degradada, a mulher
humilha o homem sob seus caprichos até no dia em que ele a esmaga sob seu desprezo. ”
L. Ménard. Lettre d’un mort Paris, 1895, in-16, p. 32.
541. Ritual da Maç.'. Egípcia. Adoção. Grau de Mestra, p. 132.
542. Ritual da Maç.’. Egípcia. Adoção: Grau de Mestra, p. 128.
543. Os verdadeiros Iluminados não desdenharam o papel da mulher, nem sua superiori­
dade espiritual, que o símbolo da Anunciação nos representou; não é Gabriel que se
inclina primeiro diante da Virgem? G. Postei falara disso. Swedenborg também entreviu a
verdade e a escreveu.
Pode-se adivinhar com que alegria o auditório feminino acolhia suas
palavras; abria-se um caminho à atividade de todas essas almas femininas;
sua devoção era adquirida por obra daquele que defendia seus direitos,
que proclamava a grandeza de sua missão. As condessas de Brienne,
Dessalles, de Polignac, de Brissac, de Choiseul, d’Espichal, madames de
Boursenne, de Trévières, de la Blache, de Montchenin, d’Ailly, d’Auret.
d’Evreux, d’Erlach de la Fare, mais o Sr. de Genlis, de Loménie, de Bercy,
de Baussan544 imploravam para que ele as iniciasse, que abrisse, também
para elas, as portas do santuário. Uma Loja de adoção, sob a designação ísis,
foi constituída e, por deferência, concedeu-se a unanimidade de Grão-
Mestrado à tímida e simples condessa de Cagliostro. O ritual foi redigido em
Loja regular de adoção que os ensinamentos continuaram. A sessão de insta­
lação foi grandiosa: ocorreu em 7 de agosto de 1783; falou-se muito dela545.
Os Ritos eram os mesmos da Maçonaria de homens; os trabalhos, os
mesmos; apenas o ensinamento diferia um pouco: o treinamento demanda­
do à energia, às faculdades intelectuais era mais importante; o sentimento,
a imaginação, o coração, naturalmente mais desenvolvidos na mulher, exi­
giam nela menos cultivo546.
O sucesso desses cursos foi ainda maior do que havia sido o das Lo­
jas de maçons547. O mistério de que se rodeavam os discípulos, homens e
mulheres, as operações teúrgicas que apenas as testemunhas conheciam, mas

544. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 104.


545. Das Graue Ungeheuer 1785. Vol. V n? 15, p. 338 a 345. — Thory. Histoire de la
fondation du Grand-Orient, p. 212.
546. Todo o ritual e os Catecismos dos três Graus da Maçonaria feminina egípcia deve­
ríam ser citados: “A iniciação tem como objetivo fortificar a arte espiritual do ser na
mulher”. Recepção de Aprendiz, p. 106. “Força, poder, paciência, tal é a divisa inscrita
sobre o avental. ” Recepção no Grau de Companheira, p. 120. — “O sinal que vocês vêem
aqui: Ego sum homo, significa que a virtude espiritual que vive em vocês não é fêmea, que
ela é ativa, masculina ou, para falar com mais justeza, que ela não tem sexo... Essa
virtude espiritual se elevará a um novo estado em que ela possuirá a sabedoria, a inteli­
gência, a faculdade de ouvir e de falar todas as línguas e a felicidade de se tornar o
intermediário entre Deus e seus semelhantes.” Catecismo de Mestra, p. 136. — “Purifi­
que seu coração; eleve sem cessar seu espírito ao Eterno; adquira enfim a sabedoria, que
ê a perfeição da filosofia sobrenatural; você será então admitida no interior do Templo.
Catecismo de Companheira, p. 124. — “Ama a teu próximo como a ti mesma, sê bondosa
com os infelizes; dá continuamente provas de tua discrição e de tua sabedoria... busca
esclarecer-te cada vez mais lendo atentamente a Escritura (O Antigo Testamento). Ne­
nhum livro poderá dar-te maior luz sobre todos os princípios da escola hermética egípcia. ”
Catecismo de Companheira, p. 127.
547. “Jamais”, diz madame d'Oberkirch, “poderemos fazer uma idéia do furor, da pai­
xão com a qual todo mundo se atirava nos braços de Cagliostro. ” Mémoires, 1.I, cap. VII.
Seu busto, feito por Houdon, ornava os salões; seu retrato estava em toda parte, nos
anéis, nos leques, nas tabaqueiras; gravuras dele e de sua mulher ornavam as vitrinas
das livrarias.
cujo eco retinira lá fora, a curiosidade dos profanos, o ciúme das outras seitas,
tudo contribuía para fazer correr os mais fantasistas dos rumores sobre os
atos de Cagliostro. Contos romanescos se espalharam; de salão em salão, de
gazeta em gazeta, eles foram sendo passados adiante. Foi assim que se esta­
beleceram as duas lendas que encontramos em toda a parte hoje em dia: a da
“sessão mágica no templo das mulheres548” e a do “banquete das sombras549”.
Os dois contos tiveram variantes. Eis outra anedota do mesmo gênero
e de mesmo valor: um homem de grande senso que suspeitava que uma de
suas amigas se havia abandonado a essas fantasias foi visitá-la há cerca
de um mês e a encontrou realmente apaixonada por Cagliostro e seu siste­
ma. Sentaram-se à mesa, a sopa foi retirada e havia quatro pratos a mais e
cadeiras correspondentes, como se esperassem alguém; ele perguntou quais
as pessoas que esperavam, mas não lhe responderam; ele insistiu, e lhe
disseram que esses lugares estavam ocupados, que ele tinha a ventura de
jantar com inteligências, com seres superiores a ele. Nosso homem ergue
os ombros e não tem coragem de contradizer sua amiga, vendo o interesse
e o encanto que essa idéia espalha em todos os convivas. Jamais ela usou
de tanto espírito, de tantas lisonjas para tratar bem suas amigas quanto ela
fez naquele dia para que as inteligências invisíveis ficassem contentes com
seu jantar. Ao sair da mesa, passaram pelo jardim; cada árvore tem uma
Hamadríade, cada planta é cultivada por um Gênio; até o jato d’água é o
retiro de uma ninfa, etc. Nosso homem, que não queria brigar com sua
amiga, deixou-a falar e se despediu sem tentar destruir uma ilusão que
fazia a felicidade de sua vida. O Sr. Cagliostro, no momento em que foi
preso, tinha 40 alunos de sua espécie e dessa força, comentava-se550, e o

548. Esse conto, extraído das Mémoires authentiques (de Luchet), retrata as reuniões
egípcias de mulheres como vergonhosas orgias: Cagliostro representa ali um papel ridí­
culo e obsceno. As gazetas difundiam essa história, sobretudo no estrangeiro (Das Graue
Ungebeuer. 1787, n? 15, p. 331-345). — Gerard de Nerval, em seus Illuminés, Paris,
1868, e J. de Saint-Félix, em suas Aventures de Cagliostro. Paris, 1855, p. 104, reprodu-
ziram-na Referente à dignidade da vida de Cagliostro, já sabemos em que nos basear; a
respeito da moralidade irrepreensível da ordem egípcia, recomendamos ao leitor que leia
o Ritual da Maçonaria egípcia e especialmente o Ritual da Loja de adoção. Eles verão as
precauções escrupulosas tomadas para as reuniões mistas, o juramento exigido (p. 106);
os sete pontos; os símbolos (luvas, traje talar), p. 108; as recomendações aos iniciados;
seus deveres, p. 136. Thory. Histoire de laFondation du Grand Prient, p. 213, fez, acerca
da Maçonaria de adoção de Cagliostro, um estudo imparcial e sério que não interrom­
peu, como vemos, a difusão das calúnias.
549. Essa segundafantasia, da mesma origem, que põe na boca de espíritosfrases espirituosas
acerbas contra as pessoas e as coisas do século XVUI, é uma sátira sem interesse, mas ao
menos sem obscenidades e por vezes espirituosa. Como a precedente e como o relato da
pseudo-iniciação de Cagliostro pelo conde de Saint-Germain, reencontramo-la, tomada ao
pé da letra e citada pelos cronistas, junto com outros fatos da vida de Cagliostro.
550. Ma correspondance, 1785, n? 73.
redator da Gazette de Leyde assegurava que, “dois dias antes de ser preso,
o cardeal havia sido persuadido por Cagliostro de que ele jantara com
Henrique IV551.”
Exageros ridículos, supersticiosas lendas que serviam para fazer mal,
que fizeram mal a Cagliostro e que teriam podido inebriá-lo com um orgu­
lho fatal, se ele não possuísse o antídoto para todos os venenos, como ele
disse algumas vezes552, mas testemunhos irrefutáveis do misterioso poder
de Cagliostro, da devoção sem limites, do sucesso triunfal que ele obteve
em alguns meses em Paris.
Recebido, rodeado pela elite da sociedade parisiense, Cagliostro se
encontrava por isso mesmo em meio a um mundo de intrigas e cabalas553.
O caso mais retumbante do século XVIII, o processo do Colar, desenrolou-
se em torno dele; ele teve de se defender contra uma intrigante perigosa
entre todas, de audácia sem igual; contra madame de la Motte.
Filha de um pai bêbado e de uma mãe prostituta, Jeanne de Saint-
Rémy554 teve uma juventude penosa e moralmente perigosa. Foi pastora de
vacas, mendiga profissional, encerrada em um convento de onde fugiu,
recolhida em seguida por boas pessoas às quais aplicou os piores golpes555;
depois, tendo novamente caído na pobreza e na vagabundagem, foi reco­
lhida pela marquesa de Boulainvilliers, que se interessou por ela por causa
de sua miséria e de sua origem nobre.
O Sr. Funck-Bretano, que consagrou à madame de la Motte muitos
capítulos de seu excelente livro a respeito do Caso do Colar, dá-nos o se­
guinte retrato556: “Madame de la Motte era uma criaturinha fina e leve, de
uma graça ondeante e alerta. Cabelos castanhos, olhos azuis, uma boca um
pouco grande mas cujo sorriso ‘chegava ao coração’”, diz Beugnot, que
fala por experiência própria. Seu pescoço teria sido a contento se ela pos­
suísse um pouco mais; mas como observa ainda Beugnot, “a natureza para-
ra no meio da obra e essa metade fazia lamentar a outra.” Enfim, era a voz
doce, insinuante, de timbre agradável, que acariciava. Com pouca instrução,
tinha o espírito pronto e natural; ela se enunciava corretamente, com gran­
de facilidade. “A natureza”, diz Bette d’Etienville, “prodigara-lhe o dom
perigoso de persuadir”.557 — “Um ar de boa-fé em suas histórias punha a

551. Gazette de Leyde, de 9 de novembro de 1785.


552. Na Rússia, a Roggerson, e na Inglaterra, a Morande. Cf. p. 77 deste livro.
553. Referente a Paris naquela época, consultar: Taine. Les origines de la France
contemporaine: L’Ancien regime. — Loménie. Beaumarchais et son temps. Paris, 1858,
in-8?. — P. de Nothac. Marie-Antoinette. Paris, 1890.
554. Os Saint-Rémy descendiam de Henri de Saint-Rémy, bastardo reconhecido de Henrique
II. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 60.
555. Sr. e Sdde Surmont. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 73.
556. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 83.
557. Second Mémoire. Coleção, II, 32.
persuasão em seus lábios”, diz outro contemporâneo 558. Quanto às leis mo­
rais e às do Estado, elas formavam um domínio de que, muito simplesmen­
te, com infinito natural, madame. de la Motte nem desconfiava da existên­
cia. Ela andava sempre para a frente, sem ver o obstáculo, perseguindo seu
objetivo. “Tudo isso”, conclui Beugnot, “constituía um conjunto assusta­
dor para um observador e sedutor para os homens comuns.”
Casada em 1780 com um policial pesado e bobo, ela passou a se cha­
mar condessa de la Motte, embora o gordo “Momotte” jamais tenha sido
conde. Foi esse casal pouco simpático que foi apresentado e recomendado,
bem levianamente, ao cardeal, pela marquesa de Boulainvilliers 559. A pro­
teção do cardeal lhes permitiu partir para Paris com um pouco de dinheiro,
algumas recomendações e papéis em ordem, mesmo demasiado em ordem,
já que, no certificado fornecido pelo cardeal, o senhor de la Motte era inde­
vidamente chamado conde de la Motte; desde então ele se serviu desse papel
para justificar seu título fantasista. Eles se instalaram em um pequeno hotel
na rua Neuve-Saint-Gilles, 13, no Marais. O nome do cardeal, que ela pu­
nha na frente, maneiras fáceis, um luxo feito de empréstimos, atraíram logo
ao salão da “condessa” um mundo em que se encontrava de tudo: financeiros
de idade madura, abades, advogados: o Sr. Laporte, Me Beugnot; o con­
de de Olomiers, o marquês de Saisseval560, grande jogador, muito conhecido
na corte; maçons como Lecoulteux de la Novaye561 e o padre Loth562. Ao
lado disso, gatunos assumidos, para os dias freqüentes em que a vida ficava
difícil; Rétaux de Vilette, grande favorito, para não dizer mais563, da dona da
casa Bette d’Etienville564; falsos marqueses, pretensos oficiais; a outra
madame. de la Motte, cujos exemplos e conselhos não devem ter sido estra­
nhos às empresas de nossa pseudocondessa565.
“Muitos senhores da melhor qualidade vinham alternadamente fazer
visitas à senhora condessa, enquanto o Sr. conde ia se aquecer nos aparta­
mentos do castelo. Militares e homens de batina se compraziam em lhe
fazer visitas e deixar-lhe marcas de sua generosidade566.”

558. Abade Georgel. Mémoires, II, 36.


559. Apresentação feita em 1781 na estrada de Saverna a Estrasburgo. Cf. Campardon.
Marie-Antoinette et le Procès du Collier. Paris, Plon, 1863, p. 207.
560. Venerável da Loja O Candor em 1776.
561.. Cf. Deschamps. Sociétés secretes. Dois volumes in-8?, II, p. 139.
562. Abade mundano, membro da Loja dos Amigos Reunidos, procurador-geral dos Mínimos,
infiltrando-se em toda parte, sobretudo nos arredores da praça Real; a proteção do cardeal
lhe permitiu pregar diante do rei; o salão de madame de la Motte era seu centro de opera­
ções. Cf. Mémoires du comte de la Motte. Paris, Poulet-Malassis, 1858, p. 282.
563. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 126.
564. Faz-tudo, escroque e alcoviteiro, que logo se associou à madame. de la Motte.
565. Cf: Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 128-129.
566. Notes de Target. Biblioteca da cidade de Paris. Manuscrito da reserva. Citado in:
Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 117.
Que viessem por ela, por sua criada, por sua adega ou por sua mesa
de jogo, pouco importava. Madame de la Motte tinha seu plano; o princi­
pal era que todos soubessem que a condessa de la Motte-Valois, de sangue
real, era muito bem vista e tratada na corte. Por causa dos infortúnios dessa
família e da baixa condição em que ela vegetava, não se podia oficialmente
testemunhar-lhe os favores de que a cobriam secretamente, dizia ela; mas a
rainha lhe confiava as mais delicadas comissões. Um lugar, obtido cá ou lá
(por intermédio dos financistas que passavam por sua casa), confirmava os
ingênuos nessa opinião. Para torná-la ainda mais verossímil, madame. de
la Motte alugou em Versalhes um quarto de albergue em que, duas vezes
por semana, ela se trancava, com freqüência sem ter o que comer. "A con­
dessa está na corte”, diziam misteriosamente nesses dias.
Desde então, sua reputação foi construída: o sangue dos Valois miti­
gara os venenos; ela se tomou uma importante “intrigante nos escritórios
dos ministros e na corte”, como se dizia na tenência de polícia567, e come­
çou a vender sua proteção. Ela já extorquira mil escudos ao Sr. de Ganges,
prometendo-lhe seu crédito junto à rainha, para obter um lugar a um de
seus parentes. Ela fez com que MM. Perrin, negociantes de Lyon, envias­
sem-lhe, em troca de seu apoio junto ao rei para um negócio importante,
uma caixa de tecidos soberbos estimados em mais de 10 mil libras. Mas
sua primeira operação brilhante foi a patifaria de 150 mil libras feita ao
cardeal. Sabemos a história: quando ela conseguiu descobrir a preocupa­
ção que roía seu benfeitor, conseguiu sem trabalho persuadi-lo de sua in­
fluência junto à rainha568; ofereceu-se para servir de intermediária afim de
obter com que a rainha autorizasse o príncipe a apresentar sua justificativa.
O cardeal se apressou em entregar-lhe uma carta. “Será aceita?”, perguntou
ansiosamente a madame de la Motte. Quanta alegria quando ele soube a
notícia inverossímil: a rainha lhe concedia um encontro noturno!... Madame
de la Motte tivera a audácia de encontrar uma figurante, uma modista e de
representar em todas as peças, com Rétaux disfarçado de valete, a cena do
bosque de Vênus no Trianon. O pobre cardeal ficou enlouquecido, perdi­
do de felicidade, esperando tudo, incapaz, dizia ele, de testemunhar sufi­
ciente reconhecimento a madame. de la Motte. A intrigante não deixou
esfriar tão belo zelo; pediu, em nome da rainha, para uma família desafor­
tunada, 50 mil libras e, pouco após, 100 mil libras, que foram dadas com
um coração alegre. O cardeal, seguindo seus conselhos, partiu para Estras­
burgo, deixando a seu fiel de Planta a ordem de dar a madame de la Motte,
para a rainha, tudo o que ela pedisse, nem que tivesse de vender para isso
os tesouros de suas queridas coleções569. O dinheiro foi empregado para

567. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 123.


568. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 124.
569. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 161, segundo as Mémoires de Georgel. O caste­
lo de Savema, além da Bibliotheca Tabemensis de marroquins de armas, continha um
acalmar alguns credores ruidosos, e montar de maneira mais brilhante a casa;
o zelo dos visitantes aumentou com o esplendor das recepções.
Um dia, em 29 de novembro de 1784, Boehmer, joalheiro da corte, ao
qual muito se havia falado das relações de madame de la Motte-Valois, fez-
lhe saber, por intermédio de Laporte*570 que ele daria de bom grado 100 luíses
à pessoa que convencesse a rainha a lhe comprar um soberbo colar de dia­
mantes, estimado em 1.600.000 libras, feito especialmente para ela, mas que
ela se recusava energicamente a comprar. Madame de la Motte pensou no
colar, no ingênuo cardeal e concebeu todo o plano. O cardeal estava na Alsácia;
ela mandou lhe escrever: “Uma grande dama que ele conhece morre de von­
tade de possuir o colar; ela quer comprá-lo, mas secretamente; seria preciso
que um amigo de confiança fizesse a compra por ela e desse as garantias,
esperando o 1? de agosto, data em que ela pagaria”. Como não aceitar essa
marca de confiança? O cardeal voltou apressadamente: ao chegar a Paris, já
se havia decidido; se ele tivera uma hesitação, ela se apagou ao ler a carta da
rainha que madame de la Motte. Boehmer se apressou para redigir um trata­
do regulamentando as condições do pagamento parcelado571. Rohan se com­
prometería de boa vontade, com a condição de que a rainha assinasse. Um
falso a mais ou a menos não custava nada a madame. de la Motte: Rétaux de
Vilette, que já fabricara todas as cartas da rainha, endossou o tratado em
nome de Maria Antonieta da França572.
Em 21 de janeiro, tudo terminara. Em 24, o cardeal foi à casa de
Boehmer ver o colar e concluir os últimos arranjos. Em 1? de fevereiro,
Boehmer entregou o colar e, na mesma noite, apressadamente, “por causa
das instâncias da rainha”, dizia madame de la Motte que ardia para acabar
logo com isso, o cardeal levou o colar a Versalhes, ao apartamento de
madame de la Motte, e assistiu, por detrás de uma porta envidraçada, à
entrega do precioso cofre a um jovem que ele reconheceu, na luz duvidosa
da alcova, como sendo o mesmo valete que acompanhava a rainha no bos­
que de Vênus. Era realmente o mesmo: Rétaux de Vilette.
Naquela mesma noite, quando Boehmer e o cardeal se regozijavam
com seus ilusórios sucessos, a desmontagem do colar começava. A semana

gabinete de física e um de história natural, maravilhas para aquela época. O orçamento


dessas coleções se relacionava ao do resto do castelo e, como havia 14 mordomos, e o
cardeal usava uma sultana em point d’angleterre de cem mil libras nos dias de cerimô­
nia, podemos adivinhar que provavelmente ele amava essas coleções mais que qual­
quer coisa, e o que valia, para ele, esse sacrifício. Le Roy de Saint-Croix. Les quatre
cardinaux de Rohan. Estrasburgo, 1880, gr. In-8.a, p. 89. Tudo isso aconteceu de março
a agosto de 1784.
570. O advogado Laporte, genro de Achet, associado de Boehmer.
571. 3 de janeiro de 1785.
572. Foi essa grosseira estupidez que, mais tarde, saltaria aos olhos dos inquiridores e
dos juizes e colocaria a rainha fora da causa, permitindo penetrar a intriga.
dos cúmplices se passou em encontrar o melhor modo de tirar partido dele:
Rétaux vendeu uma parte dos diamantes em Paris; madame de la Motte
deveria levar o resto a Londres algumas semanas mais tarde373.
O cardeal e o joalheiro haviam sido joguetes nas mãos de Madame,
de la Motte; ela acreditava-se a salvo de qualquer responsabilidade ulterior;
ninguém sabia de nada. Ela ficara na coxia; tudo se passara entre o cardeal,
demasiadamente comprometido para falar, o que quer que acontecesse, o
joalheiro e o personagem desconhecido, inapreensível, que recebera o co­
lar em nome da rainha; ela estava tranqüila e triunfante.
Durante esse tempo, qual fora a vida de Cagliostro? Que parte tomara
nos acontecimentos?
Em setembro de 1780, Cagliostro chegava a Estrasburgo; saiu de lá em
agosto de 1783 e, até 30 de janeiro de 1785, viajou pela Itália, pela França,
passando por Bordeaux, permanecendo em Lyon, todo absorvido por sua
Maçonaria Egípcia573574. Quando voltou a Paris, em 30 de janeiro de 1785,
madame de la Motte estava ainda nas boas graças do cardeal. Cagliostro
conhecia bem a perigosa amiga de seu discípulo; ele a encontrara pela pri­
meira vez em Savema, jantara muitas vezes com ela no castelo. Beugnot,
que assistiu a um desses jantares, conta que Cagliostro se interrompia com
freqüência de falar seriamente para fazer a madame de la Motte “cumpri­
mentos muito ternos e gentilezas cômicas, chamando-a sua cerva, sua gazela,
seu cisne, sua colomba, emprestando assim o que havia de mais amável no
reino animal575.” Madame de la Motte, em suas primeiras entrevistas, acredi­
tava ter captado a atenção do grande homem, cujos menores gestos eram
observados por todos; sua vaidade estava satisfeita. No fundo, ela ria dos
discursos do “divino Cagliostro” e da estupidez de seu séquito; ela via nele
um aventureiro bem-sucedido, fácil de conquistar com um pouco de
coquetismo. “Embora ele pareça desprezar o ouro e diga ter cofres cheios,
é provável que ele só busque a isso, como eu”, pensava ela. “Ele tem um
prestígio precioso que eu não posso ter. Isso não se deve negligenciar: ele
será meu aliado.”

573. Em 10 de abril, ele estava na Inglaterra para isso; em maio, ele vendeu e trocou uma
parte de seus diamantes. Ratnond de Carbonnières, que fez, por afeição ao cardeal, um
inquérito privado em Londres, em outubro de 1785, descobriu e esclareceu todo o papel
de madame de la Motte na desmontagem do colar. Target, advogado do cardeal, publicou
os resultados de seu inquérito e as atas oficiais relacionadas na brochura intitulada:
Pièces justificatives pour le Cardinal de Rohan. Paris, Flon, 1787, in-8?.
574. No fim de 1781, quando madame de la Motte se instala em Paris e começa suas patifa­
rias, Cagliostro está em Estrasburgo. Em março de 1784, quando ela representa a seu
protetor a comédia do bosque de Vênus, durante todo o caso de Oliva e do roubo de 150 mil
libras ao cardeal, Cagliostro estava em Bordeaux, muito longe do cardeal e de toda essa
intriga.
575. Beugnot, Mémoires, t. I, p. 46.
O cardeal estava feliz; entre madame de la Motte, que lhe consegui­
ría, acreditava ele, as boas graças da rainha, e Cagliostro, que lhe abriria a
porta dos mistérios celestes, o que mais ele podia desejar? Parecia a ele
que a mais franca das cordialidades reinava entre seus convidados; que
madame de la Motte agradava a Cagliostro, que ela o compreendia e admi­
rava. Ele não sentia, na bonomia agradável, despreocupada, com a qual
Cagliostro deixava bruscamente os temas graves, as altitudes, para falar
afetado com essa “princesa”, a indicação oculta que ela encerrava. Ca­
gliostro tratava madame de la Motte como uma pessoa muito refinada,
muito pessoal, divertida, como protegida do cardeal; ele não lhe manifes­
tava qualquer hostilidade, certamente, mas também nenhum respeito. Ele
não era um aliado; ficava fora de seus segredos, assim como a deixava de
fora de seus ensinamentos. Uma só vez ele interveio: foi em 1784 (caso
de Oliva), quando o cardeal, inteiramente subjugado, entregava-se às mais
cegas imprudências; Cagliostro tentou, com alguns conselhos, moderá-lo,
impedi-lo de deixar ainda uma pata ou as asas nas teias de aranha.
Madame de la Motte percebeu, viu que se enganara quanto ao saltim­
banco, que ele via claro e jamais seria um instrumento entre suas mãos. Como
não se podia comprá-lo, era preciso aniquilar sua influência; ela se empe­
nhou nisso: “Madame. de la Motte não achava consideráveis o bastante as
boas ações que ela arrancava do cardeal de Rohan. Ela presumia que elas
teriam sido maiores se Cagliostro não houvesse aconselhado ao príncipe
que pusesse limites em sua generosidade para com ela. Ela fez o impossível
para perdê-lo no espírito do cardeal; mas, não tendo obtido sucesso, encer­
rou e alimentou em seu coração projetos de vingança, esperando a ocasião576.”
Essa animosidade surda de madame de la Motte, a tentativa de intervenção
de Cagliostro que desagradara ao cardeal foram as causas que modificaram
as relações do discípulo com seu mestre. O cardeal, por fraqueza de espírito,
temeu incorrer em censuras e ver Cagliostro se contrapor à admirável tática
de madame de la Motte. Ele começou a lhe esconder seus projetos comuns,
seguindo nisso os conselhos da condessa, escutando atentamente suas acusa­
ções contra Cagliostro, suas bajulações, abandonando-se às brilhantes espe­
ranças com as quais ela o embriagava. Cagliostro, preocupado com outras
coisas, nada fez para combater esse afastamento progressivo. Em novembro
de 1784, o caso do colar se organizou577; Cagliostro estava em Lyon,
dedicado à sua obra maçônica; em janeiro de 1785, ele foi concluído; a cada
dia, o cardeal, Boehmer e madame de la Motte tinha entrevistas; Cagliostro
ainda estava longe. A condessa pressionava o cardeal para terminar; apressa-
ram-se, precipitaram-se acontecimentos, como se temessem a chegada de

576. Mémoires de l’abbé Georgel, t. II, p. 46.


577. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 175. O abade Georgel faz notar, também, o
quanto Cagliostro fora mantido à parte de toda essa intriga. Mémoires. T. II, p. 45-53.
um entrave: de Rohan se lançava, com a cabeça baixa, na armadilha e, na
véspera do dia em que Cagliostro entra em Paris, o cardeal assinou: o ne­
gócio estava concluído; o colar fora comprado, a rainha comprometida, o
cardeal perdido, se não lhe aparecesse um salvador.
Não apenas tudo foi acertado e executado enquanto Cagliostro estava
longe, na província, mas ainda, quando ele chegou ao terreno do combate,
esconderam-lhe com cuidado as últimas peripécias da aventura. O cardeal
levou apressadamente o colar a Versalhes, entreviu um homem que o levou
e voltou, radioso, persuadido de que sua fortuna estava feita.
Foi apenas então, nos primeiros dias de fevereiro578, que ele falou
com mistério a Cagliostro de sua habilidosa especulação, desse golpe de
mestre que ele deu e cujos magníficos resultados ele esperava. Cagliostro
não o admirou; emitiu algumas dúvidas: o cardeal respondeu com veemên­
cia que estava certo de que tudo aquilo era bom e se regozijou por não ter
falado mais cedo disso a Cagliostro, que teria interposto mil entraves. “De
resto”, acrescentou secamente o cardeal, “o negócio está concluído.”
“Se está concluído, é inútil que você me fale dele”, respondeu Ca­
gliostro, o que queria dizer muito claramente: você seguiu sua fantasia;
você não quis e ainda não quer minhas opiniões; tanto pior para você579.
A conversa acerca desse tema ficou nisso; o cardeal estava chocado:
ele esperava felicitações, encorajamentos; chocou-se praticamente com uma
censura. Seu amor-próprio estava ferido; suas esperanças levaram a melhor
sobre a confiança em Cagliostro. “O adivinho não mais vê claro: ele não com­
preende nada disso tudo”, pensou ele, e apenas esse julgamento fez desapa­
recer a tábua de salvação que lhe estendia o mestre. Se ele houvesse escutado,
pedido conselho, tudo ainda podia ser arranjado; poderíam talvez reencontrar
os diamantes, pagar, fazer arranjos; de qualquer jeito, abafar o caso antes
que a corte ficasse sabendo. O cardeal só compreendeu seus erros tarde demais.
Sua bela certeza havia sido perturbada, porém: uma certa inquietação
o agitava; madame de la Motte o percebeu e compreendeu de onde viera o
golpe. Ela também se felicitou por ter precipitado os acontecimentos para
que tudo terminasse antes da chegada do “feiticeiro”. Confortou o cardeal580
e, embora estivesse muito absorvida pela venda dos diamantes, tentou ime­
diatamente colocar seu adversário fora de ação. Ela explicou ao cardeal que
era preciso interrogar Cagliostro, não como um homem de bom conselho,

578. Interrogatório do Cardeal na Bastilha. —Arquivos Nacionais, X2 B., 1417.


579. Interrogatório de Cagliostro, in: Campardon. Op. cit., p. 342. Vemos por esse relato
exato dos acontecimentos que o abade Georgel se enganara inteiramente ao supor que no
final Cagliostro teve de encorajar o cardeal em seus projetos. Tudo foi feito, ao contrário,
pelas costas de Cagliostro, contra suas opiniões, e também pelas costas do abade Georgel,
a quem o cardeal não confiava nem seus segredos, nem suas dúvidas, nem as palavras de
Cagliostro a respeito de negócios tão graves.
580. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 107.
mas como um mestre em ciências ocultas: “Que ele nos faça uma cerimô­
nia; que interrogue uma colomba, não lhe diremos de que se trata; você
falará de uma grande dama, com muitos problemas, e que gostaria de saber
qualquer coisa referente ao seu futuro, e pensará na rainha. O paciente verá
bem o que há realmente e isso o confortará; isso também esclarecerá
Cagliostro, que está em erro. Tenho justamente minha sobrinha em casa; é
uma criança inocente; se ela convém ao Grande Copta, tudo será fácil.”
Seu plano era hábil; ou o paciente anunciaria mundos e maravilhas e Ca­
gliostro seria forçado a aquiescer e entrar no complô; ou Cagliostro se
oporia às declarações da colomba, diria ser tudo mentira e se perdería as­
sim no espírito do cardeal que concebia dúvidas muito naturais quanto à
sua clarividência e à lealdade das operações anteriores.
A armadilha fora bem estendida e qualquer charlatão teria caído nela;
o erro de madame de la Motte fora tomar Cagliostro por um ator. Nada
ocorreu segundo suas previsões: a srta. de la Tour, meio adormecida, sob
uma influência imprevista, não disse o que combinara com madame de la
Motte, mas também não viu o que devia permanecer escondido e, se o
cardeal concebeu dúvidas, foi a respeito da virtude da srta. de la Tour581.
Os meses se passaram; o cardeal esperava dia a dia um sinal de reco­
nhecimento da rainha, esperava o primeiro pagamento que ela deveria fa­
zer; mas disso tudo ele nada dizia a Cagliostro. Boehmer, muito espantado

581. O fato de haver, para aceder aos desejos do cardeal, feito essa experiência com
madame. de la Motte e sua mãe comprometeu, porém, Cagliostro; madame de la Motte
soube servir-se perigosamente dessa arma mais tarde, sustentando que o mago, com en­
cantamentos, seduzira o cardeal e o levara à compra do colar. (Relatório de madame. de la
Motte, e: Resposta ao Relatório de Cagliostro. 1786, in-4?, p. 29). As confissões da srta. de
la Tour vieram felizmente destruir essa calúnia; ela prestou juramento de que nem antes,
nem depois dessa cena mágica, em que ela própria só falara por brincadeira, houvera, de
qualquer maneira, combinação com Cagliostro (Interrogatório da srta. de la Tour). E eis
como o próprio Cagliostro conta o fato em seu interrogatório (Arq. Nac., X2 B. 1417): Ante
o pedido do cardeal, para tentar confortar uma pessoa que lhe era cara, ele aceitou fazer a
experiência que solicitava madame. de la Motte; mas ele a preveniu nos seguintes termos:
‘‘Senhora, meus conhecimentos são em física medicinal e, embora eu não acredite muito no
magnetismo, imagino que ele possa ter muito mais efeito nas crianças; assim, podemos,
talvez, descobrir algo provocando a catalepsia ”, Notemos que essa linguagem de Caglios­
tro é diferente daquela que ele usava habitualmente: ele não fala de visão beatífica ou
angélica, nem de graça divina, como quando ele agia com colombas, mas simplesmente de
magnetismo, e com muita reserva. E que, ao tratar com duas mulheres que queriam sua
perdição, com o cardeal que cometia a infantilidade de procurar enganá-lo, Cagliostro não
devia servir-se para eles de seus poderes divinos. Usavam-no como um homem fácil de
iludir; foi como magnetizador, e como magnetizador pouco convicto, que ele operou. As
respostas de seu paciente foram aquelas de sempre nesses casos: uma mistura de influên­
cias, de sugestões, de erros e de fantasia. A lembrança cética conservada pela srta. de la
Tour é mais uma prova da verdade de nossa interpretação.
por não ver a jóia sobre os ombros da rainha, suspeitoso, pressionava o
cardeal com questões. Este respondia com segurança; mas as inquietações
de Boehmer o invadiam pouco a pouco. Enfim, em julho, não agüentando
mais, o cardeal e Boehmer fizeram, sem contar um ao outro, uma tentativa
para se informar. Boehmer fez chegar à rainha uma carta de agradecimento;
ela passou os olhos pelo papel, sem compreender o que aquilo significava, e
o jogou no lixo. Boehmer interpretou seu silêncio como um aquiescimento
e ficou um pouco mais confortado. O cardeal, superando sua falsa vergo­
nha, decide-se enfim por falar com Cagliostro, contando-lhe tudo, mos­
trando-lhe pela primeira vez as cartas, o tratado com o joalheiro endossado
pela rainha, e lhe pede conselho e proteção. Dessa vez, Cagliostro foi cate­
górico; havia pouco tempo, Boehmer escrevera. Se o cardeal ainda o
ignorava, Cagliostro o sabia; era preciso agir e o caso podería então ser
concluído secretamente entre o rei, a rainha e o cardeal: “Enganaram-no
odiosamente”, disse-lhe ele; “o único partido a tomar é ir se lançar aos pés
do rei e lhe contar o que aconteceu”. O cardeal, assustado, recusou-se —
“um de seus amigos irá por você”, disse Cagliostro582.
O cardeal recusou ainda mais veementemente; o medo e o orgulho de
seu nome o retiveram. Era porém a única maneira de evitar o escândalo
terrível que se preparava583.
O cardeal, aterrorizado, nada fez. Madame de la Motte, imediatamente
prevenida da atitude de Boehmer e das declarações de Cagliostro, sentiu-se
perdida: o cardeal confessaria ou seria preso; nos dois casos, ele a denuncia­
ria; apenas restava-lhe uma chance de salvação: incriminar Cagliostro. Um
mago misterioso, que distribui dinheiro em tomo de si, sem recursos conhe­
cidos, íntimo do cardeal, seu diretor de consciência. Um personagem que ela
própria comprometera bastante habilmente no caso para que ele pudesse negar
certo conhecimento dos acontecimentos; era o homem certo para acusar.
“Além disso”, pensava ela, “esse italiano é ridículo, sem modos, aborrecido;
logo ele angariará as antipatias de juizes, testemunhas e público.”
Algo confortada por essa idéia, ela enfrentou o perigo imediato, da
parcela do 1? de agosto; mandou levar à casa do cardeal uma nova carta falsa
da rainha, dizendo que as 400 mil libras prometidas só poderíam ser pagas
em 1? de outubro; que arranjasse tudo com Boehmer: nessa data ela paga­
ria 700 mil libras. Enquanto isso, ela mandava 30.000 libras pelos juros
(Era o dinheiro emprestados sobre alguns diamantes do colar.584

582. Era oferecer a si mesmo como embaixador; nenhum intercessor, apesar das aparên­
cias, teria valido mais.
583. Interrogatório de Cagliostro, in: Campardon. Op. cit., p. 373. O conselho dado por
Cagliostro de admitir tudo, explicar tudo ao rei, é uma prova evidente da absoluta ino­
cência de Cagliostro. Se ele houvesse participado, por pouco que fosse, dessa tenebrosa
intriga, será que teria incitado o cardeal a revelar tudo'!
584. Empréstimo feito por madame de la Motte ao notário Minguet em 27 de julho. Funck-
Brentano. Affaire du collier, p. 222.
O cardeal ficou mais aliviado; Segundo ele, madame de la Motte não
podería ter reunido tamanha soma senão junto à rainha. Nesse caso, a rainha
tinha o colar; tudo era verdade. Correu à Loja de Boehmer, que se irritou,
recusou os juros e só ficou com o dinheiro como parte da soma devida, que
exigiu. Boehmer não parou por aí; em 3 de agosto, encontrou a Sd de
Campan, leitora da rainha, e ela lhe diz que a rainha jamais recebeu o
colar: fora um golpe. Ele foi à casa do cardeal que, de boa-fé, afirmou-lhe
que estava certo de que a rainha tem o colar e que ela pagaria o capital,
assim como pagara os juros. De resto, sua garantia estava ali585.
Madame. de la Motte percebeu que tudo terminara: mandou Rétaux,
única testemunha perigosa, à Itália e, no mesmo dia, vai à casa do cardeal
com seu marido para lhe pedir hospitalidade por 48 horas: “Estão espa­
lhando boatos a meu respeito; vigiam-me, perseguem-me; só estou com­
prometida pelo senhor, só agi sob suas ordens. Quero fugir para a provín­
cia, fazer-me esquecer; mas, daqui até lá, cabe ao senhor me proteger”.
Com essa última manobra, segundo Funck-Brentano 586, madame de la Motte
acreditava ligar definitivamente sua sorte à do príncipe de Rohan, estabe­
lecendo sua inocência. Se ela não houvesse agido de boa-fé, será que teria
vindo entregar-se ao príncipe?
O cardeal aceitou hospedá-la em sua casa587; ela ficou até 6 de agosto
e partiu então para Bar-sur-Aube com o dinheiro e o que restara do colar.
Mal ela partira, em 9 de agosto, os joalheiros, chamados ao Trianon, emi­
tiram um relatório explicativo à rainha. O rei foi prevenido; um conselho
privado dos ministros foi reunido em sua casa; Breteuil, radiante, demons­
trou toda a sua animosidade contra o cardeal, pedindo sua prisão imediata.
O rei ainda hesitava. No dia da grande festa de 15 de agosto, em pleno
salão, ele interrogou o cardeal e, imediatamente, diante de toda a corte,
mandou-o prender. Em 18 de agosto, madame de la Motte foi apanhada em
Bar-sur-Aube e levada a Paris. Em 21 de agosto, o marquês de Breteuil
assina a ordem de prisão de Cagliostro588, com o sinete real.
Em 23 de agosto, às sete horas da manhã, Chesnon, comissário no
Châtelet, acompanhado de oito ou dez esbirros, entre os quais um chamado
Desbruginères589, forçam a porta de sua casa. Em sua presença, apesar de

585. Arquivo Nacional Declaração de Boehmer. F7 445, B.


586. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 229.
587. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 229.
588. De que reproduzimos — em frente à p. 186 — o fac-símile fotografado da peça
original (Bibl. do Arsenal, Mss. N? 12.457) “Foram as acusações de Madame de la Motte
que, ao designar Cagliostro como o único culpado, ao corrente de todo o caso, determi­
naram sua prisão. ” Ma correspondance, 1785, n? 70; Cf e: Bachaumont. Mémoires. Pa­
ris, 1808, t. II, p. 217.
589. Ou Des Brunières; encontramos esse nome ortografado deforma diferente. E o mes­
mo que foi a Estrasburgo vigiar Cagliostro.
seus protestos, Chesnon revirou suas gavetas, vasculhou rapidamente sua
escrivaninha, pegou o que lhe convinha e deu a ordem de levá-lo. Onde?
Ele não diz. Cagliostro se inquietou, suspeitando da verdade. Sua mulher,
sua casa, que serão delas? Declararam-lhe que não havia nenhuma ordem
contra sua mulher e que ela ficaria na casa para velar por seus interesses.
E logo, Desbrugnières se lançava sobre ele, puxando-o pelo “colari­
nho de seu traje entre quatro vigias armados590”, a pé, pelos bulevares, até
a Bastilha.
O comissário, que ficara na casa dele, continuava a pilhagem, força­
va fechaduras, apanhava tudo o que lhe parecia bom, embolsava certas
coisas e enfiava outras em um saco, maltratando sua mulher, assustando os
criados591; depois de terminado o saque, levou a condessa à Bastilha e a
trancou, longe de seu marido, sem qualquer outra explicação592.
No dia 24, interrogaram a condessa. De Launay, governador da Bastilha,
e Chesnon fizeram assinar (com uma cruz) e apor seu sinete a essa desgraça­
da e apavorada mulher, tudo o que eles queriam. Concederam-lhe, como
uma graça, que sua aia, Françoise, viesse fazer-lhe companhia593, e essa me­
dida, aparentemente bondosa, permitiu ao comissário instalar, na rua Saint-
Claude, na casa de Cagliostro, um de seus homens, deixando a casa à sua
disposição.
Em 26 e 27 de agosto, Cagliostro foi sumariamente interrogado: ele
contou os fatos que já relatamos e que lhe dizem respeito; a simples narra­
tiva deveria ter bastado para colocá-lo fora do caso. Mas não foi assim: ao
contrário, tentaram apanhá-lo em contradição, estenderam-lhe armadilhas.
De Launay lhe jurou (segundo perjúrio) que sua mulher não fora presa,
que ela estava na rua Saint-Claude; propuseram-lhe que escrevesse a ela;
esperavam assim apanhar algumas indicações comprometedoras para ele.
As cartas, após haver passado pelo exame de De Launay594, chegavam à
sua mulher, mas na cela. Ditavam-lhe o que ela deveria responder; um
policial ia à rua Saint-Claude buscar na casa as roupas e os lençóis que

590. Relatório contra Chesnon. Paris, 1786, in-4?, p. 5.


591. Essa cena se passou em presença de G... pai (Augustin), da dama B... (Françoise),
da dama de B... e da baronesa de B... Petição ao Rei contra Chesnon. Paris, 1787, in-4?,
p. 42.
592. A condessa foi levada à Bastilha, às 10 horas da manhã, no mesmo dia, 23 de agos­
to. Ambos, Cagliostro e a condessa, ignoravam portanto reciprocamente seu destino.
593. Ela veio em 25 de agosto, às 9 horas da manhã.
594. “Reconhecemos também nesses papéis cinco cartas originais, escritas pelo famoso
Cagliostro e entregues ao Sr. de Launay para serem levadas à sua mulher, de que esse
ilustre defensor do forte confiado a sua guarda havia tido o cuidado de se apropriar
(cartas traduzidas em francês), mas deixara de fazer delas o uso indicado pelo autor.”
Révolutions de Paris. Papéis encontrados na Bastilha. Londres, 1789, in-8?, p. 75 (na
data de 27 de julho de 1789).
Cagliostro pedia e lhe remetia tudo, carta e pacote, como se viessem de sua
mulher. Qualquer outra pessoa teria por isso ficado segura de que tudo
estava em ordem em sua casa; mas esses procedimentos estavam longe de
convencer o prisioneiro. Ele sabia tão bem que o estavam enganando, que
sua mulher sofria, que sua casa fora pilhada, que dava sinais de uma agita­
ção e de um desespero terríveis. Delorme, major adjunto da Bastilha, as­
sustou-se, temeu que ele se suicidasse e colocou junto a ele, na noite do dia
29, um oficial de guarda para vigiá-lo595.
Assim se passaram meses. Que tortura para Cagliostro! O inquérito
ordenado continuava lentamente; foi apenas no inverno596 que se efetua­
ram os primeiros interrogatórios oficiais; apenas em 27 de fevereiro de
1786, Cagliostro, enfim, autorizado a ver seu advogado, ficou sabendo por
intermédio dele que o enganaram, que sua querida mulher estava na Bastilha
há sete meses, que ela estava doente597, que ela exigia em vão seus cuidados,
que seus dias talvez estivessem em perigo. Imediatamente ele redigiu, com
seu advogado, o devotado Thilorier, um requerimento para obter a liberda­
de da condessa, o direito de vê-la. D’Epresmenil, comovido com a fragili­
dade e a doçura dessa inocente prisioneira, interveio em seu favor, apoiou
o pedido598 e a condessa saiu da Bastilha em 26 de março de 1786, voltan­
do, enfim, para casa onde, aliás, não encontrou mais nada; a escrivaninha
estava vazia, a casa, devastada.
A partir desse momento, os interrogatórios se sucederam: o do car­
deal, o de madame de la Motte, de sua sobrinha, dos outros acusados. Quanto
mais Cagliostro se mostrava tranqüilo, digno, bondoso mesmo para com os
culpados, exato e conseqüente em suas respostas, mais madame de la Motte
ficava cheia de ódio, furiosa599, mudava suas declarações, ansiosa para salvar

595. Carta de Thiroux de Crosne à de Launay. Bibl. do Arsenal. Manuscritos da Bastilha.


12457, foi. 12.
596. O Interrogatório de Cagliostro é de 30 de janeiro de 1786. Arq. Nac. X2 2676.
597. Requerimento ao parlamento para o conde de Cagliostro, de 24 de fevereiro de 1786.
Lottin, in-4?, 8 páginas. “E um relato comovente do estado crítico e perigoso em que se
encontra atualmente a dama de Cagliostro, estado que exige o socorro de uma arte ben-
feitora exercida por seu marido, que tivera a ventura de arrancar mil franceses dos braços
da morte. ” Journal de Hardy, 25 de fevereiro de 1786. — “Ao sair da Bastilha, a condessa
estava muito esgotada: centenas de pessoas amigas vinham-na ver, mas se inscreviam
apenas na casa do zelador. Ela só podia receber pouquíssimas pessoas. Aqueles que pu­
deram ser recebidos asseguravam que ela chorara tanto que seus olhos estavam gastos. ”
Ma Correspondance, n.° 29 de 1786.
598. Esse pedido era bastante justificado: a srta. de la Tour havia sido posta em liber­
dade em 7 de fevereiro. Porém, o bedel e o procurador que apresentaram o requerimen­
to quase foram interditos por tê-lo ousado fazer. (Ma Correspondance, n.° 19 de 15 de
março de 1786). A intervenção de MM. D’Ormesson e d'Epremesnil fez com que o
pedido fosse aceito.
599. “Madame de la Motte opusera muita dificuldade para se deixar conduzir ao lugar
da confrontação; ela se despiu, fazia loucuras... depois entrou embaixo da cama; tiveram
sua cabeça. Ela joga seus últimos trunfos; para acusar Cagliostro. ela amon­
toa mentiras sobre mentiras, desajeitadamente 600. Seu advogado. Dr. Doillot.
que se associara ao miserável Sachi, publicou seu relatório, reeditou suas
calúnias e mandou imprimir em libelos anônimos, distribuídos abundante­
mente, tudo o que era demasiadamente mentiroso, odioso ou obsceno para
ser assinado e aparecer em um relatório oficial. Paris foi inundado com
esses panfletos; o público os disputava. Eram apenas calúnias nojentas;
mas “sempre ficava alguma coisa”, segundo dizia Beaumarchais601.
As confrontações continuavam: já a opinião dos juizes se modificara:
Madame de la Motte estava em postura cada vez pior; Cagliostro era cada
vez menos suspeito. Desconfiavam que Rétaux de la Vilette era o falsário
que apusera as assinaturas de Maria Antonieta e representara o papel de
valete da rainha; suas confissões, se fossem obtidas, teriam esclarecido
tudo; mas Rétaux as negava energicamente. Confrontaram-no com Caglios­
tro, que falou à sua alma e obteve em uma hora aquilo que os juizes não
haviam podido obter em oito meses: confissões completas do culpado. “Foi
então”, escreve Cagliostro, “que eu lhe fiz durante uma hora e meia um
sermão para lhe fazer conhecer o dever de um homem honesto, o poder da
Providência e o amor pelo próximo. Em seguida, injetei-lhe a esperança na
clemência de Deus e do governo. Enfim, meu discurso foi tão longo e in­
tenso que eu não podia falar mais. O relator do Parlamento ficou tão como­
vido e enternecido que disse a Vilette que ele deveria ser um monstro se
não houvesse ficado tocado, pois eu lhe falara como irmão, como homem
cheio de religião e de moral, e que tudo o que eu acabara de dizer era um
discurso celeste602.”
Podemos ver que energia, que elevação de pensamentos Cagliostro
manifestava diante do tribunal. Será que ele parecia um acusado? É ele
quem fala, persuade, esclarece a justiça a ponto de suscitar a admiração de

muito trabalho para tirá-la de lá... por fim apanharam-na por uma perna e a puxaram de
debaixo da cama; colocaram-na em um cobertor para levá-la; ao chegar no local, diante
do cardeal, ela o cobriu de injúrias. ” Carta do Cavaleiro de Pujol de 7 de abril de 1786,
in: P. Audibert.. L’Affaire du Collier. Rouen, 1901, in-16, 31 pág. No mesmo dia, após sua
confrontação, "ela mordeu até arrancar sangue o porta-chaves encarregado de levá-la
de volta. ” Ma Correspondance, n.° 31 de 9 de abril de 1786.
600. “O colar fora comprado por conselho de Cagliostro. Foi entregue a ela em presença
de Cagliostro, por ordem de Cagliostro, pelo cardeal, para ser vendido em proveito do
conde. A Stf de Cagliostro era a pessoa que se gabava de ter suas entradas secretas junto
à rainha e que transmitia suas ordens. Foi ela que recebeu do cardeal os mais belos
diamantes do colar... etc... ” Interrogatório de Madame. de la Motte. Arq. Nac. X2 2576.
Relatório de Madame. de la Motte, passim.
601. Muitos desses libelos, condenados pelo parlamento, foram suprimidos como
caluniadores e injuriosos. Cf. Courrier de 1’Europe, n? 48 de 1787, p. 42, 1? coluna.
602. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 268.
seus juizes. Continua a ser na Bastilha o mesmo que era na casa de Estras­
burgo ou entre seus filhos, em A Sabedoria Triunfante. A verdade, a luz, a
força estão nele e nada das coisas humanas poderia sufocá-las. Sua calma
não se desmente — e voluntariamente — senão uma única vez: foi quando,
após oito meses de cela, de luta, oito meses de separação de sua mulher, de
angústias em relação a ela, oito meses durante os quais sua obra fora aban­
donada, seus discípulos e seus doentes forçosamente largados603, ele se
encontrou enfim face a face com madame de la Motte, com aquela que era
a causa de tudo aquilo e que continuava, por meio de uma campanha odio­
sa, a arrastar na lama o cardeal, a condessa e ele próprio; Cagliostro deu
então livre curso à sua indignação604.
No dia seguinte, foi a vez do cardeal: “Amanhã ficarei de frente com a
celerada”, escreveu a Target; “ela teve hoje uma cena com o conde de Ca­
gliostro; ela lhe lançou um castiçal que bateu na barriga do conde, mas foi
punida imediatamente, pois uma das velas a atingiu no olho605.” Mas tudo já
terminara: Rétaux, graças a Cagliostro, havia confessado; madame de la Motte,
em uma pavorosa crise de nervos, deixara também escaparem confissões. O
cardeal só teve de recolher os frutos da devoção e da sabedoria de Caglios­
tro: ele o reconheceu.
De resto, desde o dia de sua prisão, o cardeal não cessara de testemu­
nhar um real interesse, um respeito marcado por Cagliostro; seria realmen­
te remorso de consciência ou será que, mais provavelmente, nesses dias de
provação, tinha esperança somente nele? Em todo caso, sua correspondên­
cia secreta o mostra preocupado com o estado do conde, desejoso que seus
advogados e que todas as pessoas lhe testemunhassem todo o respeito pos­
sível, prestassem-lhe todos os serviços que estivessem a seu alcance606.
A 30 de maio, após o encerramento da instrução, o Parlamento se
reuniu: os acusados foram interrogados publicamente607.0 cardeal foi dig­
no, mas estava abatido. Cagliostro apareceu firme, quase dominador.

603. “Desde a prisão de Cagliostro, todos os seus amigos estão desolados, desesperados.
Mais nada existe para eles; tiraram-lhes o que tinham de mais caro no mundo. ” Ma
Correspondance, 5 de dezembro de 1785, n? 101.
604. “Madame de la Motte só soube lhe responder tratando-o de impostor vendido. ”
Mémoires de Georgel. T. II, p. 186. Suas violências contra os outros acusados e contra os
guardas crescia à medida que a instrução seguia seu curso. Gazette de Leyde, 14 de abril
de 1786. Journal de Hardy. Bibl. Nac. Mss. Francês 6685, p. 316.
605. Carta do cardeal a Target. Dossier Target. Biblioteca da cidade de Paris. Manuscrito
na Reserva.
606. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 102 e 275, segundo a correspondência
Target. Quando o cardeal ficou gravemente doente na Bastilha, recorreu, para se cura, e
antes de ver qualquer médico, aos pós de Cagliostro que ele sempre trazia consigo. Foi
apenas por insistência dos seus que ele mandou vir em seguida o Dr. Portail. Gazette de
Leyde, 13 de dezembro de 1785, n? 99.
607.Cagliostro foi transferido para a sala do zelador, em uma cela do pátio dos homens,
e o cardeal, ao gabinete do Escrivão-chefe. Mémoires de Bachaumont, 2 vol. In-81. Paris,
1808, t. II, p. 268.
“Quem é você?” perguntou o juiz.
“Um nobre viajante”, respondeu ele com uma voz forte, brilhante,
que contrasta fortemente com os balbucios, os choramingos dos acusados
precedentes608.
Depois, sem esperar nova questão, a cabeça alta, ele começou a falar
a plena voz, de plena alma, de sua vida, do mistério que o rodeia, de seus
poderes, de suas provações, de Deus, de quem ele é soldado e que o prote­
ge, de tudo o que o Espírito soprava nele609, improvisando, sem ter prepa­
rado suas respostas, meio sorridente, meio terrível, divertido e impressio­
nante. Sua alegria, seu gesto forte, sua autoridade de palavra, embalaram o
público. Quando terminou, o presidente só faltou felicitá-lo; a sala aplau­
diu de pé. Por volta das seis horas, os acusados foram levados de volta à
Bastilha; foram forçados a tirar os carros pelo pátio Lamoignon. Os nomes
do cardeal e de Cagliostro encheram os ares com aclamações entusiastas e
votos por sua liberdade. Cagliostro respondeu a todos, saudou, agradeceu,
ergueu os braços, jogou o chapéu, “que mil mãos disputaram”, escreve o
Sr. Funck-Brentano610. Talvez seja verdade: Cagliostro sabia falar à multi­
dão como a cada indivíduo, em sua própria linguagem.
Em 31 de maio de 1786, às 9 horas da noite, o julgamento foi dado,
proclamando o cardeal e Cagliostro inocentes, dando-lhes a quitação hon­
rosa, ordenando sua libertação com a impressão e afixação do decreto e a
destruição dos panfletos escritos contra eles. O atroz pesadelo do cardeal
terminara: ele saía do inferno com seu libertador; o rei não deveria tentar
fazê-lo esquecer esses dolorosos momentos? E, sobretudo, ele não deveria
reservar a Cagliostro compensações pelas perseguições sofridas, testemu­
nhos de sua bondade para reparar os abusos de poder, exercidos em seu
nome referente a um assunto inocente, a um homem cuja vida se passava
em praticar a beneficência? Será que outra coisa deveria permanecer no
público além de piedade pelo cardeal, admiração por Cagliostro?
Veremos, infelizmente, que não aconteceu nada disso: o rei nem quis
mais pensar nisso; a rainha se lembrou de Cagliostro, o salvador do car­
deal, mas foi para atingi-lo mais uma vez; o público se entregou a novos
divertimentos. E, rapidamente, esquecendo sua inocência absoluta, sua
coragem na adversidade, sua nobre conduta, apesar das provas estabelecidas,
as confissões, o julgamento dado, logo que os historiadores têm de falar de
Cagliostro eles recomeçarão a deixar pairar em torno de seu nome uma
atmosfera de suspeita611; suas insinuações agradáveis, seus termos vagos,

608. Gazette de Leyde, n? 96, 9 de junho de 1786.


609. “Quando o levarem para diante dos juizes, não se inquiete com antecedência com o
que tem a dizer, mas diga o que lhe será dado na mesma hora: pois não será você a falar,
mas o Espírito Santo. ’’ Marcos, XIII: 11.
610. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 310.
611. Como o historiador alsaciano Spach: “A escandalosa história do Colar estava lá,
irrefutável”, escreveu ele tolamente; “Cagliostro estava no meio: apenas esse fato teria
suas palavras de duplo sentido contribuíram para aniquilar os fatos mais
notáveis, para manchar sua memória com uma "provável” cumplicidade nesse
caso, ao qual, porém, ele foi mais estranho que o próprio rei! Isso não é
iníquo, revoltante, terrível de se constatar?
Muitas pessoas se perguntarão por que Cagliostro, se era realmente
clarividente, não conhecia as manobras criminais de madame de la Motte,
se ele penetrara os projetos secretos do cardeal, se via o abismo para o qual
todos corriam; muitas pessoas, digo eu, se perguntarião por que Caglios­
tro, podendo tudo prevenir, deixou que se cumprissem esses dolorosos acon­
tecimentos.
A questão é natural; mas se refletirmos, se vimos desenhar-se pouco
a pouco a grande figura de Cagliostro, se conseguirmos esboçá-la tal como
era, e não desfigurada, tal como a má-fé dos cronistas nos transmitiu, a
resposta será bem fácil.
Em relação a madame de la Motte, explicamos, nada deveria obrigar
Cagliostro, pouco inclinado ao papel de alcagüete, a interromper em seu
desenvolvimento essa potência em plena ação. Tudo deve progredir e, se não
podemos crescer no bem, é melhor fazer o mal imediatamente do que nada
fazer e conservar em si um germe mau que se desenvolverá mais tarde.
Esta não é nossa opinião pessoal, ou a de Cagliostro apenas: o Filho de
Davi, há muitos séculos, já o dissera.
Seria em favor de seu amigo, o príncipe de Rohan, que Cagliostro
deveria ter intervindo? O que ele queria do cardeal? Ele lhe dissera, bem
como a todos os seus outros discípulos, com freqüência: o papel de toda
iniciação, o objetivo da vida humana, é a renovação espiritual, a obtenção,
por meio de esforços cotidianos, dessa luz que ilumina todo homem que
vem a esse mundo e que, na vida profana, nós rejeitamos, obscurecemos
por nossos desejos egoístas e nossas ações pessoais. Ele reconhecera no
cardeal um espírito capaz de atingir um Grau superior de saber6’2; portanto,
ele não lhe havia poupado nem os exemplos, nem os encorajamentos, nem
as lições. Uma afeição respeitosa unia o cardeal a seu mestre, e Cagliostro
podia esperar para seu discípulo a aquisição dos maiores bens espirituais,
prometer-lhe que ele o levaria longe, mais longe que os outros, se permane­
cesse fiel a ele e a seus ensinamentos. Mas o cardeal era fraco, impaciente e

lançado uma luz sinistra sobre sua precedente carreira, mesmo que ela houvesse sido
irrepreensível. ” Biographies alsaciennes. Oeuvres, t. V, p. 61.
612. Cf. Funck-Brentano. Affaire du collier, p. 97. Mas ele testemunhara ao cardeal que o
estimava especialmente, “ele jamais lhe dissera que o faria ter sucesso em tudo o que dese­
jasse.” (Declaração de Cagliostro em seu interrogatório. Cf. Campardon. Op. cit., p. 349.
Pelo contrário, ele sempre aconselhou ao cardeal que “ficasse em suas terras, longe da
corte, que vivesse isolado em Saverna.” Ibid., p. 18). Cagliostro podia dizer, pois era a
verdade, que seus poderes eram ilimitados, mas ele não podia empregá-los para fazer uns
se saírem bem à custa de outros.
Rockhalt, casa de campo de Cagliostro, em Bienne.

Cagliostro — Busto por Houdon, face — Museu de Aix-en-Provence


ambicioso; sua bela e viva inteligência não via, na obtenção de poderes
sobrenaturais, na proteção de Cagliostro, senão um meio de satisfazer sua
ambição mundana. Ele queria ouro, autoridade, sucessos na corte, com as
melhores intenções do mundo, sem dúvida, mas com um sentimento todo
pessoal. Interpretando as promessas do mestre no sentido de seus desejos e
sem ver sua realização se efetuar, ele duvidou de suas palavras, quis con­
quistar ele próprio os tesouros que cobiçava: o favor da rainha, o poder
junto ao rei. Ele agiu primeiro sem Cagliostro, depois escondido dele. No
dia em que sua consciência o fez sentir que sua conquista da glória humana
não era a da imortalidade, tentou acalmar seus escrúpulos dividindo sua
vida, deixando a Cagliostro o cuidado de sua alma e à intriga o de seus suces­
sos. Ele compreendia tão bem, secretamente, que seu mestre teria entravado
seus projetos, que lhe escondeu cuidadosamente os por menores de seus
atos: as coisas foram combinadas, executadas apressadamente às suas cos­
tas. Agindo dessa maneira, o cardeal paralisava a ação protetora de Cagliostro,
fechava os caminhos da Providência, atraía o obstáculo em que se quebra o
orgulho. Cagliostro o deixou fazer, como se deixa uma criança obstinada e
pretensiosa queimar os dedos para que aprenda a conhecer o fogo.
Quando um ser de luz vem a você, quando ele lhe oferece, com pro­
vas de um poder grandioso, os testemunhos de uma bondade sem igual,
seria admissível que um sentimento mesquinho de desconfiança pudesse
levar um ser inteligente a brincar mais de esperto com o enviado de Deus,
a buscar o ouro e a glória sem que ele saiba, a enganá-lo em suas palavras, a
fugir dele em seu coração, conservando sempre as aparências de uma de­
voção exterior? Porém, foi o que fez Rohan.
Ora, o céu é dos violentos; ele não se dá aos tépidos; ainda menos se
impõe à força aos recalcitrantes. E preciso, para que ele construa sua casa
em um homem, não as aparências, mas a realidade de uma paz interior, de
uma boa vontade sincera. Não há partilha: aquele que quer servir a Deus e
que retorna ao ter posto a mão na charrua não é digno do salário. O car­
deal quis adorar o Deus de Cagliostro e sacrificá-lo ao mesmo tempo, sem
que ele soubesse, no altar de Mamon. Cagliostro deve ter-se entristecido;
mas respeitou o ilusório mistério de que seu discípulo se envolvia; ele o
deixou desprezar seus conselhos, orgulhar-se daquilo que acreditava se­
rem sucessos; o tempo, bem rápido, cumpriu sua tarefa e a experiência
veio com a queda. Quantos remorsos não o roeram, que humilde ar de
constrição deve ter-se elevado dele para Cagliostro quando, de hora em
hora, durante o processo, ele pôde constatar que, de todos, apenas Caglios­
tro havia visto claro; que apenas ele se revelava seu amigo leal e que ele
havia livremente, apesar de tudo, aceito uma parte de sua cruz para ajudá-
lo a carregá-la afim de salvá-lo. E enquanto ele, príncipe e cardeal, irmão
do rei, empalidecia e tremia diante de um punhado de homenzinhos de
toga, Cagliostro falava aos juizes com a mesma segurança, com a mesma
grandeza que outrora o impressionara em Savema, com nobreza, quase
com autoridade613. Que lições e como ele deve ter-se lembrado de suas
blasfêmias interiores e das palavras soberbas de seu mestre: “Você me ofe­
rece sua proteção; estou tocado, senhor cardeal; pois bem, eu, em troca, o
tomo sob a minha!”
Havia ainda razões menos pessoais, de ordem geral, que ditaram o com­
portamento de Cagliostro. Ao apoiar o inocente pela causa da verdade, pela
defesa do direito e da dignidade humana, a injustiça de uma prisão arbitrá­
ria, as violências da polícia, a pilhagem de seus bens, as torturas físicas e
morais do seqüestro, os ferimentos da calúnia, ele aumentava a responsa­
bilidade dos culpados, fazendo-os atingir a forma extrema de seus abusos e
determinando assim, no tempo, o fim de sua carreira criminal. Uma coisa
impressiona na vida de Cagliostro: é que, em toda parte em que ele teve de
sofrer qualquer injustiça da parte de um homem ou de uma lei, homem ou lei
tombaram imediatamente, como se a taça da iniqüidade estivesse cheia no
dia em que a perseguição de Cagliostro pusera nela a ultima gota614. Não
que ele nunca se tenha revoltado contra um desses abusos; ele os suportou,
mostrando sempre o respeito pelo governo e pelas instituições do país que
o recebia. Mas está escrito nas leis do céu que o mal tem um limite e que,
quando seu dente, após ter esmagado pequenos e grandes, avança sobre
um amigo de Deus e o fere, ele se quebra definitivamente 615. Historiadores
e filósofos o escreveram: o Caso do Colar foi o prelúdio imediato da Revo­
lução Francesa616. Não se deve por isso entender que o processo foi a única
causa da Revolução, nem que o aprisionamento de Cagliostro na Bastilha
tenha sido o único motivo do 14 de julho; isso seria mostrar pouco julgamen­
to. Com efeito, havia anos que os operários trabalhavam, conscientemente
ou não, em preparar 1789; as condições necessárias, os esforços se acumu­
lavam. Haviam semeado, sofrido; a colheita se aproximava. Mas a colheita
só começa quando o mestre, entrando em seu campo, dá o primeiro golpe
de foice no trigo maduro. Na mesma hora em que Desbrugnières, em nome
do rei, ergueu a mão para Cagliostro, na hora em que as portas da cela se
fecharam sobre o ser de luz, o gênio da França deixou Versalhes e os ali­
cerces da Bastilha tremeram: a imagem da Revolução acabava de passar;
os homens fizeram o resto.

613. Quando chegou o momento terrível em que toda a intriga foi descoberta, o cardeal,
enlouquecido, correu à casa de Cagliostro, que foi o único a encontrar palavras para
confortar e fortalecer seu coração. Ele saiu dessa conversa transformado, diz o abade
Georgel, “e talvez nunca mais o cardeal tenha tido mais dignidade e coragem do que nos
momentos que se seguiram. ’’ Mémoires de Georgel. T. I, p. 99.
614. Cf. Lettre au peuple anglais, p. 74.
615. A Lettre au peuple français não contém o anúncio profético da supressão das cartas
de sinete, da queda da Bastilha, da convocação dos Estados-Gerais?
616. Goethe. Mirabeau, o conde de Lamarck, etc. — A Gazette de Leyde, em 1786 (n° 2),
faz notar que o processo ergue a questão da lesa-majestade e por isso o público se apai­
xona, e as brochuras se multiplicam.
No 1? de junho, às llh30m da noite, a fim de cansar, se possível, a
paciência do público que esperava Cagliostro para lhe fazer uma ovação617,
De Launay abriu as portas da Bastilha a seu prisioneiro. Apesar do avança­
do da hora, a manifestação foi grandiosa: 8 a 10 mil pessoas rodeavam sua
casa618; gritos de alegria, batidas de tambores619, iluminações ofuscavam;
era quase uma revolução em germe. “Haviam forçado minha porta. O pátio,
as escadas, os apartamentos, tudo estava cheio: fui levado aos braços de
minha mulher; meu coração não me pôde bastar a todos os sentimentos que
lutavam lá dentro. Meus joelhos falharam, caí sobre o assoalho sem cons­
ciência. Minha mulher deu um grito agudo e desmaiou.” Alarme, corre­
ría... eles voltaram a si, desmancharam-se em lágrimas e a alegria de todos
festejou “esse primeiro instante de felicidade após dez meses de suplí­
cio620.” Na manhã seguinte, a multidão ainda estava diante de sua porta e
da casa do cardeal, que apareceu no terraço e a saudou621. Essas manifesta­
ções foram muito comentadas na corte622.
A alegria de Cagliostro seria de curta duração: como recompensa por
seus serviços, como compensação pelos sofrimentos imerecidos, oferece­
ram-lhe o exílio! O ódio de Breteuil623 perseguia sua vítima. O orgulho
ferido da rainha se vingava e era novamente por um ato arbitrário. Doze
horas após sua libertação, o mesmo Desbrugnières, em nome do rei, levou-
lhe uma ordem de partida; ele deveria deixar Paris dentro de 24 horas e o
reino em três semanas, com proibição de retornar sob qualquer pretexto.
Ele obedeceu sem reclamar624. Em 3 de junho de manhã, deixando em
Paris sua mulher a recolher os destroços de seus bens que escaparam à
pilhagem, ele partiu para Passy, acompanhado por amigos devotados, e
passou nove dias lá625.

617. Uma ordem de Breteuil a De Launay (Bibl. do Ars. Mss 12457, j? 99) fixa essa hora
tardia de saída e define a vontade do rei de que Cagliostro e o cardeal ficassem em casa
e só recebessem seus parentes e homens de negócios.
618. Hardy. Journal, na data de 1? de junho de 1786; e Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 261.
619. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 16.
620. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 16. Vie de Joseph Balsamo,
p. 63-64.
621. Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 271. A casa do cardeal, contígua à de Soubise (Arq.
Nac. Atuais), tinha sua entrada na rue Vieille-du-Temple; foi durante muito tempo ocupa­
da pela Imprimerie Nationale.
622. Os jornais, em particular a Gazette de Leyde, faziam coro com o público e ofereciam
ruidosamente suas felicitações aos acusados libertados.
623. Manuscritos da Bastilha. Bibl. Do Arsenal. N? 12457, f? 69.
624.. “Impaciente em provar minha obediência às vontades de um soberano que me per­
mitiu, seis anos inteiros, fazer o bem em seu reino, apressei-me em obedecer... etc. ” Rela­
tório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4?, p. 18.
625. De lá ele se transportou, em 12 de junho, a Saint-Denis, no Auberge de 1’Epée, onde
sua mulher veio encontrá-lo (Bachaumont. Mémoires, t. II, p. 274). A Gazette de Leyde
(n? XLIX), de 20 de junho de 1786, diz que ele foi a Essone e que foi lá que a condessa o
O furor dos homens de Versalhes, aumentados pelos testemunhos de
simpatia popular que lhe haviam sido dados, foi tal que seus amigos teme­
ram por sua vida; ele estava em risco; vivia em seu quarto626. Seus amigos,
dois em dois, a espada em punho, guardavam a porta dia e noite, em turnos.
Um grande número de discípulos, homens e mulheres, veio se juntar a seu
mestre. Thilorier, seu advogado devotado, entrou com uma ação por perdas e
danos; com efeito, toda a sua fortuna não havia sido devastada por culpa
dessa aventura em que ele injustamente fora metido? No momento de sua
prisão súbita, uma horda de saqueadores havia passado a mão em seus obje­
tos mais preciosos. Chesnon, fuçando em seus papéis, apanhara títulos, valo­
res, documentos, sem inventário627; Desbrugnières pusera sub-repticiamente
no bolso elixires e bálsamos raros628; após sua prisão, a casa estando sem
guardiões, aberta a todos os escroques, policiais e outros; a fim de impedi-lo
de tomar a menor precaução para a garantia de seus interesses, o falso jura­
mento feito, duas vezes (21 e 26 de agosto) de que sua mulher ficara em casa;
a comédia das cartas e dos pacotes; na volta da condessa, o abuso de confian­
ça com o qual lhe fizeram dar quitação de todos os seus objetos preciosos,
sendo que nunca os devolveram; quando de sua própria liberação, a mesma
patifaria tentada, contra a qual ele teve de se defender629, os maus-tratos
sofridos, as falsidades suportadas durante sua detenção; todos esses abu­
sos de poder, todas essas exações, contrárias ao espírito da lei, senão ao
próprio texto, não seria até mais que o necessário para justificar o protesto de
Cagliostro, para lhe fazer reclamar a punição dos culpados e, no futuro, a
vigilância necessária para que tais fatos nunca mais pudessem se reproduzir?
Em um relatório apresentado por Thilorier, Cagliostro pede a restitui­
ção de 100 mil libras, soma a que ele estimava, aproximadamente, seus bens
e valores roubados630, e 50 mil libras por perdas e danos por documentos e

encontrou: é sem dúvida um engano, pois os outros jornais, e o próprio Cagliostro, desig­
nam Passy e Saint-Denis como únicas etapas dessa curta viagem. Cf. Relatório de Ca­
gliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 18.
626. “Ele não queria, saindo e amotinando a multidão, provocar novamente a cólera do
governo. ” Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 18.
627. “Se eu tivesse podido prever que seria preso, escreve Cagliostro, eu teria julgado útil
essa precaução (de mandar fazer um inventário de seus bens por meio de um bedel) inútil e
injuriosa para a nação que me oferecia a hospitalidade. ” Relatório de Cagliostro contra
Chesnon, 1786, in-41, p. 23.
628. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 23
629. “Um pobre prisioneiro demasiado feliz, demasiado contente em se retirar não espe­
ra que lhe peçam para assinar tudo o que quiserem, seja a conta justa ou não... e os
'dogues' da Bastilha conseguem bem barato o direito de se apropriar dos despojas. ”
Remarques historiques sur la Bastille. Londres, 1789, in-8?, p. 78.
630. “Minha fortuna é o patrimônio dos infelizes, e quando faço meus esforços para
conservá-la, são seus direitos que defendo. ” Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786,
in-42, p. 4. — O rico, ensinava ele, é o banqueiro do pobre: “Essas riquezas passageiras
(que o saber e os poderes adquiridos podem um dia lhe trazer) só lhe servirão para o
papéis inestimáveis631, desaparecidos durante as perquirições; e, empenhan­
do-se em provar que não se tratava de uma especulação, mas de uma ques­
tão de princípio, ele deixava claro que as 50 mil libras seriam “aplicadas
para melhorar a alimentação dos pobres prisioneiros do Châtelet632633.”
Os procedimentos do comissário Chesnon e o comportamento do go­
vernador da Bastilha foram evidentemente atos semelhantes aos que sofria
a maioria das pessoas presas. Chesnon talvez não fosse obrigado62,3 a for­
necer um inventário nem de apor os selos judiciais, uma vez que, sendo a
ordem de prisão com o sinete real acima da lei, nenhuma legislação era
aplicável àquele caso. Mas é justamente contra isso que se erguia Caglios­
tro; é a legalidade, a justiça para todos, o respeito pela pessoa humana e a
supressão de tudo o que está “acima da lei” que ele reclamava. Ele se fazia
advogado dos desafortunados, defensor dos fracos, papel que manteve em
todas as circunstâncias de sua vida. Seu relatório contra Chesnon tem a
importância de uma obra social; não é uma simples reivindicação pessoal,
mas um discurso de defesa dos direitos do homem634. Ele respeitava a
autoridade, não se revoltava contra nenhuma lei, já o vimos; suportou
todos os rigores da lei sem se queixar ou protestar; mas, onde a lei é falha,
onde o bel-prazer reina, a iniqüidade se insinua. É contra os abusos da
polícia, contra a desordem e os poderes discricionários de um de Launay,
carcereiro-chefe da Bastilha, contra os procedimentos ilegais e desleais de
que se usava contra prisioneiros635 que ele eleva a voz. Acima de tudo, há a
justiça em espírito. Esta, Cagliostro a conhecia e não podia permitir que

alívio de seus semelhantes; pois você só é depositário dela e deve dividi-la com os indi­
gentes. ” Ritual da Maç.’. Egípcia, p. 134.
631. “Tudo o que posso dizer é que esses papéis são para mim de valor inestimável.
Razões particulares me impedem, neste momento, de falar positivamente acerca da natu­
reza desses papéis, mas sua importância é tal que eu daria tudo o que possuo no mundo
para reavê-los e que... apenas a Providência pode me consolar por tê-los perdido...’’
Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 34.
632. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4°, p. 34. Durante sua estada na
Bastilha, com seu próprio dinheiro, Cagliostro prestou com frequência socorro aos pri­
sioneiros, seus companheiros de miséria.
633. Foi o que ele disse por sua defesa.
634. “A idéia sagrada do direito, esquecida ou ignorada durante quinze séculos, afirma-
se na face do mundo (em 1789) e apõe um abismo intransponível entre a noite de ontem e
a aurora de hoje... A Assembléia destruiu o que se chamava de abusos de autoridade real;
ela aboliu as cartas de sinete que haviam feito exilar ou aprisionar sem julgamento 150
mil pessoas sob o último reino, e 14 mil desde então.” L. Ménard. Lettres d’un more
Paris, in-16, p. 74-75.
635. A perda da liberdade, a incerteza de seu destino, a visão contínua de objetos medo­
nhos e os maus-tratos múltiplos de seres ferozes, que como em um jogo bárbaro se diver­
tem em agravar os sofrimentos dos infelizes..., são os menores dos males sofridos na
Bastilha. O desprezo por todas as leis humanas está instalado ali. À detenção mais severa,
fosse lesada impunemente. Além disso, a partir dessa época, em seu relató­
rio636, ele deixava entrever o que escrevería com todas as letras pouco tem­
po após637: que viria um tempo em que veria toda a supressão das ordens de
prisão com o sinete do rei e o fim das torturas escondidas por trás dos
muros da Bastilha.
Esse relatório foi levado em consideração638; era impossível que
fosse de outra forma; mas foi tudo. Apesar de uma segunda Petição em
execução de prisão639, o caso não teve prosseguimento; os culpados guar­
daram seu lugar e o dinheiro espoliado. De Launay e Chesnon se defende­
ram como puderam em relatórios pouco claros640 e que não respondem às

às precauções mais minuciosas e humilhantes acrescentam-se a mesquinhez mais repugnan­


te no regime, a hipocrisia mais negra nas ofertas de ajuda, a duplicidade mais maligna na
arte de estender armadilhas, a indiferença mais imperdoável pelas doenças engendradas
pelo ar infecto desse antro, a ironia mais amarga com queixas longamente sufocadas pelo
medo; enfim, tudo o que se pode conceber de mais desolador para o coração humano está
reunido ali para o suplício dos homens com freqüência menos culpados (p. 10-11). O
governador atual, o Sr. de Launay, é talvez de todos o que ocuparam esse posto até o presen­
te, o mais avaro, o mais insensível aos males da humanidade e acima de tudo, o mais
insolente de todos os homens que vieram do nada. O Sr. de Launay comprou seu lugar ao
vender sua filha e pagando muito caro ao príncipe de Conti a recomendação que o fez ser
aprovado (p. 74). O posto vale, além de seus ordenados de corte, mais de 60 mil libras
que ele ganha, ou antes, que ele rouba, dos prisioneiros a que chama placidamente de
seus pombinhos (p. 77), alugando o jardim reservado aos prisioneiros (p. 66), vendendo
o vinho deles a um dono de cabaré (p. 55), que lhe dá em troca um vinagre imbebível (p.
57). ” Remarques historiques sur la Bastille escritas em 1774, reeditadas em Londres, em
1789, in-8!. Os últimos atos e a morte de de Launay foram trágicos: quando da tomada
da Bastilha, de Launay fingiu capitular, içou uma bandeira da paz, abriu as portas e deixou
entrar seiscentos dos atacantes na fortaleza; depois, erguendo a ponte levadiça, mandou
metralhá-los no pátio interno, à queima-roupa. O povo, indignado com essa perfídia,
atirou-se sobre as portas, derrubou-as e, em algumas horas, dominou a fortaleza e captu­
rou De Launay, que chorava, tremia e pedia graça: ‘‘Piedade, soluçava ele, destruído de
remorso; reconheço haver traído minha pátria!’’ Essa confissão tardia, essa última co­
vardia, não desarmaram aqueles que tinham de vingar seus irmãos assassinados e os
mártires da Bastilha. A cabeça de de Launay foi a primeira de todas as que caíram duran­
te os dias sangrentos da Revolução; os vencedores da Bastilha passearam com ela por
Paris. A segunda foi a do major da Bastilha. Revolution de Paris. Londres, 1789, in-88, p.
10, 11, 12.
636. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-41, p. 16, 21, 37.
637. Na Lettre au peuple français. Cf. p. 189 deste livro.
638. Sentença do rei para mandar examinar o caso; 10 de julho de 1786, in-4t.
639. De 11 de agosto de 1786. Nesse pedido, Cagliostro protesta também contra os novos
libelos que de Launay e Breteuil — com seu próprio dinheiro — mandavam imprimir
contra ele.
640. Mémoires. Pièce importante dans 1’affaire Cagliostro — de Launay, setembro de
1786, in-4°.
reivindicações do queixoso, senão em certos pontos de detalhe; o caso foi
interrompido641. Salvo talvez Thilorier e alguns amigos, ninguém compre­
endeu o alcance do ato humanitário de Cagliostro.
Mas soou a hora da partida; haviam tido a esperança de que, graças a
intervenções amigáveis, ou pelo próprio andar dos acontecimentos, o de­
creto de exílio seria revogado; nada disso ocorreu; os inimigos continua­
vam no poder; foi preciso obedecer. Na terça, 13 de junho, às cinco horas
da tarde, em meio à dor de todos os que o rodeavam, Cagliostro deixou
Saint-Denis; em 15 de junho, ele estava em Boulogne, e no dia 16 embarcou
para a Inglaterra642. Numerosos discípulos o haviam seguido ou, adiantando-
se a ele, haviam vindo esperá-lo nessa última etapa de sua passagem pela
França. Pois, se ele teve inimigos encarniçados, é preciso dizer, em favor dos
franceses, foi aqui que ele encontrou as afeições mais profundas, as devo­
ções mais numerosas e mais certas: sem falar do cardeal de Rohan, Thilorier,
Ramond de Carbonnières, d’Epresmenil643 que o apreciavam e, a cada dia,
estavam mais ligados a ele: em suas Lojas de Paris e o respeito, a devoção só
aumentaram com esses dias de luta, de provações, coroados de sucesso,
seguidos por novas perseguições. Alguns de seus discípulos haviam-se jun­
tado a ele em Passy; todos acorreram a Boulogne644, para passar com ele
esses últimos instantes que lhe restavam para permanecer na França. No
instante da separação, homens e mulheres, de joelhos, na costa, soluçando,
pediam a Cagliostro que os abençoasse uma última vez; ele, de pé no navio
que o levava, estendia as mãos e não podia conter sua emoção: “Que lem­
brança! Lembrança querida e cruel”, exclama Cagliostro em sua Lettre au
peuple français; e, em seu Relatório contra Chesnon, lembrando-se com
emoção desses testemunhos de afeição sincera que ele recebeu em Paris,
após a absolvição, e em Boulogne, em sua partida, ele escreve ainda essas

641. O rei evocou o caso em seu conselho e o classificou em um Pedido não assinado
(peça O' 589 C dos Arquivos Nacionais) mas que emana de de Launay, efoi o fim desse
processo. Sarrasin, após as reclamações de Cagliostro, tentou em vão incomodar mais
tarde o Sr. d’Epremesnil para lhe perguntar que julgamento ele havia dado; não obteve
resposta, e com razão.
642. Cf. Nota no alto do Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4't,ft I, v?
643. O Sr. Duval d’Epremesnil, conselheiro do Parlamento, ocupara-se de magnetismo;
ele se aproximou de Cagliostro, estudou-o, sem dúvida não adivinhou sua grandeza, mas
reconheceu que ele era um homem honesto e uma vítima; empregou todos os seus esforços
em protegê-lo contra a ignorância e a maldade daqueles que o perseguiam. Isso lhe valeu
a honra de ser vítima dos panfletários pagos por madame de la Motte e de Launay. Ramond
de Carbonnières “se multiplicou durante o processo para desvendar as maquinações de
madame de la Motte. Fez até, na Inglaterra, um inquérito pessoal e conseguiu descobrir
os cúmplices de madame de la Motte, os receptadores de diamantes ”. Mémoires de Ceorgel.
T. II, p. 176.
644. Vieram até de Lyon; “Milhares de pessoas foram a Boulogne ”, diz um jornal da época.
palavras: “Franceses, nação verdadeiramente generosa, verdadeiramente
hospitaleira, não esquecerei jamais nem o interesse comovente que vocês
tiveram por meu destino, nem as doces lágrimas que seus transportes me
fizeram derramar... Um só dia de glória e de felicidade me descarregou
de meus grandes sofrimentos... Habitantes dessa feliz região, povo amá­
vel e sensível, recebam os adeuses de um desafortunado, digno talvez de
sua estima e de suas saudades. Ele partiu, acostumado a se submeter sem
reclamar às vontades dos reis. Ele partiu, mas seu coração ficou entre vo­
cês. Em qualquer região que ele habite, creiam que ele se mostrará cons­
tantemente amigo do nome francês645.”
Essas demonstrações comoventes não foram exageradas por Caglios­
tro pela ênfase literária: pelo contrário o quadro permanece, sem dúvida
abaixo da realidade; a veneração que todos mostravam por seu mestre é
inacreditável.
Cagliostro tinha também em outros lugares discípulos fervorosos;
aqueles que, afastados, não podiam combater a seu lado, ansiavam por lhe
ser úteis e faziam o melhor que podiam.
Barbier de Tinan, de Estrasburgo, enviara à Correspondance secrete
de Neuwied uma carta de retificação em que testemunhava grandemente
sua afeição, sua devoção por Cagliostro646.
O cavaleiro de Langlois escrevia a Thilorier na mesma época: “Como
eu seria feliz se pudesse dar-lhe provas dessa ligação terna e respeitosa
de que me sinto penetrado, dessa afeição da alma que não sei demonstrar
e que sinto tão vivamente. Minha existência física e moral lhe pertence;
que ele disponha dela como o mais legítimo dos apanágios... minha mu­
lher, meus irmãos, meus parentes, me. du Picquet e sua família, que também
têm grandes obrigações para com ele, querem... que o Sr. conde de Cagliostro
fique convencido de que somos afetados além da expressão por tudo o que
os acontecimentos imprevistos o fizeram passar e que nossa ambição e nossa
glória estariam satisfeitas se pudéssemos encontrar ocasiões para servi-lo de
forma útil; é a homenagem simples e ingênua de nossos corações.
“O Chr. de Langlois, capitão de Dragões no Regimennto de Montmo­
rency647.”
Sarrasin confiava os sentimentos de que seu coração estava cheio em
relação a seu mestre àquele que ele mais amava e respeitava depois dele,
Lavater. “Ajude-me a agradecer a Deus e seu servidor tão mal-interpreta­
do, Cagliostro, por todo o bem que recebeu. Parece-me que esses dezessete
meses tão agitados não passaram de um belo e esplêndido sonho que, se
Deus quiser, deve me tornar melhor pelo resto de minha vida; conto levar
dele alguma coisa ao despertar do outro lado. Cagliostro jamais me pareceu

645. Relatório de Cagliostro contra Chesnon, 1786, in-4l, p. 37.


646. Esta carta foi reproduzida integralmente no Apêndice, p. 272
647. Arquivos Sarrasin. Bale, vol. XXXIII, cota 13, f IV, v?.
tão grande quanto nos últimos dias e quando de sua partida.” E, quando ele
ficou sabendo de suas provações em Paris: “Estamos tranquilamente e me­
lhor que nunca ligados a nosso pai e benfeitor. Mesmo que ele devesse ter o
mesmo destino de Sócrates, estaríamos ainda e sempre honrados por ser
seus alunos e seus apóstolos648”.
Essas provas de afeição são nítidas e sinceras; mas, por mais belas
que sejam, não são nada ao lado dos testemunhos raros, extraordinários, de
amor filial, que uniam certos discípulos a seu mestre e que explodiam nas
cartas a Cagliostro, felizmente conservadas649, escritas de Bolonha na ma­
nhã seguinte à sua partida e das quais eis a primeira:

“Meu Mestre eterno, meu todo, parecia que o mar se opunha à separa­
ção que fui forçado a suportar; estivemos dezoito horas no mar e chegamos
no dia 11 de manhã. Meu filho sofreu muito. Mas, Mestre, tive a felicidade
de vê-lo esta noite. O Eterno realizou a bênção que recebi ontem: Ah! Meu
Mestre, após Deus, o senhor faz minha felicidade. Os jovens... e... se reco­
mendam sempre à sua bondade; são jovens honestos e, por meio de seu
poder, eles serão um dia dignos de ser seus filhos.
Ah! Mestre, quanto desejo estar no mês de setembro, quanto estarei
feliz ao poder vê-lo, ouvi-lo e certificar-lhe de minha felicidade e de meu
respeito. Nós partimos amanhã; que prazer terão nossos irmãos!...
Será possível que eu não mais encontre em Paris aquele que fazia
minha felicidade! Mas eu me resigno e me humilho diante de Deus e diante
do senhor.
Escrevi ao Sr... como o senhor me ordenou. Ah! Meu Mestre, como é
duro para mim não mais poder assegurá-lo, senão pelas cartas, de todos os
meus sentimentos!
O mês de setembro virá; momento feliz em que poderei, a seus pés e
aos da Mestra, assegurar-lhes a submissão, o respeito e a obediência que
animarão sempre aquele que ousa se dizer, de seu Mestre e de seu tudo, o
mais humilde e o mais indigno dos filhos...
Ousaria eu lhe rogar, ó Mestre, atirar-me aos pés da Mestra?

Boulogne-sur-Mer, 20 de junho de 1786.”

A segunda carta não é menos tocante:


“Senhor e Mestre, N. me deu a maneira de lhe fazer chegar as home­
nagens de meu respeito; o primeiro uso que disso faço é lançar-me a seus

648. Cartas in Arquivos Sarrasin, de Bale. Segundo Langmesser. Jacob Sarrasin, p. 41-50.
A última carta é datada de 1° de março de 1786.
649. Elas chegaram a nós graças ao medo que produziram no Tribunal da Inquisição. Um
homem capaz de provocar sentimentos tão intensos, de suscitar tais devoções, era temível, podia
fazer qualquer coisa. O historiador de Roma publicou essas cartas como uma prova do fanatis­
mo perigoso que Cagliostro trazia em tomo de si: isso, ao menos, permitiu-nos conhecê-lo.
pés, dar-lhe meu coração e rogar-lhe que me ajude a elevar meu espírito para
o Eterno. Não lhe falarei, ó meu Mestre, da dor que senti no momento em
que as vagas do Oceano afastaram da França o melhor dos Mestres e o mais
poderoso dos mortais: o senhor a conhece melhor que eu.
Minha alma e meu coração devem lhe estar abertos; apenas sua moral
e suas bondades têm o direito de preenchê-los para sempre. Digne-se, ó
meu soberano mestre, lembrar-se de mim, lembrar-se de que permaneço
isolado em meio a meus amigos, pois o perdi, e o único desejo de meu cora­
ção é me reunir ao mestre tão bom, todo-poderoso, o único que pode comu­
nicar a meu coração essa força, essa persuasão e essa energia que me tomarão
capazes de executar sua vontade.
Digne-se somente, ó meu Mestre, a não me abandonar, a conceder-
me sua bênção e me envolver em seu espírito; então sinto que serei tudo o
que o senhor quiser que eu seja.
Minha pluma se recusa a todas as impulsões de minha alma; mas meu
coração está repleto dos mais respeitosos sentimentos. Ordene, pois, da
minha sorte; não me deixe demasiado tempo enlanguescer longe do se­
nhor. A felicidade de minha vida é a que lhe peço; o senhor fez nascer em
mim essa necessidade, ó meu Mestre, e apenas o senhor pode satisfazê-la.
Com todos os sentimentos de um coração resignado e submisso, eu
me prosterno a seus pés e aos de nossa Mestra. Eu sou, com o mais profun­
do respeito, Senhor e Mestre..., etc.

Boulogne-sur-Mer, 20 de junho de 1786650.”

Sentimos em todas essas cartas a mesma fé, o mesmo sopro que


animavam Sarrasin que escrevia a Lavater ou o cardeal de Rohan ao falar
com o abade Georgel e a Sr! d’Oberkirch. Qual seria o mestre cujos dis­
cípulos se exprimiam assim? Que homem podia ser capaz de inspirar tais
entusiasmos?

650. Vie de Joseph Balsamo, p. 194-195. Ver também a carta de um maçom lionês, na p.
142 deste livro.
Capítulo VIII

Londres — Segunda Estada


— O Explorador da
Credulidade Pública

A rainha ficara furiosa com o fato de Cagliostro e do cardeal terem


sido inocentados; o entusiasmo da multidão pelos dois acusados a ferira
como um insulto pessoal651. Ela exigiu também o exílio do cardeal, a fim de
que sua presença na corte não despertasse continuamente a lembrança
daquele caso. Em sua província652, o cardeal de Rohan se manteve tranqüilo
e, desse lado, o objetivo dela foi atingido. Ela obtivera igualmente o afas­
tamento de Cagliostro; sabiam que ele estava na Inglaterra e poder-se-ia
acreditar que tudo estava terminado. Mas se o cardeal, perturbado, esmagado
pela luta e a doença653, entocava-se e não dava mais sinal de vida, com Ca­
gliostro as coisas não se passaram da mesma maneira. Libertado, reabilitado,

651. Mémoires secrets, t. XXXII, p. 91. Em Paris e no estrangeiro, os jornais se apiedavam


dos sofrimentos do cardeal e o felicitavam ruidosamente. Em toda parte havia alegria; a
cidade de Mutzig, em que havia um castelo, rival do de Saverna, organizou uma enorme
festa pelo retorno de seu príncipe. O cardeal percorreu toda a cidade, muito emocionado.
“Antes de terminar sua volta, ele não deixou de entrar na Sinagoga, magnificamente
iluminada. Durante a meia hora que ele ficou ali, cantaram ações de graças, um cântico
hebraico, composto por Sua Alteza, que lhe agradou tanto que ela testemunhou uma
segunda vez sua satisfação aos habitantes. ” Le Roy de Sainte-Croix. Les Quatre Cardinaux
de Rohan. Estrasburgo, 1880, gr. in-81, p. 149
652. O cardeal partiu para a Chaise-Dieu no Auvergne na segunda-feira, 4 de junho de
1786. Gazette de Leyde, n? XLIX de 20 de junho de 1786.
653. Ele sofrerá de artrite supurada no joelho esquerdo, enquanto estava na Bastilha.
Gazette de Leyde, n? IX, 31 de janeiro de 1786. “O cardeal desfalece a olhos vistos. ’’ Ma
Correspondance, n.°24, 1786.
de acusado se tornou queixoso, dirigindo por intermédio de seu defensor,
Dr. Thilorier, reclamações ao Parlamento, citações a Chesnon e a de Launay,
como vimos. Essas provas de vitalidade, naquele que acreditavam ter ma­
tado, inquietaram os interesseiros. O barão de Breteuil, factotum da rai­
nha, ministro da polícia, que detestava Cagliostro a ponto de não poder
olhar seu busto sem ranger os dentes654, foi consultado: ele propôs atrair
Cagliostro à França com uma liberalidade fingida; ali, em terras do rei,
poderíam apanhá-lo e alojá-lo novamente na Bastilha.
O Sr. Barthélemy, ministro da França, em Londres, recebeu ordens
em conseqüência e convocou Cagliostro. Eis o relato da entrevista:
Em 21 de agosto, entre onze horas e meio-dia, o conde de Cagliostro
foi ter com o Sr. Barthélemy, acompanhado por lorde George Gordon e o
Sr. Bergeret de Frouville. Após alguma insistência, pois queriam receber
apenas o conde de Cagliostro, lorde George Gordon e o Sr. de Frouville
conseguiram a licença para estar presentes na conversa, aqui transcrita:
Sr. Barthélemy: “Senhor conde, tenho ordens para lhe dar a liberdade
de retornar à França.”
O conde: “Vim até aqui com prazer para receber as ordens de Sua
Majestade.”
O Sr. Barthélemy tirou então de seu bolso não uma ordem do rei,
como o conde tinha direito de esperar, mas uma simples carta do barão de
Breteuil, ante o que o conde respondeu:
“Será possível reconhecer semelhante ordem? Para entrar na Bastilha,
para dela sair e para me afastar de Paris, não recebi eu um mandado com o
sinete do próprio Rei? Uma simples carta do Sr. de Breteuil podería bastar
para revogar as ordens positivas de Sua Majestade? Eu lhe digo, senhor:
não conheço nem o Sr. De Breteuil, nem suas ordens; reconheço apenas
Sua Majestade como soberano dos franceses. Eu lhe falo com minha fran­
queza usual. Não vim ter com o senhor como ministro, mas como um fran­
cês de que todos dizem grande bem; peço-lhe que me entregue a carta do
Sr. de Breteuil, ou ao menos uma cópia dela.”
— Sr. Barthélemy: “Senhor conde, isso é impossível: eu compreen­
do, sinto tudo o que o senhor me diz; executei minhas ordens; não posso
entrar em nenhum detalhe”.
Tal é o verdadeiro relato do que se passou entre o conde e o ministro
da França, em presença de lorde George Gordon e do Sr. Bergeret de
Frouville, oficial de cavalaria ao serviço da França.
Cagliostro descobrira a armadilha. “Quem quer que tenha sofrido ino­
centemente durante nove meses na Bastilha”, escreve em sua Lettre au
peuple anglais,655 “e que, livre da acusação por um decreto unânime, só
teve como compensação uma carta de exílio, tem o direito de tudo temer e

654. Cf. mais adiante, p. 189, Lettre au peuple français.


655. p. 39.
de só ver armadilhas em tomo de si. A intenção do rei é pura, sem dúvida,
mas a maneira como redigiram a carta me dá o direito de me alarmar. O
termo que se põe à minha estada na França é um termo incerto. Meu processo
pode ser julgado de um dia a outro e, no dia do julgamento, estariam livres
para me prender, sem que minha carta de chamada possa então me servir
como segurança. Quero poupar novas atrocidades a meus inimigos e à Eu­
ropa, um novo escândalo. Não irei à França.”
Ele sabia muito bem de onde vinha o golpe e, quase imediatamente,
surgiu, assinada por Cagliostro, uma Lettre au peuple français (Carta ao
povo francês), crítica espirituosa da jurisprudência francesa, viva resposta
ao barão de Breteuil e a suas ações desleais. Essa carta656, que se tornou
muito rara, é uma peça demasiado interessante para que não a publique­
mos aqui integralmente.

Carta Escrita pelo Sr. Conde de Cagliostro ao Sr...657


Eu lhe escrevo de Londres, meu caro... Minha saúde está boa; a de
minha mulher também. Você deve ter sabido dos detalhes de minha
viagem. Quantas cenas comoventes! Parecia que meus amigos haviam
se adiantado a mim em toda parte. Em Boulogne, a coisa atingiu o
ponto máximo. Todas essas boas pessoas na margem! Os braços es­
tendidos para meu paquete, chamando-me, gritando, cumulando-me
de bênçãos, pedindo-me a minha!... que lembrança! Lembrança que­
rida e cruel! Expulsaram-me então da França! Enganaram o rei! Os
reis têm razão em se queixar por terem tais ministros. Ouvi falar do
barão de Breteuil, de meu perseguidor. Que fiz a esse homem? De
que ele me acusa? De ser amado pelo cardeal? De amá-lo por minha
vez? De não o ter abandonado? De ter bons amigos em toda parte em
que passei? De buscar a verdade, de dizê-la, de defendê-la, quando
Deus assim me ordena, dando-me a ocasião de socorrer, de aliviar, de
consolar a humanidade sofredora com minhas esmolas, meus remédios,
meus conselhos? Eis porém todos os meus crimes! Será que ele tam­
bém considera assim meu pedido de atenuação? Ele me foi devolvi­
do. Singular desfeita! Mas mal apresentara eu esse pedido quando,
vendo meu busto na casa do cardeal, ele disse, com cólera, entre seus
dentes: Vemos em todo lugar essa figura; é preciso que isso acabe;
isso acabará! Minha coragem, dizem, irritou-o: ele só pode digerir
um homem a ferros; que um estrangeiro atrás dos cadeados da Bastilha,
sob seu poder, a ele, ministro dessa horrível prisão, tenha elevado a

656. A carta está datada de 20 de junho; deve ter passado de mãos em mãos em
estado de manuscrito e só foi impressa mais tarde. Encontramo-la quase inteira nas
Mémoires de Bachaumont, datada de 10 de agosto de 1786, t. II, p. 279.
657. Bibl. do Arsenal. Mss. 12457. F 21. 3 páginas e Vzpeq. In-fólio. — Carta conhecida
pelo nome de Lettre au peuple français (Carta ao povo francês).
voz, como eu fiz, para fazê-lo conhecer, ele, seus princípios, seus agen­
tes, suas criaturas, aos tribunais franceses, à nação, ao rei. a toda a
Europa. Admito que meu comportamento deve tê-lo espantado; mas,
enfim, tomei o tom que me cabia tomar. Estou bem persuadido de que
esse homem, na Bastilha, não tomaria o mesmo. De resto, meu amigo,
ajude-me a sanar uma dúvida. O rei me expulsou de seu reino, mas não
me ouviu. E assim que se expedem na França todos esses documentos
com o sinete real? Se assim é, eu lamento pelos seus concidadãos, so­
bretudo pelo tempo em que o barão de Breteuil possuir esse perigoso
departamento. Como, meu amigo! Suas pessoas, seus bens estão à mercê
apenas desse homem? Ele pode impunemente enganar o rei? Ele pode,
a partir de depoimentos caluniosos, e jamais contraditos, surpreender,
expedir e fazer executar, por intermédio de homens que se assemelham
a ele, ou se oferecer ao medonho prazer de executar ele próprio ordens
rigorosas, que mergulham o inocente em uma cela e entregam sua casa
à pilhagem? Ouso dizer que esse abuso lamentável merece toda a aten­
ção do rei. Estarei enganado? E o bom-senso dos franceses que tanto
amo é diferente daquele de outros homens? Esqueçamos minha pró­
pria causa, falemos de modo geral. Quando o rei assina uma carta de
exílio ou de prisão, ele julga o infeliz sobre o qual recairá seu rigor
onipotente. Mas baseado em que ele julgou? No relato de seu ministro;
e em que se baseou seu ministro? Em queixas desconhecidas, informa­
ções tenebrosas, que jamais são comunicadas; às vezes mesmo em sim­
ples rumores, em barulhos caluniosos, semeados pelo ódio e recolhidos
pela inveja.
A vítima é atingida sem saber de onde partiu o golpe: feliz, se o mi­
nistro que a imola não é seu inimigo! Eu pergunto, são esses os ca­
racteres de um julgamento? E, se suas cartas de sinete real não são ao
menos julgamentos privados, o que elas são então? Creio que essas
reflexões, apresentadas ao rei, comovê-lo-iam.
O que aconteceria se ele entrasse no detalhe dos males que seu rigor
ocasiona? Todas as prisões do Estado se parecem à Bastilha? Vccê
não tem idéia dos horrores de lá: a cínica impudência, a odiosa men­
tira, a falsa piedade, a ironia amarga, a crueldade a frio, a injustiça e
a morte têm ali seu império; um silêncio bárbaro é o menor dos cri­
mes que ali se cometem. Eu estava, havia seis meses, a quinze pés de
minha mulher e o ignorava; outros estão sepultados ali há trinta anos,
dados como mortos, infelizes por não o estar, sem ter, como os con­
denados de Milton, luz em seu abismo, senão a que lhes é necessária
para perceber a impenetrável espessura das trevas que os envolvem;
eles estariam sozinhos no Universo se o Eterno não existisse, esse
Deus bom e realmente Todo-Poderoso, que lhes fará justiça, um dia,
na falta dos homens. Sim, meu amigo, eu o disse cativo e livre o
repito, não há crime que não seja expiado por seis meses de Bastilha.
Pretende-se que ali não faltam nem questionários, nem carrascos; não
me é difícil acreditar nisso. Alguém me perguntou se eu voltaria à
França, no caso em que as proibições que me afastaram fossem
erguidas. Certamente, respondí eu, desde que a Bastilha tenha-se tor­
nado um passeio público. Queira-o Deus! Vocês têm todo o necessá­
rio para serem felizes, franceses: solo fecundo, clima ameno, bom
coração, alegria encantadora, gênio e graças próprios a tudo, sem igual
na arte de agradar, sem mestre nas outras; não lhes falta, meus bons
amigos, senão um pequeno ponto, que é ter certeza de se deitarem em
suas camas quando são irrepreensíveis. Mas a honra! Mas as famí­
lias! As ordens com sinete real são um mal necessário... Como vocês
são simples! Embalam-nos com contos. Pessoas instruídas me asse­
guraram de que a reclamação de uma família era com freqüência me­
nos eficaz para obter uma ordem que o ódio de um encarregado ou o
crédito de uma mulher infiel. A honra das famílias! Como! Vocês
acham que uma família inteira é desonrada pelo suplício de um de
seus membros! Que piedade! Meus novos hospedeiros pensam um
pouco diferente; mudem de opinião, enfim, e mereçam a liberdade
pela razão.
E digno de seus Parlamentos trabalhar nessa bem-sucedida Revolu­
ção. Ela só é difícil para as almas fracas. Que ela seja bem preparada,
eis todo o segredo: que eles não sejam precipitados; eles têm consigo
o interesse, sem dúvida, dos povos, do rei, de sua casa; que tenham
também o Tempo, o Tempo, primeiro-ministro da verdade; o Tempo,
através do qual se estendem e se firmam as raízes do bem, assim
como as do mal; a coragem, a paciência, a força do leão, a prudência
do elefante, a simplicidade da colomba e essa revolução, se necessá­
ria, será pacífica, condição sem a qual não se deve pensar nela. As­
sim, vocês deverão a seus magistrados a suma felicidade não gozada
por qualquer povo conhecido, a de recuperar sua liberdade sem des­
ferir golpe, obtendo-a da mão de seus reis.
Sim, meu amigo, eu o anuncio, reinará sobre vocês um príncipe que
terá sua glória na abolição dos decretos reais acima da lei, na convo­
cação de seus Estados-Gerais e, sobretudo, no restabelecimento da
verdadeira religião. Ele sentirá, esse príncipe amado pelo céu, que o
abuso de poder é destrutivo, a longo prazo, do próprio poder: ele não
se contentará em ser o primeiro de seus ministros, ele vai querer tor­
nar-se o primeiro dos franceses. Bem-aventurado o rei que trouxer
esse édito memorável! Bem-aventurado o chanceler que o assinar!
Bem-aventurado o Parlamento que o verificar! O que digo, meu ami­
go, o tempo talvez tenha chegado: é certo, ao menos, que seu sobera­
no é próprio a essa grande obra. Eu sei que ele trabalharia nela, se
escutasse apenas seu coração: seu rigor, no que me diz respeito, não
me cega sobre suas virtudes.
Adeus, meu amigo; o que dizem do Relatório? A última leitura que
Thilorier me fez dele em Saint-Denis me causou bastante prazer; ele
soube dos detalhes de Boulogne a tempo de escrever um artigo acer­
ca disso? Esse relatório é público? Deve sê-lo. Boa-noite! Fale de nós
a todos os nossos amigos; diga-lhes que estaremos presentes em toda
parte; pergunte a Epremesnil se ele me esqueceu, afinal, não tenho
nenhuma notícia dele.
Adeus, adeus, meu bom amigo, meus bons e verdadeiros amigos: é a
vocês que me dirijo, pensem em nós; que esta carta lhes seja comum;
nós os amamos a todos de todo nosso coração.
Essa carta, profetizando a convocação dos Estados-Gerais, a supres­
são das cartas de sinete real e a demolição da Bastilha, denunciando fran­
camente, e de maneira mordaz, os abusos do todo-poderoso Breteuil, levou
a cólera da rainha e o ódio do barão ao cúmulo. Cagliostro se tomava um
perigo público: todos os adversários se agruparam para agir; reuniram
um conselho.
Em Londres, Cagliostro parecia invulnerável; não haviam podido fazê-
lo voltar; pensaram em raptá-lo65S, mas isso teria causado muito escândalo
e sobretudo Cagliostro tomou suas precauções. Acharam algo melhor: lan­
çaram sobre ele o “bravo literato ao qual se recorria nos casos embaraçosos
e que se prestava a todas as necessidades, desde que não se fosse mesqui­
nho com os preços658659.” Ou seja, Morande. Um parente de de Launay, o Sr.
de Saint-Hilaire, capitão de Dragões, foi a Londres, com o Sr. de J..., anti­
go mosqueteiro, tratar com o jornalista660. Morande teve um primeiro gesto
que pareceu belo: ele recusou; o tempo de ir ver Cagliostro, de se assegu­
rar, em algumas palavras definitivas, que Cagliostro não lhe daria mais, não
lhe daria mesmo nada661, e ele voltou para junto de seus clientes.

658. “Mal essa carta foi lançada, percebí no senhor Swinton um redobramento de assi-
duidades e de carícias. Ele queria absolutamente me mostrar os arredores de Londres.
'Um passeio de barco pelo Tâmisa era’, dizia ele, 'um prazer delicioso do qual eu não
podia fazer idéia. ’ Sou naturalmente sedentário e pensador. Esse furor do senhor Swinton
em querer absolutamente que eu fosse passear na água... fez me conceber algumas sus­
peitas. Tomei informações um pouco tardias, é verdade, a respeito de meu guia. Fiquei
sempre em guarda. ” Lettre au peuple anglais, 1787, in-4°, p. 34. A idéia não é nova; já
haviam pensado nisso a respeito de Morande em 1773. Robiquet. Théveneau de Morande.
Paris, Quantin, 1887, in-85, p. 39.
659. Robiquet. Op. cit., p. 198.
660. E o próprio Morande quem o reconhece e escreve a respeito em seu diário, na data
de 27 de fevereiro de 1787.
661. A entrevista se passou em casa de Swinton: “O senhor Morande quisera sondar o
terreno: em consequência, ele viera à casa do senhor Swinton um dia em que eu estava lá.
Sua figura não me transmitiu boas impressões; eu achei suas questões deslocadas, seu
tom indecente e suas ameaças ridículas. Eu lhe dissera com franqueza e acrescentara que
me perturbava muito pouco com o que quer que ele pudesse escrever a meu respeito. ”
Lettre au peuple anglais, p. 32.
Quanto a seu segundo gesto, menos belo, mas mais prático, foi de
aceitar as ofertas feitas662: ele se tornou o porta-voz dos inimigos de Ca­
gliostro, o organizador dessa caça ao homem663 que acabaria nas celas de
Roma. Morande fora bem escolhido para a tarefa664. Charles Théveneau,
que nunca foi nem Morande, nem de la Morande, nem cavaleiro, filho de
um notário de Amay-le-Duc que ele fez morrer de tristeza, fez suas primei­
ras armas nas casas de tolerância de Paris, explorando homens e mulheres,
“jogador desonesto, detestável sujeito. Escroque perigoso, alcoviteiro dos
ricos senhores que as frequentavam, muito suspeito de servir de paciente a
esses vilões665.” Preso por roubo e ameaças de assassinato, aprisionado em
Fort-l’Evêque em 1768, ele se apressou, desde sua libertação, em se refu­
giar na Inglaterra; continuou ali, com sucesso, seu comércio de chantagem,
ameaçando todos aqueles que podiam pagar, vendendo sua pluma ao que
oferecesse mais. Sua audácia não se interrompeu diante do rei: seus ata­
ques contra Luís XV e Du Barry foram terríveis. Após a publicação do
Gazetier cuirassé666, puseram sua cabeça a prêmio. De Sartines e seus
policiais se declararam impotentes; tiveram de transigir, tratar com o au­
tor. Para comprar seu silêncio pelo melhor preço possível, enviaram-lhe
Beaumarchais; Morande se divertiu com isso667. Sua reputação estava
estabelecida: desprezavam-no a tal ponto que seu nome se tornou uma

662. Lettre au peuple anglais, p. 46, nota.


663. Morande forneceu por duas vezes, em seu jornal, as características físicas de Ca­
gliostro para que seus correspondentes pudessem, em toda a Europa, reconhecê-lo e assi­
nalar-lhe sua presença. Cf. p. 46 deste livro.
664. O autor do Diable dans un bénitier, ao falar das aptidões de Morande para sua junção
de policial, escreve o que se segue: “Enviaram o Gazeteiro couraçado. Poucas pessoas
eram mais próprias que ele paraformar uma sociedade agradável para o barão de Livermont
(pseudônimo do agente Receveur); o próprio Godard (outro agente) tinha nobreza demasiado
na alma. Um coração assim negro, assim duro, embora choroso quando tivesse vontade,
uma feitura de espírito tão comum, expressões tão baixas, esse mesmo linguajar que ele
trouxe de Bicêtre (prisão naquela época, e não um asilo) e que o barão, que passa ali a
metade de sua vida, possui superiormente... parecia predestinar nosso Gazeteiro a repartir
os prazeres do recrutador de Bicêtre... ” Robiquet. Théveneau de Morande, p. 63.
665. Relato do inspetor Marais, t. XII dos Archives de la Bastille, publicados pelo Sr.
Ravaisson. Paris, 1881. Extraímos a maior parte dos documentos referente a Morande da
excelente obra do Sr. Robiquet; Théveneau de Morande.
666. Le Gazetier Cuirassé, ou anedotas escandalosas da corte da França, impresso a cem
léguas da Bastilha. S.L., 1771, in-8?. Foi esse panfleto que Voltaire descreveu nos seguintes
termos: “Acaba de sair uma daquelas obras de trevas em que, do monarca até o último dos
cidadãos, todos são insultados com furor, em que a mais atroz e a mais absurda das calúnias
destila um veneno medonho sobre tudo o que respeitamos e amamos. O autor se ocultou à
execração pública". Voltaire. Questions sur 1’Encyclopédie, ed. 1772, t. IX, p. 224.
667. Beaumarchais, em seu retomo, fez-lhe ingênuas censuras por isso: “Eu trabalho noite
e dia durante seis semanas, escreveu-lhe ele, e faço cerca de 700 léguas, gasto cerca de 500
luíses para impedir males inumeráveis. Você ganha, com esse trabalho, 100 mil francos e
sua tranquilidade, e eu nem mesmo sei se algum dia serei reembolsado pelas minhas despe­
sas de viagem. ” Carta a Morande. Citada in: Robiquet. Op. cit., p. 51.
injúria668. Um panfleto anônimo põe na boca de um policial francês,
achincalhado, voltando de mãos vazias a Paris, o seguinte grito de cólera
contra os ingleses: “Estou bem vingado, ingleses, eu lhes deixo Morande!669.”
Mas ele era temido: seu cinismo não tinha limites: ele escarnecia tão cruel­
mente, mordia com dentes tão afiados, insultava com tanta violência, que
os amantes de escândalos se divertiam imensamente e todas as pessoas
tremiam ao vê-lo.
O Courrier del’Europe, que ele dirigia, era, sob o invólucro de infor­
mações gerais, uma verdadeira oficina de chantagem. Ele agrupara em tomo
dele toda a escória dos franceses refugiados em Londres: caixeiros infiéis,
falidos, padres sem batina após aventuras escandalosas, oficiais desertores,
sem contar os simples bandidos. A Gazeta e os panfletos eram impressos
na casa de Boissière, antigo lacaio do polonês Matusky, escroque notório
que se tomara livreiro em Londres após ter roubado de seu mestre a soma
necessária a essa empresa670. Quando Morande foi comprado pela polícia
secreta e de caçador ilegal se tornou guarda-caça671, ou seja, na época que
nos interessa, o Courrier de I’Europe se tomou uma folha quase oficial;
Morande jogava com facilidade sua partida dupla, enganando, segundo o
caso, a polícia francesa em favor de literatos clandestinos ou estes em
proveito da polícia672, mas sempre endividado, à espreita de expedientes e
de dinheiro. Quando vieram propor-lhe a campanha contra Cagliostro, ele

668. “É preciso tratar seu nome como a justiça trataria suas cinzas ", escreve Linguet, em
seus Annales. — “Beaumarchais se tornou abominável e odioso aos olhos da srta. d'Eon
porque ele teve a baixeza de tomar como confidente, de se dar como substituto junto a ela,
um homem mais vil, mais corrompido, o autor do Gazetier cuirassé, para tudo dizer em uma
palavra: Morande. ” Observateur Anglais, t. IX, p. 14. — Mirabeau o julgava da mesma
maneira (Cf. Robiquet, p. 263), e Voltaire dizia dele: “Esse foragido de Bicêtre abusa de­
mais do desprezo que temos por ele”. Questions sur 1’Encyclopédie, ed. 7772, t. IX, p.
261.
669. Robiquet. Op. cit., p. 88.
670. Robiquet. Op. cit., p. 61.
671. Em março de 1774. (Robiquet. Op. cit.,p. 90) O “Gazeteiro couraçado foi metamor-
foseado em mosca”, como disse um panfleto daqiuela época.
672. Goezman (o barão de Thume), Robert de Paradès, Bouchardat (Belson), mesmo
Meaupou, antigo membro do Parlamento, que cumpriam em Londres a função de poli­
ciais patenteados, eram interessados no Courrier de 1’Europe (Robiquet. Op. cit., p. 63).
Uma prova irrefutável de que o Courrier fora comprado pela polícia é que era o único dos
impressos vindos da Inglaterra que não eram submetidos a censura. De resto, não era
segredo para ninguém: o jornal servia de órgão de represálias contra todos os persona­
gens hostis ao ministério. O continuador das Mémoires Secrètes (na data de 3 de abril de
1785) o diz expressamente. Três anos depois, ainda era a mesma coisa: “O Courrier de
1’Europe, gazeta vendida nos Lenoir, nos Beaumarchais, nos Albert e a todos os patifes
da França... Graças à vigilância do conde de Montmorin (ministro do Exterior em 1788,
em substituição ao Sr. de Vergennes), é nesse papel público que periodicamente se esfar­
rapa a reputação dos mais respeitáveis personagens”. Lettre à M. De Beaumarchais,
écrite d’Aix en 1788, in-8°
estava precisamente na situação pecuniária menos brilhante. “Sem dinhei­
ro, sem crédito, coberto de dívidas, rodeado de decretos, ele não ousava
sair de casa senão no domingo. De repente, viram-no pagar suas dívidas,
comprar, à vista, trajes e móveis, mostrar com ostentação uma carteira
recheada de notas673.”
Morande abriu fogo em 23 de agosto ao publicar no Courrier um
relato, inexato e hostil a Cagliostro, de sua entrevista com os srs. Barthélemy
e d’Aragon; depois da publicação desse primeiro artigo, foi cinicamente
encontrar Cagliostro e lhe propôs um tratado.
Cagliostro não ignorava quão terrível era o adversário que se apre­
sentava a ele. Quando de sua chegada a Londres, ele fora apresentado a um
certo Swinton, co-proprietário do Courrier, amigo íntimo de Morande674.
Por meio dele, Cagliostro conhecia Morande; haviam-lhe contado os re­
cursos e a força desse homem “que fizera tremer o rei da França, pusera em
suas mãos os mais hábeis agentes da polícia secreta, caçoara de Beaumar­
chais, cuja reputação de homem de espírito era bem estabelecida, e levara
a transigir a favorita de Luís XV, a todo-poderosa Du Barry, e o próprio
rei675676
.”
O próprio Morande lhe dissera que ele podia temer se fosse seu ini­
migo — e o que era preciso para adquirir sua amizade. Cagliostro não
julgou a propósito fazer caso desses conselhos. Porém, tendo já sofrido
ataques de panfletários e desaforos de policiais, ele sabia o que deviam ser,
reunidos em um mesmo personagem como Morande, o poder da imprensa
e o da polícia! Sem dúvida agradou-lhe entrar em luta com esse poder
recém-nascido, já temível como Hércules no berço, e que deveria, um sé­
culo após, sob o nome de jornalismo, crescer colossalmente sobre as ruínas
de todos os outros.
Sem a menor hesitação, Cagliostro aceitou a batalha, recusou qual­
quer compromisso com o mestre cantor e enviou ao Public advertiser616
uma nota retificando os erros do Courrier del’Europe e assinalando a má-
fé do redator. Morande, enfrentado, soltou nova rajada: em 1? de setembro
saiu uma crônica de diversas colunas, recheada de todas as coisas vãs, de
todos os contos escandalosos, de todas as acusações ridículas de que se
compunham as memórias de madame. de la Motte677.

673. Lettre au peuple anglais, p. 47.


674. Swinton lhe serviu de intérprete e de guia durante as primeiras semanas de sua
instalação, fez-se pagar regiamente, usando de procedimentos nada delicados para en­
gordar seus honorários. Lettre au peuple anglais, p. 35.
675. Robiquet. Op. cit., p. 6.
676. M 16.306 (1786).
677. Essa eterna reedição das mesmas histórias sem fundamento, ainda que se tenha por
dez vezes estabelecido a verdade, impunha-nas de qualquer maneira à atenção pública.
Um autor, que todavia não estudava especialmente Cagliostro, o Sr. Robiquet, assinala esse
plágio em sua excelente obra (p. 108), provando ali, como em todo seu livro, sua exatidão
conscienciosa e um senso crítico perfeito.
Desde então, cada número do Courrier de I’Europe™ continha um pa­
rágrafo, um artigo, hostil a Cagliostro; os insultos, os ataques contra a pessoa
do conde, contra sua mulher, contra seus amigos se tomavam cada vez mais
679. Morande tentou forçar a mão sobre sua vítima,
violentos e revoltantes678
arrancar-lhe seja uma oferta de dinheiro para se calar, seja uma resposta que
envenenasse ainda mais a polêmica.
Foi esta última solução que se produziu: Cagliostro, ferido em sua
honra, acabou por escrever uma carta a Morande; é nessa carta que. ao dar
explicações acerca de palavras dele, que Morande tornaria tolamente em
ridículo680, ele lhe oferece então que venha ver se suas afirmações são brin­
cadeiras e se seus poderes são de charlatão. Eis o texto dessa carta:

De 3 DE SETEMBRO DE 1786.
“Não conheço o bastante, senhor, as finezas da língua francesa para
lhe fazer todos os cumprimentos que merecem as excelentes brincadeiras
contidas nos números 16, 17 e 18 do Courrier de 1’Europe, mas, como
todos aqueles que me falaram delas me asseguraram que elas uniam a gra­
ça à fineza e a decência de tom à elegância do estilo, julguei que o senhor
era um homem de boa companhia e, por esse motivo, concebi o mais vivo
desejo de travar conhecimento com o senhor. Eu vi, com muita satisfação,
que tudo o que se dissera a seu respeito era pura maledicência, que o senhor

678. Cf. Bibliografia, p. deste livro.


679. Reeditados, espalhados pela diligência de Morande em toda a imprensa européia
que, mesmo ainda não estando sindicalizada, não era por isso menos unida, os mesmos
artigos, quase intocados, os comunicados idênticos eram publicados em Namur, Leyde,
Hamburgo, Berlim, Florença, Schaffouse, Amsterdam e Paris, quase ao mesmo tempo que
em Londres. Foi diante dessa campanha de imprensa, que vinham indignar em seus paí­
ses os amigos fiéis de Cagliostro, que certos devotamentos se afirmaram: Barbier de
Tinan, Langlois, Schlosser, Sarrasin, Lavater defenderam seu amigo contra toda acusa­
ção. Cartas abertas, retificadoras, foram dirigidas aos editores; Schlosser protestou con­
tra as imputações caluniosas de Meiners, que julgava e condenava Cagliostro baseado
nos mexericos, sem tê-lo conhecido senão de vista, quando passava certo dia em seu
carro. (Artigo de Schlosser em Deutsch. Museum, abril de 1787). Barbier de Tinan lhe
deu publicamente o testemunho de uma “afeição respeitosa" e certificou seu absoluto
desinteresse (ver no Apêndice, p. 279 deste livro, a carta de Barbier de Tinan). O cardeal
de Rohan escreveu muitas cartas para recomendar e apresentar seu amigo. Carta a M. de
Créqui; Carta ao pretor (Biblioteca de Estrasburgo. Mss. AA, 2110); carta ao arcebispo
de Lyon (Coleção particular do Sr. Alfred Sensier). Essa última carta é mais interessante
por ser datada de dezembro de 1789.
680. Cagliostro falara em um pequeno círculo de amigos “de uma experiência conhecida
por todos os químicos, que consiste em acostumar insensivelmente um animal a uma
alimentação envenenada (arsênico) e a tornar, por esse meio, sua própria carne um vene­
no dos mais sutis”. Lettre au peuple anglais, p. 40. É o que hoje em dia chamaríamos de
preparar toxinas arsenicais.
não era um desses caluniadores periódicos que vendem sua pluma ao que
mais oferecem e fazem pagar até o seu silêncio, e que, enfim, as propostas
secretas que o senhor me mandara fazer por seu digno amigo, o Sr. Swinton,
haviam-me chocado sem propósito, sendo tão natural pedir ouro a um adepto
quanto buscar água no Tâmisa.
“De todas as boas histórias que o senhor faz à minha custa, a melhor,
sem sombra de dúvida, é a do porco engordado com arsênico que envenena
os leões, os tigres e os leopardos áãs florestas de Medina. Eu vou colocá-
lo, senhor gozador, em estado de tripudiar com conhecimento de causa.
Em se tratando de física e de química, os raciocínios pouco provam, o
sarcasmo, ainda menos; a experiência é tudo. Permita-me portanto propor-
lhe uma pequena experiência cujo evento divertirá o público, seja à sua
custa, seja à minha. Eu o convido a almoçar, pelo 9 de novembro próximo,
às 9 horas da manhã. O senhor fornecerá o vinho e todos os acessórios; eu
fornecerei apenas um prato de meu lado; será um pequeno leitão, engorda­
do segundo meus métodos. Duas horas antes do almoço, eu o apresentarei
vivo ao senhor, bem gordo e passando bem, o senhor se encarregará de
mandá-lo matar e de fazê-lo preparar e eu não me aproximarei mais dele
até o momento em que for servido à mesa. O senhor mesmo o cortará em
quatro partes iguais; escolherá aquela que mais agradar a seu apetite e me
servirá a que escolher. Na manhã seguinte a esse almoço, ocorrerá, de qua­
tro coisas, uma: ou estaremos ambos mortos; ou nenhum dos dois estará
morto; ou eu estarei morto e o senhor não; ou o senhor estará morto e eu
não. Dessas quatro chances, eu lhe dou três e aposto 5 mil guinéus em que na
manhã seguinte ao almoço o senhor estará morto e eu estarei bem. O se­
nhor haverá de convir que não é possível ser melhor jogador e que é preci­
so necessariamente que o senhor aceite a aposta ou que o senhor convenha
que tolamente tripudiou sobre um fato que não é de sua competência.
... eu sou, senhor, com os sentimentos que experimentam universal­
mente todos aqueles que têm a felicidade de travar relações consigo,

Seu..., etc.”
Morande respondeu com uma carta um tanto pesada em que recusa as
provas pelo fato; ele se retranca por trás de seu caráter de homem de letras;
ele não quer culpar sua consciência pela morte de um homem. Se Cagliostro
quiser fazer a experiência em um gato ou um cão, ele aceitará; mas sua
vida é demasiado preciona para colocá-la na balança com a de um Cagliostro.
No dia seguinte, nova carta de Cagliostro que, dessa vez, coloca definitiva­
mente os gozadores de seu lado:

Segunda carta de Cagliostro ao senhor Morande

“Receba, senhor, meus agradecimentos por ter-se dignado a inserir


minha carta no Courrier de hoje. Sua resposta é fina, honesta e moderada:
ela merece uma réplica, eu me apresso em enviá-la para que possa ser pu­
blicada no próximo número.
O conhecimento da arte de conservar está universalmente ligado com
o da arte de destruir. Os remédios e os venenos, nas mãos de um amigo dos
homens, podem igualmente servir à felicidade do gênero humano; os pri­
meiros, conservando os seres úteis; os últimos, destruindo seres malfeito­
res. Tal é o uso que sempre fiz de uns e de outros; só cabia ao senhor que
minha cria de Londres fosse tanto ou mais útil à Europa que a de Medina
foi à Arábia. Disso eu tinha, admito, o mais vivo desejo: o senhor tivera a
bondade de me fazer conhecer qual era o gênero de isca mais próprio a atraí-
lo. A aposta de 5 mil guinéus era justamente o engodo com cuja ajuda eu
esperava prendê-lo em minhas redes. A prudência extrema de que o senhor
deu provas em mais de um encontro não o permitiu morder o anzol. Mas,
como os 5 mil guinéus lhe falam fortemente ao coração, o senhor aceita a
aposta, mas com uma condição que lhe destrói todo o interesse e à qual não
devo me submeter. Pouco me importo de ganhar 5 mil guinéus, mas mui­
to importa à sociedade ser livrada de um flagelo periódico. O senhor
recusa o almoço para o qual o convido e me propõe pôr em seu lugar um
animal carnívoro. Essa não é minha intenção. Semelhante conviva só o
representaria muito imperfeitamente. Onde o senhor encontraria um ani­
mal carnívoro que estivesse, entre os animais de sua espécie, o que o se­
nhor está entre os homens? Aliás, as vontades são livres. Não é com seu
representante, é com o senhor que quero tratar. O costume de combater
através de campeões caiu de moda há muito tempo; mas mesmo que lhe
prestassem o serviço de recolocá-lo em vigor, a honra me proibiría de lutar
contra o campeão que o senhor me oferece: um campeão não deve ser
empurrado à arena; deve apresentar-se de boa vontade, e o senhor há de
convir, por pouco que o senhor suponha a razão nos animais, que não se
encontrará um só, seja carnívoro, seja herbívoro, que consinta em se tornar
o seu. Deixe então de me fazer propostas às quais não posso ouvir. Sua
aceitação condicional é um verdadeira recusa e meu dilema subsiste.
Além do mais, eu vejo com verdadeira satisfação, senhor, que foi o
senhor o encarregado de defender os senhores Chesnon e de Launay681.
Não faltava a tal causa e a tais clientes senão tal defesa e tal defensor.
Continue, senhor, torne-se mais digno que nunca da estima e dos aplau­
sos do público. Não interromperei seu eloquente discurso. Quando o se­
nhor houver percorrido a honorável carreira em que o senhor entrou, verei
que partido devo tomar.
Eu sou..., etc”.
Morande não conseguira ridicularizar Cagliostro nem o fazer sair dos
limites da moderação, nem o assustar com seus artigos; resolveu então

681. Morande deixara passar essa frase imprudente.


LETTRE DE CACHET
ORDpNNANT l’aRRESTATION DU COMTE DE CAGLIOSTRO
trocar de terreno de batalha. Compilou todos os rumores que corriam a
respeito de Cagliostro, vasculhou Londres e o estrangeiro para buscar
pessoas prontas a lançar sobre o conde uma acusação, a apresentar uma
reclamação podendo servir de base a uma ação judiciária682. As leis ingle­
sas favorecem, com efeito, os falsos credores e os exploradores: apenas
com o juramento de um queixoso, o suposto devedor é imediatamente pre­
so. Cagliostro teve de sofrer muitas vezes semelhantes vexações.
O Courrier de I’Europe mantinha seus leitores a par das pretensas
notícias de Morande. Um dia, ele anunciava a chegada de um senhor
Sylvestre que tinha uma queixa, dizia, de patifarias cometidas em seu de­
trimento vinte anos antes. No dia seguinte, era o relato de um senhor B...
que reclamava 60 mil libras extorquidas por Cagliostro, afirmava, nas Lo­
jas de Lyon; todas as calúnias cujo absurdo conhecemos, ao ler os capítu­
los precedentes, mas que produziam o pior dos efeitos e de que Cagliostro
devia tentar se defender683.
Por vezes, o Courrier publica cartas do estrangeiro, como conta
Bracconieri, que fez tanto barulho e tanto mal, acompanhadas de docu­
mentos “autênticos”. Morande tinha muita habilidade em consegui-los684.
Chegou a solicitar da justiça um Writ contra Cagliostro, como falsário,
porque ele declarara em Paris que era príncipe de Trébizonde. O cavaleiro
de Morande não brincava com títulos nobiliárquicos.
Todos esses ataques, apesar do emprego de figurantes pagos, fracas­
saram. Morande descobriu coisas ainda melhores: graças a suas relações

682. “Viram-no percorrendo de carro os cruzamentos da cidade e dos arredores, ir de


porta em porta, de antro em antro, de prisão em prisão, solicitando, com a bolsa na mão,
sufrágios contra mim. Esses fatos são conhecidos de toda Londres. O senhor Dubourg,
notário da embaixada da França, que algumas vezes acompanhou o senhor Morande em
suas tenebrosas buscas, admitiu ter recebido deste último 50 guinéus como honorários. O
senhor Morande chegou a oferecer cem ao senhor Reilly, proprietário do hotel dos ma-
çons, onde eu morava, quando de minha partida da Inglaterra, em 1777, para que decla­
rasse apenas que eu partira sem pagar. ” Lettre au peuple anglais, p. 47.
683. Ele o fez na Lettre au peuple anglais (p. 70), para a acusação apresentada em nome
do senhor B..:. “O senhor B..„ estando em Paris quando surgiu essa calúnia, desmentiu-
a formalmente por declaração registrada diante do Dr. Piquais, notário no Châtelet, e
tenho uma expedição dela entre as mãos. ”
“Quanto ao senhor Silvestre, que nunca existiu senão sob a pluma de Morande, não é o
único credor com que me ameaçam; asseguram-me que a diligência de Paris deve tra­
zer incessantemente a Londres quatro portugueses do Faubourg Saint-Antoine e seis
alemães do Marais que jurarão, um após o outro, que eu lhes devo somas considerá­
veis. ” Ibid., p. 65.
684. Brissot, seu velho amigo, que se tomara seu inimigo, testemunha: ele o pinta “...esfar­
rapando na folha que ele dirigia os homens mais inestimáveis, fabricando ou mandando
fabricar peças para arruinar aqueles que ele temia. ” Brissot. Réponse àtous les libellistes
qui 1’ont attaqué. Paris, 1791.
policiais, ele encontrou Sachi, chamou-o a Londres, à custa do ministro, é
claro, e se serviu dele ali mesmo, como instrumento de perseguição e meio
de chantagem contra Cagliostro. Expulso de Estrasburgo, expulso de
Bordeaux, julgado, condenado duas vezes na França, Sachi só queria se
vingar e produzir, diante de uma nova jurisdição, seus gritos, suas amea­
ças, suas mentiras e suas reclamações685. Era um ajudante admirável para
Morande.
Logo que ele chegou e convenceu o procurador Pridle686, Morande
fez pronunciar, muito em segredo, contra Cagliostro, um mandado de pri­
são. Se Cagliostro não houvesse sido advertido, teriam-no arrancado de
sua casa e o trancado em New-Gates (prisão dos criminosos). Escândalo,
processo, tudo era maravilhosa matéria a artigos sensacionalistas para
Morande.
Mas, tendo sido avisado da existência do Writ e do perigo que corria,
Cagliostro apressadamente conseguiu duas cauções e se apresentou com elas
diante do embargador, adiantando-se à execução do mandado e desmanchan­
do, assim, o plano687. O último cartucho de Morande havia durado bastante.
Sem dúvida, a Europa instruída e culta conhecia Morande e sabia o
pouco de importância que se devia dar aos ultrajes e calúnias desse perso­
nagem; as pessoas esclarecidas viam bem claro na manobra ministerial,
feita para salvar Chesnon e de Launay e vingar Breteuil688, e Cagliostro
divertira esse público em especial com respostas espirituosas: mas muitas
pessoas deveriam ser enganadas e prestar atenção nas difamações odiosas,
nas calúnias do insultador de aluguel. Não foi o que aconteceu a muitos
historiadores? Além disso, por conselho de amigos devotados, para refutar
todas as asserções inexatas e hostis publicadas no Courrier de I’Europe em

685. Sachi foi o instrumento da desgraça de Cagliostro; sua cupidez, sua inveja persegui­
ram Cagliostro a Estrasburgo, aniquilando os efeitos do reconhecimento de toda uma
cidade; Sachi foi a Bordeaux para impedir Cagliostro de gozar de seu sucesso; quando
do processo do Colar, ele foi o apoio, o fornecedor de documentos a madame de la Motte;
em Londres, Morande se serviu dele novamente; a Inquisição, em Roma, reeditou suas
calúnias. Adversário de todos os dias, renascendo sempre, roendo sem cessar o terreno
em torno de Cagliostro, ele foi o caluniador de voz baixa, o inimigo doméstico. Morande
chegou apenas no final para representar o papel de acusador público, preparando o
processo de Roma. Poder-se-ia dizer que, sem esse homem, Cagliostro, amado em
Estrasburgo, glorioso em Bordeaux e Lyon, inatacável em Paris, teria sido tão bem-suce­
dido quanto foi perseguido. Mas ele apareceu sobre o caminho de Cagliostro; foi cumulado
com sua generosidade: dinheiro, ciência, empregos, receitas, ele tudo recebeu: Caglios­
tro, longe de se vingar, não chegou mesmo a se proteger contra o zelo de seus amigos que
se ofereciam para livrá-lo dele?
686. Pridle adicionou à reclamação de Sachi uma reclamação pessoal.
687. Lettre au peuple anglais, p. 48.
688. “O público achava a prosa de Morande impregnada de máximas ministeriais. ”
Mémoires Secrets, 9 de outubro de 1786.
nome de Ricciarelli, Pergolezzi, Sachi, Jakton e outros, para esclarecer a
opinião pública acerca dos processos que lhe intentaram Sachi e Pridle,
Cagliostro escreveu sua Lettre au peuple anglais6*9.
Essa carta, muito documentada, muito digna, muito avassaladora
para seus inimigos e cujas principais passagens citamos à medida que
contamos esses acontecimentos, terminam com essas palavras dirigidas a
Morande:
“Nem meus amigos, nem eu aceitaremos jamais uma carta de desafio
do senhor Morande689 690, por uma razão muito simples e que o leitor aprova­
rá. O senhor Morande a conhece perfeitamente e é precisamente a certeza
da recusa que lhe dá a coragem de propor.”
O conde de Cagliostro lembra aqui o comportamento indigno de
Morande em relação ao conde de Lauraguais, como ele tentou comprometê-
lo fazendo-o passar por autor de um de seus mais odiosos panfletos691;
como ele o insultou e difamou em seguida; como, esbordoado pelo conde
de Lauraguais em plena rua, citado em juízo no proclama da rainha, ele
mandou sua mulher e seus filhos suplicar ao conde, veio ele próprio se
arrastar de joelhos, teve de inserir em um jornal público692 uma retratação,
em que se reconhecia falsário e caluniador; e como, enfim, quando toda a
perseguição terminara, ele se declarara pronto a recomeçar.
“Eis o homem que nossos inimigos tomaram a seu soldo. Eis o digno
defensor que eles escolheram: e esse homem tem a audácia de chamar em
duelo meus amigos e eu! E nos dá insolentemente a escolha das armas, sem
pensar que há apenas uma de que se possa servir honestamente contra ele.
Abandono à sua própria torpeza um escritor desonroso que a França
rejeitou, que a Inglaterra desaconselha, que toda a Europa aprecia há muito
tempo; ele pode livremente continuar a me injuriar. Não o citarei diante do
Tribunal das Leis; esse infeliz tem uma mulher; é pai de seis filhos; sua
ruína inevitável, se eu o atacasse, traria a de sua numerosa família. Entrego
minha vingança às mãos Daquele que não pune nos filhos o crime do pai693.”

689. I vol. in-4°, S.L., S.A. (1787), 78 páginas + 1 f.


690. O desafio de Morande escondia uma armadilha nova: as leis inglesas são formais.
Havería a prisão de Cagliostro assim que chegasse ao local — isso se não fosse seu
assassinato.
691. “E um patife que se permite falar bem de mim em um libelo em que ele destroça tudo
o que eu amo e que respeito. ’’ Corresp. De Grimm., t. X, p. 222.
692. London Evening Post. A? 8062. Confissão de Culpa. “O Sr. conde de Lauraguais,
após humildes submissões que lhe fiz, tendo de boa vontade desejado acabar com as
perseguiçõesfeitas contra mim por ter difamado com versos cheios de falsidade e injuriosos
que fiz inserir..., etc. Eu lhe peço que publique, neste mesmo jornal, meu arrependimento
sincero por ter difamado tão injuriosamente o Sr. conde de Lauraguais e meus mui humil­
des agradecimentos por haver aceitado minhas submissões e interrompido as persegui­
ções. Assinado: Morande. ”
693. Lettre au peuple anglais, p. 74.
E foi com essas palavras, que citam Morande no Tribunal de Deus, e
lembrando-lhe a sorte daqueles que difamaram e perseguiram os enviados
do Céu, que Cagliostro termina sua nota a respeito de Morande; essa foi a
última frase de sua réplica694. Teria Moramde compreendido que se chocava
contra um bloco de granito? Como hábil jornalista, teria tido o sentimento
de que os gozadores não estavam mais de seu lado695, que ele fora desmas­
carado, que se podiam ouvir os escudos da França tilintar em seus bolsos
quando ele batia no peito, em gestos oratórios? Os motivos para agir lhe
teriam sido retirados pelo ministério? O fato é que ele parou sua campanha.
Cagliostro triunfara sobre o jornalismo, essa força que deveria derrubar
tronos, permanecer a única potência reinante, a única que, em nossos dias,
ainda pode fazer empalidecer de medo em suas fortalezas os últimos prín­
cipes da terra, ou seja, os reis do ferro, do cobre e do ouro.
Mestre do terreno após essa batalha, a mais terrível que ele já havia
travado, ele viveu em Londres em meio a seus amigos antigos e novos,
continuando seus ensinamentos, prodigalizando sua bondade em todos os
meios em que se encontrava, no mundo maçônico e particular. O conde de
Cagliostro foi íntimo de lorde Gordon696 e inspirador de seus trabalhos na
Theological Society, convidado de diversas Lojas, das mais antigas e das
mais bem compostas, foi recebido com as mais marcadas considerações697.
Conta-se que maçons, em um traje agradável, caçoaram dele em sua pre­
sença; essa é apenas a interpretação de uma caricatura da época, impressa
e publicada sob os cuidados de seus mesmos inimigos e que não tem qual­
quer valor documental698. Serão julgados nossos sábios, escreverão a his­
tória de nossos homens de Estado segundo as caricaturas de Forain ou de
Caran d’Ache?
Em seus trabalhos maçônicos, Cagliostro se esforçou, como o fizera
em Lyon e em Paris, para dar às Lojas uma direção moral; à Ordem, uma

694. O sucesso de Morande diminuiu a partir desse dia: forçado a deixar Londres e o
Courrier em 1791, ele voltou a Paris para tentar tirar proveito da situação, muito contur­
bada naquele momento, e fundou o Argus Patriotique, “destinado a defender o patriotis­
mo, os costumes e a realeza”, ousava ele escrever no cabeçalho desse jornal. O Argus
mudou de cor muitas vezes, embora só tenha vivido alguns meses: Morande o abandonou
no momento do perigo, fugiu para Arnay-le-Duc, escapando à guilhotina, mas destinado
a morrer muito miserável e ignorado nessa aldeia em julho de 1805.
695. Cf. Mémoires Secrets, citadas por Robiquet. Op. cit., p. 204.
696. O Courrier de 1’Europe cita, entre os amigos e defensores de Cagliostro em Londres,
M. Cr... f... d., M. do T..., Lord G... (Gordon) M. Mi... re M. Ag... sis. (Courrier, 1787, p.
152).
697. Lettre au peuple anglais, p. 74.
698. Monist, 1903. Essa caricatura, que o autor pretende rara e preciosamente conserva­
da na biblioteca do Rito Escocês, em Washington, é uma gravura muito conhecida e da
qual encontramos frequentemente exemplares à venda. Cagliostro desmente essa calúnia
em sua Lettre au peuple anglais, p. 70.
realidade espiritual. Eis um manifesto publicado, senão por ele, pois não
está assinado, ao menos em seu nome e sob sua inspiração699, no Morning
Herald, na data de 2 de novembro de 1786.
A todos os maçons verdadeiros em nome de 9, 5, 8, 14,20, 1.8, — 9,
5, 18,20, 18700.
Chegou o tempo em que deve começar a construção do novo templo
ou a nova 3, 8, 20, 17, 8701 de Jerusalém. Este aviso é um convite a
todos os verdadeiros maçons para vir a Londres, reunir-se em nome de
9, 5, 18, 20, 18702, o único em que há uma divina 19, 17, 9, 13, 9, 19,
237O3, e encontrar-se amanhã à noite, dia 3 do presente 1786 ou 5790, às
nove horas na tavema de Reilly704, Great Queen street, para formar o
plano e pousar a pedra fundamental da verdadeira 3, 8, 20, 17, 8705,
neste mundo visível que é o templo material da espiritual 9, 5, 17, 20,
18, 1, 11, 5, 12706. Um maçom é membro da nova 3, 8, 20, 17, 8707.
Ele desejava, com este apelo, reunir não uma convenção de altos Graus,
mas uma assembléia geral de todos os maçons desejosos de se instruir e,
nesse excelente terreno, semear a boa palavra, renovar os antigos Ritos,
revivificar as vontades adormecidas. Ele se chocou, na Inglaterra, ainda
mais que na França, com as pequenas rivalidades e com a indiferença geral.
Sentindo que seus esforços eram inúteis, cedendo às instâncias de Sarrasin,
que não cessara de sentir sua falta e de conservar em relação a ele uma
profunda devoção708, ele deixou a Inglaterra em 30 de março de 1787. Ca­
gliostro partiu só; a condessa ficou em Londres sob os cuidados de sua
amiga, srta. Howard; ele lhe deixou a tarefa de terminar os preparativos
para a partida e, em particular, de vender o mobiliário que eles não pode­
ríam levar em sua longa viagem. Essa venda ocorreu em 13 de abril, no
Pall Mall, sob os cuidados de Christie, avaliador.
Ao saber dessa partida, Morande reergueu-se violentamente e, dessa
vez, por sua própria conta, sua campanha de insultos no Courrier de

699. Foi Bonneville que, na Berliner Monatschrift de março de 1786, assinalou Caglios­
tro como autor desse manifesto anônimo.
700. Jeová-Jesus.
701. Churh (para Church): Igreja.
702. Jesus.
703. Trinity (Trindade).
704. Hotel dos Maçons.
705. Churh (para Church): Igreja.
706. Jerusalém.
707. Idem.
708. Cagliostro, antes de sua partida definitiva, passou algumas semanas no campo, em
casa de Loutherbourg, pintor do rei (nascido em 1740 em Estrasburgo, morto em 1812
em Chiswick), grande entusiasta de alquimia, para trabalhar com ele em seu laboratório.
Foi mesmo Loutherbourg, com sua mulher, quem recebeu e hospedou a SP de Cagliostro
após a partida de seu marido, quando ela se mudara de sua casa de Knights-Bridge,
Sloane Street, n° 4.
1’Europe', foi, a princípio, uma fanfarra de triunfo, já que o gazeteiro se
atribuía a glória de haver posto em fuga seu inimigo; em seguida uma re­
pentina comiseração pela condessa, essa mulher infeliz, abandonada por
seu marido fugitivo, que nem mesmo pagara seu criado, levando suas jóias,
abandonando-a para sempre após lhe haver feito sofrer uma existência das
mais dolorosas. A negociação em leilão se tomou, sob sua pluma, uma ven­
da de objetos confiscados; detalhou os objetos, acrescentando, para tomar o
quadro mais atraente, atanores, cadinhos e sobretudo mil exemplares da Lettre
au peuple anglais, vendidos, segundo ele, pelo peso do papel.
Em muitos números consecutivos ele publicou a descrição detalhada
de Cagliostro, a fim de que ele pudesse ser reconhecido e de que lhe de­
nunciassem imediatamente a presença de sua vítima em qualquer lugar que
aparecesse.
Agora que apresentamos Morande, seria quase inútil refutar essas
mentiras e esse último esforço do policial. Mesmo assim, essas calúnias de
última hora, que ficaram sem resposta, tiveram seu efeito. Historiadores709
deram a elas alguma importância e infelizmente as ecoaram. Uma única
observação bastará para estabelecer toda a sua falsidade: Cagliostro, após
uma viagem rápida, tendo parado apenas alguns dias na Bélgica para visitar
algumas Lojas que solicitavam sua presença, mal se instalara em Bâle, em
meio a seus antigos amigos, mandou imediatamente chamar a Sri de Ca­
gliostro, que terminara os últimos negócios que ainda a retinham em
Londres. Podemos ver com que impudência, com que desenvoltura Morande
caçoava da verdade e de seu público; mas devemos notar também a levian­
dade dos críticos, que acolhem as mais fantasiosas histórias quando elas
apresentam um caráter escandaloso. A acusação erguida contra Cagliostro
de haver despojado, abandonado sua mulher; a lenda que os representa,
ele, como um marido brutal, a condessa como uma vítima aterrorizada,
foram retomadas, odiosamente ampliadas na famosa Vie de Joseph Balsamo
pelo anônimo secretário do Santo Ofício. Foi assim que Morande preparou
a obra de Roma.

709. Mesmo o Sr. Robiquet, todavia muito imparcial e bem edificado acerca do valor das
asserções de Morande. Cf. Vie de Théneau de Morande, nota 2, p. 205.
Capítulo IX

A Suíça e Roma —
O Profanador do Único
CultoVerdadeiro

A Suíça — Bâle e Bienne


Longe de encontrar na Inglaterra o acolhimento simpático que um ma­
çom inglês tinha o direito de esperar, longe de poder experimentar um repouso
tão necessário após tantas provações, Cagliostro só encontrara em Londres
ódio e zombaria. Cansado dessas lutas, rancoroso com a atitude da Maço­
naria, das pessoas e das instituições, ele suportava com cada vez mais es­
forço cada dia de contato com os ingleses. Ele só recebia lorde G. Gordon
e Loutherbourg. Quando Sophie Laroche710 veio vê-lo e trazer-lhe as me­
lhores lembranças dos Sarrasin, ela pôde constatar o quanto ansiava em
deixar esse país, quanto amargor enchia seu coração. “Se não fosse por
esta querida criatura, disse ele, mostrando sua mulher, eu iria ao deserto,
entre os animais selvagens, e tenho certeza que encontraria amigos ali711.”
Sophie Laroche, muito delicadamente, lembrou-lhe de que ele tinha
verdadeiros e bons amigos em Bâle; que os Sarrasin lhe eram devotados, de
corpo e alma, e esperavam ainda que ele voltasse para junto deles. Cagliostro
se emocionou: ele também amava Sarrasin por sua fiel devoção; ele se
lembrava das provas que o outro lhe dera de sua estima, abrindo-lhe sua

710. Escritora alemã, morta em 1807, autora da Histoire sentimentale de madame de


Sternheim e redatora-chefe da Pomona für Teutschlands Tochter.
711. S. Laroche. Tagebuch einer Reise... Offenbach, 1788, p. 297.
bolsa tão francamente quanto seu coração712. Ele não pôde evitar demons­
trar à sua visitante a doce emoção que lhe causava a nova afirmação dessa
afeição e dos sentimentos de simpatia que ele tinha por Sarrasin713 e, quan­
do decidiu, pouco após essa visita, deixar Londres, Cagliostro escreveu a
Sarrasin, implorando que lhe conseguisse, em algum canto da Suíça, um
asilo, um lugar de repouso, em que ele pudesse esquecer um pouco os
maus e suas obras714. Sarrasin se ocupou imediatamente de seu pedido: em
sua apreciação, Neuchâtel ou Bienne seriam os mais convenientes; deu a
preferência a Neuchâtel por ser a mais importante das duas cidades.
Neuchâtel era, na época, principado prussiano, e Sarrasin pensava assim
chegar mais facilmente a seu objetivo de interessar o príncipe Henri da
Prússia, que lhe honrara com uma visita dois anos antes715, por seu protegi­
do, e com esse propósito escreveu ao príncipe. Dirigiu, ao mesmo tempo,
uma carta ao governador de Neuchâtel, o Sr. de Balleville. a 15 de março
de 1787, o príncipe lhe respondeu com uma carta de próprio punho, em
francês, que figura nos Arquivos Sarrasin e da qual eis a passagem que diz
respeito a seu pedido:
“... quanto ao conde de Cagliostro, que o senhor quer trazer a Neuchâtel,
permita-me fazer algumas observações acerca do assunto. Um homem cujas
maneiras sejam puras, que tome como dever respeitar as leis do país em que
quer habitar, que só aspire viver tranquilamente em meio a seus amigos, esse
homem não necessita, ao que me parece, de uma permissão para se estabele­
cer em um país, qualquer que seja ele, ainda menos de uma proteção particular.
Se ele teve problemas com alguma potência estrangeira e se essa potência
tem os direitos de reclamar sua pessoa, nesse caso uma proteção particular
não lhe pode ser concedida. O senhor tirará facilmente a conclusão referente
a essas reflexões. Desejo, de resto, que todos os seus desejos se realizem:
tomo parte nisso conforme ao interesse que lhe conservo e aos sentimentos
de muita estima com os quais sou, Senhor, seu afeiçoado amigo.

Henri.
Berlim, 15 de março de 1784716.”
Era amável, mas muito reservado; Sarrasin compreendeu que a corte
da Prússia, se não punha obstáculos ao estabelecimento de Cagliostro em

712. Schmidt. Reise Journal. Biogr. Blatter. B.I., p. 217. - Cf. E: Ma Correspondance, nl 55,
de 30 de junho de 1786. Antes da partida de Cagliostro para Londres, Sarrasin deu ordem
a um banqueiro inglês para que pusesse à sua disposição todas as somas que ele pedisse.
713. “A condessa não se cansava, também, de me interrogar, falando com amor de seus
amigos de Bâle. ” S. Laroche, Op. cit., p. 296.
714. Em Langmesser. Jacob Sarrasin, der Freund Lavaters. Zurique, 1899, p. 53.
715. Journal de Sarrasin. Arquivos Sarrasin, Bâle; na data de 21 de julho de 1784.
716.. Langmesser. Op. cit., p. 53.
Neuchâtel, nada faria para protegê-lo. Abandonou seu primeiro projeto e se
dirigiu ao banneret1'1 Sigismund Wildermett, de Bienne, a quem ele fora
apresentado por seu amigo comum Pfeffel717 718. Wildermett se empenhou se­
riamente em atendê-lo; tendo-se assegurado de que o cônsul francês em
Berna719 não faria nenhuma objeção à instalação de Cagliostro em Bienne,
fez uma propaganda ativa junto às autoridades locais e aos cidadãos da
cidade em favor de Cagliostro. No mês de março de 1787, Sarrasin foi ele
próprio a Bienne buscar no Conseil a permissão de estada do conde e alu­
gar em seu nome uma bela propriedade chamada Rockhalt720.
Quando tudo estava pronto, ele avisou Cagliostro, que partiu imedia­
tamente e chegou a Bâle em 5 de abril de 1787. Sarrasin se apressou em
levá-lo a visitar sua nova morada721 e o apresentou aos notáveis de Bienne;
depois, eles voltaram a Bâle. Todos estavam felizes em revê-lo; ele reen­
controu ali, além da família Sarrasin, os Hazenbach, o pastor francês
Touchon722, Haas, o professor Breitinger, de Gingin, Burckhardt723, todos
pessoas sérias, liberais, respeitosamente devotadas a Cagliostro. Na pri­
meira viagem que havia feito a Bâle, em outubro de 1781, Cagliostro os
conhecera e se afeiçoara a eles; com todos, examinara os planos do pavi­
lhão destinado aos trabalhos secretos de seu Rito, de cuja construção
Sarrasin cuidou724. Desde então, seus discípulos suíços conservavam sua
doutrina, cultivavam sua lembrança. O meio estava pronto para receber
novos ensinamentos de Cagliostro, que estava bem disposto a dar-lhes o
que queriam. Em seguida a sua estada em Paris, onde ele vira agitar-se
infrutiferamente convenções maçônicas, depois das discussões com os
Filaletos, de suas decepções com os maçons ingleses, Cagliostro rejeitara
todo projeto de regenerar o corpo maçônico infundindo-lhe, através do
Rito Egípcio, um sangue realmente puro. Ele contava mais com a criação de
homens novos do que com a transformação de espíritos já impregnados
de tradições errôneas e, se até então manejara com o maior dos cuidados os

717. Antigo título nobiliárquico, desaparecido na França, mas que se conservou na Suíça.
718. Cunhado de Goethe que tomou a defesa de Cagliostro em 1787.
719. Biel vinha de Berna.
720. Rocaille, de que os suíços fizeram Rockhall e Rockhalt: no inicio da Pasquart-
Promenade, nas portas de Bienne. Cf. Langmesser. Op. cit., p. 54. Essa casa existe ainda.
Ver a gravura anexa 9página 176 deste livro) segundo uma fotografia tirada em 1911.
721. A SP Sarrasin os acompanhou. Langmesser. Op. cit., p. 54
722. Doente que ele curara em Estrasburgo.
723. Cf. H Funck. Die Wander jahre der Frau von Branconi, in: Westermann’s Deutsche
Monatschrift, 1896, p. 172 e: Carta de Bürkli.in: Funk. Op. cit., p. 20.
724. Esse pavilhão, construído em Riebhen, a 6 km de Bâle, ainda existe; é atualmente
propriedade do Sr. Fritz Lindemeier. Fornecemos anexos o mapa e a vista dele (página 96
deste livro) em seu estado atual. Ainda o chamam "Cagliostro" e a lenda diz que ele
contém o monumento funerário de Cagliostro.
costumes e o simbolismo habituais dos Ritos aceitos para facilitar o caminho
aos adeptos do Escocismo ou do Grande Oriente, ele agora não via mais
interesse nisso, desde o momento em que a desconfiança e a ignorância pre­
sunçosa dos maçons haviam rejeitado todas as suas tentativas. Foi nesse
sentido que ele falou a seus amigos de Bâle, a Lavater725, levando-os a uma
concepção mais simples, mais puramente religiosa do Rito Egípcio que deveria
substituir com todas as peças, e não mais aperfeiçoar, os Ritos maçônicos726.
Uma “Loja-Mãe dos países Helvéticos”, que reunia pela primeira vez,
em sessão regular, os adeptos iniciados isoladamente em 1781, abriu seus
trabalhos, na casa de Sarrasin, em 2 de maio de 1787727. Ela fora instalada
de acordo com o modelo da Loja de Lyon, mas de maneira mais simples:
viam-se poucos ornamentos, quase nenhum símbolo; no meio da peça estava
o busto de Cagliostro, em mármore728. Era mais uma sala de reunião, um
oratório místico, que uma oficina maçônica. Sobre a patente e sobre os
diplomas, nenhum símbolo; um simples arabesco enquadrava as folhas, no
alto das quais apenas o nome de Deus estava gravado729.
Fora do templo, as noites íntimas reuniam aqueles que não eram ini­
ciados do Rito. Em honra de Cagliostro, Sarrasin recebia muito: o pastor
Schmidt730, que jantou com ele, um general francês e algumas damas, em 8
de maio, na casa de Sarrasin, contou sua noite em um jornal731. Ele o ouvira,
naquela noite, falar, com veemência, contra o caráter inglês e a sociedade

725. Lavater, definitivamente conquistado por essa mudança, tornou-se seu ativo cola­
borador. O Mercure de France (1787) anuncia a reunião de Cagliostro e de Lavater
“trabalhando juntos em Bâle e com a Loja dos Amigos reunidos em Estrasburgo, em
Mannheim e em Brême, na fundação da Jerusalém celeste. ” Borowski, que conta o fato,
diz que essa ação comum, toda impregnada de misticismo católico e de superstição, foi
muito desorganizadora para os espíritos (Borowski). Cagliostro einer der merkwurdigs-
ten..., p. 130.
726. “Ele havia concebido muitas dúvidas em relação à Maçonaria, diz ele em seu inter­
rogatório, desde sua estada em Londres, e não queria mais ouvir falar nela. ” Vie de
Joseph Balsamo, p. 188. Foi o que permitiu ao autor pretender, jogando com essas pala­
vras, que o próprio Cagliostro renegava seu Rito Egípcio.
727. Langmesser. Op. cit., p. 55.
728. Busto de Houdon do qual damos duas fotografias, p. 11 e 171 deste livro, e que
atualmente se encontra no museu de Aix.
729. Vie de Joseph Balsamo, p. 151-152.
730. Christian Gottlieb Schmidt, autor do Reise Journal eines sachsischen Geistlicher
(Diário de um eclesiástico saxão).
731. Relato análogo àqueles que já conhecemos; como Beugnot, o comensal de Caglios­
tro ficou surpreso pela originalidade de suas maneiras, pela oposição de seu mutismo, em
certos momentos, com sua exuberância de linguagem em outros instantes. "Seu olhar o
domina, aniquila-o ”, escreve ele, “e escapa a você; é o tipo ideal do mago. Já a estrutura de
seu crânio indica um homem extraordinário... mas ele faz muitas palhaçadas, muitas
brincadeiras; falta-lhe gravidade. ” E um pastor que fala. Langmesser. Op. cit., p. 55.
francesa. Tais recepções e trabalhos tomavam todo o seu tempo; ele não
mais se ocupava com a medicina como quando de sua primeira passagem
(1781), em que a casa de Sarrasin não bastava para receber todos os seus
doentes732.
No fim de maio, quando da 27? reunião anual da Sociedade Helvética,
Sarrasin o levou consigo a Olten para assistir a essa assembléia; Cagliostro
causou, ali, grande impressão. Matthéi733, que estava lá e que contou o
fato, apressou-se em assinalar essa notícia sensacional a sua amante e ami­
ga, a marquesa de Branconi734 que, encantada em saber que Cagliostro es­
tava na Suíça, impressionada pelo relato de Matthéi, escreveu imediata­
mente a Sarrasin a carta seguinte:
“Neuchâtel, 9 de junho de 1787.
Eu lhe peço, senhor, que queira testemunhar ao Sr. conde de Caglios­
tro o prazer que eu tenho em sabê-lo meu vizinho735 e o quanto eu
ficaria satisfeita em renovar conhecimento com ele; sou ao mesmo
tempo sensível à sua delicada atenção por me haver enviado a peque­
na brochura, que lerei com tanta indignação quanto li tudo o que pre­
tendeu atacar sua bondade muito conhecida e que os mais mal-inten­
cionados jamais poderão anular. Felicitei os habitantes de Bienne e
das redondezas pela estada que o conde teve ali e, sem buscar fazer
sua apologia, disse o que penso, em toda parte por onde mo pergunta­
ram, em meu caminho de Berne a Soleure, que concluí sem proble­
mas ontem à noite736.”
Era, com efeito, uma antiga conhecida de Cagliostro; ela o encontra­
ra em Estrasburgo, na casa dos Sarrasin, levara-lhe Lavater737 e fizera mui­
tos avanços a Cagliostro, que lhe agradava: “Tenho simpatia pelo conde; é

732. Langmesser. Op. cit., p. 55; e: Frankfurter Zeitung, Staat und Ristretto, 1783. Trecho
encontrado nos Arquivos Sarrasin, vol. XXX III, cota 12. “Durante sua estada em Bâle,
ele ditou à SP Sarrasin e à sua mãe um grande número de fórmulas para todos os doentes
que vinham vê-lo, pois ele jamais escreve suas receitas. ”
733. Literato alemão, amigo de Goethe, nascido em Nurembergue.
734. A SP de Branconi, nascida de Elsner, viúva aos 15 anos de Pessoni de Branconi,
amante do príncipe herdeiro Charles-Guillaume-Ferdinand de Brunswick, do qual ela
teve um filho, o conde de Fürstenberg, em 1767, elevada à nobreza por Joseph II em 1774,
era uma mulher de beleza e inteligência excepcionais. Após sua ruptura com o príncipe,
em 1776, ela viajou e seduziu todos os homens eminentes que conheceu: Lessing e Goethe
a admiravam; suas relações íntimas com Lavater são conhecidas. Cf. Zenker. La marquise
de Branconi, in: Allgemeine Zeitung. N? 199 de 20 de julho de 1889, e: Heinrich Funk.
Die Wanderjahre der Frau von Branconi, in: Westermann’s Illustrirte Deutsche Monatschrift.
Vol. LXXIX, outubro de 1895, p. 172.
735. A Sr? de Branconi morava em Chanet, perto de Neuchâtel.
736. Arquivos Sarrasin. Bâle. Carta escrita em francês.
737. Funk. Die Wandrejahre, p. 5 e 7. A SP de Recke já escrevera a Lavater, em 1779, a
respeito de Cagliostro. Von der Recke. Nachricht von des beriichtigten., p. 115.
preciso que ele seja meu amigo”, escrevia ela738 a Sarrasin e, segundo ele,
ela “se atirou imprudentemente para cima dele.” Essa técnica poderia ter
funcionado com outros, com Lavater, com Goethe, que se sentia fraco diante
dessa “sereia”739. Cagliostro não foi subjugado. Essa mulher sedutora, irre­
sistível, adulada, não admitia que um homem não caísse a seus pés se ela
lhe deixasse entrever alguma simpatia: sentiu-se ultrajada e se tornou brus­
camente inimiga declarada de Cagliostro740. Escandalizou os Sarrasin, ten­
tou afastá-los de Cagliostro. “Seu Cagliostro não existe; é menos que nada,
gritava ela à Sri Sarrasin, a seus amigos741”, a todos que ela via. Sarrasin
não se deixou impressionar por esse rancor, mas se queixou dele a Lavater:
“Essa bonita boneca pode pensar e dizer o que quiser; que vá embora, se
lhe agradar; eu daria mil Branconi por um Cagliostro”.742 Mas outras pes­
soas sofreram-lhe a influência. Lavater se perturbou; hesitou entre sua bela
amiga e Cagliostro, chegou mesmo a sacrificar este último; em uma de
suas cartas à Sri Sarrasin, buscou afastá-la, também, de seu salvador e mes­
tre743.
Tal fora a confusão; mas alguns anos haviam se passado e, de volta a
Chanet, a marquesa de Branconi nem pensava mais nisso: estava feliz em
reencontrar o homem extraordinário, único, que a interessara tão vivamen­
te em Estrasburgo.
Sarrasin fez parte do pedido a Cagliostro, que não recusou, exigindo
apenas que a entrevista tivesse lugar na casa de terceiros. Alguns dias de­
pois, a Sri de Cagliostro chegava a Bâle744 e, em 29 de junho, acompanhados

738. De Estrasburgo, em 1780.


739. “Ela foi amável o bastante para me fazer entender que eu a interesso e que minha
pessoa lhe agrada, e nisso acreditamos facilmente com essas sereias; estou feliz por não
estar no lugar de Matthéi; pois é um posto malditamente difícil de se estar por todo o ano,
‘por dever’, como a manteiga sob o sol.” Carta de Goethe a Lavater in: Funk. Die
Wandrejahre, p. 174. Cf. E: Langmesser. Op. cit., p. 38.
74O.Langmesser. Op. cit., p. 40.
741. Funk. Die Wandrejahre, p. 7.
742. Langmesser. Op. cit., p. 80.
743. Langmesser. Op. cit., p. 38 (Carta de 17 de agosto de 1781). Pouco após, aliás,
entregue a si mesmo e desenfeitiçado dos encantos da maga, ele se refez e suas cartas a
Sarrasin em julho, em outubro de 1782 e posteriores testemunham de seu afetuoso respei­
to por Cagliostro. Em 1793, após a condenação de Cagliostro, ele não dava ouvidos aos
rumores que corriam e, vivendo com a lembrança daquele que ele soubera apreciar, de­
clarava que todas as infâmias que se diziam de Cagliostro, de Joseph Balsamo, em Roma,
não podiam aplicar-se ao grande homem que ele amara. “Cagliostro que fazia milagres,
Cagliostro que conhecí, era um santo personagem ”, escreveu ele a Goethe. Cf.: Heinrich
Duntzer. Neue Goethestudien. Nurembergue. Bauer und Raspe 1867, p. 143.
744. Cagliostro enviara a Londres para buscar e trazer a condessa, assim como a família
Loutherbourg, um alemão "que viajara às índias e ali, dizem, descobrira tesouros)?)."
Esse personagem chegara a Bâle com Cagliostro, trazido por ele (Borowski). Cagliostro
einer der merkwurdigsten..., p. 129.
pelos Sarrasin e pelos Loutherbourgs, o conde e sua mulher partiram para
Bienne. Almoçaram na casa do banneret: a Si? de Branconi estava lá743. A
reconciliação foi fácil: a Sr? de Branconi estava então muito afeiçoada a F.
M. Leuchsenring, conselheiro na corte de Darmstadt745 746, o que desolava
Matthéi e provocava algumas cenas de ciúme747. Toda dedicada a essa paixão
recente, ela não pensava mais em rancores passados, apenas em coqueterias
novas; foi cuidadosa, amável com a condessa; encontrou em Cagliostro o
médico e o diretor espiritual devotado que perdera por sua própria culpa;
suas visitas a Rockhalt, durante o verão de 1787, foram freqüentes e cordi­
ais.
A vida de Cagliostro em Bienne teria transcorrido em paz, entre visi­
tas e o exercício da medicina748, quando um acontecimento imprevisto
veio perturbar essa paz. Loutherbourg, sob influências ignoradas, brigou
de repente com Cagliostro, trazendo a seu lado algumas personalidades
importantes de Bienne749. O caso Loutherbourg é difícil de explicar, embo­
ra tenha iniciado, diante do Grande Conselho de Bienne, o processo cujas
atas e, em particular, a defesa (Dillationschrift) de Cagliostro, figuravam
no repertório dos arquivos de Bienne750; mas, apesar da indicação no reper­
tório, as peças não se encontram mais nos arquivos. O Dr. Turler, de Berna,
que publicou, em 1900, um trabalho acerca dessa época, já constatara, como
nós, sua ausência. Elas desapareceram, acredita-se, em 1792 ou 1793, rou­
badas ou queimadas, não se sabe751. Na correspondência e no Journal de
Sarrasin, encontramos algumas notas a respeito de sua intervenção nesse

745. Assim como a SP Von der Lippe, em cuja presença Cagliostro recebeu a marquesa de
Branconi. H. Funk. Die Wandrejahre, p. 11.
746. Langmesser. Op. cit., p. 55.
747. Essa nova aventura, a ultima de sua vida, concluiu-se em 1789. A SP de Branconi
desapareceu, viajou e voltou, pouco depois, com umfilhinho que ela, segundo dizia, ado­
tara e que criou. Doente, foi tratar-se em Albano, onde morreu, em 7 de julho de 1793.
Matthéi, fiel até após sua morte, escrevia a Lavater: "Tudo é vazio para mim, agora. ” H.
Funk. Die Wandrejahre, p. 184.
748. “Encontro-me neste momento aqui, escreve Sarrasin, por ter acompanhado o Sr. con­
de e a SP condessa de Cagliostro a seu novo domicílio, onde eles parecem muito se agradar
e onde foram festejados como merecem. Fazendo tranqüilamente o bem e vingando-se de
seus invejosos, não lhes deixando senão a boa causa a ironizar, o Sr. conde espera enfim
encontrar aqui a paz que procurou alhures. ” Carta de Sarrasin a M. D’Epremesnil, Bienne,
datada de 5 de julho de 1787. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. XXIII, cota 18. Ft I, v°
749. “Loutherbourg nos enganou a todos com sua fisionomia honesta. Eu acreditava que
ele fosse um homem galante, mas o modo como agiu com o conde anuncia e prova o
contrário: ele só deseja a sua ruína e para isso poderia mesmo encontrar a dele. ” Carta
de Gingin a seu cunhado Sarrasin, datada de Bienne, janeiro de 1788. — Arquivos Sarrasin.
Bâle, vol. Ill (1788), cota 20, f 3.
750. Raths-Karthabel. 1787.
751. Esse fato pode ser relacionado com o desaparecimento, nos Arquivos do Vaticano, de
todos os documentos que dizem respeito ao processo Cagliostro em Roma. Cf. p. 231
deste livro.
assunto; mas, a respeito do motivo da discussão, das causas da ruptura
entre Cagliostro e Loutherbourg, silêncio absoluto ou expressões demasia­
do vagas752 para que se possa concluir qualquer coisa.
Segundo todas as probabilidades, o caso Loutherbourg é a conseqüên-
cia das manobras tentadas em Londres anteriormente, quando a condessa
ficara sozinha em casa dos Loutherbourg, para tentar obter dela algumas
confidências, algumas secretas revelações relativas a seu marido, suas aven­
turas ou seus mistérios; fizeram-se tentativas de afastá-la de seu marido. O
que esperavam dessa separação? Quem tinha interesse em provocá-la?
Mistério; parece que o próprio Thilorier estava em meio ao complô. Uma
carta indignada de Sarrasin ao Sr. d’Epremesnil, escrita de Bienne em 5 de
julho de 1787, contém, com efeito, a passagem seguinte: “Em vão, as pes­
soas com as quais o Sr. Thilorier concorre, segundo ele próprio admite,
gabam-se de tirar partido das insinuações que fizeram à Sr? condessa. Tudo
foi descoberto, provado originalmente e consignado em uma declaração
legal e voluntária sob as melhores formas753.”
“Queira, por favor, instruir incessantemente o Sr. conde do sucesso
de seu processo e fazer compreender ao Sr. seu parente, Thilorier, que não
cabe nem ao Sr. Rey de Morande, nem ao Sr. de Vismes, nem ao Sr. de
Lansègre, mas ao Sr. conde de Cagliostro, cuja causa ele tem que defender
e cuidar, e que não cabe ao advogado do marido convidar sua mulher a
separar os interesses dela dos seus754.”

752."Esse caso infame, segundo as leis." Vol. Ill, cota 20, f 1. — "Essa maldita histó­
ria. ” Vol. Ill, cota 20. F? 3. O Dr. Turler (Neues Berner Taschenbuch, 1901, Berna. IVv.v.
1900, in-16, p. 110-118) publicou, segundo os arquivos da família Heilmann de Bienne,
um relato humorístico dessa querela. Nessa narrativa não datada, e muito mal escrita, o
autor, Nikolaus Heilmann, faz Cagliostro falar em um dialeto meio negro, meio alemão,
que de forma alguma era a linguagem de Cagliostro; ele mostra o banneret Wildermett
dirigindo-se a Cagliostro chamando-o: Signor Joseph Balsamo... ”, coisa que esse perso­
nagem não teria pensado em fazer, em 1788, uma vez que o taumaturgo era ainda, para
todos, o conde de Cagliostro, e muito menos porque o banneret, amigo de Sarrasin, era
protetor de Cagliostro. Esse texto, embora antigo (cerca de 1790?...), não é, portanto, um
documento histórico: é uma obra de fantasia, e o Dr. Turler, aliás, nunca disse o contrário
(Cf.: Ibid., p. 110).
753. A Sd de Cagliostro, com efeito, deu, diante dos magistrados de Bienne, um depoi­
mento em favor de seu marido, aniquilando as imputações injuriosas de Loutherbourg.
Foi esse depoimento voluntário que a Vie de Joseph Balsamo assinalou, sempre com a
mesma falsidade, nos seguintes termos: "Cagliostro forçou sua mulher afazer uma de­
claração em seu favor em que ela retratava as confidências que fizera em Londres, em sua
ausência..., declarando, em particular, que, ao contrário daquilo que ela admitira, Ca­
gliostro sempre fora um homem honesto e bom católico. ” Vie de Joseph Balsamo, p. 70.
Podemos julgar, por mais esse exemplo, da veracidade histórica do padre Marcello.
754. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. XXXIII, cota 18, f? 3 v?.
Loutherbourg e sua mulher haviam agido no mesmo sentido que
Thilorier; de repente, a intriga foi revelada. Cagliostro mudou de atitude
em relação ao pintor e este não escondeu seu jogo; a animosidade cresceu.
Dois partidos se formaram: de um lado, os Loutherbourg e o prefeito de
Bienne, seu íntimo, sobre o qual a Sf Loutherbourg tinha grande influên­
cia755, os filhos do prefeito, jovens desmiolados, unidos aos Loutherbourg
por uma questão de interesse não definido756; de outro, Cagliostro e a con­
dessa, de Gingin, Sarrasin e, com eles, o burgomestre e o banneret. Eis os
dois campos; as situações ficavam cada vez mais tensas757. As hostilidades
começaram. Em 11 de dezembro de 1787, na sessão do conselho, o conde
de Cagliostro apresentou uma queixa contra Loutherbourg, expondo que,
na véspera, Abraham Ritter, doméstico do dito Loutherbourg, havia, sob
ordens de seu mestre, comprado, com um armeiro, pólvora e balas para
carregar suas pistolas, a fim, segundo dizia, de matar o conde de Caglios­
tro758. Em conseqüência, o conde solicitava a proteção dos magistrados e a
expulsão de Loutherbourg e dos seus.
Em seguida, grande barulho em Bienne; inquérito que confirmava o
fato; mas hesitações, incertezas, do prefeito; o partido adversário replicou,
acusou, mobilizou os bedéis759.0 caso se envenenava; um grande escânda­
lo reinava na cidadezinha habitualmente tão tranqüila e ecoava mesmo
fora760. Sarrasin se apressou em vir “arrancar Cagliostro das garras de seus

755. A SP Loutherbourg, notavelmente bela, seduzira inteiramente o prefeito, que “ama­


va muito as anáguas", nas palavras de Sarrasin (carta de 12 de janeiro de 1788. Arqui­
vos, vol. XXXIII, cota 20); ela entusiasmara também de Gingin, que declarava que era “a
mais bela das mulheres. ” Durante as discussões que tiveram lugar para acertar o caso,
a SP Loutherbourg protestou diante dos inquiridores oficiais, reunidos na casa do banneret,
que “os rumores que corriam não tinham fundamento, que ela só tivera com o Sr. prefeito
relações de amizade muito reservadas(l). ” Esse protesto singular, relatado por Sarrasin
(eodem loco) em termos mais crus, ainda é um enigma do processo; o que tinha a ver o
comportamento particular da SP Loutherbourg com o processo de Cagliostro?
756. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. XXXIII, cota 20. f? 1 P e f 4.
757. Outras influências ainda vinham envenenar a discórdia: o eco da campanha de
imprensa, que Morande liderava na Europa, ressoava em Bâle e em Bienne; além disso,
Loutherbourg, alquimista, achava talvez que as experiências e as promessas de Caglios­
tro eram demasiado lentas para se realizar. Cf. Deutsches Museum. 1787, vol. I, p. 388.
— Berliner Monatschrift, novembro de 1787, p. 449. — Langmesser, Op. cit., p. 57.
758. Registro das atas do Tribunal de Bienne. Volume que trata de 1782 a 1796, p. 104 e 105.
759. “Confiscaram todos os pertences do conde que reclamou... Isso vai dar um processo
em todas as formas... Você pode julgar o quanto todos esses procedimentos indispõem o
conde que, naturalmente vivo e altaneiro, não gosta muito de contradições... Isso o ocupa
totalmente e ele não tem mais nem o tempo nem a liberdade para tratar de seus doentes. ”
Carta de Gingin a Sarrasin, janeiro de 1788. Arquivos Sarrasin. Bâle, vol. Ill, cota 20, f! 2.
760. Um artigo publicado na Schaffauser Zeitung, em março de 1788, a respeito desses
escândalos, desagradou muito os magistrados de Bienne. Registro das atas do Tribunal de
Bienne. Vol. cit., p. 139.
inimigos761;” correu a Bienne,762 admoestou o prefeito por mais de duas
horas, na casa do banneret, tentou persuadi-lo a separar a causa de seus
filhos da de Loutherbourg; tentou conseguir com que o prefeito expulsasse
de sua casa o casal incômodo763. Cenas violentas, longas conferências ocor­
reram; por fim, a em de janeiro, Sarrasin, “usando de toda sua eloquên­
cia764” e, ajudado pelo próprio Loutherbourg, obteve a posição e conseguiu
fazer estabelecer dois projetos: 1? — um acordo com a família e os filhos
do prefeito; 2? — um acordo com Loutherbourg. Essas atas foram assina­
das no dia seguinte na prefeitura e certificadas pelo Grande Conselho. Obtida
a solução, o texto do compromisso sem dúvida não agradou Cagliostro;
talvez ele julgasse que Sarrasin não pusera no caso toda a energia necessária
e que estava errado em comprar aquilo que devia ter imposto765. Talvez essas
defecções repetidas, essas hostilidades em sua própria casa tenham tam­
bém lhe calado forte no coração. Tanto é que Cagliostro pensou em deixar
a Suíça; após uma curta visita a seus amigos de Bâle (de 17 de janeiro a 1?
de fevereiro de 1783), ele voltou a Bienne. Foi ainda assistir com Sarrasin

761. Langmesser, op. cit., p. 57, segundo uma carta de Sarrasin a Lavater, de 19 de
janeiro de 1788. Todavia, essa nova intervenção, necessária, deve lhe ter sido custosa;
após tantos esforços para conseguir a paz a Cagliostro, tantas diligências para dispor os
espíritos em seu favor, esse novo escândalo deve tê-lo afetado muito.
762. Em 12 de janeiro de 1788.
763. O prefeito, embora aliado de Loutherbourg, começava a se cansar, diz Sarrasin: era
excelente para o caso; mas, por outro lado, ele tremia de medo de desagradar à senhora,
e, além disso, tinha o grande defeito de ser um imbecil: isso fez com que o caso se arras­
tasse. Loutherbourg, mais negociante, estava pronto a um acordo.
764. Ele não pôde escrever, segundo diz, quais foram seus processos oratórios irresistí­
veis, mas os dirá de viva voz a seu correspondente: “O conde ganhou toda a honra e
perdeu um pouco na questão das despesas. Acreditei, diz o bom Sarrasin, que certamente
pagou de seu bolso a diferença, que um valia bem o outro. ” Arquivos Sarrasin. Bâle.
Rapport de Sarrasin sur ses négotiations a Bienne, vol. XXXIII, cota 2O.fl3e 4.
765. Se Cagliostro mostrou algum descontentamento, as dificuldades desses últimos dias
não fizeram porém nenhuma diferença no afetuoso respeito de Sarrasin e de seus amigos
por seu mestre. Em 1790, enquanto a Inquisição se atirava contra Cagliostro, Sarrasin
escreveu a Lavater: “Os sofrimentos do conde me doem; mas sinto que, se as coisas são
assim, é porque ele o quis; o mundo não entende nada disso; eu conheço por experiência
seu valor interior... ” (Langmesser, op. cit., p. 57.) — De Gingin escreve também: “Espero
que a detenção do conde não seja longa e que ele saia dela tão bem quanto da Bastilha. ”
(Arquivos Sarrasin, vol. Ill, cota 38, fi 3) E, em 1793, depois que todos os acontecimentos
haviam distorcido Cagliostro, quando sua própria memória fora difamada, Sarrasin es­
creve ainda a Lavater: “Nós forjamos um ideal e em seguida nos irritamos se o bem e o
belo são diferentes do que havíamos concebido. Marist, o fisionomista, não reconhecería
Cristo se passeasse com ele!... ’’ (Langmesser, op. cit., p. 68). Essas palavras revelam o
trabalho interior que Sarrasin deve ter feito para chegar a explicar para si o fim de
Cagliostro e as circunstâncias que o rodearam. Mas sua fé não havia enfraquecido, não
mais que a de Lavater. Cf. cap. VII, Paris, p. 211.
à 28? sessão anual da Sociedade Helvética, em Olten, em junho. Sarrasin o
levou de volta a Rockhalt e se despediu dele em 19 de julho766. Não o veria
mais; em 23 de julho, Cagliostro deixou Rockhalt.

Rovoredo-Trento
Após ter passado em Aix-les-Bains,767 uma estação necessária à saúde
da condessa, Cagliostro passou por Turim sem quase se interromper768 e
chegou, em 24 de setembro de 1788, em Rovoredo. Sua vida nessa cidade,
nos teria permanecido tão desconhecida quanto foi em Turim ou em Trento,
se ele não houvesse encontrado ali, pela primeira vez no curso de sua exis­
tência, um observador imparcial. Crítico desinteressado, nem discípulo,
nem inimigo, esse protótipo do “repórter” tomou como missão controlar
dia a dia, e anotar tudo o que podia ver, ouvir ou aprender de Cagliostro
durante as poucas semanas que ele passou naquela cidade. Com as notas
tomadas, ele escreveu um livro e, como era de bom-tom no século XVIII
misturar o sagrado ao profano e gracejar sobre o que teria podido ser sério,
ele as publicou em latim com o seguinte título: “Liber memorialis de
Caleostro cum esset Roboreti” em um estilo parodiado de Evangelho.
Esse livro ficou conhecido sob o nome de Evangelho de Cagliostro-, é
o documento mais precioso que temos a respeito de sua pessoa, o que nos
permite reviver um pouco em seu tempo, junto a ele, imaginar como ele
era, o que dizia, o que puderam pensar dele aqueles que se aproximaram.
Não é apenas por esse ponto de vista que o diário da passagem por Rovoredo
possui um valor inestimável; é também porque todos os exemplares dessa
obra, reunidos aos papéis de Cagliostro, foram queimados pelo Santo Ofi­
cio no Auto-de-fé que seguiu sua condenação pelo papa e que foi executa­
do em Roma, em 4 de maio de 1791, sobre a praça da Minerva. Alguns

766. Esses documentos precisos, tirados do Journal de Sarrasin, fazem-nos rejeitar como
inexata a narrativa de uma estada de Cagliostro em Viena (Austria) que teria ocorrido,
segundo Borowski, em junho de 1788. Borowski cita como referências os Archiv für der
Scwhãrmerey, fol. II, parte II, p. 79, e conta que, após haver obtido grandes sucessos,
trazendo um morto de volta à vida, diziam, ele fugira porque Marie-Thérèse (morta em
1780) queria constrangê-lo, pela força, a vender-lhe seu segredo de imortalidade. Os
detalhes parecem fantasistas, as datas, em todo caso, são falsas e tudo isso deve ser
ignorado.
767. Casanova encontrou-se com ele ali. Casanova. Mémoires, t. VIII, p. 13.
768. A Vie de Joseph Balsamo, p. 153, diz que ele ficou também em Genebra e em
Verona, sem dar provas dessa asserção. Entre sua partida de Aix, que ocorreu nos pri­
meiros dias de agosto, e sua chegada a Rovoredo, em 24 de setembro, o lapso de tempo
é tão curto que, se ainda suprimirmos a estada em Turim, as paradas em Genebra e
Verona, se forem exatas, só podem ter sido paragens de caminho, sem interesse para a
história de Cagliostro.
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volumes, já entre as mãos de particulares, escaparam à pira; desde então,
eles desapareceram, foram destruídos ou perdidos. Não os encontramos
em bibliotecas públicas, não os vemos nas vendas de livros raros e apenas
o título da obra fora transmitido por contemporâneos. Tivemos a felicidade
de encontrar um exemplar na Itália. Nessa obra, cuja tradução exata e com­
pleta publicamos769, vemos que, em Rovoredo, assim como em Estrasburgo,
como em Paris, sua casa era assediada por doentes770; sua caridade e seus
sucessos médicos conquistaram o reconhecimento entusiasta do povo; mui­
tos notáveis se tornaram seus amigos771.
Durante seis semanas, com uma bondade incansável, ele recebeu in­
felizes, ensinou, falando mais livremente, mais abertamente do que nunca,
de sua missão e de seus atos772; mas mesmo então, as cabalas dos médicos,
a animosidade dos homens da igreja lhe tomaram a vida impossível773; ele
partiu, em 10 de novembro, para Trento, onde um de seus doentes agrade­
cidos o instava muito a ir e onde ele o apresentou774. Borowski fornece,
para essa partida, a data de 22 de outubro, sem referência; o número do
Liber Memorialis nos parece ser de mais autoridade. O mesmo autor fala
de uma estada de Cagliostro em Veneza, onde, reduzido à miséria, ele teria
sido obrigado a empenhar suas jóias; seu belo relógio, rodeado de diaman­
tes, teria sido comprado por um joalheiro de Mayence, chamado Chardon.
Mas, não podemos esquecer, são informações tiradas do Courrier de
l’Europe\ Sabemos, por outro lado, que, pouco tempo após, Cagliostro ti­
nha à sua disposição uma caixa de dinheiro e uma letra de câmbio de 10
mil thalers. Isso ocorreu em Trento, em 3 de abril de 1789775. A história da
penúria de Cagliostro em Veneza não é, portanto, admissível. E verossímil

769. L’Evangile de Cagliostro, rétrouvé, traduit par la première fois du latin et publié avec
une introduction do Dr. Marc Haven. Paris, Libr. Des Sciences Hermétiques, 1910, I vol.
in-16 com retrato e selo de Cagliostro. Estando essa obra esgotada, nós a reproduzimos
em apêndice. O leitor encontrará ali, segundo a própria expressão de Marc Haven, uma
série de instantâneos, tirados em todas a horas de sua vida, e que dão, melhor que todo o
resto, a visão daquilo que ele foi.
770. L’Evangile de Cagliostro, p. 276, 278, 282, 283.
771. “A voz do povo se elevava por ele e trovejava na Assembléia.” L’Evangile de
Cagliostro, p. 279. — O testemunho do autor imparcial reduz a nada as calúnias publi­
cadas nessa mesma época por um anônimo no Journal von und für Deutschland, dezem­
bro de 1788, p. 516-520, acerca do pretenso malogro de Cagliostro em Rovoredo.
772. L’Evangile de Cagliostro, p. 275, 283.
773. L’Evangile de Cagliostro, p. 284, 279. Joseph II, cedendo a petições vindas de médi­
cos e pessoas hostis, proibiu-lhe o exercício da medicina. L’Evangile de Cagliostro, p.
290, e Vie de Joseph Balsamo, p. 70.
774. “Festus, cujo apartamento ele alugara em Rovoredo, era originário de Trento e per­
manecia ali com freqüência. Tendo ficado doente em Trento, mandou chamar Cagliostro. ”
L’Evangile de Cagliostro, p. 286.
775. Borowski, op. cit., p. 133.
que em Trento as coisas tenham-se passado da mesma maneira que em
Rovoredo ou qualquer outro lugar: simpatia no início, ciúmes e hostilidades
no fim; era a sucessão habitual dos sentimentos daqueles que recebiam de
Cagliostro cuidados materiais e benefícios espirituais. Suas excelentes re­
lações com o príncipe-bispo o teriam incitado a permanecer mais tempo
nessa cidade, se o ódio de seus inimigos não o houvesse perseguido no
novo retiro. Eles obtiveram de Joseph II uma carta cominatória ao bispo de
Trento em que o imperador lhe manifestava seu desprazer em vê-lo hospe­
dar um iluminado perigoso, um Grão-Mestre de um Rito proscrito; para
reconfortar seu protetor, Cagliostro teve de deixar seus Estados. Quando
de sua partida, o príncipe-bispo lhe deu, para os cardeais Albani Colona e
Buoncompagni, em Roma, calorosas cartas de recomendação, o que prova
a solidez das boas relações que uniam Cagliostro ao bispo de Trento776777 .
Está escrito, na Vie de Joseph Balsamo711, que foi por instância de sua
mulher, desejosa de retomar à sua família e se reaproximar da religião778,
que Cagliostro veio morar em Roma. Já vimos um dos motivos de sua
partida; os sentimentos de sua mulher talvez também tenham influenciado
na decisão. Por outro lado, cada vez mais afastado da Maçonaria ordinária,
mais desejoso de propagar na frente dela seu Rito verdadeiro, religioso e
cristão, Cagliostro concebeu a esperança de fazê-lo aprovar pelo papa e sus­
tentar pela Ordem de Malta, e lhe dar então uma extensão universal. A
vinda a Roma era, portanto, a conseqüência natural de seus trabalhos. Mas
há um motivo mais real, mais irresistível que os desejos de sua mulher ou
os projetos maçônicos, que empurrava Cagliostro para o Vaticano. Uma

776. 1st Cagliostro Chef... Gotha, 1790, p. 216. Essa estima recíproca e essas relações
amáveis não impediam as discussões corteses; Cagliostro com freqüência conversava
acerca de Maçonaria e teologia com o bispo ou com seu círculo e é dessa estada em
Trento que trata a história seguinte, citada desajeitadamente por sua mulher e da qual
fizeram uma arma contra ele: um dia, ao voltar de uma entrevista particular com um
teólogo, Cagliostro disse a sua mulher, ao chegar em casa: “Ah! Peguei esse padre. ” Vie
de Joseph Balsamo, p. 74. Isso foi dito em italiano, sem dúvida; qual foi a palavra empre­
gada? Estaria a tradução exata? Não o sabemos. Essa frase, interpretada pejorativamen­
te pelo autor, significaria, segundo ele, que Cagliostro, com uma fingida religiosidade,
representou uma comédia para o padre e o enganou, embora essa mesma frase possa
significar também, e melhor ainda: “Nós conversamos; ele quis me dominar com seus
argumentos teológicos, mas eu o coloquei em seu lugar; eu o derrotei em seu próprio
terreno e ele ficou muito aturdido. ” Como esse fato foi muito usado para demonstrar a
hipocrisia de Cagliostro, pareceu-nos necessário, embora fosse apenas um detalhe, refu­
tar mais essa calúnia.
777. p. 73.
778. É verdade que, já em Rovoredo (L’Evangile de Cagliostro, p. 290), e em seguida em
Trento, na corte do bispo, padres rodearam a condessa, vendo-a frágil e tímida, e se
esforçaram para trazê-la de volta às crenças e sobretudo às práticas da religião católica,
na qual ela fora educada.
voz interior o chamava até lá; quando atravessou as portas de Roma, cum­
pria a última etapa de seu calvário; marchava para o martírio.

Roma
Em maio de 1789, Cagliostro e sua mulher desembarcaram na
Scalinata, albergue na praça da Espanha, em Roma779. Ele chegava com
recomendações novas em uma terra já conhecida, ainda habitada por muitas
de suas antigas relações de 1773; reencontrava, em particular, o bailio Le
Tonnelier de Breteuil, embaixador da religião, ou seja, da Ordem de Malta,
em Roma. Muito rapidamente, ele foi recebido e procurado no mundo, a
que suas aventuras e seus poderes interessavam, e teve de mudar sua pri­
meira residência para um belo apartamento na praça Famese780.
O abade Luca Antonio Benedetti, advogado na Cúria, citou, em suas
Mémoires, o nome de muitos personagens que receberam Cagliostro e se
ligaram a ele. Ele os enumera na narrativa de uma sessão de magia feita por
Cagliostro em Roma, à qual assistia uma assembléia numerosa de grandes
senhores italianos e franceses. Eis, textualmente, esse documento; nós o
discutiremos mais adiante.
“Tive de assistir a uma reunião presidida por Cagliostro na villa Mal­
ta781, pois não pude resistir aos pedidos da marquesa M. P. que queria abso­
lutamente a mim como seu ‘Cavaliere’.
Chegamos por volta das duas da manhã. Um lacaio de libré, após ter
recebido nossos cartões, introduziu-nos em uma sala magnificamente ilu­
minada, cujas paredes eram cobertas de desenhos e emblemas: o triângulo,
a perpendicular, o nível e outros símbolos. Havia também estátuas de ído­
los assírios, egípcios e chineses. Na parede do fundo, e em grandes ca­
racteres:
Sum quidquid fuit, est et erit
Nemoque mortalium mihi adhuc
Velum detraxit.
A sala estava cheia de pessoas distintas e personagens de alto escalão.
Imaginem minha estupefação quando reconheci em meio à assem­
bléia o Eminentíssimo Bemis, embaixador do rei T. C. e, a seu lado, a
princesa Santa Croce. Um pouco mais adiante estavam sentados o príncipe
Frederico Cesi, o abade Quirino Visconti, o barão de Breteuil, embaixador
de Malta, e uma infinidade de outros personagens e grandes damas, nota-
damente a princesa Rizzonico delia Torre com seu primo, a condessa
Soderini, o marquês Vivaldi, com seu secretário, o padre Tanganelli (notus

779. Gagnière. Cagliostro et les Francs-Maçons, p. 25. Art. In: Nouvelle Revue, p. 25-56.
780. Gagnière. Op. cit., p. 28.
781. A Villa Malta, porta Pinciana, era a residência de verão dos embaixadores de Malta.
lippis et tonsoribus, para todas as espécies de patifaria), o bailio de Malta
Antinori, o marquês Massini e um capuchinho francês.
No fundo da sala, sobre um altar, viam-se, arrumados em fileiras,
cabeças de mortos, macacos empalhados, serpentes vivas fechadas em
aquários de vidro, corujas que reviravam olhos fosforescentes782, perga­
minhos, cadinhos, balões de vidro, amuletos, pacotes de pólvora e outras
diabragens783.”
Cagliostro, estando sentado sobre uma trípode, começou um longo
discurso. Falou de si, de sua ciência784, de seus mistérios, dizendo-se imor­
tal, “antediluviano”, todo-poderoso. Para mostrar seus poderes, levou para
sobre o tablado uma criança a quem ordenou que olhasse em uma garrafa
de cristal cheia de água. A “pupila’,, tendo-se inclinado, disse que via,
sobre uma estrada que conduzia de uma grande cidade a uma cidade vizi­
nha, uma multidão imensa de homens e, sobretudo, mulheres, que marcha­
vam gritando: “Abaixo o rei!” Cagliostro perguntara à criança de que país
eles eram e a criança disse que ouvia o povo gritar: “A Versalhes!” e que
percebia, no comando, um grande senhor.
“Minha pupila diz a verdade”, exclamou Cagliostro. “Pouco tempo
passará antes que Luís XVI seja atacado pelo povo em seu palácio de
Versalhes. Um duque conduzirá a multidão... A monarquia será derruba­
da... A Bastilha arrasada... A liberdade sucederá à tirania785.
— Oh! — exclamou o conde de Bernis — que tristes presságios em
relação a meu rei!
— Eu lamento, mas eles se realizarão — respondeu Cagliostro com
uma voz grave.
—■ Não sei de nada... veremos... continuou com um tom nervoso o
Eminentíssimo voltando a se sentar786.”
Mas isso não foi tudo, segundo o abade: Cagliostro multiplicou os mi­
lagres, realizando naquela noite tudo o que se contou dele em diversos luga­
res: transformou água pura em vinho d’Orvieto, fez crescer um diamante
ante os olhos dos espectadores, rejuvenesceu instantaneamente alguns velhi­
nhos fazendo-os beber algumas gotas de seu elixir da vida, etc.

782. Em plena luz, eis um fenômeno que só se produz, sem dúvida, na Itália!
783. Mémoires de Benedetti, da data de 15 de setembro de 1789. Cf.: Gagnière. Op. cit.,
p. 33.
784. Um de seus convidados lhe perguntara em que consistia essa ciência e ele teria
respondido: "O sábio Lavater veio expressamente de Bâle a Paris para me interrogar e
eu lhe respondí com essas palavras, textualmente: In herbis et in verbis ”. Gagnière. Op.
cit., p. 36.
785. Fato ocorrido em 5 de outubro seguinte, quando o povo, conduzido pelo duque
d’Aiguillon, marchou sobre Versalhes. A primeira festa da Liberdade foi celebrada em 15
de abril de 1792 e, em 21 de maio, a Bastilha era arrasada.
786. Id. Ibid., in: Gagnière. Op. cit., p. 34-35.
Entusiasmados por esses fatos impressionantes, dois dos assistentes
se levantaram e exigiram sua iniciação no Rito Egípcio. Eram, diz o autor,
o capuchinho francês San Maurizio e o marquês Vivaldi. Após um interro­
gatório maçônico sumário, Cagliostro os recebeu ali mesmo, publicamen­
te, como maçons egípcios787. Qualquer que tenha sido o valor moral do
, não podemos porém aceitar como exatos todos os detalhes des­
escritor788789
sa interessante narração; o autor, para encorpar seu relato, contou, ao lado
de lembranças pessoais, histórias já bem conhecidas, descrições fantasiosas,
que provam, em nossa opinião, que essas páginas só foram escritas mais
tarde, após o processo de Cagliostro. Como explicar, sem isso, que ele
tenha notado nessa elegante assembléia a presença de um obscuro
capuchinho francês ao lado da do cardeal de Bemis? Cagliostro sentado
sobre uma trípode, como as sibilas, os macacos empalhados, os ídolos
egípcios e assírios, os frascos, os cadinhos, as serpentes ornando a sala,
tudo isso são notas emprestadas da Vie de Joseph Balsamo1'^. O rejuvenes­
cimento, o aumento dos diamantes, operação longa e delicada de que Ca­
gliostro se ocupou apenas em Estrasburgo para o cardeal de Rohan, a his­
tória de Cristo nas bodas de Canaã, o Ego sum qui sum são anedotas vindas
de outras fontes790 e reunidas para dar uma impressão de conjunto. Como
admitir que, em meio a uma noite oficial desse gênero, dois assistentes, os
mesmos que mais tarde foram suspeitos de pertencer à Maçonaria Egípcia,
e apenas eles, tenham-se levantado para pedir sua iniciação? O que foi
feito no meio da sessão, em público? Há nisso uma inverossimilhança que
salta aos olhos para quem conhece alguma coisa dos costumes maçônicos
e, em particular, o ritual Egípcio. As idéias, o estilo emprestado a Caglios­
tro em nada se parecem com o que sabemos dele, e o autor, por ignorância,
põe em sua boca erros de fatos791 que sublinham a invenção e mostram o
quanto essa história é fantasiosa. Portanto, não aceitamos os detalhes se­
não com reservas: deve haver qualquer coisa de verdadeiro; o autor, sem
dúvida, assistiu à noite em que foi feita a famosa profecia da queda de Luís
XVI; a emoção do cardeal de Bemis, a perturbação dos assistentes ante
essas palavras audaciosas, eis, sem dúvida alguma, verdade, algo de origi­
nal; o resto é banal e vem de segunda mão.
O mesmo autor nos assegura que outras reuniões, “segundo o Rito
Egípcio”, tiveram lugar no mesmo local; é verossímil que o barão de Breteuil
tenha recebido Cagliostro e seus amigos muitas vezes792; mas, novo erro de

787. Id. Ibid., in: Gagnière. Op. cit., p. 36


788. Gagnière. Op. cit., p. 32, tece sua loa.
789. Cf.; p. 151, 159.
790. Já indicamos sua origem.
791. Lavater conheceu Cagliostro em Estrasburgo e jamais foi a Paris.
792. Gagnière. Op. cit., p. 32.
Benedetti, não foram em nada reuniões maçônicas. Cagliostro recebia e
fazia visitas, cuidava de doentes793, tinha amigos e discípulos; esforçou-se
sem dúvida para interessá-los no estudo de sua doutrina, no Rito Egípcio;
mas nenhuma Loja egípcia foi aberta em Roma. Para abrir uma Loja,
ninguém ignora que são precisos sete membros já antigos na Ordem; ora,
eles não existiam em tomo dele, e eis a prova: quando da prisão de Ca­
gliostro, só se encontraram como maçons inscritos no Rito Egípcio três
pessoas: 1?: Cagliostro; 2?: sua mulher; 3?: um capuchinho, o irmão Francesco
de San Maurizio, de que voltaremos a falar; e Cagliostro não escondera
nem destruira nenhum de seus papéis (Vie de Joseph Balsamo, p. 76): as
cartas de Donato e de Damiano confirmam o fato. Seus amigos, Vivaldi e
Tanganelli, foram suspeitos de pertencer à Maçonaria, mas não se pôde
prová-lo. Cagliostro também não assistiu, em Roma, a reuniões de outros
Ritos; posto no index depois do caso com os Filaletos,794 mal recebido por
Lubel e os maçons de Roma, ele próprio era, como sabemos, muito hostil à
Maçonaria ordinária.
A situação não era fácil para os franceses, nessa época, nos Estados do
papa; ainda menos para aqueles que pareciam ocupar-se de sociedades se­
cretas. As notícias de Paris semeavam o medo; o papa se inquietava, os poli­
ciais redobravam a vigilância, as delações afluíam. Os éditos contra os
maçons foram renovados, a luta contra o espírito filosófico das Lojas se
fazia muito ativa e Cagliostro, já suspeito, foi vigiado mais de perto.
Estenderam-lhe armadilhas; embora tenha sido prevenido795796 , caiu ne­
las, de olhos abertos. Longe de se esconder, falou abertamente; ele vivera
até então com circunspeção, diz a Vie de Joseph Balsamo196, e fizera desde
então, sem reserva, profissão de fé de amar a França, de aprovar o movi­
mento de liberdade que se designava; ele chegou mesmo a dirigir uma
petição aos Estados-Gerais pedindo que autorizassem a voltar à França aquele
que só havia sido banido por um ato real arbitrário797 e, em suas conversas,
fez mais claramente propaganda em favor de sua Maç Egípcia798. Caglios­
tro tinha então junto a si um homem que lhe testemunhava a maior das

793. “Sem sucesso ”, diz a Vie de Joseph Balsamo, p. 75. Isso foi, nesse caso, particular a
Roma, como a fosforescência dos olhos das corujas em plena luz.
794. Gagnière. Op. cit., p. 27, 32.
795. Uma primeira vez, depois uma segunda, amigos lhe preveniram do perigo que ele
corria. Ele lhes agradeceu, mas não se interrompeu. (Vie de Joseph Balsamo, p. 77) “Eu
seria muito levado a crer", escreve de Gingin a Sarrasin, ao saber da notícia da prisão de
Cagliostro, “que é uma consequência das intrigas da França, estando no meio os Polignac
e companhia. ” Arquivos Sarrasin, vol. IV, cota 38, f? 3.
796. p. 65.
797. Vie de Joseph Balsamo, p. 77
798. Vie de Joseph Balsamo, p. 155. O ministro da Sardenha em Roma escreveu nessa
data a um de seus correspondentes: “Nesses últimos dias, o SMazin (agente secreto de
Maria Carolina), que pode, não sei como, interceptar cartas que chegam de Nápoles, subtraiu
deferências e se declarava seu discípulo: era um capuchinho francês,
Francesco de San Maurizio, que foi, dizem, ativo colaborador e gozou de
sua confiança durante o ano de 1789. Qual foi o papel desse homem? O
fato de seu zelo só ter conseguido comprometer Cagliostro, provocar a
reunião do Santo Ofício que decretou sua prisão; o fato de que o dito monge,
única testemunha de acusação cujas confissões permitiram estabelecer que
Cagliostro iniciara um maçom em seu Rito em Roma (Cartas de Donato),
ter-se beneficiado de um favor especial, ter sido condenado apenas a dez
anos de reclusão na prisão de Aracoeli, tudo isso permite muitas suposi­
ções. A mais natural é pensar que era um agente secreto da Inquisição que
cumpriu muito bem sua tarefa.
Com um homem tão confiante, tão simplesmente audacioso quanto
Cagliostro, a polícia da Inquisição tinha a partida ganha: um último relató­
rio foi entregue e, na manhã de domingo, 27 de dezembro de 1789, a Con­
gregação dos quatro cardeais do Santo Ofício799 se reuniu nos apartamentos
do cardeal Zelada. “A congregação se compunha do secretário de Estado,
Zelada, vice-gerente do cardeal Vicário, dos cardeais Campanella, Antonelli
e Pallotta; além disso, Sua Santidade quis intervir em pessoa, o que é iné­
dito há anos800.” E, na mesma noite, Cagliostro foi preso, assim como sua
mulher e o capuchinho San Maurizio: seu apartamento foi vasculhado e
todos os seus bens, confiscados801.
O medo foi extremo, quando a notícia se espalhou, entre aqueles que
conheciam Cagliostro e o haviam freqüentado: Vivaldi e Tanganelli fugi­
ram imediatamente802. A marquesa Vivaldi, que estava na casa de Caglios­
tro na mesma noite da prisão, conseguiu, disfarçada em oficial de hussardos
húngaros, partir alguns dias após pelo correio de Veneza. De Loras, ma­
çom e amigo de Cagliostro, membro importante da Ordem de Malta, soli­
citou apoios, viu fecharem-se todas as portas e voltou precipitadamente a
Malta, sem nada fazer por Cagliostro. Lubel, pintor da Academia da França,

uma dirigida por uma dama a Cagliostro. Essa desconhecida escreve em um estilo de
fanática admiração e de obediência cega a esse homem; ela se dirige a ele como a seu pai
espiritual, concluindo com as seguintes palavras: “A comissão foi feita... tudo está pron­
to... Os eleitos foram testados... São pessoas que gozam de toda minha confiança, prontos
a tudo realizar. ” Gagnière, op. cit., p. 42.
799.“A mais importante de todas as congregações e a única que foi presidida nominal­
mente pelo papa era a Sacra Romanae Universale Inquisizione contra os heréticos, que
fazia tremer os mais altos. Ela só era composta de quatro cardeais, vindo o papa a inter­
vir apenas nos casos excepcionalmente graves. ” Gagnière. Op. cit, p. 39, nota.
800. Carta do cavaleiro Damiano de Priocca, ministro da Sardenha à corte de Roma.
Gagnière. Op. cit., p. 38.
801. Em sua casa, encontraram-se trajes ricos, variados, pouco dinheiro, jóias. Borowski,
Cagliostro einer der Merkwuüdigsten..., p. 134.
802. Gagnière. Op. cit., p. 44.
membro de uma Loja maçônica francesa803, acusado de cumplicidade com
Cagliostro por causa de suas relações com de Loras, defendeu-se como pôde,
acusando Cagliostro de ser “um aventureiro”, diz ele, “que jamais foi rece­
bido em Loja francesa”. O cardeal de Bernis em nada interveio; apressou-
se, ao contrário, em aprovar oficialmente as perseguições dirigidas contra
os maçons e contra Cagliostro804.
Mas o temor não foi menor do lado do Vaticano: o papa e os cardeais
enlouqueceram e se acreditaram rodeados por uma rede de conspirações
secretas; viam em toda parte complôs e a mão dos Iluminados805. “Encerra­
do em sua cela, Cagliostro aparece ao papa e ao governador de Saint-Ange
como ainda muito temível, e a entrada do castelo é proibida a qualquer pes­
soa que não esteja munida de uma permissão especial. Muitos franceses ron­
davam em torno da prisão e tentavam conversar com ele pela janela em
uma língua desconhecida806.
“Eu lhes asseguro”, escreve Astorri807 “que Roma se encontra, neste
momento, sob o golpe da mais atroz das inquisições e que retira qualquer
confiança nas pessoas. Não ousamos confiar em ninguém”. “As prisões
prosseguem, e sempre no maior dos mistérios, parece-me estar no país das
fadas”, escreve por seu lado o agente da Toscana808. Diariamente se anun­
ciavam novos complôs: o pânico se apoderava até dos que nada tinham a
temer; estavam sem cessar sob a ameaça de uma denúncia. “Um édito do
governo de Roma proibiu as iluminações e as festas que se tinha o hábito
de fazer durante a última noite da Terça-Feira Gorda*, medida que foi aco­
lhida pelas maldições de todo um povo enlouquecido pelos prazeres do
camaval809.” O povo, sabendo que essas interdições, esse terror policial, eram
devidos a Cagliostro, juntou sua cólera às perseguições da polícia e se
atirou furiosamente contra tudo o que era francês. Esse enlouquecimento
não se limitou a Roma. A rainha de Nápoles, consultada pelo papa, mandou-

803. Aquela a respeito da qual a Vie de Joseph Balsamo discorre longamente, cap. IV,
tentando fazê-la confundir, no espírito de seus leitores, com o Rito Egípcio.
804. Deve-se notar que esse abandono de Cagliostro, quando ele intervinha em favor de
Lubel, não trouxe ventura ao cardeal. Poucos meses depois, o cardeal perdeu toda sua
fortuna e seu posto: a princesa, cuja afeição fiel e certa deveria consolá-lo, deixou-o
imediatamente e suas decepções sucessivas minaram a saúde do cardeal, que sobreviveu
muito pouco a essas duas desgraças. Gagnière. Op. cit., p. 38.
805. Das politische Journal, 1789, vol. I, p. III. — Borowski. Op. cit., p. 134.
806. Borowski. Op. cit., p. 134.
807. Despacho do ministro Astorri ao governo de Siena.
808. Corrispondenze di Diplomatici delia Republica et del Regno d’Italia, citada in:
Gagnière. Op. cit., p. 46.
* N. do E.: Recebe este nome por ser o último do calendário cristão em que é planitido
comer carne antes do início da Quaresma.
809. Gagnière. Op. cit., p. 45.
lhe responder por seu ministro, Acton, que ela mandara vigiar Cagliostro
pessoalmente por causa da correspondência que ele mantinha na casa dela
com personagens importantes e que era necessário reprimir energicamente
as manobras desses inovadores perigosos810. Ela própria agiu com rigor:
“Eu soube, escreve o ministro da Sardenha, que encerraram em Saint-Elme
o duque de San Demetrio em razão das inteligências que ele teve com
Cagliostro. O margrave de Anspach deixou Nápoles precipitadamente.
Afirma-se que o caso de Cagliostro não lhe era estranho811.” Podemos ver a
superexcitação que agitava os espíritos e a importância significativa que
tinha a prisão do Grão-Mestre da Maçonaria Egípcia.
Cagliostro foi encerrado primeiro no castelo de Saint-Ange e posto
estritamente em segredo812 em um medonho reduto que dava para a escada
que une o alto da rampa central com o pátio dos Palie813, e foi lá que ele
permaneceu durante toda a duração do processo, à disposição dos inquisi­
dores. Em 21 de abril de 1791, por ordem do cardeal Francesco Saderio
Zelada, ele foi transferido para a fortaleza de San Leo814, sob o acompa­
nhamento do ajudante-de-ordens Sempronio Semproni. Mas, de maneira
geral, podemos dizer que Cagliostro sofreu atrozmente em sua prisão;
submetido à vigilância contínua de guardas galerianos, plantados em posto
fixo em sua própria cela, de medo que, com o suicídio, ele quisesse escapar
ao sofrimento, nem mesmo o consideravam como um dos outros prisionei­
ros da fortaleza; tudo era causa de suspeita em relação a ele. Estava calmo?
Dissimulava. Manifestava sentimentos religiosos? Era representação.
Vivia de pão e água, jejuava por três dias na semana? Era por higiene, pois
comia demasiado nos outros dias, diz o diário. Se de repente gritos lancinantes,
uivos815 se estendiam a ponto de abalar a fortaleza, acalmavam-se as pessoas:

810. Gagnière. Op. cit., p. 47.


811. Gagnière. Op. cit., p. 34. O margrave de Anspach que se interessava por Cagliostro
o recebera e visitara em Trento, em abril de 1789. Cf.; Borowski. Op. cit., p. 133 e desde
então manteve boas relações com ele. Cf.; Mémoires de la margrave d’Anspac. Paris,
1816, 2 vol. in-81, t. II, p. 28.
812. Vie de Joseph Balsamo, p. 103 e 203. E isso que o autor chama, sem dúvida, estar
entre as "mãos macias ” dos juizes eclesiásticos — “O caso foi tratado muito secretamen­
te... Cagliostro, presa de grande tristeza, recusou qualquer alimento durante alguns dias;
pediu aquecimento para sua cela; recusaram-lhe. Em 16 de janeiro ocorreu um interro­
gatório de 5 horas e 12 minutos após o que, no dia 17, o papa ordenou que lhe colocassem
uma coleira e algemas de ferro. Cagliostro profetizou a derrubada do papa e a destruição
do castelo de Saint-Ange. Como ele profetizara a queda da Bastilha e isso ocorrera, sua
nova predição causou grande impressão. ” Borowski. Op. cit., p. 155.
813. E. Rodocanachi. Le château Saint-Ange. Paris, Hachette, 1909, in-JI, p. 238.
814. Perto de Urbino. Rodocanachi diz: em 25 de abril.
815. Carta de Semproni de 23 de outubro de 1792. Fosse sob os golpes dos carcereiros,
sob as "Interrogações ” da Inquisição que se produziam de repente esses gritos lancinantes,
era Cagliostro que estava bêbado, e precipitavam-se para sua cela; os gol­
pes, as bastonadas sistematicamente aplicadas nem mesmo conseguiam fazê-
lo calar-se, diz cinicamente o governador Semproni em sua carta de 30 de
julho de 1793. Seus pedidos eram sempre rejeitados; recusaram-lhe até
mesmo, certo dia em que ele se torcia com cólicas medonhas, a lavagem
intestinal que ele pedia ao médico816.
Embora esse trabalho, feito unicamente por meio de relatos vindos
do clero ou dos oficiais da polícia encarregados da vigilância de Cagliostro,
seja evidentemente hostil ao prisioneiro, encontramos documentos inte­
ressantes.
De 24 de dezembro de 1789 a 7 de abril de 1791, o procedimento do
Santo Ofício se cumpriu metodicamente. Logo que foi preso, Cagliostro
compareceu diante de seus juizes. Logo de início, o Santo Ofício procura
obter confissões, facilitar as declarações comprometedoras que permitam
formular claramente o caso de heresia. Empregam para isso os melhores
métodos: fingem bondade, a estima por seu saber; incitam-no a falar817, a
falar bastante, sem ter o ar de notar nada de estranho, sem manifestar ou­
tros sentimentos além do interesse.
Cagliostro não ignorava que estavam jogando com ele, mas desde­
nhava percebê-lo; deixavam-no falar; era o essencial. Era importante que o
enviado de Deus fizesse ouvir sua voz diante do mais alto tribunal da Or-

não se pode precisar. Todavia, as passagens seguintes só se explicam com as seguintes


hipóteses:
“Interrogado a respeito do motivo de haver gritado assim, ele respondeu que queriam
assassiná-lo em seu interesse. O comissário Stefani não pensou que devia procurar algum
sentido misterioso nessas palavras e concluiu razoavelmente que Cagliostro era louco.
Viu-se obrigado a recorrer às bastonadas. ” (Cartas de Semproni de 4 de julho e 30 de
outubro de 1782).
“Cagliostro fora encerrado com seu confessor, o padre Passi, dominicano, quando de
repente ouviram-se esses gritos e palavras: ‘Alto lá, meu pai, pare! Não quero! Isso não
serve para nada!’... proclamo que sou cismático!’’, (Carta de Semproni de 1! de novem­
bro de 1791.)
816. Cf. Initiation, dezembro de 1905. Quelques documents nouveaux sur le comte de
Cagliostro, pelo Dr. Marc Haven. Esses documentos novos provêm de um estudo do mar­
quês Sommi Picenardi feito a partir das cartas de Donato e dos Archives d’Etat de Pesaro
(Carteggio sulla personna di Giuseppe Balsamo denominato il Conte Cagliostro, relegato
nella fortezza di S. Leo per ordine della Santita di Nostro Signore Papa Pio VI). Esses
documentos formam dois volumes de 137 e 43 páginas (N! 8718-8719). Duas outras pas­
tas, numeradas 8721 e 8720, contêm cartas dos oficiais, dos capelães e de diferentes
personagens oficiais relativos à administração da fortaleza, a Cagliostro, e respostas a
essas cartas. Quantas coisas encontraríamos lá, sem dúvida, e como seria desejável
que esses arquivos de Pesaro fossem integralmente publicados por algum erudito italia­
no e traduzidos para o francês.
817. Vie de Joseph Balsamo, p. 203.
todoxia, desses quatro cardeais, representantes diretos do Soberano Pontí­
fice, para que Roma, um dia, não pudesse negar tê-lo ouvido. O sutil cálcu­
lo dos homens, sem que percebessem, como sempre cumpria uma obra
providencial818.
Dirigindo-se a seus juizes, mais grave e seriamente ainda do que teria
feito a discípulos, sem ver seus sorrisos, pois falava a sua alma, ele lhes
expunha, sem temor e sem véus, os princípios de sua doutrina, dizia-lhes o
que deveria ser a Maçonaria Egípcia, revelava-lhes a importância dela. “A
Maçonaria ordinária é uma rota perigosa que leva ao ateísmo; quis salvar
os maçons desse perigo e trazê-los de volta, enquanto ainda havia tempo,
com um Rito novo, a crença em Deus e na imortalidade da alma819.” E se,
tocados por sua eloqüência, os juizes lhe perguntavam de onde vinha essa
ciência e essa força persuasiva, ele respondia que, por um favor especial,
Deus o inspirava820 e lhe dava um poder que, por si mesmo, ele certamente
não teria. Ele lhes explicava como rezava, reanimando sua fé antes de ope­
rar821; depois, por intermédio de pacientes puros e jovens, sob forma de
visões, ou diretamente, em si próprio, sob forma de impulsos interiores,
como recebia as revelações, as direções que pedira a Deus822. “Eu creio”,
dizia, “que o homem, criado à imagem de Deus, pode, por sua proteção
especial823, conseguir chegar ao conhecimento e ao domínio dos espíritos,
que procedem de outro modo de criação, pois Jesus, antes de sua morte,
deixou-nos e deu a visão beatífica, como testemunham suas próprias pala­
vras: “Ego claritatem qitam dedisti mihi, dedi eis.” Mas nada se pode fazer
senão pela graça de Deus824, graça que Ele dispensa a quem bem Lhe pare­
ce e que apenas os homens de fé, de boa vontade e que praticam a caridade
podem esperar obter825. Tais são o objetivo, os princípios, os Ritos da Ma­
çonaria Egípcia, dizia-lhes ele; “padres e prelados o aprovaram e vocês
também reconhecerão a pureza e a bondade disso, vocês me ajudarão a
apresentar isso ao papa. Ele me escutará, devolverá-me a liberdade e me
dará mesmo sua proteção para minha ordem, já tão difundida826.”

818. “Quando o Filho do amor veio em pessoa nos anunciar, ensinando-nos o caminho
da vida eterna, nós o compreendemos ainda menos por ele falar uma linguagem estranha
a nosso domínio; ele falava amor e ê por isso mesmo que o condenamos à morte; mas por
um mistério desconhecido no tempo, nós realizamos sua obra." Triomphe de 1’Amour.
Paris, 1828, t. Ill, p. 118.
819. Vie de Joseph Balsamo, p. 165 e 167.
820. Vie de Joseph Balsamo, p. 117.
821. Vie de Joseph Balsamo, p. 177.
822. Vie de Joseph Balsamo, p. 174 e 190.
823. Vie de Joseph Balsamo, p. 177.
824. Ritual, p. 30; e Vie de Joseph Balsamo, p. 198.
825. Vie de Joseph Balsamo, p. 192.
826. Vie de Joseph Balsamo, p. 209 — Jacques de Malay também acreditava na sabedo­
ria, na inspiração divina do papa, e pediu para ser ouvido diretamente por ele.
Assim falava ele franca e eloqüentemente82,7 diante dos juizes que
lhe deixavam conceber todas as esperanças e o encorajavam com sua apro­
vação; depois, quando ele fez, sem a menor prudência, a admissão de suas
realizações sociais, de suas obras teúrgicas, declarações que escribas re­
gistravam, quando os inquisidores sentiram que ele não tinha mais nada a
dizer de si mesmo, o decoro e a linguagem dos atores mudaram. Não
mais doçura, não mais promessas, não mais estima fingida; os conselhei­
ros bondosos se tornaram inquisidores impiedosos; o interrogatório827 828 co­
meçava.
Um interrogatório pode ser conduzido segundo a vontade dos juizes;
os do Santo Ofício sabiam fazê-lo bem829. Questões entremeadas bastante
habilmente para que a resposta referente a um ponto pudesse ser atribuída
a outro;830 trocadilhos, armadilhas, duplicidade831, tudo foi aplicado para
perdê-lo; às vezes, sob o pretexto de lhe dar a ocasião de provar que ele era
cristão, ordenavam-lhe que recitasse tal ou tal oração do ritual católico832;

827. Vie de Joseph Balsamo, p. 117.


828. Para seguir esse interrogatório, só temos documentos muito medíocres: a redação
do escrivão que, aliás, desapareceu (Gagnière. Op. cit., p. 47), já devia ser concebida em
um sentido modificado, e a escolha, feita nessa certidão por um autor obviamente hostil
(o padre Marcello), só pode dar informações muito alteradas acerca das palavras que na
verdade Cagliostro pronunciou diante de seus juizes.
829. O juiz, por insinuação, tentava sugerir-lhe sua resposta (Vie de Joseph Balsamo,
p. 189), conduzia-o de algum modo pela mão (Ibid) p. 171, “Seria preciso um volume
inteiro para detalhar tudo o que foi feito para tirar de sua boca a verdadec (Ibid., p.
190). Cortavam-lhe a palavra (Ibid., 207-171), empurravam-no bruscamente para trás
para perturbá-lo, interrogando-o 20 vezes acerca de um mesmo detalhe até que ele
houvesse pronunciado a palavra comprometedora que se queria obter (Ibid., p. 163,
168, 169). Interrompiam o inquérito: tudo terminara; asseguravam ao prisioneiro que
suas respostas haviam sido satisfatórias, que suas penas terminariam; depois retoma­
vam o questionamento e as armadilhas (Ibid., p. 207). Se tivéssemos os textos pruden­
temente suprimidos dos Arquivos do Vaticano, só poderiamos consultá-los lembrando-
nos, todo o tempo, de que se trata de um processo da Inquisição. O processo dos Tem-
plários, para citar apenas um, aproxima-se muito do de Cagliostro. Aquele que houver
estudado suas peças jurídicas já estará mais bem preparado a compreender certas obs­
curidades do processo de Cagliostro.
830. P. 315. Querem fazê-lo reconhecer exata uma denúncia anônima que declarava que
Cagliostro falava habitualmente contra Cristo, contra os sacramentos ou contra outras
verdades respeitáveis.
831. P. 189-190. Ele admite um dia que, havia pouco, concebera dúvidas acerca do fim e
do caráter da Maçonaria; algum tempo após, declararam-lhe que ele próprio admitira e assi­
nara que bem sabia, ao propagar sua Maçonaria, estar agindo contra a religião. — “Não
admito esse trocadilho! Será que não ouço mais a mim mesmo?” respondeu Cagliostro
indignado e irritado com esses procedimentos.
832. Atos de fé, de esperança e de caridade. Vie de Joseph Balsamo, p. 173.
pediam-lhe definições teológicas833: era um exame de catecismo. Cagliostro,
a quem essa logomaquia não convinha, respondia segundo o espírito, com
uma amplidão filosófica mais católica que a pergunta, com um simbolismo
largo, a essas perguntas estreitas: e sua “ignorância criminosa do número dos
pecados capitais”, “suas opiniões heréticas a respeito do jejum e do jejum
dos Quatro Tempos (refeições magras nos três primeiros dias de cada esta­
ção do ano834)” eram cuidadosamente registradas por seus juizes.
As denúncias pagas835 ou espontâneas se acumulavam também: aque­
les que haviam frequentado Cagliostro, temerosos diante da Inquisição,
ficavam muito felizes em comprar sua tranquilidade com algum depoi­
mento para acusação836. Quando os depoimentos espontâneos não basta­
vam, procuravam-se outros, interrogavam a condessa de Cagliostro. Frágil,
tímida, alquebrada por sua vida de provações, assustada pela infelicidade
de seu marido, entregue aos padres hábeis que a rodeavam, ela era um
joguete entre suas mãos. A intimidação, as promessas, as ameaças, que não
agiam sobre Cagliostro, sempre eram bem-sucedidas com ela; segundo o
que se queria obter, diziam-lhe que sua resposta, feita em tal e tal sentido,
podería salvar seu marido; a pobre mulher, ingênua e devotada, apressava-
se em responder o que queriam. Foi assim que ela ora certificava os poderes
teúrgicos de Cagliostro837, ora sustentava que suas adivinhações se expli­
cavam com razões muito simples e totalmente humanas838; que lhe fizeram
declarar pouco a pouco sobre as patifarias, a ignorância ou, ao contrário, as
miraculosas ações de seu marido, tudo o que era necessário ao procedi­
mento839. E quando Cagliostro, para sua defesa, fazia apelo ao testemunho

833. “Será possível crer que, ao ser interrogado a respeito das virtudes cardeais, ele
respondeu serem as mesmas que as virtudes teologais! — e que o sacramento de confir­
mação era a confirmação do batismo! — que ele não sabia quantos eram os pecados
capitais!", escreve com indignação o padre jesuíta, autor da Vie de Joseph Balsamo.
Evidentemente isso merecia a tortura e a morte exemplar.
834. Vie de Joseph Balsamo, p. 173. Eliphas Levi. Homem de imaginação, que, com fre­
quência, falava no lugar daqueles que supostamente citava, conta a respeito desse assunto
a anedota seguinte cujo espírito é exato, exceto o texto: “Os juizes se irritaram, pergun­
taram-lhe bruscamente o nome de sete pecados capitais; ele nomeia a luxúria, a inveja, a
avareza, a gula e a preguiça. ‘O senhor esquece o orgulho e a cólera’, disseram-lhe.
’Perdoem-me’, retomou o acusado, ’eu não os esquecí, mas não queria dizer seu nome
por respeito e medo de ofender os senhores.’ ”
835. Cf. Duas páginas adiante.
836. Vie de Joseph Balsamo, p. 216. — Gagnière. Op. cit., p. 49-40.
837. Vie de Joseph Balsamo, p. 178.
838. Ibid., p. 176, 177.
839. “Prove-nos que seu marido é um ignorante, que só devia seus sucessos oratórios à
excitação artificial do álcool, o sucesso de suas operações a representações, e a senhora
o salvará do crime de magia. Não temos por que perseguir um charlatão, isso não nos
preocupa nem nos diz respeito ", diziam-lhe. E outro dia: “Se tivéssemos realmente pro­
vas de seu saber, fatos reais, indiscutíveis da proteção de Deus sobre ele e suas obras, se
de sua mulher, sofria a dor atroz de saber que ela havia justamente deposto
em sentido contrário a suas declarações.
Quase sempre, com esses diferentes procedimentos, o Santo Ofício
obtinha os elementos necessários à redação de seu ato. Mas quando, apesar
de tudo, Cagliostro não queria fornecê-los, se se recusava a admitir um
crime de que era inocente, a assinar a folha em que se haviam escrito as
confissões fictícias ou as blasfêmias*840 que diziam que ele pronunciara,
restava um último meio especial à Inquisição: a tortura. Usaram-na841.
A força física tem limites; a coragem, a tenacidade se tornam revol­
tas, desarrazoadas, cansativas ilusões, quando se chocam com o impossí­
vel. Cagliostro viu a inutilidade de seus esforços, a falsidade, a opinião
imutável de seus juizes. Cansado de ser manipulado e torturado, renun­
ciou à luta, abandonou-se, entregou-se a tudo o que exigiram os inquisi­
dores, certo do resultado final, buscando então apenas evitar, para seus
carrascos, assim como para si mesmo, um mal maior ainda. Os inquisido­
res, mestres da situação, tendo em mãos todas as armas necessárias para
esmagar Cagliostro, acusado do fato de heresia, passaram ao segundo ato
de sua obra destrutiva.
Não bastava que Cagliostro desaparecesse, era preciso desconsiderá-
lo junto aos discípulos, perdê-lo na opinião dos homens. Para que sua obra
degringolasse, para aniquilar sua seita e abalar a Maçonaria com sua queda,
era indispensável mostrar a todos um Cagliostro esmagado, arrependido,
de volta ao regaço da Igreja Católica, renegando sua obra, abjurando seus
erros. Pelos mesmos procedimentos, com a privação, os sofrimentos, a vio­
lência, fizeram com que Cagliostro aceitasse confessor após confessor,
capuchinho após jesuíta. Esses diretores de consciência entravam em sua

suas predições, suas operações fossem notáveis e verdadeiras, seria matéria de exame e
isso relevaria da mística divina, não da magia negra. Seu marido seria um santo.” — E a
pobre prisioneira, sem guia, isoladamente interrogada, fazia tudo para salvar seu marido,
para salvar a si própria, e tudo era conduzido para que suas respostas o destruíssem ainda
mais.
840. Vie de Joseph Balsamo, p. 214.
841. Não foi o doce autor da Vie de Joseph Balsamo quem nos revelou isso, embora
algumasfrases de seu livro e certos atos de Cagliostro se esclareçam imediatamente quando
pensamos a respeito. Mas as cartas de Semproni (Cf. p. 252) estão lá para provar. Os
costumes da Inquisição são conhecidos e não se modificaram: “As formas judiciárias da
Inquisição não admitiam nenhuma discussão: não era um processo que se debatia entre
o acusador e o acusado. 0 procedimento era sempre secreto efeito a partir de peças que
o acusado nunca via. Nenhum defensor era admitido. As denúncias eram aceitas como
depoimentos que o acusado não podia discutir. Pagavam-se delatores. Enfim, o acusado
devia acusar a si mesmo se queria merecer a indulgência dos juizes. Proibia-se o compa-
recimento definitivo à justiça dos acusados como Cagliostro, do qual se esperavam tirar
novas confissões, e mesmo, se sua memória hesitasse, uma curta visita à sala de tortura
desatava prontamente a língua dos mais obstinados. ’’ Gagnière. Op. cit., p. 50.
cela acompanhados e só saíam com uma retratação nova, uma confissão
geral, uma súplica humilde arrancada do prisioneiro842.
Aliás, era algo bem fácil; Cagliostro resistia cada vez menos843844, esgo­
tado e sem ilusões. Enviaram-lhe tais livros, tais monges, que ele foi leva­
do mesmo a pedir outros; era o que queriam. Contavam em seguida —
pois, para essa obra pia, o Santo Padre havia “dignado dispensar da lei do
segredo absoluto que acompanha sempre, com tanta justiça quanto pru­
dência, os procedimentos da Santa Inquisição644” — com que confusão,
com que baixeza ele reconhecia sua heresia, com que peso no coração pedia
perdão à Igreja; sua resignação era representada como covardia, sua submis­
são às exigências cruéis de Roma, como uma abjeta hipocrisia845. Juntavam-
se a isso, sobre seus hábitos e sua vida, todas as calúnias emprestadas às
delações, aos falsos testemunhos dos interesseiros. Publicadas na imprensa,
divulgadas em panfletos e brochuras, difundidas em todas as conversas e
correspondências, essas notícias chegavam rápido aos ouvidos de seus discí­
pulos, de seus amigos e perturbavam sua alma846.
Para obter uma abjuração oficial, mandaram-lhe, com a desculpa de
aconselhá-lo, não um advogado847, o que era já contrário aos usos da Inqui­
sição848, mas dois advogados, o Sr. conde Gaetano Bernardini e msr. Charles-
Louis Constantini, advogado dos pobres, que empregaram sua eloqüência
em demonstrar que seu caso era claro, que a fogueira o esperava, senão
mais849; que um único meio se oferecia para que ele escapasse dessa morte
atroz: era assinar uma abjuração solene, cujo texto lhe traziam; isso o salvaria

842. Vie de Joseph Balsamo, p. 204, 206, 217. — Gagnière. Op. cit, p. 54, 55. — Lettres
de Semproni, p. 262 deste livro.
843. Algumas revoltas logo contidas ainda lhe escapavam, mas cada vez mais raramente.
Vie de Joseph Balsamo, p. 215.
844. Vie de Joseph Balsamo, prefácio, XXIII
845. E triste ver autores, mesmo liberais e esclarecidos como o Sr. Gagnière, engolir
essas opiniões e não compreender os dramas que se passaram na vida de Cagliostro.
846. Vimos o quanto Sarrasin e Lavaterforam afetados. O Testament de mort, as Confessions,
a Vie de Joseph Balsamo, traduzidas em todas as línguas, datam dessa época.
847. Advogado religioso, é bom notar: um monsenhor da cúria.
848. Nenhum defensor era admitido, como dissemos antes, p. 229.
849. Cagliostro, ao ser reconhecido formalmente herético, “recaía em todas as penas e
censuras que pedem a morte exemplar" (Texto da sentença). Ora, os Bandi generali dis-
tinguiam dois tipos de morte: a pena della vita, enforcamento ou decapitação; a morte
exemplare, ou seja, a fogueira, a roda, o esquartejamento, o arrancamento das entranhas
etc. ( Gagnière. Op. cit., p. 51). “A heresia, diz o Manual dos Inquisidores, é o maior dos
crimes: a morte não o extingue; é preciso persegui-la até no túmulo. A morte é solidária
com os atos e pensamentos do vivo; se por acaso ele houver sido inumado, arrancá-lo-
emos da terra protetora, arrastá-lo-emos miseravelmente pelas ruas; atirá-lo-emos no
depósito de lixo e isso será um terrível exemplo para o povo. ” Os advogados da cúria não
exageravam, portanto, as penas com que ameaçavam Cagliostro.
— “a garantia é segura e formal850” — de novas torturas. Eles a obtiveram
e, desde então, todos os procedimentos foram encerrados.
Em 7 de abril de 1791, Cagliostro compareceu diante da Congregação
na presença do papa851 para ouvir, de joelhos, com a cabeça coberta de um
véu negro, a leitura da sentença seguinte: “Joseph Balsamo, atingido e acu­
sado por diversos delitos e por ter incorrido nas censuras e penas pronuncia­
das contra os heréticos formais, os heresiarcas, os mestres e discípulos da
magia supersticiosa, censuras e penas estabelecidas tanto pelas leis apostóli­
cas de Clemente XII e de Benedito XIV852 contra aqueles que, de qualquer
maneira, favorecem e formam sociedades e conventículos de maçons e pelo
Edito do Conselho de Estado, erguido contra aqueles que forem culpados
desse crime em Roma ou em qualquer outro lugar de dominação pontificai.
Porém, a título de graça especial, a pena que entrega o culpado ao braço
secular (ou seja, a morte exemplar) é comutada em prisão perpétua em uma
fortaleza, onde ele será estreitamente guardado, sem esperança de graça, e,
depois de ter feito a abjuração, como herético formal no lugar atual de sua
detenção, ele será absolvido das censuras e lhe prescreverão penitências sa­
lutares às quais ele deverá se submeter.853854
” Essa sentença, “igualmente ab­
surda e cruel”, diz a Feuille Villageoisei54, ergueu a indignação de todos os
espíritos racionais da Europa. O tradutor da Vie de Joseph Balsamo, embora
muito hostil a Cagliostro, não pôde evitar juntar a sua voz ao concerto de
reprovação que se elevou contra o ato da Inquisição855.
Treze dias depois, em 20 de junho, ocorreu a odiosa cerimônia de
abjuração pública e o auto-de-fé. “O Santo Ofício queria oferecer o taumaturgo
em espetáculo à população, mostrar, em sua abjeção de arrependido, esse
maçom herético. Cagliostro, em traje de penitente, pés nus, um círio na

850. Vie de Joseph Balsamo, p. 216.


851. “A presença de Pio VIIprova toda a importância política que ele dava ao caso. Não
há exemplos de que um Soberano Pontífice tenha-se dignado a assistir a um julgamento
de herético. ” Gagnière. Op. cit, p. 50.
852. A bula de Clemente XII, In eminenti, de 26 de abril de 1738, confirmada pelo Edito
de 14 de janeiro de 1739, proíbe, sob pena de morte exemplar, a afiliação à Maçonaria,
impondo a todos a obrigação da delação. A Bula de Benedito XIV, Providas romanorum
ponctificum, de 18 de maio de 1751 confirma os éditos precedentes.
A prova da sabedoria desses éditos pronunciados “porque se ignora se a seita maçônica
é inocente ou criminosa” (Vie de Joseph Balsamo, p. V); a prova de que eles foram inspi­
rados pelo Espírito Santo é encontrada pelo padre jesuíta Marcello, autor da Vie de
Joseph Balsamo, no fato de que diversos príncipes, entre outros o Grande Turco, em 1748,
agiram da mesma maneira e proscreveram os maçons (Vie de Joseph Balsamo, p. 88).
853. Vie de Joseph Balsamo, p. 220-221. O Sr. Gagnière dá uma versão mais curta dessa
sentença, que ele diz textual)?), idêntica, aliás, no sentido, diferente apenas na escolha
dos termos.
854. Ano de 1791, N? 34, p. 129. “A águia romana está armada com as garras da supers­
tição: desgraça ao que cai em suas unhas impiedosas. ” Id., Ibid.
855. Vie de Joseph Balsamo, avertissement, p. 5 e 6.
mão, percorreu entre duas fileiras de monges o trajeto do castelo Saint-
Ange a Santa-Maria. Ali, ajoelhado diante do altar, ele pediu perdão a Deus
e à Santa Igreja e abjurou seus erros! A comédia fora representada856.”
Quem podería imaginar qual devia ser a dor de Cagliostro!
Na praça vizinha, nesse meio tempo, o carrasco queimava solenemente
todos os seus papéis, seus livros, os manuscritos e rituais, os ornamentos da
Maçonaria Egípcia, como fora ordenado na sentença857.
“No dia seguinte, o prisioneiro, acordado de repente, foi conduzido
durante a noite, sob boa escolta, a Saint-Leo. Durante seu sono, haviam
substituído seus trajes habituais por um novo que ele teve de usar. Todas
essas precauções haviam sido ordenadas pelo cardeal secretário de Esta­
do, que esperava talvez encontrar os traços de uma correspondência de
Cagliostro com o exterior. Tanto que, logo após a partida do prisioneiro, o
cardeal Zelada ordenou ao governador de Saint-Ange que desse todas as
comodidades possíveis aos dois ministros do Santo Ofício encarregados
de executar a ordem do Soberano Pontífice, que consistia em fazer uma
perquisição minuciosa, tanto na cela em que fora trancafiado Joseph
Balsamo quanto em suas roupas e livros que ficaram aqu858.”
Em San-Leo, em sua cela obscura, ainda menor que a de Saint-Ange,
as torturas recomeçaram; as cartas de Semproni, da qual citamos antes
algumas passagens859, são bastante explícitas referente ao assunto: o fim
de sua catividade foi um martírio: a Inquisição continuou sobre ele, mesmo
após sua sentença, o exercício de inúteis tormentos. Em 11 de setembro,
em seguida a uma carta anônima recebida pelo cardeal Doria, advertindo­
o de um pretenso projeto feito pelos franceses de raptar Cagliostro com a
ajuda “dessas novas invenções voadoras chamadas balões”, transferiram
Cagliostro de sua cela para outra, diz 11 Pozzetto (nome que significa apro­
ximadamente oubliette, poço ou esgoto), sem dúvida para que se ouvissem
menos seus gritos; foi ali que seus sofrimentos acabaram.
A nota consagrada pelo marquês S. Picenardi à detenção de Cagliostro
em Saint-Leo contém diversos detalhes a respeito desses longos e horríveis
meses de agonia. O autor italiano tentou em vão apresentar tudo isso sob
uma forma atenuada, administrativa, e demonstrar pelos números do orça­

856. Gagnière. Op. cit., p. 54.


857. “O livro manuscrito que tem como título A Maçonaria Egípcia... será queimado
publicamente pela mão do carrasco com os instrumentos que pertenciam a essa seita."
sentence in: Vie de Joseph Balsamo, p. 221. — Escreveram de Roma a Paris, em 4 de
maio de 1791: “Ontem se cumpriu a sentença que ordenava que os papéis e os bens do Sr.
Cagliostro fossem queimados sobre a Praça de Minerva. Ela durou três quartos de hora.
O povo fez uma festa. A cada utensílio que se lançava ao fogo, livros, cartazes, patentes
ou cordões de Maçonaria, a multidão batia palmas e dava gritos de alegria. ” Gazette
Nationale (Moniteur universelj, n.° 159 de quarta-feira, 8 de junho de 1791.
858. Gagnière. Op. cit., p. 54.
859. p. 262 deste livro.
mento que essa prisão devia ser amena para os detidos860; em vão explicou
tudo, no início, como sendo enganação de Cagliostro, que representava uma
comédia, e, no fim, como sendo sua loucura, seguida do alcoolismo(l) em
um homem violento e maníaco; a impressão geral que se tira dessa leitura é
atroz. E se pensarmos que isso faz cem anos, que esse homem, não importa a
opinião que se tenha dele, não era um criminoso, que ele só era perseguido
por suas idéias e não por fatos861, perguntamo-nos se estamos sonhando, se
amanhã tais coisas não voltarão, se as fogueiras foram bem apagadas!
Quando as tropas francesas penetraram na Itália, quando sua chegada
a Roma pareceu ameaçadora, os inquisidores tremeram e a ordem foi de
acabar com Cagliostro em sua cela. Em seguida, divulgou-se a notícia de que
ele morrera de apoplexia e a certidão de óbito foi estabelecida sobre essa
base862. Mas o secretário do papa admitiu ao antiquário Hirt que Cagliostro
foi mesmo morto em sua cela porque quis, segundo o secretário, saltar ao
pescoço de um padre que vinha vé-Zo863.
Segundo a certidão de óbito, ele morreu em Saint-Leo em 26 de agos­
to de 1795, às 3 horas da manhã864. Seu corpo foi enterrado em um terreno
baldio da fortaleza, pois a sepultura religiosa lhe fora recusada865.
O arcipreste de Saint-Leo, ao preparar a certidão de óbito, reconhe­
ceu que foi preciso que Cagliostro tivesse uma extraordinária “teimosia”

860. O Sr. Gagnière acha que Cagliostro foi bem tratado! “Nem mesmo lhe puseram
ferros aos pés ”, diz ele. Op. cit., p. 43. Seria, após tudo o que dissemos acerca dos proce­
dimentos do Santo Ofício, um argumento insuficiente, mesmo se fosse verdadeiro. Mas
não o é. Cagliostro foi acorrentado em sua cela. Cf..- Borowski. Op. cit., p. 134.
861. Nós o demonstramos: Cagliostro foi preso por suas convicções, pelo papel que ele
representara na Europa e não por um ato ilegal como teria sido o de fundar uma Loja em
território romano: os próprios inquiridores do Santo Ofício foram obrigados a reconhecer
isso. “Aí causas de sua prisão são incertas ”, escreve um contemporâneo: “acusam-no
de ser um mau católico, que não pratica nem a missa, nem o jejum da sexta-feira. ”
Borowski. Op. cit., p. 134.
862. Vide Apêndice, p. 264. A notícia foi divulgada pelo Kracas, jomal semi-oficial do
Vaticano.
863. Lavater, informado disso por Hirt, anunciou essa notícia a Sarrasin com uma carta
que está nos Arquivos Sarrasin, vol. Vil, cota 39, e a confirmou em seguida, após haver
conversado com Hirt quando este voltou de Roma. Mesmos arquivos, vol. Vil, cota 40. Hirt
repetiu-lhe que sua execução não foi pública, mas que era fato seguro e notório e que ele o
soubera de fonte muito segura. Foi o que serviu de pretexto aos amantes do maravilhoso,
que não podiam admitir a morte de um homem como Cagliostro para contar que ele fugira
com os trajes de seu confessor e que em sua cela só haviam encontrado um cadáver desfigu­
rado (o do padre), vestido com os trajes de Cagliostro. Esse Cagliostro assim fugido se
tomava imortal: desde então, ele foi visto, aqui e ali, segundo as necessidades de tais ou
tais interessados. Eliphas Levi propagou tolamente essa lenda desrespeitosa.
864. Mas nada nos prova a veracidade dessas informações além do ato dos registros
pontificais. As cartas de Lavater dão uma data mais recente para a morte de Cagliostro.
O fato, aliás, é secundário: o que é importante é a admissão do assassinato do prisionei­
ro, coroando seu martírio.
865. Vide Apêndice, p. 264.
para resistir por mais de quatro anos aos sofrimentos de sua prisão866. O Sr.
Sommi Picenardi deveria ter aprofundado essa frase: “Não se viviam dez
anos em uma cela da Inquisição; a morte, mais clemente que o papa, vinha
libertá-lo”, disse o Sr. Gagnière em seu estudo tão consciencioso a respeito
da Inquisição em Roma no final do séc. XVIII867. Ele também compreendeu
e fez observar que os últimos momentos de Cagliostro, desse homem de
energia tão viva, devem ter sido atrozes868.
Os batalhões franceses chegaram em 19 de fevereiro de 1797 às por­
tas de Roma. Imediatamente, os oficiais pediram informações acerca de
Cagliostro: disseram-lhe que ele estava morto. O general Dobrowski, que
ocupou Saint-Leo, mandou libertar de suas celas todos os prisioneiros da
Inquisição. “Amigos”, dizia o general em sua proclamação aos prisionei­
ros, “amigos, vocês estão livres. A República Cisalpina, ao destruir uma
das Bastilhas do governo pontificai, devolveu-lhes todos os seus direitos.”
Depois ele mandou explodir a fortaleza de Saint-Leo869.
A Sr? de Cagliostro havia, também, desaparecido. Em princípio encer­
rada no convento de Santa-Appolonia do Transtevere870, não estava mais lá
em 1799. Havia sido transferida secretamente para outro lugar? Havia mor­
rido de tristeza poucos meses após seu marido, como declararam as religio­
sas aos amigos que buscavam seu traço871, ou morrera por maus-tratos? Não
se sabe. A verdade é que a salvação veio tarde demais para ela, assim como
para Cagliostro.
Cagliostro, fiel à sua tarefa, desprezando os sofrimentos e a sua vida,
levara a luz até o pé do Vaticano, que a rejeitou e extinguiu com o sangue
do apóstolo: também ali a taça das iniqüidades estava cheia. Esses foram os
últimos atos e os últimos dias da Inquisição872 e, para Roma, o início da
derrota. Saint-Leo foi derrubada em 1796. Napoleão trouxe, em 1797873, o
golpe fatal à autoridade papal; vemos desmoronar há um século, com uma
velocidade progressiva, o colosso dos pés de argila que durante quinze
séculos esmagou as inteligências e aterrorizou as almas.

866. Vide Apêndice, p. 265.


867. P. 54; estudo que citamos com tanta frequência.
868. Gagnière. Op. cit.., p. 56.
869. Esse fato histórico, desconhecido até aqui, foi estabelecido pelos Arquivos de Milão
e foi assinalado pela primeira vez pelo Sr. Gagnière. Op. cit., p. 56. Ele pode ser compa­
rado à destruição da Bastilha após a detenção de Cagliostro.
870. Rodocanachi. Le Château Saint-Ange, Paris, 1909, in f. °, p. 238.
871. Gagnière. Op. cit., p. 52.
872. Eiguier. Hitoire du merveilleux. Paris, 1861, t. IV, p. 128.
873. O tratado de Bolonha foi imposto em 23 de junho de 1796; o papa faltara com todos
os seus compromissos e Napoleão enviou suas tropas a Roma (janeiro de 1797); o tratado
de Tolentino foi imposto em fevereiro de 1797; os generais Victor e Duphot permanece­
ram em Roma para controlar sua execução. O papa mandou assassinar Duphot; em 10 de
fevereiro de 1798, Berthier entrou em Roma: o papa foi exilado em Siena, Florença e, em
seguida, no Dauphiné; morreu em Valença.
Capítulo X

Observações acerca da Vida


e da Morte de Cagliostro —
O Espírito das Trevas

Assim morreu o divino Cagliostro, o ser de luz e de bondade, lançado


como presa à loba romana que se vingou nele de seus terrores e suas derrotas.
Entregue, senão traído, por aquela que ele mais amou, abandonado por aque­
les que ele cobrira de bondade874, perseguido, não por fatos, mas por tendên­
cias, preso por abuso de poder, condenado a uma pena sem qualquer relação
com os delitos que lhe imputavam, torturado sem piedade, ele terminou com
o martírio uma vida de apostolado e piedade.
Se ele houvesse sido culpado em Palermo, em Roma, em Paris875, em
Londres, pelos menores fatos de que quiseram acusá-lo, teria encontrado
nesses países juizes e castigos; mas nenhum tribunal, em qualquer lugar,
julgou-o repreensíve876; cabia ao pretenso representante de Deus, aos
pretensos defensores das verdades eternas que ele encarnava, matá-lo com
total desprezo pela justiça.

874. A ordem de Malta, os maçons, seus discípulos, permaneceram como espectadores


indiferentes ou mesmo o renegaram. Os russos o haviam rejeitado, Estrasburgo, esqueci­
do; a França o expulsou, Londres o entregou a Roma.
875. Em Paris, quando do processo do Colar, uma queixa de “impiedade e profanação”
foi feita contra ele (Gazette de Leyde, n? XVI de 21 de fevereiro de 1786). Ele foi julgado
inocente desse fato assim como dos outros: nem mesmo restava em Roma a novidade de
uma acusação.
876. “Os juizes de Roma não tinham nenhum direito de persegui-lo por crimes cometidos
fora de seu território e para os quais eles não tinham corpo de delito; todavia, foi em
Roma que ele foi condenado. ” Vie de Joseph Balsamo. Avertissement, p. IV. O tradutorfoi
obrigado a reconhecer esse abuso de poder.
Mas o que importava a justiça! Tudo era igual para os inquisidores:
quaisquer que fossem as ações, as crenças de sua vítima, que Cagliostro
fosse ou não culpado de heresia, que ele praticasse a magia divina ou a
magia negra, que fosse santo ou incréu, de hábitos puros ou depravados, os
cardeais não se preocupavam. Cagliostro era um perigo para Roma; ele
devia desaparecer. Desde o dia de sua prisão, sua morte estava decidida.
Seus juizes sabiam bem que ele ensinava a existência de Deus, a imor­
talidade da alma, a obediência às leis, o próprio respeito a seu culto877. Eles
não ignoravam que sua vida fora um modelo de caridade e de sabedoria,
que ele devolvia a saúde aos corpos enfermos, a visão às almas cegas.
Eles sabiam que seus discípulos, longe de ser mergulhados por ele nas
trevas, bebiam em suas palavras e em seu exemplo as mais fortes virtudes
e a mais fecunda energia. Eles sabiam demais, e esse era precisamente o
motivo de seu medo.
Que um homem excepcional que não era católico praticante878, que
não se declarava filho submisso da Igreja romana, propagasse uma doutri­
na tão mais terrível por ser melhor e mais próxima do puro Cristianismo,
tão mais ameaçadora por fazer apelo a todos os homens sem distinção de
raças, de nações ou de cultos879, eis qual era o terrível perigo, eis a queixa
verdadeira, a única, a inadmissível razão de seu ódio e de seu encarniça-
mento. Roma lutava desesperadamente pela manutenção de seu poder tem­
poral, por seus bens terrestres, por seu monopólio. Era o próprio Cristo que
os padres perseguiam na pessoa de Cagliostro; era o espírito de verdade
libertadora que eles queriam exterminar em seu porta-voz.
“Que morra!”, gritavam eles, repetindo as palavras antigas, “que
morra!” Pois verificamos que este homem é uma peste e que por toda a
terra ele promove uma sedição entre os judeus e é também o chefe da here­
sia dos nazarenos.
“Ele tentou até mesmo profanar o templo. Assim nós o apanhamos
com o intuito de julgá-lo segundo nossa ler880.”

877. Liber Memorialis. Trad, francesa. Paris, 1910, p. 45 —Abade Georgel. Mémoires.
Paris, 1817, t. II, p. 45. Relatório contra o procurador-geral. Paris, 1786, in-16, p. 6 e 75.
Ritual da Maçonaria Egípcia, p. 30, 40, 75, etc.
878. O ministro de Sardenha, em Roma, Donato, conta que o motivo da prisão de Ca­
gliostro foi, ou que ele era maçom, “ou que ele impedira sua mulher de se confessar”. Ver
também Borowski. Op. cit., p. 134.
879. Ritual da Maçonaria egípcia, p. 75. “Ele não acusava nenhum culto: queria mesmo
que se respeitasse o culto dominante. A Divindade, dizia ele, prefere o culto simples e
puro da religião natural; mas ela não se ofende com o que os homens acrescentaram em
diferentes tempos, segundo as circunstâncias e os climas, para adorar o Criador e expri­
mir suas ações de graças.” Georgel. Mémoires. Paris, 1817, in-8?, t. II, p. 46.
880. Atos dos Apóstolos, XXIV: 5-6.
Capítulo XI

Joseph Balsamo e o
Conde de Cagliostro

Após o processo do Colar e a absolvição de Cagliostro, em seguida às


ações intentadas por ele contra os senhores Chesnon e de Launay, esses
dois personagens, por sua vez, ameaçados defenderam-se energicamente:
compraram primeiro Morande e, de comum acordo, buscaram provar que
esse Cagliostro, honoravelmente liberto da causa pelo Parlamento, era um
impostor. Eis como sua campanha foi conduzida.
Em 1786, o comissário Fontaine, de Paris, colega de Chesnon, en­
controu em seus arquivos um dossiê de fevereiro de 1773, em que o nome
Feliciani, mulher de Balsamo, atraiu sua atenção. Ele o mostrou a Chesnon;
Morande o pegou e anunciou imediatamente881 que Cagliostro era apenas
um “poluidor” do nome de Balsamo, já conhecido da polícia em Londres e
em Paris: suscitou testemunhos, publicou artigos sobre artigos882, fez es­
crever correspondentes, semeou a novidade nas Lojas, que se divertiam883.
Mas o fato mediocremente interessante para o público de que
Cagliostro era um simples mortal, nascido de pais italianos e não de um
delegado de Meca, história ante a qual todos sorriam, não bastava. Era
preciso que o homem encontrado fosse ainda um criminoso; vasculharam a

881. A tática foi muito hábil: Morande escreveu primeiro no Courrier de 1’Europe (27 de
fevereiro de 1787), sem provas, a respeito de confidências feitas a ele, dizia, de que o
conde de Cagliostro com freqüência se apresentara como Balsamo, em particular em
Londres, onde ele já morara em 1771. Foi apenas então que o comissário Fontaine decla­
rou, como confirmação surpreendente das revelações de Morande, que, com efeito, o cha­
mado Balsamo, cuja mulher se chamava Feliciani, também tivera entreveros com a polí­
cia de Paris em 1773.
882. No Courrier de Londres (fevereiro a junho de 1787), na Gazette de Leyde, nas Notizie
dei Mondo, de Florença (n? 83 de 1786).
883. Em 21 de novembro de 1786, a Loja “Antiquity" do Rito Escocês recebeu Caglios­
tro. Uma caricatura foi publicada sobre essa reunião. (Cagliostro unmasked, etc.) repro­
duzida in: The Monist, julho de 1903.
vida do dito Balsamo; exumaram-se os relatórios da polícia, receberam car­
tas referente a ele que o pintavam sob as cores mais negras; contos, acusa­
ções, fantasias,884 tudo se acumulava ainda mais facilmente porque não ha­
via nenhum Balsamo para protestar e Cagliostro não tinha nenhuma razão
para tomar a defesa de um Balsamo. Contentou-se em declarar, na ocasião885,
que ele não se chamava Balsamo, assim como não se chamava Tischio ou
Baltimore. Goethe interveio nesse debate, em 1787, e, pomposamente, pu­
blicou uma árvore genealógica do chamado J. Balsamo886, personagem mui­
to autêntico sem dúvida, mas cuja genealogia, por mais exata que seja, nada
prova em relação a Cagliostro. Goethe acreditou, porém, com essa nota, ter
contribuído grandemente para esclarecer a humanidade; ele escreveu e seus
leitores repetiram. Seu papel, de fato, foi insignificante. Goethe estava de
passagem por Palermo; mostraram-lhe o dossiê Balsamo e a árvore
genealógica; ele foi ver a família; deu à mãe e aos filhos algumas falsas
esperanças887, fez papel de generoso com o dinheiro de um amigo e eis toda
a sua obra. Não acrescentou nenhum documento ao dossiê já organizado
pelo advogado que o conduzia e cujo nome ele nem forneceu. Por intermé­
dio desses testemunhos, pelas pesquisas feitas na Itália, estabeleceu-se um
fato: que um certo Joseph Balsamo nasceu em Palermo, em 2 de junho de
1743, deixou a região muito jovem, casou-se em Roma, em 1768, com uma
certa Lorenza Feliciani, filha de um ourives, desapareceu em seguida até
1771, quando foi visto em Londres888; que em Paris, em 1773, teve de ajustar
contas com um rico depravado que fez a corte a sua mulher e que ele teve de
recorrer à justiça para lhe tomar de volta a conquista; que, em seguida, per­
deu-se seu traço.
Eis os fatos Balsamo claros, completos, tais como estão nas peças
oficiais889. Eles parecem exatos e estabelecem indiscutivelmente a existên­
cia, a genealogia e as aventuras de alguém chamado G. Balsamo890.

884. Ma Correspondance, in-16 — Anos 1785, 86 e 87.


885. Lettre au peuple anglais, in-4°, (1787), p. 56-57.
886. Goethe, a quem o misterioso Cagliostro irritava, não estava descontente ao publicar
essa história, em provar a seus amigos, e sobretudo a suas amigas, que apenas ele vira
claro ao não se deixar seduzir pelo farsante que os havia ofuscado. Cf. Goethe. Voyage en
Italie, p. 34.
887. Falsas informações acerca de seu filho, que ele supostamente conhecia; promessa
ilusória de obter uma bolsa de estudos para um dos filhos.
888. Essa presença em Londres, em 1771, nãofoi demonstrada; ver: Lettre au peuple anglais.
889. Dossier du Comissaire Fontaine (Enquête Gugino). In: Campardon, Marie-Antoinette
et le Procès du Collier. Paris, Plon, 1863, p. 410. — Deposition Bracconieri. In: Courrier
de 1’Europe de 15 de junho de 1787. — Actes officiels d’origine ecclésiastique: Extraits de
naissance, de manage, de décès, reproduzidos in: Apêndice, p. 260 e 263.
890. Note-se que teria sido possível, ao acreditar-se em Sachi, encontrar um Tischio de Nápo­
les, filho de um cabeleireiro, narrar sua origem, sua odisséia, que teriam sido verdadeiras,
positivas também, e em seguida imputar a Cagliostro todas as responsabilidades da vida
desse indivíduo até 1778. O método teria sido o mesmo e a discussão, igualmente difícil.
Entre a vida desse personagem e a de Cagliostro o que há de comum?
Sobre que pontos seus adversários se fundaram para tentar demonstrar a
identidade dos dois personagens? É o que indicaremos, discutindo, à medi­
da que surgem, cada um de seus argumentos.
Quando Morande lançou a notícia de que o Balsamo do comissário
Fontaine e de Cagliostro eram uma só pessoa, um correspondente anônimo
escreveu de Palermo ao comissário Fontaine891 uma carta em que declara­
va que o Sr. Bracconieri lhe assegurara que Cagliostro não passava de seu
sobrinho J. Balsamo: 1? porque seu sobrinho, um aventureiro cuja idade
corresponde à de Cagliostro, percorrera a Europa, como o outro, sob dife­
rentes nomes;892 2? por seus sinais característicos — “é baixo, muito moreno,
o nariz chato, de uma figura feia” — correspondiam aos de Cagliostro;893
3? porque se sua mulher, que se chamava Lorenza {apenas isso?) era cha­
mada então Serafina Feliciani, é porque fabricara esse nome tomando do
primeiro nome de uma tia de Balsamo (Serafine Bracconieri) e do primeiro
nome de sua sogra {Felice Balsamo)894, assim como ele, que tomara o nome
de Cagliostro de sua madrinha;895 4? porque lhe disseram, em 1784 {se ele
não se engana), que Balsamo voltara a Nápoles, estivera no Marrocos e se
fazia chamar conde de Cagliostro; 5? porque, afinal, ele lera em um jornal
de Florença, em 31 de outubro de 1786, que se haviam visto cartas de
Cagliostro assinadas Balsamo, e que o jornal de Florença assegurava que o
caso estava provado, que Cagliostro era um certo J. Balsamo896.
O autor da carta, que declara ter agido como bom patriota para defen­
der pessoas respeitáveis por seus nomes e por suas acusações — leiam-se

891. Carta de 2 de novembro de 1786 ao Sr. comissário Fontaine, rue de la Verrerie


(recebida em 3 de dezembro de 1786). O anônimo era um certo Bernard (súdito francês),
calígrafo e professor de línguas. Arq. Nac., Y. 13125.
892. “A última vez em que ele o viu, em Nápoles, em 1773, ele se apresentava como
marquês de Pellegrini. ” Id. Ibid.
893. Inútil fazer notar a insuficiência e mesmo a oposição das características. Cf. Retrato
cap. II, p. — Um joalheiro alemão de Palermo, Mathieu Novarrchy, que encontrou com
frequência Balsamo em 1768, tendo visto na tabaqueira de um de seus clientes, o barão
Irobio, em 1784, um retrato a bico-de-pena de meio corpo, não colorido, de Cagliostro
também achou que os dois rostos eram parecidos “sem poder todavia afirmar a exata
conformidade das duasfisionomias. ” Courrier de 1’Europe, 12 de junho de 1786. Enquêtes
Gugino, p. 293.
894. Courrier de 1’Europe, 75 de junho de 1787. Declaração Bracconieri, p. 402. Afirma­
ção inexata, mesmo sob o ponto de vista Balsamo, já que sabemos pertinentemente (Cer­
tidão de casamento de Balsamo. Apêndice, p. 262) que a mulher de Balsamo se chamava
mesmo Lorenza Feliciani.
895. Balsamo foi erguido sobre a pia batismal por J. Basile em lugar de sua madrinha,
Vincente Cagliostro.
896. Lettre Bernard, Arq. Nac., Y. 13125. O jornal em questão era: Le Notizie dei Mondo,
N? 83, de 17 de outubro de 1786, e o artigo, que encontramos, é um “comunicado” de
Paris, reproduzindo o Courrier de 1’Europe.
Chesnon e de Launay — a quem Cagliostro fazia imputações vergonhosas,
desejava que esses documentos pudessem confirmar o comissário Fontaine
em suas suspeitas referente à identidade de Balsamo e de Cagliostro897.
Essa exposição de motivos que levaram Bernard a não assinar sua carta e
enviá-la assim mesmo é bastante ingênua; o interesse que ele tem pela
polícia na pessoa de de Launay, dos Chesnon e do comissário Fontaine é
significativo; esse empregado zeloso merecia promoção. Bracconieri, cita­
do por Bernard diante do Dr. S. Cugino, advogado fiscal junto à corte de
Palermo em 9 de março de 1787, repetiu-lhe os mesmos fatos positivos em
relação à pessoa de Balsamo; afirmação sem provas, suspeita sem precisão
a respeito da identidade dos dois personagens. Todavia ele evitou, diante do
homem da lei, citar a Gazette de Florence, tendo tido, sem dúvida, nesse
meio tempo, esclarecimentos acerca da origem do artigo, não mais que as
cartas de Cagliostro pretensamente assinadas Balsamo, que teria sido neces­
sário mostrar, coisa da qual estava muito impedido898.
Em suma, o que ressaltava dessas revelações?
Nenhuma prova formal de identidade. Resumamos os pontos:

J. BALSAMO Nasceu em CAGLIOSTRO nasceu em local


Palermo, em 2 de junho de 1748899 desconhecido, em Medina, segundo
Casou-se em Roma, em 20 de abril ele, em 1749; Casou-se em Roma,
de 1768, com Dona Laurenza (Feli- em 1770, com Serafina Feliciani,
ciani?), analfabeta. Balsamo só fa­ analfabeta. Cagliostro falava francês,
lava italiano. Balsamo era moreno, italiano, português, latim, etc. Ca­
feio, com nariz chato. O nome Ca­ gliostro tinha uma compleição fres­
gliostro é o mesmo da madrinha de ca, de pele clara, muito agradável e
J. Balsamo. mesmo bela. Cagliostro declara ter
escolhido esse nome; ele ignora o seu
próprio.
Em uma olhada nos quadros, vemos que a identificação só repousa
sobre:
— Uma aproximação de datas.

897. Courrier de 1’Europe, 1787, p. 393, col. I. As palavras da carta de Bernard: "O
senhor dissera, etc. ” indicam que ele realmente respondia a um pedido de informação.
898. Comparar o depoimento de Bracconieri in: Courrier de 1’Europe, n.° 48, p. 401.
899. Devemos notar que os próprios documentos Balsamo não são muito precisos: há ma­
téria para discussão; assim, a versão do Santo Ofício define como certidão de nascimento 8
de junho, em lugar de 2; como lugar de celebração de seu casamento, Saint-Sauveur-aux-
Champs, em lugar de Santa-Maria-in-Monticelli, esta última registrada na certidão. (Cf.:
Apêndice, p. 263); que o nome da esposa de Balsamo é ou apenas Lorenza (Bracconieri), ou
Feliciana (Sartines), ou ainda Feliciani (certidão); que Bracconieri encontra Balsamo em
Nápoles em 1773, o mesmo ano em que o dossiê Fontaine afirma que ele está em Paris.
— A semelhança do sobrenome das duas mulheres,
— A existência do nome Cagliostro em um ramo da família Balsamo.
E pouco; além disso, nada em comum; características físicas sem re­
lação, detalhes diferentes, negação de Cagliostro, afirmação formal de Sachi
em um sentido oposto ao de Bracconieri; ausência de qualquer documento
oficial (atas, cartas, testemunhos) que apoiem a hipótese. Nos papéis de
Cagliostro que foram confiscados duas vezes ao imprevisto, em Paris, em
1784, e em Roma, em 1789, nenhum traço de Balsamo900. Essas constatações
são em maior número e importância que as objeções precedentes e pode­
ríam fazer considerar como fortuitas as três semelhanças assinaladas.
Haveria um meio de esclarecer para sempre a questão: confrontar
Cagliostro com seu pretenso tio, com sua pretensa mãe, que viviam em 1787,
e de que tanto se falava; e se Palermo era demasiado longe, confrontá-lo com
Duplessis, com Buhot901, sobretudo com o comissário Fontaine, cuja profis­
são era reconhecer as pessoas. Ora, nem o comissário Fontaine, em 1787,
nem o Santo Ofício, em 1791, fizeram-no. Por quê? A resposta é simples: a
história era tão duvidosa que temiam ver tudo desmoronar diante de um fato
brutal; um pouco de obscuridade valia mais.
A obscuridade permaneceu. Hoje, os atores não existem mais; é-nos
impossível retomar a questão. Erguemos apenas objeções, e não fornece­
mos uma refutação decisiva da teoria da identidade, isso é verdade; mas há
que se concordar que a teoria adversa repousa sobre argumentos bem espe­
ciosos e bem vagos. Que o fato seja possível, verossímil mesmo, em rigor,
nós o reconhecemos. Mas não podemos, a nenhum título, não devemos
dizer em total sinceridade histórica — e se conseguimos prová-lo, nosso
objetivo foi atingido — que uma demonstração da identidade de Balsamo
e Cagliostro já tenha sido fornecida por um indício qualquer.
Pois bem, sob essas reservas, admitamos a hipótese: aceitemos que o
conde de Cagliostro tenha nascido Joseph Balsamo. Em que isso atenta a
sua honradez, em que deve isso modificar o julgamento que a posteridade
pode fazer a respeito dos atos ulteriores de sua vida?
Que tenha sido o filho de um procurador, de um guarda ou de um
lavrador, o que nos importa? Se os homens do século XVIII podiam inquie­
tar-se com isso, esse escrúpulo não podería nos deter hoje. Epicteto era
escravo, nascido de escravo; seu nome e sua moral sofreriam uma deprecia­
ção por esse fato? Que Cagliostro tenha tido uma infância caprichosa, um
caráter independente, que suas fugas tenham escandalizado os seus, seu tio

900. E sabemos que ele tinha papéis muito importantes, “insubstituíveis ”, que os exami­
naram muito bem, que não os devolveram em Paris e que, em Roma, embora avisado, ele
não destruiu nenhum documento, nem escondeu nada de seus arquivos.
901. De resto, Buhot e Fontaine devem ter visto Cagliostro com bastante freqüência em
Paris, em 1784, e não tiveram nenhuma idéia de encontrar Balsamo ali.
em particular, que não podia fazer dele um perfeito contador, como ele902;
que tinha viajado pouco ou muito; que tenha desposado a filha de um ouri­
ves, “homem de bem”, aliás903, mas pobre, em lugar de uma rica herdeira,
esses são fatos sem importância para a humanidade. O que interessa ao
historiador é o que ele fez, quando, penetrando na arena dos combates
sociais, ele se misturou às paixões, às lutas, aos sofrimentos de seus ir­
mãos.
Nós não aceitamos por isso, de olhos fechados, todas as acusações
com que as pessoas tanto se agradaram em sujar o período obscuro de sua
juventude; não temos de levar em conta calúnias fantasiosas, imputações
odiosas e gratuitas, invenções de panfletários, fabricadas dia a dia, conta­
das sem quaisquer aparências de provas, com freqüência contraditórias,
histórias de patifaria, relatos obscenos, suscetíveis de regozijar os assinantes
do Courrier de I’Europe ou de agitar os piedosos leitores da Vie de J.
Balsamo904. Todas essas histórias escandalosas, contadas sem provas, não
merecem ser discutidas. Sachi pode contar de Dom Tischio, em Barcelona, o
que quiser; a vida de J. Balsamo pode aplicar-se a Cagliostro; um panfletário
pode representar Balsamo como um bandido, um falsário, um proxeneta;
se não nos der como garantia nada, além de sua própria palavra, e é o caso,
ou a autoridade de outro panfletário anônimo905, temos apenas que passar

902. Antoine Bracconieri era contador da casa Aubert e Cia. de Palermo. Pierre Balsamo
morreu alguns meses após o nascimento de seu filho, Joseph Balsamo; a criança foi entre­
gue a J. Bracconieri, seu tio-avô, e em seguida, quando da morte deste, a A. Bracconieri. Os
tios se livraram da criança colocando-a primeiro no seminário de Saint-Roch de Palermo,
de onde ele fugiu, em 1755, para voltar para casa; colocaram-no em seguida num reforma-
tório, nos Bonfratelli de São Benedito, perto de Cartagirona (1756). Ele também não
ficou lá e, abandonando o hábito, rejeitado pelos seus, começou, aos 14 anos, sua vida
independente. Outra versão de sua infância diz que, em 1754, ele já era interno em
Cartgirona; que em seguida ele foi posto em penitência, ainda interno, em Georgenti,
com os Capuchinhos, em 1755, e que foi de lá que ele fugiu, retomando definitivamente a
liberdade. Lettre écrite d’Aix-les-Bains à M. De Beaumarchais, in-8?, 1788, p. 9.
903. Testemunho de A. Bracconieri. Cf. Courrier de 1’Europe de 15 de junho de 1787.
904. A Vie de J. Balsamo, publicada por último, acumula essas narrativas e se estende
com alegria sobre essas torpezas; o autor evita, aliás, citar referências; para isso, teria
sido preciso invocar a autoridade de Morande, de Sachi, de madame de la Motte ou dos
delatores pagos do Santo Ofício, e as mentiras não mais teriam tido verossimilhança.
Apesar dessa precaução, a razão com freqüência se revolta à leitura dessa misturada. O
jovem Balsamo aparece ora dotado de um poder diabólico extraordinário (Vie, p. 5), ora
como um charlatão, especulando acerca da credulidade supersticiosa dos ingênuos
palermitanos e representando, com seus comparsas, cenas fantasmagóricas. Ator, escroque
em um caso, feiticeiro verídico em outro, ao autor pouco importa a contradição, basta-
lhe acumular acusações. Seria preciso um pouco de coerência.
905. A Vie de Joseph Balsamo transborda desses empréstimosfeitos às Mémoires authentiques,
à Confession de Cagliostro, à Ma Correspondance et la Suite, etc. sem indicar a origem.
por cima disso. A mãe de J. Balsamo conservava dele a mais terna das
lembranças, desejava vê-lo voltar e tomá-lo nos braços antes de morrer906,
enviava-lhe sua bênção e lhe pedia a dele. Bracconieri não pintava seu
sobrinho como um vadio: só conta dele suas fugas dos seminários, onde o
haviam encerrado, e seu caso com Marano, em busca de um tesouro, sim­
plesmente, sem detalhes romanescos. Em Nápoles, mesmo em Palermo,
em Roma, Balsamo gozou da estima e da amizade de altos personagens e
não aparece como um homem desonesto. Esses são testemunhos positivos
em seu favor.
Em tudo o que se produziu contra Balsamo, apenas um caso parece
importante, um só documento existe; uma única acusação domina tudo e
merece ser examinada907. E o caso Duplessis-Balsamo, a ação intentada em
Paris por Joseph Balsamo contra o sedutor de sua mulher. Admitamos, sem
discussão, também neste ponto, que o documento seja verdadeiro908.
O que vemos? Uma aventura banal; um rico e brilhante sedutor, fa­
zendo-se protetor de um estrangeiro, de um inventor, cuja mulher, muito
agradável, atrai-o; um marido absorto, freqüentemente ausente, uma mu­
lher coquete e ingênua; um momento de fraqueza após uma longa resistência,

906. Goethe. Voyage en Italie, p. 24, 31-32.


907. Não falamos do pretenso credor de J. Balsamo, em Londres, ern 1771-1772. Sua
estada em Londres nessa época é duvidosa. Nenhuma acusação foi justificada, não se
pôde encontrar nenhuma testemunha contra ele; Cagliostro refuta todas essas histórias
em sua Lettre au peuple anglais, in-4? (p. 58 e 59). Ele próprio pede que se interrogue o Sr.
Bénamore, porque esse médico, citado por Morande como testemunha de acusação, está
pronto a certificar que jamais tratou com nenhum Balsamo, que ele não conhece um
Balsamo e está vendo o conde de Cagliostro pela primeira vez (1786).
908. Poderiamos duvidar disso. Exumada posteriormente como meio de defesa do comissá­
rio Chesnon e não tendo aparecido como resultado do inquérito geral, essa história está
sujeita a suspeitas. Aí características de Balsamo e de sua mulher devem ter sido estabele­
cidas a partir de 1773, quando de sua expulsão de Paris. Quando Cagliostro recebeu em
Estrasburgo a visita de Desbrunières, agente de polícia vindo incógnito para examiná-lo,
quando Cagliostro veio a Paris, em 1781, quando ele ali passou algum tempo e foi preso,
interrogado pela polícia em 1785 pelo Caso do Colar, assim como sua mulher, todos os
registros da polícia que diziam respeito aos italianos e aos empíricos foram computados e
nenhuma descrição chamou a atenção, nenhum Balsamo foi encontrado.
Se Balsamo houvesse voltado transformado em Cagliostro, será que sua mulher teria con­
servado seu nome? O próprio Cagliostro aponta tudo isso em sua Lettre au peuple anglais,
p. 63-64. Todo o dossiê Fontaine relata fatos ocorridos em 1773 e, ainda em 1773,
Bracconieri declara haver encontrado Balsamo em Nápoles (Courrier de 1’Europe, 1787,
n? 48). Quanto à prova tirada da assinatura de J. Balsamo (que, aliás, não se encontra
nos Arquivos sob a peça Y13125) que, nas palavras de Fontaine, especialista em caligra­
fia, seria da mesma mão que as assinaturas Conde de Cagliostro nos interrogatórios de
1784, ela é sem valor, mesmo se o documento é verídico, e ainda menos se for apócrifo, o
que podería muito bem ser.
difícil de manter; em seguida, remorsos; e o marido pobre, estrangeiro,
subitamente esclarecido por sua infelicidade, empregando energicamente
todos os meios para lutar contra um homem rico, em seu próprio país,
arrancando por fim sua mulher ao sedutor e ao caminho perigoso em que
ela dera um primeiro passo, perdoando-a e levando-a consigo, para longe
do perigo.
Seria essa uma história infamante? Se ela atenta à honra da mulher,
será que toca em algum ponto a dignidade e a moralidade do marido? Mas,
dirão, ela revela ao menos a duplicidade, a dissimulação em Cagliostro,
pois ele sempre renegou seu nome Balsamo e essa aventura?
Sim, Cagliostro declarou que seu nome não era Balsamo909, seja
porque definitivamente ele não se chamava assim, seja porque, largado
pelos Balsamo, rejeitado por eles, estava desobrigado de ter para com
eles laços sociais que o teriam unido a uma família, à qual, espiritual­
mente, ele jamais pertencera. Sua verdadeira personalidade e sua vida
começaram para ele no momento em que, livre e ativo, ele aparecera na
Curlândia. Ele tomara então o nome de Cagliostro910.
Ao rejeitar o nome de Balsamo, sob o qual sua mulher se comprome­
tera, Cagliostro (ainda aceitando a hipótese Balsamo e a veracidade do
caso Duplessis) cumpria uma obra de piedade. Ele agia como um homem
de coração, desejoso de evitar até mesmo, àquela que havia falhado, o re­
morso e a vergonha. Não seria esse o limite extremo da caridade e do perdão,
tomar assim a defesa contra o mundo daquela que o fizera sofrer? E isso
não está de acordo com o caráter generoso, com a sabedoria que se revela­
ram tantas vezes nos atos de Cagliostro?
Resumamos essas longas e fastidiosas discussões. Em suma, ninguém
demonstrou a identidade de Balsamo com Cagliostro: nem Morande, nem
Goethe, nem o comissário Fontaine, nem o procedimento do Santo Ofício
trouxeram um documento preciso que acabasse com qualquer incerteza

909. Ele não teria podido acrescentar Belmonte, nem Pellegrini, etc. “Eu me apresento
como conde de Cagliostro por ordem superior, disse à SP de Recke, embora este não seja
meu nome verdadeiro. Minha verdadeira qualidade pode ser superior ou inferior àquelas
que me concedi, eis o que o público talvez fique sabendo algum dia." Cagliostro teria
declarado também que ele “já servia o mesmo espírito superior, o grande Copta, outrora
sob o nome de Frédéric Gualdo”, declaração que, se exata, é muito facilmente explicável.
Mas as palavras de Cagliostro são provavelmente muito mal transcritas. Encontramos
essa história em Borowski. Cagliostro, einer der merkwurdigsten... 1790, in-16, p. 67
(segundo o livro da SP de Recke).
910. Escolha bem natural na hipótese Balsamo. Ver: Apêndice, p. 266. O panfleto Lettre
écrite d’Aix, 1788, p. 13, explica, com gravidade, que esse pseudônimo foi formado por
Balsamo de dois radicais italianos Cagliare e ostro que significa: “Eu quero, eu desejo a
púrpura!” E fácil ver o amontoado de bobagens e de falsidades em que somos obrigados
a patinhar para conseguir encontrar algumas migalhas de verdade referentes a Cagliostro.
acerca desse ponto. Mesmo admitindo essa assimilação dos dois perso­
nagens, mesmo considerando o dossiê Fontaine referente ao caso
Duplessis-Balsamo como autêntico, não encontramos, na vida pouco co­
nhecida de Balsamo, nenhum fato positivo criminoso ou simplesmente cul-
pável, nenhum ato irreconciliável com o caráter e as virtudes excepcionais
daquele que admiramos sob o nome de Cagliostro em sua existência públi­
ca911. Se ele se apresentava sob um nome fictício, lançou-se sobre sua origem
um véu que ainda permanece, foi menos por ele do que pelos outros. Criança
indomável, à qual nenhuma disciplina poderia convir, já dotado de qualida­
des que atraíam a atenção e chocavam as pessoas, ele sacudia o jugo que lhe
queriam impor; aquele que falava aos maiores do mundo, aos príncipes da
ciência, com tanta soberba, livre independência, poderia inclinar-se sob a
férula dos monges ignorantes e brutos? Abandonado pelos seus, ele esque­
ceu seu nome para poder perdoá-los; enganado por aquela que ele escolhe­
ra, ele a salvou, soube esconder sua culpa e rodeá-la de mais atenções, pois
se mostrara muito frágil. Não seria o comportamento natural daqueles que
vimos, perseguido, devolver o bem pelo mal, espalhar a bondade e a luz
sobre os mesmos que o lançavam em derrisão? Nós havíamos dito ao come­
çar este capítulo: a questão da vida desconhecida de Cagliostro não tem im­
portância: nós a repetimos ao terminar, esperando tê-lo demonstrado; mes­
mo admitindo sem provas, com seus adversários, a identidade de Balsamo e
Cagliostro, não encontramos, nessa hipótese, nada que possa manchar a no­
breza ou a beleza da vida de Cagliostro.

911. A aceitação da identidade dos dois personagens traz, em troca, a justificativa, mes­
mo sob o ponto de vista social, por alguns títulos e pelo nome sob o qual Cagliostro se
apresentou ao mundo. Suas relações com a Ordem de Malta se encontrariam também, ao
mesmo tempo, singularmente esclarecidas. Ver: Títulos de nobreza, armas das famílias
Balsamo e Cagliostro. Apêndice, p. 266-267.
Epílogo

O Mestre Desconhecido

O que importavam a seus discípulos as horas de sono de Cagliostro?


O que importam à história os dias mudos de sua infância?
Ele aparece, secando as lágrimas, erguendo os feridos da vida, dando
ao viajante perdido a força e a coragem de marchar até o dia, semeando
alegria e beleza nas trevas, iluminando céus heróicos, glorioso copeiro das
beberagens da imortalidade. Eis o que importa à humanidade, aquilo de
que a terra se lembra; esses são os diamantes que a natureza acalenta preci­
osamente em seu seio e que marcarão etemamente cada um dos atos de sua
vida. Essas letras de luz, podemos lê-las; essas vozes da terra, podemos
ouvi-las; elas falam dele. Se nossos olhos ainda estão turvos e nossos ouvi­
dos têm pouca prática para receber o testemunho deles, ao menos não será
a frases de gazeteiros, a relatórios policiais que perguntaremos seu nome,
seus títulos e sua raça. É o próprio Cagliostro que os dirá a nós: façamos
passar diante de nós os quadros dessa existência maravilhosa, que tenta­
mos restabelecer em sua verdadeira luz, esses dez anos de ensinamentos,
de bondade e de martírio; evoquemos essas multidões de joelhos, esses
grandes da terra, tão pequenos diante dele; voltemos a ver esse ser, tão
sublime tanto no amor quanto na sabedoria e, na claridade dessa visão
luminosa, retomemos as páginas, tão odiosamente ridicularizadas, em que
Cagliostro nos falou de si912. Eis o que leremos:
“Não sou de nenhuma época nem de nenhum lugar; fora do tempo e
do espaço, meu ser espiritual vive sua eterna existência e, se eu mergulho
em meu pensamento remontando no curso das eras, se estendo meu espíri­
to para um modo de existência afastado daquele que vocês percebem, eu
me torno aquele que eu desejo. Participando conscientemente no ser abso­
luto, regulo minha ação segundo o meio que me rodeia. Meu nome é o de
minha função e eu o escolhi, assim como minha função, porque sou livre;

972. Relatório do conde de Cagliostro contra o procurador-geral. S.L. (Paris), 1786, in-
16, p. 12.
meu país é aquele em que fixo momentaneamente meus passos. Datem-se
de ontem se vocês quiserem, realçando os anos vividos por seus ancestrais,
que lhes foram estranhos; ou de amanhã, pelo orgulho ilusório de uma
grandeza que talvez jamais seja a sua; eu sou aquele que é.
Tenho apenas um pai: diferentes circunstâncias de minha vida me
fizeram suspeitar, a esse respeito, de diferentes e comoventes verdades;
mas os mistérios dessa origem e as relações que me unem a esse pai desco­
nhecido são e permanecem meus segredos; que aqueles que forem chamados
a adivinhá-los, a entrevê-los, como eu o fiz, compreendam-me e aprovem.
Quanto ao lugar, à hora, em que meu corpo material, há cerca de quarenta
anos, formou-se sobre esta terra; quanto à família que escolhi para isso,
quero ignorá-lo; não quero me lembrar do passado para não aumentar as
responsabilidades já pesadas daqueles que me conheceram, pois está escri­
to: Não farás tombar o cego. Não nasci da carne, nem da vontade do ho­
mem: nasci do espírito. Meu nome, aquele que é meu e de mim, aquele que
escolhi para me apresentar entre vocês, eis o que exijo. Aquele com o
qual me chamaram em meu nascimento, aquele que me deram em minha
juventude, aqueles sob os quais, em outros tempos e lugares, eu fui conhe­
cido, eu os larguei, como eu teria largado vestimentas fora de moda e agora
inúteis.
Eis-me aqui: sou nobre e viajante; eu falo, e sua alma treme ao reco­
nhecer antigas palavras; uma voz, que está em vocês e que se calara há
muito tempo, responde ao apelo da minha; eu ajo e a paz volta a seus
corações; a saúde, a seus corpos; a esperança e a coragem, a suas almas.
Todos os homens são meus irmãos; todos os países me são caros; eu os
percorro para que, em toda a parte, o Espírito possa descer e encontrar um
caminho para vocês. Só peço aos reis, cujo poder respeito, a hospitalidade
em suas terras e, quando ela me é concedida, eu passo, fazendo em torno
de mim o maior bem possível; mas eu apenas passo. Seria eu um nobre
viajante? ‘Como o vento do Sul913, como a brilhante luz do Sul que caracte­
riza o pleno conhecimento das coisas e a comunhão ativa com Deus, eu
vou para o Norte, para a bruma e o frio, abandonando em meu caminho
algumas parcelas de mim mesmo, diminuindo a cada estação, mas deixan­
do-lhes um pouco de claridade, um pouco de calor, um pouco de força, até
que eu tenha enfim parado e fixe definitivamente o termo de minha carrei­
ra, na hora em que a rosa florescer sobre a cruz. Eu sou Cagliostro.
Por que vocês precisam de algo mais? Se vocês fossem filhos de Deus,
se sua alma não fosse tão vã e curiosa, vocês já teriam compreendido!
Mas vocês precisam de detalhes, signos e parábolas: ora, escutem!
Voltemos bem longe no passado, já que vocês querem assim.

913. Cagliostro, a partir de duas raízes italianas, pode ser interpretado como: o vento do
sul, que se fixa, amorna-se e tempera.
Toda luz vem do Oriente; toda iniciação, do Egito. Tive três anos
como vocês, depois sete anos, depois a idade de homem e, a partir dessa
idade, não contei mais. Três setenários de anos fazem 21 anos e realizam a
plenitude do desenvolvimento humano. Em minha primeira infância, sob
a lei do rigor e da justiça914, sofri no exílio, como Israel entre as nações
estrangeiras. Mas como Israel tinha consigo a presença de Deus, como um
Metatron a guardava em seus caminhos, da mesma maneira um anjo pode­
roso velava sobre mim, dirigia meus atos, iluminava minha alma, desen­
volvendo as forças latentes em mim915. Ele era meu mestre e meu guia.
Minha razão se formava e se definia; eu me interrogava, eu me estu­
dava e tomava consciência de tudo o que me rodeava; fiz viagens, muitas
viagens, tanto em torno da câmara de minhas reflexões quanto nos templos
e nas quatro partes do mundo; mas quando eu queria penetrar a origem de
meu ser e subir em direção a Deus em um impulso de minha alma, então
minha razão impotente se calava e me deixava entregue a minhas conjectu­
ras.
Um amor que me atraía em direção a toda criatura de uma maneira
impulsiva, uma ambição irresistível, um sentimento profundo de meus di­
reitos a todas as coisas da terra ao céu me impulsionavam e me lançavam
em direção à vida, e a experiência progressiva de minhas forças, de sua
esfera de ação, de seu jogo e de seus limites foi a luta que tive de sustentar
contra as potências do mundo916; fui abandonado e tentado no deserto; lu­
tei com o anjo, como Jacó, aprendi os segredos que dizem respeito ao im­
pério das trevas para que eu jamais possa me perder em alguma das rotas
de onde não se volta.
Um dia — após tantas viagens e anos! — o Céu recompensou meus
esforços: ele se lembrou de seu servidor e, revestido de hábitos nupciais,
tive a graça de ser admitido, como Moisés, diante do Eterno917. Desde en­
tão, recebi, com um nome novo, uma missão única. Livre e mestre da vida,
só pensava em empregá-la para a obra de Deus. Eu sabia que Ele confirma­
ria meus atos e minhas palavras, como eu confirmaria Seu nome e Seu
reino sobre a terra. Há seres que não têm mais anjos da guarda918; eu fui um
deles.
Eis minha infância, minha juventude, tal qual seu espírito inquieto e
desejoso de palavras a reclama. Mas que tenha durado mais ou menos anos,
que tenha transcorrido no país de seus pais ou em outras regiões, o que
importa a vocês? Eu não sou um homem livre? Julguem minhas maneiras,

914. Medina. Op. cit., p. 12


915. Altotas. Op. cit., p. 13
916. Trebizonda. Op. cit., p. 16
917. Meca. Op. cit. p. 15.
918. Morte de Altotas. Op. cit., p. 19.
ou seja, minhas ações, digam se elas são boas, digam se vocês já viram ou­
tras mais poderosas e, desde já, não se ocupem mais de minha nacionalida­
de, de minha posição e de minha religião.
Se, prosseguindo o curso bem-aventurado de suas viagens, alguém
dentre vós abordar um dia nessas terras do Oriente que me viram nascer, que
se lembre somente de mim, que pronuncie meu nome, e os servidores de meu
pai abrirão diante dele as portas da cidade santa. Então, que ele volte para
dizer a seus irmãos se abusei diante de vocês de um prestígio mentiroso, se
tomei de suas casas qualquer coisa que não me pertencia!”
Apêndice

Primeira Parte
Documentos particulares referentes à origem e à pessoa
de Cagliostro

I — Assinaturas de CagEostro
As assinaturas de Cagliostro são raras: ele escrevia pouco e assinava
suas cartas seja com seu prenome919, seja com seu selo: a serpente atravessa­
da por uma flecha, aposta sobre cera verde. Esse
sinete, cujo motivo reproduzimos aqui, selava o ma­
nuscrito do Ritual da Maç Egípcia920.
O monograma cursivo pelo qual Cagliostro o
representava e que constituía sua assinatura mística
se encontra no final de uma carta em italiano escrita
por Cagliostro à Si? de Recke, em 1779.
Eis essa peça:
In questa potrete imaginarvi, se ho delia stima
per voi; mai ho scritto a donne, e per questo e ilpri- Cara figlia e sorella
mo vincolo che rompo in voi perche vi stimo e ilfutu­
ro sara che vi dara prove dei mio operare. Ed intanto cara, non vi
dimenticate i miei consigli et l’amore fraternale. II silenzio e quello che
vi indura alia vera strata dei Sabbini et vi fara unire alia gloria celeste
et sarete satesfatta dai trovagli che fatto avete.
Sicche sapiate, cara sorella, che io sono il medisimo sempre per
voi, e avro tutta la cura possibile perfarvi contenta; ma il silenzio ritomo
arreplicarvi. Ed intanto v’incarico imbasciatrice per me e specialmente
il vostro caro Padre et Madre e Sorella alli qualifarete tutto quella che il

919. Carta a sua mulher, assinada “Il tuo Alessandro ” (Coleção do Sr. visconde Morei de
Vindé; um exemplar data do de 4 de fevereiro de 1788?). O Sr. Charavay diz, no Amateur
d’autographes de 13 de fevereiro de 1900, p. 33, que ele viu algumas assinaturas análo­
gas mas que as assinaturas Cagliostro são quase impossíveis de encontrar.
920. Cf. p. 137 deste livro.
vostro cuore vi dirá e direte che spero in breve tempo di abbracciarli di
presenzza. Ma nel tempo istesso v’incarico di pregare ao Grande Iddio
per me, perche mi ritrovo circondato d’inemici e pieno di amarezzi, in
unione di mia moglie vostra cara sorella; ma bisogna sofrire con pasienzza
e battere I’ingnioranzza profanesca.
Per adesso non posso dirvi di piu, ma fra poco vi diro di piu. E com
questo finisco com darvi i saluti di mia moglie, come il consimile osserva
com tutti i E: e S.: E per non piu dilungarmi, mi resto con abbraviarvi de
cuore, come osservo con tutti i E: et S.: e non vi dimentichiate de me ut
Deus.

Vostro per sempre Che vi ama di cuore (1255)™.


Encontramos esse mesmo signo precedido de um entrelace de linhas,
que me parecem o monograma de suas iniciais: L. c. d. C° (le comte de
Cagliostro), ao final de uma carta de recomendação escrita por um tercei­
ro, e somente assinada por Cagliostro* 922: eis essa variante:

Eis duas peças curiosas; mas a assinatura explícita seguinte é ainda


mais rara. Nós a encontramos nos Arquivos Nacionais, ao final do interro­
gatório de Cagliostro (Cota: X2 b, 1417)923.

927. Von der Recke. Nachricht von des berüchtigten, in-8?, p. 147, 148. A St?de Recke dá
em seguida a essa carta uma tradução em alemão.
922. Arquivos Sarrasin, Bâle. Carta datada de Estrasburgo, 2 de abril de 1783.
923. O sábio e mui amável diretor dos Arquivos, Sr. Dêjean, autorizou-nos de boa vonta­
de a reproduzi-la e nos facilitou essa tarefa: pedimos-lhe que queira aceitar todos os
nossos agradecimentos.
II — Certidão de Batismo
Certidão constatando que Joseph Balsamo, filho de Pierre Balsamo e
de Felicia Bracconeri (szc), foi batizado em 8 de junho de 1743 na igreja
metropolitana de Palermo na presença de Jean-Baptiste Barone, padrinho,
e de Vincentia Cagliostro, madrinha, substituída por Josèphe Basile, que
tinha uma procuração para isso.
Arquivos da Igreja Metropolitana de Palermo — Cópia legalizada
(coleção do autor).

JAM VO»£<íAC1Lt5 PAR0EC1AE S. HIPPOLYT! M, PAAOCHUS


NUNC 3. METROP. PANORM. ECCLES1AK

MAGISTER CAPELLANUS
A.tíjiie Si Si- Sacrament! Rector
AUALIUM SOCLEElAfiUM : AQUAE CURSARUM - AOUAs SANCTAS— ARSNELLA-
COMITIS FRIQ=HICI - FALSIMSLLI8 - PALLAVICINI - RCCC5LLAE - VILLAORATIAE
VIRGINIS MARIAE, IMMACULATAE CONCEPTION IS. VULGO PGRCELLI
3- ANTCSINI ET S. FRANClSCI Q: PAULA CURAM ASENS
Fideru íacia ae testor in una librorinn ptíedictae Metropolitan®, Ecclcsí®,
in que adnotantn* nomina et cognomina baptizatorncn, coniugatorum, et mor-
luormu, inveniri notara tenons «quentis:
Anno Domini luillesinio e^tiHgenlesitíM»
Die V/// _ _ Menais

tn qtiotnin hn.s praesentes pioprla aatscriptícm# parpetao CDjJQj'


at nlíjqiia xRlítn rfc«. OollAtionft salva.
Pnitorml Anno Incaniíitionh 151/
III — Certidão de Casamento
Certidão que constata que Joseph Balsamo, filho de Pierre (de
Palermo), e Laurence Feliciani, filha de Joseph (de Roma), receberam o
sacramento do casamento na igreja de Santa Maria de Monticelli, em Roma,
em 20 de abril de 1768.
Arquivos paroquiais de Santa-Maria de Monticelli em Roma. Livro
que vai de 1751 a 1785. Folio 53. Cópia legalizada (coleção do autor).

iii DOCTRINIS GLORIFIM DOMINUM


C. 14. V. 15.
j

Tcstor ego Infrascriptus Parochus Ven. Ecclesiae Parochialis SANCTAE


tr
MARIAS ,iN' MOKT1CELLIS de Urbe, et cunctis_ad quos pertinet, fl-
dem facio ac verbo verilatis,-in libro
X ab anno yfffa annum //zr™ hujusce Paroeciae reperiri
I
sequentem particulam. quam fideliter refero: videlicet
£>

f
í
In quorum Fid. etc.

Ad usvm >.eclosiás’iicum tinlum. '


IV — Certidão de Óbito
A certidão de óbito de Cagliostro se encontra no Registro mortuário
de Santa-Maria-Assumpta, em São-Léo (livro III, p. 25-26). Conseguimos
uma cópia legalizada e garantida por dois selos de Santa-Maria e de São-
Léo. Eis esse interessante texto e sua tradução integral.
Anno Domini 1795, dia 28 mensis Augusti.
Joseph Balsamus, vulgo Conte de Cagliostro, pátria Panormitanus,
baptismo christianus, doctrina incredulus, hoereticus, mala fama famosus
post disseminata per varias Europae províncias ímpia dogmata sectae
AEgipticae, cui prope innumeram asseclarum turbam prestigiis, se
predicante, conciliavit, passus varia discrimina vitae e quibus arte sua
veteratoria evasit incollumis: tandem sacrostae Inquisitionis sententia
relegatus, dum viveret, ad perpetuaam carcerem in arce hujus civitatis(si
forte resipisceret) pari obstinatione carceris incommodis toleratis annos
4, mnses, 4, dies 5, correptus ad ultimum vehementi apoplexiae morbo,
secundum duritiem mentis et impenitens cor, nullo dato poenitentiae signo
illamenatus moritur extra comm. S. Matris Eccles0, annos natus 52, mens:
2, dies 28. Nascitur infelix, vixit infelicior, obiit infelicissime die 26 augusti
anni suprad: sub horam 3 cum dimidio nocti. Qua die indicta fuit publica
supplicatio siforte Misericors Deus respiceret adfigmentum man: suar:Ei
tanquam haeretico, excommunicato, impaenitente denegatur ecclesiastica
sepultura. Cadáver tumulatur ad ipsum supercilium montis qua vergit ad
occidentem aequa fere distantia inter duo munimenta habendis excubiis
destinaya vulgo nuncupata II Palazzetto e til Casino in solo R. C.A. die 28
praedict. Hora 23.
In quorum fidem, etc.
Alosyus Marini Archip. M° pp°.

Tradução

28 de agosto, ano da graça de 1795.


Joseph Balsamo, dito conde de Cagliostro, nascido em Palermo, bati­
zado cristão, mas incréu, herético, tristemente célebre, após haver propaga­
do em toda a Europa os dogmas ímpios da seita egípcia e após ter recrutado,
com seus truques e seus discursos, uma multidão quase inumerável de adeptos,
após haver sofrido diversas desventuras das quais saiu são e salvo graças a
sua arte mágica; condenado enfim por sentença da Sacro-Santa Inquisição
(na esperança duvidosa de que ele se arrependesse), após haver, com a mes­
ma obstinação, suportado os sofrimentos da prisão durante 4 anos, quatro
meses e 5 dias, atingido enfim por um violento ataque de apoplexia, acidente
natural em um homem de alma dura e coração impenitente como ele, morreu,
sem haver dado nenhum sinal de arrependimento924 e sem deixar saudades,
fora da comunhão de nossa Santa Madre Igreja, com a idade de 52 anos, 2
meses e 28 dias. Ele nasceu miserável, viveu ainda mais miserável e morreu
mui miseravelmente em 26 de agosto do ano citado, às 3 horas da manhã.
Nesse dia, uma suplicação pública foi ordenada para pedir a Deus, se fosse
possível, que tivesse, em Sua misericórdia, piedade dessa argila moldada por
Suas mãos. Enquanto herético, excomungado, impenitente, a sepultura ecle­
siástica lhe foi recusada: ele foi enterrado no próprio pico da colina, do lado
em que ela se inclina para oeste, e a distância quase igual de duas constru­
ções, destinadas aos sentinelas, chamadas 11 palazzetto e 11 Casino, sobre o
solo da Cúria apostólica romana no dia 28, às 11 horas da noite.
Em fé de que..., etc...

V — Notas referentes às Famílias Balsamo,


Bracconieri, Cagliostro
A família Balsamo era nobre e alguns de seus membros haviam ocupa­
do funções oficiais na Sicilia havia muitos séculos: sob o reinado de Fernando,
o Católico, Giacomo Balsamo foi capitão, comandante Milazzo e Patti (1517)
e senhor de Mirto e de Taormina. Em 1613, Pietro Balsamo, marquês delia
Limina, “Straticote” de Messina, recebeu o principado de Roccafiorita e a
ordem espanhola de San Giacomo. Em 1756, Francesco
Balsamo comprou o principado de Castellaci e foi se­
nador e síndico de Messina: teve dois filhos, Giuseppe
Balsamo, barão de Cattafi, e Giambattista Balsamo,
marquês de Montefiorito, pro-notário do reino em 1773.
A essa mesma família dos Balsamo pertencia Fr. Gior.
Salvo Balsamo, grande prior de Messina na ordem de
Malta em 1618 e diversos cavaleiros de Malta925.
Mas esses não eram seus únicos títulos de no­
breza: a mãe de J. Balsamo pertencia à família
Bracconieri pelo lado de seu pai, muito conhecida e
de boa nobreza na Sicilia. Em 1439, Simone
Bracconieri adquiriu a baronia de Piscopo e foi castelão de Castroreale; as
armas dos Bracconieri são conhecidas926.

924. Ou essa asserção ê mentirosa ou as pretensas retratações, confissões, abjurações de


Cagliostro relatadas nos atos do processo de Roma são falsas. Cagliostro pode ter sido
um incréu empedernido, impenitente ou, ao contrário, um herético arrependido, solici­
tando humildemente seu perdão, mas nunca os dois ao mesmo tempo!
925. As relações de Cagliostro com a Ordem de Malta assim se encontrariam singular­
mente esclarecidas.
926. De prata, com dois cães de guarda, alternados com duas estrelas da mesma cor, uma
em cima, outra no centro.
Pelo lado de sua mãe, Felice Cagliostro, ela estava ligada à família
dos Cagliostro927, o irmão de sua mãe, Giuseppe Cagliostro, de Messina,
foi administrador dos bens do príncipe de Villaranca e foi ao herdar dele
que Joseph Balsamo acrescentou a seu nome o do tio.
Quanto a suas armas, que são as dos Balsamo e que reproduzimos
aqui, são compostas de um escudo italiano terciado e sendo o 1? de negro
com um pássaro (?) dourado, o 2? de vermelho, o 3? de azul-marinho, enci­
mado por uma coroa de conde. Essas armas se encontram grosseiramente
reproduzidas em torno de um retrato de Cagliostro que foi encontrado por
Alessandro Scala e que agora faz parte de nossas coleções928.

927. Havia duas famílias Cagliostro em Messina, em 1788. Cf. Courrier de 1’Europe,
1788, n.° de 15 de junho, p. 393, col. 2. Carta de Bracconieri.
928. Alexandra Scala. Op. cit... p. 603.
Apêndice

Segunda Parte
Documentos gerais — Cartas e referências

I — Algumas Fórmulas e Preparações Medica­


mentosas de Cagliostro em Estrasburgo (1781)
Receitas executadas na farmácia Heslet pelo Dr. Martius, boticário
dessa casa. Cf. Dr. Martius. Erinnerungen aus meinem neunzigjahrigen
Leben. Leipzig, 1847, zn-8°, p. 74 a 77.
TISANA PURGATIVA.Rp. Herbae Cichorii, Acetosae, Violaram
Agrimoniae, Calcitropiae, Ononidis ana Moj. Radie. Cichorii,
Acetosae Fragarae, Ononidis, Calcitropoe, ana 3 jj.Semin
Anisi, Coriandri ana 3 jjj.
Flor. Rosarum rubr. 7/3 2 cc. M. bull, per lA horam in Libris
XVI. Aquae fontanae. In colat. refrigeratae infrinde per 24
horas. Foi. Sennae electae 7/3 jj. Col. D. in 4 lagenas
POMADA PARA O ROSTO. Rp. Olei amygdale dulcium 7/3 vjjj. Spermat.
ceti 7/3 jj. Alumin. Camphorae ana 3 jj. M. f. ceratum et in
capsul. effunde.
XAROPE PEITORAL COM SEIVA. Rp.: Manne Calabrin. 7;3 jj. Dissolv.
in. aq. Font. 7/3 j2 adde olei sacchari929 cand. pulv. succ. liquirit
ana 7/3 2 M. f. Electuarium.
PÍLULAS ESTOMACAIS. Rp.: Aloeas hepaticae 7/3 j. Diagrydii, Rad.
Turpethi, Agarici, Trochisc. Alkand, ana. 3.2. Gum. Mastichi
3 jjj. Rhabarb. optim, Myrobalan. Citr, Chebul ex Ind; Herb.
Marrubii albi, Semina Foeniculi ana 3 j. Cinnamoni, Macis,
Lignis Santelli albi, Flor. Lavendulae, Hbae Osari, Croci
orientalis, Caryophillor. Nucis Moschat; Sem. Rut. Siler, mont;

929. Referente ao óleo de açúcar, ver mais adiante, p. 270.


herb. Euphrasiae Cuberar; Myrrhae electae ana 3 2. M. f. Pulvis
et cum mucilagine Tragaeanth. f. pill. pond. gr. V. Fol. aur.
obduc.
PÍLULAS DE TEREBENTINA. Rp. Terebinth. Venet 7/3 j. Sacchar. albi
7/3/ jj. Cinnamon 3 j. M. f. cum pulv. Rad. Althae et Mucilagine
Tragacanthae pill, pond. V. obduc. Fol. Aur.
PÍLULAS DE BÁLSAMO DE MAÇÃ. Rp.: Balsami de Canada 7/3/ j.
Sacchari albi 7/3 jj. Cinammon. 3 j. Myrrh. Electae gr. XII.
Pulv. rad. Althaae q. s. M. f. c. Mucilagine Traga canthae pill,
pond. Gr. V. obduc. Fol. aur930.
PÓ PURGATIVO (da 1® receita). Rp.: Pulv. folior. semi, radic. Fallopae,
cremor. Tartar, ana 7/3 jj. Semin. Anisi. Foeniculi ana 7/3 2
Dyagridii sulph. 3 jjj M. f. pulv. D. 3 j. pro die.
PÓ PURGATIVO (da última receita). Rp. : pulver precedente. 7/3 v. jj. 3
jjj admisc pulv. Cinnamoni 7/3 2.
OLEUM SACCHARI (ou: Óleo-Sacchari). O óleo de açúcar, sozinho, des­
tinado às damas como guloseima eupéptica, era apresentado
em frascos elegantes. Para prepará-lo, cortavam-se ovos co­
zidos em dois; tirava-se muito delicadamente a gema e en­
chia-se a cavidade livre com o mais belo açúcar cândi branco;
fechava-se imediatamente e o ovo reconstituído era amarra­
do com um fio. Colocava-se o ovo em um vaso de vidro ou
porcelana, coberto, na adega. Pouco a pouco o açúcar se dis­
solvia931.

II — Uma Carta do Cardeal de Rohan


a respeito de Cagliostro
O cardeal de Rohan muitas vezes escreveu para defender ou reco­
mendar Cagliostro932. A carta que reproduzimos aqui é interessante sob
três pontos de vista: primeiro, ela prova que, oito anos após a estada em
Estrasburgo, apesar do Caso do Colar, o afastamento de Cagliostro, a cam­
panha de difamação organizada contra ele, o cardeal tinha por seu mestre e
amigo a mesma respeitosa afeição que no início de sua ligação; em seguida,

930. Note-se que todas as pílulas de Cagliostro tinham o peso de cinco grãos e eram
cuidadosamente douradas.
931. Encontramos no Dispensatorium Wurtemburgicum de 1771 (p. 105) um procedimen­
to análogo para a preparação do Oleum myrrhae per deliquium.
932. Carta ao Pretor Real. Save rua, 17 de julho de 1781. Manuscritos da Biblioteca de
Estrasburgo, lote AA, 2110. Peça 2. — Lettre à la marquise de Créqui em 1781; relatada em
suas Mémoires e muitas vezes reproduzida. Cf.: D’Alméras. Cagliostro. Paris, 1904, p. 200
e outras.
esta carta tão pouco conhecida, cujo teor é quase o mesmo que a das
Mémoires de Sd de Créqui, podería muito bem ser a peça autêntica, origi­
nal933, da qual a carta à marquesa de Créqui seria apenas uma imitação adap­
tada de 1781; enfim, segundo a data e o texto, é provável que esta carta tenha
sido escrita ao arcebispo de Lyon no momento em que o conde de Cagliostro
se preparava para voltar à França, acreditando no sucesso de sua Petição aos
Estados-Gerais, esperando que o decreto arbitrário que lhe proibia a entrada
na França seria anulado. Cagliostro queria voltar a Lyon e o cardeal de Rohan
lhe facilitava os meios. Eis sua recomendação:
“O senhor com freqüência me ouviu, monsenhor, falar do conde de
Cagliostro e o senhor sabe como sempre falei de suas excelentes qualida­
des, de seu amor por fazer o bem e de suas virtudes que lhe valeram e
cativaram a estima das mais distintas pessoas da Alsácia e minha afeição
em particular. Ora, atualmente sei que ele está em Lyon sob o nome de
conde Phoenix e o recomendo com a mais viva instância; se o senhor se
dignar a fazê-lo, ele atrairá as atenções gerais. Eu lhe peço também que pre­
vina o Sr. Caze. Estou persuadido de que o senhor tomará por esse ser ben­
feitor os sentimentos que lhe exprimo. É com veneração que reconhecí sua
inclinação constante para tudo o que ele acredita ser bem feito e justo. Eu
disse tudo o que foi feito para incitar o senhor a lhe testemunhar atenção e
amizade particulares, mas ainda não disse todo o bem que penso dele.
O abade Maury gostaria muito que fôssemos a Paris934. Eu espero e
desejo que ele tenha sucesso, mas nós não o teríamos atrapalhado. Escrevi
ao Sr. Séguier e ao cardeal de Luynes em seu favor. O senhor acha que a
Alsácia já ecoa o barulho da guerra, eu poderia apostar que haverá guerra e
estou intimamente persuadido que que ela não ocorrerá.
Adeus, monsenhor, eu lhe sou afeiçoado há muito tempo e para sem­
pre de todo meu coração.

De Saverna, 7 de dezembro de 1789.”

933. Essa carta faz parte das coleções de M. Alfred Sensier que autorizou sua reprodução
na Revue des documents historiques:/oi de lá que a tiramos.
934. O cardeal fora eleito deputado dos Estados-Gerais', é provável que sua presença
nessa assembléia tenha estimulado Cagliostro a dirigir sua Petição aos Estados-Gerais.
III — Carta de Barbier de Titian, Comissário das
Guerras, ao Editor da Correspondêcia Secreta
de Neuwied
Estrasburgo, 21 de dezembro de 1786
Muito me espanta, senhor, que um homem de letras que dá todos os
dias provas dos recursos que tem para completar de maneira interessante
a obra periódica que empreendeu se abaixe a querer alimentar a maligni-
dade do público à custa de um homem que não conhece. Eu não o acredi­
tava feito para ser o eco do autor do Courrier de 1’Europe e para acres­
centar ao veneno que sua pluma destilou tão falsa quanto maldosamente
acerca do Sr. conde de Cagliostro. Tenha a certeza de que aquilo que lhe
escrevem de Londres, referente ao pretenso desprezo que lhe atraiu esses
vãos ataques, não tem fundamento; tenho certeza do contrário e, quando
se vê de um lado o Sr. d’Epréménil, cuja reputação está bem acima de
certos ataques, e outras pessoas distintas dar-lhe provas da mais alta esti­
ma e da mais constante afeição, isso me parece o bastante para contraba­
lançar o senhor Morande e fazê-lo ao menos suspender seu julgamento,
em lugar de condená-lo com antecedência à sorte dos Schoepfer e dos
Zanovich935.
Não tema por ele, senhor, como uma conseqüência da perda dos re­
cursos jornalísticos que o senhor supõe que ele tenha. Essa idéia lhe foi
imposta; mas eu, que muito conheço o Sr. conde de Cagliostro, que o amo
muito e disso me vanglorio, desafio a que me mostrem uma só pessoa que
diga haver fornecido direta ou indiretamente à despesa que ele fez desde
que entrou na França. Não é de hoje que a maldade o ataca e que diferentes
pessoas foram citadas por tê-lo feito936 à custa de sua própria fortuna, mas
não há nenhuma que não esteja em estado de afirmar da mais solene ma­
neira que nada é mais falso que essa imputação.
Não tentarei, senhor, dizer-lhe tudo o que penso a respeito do Sr.
conde de Cagliostro; o senhor me parece muito prevenido contra ele para
que eu possa crer que apenas meu testemunho o faria passar do maior dos
afastamentos a toda a estima que ele merece. Gostaria apenas de poder
incitá-lo a ter mais moderação a seu respeito, tanto pelo temor de fazer
dele um julgamento precipitado quanto por algum respeito por muitas

935. Diziam-se entre outras bobagens que Cagliostro era irmão de Stephan Zanowich,
impostor e aventureiro, pseudopríncipe da Albânia, que por muito tempo enganou os
grandes senhores da Polônia, depois se suicidou. (Borowski) Cagliostro einer der merkwur-
digsten..., p. 29.
936. Apoiado
pessoas dignas de estima e de consideração que, há muito tempo, profes­
sam por ele uma afeição pública e que seria difícil acusar de cegueira.
Tenho a honra de ser, etc.
Barrier de Tinan
Comissário das Guerras937.

IV — Patente da Loja-Mãe do Rito Egipcío


Fundado em Lyon pelo G. Copta
Glória Sabedoria
União
Benfeitoria Prosperidade
Nós, Grande Copta, fundador e Grão-Mestre da alta Maçonaria Egípcia
em todas as partes orientais e ocidentais do globo, a todos aqueles que as
presentes verão, fazemos saber:
Que durante a estada que fizemos em Lyon, diversos membros de uma
Loja deste Oriente, segundo o Rito Ordinário e trazendo o título distintivo de
A Sabedoria, testemunhamos o desejo ardente de que eles teriam de se sub­
meter a nosso regime e receber de nós as luzes e os poderes necessários para
conhecer, ensinar e propagar a Maçonaria em sua verdadeira forma e pureza
primitivas; entregamo-nos de boa vontade a seu pedido, persuadidos de que,
dando-lhes essa marca de boa-fé e de confiança, teríamos a dupla satisfação
de haver trabalhado pela glória do Grande Deus e o bem da humanidade.
Por esses motivos, após haver suficientemente estabelecido e consta­
tado, junto ao Venerável e diversos membros da dita Loja, o poder e a
autoridade que tínhamos para isso, nós, com a ajuda desses mesmos Ir­
mãos, fundamos e criamos à perpetuidade no Oriente de Lyon a presente
Loja egípcia e a constituímos Loja-Mãe para todo o Oriente e o Ocidente;
atribuímo-lhe a partir de agora o título distintivo de Sabedoria Triunfante e
nomeamos como seus oficiais perpétuos e inamovíveis, a saber:
J.M.S.C.938 venerável; — Substituto: G.M.939
B.M.940 orador; — J.941
D. Secretário; — A.942
A943 Guarda dos S.A. e D.; — B.R.
B.G.I., M.C. e ET.

937. (Arquivos Sarrasin, vol. XXXIII, peça 16, 2 páginas.


938. J.-M. Saint-Costar.
939. Gabriel Magneval.
940. B. Magneval.
941. Journet filho.
942. Aubergenois.
943. Alquier.
Concedemos a esses oficiais, perpetuamente, o direito e o poder de
reunir Loja egípcia com os irmãos submissos a sua direção, de fazer qual­
quer recepção de Aprendizes, Companheiros e Mestres maçons egípcios,
expedir certificados, manter relações e correspondências com todos os ma­
çons de nosso Rito e as Lojas de que eles dependem em quaisquer lugares
da Terra em que elas estejam situadas, afiliar, após o exame e as formalida­
des por nós prescritas, as Lojas do Rito Ordinário que desejem abraçar
nosso regime; em uma palavra, de exercer em geral todos os direitos que
possam pertencer, e pertencem, a uma Loja egípcia justa e perfeita, tendo o
título, as prerrogativas e a autoridade de Loja-Mãe.
Impomos, todavia, aos Veneráveis Mestres, aos oficiais e aos membros
da Loja que tenham cuidados incessantes e uma atenção escrupulosa para
com os trabalhos da Loja, a fim de que as recepções e todos os outros traba­
lhos em geral sejam feitos em conformidade com os regulamentos e estatu­
tos expedidos separadamente por nós sob nossa assinatura, nosso selo e o
sinete de nossas armas; impomos ainda a cada um dos irmãos que marchem
sempre no caminho estreito da virtude e que mostre pela regularidade de seu
comportamento que ele honra e conhece os preceitos de nossa Ordem.
Para validar esses preceitos, nós os assinamos com nossa mão e
apusemos o grande selo concedido por nós a essa Loja-Mãe, assim como
nosso selo maçônico e profano. Feito no Oriente de Lyon944.

V — Mapa das Viagens de Cagliostro

944. Ritual da Maçonaria Egípcia.


O Evangelho de Cagliostro
Liber Memorialis de Caleostro Cum Esset Roboreti

Introdução

Da mesma maneira que surgem, por vezes, no céu monótono, imutá­


vel em aparência, imprevistos astros temporários ou fugitivos cometas dos
quais apenas alguns sábios esperavam o retomo, em certas datas, passam
pela humanidade seres estranhos que chamam a atenção de toda uma épo­
ca. Não são nem heróis, nem conquistadores, nem fundadores de raças ou
reveladores de mundos novos; eles aparecem, brilham, desaparecem e o
mundo parece, após sua partida, não haver mudado; mas, durante sua bri­
lhante manifestação, todos os olhares estiveram invencivelmente presos
neles. Os sábios foram perturbados por suas palavras; os homens de ação
se espantaram em encontrar esses indivíduos que os dominavam sem es­
forço; a multidão de pessoas simples os seguiu, sentindo irradiar deles uma
intensidade vital, uma bondade desconhecida, um poder oculto que socor­
ria a sua fraqueza e fazia bem a suas dores.
Essas aparições não são o apanágio de uma raça ou de um século; por
mais que se volte na História, tanto no Oriente como no Ocidente, a cada
curva da estrada, um desses homens se mostra. Falar dos mais antigos é
difícil; a respeito deles, assim como dos antigos meteoros, documentos nos
faltam. Quantos nos são desconhecidos e, para aqueles cujo nome chegou
a nós, como reencontrar seu verdadeiro rosto, se as interpretações ingênuas
da lenda, as intervenções pouco escrupulosas dos fundadores de seitas re­
vestiram esses primeiros homens com um traje que os transforma? Só ve­
mos Gautama divinizado em suas estátuas de Buda. Quem foi Orfeu? Quem
foram Apolônio de Tiana e Merlin, o mago?
A história nos esclarece mais acerca da fisionomia desses persona­
gens singulares nos tempos modernos? Não muito mais; aqui, outros obs­
táculos se erguem; a crítica severa, mais apta a destruir que a consolidar as
reputações, julgando a partir das concepções do dia e segundo o caminho
percorrido, tem muito trabalho para voltar atrás no tempo, para ver os ho­
mens sob a luz de seu século.
Os grandes químicos da Idade Média são, para nossos sábios atuais,
estudantes sonhadores; os grandes filósofos do passado preparavam Des­
cartes e Kant. Nós gostamos de vê-los através da ponta da luneta; a com­
paração nos engrandece. Mas colocar-nos no estado de ignorância de seu
tempo, pensar na superioridade de energia, de intuição, de julgamento
que eles tiveram de seus contemporâneos seria dar-lhes tal grandeza que
nosso próprio tamanho, em relação a nosso século, iria nos parecer bas­
tante diminuído. Esse ponto de vista não agrada a muitos historiadores.
Que um Paracelso tenha perturbado a Europa, despertado os espíritos
adormecidos, a crítica encontra neles erros científicos, ridículos, imper­
doáveis, fraquezas indignas de um espírito forte em número suficiente
para que sua imagem, reduzida e deformada em uma pequena caricatura,
para proveito dos grandes homens modernos, não possa mais suscitar a
admiração e o reconhecimento.
Se a história profana nos engana, se a lenda religiosa nos ilude a
respeito desses grandes homens, a tradição popular nos conserva seu nome
e o relato de suas maravilhas. Cada nação se lembra dos seus e da época
conturbada em que viveram. Pois é sempre em um período crítico que se
ouve falar deles. Eles chegam na hora e no país em que uma forma social,
tendo atingido sua completa realização, tende já a se alterar; quando os
esforços lentos e contínuos do espírito humano, em lugar de convergir,
como eles o haviam feito até então, para a constituição e a afirmação de um
organismo social, de um dogma religioso, de uma síntese científica, come­
çam a divergir e abalam o edifício construído pelas gerações precedentes.
As organizações religiosas, misteriosas e autoritárias em seus princí­
pios, ambiciosas e todas humanas em suas obras, envelhecem rápido; os
jovens deuses apenas fazem milagres. O progresso das ciências, que elas
sempre têm a fraqueza de buscar, corroem seus alicerces; o poder religioso
cai; a fé na própria ciência enfraquece diante das modificações contínuas
das teorias e da aparição de fatos novos. Ao mesmo tempo que abandona
os erros antigos, o homem encara e espera a posse de conhecimentos ilimi­
tados, de forças insuspeitas que as descobertas cotidianas tornam sem ces­
sar mais prováveis; o bem-estar material e a riqueza se tomam, ao crescer,
o apanágio de um pequeno número, enquanto suas necessidades, seus de­
sejos e sofrimentos crescem também, mas para a massa.
É que, como todo corpo vivo, uma sociedade traz em sua própria
divisão orgânica o germe de sua destruição futura; logo que seu completo
desenvolvimento é atingido, a especialização das funções se acentua, a
oposição de interesses aumenta, a luta de classes se exacerba; uma doença
mortal mina o organismo social. Os filósofos, os legistas, os homens de esta­
do sentem o perigo e sua impotência; eles se entregam ao ceticismo, à ina­
ção. Essas horas em que a religião de um povo está morta, em que a dúvida
filosófica penetrou todos os espíritos, em que os homens não mais buscam
na vida senão o aumento de seus prazeres imediatos e na ciência senão o
meio de atingi-los, quando a desigual repartição das alegrias e das dores se
acentuou pelo longo exercício de uma ordem social sempre insuficiente,
essas horas são as que precedem uma revolução e também as que vêem se
elevar um desses seres poderosos o bastante para comover almas demasia­
do sofridas ou incrédulas em excesso.
E a lei geral, periódica, não o barco de uma época excepcional que
indicamos aqui. Pergunte aos especialistas que viveram no passado a vida
de tal raça muito antiga, aos eruditos que, nos tempos modernos, estuda­
ram profundamente a evolução de um povo ou de uma dinastia, todos dirão
que constataram a eclosão, o desenvolvimento, as fases dessa mesma doença
de que morrem os organismos sociais, que eles assistiram a essa agonia de
um século e que na cabeceira do moribundo eles viram passar, com efeitos,
figuras indefinidas, singulares; talvez alguns cheguem a admitir que se
comoveram, se não forem demasiado historiadores.
O fim do século XVIII era uma época desse tipo; Cagliostro foi um
desses homens. Em meio a padres desabusados, ricos senhores aborrecidos,
sábios que duvidam de tudo, infelizes a quem tudo falta, ele despertou a
esperança e a vida com a autoridade de sua palavra e o poder de seus atos.
Um erudito original, escrutador dos mistérios antigos, filósofo e mo­
ralista como Court de Gebelin, podia, ao lado do monumento magistral da
Enciclopédie, atrair espíritos curiosos de saber, agrupar em tomo de si dis­
cípulos desejosos de aprender verdades novas. Uma reputação como a dele,
fundada sobre um conhecimento profundo do passado e uma concepção
larga das necessidades do espírito humano, deveria estender-se ao longe e
conquistar-lhe adeptos, sobretudo com a ajuda da Maçonaria, da qual ele
fazia parte e que secundava seus esforços. Cagliostro, ao contrário, não
escrevia e se declarava muito ignorante dos livros antigos; ele agia mais
que ensinava; ele falava a homens em particular e não ao mundo sábio em
geral; não era um mestre-escola.
Seria um outro Mesmer, um empírico apaixonado pelo magnetismo,
professor de altas ciências? Não exatamente. Mesmer muito fizera falar de
si, tanto por suas curas extraordinárias quanto pelo mistério de que ele se
rodeava; vendendo a peso de ouro suas tinas com seus diplomas, tirando
todo o benefício possível de suas lições e de seus procedimentos945, era
apenas um médico mais hábil que os outros, o primeiro a trilhar um caminho
novo. Se Cagliostro utilizou por vezes alguns procedimentos próximos ao
magnetismo946, ele o fazia assim como praticava a medicina clássica, como
ele trabalhava em seu laboratório ou se interessava por empresas industriais.

945. René Hélot. Un contrat entre Mesmer et Rouelle. Rouen in-8?, 1904.
946. Ainda devemos guardar nossas reservas acerca do assunto, pois o magnetismo de
Mesmer e o hipnotismo em nossos dias são termos vagos que englobam uma porção de fatos
disparatados e que não têm, na verdade, nenhum sentido preciso.
Nenhum ramo das ciências humanas o deixava indiferente, pois via nele a
parte de verdade que exprimia, mas não fazia comércio disso nem se
ligava a ele exclusivamente. Em cada uma das cidades em que morou, sua
atividade foi empregada de maneira diferente. Mesmer enriqueceu com
seu magnetismo; Cagliostro dava seu tempo, seus remédios e seu dinheiro
aos doentes que se apresentavam e passava a outros trabalhos.
Queriam vê-lo como um místico curador como foi madame de la Croix,
amiga de Claude St.Martin, personalidade atraente, de moralidade e abne­
gação indiscutíveis, de bondade sem limites? Novamente, um pouco de aten­
ção mostraria que esse caminho era errado. Madame de la Croix andava com
os olhos vendados, firme em suas crenças estreitas; ela nada sabia daquilo
que fazia nem do que não fosse seu mundo de visões; ela atacava qualquer
sofrimento, físico ou moral, rezava, persuadia, conjurava, exorcizava, gri­
tava, batia até que o diabo — ela o via em toda a parte — fosse enfim
desalojado. Assim que partia, com freqüência o diabo voltava. A vida
ascética de madame de la Croix, suas intervenções caridosas relevavam
uma crença pouco esclarecida; a guerra que ela fazia aos demônios com a
água benta e as relíquias era uma missão recebida que ela executava pon­
tualmente, sem a compreender, e que chegava mesmo a inquietá-la947.
Cagliostro falava com autoridade, sem violência; vivia como todo mun­
do, sobriamente, mas sem privações; ele cuidava das pessoas sem fórmulas,
sem exorcismos948, simplesmente, segundo suas doenças, e com toda espé­
cie de métodos (censuraram-lhe mesmo por só os ter curado com remédios
anódinos, ao alcance de qualquer médico). Ele sabia o que fazia; às vezes o
explicava. Sua teologia se limitava a preceitos muito simples, inteligíveis a
todos949. Por fim, sua vida ativa, suas relações, suas viagens, seus outros
estudos, suas obras sociais ocupavam uma parte muito grande de seu tem­
po para que se possa limitar seu papel ao de um curador.
Se ele se ocupou com alquimia na Polônia, se fez disso o tema de
conversas com admiradores dessa ciência, não se poderia porém assimilá-
lo a um Duchanteau, a um Lascaris, cuja preocupação contínua era saber
se o atanor tinha três andares e se o sangue era a matéria-prima, ao menos

947. “Vós que me conhecestes tão ciosa de minha reputação e de minha superioridade,
que sabeis que me privo de todo o supérfluo para dá-lo aos pobres, que vedes que o
ofício que realizo só me traz vergonha e desprezo... não compreendeis que a tarefa que
cumpro me foi imposta por uma Potência Superior? Dizei-me francamente se achais
que meu espírito enfraqueceu e que perdi a razão?" Souvenirs du Baron de Gleichen. 1
vol. in-16. Paris, 1868. p. 175.
948. “Jamais incluí o diabo em meus trabalhos e jamais fiz uso de coisas que recorrem à
superstição. ” Procès de J. Balsamo. Paris, 1791, in-8?, p. 189 e 192.
949. “Ame e adore o Eterno com todo o seu coração, ame e sirva o seu próximo fazendo-
lhe todo o bem de que você é capaz, consulte sua consciência em todas as suas ações.
Patente da Sabedoria Triunfante e Interrogatoire in: Vie de J. Balsamo, p. 173 e 209.
que fosse a urina. Cagliostro mostrava diamantes aumentados com a arte
hermética, afirmava a existência da transmutação metálica, mas era para
ele a expressão de uma verdade ainda ignorada pelas ciências naturais950.
Ele não falava de outra maneira da direção dos balões, das regiões desco­
nhecidas da Terra ou da vida secreta dos vegetais. E como ele vivia confor­
tavelmente com seus recursos, nada pedindo, dando muito, como não se
pôde determinar nem a origem de sua fortuna, nem o objetivo pessoal de
sua atividade maçônica, como os próprios maçons não puderam arregimentá-
lo ou empregá-lo, preferiram romper com ele, como foi impossível
comprometê-lo em uma intriga política ou em uma patifaria como o Caso
do Colar, do qual ele saiu imune, muito honradamente, como ele não obte­
ve nem bens, nem cargos, nem dignidades dos grandes que eram admitidos
junto a ele, era impossível dizer dele que era um agitador político como o
barão de Hund ou um intrigante ambicioso como o cardeal Dubois “em
quem todos os vícios combatiam para ver quem mandava951” e que, de
pequeno abade, tornou-se ministro, porque não podia mais se tomar rei.
Ora, nada é mais irritante para um espírito medíocre que um homem
sobre o qual não se pode pôr um rótulo; nada mais digno de interesse para
um espírito esclarecido. Estudar o misterioso conde de Cagliostro era en­
tão um problema cativante para um psicólogo. Quase sempre, Cagliostro
só teve a seu redor inimigos em grande número: médicos com ciúmes de
seus sucessos, personagens oficiais hostis a qualquer originalidade, ambi­
ciosos inquietos com seu renome, patifes descobertos por sua clarividência,
polemistas comprados; ou amigos, em número muito pequeno, discípulos
devotados, com freqüência desajeitados em seu zelo excessivo, mais pró­
prios para atrapalhá-lo que para fazê-lo estimado.
Quando ele chegou à Itália, em 1787, após sua brilhante absolvição,
sua luta com Morande, sua Carta ao povo francês e sua estada em Bâle,
onde a municipalidade reconhecida lhe concedera o título de cidadão da
cidade, mais em evidência que nunca, sempre igualmente impenetrável,
ele encontrou por fim em Rovoredo um observador imparcial. Crítico de­
sinteressado, nem discípulo, nem inimigo, esse protótipo de “repórter” com­
prometeu-se em controlar dia a dia, anotar tudo o que ele podería ver, ouvir
ou aprender de Cagliostro durante as poucas semanas que ele passou na­
quela cidade. Tomadas as notas, ele fez delas um livro e, como era de bom-
tom no século XVIII misturar o sagrado ao profano e brincar com tudo o
que pudesse ser sério, ele as publicou em latim sob o título Liber Memorialis
de Caleostro cum esset Roboreti em um estilo copiado dos Evangelhos.

950. Av revistas científicas de nossos dias estão cheias de comunicações acerca dos trans­
formações do urânio em rádio, da emanação radiante em hélio e do hélio em chumbo; a
transmutação é coisa atualmente admitida e provada, mesmo para outras séries que não
a do urânio. Que homenagem aos antigos alquimistas!
951. E o julgamento que Saint-Simon faz dele em suas Memórias.
Esse livro ficou conhecido pelo nome de Evangile de Cagliostro
(Evangelho de Cagliostro); é o documento mais precioso que temos a
respeito de sua pessoa, o que nos permite reviver um pouco seu tempo,
junto a ele, imaginar como ele era, o que dizia, o que puderam pensar
dele aqueles que se aproximaram. Não é apenas por esse ponto de vista
que o diário da passagem por Rovoredo possui um valor inestimável; é
também porque todos os exemplares dessa obra, reunidos aos papéis de
Cagliostro, foram queimados pelo Santo Oficio no Auto-de-Fé que seguiu
sua condenação pelo papa e que foi executado em Roma em 4 de maio de
1791 sobre a praça da Minerva.
Alguns volumes, já entre as mãos de particulares, escaparam à pira;
desde então, eles desapareceram, foram destruídos ou perdidos. Não os en­
contramos em bibliotecas públicas, não os vemos nas vendas de livros raros
e apenas o título da obra fora transmitido por contemporâneos. Tivemos a
felicidade de encontrar um exemplar na Itália. Esse documento precioso,
do qual publicamos hoje uma escrupulosa tradução, ajudou-nos muito a
reconstituir a vida de Cagliostro, a restabelecer tão exatamente quanto pos­
sível o caráter, a natureza e o papel desse maravilhoso personagem, devol­
vendo assim à verdade uma lenda, reabilitando um ser que a calúnia esma­
gara. Esse estudo completo acerca de Cagliostro, do qual o presente livro
não passa de uma espécie de introdução, está pronto, e esperamos publicá-
lo em breve.
Todos os que respeitam a verdade, que buscam o caminho, cuja alma
tem sede de viver, encontrarão nele com que satisfazer seus justos desejos.
Nos tesouros da humanidade há diamantes que o próprio fogo das piras
não poderia alterar. Há palavras que não envelhecem.
O Evangelho de Cagliostro

No oitavo ano do reino de Joseph, imperador952, Cagliostro veio a


Rovoredo e aqui morou por algum tempo. E aquele que escreve estas
linhas, vendo-o passar, olhou-o pela janela de sua casa e a mulher de
Cagliostro estava com ele; eram mais ou menos sete horas da noite. Al­
guns diziam que era um mago, outros que era o anticristo, e discutiam
entre si. Ele caçoava deles dizendo: “Quem sou, ignoro, mas sei que curo
os doentes, que ilumino os que duvidam, que dou dinheiro aos infelizes.
Escreveram a meu respeito muitas besteiras e mentiras, pois ninguém co­
nhece a verdade. Mas é preciso que eu morra e então o que fiz será co­
nhecido pelas notas que deixarei953.”
E quando a noite vinha, muitas pessoas se reuniam e o interrogavam
acerca de muitas coisas. E da mesma maneira, de manhã, ele recebia doen­
tes e lhes dava consultas. Mas as pessoas tinham muito medo dele. Durante
a noite, algumas pessoas, de espírito curioso, vinham e ele lhes falava aber­
tamente de seus atos. Baptiste, irmão de Nicolas, e Eloi, e outros. E eles o
levaram a suas casa, em uma pensão que tinha as janelas gradeadas, e ele
fugiu de lá, gritando que era uma Bastilha, e recusou-se a morar ali. Ele
permaneceu então no hotel.
II. — E após alguns dias, ele procurou comprar uma casa para morar.
Visitou a casa de Festus, mas eles não entraram em um acordo quanto ao
preço. Ele foi então aos Echares e, como a casa lhe agradou, ele voltou
para falar dela a sua mulher, e eles se entenderam sobre o assunto. E eles
estavam ainda no hotel. A partir do nascer do dia, estava ali recebendo a

952. Em 24 de setembro de 1787, Joseph ll se torna soberano hereditário da Austria em


1770, após a morte de sua mãe.
953. Se Cagliostro deixou obras escritas, elas estão nos Arquivos do Vaticano ou foram
queimadas no auto-de-fé que se fez com esses papéis. Acho que é preciso compreender
essas palavras da seguinte forma: meus atos, os resultados de minha vida, farão com­
preender quem eu era.
multidão e cuidando dos doentes; e um homem muito afortunado veio a
ele. Sofria de litíase renal e, muito idoso, tinha cálculos. E gritava: “Senhor,
se tu podes, venha à minha ajuda.” E ele lhe disse: “Tu és velho, tua doença
é inveterada e tu buscas um remédio? Porém, volta amanhã e eu te prepara­
rei um medicamento”. O médico que cuidara desse doente ouvia tudo isso
e refletia atentamente consigo mesmo. Enquanto iam saindo, ele testemu­
nhava a todos que Cagliostro falara bem e lhe prestava homenagem segun­
do os princípios de sua arte. E se espalhava no povo o rumor de que era um
profeta, que não recebia dinheiro de ninguém, nem presentes em espécie e
que não fazia nenhuma diferença entre o pobre e o rico, querendo apenas
conquistar os corações e fazê-los ligar-se a ele para ajudar em sua obra de
misericórdia. E todos corriam a ele, trazendo receitas e pequenas somas
para comprar medicamentos. Mas havia muitos que balançavam a cabeça e
se recusavam a crer até que houvessem visto resultados.
III. — Mas pouco após, ocorreu que aquele que sofria de cálculos,
tendo tomado seu medicamento, deitou uma grande quantidade de urina
quase purulenta e começou a passar melhorar. E os médicos estavam muito
espantados de que uma pitada de pó tenha podido ter tamanha ação e eles
vasculhavam seus livros para buscar uma explicação. Cagliostro foi nova­
mente à casa de Festus e morou lá. Em seguida, uma mulher dos arredores
de Verona que tinha um câncer no seio lhe foi trazida trêmula e cheia de
lágrimas e, havendo convocado os médicos, Cagliostro lhes disse: Vejam,
vejam e julguem. Eles, tendo-a examinado, disseram com unanimidade
que apenas uma operação poderia salvá-la e isso ainda era duvidoso. Ca­
gliostro respondeu: Eu nada tiro às pessoas e não vim mutilar os homens
com o aço. E imediatamente ele fez um emplastro e disse à mulher: “Toma
um lenço e amarre isso em ti”. Ela lhe disse: “Senhor, não tenho nenhum”.
A mulher de Cagliostro, que se havia ausentado, voltou e trouxe um lenço
limpo e novo e o deu à mulher que se tratou como Cagliostro lhe dissera. E
ela lhe disse: “Senhor, quanto tempo devo permanecer nesta cidade para
que tu me cures e eu seja devolvida à saúde?” Cagliostro lhe respondeu:
“Algum tempo”. Então a mulher lhe disse: “E como poderei fazê-lo? Seria
preciso entrar no hospital e não tenho ouro nem prata”. E Cagliostro se
enraiveceu contra ela e lhe disse: “Vai, come e bebe, pagarei teu hoteleiro
para ti”. E a mulher se foi alegre, com uma pressa extrema. Ora, Cagliostro
mandara vir o hoteleiro, tratou com ele sem discutir para que ele a hospe­
dasse sem lhe pedir nem um vintém. E era um acordo unânime de todos
para louvá-lo e para dizer que um grande socorro viera do céu à terra. E, no
dia seguinte, os médicos vieram ver a mulher e a encontraram toda alegre
alojada no hotel, e ficaram estupefatos.
IV. — E Cagliostro, falando ao médico que cuidara do doente dos
cálculos disse-lhe: “Faça o que for necessário para que teu doente te pague
regiamente o que te deve, e eu farei de modo que durante dez anos ainda a
morte não se apodere dele e assim triunfarei em tudo954. Mas não digo que
ele ainda dure vinte anos”. E esses dizeres foram conhecidos pelo doente
que, sabendo que ainda tinha ao menos dez anos para viver, ficou profun­
damente reconfortado. E havia um alto funcionário, ligado ao serviço das
finanças, que encontrara Cagliostro no estrangeiro e que o conde conhecia
bem. Ele o via todos os dias, trabalhava com ele, estava orgulhoso disso e
se regozijava em sua intimidade. Chamaram-no à parte e o interrogaram
em segredo, dizendo-lhe: “Tu podes nos dizer a verdade, pois és de seus
íntimos”. Ele lhes disse: “Interrogai, o que quereis saber?” E eles lhe disse­
ram: “Diz-nos se é verdade que Cagliostro jantou com Cristo Nosso Senhor
nas bodas de Canaã e se ele bebeu da água transmutada em vinho, como
muitos contam”. Ele lhes respondeu dizendo: “Não, porém ele nasceu antes
dos séculos; isso é verdade, mas não dizeis a ninguém”. E caçoavam dele.
E havia uma grande divergência de opiniões entre todos a respeito de sua
religião: alguns diziam que ele era maometano e outros que era judeu. Como
eles discutiam a respeito desse assunto, Cagliostro lhes disse: “Por que vos
abalais e dizeis coisas erradas?” Cada uma dessas seitas deixa um traço inde­
lével, será que podeis vos dar conta disso? E uma após a outra, as pessoas se
iam e não sabiam o que responder. Alguns pensavam que ele trazia de volta
os mortos e os fazia falar com os vivos e comer com eles. Vinham também
pessoas hostis tentando fazê-lo falar e pegá-lo em flagrante delito de mentira
e contradizê-lo. Mas eles admiravam a sabedoria de suas palavras e iam
declarando que esse homem não podia ser surpreendido.
V. — E enquanto isso se passava, receberam as cartas de Milão anun­
ciando que Cagliostro também estava naquela cidade. E todo o povo dava
altos gritos e se perguntava com estupor como isso era possível. E muitos
diziam que ou um, ou outro era um falso personagem, e alguns detestavam
a ambos. E ninguém podia compreender até que o mistério fosse revelado.
Ora, aquele que estava em Rovoredo continuava noite e dia a cuidar dos
doentes, respondendo a todos com humanidade e prometendo-lhes a cura
de suas doenças antes de quinze dias. E quando alguns manifestavam
algumas hesitações a respeito de seus remédios, ele lhes respondia confiden­
cialmente: “Eu vos perdoo porque vós não me conheceis”. E era da mesma
maneira com sua mulher, que dizia: “Meu marido cura tudo, exceto os
mortos”. Ora, ela não admitia em seu quarto nem serva, nem aia, nem nin­
guém. E ela se servia, para sua toalete, de uma preparação dita das cinco
gotas. Essa preparação era muito conhecida na Inglaterra, pois Cagliostro,
que a inventara, havia, com o preço de sua venda, dado dote às duas filhas
de um oficial. E ao misturar cinco gotas dela com uma água de toalete
muito boa, isso dava ao rosto uma brancura de leite e um brilho de rubis. E

954. “Et Ego vincam universum ” — o sentido exato das palavras de Cagliostro traduzidas
assim pelo autor devia ser: “Pois eu tenho o universo sob minhas ordens; tudo me pertence”.
voltando à casa de Baptiste, irmão de Nicolas, ele conversava com os mé­
dicos, dizendo-lhes: “Toda doença vem de uma ou outra destas duas cau­
sas: ou o espessamento da linfa, ou a corrupção dos humores em nosso
corpo955. E ele não reconhecia outro princípio nas doenças.
E ele dizia também: “Os balões, esses globos voadores956 que um
homem audacioso inventou, quem os dirigirá para onde quer? Saibam que
os balões não poderão ser dirigidos, senão se lhes tirarem, em primeiro
lugar, sua forma esférica, e ninguém nem pensa nisso.” Ora, ele falava
italiano e francês e também uma língua entre esses dois idiomas957.
E havia um grande poder em suas palavras. E algumas mulheres muito
ligadas a ele, e que lhe falavam de suas doenças, suplicavam-lhe, pressio­
navam-no, para que jamais se fosse ao estrangeiro. Pois ninguém sabia
quanto tempo ele deveria ficar conosco. Ora, havia na cidade uma jovem
lunática que berrava, com espuma nos lábios e os dentes cerrados, e se
jogava sobre aqueles que se aproximavam em sua cólera e seu furor. Que­
riam levá-la até ele, mas não podiam. Assim, ele próprio veio vê-la para
expulsar o espírito de sua doença; e jamais, até então, ele agira dessa manei­
ra com qualquer outro doente. E muitos entre os mais altos da nobreza acre­
ditavam nele e conservavam todas as suas palavras com cuidado.
VI. — E a cada dia uma grande multidão sitiava a porta de Festus,
tentando ver Cagliostro, e das cidades e castelos, de toda a região, traziam-
lhe doentes, de carro, de cadeira, de padiola, a tal ponto que a praça estava
lotada e a multidão, empurrando-se, esmagava-se diante da casa. E Emest,
que era o decano dos médicos da cidade, vendo a perturbação e o desvario da
opinião pública, pediu aos magistrados que lhe proibissem cuidar dos doen­
tes, fazendo valer o argumento que, segundo a lei, o exercício da medicina é
proibido a qualquer homem que não tenha sido examinado e diplomado
pelas autoridades médicas que o Imperador estabeleceu, escolhidas para
isso, e que aquele que não observa a lei é adversário do Imperador e, con­
sequentemente, culpado. E tendo-se reunido os magistrados, proibiram-
lhe que se ocupasse daí em diante de medicina e o ameaçaram. Mas ele,
resistindo-lhes, protestava e dizia: “Jamais receitei nada a nenhum doente
senão em presença e com a aprovação de seu médico. E aqueles aos quais
receitei qualquer coisa, vós o sabeis, estão melhor. Além disso, jamais dei
um medicamento sem especificar com antecedência qual seria sua ação.
Eis que jamais convidei nem convido ninguém a vir me encontrar; mas

955. Como o nascimento e a morte são os dois termos da vida, a concentração e a difusão
são duas ações extremas da força vital; ê o Solve et Coagula dos alquimistas.
956. O nome de globo voador era aquele sob o qual se designavam na época os balões e
especialmente os aerostatos. Ver as brochuras da época referentes às experiências feitas
no Campo de Marte em 27 de agosto de 1783 por Charles e Robert.
957. Provençal, piemontês ou língua franca do Oriente.
quando a mim vêm pessoas espontaneamente, por que eu não lhes respon­
dería? E todos me são também testemunhas de que, até este dia, nada soli­
citei de ninguém e nada aceitei do menor ao maior, mas, ao contrário, vim
em ajuda dos pobres, fornecendo-lhes o que lhes seria útil no tratamento
de seus males.” E a voz do povo se elevava a seu favor e crescia na Assem­
bléia. Os magistrados, ouvindo isso, acharam que seria bom poupá-lo e o
deixaram cuidar dos doentes. Mas ele, indignado, desejava escapar a seu
poder e resolveu se transportar para além do rio Athésis958, no burgo de
Lagarinum, que chamavam Villa959. E lá as autoridades o receberam com
alegria e queriam fazer uma festa em sua honra, mas ele recusou. E foi na
noite de domingo, por volta das três horas. E um certo Joseph, pai de Joseph,
o padre, que sofria de violentas febres, tentava penetrar junto a ele; e um
jovem obteve de Cagliostro, em nome da esposa de um dos cônsules da
cidade, que ele lhe permitisse vir. E o nome desse jovem era Clément. E
Joseph foi recebido secretamente com seu fdho mais jovem.
VII. — Ora, havia, sentados na casa do cônsul Gaspard, homens de
nobre nascimento e mulheres, e Cagliostro estava de pé no meio deles, e
falava, e havia uma grande multidão no vestíbulo. Tendo tomado pelo braço
o homem que já há muito sofria de febre e de vertigem, e tendo levado tam­
bém seu filho, ele entrou em uma pequena câmara e, vendo que o homem
vacilava sobre suas pernas, mandou-o sentar. E logo que reconheceu sua
doença, ele respondeu aos que o interrogavam: “São os vermes que o fazem
sofrer”, e ninguém o compreendeu ainda. Mas eles se espantaram e se cala­
ram. E voltando-se para Joseph, ele disse: “Tem coragem, eu te curarei em
oito dias. Tem apenas confiança em Deus e em mim e faze o que eu te orde­
nar.” E o doente admitiu que era cristão e não dissimulou sua crença. E após
isso, tendo dispersado a multidão, ele atravessou e voltou à cidade onde
havia um jovem, soldado da guarda, doente (ele já o havia visitado e ele
passava melhor) e onde estava também a jovem alienada, que parecia aos
poucos se acalmar: havia ali um grande número de pessoas que prestavam
testemunho por eles próprios a respeito de suas obras de caridade e que o
abençoavam.
VIII. — E todos se maravilhavam a respeito do jovem soldado, pois
logo ele se ergueu, sendo que já havia cinco meses que ele estava deitado
imóvel, como que morto, com uma inchação nas coxas e dores articulares.
E a origem dessa doença era aquela peste que fora trazida do outro lado do
mundo pela intemperança para punir a obra da carne. E Cagliostro, vendo o
número enorme de pessoas que vinha a ele a cada dia, vítimas dessa doen­
ça má, perturbava-se e dizia: “Dificilmente encontrei tantos doentes desse
tipo em Paris e em Constantinopla. Desgraça a vós, pois vossa luxúria

958. O Adige, chamado hoje em dia de Pó.


959. Villafranca.
desceu sobre vós e vossos filhos”, e ele citava o provérbio que dizia que as
pequenas cidades são mais pervertidas para os prazeres do que as grandes,
e que elas morrem disso.
Quanto a ele, tomava pouco alimento, não se deitava em uma cama,
mas dormia em uma poltrona, apoiado em um travesseiro. E aconteceu
que, como lhe traziam doentes até mesmo de um hospital, ele não quis
recebê-los, dizendo: “Eu sei que, qualquer que seja a prescrição que eu
lhes faça, eles não a executarão e rejeitarão minhas palavras. Pois aqueles
que têm poder sobre eles não os deixam livres. E meus recursos não me
permitem encarar todas as necessidades e retirá-los do hospital. Por isso,
ide e respondei-lhes que eles têm seus médicos e seus cirurgiões, que os
consultem!”
E um dos cirurgiões da cidade, muito pequeno e muito vivo, assistia-
o sem interrupção e tomava nota das fórmulas de seus purgatives. E havia
também outros médicos com ele que escutavam seus conselhos com con­
fiança. Quanto àqueles que ele sabia serem seus inimigos, que o maldiziam
nas ruas e excitavam o povo, ele não os perseguia com sua cólera, pois ele
dizia: “Ninguém pode fazer o bem sem fazer invejosos. Em todos os luga­
res em que estive, em todas as nações, muito suportei da parte dos homens
e não quis fazer mal a ninguém, mas, ao contrário, ajudar todo mundo. Eis
com efeito a caridade que assimila o homem a Deus: devolver o bem pelo
mal e arrancar nosso gênero humano a suas misérias.” E ele contava longa­
mente que na Inglaterra, na França, na Rússia tivera de sofrer para fazer o
bem aos outros e ele os perdoava, a todos. E uma manhã, bem cedinho, a
mulher de um capitão de Milão, mulher bela e de grande distinção que
tinha uma recomendação para Baptiste, irmão de Nicolas, veio ver Ca­
gliostro, pois ouvira dizer e lera a respeito dele muitas coisas, a saber que
ele curava todas as doenças e que não havia semelhante a ele sobre toda a
Terra. Baptiste a recebeu então e a conduziu a Cagliostro, que os acolheu
com amabilidade e, quando chegou a hora de sua partida, Baptiste disse a
Cagliostro: “Se alguma vez te aborrecí, hoje paguei minha dívida.” E Ca­
gliostro o reconheceu e se despediu deles.
IX. — Quando chegou a noite, perguntaram-lhe se era verdade, como
diziam os rumores, que ele possuía uma poção por cuja virtude ele devol­
via a juventude aos homens, e ele respondeu, negando o fato: “Eu lhes
asseguro que nada há de comum entre mim e as fábulas sábias da filha do
rei da Cólquida.” Mas contou como uma dama nobre, que o temor da velhi­
ce tomava perigosamente louca, foi curada com a imaginação, dando-lhe
uma poção que devia, anunciou-lhe, propiciar a eterna juventude. E as ou­
tras mulheres se entristeciam com essas palavras, sabendo que o remédio
não existia e que sua esperança de ver reparados os ultrajes do tempo era
ilusória. E os homens caçoavam delas. E Cagliostro disse: “Mesmo meus
servos enganam e se enganam a meu respeito; desconfiai de suas mentiras,
pois tais homens não podem ser retidos por nenhum meio no caminho reto
da verdade.” E uma mulher que pertencia à nobreza da cidade, tendo omitido
seu nome, enviou-lhe um mensageiro para lhe dizer: “Senhor, uma dama
tem algo a vos dizer: vinde à tal villa, ela estará lá, recebê-vos-á com honra
e vos entregará 12 peças de ouro em recompensa”. A cólera se apoderou de
Cagliostro e ele se enfureceu dizendo: “Ela então não me conhece, nem a
mim, nem a minhas palavras. Ela não verá meu rosto até que a venda que
cobre seus olhos tenha caído.”
E tentavam observá-lo, para ver se ele ia à igreja aos domingos, se
eles comungavam, ele, sua mulher e seus criados. E ninguém o sabia com
certeza: alguns o afirmavam, outros o negavam. Porém, quando despedia a
multidão de seus doentes após a audiência, ele estendia os braços e fazia o
sinal da cruz. E também quando o soldado que estivera doente, deitado du­
rante cinco meses, viera ajoelhar-se diante dele, curado e reconhecido, ele
lhe dissera: “Por que me agradecer? Vai à igreja, quando o padre diz a
missa, e confesse” então que Deus te curou de tua doenças; e por causa
disso se dizia: “Vede, não somente ele é cristão, mas também católico.”
Outros respondiam: “Não, mas ele quer que cada um testemunhe de seu
fervor segundo a tradição da lei de seus pais, para não causar escândalo no
povo e para que as autoridades não se ergam contra ele.” Outros, competen­
tes em medicina, negavam a cura do soldado e denegriam Cagliostro sobre
seus medicamentos, dissuadiam as pessoas de tomá-los, dando razões tira­
das das regras sábias de sua arte. Ora, ele aconselhava a quase todos que
bebessem uma tisana, cuja fórmula se encontra em Hipocrates, pois não há
bebida mais sã que essa tisana, dizia ele. Aqueles que o acusavam gritavam:
“Mas a mesma tisana não pode convir a todos!” E acrescentavam: “Nenhum
daqueles que ele diz ter curado ficou inteiramente bom. Onde estão suas
promessas? Ele pretendia que em alguns dias ele retiraria toda doença? Jose­
ph, pai de Joseph, o padre, a quem predissera que em três dias expulsaria
vermes, não os expulsou, e até agora não está ele doente?” E só se respondia,
a essas objeções, uma única coisa: que esse homem não deixava de fazer
bem aos pobres. E a cada dia, de toda a Itália, vinham pessoas em grande
número, e mulheres de alta nobreza, e do norte também muitos viajantes
para vê-lo e consultá-lo; chegavam mesmo das montanhas da Alemanha e
das margens do Mediterrâneo, buscando a consolação em sua confiança.
X. — Ora, um dia Cagliostro estava sentado com Baptiste, irmão de
Nicolas, e um outro, e ele falou e começou a contar as emboscadas que lhe
haviam estendido em Londres, e como um dia, defendendo ele próprio sua
causa diante dos juizes e dos príncipes do povo contra um caluniador, ele
exclamou a plenos pulmões: “Tão verdadeiro como Deus existe, que aquele
de nós dois que presta falso testemunho morra imediatamente”. E a mão de
Deus se abateu sobre seu acusador e ele caiu para trás, morto. Baptiste,
tendo-se voltado para seu amigo, disse-lhe”: Saiamos, pois este homem
nos recebe hoje demasiado familiarmente960.” E eles saíram. Ora, aqueles
que estavam na cidade, vendo a multidão que vinha das mais afastadas
regiões, estavam admirados. E alguns, por isso mesmo, vinham a ele, de
medo que os estrangeiros lhes censurassem sua indiferença dizendo: ‘‘Como,
nós, nós viemos de longe para vê-lo, e vós, que o tendes convosco, não vos
preocupais e tendes vergonha de prestar homenagem à virtude?” Outros,
que não temiam o julgamento de outrem, opunham-se muito firmemente a
essa opinião. E eles diziam: “Quem é esse homem? De onde vem? Ignoramo-
lo. Como seu renome se espalhou em todo o universo? É verdade que ele
dá provas, curando todos os doentes, como promete? Nada disso. Então o
quê? Ele percorre o mundo, distribui ouro, diz coisas profundas e obscu­
ras. Assim todo mundo pode parecer grande: que ele cure publicamente
alguém largado pelos médicos e acreditaremos nele”. E alguns respondiam:
“Há um fato certo”: é que ele tem um remédio muito eficaz para curar as
febres periódicas e que muitos aqui foram curados.” E como os outros
punham em dúvida que a saúde assim restabelecida o tenha sido definitiva
e seguramente, novamente a discussão recomeçava. Desde então, Caglios­
tro não curou mais nenhum habitante da cidade ou da região de Rovoredo,
mas ele curava apenas estrangeiros, sobretudo os que vinham de longe.
Espalhava-se o rumor de que o prefeito e os magistrados lhe haviam nova­
mente proibido de exercer a medicina. E ele dava para isso uma outra ra­
zão: ele dizia que aquela cidade era maldita porque alguns dos literatos do
país961 o haviam caluniado sem razão. “Eis por que não mais farei agir meu
poder entre vós, mas irei ao longe devolver os pais a seus filhos e arrancar
para os pais seus filhos das garras da morte e das cavernas das trevas. A
glória me revestirá com o traje de seu esplendor, as mães me coroarão com
rosas e as pessoas ungirão meus cabelos com óleos aromáticos, velhi­
nhos me cantarão, junto com jovens, cânticos ao som da trombeta e do
trovejar dos tambores. Lá, o ódio não destila seu veneno e a incredulida­
de não firma suas raízes.” Eles pensavam então que logo ele partiria da
terra deles e muitos se alegravam com isso pensando que ele perturbava
a cidade, pois ele lia nos rostos os segredos dos vícios de cada um. Pois
era fisionomista e metoposcopista962. E quando os doentes voltavam sem
mudança para revê-lo, ele dizia: O que quereis que eu faça por vós? O
medicamento que vos conviria está na outra ponta do mundo, poderia eu
partir sobre a asa dos ventos para buscá-lo e trazê-lo?”
E, fechando a porta, ele se retirava da multidão e escrevia em árabe,
em francês, e repousava.

960. Esse homem caçoa de nós; ele não respeita nosso bom-senso; ele abusa de nossa
credulidade.
961. Jornalistas.
962. N. do T: Metoposcopia é a interpretação das rugas faciais, especialmente da testa,
para determinar o caráter de uma pessoa.
XL — De resto, o dia não passava sem que uma nova onda de doentes
viesse encontrá-lo, chegando de suas cidades para se mostrar a ele. E aque­
les que não podiam vir enviavam seus médicos para ouvir as palavras de
sua boca. E veio também uma criança, filha de um certo Pompeu, que fora
juiz na cidade: ela caía com freqüência, agredia-se nas crises e espumava:
seu nome era Elisabeth. Ele lhe ordenou que tomasse emético e a despediu.
Ordenou o mesmo tratamento a outras mulheres nobres, vindas da Alema­
nha por recomendação de sua aia963, que era sua amiga. Pois essa muher
contara a sua patroa as proezas de Cagliostro em Estrasburgo; como seu
pai, a quem os médicos queriam cortar o braço por uma gangrena, fora
curado subitamente e como uma mulher em trabalho de parto, a quem pre­
paravam para fazer uma operação cesariana, pois estava morrendo, foi sal­
va, assim como seu filho, ao tomar das mãos de Cagliostro algumas gotas
de elixir. Por isso e por muitos atos meritórios, os estrasburgueses manda­
ram gravar seu retrato tendo, abaixo, alguns versos em língua francesa
prestando testemunho a seus méritos964. Ora, um dia em que uma princesa
alemã veio vê-lo, extraordinariamente bela e virtuosa, Cagliostro se er­
gueu e lhe deu um exemplar de seu retrato que havia sido feito em
Estrasburgo, dizendo: “Eis que estarei sempre e em toda a parte contigo.”
E ele nunca agira assim com ninguém. Nesse dia, a multidão murmurava e
dizia: “Contam-nos grandes coisas feitas longe as quais não vimos com
nossos olhos e onde não estávamos. Que ele faça aqui alguma maravilha!”
Mas ele não o pôde. Eles diziam isso sabendo que Cagliostro havia dado a
um certo médico surdo que o consultara uma poção energética, que ele
soprara em seus ouvidos, prometendo-lhe que em seis dias seus ouvidos se
abriríam e que ele ouviría nitidamente um sopro como aquele. E após tudo
isso, o médico continuava sem ouvir nada, e ainda era necessário falar-lhe
por gestos. Quanto ao velhinho que sofria de cálculos, que seus amigos
incitavam a percorrer a cidade a cavalo e a se mostrar em público para
prestar testemunho de sua cura por Cagliostro, ele lhes respondia: “Ide
embora, caçoais de mim, estou na verdade pior do que antes e se houvesse
me tratado dessa maneira outras vezes já repousaria junto a meus antepas­
sados há muito tempo. Outros falavam da mesma maneira e começavam a
desprezar seus conselhos. Outros espalhavam o rumor de que os médicos e
farmacêuticos, por ciúmes, traíam-no e falsificavam suas receitas, ou o calu­
niavam a fim de que não se pudesse conhecê-lo de verdade. Mas aumentava
o número daqueles que diziam:” As palavras de mentira são aquelas ditas
para encontrar desculpas a suas besteiras. E saibam que essa mulher com

963. Ancilla é escrito com uma maiuscula no texto; apesar disso, não consideramos essa
palavra como nome próprio, já que as falhas tipográficas eram comuns nessa obra.
964. Retrato gravado por Guérin, em 1781, e que reproduzimos no início deste volume.
quem ele está não é sua mulher (ela era romana e de nome Séraphim963), é
apenas uma ajudante para suas representações: ela não vai comungar nos
dias de festas porque fica guardando suas maravilhosas jóias em casa por
medo dos ladrões. E ele também não se aproxima da santa mesa, pois sua
alma não pode encontrar a paz em pensar nas coisas de Deus e ele diz ter
obtido a dispensa do príncipe dos padres. Desgraça ao homem que não crê
e coloca as obras do século antes das obras do céu! Hoje ele despediu seu
doméstico, servo em sua casa há quinze anos, bom e zeloso, porque ele
aceitara dinheiro de seus visitantes. Mas ele nada tem a temer e em algum
lugar ele vai esperá-lo e, ali, ele o retomará a seu serviço.” Todas essas
maledicências se repetiam na multidão e erguiam dissensões muito gran­
des. E Cagliostro, levado pelo espírito de corpo, foi um dia jantar em casa
de um homem, que se dizia fazer parte da Maçonaria, e sua mulher também
fazia. E ele próprio era um dos chefes dessa Sociedade, mestre dessa seita
dita dos Iluminados, e ele tinha alguns discípulos que queriam ser inicia­
dos e mesmo seguir esse mesmo caminho. E entre outros, um senhor da
vizinhança pedira sua admissão e versara uma soma de 300 peças de ouro,
e estava com ele dia e noite, e com um outro irmão, vindo da beira do mar,
mas Cagliostro lhe respondeu: “E preciso que três mestres se encontrem
reunidos para poder fazer a recepção de um neófito nessa seita.” Eles es­
creveram então a um certo discípulo que morava muito longe daquela cidade
para rogar-lhe que viesse o mais rápido possível, e ele partiu imediatamente.
E os outros, cheios de zelo, velavam e esperavam. E numerosos pensamen­
tos agitavam seus corações, e eles eram como os dos mistérios que o tirso
havia atingido, ou que fazia ressoar os símbolos sobre o monte Díndimo965 966.
Quando ele chegou, tomando com eles um outro discípulo, Caglios­
tro recebeu o neófito e, tendo-o ativamente instruído dos elementos de sua
doutrina, ele o recebeu nas Eleutérias967 e lhe permitiu ter assento em meio
aos irmãos e conhecer os segredos de sua comunhão dos desertos da Cítia
até o rio da Etiópia; arrumou-se na casa de Cagliostro uma grande mesa de
festa e tomaram seus lugares. Havia uma imensa quantidade de lustres e
sua mulher comia com eles. Como eles jantavam ainda bem tarde da noite,
isso superexcitava a curiosidade das pessoas, e pelas portas e janelas tenta­
vam dar uma olhada e penetrar seus mistérios. E alguns contavam que
haviam visto uma coisa, outros outra coisa, sangue que bebiam, tochas em
cruz, espadas nuas, e enlouquecia-se o povo com fábulas968. Cagliostro pas­
sava por afiliado nos Ritos dos egípcios e nas Tesmoforias dos Mistérios

965. Sic.
966. Os mistérios de Cibele se celebravam sobre o monte Díndimo, na Frigia.
967. Festa da liberdade.
968. Uma campanha ativa era feita contra os símbolos maçônicos e contra Cagliostro em
particular na Itália; ela se concluiu em Roma com sua prisão.
de Elêusis*. E quando eles se ergueram da mesa, o neófito ficou com eles, e
o outro iniciado, que era estrangeiro, voltou rapidamente para sua terra. Mas
o criado que o despedira, que dormia em um estábulo, disse a si mesmo: que
a paz de Deus não mais se faça em mim até que eu realize as mesmas mara­
vilhas “Que meu mestre. E ele começou a vender ceratos e beberagens: mas
o fazia em segredo por medo de seu mestre.” Mas Cagliostro não ia a parte
alguma, ocupando-se unicamente de Festus, que chegara doente de Trento e
de quem ele cuidava.
XII. — E um dia, ele perguntou a alguém se ele também queria se
afiliar àqueles aos quais se chamavam Iluminados. E o homem recusou
dizendo que ele preferia ficar semi-imerso em trevas em que não se via
quase nada do que ficar completamente cego em tal luz. E ele dava outras
razões cheias do sal da sabedoria. Algumas pessoas, ouvindo essas conver­
sas, diziam entre si: “Ele pertence certamente à confratemidade dos Ir­
mãos maçons (à qual se chama franco-maçons) e talvez tenha sido enviado
por eles para curar os doentes que estão no mundo e suas generosidades
venham dos cofres deles e de seu tesouro, pois dizem que eles têm como
primeiro preceito fazer o bem a todo mundo”. Mas outros respondiam: “Se
é verdade que tal caridade os anima, não seria a ele que enviariam, mas um
ser que não enganaria os homens com uma vã confiança”. E novamente se
dizia: “Esse velhaco matreiro, é verdade, faz algumas esmolas e não rece­
be pagamento da massa, mas é para esperar de tempos em tempos um homem
rico e ganhar cem vezes mais dele. Quando ele chega em uma cidade, fica
ali durante o tempo em que a opinião pública o incensa, e quando o efeito
de suas medicações de longo prazo pára de se produzir, revelando o vazio de
suas promessas, ele parte, e passa assim de cidade em cidade, e a patifaria
não tem fim. Seu procedimento, e o ápice de sua ambição, é que o vejam
como o instrumento do grande poder que vem do alto, e assim ele percorre
as terras e os mares e posa como médico universal. Mas, vejamos: se real­
mente ele retirasse todo o mal, será que os governadores, os príncipes da
terra já não o teriam forçado há muito tempo a permanecer em meio aos
ministros, em seus penates?” Mas muitos, mais justos, resistiam a esses
discursos. Chegavam mesmo a se irritar contra aquele que tomava nota de
suas palavras, pensando que ele escrevia para caçoar dele, mas aquele que
escrevia não o desprezava de forma alguma, mas contava fielmente o que se
passava em Rovoredo, prestando testemunho com um simples relato. E seu
relato foi feito segundo o hábito dos orientais, como vemos nos textos
gregos que os latinos traduziram palavra por palavra. E aconteceu, como
um padre veio ter com Cagliostro, que lhe disse: “Tenho tal e tal doença”.
“Diga-me o que devo fazer para melhorar.” E ele o disse! Mas novamente

* N. do E.: Sugerimos a leitura de Os Ritos e Mistérios de Elêusis, de Dudley Wright,


Madras Editora.
o padre disse a Cagliostro: “Dê-me também remédios para os males que
virão”. Cagliostro respondeu dizendo: “Se eu houvesse ido te confessar os
pecados que cometi, tu me despedirías com a absolvição, se então eu te
pedisse para me absolver também dos pecados que eu viría a cometer, tu
por acaso me absolverías?” Ele lhe respondeu: “Não”. Cagliostro lhe dis­
se: “E eu farei o mesmo para contigo. E eis que uma dama nobre, vinda de
Trento, e que era surda, rogou-lhe que lhe devolvesse a audição. Seu mari­
do estava com ela e escutava. E Cagliostro disse à mulher”: Observa o
mandamento que te imporei e eu te curarei; esse mandamento, ei-lo: se tu
melhorares, publica nas atas que a cada semana são divulgadas em vossa
terra para o público969 como eu te curei: se, ao contrário, tua enfermidade
não te deixar, faze da mesma maneira conhecer a todos os vivos através das
atas que eu sou Agirta.”970 E Festus estava sentado e presente e degustava
com grande felicidade todas as coisas que se passavam diante dele.
XIII. — Ora, havia um homem da mais alta classe, furioso contra
Cagliostro, que nas ruas e praças maldizia dele: e esse homem quis fazer
falar o jovem que escrevia este livro e lhe disse: “Que achas de Caglios­
tro?” O jovem respondeu: “Não cabe a mim julgar um homem acerca do
qual cada um tem uma apreciação diferente. Pois não há dois seres que
pensem da mesma maneira a respeito dele.” Ele lhe disse: “Tu também, tu
hesitas! Como és grosseiro de espírito! Loucos e cegos pretendem que este
homem faz o bem a seu próximo: mas eu disse e digo que esse homem faz
mal a todo ser vivo, desde o nascimento até a morte. Com efeito, com seus
discursos, de todas as regiões que estão sob a voluta do céu, chegam, com
grandes despesas e grandes trabalhos, viajantes para pedir a cura a ele e,
enganados, voltam a sua casa, duas vezes pior do que antes. Ele come,
bebe e caçoa deles em seu coração; basta-lhe deixar-se incensar pelos ho­
mens.” Depois de dizer isso, desejou uma boa-noite ao jovem e partiu. E o
jovem foi a um lugar em que havia um farmacêutico sábio, instruído e
cheio de justiça, e lhe perguntou o que ele dizia desse homem. O outro, sem
cólera e sem injúrias, contou como ele havia sondado prudentemente a ciên­
cia de Cagliostro em sua partida, mas que ele, como um peixe que escapas­
se das mãos do pescador, fugira à isca. E ele acrescentava: Se eu tivesse
querido ganhar muito dinheiro fabricando os medicamentos que ele recei­
tava, eu teria podido fazê-lo, mas não quis e despedi os doentes por carida­
de, por eles. Tenho piedade daqueles que enaltecem Cagliostro como um
grande naturalista e um grande químico. E, com efeito, havia pessoas que
recusavam violentamente as histórias contadas no vulgo acerca dos misté­
rios maçônicos celebrados certa noite por ele com seus discípulos. Eles ex­
plicavam que Cagliostro havia apenas revelado os arcanos das ciências físicas

969. Revista ou jornal.


970. Agurtes (grego), charlatão, sacerdote mendigo de Cibele.
e químicas e o povo acreditou que ele os havia iniciado com simples ceri­
mônias autorizadas. É um homem de bem, instruído com toda a ciência dos
orientais e dos europeus e detesta os charlatões. E ante essas palavras,
muitos sorriam e repetiam o velho provérbio: “Cobra come cobra.” Será
que no início ele não queria apostar uma gorda soma em que, tal dia, os
doentes, os mancos e os fraturados se ergueríam e andariam sem traço de
sua doença? E que charlatão jamais foi tão descarado? É realmente um
mestre na arte! E enquanto falavam assim, ele estava em casa com Baptiste,
pai de Nicolas, e Eloi, homem nobre de Vicenza, e seu espírito se deleitava
com os ensinamentos de seu gênio. E, com efeito, ele falava muito e com
grandeza, prestando testemunho a ele próprio, e um dia ele começou a
dizer: “Na cidade de Pedro, dito o Grande971, um dos ministros da rainha
dos russos tinha um irmão que perdera a razão e se acreditava maior que
Deus. Ninguém podia resistir à violência de seu furor; ele gritava em altos
brados, ameaçando toda a terra e blasfemando o nome do Senhor. Estava
em observação. E esse ministro me suplicava que o curasse.
Quando cheguei junto a ele, colocou-se imediatamente em furor e,
olhando-me com ferocidade, retorcendo os braços, pois estava amarrado
com correntes, parecia querer se lançar sobre mim. E berrava: ‘Que se preci­
pite no mais profundo dos abismos aquele que ousa aparecer assim na pre­
sença do grande Deus, daquele que domina todos os deuses e os expulsa
para longe de seu rosto.’ Mas eu, reprimindo qualquer emoção, aproximei-
me com confiança e lhe disse: ‘Vais calar-te, espírito mentiroso? Não me
conheces, eu que sou Deus acima de todos os deuses e me chamo Marte? E
vê este braço no qual está toda a força para agir a partir do alto dos céus até
as profundezas da Terra. Vim a ti para te tomar em piedade e te fazer bem,
e eis como me recebes, sem considerar que tenho o poder de reparar, mas
também o de reduzir a pó’ — e imediatamente lhe dei tal bofetada que ele
caiu no chão, de costas. Quando seus guardiães o ergueram e ele se acal­
mou um pouco, ordenei que me trouxessem uma refeição e comecei a jan­
tar, proibindo-lhe que comesse comigo. E quando vi que ele estava humi­
lhado, eu lhe disse: ‘Tua salvação está na humildade, estar desprovido de
qualquer força diante de mim; aproxima-te e come’. E, depois de ele ter
comido um pouco, subimos ambos em um carro e saímos da cidade, às
margens do Neva, onde os guardiães haviam preparado, sob minhas or­
dens, um barco; eles estavam sentados na margem. Depois de embarcar­
mos, começaram a remar e o barco começou a avançar. Então, querendo
jogá-lo no rio, para que o terror brusco trouxesse a cura (havia pessoas
prontas para socorrê-lo), eu o empurrei; mas ele me segurou com força e
caímos ambos na água, ele se esforçando para me segurar no fundo e eu,
acima dele, esmagando-o com meu peso; após uma luta que não foi nada

971. São Petersburgo.


curta, consegui soltar-me e saí da água a nado; ele, retirado pelos guar­
diães, foi posto numa liteira. E após voltarmos e nos trocarmos, ele me disse:
‘Na verdade, reconheço, és Marte e que não há força igual à tua, e serei
submisso a ti em todas as coisas.’ Eu lhe respondi dizendo: ‘Nem tu és um
rival para o Eterno, nem eu sou Marte, mas sou um homem como tu. Tens
o demônio do orgulho e isso te enlouquece; eu vim arrancar-te esse espírito
do mal e, se quiseres te submeter a mim em todas as coisas, deves agir
como os mortais comuns’”. E desde então ele começou a se deixar tratar e
assim voltou a si aquele cuja razão se perdia em idéias delirantes.
XIV. — Outro dia, no mesmo lugar, Cagliostro contou o que se se­
gue. Ele disse: “Era uma vez um velho bispo doente que mandou me cha­
mar. Quando ele me contou qual era seu sofrimento, eu lhe disse: ‘Se não
podeis coabitar com uma virgem, estais perdido, e se podeis coabitar com
ela, é ela que terá vosso mal e vós sereis curado.’ Isso pareceu algo grave e
imoral. Mandou vir também seus conselheiros e seus procuradores e reu­
niu-se com eles para saber o que se devia fazer. Eles, após uma grande
discussão, concluíram por unanimidade que era necessário coabitar, ‘pois’,
diziam eles, ‘se agirdes assim, não será por sensualidade, mas por dever de
saúde, e para vos conservardes com vosso rebanho.’ E ele o fez e foi cura­
do. A jovem ficou doente, mas eu a curei. Aqueles que ouviam isso diziam,
afastando-se: ‘Por que este homem não renuncia às suas caixas de pó e não
vende seu aranzel? Que ele suba em cavaletes e conte aos basbaques suas
histórias ali mesmo. Ou, se ele quer impô-las aos homens como um Elimas
ou um Mambrés972, que se dirija às grandes cidades em que a vida voluptu­
osa da maior parte das pessoas as atira nas trevas do contra-senso.”’ O
povo miúdo trabalha e não é cego. Mas alguns diziam que, na história do
bispo, ele apenas contou que este se recusara a seguir seu conselho, dizen­
do: “As leis do Senhor são mais preciosas que a vida.” E após isso, um
édito foi publicado em nome do Imperador, proibindo-lhe de curar dali em
diante, e mesmo de receber para consulta pessoal. E toda a multidão aplaudia
e dizia: “Viva o rei, nosso mestre, que nos protegeu em sua bondade. Pois,
vede, os doentes que Cagliostro viu estão quase todos pior”. E ele, temen­
do a lei, obedecia e despedia os doentes sem resposta. E um homem fez um
epigrama mostrando que seu nome, por permutação, revelava que ele era
um dos falsos Cristos, esforçando-se em vão por se enfeitar com a verda­
deira glória divina. Mas isso pareceu, mesmo em palavra, uma maldade
demasiado absurda às pessoas mais razoáveis. Ora, a mulher de Cagliostro
foi com um capelão a uma igreja e, tendo-se ajoelhado, assistiu à missa

972. Elimas ou BarJesu, mago judeu, adversário de São Paulo em Pafos. (Ato dos Após­
tolos, XIII. 8) Mambrés (ou mais exatamente Tambrés), nome citado pelo parafrasta Ben
Uziel e também por Plínio (Hist. Natural, XXX. cap. 1), como um dos dois egípcios que
lutaram com Aarão (Êxodo, VII: 12).
com devoção. Além disso, outro padre, homem de bem, conversava fre-
qüentemente com ela a respeito do reino de Deus e da Igreja, fora da qual
não há salvação; e ele lhe deu para ler os Atos dos Apóstolos e as obras dos
profetas. E ele se regozijava em ver a fé e as boas palavras dessa mulher.
Pois, no fervor de seu espírito, ela se irritava contra o mal semeado pela
pretensa filosofia que florescia na França e rejeitava as obras científicas
modernas meditando atentamente sobe as escrituras. Além disso, ela di­
zia973: “Eis que cumprimos nossa tarefa aqui curando os doentes, e minha
alma queima para ir a outras cidades, para não deixar lugar em que nossa
caridade não se manifeste nos filhos de Deus”. E ela dizia ainda muitas
outras coisas conforme aos projetos de seu marido. E o criado demitido,
que vendia pomadas, era visto como estando de acordo com seu mestre
para essa comédia, e diziam que ele lhe entregaria o dinheiro da venda.
Além disso, alguns daqueles que haviam acreditado nele batiam o pé, in­
dignavam-se por um filho de cocheiro tê-los enganado e brincado com sua
esperança. Pois o rumor público dizia que Cagliostro era filho de um co­
cheiro; outros diziam um pintor; outros, que ele era de nobre fonte, criado
como rei na Arábia, mas que fugia e se escondia das honras. E àqueles que
todavia faziam valer sua celebridade além dos mares e das montanhas,
respondia-se: “Se não houvesse ocorrido em Paris o Caso do Colar, não o
conheceriamos nem de nome. Sua celebridade saiu de uma horrível cela e
sua grandeza veio dos ferros que ele arrastou nos pés.”
XV. — E pouco tempo antes que lhe houvessem proibido o exercí­
cio da medicina, ele queria vender a um farmacêutico seu remédio especí­
fico contra a epilepsia e combinara um preço muito elevado; pois, dizia,
ele necessitava de um repouso das preocupações, dos sofrimentos e das
perseguições que sofrerá em Paris em ferros. Mas algumas pessoas impe­
diram isso, refletindo que assim ele lançava longe sua rede para apanhar
muitas vítimas novas. E um corcunda veio a ele, suplicando-lhe: “Senhor,
tu que podes, dizem, acabar com todos os males, tira-me esse peso.” Ca­
gliostro, olhando-o profundamente, disse-lhe: Coloca sobre tua corcunda
uma lâmina de ferro de quatro libras e a cada dia deita-te sobre ela durante
seis horas; o nono dia não raiará sem que tua corcunda tenha desapareci­
do”. Havia um médico presente e Cagliostro, ao dizer isso, inclinou a cabe­
ça em sua direção, sorrindo. Mas, após a interdição do Imperador, ele só se
ocupava em receber seus amigos e distribuir a riqueza de seu saber. Ele
lhes dizia: “Se alguém teve sífilis e não foi bem curado, eu a trago de volta
ao estado agudo, sem para isso precisar de um novo contato para a
recontaminação, e, em seguida, rapidamente, eu a curo radicalmente974.

973. O texto, aqui, é anfibológico; pode-se traduzir também: Cagliostro dizia..., etc.
974. Naquela época, sífilis e blenorragia eram confundidas; podemos notar que há um
método conhecido para o tratamento da blenorragia crônica.
Então, saí e diverti-vos, se é que não temeis por vossas almas, e se não
temeis apenas por vossos corpos. E enquanto os outros médicos cuidam da
sífilis com o mercúrio, eu não quero tratar um veneno com outro veneno,
de medo que, ao expulsar a primeira doença, o tratamento determine com o
tempo uma mais grave que a primeira.” Ora, aqueles que haviam analisado e
testado seus ungüentos afirmam que ele mentia e que em todos entrava o
mercúrio. Ele se gabava também de que não era possível formar-se na be­
xiga um cálculo tão grande ou tão duro que ele não pudesse fazer dissolver
na urina com seus remédios. E um daqueles que escutavam lhe disse: “Como
esse remédio pode ser ativo o bastante para dissolver assim um enorme
cálculo sem fazer mal aos órgãos por onde ele passa e sem os dissolver?”
Cagliostro lhe disse: “Esse é meu segredo e eu o escondo aos profanos975”.
Além disso, ele se gabava das virtudes de um certo antídoto de sua inven­
ção dizendo: “Muitas vezes tomei veneno diante de meus íntimos e de
meus amigos em doses que causavam a síncope e quase a morte, e já me
lamentavam quando eu tomava meu antídoto e logo estavam sobre meus
pés.” E ele acrescentava: “Eu lhes contarei o que aconteceu em São
Petersburgo. O médico da imperatriz da Rússia me detestava, porque eu
havia demonstrado sua ignorância, e ele veio à minha casa gritando: ‘Sai­
amos e vinde vos bater comigo.’ Eu lhe respondi: ‘Se vindes me provocar
enquanto Cagliostro, chamo meus servidores e eles vos atirarão pela jane­
la; se me provocais enquanto médico, eu vos darei satisfação como médi­
co’ . Assustado, ele respondeu: ‘E ao médico que provoco’. E com efeito eu
tinha sob minhas ordens uma grande quantidade de servidores976. Então,
eu lhe disse: ‘Pois bem, não nos batamos com espadas, tomemos as armas
dos médicos. Engolireis duas pílulas de arsênico que vos darei e eu engoli­
rei o veneno que me derdes, qualquer seja ele. Aquele dentre nós que mor­
rer será considerado pelos homens como um porco.’ (Era o termo que Ca­
gliostro utilizava para definir aqueles que desprezava.) Contaram o fato à
imperatriz, que mandou me chamar. E quando compareci diante dela, eu
lhe disse com firmeza: ‘Que Vossa Majestade me permita falar sincera­
mente: vosso médico, embora vós o tenhais feito capitão, é um porco.’
Então ela me aconselhou que não combatesse com um homem que não
valia a pena e desde esse dia ela o afastou de sua presença”. Além do mais,
ele falava abundantemente dos arcanos alquímicos, como ele podia trans-
mutar os metais, deixar o ouro líquido como o mercúrio e novamente
consolidá-lo. E, falando um dia diante de Baptiste, irmão de Nicolas, e
diante de alguns outros, ele lhes disse: “Estando na Suíça, em Berna (os
habitantes lhe haviam sido admitidos, encantados por suas palavras), eu

975. A questão era absurda: a resposta de Cagliostro era bem adaptada à questão, se­
gundo a regra de Beaumarchais.
976. Os servos de Cagliostro não apenas estavam dentro da casa, como também fora.
me vi dizendo aos homens do lugar: ‘Suíços, considerando vossas monta­
nhas, sempre recobertas de um gelo eterno, refleti a respeito da grande
quantidade de ouro, prata e de cristal rocha que estaria enterrada em suas
entranhas. Se quisésseis me autorizar a empregar dez anos de rendas, eu
dissolvería o gelo e traria à luz essas riquezas, por minha conta e risco’”.
Eles responderam a isso: Não, não queremos que percais nessa empresa
tempo e dinheiro”. “Um dos assistentes lhe disse: “Como dissolverieis o
gelo?” Cagliostro respondeu: “Com vinagre977”. Baptiste respondeu àquele
que havia interrogado: “Como Aníbal para os Alpes quando veio à Itália”.
E, voltando-se novamente para Cagliostro, disse-lhe: “Senhor, desculpai-
me se emito uma dúvida. Talvez os suíços tenham temido que, pela fusão
súbita dos gelos, as águas descessem e em suas torrentes inundassem suas
cidades”. Após um momento de silêncio, Cagliostro respondeu: “Há mui­
tos lagos na Suíça, poderiamos ter dirigido para eles toda as massa das
águas”. Para divertir aqueles que o escutavam, ele passava também a ou­
tros temas de conversa e dizia: “Um dia eu precisei de uma mulher que não
fosse nem uma cortesã nem uma virgem e que não fosse casada (pois um
médico se encontra, em sua carreira, diante das mais variadas circunstân­
cias). Ao encontrar uma jovem e bela mulher, eu lhe disse: ‘Escutai, posso
fazer-vos ganhar muito dinheiro se fordes virgem.’ Ela me respondeu:
‘Eu sou, com efeito, senhor, o que desejais de mim?’ Então até logo,
exclamei, pois não procuro uma virgem, mas, pelo contrário, uma mulher
que tenha conhecido um homem. Ante essas palavras, ela corou e disse:
Eu vos menti, senhor, pois em verdade conheci um jovem, consegui-me,
eu vos rogo, esse posto vantajoso de que me faláveis. E eu o fiz”. E toda
a assembléia ria dessa história. Como ele recebia muitas cartas, com fre­
quência as lia em silêncio e exclamava: O que venho a saber: o Senhor
abate meus inimigos, e ele apóia e eleva meus amigos. E ele anunciava o
fato o quanto antes a sua mulher que, cabelos desatados e caindo sobre o
pescoço, corria pela casa e a enchia com sua voz alegre. Seu coração com
efeito era vivo como uma chama. As palavras jorravam em ondas de sua
boca e sua beleza, em sua juventude, ofuscava a de todas as outras mu­
lheres.
Eis as coisas que de início nos pareceram dignas de ser relatadas
acerca de Cagliostro. Aquele que as escreveu jamais falou com ele. Ele
escreveu aquilo que lhe disseram, sem ódio, nem amor, nada retirando,
nada acrescentando, mas esforçando-se apenas para conservar à história
tudo o que se dizia na cidade a respeito desse homem célebre, deixando
aos outros o trabalho de julgar. Alguém censurou ao jovem escritor o se­
guinte: “Não profanais o Evangelho ao escrever dessa maneira?” Mas o

977. Acetum pode significar qualquer ácido, qualquer mordente, sobretudo na boca de
um homem que, comfreqüência, falava de alquimia.
jovem respondeu: “De forma alguma, pois não abuso daquilo que se disse de
Deus, de seu Filho, Nosso Senhor, não cito versículos, escrituras, não desfi­
guro os textos de verdade do dogma, aos quais estou pronto a me devotar,
mas sirvo-me da linguagem corrente e continuo a ser eu mesmo. Todo modo
de discurso em que nos servimos de palavras usuais é geral, quer se trate de
coisas profanas ou sagradas; a diferença jaz no assunto. É assim que com
as mesmas pedras podemos construir uma casa ou um templo, e com o
mesmo ouro fazer uma caneca ou um cálice. Pois os próprios evangelistas
não escrevem da mesma maneira que Deus, que Simão, o Mago, e que
Théodat? O que me censurais então?” Seu crítico lhe respondeu: “Mas por­
que escolhestes justamente esse gênero de narração?” O jovem respondeu:
“Porque nenhum gênero é mais próprio a expor breve e expressamente
cada fato e porque convinha àquilo que se pensava do personagem; pois
muitas pessoas dizem: ‘É o asno vestido com a pele de leão.’ Mas para que
saibais que esse gênero de estilo não é especial aos Evangelhos, vede a
tradução de Esopo, em latim, e também o que Planudes, o Bizantino, escre­
veu referente Esopo, e Planudes foi padre e da igreja dos santos978. Ouvin­
do isso, o outro se retirou dizendo: Como realmente é difícil julgar segundo
a verdade.
XVI. — Ora, Cagliostro atravessou o Pó e veio ver os chefes dessas
províncias e, após dar consulta a muitas pessoas acerca de seus males (reu­
niam-se ali, com efeito, para não violar a interdição do imperador), ele lhes
disse adeus e, de volta à cidade, ele reuniu rapidamente suas bagagens e
dois dias após partiu para Trento com sua esposa, em onze das calendas de
Novembro, segundo o calendário romano979.
Quarenta e sete dias após sua chegada: era uma quinta-feira por
volta das 9 horas. E como ele subia ao carro, viu correr a ele um homem;
e era o criado que ele havia demitido. Ele vinha desejar-lhe boa viagem, mas
Cagliostro estendeu a mão e o despediu dizendo: “Retira-te de minha
presença, tu, o pior dos domésticos.” E, voltando-se àqueles que por aca­
so estavam por ali, falou-lhes dele dessa forma: “Dizei aos cidadãos de
Rovoredo que perdoem a seu servidor, se ele não pôde dar-lhes toda satis­
fação. Em verdade, toda a sua boa vontade lhes foi conquistada, e seu cora­
ção esteve sem astúcia diante deles. E ele falava ainda quando a trombeta
soou, os cavalos se moveram e o carro desapareceu diante de seus olhos.
Cagliostro tinha uma fisionomia muito agradável, era de porte mé­
dio, com a cabeça forte e muito gordo. E, embora gordo, andava com agili­
dade, volteando de cá para lá em um recinto sem querer permanecer no

978. Planudes, chamado Grande Planudes (século XIV), monge grego que vivia em Cons-
tantinopla, escreveu realmente uma vida de Esopo (Leipzig, 1747, in-4?) efábulas de Esopo
muitas vezes reeditadas desde a edição princeps de suas obras (Florença, 1494, in-4?)
979. 11 de novembro de 1787.
mesmo lugar. Sua pele era fresca, seus cabelos negros, os olhos profundos e
brilhantes de vida. Quando falava com uma voz simpática, com gestos muito
expressivos, os olhos erguidos ao céu, era semelhante aos inspirados,
inebriados com o espírito do alto. Suas roupas eram limpas, sem luxo, e
sua conversa muito agradável. E após ele ter partido, um poeta publicou
sobre ele uma peça descrevendo-o como iniciador dos maçons a suas dou­
trinas, segundo a opinião do povo. Espalhou-se o rumor de que ele fora
recebido com as maiores honras em Trento. Mas as pessoas sensatas e os
homens leais que estavam em Rovoredo, conversando entre si acerca do
que se passara e refletindo, chegaram enfim à seguinte conclusão: Há gran­
de espaço para dúvida: tudo isso é muito contraditório; este homem é um
verdadeiro enigma e não podemos fazer julgamento dele até que o fim de
sua vida tenha revelado quem ele era.
Bibliografia

Bibliografia e Iconografia
dos Documentos
Concernentes a Cagliostro

I. Obras de e a respeito de Cagliostro em Francês


1. Anônimo. L’Arrivée dufameux Cagliostro annoncéepar lui-même
d’apres une lettre écrite du Tirol.
S.L., S.A. (Ad finem: Paris, 1789, Garnery), in-8?, 15 p.
2. Cagliostro. Lettre du comte de Cagliostro au peuple anglais pour
servir de suite à ses mémoires.
S.L., 1786 (Paris'), in-8°, 92 p.
S.L., S.A. (1787), zn-4?, 78 p. + 1
BIBL. NT. K. 10191
3. Lettre écrite àM... par M. Le comte de Cagliostro, de Londres, em
20 de junho de 1786.
ín-4.°, 4 p.
BIBL. AR. Mss, 12457. f°s 21
Carta conhecida sob o nome de Lettre au peuple français e publicada
também sob o título Traduction d’une lettre du comte de Cagliostro à M.
M... trouvée dans les décombres de la Bastille. Cf. Traduction...
4. Petição do conde de Cagliostro aos Estados-Gerais da França.
Roma, 1789. Citada em uma nota manuscrita que precede o Ritual da Maç :.
Egípcia. — Biblioteca Papus. Mss.
5. Cagliostro. Carta escrita a Morande em: Public advertiser, n? 16306.
Londres, 1786.
6. Ritual da Maçonaria Egípcia. Cf. Manuscritos.
Alguns fragmentos foram publicados na Initiation, em 1906-1907-1908.
7. Carta a Morande, impressa em Londres, em 3 de setembro de 1786.
8. Segunda carta a Morande.
Essas duas peças duvidosas devem ser as cartas abertas escritas a
Morande e que figuram no Public advertiser e no Courrier de VEurope
parcialmente, e integralmente na Lettre au peuple anglais. Duvidamos muito
que elas tenham sido impressas à parte, como diz o autor dessa citação;
Prefácio ao Mss. da Maç.'. Egípcia. Biblioteca Papus.
9. Relatório para o conde de Cagliostro acusado contra o Sr. procura­
dor-geral acusador.
Paris, Lottin, 1786, zzz-8?, 51 p.
Paris, S. N., 1786, zn-4?
S.L., 1786, ín-16, 80 p.
10. Relatório para o conde de Cagliostro requerente contra o Sr.
Chesnon e o senhor de Launay, governador da Bastilha.
Paris, 1786, Lottin, zn-8?, 64 p.
Paris, 1788, Lottin, zzz-4?, 37 p.
11. Petição ao Parlamento das câmaras reunidas, notificado em 24 de
fevereiro de 1786 pelo conde de Cagliostro.
Paris, 1786, zzz-4?, 4 p.
Liège, 1786, in-4°, 4 p.
12. Petição a anexar à memória do conde de Cagliostro. A Nosseigneurs...
Paris, 29 de maio de 1786, zzz-4?, llp.
Paris, 30 de maio de 1786, zzz-8?
13. Resposta à peça importante no caso de Launay... pelo conde de
Cagliostro.
Paris, Lottin, 1? de fevereiro de 1787, zzz-4?, 25 p.
14. Petição ao rei para o conde de Cagliostro contra o Sr. Chesnon e
De Launay.
Paris, Lottin, 1? de fevereiro de 1787, zzz-4?, 72 p.
15. Cagliostro. Segunda petição ao rei para o conde de Cagliostro
contra o Sr. Chesnon.
Paris, Lottin (15 de fevereiro), 1787, zzz-4?, 8 p.
16. — Confessions (apócrifo). Cf. Confessions.
17. — Carta escrita de Aix (apócrifo). Cf. Lettre.
18. — Mémoires authentiques (apócrifo). Cf. Mémoires.
19. — Testamento de morte (apócrifo). Cf. Testament.
20. Anônimo. Cagliostro (Alexandre, conde de). Notice extraite d’un
dictionnaire biographique contemporain.
S.L.S.A. (1787 ou 1788), zzz-4?, 2 p.
21. Anônimo (conde Moszinsky). Cagliostro démasqtté à Varsovie
ou Relation authentique de ses opérations dans cette capitale en 1780 par
un témoin oculaire.
S.L., 1786, zn-12, 111 + 62 p. + 1.
Traduzido em alemão por J. F. Bertrich, S. L., 1789.
22. Anônimo (R...). Le charlatan démasqué ou les aventures et exploits
du comte de Cagliostro précédé d’une lettre de Mirabeau.
Frankfurt, 1786, m-8?
Frankfurt, 1786, in-16, 62 p.
Por um “abade gracejador”. Cf. Borowski, p. 29.
Foi traduzido em alemão.
23. Anônimo. Confessions du comte de C... avec 1’histoire de ses
voyages en Russie, Turquie... etc., et dans les pyramides d’Egypte.
No Cairo e em Paris, 1787, zn-12.
No Cairo e em Paris, 1787, zzi-4?, 57 p.
No Cairo cod. Anno. Nova edição.
BIBL. NAC. Y2 23.627.
24. D’Alméras. Cagliostro.
Paris, Soc. franc’imprimerie, 1904, zn-16, 384 p.
25. De Mirabeau. Lettre du comte de Mirabeau à M. M... sur MM. de
Cagliostro e Lavater.
Berlim, Fr. de Lagarde, 1786, zn-8?, 48-XIII p.
Frankfurt, 1786, in-16, 30 p.
Existe em alemão. Berlim, 1786, z'n-8?, 103 p.
26. Anônimo. La demière pièce dufameux Collier980.
S.L., S.A. (Paris, 1786), in-8°, 45 p.
Paris, 1787, in-4°, 34 p.
27. De Saind-Felix. Aventures de Cagliostro.
Paris, Hachette, 1854, zn-12, 160 p.
Paris, Hachette, 1855, in-12, 160 p.
28. Haven (Dr. Marc). L’Evangile de Cagliostro retrouvé, traduit et
publié avec une introduction et un portrait.

980. Referente aos debates do Caso do Colar, podem-se consultar com proveito, entre os
diferentes relatórios dos diversos acusados, os seguintes:
Pièce importante dans 1’affaire du Collier pour de Launay, 1789, in-41 (Peça importante
no Caso do Colar por de Launay).
Sommaire pour la comtesse de Valois-Lamotte. 1786, in-4°. (Sumário para a Condessa de
Valois-Lamotte).
Réponse de madame. de La Motte au mémoire de Cagliostro. 1786, in-81, in-41, in-16.
(Resposta de madame. de La Motte ao relatório de Cagliostro).
Mémoires justificatifs de madame de La Motte. 1789, Londres, in-81
Vie de Jeanne de Saint-Remy de Valois. 1793, 2 vol. in-81
Paris, Librairie hermétique, 1910, in-16, 86 p.
29. Anônimo (Manuel L.-P.) Lettre d’un garde du roi pour servir de
suite aux mémoires sur Cagliostro.
S.L., 1786, in-8°
Londres, 1786, in-16, 1 + 34 p. (4® edição)
Cf la Magie de Cagliostro.
30. Anônimo. Lettre écrite de Aix-les-Bains en Savoie à M. de Beau­
marchais, par M. Cagliostro contenant des faits intéressants...
(apócrifo).
Kell, 1788, zn-8?, 16 p.
BIBL. NAC., Ln 27 1318.
31. Anônimo (Morande). Ma correspondance avec le comte de Ca­
gliostro.
Milan (Paris), S.S. in-4?, 38 p. 1? edição.
Milan (Paris), 1786, in-4?, 38 p. 2? edição.
32. Suite de ma correspondance avec le comte de Cagliostro par lequel
il est prouvé que le comte est le sieur Balsamo, etc.
Milan (Paris), 1786, in-4?, 16 p. — financiado pela Sociedade
Cagliostriana. — Hamburgo, 1786, in-8?, 96 p. Contém Ma Correspondance
e La Suite reunidas.
33. Anônimo. La magie de Cagliostro dévoilée par lui-même, ou
révélation des intrigues mises en usage dans I’Affaire du Collier.
Londres (Paris, 1789, in-8?, 49 p.
BIBL. NAC. Lb391101.
Reedição, sob outro título, da Lettre d’un garde du Roi.
34. Anônimo. Mémoire pour servir à I ’histoire du comte de Cagliostro
au sujet de Vaffaire du Cardinal de Rohan, évêque et prince de Strasbourg.
Strasburg, 1786, in-8?, 40 p.
Reedição, sob outro título, das Mémoires authentiques.
35. Anônimo. (De Lucher). Mémoires authentiques pour servir à
I’histoire du comte de Cagliostro faisant suite au Mémoire de la Comtesse
de la Motte-Valois.
S.L., 1785, in-12 (Paris), 1? edição.
Londres, 1785, in-8? (Paris, 1? edição).
2! edição: S.L., 1786, in-8? (Paris), 36 p.
Nova edição, S.L., 1786, in-16, 66 p.
Estrasburgo, 1786, in-8?.
Hamburgo, Fauche, 1786, in-8?, 95 p.
Sobre o autor (De Luchet) ver Grimm: Corresp. littéraire, Paris, 1813,
in-8?, t. Ill, p. 248 e 424.
36. Motus (P. J. J. N.) Réfléxions sur le mémoire ou roman qui a paru
enfévrier 1780 pour le comte de Cagliostro.
Medina (Paris), 1786, izz-8?, 48 p.
37. Anônimo. Procès comique et instructif pendant entre le fameux
Cagliostro et le sieur de Morande.
1? parte (única lançada).
Londres, 1787.
38. Anônimo. Procès de Joseph Balsamo surnommé le comte de Ca­
gliostro, commencé devant le Tribunal de la Sainte-Inquisition en décembre
1790 et jugé définitivement le 7 avril 1791.
Liège, Tutot, 1791, izz-12, 295 p.
(E, sob outro título, a Vie de Joseph Balsamo).
39. Anônimo. Les prodiges de Cagliostro (J. Balsamo) à Strasbourg,
Bordeaux, Paris. S.L., S.A. in-12.
40. Anônimo. Les prophéties de saint Cagliostro et son arrivée à
Paris.
S.A. (por volta de 1786), in-12.
Citado in: Catalogue Astier, Paris, 1856, in-8?, p. 18, n? 135.
41. Sachy (Carlo). Mémoire sur le comte de Cagliostro.
Citado por madame. de La Motte, parcialmente em seu Sumário e sua
Resposta. — Redigido pelo advogado Rocheboume.
Estrasburgo, in-16, 1782.
42. Spach. Cagliostro à Strasbourg (conversa de 9 de novembro de
1889).
Oeuvres, Paris e Estrasburgo, Berger-Levrault, 1871, izz-8? t. V.
Biographies Alsaciennes, p. 61 a 80.
43. Anônimo. Testament de mort et déclarations faites par Caglios­
tro de la secte des illuminés et se disant chef de la Loge égyptienne...
Paris, 1791, izz-8?, 44 p.
BIBL. NAC. K. 10192 bis.
44. Anônimo. Traduction d’une lettre du comte de Cagliostro à M.
M... trouvée dans les décombres de la Bastille.
Paris, impr. de Lormel, S.A., izz-8?, 7 p.
BIBL. NAC. Lb.39,7384.
E a Lettre au peuple français.
45. Anônimo (P. Marcello, jesuíta). Vie de Joseph Balsamo, connu
sous le nom de comte de Cagliostro, extraite de laprocédure instruite contre
lui à Rome en 1790, imprime à la Chambre apostolique.
Paris, Onfroy e Estrasburgo, Treuttel et Wurtz.
1“ edição: 1791, izz-8?, 1 f., retrato, XXVI-239 p.
2? edição. Ibid. eod. anno.
Há traduções em italiano e alemão.
OBRAS EM LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
46. Anônimo. Gli Arcani svelati o sia il Cagliostrismo smascherato
dove si dimostrano ifonti dell’impieta della pretesa scienza occulta...
Venezia, a spese dell’autore, 1791, in-8?, 180 p.
47. Anônimo. (Ludw. E. Borowski). Cagliostro, einer der merkwur-
digsten Abentheurer unsres lahrhunderts. Seine Geschichte, nebst
Raisonnement...
Konigsberg, 1790, G,-L., Hartung, peq. in-16, retrato, título, VI-190
p. 2? edição, Ibid. eod. Anno.
48. Anônimo (J.-F. Bertuch). Cagliostro in Warschau oderTagebuch...
aus dem franzôsichen ubersetzt (Cagliostro démasqué à Varsovie).
Konigsberg, 1785, in-8?.
S.L., 1786, in-8?.
49. Cagliostro (Madame). Auch noch etwasfür ordens undnichtordens
Leute durch das Rosensystem numehro bey-Gedrley eschlechte.
Estrasburgo, 1786, in-8?, (n? 27 de Hayn) II ff. 44 p.
50. Anônimo (P. Marcello, jesuíta). Compêndio della vita et delle
geste di Giuseppe Balsamo, denominato il conte Cagliostro che siè estratta
dal processos contra di lui formato in Roma l’anno 1790.
Filadélfia, 178... (sic), in-8? em 2 partes, I, VII-272 e 11-302 p.
Roma, Stamperia della rev. Camera apostolica, 1791, in-8?, 216 p.
Encontramos também o mesmo livro: Ibid., eod. anno, sob o título
Vita de Giuseppe Balsamo.
Id. Veneza, 1791, in-8?, 216 p.
O livro foi traduzido em francês, alemão e espanhol.
51. Anônimo, Compêndio de la vida y hechos de Jos. Balsamo hamado
el conde Calliostro.
Sevilha, 1791, in-8?.
Trad, do precedente.
52. Anônimo. Corrispondenza segreta sulla vita publica e privata
dei conte di Cagliostro con le sue aventure e viaggi in diverse parti del
mondo.
Veneza, 1791, in-12.
S.L. (Veneza), 1791, in-8? A spese dell’autore (Retrato e grav.)
53. Anônimo (Bode). Ein Paar Trõpflein aus dem Brunnen der
Wahrheit ausgegossen vor dem neuen Thaumaturgen Cagliostro.
An Vorgebirge, 1781, in-8?, 46 p. (Frankfurt — Brõnner, editor).
54. Anônimo. Der Entlarvte Charlatan.
Frankfurt, 1787, in-8?, 87 p.
Trad, do Charlatan démasqué.
55. Funck-Brentano. Cagliostro and Company. (Trechos do Affaire
du Collier).
Traduzido por O. Maidment.
Londres, 1902, peq. in-16, 10 gravuras.
56. Hildebrandt (L.) Merkwurdige Abenteuer des Grafen Alex. von
Cagliostro.
Quedlinburg, S.A. (1839), ín-8°, 224 p.
57. Hugo Hayn. Vier neue Curiositaten Bibliographien.
lena, 1905. Schmidts in-8?, 88 p.
Contém in: IIP parte, p. 25 a 55, uma bibliografia sobre o Processo do
Colar e sobre Cagliostro.
BIBL. Nac., 8? Q 3395.
58. Anônimo. Kurzer Begriff von dem Lebe und den Thaten des J.
Balsamo.
Roma (Zurich-Orell), 1791, in-8?, 231 p.
Graz, S.A. (1792), in-8?
Trad, da Vie de Joseph Balsamo.
59. Anônimo. Kurzgefasste Beschreibung des Lebens Josesph
Balsamo... aus dem lateinischen (sic) ubersetzt.
Augsburg, 1791, in=8?, 112 + 120 p.
Ibid., eod. anno, in-8?, bey J. Nepom. Stage, aus dem italianischen
Ubersetzt.
Ibid., eod. anno, in-8?, 2“ edição.
Trad, da Vie de Joseph Balsamo.
60. Anônimo. 1st Kagliostro chef der Illuminaten? oder das Buch...
Gotha, Ettinger, 1790, in-16, XVI-228 p.
Trad, com anot. de J.J. Bode da obra: Essai sur la secte des Illuminés
de Luchet.
61. Anônimo. Istoria critica della vita del Conte de Cagliostro e della
contessa sua Moglie prigionieri... alia Bastiglia.
S.L., 1786, in-12.
62. Anônimo. Lebensheschichte Geganfennehmung undgerichtliches
Verhor des Grafen Cagliostro von ihm selbst geschrieben.
Viena, 1786, in-8°.
Trad, da obra francesa: Mémoires authentiques.
63. Anônimo. Leben und Thaten des Joseph Balsamo sogenannten
Grafen Cagliostro; nebs einigen Nachrichten uber die Beschajfenheit und
den Zustand des Freymaurersekten...
Trad, do italiano por C.J.J. (Chr. J. Jagermann). Frankenthal, 1791,
in-8?, XII-17 Ip.
Id. — Zurique, 1791, ín-8?, XII-171 p.
Id. — Weimar, por Hoffmann, 1791, in-8?, em 2 partes.
Id. —Augsburg e Viena, 1791 (Cf. Tschink)
Id. —Mannheim, Loffer, 1814, zn-8?.
64. Anônimo. (Clementi Vannetti). Liber Memorialis de Caleostro
cum esset Roboreti (Evangile de Cagliostro).
(Ad finem: Mori, impr. por Steph Teodolini, 1789). peq. izz-8?, 31 pá­
ginas.
Id. — Veneza, SA. (1791), por J. Sfort, in-?>°, 36 p. Retrato.
BIBL. NAC.: Recusado.
Uma tradução francesa do Dr. Marc Haven foi publicada em Paris,
1910, izz-16.
65. Anônimo (Lucia?) The Life of the Count Cagliostro (1776-1787)
dedicated to Si? la comtesse de Cagliostro.
Londres, T. Hookham, 1787, in-8°, VIII-XII-127 p.
Rara defesa de Cagliostro devida provavelmente a O’Reilly ou a um
de seus amigos.
66. Anônimo (Cagliostro). Manifesto aos maçons (em inglês e lingua
cifrada) in: Morning Herald, Londres, 1786, n? de 2 de novembro.
67. Anônimo. Manifesto de Giuseppo Balsamo denominate il conte
Cagliostro o sue difese contro il di lui processoformate dalla S. Inquisizione
di Roma.
Trad, do francês.
S.L., 1790, in-8?, 33 p.
BIBL. NAC. K. 15148.
68. Anônimo. Memoiren von Cagliostro.
Herausg. Von Paul Bernstein.
Leipzig e Berlim, S.A., izz-8?.
69. Anônimo. Memorie del conte di Cagliostro prigionnero alia
Bastiglia e supposto implicate nel processo del cardinale di Rohano.
S.L., 1786, izz-12.
S.L., 1786, izz-8?, 100 p.
70. Anônimo. Nachrichten aechte von dem Grafen Cagliostro aus
der Handschrift seines entflohenen Kammerdieners.
Berlim, 1786, izz-8?, 2 grav. s. Cobre.
71. Anônimo. Nachrichten glaubwiirdige zur Geschichte des Grafen
Cagliostro.
Trad, das Mémoires authentiques.
S.L., 1786, izz-8?.
72. Anônimo. Saggio Storico del conte di Cagliostro e della contessa
sua moglie.
Cosmopoli, 1791, izz-8?, 56 p., dois maus retratos.
73. E. Tsinck (Cajetan). Unparteyische Prüfung des zu Rom erschienen
kurzen Inbegriffs von dem Leben und Thaten Joseph Balsamo’s.
Viena, Kaiserer, 1791, izz-8?
Tradução da Vie de Joseph Balsamo.
74. Anônimo. Vertheidigungschriftfürden Grafen Alexander von Ca­
gliostro.
S.L. (Basel) 1786, zn-81?
Trad, em alemão do Relatório do conde de Cagliostro contra o pro­
curador e geral... Os outros relatórios e petições do processo também fo­
ram traduzidos para o alemão.
Id — Frankfurt, 1786, in-8?.
75. Von der Recke. Nachricht von des berüchtigen Cagliostro’s
Aufenthalte in Mitau im Jahre 1779 und von dessen magischen Operationen.
Berlim e Stettin, bey Friedrich Nicolai, 1787. Pet. zn-8.°, XXXII-
168 p.
76. Geschiedverhaal van het verblijf. van dem besuchter Graaf von
Cagliostro...
Amst. P. Boddaert... 1791.
Zn-8?, LXII p. 221, retrato gravado p. Tokke.
Trad, em holandês do precedente.

II. Estudos Parciais — Referências — Artigos de


Jornais
Obras em Francês
77. Anônimo (Thory). Acta Latomorum.
Paris, 1812, 2 vol. zn-8?.
T. II, p. 109 Discussão com os Filaletos.
78. Anônimo. ‘‘Cagliostro e o Caso do Colar" in: Revue dupsychisme
expérimental.
N? 4 e 5 do 1? ano, Paris, 1911, com gravuras.
79. Beugnot (conde). Mémoires (1783-1815).
Paris, Dentu. 1866, 2 v. zn-8?. Diversas reimpressões.
Tomo i. Caso do Colar: p. 1 a 80.
BIBL. NAC. 8° La31 7.
80. Bulau (Fréd). — Personnages énigmatiques.
Paris. Poulet-Malassis, 1861, 3 vol. in-12.
T. I, p. 306-329.
81. Campardon (Emile). Marie-Antoinette et le procès du Collier.
Paris. Pion, 1863, zn-8?.
Paris
p. 36. le comte de Cagliostro.
p. 337 Interrogatoire de Cagliostro à la Bastille.
p. 410 Pièces du commissaire Fontaine.
82. Courrier de 1’Europe. Journal de Morande, bi-hebdomadário.
Londres, in-4?.
Números a partir de 22 de agosto de 1786 até 25 de junho de 1787.
BIBL. NAC. Nd. 34.
83. Damman (W.) Cagliostro au Ban de la Roche.
Artigo in: Revue Alsacienne ilustrée 1910, n? 11.
84. De Baachaumont. Mémoires secrets pour servir à I’histoire de la
République des lettres en France depuis 1762 jusqu ’à nos jours.
Londres, 1783, 33, vol. in-22.
Ver t. XVII e XXXIII.
BIBL. NAC., Z. 16858 a 16891.
85. De Gleichen (C.-H.) — Souvenirs.
Paris, Techener, 1868, in-12, 227 p.
Cf.: p. 135
Foi publicado em alemão, Leipzig, 1847, gr. in-8?.
86. De Lamotte-Valois (Comte). Mémoires inédits sur sa vie et son
époque.
Paris, Poulet-Malassis, 1858, in-12.
87. D’Oberkirch (baronesa). — Mémoires sur la cour de Louis XVI.
Bruxelas, Comptoir des éditeurs, 1854, 2 vol. in-8?.
T. I, cap. VII.
BIBL. NAT., 8? Lb39 66.
88. Dugats de Bois Saint-Just. Paris, Versailles et les provinces au
XV111? siècle.
Paris, Gosselin, 1823, 3 vol. in-8?.
Um capítulo sobre Cagliostro. T. I, p. 329.
BIBL. NAT., 8? La30 8A
89. La Feuille Villageoise. Jornal hebdomadário (por Cérutti).
1791, n? 34, p. 129
BIBL. NAT.,LC2 463.
90. Figuier. Histoire du Merveilleux.
Paris, Hachette, 1861, 4 vol. in-16.
T. IV, p. I
91. Anônimo. Unefdle de Cagliostro.
Artigo in: Figaro 13 de maio de 1858.
92. F. Funk-Brentano. L’affaire du Collier.
Paris, Hachette 1902, 4? edição, in-8?, 352 p.
p. 86
93. Gagnière (A), Cagliostro et les Francs-Maçons devant
I’Inquisition Artigo: in Nouvelle Revue, 1903, p. 25 a 56, zn-8?.
94. Gazette Nationale ou Moniteur Universel. N? de 8 de junho de
1791 (n° 159) e de 6 de outubro de 1795 (n? 14).
BIBL. NAT., Lc2 113.
95. Gazette D'Amsterdam dos anos 1785-1786.
BIBL. NAT., Inv. G. 4385.

96. Georgel (Abade). Mémoires pour servir à l ’histoire des évènements


de lafin du XVIII? siècle.
Paris, 1817, 6 vol. zn-8?
BIBL. NAT., La309 A.
97. Grimm (de) e Diderot. Correspondance littéraire, philosophique
et critique adressée à un souverain depuis 1753 jusqu'en 1790.
Paris, Longchamps, 1813, 4 vol. zn-8?.
BIBL. NAT., Z 15488-15492.
98. Haven (Dr. Marc). Les Critiques de Cagliostro.
Art. In: Initiation, fevereiro de 1910.
99. — Quelques documents nouveaux sur le comte de Cagliostro.
Artigo in: Initiation, dezembro de 1905.
100. Heyking. Le comte de Cagliostro parmi les Russes.
Artigo in: Initiation, aoút 1898.
101. Journal de Paris. Suplementos de segunda-feira, 31 de dezem­
bro de 1781 e de segunda-feira 27 de janeiro de 1783, contendo as Lettres
Wiclandt e Sarrazin.
In-4?.
BIBL. NAT, Lc2 80.
102. Labande. Undiplomatefrançaisàlacourde Catherine II (Yl! 5­
1780).
Paris, Plon, 1901, 2 vol. zn-8?.
103. Anônimo (De Laborde). Lettres d’un voyageurfrançais en Suisse
adressées à Madame. M... en 1781.
Genebra, 1783, 2 vol. zn-8?, e Genebra, 1784, 3 vol. zn-8?. T.I.
104. Lenôtre. Paris révolutionnaire. Vieilles maisons, vieux papiers.
I? série.
Paris, Perrin, 1900, zn-8?
P. 161-172: La maison de Cagliostro.
105. Le Roy de Sainte-Croix. Les quatre cardinaux de Rohan.
Estrasburgo, 1881, in-8?, 202 p.
BIBL. NAT., 4?. Lm3 2594.
106. Ma Correspondance. (Revista bi-hebdomadária). 1785-1786.
2 vol. in-12,I n? 1 a 52. t. II, 53 a 106.
BIBL. NAT, Lc2 93.
107. Mercure de France (Le). (Revista)
1785-86-87 e maio de 1791.
BIBL. NAT., Lc2 39.
108. METRA. Correspondance secrete, politique et litéraire. (1775­
1793).
Neuwied, 1793, 19 vol. pet. in-8?. Cf: t. XVIII.
BIBL. NAT., Lc2 77.
109. Nouvelles Politiques Publieés a Leyde. Revista, 1786.
BIBL. NAT., Inv. M. 9961-9968.
110. ANÔNIMO. Personnages byzarres et singuliers.
Paris, 1868, in-12.
Contém um estudo sobre Cagliostro.
111. The Public Advertiser (Jornal).
Londres, 1786, n? 16306, Carta a Morande.
112. ROBERTSON. Mémoires récréatifs scientifiques, etc. du
physicien aéronaute E.-G. Robertson (Robert).
Paris, 1831, 2 vol. in-8?.
113. ROBIQUET. Théveneau de Morande.
Paris, Quantin, in-8?.
Cf. p. 189.
BIBL. NAT, Ln27, 33240.
114. Rodocanachi. Le Chateau Saint-Ange.
Paris, Hachette, in-folio, 1909.
Cf. p. 238.
BIBL. NAT., Fol. K. 317.
115. Anonyme. Travaux de Cagliostro à Lyon.
Artigo in: Initiation, março de 1906.

Obras em Línguas Estrangeiras


116. Ademollo (A.) Cagliostro ei Liberi Muratori.
Artigo in: Nuova Antologia, Roma, 1881. vol. XXVI, fascicule VIII,
p. 622.
BIBL. NAT., 8? Z. 41.
117. Allgemeine Encyclopaedic des Wissenschaften Und Kunst von
Ersch und Gruber. Halle.
Contém, caderno C, p. 75, uma bibliografia sobre Cagliostro.
118. Allgemeine Zeitung (Revista).
Ano 1894. Suplementos n? 64, 65 e 67. Cartas de Burkli sobre Ca­
gliostro.
119. Berlinische Monatschrift (Gedike und J. E. Biester).
Berlim, 1784, dezembro, p. 538. Une visite à Cagliostro.
1786, maio, p. 385, 398. Art. da Sf de Recke.
1787, novembro, p. 449, 458. Art. sobre sua estada na Suíça.
120. Bocholz (C.F.) Historiche Denkwurdigkeiten aus Kriminal
Prozessen... II Theile.
Perth, K.A. Hartleben. 1816, zn-8?.
Theil I n? 2, p. 34, 73.
121. Bulau (Fred). Geschichten geheime und raethselhafte Menschen.
Leipzig, F.-A. Brockhaus, 1850, zzz-8?, Cf, 1.1.
122. Carlyle. Count Cagliostro. Elight first and flight last.
Artigos in: Fraser’s Magazine, julho de 1883, p. 19-28 e agosto 1823,
p. 132, 155.
Esses artigos reunidos foram reimpressos no vol. Ill dos Critical and
miscellaneous essays, de Carlyle. Londres. 1847.
BIBL. NAT., Z. 44799.
123. Cesari (Ant.), Vita di Clementi Vannetti.
Verona, 1818, zzz-8?, 187 p. Cfi: p. 120 Séjour de Cagliostro à Rovoreto.
124. II Chracas (ou Krakas). (Jornal).
Anos 1790 e 1795. Artigos sobre o processo e a morte de Cagliostro.
125. Cummerow. Graf. Cagliostro alias Joseph Balsamo aus Palermo.
Artigo in: Westermann’s Monatschrift. Braunschw. Jahrg, 1893.
126. Deutsche Merkur, editado por Wieland.
Ano 1791, Biografia de Cagliostro.
127. Deutsches Museum (Revista).
1787, n? 13, p. 387
Carta de Schlosser sobre Cagliostro.
128. D. P. (Picenardi). Del Cagliostro secondo i documenti diplomatici
sardi.
Artigo in Curiosita e ricerche di Storia Subalpina.
129. Ephemeriden der Freymaurerei (Revista).
Contém, p. 109, a carta do Cavaleiro Langlois sobre sua cura.
130. Ephemeriden der Menscheit (Revista).
Ano 1782, vol. II, p. 471-484.
Contém um artigo sobre Cagliostro.
131. Evans (Henry Ridgely). Cagliostro, a study in charlatanism.
Artigo in: The Monist. Vol. XIII. Julho de 1903.
Chicago, m-8?, p. 523-552, com gravuras.
132. Frankfurter Gelehrte Anzeiger (Revista).
Frankfurt, 1787, n? de 5 de junho. Artigo sobre Cagliostro.
133. Funk (Henrich). Die Wanderjahre derfrau von Branconi.
Artigo in: Westermann’s Monatschriften, novembro de 1895.
134. Lavater and Cagliostro.
Artigo in: Nord und Sud Berliner lahrg.
Berlim, outubro de 1897.
135. Cagliostro à Strasbourg.
Artigo in: Archiv. fur Kultur-Geschichte, 1905. Vol. Ill, p. 223-234.
136. Goethe (J.W.) Neue Schriften.
Berlim, J.F. Unger, 1794-1800, sete vol. in-8°.
Vol. I, n? 2. Árvore genealógica de Balsamo.
137. Das Graue Ungeheuer (Jornal).
Editor: Wekherlin, peq. m-8?
1785, vol. V n? 15, p. 331, e 1786, vol. VII, n° 20. p. 157. Artigos
contra Cagliostro.
138. Hartmann (Dr. Franz). Cagliostro. Artigo publicado primeiro
em The occult Review trad, em La Verdad, ano V, n? 60, abril de 1910, p.
543-546, 2 col. Com um retrato singular.
139. Hesekiel (G.). Abenteuerliche Gesellen.
Berlim, 1862, in-8°, 2 vol.
1.1, n? 2: Cagliostro.
140. Hegner (Ulrich). Beitrage zur wahren Kenntnis und wahren
Darstellung Joh. Kaspar Lavaters aus Briefen seiner Freunde.
Contém: p. 137, uma carta de Mathéi a Lavater sobre Cagliostro.
141. Journal von undfür Deustchland.
Dezembro de 1788, p. 516-520. Artigo sobre Cagliostro.
142. Kekule von Stradonitz (Stephan). Goethe als Genealog.
Berlim, 1900, zn-16 quadrado, 18 p.
Genealogia de J. Balsamo.
143. Langmesser. Jacob Sarrasin der Freund Lavaters (Tese).
Zurich, 1899, gr. in-8°, p. 24 a 153
144. Martius (Dr. Em. Wihelm). Erinnerungen aus meinem
neunzigjahrigen Leben.
Leipzig, Leop. Voss, 1847, peq. in-8?.
145. Medizinisches Wochenblatt (Revista)
Frankfurt, in-8? Cf: n? de 11 de fevereiro de 1786.
146. Meiners (C.) Briefe über die Schweiz (6 partes, 4 volumes).
Viena, 1791, in-8?; ilustrado. II? parte.
147. Anônimo. Menschen berühmte und ihre Geschichte.
Berlim, 1894, in-8? em 10 partes.
Contém um estudo de Bemstein sobre Cagliostro.
148. Oberrheinische Mannigfaltigkeiten (Jornal).
1781, 2? trimestre. Stuck, I, p. 113. Stuck, XI, p. 161.
149. Pitaval (Der neue). Trad, para o alemão do francês: O novo
Pitaval, por Hitzig e Willibald.
Leipzig, 1845, in-8?, vol. I, p. I.
Cagliostro e o processo do Colar.
Outra tradução feita por Lud. Hain, sob o título: Lebensbeschreibungen
und Criminalprozesse, Lpzg, Kollman, 1846, 3 vol. in-8°. Cf. Vol. II. Ca­
gliostro.
150. Richard (H.-A.-O.) Cadernos de leituras, IV fascicules (que fo­
ram lançados)
Gotha, Etinger, 1786, in-8?.
Contém um estudo sobre Cagliostro.
151. Scala (Alessandro), Lo Stemma dei conte Cagliostro.
Artigo in: Rivista del Collegio Araldico.
Roma, 1905, Ano III, n? 10, outubro.
152. Schlosser. Schreiben an Herrn N... über eine in dem Grauen
Ungeheuer n? 20 enthaltene Stelle um Grafen Cagliostro.
Artigo in: Deutsches Museum, janeiro de 1787, n? 13, p. 387.
153. Schultz (Em.) Cagliostro und Consorten.
Berlim, 1894, in-8?, 10 p.
Artigo publicado em uma revista.
154. Seyboth (Ad.) Das alte Strassburg.
Estrasburgo, S. A. (1890) Heitz, in-4?. Cf: p. 236
155. Sierke (E). Schwãrmer und Schwindler am Endle des 18?
lahrhunderts.
Leipzig, 1874, gr. in-8?.
156. Silvagni (D). La Corte et la Societa Romana.
Florença, 1882, in-8?
Tomo I, p. 298.
157. Sommi Picenardi (marchese). Ricordo di Cagliostro a San Leo.
Artigo in: Rivista di Scienze Storiche. Pavia, junho de 1905.
158. Sylvestre (Julien). Interessante Entheillungen.
Londres e Berlim, H. F. Smith. S. A. (1860), zn-8?, p. 95-101. Nota
sobre Cagliostro.
159. Tiirler (Dr. Heinrich) Neues Berner Taschenbuch (1901).
Bema, K. J. Wyss, 1900, in-16.
Cf.: p. 110-118, Cagliostro à Bienne.
160. Von der Recke. Etwas ueberdes Herm Oberhofprediger J. Aug.
Stark Wertheidigungschrift nebst einigen andem nõthigen Erlauterungen.
Berlim, Ebend, 1787, in-8°.
161. Weisstein (G). Cagliostro à Strasbourg.
Artigo in: Elsass Lothringische Zeitung, 1882, n? 37.

Manuscritos
162. Bibliothèque Privée du Dr. Papus. Ritual da Maçonaria Egípcia
por Cagliostro. O original zn-4? foi perdido. A cópia da Bibi. Papus é in-
fólio, mas paginada segundo o original. E a que tivemos às mãos graças à
generosidade de nosso amigo Papus. O Sr. René Philipon possuiu outra
cópia.
Alguns fragmentos foram publicados na Initiation de agosto de 1906
a abril de 1908.
163. Arquivos Nacionais. Interrogatórios de Cagliostro na Bastilha.
X2 B 1417 (antigos F7 4445 B e 4450).
Documentos Fontaine sobre o caso J. Balsamo Y 13125.
Outros documentos sobre o processo do Colar a respeito de Cagliostro.
O11598.
164. Biblioteca do Arsenal. Manuscritos da Bastilha.
Classificação: 1785 B.
i. Mss 12457. Cinco peças sobre a detenção de Cagliostro e da con­
dessa na Bastilha.
ii. Mss 12458. 12459. Catálogo dos libelos, brochuras, relatórios e
panfletos relativos a Cagliostro e ao processo do Colar, encontrados na
Biblioteca do Arsenal.
iii. Mss. 12517. Nota relativa à doença da condessa na Bastilha, f?
126. (Classificação: 1786. B.)
165. Biblioteca Nacional. Mss. francês, 6685. Diário do livreiro Hardy.
166. Biblioteca da Cidade de Paris. Manuscritos. Processo Target.
Na reserva.
167. Biblioteca da Cidade de Bâle. Archives Sarrasin. Compreendem
o Diário de Sarrasin e sua correspondência. Esses arquivos, antigamente
conservados pela família, foram doados à cidade. Encontramos ali cartas
de Sarrasin e, sobretudo, cartas dirigidas a ele por Lavater, Matheí, de
Gingin, etc., esclarecendo notavelmente a vida e a ação de Cagliostro; uma
carta de Cagliostro, uma carta de sua mulher, retratos e documentos.
168. Biblioteca da cidade de Estrasburgo. Manuscritos. Lote AA2110.
Documentos, cartas e relatórios referentes ao caso Ostertag e ao caso Sachi;
carta do cardeal de Rohan, de Barbier de Tinan e outros personagens ofi­
ciais de Cagliostro.
169. Biblioteca Naz. Vittorio Emmanuele em Roma. Cod. Mss.
Scritture circa il processo di Giuseppe Balsamo.
Indicação tirada da obra de Rodocanachi acerca do castelo Saint-Ange.
170. Biblioteca Particular do Sr. Bréghot du Lut (em Confolens,
Drôme). Cartas de Saltzmann a Willermoz a respeito de sua visita a Ca­
gliostro em 1780.

Retratos de Cagliostro
171. Busto por Houdon. Encontra-se atualmente no museu de Aix-
en-Provence: n? 776. Uma moldagem em gesso fora doada ao Sr. Thilorier;
ela fazia parte das coleções do Sr. Storelli, em Blois, em 1902.
172. Retrato — desenhado do natural por Guérin, gravado por Devère
em Paris, publicado pelo autor, rua dos Grands-Degrés n? 17, e pela srta. le
Beau, mercadora no Palais Royal.
(Anunciado como novidade no Mercure de France de 18 de março de
1786). Com os seguintes versos:
L’homme dans chaque siècle a connu les prestiges;
Ce docteur que tu vois a profité des siens:
II étudia l ’homme et, grand magicien
Sur I’ignorance humaine il fonda ses prodiges.
In-4°
(O homem, em cada século, conheceu os sortilégios
Este doutor que vês aproveitou dos seus:
Estudou o homem e, grande mago
Sobre a ignorância humana, ele fundou seus prodígios.)
173. O mesmo, desenhado por Guérin, gravado por Thoenert.
In-8°
174. O mesmo, desenhado por Guérin, gravado por Duhamel. Em
Paris, publicado por Esnault e Rapilly.
In-4°
175. Retrato — II. Retrato gravado: O conde de Cagliostro. Vendido
em Augsburgo. Zn-12.
175 bis. id. — II. Bis. Retrato gravado, in-8°. Legenda: “Para saber o
que ele é seria preciso ser ele próprio.”
176. Retrato. — III. Retrato gravado, realçado com cores à mão com
as armas de Cagliostro.
177. Retrato. — IV. Retrato gravado em azul por Pariset segundo
uma pintura de Boudeville.
Zn-16.
“Dedicado a madame Seraphia Felichiani” com os seguintes versos:
Do conde de Cagliostro revelemos o mistério
Ele quer, é para o bem; ele pode, é para fazê-lo.
BIBL. NAC., Estampas. Col. Hennin. 138.
178. Retrato. — V. Retrato gravado por Vinsac segundo um retrato
feito ao natural por Pujos (1786).
Retrato em Maneira Negra. Cagliostro usa um manto de pele.
178 bis id. — V. Bis. O mesmo S? W? Evans, escultor. A. Loosjes. P.
Z., exct. Retrato gravado.
179. Retrato — VI. Retrato gravado por Bonneville. Em Paris, rua do
Théâtre Français.
/n-8?
180. Retrato. — VIL Retrato em maneira negra tendo abaixo a inscri­
ção “O Conde de Cagliostro” e os seguintes versos:
“Do amigo dos humanos reconhecei os traços.
Todos os seus dias são marcados por novas bondades
Ele prolonga a vida, ele socorre a indigência,
O prazer de ser útil é sua única recompensa.”
Gravado por J.-B. Chapuy. Brion de la Tour. Encontra-se com Basset,
rua Saint-Jacques.
M-4°.
181. Retrato. — VIII. Retrato no fisionotraço (?) silhueta negra.
182. Retrato. — IX. Retrato litografado por Wittmann.
O mesmo litografado pelo impressor Aubert (Gabinete de leitura)
183. Retrato. — X. Retrato gravado por Bollinger, quadro octogonal.
E Zwickau, em Gabr. Schumann.
184. Retrato. — XI. Retrato gravado por Leclère a partir de um qua­
dro. Coleção da galeria histórica de Versalhes, in-f?.
Retrato em traje de cidade, cabeça baixa.
185. Retrato. — XII. Retrato gravado por R.-S. Marcuard, segundo
uma pintura de F. Bartolozzi, 1786.
ín-fólio, existe em negro.
BIBL. NAC., col. Caffarelli Calamy.
186. — id em bistre.
187. — id. em cores.
Abaixo 4 versos em inglês, assim traduzidos em português:
“Eis o homem espantoso, cujo talento sublime
Da morte, a cada dia, engana a avidez,
E que nenhum interesse anima
Senão o da humanidade.”
188. Retrato. — XIII. Retrato em pé: gravado por Sasso, desenhado
por Bosio.
Zn-4°.

Retratos da Condessa
189. Retrato— I. Retrato, m-4? oval, meio corpo em bistre.
Paris, por Alibert.
190. Retrato — II. Retrato em maneira negra.
Zn-8?
191. Retrato— III. Retrato gravado realçado com cores à mão.

TEMAS DIVERSOS
192. Desenho. Cagliostro mostra a Maria Antonieta (?) e a seu séqui­
to uma aparição em uma garrafa: sem legenda.
Desenho da época a bico-de-pena, medindo 56-79 mm.
Catai. Rosenthal.

Caricaturas
19 3.1. Novo ídolo que representa o conde de Callimasse. Zn-f?, 30-40
cm, rodeado por um fio negro. Gravura formada por uma vintena de peque­
nos temas distintos, cada um com sua legenda.
Abaixo, a legenda: “Retrato simbólico do Sr. conde de Callimasse”.
(cerca de 1786).
194. II. Making a Free mason. The Celebrated Dr. Comte de Caglios­
tro and his assistant making the necessary preparat. for admission in-to the
anc. Order of Egyptian Free Masonry.
hi-4°, 2 páginas coloridas.
(coleção Astier. Catai, p. 41. n? 343).
195. III. Anedocte maçonnique arrivée à Londres le 1°novembre 1786
auf: Balsamo, soi-disant prince de Trébizonde.
Londres, 1786.
Zn-fólio, colorido, descrição em inglês e em francês (34 versos ingleses)
(Coleção Astier. Catai, p. 42. n? 344).
196. IV. Frontispício de: Nachrichten achte... (Mémoires authentiques).
Berlim, 1786. Cagliostro, em meio a um público feminino, nu, senta­
do sobre uma esfera, com uma serpente na mão, a cabeça rodeada por uma
auréola.
Obras de Fantasia sobre Cagliostro
197. Anicet Dumanoir. La Fiole de Cagliostro. Vaudeville, 1835,
in-4?.
198. Antony Béraud et Léopold. Cagliostro, melodrama, in-8°.
199. Bell (Georges). Le miroir de Cagliostro. Paris. 1860, in-12.
200. Breval (Jean). “Cagliostro. Conte du lundi”. Journal d’Alsace-
Lorraine, 14 de março de 1910.
201. Anônimo. Cagliostro ou 1’Intrigant. Paris, 1834, 2 v. z'n-8?.
202. Anônimo. Cagliostro und die Hexe. Comédia.
Kehl, 1874, in-8?.
203. Catarina II da Rússia. Der Betruger. Der Verblendte. Der
Sibirische Schamon, comédias.
Riga, 1787, e Berlim, 1788, in-8?
204. De Créqui (Marquesa) (apócrifo: conde de Courchamps). Le
paradis sur terre. Trecho das memórias inéditas de Cagliostro.
Im Souvenirs, Paris, 1834, 3 v. in-8?.
T. Ill, 323-359.
Conto fantástico.
205. Dumas (Alexandre). Memoires d’un médecin. Joseph Balsamo
(3 vol). Le Collier de la Reine (5 vol.)
206. Dumas (Alex.) filho. Joseph Balsamo, drama em 5 atos. 1878.
207. Dupaty e de Reveroni. Cagliostro ou les llluminés, ópera-cômica.
Paris, 1810, in-8?.
208. Gérard de Nerval. Les llluminés. Paris, Lévy, 1868, in-18.
209. Goethe. Le Grand Cophte, comédia, in: t. I das Oeuvres
dramatiques.
Paris, 1825, em Santelet.
A edição original em alemão do Grande Copta é de 1792.
210. Giseke (R.). Die beiden Cagliostro, drama. Leipzig, 1858, in-8°.
211. Griesinger (Th). Cagliostriana. Novela. Stuttg., 1844.
212. Anônimo. (Natale Roviglio), 11 Cagliostro, comédia em 5 atos.
S.L., 1791, in-8, 71 p. Com 2 retratos.
213. Mendès e Lesclide. La divine aventure. Paris, 1881, in-12.
214. Mundt (Th). Cagliostro in Peterburg. Novela. Praga, 1858, in-8?.
215. Scribe. Cagliostro, ópera-cômica, 1844.
Mas o doméstico, com
uma profunda
reverência:
— Não, senhor. O Senhor
bem sabe que só estou a
serviço há 1.500 anos!”
Esse é um exemplo das
muitas histórias, como a
do rejuvenescimento de
uma criada que voltou a
ser garotinha ou a do
banquete das sombras,
que circulavam na época
de Cagliostro. Muitas
histórias foram
inventadas por farsantes:
uns, conscientes,
buscavam acabar com o
prestígio que rodeava
esse homem de poderes
especiais; outros
confundiam de boa-fé as
histórias e, uma vez que
Cagliostro era curador e
alquimista, atribuíam-ihe
façanhas inimagináveis.
Assim foi construída a
imagem deste mestre do
oculto, revelada nas
páginas deste livro.
Biografia/Alquimia/Hermetismo

CagliostrO
O GRANDE MESTRE DO OCULTO
esde a sua época, as pessoas que viam Cagliostro agir, que o

D
observavam e o interrogavam admitiam ser impossível julgá-
lo. Uns o reverenciavam como um verdadeiro deus, outros o
odiavam. Certamente, nenhuma personalidade permaneceu
mais enigmática ao longo da História do que este homem. Mas, a
quem foi Cagliostro?
Acerca de sua vida, lendas e calúnias se acumularam. Desde que estava
vivo até depois da sua morte, histórias a seu respeito se espalharam e ódios
religiosos o perseguiram. Por não encontrarem nada que explicasse seus
atos, os historiadores logo o deixaram de lado e a literatura tomou para si
o papel de torná-lo um personagem clássico.
Das lendas, exageros e imperícias de seus discípulos e admiradores cons­
truiu-se a imagem do mago Cagliostro: um homem rico, dono de uma
fortuna que ninguém sabia de onde provinha, dotado de um poder espe­
cial para a cura e realizador de milagres que enciumavam os médicos e
poderosos de sua época. Um homem que ajudava a todos, que inclusive
dava abrigo e dinheiro aos pobres fiéis que trilhavam longas viagens em
busca de uma possível cura. Uma personalidade que despertava ódio e
amor e da qual, no entanto, temos apenas uma idéia aproximada.
Cagliostro — O Grande Mestre do Oculto é uma obra biográfica que,
baseada em textos oficiais, referências de contemporâneos imparciais e
cartas e petições escritas pelo próprio Cagliostro, busca iluminar mais um
pouco o caráter de um homem tão cercado de mistérios e suas relações
com o Hermetismo, a Alquimia e a Maçonaria.

MA OR AS

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